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Prêmio Vicente Salles

Instituto de Artes do Pará


Copyright ©2014 by Gil Vieira Costa SUMÁRIO
que entrou em vigor no Brasil em 2009
PRÊMIO IAP DE LITERATURA 7
Governador do Estado do Pará
Simão Jatene
Vice-governador Prefácio 11
Helenilson Pontes
Secretário Especial de Promoção Social Introdução 19
Alex Fiúza de Mello
Presidente do Instituto de Artes do Pará 1. DELINEANDO CONCEITOS INICIAIS 25
Fábio Carvalho de Souza
1.1. A respeito de arte contemporânea 26
1.2. Territórios, lugares e discursos 36
Coordenação Editorial
Tito Barata 1.3. Peculiaridades de uma periferia 51
1.4. Arte contemporânea paraense? 61
José Antonio Oliveira
Revisão
Graça Salim 2. TERRITORIALIDADES EM TRÂNSITO 77
Imagem da capa
2.1. Desterritorializações: espaços não institucionais 78
Gil Vieira Costa
“Mênstruo Mostra Monstro Mostarda”, Lúcia Gomes, 2006 85
“Jabiracas”, Fernando de Pádua, a partir de 2005 89
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
“Espaços de não-violência”, coletivo Novas Médias, a partir de 2009 91
2.2. Reterritorializações: dispositivos de apropriação 95
C837e Vieira Costa, Gil.
Espaços em trânsito: múltiplas territorialidades da arte contemporânea 2.2.1. Instituições 101
paraense: ensaio / Gil Vieira Costa. - Belém: IAP, 2014. “aBLAção”, Luciana Magno, a partir de 2008 103
262 p.: il.; 21,5 cm.
Obra premiada pelo Instituto de Artes do Pará. Prêmio Vicente Salles. Instituto de Artes do Pará, 2003 105
Ensaio, 2013.
ISBN: 978-85-89095-77-8
24º Salão Arte Pará, 2005 114
2.2.2. Regulamentações 122
1. Ensaios brasileiros. I. Instituto de Artes do Pará. II. Título.
“Itinerários”, 2005 e 2007 127
CDD – 869.4
. 25º Salão Arte Pará, 2006 130
Índice para Catálogo Sistemático: “Pretérito do Presente”, Roberta Carvalho, a partir de 2006 135
1. Literatura brasileira : Ensaios 869.4
2. Arte Contemporânea : Pará 709.058115 2.2.3. Intermidialidades 137
[2014] “Performações urbanas”, Carla Evanovitch, 2009 145
Todos os direitos desta edição reservados ao Instituto de Artes do Pará
Praça Justo Chermont, 236 – Bairro de Nazaré “Cafetinagem”, Bruno Cantuária, Luciana Magno e Ricardo Macêdo, 2010 146
66.035-140 – Belém – PA. “Spinario”, Lucas Gouvêa, 2012 147
Telefone: (91) 4006 2900.
www.iap.pa.gov.br
3. MULTITERRITORIALIDADES NOS SISTEMAS
DA ARTE CONTEMPORÂNEA 155
162
3.1.1. Ações permanentes 169
“Velames”, Osmar Pinheiro, 1985 171
Mangal das Garças, 2005 173
Barracas, Mestre Nato, 2006 e 2008 176
3.1.2. Ações efêmeras 179
Intervenção na fachada do MHEP, Daniely Meireles, 2006 179
“Sangria desatada”, Rede Aparelho, 2009 182
“Piracaia” e “Piracema”, Fundação Curro Velho, 2011 185
3.2. Os espaços virtuais 188
3.2.1. Instalações tecnológicas multimidiáticas 197
Três experimentos de Val Sampaio, 2008, 2010 e 2011 198
“Not found”, Victor de La Rocque, 2011 202
3.2.2. Processos eletrônicos digitais 205
E-mails de Lúcia Gomes, a partir de 2008 206
“Vit(r)al”, de Luciana Magno, 2009 209
3.3. Os espaços biológicos 213 PRÊMIO IAP
218 DE LITERATURA
“Gallus Sapiens”, de Victor de La Rocque, 2007 e 2008 220
“Semeadura”, Armando Queiroz, 2010 223 Quem está na estrada e sente na pele as
3.3.2. Processos corporais transitórios 225 dificuldades do mundo editorial não nega que a
Performances de Jaime Barradas, a partir de 2003 228 distribuição ainda é o maior gargalo do mercado
“Quando todos calam”, Berna Reale, 2009 230 brasileiro. No entanto, convenhamos, construir
3.3.3. Formas de vida 233 uma obra literária, hoje, é bem mais fácil do que
“Nazaré do Mocajuba”, Alexandre Sequeira, 2004 234 no século passado.
“Adote um urubu”, Andrea Feijó, a partir de 2008 237 Estamos em um tempo em que tudo se escre-
Ações de Egon Pacheco em Santarém, 2009 e 2012 240 ve e tudo se publica, exatamente tudo. Resta saber
como avaliar o que é bom e o que é ruim diante
CONSIDERAÇÕES FINAIS 247 de tantas ofertas. Aí é que entram os concursos
literários. A hora em que os autores - novos e
BIBLIOGRAFIA E FONTES CONSULTADAS 253 experimentados - colocam-se à prova em busca da
maior pontuação, que é a lógica dos concursos.
SOBRE AGRADECIMENTOS E DEDICATÓRIAS 261
Os trabalhos inscritos são analisados por sonalidades da literatura contemporânea feita no
especialistas do ramo, cuja missão é separar o joio Pará: Haroldo Maranhão (romance), Max Mar-
do trigo, a partir de critérios objetivos e subjetivos tins (poesia), Maria Lúcia Medeiros (conto),
que permeiam cada escolha. Vencer um concur- Vicente Salles (ensaio), Nazareno Tourinho
so, portanto, pode ser o empurrão que faltava (dramaturgia), Heliana Barriga (literatura infan-
para o escritor conseguir o aceite de uma grande tojuvenil), José Sampaio de Campos Ribeiro
editora e assim ganhar o mercado. (memorialística) e Euclides Chembra Bandeira
Em sua décima primeira edição, o Prêmio (livro-reportagem).
IAP consolida a missão de fomentar a literatura Como todos sabem, literatura requer inves-
do norte do país, uma vez que os concursos timentos. Tem que fazer todos os dias para que o
literários proporcionam selos de qualidade às escritor possa desenvolver e aperfeiçoar a arte de
obras vencedoras. Ao longo do tempo, firmou-se escrever. E o Prêmio IAP é a garantia anual de
como o mais respeitável e cobiçado prêmio que os textos podem sair das gavetas para serem
literário do Pará pela seriedade e rigidez de seu analisados com isenção e resultar em livros de
processo de seleção, premiando apenas obras e qualidade como este que você, leitor, tem agora
autores que fortalecem a produção literária de alto nas mãos. Boa leitura a todos.
nível em nossa região, sem a obrigatoriedade de
Fábio Carvalho de Souza
premiar, em qualquer categoria, obras sem o grau Presidente do Instituto de Artes do Pará
de excelência exigido.
Nosso trabalho é voltado à busca perma-
nente pelo melhor produto editorial - desde o
tratamento de texto até a impressão final - e as
melhores condições de circulação e distribuição
dos livros. O que não é fácil. Principalmente
em um país onde as diferenças regionais ainda
são enormes.
O Prêmio IAP de Literatura já é o maior
concurso do Brasil em número de modalidades
literárias ofertadas em edital público. São oito
categorias. E cada uma delas homenageia per-
PREFÁCIO

Registro da ação Matadouro de


Cledyr Pinheiro, Abaetetuba, 2003.
Fonte: fotografia de Paula Sampaio,
cedida por Cledyr Pinheiro.
12 13

O colecionador de caleidoscópios seu texto se ergue partindo das anotações que realiza à medida que
perambula pela cidade de Belém e outras localidades do Pará, suas
Compreender a cidade, aceitá-la, era a sua necessidade.
Ser amado por ela, saboreá-la com vagar e cuidado, como visitas às paredes das secretarias estaduais, onde diversas obras, de
saboreava um piquiá, daqueles piquiás descascados, cozi- inúmeros artistas, de diversos tempos, são espalhadas como adereços
do pela mãe, receando sempre os espinhos. que combinam com alguma coisa. Também recolhe informações de
Dalcídio Jurandir
textos de catálogos, livros, jornais e revistas das bibliotecas públicas e
Analisar o panorama contemporâneo das artes no Pará, os acervos particulares. Além de visitas vagarosas pelas exposições de arte
fluxos de ideias e práticas artísticas nas cidades paraenses, exige das cidades, além de conversas sólidas e líquidas com os amigos.
uma postura cautelosa de um colecionador, não de qualquer objeto Como elaborar um texto que permeie a complexa noção de
colecionável, mas de um objeto portador de fluxos de desenhos arte, em um tempo contemporâneo, na Região Norte, de algumas
dinâmicos, um caleidoscópio. cidades do Pará? Vieira tece sua teia, escolhe suas palavras, cata
Olhar pelo orifício de um caleidoscópio o minimalismo dos imagens efêmeras, recupera memórias no limiar da oralidade e do
vidros coloridos já oferece uma atividade de mudanças contínuas, esquecimento. Um texto que exigiu um longo trabalho com a
já se olha várias configurações em fragmentos que, sensivelmente, linguagem da arte, conceituações, observações e anotações vagarosas,
a qualquer instante, estão se modificando; os vidros (miçangas) em uma postura infalivelmente desconfiada. Apresenta uma reflexão
coloridos são pontos que mudam de ordem, mudam de configurações sobre a compreensão da arte contemporânea, sem se desviar de
conforme os mínimos gestos do observador. Mas, não se deve um terreno de difícil compreensão entre os críticos, além das
entender que o panorama contemporâneo das artes seja apenas um armadilhas de diversos vocábulos para se referirem à noção de espaço
caleidoscópio: são vários (daí a ideia de coleção), que metaforizam – palavras como território, desterritorialização, reterritorialização,
diversas imagens, posturas de exames, não só artísticas, mas também territorialidades, espaço geográfico, espaço virtual, espaço biológico,
antropológicas, sociais, filosóficas e científicas; não só de um artista multiterritorialidade, ciberespaço, sistema cultural, sistema da arte,
e de uma obra, mas de grupos, acervos, gerações e legados, ciclos de
que requerem cuidados quando se analisa de onde se fala. Assim
relações complexas de trocas, fusões, hibridações de ideias novas,
como exigiu cautela na reflexão em tantos outros termos referentes
com espaços renovados e originais.
a tempo, vocábulos como período moderno, temporalidade, tardio,
Para se relacionar com esse conjunto de visões fragmentadas
transitoriedade, contemporaneidade, contemporâneo, fluidez,
em constante fluxo, que entendo que seja o panorama artístico
cotidiano, entre outros.
contemporâneo do Pará, é necessário pensar sobre as três noções que
Vieira aborda os espaços tradicionais da arte, mas não se exime
Gil Vieira utilizou para nortear seu texto: a arte, o espaço e o tempo.
de pensar os novos espaços em que a mesma aparece inusitadamente
Esses três termos são extremamente caros para a sabedoria humana
(múltiplas territorialidades); também traz uma reflexão sobre a
(arte, território e contemporaneidade). Para elaborar sua caminhada,
14 15

dinâmica da arte na Região Norte do país nas últimas décadas, mais imagens homogêneas, mesmo se tratando de um tempo em que
precisamente na cidade de Belém do Pará. quase tudo vive um fluxo de reprodutibilidade.
O autor percebe, ainda, Belém como metrópole, tanto do ponto O autor se vale da narrativa histórica para transcorrer o fenômeno
de vista geográfico quanto econômico, como um centro de conexões – do tempo sobre sua coleção; seu percurso não nos nega a catástrofe,
portanto, um espaço de alto nível de trocas simbólicas que guarda alguma sobretudo no sentido de que cada obra está disposta a romper um novo
centralidade em relação ao restante da região, ou até do país. Por ser momento. Sendo assim, os caleidoscópios em suas mãos analíticas
metrópole concebida como símbolo, atribui certo movimento agitado ao recebem a dinâmica das mãos de uma criança, recompondo a cada
espaço, o fluir da vida também com ligeireza. Vieira avisa o leitor que nem virada todo um novo ordenamento – mas o texto apresenta-se ágil para
tudo é dominado por um processo direto de homogeneização, anamorfose não cair no vício do dogmatismo.
provocada pela fluidez, velocidade contínua que tende a provocar uma O ensaio fica longe de se contentar apenas com um nexo causal
sensação de fugacidade. A arte não é espetáculo de imagens sem sentido. entre os diversos momentos contemporâneos da história da arte (na
No entanto, nesse caudaloso fluir de imagens e ações artísticas, Vieira Região Norte do Brasil), pois nenhuma situação de fato já é uma causa
consegue organizar uma lógica catalogando, anotando e reelaborando sua histórica, disse Walter Benjamin, ela se torna histórica postumamente
em um vagaroso tempo do pensar.
coleção de caleidoscópios.
O pesquisador anota, desenha e escreve sobre as imagens
Os lugares são mundiais, como já afirmou em uma ocasião Milton
caleidoscópicas (da arte), que a sua própria época formou com uma
Santos, e o que os fazem mundiais são os componentes que permitem
bem definida época anterior. Desse modo, ele aprende a constelação
que determinada parcela de um território realize e estabeleça trocas de
de ideias que seu tempo vem lhe apresentando. Ele faz anotações
alto nível1. A mundialização é um processo das sociedades urbanas que
das impressões recebidas dos vidros coloridos caleidoscópicos,
provoca paradoxalmente uma fragmentação dos espaços. Proliferam as
fugazes imagens geométricas de um brinquedo que depende da luz
atividades parceladas, fundadas no trabalho abstrato, uma multiplicidade
e do movimento das mãos. Em um tempo que dá sinais de ruptura,
de centros produzidos e dissipados na consciência urbana.
catástrofe, hecatombe e outras medonhas formas de perceber a
Pensar no espaço da arte mundializado, para além de um mudança, no entanto, não deixa de anunciar, conforme a lúdica
fragmento amazônico, portanto também fragmentado, ajuda a dialética das coisas, um sentimento de boas novas.
tornar mais clara a metáfora caleidoscópica, pois cada vidro colorido
que compõe as configurações e reconfigurações caleidoscópicas é um Ilton Ribeiro dos Santos
universo passível de análise, sempre atento para não se iludir com Graduado em Letras
Especialista em Semiótica
a ideia de imagem homogeneizada. No campo da arte não existem
Mestre em Artes
1
Milton Santos citado por Ana Fani Alessandri Carlos, A natureza do espaço fragmentado. Em Milton
Santos, Maria Adélia A. de Souza e Maria Laura Silveira, Território: globalização e fragmentação, São
Paulo: Hucitec, 1994.
16 17

O advento da arte é assinalado pela produção de um território,


indissoluvelmente ideal e físico, cívico e citadino.
Nasce da reunião de um lugar com um discurso.
Régis Debray

o artista hoje também participa da desterritorialização da arte


ao questionar o conceito reconhecido de arte e ao libertar “a arte”,
tal como uma imagem, da moldura que a isolara do seu ambiente.
Hans Belting

No mundo contemporâneo há uma dialética de des-re-territorialização,


onde a cada momento, em cada escala e segundo a dimensão do
espaço (econômica, política, cultural ou “natural”) ocorrem
múltiplas interações entre territórios e redes.
Rogério Haesbaert
19

INTRODUÇÃO

Registro da performance Entre peixe,


pássaros... homem de Jaime Barradas, Belém, 2008.
Fonte: fotografia de Douglas Caleja, cedida por Jaime Barradas.
20 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 21

A arte contemporânea teve como uma de suas principais dissertação (Des)territórios da arte contemporânea: multiterritorialidades
discussões, no decorrer do século 20, a experimentação dos espaços na produção artística paraense, defendida em março de 2011 na
enquanto elementos repletos de significado. Todos os espaços se Universidade Federal do Pará. Passados pouco mais de dois anos
tornaram passíveis de investigação: tanto aquele que constitui as da conclusão da dissertação citada, novos dados e questionamentos
próprias obras (o espaço bidimensional das pinturas e tridimensional surgiram, e a revisão dos resultados obtidos naturalmente se fez
das esculturas e instalações etc.), quanto aquele que abriga as obras (o necessária. Apresento, portanto, uma nova perspectiva e leitura dos
espaço expositivo dos museus e galerias). conhecimentos apresentados naquele primeiro momento, assim como
As experimentações empreendidas por artistas em diferentes a reformulação do texto, de forma a tornar sua linguagem menos
locais levaram a novas configurações para a arte que, a partir da década acadêmica e mais acessível a leitores não especializados.
de 1960, passamos a chamar de contemporânea. Novos espaços, tanto O procedimento desenvolvido aqui é análogo ao da construção
constituintes das obras quanto dos entornos que abrigavam as mesmas, de uma colcha de retalhos: entrecruzamento de dados diversos
foram incorporados aos circuitos das artes. E foram investigados. provenientes das mais distintas fontes possíveis. Os vestígios recolhidos,
As galerias e museus foram negados sistematicamente por artistas em entretanto, não dizem respeito a uma investigação exaustiva, ainda
vários países. Inúmeros discursos alardearam a desterritorialização da arte. que minuciosa. Antes, esses vestígios dizem respeito a fragmentos que
Mas, paradoxalmente, essa desterritorialização da arte contemporânea é ativam o pensamento e permitem que o mesmo se estabeleça. A colcha
muito pouco estudada, apesar de sempre citada como um fato já dado, de retalhos é fragmentada como um quebra-cabeça, mas, diferente
estabelecido sem maiores dúvidas. Esta situação me era incômoda, pois deste, ela não precisa ser solucionada. Não proponho uma resposta
concebo as novas territorialidades da arte como uma das principais (e mais sobre a arte contemporânea paraense. Apenas apresento já outra obra,
instigantes) características da contemporaneidade, capaz de interferir em outra invenção – costura conceitual de todos estes vestígios reunidos.
realidades concretas e mobilizar imaginários diversos. O procedimento de coleta e análise de vestígios e documentos
Este ensaio parte do princípio de que é urgente a análise da passou por jornais, catálogos, revistas, livros, artigos científicos,
constituição destes espaços enquanto territorialidades válidas, websites, assim como pela pesquisa direta nas próprias exposições
legitimadas por e para a arte contemporânea. Algumas questões que aconteceram nos últimos anos. As vozes reunidas são, portanto,
orientaram o pensamento aqui exposto: investigar que tipos de múltiplas – polifonia que atesta a complexidade das relações
espaços são usados na arte contemporânea; e descobrir se e de que experimentadas na arte da contemporaneidade.
maneira estes espaços são legitimados enquanto territórios. Mais que Busco compreender as práticas artísticas dentro de um sistema
isso: como os espaços e territorialidades da arte contemporânea são cultural que produz e atribui valores simbólicos – e o valor que me
experimentados na produção artística no Pará? interessa, neste ensaio, é principalmente o território. Em geral não faz
Tais dúvidas resultaram na pesquisa de Mestrado em Artes parte deste texto o juízo estético ou crítico a respeito das práticas artísticas
desenvolvida entre os anos de 2009 e 2010, que culminou na analisadas. Mas, ainda que aqui não caiba a análise propriamente
22 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 23

estética, nem por isso não será parte integrante a análise da pertinência No segundo capítulo busco evidenciar as relações de
de tais obras dentro de um sistema social estabelecido – e a análise das desterritorialização e reterritorialização na arte contemporânea
relações que mediam a concretização de tais práticas artísticas. paraense. Analiso práticas e mecanismos utilizados pelos artistas para
Parto do princípio de que, para analisar os mecanismos de transgredir os territórios convencionais da arte, no qual as práticas
produção de poder simbólico do sistema da arte contemporânea, é artísticas possuem um tom de ruptura. Verifico de que forma os
necessário primeiro compreender os mecanismos das relações sociais, territórios outrora convencionais da arte são subvertidos e transgredidos,
as particularidades da estrutura social como um todo e em suas originando posteriormente outras territorialidades diferenciadas.
partes. É evidente que, neste caso, tratarei não com um sistema da Também analiso os processos subsequentes às desterritorializações da
arte de uma sociedade contemporânea, mas com sistemas da arte de arte contemporânea, verificando alguns dispositivos e mecanismos
sociedades contemporâneas peculiares, distintas entre si (apesar de utilizados para concretizar suas reterritorializações. Esses mecanismos
manterem semelhanças em diversos pontos essenciais). Isso ficará são distribuídos em três categorias interdependentes: instituições,
evidente conforme os exemplos forem mencionados, abordando regulamentações e intermidialidades. É a partir destes movimentos
práticas artísticas situadas em períodos históricos e grupos sociais dentro do sistema social da arte que identifico a multiterritorialidade
distintos, mesmo que na mesma região ou período.
na arte contemporânea, enquanto multiplicidade dos possíveis espaços
Procurei não centralizar o foco na produção da cidade de Belém,
ocupados pela mesma, em função de toda uma flexibilidade típica das
capital do Pará. No entanto, algumas vezes a produção artística de
sociedades contemporâneas.
outras cidades (com as singularidades que me interessam) é inacessível
Por fim, no terceiro e último capítulo analiso os processos da
ou inexistente. Mas estão presentes na análise algumas produções
multiterritorialidade dos sistemas da arte contemporânea no Pará. As
realizadas nos municípios de Abaetetuba, Ananindeua, Colares,
multiterritorialidades são analisadas partindo de três eixos coexistentes:
Curuçá, Maracanã, Quatipuru e Santarém.
o espaço geográfico, o espaço virtual e o espaço biológico. Cada um
No primeiro capítulo busco situar o ensaio dentro de um campo
destes eixos é descrito e discutido conforme suas especificidades,
teórico e conceitual, no qual as noções de sistema da arte e de território
possuem um papel fundamental, pois sedimentam o pensamento na e exemplificado conforme os casos distintos que constituem tais
intenção de analisar as territorialidades estabelecidas e, especialmente, o multiterritorialidades. As práticas artísticas são agrupadas conforme
conceito de multiterritorialidade – trazido da obra do geógrafo brasileiro as diferentes maneiras com que se apropriam e fazem uso dos espaços
Rogério Haesbaert. As características da arte contemporânea – e das não convencionais que estão em análise.
sociedades atuais como um todo – são observadas e discutidas. Um Se, por um lado, é inegável que os espaços da arte estão
esboço da trajetória recente da produção artística contemporânea no atualmente em trânsito constante, por outro lado não significa que
Pará também é realizado, para fornecer uma contextualização histórica essa transitoriedade não possa ser compreendida, questionada e, acima
aos exemplos usados no decorrer do texto. de tudo, possa se tornar seminal como ponto de discussões amplas, de
uma arte que não se furta a encarar as questões de seu tempo.
24 25

1.
DELINEANDO
CONCEITOS
INICIAIS

Registro da ação Flutuantes de Lúcia Gomes, Quatipuru, 2003.


Fonte: imagem cedida por Fundação Lúcia Gomes.
26 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 27

1.1. A respeito de arte contemporânea a contemporaneidade artística na segunda metade do século 20 em


diante, mais especificamente a partir das práticas artísticas que se
É inegável que aquilo que denominamos arte contemporânea
disseminaram desde a década de 1960.
tem abarcado práticas bastante heterodoxas em pouco mais de cinco
Arte contemporânea, portanto, é o conjunto de práticas que se
décadas. Desde a segunda metade do século 20 os artistas e suas
constitui utilizando os preceitos próprios da contemporaneidade.
práticas têm divergido excessivamente nas suas escolhas (sejam elas
Para Michael Archer1 alguns destes são: a utilização de materiais
materiais, técnicas, conceituais, políticas, entre outras). Este ensaio
cada vez mais cotidianos (e não somente a tinta e outros materiais
parte do princípio de que esta diversidade de práticas artísticas causou
“propícios” à arte), o questionamento da noção de autoria,
inúmeras mudanças no entendimento do que é compreendido por
passando à desmaterialização (ou a recusa ao objeto) e consequente
arte contemporânea, como, por exemplo, naquilo que diz respeito às
legitimação de processos no lugar de obras artísticas. Também o
territorialidades da mesma. Pretendo salientar justamente a análise
hibridismo entre a arte e outros campos da existência humana,
dos territórios que são estabelecidos a partir destas práticas não
assim como o uso descontextualizado do repertório histórico da
usuais (que atualmente poderíamos, sem problema algum, chamar
arte, dada a inadequação da ideia de progresso na arte – cabendo
de práticas usuais, dada a sua adoção por inúmeros artistas e coletivos
ao artista debruçar-se sobre os movimentos e estilos artísticos
inseridos nos sistemas da arte contemporânea).
que lhe interessarem. Archer fala também em campo expandido,
Mas a que exatamente nos referimos quando empregamos
considerando a relação que a produção artística contemporânea
o termo arte contemporânea? Definir um termo tão desprovido
passa a desenvolver com os espaços que a comportam.
de limites, signo esvaziado, certamente é uma tarefa complicada.
Tais singularidades diferenciam a arte atual da arte produzida
No entanto, algumas vezes torna-se necessário arriscar-se nestes
no paradigma modernista (que em geral é demarcado nas
exercícios filosóficos, para que se estabeleçam parâmetros necessários
vanguardas do início do século 20), por não enquadrarem esta
à compreensão e ao diálogo. É o que me ocorre neste momento. Não
produção dentro do discurso (e do território) que sedimentou e
que esteja assumindo a árdua tarefa de definição de um conceito,
constituiu a arte dita modernista.
por menor que ele seja (e este não é o caso do conceito de arte
Já Anne Cauquelin aborda a arte contemporânea como
contemporânea), mas proponho que estes limites possam ser, pelo
sistema organizado em rede2 (na qual o artista e sua produção
menos provisoriamente, delineados – desde que somente neste
valem principalmente enquanto informação dentro do circuito).
contexto sócio histórico no qual este ensaio está inserido.
Tal rede estende seus nós e tentáculos, em uma escala global, desde
Ao falar em arte contemporânea me refiro às práticas artísticas
os centros culturais e econômicos até às periferias. Em uma escala
que são socialmente aceitas e constituídas enquanto tal através
menor, temos a rede como circuito informacional constituído pelos
de um discurso (e de um território) atualmente vigente. Sem me
aprofundar nas discussões acerca da demarcação temporal de um 1
Michael Archer, Arte contemporânea: uma história concisa, tradução de Alexander Krug e Valter
Lellis Siqueira, São Paulo: Martins Fontes, 2001.
período moderno e um período contemporâneo (nas artes), situarei 2
Anne Cauquelin. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
28 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 29

diversos agentes sociais da arte contemporânea. Para Cauquelin3 é pintura. As mais diversas tecnologias foram sendo gradativamente
a circulação da obra e do artista enquanto signos que atribui valor introduzidas nas práticas artísticas nos anos seguintes, tal como a
aos mesmos, circulação esta que é feita pelos profissionais da arte, utilização dos meios de comunicação de massa, o vídeo, o computador,
aqueles mesmos que constituem a rede da qual fazem parte. Nota-se os equipamentos digitais, as mídias móveis etc. “Para artistas do final
que as obras de arte (dadas as suas características expandidas pelas dos anos 50 e 60 que, de uma forma ou de outra, foram influenciados
novas práticas) já não são consideradas arte por suas peculiaridades por Duchamp quanto ao pensamento referente ao que constituía arte,
intrínsecas, mas primordialmente por se tornarem signos dentro da nenhum material parecia inadequado como meio de expressão pessoal”6.
rede informacional da arte contemporânea. Paradoxalmente, artistas O surgimento destas práticas diferenciadas se deu, em parte,
e obras são ao mesmo tempo “elemento constitutivo” e “produto” da na intenção de ruptura com sistemas culturais que mantinham
rede: “sem eles, a rede não tem razão de ser”, mas “sem a rede, nem a (e mantém) a arte contemporânea. Mas isto não quer dizer que as
obra nem o artista têm existência visível”4. únicas implicações destas práticas artísticas foram de subversão aos
Abordando estas diversas relações que são estabelecidas modelos instituídos. Pelo contrário, grande parte destes elementos de
na contemporaneidade, Cauquelin nos fornece apontamentos ruptura foram transformados, apropriados e deglutidos em prol da
precisos quanto à constituição da arte enquanto sistema cultural, manutenção de sistemas culturais. As implicações foram tantas, e tão
afirmando que diversas, que seria maniqueísta e até mesmo ingênua a pretensão de
(...) há de fato um ‘sistema’ da arte, e é o conhecimento desse sistema caracterizá-las como avanços e retrocessos.
que permite apreender o conteúdo das obras. Não que esse sistema seja
pura e simplesmente econômico, baseado na tradicional lei da oferta e Até aqui espero que tenha ficado clara, para o leitor, minha
da procura, não que as determinações do mercado tenham um efeito pressuposição de que a arte contemporânea existe enquanto
direto sobre a obra, que seria seu reflexo, pois o mecanismo compreende sistema cultural. Essa abstração que chamamos de sistema da arte
da mesma forma o lugar e o papel dos diversos agentes ativos no sistema:
o produtor, o comprador – colecionador ou aficionado – passando contemporânea é mantida por diversos agentes sociais, mais ou
pelos críticos, publicitários, curadores, conservadores, as instituições, os menos importantes para a legitimação de determinadas práticas
museus (...) etc.5 e objetos como pertencentes ao domínio da arte contemporânea.
Estes sistemas culturais que regem a arte contemporânea são Artistas, museus, galerias, curadores, colecionadores, marchands,
bastante mutáveis. Da década de 1960 em diante práticas bastante meios de comunicação, instituições culturais, centros de pesquisa,
distintas do que até então se considerava arte passaram a ser entre tantos outros agentes, são responsáveis pelo carimbo “é arte”,
incorporadas. O grupo japonês Gutai ainda na segunda metade dos conferido a apenas algumas práticas e objetos privilegiados. E cabe
anos 1950 já realizava práticas que foram consideradas como antiarte, sempre lembrar que o selo de arte contemporânea está atrelado a um
empreendendo a destruição das técnicas e valores tradicionais da valor que não é só simbólico (estético), mas também econômico.
3
Obra citada, página 69.
4
Obra citada, página 73.
6
Michael Rush, Novas mídias na arte contemporânea, tradução de Cássia Maria Nasser, São Paulo:
5
Obra citada, páginas 14-15. Martins Fontes, 2006, página 16.
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Desde as vanguardas modernistas do início do século passado que Tais mudanças culminaram na necessidade de tratamentos
a produção artística encaminha-se, gradualmente, na direção de espaços expositivos diferenciados, e é desta relação que aponto a predominância
não convencionais. Este fato não impede que esta mesma produção de multiterritorialidades no sistema da arte contemporânea. Há um
também continue a se desenvolver nos espaços legítimos da galeria, do gradual avanço destas práticas no sentido de misturarem-se às práticas
museu, da academia etc. Tal movimento cíclico – espécie de jogo de ida e cotidianas, como podemos perceber nas performances, na ciberarte,
volta – constitui interessantes territorialidades para a produção artística. nas ações urbanas etc.
Há, portanto, a utilização de diversos outros territórios não É importante citar um pensamento que é uma espécie de aforismo
convencionais para as práticas artísticas, mas que estão inseridos constante nos discursos tecidos por agentes da arte contemporânea,
dentro da dinâmica do sistema da arte, tonando-se legitimados. que é a aparente imbricação, ou antes, fusão, entre arte e vida. Desde
Nicholas Bourriaud vai teorizar a arte contemporânea, que ele chama as práticas dadaístas e futuristas, no início do século 20 – passando
de altermoderna, partindo do conceito da radicância, da passagem pelo grupo COBRA, Situacionismo, grupo Fluxus, performances,
indiscriminada por culturas, linguagens, identidades etc. “A arte de land art, pop art e demais práticas e linguagens surgidas durante o
hoje parece, assim, negociar a criação de novas formas de espaço século 20 até chegarmos à bioarte e ciberarte – a ideia de expansão e
através do recurso a uma geometria da tradução: a topologia. Esse hibridação entre arte e vida é bastante frequente, mas cabe analisá-la
ramo da matemática se dedica menos à quantidade que à qualidade com certo rigor.
dos espaços, ao protocolo de sua passagem de um estado para outro”7. Ainda que haja lugar para os gestos comuns, não artísticos,
Cabe analisar estas relações e territorialidades. A pesquisadora dentro do sistema da arte contemporânea, é necessário analisar se
brasileira Lisbeth Gonçalves8 se debruça sobre os modos de conceber a existência desse lugar para os gestos comuns não é exatamente
e apresentar exposições artísticas, e afirma que estes modos são aquilo que os condiciona como algo além da mera banalidade. A
modificados na contemporaneidade – quando novas linguagens, existência de práticas imateriais, instantâneas, efêmeras, em materiais
materiais e tecnologias artísticas aparecem, assim como os próprios não-canônicos, dentre outras coisas semelhantes, dentro da arte
conceitos de obra de arte e de prática artística se transformam. contemporânea sistematizada, nos faz questionar o lugar destes gestos
No século XX a obra de arte, ao ser mostrada ao público, sairá das no sistema da arte. Anne Cauquelin10 vai observar a utilização dos
paredes e dos pedestais, ocupará o chão e mesmo todo o espaço físico
incorporais estoicos (tempo, lugar, vazio e exprimível) em sua análise da
disponível para a sua apresentação. Surgem a performance e a instalação.
O cenário, o gesto e a atitude tornaram-se essenciais na forma artística. arte contemporânea, verificando de que forma a arte atual absorve essa
As artes plásticas aproximaram-se do teatro. E, nesse contexto, nasce incorporeidade e assimila elementos sem corpo usados na constituição
também uma nova relação entre obra e exposição.9
de determinadas propostas, como o ciberespaço, por exemplo. Isto,
7
Nicolas Bourriaud, Radicante: por uma estética da globalização, tradução de Dorothée de na visão de diversos agentes sociais da arte contemporânea, seria o
Bruchard, São Paulo: Martins Fontes, 2011, página 78. índice da fusão entre arte e vida.
8
Lisbeth Rebollo Gonçalves. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2004. 10
Anne Cauquelin, Freqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea,
9
Obra citada, página 43. tradução de Marcos Marcionilo, São Paulo: Martins, 2008.
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Entretanto, a maior parte da produção de arte contemporânea pressupõe que a arte contemporânea possui e possibilita práticas que
se constitui em outra esfera, na qual se utiliza da imaterialidade discutem questões pertinentes a outras esferas da existência humana,
dos incorporais e dos pequenos gestos dentro de uma lógica de e não somente discutem, mas se constituem em ações que são não
produção de valor (ainda que somente valor simbólico). A arte, somente arte, mas também política, religião, lazer, trabalho, cultura
ainda que ofereça lugar aos pequenos gestos, continua sendo de massa, educação, design etc.
alteridade em relação ao cotidiano humano, ainda constitui-se Exemplos não faltam. Vejamos o artista carioca Cildo Meireles
como espaço da arte (em oposição a outros espaços), enquanto (1948-) e seu Projeto cédula, no início da década de 1970, que
campo da ilusão, do pensar, da expressão criadora e criativa, dentre objetivava gravar informações e opiniões críticas, como a frase “Quem
outras particularidades. Então qual a aparente aproximação entre matou Herzog?”, nas cédulas monetárias e devolvê-las à circulação.
arte e vida? É inegável que estas práticas artísticas surgidas na trilha Interessante prática com intenção artística que atuou diretamente no
das vanguardas históricas, durante o século 20, aproximaram arte e campo da política, em um contexto de ditadura repressiva. A priori,
vida tanto pelo viés de uma quanto da outra, fazendo com que a arte houve dissolução da arte na vida. Entretanto, posteriormente essas
cada vez mais se debruce sobre o real e o produza. ações foram reinseridas dentro da lógica da arte contemporânea, que é a
É evidente, que, na contemporaneidade, o sistema da arte é tão lógica da produção de valor simbólico, e assim foram espetacularizadas
abrangente que comporta tanto produções atuando sob o paradigma nos espaços expositivos. Destituídas de um sentido que lhes era
da representação (pintura, escultura, desenho, gravura e demais conferido pelo contexto social no momento de seu surgimento, estas
técnicas e linguagens marcadas pela arte como objeto ou obra) práticas ganham novos contornos e outros significados ao serem
quanto produções sob o paradigma da produção do real (práticas e desdobradas nos circuitos artísticos contemporâneos.
linguagens artísticas nas quais a arte constitui-se primordialmente Neste segundo momento (o do espaço expositivo), pode-se
como um processo experimentado, e não como objeto). Tais perguntar se o que é exposto ainda é a mesma obra que foi realizada
produções, porém, ainda que possam ser constituídas nos territórios na década de 1970. Se tomarmos a diferenciação entre produção
mais diversos, de forma alguma escapam ao sistema da arte. Ou, se de representação e produção do real, então se torna evidente que
escapam, se estão fora do discurso, não são visibilizadas enquanto são obras diferenciadas. A arte contemporânea, então, possibilita
arte contemporânea. Para a arte, tais produções inexistem, até que tanto uma coisa quanto outra. Entretanto, geralmente os espaços
sejam reapropriadas pelo discurso. expositivos convencionais mostram as duas obras como se fossem a
O binômio arte-vida, então, não pressupõe a dissolução11 total mesma: a representação do Projeto cédula (em um museu, na década
das fronteiras, que culminaria na dissolução do sistema da arte, mas atual) como equivalente à apresentação do mesmo (no circuito social
11
No sentido de tornar ambos os campos (arte/vida) homogêneos, indistintos, eliminando a cotidiano, na década de 1970). Observarei com maior acuidade
alteridade que é suposta para o campo da arte em relação aos outros campos da vida humana. É esta questão na subseção chamada Intermidialidade, no segundo
necessário, entretanto, dizer que a arte, ao longo da história daquilo que designamos como arte
em sociedades anteriores a nossa, esteve sempre atravessada por outros campos (política, religião, capítulo deste ensaio.
educação, economia etc.), porém mantendo sua alteridade em relação aos mesmos.
34 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 35

Ainda que uma performance, por exemplo, apresente um Cabe dizer, portanto, que a arte mantém alguma alteridade à
gesto corriqueiro e cotidiano, como vestir-se ou despir-se, essa vida, a despeito da aproximação entre ambas. E também cabe dizer
performance (caso existente dentro do circuito da arte e sob intenção que muitas vezes essa aproximação é responsável por territorializar
de performance, ou seja, intenção artística) não será completamente certas práticas que perdem seu sentido histórico justamente de diálogo
diluída no cotidiano, preservando alguma alteridade em relação à com a vida, e tornam-se outras coisas. Em alguns casos, tornam-se
vida. Será parte do campo distinto chamado arte, ainda que os sinais simplesmente espetáculo, para a manutenção dos valores e discursos
não sejam tão aparentes quanto seriam no caso de um quadro ou do sistema da arte contemporânea.
escultura. O que pressupõe essa alteridade é unicamente a existência
da mediação da prática através do sistema da arte. Este sistema
constrói um território para a arte através do circuito de informação
tecido entre seus agentes.
Parece-me evidente que uma noção essencial para entender a
arte contemporânea é pensá-la a partir dos trânsitos que a mesma
empreende. “Pois tal é o caso, neste início de século XXI, quando
o transitório, a velocidade e a fragilidade predominam em todos os
campos do pensamento e da criação, instaurando o que poderíamos
chamar de regime precário da estética.”12 De que precariedade
falamos? Bourriaud se refere às especificidades das próprias obras,
cada vez mais posicionadas diante de um mundo de produção do
descartável. Mas podemos falar também da precariedade de limites
que a arte contemporânea suscita. Ausência ou insuficiência de limites
dos territórios da arte: qualquer lugar é possível de ser territorializado,
mas, ao mesmo tempo, esse lugar será sempre um limite tênue entre
os diversos usos que dele serão feitos.
O que não é o caso de determinadas práticas semelhantes ao
ativismo, como os flash mobs, mas que também podem ingressar ao
campo especializado da arte caso sejam posteriormente apropriadas
pelos discursos da arte contemporânea, como no caso do Projeto
cédula, supracitado.
12
Nicolas Bourriaud, obra citada, página 85.
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1.2. Territórios, lugares e discursos que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/
valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido” 14.
A transição da arte de um paradigma moderno para um paradigma
É evidente que um território não se constitui simplesmente pelo
pós-moderno, altermoderno ou contemporâneo (dependendo da filiação
uso simbólico que dele é feito, mas também por outros aspectos,
teórica a que se recorra) acarretou uma série de transformações nos
particularmente: o político (que se refere às relações de poder
modos de produção e recepção dos objetos e práticas artísticas. Uma
estabelecidas com o espaço, tanto em nível macro – o poder estatal
dessas modificações é o desdobramento de diversas territorialidades
– quanto micro – o biopoder, de Michel Foucault); o econômico
dentro do sistema da arte, sobre as quais o presente texto se debruça, (referido às dimensões espaciais das relações econômicas, do território
tendo como objeto de análise a produção paraense. como posse ou fonte de recursos); e o natural (segundo Haesbaert
Quando abordo o estabelecimento de territórios artísticos falo, pouco veiculado atualmente, se refere às relações humanas com o
necessariamente, de práticas socialmente construídas que tangem espaço e características de seu ambiente físico). Apesar de, neste texto,
esse campo da cultura humana conhecido como arte. É necessário, se priorizar o enfoque simbólico dos territórios, em nenhum momento
portanto, definir o termo território, identificar quais os territórios que as relações político-econômicas e naturais serão menosprezadas,
este ensaio trata e quais práticas e sistemas sociais contribuem para o principalmente pelo fato do sistema da arte contemporânea se utilizar
estabelecimento dos mesmos. de seus territórios também (se não principalmente) em um nível
Para construir um conceito de território – e, consequentemente, político-econômico, e não somente simbólico. Assim também, a arte
de territorialidade, desterritorialização, reterritorialização e paraense (e principalmente a arte contemporânea em suas múltiplas
multiterritorialidade – recorri às contribuições atuais da geografia, territorialidades) tem um diálogo muito fecundo com o ambiente
particularmente do geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert13. Há que natural amazônico15.
se considerar, antes de tocarmos no assunto, as diferenças óbvias entre O espaço que se consolidou, ao longo dos séculos, para a arte
os objetos de estudo próprios da geografia e os objetos de estudo deste (tanto a arte atual quanto a arte de outras culturas historicamente
ensaio (sistemas da arte contemporânea e suas práticas). distintas), foi o museu – mas deve-se ter em mente a noção de que
Por não estarmos lidando com fluxos econômicos ou relações não somente o museu é tornado território, como também as relações
políticas de um Estado, mas sim de um grupo social inserido em uma sociais que envolvem os sistemas da arte. A realização de uma
série de outras relações político-econômicas, teremos que diferenciar a encomenda de um mecenas para um pintor, no século 17, também é
abordagem deste ensaio da abordagem estritamente geográfica. Busco uma territorialização. O território é composto pelos espaços e práticas
ressaltar o aspecto simbólico (ou cultural) dos territórios, aspecto que que são atravessados pelo discurso dos sistemas da arte.
para Haesbaert “prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em 14
Obra citada, página 40.
15
Conferir a esse respeito o livro de Fábio Fonseca de Castro, Entre o mito e a fronteira: estudo sobre
Rogério Haesbaert da Costa, O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade,
13
a figuração da Amazônia na produção artística contemporânea de Belém, Belém: Labor Editorial,
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 2011.
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Anteriormente aos museus, as práticas artísticas estavam ligadas Como podemos responder a pergunta de Haesbaert, se a
à religião, da qual se desvencilharam e passaram ao patrimônio da direcionarmos ao circuito da arte contemporânea? Quais espaços
cultura – e consequentemente da memória. No território do museu devem ser “controlados” e quais territorialidades estabelecidas?
(e de espaços expositivos que seguem a mesma lógica, como as Levando em consideração a disseminação de práticas experimentais
galerias) podemos verificar consistentemente relações de poder tanto da década de 1960 em diante (que criticavam o objeto de arte
políticas e econômicas quanto simbólicas, na medida em que os em prol do seu processo e questionavam as instituições e a crise
objetos ali expostos são incorporados ao discurso dos grupos sociais dos museus), então podemos dizer que foi primordial, para os
que efetivamente mantém tal instituição. Um museu, portanto, e sistemas da arte contemporânea, privilegiar o domínio destes
aquilo que se expõe nele, interfere nas relações políticas, econômicas outros espaços utilizados nestas novas práticas. Assim, os sistemas
e culturais do grupo social no qual se insere, moldando imaginários reterritorializaram-se sobre estas linguagens que, a priori, foram
e movimentando recursos, dentre outras peculiaridades. Não é por subversivas dentro de seu contexto.
menos que Anna Lisa Tota afirma que na sociedade contemporânea “os Estabelecer territorialidades é fazer uso simbólico (e também
museus são um lugar para não esquecer, um armazém da memória onde econômico-político e físico) de determinados espaços. Isso corresponde
se traçam as identidades étnicas, as classificações históricas e naturais,
ao estabelecimento de práticas de poder. É claro que este não é um
onde se inscrevem e reescrevem o passado e o presente das nações”16.
poder estanque, exercido de uma forma verificável, ainda mais quando
Enquanto o museu é um território estabelecido e convencional,
consideramos as territorialidades flexíveis estabelecidas no circuito
os sistemas da arte contemporânea estabelecem territorialidades
da arte contemporânea. As práticas de poder (e, consequentemente,
múltiplas, que não se restringem mais aos espaços tradicionais nos
de territorialidades), pelos sistemas da arte, se dão principalmente
quais o domínio simbólico é de certa forma mais evidente e simples
através da constituição de um discurso, que é tecido pelos diversos
de ser praticado. Nas territorialidades contemporâneas há a confusão
agentes envolvidos (academia, instituições estatais, críticos, curadores,
dos limites de poder político, econômico e simbólico, ou, antes, sua
galeristas, artistas, grupos, público, meios de comunicação, dentre
transversalidade e entrecruzamento.
outros), discurso este que é fragmentado, composto por diversos
Mas o que seria estabelecer territorialidades? Haesbaert explica que
Territorializar-se, desta forma, significa criar mediações espaciais que outros discursos menores, justapostos ou excludentes.
nos proporcionem efetivo “poder” sobre nossa reprodução enquanto Ainda que este discurso seja de certa forma central ao sistema
grupos sociais (para alguns também enquanto indivíduos), poder este da arte contemporânea, pois é ele quem possibilita suas práticas, de
que é sempre multiescalar e multidimensional, material e imaterial,
de “dominação” e “apropriação” ao mesmo tempo. O que seria nenhum modo ele é um todo homogêneo, mas sim segmentário. De
fundamental “controlar” em termos espaciais para construir nossos nenhuma forma ele é exercido (enquanto poder simbólico) por uma
territórios no mundo contemporâneo? 17 entidade abstrata denominada (e demonizada) sistema da arte, mas
sim exercido e construído, em maior ou menor grau, por todos os
16
Anna Lisa Tota, A sociologia da arte: do museu tradicional à arte multimídia, tradução de Isabel
Teresa Santos, Lisboa: Editorial Estampa, 2000, página 123. agentes que atuam neste sistema.
17 Obra citada, página 97.
40 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 41

Podemos perceber alguns aspectos importantes na forma como há uma impregnação da cultura em e por outras áreas da existência
os sistemas da arte atuam no sentido de manterem um discurso acerca social. Jameson20 denomina tal conjuntura como desdiferenciação de
da arte, que funciona como legitimação de práticas, ações, produções, campos, fazendo com que economia e cultura sejam coincidentes em
artistas, dentre outros agentes históricos que são diretamente seus aspectos e domínios. Desta forma, devemos admitir que uma
influenciados (e até mesmo mantidos) por esta “economia política” análise como a que é proposta aqui deve necessariamente estar atenta
acerca do que se constitui arte. à tessitura de relações estruturadas entre este objeto (cultural) de
Os discursos produzidos é que fazem com que este pesquisa e as configurações de um sistema capitalista, de um mercado
conhecimento sobre arte circule, através de uma legitimação. A fluido e caracterizado pelo consumo.
rigor, a educação sobre arte é movida tendo como bases o discurso Cabe observar que, para a arte contemporânea, a produção do
institucional e as peculiaridades daquilo que é produzido por esse discurso é importante para manter funcionando o circuito artístico,
sistema. Portanto, esse discurso – por ser oficial – é consumido em ou seja, fazer com que o mercado da arte contemporânea esteja sempre
praticamente todos os níveis da cultura contemporânea, de formas lubrificado. Esta afirmação não diz respeito exclusivamente à venda
diferentes, tendo ressonância inclusive nos modos de consumir de obras, mas a todas as intricadas relações simbólicas, econômicas
arte do público não especializado. e políticas que têm abrangido o sistema da arte contemporânea,
No caso do sistema da arte contemporânea, presumo que em seu envolvimento com capital financeiro e simbólico de origem
o discurso dominante seja o das grandes instituições culturais, governamental ou de iniciativa privada. Por outro lado, o mercado
subsidiadas pelo pensamento de renomados curadores, artistas e da arte contemporânea, orientado por este discurso produzido pelo
outros agentes – mas que é atravessado por outros discursos, como sistema, torna-se desregulado e especulativo, ocasionando uma série
o produzido por universidades e centros de pesquisa, economistas, de distorções e variações de valores.
jornalistas, poder governamental, entre outros18. É importante salientar que com a instauração de mecanismos
Outro aspecto relevante é a incitação econômica e política complexos regulando os sistemas da arte contemporânea, torna-se
a que a arte contemporânea é submetida a partir deste discurso bastante aceitável a hipótese de que são constituídos novos espaços
produzido pelos agentes dos sistemas da arte. Fredric Jameson19 formais à arte; territórios mais flexíveis, mutáveis e nem tão aparentes,
analisa minuciosamente as diluições entre a economia e a cultura, já que não coincidem com espaços expositivos, mas sim com conceitos.
apontando que, na contemporaneidade, não há distinção entre Na segunda metade do século 20 as instituições voltam a ser
os dois campos – ou seja, toda a cultura é também economia. Em sacralizadas, não como espaço, mas como poder simbólico. O nome,
nossa sociedade, como na maioria das sociedades contemporâneas, a marca, o logotipo etc. A vinculação às instituições volta a ter um
forte apelo na sociedade contemporânea, mesmo que fora dos espaços
18
Conferir a esse respeito o livro de Sarah Thornton, Sete dias no mundo da arte: bastidores, tramas
e intrigas de um mercado milionário, tradução de Alexandre Martins, Rio de Janeiro: Agir, 2010. tradicionais a esta institucionalização: é o momento de editais,
19
Fredric Jameson, A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, seleção e prefácio de Maria Elisa
Cevasco, tradução de Maria Elisa Cevasco e Marcos César de Paula Soares, Petrópolis: Vozes, 2001. 20
Obra citada, página 73.
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bolsas de auxílio, patrocínios governamentais e privados, fomentos e prática daquela primeira forma cultural profunda em que certas artes
são agrupadas, destacadas e distinguidas.
incentivos de todos os tipos para todas as artes – inclusive àquelas que
Os tipos mais comuns desses sinais são os da ocasião e do lugar. Eles
são, por essência, próprias a lugares informais. As instituições passam atingem suas formas mais simples, por serem as mais especializadas, em
a financiar performances, intervenções urbanas, interferências, land sociedades mais ou menos complexas e seculares. O sinal de uma galeria
de arte é um caso especialmente óbvio.23
art, ciberarte etc., reafirmando-se no posto de arautos do discurso
legitimador da arte. Estabelecer um território, portanto, é uma maneira de determinar
Portanto, torno a repetir, o território da arte contemporânea um espaço para determinada arte, mas não somente. Os sistemas de
não diz respeito especificamente a um local físico institucional, mas sinais são convenções necessárias, principalmente em um contexto no
se refere, principalmente, a uma prática simbólica e a uma prática qual se atenuaram os limites, sendo possível abranger praticamente
de poder (também institucionais). Cada cultura estabelece códigos qualquer coisa sob o rótulo arte. O território tem a capacidade de
simbólicos, pelos quais consegue produzir e consumir sua própria converter as produções que abarca através do código simbólico
arte, assim como a produção de outras culturas encaradas como socialmente estabelecido. É um processo aurático, não da obra,
artísticas. O território formal da arte é parte deste código, e assume mas do lugar. Na falta de uma compreensão uniforme perante um
características diversas conforme o discurso vai sendo modificado. discurso demasiado especializado (o do sistema da arte), é necessário
O ato de se territorializar “significa também, hoje, construir e/ou estabelecer sinais que identifiquem a arte – e nada mais apropriado
controlar fluxos/redes e criar referenciais simbólicos num espaço em que um território (junção de um discurso a um lugar).
movimento, no e pelo movimento,”21 o que nos leva indubitavelmente O lugar da arte possui uma funcionalidade: acolhê-la e ao mesmo
a um devir entre desterritorialização e reterritorialização. Enquanto a tempo apresentá-la publicamente. Assim, todo espaço expositivo
arte anterior ao século 20 esteve atrelada principalmente à concepção institucional (ou moldado conforme as instituições de arte) torna-se
de território clássica (espaço-região), para a arte contemporânea a um veículo para a propagação do discurso oficial acerca da arte.
estruturação do discurso necessariamente deve se adequar às múltiplas As territorialidades estabelecidas por um sistema social artístico
territorialidades das sociedades urbanas contemporâneas (rede). possuem a relevante característica de demarcar um juízo a priori, ou
A estruturação de um território propriamente artístico é analisada seja, a simples inserção de determinado objeto ou prática no circuito
por Raymond Williams22 como desenvolvimento de “sistemas de já é suficiente para legitimar diante do público em geral a veracidade
sinais”. Williams afirma que de tal objeto enquanto arte. Lisbeth Gonçalves, por exemplo,
Uma área da história das artes, que é enorme e à qual habitualmente não investigando as significações implícitas não às obras, mas ao próprio
se presta atenção, é o desenvolvimento de sinais sociais de que aquilo a espaço expositivo, indica que
que, então, se vai ter acesso deve ser encarado como arte. Esses sistemas A exposição é um discurso social que objetiva o entendimento da arte.
são muito diversos, mas, em conjunto, constituem a organização social Dela emerge uma mensagem sobre a produção artística que se apóia
21
Rogério Haesbaert, obra citada, página 280. na história e na crítica de arte. É, portanto, um discurso apoiado em
22
Raymond Williams, Cultura, tradução de Lólio Lourenço de Oliveira, 2ª ed., São Paulo: Paz e um conhecimento instituído, dirigido a um público mais ou menos
Terra, 1992. 23
Obra citada, página 130.
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especializado. Expressa idéias e quer persuadir. Pode-se dizer que a da qual se apontou o aspecto da desterritorialização. Este efeito,
exposição é uma “mídia” fundamental para a comunicação da arte.
entretanto, é apenas uma das faces da territorialização da arte sob
Ela atua como um ponto de encontro de quem a promove – o museu,
o centro cultural, a galeria, o curador, o artista – com o público, seu outras características novas, ou melhor, sua multiterritorialização.
interlocutor. Implica, necessariamente, um discurso e uma recepção Para Haesbaert,
estética, situados, conforme se viu, numa ordem sociocultural, porque como a desterritorialização está vinculada, aqui, a uma noção de
apoiados em valores presentes na conjuntura social.24 território ao mesmo tempo como dominação político-econômica
A exposição em geral se dá num território preconcebido para (sentido funcional) e apropriação ou identificação cultural (sentido
recebê-la. Estes territórios são prioritariamente instituições inseridas simbólico), e reconhecemos que todo processo de desterritorialização
está associado a um processo de reterritorialização, podemos ter
dentro da dinâmica do sistema da arte, como os museus, galerias, situações em que, apesar de “territorializados” no sentido funcional,
fundações culturais, dentre outras. Vale a velha assertiva macluhaniana: mais concreto, podemos estar mais desterritorializados no sentido
o meio é a mensagem. O espaço expositivo já é o próprio valor simbólico-cultural, e vice-versa (...).25
artístico, não dependendo dos objetos artísticos, mas sim do discurso O que se torna bastante aparente é que a desterritorialização da
tecido pelos agentes sociais da arte. arte no sentido espacial (destituí-la de seus “espaços sagrados”) pode
Essa configuração não é exclusiva da contemporaneidade – muito bem coincidir com uma reterritorialização ainda maior de suas
em diversas sociedades humanas a demarcação de um território práticas simbólicas, que também são práticas de poder, vale ressaltar.
legitimador para a arte é perceptível. A questão que este ensaio A desterritorialização, no sentido estrito usado neste ensaio para
levanta é de outra ordem: na contemporaneidade estes territórios designar certas produções artísticas contemporâneas, diz respeito a
se tornam bastante implícitos e modeláveis. Já não existem apenas e práticas que traçam linhas de fuga, que destroem o território. Destruir,
predominantemente os espaços expositivos tradicionais, mas sim toda neste sentido, seria a negação dos territórios econômicos, políticos e
uma tradição (nos últimos cinquenta anos) da utilização de outras simbólicos designados socialmente para a arte.
territorialidades para a arte contemporânea, que muitas vezes escapam Esta negação culmina na concomitante reterritorialização das
à rigidez das paredes dos museus, mas geralmente estão associadas e práticas artísticas. Para Rogério Haesbaert a desterritorialização é
apropriadas ao discurso tecido pelas instituições. Muitos territórios um mito, no sentido de que não existe desterritorialização sem uma
utilizados são completamente informais, nem por isso deixando de, consequente reterritorialização.
também, constituírem em si uma mensagem, um significado. No contexto da arte contemporânea, quando o território
A partir da modernidade, e de novas condições sociais, a econômico, político e simbólico é negado pelas produções, há a
estruturação de territórios passou a incorporar com maior vigor os reterritorialização por meio do estabelecimento de outros territórios
territórios-rede (voltados para o movimento, o fluxo, e não mais políticos, econômicos e simbólicos. Por isso nota-se a existência
para a delimitação de um espaço estanque). A arte acompanhou de novas práticas entre os agentes da arte contemporânea (mais
esta incorporação do elemento rede, dando vazão a uma produção precisamente entre artistas e instituições, mas não somente), e novas
25
Obra citada, páginas 312-313.
24
Obra citada, página 57.
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práticas simbólicas, quando o discurso da arte contemporânea a resgatar sua produção, conferindo uma legitimação tardia). Em uma
simboliza outros espaços, se apropria deles e os sistematiza. sociedade marcada pela imagem, e em um sistema de arte marcado
É justamente a estruturação de novos territórios, a pela rede de informações, é preciso que o artista circule enquanto signo
reterritorialização da arte contemporânea, que é chamada aqui dentro desta rede. É nesse ponto que o artista necessita da legitimação
de multiterritorialidade, partindo do conceito elaborado por de um sistema que o respalde enquanto tal.
Haesbaert, já que a reterritorialização possivelmente se dá através “Ironicamente, embora grande parte da arte (...) do final do
de uma multiplicidade de territórios – hipótese que se comprova no século XX tenha raiz em uma atitude antimuseu que caracterizou
decorrer deste ensaio. Ao assumir a multiterritorialidade abandono os anos 60 e início dos anos 70, são os museus e as galerias o lugar
a ideia (superficial) de que a arte contemporânea desloca-se para a principal para ela; [esta arte] precisa de um contexto institucional
eliminação dos territórios, mas ressalto e analiso a ideia de que a arte para ser vista”27. Faz parte, portanto, da condição do artista e da
contemporânea constrói e se constrói a partir de múltiplos territórios. condição da arte (se entendermos arte enquanto sistema social
Mas o que é, precisamente, multiterritorialidade? especializado) serem amparados por uma estrutura maior, por
O que entendemos por multiterritorialidade é, assim, antes de um discurso, por um território simbólico, para que possam existir
tudo, a forma dominante, contemporânea ou “pós-moderna”, da
também simbolicamente28. É por este motivo que afirmo haver um
reterritorialização, a que muitos autores, equivocadamente, denominam
desterritorialização. Ela é conseqüência direta da predominância, movimento de devir entre territórios formais e informais na arte. E
especialmente no âmbito do chamado capitalismo pós-fordista ou também afirmo existir toda uma gama de territórios intermediários,
de acumulação flexível, de relações sociais construídas através de
ou, antes, uma multiplicidade de espaços que são desterritorializados
territórios-rede, sobrepostos e descontínuos, e não mais de territórios-
zona, que marcaram aquilo que podemos denominar modernidade e reterritorializados pelos agentes sociais da arte contemporânea.
clássica territorial-estatal. O que não quer dizer, em hipótese alguma, Mais que simplesmente desterritorializar, a condição
que essas formas mais antigas de território não continuem presentes,
contemporânea possibilita multiterritorializar. A arte
formando um amálgama complexo com as novas modalidades de
organização territorial.26 contemporânea situa-se nesta perspectiva, e este ensaio aborda
Se atentarmos, também, para a trajetória dos artistas representativos a concepção de multiterritorialidade aplicada ao sistema da arte
do século 20, perceberemos que talvez nunca tenha existido uma contemporânea paraense, ao invés de limitar-se a apontar uma
produção artística estritamente desterritorializada (totalmente voltada desterritorialização imanente. É preciso verificar quais novos
para territórios informais). Há, sim, um devir entre estes territórios. territórios e territorializações são criados após este movimento
A produção artística (experimental) contemporânea transita entre estes 27
Michael Rush, obra citada, página 110.
dois polos. Talvez porque o artista não possa, realmente, isolar-se na 28
Não me refiro ao artista e à arte contemporânea dentro do conceito alargado de cultura, tal como
fazem inúmeros outros autores. Refiro-me ao artista e à arte como campo especializado, formalizado
informalidade, pois isso o isolaria do próprio sistema da arte, passando por sistemas sociais. Logo, um artesão de brinquedos folclóricos, por exemplo, é – para este texto –
de artista para outra coisa qualquer que não isso (até que o sistema volte um produtor cultural e simbólico, mas não um artista – a não ser que seja incorporado ao sistema
social da arte contemporânea através dos discursos tecidos. É neste sentido que afirmo ser condição
26
Rogério Haesbaert, obra citada, página 338. do artista a sua visibilidade e existência simbólica dentro dos discursos no sistema.
48 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 49

de desterritorialização. Processo que é contínuo, porque situado constituído e socialmente reconhecido como a condição da apropriação
simbólica das obras de arte oferecidas a uma dada sociedade em um
ele mesmo no próprio movimento (processo) e não nos extremos
dado momento do tempo.29
(espaços) tal qual os próprios fluxos e redes que caracterizam a
Quando menciono a existência de territórios formais,
mescla de territorialidades no mundo contemporâneo.
convencionais e de territórios informais, não convencionais, ambos
Estes novos processos e territórios não estão isentos de problemas,
apropriados para a arte, não quero dizer que a mesma possa existir
e é necessário um olhar investigativo para suas configurações.
desvinculada do sistema que a mantém. O que afirmo é que o território
Apesar de a arte estar indissoluvelmente ligada a uma
informal diz respeito à perda de sinais para uma parcela significativa
territorialidade (lugar e discurso), as ligações que são tecidas por este
do público, que não assimila aquele espaço como apropriado para a
dispositivo nem sempre são aparentes a todos os agentes sociais. O que
arte, consequentemente não assimilando a produção simbólica como
quero dizer é: 1) em um museu – território tipicamente delimitado
arte. Estas relações não são bastante claras, e tampouco delimitáveis,
como formalmente apropriado para a arte – os sinais, dos quais falou
ocorrendo na verdade uma mistura entre fronteiras da arte e do
Raymond Williams, ou as cargas simbólicas, das quais falou Pierre
cotidiano – fronteiras que se tornam fluidas e interpenetráveis ao se
Bourdieu, estão bastante aparentes para todos (mesmo ao leigo, ao
adotar um espaço expositivo não convencional.
analfabeto ou à criança, claro, desde que se saiba o que é um museu
Pode parecer, a princípio, que este ensaio divide as manifestações
de arte); e 2) já na urbe – território que eventualmente tem sido usado
artísticas, grosso modo, entre duas concepções: a territorializada
por artistas contemporâneos – os sinais, ou cargas simbólicas, não são
(formal) e a desterritorializada (informal). Mas é necessário salientar
tão aparentes ou acessíveis, seja porque a obra em si não se apresenta
que é mais adequado não simplificar as territorialidades com
(explicitamente) como obra, seja porque uma parcela significativa
dicotomias desse tipo. Existe, evidentemente, uma hibridação entre
dos transeuntes não possuirá os códigos necessários para a decifração
os territórios em questão. Tanto na arte contemporânea quanto nas
daquela mensagem (“isto é arte”).
experimentações modernistas, não existe uma clara delimitação dos
O que está claro, portanto, é que a arte depende, sim, de um
territórios (ou dos movimentos que são realizados ao redor destes
território apropriado para que se constitua enquanto tal (e os sistemas
territórios). Se considerarmos a existência de um sistema da arte
da arte contemporânea efetivamente designam os espaços geofísico,
(historicamente localizável e peculiar em suas características) nós
virtual e biológico como apropriados para a arte). Entretanto, ao situar
perceberemos que os territórios formais ao sistema mudaram com o
a produção simbólica nestes espaços, criam-se dificuldades novas na
decorrer do tempo, e entre sociedades e culturas distintas.
decodificação da mensagem que se quer (ou não) transmitir, isto para
A grande questão é que, apesar de se extrapolar territórios, a
uma parcela significativa do público.
arte não extrapola seu discurso. E é esse discurso que pressupõe a
A obra de arte considerada enquanto bem simbólico (e não em
sua qualidade de bem econômico, o que ela também é) só existe alteridade da mesma, possibilitando tanto que práticas inovadoras
enquanto tal para aquele que detém os meios para que dela se aproprie 29
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, introdução, organização e seleção de textos por
pela decifração, ou seja, para o detentor do código historicamente Sérgio Miceli, 6ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2005, página 283.
50 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 51

sejam experimentadas quanto, também, que práticas esvaziadas 1.3. Peculiaridades de uma periferia
de significado sejam repetidas extensivamente dentro do discurso.
A grande dificuldade de analisar os processos sociais da arte
Observar a produção artística contemporânea paraense, muitas vezes
contemporânea no estado do Pará, neste ensaio, é a aparente
tributária dos centros culturais europeus ou norte-americanos, exige
inadequação das teorias da arte (e da cultura em geral) para o sistema
ainda maior complexidade analítica. E saber de que contexto falamos, estabelecido na região. É necessário levar em conta o lugar de onde
portanto, é imprescindível. geralmente falam os teóricos da cultura: sistemas sociais localizados em
metrópoles cosmopolitas, geralmente centros econômicos e culturais
em nível nacional, e algumas vezes global. O Pará é um estado que
carrega o estigma de ser periférico, tanto de um prisma cultural quanto
econômico – periférico por se localizar em um país ainda marginal em
relação aos centros econômicos do planeta, e periférico em relação às
capitais culturais e econômicas do sudeste do Brasil. É indispensável
analisar com acuidade de que forma podemos aplicar pensamentos
teóricos externos (algumas vezes até mesmo eurocêntricos) ao sistema
da arte contemporânea paraense.
É claro que a condição periférica da Amazônia (e do Pará)
não é jamais uma condição de isolamento, antes havendo total
inclusão das periferias nos processos de modernidade pelos quais o
mundo atravessa. Entretanto, estes processos são experimentados
nas periferias de formas diferentes das experiências nos chamados
grandes centros. A relação de trocas culturais é, também, um ponto
comum, mas que deixa perceptível uma predominância das imagens
mediáticas multinacionalizadas como a principal influência. Em
qualquer pequena cidade do interior paraense a televisão, a internet,
a propaganda etc. emanam as imagens que vão ajudar a construir as
subjetividades dos cidadãos comuns.
Estando evidente que a relação de trocas culturais é dinâmica,
nem por isso deixa de ser desigual. A distância geográfica de Belém
em relação às metrópoles nacionais é um dos fatores que provoca esta
desigualdade, fato que vem sendo remediado muito lentamente pela
popularização das novas tecnologias.
52 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 53

Muito se fala, por exemplo, das relações econômicas que a política cultural do Estado baseou-se em grande parte (cenário
atravessam a arte contemporânea e terminam produzindo uma que vem mudando nos últimos anos) em prerrogativas neoliberais,
bolha especulativa que eleva o preço de algumas obras à casa dos por meio de leis de incentivos fiscais. A arte é cada vez mais tratada
milhões – mesmo de artistas ainda vivos. A influência desse mercado como investimento financeiro, fomentando um circuito em que as
de arte sobre a produção contemporânea é muitas vezes restritiva, propriedades artísticas estão em segundo plano, se comparadas às
fomentando padrões e inibindo a criatividade. Mas como averiguar a propriedades mercadológicas.
influência da especulação financeira na arte contemporânea paraense? Cristiane Olivieri30 aborda estas características de uma política
Em um sistema da arte no qual o mercado artístico, de certa forma, é neoliberal no Brasil, na qual o Estado se isenta cada vez mais de suas
insustentável ou inexiste, não faz sentido acusar a existência de uma funções como propiciador e mantenedor das manifestações culturais,
lei única do mercado. Se compararmos as cifras milionárias pelas quais dando lugar (através das leis de incentivo fiscal31) para as escolhas
são vendidas obras de artistas contemporâneos “em alta” no mercado dos investimentos privados (empresas patrocinadoras). Essas relações
de arte com alguns valores econômicos da arte no Pará, veremos o econômicas, que muitas vezes tratam de quantias relativamente
tamanho do abismo que separa estes dois mercados distintos.
grandes, tocam a arte e seu sistema diretamente, mas de uma forma
Porém, é completamente cabível que, mesmo nestes sistemas
não tão aparente. No patrocínio e financiamento de exposições,
mercadologicamente “fracos”, a arte contemporânea exista por meio
eventos, artistas etc. o que ocorre é a conversão de um valor econômico
de um circuito informacional que constrói signos (artistas e obras) e
investido naquela determinada ação em um valor simbólico retornado
confere valores aos mesmos. No Pará ainda vigoram os salões de arte,
para aquela empresa, instituição ou entidade patrocinadora.
mostras competitivas que premiam alguns artistas selecionados por
A figura renascentista do mecenas adquiriu nova forma com a introdução
júri especializado. Os salões se mostram ainda interessantes no estado do marketing cultural para viabilização dos projetos. Atualmente, as
por fomentar a produção local, por conceder premiações adquirindo empresas patrocinam as artes em troca de reconhecimento e prestígio
para sua marca, para falar com seu público consumidor e para tomar
obras, e por trazer obras de artistas com carreiras consolidadas.
emprestada a “aura da arte” para seu produto. Desta forma, embora o
A rede estabelecida no circuito da arte contemporânea, portanto, patrocínio empresarial seja conhecido como mecenato, inclusive na Lei
é mais importante que o fluxo monetário estruturado por um possível Rouanet, esta denominação não seria de todo adequada, na medida em
que a empresa vislumbra um retorno estimado para sua imagem e na
mercado de arte. Tal mercado, aliás, só se estabelece sobre a própria
sua relação com o cliente.32
rede, não podendo ser anterior a mesma. A rede simbólica construída
no sistema da arte contemporânea é um dos fatores que possibilita os 30
Cristiane Garcia Olivieri, Cultura neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura, São
Paulo: Escrituras, 2004.
processos de des-re-territorialização das práticas artísticas. 31
Incentivos fiscais são mecanismos estatais utilizados para o financiamento de projetos culturais
Também se deve levar em consideração que a economia do setor por parte de empresas privadas, para as quais há a isenção ou diminuição de determinadas taxas
e impostos. Entretanto, estas práticas nem sempre resultam em distribuições democráticas,
privado atravessa cada vez mais as práticas artísticas e os sistemas da concentrando a maior parte dos investimentos em uma determinada região e em determinada
arte contemporânea, principalmente em países como o Brasil, onde linguagem artística.
32
Obra citada, páginas 42-43.
54 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 55

O fator econômico é algo que perpassa toda a constituição da Até mesmo as cidades são repensadas e experimentadas de outras
arte na contemporaneidade brasileira, já que a mesma é mediada na maneiras. Considera-se a existência de novas formas de percepção do
sociedade através de valores simbólicos e financeiros. Não se trata espaço, que só podem ser compreendidas através de grandes escalas.
de simplificar estas relações a uma grosseira noção de mercado, mas Nestas grandes escalas torna-se evidente que, em diversas situações,
se trata de constatar que – apesar da teia de relações ser complexa e cidades em continentes diferentes (como Paris e Nova York) são
aparentemente inverificável – a arte existe basicamente em função relativamente mais próximas do que cidades dentro de um mesmo
da capacidade de produzi-la, que advém de recursos materiais, país (tal qual a distância entre as capitais e certas localidades remotas
portanto, financeiros. da Amazônia). Nelson Brissac Peixoto vai afirmar, por exemplo, que
Outro ponto diz respeito à condição das identidades e
a “percepção do espaço passa a ser determinada pela velocidade,
subjetividades contemporâneas. A cultura da maioria dos países
inviabilizando o reconhecimento pedestre, típico das configurações
desenvolvidos – e também a de países subdesenvolvidos, porém
locais tradicionais”34.
industrializados, como o Brasil – apresenta características de supressão
Este processo de supressão dos espaços e do tempo entre culturas
de fronteiras étnicas, sociais e culturais há algum tempo, mas estas
relações foram intensificadas e estendidas ao extremo com as evoluções e locais distintos, que se convencionou chamar de globalização,
tecnológicas proporcionadas a partir do século 20. Especialmente tem influenciado as identidades culturais na maioria dos países,
no que diz respeito às novas tecnologias digitais e eletrônicas, que especialmente aqueles que vivem em um sistema capitalista,
possibilitaram não só a eliminação de grandes distâncias através da mas não necessariamente tendendo a uma homogeneização das
diminuição do tempo de deslocamento, mas também a telepresença sociedades. Pelo contrário, este processo globalizador fomenta
através de mecanismos tecnológicos, especialmente o ciberespaço, novas identidades, tanto globais quanto locais. Aquilo que
possibilitando a conexão com outras partes do planeta sem exigir o realmente interessa a este ensaio é saber que há implicações diretas
deslocamento, através da existência descarnada no virtual. sobre as constituições de sistemas para a arte contemporânea, seja
Experimentamos uma sociedade das metrópoles cosmopolitas, em Belém ou em Paris e Nova York.
onde as culturas se fundem umas às outras, não para uma As identidades que são provocadas por estes novos processos são
homogeneização (que talvez sequer seja uma possibilidade), mas para identidades em fluxo. Hibridações culturais que provavelmente fazem
a proliferação de culturas hibridizadas33. Ao se suprimir (ou melhor, da arte contemporânea um circuito mundial de ideias e proposições,
ao se atenuar), através da tecnologia, as barreiras de tempo-espaço, ao fazer circular artistas e produções em um fluxo que não é mais
provocou-se um choque de modos de representação, um contágio estanque ou estritamente hegemônico (no que diz respeito aos centros
de sistemas simbólicos, que não fluem para uma convergência de culturais ocidentais). Stuart Hall nos oferece uma síntese, que mostra
opiniões, mas para uma mistura delas. a situação (provisória) das identidades em nossa época.
33
Conferir Néstor García Canclini, Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, 34
Nelson Brissac Peixoto, Paisagens urbanas, 3ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Senac São Paulo, 2004,
tradução de Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa, 4ª ed., 4ª reimpr., São Paulo: Edusp, 2008. página 397.
56 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 57

Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, modernização convivem com novas condições urbanas – informais,
mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que transitórias, clandestinas – geradas pela integração global”38. A
retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais;
e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas cidade torna-se nodal, apropriada conforme as disponibilidades e
culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado.35 intencionalidades. “A metrópole se converte numa nebulosa dilacerada,
Novas relações são tecidas no entendimento do ser humano desprovida de localização, distribuída em torno das vias de transporte
com o espaço, com o tempo e até mesmo com o próprio corpo. Com em alta velocidade que a atravessam de ponta a ponta”39, e chega a ser
a evolução de tecnologias que, segundo o filósofo italiano Mario metaforizada por Nelson Brissac Peixoto como a figura bíblica da torre
Costa36, se mostram sublimes diante do ser humano, o que sobressai de Babel. Esta metáfora apresenta a cidade contemporânea ao mesmo
é a própria “obsolescência” de um corpo-limite, perecível, quase tempo como “intuito” e “impossibilidade”, quando a construção é tão
desproporcional a seus habitantes que se torna impossível para estes
um “entrave à existência”, na compreensão de muitos pensadores e
considerarem-na por uma só forma.
artistas contemporâneos. Uma nova forma dualista de opor a matéria
Ressalto, é necessário repensar teorias deste tipo quando se pretende
ao espírito, da qual as fronteiras entre humanidade e máquina se
analisar cidades amazônicas como Belém, que não se configuram como
confundem. A tecnologia é incorporada a um corpo violentado,
megalópoles contemporâneas. Néstor García Canclini, cientista social
torcido, prolongado, fragmentado de diversas formas, sem, no que se debruça sobre as relações e contradições entre modernismo e
entanto, deixar de ser essencialmente carne. Para David Le Breton, modernização específicas da América Latina, diz que
cientista social que se debruça sobre tais questões, A hipótese mais reiterada na literatura sobre a modernidade latino-
O corpo não é mais apenas, em nossas sociedades contemporâneas, a americana pode ser resumida assim: tivemos um modernismo
determinação de uma identidade intangível, a encarnação irredutível do exuberante e uma modernização deficiente. (...) Posto que fomos
sujeito, o ser-no-mundo, mas uma construção, uma instância de conexão, colonizados pelas nações européias mais atrasadas, submetidos à
um terminal, um objeto transitório e manipulável suscetível de muitos Contra-Reforma e a outros movimentos antimodernos, apenas com a
emparelhamentos. Deixou de ser identidade de si, destino da pessoa, independência pudemos iniciar a atualização de nossos países. Desde
para se tornar um kit, uma soma de partes eventualmente destacáveis à então, houve ondas de modernização40.
disposição de um indivíduo apreendido em uma manipulação de si e Assim, especialmente quando falamos da região amazônica,
para quem justamente o corpo é a peça principal da afirmação pessoal37.
onde o Pará se situa, o que temos não é propriamente uma
Outro ponto é a arquitetura das cidades, que passa, também,
globalização consolidada tal qual apontam as teorias (elaboradas do
a ter uma nova representação dentro das sociedades, por ter que
ponto de vista das grandes metrópoles ocidentais), mas sim uma
adaptar-se aos fluxos contemporâneos. “As formas mais extremas de
globalização que é atravessada por relações com uma modernização
35
Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, tradução de Tomaz Tadeu da Silva e (tecnológica e educacional) deficiente e hibridações entre culturas
Guacira Lopes Louro, 11ª ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2006, página 88.
36
Mario Costa, O sublime tecnológico, tradução de Dion Davi Macedo, São Paulo: Experimento, populares autóctones e culturas propriamente estrangeiras. As
1995.
37
David Le Breton, Adeus ao corpo: antropologia e sociedade, tradução de Marina Appenzeller, 2ª
38
Nelson Brissac Peixoto, obra citada, página 393.
ed., Campinas: Papirus, 2007, página 28.
39
Nelson Brissac Peixoto, obra citada, página 352.
40
Néstor García Canclini, obra citada, página 67.
58 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 59

cidades em questão não estão excluídas das relações globalizadas, A arte, enquanto sistema social, também é influenciada
mas as experimentam de formas peculiares. por estas características, principalmente no que diz respeito
Uma última característica da contemporaneidade que quero à organização do seu território em redes, que perpassam pelo
salientar é o estabelecimento de processos comunicativos em nível ciberespaço, mas também pelos centros tradicionais e físicos
planetário, principalmente no que diz respeito à rede internet e aos (espaços expositivos tal qual o museu).
avanços informáticos. Nosso tempo é visivelmente marcado pela As novas tecnologias criadas pelo ser humano (dentre as quais as
existência de um espaço virtual, que interliga pessoas e sociedades. recentes tecnologias digitais), estabelecem mais um espaço no qual a
Esse espaço potencializa novas relações em todas as áreas da própria humanidade se reconfigura, alterando diversas modalidades da
experiência humana, inclusive novas relações econômicas e de poder. experiência humana. Uma produção contínua de imagens, culminado
Para Pierre Lévy41 a aparente inexistência de “fronteiras” no território naquilo que alguns identificam como sociedade do espetáculo, ou
digital viabiliza novas relações de trânsito – tanto de informações das imagens, ou talvez videosfera. Um espaço chamado virtual que
quanto de pessoas e produtos. Diversas comunidades internacionais é, efetivamente, um desdobramento da realidade. E, portanto, um
e virtuais comprovam estas mediações estabelecidas no impalpável do território possível à arte.
ciberespaço – que, entretanto, possuem consequências diretas sobre o Néstor Canclini analisa a hibridação entre as culturas e seus
palpável das relações materiais. territórios em uma escala inter-nacional ou inter-regional, mas não
Entre as características principais que constituem o ciberespaço deixa de ser interessante aplicar o pensamento deste autor em uma
está a noção de hipertextualidade: a ideia de inteligência coletiva, escala social mais delimitada, como as cidades amazônicas.
da qual também falou Pierre Lévy42. Uma construção contínua e As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo da
modernidade são as dos que assumem as tensões entre desterritorialização
ilimitada da produção humana, na qual a informação é rizomática,
e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois processos: a perda da
descentralizada, interativa. relação “natural” da cultura com os territórios geográficos e sociais e,
Tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais,
conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou das velhas e novas produções simbólicas [grifo meu].44
partes de gráficos, seqüências sonoras, documentos complexos que O que seriam estas relocalizações das produções simbólicas?
podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são
ligados linearmente, como em uma corda com nós, mas cada um deles, Talvez aqui caiba a pergunta: qual o espaço que deve ser ocupado
ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular. pela arte contemporânea? Ao ser realocada em outros espaços
Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um percurso (não convencionais) a arte contemporânea relativiza sua própria
em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada
nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira43. condição, possibilitando as relações de multiterritorialidade das
quais este ensaio se ocupa.
41
Pierre Lévy, Cibercultura, tradução de Carlos Irineu da Costa, 2ª ed., São Paulo: Ed. 34, 2000. Este autor também oferece pistas de como analisar estes
42
Pierre Lévy, As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática, tradução
de Carlos Irineu da Costa, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. processos, principalmente em culturas que há bastante tempo não
43
Pierre Lévy, obra citada, página 33. 44
Néstor García Canclini, obra citada, página 309.
60 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 61

são tão homogêneas, como as culturas latino-americanas. Canclini 1.4. Arte contemporânea paraense?
diz que
a análise das vantagens ou inconvenientes da desterritorialização não Há algumas respostas possíveis para a pergunta que dá título a
deve ser reduzida aos movimentos de idéias ou códigos culturais, como esta subseção. No entanto, quero oferecer em contrapartida algumas
é freqüente na bibliografia sobre pós-modernidade. Seu sentido se outras questões: arte contemporânea paraense ou no Pará? A arte
constrói também em conexão com as práticas sociais e econômicas,
nas disputas pelo poder local, na competição para aproveitar as alianças possui nacionalidade e naturalidade civil ou ela é apenas concebida
com poderes externos45. dentro de um determinado território político? A arte paraense é feita
É evidente que na arte contemporânea paraense, que é o foco somente por conterrâneos ou também por estrangeiros produzindo
deste ensaio, a multiterritorialidade não se estabelece somente através no Pará? Delinear o que chamo de arte contemporânea paraense,
do deslocamento das práticas artísticas para um espaço desvinculado portanto, é mais complexo do que parece.
dos códigos culturais da arte. Ela se estabelece, também, por meio de De saída, já esboçamos anteriormente um conceito para arte
incontáveis relações sociais político-econômicas que mediam a arte contemporânea, que parece suficiente para iniciar a discussão. Definiremos
contemporânea na sociedade, através de instituições as mais diversas. como paraense, então, a arte contemporânea que foi produzida,
Desenham-se, dessa forma, vários modus operandi pelos quais a incorporada e difundida pelo sistema da arte no território do Pará, tendo
arte contemporânea é des-re-territorializada, ocupando espaços tão sempre em vista as mútuas influências dos agentes sociais deste sistema
com agentes de outros centros culturais e artísticos. A ideia de uma arte
convencionais quanto um museu, e tão subversivos quanto uma
paraense diz menos respeito a identidades rígidas, folclorizadas, que a
cédula monetária.
identidades em trânsito e em franco diálogo com outras culturas.
É importante dizer que os exemplos de obras e artistas aqui
usados priorizam a produção realizada no estado do Pará, mas de
modo algum neste ensaio se constitui um levantamento histórico que
pretenda ser exaustivo. Antes, utilizo-me de exemplos de acordo com
a representatividade dos mesmos para os interesses do presente estudo,
traçando um percurso labiríntico no lugar da elaboração de uma rígida
cronologia histórica – já que o interesse é o de clarificar conceitos.
É provável que algumas lacunas fiquem aparentes e alguns casos de
territorialidades na arte paraense não sejam citados, o que não constitui
em si um prejuízo. Alguns exemplos de outros contextos também
serão utilizados, no intuito de evidenciar os conceitos propostos, mas
respeitando as diferenças internas entre sistemas da arte distintos.
No Pará, quanto ao sistema da arte contemporânea, estivemos
sempre aparentemente atrasados em relação aos principais centros
45
Obra citada, página 326.
62 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 63

artísticos. Vimos surgirem práticas artísticas na região décadas depois A história da Amazônia foi constituindo-se, durante anos, direcionada
de que as mesmas já estavam plenamente estruturadas no chamado para a Europa, ligada, do século XVII ao XVIII, diretamente a Portugal,
e, culturalmente, no período da Belle Époque, à França, permanecendo
Ocidente. Mas essa espécie de descontinuidade provavelmente é dessa forma isolada do resto do Brasil. Dessa experiência herda-se um
consequência muito mais da condição de periferia econômica e cultural, olhar que sente nostalgia do passado e persegue eternamente o futuro.46
na segunda metade do século 20, do que propriamente consequência Qual seria este eterno perseguir do Pará (enquanto região
de uma “inabilidade” artística. Sendo necessário antes estruturar um
amazônica) buscando o futuro?
sistema cultural eficaz (que possa promover arte/educação, produção,
Vejamos alguns exemplos do campo educacional (em relação à
manutenção e difusão das artes), é insensato esperar que os artistas
paraenses estejam na ponta de lança das discussões estéticas mundiais. arte), para perceber de que forma se dá esse retardo experimentado
Também vale dizer que o atraso das práticas artísticas na região. Na UFPA (Universidade Federal do Pará) o primeiro curso
contemporâneas no Pará só pode ser assim nomeado a partir de uma de graduação em artes (Educação Artística, habilitação em Artes
perspectiva dos grandes centros culturais, que seriam tomados como Plásticas) foi criado somente em 1974. Vale destacar que o curso de
modelo ou padrão para as periferias. Nada mais incongruente que este graduação em Arquitetura da UFPA, em funcionamento desde 1964,
tipo de pensamento neocolonialista. contribuiu bastante para a formação de artistas plásticos, inclusive
Tais práticas, tardias (de certa forma) em relação aos centros formando profissionais que posteriormente compuseram a primeira
culturais, “alinham” a produção paraense com as propostas pertinentes geração de professores na graduação em Educação Artística47. A
na contemporaneidade. Mas de que tipo de “alinhamento” falamos?
primeira pós-graduação lato sensu voltada às artes só foi criada em
Não da passividade daquele que busca se adequar ou alcançar alguém
1994, ministrada por uma parceria de outras universidades com a
de melhor desempenho, que fique bem claro. Pelo contrário, o que se
verifica na produção contemporânea paraense, ao observá-la do prisma UFPA. Somente dez anos depois, em 2004, criou-se a especialização
das múltiplas territorialidades, é que a arte contemporânea local se em Semiótica e Artes Visuais, do extinto Núcleo de Artes, totalmente
estrutura de uma forma talvez única, além de discutir questões próprias ministrada por professores da própria UFPA. Esta especialização deixa
e consolidar práticas artísticas pertinentes e diferenciadas dos modelos de ser oferecida quando o ICA (Instituto de Ciências da Arte) aprova
propostos (ou impostos?) pelos centros culturais do Brasil e do mundo. o Mestrado em Artes, com a primeira turma em 2009, pioneiro em
O lapso temporal das práticas artísticas contemporâneas paraenses toda a Amazônia.
em relação às capitais culturais do país deve-se, em grande parte, aos É salutar perceber, então, que o primeiro mestrado da região
entraves econômicos da região – dos quais a distância geográfica é amazônica, na área de artes (UFPA), surge trinta e cinco anos depois
somente um dos fatores –, que consequentemente dificultam a inserção
do primeiro mestrado do Brasil na área, criado em 1974 na USP
de recursos na educação e na cultura, que permitiriam que a produção
artística se desenvolvesse num ritmo semelhante ao dos centros do país. (Universidade de São Paulo). Evidentemente a produção artística não
Em um ensaio muito pertinente a respeito das condições quase 46
Marisa Mokarzel, Entre garças e urubus: a (in)sustentável arte produzida na Amazônia, em:
Caderno VideoBrasil, v. 02, 2006, página 81.
insustentáveis da produção artística na Amazônia, a pesquisadora 47
Conforme ressalta Afonso Medeiros, Posfácio, em: Bene Martins; Lia Braga Vieira; e Orlando
Marisa Mokarzel aponta para essas características. Maneschy (organizadores), Interfaces: desejos e hibridizações na arte, Belém: UFPA/ICA, 2009,
página 215.
64 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 65

é dependente da educação formal, apesar de influenciada pela mesma. questiona uma suposta sustentabilidade da arte contemporânea
As instituições educativas, porém, fomentam um solo cultural no paraense, periférica ao eixo cultural-econômico do país. “Delineia–
qual a produção artística pode amadurecer. Outras áreas e instituições se, então, um circuito que aponta para um fluxo mais interligado não
também influenciam diretamente a produção artística em determinado às galerias, mas às instituições de ensino ou governamentais, que se
contexto, como os meios de comunicação, as associações de artistas organizam por meio de um sistema de museus, com salas expositivas
etc. Dada a condição de periferia político-econômica experimentada onde circulam mostras de artistas locais e de outros lugares”49.
na região, carecer de um sistema de educação formal (voltado para a Essa latente insustentabilidade da arte contemporânea paraense é
percebida tanto como uma dificuldade para a produção quanto como
arte) equiparado ao dos centros do país apenas agrava a situação.
um elemento que permite maior liberdade das amarras ditadas pelo
É justamente essa condição de periféricos que, segundo alguns
mercado de arte. Insustentabilidade que culmina em uma necessária
pesquisadores, faz com que a produção artística no Pará se estabeleça
vinculação às instituições culturais, principalmente governamentais,
de formas diferenciadas dos modelos experimentados nos grandes como sustentáculo da prática artística contemporânea – especialmente
centros. E são essas peculiaridades que fazem com que haja, no Pará, as práticas multiterritorializadas.
a possibilidade de se construir outras práticas sociais e artísticas para a Mas voltemos a questionar a instauração de uma produção
arte contemporânea, inclusive na relação com as instituições de arte, artística percebida e proclamada enquanto contemporânea. Tentarei
que são os maiores (se não únicos) sustentáculos da produção artística situar aqui a transição para um paradigma contemporâneo nas
e de um sistema da arte contemporânea atualmente no Pará. artes, reconhecendo de imediato a superficialidade destes meus
Diante desse contexto de isolamentos e fluxos, as singularidades apontamentos quanto à complexidade de uma questão como essa.
de viver a região manifestam-se de forma particular na experiência
estética dos artistas que habitam a Amazônia e operam em sistemas
Vejamos que o abstracionismo – talvez o ápice e declínio de um
paralelos de arte, que ora os colocam também em proximidade com paradigma modernista da arte enquanto manifestação universal, da
o resto do mundo, ora os mantêm desvinculados do trânsito operado qual se poderia alcançar um estado puro através da abstração, que
no Centro-Sul do país, gerando, por vezes, uma instabilidade na vinha se desdobrando desde os impressionistas – aparece em Belém
produção, tanto artística quanto de projetos institucionais para a arte.
Esta situação de fragilidade e inconstância é reflexo das políticas que somente em 1959, em exposição de José de Moraes Rego, à época um
se inscreveram na região ao longo de sua história, mas que, por outro jovem artista que fazia parte do grupo conhecido como CAPA (Clube
lado, propiciaram uma produção artística menos comprometida com de Artes Plásticas da Amazônia) ao lado de importantes artistas
apelos do mercado e mais concentrada nas relações com seu lugar
de origem, suas particularidades socioculturais, fazendo com que
paraenses, dos quais surgiriam os introdutores do abstracionismo no
artistas, tanto de forma coletiva, quanto individual, realizassem obras Pará, como Benedicto Mello, Concy Cutrim, Dionorte Drummond,
consistentes, de grande potência48. Roberto de La Rocque Soares e Ruy Meira. Posteriormente haveria a
Também comentando a respeito dessas relações que atravessam a exposição coletiva dos artistas abstracionistas do CAPA50.
prática artística contemporânea no Pará, a pesquisadora Marisa Mokarzel 49
Marisa Mokarzel, obra citada, página 97.
Orlando Maneschy no catálogo Amazônia, a Arte, da exposição homônima, curadoria de
48 Conferir a esse respeito especialmente a obra de Acácio Sobral, Momentos iniciais do abstracionismo
50

Orlando Maneschy, consultoria de Paulo Herkenhoff, Rio de Janeiro: Imago, 2010, página 11. no Pará, Belém: Instituto de Artes do Pará, 2002.
66 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 67

Durante a década de 1960 são realizadas duas edições (1963 e com patrocínio do Governo do Estado do Pará, Prefeitura Municipal
1965) do Salão Universitário de Artes Plásticas da UFPA, promovidas de Belém e Universidade Federal do Pará. Este evento possibilitou a
pelo então Reitor da UFPA José da Silveira Neto, “tendo Benedito discussão e o contato com o que se produzia no sul e sudeste do país.
Nunes e Eneida de Moraes na equipe de organização, foi um Pode-se salientar que só há pouco tempo que a incomunicabilidade
marco (...) ao apresentar obras de artistas consagrados, como Fayga entre o norte e o sul do país tem deixado de ser relevante, no campo
Ostrower”51. Participam destes eventos inclusive artistas de outros artístico. As distâncias geográficas e econômicas têm sido suavizadas
estados da região Norte, e foram distribuídos prêmios entre os pelas possibilidades comunicacionais e de meios de transporte.
participantes, que consistiam em viagem para a visitação da Bienal No mês de fevereiro de 1970 foi realizado em Belém o Concurso
de São Paulo (1963 e 1965). O contato de alguns artistas paraenses de pintura do Banco Lar Brasileiro, no qual o primeiro colocado foi o
com estas edições da Bienal de São Paulo pode ser citado como um então jovem artista Osmar Pinheiro, estudante de arquitetura, ficando
dos fatores que contribui para o estabelecimento de novas práticas em segundo e terceiro lugar, respectivamente, os veteranos Benedito
efetivamente contemporâneas, na arte local. Mello e Ruy Meira. Foi concedida Menção Honrosa aos artistas Nestor
No mês de agosto de 1968 – ano tão turbulento e fecundo Pinto Bastos Júnior, Valdir Sarubbi de Medeiros e Arnaldo Vieira54.
– iniciava em Belém um portentoso evento voltado para as diversas Em outubro e 1970 foi realizada a Exposição de Jovens Artistas
áreas artísticas: a I Cultural de Belém, que trouxe exposição de obras Plásticos do Pará, na Galeria Ângelus, no Theatro da Paz, por iniciativa
dos artistas que estiveram na IX Bienal Internacional de São Paulo do Departamento Municipal de Turismo, trazendo um total de vinte e
(1967), conferências (de Haroldo de Campos, Hélio Oiticica, José sete obras, dos então jovens artistas: Antônio Correa, Arnaldo Vieira,
Celso Corrêa, Mário Schemberg e Maurício Nogueira Lima52), cursos Bechara Gaby, Dina Maria César de Oliveira (De Maria), Emanuel
e exposição de obras de artistas paraenses, contando com premiações. Nassar, Maria Lúcia Martins do Vale (Lulucha), Mário Souza Galvão,
Os artistas paraenses premiados foram: Ararê, Arnaldo Vieira, Carlos Nestor Bastos Júnior, Osmar Pinheiro de Souza Jr., Sílvio Coelho,
Videira, Dina Maria de Oliveira, Geraldo Corrêa, J. Souza, João Pinto, Valdir Sarubbi de Medeiros55.
Joaquim Pinto, Jorge Vale, José Rayol, Lílian Silvestre, Neuza Oliveira, Em 1971, dois artistas paraenses são selecionados para a XI
Orlando Vieira de Souza, Osmar de Souza, Paulo Andrade, Philadelpho Bienal Internacional de São Paulo, são eles Valdir Sarubbi e Branco
Condurú, Roberto Vale, Sônia Couto, e ainda o garoto Nelson Coelho de Melo, com obras que expandiam o suporte tradicional da pintura e
de Souza, então com 11 anos de idade, que recebeu menção honrosa53. escultura, e (especialmente a obra Xumucuís, de Sarubbi) instauravam
As exposições foram realizadas em stands montados na Praça da também o processo como prática artística, e não somente o objeto56.
República, no centro da cidade. A I Cultural de Belém foi realizada 54
Jornal A Província do Pará, edição de 26 de fevereiro de 1970.
55
Jornal A Província do Pará, edição de 11 e 12 de outubro de 1970.
51
Afonso Medeiros, obra citada, página 214. 56
Conferir a dissertação de Ilton Ribeiro dos Santos, As transformações do panorama artístico de
52
Jornal A Província do Pará, edição de 11 e 12 de agosto de 1968. Belém: 1960 e as repercussões nas obras de Valdir Sarubbi e Branco de Melo, dissertação (Mestrado em
53
Jornal A Província do Pará, edição de 18 e 19 de agosto de 1968. Artes) – Instituto de Ciências da Arte, Universidade Federal do Pará, Belém, 2011.
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Há, entretanto, todo um contexto social que ocasiona a Para analisar este momento de transição, também podemos citar
participação destes artistas na Bienal de São Paulo, e convém esclarecê- a lista de artistas contemporâneos no Pará, no relatório As artes plásticas
lo. Em 1969 há um boicote – em nível nacional e internacional – no Pará de Paolo Ricci, apresentado a FUNARTE em 1978, citado
dos artistas convidados a participar da X Bienal Internacional de por Edison Farias59. Fazem parte da lista de artistas contemporâneos
São Paulo, como forma de protesto à censura imposta pelo governo (para Paolo Ricci, em 1978): Acácio Sobral, Branco de Melo, Dina
militar a duas exposições artísticas antecedentes: a II Bienal Nacional Oliveira, Mário Pinto Guimarães, Osmar Pinheiro Jr. e Ronaldo
de Artes Plásticas, realizada em Salvador em 1968, e a mostra dos Moraes Rego.
artistas brasileiros que representariam o Brasil na Bienal de Paris, no Cabe salientar que desde a década de 1960, nos centros culturais
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 196957. Em 1970, do Brasil, já fervilhavam propostas que quebravam com a noção de arte
portanto, a Bienal de São Paulo organiza a primeira Bienal Nacional, como objeto, discutiam a crise das instituições e da crítica de arte e
visando selecionar artistas de todo território nacional para a Bienal questionavam o papel do artista e de sua produção dentro da sociedade,
Internacional no ano seguinte, dada a possibilidade de um boicote como vemos nas propostas de Hélio Oiticica, Lygia Clark, Cildo Meireles,
semelhante ao ocorrido em 1969. Belém é uma das cidades onde Artur Barrio e nas edições da JAC (Jovem Arte Contemporânea), no
ocorre a seleção de artistas para participação nessa Bienal Nacional, MAC-USP (Museu de Arte Contemporânea), dentre outros exemplos.
da qual foram escolhidos trinta artistas para participação na Bienal O Pará ainda tentava se adequar a uma exposição (Bienal Nacional)
Internacional de 1971, dentre eles os paraenses Branco de Melo e que estava aquém das práticas artísticas mais recentes e pertinentes ao
Valdir Sarubbi. Nas cidades como Belém, nas quais foram realizadas as momento, chamadas por alguns autores de neovanguardas.
chamadas Pré-Bienais, diz Zago que “estava presente um júri formado Em 1976 o artista José Pires de Moraes Rego apresentava a
por um membro enviado pela Fundação Bienal e outros membros exposição Retrospectiva Folclórica, na inauguração da Galeria da Paratur,
escolhidos de acordo com o critério de cada região”58. talvez a primeira exposição em Belém a trazer a questão da cenografia
A movimentação estabelecida em torno desta seleção para do espaço expositivo – preocupação com o espaço que é típica da
a Bienal Nacional de São Paulo em 1970 é que marca o ápice da contemporaneidade artística. A cenografia desta exposição foi realizada
transição, no Pará, para um paradigma contemporâneo nas artes, já por Alberto Bastos. Elementos religiosos como bandeiras, espadas, guias
que promove, entre os artistas locais, esse sentido de experimentação e atabaques foram utilizados, emprestados de um terreiro60.
de novas práticas. Transição que já vinha se consolidando desde as Em 1977, 31 de março a 16 de abril, foi realizada na cidade
duas edições do Salão Universitário de Artes Plásticas da UFPA, com de Paris (França) uma exposição de artesanato e arte contemporânea
as viagens patrocinadas a alguns artistas. (no sentido de ser atual ao período) da Amazônia, para comemorar
57
Conferir, a respeito deste boicote, o artigo de Renata Zago, As Bienais Nacionais de São Paulo: 59
Edison da Silva Farias, Calor, chuva, tela e canivete: a pintura no tempo do modernismo em Belém,
1970-76, nos Anais do 18º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes
tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Plásticas: transversalidade nas artes visuais, organização de Maria Virginia Gordilho Martins (Viga
Paulo, 2003, página 128.
Gordilho) e Maria Herminia Olivera Hernández, Salvador: EDUFBA, 2009, páginas 2616-2628. 60
Conferir o livro de José Pires de Moraes Rego, 40 anos de arte, Belém, 1986, páginas 78-84.
58
Obra citada, página 2622.
70 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 71

a inauguração da nova escala – na cidade de Manaus – da empresa até os dias atuais), responsável por oferecer oficinas, colóquios,
de transporte aéreo Air France. Os artistas – pintores e escultores cursos, exposições e diversas outras atividades ligadas à fotografia,
– paraenses (ou residentes no estado) que expuseram no evento influenciando grande número de artistas paraenses, alguns dos quais
foram os seguintes: Benedicto Mello, Dina de Oliveira, Dionorte alcançaram projeção nacional. Ainda na década de 1980 Chikaoka
Drummond, João Pinto, José de Moraes Rego, Lilia Silvestre, e outros fotógrafos e produtores culturais da cidade realizaram as
Maria Madalena, Mário Pinto Guimarães, Nestor Bastos Jr., Osmar exposições chamadas de FotoVaral, em que, como indica o nome,
Pinheiro Jr., Paolo Ricci, Ronaldo Moraes Rego e Ruy Meira. Meses as fotografias de profissionais, alunos e amadores eram expostas em
após a exposição amazônida na França, foi inaugurada em Belém varais pendurados em espaços públicos da cidade, como praças e ruas
a Galeria Theodoro Braga, cuja exposição inaugural trazia estes de grande fluxo de pessoas62. Ainda realizado em Belém, o FotoVaral já
mesmos artistas61. A Galeria Theodoro Braga localiza-se na Fundação indica a discussão e experimentação das territorialidades na produção
Cultural do Pará “Tancredo Neves”, e está em funcionamento desde artística contemporânea paraense.
1977 até os dias atuais. Em 1987 começa a se formar o grupo Raioqueoparta!, e em
Em 1981 foi inaugurada em Belém a Elf Galeria, sob a 1989 é realizada a exposição do coletivo na Galeria Theodoro Braga,
administração de Gileno Müller Chaves, que também representou formado pelos artistas Branco Medeiros, Nando Lima, Nio e Tadeu
um importante espaço para a arte contemporânea, principalmente no Lobato. O Raioqueoparta!, segundo Tadeu Lobato63, foi responsável
decorrer da década de 1980. pelas primeiras experimentações de vídeo arte no Pará.
Em 1981 é criada a Fundação Rômulo Maiorana, em Belém. Em Na década de 1990 também há a formação do grupo Caixa de
1982 esta fundação dá início àquele que posteriormente assumiria Pandora, composto pelos artistas Flávya Mutran (que posteriormente
o posto de principal evento de arte contemporânea no Pará e na deixou o grupo), Cláudia Leão, Mariano Klautau Filho e Orlando
região norte do país: o Salão Arte Pará. A primeira edição do evento Maneschy. O Caixa de Pandora, com a primeira exposição em 1993, é
teve como espaço o segundo andar do prédio ocupado pelo jornal O responsável por propor novas utilizações da fotografia, em confluência
Liberal, das Organizações Rômulo Maiorana. Posteriormente outros com outras linguagens e suportes.
espaços foram utilizados pelo Arte Pará, como o Museu de Arte de Durante três anos seguidos, de 1992 a 1994, são realizadas
Belém, o Museu Histórico do Estado do Pará, o Museu de Arte Sacra, em Belém as três edições do SPAC (Salão Paraense de Arte
Museu da Universidade Federal do Pará, além de, na década de 2000, Contemporânea), pela Secretaria de Cultura do estado e Associação
ocupar também espaços não convencionais, como mercados e feiras de Artistas Plásticos do Pará, premiando e expondo nomes emergentes
em Belém, como veremos em alguns exemplos no decorrer deste texto. na arte contemporânea paraense. As edições do SPAC são responsáveis
Chega a Belém, em 1983, o fotógrafo Miguel Chikaoka, que 62
Conferir a esse respeito o texto de Miguel Chikaoka, Projeto Fotoativa Cidade Velha, na Revista
funda no ano seguinte a Associação Fotoativa (em funcionamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Fotografia, IPHAN, n.º 27, 1998, páginas 188-
195.
61
Edison Farias, obra citada, páginas 113-114. 63
Jornal O Liberal, edição de 28 de setembro de 2006.
72 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 73

por injetar novo fôlego, revigorando as práticas artísticas na cidade ao Em Marabá, município no interior do estado do Pará, é criado
introduzir novos suportes e mídias64. em 1997 o GAM (Galpão de Artes de Marabá), transformando o
Em 1991 é inaugurada a galeria do CCBEU (Centro Cultural antigo Galpão Industrial, criado por Mestre Botelho em meados da
Brasil Estados Unidos). No ano seguinte é realizada a primeira edição década de 1970, em um espaço destinado à promoção de cultura.
do Salão Primeiros Passos, realizado anualmente até os dias atuais. O O GAM é mantido atualmente pela empresa cultural marabaense
Primeiros Passos possui a peculiaridade de ser um salão voltado para Tallentus Amazônia e pela FUNARTE (Fundação Nacional de Artes),
jovens artistas (a condição de inscrição é que nunca tenha realizado reconhecido pelo governo federal como Ponto de Cultura. A iniciativa
exposição individual). foi iniciada pela ARMA (Associação dos Artistas Plásticos de Marabá),
Outro ponto a ser destacado é a transformação da UNESPA que lançou, entre outros nomes da arte contemporânea paraense, o
(União das Escolas Superiores do Pará) em UNAMA (Universidade artista Marcone Moreira, com exposições individuais e coletivas em
da Amazônia), em 1993, na qual era oferecido o curso de graduação nível nacional e internacional. Também em Marabá é criada a Galeria
em Educação Artística. Em novembro de 1993 é inaugurada, na Vitória Barros, em 2002. Em Santarém, outro município no interior
UNAMA, a Galeria Graça Landeira, espaço para exposição de obras do estado, é criado o Núcleo Cultural da FIT (Faculdades Integradas
inclusive dos professores-artistas e alunos da instituição. Em 1995 do Tapajós), assim como o Espaço de Arte Graça Landeira, da mesma
a UNAMA realiza a primeira edição do Salão Pequenos Formatos instituição de ensino.
(em nível nacional), evento caracterizado pela necessária dimensão Em 1999 é criado o IAP (Instituto de Artes do Pará), que
reduzida das obras inscritas, e que é realizado anualmente até os também se tornou, em pouco tempo, uma instituição fundamental
dias atuais. Posteriormente, em 2000, o curso de graduação em para o fomento de um sistema da arte contemporânea no Pará, através
Educação Artística seria reformulado e renomeado para Artes Visuais da Bolsa de Pesquisa Experimentação e Criação Artística, além de
e Tecnologia da Imagem. Em 2009 a UNAMA também passou outros projetos, como oficinas, exposições e intercâmbios com outros
a oferecer o curso de Mestrado em Comunicação, Linguagens e países possibilitando as chamadas residências artísticas.
Cultura. A graduação em Artes Visuais e Tecnologia da Imagem e No ano de 2001 o Banco da Amazônia inaugura o Espaço
o Salão de Pequenos Formatos, da UNAMA, são dois referenciais Cultural Banco da Amazônia, com a exposição coletiva de artistas
que têm contribuído para o estabelecimento da arte contemporânea paraenses denominada Contemporâneos, trazendo os artistas Armando
no Pará, promovendo o ensino e pesquisa em artes e a premiação de Queiroz, Armando Sobral, Berna Reale, Murilo e Ronaldo Moraes
artistas no Salão Pequenos Formatos. Rego. Anualmente a instituição lança edital oferecendo verbas para
projetos de exposição no Espaço Cultural Banco da Amazônia,
64
Conferir o artigo de Ilton Ribeiro, Salão Paraense de Arte Contemporânea – SPAC: os fazedores de
símbolos da última hora, nos Anais do V Fórum Bienal de Pesquisa em Artes (2010: Belém, PA): selecionando anualmente quatro pautas, além de realizar outras
provocações-transformações-revoltas, organização de Edison da Silva Farias e Lia Braga Vieira, exposições desvinculadas do edital.
Belém: PPGARTES/ICA/UFPA, 2010, páginas 579-587.
74 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 75

Em 2002 é criada, no município de Ananindeua (região Com este breve inventário de instituições que de algum modo
metropolitana de Belém), a ESMAC (Escola Superior Madre Celeste), tangenciam o sistema de arte contemporânea no Pará, além de alguns
oferecendo o curso de graduação em Artes Visuais. Em 2004 é criada apontamentos a respeito de artistas e grupos importantes no decorrer
a Galeria De La Rocque Soares e posteriormente fundado o grupo da história recente, busco contextualizar a estruturação social de um
de pesquisa Igarahart (formado pelo corpo docente do curso, sob a sistema da arte contemporânea no Pará. Cabe passar à discussão e
coordenação da artista e pesquisadora Sanchris Santos, e eventuais análise das múltiplas territorialidades propriamente ditas, naquilo que
artistas convidados). se aplica à produção artística contemporânea paraense.
Em dezembro de 2002 é aberto ao público o Espaço Cultural
Casa das Onze Janelas, trazendo as exposições Traços e Transições da
Arte Contemporânea Brasileira e Fotografia Contemporânea Paraense
– Panorama 80/90. As exposições apresentaram um considerável
acervo a respeito da arte contemporânea nacional e local. Segundo
Rosangela Britto,
(...) na transversalização das ações de caráter histórico-artístico, de
preservação e de educação, o Espaço Cultural Casa das Onze Janelas
procura contribuir com o público paraense, tornando-o mais
próximo das questões da arte proposta pela contemporaneidade65.
Ressalto, entretanto, que o prédio em que se localiza a Casa das
Onze Janelas é patrimônio histórico, o que impede alguns tratamentos
expositivos mais experimentais. Seria interessante que se oferecesse
aos artistas contemporâneos um espaço que possibilitasse práticas e
tratamentos expositivos não convencionais, sem o risco de danificar o
patrimônio histórico e cultural do estado. A Casa das Onze Janelas tem
apresentado, ao longo de seu funcionamento, diversas exposições de
artistas contemporâneos, algumas em parceria com o IAP (geralmente
nos últimos meses do ano), como resultado das bolsas de pesquisa em
arte e de intercâmbios internacionais.
65
Catálogo Traços e transições da arte contemporânea brasileira: Espaço Cultural Casa das Onze
Janelas, Belém: SECULT/PA, 2006, página 17.
76 77

2.
TERRITORIALIDADES
EM TRÂNSITO

Registro da ação Da série Symbiosis – Arte e Natureza


na Amazônia n.º 5 de Roberta Carvalho, Belém, 2011.
Fonte: imagem cedida pela artista.
78 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 79

2.1. Desterritorializações: espaços não institucionais abordado separadamente no terceiro capítulo. A orientação através
destes eixos se dá apenas para fins de organização do pensamento,
A multiterritorialidade na sociedade contemporânea, inclusive
sem a intenção de categorizar as práticas artísticas, já que é bastante
na arte, está diretamente associada à utilização do elemento rede na
aparente a inviabilidade de delimitar estas práticas de forma clara,
constituição dos territórios. Este elemento, que se caracteriza pela
havendo o uso de várias territorialidades simultaneamente. Podemos
flexibilidade das “fronteiras” e espaços a partir da valorização do fluxo
tomar o exemplo de performances realizadas em centros urbanos
e do movimento, é típico das sociedades urbanas contemporâneas,
(coincidindo, portanto, os espaços público e biológico), ou de
e é ele que originalmente possibilita múltiplas territorialidades na
ciberarte, que geralmente utilizam o corpo humano como agente
arte contemporânea.
interativo (coincidindo os espaços virtual e biológico), dentre diversas
Para nossos propósitos, a característica mais importante das redes é seu
efeito concomitantemente territorializador e desterritorializador, o que outras manifestações que são difíceis de categorizar entre os três eixos
faz com que os fluxos que por elas circulam tenham um efeito que pode aqui expostos.
ser ora de sustentação, mais “interno” ou construtor de territórios, ora
Cada prática artística tomada por desterritorializante contribui
de desestruturação, mais “externo” ou desarticulador de territórios.66
para a modificação do sistema específico no qual foi proposta.
Na análise das práticas tidas por este ensaio como
Invariavelmente estas práticas acarretam implicações (sejam elas
desterritorializantes, não me proponho a fazer uma compilação de
perceptíveis ou imperceptíveis). Também é de se esperar que algumas
cunho histórico ou linear, que apresente um percurso completo destas
destas práticas tenham surgido devido à própria conjunção do sistema
práticas artísticas no cenário paraense. Por outro lado, é necessário
em um determinado momento, favorecendo este aparecimento.
amarrar de algum modo as práticas que serão abordadas aqui –
Quais as causas e consequências destes novos meios artísticos
estabelecer uma tessitura –, por isso considero a possibilidade de
(performance, land art, ciberarte etc.) dentro de um sistema? Sendo
estruturar um esquema labiríntico, que percorra um caminho através
este sistema constituído não por um discurso único, mas por uma
de pontos que não são centrais ou principais, mas são simplesmente
sobreposição de discursos diferenciados e excludentes entre si, tais
pontos interessantes ao desenvolvimento do texto.
práticas contribuem para a modificação do conceito de arte (pelo sistema
Outro ponto que é importante destacar é a orientação do ensaio
da arte), a reformulações dos próprios discursos. Estas reformulações
através de eixos, nos quais se estruturariam as práticas artísticas
culminariam no estabelecimento da arte contemporânea (ou das artes
desterritorializantes. Estes eixos dizem respeito a três tipos de
contemporâneas), e é necessário identificar este percurso conceitual
espaços diferenciados, que em muitos momentos não são espaços
que é trilhado no decorrer das rupturas, das descontinuidades
convencionais ao sistema da arte: práticas constituídas enquanto espaço
históricas e ideológicas. Proponho-me a seguir esta trilha.
geográfico, práticas constituídas enquanto espaço virtual e práticas
Uma noção interessante que precisa ser analisada é a de instituição.
constituídas enquanto espaço biológico. Cada um destes eixos será
A instituição pode ser conceituada, grosso modo, como mecanismo
66
Rogério Haesbaert da Costa, O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, página 294.
pelo qual o poder, em determinado campo da existência humana, é
80 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 81

exercido e organizado em dada sociedade. No primeiro capítulo deste pode ser definido como espaço que (ainda) não é um dispositivo, não
ensaio já abordei a constituição da arte enquanto sistema, que age em concorre para a manutenção de um sistema da arte. Ao utilizarmos estes
função e através de suas instituições. No caso da arte contemporânea espaços não institucionais (tais como as áreas públicas, o ciberespaço,
as instituições “clássicas” são o museu, a galeria, o conhecimento a informação como espaço etc.) estamos desterritorializando a
específico (acadêmico). Outras instituições surgem assumindo arte, tanto em um nível funcional e espacial quanto em um nível
posições secundárias dentro da tessitura do exercício do poder no simbólico. Posteriormente verificaremos que este processo acarreta a
campo simbólico da arte. No lugar de “sistema” (que é o termo mais própria reterritorialização em novos espaços, mas por enquanto basta
comum entre os pesquisadores das artes), também podemos tomar que observemos o viés desterritorializante. Também vale dizer que
emprestado o termo “dispositivo”, retomado por Giorgio Agamben67. adotar um espaço não institucional, muitas vezes, corresponde a não
Este autor toma por “dispositivo qualquer coisa que tenha de algum adotar espaço físico algum.
modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, O modernismo trouxe para a arte ideais de ruptura que seriam
modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os perpetuados até a atualidade, contribuindo para o questionamento da
discursos dos seres viventes”68. arte como objeto, da noção de autor, da estruturação de mercado e valor.
As instituições são dispositivos. Mas estes não são os únicos Práticas artísticas que utilizam um território-rede, como o ciberespaço
dispositivos dos quais se serve o sistema da arte. Além do museu, da e o corpo (na performance), ao utilizarem a informação binária ou a
universidade, do texto da crítica artística, existem dispositivos mais corporeidade como espaço instituído para a arte, usam territórios
puramente simbólicos, territórios-rede. Cristina Freire chama a atenção
sutis que servem igualmente à manutenção do sistema da arte. É o
para este aspecto, falando a respeito do vasto acervo do MAC/USP
caso do nome do artista, crítico, grupo ou galeria, quando revestido
(Museu de Arte Contemporânea / Universidade de São Paulo).
de uma carga simbólica que funciona como dispositivo; também os
No caso das artes plásticas, a tão debatida efemeridade das propostas
catálogos, os textos, as notas em jornais, os sites eletrônicos, as empresas lança a noção de arte como processo decorrente de uma idéia, de um
patrocinadoras, enfim, tudo que molda o discurso social em relação à objeto impalpável para o centro do debate. O esforço do artista, nesse
arte, tal qual nos ensinou Agamben a respeito dos dispositivos. período, vai no sentido de dar corpo ao invisível, tornar material uma
idéia que não teria, necessariamente, apelos formais. Nos anos 1960
Aponto a desterritorialização como prática nos espaços não e 1970 a circulação de informações artísticas é preponderante. Nessa
institucionais. Assim como a desterritorialização é inerente à própria medida, é necessário observar a tensão criada pela arte Conceitual
reterritorialização, o uso de um espaço não institucional é próprio à no bojo das instituições artísticas, isto é, a transitoriedade dos meios
rejeita, pelo menos num primeiro momento, a perenidade museal,
consequente institucionalização de outro espaço – a priori informal. invoca o processo, mais do que a estaticidade do objeto artístico como
Se um espaço institucional pode ser definido como um dispositivo modus operandi da arte, convoca antes à participação do que à passiva
do sistema da arte, é razoável dizer que um espaço não institucional contemplação. Todo o sistema da arte que inclui artista e público,
passando pelas instituições tradicionais como as galerias e museus, que
67
Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo? e outros ensaios, tradução de Vinícius Nicastro legitimam a produção artística, é questionado através dessas poéticas69.
Honesko, Chapecó: Argos, 2009.
68
Obra citada, página 40. 69
Cristina Freire, Poéticas do processo: arte conceitual no museu, São Paulo: Iluminuras, 1999, página 30.
82 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 83

As práticas artísticas desterritorializantes são, na maior parte das importa que a “obra” ocupe um lugar determinado em um espaço
vezes, situadas dentro das perspectivas utópicas das neovanguardas sacro, numa atitude quase religiosa, mas importa que a arte esteja em
das décadas de 1960 e 1970. Utópicas justamente por revigorarem as trânsito, desmistificada, subvertendo os códigos culturais elitistas e
perspectivas modernistas de dissolução da arte na vida, pretendendo burocráticos da tradição dos sistemas da arte.
eliminar a posse das práticas artísticas por um sistema social elitista Especialmente no contexto latino-americano, a arte postal chega
ou especializado. E utópicas pois tais práticas foram apropriadas e durante as ditaduras militares, período este marcado por cerceamento
reterritorializadas, com incrível rapidez, por um sistema cultural da liberdade de expressão e informação e caracterizado pelo uso da
voltado ao consumo de objetos de luxo. violência e da censura por parte dos governos militares. A arte postal
Um exemplo bastante interessante é o da mail art, ou arte correio. surge como uma forma não somente de transgressão ao sistema da
Esta linguagem consiste na apropriação do sistema informacional dos arte, mas de transgressão a todo um contexto sócio-político repressivo.
correios como lugar para a prática artística, sem que esta prática esteja Uma desterritorialização dos objetos-ideias, reterritorializados em
estetizada, mas antes é justamente o contrário: uma prática artística ideias-fluxo.
que ocupa primeiramente posições políticas e econômicas, até mesmo O artista pernambucano Paulo Bruscky (1949-), um dos
antiestéticas. A utilização dos correios na mail art surge na década nomes mais expressivos da arte contemporânea brasileira, escreve
de 1960, tomando maior impulso na década posterior, no afã da em 1976 que a arte correio “não é mais um ‘ismo’, e sim a saída
liberação da arte de suas premissas institucionais, de suas molduras mais viável que existia para a arte nos últimos anos e as razões são
econômicas e de sua lógica sistêmica. simples: antiburguesa, anticomercial, anti-sistema etc.”70. Bruscky é
O que, acredita-se, levou diversos artistas a adotarem a mail um dos artistas brasileiros mais atuantes no que se refere à arte postal,
art foi a capacidade de dinamizar as trocas, eliminando mediações sendo um dos organizadores, em 1975 no Recife, da I Exposição
institucionais. A mail art trazia embutida em si a possibilidade de Internacional de Arte Correio. No ano seguinte, durante a II
subverter a lógica sistêmica do capital e dos centros de poder estético, Exposição Internacional de Arte Correio (desta vez realizada no hall
pois incitava a participação de todos enquanto artistas em potencial, do edifício sede dos Correios do Recife, que patrocinou a mostra), a
criava e multiplicava circuitos para a arte e recusava a obra enquanto censura militar fechou o evento minutos após a sua abertura, levando
objeto de valor e propriedade de uma classe artística privilegiada. presos os seus organizadores, Paulo Bruscky e Daniel Santiago.
De fato, a mail art – ou arte postal, como também ficou conhecida Usei acima a palavra utopia intencionalmente, pois também é
– é emblemática ao falarmos de multiterritorialidade – e de relações evidente que as lógicas sistêmicas capitalistas reagiriam de alguma
de des-re-territorialização. Esta prática artística segue uma lógica forma, num processo de apropriação, que é inclusive identificado
territorial que é análoga ao próprio movimento tecido pelas sociedades por outro artista que utiliza a arte postal, Julio Plaza (1938-2003).
contemporâneas – um movimento em direção à territorialização do
Paulo Bruscky, Arte Correio e a grande rede: hoje, a arte é este comunicado [originalmente publicado
70

próprio movimento, dos próprios fluxos. Assim, para a arte postal não em 1976], em Glória Ferreira e Cecília Cotrim (seleção e comentários), Escritos de artistas: anos
60/70, 2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, página 374.
84 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 85

Este autor, em 1981, diz por um lado que a arte postal surge como na década de 2000. Mais uma vez saliento que tomo por práticas
fenômeno “crítico ao estatuto de propriedade da arte, ou seja, à artísticas as produções culturais realizadas exclusivamente por
cultura como prática econômica, e que propõe a informação artística agentes do sistema da arte. É evidente que o campo cultural paraense
como processo e não como acumulação”71; por outro lado, porém, proporcionou outras territorialidades há mais tempo, mas o sistema
Julio Plaza também diz que da arte só apresentou produções deste tipo a partir da década de
(...) a Mail Art cria um circuito dentro do sistema da arte, ampliando-o, 1980, em situações esporádicas. Temos no Pará, o aparecimento desta
mas não sem contradições. Uma delas é sua penetração e apropriação
desterritorialização em um contexto histórico diferenciado do que
por outros circuitos, mesmo institucionais. É claro que não é da
natureza da Mail Art entrar em ritmo de exposição para o grande mediava a arte correio. Apresentarei alguns exemplos para evidenciar
público: quando isto ocorre a Mail Art se satura na experiência do estas diferenças.
macrogrupo e a informação não é vista de uma forma fragmentária,
mas em simultaneidade72.
Já em 1981, Julio Plaza identificava a apropriação da
“Mênstruo Mostra Monstro Mostarda”, Lúcia Gomes, 2006
potência desterritorializadora da arte postal pelas instituições
Um exemplo interessante de desterritorialização, forçando
culturais. É importante, porém, ressaltar que à apropriação pelo
os limites da arte contemporânea em direção a outros campos da
sistema se sobrepõe uma saturação, uma perda de potência. Um
experiência cotidiana é a ação Mênstruo Mostra Monstro Mostarda, da
esvaziamento do signo em prol da produção de imagens esvaziadas
artista Lúcia Gomes, realizada em 2006.
de pensamento, mas convertidas em capital cultural. Estas práticas
Cabe abrir um parêntese para ressaltar a importância da produção
artísticas, portanto, “quando ‘protegidas’ pelos museus, (...) correm
desta artista para a pesquisa que originou este ensaio. Transitando
o risco do estancamento”73.
entre diversas territorialidades, Lúcia Gomes tem a sagacidade de
Desnecessário dizer: este estancamento da potência artística
se infiltrar das maneiras mais diversas e nos espaços mais distintos
é diretamente proporcional ao livre fluxo da máquina econômica
uns dos outros. Recorrerei a exemplos encontrados na sua produção
institucional. Mas não sejamos fatalistas, nem românticos: a
diversas vezes no decorrer deste texto, e não poderia me furtar a
institucionalização de tais práticas não é, em si, negativa. E o riso do
apresentar uma de suas obras como exemplo inicial para a discussão
estancamento por vezes é necessário para que se proporcionem novas
das múltiplas territorialidades na arte contemporânea paraense.
experiências na produção contemporânea.
Nascida em Belém, em 1966, Lúcia Gomes chegou a cursar a
No Pará, as práticas artísticas desterritorializantes aparecem
graduação em Educação Artística / Habilitação em Artes Visuais da
alguns anos depois do contexto da arte postal – em sua maioria, já
UFPA, curso que abandonou antes de concluir. Desenvolvendo uma
71
Julio Plaza, Mail Art: arte em sincronia, em Glória Ferreira e Cecília Cotrim (seleção e comentários), produção instigante e atuando no cenário paraense desde o final da
Escritos de artistas: anos 60/70, 2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009,página 452.
72
Obra citada, página 455.
década de 1990, atualmente a artista reside fora do país, sem perder o
73
Regina Melim, Performance nas artes visuais, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, página 61. vínculo com o circuito de arte contemporânea paraense.
86 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 87

Sobre a ação Mênstruo Mostra Monstro Mostarda, recorrerei às


palavras de Orlando Maneschy para descrevê-la.
(...) realizada no Dia Internacional da Mulher, 08 de maio, em
homenagem à irmã Dorothy Stang, missionária norte-americana
assassinada em 2005, que trabalhava na Região Amazônica com
questões fundiárias e ecológicas. Nesta ação, desenvolvida no centro da
cidade, na Avenida Visconde de Souza Franco, mais precisamente no
canal da Doca, antigo rio, que atualmente recebe esgoto de prédios de
luxo e deságua na Baía do Guajará, Lúcia Gomes entra no canal com
garrafas cheias de tinta na cor vermelho China e penetra na tubulação
de esgoto. É no interior das vias que a artista irá tingir os dejetos fétidos
despejados no canal. Descalça, vestida de negro, não se preocupa com o
risco que está correndo, apenas tinge de vermelho a água, que começa
a escorrer e se espalhar por toda a extensão do canal no final da tarde74.
Ao praticar tal ato, atravessado de sentidos políticos, sociais e
artísticos, Lúcia Gomes potencializa a fuga das práticas artísticas em
direção à vida comum, ordinária. Mas é evidente que existem sinais
(nem tão aparentes) de que sua produção é uma prática artística, como
o fato dela mesma ser uma artista contemporânea. Essa multiplicidade
de sentidos simbólicos fica evidente na fala de Maneschy.
Vendedores ambulantes, desportistas que caminham ao redor da
vala tentam entender o porquê da cor vermelha que se espalha em
nuances e degradês, propiciados pela diluição da tinta e misturada com
detergentes, químicos, variando entres diversos tons do vermelho. “É
arte!”, fala um ambulante que acompanha a ação desde o início (...).
É uma ação silenciosa, dividida com pessoas simples para os quais a
artista fala sobre a obra. Não interessa a ela apenas o público de arte,
mas interessa fazer pensar, estimular uma transformação na vida, no
cotidiano das pessoas enquanto cidadãos75.
O discurso da arte atravessa mesmo estas práticas
desterritorializadas, quando se leva em conta que práticas semelhantes
são realizadas dentro dos sistemas da arte contemporânea, e a associação
entre ambas se torna evidente (para os que possuem o conhecimento
74
Orlando Maneschy, Lúcia Gomes e o livre pensar, em Marisa Mokarzel (org.), Estudos de artes
Registro da ação Mênstruo Mostra Monstro Mostarda de Lúcia Gomes, Belém, 2006. visuais e suas interfaces, Belém: Unama, 2006, páginas 167-169.
Fonte: imagem cedida por Fundação Lúcia Gomes. 75
Obra citada, página 169.
88 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 89

especializado, é claro). Entretanto, a ação não representa algo, não se


espetaculariza, mas sim instaura um processo, uma prática simbólica,
inserida na multiplicidade de agentes sociais transitando na via urbana
(uma das mais movimentadas de Belém).

“Jabiracas”, Fernando de Pádua, a partir de 2005


Outro exemplo é a Jabiraca, ou Esquizobike, do artista Fernando
de Pádua. A obra é descrita pelo próprio autor como híbrido entre
diversos campos: objeto escultórico, intervenção urbana, processo
experimental e interativo76. Consiste na desconstrução e construção
de bicicletas que fogem ao padrão estrutural, com eixos desarticulados
e composições de peças que provocam estranhamento.
Nascido em Colares, em 1979, o artista desenvolve tais
experimentações desde 2005, em municípios como Colares,
Ananindeua e Belém. Em 2012 concluiu o curso de Mestrado em
Artes pela UFPA. Suas construções não são objetos para serem
propriamente fruídos, mas antes para serem fluídos em processos
de experimentação em trânsito pela urbe. É o estranhamento
provocado ao andar na Jabiraca e ao observá-la em movimento que
constitui a função primordial da obra. Não é, portanto, um objeto
inserido nos espaços dos sistemas de arte contemporânea, a não ser
através do discurso tecido pelo próprio artista-pesquisador e por
outros teóricos.
Estrutura cheia de molejo bailando sobre rodas que rodopiam sobre
seu próprio eixo na margem dos fluxos de passagem das rodovias, ruas,
becos e vias de trânsito. Estruturas grotescas a transitar pela cidade, um
confronto direto com a lógica urbana estruturada de forma racional
76
Fernando de Pádua Azevedo, Jabiraca: esquizobike, experimentação e outros processos formativos, nos
Registros da ação Flor no asfalto de Fernando de Pádua, elaborando Anais do V Fórum Bienal de Pesquisa em Artes (2010: Belém, PA): provocações-transformações-
uma “jabiraca” capaz de produzir ciclofaixas, Belém, 2011. revoltas, organização de Edison da Silva Farias e Lia Braga Vieira, Belém: PPGARTES/ICA/
Fonte: imagens cedidas pelo artista. UFPA, 2010, páginas 680-688.
90 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 91

para a fluidez do trânsito das grandes cidades. Amontoado de matérias


em suspensão, construindo formas estranhas e destoantes, instaurando
um universo outro no mundo real aparentemente ordenado:
ESQUIZOBIKEJABIRACA77.
A desterritorialização da arte contemporânea, então, atua no
sentido de possibilitar outras subjetivações no seio dos grupos sociais,
por meio de mecanismos propriamente artísticos, sem no entanto se
ater aos sistemas da arte. São ações estéticas, porém impregnadas de
sentidos políticos e sociais que se sobressaem a própria esteticidade
das ações artísticas.
Sem passar pelo crivo das instâncias legitimadoras da arte
contemporânea, tais manifestações se dão aos usos sociais. E dessa
maneira podem mesmo incitar novos usos para si – aqueles que
são possibilitados pelo contato com a sociedade – que nem sempre
correspondem às destinações típicas das instituições artísticas para
tais objetos ou processos. Basta lembrar que os Bichos da artista
Lygia Clark, entre outros exemplos, atualmente estão intocáveis e
salvaguardados nos pedestais entre as paredes institucionais.

“Espaços de não-violência”, coletivo Novas Médias, a partir de 2009


O coletivo Novas Médias, formado por diversos artistas, dos quais
Bruno Cantuária e Ricardo Macêdo são os mais fixos e atuantes, propõe
desde 2009 a colagem de adesivos criados pelo coletivo, trazendo
mensagens do tipo “Espaço de não-violência, verbal, psicológica,
moral, física, familiar, independentemente de classe, etnia, orientação
sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião”. Os adesivos
são disponibilizados pessoalmente pelos artistas (em eventos de arte,
dentre outros), ou podem ser copiados no site do Novas Médias78 para
serem impressos e aplicados no lugar que preferirmos.
Registros da ação Espaços de não violência do coletivo Novas Médias, Belém, 2009. 77
Obra citada, página 688.
Fonte: imagens cedidas por Bruno Cantuária e Ricardo Macedo. 78
http://novas-medias.blogspot.com
92 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 93

Os Espaços de não-violência criados pelos artistas e pelo público expositivos para estes agentes. Entretanto, para o público em geral,
interessado são interferências que discutem não somente questões que geralmente está excluído do circuito informacional do sistema
artísticas, mas principalmente questões políticas e culturais, ao da arte, as ruas e seus objetos (como a ação do Novas Médias) são
remeter às relações desrespeitosas e violentas estabelecidas na urbe, experimentados primordialmente em outra esfera, que não a artística.
criando um espaço ficcional no qual estas relações não são permitidas. E é neste sentido que aproximo, neste ensaio, ações deste tipo muito
O interessante é que a ação tem a capacidade de se popularizar mais ao ativismo do que à arte contemporânea.
rapidamente, como qualquer informação inserida na internet. Um dos principais sentidos da proposta Espaços de não-violência
Esta ação é um exemplo da atividade artística encarada como é justamente confrontar a arte com outros campos distintos da
ativismo, no qual não é aparentemente coerente a apropriação destes existência social, particularmente discutindo as relações de poder
objetos enquanto estéticos, no sentido de adentrarem os espaços e violência nas sociedades urbanas. Espetacularizar o adesivo dos
expositivos tradicionais enquanto proposições artísticas. O que Espaços de não-violência, transformando-o em obra de arte sob os
caracteriza os Espaços de não-violência como proposições artísticas é mesmos critérios que uma fotografia artística, por exemplo, consiste
essencialmente o fato de seus propositores serem artistas, agentes do em privar o objeto/prática de sua função primordial, que é a função
sistema da arte contemporânea paraense. Pretender que estes adesivos política e social. Quando o adesivo deixar de comunicar a respeito da
sejam analisados dentro do mesmo, digamos, paradigma que outras violência e passar a comunicar a respeito da estética e da arte, talvez
tenha perdido sua principal potência (ativismo urbano) em prol da
obras – inclusive dos próprios membros do coletivo Novas Médias79
construção de um espetáculo (exposição de arte).
– significa pretender que todo um repertório histórico, artístico e
A ação Espaço de não violência produz o real ao tornar a prática
cultural seja ignorado (coisa que algumas vezes é feita pelas instituições
(artística, política, econômica, social) um processo em fluxo contínuo.
culturais paraenses).
Se a ação for transformada em representação, exposta em um espaço
Se observarmos as ruas como espaço expositivo, subentendemos
formal, consequentemente se tornará outra obra. Esta exposição como
que mesmo exposto na urbe um objeto ainda privilegia o caráter
representação não é, em si, questionável. É, aliás, bastante útil como
estético/artístico, e não um caráter político, social ou qualquer outro.
informação, memória, preservação do patrimônio cultural recente.
Mas precisamos compreender que a ação do Novas Médias é artística
Mas quando os sistemas da arte contemporânea exibem as duas
somente para os agentes do sistema da arte, inseridos dentro do circuito
coisas como se fossem a mesma obra, então se torna questionável a
de informações do mesmo, só funcionando as ruas enquanto espaços
pertinência de tais processos, já que ocorre uma pura espetacularização
79
Como exemplo temos a exposição Identidades Móveis, do Novas Médias, realizada de 8 de das práticas artísticas. Essas questões serão discutidas mais adiante.
novembro a 14 de dezembro de 2010, no Espaço Cultural Banco da Amazônia. Nesta exposição, Por enquanto basta ressaltar que as práticas deste tipo – como
as obras se constituem de registros fotográficos e videográficos de ações performativas realizadas
por Bruno Cantuária e Ricardo Macêdo. Em Identidades Móveis as ações são orientadas para o Mênstruo Mostra Monstro Mostarda (de Lúcia Gomes), Jabiraca
registro, este atuando como recurso estético, diferente dos Espaços de não-violência, ação projetada (de Fernando de Pádua) e Espaço de não violência (do coletivo
para a inserção no tecido público urbano.
94 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 95

Novas Médias) – forjam linhas de fuga por meio das quais a arte 2.2. Reterritorializações: dispositivos de apropriação
expande seus próprios limites conceituais, e são exemplos claros de
A consequência da desterritorialização é – como está claro
desterritorialização da arte contemporânea. Mas aquela suposta fusão
– uma reterritorialização. O cerne deste movimento, no que diz
da arte com a vida e o cotidiano não se concretiza, porque o discurso
respeito à arte, está na conjuntura entre as possibilidades técnico-
do sistema da arte contemporânea continua atuando sobre tais
material e conceitual.
práticas, como se torna evidente ao notarmos a inserção destas ações
Como pude descrever anteriormente, houve uma aparente
no corpo textual das pesquisas de teóricos da arte, como os que foram
intenção desterritorializadora, por parte dos artistas, no século
citados anteriormente e como este ensaio – que é parte infinitesimal
20, que questionavam certos espaços privilegiados e noções
deste discurso.
institucionalizadas. As conjunções entre técnica (matéria) e ideia
(conceito) levaram ao surgimento de práticas que denominei, neste
ensaio, práticas desterritorializantes, seja em relação ao sistema da
arte ou em relação ao próprio objeto da arte, nas quais as relações
tradicionais são subvertidas.
Porém, mesmo que os artistas – ou os agentes sociais da
cultura, não especificamente artistas – subvertam a lógica sistêmica
institucionalizada através de novas práticas, este mesmo sistema
age em um movimento de reação (uma contrapartida) no sentido
de apropriação destas práticas pelo discurso. Em outras palavras,
as práticas tomadas por desterritorializantes (ao sistema da arte)
são rapidamente inseridas dentro da lógica cultural do capitalismo,
convertidas em valor. Não é necessariamente uma perda de sentido ou
de pertinência crítica (ainda que muitas vezes se configure como tal),
mas sim uma transformação daquelas práticas primeiras em outras
relações dentro da arte.
A produção de práticas desterritorializadoras não excluiu a arte
de dentro de um sistema social, mas antes provocou sua reformulação,
incluindo estas práticas artísticas, através de outras formas, dentro do
mercado de produção de valor simbólico que é o discurso. E, inclusive,
dentro do mercado econômico que atravessa a arte contemporânea de
diversas maneiras.
96 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 97

É bastante evidente, então, que todo posicionamento dentro É inegável que o sistema da arte contemporânea mantém uma
do campo artístico é também um posicionamento econômico, estrutura mercadológica especulativa, que literalmente constrói o valor
político e intelectual – campos que se transversalizam mutuamente. dos artistas, através dos discursos tecidos no circuito midiático da arte
A desterritorialização não é somente um posicionamento estético, contemporânea. Estamos lidando, claro, com a arte contemporânea
mas igualmente um posicionamento político e intelectual com em uma escala global, nas relações tecidas pelos grandes centros
implicações econômicas. E como tal, gera reações não apenas econômico-culturais do planeta, que ocasionam esse tratamento
estéticas, mas políticas, intelectuais e econômicas, que muitas vezes da arte como investimento, produzindo oscilações nas cotações
são suficientemente sutis para permanecerem despercebidas em suas econômicas de obra e artistas superestimados pelo mercado.
influências sobre as relações do sistema da arte contemporânea. Evidentemente não tenho a intenção de afirmar que a arte
A reterritorialização, portanto, enquanto apropriação simbólica contemporânea é um punhado de objetos e práticas etiquetados
das práticas artísticas pelos sistemas da arte, atua muito mais em com seu (in)devido preço. O que quero dizer, por outro lado, é
posicionamentos político-econômicos do que propriamente em algo bem próximo: a arte contemporânea é um punhado de objetos
posicionamentos artístico-estéticos. Tal qual a figura mítica da e práticas etiquetados com seu (in)devido valor simbólico – valor
cobra que devora seu próprio rabo, o sistema da arte retira sua força este que é socialmente construído a partir de dispositivos de um
exatamente do lugar onde ele próprio termina, onde é suprimido. discurso específico, que é o do sistema da arte. Nesse grande mercado
Talvez um eterno ciclo em direção a uma institucionalização, que artístico cultural os valores simbólicos não são conferidos conforme
também se manifesta nos mais diversos campos da experiência
o critério do material, das dimensões ou de qualquer outra forma
humana (a institucionalização da religião, a institucionalização do
de medida de grandeza que possa mensurar com equidade os valores
saber, a institucionalização da política etc.). Des-re-territorialização.
comparativos de cada produto. Na arte contemporânea os valores
Mais do que nunca vale a afirmação: arte é valor.
oscilam justamente porque são arbitrariamente conferidos, refutados
E não somente um valor estético, significante em si mesmo,
e sumariamente modificados pelos agentes do discurso que viabiliza
mas, principalmente (nas intenções deste texto) um valor simbólico,
estes valores sociais.
um capital cultural do qual se valem determinados grupos sociais em
Capital simbólico não é necessariamente valor econômico, ainda
detrimento de outros. Poder simbólico que, em outras tantas vezes, é
que todo valor econômico seja um capital simbólico. Os sistemas da
convertido em valor econômico. A arte, apesar de multiterritorializada,
arte contemporânea deflagram valores sobre os produtos da própria
continua sendo dinheiro. Não é nenhum segredo que o mercado da arte
contemporânea seja baseado em especulações construídas pelo próprio arte, já que esse sistema existe dentro da lógica do consumo, tal qual
sistema da arte contemporânea80 – bolhas especulativas que muitas vezes apontou Fredric Jameson81. Uma lógica cultural do capitalismo tardio.
“estouram” causando prejuízos enormes aos agentes sociais envolvidos. Uma lógica capital por trás da cultura. Uma distribuição de valores

Conferir o livro de Sarah Thornton, Sete dias no mundo da arte: bastidores, tramas e intrigas de um
80
81
Fredric Jameson, A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização, seleção e prefácio de Maria
mercado milionário, tradução de Alexandre Martins, Rio de Janeiro: Agir, 2010. Elisa Cevasco, tradução de Maria Elisa Cevasco e Marcos César de Paula Soares, Petrópolis: Vozes,
2001.
98 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 99

que mantém o funcionamento da arte contemporânea, mesmo que inseridas dentro da arte contemporânea, construindo as múltiplas
inteiramente “desterritorializada”. territorialidades em análise. É evidente que em alguns casos
Tomemos, como exemplo, o local que é, possivelmente, o mais essa multiterritorialidade permitirá aos artistas experimentarem
abstraído e desalojado de todos os espaços – posto que nem sequer se práticas genuínas e criticamente pertinentes, mas em outros casos a
configura como um local, mas sim como a possibilidade de um local. multiterritorialidade permitirá que sejam forjados signos sem qualquer
Refiro-me, claro, ao espaço virtual ou ciberespaço, alardeado por contextualização, simplesmente deslocados para dentro do sistema da
muitos como condicionador de novas maneiras de se relacionar com arte contemporânea. A reterritorialização dessas práticas não é em
o mundo e consigo mesmo – no que concordo inteiramente. No que si um “entrave” a ser superado, mas traz diversas possibilidades que
diz respeito ao ciberespaço enquanto elemento desterritorializante devem ser analisadas.
em relação ao sistema da arte contemporânea, porém, terei que fazer Podemos observar que o século 20 foi marcado por uma intensa
inúmeras ressalvas. vontade, até mesmo visceral, de negar a arte (enquanto arte oficial,
É importante que não se tome o ciberespaço unicamente como sistematizada). Contestação e depredação de valores que remonta
elemento democratizante da arte, que a desterritorializa e desloca para às vanguardas artísticas modernistas, nas quais beberam os artistas
e práticas desterritorializantes da segunda metade do século. Uma
outros espaços, atuando no sentido de estar posto fora do sistema da
negação, sobretudo, dos museus e da crítica de arte, arautos de todo
arte. O limite é tênue e instável, e corro grande perigo ao tentar a
um sistema legitimador baseado na arbitrariedade da manutenção dos
categorização de tais produções. De fato, o ciberespaço possibilita a
poderes e discursos.
existência, o alcance, a reprodutibilidade, a superação de barreiras
Assim, é perfeitamente justificável que autores como Eduardo
tradicionais, conforme já ressaltaram Pierre Lévy82 e outros autores.
Subirats83 assumam um discurso radical, que afirma, entre outras
Porém, a arte contemporânea atua sob uma rubrica específica, que
coisas, a banalização comercial da arte travestida em um vazio
é aquela do discurso especializado, e, portanto, exclui ou assimila
espetacularizado, em favor de uma moda linguística normalista dos
práticas, mesmo aquelas típicas do ciberespaço.
potenciais transgressores. Diz Subirats que
Atualmente, práticas artísticas bastante diversas, mas que A obediência estrita a conceitos estilísticos pré-fabricados (...) e a
possuem em comum o fato de serem experimentadas integralmente no subordinação desses “pacotes estilísticos” aos “acabamentos” formais
ciberespaço (em websites, por exemplo), são documentadas, discutidas, das diferentes correntes dos pioneiros das vanguardas (a ilustre série de
neotendências que se sucedem hoje em dia com a maior tranqüilidade
teorizadas, apresentadas em exposições convencionais, financiadas por e a mais entusiasta pretensão inovadora) são, nesse sentido, as duas
instituições e até mesmo reunidas em grandes exposições artísticas que características mais notórias da grande produção artística desde a
tem a tecnologia eletrônica e digital como interesse. Segunda Guerra e, em última instância, as diretrizes que também regem
o comportamento do mercado artístico, dos museus e da própria crítica
O que está em questão neste ensaio não é a qualidade de de arte84.
obras deste tipo, mas sim as formas como estas obras e práticas são 83
Eduardo Subirats, Da vanguarda ao pós-moderno, tradução de Luiz Carlos Daher, Adélia Bezerra
82
Pierre Lévy, Cibercultura, tradução de Carlos Irineu da Costa, 2ª ed., São Paulo: Ed. 34, 2000. de Meneses e Beatriz A. Cannabrava, 4ª ed., São Paulo: Nobel, 1991.
84
Obra citada, página 117.
100 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 101

Portanto, antes de apontarmos os sistemas da arte como os 2.2.1. Instituições


principais detratores do potencial transgressor de certos movimentos,
É bastante óbvio que, dentro de um sistema da arte contemporânea,
é necessário que observemos primeiramente os sistemas da arte
não somente museus e galerias são instituições (dispositivos), mas
como elementos condicionados por um determinado contexto. Uma
também os artistas e as obras. Entretanto, nesta subseção eu gostaria
configuração cultural e histórica obsoleta – marcada por um atraso
de propor o termo instituição a partir de um enfoque mais específico.
e por uma estagnação do pensamento – possibilita uma drástica
Tomarei o termo para designar determinadas formas de organização
ruptura. Uma drástica ruptura, por sua vez, possibilita simplesmente
empresarial ou estatal, como fundações, institutos, empresas privadas,
uma normalização posterior, da qual surgem os mecanismos da lógica
dentre outros modelos institucionais – que geralmente possuem um
sistêmica da arte e do capital, em nossas sociedades.
organograma relacionado às funções exercidas por pessoas empregadas
Neste contexto, as relações estabelecidas em torno das práticas
na instituição.
artísticas da segunda metade do século 20 até os dias atuais
Neste estudo, analisarei prioritariamente as instituições voltadas
geralmente operam no nível da normalização, do espalhamento
para objetivos de promoção cultural, que em determinados momentos
dessas práticas. Apontarei alguns dos mecanismos gerais através dos
relacionam-se com o sistema da arte contemporânea – seja através da
quais os sistemas culturais operam, no sentido de “decantação dos
realização de exposições, eventos, financiamento de pesquisas ou de
momentos transcendentes e transgressores da arte em favor de seu
produções artísticas, oferta de cursos em diversos níveis de ensino
papel normativo”85, que identifico como dispositivos institucionais,
formal ou informal etc.
de intermidialidade e de regulamentação. Dispositivos no sentido
Dada a quase inexistência de um mercado de arte contemporânea
de Giorgio Agamben, ou seja, enquanto capacidade de forjar ou
na região, me debruçarei com maior profundidade sobre as
condicionar determinados comportamentos.
instituições que não são direcionados prioritariamente por interesses
Tais relações são aqui colocadas como processo de
de mercado. Recorro ao pensamento de Raymond Williams, quando
reterritorialização, da qual emerge a multiterritorialidade apontada,
este autor analisa as instituições culturais, especificamente aquelas
por este ensaio, na arte contemporânea. Ressalto que não há qualquer
que se estabelecem após a predominância do mercado empresarial,
interesse em hierarquizar tais mecanismos, nem tampouco categorizá-
diferenciando-se do mesmo. Williams as chama de instituições pós-
los em compartimentos estanques, haja vista que os mesmos são
mercado. Para este pensador, estas instituições são de vários tipos,
interpenetráveis e interdependentes, como se tornará evidente.
havendo desde a gestão governamental até iniciativas privadas,
passando por administrações mistas e associações de diversos matizes.
Tais instituições auxiliam a manutenção de “certas artes que não são
lucrativas nem mesmo viáveis em termos de mercado”86.
86
Raymond Williams, Cultura, tradução de Lólio Lourenço de Oliveira, 2ª ed., São Paulo: Paz e
85
Eduardo Subirats, obra citada, página 118. Terra, 1992, página 54.
102 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 103

A importância destes mecanismos institucionais, para a arte As instituições têm atuado em diversos campos nos sistemas da
contemporânea, é fundamental, principalmente em uma região arte contemporânea, dos quais os mais evidentes são: financiamento de
marcada pela aparente insustentabilidade de um mercado para a arte práticas artísticas através de bolsas; financiamento de objetos artísticos
contemporânea. Conforme nos diz Marisa Mokarzel, permanentes para inserção em espaços públicos; construção e manutenção
Os artistas se locomovem em um circuito de arte anômalo, uma vez de acervos e espaços expositivos (geralmente museus); e realização de
que inexiste um mercado de arte e não há galerias particulares que eventos diversos (exposições, oficinas, cursos, premiações, dentre outros).
se articulem com galerias de outras cidades e principalmente com
as do eixo Rio-São Paulo, cidades econômica e culturalmente mais
Vejamos um exemplo interessante de multiterritorialidade
favorecidas, detentoras de um mercado mais eficaz.87 implementada a partir da ação institucional sobre uma produção que
O patronato de instituições que não se baseiam nas relações de a priori estava completamente imersa no cotidiano e destacada das
mercado torna-se fundamental para a existência ampla de tais práticas instâncias de legitimação da arte.
como a arte contemporânea, mediada por iniciativas privadas ou
governamentais que asseguram aos artistas um espaço no qual possam
existir, tanto em nível simbólico quanto econômico (já que, em nível “aBLAção”, Luciana Magno, a partir de 2008
simbólico, a existência de um sistema da arte pressupõe relações Luciana Magno nasceu em Belém, em 1987, e possui em seu
econômicas que sustentem tais agentes sociais). currículo, entre outras coisas, o 3º Prêmio no 28º Salão Arte Pará
A respeito dessa necessidade dos artistas contemporâneos (2009) e o Prêmio SIM de Artes Visuais – SECULT/PA (2010).
paraenses por mecanismos estatais que forneçam aparato econômico Defendeu o Mestrado em Artes pela UFPA em 2012.
para a realização de suas práticas, citarei novamente Marisa Mokarzel, Apresentada por Luciana Magno em 2008, aBLAção foi uma
quando diz que ação realizada na Praça da República, em Belém, em uma manhã de
Sem uma sustentação sólida que aponte para a presença de um mercado grande movimentação de pessoas, na qual a artista, segundo o jornal
de arte, o artista lança-se em outros processos de circulação, revelando Diário do Pará,
um paradoxo que, por um lado, paralisa-o, sem contar com uma fez uma gravação só com a onomatopeia “blábláblá”. Ligou uma caixa
comercialização do seu trabalho e, por outro, mobiliza-o, ao interligá-lo de som, pediu uma bicicleta emprestada a um camelô e saiu pela Praça
a novas alternativas que tornam viável outro processo de sustentação.88 da República com o aparato. “Porque muitas vezes as pessoas falam
É a partir destas relações, por exemplo, que o Instituto de demais sem ter nada a dizer”, diz ela.
Era período de eleições municipais e logo o protesto solitário foi
Artes do Pará disponibilizou recursos para os projetos que considero
assimilado como uma manifestação de cunho político. “Eu adorei.
pioneiros neste Estado, investimentos que se tornaram seminais A intenção nem era essa, mas percebi que poderia existir essa relação
no estabelecimento da discussão da multiterritorialidade aqui política”, diz.89
empreendida, aos quais retornarei mais adiante. Inicialmente uma ação artística (porque realizada por uma
artista) desterritorializada, aBLAção nos mostra, posteriormente, que
87
Marisa Mokarzel, Entre garças e urubus: a (in)sustentável arte produzida na Amazônia, em:
Caderno VideoBrasil, v. 02, 2006, página 97. 89
Dominik Giusti, Pra quem já cansou de blábláblá, jornal Diário do Pará, edição de 26 de setembro
88
Obra citada, página 99. de 2010.
104 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 105

outras possibilidades de desdobramento são dadas a estas práticas por


meio da reterritorialização institucional.
A performance foi registrada em vídeo, que foi disponibilizado
em uma página pessoal da artista no site Multiply. Em 2010 o registro
videográfico de aBLAção fez parte de exposição coletiva no espaço do
Fórum Landi, em Belém, durante o V Fórum Bienal de Pesquisa em
Artes, promovido pela UFPA. Também em 2010 a artista realizou
uma segunda performance semelhante à aBLAção: a carreata Blá blá
blá. A artista convocou o público a participar de uma carreata no dia
26 de setembro, em pleno período eleitoral, concentrando em frente
ao Museu Histórico do Estado do Pará, na qual foi veiculado somente
o infindável blá blá blá. Além da carreata a artista também realizou
outras manifestações dentro da proposta da obra, estendendo faixas
com o blá blá blá em sinais de trânsito.
Tal proposta, no limiar entre o ativismo político e a arte
contemporânea, contribui para repensarmos as territorialidades da
arte, ao repararmos, por exemplo, da inserção do registro em vídeo
em uma exposição formal e da adesão de outros artistas durante o
processo da obra. Se os outros caminhos abertos pelas instituições
para práticas como esta são interessantes ou não, significativos ou não,
é uma questão de complexidade tal que não me atreverei a tentar
respondê-la neste ensaio.

Instituto de Artes do Pará, 2003


Retorno agora aos pontos supracitados como iniciais nos processos
de multiterritorialização da arte contemporânea paraense, que são
os dois projetos realizados através de incentivo do IAP (Instituto de
Frames extraídos do vídeo aBLAção de Artes do Pará) no ano de 2003. Fique ressaltada a importância do IAP
Luciana Magno, Belém, 2008. na viabilização destas práticas até então pioneiras no estado do Pará,
Fonte: imagens cedidas pela artista.
106 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 107

enquanto a maioria dos eventos e instituições de arte no período ainda UTI para o local abandonado. Chico Paes, habitante de Abaetetuba,
primava por um tratamento expositivo ou curatorial tradicional. escolheu a fábrica de compensados abandonada, montando “operários”
O primeiro projeto chamou-se Intervenções Urbanas, realizado de madeira compensada “trabalhando” no local – assim como Carlos
em Abaetetuba (município no interior do estado), e teve curadoria do Meigue, protestando ao abandono e desemprego na região. Cledyr
paulista Ary Perez e participação dos artistas paraenses (ou residentes Pinheiro adotou como espaço expositivo um matadouro da cidade,
no estado) Armando Queiroz, Carlos Meigue, Chico Paes, Cledyr dispondo cabeças de boi sobre cepos naquele espaço, como esculturas
Pinheiro, Margalho e Nio. Nas palavras de Ary Perez, “O projeto em pedestais. Outro artista natural do município, Margalho, instala
se propunha ser um laboratório, experimentação de tudo, e resultar sua intervenção às margens do rio que banha a cidade, segundo Ary
em intervenções urbanas ou na floresta. A vivência, a formação de Perez em um local que “era antes ocupado por uma escultura que fora
um conceito, o projeto e a construção das obras foram realizados arrancada violentamente (...). A estrutura montada em madeira nobre
dentro de um prazo e custo limitados”90. O processo contou com uma da região requadrava o rio e no seu interior continha radiografias
fase de pesquisa, quando curador e artistas estiveram na cidade para onde se encontravam as imagens da escultura morta”92. Nio, outro dos
coletar informações e experimentar os espaços, e posteriormente o artistas naturais de Abaetetuba, pintou cenas na fachada de um hotel
planejamento de propostas, seguido da volta do grupo para a execução de noventa quartos abandonados, também propondo sua intervenção
destas propostas em Abaetetuba. partindo de uma construção desativada na cidade.
O município de Abaetetuba possui 1.610 km² de área, com Quais tensões se estabelecem a partir destas intervenções?
129.300 habitantes (IBGE, 2004), “está mais para um enclave Antes de prosseguir com esta indagação, quero descrever
urbano na floresta, percolada pelos ritmos e fluxos naturais da outro projeto realizado em 2003, também pioneiro na questão das
Amazônia. A floresta se impõe, assim como sua produção e sua multiterritorialidades na arte contemporânea paraense, chamado
cultura”91, nas palavras de Ary Perez. Abaetetuba, portanto, é uma Provocações Urbanas: Apeú, Belém, Colares e Quatipuru, que se
cidade relativamente pequena, e a intenção do projeto era justamente desdobrou em quatro ações realizadas nestas cidades. O projeto foi
evidenciar os aspectos estéticos de locais como aquele, nos próprios proposto pela artista paraense Lúcia Gomes ao edital de Bolsas de
locais, fugindo ao convencionalismo dos espaços expositivos formais. Pesquisa Experimentação e Criação Artística do IAP.
O artista Armando Queiroz utilizou o mercado municipal de Na Orla de Boa Vista, município de Quatipuru (interior do
carne como espaço expositivo, montando um painel com retratos de estado), foi realizada a ação denominada Flutuantes, que movimentou
habitantes comuns de Abaetetuba. Carlos Meigue fez sua intervenção diversos voluntários da comunidade para sua realização93. Flutuantes
em um alambique desativado (Engenho Sr. Manteigueira), local traz referências estéticas da Marujada – evento cultural tradicional
em que uma família ainda habitava, e implantou fluxos de líquidos na região, que mobiliza a comunidade na produção de indumentária
coloridos em tubos e garrafas plásticas, montando uma espécie de 92
Obra citada, sem número de página.
90
Catálogo Intervenções urbanas: Abaetetuba - PA, Belém: Instituto de Artes do Pará, 2005. 93
A maior parte das informações a respeito das obras de Lúcia Gomes, citadas nesta subseção,
91
Obra citada, sem número de página. foram concedidas pela artista através de entrevista informal por correio eletrônico.
108 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 109

típica da festa (saia, camisa, chapéu etc.), e em um cortejo festivo


envolvendo música, dança e alegorias. Lúcia Gomes juntou-se aos
moradores da comunidade para produzir a indumentária típica da
Marujada, quase toda na cor branca (a tradição da festa inclui outras
cores), e posteriormente seguir em um cortejo até a orla do rio que
banha a cidade, onde as peças produzidas foram penduradas nos
barcos que estavam ancorados. A cor branca e o ato de flutuar evocam
a paz, tão desejada. Flutuantes, além de inserir diversas pessoas em seu
processo, culmina em ações ao ar livre, instauradas nos barcos, nas ruas,
no cortejo, no corpo das pessoas. A obra de arte se desterritorializa e
assume os espaços da cidade envolvida com o projeto.
No Lixão do Aurá, em Ananindeua (município que compõe
a região metropolitana de Belém), foi realizada a ação Sanitário ou
Santuário? Salão das águas, atualmente renomeada pela artista como
Pororoca, que foi descrita por Marisa Mokarzel:
A ação desenvolveu-se em apenas um dia, neste local onde os catadores
revezam-se na seleção do lixo da cidade. Dentro de uma proposta
ambiental, mas de cunho social muito evidente, a artista, com a ajuda
de alguns trabalhadores, transporta um barco de nome Belém do
Pará (na outra face, o nome Boto Branco) até o lixão, juntando-o aos
catadores e aos urubus. Encalhado em um morro de lixo, inútil e sem
poder navegar, o barco fica exposto ao ambiente fétido (...).
Ao anoitecer, neste cenário onde a miséria habita e onde não parece
caber o ato poético, é realizado um concerto musical, com quatro
músicos, impecavelmente vestidos. (...) Com o término do dia é servido
um pequeno alimento: beiju. A artista, em um ritual quase religioso,
reparte o que comer com quem convive com os desperdícios, restos de
muitos outros que já comeram ou que, como eles, catadores de lixo,
passam fome.94
No município de Colares foi realizada a ação Olhar de Vivó, que
faz referência a uma história popular da ilha, que diz haver uma cobra
Registro da ação Pororoca ou Sanitário ou Santuário
gigante adormecida no farol. Ao acordar, se a cobra olhar para a ilha
– Salão das Águas de Lúcia Gomes, Belém, 2003. 94
Marisa Mokarzel, obra citada, página 107.
Fonte: imagem cedida por Fundação Lúcia Gomes.
110 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 111

esta irá afundar – em uma versão da história – ou prosperar – segundo


outra versão. Lúcia Gomes joga com esta dubiedade, dialogando com
questões ambientais no local – onde a artista testemunhou inúmeras
queimadas e cortes de árvores frutíferas e árvores de grande porte.
“As queimadas e o progresso trarão prosperidade?” é a pergunta que
Olhar de Vivó parece fazer àquela comunidade. A obra consistiu na
transposição, para uma praça ao lado do cemitério da cidade, de restos
de madeira retirados da floresta queimada. Os elementos dispostos
como instalação escultórica no local não eram tratados com o rigor
formal e passivo do espectador de arte, mas sim de outra forma, lúdica,
conforme os espectadores eram incentivados a experimentar a obra.
Volto à pergunta: quais tensões se estabelecem a partir destas
intervenções? Levando em conta que tanto Intervenções Urbanas:
Abaetetuba quanto Provocações Urbanas: Apeú, Belém, Colares e
Quatipuru constituíram propostas atravessadas pelo campo político-
econômico (a mediação do IAP), assim como pelo campo artístico-
estético (a intenção de artistas em discutir o local destinado à arte,
escapando aos espaços convencionais e inserindo suas propostas em
contextos diferenciados).
É válido salientar, também, que os dois projetos priorizaram
ações que não se localizaram em Belém (centro econômico e cultural
do estado), mas deslocaram-se para outros municípios e espaços, não
mediados por sistemas de sinais da arte, mas sim completamente
inseridos no cotidiano urbano.
Também vale dizer que a realização de exposições convencionais
posteriores, utilizando registros das ações realizadas, não foi um
propósito primordial de nenhum dos projetos. Ambos tinham como
finalidade a realização das ações em si, como dinâmica da própria
Registro da ação Olhar de Vivó de Lúcia Gomes, Colares, 2003. prática artística – territorializando aqueles espaços.
Fonte: imagem cedida por Fundação Lúcia Gomes.
112 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 113

São propostas claramente estéticas, mas também políticas, mercado de carne usado por Armando Queiroz desterritorializa a arte
sociais, ecológicas, nas quais a arte aproxima-se da vida justamente contemporânea (retirando-a dos museus e galerias) e a reterritorializa
para discutir sobre ela e sobre a própria arte. Qual o espaço da em um espaço de uso comercial cotidiano. Ao fazer isso, tal ação
arte paraense em pleno século 21? Não foram locais escolhidos multiterritorializa a arte, pois não há simplesmente a substituição das
aleatoriamente, mas sim com o propósito de evidenciar o local da galerias pelos mercados de carne – ao contrário, os espaços expositivos
arte na contemporaneidade, opondo-se drasticamente aos espaços convencionais continuam sendo válidos como território da arte
expositivos higienizados. Marisa Mokarzel diz, ao descrever a ação contemporânea, assim como o mercado de carne continua sendo usado
de Lúcia Gomes no aterro sanitário, que “neste cenário onde a como estabelecimento comercial em Abaetetuba. O que ocorre são
miséria habita (...) não parece caber o ato poético”95... ato poético atravessamentos de múltiplas utilizações, múltiplos códigos culturais
que se aloja e territorializa o lixão, multiterritorializando a arte em um mesmo espaço, colocando em contato a prática artística e a
contemporânea, que já não também parece não mais caber somente prática comercial (no caso do exemplo de Armando Queiroz).
nos espaços convencionais. O público que experimenta a obra é bastante diverso em suas
Ao realizar estes projetos, os artistas e o IAP possibilitam que singularidades, operando com códigos simbólicos variados, que nem
outros espaços sejam encarados como apropriados para a arte sempre são os mesmos dos especialistas da arte– no sentido usado por
contemporânea, como o mercado de carne, a beira do rio, o alambique, Raymond Williams para designar os detentores de conhecimento
o hotel e a fábrica desativados, o matadouro, o lixão, a rua etc. A especializado. É dessa multiplicidade de usos, tanto do uso dos
multiterritorialidade se estabelece justamente porque os artistas e as espaços quanto do uso das práticas artísticas, que emerge o que aponto
obras são territórios do sistema da arte, e ao ocuparem espaços não como multiterritorialidade, sendo esta uma das características da arte
convencionais também territorializam os mesmos. Entretanto, de que contemporânea, com maior vigor a partir da década de 1960.
forma tais práticas artísticas serão experimentadas pelos transeuntes? Diante dessa questão, a solução que me parece mais acertada a
Ou qual a importância que as primeiras possuem para estes últimos? ser tomada pelas instituições é utilizar espaços informais de maneira
Destas questões se depreende que é fundamental que as práticas criativa e crítica, possibilitando múltiplos usos sociais. É bastante
artísticas contemporâneas não sejam hermeticamente fechadas sobre questionável o uso que as instituições geralmente têm dado ao
si mesmas, principalmente quando localizadas em espaços de grande espaço público urbano, afirmando uma estética elitista ou “erudita”
fluxo de pessoas, mas que sejam práticas que estabeleçam um diálogo – da qual os grupos sociais alheios ao universo da arte geralmente
pertinente com o contexto em que estão inseridas. se autoexcluem –, mas utilizando recursos públicos, que deveriam
A multiterritorialidade questionada neste ensaio se constitui, beneficiar a sociedade como um todo, e não priorizar nichos sociais.
então, nestes termos: apropriação de espaços e práticas que não são As ações realizadas em 2003 e aqui apontadas são, vale frisar, uma
estritamente artísticos, mas que podem ser utilizados dessa forma. O importante exceção.
95
Obra citada, página 107.
114 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 115

24º Salão Arte Pará, 2005 sua longa trajetória pelo cenário cultural da terra”97. E mais, “O Arte
Cabe lembrar, em relação à multiterritorialidade na arte Pará 2005 é o marco histórico da linguagem das ‘instalações’ no Pará
contemporânea paraense, da atuação do Salão Arte Pará, evento como procedimento da cultura. O que era incipiente explode com
realizado desde 1982 pela Fundação Rômulo Maiorana, das onze artistas do Estado, selecionados ou convidados para apresentar
Organizações Rômulo Maiorana – empresa que controla um vasto instalações, inclusive na modalidade intervenção urbana”98.
império das comunicações no norte do país. A contribuição do Salão Dentro da perspectiva da multiterritorialidade, no Arte Pará
Arte Pará no que tange as multiterritorialidades se dá somente a partir 2005 três obras que se enquadram na categoria de intervenção urbana
de sua vigésima quarta edição, em 2005, expandindo-se totalmente precisam ser ressaltadas: Lâmina de Armando Queiroz; Presença-
no ano seguinte, em comemoração aos vinte e cinco anos do evento. Ausência de Berna Reale; e Transumância de Jocatos (obra que recebeu
Nas edições anteriores não houve grandes diálogos com espaços o Grande Prêmio na referida edição do evento).
não convencionais, havendo inclusive peculiaridades no tratamento A obra Lâmina, de Armando Queiroz, consistiu na colocação
expositivo e curatorial, como a separação (nas edições de 1996 e de de uma grande estrutura plástica vermelha, em formato de lâmina
1999 a 2004) de categorias distintas: Artes Plásticas e Fotografia – metálica, sobre a claraboia do Mercado de Carne, no Ver-o-Peso99,
uma separação bastante anacrônica no final do século 20. um dos pontos mais movimentados de comércio de carnes da cidade.
No ano de 2005, no 24º Salão Arte Pará, a Fundação Rômulo A luz diurna projetava a sombra daquela grande figura no piso do
Maiorana trouxe novamente o importante curador brasileiro Paulo mercado, estabelecendo conexões entre a cor daquela estrutura, seu
Herkenhoff para a curadoria do evento96. A partir desta edição, nota-se formato de lâmina e as atividades realizadas no Mercado de Carne.
um novo tratamento curatorial e expositivo, que continua até a edição Sobre as obras Presença-Ausência e Transumância, citarei as
mais recente (mesmo com a saída de Herkenhoff da curadoria): as mostras palavras de Paulo Herkenhoff.
já não são separadas por categorias hierarquizantes (artistas convidados, Artista experimental, Jocatos propôs a Transumância, a detalhada
transposição do altar (e de tudo em seu entorno) da casa de dona
artistas selecionados e fotografia), mas construídos os espaços de acordo
Oriandina Lima de Oliveira, no bairro da Sacramenta, para o Museu.
com as particularidades das próprias obras – borrando-se as fronteiras No vazio deixado na casa de “dona Dina”, instala um altar de sua
entre artistas consagrados e iniciantes, e inclusive incorporando à autoria. (...) Berna Reale honra sua origem como ceramista e cola
imagens fotográficas de tijolos e pedras 1:1 na fachada do Palácio
mostra obras dos acervos de museus paraenses.
imaculadamente branco projetado por Antonio Landi no século XVIII.
Paulo Chaves, Secretário de Cultura do estado à época do Presença-Ausência é a exposição de vísceras.100
evento, afirma que “O Arte-Pará 2005 mudou. E para melhor.
Critérios inovadores, na inventiva e aplicada curadoria, abriram-lhe
97
Catálogo Arte Pará 2005: 24ª Edição, Belém: Fundação Rômulo Maiorana, 2005/2006, página 7.
98
Obra citada, página 14.
os horizontes e, sem qualquer titubeio, firma um novo marco na 99
Ponto turístico e espaço comercial tradicional de Belém, marcado por intenso tráfego diário
de pessoas, composto por diversas feiras e mercados que possuem características arquitetônicas
96
Paulo Herkenhoff exerceu, entre 1987 e 1997, as funções de Assessor Cultural/Curador e peculiares, influenciadas pela economia da borracha no século XIX.
algumas vezes Jurado nas edições do Arte Pará. 100
Obra citada, página 15.
116 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 117

É importante ressaltar que Jocatos disponibilizou o endereço e


mapas para se chegar até a casa de dona Oriandina, caso se quisesse
visitar o altar construído por ele, invertendo e confundindo o próprio
território simbólico da arte. E a obra de Berna Reale, apesar de situada
no MHEP (Museu Histórico do Estado do Pará, onde se realizou a
exposição), por estar no lado externo interferia diretamente no olhar
urbano, dos transeuntes que passavam pelo entorno do MHEP.
Práticas como aBLAção, Intervenções Urbanas: Abaetetuba,
Flutuantes, Sanitário ou Santuário?, Olhar de Vivó, Lâmina,
Transumância e Presença-Ausência nos fazem pensar em questões
que ultrapassam a incorporação das mesmas pelas instituições, e nos
fazem chegar em questões a respeito da percepção e experimentação
deste tipo de arte pelo público.
É importante lembrar que a reformulação dos processos
institucionais, relativos à arte, acompanham perspectivas internacionais
que discutem o papel das instituições culturais na contemporaneidade.
Há, atualmente, uma preocupação com o modo de funcionamento
dos museus e centros culturais – estes enquanto as instituições mais
representativas para o discurso da arte. É evidente que a formalização
de espaços para a arte, tal qual o museu, apresenta-se como memória
ou conhecimento daquela sociedade, geralmente inquestionáveis na
sua posição de instituições oficiais e respaldadas. Muitos têm apontado
o museu enquanto espaço de reprodução de uma cultura ou tradição
estritamente selecionada conforme o gosto de grupos sociais específicos
– geralmente elites intelectuais ou econômicas.
O museu estabelece, antes de tudo, relações de poder – quando
atentamos para questões como: quem seleciona o que será integrado ao
acervo e às exposições; quais os critérios dessa seleção; a quem se destina
Registro do projeto Lâmina de Armando o consumo daquele espaço; quais funções se sobressaem a outras dentro
Queiroz, no Mercado de Carne, Belém, 2005.
do organograma institucional; dentre outras questões intrigantes.
Fonte: imagem cedida pelo artista.
118 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 119

A própria noção de exposição de arte, seja ela em um museu ou de profissionais mediadores na maioria das instituições – atividade em
não, já pressupõe a existência de um conhecimento ou mensagem geral delegada a estagiários estudantes do Ensino Superior.
que é destinado a alguém. Segundo Lisbeth Gonçalves, “A exposição Na linha de frente do atendimento ao público encontra-se o
personagem hoje denominado mediador cultural. Esses mediadores,
de arte é uma apresentação intencionada, que estabelece um canal no Brasil, não necessariamente possuem formação específica na área da
de contato entre um transmissor e um receptor, com o objetivo de museologia e, nos museus de Belém, por exemplo, essa prática tem sido
influir sobre ele de uma determinada maneira, transmitindo-lhe uma delegada a profissionais e estudantes de diversas áreas do conhecimento,
principalmente do turismo, das artes visuais e da história.103
mensagem”; e ainda, “Por isso a exposição é um espaço social de
Apesar de um aspecto positivo – a aparente multidisciplinaridade
contato com um determinado saber”101.
possibilitada por esta conjuntura, o que geralmente acontece é o
Diversos estudos têm questionado o modo como os espaços evidente despreparo dos mediadores culturais frente às perspectivas
expositivos, especialmente museais, põem o público geral em contato contemporâneas dos museus. Ana Mae Barbosa104 identifica algumas
com o conhecimento que se deseja transmitir. O discurso da arte, das formas como geralmente a ação educativa é trabalhada nas
cada vez mais especializado, é acusado de receber um tratamento exposições de arte: a palestra/guia, ou a visita guiada direcionada
hermeticamente codificado, provocando a autoexclusão daqueles por um roteiro pré-estabelecido, centrado no que os monitores se
que não são educados para experimentar uma exposição de arte de prepararam para falar; “a submissão do educativo aos desígnios do
modo eficaz. Dada a crise da instituição museu, os agentes sociais curador, funcionando o monitor (...) como mero reprodutor das
nela envolvidos têm efetuado esforços para repensar e reelaborar os idéias do curador, as quais algumas vezes repetem sem nem entender
papéis dos museus nas sociedades em que se inserem. Entra em foco a muito bem”; a tendência ao formalismo, analisando as obras apenas
acessibilidade cultural, como forma de inclusão social a ser praticada por suas características visuais, sem a preocupação com a construção
por estas instituições. de significados. Barbosa condena estas práticas, e ressalta a Pedagogia
Entretanto, no Pará a reformulação das instituições culturais Questionadora como o método educativo mais apropriado, pois
Em vez de visita guiada, com informações fornecidas pelos educadores,
ainda caminha a passos lentos. Poucas instituições culturais oferecem, são propostas questões que exigem reflexão, análise e interpretação,
em suas exposições de arte, ações educativas realmente pertinentes. sem que sejam evitadas informações que esclarecem e/ou apóiam
A respeito do cenário paraense, Janice Lima102 aponta que a função interpretações. Mesmo neste caso é preciso não exagerar. Se o educador
nunca responde às perguntas sobre a obra e constantemente devolve a
educativa dos museus geralmente é menosprezada, quase sempre se pergunta ao observador termina por irritar.105
excluindo dos processos curatoriais e de montagem os profissionais que Temos então a seguinte conjuntura: as múltiplas territorialidades
atuarão no eixo educativo. A situação se agrava ainda mais pela ausência estabelecidas na arte contemporânea não escapam às instituições,
101
Lisbeth Rebollo Gonçalves. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São 103
Janice Lima, obra citada, página 37.
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2004, páginas 29-30. 104
Ana Mae Barbosa, Arte/Educação em museus: herança intangível, em Marisa Mokarzel (org.),
102
Janice Lima, A educação museal no enfrentamento das relações de poder, em Marisa Mokarzel(org.), Artes visuais e suas interfaces, 2ª ed., Belém: Unama, 2008, página 28.
Artes visuais e suas interfaces, 2ª ed., Belém: Unama, 2008, páginas 31-44. 105
Obra citada, página 28.
120 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 121

pelo contrário, são justamente estruturadas a partir delas, e O museu é em si um instrumento autoritário de transmissão/
frequentemente retornam aos espaços expositivos na forma de conservação do poder, da cultura, da arte, da hegemonia dominante.
Como sociólogos podemos imaginar que a forma museológica se está
registros e desdobramentos estéticos de práticas artísticas realizadas a transformar, passando de texto fechado a texto aberto: mudam as
em outros espaços. É necessário, portanto, que os museus e formas institucionais (...). Tal como documentam as experiências dos
outras instituições culturais, ao promoverem exposições de arte, museus dialógicos – de Nova Iorque-Chinatown a Aarhus – trata-se
possibilitem ações educativas que realmente integrem o público leigo de uma revolução considerável e auspiciosa, mas isto não assimila a
relação assimétrica que esse modo de produção da cultura e da arte
ao conhecimento que se deseja construir. O que geralmente se vê é encarna. É importante não perder de vista o facto de nessas experiências
justamente o contrário: as instituições culturais apresentam em suas a relação de assimetria entre museu e visitante mudar de forma, mas
exposições registros e desdobramentos de ações realizadas em outros continuando a subsistir como tal. A advertência necessária tem a
espaços como se fossem as próprias ações. Parece bastante óbvio que, ver com o desvio utópico que algumas destas abordagens poderiam
implicar, se radicalizadas: uma instituição é por definição alguma coisa
ao trazer um registro de uma prática artística para dentro de uma ou alguém que fala por, isto é, em vez de outro.106
exposição de arte não se traz a própria prática, mas se constitui outra
Levando-se em consideração toda a rede de relações político-
obra diferenciada daquela.
econômicas que atravessam as instituições culturais e as práticas artísticas
Porém, as ações educativas destes espaços expositivos
institucionais continuam reproduzindo conhecimentos e perspectivas contemporâneas, podemos perceber que a função de uma exposição
geralmente inapropriados ou obsoletos. Algumas especificidades de arte jamais será neutra, nem mesmo esteticamente neutra, já que
das teorias contemporâneas deveriam ser ressaltadas nas concepções assinala um juízo de valor. Há uma gama de interesses envolvidos que
expositivas, como a polissemia e a multiculturalidade, já que estes é bastante clara.
espaços são geralmente administrados por meio de verbas públicas, e Devido a esta conjuntura, devem-se tratar os espaços expositivos
objetivam a acessibilidade cultural. institucionais com bastante acuidade, principalmente em relação a suas
Abrem-se, assim, novas perspectivas para ações educativas potências educacionais, já que as práticas desterritorializantes têm sido
institucionais, já que se instaura a multiterritorialidade. A educação reterritorializadas (ou, antes, multiterritorializadas) nestes espaços. É
assume um papel fundamental para a compreensão e pertinência destas necessário construir instituições, instrumentos e espaços expositivos
práticas artísticas nos contextos expositivos convencionais, apesar de que nos permitam “assimilar o fluido e entremear o paradoxo de
nem sempre ocorrerem práticas educativas eficientes neste sentido. incorporar dinamicamente o transitório”107, e buscar soluções para que
Também se deve levar em conta, que, apesar da reformulação
a arte contemporânea constitua processos ativos de pensamento, que
atual dos museus e demais instituições culturais, esses espaços
saibam incorporar o dado da multiterritorialidade como algo profícuo
expositivos formais continuam apresentando-se enquanto espaço
e pertinente, que sirva às discussões da sociedade, e não somente aos
permeado de sinais e cargas simbólicas, atravessados pelo discurso
dos sistemas da arte – diferente do que ocorre com algumas práticas mecanismos econômicos e aos capitais simbólicos imbricados na cultura.
artísticas em espaços não convencionais. Vejamos o que diz Anna Lisa 106
Anna Lisa Tota, A sociologia da arte: do museu tradicional à arte multimídia, tradução de Isabel
Teresa Santos, Lisboa: Editorial Estampa, 2000, página 147.
Tota sobre as instituições culturais. 107
Cristina Freire, obra citada, página 53.
122 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 123

2.2.2. Regulamentações 40% do projeto, cabendo o restante ao Estado, através da renúncia


fiscal no Imposto de Renda. “Ou seja, os projetos são viabilizados
Identifico como processos de regulamentação da arte
pela parceria Estado e empresa privada, ficando a escolha do bem
contemporânea os mecanismos sociais pelos quais tais práticas
a ser patrocinado e a retribuição publicitária inteiramente para o
artísticas vêm sendo realizadas dentro do âmbito institucional. Já
patrocinador privado”110. A Lei Sarney foi revogada em 1990. Em
ressaltei anteriormente que as instituições culturais são, em parte,
1991 é instituída a Lei Rouanet111, outra lei de incentivos fiscais à
responsáveis pelas multiterritorialidades da arte contemporânea, mas
cultura, que só passou a vigorar efetivamente em 1995112. Em 2001 o
convém analisar como isso se dá. Há uma intrincada teia de relações
Governo Federal estendeu para todas as práticas artísticas a renúncia
político-econômicas, tanto em âmbito nacional quanto local, que
fiscal de 100% do valor destinado pelas empresas aos projetos
atravessam as práticas culturais.
culturais por elas selecionados, arcando o poder público com o
Assim, pretendo explicitar alguns mecanismos usados atualmente
custeio total, mas deixando a administração destes recursos nas mãos
(tanto no âmbito geral quanto no particular à arte contemporânea):
da iniciativa privada. Diversos outros mecanismos de política cultural
as leis de incentivo fiscal; o patrocínio a determinados segmentos
governamental têm sido implantados, como a Lei Semear113 e a Lei Tó
artísticos; a mediação estatal fomentando práticas culturais; os editais
Teixeira e Guilherme Paraense114, no Pará.
de bolsa de pesquisa e similares de instituições governamentais; a
Essa política neoliberal é criticada por Cristiane Olivieri, que
introdução de práticas como performance e intervenção urbana
identifica nestes processos a concentração de projetos nas regiões
dentro dos regulamentos de salões, editais e outros eventos de arte
sul e sudeste do Brasil, e também a priorização de algumas práticas
contemporânea; dentre outras práticas.
em detrimento de outras (que oferecem retorno menor para a
As leis de incentivo fiscal são mecanismos estatais, nos quais “o
empresa). Diz Olivieri que “O perigo da tendência neoliberal é
Estado renuncia à parte da receita proveniente de imposto em forma
retirar do Estado a responsabilidade de fomentador e garantidor de
de benefício fiscal, que será usufruído pela empresa patrocinadora
viabilização de todas as formas de produção cultural, já que coloca
do projeto cultural”108. Essas leis fazem parte da política cultural do
como selecionador a lei da oferta e da procura”115. Essa preocupação é
Estado, para estimular o apoio de empresas a manifestações culturais
ainda mais pertinente se levarmos em conta que as práticas artísticas
que não conseguiriam serem produzidas sem o auxílio de fonte externa
contemporâneas, em um estado periférico como o Pará, geralmente
a sua produção.
alcançam um público específico e reduzido, o que não é interessante
No Brasil, a primeira lei neste sentido, em relação à cultura,
para a iniciativa privada.
foi implantada em 1986, e ficou conhecida como Lei Sarney109, na
110
Cristiane Garcia Olivieri, obra citada, página 71.
qual a iniciativa privada viabilizaria o custeio de cerca de 30% a 111
Lei Federal de Incentivos Fiscais n.º 8.313, de dezembro de 1991.
112
Com a publicação do Decreto n.º 1.494, de 17 de maio de 1995.
108
Cristiane Garcia Olivieri, Cultura neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura, São 113
Lei nº 6.572/03, de 8 de agosto de 2003.
Paulo: Escrituras, 2004, página 43-44. 114
Lei nº 7.850/97.
109
Lei n.º 7.505, de 02 de julho de 1986. 115
Obra citada, página 59.
124 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 125

Provocam grande tensão as iniciativas financiadas com recursos públicos Outra questão: ao sujeitar a arte contemporânea à regulamentação
para pequenas platéias ou reduzido número de leitores, mas ao mesmo
de um sistema, por meio de criteriosas seleções das instituições
tempo, bastante significativas para o desenvolvimento da vida cultural
de alguma forma. Estas iniciativas deveriam ser encorajadas e feitos patrocinadoras, corremos o risco (que considero altamente provável)
esforços para conseguir públicos cada vez maiores, sem comprometer de produzir práticas artísticas para um público específico, seguindo as
o sentido artístico.116
concepções, interesses e prioridades dos “mecenas” contemporâneos
Existe esta relação de “mecenato”, com as grandes instituições
(empresas e instituições que têm capacidade de financiar projetos de
(governamentais ou da iniciativa privada) ocupando o cargo de
arte contemporânea). Mais uma vez devemos fugir ao maniqueísmo,
protetoras e incentivadoras da arte contemporânea, financiando a
e prever a possibilidade de que as opções do mecenato possam
existência da mesma; por outro lado, ao vincular o nome de uma
corresponder a anseios polissêmicos e múltiplos, se não da sociedade
empresa a um empreendimento cultural, há toda uma concepção
como um todo, no mínimo do grupo majoritário ao qual às práticas
ideológica que perpassa o processo inteiro – ainda que o objeto não
ostente a logomarca do patrocinador em sua fronte. artísticas se destinam.
Explica-se: a instituição investe em valor monetário e recebe em No mundo, historicamente temos diversos exemplos do
capital simbólico. Vincula seu nome à noção de produtor cultural, financiamento de práticas artísticas, até mesmo de vanguarda, por parte
pratica marketing e merchandising de modo sutil, amplia sua esfera do empresariado ou de instituições governamentais. Estas relações são
de alcance ao não assumir um mercantilismo puro, maquiando seus muito mais ativas em países economicamente desenvolvidos, como os
objetivos por trás de iniciativas culturais, mostrando uma face de Estados Unidos e alguns países europeus.
generosidade despretensiosa – que, óbvio, não é a face principal e A performance na União Européia da década de 90 foi administrada
tanto por verbas federais generosas, com a intenção de elevar o status
muito menos a única. Também não pretendo ser reducionista: os
cultural das capitais, quanto pela chegada à maturidade de artistas cuja
interesses empresariais não são unicamente econômicos. Mas, em formação tinha raízes na vanguarda das décadas de 70 e 80. A energia
uma sociedade capitalista, a sustentabilidade financeira determina dessa obra foi ainda mais estimulada pela disponibilidade de uma rede
a sobrevivência empresarial. É a lógica do mercado. Sobrevivem os bem organizada de teatros, (...) bem como pelos festivais e conferências
que neles se realizaram.117
que praticam as formas mais lucrativas de existência, porque formas
Além da performance, também as práticas artísticas que
flexíveis, descentralizando os interesses e investimentos, apoiando-se
em várias colunas. Uma destas colunas chama-se “cultura” ou “arte”. entrecruzam-se com a alta tecnologia científica geralmente são
O termo mecenato talvez seja inapropriado para designar as financiadas por instituições de pesquisa, como universidades. Da
relações estabelecidas através das leis de incentivo fiscal, já que os mesma maneira, a prática chamada de arte pública (com aspectos
investimentos pressupõem um retorno para a empresa: tanto retorno monumentais e de intervenção permanente no espaço urbano), no
em marketing cultural, quanto retorno da renúncia fiscal que a limiar entre escultura e arquitetura, geralmente se dá por intermédio
empresa recebe do Estado. de instituições que a financiam. Essas relações são bastante pertinentes,
Joost Smiers, Artes sob pressão: promovendo a diversidade cultural na era da globalização, tradução
116 Rose Lee Goldberg, A arte da performance: do futurismo ao presente, tradução de Jefferson Luiz
117

de Adelina França, São Paulo: Escrituras Editora; Instituto Pensarte, 2006, página 282. Camargo, São Paulo: Martins Fontes, 2006, páginas 205-206.
126 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 127

e geralmente fica a cargo do estado viabilizá-las, já que se torna pouco


atraente para a iniciativa privada financiar tais práticas, que geralmente
lhe garantiria um retorno abaixo do esperado (retorno em marketing
social, atingindo grandes públicos ou públicos específicos).

“Itinerários”, 2005 e 2007


Um tipo de relação institucional possível: algumas práticas são
inicialmente desvinculadas das instituições culturais e posteriormente
são “reapresentadas” ou “refeitas”, com vínculo institucional – o uso das
aspas é intencional, já que este ensaio pressupõe que a reapresentação
de uma obra é, na verdade, a apresentação de outra obra. Um exemplo
interessante é o Projeto Coletivos, realizado entre os anos de 2005 e
2007, que objetivou reeditar coletivos de artistas significantes na arte
contemporânea paraense: Raioqueoparta! (década de 1980), Caixa de
Pandora (década de 1990) e Itinerários (década de 2000). O Projeto
Coletivos foi realizado pelo SIM (Sistema Integrado de Museus e
Memoriais), da SECULT/PA (Secretaria Executiva de Cultura).
A reedição que é pertinente, neste momento, é a do projeto
Itinerários, realizado pela primeira vez por um coletivo de doze artistas
– Bárbara Freire, Cláudio Assunção, Danielle Fonseca, Daniely
Meireles, Fernando de Pádua, Flávio Araújo, Glauce Santos, João
Cirilo, Keyla Sobral, Neuton Chagas, Paulo Cézar Simão e Roberta
Carvalho. Itinerários consistiu no uso das traseiras de doze ônibus
coletivos da região metropolitana de Belém para a exposição de obras
dos artistas supracitados – um espaço que geralmente é utilizado pela
propaganda comercial. O formato das obras era bidimensional e não
Registros de obras de João Cirilo, Keyla Sobral, Roberta Carvalho, Acácio Sobral, trazia nenhuma legenda explicativa ou sequer o nome do artista.
Bárbara Freire e Neuton Chagas na segunda edição do projeto Itinerários, Belém, 2007. A primeira edição ocorreu nos meses de novembro e dezembro de
Fonte: frames retirados do documentário Itinerários _ Arte Pública: traços de artistas pela
cidade; 2007: Centro/Periferia.
2005, e é interessante dizer que não houve vínculo com nenhuma
128 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 129

instituição cultural governamental, mas somente o apoio de três Este meio século de experimentações acerca de arte e espaço
empresas privadas (um colégio, uma empresa de informática e uma público mostra que discussões como estas estão bem amadurecidas,
malharia) estabelecidas na cidade. ainda que diversas tendências da arte contemporânea trilhem caminhos
Em janeiro de 2007 foi realizada a reedição de Itinerários, dentro de elitização, hegemonia e submissão do espaço público a interesses
do Projeto Coletivos e com patrocínio do Banco da Amazônia. Houve particulares. Vale dizer que parece bastante convincente supor a
um aumento significativo de obras, com a passagem de doze ônibus inexistência de qualquer tipo de interesses universais, principalmente
em 2005 para vinte e seis em 2007 (devido também ao apoio dado nas fragmentadas organizações sociais da contemporaneidade.
ao projeto pela empresa de transporte público), contando com treze Considerando que mesmo os interesses coletivos pertencem a grupos
artistas: Acácio Sobral e Maria José Batista (que não participaram particulares, a produção artística sempre se colocará em uma posição
da primeira edição do projeto), Bárbara Freire, Cláudio Assunção, de uso subjetivo. Mas esse uso deve corresponder à composição
Danielle Fonseca, Daniely Meireles, Flávio Araújo, Glauce Santos, democrática das sociedades, possibilitando discursos polifônicos em
João Cirilo, Keyla Sobral, Neuton Chagas, Paulo Cezar Simão e um espaço que é comunitário. A arte consegue dar voz, e consegue
Roberta Carvalho. Diferente da primeira edição, desta vez um tema provocar novas vozes. Não se deve menosprezar este potencial latente.
foi escolhido para nortear as produções: a relação centro-periferia. A regulamentação das atividades artísticas através de mecanismos
Apesar de mantida a postura inicial de suprimir títulos ou nomes de
empresariais não é jamais uma medida homogênea e uniforme, mas
artistas, na segunda edição houve a inserção de três logomarcas ao
composta de diversos matizes que tornam cada contexto único, e possível
lado das obras: as do projeto Itinerários, do Banco da Amazônia e do
fomentador de multiterritorialidades. Cabe ressaltar a importância de
Governo Federal. Há um mecanismo de reterritorialização implícito
todos os agentes sociais envolvidos, como as instituições, os artistas,
na exibição destas marcas, que é justamente o marketing cultural
as práticas artísticas e o lugar onde elas se desenvolvem, o público,
praticado pelas empresas.
dentre outros. As subjetividades envolvidas nas práticas destas ações
Itinerários, nas suas duas edições, foi um projeto que esteve
artísticas, regulamentadas ou não, são capazes de forjar as múltiplas
na interseção entre diversas esferas sociais, pois saiu do ambiente
territorialidades sobre as quais este texto se debruça.
ao qual habitualmente destinamos à arte contemporânea no Pará.
Circulando nas traseiras dos transportes coletivos, percorrendo as Além da regulamentação em âmbito geral, com a constituição
principais avenidas da cidade, as obras dos artistas deixaram de ter um de leis de incentivo fiscal à cultura e patrocínio, os sistemas da arte
uso único ou um significado prioritário: ganharam multiplicidade. contemporânea também experimentaram a absorção de linguagens
Essa polissemia das práticas artísticas contemporâneas tem muito a artísticas desterritorializantes através da abertura de espaço para as
acrescentar à discussão deste ensaio, e é sempre necessário lembrar que mesmas, dentro dos editais e regulamentos dos eventos de arte e
a mesma possibilita discursos e apropriações bastante antagônicos. de pesquisa em artes. Para acompanhar as dinâmicas estabelecidas
Quando a arte é dada à cidade, não se pode prever de que forma será dentro da arte contemporânea, as instituições começam a flexibilizar
utilizada pelos diversos grupos que dela fazem parte. seus espaços criando categorias para absorver estas novas produções,
130 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 131

inclusive premiando-as. São realizadas atualmente até mesmo mostras espaços expositivos diferenciados, no Mercado de Carne, no Mercado
institucionais dedicadas exclusivamente a tais linguagens, como de Peixe e na Feira do Ver-o-Peso. As obras expostas nestes espaços
festivais de performance ou de ciberarte. multiterritorializados, em sua maioria, são obras pertinentes aos
espaços onde se situam, havendo a preocupação de se construir
espaços além do simples espetáculo, possibilitando a construção de
25º Salão Arte Pará, 2006 conhecimento e práticas artísticas em contato com o espaço pulsante
É sintomática desta configuração a atuação do Salão Arte Pará, do centro comercial urbano.
que há alguns anos tem aberto espaço no regulamento do evento A obra Cerne, de Berna Reale, é um dos exemplos apresentados
para a inscrição de práticas performáticas ou no espaço urbano, por no Arte Pará 2006, instalada no Mercado de Carne do Ver-o-Peso.
exemplo. Se acompanharmos as premiações do evento nos últimos Cerne se constituiu de caixas de acrílico com fotografias de vísceras
anos, veremos que práticas situadas dentro das multiterritorialidades humanas, fios elétricos e mangueiras, além de uma fotografia plotada
têm recebido prêmios no salão. Em 2005, no 24º Salão Arte Pará, o em um tecido de grandes dimensões (cerca de dezesseis metros
curador Paulo Herkenhoff retorna ao evento, como citei acima, e dá quadrados), simulando a textura da carne crua, pendurada na claraboia
um tratamento curatorial e expositivo diferenciado ao Arte Pará. do mercado. Orlando Maneschy descreve a obra nos seguintes termos:
Mas é em 2006 que o Salão Arte Pará multiterritorializa-se Toma conta de um dos guichês de açougue com backlights em
que se vêem fotografias de vísceras. Finos tubos vermelhos saem
completamente, ainda sob a curadoria de Herkenhoff, na edição
das caixas para constituir uma trama pelo mercado, evidenciando
comemorativa de vinte e cinco anos do evento. O 25º Arte Pará o espaço como um grande organismo vivo e pulsante, em que
também passa a ocupar espaços comerciais urbanos – particularmente fluxos essenciais se entremeiam, vida e morte perfazem rotas
continuamente entrecruzadas.119
o Ver-o-Peso, além de dar continuidade ao tratamento curatorial e
expositivo implantado na edição anterior. Nos apontamentos de Também Herkenhoff diz, a respeito da obra, que “São indistintas
Marisa Mokarzel, as imagens do corpo humano fotografado por Reale no necrotério
Herkenhoff acrescenta um novo dado: o espaço expandido. Opta pela público e a carne exposta no mercado. A metáfora do canibalismo
ocupação além das salas expositivas, abraçando o espaço público e social: a carne exposta é signo da violência coletiva”120.
incorporando um dos mais importantes ícones da cidade: o complexo Outro exemplo, dentro do Arte Pará 2006, desta vez no Mercado
do Ver-o-Peso. Feiras e mercados convivem com as obras dos artistas,
negociam-se os espaços com feirantes, açougueiros, pescadores. Criam- de Peixe do Ver-o-Peso, é a obra Das Águas, os Peixes, de Miguel
se novas relações. A arte mescla-se ao cotidiano.118 Chikaoka, que consistiu em um processo junto com comunidade.
No Arte Pará 2006 montam-se espaços expositivos convencionais Por meio de uma oficina fotográfica de pinhole para os comerciantes
no Museu de Arte de Belém, no Museu Histórico do Estado do Pará, de peixe, Chikaoka estabelece sua prática artística, posteriormente
no Museu de Arte Sacra e na Galeria da Residência – mas também tratando digitalmente os resultados obtidos e criando grandes
118
Catálogo Arte Pará 2006: 25ª Edição, Belém: Fundação Rômulo Maiorana, 2006/2007, página 45.
119
Obra citada, página 62.
120
Obra citada, página 188.
132 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 133

bandeiras brancas, com as imagens serigrafadas em preto. Maneschy Já em 2007, no 26º Salão Arte Pará, Éder Oliveira recebe o
descreve a obra da seguinte maneira: Segundo Prêmio por intervenções urbanas semelhantes a estas, mas
Chikaoka leva os peixeiros do mercado a refletirem sobre suas usando a colagem de cartazes no lugar da pintura.
condições de trabalho e de vida, tentando, a partir de uma ação
coletiva, fomentar a união e estabelecer um olhar conjunto para um Também durante o 25º Salão Arte Pará a artista Lúcia Gomes
futuro melhor, dentro de uma perspectiva sustentável. Os indicativos propôs a ação Pipaz. Tal ação consistiu em proposta lúdica,
materiais desta ação vêm se desenhando em projetos empreendidos
pelos peixeiros e o artista, e se configuraram dentro do Arte Pará
participativa, na qual a artista convidou pessoas no Ver-o-Peso, em
através de imagens de peixes que, captadas pela comunidade da forma uma manhã ensolarada, a empinar pipas que traziam cada uma
fotográfica mais artesanal possível, estamparam bandeiras de tecido determinada letra (P, A ou Z). As diversas pipas no céu, a beira do
instaladas ao longo do vão interno do mercado.121
rio, criavam determinadas relações entre política e brincadeira, já que
Estes novos tratamentos expositivos institucionais, portanto,
formavam a palavra PAZ ao mesmo tempo em que, na brincadeira
ao priorizarem aspectos conceituais e formais nas suas cenografias,
popular, as pipas devem “cortar” as linhas umas das outras. Conforme
tornam-se recursos bastante significativos na apresentação da
Orlando Maneschy,
arte contemporânea ao público – muitas vezes configurando as
É no jogo que se estabelece a obra. Da corriqueira disputa entre garotos
multiterritorialidades analisadas neste estudo. ao empinarem suas pipas – nossos tradicionais papagaios e gandulas –
Nas edições posteriores do Arte Pará não houve uma ocupação no céu, tentando derrubar uns aos outros, preparando a linha com cola
tão expansiva de espaços não convencionais, talvez devido à e pó de vidro, a artista fala das disputas de adultos, não menos infantis,
na política em que o mundo se inscreve, imerso em guerras.
magnitude da edição comemorativa de vinte e cinco anos do evento Com sua performance, Gomes nos coloca no papel de agentes. Se
(2006). Entretanto, outros exemplos de multiterritorialidade foram não participamos, nada acontece. Está em nossas mãos a decisão de
constituídos, e serão devidamente analisados, de acordo com sua como se dá o jogo, sua construção, e é isto o que nos oferece com sua
proposição conceitual, utilizando um ato tão corriqueiro da infância e
relevância para os pontos discutidos. deslocando-o para falar de política no espaço da arte.123
No 25º Salão Arte Pará temos também a imersão mais evidente Pipaz, portanto, desloca o espaço e suporte da obra para o corpo
do evento no espaço da urbe. Éder Oliveira realizou intervenções – não o corpo do próprio artista, mas sim do público espectador, que
urbanas em diversos pontos da cidade. Herkenhoff descreve da se torna participante ativo do processo artístico em questão.
seguinte forma:
Éder Oliveira amplia em pintura as fotos de pessoas envolvidas
Tais exemplos evidenciam como o evento Salão Arte Pará
com crimes, conforme notícias sensacionalistas de jornais. As se volta, em 2006, a um processo de regulamentação de práticas
imagens monumentais são pintadas em áreas públicas. Criminosos multiterritorializadas, organizando-as dentro de uma pauta definida
e vítimas estão imbricados pela violência, vista em sua dimensão
coletiva. (...) Suas pinturas se tornam pequenos monumentos a e apresentando-as à sociedade como práticas pertencentes ao evento.
anônimos, já que perdem a especificidade do crime e se tornam Muita complexidade envolve tais processos, obviamente.
retrato significativo da maioria.122
121
Obra citada, página 51. 123
Obra citada, página 56.
122
Obra citada, página 33.
134 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 135

“Pretérito do presente”, Roberta Carvalho, a partir de 2006


Em 2006, o IAP concedeu uma das bolsas de Pesquisa Criação
e Experimentação Artística para Roberta Carvalho, com o projeto
Pretérito do Presente. O projeto consistiu no uso de projeções através
de equipamentos eletrônicos em diversos pontos da cidade, realizadas
em novembro de 2006. Segundo texto publicado no site Overmundo,
O trabalho foi divido em 4 dias seguidos de ações. No dia 27, às 19hs,
acontece a ação “colors” e “Fragmentos”, na Ladeira ao lado do forte do
Castelo, na 1ª rua de Belém. Neste dia luzes coloridas surgirão de uma
casa e ao lado haverá projeções de fragmentos de uma cidade antiga que
a nova urbanidade esconde. Na terça-feira, dia 28 às 19hs, na Joaquim
Távora próximo a Praça do Carmo acontecerá a ação “trancas”, uma
projeção em uma casa em estado de abandono com uma série de
imagens que se referem ao estado fechado e abandonado de algumas
casas históricas de Belém. Na quarta às 21hs e quinta-feira às 20hs é a
hora do Prédio do Bechara Mattar. Neste dia, a artista fará projeções no
alto do prédio de antigas paisagens da Belém antiga, apropriando-se de
fotos e cartões postais de Belém. Além disso, o público poderá conferir
o registro de todo este trabalho, na noite do dia 8 de dezembro, no
IAP, ocasião do lançamento do dvd “Pretérito do Presente”, dentro da
mostra Arte Final.124
Roberta Carvalho utilizou fotografias coletadas na própria cidade,
para posteriormente projetá-las sobre fachadas de prédios históricos,
mesclando áreas como a história, a memória afetiva, a fotografia e a
arte contemporânea.
Posteriormente, em 2007, convidada pela Fotoativa a artista
realizou um projeto semelhante, ainda sem nome, que depois
ganhou corpo e foi chamado Symbiosis. Também utilizando projeção
eletrônica, desta vez Roberta Carvalho utilizou árvores no espaço
público, projetando figuras humanas sobre as copas das mesmas. No
primeiro momento, foi projetada a figura humana em posição fetal,
metaforizando a copa da árvore como um espaço uterino. A partir de
Indústria da saudade 1 e 2 de Roberta Carvalho, a
partir do projeto Pretérito do Presente, Belém, 2006. Em matéria disponível em <http://www.overmundo.com.br/overblog/preterito-
124

Fonte: imagens cedidas pela artista. do-presente-projecoes> Acesso em 15 de outubro de 2012.


136 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 137

então Symbiosis foi realizado em diversas programações, em Belém ou 2.2.3. Intermidialidades


em outras cidades, como São Paulo, dando bastante projeção à artista
A arte contemporânea, no decorrer do século 20, admitiu
no cenário paraense.
enquanto manifestações legítimas práticas que a desterritorializavam,
Uma questão interessante é que, em geral, as práticas artísticas
no sentido de extrair-lhe o território habitual, trazendo a arte para sua
financiadas através de editais institucionais, como a verba concedida
interseção com a vida cotidiana. Por outro lado, a arte contemporânea
pelo IAP ao projeto Pretérito do Presente e a diversos outros projetos,
continuou a se estruturar em torno de uma movimentação de
pressupõe a realização de uma exposição convencional. As práticas
capitais simbólicos e econômicos, naquilo que se chama de mercado
desterritorializantes são, então, duplamente reterritorializadas:
ou economia política da arte. Diversas vezes a arte contemporânea
primeiro por estarem inseridas dentro do discurso dos sistemas da
desterritorializada é trazida para dentro dos espaços expositivos como
arte contemporânea (ao serem institucionalizadas através de verbas
registro, desdobramento estético e ao mesmo tempo informação a
para sua realização); e segundo por gerarem registros que irão
respeito da obra.
compor exposições em espaços convencionais, como mecanismo de
Cristina Freire analisa as relações entre arte Conceitual – que ela
compensação para a instituição.
conceitua como práticas artísticas que priorizam a ideia, no lugar da
Neste texto identifico a transposição de uma prática artística
priorização da forma – e o MAC de São Paulo. Esta autora nos diz
para outra, através de registros, como intermidialidade, que é o
algumas coisas importantes para a localização do lugar do registro
tópico da próxima subseção. É importante reafirmar que estes são
enquanto multiterritorialidade.
eixos que se entrecruzam: as instituições, as suas regulamentações e
O seguinte paradoxo é óbvio: ao mesmo tempo que o museu é
a intermidialidade que terminaram por conceber. A constituição de contestado, ele é necessário como lugar de exposição. No limite, o valor
exposições com registros das obras, portanto, é em si mesma a criação da exibição quando agregado às coisas é que as torna “obras de arte”. Tal
legitimidade é confirmada também pelo catálogo que irá assegurar sua
de outras obras, diferenciadas das primeiras (ainda que frequentemente
memória, sua posteridade.125
sejam apresentadas como equivalentes).
Temos, então, alguns princípios importantes: em determinado
momento os artistas e suas práticas subverteram os territórios
tradicionais da arte, para contrariar a mercantilização da mesma;
este movimento desembocou em novas formas de mercantilização
para estas práticas subversivas, elas próprias, agora, subvertidas em
seu propósito utópico. Essas múltiplas territorialidades tornam-se
aparentes ao sistema da arte contemporânea da qual são produto.
O processo de mutação, ou de desdobramento, através do
qual o registro assume o lugar da obra dentro do território da arte
125
Cristina Freire, obra citada, página 36.
138 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 139

contemporânea, pode ser definido como intermidialidade, segundo instalação, a performance, a bioart, a webarte etc. E intermidialidade
os estudos de Claus Clüver126. Intermidialidade constitui as inter- diz respeito, principalmente (neste ensaio), ao processo através do qual
relações e interações entre as diferentes mídias, e no caso específico textos (obras) em certas mídias (como a performance) são transpostos
deste ensaio lidamos com mídias de desterritorialização e mídias para outras (como a fotografia e o vídeo). A intermidialidade não se
de reterritorialização. A forma como se dá esta intermidialidade restringe à multimidialidade, que é a presença de diferentes mídias em
é chamada por Clüver de “transposição midiática, [que] na um mesmo texto (multimídia), mas abarca este conceito, estendendo-
conceituação de Irina Rajewski, é o processo ‘genético’ de transformar se também a outros processos.
um texto composto em uma mídia, em outra mídia de acordo com as Neste sentido, não pretendo apontar uma dualidade, mas antes
possibilidades materiais e as convenções vigentes dessa nova mídia”127. um movimento: certas mídias ou processos artísticos – como a body
É importante perceber nesta intermidialidade a própria condição art, a land art, dentre outras – desvincularam a própria noção de arte
da multiterritorialidade da arte contemporânea, pois é o registro do caráter de objeto. Cada tecnologia interfere e condiciona o próprio
transformado em obra que possibilita a constituição de territórios meio cultural em que é implantada. Na arte, a estas novas mídias
múltiplos, não se restringindo à reterritorialização da arte no sentido ou processos desmaterializados ou incorporais – nas quais o processo
de retorno aos espaços expositivos tradicionais. é a própria arte – cabe uma direção contrária: a materialização de
Neste ensaio o conceito de mídia será aplicado de uma forma tais práticas através de outras mídias (como a fotografia, o vídeo,
mais abrangente do que comumente tem sido utilizado, para designar dentre outras). Essa materialização, que é a origem do processo
meios de comunicação ou tecnologias eletrônicas. Usarei o termo de intermidialidade estudado aqui128, só é possível pelo fato de se
mídia para designar meios de transmissão de signos, através de considerar a coisificação da ideia, e não a coisificação da experiência
determinada materialidade e de determinadas convenções culturais. sensitiva – em grande parte devido às correntes de arte conceituais,
Não somente a televisão ou o rádio são mídias, mas também a pintura, nas quais a arte é, predominantemente, “coisa mental”.
o cinema, o livro, a dança, a poesia, o teatro, cada qual com uma Intermidialidade, no sentido usado aqui, diz respeito aos
materialidade peculiar (substâncias, instrumentos, aparelhos, dentre dispositivos por meio dos quais determinadas práticas são convertidas
outros meios físicos usados na constituição de determinada mídia) e em outras, cujos exemplos mais óbvios são a montagem de exposições,
com uma carga simbólica-cultural socialmente construída e aceita (as catálogos ou sites no ciberespaço com fotografias ou vídeos, que
conceituações de música, teatro ou escultura não são universais, mas apontam para práticas constituídas em outras mídias (menos palpáveis
dependem de contextos, convenções e práticas culturais). e mais efêmeras). Também posso citar os “registros” que atuam através
Mídia, portanto, engloba as diferentes práticas artísticas que 128
Quero evidenciar que o processo de intermidialidade, tal qual visto pelos teóricos atuais
são postas atualmente, como a pintura, a fotografia, a escultura, a da semiótica, engloba o recorte delimitado neste ensaio, mas não se restringe ao mesmo. A
intermidialidade é muito mais abrangente, no sentido em que funciona enquanto tradução de um
126
Claus Clüver, Intermidialidade, em Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola texto de determinada mídia para outra, como nas adaptações de livros para filmes cinematográficos,
de Belas Artes da UFMG, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, nov. 2008, páginas 8-23. imagens produzidas a partir de poemas, dentre outros processos.
127
Obra citada, página 18.
140 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 141

de uma mediação não mais de índice (como a fotografia e o vídeo), As tecnoimagens supostamente ultrapassam o caráter simbólico
mas de símbolo: registros cartográficos, objetos deslocados para os das imagens tradicionais, portando-se como sintomáticas –
espaços expositivos, textos informativos e instrucionais, dentre outros. “transcodam sintomas em imagens”. Mas Flusser ressalta que o caráter
Nicolas Bourriaud aponta aspectos na arte contemporânea objetivo das tecnoimagens é apenas aparente, como bem podemos
que se assemelham à intermidialidade, para os quais o autor utiliza perceber na utilização do registro na arte contemporânea (que talvez
termos como “transferência”, “tradução” e “transcodificação”129, sequer tenha pretendido ser objetivo). Flusser ainda diz que
identificando no movimento típico da cultura contemporânea A diferença entre símbolo e sintoma é que o símbolo significa algo
para quem conhecer o convênio de tal significação, enquanto o
uma das principais causas para estes aspectos. É esclarecedor
sintoma está ligado causalmente com seu significado. (...) Tal pretensão
que, para este autor, a tradução no campo cultural se defina à sintomaticidade, à objetividade, das tecnoimagens é fraude. Na
“pela passagem dos signos por territórios heterogêneos e pela realidade os aparelhos transcodam sintomas em símbolos, e o fazem em
função de determinados programas. A mensagem das tecnoimagens
recusa em ver a prática artística atribuída a um campo específico,
deve ser decifrada, e tal decodagem é ainda mais penosa que a das
identificável e definitivo”130. Bourriaud também comenta a “prática imagens tradicionais: é ainda mais “mascarada”.133
de deslocamento que valoriza enquanto tal a passagem dos signos É ingênuo pensarmos que a reterritorialização através das
de um formato para outro”131. A intermidialidade aqui apontada se tecnoimagens ocorre no sentido de, pura e simplesmente, atuar como
afina com este pensamento. informação (já que seria necessário pressupor uma objetividade, que
Há, ainda, uma questão importante no que diz respeito à inexiste). As tecnoimagens pendem muito mais para o sentido de
nomenclatura das mídias fotografia, vídeo etc. como “registro”. Vale multiterritorialidade, já que, ao tornarem-se parte do sistema da arte,
ressaltar que, apesar da suposta conotação imparcial do termo registro, geram múltiplos territórios, ou melhor, possibilitam que qualquer
o uso de qualquer mídia é necessariamente subjetivo, e não neutro, espaço seja território para a arte contemporânea. A bem dizer,
como se poderia pensar. Esta afirmação vale ainda mais para o caso da multiterritorialidade na arte contemporânea diz respeito também
arte – existe total parcialidade por parte do fabricante de registros, que à capacidade de territorializar qualquer espaço, já que os processos
muitas vezes é o próprio artista. É Vilém Flusser o autor que chama intermidiáticos assim o permitem.
estes registros típicos da contemporaneidade (a partir do surgimento A relação da fotografia com os movimentos artísticos da década
da fotografia) de tecnoimagens, as quais “são essencialmente diferentes de 1960 em diante foi desde sempre paradoxal, na medida em que em
das imagens tradicionais. As imagens tradicionais são produzidas por parte eliminava a efemeridade das propostas artísticas (pelo menos no
homens, as tecnoimagens por aparelhos” 132. nível de ideia e informação) e na medida em que facilitava a inserção
129
Conferir a esse repeito Nicolas Bourriaud, Radicante: por uma estética da globalização, tradução
e absorção destas novas práticas pelo sistema da arte, na sua lógica de
de Dorothée de Bruchard, São Paulo: Martins Fontes, 2011, páginas 133-143. mercado político, econômico e cultural. Em pouco tempo o registro
130
Obra citada, página 133.
131
Obra citada, página 141.
passa a integrar o processo da arte.
132
Vilém Flusser, Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar, São Paulo: Duas Cidades, 133
Obra citada, páginas 101-102.
1983, página 101.
142 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 143

Como vimos, na arte Conceitual, são válidas as múltiplas formas de Cabe um parêntese para explicitar site e non-site no pensamento
reprodução, seja através dos projetos que favorecem a remontagem
de Smithson: o primeiro se constitui enquanto espaço externo,
dos trabalhos, incluindo a utilização de meios como o xerox e o
computador, seja através de filmes super-8, 16 ou 35 milímetros, coberto de significações inclusive geológicas, de grandes dimensões;
privilegiando sobretudo a fotografia como registro dos mais variados enquanto que o non-site se constitui como espaço que indica o site,
projetos (da performance à arte ambiental).134
como apontamento, direção, heterotopia, dentro das galerias ou salas
Existe ainda outra questão interessante, que é a utilização das
expositivas. Robert Smithson, portanto, trabalhou com as relações
mídias tecnoimagéticas não mais como registro, mas como a própria
linguagem artística, o que pressupõe uma ambiguidade na classificação estabelecidas na injeção de vestígios de lugares exteriores aos espaços
destas mídias. No momento em que a fotografia galga o status de ditos artísticos.
arte, a fraudulenta sintomaticidade das tecnoimagens vem à tona. Vejamos de que modo Cauquelin aborda a questão de elementos
Assim ocorre com a utilização do registro na arte contemporânea, incorporais na arte contemporânea, que, trazidos da tradição estoica,
que está longe da imparcialidade pretendida por aqueles que alegam são o tempo, o lugar, o vazio e o exprimível. A arte contemporânea
seu caráter informacional, mas funciona como condição para a problematiza diversos aspectos convencionais da arte, dentre eles o
multiterritorialidade alcançada pelo sistema da arte. lugar da obra, que passa, inclusive, pela questão das territorialidades.
Tomemos como exemplo o norte-americano Robert Smithson Com o deslocamento - que é, aliás, o título de uma obra de Smithson
(1938-1973) e sua predisposição em trabalhar dualidades, tais quais: -, a questão do lugar da obra é permanentemente suscitada: onde está
o site e o non-site, a natureza e a cultura, o deslocamento e o limite. ela, e se está em alguma parte, de que natureza ela é? É a land art que
Smithson é um dos artistas que usa da intermidialidade em suas obras suscita com mais intensidade a questão do jogo de equilíbrio entre o
vazio e o lugar. Qual é o lugar dos “não-sítios” de Robert Smithson?
de maneiras criativas e pertinentes, pois incorpora diversos tipos de Dessa forma, fragmentos de rochas extraídos de um sítio supostamente
vestígios ao seu trabalho, não se restringindo à fotografia. Ele diz real e expostos em uma galeria, onde um documento pregado na
que “as fotografias roubam o espírito do trabalho...135” e em outro parede “completa” a obra. Junção de fragmentos do sítio e de alguns
momento Smithson indica que documentos, portanto.137
se a arte é arte, deve ter limites. Como alguém pode conter esse site O registro fotográfico e videográfico aparece como elemento de
“oceânico”? Desenvolvi o non-site, que de um modo físico contém mediação entre estas duas ações distintas, que pressupõe a participação
a disrupção do site. O próprio recipiente é, de certo modo, um
fragmento, algo que poderia ser chamado de um mapa tridimensional. do fotógrafo/videógrafo como parte da performance, implicando
Sem apelar para “gestalts” ou “antiforma”, ele existe de fato como em determinados outros valores que ainda permanecem pouco
um fragmento de uma fragmentação maior. É uma perspectiva
tridimensional que foi quebrada do todo, enquanto contém a falta de
abordados. Também surge como elemento de multiterritorialização,
sua própria contenção. Não há mistérios nesses vestígios, nem traços ao possibilitar que o sistema da arte assimile ambos os espaços
de um fim ou de um começo.136 (externo e interno) como territórios pertinentes ao sistema, e,
134
Cristina Freire, obra citada, página 94. portanto, devidamente apropriados.
135
Robert Smithson, Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson [originalmente publicado em
1970], em Glória Ferreira e Cecília Cotrim (seleção e comentários), Escritos de artistas: anos 60/70, 137
Anne Cauquelin, Freqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea,
2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, página 286. tradução de Marcos Marcionilo, São Paulo: Martins, 2008, página 71.
136
Obra citada, página 195.
144 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 145

Essa mediação pelo registro, entretanto, assume novos contornos


com o afastamento dos propósitos contraculturais e antimercado das
décadas de 1950 e 1960, quando (principalmente) a fotografia começa
a ser pensada como parte indispensável do processo artístico.
A obra não é mais desterritorializante no sentido de excluir-se da
institucionalização, e de não se tornar um objeto, mas sim uma ação.
Há um sentido inverso, de transformar esta ação em objeto, quando se
incorporam tais práticas ao sistema da arte, agregando-lhes um valor
(não somente econômico, mas, sobretudo, simbólico). Presumo que as
mesmas estejam multiterritorializadas, refletindo uma característica das
relações da arte contemporânea no modelo econômico atual.

“Performações Urbanas”, Carla Evanovitch, 2009


A partir de 15 de dezembro de 2009 foi realizada, em Belém, a
exposição Performações Urbanas, de Carla Evanovitch, como resultado
da Bolsa de Pesquisa Experimentação e Criação Artística do IAP. Na
trajetória desta artista, nascida em Belém, em 1980, destaco o Prêmio
SIM de Artes Visuais, recebido em 2008, no Pará, e a participação
(com a obra Performações Urbanas) no Rumos Artes Visuais 2011-
2013, programa nacional do Itaú Cultural que selecionou cerca de 45
artistas de todo o país.
Carla Evanovitch centrou sua pesquisa na atuação dos vendedores
e pedintes em transportes coletivos, muito comuns em Belém. Um
ator (Bruno Oliveira) realizou uma performance dentro do projeto,
nos ônibus da cidade, em que ele solicitava auxílio para a realização
de uma exposição de arte da sua irmã (o folheto que ele usava trazia a
foto de Carla Evanovitch). Segundo Marisa Mokarzel,
Frame de vídeo que compõe a exposição O ato performático adere à ficção, construída a partir de
Performações urbanas de Carla Evanovitch, Belém, 2009.
entrevistas, do contato próximo com aquele que todo dia repete sua
Fonte: imagem cedida por Carla Evanovitch.
146 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 147

história para uma plateia flutuante que percorre trajetos até chegar ao realizada em três espaços de Belém (bairro do Reduto, Cidade Velha
seu incerto destino. A ideia é compor um personagem que se infiltre e Doca de Souza Franco), e os registros da performance integraram
no cotidiano das pessoas do transporte coletivo, simulando histórias um vídeo homônimo exposto no 29º Salão Arte Pará, em 2010.
e gestualidades, recolhidas durante a pesquisa. No tênue limite entre A obra também foi selecionada no Salão Xumucuís de Arte Digital,
verdades e mentiras disseminam-se as pequenas tragédias, absorvidas realizado em Belém, em 2011, sob a curadoria de Ramiro Quaresma. A
e transformadas em um trabalho que discute, é a própria vida.138 intermidialidade pode ser levantada, em Cafetinagem, ao observarmos
Na exposição Performações Urbanas, realizada no Espaço Cultural como a performance se desdobra em outras mídias e linguagens, como
Casa das Onze Janelas, a artista trouxe ao espaço expositivo diversos a do vídeo-arte.
registros de sua pesquisa: um vídeo da performance de Bruno Oliveira
nos transportes coletivos; folhetos e gravações em áudio de diversos
vendedores e pedintes que atuam nos ônibus da cidade; o dinheiro “Spinario”, Lucas Gouvêa, 2012
doado a Bruno Oliveira pelos passageiros, durante a performance. Lucas Gouvêa é um jovem artista nascido em Belém, em 1990.
Os diversos registros usados diferenciam-se das exposições em que
Nos últimos anos tem desenvolvido pesquisas artísticas que agenciam
a intermidialidade é tratada, prioritariamente, como fotografia ou
diversas territorialidades, seja em sua produção individual, seja
vídeo. Carla Evanovitch traz objetos em diversos níveis, compondo
integrando o qUALQUER qUOLETIVO. Talvez o principal dado
uma instalação que não reconstitui a performance nos ônibus, mas
que permeie sua produção seja a experimentação do corpo, que de
antes cria outro sentido dentro do espaço expositivo convencional.
alguma maneira também permeia a obra Spinario.
Esta obra foi uma das premiadas na terceira edição do Prêmio
Diário Contemporâneo de Fotografia, em 2012, promovida pelo
“Cafetinagem”, Bruno Cantuária,
jornal Diário do Pará em Belém. Spinario é um vídeo que mostra
Luciana Magno e Ricardo Macêdo, 2010
Lucas Gouvêa curvado, retirando espinhos de seu pé, referência à
Em 2010 temos a obra Cafetinagem, cuja autoria é dos artistas
Bruno Cantuária, Luciana Magno e Ricardo Macêdo. Cafetinagem escultura grega helenística da Antiguidade. Sobre a obra, o curador
consistiu em uma performance realizada durante a “vida noturna” de geral do evento, Mariano Klautau, escreve o seguinte:
Olhamos essa figura a partir de um aparato que é a combinação do
Belém, na qual três mulheres (Cynthia Nascimento, Camila Mareco e pinhole com a câmera digital. Agora não é mais um só espinho, são
Luciana Magno), trajando máscaras, simulavam a oferta sexual de seus vários que irão furar o olho da câmera, ampliando os pontos de vista,
corpos, ato comumente praticado na prostituição. superpondo imagens e embaralhando a visão.
No vídeo, o menino, em ação repetida, gesto constante, tira espinhos
A performance foi registrada em fotografias e vídeos pelos artistas do pé e os aplica perfurando, um a um, várias partes do olho da câmera
Bruno Cantuária, Daniel Cruz e Ricardo Macêdo. Cafetinagem foi “pinhole digital”: os nossos olhos. A cada espinho retirado e em seguida
138
Catálogo Circuito das Artes 2009: Artes Visuais, 6ª Edição da Bolsa de Pesquisa Experimentação perfurado, nossa experiência de visão vai se diluindo, apagando-se em
e Criação Artística, Belém: Instituto de Artes do Pará, 2009, sem número de página.
148 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 149

manchas cada vez maiores. Num gesto delicado, temos alguém a nos
furar os olhos e a nos dizer que podemos, sim, apagar nossas imagens,
esquecer as lembranças para que seja possível sobreviver.139
Spinario não é o registro de uma performance, e talvez nem
sequer possa ser encarada como desdobramento de uma. Quando
Lucas Gouvêa usa de seu corpo de forma a construir o vídeo, não é
propriamente a performance o elemento essencial, mas sim a imagem
construída no vídeo, por meio das inúmeras perfurações na pinhole
que multiplicam o mesmo personagem, fazendo sangrar nosso ponto
de vista sempre congelado, sempre único.
A intermidialidade, neste caso, faz com que a escultura
helenística seja convertida em performance contemporânea e depois
em vídeo – este todo carregado de uma poeticidade impossível na
própria performance, porque dependente de aspectos só possibilitados
pela tecnologia empregada pelo artista. Spinario é um vídeo que
desdobra sentidos e significados, e atesta a intermidialidade como
uma característica da arte contemporânea que, mais que registrar e
desdobrar processos, pode possibilitar a criação de práticas artísticas
possíveis somente por meio desta mesma intermidialidade.
É importante frisar que o registro na arte contemporânea
surge na conjunção de duas matrizes: uma vertente informativa, da
documentação como capacidade de guardar aquele acontecimento para
a posteridade; e outra vertente propriamente artística, apresentando o
registro como desdobramento estético da própria ação artística. Nesta
segunda vertente, o registro almeja guardar não tanto o acontecimento,
mas sim a potência artística do acontecimento, e nesse caso se transforma
em outra obra, com outras particularidades e implicações.
Ao duplicar o evento artístico, ele pode oferecer outro evento na
atualidade do acontecimento, em razão de sua exterioridade (o
contexto, a paisagem, os atores, os observadores), ao mesmo tempo
Registros da ação Cafetinagem de Bruno Cantuária,
Catálogo Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia: memórias da imagem, curadoria geral de
139
Luciana Magno e Ricardo Macedo, Belém, 2010.
Mariano Klautau Filho, Belém: Diário do Pará, 2012, página 15.
Fonte: imagens cedidas pelos artistas.
150 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 151

que permite sua divisão e sua transferência para novos espaços e novos las”, propiciando a inserção daquelas práticas dentro do cunho
tempos. Nesse sentido, o registro é parte constitutiva da obra atual, seu
institucional. Para Caquelin,
ambiente de pensamento em seu próprio espaço (...).140
Excluir-se da instituição não gera o efeito desejado, pois o objeto
É óbvio que o aparecimento das técnicas de registro, mesmo (a obra) exportado deve, por fim, ser repatriado ao seio do sistema
como possibilidade artística e estética, na arte contemporânea, implica do qual desertou, sob pena de permanecer no estado de uma
em uma série de outras relações e mediações culturais, efetivadas na tentativa não transformada, isto é, não reconhecida, até mesmo não
conhecida. (...) A galeria ou o museu permanecem como o pivô do
transição do circuito, na transação do sistema da arte. O registro movimento de exportação das obras e recolhem piedosamente as
possibilita esta inserção, a inserção dos incorporais (o tempo, o lugar, pistas documentadas do exílio.142
o vazio e o exprimível), nas práticas artísticas contemporâneas, e para Cauquelin não se posiciona contra a utilização do registro,
muitos autores esta possibilidade de inserção em diversos espaços ou dos incorporais propriamente analisados pela autora, na arte
diferenciados é a sua maior potência. Embora, claro, este ensaio não contemporânea, mas apenas aponta que a finalidade extrainstitucional
pretenda vislumbrar méritos ou desméritos de artistas e técnicas, ou antissistematização das práticas artísticas da década de 1960 em
mas somente constatar e analisar as relações sociais tecidas em torno diante não foi propriamente alcançada. As práticas que lidam com
das (multi)territorialidades implicadas na arte contemporânea. Luiz os incorporais não negaram o sistema da arte, em parte devido ao
Cláudio da Costa nos diz: registro das mesmas. Por outro lado, o registro alcançou outras
No momento atual, o registro serve ao circuito, promovendo a potencialidades quando confrontado com o âmbito da arte, já que
circulação de trabalhos que, após desaparecerem, retornam como
os artistas primaram por guardar antes uma ideia artística do que um
documentação aos arquivos institucionais de museus e galerias.
Todavia, além dessa função social e cultural de documento que acontecimento, “num movimento que, antes de ser mero exercício
alimenta as instituições de arte, o registro exige para si função panfletário, ilustrativo ou mesmo pedagógico, corresponde a uma
plástica e estética singular. Essas direções contrárias e simultâneas
reafirmação da potência tanto poética quanto política da arte”143.
que permitem tanto o arquivamento quanto o risco, promovendo a
inscrição e a simultânea diferenciação da própria natureza, seja da Eis um apontamento que já é bastante óbvio: a suposição da
obra, seja do arquivo, constituem a potência do registro.141 existência de uma lógica cultural que sedimenta a arte contemporânea.
Está bastante aparente que o registro na arte contemporânea Esta relação é complexa e intrincada, mas obviamente mediada por
atua tanto na direção de um mecanismo institucional quanto na fatores econômicos. E cabe analisar melhor o que, especificamente
direção de novas possibilidades artísticas. Cauquelin, falando sobre para a arte contemporânea, vem a ter conotações econômicas (sem
as manifestações artíticas da segunda metade do século 20, aponta necessariamente me referir a objetos). Dentro deste emaranhado
que a antiarte das vanguardas sessentistas, que procuravam o discursivo que se tornou o sistema da arte, a reterritorialização de
desvencilhamento das instituições de arte, acabaram por “fortalecê- certas práticas aparece como um procedimento necessário: a conversão
140
Luiz Cláudio da Costa, O registro na arte contemporânea: inscrições de visibilidades, discursos e Anne Cauquelin, obra citada, página 68.
142

temporalidades como séries da obra, em Luiz Cláudio da Costa (org.), Dispositivos de registro na arte Sheila Cabo Geraldo, Imprecisas e fragmentadas: história e arte em fotografia, em Luiz Cláudio da
143

contemporânea, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria; FAPERJ, 2009, página 90. Costa (org.), Dispositivos de registro na arte contemporânea, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria;
141
Obra citada, página 89. FAPERJ, 2009, página 76.
152 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 153

em capital de tudo o que (a priori) não é valor. Ou seja, a conversão de permitida pelas tecnoimagens, e torna-se necessário analisar com
práticas artísticas que estavam fora do controle institucional (graças maior precisão todas as relações tecidas pelo surgimento dos registros
à singular ausência de valor econômico) em práticas que podem ser das obras e processos artísticos, e como estes territórios múltiplos se
apropriadas pelo sistema da arte. distribuem através do sistema da arte contemporânea.
Nestas relações, não se requer – necessariamente – uma Não posso deixar de apontar o risco, que a intermidialidade
mudança estrutural destas práticas. A performance continua sendo experimenta, de produzir a espetacularização de determinadas
performance, assim como a arte urbana continua sendo produzida no práticas na arte contemporânea, ao adotar registros de ações e trazê-
espaço urbano (exceto por tentativas algumas vezes incoerentes, como los como desdobramento estético para dentro dos espaços expositivos.
a de trazer o grafite das ruas para as paredes das galerias). A mudança É necessário que haja pertinência para a existência do registro e de
nestas práticas, basicamente, se dá em nível simbólico, quando elas seu uso dentro dos sistemas da arte contemporânea, para que não se
passam a fazer parte e, inclusive, a ser mantidas pelos sistemas da arte produzam objetos puramente como espetáculo, sem a capacidade de
contemporânea. discutir as questões que hipoteticamente deveriam propor.
Também se torna bastante claro que o processo é um jogo, um Em práticas como as de Performações Urbanas, Cafetinagem e
devir entre desterritorialização e reterritorialização, que se configura Spinario percebemos que essa relação de intermidialidade constituída
justamente pelo fato de que o isolamento de um artista ou obra nos sistemas da arte contemporânea é responsável pela utilização de
em relação ao sistema da arte acaba por tornar este artista ou obra muitos espaços que, neste texto, evocam as multiterritorialidades
ilegítimos enquanto arte contemporânea. É necessário que o artista, analisadas. Reunida a outros aspectos de reterritorialização de práticas
a obra, o processo se façam visíveis dentro deste sistema, mesmo que deste tipo, como a regulamentação estabelecida nos sistemas da arte
o transgredindo (o que também é parte do jogo). É neste sentido que através de mecanismos institucionais, temos então configurada a
adquirem maior importância as bolsas, as leis de incentivo, o patrocínio utilização de diversos espaços não convencionais, que possibilitam a
institucional, que promovem a realização de práticas artísticas em inserção destas práticas no sistema – inclusive através de seus registros,
territórios informais, mesmo que de uma forma totalmente vinculada ou simplesmente na potência de ações efêmeras.
às instituições da arte. Ressalto, também, a importância do registro,
aparecendo como mediador entre territórios, agente do devir.
Afirmo que o sistema da arte contemporânea, condicionado por
fatores os mais diversos, estruturou-se através de múltiplos territórios.
Estes territórios se organizam não somente em decorrência de espaços
fisicamente delimitados, mas também em decorrência de fluxos,
espaços de passagem, circuito de informação. A multiterritorialidade
que se faz presente na arte ocorre em parte graças à intermidialidade
154 155

3.
MULTITERRITORIALIDADES
NOS SISTEMAS DA
ARTE CONTEMPORÂNEA

Registros da intervenção Paisagem de Andréa Feijó,


no 26º Salão Arte Pará, Belém, 2007.
Fonte: imagens cedidas pela artista.
156 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 157

A conjunção entre práticas artísticas desterritorializantes e podemos observar com maior facilidade esta multiterritorialidade
mecanismos institucionais reterritorializantes termina por estabelecer atuando nos sistemas da arte contemporânea.
novas relações de espaço na arte contemporânea, que neste ensaio Ao observar os sistemas da arte enquanto redes, Anne Cauquelin
denomino de multiterritorialidades. Para Régis Debray144, naquilo que acaba por enfatizar esta multiterritorialidade no aspecto político-
ele nomeou como midiologia, as tecnologias do homem condicionam econômico da arte: um circuito de informações, interesses e agentes
suas relações com o mundo. Não obstante, podemos presumir que as sociais que movimentam os sistemas da arte contemporânea através
tecnologias utilizadas nas práticas artísticas condicionam a própria arte. de centros culturais interconectados sobre o planeta. São relações
Em uma possível análise midiológica da arte, poderíamos constatar de mobilidade e interconexões possibilitadas, em grande parte, pelo
através de quais movimentos as práticas artísticas como performance, recente desenvolvimento das tecnologias digitais e virtuais, além
land art, ciberarte, dentre outras, acabaram moldando o uso dos da eficiência alcançada nos meios de transporte e comunicação e
espaços na arte contemporânea tal qual estabelecido atualmente. também de uma intensificação do mercado de arte – visto atualmente
O capítulo anterior deste ensaio apresenta alguns dos mecanismos como investimento. Diz Cauquelin que “É a exposição que carrega a
institucionais que proporcionaram estas multiterritorialidades. significação ‘isto é arte’ e não as obras. É a rede que expõe sua própria
A utilização que se dá aos espaços, portanto, passa a ser um
mensagem: eis o mundo da arte contemporânea. E assim o público
dos pontos fundamentais da arte contemporânea, até mesmo na
consome a rede enquanto a rede consome a si própria”146.
utilização de suas antinomias, os não-espaços, os incorporais, o vazio.
O aspecto da territorialidade que desejo priorizar neste capítulo
Para Lisbeth Gonçalves,
não é o político ou o econômico, mas sim o simbólico. Pretendo
Enquanto o museu consolida o seu espaço expositivo como lugar que
quer ser “neutro”, a idéia de lugar para os artistas contemporâneos apresentar algumas formas por meio das quais as práticas artísticas da
vai assumir importância enquanto linguagem. Isso quer dizer que, contemporaneidade usam os espaços não convencionais, fomentando
nesse momento, a arte assume a vocação de explorar a construção
do espaço e, como sintaxe básica da criação artística, utiliza-se da
múltiplas territorialidades. Também é necessário dizer que esta
dimensão espacial.145 multiterritorialidade só é possível pelo fato destes novos espaços não
Quais espaços são ocupados, ou, antes, de que formas os espaços configurarem uma funcionalidade unicamente (ou primordialmente)
são ocupados na arte contemporânea? artística, mas sim apresentarem uma conjunção de funcionalidades e
Se considerarmos que a multiterritorialidade é um processo social usos distintos, já que estão envolvidos diversos agentes sociais – não
disseminado em diversas áreas da existência humana (é claro, nas só os do sistema da arte.
sociedades completamente inseridas nos processos de globalização), Talvez o mais importante desta nova relação seja que esses diferentes
territórios que conseguimos mobilizar não continuam mantendo
144
Régis Debray, Curso de midiologia geral, tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira, suas individualidades, como num novo “todo” produto do
Petrópolis: Vozes, 1993. somatório das partes, mas entram na construção de uma experiência
145
Lisbeth Rebollo Gonçalves. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2004, página 54. 146
Anne Cauquelin. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005, página 79.
158 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 159

ou construção efetivamente nova, flexível e mutável que não é uma Por outro lado, também se pode argumentar que estes
simples reunião ou justaposição de “múltiplos” territórios, mas,
espaços não sinalizados como território da arte simplesmente
efetivamente, uma “multiterritorialidade”.147
não conseguem comunicar com eficácia a mensagem da obra
Estabelecerei três eixos a partir dos quais as práticas artísticas
ou do artista, tornando aquela experiência desvinculada de
contemporâneas multiterritorializam-se, a saber: o espaço geográfico,
conhecimentos mais específicos a respeito da história e da crítica
o espaço virtual e o espaço biológico. Tais eixos não são uma tentativa
de arte, e concedendo às práticas artísticas um caráter rotineiro e
de categorizar as práticas em questão, mas somente um recurso
funcionalidades que seriam secundárias.
conceitual para tornar mais clara a compreensão do que aqui é Quando as exposições são pensadas como meios de comunicação
proposto. Os exemplos citados, em sua maioria, não se enquadram entre o público e a arte, a conjuntura cultural influi diretamente
especificamente em um destes espaços, mas muitas vezes ocupam dois na compreensão da mensagem. Raras vezes o objeto, em si mesmo,
é suficiente para remeter imediatamente os visitantes aos valores
ou três espaços simultaneamente. Entretanto, é necessário analisar trabalhados na exposição. Relações precisam ser estabelecidas pelo
cada conceito isoladamente, mesmo que essa separação não seja público para se chegar a uma compreensão da mostra. Para tanto, o
possível em termos práticos. espectador, de antemão, precisa ter – ou adquirir por via da exposição –
informações sobre o objeto exibido. Ele precisa, também, captar quais
Estas linguagens artísticas em espaços não convencionais os paradigmas que norteiam o conceito de arte num determinado
proporcionam uma expansão que acaba subvertendo os sinais próprios momento da história, quais as tendências da época em que se insere a
obra; e deve conhecer algo sobre o seu contexto social.
da arte. Em sua essência, o território convencional da arte já é em si Nesse sentido, pode-se avaliar como são importantes as informações
uma informação a respeito do sistema, ele é – independente do que da história da arte e a visão crítica da arte veiculadas pelas instituições e
esteja nele exposto – uma mensagem facilmente compreensível pelo pelos curadores na organização de mostras.148
público em geral. Ao deslocar a exposição dos objetos ou práticas É evidente que o uso destes espaços não convencionais para a arte
artísticas para espaços não convencionais, com a ausência dos sinais não pode ser tratado puramente por aspectos positivos ou negativos,
de um discurso específico, acaba-se por suprimir as características até mesmo pelo fato de que este uso já está dado, sendo constante
designativas da arte. em nossos sistemas da arte contemporânea. O que parece ser uma
Por um lado, pode-se argumentar que se elimina a esterilidade necessidade mais urgente é a análise das consequências que estes usos
acarretam, não somente para o sistema da arte, mas principalmente
provocada por espaços convencionais como os museus, que levam
para os grupos sociais em geral, postos em contato com estas
o espectador a atitudes passivo-contemplativas e o impedem de
práticas artísticas. É claro que este ensaio não é um estudo exaustivo
experimentar devidamente a arte. O espectador, nestes espaços não
e suficiente para uma análise deste tipo, que necessariamente se
convencionais, usa a arte conforme a funcionalidade mais apropriada,
debruçaria sobre as subjetividades envolvidas nos novos processos de
tornando tais práticas pertinentes e criativas.
produção e recepção da arte contemporânea, por meio de ferramentas
147
Rogério Haesbaert da Costa, O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, página 344-345. 148
Lisbeth Gonçalves, obra citada, páginas 33-34.
160 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 161

metodológicas próprias. É, porém, suficiente para a análise destas Uma consideração interessante na constituição das
múltiplas territorialidades em suas implicações para o sistema da arte multiterritorialidades é observar que, atualmente, as obras são
contemporânea paraense. desdobradas por meio de processos de intermidialidade, como
Estes novos espaços ocupados na arte contemporânea acabam abordei anteriormente. Estes processos acarretam dois tipos de ação:
por configurar aquilo que Michel Foucault chamou de heterotopias. uma que apresenta ou materializa determinada obra; e outra que
Para Foucault, a “heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar representa aquela ação primeira por meio de outras obras. A inserção
real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios no sistema da arte destas linguagens artísticas (realizadas em espaços
incompatíveis”149. A coexistência das diversas subjetividades envolvidas diferenciados) proporciona que cada vez mais as instituições culturais
em um mesmo espaço, destinado à arte (mas não somente), forja incentivem – através de investimentos financeiros – práticas artísticas
estas heterotopias – nas quais tanto os registros expostos em espaços diversas e típicas da contemporaneidade.
convencionais apontam para práticas realizadas em outros lugares, Passo agora à análise dos três eixos que apontei como espaços que
quanto estas práticas em espaços não convencionais põem em contato propiciam múltiplas territorialidades: geográfico, virtual e biológico.
diversos capitais simbólicos e relações sociais naqueles espaços. Cada espaço está imbricado no outro. Da mesma forma, formulei
Heterotopia também diz respeito a espaços que não se situam estas categorias porque acredito que cada espaço também possui
suas especificidades e questões próprias. Cada espaço também será
no conceito convencional de espaço, apesar de efetivamente o
analisado a partir de exemplificações significativas para o cenário
serem. Nesta categoria também poderemos enquadrar a experiência
artístico contemporâneo paraense.
vivenciada através dos meios tecnológicos como a internet. Na arte
contemporânea existe uma vasta constituição de heterotopias, já
que a multiplicidade de territórios tem possibilitado estes espaços
diferenciados que apontam para outros espaços. A conjunção de
diversas territorialidades, coexistindo uma exposição de arte e um
espaço comercial, por exemplo, faz com que, durante o tempo de
duração das práticas artísticas naquele local, possamos tomá-lo como
uma heterotopia, que aponta tanto para a arte quanto para o comércio.
A presença de registros fotográficos (e de outros tipos) nas exposições
aponta para ações que ocorreram em outros locais, funcionando como
“portais” através dos quais se vislumbra aquela prática.
149
Michel Foucault, Outros espaços, em Estética: literatura e pintura, música e cinema, seleção de
textos de Manoel Barros da Motta, tradução de Inês Autran Dourado Barbosa, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2001, página 418.
162 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 163

3.1. Os espaços geográficos O espaço geográfico enquanto mídia – posto que seja um
meio simbólico de transmissão e circulação de informações, ideias e
Neste primeiro eixo do texto pretendo especificar as relações da
ideologias – interfere nas concepções da sociedade. Novas relações de
arte contemporânea paraense com o espaço geográfico, e por geográfico
comércio simbólico e monetário são estabelecidas também em torno
quero dizer, de maneira bastante sucinta, que me refiro a todo espaço
do sistema da arte. Também é verdade que este sistema cria rotas de
físico na superfície do planeta. Os museus e galerias, obviamente,
consumo, fluxos comerciais, relações de troca, estabelecendo valores
ocupam um espaço geográfico, e simbolizam-no de acordo com seus
aos objetos estéticos que são legitimados enquanto obras. A arte é um
discursos. Para efetuar uma distinção mais aparente, é preciso definir
mercado cultural. E as “lojas”, em geral, são as galerias, as exposições,
alguns espaços como convencionais, típicos das instituições da arte, em
as bienais etc. O sistema da arte cria tanto um território simbólico,
contraposição aos espaços não convencionais, que constituem novas
ao legitimar certas manifestações enquanto artísticas (tornando outras
territorialidades, muitas vezes mais complexas que as primeiras. Por
ilegítimas), quanto um território geográfico que demarca sinais –
geográfico, portanto, aponto os espaços exteriores aos lugares expositivos
convenções sociais – que indicam o que é arte.
socialmente demarcados por um código cultural que sinaliza a arte.
O espaço público, citadino ou “natural” (no sentido de
Trazer a arte para o espaço geográfico não como arquitetura
natureza), é palco de disputas, relações sociais de poder. Quando a
funcional (monumentos comemorativos), mas na acepção de objeto
arte contemporânea se insere neste espaço, obviamente deixa de ser
estético contemporâneo (ou nem mesmo como objeto, considerando
propriedade exclusiva do discurso dos sistemas da arte, e passa a ser
as diversas práticas artísticas que eliminam a necessidade do objeto),
apropriada por diversos outros grupos com interesses próprios.
é trazer as paredes das galerias para as ruas. Há toda uma implicação
No Pará, embora os espaços natural e rural (a paisagem
simbólica que interfere em nossa percepção de mundo, de arte e de
amazônica) sejam um dado significativo no imaginário dos artistas,
cidade (claro, se estivermos falando de cidade, considerando que
a maior parte das práticas artísticas multiterritorializadas se constitui
existem propostas realizadas em lugares ermos, como a land art). Há a
no espaço urbano. É interessante perceber que o espaço comum nas
negação de um sistema cultural de valores e de sinais legitimadores. O
cidades é disputado também pela arte contemporânea como um lugar
sistema é negado (a princípio), como pude descrever naquilo que este
repleto de potencial de sentidos e significados. A predominância de
estudo trata por desterritorialização da arte. Entretanto, a subsequente
práticas artísticas nos centros urbanos, no circuito paraense, faz com
reterritorialização da arte, inclusive nos espaços públicos geográficos,
que este ensaio não utilize nenhum exemplo voltado a um espaço
provoca as múltiplas territorialidades aqui abordadas.
natural ou rural, como era o caso, por exemplo, da land art de Robert
É bem verdade que as discussões levantadas por experimentações
Smithson, entre outros artistas.
artísticas quanto ao uso do espaço datam sua origem, aproximadamente,
É sempre necessário pensar a cidade como um todo fragmentado:
na década de 1960, se não quisermos nos estender às vanguardas
sobreposição de diversas camadas, grupos, etnias, culturas, discursos
dadaístas e futuristas do início do século 20. Portanto, a arte
etc. Corro o risco de parecer dualista ao falar em habitantes periféricos,
contemporânea já convive com estes questionamentos há meio século.
164 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 165

mas é inegável que as periferias são relegadas ao segundo plano pelos A publicidade emerge, dentro deste quadro, como uma das
poderes governamentais, e inclusive pelas manifestações de arte manifestações mais viscerais da estetização (ou antiestetização)
urbana ou pública. do espaço público a serviço de interesses ideológicos – neste caso,
As tensões ideológicas, conflitos de interesses e disputas de econômicos (mas não somente). Quando ocupa o espaço urbano de
poder se dão na e através da cidade. O território urbano não somente maneira predatória – sobrepondo-se anúncios, cartazes, outdoors,
veicula mensagens, ele muitas vezes é a própria mensagem, quando é letreiros de néon, banners etc. – a publicidade sutilmente se coloca
usufruído de forma a demarcar territorialidades, constituindo valores em um pedestal imaginário. Ela ocupa o lugar dos antiquados
simbólicos instaurados a partir de uma esfera privada para a esfera monumentos e retoma sua função comemorativa, disseminando
pública. Podemos dizer que valores, gostos, comportamentos e mensagens que irão condicionar
Controle, defesa, estabelecimento de hierarquias ou fronteiras (tais ou no mínimo influenciar as opções de todo um grupo social, neste
como público/privado, pessoal/impessoal, conhecido/desconhecido,
espaço urbano. Como a publicidade parte, geralmente, de grandes
confiável/ desconfiável, íntimo/social) figuram no elenco das
possíveis funções da territorialidade. (...) A arte urbana, quando empresas e instituições, na intenção da promoção simbólica ou
emerge de ações matizadas como afirmação de territorialidade, mercadológica, ela acaba se utilizando de elementos estéticos de poder
transita dentro deste antagonismo.150
atrativo – que, entretanto, empobrecem o espaço coletivo enquanto
Existem diversas manifestações da chamada arte urbana (a que, objeto estético.
explicando a grosso modo, se dá nos espaços públicos urbanos) que
“Não se chegou a questionar nunca a invasão monumental que a
atravessam vários níveis de significação simbólica, interação social e
publicidade faz dos espaços públicos”152. Não há elemento mais forte
promoção de interesses públicos ou, em contrapartida, particulares. Um
– e ao mesmo tempo tão ignorado pelo senso comum – enquanto
exemplo é o que Javier Maderuelo chamou de “arte pública”, enquanto
objeto ideologicamente tendencioso, inserido no espaço urbano, do
“renúncia à forma e significação tradicionais”151 da escultura ou
que a publicidade. É uma das formas mais sutis, justamente porque é
monumento, cujos artistas representantes buscam extrapolar o circuito
a mais indiscreta, de se apropriar do espaço público, privatizando-o e
do sistema da arte, mas, por outro lado, também querem escapar de
demarcando territorialidades, ou, antes, forjando subjetividades.
produzir arte urbana enquanto ornamentação (no sentido pejorativo
do termo) da cidade. Esta vertente da arte no espaço urbano, que me Se compararmos o grafite à publicidade, poderemos contemplar
parece uma das mais interessantes, vê antes de tudo responsabilidades ainda mais as manifestações e conflitos ideológicos que se desenvolvem
e compromissos que a arte deve assumir ao ser proposta no espaço no espaço urbano. As duas linguagens buscam visibilidade pública e
público, posto que todo e qualquer elemento que configura a cidade são manifestações de caráter efêmero. Porém, enquanto a publicidade
tem conotações ideológicas, econômicas, sociais, dentre outras. se utiliza de elementos estéticos empobrecidos em um vazio conceitual,
o grafite atua enquanto linguagem de rearticulação dos espaços, por
150
Vera Pallamin, Arte Urbana: São Paulo: região central (1945-1998), obras de caráter temporário e vezes trazendo discursos de crítica social, por vezes utilizando uma
permanente, São Paulo: Annablume; FAPESP, 2000, página 31-32.
151
Javier Maderuelo, La pérdida del pedestal, Madrid: Círculo de Bellas-Artes, 1994, página 72, 152
Javier Maderuelo, obra citada, página 40, tradução nossa.
tradução nossa.
166 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 167

estética do grotesco, por vezes apropriando-se de espaços privados não de o informal lidar com o espaço, constituindo um sistema econômico
autorizados e recontextualizando-os. além da supervisão estatal, é uma resistência, um golpe sutil às práticas
A pichação vai ainda mais longe que o grafite, ao tomar para si os de poder governamental, já que constitui um instrumento nas mãos
espaços públicos e privados de forma subversiva (pois ilegal), criando de seus utilizadores. Refaz e desfaz a arquitetura da cidade, torna-se
territorialidades para grupos específicos (pichadores e gangues) por eficiente e vivo porque se move. Propostas instáveis para um sistema
meio de codificações do espaço urbano (as pichações não são feitas que se caracteriza pela instabilidade.
para o coletivo social, mas sim para demarcar territórios entre facções Os centros urbanos assim se caracterizam na contemporaneidade,
rivais). Estas codificações excluem da comunicação os proprietários e com todas essas frágeis relações de espaços globalizados, cidades dentro de
usuários convencionais dos espaços pichados, os pichadores usurpando cidades, espaços deslocados, espaços virtuais, não lugares etc., apenas para
um espaço que não lhes é próprio. citar uma parte da terminologia aplicada na atualidade para estudar a
Este tipo de apropriação do espaço urbano – fluida, movente, constituição do espaço nas metrópoles. Os centros urbanos da atualidade
flexível e funcional – caracteriza o pensamento de Nelson Brissac possuem peculiaridades um tanto inconvenientes para qualquer tipo de
Peixoto, quando diz que rigidez cientificista. São lugares flexíveis, de agentes sociais moventes.
A cidade é convertida num acampamento nômade, onde os habitantes A figura do artista algumas vezes aparece como o criador
estão em trânsito constante, contra uma paisagem que muda de hora
absoluto, isento de qualquer passividade e arauto dos anseios
em hora.
(...) Processos de mutação, que deslocam e reatribuem significado coletivos, encarregado de fazer com que sua produção possa cumprir
aos lugares. Uma arquitetura da deriva – cidade em movimento para os objetivos que idealizamos para a Arte maiúscula. Temo que esta
habitantes-viajantes – baseadas em espaços flexíveis e lúdicos.
visão seja um tanto carregada de idealismo ingênuo, e não gostaria
A mesma distinção entre o espaço nômade e o espaço determinado pelo
Estado. Nomos contra polis.153 de adotá-la. Para mim está claro que a arte urbana, o artista, as
Ao opor a rigidez arquitetural dos espaços institucionais instituições financiadoras, o entorno em que ela se localiza, os grupos
governamentais (polis) à apropriação nômade praticada na sociais de usuários que a experimentam, enfim, tudo e todos farão
contemporaneidade (nomos), o autor indica que a própria maneira de uso particular e, portanto, subjetivo, do objeto estético e do espaço
lidar com o espaço transporta significados. Enquanto o Estado cria urbano – como inclusive já o fazem desde sempre.
um espaço rigoroso, imponente, na intenção de afirmar seu poder A arte situada no espaço público, particularmente no espaço
enquanto organismo dominante e regulador da cidade, os grupos urbano, pode cumprir diferentes objetivos, que nem sempre são
informais (porque autônomos) operam em outro nível, articulando objetivos premeditados, mas sim sujeitos à aleatoriedade das relações
“um novo dispositivo urbano, contraposto à organização determinada sociais. Entretanto, algumas vezes é possível utilizar o espaço urbano
pelo edificado e o desenho urbano dominantes”154. A maneira dinâmica para construir reflexões críticas, provocando o imaginário e a
simbolização da cidade pelos seus usuários, como vimos e veremos
153
Nelson Brissac Peixoto, Paisagens urbanas, 3ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Senac São Paulo, 2004,
página 363. em alguns exemplos neste ensaio.
154
Nelson Brissac Peixoto, obra citada, página 432.
168 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 169

Parece evidente que a arte contemporânea tem potencial para 3.1.1. Ações permanentes
fazer pensar e fazer-se pensar. As possibilidades abertas pela estetização
Existe uma determinada parcela das práticas artísticas no espaço
do espaço público – não como embelezamento, mas como espaço
geográfico que se situa – plasticamente – nas interseções entre a
pleno de pensamentos e de liberdade de pensamento – fazem com
arquitetura e a escultura, e a realização de projetos deste tipo requer,
que tanto os sistemas da arte se reinventem para abarcar estas
muitas vezes, um alto investimento capital para sua materialização
manifestações artísticas quanto a cidade seja pensada enquanto espaço
(e, obviamente, não me refiro ao capital simbólico, mas a tijolos,
comum, palco dos nossos interesses convergentes e divergentes; e que
cimento e similares). Característica marcante (isto não é uma regra): o
não é uma propriedade exclusiva daqueles que detêm os meios de
processo de materialização deste tipo de prática artística urbana difere
produção, ainda que muitas vezes os discursos da arte urbana nos
do processo criativo tradicional, por requisitar uma escala maior
indiquem isso.
com características arquitetônicas; também difere por movimentar
Divido as ações localizadas nestes espaços geográficos em
uma equipe de profissionais distintos (seja para construir, seja para
duas categorias: ações artísticas de caráter permanente, tal qual
planejar o objeto nas suas dimensões sociais, políticas e ecológicas),
monumentos históricos, e ações artísticas de caráter efêmero, muitas
abandonando a ideia de “artista” enquanto criador absoluto. E torna-
vezes chamadas de interferências, intervenções, composições urbanas
se claro (e caro): há diferença nos custos econômicos de viabilização
ou simplesmente ações.
do projeto ao objeto concretizado.
Um dos mecanismos que, em parte, sanou os altos custos de
práticas artísticas desse tipo foi sua conjunção com instituições culturais,
por meio de regulamentações (leis de incentivo fiscal, dentre outras).
A contemporaneidade promove uma desterritorialização simbólica da
arte, ao retirá-la dos seus espaços formais e trazê-la ao seio do espaço
geográfico. Mas, especificamente no sentido de práticas artísticas
permanentes de grande escala, o fator econômico torna-se um dos mais
importantes fatores para uma reterritorialização da mesma.
É importante esclarecer que esta arte de caráter permanente,
situada em espaços públicos, é muitas vezes encarada como alheia aos
sistemas da arte, como afirma Tom Finkelpearl, falando sobre a arte
contemporânea na cidade de Nova York, na década de 1990.
As galerias de arte comerciais e os museus não gostam da arte pública
porque ela pertence a uma estrutura econômica paralela. O mundo
da arte normal não se envolve com a encomenda de arte pública na
cidade de Nova York. (...) Há uma animosidade entre o mundo do
170 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 171

establishment da arte, de um lado, e o mundo da arte pública, do outro.


Os artistas que se aventuram fora das fronteiras do establishment da arte
são vistos como uma espécie de transgressores.155
É claro que, ao analisarmos os exemplos deste tipo de prática
no Pará, não vislumbraremos nem a prática constante de arte pública
permanente, e nem mesmo a existência de um mercado sustentável
através de galerias de arte contemporânea. Pelo contrário, as galerias
de Belém que permanecem em funcionamento voltam-se para um
público muito específico, focando linguagens tradicionais (pintura,
escultura, gravura, fotografia etc.), pouco abertas a práticas artísticas
contemporâneas mais onerosas ou experimentais. Os exemplos de arte
contemporânea enquanto objeto permanente no espaço público que
temos na região, aparentemente, são bastante resumidos – estando
muitas vezes ligados às esferas governamentais.

“Velames”, Osmar Pinheiro, 1985


Voltemos a meados da década de 1980, para analisar a obra
que me parece ser o primeiro exemplo de produção artística
contemporânea instalada permanentemente no espaço público.
Em 1985 foi concluída uma grande reforma no Complexo do Ver-
o-Peso – um dos principais pontos turísticos de Belém – na qual
foram restaurados o Mercado de Ferro e o Solar da Beira, e realizadas
melhorias na Feira do Açaí, na Praça do Pescador e na área da feira
livre, com instalação de barracas padronizadas.
Durante esta reforma a Prefeitura Municipal de Belém solicitou
ao artista e arquiteto Osmar Pinheiro a realização de dois projetos,
ambos de intervenções artísticas permanentes. Osmar Pinheiro nasceu
em Belém, em 1950, e faleceu em São Paulo, em 2006. Desenvolveu
Registros da obra Velames de Osmar Pinheiro,
no Complexo do Ver-o-Peso, Belém, 1986. 155
Tom Finkelpearl, Financiamento de arte pública em Nova York, em Arte pública: trabalhos
Fonte: fotografias realizadas e cedidas por Rosário Lima. apresentados nos Seminários de Arte Pública, São Paulo: SESC, 1998, página 74.
172 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 173

atividades artísticas desde o final da década de 1960, participando Mangal das Garças, 2005
de inúmeras exposições locais e nacionais. Formou-se arquiteto pela Em 12 de janeiro de 2005, aniversário de 389 da cidade de
UFPA e foi professor, de 1973 a 1986, do curso de Educação Artística Belém, foi inaugurado o Mangal das Garças – complexo turístico,
da UFPA. De 1986 a 1989 fez Mestrado em Artes pela USP. Em 1988 cultural e de lazer em uma área de 34,7 mil metros às margens do
recebe a bolsa da Guggenheim Foundation de Nova York para passar rio Guamá, reunindo restaurantes, lagos, museu, borboletário, farol,
um período em Berlim, Alemanha. Expôs em bienais internacionais viveiros de pássaros, mirante sobre o rio, além de ampla vegetação
e, em 2003, cria com o pintor Marco Giannotti a Oficina Virgílio, em natural e fauna livre. A obra foi realizada pelo Governo do Estado do
São Paulo, núcleo de ensino e pesquisa em arte. Pará, por intermédio da SECULT (Secretaria Executiva de Cultura),
Um dos projetos solicitados a Osmar Pinheiro para o Ver-o- em um investimento de R$ 15 milhões156. Além do próprio Mangal
Peso resultou na escultura Velames, composta por estruturas em das Garças representar, em si, um espaço cultural, ele também
metal que faziam alusão às velas das embarcações amazônicas, que oportunizou a presença da arte contemporânea no parque.
tradicionalmente atracam naquele mercado, nas madrugadas, vindas No Mangal das Garças, a arte pública ganha um espaço privilegiado,
em que quatro artistas paraenses, que foram convidados pela Secult para
das regiões interioranas para desembarcar alimentos e abastecer o
participar do projeto, expõem obras que são integradas naturalmente ao
comércio local. Essas estruturas de metal ficavam dispostas sobre um local, como se fossem uma extensão do espaço recriado. Os artistas são
pequeno lago artificial circular, ativando e construindo o imaginário Emanuel Franco, Geraldo Teixeira, Klinger Carvalho e Acácio Sobral.157
local, quanto a sua paisagem e seus elementos característicos. As obras permanentes que integram o jardim de esculturas do
Semelhante às obras denominadas site specific, a obra foi projetada Mangal das Garças caracterizam-se como uma das posturas citadas
para dialogar com as peculiaridades do entorno no qual foi inserida. por Javier Maderuelo, falando a respeito de arte urbana. Este tipo de
Velames era um patrimônio artístico e cultural a ser mantido obras pretende
pelas esferas governamentais no seu local de destino de forma Recuperar a escala ‘monumental’, mas mantendo a obra no plano
da abstração irreferencial, ou seja, sem dotá-la de uma significação
permanente. Não foi o que ocorreu. A obra foi retirada em 2002, explícita ou determinada. Os artistas que poderíamos enquadrar dentro
durante outra reforma no Complexo do Ver-o-Peso, e pouco se desta postura pretendem uma recuperação do ‘ofício monumental’ do
sabe sobre seu paradeiro desde então. O outro projeto realizado por escultor, realizando obras que procurem uma escala adequada ao espaço
público e uma presença física que se imponha ao espectador158.
Osmar Pinheiro em 1985 foi a pintura de um painel em uma esquina
O que pretendo salientar é que tais obras não possuem uma
histórica nos arredores do Ver-o-Peso – também ela removida, em
característica participativa ou interativa mais acentuada do que a
2010, por iniciativa das esferas governamentais, mostrando mais
contemplação, como observamos em outras produções artísticas
uma vez o despreparo das políticas públicas de cultura no Pará
contemporâneas. A arte pública ou urbana, no Pará, ainda carece
para lidar com as singularidades da arte contemporânea em sua
múltiplas territorialidades. 156
Jornal Diário do Pará, edição de 12 de janeiro de 2005
157
Jornal O Liberal, edição de 12 de janeiro de 2005.
158
Javier Maderuelo, obra citada, página 53, tradução nossa.
174 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 175

de exemplos que construam espaços participativos e integrem o


público como parte do processo artístico da obra – exemplos que
por aqui podem ser facilmente encontrados em produções nas
linguagens performáticas.
Uma das obras que integra o espaço do Mangal das Garças
chama-se Lâminas d’água – cavernando, do artista Geraldo Teixeira,
resultante da Bolsa de Pesquisa Criação e Experimentação Artística
do IAP, tendo consumido seis meses de pesquisa, entre Belém e
Abaetetuba159. O título é alusivo aos cavernames, que é o conjunto
das peças curvas – chamadas cavernas – que formam o arcabouço
de uma embarcação. Geraldo Teixeira nasceu em Belém, em 1953,
e iniciou suas atividades artísticas na segunda metade da década de
1970. Participou de várias exposições individuais e coletivas no Brasil
e em outros países. Foi um dos fundadores da Associação dos Artistas
Plásticos do Pará e curador geral do SPAC (Salão Paraense de Arte
Contemporânea), realizado anualmente de 1992 a 1994.
Lâminas d’água – cavernando se situa sobre um dos lagos que
compõem o espaço, e se constitui de vários esteios côncavos de madeira,
referência às embarcações tradicionais construídas na região amazônica,
que utilizam esteios semelhantes para estruturar o casco dos barcos. As
garças e demais pássaros que habitam ou convivem no local utilizam a
obra para pousar em meio ao rio, provocando sentidos interessantes. É,
portanto, uma “homenagem” ou “monumento” à cultura amazônica,
sem, no entanto, se prender ao caráter comemorativo, e integrando-se
ao espaço do Mangal das Garças.
Além da obra de Geraldo Teixeira, temos também as obras
de Acácio Sobral, Emanuel Franco, Klinger Carvalho e da gaúcha
Sônia Ebling. Em janeiro de 2013 foram incorporadas ainda outras
obras contemporâneas ao Mangal das Garças: Banzeiro, de Marcone
Cavernames de Geraldo Teixeira, no Mangal das Garças, Belém, 2005.
Fonte: fotografia de Gil Vieira Costa.
159
Jornal Diário do Pará, edição de 12 de janeiro de 2005.
176 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 177

Moreira, composta por vários pequenos cavernames de madeira; uma autodidata que traz em suas produções especificidades de uma
escultura abstrata em concreto da artista carioca Patrícia Canetti; e estética “popular”, pautada no imaginário regional, além de utilizar
três canoas de Emanuel Franco, em memória dos escritores paraenses das linguagens da pintura e da costura em híbridos como bandeiras
Dalcídio Jurandir, Inglês de Souza e Rui Barata. e estandartes. Em 2003 e 2010 o artista recebeu a Bolsa de Pesquisa
Outros exemplos de arte contemporânea permanente em Criação e Experimentação Artística do IAP, além de participar de
Belém, realizações de artistas paraenses e também de fora do inúmeras exposições desde a década de 1980.
estado: o Memorial da Cabanagem (1985), de Oscar Niemeyer, Em 2006, no 25º Salão Arte Pará, Nato ornamentou a barraca de
encomendado pelo Governo do Estado do Pará por ocasião do um vendedor de ervas da feira do Ver-o-Peso, conhecido como Dr. Raiz.
sesquicentenário da Revolta da Cabanagem; o Monumento ao Em 2008, no 27º Salão Arte Pará, Nato realizou um procedimento
Cientista Paraense Gaspar Viana (1987), de Osmar Pinheiro, Paulo semelhante, desta vez na barraca do sapateiro conhecido como Louro,
Chaves e Jaime Bibas, no campus da Universidade Federal do Pará; localizada no bairro do Guamá. Estas intervenções realizadas por
a Coluna da infâmia (2000), de Jens Galschiot, na Praça da Leitura; Nato tornam-se permanentes (levando-se em consideração, claro, a
Aninga (2002), de Osmar Pinheiro, no píer do Espaço Cultural durabilidade das mesmas, até mesmo sujeitas aos proprietários das
Casa das Onze Janelas; U Ura Muta Uê (2004), de Denise Milan, barracas). Tais propostas são bastante interessantes, e – apesar de sua
no Jardim Feliz Lusitânia, em frente ao Forte do Presépio; Expresso vinculação ao Arte Pará, um evento de espaço-tempo delimitado –
Imaginário (2006), de Emanuel Franco, no saguão de embarque do prolonga-se indeterminadamente, como propriamente intervenção
Terminal Rodoviário de Belém; Cathedra das Verdades Suspeitas e no seio da vida cotidiana.
Mentiras Relativas (2009), de Berna Reale, também no campus da Mestre Nato, por meio destas práticas, põe em questão a
Universidade Federal do Pará; dentre outras obras. A característica permanência da arte contemporânea no espaço público não como um
comum à maior parte dessas obras é o financiamento de instituições monumento comemorativo de alto custo e iniciativa governamental,
públicas, além da característica de monumento escultórico, e não mas sim como reflexo de uma prática de vida e de existência artística
obra participativa ou crítica, como é mais comum (e por vezes mais que se instaura não só nos espaços expositivos convencionais (que
pertinente) nas práticas da contemporaneidade. ele só viria a ocupar definitivamente na década de 2000 em diante),
mas há muito em diversas territorialidades, trafegando entre muitos
universos e estéticas.
Barracas, Mestre Nato, 2006 e 2008
Um exemplo diferenciado é a produção do artista conhecido
como Mestre Nato, que, distante do financiamento estatal, situa-se
na interseção entre a permanência e a efemeridade. Nato, nascido em
1952, é um cenógrafo, alfaiate, figurinista e artista contemporâneo
178 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 179

3.1.2. Ações efêmeras


Algumas práticas artísticas se caracterizam por acontecerem
em um tempo resumido, desaparecendo tão rapidamente quanto são
construídas. Tais ações se inserem no seio urbano ou “natural”, público,
como interferências momentâneas que possibilitam determinados
questionamentos. Desta forma, multiterritorializando os espaços da
arte, que se deslocam para processos em um espaço-tempo delimitado.
Há, geralmente, vinculação com instituições culturais, porém não
tão predominantemente quanto na arte permanente, já que os custos
envolvidos geralmente são menores. Também há maior flexibilidade de
temas e liberdade de conteúdo para os artistas, já que as obras não são
realizadas para durar de forma prolongada no espaço público, nem para
representar discursos oficiais de instituições ou da sociedade.

Intervenção na fachada do MHEP, Daniely Meireles, 2006


Um exemplo interessante foi apresentado em 2006, durante a
realização do III Fórum de Pesquisa em Arte, evento bienal realizado
desde 2002 pela Universidade Federal do Pará, em parceria com
outras instituições. O III Fórum de Pesquisa em Arte ocorreu em
Belém, de 30 de maio a 02 de junho de 2006, reunindo em sua
programação diversos artistas e teóricos de todo o país, promovendo
mostras e processos artísticos, além de debates e palestras a respeito
do panorama das artes (englobando artes visuais, música, artes
cênicas e dança).
A intervenção de Daniely Meireles (artista, pesquisadora e
professora paraense) ocupou a fachada do MHEP, utilizando diversas
faixas e cartazes que causaram polêmica, durante o período do fórum
Registros da instalação Qualquer semelhança é mera coincidência
de Daniely Meireles, na fachada do MHEP, Belém, 2006. de pesquisa. Transcreverei parte da reportagem de Bernadeth Lameira,
Fonte: imagens cedidas pela artista. em jornal local, chamada Exposição feita para escandalizar.
180 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 181

Grandes e coloridos, os banners intrigavam mais pelo conteúdo das subjetividades, que nem sempre apreendem aquilo como arte (segundo
frases que continham do que pela sua dimensão. Coisas do tipo: “Safira
a matéria de Bernadeth Lameira, muitas pessoas acreditaram serem
1,87 m de puro tesão”, ou “Jéssica não faço sexo... faço amor” – que
imitavam anúncios de jornais ou de agências de prostituição – foram cartazes reais).
desaprovados por grande parte dos transeuntes. Não podemos afirmar que as pessoas envolvidas em espaços
(...) Taxistas da área ficaram revoltados e chegaram a ligar para a polícia
denunciando a “falta de moral”. públicos estejam conscientes da finalidade artística de ações deste
A autora da idéia (...) já esperava pela reação negativa de boa parte do tipo. Com a ausência do sinal mais óbvio, que é o espaço expositivo
público. Segundo ela, o objetivo da instalação é chocar e por isso, não tradicional, a obra de arte passa a entrecruzar-se com uma série
foi feita uma “divulgação ou mesmo explicação da obra”. “Fizemos um
trabalho parecido em 2003 e, na época, a Fumbel determinou que de agentes sociais que não necessariamente possuem os códigos
retirássemos. (...) mas estamos aqui para chamar a atenção das pessoas culturais para fruí-la ou compreendê-la enquanto manifestação
para uma realidade que existe, que são as pessoas que precisam vender
artística. As ações urbanas – e em outros espaços externos – tendem
o corpo para viver”, explica.
“Não estamos fazendo apologia da prostituição, mas vamos mostrar a sair do território extra cotidiano, que é a arte, e tornar-se prática
que existe muito falso moralismo. Esses anúncios existem e estão todos cotidiana, comum, não artística. Os limites tornaram-se tênues, seja
os dias à mostra para sociedade”, completou. Meirelles explicou que a
idéia inicial era colocar os banners em um casarão do Centro Histórico, entre arte e vida, ou entre arte e ativismo. E essa aproximação se dá
mas o proprietário não aceitou. A proposta de usar o MEP foi aceita muitas vezes através da supressão dos sinais característicos da arte,
pelo diretor da instituição, Fábio Lobato, e pela representante do como o território.
Sistema Integrado de Museus (SIM), Rosângela Britto.160
Também é interessante notar que houve a intenção de utilizar
A reação negativa de boa parte dos transeuntes é um dado
um casarão comum, mas não havendo possibilidade, as próprias
interessante, já que revela aspectos consequentes às múltiplas
instituições culturais da cidade aderiram ao projeto. Por localizarmos
territorialidades da arte contemporânea. Ao ocupar a fachada
do museu com os anúncios, cria-se uma heterotopia no sentido tal obra dentro do discurso da arte contemporânea (na programação
foucaultiano. Os anúncios são deslocados de seu espaço social de um fórum de pesquisa acadêmico e na fachada de um museu)
habitual (os classificados dos jornais e as zonas de meretrício) para o podemos afirmar que é uma produção reterritorializada, ou melhor,
espaço de um prédio histórico, no centro da cidade. Pergunto-me se que multiterritorializa o espaço urbano ao nele se situar. Cabe dizer
as reações seriam semelhantes se tais cartazes estivessem compondo que esta reterritorialização pelas instituições culturais não diminuiu a
uma exposição no interior de um museu, como o próprio MHEP, pertinência da obra, pelo contrário, multiplicou-a ao usar a fachada
e não em sua face pública. Provavelmente os sinais seriam evidentes de um museu (lugar típico da preservação da memória e da cultura de
o suficiente para que o público sequer se incomodasse. Mas, ao um povo), potencializando o choque planejado inicialmente.
subverter os sinais convencionais e instalar-se no espaço propriamente A utilização destes espaços não convencionais possibilita
urbano, a intervenção de Daniely Meireles põe em contato diversas que as obras de arte discutam questões que são inacessíveis dentro
de um espaço expositivo formal, que seriam improváveis se estas
160
Jornal Diário do Pará, edição de 01 de junho de 2006.
182 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 183

obras tentassem se enquadrar dentro de um espaço convencional. Nunca Mais, realizada por grupos conectados em todo o país, pelos
Há, então, muitas variáveis a se considerar quando abordamos as quarenta e cinco anos do golpe e também como forma de repúdio
multiterritorialidades da arte contemporânea. a um editorial do jornal Folha de São Paulo162, que dizia ter sido o
regime militar brasileiro uma “ditabranda”.
Na escala do real, isto é, nas ruas da cidade, a Rede[Aparelho]-: fez um
mapeamento da tortura em Belém. Rememorando e demarcando os
“Sangria desatada”, Rede Aparelho, 2009 locais onde eram torturados os presos políticos na época da ditadura
Um dos coletivos artísticos em atuação na cidade de Belém é a Rede militar; com tinta sangue de urucum, vegetal tipicamente amazônico,
[Aparelho]-:, que será chamada a partir daqui somente de Aparelho. uma pintura foi feita em frente aos espaços onde o derramamento de
sangue humano foi fato. Uma Sangria Desatada.
Este coletivo, caracterizado por relações horizontais descentralizadas, Muitas fotografias foram feitas e publicadas em vários sites de mídia
atua através de ações urbanas, além de difusão e troca de informações independente, fazendo circular a memória histórica de um povo
através de meios digitais. Durante o 25º Salão Arte Pará, em 2006, o maltratado e que a grande mídia quer fazer esquecer.163
Aparelho, através do artista (integrante do coletivo) Arthur Leandro, Tais ações promovidas pelo Aparelho situam-se na interseção
realizou uma ação urbana conectando diversos produtores culturais entre manifestações artísticas e ativismo político, além de um evidente
na feira do Ver-o-Peso. viés de crítica institucional. Para Valzeli Sampaio164 tal conjuntura é
Arthur Leandro e o Grupo Aparelho apresentaram uma radical reunião possibilitada principalmente pelas transformações tecnológicas e dos
de criadores periféricos individuais e grupais no espaço público:
sistemas de produção, que oferecem maior liberdade aos artistas e
música, performance, teatro, filosofia, zoada, prática política, crítica
institucional, contaminação de zonas, poesia, vídeo, guerrilha cultural. coletivos na utilização dos novos bens culturais. Valzeli Sampaio
O ato político maior foi criar um espaço livre no Ver-o-Peso durante ressalta, falando a respeito de manifestações em nível mundial:
as festas do Círio. Arthur Leandro aposta nos processos coletivos de Considerando essas manifestações na interface entre arte e política,
reflexão e inscrição crítica da arte na sociedade como obra rizomática observamos que a relação entre artista, seu vínculo social e as formas
da subjetividade. Aposta na interação dos artistas com os trabalhadores estéticas de gestão desses vínculos são ampliadas, e revelam-se em
ou freqüentadores do comércio de Belém.161 processos de autonomia da produção intelectual e artística. Essas
Outra ação realizada pelo Aparelho foi chamada Sangria escolhas éticas e estéticas convertem-se em ferramentas de trabalho
Desatada. No dia 31 de março de 2009, quarenta e cinco anos após o com o coletivo, e de intervenção direta na sociedade, ultrapassando
a mera transmissão de dados informativos e históricos, ou qualquer
golpe militar que deu início à ditadura no país, o grupo começou uma necessidade de satisfazer a demanda de uma “novidade artística” e/ou
série de intervenções na cidade de Belém, como forma de protesto e egóica comprometida com a tendência do mercado das artes.165
memória ao passado recente do país que é muitas vezes desconhecido 162
Jornal Folha de São Paulo, edição de 17 de fevereiro de 2009.
do público jovem ou deturpado pelos meios de comunicação. Sangria 163
Bruna Suelen, Filosofia e arte: diálogos atravessados (um recorte), nos Anais do V Fórum Bienal de
Pesquisa em Artes (2010: Belém, PA): provocações-transformações-revoltas, organização de Edison da
Desatada fez parte de uma ação maior denominada 48 Horas Ditadura Silva Farias e Lia Braga Vieira, Belém: PPGARTES/ICA/UFPA, 2010, página 490.
164
Valzeli Figueira Sampaio, Arquiteturas da liberdade: desterritorialização e convergência entre arte
161
Paulo Herkenhoff, no Catálogo Arte Pará 2006: 25ª Edição, Belém: Fundação Rômulo e ativismo, em Bene Martins; Lia Braga Vieira; e Orlando Maneschy (orgs.), Interfaces: desejos e
Maiorana, 2006/2007, página 36. hibridizações na arte, Belém: UFPA/ICA, 2009, páginas 44-53.
165
Obra citada, página 48.
184 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 185

É importante perceber como o coletivo Aparelho se mobiliza e


atua a partir de práticas não institucionais, ou não predominantemente
institucionais, mas sem se furtar ao diálogo e colaboração com as
instituições culturais paraenses. Outro ponto que cabe ressaltar é a
predominância de ações com sentidos e significados que escapam ao
unicamente artístico, mobilizando o pensamento a respeito de outras
áreas da experiência humana, principalmente a política.

“Piracaia” e “Piracema”, Fundação Curro Velho, 2011


A Fundação Curro Velho, localizada em Belém, é um centro
que oferece workshops, oficinas e outras atividades artísticas, tendo
contribuído para a arte/educação não formal no Pará, principalmente
em seus projetos voltados para as comunidades de baixa renda. Busca
também atuar em municípios do interior do estado, sem estar fixa
à sede em Belém. Iniciou suas atividades em 1990, sob a direção da
artista paraense Dina Oliveira.
Imersa nos processos que envolvem os conhecimentos de diversos
criadores da região, a instituição fomentou as experimentações com a
madeira miriti, típica da região. O miriti é retirado sem a derrubada
de árvores, contribuindo para a ideia de sustentabilidade requerida
para a Amazônia. Além disso, é também um material leve e resistente,
que possibilita a criação de estruturas diversas.
Bruce Macedo, cenógrafo e professor paraense, é um dos
criadores que pesquisa as utilizações do miriti enquanto elemento
cênico e escultórico, atuando como instrutor de inúmeras oficinas
e cursos, inclusive na Fundação Curro Velho. Este artista foi
convidado pela instituição para desenvolver, junto com Luiz Carlos
Santiago (também atuando na Fundação Curro Velho há anos), o
Registro da ação Piracaia, promovida pela Fundação Curro Velho, Santarém, 2011. projeto Piracaia.
Fonte: fotografia de Edson Queiroz, cedida pela Fundação Curro Velho.
186 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 187

Este projeto consistiu em uma oficina ou laboratório de criação As múltiplas territorialidades agenciadas não dizem respeito
artística e em uma intervenção artística, ambas em Santarém. Bruce somente a objetos para contemplação no espaço público, mas sim a
Macedo descreve Piracaia da seguinte maneira: todo um processo de formação que é empreendido, trazendo a arte
Foi desenvolvida uma oficina na cidade de Santarém, com o objetivo de contemporânea como mote para discussões mais amplas. É necessário
expor o processo artístico e tecnológico da criação de grandes estruturas,
que as instituições repensem seu foco desde sempre, encarando a
tendo o miriti como matéria base.
(...) [curso] destinado à transmissão de técnicas de construção de acessibilidade à arte contemporânea como um processo simbólico,
esculturas vazadas em miriti, que representassem visualmente a cultural, que passa também pela educação, e não somente pela
identidade tapajônica, (...) para serem expostas na orla da cidade e,
disponibilidade física das obras. Nesse sentido, as ações Piracaia e
dessa forma, demonstrar a viabilidade de ampliar as experiências e
alternativas de trabalhar com o material da região (...). Piracema são bastante profícuas, e instigam o debate.
Como resultado, foi apresentada uma instalação de arte pública na É necessário pensar que existem diferentes graus de
orla de Santarém, durante o aniversário de 350 anos da cidade, com
multiterritorialidade, nos quais algumas propostas são simplesmente
as representações de peixes locais, tais como Pirarucu, Tambaqui,
Tucunaré, Pacu etc.166 a utilização dos espaços não convencionais enquanto expositivos. Em
Alguns meses após a realização de Piracaia, foi desenvolvido em outras propostas, porém, a multiterritorialidade é usada e discutida em
Belém o projeto Piracema, seguindo os mesmos preceitos do primeiro, sentidos mais amplos, fazendo com que não apenas a obra comunique
contando com realização de oficina, construção coletiva dos objetos certa carga simbólica inerente a ela própria, mas com que também o
escultóricos e intervenção com os mesmos na orla da cidade, desta vez próprio espaço comunique cargas simbólicas e rediscuta aspectos da
na Estação das Docas, ponto turístico de Belém. arte, da sociedade, da história etc.
A enorme fauna aquática feita em miriti, que transbordou Pode-se dizer que há uma produção consolidada de arte
em espaços geográficos não convencionais, no sistema de arte
as margens dos rios e invadiu as orlas das cidades, é o ponto de
contemporânea paraense, havendo relações com diversas instituições
partida para outras discussões relativas a multiterritorialidades da
culturais e educacionais que financiam e oportunizam tais práticas
arte contemporânea. Essas intervenções efêmeras partem de uma
artísticas – assim como, muitas vezes, o registro de tais ações
demanda institucional, iniciativa da Fundação Curro Velho. Para
apresentados em espaços formais enquanto obras ou desdobramento
se concretizarem, mobilizaram os saberes de artistas da região que
de processos artísticos.
dominam técnicas e materiais específicos – como o miriti. Da mesma
maneira, as intervenções foram fruto de uma ação cultural e educativa
consistente, que promoveu a colaboração de inúmeras pessoas nas
próprias comunidades que receberam os projetos.
Bruce Macedo, Piracaia e Piracema: um relato, em Walter Figueiredo, Ruli Moretti e Gil Vieira
166

Costa (orgs.), Piracaia, Planta Cultura, Piracema: arte pública em regiões de integração do Pará,
Belém: Fundação Curro Velho, 2013, página 23.
188 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 189

3.2. Os espaços virtuais O espaço tido como virtual estabelece novas territorialidades
na sociedade contemporânea, ainda que mediado por espaços reais,
A contemporaneidade é constantemente associada a uma série de
materiais. Em certo sentido, o ciberespaço é uma heterotopia, de
adjetivos prefixados por um des muitas vezes obscuro e generalizante
forma que ele propicia tanto uma ruptura de espaço quanto uma
– tais quais os alardeados deslocamento, desmaterialização,
ruptura de tempo. O virtual possui esta interessante característica
desterritorialização e desconstrução, que, decerto, muitas vezes são
de possibilitar que o ser humano ocupe virtualmente outros lugares,
usadas com precisão, mas que necessitam ser abordadas com rigor.
até mesmo simultaneamente, relações que outrora eram totalmente
Estas particularidades chamadas, por alguns autores, de “pós-
impossibilitadas pelos limites impostos pelo espaço-tempo.
modernas”, são estendidas até a arte contemporânea, como reflexo
O próprio corpo humano é percebido sob outro ponto de
de uma estrutura dos grupos sociais que a condicionam. A noção
vista, a partir do momento em que nos são oferecidas diversas
de desterritorialização na arte contemporânea em parte é atribuída,
possibilidades tecnológicas de extensão das nossas faculdades. Se
geralmente, ao ciberespaço.
por um lado existem correntes radicais que enxergam o corpo como
É notável a predominância do elemento rede na constituição
entrave, obsolescência, por outro lado é este mesmo corpo que nos
dos territórios atuais, o que gera uma visão precipitada de uma total
deflagra enquanto experimentadores do mundo. Nestas relações
desterritorialização humana, acentuada pela aparente desmaterialização
complexas e diversificadas há certas concessões e hibridações entre
ocasionada pelo espaço virtual, ou seja, um não espaço. No ciberespaço
orgânico e maquinal.
as fronteiras dentro das nações, e entre elas, são atenuadas, influenciando
Uma nova relação entre o gestual e o conceitual pode ser imaginada.
muitas vezes modificações nas próprias fronteiras reais. Podemos até falar de uma hibridação entre corpo e imagem, isto é,
Utilizo neste ensaio o conceito amplo de ciberespaço, para o qual entre sensação física e real e representação virtual. A imagem virtual
o mesmo não se restringe às mídias computacionais ou à internet, transforma-se num “lugar” explorável, mas este lugar não é um puro
“espaço”, uma condição a priori da experiência do mundo, como em
já que o espaço gerado subjetivamente em uma conversa telefônica Kant. Ele não é um simples substrato dentro do qual a experiência
não deixa de ser ciberespaço. Em muitas práticas artísticas outros viria inscrever-se. Constitui-se no próprio objeto da experiência, no
equipamentos são usados. seu tecido mesmo e a define exatamente. Este lugar é, ele mesmo,
uma “imagem” e uma espécie de sintoma do modelo simbólico que
Nós usamos o espaço para dar conta de fenômenos sensórios e encontra-se a sua origem.168
cognitivos. Sua emulação, o ciberespaço, é a referência espacial evocada
nas mídias eletrônicas. Essas mídias nos estendem para além de nosso Esta afirmação adquire um sentido ainda mais evidente quando
corpo e localidade, mudando assim o modelo cognitivo que temos do observamos a quantidade de comunidades virtuais interativas e
mundo e nossa relação com ele. programas de simulação disponíveis no ciberespaço, ou quando
A extensão eletrônica de nossos sentidos enxerta novas percepções em
um construto prévio, o mapa mental de nosso contexto.167 verificamos a elaboração de práticas artísticas nas quais o corpo
167
Peter Anders, Ciberespaço antrópico: definição do espaço eletrônico a partir das leis fundamentais, 168
Philippe Quéau, O tempo do virtual, em André Parente (org.), Imagem-máquina: a era das
tradução de Flávia Gisele Saretta, em Diana Domingues (org.), Arte e vida no século XXI: tecnologia, tecnologias do virtual, tradução de Rogério Luz e outros, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, página 94.
ciência e criatividade, São Paulo: UNESP, 2003, página 49.
190 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 191

está intimamente ligado aos processos de alimentação de dados da mundo, sendo autorreferente. Não pretendo abordar estas condições
máquina, atuando como interator. Também vivemos na época dos tecnológicas (telemáticas, digitais e eletrônicas) em suas interferências
museus virtuais, quando é possível desbravar acervos de instituições sobre as sociedades contemporâneas, entretanto, quero apontar
de outros continentes por meio de pixels e de conexão à internet. algumas considerações acerca destas condições tecnológicas tomadas
O registro fotográfico de tudo, feito por satélite ou por câmeras enquanto suporte, instrumento ou meio para as práticas artísticas na
convencionais, democratiza o mundo como um espaço-lugar que contemporaneidade. O mundo virtual possibilita conexões, elos, entre
pode ser, antes de conhecido e experimentado, acessado. diversos espaços que constituem efetivamente outro espaço. “É sobre
É importante observar, também, que o conceito de esse elo e com elos que o ciberartista trabalha: atividade de ligação,
desterritorialização está arraigado à noção de arte contemporânea, não apenas entre objetos que circulam no mundo artificial, entre
principalmente devido aos experimentos técnicos, conceituais e sites e internautas, mas também entre realidade e ficção, entre vários
estéticos que são realizados desde a década de 1960, contribuindo modelos de mundo, entre artifício e natureza”170.
para a expansão do conceito de arte contemporânea e de seus É evidente, então, que o ciberespaço constitui
espaços tradicionais. O ciberespaço contribui ainda mais, ao saturar multiterritorialidades (inclusive para a arte contemporânea) por
o imaginário coletivo de imagens tecnológicas, geradas através de combinar e recombinar espaços diferenciados, que escapam a uma
processos digitais, e ao constituir novas territorialidades. formalização ou sistematização. Também Edmond Couchot identifica
Levemos em consideração que o ciberespaço condiciona um esta característica na arte produzida por meio dos avanços tecno-
imaginário próprio para os grupos sociais contemporâneos, atuando científicos, naquilo que este autor chama de “arte da Hibridação”.
como um dos extremos possibilitados pelos desenvolvimentos Segundo Couchot, “Hibridação entre a imagem e o objeto, a imagem
tecnológicos e científicos do final do século 20. Existe toda uma tessitura e o sujeito – a imagem interativa é o resultado da ação do observador
de relações constituídas a partir da máquina não mais como prótese, sobre a imagem –, ele se mantém na interface do real e do virtual,
mas como aparelho inteligente do qual o homem torna-se apenas um colocando-as mutuamente em contato”171.
adendo, um operador. Estas relações permeiam a poética de diversos
Diversas práticas artísticas que se constituem enquanto virtuais
artistas nos mais diversos gêneros e linguagens, e fundamentam grupos
(ou parcialmente virtuais) não dão novas roupagens para técnicas
sociais de tendências cyber (cyberpunks, cyborgs etc.).
antigas, mas antes literalmente estabelecem novas técnicas, novas
As imagens geradas por meio de dispositivos e máquinas
práticas, novas maneiras de experimentar a arte.
numérico-digitais se inscrevem em outro tipo de relação com o mundo,
O fato de podermos gerar imagens inteiramente por meio de
pois são efetivamente imagens de síntese, cujo referencial não está em
processos numéricos e digitais implica em outras relações com
uma relação indicial com o mundo real que ela representa, mas sim
nosso repertório imagético cultural, pautado predominantemente
na linguagem binária e numérica própria do cálculo, que simula169 o
170
Anne Cauquelin, Freqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea,
169
Conferir a esse respeito Edmond Couchot, Da representação à simulação: evolução das técnicas e tradução de Marcos Marcionilo, São Paulo: Martins, 2008, página 196.
das artes da figuração, em André Parente (org.), Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual, 171
Edmond Couchot, obra citada, páginas 46-47.
tradução de Rogério Luz e outros, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, página 42.
192 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 193

na representação do real. Nosso imaginário é constantemente que o sobrepuja. Costa diz que “com a passagem da técnica, como
reformulado ao entrarmos em contato com tecnologias cada vez mais prolongamento do corpo, à tecnologia, como suas funções separadas,
autossuficientes e estranhas a nós. o artista é posto diante de uma desapropriação do próprio corpo como
As estruturas fundantes destas imagens criam novas normas e formas instrumento da arte, e a arte modifica profundamente a sua essência”174.
de representação sobre as quais são construídas suas iconografias.
Estas regras de caráter digital e algorítmico, qualificam e quantificam Estes questionamentos a respeito da autoria na contemporaneidade
a imagem. Essas estruturas possibilitam a inauguração de poéticas encontram eco, inclusive, no pensamento de Pierre Lévy, quando o
numéricas e sintéticas, como qualificação de modelos e imagens mesmo diz que “Não é, portanto, surpreendente que [a figura do autor]
mentais, permitindo a simulação do processo criativo.172
possa passar para segundo plano quando o sistema das comunicações e
Voltemos ao pensamento de Flusser173 a respeito das tecnoimagens,
das relações sociais se transformar, desestabilizando o terreno cultural
geradas através de aparelhos sintomáticos como a máquina fotográfica
que viu crescer sua importância”175. Ou com o pensamento de Júlio
– que produz imagens a partir de cenas reais com a pretensão de serem
Plaza e Mônica Tavares, quando estes dois pensadores dizem que a
sintomas, índices. Flusser ressalta que a neutralidade das tecnoimagens
“era eletrônica, de cunho digital, coloca novos desafios no campo da
produzidas na contemporaneidade é um engano, já que elas são
criação artística onde é preciso definir um novo estatuto para o que
manipuláveis, adulteráveis e passíveis de construção e desconstrução.
chamamos ‘obra de arte’, ‘criação’, ‘artista’ ou mesmo ‘autor’”176.
Ressalto, portanto, que estas tecnoimagens estão incorporadas no
Afirmei nos capítulos anteriores que a arte se constitui por
imaginário de nossa sociedade, tanto em sua face (pseudo) sintomática
meio de territórios – outrora formais (museu, galeria etc.) –, e posso
– enquanto prova, atestado, registro – quanto em sua face de imagem
também ressaltar que o ciberespaço é, ele mesmo, um território.
manipulável – como na construção de personagens em cima de
Se o(s) sistema(s) da arte contemporânea se apropria(m) do espaço
personalidades, por meio de manipulação física (maquiagem etc.) e
virtual, simbolizando-o e tornando-o um território, convém abordar
virtual (manipulação digital etc.), gerando até mesmo casos cômicos
estas relações, e discernir de que forma se estruturam estas múltiplas
de imagens jornalísticas apresentando sérias distorções fisiológicas.
territorialidades ao redor do ciberespaço, e de que forma nosso
Mario Costa também faz apontamentos interessantes quanto ao
imaginário é afetado na experimentação artística/estética destas novas
imaginário diante das condições tecnológicas nos países de primeiro
tecnologias – ou melhor, na experimentação do sublime tecnológico.
mundo das últimas décadas do século 20, quando trata do sublime
Para alguns pensadores as novas tecnologias trazem em si uma
tecnológico. Este autor introduz uma nova lógica para a constituição
capacidade que pode muito bem ser forjada, conforme o uso que se
da arte, na qual não caberia mais a noção de criador ou expressão
queira dar para tais técnicas, podendo ser utilizadas de maneiras tanto
individual, mas sim o artista como aquele que desvela aos modos do
estético a própria realização da potência humana. Ou seja, sua tecnologia 174
Mario Costa, O sublime tecnológico, tradução de Dion Davi Macedo, São Paulo: Experimento,
1995, página 45.
172
Julio Plaza e Mônica Tavares, Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais, São
175
Pierre Lévy, Cibercultura, tradução de Carlos Irineu da Costa, 2ª ed., São Paulo: Ed. 34, 2000,
Paulo: Hucitec, 1998, página 21. pagina 153.
173
Vilém Flusser, Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar, São Paulo: Duas Cidades, 1983.
176
Júlio Plaza e Mônica Tavares, obra citada, página 25.
194 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 195

positivas quanto negativas à sociedade177. Para outros a neutralidade Outra destas manifestações é a utilização da hibridação entre
das técnicas é um grande engodo, afirmando que toda tecnologia os meios reais e os meios virtuais. É importante verificar quais
condiciona e predestina determinado meio social178. alterações são estabelecidas partindo destas novas práticas dentro da
Não compartilho de otimismos, nem tampouco de pessimismos. arte contemporânea. A partir da década de 1980 “operou-se uma
O ciberespaço, conjuntamente com as demais tecnologias típicas abertura num vasto campo de pesquisa artística em que noções de
da contemporaneidade, tem contribuído para repensar a arte interatividade, de simulação e de inteligência artificial ocupam
contemporânea, na medida em que novas práticas artísticas são os primeiros lugares”180, estando os ciberartistas conscientes das
desenvolvidas – e novos territórios estabelecidos. Desdobrando responsabilidades que as tecnologias atuais implicam sobre o modo de
a tendência participativa ou interativa surgida com happenings e existência humano.
performances, a ciberarte tem proporcionado diversas manifestações Práticas artísticas destes tipos são muitas vezes descritas como
que exploram a participação ou “coautoria” do público, é claro que desterritorializantes (em relação ao sistema da arte), de certa forma
dentro de uma quantidade de possibilidades previamente estabelecidas acertadamente. Elas são desterritorializantes na medida em que
pelo programa computacional ou pelo artista. subvertem noções e conceitos típicos de um determinado momento,
A intensa participação do público, procurada pelos artistas há muito relativos à arte, contribuindo para a reconstrução destas noções e
tempo, e cujos limites pareciam atingidos no fim dos anos 70, tomou
reorganização deste sistema da arte. Também podem ser descritas
um novo impulso graças às possibilidades abertas pelo computador.
Sob a denominação pouco precisa de “interatividade” essa busca deu enquanto desterritorializantes no sentido de serem virtuais (ou
resultados espetaculares nos anos 80.179 parcialmente virtuais), concorrendo para certa ruptura com o objeto
De certa forma, existem diversas maneiras de desterritorializar matérico, passando na maioria das vezes para a prática ou processo
a arte contemporânea ao constituí-la enquanto ciberespaço. Com as tecnológico eletrônico digital.
possibilidades tecnológicas, pode-se concretizar a arte em um espaço Mas, de maneira alguma, tais práticas têm significado
que, aparentemente, “inexiste”: o virtual – possibilidade estética de uma completa desterritorialização quanto ao sistema da arte.
localização da obra neste espaço não físico e não geográfico que é Antes, é necessário observar que os sistemas da arte realizam um
a própria rede (nela inclusa a internet). Como heterotopia, esta movimento para incorporar tais práticas, movimento do qual a
arte também constitui outros deslocamentos e territorializações, que desterritorialização e a reterritorialização são faces complementares.
utilizam o ciberespaço para situar ou constituir suas práticas, na E é neste momento em que a multiterritorialidade pode ser melhor
plenitude de suas características. compreendida no que diz respeito ao ciberespaço enquanto prática
177
Conferir especialmente Félix Guattari, Caosmose: um novo paradigma estético, tradução de Ana pertinente na arte contemporânea.
Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, São Paulo: Ed. 34, 1992, páginas 15-16. Afirmo que a contemporaneidade não vê os territórios da arte
178
Conferir especialmente Régis Debray, obra citada.
179
Frank Popper, As imagens artísticas e a tecnociência (1967-1987),em André Parente (org.), contemporânea serem extintos com o uso dos adventos tecnológicos,
Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual, tradução de Rogério Luz e outros, Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1993, página 205. 180
Frank Popper, obra citada, página 212.
196 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 197

mas antes vê um deslocamento de territórios, na manutenção de 3.2.1. Instalações tecnológicas multimidiáticas


alguns tradicionais (como o museu e a galeria) e na instituição de
Uma das maneiras de multiterritorializar o espaço virtual, na
novos territórios (como o ciberespaço e o espaço público). Isto nada
arte contemporânea, é a construção de instalações tecnológicas nos
mais é do que a multiterritorialidade apontada por Haesbaert, uma
espaços expositivos convencionais – e algumas vezes em espaços
reterritorialização complexa, em rede e com fortes conotações
rizomáticas, ou seja, não hierárquicas”, realizada principalmente pelas não convencionais. Essas instalações utilizam de alguma forma o
condições de “maior diversidade territorial”, “grande disponibilidade de ciberespaço, mas não são práticas que se restringem a ele, existindo
e/ou acessibilidade a redes-conexões”, “natureza rizomática ou menos também enquanto objeto “escultural”, que ocupa um determinado
centralizada dessas redes”, “a situação socioeconômica, a liberdade
(individual ou coletiva) e, em parte, também, a abertura cultural para lugar no mundo físico. São frutos, portanto, da combinação de dois
efetivamente usufruir e/ou construir essa multiterritorialidade.181 ou mais espaços distintos: a instalação no espaço expositivo geralmente
Quando as ciberartes apontam para um espaço expositivo, na deve ser alvo da interação com o público participador, de forma que as
medida em que necessitam de um público possuidor dos códigos tecnologias e mídias que compõem a instalação apontam para práticas
culturalmente estabelecidos; quando vinculam, mesmo no ciberespaço, que se dão no espaço virtual.
as produções e práticas a instituições (por meio de logomarcas, nomes As videoinstalações, comuns a partir do final dos anos 1960, são
etc.); quando as ciberartes são executadas por meio da concessão de um exemplo de combinação de vários espaços em uma mesma prática.
bolsas de incentivo, leis de patrocínio, universidades e centros de Os televisores de Nam June Paik, por exemplo, ao mesmo tempo em
pesquisa etc., o que acontece é a reterritorialização das práticas e do que compunham uma “escultura”, situavam a obra também no espaço
ciberespaço ao sistema da arte. E é neste momento de complexas virtual da informação telemática via satélite. “Som, imagem, ambiente
reterritorializações que se estabelece uma gama de múltiplos territórios, escultural”182 e outras possibilidades abertas pelos desenvolvimentos
na qual a rede virtual é tanto um território formal e pertinente à arte técnicos e tecnológicos fazem com que a arte contemporânea
contemporânea quanto a galeria ou museu de arte. incorpore novas práticas, como o surgimento da chamada Realidade
Virtual. Interatividade e imersão são palavras-chave em muitas destas
instalações tecnológicas.
O ciberespaço possibilita diversos usos na arte contemporânea,
e vem sendo constantemente experimentado na produção brasileira.
No Pará, a arte que se territorializa no espaço virtual ainda não
corresponde a uma prática muito disseminada entre os artistas locais.

182
Michael Rush, Novas mídias na arte contemporânea, tradução de Cássia Maria Nasser, São Paulo:
181
Rogério Haesbaert, obra citada, página 343. Martins Fontes, 2006, página 142.
198 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 199

Três experimentos de Val Sampaio, 2008, 2010 e 2011 avenidas em Belém, semelhante à ação realizada no mesmo período na
Val Sampaio é artista, pesquisadora e professora da UFPA. Em cidade de Wiesbaden (Alemanha), na qual foram efetuados registros
2008 esta artista realizou o projeto Cidade Rede, com participação foto/videográficos. Luz no Manoel consistiu em uma intervenção/
de outras pessoas: Bruno Cantuária, Eliane Moura, Luciana Magno, performance no alto do edifício Manoel Pinto da Silva – ícone do
Mariano Klautau Filho, Pablo Mufarrej, Ricardo Macêdo e Victor início da arquitetura moderna na cidade. Segundo o site Cidade
de La Rocque. O projeto foi contemplado com o Prêmio SIM de Rede, o letreiro em néon do edifício estava desativado, e durante a
Artes Visuais, do SIM (Sistema Integrado de Museus e Memoriais) ação alguns artistas utilizaram luzes de leds para criar imagens no alto
da SECULT/PA (Secretaria Executiva de Cultura do estado). Cidade do edifício. A ação foi fotografada e filmada, e os registros publicados
Rede consistiu em intervenções e a proposta de um espaço na internet nos endereços virtuais do Cidade Rede.
no qual seria construída uma obra coletiva, por meio da participação O projeto ainda realizou uma palestra com Gilbertto Prado (Prof.
do público alimentando o site com informações e arquivos. Segundo Dr. da Universidade de São Paulo) no dia 08 de outubro de 2008.
o site Cidade Rede183, atualmente desativado, Além disso, Cidade Rede também consistiu em exposição homônima
O projeto de intervenção pública de arte CIDADE REDE pretende no Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, de 03 a 31 de outubro de
envolver os habitantes da cidade que sedia o projeto. Estes serão
estimulados pela mídia publicitária para que enviem para um site 2008, na qual foram apresentados os registros das ações realizadas e
imagens, vídeos de celular e mensagens de texto. informações coletadas/recebidas.
Estas imagens e vídeos indicam uma posição particular, permitindo Em 2010 e 2011, Val Sampaio realizou um projeto de mídias
que outras pessoas leiam essas mensagens, imagens e vídeos deixados
por seus habitantes construindo uma rede de signos em torno daquela locativas chamado ÁGUA, que agregou diversos artistas em uma
cidade, indicando quem têm algo a dizer sobre essa posição particular. espécie de residência itinerante, em um barco, navegando por um rio
CIDADE REDE atuará com um blog e um canal de postagem de amazônico. A artista descreve o projeto da seguinte forma:
vídeo (...).
Este grupo instala-se num barco e sai em expedição pelo rio Amazonas
O projeto CIDADE REDE permitirá a partir da inscrição no
(...). E produzem vídeos, fotografias, diários, conversas na beira do rio,
YOUTUBE a chance de participar do projeto e (re)construir a sua
na natureza selvagem, mas também, habitada por pessoas e sistemas
localidade, em busca de algum sentido, uma espécie de mini-outdoor.
tradicionais, técnicos e tecnológicos de vidas em comunidade.
O objetivo é explorar os detalhes escondidos das cidades. É uma
O projeto realizou duas viagens ao lugar entre Santarém-Óbidos-
maneira em que qualquer um tem a oportunidade de eleger aquilo que
Oriximiná em momentos climáticos diferentes, um na vazante do rio
lhe parece ser mais interessante e importante.
Amazonas em setembro de 2010, e no segundo momento na cheia do
Além da existência destes endereços virtuais, que funcionavam rio em abril de 2011. E este projeto é ao mesmo tempo e de forma
como espaços expositivos, o projeto também realizou as ações diversa a experiência individual da proponente, facilitando uma
experiência coletiva, para desenhar o tempo-espaço ÁGUA a partir do
Taxionomia das árvores e Luz no Manoel, em espaços públicos
ponto de vista de cada um dos envolvidos.184
urbanos. Taxionomia das árvores consistiu na inserção de números
(como forma de catalogação), com tinta, nas árvores de principais 184
Valzeli Sampaio, Arte e vida desatando os nós: estudos e levantamentos de relações nas mídias
locativas, monografia (pós-doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, páginas
183
http://www.cidaderede.net 81-82.
200 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 201

O projeto ÁGUA dialogava com o ciberespaço, utilizando este imagem do rio, revelando outros vídeos programados para aparecerem
espaço para se materializar e mesmo na sua própria constituição, já randomicamente. O som constante de um motor de barco preenche e
que se utilizava de tecnologias e programas específicos do virtual, orienta o tempo-espaço na experiência do ambiente Cavername. Esse
como os dispositivos geolocalizadores e as redes sociais. ruído é uma presença constante nas viagens fluviais amazônicas.
ÁGUA pode ser acessada pelo celular e pelo site que referencia Cavername apresenta outro tipo de utilização do ciberespaço, não
informações sobre o projeto e sobre a região. O site permite acesso às
mais apresentado como máquina computadorizada e como acesso à
intervenções do projeto a partir de mapa virtual alimentado de forma
colaborativa por convidados, que atuam com projetos individuais internet, mas sim transformado em instalação tecnológica que busca
colaborando com a cartografia do fenômeno de enchente e vazante do suscitar aspectos de uma vivência real, uma imersão no contexto dos
rio Amazonas.185
rios amazônicos por meio de cheiros, sons e imagens –digitalmente
Da primeira expedição do projeto ÁGUA resultou a instalação armazenados no ciberespaço, porém em dispositivos ocultos ao público.
interativa Cavername, exposta no evento Vivo arte.mov, no Fórum Em 2011, Val Sampaio apresentou a obra Mangueiras de
Landi, Belém, em setembro de 2010. Além de Val Sampaio, também Belém, no 30º Salão Arte Pará. Esta obra consistiu em um processo
participaram do seu desenvolvimento os artistas Gilbertto Prado, de intervenção urbana e simultaneamente virtual. Em outubro de
Claudio Bueno, Nacho Durán. Jarbas Jácome e Dênio Maués. Esta 2011, Val Sampaio e outros artistas paraenses (Cynthia Marques,
instalação consistiu em um ambiente imersivo, oferecendo uma Eliane Souza, Heldilene Reale, Isley Martins, Joyce Viggiano,
experiência de interação como metáfora da expedição realizada, Luah Sampaio, Pablo Mufarrej e Yuri Amorim) marcaram cerca de
possibilitando aos visitantes a exploração do rio. oitocentas mangueiras (árvores comuns na cidade) com numeração,
Esta primeira experiência resultou em uma instalação de vídeo, com
programa de vj RESOLUME, que permitiu a edição de um vídeo
pintura, QR-Code (iamgem codificado a ser acessada por celular, que
base do rio passando num fluxo contínuo. E abaixo desse vídeo vários direcionava o público a outros desdobramentos), e também por meio
outros, produzido por todos, que eram revelados com uma lanterna de de dispositivo GPS (Global Positioning System), recebendo dados de
lâmpadas de leds, uma lanterna grande e amarela, usada por pescadores.
Esta lanterna era oferecida às pessoas que entravam no espaço expositivo,
localização de longitude e depois anexando-as em mapa virtual.
totalmente pintado de preto, com o piso revestido de madeira branca Os dados (imagens, vídeos, mapas e informações) produzidos
tosca.186 neste percurso foram publicados no website da obra187, ainda
O ambiente da instalação era composto por uma sala escura com disponível na rede. Sugeriu-se ao público participante, por meio de
uma tela projetada no chão formada por dois projetores, uma câmera textos impressos e virtuais, que percorressem a rota das mangueiras e
de segurança, uma placa digitalizadora. Eram projetados no chão abraçassem as árvores que estivessem nesta rota, gerando vídeos, fotos
vídeos produzidos pelos artistas participantes. Na primeira camada ou outros tipos de desdobramentos, a serem enviados por e-mail para a
era projetado o rio. As outras camadas de vídeos eram reveladas artista, para serem postados no blog do projeto com suas informações:
pelo interator quando o foco de luz da lanterna era apontado para a nome, hora latitude e longitude, e impressões de sua caminhada.
185
Valzeli Sampaio, obra citada, página 83. 187
http://www.magueirasdebelem.blogspot.com
186
Valzeli Sampaio, obra citada, página 87.
202 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 203

Mangueiras de Belém, além de ser um sítio no ciberespaço, foi de localização geográfica Google Earth, executa-se uma ação
individual e a princípio sem audiência, onde termos populares
também apresentada como instalação tecnológica no espaço expositivo
dados a lugares distantes são lançados como busca para localização
do 30º Salão Arte Pará. A instalação trazia um mapa mostrando a destes “não-lugares”, acionando dispositivos provisórios e efêmeros
rota e disposição das mangueiras marcadas na cidade, um televisor comprometidos com o transitório e a solidão.188
exibindo vídeo sobre o processo de demarcação das árvores e um Mais performática que propriamente tecnológica, a obra Not
computador conectado ao website do projeto, disponível ao uso pelo found foi exposta no Salão Xumucuís de Arte Digital por meio de
público participante. processos de intermidialidade, transposta para sete fotografias de
Print Screen do momento em que o artista fazia a interferência no
ciberespaço. Mas a instalação tecnológica só veio no ano seguinte,
“Not Found”, Victor de La Rocque, 2011 2012, com a realização da exposição Panorama da Arte Digital no Pará,
Em 2011 foi realizado, em Belém, o Salão Xumucuís de Arte com a curadoria de Ramiro Quaresma e John Fletcher. Esta exposição
Digital, sob a curadoria de Ramiro Quaresma, no qual foram foi realizada no Espaço Cultural do Banco da Amazônia, reunindo
selecionados 29 trabalhos de artistas de vários estados do Brasil. artistas convidados e obras representativas de experimentações
Realizada no Museu Casa das Onze Janelas, a iniciativa de uma tecnológicas digitais no Pará. Not Found foi desdobrada pelo artista,
exposição de arte contemporânea com enfoque na tecnologia trazendo, além de fotografias, um computador disponível para que
digital era até então inédita no Pará, e teve participação pouco as pessoas buscassem seus próprios lugares no ciberespaço, sejam eles
expressiva de artistas paraenses. Um destes foi Victor de La Rocque, imaginários ou reais, interferindo no aplicativo da mesma maneira
que recebeu também um dos 5 prêmios distribuídos pelo evento, que fez o artista. A obra agenciou, então, o espaço expositivo e o
com a obra Not found. Nascido em Belém, em 1985, este artista ciberespaço de forma a provocar trânsitos entre as territorialidades
traz no currículo o Grande Prêmio do 27º Salão Arte Pará (2008), produzidas pelos mesmos.
a participação em diversas exposições e festivais de performance, Verificamos, assim, que o espaço virtual, ou ciberespaço, também
em outras cidades e países. é utilizado (total ou parcialmente) para configurar práticas artísticas
Not found é uma prática artística que acontece no ciberespaço: na contemporaneidade, nem por isso puramente desterritorializando
intervenção performática em um website e aplicativo, buscando a arte contemporânea, mas antes multiterritorializando a mesma,
localizar lugares do imaginário, da linguagem informal e cotidiana, incluindo dentro do discurso o espaço virtual que é um locus
como “onde o vento faz a curva”, “casa do caralho” e “quinto dos tipicamente descentralizado. E também permitindo o contato, e até
infernos”. Nas palavras de Victor de La Rocque: mesmo o choque, nesse espaço virtual, do discurso do artista e da arte
Numa busca por espaços imaginários de passagem incapazes com outras concepções, utilizações e funcionalidades destinadas ao
de dar forma a qualquer tipo de identidade, NOT FOUND ciberespaço por outros agentes sociais, também usuários do virtual.
expõe as transformações do tempo, espaço e indivíduo sobre a
“superabundância” na contemporaneidade. Através do aplicativo Catálogo Panorama da Arte Digital no Pará, curadoria de John Fletcher e Ramiro Quaresma,
188

Belém: Banco da Amazônia, 2012, sem número de página.


204 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 205

E antes de se constituir enquanto desmaterializado, o virtual 3.2.2. Processos eletrônicos digitais


se utiliza de estruturas materiais para sua existência, inclusive a
Algumas práticas artísticas contemporâneas são estabelecidas
materialidade do próprio corpo enquanto experimentador onde a
não mais por meio de instalações tecnológicas dentro dos espaços
obra se completa. A subseção a seguir apresenta o último eixo deste
expositivos, mas sim por meio de processos eletrônicos digitais
ensaio, que diz respeito ao espaço biológico utilizado enquanto
situados integralmente em espaços virtuais, fora dos espaços físicos das
território da arte contemporânea.
instituições. A multiterritorialidade tem se constituído, seja através de
websites, CD-Roms e DVD-Roms, mídias móveis ou de qualquer
outro dispositivo que permita o fluxo de informações (e, portanto, de
processos artísticos).
A absorção de práticas deste tipo por parte das instituições é um
fenômeno bastante recente no cenário artístico paraense, datando da
segunda metade da década de 2000. Quanto aos centros culturais
norte-americanos e europeus, desde a década de 1980 há um forte
diálogo entre tais territorialidades, atualmente existindo inclusive
exposições e eventos voltados exclusivamente para congregar
experimentações nestas linguagens e tecnologias.
Há, entretanto, práticas bastante distintas no uso destas
tecnologias. Vale lembrar um apontamento feito por Michael Rush, a
respeito das peculiaridades da produção artística tecnológica que ele
denominou Arte da Web, no final da década de 1990.
A arte na Web, embora cada vez mais sofisticada, incorpora em
grande parte imagens desenvolvidas fora do computador e depois nele
introduzidas por um scanner ou equipamento digital de vídeo. Alguns
artistas, contudo, por sua própria conta ou encarregados por museus e
centros de arte, estão desenvolvendo trabalhos que realmente envolvem
o computador como meio de expressão.189
Com o termo processos eletrônicos digitais definirei as práticas
artísticas que se dão por meio das recentes tecnologias digitais,
possibilitadas por inúmeros equipamentos que povoam nosso
imaginário e cotidiano na contemporaneidade. Tais práticas são
189
Michael Rush, obra citada, página 187.
206 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 207

desenvolvidas sem a necessidade da mediação do espaço expositivo, também apresentações de slides enviadas por e-mail, com acentuado
realizadas por meio de processos comunicativos entre equipamentos viés político-social, além de blogs como aBRa, apresentando fotos de
(como computadores e telefones celulares), existindo somente (ou flores desabrochando e pedindo a abertura dos arquivos da ditadura
talvez prioritariamente) no ciberespaço. militar brasileira (1964-1985) – que em 2010 resultou numa
exposição homônima, no MHEP.
Independente das questões que as obras deste tipo apresentem
E-mails de Lúcia Gomes, a partir de 2008 (questões políticas, éticas, como em HF02AQLFPNCC20H, ou de
A artista Lúcia Gomes, que atualmente reside na Suíça, possui qualquer outro tipo), a própria possibilidade de se enviar uma obra
uma produção artística dentro do ciberespaço que é bastante de arte por e-mail é uma questão por si. O ciberespaço enquanto
interessante para este texto. Apesar da distância física, Lúcia Gomes ferramenta para produção, disseminação e recepção de práticas
não deixa de possuir uma participação cultural ativa no Pará, artísticas faz com que sejam postas em prática novas dinâmicas,
inclusive expondo no estado. Uma parte desta produção, que convém muitas vezes alheias ao sistema da arte contemporânea. As obras
citar neste momento, é aquela que é feita exclusivamente para o de Lúcia Gomes enviadas por meio do ciberespaço não passam por
ciberespaço, enviada através de e-mail para a rede de contatos da nenhuma espécie de seleção a priori feita pelos agentes do discurso-
artista, trazendo a sugestiva mensagem “Passes adiante ou...”. Vejamos arte. Entretanto, se dizemos que estes objetos virtuais são objetos
a obra HF02AQLFPNCC20H (Hoje Fazem 02 Anos Que a adolescente artísticos automaticamente estamos inserindo-os no circuito da
L. Ficou Presa Numa Cela Com 20 Homens em Abaetetuba Pará…), arte contemporânea – e o fazemos simplesmente pelo fato de Lúcia
uma apresentação feita no software Microsoft Power Point, trazendo Gomes já fazer parte do discurso da arte, enquanto artista. O sinal
fotos da artista compondo a letra L, com metros de tecido branco, então não é propriamente um espaço (tal qual o museu), mas sim
em paisagens na cidade europeia onde se encontrava. A obra faz o próprio artista, reconhecido socialmente enquanto pessoa que
referência ao caso de repercussão midiática internacional, por ferir os desempenha aquela função.
direitos humanos, quando uma adolescente de quinze anos de idade Apesar da fluidez dos territórios e da superposição de movimentos
ficou presa, sob acusação de furto, desde o dia 21 de outubro até o dia de des-re-territorialização, ainda existem sinais característicos que
14 de novembro de 2007, em uma cela com vinte detentos homens, evidenciam com bastante clareza que determinada prática ou objeto
em uma delegacia no município de Abaetetuba (Pará). diz respeito ao campo da arte. Em contrapartida, produções como
O e-mail de Lúcia Gomes, trazendo a obra HF02AQLFPNCC20H, HF02AQLFPNCC20H atuam somente como valor simbólico, já que
é uma espécie de memorial poético, contra a barbárie e pelos direitos não são incorporadas ao circuito institucional e mercadológico da
humanos, uma tentativa de fazer com que casos como este não caiam arte. O que concede a tais obras a particularidade do artístico nem
sempre no esquecimento, para se repetir indefinidamente. Outros é tanto uma construção formal ou estética, ou uma propriedade
exemplos de obras semelhantes da artista são e(L)eitora e Flechada, conceitual, mas tão somente o fato das mesmas se inserirem em um
208 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 209

circuito de agentes sociais da arte contemporânea – mesmo que tais


obras possuam configurações estéticas/conceituais de grande valor.
Fica a dúvida: se estas mesmas obras, dentro do ciberespaço, fossem
enviadas e recebidas por pessoas sem qualquer ligação com o campo
artístico, ainda a consideraríamos objetos de arte?

“Vit(r)al”, Luciana Magno, 2009


Quando, por exemplo, a artista Luciana Magno apresenta a
obra Vit(r)al, na programação do 28º Salão Arte Pará, realizado de
16 de outubro a 01 de dezembro de 2009 – obra que valeu à artista
o 3º Prêmio na mostra competitiva do salão –, temos um exemplo
claro de multiterritorialidade estabelecida entre o ciberespaço e a
arte contemporânea. Percebemos que tal obra se constitui tanto
como performance, quanto como ciberespaço, sendo instransponível
para outro meio, assim como instantaneamente acessível a qualquer
usuário da rede.
Vit(r)al se resume, em termos gerais, a uma página na internet190
(posteriormente desativada) que veiculou, durante oito dias
ininterruptos, a transmissão de vídeo de uma câmera localizada na
“casa” de Luciana Magno – casa esta montada pela artista, com seus
objetos pessoais, no espaço de uma loja de decoração em Belém. A
artista ocupou aquela “casa de vidro”, expondo-se tanto no espaço
da loja (que esteve em funcionamento durante a realização da ação)
quanto no espaço da internet, recebendo visitas, saindo, cozinhando,
enfim, vivendo seu cotidiano “normal”, ainda que espetacularizado. A
página na internet que veiculou o vídeo em tempo real não diferia de
Slides retirados da obra HF02AQLFPNCC20H nenhuma outra página semelhante (nas suas especificidades de site).
de Lúcia Gomes, enviada por e-mail, 2009.
Fonte: imagem cedida por Fundação Lúcia Gomes. 190
http://www.blogtv.com/People/vitral
210 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 211

Ao ser vinculado a uma exposição, no caso o Arte Pará 2009,


automaticamente o trabalho se reveste de uma simbolização,
conforme Bourdieu, de um código que o fará ser assimilado pelo
discurso do sistema da arte. Vit(r)al, portanto, é uma demonstração
até mesmo óbvia de como o sistema da arte constrói valores,
transforma determinados objetos em capital simbólico. Existem
inúmeras páginas da rede do ciberespaço que são instantaneamente
acessíveis de qualquer parte conectada do planeta, sem qualquer tipo
de restrição, dentre as quais encontramos a página da obra em questão,
que só existe enquanto ciberespaço, não podendo ser transposta para
outro tipo de constituição material. Não se pode restringir o acesso
ao trabalho, empacotá-lo dentro de um museu ou mesmo dentro da
loja de decoração, limitá-lo a um exemplar original. Entretanto, o
sistema da arte atua por mecanismos muito mais flexíveis, em função
das singularidades de um capitalismo inclusivo que engole a tudo,
inclusive ao seu próprio rabo.
Quando Vit(r)al é pinçada do limbo em que se encontram as
demais páginas do ciberespaço por uma instituição do porte do Salão
Arte Pará, desenrola-se um jogo de produção de valor simbólico.
Um jogo que não é meramente artístico ou econômico, mas que se
instaura também nas suas plenas possibilidades políticas, na medida
em que a instituição assume um posicionamento de tomar para si,
como autenticamente seu, o território do ciberespaço.
O Arte Pará soergue Vit(r)al e assinala: isto possui um valor
simbólico, enquanto arte isto é capital simbólico. “Confirmado:
é arte”. Este movimento se dá através de dispositivos que operam
muitas vezes na sutileza de comportamentos condicionados. Nem é
preciso que a logomarca esteja estampada na página inicial de Vit(r)
Frames extraídos da transmissão online de Vit(r)al al, ou que a artista passe a receber uma bolsa de pesquisa; basta que
de Luciana Magno, Belém, 2009.
a informação seja lançada no fluxo de informações que realmente
Fonte: imagem cedida pela artista.
212 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 213

importa para o sistema: ou seja, o fluxo de informações que perpassa 3.3. Os espaços biológicos
pelos agentes da arte contemporânea, para os quais efetivamente
O último eixo sobre o qual este ensaio se debruçará é aquele
aquele capital simbólico faz algum sentido, já que possuem o código
constituído por práticas artísticas nas quais a corporeidade biológica
cultural necessário para decifrá-lo. Desta forma, a multiterritorialidade
é parte intrínseca à obra. É claro que o corpo humano é usado para
é estabelecida até mesmo para o ciberespaço.
materializar diversas linguagens, como a pintura (action painting)
Com as imagens capturadas durante a ação, mais as imagens
de Jackson Pollock, na qual o gesto era parte integrante da prática
de algumas câmeras de segurança da própria loja, um vídeo foi
artística. Assim também o corpo humano é indispensável para a
editado após a permanência da artista na “casa de vidro”, vídeo
apreensão/recepção da obra – através dos sentidos e inteligibilidade.
este que ficou em exposição no Museu da UFPA (em Belém), até
Tais exemplos culminam em uma obra que é exterior ao corpo
o final da programação do Arte Pará 2009. O registro videográfico
biológico, sendo efetivamente um objeto.
atuando como dispositivo de apropriação, tanto quanto o website que
Nas práticas que analisarei nesta subseção a obra só se constitui
veiculava as imagens em tempo real, colabora para o estabelecimento
e existe enquanto estiver associada a corpos vivos (humanos ou não).
destas múltiplas territorialidades aqui estudadas.
São exemplos de linguagens que trabalham nesta esfera: happening,
performance, body art, bioart, dentre outras. Evidentemente,
o conceito de performance admite ações propositivas em nível
instrucional, como os cartões-partituras do grupo Fluxus.
Entretanto, a obra só existe no momento em que é posta em prática
por meio do corpo do artista performer ou do público participante
“coautor” ou interator.
Para Lucia Santaella,
o corpo vivo do artista como suporte da arte dominou a cena artística
do século XX por várias décadas. Outro aspecto não tão nítido, mas que
deve ser notado, é o da expansão nas formas de tratamento do corpo e
seu descentramento do corpo do próprio artista com o surgimento das
artes interativas.191
A utilização do corpo pelos artistas, enquanto objeto e prática
da própria arte, teve, a princípio, implicações de contestação contra
o estabelecimento de um mercado de arte que se sobrepunha às
próprias obras. Assim, o artista usa o corpo e os processos corporais
191
Lúcia Santaella, As artes do corpo biocibernético, em Diana Domingues (org.), Arte e vida no
século XXI: tecnologia, ciência e criatividade, São Paulo: UNESP, 2003, página 66.
214 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 215

para subverter a própria noção de objeto de arte. Sobre as primeiras efetiva da obra de arte (como por exemplo, a dilapidação cerimonial de
quadros), suas tentativas mais radicais para aniquilar o encantamento
experimentações, no rastro das vanguardas históricas (mais
artístico não passam de uma inversão mágica do velho ritual em glória
precisamente dadaísmo e futurismo), Rose Lee Goldberg afirma que da arte e do artista.193
O desenvolvimento da performance européia no final da Assim, há uma introdução gradativa das artes situadas em espaços
década de 1950 foi semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos biológicos dentro da lógica cultural dos sistemas da arte, através de
na medida em que a performance passou a ser aceita pelos artistas mecanismos como a fotografia e a vinculação às instituições culturais.
como um meio de expressão viável. Apenas dez anos depois de uma Tais relações evocam a multiterritorialidade que se estabelece ao
guerra mundial devastadora, muitos artistas sentiram que não podiam tomarmos um ser vivo, ou os processos corporais que se dão nesses
aceitar o conteúdo essencialmente apolítico do expressionismo seres vivos, como pertinentes e artísticos.
abstrato, extremamente popular na época. (...) Esse estado de Poucos anos depois da introdução da performance como
espírito impregnado de consciência política estimulou a prática de linguagem da arte contemporânea, nas décadas de 1950 e 1960,
manifestações que lembravam os eventos dadaístas porque constituíam a fotografia passaria a ser amplamente utilizada na realização de
um meio de atacar os valores da arte estabelecida.192 performances – e posteriormente o vídeo. Surge, inclusive, a noção de
As práticas artísticas que usam o corpo como suporte performance orientada para fotografia/vídeo.
também possuem, atualmente, outras variáveis, possibilitadas Se, num momento inicial, a fotografia é utilizada como documentação
pelas tecnologias computacionais, pela engenharia molecular, da performance, na arte contemporânea as performances tornam-se
cada vez mais dependentes da fotografia. Aliás, a fotografia torna-se,
pela explosão das tele-redes de informação e comunicação e pelas ela mesma, a base para uma forma de “performance híbrida”, como os
nanotecnologias, segundo Santaella. auto-retratos de Cindy Sherman (New Jersey, EUA, 1954). Nesse caso,
Tais linguagens artísticas evidentemente alargaram os conceitos vale refletir sobre a crescente articulação entre as propostas artísticas, a
princípio não vendáveis e alheias ao princípio do mercado da arte, e as
da arte contemporânea, provocando a reformulação do discurso no propostas mais contemporâneas em que o circuito artístico (o mercado
sentido de absorver estas práticas artísticas. Se, por um lado, práticas inclusive) é parte inerente da realização do trabalho.194
como a body art possuíam uma nítida intenção de negar o objeto de arte Esta questão da intermidialidade – analisada no terceiro
e seu sistema legitimador e mercadológico, por outro lado acabou-se capítulo deste ensaio – posta em prática nestes processos corporais,
por legitimar tais práticas, sem cumprir a função desterritorializadora geralmente através de registros fotográficos ou videográficos,
ou an-artísticas a que se propunham. possibilita questionamentos e posições antagônicas entre os
Tanto no caso em que colocam os recursos da arte a serviço da teóricos do assunto. Conforme analisado anteriormente, estes
destruição simbólica da arte ou da imagem tradicional da obra de
arte e do artista, produzindo obras indefinidamente reprodutíveis
registros constituem obras distintas das ações, implicando em
ou então simbólica ou efetivamente autodestrutivas, como no caso 193
Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas, introdução, organização e seleção de textos
em que levam a cabo, embora de maneira ostentatória, a destruição por Sérgio Miceli, 6ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2005, página 280.
194
Cristina Freire, Poéticas do processo: arte conceitual no museu, São Paulo: Iluminuras, 1999,
192
Rose Lee Goldberg, A arte da performance: do futurismo ao presente, tradução de Jefferson Luiz
página 108.
Camargo, São Paulo: Martins Fontes, 2006, página 134.
216 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 217

relações diversas das que são experimentadas nas ações em si. necessário que as propostas artísticas, curatoriais e expositivas sejam
Assim, vale citar as palavras de Peggy Phelan: encaradas com seriedade na construção de práticas e exposições que
Atos não se repetem. Performance é viva somente no presente. Não tenham alguma relevância além do mero espetáculo, sabendo-se que
pode ser conservada, gravada, documentada, do contrário, isso será
outra coisa. A documentação da Performance através de fotografias ou os registros possibilitam outras questões, outro modo de apreensão e
vídeos é somente um estímulo para a memória, um encorajamento da decodificação simbólica, já que, antes de tudo, representam algo.
memória para tornar-se presente. Performance implica o real, através da Além da fotografia e do vídeo, também as instituições culturais
presença física do corpo.195
com políticas voltadas para a arte começam a voltar investimentos
Em outro viés, a partir das décadas de 1970 e 1980 os registros
para as práticas e artistas da performance, sendo responsáveis diretas
passaram a ser amplamente utilizados, e pode-se dizer inclusive que
pela multiterritorialidade das práticas artísticas em espaços biológicos.
determinadas práticas artísticas só se sustentam e existem em função
Os sistemas da arte se flexibilizaram e passaram a incluir tais práticas
destes registros. Santaella afirma que
como legítimas dentro da arte contemporânea.
artistas se voltam para a criação de registros sui generis, por vezes
insólitos, da fisicalidade de seus corpos. É tal a compulsividade com que O reconhecimento oficial de museus e galerias [na década de 1970] só
manifestações desse tipo se repetem que nos leva a pensar na necessidade serviu para estimular muitos artistas mais jovens a encontrar caminhos
manifesta pelo artista de lançar esses registros para o futuro, como menos convencionais para seu trabalho. Historicamente, os performers
moldes, memória indelével de um corpo cuja compleição, dimensão, nunca tinham dependido do reconhecimento do establishment, sem
contorno físico estão em vias de mutação. contar que sempre adotaram uma postura intencionalmente contrária à
(...) estagnação e ao academicismo associados a esse establishment.197
No vídeo, a tendência narcisista que lhe é própria produz obras que Vemos, na citação acima, que os artistas da performance
se enquadram não apenas nas “refrações do corpo”, mas também na na Europa não alienaram sua produção ao se relacionarem em
“memória do corpo”, esta manifesta na obsessiva necessidade do registro
corporal.196 perspectivas institucionais, mas antes buscaram novas alternativas e
Tais desdobramentos estéticos das performances, da body posicionamentos dentro destas relações. No Brasil, desde o final da
art, da bioart etc., nem sempre se constituem como objetos ou década de 1960 que as instituições artísticas dialogam com práticas
obras pertinentes à ideia inicial do artista, servindo muitas vezes performáticas e de uso do corpo. Vale ressaltar que essa relação ainda
como espetacularização de tais práticas, na manutenção de espaços se deu sob um contexto regime ditatorial, nem por isso sem priorizar
expositivos elitistas e antiquados. Outras vezes, tais desdobramentos um caráter político e contestatório nas performances realizadas sob
estéticos possibilitam outras posturas e questionamentos que não os auspícios das instituições de arte; ou antes, justamente por isso
são possíveis no primeiro momento (na apresentação da ação), algumas vezes priorizando esta característica política. No Pará, muito
constituindo obras que não se caracterizam exatamente como um provavelmente as práticas performáticas e demais procedimentos que
registro, mas como um híbrido entre linguagens diversas. Assim, é priorizam o espaço biológico como suporte da obra só apareceram
no final da década de 1980, tornando-se práticas constantes nas
195
Citada por Regina Melim, Performance nas artes visuais, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, exposições apenas no início da década de 2000.
página 37.
196
Lúcia Santaella, obra citada, páginas 73-74. 197
Rose Lee Goldberg, obra citada, página 171.
218 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 219

3.3.1. Biomodificações Ao recusar a apropriação característica da mercantilização da arte, a


Body Art, por exemplo, toma o corpo como suporte da criação, pois
Por biomodificações tomaremos as práticas artísticas que resiste à “alienação da mercadoria” imposta pelo mercado da arte.
Faz do próprio corpo uma barreira contra a mercantilização da arte,
configuram uma alteração permanente ou de longa duração no
mas, contraditoriamente, transforma-se em “coisa”, mercantilizada
organismo de um ser vivo, seja este o artista, outra pessoa qualquer através da fotografia.199
ou ainda alguma espécie de animal, planta e demais seres vivos. As Para além da simples mercantilização, tais práticas se modificam
modificações também variam em seu tipo, podem ser desde alteração profundamente com a inserção de tecnologias contemporâneas.
genética produzida em laboratório até modificação corporal A relação com instituições de arte também se mostra, muitas
realizada “artesanalmente”, como escarificações etc., ou a simples vezes, como bastante profícua, possibilitando uma série de ações e
utilização de um organismo vivo em uma exposição, deslocando-o multiterritorializações na arte contemporânea.
de seu habitat originário. Posterior à body art surge uma série de práticas também utilizando
No levantamento documental realizado sobre a arte organismos vivos (não se restringindo ao corpo humano), agrupadas sob
contemporânea paraense não encontrei qualquer registro a respeito a denominação de bioart. De modo diferente da body art, que centrava-
de práticas artísticas atuando no sentido de modificação permanente se na discussão do uso social do corpo humano, a bioart discute questões
do corpo humano. É claro que existem, na região, profissionais que a respeito do uso da vida diante das possibilidades tecnológicas.
trabalham com modificações corporais tais como: tatuagem, piercing, A partir da década de 90 alguns artistas começaram a trabalhar com uma
escarificação, implantes etc.; além de existirem também profissionais arte biológica, de caráter experimental, estritamente “viva”. Chamada
de outros campos distintos que realizam pesquisas científicas nas quais de bioarte, ela se deu no século 20, mas começou a ser amplamente
praticada no início do século 21 (...).
as biomodificações são procedimentos necessários. Entretanto, nestes Geralmente a bioarte é produzida em laboratórios científicos e
casos não houve a inserção destas práticas dentro dos discursos da arte estúdios criados pelos artistas. (...) Ela tem como meio a matéria viva,
usada como prática da arte, onde sua ferramenta é a biotecnologia
contemporânea, e por isso não serão aqui analisadas.
– por exemplo, a engenharia genética e a clonagem. Os bioartistas
As biomodificações surgem, precisamente enquanto body art, utilizam-se de células, proteínas, DNA, bactérias, tecido vivo, sangue
como forma de resistência à lógica cultural e mercadológica que e congêneres e defendem o limite da categoria no estrito tópico das
“formas vivas”. Além de artistas dessa nova mídia eles também podem
sedimentava a arte em meados do século 20. “O desdém para com ser vistos como cientistas.200
o objeto de arte estava associado ao fato de ser visto como mero No campo da tecno-ciência, por exemplo, muitos artistas
fantoche no mercado de arte: se a função do objeto de arte devia desenvolvem práticas que discutem as questões do humano diante das
ser econômica, prosseguia o argumento, então a obra conceitual não
podia ter esse uso”198. Como abordei anteriormente, tais práticas se 199
Cristina Freire, obra citada, página 103.
200
Marta Strambi, Bioarte e experiências da resistência, em Anais do 19º Encontro Nacional da
mercantilizam por meio dos registros fotográficos e videográficos. Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas: entre territórios, organização de Maria
Virginia Gordilho Martins e Maria Herminia Olivera Hernández, Salvador: EDUFBA, 2010,
198
Rose Lee Goldberg, obra citada, página 142. páginas 1579-1580.
220 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 221

máquinas atuais, a hibridação entre ambos, ou a substituição de um O artista utiliza duas aves vivas como espaço de sua prática
pelo outro. Tais práticas são geralmente associadas ao termo cyborg, artística. Ao mesmo tempo, o espaço da obra também é a convivência,
termo que metaforiza a conjunção entre carne e tecnologia no mesmo o contato que se dá entre os dois galináceos e as demais pessoas que
corpo. Para Anna Lisa Tota, circulavam na abertura da exposição. Múltiplas territorialidades.
A relação entre objectos e identidade (objectos como lugar e meio Corpo vivo como suporte da arte contemporânea.
de construção das subjectividades) é revisto no cyborg segundo Em 2008, no 27º Salão Arte Pará, o Grande Prêmio foi concedido
uma perspectiva de leitura radical. Interagir com tecnologias e
objectos significa tornar-se outro, modificar radicalmente a noção de ao artista Victor de La Rocque, pela obra Gallus Sapiens. Esta obra, tal
subjectividade. O cyborg é a nova fronteira da subjectividade (feminina/ como ressalta Luciana Magno203, é uma performance dividida em três
masculina, humano/animal, máquina/ser vivo). Na biopolítica dos partes. A obra apresentada no 27º Salão Arte Pará é a Parte 2 de Gallus
corpos pós-modernos, submetida a este conceito, o eu determina e
Sapiens, que por sua vez é dividida em outros três atos, chamados:
constitui-se segundo modalidades e práticas linguístico-discursivas.201
Glória Aleluia e a Mão de Deus; Come, ainda tens tempo; e Entre os
Vejamos alguns exemplos pertinentes ao cenário artístico paraense.
meus e os seus. Os três atos de Gallus Sapiens (Parte 2) são realizados
em espaços públicos da cidade, deslocando as territorialidades da arte
tanto para o processo/corpo quanto para a urbe. Orlando Maneschy
“Gallus Sapiens”, Victor de La Rocque, 2007 e 2008
– um dos curadores do 27º Salão Arte Pará, ao lado de Alexandre
Em 2007 foi realizado o 13ºSalão Pequenos Formatos da
Sequeira e Emanuel Franco – descreve a obra da seguinte maneira:
Universidade da Amazônia, na Galeria Graça Landeira. Com participação
Nessa performance instigante, o artista ata Galinhas d’Angola vivas a
de artistas de várias cidades brasileiras, o evento trouxe também um seu corpo, ampliando este corpo, para além do simples ato de vestir-
happening proposto por Victor de La Rocque, chamado Gallus Sapiens. se, procurando estabelecer um corpo comum constituído pela soma
dessas duas espécimes. (...) O artista, tal qual uma entidade de um
O Espaço é branco, estamos dentro de uma galeria onde tudo parece
culto ancestral, se coloca diante dos símbolos de poder da cidade e
comum, é vernissage do Salão Pequenos Formatos (2007): “coisas”
os observa. O cansaço, a sofreguidão parecem dar lugar a um estado
penduradas nas paredes, coquetel, objetos estranhos e gente esquisita. alterado de consciência nesse misturar de corpo vivo e corpo que morre
O estranho normal é quase natural e a não ser por um odor de cocô em pontos estratégicos da cidade – Entroncamento, Cidade Velha e
de galinha, o GALLUS SAPIENS parte 1 estaria camuflado nessa Avenida Presidente Vargas – locais escolhidos para as três ações que
festa (O sapiens quase sempre para se sentir sapiens necessita de um compreendem a proposição.204
segundo caderno). Um casal de galos, em roupa de gala, vestidos em
seus melhores trajes recebem seus convidados. Como que por ironia,
Desta vez o uso não é apenas do corpo vivo, mas também o uso
não há comunicação entre eles.202 da vida até a exaustão, até a finitude. A morte das aves como parte
indissociável da obra. A biomodificação enquanto negação da vida,
201
Anna Lisa Tota, A sociologia da arte: do museu tradicional à arte multimídia, tradução de Isabel
Teresa Santos, Lisboa: Editorial Estampa, 2000, páginas 194-195. enquanto extermínio. Gallus Sapiens foi alvo de inúmeros protestos
202
Luciana Magno, Da impossibilidade do vôo: Victor de La Rocque em Gallus Sapiens partes 1 e 2, de organizações defensoras dos direitos dos animais, principalmente
nos Anais do V Fórum Bienal de Pesquisa em Artes (2010: Belém, PA): provocações-transformações-
revoltas, organização de Edison da Silva Farias e Lia Braga Vieira, Belém: PPGARTES/ICA/UFPA, 203
Luciana Magno, obra citada, página 648.
2010, página 647. 204
Catálogo Arte Pará 2008: 27ª Edição, Belém: Fundação Rômulo Maiorana, 2008/2009, página 45.
222 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 223

quando sua realização foi impedida, por meios jurídicos, no Rio de


Janeiro em um festival de performance.
A respeito da intermidialidade, é importante dizer que o registro
videográfico da obra foi exposto, durante o evento, no espaço
expositivo do MHEP. Victor de La Rocque apresentou a performance
Gallus Sapiens (Parte 2) em Vitória (ES) e Brasília (DF). Em novembro
de 2010 ele reapresentou a performance em Brasília, desta vez com
apoio do Ministério da Cultura205.
Nas duas primeiras partes de Gallus Sapiens o artista utiliza seres
vivos na sua prática. Na Parte 1, os galináceos são o próprio suporte da
manifestação artística. Já na Parte 2 as aves são apenas parte da poética,
usadas, no entanto, até sua morte. Nesse sentido incluo as duas práticas
desenvolvidas por Victor de La Rocque como exemplos de biomodificações.

“Semeadura”, Armando Queiroz, 2010


Outra iniciativa institucional que dialogou com espaços não
convencionais foi a exposição Indicial, realizada de 04 de abril a 30
de maio de 2010 pelo SESC-Pará (Serviço Social do Comércio), com
curadoria de Miguel Chikaoka (Associação Fotoativa). Um ponto
interessante, para discutir a multiterritorialidade estabelecida em Indicial,
é o prédio que serviu de espaço expositivo: um casarão em ruínas, anexo
do Centro Cultural SESC Boulevard, no Centro Histórico de Belém. A
situação arquitetônica do prédio em questão era a seguinte: ausência de
qualquer tipo de telhado ou cobertura, paredes e piso em ruínas e plantas
crescendo pelas brechas da edificação. A proposta de Indicial, segundo
o folheto informativo da programação do evento, foi justamente
sensibilizar o público para promover a revitalização daquele espaço.
Ao articular práticas artísticas em um espaço totalmente em ruínas a
Registro da obra Semeadura de Armando
Queiroz, na exposição Indicial, Belém, 2010. 205
Dominik Giusti, A poética do exagero, no jornal Diário do Pará, edição de 22 de novembro de
Fonte: imagem cedida pelo artista. 2010.
224 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 225

exposição subverte o olhar comum, estabelece outras territorialidades 3.3.2. Processos corporais transitórios
e agenciamentos em um local marcado por intenso tráfego urbano. É
Na categoria de processos corporais incluirei, de um modo
certo que Indicial possuiu um propósito específico em relação àquele
espaço, mas não deixa de ser interessante que as instituições ocupem geral, as práticas artísticas que tenham como parte indispensável
de forma criativa e crítica espaços informais, oportunizando novas de sua constituição o corpo (do artista ou do público espectador/
experiências e novas subjetividades distantes do espaço higienizado das participador), evidentemente sem modificá-lo de forma prolongada,
cenografias do tipo cubo branco. como as performances, happenings, ciberarte interativa, arte urbana
A exposição foi composta por obras de mais de sessenta artistas participativa, dentre outras. Como ressaltei anteriormente, estes três
contemporâneos paraenses, além da realização de oficinas, saraus espaços (geográfico, virtual e biológico) geralmente são utilizados
visuais com projeções multimídia e performances (musicais, teatrais, em conjunto por diversas práticas artísticas. Muitos dos exemplos
literárias etc.). Uma das obras expostas era Semeadura, de Armando citados nas subseções anteriores também se encaixam na categoria
Queiroz, artista nascido em Belém, em 1968. Armando Queiroz é de espaço biológico. Nesta subseção priorizarei as práticas artísticas
atualmente um dos nomes da arte contemporânea paraense mais performáticas, por estarem essencialmente vinculadas ao corpo.
reconhecidos nacionalmente, atuando também como curador. Ao longo do século 20, no qual a performance passou a ser
Semeadura consistiu em cerca de oito bacias plásticas dispostas no largamente utilizada enquanto linguagem artística, podemos notar que
chão, completamente cheias de caroços batidos de açaí, fruta típica há uma expansão da linguagem, com artistas e teóricos reinventando
da região. Com o passar dos dias, expostos a chuvas e ao sol, os os modos de entender e fazer performance e outras artes centradas em
caroços das bacias de Semeadura passaram a germinar, como indica processos corporais. Segundo Rose Lee Goldberg,
o sugestivo título da obra. Em algumas semanas, as bacias estavam O crescimento exponencial do número de artistas performáticos
em quase todos os continentes, os inúmeros novos livros e cursos
tomadas por brotos e folhas que despontavam dentro da exposição, acadêmicos sobre o assunto e o grande número de museus de arte
remetendo à vegetação que pulula pelos interiores dos casarões contemporânea que começam a abrir suas portas à mídia ao vivo
históricos abandonados em Belém, e que se derramam pelas janelas, são indícios claros de que, nos próximos anos do século XXI, a arte
da performance continua sendo, em boa parte, a força motriz que era
portas, teto e por onde houver saída. quando os futuristas italianos usaram-na para apreender a velocidade e
Afinal, a vida sempre encontra um meio. energia do século XX.206
Armando Queiroz, com recursos simples (os caroços batidos Também podemos observar que o conceito de performance
de açaí são encontrados em qualquer bairro das cidades paraenses, começa a ser discutido, a partir de diversas práticas realizadas sem
geralmente descartados pelos estabelecimentos que preparam e público algum, muitas vezes no ateliê do artista, apenas para o
vendem o açaí já batido) ativa significados e territorialidades por meio registro em vídeo. Além disso, há a prática da performance como
do uso de organismos vivos. De fato, o artista não chega a modificar a ação instrucional direcionada ao público. É partindo destas discussões
estrutura orgânica dos vegetais, mas ainda assim se utiliza dos mesmos,
206
Rose Lee Goldberg, obra citada, página 216.
vivos, como suporte e ao mesmo tempo objeto da prática artística.
226 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 227

que Regina Melim propõe a noção de espaço de performação, que


segundo a autora é
uma situação que surge do encontro do espectador com a obra-
proposição, possibilitando a criação de um espaço relacional ou
comunicacional. É o espaço de ação do espectador, ampliando,
portanto, a noção de performance como um procedimento que se
prolonga também no participador. Além disso, uma tentativa constante
de vislumbrar uma obra como deflagradora de um movimento
participativo e que existe não como obra pronta, fechada em si como
materialidade silenciosa, mas como superfície aberta e distributiva.207
Ainda para a autora, a conceituação de performance necessita
ser estendida atualmente, para comportar as práticas performáticas
voltadas para as artes visuais que se utilizam de certos processos de
difícil categorização – ao se hibridarem com outras linguagens.
A escolha de uma seqüência de fotografias (...) não visa a propor nenhum
tipo de hierarquia nos modos de manutenção de uma ação fugaz.
Poderia ter sido vídeo, uma instrução, um filme ou uma instalação. O
que se pretende apontar é que, atualmente, uma definição possível de
performance nas artes visuais contempla uma sorte de ampliações ou
formas de devir, postas por uma considerável concentração de etapas
pertencentes a esses procedimentos. Assim, longe de limitar-se apenas
como instrumentos de registro, todas as fases se tornam elementos
constitutivos da obra, materialização de um procedimento temporal
oferecido à recepção.208
Entretanto, é necessário fazer uma ressalva quanto ao pensamento
de Regina Melim. Ainda que os dispositivos de registro e de outros
desdobramentos estéticos sejam, evidentemente, parte constitutiva do
processo do artista, não são estritamente parte constitutiva da obra –
se tomarmos o termo na acepção de ato ou objeto. Tais dispositivos,
possivelmente, constituem outras e variadas obras acerca de um mesmo
processo ou prática artística. Assim, em determinados casos tais obras
constituintes de processos artísticos podem ser dependentes entre si
para constituir um sentido pertinente; enquanto que em outros casos
Registro da performance Anti-moda de Jaime Barradas, Belém, 2005. 207
Regina Melim, Performance nas artes visuais, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, página 61.
Fonte: fotografia de Álvaro Sousa, cedida por Jaime Barradas. 208
Regina Melim, obra citada, páginas 64-65.
228 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 229

tais obras podem ser completamente desvinculadas, existindo (criando sujo de tinta e (no decorrer da performance) lama, e portando um
sentido) independente umas das outras. É necessário analisar cada guarda-chuva danificado e rasgado percorre aquele caminho com
caso isoladamente e observar que tipo de pertinência tais dispositivos a impassibilidade própria do teatro. Anti Moda discute justamente
possuem, como espero que tenha ficado claro na discussão sobre a estetização desenfreada e hostil nas sociedades contemporâneas,
intermidialidade neste ensaio. guiada pela lógica do consumo. Ao deslocar o espaço da apresentação
para a via pública, sob o ar noturno, o artista estabelece múltiplas
territorialidades na apreensão sensitiva da performance, não mediada
Performances de Jaime Barradas, a partir de 2003 por aparelhos culturais.
Um exemplo interessante é a produção performática que o artista Em 2006 o artista passa a integrar o Grupo de Pesquisa Igarahart,
Jaime Barradas (nascido em Mocajuba, em 1979) vem realizando formado por professores (artistas-pesquisadores) da ESMAC, e
desde o final da década de 1990. Inicialmente mais voltada para o começa a utilizar da mídia do vídeo para criar obras híbridas com
teatro contaminado pela performance, sua produção a partir de 2003 a performance, como por exemplo o vídeo-arte Nas brechas do não
passa a priorizar mais a plasticidade e visualidade corporal. Atualmente ser, Narciso decide morrer, apresentado na exposição coletiva Caos,
professor do curso de graduação em Artes Visuais da ESMAC (Escola do Igarahart, em 2007. Caos esteve em exposição na Galeria de La
Superior Madre Celeste), no qual atua desde 2005, Jaime Barradas Rocque Soares e no Espaço Cultural Casa das Onze Janelas – neste
também realiza mostras coletivas de performance, a partir das último houve, inclusive, a realização de uma performance do artista
atividades institucionais como docente, levando turmas de alunos durante a vernissage da exposição, dentro da proposta da obra Nas
a montar ações em espaços de galerias e espaços não convencionais brechas do não ser, Narciso decide morrer.
como praças. Mostras performáticas coletivas deste tipo foram Outro exemplo, dentro da produção do artista, é a obra Entre
realizadas pela ESMAC em Belém, Ananindeua e Mosqueiro (ilha peixe, pássaros...homem, na exposição coletiva Des-Encaixe 2 também
que faz parte de Belém). do grupo Igarahart, realizada de 18 de maio a 17 de junho de 2008,
Em 31 de agosto de 2005 Jaime Barradas apresentou a no espaço externo do Museu Forte do Castelo, em Belém. Nesta
performance Anti Moda, deslocando-se durante a noite da Avenida exposição foram realizadas diversas instalações/intervenções neste
Presidente Vargas até o Corredor Polonês (espaço cultural alternativo), espaço, que é um ponto turístico da cidade.
localizado na Travessa General Gurjão. Tal perímetro, onde se realizou Entre peixe, pássaros...homem consistiu em uma performance
a performance, é localizado no centro de Belém, local de intenso que questionava as noções de identidades, na qual Jaime Barradas
tráfego de pessoas e inúmeros moradores de rua, zona comercial utilizava de alguns objetos (gaiola com carteiras de identidade,
mais abrangente da cidade, além de zona de meretrício em alguns cabide, terno, sapatos e tarrafa de pesca), que após a performance
pontos estratégicos. Jaime Barradas, usando maquiagem e penteado ficaram expostos no local como instalação, uma espécie de registro.
bizarros, trajando um longo tipo de túnica, feita de tecido branco Assim, no que tange a multiterritorialidade, Entre peixe, pássaros...
230 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 231

homem usa a intermidialidade de uma forma não convencional, Trata-se de uma foto-performance em que o ato e as imagens fundem-
se em processos aparentemente independentes. De fato, o ato, a
ao transformar a performance não em uma série de fotografias ou relação vivida no lugar não se repete no espaço expositivo. A imagem
vídeos, mas antes em registros primários, que são os objetos utilizados transportada para o papel adquire uma força poética de difícil tradução.
durante a mesma. Esse processo é semelhante, guardadas as devidas O corpo nu, pousado sobre a mesa, sobre a toalha branca, conjuga-se ao
vento, às negras nuvens, aos abutres. Nem as vísceras expostas sobre o
proporções, ao que realizava Robert Smithson, deslocando pedras ventre permitem a literalidade do ato vivido. Significados se sobrepõem
e outros registros primários dos sites por ele escolhidos para dentro e o lugar-símbolo da cidade perde ou deixa adormecer a identidade,
transformando-se em outro território não identificável. Quando todos
dos non-sites expositivos.
calam emerge do silêncio, das dúbias e múltiplas falas, da solidão, da
estética que, envolta ao discurso, transcende o religioso, o político, para
tornar-se pura poesia.209
“Quando todos calam”, Berna Reale, 2009 Tal ação, ao se colocar no limiar entre linguagens, assim como
A produção da artista Berna Reale somente há alguns anos inúmeros exemplos citados neste ensaio, estabelece territorialidades
envereda pela linguagem da performance. Nascida em Belém, múltiplas e entrecruzadas, tanto para os transeuntes que presenciaram
a performance quanto para o público visitante do 28º Arte Pará.
em 1965, a artista já participou de diversas exposições individuais
Outro exemplo, na produção de Berna Reale, é a obra A sangue frio,
e coletivas no Brasil e na Europa, como a Bienal de Cerveira (em
realizada em Belém no dia 01 de dezembro de 2010. Dominik Giusti
Portugal, 2005) e a Bienal de Fotografia de Liege (na Bélgica, 2006).
descreve a obra da seguinte forma:
No cenário nacional, no qual ganhou destaque nos últimos anos, foi Durante a apresentação, que deve durar cerca de duas horas, Berna
selecionada para o Rumos Artes Visuais 2011-2013, do Itaú Cultural, mostra ao espectador um cenário angustiante: já não bastasse estar
e para concorrer ao PIPA (Prêmio Investidor Profissional de Arte), usando um vestido confeccionado especialmente para a performance
com panos que as famílias ou comunidades costumam cobrir os corpos
edições 2012 e 2013, tendo ganhado o Prêmio PIPA Online em estirados sobre o chão, ela carrega ainda um colar de quatro metros
2012, por votação popular. de comprimento feito de cápsulas de projéteis calibres 32, 38 e 40,
comumente encontrados nos cadáveres. A cada 12 minutos, Berna dará
Em 2009 a artista participou do 28º Salão Arte Pará, com a obra
uma volta no colar, no próprio pescoço, para simbolizar o intervalo
Quando todos calam, pela qual recebeu o Grande Prêmio do evento. entre cada assassinato, segundo as estatísticas brasileiras.210
Quando todos calam é um tríptico fotográfico, realizado a partir da É importante notar que desta vez não há vínculo com
performance feita pela artista, tendo como cenário o Ver-o-Peso. instituições propriamente culturais, mas sim um tipo de parceria com
Berna Reale deita-se nua sobre uma mesa coberta com tecido branco, as instituições governamentais de segurança pública.
trazendo sobre seu tórax vísceras cruas de animais, que faz com que os As balas de revólver que serão utilizadas foram cedidas pelo Instituto
urubus tão comuns no local se aproximem, concedendo um caráter de Ensino de Segurança do Pará (Iesp). Os tecidos, geralmente lençóis,
foram coletados com a devida autorização do departamento jurídico do
cinético ao tríptico fotográfico, que mostra a aproximação gradual Centro de Perícia Renato Chaves.211
das aves. Marisa Mokarzel e Orlando Maneschy descrevem a obra da 209
Catálogo Arte Pará 2009: 28ª Edição, Belém: Fundação Rômulo Maiorana, 2010, página 24.
seguinte maneira: 210
Dominik Giusti, Paz sem voz não é paz, jornal Diário do Pará, edição de 01 de dezembro de 2010.
211
Dominik Giusti, obra citada.
232 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 233

E ainda podemos notar certo caráter de crítica a estas instituições 3.3.3. Formas de vida
em geral, na obra de Berna Reale, já que a obra funciona como um
Um terceiro e último tipo de utilização do espaço biológico
indicativo também da violência vivida no estado. A artista se posiciona na arte contemporânea encontra suas raízes nas transições para a
no entremeio de todas estas variáveis: entre as instituições, entre os modernidade, ainda no fim do século XIX. Nicolas Bourriaud213,
territórios da arte, entre a atuação artística e a atuação como perita partindo de conceitos de Michel Foucault (como o cuidado de si e
criminal, entre a função política e a função estética. a estética da existência) e de outros pensadores, elabora a noção da
Impulsionada pelas ações contra a violência no Rio de Janeiro, Berna arte moderna como invenção de si, na qual os artistas desenvolvem
vai além e indaga: “Será que em Belém está diferente? Pelo fato de
aqui não termos apelo turístico, ninguém questiona”. Ela defende que
formas de vida autênticas, que se contrapõem à padronização dos
os dados sobre o número de assassinatos no Pará saiam dos relatórios comportamentos trazida pela modernidade.
e ganhem maior repercussão. “Quero que esse trabalho cause Por formas de vida quero indicar, a partir dos apontamentos
curiosidade no poder público”, diz a artista, que não à toa escolheu de Bourriaud, uma produção artística contemporânea que se
para a performance o perímetro entre dois prédios que representam
os poderes estadual e municipal.212
territorializa nas atitudes e comportamentos do artista, no modo
como ele expõe a si. Não se trata de biomodificações nem de processos
Esses diversos agenciamentos empreendidos no Pará atestam uma
corporais transitórios, ainda que as fronteiras entre estas categorias de
produção performática em expansão, processos corporais transitórios
pensamento não sejam tão evidentes, muitas vezes borrando-se. As
muito profícuos e repletos de exemplos importantes, que necessitam
formas de vida não são práticas ou objetos direcionados à circulação
de análises aprofundadas que este ensaio não será capaz de oferecer. no sistema da arte, mas sim outro tipo de procedimento: a absorção,
pelo sistema da arte contemporânea, de comportamentos e existências
de indivíduos, atribuindo aos mesmos a designação de artísticos.
Concluindo seu estudo, Bourriaud afirma que
A arte moderna, portanto, só constitui um modelo ético a partir de
seus modos de produção, e não a partir de um estetismo, ou seja, de um
‘bom gosto’: ela produz possibilidades de vida, subjetividade, relações
com o outro. Ela mostra de que maneira os modos de produção
implicam modos de existência, e incita uma individualização das
soluções éticas.214
No contexto atual – em que artistas muitas vezes optam por
modos de produção e circulação distintos dos convencionais, em que
a arte contemporânea mescla cada vez mais os seus limites com os
da política, da ecologia etc. – a invenção de si, enquanto forma de
213
Nicolas Bourriaud, Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, tradução de Dorothée de
Bruchard, São Paulo: Martins Fontes, 2011.
214
Nicolas Bourriaud, obra citada, página 186.
212
Dominik Giusti, obra citada.
234 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 235

vida autêntica e artística (quando absorvida pelos discursos da arte), de Belém. Nazaré do Mocajuba é uma localidade pouco desenvolvida
leva as multiterritorialidades da arte contemporânea a ocuparem econômica e tecnologicamente. As relações de amizade que o artista
espaços bastante extremos: o espaço cotidiano e o comportamental. constituiu com os habitantes desta localidade possibilitaram, entre
Cada atitude do artista, a partir de então, passa a ser vista como outras coisas, que ele se tornasse uma espécie de fotógrafo oficial da
potencialmente artística, tanto mais se subvertem os comportamentos comunidade. Em 2004, época em que a energia elétrica chegou à vila,
sociais padronizados. Não mais um território bem definido para o artista recebeu uma Bolsa de Pesquisa Criação e Experimentação
as artes, onde possamos localizar objetos, processos e registros de Artística do IAP para realizar o projeto Nazaré do Mocajuba.
práticas artísticas (ainda que esse território convencional coexista com
Assim, Alexandre Sequeira passou a realizar uma das suas
as multiterritorialidades), mas sim a indefinição de uma arte que pode
práticas artísticas em conjunto com aquela comunidade ribeirinha,
ser territorializada de maneiras complexas mesmo na existência dos
que, inclusive, foi o primeiro local onde a produção foi exposta –
sujeitos, até mesmo antes de seus objetos e criações.
Vale frisar novamente a importância de Lúcia Gomes, já citada em mas que percorreria ainda diversos locais expositivos em outras
outros momentos deste ensaio. Esta artista é um exemplo interessante cidades além de Curuçá. Em 2005, em Belém, os trabalhos e registros
de produção de comportamento enquanto prática artística, ou produzidos participariam de uma exposição individual do artista no
talvez de prática artística enquanto atitude comportamental. Em Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, e também do 24º Salão Arte
processos artísticos como Amai-vos coisas humanas (realizada desde Pará. Em 2007 algumas peças participaram do projeto Portfólio do
2003), Convescote de urubus (2004), Stop Xplorer (2005), BUUUU Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, e posteriormente retornaram à
(2006), 1945 Fim do Holocausto (2006), Resistência (2012), entre cidade, em 2010, em exposição individual do artista inaugurando o
outros, Lúcia Gomes mobiliza atitudes suas e de outras pessoas que se espaço da Fauna Galeria. O trabalho foi exposto, ainda, na X Bienal
sentem provocadas pelo seu pensamento sempre angustiado, sempre de Havana, em Cuba, 2009, e uma das peças produzidas também
politizado, sempre a favor da vida. esteve na exposição coletiva de artistas paraenses Grafias, no Espaço
Cultural Banco da Amazônia, no fim de 2010 e início de 2011.
Alexandre Sequeira foi à Nazaré do Mocajuba para registrar a paisagem.
“Nazaré do Mocajuba”, Alexandre Sequeira, 2004 Jamais fotografados, os moradores pediram para ser registrados.
Sequeira propôs um escambo ao vilarejo onde o dinheiro mal circula.
Alexandre Sequeira nasceu em Belém, em 1961. É artista, Em troca de uma peça usada da casa, daria uma nova. Em cada lençol,
pesquisador e professor da UFPA, tendo exposto em coletivas e rede, mosquiteiro recebido, imprimiu o retrato do dono. Depois,
individuais em várias cidades brasileiras e de outros países. Desde 1997 montou uma exposição ao ar livre às margens do Mocajuba.216
Alexandre Sequeira visita e estabelece relações com o vilarejo Nazaré Tal produção artística desloca não somente o território da arte
do Mocajuba215, no município de Curuçá, distante 150 quilômetros para espaços diferenciados, mas inclui um público diferenciado na
construção da mesma, constituindo a prática artística como uma
215
Segundo Marisa Mokarzel, em texto para a apresentação da série Nazaré do Mocajuba na X
Bienal de Havana, disponível no site do artista <http://alexandresequeira.blogspot.com> Acesso ferramenta de diálogo, memória, identidade e cultura naquela
em 13 de dezembro de 2012. 216
Catálogo Arte Pará 2005: 24ª Edição, Belém: Fundação Rômulo Maiorana, 2005/2006, página 15.
236 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 237

comunidade. Trabalhos semelhantes foram realizados pelo artista


nesta mesma comunidade de Nazaré do Mocajuba, e em outros
locais como a periferia de Belém, por meio do projeto Meu Mundo
Teu, em 2007, também financiado com Bolsa de Pesquisa Criação e
Experimentação Artística do IAP.
Em Meu Mundo Teu Alexandre Sequeira desenvolve um trabalho
de convivência com dois adolescentes de Belém: Taiana, moradora
de uma periferia na área urbana, e Jeferson, morador de uma área
ribeirinha. Tendo a fotografia como pretexto, o artista media a relação
entre as identidades, individualidades e realidades experimentadas
pelos dois adolescentes – que só se conheceram ao final do projeto.
Visitando regularmente a ambos, na condição de instrutor de
fotografia, Alexandre Sequeira promove uma troca de cargas
simbólicas entre os dois: cartas, fotografias e imaginários. A forma de
vida que o artista assume e empreende, portanto, busca a construção
de comportamentos poéticos e singulares, apenas nos universos dessas
três pessoas (Alexandre, Taiana e Jeferson).

“Adote um Urubu”, Andrea Feijó, a partir de 2008


Andrea Feijó é natural de Juazeiro do Norte (CE), radicada
em Belém desde a infância. Artista atuante desde a década de 1990,
possui Mestrado em Artes pela UFPA (2011).
Há alguns anos Andréa Feijó vem realizando o projeto Adote
um Urubu, na ilha de Algodoal (Maiandeua) – uma área de proteção
ambiental no município de Maracanã, distante 180 quilômetros de
Belém. Em 02 de fevereiro de 2008 a artista realizou a primeira ação
que compõe o projeto, também chamada Adote um Urubu, e que
dialogava com questões ecoambientais, já que a ilha tem se tornado
Registros da ação Adote um urubu de Andréa Feijó, um local de intenso turismo. Tal ação consistiu em um processo
na ilha de Maiandeua, Maracanã, 2008.
performático dividido em várias etapas.
Fonte: imagens cedidas pela artista.
238 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 239

Como no período de férias escolares o fluxo turístico na cidade


é maior, também aumenta a quantidade de resíduos produzidos na
ilha, geralmente incinerados. O turismo por um lado possibilita
sustentabilidade para os moradores da ilha, mas por outro lado afeta
o meio ambiente. Andréa Feijó trabalhou estas relações de uma
forma bastante interessante, usando a arte para movimentar toda a
comunidade envolvida na ilha, naquele período. A artista descreve
Adote um Urubu nos seguintes termos:
Esta ação artística contou com uma logística que envolveu pessoas
da comunidade – crianças e adultos – na coleta de uma parte do lixo
reciclável produzido na ilha e que, comumente, tem a queima como
destino final. A coleta, feita em sacos pretos padronizados com a
imagem de um urubu na cor cinza, foi agenciada previamente com
alguns moradores/donos de estabelecimentos comerciais e veranistas.
Feita a coleta, os sacos foram instalados em um local de grande
circulação de pessoas e, posteriormente, retirado da ilha pelos próprios
visitantes, segundo uma intervenção performática da artista, que propôs
que as pessoas “adotassem” um pouco do lixo produzido em Algodoal,
levando consigo um saco de lixo reciclável. Lixo este, que poderia ser
correspondente ao produzido por eles próprios, durante sua estadia na
ilha. A ação “Adote...” resultou em um vídeo de mesmo nome, que foi
mostrado posteriormente no espaço público da vila de Algodoal.217
Em um primeiro momento, portanto, a artista mobiliza os
moradores da ilha a coletar o lixo produzido e descartado na ilha
naquele período, juntando-o em grandes sacos pretos com a marca
do Urubu. Posteriormente Andréa Feijó simula uma entrevista
jornalística com os visitantes que estão retornando para suas cidades,
incitando-os a “adotar” um daqueles sacos de lixo, como forma de
preservação ambiental do lugar. Vale salientar também a existência
da produção videográfica a partir da performance, que, antes de ser
217
Andrea Feijó, Projeto Adote Um Urubu: uma experiência estética na comunidade de Algodoal-
Maiandeua-Pará, nos Anais do V Fórum Bienal de Pesquisa em Artes (2010: Belém, PA): provocações-
Registro da intervenção Kuarup in memorian de Egon Pacheco, Santarém, 2012. transformações-revoltas, organização de Edison da Silva Farias e Lia Braga Vieira, Belém:
Fonte: imagem cedida por Egon Pacheco. PPGARTES/ICA/UFPA, 2010, páginas 691-692.
240 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 241

exposta em qualquer espaço convencional, foi exibida na própria ilha para a realização do mesmo. O espaço em questão é o galpão no qual
de Algodoal, para seus habitantes, numa perspectiva de arte inclusiva o IBAMA armazena madeira ilegal apreendida. Egon Pacheco usou
e participativa. estas toras de madeira ilegal para produzir sete gravuras em grandes
Adote um Urubu é um exemplo de territorialidade da arte dimensões (1,8 metro de largura por 5,0 metros de altura), com a
contemporânea que se estabelece na produção comportamental, impressão em tinta branca sobre tecido preto. As gravuras foram
influenciando atitudes – tanto da artista quanto das pessoas que a obra dispostas no galpão do IBAMA através de traves expositivas de 7
acaba envolvendo. É um processo que se desenvolve completamente metros de altura, que deixavam os sudários como flâmulas agitadas
imbuído de sentidos múltiplos (principalmente políticos e ecológicos) pelo vento.
e que busca uma atuação direta sobre determinada realidade social. Sudários possui sentidos ecológicos, políticos, sociais e poéticos
bastante evidentes, caracterizando-se como uma intervenção
naquele espaço, multiterritorializado pela arte contemporânea.
Ações de Egon Pacheco em Santarém, 2009 e 2012 Sobre a exposição de Egon Pacheco, afirma Marisa Mokarzel, no
Outro exemplo interessante que temos no Pará é o projeto catálogo Circuito das Artes 2009, que
Sudários, do artista paraense Egon Pacheco (nascido em Santarém, A estampagem passa a compartilhar o foco com outras linguagens: a
em 1982), realizado em novembro de 2009. A obra surge dentro performance ganha destaque, no momento em que a gravura intervém
em um lugar de trânsito, de passagem. Sem perder a condição de gravura
do processo de pesquisa do artista, contemplado em 2009 com a
envolve-se com sons e ruídos, deixa-se interagir com o movimento do
Bolsa de Pesquisa Experimentação e Criação Artística do IAP para vento, com o vai-e-vem de pessoas.
desenvolver o projeto Matrizes Urbanas. A regulamentação das O projeto Sudários foi documentado em um catálogo,
práticas artísticas, inseridas em um edital para disponibilização de contendo fotografias e textos explicativos, que integrou a exposição
verbas, não é necessariamente submissão ao mercado. Nem mesmo se Matrizes Urbanas, na Galeria Theodoro Braga, de 11 a 30 de
caracteriza um mercado, mas antes um patronato pós-mercado. Essa dezembro de 2009. Esta exposição compôs o Circuito das Artes
regulamentação funciona inegavelmente como reterritorialização 2009, apresentando os resultados das bolsas de pesquisa concedidas
destas práticas artísticas contemporâneas. E esta reterritorialização pelo IAP. Além do catálogo contendo a documentação de Sudários,
pode ser bastante pertinente e socialmente crítica, como vemos em outras xilogravuras produzidas a partir de madeira “urbana” foram
Sudários de Egon Pacheco. apresentadas. Posteriormente, uma gravura de Sudários – além de
Sudários foi realizado no município de Santarém, oeste do Pará. fotografias da intervenção em Santarém – integrou a exposição
Além da mediação institucional do IAP, o projeto também contou coletiva de gravadores paraenses Estampe Amazonienne, no Centre de
com o apoio do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Production em Estampe Engramme, localizado na cidade de Quebec
dos Recursos Naturais Renováveis) de Santarém, que cedeu o espaço (Canadá), de 29 de outubro a 12 de dezembro de 2010. Registros
242 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 243

do processo em vídeo também estiveram na exposição coletiva de


artistas paraenses Grafias, no Espaço Cultural Banco da Amazônia,
no fim de 2010 e início de 2011.
Já em 2012, Egon Pacheco desenvolveu o projeto Ressignificações
Tridimensionais de Símbolos do Sairé – Esculturas Efêmeras na Vila
de Alter do Chão, também contemplado com a Bolsa de Pesquisa
Experimentação e Criação Artística do IAP. O projeto buscou
dialogar com a simbologia do Sairé, festa popular de origens
católicas e indígenas que ocorre anualmente em Alter do Chão.
Proibido pela igreja católica na década de 1940, o Sairé foi retomado
pela comunidade local em 1973, adquirindo outras significações
que não somente a religiosa. Egon Pacheco desenvolveu quatro
intervenções escultóricas em Alter do Chão, na cidade de Santarém,
realizadas sempre em diálogo com os mestres do Sairé, moradores da
comunidade que fazem parte daquela cultura.
Uma das obras, denominada Florõespíritos, foi instalada nas
ruínas do falecido Museu do Índio (Centro de Preservação da Arte,
Cultura e Ciência Indígena). Era composta por nove estruturas de
tecido (com cores diferentes umas das outras), com cerca de dois
metros de altura cada, que pairavam imóveis no ar, por meio de fios.
Em Árvore da vida o artista faz de folhagens e galhos entrelaçados
um mastro obscuro, com cerca de sete metros de altura, fincado no
centro de um círculo negro feito de pedras de carvão. Essa estranha árvore
destaca-se no terreno descampado, e ganha ainda maior proporção por
emitir incansavelmente diversos sons: cantos de pássaros, crepitar de
fogueiras, zumbidos de motosserras, ladainhas e orações do Sairé... Tal
paisagem sonora e visual traz em si o senso agudo de denúncia, e se
Registro da ação Sudários de Egon Pacheco, Santarém, 2009. impõe como uma assombração no espaço comum.
Fonte: imagem cedida por Egon Pacheco.
244 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 245

Outra obra é Kuarup in memorian (que faz referência ao no Pará tem apresentado e possibilitado, tal qual exemplifiquei
importante e falecido artista santareno Mário Pinto Guimarães), neste capítulo, uma produção muito diversa em espaços não
montada em um cemitério, composta de 513 cilindros pintados convencionais, mas que muitas vezes já estão inseridos no discurso
manualmente por Egon Pacheco. Disposta no espaço de descanso sistematizado. Tais relações potencializam as multiterritorialidades,
dos mortos, a obra é simultaneamente experimento estético como espero que tenha ficado evidente.
multicolorido e visagem macabra que clama por valorização da
cultura e história da região.
Por fim, em Lanças o artista dispõe, na frente da Igreja de
Nossa Senhora da Saúde, nove lanças de madeira adornadas com
elementos e cores do Sairé. Esta igreja foi irradiadora da festa no
passado, símbolo de um poder político e religioso que se instaura e
domina os povos indígenas originários da região. As lanças de cerca
de dois metros e meio de altura despertam inúmeros sentidos ao se
associarem à imagem daquele templo e fortaleza.
As ações propostas pelo artista causaram tamanho impacto
na comunidade, mobilizando imaginários e irritando feridas ainda
abertas, que o artista foi convidado a falar a respeito de seus trabalhos
em uma rádio comunitária local. É justamente nesse ponto que
indico a produção artística de Egon Pacheco como forma de vida,
ou como estética da existência.
Tanto em Sudários quanto nas ações do projeto Ressignificações
Tridimensionais de Símbolos do Sairé o artista usa de sua produção
artística para promover debates e questionamentos amplos, que
mobilizam a comunidade onde se inserem e refletem uma postura
que é, antes de tudo, preocupada com a conscientização crítica
das pessoas, e com a produção de comportamentos, mais que de
objetos de arte.
Tal produção se encaixa no conceito de multiterritorialidade
discutido ao longo deste ensaio. O sistema da arte contemporânea
246 247

CONSIDERAÇÕES
FINAIS

Registro da intervenção Árvore da vida de Egon Pacheco, Santarém, 2012.


Fonte: imagem cedida por Egon Pacheco.
248 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 249

O conceito central que norteou este ensaio é o de Os espaços que são ocupados pela arte contemporânea (além dos
multiterritorialidade, que expressa uma multiplicidade de usos e espaços convencionais) foram categorizados, neste ensaio, em três eixos
funcionalidades sobrepostas em territórios flexibilizados pela sua interpenetráveis: o espaço geográfico, em que se localizam as práticas
constituição em redes. A arte contemporânea, por ser um sistema social artísticas efetuadas na urbe ou em locais ermos; o espaço virtual, em que
estruturado em redes, condiciona a constituição de múltiplos territórios. as práticas são constituídas enquanto existentes total ou parcialmente
Nesta perspectiva, atentei para a produção artística que se estrutura na constituição do ciberespaço (que não se restringe à internet); e o
durante o século 20, analisando a consolidação de práticas e linguagens espaço biológico, que é usado por práticas que se dão somente na
que utilizam espaços diferenciados, não convencionais (em geral com o experimentação do próprio organismo (humano ou não humano).
intuito mesmo de negar o museu e a galeria tradicionais). Essa produção, Este ensaio também levanta a hipótese de que a reterritorialização
que tem suas raízes nas vanguardas históricas do início do século 20 e se da arte acarretou suas multiterritorialidades, através de mecanismos
desenvolve plenamente a partir da década de 1960, possui, geralmente, e dispositivos das instituições que agem nos sistemas da arte
a intenção de desterritorializar a arte, subvertendo suas qualidades de contemporânea. Por meio de uma vasta exemplificação, procuro
mercadoria elitista e dissolvendo-a na vida. Como pude constatar, a demonstrar os procedimentos postos em prática atualmente. A
desterritorialização foi (ou é) uma ideia utópica. Os flexíveis sistemas de intermidialidade é um destes procedimentos de reterritorialização, que
produção de poder simbólico da arte foram capazes, em pouco tempo, consiste na transposição midiática de uma obra em outra, como, por
de assimilar tais práticas ao seu próprio discurso. Se segue, portanto, exemplo, a transposição de uma performance em uma série fotográfica.
àquela desterritorialização, uma consequente reterritorialização por Há implicações evidentes neste movimento de intermidialidade, já
meio de inúmeros dispositivos e mecanismos que inserem as práticas que são construídas outras obras, geralmente sob outro paradigma.
realizadas em outros espaços dentro dos sistemas da arte. As formas que as instituições têm encontrado para lidar com a
Porém, a reterritorialização efetuada não é a simples transferência intermidialidade nas exposições que promovem são muito diversas.
da produção artística de dentro dos museus e galerias para espaços Ainda assim, muitos exemplos de intermidialidade são pertinentes,
diferenciados. Os espaços expositivos convencionais continuam quando não atuam somente espetacularizando as práticas artísticas,
validados na arte contemporânea, e têm sido alvo de inúmeros estudos mas possibilitam camadas de sentido que não estavam presentes nas
e desdobramentos visando proporcionar novos usos para estes espaços práticas primeiras.
formais. Havendo, portanto, a coexistência de inúmeros espaços Outro mecanismo de reterritorialização e multiterritorialização
legítimos para a arte, a reterritorialização da mesma se dá na forma de da arte contemporânea é a regulamentação das práticas, através de
múltiplas territorialidades. Atualmente, por exemplo, coexistem em procedimentos institucionais. A criação de leis de incentivo fiscal
harmonia, dentro do conceito de arte contemporânea, práticas tão governamental, editais de bolsas de pesquisa da iniciativa pública e
distintas como a performance, a fotografia, o vídeo-arte, a ciberarte, a da iniciativa empresarial, a abertura de espaço nos eventos artísticos
bioart, a pintura, a arte pública, dentre inúmeras outras. para as práticas tidas por desterritorializantes, e, inclusive, a criação
250 GIL VIEIRA COSTA ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 251

de eventos voltados exclusivamente para estas linguagens, são resultado positivo, na mediação das múltiplas territorialidades da
indícios que testemunham a regulamentação da arte contemporânea. arte contemporânea.
Tal regulamentação não é em si prejudicial. No caso do estado do Assim, é necessário perceber as multiterritorialidades para que se
Pará, a regulamentação serve, inclusive, para manter uma produção verifique a importância de utilizar tais espaços de uma forma crítica
consistente de arte contemporânea, já que não há mercado de arte e responsável. Responsabilidade que não implica moral, mas antes
que dê sustentabilidade para os artistas da região. implica a intenção (por parte dos agentes sociais do sistema da arte)
As instituições culturais emergem, então, como as grandes de tornar as práticas artísticas pertinentes nestes espaços, tanto para
mantenedoras de multiterritorialidades na arte contemporânea no os detentores de conhecimento especializado quanto para os leigos.
Pará – além dos artistas, é claro. Possibilitar a multiterritorialidade, Considerando que estes espaços não convencionais muitas
porém, não significa torná-la acessível (decodificável) ao grande vezes são usados por diferenciados grupos sociais, consequentemente
público, ainda que se coloque a prática artística diretamente em os mesmos são atravessados por múltiplas funcionalidades e
contato com o mesmo. Um dos apontamentos deste ensaio, portanto, subjetividades distintas. Ao serem inseridas práticas artísticas nestes
indica que as instituições também devem se responsabilizar por espaços de territorialidades sobrepostas, o mais propício é que sejam
tornar as práticas artísticas multiterritorializadas efetivamente priorizados processos polifônicos, polissêmicos, abertos e inter-ativos.
apreensíveis para o público em geral, usando, para isso, medidas e (que possibilitem contato e fluxo de ações entre os diversos públicos)
ações educacionais. A arte/educação aparece como aliada direta na – já que o contrário implicaria em processos excludentes. Exclusão no
formação de um público de arte mais amplo, e deve ser possibilitada e sentido de utilizar um espaço para a arte sem dar à mesma a devida
mantida pelas instituições, tanto quanto as próprias práticas artísticas. pertinência diante dos grupos sociais que fazem uso deste espaço.
Algumas questões intrigantes pululam neste ensaio. Vamos a elas. E exclusão no sentido de não possibilitar acessibilidade cultural a
Urge que se estudem as subjetividades envolvidas nas práticas estas práticas artísticas contemporâneas, ainda que se possibilite a
contemporâneas em espaços não convencionais. Qual o sentido da acessibilidade material.
arte para o público leigo que é posto em contato direto com as práticas As multiterritorialidades na arte contemporânea, mesmo que já
nestes espaços? estabelecidas, podem representar tanto a democratização e a eliminação
Outra questão é a verificação de novos processos curatoriais e do fetichismo que envolve as práticas artísticas (ou seja, a gradual
expositivos, levando em consideração os novos espaços utilizados, e as imersão da arte em outras esferas da existência humana), quanto
implicações destes novos tratamentos curatoriais e expositivos para as podem representar a colonização de outros espaços pelo sistema da
práticas artísticas, para os artistas, para o público, para as instituições etc. arte (tal qual já faz a publicidade), em uma relação assimétrica na qual
Há ainda a questão educacional, que é de salutar importância, a arte usa o espaço, mas não se deixa usar (decodificar e depreender)
principalmente no contexto paraense: é preciso que se analisem pelos grupos sociais com os quais se coloca em contato. Tudo
consistentemente as práticas arte/educativas que têm dado dependerá do uso que destinaremos para essas multiterritorialidades.
ESPAÇOS EM TRÂNSITO | MÚLTIPLAS TERRITORIALIDADES DA ARTE CONTEMPORÂNEA PARAENSE 253

Bibliografia e fontes consultadas


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SANTAELLA, Lúcia. As artes do corpo biocibernético. In: Quanto àquela pesquisa de Mestrado em Artes que originou este
DOMINGUES, Diana (org.) Arte e vida no século XXI: tecnologia, livro, agradeço à professora Valzeli Figueira Sampaio, que orientou a
ciência e criatividade. São Paulo: UNESP, 2003. mesma; aos professores do Programa de Pós-Graduação em Artes da
SMIERS, Joost. Artes sob pressão: promovendo a diversidade cultural na Universidade Federal do Pará: Afonso Medeiros (sempre prestativo),
era da globalização. Tradução de Adelina França. São Paulo: Escrituras Cesário Pimentel, Edison Farias, Luizan Pinheiro, Orlando Maneschy
Editora; Instituto Pensarte, 2006. e Ubiraélcio Malheiros, pelas aulas bastante fecundas; aos professores
SMITHSON, Robert. Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson Marisa Mokarzel (Universidade da Amazônia) e Orlando Maneschy
[originalmente publicado em 1970]. In: COTRIM, Cecília; pelas sugestões e orientações a respeito da pesquisa, durante o exame
FERREIRA, Glória (seleção e comentários). Escritos de artistas: anos de qualificação e participação na banca examinadora; meu agradeci-
60/70. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. mento a duas funcionárias do Instituto de Ciências da Arte da UFPA,
SOBRAL, Acácio. Momentos iniciais do abstracionismo no Pará. Belém: Ailana Guta Vieira e Wânia Oliveira Contente, pelo esforço e presteza
Instituto de Artes do Pará, 2002. que dedicaram à turma pioneira da qual fiz parte; e, especialmente, aos
SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. Tradução de Luiz artistas que se dispuseram a contribuir, meus cordiais agradecimentos
Carlos Daher, Adélia Bezerra de Meneses e Beatriz A. Cannabrava. 4ª pelas informações e tempo dedicado.
ed. São Paulo: Nobel, 1991. Quanto ao processo de revisão e ampliação daquele texto inicial,
THORNTON, Sarah. Sete dias no mundo da arte: bastidores, tramas assim como a transformação deste texto em livro, objeto palpável, agra-
e intrigas de um mercado milionário. Tradução de Alexandre Martins. deço imensamente: aos amigos Adriele Silva e João Cirilo, pelas refle-
Rio de Janeiro: Agir, 2010. xões, informações e documentos concedidos, e especialmente a Ilton
TOTA, Anna Lisa. A sociologia da arte: do museu tradicional à arte Ribeiro, por ter sido uma voz fundamental no decorrer destes processos,
multimídia. Tradução de Isabel Teresa Santos. Lisboa: Editorial além de também ter prefaciado este livro; ao editor gráfico José Antônio
Estampa, 2000. e ao Instituto de Artes do Pará, pelos diálogos estabelecidos durante o
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de processo de editoração; e a Natacha Barros, pelas sugestões atenciosas e
Oliveira. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992. compreensivas. Também agradeço aos artistas que me cederam as ima-
gens que enriquecem estas páginas: aos (geograficamente) distantes mas
sempre solícitos amigos Egon Pacheco e Lúcia Gomes; aos estimados
amigos e colegas de trabalho Andréa Feijó e Carla Evanovitch (Fun-
262 GIL VIEIRA COSTA

dação Curro Velho), Bárbara Freire e Jaime Barradas (Escola Superior Obras contempladas pelo Prêmio IAP
Madre Celeste); e aos caríssimos Armando Queiroz, Bruno Cantuária, de Artes Literárias (2011 a 2013)
Cledyr Pinheiro, Dany Meireles, Fernando de Pádua, Luciana Magno,
Margalho, Paula Sampaio, Ricardo Macêdo, Roberta Carvalho e Rosá- 2011
rio Lima. Muito obrigado! Crisálida (poesia) – Eliane Pereira Machado Soares
I nome nada (poesia) – Harley Farias Dolzane
Ave Eva (conto) – Daniel da Rocha Leite
Minha família, Almira, Gilvaldo, Hellen, Jéssica e Ryan, pilares em A festa dos mortos (conto) – João Loureiro Junior
que tenho me sustentado desde sempre. Amazônia, cidade e cinema em “Um dia qualquer” e “Ver-o-Peso”
Ionaldo, Jack, Pablo e Ruli, amigos de ideias e almoços muitas vezes (ensaio) – Relivaldo Pinho de Oliveira
indigestos, mas sempre vívidos e provocativos. Os vândalos do apocalipse (ensaio) – Aldrin Moura de Figueiredo
E para Natacha, companheira na vida e na nossa curta, mas in- 666 – o tragicômico percurso (romance) – João Bosco Maia da Silva
tensa, caminhadura. Senhora de todos os passos (romance) – Carlos Correia Santos

2012
O estrangeiro e outros andarilhos (conto)
– Ramon Cardeal
Gaiolas e pássaros (conto) – José Aremilton de Oliveira
Memórias cênicas: poéticas teatrais na cidade de Belém
(1957-1990) (memorialística) – Denis Bezerra
Voo noturno: memória da aviação nos garimpos do Baixo
Amazonas (memorialística) – Wilson Pereira da Silva
O Pajé: literatura, naturalismo e história no Pará do século XIX
(ensaio) – Maurel Ferreira Barbosa
O moderno em aberto: os mundos das artes em Belém do Pará na
primeira metade do século XX (ensaio) – Caroline Fernandes Silva
Ana Jansen: o fantasma mais famoso do Maranhão
(literatura infantojuvenil) – Cíntia Imbiriba
Marcelino no tempo de suas verdades (literatura infantojuvenil)
– Maciste Costa (pseudônimo)
2013
Fantasilhoso (conto) – Franciorlis Viana
Quando dançam as cores (conto) – Patrícia Rameiro
Breve é a febre da terra (romance) – Vicente Cecim
Iracundo (romance) – Marcelo Damaso
Frutos diáfanos (poesia) – Alfredo Garcia Bragança (pseudônimo)
Salomão pela janela (literatura infantojuvenil) – Anselmo Gomes
Entre pais e lhos (literatura infantojuvenil) – José Antonio Neto
Golpe, contragolpes e guerrilhas: o Pará e a ditadura militar
(livro-reportagem) – Ismael Machado
Gladiadores de escassa musculatura: sociabilidade, literatura e
responsabilidade intelectual na Amazônia (ensaio)
– Luiz Augusto Pinheiro Leal
Espaços em trânsito: múltiplas territorialidades da arte
contemporânea paraense (ensaio) – Gil Vieira Costa
Enquanto eu me lembro (memorialística) – Emir Bemerguy

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