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A

FAMÍLIA
CRISTÃ
HERMAN BAVINCK

Editora Nadere Reformatie


Por uma Reforma Mais Profunda

© 2022
Nesta obra, Bavinck, como de costume, une uma boa teologia
(aplicada à vida cristã real) a uma tratativa franca, bíblica e di-
reta de questões teológicas, filosóficas, morais, culturais e soci-
ais. Ele faz isso com uma sensibilidade de análise histórica, ex-
pressando-se por meio de uma prosa agradabilíssima. Esse é
Herman Bavinck. Deus, usando-o como Seu instrumento, deu
à Sua Igreja uma excelentíssima obra sobre a Teologia da Fa-
mília com suas implicações diversas. Não é uma obra restrita-
mente pastoral e devocional — como muitas outras excelentes
sobre o tema já publicadas em nosso cenário editorial brasi-
leiro. Todavia, incluindo esse aspecto, é uma obra abrangente
e dá-nos um quadro amplo de como as famílias cristãs-refor-
madas, na (Pós)Modernidade, podem viver, professar a sua fé
e se posicionar publicamente para a glória de Deus e com sa-
tisfação nEle. Esta obra possui uma abordagem única e, ainda
que escrita em 1908, continua urgente e necessária, tratando
diretamente de questões latentes em nossos dias. Ele nos mos-
tra como que a Doutrina Bíblica da Família afeta diretamente
a Cosmovisão Cristã-Reformada. Por isso, não só “crentes co-
muns” e famílias cristãs terão proveito com esta obra, mas tam-
bém cristãos historiadores, sociólogos, políticos, educadores
etc. encontrarão nela inúmeros princípios e insights para exer-
cer a fé reformada nestas áreas. Nesse sentido, considero “A
Família Cristã” de Bavinck sui generis e uma contribuição sem
igual para a literatura cristã-reformada brasileira (tanto em re-
lação ao tema, quanto às pesquisas sobre o autor). Tão so-
mente, leia; e constate, por você mesmo, esse riquíssimo bene-
fício!

Rev. Christopher Vicente


Ministro do Evangelho na Igreja Presbiteriana Manancial do Natal – RN
Editor da Editora Nadere Reformatie
A Família Cristã

O texto que temos diante de nós, superando o tempo e o con-


texto no qual foi escrito, é tanto atual quanto necessário. Ba-
vinck com a preciosidade de sua pena consegue unir a riqueza
e a profundidade da doutrina bíblica pactual, com a simplici-
dade e a sensibilidade necessárias para tratar do tema mais fun-
damental da prática cristã! Bavinck trata dos erros que per-
meiam a cosmovisão mundana sobre a família e indica seus
fundamentos; destrói o engano evolucionista e progressista; e,
com mais zelo e acurácia, descreve biblicamente cada aspecto
consistente da família. O tema não é tratado em tom de “passo
a passo” ou mesmo de check-list sobre como a família pode ser
mais feliz. Antes, é lançado o alicerce sobre o qual toda a Soci-
edade deve estar fundamentada.

Presb. Gullit Belo


Presbítero Regente na Igreja Presbiteriana Manancial do Natal – RN
Tradutor da obra “A Família Cristã”
e especialista em Teologia da Família

Este não é um guia de dez passos, nem é uma abordagem uni-


lateral do casamento. Em vez disso, esta obra é fruto de uma
mente cristã rica. É uma Teologia Cristã do casamento e da
família. Este livro é um tratamento maduro das origens do ca-
samento e da vida familiar e dos efeitos do pecado daí decor-
rentes; uma avaliação cuidadosa de várias abordagens históri-
cas cristãs do casamento e da família; e uma tentativa de apli-
car essa teologia à família cristã nos dias de Bavinck. As ideias
orgânicas encontradas em toda a perspectiva de Bavinck sobre
a família cristã devem ser lidas como parte do esforço de Ba-
vinck para ver o mundo à luz de seu Criador Triuno. Para Ba-
vinck, uma visão orgânica do casamento e da família é piedosa.
James Eglinton
Prefaciador da Edição Inglesa

3
A
FAMÍLIA
CRISTÃ
HERMAN BAVINCK

Traduzido do holandês
para o inglês por
Nelson D. Kloosterman

Editora Nadere Reformatie


Por uma Reforma Mais Profunda

Natal, RN
Copyright © Nelson D. Kloosterman, 2012.
Publicado originalmente em inglês sob o título The Christian Family pela
Christian’s Library Press; e, em holandês, em 1908, sob o título Het Christelijk
Huisgezin.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados pela


Editora Nadere Reformatie
59076–000, Natal, RN, Brasil.
www.editoranaderereformatie.com.br

1ª edição, 2022

Editor: Christopher Vicente


Tradução: Gullit Belo
Revisão: Christopher Vicente
Capa: Silton Macedo
Imagem na Capa: William Kidd, The Cotter’s Saturday Night (c. 1850)
Diagramação: Christopher Vicente

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida em qualquer


formato ou por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico) sem a autorização e permis-
são por escrito do editor, exceto para citações em trabalhos, artigos e afins com indi-
cação de fonte.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da


Almeida Corrigida Fiel (ACF 2007),
salvo indicação contrária.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bavinck, Herman. A família cristã / Herman Bavinck. -- 1. ed. -- Natal,


RN: Nadere Reformatie Publicações, 2022.

ISBN 978-65-996029-2-4
1. Casamento — Aspectos religiosos 2. Cônjuges 3. Família - Aspectos
religiosos — Cristianismo 4. Homem-mulher - Relacionamento 5. Vida
cristã. I. Título.

22-115325 CDD-261.83585
SUMÁRIO

SUMÁRIO ..................................................................6
SUMÁRIO ANALÍTICO.............................................8
PREFÁCIO EDITORIAL .......................................... 11
PREFÁCIO ESPECIAL ............................................. 20
INTRODUÇÃO ....................................................... 24
I. A Origem da Família .............................................. 36
II. A Disrupção da Família . Erro! Indicador não definido.
III. A Família entre as Nações ........... Erro! Indicador não
definido.
IV. A Família em Israel ...... Erro! Indicador não definido.
V. A Família no Novo Testamento ... Erro! Indicador não
definido.
VI. Perigos que a Família enfrentou . Erro! Indicador não
definido.
VII. Casamento e Família ... Erro! Indicador não definido.
VIII. Família e Educação .... Erro! Indicador não definido.
IX. Família e Sociedade ...... Erro! Indicador não definido.
X. O Futuro da Família...... Erro! Indicador não definido.
A Família Cristã

COLABORADORES ........ Erro! Indicador não definido.


CONHEÇA OUTROS TÍTULOS DA EDITORA ...... 42

7
SUMÁRIO ANALÍTICO

Capítulo 1: A Origem da Família


✓ A Criação da Humanidade (do Homem e da Mulher) à
Imagem de Deus;
✓ Cada um com seu próprio Sexo, Natureza e Posição;
✓ Trabalhando Juntos em uma Tarefa Divina.

Capítulo 2: A Disrupção da Família


✓ O Pecado e suas Consequências para a Mulher e para o Ho-
mem;
✓ A Punição do Pecado para cada um e a Bênção Relacio-
nada.

Capítulo 3: A Família entre as Nações


✓ A Devastação da Família por meio do Pecado;
✓ A Origem e o Desenvolvimento da Família de acordo com
o Ensino da Evolução;
✓ A Imprecisão da Construção Evolucionista;
✓ A Preservação do Casamento e da Vida Familiar, entre to-
dos os povos, apesar de sua Frequente e Grave Perversão.

Capítulo 4: A Família em Israel


✓ Lei e Costumes em Israel com relação ao Casamento, Patri-
arcado, Autoridade Paterna, Mulher e Filhos.

Capítulo 5: A Família no Novo Testamento


✓ A Sagrada Família;
✓ A Consideração de Jesus para com as Mulheres, o Casa-
mento, os Pais e os Filhos;
✓ O Ensino Apostólico;
✓ A Bênção do Cristianismo para a Vida em Família.

Capítulo 6: Perigos que a Família enfrentou


A Família Cristã

✓ O Movimento Ascético na Igreja Cristã;


✓ Roma e a Reforma;
✓ O Problema Sexual e as Tentativas de Soluções.

Capítulo 7: Casamento e Família


✓ Reforma em Termos de Princípios Cristãos;
✓ A Distinção entre Homem e Mulher;
✓ O Estado de Solteiro;
✓ Casamento como Norma;
✓ A Escolha do Cônjuge e o Noivado;
✓ Pecados aos quais Marido e Mulher são expostos na Vida
Conjugal;
✓ A Sujeição do Marido e da Esposa ao Mandamento de
Deus.

Capítulo 8: Família e Educação


✓ Sexualidade;
✓ Procriação, Unidade e Diversidade na Família;
✓ O Poder Educador da Família entregue aos Pais;
✓ O Poder da Família de Educar os seus filhos e a má com-
preensão dele por parte das Teorias Educacionais Recentes;
✓ O Desequilíbrio dessas Teorias;
✓ A Família como Instituição Educadora por Excelência.

Capítulo 9: Família e Sociedade


✓ O Conceito de Sociedade;
✓ Os Limites da Sociedade em relação à Família, à Igreja e ao
Estado;
✓ Mudanças na Sociedade decorrentes da Necessidade do
Convívio e do Trabalho;
✓ O Poder do Trabalho e o Material do Trabalho;
✓ Reclamações contra a Sociedade e contra sua Desigualdade;
✓ O Caráter Moral de todo Trabalho e as Distinções necessá-
rias dentro da Sociedade;
✓ Os Abusos e o Caminho para a Melhoria

Capítulo 10: O Futuro da Família


9
Herman Bavinck

✓ Mudanças na Família;
✓ Protegendo a Família contra tais Mudanças;
✓ A Continuação da Vida Familiar;
✓ Mudanças Relativas aos Servos;
✓ Mudanças na Formação das Meninas;
✓ Mudanças no Direito de Propriedade e Posses Privadas;
✓ A Família não se desintegrará, mas o Casamento e a Família
continuarão a existir até que Deus alcance Sua intenção
com eles.

10
PREFÁCIO EDITORIAL
Apresentação da Série
Obras de Herman Bavinck

Herman Bavinck e a Nadere Reformatie


Rev. Christopher Vicente

No ano de 2021, completou-se o centenário do faleci-


mento de um gigante na Igreja de Cristo, Herman Bavinck
(1854–1921). Em alusão ao importante trabalho desse teó-
logo, a Editora Nadere Reformatie inicia, com esta obra, uma
série de publicações de Obras de Herman Bavinck.
Bavinck foi um importante teólogo reformado que atuou
na Holanda entre os séculos XIX e XX. J. I. Packer, pondo Ba-
vinck ao lado de grandes teólogos como Agostinho, Calvino e
Jonathan Edwards, o considera “com uma mente gigante, am-
plo conhecimento, sabedoria perene e enorme habilidade ex-
positiva”.1 Cornelius Van Til disse que Bavinck foi um dos que
“certamente abriram o caminho, em tempos modernos, na di-
reção da produção teológica verdadeiramente protestante”.2
Joel Beeke, por sua vez, o vê como “o principal teólogo do re-
nascimento calvinista holandês do século XIX”.3 E, em se-
guida, Beeke testemunha: “Bavinck foi um cristão profundo e

1
PACKER, J. I. Recomendação à Dogmática Reformada, na edição da Editora Cul-
tura Cristã (2012).
2
VAN TIL, Cornelius. Graça Comum e o Evangelho. São Paulo: Cultura Cristã,
2018. p. 117.
3
BEEKE, Joel. Herman Bavinck. Disponível em: < https://banneroftruth.org/us/re-
sources/articles/2005/herman-bavinck/>. Acesso em: 01 de novembro de 2021.
Herman Bavinck

um esplêndido teólogo reformado. Sua vida e teologia merecem


ser mais conhecidas do que são” (grifo nosso).4
Assim, este prefácio à serie expõe breve e introdutoria-
mente a relação de Bavinck com o movimento puritano holan-
dês (Nadere Reformatie), que inspirou o nome desta editora
subscritora dos Padrões de Fé de Westminster. Expõe também
em que sentido consideramos Bavinck “digno” dos esforços de
uma editora de linha puritana-presbiteriana.5
Bavinck fez parte de um momento da História da Igreja
de retomada do Calvinismo Ortodoxo-Histórico. Ele estava as-
sociado a um movimento simultâneo de aplicação desse Calvi-
nismo às questões filosóficas por meio de uma abordagem apo-
logética contrária ao ímpeto do Modernismo que se levantava
contra a Palavra de Deus. A influência do Calvinismo Orto-
doxo e Experiencial sobre Bavinck se deu pela herança do pu-
ritanismo holandês (Nadere Reformatie).
A Nadere Reformatie trata-se de um período posterior, na
Reforma Holandesa, de fortalecimento do Calvinismo, no iní-
cio do século XVII. A Nadere Reformatie é datada de Willem
Teellinck (1579–1629), considerado o pai do movimento. E,
nessa condição de movimento, forma “um paralelo com o pu-
ritanismo inglês tanto no tempo quanto na substância”.
A expressão Nadere Reformatie traz algumas dificuldades
de tradução para outras línguas. “Literalmente, Nadere Refor-
matie significa uma reforma mais próxima, mais íntima ou
mais precisa. Sua ênfase está na elaboração da reforma mais
intensamente nas vidas das pessoas, no culto da Igreja e na

4
BEEKE, Joel. Herman Bavinck. Disponível em: < https://banneroftruth.org/us/re-
sources/articles/2005/herman-bavinck/>. Acesso em: 01 de novembro de 2021.
5
Este prefácio é a primeira parte de um artigo maior que, além de analisar a relação
de Bavinck com a Nadere Reformatie, faz considerações também sobre a relação de
Bavinck com o neocalvinismo, expondo aquilo em que ele destoa do desenvolvimento
subsequente desse movimento. Para ter acesso ao artigo completo, acesse nosso blog
<https://editoranaderereformatie.com.br/index.php/artigos/> e pesquise pelo ar-
tigo: “Herman Bavinck, a Nadere Reformatie e o Neocalvinismo”.
12
A Família Cristã

Sociedade”. Esse movimento se preocupou com a vida interior


do crente e com a reforma da Sociedade. A Nadere Reformatie
foi “a contraparte holandesa do puritanismo inglês. O elo en-
tre esses movimentos é forte — histórica e teologicamente” fa-
lando. “Os teólogos de ambos os movimentos se respeitavam”.
Ambos “tinham ideias semelhantes: promover a piedade expe-
rimental que glorifica a Deus e a precisão ética nos indivíduos,
igrejas e nações”. Em suma, como o puritanismo inglês, a Na-
dere Reformatie “enfatizava a necessidade de uma piedade cristã
vital, genuína quanto aos ensinamentos da Escritura e das con-
fissões reformadas, e elaborada conscientemente em todos os
aspectos da vida diária de uma pessoa”.6
Nelson Kloosterman, um pesquisador e tradutor das
obras de Bavinck, afirmou que “Herman Bavinck [...] foi cri-
ado no calvinismo experimental da Segunda Reforma Holan-
desa (Nadere Reformatie)”.7 Outro estudioso dos escritos de Ba-
vinck, John Bolt, fez a seguinte consideração, falando das in-
fluências sobre Bavinck:

Em particular, [sobre suas influências] deve-se fazer menção,


aqui, ao equivalente holandês do puritanismo britânico, a
assim chamada Segunda Reforma (Nadere Reformatie), o in-
fluente movimento do século XVII e início do século XVIII
de teologia e espiritualidade experimental reformada. [...] A
igreja de Bavinck, sua família e sua própria espiritualidade

6
Estes dois últimos parágrafos são um resumo da definição de Joel Beeke, um teólogo
reformado de tradição holandesa, disponível em BEEKE, Joel. Espiritualidade Refor-
mada: Uma Teologia Prática para a Devoção a Deus. São Paulo: Fiel, 2014. p. 383-
406. Considere também: BEEKE, Joel. PEDERSON, Randall. Paixão pela Pureza.
São Paulo: PES, 2010. p. 875-878.
7
KLOOSTERMAN, Nelson D. The Law-Gospel Distinction and Preaching. Dispo-
nível: https://rpcnacovenanter.wordpress.com/2012/10/24/herman-bavinck-on-
law-and-gospel/>. Acesso em: 01 de novembro de 2021.
13
Herman Bavinck

foram, assim, definitivamente moldados por fortes parâme-


tros de profunda espiritualidade reformada pietista.8

Uma marca de seu pai, Rev. Jan Bavinck, e da denomina-


ção à qual passou a fazer parte era o interesse por se manterem
puros na tradição do Cristianismo Reformado Histórico, sepa-
rado da Igreja do Estado da Holanda.9 James Eglinton, bió-
grafo de Bavinck, destaca que, nos dias da infância de Bavinck
e da igreja na qual cresceu, “as obras dos teólogos da Antiga
Reforma Holandesa (Nadere Reformatie) experimentaram uma
popularidade renovada”.10
Alguns chegam a recomendar que as leituras dos escritos
de Bavinck e obra magna de Wilhelmus à Brakel (talvez, o
maior e mais influente puritano holandês da Nadere Reforma-
tie) sejam feitas lado a lado.11 E, conhecendo os dois, eu con-
sigo concordar com essa posição; há grande utilidade nessa
combinação. A Teologia Filosófica de Bavinck é construída so-
bre uma Teologia Puritana, não tanto na forma, mas nos fun-
damentos, pressupostos e conteúdo. Se os escritos de Bavinck
e dos puritanos fossem comparados a uma fruta, e fizéssemos
um suco com eles, seu gosto seria basicamente o mesmo.
Há outros indicativos dessa relação. Bavinck, em seu re-
lato da História do declínio da Teologia Reformada (indo da
Reforma até os seus dias) e em toda Dogmática, demonstra
profundo conhecimento sobre os puritanos, sua história e seus

8
BOLT, John. Introdução do Organizador. In: BAVINCK, Herman. Dogmática Re-
formada (Vol. IV). São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 12.
9
ZYLSTRA, Henry. Prefácio. In: BAVINCK, Herman. Teologia Sistemática. SO-
CEP, 2001. p. 8.
10
EGLINTON, James (2020-09-28T22:58:59). Bavinck. Baker Publishing Group.
Edição do Kindle.
11
HEFLIN, Joel. From Bavinck to à Brakel: On the Road. Disponível em: <
https://feedingonchrist.org/from-bavinck-to-a-brakel-on-the-road/ >. Acesso em: 01
de novembro de 2021.
14
A Família Cristã

escritos.12 Bavinck parece reconhecer a Assembleia de Westmi-


nster e seus documentos como um importante momento de
desenvolvimento da fé reformada, depois da qual o Calvi-
nismo sofreu, de forma geral, vários golpes.13 Aliás, ele consi-
dera que o afastamento dos Padrões de Westminster foi um
movimento de afastamento do Calvinismo Ortodoxo, tanto
no caso Britânico quanto no caso norte-americano posterior.14
Bavinck reconhece a importância de puritanos escoceses como
Thomas Boston e os cinco dissidentes, como sendo uma das
últimas barreiras de resistência pela preservação da Fé Refor-
mada na Escócia no século XVIII.15 E, além disso, citou recor-
rentemente como fundamentação, em suas notas de rodapé,
Wilhelmus à Brakel e Herman Witsius, ambos importantes re-
presentantes da Nadere Reformatie.
De fato, um conhecedor das obras dos puritanos britâni-
cos e holandeses, consegue ver, com clareza, os ecos e a influên-
cia teológica deles sobre Bavinck e como seus escritos possuem
o mesmo gosto e fragrância. Essa influência, obviamente, não
se dá exatamente em todos os pontos ou pela forma de fazer
teologia ou de escrevê-la; ou, até mesmo, por semelhantes po-
sições em todos os pontos de doutrina ou de polêmica.16 Mas,
uma semelhança de essência e de conteúdo; de norte e de tom.
Por isso, concordamos com Bolt, quando diz que
12
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada (Vol. I). São Paulo: Cultura Cristã,
2012. p. 182s.
13
Ibid., p. 187-188.
14
Ibid., p. 201, 203-204.
15
Ibid., p. 189. BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada (Vol. IV). São Paulo:
Cultura Cristã, 2012. p. 467.
16
A incerteza de Bavinck sobre a natureza dos “dias da criação”, por exemplo, é uma
grande discordância nossa para com ele. Outro ponto a ser considerado é a crítica de
Cornelius Van Til à inconsistente aplicação de Bavinck da doutrina da Graça Co-
mum. É importante destacar que essa crítica de Van Til e nossa concordância com ela
é feita em profundo respeito e admiração. Van Til tem esse cuidado a todo momento,
considerando o imenso débito que ele possui para com Bavinck. Sobre essa crítica,
veja: VAN TIL, Cornelius. Graça Comum e o Evangelho. São Paulo: Cultura Cristã,
2018. p. 102-117.
15
Herman Bavinck

pelas numerosas citações feitas por Bavinck [na Dogmática]


de grandes teólogos reformados holandeses [Bolt menciona
Voetius, Va Mastricht, Witsius etc.] fica claro que ele co-
nhecia bem essa tradição e a considerava como sua. Ao
mesmo tempo, é mister observar também que Bavinck não
foi simplesmente um cronista do passado de ensino de sua
própria igreja (grifo nosso).17

Por isso e diante de tudo isso, não quero afirmar que Ba-
vinck era um “puritano fora de tempo”; nem, na condição de
historiador, desejo forçar seus escritos a falarem mais do que
falam sobre sua relação com o puritanismo. Apenas desejo des-
tacar que é inegável, mais do que em qualquer outro do “neo-
calvinismo” holandês, a proximidade de Bavinck com a Teo-
logia Puritana. E, exatamente por isso, vejo maior proveito e
mais segurança nos esforços de Bavinck para uma Teologia Fi-
losófica. Enquanto em outros do supracitado movimento po-
demos ter proveito com ressalvas ou com maior cuidado; em
Bavinck, temos um usufruto mais pleno e seguro.
Aplico, então, as adjetivações que Bolt fez à Dogmática Re-
formada ao próprio Bavinck: ele é “bíblico, confessionalmente
fiel, pastoralmente sensível, desafiador e ainda relevante. A
vida e o pensamento de Bavinck refletem um sério esforço em
busca da piedade, da ortodoxia e da contemporaneidade” —
sem renunciar à confessionalidade.18
Não há (até onde investigamos e julgamos) nenhuma
obra entre os puritanos semelhante em abordagem à Dogmá-
tica Reformada — em volume e sistematização, sim; mas em
abordagem, até onde tive conhecimento, posso dizer que não.

17
BOLT, John. Introdução do Organizador. In.: BAVINCK, Herman. Dogmática
Reformada. (Vol. 1). São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 11.
18
BOLT, John. Introdução do Organizador. In.: BAVINCK, Herman. Dogmática
Reformada. (Vol. 1). São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 20-21.
16
A Família Cristã

Porém, tomemos a sua simples, preciosa e profunda Teologia


Sistemática, republicada, em português, em 2021, sob o título
“As Maravilhas de Deus”.19 O seu estilo é simples, feita para se
comunicar com o crente simples. Como disse Henry Zylstra,
em 1955, “As Maravilhas de Deus” é “menos técnica, menos
exclusivamente profissional, mais intencionalmente popular
do que a Dogmática, e mais amplamente amparada por referên-
cias das Escrituras”.20 Essa era exatamente a forma como os pu-
ritanos procuravam se comunicar ao seu povo.
Nessa mesma obra referida acima, analisando a sua expo-
sição das doutrinas particulares, não há como ler os capítulos
que tratam da Cristologia Bíblica e não ver uma semelhante à
dos puritanos (como Thomas Goodwin e John Owen); a sua
doutrina do pacto, afirmando o que nos foi legado nos Pa-
drões de Westminster e em autores como à Brakel, Witsius e
Boston — Bavinck vai, inclusive, além do que é afirmado nas
Três Formas de Unidade, que ele subscrevia. Não há como ler
a sua exposição da doutrina da justificação e da santificação e
não ver a mesma que foi ensinada pelos puritanos (como em
Thomas Boston e em Walter Marshall);21 olhar sua eclesiologia
e não ver uma fiel exposição presbiteriana em seus princípios
gerais etc.
Agora, considere a obra “A Família Cristã”, agora, publi-
cada Editora Nadere Reformatie. Uma obra magistral, que ex-
põe a doutrina bíblica da Família, aplicando-a às questões

19
A primeira publicação dessa obra, cujo título em inglês é “Our Reasonable Faith”,
ocorreu em 2001 pela SOCEP.
20
ZYLSTRA, Henry. Prefácio. In: BAVINCK, Herman. Teologia Sistemática. SO-
CEP, 2001. p. 9.
21
BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada (Vol. IV). São Paulo: Cultura Cristã,
2012. p. 232. Inclusive, tratando dessa doutrina, é citada em nota de rodapé a obra
magna desse puritano, Walter Marshall, sobre santificação, The Gospel Mystery of San-
ticfication, cuja tese é a mesma de Bavinck e de Boston. A Editora Nadere Reformatie
publicou, em formato e-book kindle, três importantes capítulos dessa obra. Confira:
https://www.amazon.com.br/dp/B0857J62NG.
17
Herman Bavinck

filosóficas, morais e sociais de forma tão acessível e simples; e,


ao mesmo tempo, permeada de devoção e de encorajamentos
da Palavra para seguirmos a trilha da piedade familiar —esta
semelhante àquela encorajada pelos puritanos. De fato, há
uma afinidade teológica. Sem dúvida, Herman Bavinck era um
herdeiro da piedade e da teologia da Nadere Reformatie.22
Obviamente, vemos diferenças. Por exemplo, os escritos
de Bavinck possuem uma natureza apologética e filosófica, res-
pondendo questões suscitadas pela Modernidade. Ele lidou
com questões filosóficas que os puritanos não trataram. Algu-
mas delas, nos dias dos puritanos, estavam em seu nascedouro
(como as ideias de Locke e Descartes). Há esforços puritanos
de refutação filosófica, embora não de forma tão volumosa.
Todavia, os escritos de Bavinck são conscientemente escritos
visando tais desafios; construídos em exposições dessas ideias,
objetivando refutá-las.23
Nosso desejo, porém, é mostrar que, apesar das diferen-
ças ou nuanças, os subscritores integrais dos Padrões de Fé de
Westminster, herdeiros diretos da tradição puritano-presbite-
riana, podem tirar grande proveito das obras de Bavinck,
vendo nele, um desenvolvedor legítimo de nossa teologia em
face dos desafios modernos.24
Por isso, a Editora Nadere Reformatie decide trazê-lo com
a confiança de que ele é uma voz na aplicação da fé confessio-
nal-presbiteriana às questões de nossos dias. Naquilo que, ex-
plicitamente, é contrário ao que claramente subscrevemos,

22
KLOOSTERMAN, Nelson D. The Legacy of Herman Bavinck. Disponível em: <
https://opc.org/nh.html?article_id=577 >. Acesso: 02 de novembro de 2021.
23
Para mencionar uma das obras puritanas, consideremos, por exemplo, o primeiro
comentário (apologético) da Confissão de Fé de Westminster, pelo puritano presbite-
riano escocês David Dickson — a ser publicado, em breve, pela Editora Nadere Refor-
matie. Além disso, há diversas obras puritanas (pouco conhecidas) que tratam e refu-
tam questões filosóficas. Em breve, também, as apresentaremos à Igreja no Brasi.
24
Em Cornelius Van Til, penso haver um desenvolvimento ainda maior e mais refi-
nado.
18
A Família Cristã

pedimos vênias. No mais, nos assentamos aos pés, de bom


grado, para aprender desse instrumento que Deus capacitou
para benefício de Sua Igreja.
A primeira obra de Herman Bavinck que abre a nossa sé-
rie é esta: A Família Cristã — publicada dois anos após a se-
gunda edição de sua obra magna “Dogmática Reformada”. O
que dela pude falar sumariamente está posto na recomendação
de abertura do livro (você pode lê-la voltando algumas pági-
nas). Entrego, agora, os elogios e a descrição mais detalhados
dela ao Rev. Paulo Brasil, o qual me apresentou a obra (nos
dias em que trabalhei na igreja que ele pastoreia, no período
de minha formação no seminário) e nos encorajou a publicá-
la em nossa língua. Hoje, com alegria, ofertamos este magní-
fico presente à Igreja Brasileira. Agradecemos especialmente
ao Dr. Nelson D. Kloosterman por torná-la acessível a nós.25
Caro leitor, que Deus abençoe sua leitura; e que esta obra
seja um instrumento dEle para uma reforma mais profunda em
nossas famílias, em nossas igrejas e em nossa Sociedade.

Rev. Christopher Vicente, Editor.


Ministro do Evangelho na Igreja Presbiteriana Manancial do Natal (RN).
Natal-RN, 1º de junho de 2022.

25
Originalmente publicada, em 1908, em holandês (língua nativa de Herman Ba-
vinck), esta obra foi traduzida para o inglês em 2012. Diferentemente do que fizemos
com as demais obras da série de publicações das obras de Herman Bavinck pela Edi-
tora Nadere Reformatie, optamos por traduzi-la não do holandês para o português,
mas do inglês para o português. Quando houve necessidade ou dúvida quanto a pala-
vras, expressões e sentido, recorremos ao holandês para melhor aproveitamento.
19
PREFÁCIO ESPECIAL
Rev. Paulo Brasil

O que temos presenciado em nossos dias, no que diz res-


peito à Família, ao Casamento e aos papéis do homem e da
mulher no Casamento, revelam claramente a aplicação de con-
ceitos antigos ensinados pela Serpente à mulher no Éden. Na
Queda, a Serpente inseriu os seus próprios pensamentos, ten-
tando anular a Autoridade da Palavra de Deus.
Neste livro, A Família Cristã, Herman Bavinck desvelará
os pensamentos que se opõem ao Ser e às Obras de Deus. Isso
será feito colocando o machado na raiz do problema — respon-
dendo às questões fundamentais: O que é Deus? Qual a auto-
ridade da Palavra de Deus? Quanto ao Ser de Deus e à Sua
Obra, esta obra de Bavinck é Trinitária; quanto às Escrituras,
ela é submissa à autoridade e à inspiração delas.
O grande teólogo reformado Holandês é conhecido por
seus quatro volumes Dogmática Reformada (1906–11). Em
1908, ele escreveu esta obra, que fora traduzida para o inglês
por Nelson Kloosterman (em 2012) e, agora, traduzida do in-
glês para o português pela Editora Nadere Reformatie. Apesar
do gap temporal entre a publicação em holandês e a sua tradu-
ção para o português, temos, agora, em mãos, uma obra que
demonstra seu conhecimento teológico profundo aplicado,
com sabedoria, aos problemas da sua época — que na realidade
são também os nossos problemas atuais. A Família Cristã enfa-
ticamente refletirá sobre as origens do matrimônio, os papéis
do marido e da esposa, a criação de filhos e o lugar do matri-
mônio na Sociedade.
A Família Cristã

A visão do autor sobre Família é essencialmente trinitari-


ana; isso fica claro já no primeiro capítulo do livro: “o Uni-
verso, no final, é a Revelação Geral de seu Criador Triúno”.
James Eglinton resume o pensamento de Bavinck da seguinte
maneira: “O Deus Triúno é o fator mais importante no pensa-
mento de Bavinck: é a realidade pela qual todas as outras coi-
sas são medidas”. Quanto a autoridade das Escrituras, no que
diz respeito à criação do homem e dos animais, Bavinck
afirma:

O que a Escritura nos fornece no curso subsequente da Re-


velação, mesmo já no segundo capítulo da Bíblia, é mera ex-
pansão e explicação do que nos é contado de forma nítida e
resumida no primeiro capítulo. Deus criou primeiro o ho-
mem, seu corpo vindo do pó da terra, sua alma criada pelo
sopro de vida soprado do alto. Os animais vieram à existên-
cia de maneira diferente — com a poderosa palavra de Deus,
eles foram trazidos através e a partir da terra. Os anjos vie-
ram à existência de maneira diferente, pois foram todos cri-
ados, juntos e ao mesmo tempo, perfeitos, em seu número
completo. Porém, o homem (que está relacionado tanto aos
animais quanto aos anjos) é, no entanto, diferente deles.
Com o corpo, o homem mantém comunhão com a terra;
com o espírito, que vem de cima, o homem se relaciona com
o céu.

Por crer na autoridade das Escrituras, Bavinck funda-


menta sua análise sobre os papéis do homem e da mulher na
ordem da Criação de ambos, conforme revelada nas Escritu-
ras. Assim, ele reflete: “a criação da mulher foi precedida pelo
senso de necessidade, que o primeiro homem descobriu no
próprio coração, em meio a toda a sua abundância”.
Posteriormente, Bavinck trata dos efeitos do pecado so-
bre a Família. Tal efeito é visto com maior força nos relaciona-
mentos entre o homem e a mulher. Ele mostra ainda, nos

21
Herman Bavinck

capítulos seguintes, como a Família era vista tanto no Antigo


quanto no Novo Testamento. Na Redenção, Deus não criou
um “novo padrão” distinto daquele ordenado na Criação; pelo
contrário, restaurou as funções e os papéis destes relaciona-
mentos de acordo com a Criação. Como se vê abaixo:

O Cristianismo não derrubou as ordenanças e instituições


naturais, mas infundiu um novo espírito nelas, refor-
mando-as por dentro. Não libertou esposas de seus mari-
dos, nem filhos de seus pais, nem servos de seus senhores,
nem trabalhadores de suas vocações, nem súditos do Es-
tado. Porém, o Cristianismo criou esposas e filhos, servos
e servas, trabalhadores e cidadãos melhores, e os conduziu
de volta aos seus respectivos relacionamentos. O Cristia-
nismo proporcionou libertação espiritual e, precisamente
dessa forma, recriou os relacionamentos terrenos.

A partir deste momento, Bavinck passa a discorrer sobre


as várias ameaças contra a Família. É impressionante ver como,
mesmo mais de 100 anos depois, as observações de Bavinck
permanecem atuais. Ele identifica algumas grandes ideologias
contra a Família, dais quais eu destaco duas: (1) O Darwinismo,
o qual se opõe à narrativa bíblica da Criação, defendendo que
a Família surgiu de um processo evolutivo/natural; (2) O Soci-
alismo, o qual, com sua imaginação de uma sociedade, particu-
larmente, destrói a Sociedade na sua base, visando eliminar
todas as diferenças sociais.
Contra essas ideologias, Bavinck afirma que a Sociedade
(que é uma genuína sociedade e, como tal, é um organismo
complexo de relacionamentos e operações) não pode ser outra
coisa senão multiforme.
Estudei este livro de capa a capa com a igreja local nas
nossas reuniões de doutrina. Por isso, eu me arrisco a afirmar
que não existe nada no mercado, hoje, que se aproxime da
proposta, da sabedoria e da capacidade de reflexão teológica,
22
A Família Cristã

em matéria de Família, como esta obra de Bavinck o faz. Pois,


no final de tudo, estudando sobre Família, amaremos ainda
mais o Deus Triúno, que se revelou nas Sagradas Escrituras.
Boa Leitura!!!

Rev. Paulo Brasil,


Ministro do Evangelho na Igreja Presbiteriana da Aliança (Recife-PE)
Recife, PE, 29 de junho de 2022.

23
INTRODUÇÃO
A Família Cristã no Século XXI
James Eglinton

Uma rápida olhada nas prateleiras de uma livraria cristã


local logo deixa claro que os livros sobre família cristã e o ca-
samento não são escassos. Na verdade, a consciência de quan-
tos livros foram escritos sobre este tópico certamente evidencia
o motivo desse livro ser digno de tradução e lançamento no
mundo de língua inglesa.26 Além disso, este livro foi escrito na
Holanda do início do século XX — um contexto social muito
distante daqueles que provavelmente lerão nesta edição. O
que The Christian Family [A Família Cristã],27 de Herman Ba-
vinck, poderia nos dizer?
No contexto do evangelicalismo dominante, não faltam
“guias de dez passos” moralistas voltados para a construção de
casamentos melhores; ou programas baseados em promessas
projetadas para criar melhores relacionamentos entre cônjuges
e pais. Graças à influência de Mark Driscoll nas atitudes evan-
gélicas em relação ao casamento, a tendência mais recente tem
sido mudar o foco para o sexo — embora ainda na forma de
guias de “como fazer” bastante rudes. Para um olho cínico,
essa mudança se parece com a subcultura evangélica imitando
as visões de sua cultura anfitriã secular sobre sexo e relaciona-
mento. O centro dessas visões está na sua adoção acrítica da
suposição da sociedade secular da hipersexualidade como

26
A realidade nas livrarias brasileiras não é diferente, restando evidentemente a rele-
vância deste livro em língua portuguesa. [N. do Tradutor].
27
Doravante assim mencionado. [N. do Editor].
A Família Cristã

sendo normativo para todos. Como tal, o evangelho se torna


um meio para aquilo que os valores seculares sobre hipersexu-
alidade nos dizem que todos devemos desejar: mais sexo e
“mais quente”. A preocupação evangélica atual com sexo, e sua
reinvenção do pastor celebridade como um guru cristão do
sexo, corre o risco de criar um tipo de “evangelho da prosperi-
dade”: “o Cristianismo pode não o tornar saudável ou rico”,
diz a ideia, “mas é a chave para uma vida sexual muito me-
lhor”. Seu evangelho promete satisfazer os anseios carnais de
seu coração (essencialmente secular).
Em suma, as atitudes evangélicas atuais em relação ao
sexo dentro do casamento parecem, cada vez menos, radical-
mente diferentes de seus equivalentes seculares contemporâ-
neos. Em sua abordagem de sexo spoon-fed,28 ambos são cada
vez mais banais e vulgar.
Visto contra este pano de fundo, a tradução e relança-
mento do livro de Bavinck sobre a família cristã de repente
parece mais útil. Este não é um guia de dez passos, nem é uma
abordagem unilateral do casamento, na qual tudo é reduzido
ao desempenho moral ou sexual de uma pessoa. Em vez disso,
esta obra é fruto de uma mente cristã rica. É uma Teologia Cristã
do casamento e da família. Este livro é um tratamento maduro das
origens do casamento e da vida familiar e dos efeitos do pecado daí
decorrentes; uma avaliação cuidadosa de várias abordagens históricas
cristãs do casamento e da família; e uma tentativa de aplicar essa
teologia à família cristã nos dias de Bavinck.
Embora este livro seja o produto de um pensador cristão
seminal, também é um produto de seu tempo. Há várias ênfa-
ses que impressionarão os leitores de hoje como pertencentes
a uma cultura muito diferente da sua. Existem também impor-
tantes debates atuais sobre os conceitos cristãos de casamento

28
Essa expressão significa “dar comida com a colher” ou simplesmente “dar na boca”.
[N. do Editor].
25
Herman Bavinck

e família que recebem pouca ou nenhuma atenção neste livro:


os exemplos mais óbvios são a homossexualidade e a questão
relacionada à forte divergência entre a Igreja e a Sociedade Ci-
vil na definição de Casamento. Dito isso, este livro tem muito
a oferecer aos leitores do início do século XXI.
Este breve ensaio de abertura tentará abrir o livro, forne-
cendo primeiro um esboço biográfico de seu autor, após o qual
algumas dicas serão dadas para explicar várias ênfases nesta
obra em relação às marcas do pensamento de Bavinck.

Esboço Biográfico

Nascido em 13 de dezembro de 1854, na cidade holan-


desa de Hoogeveen, Herman Bavinck era filho de Jan Bavinck,
um pastor reformado originário de Bentheim, na fronteira
alemã-holandesa, e de Gesina Magdalena Bavinck (nascida
Holanda). O segundo de sete filhos, Herman nasceu na con-
servadora e separatista Igreja Cristã Reformada. Depois de ter-
minar o ensino médio, ele se matriculou como aluno na Es-
cola Teológica de Kampen. Entretanto, após um ano, ele to-
mou a ousada decisão de se transferir para a faculdade de teo-
logia agressivamente modernista em Leiden. A teologia ofere-
cida em Leiden dificilmente poderia ser mais diferente da-
quela do seminário em Kampen. Por que ele fez esse movi-
mento? Embora o jovem Bavinck tenha passado por uma es-
pécie de crise de fé enquanto estava em Leiden (da qual acabou
emergindo), sua escolha de estudar em Leiden não deve ser
interpretada como um abandono da teologia ortodoxa. Em vez
disso, sua escolha foi motivada, principalmente, por sua busca
por um treinamento acadêmico mais rigoroso em teologia do
que aquele que poderia ser oferecido em Kampen naquela
época. Entre 1874 e 1880, Bavinck estudou com gente como
Johannes Scholten e Abraham Kuenen — os então astros da
teologia acadêmica holandesa — em Leiden. Lá, ele admirou a
26
A Família Cristã

abordagem científica de seus professores, embora, muitas ve-


zes, se encontrasse em profundo desacordo com seus pressu-
postos e conclusões doutrinárias. Nessa época, ele também foi
influenciado por Abraham Kuyper, a estrela em ascensão de
uma nova onda do neocalvinismo holandês. Seu pastor cris-
tão-reformado, em Leiden, J. H. Donner, apresentou-o ao Par-
tido Anti-Revolucionário de Kuyper (um movimento político
cristão dirigido contra a influência anticristã da Revolução
Francesa na sociedade holandesa). Em Leiden, Bavinck escre-
veu uma tese de doutorado sobre a ética do reformador suíço
Ulrich Zwinglio, após a qual ele buscou a ordenação na Igreja
Cristã Reformada. Em 1881, ele se tornou pastor da congrega-
ção em Franeker, uma pequena cidade no norte da Holanda.
Um ano depois, Bavinck foi chamado para ensinar teologia
em Kampen, onde lecionou de 1883 a 1901. Lá, ele escreveu
sua obra mais importante, a Dogmática Reformada: um clás-
sico moderno da teologia sistemática.29 Casou-se com Johanna
Adrianna Schippers em 1891. Johanna era dez anos mais nova
que Herman. Sua única filha, chamada Johanna Geziena, nas-
ceu em 1894. Durante seu tempo em Kampen, Bavinck e Ku-
yper foram as figuras-chave na União das Igrejas Reformadas
em 1892. Uma década depois desta União, ele aceitou o posto
de professor de teologia da Universidade Livre de Amsterdã.
Este período de sua vida foi marcado por um amplo e pro-
fundo engajamento nos campos da política (por meio do Par-
tido Anti-Revolucionário), da filosofia e da educação. Em
1920, depois de pregar no Sínodo, Bavinck sofreu um ataque
cardíaco. A partir de então, sua saúde começou a piorar. Ele
morreu em 29 de julho de 1921.

Visão de Mundo “Orgânica” de Bavinck

29
Já disponível em português pela Editora Cultura Cristã. [N. do Editor].
27
Herman Bavinck

O trabalho de Bavinck é essencialmente um esforço gi-


gantesco de desenvolver uma visão de mundo centrada no
Deus Triuno (incluindo casamento e família). À convicção an-
terior de Agostinho de que nosso coração permanece inquieto
até que encontre seu descanso em Deus, Bavinck acrescenta
que nossa mente permanece insatisfeita até que todos os nos-
sos pensamentos sejam trazidos de volta à Trindade. A reali-
dade da gloriosa e eterna coexistência de Deus como o Pai, o
Filho e o Espírito Santo foi o começo e o fim do empreendi-
mento teológico de Bavinck. O Deus Triúno é o fator mais
importante no pensamento de Bavinck: é a realidade pela qual
todas as outras coisas são medidas.
Esse compromisso com uma cosmovisão focada no Deus
Triuno dá à teologia de Bavinck uma forma muito particular.
Afetou como Bavinck via tudo: o universo; a sociedade hu-
mana; a igreja; e, neste caso, o casamento e a família. Em suma,
embora Bavinck acreditasse que a triunidade de Deus (que
Deus é Três-em-Um e, como tal, o modelo supremo de uni-
dade-na-diversidade) era totalmente única e não poderia ser re-
plicada em [nenhum] outro lugar; ele também acreditava que
tudo criado pelo Deus Triuno, de alguma forma, se refere a
essa divina unidade na diversidade. O Universo, no final, é a
Revelação Geral de seu Criador Triúno. Assim, embora possa-
mos encontrar apenas a fórmula Três-em-Um no próprio
Deus, encontramos indicadores para a triunidade de Deus em
todos os lugares: na vasta diversidade interna do universo
unido; na rica tapeçaria da cultura humana e da sociedade; na
natureza da complementaridade sexual humana; na vida da fa-
mília (em que diferentes gêneros,30 personalidades, tradições
familiares etc., de alguma forma se tornam uma unidade), e
assim por diante.

30
A saber, macho e fêmea apenas. [N. do Editor].
28
A Família Cristã

A linguagem preferida por Bavinck ao escrever sobre esta


unidade na diversidade centrada em Deus é a do “orgânico”.
O mundo feito pela Trindade e a imagem dessa Trindade (o
ser humano individual e, coletivamente, a humanidade) en-
contrada nele, são mais bem descritos como organismos ou
como orgânicos em sua existência. Contextualmente, também
é interessante saber que o impulso constante de Bavinck de
falar de Deus como a Trindade e da Criação como orgânica
deriva, em grande parte, de sua reação ao ensino que recebeu
em Leiden. Lá, o professor Scholten enfatizou que o mundo
foi executado em linhas rígidas, fatalistas, mecânicas, determi-
nistas e, por isso, a ideia de Deus como Trindade era de pouca
importância.
A partir desse desejo de entender toda a vida como algo
que aponta para o Deus Triuno, então, várias ênfases no trata-
mento de Bavinck do casamento e da família vêm à tona. Sua
insistência em que a família deve funcionar como uma uni-
dade orgânica (em vez de um grupo arbitrariamente conectado
de indivíduos que têm poucas conexões fixas entre si) faz sen-
tido sob essa luz. Da mesma forma, sua compreensão de cada
unidade familiar como uma combinação única de histórias so-
ciais e biológicas (em oposição à ideia de que a família é um
produto genérico que não precisa de espaço pessoal ou ambi-
ente de vida distinto) deve ser entendida contra esse pano de
fundo. Sua crença de que a educação dos filhos deve ver cada
criança como um organismo único e complexo a ser conhe-
cido e relacionado (e não como uma máquina que pode ser
controlada), em vez de ser moldada por programação mecâ-
nica, é uma preocupação orgânica similar. As ideias orgânicas
encontradas em toda a perspectiva de Bavinck sobre a família cristã
devem ser lidas como parte do esforço de Bavinck para ver o mundo à
luz de seu Criador Triuno. Para Bavinck, uma visão orgânica do ca-
samento e da família é piedosa.

29
Herman Bavinck

A Graça Restaura a Natureza

Depois disso, os leitores deste livro também devem estar


cientes da crença de Bavinck de que a graça restaura a natu-
reza. A estrutura básica da cosmovisão de Bavinck é que o
Deus Triúno cria um mundo bom. Então, essa Criação cai em
pecado. Após isso, o Deus Triúno a redime na graça. A obra
de Deus na Redenção é restaurar as coisas ao seu estado origi-
nal (bom): a graça de Deus não introduz novos elementos na
Criação, nem remove coisas que estavam originalmente pre-
sentes antes da Queda. A graça não eleva a natureza, como se
a obra original de Criação de Deus fosse de alguma forma in-
suficiente e ainda precisasse de melhorias. Em vez disso, res-
taura a natureza. Isso leva as coisas de volta a como eram antes
do pecado ter sua forma terrível na criação.31 A graça nos leva
de volta ao que Deus, no mundo pré-Queda, viu como “muito
bom”.
Embora este ponto pareça um pouco abstrato à primeira
vista, suas consequências práticas são consideráveis. Em

31
Por causa da doutrina do Pacto de Obras e do Pacto da Graça, alguns presbiterianos
têm defendido que a Graça nos leva a um estado melhor do que o do Original. Não
porque a Criação fosse incompleta (conclusão que James Eglinton parece querer atre-
lar com a ideia de a Graça nos levar a um estado maior do que o Original), mas porque
a promessa Pactual era elevar um homem a um estado de bem-aventurança acima da
natural ou criacional. Uma bem-aventurança especial. Assim, o Estado de Glória é
maior e melhor do que o de Inocência/Original. No Estado Original, o pecado pode-
ria entrar no mundo; no Estado de Glória, inaugurado pela Graça, não. No Estado
Original, o nosso corpo era terreno, segundo o homem da terra; no Estado de Glória,
inaugurado pela Graça, nosso corpo é segundo homem celestial, Cristo. E, portanto,
a Graça nos leva a um estado maior e melhor do que o original. Novamente, não por
falha de Deus, na Criação, que precisasse ser complementada pela graça, mas porque
o Estado Original foi feito por Deus para ser a base para algo ainda maior. Essa con-
cepção sobre a relação do Estado Original e o da Glória, em nada são inconsistentes
com as consequências práticas apresentadas por Eglinton. Na verdade, julgamos que
a visão que ora apresentamos nesta nota é também a visão de Bavinck. Veja em: BA-
VINCK, Herman. Dogmática Reformada. (Vol. 2). São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
p. 575, 577; BAVINCK, Herman. Teologia Sistemática. São Paulo: SOCEP, 2001. p.
264-271; 302-308. [N. do Editor].
30
A Família Cristã

termos de nossa visão de mundo, sua principal implicação é


que o mundo — como Deus o criou primeiro — era inerente-
mente bom. Como essa natureza, ainda sem pecado, não pre-
cisou ser melhorada posteriormente pela graça (como é o caso
de acordo com grande parte do pensamento católico romano),
é lógico que as coisas encontradas naquele mundo ainda não
caído devam ser afirmadas e celebradas. Esta é a base pela qual
Bavinck afirma que o mundo físico — como criação de Deus —
é em essência bom, ao invés de neutro ou mau. Embora agora,
sejam afetadas pelo pecado, coisas como comida e bebida; ca-
samento, procriação e cultura humana não são más em si mes-
mas. O Cristianismo não quer que nos concentremos em nos-
sas almas enquanto ignoramos nossos corpos ou o mundo fí-
sico ao nosso redor. A ideia de “graça restaura a natureza” é,
em sua essência, uma afirmação da natureza. No mundo pós-
Queda, a graça não remove nossa fisicalidade, nem exige que
vivamos uma vida ascética ou desprezemos o casamento. Em
vez disso, a graça opera para restaurar todas essas coisas à sua
beleza e santidade pré-Queda.
O livro de Bavinck reconhece que a Igreja Cristã nunca
foi tão longe quanto condenar o casamento abertamente. Dito
isso, ele critica a tradição católica romana (que se baseia na
crença de que a graça eleva a natureza, em vez de simplesmente
restaurá-la) em sua tendência de considerar as pessoas casadas
de segunda categoria, em termos de santidade, em relação ao
celibatário. A compreensão de “graça restaura a natureza” so-
bre a qual este livro se baseia é crucial para o apoio de Bavinck
ao casamento e ao celibato como vocações distintas, que po-
dem honrar o Criador.
A graça de Deus não eleva a natureza de alguma forma,
mas também não existe fora e distante de nosso mundo. Ao
restaurar a natureza, a graça torna sua presença conhecida em
nosso meio. Ele nos confronta com nossa necessidade de Re-
denção na graça. Esta é uma visão útil que dá um realismo
31
Herman Bavinck

corajoso ao modo como Bavinck lida com o casamento e a vida


familiar. Frequentemente, Bavinck escreve, “você — como pe-
cador — será a principal cruz que seu cônjuge é chamado a car-
regar”. Neste mundo em Queda, não há promessas de que o
casamento, com toda a sua capacidade de ser belo e enrique-
cedor, será uma série de prazeres físicos cada vez maiores para
toda a vida. Na verdade, um casamento saudável provavel-
mente se apoiará mais no Sermão da Montanha do que no
Cântico de Salomão. E a esse respeito, as percepções de Ba-
vinck sobre o casamento (todas as quais surgem das várias con-
sequências de sua percepção de “a graça restaura a natureza”)
fornecem um corretivo útil para muitos desequilíbrios no pen-
samento evangélico contemporâneo sobre o casamento.

A Família, o Indivíduo e a Sociedade

O movimento dentro do qual Bavinck ganhou proemi-


nência, o neocalvinismo, encontrou grande parte de seu im-
pulso inicial como uma rebelião contra a influência da Revo-
lução Francesa em toda a Europa. Essa luta para conter o im-
pacto da Revolução exerce uma influência decisiva sobre
grande parte do pensamento de Bavinck sobre o Cristianismo
e a Cultura. Muitas ênfases no pensamento de Bavinck sobre
a família devem ser entendidas dentro deste contexto.32
A Revolução foi uma tentativa de deixar de lado todas as
antigas distinções de classe e poder. Liberdade, igualdade e fra-
ternidade eram os novos valores. Foram-se conceitos como
monarquia, classe social e teísmo. A nova deidade de fato, a
razão, foi colocada em oposição direta à revelação divina. A
mudança tentada na França revolucionária foi altamente

32
Um pouco mais sobre a visão de Herman Bavinck quanto ao pensamento revoluci-
onário, veja: VICENTE, Christopher. O Marxismo e a Fé Cristã-Reformada: uma
análise em Herman Bavinck. Disponível no site na Editora Nadere Reformatie. [N. do
Editor].
32
A Família Cristã

ambiciosa; foi um movimento de recriação, uma revolução ins-


tigada a mudar todos os aspectos da vida francesa. O intelec-
tual revolucionário do século XIX, Edgar Quinet, reconheceu
que tal ruptura repentina com todo um sistema social só po-
deria acontecer se o sentido preexistente de interconexão so-
cial entre os cidadãos fosse quebrado. Aqueles que, até agora,
existiram principalmente em relação uns aos outros, dentro de
uma cultura comum, devem subitamente pensar em si mesmos
principalmente como indivíduos. Quinet reconheceu isso
como central não apenas para a Revolução Francesa, mas tam-
bém para todos os movimentos revolucionários. Assim, para
mudar toda uma sociedade, todas as antigas conexões sociais
tiveram que desaparecer, e o “indivíduo” teve que tomar o seu
lugar.
A grande ironia percebida por pessoas como Bavinck e
Kuyper foi que, embora os revolucionários fossem informados
de sua individualidade recém-descoberta, na realidade, eles se
tornaram muito mais homogêneos do que no mundo pré-re-
volucionário. A França revolucionária era um lugar onde to-
dos eram pressionados a se vestir e a falar da mesma forma;
onde o valor humano não existia além da posição social de
alguém (daí o impulso para uma sociedade homogeneizada); e
onde instituições como o teísmo cristão, como diversidade
pró-social, eram vistas como obstáculos a esses objetivos.
Ao ver esses ideais tomando conta da França, Bavinck fi-
cou motivado a combater sua influência na cultura holandesa.
Esse contexto define o cenário para seus pensamentos sobre a
Família como uma unidade social com existência indepen-
dente. Seu argumento era que a Família não é um coletivo ar-
bitrário de indivíduos, que podem ou não ter muito em co-
mum por meio da crença. Em vez disso, ele argumenta a favor
da Família como um organismo composto de pessoas distin-
tas, mas complementares, que juntas formam os blocos de
construção da sociedade.
33
Herman Bavinck

Certamente, há aspectos da visão de Bavinck da Família


Orgânica que são difíceis de manter nos dias atuais. Durante
grande parte de sua carreira política, por exemplo, Bavinck lu-
tou contra o sufrágio individual e era contra as mulheres terem
o direito de votar (em vez disso, Bavinck, típico do Partido
Anti-Revolucionário, acreditava no sufrágio concedido aos
pais como chefes de famílias, com essas famílias votando como
unidades).33 Sua opinião mudou mais tarde, levando-o a votar
no sufrágio individual masculino e feminino, apesar de se
opor ao individualismo revolucionário em princípio.
O fato de Bavinck (sete anos após a publicação deste li-
vro) estar disposto a aceitar um grau maior de participação so-
cial individualista é um lembrete útil de que este livro, embora
útil, também é limitado em aplicabilidade às culturas ociden-
tais um século depois. A oposição ao individualismo que sus-
tenta os ideais de unidade familiar orgânica neste livro é muito
forte. No entanto, em poucos anos, o próprio Bavinck reco-
nheceu que a Sociedade Ocidental estava se tornando cada vez
mais individualista. Ele viu isso como inevitável e, mais tarde,
admitiu que as Escrituras não dão nenhuma orientação clara
sobre se as famílias ou indivíduos devem desfrutar do direito
de voto.
A própria aplicação de Bavinck dos princípios teológicos
centrais em questão mudou após a publicação deste livro — o
que deve servir como um lembrete útil da necessidade de uma
leitura contemporânea cuidadosa das aplicações práticas de
Bavinck na Família. Se nós, como leitores em um contexto cul-
tural ainda mais distante, esperamos simplesmente manter
toda a orientação prática de Bavinck dada um século antes,
ficaremos desapontados. Nossa tarefa, como cristãos em

33
A base para essa posição, como será exposta na obra, é a representatividade pactual
dos cabeças de cada família. [N. do Editor].
34
A Família Cristã

2012,34 não é manter práticas dadas em 1912, que o próprio


Bavinck não poderia mais manter em 1919. Na verdade, aque-
les que assim leem as aplicações culturais, neste livro, certa-
mente perdem o significado deste livro. Esse tipo de leitor é
um excelente exemplo de um cristão atencioso tentando en-
tender o Casamento e a Família à luz das Escrituras e da tradi-
ção cristã e, com base nisso, tenta aplicar um modelo cristão
de Casamento para a Holanda aos seus dias. Nossos contextos
sociais são diferentes, e aqueles que lutam por um conceito
cristão de Casamento e Família, em 2012, enfrentam desafios
que Bavinck não enfrentou. No entanto, ao nos dar uma apre-
sentação clara do ensino da Bíblia, de sua recepção na História
da Igreja e, além disso, um modelo de Teologia Cristã aplicado
ao seu próprio contexto, Bavinck nos prestou um grande ser-
viço. Nesse sentido, este livro é um exemplo a seguir.35

34
Ano em que foi escrito essa introdução à edição inglesa — 108 anos após a publicação
original da obra. O ano da primeira edição em português é 2022 — 118 anos após a publi-
cação original. [N. do Editor].
35
Como organizadores desta obra (editor e tradutor) em sua edição brasileira, não daríamos a
ênfase tão grande nos “alertas de distância cultural” que James Eglinton faz. Apesar de concordar
que há questões culturais e aplicativas próprias aos dias de Bavinck (na Europa Ocidental do
Século XX), percebemos que há: (1) por parte de Bavinck, um sincero esforço de expressar posições
morais que podem ser vividas tanto no início do Século XX, quanto hoje na primeira metade do
Século XXI; que (2) os desafios não nos parecem tão diferentes assim aos do Brasil de 2022.
Portanto, cremos que teremos mais proveito na obra se tratarmos as questões destacadas por
Bavinck dessa forma, ao invés de constantes suspeitas de “distância cultural”. De fato, isso não é
um louvor ou incentivo à transposição cultural direta, mas um arrefecimento do ímpeto da
“desconfiança cultural” aos bons princípios morais aplicados e destacados por Bavinck. [N. Do
Editor].
35
I
A ORIGEM DA FAMÍLIA

A Criação da Humanidade
(do Homem e da Mulher) à Imagem de Deus

A História da Humanidade começa com um Casamento.


Depois que Deus criou o céu e a terra, no princípio, Ele con-
duziu uma obra de trabalho de seis dias para preparar esta cri-
ação para ser o lar da humanidade.36 Pois os céus pertencem
ao Senhor, mas a terra, Ele deu aos filhos dos homens. Essa
terra, no entanto, existiu primeiro em uma condição informe;
estava sem forma e vazia. Por meio de várias separações ou di-
ferenciações — entre a luz e as trevas, entre as águas abaixo e as
águas acima do firmamento, entre a terra e o mar, entre o dia
e a noite, entre meses e anos — Deus acabou com a selvageria
dela. E ao povoar o solo e o mar, o céu e a terra com uma
multidão de criaturas vivas, plantas e animais, peixes e pássa-
ros, Deus encheu a Criação e fez o vazio dela desaparecer.
Entretanto, esse vazio foi totalmente superado somente
quando Deus procedeu com a criação da Humanidade. Pois
Ele não criou a terra para que permanecesse vazia, mas a for-
mou para que as pessoas habitassem nela (Isaías 45:18). Então,
36
A Editora Nadere Reformatie reafirma sua profissão de fé, segundo os Padrões de
Westminster, quanto à Doutrina da Criação, a saber: a Criação do Mundo feita no
espaço de seis dias (histórico-factuais) de 24h. Estamos preparando uma série de pu-
blicações em favor e em defesa da Doutrina Bíblica da Criação. Nossa primeira publi-
cação será: “Mantendo-se firme na Doutrina da Criação” por David W. Hall. [N. do
Editor].
A Família Cristã

Ele criou esta humanidade após uma consulta especial. Ele


criou a humanidade à Sua imagem e semelhança. Ele criou a
humanidade imediatamente como sexos distintos, como ho-
mem e como mulher. E, quando Ele os criou, os abençoou e
lhes deu toda a Terra como seu território.
Dentro dessas poucas características está embutido tudo
o que precisamos saber sobre a origem, a essência e o destino
da humanidade. Eles contêm uma sabedoria que ultrapassa
em muito a compreensão do erudito. O que a Escritura nos
fornece no curso subsequente da Revelação, mesmo já no se-
gundo capítulo da Bíblia, é mera expansão e explicação do que
nos é contado de forma nítida e resumida no primeiro capí-
tulo.
Deus criou primeiro o homem, seu corpo vindo do pó da
terra, sua alma criada pelo sopro de vida soprado do alto. Os
animais vieram à existência de maneira diferente — com a po-
derosa palavra de Deus, eles foram trazidos através e a partir
da terra. Os anjos vieram à existência de maneira diferente,
pois foram todos criados, juntos e ao mesmo tempo, perfeitos,
em seu número completo. Porém, o homem (que está relacio-
nado tanto aos animais quanto aos anjos) é, no entanto, dife-
rente deles. Com o corpo, o homem mantém comunhão com
a terra; com o espírito, que vem de cima, o homem se relaciona
com o céu. Tanto o corpo quanto o espírito estão tão intima-
mente unidos na pessoa humana que o ser humano possui
uma natureza única e uma posição única entre todas as criatu-
ras. Em um sentido especial, uma pessoa humana é um pro-
duto de Deus; uma pessoa é sua imagem e semelhança, seu
filho e sua raça.
Além disso, o primeiro ser humano foi criado imediata-
mente como homem, nem neutro nem andrógino, mas com
um sexo específico. Isso se manifestou no fato de que, embora
ele tivesse sido colocado no jardim e tivesse provisões abun-
dantes de tudo que precisava para viver, ele se sentia sozinho.
37
Herman Bavinck

Deus o criou assim. Deus diz a Si mesmo e a partir de Si


mesmo que não era bom que o homem estivesse sozinho. Ime-
diatamente, na Criação, Deus implantou na alma do homem
o desejo de amar alguém que fosse como ele. Esse anseio não
foi satisfeito pelos animais, cuja essência ele percebeu, cujas
espécies ele distinguiu e cujos nomes ele inventou. Eles eram
fortes e grandes, nobres e magníficos, mas não compartilha-
vam de sua semelhança. A criação da mulher foi precedida
pelo senso de necessidade, que o primeiro homem descobriu
no próprio coração, em meio a toda a sua abundância. Mesmo
tendo sido criado à imagem de Deus, não poderia satisfazer
essa necessidade. Portanto, a mulher é a resposta à pergunta que
fluiu do coração do homem e em seus lábios. Ela é a resposta à sua
oração, o presente que Deus tão rica e amorosamente concedeu a ele.37
Pois embora ela fosse desejada pelo homem, ela não foi
criada por ele, mas por Deus. A mulher, assim como o ho-
mem, é uma criação especial de Deus, tendo a imagem e seme-
lhança dEle. Mesmo quando o apóstolo Paulo, em 1 Coríntios
11:7, chama o homem de imagem e glória de Deus, e a mulher
de glória do homem, ele certamente não está negando à mu-
lher sua criação à imagem e semelhança de Deus. Pois, ali,
Paulo não está discutindo o homem e a mulher como seres
humanos, em geral; mas sim a relação matrimonial na qual
eles interagem. Na vida conjugal e na família, é o marido como
cabeça que, em sua aparência e glória, irradia a imagem e a
glória de Deus; e a esposa tem o chamado, em obediência ao
marido, de exibir sua glória. Mas isso de forma alguma contra-
diz a verdade de que a própria mulher, vista como um ser hu-
mano, carrega a imagem e semelhança de Deus tanto quanto
o homem.

37
Esse é o pressuposto na criação da mulher. A forma como Deus operou nos ensina
verdades preciosas. Uma delas é que, conforme Bavinck destacou, a mulher é uma
dádiva e uma manifestação de bondade da parte de Deus ao homem. Essa é uma visão
gloriosa e sem igual da mulher. [N. do Editor].
38
A Família Cristã

A História da Criação em Gênesis mostra claramente


isso, no fato de que ambos juntos foram criados à imagem de
Deus (Gênesis 1:27). Não apenas um deles, mas ambos; e não
um separado do outro, mas homem e mulher juntos, em rela-
ção mútua, cada um criado à sua maneira e cada um em uma
dimensão especial criados à imagem de Deus e exibindo juntos
a imagem e semelhança dEle. Por isso, o Senhor se compara,
não apenas a um Pai que tem pena de seus filhos (Salmo
103:13), mas também a uma mãe, que não consegue se esque-
cer de seu filho que está amamentando (Isaías 49:15). Ele cor-
rige como um pai (Hebreus 12:6), mas também conforta como
uma mãe (Isaías 66:13) e acolhe na perda de ambos (Salmos
27:10).

Cada um com seu próprio Sexo, Natureza e Posição

No entanto, embora a mulher não tenha sido criada pelo


homem, ela foi criada a partir do homem. Adão foi feito pri-
meiro e depois Eva. No tempo e na ordem, o homem precedeu
a mulher. A mulher foi criada não apenas após o homem, mas
também foi gerada do homem. Assim como a terra forneceu o
material para o corpo do homem, o corpo do homem, por sua
vez, forneceu o material com o qual Deus formou a mulher. A
maneira como o homem foi criado fixou um vínculo inque-
brável entre o ser humano e a terra. A maneira pela qual a
mulher recebeu sua existência serviu para colocá-la no tipo de
relação com o homem de tal forma que ela está inseparavel-
mente ligada a ele. Assim, a unidade da Humanidade é com-
pletamente preservada. A mulher não foi criada para ser autos-
suficiente, nem para ser independente do homem, nem sepa-
rada de sua mediação. Ela não é a única [na condição de] prin-
cipal e [de] cabeça da Humanidade; mas ela mesma foi for-
mada do homem, de sua carne e de seu sangue. A

39
Herman Bavinck

Humanidade é uma entidade, um corpo com uma cabeça, um


edifício com uma pedra angular.
Nesta realidade, o homem não encontra fundamento
para o orgulho, pois ele recebeu a mulher, a quem ele desejou,
inteiramente à parte de seu próprio esforço, à parte de seu pró-
prio conhecimento e vontade, enquanto esteve em um sono
profundo, que Deus colocou em sua alma e corpo. Embora a
mulher realmente venha a partir do homem, ela não veio a exis-
tir por meio dele. Sua existência não se deve ao homem, mas,
assim como a existência do homem, sua existência se deve in-
teiramente a Deus. Em um sentido absoluto, então, ela é um
presente de Deus, o maior presente que Deus poderia dar ao
homem que foi criado à Sua imagem — um presente que o
homem deve, portanto, receber e valorizar como dado pelas
próprias mãos do Senhor.
Foi assim também que Eva foi saudada por Adão. Assim
que ele a viu, a reconheceu; seu reconhecimento foi um co-
nhecimento nascido do amor. Ele não via nela nenhum ser
estranho, mas um ser igual a ele. Ela possuía a mesma natureza
que a dele. Ela exibiu a mesma imagem de Deus que havia sido
concedida a ele. E, ainda assim, ela era diferente dele, com seu
próprio sexo, caráter e vocação. Como um grito de alegria,
como uma canção nupcial, as palavras saíram de seus lábios:
Esta é agora finalmente carne da minha carne e osso dos meus
ossos; chamar-se-á ’isha, porque ela saiu do ’ish!38
Assim como o homem foi criado instantaneamente, a
mulher também foi criada instantaneamente. Não apenas
como ser humano, mas também como mulher, ela encontrou
sua origem em Deus. Deus é o Criador do ser humano e,

38
Algumas versões portuguesas traduzem “‘varoa’ porque do ‘varão’”; outras, “‘mu-
lher’ porque do ‘homem’”. A tradução para o inglês desse texto de Bavinck usou “her
manninne, because she came forth out of man”. Há, aqui, uma clara alusão a Gênesis 2:23.
Nós, então, optamos por usar a expressão hebraica transliterada: ‫’ ִאשָּׁ ה‬isha (mulher) e
‫’ ִאיׁש‬ish (homem). [N. do Editor].
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A Família Cristã

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