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O VENTO UIVAVA. RELÂMPAGOS açoitavam a terra ao acaso, como um assassino
pouco eficiente. Trovões vibravam nos montes escuros, castigados pela chuva.
A noite estava tão escura quanto o interior de um gato. Era o tipo de noite em que os
deuses conduziam os homens como se eles fossem peões no tabuleiro do xadrez do destino. No
meio da tempestade, uma fogueira ardia entre galhos de tojo molhados, feito a loucura nos olhos
de uma doninha. O fogo iluminava três vultos curvados. O caldeirão borbulhava quando uma
voz funesta perguntou:
- Quando nos veremos novamente?
Houve uma pausa. Por fim, num tom bem mais ordinário, outra voz respondeu:
- Terça-feira seria ótimo para mim.
Nas profundezas abissais do espaço, a tartaruga estelar Grande A'Tuin avança, trazendo
em sua carapaça os quatro elefantes gigantescos que carregam no lombo o Discworld. A Lua e o
Sol minúsculos giram ao redor dela numa órbita complicada, a fim de produzir as estações. E
provavelmente em nenhum outro lugar do multiverso seja necessário que um elefante às vezes
erga a pata para deixar o Sol passar.
Talvez nunca se saiba por que isso acontece. Pode ser que o Criador do universo tenha se
entediado com o processo habitual de inclinação axial, albedos e velocidades rotacionais, e tenha
decidido se divertir um pouco.
Talvez seja seguro afirmar que os deuses de um mundo como esse certamente não
gostam de jogar xadrez, e de fato este é o caso. Alias, deus de lugar nenhum joga xadrez. Os
deuses não têm imaginação. Preferem jogos mais simples e violentos, nos quais Não se Alcança a
Transcendência e Vai-se Direto ao Esquecimento. Uma chave para o entendimento de todas as
religiões é saber que a idéia de diversão dos deuses são Cobras e Escadas com degraus
escorregadios.
A magia sustenta o Discworld - magia gerada pela rotação do próprio mundo, magia
arrancada como seda da estrutura fundamental da existência para suturar as feridas da realidade.
Boa concentração dela encontra-se nas Montanhas Ramtops, que se estendem desde as
terras geladas do Centro, passando por um longo arquipélago, até os mares quentes a fluir
incessantemente para o espaço através da Borda.
A magia em estado bruto crepita nos picos e se infiltra nas montanhas. São as Ramtops
que dão ao mundo a maioria de suas bruxas e de seus magos. Nas Ramtops, as folhas das árvores
mexem mesmo quando não venta. As pedras passeiam à noite.
Até a terra, às vezes, parece viva...
Às vezes, o céu também.
A tempestade estava realmente dando tudo de si. Aquela era a sua grande oportunidade.
Passara anos ameaçando cidades, criando rajadas, juntando experiência, fazendo contatos, de vez
em quando avançando sobre pastores inocentes ou fulminando carvalhos pequenos. Agora, uma
brecha no tempo lhe dera a oportunidade de se mostrar, e ela desempenhava seu grande papel na
esperança de ser descoberta por um clima poderoso.
Era uma ótima tempestade. Havia muita projeção e paixão intrínsecas, e todos os críticos
concordavam que, se ela aprendesse a controlar os trovões, em poucos anos seria uma
tempestade digna de nota.
As florestas ecoavam aplausos, cheias de névoa e folhas voadoras.
Como já foi dito, em noites assim os deuses jogam com o destino dos mortais e com o
trono de reis. E importante lembrar que sempre trapaceiam, até o fim...
E uma carruagem vinha pela estrada acidentada da floresta, sacolejando terrivelmente
quando as rodas batiam nas raízes das árvores. O cocheiro açoitava os animais, e o estalo
desesperado do chicote oferecia o contraponto perfeito aos estalos da tempestade.
Atrás - pouco atrás, e aproximando-se cada vez mais -, havia três cavaleiros encapuzados.
Em noites assim, más ações são cometidas. Boas ações também, é claro. Mas
principalmente as más.
Em noites assim, as bruxas estão à solta.
Bem, não exatamente a solta. Elas ainda se sentiam presas a algumas obrigações. Mas
havia uma lua cheia entre as nuvens fofas, e a brisa enchia-se de sussurros e sinais de mágica.
Na clareira da floresta, as bruxas conversavam assim:
- Vou tomar conta do caçula do nosso Jason na terça-feira - disse a que não tinha chapéu,
mas uma maçaroca de cachos brancos tão grossos que parecia capacete. - Posso vir na sexta-feira.
Depressa com o chá, querida. Estou seca.
A mais nova do trio soltou um suspiro e pôs um pouco da água fervente do caldeirão no
bule.
A terceira bruxa afagou-lhe a mão com ternura.
- Você falou muito bem - avaliou. - Só precisa treinar um pouco mais os gritos. Não é,
Tia Ogg?
- Achei os gritos satisfatórios - respondeu rapidamente Tia Ogg. - E já vi que Dona
Lamória, quedescanseempaz, ajudou muito com o olhar.
- É um ótimo olhar - concordou Vovó Cera do Tempo.
A bruxa mais nova, que se chamava Margrete Alho, sentiu-se consideravelmente mais
relaxada. Tinha Vovó Cera do Tempo em alta estima. Era fato conhecido por todas as
Montanhas Ramtops que a senhora Cera do Tempo não gostava muito de nada. Se ela estava
dizendo que aquele era um bom olhar, então os olhos de Margrete provavelmente conseguiam
fitar até suas próprias narinas.
Ao contrário dos magos, que adoram uma boa e complicada hierarquia, as bruxas não se
interessam tanto por uma elaboração bem estruturada do plano de carreira. Cabe a cada bruxa
escolher uma menina a quem transmitir seu lugar quando morrer. As bruxas não são gregárias
por natureza - pelo menos, não com outras bruxas -, e certamente não possuem líderes.
Vovó Cera do Tempo era a mais respeitada das líderes que elas não possuíam.
As mãos de Margrete tremiam um pouco ao preparar o chá. Obviamente, era tudo muito
gratificante, mas também dava um pouco nos nervos começar a vida profissional como bruxa de
aldeia entre Vovó e, do outro lado da floresta, Tia Ogg. Fora idéia dela fazer um sabá local.
Achava que era mais... oculto. Para sua surpresa, as outras duas haviam concordado, ou, ao
menos, não tinham discordado muito.
- Sabiá? - perguntara Tia Ogg. - Como é que a gente faria um sabiá?
- Ela quer dizer sabá, Gytha - explicara Vovó Cera do Tempo. - Como nos velhos
tempos. Uma reunião.
- Arrasta-pé? - perguntara novamente Tia Ogg, cheia de esperança.
- Sem dança - avisara Vovó. - Não suporto dança. Nem cantoria ou animação, nem nada
dessa bobagem de ungüentos e tal.
- Sair faz bem - dissera Tia Ogg, com alegria.
Margrete se decepcionou com a inadmissão de dança e ficou aliviada por não ter
proposto uma ou duas outras idéias que estivera ruminando. Vasculhou o pacote que tinha
levado consigo. Era seu primeiro sabá, e ela estava determinada a fazê-lo como convinha.
- Alguém quer bolo? - perguntou.
Vovó estudou bem o doce antes de comer. Margrete havia criado desenhos de morcego
nele. Os animais tinham olhinhos feitos de passas.
* * *
A carruagem avançou pela floresta, andou em duas rodas por alguns segundos, ao bater
numa pedra endireitou-se contrariando todas as leis do equilíbrio e seguiu adiante. Mas agora
andava mais devagar. O aclive a retardava.
O cocheiro, sentado ereto, como é de praxe, tirou o cabelo dos olhos e mirou as trevas.
Ninguém morava ali, no alto das Ramtops, mas havia luz adiante. Por tudo o que existe de mais
misericordioso em qualquer mundo, havia luz adiante.
Uma flecha atingiu o teto da carruagem.
Enquanto isso, o rei Verence, monarca de Lancre, fazia uma descoberta.
Como a maioria das pessoas - pelo menos a maioria das pessoas com menos de sessenta
anos -, Verence nunca havia pensado muito no que acontece depois da morte. Como a maioria
das pessoas, desde a aurora dos tempos, imaginava que, de algum modo, no fim tudo se
arranjaria.
E, como a maioria das pessoas, desde a aurora dos tempos, estava agora morto.
Na verdade, estava caído ao pé de uma das escadas do Castelo de Lancre, com um punhal
nas costas.
Sentou-se e ficou surpreso ao ver que, embora alguém que ele estava bastante propenso a
achar que fosse ele mesmo se encontrasse sentado, alguma coisa muito parecida com seu corpo
continuava estirada no chão.
Aliás, aquele era um excelente corpo, agora que o via de fora pela primeira vez. O rei
sempre fora muito ligado a ele, apesar de parecer que não era mais o caso.
O corpo era grande e musculoso. Verence havia cuidado bem dele. Deixara crescer um
bigode e cultivara cabelos longos. Garantira que o corpo fizesse muitos exercícios saudáveis e
ingerisse bastante carne vermelha. Agora, justamente quando um corpo seria útil, a carcaça o
deixava pra trás. Ou pra fora.
Além do mais, o rei tinha que se entender com o vulto alto e magro, parado a seu lado. A
maior parte dele se encontrava oculta num manto negro com capuz, mas o braço que se estendia
das dobras do tecido para segurar uma grande foice era feito de osso.
Quando se está morto, há coisas que são reconhecidas de imediato.
- Olá.
Verence se pôs de pé, ou melhor, teria se colocado de pé se a parte dele para a qual a
palavra “pé” era apropriada não continuasse caída no chão, encarando um futuro para o qual
apenas a palavra “pó” seria correta.
- Saiba que sou rei - disse.
- ERA, VOSSA MAJESTADE.
- O quê? - indignou-se Verence.
- EU DISSE “ERA”. ISSO SE CHAMA PRETÉRITO IMPERFEITO. VOCÊ LOGO
SE ACOSTUMA.
O vulto alto tamborilou os dedos calcários no punho da foice. Estava claramente
chateado com alguma coisa.
Se é essa a questão, pensou Verence, eu também estou. Mas os muitos sinais disponíveis
nas circunstâncias daquele momento atravessavam até a estupidez que compunha a maior parte
de sua personalidade, e lhe ocorria que, qualquer que fosse o reinado em que agora se encontrava,
ele não era o rei.
- Colega, você é o Morte? - arriscou.
- TENHO MUITOS NOMES.
- Qual está usando no momento? - indagou Verence, com um pouco mais de respeito.
Tinha pessoas correndo ao redor deles. Muitas pessoas corriam através deles, como
fantasmas.
- Ah, então foi Felmet - acrescentou o rei, vagamente, olhando para o homem que sorria
com alegria obscena no alto da escada. - Meu pai me avisou que nunca deveria deixá-lo chegar
perto. Por que não sinto raiva?
- GLÂNDULAS - respondeu a Morte. - ADRENALINA. E EMOÇÕES. VOCÊ NÃO
TEM NADA DISSO. TUDO O QUE TEM SÃO PENSAMENTOS.
O vulto alto pareceu chegar a uma decisão.
- ISSO É MUITO IRREGULAR - prosseguiu, aparentemente para si mesmo. - POR
OUTRO LADO, QUEM SOU EU PARA DISCUTIR?
- Realmente.
- O QUÊ?
- Eu disse “realmente”.
- CALE A BOCA.
Morte inclinou a cabeça, como se ouvisse alguma voz interior. Quando o capuz
escorregou, o rei morto notou que Morte parecia um esqueleto lustrado em todos os aspectos,
menos um: as órbitas oculares brilhavam em tom azul-celeste. Verence, porém, não ficou com
medo; não apenas porque é difícil ter medo de alguma coisa quando as partes necessárias para
sentir medo estão esfriando a alguns metros de distância, mas porque ele jamais sentira medo na
vida, e não era agora que iria começar. Isso, em parte, se devia ao fato de ele não ter imaginação,
mas Verence também era um dos poucos indivíduos que se concentram totalmente no tempo
presente.
A maioria das pessoas não é assim. Elas levam a vida como uma espécie de névoa
temporal em torno do ponto em que seus corpos de fato estão - antecipando o futuro ou
deixando-se prender ao passado. Em geral, encontram-se tão ocupadas em pensar no que vem a
seguir que só descobrem o que está acontecendo no momento presente quando se lembram
disso. A maioria das pessoas é assim. Aprende a ter medo porque no fundo sabe o que vem a
seguir. De algum modo, aquilo já está acontecendo para elas.
Mas Verence sempre vivera apenas o presente. Pelo menos, até então.
Morte suspirou.
- IMAGINO QUE NINGUÉM TENHA DITO NADA PARA VOCÊ - disse.
- O quê?
- NENHUMA PREMONIÇÃO? SONHOS ESTRANHOS? ADIVINHOS MALUCOS
GRITANDO PARA VOCÊ NA RUA?
- Sobre o quê? Morrer?
- IMAGINO QUE NÃO. SERIA ESPERAR DEMAIS - reclamou Morte. - SEMPRE
DEIXAM TUDO PARA MIM.
- Quem? - perguntou Verence, espantado.
- DESTINO. SINA. TODO MUNDO.
Morte pôs a mão no ombro do rei.
- A QUESTÃO É QUE VOCÊ DEVE VIRAR FANTASMA.
- Ah.
Verence olhou o próprio... corpo, que parecia sólido o bastante. Então, alguém passou
andando através dele.
- NÃO SE DEIXE ABATER.
O rei viu o cadáver ser reverentemente carregado para fora da sala.
- Vou tentar.
- BOM RAPAZ.
- Mas acho que não vou entrar nessa de lençóis brancos e correntes - advertiu ele. -
Tenho de andar por aí aos gritos e gemidos?
Morte encolheu os ombros.
- VOCÊ QUER? - perguntou.
- Não.
- ENTÃO EU NÃO ME INCOMODARIA COM ISSO, SE FOSSE VOCÊ.
Morte tirou uma ampulheta do manto negro e estudou-a com atenção.
- E AGORA PRECISO IR ANDANDO - disse.
Deu meia-volta, botou a foice sobre o ombro e começou a sair da sala pela parede.
- Ei! Espere aí! - gritou Verence, correndo atrás dele.
Morte não olhou para trás. Verence seguiu-o pela parede; era como andar pela neblina.
- É só isso? - perguntou. - Quer dizer, por quanto tempo serei fantasma? Por que virei
fantasma? Você não pode me deixar assim.
Ele se deteve, erguendo um dedo autoritário e ligeiramente transparente.
- Pare! Estou mandando!
Desalentado, Morte balançou a cabeça e avançou para a parede seguinte. O rei correu
atrás dele sem resignação e encontrou Morte mexendo nas cilhas de um grande cavalo branco
parado no alto da muralha do castelo. O animal usava uma cevadeira.
- Você não pode me deixar assim! - repetiu Verence, diante das evidências.
Morte se virou para ele.
- POSSO, SIM - afirmou. - VOCÊ NÃO ESTÁ MORTO. OS FANTASMAS VIVEM
NUM MUNDO PRÓPRIO, ENTRE OS VIVOS E OS MORTOS. NÃO É DE MINHA
RESPONSABILIDADE.
Ele deu tapinhas no ombro do rei.
- NÃO SE PREOCUPE - acrescentou. - NÃO VAI SER PARA SEMPRE.
- Que bom.
- TALVEZ PAREÇA QUE É PARA SEMPRE.
- Quanto tempo vai durar?
- ATÉ VOCÊ COMPLETAR SEU DESTINO, IMAGINO.
- E como vou saber qual é o meu destino? - perguntou o rei, em desespero.
- NÃO SEI. SINTO MUITO.
- Como posso descobrir?
- GERALMENTE, ESSAS COISAS ACABAM FICANDO ÓBVIAS - considerou
Morte, e subiu na sela.
- E até lá tenho de assombrar este lugar - murmurou o rei Verence, correndo os olhos
pelas ameias. - Sozinho, eu suponho. Ninguém vai me ver?
- AH, QUEM TEM DISPOSIÇÃO MEDIÚNICA. PARENTES PRÓXIMOS. E
GATOS, É CLARO.
- Eu detesto gatos.
A fisionomia de Morte ficou um pouco mais dura, como se isso fosse possível. Por um
instante, o brilho azul das órbitas oculares deu lugar a tons avermelhados.
- SEI - disse ele. A entonação sugeria que Morte era bom demais com quem detestava
gatos. - IMAGINO QUE VOCÊ GOSTE DAQUELES CACHORROS GRANDÕES.
- Para dizer a verdade, gosto.
O rei olhou com tristeza para a alvorada. Seus cães. Sentiria saudade deles. E aquele
parecia um dia excelente para caçar.
Ponderou se fantasmas caçavam. Era quase certo que não, concluiu. Nem comiam ou
bebiam, e isso era terrível. Ele adorava um belo banquete e já tinha tragado1 muitos litros de
cerveja boa. De cerveja ruim também, se a questão era essa. Em geral, não conseguia perceber a
diferença até a manhã seguinte.
Ele chutou uma pedra e notou que o pé a atravessava. Nada de caça, bebida, festa, farra...
Agora lhe ocorria que os prazeres da carne eram bem difíceis sem a carne. De repente, não valia a
pena viver. O fato de que ele já não vivia não adiantou nada para animá-lo.
- TEM GENTE QUE GOSTA DE SER FANTASMA - observou Morte.
- Hum? - disse Verence, melancólico.
- NÃO É TÃO TERRÍVEL ASSIM. VOCÊS PODEM VER OS DESCENDENTES
ENVELHECEREM. QUE FOI? ALGUM PROBLEMA?
Mas Verence havia sumido na parede.
- NÃO SE INCOMODE COMIGO - disse Morte, irritado.
Ele correu ao redor olhos que viam através do tempo, do espaço e da alma dos homens, e
avistou um deslizamento de terra em Klatch, um furacão em Howandalândia e uma praga em
Hergen.
- MUITO TRABALHO - murmurou, incitando o cavalo para o céu.
Verence avançou pelas paredes do castelo. Os pés mal tocavam o chão - de fato, a
irregularidade do chão significava que às vezes não tocavam mesmo.
Como rei, estava acostumado a tratar os empregados como se não estivessem ali, e correr
por eles como fantasma. Era quase a mesma coisa. A única diferença era que eles não desviavam.
Verence alcançou o quarto do filho, viu a porta quebrada, os lençóis arrancados...
Ouviu o ruído de patas. Chegou à janela, viu seu próprio cavalo passar a toda velocidade
pelo portão aberto, puxando a carruagem. Alguns segundos mais tarde, três cavaleiros o
seguiram. O barulho dos cascos ecoou por um instante no chão de pedras e se extinguiu.
O rei esmurrou o peitoril, fazendo o punho entrar vários centímetros na pedra.
Depois saltou para fora, desprezando a altura, e meio que voou, meio que correu pelo
jardim até o estábulo.
Levou meros vinte segundos para descobrir que entre as muitas coisas que um fantasma
não pode fazer estava o ato de montar a cavalo. Até conseguiu subir na sela, ou pelo menos
montar o ar logo acima dela, mas quando o cavalo finalmente fugiu, apavorado com as coisas
misteriosas que vinham acontecendo pouco atrás de seus ouvidos, Verence se pegou montado
em um metro e meio de ar fresco.
Tentou correr e chegou até o portão, mas a atmosfera começou a ficar espessa como
alcatrão.
- É proibido - anunciou uma voz triste e envelhecida atrás dele. - Você tem de ficar onde
morreu. Assombrar é isso. Vai por mim. Eu sei.
Vovó Cera do Tempo se deteve com o segundo pedaço de bolo a caminho da boca.
- Tem alguma coisa por perto - sussurrou.
- Você sabe disso pelo formigamento dos dedos? - perguntou Margrete, seriamente.
Margrete havia aprendido nos livros muito sobre bruxaria.
- Pelo formigamento dos ouvidos - respondeu Vovó.
Ela ergueu as sobrancelhas para Tia Ogg. A boa e velha Dona Lamória fora uma bruxa
excelente a seu modo, mas muito imaginosa. Flores e idéias românticas demais.
De quando em quando, os relâmpagos mostravam o campo estendendo-se até a floresta,
mas a chuva sobre a terra quente de verão tinha enchido o ar de espectros de névoa.
- Cavalos? - admirou-se Tia Ogg. - Ninguém viria aqui a essa hora da noite!
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Tragar é como beber, mas derrama-se mais.
Hesitante, Margrete correu os olhos ao redor. Aqui e ali havia pedras imensas, cuja
origem perdia-se no tempo. Dizia-se que tinham vida própria e itinerante. Ela estremeceu.
- Há alguma coisa a temer? - conseguiu perguntar.
- Nós - respondeu Vovó Cera do Tempo, presunçosa.
O ruído de patas ficou mais próximo e desacelerou. A carruagem surgiu entre os galhos
de tojo, com os cavalos presos aos arreios. O cocheiro saltou, correu até a porta, tirou uma
trouxa grande do interior do veículo e disparou em direção ao trio.
Estava no meio do campo molhado quando parou e fitou Vovó Cera do Tempo com
expressão de horror.
- Está tudo bem - sussurrou ela, e o sussurro atravessou o rugido da tempestade com a
clareza de um sino.
Vovó deu alguns passos adiante, e um relâmpago providencial permitiu-lhe ver os olhos
do homem. Eles possuíam o foco peculiar que os Sábios reconhecem ser os de alguém que já não
olhava para nada deste mundo.
Num último movimento brusco, depositou a trouxa nos braços de Vovó e caiu para
frente, com as penas de uma seta de balista projetando-se de suas costas.
Três vultos surgiram a luz da fogueira. Vovó fitou outro par de olhos, frios como as
ladeiras do Inferno.
O homem jogou a balista no chão. Divisou-se o brilho de armadura sob o manto
molhado quando ele sacou a espada.
O sujeito não ergueu a arma. Aqueles olhos que não desgrudavam do rosto de Vovó não
eram olhos de quem se incomoda em erguer algo. Eram olhos de quem sabe exatamente a função
prática da espada. Ele estendeu a mão.
- Passe para mim - ordenou.
Vovó afastou as pontas da manta que tinha nos braços e viu o rostinho envolto em sono.
Ergueu a cabeça.
- Não - disse, resoluta.
O soldado pousou os olhos em Vovó e depois em Margrete e Tia Ogg, que se
encontravam paradas como as pedras do campo.
- Vocês são bruxas? - perguntou.
Vovó assentiu. Um raio estourou no céu, e um arbusto a cem metros dali pegou fogo. Os
dois soldados atrás do homem murmuraram qualquer coisa, mas ele apenas sorriu e levantou a
mão.
- Pele de bruxa é à prova de aço? - indagou.
- Que eu saiba, não - respondeu Vovó, calmamente. - Porque não tenta descobrir?
Um dos soldados se adiantou e tocou o braço do homem com cuidado.
- Senhor, com todo o respeito, senhor, não é uma boa idéia...
- Cale a boca!
- Mas dá um azar terrível...
- Será que vou ter que pedir de novo?
- Senhor... - disse o homem.
E os olhos dele cruzaram com os de Vovó por um instante, revelando pavor completo.
O líder sorriu para Vovó, que não mexeu um único músculo.
- Sua magia matuta é para os imbecis, mãe da noite. Posso atacá-la bem aqui.
- Pois ataque - desafiou Vovó, olhando por sobre o ombro dele. - Se é o que seu coração
está mandando, ataque do modo mais forte que puder.
O homem levantou a espada. Outro raio estourou e rachou uma pedra a alguns metros de
distância, enchendo o ar de fumaça e cheiro de silício queimado.
- Errou - constatou ele, com afetação, então seus músculos se retesaram ao investir com a
espada.
Uma expressão de extrema perplexidade cruzou o rosto dele. O homem inclinou a cabeça
e abriu a boca, como se tentasse se acostumar a uma nova idéia. A espada desprendeu-se de sua
mão e caiu de ponta no chão. Ele soltou um suspiro e dobrou o corpo, bem devagar, desabando
aos pés de Vovó.
Ela o cutucou com o pé.
- Talvez você não tenha entendido o que eu pretendia - sussurrou. - Mãe da noite, sim
senhor!
O soldado que havia tentado deter o homem olhou horrorizado para o punhal cheio de
sangue em sua mão e recuou.
- Eu... não podia deixar. Ele não devia... Não é... certo - gaguejou.
- Você é dessas bandas, rapaz? - perguntou Vovó.
Ele caiu de joelhos.
- Lobo Louco, dona - respondeu. E voltou os olhos para o capitão. - Agora, eles vão me
matar! - lamuriou-se.
- Mas você fez o que achou certo - argumentou Vovó.
- Não virei soldado para sair matando as pessoas.
- Exatamente. Se eu fosse você, viraria marinheiro - sugeriu. - É, a carreira náutica.
Começaria o mais depressa possível. Aliás, agora. Corra, homem. Corra para o mar, onde não
existem pegadas. Prometo que você terá uma vida longa e feliz. - Ela se mostrou pensativa por
um instante e acrescentou: - Pelo menos mais longa do que se continuar aqui.
Ele se endireitou, dirigiu à bruxa um olhar que combinava gratidão e reverência, e correu
para a névoa.
- Agora, talvez alguém queira nos explicar o que significa isso tudo? - disse, virando-se
para o terceiro homem.
Para onde estivera o terceiro homem.
Ouviu-se o ruído distante de patas no campo, depois silêncio.
Tia Ogg inclinou-se para a frente.
- Posso alcançá-lo - propôs. - O que você acha?
Vovó balançou a cabeça. Sentou-se numa pedra e olhou para a criança nos braços. Era
um menino, tinha menos de dois anos e estava completamente nu sob a manta. Ela o embalou
distraída e fitou o nada.
Tia Ogg examinou os dois cadáveres com ar de quem nada teme.
- Talvez fossem bandidos - imaginou Margrete, tremendo.
Tia Ogg balançou a cabeça.
- É estranho - notou. - Os dois usam o mesmo distintivo. Dois ursos num brasão preto e
dourado. Alguém sabe o que significa?
- E o emblema do rei Verence - informou Margrete.
- E quem é ele? - perguntou Vovó Cera do Tempo.
- Ele governa o país - respondeu Margrete.
- Ah. Aquele rei - disse Vovó, como se o assunto mal fosse digno de nota.
- Soldados lutando entre si. Não faz sentido - considerou Tia Ogg. - Margrete, dê uma
olhada na carruagem.
A mais nova das bruxas vasculhou o interior do veículo e encontrou com um saco. Virou-
o de cabeça para baixo, e um objeto caiu no chão.
A tempestade se encaminhara para o outro lado da montanha, e a lua derramava uma luz
fraca sobre o campo molhado. Também iluminava o que, sem sombra de dúvida, era uma coroa
muito importante.
- É uma coroa - admirou-se Margrete. - Tem um monte de pontas.
- Minha nossa! - exclamou Vovó.
A criança disse gu-gu-dá-dá no sono. Vovó Cera do Tempo não gostava de olhar para o
futuro, mas agora sentia que o futuro olhava para ela.
Não gostou nem um pouco da expressão que via.
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O que quer que fosse isso. Ele nunca havia achado ninguém capaz de lhe explicar. Mas, com certeza, era algo
que o senhor feudal precisava ter e que necessitava de exercício. Ele imaginava que era uma espécie de
cachorro grande e peludo. Certamente compraria um e sem dúvida o exercitaria.
- Gudi gudi lindo.
- Aquele rapaz trouxe o neném para salvá-lo! - exclamou Margrete. - Queria que o
protegêssemos! É evidente! É o destino!
- Ah, evidente - ironizou Vovó. - Reconheço que é evidente. O problema é que, só
porque a coisa é evidente, não quer dizer que seja correta.
Ela avaliou a coroa. Parecia muito pesada, de um modo que ultrapassava a noção de
quilos e gramas.
- É, mas a questão... - começou Margrete.
- A questão - cortou Vovó - é que as pessoas vão começar a procurar. Pessoas perigosas.
Buscas perigosas. Buscas que derrubam paredes, incendeiam telhados. E...
- Gadê mi lindão?
- ...e, Gytha, acho que todas vamos ficar muito mais contentes se você parar de falar
desse jeito! - irritou-se Vovó.
Ela sentia os nervos à flor da pele. Os nervos sempre se manifestavam quando estava
insegura. Além do mais, as três haviam se recolhido ao chalé de Margrete, e a decoração a
incomodava, porque Margrete acreditava em duende, na sabedoria da natureza, no poder de cura
das cores, no ciclo das estações e em muitas outras bobagens que Vovó Cera do Tempo não
tolerava.
- Você não vai querer me ensinar a tomar conta de criança - rebateu Tia Ogg,
tranqüilamente. - Logo eu, que já tive quinze filhos.
- Só estou dizendo que a gente tem que pensar sobre isso - argumentou Vovó.
As outras duas se limitaram a olhá-la durante algum tempo.
- E então? - perguntou Margrete.
Vovó tamborilou os dedos na ponta da coroa. Franziu a testa.
- Primeiro temos que levá-lo para longe daqui - propôs, e levantou a mão. - Não, Gytha,
tenho certeza de que seu chalé é perfeito, mas não é seguro. Ele precisa ficar longe daqui, bem
longe, onde ninguém saiba quem é. E também tem isso.
Ela começou a jogar a coroa de uma mão para outra.
- Ah, isso é fácil - disse Margrete. - Basta esconder debaixo de uma pedra ou coisa assim.
É fácil. Bem mais fácil do que com o neném.
- Não é, não - objetou Vovó. - O país está cheio de nenens, todos bem parecidos, mas
duvido que existam muitas coroas. De qualquer forma, parece que esses objetos gostam de ser
achados. Como que evocam a mente das pessoas. Se você enterrar a coroa debaixo de uma pedra
aqui, em uma semana alguém vai descobri-la por acidente. Preste atenção no que estou dizendo.
- É verdade - concordou Tia Ogg, séria. - Quantas vezes você já não jogou um anel
mágico nas profundezas do mar e depois, ao chegar em casa e se preparar para comer o linguado,
lá está ele?
Elas consideraram a pergunta em silêncio.
- Nenhuma - respondeu Vovó, irritada. - E nem você. Enfim, o rei pode querer a coroa
de volta. Se for dele por direito. Rei dá muita importância a coroa. Puxa vida, Gytha, às vezes
você diz cada...
- Vou fazer chá - decidiu-se Margrete, e desapareceu na copa.
As duas bruxas mais velhas permaneceram sentadas â mesa, em silêncio incômodo mas
cortês. Por fim, Tia Ogg disse:
- Ela arrumou tudo muito bem, não foi? Com flores e tudo o mais. O que são aquelas
coisas na parede?
- Desenhos mágicos - respondeu Vovó, amarga. - Ou coisa parecida.
- Bonito - elogiou Tia Ogg, por educação. - E todos esses mantos, varinhas e badulaques.
- Moderno - disse Vovó Cera do Tempo, torcendo o nariz. - Quando eu era menina, a
gente ganhava um pouco de cera, dois grampos e tinha que se virar. Naquela época, precisávamos
fazer nossos próprios encantamentos.
- Ah, bem, muita coisa rolou desde aquele tempo - considerou Tia Ogg.
Ela balançou o neném.
Vovó Cera do Tempo aspirou o ar. Tia Ogg havia se casado três vezes e gerara um bando
de filhos e netos país afora. Obviamente, não era proibido bruxa se casar. Vovó tinha que
admitir, mas com relutância. Muita relutância. Ela aspirou novamente o ar. Havia algo errado.
- Que cheiro é esse? - perguntou.
- Ah - respondeu Tia Ogg, reposicionando o bebê com cuidado. - Vou ver se Margrete
tem algum pano limpo.
E Vovó ficou sozinha. Sentia-se constrangida como sempre nos sentimos quando
deixados sozinhos na sala da casa de outra pessoa, e lutou contra a vontade de se levantar e
examinar os livros na prateleira sobre o aparador ou ver se o consolo da lareira estava sujo de
poeira. Virou e revirou a coroa nas mãos. Novamente, o objeto deu a impressão de ser maior e
mais pesado do que de fato era.
Ela avistou o espelho sobre o consolo da lareira e olhou para a coroa. Era tentador. O
objeto praticamente implorava para ser experimentado. Bem, por que não? Ela se certificou de
que as outras não estavam por perto e, num movimento único, tirou o chapéu e pôs a coroa na
cabeça.
Coube. Vovó endireitou-se e agitou a mão pomposamente na direção da lareira.
- Faça já isso - disse. E acenou com arrogância para o relógio de pêndulo. - Corte a
cabeça dele! - ordenou.
Abriu um sorriso estranho. E se deteve ao ouvir os gritos, o tropel de cavalos, o zunido
mortal de flechas e o ruído molhado e sólido de lança em carne humana. Ordem após ordem
ecoou em seu cérebro. Espadas atingiam escudos, espadas ou ossos, implacavelmente. Muitos
anos se passaram no espaço de um segundo. Houve momentos em que ela se viu entre os mortos
ou pendurada em galhos de árvores, mas sempre tinha quem a apanhasse e a deitasse em ai
mofadas macias...
Com muito cuidado, Vovó tirou a coroa da cabeça - foi difícil, a peça não queria sair - e
depositou-a sobre a mesa.
- Então, ser rei é isso - murmurou. - Não entendo por que todo mundo quer o cargo.
- Aceita açúcar? - perguntou Margrete, atrás dela.
- Só um idiota nato pode querer ser rei - disse Vovó.
- O quê?
Vovó se virou.
- Não vi você entrar - desculpou-se. - O que perguntou?
- Açúcar no chá?
- Três colheres - respondeu Vovó, com prontidão.
Uma das poucas tristezas na vida de Vovó Cera do Tempo era que, apesar de todos os
seus esforços, tivesse chegado ao topo da carreira com uma pele que parecia maçã rosada e com
todos os dentes no lugar. Não houvera feitiço que lhe fizesse brotar uma verruga no rosto bonito,
embora ligeiramente eqüino, e a ingestão de muito açúcar servia apenas para lhe dar infinita
energia. O mago que ela havia consultado explicara que tudo se devia ao seu metabolismo, o que
pelo menos a deixara sentindo-se um pouco superior a Tia Ogg, que ela desconfiava jamais ter
sequer visto um.
Prestativa, Margrete serviu três colheres cheias. Seria bom, pensou ela, se dissessem
“obrigado” de vez em quando. Então se deu conta de que a coroa a fitava.
- Está sentindo? - perguntou Vovó. - Eu falei, não falei? Coroa evoca a mente das
pessoas!
- É horrível!
- Não, não. Ela só está sendo o que é. Não tem outro jeito.
- Mas é magia!
- Ela só está sendo o que é - repetiu Vovó.
- Está tentando me fazer experimentá-la - observou Margrete, a mão pairando no ar.
- Ela faz isso, sim.
- Mas eu vou ser forte - decidiu Margrete.
- Imagino que sim - disse Vovó, com a fisionomia de súbito curiosamente inexpressiva. -
O que Gytha está fazendo?
- Lavando o bebê na pia - respondeu Margrete, distraída. - Como se esconde uma coisa
dessas? O que aconteceria se a enterrássemos bem fundo aqui perto?
- Um texugo cavaria - respondeu Vovó. - Ou alguém viria a procura de ouro ou não sei
quê. Ou uma árvore enrolaria a raiz nela, depois seria derrubada numa tempestade, depois alguém
a pegaria e a colocaria na...
- A não ser que a pessoa fosse firme como nós - salientou Margrete.
- Ah, sim, é claro - assentiu Vovó, enquanto examinava as próprias unhas. - Mas o difícil
em relação às coroas não é pôr, e sim tirar.
Margrete pegou o objeto e revirou-o nas mãos.
- Nem parece coroa - avaliou.
- Imagino que você tenha visto muitas - ironizou Vovó. . Naturalmente, deve ser
especialista no assunto.
- Já vi um bocado. Mas tinham muito mais pedras preciosas do que essa, e pedaços de
pano no meio - afirmou Margrete. - Esta aqui não é nada...
- Margrete Alho!
- Já vi, sim. Quando eu estava sendo treinada por Dona Lamória...
- ... quedescanseempaz...
- ... quedescanseempaz, ela me levava para Porco Selvagem ou Lancre sempre que os
artistas ambulantes estavam na cidade. Dona Lamória adorava teatro. Lá existem mais coroas do
que se pode imaginar, apesar de que... - ela se deteve - ... Dona Lamória dizia que eram feitas de
lata e papel. E que as pedras preciosas não passavam de vidro. Mas pareciam muito mais reais do
que esta. Não é estranho?
- As coisas que tentam se parecer com as coisas sempre se parecem mais com as coisas do
que as próprias coisas. É fato notório - explicou Vovó. - Mas eu não gosto nada disso. O que
esses artistas fazem?
- A senhora não conhece o teatro? - surpreendeu-se Margrete.
Vovó Cera do Tempo, que jamais admitia ignorância, não titubeou.
- Ah, claro - respondeu. - Então é aquele tipo de coisa, não é?
- Dona Lamória dizia que era um espelho da vida - suspirou Margrete. - Dizia que sempre
a deixava animada.
- Imagino que sim - considerou Vovó. - Pelo menos, quando o artista é bom. São bons,
esses artistas do teatro?
- Eu acho.
- E você falou que ficam perambulando pelo país? - indagou Vovó, pensativa, olhando
para a porta da copa.
- Por toda parte. Ouvi dizer que há uma trupe agora em Lancre. Ainda não fui porque, a
senhora sabe... - Margrete baixou os olhos. - Não é direito mulher ir a esses lugares sozinha.
Vovó assentiu. Sempre aprovava aquelas opiniões, desde que, evidentemente, não se
aplicassem a ela.
Tamborilou os dedos na toalha de mesa de Margrete.
- Muito bem - decidiu. - E por que não? Vá pedir a Gytha para agasalhar o bebê. Faz
muito tempo que não ouço um teatro.
Como sempre, Margrete ficou extasiada. O teatro não era nada além de alguns metros de
pano pintado, um palco de madeira sobre barris e meia dúzia de bancos dispostos na praça da
aldeia. Mas, ao mesmo tempo, conseguira se tornar O Castelo, Outra Parte do Castelo, A Mesma
Parte do Castelo Algum Tempo Depois, O Campo de Batalha, e agora era Uma Estrada Fora da
Cidade. A tarde teria sido perfeita se não fosse por Vovó Cera do Tempo.
Depois de muito encarar os três homens da orquestra para ver se descobria qual dos
instrumentos era o teatro, a velha bruxa havia finalmente voltado a atenção para o palco, e estava
começando a ficar óbvio para Margrete que existiam alguns aspectos fundamentais do teatro que
Vovó ainda não tinha entendido.
Naquele momento, ela estava pulando de raiva no banco.
- Ele matou aquele homem - cochichou. - Por que ninguém faz nada? Ele matou aquele
homem! Bem na frente de todo mundo!
Em desespero, Margrete segurou o braço de Vovó, que tentava se levantar.
- Está tudo bem - sussurrou. - Ele não está morto!
- Está me chamando de mentirosa, minha filha? - indignou-se Vovó. - Eu vi tudo!
- Olhe, Vovó, não é de verdade, entende?
Vovó Cera do Tempo se acalmou um pouco, mas ainda resmungava baixinho. Estava
começando a sentir que queriam enganá-la.
No palco, um homem discorria um monólogo vigoroso. Vovó ouviu com atenção
durante alguns minutos, depois cutucou Margrete na altura das costelas.
- Do que ele está falando? - perguntou.
- Está dizendo que lamenta a morte do outro homem - explicou Margrete, e, numa
tentativa de mudar de assunto, acrescentou às pressas: - Tem uma porção de coroas, não é?
Vovó não se deixou distrair.
- Então por que matou ele? - insistiu.
- Bem, é complicado... - começou Margrete.
- É uma vergonha! - corrigiu Vovó. - E o coitado ainda caído ali!
Margrete dirigiu um olhar de súplica a Tia Ogg, que comia maçã e estudava o palco com
olhar de cientista pesquisadora.
- Eu acho - disse ela, devagar - que é tudo fingimento. Olhe só, ele ainda está respirando.
O resto da platéia, que a essa altura havia concluído que o comentário fazia parte da peça,
olhou para o cadáver. Ele corou.
- E olhe aquelas botas - acrescentou Tia Ogg, em tom de censura. - Rei de verdade teria
vergonha de usar botas assim.
O cadáver tentou esconder os pés atrás de um arbusto de papelão.
Vovó, de alguma forma sentindo que elas haviam triunfado sobre os fomentadores da
astúcia e da inverdade, tirou uma maçã do saco e passou a mostrar interesse renovado. Margrete
se acalmou e começou a aproveitar a peça. Mas não por muito tempo. A bem-vinda suspensão de
incredulidade foi interrompida por uma voz perguntando:
- O que está acontecendo?
Margrete suspirou.
- Bem - respondeu, afinal -, ele acha que ele príncipe, mas na verdade é a filha do rei
vestida de homem.
Vovó analisou o ator.
- É homem - decidiu. - Com peruca de palha. Afinando a voz.
Margrete estremeceu. Conhecia as convenções do teatro e vinha temendo por aquela
parte. Vovó Cera do Tempo tinha ipiniões.
- É - retrucou ela, desolada. - Mas é o Teatro, entende? Todas as mulheres são
representadas por homens.
- Por quê?
- É proibido mulher no palco - murmurou Margrete.
Ela fechou os olhos.
Na verdade, não houve nenhum acesso de fúria no banco da esquerda. Ela se aventurou a
dar uma olhada rápida.
Vovó estava mastigando o mesmo pedaço de maçã, sem despregar os olhos da ação.
- Esme, não faça confusão - pediu Tia Ogg, que também conhecia as Opiniões de Vovó. -
Essa parte é boa. Acho que estou até entendendo.
Alguém cutucou o ombro de Vovó e pediu:
- Com licença, será que a senhora poderia tirar o chapéu?
Vovó se virou bem devagar, como se fosse impulsionada por motores ocultos, e
submeteu o intruso a um olhar azul-diamante de cem quilowatts. O homem afundou no banco.
- Não - respondeu.
Ele considerou suas opções.
- Tudo bem - disse.
Vovó se virou e fitou os atores, que haviam parado para observá-la.
- Não sei o que estão olhando - rosnou. - Continuem.
Tia Ogg lhe passou outro saco.
- Quer bala? - ofereceu.
O silêncio novamente tomou o teatro improvisado, a não ser pela voz hesitante dos
atores, que volta e meia olhavam para a figura perturbadora de Vovó Cera do Tempo - e pelo
barulho de duas balas sendo vigorosamente saboreadas.
Então, numa inflexão que fez um dos atores deixar cair a espada de madeira, Vovó disse:
- Tem um homem ali no canto cochichando para eles!
- É o ponto - explicou Margrete. - Ele lembra aos atores o que dizer.
- Eles não sabem?
- Acho que estão esquecendo - observou Margrete. - Por algum motivo.
Vovó cutucou Tia Ogg.
- O que está acontecendo agora? - indagou. - Por que os reis e todas aquelas pessoas estão
ali?
- É um banquete - esclareceu Tia Ogg. - Pelo rei morto, aquele de botas, só que agora, se
você prestar atenção, ele está fingindo que é soldado, e todos estão discursando sobre como ele
era bom e imaginando quem o matou.
- Estão, é? - perguntou Vovó, austera.
Correu os olhos pelo elenco, à procura do assassino. Tentou chegar a uma decisão. Então
levantou.
O xale negro se agitava ao redor como as asas de um anjo vingador que chegara para
livrar o mundo de tudo o que era frívolo, falso, enganoso e simulado. De algum modo, ela
parecia bem maior do que o normal. Apontou um dedo ameaçador para o culpado.
- Foi ele! - gritou, triunfante. - Todos nós vimos! Ele o matou com um punhal!
A platéia saiu satisfeita. No todo, havia sido uma boa peça, embora não muito fácil de
acompanhar. Mas tinha sido divertido quando todos os reis saíram correndo e a mulher de preto
ficou pulando aos berros. Só aquilo já compensara os centavos do ingresso.
As três bruxas estavam sentadas sozinhas na beira do palco.
- Como será que conseguem convencer todos aqueles reis e lordes para virem até aqui
fazer aquilo? - perguntou Vovó, em perfeita consciência. - Eu imaginava que fossem muito
ocupados. Governando e tal.
- Não - objetou Margrete, cansada. - Acho que a senhora ainda não entendeu.
- Pois agora eu vou até o fim disso - decidiu Vovó. Subiu novamente no palco e abriu a
cortina de pano.
- Você! - gritou. - Você está morto!
O infeliz ex-cadáver, que estava comendo um sanduíche de presunto para acalmar os
nervos, caiu para trás do banco. Vovó chutou um arbusto. A bota o atravessou.
- Está vendo? - perguntou para ninguém em especial, com voz estranhamente satisfeita. -
Nada é de verdade! E só pintura, com pedaços de madeira e papel atrás!
- Posso ajudá-las, senhoras?
Era uma voz suave e maravilhosa, com cada sílaba encaixando-se perfeitamente em seu
lugar. Uma voz dourada. Se o Criador do multiverso tivesse voz, seria como aquela. Se havia um
inconveniente, era que não se tratava de uma voz que se pudesse usar, por exemplo, para pedir
carvão. O carvão encomendado por aquela voz viraria diamante.
Ao que tudo indicava, ela pertencia a um homem gordo e grandalhão terrivelmente
castigado por um bigode. Veias rosadas traçavam o mapa de uma cidade grande em seu rosto. O
nariz poderia se esconder com facilidade numa travessa de morangos. Vestia um blusão surrado e
uma malha furada com tal pose que quase nos convencia de que seus mantos de veludo e pele de
crudelarminho3 estavam sendo lavados naquele momento. Numa das mãos, trazia uma toalha,
com a qual tirava a maquiagem que ainda lhe besuntava o rosto.
- Eu conheço você - disse Vovó. - Você matou o outro. - Ela olhou de esguelha para
Margrete e, com relutância, admitiu: - Pelo menos, parecia.
- Eu fico tão feliz. E sempre um prazer conhecer entendidos da arte. Olwyn Vitoller, a
seu dispor. Diretor deste grupo de teatro ambulante - apresentou-se e, tirando o chapéu roído
por traça, fez uma reverência.
Era mais um exercício de topologia avançada do que um gesto de respeito.
O chapéu se agitou numa série de arcos complexos, terminando na mão que agora
apontava para o céu. Enquanto isso, uma das pernas havia recuado. O restante do corpo se
curvou educadamente, até a cabeça dele se encontrar no nível dos joelhos de Vovó.
- Sim, bem - disse Vovó.
Ela sentiu as roupas crescerem e ficarem bem mais quentes.
- Eu também achei o senhor muito bom - elogiou Tia Ogg. - A maneira como gritou
todas aquelas palavras com elegância. Logo vi que era rei.
- Espero que a gente não tenha atrapalhado muito - desculpou-se Margrete.
- Minha cara senhora - objetou Vitoller. - Conseguiria eu dizer o quão gratificante para
um simples ator é saber que a platéia enxergou além da mera superfície da maquiagem até o
espírito que jaz sob ela?
- Espero que consiga - respondeu Vovó. - Espero que consiga dizer o que quer que seja,
senhor Vitoller.
Ele pôs novamente o chapéu, e os dois trocaram o longo e calculado olhar de
profissionais que avaliam um ao outro. Vitoller cedeu afinal e tentou fingir que não estava
competindo.
- Mas, então - disse -, a que devo a visita de três donas tão adoráveis?
Na verdade, ele havia vencido. Vovó ficou boquiaberta. Jamais teria descrito a si mesma
como algo além de “elegante, apesar de tudo”. Tia Ogg, por outro lado, era viçosa feito neném, e
seu rosto parecia uma uva passa. O melhor que se podia dizer de Margrete é que era
decentemente sem graça, bem asseada e despeitada como uma tábua de passar roupa, embora a
cabeça fosse entupida de fantasias. Vovó sentiu algo novo, uma espécie de magia em andamento.
Mas não do tipo com que estava acostumada.
Era a voz de Vitoller. Pelo mero processo de articulação, transformava tudo sobre o que
falava.
Olhe só essas duas, disse Vovó a si mesma, aprumando-se como duas patetas. Ela parou
de acariciar o próprio coque duro feito pedra e pigarreou.
- Gostaríamos de lhe falar, senhor Vitoller.
Apontou para os atores que desarmavam o cenário e mantinham distância dela e, num
sussurro conspiratório, acrescentou:
- Em particular.
3
O crudelarminho é um pequeno animal peludo, branco e preto, famoso por sua pele. É um parente mais
cauteloso do lemingue: só se atira de rochas pequenas.
- Minha cara senhora, mas com certeza - prontificou-se. - Atualmente, estou hospedado
naquela estimada casa noturna.
As bruxas olharam ao redor. Por fim, Margrete perguntou:
- No pub?
A trupe partiu algumas horas antes do pôr-do-sol, com as quatro carroças avançando
devagar pela estrada que conduzia à Planície Sto e às cidades grandes. Lancre possuía uma lei
municipal que exigia a todos os atores, mímicos e outros criminosos em potencial atravessarem
os portões da cidade antes do ocaso. Na verdade, a norma não atingia ninguém, porque a cidade
não possuía muros e ninguém se importava muito se os outros voltassem depois do anoitecer. O
que contava era a fachada.
As bruxas estavam no chalé de Margrete, usando a antiga bola de cristal verde de Tia
Ogg.
- Já é hora de você aprender a usar esse negócio - murmurou Vovó.
Ela deu uma cutucada na bola, enchendo a imagem de ondulações.
- Foi muito estranho - comentou Margrete. - Naquelas carroças. Os objetos que eles
tinham! Arvores de papel, toda sorte de fantasias, e... - ela agitou as mãos - ... tinha um retrato
enorme do estrangeiro, cheio de templos e outras construções. Era bonito.
Vovó resmungou.
- Eu acho incrível a maneira como todas aquelas pessoas se transformam em reis e tudo o
mais, a senhora não acha? Éc ....omo magia.
- Margrete Alho, do que você está falando? Era só tinta e papel. Qualquer um podia ver
isso.
Margrete abriu a boca para falar, imaginou a briga que se seguiria e fechou-a novamente.
- Onde está Tia Ogg? - perguntou.
- Deitada na grama - respondeu Vovó. - Ela não está se sentindo bem.
Lá de fora, vinham os berros de Tia Ogg passando mal. Margrete suspirou.
- Se nós somos madrinhas dele - observou -, deveríamos lhe dar três presentes. É a
tradição.
- Do que está falando, menina?
- Três bruxas boas têm de dar ao bebê três presentes. Sabe, tipo beleza, sabedoria e
felicidade.
Em tom de desafio, Margrete prosseguiu:
- Era assim que acontecia antigamente.
- Ah, você quer dizer casas de pão de mel e similares - desprezou Vovó. - Rodas de fiar,
abóboras e dedos que se furam. Eu nunca gostei de nada disso.
Ela limpou a bola, pensativa.
- É, mas... - começou Margrete.
Vovó olhou para ela. Pois aquela era Margrete. Cabeça cheia de abóboras. Por quase
nada, a madrinha encantada de todo mundo. Mas uma boa alma, por trás de tudo. Bondosa com
animaizinhos peludos. O tipo de pessoa que se preocupa com a possibilidade dos filhotes de
pássaros caírem do ninho.
- Se isso deixa você feliz - murmurou Vovó, surpresa consigo mesma. Ela agitou as mãos
vagamente sobre a imagem das carroças partindo. - Pois o que lhe daremos... riqueza, beleza?
- Bem, dinheiro não é tudo e, se ele puxar ao pai, vai ser bonito o bastante - avaliou
Margrete, subitamente séria. - Sabedoria, o que a senhora acha?
- É algo que ele vai ter que aprender sozinho - argumentou Vovó.
- Visão perfeita? Boa voz para cantar?
Do gramado, vinha a voz quebradiça mas entusiasmada de Tia Ogg, avisando ao céu
noturno que Vara de mago tem nó na ponta.
- Não é importante - atestou Vovó, em bom tom. - Precisamos pensar em termos de
cabeçologia, entende? E não mexer nessa história de beleza e riqueza. Nada disso é importante.
Ela se voltou para a bola de cristal e acenou desanimada.
- Melhor buscar Tia Ogg, já que devemos ser três.
Tia Ogg entrou afinal, e tiveram que lhe explicar tudo.
- Três presentes, é? - perguntou. - Não faço isso desde que era menina, me faz lembrar...
o que você está fazendo?
Margrete andava às pressas pela sala, acendendo velas.
- Ah, temos de criar a atmosfera mágica apropriada - explicou.
Vovó encolheu os ombros, mas não disse nada, mesmo diante de tamanha provocação.
Cada bruxa fazia mágica a seu jeito, e aquela era a casa de Margrete.
- Então, o que daremos a ele? - indagou Tia Ogg.
- A gente estava justamente falando sobre isso - informou Vovó.
- Eu sei o que ele vai querer - anunciou Tia Ogg. Deu uma sugestão, recebida em silêncio
absoluto.
- Não vejo que utilidade isso teria - protestou Margrete, afinal. - Não seria
desconfortável?
- Anote o que estou dizendo, ele vai nos agradecer quando crescer - garantiu Tia Ogg. -
Meu primeiro marido sempre dizia...
- Geralmente se escolhe algo menos físico - cortou Vovó, fitando Tia Ogg. - Não há
razão para estragar tudo, Gytha. Por que você tem sempre de...
- Bem, pelo menos eu posso dizer que já... - começou Tia Ogg.
Ambas as vozes se extinguiram num murmúrio. Houve um silêncio comprido e tenso.
- Eu acho - interveio Margrete, com alegria forçada - que talvez fosse melhor cada uma ir
para sua casa e fazer isso a seu modo. Separadas. Foi um dia longo, e já estamos todas exaustas.
- Boa idéia - atestou Vovó, levantando-se. - Vamos, Gytha - chamou. - Foi um dia longo,
e já estamos todas exaustas.
Margrete escutou-as discutindo estrada afora.
Sentou-se triste entre as velas coloridas, segurando a garrafinha de incenso taumatúrgico
que havia encomendado a uma loja de suplementos mágicos da distante Ankh-Morpork. Vinha
ansiando por experimentá-lo. As vezes, pensou, seria bom se as pessoas se mostrassem um
pouco mais gentis...
Ela estudou a bola de cristal.
Bem, talvez pudesse arriscar.
- Ele terá facilidade para fazer amigos - sussurrou.
Não era muito, Margrete bem sabia, mas se tratava de algo de que ela jamais conseguira
pegar o jeito.
Tia Ogg, sentada na cozinha com o imenso gato em seu colo, serviu-se do drinque de
todas as noites e tentou lembrar as palavras do décimo sétimo verso da canção do porco-espinho.
Havia qualquer coisa sobre cabras, mas os detalhes lhe escapavam. O tempo desgastava a
memória.
Ela brindou a presença invisível.
- O que ele precisa é de uma memória irretocável - decidiu. - Ele sempre vai se lembrar
das coisas.
E Vovó Cera do Tempo, caminhando sozinha para casa pela floresta anoitecida, enrolou
o xale no corpo e refletiu. Havia sido um dia longo e difícil. O teatro fora a pior parte. Todo
mundo fingindo ser outra pessoa, acontecimentos irreais, partes do campo que o pé atravessava...
Vovó gostava de saber onde estava, e não tinha certeza se se importava com aquele tipo de coisa.
O mundo parecia mudar o tempo todo.
Antes não mudava tanto. Era absurdo.
Ela avançava rapidamente pelo breu com o passo decidido de quem ao menos sabia que,
naquela noite de chuva e vento, a floresta estava repleta de coisas estranhas e terríveis, e que ela
própria fazia parte disso.
- Que ele seja quem ele pensa que é - disse. - É tudo o que se pode querer neste mundo.
Como a maioria das pessoas, as bruxas não se prendem ao tempo. A diferença é que elas
pouco se dão conta dele e utilizam-no. Estimam o passado porque parte delas ainda vive lá e
enxergam as sombras que o futuro projeta.
Vovó tateou o futuro e notou que era afiado como faca.
Começou às cinco horas da manhã seguinte. Quatro homens chegaram a cavalo até os
bosques próximos ao chalé de Vovó, amarraram os animais onde não se fariam ouvidos e
avançaram com muito cuidado pela neblina.
O sargento não parecia satisfeito com o trabalho. Era um homem das Ramtops e não
estava nem um pouco certo de como prender uma bruxa. Tinha certeza, porém, de que a bruxa
não gostaria da idéia. E não gostava da idéia de uma bruxa não gostando da idéia.
Os outros homens também eram ramtopenses. Seguiam-no de perto, prontos para se
abaixar atrás dele se vissem qualquer coisa mais inusitada do que uma árvore.
O chalé de Vovó era uma estrutura fungóide na neblina. A horta incontrolável parecia se
mexer, mesmo sem brisa. Tinha plantas jamais vistas nas montanhas, com raízes e sementes
trazidas de até oito mil quilômetros de distância dali. E o sargento podia jurar que uma ou duas
flores haviam se virado para ele. O homem encolheu os ombros.
- E agora, chefe?
- Agora... a gente se separa - arriscou. - E. A gente se separa. Isso mesmo.
Eles avançaram com cuidado por entre as samambaias. O sargento agachou atrás de um
tronco providencial e disse:
- Certo. Muito bom. Vocês entenderam bem. Agora vamos nos separar novamente, e
dessa vez cada um vai para um lado.
Os homens resmungaram um pouco, mas desapareceram na névoa. O sargento deu-lhes
alguns minutos para tomar posição e anunciou:
- Certo. Agora a gente...
Ele se deteve.
Pensou se ousaria gritar e decidiu que não.
Levantou. Tirou o capacete, a fim de mostrar respeito, e caminhou pela grama molhada
até a porta traseira. Bateu na madeira, muito de leve.
Depois de aguardar alguns segundos, pôs o capacete outra vez na cabeça e anunciou:
- Não tem ninguém em casa, que droga. - Começou a voltar.
A porta se abriu. Abriu-se bem devagar, com a dose máxima de rangidos. Mero descuido
não teria provocado tanto ruído; seria necessário muito trabalho com água quente durante o
período de algumas semanas. O sargento parou e se virou devagar, conseguindo mexer o menor
número possível de músculos.
Teve sensações diversas a respeito do fato de que não havia nada no vão da porta. Por
experiência, sabia que portas não se abrem sozinhas.
Pigarreou, nervoso.
Perto de seu ouvido, Vovó Cera do Tempo constatou:
- Você está com uma tosse pavorosa. Fez bem em vir me ver.
O sargento olhou para ela com ar de gratidão enlouquecida e pigarreou.
* * *
4
Escritas por magos, que são celibatários e tem idéias estranhas por volta das quatro da manhã.
Durante cinqüenta anos, o duque vivera muito bem, sem dar importância alguma à
curiosidade. Não era uma característica muito estimulada na aristocracia. A certeza sempre fora
uma aposta mais garantida. No entanto, ocorreu-lhe que pelo menos daquela vez a curiosidade
pudesse ser útil.
O sargento estava parado no meio da sala, com o ar obstinado de quem espera uma
palavra de ordem e está preparado para aguardar até a migração dos continentes lhe tirar o posto.
Encontrava-se a serviço dos reis de Lancre fazia muitos anos, e isso era evidente. Seu corpo
estava sempre alerta. Mas, apesar de todos os seus esforços, o estômago se mostrava relaxado.
O duque encarou o Bobo, sentado no banco ao lado do trono. O rapaz retribuiu o olhar,
ficou constrangido e balançou os sinos, sem ânimo.
O duque chegou a uma decisão. O caminho para o progresso, segundo ele, era achar
pontos fracos. Tentou afastar o pensamento de que isso incluía coisas como rim de rei em topo
de escada escura e se concentrou no que agora era a matéria premente.
Matéria. Ele tinha esfregado repetidas vezes, mas não parecia surtir nenhum efeito. Por
fim, fora aos calabouços pegar emprestadas as escovas de arame do torturador e voltou a
esfregar. Também não obteve resultado. Piorou. Quanto mais ele esfregava, mais sangue aparecia.
Teve medo de que pudesse enlouquecer...
Afastou o pensamento. Pontos fracos. Era isso. O Bobo parecia um grande ponto fraco.
- Pode ir, sargento.
- Sim, senhor - disse o sargento, e se retirou formalmente.
- Bobo?
- Salve, senhor - saudou o Bobo, nervoso, e deu um dedilhado rápido no detestado
bandolim.
O duque se sentou no trono.
- Já estou bem salvo - respondeu. - Bobo, quero um conselho.
- Céus, tio - disse o Bobo.
- Não sou seu tio. Tenho certeza de que me lembraria - brincou lorde Felmet, inclinando-
se até o nariz se encontrar a apenas alguns centímetros do rosto tenso do Bobo. - Se você
começar seu próximo comentário com “tio”, “céus” ou “salve”, a situação vai ficar complicada
para você.
O Bobo mexeu os lábios em silêncio e perguntou:
- O que o senhor acha de “amo”?
O duque sabia quando ceder.
- Amo, vá lá - aceitou. - Mas nada de cambalhotas. - Ele sorriu, à guisa de incentivo. -
Menino, há quanto tempo você é bobo?
- Amo, alcaide...
- Alcaide - protestou o duque, erguendo a mão -, acho que não.
- Amo, alcai... senhor - decidiu-se o Bobo, e engoliu em seco. - A vida toda, senhor.
Dezessete anos. E, antes disso, meu pai. E meu tio, ao mesmo tempo. E, antes deles, meu avô. E,
antes...
- Toda uma família de bobos?
- Tradição familiar, senhor - assentiu o Bobo. - Quer dizer, amo.
O duque sorriu novamente, mas o Bobo estava preocupado demais para notar quantos
dentes tinha o sorriso.
- Você é daqui, não é? - perguntou o duque.
- Ti... Sim, senhor.
- Então deve saber tudo sobre as crenças nativas?
- Imagino que sim, senhor. Amo.
- Ótimo. Bobo, onde você dorme?
- No estábulo, senhor.
- De agora em diante vai dormir no corredor, em frente ao meu quarto - anunciou o
duque, caridoso.
- Nossa!
- E agora - pediu, a voz se derramando sobre o Bobo como melaço sobre pudim - me fale
das bruxas.
Naquela noite, o Bobo dormiu em excelentes lajes reais, no corredor uivante acima do
salão principal, e não na palha quente e fofa do estábulo.
- Foi bobagem - resmungou. - Salve, mas é bobagem o bastante?
Dormiu intermitentemente uma espécie de sonho em que um vulto tentava prender sua
atenção, e mal ouviu as vozes de lorde e lady Felmet do outro lado da porta.
- Está de fato ventando menos aqui dentro - admitiu a duquesa, com relutância.
O duque se recostou na poltrona e sorriu para a mulher.
- E aí? - perguntou ela. - Cadê as bruxas?
- Parece que o mordomo está certo, querida. As bruxas mantêm a população local atada.
O sargento da guarda retornou de mãos vazias.
Mãos... A lembrança insistente voltou com força total.
- Mande executá-lo - sugeriu, prontamente. - Para servir de exemplo aos outros.
- Atitude que no fim resultaria no último soldado cortando a própria garganta para servir
de exemplo a si mesmo. Aliás - acrescentou ele -, parece que há bem menos empregados no
castelo. Você sabe que normalmente eu não me intrometeria...
- Então não se intrometa - cortou. - Cuidar da casa é assunto meu. Não suporto desleixo.
- Tenho certeza de que você sabe o que está fazendo, mas...
- E quanto às bruxas? Você vai ficar quieto e deixar o problema aumentar no futuro? Vai
deixar essas bruxas derrotarem você? E quanto à coroa?
O duque encolheu os ombros.
- Deve ter acabado no rio - deduziu.
- E a criança? Foi entregue às bruxas? Elas fazem sacrifício humano?
- Parece que não - respondeu ele.
A duquesa pareceu ligeiramente decepcionada.
- Essas bruxas - observou o duque. -, parece que mantêm a população enfeitiçada.
- Bem, é óbvio...
- Mas não com feitiços mágicos. O povo as respeita. Elas fazem remédios e afins. E
estranho. Essa gente da serra parece ter ao mesmo tempo medo e orgulho das bruxas. Talvez seja
difícil agir contra elas.
- Vou acabar acreditando - rebateu a duquesa, enigmática - que também enfeitiçaram
você.
O duque estava realmente encantado. O poder sempre fascinava, e fora o motivo
primeiro de ele ter se casado com a duquesa. Olhou fixamente para a lareira.
- Aliás - continuou a duquesa, reconhecendo aquele sorriso maligno -, você gosta, não é?
A idéia do perigo. Eu me lembro de quando nos casamos. Toda aquela história de cordas...
Ela estalou os dedos na frente dos olhos vidrados do marido, que se endireitou.
- Que nada! - gritou.
- Então, o que você vai fazer?
- Esperar.
- Esperar?
- Esperar e refletir. A paciência é uma virtude.
O duque se recostou. O sorriso que abriu poderia facilmente ter passado um milhão de
anos aguardando para se manifestar. Mas depois, abaixo de um dos olhos, começou a se contrair.
Vazava sangue do curativo da mão.
Tia Ogg também tinha Greebo, um imenso gato cinza de um só olho que dividia seu
tempo entre dormir, comer e gerar uma gigantesca tribo felina incestuosa. Ao ouvir a vassoura de
Vovó pousar no quintal, ele abriu o olho único como uma grande janela amarela para o inferno.
Com o instinto de sua espécie, sabia que Vovó detestava gatos e deslizou suavemente para
debaixo da cadeira.
5
Não fez nada, embora, às vezes, quando o via na aldeia, sorrisse de maneira vaga. Após três semanas assim, o
suspense foi demais para o ladrão, e ele empacotou. Na verdade, empacotou os pertences e viajou para o outro
lado do continente, onde virou um personagem direito. Jamais voltou para casa.
A jovem bruxa deu um salto e, num movimento casto, pôs as mãos na frente do vestido.
- Que foi? - perguntou, com voz trêmula.
- O que é isso no seu colo?
- Meu animal de estimação - respondeu, na defensiva.
- O que aconteceu com o sapo que você tinha?
- Fugiu - murmurou Margrete. - De qualquer maneira, não era muito bom.
Vovó suspirou. A procura desesperada de Margrete por um bicho de estimação já se dava
havia algum tempo e, apesar do amor e da atenção que ela devotava aos animais, todos pareciam
ter algum defeito terrível, como o costume de morder, ser esmagado ou, em casos extremos,
metamorfosear-se.
- E o décimo quinto deste ano - protestou Vovó. - Sem falar no cavalo. Esse aí é o quê?
- Uma pedra - ironizou Tia Ogg.
- Bem, pelo menos deve durar - considerou Vovó.
A pedra estendeu a cabeça e dirigiu-lhe um olhar ligeiramente divertido.
- É uma tartaruga - informou Margrete. - Comprei na feira de Serra Ovelha. É um macho,
incrivelmente velho e conhecedor de muitos segredos, o vendedor garantiu.
- Também tinha aquele negócio peludo dele - disse Tia Ogg.
Houve uma mudança notável no clima. Ficou mais quente, mais obscuro, cheio de
sombras de conspiração tácita.
- Ah - disse Vovó Cera do Tempo, com certa frieza. - O droit du seigneur.
- Exigia muito exercício - observou Tia Ogg, olhando para o fogo.
- Mas no dia seguinte ele mandava um saco de moedas de prata e uma cesta de presentes
para o casamento - salientou Vovó. - Muitos casais tiveram um começo decente de vida graças a
isso.
- É, sim - concordou Tia Ogg. - Uma ou duas mulheres também.
- Rei a cada centímetro - decretou Vovó.
- Do que vocês estão falando? - perguntou Margrete, desconfiada. - Ele tinha algum
animal de estimação?
As duas bruxas emergiram das águas profundas em que nadavam. Vovó Cera do Tempo
encolheu os ombros.
- Eu acho - opinou Margrete, severamente - que, se vocês gostam tanto do antigo rei, não
parecem muito preocupadas com a morte dele. Quer dizer, foi um acidente muito suspeito.
- Rei é assim - explicou Vovó. - Eles vêm e vão, bons ou maus. O pai dele envenenou o
rei anterior.
- Era o velho Thargum - informou Tia Ogg. - Tinha uma barba ruiva imensa. Também
era muito gentil.
- Só que agora ninguém pode falar que Felmet matou o rei - disse Margrete.
- O quê? - surpreendeu-se Vovó.
- Dia desses, ele mandou executar algumas pessoas em Lancre por falarem isso -
continuou. - Por espalhar calúnias maliciosas, segundo ele. Jurou que quem espalhasse essas
difamações veria o interior de seus calabouços, só que não por muito tempo. Disse que rei
Verence morreu de causa natural.
- Assassinato é causa natural para rei - considerou Vovó. - Não sei por que ele está tão
constrangido. Quando mataram Thargum, prenderam a cabeça dele num pedaço de pau,
armaram uma fogueira enorme e todo mundo do castelo ficou bêbado durante uma semana.
- Eu lembro - disse Tia Ogg. - Levaram a cabeça dele por todas as aldeias para mostrar
que estava morto. Achei bem convincente. Principalmente para ele. Estava sorrindo. Acho que
era o modo como gostaria de ter ido.
- Mas vamos ter que ficar de olho nesse aí - sugeriu Vovó. - Deve ser inteligente. Isso não
é bom em rei. E acho que ele não sabe mostrar respeito.
- Um homem bateu à minha porta na semana passada, para perguntar se eu queria pagar
imposto - contou Margrete. - Respondi que não.
- Também veio aqui - disse Tia Ogg. - Mas nosso Jason e nosso Wane avisaram que não
queríamos participar.
- Um sujeito baixinho, careca, de capa preta? - perguntou Vovó, pensativa.
- É - responderam as outras duas.
- Estava perambulando entre as minhas framboeseiras - disse Vovó. - Mas, quando fui ver
o que queria, saiu correndo.
- Na verdade, dei a ele duas moedas - admitiu Margrete. - Ele disse que seria torturado se
não conseguisse fazer as bruxas pagarem imposto...
Lorde Felmet olhou com atenção para as duas moedas em seu colo. Depois encarou o
coletor de impostos.
- Pode falar - disse.
O coletor de impostos pigarreou.
- Bem, senhor. Eu expliquei sobre a necessidade de empregar um exército permanente,
cof-cof, aí elas perguntaram por quê, e eu respondi por causa dos bandidos, cof-cof, e elas
disseram que nenhum bandido nunca as incomodou.
- E as obras municipais?
- Ah, sim. Bem, eu falei da necessidade de construir e manter pontes, cof-cof.
- E?
- Elas responderam que não as usam.
- Ah - disse Felmet, com ares de sabedor. - Não podem cruzar água corrente.
- Disso não sei, não, senhor. Acho que bruxa pode cruzar o que quiser.
- Elas falaram mais alguma coisa? - insistiu o duque.
O coletor de impostos torceu a ponta do manto, distraído.
- Bem, senhor. Eu mencionei que os impostos ajudam a manter a Paz do Rei...
- Sim?
- Elas responderam que o rei deveria manter sua própria paz, senhor. E depois me
olharam daquele jeito.
- Que jeito?
O duque apoiou o rosto fino numa das mãos. Estava fascinado.
- E difícil descrever - desculpou-se o empregado.
Tentou evitar o olhar de lorde Felmet, que vinha lhe dando a nítida sensação de que o
chão de ladrilhos fugia para todas as direções. O fascínio de lorde Felmet era para ele o que um
alfinete é para uma borboleta.
- Tente - pediu o duque.
O coletor de impostos corou.
- Bem - disse. - Não... era bom.
O que mostra que o coletor de impostos era muito melhor com números do que com
palavras. O que ele deveria ter dito - se o constrangimento, o medo, a memória fraca e uma
ausência completa de qualquer tipo de imaginação não conspirassem contra ele - era: “Quando eu
era pequeno e ficava na casa da minha tia, ela me pediu para não encostar no creme, cof-cof, e
botou o doce numa prateleira alta da despensa, mas eu peguei um banco quando ela saiu, aí ela
voltou e eu não sabia, e eu não alcancei direito a tigela, e o vidro se espatifou no chão, minha tia
abriu a porta e olhou para mim: era desse jeito. Mas o pior era que as bruxas sabiam”.
- Não era bom - murmurou o duque.
- Não, senhor.
O duque tamborilou os dedos da mão esquerda no braço do trono. O coletor de
impostos tossiu outra vez.
- O senhor... o senhor não vai me obrigar a voltar lá, vai? - suplicou.
- Há? - perguntou o duque. E agitou a mão, irritado. - Não, não - respondeu. - De jeito
nenhum. Só passe no quarto do torturador quando sair daqui. Veja se ele pode agendar um
horário para você.
O coletor de impostos lhe dirigiu um olhar de gratidão e fez reverência.
- Sim, senhor. Agora mesmo, senhor. Obrigado. O senhor é muito...
- Está bem, está bem - cortou lorde Felmet, distraído. - Pode ir.
O duque ficou sozinho na imensidão da sala. Chovia novamente. De vez em quando, um
pedaço de argamassa caía no chão e as paredes rangiam. O ar cheirava a porão velho.
Deuses do céu, ele detestava aquele reino.
Era tão pequeno, só sessenta e cinco quilômetros de comprimento, talvez quinze de
largura, e não passava de montanhas escarpadas com encostas verdes e picos afiados ou florestas
densas. Um reino daqueles não deveria dar problema.
O que ele não conseguia entender era a sensação de que o lugar tinha profundidade.
Parecia conter geografia demais.
Ele se levantou e foi até a varanda, de onde se avistava aquele inigualável panorama de
árvores. Ocorreu-lhe que as árvores olhavam-no de volta.
Dava para sentir a indignação delas. Mas era estranho, porque o próprio povo não tinha
feito nenhuma objeção. As pessoas pareciam não fazer objeção a nada. A seu modo, Verence
fora bastante popular. Houvera um grande cortejo no enterro. Lembrava-se das fileiras de rostos
sérios. Mas de maneira alguma tolos. Apenas preocupados, como se o que os reis fizessem não
fosse de fato importante.
Achava aquilo quase tão irritante quanto as árvores. Uma boa revolta, isso sim teria sido...
apropriado. Teria havido enforcamentos e a tensão criativa essencial ao desenvolvimento perfeito
do Estado. Nas planícies, se chutávamos alguém, chutavam-nos de volta. Ali na serra, quando
chutávamos, a pessoa se afastava e apenas esperava pacientemente nossa perna cair. Como
poderia um rei entrar para a história governando um povo assim? Só se podia oprimi-lo como se
oprime um colchão.
Ele havia aumentado os impostos e incendiado algumas aldeias, simplesmente para
mostrar a todos com quem estavam lidando. Não pareceu surtir nenhum efeito.
Além disso, havia as bruxas. Elas o assombravam.
- Bobo!
O Bobo, que estava cochilando atrás do trono, acordou apavorado.
- A postos!
- Vem cá, Bobo.
O Bobo se aproximou.
- Diz para mim, Bobo. Sempre chove aqui?
- Salve, tio...
- Apenas responda a pergunta - interrompeu lorde Felmet, sem paciência.
- Às vezes pára, senhor. Para deixar tempo para a neve. E às vezes temos neblinas
dispersas e espessas.
- Espessas? - perguntou o duque, desatento.
O Bobo não se segurou. Os ouvidos aterrorizados ouviram a boca soltar:
- Densas, meu lorde. Do latatim espessum, caldo ou sopa.
Mas o duque não estava ouvindo. Em sua experiência, ouvir empregado não valia muito a
pena.
- Estou entediado, Bobo.
- Deixe-me entretê-lo, senhor, com gracejos divertidos e anedotas engraçadas.
- Experimente.
O Bobo lambeu os lábios secos. Não esperava por aquilo. O rei Verence se satisfazia em
lhe dar um chute ou quebrar garrafas em sua cabeça. Um rei de verdade.
- Estou esperando. Faça-me rir.
O Bobo arriscou.
- Muito bem, alcaide - disse, com voz trêmula. - Por que o cavaleirango estauto parece
uma vela enalba na noite?
O duque franziu a testa. O Bobo achou melhor não esperar.
- Porque a vela pode derreter, mas o cavaleirango enervaliza cera - respondeu.
Como fazia parte da piada, encostou-se no duque com a bola de gás presa a uma vara e
dedilhou o bandolim.
Durante algum tempo, o duque bateu o dedo indicador no braço do trono
- Sim? - indagou. - E depois?
- Essa era, hã, por assim dizer, a coisa toda - respondeu o Bobo, e acrescentou: - Meu avô
considerava uma de suas melhores.
- Imagino que contasse de outra maneira - rebateu o duque, levantando-se. - Chame os
caçadores. Acho que vou à caça. E você também pode vir.
- Senhor, eu não sei montar!
Pela primeira vez na manhã, lorde Felmet sorriu.
- Ótimo! - exclamou. - Vamos lhe dar um cavalo que não possa ser montado. Ah! Ah! Ah!
Ele olhou as ataduras da mão. Depois, disse a si mesmo: “Vou pedir ao armeiro que me
mande uma lima”.
6
Todas, infelizmente, censuradas.
Tudo estava como deveria, só que nada parecia certo. Havia alguma coisa... sim, havia
alguma coisa viva ali, alguma coisa nova e antiga...
Vovó revirou o sentimento em sua mente. Sim. Era isso. Alguma coisa abandonada.
Desamparada. E...
Os sentimentos não eram nunca simples, Vovó bem sabia. Bastava descascá-los, e havia
outros por baixo...
Alguma coisa que, se não parasse logo de se sentir perdida e desamparada, ficaria com
raiva.
Todavia, ela não conseguia localizá-la. Dava para sentir a mente pequenina das crisálidas
debaixo das folhas caídas e geladas. Era possível sentir a presença das minhocas, que tinham
migrado para debaixo da camada de gelo. Dava para sentir até a presença de algumas pessoas, que
sempre eram as mais difíceis: a mente humana concebia tantos pensamentos ao mesmo tempo
que ficava quase impossível localizá-la. Era como tentar pregar neblina em parede.
Nada aqui. Nada ali. O sentimento estava por toda parte e não havia nada que o causasse.
Vovó chegara até onde podia, à menor criatura do reino, e não havia nada.
Sentou na cama, acendeu uma vela e pegou uma maçã. Fitou a parede do quarto.
Não gostava de ser derrotada. Havia alguma coisa ali, alguma coisa que absorvia magia,
alguma coisa que vinha crescendo, alguma coisa que parecia tão viva que estava por toda a casa,
mas ela não conseguia localizá-la.
Comeu a maçã até o caroço e depositou-o com cuidado no pires do castiçal. Então
soprou a vela.
O veludo frio da noite voltou ao quarto.
Vovó fez uma última tentativa. Talvez viesse procurando de maneira errada...
Poucos instantes depois, estava deitada no chão com o travesseiro sobre a cabeça.
E pensar que havia esperado uma coisa pequena...
O Castelo de Lancre tremia. Não era um tremor violento, mas nem precisava ser, uma
vez que o castelo balançava mesmo com uma brisa suave. Um pequeno torreão caiu
vagarosamente nas profundezas do cânion enevoado.
O Bobo estava deitado no chão de lajes e tremia no sono. Apreciava a honra - se de fato
era honra -, mas dormir no corredor sempre o fazia sonhar com o Grêmio dos Bobos, atrás de
cujas paredes cinza ele havia atravessado sete anos terríveis de aprendizagem. O chão de lajes,
porém, era ligeiramente mais macio do que as camas do grêmio.
A alguns metros dali, uma armadura retinia baixinho. A lança vibrou na luva até cortar o
ar noturno como um morcego em ataque e quebrar o chão de lajes perto da orelha do Bobo.
O Bobo se sentou e notou que ainda tremia. O chão também.
Nos aposentos de lorde Felmet, o tremor arrancava cascatas de pó da cama antiga de
baldaquino. Ele despertou de um sonho em que um monstro imenso contornava o castelo, e,
apavorado, imaginou que talvez fosse verdade.
O retrato de um rei morto havia tempos caiu da parede. O duque gritou.
O Bobo entrou no quarto, tentando manter equilíbrio no chão que agora se agitava como
o mar. O duque cambaleou para fora da cama e agarrou o rapaz pela blusa.
- O que está acontecendo? - sussurrou. - É um terremoto?
- Aqui não temos isso, senhor - respondeu o Bobo, e foi derrubado por uma chaise-
longue que deslizava pelo tapete.
O duque correu até a janela e olhou a floresta ao luar. As árvores prateadas balançavam
no ar imóvel da noite.
Um pedaço de argamassa despencou no chão. Lorde Felmet deu meia-volta e suspendeu
o Bobo a trinta centímetros do chão.
Entre os muitos luxos que o duque descartara ao longo da vida estava a ignorância. Ele
gostava da sensação de saber exatamente o que estava acontecendo. As gloriosas incertezas da
existência não exerciam nenhum fascínio sobre ele.
- São as bruxas, não são? - rosnou, a face esquerda começando a se contrair como peixe
fora d'água. - Elas estão agindo, não é? Estão botando alguma Influência sobre o castelo, não
estão?
- Salve, tio... - começou o Bobo.
- Elas governam essas terras, não governam?
- Não, meu lorde, nunca...
- Quem perguntou a você?
O Bobo tremia de medo em sincronia perfeita com o castelo, de modo que era agora a
única coisa que parecia estar completamente imóvel.
- Hã, o senhor - arriscou.
- Quer discutir comigo?
- Não, meu lorde!
- Pensei que quisesse. No mínimo, anda de conluio com elas.
- Senhor! - exclamou o Bobo, realmente chocado.
- Sua gente está toda de conluio! - vociferou o duque. - Todos vocês! Não passam de um
bando de conspiradores!
Ele jogou o Bobo para o lado e abriu as portas de vidro, avançando para o ar gelado da
noite. Contemplou o reino adormecido.
- Estão me ouvindo? - gritou. - Eu sou o rei!
O tremor parou, fazendo o duque perder o equilíbrio. Ele se endireitou rápido e limpou o
pó do camisão de dormir.
- Muito bem - disse.
Mas aquilo era pior. A floresta ouvia. As palavras que ele falou se esvaíram num grande
vácuo de silêncio.
Havia algo ali. Dava para sentir. Era forte o bastante para sacudir o castelo e o observava,
ouvia suas palavras.
Com muita cautela, o duque recuou, tateando à procura do ferrolho da porta de vidro.
Entrou cuidadosamente no quarto, fechou a porta e puxou as cortinas.
- Eu sou o rei - repetiu, baixinho.
Olhou para o Bobo, que sentiu esperarem algo dele.
Este homem é meu mestre e senhor, pensou. Comi do mesmo sal dele, ou seja lá como
for. Na escola do grêmio, me ensinaram que o bobo deve ser fiel ao seu mestre até o fim, depois
que todos os demais o abandonaram. Se ele é bom ou mau, não importa. Todo líder precisa de
um bobo. O que importa é a lealdade. Só isso. Mesmo que ele seja cem por cento louco, sou seu
bobo até que um de nós morra.
Horrorizado, notou que o duque chorava.
Vasculhou a manga da camisa e desencavou um lenço amarelo e vermelho, bastante
manchado, enfeitado com sinos. O duque aceitou-o com expressão comovida de gratidão e
assoou o nariz. Depois o afastou e estudou-o desconfiado.
- É um punhal que estou vendo? - murmurou.
- Hã. Não, senhor. É o meu lenço. Dá para ver a diferença se o senhor olhar de perto.
Não tem nenhuma lâmina.
- Meu bom Bobo - disse o duque, distraído.
Completamente doido, pensou o Bobo. Faltam vários parafusos. Miolo tão mole que
chega a escorrer.
- Bobo, ajoelhe-se aqui ao meu lado.
Ele obedeceu. O duque pôs a mão enfaixada em seu ombro.
- Bobo, você é fiel? - perguntou. - E digno de confiança?
- Jurei seguir meu senhor até a morte - respondeu, com voz rouca.
O duque aproximou o rosto enlouquecido da cara do Bobo, que se deparou com um par
de olhos injetados.
- Eu não queria - segredou o duque. - Eles me obrigaram. Eu não queria...
A porta se abriu. A duquesa estava no vão da porta. Na verdade, quase o preenchia.
- Leonal! - gritou.
O Bobo ficou fascinado com o que ocorreu com os olhos do duque. A chama vermelha
da loucura desapareceu e foi substituída pelo olhar azul já conhecido. Mas isso não significava
que o duque estivesse menos louco. De certo modo, até a frieza de sua sanidade era loucura. O
duque funcionava como um relógio e, por isso, às vezes não regulava bem.
Lorde Felmet ergueu os olhos calmamente.
- Sim, querida?
- O que significa tudo isso? - perguntou.
- Imagino que sejam as bruxas - respondeu lorde Felmet.
- Eu acho que não... - começou o Bobo.
Os olhos de lady Felmet não apenas o calaram, como também quase o pregaram na
parede.
- Isso é óbvio - afirmou. - Você é um idiota.
- Bobo, senhora.
- Também - acrescentou, e virou-se para o marido. - Então - disse, sorrindo
sinistramente. - Elas ainda o desafiam?
O duque encolheu os ombros.
- Como posso lutar contra magia? - perguntou.
- Com palavras - respondeu o Bobo, sem pensar, e logo se arrependeu.
Ambos olharam para ele.
- O quê? - indagou a duquesa.
Constrangido, o Bobo deixou cair o bandolim.
- No... no grêmio - explicou -, a gente aprendia que as palavras podem ser mais poderosas
do que a magia.
- Palhaço! - irritou-se o duque. - Palavras são só palavras. Sílabas curtas. Pau e pedra
podem me quebrar os ossos, mas... - ele se deteve, considerando o pensamento - ... palavra não
machuca ninguém.
- Meu senhor, existem palavras que machucam - argumentou o Bobo. - Mentiroso!
Ladrão! Assassino!
Encolhido, o duque se afastou e segurou os braços do trono.
- Essas palavras são mentira - apressou-se em dizer o Bobo.
- Mas podem se espalhar como fogo...
- É verdade! É verdade! - gritou o duque. - Eu as ouço o tempo rodo! - Ele se inclinou
para frente. - São as bruxas! - sussurrou.
- Então... então... então elas podem ser combatidas com palavras - arriscou o Bobo. -
Palavra combate até bruxa.
- Que palavras? - perguntou a duquesa, com ar meditativo.
O Bobo encolheu os ombros.
- Coroca. Malvada. Velha burra.
A duquesa ergueu uma única sobrancelha grossa.
- Sabia que você não é de todo idiota? - concluiu. - Isso que você está falando se chama
boato.
- Exatamente, senhora.
O Bobo arregalou os olhos. No que havia se metido?
- São as bruxas - murmurou o duque, para ninguém em particular. - Precisamos falar ao
mundo sobre as bruxas. Elas são malvadas. Fazem o sangue voltar. Nem lixa funciona.
Houve outro tremor quando Vovó Cera do Tempo corria pelos caminhos estreitos e
gelados da floresta. Um monte de neve caiu do galho de uma árvore sobre o chapéu dela.
Aquilo não estava direito, ela sabia. Tudo bem que houvesse o... que quer que fosse,
porém nunca se ouvira falar de bruxa saindo de casa em noite de réveillon dos porcos. Ia contra
toda a tradição. Ninguém sabia por quê, mas essa não era a questão.
Ela chegou ao campo e avançou pelo matagal quebradiço, cuja neve tinha sido varrida
pelo vento. Havia uma lua crescente próxima ao horizonte, e o brilho fraco iluminava as
montanhas que se erguiam acima dela. Era um mundo diferente ali em cima, ao qual mesmo
bruxas raramente se aventurariam. Era a paisagem deixada pela gélida origem do mundo, toda
verde-gelo, com cristas afiadas e vales profundos. Uma paisagem imprópria ao ser humano: não
hostil - pelo menos não mais hostil do que um tijolo ou uma nuvem -, mas terrivelmente,
terrivelmente inclemente.
Só que, dessa vez, ela observava Vovó. Aquela mente diversa de qualquer outra já
encontrada pela bruxa agora lhe dirigia a atenção. Vovó olhou as encostas geladas, talvez
esperando ver uma sombra gigantesca se mexer contra o céu.
- Quem é você? - perguntou. - O que você quer?
A voz ecoou entre os rochedos. Ouviu-se o estrondo distante de uma avalanche, bem no
alto, entre os picos.
No topo do campo, onde, no verão, perdizes se escondiam entre os arbustos, tinha uma
pedra. Ela ficava no ponto de encontro dos territórios das bruxas, embora os limites jamais
tivessem sido formalmente demarcados.
A pedra era da altura de um homem alto, feita de rocha azulada. Considerava-se
extremamente mágica, porque, embora só houvesse uma, ninguém jamais conseguira contá-la. Se
a pedra via alguém olhando para ela de maneira pensativa, corria para trás da pessoa. Era o
monólito mais tímido já encontrado.
Também era um dos inúmeros pontos de descarga para a magia que se acumulava nas
Ramtops. Por vários metros, o chão em torno dela não tinha neve e fumegava.
A pedra começou a se afastar para trás de uma árvore e olhou desconfiada para a bruxa.
Vovó esperou dez minutos, até Margrete chegar correndo pela estrada de Arminho
Louco, aldeia cujos moradores já vinham se acostumando a massagens de orelha e remédios
homeopáticos à base de flor para tudo o que não fosse decapitação.* Ela estava arfante e usava
apenas um xale sobre a camisola que, se Margrete tivesse alguma coisa para revelar, seria esse o
traje ideal.
- Você também sentiu? - perguntou. Vovó afirmou com a cabeça.
- Onde está Gytha? - indagou.
Ambas olharam para o caminho que conduzia a Lancre, um conjunto de luzes na
escuridão nevada.
Havia uma festa. A luz vertia para a rua. Uma fila de pessoas entrava e saía da casa de Tia
Ogg, de cujo interior vinham ocasionais risadas estridentes e o ruído de copos se
quebrando e crianças chorando. Era evidente que a vida em família estava sendo
experimentada em seu limite naquela casa.
As duas bruxas se mostraram hesitantes na rua.
- Acha que devemos entrar? - perguntou Margrete, acanhada - Não fomos convidadas.
Nem trouxemos bebida.
- Parece que já tem bebida demais lá dentro - argumentou Vovó Cera do Tempo, em tom
de censura.
Um homem cambaleou pela porta, arrotou, deu de cara com Vovó, disse “Feliz réveillon
dos porcos, minha senhora”. Quando olhou para o rosto dela, ficou imediatamente sóbrio.
- Senhorita - corrigiu Vovó.
- Sinto muitíssimo... - começou.
Vovó passou impetuosa pelo desconhecido.
- Margrete, venha - chamou.
O barulho estava no limiar da dor. Tia Ogg seguia a tradição da noite de réveillon dos
porcos e convidara toda a aldeia, de modo que o ar da sala já havia ultrapassado o limite dos
controles de poluição. Vovó avançou por entre a multidão, ao som de uma voz rachada que
explicava aos presentes que, comparado a uma variedade incrível de outros animais, o porco-
espinho tinha sorte.
Tia Ogg estava sentada no sofá próximo à lareira, com uma pequena xícara na mão,
regendo a música com um charuto. Sorriu ao ver Vovó.
- Olarilas! - gritou mais alto que o tumulto. - Então você veio. Tome um drinque. Tome
dois. Veja só, Margrete! Puxe uma cadeira e fique à vontade, gata.
Greebo, que estava enroscado no canto da lareira, observando as festividades com o olho
amarelo entreaberto, balançou o rabo uma ou duas vezes.
Vovó se sentou ereta, a personificação da decência.
- Não viemos para ficar - respondeu, olhando para Margrete, que já estendia o braço em
direção à tigela de amendoins. – Vejo que você está ocupada. A gente só imaginou que talvez
tivesse notado... alguma coisa. Hoje à noite. Um tempo atrás.
Tia Ogg franziu a testa.
- O primogênito de nosso Darron passou mal - lembrou. - Tomou a cerveja do pai.
- A menos que ele tenha passado muito mal - advertiu Vovó -, duvido que seja disso que
estou falando.
Ela fez um sinal secreto no ar, que Tia Ogg ignorou por completo.
- Alguém tentou dançar em cima da mesa - observou. - Caiu no doce de abóbora de
nosso Reet. Rimos muito.
Vovó mexeu as sobrancelhas e botou o dedo sugestivamente no nariz.
- Eu estava me referindo a coisas de outra natureza - disse, insinuante.
Tia Ogg olhou para ela.
- Algum problema no olho, Esme? - perguntou.
Vovó Cera do Tempo suspirou.
- Formações terrivelmente preocupantes de inclinação mágica estão agora em
desenvolvimento - soltou ela, em voz alta.
A sala ficou em silêncio. Todos se voltaram para as bruxas, à exceção do primogênito de
Darron, que aproveitou a oportunidade para continuar suas experiências alcoólicas. Então, com a
mesma rapidez com que haviam parado, várias dezenas de conversas foram retomadas.
- Talvez fosse boa idéia a gente conversar num lugar mais reservado - propôs Vovó,
quando o rebuliço se reinstaurou na sala.
As três acabaram na lavanderia, onde Vovó tentou explicar como era a mente com que
tinha se deparado.
- Está lá fora, em algum lugar na floresta das montanhas - avisou. - E é muito grande.
- Parecia estar procurando alguém - notou Margrete. - Lembrava a mente de um cachorro
grande, sabe? Perdido. Desorientado.
Vovó pensou a respeito. Agora que parava para refletir...
- Exatamente - confirmou. - Algo assim. Um cachorro grande.
- Preocupado - acrescentou Margrete.
- A procura - salientou Vovó.
- E cada vez com mais raiva - recordou Margrete.
- Isso mesmo - assentiu Vovó, fitando Tia Ogg.
- Pode ser um troll - sugeriu Tia Ogg. - Deixei a bebida quase inteira lá dentro - reclamou.
- Gytha, eu sei como é a mente de um troll - retrucou Vovó.
Ela não cuspiu as palavras. Aliás, foi a maneira calma com que falou que fez Tia Ogg
titubear.
- Dizem que existem trolls enormes no Centro - disse, pensativa. - E gigantes de gelo e
criaturas peludas imensas que vivem nas regiões de neve perpétua. Mas você não está falando de
nada disso.
- Não.
- Ah.
Margrete estremeceu. E disse a si mesma que bruxa tinha controle absoluto do próprio
corpo e que a pele arrepiada debaixo da camisola não passava de uma fantasia sua. O problema
era que ela tinha ótima imaginação.
Tia Ogg suspirou.
- Então é melhor darmos uma olhada nisso - decidiu, tirando a tampa da caldeira de
ferver roupa.
Tia Ogg nunca usava a lavanderia, já que o serviço era realizado pelas cunhadas, aquele
bando de mulheres subjugadas, de rosto cinza, cujo nome ela não se preocupava em guardar. O
local, portanto, tinha se tornado depósito para plantas secas, caldeiras queimadas e potes de geléia
de marimbondo em processo de fermentação. Havia dez anos não se acendia fogo debaixo da
caldeira. Os tijolos estavam caindo aos pedaços, e brotavam samambaias raras em torno da
fornalha. A água sob a tampa era negra e, segundo rumores, não tinha fundo. Os netos de Tia
Ogg eram levados a crer que monstros da aurora dos tempos viviam em suas profundezas, pois
ela acreditava que um pouco de medo infundado era ingrediente essencial à magia da infância.
No verão, a lavanderia servia para gelar cerveja.
- Vai ter que servir. Acho que a gente deveria dar as mãos - propôs. - E você, Margrete,
veja se a porta está trancada.
- O que vamos fazer? - perguntou Vovó.
Como estavam no território de Tia Ogg, cabia a ela escolher.
- Como queira. Só que parecem mais uma vara e uma tábua de bater roupa - reagiu o
demônio.
Vovó olhou para o lado. O canto da lavanderia estava amontoado de lenha, com um
grande e pesado cavalete na frente. Ela encarou o demônio e, sem olhar, investiu a vara contra a
madeira grossa.
O silêncio que se seguiu foi interrompido apenas pelas metades impecavelmente cortadas
do cavalete balançando para frente e para trás e dobrando-se lentamente sobre a pilha de lenha.
O rosto do monstro continuou impassível.
- Vocês têm direito a três perguntas - avisou.
- Existe alguma coisa estranha no reino? - quis saber Vovó.
O demônio pareceu pensar.
- E nada de mentira - advertiu Margrete. - Senão você vai levar esse esfregão.
- Você quer dizer mais estranha do que em geral?
- Vamos logo com isso - pediu Tia Ogg. - Meus pés estão congelando aqui.
- Não. Não existe nada de estranho.
- Mas nós sentimos... - começou Margrete.
- Espere, espere - cortou Vovó.
Ela mexeu os lábios em silêncio. Os demônios eram como gênios ou professores de
filosofia: se a gente não fizesse a pergunta certa, eles se deleitavam em nos dar respostas exatas,
mas totalmente enganosas.
- Existe alguma coisa no reino que não existia antes? - arriscou.
- Não.
A tradição dizia que só poderiam ser três perguntas. Vovó tentou formular uma questão
que não pudesse ser deliberadamente mal interpretada. E se deu conta de que estava jogando o
jogo errado.
- Afinal, o que está acontecendo? - perguntou. - E não me venha com graça, senão vou
cozinhar você.
O demônio pareceu hesitar. Aquela era, sem dúvida, uma nova abordagem.
- Margrete, traga a lenha para cá - pediu Vovó.
- Eu protesto contra esse tratamento - reclamou o demônio, a voz tomada de incerteza.
- A gente não tem tempo para ficar de lengalenga com você a noite toda - objetou Vovó.
- Esses jogos de palavras podem ser muito bons para os magos, mas nós temos mais o que fazer.
- Olhe - disse o demônio, e agora havia um quê de horror em sua voz. - Nós não
podemos fornecer informações espontaneamente. Existem regras.
- Margrete, tem um pouco de óleo velho na lata da estante -informou Tia Ogg.
- Se eu disser a vocês... - começou o demônio.
- Sim? - insistiu Vovó.
- Vocês não vão dar com a língua nos dentes, vão?- perguntou.
- De maneira nenhuma - prometeu Vovó.
- Boca fechada - garantiu Margrete.
- Não existe nada de novo no reino - explicou o demônio -, mas a terra despertou.
- Como assim? - indagou Vovó.
- Ela está triste. Quer um rei que a ame.
- Como... - começou Margrete, mas Vovó acenou para que se calasse.
- Você não está falando do povo, está? - perguntou. A cabeça brilhosa se sacudiu. - Não,
achei que não.
- O que... - começou Tia Ogg.
Vovó pôs o dedo em seus lábios. Deu meia-volta e se dirigiu à janela da lavanderia, um
cemitério empoeirado de teia de aranha com asas desbotadas de borboletas e moscas-varejeiras
do verão anterior. O brilho fraco ultrapasssando o vidro fosco sugeria que, contra toda a razão,
logo raiaria um novo dia.
- Sabe nos dizer por quê? - perguntou, sem se virar.
Ela sentira a mente de um país inteiro... Estava impressionada.
- Eu sou só um demônio. Não sei de nada. Só sei o quê, não o porquê nem o como.
- Entendo.
- Posso ir agora?
- Hein?
- Por favor.
Vovó voltou a se endireitar.
- Ah, claro. Vá lá - disse, distraída. - Obrigada.
A cabeça não se mexeu. Ficou parada como um porteiro de hotel que tivesse acabado de
subir dez andares com quinze malas, mostrado a todo mundo onde fica o banheiro, ajeitado os
travesseiros e agora sentia que mão havia mais cortinas a ajustar.
- Vocês podem me banir? - pediu o demônio, quando ninguém deu mostras de entender a
atitude.
- O quê? - perguntou Vovó, que já refletia novamente.
- Eu me sentiria melhor se fosse devidamente banido. “Vá lá” deixa um pouco a desejar -
justificou a cabeça.
- Ah. Bem, se isso lhe dá algum prazer. Margrete!
- O quê? - perguntou Margrete, sobressaltada. Vovó lhe entregou a vara de mexer roupa.
- Faça as honras - pediu.
Margrete pegou a vara pelo que imaginava ser o cabo e sorriu.
- Claro. Certo. Muito bem. Hum. Suma, diabo imundo, para o buraco mais negro...
O demônio sorriu satisfeito quando as palavras o atingiram. Aquilo era mais apropriado.
Derreteu na água da caldeira como cera de vela sob fogo cerrado. Seu último comentário
insolente, quase perdido no redemoinho, foi “Vá lááááááááá...”.
Vovó chegou em casa quando a luz rosada e fria do alvorecer avançava pela neve.
As cabras estavam inquietas no anexo. Os estorninhos matraqueavam sob o telhado. Os
camundongos chiavam atrás do armário da cozinha.
Preparou um bule de chá, ciente de que todos os ruídos da cozinha pareciam ligeiramente
mais altos do que deveriam. Quando largou a colher na pia, parecia que tinha martelado um sino.
Depois de participar de magia organizada, sempre se sentia indisposta ou, como ela diria,
combalida dos nervos. Pegou-se andando pela casa em busca do que fazer e esquecendo as
tarefas pela metade. Não parava de caminhar de um lado para o outro.
E nessas horas que a mente encontra os serviços mais estranhos para executar a fim de se
livrar de sua função principal, ou seja, pensar. Se alguém estivesse olhando, teria ficado abismado
com a dedicação extrema com que Vovó se entregou a trabalhos como limpar o descanso do
bule, arrancar sementes antigas da fruteira e tirar, com uma colher de sopa, migalhas fossilizadas
de pão das rachaduras no chão de lajes.
Os animais tinham mente. As pessoas tinham mente, embora a mente humana fosse um
troço vago e anuviado. Até os insetos tinham mente, pequenos pontinhos de luz na escuridão.
Vovó se considerava especialista em mentes. Tinha certeza de que país não tinha mente.
País nem era vivo, ora bolas. País era... bem, era...
Espere aí. Espere aí... Um pensamento se insinuou na mente de Vovó e timidamente
tentou lhe chamar a atenção.
Havia uma possibilidade de a floresta ter mente. Vovó se levantou com um pedaço de
pão antigo na mão e mirou a lareira, meditativa. Olhou através dela, até as passagens cobertas de
neve entre as árvores. Sim. Jamais lhe ocorrera antes. Com certeza, seria uma mente feita de todas
as outras pequenas mentes que a constituíam: a mente das plantas, dos pássaros, dos ursos, até a
mente grande e lenta das próprias árvores...
Ela se sentou na cadeira de balanço, que começou a balançar por conta própria.
Sempre pensara na floresta como uma grande criatura, mas apenas metaforicamente,
como diriam os magos: zumbindo preguiçosa no verão, rugindo enfurecida nos ventos outonais,
dormindo enroscada em si mesma no inverno. Ocorreu-lhe que, além de ser um conjunto de
outras coisas, a floresta era uma coisa em si mesma. Viva, só que não da mesma forma com que,
digamos, uma jararaca está viva.
E bem mais lenta.
Aquilo tinha que ser importante. A que freqüência batia o coração da floresta? Talvez
uma vez por ano. E, o cálculo parecia mais ou menos correto. Lá fora, a floresta aguardava pelo
sol mais forte e pelos dias mais longos que lançariam milhões de litros de seiva a várias centenas
de metros do chão, numa erupção sistólica, alta e grande demais para ser ouvida.
E foi a essa altura que Vovó mordeu o lábio.
Ela tinha acabado de pensar a palavra “sistólica”, e aquilo certamente não fazia parte de
seu vocabulário.
Alguém estava dentro de sua cabeça.
Alguma coisa.
Ela acabara de pensar todas aquelas idéias, ou elas tinham sido pensadas através dela?
Vovó olhou para o chão, tentando manter os pensamentos em segredo. Mas sua mente
parecia visível, como se a cabeça fosse feita de vidro.
Ela se pôs de pé, abriu a cortina.
E eles estavam lá no que, em meses mais quentes, era o gramado. Todos olhavam para
ela.
Depois de alguns minutos, a porta da frente se abriu. Aquilo, por si só, era um
acontecimento: como a maioria dos ramtopenses, Vovó só usava a porta dos fundos. Na vida, só
em duas ocasiões era apropriado passar pela porta da frente, e a pessoa era carregada em cada
uma delas.
A porta se abriu com dificuldade, numa série de solavancos bruscos. Algumas lascas de
pintura caíram num banco de neve, que cedeu. Por fim, quando já estava aberta pela metade, a
porta se escancarou.
Com cuidado, Vovó saiu para a neve tranqüila.
Estava vestindo o chapéu pontudo e a longa capa negra que usava quando queria deixar
claro que era bruxa.
Havia uma antiga cadeira de cozinha enterrada pela metade na neve. No verão, era um
lugar providencial para se sentar e fazer qualquer trabalho manual, enquanto vigiava a estrada.
Decidida, vovó pegou a cadeira, limpou o tampo e se sentou com pernas abertas e braços
cruzados. Projetou o queixo para frente.
O sol ia alto, mas a luz daquele dia de réveillon dos porcos ainda estava oblíqua e rosada.
Reluzia na grande nuvem de vapor que pairava sobre os animais ali reunidos. Eles não se
mexiam, a não ser quando algum batia o casco no chão ou se cocava.
Vovó ergueu os olhos para certo movimento no alto. Não tinha notado antes, mas todas
as árvores em volta do jardim estavam carregadas de pássaros, a ponto de parecer que uma
estranha primavera marrom e preta chegara mais cedo.
Ocupando o terreno onde as ervas cresciam no verão, estavam os lobos, sentados com a
língua de fora. Logo atrás deles, o grupo de ursos estava agachado, com um bando de veados ao
lado. Na frente, havia uma multidão de coelhos, doninhas, crudelarminhos, texugos, raposas e
uma infinidade de outras criaturas que - apesar do fato de levarem a vida num ambiente
sanguinário de caça e morte a unhadas, patadas e dentadas - são geralmente conhecidas como os
“bichinhos do bosque”.
Estavam todos juntos na neve, com suas habituais relações culinárias totalmente
esquecidas, tentando vencê-la pelo olhar.
Duas coisas logo ficaram claras para Vovó. A primeira era que aquilo parecia representar
um apanhado bastante exato da fauna florestal.
A segunda ela não pôde deixar de dizer em voz alta.
- Não sei que feitiço é esse - falou. - Mas vou dar um conselho. Quando passar, é bom
muitos de vocês darem o fora.
Nenhum deles se mexeu. Não se ouvia nada além de um velho texugo se aliviando com a
fisionomia constrangida.
- Olhem aqui - disse Vovó. - O que eu posso fazer? Não adianta vocês virem até mim.
Ele é o novo rei. Este é seu reino. Não posso me intrometer. Não é certo eu me intrometer,
porque não posso interferir no governo de ninguém. Isso tem de se resolver por conta própria,
doa a quem doer. É uma regra fundamental da magia. Não dá para sair por aí dominando as
pessoas com feitiços, porque seria necessário cada vez mais.
Ela se recostou, grata que a tradição não permitisse aos Sábios e Competentes
governarem. Lembrava-se muito bem do que havia sentido ao usar a coroa, mesmo que por
apenas alguns segundos.
Não, coroas e similares surtiam um efeito perturbador em gente sábia. Era melhor deixar
o governo para indivíduos cujas sobrancelhas se encontravam quando tentavam pensar. Por
estranho que pareça, eram melhores nisso. Vovó acrescentou:
- A pessoa tem que resolver isso sozinha. É fato conhecido de todos.
Sentiu que um dos veados maiores lhe dirigia, em particular, um olhar desconfiado.
- Tudo bem, ele matou o antigo rei - admitiu. - Mas é a natureza, não é? Vocês sabem
muito bem disso. Sobrevivência da não-sei-o-quê. Vocês nem imaginam o que é um sucessor,
devem achar que é um tipo de coelho.
Ela tamborilou os dedos no joelho.
- De qualquer maneira, o antigo rei também não era muito amigo de vocês. Toda aquela
caça...
Trezentos pares de olhos escuros cravaram-se nela.
- Não adianta vocês me olharem assim - insistiu Vovó. – Não posso sair por aí me
metendo com reis só porque vocês não gostam deles. Onde é que isso acabaria? A mim ele não
fez mal nenhum.
Vovó tentou evitar o olhar de um arminho vesgo.
- Tudo bem, é egoísmo - reconheceu. - Bruxa é assim. Tenham um bom dia.
Entrou na casa e tentou bater a porta. A madeira emperrou uma ou duas vezes,
estragando o efeito.
Fechou a cortina e, furiosa, sentou-se na cadeira de balanço, oscilando.
- A questão é essa - pensou em voz alta. - Não posso me intrometer. A questão é essa.
Os dois se viraram para olhar Tomjon, que os fitou e começou a comer a maçã.
- Era a fala da Larva de O Tiranol - cochichou Hwel. Seu domínio habitual da língua o
abandonara. - Minha nossa! - exclamou.
- Mas ele falou exatamente como...
- Vou chamar Vitoller - decidiu Hwel.
Saltou da carroça e correu por entre poças geladas até a frente do comboio, onde o ator e
empresário assobiava desafinado.
- Ora, ora, bzugda-hiara7 - saldou Vitoller, alegre.
- Venha ver! Ele esta falando!
- Falando? Hwel dava pulos.
- Fazendo citações! - gritou. - Venha ver! Ele fala do mesmo jeito que...
7
Insulto mortal na língua dos anões, mas aqui usado como mostra de afeto. Significa “enfeite de jardim”.
- Eu? - perguntou Vitoller alguns minutos mais tarde, depois de terem parado as carroças
num pequeno bosque de árvores desfolhadas à margem da estrada. - Eu falo assim?
- Fala - respondeu a trupe, em coro.
O jovem Willikins, que se especializara em papéis femininos, cutucou Tomjon de leve
quando o menino subiu no barril virado de cabeça para baixo, no meio da clareira.
- Você sabe minha fala de Fique a Vontade - perguntou.
Tomjon concordou.
- Oh, não está morto o homem caído debaixo da pedra. Pois se Morte pudesse ao menos
ouvir...
Eles escutaram em silêncio, enquanto a neblina avançava pelos campos úmidos e a bola
vermelha do sol descia no céu. Quando o garoto terminou, lágrimas quentes inundavam o rosto
de Hwel.
- Pelo amor de todos os deuses - disse o anão, quando o menino acabou. - Eu devia estar
em ótima forma quando escrevi isso.
Ele assoou o nariz.
- Eu falo assim? - perguntou Willikins, descorado.
Vitoller bateu no seu ombro.
- Minha flor, se você falasse assim - respondeu -, não estaria afogado até as nádegas em
neve suja, perdido no meio desses campos abandonados, sem nada além de repolho para a hora
do chá.
Ele bateu as mãos.
- Agora chega - acrescentou, com o hálito formando baforadas de vapor no ar gelado. -
De volta à estrada, pessoal. Temos de sair de Sto Lat até o sol se pôr.
Enquanto os atores despertavam do estado de encantamento e se dirigiam ao abrigo das
carroças, Vitoller acenou para o anão e pôs a mão em seu ombro, ou, antes, sobre sua cabeça.
- Pois bem - começou. - Sua gente sabe tudo de magia, ou pelo menos é o que dizem. O
que você acha?
- Ele passa o tempo todo no palco, senhor. É natural que apreenda alguma coisa -
respondeu Hwel, distraído.
Vitoller se inclinou.
- Acha realmente isso?
- O que eu acho é que ouvi a única voz que transformou meus versos e lançou-os de
volta ao meu coração - respondeu Hwel. - E que ouvi a única voz que foi além da forma grosseira
das palavras e disse tudo o que eu pretendia dizer mas não tive talento para alcançar. Quem sabe
de onde vêm essas coisas?
Olhou impassível para o rosto vermelho de Vitoller.
- Talvez ele tenha herdado do pai - acrescentou.
- Mas...
- E quem sabe do que bruxa não é capaz? - imaginou o anão.
Vitoller sentiu a mão da mulher na sua. Quando se levantou, confuso e irritado, ela o
beijou na nuca.
- Não fique se torturando - aconselhou a senhora Vitoller. - Não é motivo para alegria?
Seu filho acaba de declamar sua primeira palavra.
8
Alguém tem que fazer o serviço. É muito fácil pedirem olho de salamandra-aquá-tica, mas seria o olho comum,
manchado ou cristado? Será que tapioca não serve? Se substituirmos o olho por clara de ovo, o feitiço: a)
funciona; b) não funciona; ou c) derrete o fundo do caldeirão? A curiosidade de Dona Lamória nesse sentido
era vasta e insaciável.
Quase insaciável. Provavelmente foi saciada em seu último vôo para verificar se a vassoura continuava
funcionando caso as cerdas fossem arrancadas uma a uma em pleno ar. De acordo com o pequeno corvo preto
que ela tinha treinado como operador de vôo, a resposta quase certamente era não.
Margrete abriu a porta dos fundos. A tempestade tinha passado, mas agora os primeiros
raios de luz fraca do novo dia surgiam sob uma garoa firme. Ainda se podia considerar aquilo
alvorada, e Margrete estava decidida.
Com silvas lhe prendendo o vestido, com o cabelo colado à cabeça pela chuva, partiu
para a floresta.
As árvores tremiam, mesmo sem brisa.
Tia Ogg também se levantou cedo. Não tinha conseguido dormir. Além disso, estava
preocupada com Greebo. Ele era um de seus desvarios. Embora ela estivesse certa de que se
tratava de um gato gordo, manhoso, fedorento e estuprador serial, instintivamente o imaginava
como o gatinho fofo que fora décadas antes. O fato de que ele já perseguira uma loba e até
surpreendera uma ursa que, inocentemente, procurava raízes não a deixou menos preocupada
com a possibilidade de que algo ruim pudesse lhe acontecer. Todas as outras pessoas do reino
achavam que a única coisa que poderia sossegar Greebo era ser o alvo de um meteorito.
Agora, ela empregava um pouco de magia elementar para seguir o seu rastro, embora
qualquer sujeito com o mínimo de olfato pudesse localizá-lo. A magia levou-a pelas ruas
molhadas até o portão do castelo.
Ao passar, cumprimentou os guardas. Não ocorreu a nenhum deles detê-la, porque as
bruxas - assim como os apicultores e os gorilas gigantes - iam aonde bem entendiam. Fosse como
fosse, aquela senhora batendo uma colher numa tigela não parecia o primeiro pelotão de
nenhuma força invasora.
A vida de um guarda do castelo de Lancre era bem entediante. Um dos homens,
apoiando-se na lança enquanto Tia Ogg passava, desejou que houvesse mais emoção no trabalho.
Daqui a pouco, ele descobrirá que isso foi um erro. O outro guarda se aprumou e fez
continência.
- Dia, mãe.
- Dia, Shawn - respondeu Tia Ogg, e avançou pelo pátio interno.
Como toda bruxa, ela tinha horror de adentrar pela porta principal. Contornou o castelo e
entrou pela cozinha. Duas criadas lhe fizeram reverência, bem como a governanta, que Tia Ogg
reconheceu vagamente como nora, embora não conseguisse lembrar seu nome.
E foi assim que, quando lorde Felmet saiu do quarto, viu, avançando pelo corredor em
sua direção, uma bruxa. Não havia dúvida. Da ponta do chapéu às botas, a mulher era bruxa. E
avançava em sua direção.
Margrete deslizou sem jeito por uma ladeira. Estava molhada até a alma e coberta de
lama. De algum modo, pensou com amargura, quando líamos sobre aqueles feitiços nos livros,
sempre imaginávamos uma linda manhã ensolarada de primavera. E ela tinha esquecido de
conferir que droga de samambaia deveria ser.
Várias gotas de chuva pingaram de uma árvore. Margrete tirou o cabelo ensopado dos
olhos e se sentou num tronco caído, de onde cresciam agrupamentos enormes de cogumelos
pálidos e intrincados.
Parecera uma idéia tão boa! Ela alimentara grandes esperanças para o sabá. Tinha certeza
de que não era certo ser bruxa sozinha, acabaria criando idéias esquisitas. Sonhara com discussões
inteligentes sobre energias naturais enquanto uma lua imensa pairava no céu, e elas possivelmente
arriscariam algumas danças antigas descritas nos livros de Dona Lamória. Não exatamente nuas -
ou peladas, como era encantadoramente chamado -, porque Margrete conhecia as formas de seu
corpo, e as bruxas mais velhas pareciam compactas de uma ponta à outra da saia, e, enfim, aquilo
não era necessário. Os livros diziam que as bruxas de outrora às vezes dançavam de bata.
O que não esperava eram duas velhas crocheteiras mal-educadas que não entravam no
espírito da coisa. Ah, elas tinham sido generosas com o bebê, a seu modo, mas Margrete não
conseguia deixar de pensar que, se bruxa era generosa com alguém, existia interesse por trás.
E, quando faziam mágica, parecia mero serviço doméstico. Não usavam nenhuma jóia
ocultista. Margrete acreditava piamente em jóia ocultista.
Estava tudo dando errado. Decidiu voltar para casa.
Levantou, arregaçou o vestido molhado, começou a andar pela floresta enevoada...
... e ouviu o som de pés correndo. Alguém vinha em alta velocidade, sem se importar em
ser ouvido e, mais alto que o ruído de galhos se partindo, havia um tilintar curioso. Margrete se
escondeu atrás de um arbusto e espiou com cautela por entre as folhas.
Era Shawn, caçula de Tia Ogg, e o som de metal vinha da armadura, que era muito maior
do que deveria. Lancre é um reino pobre e, com o passar dos séculos, as armaduras dos guardas
do palácio eram passadas de geração a geração, com freqüência na ponta de uma vara. Aquela ali
o fazia parecer um cachorro à prova de balas.
A menina saiu de detrás do arbusto.
- É você, Dona Margrete? - perguntou Shawn, levantando a aba da armadura que lhe
cobria os olhos. - Foi minha mãe!
- O que aconteceu?
- O rei prendeu! Disse que ela foi ao castelo para envenená-lo! E não posso descer ao
calabouço porque todos os guardas são novos! Dizem que ela está acorrentada... - Shawn fechou
a cara - ... e isso quer dizer que vai acontecer alguma coisa terrível. Você sabe como ela fica
quando perde a paciência. Não quero nem ver.
- Aonde você estava indo? - perguntou Margrete.
- Buscar nosso Jason, nosso Wane, nosso Darron, nosso...
- Espere um pouco.
- Ah, Dona Margrete, imagine se tentam torturar minha mãe. Você sabe do que ela é
capaz quando se irrita...
- Eu estou pensando - objetou Margrete.
- O rei botou guarda-costas no portão e...
- Shawn, fique quieto um minuto, está bem?
- Quando nosso Jason descobrir, vai acabar com o duque. Ele disse que já era hora de
alguém fazer isso.
Jason era um rapaz com o corpo e, - Margrete sempre achara -, o intelecto de uma
manada de bois. Por mais durão que fosse, ela duvidava que sobrevivesse a uma saraivada de
flechas.
- Não conte para ele ainda - pediu, pensativa. - Pode ter outro jeito...
- Então vou procurar Vovó Cera do Tempo - disse Shawn, saltando de uma perna para
outra. - Ela vai saber o que fazer, ela é bruxa.
Margrete ficou imóvel. Parecia irritada antes, mas agora se mostrava furiosa. Estava
molhada, com fome e frio, e aquele sujeito... Tempos atrás, pensara, teria desatado a chorar
exatamente naquele instante.
- Ai - murmurou Shawn. - Hum. Não era minha intenção.
Ai. Hum...
Ele recuou.
- Se você encontrar Vovó Cera do Tempo - avisou Margrete, com calma, num tom de
voz que poderia gravar as palavras em vidro -, diga que vou resolver tudo. Agora vá embora antes
que eu o transforme em sapo. Aliás, você já parece um sapo.
Deu meia-volta, arregaçou a barra do vestido e correu em direção ao chalé.
Lorde Felmet era uma dessas pessoas que se regozijam com a desgraça alheia. E era bom
nisso.
- Está confortável? - perguntou.
Tia Ogg considerou a questão.
- Você quer dizer fora essas correntes? - indagou.
- Suas adulações baratas não me compram - disse o duque. - Eu desprezo seus artifícios
de trapaça. Você vai ser torturada, fique sabendo.
Aquilo não pareceu surtir o efeito desejado. Tia Ogg estudava o calabouço com a
curiosidade de uma turista.
- E depois será queimada - informou a duquesa.
- Tudo bem - assentiu Tia Ogg.
- Tudo bem?
- Ué, está um frio danado aqui. O que é aquele armário cheio de pontas de lança?
O duque tremia.
- Ah-há! - exclamou. - Você está começando a entender. Aquilo é um instrumento de
tortura. Vai...
- Posso experimentar?
- Fique à vont...
A voz do duque se perdeu. As contrações começaram. A duquesa se inclinou para a
frente até o imenso rosto vermelho se encontrar a apenas alguns centímetros do nariz de Tia
Ogg.
- Essa despreocupação lhe dá prazer - sussurrou. - Mas logo, logo você vai comer o pão
que o diabo amassou!
- Não estou com fome - respondeu Tia Ogg.
A duquesa mexeu numa bandeja de apetrechos.
- Ah, mas vai ficar - disse, pegando um alicate.
- E nem pense que outras pessoas da sua laia virão ajudar - observou o duque, que suava
apesar do frio. - Só nós temos a chave deste calabouço. Ah! Ah! Você vai servir de exemplo para
todos os que vêm espalhando rumores maliciosos a meu respeito. Não alegue inocência! Eu ouço
as vozes o dia inteiro, mentindo...
A duquesa agarrou o braço dele.
- Chega - cortou. - Venha, Leonal. Vamos deixá-la refletir um pouco sobre o seu destino.
- ... os rostos... mentiras cruéis... eu não estava lá e, de qualquer maneira, ele caiu... o
mingau, todo salgado... - murmurou o duque, cambaleante.
Os dois saíram e bateram a porta. Ouviu-se o estalido da fechadura e o ruído surdo dos
ferrolhos.
Tia Ogg ficou sozinha na escuridão. A tocha presa no alto da parede só deixava o breu
ainda mais ameaçador. Estranhos objetos de metal, criados sem nenhum outro intuito além de
testar o corpo humano, projetavam sombras assustadoras. Tia Ogg se mexeu nas correntes.
- Muito bem - disse. - Estou vendo você. Quem é?
O rei Verence deu um passo adiante.
- Eu vi você fazendo caretas atrás dele - observou Tia Ogg. - Quase não me contive de
vontade de fazer também.
- Eu não estava fazendo careta, estava sendo másculo e durão.
Tia Ogg apertou os olhos.
- Ora, eu conheço você - disse. - Você está morto.
- Prefiro “falecido” - salientou o rei.
- Eu até faria reverência9 - alegou Tia Ogg. - Só que tem todas essas correntes... Você por
acaso não viu um gato por aí?
- Vi. Está dormindo lá em cima.
Tia Ogg pareceu relaxar.
- Então está tudo bem - suspirou. - Eu estava começando a ficar preocupada. - Ela correu
os olhos pelo calabouço mais uma vez. - O que é aquele cavalo de madeira?
- Potro - respondeu o rei, e explicou sua utilização. Tia Ogg escutou.
9
Bruxa nunca faz reverencia.
- Que mente engenhosa ele tem! - exclamou.
- Madame, acho que sou o responsável pela sua atual situação - admitiu Verence,
sentando-se numa bigorna, ou pelo menos flutuando pouco acima dela. - Eu queria atrair uma
bruxa até aqui.
- Imagino que você não seja muito bom com cadeados.
- Acho que eles estão além de minhas capacidades... mas... - o fantasma do rei agitou a
mão num gesto vago que incluía o calabouço, Tia Ogg e os grilhões - ... para uma bruxa, tudo
isso não passa de...
- Ferro - cortou Tia Ogg. - Talvez você consiga atravessar qualquer coisa, mas eu não.
- Eu não sabia - lamentou Verence. - Achei que bruxa fizesse magia.
- Meu jovem - irritou-se Tia Ogg. - Cale a boca.
- Madame! Eu sou rei!
- Você está morto. Se eu fosse você, não me atreveria a ter opinião sobre nada. Agora
fique quieto e espere, como um bom menino.
Contra todos os seus instintos, o rei se pegou obedecendo. Não havia como contrariar
aquele tom de voz. Era um tom de voz que o remetia à infância. Seus ecos advertiam que, se ele
não comesse tudo, iria direto para a cama.
Tia Ogg se agitou nas correntes. Esperava que elas aparecessem logo.
- Hã - disse o rei, sem jeito. - Acho que lhe devo uma explicação...
- Obrigada - respondeu Vovó Cera do Tempo, e, como Shawn parecia esperar por aquilo,
acrescentou: - Você foi um bom menino.
- Sim, dona - disse Shawn. - Dona?
- Tem mais alguma coisa?
Constrangido, Shawn enrolou os dedos na malha da armadura.
- Não é verdade o que todo mundo fala da minha mãe, é? - perguntou. - Ela não sai por
aí jogando praga nos outros. Só no açougueiro Daviss. E em Pãobolo, depois que ele chutou o
gato. Mas não era o que se pode chamar de praga, era, dona?
- Pare de me chamar de dona.
- Está bem, dona.
- Andam falando isso?
- Andam, dona.
- Bem, a sua mãe, às vezes, chateia as pessoas.
Shawn pulava de uma perna para outra.
- É, dona, mas também falam coisas horríveis da senhora, dona, pelas costas, dona.
Vovó ficou dura.
- Que coisas?
- Nem gosto de dizer, dona.
- Que coisas?
Shawn considerou o passo seguinte. Não havia muitas saídas.
- Mentiras, dona - respondeu, tratando de deixar clara sua opinião. - Todo o tipo de
coisas. Que o rei Verence era mal e a senhora o ajudava, que a senhora provocou o inverno
rigoroso do ano passado, que a vaca do velho Norbut parou de dar leite depois que a senhora
olhou para ela. Um monte de asneiras, dona - acrescentou, em mostra de lealdade.
- Certo - respondeu Vovó.
Fechou a porta na cara ofegante dele, meditou por um instante e foi para a cadeira de
balanço. Por fim, mais uma vez, disse:
- Certo.
Pouco depois, acrescentava:
- Ela é uma velha idiota, mas não podemos deixar ninguém fazer mal às bruxas. Quando
perdem o respeito por nós, não temos mais nada. Não me lembro de olhar para a vaca do velho
Norbut. Quem é o velho Norbut?
Ela se levantou, tirou o chapéu pontudo do gancho atrás da porta e, olhando para o
espelho, prendeu-o à cabeça com vários grampos. Um a um eles escorregaram, irrefreáveis como
a fúria de Deus.
Sumiu no anexo por alguns instantes e voltou com a capa de bruxa, que servia de
cobertor para cabras doentes quando não era usada.
Um dia, havia sido de veludo preto. Agora era só preta. Foi cuidadosamente abotoada
com um broche fosco de prata.
Nenhum samurai, nenhum cavaleiro jamais se vestira com tamanho aprumo.
Por fim, Vovó se empertigou, estudou o reflexo sombrio no espelho, deu um sorriso de
aprovação e saiu pela porta dos fundos.
O ar de ameaça só foi ligeiramente dispersado pelo barulho que fez ao correr de uma
ponta a outra do lado de fora da casa, tentando fazer a vassoura pegar.
- Estou vendo - anunciou Tia Ogg - um objeto que começa com a letra A.
O fantasma do rei correu os olhos pelo calabouço.
- Agulha - arriscou.
- Não.
- Anjinhos?
- Que nome lindo. O que é?
- Anel de ferro para apertar dedo - afirmou o rei.
- Não é isso - disse Tia Ogg.
- Pau-de-arara? - arriscou, em desespero.
- Isso começa com P, e nem sei o que é - admitiu. O rei indicou o instrumento e explicou
seu uso.
- Certamente não - afirmou Tia Ogg.
- A bota esmagadora de castigo? - insistiu o rei.
- Você é bom demais nesses nomes - protestou. - Tem certeza de que não usava essas
coisas quando vivo?
- Absoluta, Tia Ogg - respondeu o fantasma.
- Menino que mente vai para lugar ruim - advertiu.
- Na verdade, lady Felmet instalou a maioria deles - o rei tratou de esclarecer.
Ele achava que sua posição já era precária o bastante e não era necessário tentar piorar.
Tia Ogg deu uma fungada.
- Pois bem - disse, ligeiramente satisfeita. - Era alfinete.
- Mas alfinete é quase a mesma coisa que ag... - começou o rei, e se deteve a tempo.
Durante a vida adulta, ele não sentira medo de nenhum homem, animal ou combinação
de ambos, mas a voz de Tia Ogg trazia lembranças de escolas e salas de aula, de uma vida dura
sob ordens estritas dadas por mulheres severas de saias longas e da terrível comida infantil - em
geral cinza e marrom -, que na época parecia intragável mas agora se apresentava como um
distante manjar dos deuses.
- Cinco a zero para mim - alegrou-se Tia Ogg.
- Eles vão voltar logo - avisou o rei. - Tem certeza de que a senhora vai ficar bem?
- Se não ficar, como exatamente você poderia intervir? - perguntou Tia Ogg.
Ouviu-se o ruído de ferrolhos se abrindo.
Já havia uma multidão do lado de fora do castelo quando a vassoura de Vovó começou a
bambolear em direção ao chão. Todos abriram caminho e se calaram quando ela se aproximou.
Vovó trazia uma cesta de maçãs debaixo do braço.
- Tem uma bruxa no calabouço - sussurrou alguém. - E dizem que farão torturas
horríveis!
- Que absurdo - contestou Vovó. - Não pode ser. Tia Ogg só deve ter vindo aconselhar o
rei ou coisa parecida.
- Dizem que Jason Ogg foi buscar os irmãos - observou o dono de uma barraca,
admirado.
- Acho melhor vocês voltarem para casa - sugeriu Vovó Cera do Tempo. - Deve ter sido
um mal-entendido. Todo mundo sabe que não se pode prender bruxa.
- Dessa vez, ele foi longe demais - irritou-se um camponês. - Todos esses incêndios,
impostos e agora isso! Eu me admiro de vocês, bruxas. Isso tem que parar. Eu sei dos meus
direitos.
- E quais são? - perguntou Vovó.
- Trouxa de roupa, mucuna, troças, sobras, migalhas e esclaréia - respondeu o camponês,
com prontidão. - E abelotas, de dois em dois anos, e dois terços de uma cabra da propriedade.
Até ele atear fogo nela. Era uma ótima cabra.
- Qualquer homem vai longe sabendo de seus direitos como você - ironizou Vovó. - Mas
agora é melhor ir para casa.
Ela deu meia-volta e olhou para o portão. Tinha dois guardas bastante apreensivos a
postos. Aproximou-se e cravou os olhos num deles.
- Sou uma pobre vendedora de maçãs - disse, num tom de voz mais apropriado para o
começo de troca de insultos em guerra. - Por favor, me deixe passar, benzinho.
A última palavra tinha farpas.
- Ninguém pode entrar no castelo - afirmou um dos guardas. - Ordens do duque.
Vovó encolheu os ombros. Até onde sabia, o truque da vendedora de maçãs só tinha
funcionado uma vez em toda a história da bruxaria, mas era tradicional.
- Eu conheço você, Champett Poldy - disse. - Lembro-me de botar seu avô para
descansar e trazer você para este mundo.
Ela olhou para a multidão, que tinha se reunido um pouco mais longe, e virou-se
novamente para o guarda, cuja fisionomia era uma máscara de horror. Aproximou-se e
acrescentou:
- Fui eu que lhe dei as primeiras palmadas neste vale de lágrimas e, por todos os deuses,
se você me contrariar agora, juro que darei as últimas.
O guarda soltou a lança. Vovó estendeu o braço e lhe deu tapinhas tranqüilizadores no
ombro.
- Não se preocupe - acrescentou. - Experimente uma maçã.
Tentou avançar, mas uma segunda lança lhe barrou a passagem. Ela ergueu os olhos.
O outro guarda não era ramtopense, mas sim um mercenário criado na cidade grande
para engrossar as tropas exauridas dos últimos anos. O rosto era um emaranhado de cicatrizes.
Várias se rearranjaram no que talvez fosse um sorriso.
- Então, essa é a magia das bruxas? - provocou. - Bem reles. Talvez assuste os matutos do
campo, mas a mim não assusta nem um pouco.
- Um moço alto e forte como você não deve se assustar facilmente - admitiu Vovó,
levando a mão à cabeça.
- E não tente me enrolar.
O guarda olhou para a frente.
- Velhas como você engambelando as pessoas. Não sei como elas agüentam.
- Nem eu - disse Vovó, afastando a lança.
- Olhe aqui, eu avisei... - começou o guarda, e segurou o ombro de Vovó.
A mão dela se agitou tão rápido que parece não ter saído do lugar, mas de repente ele
estava apertando o próprio braço e gemendo.
Vovó repôs o grampo no chapéu e saiu em disparada.
***
Vovó Cera do Tempo não estava perdida. Não era o tipo de pessoa que se perde. Ocorre
que, naquele instante, embora soubesse EXATAMENTE onde ela estava, não sabia de mais
nada. Havia chegado à cozinha outra vez, causando esgotamento nervoso no cozinheiro, que
estava tentando assar um pouco de aipo. O fato de que várias pessoas tentaram comprar maçãs
não ajudava em nada seu humor.
Margrete conseguiu chegar ao salão principal, vazio àquela hora do dia, a não ser por dois
guardas que jogavam dados. Eles usavam o uniforme da guarda pessoal de Felmet e
interromperam o jogo assim que ela apareceu.
- Ora, ora - disse um deles, olhando-a com malícia. - Veio nos fazer companhia, boneca?10
10
Ninguém sabe por que os homens falam essas coisas. A qualquer momento, ele deve dizer que gosta de mulher
geniosa.
- Estou procurando os calabouços - explicou Margrete, para quem as palavras “assédio
sexual” não passavam de um conjunto de sílabas.
- Ótimo - atestou um dos guardas, piscando para o outro. -Acho que podemos ajudá-la.
Eles se levantaram e se puseram ao seu lado. Margrete sentiu dois queixos dignos de se
riscar fósforos e um cheiro pavoroso de cerveja. Sinais nervosos de partes remotas de sua mente
começavam a derrubar sua firme convicção de que coisas ruins só aconteciam a pessoas ruins.
Conduziram-na por vários lances de escada até um labirinto de corredores arqueados e
úmidos, enquanto Margrete pensava num jeito educado de se desvencilhar daqueles homens.
- Eu vou logo avisando - disse. - Não sou, como pode parecer, uma simples vendedora de
maçãs.
- Maravilha.
- Na verdade, eu sou bruxa.
A revelação não pareceu surtir o efeito que ela havia esperado. Os guardas se
entreolharam.
- Tudo bem - respondeu um deles. - Eu sempre quis saber como era beijar bruxa. Aqui na
cidade dizem que a gente vira sapo.
O outro guarda o cutucou.
- Então eu acho - começou, no tom de voz calmo e equilibrado de quem acha que o que
está prestes a dizer é incrivelmente engraçado - que você beijou uma faz tempo.
A gargalhada breve foi subitamente interrompida quando Margrete se viu jogada contra a
parede e presenteada com um dose das narinas do guarda.
- Agora escute aqui, princesa - ameaçou. - Você não é a primeira bruxa que trazemos aqui
para baixo, se é que é mesmo bruxa. Mas você pode dar sorte e sair daqui. Se for boazinha com a
gente, entendeu?
Ouviu-se um grito agudo.
- Está escutando? - perguntou o guarda. - Isso é uma bruxa levando a pior. Você pode
fazer a todos nós um favor. Na verdade, foi sorte sua nos encontrar.
A mão dele se deteve no ar.
- O que é isso? - perguntou ao rosto lívido de Margrete. - Uma faca? Uma foca? Acho que
temos de levar isso a sério, hein, Hron?
- Amarre as mãos dela e a amordace - comandou Hron. - Elas não fazem mágica se não
conseguem falar ou mexer os braços...
- Tire as mãos de cima dela!
Os três olharam para o fim do corredor, onde estava o Bobo. Ele tinia de raiva.
- Solte a moça agora mesmo! - gritou. - Ou vou denunciar vocês!
- Ah, vai nos denunciar? - ironizou Hron. - E quem vai dar ouvidos a você, seu zé-
ninguém?
- Ela é bruxa - avisou o outro guarda. - Então trate de tilintar em outro lugar. - Ele se
virou para Margrete. - Eu gosto de mulher geniosa.
O Bobo avançou com a coragem dos enfurecidos.
- Eu disse para soltar a moça - repetiu.
Hron sacou a espada e piscou para o colega.
Margrete deu o bote. Foi um golpe instintivo e espontâneo, com força ampliada pelo
peso de anéis e braceletes. O braço zuniu num arco que culminou no queixo do agressor e fez
com que ele girasse duas vezes antes de cair no chão com um suspiro - e com vários símbolos de
significado oculto estampados no rosto. Aturdido, Hron olhou para ele, depois para Margrete.
Levantou a espada no mesmo instante em que o Bobo se jogou contra ele, e os dois rolaram pelo
chão. Como qualquer homem pequeno, o Bobo dependia da corrida inicial para garantir
vantagem e não sabia o que fazer na seqüência. Teria sido difícil para ele se, de repente, Hron não
tivesse sentido uma faca de pão apertada contra o pescoço.
- Solte ele - exigiu Margrete, tirando o cabelo dos olhos.
O guarda ficou duro.
- Você está se perguntando se eu realmente cortaria a sua garganta - acrescentou
Margrete, com a voz ofegante. - Também não sei. Imagine como será divertido nós descobrirmos
juntos.
Ela estendeu o outro braço e suspendeu o Bobo pela gola.
- De onde veio aquele grito? - perguntou, sem despregar os olhos do guarda.
- Dali. Ela está no quarto de torturas, não estou gostando nada disso, foi tudo longe
demais, não consegui entrar, então vim procurar alguém...
- Bem, você me achou - cortou Margrete. - E você - falou para Hron - vai ficar aqui. Ou
fugir, não importa. Mas não nos siga.
Ele assentiu e se limitou a olhá-los avançar pelo corredor.
- A porta está trancada - avisou o Bobo. - Dá para ouvir barulho, mas a porta está
trancada.
- Bom, é um calabouço, não é?
- Mas não costumam trancar por dentro!
De fato, a porta não se mexia. Do interior, vinha apenas silêncio: um silêncio espesso e
diligente que se insinuava pelas ra-chaduras e vertia para o corredor - o tipo de silêncio que é pior
do que gritos.
O Bobo não parava quieto enquanto Margrete investigava a superfície áspera da porta.
- Você é mesmo bruxa? - perguntou. - Os guardas disseram que você é bruxa. Mas não
parece bruxa, você é muito, quer dizer... - Ele enrubesceu. - Não é nem um pouco feia, mas sim
muitíssimo bonita...
A voz se perdeu.
Tenho a situação inteiramente sob controle, disse Margrete a si mesma. Nunca imaginei
que fosse ter, mas estou pensando com muita clareza.
E, com muita clareza, se deu conta de que o enchimento havia deslizado para a cintura, a
cabeça parecia ter servido de ninho para uma família de pássaros sujos e, mais do que escorrer, a
sombra de olho tinha corrido. O vestido estava rasgado em várias partes, as pernas estavam
arranhadas, os braços, machucados, mas por algum motivo ela se sentia no topo do mundo.
- Verence, é melhor você se afastar - avisou. - Não tenho certeza do que vai acontecer.
O Bobo ficou surpreso.
- Como sabe meu nome?
Margrete estudava a porta. A madeira era velha, tinha séculos de idade, mas ela sentia a
seiva sob a superfície transformada pelo desgaste dos anos num negócio quase tão duro quanto
pedra. Normalmente, o que ela precisaria fazer exigiria todo um dia de preparativos e um saco de
ingredientes exóticos. Pelo menos, era o que sempre imaginara. Agora, estava pronta para pôr
tudo em xeque. Mas, se era possível evocar demônios em tina de lavar roupa, tudo era válido.
Lembrou que o Bobo tinha falado.
- Ah, acho que ouvi em algum lugar - respondeu, vagamente.
- É pouco provável, eu nunca uso - objetou o Bobo. – Quer dizer, não é um nome muito
querido pelo duque. Foi minha mãe, sabe? Acho que elas gostam de batizar os filhos com nome
de rei. Meu avô dizia que eu não tinha o direito de ter um nome desses e que não deveria sair por
aí...
Margrete avaliava o corredor úmido com olhos profissionais.
Não era um lugar promissor. As velhas tábuas de madeira estavam na escuridão ali
embaixo durante todos aqueles anos, longe do relógio das estações...
Por outro lado... Vovó disse que, de algum modo, todas as árvores são uma árvore, ou
coisa parecida. Margrete imaginou ter entendido aquilo, embora não tivesse certeza do que
significava. E era primavera. O fantasma da vida que ainda habitava a madeira deveria saber
disso. Ou, se tivesse esquecido, precisava ser lembrado.
Ela pôs as palmas das mãos na porta mais uma vez e fechou os olhos, tentou se imaginar
além da estrutura de pedra, fora do castelo, na terra fina e negra das montanhas, ao ar livre, sob a
luz do sol...
O Bobo notou apenas que Margrete ficou muito parada. Então o cabelo dela se arrepiou,
e surgiu um cheiro de adubo.
Sem nenhum aviso, aquele martelo capaz de fazer um cogumelo com consistência de
marshmallow avançar por quinze centímetros de chão duro ou uma enguia atravessar milhares de
quilômetros hostis de oceano até um lago específico passou por ela e atingiu a porta.
Ela recuou com cuidado, aturdida, lutando contra o desejo desesperado de enterrar os
dedos dos pés no chão de pedra e brotar folhas. O Bobo a segurou, e o choque quase o
derrubou.
Margrete se escorou no corpo tilintante, sentindo-se vitoriosa. Tinha conseguido! E sem
nenhum auxílio artificial! Se pelo menos as outras pudessem ver aquilo...
- Não chegue perto - alertou. -Acho que botei muita... força.
O Bobo ainda segurava o corpo esquálido de Margrete e estava admirado demais para
proferir qualquer palavra, mas ela teve sua resposta.
- Acho que sim - disse Vovó Cera do Tempo, saindo das sombras. - Eu mesma nunca
teria pensado nisso.
Margrete olhou para ela.
- Estava aí esse tempo todo?
- Só há alguns minutos. -Vovó espiou a porta. - Boa técnica - opinou. - Mas é madeira
velha. Acho que também já passou pelo fogo. Tem muitas tachas e peças de ferro. Não deve
funcionar. Se fosse eu, teria tentado a parede de pedra, mas...
Ela foi interrompida por um “bum” fraco. Ouviu-se outro, e mais uma série deles ao
mesmo tempo, feito chuva de suspiros.
Atrás dela, muito suavemente, a porta brotava folhas. Vovó olhou aquilo durante alguns
segundos, depois se deparou com o olhar apavorado de Margrete.
- Fuja! - gritou.
As duas agarraram o Bobo e correram para o abrigo de um botaréu providencial.
A porta soltou um estalo de advertência. A tábua se torcia de agonia, e houve uma chuva
de lascas de pedra quando as tachas foram expelidas como espinhos de uma ferida e
ricochetearam na parede. O Bobo agachou quando parte da fechadura zuniu sobre sua cabeça e
estourou na parede oposta.
A parte inferior da madeira estendeu raízes brancas, rastejantes, que avançaram pelo chão
úmido até a rachadura mais próxima e começaram a se infiltrar. Os nós da madeira inflaram,
explodiram e criaram ramos que atingiram as pedras do vão da porta e deslocaram-nas. E durante
o tempo todo ouvia-se um rugido baixo, o som das células da madeira tentando conter o ímpeto
de vida que as atravessava.
- Se fosse eu - disse Vovó Cera do Tempo, quando parte do teto desmoronou mais
adiante no corredor -, não teria feito assim. Não que eu a esteja reprovando, entenda -
acrescentou, quando Margrete abriu a boca. - Foi um trabalho razoável. Só acho que você
exagerou um pouco.
- Com licença - pediu o Bobo.
- Não sei fazer com pedra - admitiu Margrete.
- É, pedra exige mais tempo...
- Com licença.
As bruxas o encararam, e ele recuou.
- Vocês não deveriam estar salvando alguém? - perguntou.
- Ah! - exclamou Vovó. - É verdade. Vamos, Margrete. É melhor ver no que ela andou se
metendo.
- Nós ouvimos gritos - exasperou-se o Bobo, sentindo que as duas não levavam o assunto
a sério o bastante.
- Tenho certeza - disse Vovó, afastando-o e pisando na raiz primária - de que, se alguém
trancasse a mim no calabouço, você ouviria gritos.
Havia muita poeira no calabouço e, pelo halo de luz em torno da tocha única, Margrete
divisou dois vultos agachados no canto mais distante. A maior parte da mobília estava de cabeça
para baixo, espalhada pelo chão. Os móveis não pareciam arquitetados para ser o máximo em
termos de conforto. Tia Ogg estava sentada tranqüilamente no que parecia ser uma espécie de
tronco.
- Vocês demoraram - observou. - Por favor, me tirem daqui. Estou ficando com cãibra.
E havia o punhal.
A arma girava lentamente no meio do calabouço, brilhando quando a lâmina refletia luz.
- Meu próprio punhal! - vociferou o fantasma do rei, numa voz que só as bruxas
escutavam. - Esse tempo todo e eu não sabia! Meu próprio punhal! Eles me mataram com meu
próprio punhal!
Agitando a arma, deu outro passo em direção ao casal agachado. Um suspiro fraco
escapou dos lábios do duque, satisfeito por se ver livre dali.
- Ele está se saindo muito bem, não está? - perguntou Tia Ogg, quando Margrete a
libertava.
- Não é o antigo rei? Eles podem vê-lo?
- Acho que não.
Rei Verence cambaleou sob o peso da arma. Estava velho demais para aquele tipo de
atividade sobrenatural. Era preciso ser adolescente para aquele...
- Deixa só eu segurar isto aqui - murmurou. - Ah, droga...
O punhal se desprendeu das mãos frágeis do fantasma e caiu no chão. Vovó Cera do
Tempo deu um passo à frente e pisou na lâmina.
- Os mortos não devem matar os vivos - esclareceu. – Isso abriria um precedente terrível.
Em primeiro lugar, estaríamos todos em enorme desvantagem.
A duquesa emergiu do pânico inicial. Vira punhais dançando no ar e portas explodindo, e
agora aquelas mulheres a desafiavam em seu próprio calabouço. Ela não estava certa de como
reagir aos problemas sobrenaturais, mas tinha idéias bem firmes de como lidar com eles.
A boca se abriu como os portões do inferno.
- Guardas! - gritou, e avistou o Bobo parado próximo à porra. - Bobo! Chame os guardas!
- Eles estão ocupados. A gente já estava de saída - argumentou Vovó. - Qual de vocês é o
duque?
Do canto onde se encontrava agachado, Felmet a encarou. Um fio de saliva lhe escapava
do canto da boca, e ele ria.
Vovó se aproximou. No meio daqueles olhos estranhos, alguma outra coisa a fitava.
- Não vou lhe dar nenhum motivo - disse ela, baixinho. - Mas é melhor você deixar o
país. Abdicar ou o que for.
- A favor de quem? - perguntou a duquesa, friamente. - De uma bruxa?
- Eu não vou fazer isso - respondeu o duque.
- O que disse?
O duque se endireitou, limpou um pouco de poeira da roupa e encarou Vovó. A frieza no
meio dos olhos aumentou de tamanho.
- Eu falei que não farei nada disso - repetiu. - Você acha que um pouco de mágica me
assusta? Eu sou rei por direito, e você não pode mudar isso. É simples.
Ele chegou mais perto.
Vovó o fitou. Não havia enfrentado nada parecido antes. O homem era sem dúvida
louco, mas no âmago de sua loucura havia uma sanidade terrível, um núcleo de gelo puro no
meio da fornalha. Ela o imaginara fraco por debaixo da casca fina do poder, mas ia muito além
disso. Em algum lugar no fundo de sua mente, em algum canto além do horizonte da
racionalidade, a insanidade tinha transformado a loucura numa coisa mais resistente do que
diamante.
- Se você me derrotar com magia, a magia vai dominar - disse o duque. - E você não pode
fazer isso. Qualquer rei entronado com sua ajuda estaria sob o seu poder. Seria oprimido por ele.
O que a magia domina, a magia destrói. Também destruiria você. Você sabe disso. Ah! Ah!
Os nós dos dedos de Vovó embranqueceram quando ele se aproximou.
- Você pode me vencer - continuou. - E talvez ache alguém para me substituir. Mas ele
teria que ser um idiota, porque sabe que estará sob seus cuidados e que, se por acaso a
desapontar, a vida dele estará perdida num piscar de olhos. Você pode protestar o quanto quiser,
mas ele saberia que governa com sua permissão. E isso faria dele qualquer coisa, menos rei. Não
é verdade?
Vovó desviou o olhar. As outras bruxas recuaram, prontas para agachar.
- Eu perguntei se não é verdade.
- É - respondeu Vovó. - É verdade...
- É, sim.
- ... mas existe alguém que pode derrotá-lo - argumentou Vovó, devagar.
- O menino? Que venha, quando crescer. O jovem de espada em punho buscando seu
destino. - O duque sorriu, zombetei-ro. - Bem romântico. Mas tenho muitos anos para me
preparar. Que ele tente.
Ao lado, rei Verence esmurrou o ar.
O duque se aproximou até ficar com o nariz a dois centímetros do rosto de Vovó.
- Voltem aos seus caldeirões, estranhas irmãs - murmurou.
Vovó Cera do Tempo avançava pelos corredores do Castelo de Lancre como um grande
morcego enfurecido, e a risada do duque ecoava em sua cabeça.
- Por que não lhe arranja furúnculos? - sugeriu Tia Ogg. - Hemorróida também é ótimo.
É permitido. Não o impediria de governar, ele apenas teria que governar de pé. Sempre vale uma
boa risada.
Vovó Cera do Tempo não respondeu. Se raiva virasse calor, o chapéu dela teria pegado
fogo.
- Melhor não, isso provavelmente o deixaria ainda pior - advertiu a própria Tia Ogg,
correndo para manter o passo. – Igual a dor de dente.
Ela olhou de esguelha para a fisionomia crispada de Vovó.
- Não precisa se preocupar - acrescentou. - Eles não fizeram muita coisa. Mas, de
qualquer jeito, obrigada.
- Gytha Ogg, não estou preocupada com você - rebateu Vovó. - Só vim junto porque
Margrete estava preocupada. Sempre digo que, se a bruxa não consegue cuidar de si mesma,
então não deveria nem se considerar como tal.
- Achei que Margrete fez um excelente trabalho com a porta.
Mesmo em meio à fúria, Vovó Cera do Tempo se permitiu concordar.
- Ela está chegando lá - admitiu.
Olhou para os dois lados do corredor e se aproximou do ouvido de Tia Ogg.
- Eu não daria a ele o prazer de dizer isso - acrescentou. - Mas ele nos venceu.
- Ah, não sei, não - respondeu Tia Ogg. - Nosso Jason e alguns outros rapazes
poderiam...
- Você viu os guardas dele. Não são como os de antigamente. São violentos.
- Nós poderíamos ajudar um pouco os meninos...
- Não adianta. As pessoas precisam resolver essas coisas por conta própria.
- Se é o que você acha - disse Tia Ogg.
- É, sim. A magia está aí para ser governada, não para governar.
Tia Ogg concordou e, lembrando-se de uma promessa, pegou no chão entulhado do
corredor um pedaço de pedra.
- Achei que tivesse esquecido - disse o fantasma do rei, ao seu ouvido.
Pouco atrás, o Bobo saltitava no encalço de Margrete.
- Posso vê-la de novo? - perguntou.
- Bem... não sei - respondeu Margrete, satisfeita.
- Que tal hoje à noite? - sugeriu.
- Ah, não - respondeu a bruxa. - Estou muito ocupada hoje à noite.
Ela havia planejado se deitar com uma xícara de leite quente e as anotações de Dona
Lamória sobre astrologia experimental, e as anotações de Dona Lamória sobre astrologia
experimental, e o instinto lhe dizia que qualquer pretendente deveria ter grandes obstáculos pela
frente para ficar mais interessado.
- Que tal amanhã a noite? - insistiu o Bobo.
- Acho que vou lavar o cabelo.
- Posso tirar folga na noite de sexta-feira.
- Nós trabalhamos muito nas noites de sexta-feira, sabe...
- Então à tarde.
Margrete hesitou. Talvez o instinto estivesse errado.
- Bem... - disse.
- Às duas horas. No campo, perto da lagoa, pode ser?
- Bem...
- Então está combinado - concluiu o Bobo, em desespero.
- Bobo!
A voz da duquesa ecoou no corredor, e o medo transfigurou a fisionomia do Bobo.
- Preciso ir - disse. - No campo, combinado? Vou usar alguma coisa que ajude você a me
reconhecer. Tudo bem?
- Tudo bem - respondeu Margrete, hipnotizada pela força da insistência.
Ela deu meia-volta e correu atrás das outras bruxas.
Havia confusão do lado de fora do castelo. A multidão que estivera ali à chegada de Vovó
havia crescido consideravelmente, ultrapassado o portão agora desprovido de guardas e cercado o
castelo. Desobediência civil era novidade em Lancre, mas os cidadãos já dominavam algumas de
suas manifestações mais básicas, isto é, a agitação de pás e foices no ar, com movimentos
verticais simples, acompanhada de caretas e gritos de “Eêê!”, embora alguns indivíduos, que não
tinham entendido completamente a idéia, agitassem bandeiras e aplaudissem. Alunos avançados
já observavam os prédios mais inflamáveis. Vários vendedores de torta de carne e pão com
salsicha haviam surgido do nada11 e mantinham um comércio animado. Logo, logo alguém ia
atirar alguma coisa.
As três bruxas pararam no alto da escada que conduzia à porta principal do castelo e
estudaram o mar de rostos.
- Lá está nosso Jason - animou-se Tia Ogg. - E Wayne e Darron e Kev e Trev e Nev...
- Vou me lembrar deles - disse lorde Felmet, surgindo entre elas e botando as mãos em
seus ombros. - Estão vendo meus arqueiros no muro?
- Estamos - respondeu Vovó, seca.
- Então sorriam e acenem - ordenou o duque. - Para que as pessoas saibam que está tudo
bem. Afinal de contas, vocês não vieram me ver hoje para discutir assuntos de Estado?
Ele se aproximou de Vovó.
- É, tem uma porção de coisas que você poderia fazer - salientou. - Mas o fim seria
sempre o mesmo. - Ele recuou. – Sou um homem razoável - acrescentou, com satisfação. -
11
Sempre surgem, em qualquer lugar. Ninguém os vê chegar. A explicação lógica é que a franquia inclui a
barraca, o chapéu de papel e uma pequena máquina do tempo movida a gás.
Talvez, se vocês convencerem as pessoas a se acalmar, eu decida moderar um pouco o governo.
É claro que não estou prometendo nada.
Vovó não respondeu.
- Sorriam e acenem - exigiu o duque.
Vovó levantou a mão num movimento vago e produziu uma careta que não tinha nada de
alegria. Cutucou Tia Ogg, que vinha acenando e gargalhando feito louca.
- Não precisa se entusiasmar - sussurrou.
- Mas nosso Reet e nossa Sharleen estão ali com os bebês - argumentou Tia Ogg. - U-hu!
- Quer calar a boca, sua velha burra? - irritou-se Vovó. - E trate de se endireitar!
- Minha nossa, muito bem! - exclamou o duque.
Ele ergueu as mãos, ou pelo menos uma delas. A outra ainda doía. Na noite anterior,
havia tentado o ralador mais uma vez, sem muito sucesso.
- Povo de Lancre - gritou. - Não tenha medo! Sou amigo de vocês. E vou protegê-los das
bruxas! Elas concordaram em nos deixar em paz!
Vovó o observava falar. É um daqueles maníaco-depressivos, pensou. Sempre para um
lado e para o outro. Uma hora mata a pessoa, um minuto depois pergunta como está se sentindo.
Vovó se deu conta de que ele a olhava em expectativa.
- Que foi?
- Eu disse que agora passaria a palavra à respeitada Vovó Cera do Tempo, ah! ah! -
escarneceu.
- Você disse isso?
- Disse!
- Agora foi longe demais - protestou Vovó.
- Fui, não fui?
O duque sorriu.
Vovó se virou para a massa, que se mantinha em silêncio.
- Vão para casa - pediu. Houve mais silêncio.
- Só isso? - admirou-se o duque.
- Só.
- E quanto aos votos de fidelidade eterna?
- O que tem eles? Gytha, você quer parar de acenar para as pessoas?
- Desculpe.
- E agora nós também vamos embora - decidiu Vovó.
- Mas a gente estava se dando tão bem - lamentou o duque.
- Gytha, vamos - chamou Vovó, friamente. - E onde Margrete se enfiou?
Cheia de culpa, Margrete ergueu os olhos. Estava mergulhada na conversa com o Bobo,
embora aquele fosse o tipo de conversa em que ambos os participantes passam muito tempo
olhando os próprios pés e roendo unha. Do amor verdadeiro, noventa por cento é intenso e
corrosivo constrangimento.
- Estamos indo - informou Vovó.
- Sexta-feira à tarde, não se esqueça - cochichou o Bobo.
- Bem, se eu puder - respondeu Margrete.
Tia Ogg olhou para ela com malícia.
Então Vovó Cera do Tempo desceu a escada e passou pela multidão, com as outras duas
correndo em seu encalço. Vários dos guardas que sorriam surpreenderam, contrariados, o olhar
de Vovó, mas, entre a multidão, volta e meia ouvia-se um riso abafado. Ela cruzou o portão, a
ponte levadiça e a cidade. Andando rápido, Vovó vencia a maioria das pessoas correndo.
Atrás delas, o duque, que atingira o ponto mais alto da montanha-russa da loucura e
descia em disparada para as águas do desespero, gargalhava.
- Ah! Ah!
Vovó só parou quando estava fora da cidade, sob a proteção acolhedora da floresta. Saiu
da estrada e se sentou num tronco de árvore, com o rosto nas mãos.
As outras se aproximaram com cautela. Margrete lhe afagou as costas.
- Não se desespere - disse. - Nós achamos que a senhora se saiu muito bem.
- Não estou desesperada, estou pensando - rebateu Vovó. - Saiam daqui.
Tia Ogg franziu a testa para Margrete, à guisa de advertência. As duas recuaram até uma
distância apropriada - embora, com Vovó em seu estado atual, talvez nem o universo seguinte
fosse longe o bastante - e se sentaram numa pedra coberta de musgo.
- A senhora está bem? - perguntou Margrete. - Eles não fizeram nada, fizeram?
- Nem encostaram em mim - respondeu Tia Ogg. - Aquilo não é rei - acrescentou. - O
velho rei Gruneweld, por exemplo, não teria perdido tempo agitando objetos e fazendo ameaças.
Teria sido um arraso, agulha debaixo de unha e nenhuma embromação. Nada daquela história de
ficar rindo. Era um rei de verdade. Muito elegante.
- Mas ele ameaçou queimar a senhora.
- Ah, eu não permitiria. Vi que você tem um admirador - observou Tia Ogg.
- O quê? - surpreendeu-se Margrete.
- O rapaz dos sinos - insistiu. - Com cara de cachorro sem dono.
- Ah, ele. - Margrete corou por baixo da maquiagem branca. - É só um rapaz. Anda me
seguindo.
- Pode ser difícil - disse Tia Ogg, séria.
- Além do mais, é tão baixinho. E não pára de saltitar - reclamou.
- Você olhou bem para ele? - indagou a velha bruxa.
- O quê?
- Não olhou, olhou? Achei que não. O Bobo é um homem muito inteligente. Deveria ser
um daqueles atores.
- Como assim?
- Na próxima vez, olhe para ele como bruxa, não como mulher - sugeriu Tia Ogg, e deu-
lhe uma cutucada conspiratória. - Bom trabalho com a porta lá no castelo - acrescentou. - Você
está ficando muito boa. Espero que tenha falado com ele sobre Greebo.
- Garantiu que o soltaria imediatamente.
Vovó Cera do Tempo bufou.
- Vocês ouviram risos na multidão? - perguntou. - Alguém riu!
Tia Ogg se sentou ao lado dela.
- E duas pessoas ficaram apontando - disse.
- Eu sei.
- Não podemos admitir isso!
Margrete se sentou no outro lado do tronco.
- Existem mais bruxas - lembrou. - Tem muitas bruxas nas Ramtops. Talvez possam
ajudar.
Surpresas, as outras duas olharam para ela.
- Acho que não precisamos ir tão longe - reagiu Vovó. - Pedir ajuda!
- Hábito terrível - concordou Tia Ogg.
- Mas nós pedimos ajuda a um demônio - argumentou Margrete.
- Não pedimos, não - rebateu Vovó.
- Está bem. Não pedimos.
- Nós exigimos que ele nos auxiliasse.
- Certo.
Vovó Cera do Tempo estendeu as pernas e olhou para as próprias botas. Eram botas
resistentes, com pregos e metais em meia-lua. Difícil acreditar que um sapateiro a havia feito.
Alguém tinha jogado uma sola no chão e a construído a partir dali.
- Quer dizer, tem aquela bruxa de Skund - disse. – Irmã não-sei-das-quantas, que tem um
filho marinheiro... sabe, Gytha, aquela que torce o nariz e bota um pano no espaldar da cadeira
assim que a gente senta...
- Grodley - informou Tia Ogg. - Estica o dedo mindinho quando toma chá e fala cheia de
erres e esses.
- É. Bem, eu não me dignei de falar com ela desde aquela história da forca, lembra?
Tenho certeza de que ela adoraria vir bisbilhotar, passar o dedo em tudo, torcer o nariz e nos
dizer como fazer as coisas. Ah, sim. Ajuda. Estaríamos todas perdidas se saíssemos oferecendo
ajuda por aí.
- É, e em Skund as árvores falam e andam à noite - notou Tia Ogg. - Sem pedir
permissão. Péssima organização.
- Não é boa como a nossa? - ironizou Margrete.
Vovó se levantou, decidida.
- Vou para casa - anunciou.
Existem duas boas razões para a magia não dominar o mundo. Chamam-se bruxas e
magos, refletiu Margrete, ao acompanhar as outras duas de volta à estrada.
Talvez isso fosse alguma defesa da própria natureza. O mundo se certificava de que
qualquer pessoa com talento mágico seria tão aberta à cooperação quanto uma ursa com dor de
dente, de modo que toda aquela perigosa força se dissipava em brigas e competições. Havia
diferenças de estilo, evidentemente. Os magos se matavam em corredores sombrios; as bruxas, na
rua. E eram muito egocêntricas. Mesmo quando ajudam aos outros, meditou, ajudam em
benefício próprio. Francamente, não passam de criançolas.
Menos eu, pensou, presunçosa.
- Vovó está muito chateada - comentou.
- Ah, é - confirmou Tia Ogg. - Mas é um problema. Quanto mais nos acostumamos à
magia, menos queremos usá-la. E mais ela se mete no nosso caminho. Quando você estava
começando, deve ter aprendido alguns feitiços com Dona Lamória, quedescanseempaz, e não
parava de executá-los, não foi?
- Foi. Todo mundo faz isso.
- Não é novidade - concordou Tia Ogg. - Mas, quando avançamos no Ofício,
aprendemos que a magia mais difícil é aquela que não usamos.
Margrete avaliou a frase.
- É algum tipo de zen? - perguntou.
- Não sei. Nunca vi isso.
- Quando a gente estava no calabouço, Vovó falou alguma coisa sobre tentar a parede de
pedras. Aquilo me pareceu bem complicado.
- Dona Lamória não gostava muito de pedra - notou Tia Ogg. - Mas não é nada
complicado. Basta estimular a memória da pedra. Sabe, as lembranças de antigamente. De
quando eram quentes e líquidas.
Ela hesitou, depois botou a mão no bolso. Segurou o pedaço de pedra do castelo e
relaxou.
- Por um instante, achei que tivesse esquecido - disse, suspendendo-o. - Pode sair agora.
Mal dava para vê-lo na claridade do dia, um mero vislumbre no ar sob as árvores. Rei
Verence piscou. Não estava acostumado à luz do sol.
- Esme - chamou Tia Ogg. - Olhe quem está aqui.
Vovó se virou devagar e fitou o fantasma.
- Vi você no calabouço - disse. - Quem é?
- Verence, rei de Lancre - respondeu o fantasma, e fez uma reverência. - Tenho a honra
de me dirigir a Vovó Cera do Tempo, potentado das bruxas?
Já foi mencionado que, só porque Verence vinha de uma extensa linhagem de reis, não
significava que fosse burro, e um ano sem as distrações da carne também tinha feito maravilhas.
Vovó Cera do Tempo não se considerava nem um pouco suscetível a bajulação, mas o rei estava
fazendo um bom trabalho. A mesura era um toque especialmente eficaz.
Um músculo se mexeu no canto da boca de Vovó. Ela retribuiu com uma breve
reverência dura, porque não sabia ao certo o que “potentado” queria dizer.
- Eu mesma - disse. - Pode se levantar agora - acrescentou, magnificente.
Rei Verence continuou ajoelhado, a mais ou menos cinco centímetros acima do chão.
- Preciso de um favor - pediu, com certa urgência.
- Como conseguiu sair do castelo? - perguntou Vovó.
- A estimada Tia Ogg me ajudou - respondeu. - Eu calculei que, se estava preso às pedras
do castelo, também poderia ir aonde as pedras fossem. Temo que tenha recorrido à trapaça para
ajustar tudo. No momento, estou assombrando a saia dela.
- Não é o primeiro - soltou Vovó, de sopetão.
- Esme!
- Vovó Cera do Tempo, eu lhe peço que ponha meu filho de volta ao trono.
- De volta?
- Você sabe o que quero dizer. Ele anda bem de saúde?
Vovó assentiu.
- Na última vez que o vimos, estava comendo maçã -contou.
- É o destino dele ser rei de Lancre!
- Bem, o destino é complicado - salientou Vovó.
- Você não vai me ajudar?
Vovó parecia triste.
- É interferência - justificou. - Sempre dá errado se interferimos em política. Quando a
gente começa, não consegue mais parar. É regra básica da magia. Não se brinca com regras
básicas.
- Você não vai me ajudar?
- Bem... um dia, naturalmente, quando seu filho estiver um pouco mais velho...
- Onde ele está? - perguntou o rei, seco.
As bruxas evitavam se olhar.
- Nós o enviamos com segurança para fora do país - respondeu Vovó.
- Uma família excelente - tratou de acrescentar Tia Ogg.
- Que tipo de gente? - quis saber o rei. - Espero que não sejam pessoas comuns.
- De jeito nenhum - afirmou Vovó, ao pensar na figura de Vitoller. - Nem um pouco
comuns. Hã. Bem incomuns.
Lançou um olhar de súplica para Margrete.
- Eram celebridades - atestou Margrete, com a voz irradiando tanta admiração que o rei
logo se conformou.
- Ah! - exclamou. - Ótimo.
- Eram? - cochichou Tia Ogg. - Não pareciam.
- Gytha Ogg, não fale do que não sabe - irritou-se Vovó, e virou-se para o fantasma do
rei. - Desculpe, Vossa Majestade. Ela só está querendo se mostrar. Nem sabe o que quer dizer
celubrivade.
- O que quer que seja, espero que eles saibam educar o homem nas artes bélicas -
observou Verence. - Eu conheço Felmet. Daqui a dez anos, vai estar agarrado a isto aqui como
sapo em pedra.
O rei olhou cada uma delas.
- Que tipo de reino meu filho vai encontrar? Já dá para ver no que está se transformando.
Vocês vão simplesmente observá-lo ficar cada vez mais terrível com o passar dos anos?
O fantasma do rei perdeu vitalidade.
A voz se mantinha suspensa no ar, fraca como a brisa.
- Lembrem-se, minhas boas irmãs - disse. - A terra e o rei são um só.
E sumiu.
O silêncio constrangedor foi quebrado por Margrete assoando o nariz.
- Um só o que? - perguntou Tia Ogg.
- Temos de fazer alguma coisa - indignou-se Margrete, a voz embargada de emoção. -
Com ou sem regras!
- É um horror - lamentou Vovó, num murmúrio.
- É, mas o que a senhora vai fazer a respeito? - insistiu.
- Refletir - respondeu Vovó. - Pensar em tudo isso.
- Há um ano a senhora vem pensando em tudo isso - argumentou Margrete.
- Um só o quê? São um só o quê? - perguntou Tia Ogg.
- Não adianta reagir - advertiu Vovó. - É preciso...
Uma carroça vinha chacoalhando pela estrada. Vovó Cera do Tempo ignorou-a.
- ... estudar tudo com cuidado.
- A senhora não sabe o que fazer - atestou Margrete.
- Que absurdo. Eu...
- Vovó, tem uma carroça vindo.
Vovó não deu atenção.
- O que vocês, jovens, não entendem... - começou.
Bruxa nunca se incomodava com segurança básica de trânsito. Os veículos que cruzavam
as estradas de Lancre ou se desviavam ou, quando isso não era possível, esperavam as bruxas
saírem do caminho. Vovó Cera do Tempo havia crescido com aquela certeza, e o único motivo
de não morrer sem ela foi que, com melhores reflexos, Margrete a puxou para a vala.
Era uma vala interessante. Havia negocinhos espiralados descendentes diretos de criaturas
do caldo primordial da criação. Quem imagina que água de vala é um troço sem graça deveria
passar meia hora naquela vala com um microscópio possante. A vala também tinha urtigas e,
agora, tinha Vovó Cera do Tempo.
Possessa de raiva, ela se livrou das plantas e levantou-se da vala como uma Vênus
Anadiômene, só que bem mais velha e com muito mais lentilhas-d'água.
- T-t-t - disse, apontando um dedo trêmulo para a carroça a se afastar.
- Era o jovem Nesheley, de Gorro Pintado - informou Tia Ogg, de um arbusto próximo.
- A família sempre foi meio doida. Não é de admirar, a mãe era Whipple.
- Ele jogou a carroça na gente! - gritou Vovó.
- A senhora podia ter saído do caminho - sugeriu Margrete.
- Sair do caminho? - protestou Vovó. - Nós somos bruxas! Os outros saem do nosso
caminho! - Ela se arrastou de volta à estrada, com o dedo ainda apontado para a carroça distante.
- Vou fazê-lo se arrepender do dia em que nasceu...
- Era um bebê enorme, eu me lembro - disse o arbusto. - A mãe sofreu um bocado.
- Isso nunca me aconteceu antes - reclamou Vovó, ainda tremendo como vara verde. -
Vou ensiná-lo a jogar o carro em cima de nós como se... como se... como se fôssemos pessoas
comuns!
- Ele já sabe - objetou Margrete. - Agora me ajude a tirar Tia Ogg desse arbusto.
- Vou transformar o...
- Ninguém tem mais respeito, é isso - opinou Tia Ogg, enquanto Margrete lhe ajudava
com os espinhos. - Deve ser tudo por causa do rei.
- Nós somos bruxas! - berrou Vovó, virando o rosto para cima e agitando o punho.
- Já sei, já sei - disse Margrete. - O equilíbrio do universo e tudo o mais. Acho que Tia
Ogg está um pouco cansada.
- O que estou fazendo esse tempo todo? - perguntou Vovó, com um floreio retórico que
teria deixado até Vitoller admirado.
- Nada demais - respondeu Margrete.
- Zombada! Escarnecida! Na minha própria estrada! No meu país! - gritou Vovó. - Chega!
Não agüento mais dez anos disso! Não agüento nem mais um dia!
As árvores ao redor começaram a balançar, e a poeira da estrada se levantou em formas
contorcidas que tentavam sair de seu caminho. Vovó Cera do Tempo estendeu o longo braço,
desdobrou o longo dedo e lançou um raio de fogo octarina da ponta da unha recurva.
A um quilômetro dali, as quatro rodas caíram da carroça ao mesmo tempo.
- Trancafiar bruxas? - gritou Vovó, para as árvores. Tia Ogg se levantou.
- É melhor segurá-la - cochichou para Margrete. As duas agarraram Vovó e baixaram seus
braços.
- Vou mostrar a ele do que bruxa é capaz! - vociferou.
- Tudo bem, tudo bem, está ótimo - disse Tia Ogg. - Só que talvez não agora, nem dessa
maneira.
- Estranhas irmãs, sim senhor - gritou Vovó. - Vou transformar o...
- Margrete, continue segurando - pediu Tia Ogg, e arregaçou a manga.
- Pode ser assim com as mais experientes - justificou, investindo a mão num tapa que
levantou ambas as bruxas do chão.
Talvez o universo termine num tom igualmente sonoro e derradeiro.
No fim do silêncio ofegante que se seguiu, Vovó Cera do Tempo agradeceu:
- Obrigada.
Ajeitou o vestido com alguma mostra de dignidade e acrescentou:
- Mas eu estava falando sério. Vamos nos encontrar hoje à noite, lá na pedra, e fazer o
que deve ser feito.
Reajustou os grampos do chapéu e partiu cambaleante em direção ao chalé.
- O que aconteceu com a regra que proibia interferência em política? - perguntou
Margrete, observando-a se afastar.
Tia Ogg massageava os dedos.
- Pelo amor de Hoki, o rosto daquela mulher parece uma bigorna - queixou-se. - O que
disse?
- Perguntei da regra que nos proíbe de interferir - repetiu Margrete.
- Ah - disse Tia Ogg, tomando o braço da menina. - O negócio é que, à medida que
avançamos no Ofício, nós aprendemos que existe outra regra. A vida inteira Esme sempre
obedeceu a ela.
- E qual é?
- Quando quebrar regras, quebre em cheio – respondeu Tia Ogg, e sorriu com gengivas
que eram mais ameaçadoras do que dentes.
A tempestade descansava. Não queria, mas descansava. Havia passado duas semanas
ensaiando para substituir um anticiclone famoso no mar Círculo, aparecendo todos os dias,
pairando na frente fria, grata pela chance de arrancar árvores ou levar fazendas da cidade verde de
sua escolha. Mas a grande mudança de tempo não viera.
Ela se consolava com a idéia de que mesmo as grandes tempestades de outrora - o Divino
Vento de 1789, por exemplo, do Furacão Zelda e Sua Incrível Chuva de Sapos - tinham passado
por aquele tipo de situação em algum ponto de sua carreira. Fazia parte da tradição do tempo.
Além do mais, na planície obtivera bons resultados no que se pode chamar de mímica,
trazendo neve sazonal e provocando milhões de ulcerações de frio. Agora, só precisava manter a
calma em relação ao fato de estar outra vez lá em cima, sem nada para fazer além de balançar o
mato. Se clima fosse gente, aquela tempestade estaria matando o tempo, deitada na rede da casa
de praia.
No momento, observava três mulheres avançando vagarosamente pelo campo,
convergindo com certa determinação para o lugar vazio onde geralmente ficava a pedra, embora
naquele instante ela não estivesse visível.
Reconheceu-as como velhas amigas e produziu uma trovoada breve à guisa de saudação.
Passou totalmente despercebido.
- A maldita pedra sumiu - reclamou Vovó Cera do Tempo. - Se é que é uma só.
Seu rosto estava branco. Parecia uma pintura, mas, então, o pintor era muito neurótico.
Ela não dava mostras de estar para brincadeira. Talvez, apenas para brincadeira de mau gosto.
- Margrete, acenda a fogueira - ordenou.
- Tenho certeza de que vamos nos sentir melhor depois de uma xícara de chá - opinou
Tia Ogg, entoando as palavras como se fosse um mantra. Vasculhou os recantos do xale. -
Misturada com alguma coisa - acrescentou, desencavando uma garrafinha de sidra.
- O álcool engana e enfraquece a alma - protestou Margrete, altiva.
- Nunca encosto nisso - concordou Vovó Cera do Tempo. - Gytha, é melhor a gente
manter a cabeça limpa.
- Uma gota no chá não é beber - argumentou Tia Ogg. - É remédio. Está ventando frio
aqui em cima, irmãs.
- Muito bem - assentiu Vovó. - Mas só uma gota.
Elas beberam em silêncio. Por fim, Vovó disse:
- Bem, Margrete. Você sabe tudo dessa história de sabá. E melhor fazer as coisas direito.
Qual é o próximo passo?
Margrete titubeou. Não conseguiria propor que dançassem nuas.
- Tem uma música - sugeriu. - Em louvor à lua cheia.
- Não está cheia - salientou Vovó. - Está aquilo outro. Convexa.
- Gibosa - corrigiu Tia Ogg.
- Acho que é em louvor das luas cheias de maneira geral - defendeu Margrete. -Temos
que elevar nossas consciências. Para isso, acho que realmente precisa ser lua cheia. Lua é muito
importante.
Vovó lhe dirigiu um longo olhar reflexivo.
- Bruxaria moderna é isso? - perguntou.
- Parte dela, Vovó. Tem muito mais.
Vovó Cera do Tempo suspirou.
- Cada um na sua. Mas se estiver louca vou deixar uma esfera de pedra brilhante me dizer
o que fazer!
- E, dane-se isso tudo - concordou Tia Ogg. - Vamos mandingar o rei.
12
Envolvendo um atiçador de brasas incandescente, uma latrina, quatro quilos de enguias vivas, cinco
quilômetros de rio gelado, uma pipa de vinho, dois caules de tulipa, inúmeros remédios de ouvido envenenados,
uma ostra e um homem grandalhão com um pedaço de pau. O rei Murune tinha dificuldade em fazer amigos.
- Acho que o Bobo.
Houve uma pausa meditativa. O segundo guarda mudou a alabarda de mão.
- É um trabalho horroroso - disse. - Mas alguém tem de fazê-lo.
- Não vamos mandingar ninguém - afirmou Vovó. - Quase nunca funciona, se a pessoa
não fica sabendo.
- A gente manda um boneco cheio de alfinetes para ele.
- Não, Gytha.
- E só pegar pedacinhos das unhas dos pés do duque - insistiu Tia Ogg, animada.
- Não.
- Ou fios de cabelo. Eu tenho os alfinetes.
- Não.
- Fazer mandinga é moralmente detestável e terrível para o carma - frisou Margrete.
- Bem, eu vou jogar um feitiço nele de qualquer maneira - avisou Tia Ogg. - Nem que seja
um pequenino. Eu podia ter morrido naquele calabouço!
- Não vamos jogar feitiço nenhum - rebateu Vovó. - Vamos substituí-lo. O que você fez
com o antigo rei?
- Deixei a pedra na mesa da cozinha - respondeu Tia Ogg. - Não agüentava mais.
- Não sei por quê - disse Margrete. - Ele me pareceu muito agradável. Para um fantasma.
- Ah, ele é ótimo. O problema são os outros - esclareceu.
- Outros?
- Ele pediu “Por favor, leve uma pedra do palácio para que eu possa ir junto” - contou
Tia Ogg. - “É um saco aqui, senhora Ogg, desculpe o linguajar”, foi o que disse, e claro que
obedeci. Acho que estavam todos escutando. Ah, maravilha, pensaram, vamos a bordo, é hora de
tirar umas férias. Eu não tenho nada contra fantasma. Principalmente fantasma real - acrescentou,
em tom de lealdade. - Mas meu chalé não é lugar para eles. Quer dizer, tem uma mulher numa
carruagem berrando desesperada na lavanderia. Duas crianças na copa, homens sem cabeça pela
casa inteira, alguém gritando debaixo da pia e um homenzinho peludo vagando com cara de
perdido. Isso não está certo.
- Contanto que ele não esteja aqui - ressalvou Vovó. - Não queremos homem por perto.
- Ele é fantasma, não é homem - protestou Margrete.
- Não precisamos entrar em detalhes - rebateu Vovó, friamente.
- Mas a senhora não pode trazer o antigo rei de volta ao trono - objetou Margrete. -
Fantasma não pode governar. A coroa nunca ficaria no lugar. Cairia o tempo todo.
- Vamos substituí-lo pelo menino - explicou Vovó. - Sucessão legítima.
- Ah, já falamos sobre isso - resmungou Tia Ogg. - Talvez daqui a quinze anos, mas...
- Esta noite - cortou Vovó.
- Uma criança no trono? Não duraria cinco minutos.
- Criança, não - murmurou Vovó. - Adulto. Lembra de Alisse Sobreestadia?
Houve silêncio. Tia Ogg se recostou.
- Minha nossa - sussurrou. - Você não vai tentar aquilo, vai?
- Pretendo.
- Minha nossa - repetiu Tia Ogg, em voz baixa, e acrescentou: - Andou pensando sobre
isso?
- Andei.
- Olhe, Esme, sabe, Negra Alisse era uma das melhores. Quer dizer, você é muito boa em
realizar cabeçologia, ter novas idéias e tal. Mas Negra Alisse, bem, ela não brincava em serviço.
- Está querendo dizer que eu não conseguiria?
- Com licença - pediu Margrete.
- Não. Não. Claro que não - respondeu Tia Ogg, ignorando-a.
- Acho bom mesmo.
- Só que... bem, ela era, sabe, ela era o portuário das bruxas, como o rei disse.
- Potentado - corrigiu Vovó, que havia pesquisado a palavra. - Não portuário.
- Com licença - pediu Margrete, desta vez mais alto. - Quem era Negra Alisse? E -
acrescentou às pressas - chega dessa troca de olhares sugestivos e de falarem como se eu não
existisse. Somos três bruxas nesse sabá, estão lembradas?
- Ela não é do seu tempo - explicou Tia Ogg. - Nem do meu. Vivia em Skund.
Poderosíssima.
- Se dermos ouvidos aos boatos - ressalvou Vovó.
- Uma vez, transformou uma abóbora em carruagem real - contou Tia Ogg.
- Exibicionismo - censurou Vovó Cera do Tempo. - Não é de grande ajuda chegar à festa
cheirando a torta. E aquela história de sapatinho de cristal. Perigoso, na minha opinião.
- Mas a maior façanha que realizou - prosseguiu Tia Ogg, ignorando a interrupção - foi
botar um palácio inteiro para dormir durante cem anos, até... - Hesitou. - Não me lembro bem.
Eram roseiras ou rodas de fiar? Acho que a princesa tinha que encostar o dedo no... não, tinha
um príncipe. Era isso.
- Encostar o dedo no príncipe? - indagou Margrete, sem jeito.
- Não... ele tinha que beijá-la. Negra Alisse era muito romântica. Sempre havia um pouco
de romantismo nos feitiços. Não existia nada de que ela gostasse mais do que a Menina que
Encontra o Sapo.
- Por que a chamavam de Negra Alisse?
- Por causa das unhas - respondeu Vovó.
- E dos dentes - disse Tia Ogg. - Adorava doce. Morava num chalé de pão de mel. No
fim, duas crianças a enfiaram em seu próprio forno. Um horror.
- E a senhora vai pôr o castelo para dormir? - perguntou Margrete.
- Ela não pôs castelo nenhum para dormir - respondeu Vovó. - Isso é lenda -
acrescentou, olhando para Tia Ogg. - Só mexeu um pouco no tempo. Não é tão difícil quanto se
imagina. Todo mundo faz isso. O tempo é elástico. Podemos esticá-lo, quando nos convém.
Margrete estava prestes a dizer: não é verdade, tempo é tempo, cada segundo dura um
segundo, é para isso que ele serve, sua função...
Mas lembrou de semanas que tinham voado e tardes que duravam uma eternidade.
Alguns minutos duravam horas, algumas horas passavam tão rápido que ela mal se dava conta...
- Mas é só a percepção das pessoas - disse, afinal. - Não é?
- Ah, é - respondeu Vovó. - Claro que sim. Tudo é assim. Que diferença faz?
- Talvez cem anos seja um pouco demais - calculou Tia Ogg.
- Acho que quinze seria o número perfeito - sugeriu Vovó.
- Significa que o menino estará com dezoito anos completos. A gente faz o feitiço, vai
buscá-lo, ele cumpre o destino e fica tudo bem.
Margrete não fez nenhum comentário, porque havia lhe ocorrido que o destino parecia
muito fácil quando se falava dele, porém não era nada garantido quando envolvia seres humanos
de verdade. Tia Ogg, por sua vez, recostou-se e derramou outra dose generosa de sidra no chá.
- Pode funcionar - disse. - Quinze anos de paz. Se bem me lembro do feitiço, depois de
lançá-lo você tem que voar ao redor do castelo antes do galo cantar.
- Eu não pensei nesses termos - advertiu Vovó. - Não estaria certo. Felmet ainda seria rei
durante todo esse tempo. O reino continuaria mal. Não, o que eu estava pensando era em
adiantar todo o reino.
Ela abriu um sorriso.
- Todo o reino de Lancre? - admirou-se Tia Ogg.
- É.
- Quinze anos à frente?
- É.
Tia Ogg olhou para a vassoura de Vovó. Era uma peça bem-feita, construída para durar,
afora o ocasional problema de ignição. Mas havia limites.
- Você não vai conseguir - avisou. - Não ao redor de todo o reino. Vai de Polvorarma à
Colina Escarpada. Não daria para abastecer a vassoura com magia suficiente.
- Já pensei nisso - disse Vovó.
E abriu outro sorriso. Era assustador.
Explicou o plano. Era pavoroso.
Um minuto mais tarde, o campo estava vazio, e as bruxas corriam para cumprir suas
tarefas. Silenciaram por algum tempo, a exceção do guincho dos morcegos e do farfalhar do
vento no mato.
Então se ouviu um borbulho num brejo próximo. Muito devagar, coroada por uma massa
de musgo, a pedra que demarcava os territórios emergiu da água e espiou a paisagem com ar de
extrema desconfiança.
Greebo estava realmente gostando daquilo. Primeiro, achou que o novo amigo o levava
ao chalé de Margrete, mas, por algum motivo, ele se desviara na escuridão e agora passeava pela
floresta - na opinião de Greebo, numa das áreas mais interessantes. Era um terreno acidentado,
profuso em buracos ocultos e pequenos pântanos, cheio de névoa mesmo em tempo bom.
Greebo sempre ia ali ante a possibilidade de encontrar uma loba descansando.
- Achei que gato soubesse voltar para casa sozinho - murmurou o Bobo.
E xingou a si mesmo. Teria sido fácil levar aquele animal medonho à casa de Tia Ogg,
que ficava a apenas algumas ruas de distância, quase à sombra do castelo. Mas ele tivera a idéia de
entregá-lo a Margrete. Aquilo a deixaria impressionada, pensou.
Bruxa adorava gato. E ela provavelmente o convidaria para tomar uma xícara de chá ou
algo assim...
Enfiou o pé em outro buraco cheio de água. Um troço qualquer se mexia ali embaixo. O
Bobo gemeu e voltou a pisar num cogumelo grande.
- Gato, olhe aqui - disse. - Você tem que descer, está bem? Depois vá para casa, que eu
sigo você. Gato enxerga no escuro e sempre sabe o caminho de casa - acrescentou, com
esperanças.
Levantou as mãos. Greebo afundou as unhas em seu braço, como uma espécie de aviso
camarada, e, surpreso, descobriu que não surtia nenhum efeito em armadura.
- Bom gatinho - disse o Bobo, pondo-o no chão. - Ache o caminho de casa. Qualquer
casa serve.
O sorriso de Greebo sumiu aos poucos, até só restar o gato. Aquilo era quase tão terrível
quanto o contrário.
Ele se espreguiçou e miou para esconder o constrangimento. Ser chamado de bom
gatinho num de seus lugares preferidos de caça poderia lhe destruir a reputação de predador.
Desapareceu no matagal.
O Bobo fitou o breu. Ocorreu-lhe que, embora gostasse de floresta, quanto mais longe
ficasse dela, melhor. Era bom saber que ela existia, mas a floresta de nossas mentes era bem
diferente da floresta real, onde, por exemplo, podíamos nos perder. Tinha mais carvalhos e
menos silvas. Também costumava ser imaginada à luz do dia, e as árvores não exibiam
fisionomias malévolas nem galhos compridos que espetam. As árvores da imaginação eram
gigantes da floresta. A maioria das árvores dali parecia anão vegetal, mera treliça para fungos e
heras.
O Bobo sabia que era possível inferir a direção do Centro verificando em que lado das
árvores crescia o musgo. Uma breve inspeção dos troncos mais próximos sugeria que, a despeito
da geografia convencional, o Centro estava por todos os lados.
Greebo tinha sumido.
O Bobo suspirou, tirou a proteção da armadura e partiu tilintando noite afora à procura
de um terreno mais alto. Terreno alto parecia boa idéia. O terreno em que ele pisava naquele
instante estava tremendo. O Bobo tinha certeza de que não deveria estar.
13
Possivelmente, a primeira tentativa de reabastecimento de vassoura em pleno ar.
Margrete se viu rodopiando ao vento e segurou firme a vassoura que agora temia não
dispor de maior capacidade de flutuação do que um pedaço de lenha. Certamente não sustentaria
uma mulher adulta contra os convidativos acenos da gravidade.
Enquanto caía em direção às copas da floresta num longo mergulho rasante, ela refletiu
que deveria haver algo de elogioso na maneira como Vovó Cera do Tempo se recusava
terminantemente a considerar como problemas dos outros. Significava que, em sua notável
opinião, eles eram capazes de se virar sozinhos.
Talvez fosse premente algum feitiço de Alteração.
Margrete se concentrou.
Bem, aquilo parecia funcionar.
Aos olhos do homem mortal, nada tinha, de fato, mudado. O que Margrete tinha
conseguido era um simples ajuste de processos mentais, de uma mulher aturdida e ligeiramente
assustada, despencando inexoravelmente ao chão duro, para a mulher lúcida e otimista que era
dona da própria vida e sabia de onde vinha, embora, infelizmente, nada tivesse mudado em
relação ao lugar para onde ia. Mas ela se sentia bem melhor.
Posicionou os calcanhares e obrigou a vassoura a emitir os restos de sua força numa
explosão breve, fazendo-a deslizar de modo desordenado alguns metros acima das árvores.
Quando o veículo fraquejou outra vez e começou a abrir caminho entre as folhas, Margrete se
contraiu, pediu a qualquer deus da floresta que estivesse ouvindo para pousar em alguma coisa
macia e se soltou.
Existem três mil deuses importantes no Disco, e pesquisadores de teologia descobrem
mais a cada semana. Além dos deuses inferiores da pedra, da árvore e da água, existem dois que
habitam as Ramtops: Hoki, metade homem, metade bode, terrível pregador de peças banido de
Dunmanifestin por fazer a velha brincadeira da planta que explode com o Cego Io, chefe dos
deuses; e Herne, o Caçado, a apreensiva e aterrorizada divindade de todos os animaizinhos
peludos cujo destino é acabar a vida num breve rangido crocante...
Qualquer um poderia ser responsável pelo pequeno milagre que então ocorreu, porque -
numa floresta cheia de pedras frias, cepos pontudos e arbustos espinhentos - Margrete caiu numa
coisa macia.
Enquanto isso, Vovó acelerava em direção às montanhas para cumprir a segunda metade
da viagem. Tomou o chocolate lamentavelmente morno e, com a devida consideração ambiental,
largou a garrafa ao sobrevoar um lago.
A idéia de Margrete sobre comida substanciosa eram duas rodelas de ovo e sanduíches de
agrião sem casca e com - Vovó notou, antes que o vento os levasse - um pedacinho de salsa
cuidadosamente disposto em cima de cada fatia. Vovó estudou a comida durante algum tempo. E
comeu.
Surgiu um abismo, entupido de neve invernal. Como uma minúscula centelha na
escuridão, um pontinho de luz contra a imensidão das Ramtops, Vovó contornou o labirinto de
montanhas.
O Bobo e Margrete se encontravam sentados num tronco sobre uma pequena saliência de
rocha que dava vista para a floresta. Na verdade, as luzes da cidade de Lancre não estavam longe,
mas nenhum dos dois sugeria que fossem embora.
Entre eles, o ar estalava de pensamentos secretos e suposições desvairadas.
- Você é bobo há muito tempo? - perguntou Margrete, num tom educado.
Ela enrubesceu na escuridão. Naquele ambiente, parecia a mais grosseira das perguntas.
- Desde sempre - respondeu o Bobo, com amargor. - Aprendi o ofício muito cedo.
- Imagino que seja um ofício passado de pai para filho - arriscou Margrete.
- Mal conheci meu pai. Ele se mudou para ser bobo dos lordes de Quirm quando eu era
pequeno - contou. - Teve uma briga com meu avô. De vez em quando, volta para visitar minha
mãe.
- Que horror!
Ouviu-se o tinido triste de quando o Bobo encolheu os ombros. Ele se lembrava
vagamente do pai como um homem baixinho e simpático, com olhos feito ostras. Ter a coragem
de enfrentar o velho deveria fugir completamente à sua natureza. O barulho das duas vestes de
sinos tremendo de raiva ainda lhe assombrava a memória, que já era cheia o bastante de
lembranças terríveis.
- Por outro lado - disse Margrete, a voz mais alta do que de costume, com um quê de
incerteza -, deve ser uma vida feliz. Fazer as pessoas rir.
Como não houve resposta, ela se virou para olhar o rapaz. O rosto dele estava duro como
pedra. Em voz baixa, como se ela não estivesse ali, o Bobo começou a falar.
Começou a falar do Grêmio dos Bobos e Piadistas de Ankh-Morpork.
A primeira vista, a maioria dos visitantes o confundia com o edifício do Grêmio dos
Assassinos, que, na realidade, era o agradável e ventilado prédio vizinho (os assassinos sempre
tiveram muito dinheiro). Às vezes, os bobos jovens, matando-se de trabalhar no dormitório
quase sempre congelado, mesmo em alto verão, escutavam os assassinos jovens brincando atrás
do muro e os invejavam, embora o número de vozes diminuísse bastante com o tempo já que os
assassinos também acreditavam em provas competitivas.
Na verdade, todos os tipos de sons se infiltravam através das austeras paredes sem janela
do grêmio, e, com perguntas entusiasmadas aos empregados, os bobos jovens conseguiam traçar
uma idéia da cidade. Havia tavernas e parques. Havia todo um mundo fervilhando no qual alunos
e aprendizes de vários grêmios e cursos universitários tomavam parte, fosse brincando, correndo
ou jogando coisas para cima. Havia risos sem nenhuma ligação com os Cinco Ritmos ou as Doze
Inflexões. E - embora os alunos discutissem essas notícias à noite, no dormitório - havia
aparentemente gracejos desautorizados, ditos de qualquer maneira, sem nenhuma referência ao
Livro Monstro da Troça ou ao conselho.
Lá fora, para além da parede de pedras manchadas, contavam-se piadas sem referência a
papagaios.
Era uma idéia inebriante. Quer dizer, não inebriante no sentido literal, porque não se
permitia álcool no grêmio. Mas, se permitissem, seria.
Não havia nenhum lugar mais sóbrio do que o grêmio.
Amargo, o Bobo falou do grande irmão Brincalhão, das noites de memorização das
Galhofas Alegres, das longas manhãs no ginásio gelado aprendendo as Dezoito Quedas de
Traseiro no Chão e a trajetória aceita para torta na cara. E malabarismo. Malabarismo! O irmão
Jocoso, homem de coração frio feito pedra, ensinava malabarismo. Não era o fato de o Bobo ser
ruim em malabarismo que o deixava furioso. Supunha-se que os bobos fossem ruins em
malabarismo, sobretudo quando utilizavam objetos intrinsecamente engraçados como tortas de
creme, tochas acesas ou cutelos afiados. O que deixava o irmão Jocoso fulo da vida era o fato de
o Bobo ser ruim em malabarismo porque não era bom.
- Você nunca quis ser outra coisa? - perguntou Margrete.
- Como o quê? - indagou o Bobo. - Nunca vi nada que eu pudesse ser.
No último ano de aprendizagem, os bobos alunos tinham permissão para sair, mas sob
restrições severas. Saltitando pelas ruas, ele tinha visto os magos pela primeira vez, andando
como pomposos carros alegóricos. Vira os assassinos sobreviventes, jovens afetados vestidos
com roupa de seda preta, de malícia afiada como as facas que carregavam. Vira os padres, suas
vestimentas fantásticas, ligeiramente maculadas apenas pelo longo avental sacrifical de plástico
usado para os cultos importantes. Toda profissão tinha sua veste, e ele se deu conta de que o
uniforme que usava fora cuidadosa e meticulosamente desenhado com o objetivo único de fazer
o usuário parecer um idiota completo.
Ainda assim, tinha perseverado. Passara a vida toda perseverando.
Perseverou exatamente porque não tinha nenhum dom e porque o avô lhe teria arrancado
o couro, caso contrário. E decorara as piadas oficiais até a cabeça ruir, e se levantara ainda mais
cedo para fazer malabarismo até os cotovelos estalarem. Aperfeiçoara o domínio do vocabulário
cômico até que só os lordes sêniores o entendessem. Saltitara e bancara o palhaço com tamanha
determinação que acabou se formando com louvor, recebendo a Bexiga de Honra. Mas a jogara
na latrina, ao chegar em casa.
Margrete permanecia em silêncio.
O Bobo perguntou:
- Como você virou bruxa?
- Hã?
- Quer dizer, fez faculdade?
- Ah. Não. Um dia, Dona Lamória foi até a aldeia, enfileirou todas as meninas e me
escolheu. A gente não escolhe o Ofício, é ele que nos escolhe.
- Tudo bem, mas quando foi que você realmente virou bruxa?
- Acho que viramos bruxa quando as outras nos consideram uma igual - explicou. - Se é
que um dia chegam a nos considerar - acrescentou. - Achei que fosse acontecer depois daquele
feitiço no corredor. Afinal de contas, foi muito bom.
- Salve, foi um rito de passagem - disse o Bobo, sem conseguir se conter.
Margrete lhe dirigiu o olhar confuso. Ele tossiu.
- As outras bruxas eram as duas senhoras? - perguntou, voltando à melancolia habitual.
- Eram.
- Parecem ter personalidade muito forte.
- Muito - confirmou a bruxa.
- Talvez tenham conhecido meu avô - imaginou o Bobo.
Margrete baixou os olhos.
- Na verdade, são muito boas - defendeu. - Só que, bem, bruxa não pensa nos outros.
Quer dizer, pensa, mas não pensa nos sentimentos deles, entende? A menos que se disponha a
pensar nisso.
Baixou os olhos, mais uma vez.
- Você não é assim - objetou o Bobo.
- Olhe, eu gostaria que você parasse de trabalhar para o duque - pediu Margrete, em
desespero. - Você sabe como ele é. Tortura as pessoas, bota fogo nas casas e tudo o mais.
- Mas eu sou bobo dele - retrucou o rapaz. - Bobo tem que ser leal a seu mestre. Até a
morte. É tradição. E tradição é muito importante.
- Mas você nem gosta de ser bobo!
- Detesto. Mas isso não tem nada a ver. Se tenho de ser bobo, vou agir direito.
- Que besteira - disse Margrete.
- Prefiro bobagem.
O Bobo vinha se aproximando.
- Se eu beijar você - acrescentou, com tato -, vou virar sapo?
Margrete tornou a baixar os olhos. Eles se meteram debaixo do vestido, constrangidos
com tanta atenção.
Ela sentia as sombras de Gytha Ogg e Esme Cera do Tempo, cada uma de um lado. O
espectro de Vovó a encarava. Bruxa domina qualquer situação, ouviu.
E a dona da cena, confirmou a visão de Tia Ogg, fazendo um gesto breve que envolvia
muitos sorrisos e acenos de braço.
- Só vendo - respondeu.
Aquele estava fadado a ser o beijo mais espetacular na história das preliminares.
O tempo, como Vovó Cera do Tempo já tinha frisado, é uma experiência subjetiva. Os
anos do Bobo no grêmio haviam sido uma eternidade, enquanto as horas com Margrete no alto
daquele morro passaram como minutos. E, bem acima de Lancre, alguns poucos segundos se
estendiam feito puxa-puxa em horas de puro horror.
- Gelo! - gritou Vovó. - Congelou!
Tia Ogg emparelhou, inutilmente tentando manter o ritmo da vassoura desgovernada.
Fogo octarina estalava nas cerdas congeladas, provocando curtos-circuitos. Ela se inclinou e
agarrou a saia de Vovó.
- Eu disse que era absurdo! - gritou. - Você passou pela névoa úmida, depois subiu para o
ar frio, sua mula!
- Solte minha saia, Gytha Ogg!
- Vamos, segure a minha vassoura. Está pegando fogo na traseira da sua!
Elas avançaram pela nuvem e gritaram em uníssono quando o chão coberto de mato
surgiu do nada, na direção delas.
E ficou para trás.
Tia Ogg olhou para baixo e viu a paisagem negra no fundo da qual se entrevia uma
agitação de águas brancas. As duas estavam sobrevoando o estreito de Lancre.
Saía fumaça azul da vassoura de Vovó, mas ela insistiu e forçou-a a voltar.
- O que está fazendo? - perguntou Tia Ogg.
- Posso seguir o rio - gritou Vovó Cera do Tempo, acima da crepitação das labaredas. -
Não se preocupe!
- Venha já pra cá, está me ouvindo? O fogo já tomou quase a vassoura toda, você não vai
conseguir...
Houve uma pequena explosão atrás de Vovó, e vários punhados de cerda queimada se
partiram e caíram nas profundezas do estreito. A vassoura sacolejou para o lado, e Tia Ogg
segurou-a pelos ombros quando o fogo rompeu a madeira.
A vassoura chamejante avançou por entre as pernas dela, girou no ar e subiu, deixando
um rastro de faíscas e fazendo um barulho de dedo molhado roçando em boca de taça de vinho.
Aquilo deixou Tia Ogg de cabeça para baixo, segurando Vovó Cera do Tempo a
distância. As duas se entreolharam e gritaram.
- Não consigo puxar você para cima!
- Bem, eu não consigo subir! Seja sensata, Gytha!
Tia Ogg considerou aquilo. E a soltou.
Três casamentos e uma adolescência aventurosa haviam deixado Tia Ogg com coxas
capazes de quebrar coco. Ela conduziu a vassoura para baixo e realizou uma curva estreita.
Adiante, Vovó Cera do Tempo caía feito pedra, com uma das mãos segurando o chapéu e
a outra tentando impedir que a gravidade lhe erguesse a saia. Tia Ogg acelerou até a vassoura
estalar, agarrou Vovó pela cintura, trouxe a vassoura de volta a um nível seguro de vôo e relaxou.
O silêncio subseqüente foi quebrado por Vovó:
- Nunca mais faça isso, Gytha Ogg.
- Prometo.
- Agora dê a volta. Temos de ir à Ponte de Lancre, lembra?
Tia Ogg, em obediência, virou a vassoura, raspando a mura lha do cânion ao fazê-lo.
- Ainda está longe demais - advertiu.
- Pretendo conseguir - afirmou Vovó. - Tem muita noite pela frente.
- Acho que não o suficiente.
- Gytha, bruxa desconhece o significado da palavra “fracasso”.
Elas voltaram a voar em céu claro. O horizonte era uma linha de luz dourada, uma vez
que a lenta alvorada do Disco já corria pela terra, revolvendo os subúrbios da noite.
- Esme? - disse Tia Ogg, depois de um tempo.
- O quê?
- Significa “mau êxito”.
Elas seguiram em silêncio durante vários segundos.
- Eu estava falando naquele tal sentido. Figurado - rebateu Vovó.
- Ah. Sim. Você devia ter dito.
A linha de luz estava maior, mais forte. Pela primeira vez um lampejo de dúvida invadiu a
mente de Vovó, aturdido por se ver em território desconhecido.
- Quantos galos será que existem em Lancre? - murmurou.
- É uma daquelas perguntas de não sei que sentido?
- Eu só estava imaginando.
Tia Ogg suspirou. Havia trinta e dois com idade para cantar, ela bem sabia. Sabia porque
tinha descoberto na noite anterior - naquela noite! - e dera instruções a Jason. Tia Ogg tinha
quinze filhos adultos e vários netos e bisnetos, e eles haviam disposto da maior parte da noite
para tomar posição. Aquilo deveria bastar.
- Ouviu isso? - perguntou Vovó. - Lá para as bandas de Porco Selvagem?
Tia Ogg pousou os olhos na paisagem enevoada. Os sons se faziam ouvir com muita
clareza naquelas horas matutinas.
- O quê? - perguntou.
- Meio que um “urrr”?
- Não.
Vovó se virou.
- Lá - disse. - Agora ouvi com certeza. Um ruído tipo “cocoriaaaah”.
- Não escutei - afirmou Tia Ogg, sorrindo para o céu. - Ponte de Lancre, aqui vamos nós.
- E ali! Ali ó! Foi um grito!
- Esme, deve ser o coro do alvorecer. Olhe, não falta nem um quilômetro.
Vovó fitou a nuca da colega.
- Tem alguma coisa acontecendo aqui - suspeitou.
- Não faço idéia.
- Seus ombros estão tremendo!
- Perdi o xale. Estou com frio. Olhe, quase chegamos.
Vovó olhou para a frente. A cabeça, um poço de desconfianças.
Ela descobriria do que se tratava tudo aquilo. Quando tivesse tempo. As toras molhadas
do principal ponto de ligação de Lancre com o mundo exterior surgiram abaixo. Na fazenda de
galinhas a um quilômetro dali, irrompeu um coro de gritos estrangulados e um baque.
- E isso? O que foi isso? - perguntou Vovó.
- Peste galinácea. Cuidado, vou descer.
- Você está rindo de mim?
- Só estou feliz, Esme. Você vai entrar para a História com isso, sabia?
Elas planaram entre as vigas da ponte. Vovó Cera do Tempo pisou no tabuado
escorregadio com cuidado e arrumou o vestido.
- É. Bem - acrescentou, indiferente.
- Melhor do que Negra Alisse, todo mundo vai dizer - continuou Tia Ogg.
- Tem gente que diz qualquer coisa - rebateu Vovó.
Do parapeito, espiou a torrente espumante lá embaixo e contemplou a distante montanha
onde ficava o Castelo de Lancre.
- Acha que vão mesmo? - perguntou, impassível.
- Escreva o que estou dizendo.
- Hum.
- Mas você precisa concluir o feitiço.
Vovó Cera do Tempo assentiu. Virou-se de frente para a alvorada, ergueu os braços e
concluiu o feitiço.
É quase impossível descrever em palavras a passagem súbita de quinze anos e dois meses.
É muito mais fácil no cinema, em que basta usar um calendário com muitas páginas
voando, um relógio avançando cada vez mais rápido até que não se vejam mais os ponteiros, ou
árvores florescendo e dando frutos em questão de segundos...
Bem, você sabe. Ou então o sol vira um traço no céu, os dias e as noites passam
enfurecidamente e as roupas na vitrine da loja são vestidas e despidas com mais rapidez do que as
da moça que faz strip-tease na hora do almoço e tem cinco bares a cumprir.
Existem mil maneiras, mas nenhuma será necessária porque nada disso aconteceu.
O sol se moveu sim um pouco para o lado, de fato parecia que as árvores do estreito
estavam mais altas, e Tia Ogg não conseguia se livrar da sensação de que alguém havia se sentado
sobre ela, esmagado-a no chão e depois se levantado.
O reino não avançou no tempo no sentido literal da palavra, com fotografia em alta
velocidade e céus enfurecidos. Avançou contornando-o, o que é bem mais limpo,
consideravelmente mais fácil e nos poupa toda a longa viagem à procura de um laboratório que
fique em frente a uma loja de roupas que mantenha o mesmo manequim na vitrine durante
sessenta anos, o que sempre foi a parte mais desgastante e complicada da história.
O beijo durou mais de quinze anos. Nem sapo consegue tanto. O Bobo se afastou, com
olhos vidrados e ar de perplexidade.
- Você sentiu o mundo tremer? - perguntou. Margrete espiou a floresta por sobre o
ombro dele.
- Acho que foi ela - comentou.
- O que tem ela? Margrete titubeou.
- Ah. Nada. Nada de mais.
- Vamos tentar de novo? Acho que não fizemos direito da primeira vez.
Margrete assentiu.
Dessa vez, durou apenas quinze segundos. Mas pareceu mais longo.
* * *
Um tremor atravessou o castelo, sacudindo a bandeja onde duque Felmet comia mingau -
para seu alívio, com sal na medida.
Também o sentiram os fantasmas que agora abarrotavam a casa de Tia Ogg como um
time de rúgbi amontoado numa cabine telefônica.
O tremor atingiu todos os galinheiros do reino, e várias mãos relaxaram a pressão que
vinham exercendo. Trinta e dois galos respiraram fundo e cantaram como loucos, mas era tarde
demais...
- Ainda acho que você estava aprontando alguma - insistiu Vovó Cera do Tempo.
- Tome outra xícara de chá - ofereceu Tia Ogg.
- Não vá você misturar álcool - objetou. - Foi a bebida que me confundiu ontem à noite.
Eu jamais teria me atirado para a frente daquela maneira. É vergonhoso.
- Negra Alisse nunca fez nada igual - disse Tia Ogg, tentando incentivar. - Quer dizer,
tudo bem, foram cem anos, mas ela só avançou um castelo no tempo. Acho que qualquer uma
poderia fazer isso.
Vovó franziu a testa.
- E ainda deixou as ervas tomarem conta - observou, vaidosa.
- Exatamente.
- Foi genial - atestou rei Verence, com entusiasmo. - Todos achamos esplêndido. Como
estamos no plano etéreo, ficamos em posição privilegiada para observar.
- Muito bom, Vossa Elegância - disse Tia Ogg.
Ela se virou e observou a multidão de fantasmas atrás dele, que não tiveram o privilégio
de se sentar nas - ou através das - cadeiras da mesa da cozinha.
- Vocês tratem de voltar para o anexo - ordenou. - Que descaramento! Menos as crianças,
elas podem ficar - acrescentou.
- As coitadinhas.
- É muito bom estar longe do castelo - observou o rei.
Vovó Cera do Tempo bocejou.
- Bom - disse. - Agora temos de achar o menino. É o próximo passo.
- Vamos procurá-lo depois do almoço.
- Almoço?
- Galinha - informou Tia Ogg. - E você está cansada. Além do mais, qualquer busca
decente vai demorar muito.
- Ele está em Ankh-Morpork - opinou Vovó. - Escreva o que estou dizendo. Todo
mundo acaba lá. Vamos começar por Ankh-Morpork. No que tange ao destino, não será
necessário procurar ninguém, basta esperar pela pessoa em Ankh-Morpork.
Tia Ogg se iluminou.
- Nossa Karen se casou com o dono de uma hospedaria de lá - comentou. - Ainda não vi
o neném. Podemos nos hospedar de graça.
- Mas a gente não precisa ir. O objetivo é que ele venha para cá. Tem alguma coisa
naquela cidade - advertiu vovó. - Parece um escoadouro.
- São oitocentos quilômetros! - exclamou Margrete. - Você vai passar muito tempo fora!
- Não posso fazer nada - lamentou o Bobo. - São ordens do duque. Ele confia em mim.
- Ah! É para contratar mais soldados?
- Não. Nada do tipo. Nada tão ruim assim.
O Bobo hesitou. Ele apresentara Felmet ao mundo das palavras. Aquilo, com certeza, era
melhor do que o uso desbragado de espadas. Afinal, assim não se ganharia tempo? Não seria
melhor para todos, naquelas circunstâncias?
- Mas você não precisa ir! Você não quer ir!
- Isso não tem importância. Eu prometi ser leal a ele...
- Eu sei, eu sei, até a morte. Mas você nem acredita nisso! Agora mesmo estava me
falando de como detestava o grêmio e tudo o mais!
- É verdade. Ainda assim, tenho que obedecer. Dei a minha palavra.
Margrete quase bateu o pé no chão, mas se deteve.
- Justo quando a gente estava se conhecendo! - gritou. - Você é patético!
O Bobo estreitou os olhos.
- Só seria patético se quebrasse a promessa - respondeu. - Mas posso estar sendo bastante
imprudente. Sinto muito. De qualquer jeito, estarei de volta em algumas semanas.
- Você não entende que estou lhe pedindo para não dar ouvidos a ele?
- Eu disse que sinto muito. Posso vê-la de novo antes de partir?
- Estarei lavando o cabelo - disse Margrete.
- Quando?
- Sempre!
Hwel beliscou o alto do nariz e cravou os olhos cansados no papel salpicado de cera.
A peça não ia nada bem.
Ele havia resolvido o problema da queda do candelabro e achado um lugar para o vilão
que usava uma máscara para esconder a deformação, e também tinha reescrito uma das partes
engraçadas para dar margem ao fato de que o herói nascera numa bolsa. Eram os palhaços que
lhe vinham dando dor de cabeça, mais uma vez. Eles mudavam toda vez que pensava neles. Hwel
preferia dois, que era tradicional, mas agora parecia haver um terceiro, e por nada neste mundo o
anão conseguia criar falas engraçadas para ele.
Tracejou a pena pela folha de papel, tentando lembrar as vozes que tinham brotado em
seus devaneios e na ocasião lhe pareceram tão engraçadas.
Começou a botar a língua para fora. Já suava.
Esse é Mheu Pequeno Esthúdio, escreveu. Ei, com um Pequeno Esthudo você pode ir
Llonge. E espero que comece agora mesmo. Se não puder ir de Carruagem, vá de outro Meio. Se
agora for cedho, vá daqui a um minuto e Meio. Você tem lápis? Creiom?...
Hwel olhou horrorizado para aquilo. Na folha, parecia absurdo, ridículo. Todavia, no
auditório aglomerado de sua mente...
Enfiou a pena no vaso de tinta e continuou perseguindo os ecos.
Segundo Palhaço: Isso mesmo, Chefe.
Terceiro Palhaço: [negócio com bexiga em pedaço de pau] Fonfom. Fonfom.
Hwel desistiu. Pois sim, era engraçado, sabia que era engraçado, tinha ouvido as
gargalhadas nos sonhos. Mas não estava direito. Ainda não. Talvez jamais chegasse a ficar. Era
como a outra idéia sobre os dois palhaços, um gordo, outro magro... Olhe a Bela Enrascada em
que você me meteu, Stanleigh... Ele rira até o peito doer, e o resto da trupe apenas o encarara
aturdido. Em seus sonhos, porém, era hilário.
Largou a pena e esfregou os olhos. Devia ser quase meia-noite, e o costume lhe dizia para
poupar as velas, embora, na realidade, agora eles pudessem arcar com todas as velas de que
necessitavam, por mais que Vitoller dissesse o contrário.
Por toda a cidade tocavam-se gongos, e guardas noturnos anunciavam que de fato era
meia-noite e também que, a despeito de todas as evidências, estava tudo bem. Muitos deles
chegavam ao fim da frase antes de serem atacados.
Hwel abriu as persianas e contemplou Ankh-Morpork.
Era tentador dizer que a cidade gêmea estava em sua melhor forma naquela época do
ano, mas não seria totalmente correto. Estava em sua forma de sempre.
O rio Ankh, fossa de meio continente, já se mostrava largo e pesado ao atingir os
arredores da cidade. Ao deixá-la, mais porejava do que fluía. Devido ao acúmulo de sedimentos,
o leito do rio era mais alto do que algumas margens e, agora, com a neve derretida engrossando a
corrente, muitos municípios ao lado de Morpork ficavam inundados - se é que podemos usar essa
palavra para um líquido que se pega com rede. Esses alagamentos aconteciam todos os anos e
teriam causado enormes problemas no sistema de escoamento, de modo que era melhor mesmo
a cidade não ter muitos esgotos. Os habitantes simplesmente mantinham um bote no quintal e,
de vez em quando, construíam um andar adicional na casa.
Dizia-se que o lugar era muito limpo. Pouquíssimos germes conseguiam sobreviver.
Hwel contemplou o mar de névoa onde os prédios se aglomeravam como num torneio
de castelos de areia em maré alta. Lampejos e janelas iluminadas traçavam belos desenhos na
superfície iridescente, mas havia um clarão bem mais próximo que lhe ocupava especialmente a
atenção.
Num terreno elevado próximo ao rio, comprado por Vitoller a uma quantia calamitosa,
um novo prédio se erguia. Ele crescia mesmo durante a noite, como um cogumelo. Hwel viu
vários fogaréus ardendo ao longo dos andaimes, pois os operários e mesmo alguns dos próprios
atores se recusavam a deixar a mera sombra do céu noturno interromper o trabalho.
Prédio novo era raridade em Morpork, mas aquele era até um tipo novo de prédio.
O Dhisco.
A princípio Vitoller tinha ficado horrorizado com a idéia, mas o jovem Tomjon insistira.
E todo mundo sabia que, quando o rapaz queria, convencia até que a água corresse rio acima.
- Mas nós sempre viemos - objetou Vitoller, no tom de voz desesperado de quem sabe
que, no fim, vai perder a briga. - Ainda não quero me estabelecer.
- Mas lhe faz mal - argumentou Tomjon. - Todas essas noites frias e manhãs geladas.
Você já não é jovem. A gente devia se instalar em algum lugar e deixar as pessoas virem até nós.
E elas virão. Você sabe que agora temos um público grande. As peças de Hwel são famosas.
- Não são as minhas peças - dissera Hwel. - São os atores.
- Eu não me vejo sentado perto da lareira numa sala abafada ou deitado em cama de pena
- retrucou Vitoller, mas, depois de entrever a fisionomia da mulher, ele cedeu.
Aí surgiu a idéia do próprio teatro. Fazer água correr rio acima era fácil, se comparado a
tirar dinheiro de Vitoller, mas a verdade era que eles vinham se saindo bem nos últimos tempos.
Desde que Tomjon se mostrara grande o bastante para usar colarinho e dizer duas palavras sem a
voz falhar.
Hwel e Vitoller tinham visto as primeiras vigas da construção se erguer.
- Vai contra a natureza - reclamara Vitoller, apoiando-se na bengala. - Prender o espírito
do teatro. Enjaulá-lo. Vai acabar com ele.
- Ah, não sei, não - disse Hwel, tímido.
Tomjon havia traçado muito bem o seu plano: devotara uma noite inteira a Hwel antes de
tocar no assunto com o pai, e agora a mente do anão fervilhava com as possibilidades de telas de
fundo, mudanças de cenário, asas, vôos, máquinas para baixar deuses do céu e alçapões para
suspender demônios do inferno. Hwel não conseguiria fazer mais objeções àquilo tudo do que
macaco à plantação de bananas.
- O troço nem tem nome - resmungara Vitoller. - Eu deveria chamá-lo de Mina de
Houro, porque é o que está me custando. Eu só queria saber de onde virá o dinheiro.
De fato, haviam tentado vários nomes, nenhum dos quais agradava a Tomjon.
- Tem que ser um nome que englobe tudo - observou. - Porque tem tudo ali. O mundo
inteiro no palco, entende?
E, sabendo que seria perfeito, Hwel tinha sugerido:
- O Disco.
Mas agora o Dhisco estava quase pronto, e ele ainda não havia escrito a nova peça.
Fechou a janela, voltou a mesa, tomou a pena e apanhou outra folha de papel. Ocorreu-
lhe uma idéia. O mundo inteiro era um palco para os deuses...
Recomeçou o trabalho.
Thodo o Disco não passa de um Theatro, escreveu. E thodos os homens e mulheres são
Athores. Ele cometeu o erro de parar, e surgiu mais uma partícula de inspiração, o que enrolou
toda aquela linha de pensamento.
Olhou o que estava escrito e acrescentou: Menos quem vende pipoca.
Depois de um tempo, riscou isso e fez uma nova tentativa: O palco do Theatro é o
Mundo onde thodos athuam.
Parecia melhor.
Pensou um pouco e prosseguiu, com cautela: Hàs vezes entramos. Hàs vezes sahímos.
Já estava perdendo o fio da meada. Tempo, Tempo, o que ele precisava era de uma
eternidade...
Ouviu-se um grito abafado e um baque no quarto ao lado. Hwel largou a pena e abriu a
porta.
O menino estava sentado na cama, lívido. Relaxou quando Hwel entrou no cômodo.
- Hwel?
- O que foi, rapaz? Pesadelo?
- Nossa, foi horrível! Elas de novo! Por um instante, achei que...
Hwel, que estava distraidamente recolhendo as roupas quewTomjon espalhara pelo
quarto, parou o que estava fazendo. Ele gostava de sonhos. Era quando vinham as idéias.
- Achou o quê? - perguntou.
- Era como... quer dizer, parecia que eu estava dentro de alguma coisa, como uma tigela, e
tinha aqueles três rostos pavorosos me espreitando.
- Os de sempre?
- É, e todas falaram “Ave!” e começaram a discutir sobre meu nome, depois disseram
“Enfim, quem será rei doravante?” Aí uma delas perguntou “Avante na dor?”, e outra respondeu
“Doravante é o que se costuma falar nessas situações, mulher, você podia fazer um esforço”, e
todas ficaram me observando atentamente, e uma das outras disse “Ele está meio descorado,
deve ser a comida do estrangeiro”, aí a mais nova disse “Tia Ogg, eu já disse que não existe
nenhum lugar chamado Célebre”, e elas brigaram um pouco, então uma das mais velhas
perguntou “Ele não está ouvindo a gente, está? Não pára de se mexer”, e a outra respondeu
“Esme, você sabe que eu nunca fui boa nesse negócio”, aí as duas brigaram mais um pouco, ficou
tudo embaçado e... eu acordei... - concluiu, vacilante. - Foi horrível porque, toda hora que elas se
aproximavam da tigela, tudo aumentava, e só se via olho e nariz.
Hwel subiu na beirada da cama estreita.
- Sonho é um negócio engraçado - comentou.
- Esse não tinha graça nenhuma.
- Não, mas, quer dizer, na noite passada eu sonhei com um homenzinho de pernas
arqueadas andando numa estrada - contou Hwel. - Ele usava um chapéu preto e andava como se
as botas estivessem cheias de água.
Tomjon prestava atenção.
- E aí? - perguntou.
- Foi isso. Não tem mais nada. Ficava girando uma bengala e era incrivelmente...
A voz do anão se perdeu. Tomjon trazia aquela fisionomia de polidez e embaraço que
Hwel viera a conhecer e temer.
- Enfim, foi muito divertido - disse, meio para si mesmo.
Mas sabia que jamais convenceria o resto da trupe. Se não tinha torta na cara, diziam eles,
não tinha graça. Tomjon desceu da cama e pegou o culote.
- Não vou voltar a dormir - decidiu. - Que horas são?
- Passa da meia-noite - respondeu Hwel. - E você sabe o que seu pai diz sobre você se
deitar tarde.
- Não estou me deitando tarde - objetou Tomjon, calçando as botas. - Estou me
levantando cedo. Levantar cedo é muito saudável. E agora vou sair para tomar uma bebida
saudável. Você também podia vir - convidou. - Para tomar conta de mim.
Hwel lhe dirigiu um olhar desconfiado.
- Você também sabe o que seu pai diz sobre essas saídas para beber - advertiu.
- Sei. Diz que fazia isso o tempo todo quando era novo. Diz que era normal tragar cerveja
a noite inteira e chegar em casa às cinco da manhã, quebrando janelas. Diz que era um legítimo
baderneiro, diferente dessa gente covarde de hoje em dia, que mal consegue segurar o copo. -
Tomjon aprumou a imagem do espelho e acrescentou: - Sabe, Hwel, acho que responsabilidade é
algo que a gente ganha com a idade. Como varizes.
Hwel suspirou. A memória de Tomjon para comentários imprudentes era legendária.
- Tudo bem - disse. - Mas só dessa vez. Algum lugar decente.
- Prometo.
Tomjon arrumou o chapéu. Havia uma pena nele.
- Aliás - perguntou -, como é que se traga?
- Acho que se derrama mais do que se bebe - respondeu Hwel.
Se a água do rio Ankh era mais grossa e cheia de personalidade do que a de outro rio
qualquer, o ar da Tambor Remendado era mais denso do que o ar normal. Parecia névoa seca.
Tomjon e Hwel olhavam-no verter para a rua. A porta se abriu, e um homem saiu
andando de costas, sem exatamente pisar no chão, até alcançar o muro do outro lado da rua.
Um troll imenso, contratado pelo proprietário para manter algum esboço de ordem no
lugar, apareceu trazendo outros dois corpos bambos que jogou no chão de pedras, chutando-os
uma ou duas vezes em lugares macios.
- Acho que tem baderna lá dentro - animou-se Tomjon.
- Parece que sim - concordou Hwel.
Ele estremeceu. Detestava tavernas. Alguém sempre botava o copo em sua cabeça.
Os dois correram para dentro enquanto o troll segurava um dos bêbados inconscientes
pela perna e lhe batia a cabeça no chão à procura de objetos de valor.
Beber na Tambor já fora comparado a se afogar em pântano, - porém no pântano os
jacarés não atacam nosso bolso primeiro. Duzentos olhos observaram a dupla avançar até o bar,
cem bocas interromperam o ato de beber, xingar ou pedir, e noventa e nove testas se franziram
com o esforço de descobrir se os recém-chegados se encaixavam na categoria A, pessoas de
quem ter medo, ou B, pessoas em quem botar medo.
Tomjon andava como se fosse dono do lugar e, com a impetuosidade da juventude, bateu
no balcão. Impetuosidade não era um traço que garantisse sobrevivência na Tambor Remendado.
- Senhor, duas de sua melhor cerveja - pediu em tons meticulosamente calculados que o
barman ficou chocado ao se ver servindo obediente a primeira caneca, antes mesmo de os ecos se
dissiparem.
Hwel olhou para cima. Tinha um homem enorme à sua direita, vestindo couro de vários
touros grandes, além de mais correntes do que seria necessário para atracar um navio. Um rosto
que parecia edifício em obra com pêlos o fitou.
- Eta! - exclamou. - E um enfeite de jardim!
Hwel ficou gélido. Cosmopolita como só, o povo de Morpork tinha uma maneira muito
jovial e direta de lidar com as raças que não eram humanas, isto é, batiam na cabeça delas com
tijolo e atiravam-nas no rio. Isso, evidentemente, não se aplicava aos trolls, porque é muito difícil
ter preconceito racial contra criaturas com mais de dois metros de altura que atravessam parede -
pelo menos por muito tempo. Mas pessoas com noventa centímetros de altura eram criadas para
ser discriminadas.
O grandalhão cutucou o alto da cabeça de Hwel.
- Enfeite de jardim, onde está a vara de pescar? - perguntou.
O barman colocou as canecas no balcão molhado.
- Aí estão - disse, com malícia. - Uma caneca. E meia caneca.
Tomjon abriu a boca para rebater, mas Hwel lhe cutucou o joelho. Agüente firme,
agüente firme, saia quando possível, era a única maneira...
- E cadê o chapéu pontudo? - perguntou o homem barbado. A taverna estava em silêncio.
Parecia hora do espetáculo.
- Eu perguntei cadê o chapéu pontudo, imbecil.
O barman apanhou o pedaço de pau com pregos que ficava debaixo do balcão para
possíveis eventualidades, e disse:
- Hã...
- Eu estava falando com o enfeite de jardim aqui.
O homem pegou os restos de sua própria bebida e derramou-os na cabeça do anão.
- Não bebo mais nessa espelunca - murmurou, quando nem aquilo surtiu efeito. - Já é um
absurdo que permitam macacos, mas pigmeus...
Agora o silêncio do bar ganhava uma intensidade nova, e o ruído de um banco sendo
lentamente empurrado para trás parecia o rangido da perdição. Todos os olhos se voltaram para
o outro canto do salão, onde estava o único cliente da Tambor Remendado que se enquadrava na
categoria C.
O que Tomjon imaginou era que um velho saco dobrado estivesse estendendo braços e...
outros braços, só que eram pernas. Uma cara triste de borracha se virou para o homem que havia
falado com expressão tão melancólica quanto a neblina da evolução. Os lábios engraçados se
curvavam para trás. Não tinha nada de engraçado nos dentes.
- Hã - repetiu o barman, com voz que assustou até a ele próprio no terrível silêncio
simiesco. - Acho que você não quis dizer isso, quis? Sobre os macacos? Não era outra coisa?
- O que é aquilo? - sussurrou Tomjon.
- Acho que é um orangotango - respondeu Hwel.
- Macaco é macaco - atestou o homem barbado, fazendo vários dos fregueses mais
perspicazes da Tambor começarem a avançar para a porta. - Quer dizer, não tem problema. Mas
esses enfeites de jardim...
Hwel golpeou-o na altura da virilha.
Os anões têm fama de lutadores temíveis. Qualquer espécie com noventa centímetros de
altura que usa machados e vai à luta como se estivesse em campeonato de derrubada de árvores
logo vira assunto do dia. Mas anos brandindo penas de escrever em vez de martelos haviam
minado força nos golpes de Hwel, e poderia ter sido seu fim quando o grandalhão gritou e sacou
a espada, se um par de mãos delicadas e macias como couro não tivessem imediatamente tirado o
negócio do domínio dele e, sem muito esforço, partido-o ao meio.14
14
Neste ponto, talvez se faça necessária uma explicação. O Bibliotecário da biblioteca mágica da Universidade
Invisível, primeira escola de magia dos magos do Disco, havia sido transformado em orangotango alguns anos
antes, por causa de um acidente mágico na instituição já propensa a acidentes. Desde então, se recusara
Quando o grandalhão grunhiu e deu meia-volta, um braço - que parecia dois cabos de
vassoura presos com elástico e cobertos de pêlo vermelho - se estendeu num movimento
complicado e acertou-o no queixo com tanta força que ele cresceu alguns centímetros mais e
tombou numa mesa.
Quando a mesa escorregou até a outra e virou alguns bancos, foi motivo suficiente para
começar a prometida briga da noite, principalmente porque o grandalhão estava acompanhado de
alguns amigos. Como ninguém queria atacar o macaco, que tinha pegado uma garrafa na
prateleira e quebrado o fundo no balcão, batia-se em quem estivesse mais perto. Trata-se de
protocolo em briga de taverna.
Hwel caminhou para debaixo de uma mesa e arrastou junto Tomjon, que assistia a tudo
com extrema curiosidade.
- Então baderna é isso. Sempre imaginei como seria.
- Acho que talvez fosse boa idéia a gente dar o fora - sugeriu o anão. - Antes que
aconteça o pior.
Ouviu-se o baque de alguém caindo na mesa e um tinido de vidro quebrado.
- Você acha que é baderna de verdade ou só folia? - perguntou Tomjon, sorrindo.
- Daqui a pouco vai ser assassinato, meu rapaz!
Tomjon se arrastou de volta ao tumulto. Hwel ouviu-o bater no balcão com alguma coisa
e pedir silêncio. Em pânico, o anão pôs as mãos na cabeça.
- Eu não quis dizer... - começou.
Na verdade, pedir silêncio era algo tão inusitado no meio de uma briga de taverna que
Tomjon conseguiu o que queria.
Hwel tomou um susto quando ouviu a voz do menino, cheia de confiança e entonação de
primeira classe.
- Irmãos! E chamo todos os homens de irmãos, pois nesta noite...
O anão esticou o pescoço e viu Tomjon subir na cadeira, com uma das mãos erguida à
moda de declamação. Ao redor dele, os homens pararam de se esmurrar para lhe dar atenção.
À altura da mesa, Hwel mexia os lábios em sincronia perfeita com as palavras conhecidas.
Arriscou outra espiadela.
Os lutadores se aprumavam, soltavam as mangas das túnicas e trocavam olhares
escusatórios. Muitos, de fato, prestavam atenção.
Até Hwel sentiu o sangue fervilhar - ele tinha escrito aquelas palavras. Passara metade de
uma noite naquilo, anos antes, quando Vitoller decidira que precisavam de mais cinco minutos no
Terceiro Ato de O rei de Ankh.
- Escreva alguma coisa com ímpeto - pedira. - Um pouco de vigor, entende? Alguma
coisa que apele ao sangue e dê um pouco de energia aos espectadores do balcão de um centavo.
E longo o bastante para nos dar tempo de mudar o cenário.
Na época, ficara com vergonha da peça. Desconfiava de que a famosa Batalha de
Morpork consistia em cerca de dois mil homens perdidos em terras pantanosas num dia frio e
úmido, cortando uns aos outros com espadas enferrujadas. O que teria dito o último rei de Ankh
a um grupo de homens esfarrapados que sabiam estar em menor número e piores condições?
Algo forte e incisivo, algo como o copo de conhaque que se dá ao moribundo: sem lógica, sem
explicação, apenas palavras que atravessassem o cérebro do homem cansado e erguessem-no do
chão pelos testículos.
Agora, ele via aquilo surtir efeito.
15
As Sombras são uma parte antiga de Ankh-Morpork, considerada bem mais desagradável e indecorosa do que
o resto da cidade. Isso sempre deixa os visitantes abismados.
- “Ouro, ouro, ouro, ouro, ouro” - cantou Hwel. - Você esqueceu um “ouro”.
- Acho que é porque não nasci para ser anão.
- Não foi feito, seu anão de jardim - brincou Tomjon.
Ouviu-se um suspiro.
- Desculpe - tratou de pedir Tomjon. - E meu pai...
- Eu conheço o seu pai há muito tempo - disse Hwel. - Atravessamos juntos a pobreza e a
riqueza, e houve muito mais pobreza do que riqueza. Desde antes de você nasc... - Ele hesitou. -
Era difícil naquele tempo - murmurou. - Então, o que estou dizendo é que... bem, tem coisa que
a gente acaba por merecer.
- É. Desculpe.
- Só que... - Hwel parou na entrada de um beco escuro. - Ouviu alguma coisa? -
perguntou.
Eles espreitaram o beco, mais uma vez mostrando que não eram da cidade. Morporkiano
não espreita beco escuro quando ouve barulhos estranhos. Se vê quatro vultos brigando, o
primeiro impulso não é correr em socorro de ninguém, ou, pelo menos, não de quem parece
estar perdendo, debaixo da bota dos outros.
Tampouco grita “Ei!” e, sobretudo, não parece surpreso quando, em vez de fugir, os
agressores exibem um cartão.
- O que é isso? - perguntou Tomjon.
- É um palhaço! - respondeu Hwel. - Eles bateram num palhaço!
- Autorização de Roubo? - admirou-se Tomjon, segurando o cartão contra a luz.
- Isso mesmo - disse o líder dos três. - Só não esperem que a gente roube vocês também,
porque já estávamos indo para casa.
- Isso aí - confirmou outro assaltante. - Já cumprimos nossa cota.
- Mas vocês estavam chutando ele!
- Não muito. Não era o que se pode chamar de chute.
- Era mais cutucada de pé - alegou o terceiro ladrão.
- Olho por olho, dente por dente. Ele deu um soco no Ron, não deu?
- Deu. Tem gente que não pensa.
- Ora, seu covarde... - começou Hwel, Tomjon o deteve com a mão sobre sua cabeça.
O menino virou o cartão. O outro lado dizia:
16
O invejável sistema de criminosos licenciados de Ankh-Morpork deve muito ao atual Patrício, lorde Vetinari.
Ele achava que a única forma de policiar uma cidade com um milhão de habitantes era reconhecer as várias
quadrilhas e grêmios de assaltantes, dar-lhes status profissional, convidar os líderes a grandes jantares,
permitir um nível aceitável de crimes de rua e encarregar os líderes dos grêmios do cumprimento da lei, sob
pena de se verem sem novas honras civis e partes consideráveis de pele. Funcionava. Os criminosos eram
- Aventureiros - confirmou um sobrinho.
- Quanto vocês roubaram? - perguntou Tomjon.
Charcal abriu a bolsa do palhaço, que estava presa ao cinto.
Ficou lívido.
- Minha nossa! - exclamou.
Os Sobrinhos se aglomeraram à volta.
- Estamos perdidos.
- Titio, já é a segunda vez esse ano.
Charcal encarou a vítima.
- Como é que eu poderia saber? Não poderia. Olhem para ele. Quanto vocês imaginaram
que ele tivesse? Algumas moedas de cobre, não é? Quer dizer, a gente nem teria feito isso por ele,
só que calhou de estar no nosso caminho. A pessoa tenta ajudar, é isso que acontece.
- Então, quanto ele tem? - insistiu Tomjon.
- Deve ter umas cem moedas de prata aqui - grunhiu Charcal, agitando a bolsa. - Não é da
minha alçada. Foge ao meu campo de ação. Não sei lidar com essa quantidade de dinheiro. O
sujeito precisa ser do Grêmio dos Advogados para roubar tanto. Está muito acima do que me
cabe.
- Então devolva - sugeriu Tomjon.
- Mas já dei nota!
- É tudo numerado - esclareceu o sobrinho mais novo. - O grêmio confere...
Hwel tomou a mão de Tomjon.
- Vocês nos dão licença? - pediu aos ladrões, e arrastou Tomjon para o outro lado do
beco.
- Muito bem - disse. - Quem enlouqueceu? Eles? Eu? Você?
Tomjon explicou.
- É legal?
- Até certo ponto. Fascinante, não é? Um rapaz no bar me contou.
- Mas aí ele roubou demais 7.
- Parece que sim. Acho que o grêmio é muito rígido nesse sentido.
Ouviu-se um gemido da vítima caída entre os homens. Ele retiniu de leve.
- Cuide dele - disse Tomjon. - Vou resolver isso.
Voltou até os ladrões, que pareciam bastante preocupados.
- Meu cliente acha que a situação pode ser resolvida se vocês devolverem o dinheiro -
propôs.
- É-é-é... - concordou Charcal, avizinhando-se da idéia como se fosse uma teoria
completamente nova da criação cósmica. - Mas tem a nota. A gente preenche tudo, hora e lugar,
assina e tal...
- Meu cliente acha que vocês talvez pudessem levar, digamos, cinco moedas de cobre -
salientou Tomjon.
- ... eu não!... - gritou o Bobo, que já voltava a si.
- São as duas moedas de cobre usuais, mais três extras pela perda de tempo, taxa de
emergência...
- Pelo desgaste - acrescentou Charcal.
verdadeiros policiais. Logo ladrões desautorizados descobriam, por exemplo, que, em vez de uma noite na
cadeia, agora podiam esperar por uma eternidade no fundo do rio.
Havia, no entanto, o problema de controlar as estatísticas criminais, e assim se montou um complexo sistema de
cotas, notas e orçamentos anuais a fim de garantir que: a) os membros vivessem razoavelmente bem; e b)
nenhum cidadão fosse roubado mais do que um número determinado de vezes. Muitos cidadãos precavidos
tratavam de conseguir um mínimo aceitável de roubos, assaltos etc. no começo do ano fiscal, com freqüência na
privacidade e no conforto de suas casas, e assim ficavam livres para andar na rua com segurança durante os
outros meses do ano. Tudo corria com muita paz e eficiência, mais uma vez demonstrando que, comparado ao
Patrício de Ankh, Maquiavel não sabia governar nem barraquinha de cachorro-quente.
- Exatamente.
- Muito justo. Muito justo. - Charcal olhou para o Bobo, que agora se encontrava
totalmente consciente e muito irritado. - Muito justo - repetiu em voz alta. - Diplomático. Ele
deve estar agradecido. - Olhou paraTomjon. - E, para o senhor, não vai nada? - perguntou. - É só
dizer. O sonífero está em promoção. Praticamente indolor. A vítima quase não sente nada.
- Mal fura a pele. E você ainda escolhe a parte do corpo.
- Acho que estou bem servido nessa área - disse Tomjon, com calma.
- Ah. Sim. Então tudo bem. Sem problema.
- O que só nos deixa - continuou Tomjon, quando os ladrões já se preparavam para sair -
a questão das taxas legais.
O cinza suave da noite corria por Ankh-Morpork. Tomjon e Hwel estavam sentados de
frente um para o outro na mesa do quarto, contando dinheiro.
- Três moedas de prata e dezoito de cobre - disse Tomjon.
- Foi incrível - admirou-se o Bobo. - A maneira como eles se ofereceram para ir até em
casa pegar mais depois do discurso que você fez sobre os direitos do homem...
Ele botou mais ungüento na cabeça.
- E quando o mais novo começou a chorar - continuou. - Incrível.
- O efeito passa - explicou Hwel.
- Você é anão?
Hwel achou que não podia negar.
- Estou vendo que você é bobo - disse.
- Sou. São os sinos, não são? - perguntou o Bobo, num lamento, esfregando as costelas.
- Isso mesmo.
Tomjon fez uma careta e chutou Hwel debaixo da mesa.
- Bem, estou muito agradecido - comentou o Bobo. Levantou-se e se encolheu. - Eu
realmente gostaria de mostrar minha gratidão - acrescentou. - Tem alguma taverna aberta por
aqui?
Tomjon levou-o à janela e apontou para a rua.
- Está vendo todos aqueles letreiros de taverna? - perguntou.
- Estou. Nossa! São centenas.
- Exatamente. Está vendo aquela última, com letreiro azul e branco?
- Acho que sim.
- Pelo que sei, é a única que fecha.
- Então me permitam pagar a vocês uma bebida. E o mínimo que posso fazer - observou
o Bobo. - E tenho certeza de que o baixinho aqui gostaria de tragar alguma coisa.
Hwel agarrou a ponta da mesa, abriu a boca para berrar. E parou.
Olhou para os dois rapazes. Permaneceu de boca aberta. Fechou-a num estalo.
- Algum problema? - perguntou Tomjon.
Hwel desviou o olhar. A noite tinha sido muito longa.
- É só a luz - murmurou. - E uma bebida não cairia nada mal - acrescentou. - Um belo
trago não cairia nada mal.
Na verdade, pensou, por que brigar?
- Vou até agüentar a cantoria - decidiu.
Tomjon acordou tremendo. O quarto estava escuro. Lá fora, algumas estrelas venciam a
neblina da cidade e ouvia-se o assobio ocasional de ladrões e assaltantes realizando seus negócios
estritamente legais.
No quarto ao lado não se ouvia nada, mas dava para ver a luz da vela por sob a porta.
Ele voltou a dormir.
Do outro lado do rio cheio, o Bobo também tinha despertado. Tinha se hospedado no
Grêmio dos Bobos - não por escolha, mas porque o duque não lhe dera dinheiro extra -, e estava
difícil cair no sono. As paredes frias traziam de volta lembranças demais. Além disso, se aguçava
os ouvidos, escutava soluços abafados e lamúrias cochichadas nos quartos dos alunos, que,
horrorizados, consideravam o que a vida lhes reservava.
Bateu o travesseiro duro feito pedra e mergulhou num sono leve.
* * *
O Bobo cochilava debaixo da lona de um barco, seguindo pelo rio Ankh a inabaláveis
três quilômetros por hora. Não era um meio emocionante de transporte, mas se acabava
chegando lá.
Ele parecia seguro, apesar de se revirar no sono.
Margrete imaginou como seria passar a vida inteira fazendo algo de que não gostava.
Como estar morto, avaliou, mas pior, porque a pessoa estava viva para sofrer.
Achava o Bobo fraco, mal orientado e terrivelmente necessitado de fibra. E ansiava pela
volta dele, para que pudesse torcer por jamais vê-lo de novo.
Foi um verão quente e longo.
17
Por causa da maneira como o tempo era registrado nos vários estados, reinos e cidades. Afinal, quando,
numa área de trezentos quilômetros quadrados, o ano é ao mesmo tempo o Ano do Morceguinho, o Ano do
Macaco Adiantado, o Ano da Nuvem Caçadora, o Ano das Vacas Gordas e o Ano dos Três Garanhões Lustrosos
e tem pelo menos nove números marcando o dia** em que reis, profetas e episódios estranhos foram,
respectivamente, coroados, paridos ou acontecidos, e cada ano possui um número diferente de meses, e alguns
não têm semanas, e um deles se recusa a aceitar o dia como medida de tempo, a única coisa de que se pode
estar certo é que sexo bom não dura o bastante.***
** O calendário da Teocracia de Muntab conta para trás, não para a frente. Ninguém sabe por que, mas talvez
não seja boa idéia tentar descobrir.
*** A não ser na tribo zabingo, do Grande Nef, é claro.
Ninguém apressou nada. Havia muita estrada entre Ankh-Morpork e as Ramtops. Fora
divertido, Hwel tinha que admitir. Porém “divertido” não era uma palavra com a qual os anões se
familiarizassem.
Fique a Vontade se saiu muito bem. Sempre se saía. Os novatos se superavam.
Esqueciam falas e faziam piadas. Em Sto Lat, todo o terceiro ato de Gretalina e Mellias foi
encenado com a tela de fundo do segundo ato de As Guerras Mágicas, mas ninguém pareceu
notar que a maior cena de amor da História era representada num cenário que retratava ondas
gigantescas a avançar pelo continente. Isso possivelmente se deu porque Tomjon fazia Gretalina.
O resultado tinha tamanho poder de absorção que Hwel pediu aos atores para trocarem de papel
no teatro seguinte, se é que se pode aplicar o termo a um galpão alugado por dia, e o resultado
ainda absorvia mais do que esponja de boa qualidade, muito embora Gretalina fosse agora o
jovem Wimsloe, que era meio comum, costumava gaguejar e tinha sardas que, quem sabe, um dia
viriam a aclarar.
Na noite seguinte, numa aldeia sem nome, em meio a um mar infinito de repolhos, Hwel
deixou Tomjon representar o Velho Miskin de Fique à Vontade, papel no qual Vitoller sempre se
destacara. Não dava para deixar ninguém com menos de quarenta anos representá-lo, a menos
que se quisesse um Velho Miskin com almofada presa debaixo do gibão e rugas pintadas.
Hwel não se achava velho. Aos duzentos anos, seu pai ainda cavava três toneladas de
minério por dia.
Naquele instante, ele se sentiu velho. Viu Tomjon sair se arrastando do palco e, por um
minuto, soube o que era ser velho e gordo, embriagado de vinho, lutando em guerras antigas para
as quais ninguém mais ligava, pavorosamente suspenso no precipício do fim da meia-idade por
medo de cair na velhice, mas com apenas uma das mãos, porque com a outra mostrava o dedo
para Morte. Claro que sabia daquilo tudo quando escrevera a peça. Mas não sabia.
A mesma magia não parecia impregnar a peça nova. Tentaram montá-la algumas vezes
para ver como se saía. A platéia assistia com atenção e ia embora. Não se incomodava nem em
jogar nada no palco. Não que achassem ruim. Não achavam nada.
Mas todos os ingredientes certos se encontravam ali. A tradição estava cheia de pessoas
que se vingavam de maus governantes. Bruxas eram sempre um grande chamariz. A aparição de
Morte fazia-se particularmente interessante, com diálogos excelentes. Bastava misturar todos...
mas eles pareciam se anular, virar um método enfadonho de encher o palco durante duas horas.
Tarde da noite, quando o elenco estava dormindo, Hwel se sentava numa das carroças e
reescrevia tudo. Rearranjava cenas, cortava falas, acrescentava falas, introduzia um palhaço,
incluía outra luta e ajustava os efeitos especiais. Não parecia surtir efeito algum. A peça era como
uma pintura complexa e assombrosa: de perto, festa para os olhos; à distância, mero borrão.
Quando choviam inspirações demais, tentava até mudar o estilo. De manhã, quem
levantava cedo já estava acostumado a encontrar experimentações descartadas decorando o
gramado em torno das carroças, como cogumelos extremamente literatos.
Tomjon guardou um dos mais estranhos:
1- BRUXA: Ele está atrasado.
(Pausa)
2a BRUXA: Ele disse que vinha.
(Pausa)
3- BRUXA: Disse que vinha, mas não veio. E minha última salamandra. Guardei para ele.
E ele não veio.
(Pausa)
- Eu acho - disse Tomjon, mais tarde - que você devia ir com calma. Já fez o que pediram.
Ninguém falou que tinha que ser brilhante.
- Mas poderia ser. Se eu acertasse a mão.
- Você está seguro em relação ao fantasma? - perguntou Tomjon.
A maneira como lançou a pergunta deixava claro que ele mesmo não estava.
- Não tem nada de errado com o fantasma - rebateu Hwel. - A cena do fantasma é a
melhor que já fiz.
- Eu só estava me perguntando se seria a peça certa para ela, só isso.
- O fantasma fica. Agora vamos, rapaz.
Passados dois dias, quando a muralha azul e branca das Ramtops já começava a dominar
o horizonte para o lado do Centro, a trupe foi atacada. Não houve muito drama. Tinham acabado
de conduzir as carroças por um baixio e estavam descansando a sombra de algumas árvores das
quais, de repente, brotaram ladrões.
Hwel se pegou olhando para meia dúzia de lâminas sujas e enferrujadas. Os donos das
armas pareciam ligeiramente incertos sobre o que fazer em seguida.
- Temos um recibo em algum lugar... - começou o anão.
Tomjon o cutucou.
- Eles não parecem ladrões do grêmio - cochichou. – Acho que são autônomos.
Seria bom dizer que o líder dos ladrões era um bárbaro arrogante de barba preta, com
lenço vermelho na cabeça, brinco dourado e um queixo com o qual se poderia arear panela. Na
verdade, seria quase crucial. E era de fato o caso. Hwel achou que a perna de pau era exagero,
mas era óbvio que o homem tinha estudado o papel.
- Pois bem - disse o chefe dos bandidos. - O que temos aqui? E eles têm dinheiro?
- Somos atores - respondeu Tomjon.
- Isso responde às duas perguntas - brincou Hwel.
- E nada de graça - resmungou o bandido. -Já estive na cidade. Sei o que é graça e... - ele
se virou para os outros membros do grupo, erguendo a sobrancelha para indicar que o
comentário seguinte seria espirituoso - ... se vocês não tomarem cuidado, também posso soltar
umas frases incisivas.
Houve apenas silêncio, até ele fazer um gesto impaciente com o cutelo.
- Tudo bem - disse, contra o coro de risadas hesitantes. - Vamos levar todos os trocados,
objetos de valor, alimentos e trajes que vocês tiverem.
- Posso dizer uma coisa? - pediu Tomjon.
A trupe se afastou dele. Hwel sorriu para os próprios pés.
- Vai implorar por misericórdia? - perguntou o bandido.
- Exatamente.
Hwel meteu as mãos no bolso e olhou para o céu, assobiando baixinho e tentando não
abrir um sorriso alucinado. Notou que os outros atores também fitavam Tomjon em expectativa.
Ele vai soltar a fala da misericórdia de A História do Troll, pensou...
- O que eu gostaria de dizer é que... - começou Tomjon, e a postura mudou ligeiramente,
a voz ficou mais grave, a mão direi ta se agitou com impetuosidade -... “O valor do homem não
está na façanha dos braços, Ou na fome ardente da voracidade...”.
Vai ser como quando tentaram nos roubar em Sto Lat, imaginou Hwel. Se acabarem
entregando as espadas, o que vamos fazer com elas? E é tão constrangedor quando começam a
chorar!
Foi a essa altura que o mundo à volta ganhou um tom esverdeado e ele imaginou ouvir,
no limite da audição, outras vozes.
- Vovó, tem homens com espada!
- ... rasga com lâminas reluzentes as maravilhas do mundo... - declamava Tomjon.
E as vozes no limite da imaginação diziam:
- Rei meu não implora nada a ninguém. Margrete, passe a jarra de leite.
- ... o âmago da compaixão, o beijo...
- Foi presente da minha tia.
- ... a jóia das jóias, a coroa das coroas.
Houve silêncio. Um ou dois bandidos soluçavam baixinho. O chefe perguntou:
- É isso?
Pela primeira vez na vida, Tomjon ficou aturdido.
- Bem, é - respondeu. - Hã. Quer que eu repita?
- Foi um belo monólogo - reconheceu o bandido. - Mas não me diz respeito. Sou um
homem prático. Passe os objetos de valor.
A espada se ergueu até alcançar a garganta de Tomjon.
- E vocês aí não fiquem parados como idiotas - acrescentou. - Vamos logo. Ou o garotão
vai se machucar.
O novato Wimsloe levantou a mão.
- Que foi? - perguntou o bandido.
- O s-senhor tem certeza d-de que ouviu d-direito?
- Não vou falar de novo! Ou ouço o tinido de moedas, ou vocês vão ouvir gritos de dor!
Mas o que todos ouviram foi um zunido alto no céu e o estouro de uma jarra de leite,
com as laterais, congeladas pela altitude, caindo na ponta do capacete do bandido.
Os outros bandidos deram uma olhada no chefe e fugiram.
Os atores estudaram o bandido caído. Com a bota, Hwel cutucou um pedaço do leite
congelado.
- Ora, ora - murmurou.
- Ele não se comoveu! - sussurrou Tomjon.
- Um crítico nato - avaliou o anão.
Era uma jarra azul e branca. Engraçado como míseros detalhes se sobressaíam em
momentos assim. Ela já tinha se quebrado várias vezes antes, dava para ver, porque as peças
tinham sido coladas com cuidado. Alguém realmente adorava aquela jarra.
- O que temos aqui - disse, juntando alguns fiapos de lógica - é um tornado irregular.
Obviamente.
- Mas jarras de leite não caem do céu - objetou Tomjon, demonstrando o surpreendente
talento humano de negar o óbvio.
- Por que não? Já ouvi falar de peixes, sapos e pedras - argumentou Hwel. - O que há de
errado com louça? - Ele começou a se recobrar. - E só um daqueles fenômenos raros. Acontece o
tempo todo nessa parte do mundo, não tem nada de extraordinário.
Voltaram às carroças e seguiram em silêncio incomum. O jovem Wimsloe recolheu os
pedaços da jarra que conseguiu achar e guardou-os no baú, depois passou o resto do dia olhando
para o céu na esperança de cair um açucareiro.
As carroças subiam as ladeiras empoeiradas das Ramtops, meros grãos de areia no vidro
embaçado da bola de cristal.
O Bobo aguardava no campo, perto do lago. Olhava ansioso para o céu e se perguntava
onde estaria Margrete. “Aquele era”, ela dizia, “o lugar deles”. O fato de que algumas dezenas de
vacas também o partilhassem no momento não parecia fazer diferença. Ela surgiu de vestido
verde e péssimo humor.
- Que história é essa de teatro? - perguntou. O Bobo se encolheu num tronco de
salgueiro.
- Não está feliz por me ver? - perguntou.
- Ah, estou. Claro. Mas a peça...
- Meu lorde queria alguma coisa que convencesse o povo de que ele é o rei legítimo de
Lancre. Principalmente a ele mesmo, eu acho.
- Por isso você foi à cidade?
- Exatamente.
- Que nojo!
O Bobo manteve a calma.
- Você prefere os métodos da duquesa? - perguntou. - Ela acha que basta matar todo
mundo. E ótima nesses assuntos. Teríamos lutas e tudo o mais. Muita gente morreria. Assim,
pode ser mais tranqüilo.
- Ah, onde está sua coragem?
- O quê?
- Você não quer morrer por uma causa justa?
- Prefiro viver em paz por ela. E fácil para vocês, bruxas, porque podem fazer o que bem
entendem, mas eu tenho as mãos atadas - lamentou o Bobo.
Margrete se sentou ao lado dele. Descubra tudo sobre essa peça, pedira Vovó. Converse
com seu amigo tilintante. Ela havia respondido: Ele é muito leal. Talvez não me conte nada. Mas
Vovó rebatera: Não é hora de meias medidas. Se for preciso, seduza-o.
- Então, quando será a peça? - perguntou, aproximando-se.
- Salve, não posso contar a você - disse o Bobo. - O duque me pediu especificamente
para não contar às bruxas que vai ser amanhã à noite.
- Então é melhor não contar - concordou Margrete.
- Às oito horas.
- Sei.
- Mas vão servir vinho antes, às sete e meia.
- Você também não me contaria quem foi convidado? - indagou Margrete.
- Não. A maioria das autoridades de Lancre. Entenda que não estou dizendo isso a você.
- Perfeitamente - confirmou Margrete.
- Mas acho que você tem o direito de saber o que está sendo privada de ouvir.
- Bom argumento. Ainda existe aquele portão dos fundos que dá na cozinha?
- O que nunca é vigiado?
- É.
- Ah, hoje em dia quase ninguém vigia mesmo.
- Acha que talvez tenha alguém vigiando por volta das oito horas da noite de amanhã?
- Bem, pode ser que eu esteja lá.
- Ótimo.
O Bobo afastou o focinho de uma vaca curiosa.
- O duque já está esperando por vocês - acrescentou.
- Você disse que ele não queria que a gente soubesse.
- Pediu para eu não avisar. Mas também disse “Elas vão vir de qualquer maneira, espero
que venham”. É estranho. Parecia de muito bom humor quando falou isso. Hum. Posso vê-la
depois do espetáculo?
- Foi tudo o que ele disse?
- Ah, tinha alguma coisa sobre mostrar às bruxas seu futuro. Não entendi. Eu realmente
gostaria de ver você depois do espetáculo, sabe. Eu trouxe...
- Acho que vou estar lavando o cabelo - alegou Margrete, distraída. - Com licença, preciso
ir andando.
- Tudo bem, mas eu trouxe esse pres... - argumentou o Bobo, observando-a se afastar.
Ele murchou quando ela desapareceu entre as árvores, e olhou para o colar trançado em
seus dedos nervosos. Tinha que admitir que era de um mau gosto incrível, mas era o tipo de coisa
de que ela gostava, só prata e caveiras. Tinha custado uma fortuna.
Ludibriada pelos chifres do chapéu, uma vaca enfiou a língua na orelha dele.
E verdade, pensou o Bobo. Às vezes, as bruxas fazem coisas terríveis às pessoas.
Hwel espiou por trás de uma pilastra e acenou para Wimsloe e Brattsley, que avançaram
para o clarão das tochas.
VELHO (Ancião): O que houve com a terra?
VELHA (Senhora): É um horror...
Mexendo os lábios em silêncio, o anão, dos bastidores, observou-os durante algum
tempo. Depois voltou ao quarto dos guardas, onde o resto do elenco ainda se encontrava nos
últimos acertos do figurino. Soltou o tradicional grito de raiva de diretor de palco.
- Vamos lá - ordenou. - Soldados do rei, imediatamente! E as bruxas... onde estão as
malditas bruxas?
Três novatos se apresentaram.
- Perdi a verruga!
- O caldeirão está cheio de porcaria!
- Tem alguma coisa viva na peruca!
- Fiquem calmos - gritou Hwel. - Tudo vai ficar bem nessa noite!
- Já é noite, Hwel!
Hwel pegou um punhado de massa na mesa de maquiagem e criou uma verruga parecida
com laranja. A peruca de palha foi enfiada na cabeça do proprietário, com o que quer que se
encontrasse vivo ali dentro, e o caldeirão foi examinado muito rapidamente e declarado se
encontrar cheio do tipo certo de porcaria -não havia nada de errado com aquela porcaria.
No palco, um guarda deixou cair o escudo e quando se agachou para apanhá-lo, caiu a
lança. Hwel deu um suspiro e ofereceu uma oração silenciosa a qualquer deus que calhasse de
estar assistindo.
Já estava dando errado. Os ensaios tiveram seus probleminhas iniciais, era bem verdade.
Hwel conhecera alguns horrores monumentais em sua vida, mas aquele dava mostras de se tornar
o pior deles. A trupe estava mais agitada do que um balde de lagostas. No limite da audição,
ouviu o diálogo do palco vacilar e correu para os bastidores.
- ... vingar o terror da morte do pai... - soprou, e disparou de volta para as bruxas
hesitantes.
Soltou um gemido. Pandemônio. Aqueles três ali deveriam aterrorizar o reino. Ele tinha
cerca de um minuto antes da deixa.
- Certo! - disse, endireitando-se. - Pois bem, o que vocês são? Bruxas más, não é isso?
- É, Hwel - respondeu o trio, submisso.
- Então me digam o que vocês são - exigiu.
- Somos bruxas más, Hwel.
- Mais alto!
- Somos Bruxas Más!
Hwel caminhou diante do grupo trêmulo e deu uma meia-volta súbita.
- E o que vão fazer?
A Segunda Bruxa coçou a peruca de bichinhos rastejantes.
- Amaldiçoar os outros? - arriscou. - Diz no roteiro que...
- Não estou OUVINDO!
- Vamos amaldiçoar os outros! - berraram os três em coro, aprumando-se e olhando para
frente a fim de evitar o olhar do anão.
Hwel voltou a caminhar diante do grupo.
- O que vocês são?
- Somos bruxas, Hwel!
- Que tipo de bruxas?
- Bruxas malignas e noctívagas! - gritaram, entrando no espírito.
- Que tipo de bruxas malignas e noctívagas?
- Bruxas malignas e noctívagas más.
- São ardilosas?
- Somos!
- São dissimuladas?
- Somos!
Hwel se empertigou.
- O que vocês são? - berrou.
- Somos bruxas malignas, noctívagas, más, ardilosas e dissimuladas!
- Certo!
Apontou o dedo para o palco, abaixou a voz e, nesse instante, uma partícula de inspiração
dramática verteu da atmosfera em seu nó criativo, levando-o a dizer:
- Agora eu quero que vocês entrem lá e arrasem. Não por mim. Não pelo maldito capitão.
Passou o charuto imaginário de um lado para o outro da boca, tirou o capacete de lata
inexistente e concluiu:
- Mas pelo cabo Walkowski e seu cachorrinho.
Os três o encararam, incrédulos.
Nesse momento, alguém agitou uma folha de metal e quebrou o encanto.
Hwel suspirou e fechou os olhos. Ele havia sido criado na serra, onde as tempestades
avançavam entre montanhas com pernas de trovão. Lembrava-se de tempestades que mudavam a
forma das montanhas e aplainavam florestas inteiras. De algum modo, folha de metal não era o
mesmo, por mais que fosse agitada com entusiasmo.
Só uma vez, pensou, só uma vez. Deixe-me acertar só desta vez.
Abriu os olhos e fitou as bruxas.
- Por que ainda estão aqui? - gritou. - Vão lá e amaldiçoem a todos!
Observou o trio saltitar para o palco, e Tomjon lhe cutucou a cabeça.
- Hwel, não tem coroa.
- Hein? - perguntou o anão, a mente voltada para possíveis maneiras de criar máquinas de
raios e trovões.
- Não tem coroa, Hwel. Preciso usar coroa.
- Claro que tem coroa. Aquela grandona com vidro vermelho, bonita, que usamos
naquela cidade com praça...
- Acho que a deixamos lá.
Houve outro ruído metálico de trovão, mas, ainda assim, a parte de Hwel que vivia a peça
ouviu uma voz vacilar no palco. O anão correu para os bastidores.
- ... escondi muitos bebês... - sussurrou, e tratou de voltar.
- Bem, então ache outra- disse, vagamente. - Na caixa cenográfica. Você é o Rei Mau,
precisa de coroa. Vamos logo, rapaz, você entra daqui a alguns minutos. Improvise.
Tomjon se dirigiu até a caixa. Havia crescido entre coroas: coroas grandes, feitas de
madeira e argamassa, cravejadas de pedacinhos de vidro. Aprendera o ofício com o ornato
máximo da Autoridade. Mas a maioria delas fora deixada no Dhisco. Retirou vasos, crânios e
punhais flexíveis, os resíduos dos anos, e, bem no fundo, seus dedos se fecharam sobre alguma
coisa fina, com formato de coroa, que ninguém jamais quisera usar porque não se parecia
exatamente com coroa.
Seria interessante dizer que a peça tiniu sob a mão dele. Talvez tenha tinido.
Vovó estava imóvel como estátua, e quase tão fria quanto uma. O horror da compreensão
se abatia sobre ela.
- Somos nós - disse. - Em volta daquele caldeirão ridículo. Aquilo é para ser nós, Gytha.
Tia Ogg se deteve com uma noz a caminho das gengivas. Escutou o diálogo.
- Eu nunca afundei navio nenhum! - exclamou. - Elas acabaram de dizer que afundam
navio! Eu nunca fiz isso!
No alto da torre, Margrete cutucou o Bobo.
- Blush verde - comentou, olhando a Terceira Bruxa. - Eu não sou assim. Sou?
- Claro que não - respondeu o Bobo.
- E o cabelo!
O Bobo espiou por entre as ameias como uma gárgula nervosa.
- Parece palha - opinou. - Também não é muito limpo.
Ele hesitou, correndo os dedos pelo muro de pedras cobertas de líquen. Antes de deixar a
cidade grande, pedira a Hwel algumas palavras adequadas para dizer a uma garota, e as tinha
memorizado na viagem de volta. Era agora ou nunca.
- Eu queria saber se poderia comparar você a um dia de verão. Porque... bem, 12 de
junho foi muito bom e... Ah. Você não está mais aqui...
Lorde Felmet estava recostado no trono e sorria, ensandecido, para o mundo, que
naquele momento parecia perfeito. As coisas estavam funcionando melhor do que imaginara.
Dava para sentir o passado se derreter feito gelo ao sabor da primavera. Num impulso, chamou o
soldado outra vez.
- Ache o capitão da guarda - ordenou - e peça a ele para encontrar as bruxas e prendê-las.
A duquesa bufou.
- Não lembra do que aconteceu na última vez, idiota?
- Deixamos duas soltas - respondeu o duque. - Agora... todas as três. O povo está do
nosso lado. Esse tipo de coisa afeta as bruxas. Elas dependem disso.
A duquesa estalou os dedos para indicar o que achava da opinião do povo.
- Querida, você tem de admitir que a experiência parece estar funcionando.
- Parece que sim.
- Muito bem. Não fique aí parado, imbecil. Antes da peça acabar, avise a ele, aquelas
bruxas devem estar trancafiadas.
De frente para o espelho, Morte ajeitou a caveira de papelão, dobrou o capuz, recuou um
pouco e considerou o efeito geral. Seria seu primeiro papel com diálogo. Queria fazer tudo
direito.
- Curvem-se, Breves Mortais - ensaiou. - Pois Sou Morte, A Quem Nenhuma...
Nenhuma... Nenhuma... Hwel, a quem nenhuma?
- Ai, pelo amor dos deuses, Dafe, “A quem nenhuma porta vedada impede de entrar”. Eu
realmente não entendo a sua dificuldade com... Por aí não, idiotas!
Hwel avançou por entre a confusão dos bastidores, seguindo uma dupla de contra-regras.
- Certo - disse Morte, para ninguém em especial.
Virou-se para o espelho.
- “A Quem Nenhuma Tataratá-Tarará Entrar” - arriscou, incerto, e agitou a foice.
A ponta caiu.
- Acha que pareço terrível? - perguntou, enquanto tentava encaixar a lâmina.
Tomjon, que estava sentado, curvado sobre si mesmo, tentando beber um pouco de chá,
concordou, à guisa de incentivo.
- Sem problema - respondeu. - Comparado a uma visita sua, nem o próprio Morte assusta
tanto. Mas você podia tentar falar de modo mais cavernoso.
- Como assim?
Tomjon largou a xícara. Sombras pareceram cruzar seu rosto; os olhos afundaram, os
lábios se arreganharam, a pele esticou e ficou pálida.
- VIM LEVAR VOCÊ, MAU ATOR - disse ele, cada sílaba bem colocada como a tampa
de um caixão.
A fisionomia voltou ao normal.
- Assim - concluiu.
Dafe, que havia se jogado contra a parede, relaxou um pouco e soltou um riso nervoso.
- Nossa, não sei como você consegue! - exclamou. - Sinceramente. Nunca serei bom
como você.
- Não é difícil. Agora vá. Hwel está prestes a ter um ataque.
Dafe lhe dirigiu um olhar de gratidão e correu para ajudar na troca de cenário.
Pouco à vontade, Tomjon bebericou o chá, com os ruídos dos bastidores zumbindo à sua
volta. Estava preocupado.
Hwel lhe dissera que tudo na peça estava bem, exceto a própria peça. E Tomjon não
conseguia deixar de pensar que a peça... vinha tentando se refazer. Ele mesmo ficava ouvindo
outras palavras, fracas demais para serem escutadas - quase como se bisbilhotasse conversa alheia.
E precisara falar mais alto para abafar o murmúrio em sua cabeça.
Aquilo não estava certo. Quando a peça estava escrita, estava escrita. Não deveria ganhar
vida e começar a se distorcer.
Não admirava que todos precisassem do ponto o tempo todo. A peça se contorcia em
suas mãos, tentando se modificar.
Deuses do céu, não via a hora de sair daquele castelo mal-assombrado, para longe do
duque ensandecido. Olhou à volta, decidiu que tinha algum tempo antes do ato seguinte e saiu
em busca de ar fresco.
Abriu a porta e se descobriu entre as ameias. Fechou-a, abafando os ruídos do palco e
substituindo-os pelo silêncio avelu-dado. Havia um pôr-do-sol fraco, aprisionado atrás de grades
de nuvem, mas o ar ainda estava parado feito açude de azenha e quente como fornalha. Na
floresta abaixo, algumas aves noturnas chiavam.
Dirigiu-se ao outro lado das ameias e avistou o fundo do desfiladeiro. Lá embaixo, Lancre
se evaporava em névoas eternas.
Virou-se e atravessou uma corrente de ar tão fria que chegou a arquejar.
Brisas incomuns lhe puxaram a roupa. Houve um sussurro estranho perto de seu ouvido,
como se alguém tentasse lhe falar mas não acertasse a velocidade. Por um instante, Tomjon ficou
parado, retomando fôlego, e correu de volta para a porta.
Hwel sorriu. Talvez os deuses de fato ouvissem. Arrependeu-se de não ter pedido
também uma máquina de vento.
Frenética, gesticulou paraTomjon.
- Vamos com isso!
O menino concordou e desandou a declamar sua fala.
- E, agora, nossa dominação ê completa...
No palco, atrás dele, as bruxas se inclinavam sobre o caldeirão.
- É de lata - sussurrou Tia Ogg. - E está cheio de porcaria.
- O fogo é só papel vermelho - cochichou Margrete. - Parecia tão real lá de baixo, mas é
só papel vermelho! Olha, dá até para encostar nele...
- Não importa - cortou Vovó. - Apenas finjam que estão ocupadas e esperem meu sinal.
Quando o Rei Mau e o Duque Bom deram início ao diálogo que levaria à emocionante
Cena do Duelo, perceberam certa agitação atrás deles e risadas ocasionais da platéia. Depois de
uma explosão de gargalhadas inconvenientes, Tomjon arriscou uma olhadela.
Uma das bruxas despedaçava o fogo. Outra tentava limpar o caldeirão. E a terceira estava
sentada de braços cruzados, encarando a grande panela.
- A própria terra protesta contra a tirania... - disse Wimsloe, que reparou na fisionomia de
Tomjon e seguiu seu olhar.
A voz se perdeu.
- “E me chama para a vingança” - soprou Tomjon.
- M-mas... - murmurou Wimsloe, tentando apontar disfarçadamente com o punhal.
- Nem morta eu apareceria ao lado de um caldeirão sujo desses - reclamou Tia Ogg, num
sussurro alto o bastante para se fazer ouvir no fundo do pátio. - Precisa de dois dias de
esfregação com escova e balde de areia.
- “E me chama para a vingança” - cochichou Tomjon. Com o canto dos olhos, viu Hwel
estatelado nos bastidores.
- Como será que fazem para bruxulear? - imaginou Margrete.
- Fiquem quietas, vocês duas - ordenou Vovó. - Estão atrapalhando. - Ela levantou o
chapéu para Wimsloe. - Continue, rapaz. Não se incomode conosco.
- Quê? - perguntou Wimsloe.
- Ah, ela o chama para a vingança, é? - arriscou Tomjon, em de-sespero. - E imagino que
os céus também implorem pela desforra.
Com a deixa, a tempestade soltou um raio que arrancou o topo de outra torre...
O duque se curvou no trono, tomado de pânico. Esticou o que um dia havia sido um
dedo.
- Elas estão lá - apontou. - São elas. O que estão fazendo na minha peça? Quem disse que
podiam entrar na minha peça?
A duquesa, que era menos propensa a lidar com questões retóricas, acenou para o guarda
mais próximo.
No palco, Tomjon suava sob o peso do roteiro. Wimsloe estava desorientado. Gumridge,
que representava o papel da Duquesa Boa com uma peruca de linho, também perdia o fio da
meada.
- Ah, tu me chamas de mau rei, embora sussurres para que apenas eu o ouça - aventurou-
se Tomjon. - E também convocaste o guarda, usando algum sinal secreto que não recorre aos
lábios nem à língua.
Um guarda se aproximou de lado, ainda cambaleando pelo empurrão de Hwel. Olhou
Vovó Cera do Tempo.
- Hwel perguntou o que está acontecendo - cochichou.
- O que foi? - perguntou Tomjon. - Será que o ouvi dizer “Aqui estou, milady.”
- Mandou tocar essa gente para fora!
Tomjon avançou para frente do palco.
- Balbucias, rapaz. Vês como me esquivo à tua lança vagarosa? Eu perguntei se vês como
me esquivo à tua lança vagarosa. Tua lança, rapaz. A que está em tuas mãos.
O guarda lhe abriu um sorriso rígido de desespero.
Tomjon titubeou. Os três outros atores tinham os olhos voltados para as bruxas. Com a
mesma inevitabilidade das cobranças de imposto, parecia haver pela frente uma luta de espadas
durante a qual ele teria que aparar seus próprios golpes e matar a si mesmo.
Virou-se para as três bruxas. Deixou a boca se entreabrir.
Pela primeira vez na vida, sua extraordinária memória o desapontava. Não conseguiu
pensar em nada para dizer.
Vovó Cera do Tempo se levantou. Dirigiu-se à beira do palco. A platéia prendeu a
respiração. Ela ergueu o braço.
- Chega de estratagemas e fantasmas da mente, proclamo a Verdade... - ela hesitou - ...
tataratá imediatamente.
Tomjon sentiu um ímpeto de energia. Os outros também se regozijaram.
Da profundeza de suas mentes vazias, lançavam-se novas palavras: palavras vermelhas de
sangue e vingança, palavras já ecoadas nas pedras do castelo, palavras guardadas em silício,
palavras que agora se fariam ouvir, palavras que se apoderavam daquelas bocas com tamanha
intensidade que qualquer tentativa de não proferi-las resultaria em dentes quebrados.
- Você o teme agora? - perguntou Gumridge. - Quando ele está estonteado de bebida?
Pegue o punhal dele, marido... a distância para o reino é de apenas uma lâmina.
- Não posso - respondeu Wimsloe, tentando olhar para os próprios lábios.
- Quem saberá? - argumentou Gumridge, agitando a mão para a platéia. Ele jamais atuaria
tão bem novamente. - Vês, só há a noite cega. Se tomas o punhal hoje, terás o reino amanhã. Dê-
lhe a punhalada.
A mão de Wimsloe tremia.
- Pois aqui está - disse.
- É um punhal que vejo diante de mim?
- Claro que é um punhal. Agora vamos. Os fracos não merecem misericórdia. Diremos
que ele caiu da escada.
- Mas vão desconfiar!
- E para que servem os calabouços? E os instrumentos de tortura? Posse é lei, quando o
que possuímos é um punhal.
Wimsloe afastou o braço.
- Não posso! Ele foi a generosidade em pessoa para mim!
- E você pode ser Morte em pessoa para ele...
Dafe ouvia as vozes à distância. Ajeitou a máscara, conferiu a morbidez de sua aparência
no espelho e espiou o roteiro à pouca iluminação do camarim vazio.
- Curvem-se, Breves Mortais - disse. - Pois Sou Morte, Ao Qual... Ao Qual...
- A QUEM.
- Ah, obrigado - agradeceu o menino, distraído. - A Quem Nenhuma Porta Fechada...
- VEDADA.
- Vedada Impede de Entrar, Aqui Para... para... para...
- AQUI PARA FAZER MEUS CÁLCULOS NESTA NOITE DE REIS.
Dafe fraquejou.
- Você é tão melhor nisso - reclamou. - Tem a voz certa e se lembra das palavras exatas. -
Ele se virou. - São só três linhas, e Hwel vai... me... estropiar...
Ele parou. Os olhos se arregalaram e viraram dois pires de medo, então Morte estalou os
dedos em frente ao rosto rígido do menino.
- ESQUEÇA - ordenou.
Deu meia-volta e avançou para os bastidores. As órbitas oculares avistaram a fileira de
fantasias e a mesa de maquiagem. As narinas sentiram o cheiro combinado de naftalina, gordura e
suor.
Havia alguma coisa ali, pensou, que quase pertencia aos deuses. Os seres humanos tinham
criado um mundo dentro do mundo, que o refletia do mesmo modo como a gota d'água reflete a
paisagem. E no entanto... no entanto...
Dentro daquele mundo, haviam se esforçado para pôr tudo o que qualquer um gostaria
de evitar: ódio, medo, despotismo e assim por diante. Morte estava intrigado. Imaginava que os
seres humanos quisessem sair de si mesmos, mas toda arte que inventavam levava-os mais para
dentro. Estava fascinado.
Encontrava-se ali por um motivo muito particular e específico. Existia uma alma a ser
reivindicada. Não havia tempo para frivolidades. Mas o que era o tempo, afinal?
Arriscou uma dança involuntária no chão de pedras. Sozinho, nas sombras pardacentas,
Morte sapateou.
-... NA NOITE SEGUINTE PENDURAM UMA ESTRELA NO SEU CAMARIM...
Endireitou-se, ajeitou a foice e aguardou pacientemente por sua deixa.
Nunca perdia as deixas.
Subiria ali e arrasaria.
- E você pode ser Morte em pessoa para ele. Agora!
Morte entrou em cena, os pés estalando pelo palco.
- CURVEM-SE AGORA, BREVES MORTAIS - disse. - POIS SOU MORTE, A
QUEM NENHUMA... NENHUMA... A QUEM...
Ele hesitou. Pela primeira vez na eternidade de sua existência, ele hesitou.
Porque, embora o Morte do Discworld estivesse acostumado a lidar com muita gente, ao
mesmo tempo cada morte era íntima e pessoal.
Morte raramente era visto, exceto por quem tinha disposição mágica e pelos próprios
clientes. O motivo de ninguém mais vê-lo é que o cérebro humano é inteligente o suficiente para
ignorar visões terríveis demais. O problema ali era que várias centenas de pessoas estavam
esperando ver Morte naquele momento, portanto, realmente o viram.
Morte se virou devagar e retribuiu o olhar da platéia.
Mesmo sob as garras da verdade, Tomjon era capaz de reconhecer um colega ator em
apuros e lutou para dominar os próprios lábios.
- “... porta vedada...” - soprou entre os dentes, fazendo uma careta.
Morte lhe abriu um sorriso alucinado de fobia.
- O QUÊ? - sussurrou, em voz semelhante a uma bigorna açoitada por martelo de
chumbo.
- “... porta vedada impede...” - cochichou Tomjon.
- ... PORTA VEDADA IMPEDE... HUM... - repetiu Morte em desespero, atentando
para os lábios do garoto.
- "... de entrar!..."
- DE ENTRAR.
- Não, não posso! - gritou Wimsloe. - Irão me ver! Ali, no corredor, alguém espreita!
Começava a chover.
A chuva das Ramtops tem uma capacidade curiosa de penetração: faz a chuva comum
parecer quase árida. Caía aos borbotões sobre os telhados do castelo e, de algum modo, parecia
atravessar os tijolos e encher o salão principal de uma incômoda umidade quente.18
O salão abrigava metade da população de Lancre. Do lado de fora, a força da chuva
abafava até o ruído distante do rio. O palco estava alagado. As cores corriam e se misturavam na
tela de fundo pintada, e uma das cortinas fora arrancada do trilho e se agitava numa poça.
Do lado de dentro, Vovó Cera do Tempo acabava de falar.
- Você se esqueceu da coroa - cochichou Tia Ogg.
- Ah - soltou Vovó. - É, a coroa. Está na cabeça dele, estão vendo? Nós a escondemos
entre as coroas de mentira antes que os atores partissem, porque ninguém procuraria ali. Estão
vendo como cai bem nele?
Foi graças ao extraordinário poder de persuasão de Vovó que todos viram que a peça caía
bem em Tomjon. Na verdade, o único que não viu isso foi o próprio Tomjon, que sabia que
apenas suas orelhas impediam-na de virar um colar.
- Imaginem a sensação que ele deve ter experimentado ao pôr a coroa pela primeira vez -
continuou. - Deve ter sido inaudita.
- Na verdade... - começou Tomjon, mas ninguém lhe dava ouvidos.
Encolheu os ombros e se inclinou para Hwel, que ainda escrevia freneticamente.
- Inaudito quer dizer desconfortável? - sussurrou.
O anão encarou-o com olhos vagos.
- O quê?
- Eu perguntei se inaudito quer dizer desconfortável.
- Hã? Ah. Não. Acho que não.
- Então significa o quê?
- Não sei. Retangular, eu acho. - Hwel voltou a olhar para o texto, como se estivesse
hipnotizado. - Você lembra o que ele disse depois de todos aqueles dias seguintes? Eu não peguei
a parte logo após...
- E não tinha necessidade de você contar para todo mundo que eu era... adotado -
protestou Tomjon.
- Foi assim que aconteceu - argumentou o anão, distraído. - É melhor ser sincero nessas
coisas. Mas, me diga, ele chegou a apunhalar a mulher ou fez apenas acusações?
- Eu não quero ser rei! - cochichou Tomjon, a voz rouca. - Todo mundo diz que puxei a
papai!
- Engraçado isso de puxar às pessoas - comentou o anão. - Quer dizer, se eu tivesse
puxado ao meu pai, estaria trezentos metros abaixo da superfície da terra, cavando pedra, ao
passo que...
A voz se perdeu. Ele olhou para a ponta da pena de escrever como se aquilo exercesse
um fascínio incrível.
18
Como em Bognor.
- Ao passo que o quê?
- Hein?
- Você não está nem ouvindo?
- Eu sabia que estava errado quando escrevi, sabia que era o contrário... O quê? Ah, sim.
Seja rei. É um bom emprego. De qualquer maneira, parece que é uma área bastante competitiva.
Estou muito feliz por você. Quando for rei, vai poder fazer o que quiser.
Tomjon olhou para as pessoas ilustres de Lancre em torno da mesa. Tinham o aspecto
ávido e calculado do público de exposição de gado. Avaliavam-no. Ele reconheceu que, quando
fosse rei, poderia fazer o que quisesse. Desde que o que quisesse fosse ser rei.
- Você vai poder construir seu próprio teatro - lembrou Hwel, os olhos acendendo por
um instante. - Com quantos alçapões quiser e fantasias as mais incríveis. Vai poder encenar peça
nova todas as noites. Quer dizer, faria o Dhisco parecer um barracão.
- Quem viria me ver? - perguntou Tomjon, afundando na cadeira.
- Todo mundo.
- Todas as noites?
- Basta obrigá-los - sugeriu Hwel, sem olhar para cima.
Eu sabia que ele ia dizer isso, pensou Tomjon. Mas não está falando sério, acrescentou,
com tolerância. Ele tem a peça. Não está vivendo neste mundo agora.
Tirou a coroa e revirou-a nas mãos. Não havia muito metal, mas era pesada. Imaginou
que peso seria usá-la o tempo todo.
Na cabeceira da mesa, encontrava-se vazia a cadeira onde lhe haviam garantido estar
sentado o fantasma de seu pai verdadeiro. Seria bom dizer que tinha experimentado alguma coisa
além de uma sensação gelada e um zunido nos ouvidos ao serem apresentados.
- Talvez eu pudesse ajudar papai a terminar de pagar o Dhisco - imaginou.
- Seria bom - concordou Hwel.
Tomjon girou a coroa nos dedos e ouviu, desanimado, a conversa que se passava ao
redor.
Um mês se passou. O cheiro outonal de terra molhada soprava pelo campo escuro e
aveludado, onde a luz das estrelas se fazia espelhar pelo brilho de uma única fogueira.
A pedra que demarcava os territórios das bruxas estava de volta ao seu lugar original, mas
ainda se encontrava pronta para sair correndo caso surgisse algum desconhecido.
As bruxas estavam sentadas em silêncio. Aquele não seria um dos cem sabás mais
emocionantes de todos os tempos. Se Mussorgs-ky as tivesse visto, a noite nas montanhas teria
terminado na hora do chá.
Vovó Cera do Tempo disse:
- Achei o banquete muito bom.
- Quase passei mal - lembrou Tia Ogg, com orgulho. - Nossa Shirl ajudou na cozinha e
me levou umas sobras.
- Ouvi dizer - resmungou Vovó. - Parece que ficou faltando metade do porco e três
garrafas de vinho espumante.
- É bonito que algumas pessoas ainda se lembrem dos mais velhos - opinou Tia Ogg,
ignorando-a por completo. - Também ganhei uma caneca da coroação. - Ela exibiu o presente. –
Diz “Viva Verence II Rex”. Formidável ele se chamar Rex. Não posso dizer que sejam parecidos.
Não me lembro de ele ter um cabo saindo da orelha.
Houve outra pausa longa e terrivelmente delicada. Vovó disse:
- Margrete, ficamos surpresas que você não estivesse presente.
- Imaginamos que estaria à cabeceira da mesa - acrescentou Tia Ogg. - Achamos até que
tivesse se mudado para lá.
Margrete olhava fixo para os próprios pés.
- Não fui convidada - justificou-se, acanhada.
- Bem, não sei nada de ser convidada - rebateu Vovó. - Nós também não fomos
convidadas. Ninguém convida bruxa, todo mundo sabe que a gente aparece se quiser. Logo
abrem espaço para nós - acrescentou, com alguma satisfação.
- Ele anda muito ocupado - comentou Margrete, ainda fitando os próprios pés. -
Resolvendo tudo. No fundo, é muito inteligente, sabiam?
- Um rapaz muito ajuizado - confirmou Tia Ogg.
19
Pelo menos, parou de supervisionar o carregamento. Ajuda física ficava um pouco difícil porque, no dia
anterior, ele escorregara e quebrara a perna.
- Enfim, é lua cheia - apressou-se em dizer Margrete. - Temos que fazer as reuniões do
sabá nas noites de lua cheia, independentemente de outros compromissos prementes.
- Você...? - começou Tia Ogg, mas Vovó cutucou-a com força na altura das costelas.
- E ótimo que ele esteja dando tanta atenção à recuperação do reino - observou Vovó. -
Demonstra consideração. Tenho certeza de que vai ajeitar tudo, mais cedo ou mais tarde. Ser rei
é um trabalho muito duro.
- E, sim - concordou Margrete, mal se fazendo ouvir.
O silêncio que se seguiu era quase concreto. Foi interrompido por Tia Ogg, com voz
clara e quebradiça feito gelo.
- Bem, eu trouxe uma garrafa daquele vinho espumante - disse. - Caso ele... digo, caso a
gente queira beber - completou, agitando a garrafa para as outras duas.
- Eu não quero - respondeu Margrete, entristecida.
- Beba, menina - incentivou Vovó Cera do Tempo. - A noite está iria. Vai lhe fazer bem.
Ela fitou Margrete quando a lua saiu de trás das nuvens.
- Ora veja - comentou. - Seu cabelo está sujo. Parece que mão é lavado há um mês.
Margrete desatou a chorar.
A mesma lua brilhava na cidade de outro modo ordinária de Bhode Nitz, a cerca de cento
e cinqüenta quilômetros de Lancre.
Tomjon deixara o palco sob ovação ensurdecedora no último ato de O Troll de Ankh.
Naquela noite, cem pessoas voltariam para casa se perguntando se os trolls eram de fato maus
como imaginavam até então, embora, obviamente, isso não fosse impedi-las de continuar
detestando-os.
Hwel lhe deu tapinhas nas costas quando o menino se sentou à mesa de maquiagem e
começou a tirar a grossa camada cinza que tinha o propósito de deixá-lo parecido com uma pedra
ambulante.
- Muito bem - disse. - A cena de amor... perfeita. E, quando você se virou e rugiu para o
mago, acho que não sobrou um banco seco na casa.
- Eu sei.
Hwel esfregou as mãos.
- Hoje podemos bancar uma hospedaria - observou. - E se a gente...
- Vamos dormir nas carroças - cortou Tomjon, decidido, mirando a si mesmo no caco de
espelho.
- Mas você sabe quanto dinheiro o Bo... o rei nos deu! Podemos dormir em cama de
penas durante todo o caminho de casa!
- Vai ser colchão de palha e um bom lucro para nós - rebateu Tomjon. - E isso vai lhe
comprar os deuses do paraíso, os demônios do inferno, o vento, as ondas e mais alçapões do que
você teria dedos para contar, meu enfeite de jardim.
Hwel pousou a mão no ombro de Tomjon por um instante. E falou:
- Tem razão, chefe.
- Claro que tenho. Como vai a peça?
- Hã? Que peça? - perguntou Hwel, com ar inocente.
Tomjon tirou a testa de massa.
- Você sabe - insistiu. - Aquela. O Rei de Lancre.
- Ah. Vai indo. Dia desses acabo. - Hwel tratou de mudar de assunto. - A gente poderia
seguir na direção do rio e tomar um barco para casa. Seria gostoso, não seria?
- Mas a gente poderia seguir por terra e conseguir mais dinheiro no caminho. Seria
melhor, não seria? - perguntou Tomjon, sorrindo. - Ganhamos cento e três centavos essa noite.
Contei as cabeças durante a fala do julgamento. É quase uma moeda de prata, fora as despesas.
- Sem dúvida você é filho do seu pai - atestou Hwel. Tomjon se recostou e voltou a se
olhar no espelho.
- É - disse. - Achei que deveria ser.
Margrete não gostava de gato e detestava a idéia de ratoeiras. Sempre achara possível
chegar a uma espécie de acordo com animais como os camundongos. Assim toda a comida
disponível poderia ser distribuída para o melhor proveito de todas as partes. Tratava-se de um
ponto de vista bastante humanitário, o que vale dizer que não era partilhado pelos camundongos.
Portanto, a cozinha dela encontrava-se infestada.
Quando bateram à porta, o chão inteiro pareceu correr para as paredes.
Depois de alguns segundos, bateram de novo.
Houve outra pausa. Então as batidas fizeram tremer a porta, e alguém gritou:
- Abra em nome do rei!
Com suavidade, outra voz disse:
- Não precisa gritar assim. Por que gritou assim? Não pedi para gritar assim. Gritar assim
deixa qualquer um assustado.
- Desculpe, majestade! Força do hábito, majestade!
- Apenas bata de novo. Com menos força, por favor.
As batidas poderiam ter sido mais fracas. O avental de Margrete caiu do gancho atrás da
porta.
- Tem certeza de que não posso fazer isso sozinho?
- Não está certo, majestade, rei bater em porta de casa humilde. Melhor deixar comigo.
ABRA EM NOME...
- Sargento!
- Desculpe, majestade. Esqueci.
- Tente a maçaneta.
Ouviu-se o ruído de alguém agindo com extrema hesitação.
- Majestade, não estou gostando nada disso - avaliou o sargento. - Pode ser perigoso. Se
quer meu conselho, majestade, deveríamos botar fogo no telhado.
- Botar fogo?
- Sim, majestade. Sempre fazemos isso quando não abrem a porta. Saem na hora.
- Acho que não seria apropriado, sargento. Vou tentar a maçaneta, se você não se
importa.
- Me parte o coração vê-lo fazendo isso, majestade.
- Bem, sinto muito.
- O senhor poderia ao menos deixar eu dar uma lustrada antes.
- Não!
- Então será que não posso botar fogo na latrina...?
- Claro que não!
- Aquele galinheiro iria pelos ares como...
- Sargento!
- Majestade!
- Volte para o castelo!
- E deixá-lo sozinho, majestade?
- Este é um assunto muito delicado, sargento. Tenho certeza de que você é um homem
de qualidades excelentes, mas há momentos em que até o rei precisa ficar sozinho. Diz respeito a
uma moça, entende?
- Ah, entendi, majestade.
- Obrigado. Me ajude a descer do cavalo, por favor.
- Desculpe aquilo tudo, majestade. Foi muito rude da minha parte.
- Não tem de quê.
- Se precisar de alguma ajuda para acendê-la...
- Por favor, volte para o castelo, sargento.
- Sim, majestade. Se o senhor está certo disso, majestade. Obrigado, majestade.
- Sargento?
- Sim, majestade?
- Vou precisar de alguém para levar minha touca e os sinos de volta ao Grêmio dos
Bobos, em Ankh-Morpork, agora que estou deixando o cargo. A mim, parece que você é o
homem ideal.
- Obrigado, majestade. Muito agradecido.
- É seu desejo mais ardente me ser útil?
- Sim, majestade.
- Peça para deixarem você num dos quartos de hóspede.
- Sim, majestade. Obrigado, majestade.
Ouviu-se o ruído do cavalo se afastando. Alguns segundos mais tarde, a maçaneta se abria
e o Bobo entrava no chalé.
É preciso ter muita coragem para adentrar cozinha de bruxa no escuro, mas,
provavelmente, não mais do que é necessário para usar camisa roxa com mangas de veludo e
bordas adornadas. Porém, tinha uma vantagem: não tinha sinos.
Ele levara uma garrafa de vinho espumante e um buquê de flores que ficaram avariados
durante a viagem. Depositou-os sobre a mesa e sentou-se perto das brasas da lareira.
Esfregou os olhos. O dia tinha sido longo. Achava que não era bom rei, mas passara a
vida toda sendo algo que não desejava e agora perseveraria. Até onde sabia, nenhum de seus
antecessores sequer tentara. Havia tanto a fazer, tanto a consertar, tanto a organizar...
Sobretudo, tinha o problema da duquesa. Por algum motivo, ele se sentira na obrigação
de botá-la numa cela decente, em torre arejada. Afinal de contas, era viúva. Achava que deveria
ser gentil com as viúvas. Mas gentileza não surtia muito efeito na duquesa: ela não entendia
gentileza, achava que era só covardia. O Bobo morria de medo de ter que acabar mandando
cortarem-lhe a cabeça.
Não, ser rei não era brincadeira. Animou-se com o pensamento. Tinha essa vantagem.
E, depois de um tempo, adormeceu.
Nos campos à sombra das montanhas, o poderoso coro noturno da natureza silenciava.
Os grilos tinham encerrado o cricrido, as corujas tinham parado de piar e os lobos tinham
assuntos pendentes a resolver.
Um canto ecoava entre os penhascos e ressoava nos altos vales ocultos, provocando
pequenas avalanches. A música se infiltrava em túneis secretos debaixo de geleiras, perdendo
todo sentido ao vibrar entre as paredes de gelo.
Para descobrir o que de fato estava sendo cantado, teríamos que voltar até a fogueira
agonizante próxima à pedra que demarcava territórios, onde as ressonâncias cruzadas e as ondas
de ecos conflitantes se centravam na senhora baixinha que levantava uma garrafa vazia.
- ... com a lesma se nos rastejamos devagar, mas o porco-espinho...
- O gosto fica melhor no fundo da garrafa - opinou Margrete, tentando abafar o refrão.
- Exatamente - confirmou Vovó, bebendo de sua taça.
- Tem mais?
- Pelo jeito, Gytha tomou tudo.
Sentadas na urze perfumada, as duas contemplavam a lua.
- Bem, agora temos nosso rei - disse Vovó. - E fim de história.
- Graças à senhora e a Tia Ogg - considerou Margrete, e soluçou.
- Por quê?
- Ninguém teria acreditado em mim se vocês não tivessem falado.
- Foi só porque nos perguntaram - argumentou Vovó.
- É, mas todo mundo sabe que bruxa não mente, o importante é isso. Quer dizer, era
evidente que os dois se pareciam, mas poderia ser coincidência... - Margrete corou. - Eu pesquisei
o termo droit du seigneur. Dona Lamória tinha um dicionário de idiomas.
Tia Ogg parou de cantar.
- Sei - disse Vovó Cera do Tempo. - Bem.
Margrete sentiu o clima pesar.
- Vocês contaram a verdade, não contaram? - perguntou. - Eles são irmãos, não são?
- Ah, são - respondeu Tia Ogg. - Sem dúvida. Eu cuidei da mãe do seu... do novo rei,
quando ele veio ao mundo. E da rainha, quando Tomjon nasceu, aí ela me contou quem era o pai
dele.
- Gytha!
- Desculpe.
O vinho subia à cabeça, mas a engrenagem do cérebro de Margrete ainda funcionava.
- Esperem aí - pediu.
- Eu me lembro bem do pai do Bobo - prosseguiu Tia Ogg. - Um rapaz bem-apessoado.
Não se dava com o pai, mas o visitava de vez em quando. Para ver antigas amizades.
- Fazia amizade muito fácil - acrescentou Vovó.
- Entre as mulheres - confirmou Tia Ogg. - Atlético à beca, não era? Subia muro como
ninguém.
- Muito estimado na corte - observou Vovó. - Disso eu sei.
- Ah, sim. Ao menos pela rainha.
- O rei saía demais para caçar - notou Vovó.
- Era aquele droit dele - explicou Tia Ogg. - Estava sempre às voltas com aquilo. Quase
não passava as noites em casa.
- Esperem aí - repetiu Margrete.
Elas a fitaram.
- Que foi? - perguntou Vovó.
- Vocês disseram para todo mundo que eles eram irmãos e que Verence era o
primogênito.
- Isso mesmo.
- E deixaram todo mundo acreditar que...
Vovó Cera do Tempo se cobriu com o xale.
- Nós temos que ser verdadeiras - disse. - Mas não precisamos ser sinceras.
- Não, não, o que a senhora está dizendo é que o rei de Lancre não é...
- O que estou dizendo - cortou Vovó - é que temos um rei que é melhor do que a maioria
e tem a cabeça no lugar...
- Mesmo se não é o lugar exato - acentuou Tia Ogg.
- ... o fantasma do antigo rei está descansando em paz, tivemos uma coroação bonita,
algumas de nós ganharam canecas a que não tinham direito, já que eram só para criança e, no
todo, as coisas estão muito melhores do que poderiam estar. E isso que estou dizendo. Pare de
pensar no que poderia ou deveria ter sido. O que importa é como as coisas são.
- Mas ele não é rei de verdade!
- Talvez seja - imaginou Tia Ogg.
- Mas a senhora acabou de dizer...
- Quem sabe? A finada rainha não era muito boa em conta. De qualquer jeito, ele não
sabe que não é da realeza.
- E você não vai contar, vai? - perguntou Vovó. Margrete olhou para a lua tracejada de
nuvens.
- Não - respondeu.
- Ótimo - concluiu Vovó. - Enfim, pense assim. A realeza precisa começar em algum
lugar. Pode começar com ele. Parece que o rapaz está levando o negócio a sério, que já é mais do
que a maioria deles se digna fazer. Ele vai se sair bem.
Margrete sabia que tinha perdido. Todo mundo perdia de Vovó Cera do Tempo, a única
curiosidade era ver como.
- Mas estou surpresa com vocês duas, estou mesmo - admitiu. - Vocês são bruxas.
Significa que têm que se importar com a verdade, a tradição e o destino, não é?
- E aí que você se engana - objetou Vovó. - O destino é importante, sim, mas a pessoa se
engana quando imagina que é controlada por ele. Na verdade, é o contrário.
- Dane-se o destino - disse Tia Ogg.
Vovó olhou para ela.
- Você não achava que ser bruxa seria fácil, achava?
- Estou aprendendo - respondeu Margrete.
Ela correu os olhos até o fim do campo, onde os primeiros raios de sol brilhavam no
horizonte.
- Acho melhor eu ir andando - decidiu. - Está amanhecendo.
- Eu também - disse Tia Ogg. - Nossa Shirl reclama se não estou em casa quando vai me
levar o café-da-manhã.
Vovó revirou os restos da fogueira com cuidado.
- Quando vamos nos ver de novo? - perguntou. - Hein?
As três bruxas se entreolharam, encabuladas.
- Estou meio ocupada no mês que vem - confessou Tia Ogg. - Aniversários e tudo o
mais. Hã. E o trabalho se acumulou, com toda essa confusão. Vocês sabem. Também tenho de
pensar nos fantasmas.
- Achei que os tivesse mandado de volta ao castelo - surpreendeu-se Vovó.
- Bem, eles não queriam - justificou Tia Ogg, distraída. - Para ser sincera, eu me
acostumei com eles na casa. São boa companhia para a noite. Agora, quase não gritam.
- Que bom - disse Vovó. - E você, Margrete?
- Tem sempre tanta coisa para fazer nessa época do ano, vocês não acham? - perguntou a
jovem bruxa.
- Bastante - respondeu Vovó Cera do Tempo, com alegria. - Não vale a pena ficar se
prendendo a compromissos o tempo todo, não é? Vamos deixar a questão em aberto, que tal?
Todas concordaram. E, ao nascer do novo dia, cada qual com seus próprios
pensamentos, cada qual uma bruxa singular, voltaram para casa.20
FIM
20
Existe uma escola de pensamento que diz que não há cansaço que faça bruxas magos voltarem para casa.
Mesmo assim, elas voltaram.