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Título Original Divine Covenants Por A.W.

Pink ■
IMPORTANTE!

A obra supracitada, Divine Covenants, será publicada em português


como uma série de oito livros. O presente eBook contém o
Livro 4, O Pacto de Deus com Abraão (E não a obra integral).
Os outros sete livros serão publicados nos próximos dias, se
nosso Deus quiser. Para mais informações, veja o título Sobre a
Série, no sumário.

Copyright © 2021 Editora O Estandarte de Cristo Francisco Morato, SP, Brasil


1ª edição em português: 2021.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora O Estandarte


de Cristo. Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves
citações, com indicação da fonte.

Salvo indicação em contrário e leves modificações, as citações bíblicas


usadas nesta tradução são da versão Almeida Corrigida Fiel | ACF • Copyright
© 1994, 1995, 2007, 2011 Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil.

Tradução: William e Camila Rebeca Teixeira


Capa: William Teixeira ■
Imagens da capa por Gustave Doré (1832-1883) ■
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Sumário
Sobre a Série Os Pactos de Deus
Capítulo 4 • O Pacto de Deus com Abraão
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6
Parte 7
Parte 8
Sobre a Série
Os Pactos de Deus

O livro Os Pactos de Deus foi publicado por A.W. Pink como uma
série de artigos entre 1934 e 1938, em sua revista de estudos
bíblico-teológicos, Studies in the Scriptures; e depois organizado
para publicação como um único volume com o título Divine
Covenants.
Agora essa obra é publicada em português como uma série
que conterá oito livros. São eles: Livro 1: O Pacto Eterno de Deus
Livro 2: O Pacto de Deus com Adão Livro 3: O Pacto de Deus com
Noé Livro 4: O Pacto de Deus com Abraão Livro 5: O Pacto de
Deus no Sinai Livro 6: O Pacto de Deus com Davi Livro 7: O Pacto
de Deus com o Messias Livro 8: A Alegoria Acerca das Alianças de
Deus O presente eBook contém o Livro 4, O Pacto de Deus com
Abraão.
Nossa oração é que esses livros ajudem os leitores a chegar a
um conhecimento mais bíblico acerca do “Deus, que se agradou em
expressar sua graça aos homens caídos por meio de aliança” e da
“vida e a salvação por meio de Jesus Cristo, o Mediador” (CFB1689
7.1-2; 8). Querido leitor, creia no Senhor Jesus Cristo para que você
seja salvo.
Soli Deo Gloria!
Capítulo 4
O Pacto de Deus com Abraão
Parte 1

Consideraremos agora um dos personagens mais ilustres


registrados nas páginas das Sagradas Escrituras, aquele que é
expressamente chamado “o amigo de Deus” (Tiago 2:23), e de
quem o próprio Cristo deriva um de seus títulos, “filho de Abraão”
(Mateus 1:1). Ele não somente foi o único a partir de quem a
favorecida nação de Israel nasceu, mas ele também é “o pai de
todos os que creem” (Romanos 4:11). Não é nosso propósito rever a
vida notável desse homem. No entanto, a história de Abraão — em
suas linhas gerais, pelo menos — está tão intimamente ligada com o
pacto que o Senhor fez com ele, que é quase impossível fazer uma
exposição deste último, sem prestar alguma atenção ao primeiro. No
entanto, seremos obrigados a passar por muitos episódios
interessantes de suas experiências, se quisermos manter a nossa
discussão sobre o pacto abraâmico dentro de limites razoáveis.
Um período de mais de 300 anos se passou desde o tempo
que o Senhor fez o pacto com Noé e o aparecimento de Abraão no
cenário da história sagrada. Podemos mencionar brevemente duas
coisas que ocorreram nesse período e o faremos devido à influência
que elas têm e a luz que lançam sobre o assunto que estamos
tratando. A primeira delas é a profecia notável declarada por Noé
em Gênesis 9:25-27. Após tratarmos brevemente dos incidentes
tristes que imediatamente precederam e deram origem à essa
previsão, observaremos as duas declarações em particular, pois ela
revelou o futuro desenrolar do propósito gracioso de Deus. Isso é
expresso pela primeira vez pela expressão: “Bendito seja o Senhor
Deus de Sem”, ou como seria traduzido mais apropriadamente:
“Bendito seja [ou “Louvado seja”] Yahwéh, o Deus de Sem”. Essa é
a primeira vez nas Escrituras que encontramos Deus chamando a si
mesmo de o Deus de qualquer pessoa em particular; além disso, foi
como Yahwéh que ele se relacionou com Sem.
Yahwéh é Deus dando-se a conhecer em sua relação pactual,
é Deus manifestando sua personalidade como aquele que escolhe
pessoas com base em seu favor livre; é Deus concedendo a
revelação de suas instituições para a redenção. Essas coisas
seriam ser a porção específica de Sem, em um contraste nítido com
a maldição pronunciada sobre Cão, mas não sobre Sem
simplesmente como um indivíduo, mas como o cabeça de uma parte
distinta da raça humana. Foi com essa parte que Deus estaria em
uma relação íntima, e quem pertencesse a ela, desfrutaria de um
privilégio espiritual distinto, uma relação pactual, uma proximidade
sacerdotal. Nessa previsão a respeito de Sem foi antevista uma
participação especial no favor divino. Seus descendentes seriam a
linhagem através da qual a bênção divina fluiria, era entre eles que
Yahwéh seria conhecido e que seu reino seria estabelecido.
“Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem”. O
significado óbvio da primeira cláusula é que Deus daria a Jafé uma
descendência numerosa, que possuiria territórios muito extensos, o
que foi cumprido no fato de que eles não apenas obtiveram a posse
de toda a Europa, as Américas do Norte e do Sul e a Austrália, mas
também uma grande parte da Ásia. A provisão de Jafé seria a maior
e mais ambiciosa dentre os descendentes de Noé, a qual se daria
por meio de colonização e povoamentos em toda parte. Mas é com
a segunda cláusula de Gênesis 9:27 que estamos mais
preocupados agora: “e habite nas tendas de Sem”. Ele deveria
gozar de uma participação nos grandes privilégios espirituais de
Sem. Jafé seguiria sob a proteção divina e seria admitido às
bênçãos que eram a porção peculiar, embora não exclusiva, de
Sem.
Ao lançarmos a luz do Novo Testamento sobre essa profecia
antiga, encontramos claramente anunciado que foi através da
linhagem de Sem que os dons da graça e as bênçãos da salvação
fluiriam imediatamente. No entanto, longe de estar limitada a essa
parte da família humana, a maioria dos homens (Jafé) também
poderia compartilhar dos benefícios dela. Os semitas deveriam tê-la
em primeira mão, mas os descendentes de Jafé também viriam a
participar da bênção da salvação.

A exaltação dos descendentes de Sem para um


relacionamento mais próximo a Deus, não se deu de forma
que eles mantiveram esse privilégio somente para si
mesmos, mas sim que seriam os primeiros beneficiados por
ele, então eles deveriam admitir os filhos de Jafé, os
habitantes das ilhas, como coparticipantes com eles dessas
bênçãos e então espalhá-la tão vastamente quanto a sua
raça espalhada se estendesse (P. Fairbairn).

Nessa previsão inicial através de Noé temos o princípio do que


depois é mais plenamente desenvolvido na Escritura. Era apenas
por habitar nas tendas de Sem que Jafé poderia entrar no lugar
onde a bênção divina seria encontrada, o que, na linguagem do
Novo Testamento é apenas outra maneira de dizer que é a partir dos
judeus que a salvação flui para os gentios. Mas antes de
desenvolver um pouco mais esse pensamento mencionaremos um
ponto muito marcante mencionado por E.W. Hengstenberg em sua
mais recomendada obra em três volumes sobre a cristologia do
Antigo Testamento. Em meio a suas notas secas e técnicas sobre o
texto hebraico, ele mostra que, “assim como a reação contra o
pecado de Cão teria se originado com Sem (Gênesis 9:23), e Jafé
se apenas uniu a ela; assim também, no futuro, a rica fonte da
salvação e da piedade estaria com Sem, de quem Jafé, ao sentir
sua necessidade de salvação, se aproximaria”.
“E [Jafé] habite nas tendas de Sem”. A terra seria possuída e
habitada pelos três filhos de Noé. Dentre eles, Sem foi o escolhido
para ser o canal peculiar dos dons e comunicações divinas; mas
esses não seriam para o benefício exclusivo dele, mas sim a fim de
que outros também pudessem compartilhar dessas bênçãos. O
reino de Deus seria estabelecido em Sem, mas Jafé seria recebido
em sua comunidade. Nisso, foi ordenado não somente que “a
salvação vem dos judeus” (João 4:22), mas também o mistério de
Romanos 11:11, e assim por diante. Embora “a salvação venha dos
judeus”, entretanto, os gentios são coparticipantes dela. Ainda que
Sem, sozinho, seja a verdadeira raiz e tronco, contudo, os gentios
deveriam ser “enxertados” em sua árvore. Apesar de as palavras de
Noé parecerem obscuras, não obstante, por meio delas o Espírito
Santo concedeu a Noé uma luz maravilhosa e um conhecimento
profundo a respeito dos conselhos secretos do Altíssimo.
A conexão entre o que temos nos discutido brevemente com o
nosso presente assunto é tão óbvia que falaremos apenas um
pouco sobre isso. A notável profecia de Noé começou a receber seu
desenvolvimento histórico quando o Senhor anunciou ao patriarca:
“Em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gênesis 12:3).
Abraão era da linhagem de Sem (Gênesis 11:1, 23, 26), e agora, ele
foi feito o depositório das promessas divinas (Gálatas 3:16); ainda
assim, a bênção de Deus não seria limitada a ele mesmo, nem aos
seus descendentes diretos, mas “todas as famílias da terra” seriam
beneficiadas desse modo. No entanto, era somente através de
Abraão que os gentios seriam favorecidos: “Em ti serão benditas
todas as famílias da terra” — a promessa central do pacto
abraâmico. O que foi isso, senão a reafirmação em detalhes mais
específicos da declaração, “alargue Deus a Jafé, e habite nas
tendas de Sem”? Quão perfeita é a harmonia da maravilhosa
Palavra de Deus!
A segunda coisa a ser observada, a qual aconteceu durante o
intervalo entre os pactos de Noé e Abraão, e que claramente teve
uma influência sobre este último, é o incidente registrado em
Gênesis 11, ou seja, a construção e a derrubada da torre de Babel.
É um grande erro considerar esse evento como uma ocorrência
isolada; antes, ele deve ser considerado como surgimento de um
caminho e movimento malignos. Sobre os eventos que
transcorreram desde o dilúvio até o chamado de Abraão, que
decorreram em um intervalo de mais de quatro séculos, a
informação que possuímos é breve e sumária, mas é registrado o
suficiente para mostrar que o caráter do homem se manteve
inalterado, no que diz respeito aos seus princípios e práticas, como
era antes do dilúvio. Talvez, pudesse ser esperado que uma
sentença tão terrível deixaria uma impressão profunda e salutar nos
sobreviventes e nos descendentes deles por muitas gerações, a
qual serviria como um freio poderoso sobre suas inclinações más.
Infelizmente, quão maligno o homem é!
Mesmo na família de Noé, e enquanto a lembrança da terrível
visitação da ira de Deus ainda estava fresca em suas mentes, havia
indícios que testificavam tanto da existência quanto do exercício de
disposições pecaminosas, que o recente juízo não conseguiu
erradicar nem mesmo frear. A falha triste do próprio Noé e o mau
comportamento de seu filho ao contemplar a queda de seu pai dão
provas terríveis de que o mal que está no coração do homem caído
é tão profundamente enraizado e poderoso que nada externo, não
importa quão assustador seja, pode sujeitá-lo. Isso forneceu uma
clara previsão do que logo foi manifesto em maior escala e de forma
muito pior. A própria idolatria rapidamente começou a ser praticada
e logo se estabeleceu entre os habitantes da terra enquanto se
dispersavam. Josué 27:2 nos dá mais do que uma sugestão disso,
enquanto Romanos 1:21-23 lança um raio de luz sobre essa
situação sombria.
Dentro de um curto período após o dilúvio, a depravação
humana retomou seu antigo curso e se manifestou em desafio
aberto contra o céu. Enquanto a população da terra crescia,
sistemas malignos de ambição começaram a ser formados; e logo
apareceu alguém que assumiu a liderança na impiedade. Ele é
apresentado a nós em Gênesis 10:8: “Ninrode; este começou a ser
poderoso na terra”. Devemos notar que ele pertencia à linhagem de
Cão, sobre a qual a maldição divina havia sido pronunciada, e que
seu nome, “Ninrode” significa “o rebelde”, título adequado para a
pessoa que liderou uma grande confederação que revoltou
abertamente contra Deus. Essa confederação é descrita em
Gênesis 11, e que ela consistiu em uma revolta organizada contra o
Senhor fica evidente a partir da linguagem de Gênesis 10:9: “Como
Ninrode, poderoso caçador diante do Senhor”. Se essa expressão
for comparada com “a terra, porém, estava corrompida diante da
face de Deus” (Gênesis 6:11), a impressão transmitida é que esse
“rebelde” desenvolveu seus planos ímpios e ambiciosos em desafio
aberto contra o Todo-Poderoso.
Encontramos a palavra “poderoso” conectada com Ninrode
mais quatro vezes. Em primeiro lugar, em Gênesis 10:8 é dito que
“este começou a ser poderoso na terra”, o que sugere que ele se
esforçou para obter preeminência, e por força de vontade e por
capacidade a obteve; ser o “poderoso na terra” sugere conquista e
submissão, o que o levou a se tornar em um líder e governante
sobre os homens. Isso é confirmado pela expressão, o “princípio do
seu reino foi Babel” (Gênesis 10:10), de forma que ele reinou como
um rei. No versículo anterior nos é dito: “E este foi poderoso caçador
diante da face do Senhor; por isso se diz: Como Ninrode, poderoso
caçador diante do Senhor”, isso provavelmente se refere a ele ser
um caçador de homens. Tratando-se de uma descrição tão breve, a
repetição das palavras “poderoso caçador diante do Senhor” é
significativa. A palavra para “poderoso” é gibb ō r ( ‫)גִּ ֹ֖בּ ר‬, e é
traduzida no Antigo Testamento como “chefe” e “líder”. Em 1
Crônicas 1:10 nos é dito: “E Cuxe gerou a Ninrode, que começou a
ser poderoso na terra”. A paráfrase caldeia desse versículo diz:
“Cuxe gerou a Ninrode, que começou a prevalecer em impiedade,
porque ele derramou sangue inocente, e se rebelou contra o
Senhor”.
“E o princípio do seu reino foi Babel” (Gênesis 10:10). Aqui
está a chave para entendermos os primeiros nove versículos do
capítulo 11. Na linguagem da época, “Babel” significava “a porta de
Deus” (veja a Concordância de Young); mas depois, por causa do
julgamento divino infligido ali, passou a significar “confusão”. Ao
reunir as várias sugestões que o Espírito Santo nos deu aqui,
parece bastante claro que Ninrode organizou não apenas um
governo imperial, ao qual ele presidia como rei, mas que ele
também introduziu uma nova forma de adoração idólatra,
provavelmente exigindo — sob pena de morte — que honras divinas
fossem prestadas à sua própria pessoa. Como tal, ele era um tipo
ameaçador e impressionante do anticristo. “Desta mesma terra saiu
à Assíria e edificou a Nínive, Reobote-Ir, Calá”, e assim por diante
(vv. 11-12). A partir dessas declarações, nós temos a impressão que
a ambição de Ninrode era estabelecer um império mundial.
Embora Ninrode não seja mencionado pelo nome em Gênesis
11, é evidente a partir de 10:10 que ele era o “chefe” e “rei” que
organizou e dirigiu o movimento e rebelião registrados ali. “E
disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume
toque nos céus, e façamo-nos um nome, para que não sejamos
espalhados sobre a face de toda a terra” (Gênesis 11:4). Aqui são
revelados homens que se uniram em um esforço para desafiar
abertamente a Deus. Ele disse: “Frutificai e multiplicai-vos e enchei
a terra” (9:1); mas Ninrode e seus seguidores deliberadamente se
recusaram a obedecer a essa ordem divina, dada por meio de Noé,
ao declararem: “Façamo-nos um nome, para que não sejamos
espalhados sobre a face de toda a terra”.
É claro a partir de Gênesis 10 que a ambição de Ninrode era
estabelecer um império mundial. Para alcançar isso, duas coisas
eram necessárias. Em primeiro lugar, um centro de unidade, uma
cidade que servisse como sua sede; e, em segundo lugar, um
motivo para a motivação e o encorajamento de seus companheiros.
Vemos que a primeira coisa foi alcançada, quando lemos que “o
princípio do seu reino foi Babel” (10:9); a segunda coisa também
estava presente, “façamo-nos um nome” (11:4), isso dá a entender
que eles foram motivados por um desejo pecaminoso por fama. O
objetivo de Ninrode era manter a humanidade unida sob a sua
liderança, “para que não sejamos espalhados”. A ideia sugerida pela
“torre” — considerada à luz de toda a sua composição — era a de
demonstração de força, ela provavelmente serviria como uma
fortaleza; enquanto que o seu nome “a porta de Deus”, nos dá a
entender que Ninrode estava arrogando para si honras divinas. Em
tudo isso, podemos discernir a tentativa inicial de Satanás de
impedir o propósito de Deus em relação ao seu Cristo, através da
criação de um governo universal formado por homens suscitados
por ele.
A resposta do céu foi rápida e drástica:

E o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma


mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não
haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Eia,
desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não
entenda um a língua do outro. Assim o Senhor os espalhou
dali sobre a face de toda a terra; e cessaram de edificar a
cidade. Por isso se chamou o seu nome Babel, porquanto ali
confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os
espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra (11:6-9).

Mais uma vez a raça humana tornou-se culpada de apostasia


flagrante. Por isso, Deus interveio com o seu julgamento e aniquilou
o sistema ambicioso de Ninrode ao confundir a fala de seus súditos,
e espalhá-los sobre a face da terra.
O efeito da intervenção de Deus foi a origem das diferentes
nações e a formação do “mundo”, como continuou até o tempo de
Cristo. Foi então que os homens foram abandonados à própria
sorte, pois Deus os “deixou andar todas as nações em seus próprios
caminhos” (Atos 14:16). Então, foi executado aquele terrível
endurecimento judicial, quando Deus “os entregou… à imundícia”,
quando “Deus os abandonou às paixões infames” e quando “Deus
os entregou a um sentimento perverso” (Romanos 1:24, 26, 28).
Desse modo, foi aberto o caminho para a próxima fase na
realização do divino plano de misericórdia; pois onde o pecado
abundou, a graça agora superabundaria. Após abandonar
(temporariamente) as nações, Deus agora escolhe um homem,
Abraão, de quem a nação escolhida surgiria.
Parte 2

“Por isso, o Senhor esperará, para ter misericórdia” (Isaías 30:18) —


esperará até o momento mais adequado, esperará até que o palco
esteja preparado para a ação, esperará até que haja um cenário
adequado para ele agir; esperará, muito frequentemente, até que o
homem tenha atingido seus limites extremos. “Vindo a plenitude dos
tempos, Deus enviou seu Filho” (Gálatas 4:4). A neve do inverno
deve fazer o seu trabalho antes que a vegetação esteja pronta para
brotar e florescer. Assim como acontece na criação material, o
mesmo também é visto no reino da providência divina. Há uma
ordem maravilhosa em todas as obras de Deus, um tempo sábio
para as ações divinas. Não que o Todo-Poderoso seja dificultado ou
impedido por finitas criaturas de pó, mas o que ocorre é que os seus
caminhos maravilhosos podem ser mais admirados por aqueles que
são espiritualmente habilitados para discerni-los: “Grandes e
maravilhosas são as tuas obras, Senhor Deus Todo-Poderoso!
Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos santos”
(Apocalipse 15:3).
Após lidar em julgamento com Babel, aprouve a Deus
manifesta sua graça. Isso tem sido e sempre será verdadeiro no que
diz respeito a todos os lidares de Deus. De acordo com sua
sabedoria infinita, o julgamento (o qual é a “estranha” obra de
Deus[1]) serve apenas para preparar o caminho para um maior e
mais grandioso derramar de seu amor redentor. Depois de
abandonar (temporariamente) as nações, Deus agora escolheu o
homem a partir de quem a nação escolhida surgiria. Mais tarde, a
rejeição de Deus quanto à Israel resultou no enriquecimento dos
gentios. E podemos acrescentar que o julgamento do grande trono
branco será seguido pelo novo céu e pela nova terra, onde habitará
a justiça e o tabernáculo de Deus estará com os homens. O mesmo
aconteceu em outros tempos, a derrubada da torre de Babel e a
dispersão dos ímpios seguidores de Ninrode foram sucedidas pelo
chamado de Abraão, por meio de quem, em última análise, a
bênção divina fluirá para todas as famílias da terra.
A lição a ser aprendida aqui é profundamente importante: a
conexão entre Gênesis 11 e 12 é altamente significativa. O Senhor
Deus determinou ter um povo seu próprio pelo seu chamado
gracioso, um povo que seria escolhido para uma proximidade
privilegiada com ele mesmo e que demonstrasse o seu louvor; mas
isso não ocorreu até que todas as reivindicações do homem natural
fossem repudiadas por sua própria impiedade, e não até que a sua
total inutilidade fosse claramente demonstrada, de modo que a
misericórdia divina tivesse seu caminho completamente livre para
ser magnificada. O pecado foi deixado para abundar em toda a sua
hediondez, antes que a graça superabundasse em toda a sua bem-
aventurança. Em outras palavras, foi somente depois de a
depravação total dos homens ser plenamente demonstrada
primeiramente pelos antediluvianos e depois novamente pela
apostasia e conspiração em Babel, que Deus lidou com Abraão em
graça soberana e misericórdia infinita.
Que foi somente pela sua graça, a graça soberana, que Deus
chamou Abraão para ser seu amigo, pode ser visto claramente a
partir de seu estado natural e das circunstâncias em que o Senhor
apareceu pela primeira vez a ele. Abraão não pertencia a uma
família piedosa, na qual o Senhor era reconhecido e honrado; em
vez disso, seus pais eram idólatras. Parece que mais uma vez “toda
a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra” (Gênesis
6:12). A casa em que Abraão nasceu certamente não era exceção à
regra; pois lemos: “Vossos pais, Terá, pai de Abraão e pai de Naor;
e serviram a outros deuses” (Josué 24:2). Portanto, não havia nada
no objeto da escolha divina para recomendá-lo a Deus, não havia
nada em Abraão que merecesse a sua estima. Não, a causa da
eleição deve sempre ser traçada a partir da vontade distinguidora de
Deus; pois, a eleição em si é pela “graça” (Romanos 11:5) e,
portanto, não depende de modo algum de qualquer mérito no objeto,
quer mérito presente ou previsto. Se assim fosse, não seria pela
“graça”.
O fato de que absolutamente não foi uma questão de qualquer
bondade ou qualidade em Abraão, que moveu o Senhor a separá-lo
para ser o objeto especial de seu elevado favor fica claro a partir de
Isaías 51:1-2: “Ouvi-me, vós os que seguis a justiça, os que buscais
ao SENHOR. Olhai para a rocha de onde fostes cortados, e para a
caverna do poço de onde fostes cavados. Olhai para Abraão, vosso
pai, e para Sara, que vos deu à luz; porque, sendo ele só, o chamei,
e o abençoei e o multipliquei”. Porquanto é verdade que Deus nunca
age por capricho ou por acaso, e nem arbitrariamente — ou seja,
sem alguma razão boa e sábia para o que ele faz —, ainda assim,
na fonte de todas as suas ações está a sua própria vontade
soberana. No momento em que atribuímos qualquer das ações de
Deus a alguma coisa fora dele mesmo, somos culpados não
somente de impiedade, mas de afirmar um completo absurdo. O
Todo-Poderoso é infinitamente autossuficiente, e não pode mais ser
direcionado pelas criaturas de suas próprias mãos do que um ser
que existe pode ser influenciado por algo que não existe. Quão
imensamente diferente é a Deidade das Sagradas Escrituras do
“deus” a respeito do qual a cristandade atual sonha!
“O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão, estando na
mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e disse-lhe: Sai da tua
terra e dentre a tua parentela, e dirige-te à terra que eu te mostrar”
(Atos 7:2-3). O título divino empregado é digno de nota, pois nós
consideramos que isso dá a entender que a própria shekiná se
manifestou diante do olhar maravilhado de Abraão. Deus sempre
revela a si mesmo de acordo com o efeito que ele deseja produzir
naqueles a quem se dá a conhecer. Estava ali um homem que viva
em uma cidade pagã e foi criado em um lar idólatra. Algo vívido,
impressionante, sobrenatural e inconfundível era necessário a fim
de mudar repentinamente todo o curso da sua vida. “O Deus da
glória” — em bendito e impressionante contraste com os “outros
deuses” de seus ancestrais — “apareceu a nosso pai Abraão”.
Provavelmente, essa foi a primeira das manifestações teofânicas,
pois nunca lemos sobre Deus aparecendo a Abel ou Noé.
Se a nossa conclusão estiver correta, que essa foi a primeira
de todas as manifestações teofânicas (Deus aparecendo em forma
humana: Gênesis 32:24; Josué 5:13-14 etc.) que lemos no Antigo
Testamento, então essas manifestações anteciparam a própria
encarnação, bem como marcaram as sucessivas revelações de
Deus aos homens; e se essa teofania foi acompanhada pela glória
resplandecente e majestade da shekiná, logo, o privilégio concedido
ao filho de Terá foi realmente grande. Nada nele poderia ter
merecido uma revelação tão maravilhosa da graça divina. Aqui, o
Senhor foi “encontrado” pelos que não “o buscavam” (Isaías 65:1),
como é o caso de cada um de todos aqueles que são feitos os
herdeiros de sua bênção eterna; pois “não há ninguém que busque
a Deus” (Romanos 3:11). Não é a ovelha perdida que procura o
pastor, mas o pastor que vai atrás dela, e se revela a ela em todo o
seu amor e graça.
Disse Deus a Abraão: “Sai-te da tua terra, da tua parentela e
da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei” (Gênesis 12:1).
Esses foram os termos da comunicação divina originalmente
recebida pelo nosso patriarca. Esse mandamento do Altíssimo veio
a Abraão, na Mesopotâmia, na cidade de Ur dos Caldeus, que
estava situada perto do Golfo Pérsico. Esse chamado exigiu
confiança absoluta e obediência total à Palavra do Senhor. Foi um
chamado para a separação definitiva do mundo. Porém, foi muito
mais do que uma mera ordem baseada na autoridade divina, esse
foi um chamado eficaz que demonstrou a eficácia da graça divina.
Em outras palavras, foi um chamado acompanhado pelo poder
divino, que operou poderosamente em seu objeto. Esta é uma
distinção geralmente esquecida em nossos dias: há dois tipos de
chamados divinos mencionados na Bíblia, aquele que vai apenas
até o ouvido externo e não produz nenhum efeito definitivo; e o outro
chamado que atinge o coração, e provoca uma resposta verdadeira.
O primeiro desses chamados é encontrado em passagens
como: “A vós, ó homens, clamo; e a minha voz se dirige aos filhos
dos homens” (Provérbios 8:4), e “porque muitos são chamados”
(Mateus 20:16). Esse chamado alcança a todos os que ouvem o
som da Palavra de Deus. Ele consiste em um apelo que insta com a
criatura a respeito das reivindicações de Deus e ao chamado do
evangelho, e que revela as exigências do Mediador. Esse chamado
é universalmente ignorado, é desagradável para a natureza humana
caída e é rejeitado pelo não regenerado: “Porque eu clamei e
recusastes; e estendi a minha mão e não houve quem desse
atenção” (Provérbios 1:24). “E todos à uma começaram a escusar-
se” (Lucas 14:18). O segundo desses chamados é encontrado em
passagens como “E aos que predestinou a estes também chamou; e
aos que chamou a estes também justificou” (Romanos 8:30); “vos
chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pedro 2:9).
O primeiro chamado é geral; o segundo, é particular. O
primeiro é para todos aqueles que ouvem o som da Palavra; o
segundo é feito somente aos eleitos, e os conduz da morte para a
vida. O primeiro manifesta a inimizade da mente carnal contra Deus;
o segundo revela a graça de Deus para com aquele que pertence a
ele. Nós podemos distinguir entre eles pelo efeito que cada um
produz: “Ele chama suas ovelhas pelo nome, e as traz para fora. E,
quando tira para fora as suas ovelhas, vai adiante delas, e as
ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz” (João 10:3-4),
seguem o exemplo que ele deixou para elas (1 Pedro 2:21). Elas
seguem o caminho da abnegação, da obediência, da vida para a
glória de Deus. Assim, então, um grande efeito é produzido na alma
quando ela recebe o chamado eficaz de Deus, o entendimento dela
é iluminado, a consciência é convencida, o coração duro é derretido,
a teimosia é vencida, as afeições se inclinam para Deus, embora
antes o desprezassem.
O efeito que acabamos de descrever é sobrenatural, é um
milagre da graça divina. O fariseu orgulhoso é humilhado até o pó; o
rebelde e duro de coração é levado a sujeitar-se; aquele que ama o
prazer é lavado a amar a Deus. Aquele que, em sua rebeldia, havia
recalcitrado contra os aguilhões, é levado a se curvar e clamar:
“Senhor, que queres que eu faça?”. Mas, que seja dito
enfaticamente, nada, senão o poder imediato de Deus operando no
coração pode produzir uma transformação tão bendita. Nenhum
prejuízo financeiro, luto na família ou doença grave pode efetuá-la.
Nada externo será suficiente para mudar o coração depravado do
homem caído. Ele pode ouvir os sermões mais fiéis, as advertências
mais solenes, apelos muito cativantes e, contudo, permanecerá
impassível, intocável, a menos que o Espírito de Deus se agrade em
a vivificá-lo e fazê-lo andar em novidade de vida. Aqueles que estão
espiritualmente mortos não podem ouvir, ver ou sentir
espiritualmente.
Abraão foi o sujeito desse chamado eficaz quando o Senhor
apareceu de repente para ele em Ur da Caldeia. Isso é evidente a
partir do efeito produzido nele. Ele foi convocado: “Sai da tua terra e
dentre a tua parentela, e dirige-te à terra que eu te mostrar” (Atos
7:3). Pense no que isso envolveu, abandonar a terra de seu
nascimento, romper os mais próximos e queridos de todos os laços
naturais, abandonar completamente o seu antigo modo de vida e
sair para aquilo que para a razão carnal seria uma aventura incerta.
Qual foi a sua resposta? “Pela fé Abraão, sendo chamado,
obedeceu, indo para um lugar que havia de receber por herança; e
saiu, sem saber para onde ia” (Hebreus 11:8). Ah, meu leitor, isso só
pode ser entendido corretamente de uma maneira: a onipotência
operou nele, a graça invencível conquistou o seu coração.
Antes de prosseguir, paremos e façamos um balanço a
respeito de nossas próprias almas. Temos experimentado as coisas
que envolvem essa mudança radical na vida de Abraão? Você e eu,
fomos feitos os sujeitos de um chamado divino, que produziu uma
reviravolta em nossas vidas? Temos sido sujeitos de um milagre
divino, de modo que a graça tem operado eficazmente em nossos
corações? Temos ouvido algo mais do que o som da Escritura vindo
aos nossos ouvidos externamente? Temos ouvido o próprio Deus
falando no mais íntimo de nossas almas, a ponto de que isso possa
ser dito a nosso respeito: “Porque o nosso evangelho não foi a vós
somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e
em muita certeza” (1 Tessalonicenses 1:5)? Isso também pode ser
dito a nosso respeito: “A recebestes como… palavra de Deus, a qual
também opera em vós, os que crestes” (1 Tessalonicenses 2:13)? A
Palavra está operando eficazmente em nós, de modo a governar o
nosso homem interior e exterior, produzir uma vida obediente e
frutífera para a glória de Deus?
Embora a resposta de Abraão ao chamado que recebeu do
Senhor tenha demonstrado claramente que um milagre da graça
divina havia sido operado nele, contudo, Deus tolerou que a “carne”
se manifestasse nele para evidenciar que ele ainda era uma criatura
pecadora e falha. A regeneração é realmente uma experiência
maravilhosa e abençoada, contudo ela é apenas o começo da “boa
obra” de Deus na alma (Filipenses 1:6), e precisa que as outras
operações santificadoras de Deus a levem à consumação. Apesar
de ser transmitida uma nova natureza quando a alma é trazida da
morte para a vida, a velha natureza não é removida; embora o
princípio da santidade seja comunicado, o princípio do pecado não é
aniquilado nem exterminado. Consequentemente, não apenas um
conflito contínuo é produzido a partir destes princípios antagônicos,
mas a própria presença e exercício deles impede a alma de atingir
plenamente os seus desejos e agir como ela gostaria (Gálatas 5:17).
A obediência de Abraão à ordem divina foi tanto parcial quanto
tardia. Deus o havia chamado a sair de sua própria terra, deixar sua
parentela e “ir para a terra” que ele lhe mostraria (Atos 7:3). Sua
falha é registrada em Gênesis 11:31: “E tomou Terá a Abrão seu
filho, e a Ló, filho de Harã, filho de seu filho, e a Sarai sua nora,
mulher de seu filho Abrão, e saiu com eles de Ur dos caldeus, para
ir à terra de Canaã; e vieram até Harã, e habitaram ali”. Ele deixou a
Caldeia, porém, em vez de deixar para trás a sua parentela, seu pai
e seu sobrinho, o acompanharam. Isso foi um erro indesculpável
pois Isaías 51:2 declara expressamente que Deus havia chamado
Abraão “sozinho”. É importante notar que a palavra “Terá” significa
“atraso”, e foi isso que a presença do pai de Abraão ocasionou para
ele, pois em vez de entrar “sozinho” de uma vez na terra de Canaã,
ele parou em Harã, e ali permaneceu por cinco anos, até que Terá
veio a falecer (Gênesis 11:32; 12:4-5).
E por que o Senhor permitiu que a “carne” de Abraão
maculasse a sua obediência? Para mostrar filhos espirituais de
Abraão que a perfeição absoluta de caráter e conduta não é
atingível nesta vida. Nós não chamamos a atenção para esse fato
para incentivar a vida libertina ou para baixar o elevado nível que
devemos almejar, mas para animar aqueles que estão abatidos ao
ver que seus esforços honestos e zelosos em busca da piedade
com tanta frequência ficam abaixo desse padrão. Além disso, há
somente um homem que andou nesta terra e obedeceu a Deus
perfeitamente, em pensamento, palavra e ação, e não de maneira
ocasional, mas constante e ininterruptamente; e ele deve ter a
preeminência em todas as coisas (Colossenses 1:18). Portanto,
Deus não permitiria que glória de Cristo fosse diminuída criar outros
homens o honrassem como Cristo fez. Finalmente, a permissão
divina para que a carne existisse e fosse ativa em Abraão
magnificou ainda mais a graça divina e a manifestou ainda mais,
pois foi evidenciado que não havia nenhuma excelência em Abraão
que tivesse sido o motivo de ele ser chamado.
“Então saiu da terra dos caldeus, e habitou em Harã. E dali,
depois que seu pai faleceu, Deus o trouxe para esta terra em que
habitais agora” (Atos 7:4). Embora Deus tenha permitido que a
carne em Abraão maculasse a obediência dele, contudo, ele não
permitiu que a carne triunfasse completamente. A graça divina não
apenas é magnificada pela indignidade de seu objeto, mas é
glorificada ao triunfar sobre a carne e produzir o que é contrário a
ela. O obstáculo para a obediência de Abraão foi removido e então
podemos ver que ele realmente entrou no lugar para o qual Deus o
havia chamado.
Parte 3

A primeira coisa registrada sobre Abraão depois dele realmente ter


entrado na terra de Canaã é que o Senhor apareceu a ele e que
Abraão construiu um altar: “E passou Abrão por aquela terra até ao
lugar de Siquém, até ao carvalho de Moré; e estavam então os
cananeus na terra. E apareceu o Senhor a Abrão, e disse: À tua
descendência darei esta terra. E edificou ali um altar ao Senhor, que
lhe aparecera” (Gênesis 12:6-7). Há vários detalhes aqui que
requerem a nossa atenção.
1. Abraão não se estabeleceu e entrou na possessão da terra,
mas “passou por ela”, como Atos 7:5 nos diz: “E não lhe deu nela
herança, nem ainda o espaço de um pé”.
2. A presença do “cananeu” ali, para reivindicar e contestar a
posse dela. O mesmo acontece com o cristão: a carne, o diabo e o
mundo se unem para se oporem à sua fruição presente da herança
para a qual ele foi gerado; enquanto hostes de espíritos malignos
nos lugares celestiais lutam contra aqueles que são participantes da
vocação celestial (Efésios 6:12).
3. “E apareceu o Senhor a Abrão”. Ele apareceu originalmente
como o “Deus da glória”, quando ele se revelou ao patriarca na
Caldeia. Não há indício de Abraão recebendo qualquer outra
revelação de Deus durante a sua demora em Harã; mas agora que
o chamado de Deus foi totalmente obedecido, ele foi favorecido com
uma nova manifestação divina.
Agora a obediência de Abraão é recompensada. A princípio o
Senhor disse: “Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai, para a terra que eu te mostrarei” (Gênesis 12:1); mas agora, ele
declarou: “À tua descendência darei esta terra” (v. 7). Isso coloca
diante de nós um princípio importantíssimo no que diz respeito aos
caminhos de Deus, o qual muitas vezes tem disso perdido de vista
por homens que só enfatizam um lado da verdade. Esse princípio é
que a graça divina nunca põe de lado as exigências da justiça
divina. Deus nunca mostra misericórdia à custa de sua santidade.
Deus é “luz”, bem como “amor”, e cada uma dessas perfeições
divinas é exemplificada em todos os seus lidares para com o seu
povo. Além disso, no exercício de sua soberania, Deus nunca anula
a responsabilidade da criatura; e se não mantermos essas duas
coisas em vista, não apenas nos tornaremos desequilibrados, mas
realmente incorreremos em erro. A graça de Deus não deve ser
magnificada de modo a obscurecer a sua justiça, nem sua soberania
requer a exclusão da responsabilidade humana. O equilíbrio só
pode ser preservado se nos apegarmos fielmente às Escrituras. Se
enfatizarmos versículos favoritos e ignoramos aqueles que são
indesejáveis para a carne, seremos culpados de manejar a Palavra
de Deus fraudulentamente e seremos culpados da seguinte
condenação: “Não guardastes os meus caminhos, mas fizestes
acepção de pessoas na lei” (Malaquias 2:9). Os princípios da lei e
do evangelho não são contraditórios, mas complementares, e nem
qualquer deles pode ser dispensado, senão para nosso prejuízo
irreparável.
O que tem sido apontado acima fornece as chaves para uma
compreensão correta do pacto abraâmico; e se esses princípios
duais não forem mantidos constantemente diante de nós,
inevitavelmente incorreremos em erro. Alguns escritores se referem
ao pacto abraâmico como “um pacto de pura graça”, e ele realmente
foi assim; pois o que havia ali a respeito de Abraão que motivasse o
Deus da glória a atentar para ele? No entanto, seria igualmente
correto designar o pacto abraâmico como um “um pacto de justiça”,
pois ele exemplifica os princípios do governo divino bem como
realmente manifestou a benignidade do caráter de Deus. Outros
escritores se referem ao pacto abraâmico como um pacto
“incondicional”, mas eles erram ao afirmar isso, pois falar de “um
pacto incondicional” é uma contradição em termos. Permita-nos citar
aqui o nosso primeiro capitulo: Antes de buscar responder a essas
perguntas, vamos definir a natureza de um pacto. Em que ele
consiste? “Um pacto absoluto e completo é uma convenção
voluntária, aliança ou acordo entre pessoas distintas, a respeito da
ordem e dispensação de coisas sob seus poderes, com interesses e
proveitos comuns” (John Owen). Blackstone, o grande comentarista
da lei inglesa, ao falar das partes de um trato, diz: “Por detrás das
ordens judiciais, usualmente se seguem os pactos, ou convenções,
os quais são cláusulas de acordo contidas em uma ação, segundo
as quais, qualquer das partes pode estipular a verdades de certos
fatos, ou pode comprometer-se a fazer ou dar algo em favor da
outra parte” (Vol. 2, p. 20). Assim, ele inclui três coisas: as partes, os
termos e o acordo vinculativo. Em uma linguagem mais simples,
podemos dizer que um pacto consiste na entrada em um acordo
mútuo, no qual se promete determinado benefício caso sejam
cumpridas certas condições.
Nós complementamos com uma citação de Herman Witsius:

O pacto, da parte de Deus, compreende três coisas em geral:


1. A promessa de felicidade consumada na vida eterna. 2. A
designação ou prescrição da condição, por cujo
desempenho, o homem adquire o direito à promessa. 3. A
sanção penal contra aqueles que não cumprem a condição
prescrita… O homem se torna a outra parte quando ele
consente com o pacto ao abraçar o bem prometido por Deus,
se compromete a cumprir a condição exigida; e diante da
violação do pacto, voluntariamente acusa a si mesmo como
merecedor da maldição ameaçada.

Permitam-me salientar que, neste capítulo, nós estamos nos


voltando para o outro lado do assunto que já tratamos
extensamente. Desenvolvemos o que dissemos no quarto e quinto
parágrafos da primeira parte do primeiro capítulo. Após demorarmos
um bom tempo lidando tão amplamente com os aspectos da
soberania e da graça divinas, precisamos avaliar agora
cuidadosamente a justiça divina e elementos da responsabilidade
humana. Depois de mostrarmos como os vários pactos que Deus
fez com os homens esboçaram as características centrais do pacto
eterno que ele fez com Cristo, agora é necessário considerarmos
como neles Deus manteve as reivindicações de sua justiça por meio
daquilo que ele exigiu dos agentes responsáveis com quem tratou.
Foi apenas depois que Noé “fez… conforme a tudo o que Deus lhe
mandou” (Gênesis 6:22) ao preparar uma arca “para salvação da
sua família” (Hebreus 11:7), que Deus confirmou o seguinte:
“Contigo estabelecerei a minha aliança”, “E eu, eis que estabeleço a
minha aliança” (Gênesis 6:18, 9:9). Após Noé ter cumprido as
determinações divinas, Deus estava preparado para cumprir suas
promessas.
A mesma coisa é claramente vista novamente em conexão
com Abraão. Não há nenhum indício nas Escrituras que o Senhor
entrou em qualquer aliança com ele enquanto ele estava em Ur da
Caldeia. Em vez disso, a terra de Canaã foi proposta a ele
provisoriamente: “Ora, o SENHOR disse a Abrão: Sai-te da tua
terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te
mostrarei” (Gênesis 12:1). A ordem aqui é inequivocamente clara.
Em primeiro lugar, Deus agiu em sua graça soberana ao separar
Abraão dos seus companheiros idólatras e chama-lo para algo muito
melhor. Em segundo lugar, Deus revelou os requisitos da sua justiça
e levou Abraão a cumprir a responsabilidade que lhe cabia ao fazer-
lhe uma demanda. Em terceiro lugar, a recompensa prometida
seguiria a resposta de Abraão ao chamado de Deus. Essas três
coisas são unidas em Hebreus 11:8: “Pela fé Abraão, sendo
chamado [pela graça divina], obedeceu [o cumprimento da sua
responsabilidade], indo para um lugar que havia de receber por
herança [a recompensa]; e saiu, sem saber para onde ia” (Hebreus
11:8).
O que acaba de ser dito de maneira alguma contradiz o que foi
apontado nos capítulos anteriores. Os elementos mencionados
acima, verdadeiramente prefiguraram outro aspecto fundamental do
Pacto Eterno, bem como as diferentes características apontadas a
partir do pacto adâmico e noético. No Pacto Eterno, Deus prometeu
uma certa recompensa a Cristo baseado em seu cumprimento de
determinadas condições — a execução da obra designada. Os
princípios inseparáveis da lei e evangelho, graça e recompensa, fé e
obras, foram mui expressamente reunidos nesse acordo que Deus
celebrou com o Mediador, antes da fundação do mundo. É nisso nós
podemos contemplar a “multiforme sabedoria de Deus”[2] em
combinar esses aparentes opostos. E em vez de criticar a aparente
oposição que há entre eles, devemos admirar a onisciência que fez
de um servo do outro. Somente, então, é que seremos preparados
para discernir e reconhecer o exercício desse princípio duplo em
cada um dos pactos subordinados.
Não foram poucos os escritores que supunham magnificar a
graça de Deus e honrar o Mediador ao afirmar que o próprio Cristo
cumpriu as condições do Pacto e atendeu a todas as exigências da
justiça de Deus de modo que o seu povo foi totalmente livre de
todas as obrigações legais e que absolutamente nada resta para
que eles façam, senão expressar a sua gratidão ao viverem uma
vida agradável a ele. É muito mais fácil cometer esse erro do que
expô-lo. É uma verdade bendita e gloriosa que Cristo cumpriu
perfeitamente seus compromissos pactuais, engrandeceu a lei e a
fez honrosa, que Deus recebeu dele a plena satisfação por todos os
pecados de seu povo. No entanto, isso não significa que a lei foi
revogada, que Deus abandonou as suas reivindicações justas sobre
a criatura, ou que os crentes são colocados em uma posição de
privilégio na qual a obrigação é excluída; nem isso envolve a ideia
de que os santos estão livres dos deveres pactuais. A graça reina,
mas reina “pela justiça” (Romanos 5:21) e não às custas dela.
A obediência de Cristo não tornou a nossa obediência
desnecessária; antes, a tornou aceitável. Nessa última frase está a
solução para a dificuldade. A lei de Deus não aceitará nada menos
do que a obediência perfeita e perpétua; e essa obediência foi
prestada pelo Fiador do povo de Deus, de modo que ele operou
uma justiça eterna, a qual é imputada a eles. Mas isso é apenas
metade da verdade sobre esse assunto. A outra metade não é que a
expiação de Cristo inaugurou um regime de ilegalidade ou de
licenciosidade, mas sim que ele colocou aqueles que foram
beneficiados por sua expiação sob obrigações adicionais. Além
disso, a expiação de Cristo obteve a graça necessária para permitir
que esses beneficiários cumpram as suas obrigações — não
perfeitamente, porém, de modo aceitável a Deus. E como? Ao
garantir que o Espírito Santo os traga da morte para a vida, ao dar-
lhes uma natureza que se deleita na lei e opera neles tanto o querer
como o efetuar, segundo a boa vontade de Deus. E qual é a boa
vontade de Deus para o seu povo? A mesma que ele teve com
relação ao seu Filho encarnado: que sejam perfeitamente
conformados à sua lei em pensamento, palavra e ação.
Deus tem um e mesmo padrão para o cabeça e para os
membros de sua igreja; e, portanto, nos é dito o seguinte: “Qualquer
que permanece nele não peca; qualquer que peca não o viu nem o
conheceu” (1 João 2:6). Em 1 Pedro 2:21 lemos: “Cristo padeceu
por nós”, com que finalidade? Para que nós nos desobrigássemos
de toda obrigação para com Deus? Para que pudéssemos viver uma
vida de transgressões à lei divina sob o pretexto de magnificarmos a
“graça”? Absolutamente não; mas antes, Cristo padeceu por nós
para nos “deixar o exemplo, para que sigamos as pisadas dele”. E,
qual é a natureza desse exemplo que Cristo nos deixou? Que outra
coisa seria, senão “cumprir a lei” (Mateus 5:17), amar o Senhor, seu
Deus, com todo o seu coração, mente e força, e ao próximo como a
si mesmo? Mas, para fazer isso, deve haver uma natureza que está
em harmonia com a lei e não em inimizade contra ela. Cristo poderia
declarar: “Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; sim, a
tua lei está dentro do meu coração” (Salmos 40:8), e assim também
cada um daqueles que pertencem ao seu povo redimido e
regenerado diz: “Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na
lei de Deus” (Romanos 7:22). E neles é formado um novo homem
que deseja prestar uma obediência perfeita à lei. Isso é o que eles
desejam honestamente, mas a presença do velho homem os
impede.
O Pacto Eterno, em sua natureza e conteúdo é um pacto
misto, pois princípios da lei e da graça operaram nele. Foi a pura e
simples graça que ordenou que qualquer um da caída raça de Adão
fosse salvo, assim como foi graça maravilhosa e infinita que levou o
Filho de Deus a se encarnar e servir como o Fiador deles. Mas foi
pela lei pura e simples que o Fiador deveria alcançar e adquirir a
salvação deles por submeter-se a Deis e operar uma satisfação
perfeita em nome deles. Cristo foi “nascido sob a lei” (Gálatas 4:4).
Toda a sua vida foi perfeitamente conformada aos preceitos da lei e
em sua morte ele suportou a penalidade da lei — e tudo isso
aconteceu para que ele cumprisse seus compromissos pactuais.
Semelhantemente, esses dois princípios da graça e lei estão
envolvidos e ativos na administração do Pacto Eterno — ou seja, na
aplicação de seus benefícios para aqueles em cujo nome Cristo
pactuou. “Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes
estabelecemos a lei” (Romanos 3:31).
A obra de Cristo libertou o crente da lei como a causa de
aquisição de sua justificação, mas isso de modo algum aboliu a lei
como sua regra de vida. A graça divina não anula a
responsabilidade daquele que a recebe, nem a obediência do crente
torna a graça em algo menos necessária. Deus exige obediência
(conformidade com a sua lei) do cristão tão verdadeiramente como
ele o requer do não cristão. É verdade, que nós não somos salvos
por (causa de) nossa obediência; mas é igualmente verdade que
não podemos ser salvos se formos desobedientes. Se não tivesse
atendido a Deus e construído a arca, ele pereceria no dilúvio;
entretanto, foi pela bondade e poder de Deus que a arca foi
preservada. É através de Cristo somente que a obediência do crente
é aceitável a Deus. Mas podemos perguntar: será que Deus aceitará
de nós uma obediência imperfeita? A resposta é sim, se for sincera;
assim como ele tem o prazer de responder às nossas orações
fracas quando apresentadas no nome de seu Filho, o qual possui
todos os méritos.
Além disso, quero ressaltar que qualquer pacto significa
necessariamente um acordo mútuo, com termos a serem cumpridos
por ambas as partes. Um exemplo claro, porém muito solene disso é
encontrado no caso de Judas e dos principais sacerdotes dos
judeus, a respeito de quem lemos: “Pesaram trinta moedas de prata”
(Mateus 26:15). Esse foi o pagamento que ofereceram os
sacerdotes em troca de Judas cumprir seu trato de trair o seu
Mestre e entregá-lo mãos deles; em Atos 1:18 essa soma de
dinheiro é denominada “o galardão da iniquidade”. É somente
quando prestamos muita atenção a todas as expressões utilizadas
nas Escrituras sobre o pacto/aliança de Deus e de nossa relação
com ele que podemos obter uma compreensão correta e plena
acerca dele. Lemos sobre os que “abraçam a minha aliança” (Isaías
56:4). “Para entrardes na aliança do Senhor teu Deus”
(Deuteronômio 29:12); “aqueles que fizeram comigo uma aliança
com sacrifícios” (Salmos 50:5); “Todas as veredas do Senhor são
misericórdia e verdade para aqueles que guardam a sua aliança e
os seus testemunhos” (Salmos 25:10); “Lembrai-vos perpetuamente
da sua aliança e da palavra que prescreveu para mil gerações” (1
Crônicas 16:15); “para invalidar a minha aliança” (Levítico 26:15);
“aos que tiverem abandonado a santa aliança” (Daniel 11:30).
Pode ser objetado contra o que foi dito acima que isso reduz o
Pacto da Graça ao mesmo nível que o Pacto de Obras. Mas isso
não é assim — nós respondemos —, pois embora esses pactos
tenham algo em comum, há uma diferença real e radical entre eles.
Cada um deles mantém as reivindicações de justiça de Deus por
fazer cumprir as exigências da lei, mas o Pacto das Obras não
possuía um mediador nem foi feita qualquer provisão para aqueles
que falharam em cumpri-lo; ao passo que o Pacto da Graça supre
ambas as coisas. Além disso, de acordo com o Pacto das Obras, a
obediência era prestada a Deus imediatamente, a qual nos termos
do Pacto da Graça é prestado a Deus em Cristo, e há um mundo de
diferença entre essas duas coisas. A aplicação desses princípios ao
caso de Abraão será considerada a seguir.
Parte 4

Falaremos agora da aplicação feita a Abraão daqueles princípios


divinos considerados na última parte, seria bastante óbvio que a lei
de sua obediência contou tanto com promessas quanto com
ameaças, recompensas e punições, de acordo com a bondade e
santidade de Deus e de modo apropriado para o cumprimento de
sua responsabilidade moral. Alguém pode perguntar: Onde há
algum indício na Bíblia de quaisquer ressalvas e termos ligados ao
pacto abraâmico, ou qualquer declaração clara de que Deus
estipulou quaisquer condições a ele? Há várias respostas para essa
pergunta. Em primeiro lugar, a menos que houvesse essas
ressalvas e termos, nenhum pacto teria sido feito. Em segundo
lugar, a extrema brevidade do relato de Gênesis deve ser trazida à
mente; e em vez de esperar uma afirmação categórica completa,
seus detalhes e especificidades precisam ser cuidadosamente
reunidos. Em terceiro lugar, Gênesis 12:1 mostra claramente que
Canaã foi proposta a ele provisoriamente.
Além do que já foi dito, gostaríamos de salientar que o Senhor
declarou em conexão com o sinal e selo desta aliança: “E o homem
incircunciso, cuja carne do prepúcio não estiver circuncidada, aquela
alma será extirpada do seu povo; quebrou a minha aliança”
(Gênesis 17:14). Aqui, então, fica claro que foi estipulada uma
condição cujo não cumprimento resultava em quebra do pacto. Além
disso, em Gênesis 18:19, encontramos Deus dizendo: “Porque eu o
tenho conhecido, e sei que ele há de ordenar a seus filhos e à sua
casa depois dele, para que guardem o caminho do Senhor, para agir
com justiça e juízo; para que o Senhor faça vir sobre Abraão o que
acerca dele tem falado”. Abraão tinha que “guardar o caminho do
Senhor”, que é definido como “agir com justiça e juízo”, ou seja,
caminhar obedientemente em sujeição à vontade revelada de Deus
para que ele viesse a receber o cumprimento das promessas
divinas. Também está escrito: “Porquanto Abraão obedeceu à minha
voz, e guardou o meu mandado, os meus preceitos, os meus
estatutos, e as minhas leis” (Gênesis 26:5). Assim, enquanto, por
um lado, Deus lidou com Abraão em pura graça, também é
claramente verdade que, por outro, ele colocado sob a lei.
Alguns leitores podem objetar: “Isso consiste em uma
subversão miserável do glorioso Pacto da Graça, pois através de
suas ‘condições’, ‘termos’ e ‘ressalvas’ você o reduz à contingência
e incerteza, e nega que ele é ‘em tudo bem ordenado e guardado’ (2
Samuel 23:5)”. Nossa primeira réplica é que não introduzimos
forçosamente as condições e ressalvas ao pacto; antes, elas são
claramente declaradas nas Escrituras. Deus não fez uma concessão
absoluta de Canaã a Abraão quando se revelou a ele na Caldeia.
Em vez disso, ele foi obrigado a seguir o caminho da obediência
pela terra “que havia de receber por herança” (Hebreus 11:8). Nem
Deus faz uma concessão absoluta (ou incondicional) do céu quando
o pecador crê primeiramente em Cristo. Em vez disso, ele exige que
o pecador ande no caminho estreito, o qual somente conduz à vida,
e o adverte fielmente sobre o iminente perigo dele se desviar dali.
Isto pode ser respondido: “Mas isso conduz tudo a uma
incerteza”. Tudo depende do ângulo a partir do qual você vê isso.
Ao considerarmos o eleito como o objeto do amor eterno de Deus,
como redimido por ele e como habitado e selado pelo Espírito, então
a segurança de sua entrada no céu é colocada acima de toda
incerteza. Mas considere o crente como um agente responsável,
como alguém que continua a ter a “carne” habitando nele e como
alguém que vive em um mundo no qual é atormentado por
tentações de todos os lados e chamado a “combater o bom combate
da fé” e “tomar possa da vida eterna”,[3] então o assunto se mostra
em uma perspectiva completamente diferente; e um ponto de vista é
tão real e verdadeiro quanto o outro! A dificuldade que alguns
encontram aqui quanto à possibilidade do crente “guardar” ou
“quebrar” o pacto e tornar tudo inseguro é precisamente a mesma
que existe entre demonstrar a consistência entre a preservação
divina e perseverança do cristão. Embora os “ses” de João 8:31 e
de Colossenses 1:23 não anulem a promessa de Filipenses 1:6,
contudo, eles estão lá e devemos leva-los em consideração.
Do lado divino, o Pacto da Graça é “em tudo bem ordenado e
guardado”. Não há a menor possibilidade de qualquer coisa nele vir
a falhar. Cristo “verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará
satisfeito” (Isaías 53:11), e nenhum daqueles que foram dados a ele
pelo Pai, antes da fundação do mundo, será perdido. Mas isso não
altera o fato de que enquanto os eleitos estiverem aqui neste mundo
eles são convidados a “fazer firme a vocação e eleição deles” (2
Pedro 1:10), “não que já a tenham alcançado… mas prosseguem
para alcançar [se apossarem] aquilo para o que foram também
alcançados por Cristo Jesus” (Filipenses 3:12). O pacto prevê a
comunicação da graça eficaz para garantir a obediência e a
perseverança dos santos; entretanto, isso não altera o fato de que
Deus ainda impõe suas reivindicações justas sobre eles e os trata
como agentes morais que são obrigados a acatar as suas
advertências, obedecer aos seus preceitos e utilizar os meios que
ele designou para a preservação deles.
Alguns experimentam dificuldades para harmonizar essas
passagens das Escrituras que apresentam a vida eterna como a
possessão presente e inalienável do crente com outras passagens
que a colocam no futuro e como algo que só pode ser alcançado
através de uma vida de autonegação. Versículos como João 5:24 e
Romanos 6:23 são muito simples para eles; mas com relação a
versículos como Romanos 6:22, 8:13, Gálatas 6:8 e Judas 21 eles
acabam se ficando confusos quando a sua verdadeira interpretação.
Mas não há nada de inconsistente entre um crente agindo a partir
de um princípio de graça e de vida que já lhe foi comunicado pelo
Espírito Santo e o fato de que ele deve agir assim para que possa
viver. Um homem deve estar vivo antes que ele possa comer; no
entanto, ele deve comer, a fim de que ele possa viver. Se ele
parasse totalmente de se alimentar, será que haveria qualquer vida
nele no período de um mês? Assim também o cristão não pode
entrar no céu, se ele negligenciar totalmente os meios da graça, os
quais foram designados por Deus a preservação espiritual dele.
No passado, Moisés disse a Israel: “E o Senhor teu Deus
circuncidará o teu coração, e o coração de tua descendência, para
amares ao Senhor teu Deus com todo o coração, e com toda a tua
alma, para que vivas” (Deuteronômio 30:6). Será que ele foi
inconsistente ao dizer ao final do mesmo: “Os céus e a terra tomo
hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e
a morte, a bênção e a maldição; escolhe pois a vida, para que vivas,
tu e a tua descendência, amando ao Senhor teu Deus, dando
ouvidos à sua voz, e achegando-te a ele; pois ele é a tua vida, e o
prolongamento dos teus dias; para que fiques na terra que o Senhor
jurou a teus pais, a Abraão, a Isaque, e a Jacó, que lhes havia de
dar” (Deuteronômio 30:19-20)? Moisés estava colocou perante eles
um “evangelho de sim e não”? Respondo enfaticamente que não;
pois ele era o porta-voz do próprio Yahwéh. Além disso, aquele não
foi um apelo legal, mas um apelo estritamente “evangélico”.
Infelizmente, muitos hoje erram por não “conhecerem as Escrituras”
(Mateus 22:29). “Saberás, pois, que o Senhor teu Deus, ele é Deus,
o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia até mil gerações
aos que o amam e guardam os seus mandamentos [e a nenhum
outro]” (Deuteronômio 7:9), isso não é valido apenas de Moisés até
Cristo. Este versículo é tão verdadeiramente parte da santa e
inspirada Palavra de Deus como Efésios 2:8-9, e é tão necessário
para nós como qualquer outro.
Alguém pode objetar: “Isso é incorrer em um incentivo legalista
e incutir um espírito mercenário ao incentivar o crente a usar os
meios a fim de obter a sua preservação ou apresentar o céu ou a
vida eterna como uma recompensa por sua fidelidade”. Em
resposta, citaremos o renomado teólogo evangélico holandês: A
baixeza característica do mercenário certamente é indigna dos filhos
de Deus, eles são nascidos do alto, mas o Pai celestial não os priva
ter qualquer benefício com o seu próprio proveito no exercício da
santidade. O próprio Davi confessa que “os juízos do Senhor são
verdadeiros e justos juntamente… Também por eles é admoestado
o teu servo; e em os guardar há grande recompensa” (Salmos 19:9,
11). E a fé de Moisés é elogiada porque “tinha em vista a
recompensa” (Hebreus 11:26). Sim, essa fé é exigida de todos os
que vêm a Deus, de forma que eles creiam “que ele existe, e que é
galardoador dos que o buscam” (Hebreus 11:6) (extraído de
Irenicon, por Herman Witsius, 1696).
Anteciparei mais uma objeção — não farei isso com qualquer
expectativa de convencer o crítico capcioso, mas com a esperança
de ajudar alguns que estão podem estar confusos devido ao ensino
unilateral dos nossos dias tristes: “Mas o ensino geral exposto acima
não inculca o princípio do mérito humano?”. Não, pois é devido
somente à graça divina que é comunicado ao crente um princípio de
obediência — um coração ou natureza que deseja agradar a Deus.
Além disso, é unicamente por amor de Cristo que Deus tão
liberalmente recompensa os esforços sinceros do seu povo, à parte
do Mediador e dos méritos dele, eles não poderiam ser aceitos por
Deus. Finalmente, não há proporção alguma entre a obediência do
cristão e a recompensa que ele recebe — a herança excede
infinitamente os seus esforços fracos — assim como houve no fato
de Deus ter dado Canaã a Abraão e à descendência dele porque ele
deixou a Caldeia.
Agora que nos aproximamos do nosso tema imediato,
devemos salientar que o pacto abraâmico não deve ser considerado
como algo alheio, que não possui nenhuma ligação direta com o que
se passou antes ou o que o seguiu; mas ele deve ser visto como
uma parte e um passo a mais no desenrolar dos conselhos eternos
de Deus em relação ao seu povo. O chamado de Abraão foi um
passo muito importante para a realização do propósito de Deus.
Essa foi uma daquelas épocas marcantes na história da igreja que
produziu uma nova ordem de coisas, algo que possui perfeita
harmonia com o que foi revelado anteriormente, mas que, contudo,
representava um grande desenvolvimento disso. A obra de
preparação para o aparecimento do Messias assumiu agora uma
forma mais tangível e entrou em uma fase mais visível quanto à
obtenção do resultado final. A linhagem a partir da qual a
descendência prometida surgiria foi mais claramente definida,
enquanto o alcance da graça divina foi mais claramente revelado.
A declaração feita pelo Senhor Deus no Éden após a
transgressão de Adão, de que a descendência da mulher venceria e
destruiria a serpente, era o fundamento da fé dos santos e o objeto
de sua esperança durante os primeiros dois mil anos da história do
mundo. Até a época de Abraão, nada mais foi revelado sobre a
pessoa do libertador vindouro (tanto quanto podemos ver pelo
registro da Escritura) do que o fato de que ele viria da raça humana;
mas ninguém sabia que que família ou nação específicas ele viria.
Os homens ainda não sabiam de que país ele surgiria, se do Egito,
da Babilônia ou de algum outro país. Mas no pacto que Deus fez
com Abraão, não somente a promessa de um Salvador foi
renovada, mas sua família e local de seu nascimento foram
anunciados. O “amigo de Deus” foi escolhido para essa grande
honra: foi revelado a ele que o Messias seria fruto de sua
descendência e que a terra de Canaã seria o cenário de sua missão
gloriosa.
O pacto abraâmico não deve ser apenas considerado como
parte de um todo maior, em vez de uma transação isolada, não
devemos restringir nossa atenção a qualquer episódio particular da
vida do patriarca ou dos lidares de Deus para com ele.
Concordamos plenamente com John Kelly, quando ele disse: Se
queremos formar uma concepção precisa daquele pacto, e da
verdade para a qual ele serviu como o meio de revelação, não
devemos nos limitar a qualquer transação em particular, na qual é
feita alusão a ele, embora a transação possa ter sido importante. O
nosso exame deve abranger todos os acontecimentos registrados.
Devemos ter em mente que tudo o que aconteceu com Abraão,
desde o seu chamado até o fim de sua vida, tinha a intenção de
explicar e ilustrar a natureza do pacto.
Não foi por uma comunicação em particular que a mente de
Deus foi completamente revelada a Abraão. Várias comunicações
foram feitas em momentos diferentes, todas relacionadas com o
mesmo assunto e revelando o significado do pacto; enquanto o
caráter do próprio Abraão — moldado por várias provações pelas
quais ele foi chamado a passar e modelado pela graça mediante a
fé — lança uma luz importante sobre as concepções que entretinha
acerca do que havia sido revelado a ele. Tudo isso forma um todo
homogêneo; e é partir dessa consideração que devemos formar os
nossos pontos de vista sobre o pacto. Quando Abraão foi chamado
pela primeira vez pelo Senhor, lhe foi dada uma indicação clara do
propósito divino, a qual, sob a bênção do Espírito Santo, tornou-se o
meio de vivificar a sua fé e produzir a decisão que ele tomou. No
entanto, apenas um vislumbre foi dado a ele sobre o que Deus havia
planejado — esse não foi o estabelecimento formal do pacto. Tal
evento ocorreu posteriormente, após um intervalo de alguns anos.
O que acaba de ser dito parece receber sua confirmação a
partir de Gálatas 3:16-17:

Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua


descendência. Não diz: E às descendências, como falando
de muitas, mas como de uma só: E à tua descendência, que
é Cristo. Mas digo isto: Que tendo sido a aliança
anteriormente confirmada por Deus em Cristo, a lei, que veio
quatrocentos e trinta anos depois, não a invalida, de forma a
abolir a promessa.

Se voltarmos quatrocentos e trinta anos antes da promulgação


da lei no Sinai, chegaremos ao início dos lidares de Deus para com
Abraão, registrados em Gênesis 12, embora o real termo
pacto/aliança não seja encontrado nesse capítulo. Esse termo não
aparece até chegarmos a Gênesis 15:18, onde encontramos a
transação em si: “Naquele mesmo dia fez o Senhor uma aliança
com Abrão, dizendo: tua descendência tenho dado esta terra…”.
Depois, em Gênesis 17, encontramos o momento em que foi dado o
sinal e selo do pacto — a circuncisão. Há outras referências ao
pacto nos capítulos seguintes e ele é confirmado em Gênesis 22.
Assim pode ser visto que, de fato, o pacto recebeu ampliações
importantes e sucessivas durante os lideres que Deus, em sua
condescendência infinita, continuou a manter para com o seu servo.
Hebreus 6:13-18 une a grande promessa de Gênesis 12:3 e o
juramento de Gênesis 22:15-18.
Em nosso esforço para obter uma visão correta e abrangente
da transação divina realizada no pacto abraâmico, somos obrigados
a examinar cuidadosamente todas as informações que a narrativa
de Gênesis fornece: Os principais acontecimentos na vida de
Abraão (que são designados como uma contribuição para transmitir
uma explicação), a luz que o Novo Testamento lança sobre ambos e
tudo o que diz respeito a toda a sua unidade como ilustrativa do
pacto. Nos limitarmos a uma passagem, por mais importante que
possa parecer, seria tratar o assunto de modo incorreto. É uma falha
nesse ponto que tem resultado em tantas discussões superficiais,
inapropriadas e parciais por parte de vários escritores. Aqueles que
se aproximam do exame e consideração do pacto abraâmico (ou de
qualquer outro tema bíblico) com uma única teoria de estimação ou
ideia em suas mentes, a qual eles estão determinados a confirmar a
todo custo, não podem esperar obter uma visão correra e plena do
pacto como um todo.
Consideremos, então, o pacto abraâmico como um avanço
notável no desenvolvimento do propósito da graça de Deus para
com os homens e, contudo, como apenas uma parte de um todo
maior e mais grandioso. Ao fazê-lo, o que exigirá a nossa atenção
especial é o seguinte: Qual era a natureza particular e qual era o
conjunto da verdade que ele serviu como meio para revelar?
Existem muitas opiniões diferentes sobre esses pontos, e isso é
verdadeiro tanto entre os escritores mais antigos quanto entre os
mais recentes. Exatamente o quê o pacto abraâmico manifestou
para as mentes e os corações do povo Deus, no passado? E até
que ponto o mesmo se aplica a nós, hoje? As respostas adequadas
para essas perguntas devem ser elaboradas a partir da própria
Escritura Sagrada, corretamente interpretada. Talvez a melhor forma
de fazermos isso seja abordar os elementos particulares e, então,
fazer comentários a respeito deles, conforme surja a necessidade.
Parte 5

Ora, o SENHOR disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua


parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te
mostrarei. E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei e
engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção. E
abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te
amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da
terra (Gênesis 12:1-3).

Nessa narrativa simples, temos a promessa original feita a


Abraão, a saber, que o Messias viria de sua família. Essa promessa
divina foi feita para o patriarca quando ele estava prestes a
completar 75 anos. Ela foi dada em um ponto que ficava na metade
da história humana, entre a criação do primeiro Adão e a
encarnação do último Adão, ou seja, dois mil anos depois da
entrada do pecado no mundo e dois mil anos antes do advento do
Salvador.
O primeiro grande objetivo do pacto abraâmico foi tornar
conhecida a fonte de onde procederia o Messias. Esse foi o aspecto
mais importante da verdade revelada nele: o surgimento da
descendência prometida a partir da linhagem de Abraão. A
comunicação principal nisso foi dada ao patriarca quando Deus
apareceu pela primeira vez a ele: “Em ti serão benditas todas as
famílias da terra”. Duas coisas devem ser observadas na linguagem
utilizada aqui. Em primeiro lugar, “serão benditas todas as famílias
da terra”, obviamente, quando olhamos para o que já havia sido dito,
para Gênesis 3:17, a expressão “todas as famílias” era
suficientemente clara para anunciar o alcance internacional da
bênção. É realmente muito impressionante observar que em
Gênesis 12:3 Deus não usou a palavra eretz( ‫הָ ָ ֽא ֶרץ׃‬, como o fez em
Gênesis 1:1; 14:19; 18:25 etc.), mas adamah( ‫הָ אֲ ָד ָ ֽמה׃‬, como em
Gênesis 3:17). O vínculo evidente entre “maldita é a terra [adamah]”
(Gênesis 3:17) teria sido feito mais evidenciado se Gênesis 12:3
fosse proferido, “em ti serão benditas todas as famílias da terra
[adamah]” — a maldição seria removida por Cristo!
Em segundo lugar, os termos dessa declaração messiânica
foram muito gerais em seu caráter. Posteriormente, essa promessa
original foi repetida de forma mais específica: “Em ti serão benditas
todas as famílias da terra”, foi definido como “em tua descendência
serão benditas todas as famílias da terra”. Isso ilustra um importante
princípio que deve ser discernido em toda a revelação divina, a
saber, o desdobramento progressivo: “primeiro a erva, depois a
espiga, por último o grão cheio na espiga” (Marcos 4:28). Esse
princípio é evidenciado aqui por uma comparação entre as
promessas de longo alcance feitas a Abraão com as profecias de
Noé acerca de seus três filhos. Yahwéh era o Deus de Sem, no
entanto, Jafé deveria habitar em suas tendas (Gênesis 9:26-27); ele
agora passa a ser conhecido como “o Deus de Abraão”, mas todas
as famílias da terra seriam abençoadas nele e em sua
descendência. Que impressionante progresso foi feito aqui no plano
divino, ao revelar a amplitude do seu significado e a explicitação de
sua finalidade!
Por seu chamado, Abraão foi elevado a uma proeminência
muito singular e constituído como a raiz e centro da história futura
do mundo, relacionado ao cumprimento da verdadeira bênção.
Entretanto, mesmo nesse aspecto, essa benção não lhe pertenceria
exclusivamente. A bênção viria principalmente para Abraão, e por
meio dele; porém, como já indicado na profecia em Sem, outros
também seriam abençoados, embora em uma posição subordinada
— uma vez que aqueles que o abençoassem também seriam
abençoados; ou seja, aqueles que tivessem substancialmente a
mesma fé e ocupassem a mesma relação de amizade para com
Deus. Os casos de pessoas contemporâneas ao patriarca — como
seu parente Ló, o qual não foi admitido formalmente ao pacto
abraâmico, e ainda mais o de Melquisedeque, que nem sequer era
da linhagem Abraão e, contudo, em certo sentido, foi maior do que o
próprio Abraão — claramente existiram para provar que não havia
nada de arbitrário na posição de Abraão e que o lugar que ele
ocupava era, até certo ponto, comum a todos os crentes.

A honra peculiar concedida a ele consistiu no fato de que o


grande tronco da bênção procederia dele, enquanto apenas
alguns galhos isolados ou ramos espalhados poderiam ser
encontrados em outros lugares — e mesmo estes só
poderiam ser encontrados por pessoas que, de uma forma,
tivessem algo em comum com ele. Em relação a si mesmo,
no entanto, o grande benefício comunicado a ele na
promessa divina poderia manifestamente não ser percebido
por ele, pessoalmente. Poderia, no máximo, haver um início
em sua própria experiência e história, e o alargamento do
círculo de bênção para outras famílias e regiões, até que
chegasse às famílias mais distantes da terra, devia,
necessariamente, ser afetado por meio daqueles que
surgiriam a partir dele. Daí as palavras contidas na expressão
original, “em ti serão benditas todas as famílias da terra”
serem alteradas para “em tua descendência serão benditas
todas as famílias da terra (P. Fairbairn).

É necessário recordar, porém, que cada uma dessas


expressões tinha seu próprio significado e conteúdo específicos, e
que elas devem ser consideradas juntamente de modo a expressar
o pleno propósito de Deus no chamado de Abraão. A bênção
prometida seria realizada em seu sentido mais amplo não por
Abraão de modo individual e imediato, mas através dele de modo
mediatamente, por meio do descendente que seria dado a ele. Isso
implicava claramente que esse descendente possuiria qualidades
muito maiores do que qualquer daquelas que eram encontradas no
próprio Abraão, visto que a bênção fluiria amplamente a partir dele
— isso foi como um pequeno vislumbre de que haveria uma
combinação maravilhosa do divino com o humano. Cristo, então,
como a substância essencial da promessa e da descendência de
Abraão, em vez do próprio Abraão, é quem teria a honra de
abençoar todas as nações.
Entretanto, essa verdade que acabamos de considerar, de
modo algum, esvazia a força da expressão usada originalmente:
“Em ti serão benditas todas as famílias da terra”, pois, ao conectar
definitivamente o bem com o próprio Abraão e com a sua
descendência, foi feita uma ligação orgânica entre uma e outra.

A bênção a ser transmitida ao mundo através de sua


linhagem teve, ainda em seu tempo, uma realização
presente, embora pequena — justamente como o reino de
Cristo teve o seu início naquele de Davi, e em última análise,
um incorporou o outro. E assim, pode ser dito que em
Abraão, como a raiz viva de tudo o que descenderia dele,
procedeu o todo e cada parte (P. Fairbairn).

Não somente Cristo foi um “filho de Abraão” segundo a carne


(Mateus 1:1), mas todos os crentes em Cristo são da descendência
de Abraão (Gálatas 3:29); e todo o gruo dos redimidos receberão
sue lugar e porção “com Abraão”, no reino de Deus (Mateus 8:11).
Outras promessas se seguiram, como: “À tua descendência
darei esta terra” (Gênesis 12:7), “para te ser a ti por Deus, e à tua
descendência depois de ti” (Gênesis 17:7), e assim por diante, as
quais consideraremos posteriormente. O que nos interessa agora é
o significado do termo “descendência” nessas passagens. A
Escritura que lança mais luz a isso é Gálatas 3:16-17: Ora, as
promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: E
às descendências, como falando de muitas, mas como de uma só: E
à tua descendência, que é Cristo. Mas digo isto: Que tendo sido a
aliança anteriormente confirmada por Deus em Cristo, a lei, que veio
quatrocentos e trinta anos depois, não a invalida, de forma a abolir a
promessa.
No entanto, por estranho que pareça, essa passagem
ocasionou muita dificuldade aos comentaristas a tal ponto que nem
dois deles concordam em sua interpretação. Essa é comumente
considerada como uma das passagens mais difíceis em todas as
epístolas paulinas.
Matthew Henry diz: “A aliança é feita com Abraão e sua
descendência. E ele (o apóstolo) nos dá uma exposição muito
surpreendente dela”, mas ele não tenta fazer absolutamente
nenhuma interpretação detalhada. J.N. Darby procura cortar o nó,
ao invés de desatá-lo, ao mudar a expressão as “promessas” usada
pelo apóstolo para “a promessa”, restringindo-a, desse modo, a uma
referência a Gênesis 22. No entanto, não apenas o grego está no
plural, mas essa ideia é claramente refutada por “quatrocentos e
trinta anos depois”, o que necessariamente nos leva de volta a
Gênesis 12. Albert Barnes discute longamente o que ele chama de
“as perplexidades desta muito difícil passagem da Escritura”, mas
como de costume, os comentaristas criaram suas próprias
dificuldades: em parte por não prestarem a devida atenção ao
contexto imediato, e em parte por se apegarem de modo servil à
“letra” a ponto de perderem assim o “espírito” do texto bíblico.
“Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua
descendência”. Abraão foi o “pai” de uma “descendência” dupla,
uma descendência natural e uma descendência espiritual; e se nós
atentarmos para o contexto, não haverá a menor dificuldade em
determinar a qual dessas duas descendências o Espírito Santo tem
em vista. No versículo 6, ele disse: “Assim como Abraão creu em
Deus, e isso lhe foi imputado como justiça”, e concluiu o seguinte a
partir disso, “Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão”
(v. 7). O que poderia ser mais claro do que isso? Aqueles são “da
fé”, os crentes genuínos, são “filhos de Abraão”, ou seja, os seus
filhos espirituais — e Abraão é o “pai” deles, ou seja, o padrão ao
qual eles são conformados. Em outras palavras, os pecadores hoje
são justificados por Deus exatamente da mesma forma que o foi
Abraão — pela fé.
“Ora, tendo a Escritura previsto que Deus havia de justificar
pela fé os gentios, anunciou primeiro o evangelho a Abraão,
dizendo: Todas as nações serão benditas em ti. De sorte que os que
são da fé são benditos com o crente Abraão” (Gálatas 3:8-9). Essa
mesma verdade é reafirmada aqui. Tendo em vista o propósito de
Deus de justificar os gentios pela fé, ele proclamou o evangelho
para o próprio Abraão, dizendo: “Em ti todas as nações serão
abençoadas”. Que seja cuidadosamente observado que o Espírito
Santo aqui cita Gênesis 12, e não Gênesis 22. Outrossim, a partir
disso, podemos fazer a mesma conclusão: os crentes recebem a
bênção espiritual idêntica à que Abraão recebeu, a saber, a justiça
de Cristo imputada a eles, de modo que agora correspondem a
todos os requisitos da lei. E isso, porque “Cristo nos resgatou da
maldição da lei” (v. 13), o que abriu o caminho “para que a bênção
de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo, e para que pela
fé nós recebamos a promessa do Espírito” (v. 14).
“Irmãos, como homem falo; se a aliança de um homem for
confirmada, ninguém a anula nem a acrescenta” (Gálatas 3:15).
Mas, no caso diante de nós, temos muito mais do que “a aliança de
um homem” — nós temos uma aliança divina, pois Deus
solenemente ratificou as suas promessas a Abraão por meio de
aliança. “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua
descendência” (v. 16). Ora, à luz das expressões “filhos de Abraão”
(v. 7), “os que são da fé são benditos com o crente Abraão” (v. 9) e
“para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por Jesus
Cristo” (v. 14) a expressão, “a Abraão e à sua descendência”, deve
significar “à Abraão e à sua descendência espiritual, as promessas
foram feitas”. A prova paralela disso é encontrada em Romanos
4:16: “Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de
que a promessa seja firme a toda a posteridade, não somente à que
é da lei, mas também à que é da fé que teve Abraão, o qual é pai de
todos nós”, pois é somente toda a sua descendência espiritual que
possui a certeza de receber as bênçãos prometidas.
“Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas
como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo” (Gálatas
3:16). Essa é a cláusula que têm deixado muitos tão perplexos. Eles
têm apontado que tanto no Antigo como no Novo Testamento o
termo “descendência” frequentemente é usado com referência aos
descendentes, sem limitação, assim como nós fazemos uso da
palavra posteridade. Além disso, é um fato que o uso de uma
concordância confirmará amplamente que o termo “descendência”
absolutamente nunca é usado no plural para denotar uma
posteridade, e que a forma singular é constantemente utilizada para
esse fim. Na verdade, a forma plural da palavra nunca ocorre,
exceto aqui em Gálatas 3:16. Isso representa um problema para o
qual nenhum literalista pode fornecer uma solução satisfatória, o
que dá a entender claramente que não era com o significado
superficial do termo que o apóstolo estava lidando aqui.

A força de seu raciocínio aqui não depende da mera palavra


“descendência” como catalogada nos dicionários, mas da
grande ideia bíblica — revelada com clareza gradual no
Antigo Testamento — que se manifesta através dessa
palavra, a saber, a noção de que uma pessoa individual
concentraria, em si mesma, tanto o povo pactual como as
bênçãos pactuais (para eles), ou seja, o Messias prometido,
Cristo (James MacGregor, on Galatians [Comentários sobre
Gálatas], 1879).

Esse é o único escritor que conhecemos que indicou a direção


em que devemos olhar em busca da verdadeira explicação dos
termos usados pelo Apóstolo, ou seja, não devemos nos atentar
para o seu significado meramente literal, mas para o conceito
espiritual que ele traz consigo — assim como o termo “Cristo”
literalmente significa “ungido”, mas é empregado como o título
especial do Salvador, e é dado a ele não como uma pessoa
particular, mas como um pessoa pública, o qual inclui tanto a cabeça
quanto os membros da igreja (1 Coríntios 12:12).
“Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas
como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo” em quem tudo
se resume. As promessas de Deus nunca foram concedidas através
de geração humana, mas por meio de regeneração divina. Todavia,
as promessas não foram feitas para ambas as suas descendências,
mas apenas a uma delas, ou seja, a descendência espiritual, o
“Cristo” místico — o Redentor e todos os que estão legal e
vitalmente unidos a ele. Assim, a antítese elaborada pelo apóstolo é
entre a unidade da “descendência” e a diversidade das
“descendências”. Isso foi surpreendentemente prefigurado no plano
terrestre. Abraão teve dois filhos; mas um deles, Ismael, foi excluído
dos privilégios mais elevados: “Em Isaque será chamada a tua
descendência” (Gênesis 21:12). Mas essas palavras não significam
que todos os descendentes de Isaque são destinados à bem-
aventurança celestial; antes, elas afirmam que seria partir de Isaque
que o Messias prometido, segundo a carne, descenderia.
Posteriormente, a linha de descendência do Messias foi mais
definitivamente restrita; pois, dos dois filhos de Isaque, Esaú foi
rejeitado e Jacó foi escolhido como o progenitor de Cristo. Dentre os
doze filhos de Jacó, Judá foi escolhida como a tribo a partir da qual
descendência prometida surgiria. A partir de todos os milhares de
Judá, da família de Jessé foi honrada ao ser designada para dar à
luz ao Salvador (Isaías 11:1). Dos oito filhos de Jessé (1 Samuel
16:10-11), Davi foi escolhido para ser o pai do Messias. Assim,
podemos ver no decorrer do tempo, que o canal através do qual a
descendência de Abraão surgiria foi sendo cada vez mais definido e
especificado, e desse modo Deus gradualmente tornou conhecido
como as suas promessas originais a Abraão seriam cumpridas. A
limitação dessas promessas foi evidenciada pela rejeição de Ismael
e de Esaú, o que demonstrou claramente que nem todos os
descendentes de Abraão estavam incluídos nas promessas; até
que, em última análise, foi revelado que as promessas divinas
receberiam seu cumprimento em Cristo e naqueles que estivessem
unidos a ele.
Caso as promessas de Deus a Abraão envolvessem ambos os
ramos de sua família, incluindo tanto Ismael como Isaque, então
algum outro termo ao invés de “descendência” teria sido utilizado.
Mas Deus ordenou que as circunstâncias de seus nascimentos e
vidas futuras fossem tão diferentes quanto o foram as profecias
relacionadas a eles e às duas raças que descenderiam deles, a
ponto de que as Escrituras deixam de mencionar os descendentes
de Ismael como a posteridade de Abraão. E nisso Deus prefigurou o
grande abismo que separava os descendentes naturais de Abraão
(os judeus) de seus filhos espirituais (os cristãos), e quando
olhamos para o cumprimento das promessas é indesculpável que
venhamos a confundir um com o outro. As promessas originais eram
limitadas, e essa limitação foi evidenciada mais claramente por
revelações sucessivas até que foi demonstrado que ninguém senão
Cristo (e os que estivessem unidos a ele) estavam incluídos: “E à
tua descendência, que é Cristo” (místico)!
“Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas
como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo”. Em suma, as
promessas de Deus nunca foram feitas a todos os descendentes de
Abraão, na qualidade de muitos tipos diferentes de “descendência”,
mas foram limitadas à linhagem espiritual, ou seja, ao “Cristo”
místico. Portanto, os descendentes incrédulos de Jacó estavam tão
excluídos dessas promessas como os descendentes de Ismael e
Esaú. E, por outro lado, os gentios crentes, unidos a Cristo no Pacto
Eterno, são tão verdadeiramente participantes das promessas como
Isaque, Jacó e todos os israelitas piedosos.
Parte 6

O que esteve diante de nós no último capítulo é de importância


fundamental não apenas para uma compreensão correta do próprio
pacto abraâmico, mas também para a interpretação verdadeira de
grande parte do Antigo Testamento. Uma vez que é claramente
reconhecido que o tipo converge para o antítipo, que os crentes em
Cristo são os “filhos” de Abraão (Romanos 4:16; Gálatas 3:7), os
cidadãos da Jerusalém livre e celestial (Gálatas 4:16; Efésios 2:19,
Apocalipse 21:2, 14), a “circuncisão” (Filipenses 3:3), o “Israel de
Deus” (Gálatas 6:16; Efésios 2:12-13), os que “chegaram ao monte
Sião” (Hebreus 12:22), será encontrado que temos um guia
confiável para nos conduzir através dos labirintos da profecia, e sem
o qual podemos ter certeza de nos perdermos e cairmos em uma
confusão e incerteza inextricáveis. Isso foi comumente conhecido
entre os santos em tempos passados, mas infelizmente eles foram
sucedidos por uma geração que se orgulhava de ter uma nova luz
apenas para mergulhar a si mesma e aos seus seguidores em
trevas.
As promessas de Deus a Abraão e à sua descendência nunca
foram feitas para seus descendentes naturais, mas pertenciam
àqueles que tinham fé assim como ele. Não poderia ser de outra
forma: “Porque todas quantas promessas há de Deus, são nele sim,
e por ele o Amém, para glória de Deus por nós” (2 Coríntios 1:20).
Todas as “promessas” (e não “profecias”) de Deus são feitas em
Cristo; ou seja, todas as bênçãos prometidas são colocadas nas
mãos do Mediador, e ninguém que está fora de Cristo pode
reivindicar uma única delas. Todos os que estão fora de Cristo estão
fora do favor de Deus; e, portanto, as ameaças divinas, e não as
promessas, são a sua porção. Aqui, então, está a nossa resposta
àqueles que se queixam — “você aplica à igreja todas as coisas
boas do Antigo Testamento, mas as más você relega aos judeus”:
Claro que sim, as bênçãos de Deus dizem respeito a todos os que
estão em Cristo; as maldições de Deus a todos — judeus ou gentios
— que estão fora de Cristo.
Assim, os descendentes incrédulos de Jacó, estavam tão
excluídos das promessas abraâmicas quanto os descendentes de
Ismael e Esaú; ao passo que essas promessas pertenciam tão real
e verdadeiramente aos crentes gentios quanto a Isaque, Jacó e
José. Mas, infelizmente essa verdade básica, tão claramente
revelada nas Escrituras, é repudiada pelos “dispensacionalistas”, os
quais estão perpetuando o erro daqueles que se opuseram a Cristo,
nos dias de sua carne. Quando ele falou da liberdade espiritual que
ele poderia dar, seus ouvintes não regenerados exclamaram:
“Somos descendência de Abraão, e nunca servimos a ninguém;
como dizes tu: Sereis livres?” (João 8:33). Quando ele fez menção
de seu Pai, os judeus carnais responderam: “Nosso pai é Abraão”,
ao que o Salvador respondeu: “Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis
as obras de Abraão” (João 8:39). Infelizmente muitos de nossos
contemporâneos não sabem quem são os “filhos de Abraão”.
A importância vital do que buscamos apresentar no último
capítulo parecerá ainda mais evidente quando for pontuado que os
crentes em Cristo têm uma herança comum com Abraão, bem como
uma posição comum perante Deus. Porém, muitos se oporão a isso
imediatamente alegando: “Isso não pode ser assim; ora, a herança
de Abraão e sua descendência era terrena — era a terra de Canaã,
que Deus lhes prometeu!”. Nossa primeira resposta é: Essa era a
mesma convicção firme daqueles que crucificaram o Senhor da
glória, assim como ainda é a convicção de todos os judeus
“ortodoxos” da atualidade — judeus que desprezam e rejeitam o
Cristo de Deus. Eles são guias seguros para serem seguidos? Para
dizer o mínimo, cristãos professos que compartilham deste ponto de
vista não estão em muito boa companhia! O próprio fato de que
essa ideia é tão amplamente defendida pelos judeus que não têm o
Espírito de Deus deve provocar uma forte suspeita naqueles que
alegam ter discernimento espiritual.
Nossa segunda resposta é que se a herança de Abraão foi
uma herança terrena, ou seja, a terra de Canaã, logo, certamente a
herança dos cristãos é terrena também, pois todos somos
coerdeiros de Abraão. Você, meu leitor (não importa o que você
tenha aprendido dos “profundos estudantes da profecia”), está
preparado para responder essa pergunta através do ensino claro
das Escrituras Sagradas? Se você estiver, esse ensino pode ser
resumindo prontamente por uma declaração simples: “E, se sois de
Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros conforme a
promessa” (Gálatas 3:29). O que poderia ser mais claro do que isso:
“E, se nós somos filhos, somos logo herdeiros também” (Romanos
8:17) — se filhos de Deus, também herdeiros de Deus; e da mesma
maneira, se filhos de Abraão, também herdeiros de Abraão e com
ele. Não há como fugir de modo legítimo desta conclusão óbvia.
No último versículo de Gálatas 3, o apóstolo extraiu a
inferência inevitável das premissas que ele havia estabelecido no
contexto. Voltemos por um momento para Gálatas 3:16 e, em
seguida, observemos o que se segue. Ali é feita esta declaração
simples: “Ora, a Abraão e à sua descendência, as promessas foram
feitas” e, como já provamos plenamente na última parte deste
capítulo, essa referência é à sua descendência espiritual. Mas, para
remover toda a incerteza possível, o Espírito Santo, acrescentou: “e
à tua descendência, que é Cristo” — Cristo de forma mística como
aparece em 1 Coríntios 12:12 e Colossenses 1:24, ou seja, o próprio
Cristo e todos os que estão unidos a ele. Logo, não há espaço para
qualquer sombra de dúvida a respeito de quem as promessas
abraâmicas pertenciam — além do mais, sua descendência carnal
foi expressamente excluída pelo que está escrito: “Não diz: E às
descendências, como falando de muitas”.
“Mas digo isto: Que tendo sido a aliança anteriormente
confirmada por Deus em Cristo, a lei, que veio quatrocentos e trinta
anos depois, não a invalida, de forma a abolir a promessa” (Gálatas
3:17). A única dificuldade reside nas palavras: “em Cristo”. Na
medida em que “a aliança” aqui mencionada foi confirmada apenas
quatrocentos e trinta anos antes da lei (no Sinai), a referência não
pode ser ao Pacto Eterno — que foi “confirmado” por Deus em
Cristo antes da fundação do mundo (Tito 1:2 etc). Por isso, somos
obrigados a adotar a interpretação de eruditos espirituais e capazes:
“a aliança anteriormente confirmada por Deus a respeito de Cristo”
— assim como a expressão eis Christon ( ε ἰ ς Χριστ ὸ ν ) é
traduzido como “a respeito de Cristo”, em Efésios 5:32, e eis auton
( α ὐ τόν ) é traduzida como “dele”, em Atos 2:25. Aqui, então, há
uma palavra de Deus adicional argumentando em favor de que seu
pacto com Abraão tinha em vista a Cristo, ou seja, o Cristo místico
— a “descendência” de Abraão.
Agora, o ponto especial que o apóstolo estava tratando em
Gálatas 3 foi que as promessas feitas por Deus a Abraão (que foram
solenemente “confirmadas” por seu juramento pactual) foram dadas
séculos antes que a economia do Sinai fosse estabelecida; e, visto
que Deus é fiel, a palavra dele não poderia ser anulada (v. 15),
então, não poderia haver nada em conexão com a promulgação da
lei que invalidasse, mesmo no menor grau, o que ele estava se
comprometendo a conceder: “A lei, que veio quatrocentos e trinta
anos depois, não a invalida, de forma a abolir a promessa”. Que
seja observado aqui que “a promessa” está no singular, a razão para
isso é que o apóstolo estava prestes a se limitar a uma promessa
particular, ou seja, a que diz respeito à herança (v. 18).
“Porque, se a herança provém da lei, já não provém da
promessa; mas Deus pela promessa a deu gratuitamente a Abraão”
(v. 18). A herança foi dada por Deus a Abraão muito antes da lei. A
pergunta que agora é colocada diante de nós é: Qual herança Deus
deu a Abraão? Alguém pode replicar que isso pode ser facilmente
respondido: “Gênesis 12:7 e 13:15, e outras passagens nos dizem
que essa herança era a ‘terra de Canaã’; e quando Deus disse:
“essa terra”, ele intencionava dizer isso, e nada mais”. Não tão
rápido, caro amigo. Quando um jovem crente lê Êxodo 12, o qual
apresenta muitos detalhes sobre a morte do cordeiro e a promessa
de refúgio sob o seu sangue, e então se pergunta qual é o
significado espiritual daquilo, sem dúvida, a melhor maneira de
determinar isso é se voltar para o Novo Testamento e, em oração,
procurar a resposta. Eventualmente, ele encontrará essa resposta
em 1 Coríntios 5:7: “Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós”.
Quando o jovem crente lê Levítico 16, que descreve o ritual
elaborado que o sumo sacerdote de Israel era obrigado a observar
no dia anual de expiação, e então busca descobrir o significado
espiritual do que está escrito ali, o capítulo 9 de Hebreus lhe
oferecerá muita luz quanto a isso. Semelhantemente, aqueles que
leem o relato histórico em Gênesis 14 sobre Melquisedeque, rei de
Salém e sacerdote do Deus Altíssimo, trazendo pão e do vinho e
pronunciando uma bênção sobre Abraão, a quem o patriarca pagou
dízimos, podem aprender a partir de Hebreus 7 que Melquisedeque
serviu como uma prefiguração notável do Senhor Jesus em seu
caráter oficial. Destacaremos duas coisas que são comuns a todos
esses três exemplos. Primeiro, o ensinamento do Novo Testamento
contido nessas passagens de modo algum reduz os acontecimentos
importantes do Antigo Testamento a meras alegorias, nem
menospreza a sua historicidade e nem remove a sua literalidade.
Em segundo lugar, apenas o Novo Testamento revela que esses
acontecimentos do Antigo Testamento possuíam um significado
maior do que o seu significado literal, e que o significado histórico
era apenas uma sombra na terra daquilo que tem a sua realidade ou
antítipo no céu.
Por que não, então, aplicar esse mesmo princípio à promessa
de Deus de dar a terra de Canaã a Abraão e à sua descendência?
Desde que os crentes em Cristo são filhos de Abraão “e herdeiros
segundo a promessa”, segue-se claramente que eles são
participantes em tudo o que foi dito ou prometido a ele. É um grande
erro considerar algumas das promessas abraâmicas como sendo
simplesmente de um tipo temporal e restrito aos seus descendentes
naturais, e que outras eram de um caráter celestial e pertenciam à
sua descendência espiritual. O fato é que o exterior e o temporal
nunca existiram por si mesmos, nem para si mesmo, mas foram
designados como um prenúncio do espiritual e eterno, e como um
meio para a obtenção deles. O exterior e o temporal devem sempre
ser vistos, do começo ao fim, como a casca e a sombra daquilo que
é espiritual e eterno.
O estabelecimento desse importante princípio não é deixado
em dúvida, uma vez que se aplica ao tema da herança de Abraão e
sua posteridade. No capítulo 11 de Hebreus encontramos os
próprios patriarcas identificando as suas perspectivas de uma
herança futura com a nossa: Pela fé habitou na terra da promessa,
como em terra alheia, morando em cabanas com Isaque e Jacó,
herdeiros com ele da mesma promessa. Porque esperava a cidade
que tem fundamentos, da qual o artífice e construtor é Deus. Pela fé
também a mesma Sara recebeu a virtude de conceber, e deu à luz
já fora da idade; porquanto teve por fiel aquele que lho tinha
prometido. Por isso também de um, e esse já amortecido,
descenderam tantos, em multidão, como as estrelas do céu, e como
a areia inumerável que está na praia do mar. Todos estes morreram
na fé, sem terem recebido as promessas; mas vendo-as de longe, e
crendo-as e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e
peregrinos na terra. Porque, os que isto dizem, claramente mostram
que buscam uma pátria. E se, na verdade, se lembrassem daquela
de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar. Mas agora
desejam uma melhor, isto é, a celestial. Por isso também Deus não
se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes
preparou uma cidade” (vv. 9-16).
Quão evidente é, a partir desses versículos, que eles olharam
para além do significado literal das promessas, para uma herança
celestial e eterna, ou seja, para a mesma herança descrita em 1
Pedro 1:4.
Ora, nós não estamos preocupados com a consideração dos
objetivos imediatos que foram cumpridos pelos descendentes
naturais de Abraão ao ocuparem a Canaã terrestre — uma
consideração paralela com as vantagens temporais desfrutadas por
aqueles que viviam sob o exercício literal do sacerdócio araônico.
Qualquer que seja ou não seja o futuro da Palestina em relação aos
judeus, e mesmo que novamente a ocupem por mil anos, é certo
que a promessa de Deus que Abraão e sua descendência teriam “a
terra de Canaã, em possessão perpétua” (Gênesis 17:8) não foi,
não será e não pode ser cumprida em sua posteridade natural; pois
aquela terra, juntamente com toda a terra, será destruída! Não,
antes agora nós estamos interessados no significado espiritual e
antitípico disso.
A nossa terceira resposta para a afirmação frequentemente
feita de que a herança de Abraão e de sua descendência era uma
herança terrena, é que ela essa afirmação é refutada pela própria
Escritura. A herança de Moisés era uma herança terrena? Não,
certamente; pois, de fato, sobre lemos a respeito dele: “Tendo por
maiores riquezas o vitupério de Cristo do que os tesouros do Egito;
porque tinha em vista a recompensa” (Hebreus 11:26). A herança de
Davi era terrena? Não, certamente; pois depois de seu reino ter sido
estabelecido, ele declarou: “Não te cales perante as minhas
lágrimas, porque sou um estrangeiro contigo e peregrino, como
todos os meus pais” (Salmos 39:12), e também: “Sou peregrino na
terra” (Salmos 119:19). A “terra de Canaã” não deve mais ser
entendida de uma maneira carnal do que a “descendência” de
Abraão deve ser considerada como a sua posteridade natural. A
terra de Canaã não foi mais dada aos judeus segundo a carne do
que a “bênção de Abraão” (ou seja, o Espírito Santo — Gálatas
3:14) foi concedido a eles.
“Porque a promessa de que havia de ser herdeiro do mundo
não foi feita pela lei a Abraão, ou à sua posteridade, mas pela
justiça da fé” (Romanos 4:13). Observe duas coisas: Em primeiro
lugar, foi prometido que Abraão seria não apenas “o herdeiro da
Palestina”, mas “do mundo”; e, em segundo lugar, essa promessa
foi feita a Abraão e “a sua descendência”, cuja “descendência” é
definida em Romanos 4:12 como aqueles “que também andam nas
pisadas daquela fé”, que o “pai Abraão”, pai deles, teve. Em perfeita
harmonia com isso o nosso Senhor declarou: “Bem-aventurados os
mansos, porque eles herdarão [possuirão, terão domínio, fruirão] a
terra” (Mateus 5:5). Se literalistas têm lançado tanta obscuridade
sobre este versículo a ponto de alguns leitores terem dificuldade de
entendê-lo, então sugerimos que eles as considerem à luz de 1
Coríntios 3:21-23 e 1 João 5:4! Ao concluir essa parte muito
importante, sentimos que não podemos fazer nada melhor do que
oferecer os comentários espirituais comentários de Calvino sobre
Romanos 4:13, os quais são um contraste revigorante em relação
às carnalizações dos “dispensacionalistas”: Visto que o assunto
agora é a salvação eterna, o apóstolo parece ter guiado seus
leitores ao conceito de mundo um tanto inoportunamente. Por este
termo, mundo, porém, ele inclui geralmente a restauração que era
esperada de Cristo. Enquanto que a restauração da vida dos
crentes era de fato o objetivo primordial, contudo era necessário que
o estado corrompido de todo o mundo fosse reparado. Em Hebreus
1:2, o apóstolo chama Cristo de herdeiro de todas as bênçãos
divinas, visto que a adoção que temos procurado por sua graça nos
restaurou a posse da herança da qual perdemos em Adão. Porém,
visto que sob o tipo da terra de Canaã não só era a esperança da
vida celestial mostrada a Abraão, mas também a plena e perfeita
bênção de Deus, o apóstolo corretamente nos ensina que o domínio
do mundo lhe fora prometido. Os fiéis têm uma demonstração disso
nesta vida, quando às vezes se encontram oprimidos por
necessidade e pobreza. Todavia, visto que, com a consciência
tranquila, compartilham daquelas coisas criadas por Deus para seu
uso, e desfrutam das bênçãos terrenas oriundas do favor e
beneplácito do Pai como penhores e prelibações da vida eterna, sua
pobreza não os impede de reconhecerem a terra, o mar e o céu
como sendo seus por direito.
Embora os ímpios abocanhem as riquezas do mundo, todavia
não podem reivindicar nada como sendo propriamente seu,
senão que, ao contrário, arrebatam secretamente o que
possuem, porquanto o usurpam sob a maldição divina. É um
grande conforto para os fiéis em sua pobreza saber que,
embora vivam frugalmente, todavia não vivem a esbulhar
nada do que pertence a outrem, senão que recebem
licitamente sua subsistência das mãos de seu Pai celestial,
até que se vejam em plena posse de sua herança, quando
então todas as criaturas lhes servirão em sua glória. Tanto o
céu como a terra serão renovados para o cumprimento deste
propósito, para que possam, em sua própria medida,
contribuir para tornar o reino de Deus muito mais glorioso.

Contribuirá ao leitor reler o que está acima e meditar nisso


como um útil desvelamento de Romanos 4:13, com suas aplicações
a nós.
Parte 7

Nas últimas duas partes tratamos desse assunto muito interessante


e procuramos estabelecer o fato básico de que as promessas de
Deus a Abraão nunca foram feitas para seus descendentes naturais,
mas sim para sua descendência espiritual, ou seja, para aqueles
que possuem uma fé semelhante a dele. Por conseguinte, a
posteridade incrédula rente de Jacó foi tão excluída das bênçãos
espirituais do pacto quando o foram os descendentes de Ismael e
Esaú. Em seguida, busquei mostrar, ao recorrer a Romanos 4:13-
16; Gálatas 3:16-18, 29 e Hebreus 11:9-16, que todos os que
pertencem a Cristo possuem uma herança comum com Abraão. No
final da última parte, nos esforçamos para refutar a objeção de que
a herança prometida a Abraão consistia apenas em uma herança
terrena. Antes de prosseguir, faremos uma citação sugestiva a partir
dos escritos de Robert Haldane: A terra de Canaã era um tipo do
país celestial. Ela era a herança dada pela promessa feita a Abraão
e sua posteridade: como seus descendentes segundo a carne
herdaram uma, assim, a sua descendência espiritual herdará a
outra. Canaã era a terra de descanso, após as fadigas e perigos da
vida no deserto. Para torná-la uma herança apropriada, e um
emblema daquela herança que é imaculada, e na qual não entrará
de forma alguma qualquer coisa impura, nem o que pratica
abominação, ela foi eximida de habitantes ímpios. Assim como a
introdução do povo de Israel naquela terra não foi feita por seu
próprio poder ou esforços (Josué 24:12; Salmos 44:4), mas pela
bondade imerecida e poder de Deus; deste modo os filhos de Deus
não obtêm a posse da herança celeste por seu próprio poder ou
esforços, mas pela livre graça e poder de Deus (Romanos 9:16).
Como aqueles que não creram foram excluídos de Canaã, assim
todos os incrédulos serão excluídos do Céu. Como Moisés não
poderia conduzir o povo de Israel à Canaã, sendo esta honra
reservada a Josué, assim, não é pela Lei que o povo de Deus deve
entrar no Céu, mas pelo Evangelho de Jesus Cristo, o verdadeiro
Josué. Nenhum outro país do mundo poderia ter sido selecionado
como um emblema mais apropriado do Céu, Canaã é chamada nas
Escrituras de “a terra aprazível”, “a glória de todas as terras”, “uma
terra que mana leite e mel”.
A Palestina não era somente um tipo admirável e belo dos
céus, mas a promessa da Canaã celestial foi concebida sob a
promessa da Canaã terrestre. Os próprios patriarcas entendiam as
coisas dessa maneira, como é bastante evidente a partir de Hebreus
11: “Pela fé Abraão, sendo chamado, obedeceu, indo para um lugar
que havia de receber por herança; e saiu, sem saber para onde ia”
(v. 8). Aquele lugar que posteriormente receberia por herança não
poderia ser a Canaã terrestre, pois somos claramente informados de
que Deus “não lhe deu nela herança, nem ainda o espaço de um pé”
(Atos 7:5), e na ausência de qualquer declaração bíblica para esse
efeito, pareceria muito incongruente supor que, depois de passar
quatro mil anos no céu, o patriarca, depois da ressurreição, voltará a
residir na terra. Não, a sua esperança relacionava-se à “pátria
celestial” (Hebreus 11:14, 16); ainda assim, nenhuma promessa
sobre isso é encontrada em qualquer lugar do Antigo Testamento, a
menos que seja a essência verdadeira contida na promessa da
Canaã terrestre. Que a nossa “esperança” é a mesma que Abraão
fica evidente a partir de Hebreus 6:17-19.
Além das duas grandes promessas que o nosso patriarca
recebeu a respeito de que nele todas as famílias da terra seriam
benditas e a herança será assegurada a elas — era uma ainda
maior e mais abrangentemente garantida: “Para te ser a ti por Deus,
e à tua descendência depois de ti… ser-lhes-ei o seu Deus”
(Gênesis 17:7-8). Essa declaração divina foi projetada para revelar a
relação infinitamente condescendente que o Senhor quis manter
para com o seu povo crente, e incentivá-lo e exercer uma forte
confiança nele. Essa foi uma revelação nova a Abraão a respeito da
relação graciosa que Deus manteria com os descendentes dele;
pois tanto quanto a Escritura registra, nenhuma palavra semelhante
havia sido dada a qualquer dos santos que o precederam. Aqui,
então, ocorreu um desdobramento adicional e mais completo das
comunicações divinas sob o pacto abraâmico, um progresso claro
com relação ao que havia sido revelado anteriormente.
Quando o Altíssimo promete ser o Deus de alguém, essa é
uma declaração efetiva de que os conduzirá em seu favor e sob a
sua proteção; que Deus será porção dele, e que não reterá nada de
bom — que contribua para o bem estar — deles. Tudo o que há de
mau que precisa ser evitado e tudo o que há de realmente bem e
que pode ser adequadamente conferido está incluído nessa grande
declaração. Nossas mentes finitas são incapazes de definir a
capacidade de Deus para abençoar, ou para compreender
adequadamente tudo o que essa declaração contém. A aplicação
dela não se limita apenas a esta vida, mas também aguarda com
expectativa as eras infindáveis da eternidade. O grande Yahwéh
solenemente prometeu guiar, guardar e glorificar seu povo pactual:
“O meu Deus, segundo as suas riquezas, suprirá todas as vossas
necessidades em glória, por Cristo Jesus” (Filipenses 4:19).
Ora, cada uma das promessas feitas a Abraão recebe um
cumprimento duplo: um cumprimento na “letra” e um cumprimento
no “espírito” ou, como preferimos designá-los, um cumprimento
carnal e um espiritual. “Serás o pai de muitas nações… e reis sairão
de ti” (Gênesis 17:4, 6). Além dos israelitas, Abraão foi o pai dos
ismaelitas e dos vários filhos de Quetura (Gênesis 25:1-2). Mas
estes nasceram segundo a carne (Gálatas 4:23), e eram apenas
uma figura da descendência verdadeira, a espiritual.
Isso fica evidente a partir de Romanos 4:16-17:

Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de


que a promessa seja firme a toda a posteridade, não
somente à que é da lei, mas também à que é da fé que teve
Abraão, o qual é pai de todos nós, (Como está escrito: Por
pai de muitas nações te constituí) perante aquele no qual
creu, a saber, Deus, o qual vivifica os mortos, e chama as
coisas que não são como se já fossem.

Assim, no sentido mais elevado e verdadeiro, Abraão foi o pai


dos crentes, quer judeus ou gentios, e deles somente. Em João 8:39
e 44, Cristo negou enfaticamente que Abraão fosse o pai dos judeus
incrédulos de seus dias: “E estabelecerei a minha aliança entre mim
e ti e a tua descendência depois de ti em suas gerações, por aliança
perpétua” (Gênesis 17:7). O cumprimento verdadeiro dessa
promessa foi esboçado quando Israel segundo a carne entrou em
aliança com Yahwéh no Sinai, pelo que ele se tornou formalmente o
seu Deus e os reconheceu como seu povo (Êxodo 19:5-6; Levítico
26:12 etc.). Mas o cumprimento real e final de Gênesis 17:7
acontece em conexão com o Israel espiritual, os filhos de Abraão
pela fé, e isso por meio de uma “melhor aliança”, pois, com relação
à verdadeira casa de Israel, ele diz: Porque esta é a aliança que
depois daqueles dias farei com a casa de Israel, diz o Senhor; porei
as minhas leis no seu entendimento, e em seu coração as
escreverei; e eu lhes serei por Deus, e eles me serão por povo…
Porque serei misericordioso para com suas iniquidades, e de seus
pecados e de suas prevaricações não me lembrarei mais (Hebreus
8:10-12).
“E te darei a ti e à tua descendência depois de ti, a terra de
tuas peregrinações, toda a terra de Canaã em perpétua possessão”
(Gênesis 17:8). A conquista e ocupação de Israel da Canaã terrena
nos dias de Josué foi o cumprimento figurativo e inferior dessa
promessa. Como já demonstramos, o seu cumprimento espiritual
está na possessão da “pátria melhor”, a qual os que são da fé de
Abraão herdarão eternamente. E foi assim que os próprios
patriarcas entenderam essa promessa, como é inequivocamente
evidente a partir de Hebreus 11:9, 16 — a fé deles foi mais
especialmente direcionada para a “pátria celestial”, da qual a terrena
era apenas um emblema.
A mesma verdade foi apresentada claramente no raciocínio de
nosso Senhor para com os saduceus, que negavam tudo o que era
espiritual. “E que os mortos hão de ressuscitar também o mostrou
Moisés junto da sarça, quando chama ao Senhor Deus de Abraão, e
Deus de Isaque, e Deus de Jacó” (Lucas 20:37). As promessas do
pacto ensinavam aos patriarcas que a sua ressurreição e
glorificação eram necessárias para o cumprimento delas. Que a
“Canaã” onde eles deveriam morar após a ressurreição não seria na
terra, mas no céu, é igualmente claro a partir do que foi dito
anteriormente no mesmo discurso de Cristo: Os filhos deste mundo
[a Canaã terrena de onde eram os saduceus] casam-se, e dão-se
em casamento; mas os que forem havidos por dignos de alcançar o
mundo vindouro [a Canaã celestial], e a ressurreição dentre os
mortos, para prepará-los para isso] nem hão de casar, nem ser
dados em casamento; porque já não podem mais morrer; pois são
iguais aos anjos, e são filhos de Deus, sendo filhos da ressurreição
(vv. 34-36).
O apóstolo Paulo fez uma exposição sobre as promessas
pactuais em perfeito acordo com o que acabamos de considerar a
partir dos lábios do Senhor Jesus. Em sua defesa diante do rei
Agripa, ele não hesitou em dizer na presença dos líderes judeus
(Atos 25:7): “E agora pela esperança da promessa que por Deus foi
feita a nossos pais estou aqui e sou julgado. À qual as nossas doze
tribos esperam chegar, servindo a Deus continuamente, noite e dia.
Por esta esperança, ó rei Agripa, eu sou acusado pelos judeus”
(Atos 26:6-7). Qual era essa promessa? Desfrutar da Palestina em
liberdade e felicidade? Certamente não, mas sim o seguinte: “Pois
quê? julga-se coisa incrível entre vós que Deus ressuscite os
mortos?” (v. 8). Assim também, ao comparecer diante de Félix, ele
declarou: “Mas confesso-te isto que, conforme aquele caminho que
chamam seita, assim sirvo ao Deus de nossos pais, crendo tudo
quanto está escrito na lei e nos profetas. Tendo esperança em Deus,
como estes mesmos também esperam, de que há de haver
ressurreição de mortos, assim dos justos como dos injustos” (Atos
24:14-15).
Mas, onde está “escrito na lei” a promessa feita aos pais sobre
a ressurreição dentre os mortos? A resposta é: em parte alguma, a
não ser nas promessas pactuais feitas a Abraão e repetidas para
Isaque e Jacó; e elas contidas ali apenas no sentido em que
explicamos. Deus ressuscitará dentre os mortos toda a
descendência espiritual de Abraão, e lhes dará “em perpétua
possessão” aquela Canaã de cima, da qual a Canaã terrena serviu
como emblema e sombra. James Haldane corretamente apontou
que: Um grande meio pelo qual Satanás tem conseguido corromper
o evangelho tem sido a mistura [podemos acrescentar “a confusão”]
do cumprimento literal e o cumprimento espiritual dessas promessas
— confundindo, assim, a Antiga e a Nova Aliança. Isso é visto nas
tentativas de aplicar à “descendência” carnal dos crentes (cristãos)
as promessas feitas à espiritual “descendência de Abraão”.
Não nos esquecemos de que alguns de nossos leitores são
susceptíveis a se oporem fortemente ao que poderiam chamar este
método “espiritualizante” de interpretação das Escrituras. Mas
permita que seja salientado que atribuir tanto um significado literal
quanto um espiritual às promessas pactuais não é uma teoria criada
para servir a um propósito, antes isso se harmoniza e é demandado
por todas as partes da dispensação do Antigo Testamento nas quais
as coisas terrenas eram utilizadas como sombra das realidades
celestes, tipos que apontavam para antítipos. Tomemos, por
exemplo, o templo, ele era “a casa de Deus”, na letra, mas Cristo e
a sua igreja o são no espírito. Se hoje chamarmos qualquer edifício
terreno de “casa de Deus” isso estará tão aquém do sentido que
essa expressão carrega quando é aplicada à igreja de Cristo quanto
chamar a nação de Israel de o “povo de Deus” estará muito aquém
do significado desse termo quando aplicado ao Israel espiritual
(Gálatas 6:16).
Na letra, são ditas coisas a respeito da casa de Deus, as quais
são plenamente adequadas somente ao espírito. Salomão declarou:
“Certamente te edifiquei uma casa para morada, assento para a tua
eterna habitação” (1 Reis 8:13). Ora, a incoerência de supor que
aquele a quem “o céu dos céus não podem conter” habitaria em
qualquer habitação terrena e material eternamente, em uma “casa
para morada”, só pode ser removida se entendermos que isso se
refere ao espírito. O corpo de Cristo (pessoal e místico) é o único
“templo” (João 2:19, 21; Efésios 2:18-22) a respeito do que isso
pode ser completamente verdadeiro. Isso não está aberto à
argumentação, pois Deus não “habita para sempre” no templo
construído por Salomão, pois ele foi destruído há milhares de anos;
mas no seu templo espiritual isso é cumprido em sua extensão
máxima. As promessas pactuais devem ser interpretadas de acordo
com o mesmo princípio: as coisas temporais prometidas nelas são
apenas as figuras daquelas “coisas melhores” que Deus prometeu
conceder aos filhos crentes de Abraão.
Paremos um momento para rever o que já falamos até aqui.
Em primeiro lugar, podemos ressaltar o primeiro grande objetivo do
pacto era dar a conhecer a raiz de onde viria o Messias. Em
segundo lugar, esse pacto revelou que o desígnio final de Deus era
a propagação mundial dos benefícios anunciados. Antes de
Ninrode, toda a raça falava uma língua e se relacionava facilmente
uns com os outros. Mas na confusão das línguas, eles foram
divididos e dispersos, e foram todos igualmente se extraviaram e se
desviaram de Deus. Quando Abraão foi chamado, e sua família
escolhida como um povo a quem Deus comunicaria o conhecimento
de sua vontade e chamaria (pela soberana graça) ao seu serviço,
seria natural inferir que o restante das nações estava total e
finalmente abandonado aos seus próprios maus intentos, e que
somente uma nação favorecida participaria das vitórias do libertador
futuro. É instrutivo observar como essa conclusão lógica, porém
errônea, foi antecipada por Deus desde o princípio, e refutada pelos
próprios termos do pacto que ele fez com Abraão.
O patriarca e seus descendentes foram, de fato, separados de
todos os outros; e receberam privilégios peculiares e bênçãos de
mais alto valor, porém, no próprio ato em que essas coisas foram
dadas a eles, o Senhor deu a entender que esses privilégios eram
limitados a eles no que diz respeito a não terem sido confiados a
ninguém mais, e que a teocracia israelita era apenas um arranjo
temporário, pois em Abraão “todas as famílias da terra serão
abençoadas”. Logo, foi feito um anúncio claro de que o muro de
separação seria desfeito e todas as restrições seriam removidas,
bem como de que as bênçãos de Abraão seriam estendidas a um
círculo muito mais amplo. Os arranjos exteriores do pacto eram
simplesmente algo necessário para um determinado tempo e tinha
como objetivo garantir resultados mais grandiosos e mais
abrangentes: “E em tua descendência serão benditas todas as
nações da terra” (Gênesis 22:18), esse foi um anúncio definitivo do
escopo internacional da misericórdia divina.
Portanto, o pacto abraâmico, considerado como um todo, não
apenas definiu a linhagem especial da qual o Messias surgiria, mas
anunciou os arranjos (temporais) necessários para prepararem a
vinda dele e a extensão que a sua gloriosa obra estava destinada a
alcançar. Todavia, isso lançou uma luz mais clara a relação que (em
consequência disso) Deus condescendeu em manter com o seu
povo redimido; e isso forneceu um vislumbre e um tipo notável da
natureza das bênçãos que, em virtude dessa relação, Deus
designou conceder a eles. Isso consistiu em uma maravilhosa
ampliação da revelação; era o evangelho em figura e é considerado
dessa maneira no Novo Testamento (João 8:56; Gálatas 3:8). O
apóstolo Paulo se refere ao pacto abraâmico frequentemente como
algo que prenuncia e ilustra os privilégios concedidos aos cristãos,
bem como o princípio sobre o qual os privilégios são concedidos, a
saber, uma fé que é evidenciada pela obediência.
Parte 8

As grandes promessas do pacto abraâmico, como apresentadas


originalmente ao patriarca, estão registradas em Gênesis 12:2-3, 7.
O próprio pacto foi solenemente ratificado pelo sacrifício em
Gênesis 15:9-21, o que o tornou inviolável. O selo e sinal do pacto,
a circuncisão, é anunciada a nós em Gênesis 17:9-14. O pacto foi
confirmado por juramento divino em Gênesis 22:15-18, o que
proporcionou um fundamento de “firme consolação” (Hebreus 6:17-
19). Não haviam dois pactos distintos e diferentes com Abraão
(como os batistas mais antigos argumentaram), um tendo relação
com as bênçãos espirituais e outro relativo aos benefícios
temporais. O pacto era um só, e possuía um objetivo especial e
espiritual, a que os arranjos temporais e privilégios inferiores
desfrutados pela nação de Israel foram estritamente subordinados e
feitos necessários somente como um meio de garantir os mais
resultados mais elevados que estavam em vista.
É verdade que o conteúdo do pacto era de um tipo misto,
envolvendo tanto os descendentes naturais quando a descendência
espiritual de Abraão, e que suas promessas receberiam um
cumprimento maior e menor. Deveria haver um cumprimento
temporário das promessas à sua descendência natural aqui na terra,
e deveria haver um cumprimento eterno delas para seus filhos
espirituais no céu. A menos que essa dualidade do conteúdo do
pacto seja mantida em mente, é impossível obter uma visão correta
e clara a respeito delas. No entanto, é essencial distinguir
claramente entre os dois cumprimentos para que não caiamos no
erro de outros, que insistem que as bênçãos espirituais pertenciam
não somente à descendência natural de Abraão, mas também aos
filhos dos cristãos. Bênçãos espirituais não podem ser comunicadas
por geração carnal.
Nada poderia estabelecer mais claramente o que acaba de ser
declarado do que Romanos 9:6-8: “…porque nem todos os que são
de Israel são israelitas; nem por serem descendência de Abraão são
todos filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência.
Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas os
filhos da promessa são contados como descendência”. Nem todos
os descendentes de Abraão participaram das bênçãos espirituais
prometidas a ele, pois para alguns deles, Cristo disse: “Morrereis em
vossos pecados” (João 8:24). Essa verdade foi prefigurada no fato
de que Ismael e Esaú terem sido excluídos até mesmo dos
privilégios temporais que gozaram os filhos de Isaque e de Jacó.
Nem todos os filhos de cristãos desfrutam dos privilégios espirituais
prometidos a Abraão, mas somente aqueles que foram eternamente
escolhidos para a salvação; e se eles são eternamente escolhidos
para a salvação não pode ser conhecido até que creiam: “Sabei,
pois, que os que são da fé, esses são filhos de Abraão” (Gálatas
3:7).
Permita-nos pontuar a seguir que o pacto abraâmico era
estritamente peculiar a ele mesmo; pois nem no Antigo nem no
Novo Testamento é dito alguma vez que o pacto abraâmico foi feito
em nome de todos os crentes, ou que é dado a todos eles. A grande
coisa que o pacto garantiu a Abraão foi que ele teria uma
descendência, e que Deus seria o Deus dessa descendência; mas
os cristãos não têm nenhuma garantia divina de que ele seja o Deus
de sua descendência, nem mesmo que eles terão algum filho. E, de
fato, muitos cristãos não possuem filhos; os quais, portanto ter
participação no pacto abraâmico. A pacto que Deus fez com Abraão
tão peculiar a ele mesmo como a aliança que Deus fez com Fineias:
“E ele, e a sua descendência depois dele, terá a aliança do
sacerdócio perpétuo” (Números 25:13), e como a pacto a respeito
da realeza que Deus fez com Davi e a descendência dele (2 Samuel
7:12-16). Em cada caso, uma promessa divina foi dada
assegurando uma posteridade; e se nenhum filho tivesse sido
gerado por aqueles homens, então Deus teria quebrado o seu
pacto.
Observe as promessas originais feitas a Abraão: “E far-te-ei
uma grande nação, e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome; e
tu serás uma bênção. E abençoarei os que te abençoarem, e
amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas
as famílias da terra” (Gênesis 12:2-3). Será que Deus prometeu a
cada cristão que faria dele uma “grande nação”? Ou que
“engrandeceria o nome” deles e o faria tão célebre como o nome do
patriarca foi e é? Ou que nele “todas as famílias da terra serão
benditas”? Certamente não há espaço para discussão aqui, a
resposta para essas perguntas é óbvia. Nada poderia ser mais
extravagante e absurdo do que supor que promessas como essas
tenham sido feitas para nós.
Se Deus cumpre o pacto feito com Abraão e a descendência
dele para todo o crente e a descendência dele, então ele faz isso de
acordo com os termos do próprio pacto. Mas, se nos voltarmos e
examinarmos cuidadosamente o seu conteúdo desse pacto, logo
veremos que eles não seriam cumpridos no caso de todos os
crentes, para além do próprio Abraão. Nesse pacto, Deus promete a
Abraão que ele seria o “pai de muitas nações”, que “reis sairiam
dele” e que “te darei a ti e à tua descendência depois de ti, a terra
de tuas peregrinações, toda a terra de Canaã em perpétua
possessão e ser-lhes-ei o seu Deus” (Gênesis 17:5-8). Mas os
cristãos não são feitos os pais de muitas nações; nem reis saem
deles e nem os descendentes deles ocupam a terra de Canaã, quer
literal ou espiritualmente. Frequentemente um crente piedoso é
levado a clamar com Davi: “Ainda que a minha casa não seja tal
para com Deus, contudo estabeleceu comigo uma aliança eterna,
que em tudo será bem ordenado e guardado, [pois toda a minha
salvação e todo o meu prazer está nele]” (2 Samuel 23:5).
O pacto não estabeleceu nenhuma relação espiritual entre
Abraão e a descendência dele; e menos ainda ele estabelece uma
relação espiritual entre todos os crentes e seus bebês. Abraão não
era o pai espiritual de sua própria descendência natural, pois
qualidades espirituais não podem ser propagadas por geração
carnal. Ele era o pai espiritual de Ismael? Ele era o pai espiritual de
Esaú? Com certeza não; em vez disso, Abraão é “o pai de todos os
que creem” (Romanos 4:11). Tanto quanto seus descendentes
naturais estavam em vista, a Bíblia declara que Abraão era “pai da
circuncisão, daqueles que não somente são da circuncisão, mas
que também andam nas pisadas daquela fé que teve nosso pai
Abraão, que tivera na incircuncisão” (Romanos 4:12). O que poderia
ser mais claro? Tenhamos cuidado para não fazermos acréscimos à
Palavra de Deus. Nenhuma teoria ou prática, não importa o quão
venerável seja ou quão amplamente difundida, pode ser sustentada,
se nenhuma passagem clara das Escritura pode ser encontrada
para justificá-la e estabelecê-la.
Alguém pode perguntar: “Mas os cristãos não estão sob o
pacto abraâmico?”. Pela completa ausência de qualquer palavra na
Escritura afirmando que eles estão, nós respondemos: Não. A
bênção de Abraão, de fato, chegou aos “gentios por Jesus Cristo, e
para que pela fé nós recebamos a promessa do Espírito” (Gálatas
3:14), e em que consiste essa bênção, o mesmo versículo diz a
seguir: “Para que pela fé nós recebamos a promessa do Espírito”.
Essa bênção não consiste na criação de relações espirituais entre
os crentes e sua descendência infantil, mas é algo direcionado a
eles mesmos, em resposta ao exercício de sua própria fé. Gálatas
3:9 é ainda mais evidente ao definir para nós que é a “bênção de
Abraão” que será concedida aos gentios: “De sorte que os que são
da fé são benditos com o crente Abraão”. E novamente: “Sabei,
pois, que os que são da fé são filhos de Abraão” (v. 7). Os únicos
filhos espirituais de Abraão são os que têm fé.
Passaremos a considerar o selo do pacto, em Gênesis 17:9-14
lemos o seguinte:

Disse mais Deus a Abraão: Tu, porém, guardarás a minha


aliança, tu, e a tua descendência depois de ti, nas suas
gerações. Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim
e vós, e a tua descendência depois de ti: Que todo o homem
entre vós será circuncidado. E circuncidareis a carne do
vosso prepúcio; e isto será por sinal da aliança entre mim e
vós. O filho de oito dias, pois, será circuncidado, todo o
homem nas vossas gerações; o nascido na casa, e o
comprado por dinheiro a qualquer estrangeiro, que não for da
tua descendência. Com efeito será circuncidado o nascido
em tua casa, e o comprado por teu dinheiro; e estará a minha
aliança na vossa carne por aliança perpétua. E o homem
incircunciso, cuja carne do prepúcio não estiver circuncidada,
aquela alma será extirpada do seu povo; quebrou a minha
aliança.

Ao tentarmos identificar o significado da passagem acima não


podemos fazer melhor do que lançar sobre ela a luz do Novo
Testamento. Ali nos é dito: “E [Abraão] recebeu o sinal da
circuncisão, selo da justiça da fé quando estava na incircuncisão,
para que fosse pai de todos os que creem, estando eles também na
incircuncisão; a fim de que também a justiça lhes seja imputada”
(Romanos 4:11). A primeira observação que queremos fazer sobre
esse versículo é que ele definitivamente estabelece a unidade do
pacto abraâmica, pois em Romanos 4:3, o apóstolo havia citado
Gênesis 15 — onde a palavra pacto ocorre pela primeira vez em
conexão com Abraão; e agora ele nos remete a Gênesis 17,
sugerindo, assim, que a mesma aliança é que está em vista em
ambos os capítulos. A principal diferença entre os dois capítulos é
que um nos concede mais do lado divino (ratificação da aliança), o
outro do lado humano (a guarda da aliança, ou a obediência à
ordem divina).
A próxima coisa que queremos observar é que a circuncisão
era “um selo da justiça da fé que ele tinha”. Quero enfatizar
novamente: cuidemos para não fazermos qualquer acréscimo à
Palavra de Deus, pois em nenhum lugar as Escrituras dizem que a
circuncisão era um selo para ninguém, senão para o próprio Abraão;
e até mesmo no seu caso, ela estava longe de comunicar qualquer
bênção espiritual, ela simplesmente confirmou o que já havia sido
prometido a ele. Como um selo de Deus, a circuncisão era uma
promessa ou garantia divina de que dele surgiria a descendência
que traria a bênção para todas as nações, com base nos mesmos
termos em que a justiça justificadora se tornou dele — pela fé. A
circuncisão não era um selo de sua fé, mas da justiça, a qual, no
tempo devido, seria operada pelo Messias e Mediador. A circuncisão
não era um memorial de tudo o que já havia sido realizado, mas um
penhor daquilo que ainda era futuro — ou seja, a justiça justificadora
que seria operada por Cristo.
Mas Deus não recomendou que todos os homens da casa de
Abraão e das casas de seus descendentes também fossem
circuncidados? Sim, ele fez isso, e é precisamente nesse fato que
encontramos a confirmação definitiva do que foi dito acima. O que a
circuncisão selou para os empregados e escravos de Abraão?
Nada. A circuncisão não assinalou nem selou as bênçãos do pacto
abraâmico para os indivíduos a quem foi administrada por
determinação divina. Ela não implica que os que foram
circuncidados foram contados como os herdeiros das promessas,
quer materiais ou espirituais. A circuncisão não foi aplicada para
marcá-los individualmente como herdeiros das promessas. Ela não
implicou isso nem mesmo a Isaque e Jacó, que são designados por
nome como herdeiros de Abraão. A participação deles nas
promessas foi garantida por Deus ao conceder-lhes expressamente
o pacto, mas isso não foi representado na circuncisão deles. A
circuncisão não marcou nenhum caráter nem teve uma aplicação
pessoal para nenhum homem, senão para o próprio Abraão. Ela foi
o sinal desse pacto; e como um símbolo ou sinal, sem dúvida, foi
aplicada a cada promessa da aliança, mas a circuncisão não
determinou que o indivíduo circuncidado tivesse uma participação
pessoal em tais promessas. O pacto prometeu uma numerosa
descendência a Abraão; a circuncisão, como sinal daquele pacto,
consistiu em um sinal disso para ele; mas foi um sinal disso para
qualquer outro. Qualquer outro indivíduo circuncidado, exceto
Isaque e Jacó, a quem o pacto foi dado nominalmente, poderia não
ter tido filhos.

A circuncisão não implicou para qualquer indivíduo que


qualquer parte da descendência numerosa de Abraão
descenderia dele. A aliança prometeu que todas as nações
seriam benditas em Abraão — que o Messias seria seu
descendente. Mas a circuncisão não era nenhum sinal a
qualquer outro que o Messias descenderia dele — até
mesmo para Isaque e Jacó, esta promessa foi peculiarmente
dada, e não implicou em sua circuncisão. De alguns da raça
de Abraão, o Messias, de acordo com o pacto, deveria
descender, e a circuncisão foi um sinal disso: mas isso não
foi sinalizado pela circuncisão para qualquer um de toda a
sua raça. Menos ainda a circuncisão poderia “sinalizar” isso
aos estrangeiros e escravos que não eram da descendência
de Abraão. Para os tais, até mesmo as promessas temporais
não foram ‘sinalizadas’ ou seladas pela circuncisão. O pacto
prometeu Canaã aos descendentes de Abraão, mas a
circuncisão não poderia ser nenhum sinal disso para os
estrangeiros e escravos que não fruíram de nenhuma
herança nela (Alexander Carson, 1860).

Que a circuncisão não sela nada a ninguém, senão a próprio


Abraão está estabelecido além de sombra de dúvida pelo fato de
que a circuncisão foi aplicada àqueles que não tinham participação
pessoal no pacto ao qual esta foi vinculada. Não somente a
circuncisão foi administrada por Abraão aos servos e aos escravos
de sua casa, mas em Gênesis 17:23 lemos que ele circuncidou
Ismael, que foi expressamente excluído daquela aliança! Não há
escape da força disso, e é impossível conciliá-lo com os pontos de
vista tão amplamente permeados sobre a aliança abraâmica. Além
disso, as pessoas não eram voluntariamente submetidas à
circuncisão, nem ela era praticada com referência à fé, ela era
obrigatória, e isto em todos os casos: “Com efeito será circuncidado
o nascido em tua casa, e o comprado por teu dinheiro” (Gênesis
17:13) — aqueles que se recusassem, seriam “extirpados do seu
povo” (v. 14). Quão diferente isso era do batismo cristão!
Pode ser questionado, se, então, a circuncisão não selou nada
para aqueles que a receberam, exceto no caso único do próprio
Abraão, então, por que Deus ordenou que ela seria administrada a
todos os seus descendentes do sexo masculino? Em primeiro lugar,
porque essa era a marca que ele escolheu para distinguir de todas
as outras nações o povo de quem o Messias surgiria. Em segundo
lugar, porque isso serviu como um lembrete constante de que a
partir da raiz de Abraão viria a Semente prometida — daí, logo
depois que ele surgiu, a circuncisão foi abolida por Deus. Em
terceiro lugar, por causa do que ela tipicamente prenunciava. Ser
nascido naturalmente da linhagem de Abraão dava direito à
circuncisão e à herança terrena, o que era uma figura do direito à
herança celestial dos nascidos do Espírito. Os servos e escravos na
casa de Abraão “comprados com dinheiro” lindamente esboçavam a
verdade que aqueles que entram no reino de Cristo são
“comprados” pelo seu sangue.
É um erro supor que o Batismo veio no lugar da circuncisão.
Como o que suplantou os sacrifícios do Antigo Testamento foi o
sacrifício único do Salvador, como o que substituiu o sacerdócio de
Arão foi o sumo sacerdócio de Cristo, deste modo, aquilo que
sucedeu a circuncisão é a circuncisão espiritual que os crentes têm
em e por meio de Cristo: “No qual também estais circuncidados com
a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo dos pecados
da carne, pela circuncisão de Cristo” (Colossenses 2:11) — quão
simples! quão satisfatório! “Sepultados com ele no batismo, nele
também ressuscitastes” (v. 12) é acrescentar ao que está escrito, é
unicamente perverter a Escritura, dizer que estes dois versos
significam: “Sepultados com ele no batismo, fostes circuncidados”.
Não, não; o verso 11 declara que a circuncisão Cristã é “não feita
por mãos”, e o Batismo é administrado por mãos! A circuncisão “não
feita por mão no despojo [judicialmente, diante de Deus] do corpo
dos pecados da carne, pela circuncisão de Cristo” tomou o lugar da
circuncisão feita por mãos. A circuncisão de Cristo veio no lugar da
circuncisão da lei. Nunca alguma vez no Novo Testamento o
Batismo é citado como o selo da Nova Aliança; antes, o Espírito
Santo é o selo: veja Efésios 1:13, 4:30.
Em resumo. O grande propósito do pacto de Deus com Abraão
foi tornar conhecido que, através dele viria Aquele que traria bênção
para todas as famílias da terra. As promessas feitas a ele deveriam
receber um cumprimento menor e um mais elevado, como ele
deveria ter filhos naturais e espirituais — pois “reis sairão de ti”
(Gênesis 17:6), compare com Apocalipse 1:6; pois “a tua
descendência possuirá a porta dos seus inimigos” (Gênesis 22:17),
compare com Colossenses 2:15; Romanos 8:37 e 1 João 5:4.
Abraão é chamado de “pai”, não em um sentido federal, nem em um
sentido espiritual, mas porque ele é o cabeça do clã da fé, o antítipo
a que todos os crentes são conformados. Os Cristãos não estão sob
o pacto abraâmico, embora eles sejam “bem-aventurados com ele”
por terem a sua fé contada como justiça. Embora os crentes do
Novo Testamento não estejam sob o pacto abraâmico, eles são, por
causa de sua união com Cristo, herdeiros da herança espiritual dele.
Resta-nos agora apontar em que o pacto abraâmico esboçou a
Aliança Eterna. Primeiro, ele proclamou o alcance internacional da
misericórdia divina: alguns dentre todas as nações foram incluídos
na eleição da graça. Em segundo lugar, ele deu a conhecer a raiz
ordenada a partir da qual o Messias e Mediador surgiria. Em terceiro
lugar, ele anunciou que a fé somente garantia um interesse em todo
o bem que Deus havia prometido. Em quarto lugar, Abraão ser o pai
de todos os crentes prefigurou a verdade que Cristo é o pai de sua
própria semente espiritual (Isaías 53:10-11). Em quinto lugar, o
chamado de Abraão por Deus para deixar seu país e tornar-se um
peregrino em terra estranha, tipificou Cristo deixando o Céu e
tabernaculando-se na terra. Sexto, como o “herdeiro do mundo”
(Romanos 4:13), Abraão prenunciou Cristo como “o herdeiro de
todas as coisas” (Hebreus 1:2). Em sétimo lugar, na promessa de
Canaã à sua descendência, temos uma figura da herança celestial
que Cristo adquiriu para o seu povo.
(Parece uma triste tragédia que o povo de Deus esteja tão
dividido sobre o assunto do batismo. Embora tenhamos fortes
convicções sobre o assunto, nós nos abstivemos de pressioná-las
— ou mesmo apresentá-las — neste estudo. Mas parecia
impossível lidar fielmente com o pacto abraâmico sem fazer uma
sutil referência. Buscamos escrever temperadamente no capítulo
acima, evitando expressões duras e reflexões desnecessárias.
Confiamos que o leitor o receberá gentilmente no espírito em que
está escrito).

[1] Cf. Isaías 28:21.


[2] Cf. Efésios 3:10.
[3] Cf. 1 Timóteo 6:12.

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