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“Certas canções que ouço, cabem tão dentro de mim, que perguntar carece: como

não fui eu que fiz?”

“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, o verso inicial de
Roda Viva não lhe saía da cabeça. E não era somente esta canção, mas muitos retalhos
de outras que lhe construíam a alma. “Sou um homem comum, qualquer um, enganando
entre a dor e o prazer, hei de viver e morrer, como um homem comum, mas o meu
coração de poeta projeta-me em tal solidão”. A melodia de “Peter Gast” era tão parecida
com ele, tão sinuosa e triste.
“Parece cocaína, mas é só triteza”, estampou certa vez numa camiseta, carregava
sua verdade adolescente no peito. Hoje não tem mais ilusões. “Quem quiser que pense
um pouco, eu não posso explicar meus encontros, ninguém pode explicar a vida num
samba curto”.
“As coisas que eu sei de mim são pivetes da cidade, pedem, insistem e eu me sinto
pouco à vontade fechado dentro de um táxi numa transversal do tempo”. A existência lhe
corroendo, ferrugem nas paredes internas. Pequenos assaltos, sustos, demasiados
fingimentos, não só ele com ele mesmo, mas com os outros, com as emoções,
sentimentos, esta parte importante da vida, feita de tantos erros que era uma 'des-parte'.
Orgulho demais. “Tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha
dor” e lá ia ele chorando, “a cabeça de pé e o coração de joelhos”, mas lágrimas pouco
eram vistas, “ali onde ou chorei, qualquer um chorava, dar a volta por cima que eu dei,
quero ver quem dava”. A bandeira do vitorioso desfazia-se sempre à noite, sozinho. “Ah, o
arco-íris virou quebra-luz”
Tinha vontade de sair mundo a fora, mas ficava “sentado à beira de um caminho
que não tem mais fim, não tem mais fim”. Feito estátua, não sabia amar, não sabia ser
homem livre, não sabia ser. Todos a sua volta contentes, satisfeitos com a condição
humana, dizendo-lhe “Felicidade é uma cidade pequenina , é uma casinha, é uma colina”
sabia disso, queria isso, mas não conseguia, ouvia canções de bem estar, Enya, Kenny
G, mas tudo o que vinha na cabeça era “rancor cisticircose caxumba difteria, encefalite
faringite gripe leucemia, o pulso ainda pulsa”.
Um dia quem sabe conseguiria livrar-se do estigma, da impureza destas noites
eternas. “O sol há de brilhar mais uma vez”, até lá, seguia cantando para enganar-se: “é a
vida e é bonita, é bonita, é bonita.”

Rubens da Cunha

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