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A Eclesiologia da Lumen Gentium por Cardeal Joseph

Ratzinger
Por Joseph Ratzinger

Durante a preparação para o Concílio Vaticano II e também durante o próprio Concílio,


o Cardeal Frings muitas vezes me contou um pequeno episódio que evidentemente o
tocara profundamente. O Papa João XXIII não havia de sua parte estabelecido nenhum
tema determinado para o Concílio, mas convidara os Bispos do mundo inteiro a propor
as suas prioridades, para que das experiências vivas da Igreja universal surgisse a
temática de que o Concílio deveria ocupar-se. Também na Conferência Episcopal Alemã
se discutiu sobre quais temas deveriam ser propostos para a reunião dos Bispos. Não só
na Alemanha, mas praticamente em toda a Igreja católica se considerava que o tema
deveria ser a Igreja: o Concílio Vaticano I interrompido antes da hora em razão da
guerra franco-alemã não pudera levar a termo a sua síntese eclesiológica, mas deixara
um capítulo isolado de eclesiologia. Retomar os fila de então e assim buscar uma visão
global da Igreja parecia ser a tarefa urgente do iminente Concílio Vaticano II. Isso
decorria também do clima cultural da época: o fim da primeira guerra mundial trouxera
consigo uma profunda reviravolta teológica. A teologia liberal orientada de modo
completamente individualista se eclipsara como por si mesma, se despertara uma nova
sensibilidade para a Igreja. Não só Romano Guardini falava de redespertar da Igreja nas
almas; o bispo evangélico Otto Dibelius cunhava a fórmula de "século da Igreja", e Karl
Barth dava à sua dogmática fundada sobre as tradições reformadas o título programático
de "Kirchliche Dogmatik" (Dogmática eclesial): a dogmática pressupõe a Igreja, como
explicava ele; sem Igreja, ela não existe.

Entre os membros da Conferência Episcopal Alemã, portanto, prevalecia amplamente


um consenso sobre o fato de que a Igreja devesse ser o tema. O velho bispo Buchberger
de Regensburg, que, como ideador do Lexikon für Theologie und Kirche em dez
volumes, hoje na sua terceira edição, conquistara estima e renome muito além da sua
diocese, pediu a palavra - assim me contava o Arcebispo de Colônia - e disse: caros
irmãos, no Concílio deveis sobretudo falar de Deus. Este é o tema mais importante. Os
Bispos ficaram impressionados; não podiam furtar-se à gravidade destas palavras.
Naturalmente, não podiam decidir-se a propor simplesmente o tema de Deus. Mas uma
inquietação interior permaneceu pelo menos no Cardeal Frings, que se perguntava
continuamente como poderíamos satisfazer a este imperativo. Este episódio voltou-me à
mente quando li o texto da conferência com a qual Johann Baptist Metz se despediu em
1993 da sua cátedra de Münster. Desse importante discurso gostaria de citar pelo menos
algumas frases significativas. Diz Metz: "A crise que atingiu o cristianismo europeu não
é mais primariamente ou pelo menos exclusivamente uma crise eclesial... A crise é mais
profunda: de fato, ela não tem as suas raízes só na situação da própria Igreja: a crise
tornou-se uma crise de Deus". "Poder-se-ia dizer, esquematicamente: religião, sim -
Deus não, onde este não, por sua vez, não é entendido no sentido categórico dos grandes
ateísmos. Não existem mais grandes ateísmos. O ateísmo de hoje. ns realidade, já pode
voltar a falar de Deus - distraída ou tranquilamente -, sem pretendê-lo realmente...".
"Também a Igreja tem sua concepção da imunização contra as crises de Deus. Ela hoje
não fala mais - como por exemplo ainda no Concílio Vaticano II - de Deus, mas apenas -
como por exemplo no último Concílio - de Deus anunciado por meio da Igreja. A crise
de Deus é codificada eclesiologicamente". Palavras deste tipo na boca do criador da
teologia política devem tornar atentos. Elas nos recordam sobretudo justamente que o
Concílio Vaticano II não foi só um concílio eclesiológico, mas antes e sobretudo ele
falou de Deus e isto não só dentro da cristandade, mas voltado para o mundo - daquele
Deus que é o Deus de todos, que a todos salva e a todos é acessível. Será que porventura
o Vaticano II, como Metz parece dizer, recolheu só metade da herança do Concílio
anterior? Um texto dedicado à eclesiologia do Concílio deve evidentemente colocar-se
esta pergunta.
Gostaria de antecipar imediatamente a minha tese de fundo: o Vaticano II queria
claramente inserir e subordinar o discurso sobre a Igreja ao discurso sobre Deus, queria
propor uma eclesiologia no sentido propriamente teo-lógico, mas a recepção do
Concílio até o momento desdenhou esta característica qualificante em favor de
afirmações eclesiológicas isoladas, lançou-se sobre palavras isoladas de fácil apelo e
assim ficou para trás no que se refere às grandes perspectivas dos Padres conciliares.
Algo de análogo se pode, aliás, dizer a propósito do primeiro texto que o Vaticano II
produziu - a Constituição sobre a Sagrada Liturgia. O fato de que ela se situasse no
início tinha em princípio motivos pragmáticos. Mas retrospectivamente se deve dizer
que na arquitetura do Concílio isto tem um sentido preciso: no início está a adoração. E
portanto Deus. Este início corresponde à palavra da Regra beneditina: Operi Dei nihil
praeponatur. A Constituição sobre a Igreja, que se segue como o segundo texto do
Concílio, deveria ser considerada internamente vinculada a ela. A Igreja deixa-se guiar
pela oração, pela missão de glorificar a Deus. A eclesiologia, por natureza, tem a ver
com a liturgia. E portanto também é lógico que a terceira Constituição fale da palavra de
Deus, que convoca a Igreja e a renova a todo momento. A quarta Constituição mostra
como a glorificação de Deus é proposta na vida ativa, como a luz recebida de Deus é
levada ao mundo e só assim se torna totalmente a glorificação de Deus. Na história do
pós-concílio, certamente a Constituição sobre a liturgia não foi mais compreendida a
partir deste primado fundamental da adoração, mas antes como um livro de receitas
sobre o que podemos fazer com a liturgia. Nesse meio tempo, parece ter fugido aos
criadores de liturgia, ocupados que estão de modo cada vez mais premente em refletir
sobre como se possa configurar a liturgia de modo cada vez mais atraente,
comunicativo, nela envolvendo ativamente cada vez mais gente, que a liturgia na
realidade é "feita" para Deus e não para nós mesmos. Quanto mais, porém, a fizermos
para nós mesmos, tanto menos atraente ela é, porque todos notam claramente que o
essencial é cada vez mais perdido. No que concerne agora à eclesiologia de "Lumen
gentium", permaneceram sobretudo na consciência algumas palavras chaves: a idéia de
Povo de Deus, a colegialidade dos Bispos como revalorização do ministério do Bispo
em relação ao primado do Papa, a revalorização das Igrejas locais em relação à Igreja
universal, a abertura ecumênica do conceito de Igreja e a abertura às outras religiões;
enfim, a questão do estatuto específico da Igreja católica, que se exprime na fórmula
segundo a qual a Igreja una, santa, católica e apostólica, de que fala o Credo, "subsistit
in Ecclesia catholica": deixo esta famosa fórmula aqui inicialmente não traduzida,
porque ela - como era previsto - recebeu as explicações mais contraditórias – da idéia,
de que aqui se exprima a singularidade da Igreja católica unida ao Papa até a idéia de
que aqui se tenha alcançado uma equiparação com todas as outras Igrejas cristãs e a
Igreja católica tenha abandonado a sua pretensão de especificidade.
Numa primeira fase da recepção do Concílio predomina, conjuntamente com o tema da Colegialidade, o conceito de povo de Deus,
que, logo compreendido totalmente a partir do uso lingüístico político geral da palavra povo, no âmbito da teologia da libertação foi
compreendido com o uso da concepção marxista do povo como
contraposição às classes dominantes e mais em geral e ainda mais amplamente no sentido de soberania do povo, que agora
finalmente deveria ser aplicada também à Igreja. Isso, por sua vez deu oportunidade a amplos debates sobre as estruturas, nos quais
foi interpretado, conforme a situação, de modo mais ocidental como "democratização" ou mais no sentido das "Democracias
populares" orientais. Lentamente, este "fogo de artifício de palavras" (N. Lohfink) ao redor do conceito de povo de Deus foi-se
apagando, por um lado e principalmente porque estes jogos de poder se esvaziaram por si mesmos e tiveram de dar lugar ao trabalho
ordinário nos conselhos paroquiais, mas por outro lado também porque um sólido trabalho teológico mostrou de modo
incontrovertível a insustentabilidade de tais politizações de um conceito de per si proveniente de um âmbito totalmente diferente.
Como resultado de análises exegéticas precisas, o exegeta de Bochum, Werner Berg, p. ex., afirma: "Apesar do pequeno número de
trechos que contêm a expressão "povo de Deus" - deste ponto de vista, "povo de Deus" é um conceito bíblico um tanto raro -, pode-
se, porém, notar algo comum neles: a expressão "povo de Deus" exprime oparentesco com Deus, a relação com Deus, o vínculo
entre Deus e aquele que é designado como "povo de Deus", portanto uma "direção vertical". A expressão presta-se menos para
descrever a estrutura hierárquica dessa comunidade, sobretudo se o "povo de Deus" for descrito em contraposição aos ministros... A
partir do seu significado bíblico, a expressão tampouco se presta a ser um grito de protesto contra os ministros: "Nós somos o povo
de Deus"".

O professor de teologia fundamental de Paderborn, Josef Meyer zu Schlochtern, conclui


a resenha sobre a discussão ao redor do conceito de povo de Deus com a observação de
que a Constituição sobre a Igreja do Vaticano II termina de tal modo o capítulo
correspondente que "designa a estrutura trinitária como fundamento da última
determinação da Igreja...". Assim aa discussão é reconduzida ao ponto essencial: a
Igreja não existe por si mesma, mas deveria ser o instrumento de Deus, para reunir os
homens a Ele, para preparar o momento em que "Deus será tudo em tudo" (1 Cor 15,
28). Justamente o conceito de Deus havia sido deixado de lado no "fogo de artifício" ao
redor desta expressão e assim fora privado do seu significado. De fato, uma Igreja que
existe só por si mesma é supérflua. E as pessoas logo notam isso. A crise da Igreja,
como ela se reflete no conceito de povo de Deus, é "crise de Deus"; ela decorre do
abandono do essencial. O que resta é hoje só uma luta pelo poder. Isso já existe bastante
no mundo, para isso não se precisa da Igreja. Pode-se certamente dizer que
aproximadamente a partir do Sínodo extraordinário de 1985, que devia tentar uma
espécie de balanço de vinte anos de pós-concilio, uma nova tentativa tem-se difundido,
que consiste em concentrar o conjunto da eclesiologia conciliar num conceito base: a
eclesiologia de comunhão. Acolhi com alegria este novo recentramento da eclesiologia e
também procurei, dentro das minhas capacidades, prepará-lo. Deve-se, porém, em
primeiro lugar reconhecer que a palavra "communio" no Concílio não tem uma posição
central. Entretanto, compreendida corretamente, ela pode servir de síntese para os
elementos essenciais da eclesiologia conciliar. Todos os elementos essenciais do
conceito cristão de "communio" encontram-se reunidos no famoso trecho de 1 Jo 1,3,
que pode ser considerado o critério de referência para toda correta compreensão cristã
da "communio": "O que vimos e ouvimos, anunciamo-lo também a vós, para que
também vós estejais em comunhão conosco. A nossa comunhão é com o Pai e com o seu
Filho Jesus Cristo. Estas coisas vos escrevemos, para que a nossa alegria seja perfeita".
Surge aqui em primeiro plano o ponto de partida da "communio": o encontro com o
Filho de Deus, Jesus Cristo, que no anúncio da Igreja vem aos homens. Nasce assim a
comunihãn dos homens entre si, que por sua vez se fundamenta na comunhão com o
Deus uno e trino. À comunhão com Deus se tem acesso através daquela realização da
comunhão de Deus com o homem que é Cristo em pessoa; o encontro com Cristo cria
comunhão com Ele mesmo e portanto com o Pai no Espírito Santo; e a partir daí une os
homens entre si. Tudo isto tem por fim a alegria plena: a Igreja traz em si uma dinâmica
escatológica. Na expressão alegria plena se nota a referência aos discursos de despedida
de Jesus, portanto ao mistério pascal e ao retorno do Senhor nas aparições pascais, que
tende ao seu pleno retorno no novo mundo: "Vós vos entristecereis, mas a vossa tristeza
se transformará em alegria... ver-vos-ei de novo e o vosso coração se alegrará... Pedi e
recebereis, para que a vossa alegria seja plena" (Jo 16, 20.22.24). Se confrontarmos a
última frase citada com Lc 11, 13 – o convite à oração em Lucas -, fica claro que
"alegria" e "Espírito Santo" se equivalem e que por trás da palavra alegria se esconde
em 1 Jo 1, 3 o Espírito Santo aqui não expressamente mencionado. A palavra
"communio" tem, pois, a partir deste âmbito bíblico, um caráter teológico, cristológico,
histórico-salvífico e eclesiológico. Traz pois consigo também a dimensão sacramental,
que em Paulo se mostra de modo totalmente explícito: "O cálice da bênção que
abençoamos não é porventura comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos
não é porventura comunhão com o corpo de Cristo? Já que há um só pão, nós, embora
sendo muitos, somos um só corpo..." (1 Cor 10, 16s). A eclesiologia de comunhão é
desde seu íntimo uma eclesiologia eucaristica. Ela se coloca assim bem perto da
eclesiologia eucarística, que teólogos ortodoxos desenvolveram de modo convincente
no nosso século. Nela, a eclesiologia torna-se mais concreta e permanece, porém, ao
mesmo tempo totalmente espiritual, trascendente e escatológica. Na Eucaristia, Cristo,
presente no pão e no vinho e dando-se sempre novamente, edifica a Igreja como seu
corpo e por meio do seu corpo de ressurreição nos une ao Deus uno e trino e entre nós.
A Eucaristia é celebrada em diferentes lugares, porém é ao mesmo tempo sempre
universal, porque existe um só Cristo e um só corpo de Cristo. A Eucaristia inclui o
serviço sacerdotal de "repraesentatioChristi" e portanto a rede do serviço, a síntese de
unità e multiplicidade, que já se evidencia na palavra "Communio". Pode-se assim sem
dúvida dizer que este conceito traz em si uma síntese eclesiológica que une o discurso
da Igreja ao discurso de Deus e à vida de Deus e com Deus, uma síntese que retoma
todas as intenções essenciais da eclesiologia do Vaticano II e as une entre si do modo
correto.
Por todos estes motivos sentia-me grato e contente, quando o Sínodo de 1985 trouxe de volta ao centro da reflexão o conceito de
"communio". Mas os anos seguintes mostraram que nenhuma palavra é à prova de mal-entendidos, nem mesmo a melhor e mais
profunda. Na medida em que "communio" se tornou um slogan fácil, ela foi nivelada e deturpada. Como no caso do conceito de
povo de Deus, também aqui se notou uma progressiva horizontalização, o abandono do conceito de Deus. A eclesiologia de
comunhão começou a reduzir-se à temática da relação entre Igreja local e Igreja universal, que por sua vez tornou a cair cada vez
mais no problema da divisão de competências entre uma e outra. Naturalmente, difundiu-se de novo o tema igualitarista, segundo o
qual na "communio" só poderia haver uma igualdade plena. Chegou-se assim de novo exatamente à discussão dos discípulos sobre
quem fosse o maior, que evidentemente em nenhuma geração pretende extinguir-se. Marcos refere-se a ela com maior insistênciaa.
No caminho para Jerusalém Jesus falara pela terceira vez aos discípulos da sua próxima paixão. Chegados a Cafarnaum, pergunta a
eles sobre o que tinham discutido ao longo do caminho. "Mas eles se calavam", pois haviam discutido sobre qual deles fosse o maior
- uma espécie de discussão sobre o primado (Mc 9, 33-37). Não é assim também hoje? Enquanto o Senhor vacaminha para a sua
paixão, enquanto a Igreja e nela Ele próprio sofre, nós nos detemos no nosso tema preferido, na discussão sobre os nossos direitos
de precedência. E se Ele viesse entre nós e nos perguntasse sobre o que falamos, quanto teríamos de enrubecer e calar. Isto não quer
dizer que na Igreja não se deva também discutir sobre a ordenação correta e sobre a atribuição das responsabilidades. E certamente
sempre haverá desequilíbrios que exigem correções. Naturalmente pode ocorrer um centralismo romano exorbitante, que, como tal,
deve depois ser evidenciado e purificado. Mas tais questões não nos podem distrair da verdadeira tarefa da Igreja: a Igreja não deve
falar primariamente de si mesma, mas de Deus, e só para que isto aconteça de modo puro há então também críticas intraeclesiais,
para as quais a correlação do discurso sobre Deus e sobre o serviço comum deve dar a direção. Em suma, não por acaso retorna na
tradição evangélica em diversos contextos a palavra de Jesus segundo a qual o último será o primeiro e o primeiro, o último - como
um espelho, que diz respeito sempre a todos. Diante da redução, que com relação ao conceito de "communio" se verificou nos anos
que se seguiram a 1985, a Congregação para a Doutrina da Fé considerou oportuno preparar uma "Carta aos Bispos da Igreja
católica sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão", que foi publicada com a data de 28 de junho de 1992. Uma vez
que hoje para os teólogos que prezam a o seu prestígio, parece Ter-se tornado um dever dar uma avaliação negativa aos documentos
da Congregação para a Doutrina da Fé, sobre esse texto choveram as críticas, de que muito pouco conseguiu salvar-se. Foi
sobretudo criticada a frase de que a Igreja universal seria no seu mistério essencial uma realidade que ontológica e temporalmente
precede cada uma das Igrejas particulares. Isto no texto era brevemente fundamantado com a evocação do fato de que segundo os
padres a Igreja una e única precede a criação e gera as Igrejas particulares (9). Os padres dão assim continuidade a uma teologia
rabínica que concebera como preexistentes a Torá e Israel: a criação teria sido concebida para que nela houvesse um espaço para a
vontade de Deus; esta vontade, porém, precisava de um povo que vivesse para a vontade de Deus e dela fizesse a luz do mundo.
Uma vez que os padres estavam convictos da identidade última entre Igreja e Israel, eles não podiam ver na Igreja algo de casual
aparecido de última hora, mas reconheciam nesta reunião dos povos sob a vontade de Deus a teleologia interna da criação. A partir
da cristologia, a imagem se amplia e se aprofunda: a história - de novo em relação com o Antigo Testamento - é explicada como
história de amor entre Deus e o homem. Deus encontra e prepara para Si a esposa do Filho, a única esposa, que é a única Igreja. A
partir da palavra da Gênese, que homem e mulher serão "dois numa só carne" (Gn 2, 24), a imagem da esposa se funde com a idéia
da Igreja como corpo de Cristo, metéfora que por sua vez deriva da liturgia eucarística. O único corpo de Cristo é preparado; Cristo
e a Igreja serão "dois numa só carne", um corpo, e assim "Deus será tudo em tudo". Essa precedência ontológica da Igreja universal,
da única Igreja e do único corpo, da única esposa, em relação às realizações empíricas concretas em cada uma das Igrejas
particulares me parece tão evidente, que para mim é difícil compreender as objeções a ela. Na realidade, elas só me parecem
possíveis se não se quer e não se consegue mais ver a grande Igreja ideada por Deus - talvez por desespero em razão da sua
insuficiência terrena -; ela aparece então como uma quimera teológica, e permanece portanto só a imagem empírica das Igrejas na
sua relação recíproca e na sua conflitualidade. Isto porém significa que a Igreja como tema teológico é excluída. Se agora só se pode
ver a Igreja nas organizações humanas, então na realidade permanece só desolação. Mas então não se abandona só a eclesiologia dos
padres, mas também a do Novo Testamento e a concepção de Israel do Antigo Testamento. No Novo Testamento, aliás, não é
necessário aguardar as epístolas deutero-paulinas e o Apocalipse para encontrar a prioridade ontológica - reafirmada pela
Congregação para a Doutrina da Fé - da Igreja universal em relação às Igrejas particulares. No coração das grandes Epístolas
paulinas, na epístola aos Gálatas, o Apóstolo nos fala da Jerusalém celeste e não como de uma grandeza escatológica, mas como
uma realidade que nos precede: "Essa Jerusalém é a nossa mãe" (Gal 4, 26). A este respeito, H. Schlier nota que para Paulo como
para a tradição judaica em que se inspira, a Jerusalém do alto é o novo eón. Para o apóstolo, porém, este novo eón já está presente
"na Igreja cristã. Esta é para ele a Jerusalém celeste nos seus filhos". Se a prioridade ontológica da única Igreja não pode ser negada
seriamente, a questão acerca da precedência temporal, porém, já é sem dúvida mais difícil. A Carta da Congregação para a Doutrina
da Fé remete aqui à imagem lucana do nascimento da Igreja em Pentecostes por obra do Espírito Santo. Não queremos discutir aqui
a questão da historicidade dessa narrativa. O que conta é a afirmação teológica, que é o que importa a Lucas. A Congregação para a
Doutrina da Fé chama a atenção para o fato de que a Igreja tem início na comunidade dos 120 reunida ao redor de Maria, sobretudo
na renovada comunidade dos doze, que não são membros de uma Igreja local, mas são os apóstolos, que levarão o evangelho aos
confins da terra. Para esclarecer mais isto podemos acrescentare que eles, em seu número de doze, são ao mesmo tempo o antigo e o
novo Israel, o único Israel de Deus, que agora - como desde o início estava contido fundamentalmente no conceito de povo de Deus
- se estende a todas as nações e funda em todos os povos o único povo de Deus. Esta referência é reforçada por outros dois
elementos: a Igreja nessa hora do seu nascimento já fala em todas as línguas. Os padres da Igreja interpretaram corretamente essa
narrativa do milagre das línguas como uma antecipação da Catholica - a Igreja desde o primeiro instante é orientada "kat'holon" -
abarca todo o universo. A isso se correlaciona o fato de que Lucas descreva o grupo de ouvintes como peregrinos vindos da terra
inteira, com base num quadro de doze povos, cujo significado é aludir à onicompreensividade do auditório; Lucas enriqueceu esse
quadro helenístico dos povos com um décimo terceiro nome: os romanos, com o que sem dúvida queria ressaltar mais uma vez a
idéia do Orbis. Não se traduz com toda exatidão o sentido do texto da Congregação para a Doutrina da Fé quando, a este respeito
Walter Kasper diz que a comunidade originária de Jerusalém teria sido de fato Igreja universal e Igreja local ao mesmo tempo e em
seguida continua: "Certamente isto representa uma elaboração lucana; de fato, do ponto de vista histórico, é de se presumir que
houvesse desde o início mais comunidades, ao lado da comunidade de Jerusalém e também comunidades na Galiléia". Aqui não se
trata da questão para nós insolúvel em última instância, de quando exatamente e onde pela primeira vez surgiram comunidades
cristãs, mas do início interior da Igreja no tempo, que Lucas quer descrever e que ele, para além de qualquer observação empírica,
reconduz à força do Espírito Santo. Mas sobretudo não se faz justiça à narratica lucana se se diz que a comunidade originária de
Jerusalém "teria sido ao mesmo tempo Igreja universals e Igreja local. A realidade primeira na narrativa de São Lucas não é uma
comunidade originária hierosolimitana, mas a realidade primeira é que nos doze o antigo Israel, que é único, torna-se o novo e que
agora este único Israel de Deus, por meio do milagre das línguas, ainda antes de se tornar a representação de uma Igreja local
hierosolimitana, se mostra como uma unidade que abarca todos os tempos e todos os lugares. Nos peregrinos presentes, que vêm de
todos os povos, ela também envolve imediatamente todos os povos do mundo. Talvez não seja necessário supervalorizar a questão
da precedência temporal da Igreja universal, que Lucas em sua narrativa propõe claramente. Permanece importante, porém, que a
Igreja nos doze é gerada pelo único Espírito desde o começo para todos os povos e portanto também desde o primeiro instante é
orientada a exprimir-se em todas as culturas e assim a ser o único povo de Deus: não é que uma comunidade local se amplie
lentamente, mas o fermento está sempre orientado para o todo e portanto traz em si uma universalidade desde o primeiro instante.
A resistência contra as afirmações de precedência da Igreja universal em relaçao às igrejas particulares é teologicamente difícil de
compreender ou mesmo incompreensível.

Só se torna compreensível a partir de uma suspeita que foi assim sinteticamente


formulado: "A fórmula torna-se totalmente problemática se a única Igreja universal for
tacitamente identificada com a Igreja romana, de facto com o Papa e a Cúria. Se isto
ocorre, então a Carta da Congregação para a Doutrina da Fé não pode ser entendida
como uma ajuda no esclarecimento da eclesiologia de comunhão, mas deve ser
compreendida como o seu abandono e como a tentativa de uma restauração do
centralismo romano". Neste texto, a identificação da Igreja universal com o Papa e a
Cúria é primeiramente introduzida como hipótese, como perigo, mas depois parece de
fato ser atribuída à Carta da Congregação para a Doutrina da Fé, que assim aparece
como uma restauração teológica e portanto como afastamento do Concílio Vaticano II.
Esse salto interpretativo surpreende, mas representa sem dúvida uma suspeita
amplamente difundida; ela dá voz a uma acusação que se ouve um pouco em toda parte,
e também exprime bem uma crescente incapacidade de representar-se sob a Igreja
universal, sob a Igreja una, santa, católica algo de concreto. Como único elemento
configurável restam o Papa e a Cúria, e se se dá a eles uma classificação alta demais do
ponto de vista teológico, é compreensível que pessoas se sintam ameaçadas. Assim nos
encontramos aqui muito concretamente, depois do que só aparentemente é um Excursus,
diante da questão da interpretação do Concílio. A pergunta que agora nos colocamos é a
seguinte: qual idéia de Igreja universal tem realmente o Concílio? Não se pode dizer em
verdade que a Carta da Congregação para a Doutrina da Fé "identifique tacitamente a
Igreja universal com a Igreja romana, de factocom o Papa e a Cúria". Essa tentação
surge se anteriormente já se houvesse identificado a Igreja local de Jerusalém e a Igreja
universal, ou seja, se se houver reduzido o conceito de Igreja às comunidades que
aparecem empiricamente e a sua profundidade teológica tiver sido perdida de vista. É
útil retornar com estas questões ao texto mesmo do Concílio. Imediatamente, a primeira
frase da Constituição sobre a Igreja esclarece que o Concílio não considera a Igreja
como uma realidade fechada em si mesma, mas a vê a partir de Cristo: "Cristo é a luz
das nações, e este sagrado concílio, reunido no Espírito Santo, deseja ardentemente que
a luz de Cristo, refletida na face da Igreja, ilumine a todos os homens... ". Sobre esse
fundo reconhecemos a imagem presente na teologia dos padres, que vê na Igreja a lua, a
qual não tem por si mesma luz própria, mas reenvia a luz do sol Cristo. A eclesiologia
manifesta-se como dependente da cristologia, a ela ligada. Já’que, porém, ninguém pode
falar corretamente de Cristo, do Filho, sem ao mesmo tempo falar do Pai e já que não se
pode falar corretamente de Pai e Filho sem colocar-se na escuta do Espírito Santo, a
visão cristológica da Igreja se amplia necessariamente numa eclesiologia trinitária (LG
n. 2-4). O discurso sobre a Igreja é um discurso sobre Deus, e só assim está correto.
Nesta ouverture trinitária, que oferece a chave para a correta leitura do texto inteiro,
aprendemos o que é a Igreja una, santa a partir das e em todas as concretas realizações
históricas, o que significa "Igreja universal". Isto mais tarde se esclarece quando
sucessivamente é mostrado o dinamismo interior da Igreja rumo ao Reino de Deus.
Justamente porque a Igreja deve ser compreendida teo-logicamente, ela autotranscende
sempre a si mesma; ela é a reunião para o Reino de Deus, irrpução nele. São em seguida
apresentadas brevemente as diversas imagens da Igreja, que representam todas elas a
única Igreja, quer quando se fale da esposa, quer da casa de Deus, da sua familha, do
templo, da cidade santa, da nossa mãe, da Jerusalém celeste ou do rebanho de Deus, etc.
Ao final, isso se concretiza mais. Recebemos uma resposta muito prática à pergunta: o
que é isto, esta única Igreja universal que precede ontológica e temporalmente as Igrejas
locais? Onde está? Onde podemos vê-la agir? A Constituição responde falando-nos dos
sacramentos. Há em primeiro lugar o batismo: ele é um evento trinitário, ou seja,
totalmente teológico, muito mais que uma evento social ligado à Igreja local, como hoje
infelizmente é muitas vezes desfigurado. O batismo não deriva da comunidade
individual, mas nele se abre a nós a porta à única Igreja, ele é a presença da única Igreja
e só pode manifestar-se a partir dela - da Jerusalém celeste, da nova mãe. Com relação a
isto, o conhecido ecumenista Vinzenz Pfnür disse recentemente: o batismo é ser inserido
"no único corpo de Cristo aberto para nós na cruz (cf Ef 2, 16), no qual... são batizados
por meio do único Espírito (1 Cor 12, 13), o que é essencialmente mais do que o
anúncio batismal em uso em muitos lugares: acolhemos na nossa comunidade...". No
batismo, tornamo-nos membros desse único corpo, "o que não deve ser confundido com
a pertença a uma Igreja local. Disso faz parte a única esposa e o único episcopado..., do
qual com Cipriano se participa só na comunhão dos bispos". Nel batismo a Igreja
universal precede continuamente a Igreja local e a constitui. A partir daí a Carta da
Congregação para a Doutrina da Fé sobre a "communio" pode dizer que na Igreja não
há estrangeiros: todos estão em toda parte em casa e não só como hóspedes. É sempre a
única Igreja, a única e a mesma. Quem é batizado em Berlim, está na Igreja em Roma
ou em Nova York ou em Kinshasa ou em Bangalore ou em qualquer outro lugar, tanto
em sua casa como na Igreja em que foi batizado. Não deve registrar-se de novo, é a
única Igreja. O batismo vem dela e dá à luz nela. Quem fala do batismo fala, trata por
isso mesmo também da palavra de Deus, que para a Igreja inteira é só uma e
continuamente a precede em todos os lugares, a convoca e a edifica. Esta palavra está
acima da Igreja, e no entanto está nela, confiada a ela como sujeito vivo. A palavra de
Deus precisa, para estar presente de modo eficaz na história, deste sujeito, mas este
sujeito, por sua vez, não subsiste sem a força vivificante da palavra, que antes de tudo a
torna sujeito. Quando falamos da palavra de Deus, entendemos também o Credo, que
está no centro do evento batismal; ele é omodo como a Igreja acolhe a palavra e dela se
apropria, palavra e resposta, por assim dizer, ao mesmo tempo. Também aqui a Igreja
universal está presente, a única Igreja, de modo bastante concreto e aqui perceptível.
O texto conciliar passa do batismo à Eucaristia, na qual Cristo dá o seu corpo e lhes
devolve assim seu corpo. Esse corpo é único, e assim novamente a Eucaristia para cada
Igreja local é o lugar da inserção no único Cristo, o tornar-se uma só coisa de todos os
que comungam na "communio" universal, que une céu e terra, vivos e mortos, passado,
presente e futuro e abre para a eternidade. A Eucaristia não nasce da Igreja local e não
termina nela. Ela manifesta continuamente que Cristo, de fora, através das nossas portas
fechadas vem a nós; ela vem continuamente a nós a partir de fora, do total, único corpo
de Cristo e nos conduz para dentro dele. Este "extra nos" do Sacramento revela-se
também no ministério do bispo e do presbítero: o fato de a eucaristia precisar do
sacramento do serviço sacerdotal tem o seu fundamento exatamente no fato de que a
comunidade não pode oferecer-se ela própria a eucaristia; ela deve recebê-la a partir do
Senhor por meio da mediação da única Igreja. A sucessão apostólica, que constitui o
ministério sacerdotal, implica ao mesmo tempo tanto o aspecto sincrônico como o
diacrônico do conceito de Igreja: o pertencer ao todo da história da fé a partir dos
apóstolos e o estar em comunhão com todos aqueles que se deixam reunir pelo Senhor
no seu corpo. A Constituição sobre a Igreja tratou notoriamente o ministério episcopal
no terceiro capítulo e esclareceu o seu significado a partir do conceito fundamental do
"collegium". Este conceito que aparece só de modo marginal na tradição serve para
ilustrar a unidade interior do ministério episcopal. Ninguém é bispo individualmente,
mas através da pertença a um corpo, a um colégio, que por sua vez representa a
continuidade histórica do "collegium apostolorum". Neste sentido, o ministério
episcopal deriva da única Igreja e introduz a ela. Justamenteo aqui se torna visível que
não existe teologicamente nenhuma contraposição entre Igreja local e Igreja universal.
O Bispo representa na Igreja local a única Igreja, e ele edifica a única Igreja, enquanto
edifica a Igreja local e desperta os seus dons particulares para a utilidade de todo o
corpo. O ministério do sucessor de Pedro é um caso particular do ministério episcopal e
está ligado de modo particular com a responsabilidade para unidade da Igreja inteira.
Mas esse ministério de Pedro e a sua responsabilidade não poderia sequer existir, se não
existisse antes de tudo a Igreja universal. Mover-se-ia, de fato, no vazio e representaria
uma pretensão absurda. Sem dúvida, a correlação correta entre episcopado e primado
teve de ser continuamente redescoberta através mesmo de esforços e sofrimentos. Mas
esta busca só é colocada de modo correto quando é considerada a partir do primado da
missão específica da Igreja e a ele sempre orientada e subordinada: ou seja, a tarefa de
levar Deus aos homens, os homens a Deus. O objetivo da Igreja é o Evangelho, e ao
redor dele tudo nela deve girar.
Gostaria aqui de interromper a análise do conceito de "communio" e tomar mais uma
vez posição pelo menos brevemente em relação ao ponto mais discutido de "Lumen
gentium": o significado da já mencionada frase de "Lumen gentium" 8, segundo a qual a
única Igreja de Cristo, que confessamos no Símbolo como a única, santa, católica e
apostólica, "subsiste" na Igreja católica, que é guiada por Pedro e pelos bispos em
comunhão com ele. A Congregação para a Doutrina da Fé viu-se obrigada em 1985 a
tomar posição em relação a esse texto muito discutido em razão de um livro de
Leonardo Boff, no qual o autor sustentava a tese de que a única Igreja de Cristo, como
subsiste na Católico-romana, subsistiria também em outras Igrejas cristãs. É supérfluo
dizer que sobre o pronunciamento da Congregação pela Doutrina da Fé choveram
críticas pungentes, para depois ser deixado de lado. Na tentativa de refletir sobre o
estado atual da recepção da eclesiologia conciliar, a questão da interpretação do
"subsistit" é inevitável, e a este respeito o único pronunciamento oficial do Magistério
depois do Concílio sobre esta palavra, ou seja, a citada Notificação, não pode ser
negligenciado. À distância de 15 anos, aparece com mais clareza do que na época que
não se tratava no caso de um único autor teológico, mas de uma visão da Igreja que
circula com diversas variações e ainda hoje é muito atual. O esclarecimento de 1985
apresentou extensamente o contexto da tese de Boff já brevemente mencionada. Não é
necessário aprofundarmo-nos mais nesses pormenores, porque nos interessa algo mais
fundamental. A tese, cujo representante na época foi Boff, poder-se-ia caracterizar como
relativismo eclesiológico. Ela encontra sua justificação na teoria de que o "Jesus
histórico" por si só não teria pensado numa Igreja, e muito menos, portanto, a teria
fundado. A Igreja como realidade histórica teria surgido só depois da ressurreição, no
processo de perda de tensão escatológica, em razão das inevitáveis necessidades
sociológicas da institucionalização, e inicialmente não teria sequer existido uma Igreja
universal "católica", mas apenas diversas Igrejas locais, com diferentes teologias,
diferentes ministérios, etc. Nenhuma Igreja institucional poderia, portanto, afirmar ser
aquela única Igreja de Jesus Cristo querida pelo próprio Deus; todas as configurações
institucionais nasceram, pois, de necessidades sociológicas e portanto, como tais, são
todas elas construções humanas, que podem ou até mesmo devem modificar-se de novo
radicalmente sob novas circunstâncias. Na sua qualidade teológica se diferenciam de
modo muito secundário e portanto se poderia dizer que em todas ou pelo menos em
muitas subsiste a "única Igreja de Cristo". A propósito desta hipótese surge naturalmente
a pergunta de com que direito, numa tal perspectiva, se possa simplesmente falar de
uma única Igreja de Cristo.
A tradição católica, porém, escolheu um outro ponto de partida: ela confia nos
evangelistas, crê neles. Fica então evidente que Jesus, que anunciou o reino de Deus,
para a sua realização reuniu ao seu redor alguns discípulos; Ele lhes deu não só a sua
palavra como uma nova interpretação do Antigo Testamento, mas no sacramento da
última ceia deu-lhes de presente um novo centro unificante, por meio do qual todos
aqueles que se confessem cristãos, de um modo totalmente novo, se tornam uma só
coisa com Ele - tanto que Paulo pôde designar esta comunhão como o ser um só corpo
com Cristo, assim como a unidade de um só corpo no Espírito. Fica então evidente que
a promessa do Espírito Santo não era um vago anúncio, mas apontava para a realidade
de Pentecostes - o fato, pois, de que a Igreja não foi pensada e feita por homens, mas foi
criada por meio do Espírito, é e continua a ser criatura do Espírito Santo. Assim, porém,
instituição e Espírito estão na Igreja numa relação muito diferente da que as
mencionadas correntes de pensamento gostariam de nos sugerir. Assim a instituição não
é simplesmente uma estrutura que se pode modificar ou demolir à vontade, que não teria
nada a ver com a realidade da fé como tal. Assim esta forma de corporeidade pertence à
própria Igreja. A Igreja de Cristo não está escondida de modo imperceptível por trás das
múltiplas configurações humanas, mas existe realmente, como Igreja verdadeira, que se
manifesta na profissão de fé, nos sacramentos e na sucessão apostólica. O Vaticano II,
com a fórmula do "subsistit", conformemente à tradição católica - queria portanto dizer
exatamente o contrário do relativismo eclesiológico: a Igreja de Jesus Cristo existe
realmente. Ele próprio a quis, e o Espírito Santo a criou continuamente a partir de
Pentecostes, embora contra toda falência humana, e a sustenta na sua identidade
essencial. A instituição não é uma exterioridade inevitável mas teologicamente
irrelevante ou até daninha, mas pertence no seu núcleo essencial à concretitude da
Encarnação. O Senhor mantém a sua palavra: "As portas do inferno não prevalecerão
contra ela".
Neste ponto, torna-se necessário examinar de modo um pouco mais preciso a palavra "subsistit". O Concílio diferencia-se com esta
expressão da fórmula de Pio XII, que na Encíclica "Mystici Corporis Christi" dissera: a Igreja católica "é" (est) o corpo místico
único de Cristo. Na diferença entre "subsistit" e "est" esconde-se todo o problema ecumênico. A palavra subsistit deriva da filosofia
antiga, posteriormente desenvolvida na escolástica. A ela corresponde a palavra grega "hypostasis", que na cristologia tem um papel
central, para descrever a união da natureza divina e humana na pessoa de Cristo. "Subsistere" é um caso especial de "esse". É o ser
na forma de um sujeito a se stante (que se mantém por si só).
Trata-se aqui exatamente disso. O Concílio pretende dizer-nos que a Igreja de Jesus Cristo como sujeito concreto neste mundo pode
ser encontrada na Igreja católica. Isto pode acontecer só uma vez e a concepção segundo a qual o Subsistit se deveria multiplicar
justamente não capta o que se pretendia dizer. Com a palavra subsistit o Concílio queria exprimir a singularidade e a não
multiplicabilidade da Igreja católica: a Igreja existe como sujeito na realidade histórica. A diferença entre subsistit e estcontém,
porém, o drama da divisão eclesial. Embora a Igreja seja apenas uma e subsista num único sujeito, também fora desse sujeito
existem realidades eclesiais - verdadeiras Igrejas locais e diferentes comunidades eclesiais. Uma vez que o pecado é uma
contradição, esta diferença entre subsistit e est não pode, em última instância, ser plenamente resolvida do ponto de vista lógico.
No paradoxo da diferença entre singularidade e concretitude da Igreja, por um lado, e existência de uma realidade eclesial fora do
único sujeito, por outro, reflete-se a contraditoriedade do pecado humano, a contraditoriedade da divisão. Tal divisão é algo de
totalmente outro em relação à dialética relativista acima descrita, na qual a divisão dos cristãos perde o seu aspecto doloroso e na
realidade não é uma fratura, mas só o manifestar-se das múltiplas variações de um único tema, no qual todas as variações, de certo
modo, têm razão e de certo modo não a têm. Na realidade, não existe então uma necessidade intrínseca da busca da unidade, pois na
verdade de qualquer modo a única Igreja está em toda parte e em nenhum lugar. O cristianismo, portanto, na realidade existiria só na
dialética correlação de variações contrapostas. O ecumenismo consiste no fato de que todos, por assim dizer, se reconhecem
reciprocamente, pois todos seriam apenas fragmentos da realidade cristã. O ecumenismo seria, pois, a resignação a uma dialética
relativista, pois o Jesus histórico pertence ao passado e a verdade permanece, de qualquer forma, oculta.

A perspectiva do Concílio é completamente diferente: que na Igreja católica esteja


presente o subsistit do único sujeito Igreja, não é de fato mérito dos católicos, mas
apenas obra de Deus, que Ele faz perdurar apesar do contínuo demérito dos sujeitos
humanos. Estes não podem gabar-se disso, mas tão-somente admirar a fidelidade de
Deus, envergonhando-se de seus próprios pecados e ao mesmo tempo cheios de
gratidão. Mas pode-se ver o efeito de seus próprios pecados: todo o mundo vê o
espetáculo das comunidades cristãs divididas e antagônicas, que reivindicam
reciprocamente as suas pretensões à verdade e assim aparentemente tornam vã o rogo de
Cristo às vésperas de sua paixão. Enquanto a divisão como realidade histórica é
perceptível a todos, a subsistência da única Igreja na figura concreta da Igreja católica
só pode ser percebida como tal na fé. Uma vez que o Concílio Vaticano II observou este
paradoxo, justamente por isso proclamou como um dever o ecumenismo como busca da
verdadeira unidade e o confiou à Igreja do futuro.
Chego à conclusão. Quem quer compreender a orientação da eclesiologia conciliar não
pode deixar de lado os capítulos 4-7 da Constituição, nos quais se fala dos leigos, da
vocação universal à santidade, dos religiosos e da orientação escatológica da Igreja.
Nestes capítulos volta mais uma vez ao primeiro plano o objetivo intrínseco da Igreja,
aquilo que é mais essencial à sua existência: trata-se pois da santidade, da conformidade
a Deus - que no mundo haja espaço para Deus, que Ele possa nele habitar e assim o
mundo se torne o seu "reino". A santidade é algo mais que uma qualidade moral. Ela é o
habitar de Deus com os homens, dos homens com Deus, a "tenda" de Deus entre nós e
em meio a nós (Jo 1, 14). Trata-se do novo nascimento - não da carne e do sangue, mas
de Deus (Jo 1, 13). A orientação à santidade é idêntica à orientação escatológica, e de
fato agora esta a partir da mensagem de Jesus é fundamental para a Igreja. A Igreja
existe para que se torne morada de Deus no mundo e seja assim "santidade": por isso se
deveria competir na Igreja, não por ter mais ou menos direitos de precedência, pela
ocupação dos primeiros lugares. Tudo isto é em seguida mais uma vez retomado e
sintetizado no último capítulo da Constituição sobre a Igreja, que trata da Mãe do
Senhor.
À primeira vista a inserção da mariologia na eclesiologia efetuada pelo Concílio poderia
parecer um tanto casual. É verdade do ponto de vista histórico que de fato uma maioria
bastante pequena de padres decidiu por esta inserção. Mas de um ponto de vista mais
interior, esta decisão corresponde perfeitamente à orientação do conjunto da
Constituição: só se se compreende esta correlação se compreende corretamente a
imagem da Igreja que o Concílio queria traçar. Nesta decisão foram aproveitadas as
pesquisas de H. Rahner, A. Müller, R. Laurentin e Karl Delahaye, graças aos quais a
mariologia e a eclesiologia foram ao mesmo tempo renovadas e aprofundadas.
Sobretudo Hugo Rahner mostrou de modo grandioso, a partir das fontes, que toda a
mariologia foi pensada e determinada pelos padres antes de tudo como eclesiologia: a
Igreja é virgem e mãe, é concebida sem pecado e carrega o peso da história, sofre e no
entanto já foi assunta ao céu. Muito lentamente se revela no decurso do
desenvolvimento sucessivo que a Igreja é antecipada em Maria, em Maria é
personificada e que, reciprocamente, Maria não está como um indivíduo isolado e
fechado em si mesmo, mas traz em si todo o mistério da Igreja. A pessoa não é fechada
de modo individualista, e a comunidade não é compreendida coletivisticamente de
modo impessoal; ambas se superpõem uma à outra de modo inseparável. Isto já vale
para a mulher do Apocalipse, tal como aparece no capítulo 12: não é correto limitar esta
figura exclusivamente, de modo individualista, a Maria, porque nela é conjuntamente
contemplado todo o povo de Deus, o antigo e o novo Israel, que sofre e no sofrimento é
fecundo; mas tampouco é correto excluir dessa imagem Maria, a mãe do Redentor.
Assim, na superposição entre pessoa e comunidade, como a encontramo neste texto, já é
anticipado o entrelaçamento de Maria e Igreja, que em seguida foi lentamente
desenvolvido na teologia dos Padres e finalmente retomado pelo Concílio. Que mais
tarde ambas se tenham separado, que Maria tenha sido vista como um indivíduo cheio
de privilégios e por isso infinitamente distante de nós, e a Igreja, por sua vez, de modo
impessoal e puramente institucional, prejudicou igualmente tanto a mariologia quanto a
eclesiologia. Operam aqui as divisões que o pensamento ocidental atuou
particularmente e que, aliás, têm seus bons motivos. Mas se quisermos compreender
corretamente a Igreja e Maria, devemos saber retornar a antes dessas divisões, para
compreender a natureza supra-individual da pessoa e sipra-institucional da comunidade
justamente ali onde pessoa e comunidade são reconduzidas às suas origens a partir da
força do Senhor, do novo Adão. A perspectiva mariana da Igreja e a perspectiva eclesial,
histórico-salvífica de Maria nos reconduzem em última instância a Cristo e ao Deus
trinitário, porque aqui se manifesta o que significa santidade, o que é a morada de Deus
no homem e no mundo, o que devemos entender por tensão "escatológica" da Igreja. Só
assim o capítulo de Maria dá acabamento à eclesiologia conciliar e nos leva de volta ao
seu ponto de partida cristológico e trinitário.
Para dar uma amostra da teologia dos Padres, gostaria, para concluir, de propor um texto
de santo Ambrósio, escolhido por Hugo Rahner: "Assim, pois, estai firmes no terreno do
vosso coração!... O que significa estar, o apóstolo nos ensinou, Moisés o escreveu: "O
lugar em que estás é terra santa". Ninguém está, senão aquele que está firme na fé... e
mais uma palavra está escrita: "Tu, porém, está firme comigo". Tu estás firme comigo se
estás na Igreja. A Igreja é a terra santa, na qual devemos estar... Está pois firme, e na
Igreja. Está firme ali, onde eu quero aparecer a ti, ali permaneço junto a ti. Onde está a
Igreja, lá é o lugar firme do teu coração. Sobre a Igreja se apóiam os fundamentos da tua
alma. De fato, na Igreja eu te apareci como outrora na sarça ardente. A sarça és tu, eu
sou o fogo. Fogo na sarça eu sou na tua carne. Fogo eu sou, para iluminar-te; para
queimar as espinhas dos teus pecados, para dar-te o favor da minha graça".
© L'OSSERVATORE ROMANO Sábado, 4 de março de 2000
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http://sumoeeterno.blogspot.com.br/2012/02/eclesiologia-da-lumen-gentium-por.html

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