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Beatriz Raposo de Medeiros

Marcos Nogueira
(orgs.)

Cognição Musical:
aspectos multidisciplinares

Artigos selecionados para o IV SIMCAM


Simpósio de Cognição e Artes Musicais

São Paulo 2008


Infothes Informação e Tesauro

M438 Medeiros, Beatriz Ra poso de, Or g.; Nogue ira, Marcos, Org.
Cognição musical: aspe ctos multidisciplinares. / Organização de Bea triz Ra poso
de Medeiros e Marcos No gueira. – São Paulo: Paulis tana, 2008.

Anais do S IMCAM - Simpósio Internacional de Cognição e Artes M usicais, 4.


São Paulo: USP/FF LC H – De partame nto de Lingüística, 28 a 30 de maio de 2008.

ISBN 978-85- 9982 9-24-0

1. Música. 2. Linguage m Musical. 3. Semió tica. I. Título. II. A me nte e a


percepção musical. III. Tecnolo gia, artes musicais e mente. IV. Artes musicais, lingüística, semió tica
e cognição. V. A mente e a pro duçã o m usical.
VI. O dese nvolvime nto paralelo da me nte huma na e das artes m usicais.
VII. Associa ção Brasileira de C ognição e Ar tes Musicais.

C DU 78
CDD 780

Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922


SUMÁRIO

A mente e a percepção musical

A Relação entre Sinal Sonoro e Signo Musical: Considerações Sobre Sensação de


Rugosidade e sua Tipomorfologia
Alexandre Porres...................................................................................................................... 2

A Escala do Chromelodeon: Um Modelo Psicoacústico de Rugosidade versus One


Footed Bridge de Harry Partch
Alexandre Porres...................................................................................................................... 9

Play it again: a repetição como factor de preferência na recepção musical


Angelo Martingo .................................................................................................................... 17

Construção de uma interpretação multisensorial


César Traldi e Jônatas Manzolli ............................................................................................. 22

As intenções e percepções da emoção nas interpretações musicais de um Prelúdio


de J.S. Bach
Cristina Capparelli Gerling; Catarina Domenici e Regina Antunes Teixeira do Santos......... 28

“Desceu aos trópicos... baixou meio tom” — Considerações sobre os dois Les
Adieux, de Neukomm e seus afetos
Edmundo Hora ....................................................................................................................... 35

Noção de tonalidade
J. Zula de Oliveira e Marilena de Oliveira .............................................................................. 42

Incidência e categorização de ouvido absoluto em estudantes de música da


Universidade de Brasília
Patrícia Vanzella, Maria Gabriela M. de Oliveira e Mariana Werke....................................... 46

Caracterização do processo de Ação Simultânea (AS) na performance e percepção


em tempo real
Ricardo Dourado Freire ......................................................................................................... 54

Análise de conteúdo segundo Bardin: procedimento metodológico utilizado na


pesquisa sobre a situação atual da Percepção Musical nos cursos de graduação em
música do Brasil
Ricardo Goldemberg e Cristiane Otutumi .............................................................................. 61

A percepção da produção vocal pelo regente coral


Snizhana Drahan.................................................................................................................... 68

A mente e a produção musical

A influência da representação visual no ato de compor


Alexandre Loureiro ................................................................................................................ 77
Prolegomena to a comprehensive Theory of Gesture — The Kinesics Analysis in the
Investigation of Emotion Expression in Music Performance
Antonio Salgado ..................................................................................................................... 81

A teoria do contorno no estudo da emoção em música


Bernardo Pellon...................................................................................................................... 88

Criação musical e cultura infantil: possibilidades e limites no ensino e


aprendizagem da música
Flávia Narita e Maria Cristina de Carvalho Cascelli de Azevedo........................................... 95

Conhecimento, prática e corporalidade musicais


Jorge Luiz Schroeder .......................................................................................................... 103

Análise musical para a interpretação da arietta “Voi che sapete”, n. 12, Le nozze di
Figaro, k. 492, de W. A. Mozart
Lara Janek Babbar ............................................................................................................... 112

Fidelidade ao texto e a expressividade na interpretação musical: uma visão


neuropsicológica
Marcia Higuchi...................................................................................................................... 120

Rigidez métrica e a expressividade na interpretação musical: uma teoria


neuropsicológica
Márcia Higuchi e João Pereira Leite .................................................................................... 128

A cinematográfica vingança da música surrealista


Maurício Dottori ................................................................................................................... 135

A invenção de cadências e o exemplo de Schoenberg


Norton Dudeque ................................................................................................................... 140

Voz, pneumologia e fisioterapia respiratória: investigação interdisciplinar sobre a


configuração tóraco-abdominal durante o canto lírico
Rita de Cássia Fucci-Amato................................................................................................. 147

Um estudo sobre a motivação e o estado de fluxo na execução musical


Rosane Cardoso de Araujo e Letícia Pickler ....................................................................... 154

Ação, pensamento, gesto, expressividade e a prática musical


Thiago Cazarim .................................................................................................................... 160

Inclusão da música contemporânea pela ampliação do gosto, através do ensino de


flauta transversal para crianças iniciantes — Resultados parciais de pesquisa
Valentina Daldegan .............................................................................................................. 165

Artes musicais, lingüística, semiótica e cognição

Heresia e (re)significação musical nos benditos do Cariri


Cristiano da Costa Cardoso e Ewelter Rocha...................................................................... 174
Música e Lingüística: uma metodologia para estudos da prosódia do português
arcaico
Daniel Soares da Costa ....................................................................................................... 181

Percepção e linguagem: uma pesquisa de Mário de Andrade e de Oneyda


Alvarenga
Flávia Toni ............................................................................................................................ 187

Do ritmo musical para o ritmo lingüístico, a partir da análise de uma Cantiga de


Santa Maria de Afonso X
Gladis Massini-Cagliari......................................................................................................... 194

Timbre e persuasão: análise semiótica do jingle Café Seleto


Lucas Shimoda..................................................................................................................... 201

Abdução e antecipação na construção do significado musical


Luís Felipe Oliveira e Jônatas Manzolli ............................................................................... 207

A história de Lily Braun: valores de absoluto e de universo


Peter Dietrich........................................................................................................................ 214

A voz que canta, a voz que fala: o timbre na construção do sentido em “Tribunal
de Rua”, canção de O Rappa
Peter Dietrich e Maria Rita Aredes....................................................................................... 221

Os deslocamentos acentuais na canção Expresso 2222


Roberto Luiz Comi................................................................................................................ 228

O desenvolvimento paralelo da mente humana e das artes musicais

Oficinas de Performance Musical: uma metodologia interdisciplinar para uma


abordagem
Abel Raimundo Silva ............................................................................................................ 235

Desenvolvimento musical e musicoterapia em crianças Down:Um estudo


preliminar
Anahi Ravagnani .................................................................................................................. 243

Transferência de habilidades cognitivas e a música: uma revisão


Caroline Pacheco ................................................................................................................. 249

Música na gestação como processo cognitivo


Celina Maydana e Maria de Fátima Brasil ........................................................................... 257

Música em musicoterapia na abordagem músico-centrada: uma visão cognitivista


Clara Márcia de Freitas Piazzetta ....................................................................................... 261

Pacientes com deficiência intelectual e espectro autístico e o fazer musical


Elaine Kafjes, Mirna Domingos e Márcio Andriani ............................................................... 269

A importância da interação no desenvolvimento cognitivo musical: um estudo com


bebês de 0 a 24 meses
Esther Beyer ........................................................................................................................ 271
O idoso e a aprendizagem musical: ilusão ou realidade?
Eunice Dias da Rocha Rodrigues e Maria Cristina Azevedo de Carvalho ......................... 277

O pensamento do professor de música: a resolução de problemas na prática


docente
Fernanda de Souza ............................................................................................................. 284

Educação democrática no ensino superior de música: uma utopia


Graziela Bortz ...................................................................................................................... 290

A importância do estudo sobre a superdotação infantil para a educação musical


Hellen Ferracioli ................................................................................................................... 297

Educação musical e suas relações com habilidades auditivas e o desenvolvimento


fonológico de crianças de três e seis anos
Julia Escalda ....................................................................................................................... 305

Entre a razão, a emoção e a imaginação: a percepção de estudantes de canto lírico


a respeito de instruções baseadas na modelização, na verbalização concreta e em
metáforas e imagens
Lemuel Guerra ..................................................................................................................... 313

Ensino de música para um cérebro em transformação: reflexões sobre a música na


adolescência
Luciane Cuervo ................................................................................................................... 320

A aprendizagem musical por meio da utilização do conceito de totalidade do


sistema Orff/Wuytack
Luís Bourscheidt .................................................................................................................. 327

As impressões do público escolar diante dos concertos didáticos apresentados pelo


Quarteto de Cordas UFPR
Liciê Martin ........................................................................................................................... 334

A música em programas de avaliação seriada: que saberes? Que competências?


Liége Pinheiro Dos Reis e Maria Cristina de Carvalho Cascelli de Azevedo ...................... 341

O ensino coletivo: relatos de experiência em escola pública de educação especial


em Salvador-BA; bandinha e capoeira
Marcos dos Santos Moreira ................................................................................................ 348

Música na vida cotidiana


Maria Carolina Cruz e Rosemyriam Santos ........................................................................ 353

Memória operacional para tons, palavras e pseudopalavras em músicos


Mariana Werke ..................................................................................................................... 358

Representação sonoro-musical e o alerta atencional na Clínica Musicoterápica


Maristela Smith..................................................................................................................... 367

O papel da memória na leitura à primeira vista


Milson Fireman ..................................................................................................................... 374
Práticas musicoterápicas e o desempenho cognitivo em idosos com queixas de
memória
Patrícia Gatti......................................................................................................................... 380

Musicalidade, fala expressão das emoções


Patrícia Pederiva e Elizabeth Tunes .................................................................................... 388

Os processos precoces de aprendizagem musical: uma abordagem construtivista


Paula Pecker e Patrícia Kebach........................................................................................... 393

Crítica da musicologia e apontamentos de fenomenologia


Rael B. Gimenes Toffolo, Luis Felipe de Oliveira e André Luiz Gonçalves de Oliveira....... 399

A família como ambiente de musicalização: a iniciação musical de 8 compositores e


intérpretes sob uma ótica sócio-cultural
Rita de Cássia Fucci-Amato................................................................................................. 407

O desenvolvimento da motivação na gestão dos recursos humanos em corais:


conceitos e práticas
Rita de Cássia Fucci-Amato................................................................................................. 415

Refletindo sobre o talento musical na perspectiva de sujeitos não-músicos


Sergio Luiz Ferreira de Figueiredo e Luciana Machado Schmidt ....................................... 423

A “escuta diferenciada” dos problemas de aprendizagem mediada pela


musicoterapia na educação
Sandra Rocha ...................................................................................................................... 430

Musicalidade, desenvolvimento e educação: um olhar pela psicologia vigotskiana


Silvia Nassif .......................................................................................................................... 438

Formação de grupos vocais: aprendizagem pela interação


Simone Marques Braga........................................................................................................ 445

A neurociência e o ensino e aprendizagem das artes


Vera Cury ............................................................................................................................. 450

Álgebra musical
W.M. Pontuschka ................................................................................................................. 453

Tecnologia, artes musicais e mente

Um modelo de rugosidade para um patch de afinação adaptativa em puredata


controlado por sensores de antenas
Alexandre Porres.................................................................................................................. 461

Aspectos do processo de cognição musical e suas possíveis contribuições para a


composição
Antenor Ferreira Corrêa ....................................................................................................... 468

Percepção de instrumento musical sintético construído por modelo experimental


Luis Carlos de Oliveira, Ricardo Goldemberg e Jônatas Manzolli....................................... 477
Composição eletroacústica por timbre e contraponto
Orlando Scarpa ................................................................................................................... 485
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

SIMCAM4
Cognição musical: aspectos multidisciplinares
28 a 30 de maio de 2008, Universidade de São Paulo

A publicação em CD dos Anais do 4º SIMCAM (Simpósio de Cognição e Artes


Musicais) é a perpetuação da sua versão on-line e, de certa forma, vem fechar o
ciclo organizador deste simpósio que começou há pelo menos um ano, em maio
de 2007. Acreditamos fortemente que há dois momentos importantíssimos em um
encontro científico como o que foi o SIMCAM4: o da apresentação do trabalho e o
da sua publicação. O empenho dedicado para que cada um desses momentos se
concretizasse levou-nos a ultrapassar as expectativas: no lugar de apenas uma
publicação em papel, temos dois meios eletrônicos para divulgar os trabalhos
selecionados pelo Comitê Científico, a cuja dedicação vimos render nossos
agradecimentos.

Cabe ressaltar que a empreitada para a divulgação dos textos aceitos é antes de
tudo a organização dentro da organização. Em meio às muitas tarefas de
preparação do evento, a preparação dos Anais exige tempo e dedicação; assim,
sem a ajuda de mais gente, é tarefa quase impossível. Somos gratos ao Ricardo
Escudeiro (FFLCH-USP) e à Graziela Bortz (UNESP) pelo trabalho realizado
durante diferentes etapas da organização destes Anais. À Adélia Ferreira, da
Editora Paulistana, agradecemos a dedicação e interlocução ao longo de todo o
processo de editoração.

Esperamos ter feito o melhor para que a tradição dos SIMCAMs se mantenha
firme: possibilitar a divulgação das discussões e achados em torno da cognição
musical no Brasil. Naveguemos então neste CD, que possibilita acesso ao artigo,
seja por subtema do SIMCAM4 (A mente e a percepção musical, A mente e a
produção musical, Artes musicais, lingüística, semiótica e cognição, Tecnologia,
artes musicais e mente, O desenvolvimento paralelo da mente humana e das artes
musicais), seja pelo sobrenome do autor. Fazemos votos que a navegação leve
aos portos desejados e desvende novas paragens. Até o SIMCAM5!

São Paulo, junho de 2008

Beatriz Raposo de Medeiros e Marcos Nogueira

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A Relação entre Sinal Sonoro e Signo Musical:


Considerações Sobre Sensação de Rugosidade e sua
Tipomorfologia

Alexandre Porres

Resumo: Um modelo Psicoacústico de Rugosidade, desenvolvido em Mestrado, levantou uma


questão: até que ponto uma análise de um sinal sonoro, por Modelos Psicoacústicos, pode descrever
signos musicais eficientemente? Este artigo apresenta as primeiras considerações levantadas, a
partir da percepção de Rugosidade, sobre esse dualismo. A pesquisa está sendo levada adiante em
um programa de doutorado na USP, ainda na fase inicial. O objetivo deste ensaio teórico é
investigar melhor a relação entre sinal e signo, como as possíveis implicações da sensação de
Rugosidade em música. Esse estudo apresenta como método de investigação uma Revisão Teórica
sobre a percepção da escuta, que tem como fundamentos o conceito da Psicoacústica e o Tratado de
Schaeffer (1966).
Ao analisar e delinear diferentes níveis da percepção, os modos de Schaeffer apresentam um
esquema perceptivo útil. Nesse contexto, analisa-se a percepção de Rugosidade, que é então
revisada e discutida. Surge uma crítica à maneira como ela tem sido paradoxalmente compreendida
como sinal e signo no conceito de Dissonância Sensorial, e um método mais próprio de análise
desse atributo perceptivo é proposto. Paralelamente a essa discussão, resultados do Modelo
Psicoacústico de Rugosidade se confrontam com o Solfejo Schaefferiano, processo que tem como
referência o trabalho de Ricard (2004), que adota modelos Psicoacústicos para descrição
tipomorfológica do som.
O trabalho é dividido em três seções, a primeira reporta a fundamentção teórica, a segunda discute
a ambivalência de sinal e signo tendo como exemplo a sensação de Rugosidade, e apresenta o
Modelo Psicoacústico como meio para descrição tipomorfológica. A maior parte da discussão
encontra-se na seção final, que discorre sobre as considerações mais pertinentes deste estudo.

Palavras-chave: Psicoacústica, Pierre Schaeffer, Rugosidade.

correlato físico da Rugosidade (tal como


1. Fundamentação Teórica: Psicoacústica o de Batimentos) é a Flutuação de
e Schaeffer Amplitude [Vassilakis 2001].
Por sua natureza Psicoacústica,
A Psicoacústica é o estudo da essa sensação se resume à transdução do
percepção sonora limitada à relação entre sinal sonoro pelo aparato sensorial
Correlatos Fisiológicos e Parâmetros humano, e não implica a tradução
Acústicos. Resultado de Batimentos psicológica em um signo musical. Ela,
rápidos, a sensação e descrição da porém, tem sido comumente relacionada
Rugosidade (do inglês Roughness, à percepção de Dissonância, essa, tida
também traduzido como Aspereza – uma como influenciada por fatores culturais e
analogia à sensação tátil que implica a sensoriais, tem na Rugosidade um
percepção de pequenas irregularidades no elemento principal que explica sua
som) foram introduzidas na literatura dimensão fisiológica (entendida como
Psicoacústica por Helmholtz (1877). O Dissonância Sensorial). Helmholtz

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

apresentou uma conclusão contundente


sobre percepção de Rugosidade/ Medidas Psicoacústicas incorporam
Dissonância Sensorial, que aborda a metodologias estritamente científicas e limitadas
fronteira entre sinal e signo. para discutir a relação entre som e
música. Inspirado na fenomenologia e
A combinação [de tons] percebida como
mais Rugosa ou Suave que outra lingüística, Schaeffer pesquisou a
depende apenas da estrutura anatômica experiência, percepção e classificação do
do ouvido, e não tem nada a ver com som distintamente, por enfatizar o caráter
motivos psicológicos. Mas a que grau
de Rugosidade um ouvinte está da experiência musical além do mundo
inclinado a (...) como meio para (psico)físico. Como conseqüência, e por
expressão musical depende do gosto e meio de diferentes intenções da escuta,
hábito; por isso a fronteira entre
consonância e dissonância tem mudado ouvintes podem criar, a partir de um
freqüentemente (...) e ainda mudará mesmo impulso físico, perceptos
adiante (...). [Helmholtz, 1877, p. 234- diferentes na mente.
235]

Figura 1 [Aguilar 2005] – Os quatro modos: 1) Escutar é estabelecer relações indiciais. 2) Ouvir é receber o som bruto
sem qualidades extrínsecas anexadas. 3) Entender é a escuta de qualidades sonoras intrínsecas que o ouvinte deseja
perceber. 4) Compreender é estabelecer relações simbólicas entre objetos, pode ser visto como uma “escuta musical”, ou
seja, o som como um signo de valor.

Os modos da escuta, em Schaeffer forma, o som se abre ao iconismo, à


indicialidade e ao simbolismo
(1966), são diferentes níveis da percepção intencionais. Advém daí a escuta
que emergem do cruzamento de dois reduzida, uma suspensão de relações
dualismos (encontrados em qualquer simbólicas e indiciais (como referências
ao solfejo tradicional e à fonte ou à
atividade perceptiva): o abstrato/concreto causalidade do som) através da qual o
e objetivo/subjetivo. O “Objeto Sonoro”, objeto se revela como um agregado de
elemento de estudo de Schaeffer, baseia- qualidades de forma e matéria sonoras
(...) O Solfejo do Objeto Sonoro se
se em seu postulado da Escuta Reduzida, propõe levar, da prática de corpos
ele é o som reduzido às suas qualidades produtores de som, a uma musicalidade
intrínsecas (modo Entender). Cria-se, universal através de uma técnica de
escuta. Ele compreende uma etapa
assim, um solfejo generalizado do som, preliminar, quatro operações e um
independente de significado e origem, de epílogo. Na etapa preliminar, corpos
acordo com suas qualidades perceptivas. sonoros heterogêneos são colocados em
vibração por processos diversos e os
sons resultantes são gravados. Na
A língua francesa permite que Schaeffer primeira operação — Tipologia —
construa entendre como ouvir, escutar, objetos sonoros são extraídos de
entender e compreender com a contínuos sonoros e selecionados ou
consciência de uma intenção. Desta descartados de acordo com um pendor

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

musicista. Na segunda operação — Se estudos psicoacústicos são


Morfologia — os objetos selecionados
são comparados, os critérios perceptivos limitados para explicar uma
que os constituem são nomeados e os universalidade musical, o Tratado de
objetos são classificados enquanto Schaeffer também o é. Ambos podem ser
amostras destes critérios. Na terceira
operação — Caracterologia — então confrontados e colocados entre
interações de critérios são identificadas outras metodologias que lidam com a
no seio de um objeto sonoro dado, percepção do som e da música. Este
sendo então referidas a um evento
produtor de som. Na quarta operação — artigo se atém, entretanto, apenas a esses
Análise — objetos que ilustram critérios dois referenciais.
são confrontados com os campos
perceptivos das alturas, das durações e
das intensidades, a fim de se 2. O Sinal e o Signo: A Tipomorfologia
estabelecerem escalas cardinais da Rugosidade
(absolutas) ou ordinais (relativas) de
critérios. No epílogo — ou Síntese —
espera-se que surjam novas músicas, A escuta reduzida do solfejo
baseadas em estruturas de referência Schaefferiano, ligada ao modo Entender,
que desempenhariam, para cada um dos difere da metodologia Psicoacústica, que,
sete critérios morfológicos, papel
semelhante aos das relações de intervalo apesar de ser um julgamento pessoal
e dos jogos de tonalidades e modos. (subjetivo), é voltada a correlatos físicos
[Palombini, 1999] (concretos). Neste artigo, portanto,
procedimentos próprios da Psicoacústica
Schaeffer debate em tons poéticos, são relacionados ao modo Ouvir
que denotam a supremacia de um lado (subjetivo e concreto). A questão é que
artístico. Seu estudo é de grande alguns estudos Psicoacústicos levaram em
importância por ter primeiro apontado conta certas abstrações próprias do modo
questões ainda pertinentes. Compreender, como na medida de
“Consonância Tonal” (equivalente oposta
Traité des objets musicaux (1966) é a
principio e antes de mais nada um à Dissonância Sensorial) por Plomp e
repositório inexaustível de insights Levelt (1965), que pediram para uma
sobre a percepção do som. Tipologia, o população avaliar essa sensação (descrita
primeiro estágio do solfejo, é sem
dúvida um projeto cumprido com pelos pesquisadores como “agradável” e
sucesso. Entretanto, como um método “eufônica”) relacionada à ausência de
de descobrir uma musicalidade Rugosidade. Tal metodologia foi
universal, a empreitada do solfejo
precisa ser vista com cuidado. Ela sofre apontada como problemática por
da natureza quase vaga de seu Vassilakis (2001), e é interpretada neste
vocabulário metafórico, a ênfase que o artigo como um conflito nas funções da
texto deposita em retórica reativa, sua
confiança em “métodos de escuta, que diz respeito a uma não
aproximação”, e um distanciamento separação dos dualismos abstrato
gradual da própria realidade perceptual. /concreto e objetivo/subjetivo.
Não obstante, Traité des Objets
Musicaux aparece como um texto
Exame de performances práticas e
fundamental da musicologia do século
construção de instrumentos de todo o
XX, ele traz à tona dois assuntos
mundo (...) demonstrou que variações
cruciais: tecnologia e a maneira que ela
sonoras envolvendo essa sensação [de
altera nossa maneira de perceber e
Rugosidade] são encontradas na maioria
expressar a realidade, e assim a
das tradições musicais. Na tradição
realidade por si mesma. [Palombini,
ocidental, a sensação de Rugosidade (...)
1993]
tem sido regularmente ligada a
conceitos de consonância e dissonância,
sendo tais conceitos compreendidos

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

como adquiridos esteticamente (...) ou da escuta (Entender) pela relação com


não (...). Estudos que focam essa
sensação têm sido ocasionalmente certas qualidades intrínsecas subjetivas, tal
tendenciosos a encontrar uma qual ocorre na sensação de Rugosidade.
justificativa aceitável definitiva e Frente a isso, apresenta-se, a seguir, a
universal da ‘inevitabilidade natural’ e
‘superioridade estética’ da teoria da relação entre estudos Psicoacústicos de
musical ocidental (...). Isso tem lhes Rugosidade e a Tipomorfologia de
privado de examinar seriamente os Schaeffer (1966).
correlatos físicos e fisiológicos da
sensação de Rugosidade. [Vassilakis, Modelos Psicoacústicos já foram
2001, p.83-84] adotados em análises tipomorfológicas
por Ricard (2004), que vê em Schaeffer
A crítica de Vassilakis retrata a uma base para um esquema genérico de
dificuldade em evitar qualidades descrição sonora. O principal objetivo de
extrínsecas do som em estudos seu trabalho está no desenvolvimento de
Psicoacústicos. Ao parodiar Bregman, descritores para busca em um banco de
esse autor afirma que o conceito de dados, e seus resultados concluíram uma
consonância tem sido a “lata de lixo de eficácia para esse fim. Entretanto, não é
julgamentos avaliativos estéticos em esse o foco original do solfejo
música”, assim como a “fonte de Schaefferiano, tampouco uma própria
argumentos de justificativa no que modelagem computacional de sua teoria,
concerne tendências estilísticas ou como a forma do texto acidentalmente
decisões composicionais específicas”. deixa em aberto. Em todo o caso, esse
Logo, é difícil mapear completamente os trabalho inspirou a discussão levantada
parâmetros físicos/psicofísicos que neste artigo (retomadas na seção seguinte)
podem ser relacionados à percepção de – a começar pela adoção de um Modelo
dissonância. O mesmo ocorre com o Psicoacústico de Rugosidade em análise
timbre, que, segundo Bregman (1990:93), tipmorfológica de sons. O Modelo e
é a “lata de lixo de todas as características software de análise [Porres; Manzolli,
que não podem ser rotuladas como altura 2007] é baseado nos resultados de Plomp
ou loudness” – de modo que a e Levelt (1965) – sensação máxima de
Rugosidade também é tida como fator Rugosidade para intervalos em torno de
influente na percepção de timbre. um quarto da Banda Crítica – e em
Conceitos de timbre e consonância Sethares (2005). A entrada do sinal
carregam qualidades extrínsecas, são sonoro digital é por uma análise de FFT,
valores abstratos que podem ser que fornece listas de Freqüências em
relacionados ao quarto modo de escuta Hertz e suas respectivas Amplitudes
(Compreender). Esses fenômenos Relativas.
multifacetados e multidimensionais
podem fazer referência ao terceiro modo
Som 1 Som 2 Som 3
Razão Cents Razão Cents Razão Cents
[40/21] 1.115 [27/16] 905 [11/8] 551
[18/11] 852 [40/27] 680 [5/4] 386
[11/8] 551 [9/7] 435 [7/6] 266
[7/6] 266 [9/8] 204 [12/11] 151
[1/1] 0 [1/1] 0 [1/1] 0

Tabela 1 – Três tons complexos com a fundamental em Dó Central.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Figura 2 – Sinal sonoro digital dos três tons abaixo, e o resultado


a representação tipomorfológica da Rugosidade acima.

Foram analisados três tons Modelagem Psicoacústica à Escuta


complexos (10 segundos cada) gerados no Reduzida de Schaeffer, sem discutir ou
Csound por síntese aditiva. Os tons são questionar essa importante linha divisora.
formados pela superposição de cinco tons Entende-se que o solfejo Schaefferiano
puros de mesma amplitude, a relação não é absoluto por conceito – isso implica
intervalar entre os parciais e a que a ferramenta apenas indica uma
fundamental é dada por razões (notação informação em um nível mais
típica da Afinação Justa) e em cents generalizado e concreto mas que, porém,
(centésimos do Semitom Temperado) – se caracteriza como uma ferramenta
vide Tabela 1. O primeiro tom apresenta complementar e análoga ao solfejo
um conteúdo espectral mais espaçado em Schaefferiano.
um registro de 1.115 cents, próximo de Uma questão paralela e pertinente
uma Sétima Maior Temperada. O é uma eventual impregnação de
espectro do segundo som é mais qualidades extrínsecas a um dado sonoro
comprimido, e o do terceiro ainda mais, em estudos Psicoacústicos, exemplo da
de modo que quanto menor o Dissonância Sensorial, que exemplifica
espaçamento, maior é a percepção de como a sensação de Rugosidade possui
Rugosidade – uma vez que esses claras implicações em signos musicais,
intervalos se aproximam cada vez mais ao tais quais a percepção de Timbre,
intervalo correspondente a um quarto da Afinação, e Dissonância. Esse fato é um
Banda Crítica. Dessa maneira, com a reflexo e prova de que tais valores
dada sucessão de sons, é de se esperar um abstratos podem encontrar correlações em
resultado crescente de Rugosidade, tal atributos Psicoacústicos. E um exemplo
qual foi obtido pelo Modelo e bem sucedido de adoção de um Modelo
representado na Figura 2. Psicoacústico de Rugosidade para criação
de música é encontrado no trabalho de
3. Discussão e Considerações Finais Sethares (2005), que usa uma ferramenta
computacional para manipular espectros
Modelos Psicoacústicos computacionais e intervalos musicais, alterando a
analisam o som por meio de um sinal percepção de Afinação e Consonância.
digital, uma representação física, Conclui-se que tais conflitos,
concreta. Eles são limitados para medir paradoxos, e ambivalência de um atributo
um conceito abstrato, como um signo, perceptivo se dá pela existência de
que depende da decodificação/tradução diferentes níveis da escuta – consideração
de tais sinais. Ricard (2004) relaciona que ecoa com a teoria Schaefferiana.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Porém, mais do que um “Tratado”, (entender e ouvir nos modos de


Schaeffer escreveu um “primeiro Schaeffer). No caso avaliar
capítulo”, e o caminho aberto por ele perceptivamente a Rugosidade via uma
ainda está para ser levado adiante, ou Escuta Reduzida, há uma implicação de
mesmo revisado, no contexto de novas adotar a Modelagem Computacional de
pesquisas e outras metodologias. Não se Rugosidade como uma ferramenta de
buscou neste artigo, dessa maneira, uma análise análoga ao processo de solfejo, ou
própria revisão e adoção do pensamento seja, como uma maneira de medir e
Schaefferiano, e sim apenas uma representar essa sensação como um
importante referência. critério morfológico.
Durante o mestrado, estudos
prévios e análises sobre a modelagem 4. Subáreas do conhecimento
psicoacústica de Rugosidade indicam que
muitas melhorias (tanto Música, Percepção, Modelagem
conceituais/metodológicas quanto Computacional.
científicas) ainda estão por ser
desenvolvidas. O exame desses atributos 5. Referências
não deve ser guiado por valores culturais,
como no caso de Plomp e Levelt (1965). AGUILAR, A. Processos de
Logo, em vez de uma investigação que Estruturação na Escuta de Música
relaciona compreender com entender, eletroacústica. Dissertação de Mestrado.
deve-se partir de uma qualificação de um Unicamp, 2005.
objeto sonoro (entender) para então
BREGMAN, A. S. Auditory Scene
relacionar com um correlato fisiológico – Analysis. Cambridge, MA: MIT Press,
o que é diferente de partir de elementos 1990.
fisiológicos (naturalistas) para descrever
uma percepção abstrata (um princípio HELMHOLTZ, H.L.F. (1877) On the
adotado em estudos clássicos da Sensations of Tone as a Psychological
psicoacústica e criticado por Schaeffer). basis for the Theory of Music. New
Entende-se, neste estudo, que o os York, NY: Dover Publications. 2a edição
modos da escuta de Schaeffer (1966) é (1954).
uma ferramenta útil para gerar critérios de PALOMBINI, C. Pierre Schaeffer's
investigação consistentes na percepção do Typo-Morphology of Sonic Objects. Tese
som, como no caso do conceito de doutorado. University of Durham, UK,
Psicoacústico de Rugosidade, que 1993.
comumente carrega valores extrínsecos.
Desse referencial, discutiu-se diferentes PALOMBINI, C. A Música Concreta
implicações da sensação de Rugosidade Revisitada. Revista Eletrônica de
em distintos modos da escuta de Musicologia Vol. 4/Junho Departamento
Schaeffer, inclusive como critério de Artes da UFPR
tipomorfológico. Se propõe que a <http://www.rem.ufpr.br/REMv4/vol4/art
avaliação desse atributo seja investigada -palombini.htm#3>, 1999.
em diferentes níveis, separada de valores PLOMP, R.; LEVELT, W.J.M. Tonal
extrínsecos (próprios do modo da escuta Consonance and Critical Bandwidth.
Compreender), pertencendo assim apenas Journal of the Acoustical Society of
ao âmbito subjetivo, que comporta objeto America, n° 38, 548-568, 1965.
sonoro bruto e objeto sonoro qualificado

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

PORRES, A. T.: MANZOLLI, J. A SCHAEFFER, P. Traité des objets


Roughness Model in Pd for an musicaux. Paris: Seuil, 1966.
Adaptive Tuning Patch Controlled by SETHARES, W.A. Tuning, Timbre,
Antennas. PdCon07 (IIª Convenção Spectrum, Scale. 2. ed. Com CD.
Internacional de Puredata) Montreal, London: Springer-Verlag, 2005.
2007b.
VASSILAKIS, P.N. Perceptual and
RICARD, J. Towards computational
Physical Properties of Amplitude
morphological description of sound.
Fluctuation and their Musical
Tese de Doutorado. Universitat Pompeu Significance. Tese de Doutorado.
Fabra, 2004. UCLA, 2001.

8
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A Escala do Chromelodeon:
Um Modelo Psicoacústico de Rugosidade versus One Footed
Bridge de Harry Partch

Alexandre Porres

Resumo: Sob um enfoque Psicoacústico, e por causa do alinhamento de seus parciais, é o


espectro dos sons que determina a consonância de dados intervalos musicais. Um software –
baseado em um Modelo de Rugosidade desenvolvido em mestrado, e em processo de avanço no
doutorado – é usado para medir essa dimensão perceptiva de consonância. Dado um espectro
sonoro, essa ferramenta permite derivar uma escala com os passos consonantes para esse som
(intervalos que promovem um alinhamento significativo de parciais).
A Afinação Justa é baseada em razões de números inteiros pequenos como, por exemplo, a
Quinta [3:2], que possui 702 cents (centésimos do Semitom Temperado). Esses intervalos
musicais correspondem às relações entre os termos da Série Harmônica (3º e 2º harmônicos no
exemplo anterior) e promovem consonância no caso de espectros harmônicos (como os da
maioria dos instrumentos musicais). Quanto menos distantes os termos na Série, maior o
alinhamento de parciais, maior a consonância. Por esse fato, Sistemas de Afinação, na Musica
Ocidental antes do Século XX, nunca ultrapassaram as relações até o 5º harmônico. Mas e
quando se trata de intervalos que correspondem a termos mais distantes na Série Harmônica
(como [11:9], que corresponde à relação entre o 9º e 11º harmônico)? Quão relevante é a
consonância promovida pelo alinhamento de parciais nessas relações?
A resposta, obviamente, depende do espectro. E tais intervalos podem ser encontrados no
Sistema de Afinação Justa de Harry Partch (1974), que inclui relações até o 11º harmônico.
Partch, em um gráfico que denominou One Fotted Bridge (1974:155), representou o resultado
da medida de consonância para todos os intervalos de seu sistema, tendo como base o
Chromelodeon (um Harmônio por ele construído). Esse foi um teste que não contou com uma
população de indivíduos, e sim apenas com a experiência pessoal e subjetiva do criador, onde
Partch concluiu que a consonância obtida por intervalos relacionados até o 11º harmônico são
relevantes no contexto de instrumentos musicais com espectros harmônicos.
Entretanto, alguns instrumentos musicais, como a Flauta Doce, não possuem tamanha riqueza
espectral a ponto de promover alinhamento de parciais em tais intervalos, e mesmo espectros
que contêm parciais correspondentes a termos mais distantes da Série Harmônica não
promovem, necessariamente, consonância relevante em intervalos correspondentes a esses
termos. Neste artigo investigou-se o caso do Chromelodeon, ao analisar seu espectro por meio
do Modelo de Rugosidade. Os resultados são comparados com One Footed Bridge. Baseado em
estudos Psicoacústicos, os resultados do Modelo de Rugosidade apresentam uma análise mais
pormenorizada, como, por exemplo, um ranking detalhado da consonância de intervalos no
Sistema de Partch, além de fornecer dados para a investigação e discussão de quão relevante é,
tendo como exemplo esse instrumento musical, a consonância de intervalos justos distantes na
Série Harmônica.

Palavras-chave: Afinação Justa, Modelo de Rugosidade, Microtonalidade.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

1. Fundamentação Teórica

1.1 O Modelo de Rugosidade e a


Relação entre Escala e Espectro

Por causa do desalinhamento de


parciais, sensações de Batimentos e
Rugosidade (causadas por Flutuações Figura 1 – Curva de Plomp e Levelt (1965) para tons
de Amplitude [Vassilakis, 2001]) senoidais. O eixo vertical corresponde à Consonância
(de baixo para cima) e Dissonância (de cima para
influenciam e comprometem a percepção baixo). O eixo horizontal é a diferença de Freqüência
de Consonância/Afinação. Plomp e na escala da Banda Crítica.
Levelt (1965) demonstram a tendência de
um ponto máximo de Rugosidade (Pico) Para contabilizar a Rugosidade
no intervalo que corresponde a um quarto de espectros sonoros complexos e da
da Banda Critica (Figura 1). O modelo superposição de espectros em intervalos
desenvolvido em pesquisa, baseado em musicais, somam-se os valores de
Plomp e Levelt com algumas melhorias Rugosidade de todas as combinações
[Porres; Manzolli, 2007a], possui duas dos pares de componentes espectrais.
fórmulas que aproximam a Figura 1: a de Dado um espectro sonoro, Curvas de
Sethares (2005) e Parncutt (1993). A Dissonância como na Figura 2
primeira é menos acurada, porém representam a Rugosidade de intervalos
permite, sem grandes comprometimentos, musicais em um certo registro. Pontos
um maior contraste nas curvas que facilita mínimos (Vales no gráfico) representam
o surgimento de pontos máximos e consonâncias pelo alinhamento de
mínimos de Rugosidade, essencial para parciais, e podem ser compreendidos
derivar escalas pelo programa de como uma Escala do Espectro. A
computador [Porres; Manzolli, 2007b]. Figura 2 é resultado de uma onda dente-
de-serra levemente inarmônica, o
alinhamento em vales também é em
intervalos ligeiramente inarmônicos.
Um bom contraste entre Picos e Vales
(demarcados em linhas horizontais)
indica uma maior relevância de
consonância.

Figura 2 – Escala de um espectro ligeiramente inarmônico (notar o Vale logo acima de uma Oitava). As
linhas horizontais demarcam os Picos e Vales do gráfico.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

1.2 O Sistema de Harry Partch e One formados por relações até o 11º
Footed Bridge harmônico podem ser afinados de
ouvido. Seu sistema baseia-se nas
A partir dos experimentos de escalas de seis notas O-tonality e U-
afinação com o Chromelodeon, Partch tonality1 – as “Tonalidades” de Partch,
afirmou que, ao eliminar as sensações como descritas a seguir.
de Batimentos e Rugosidade, intervalos

Tabela 1: Intervalos e Respectivos (Sub)Harmônicos das Tonalidades de Partch (1974):


1º - Uníssono 9º - 2ª Maior 5º - 3ª Maior 11º - 4ª Aumentada 3º - 5ª Justa 7º - 7ª Menor
O-tonality [1:1] [9:8] [5:4] [11:8] [3:2] [7:4]
Cents 0 204 386 551 702 969
1 º - Uníssono 7º - 2ª Maior 3º - 4ª Justa 11º - 5ª Diminuta 5º - 6ª Menor 9º - 7ª Menor
U-tonality [1:1] [8:7] [4:3] [16:11] [8:5] [16:9]
Cents 0 231 498 649 814 996

A O-tonality é formada pelas 1/5, 1/6, 1/7, 1/8, 1/9, 1/10, 1/11, ..., ∞].
relações dos 1º, 3º, 5º, 7º, 9º e 11º Essas escalas, transpostas, geram um
harmônicos, que é, para Partch, uma Sistema com 43 notas por Oitava, que
expansão do material até então ainda comportam 7 O-tonalities e 7 U-
incrustado nas relações até o 5º tonalities completas (além de outras
harmônico. A U-tonality é uma simples incompletas). Partch separa os 43 graus
inversão (a Quinta inverte para a de seu sistema em quatro categorias de:
Quarta, a Terça Maior para a Sexta Poder (Uníssono, Quinta, Quarta e
Menor, etc.), que possuem relações que Oitava), Suspense (Trítonos), Emoção
não se encontram na Série Harmônica – (Terças e Sextas) e Aproximação
em múltiplos da fundamental [1, 2, 3, 4, (Segundas e Sétimas). Essas também
5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, ..., ∞] – e sim em são descritas em One Footed Bridge.
uma Série Harmônica invertida – ou
“Série Subarmônica” [1, 1/2, 1/3, 1/4,

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Figura 3 – One Footed Bridge. O gráfico, dividido no meio e espelhado, é uma estimativa de Consonância por Partch
de seu Sistema. O eixo horizontal, na metade de cima da esquerda para a direita, é o trecho do Uníssono a 600 Cents,
e o eixo vertical (de baixo para cima) é a Consonância. Já a metade de baixo (600 cents até a Oitava, da direita para a
esquerda) é a Consonância representada no sentido de cima para baixo. A forma espelhada desse gráfico demonstra
como todos os intervalos do Sistema de Partch possuem uma inversão.

Uma amostra de sinal de som


2. Objetivos e Método digital do Chromelodeon (em torno de
194Hz) foi extraída de A Quarter-Saw
Section Of Motivations And Intonations
Este trabalho investiga a (Partch 2006) – uma gravação de caráter
consonância dos intervalos do Sistema didático que possibilitou a edição de
de Partch. Este objetivo, em um sentido uma nota musical. Uma análise FFT
genérico, equivale a uma investigação dessa amostra retornou os 16 primeiros
de todos os Sistemas de Afinação Justa harmônicos mais proeminentes (Figura
relacionados a harmônicos distantes (e 4). Esses harmônicos permitem uma
não apenas desse clássico Sistema reconstrução desse timbre com boa
Microtonal). A investigação busca resolução. A partir dessa informação,
demonstrar e discutir o quão foi gerada um resultado pelo Modelo,
significativa é a consonância de tais comparado ao One Footed Bridge.
intervalos em instrumentos musicais,
tomando como exemplo uma análise do
espectro do Chromelodeon.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

1,00

0,75

0,50

0,25

0,00 63

57

50

44

38

32

26

19

13

07

01
4

9
19

38

58

77

96

11

13

15

17

19

21

23

25

27

29

31
Figura 4 – Representação dos 16 primeiros harmônicos do Chromelodeon.
Eixo vertical é a Amplitude Relativa, eixo horizontal são os valores em Hertz.

3. Resultados

Figura 5 – Resultado para o Chromelodeon. Eixo horizontal igual a intervalos em cents a partir de 194Hz.
Eixo vertical é a Rugosidade em porcentagem relativa. Vales mais proeminentes ressaltados por flechas.

tonality (U), ambas (O/U), ou nenhuma


Os Vales encontrados pertencem (X). Essas colunas se repetem para
ao Sistema de Partch (vide Tabela 2). A indicar a metade restante dos resultados.
primeira coluna da Tabela 2 é a ordem Apenas [9:8] não se apresenta dentre os
crescente de Dissonância em intervalos da O-tonality. O que não é
porcentagem relativa, seguido do seu um problema, pois esse forma uma
valor na segunda coluna. A terceira Quinta em relação ao intervalo de
coluna é a razão do intervalo justo, Quinta [3:2], e é, portanto, um intervalo
seguido do seu valor em cents na quarta. consonante pertinente. Inclusive, sua
A quinta coluna apresenta qual a inversão, o intervalo da U-tonality
categoria do intervalo, e a sexta se o [16:9], é apontada como Vale. Já [8:7],
intervalo pertence a O-tonality (O), U- que não foi apontado como Vale dentre

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

os intervalos da U-tonality, se explica exceções anteriores (Segundas


pelo fato de se encontrar em um Maiores), a única explicação é que para
particular trecho de decaimento de promover um alinhamento significativo,
dissonância, assim como [9:8]. Porém, dependeria pelo menos de uma maior
[8:7] não forma uma quinta com [3:2], energia no 16º harmônico, já que esse,
ou seja, não é estável nesse sentido. Não por ser um tanto distante, é fraco, como
obstante, esse intervalo é a inversão da demonstrado na Figura 4.
Sétima Menor [7:4]. A última exceção
não apontada como Vale é o intervalo
de [16:11], fora da zona crítica das

Tabela 2: Escala do Chromelodeon (Vales em ordem ascendente de Dissonância)

Ordem %Diss. Razão Cents Categoria T Ordem %Diss. Razão Cents Categoria T
1 28.30% [2:1] 1200 Poder O/U 10 46.18% [7:5] 583 Suspense X
2 34.21% [1:1] 0 Poder O/U 11 46.25% [4:3] 498 Poder U
3 40.81% [5:3] 884 Emoção X 12 46.97% [8:5] 814 Emoção U
4 42.11% [11:6] 1049 Aprox X 13 47.11% [11:8] 551 Suspense O
5 42.30% [3:2] 702 Poder O 14 47.59% [12:7] 933 Emoção X
6 45.05% [7:4] 969 Aprox. O 15 50.49% [5:4] 386 Emoção O
7 45.82% [11:7] 783 Emoção X 16 58.11% [6:5] 316 Emoção X
8 46.00% [16:9] 996 Aprox. U 17 58.29% [7:6] 267 Emoção X
9 46.12% [10:7] 617 Suspense X 18 78.01% [11:10] 165 Aprox. X

Contudo, para estar em linha com se encontram em um trecho cujo nível de


as idéias de Partch, a Escala retornada Dissonância é quase constante, como na
pelo Modelo deveria corresponder a O- Categoria de Suspense (Tritonos). Pelo
Tonality e U-Tonality, pois esses são os pouco contraste, tais vales não são
intervalos básicos de seu Sistema. Apesar significativos, pois um pequeno desvio
de vários deles serem apontados como em intervalos arbitrários (como o Trítono
Vales, outros também são, até mesmo de Temperado) não pode ser considerado
modo mais significativo. Muitos dos significativamente contrastante.
Vales na Tabela 2 não são significativos,
pelo pouco contraste que apresentam na 4. Conclusões
Curva (Figura 5). Inclusive, o Modelo
retornou Vales quase nada significativos Helmholtz indagou até que
mas que, de fato, correspondem a um ponto foi necessário “sacrificar a correta
alinhamento de parciais. Destacam-se os entonação em favor da conveniência
casos dos intervalo de [16:9] 996 cents e dos instrumentos musicais”
[12:7] 933 cents, que beiram a mera [Helmholtz,1877, p.327], um dos
coincidência do acaso. Outros intervalos objetivos de investigação deste artigo
possuem Vales mais nítidos, mas não que Partch advogou, nas palavras de
livres de discussão, a começar pelo Helmholtz, ser um “sacrifício
favorecimento que a aproximação de desnecessário”. O resultado da Figura 5
Sethares dá para sua detecção no Modelo. retorna dados mais consistentes que em
É fácil notar que, mesmo assim, eles One Footed Bridge. Partch considerou
ainda possuem uma variação pequena, e como equivalentes o resultado de todos

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

os intervalos com suas inversões, o que consonância de intervalos como a Terça


é “Psicoacusticamente” impossível. Maior [5:4]. Ou seja, independente da
Avesso a estudos Psicoacústicos, Partch relevância sensorial em si, ela não tem tido
tomou pouco conhecimento de Modelos vantagem na batalha com a relevância de
de Rugosidade para o mesmo fim que elementos práticos. Se esse quadro
buscou. Atualmente, porém, tais mudará, apenas o tempo dirá. Pelo menos
ferramentas têm tido boas projeções, Partch já trilhou os primeiros passos.
como no trabalho de Sethares (2005).
Ao confrontar o gráfico de Partch com 5. Subáreas do conhecimento
uma pesquisa Psicoacústica mais
recente (e em desenvolvimento), esse Música, Percepção, Psicoacústica,
trabalho provém uma revisão detalhada Modelagem Computacional, Afinação.
de One Footed Bridge.
Deve-se também discutir as 6. Referências
premissas teóricas de Partch, que não
considera a tríade menor como inversão HELMHOLTZ, H.L.F. (1877) On the
da tríade maior, e também não partem de Sensations of Tone as a Psychological
princípios perceptivos, como o conceito basis for the Theory of Music. 2. ed.
de inversão de intervalos em uma “Série New York, NY: Dover Publications,
Subarmônica”. Sua escolha de termos na 1954.
Série é arbitrária, e não sensorial. Um
princípio perceptivo, como aqui PARNCUTT, R. Parncutt's
apresentado, adotaria em uma escala implementation of Hutchinson &
principal os Vales mais significativos do Knopoff roughness model. Disponível
ranking da Tabela 2. Ao evitar esse em: <http://www-gewi.uni-
pensamento, Partch descarta o 3º Vale de graz.at/staff/parncutt/rough1doc.html>,
Sexta Maior [5:3] na O-tonality, e sua 1993.
inversão (o 16º Vale) de Terça Menor PARTCH, H. Genesis of a Music. New
[6:5] na U-tonality. Com a inclusão York: Da Capo Press, 1974.
desses intervalos, suas Tonalidades
ficariam mais subdivididas com 07 notas, PARTCH, H. A Quarter-Saw Section
e não deturparia seu Sistema completo, of Motivations and Intonations 2006.
que no fim contém esses intervalos como Innova Recordings, 2006.
transposições. PORRES, A. T.; MANZOLLI, J. Um
Por fim, clareando a questão Modelo de Rugosidade. SBCM07
colocada por Helmholtz, a relevância da (Simpósio Brasileiro de Computação
consonância de tais intervalos distantes na Musical), São Paulo, 2007a.
Série Harmônica, apesar de pequena,
PORRES, A. T.; MANZOLLI, J. A
existe. Mas sofre de sérios problemas
Roughness Model in Pd for an
práticos em instrumentos musicais, além
Adaptive Tuning Patch Controlled by
de requerem um Sistema de Afinação
Antennas. PdCon07 (IIª Convenção
com muito mais que 12 notas por Oitava, e
Internacional de Puredata) Montreal,
totalmente incompatíveis com o Sistema
2007b.
Temperado. Por não possuir intervalos
que sejam uma boa aproximação da PLOMP, R.; LEVELT, W.J.M. Tonal
Afinação Justa alem dos intervalos de consonance and critical bandwidth.
Quinta [3:2], o próprio Sistema Journal of the Acoustical Society of
Temperado desafia a relevância da America, vol. 38, pp. 548-568, 1965.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

SETHARES, W.A. (2005) Tuning,


Timbre, Spectrum, Scale. 2. ed.
London: Springer-Verlag, 2005. Com
CD-ROM.
VASSILAKIS, P.N. Perceptual and
Physical Properties of Amplitude
Fluctuation and their Musical
Significance. Tese de Doutorado.
UCLA, 2001.
1
“O” de Overtone Series, que significa Série
Harmônica, e “U” de Undertone Series, que
correponde a uma inversão da Série Harmônica,
ou “Série Subarmônica”.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Play it again: a repetição como factor de preferência na


recepção musical

Angelo Martingo
angelomartingo@gmail.com

Resumo: O estudo relatado procurou testar a repetição como fator de preferência na recepção
musical. Para tal, 19 estudantes de música do ensino superior são solicitados a avaliar numa
escala de 1 (menor) a 7 (maior) a coerência, expressividade, fluência, tensão, controle da
dinâmica, controle da agógica de 7 gravações dos 9 compassos iniciais do 2º andamento da
Sonata Op. 53 de Beethoven (Waldstein), em que a 7ª Gravação era uma repetição da 6ª. A
análise das pontuações atribuídas à interpretação repetida mostram que todos os parâmetros,
sem excepção, recebem pontuações médias mais altas na segunda audição, sendo que em 5 dos
7 parâmetros essa diferença assume um nível significativo (p< 0,05).

Palavras-chave: percepção, preferências musicais, repetição.

nível significativo com a curva de


1. Fundamentação teórica valores de Atracção prevista por
Lerdahl (in Smith; Cuddy 2003). Por
Modelos analíticos, como seja a outro lado, quando consideradas
teoria desenvolvida por Schenker individualmente, as interpretações
(1979), Lerdahl (2001) e Lerdahl & analisadas exibem uma panóplia de
Jackendoff (1983) bem como teoria e estratégias expressivas, sendo que em
estudos empíricos no domínio da percepção 15 das 23 gravações a dinâmica e/ou a
desenvolvidos, nomeadamente, por Meyer agógica correlacionam a nível significativo com
(1956), Deutsch & Feroe (1981) e Dowling & os valores de Tensão e/ou Atracção apresentados
Harwood (1986) assentam numa por Lerdahl. A teoria desenvolvida por Lerdahl
concepção estrutural e hierárquica em (2001) emerge aí como um instrumento
que o sentido que a música faz importante no esclarecimento das estratégias
pressupõe uma recursiva elaboração expressivas, nomeadamente, ao nível do interior
hierárquica de eventos. Em particular, das frases musicais, onde modelos expressivos,
como evidenciado por Martingo (2005; particularmente aquele desenvolvido por Todd
2006; 2007), o refinamento conceptual e (1985; 1989a; 1989b; 1992; 1995) se
operacional da teria generativa de mostram insatisfatórios quando
Lerdahl & Jackendoff desenvolvido por comparados com a performance dos
Lerdahl em Tonal Pitch Space parece intérpretes (cf. Repp 1992b, Windsor;
constituir um instrumento privilegiado Clarke 1997). Num estudo posterior,
na compreensão quer dos desvios Martingo (2007b) relata uma análise
expressivos praticados na interpretação perceptiva incidindo nas gravações
de música tonal, quer das preferências analisadas em que se procurou discernir
dos ouvintes. De facto, ao levar a cabo critérios de preferência na recepção das
um estudo sobre os desvios expressivos interpretações dos compassos iniciais do
praticados em 23 interpretações dos 9 2º andamento da Sonata Op. 53 de
compasso iniciais do 2º andamento da Beethoven. Os sujeitos, todos com 10
Sonata Op. 53 de Beethoven anos ou mais de estudo de um
(Waldstein), Martingo (2007a) mostra instrumento musical, eram aí solicitados
que a dinâmica média correlaciona a avaliar numa escala de 1 (menor) a 7

17
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

(maior) a coerência, expressividade, feminino e 12 do sexo masculino), com


fluência, tensão, controle da dinâmica, uma média de idades de 22 anos, 8 anos
controle da agógica das interpretações de formação musical em média, e 8
em causa. Não obstante o grau de anos, em média, de aprendizagem de
instrução musical, constata-se que os um instrumento musical. Dos sujeitos,
sujeitos não discriminam entre os só dois eram pianistas (90% de não
factores analisados e que obtêm pianistas), embora todos com formação
melhores pontuações as gravações em clássica.
que se verificam correlações a nível Tarefa: Avaliar, numa escala de
significativo entre desvios expressivos e 1 (menor) a 7 (maior) a coerência,
os valores de Tensão e/ou Atracção expressividade, fluência, tensão,
descritos por Lerdal (cf. Martingo controle da dinâmica, controle da
2007b). Os estudos expostos pareceriam agógica das interpretações em causa.
corroborar a eficiência de modelos Estímulo: Um conjunto de 7
estruturais na compreensão quer da gravações dos 9 compassos iniciais do
interpretação, quer da recepção de 2º andamento da Sonata Op. 53 de
música tonal. Verifica-se, porém, de Beethoven (Waldstein). Destas
acordo com Konečni (1984), Gotlieb & interpretações, duas não apresentavam
Konečni (1985), Karno & Konečni nenhuma correlação significativa entre
(1992), bem como Tillmann & Bigand desvios expressivos e os valores de
(1996), que a percepção da Tensão e Atracção previstos por
expressividade e coerência não é Lerdahl (Solomon – EMI Testament
afectada quando a estrutura musical é SBT1190, Gravação 1, e Genov –
modificada. Também Cook (1987, p. Chamber CH-CD 106, Gravação 3).
293) aponta no mesmo sentido, ao Duas outras apresentavam uma
mostrar que a percepção do regresso à correlação significativa entre agógica e
tónica é limitada a durações de cerca de os valores de Tensão e/ou Atracção
1 minuto e que a organização global em previstos pr Lerdahl (Guilels, Deutshe
que assentam teorias estruturais Grammophon DG 419162-2, Gravação
analíticas ou de percepção são 4, e Gieseking – Philips 456790-2,
implausíveis como realidade perceptiva. Gravação 5). Um outro par apresentava
uma correlação significativa entre a
2. Objectivos dinâmica e os valores de Tensão e/ou
Atracção previstos por Lerdahl
Sem procurar dirimir os (Kempff, Deutshe Grammophon DG
resultados aparentemente contraditórios 429306-2, Gravação 2, e Barenboïm,
expostos acima, o estudo agora relatado EMI C25762863-2, gravação 6).
incidiu sobre a repetição como factor de Finalmente, a 7ª Gravação era uma
preferência. Em particular, procurou-se repetição da 6ª, sem outro critério
testar a repetição como factor de (Barenboïm, EMI C25762863-2).
preferência na recepção de diferentes Procedimento: Os sujeitos
interpretações da Sonata Wadstein de foram informados que se tratava de uma
Beethoven (2º and.). investigação sobre preferências
musicais com incidência em
3. Metodologia interpretações analisadas num estudo
anterior em que se tinha aferido da
Sujeitos: 19 estudantes de existência ou não de correlações entre
música do ensino superior (7 do sexo desvios expressivos e estrutura musical.

18
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Foi então dado a ouvir o conjunto das 7 Observou-se que todos os parâmetros,
interpretações após o que se solicitou sem excepção, receberam, em média,
avaliar numa escala de 1 (menor) a 7 pontuações mais altas na segunda
(maior) cada uma das interpretações audição da interpretação repetida – a 7ª
relativamente a 7 parâmetros, gravação. Designadamente, as
nomeadamente: coerência, controle da pontuações atribuídas à gravação 7,
dinâmica, controle do tempo, foram significativamente superiores às
expressividade, tensão, fluência, e classificações atribuídas à gravação 6
avaliação global. nos parâmetros ‘domínio do tempo’,
‘tensão’, ‘expressividade’, ‘fluência’ e
4. Resultados ‘avaliação global’ (p< 0,05). Os
parâmetros ‘coerência’ e ‘domínio da
O estudo agora relatado é parte dinâmica’ receberam em média
de uma investigação mais vasta sobre pontuações mais altas na segunda vez
preferências musicais, que leva em em que foi dado a ouvir a gravação
conta a teoria desenvolvida por Lerdahl repetida, embora não a um nível
(2001) em Tonal Pitch Space. O significativo (p> 0,05).
estímulo foi desse modo elaborado
levando em conta a existência ou não de 5. Conclusões e discussão
correlação entre desvios expressivos e
os valores de Tensão e Atracção Os modelos estruturais da
previstos por Lerdahl para o fragmento tonalidade têm vindo a revelar-se como
em questão. A esse propósito são poderosos instrumentos não só analíticos
actuais as conclusões relatadas em como também explicativos da percepção
Martingo (2007b). Em particular, e da performance musical (e.g., Todd
verifica-se que os sujeitos não 1985; 1992; Krumhansl 1990; Repp
descriminam entre os parâmetros que 1990, 1992a, 1992b; Smith & Cuddy
são solicitados avaliar, e que recebem 2003). No mesmo sentido, os dados
pontuações mais altas as interpretações avançados por Martingo (2006; 2007a;
em que se verificam correlações a nível 2007b) corroboram os modelos analíticos
significativo entre desvios expressivos e e perceptivos estruturais existentes, ao
os valores de Tensão e Atracção mostrar que recepção musical é
previstos por Lerdahl (cf. Martingo influenciada pela relação entre desvios
2007b). Dentro do objectivo traçado, expressivos e estrutura musical, não
serão agora unicamente relatados os obstante a ausência de descriminação
resultados obtidos relativamente às entre factores evidenciada. Sem prejuízo
pontuações atribuídas à interpretação de da eficiência destes na percepção e
Barenboïm que, embora sem o recepção musical, e no seguimento de
conhecimento dos sujeitos, foi dada a resultados anteriores obtidos por Cook
ouvir em duas audições sucessivas e (1987), a repetição revela-se aqui também
apresentada como Gravação 6 e como factor de preferência.
Gravação 7.
Para verificar da existência de 6. Subáreas de conhecimento
diferenças estatisticamente significativas entre as
classificações atribuídas às gravações 6 e 7, foi Cognição, interpretação, recepção,
utilizado o teste paramétrico t para 2 percepção.
amostras emparelhadas, relativamente a
cada uma das características em análise.

19
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Performance Matters: Abstracts From


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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

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21
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Construção de uma interpretação multisensorial

César Traldi
UNICAMP
ctraldi@nics.unicamp.br
Jônatas Manzolli
UNICAMP
jonatas@nics.unicamp.br

Resumo: Este artigo apresenta aspectos teóricos sobre a interpretação de obras que envolvem
elementos sonoros, visuais e o espaço físico. A relação entre a natureza e o significado da
música é apresentada no contexto da interação com outros domínios diferentes do sonoro.
Discute-se que tanto intérpretes como espectadores ainda não estão familiarizados com a
diversidade de elementos e expressões num contexto multisensorial. Duas composições que
abordam este tema são apresentadas. Na primeira desenvolve-se a interação entre som e luz e na
segunda entre o som e o tato. Finalmente, discute-se que em obras desta natureza amplia-se a
dimensão da interpretação através de uma ação co-criativa.

Palavras-chave: multimodal, sinestesia, instalação sonora.

Resultado Composicional onde são


1. Introdução apresentadas duas obras que se
constituem em estudos sobre o tema.
A construção de modelos com o Finalmente, discuste-se a interpretação
objetivo de criar relações entre musical de obras com elementos multi-
estímulos sonoros, visuais e o espaço sensoriais como um processo de
físico, não é uma novidade dos séculos recriação e não apenas de reprodução.
XX e XXI, mas o desenvolvimento
tecnológico contemporâneo potencializa 2. Do Sonoro ao Visual
a criação de artefatos que propiciam
novas experiências entre estes três Estudar a relação entre audição e
domínios. A partir desta observação, o visão, traz a tona uma grande discussão
objetivo deste texto é apresentar um sobre o conteúdo, significado e natureza
conjunto de conceitos que subsidiam da música. Podem-se identificar
uma discussão teórica para o historicamente duas correntes estético-
desenvolvimento posterior de um filosóficas principais, a referencialista e
modelo interativo: a criação de um a absolutista. Até a primeira metade do
ambiente de expressão multimodal. século XVIII a concepção predominante
Para elucidar as questões pelo senso comum era a referencialista,
conceituais, este artigo apresenta na que acreditava que a música seria a arte
primeira seção Do Sonoro ao Visual de expressão de sentimentos. Segundo
uma breve discussão sobre a natureza da Caznok (2003, p.23) “expressar,
música seguida da noção de sinestesia. descrever, simbolizar ou imitar essas
Esta temática é ampliada na próxima referências extramusicais – relações
seção Interação entre Cor, Som e cosmológicas ou numerológicas,
Espaço que culmina com a seção fenômenos da natureza, conteúdos

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

narrativos e afetivos [...] seriam a razão processados no cérebro. É comum


de ser de um discurso musical.” atribuirmos funções diferenciadas a
Em 1854 o crítico musical cada uma das cinco diferentes
Eduard Hanslick escreve o livro Do modalidades sensoriais, temos a idéia de
Belo Musical, que despertou grande que elas são especializadas, estanques e
polêmica não apenas no meio musical, incomunicáveis, entretanto segundo
mas também entre filósofos e estetas. Zatiti (2005, p.01) “já na recepção das
Contrariando toda a base teórica de sua impressões e sensações, em face do
época, Hanslick afirma que a expressão hibridismo de suas composições e
de sentimentos não é nem a finalidade e materiais, a suposta secção dos sentidos
nem deve ser o conteúdo da música. não se sustenta, posto que há na verdade
Segundo Hanslick (1994, p.15) “o belo uma imbricação natural dos órgãos
nada mais tem a fazer do que ser belo.” sensoriais, tendendo a trabalharem
Essa corrente absolutista considerava a interligados e comunicantes.”
música auto-suficiente e imitações, De acordo com afirmação de
descrições e referências a outros Zatiti (2005), o homem tem o potencial
conteúdos que não o sonoro, seriam de possuir sensações sinestésicas.
considerados como impedimentos para Entretanto, segundo Zatiti (2005, p.01)
uma “audição verdadeira”. “adaptando-se aos moldes da civilização
Atualmente, com o surgimento em que se insere, ele convenciona seus
de novas expressões artísticas criadas modos de sentir e de processar os signos
para atingir a multisensoridade do do mundo.”
espectador, esta discussão volta a tona. Partindo desta indagação,
Caznok (2003, p.26) comenta que desenvolvemos um estudo no sentido de
“criadores e teóricos deixaram de lado a explora essas relações intersensoriais no
antiga querela e se ocupam, agora, em processo interpretativo. Usamos como
investigar a maneira como se dão as ponto de partida a noção de Sinestesia;
relações intersensoriais, quais são as do grego syn (união, junção) - aisthesis
formas de relacionamento (percepção). A Sinestesia pode ser
espectador/obra e quais são suas considerada um fenômeno de natureza
fundamentações teóricas.” Esta autora psicologica, ou uma disfunção cognitiva
comenta ainda que essas interações são e neste sentido ela é rara e é estudada
hoje fatos corriqueiros e estão presentes como uma anormalidade das funções
na produção artística de inúmeros cerebrais. Todavia, aqui nos referimos à
autores e de diferentes maneiras. “Há associação advinda da experência
obras que exigem do espectador uma poética e, neste sentido, a sinestesia
totalidade perceptiva nunca antes pode ser vivenciada por todas as
ousada, tais como performances, as pessoas, como mencionado por Zatiti.
instalações e os eventos multimídia que O compositor Alexander
requerem, além da visão e da audição, a Scriabin estabeleceu uma série de
participação do tato, do olfato e, por relações sinestésicas no seu trabalho
vezes, do paladar.” Caznok (2003, composicional. Em obras, como
p.17). Prometeu: Poema do Fogo (1913), ele
O olfato, a visão, o paladar, o utilizou a relação entre cores e sons
tato e a audição desempenham a função como o objetivo de suscitar no público
de entradas da percepção sensorial, uma experiência multisensorial e
como sensores que captam os mais mística. Antes de morrer planejou a
variados e distintos estímulos, que são realização de “Misteria”, concerto

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

multimídia para ser realizado nos ponto inicial do trabalho, explorar esta
Himalaias. Nesta grande obra final, possível comunicação multisensorial
Scriabin buscava uma interação entre como caminho para construção de uma
misticismo e todas as artes. nova visão interpretativa.
Além da visão de um compositor
como Scriabin, Peirce (1998), amplia a 3. Interação entre Som, Cor e Espaço
discussão sobre a interação entre os
sentidos, ao comentar que há um A relação entre cores e os sons
continuo onde todas as sensações estão esta presente no processo histórico da
integradas. Ele aponta para as múltiplas civilização. Prova disso são as inúmeras
possibilidades sensoriais do homem, da e variadas expressões utilizadas pelos
especialização e da intensificação de músicos para descrever aspectos do
alguns sentidos e da dormência de sonoro, tais como: cromatismo,
outros, em decorrência da habituação brilhante, escuro, etc. A relação de
advinda do cultural: elementos musicais com as cores é
muito empregada, especialmente para
Peirce (1998, p.132) “Não ilustrar aspectos do timbre e da altura. A
podemos formar agora mais que própria definição de timbre, muitas
uma débil concepção da
continuidade das qualidades
vezes, é encontrada como sendo a “cor
intrínsecas do sentir. O de um som”.
desenvolvimento da mente O estudo das correlações entre
humana extinguiu praticamente som e cores ocorre há séculos. Algumas
todas as sensações, exceto uns tentativas de criar uma correspondência
poucos tipos esporádicos, como
sons, cores, odores, calor etc, que
entre as notas e determinadas cores são
aparecem agora desconectados e muito antigas. No século XVII são
separados [...] Mas dado um encontrados Mersenne, Kircher e
número determinado de Castel, três pensadores jesuítas que
dimensões do sentir, todas as pesquisaram e criaram modelos sobre as
variedades possíveis são obtidas,
variando as intensidades dos
relações dos sons e das cores.
diferentes elementos [...] Segue- Segundo Caznok (2003, p. 38)
se, pois, da definição de “embora as propostas de
continuidade, que quando está correspondência dos três jesuítas entre
presente qualquer tipo particular sons e cores não seja coincidente termo
de sensação, está presente um
contínuo infinitesimal de todas as
a termo, algumas constantes aparecem
sensações, que se difere daquele nas idéias de Mersenne e Castel”. Essas
infinitesimalmente.” constantes seriam o aproveitamento das
idéias de Newton a respeito da refração
Muitos compositores já têm das cores e a relação entre sons graves
criado processos composicionais para com as cores escuras e dos sons agudos
explorar estas dimensões. Essas novas com as clores claras. A partir de 1890
formas de expressão artísticas, Caznok surgiram inúmeros aparelhos que
(2003, p.216) “longe de ser uma relacionavam som e cores, entre eles
interferência ou uma muleta, a união da estão: o órgão silencioso construído em
visão com a audição no momento da 1895 por Wallece Rimington (1854-
escuta tem sido um meio de 1918) e o Clavilux apresentado em
presentificar uma forma de percepção 1922, pelo holandês Thomas Wilfrid
cuja base está assentada sobre a (1889-1968).
comunicação entre os sentidos.” Este é

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

De forma complementar a composicionais que relacionem a


interação entre o som e o espaço físico, espacilização com o controle
vincula-se à evolução das salas de interpretativo em tempo real.
concerto e dos instrumentos musicais.
Desde o Canto Gregoriano a dimensão 4. Resultado Composicional
acústica-espacial esteve presente na
interação entre interpretação, o público Como resultado apresentamos a
e a sala de concerto. No Barroco seguir dois estudos compostos e
buscava-se limpeza e nitidez acústica e interpretados como resultado da
inúmeras eram as experiências acústicas interação entre o ponto de vista teórico
espaciais que passaram a ser realizadas aqui apresentado e a prática
nas igrejas e catedrais. interpretativa mediada.
No final do século XIX
compositores como Charles Ives (1874- Paticumpatá
1954) concebem diferentes camadas
melódicas, harmônicas, etc., criando um Nesta obra composta em 2006
novo espaço perceptivo que começa a desenvolveu-se uma interação direta
criar uma nova relação física e acústica entre som e cor. Para destacar os
entre os ouvintes e o espetáculo. A idéia movimentos e a sincronia entre os
de espacialização do som ganha corpo intérpretes foram utilizadas baquetas
com o advento da música eletrônica por fluorescentes de cor amarela e quatro
volta de 1948. Atualmente, há uma baquetas de marimba brancas. Sob
grande diversidade de meios para tratar iluminação de "luz negra" e em local
o espaço como elemento interpretativo. completamente escuro, destacam-se
Ferramentas tecnológicas como Pure apenas as baquetas amarelas e as pontas
Data, Max MSP, já dispoem de brancas das baquetas de marimba.
mecanismos para a criação de projetos

Figura 1: Ilustração do desenho derivado da interação entre os movimentos das baquetas e as cores
destacadas pelo efeito “fluorescência” da luz negra.

Essa visualização, obtida através relação entre luz, cor e movimento


do efeito de fluorescência, cria uma espacial é enfatizada pela preocupação
trajetória de luz em forma de leque dos instrumentistas em executar as
quando os percussionistas realizam frases rítmicas com grande sincronia,
movimentos contínuos nos tambores ou observando elementos como:
no ar (mesmo, sem produção sonora). A manulação, acentuações, amplitude e

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

velocidade dos movimentos. A junção toque no corpo passa a ser ampliado


desses fatores em somatoria com a como se o tato estivesse sob a ação do
disposição do setup de percussão, gera zoom de um microscópio.
uma grande variedade de efeitos de
fluorecência os quais estão vinculados à 5. Discussão
simetria bilateral na qual os intérpretes
se encontram. Uma discussão sobre Quando tratamos da
questões interpretativas desta obra, bem interpretação de obras que envolvem
como, outros aspectos sonoro-visuais elementos multi-sensoriais podemos
foram apresentados em Traldi et all observar que tanto intérpretes como
(2007), a obra pode ser acessada espectadores ainda não estão
também na Internet através do You familiarizados com a diversidade de
Tube: elementos e expressões artísticas
http://www.youtube.com/watch?v=N4E utilizadas. O intérprete, para possibilitar
LSnI2AA0 essa interação, pode interagir com
http://www.youtube.com/watch?v=eK8t dispositivos eletrônicos e, dessa forma,
LP2qNsQ o espaço mediado se torna o
http://www.youtube.com/watch?v=xYD instrumento do intérprete. Segundo
MNccRT84 Laboissière (2007, p.16) “a
interpretação musical, ao envolver
Corpo Cardinal elementos que transcendem a leitura da
partitura, resulta em recriação, cuja
Obra composta março em 2007 e origem é o processo significativo do
nela desenvolveu-se um discurso texto.”
voltado a mutisensorialidade vinculada É necessário que o intérprete do
ao tato e ao movimento do corpo dos século XXI busque familiarização com
intérpretes. O compositor utilizou-se de as diferentes necessidades e a variadade
luvas com sensores e partitura gráfica de interpretações de obras que se de
para criar a interação desejada. A peça elementos multisensoriais. Para
é executada sobre o suporte fixo de um Laboissière (2007, p.19) “o sentido do
tape, composto a partir de sons de texto musical se cria a partir de um ato
percussão corporal manipulados no de interpretação provisória, com base
computador. A obra foi estréiada no nos padrões estéticos e nas
concerto “Paisatges sonors Interactius” circunstâncias históricas que constituem
como convidada da Fundação Phonos a comunidade à qual pertence o
de Barcelona. A estrutura da obra se intérprete e que, somados aos padrões
concentra na noção de que os corpos de individuais do performer, permeia sua
três intérpretes são instrumentos sensibilidade.”
musicias e, por extensão, a exploração
tátil é fonte sonora primordial. Para 6. Conclusão
interagir durante a interpretação, são
indicados quatro pontos cardiais no Este artigo discutiu que os
corpo de cada intérprete e uma partitura intérpretes são confrontados com novos
gráfica guia o processo interpretativo. elementos performáticos e interações
No desenvolvimento da peça a interação com dispositivos eletrônicos. Nesses
tatil é ampliada quando os músicos sistemas interativos o espaço físico,
vestem três luvas com sensores piezo- cores, sons e imagens, passam a fazer
elétricos. Com os sensores, qualquer parte de uma noção ampla de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

instrumento. A interpretação torna-se 8. Referências


um processo de recriação e não apenas
de reprodução. Este tipo de interação CAZNOK, Y. B. Música: Entre o
possibilita uma exploração mais ampla audível e o visível. São Paulo: Editora
das inúmeras possibilidades de da Unesp, 2003.
correlação entre domínios diferentes. HANSLICK, E. Do Belo Musical.
As obras aqui apresentadas Tradução: Artur Morão. Lisboa:
focaram, inicialmente, a interação Edições 70, Lda, 1994.
individual do intérprete no contexto da
multisensorialidade, os próximos passos LABOISSIÈRE, M. Interpretação
da pesquisa serão no sentido de Musical: A dimensão recriadora da
desenvolver uma instalação “comunicação” poética. São Paulo:
propriamente dita e, posteriormente, Annablume, 2007.
realizar um estudo performático que PEIRCE, C. S. The collected papers of
deverá envolver intérpretes, bailarinos e Charles Sanders Peirce. vol. 1-6.
o público. Será desenvolvida uma Edited by Charles Hartshorne and Paul
instalação sonora construida a partir da Weiss. Bristol (England): Thoemmes
distribução espacial de um conjunto de Press, 1998.
instrumentos acústicos, sensores e
interfaces eletrônicas dispostas de SHAFER, R. Murray. A afinação do
maneira a relacionar coordenadas Mundo. São Paulo: Editora UNESP,
espaciais com mecanismo de controle 2001.
multimodal. O objetivo da construção TRALDI, C.; CAMPOS, C.;
deste Espaço Instrumento é MANZOLLI J. Os Gestos Incidentais e
proporcionar um processo de Cênicos na Interação entre Percussão e
interpretação onde o ouvinte/intérprete Recursos Visuais. In: XVII Congresso
vivenciem experiências multisensoriais. da ANPPOM. 17, 2007, São Paulo.
Ao projetarmos esta instalação Anais... São Paulo: Editora da Unesp,
imaginamos que o intérprete se deparará 2007.
com um novo ambiente de
interpretação, numa diversidade ZATITI, V. Provocações Sensoriais na
multisensorial envolvendo cores, sons, o Comunicação Mediática. In: XXVIII
espaço e elementos cênicos. CONGRESSO BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 28,
7. Agradecimentos 2005, Rio de Janeiro. Anais... Rio de
Janeiro: Editora da UERJ, 2005.
Esta pesquisa tem apoio da
FAPESP.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

As intenções e percepções da emoção nas interpretações


musicais de um Prelúdio de J.S. Bach

Cristina Capparelli Gerling


Catarina Domenici
Regina Antunes Teixeira do Santos

Resumo. Um estudo experimental, com 9 estudantes de graduação e pós-graduação em piano


(UFRGS) foi delineado com as seguintes atividades: (i) preparação e gravação de 28 compassos
do Prelúdio em fá menor (BWV 881) de J.S. Bach; (ii) estímulos visuais e aurais de obras de
artes barroca, de literatura e da Teoria dos Afetos; (iii) apreciação de emoções percebidas em
trechos de obras vocais e instrumentais de compositores barrocos; (iv) apreciação de emoções
percebidas na interpretação de pianistas profissionais; (v) percepção de emoções (áudio e
áudio/vídeo) das interpretações gravadas pelos estudantes como pianistas e ouvintes. As
atividades foram realizadas com o intuito de provocar reflexão contextualizada sobre aspectos
da comunicação da emoção de uma obra do início do século XVIII. Nesse estudo o modelo
circumplexo de Russell (1980) foi utilizado como um suporte para padronizar a terminologia
empregada na coleta dos dados. Os resultados apontam evidências de que estudantes tendem a
focalizar suas intenções primárias sobre elementos estruturais, em detrimento da projeção
intencional de expressão emocional. De acordo com tratamento ANOVA, há correlação entre
emoção pretendida e emoção percebida no estimulo áudio/vídeo. Não foi constatado significado
estatístico no caso da modalidade em áudio, indicando que, para estudantes de piano, emoções
percebidas encontram-se fortemente dependentes de estímulos de natureza visual.

Palavras-chave: emoção; performance; percepção.

que automaticamente analisa a execução


1 Introdução musical e fornece retro-alimentação
para melhorar a comunicação expressão
A expressão da emoção na emocional. Outros pesquisadores têm se
execução musical é uma forma de focado nas relações entre o interprete e
comunicação não-verbal que a platéia: Resnicow et al. (2004)
proporciona uma ampla variedade de encontram correlação entre a
respostas entre ouvintes e participantes. identificação de emoção durante a
Emoção em execução musical tem sido execução musical e a inteligência
investigada sob diferentes perspectivas. emocional que usamos cotidianamente.
Peretz e Zatorre (2005) desenvolveram Outros estudos têm apontado a
técnicas de neuroimagens para observar importância da estrutura musical
as relações entre emoção e execução (Sloboda e Lehmann, 2001) e de
musical no cérebro. Modelos aspectos visuais na percepção da
algoritmicos matemáticos (Zhu, 2006) e expressão comunicada (Vines et al, 2006).
de plataforma multimídias interativas Do ponto de vista educacional, a
(Leman e Camurri, 2005) têm sido mobilização de recursos expressivos
propostos como um meio de modelar visando à comunicação emocional em
alguns aspectos de emoção em música tem sido pouco estudada e em
performance. Juslin et al. (2006) menor grau compreendida. Para nós,
avaliaram um programa de computador professores de instrumentos que lidam

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

com a formação de profissionais, a conexão óbvia com emoções habituais,


comunicação da emoção na execução não se deixa limitar por esse uso restrito
instrumental configura um desafio a ser e busca transcendê-lo. Segundo Davies
investigado uma vez que a intenção (2001), a teoria do contorno observa
deliberada pode atuar como um recurso certas condutas, comportamentos e
efetivo. Em trabalhos anteriores, a fisionomias que, apesar de dispor de
relação entre emoção pretendida e a uma emoção aparente, não são
percebida foi investigada, tendo como dependentes das conexões com emoções
objeto de reflexão, interpretações de habituais ou corriqueiras.
uma peça composta na segunda metade Assim, em continuidade aos
do século XX, na qual as indicações de trabalhos anteriores, o presente
andamento, de expressão ou fraseado manuscrito relata os resultados de
ficam a cargo das decisões do intérprete investigação da emoção pretendida e a
(Tempo Livre de J. Oliveira). Esta obra emoção percebida na execução de um
era totalmente desconhecida para os trecho de um Prelúdio do Cravo Bem
participantes e ouvintes. A falta de um Temperado de Bach. Trata-se de um
código pré-estabelecido de emoções trecho escolhido propositalmente ao
dificultou o tratamento dos dados, que assumirmos um elevado grau de
se apresentaram demasiadamente familiaridade entre os participantes. O
subjetivos e dispersos (Gerling e Santos, modelo de Russell foi considerado
2007a). Em uma tentativa de dispor de apropriado para a coleta de dados.
um vocabulário comum, a Visando assegurar a compreensão e o
potencialidade do modelo circumplexo sentido atribuído ao termo emoção, um
de Russell (1980) foi posteriormente primeiro questionamento foi aplicado
avaliada para apreciação da referida para verificar o grau de envolvimento
obra (Gerling e Santos, 2007b). dos participantes na comunicação de
Nesses estudos exploratórios recursos emocionais.
(Gerling e Santos, 2007a, 2007b), a
relação conceitual entre expressão de 2. Método
emoção pretendida a ser comunicada na
execução musical não havia sido A pesquisa conciliou reflexão e
abordada. Segundo Juslin e Persson prática oportunizando discussões
(2002), o termo expressão tem sido relacionadas à performance de uma obra
usado para se referir às variações do início do século XVIII. Por cinco
sistemáticas em tempo, dinâmica, semanas, como parte do Laboratório de
timbre e altura. Para Palmer (1997), Execução Musical que inclui encontros
esses parâmetros formam a semanais em disciplina regular na
microestrutura da execução musical e Universidade Federal do Rio Grande do
possibilitam a diferenciação entre dois Sul (UFRGS), 9 estudantes
ou mais instrumentistas quando estes participantes prepararam os primeiros
interpretam a mesma música. Outros 28 compassos do Prelúdio em fá menor
autores têm também utilizado o termo (BWV 881) do 2º volume do Cravo
expressão para referir-se a qualidades Bem Temperado de J.S. Bach. Após
emocionais da música na medida em uma semana de preparação, as
que estas são percebidas pelos ouvintes execuções foram individualmente
(vide, por exemplo, Juslin e Persson, registradas em vídeo. Cada um dos
2002; Davies 1994; 2004). Nesse estudantes respondeu um questionário
sentido, o termo toma emoção como detalhado sobre aspectos de sua prática
uma referência metafórica na execução e de suas intenções na interpretação da
musical. Ou seja, apesar de ter uma obra. Na terceira semana, os estudantes

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

receberam informações visuais e aurais, de platéia, escutaram as interpretações,


através da apreciação de imagens de registrando a emoção suscitada pelas
obras de artes barroca (pinturas, performances. Na seqüência, os
esculturas, jardins, aspectos participantes escutaram suas próprias
decorativos), de literatura (Sermões do interpretações, inicialmente em áudio, e
Pe. Antônio Vieira) e sobre a Teoria dos posteriormente em vídeo e áudio. Os
Afetos. Com o intuito específico de dados foram tabulados e tratados
estabelecer um vocabulário comum a estatisticamente por análise de variança
ser utilizado na comunicação das (ANOVA).
emoções pretendidas pelos intérpretes e
percebidas pela platéia, os princípios do 3. Resultados e Discussões
modelo circumplexo de Russell foram
delineados e discutidos. Os termos A análise do primeiro
originais foram traduzidos para o questionário revelou que a conduta dos
Português. Como exercício de aplicação alunos centra-se principalmente na
do modelo, os estudantes ouviram 10 projeção da estrutura descrita como
trechos de obras vocais e instrumentais “condução harmônica” e “motivo
de J.S.Bach, Rameau, Purcell e principal na mão esquerda”. Verificou-
Haendel. Os dados de emoção se que as execuções tornaram-se
registrados, segundo o modelo de monopolizadas e direcionadas por esta
Russell, foram analisados levando em preocupação. Em menor número, (dois
conta os quatro quadrantes: “contente”, de nove participantes) os alunos
“triste”, “calmo” e “irritado”. Na aludiram aos aspectos simbólicos ou
atividade proposta para a percepção da expressivos, tais como “lamento” ou
emoção constatou-se plena “melancolia”. Apesar da escolha da
concordância em obras tais como as obra ter sido baseada em um nível
árias vocais “Erbarme dich” e “Wir assumido de familiaridade, os
setzen uns mit Tränen sicher” da Paixão resultados mostram uma ampla
Segundo São Mateus de Bach; o dispersão de graus indo de 1 (muito
Prelúdio do Ato V da ópera “The Fairy pouco conhecido) a 10 (muito bem
Queen” de Purcell e “La Joyeuse” da conhecido), em um ajuste da escala de
Suíte em Ré, de Rameau. Esses Lickert. Com relação ao tempo de
resultados consensuais revelaram dedicação à prática da obra, a maioria
compreensão e habilidade de alegou ter se dedicado muito pouco para
manipulação do modelo de Russell, para esta tarefa. No segundo questionário,
fins de coleta. Na semana seguinte, foi alguns estudantes relataram
realizado um segundo registro da espontaneamente terem sido afetados
execução do trecho do Prelúdio de pelos estímulos visuais e aurais das
Bach, e um segundo questionário foi imagens propiciadas.
respondido, detalhando aspectos Com o intuito de avaliar a
considerados relevantes para a relação entre nível de conhecimento e
comunicação da expressão pretendida. emoção percebida, os participantes
No quinto encontro, os estudantes ouviram tambémo mesmo trecho do
escutaram registros do mesmo Prelúdio Prelúdio executado por pianistas
de Bach, por András Schiff, Glenn profissionais. A Tabela 1 demonstra
Gould, Robert Levin e Ângela Hewitt, a que, na maioria, existe um consenso
fim de estabelecer uma base de entre as emoções registradas pelos
comparação entre a performance e a ouvintes, apesar da existência de alguns
percepção do registro de profissionais e casos contraditórios.
estudantes. Os estudantes, na qualidade

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Tabela 1. Exemplos de emoções percebidas pelos ouvintes na interpretação do Prelúdio em fá


menor BWV 881 de J.S. Bach, executados por quatro pianistas. Estímulo em áudio.
Terminologia do modelo circumplexo de emoções de Russell (1980).

Intérprete Emoções decodificadas pelos ouvintes

1 2 3 4 5 6

Andras Aflito Favorável Alegre Surpreso Estimulado Satisfeito


Schiff

Glenn Super Super Super Super Aflito Super


Gould estimulado estimulado estimulado estimulado estimulado
Robert Frustrado Contente Sereno Melancólico Sereno Melancólico
Levin Satisfeito
Angela Triste Feliz Melancólico Sereno Confortável Cansado
Hewitt Surpreso

De acordo com ANOVA, foi manipulam microvariações na unidade


observado significado estatístico entre de tempo inseridas em um andamento
as interpretações de Schiff e Gould constante. A literatura recente confirma
(F(8,86)=0,63 para p=0,01) e de Levin e essa constatação considerando-se que o
Hewitt (F(8,86)=0,08 para p=0.01). Em fraseado na música barroca envolve
outras palavras, há um consenso na variações desse tipo (Friberg e Battel,
emoção comunicada para cada par de 2002).
pianistas. O desvio padrão (DP) foi A Tabela 2 apresenta exemplos
mais alto no caso de Levin (1,03), de emoções percebidas por alguns
seguido de Schiff (0,75) e Hewitt ouvintes (estímulo em áudio), referente
(0,74). O consenso mais elevado entre à interpretação de 9 estudantes. Para
os ouvintes foi observado no caso de fins de comparação, a emoção
Gould (DP=0,46). A manipulação das pretendida é também incluída.
estruturas temporais revelou-se de fato
uma variável notável entre as
interpretações. Gould e Schiff

Tabela 2. Exemplos de emoções percebidas pelos ouvintes na interpretação do Prelúdio em fá


menor BWV 881 de J.S. Bach, executados por nove pianistas, estudantes de graduação e pós-
graduação. Estímulo em áudio. Terminologia do modelo circumplexo de emoções de Russell
(1980).

Intérprete Emoção Emoções decodificadas pelos ouvintes


pretendida
1 2 3 4 5
A Sereno Contente Aflito Tenso Favorável Confortável

B Melancólico Contente Deprimido Abatido Melancólico Melancólico

C Melancólico Entediado Entediado Deprimido Tenso Cansado

D Feliz Favorável Medroso Satisfeito Estimulado Favorável

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

E Contente Satisfeito Aflito Surpreso Entendiado Tenso

F Aflito Aflito Irritado Aflito Aflito Atiçado

G Encantado Favorável Triste Em pânico Cansado Medroso

H Tenso Aflito Super Alegre Feliz Satisfeito


estimulado

I Confortável Feliz Contente Contente Contente Contente

De acordo com a Tabela 2, a projetar um estado emocional às


versão em áudio registrou, para algumas interpretações.
interpretações, certo consenso em Mesmo havendo dispersão nas
relação à comunicação de emoção duas modalidades, o significado
pretendida, como foi o caso dos estatístico da versão áudio/vídeo aponta
estudantes F e I, por exemplo. Outras que a visualização dos gestos corporais
interpretações geraram maior grau de contribui de forma mais concreta e com
dispersão de percepções. O tratamento influência mais perceptível para o
dos dados por ANOVA revelou falta de ouvinte na comunicação da emoção
significado estatístico: F(2,77)=5,32 pretendida. Em um próximo estudo,
para p=0,01, entre as emoções pretende-se averiguar os meios que os
pretendidas e aquelas percebidas. participantes dispõem para comunicar a
Na modalidade de áudio e vídeo, emoção pretendida. Alunos, via de
apesar do significado estatístico existir regra, ainda não dominam o código
(F (2,77)=2,20 para p=0,01), houve um musical de maneira inteiramente
elevado grau de desvio padrão nas satisfatória para comunicar uma
emoções percebidas variando de 0,36 a intenção emocional e tendem a
1,55. Uma provável razão para esse sobrevalorizar o aspecto físico
comportamento pode ser atribuída a (fisionomia carregada, corpo
uma percepção visual e aural mais excessivamente tenso ou curvaturas
refinada demonstrada por certos exageradas, entre outros) mais do que o
estudantes, que conseguem aproximar- emprego de sutilezas de articulação,
se mais da emoção pretendida com o micro-variações temporais e dinâmica.
acúmulo de estímulos, o que corrobora Esta constatação poderia explicar a
com dados publicados por Vines et al. ausência de significado estatístico na
(2006). Além disso, não se pode apresentação dos alunos somente em
negligenciar o que Davies (2001) áudio com implicações significativas
salientou com a relação ao hábito não só para os alunos, mas também para
humano. Segundo esse autor, torna-se os professores.
senso comum o hábito de conferir e
atribuir emoções, associando-as a 4. Considerações finais
eventos e objetos, sem que esses
disponham das características cruciais Esse estudo demonstrou que, a
para suscitá-las. Assim, no presente preparação da uma peça conhecida
trabalho, admitimos que os alunos monopolizou processos de
tenham atribuído algum tipo de emoção, aprendizagem mais voltados para a
tanto pelo hábito, como pelo dever de projeção de aspectos estruturais em
detrimento de expressão emocional. A

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

aplicação do modelo de Russell na GERLING, C. C.; DOS SANTOS, R.


coleta foi bastante eficaz no sentido de A. T. A comunicação da expressão na
padronizar uma terminologia comum. execução musical ao piano. Anais do
Tendo sido constatado o desinteresse
III Simpósio de Cognição e Artes
por uma preparação esmerada,
constatamos também que esse é um Musicais Internacionais. Salvador, p.
problema metodológico a ser 147-154, 2007a.
suplantado. Para contornar a boa GERLING, C. C.; DOS SANTOS, R.
vontade aparente, mas reticente dos
A. T. Intended versus perceived
alunos no que tange a dedicação real
para a tarefa, propomo-nos a realizar o emotion. Anais do International
próximo estudo partindo do repertório symposium on Performance Science.
previamente estipulado no semestre. Oporto (Portugal), p. 233-238, 2007B.
Além disso, estudos futuros deverão
HALLAM, S. Approaches to
buscar identificar e mapear potenciais
estratégias especificamente empregadas instrumental music practice of experts
a fim de comunicar determinadas and novices. In: JORGENSEN; H.;
intenções expressivas/emocionais. LEHMANN, A.C. (Eds.). Does
practice make perfect? Oslo: Norges
5. Agradecimentos musikkhøgskole, 1997. p. 89- 107.
JUSLIN, P. N.; KARLSSON, J.;
Agradecimentos ao CNPq.
LINDSTRÖM, E.; FRIBEG, A.;
6. Subáreas de conhecimento SCHOONDERWALDT, E. Play it
again with feeling: computer feedback
Práticas Interpretativas. in musical communication of emotions.
Educação Musical. Journal of Experimental Psychology:
Applied, v. 12, pp. 79-95, 2006.
7. Referências bibliográficas
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expression. New York: Cornell using interactive multimedia platform.
University Press, 1994. Musicae Scientiae , Special Issue, p.
DAVIES, S. Philosophical perspectives 209-233, 2005.
on music´s expressiveness. In: JUSLIN, PALMER, C. Music Performance,
P.N.; SLOBODA, J.A. (Eds.). Music Annual Review of Psychology, v. 48,
and Emotion- Theory and Research. p. 115-38, 1997.
Oxford University Press, 2001. p. 23-
PERETZ, I.; ZATORRE, R. J. Brain
44.
organization for music processing.
FRIBERG, A.; BATTEL, G. U. Annual Review of Psychology, v. 56,
Structural communication. In: p. 89-114, 2005.
PARNCUTT, R.; MCPHERSON, G. E.
RESNICOW, J. E.; SALOVEY, P.;
(Eds.). The science and psychology of
REPP, B. H. Is recognition of emotion
music performance: creative
in music performance an aspect of
strategies for teaching and learning.
emotional intelligence? Music
New York: Oxford University Press,
Perception, v. 22, p. 145-158, 2004.
2002. p. 199-218.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

RUSSELL, J. A. A circumplex model VINES. B. W.; KRUMHANSL, C. L.;


of affect. Journal of personality and WANDERLEY, M. M.; LEVITIN, D. J.
social psychology, v. 39, pp. 1161- Cross-modal interactions in the
1178, 1980. perception of musical performance.
SLOBODA, J. A.; LEHMANN, A. C. Cognition, v. 101, p. 80-113, 2006.
Tracking performance correlates of ZHU, Z.; SHI, Y. Y.; KIM, H. G.;
changes in perceived intensity of EOM, K. W. An integrated music
emotion during different interpretations recommendation system. IEEE
of a Chopin piano prelude. Music Transactions on Consumer
Perception, v. 19, p. 87-120, 2001. Electronics, 52, p. 917-925, 2006.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

“Desceu aos Trópicos... Baixou meio tom”


Considerações sobre os dois Les Adieux de Neukomm e seus
afetos

Edmundo Hora
Unicamp

Resumo: A vinda do compositor austríaco Sigismund Ritter von Neukomm1 (1778-1858) ao


Brasil, ficou emoldurada por duas de suas obras para Pianoforte2 intituladas Les Adieux. A
primeira escrita em 1816 quando da sua partida de St. Malo na França para o Rio de Janeiro, e a
segunda escrita em 1821 ao deixar esta mesma cidade em retorno à Europa. A diferença de meio
tom entre as tonalidades escolhidas nas obras - mi menor para a peça francesa e Mib Maior para
a brasileira – como também a mudança do seu modo, nos impulsionou a inferir sobre a sua
escolha. O nosso objetivo é realizar um estudo comparativo entre estas duas obras, com base
nos aspectos psicológicos atribuídos às ‘Características das tonalidades’3, listados pelos
tratadistas contemporâneos ao autor, buscando-se encontrar uma relação na escolha das
tonalidades utilizadas e mostrar diferenças entre acordes específicos em dois sistemas de
característicos de afinação: o desigual e o igual.

Palavras-chave: Les Adieux de Neukomm; afeto; características das tonalidades.

Por outro lado, compor obras


1. Introdução especiais para determinados eventos, foi
sem dúvida uma maneira encontrada
Com a sedimentação do conceito pelos compositores para registrar e, em
de tonalidade para a música ocidental no algumas vezes, homenagear ou
final do século XVII e com a presentear um ente querido. Dessa
possibilidade de opção por diferentes maneira, quando de sua vinda ao Rio de
sistemas de afinação - tendo como base a Janeiro, Neukomm7 registrou a sua
busca da pureza intervalar das escalas a despedida da França, escrevendo em St.
partir do início do século XVIII - Malo para Pianoforte8, o Les Adieux de
diferentes autores em diferentes regiões Neukomm a ses amis, lors de son départ
da Europa, propuseram listas com pour le Brésil (O Adeus de Neukomm
“características especiais” à cada aos seus amigos, quando de sua partida
tonalidade4. Aspectos psicológicos, cores para o Brasil) a 1 de março de 1816. Da
e afetos se relacionaram, contribuindo mesma maneira, retornando à Europa,
sobremaneira para a escolha específica de homenageou os seus amigos brasileiros
uma determinada tonalidade pelos com o Les Adieux de Neukomm à ses
autores, à medida que novas propostas de amis à Rio de Janeiro (O Adeus de
divisão da oitava5 foram se afirmando. Neukomm aos seus amigos no Rio de
Em 1713, assim se pronunciou Janeiro), escrevendo para o mesmo
Mattheson: “É bem sabido, se uma pessoa instrumento, a 21 de abril de 1821. 9
considerar, a época, as circunstâncias e A tonalidade escolhida para a
pessoas envolvidas, que cada tonalidade primeira obra – o Les Adieux “francês”
possui alguma característica especial e ela – foi: mi menor, enquanto que para a
é muito diferente de outras tonalidades”. 6 segunda obra o Les Adieux “brasileiro”

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

foi: Mi♭ Maior, portanto, duas obras 2. Fundamentação teórica


com títulos e intenções afetivas
similares, porém em modos diferentes. De acordo com as instruções
No entanto, em princípio, obras históricas, o ponto essencial para a
sentimentais e com caráter melancólico, compreensão das Características das
remetem-se ao modo menor. Contudo, a tonalidades é atribuído ao temperamento
despedida brasileira o Les Adieux... de desigual ou, à necessidade de se temperar
1821, utiliza o modo Maior e mais os intervalos da maneira mais acústica
possível. Sobre o método específico do
precisamente a tonalidade de Mi♭. temperamento desigual descrito em seu
Assim, perguntamos: teria o calor dos Dictionnaire, escreveu Rousseau em
trópicos influenciado na escolha da 1768: “...de fato, as tonalidades naturais
tonalidade e do modo para o “Adeus possuem por [aquele] método uma total
brasileiro”? pureza de harmonia, e as tonalidades
Desceu aos Trópicos... baixou meio transpostas, as quais compõem as menos
tom! (?) freqüentes modulações, oferecem grandes
Responder imediatamente e recursos para o músico quando ele
afirmativamente a esta questão, coloca- necessita expressões mais marcadas”. 12
nos numa atitude muito simplista. Porém, Dessa maneira, torna-se clara a sua
um outro dado significativo a se preferência por um sistema de afinação
considerar é que - com base nas propostas desigual que favorece sobremaneira os
desiguais de afinação e em termos do afetos atribuídos às tonalidades. Mais
“afeto”, num primeiro instante, as adiante, sobre o estímulo das emoções,
tonalidades acima mencionadas se Rousseau argumentou:
relacionam muito mais no sentido
descendente - abaixando-se meio tom (mi A partir desta [diversidade de
menor/mi♭menor), do que no sentido tonalidades] nasce a origem da
variedade e beleza na modulação; a
contrário, ascendente (mi menor/fá partir disto nasce uma diversidade e
menor).10 No entanto, a mudança do seu uma admirável energia na
modo pela modificação de sua terça (mi expressão; finalmente, a partir disto
nasce a faculdade de se estimular
menor/Mi♭ Maior) - ao invés de sua não diferentes emoções, por meio dos
elevação literal em meio tom (mi/fá) – mesmo acordes realizados em
torna-se um outro fator relevante a se diferentes tonalidades. [...] em
considerar. outras palavras, cada tonalidade,
No que se refere à peça cada modo, tem a sua própria
expressão a qual deve ser
brasileira de 1821 - teria sido proposital compreendida, e isto é um dos
pelo compositor a escolha da tonalidade significados pelo qual o compositor
de Mi♭ Maior e não Mi Maior? Como inteligente se torna mestre [perito]
em alguma forma, das emoções em
já dissemos, e aos olhos modernos, não sua audiência. 13
teria sido mais natural mudar apenas o
seu modo, a partir do próprio mi? E Para reforçar o seu pensamento
mais ainda, no que concerne às ele cita Jean Philippe Rameau (1683-
instruções históricas atribuídas as 1764) - agora adepto do temperamento
Características das tonalidades, há uma igual14 - evidenciando suas diferenças
concordância entre diferentes autores conceituais em um tom de crítica, como
indicando eventualmente a relação: mi veremos a seguir:
menor / Mib Maior, e não mi menor /
Mi Maior.11

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

É justamente desta agradável e Assim, nos concentraremos


rica diversidade que Rameau primeiramente nos dados relativos às
deseja privar a Música, dando-lhe
uma uniformidade e total
fontes primárias, como também nos
monotonia na Harmonia de cada estudos contemporâneos19, deixando ao
tonalidade, com sua regra de leitor e intérprete, a liberdade para tirar
temperamento; 15 regra já antes as suas próprias conclusões acerca das
frequentemente proposta e informações apresentadas. Dessa
abandonada antes dele. Segundo
este autor, toda a harmonia
maneira, ainda que saibamos que as
deveria ser perfeita. Contudo, é primeiras menções sobre o assunto
certo que com isto, nada pode ser registrem o século XVII - e mais
ganho sem por outro lado nada precisamente o ano de c. 1692 com o
[se] perder, e se uma pessoa tratado Règles de composition20 de
imagina que a harmonia em geral
deverá ser a mais pura, (a qual
Marc-Antoine Charpentier (1645?-
não será), isto compensará o que 1704), procuraremos enfocar as
foi perdido pelo lado da instruções das “características tonais”
expressão?16 nos tratados publicados a partir do final
do século XVIII e mais precisamente
Portanto, ao se admitir o sistema nas primeiras décadas do século XIX
de afinação igual como “o modelo” em diferentes nacionalidades, por
referencial, definitivo e conclusivo no corresponderem ao período das obras
século XX, padronizou-se um sistema em questão.
único para todas as tonalidades, Também servirão de
eliminando-se as suas particularidades fundamentos para os nossos estudos, os
psicológicas, proporcionadas pela trabalhos teóricos de: Christian Friedrich
desigualdade intervalar. Daniel Schubart (c.1784), Justin Heinrich
Por outro lado, diversas Knecht (1792), André-Ernest-Modeste
propostas de divisão irregular da Grétry (1797), François-Henri-Joseph
coma17, foram utilizadas, evidenciando- Castil-Blaze (1821), mencionando a
se as diferentes nuanças do intervalo da tonalidade de mi menor, e ainda os de:
terça maior com valorização das cores Georg Joseph Vogler (1779), Johann
tonais. Com isso, a terça maior torna-se Jakob Wilhelm Heinse (1795), Ernst
seguramente o intervalo mais Theodor Amadeus Hoffmann (c. 1814),
representativo para a cultura musical complementando as informações para a
ocidental, na medida em que ele tonalidade de Mib Maior, as duas
determina o “modo” das nossas escalas tonalidades utilizadas por Neukomm.
e, ainda - nos sistemas desiguais de
afinação, permite uma infinidade de 4. Justificativa
possibilidades em coloridos na entoação
do próprio intervalo e de seus Nos últimos anos, tem crescido o
componentes.18 interesse e preocupação pelos estudos
histórico-musicais referentes ao Brasil
3. Objetivo antigo. Em nosso país e no exterior,
pesquisas multiplicam-se sobre a
Inúmeros são, atualmente, os história da música brasileira, trazendo à
estudos realizados sobre os diferentes luz panoramas gerais em publicações e
conteúdos “afetivos às tonalidades” registros sonoros de diferentes obras e
evidenciando-os como um dos autores. Devido à escassez de edições
elementos para a prática interpretativa. com obras do passado musical

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

brasileiro, bem como a de obras para os moderna recentemente publicada pela


instrumentos de Teclado em geral, nos Funarte22, quando será realizado um
regozija a identificação da figura de estudo comparativo mais detalhado
Neukomm com significativa entre elas, visto que identificamos erros
importância para o legado musical no na transcrição moderna.
país, por meio de sua produção no Rio Numa ordem cronológica, listas
de Janeiro entre1816 e 1821. específicas de Características das
Neste período, Neukomm teve a Tonalidades servirão de base para o
oportunidade de confraternizar com o trabalho e dentre seus autores e obras
Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767- mencionamos: Johann Mattheson. Das
1830)21, reconhecendo nele o talento neu-eröffnete Orchestre 1713; Georg
para a composição, o virtuosismo como Joseph Vogler, Betrachtungen der
instrumentista ao cravo, ao órgão e ao Mannheimer Tonschule,1778; Christian
pianoforte, incentivando ainda uma Friedrich Daniel Schubart, Ideen zu
troca de experiência marcante que einer ästhetik der Tonkunst c.1784
influenciou o legado artístico da cultura (Reedição 1806); Johann Jakob
musical brasileira. Wilhelm Heinse, Hildegard von
Seu repertório não somente Hohenthal 1795-96; August Friedrich
acrescenta um importante material à Christoph Kolmann, An Essay on
prática da música de câmara, como musical harmony according to the
também à instrumental sinfônico-coral e nature of that science, Londres, 1796;
solo, difundindo aqui a tradição clássica André-Ernst-Modeste Grétry, Mémoires
da escola de composição Vienense - ou Essays sur la musique, 1797; Justin
representada por Franz Joseph Haydn Heinrich Knecht, Allgemeiner
(1732-1809) e Wolfgang Amadeus musikalischer Katechismus 1803, 1816;
Mozart (1756-1791) - num Brasil E.T.A Hofmann. Kreislers musikalisch-
fortemente influenciado pelos estilos poetischer Klub. c.1814; François-
Português e Napolitano. Henri-Joseph Castil-Blaze, Dictionnaire
de musique moderne, 1821 e 1828.
5. Metodologia A título de ilustração,
selecionamos alguns compassos e
Por meio de um estudo alguns dos acordes mais característicos
comparativo entre os dois Les Adieux de nos dois Les Adieux, por conter
Neukomm, e com base nas informações conteúdos emocionais significativos
das “Características das Tonalidades” para a realização da demonstração
encontradas nas listagens fornecidas por sonora. A experiência auditiva dos
tratadistas contemporâneos ao mesmo exemplos musicais será realizada de
autor, buscaremos uma melhor maneira sucessiva, para que possamos
compreensão do “afeto” entre as verificar os diferentes “coloridos e
tonalidades utilizadas, para uma melhor afetos” nos dois sistemas de afinação
interpretação ao Pianoforte. Por outro propostos. Assim para o Les Adieux de
lado, procuraremos identificar os 1816, selecionamos os três primeiros
subsídios para justificar as “escolhas” compassos; o acorde de 7ª. Diminuta do
entre as tonalidades de mi menor no Les compasso 5; o mesmo acorde de 7ª.
Adieux de 1816 e a de Mi♭ Maior no Diminuta sobre sol# no compasso 6.
Les Adieux de 1821. O objeto do nosso Para o Les Adieux em Mi♭ de 1821,
trabalho partirá das cópias autógrafas selecionamos os dois primeiros
fac-similares, bem como da edição compassos; o compasso 3 com o acorde

38
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

de 7ª. da Dominante sobre Mi♭, no trabalho depreciar as qualidades práticas


segundo tempo; os compassos 9 a 11, do temperamento igual, mas, apenas
alertar para sua condição natural e
com os acordes de Mi♭ menor e praticidade. A nossa intenção é
diminuto com pedal. proporcionar a possibilidade de escolha
A composição dos intervalos nos com os diferentes sistemas de afinação,
acordes obedecerá às instruções valorizando melhor os afetos das
propostas em dois sistemas de afinação: tonalidades e acordes. Dessa maneira,
o desigual, descrito por Sievers em seu ficamos agradecidos ao Neukomm por
Il Pianoforte. Guida pratica per ter escolhido tonalidades vizinhas para
construtori...,23 de (1835/1868) seguido expressar o seu sentimento de dor ao
do temperamento igual, no qual a oitava afastar-se dos amigos tão queridos.
está dividida em 12 semitons Certamente, até o presente momento,
exatamente iguais. A audição final de nenhuma base científica comprova que
toda a obra concluirá a Demonstração descer aos Trópicos tenha influenciado a
previamente gravada numa réplica de sua escolha tonal, mas, a utilização deste
um Fortepiano Vienense do final do critério estimulou e provocou o interesse
século XVIII, instrumento que segundo para as nossas pesquisas.
Lilia Schwarcz24 chegou ao Rio de
Janeiro na bagagem da Imperatriz 7. Referências bibliográficas
Leopoldina em 1817. Por razões
práticas manteremos o diapasão em Lá BERLIOZ, Hector. Grand traité
442 hz.
d’instrumentation et d’orchestration
6. Considerações finais modernes. Paris: Schonenberger, 1843.
CASTIL-BLAZE, François-Henri-
Ainda que controverso, o tema sobre as Joseph. Dictionnaire de musique
Características das Tonalidades deve ser moderne. 2 vols. Paris: Magasin de
considerado, uma vez que muitos autores musique de la lyre moderne, 1821.
antigos, sobre ele discutiram. Da Brussels: L’Academie de musique,
primeira referência no século XVII com
1828.
Charpentier (c.1692) até a mais recente
em meados do século XIX com Berlioz CHARPENTIER, Marc-Antoine.
(1843), uma quantidade significativa de Règles de composition. Paris:
descrições foi publicada, revelando o seu Bibliothèque Nationale. Fr. fols. 1-10.
interesse. Contudo, se a aceitação e GARDINER, William. The Life of
difusão do temperamento igual no Haydn by Mary Henri Beyle [L.A.C.
mundo musical moderno (1850?) tornou- Bombet]. Translated by Rev. C. Berry.
se referencial nos instrumentos de
afinação fixa, pode ele ainda contribuir London: 1817. Reprint. Boston: J.H.
para a exploração de campos Wilkins & R. B. Carter, 1839.
enarmônicos até então “indesejáveis”. GAVASONI, Carlo. Nuova teoria i
Involuntariamente, ele mesmo anula os musica ricavata dall modierna
conteúdos psicológicos inerentes à cada pratica. Parma: Blanchon, 1812.
tonalidade, mas permite novas GRÉTRY, André-Ernest-Modeste.
experiências harmônicas. Uma situação
Mémoires, ou Essays sur la musique.
inevitável e insolúvel por razões físicas
conhecidas. No entanto, deve-se Paris: Imprimerie de la République,
enfatizar que não se pretende com este 1797.

39
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

HEINSE, Johann Jakob Wilhelm. estudo documental e organológico.


Hildegard von Hohenthal. 2 vols. 2005. Dissertação (Mestrado em
Berlin: Voss, 1795-96. Música) Escola de Música –
HOFFMANN, Ernst Theodor Amadeus. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Review of “Christus am Ölberge”, by Rio de Janeiro, 2005.
Ludwig van Beethoven. Allgemeine ROUSSEAU, J.J. Dictionnaire de
musikalische Zeitung, Leipzig: 1812. Musique. Paris, 1768. Edição fac-
HORA, Edmundo Pacheco. A obra de similar por G. Olms,
Froberger no contexto da afinação Verlagsbuchhandlung, Hildesheim,
mesotônica. 2004. 273p. Tese 1969.
(Doutorado em Música) – Instituto de SCHUBART, Christian Friedrich
Artes, Universidade Estadual de Daniel. Ideen zu einer Ästhetik der
Campinas, Campinas, 2004. Tonkunst. Edited by Ludwig Schubart.
JORGENSEN, Owen. Tuning the Vienna: Degen, 1806. Reprint, edited by
Historical Temperaments by Ear. P. A. Merbach. Leipzig:
Marquette, Mich.: Northern Michigan Wolkenwanderer-Verlag, 1924.
University Press, 1977. STEBLIN, Rita Katherine. Key
KNECHT, Justin Heinrich. Characteristics in the 18th and Early
Allgemeiner musikalischer 19th Centuries: A Historical
Katechismus. Biberach: Gebr. Knecht, Approach. Tese (Doutorado) 1980.
1803. University of Illinois at Urbana-
KNECHT, Justin Heinrich. Champaign. 1981.
Allgemeiner musikalischer STARKE, Friedrich. Wiener
th
Katechismus. 4 ed., rev. Freiburg: Pianoforte-Schule. 3 vols. Vienna:
Herder, 1816. Bermann, 1819, 21.
KOCH, Heinrich Christoph. SULZER, Johann Georg. Algemeine
Musikalisches Lexikon. Frankfurt am Theorie der Schönen Künste. Leipzig:
Main, 1802. Facsimile reprint. M. G. Weidemann, 1771-74.
Hildesheim: Georg Olms, 1964. VOGLER, Georg Joseph.
MATTHESON, Johann. Das neu- Betrachtungen der Mannheimer
eröffnete Orchestre. Hamburg: der Tonschule. Mannheim, 1778-81.
Author und Benjamin Schillers Wittwe,
1713.
MATTHESON, Johann. Der Notas
vollkommne Capelmeister. Hamburg: 1
Ele contribuiu para divulgar a obra de Haydn e
Christian Herold, 1739. Mozart na Europa e no Brasil. Foi aluno de
Johann Michael Haydn (1767-1806) e em 1797
MEYER, Adriano de Castro. “A passa a estudar com Joseph Haydn. Tornou-se
presença de Sigismund Neukomm no professor na corte de D. João VI, dirigindo
Brasil” In: Anais do II Simpósio de obras de Mozart e Haydn. Retorna à Europa em
1821.
Musicologia Histórica. Curitiba 2000. 2
Pianoforte – termo empregado no séc. XVIII
PEREIRA, Mayra. Do Cravo ao aos pianos. Atualmente convencionou-se
chamar de Fortepiano - uma outra nomenclatura
Pianoforte no Rio de Janeiro: Um de época, diferenciando-se da primeira –

40
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Pianoforte, que é a utilizada atualmente na Itália como aqueles que estão na base dos sistemas
para o piano moderno. com divisões múltiplas.
3 18
Conjunto de conceitos afetivos designados às Convém ressaltarmos aqui que para a
diferentes tonalidades da música ocidental por formação deste intervalo, se faz necessário uma
diferentes tratadistas europeus, compreendendo seqüência de quatro quintas. O grau de
os séculos XVII ao XIX. estreitamento destas mesmas quintas resultará
4
A nossa proposta refere-se à consulta aos na pureza ou não da terça.
19
trabalhos teóricos das fontes primárias, relativos Poucos são atualmente os estudos relativos às
ao tema, nos sécs. XVIII e início do XIX. Ver questões das afinações e temperamentos antigos
Rita Steblin em sua Tese Key Characteristics... em língua portuguesa. Contudo, o leitor deve
1981. consultar a Tese de Edmundo Hora sobre o
5
Muitos trabalhos tem sido realizados temperamento mesotônico, defendida no
atualmente no sentido de difundir os conceitos Instituto de Artes da Unicamp em 2004.
20
que envolviam as inúmeras possibilidades de Regras de Composição. Publicado em Paris.
divisão da oitava, proporcionando cores e afetos c.1692.
21
especiais à cada tonalidade. Mencionamos aqui o nosso Padre Mestre,
6
MATTHESON, Johann. Das neu-eröffnete seguramente o compositor e instrumentista
Orchestre. Hamburg, 1713. p. 232. brasileiro mais significativo que atuou na
7
Acompanhava como convidado do duque de Capela Real, porém com formação musical até
Luxemburgo, que vinha ao Brasil em missão então desconhecida.
22
diplomática. BERNARDES, Ricardo. “Música no Brasil
8
Significativa a Dissertação defendida por séculos XVIII e XIX”. In: CORTE DE DOM
Mayra Pereira na Escola de Música da UFRJ em JOÃO VI. Rio de Janeiro: Funarte Vol. III.
2005. 2002.
9 23
Adriano de Castro Meyer apresentou seu SIEVERS, Giacomo Fernando. Il Pianoforte
artigo no Simpósio de Musicologia Histórica em – Guida pratica per Construtori, Accordatori,
Curitiba-Pr, no ano de 2000. A ele agradecemos Dilettanti et Possessori di Pianoforti. Ghio,
a cessão das cópias manuscritas dos dois Les Naples 1868. p. 155. A escolha pelas indicações
Adieux. de Sievers se dá por razões político-sociais. A
10
Tratadistas como Mattheson (1713), Rousseau Áustria representava naquele momento o Norte
(c. 1749 e 1768), Gardiner (1817) e Castil-Blaze de Itália e o sul da Alemanha. O ano de 1830
(1821) comungam os mesmos conceitos em revela o quão tardiamente permaneceram
relação às tonalidades mencionadas. aquelas instruções.
11 24
Segundo Steblin (1981, p. 283 e 284) para Mi SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem
Maior os autores do período - Gardiner (1817) da Biblioteca dos Reis. Companhia das Letras.
indicam: “Radiante e transparente” e Castil- São Paulo, 2002. p 305.
Blaze (1821): “Alegre, brilhante, ou marcial”.
12
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Dictionnaire, p.
502.
13
Rousseau. Dictionnaire , p. 517.
14
Curiosamente Rameau até 1726 (Nouveau
Systeme, p.107-114) defendia o temperamento
ordinaire [temperamento desigual], comum em
seu tempo. A partir de 1737 (Generation
Harmonique....), ele passa a defender
ardentemente o temperamento igual.
15
Note que o referido temperamento aqui
mencionado é o igual. O sistema padrão do
século XX para a música ocidental, que divide a
coma pitagórica em 12 partes exatamente iguais,
a saber -1/12P.
16
Rousseau, Ibidem, p. 517.
17
Termo que designa um intervalo residual
correspondente à diferença de duas séries de
intervalos. Aplicando-se igualmente e por
extensão, a toda a espécie de micro-intervalo,

41
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Noção de tonalidade

J. Zula de Oliveira
ICB –USP
jzula@icb.usp.br
Marilena de Oliveira
marilenoliveira@uol.com.br

Definir tonalidade é uma tarefa escalas. Todos eles têm uma função
difícil. Todavia, o fato histórico é que, dentro do todo e são igualmente
por cerca de cinco séculos, ela tem importantes na composição da estrutura
constituído a base para que se entenda a harmônica, contribuindo com o
linguagem musical e talvez, por afloramento da tonalidade. O que dá
conseguinte se a tenha admitido sem origem à(s) tonalidade(s) é a
discussão. funcionalidade entre os graus das
Faz parte da discussão sobre a escalas.
noção de tonalidade o estudo de dois A principal característica de uma
elementos: escala é o seu “fechamento”, ou seja:
a) O estudo das escalas começando com um determinado som
diatônicas e cromáticas, e (p.ex. um som que tenha 256 Hz, o seu
b) a dependência (ou fechamento dar-se-á com o som que tem
funcionalidade) dos graus das o dobro da freqüência do som inicial, ou
escalas entre si. seja, 512 Hz). Costumo chamar este
A tonalidade só se efetiva fenômeno de módulo da escala. O
quando ouvimos as funções módulo contém 6 tons. A distribuição e
estabelecidas entre os graus das escalas. o número de graus dentro do módulo de
Se alguém não consegue ouvir estas uma escala são variáveis que definem o
funções, ou seja, a relação de modo da escala. Existem escalas com,
dependência entre os graus das escalas, desde três até doze graus. As mais
não existe tonalidade para esta pessoa. conhecidas são as escalas de cinco sons
Portanto, tonalidade é um evento (as pentatônicas), as de oito sons (as
subjetivo. A noção de função dentre os diatônicas) e as de 12 sons (as
graus da escala é que faz com que se cromáticas).
possa falar em escala, que apesar de ser Os modos das escalas são
determinada fisicamente, através de determinados pela distribuição dos
cálculos matemáticos que remontam a intervalos entre os graus da escala
Pitágoras1, não significa muito se não se dentro do módulo. Desta forma fala-se
consegue ouvir a funcionalidade de seus em modalidade antiga (modos gregos e
graus. Há quem denomine esta litúrgicos), modalidade renascentista
funcionalidade de “hierarquia”. (os sete modos usados no ocidente no
Pessoalmente não gosto muito deste período da Renascença: dórico, frígio,
termo, uma vez que é difícil estabelecer lídio, mixolídio, eólio, lócrico (ou
uma hierarquia entre os acordes das jássico) e jônico2), modalidade clássica
(os modos clássicos que se firmaram
                                                            
1
 Pitágoras (do grego Πυθαγόρας) foi um
nos século XVIII e XIX: o modo maior
filósofo e matemático grego que nasceu em derivado do modo jônico e o modo
Samos pelos anos de 571 a.C. e 570 a.C. e
morreu provavelmente em 497 a. C. ou 496 a.C.                                                             
2
em Metaponto (Wikipédia) Estes nomes têm origem em províncias gregas.

42
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

menor derivado do modo eólio. Estes escala. O acorde construído sobre o


dois modos foram afetados por primeiro grau da escala determina se a
mudanças internas “exigidas” pelo uso estrutura musical se desempenha em
das harmonias que são a matéria prima modo maior ou menor (posição
para a efetivação da tonalidade, disto dualista) ou em ambos (posição
resultando novos modos3. monista, como geralmente é o caso da
A tonalidade é uma decorrência música de jazz). A função deste acorde-
do uso dos acordes dispostos em chave da tonalidade recebe o nome de
encadeamentos que seguem leis rígidas tônica. O termo tonalidade é usado
determinadas pela física dos sons. O apenas para caracterizar o efeito
principal fenômeno físico implicado produzido pelo encadeamento dos
com este assunto é a série harmônica a acordes das escalas clássicas.
partir da qual são formadas não só as Aproveitando a oportunidade,
escalas, mas também os acordes. Um esclarecemos ainda que tom, segundo
“acorde é a escrita ou execução Chaielley, tem quatro sentidos:
simultânea de três ou mais notas, a) Medida de intervalo entre os
pertencentes à mesma série harmônica. sons (aliás, uma medida
Para alguns teóricos, o acorde só se bastante imprecisa pois sua
forma a partir de três ou mais notas, .... dimensão é função dos
Os acordes são formados a partir da sistemas acústicos adotados,
nota mais grave, à qual são dos quais se destacam como
acrescentadas as outras notas de uso frequente: 1. o
constituíntes. Por isso, um acorde deve pitagórico ou sistema das
ser lido e, na maioria dos casos, cordas; 2. O de Zarlino ou
ouvidos, de baixo para cima. A sistema das trompas; 3. O de
formação dos acordes, assim como a Holder ou sistema dos
das escalas está intimamente ligada à cantores; 4. Os temperados
série harmônica” (adaptado de ou sistema dos teclados5;
Wikipédia).
Em uma escala o acorde b) Sinônimo (imperfeito) de
constiuído sobre o primeiro grau é que som musical;
vai acionar toda a relação de c) Grau inicial de uma escala e
dependência dos demais acordes sob este significado se fala
possíveis dentro da respectiva escala. A em “tom de dó” que significa
esta relação de dependência (ou vínculo a “nota dó”;
entre os acordes) dá-se o nome de
função: a função, portanto é a relação de d) Por extensão ao significado
dependência que os acordes mantêm de grau inicial de um a
com o acorde fundamental (o construído escala: é usado como
sobre o primeiro grau da escala)4. Este sinônimo de tonalidade.
acorde é a chave (em inglês: key) da Desta forma se pergunta:
tonalidade. Portanto, tonalidade é um qual é o tom? E a resposta
fenômeno psicofísico construído pelo pode ser: “ré menor”. A
ouvinte que consegue ouvir a relação de partir deste significado é que
dependência entre os acordes de uma se entende a formação do
termo tonalidade, uma
                                                            
3
extensão de um dos
 Abstemo-nos de falar sobre estas variantes ou significados de tom.
modos derivados, bem como do chamado “néo-
modalismo”                                                             
4 5
Vide Anexo “Diagrama do Campo Harmônico mais informaçãoes. vide “Leituras sobre 10
de Dó Maior” de J. Zula de Oliveira (2004) Temas musicais” de J. Zula de Oliveira (2005)

43
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

O termo Key (inglês) ou acorde- necessário que seja usado todo o campo
chave é bem expressivo quando harmônico da escala em questão, mas
desempenha um papel importante na pelo menos três acordes são básicos
composição da funcionalidade entre os para definir a tonalidade: a) o acorde
graus (acordes) da escala em uma peça sobre o Iº Grau: acorde de Tônica –
musical. Esta funcionalidade, que maior ou menor, de acordo com a
estamos chamando de funcionalidade escala. A tônica, dentro do discurso
tonal, parece não existir no universo, musical desempenha um caráter de
uma vez que existe apenas em nossa partida, conclusão, estabilidade,
mente, como função de nossas parada, repouso. É elemento de
experiências com o estilo músical repetição; b) O acorde sobre o Vº grau:
(principalmente o estilo clássico), com a acorde Dominante - o acorde de
gramática que está sendo usada e com dominante é sempre maior, mesmo nas
esquemas mentais que todos nós tonalidades menores. A dominante tem
desenvolvemos para termos condições um caráter de tensão, instabilidade,
de entender a música (Levitin, 2006). movimento, conflito; pede resolução.
Toda música “tonal’ tem uma Também é elemento de contraste. c) o
sonoridade recorrente, um centro tonal, acorde de IVº grau: acorde de
a tônica (Key), que até pode mudar Subdominante - maior ou menor, de
durante o curso de uma música acordo com a escala que está sendo
constituindo as chamadas modulações6. usada. A subdominante desempenha no
Mas por definição o acorde-chave discurso musical a função de
geralmente é um acorde que permanece movimento, afastamento. É também
por um período de tempo relativamente elemento de contraste, conflito. Nestes
longo, durante o curso da música, coisa três acordes estão contidas todas as
da ordem de minutos (Levitin, 2006). notas da escala à qual pertencem e isto é
Nossa memória está possuída desta o suficiente para definir a tonalidade. A
sonoridade e com ela estabelece a disposição seqüencial dos acordes é
relação de todos os acordes de uma feita obedecendo a uma ordem
escala. A sensação de tonalidade é o acusticamente lógica, resultando disto o
resultado de um processamento neural que chamamos de cadências (o termo
da funcionalidade dos acordes. Portanto, vem de “cadere”: cair, desabar,
tonalidade é um substrato neurofísico, desembocar, competir). As cadências
decorrente de processamentos neurais constituem a pontuação harmônica do
de eventos sonoros. Nâo existe fora do discurso musical. A esta pontuação dá-
ouvinte. se o nome de função.
O Anexo que acompanha a esta Para concluir: Tonalidade, um
exposição exibe o campo harmônico de postulado estabelecido arbitrariamente e
Dó maior. O campo harmônico de uma imposto pelo uso? Ou a resposta a uma
escala é que faz aflorar a tonalidade necessidade e a um sentimento natural
decorrente da respectiva escala. Para do ser humano (obviamente de quem
que se tenha condição de “intuir” a ouve tonalidade, pois para os que não a
noção da tonalidade de uma peça não é ouvem, não existe tonalidade na prática.
Mesmo assim, ela existe no campo
                                                             ontológico)?
6
Modulação é um termo impróprio para o
significado em que é usado. Deveria significar
“mudança de modo” o que geralmente não
ocorre. O termo “tonulação” seria mais
condizente com a situação em que de fato não
mudança de modo, mas apenas de tom
(Chailley, 1951).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Referências bibliográficas:

CHAILLEY, J. Traité Historique


d’Analyse Musical. Paris, France:
Alphose Leduc, 1951.
LEVITIN, J.D. What makes a Musicien:
Expertise Dissected. In: This is your
Brain on Music. Nova York, USA:
Pinguin Groop, 2006.
.

Diagrama do Campo Harmônico Tonal de Dó Maior:


funções principais: S - T - D ................................................... 1ª lei tonal
Observações ao diagrama:
funções secundárias: todas as relativas e antirelativas ............ 2ª lei tonal
funções individuais: todas as dominantes e subdominantes 1. Todos os acordes do campo
secundárias ....................................................................... 3ª lei tonal harmônico tonal representam funções
harmônicas relacionadas, direta ou
indiretamente, com a tônica, a função
(s) (D) central da tonalidade.
2. A cada acorde correspondem
(s) 4 funções com ele relacionadas:
uma dominante, uma subdominante,
(D) Ta uma relativa e uma antirelativa.
(s) 3. Os acordes no diagrama
Sa Dr
representados aparecem em sua
SS formação mais simples, ou seja: são
DD formados por uma Terça (maior ou
menor) e uma Quinta justa a partir da

fundamental do acorde que é sempre
S T D uma nota da tonalidade.
DS 4. Neste diagrama os acordes
D
S estão representados em sua forma mais
Da
simples. Na prática harmônica eles
Sr Tr (s) aparecem com notas acrecentadas (7ªs,
(s) 9ªs, 6ªs, 4ªs etc.), assunto que é exposto
em detalhes em “Harmonia Funcional”
(D)
de J. Zula de Oliveira e Marilena de

a
eir
(D) Ol
iv Oliveira.
de
la
Zu
J.
(D) (s) 00
4
C 2

45
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Incidência e categorização de ouvido absoluto em estudantes


de música da Universidade de Brasília

Patrícia Vanzella
UNB
pvanzella@yahoo.com
Maria Gabriela M. de Oliveira
Mariana Werke

Resumo: O ouvido absoluto é um traço cognitivo raro caracterizado pela capacidade de


identificar a altura de qualquer tom isolado sem nenhuma referência externa. O objetivo deste
trabalho foi realizar um levantamento estatístico da incidência de alunos com ouvido absoluto
em uma instituição superior de ensino musical e, ao mesmo tempo, tentar categorizar os
diferentes tipos de ouvidos absolutos identificados. Concomitantemente, procurou-se
estabelecer, na população estudada, uma relação entre incidência de ouvido absoluto e o início
do treinamento musical, o tipo de treinamento musical e alguma eventual influência familiar. A
investigação foi feita através de aplicação de questionários a alunos dos cursos de graduação do
Departamento de Música da Universidade de Brasília. As questões versaram sobre
características específicas da formação musical e detalhes da percepção auditiva. O estudo
revelou que 6,15% dos alunos que cursaram o primeiro semestre letivo do ano de 2007 no
Departamento de Música da Universidade de Brasília possuíam ouvido absoluto. Foi possível,
igualmente, estabelecer uma relação entre idade de início do treinamento musical e aquisição da
habilidade em apreço.

Palavras-chave: ouvido absoluto, estudantes de música, incidência.

encontra-se entre estudantes de música


asiáticos (Welleck, 1963; Chouard e
1. Fundamentação teórica
Sposetti, 1991; Gregersen et al., 1999).
Embora sua etiologia não seja
O ouvido absoluto é um traço ainda totalmente conhecida, o ouvido
cognitivo caracterizado pela capacidade absoluto está aparentemente vinculado à
de identificar a altura de qualquer tom exposição à música baseada em tons
isolado usando rótulos como dó (261 fixos juntamente com a ênfase em seus
Hz) e/ou de produzir um tom específico rótulos específicos (por exemplo: 261
(através do canto, por exemplo) sem Hz = dó, 440 Hz = lá, etc.). Assim como
nenhuma referência externa. (Bachem, a linguagem, o ouvido absoluto parece,
1937; Baggaley, 1974; Ward, 1999). igualmente, se desenvolver durante um
Estima-se que a incidência de ouvido período crítico que ocorre nos primeiros
absoluto na população em geral seja de anos de vida (Ward, 1999). Músicos que
1/1500 a 1/10.000 (Bachem, 1955; iniciam cedo seu treinamento musical,
Profita e Bidder, 1988; Takeuchi e em geral antes dos seis anos de idade,
Hulse, 1993). Entre músicos, a têm maior propensão a desenvolver
incidência parece ser de 5 a 50/100, ouvido absoluto do que os que
sendo que a maior concentração

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

começam mais tarde (Sergeant, 1969; de tons entre os portadores de ouvido


Welleck, 1938). absoluto, tanto no que se refere à
Alguns autores acreditam que o extensão da sensibilidade a timbres e
ouvido absoluto pode ser adquirido registros como no que se refere ao grau
mais tardiamente, mas somente com de precisão e consistência na
muita motivação, tempo e esforço identificação e produção de tons.
(Brady, 1970; Cuddy, 1968; Meyer, Segundo Bachem, deve-se
1899). Pessoas que se submeteram a um distinguir, em primeiro lugar, o “ouvido
treinamento para a aquisição do ouvido absoluto genuíno” do “quase-ouvido
absoluto, no entanto, são geralmente absoluto” e do “pseudo-ouvido
menos precisas ou menos imediatas na absoluto”. Dentre eles, na visão de
identificação das notas musicais, pois Bachem, somente o primeiro, o “ouvido
nem sempre desenvolvem uma absoluto genuíno”, seria considerado
referência interna completa dos tons e verdadeiramente ouvido absoluto. O
utilizam-se do ouvido relativo para músico que tem um bom ouvido relativo
preencher lacunas. Além disso, essa e que tem apenas um tom interiorizado
habilidade usualmente diminui quando (como, por exemplo, a nota lá, 440 Hz,
o treinamento é interrompido (Ward, tom de referência na afinação da
1999). orquestra) possui o que Bachem
O ouvido absoluto tem sido chamou de “quase-ouvido absoluto”.
objeto de estudo desde o século XIX. Músicos com “pseudo-ouvido
Em um intervalo de cento e trinta anos, absoluto”, por sua vez, são aqueles que
de 1860 a 1990, cerca de cem artigos possuem a capacidade de fazer uma
foram publicados sobre o assunto. estimativa sobre a altura de uma nota
Nesses últimos anos, contudo, houve com base em treinamento intensivo.
um aumento significativo de interesse Nesses casos, os níveis de acurácia,
sobre o tema, com a publicação de, pelo consistência e rapidez na identificação
menos, mais uma outra centena de dos tons costumam ser
artigos (Levitin, 2006). É curioso significativamente inferiores aos dos
observar que muitos desses trabalhos que possuem “ouvido absoluto
foram desenvolvidos por autores que genuíno”.
não são músicos e que aparentemente Uma vez feitas essas distinções,
não possuem ouvido absoluto, pois a categoria do “ouvido absoluto
abordam o fenômeno de maneira genuíno” seria então subdividida de
bastante generalizada e parecem acordo com variações na percepção
assumir que existe um único tipo de auditiva dos integrantes desse grupo.
ouvido absoluto. Conforme observou Bachem, os
Uma das autoras desta presente portadores de ouvido absoluto
pesquisa, portadora de ouvido absoluto, apresentam diferentes características
tem observado empiricamente, ao longo com relação ao grau de precisão na
de sua carreira como docente em uma identificação de tons e à extensão da
instituição superior de ensino musical, sensibilidade a diferentes timbres e
que existem tipos diferentes de ouvido registros. Enquanto uns são capazes de
absoluto. Essa visão está de acordo com identificar, sem referência externa,
trabalhos realizados por Bachem que, qualquer tom em qualquer timbre e
em 1937, apontava para a existência de registro, outros conseguem nomear tons
diferentes graus ou níveis de ouvido somente em timbres e/ou registros
absoluto (Bachem, 1937). Takeuchi e específicos. Enquanto uns são
Hulse (1993) também descrevem absolutamente precisos, outros cometem
diferenças significativas na percepção eventuais erros de semitom ou de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

oitava. Assim, as subcategorias de Universidade de Brasília. Cada um dos


“ouvido absoluto genuíno” propostas 130 alunos-voluntários, após
por Bachem foram as seguintes: 1a. consentimento livre e esclarecido,
Universal–Infalível (para todos os tons, respondeu a um questionário de cinco
em qualquer registro ou timbre, mesmo páginas, contendo perguntas tanto
ruídos), 1b. Universal–Falível (para a objetivas (estilo múltipla-escolha) como
maioria dos instrumentos musicais, com abertas (permitindo respostas
possíveis erros de semitons e oitavas), descritivo-narrativas), que versavam
2a. Limitado pelo registro, 2b. Limitado sobre itens como dados pessoais,
pelo timbre, 2c. Limitado pelo registro e informações sobre formação musical e
pelo timbre, 3a. Fronteiriço-Impreciso e detalhes específicos da percepção
3b. Fronteiriço-Impreciso e instável. auditiva.
No presente estudo, ao mesmo Os questionários foram
tempo em que se procurou realizar aplicados durante o primeiro semestre
levantamento estatístico de incidência letivo do ano de 2007, em classes de
de ouvido absoluto entre estudantes de aproximadamente 20 alunos, em
música, buscou-se verificar se os tipos horários solicitados previamente a todos
de ouvido absoluto observados no os professores das disciplinas coletivas
conjunto de sujeitos investigados oferecidas no semestre em questão.
poderiam ser encaixados nas categorias Para a avaliação das respostas
propostas por Bachem. usou-se análise descritiva, Teste Exato
de Fisher (para a comparação dos
2. Objetivos grupos quanto ao tipo de treinamento
musical e influência familiar) e Teste de
O objetivo principal desta Mann-Whitney (para a comparação dos
investigação foi realizar um grupos quanto ao início do treinamento
levantamento estatístico da incidência musical).
de alunos com ouvido absoluto em uma O projeto desta pesquisa foi
instituição superior de ensino musical e, aprovado pelo Comitê de Ética em
ao mesmo tempo, categorizar os Pesquisa da Universidade Federal de
diferentes tipos de ouvidos absoluto São Paulo – Escola Paulista de
identificados, tomando as categorias Medicina (UNIFESP - EPM) e pela
propostas por Bachem como ponto de Chefia do Departamento de Música da
partida. Universidade de Brasília.
Como objetivo paralelo,
procurou-se estabelecer, na população 4. Resultados
estudada, uma relação entre incidência
de ouvido absoluto e: a) início do Dos 130 alunos que participaram
treinamento musical, desta pesquisa, apenas oito declararam
b) tipo de treinamento musical com ter, com certeza, ouvido absoluto. Os
relação ao aprendizado de leitura das demais disseram não possuir ouvido
notas e solfejo e c) indicação de alguma absoluto (96 alunos) ou não ter certeza
influência familiar. de serem portadores dessa habilidade
(26 alunos). A tabela abaixo mostra, em
3. Métodos porcentagem, essa distribuição.

Os sujeitos experimentais desta


pesquisa foram os alunos regularmente
matriculados nos cursos de graduação
do Departamento de Música da

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Tabela 1 — Incidência de ouvido absoluto em alunos matriculados nos cursos de graduação em


música na Universidade de Brasília, no 1º. Semestre de 2007.

GRUPOS QUANTIDADE INCIDÊNCIA


I - Alunos com ouvido absoluto 8 6,15%
II - Alunos que não têm certeza se têm ouvido absoluto 26 20%
III - Alunos sem ouvido absoluto 96 73,85%
Total 130 100%

Dentro do grupo de alunos que reconhecer de imediato qualquer tom


se declararam portadores de ouvido em qualquer timbre ou registro, bem
absoluto, pôde-se observar, através da como de produzir vocalmente qualquer
análise do conteúdo das respostas tom, sem referência e sem necessidade
fornecidas no questionário, a existência de reflexão. Dois outros alunos
de particularidades com relação à declararam reconhecer tons
percepção auditiva, indicando que não imediatamente, sem limitação de timbre
há um único tipo de ouvido absoluto. ou registro, porém destacaram que a
Tais particularidades devem-se, produção vocal exige reflexão. Outros,
sobretudo, às seguintes variáveis: 1) à ainda, manifestaram algumas limitações
extensão da sensibilidade a diferentes com relação a determinados timbres ou
timbres ou registros, 2) ao tempo de registros (ou a ambos) e dificuldades
reação no reconhecimento e nomeação com a produção vocal. A tabela no. 2,
das notas e, por fim, 3) à capacidade de abaixo, representa, de maneira
produzir vocalmente qualquer tom sem simplificada, as particularidades
referência externa. apresentadas por cada um desses oito
Dos oito alunos desse grupo de alunos.
portadores de ouvido absoluto, apenas
dois afirmaram ser capazes de

Tabela 2 — Particularidades da percepção auditiva entre os portadores de ouvido absoluto


investigados

Aluno Timbre Registro Reconhecimento Produção vocal


1 Sem limitação Sem limitação Imediato Imediata
2 Sem limitação Sem limitação Imediato Imediata
3 Sem limitação Sem limitação Imediato Com reflexão
4 Sem limitação Sem limitação Imediato Com reflexão
5 Sem limitação Com limitação Com reflexão Imediata
6 Com limitação Sem limitação Imediato Com reflexão
7 Com limitação Com limitação Com reflexão Imediata
8 Com limitação Com limitação Com reflexão Com reflexão

Alguns timbres específicos instrumentos de pouca familiaridade. Tons


parecem dificultar, em alguns casos, a do registro médio e do registro do próprio
identificação imediata e precisa dos tons. instrumento foram declarados como os de
Os mais frequentemente citados foram os identificação mais fácil e imediata.
timbres da voz, de alguns sons eletrônicos, Procurou-se observar neste
alguns cantos de pássaros, buzinas e trabalho, igualmente, a existência de uma

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

relação entre a idade de início do 5. Discussão e Conclusões


treinamento musical e a incidência de
ouvido absoluto. O cálculo das idades Esta pesquisa constatou que 6,15%
medianas de início da educação musical do dos estudantes matriculados nos cursos de
grupo de portadores e de não-portadores de graduação em música na Universidade de
ouvido absoluto mostrou o seguinte: os Brasília no primeiro semestre de 2007
portadores de ouvido absoluto iniciaram afirmaram ter ouvido absoluto. A
seus estudos por volta dos sete anos de comparação deste achado com outros
idade, enquanto os não-portadores dados apresentados pela literatura não deve
iniciaram aos treze anos. O Teste de Mann- ser feita, contudo, de forma linear e
Whitney confirmou que existe uma automática. Embora não sejam numerosos
diferença estatística significativa entre os trabalhos que tenham investigado
esses dois grupos (U = 144, p = 0,002). incidência de ouvido absoluto, as
Pode-se dizer, portanto, que existe, na populações estudadas, as metodologias
população estudada, uma relação inversa adotadas e as definições desse traço
entre idade de início da educação musical e cognitivo diferem de uma pesquisa para
aquisição de ouvido absoluto. outra. Por exemplo, alguns investigadores
Por outro lado, comparando-se os consideram como portadores de ouvido
dois grupos (de portadores e não- absoluto aqueles que são capazes de, sem
portadores de ouvido absoluto) não se pôde referência externa, reconhecer e também
verificar nenhuma relação entre o tipo de produzir tons, vocalmente ou através do
treinamento musical recebido e o uso de um gerador de freqüências (Petran,
desenvolvimento do traço cognitivo em 1939; Révész, 1953). Outros focalizam
questão. Tanto no que diz respeito aos apenas na capacidade de reconhecer tons
métodos utilizados no aprendizado de sem referência (Takeuchi e Hulse, 1991).
leitura musical quanto ao solfejo, Com relação às metodologias selecionadas
estatisticamente não houve diferença entre para identificar sujeitos com ouvido
os dois grupos de acordo com o Teste absoluto, alguns elaboram questionários
Exato de Fisher (p > 0,05). Em ambos os (Gregersen, 1999) enquanto outros aplicam
casos, o método de solfejo mais utilizado testes. Esses testes, por sua vez, também
foi o sistema “dó-fixo” e o aprendizado da diferem entre estudos – alguns apresentam
leitura foi feito primordialmente através da tons com timbres distintos, como sons
escrita das notas na pauta junto a seus eletrônicos e piano (Barhaloo, 1998),
nomes. outros usam um timbre único, como
Os dados coletados também não somente o piano (Rakowski e Morawska-
indicaram a existência de alguma eventual Bungeler, 1987; Miyazaki, 1989).
influência familiar (ambiental ou O trabalho de investigação de
hereditária) no desenvolvimento do ouvido incidência de ouvido absoluto que mais se
absoluto. Nesta pesquisa, o grupo I (de aproxima dos parâmetros da presente
portadores de ouvido absoluto) e o grupo pesquisa é o de Gregersen (1999), que
III (de não-portadores) reportaram um estuda uma população semelhante àquela
número muito semelhante de familiares aqui contemplada (estudantes de música de
músicos (com e sem ouvido absoluto). universidades) e utiliza a mesma
Uma pequena diferença, em números metodologia aqui selecionada
absolutos, em favor do grupo I não (questionários). Seus resultados mostraram
apresentou, contudo, significância os seguintes números: dentre 1.996
estatística, de acordo, também, com o estudantes de música em universidades
Teste Exato de Fisher (p > 0,05). americanas, 146 eram portadores de
ouvido absoluto – proporção que
corresponde a 7,3% dos investigados.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Embora o índice obtido por naqueles que declararam ter ouvido


Gregersen (7,3%) e o índice verificado absoluto como naqueles que disseram não
neste trabalho (6,15%) sejam muito ter certeza de possuírem tal habilidade.
semelhantes, algumas considerações Evidentemente, esse estudo deve levar em
devem ser feitas. Em primeiro lugar, pelo conta que uma linha divisória deverá ser
fato dos dados derivarem de depoimentos estabelecida empiricamente entre, de um
(os sujeitos não foram efetivamente lado, aqueles sujeitos capazes de imaginar
testados com relação às suas habilidades), e produzir tons corretamente e, de outro,
os resultados apresentados devem ser aqueles que, embora capazes de imaginar
entendidos como preliminares. Em tons corretamente, são incapazes de entoá-
segundo lugar, um outro aspecto que não los corretamente, por problemas de ordem
pode ser negligenciado é o fato de que vocal (daí, possivelmente, a necessidade de
20% dos alunos aqui investigados reflexão). Uma investigação mais
declararam não ter certeza de possuírem ou aprofundada parece, portanto, ser
não ouvido absoluto. Esse alto índice pode necessária para avaliar se e como o critério
indicar que muitos não sabem definir da produção vocal pode ser considerado no
exatamente essa habilidade e/ou, ainda, estudo do ouvido absoluto1.
que muitos têm algum grau de ouvido Com relação aos demais objetivos
absoluto – com limitações de timbre, deste trabalho – investigar a existência de
registro ou produção, por exemplo – e não relações entre incidência de ouvido
se sentem suficientemente confiantes para absoluto e (1) início do treinamento
afirmar que possuem ouvido absoluto. musical, (2) tipo do treinamento musical e
A partir dos resultados obtidos (3) influência familiar – os resultados
nesta pesquisa, uma tentativa de obtidos permitem-nos as seguintes
categorização de tipos de ouvido absoluto conclusões:
parece, portanto, ser ainda prematura. (1) Existe uma relação inversa entre
Embora, a princípio, dentro do grupo de idade de início da educação musical e o
portadores da habilidade estudada, a potencial de aquisição do ouvido absoluto.
grande maioria dos sujeitos se enquadre Muitos trabalhos na literatura já haviam
em alguma das categorias propostas por mostrado que o início precoce do
Bachem (com relação às facilidades e treinamento musical facilita a aquisição ou
limitações individuais de timbre e registro, o desenvolvimento do ouvido absoluto
por exemplo), o atual estudo apontou para (Sergeant, 1969; Miyazaki, 1988;
um aspecto que não é contemplado no Takeuchi, 1989). Observou-se no presente
trabalho de Bachem: a capacidade de estudo que os sujeitos investigados que
produzir vocalmente, de forma imediata ou declararam ter ouvido absoluto iniciaram
não, qualquer tom solicitado, sem treinamento musical muito antes daqueles
referência externa. Se levarmos esse que afirmaram não possuir essa habilidade
aspecto em consideração, uma tentativa de
definição dos tipos de ouvidos absolutos
observados nesta pesquisa não poderia ter, 1
Como meio de escapar dessa possível dificuldade
portanto, a categorização proposta por
exclusivamente vocal, alguns autores propõem a
Bachem como parâmetro exclusivo. A utilização de um gerador de freqüências sonoras
proposição de uma nova tipologia de para avaliar a capacidade de produção de tons em
ouvidos absolutos necessitaria, por outro sujeitos com ouvido absoluto. Essa alternativa,
lado, de um estudo mais detalhado, que contudo, não nos parece apropriada, pois ajustar um
gerador de freqüências envolve, antes de mais nada,
inclua entrevistas e a aplicação de um teste
o reconhecimento auditivo da freqüência que está
capaz efetivamente de verificar sendo produzida pelo gerador. Trata-se, portanto,
características individuais relativas ao não de uma tarefa ativa de produção de tom e sim
reconhecimento e produção de tons, tanto de uma tarefa passiva de reconhecimento de tom,
em primeiro lugar.
51
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

(os primeiros por volta dos sete e estes 6. Subáreas de conhecimento


últimos por volta dos treze anos de idade).
(2) O tipo de treinamento musical Percepção musical, neurociência
não garante, por si só, a aquisição do cognitiva.
ouvido absoluto, uma vez que a maioria
dos indivíduos investigados, tanto os 7. Referências bibliográficas
portadores como os não-portadores dessa
habilidade cognitiva, foram submetidos, no BACHEM, A. Various types of absolute
processo de iniciação musical, aos mesmos pitch. Journal of the Acoustical Society
métodos de solfejo (“dó-fixo”) e de of America, 9: 146-151, 1937.
aprendizado de leitura (escrevendo o nome
BACHEM, A. Absolute pitch. Journal of
das notas próximo às notas no sistema
gráfico musical). Embora alguns estudos the American Acoustical Society of
sugiram que para a aquisição do ouvido America, 27: 1180-1185, 1955.
absoluto seja necessário que o indivíduo BAGGALEY, J. Measurement of absolute
seja exposto, em tenra infância, aos tons pitch. Psychology of Music, 22: 11-17,
associados aos seus rótulos (Takeuchi & 1974.
Hulse, 1993; Levitin, 1996), não se pôde BARHALOO, S. et al. Absolute pitch: an
demonstrar, aqui, qualquer vínculo direto
approach for identification of genetic and
entre a presença do traço cognitivo em
estudo e o tipo de treinamento musical, nongenetic components. American
com relação aos métodos utilizados no Journal of Human Genetics, 62: 224-231,
aprendizado da leitura musical e do solfejo. 1998.
A exposição aos tons juntamente aos seus BARHALOO, S. et al. Familial
rótulos, como no caso do sistema de Aggregation of Absolute Pitch. American
solfejo “dó-fixo”, seja talvez necessária, Journal of Human Genetics, 67: 755-758,
mas sozinha ela não é suficiente para a
2000.
aquisição do ouvido absoluto, já que nem
todos os sujeitos aqui estudados, que BRADY, P. T. Fixed-scale mechanism of
iniciaram cedo o treinamento musical, absolute pitch. Journal of the Acoustical
adquiriram a característica. Society of America, 48: 883-887, 1970.
(3) Não foi possível estabelecer, na CHOUARD, C. H.; SPOSETTI, R.
população estudada, uma relação entre Environmental and electrophysiological
incidência de ouvido absoluto e influência
study of absolute pitch. Acta
familiar (ambiental ou hereditária). O
número de familiares músicos (com ou Otolaryngologica, 111: 225-230, 1991.
sem ouvido absoluto) dos sujeitos dos CUDDY, L. L. Practice effects in the
grupos I e III desta pesquisa mostrou-se absolute judgment of pitch. Journal of the
estatisticamente idêntico. Alguns estudos Acoustical Society of America, 43: 1069-
recentes, contudo, apresentam resultados 1076, 1968.
que contrastam com os dados aqui GREGERSEN, P. K. et al. Absolute pitch:
encontrados. Esses trabalhos trazem
prevalence, ethnic variation, and
evidências de que o traço cognitivo em
apreço tende a se concentrar em estimation of the genetic component.
determinadas famílias, sugerindo a American Journal of Human Genetics,
existência, talvez, de um componente 65: 911-913, 1999.
genético envolvido na transmissão dessa GREGERSEN, P.K.; KUMAR, S. The
habilidade (Barhaloo et al., 1998, 2000; genetics of perfect pitch. American
Kumar & Gregersen, 1996). Journal of Human Genetics Suppl. 59:
A179, 1996.
52
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

LEVITIN, D. J. L’Oreille absolue: SERGEANT, D. Experimental investigation


Autoréférencement et mémoire. L’Année of absolute pitch. Journal of Research in
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RÉVÉSZ, G. Introduction to the
psychology of music. London: Longmans
Green, 1953.

53
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Caracterização do processo de Ação Simultânea (AS) na


performance e percepção em tempo real

Ricardo Dourado Freire


UnB
freireri@unb.br

Resumo: O presente artigo apresenta parte de uma pesquisa teórica mais ampla sobre os
aspectos da percepção e performance em tempo real. Introduz o conceito de Ação Simultânea
(AS) como um processo mediado pela memória sensorial no contexto de interação na prática
musical. O objetivo principal é caracterizar a AS como um dos processos possíveis de
percepção em tempo real na prática da performance e também no treinamento auditivo. O
método relaciona elementos do processo de interação musical aos aspectos do processo de
aprendizagem. São dados exemplos da aplicação da AS na performance, no solfejo e no ditado
musical em tempo real.

Palavras-chave: Percepção Musical, Tempo Real, Performance.

estratégias já utilizadas espontaneamente na


Quando um músico se apresenta performance. Diante desta inquietação,
em grandes grupos como uma orquestra alguns aspectos já têm sido
sinfônica, banda de música ou bateria experimentados em programa de
de escola de samba, torna-se necessário música e dele resultam a discussão aqui
sincronizar sua performance com a apresentada. Este artigo aborda
performance de outros músicos em especificamente aspectos do processo de
diversos aspectos, entre eles alturas reprodução, identificação e decodificação das
(afinação), ritmo, intensidade, timbre e alturas sonoras a partir da interação entre
articulação. Todas estas ações acontecem em duas ou mais pessoas, coordenadas em
tempo real, ou seja, os músicos precisam tempo real. Estas interações ocorrem
responder em milésimos de segundo por meio da voz, de instrumentos
aos estímulos do grupo (músicos) e do musicais, do solfejo ou aplicado na
contexto musical (acústica, amplificação). A escrita musical. O aspecto rítmico não
percepção musical funciona como será abordado aqui, pois o
mediadora do processo da performance processamento do ritmo difere
musical em grupo na medida em que a estruturalmente do processamento de
ação de tocar o instrumento ocorre identificação das alturas, tanto no
simultaneamente ao ato de ouvir o aspecto melódico quanto no harmônico.
resultado sonoro individual e coletivo.
Tais ajustes individuais são vitais uma 1. Fundamentação
vez que deles depende o resultado
sonoro do grupo. O impulso para esta pesquisa
Se inicialmente nos surgiu diante das minhas próprias
perguntamos quais são os processos reflexões sobre as práticas de
cognitivos envolvidos nesses ajustes treinamento auditivo, inspirado pelos
simultâneos, mais ainda nos interessa mesmos problemas que Bernardes
saber como utilizar didaticamente tais (2000) expõe “da necessidade de se

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

repensar pedagogicamente a Percepção percepção que agrava ainda mais a


musical, disciplina que pode ser situação. Muitos alunos não possuem
entendida como básica na formação dos segurança no solfejo e assim perdem a
músicos”. Neste caso específico será a principal ferramenta de mediação na
necessidade de repensar o processo percepção musical (Freire, 2003).
cognitivo da percepção musical e quais Aulas de percepção musical são
novos paradigmas poderão auxiliar sempre cheias de surpresas, principalmente
neste processo. surpresas de alunos que conseguem
O modelo preponderante de ouvir e tocar, mas não conseguem
ensino da Percepção musical é o ditado escrever com fluência o que ouviram.
musical tradicional. Vários autores Alguns alunos provenientes da música
brasileiros, entre eles Grossi (2001), popular são, muitas vezes, capazes de
Bernardes (2001) e Freire (2003, 2007) tocar e acompanhar uma música “de
têm questionado a validade e utilidade primeira”, sem o auxílio da partitura,
destes procedimentos como ferramentas mas não são capazes de escrever ou
efetivas para a aprendizagem da leitura transcrever o que tocaram.
e escrita musicais. Deutsch (2008) apresentou e
testou um modelo teórico sobre formas
Verticalizando um pouco essa questão, o de funcionamento da mente e como a
que é um ditado musical na concepção mente representa e guarda a informação
pedagógica tradicional? Seria o professor
tocar, geralmente ao piano, para serem
musical em vários níveis de abstração.
escritos pelo aluno, melodias a uma, duas ou Seu trabalho aborda a relação entre
mais vozes, intervalos melódicos e/ ou intervalos e também a identificação de
harmônicos, acordes isolados ou padrões musicais organizados a partir
encadeados, enfim, toda sorte de signos de hierarquias musicais. Nesta proposta,
musicais isolados ou na forma de
fragmentos musicais geralmente criados por
Deutsch investiga quais os tipos de
ele ou tomados ao repertório musical e que abstrações que dão suporte à percepção
apresentem determinadas questões que de elementos específicos, como
necessitam ser trabalhadas auditivamente. intervalos, acordes e notas específicas.
Quando um professor faz (toca) um ditado (Deutsch, 1999)
espera que o aluno escreva exatamente
aquilo que ele tocou. Normalmente o que
Krumhansl (1990) apresenta um
não é literalmente decodificado, de acordo modelo teórico para a percepção
com a versão que o professor tem em mãos, musical no qual “os elementos sonoros
é considerado errado. Cada nota, ritmo, são percebidos dentro de um contexto,
cifra, enfim, o que for objeto do ditado, vale organizados em alturas e ritmos, e
pontos. (Bernardes, 2001, p. 75)
compreendidos nos termos das suas
funções dentro do contexto musical,
Grossi, após revisar diversos
sendo que cada altura faz parte de padrões
modelos de testes auditivos
melódicos e harmônicos extendidos”. A
desenvolvidos na psicologia da música,
perspectiva de Krumhansl foca nos aspectos
pôde avaliar que “os testes buscam
da experiência musical que podem ser
respostas relacionadas aos aspectos
diretamente relacionados com estruturas
‘técnicos’ da música e, neste contexto, a
musicais objetivas (notas, escalas,
percepção é ‘objetivamente’ avaliada através
padrões). Sua abordagem cognitiva está
do emprego de questões padronizadas e
centrada no processo de identificação de
mensurações quantitativas.” (Grossi, 2001, p.
escalas e tonalidades a partir de
51). Outro aspecto que interfere no
experimentação controlada e testes para
processo de identificação das alturas
musicais é a dicotomia entre solfejo e

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

uma melhor definição das formas de responder em milésimos de segundo aos


percepção dos elementos musicais. estímulos do conjunto e do contexto
Os modelos de Deutsch e musical. Quando um músico se
Krumhansl estabelecem parâmetros apresenta em grupos grandes como uma
para o processo de hierarquização das orquestra sinfônica, banda de música ou
estruturas cognitivas na relação entre as bateria de escola de samba, a
notas musicais e seu contexto. Estes necessidade de sincronizar seus
modelos são fundamentais para a instrumentos em termos de ritmo,
elaboração de abordagens de percepção intensidade, timbre e altura/afinação
musical, no entanto o foco não está na acontece durante um processo contínuo
resposta em tempo real e sim na de feedback em tempo real. Entretanto,
interpretação e compreensão dos no processo de aprendizagem musical,
contextos musicais. principalmente da percepção musical,
existem poucas atividades realizadas em
2. Objetivos tempo real. A grande maioria das
atividades é realizada por repetição, ou
Este trabalho tem o objetivo de realizadas após a memorização de
caracterizar uma abordagem interativa trechos musicais. O fato de a percepção
da percepção na qual o foco de atuação ser mediada pela memória torna o
é a resposta imediata na identificação de processo distinto do processo realizado
notas e acordes musicais em atividades na performance prática.
de performance, solfejo ou ditado A percepção musical em tempo
musical. Neste caso, os exemplos e estímulos real pode ser observada claramente em
musicais devem ser processados em tempo pessoas que apresentam ouvido
real, ou seja, a repetição das notas em absoluto, ou seja, pessoas capazes de
um instrumento, a identificação das identificar notas musicais em tempo
notas por meio do solfejo ou a real.
transcrição para a partitura ocorrerão
quase simultaneamente ao exemplo (Ouvido absoluto) A habilidade de
original. Este tipo de abordagem será nomear ou produzir (vocalmente) a nota
de determinada altura na ausência de
denominada Ação Simultânea (AS), outras notas de referência. Esta habilidade,
caracterizada pela simultaneidade entre conhecida também como “altura pefeita”
estímulo sonoro e resposta (perfect pitch), é muito raro na nossa
(performance, solfejo ou escrita). A cultura, com uma estimativa geral de
ação ocorrerá como um pequeno atraso prevalência de menos de 1 para cada
10.000 (< 0,01%). Pessoas com ouvido
do estímulo principal, mas antes do absoluto conseguem nomear notas tão
estímulo subseqüente, em tempo real. rapidamente e sem esforço quanto a
maioria das pessoas consegue identificar
3. Método cores. No entanto, ouvido absoluto é
geralmente considerado uma dotação
misteriosa que é disponível para poucos
Este trabalho está baseado na indivíduos privilegiados. (Deutsch, 2007)
discussão teórica de elementos que
influenciam na percepção musical em Uma das características
tempo real e na pesquisa de aplicações principais das pessoas com ouvido
práticas para atividades musicais a absoluto era a resposta rápida, quase
partir do conceito de Ação Simultânea. instantânea, na identificação de notas ou
A performance acontece em acordes. A capacidade de identificar a
tempo real, quando os músicos precisam partir de uma interiorização das alturas

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musicais e não a partir de um elaborado memória pode ser processada de


processo cognitivo de hierarquização diversas maneiras: 1) armazenamento
das estruturas tonais. sensorial, períodos de tempo muito
O processo de funcionamento da breves, 2) armazenamento de curto
memória sensorial em pessoas com prazo, e 3) armazenamento de longo
ouvido absoluto foi o ponto de partida prazo. (Attkinson & Shiffrin, 1971 apud
desta investigação. Neste caso, o Stenberg, 2000)
questionamento principal estava relacionado O armazenamento de curto e
com o processo temporal de identificação de longo prazos da memória não pode
notas, e a velocidade durante o processo de ocorrer em tempo real, desta maneira o
identificação. Analisando o processo de foco de investigação passou a ser o
transcrição de um ditado musical é armazenamento sensorial. O foco do
possível observar três aspectos: 1) armazenamento sensorial é a capacidade
audição do trecho musical, 2) de vincular os sentidos a respostas
memorização do trecho e 3) específicas por períodos muito breves
Transcrição. A memória musical atua de tempo. A abordagem do processo de
como um processo de acúmulo de Ação Simultânea foi desenvolvida a
informações que deverão ser processadas partir do pressuposto de que o processo
durante a percepção de trechos de interação deve lidar com um número
musicais. A memória pode funcionar de reduzido de informações de cada vez,
uma maneira benéfica para criar ou seja, cada nota apresentada
hierarquias e grupos de notas (padrões auditivamente deverá ser identificada
musicais) ou de maneira oposta e imediatamente, antes da apresentação
interferir negativamente ao aumentar o de novos estímulos musicais.
número de informações que deverão ser O processo de Ação Simultânea
processadas. diferencia-se do processo de Repetição
no qual um estímulo sonoro é
A memória na música precisa ter o apresentado, memorizado e em seguida
funcionamento de um sistema repetido. Na Ação Simultânea o ocorre
heterogêneo, no qual as várias subdivisões
se diferenciam a partir da pré-existência de
o estímulo sonoro e imediatamente a
elementos a partir do qual irão reter a resposta, de maneira direta, sem a
informação. O modelo assume que a mediação da memória de curto ou longo
informação musical está inicialmente prazos. O processo de Repetição está
sujeita a um conjunto de análises centrado em uma ação que foi realizada
perceptivas, que são processadas em
diferentes subdivisões do sistema auditivo.
no passado enquanto a Ação Simultânea
Estas análises resultam na atribuição de está baseada em uma situação realizada
valores de alturas, volume, duração, e no presente.
outros, assim como informações abstratas
como intervalos harmônicos e melódicos, Repetição Ação Simultânea
relações de durações e timbre. (Deutsch, Foco Passado Presente
1999, p. 390)
O processo de Ação Simultânea
Pode-se observar que a atividade está presente em várias atividades
de percepção pela memória envolve coletivas, de uma forma direta e produtiva
vários aspectos que formam este para líderes e participantes de grupos
sistema complexo e diversificado de musicais ou de atividades esportivas.
estímulos e processos de decodificação Uma aula de ginástica aeróbica é um bom
da informação. De acordo com a exemplo de uma situação em que os
psicologia cognitiva (Stenberg, 2000), a participantes conseguem seguir em tempo

57
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

real, as indicações dos movimentos individual e o tempo de processamento


corporais do professor de educação física. em situações reais permite que os
Nestas aulas, o movimento é observado e músicos possam fazer uma série de
repetido simultaneamente com a música, ajustes antes da identificação de alguma
sendo que o estímulo visual do professor diferença musical para o público. A
é observado, copiado e reproduzido como aplicação deste princípio permite que,
em um espelho ao mesmo tempo em que caso um estímulo musical e suas
é apresentado pelo instrutor. Nesta respostas ocorram em um tempo inferior
situação, o estímulo visual é o fator que a 30 milissegundos, eles possam ser
permite a ação simultânea entre os percebidos como um único estímulo.
movimentos dos instrutores e os
movimentos dos alunos. Um Coral de 4. Resultados
Leigos é um bom exemplo de situação
musical na qual as pessoas conseguem A partir deste objetivo pode-se
acompanhar a performance musical, caracterizar que a função da AS como a
mesmo sem saber a leitura musical. Nesta ação que permite a interação musical
situação os participantes seguem as em tempo real cujo estímulo e resposta
indicações musicais do regente e os musical ocorrem tão rápido de maneira
líderes de naipe, ouvindo, olhando os que o estímulo e a resposta sejam
movimentos labiais, seguindo a letra da percebidos como realmente simultâneos. O
música, sendo que muitas partes da conceito de AS é, portanto, um
música não estão memorizadas e princípio teórico sobre uma forma de
necessitam de exemplos musicais interação temporal com aplicações
(colegas, piano, instrumentos, regente) essencialmente práticas para a
para que as pessoas possam acompanhar e performance musical.
participar da performance musical. Dessa forma, atividades de AS
Agora, como explicar esses fenômenos incorporadas no contexto da
apresentados nos exemplos acima? Como performance e da percepção devem ser
tais fenômenos ocorrem especificamente estruturadas com base no tempo de
na performance musical/melódica? resolução do ouvido contribuindo para
De acordo com Pierce (1999), o que o tempo de resolução entre um
tempo de resolução do ouvido pode ser estímulo musical e sua resposta seja
considerado entre 1,5 e 20 milissegundos cada vez mais contíguo. Por razões
(0,0015–0,020 seg) em situações de didáticas, as atividades de AS devem
laboratório e entre 30 e 50 milissegundos ser intercaladas com atividades de
(0,030–0,050 seg) em situações musicais. imitação ou audição por trechos para
Esta diferença ocorre pela estrutura dos que haja uma comparação e
instrumentos musicais e também da diferenciação entre as diversas formas
acústica nas salas de concerto, nos quais a de processamento da informação
reverberação influencia no discernimento musical.
da simultaneidade entre sons. Pode-se Foram elaboradas atividades
observar que o músico é capaz de específicas voltadas para o solfejo,
processar individualmente as informações performance melódica, performance
de maneira bastante rápida, no entanto a harmônica e ditado musical. Estas
acústica dos ambientes musicais torna o atividades são experimentais e ainda
processo de identificação de estão em fase de investigação sobre seus
simultaneidades mais lento. Esta efeitos diretos na percepção musical.
diferença entre o tempo de processamento

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Atividades de solfejo podem ser de samba. A partir de um universo


realizadas das seguintes maneiras: A harmônico específico, ou a partir da
partir de um pulso constante, escolha de uma tonalidade e certas
relativamente confortável (semínima = funções harmônicas, o líder poderá
60), o líder apresenta um exemplo com escolher um repertório diversificado e os
sílabas neutras e o grupo deverá participantes deverão acompanhar nos
acompanhar o exemplo musical e tentar instrumentos as músicas que estão sendo
“cantar junto”, da mesma maneira que um tocadas ou cantadas. Esta prática é muito
coral de leigos. Em seguida, outro eficiente e divertida, pois os participantes
exemplo musical poderá ser feito com um treinam a partir de uma situação muito
instrumento musical (flauta, piano, semelhante ao que irão realizar em com
violão) e o grupo deverá acompanhar o os amigos. A definição do “ambiente
exemplo baseado apenas na audição. harmônico” e escolha das músicas será o
Conforme o grupo consiga acompanhar fator de estímulo, pois cada participante
com sucesso os exemplos, o andamento deverá identificar os acordes que estão
poderá ser gradativamente acelerado até o sendo usados e aplicá-los imediatamente
limite de resposta do grupo. O mesmo nas músicas. Neste caso, muitas vezes o
exercício poderá ser realizado com o estímulo visual é fundamental no início,
grupo cantado os exemplos com sílabas mas em seguida deverá ser substituído
de solfejo, começando em um andamento pelo estímulo auditivo.
mais lento e acelerando pouco a pouco. As atividades de ditado musical
O ensino do instrumento foram avaliadas em um artigo específico
melódico também pode ser beneficiado (Freire, 2007) no qual ficou demonstrado
por exercícios de AS. Neste caso, poderão o processo de transferência no uso de
ser trabalhados aspectos específicos de ditados em tempo real. Nesta situação, o
afinação, articulação, timbre e dinâmica,. ditado musical torna-se o processo no
O princípio do exercício é o mesmo do qual a escrita musical deverá ser
anterior: um líder inicia uma linha desenvolvida. Dentro da escrita existe o
melódica dentro de uma tonalidade aspecto mecânico, no qual o participante
estabelecida ou definindo um grupo de deverá estar apto a escrever com fluência
notas como Ré, Mib, Fá#, Sol, Lá e e rapidez as alturas musicais. Aqui os
mantendo um pulso constante em ditados poderão ser trabalhados com o
andamento lento. Neste caso, o auxílio do solfejo, uma vez que o foco
acompanhante deverá seguir a princípio será a capacidade de transcrição mecânica
as notas que estão sendo tocadas, mas em e também oferecer uma referência forte
seguida deverá prestar atenção em manter para a continuidade do processo. A
a mesma afinação, efetuar os mesmos princípio os exercícios podem começar
tipos de articulação, adaptar o timbre e com graus conjuntos e gradativamente
equilibrar a dinâmica para que os dois serem enriquecidos com saltos
instrumentos toquem como se fossem um intervalares para que seja possível
só. Este exercício é muito proveitoso para trabalhar a capacidade de escrita espacial
que o performer adquira recursos para a vertical dos participantes. Os andamentos
prática em conjunto e habilidades dos exercícios também devem ser
específicas para a interação dentro do cuidadosamente observados, pois o
grupo. andamento é o fator central para o
No caso da performance sucesso ou fracasso na realização da
harmônica, o processo é semelhante ao atividade.
que ocorre em uma roda de choro ou roda

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

DEUTSCH, Diana. The Puzzle of


5. Conclusão Absolute Pitch. Current Directions in
Psychological Science, 2002, 11, 200-
A prática musical é realizada 204. [PDF Document] acessado em
essencialmente em tempo real. Tocar, março de 2008 no sítio
cantar, compor, improvisar seja na http://deutsch.ucsd.edu/psychology/deut
música popular ou na música erudita, sch_research9.php.
são realizados “ao vivo” mediante DEUTSCH, Diana. The processing of
interações dentro dos grupos musicais e pitch combinations. In: Psychology of
sociais. A percepção musical também Music, ed. Diana Deutsch, second
pode ser trabalhada e desenvolvida a edition. San Diego: Academic Press,
partir de atividades em tempo real nas 1999. p. 390.
quais o foco será a memória sensorial
focada no momento presente. Neste FREIRE, Ricardo J. D. Avaliação do
contexto, o conceito de Ação ditado musical como ferramenta
Simultânea pode enriquecer as práticas didática na percepção musical. In:
de treinamento auditivo por oferecer Anais do XIV Encontro Nacional da
atividades nas quais o foco é a interação ANPPOM. Porto Alegre-RS, PPPG-
imediata entre estímulo e resposta MUS da UFRGS, CD, 2003.
musical. O foco de processamento no FREIRE, Ricardo J. D. O Processo de
tempo real permite uma percepção Transferência na percepção e
voltada para a sincronia de detalhes transcrição do Ditado Musical. In:
musicais como afinação, articulação, Anais do III Simpósio de Cognição e
timbre e dinâmica, fatores fundamentais Artes Musicais - Internacional, 2007.
para uma performance musical de Salvador: PPPG-MUS da UFBA, v.1.
qualidade. p.74 – 82, 2007.
6. Referências bibliográficas GROSSI, Cristina. Avaliação da
percepção musical na perspectiva das
BERNARDES, Virgínia. A percepção dimensões da experiência cultural.
musical sob a ótica da linguagem. Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 6,
Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 6, p. 49-58, 2001.
p. 73-85, 2001. KRUMHANSL, C. L. Cognitive
CLARKE, Eric. Rhythm and Timing in Foundations of Musical Pitch. New
Music. In: Psychology of Music, ed. York: Oxford University Press, 1990.
Diana Deutsch , second edition. San PIERCE, John R. The Nature of
Diego: Academic Press, 1999. Pag. 478. Musical Sound. In: Psychology of
DEUTSCH, Diana. The Enigma of Music, ed. Diana Deutsch, second
Absolute Pitch. Acoustics Today, 2006, edition. San Diego: Academic Press,
2, 11-19. [PDF Document] acessado em 1999. p. 3-5
março de 2008 no sítio STERNBERG, Robert. Psicologia
http://deutsch.ucsd.edu/psychology/deut Cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas
sch_research9.php. Sul, 2000.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Análise de conteúdo segundo Bardin: procedimento


metodológico utilizado na pesquisa sobre a situação atual da
Percepção Musical nos cursos de graduação em música do
Brasil

Ricardo Goldemberg
UNICAMP
ricardo@nics.unicamp.br
Cristiane Otutumi
UFRN
cristianeotutumi@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar os procedimentos metodológicos utilizados
na dissertação ‘Percepção Musical: situação atual da disciplina nos cursos superiores de
música’, defendida na Unicamp, cujas ações principais foram unir duas linhas de pesquisa, ou
seja, a quantitativa e a qualitativa para enriquecer e complementar a investigação sobre o objeto
de estudo. A análise de conteúdo, segundo as proposições de Bardin (2002), referência
importante nesse trabalho, trata-se do desvendamento de significações de diferentes tipos de
discursos, baseando-se na inferência ou dedução, mas que, simultaneamente, respeita critérios
específicos propiciadores de dados em freqüência, em estruturas temáticas, entre outros. Apesar
de essa técnica estar mais evidente na parte qualitativa – na organização e análise das entrevistas
com professores da matéria – algumas condutas também foram aplicadas na seção quantitativa –
na qual as respostas dos questionários, com um público maior de docentes, puderam ser tratadas
e apresentadas. Dessa forma, a metodologia escolhida contribuiu muito para um panorama
minucioso da disciplina no Brasil, confirmando fatos costumeiramente ditos pelos professores,
revelando outros novos e exprimindo riqueza de detalhes de suas ações pedagógicas.

Palavras-chave: Percepção Musical; Música – recursos metodológicos; Música – ensino


superior no Brasil.

CD; Barbosa (2005) ao defender nova


1. Introdução e fundamentação perspectiva teórica para superação de
problemas em percepção; Bhering
As falas sobre a disciplina e os (2003) explanando sobre a falta de
estudos didáticos em Percepção Musical material didático na área para atuantes
nos últimos anos têm revelado da música popular, entre outros como
afirmações relativas as suas condições e Costa (2003), Campolina e Bernardes
algumas insatisfações e desejos de (2001), Bernardes (2000), Guimarães
mudança em sua conduta metodológica. (2000), Gerling (1995, 1993), Marques
Isso pode ser verificado em Grossi e (2006), Otutumi (2006), etc. Embora
Montandon (2005), ao mencionarem a apresentem muitos pontos expressivos,
constante ênfase do pensar fragmentado observou-se a necessidade de um estudo
no ensino de teoria e percepção; Lacorte aprofundado que trouxesse à tona a real
(2005) quando diz que os recursos situação da disciplina nos cursos
materiais dessa disciplina restringem-se superiores de música do país, deixando
ao piano, quadro-negro, toca fitas ou a ótica particular para um espectro

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

maior de abrangência, com dados mais das mensagens e revelando pontos


específicos. interessantes a respeito das condições
Para tanto, foram escolhidas motoras e das expectativas desses
duas abordagens metodológicas, a sujeitos no período de aprendizado em
qualitativa e a quantitativa. Apesar das música.
diferenças existentes entre ambas, de
acordo com Neves (1996, p.2), essas 2. Objetivo
visões não se excluem, pois não se pode
afirmar que se oponham como Situar as condições atuais da
instrumentos de análise, “[...] na disciplina Percepção Musical no Brasil
verdade, complementam-se e podem através de recursos metodológicos que
contribuir, em um mesmo estudo, para viabilizem a riqueza de dados,
um melhor entendimento do fenômeno complementaridade e a transparência
estudado”. Dessa forma, lembram das etapas e informações obtidas.
Laville e Dione (1999) que o essencial
seja que a abordagem escolhida esteja a 3. Metodologia
serviço do objeto de pesquisa. A opção
pela variedade na natureza dos dados foi Para melhor apresentar os
determinada com intuito de oferecermos processos metodológicos realizados
um panorama mais diversificado sobre a durante a análise dos dados,
situação presente da disciplina. organizamos dois pólos de abordagem
Já para orientação no processo nos quais evidenciamos objetivamente
de análise, tomamos Bardin (2002, p. as etapas e procedimentos cumpridos na
38) como referência principal, com a pesquisa qualitativa bem como na
análise de conteúdo, no qual diz a quantitativa, além das exigências da
autora ser “[...] um conjunto de técnicas análise de conteúdo segundo Bardin
de análise das comunicações que utiliza (2002). Assim, temos:
procedimentos sistemáticos e objetivos
de descrição do conteúdo das ƒ Pesquisa Qualitativa
mensagens”. Tais procedimentos são Linhas gerais – realização de
criteriosos, com muitos aspectos cinco entrevistas1 com quatro
observáveis, mas que colaboram professores vinculados a
bastante no desvendar dos conteúdos de universidades de destaque do
seus documentos. Embora essa técnica Brasil e um professor de curso
seja muito usada em áreas como preparatório para vestibular2. Na
história, psicologia, ciências políticas, análise de conteúdo, Bardin
jornalismo e no campo da saúde – (2002) aponta como pilares a
como, por exemplo, na pesquisa recente fase da descrição ou preparação
de Almeida (2007), da Universidade de do material, a inferência ou
São Paulo, numa análise de documentos dedução e a interpretação. Dessa
oficiais do ministério da saúde – no forma, os principais pontos da
campo da música pouco dessa pré-análise são a leitura
ferramenta tem estado presente nos
trabalhos acadêmicos, a exceção de 1
O caráter das entrevistas foi o não-estruturado e o
Costa (2004) que, na área de semi-estruturado, de acordo com a participação do
aprendizagem pianística, entrevista pesquisador, a elaboração das perguntas e o perfil do
docente entrevistado.
alunos desse instrumento utilizando-se 2
Optou-se também por um olhar externo à
da análise de conteúdo no tratamento universidade, porém, neste artigo conciso, o destaque
fica para os professores vinculadores à IES.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

flutuante (primeiras leituras de da categorização, no qual os


contato os textos), a escolha dos requisitos para uma boa
documentos (no caso os relatos categoria são a exclusão mútua,
transcritos), a formulação das homogeneidade, pertinência,
hipóteses e objetivos objetividade e fidelidade e
(relacionados com a disciplina), produtividade. Já a última fase,
a referenciação dos índices e do tratamento e inferência à
elaboração dos indicadores (a interpretação, permite que os
freqüência de aparecimento) e a conteúdos recolhidos se
preparação do material. Por isso, constituam em dados
todas as entrevistas foram quantitativos e/ou análises
registradas através de gravação reflexivas, em observações
em áudio, transcritas na íntegra e individuais e gerais das
autorizadas pelos participantes, entrevistas. Assim, dentro do
além de que os textos passaram discurso dos professores de IES
por pequenas correções foram observadas as seguintes
lingüísticas, porém, não categorias: 1. Dificuldades
eliminando o caráter espontâneo encontradas pelos docentes, 2.
das falas. Para o tratamento dos Ações para superação das
dados a técnica da análise dificuldades, 3. Observações
temática ou categorial foi sobre os alunos, 4. Comentários
utilizada e, de acordo com sobre o ouvido absoluto, 5.
Bardin (2002), baseia-se em Qualidades para um bom
operações de desmembramento professor da disciplina e 6.
do texto em unidades, ou seja, Opiniões sobre o ensino da
descobrir os diferentes núcleos Percepção Musical. Para
de sentido que constituem a exemplificação, a categoria de
comunicação, e posteriormente, maior destaque pela freqüência
realizar o seu reagrupamento em de depoimentos bem como de
classes ou categorias. Além número de unidades de contexto
disso, a análise documental (e registro), segue abaixo:
também esteve presente, para
facilitar o manuseio das Categoria 2 – Ações para
informações, já que, também de superação das dificuldades
acordo com a autora, se constitui
uma técnica que visa representar UC – Aulas extraclasse
o conteúdo de um documento UR: monitoria
diferente de seu formato UR: plantão
original, agilizando consultas. UC – Cuidados com
Assim, na fase seguinte, material
exploração do material, tem-se o UR: grau de dificuldade
período mais duradouro: a etapa progressiva
da codificação, na qual são UR: exemplos musicais
feitos recortes em unidades de UR: livros com áudio
contexto e de registro3; e a fase
ser uma palavra-chave, um tema, objetos,
3
De acordo com Bardin (2002), unidade de registro personagens, etc. Já unidade de contexto (UC), em
(UR), apesar de dimensão variável, é o menor recorte síntese, deve fazer compreender a unidade de
de ordem semântica que se liberta do texto, podendo registro, tal qual a frase para a palavra.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

UR: adaptação específicos já que o pesquisador


UR: adoção de livro geralmente não está presente no
UC – Não restringir música momento do preenchimento,
UR: diferentes gêneros como: reduzir possibilidades de
UR: repertório variado interpretação, buscando clareza
UC – Trabalhos para casa e objetivos nas questões,
UR: ditados / exercícios elaborar boa formatação visual
UC – Realização de testes com ordem coerente de
de proficiência raciocínio e brevidade no tempo
UR: prova / teste de preenchimento, estimulando a
UC – Avaliação com participação do público alvo
diferentes focos (Pádua, 2000). Às dezesseis
UR: avaliação variada perguntas foram oferecidas
UR: individuais e/ou respostas de múltipla escolha (de
coletivas a – d), porém, seguindo a
UC – Conteúdo orientação de Barros e Lehfeld
UR: iniciar do zero (1990), combinadas questões de
UC – Incentivo a caráter aberto e fechado,
experiências musicais permitindo breves respostas
UR: expor-se a diferentes dissertativas na última opção,
práticas obtendo dados ainda mais
UR: percepção a todo precisos. Com o objetivo de
momento conhecer também o perfil dos
professores participantes, optou-
ƒ Pesquisa Quantitativa se por um cabeçalho que
Linhas gerais – aplicação de colhesse informações quanto à
questionários a sessenta titulação e às instituições de
docentes representantes de ensino onde realizaram seus
cinqüenta e duas instituições cursos, resultando num quadro
públicas e particulares que bastante informativo sobre esse
oferecem cursos de música em público. Embora aqui as ações
todo país4, num índice sejam bem direcionadas pelas
percentual de 89,65% do total de perguntas do questionário, a
Instituições de Ensino Superior organização e o reagrupamento
– IES brasileiras. Os tiveram procedimentos
questionários foram enviados semelhantes à linha qualitativa.
por e-mail, em cartas-convite, Então, foram observadas três
nos meses de setembro e principais categorias temáticas:
outubro de 2007, quando foram 1. Estrutura da disciplina nas
feitos contatos com cerca de IES (perguntas 1, 4, 5, 8, 3, 7 e
cento e trinta pessoas entre 6); 2. Aspectos técnicos e
secretárias, coordenadores e pedagógicos da atuação dos
professores. Primeiramente, professores (perguntas 2, 15, 9,
foram tomados cuidados 13, 12, e 16) e 3. Opiniões sobre
o ensino (perguntas 10, 11, 14).
4
A partir da listagem de 58 instituições A categoria um, com maior
cadastradas no portal do Ministério da Educação número de questões, para
– MEC em 2007, considerando os cursos de
bacharelado e licenciatura em música.

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exemplificação, segue em contextualizada; Instrumento


detalhe: referencial mais utilizado: piano;
Material de apoio mais utilizado:
Categoria 1 Estrutura CD de áudio e gravações
da disciplina nas IES diversas; Bibliografia utilizada:
autores nacionais e estrangeiros.
Nome da disciplina no Opiniões sobre o ensino – Perfil
Brasil dos alunos: tem dificuldade já
Obrigatoriedade da que não tiveram boa formação
disciplina de base anterior; Maior
As frentes trabalhadas dificuldade encontrada: nível
Horas semanais de aula heterogêneo de conhecimento
Quantidade de professores entre os estudantes; Maior
nas IES obstáculo no rendimento dos
Quantidade de alunos numa alunos: pouco estudo.
turma
Quantidade de classes por ƒ Diferenciais entre
professor questionários e entrevistas
Partindo dos índices das
Finalizando essa etapa, foram questões, houve poucas
trazidos índices principais, secundários diferenças, que, na verdade,
além de comentários reflexivos sobre revelaram as particularidades
cada um bem como de algumas dos depoimentos dos sujeitos
associações possíveis. entrevistados. Os temas em que
as entrevistas ampliaram a ótica
4. Alguns resultados e considerações das perguntas: quanto aos
finais problemas e dificuldades
encontradas, as ações e cuidados
Num breve comentário, para melhoria da disciplina ou
trazemos os pontos comuns e aprendizagem, o perfil dos
diferenciais de cada linha de trabalho, alunos, as qualidades para o
evidenciados por suas ferramentas de professor de Percepção Musical,
pesquisa: o estudo e aprendizagem em
percepção e quanto ao ensino da
ƒ Pontos comuns entre os disciplina hoje no país.
índices dos questionários e
relatos das entrevistas Ambas entrevistas e
Estrutura da disciplina nas IES questionários tiveram positiva recepção
– Nome da disciplina: Percepção por parte dos docentes. Isso contribuiu
Musical; Obrigatoriedade da para a concretização do objetivo final da
disciplina: em todo curso e/ou pesquisa e o alcance de resultados
modalidade; As frentes coerentes e precisos sobre as condições
trabalhadas: melódica, rítmica e atuais da disciplina. Também os
harmônica; Horas semanais de recursos metodológicos combinados
aula: duas horas. trouxeram, através de seus pontos
Aspectos técnicos e pedagógicos fortes, quantidade de informações e
da atuação dos docentes – Linha qualidade de dados que uma só vertente
de trabalho: tradicional não conseguiria abranger. Portanto, é

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

importante que, de acordo com o objeto BHERING, Maria Cristina Vieira.


de estudo proposto, sejam feitas buscas Repensando a Percepção Musical:
e verificações refinadas quanto a uma proposta através da música popular
metodologias possíveis de serem brasileira. 2003. 105p. Dissertação
empregadas, para que os resultados (Mestrado em Música) – Centro de
possam ser melhores expostos e letras e artes, Universidade Federal do
aproveitados, especialmente no campo Estado do Rio de Janeiro, Rio de
da música e percepção musical. Janeiro, 2003.
CAMPOLINA, Eduardo; BERNARDES,
5. Subáreas de conhecimento Virgínia. Ouvir para entender ou
compreender para criar? Uma outra
Teoria e Percepção Musical. Educação concepção de percepção musical. Belo
Musical e ensino superior (Brasil). Horizonte: Autêntica, 2001.
Tema: 1. A mente e a percepção musical.
Modalidade: comunicação oral. COSTA, José Francisco da.
Aprendizagem pianística na idade
6. Referências adulta: sonho ou realidade? 2004.
101p. Dissertação (Mestrado em Artes)
ALMEIDA, Luciana Pavanelli Von Gal – Instituto de Artes, Departamento de
de. Política de recursos humanos em Música, Universidade Estadual de
saúde: análise de documentos oficiais Campinas, Campinas, 2004.
do ministério da saúde. 2007. 94p.
Dissertação (Mestrado em enfermagem) COSTA, Maria Cristina Souza.
– Escola de enfermagem de Ribeirão Reflexão sobre as concepções e ações
Preto, Universidade de São Paulo, 2007. de um(a) professor (a) de percepção
musical: um estudo de caso. In:
BARBOSA, Maria Flávia Silveira. ENCONTRO ANUAL DA
Percepção Musical sob novo enfoque: a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
escola de Vigotski. Revista Música EDUCAÇÃO MUSICAL, XII, 2003,
Hodie, [s.l], vol. 5, nº 2, 2005, p.91- Florianópolis. Anais do XII Encontro
105. Anual da ABEM. Florianópolis:
BARDIN, Laurence. Análise de UDESC, 2003, p.608-614. 1 CD ROM.
conteúdo. Trad. Luís Antero Reto e GROSSI, Cristina de Souza;
Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70, MONTANDON, Maria Isabel. Teoria
2002. sem mistério – questões para refletir
BARROS, Aidil de Jesus Paes; sobre a aprendizagem da grafia musical
LEHFELD, Neide Aparecida de Souza. na prática. In: SIMPÓSIO
Projeto de pesquisa: propostas INTERNACIONAL DE COGNIÇÃO E
metodológicas. Petrópolis: Vozes, 1990. ARTES MUSICAIS, 1, 2005, Curitiba.
Anais 1º Simpósio Internacional de
BERNARDES, Virgínia. A música nas Cognição e Artes Musicais. Curitiba:
escolas de música: a linguagem UFPR, 2005. p. 120-127.
musical sob a ótica da percepção.
2000. 215p. Dissertação (Mestrado em GERLING, Cristina Capparelli.
Educação) – Faculdade de Educação, Treinamento auditivo e teoria musical
Universidade Federal de Minas Gerais, no Departamento de Música da
Belo Horizonte, 2000. UFRGS: implantação de um programa
integrado. Revista Em pauta, Porto

66
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Alegre, UFRGS, ano V, nº 8, p.34-40, EDUCAÇÃO MUSICAL, XV, 2006,


dezembro de 1993. João Pessoa. Anais do XV Encontro
Anual da ABEM. João Pessoa: UFPB,
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2006. p 211–218. 1 CD-ROM.
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musical e estruturação no 3º grau. NEVES, José Luis. Pesquisa qualitativa
Revista da ABEM, [s.l], ano 2, nº 2, – características, usos e possibilidades.
p.21-26. junho de 1995. Caderno de Pesquisas em
Administração, São Paulo, USP, vol. 1,
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n.3, 2º semestre de 1996. Disponível
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em: <http://www.ead.fea.usp.br/cad-
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17/09/2007.
LACORTE, Simone. Percepção
OTUTUMI, Cristiane H. Vital.
Musical no âmbito das escolas de
Encontros de Percepção: ferramenta
música: uma reflexão de sua práxis a
de interação e práxis pedagógica. In:
partir dos diversos órgãos dos sentidos.
ENCONTRO ANUAL DA
In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 1.,
EDUCAÇÃO MUSICAL, XV, 2006,
2005, Curitiba. Anais 1º Simpósio
João Pessoa. Anais do XV Encontro
Internacional de Cognição e Artes
Anual da ABEM. João Pessoa: UFPB,
Musicais. Curitiba: UFPR, 2005. p.138-
2006. p 767–771. 1 CD-ROM.
145.
OTUTUMI, Cristiane H. Vital.
LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean.
Percepção Musical: situação atual da
A construção do saber: manual de
disciplina nos cursos superiores de
metodologia da pesquisa em ciências
música. 2008. 240p. Dissertação
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(mestrado em música) – Instituto de
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Médicas Sul; Belo Horizonte: Ed.
Universidade Estadual de Campinas,
UFMG, 1999.
Campinas, 2008.
MARQUES, Eduardo Frederico Luedy.
PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini
Batalhas culturais: concepções de
de. Metodologia da pesquisa:
cultura e o popular na perspectiva das
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Campinas: Papirus, 2000.
ENCONTRO ANUAL DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE

67
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A percepção da produção vocal pelo regente coral

Snizhana Drahan
snid@terra.com.br

Resumo: O presente trabalho considera o conceito “percepção vocal”, incluindo suas funções e
recursos, como a capacidade de ouvir, conscientizar e fazer, através dos seguintes tipos de
recepção sensorial: controle auditivo, sensação muscular, sensibilidade vibracional e visão. Uma
breve descrição sobre cada um deles revela a sua importância no processo de desenvolvimento
de uma percepção profissional. Ao mesmo tempo é analisada a interligação da percepção vocal
com outra habilidade auditiva, a percepção interna, determinando as diferenças e as
peculiaridades no processo vocal. A discussão a respeito destes elementos chama atenção para
outras habilidades ligadas à percepção, que são a memória musical e a recepção musical. A
presente pesquisa também apresenta um dos métodos de aperfeiçoamento da capacidade
auditiva, oferecendo um exercício prático, em anexo. Este trabalho tem por objetivos a
ampliação do referido conceito, trazendo para realidade brasileira a reflexão sobre o seu
desenvolvimento além do conhecimento da Escola de Música da Rússia e Ucrânia, que foi
adquirido pela autora com os anos de pesquisa teórica e prática. Assim, a discussão é alicerçada
na pesquisa da literatura russa e ucraniana sobre o assunto e tem o foco central baseado no
trabalho de Vladimir Morózov. As conclusões, colocadas aqui em forma abreviada, destacam a
atual importância e o lugar da percepção vocal na produção coral. Metodologicamente este
trabalho baseou-se em procedimentos de busca, comparação e análise da literatura supracitada,
seguidos de reflexão e formulação para adequação à realidade brasileira.

Palavras-chave: percepção vocal, percepção interna, regência coral.

supracitada: “composição –
Introdução. A Regência é uma interpretação – recepção”. E não só
parte muito importante da interpretação participa, mas torna-se o princípio
e produção musical, onde mais organizador e criador no processo que
profundamente se revela a sua essência. nasce no momento em que o regente vê
A responsabilidade do regente é grande, a partitura pela primeira vez.
pois ele aparece como intermediário Escolhendo a obra, o regente a reproduz
necessário entre compositor e ouvinte e na mente em primeiro lugar, criando em
está no centro da corrente: “composição seguida o quadro musical imaginário.
– interpretação – recepção”. Ele deve Depois, nos ensaios, e, posteriormente,
possuir muitas habilidades pessoais e no concerto, ele tentará realizar a
musicais para participar genuinamente imagem musical desenvolvida por ele.
de todos os elos desta corrente. Por fim, durante o concerto, estando à
Refletindo sobre as habilidades frente do conjunto, além de controlar a
do regente, chegou-se ao tema desta execução prevenindo as falhas
pesquisa – a percepção do regente – que possíveis, o regente deverá analisar o
é uma das mais importantes habilidades resultado sonoro em relação à imagem
musicais, não somente do regente, mas musical criada por ele e, ao mesmo
de qualquer músico. Ela participa do tempo, ativar a própria recepção crítica,
trabalho do início ao fim e é necessária pois, ele é intérprete, ouvinte e crítico.
em todos os elos da corrente

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

E a Regência Coral? Tendo em fisiológicas ou de outra espécie,


vista que os instrumentos neste caso são capacidade que ajuda os coralistas a
as vozes humanas, que não possuem a alcançar em um resultado sonoro
altura fixa do som, podemos concluir: melhor. Ela exige interação de vários
se o regente não tiver ouvido bem órgãos dos sentidos, ativação das
treinado, o resultado sonoro será habilidades psíquicas e intelectuais e a
insatisfatório. presença de determinadas capacidades
Entretanto, o presente trabalho práticas. Como uma formação
está baseado nas pesquisas teóricas e biopsicofisiológica complexa,
práticas expostas na literatura percepção vocal possui um grande
musical metodológica da Rússia e sistema de mecanismos reguladores do
Ucrânia com o foco especial nos processo de formação vocal, que será
trabalhos de cientista russo, V. discutido mais tarde. Isto é um
Morozov. fenômeno adquirido e não um talento
Trabalhando na Universidade musical ou “lugar da nota” (saber
como professora de regência coral, a extrair a nota certa).
pesquisadora verificou que muitos E a percepção interna? Isto é
alunos não conseguiam reger a obra sem uma aptidão tanto de compreensão
anteriormente ouvi-la ou tocá-la ao auditiva, como surgimento nos centros
piano e costumam analisar a partitura de ouvido das imagens sonoras dos
ouvindo-a. Isso pode prejudicar a fenômenos musicais já recebidos,
capacidade de desenvolvimento da quanto de imaginação auditiva, como
imagem musical da obra estudada em criação nos centros de ouvido das
suas mentes. imagens sonoras novas dos fenômenos
Há muitas pesquisas que falam musicais ainda não conhecidos, através
sobre as habilidades auditivas de elaboração criativa dos mesmos
necessárias dos músicos de diversas recebidos anteriormente1. Os dois
especializações, porém, são poucas as termos interagem permanentemente e
que dão atenção ao ouvido do regente têm como órgão principal de
coral, principalmente àquele coordenação o ouvido, que deverá tanto
componente que se chama percepção controlar diretamente a execução,
vocal. Não temos conhecimento de quanto ajudar na sua preparação.
pesquisas que considerem a percepção Assim, há dois objetivos
vocal em conjunto com outras principais neste trabalho: 1) trazer a
capacidades e componentes musicais. discussão sobre o desenvolvimento da
Portanto, este trabalho, voltou sua percepção vocal, pois na literatura
atenção para uns dos principais metodológica existente este foco está
elementos na vida profissional do ausente, e 2), considerando que a Escola
regente coral – percepção interna e na área de música da Rússia e Ucrânia
percepção vocal – e aquelas habilidades sempre era bastante produtiva e
profissionais que estão interligadas, eficiente, divulgar seu conhecimento
como: memória musical e recepção
musical. 1
O que é a percepção vocal? Isto No termo “fenômeno musical”, encontrado no
trabalho de pesquisadora russa, Seredinskaia
é a capacidade de distinguir e utilizar (1962), subentende-se todos os elementos
todas as possibilidades da voz cantada, musicais, tanto em estado desunido ou isolado,
detectar os erros e problemas na voz, quanto na totalidade dos mesmos (por exemplo,
causados por questões técnicas, uma seqüência dos acordes ou uma obra para
orquestra).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

que foi adquirido com os anos de (“Schöpferischer Klavierunterricht”,


pesquisa teórica e prática. Além disso, 1957). Ele fez uma análise comparativa
houve interesse em sintetizar o entre o processo interpretativo de um
conhecimento previamente existente, ao músico de alto nível e de um músico
mesmo tempo em que se considerou a amador e constatou o fato de que na
experiência da autora deste trabalho, interpretação do primeiro prevalece a
permitindo um processo de reflexão e esfera auditiva, que vem antes e depois
formulação específicas. da emissão do som (a audição posterior
No decorrer desta pesquisa foi já ocorre com a função analisadora),
utilizado o método de busca, de enquanto que, na interpretação do
análise, de comparação, de reflexão e segundo (amador), a esfera auditiva
de síntese da literatura supracitada e do vem somente em último lugar
conhecimento adquirido. Nos trabalhos (Ilustração 1).
científicos consultados, percebe-se que Os dois termos, percepção
foram consideradas e pesquisadas as interna e percepção vocal, entraram na
bases fisiológicas da percepção vocal. linguagem dos músicos quase
Porém, há necessidade de analisar sua simultaneamente. Entretanto, o primeiro
participação na produção musical e de era intensivamente pesquisado enquanto
criar uma linha didática para seu o outro não.
desenvolvimento, pois o aproveitamento Saber ouvir significa poder
dos recursos da percepção vocal é sentir, conscientizar e realizar. Nos
indispensável! períodos de domínio da fala na infância
Aspectos históricos. Ainda na ou, posteriormente, do canto (nos
segunda metade do século XIX os períodos de assimilação do estereótipo
teóricos europeus, pesquisando assuntos motor), o papel principal pertence à
de interpretação, audição ou de prática recepção auditiva. Por isso, se a pessoa
vocal e compreendendo o ouvido perde o ouvido, sendo adulta, a fala
musical como um conceito multifário, permanece e se isso ocorre na primeira
de alguma forma começaram a infância, já não. Depois da assimilação
considerar aquelas qualidades e do estereótipo motor, o papel do
possibilidades especiais do ouvido, que analisador auditivo fica importante para
mais tarde receberam o nome percepção a análise das nuanças finas e, também,
vocal. para a função corretora na hora das
Na Rússia, os primeiros que se mudanças sonoras do meio ambiente.
interessaram pelo ouvido musical e A percepção vocal é uma
começaram a pesquisar este assunto de sensação complexa musical e vocal que
posições pedagógicas, foram Nicolai surge do resultado da interação entre os
Rimsky-Kórsakov (“Artigos e notas muitos sistemas sensórios. Segundo
musicais”, São Petersburgo, SPB, 1911) Morozov (2002, p. 231-232), cada um
e Serguéi Maicapar (“Ouvido musical”, dos órgãos de sensibilidade ou dos
SPB, 1915). O conceito “percepção analisadores fisiológicos recebe e passa
interna” foi introduzido justamente por para a parte central do cérebro a sua
Rimsky-Kórsakov (Enciclopédia informação específica sobre o processo
Musical, 1981, p.104). Conforme vocal: o ouvido – sobre as
pesquisa do teórico russo, G. Freindling características acústicas da voz do
(1967, p. 29), na Alemanha interessou- exterior; a sensação muscular – sobre a
se pelo assunto professor e teórico do participação no trabalho dos grupos
pianismo, K. A. Martinsen musculares; a sensibilidade vibracional

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– sobre os processos acústicos dentro do ouvido, sensações musculares e


trato vocal; a sensação de tato sinaliza vibracionais → cérebro (Ilustração 2).
sobre o trabalho do sistema respiratório Uma grande cantora russa do
junto com os receptores dos músculos século XX, A. Nejdanova, falava: “O
respiratórios; a sensação de que é cantar bem? Isso significa se
barorrecepção – sobre a força da ouvir bem!”. Não há duvida que o
pressão subglótica; por fim, a visão controle auditivo leva ao cérebro a
também indiretamente participa no informação mais importante, porém
processo vocal, através das suas pode dar falha tanto porque a pessoa se
imaginações visuais. Depreende-se daí ouvi também por cavidades internas,
que a percepção vocal é algo mais do como por motivos das possíveis
que simplesmente ouvido. mudanças acústicas. E aqui deveriam
Resumindo, pode-se dizer que a entrar em ação outros auxílios da
percepção vocal é uma capacidade de percepção vocal.
“ouvir, conscientizar e fazer” através de Todos os movimentos do
vários tipos de recepção (tanto externos, aparelho vocal estão sendo controlados
quanto internos), que orientam a própria pela ordem dos centros nervosos e esses
percepção vocal e deveriam ser movimentos revelam-se tanto no
estudados com os alunos das processo de canto real, quanto no
especialidades ligadas ao canto. Alguns mental. Segundo Morozov (2002, p.
deles pretendemos considerar aqui. 230), a pessoa que está imaginando
Controle auditivo, sensibilidade alguma ação ou estado reproduz
muscular, vibracional e visão. É involuntariamente estas ações e estados:
necessário notar que o controle auditivo a imaginação mental cria os
possui dois elementos: percepção do seu movimentos correspondentes, estados e
próprio som (autodomínio auditivo) e sensações do cantor. Esta lei
do som que vem do exterior. O termo psicofisiológica é baseada no ato
autodomínio auditivo tem em vista, no ideomotor que provém de movimento
caso, tanto a capacidade de se ouvir muscular não reflexo, mas produzido
como se fosse de fora, quanto um por idéia dominante.
ouvido ativo criador que permita tornar Assim, a sensação auditiva e
consciente a tarefa do intérprete, muscular são sistemas sensórios mais
imaginar de antemão o que deve relevantes na pedagogia vocal. Porém,
ressoar. Em outras palavras, um músico existem outros canais de ligação
profissional é capaz de reconstituir retroativa, que são importantes em
mentalmente a obra musical através do vários casos de regulação do processo
ouvido ativo criador. vocal: vibrosensibilidade e visão.
Um dos pesquisadores russos na A vibrossensibilidade se
área de voz, Dmitri Liush (1988, p. 95) desperta por energia sonora, pois é
disse que o autodomínio auditivo se resultado dos fenômenos acústicos
realiza através dos sistemas sensórios complexos no aparelho vocal e
do organismo do ser humano, ligados caracteriza a qualidade do trabalho do
inerentemente ao aparelho vocal, e que sistema dos ressonadores na formação
o seu complexo vocal é um sistema do som. A função principal da
auto-regulador que se realiza através do vibrosensibilidade é a formação do
seguinte esquema com ligação timbre. A sensibilidade dos receptores
retroativa: cérebro → aparelho vocal → de vibração das pessoas é diferente.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

E a visão? Qual é o seu papel na interpretadora, isto é, quando percepção


produção vocal? Certamente a visão vocal age de um modo refletor,
poderia participar, pelo menos, em dois controlando a qualidade do som do
momentos: na hora de imaginar algo, próprio regente que está cantando, e a
que poderia ajudar na formação do som função administrativa que consiste em
(fenômeno psicofisiológico) e/ou na análise da fonação dos coralistas e da
hora da utilização dos aparelhos sua orientação pedagógica.
especiais eletrônicos com objetivo Não se pode também deixar do
educacional (função corretora). O uso lado os seus recursos principais: auxílio
das associações é uma técnica à afinação, à técnica individual, à
justificada fisiologicamente e interpretação da partitura, à
praticamente, pois organiza o aparelho coordenação timbrística e auxílio
vocal do cantor, mobiliza exatamente interpretador à execução coral.
aqueles reflexos que são necessários Interligação entre percepção
para que a voz adquira uma sonorização vocal e percepção interna. É
e projeção boa. Ao mesmo tempo a necessário de assinalar aqui três funções
tecnologia moderna oferece vários principais da percepção interna de um
programas de computador que, junto músico profissional: imaginar (ler
com o equipamento apropriado, contêm mentalmente uma ou vários linhas
os recursos para fazer uma análise melódicas ao mesmo tempo), manipular
acústica da voz cantada, ajudando (operar livremente com as imagens
melhorar ou desenvolver algumas auditivas musicais) e criar (é a criação
qualidades vocais (timbre, afinação nos centros de ouvido das imagens
etc.). sonoras novas dos fenômenos musicais
Segundo Morozov (2002), ainda não conhecidos, através de
graças ao método “análise através da elaboração criativa dos mesmos,
síntese”, alguns sons, que são ausentes recebidos anteriormente). Entretanto,
na fala audível, nós conseguimos pretende-se falar aqui somente sobre
reproduzir mesmo sem ouvi-los. Este uma das suas qualidades, que tem
método permite “ouvir” aquilo que relação com a percepção vocal do
somente subentende-se. Assim, fica regente coral: a imaginação mental
mais claro o mecanismo da percepção auditiva.
vocal como a capacidade não somente Na cátedra de Psicologia na
de ouvir a voz, mas imaginar e sentir o Universidade Federal de Moscou eram
trabalho do aparelho vocal. feitos vários experimentos que
O que traz a percepção vocal? provaram interligação da recepção
Note-se que há diferença entre a auditiva com função simultânea das
percepção musical, que controla a altura cordas vocais (Morozov, 1977;
relativa, a duração e a força do som, e Nasaikinski, 1972). Segundo
que é uma capacidade auditiva (ouvir e Seredinskaia (1962), a percepção
analisar), e a percepção vocal, que interna depende, em primeiro lugar, da
controla ainda a qualidade do som e a riqueza das impressões musicais dos
conformidade da ressonância com a alunos; em segundo lugar, da qualidade
imagem que está sendo interpretada, e de recepção e memória musical deles;
que é uma capacidade prática (ouvir, em terceiro lugar, da capacidade dos
analisar e saber como fazer). centros de ouvido deles de criar as
Assim, definimos duas funções imagens sobre fenômenos musicais
principais da percepção vocal: a função novos através da síntese e, em quarto

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

lugar, de desenvolvimento do raciocínio Outro pesquisador russo,


musical dos alunos, pois antes de Maksimov, ofereceu o método de
sintetizar alguma coisa, precisa poder formação da percepção do cantor, cuja
pôr em ordem as impressões recebidas linha principal é baseada na duplicidade
anteriormente e separar as necessárias do processo de entoação que inclui o
neste instante. processo simultâneo de canto em mente
A ligação entre a percepção e canto em voz alta. Veremos a Escala-
vocal e a percepção interna é vocalise que é um dos exercícios deste
indispensável. Vejamos: a etapa de método (Ilustração 3). Percebe-se que a
aperfeiçoamento de sensibilidade mudança das vogais, conforme o grau a
muscular é, também, uma etapa ser cantado, e alternância dos registros
preparatória para trabalhar percepção ajudam ativar o ouvido interno e ouvir
interna. Portanto, no processo de duas linhas melódicas ao mesmo tempo:
desenvolvimento de percepção vocal a própria escala e a tônica.
será, sem dúvida alguma, trabalhada, Segundo o professor russo,
também, a percepção interna. E ao Vinogradov (1987, p.51), é mais fácil
contrário – a maioria dos exercícios verificar a produtividade da
direcionados para aprimoramento da memorização através da reprodução:
percepção interna de um modo ou de quanto maior o intervalo de tempo que
outro ajudam a desenvolver a percepção se dá entre a memorização e a
vocal. reprodução do material, mais eficaz o
A percepção e as habilidades trabalho da memória será considerado.
interligadas. O esquema completo de Precisamos tratar a memorização como
educação do ouvido aparece da seguinte a possibilidade de reproduzir a mesma
maneira: da recepção inconsciente da coisa em condições novas (em outra
música através do ciclo vocal (elemento tonalidade, tempo ou dinâmica) ou
motor) até a recepção consciente da reconstituir algo novo no âmbito dos
informação musical com percepção princípios assimilados (em versão de
interna. Seredinskaia comenta (1962, p. outro modo ou gênero). Em outras
9), que percepção depende da palavras, a memorização serve não
“qualidade de recepção e memória como base para a repetição da tarefa
musical dos alunos”. A pesquisadora resolvida, mas para a repetição da ação
considera a memória musical como um no rumo da tarefa. Note-se que o autor
processo psicológico de conservação na dirige nossa atenção para a
consciência dos fenômenos musicais memorização consciente. No tempo de
recebidos anteriormente ou no momento memorização consciente o estudante
atual e sua posterior recepção, e a tem a possibilidade de abordar a obra
recepção musical como um processo como se fosse abranger o material
psicológico de reflexo nos centros musical todo. A memória consciente
auditivos daqueles fenômenos musicais ajudará, futuramente, a conscientizar e
que, no momento atual, estão agindo fixar as sensações musculares
sobre nosso aparelho auditivo. necessárias à execução. Dessa maneira,
Recepção é o momento inicial e essas sensações musculares (ou a
fundamental de conhecimento dos memória muscular) é um elo
fenômenos musicais. Seus resultados, importantíssimo entre a memória
gravados na consciência, ficam como auditiva e a percepção vocal.
base futura para a atividade do Conseqüentemente podemos
raciocínio e para a imaginação auditiva. observar que existe uma ligação

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inevitável entre memória e recepção desenvolvimento direcionado não


musicais, junto com a percepção interna somente das sensações propriamente
e a percepção vocal. Isso traz a auditivas, mas de todo o complexo de
conclusão de que o pleno sensações internas indispensáveis para
desenvolvimento dessas capacidades é possuir uma formação íntegra da
um processo único. Realmente, os percepção profissional, para qualquer
professores experientes comentam que regente.
aqueles exercícios que influem
simultaneamente sobre o Subáreas de conhecimento: música;
desenvolvimento de várias habilidades regência coral; canto; percepção.
são sempre mais produtivos.
Concluindo, o conceito de Referências bibliográficas
percepção vocal é um dos mais
importantes na prática da produção ANTONIUK, V. Impostação da voz:
vocal, porém é um dos menos Material didático para os estudantes
pesquisados. Há necessidade de inserir dos estabelecimentos escolares
este conceito no trabalho diário dos
superiores musicais. Kiev: Idéia
regentes de coro, pois para um aluno a
percepção vocal é o meio para aprender Ucraniana, 2000. p. 68. ISBN 966-
enquanto para um professor é o meio 7638-06-5
para ensinar. A análise das sensações, DMITRIEV, L. Fundamentos da
sejam internas ou externas, é a única
metodologia vocal. Moscou: Música,
maneira de avaliar o trabalho do próprio
aparelho vocal e controlar o seu 2004. p. 368. ISBN 5-7140-0355-1
funcionamento, podendo ainda ensinar, DMITRIEV, L. Intuição e consciência
pois, só podemos de fato ensinar aquilo na criação e pedagogia vocal. Questões
que um dia passou pela nossa mente,
de pedagogia vocal. Moscou: Música,
nossas sensações e nosso coração, ou
seja, aquilo que se constitui como parte v. 7, p. 135-155, 1984.
de nossa experiência real. A educação ENCICLOPÉDIA MUSICAL. Moscou:
do ouvido profissional, do qual faz parte Enciclopédia Soviética, 1973-1982.
a percepção vocal, é um processo
composto por elementos de naturezas FREINDLING, G. Autodomínio
distintas, um processo longo e auditivo e metodologia do solfejo.
multifário. Questões de metodologia da educação
Dessa maneira, chegamos a
de percepção. Leningrad: Música, p.
algumas conclusões importantes: 1) a
essência psicofisiológica da percepção 28-42, 1967.
vocal concentra-se na interação dos GUEINRIHS, I. Ouvido musical e o
sistemas que participam tanto no desenvolvimento dele. Moscou:
processo de formação e emissão do som
Música, 1978. p. 80.
quanto no processo de sua recepção; 2)
a percepção vocal de um regente de MAKSIMOV, S. Solfejo para
coro deve ser desenvolvida pelo regente vocalistas. Moscou: Música, 1984. p.
conscientemente e sistemicamente, 256.
tanto nas aulas, durante o período de
estudo, quanto posteriormente, na vida MASLENKOVA, L. A educação do
profissional; 3) há necessidade de um cantor na sala de Percepção. Questões

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de metodologia de formação da NASAIKINSKI, E. Sobre a psicologia


percepção. Leningrad: Música, p. 43- da recepção musical. Moscou: Música,
57, 1967. 1972. p. 381.
MOROZOV, V. P. A voz e a RAGS, I. Problemas de formação do
percepção vocal. Leningrad: Música, ouvido musical (sobre a correlação da
1965. p. 86. disciplina Percepção com a prática
MOROZOV, V. P. Fundamentos artística). Questões de formação do
biofísicos da fala vocal. Leningrad: ouvido musical. Coletânea dos
Nauka,1977. p. 232. trabalhos científicos. Leningrad:
LOLGK, p. 7-19, 1987.
MOROZOV, V. P. A arte do canto
SEREDINSKAIA, V.
com ressonância. Fundamentos da
teoria e técnica com ressonância. Desenvolvimento da audição interna
Moscou: Instituto de Psicologia, nas aulas de solfejo. Moscou:
Conservatório Estatal em Moscou, MUZGUIZ, 1962. p. 92.
Centro “Arte e Ciência”, 2002. p. 496. UTKIN, B. Formação da percepção
ISBN 5-89598-087-2 / ISBN 5-9270- profissional do músico em colégio.
0016-9 Moscou: Música, 1985. p. 101.

Ilustração 1

Ilustração 2

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Ilustração 3

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A influência da representação visual no ato de compor

Alexandre Loureiro
alexl@alexl.info

Resumo: Antes da criação de uma notação apropriada, a música era transmitida e preservada
pela tradição oral. Com o passar do tempo, os próprios criadores, dependentes unicamente da
memória, provavelmente perdiam ou iam modificando suas composições. Isso tudo
eventualmente contribuiria para a utilização de formas mais simples, a proliferação de
variações, o predomínio da improvisação, etc. Com isso, por falta de registro, todo um universo
de tradições musicais estava fadado ao esquecimento, ao desaparecimento numa “pré-história
musical”.
Com a invenção da escrita musical, as canções poderiam ser registradas para a posteridade,
tocadas, cantadas e transmitidas por outros que não os próprios autores. Além disso, formas
mais complexas começaram a surgir. A composição, que originalmente era uma experiência
sonora, uma combinação de idéias tocadas e ouvidas, começa aos poucos a ganhar outra
dimensão: o registro das idéias musicais permite uma posterior análise das mesmas e,
conseqüentemente, uma elaboração de “estruturas discursivas mais densas e extensas”. Um
universo de novas ferramentas amplia de forma impressionante as possibilidades do compositor
e transforma radicalmente a maneira de se fazer e ouvir música no ocidente.
À medida que os processos de criação musical vão se afastando da experiência meramente
sensorial para se aprofundar no desenvolvimento de estruturas intelectualmente muito mais
complexas, o ato de compor começa a se transformar cada vez mais numa experiência espaço-
visual, uma exploração de possibilidades matemático-geométricas. A escrita musical, ferramenta
criada para representar a música, passa a ser, ela própria, o objeto a ser criado, analisado e
julgado, muitas vezes em detrimento de seu resultado sonoro. É certo que processos como a
retrogradação (execução de uma linha melódica de trás para frente) ou o dodecafonismo
(técnica composicional baseada numa seqüência com as 12 notas cromáticas, sem que nenhuma
seja repetida até que as outras 11 sejam tocadas), que só músicos muito bem treinados podem
identificar simplesmente pela audição, são frutos diretos dessa tecnologia gráfica para compor,
porém, a despeito de toda as possibilidades que a escrita musical trouxe, como em qualquer
forma de representação, ela possui limites e também "facilidades" tendenciosas. A música feita
no ocidente nos últimos séculos, com a predominância de métricas regulares e o abandono dos
intervalos microtonais, foi um fruto direto dos limites desta forma de representação musical.
No começo do século XX, alguns compositores começam a explorar novos recursos, fazendo
uso de equipamentos elétricos e eletrônicos, acabam por desenvolver uma linguagem com
ênfase em sonoridades impossíveis de serem obtidas pelos meios acústicos convencionais. Uma
música que os instrumentos tradicionais não poderiam produzir, instrumentistas não poderiam
executar e para qual a escrita convencional não apresentava soluções. A música dispensava a
escrita, rompia sua relação com a representação gráfica em prol de uma experiência estritamente
sonora. Com essa prática, a criação musical voltava a ganhar espaço como experiência auditiva
em vez de visual.
Atualmente, com os computadores, seqüenciadores MIDI editores não-lineares de áudio e tantas
novas ferramentas privilegiando e facilitando a experiência da “composição auditiva”, estaria a
escrita musical tradicional fadada a extinção?

Palavras-chave: composição, notação musical; cognição

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

1. Fundamentação teórica nova, resultante dos recursos e


limitações que esta linguagem introduz.
A formulação do objeto de
investigação desta pesquisa, tomou 2. Objetivos
como ponto de partida um artigo de
Gordon Zaft sobre composição • Investigar as limitações e
(musical) e tecnologia. Sua exposição recursos que a notação
sobre ferramentas de orientação visual tradicional oferece à
x ferramentas de orientação auditiva representação musical;
norteou a formulação da apresentação • Avaliar as limitações e recursos
deste projeto. A partir das referências inerentes a um processo de
encontradas neste texto cheguei à composição baseado
análise crítica que Trevor Wishart faz do exclusivamente na combinação
uso da notação como ferramenta de de resultados sonoros (sem o uso
registro de música e da proposição de de qualquer forma de notação);
que não só a notação é fruto da música • Desenvolver ferramentas e
que ela procura representar mas também processos composicionais mais
a música é fruto da notação que a eficientes, seja por combinação
representa, principalmente quando de interfaces gráficas diferentes,
afirma que a notação age como um criação de uma nova ou mesmo
“filtro histórico” ao selecionar altura e abdicação de qualquer
ritmo como características representação visual.
“registráveis”, desviando a atenção de
outros elementos como timbre, 3. Método
características acústicas e nuances de
fraseado e de ritmo. Por esse motivo, • Análise e fundamentação teórica
muitos compositores, particularmente dos principais recursos e limites
na segunda metade do século XX, da notação convencional, de
desenvolveram uma opinião fortemente suas soluções a partir do século
contrária à notação tradicional. Pierre XX e das experiências de
Shaeffer em seu Tratado dos Objetos composição sem o uso de
Musicais diz que a notação é notação como forma de registro,
tendenciosa e nefasta e que (...) se em particular as dos primórdos
empregarmos a notação tradicional nós da música acusmática e as
exprimiremos nossas idéias em função surgidas com a popularização
de estereótipos. dos softwares de
De uma forma geral, músicos e seqüenciamento MIDI e de
teóricos de áreas afins tendem a gravação não-linear de áudio.
conceituar a partitura como uma • Elaboração de um questionário
representação de uma idéia musical sobre processos, ferramentas e
anterior à notação e, portanto, de valor experiência de composição
secundário. Em alguns casos, propõe até aplicado em entrevistas com
o abandono de qualquer tipo de compositores de diversas
representação. Zampronha, no entanto, gerações e áreas de atuação.
confronta diversos argumentos neste • Análise de resultados das
sentido com a proposição de que a entrevistas e da fundamentação
notação, seja ela qual for, também é teórica, e seleção de ferramentas
responsável pela criação de uma música (softwares e/ou processos) a

78
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

serem usadas numa experiência se alternar historicamente: a busca do


prática de composição. registro e representação de uma idéia
• Avaliação da experiência e musical pode levar à criação de uma
estudo comparativo entre os nova notação e esta, por sua vez, derivar
diversos processos em busca de recursos que originem uma nova música
complementaridade entre eles e/ou limitações que cristalizem
e/ou proposição de soluções para estereótipos. E, mesmo que se parta
os problemas encontrados. para o abandono de qualquer tipo de
representação gráfica, o legado
4. Resultados notacional apreendido e cristalizado até
o momento deste rompimento, continua
Até onde minha pesquisa chegou a influenciar o pensamento e os
pude delimitar duas tendências básicas processos composicionais.
no relacionamento compositor x
composição. A primeira visa a um 6. Subáreas de conhecimento
domínio cada vez maior da obra,
centrada na mão do compositor. Como Teoria da percepção; psicologia
exemplo mais radical disto podemos cognitiva; tecnologia musical;
citar a música concreta, quando a composição musical.
execução da obra, registrada em meio
magnético, chega a dispensar o 7. Referências
intérprete. A segunda tendência, abre
cada vez mais as possibilidades de ANTUNES, Jorge. Notação na música
decodificação, colocando nas mãos do contemporânea. Brasília: Sistrum,
intérprete grande parte da autoria da 1989.
composição. É o caso das partituras GRIFFITHS, Paul. A Concise History
com grafismos e das composições of Avant-Garde Music: From Debussy
aleatórias e subjetivas de John Cage to Boulez. Thames & Hudson, 1978.
como 0'00” que se caracterizava por
uma única frase (“Em uma situação KARKOSCHKA, Erhard Notation in
provida do máximo de amplificação New Music: A Critical Guide to
(sem feedback), realize uma ação Interpretation and Realization. Praeger
disciplinada”). Além disto, pude Publishers, 1972.
confrontar duas concepções em relação SHEPHERD, John; VIRDEN, Phil;
à notação: a que acredita que a notação VULLIAMY, Graham; WISHART,
é uma simples (tentativa de) Trevor. Whose Music? A Sociology of
representação da idéia musical e outra Musical Languages. Latimer, 1977.
que diz que a música é fruto da notação
que a representa. TEMPERLEY, David. The Cognition
of Basic Musical Structures. The MIT
5. Conclusões Press, 2004.
WISHART, Trevor. On Sonic
A concepção tradicional, de que Art.Harwood Academic Publishers
a notação é uma mera representação da GmbH, 1996.
idéia musical, e a oposta, que acredita
que a música é fruto e apenas uma das ZAFT, Gordon. Music Composition
leituras da notação que a representa, são and Technology: Computers as Tool
ambas verdadeiras e podem coexistir ou and Technique. Disponível em:
<http://www.zaft.org/gordon/mse596s/

79
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

music.html>. Acesso em 28 de nov.


2007.
ZAMPRONHA, E. Notação,
representação e composição: um novo
paradigma da escritura musical. São
Paulo: Annablume/Fapesp, 2000.

80
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Prolegomena to a comprehensive Theory of Gesture —


The Kinesics Analysis in the Investigation of Emotion Expression
in Music Performance

António Salgado1
University of Aveiro
f1180@ua.pt

Resumo-abstract: The main contribution of this paper aims to discuss body language within
musical performance, and to contribute to a theory of Gesture as a practice within musical
performance. Based on a point-light technique approach, empirical evidence has shown that the
abstract movement of the point lights (resulting from the video recording of a series of facial
movements while experienced singers expressed different emotions in singing performance) had
sufficient dynamic information to be recognised by an audience according to the emotional
intention performed by the singer. It seems, then, that performers, conscious or unconsciously,
use physical gestures associated with emotional states and other expressive issues as a basis for
shaping musical expression. Ultimately, it is possible to consider that bodily movements may
function as indicators of expressive intentions of the performer and, when linked to important
music structures, may also be seen as given musical expression to emotional states presented
through the music.

Keywords: Music; Emotion; Performance; Gesture; Kinesics

and the movements and, even, dynamics


Fundamentação Teórica- of our affective life and the patterns of
Theoretical Background movement “whose general
characteristics are similar to bodily
Empirical research in musical movement symptomatic of human
performance (Clynes, 1980; Clarke, emotions, moods or feelings” (Shove
1985; Gabrielsson, 1994, 1995; Scherer, and Repp, 1995, p.58).
1995; Gabrielsson and Juslin, 1996; Davidson studies (1991, 1993),
Salgado, 2000; Juslin and Laukka, based in Gibson's (1979) ecological
2000; Juslin, 2001; Cox, 2001; approach of perception, demonstrated
Davidson, 2001) has revealed that that the body movements made by
musical creativity concerned with the performers while playing contribute to
expression of emotional meaning the expressivity of the performance as
presents gestures (vocal and kinetic) judged by the audience. Davidon's
that can be considered as the parallel of demonstration seems to be mainly
structures between two sets of concerned with the detection of bodily
processes: musical processes and movements as indicators of expressive
processes of affective states. It has long intentions significantly linked to
been stated, but it seems nowadays important music structural features
better understood and confirmed by provided in a notated score. Meanwhile,
empirical evidence, that there is an there are other authors, like Shaffer
inherent homology of organisation and (1992:265), for instance, who claim that
dynamics between the sounds of music performers, conscious or unconsciously,

81
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

seem to use physical gestures associated (1954) Kinesics Analysis, or in Hall´s


with emotional states as a basis for non-linguistic(1963) System for
shaping musical expression. Ultimately, Notation of Proxemic Behaviour).
it is possible to consider and
experimentally to confirm that bodily Método-Method
movements functioning as indicators of
expressive intentions linked to To contribute to a Semiotics
important music structures can also be Theory of Music Performance, through
seen as physical gestures given musical the development of a Theory of the
expression to emotional states presented Gesture as a practice within musical
through the music. performance, and trough a semiological
review of the empirical evidence of
In a previous study Salgado & Wing emotional expression in music
(2002), found evidence showing performance (singing).
quantitative and measurable differences
between different facial emotions, when Resultados-Results
intentionally expressed by experienced
singers during their singing-musical The analytical results of this
performances. Based on these investigation, together with the amount
assumptions and in the point-light of evidence from empirical research
technique of Bassili’s work (1978) exposed above, will allow the
Salgado (2002) has investigated how constitution of a new performative
and if the abstract movement of the semiological model as a basis for a
point lights (resulting from the video better understanding and a better
recording of a series of facial classification of the different levels of
movements while experienced singers perception and awareness of the
expressed different emotions in singing empirical evidence of emotional
performance - while having some expression in music performance
reflectors markers hanging on special (singing).
muscles, anatomically chosen for the
effect) showed sufficient dynamic Conclusões-Conclusions
information to be recognized by an
audience according to the emotional The investigation taken,
intention performed by the singer. nowadays, on the subject of body
movement expressiveness, and the
Objectivos-Aims evidence revealed through the latest
empirical research in Music
This paper aims to discuss body Performance on this matter (some of
language within musical performance, which it has been presented above
and to contribute to a Theory of the surely not in an exhaustive way) allow
Gesture as a practice within musical us to take into consideration some of
performance. And so, to be able to these meaningful elements and to try to
implicate and include the investigation understand better the role of the gesture
of the expression of emotion in music within the expressive communication of
performance within a more general musical meaning.
investigation of the emotion The investigation in the field of
communication in mankind as it is body movement expressiveness has
done, for instance, in Birdwhistell been using lately such specific and
subtle techniques (i.e., the point-light

82
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

technique of Bassili´s (1978) which has content conveyed intentionally, or not,


been used by Davidson´s (1991) and through it. Salgado´s (2002) empirical
Salgado´s (2002) music performance research revealed that, when a singer
empirical research) that it was able to performed the emotion of fear, for
reveal some major evidence in the field instance in the passage where the child
of Gesture communication. One of these cries for help, frightened by the
relevant empirical findings brought to presence of the King (=death) in
light by the empirical research in music Schubert famous song ¨Erlkonig¨, the
performance revealed that even the content of that emotion appeared clearly
¨abstract¨ register of an expressive body expressed vocally as well as facially,
movement (conveying, for instance, a evidencing that inter-modality between
determined emotional meaning) has in aural and visual signals in
itself enough dynamic information to be communicating gesturally is plausible.
recognized by an audience as the Beyond the limits of structured music
expression of that specific emotional notation, or even beyond the limits of
content. the multi-channeled music performance,
A possible explanation for this it seems that the performer and the
human ability to interpret such perceiver seek instinctively the
¨abstract¨ registers of the expressive artistically conceived e-motion, which
gesture could be, according to is very often nothing else but our
Churchland (1995), that we are immediate interpretation of motion.
biologically attuned to categorize In his lectures on Musical
nuances far beyond those for which we Gesture, Hatten (1999:L1:1) has
have labels in our language. In fact, considered gesture ¨as movement that is
Churchland (1995, p.84-91) has shown marked for its significance, whether by
that some neural networks can ¨learn¨ or for the agent or the interpreter.¨
quite subtle discriminations even Of course Gesture, intentional or
without ¨knowing¨ what is they are not, could be seen as Hatten
discriminating. (1999:L2:5) suggests, as ¨movement
Another possible explanation interpretable as a sign¨, or as Lidov
would be to consider that gestural (1993) puts it ¨as movement that is
dynamics and shaping can be expressed marked as meaningful¨. But on the
through many different senses, all of other hand, we should also consider that
which share the characteristics of though interpretable as a sign, gesture
continuity through time (Hatten:L2:5). should be not seen as a term of a
And so, ¨intermodality¨ could be process of communication, in the sense
another reasonable key to understand a word or a concept use to be
the perception and processing of the considered.
meaning expressed through a ¨abstract¨ Gesture should not be seen as a
register of a specific expressive gesture. replica, i.e., a mechanic duplicate of a
In fact, we should seek to understand word, as another re-presentation of the
these ¨abstract sublimations¨ as a kind Same (meaning, in this case). Gesture
of emergence whereby the gesture should not be conceived to (re)present
maintains its characteristic potency meaning the same way the word-sign
while gaining a factor of generalization (re)presents it. According to Oléron
or type-formation. This generalization (1952, p.47-81), Gesture should be seen
seems able to convey information about as a process anterior to re-presentation
the gesturer and/or the expressive and having a direct participation in the

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

action of re-presenting something as i) irreducible to the sign and


well as in the reality itself. Gesture preceding it, and
should be seen as an activity ii) constitutive of the meaning and
¨happening¨ before the message is designative of the reality,
presented and the meaning constituted.
So, within a process of communication, we will be able to understand its
Gesture has a practical character and, relevance as practical element within
though it can be seen as a message the process of the expressive
inside a pre-established group, it seems communication in music performance.
to be, in fact, the process of elaborating Music, performed music, is
the message itself and the work that before anything else body movement,
precedes the constitution of the body-in-movement. To play music, it is
meaning. to be able to produce sound through
So, the gesture seems to work as expressive body movements which will
a demonstration process, indicative of ¨in-form¨ the sonorous material with the
an action existing previously to the idea ¨quality¨ (Firstness), the ¨intentionality¨
or consciousness of the relationship (dynamics) (Secondness), the
sign/meaning. Previous to the sign and ¨symbolism¨ (Thirdness) of the gesture
all the problematic of meaning (and the that precedes it, following the
connected significant structure), it is classification of Peirce´s categories. Of
possible to conceive a practice of course, these categories will only apply
designation (of indexicality), a Gesture to the ¨afterwards¨ of the elaborated
that indicates, that shows, not with the sign, and not to the Gesture itself. A
purpose of meaning (intention to signify pointing finger, for instance, is
something) but to approach (in-globing) culturally marked for indexicality (a
within a same space the subject, the practice of designation with no purpose
object and the practice, avoiding this of meaning, as it was clarify above).
way the typical west world dichotomy Even if it has its relevant ¨meaning¨
of spirit/body, idea/word, sign/meaning. marked culturally, other features of the
(Kristeva:75:Pratiques et Langages gesture remain dependant of the
Gestuels: Marcel Didier et Larousse: Tr. constitution of the meaning through the
Manuela Torres:75:Ed. Vega). elaboration of the significant structures
In this sense, Gesture should be of the sign (i.e., emotional state of the
understood as a process which includes gesturer, intentionally conveying power,
the subject-the object-and the practice etc).
itself within a same empty relationship To conclude this theoretical
(i.e. the elements of this relationship are considerations on a guise of
not conceivable separately). This prolegomena thoughts to a
relationship is one of an indexical type, comprehensive theory of gesture, three
but in no way of a significant type. It majors presuppositions should be taken:
only would be able to become
significant ¨afterwards¨, it is to say: A) A theory of Gesture should take into
within a new relationship - the one consideration this ¨beforeness¨ quality
concerning the word/sign and its of the gesture and try to approach its
significant structures. practice as relational and transgressive
to the verbal structure, bringing an
So, if we consider the gesture: openness as well as an extension to the
system of the sign (which is posterior to

84
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

it but through which we are able to Proxemic Behaviour), and aware of the
think the gestural practice). dangers of importing linguistic models
to analyze gestural communication.
B) This Theory of Gesture should take
into consideration that gestures share Subáreas de Conhecimento-Other
certain characteristics, being, according Subjects
to Hatten (1995:L2:5-6):
A mente e a percepção musical; a mente
a. analog, as opposed to digital or e a produção musical; artes musicais,
discrete, lingüística, semiótica e cognição.
b. hence, continuous in a
productive sense of continuity Bibliografia-Bibliography
(…)
c. having articulate shape, Bassili, J.N. (1979). Emotion
d. possessing hierarchical potential recognition: The role of facial
e. characterized by a significant movement. Journal of Personality and
envelope (pre- and post- Social Psychology, 37, 2049-58.
movement can substantially Birthwhistell, R.L. (1954). Introduction
affect the quality of the gesture), to Kinesics, Louleville, University of
f. being contextually constrained Louville Press, 1954 (1st Ed.
and enriched, and Washington, 1952).
g. typically foregrounded. (…)
Clarke, E. (1985). Structure and
h. being beyond precise notation or
expression in rhythmic performance. In
exact reproducibility, but
P. Howell, I. Cross and R. West (eds.)
i. amenable to type-token
Musical Structure and Cognition, pp.
relationships via cognitive
209-36. London: Academic Press.
categorization or even
conceptualization, and thus, Clifton, T. (1983). Music as heard: A
j. potentially systematic to the Study in Applied Phenomenology. New
extent of being organized Haven CT: Yale University Press.
oppositionally by type, as in Clynes, E. F. (1977). Sentics: The touch
gestural ¨languages¨ or ritual of emotions. New York: Doubleday.
movements,
k. Posture should be considered as Clynes, M. (1980). Transforming
gesture ¨under a fermata¨. (…) emotionally expressive touch to
The posture reverberates with similarly expressive sound. In
the resonance of the implied Proceedings Tenth International
gesture of an agent. Acoustic Congress, Sydney.

C) Finally, a Theory of Gesture, should Cox, A. (2001). The mimetic hypothesis


choose a methodology dealing with the and embodied musical meaning.
communicative aspects of the learned Musicae Scientiae, Fall 2001, Vol V, nº
and structured behavior of the body in 2, 195-212. ESCOM European Society
movement (as within Birdwhistell´s for the Cognitive Sciences of Music.
(1954) Kinesics Analysis), aware of Davidson, J.W. (2001). The role of the
how gestures are organized as a ¨pre- body in the production and perception
code¨ system within the process of of solo vocal performance: A case study
communication (as within Hall´s non- of Annie Lennox. In Musicae Scientiae,
linguistic(1963) System for Notation of Fall, vol. V, nº 2, 235-256. ESCOM.

85
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Davidson, J.; Correia, J. (2001). feedback. Musicae Scientiae, Fall 2000,


Meaningful Musical Performance: A Vol IV, nº 2, 151-183.
bodily experience. Research Studies in Juslin, P. (2001) Communicating
Music Education, nº 17. Callaway emotion in music performance: a review
International Resource Centre for Music and a theoretical framework. In Music
Education. and emotion. Oxford University Press.
Gabrielsson, A. (1994). Intention Salgado, A. (2000). Voice, Emotion and
and emotional expression in music Facial Gesture in Singing. In
performance. In A. Friberg, J. Iwardson, Proceedings of 6th International
E. Jansson, & J. Sundberg (Eds.), Conference on Music Perception and
Proceedings of the Stockholm Music Cognition, Keele.
Acoustics Conference.
Salgado, A.; Wing, A. (2002). The
Gabrielsson, A. (1995). Expressive
perception of Emotional Meaning in
Intention and Performance. In R. Music Performance – Singing.
Steinberg (ed.) Music and the Mind Measuring Facial E-motion. In
Machine: The psychophysiology and Proceedings of SPRMME and ESCOM
psychopathology of the sense of music, Conference on Music Performance,
pp. 35-47.Berlin, Heidelberg, New
hosted by CSMP, in Royal College of
York, London: Springer-Verlag. Music, London, 2002.
Gabrielsson, A.; Juslin, P. N. (1996).
Salgado, A. (2007). The Body Knows
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Better: The Perception and the
performance: Between the performer's
Recognition of the Performed
intention and the listener's experience.
Expressed Emotion, by using the Point-
Psychology of Music, 24, 68-91. Society
Light Technique. In Proceedings of the
for Research in Psychology of Music
PERFORMA’07-Encontros de
and Music Education.
Investigação e Performance, Aveiro,
Gibson, J.J. (1960). The information Portugal.
containd in light. Acta Psychologica,
Schaffer, L. H. (1992). How to interpret
17, 23-30.
Music. In M. R. Jones and S. Holleran
Hall, E. T. (1963). A System for (eds.) Cognitive Basis of Musical
Notation of Proxemic Behaviour. Communication, pp. 263-78.
American Anthropologist, vol.65, 5. Washington: American Psychological
Hatten, R. S. (1999) Lectures on Association.
Musical Gesture, 1-8. Cyber Semiotic Scherer, K.;nd Siegwart, H. (1995).
Institut Home Page: Course outline. Acoustic Concomitants of Emotional
Imberty, M. (1977). Can one seriously Expression in Operatic Singing: The
speak of narrativity in music? In Case of Lucia in Ardi gli incensi.
Journal of the Voice, vol. 9, nº 3, pp.
Proceedings of the third Triennial
ESCOM Conference, 1977, (ed. A. 249-260. Philadelphia: Lippincott-
Raven Pub.
Gabrielsson), pp. 13-22. Uppsala,
Sweden: Department of Psychology, Shove, P.; Repp, B.H. Musical motion
Uppsala University. and performance: theoretical and
empirical perspectives. In J. Rink (ed.)
Juslin, P.; Laukka, P. (2000). Improving
The Practice of Performance, pp. 55-83.
emotional communication in music
Cambridge University Press, 1995.
performance through cognitive

86
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Stubley, E. (1966). Modulating


Identities: The Play of Ensemble
Performance (Being in the Body, Being
in the Sound). Paper presented to the
Music Educators National Conference,
Kansas City, MO, spring 1996.
Sundberg, J. (1987). The Science of the
Singing Voice. Illinois: Northern Illinois
University Press. (Translation of
"Röstlära" by Johan Sundberg, Proprius
Förlag, Stockholm, 1980).

1
Address for correspondence: Salgado,
António, Department of Art and
Communication, University of Aveiro, 3800
Aveiro-Portugal; Email: salgado@ca.ua.pt.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A teoria do contorno no estudo da emoção em música

Bernardo Pellon
bernardopellon@yahoo.com.br

Resumo: Usando como roteiro Davies (2001) foi feita uma revisão bibliográfica de conceitos
filosóficos que tentaram explicar a relação entre música e emoção. O objetivo foi encontrar
definições conceituais para auxiliar uma pesquisa em andamento. Foram constatadas deficiên-
cias em algumas teorias e encontrada a teoria do contorno que apresenta as melhores ferramen-
tas conceituais para uma pesquisa que pretende mostrar como a estrutura musical estabelece um
paralelo com emoções.

Palavras-chave: Emoção –Expressão Musical – Filosofia

diversas teorias já desenvolvidas por


A relação entre música e emoção filósofos, mostrando suas propostas e
é antiga, porém somente no final do séc. fragilidades. Esta revisão bibliográfica
XIX e principalmente ao longo do séc. foi importante para uma pesquisa em
XX, surgiram estudos que almejavam andamento sobre a relação entre música
descobrir como se estabelece a relação e emoção tendo como enfoque a análise
entre música e emoção. Esses estudos musical e a composição, buscando de-
começam a apresentar uma fundamen- senvolver recursos que possibilitem a
tação que jamais existira. A teoria da realização de ambas as tarefas de forma
Música não possui ferramentas suficien- fundamentada e consciente.
tes para explicar essa relação, portanto a Esta fase da pesquisa permitiu
interdisciplinaridade passou a ser fun- percorrer o histórico das teorias já de-
damental para o avanço dessa linha de senvolvidas, mas principalmente conhe-
pesquisa. Profissionais de outras áreas cer a teoria do contorno, que será ado-
como filosofia, psicologia, musicologia, tada na pesquisa como uma de suas ba-
antropologia, biologia, musicoterapia e ses teóricas.
sociologia, cada um com suas especiali-
dades, se engajaram nessa pesquisa so- 1. A Filosofia
mando esforços com as teorias musicais
para tentar explicar como a música se O papel da filosofia é resolver
relaciona com as emoções, o que ainda questões que as pesquisas empíricas, a
hoje permanece sem muitas comprova- busca de fatos, a teoria científica e opi-
ções e explicações concretas. niões pessoais não são capazes de solu-
O presente trabalho tem como cionar. São teorias que não sofrem in-
objetivo mostrar de que maneira a filo- fluências da pesquisa científica, de su-
sofia pode auxiliar conceitualmente no gestões de dados empíricos, pois diz
estudo da relação música/emoção. Para respeito a questões cujos dados testados
tal foi feita uma revisão bibliográfica pela ciência não respondem. O método
utilizando como roteiro o capítulo escri- científico pressupõe responder questões
to por Stephen Davies (2001). Nele Da- usando uma abordagem que prejulga o
vies faz uma apresentação do papel da resultado do estudo. Porém, se existirem
filosofia em pesquisas, e uma revisão de confusões teóricas em alguns tópicos,

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

será confusa a descrição da evidência Deve ser sempre analisado onde


empírica. É nesse momento que se torna se deseja chegar com questionamentos
necessária a filosofia, para construir filosóficos, pois se não existir uma bus-
uma teoria clara que permita interpretar ca pela verdade sobre o assunto, torna-
as evidências encontradas de forma efi- se sem sentido o uso da filosofia. Nem
ciente. toda questão filosófica tem peso, muitas
vezes são mundanas ou de senso co-
Dizer que o método filosófico é mum, tanto porque se apropriam de pa-
não empírico não implica que fi- radigmas incontroversos quanto porque
losofia é indiferente quanto aos
fatos da ciência. Analise filosófica
suas ilustrações chamam mais atenção
precisa ser consistente com os fa- para si do que para o assunto em ques-
tos, ou com interpretações do que tão.
eles são. Contudo, analise filosó- Quanto à pesquisa sobre música
fica precisa ir além dos fatos resolvendo os e emoção, a filosofia servirá para apre-
problemas, paradoxos, e inconsistências
que estes aparentam gerar. O que
sentar teorias que expliquem os proces-
é necessário freqüentemente não sos envolvidos, que fazem os ouvintes
são mais fatos, mas a clarificação relacionarem a música com emoções.
das questões levantadas por esses Davies (2001) faz uma revisão de parte
que já estão disponíveis. A noção do que a filosofia contribuiu para essa
mais familiar pode produzir com-
plicações conceituais, e então não
área de pesquisa até então.
são mais os fatos, mas o aprofundamen-
to de nossa compreensão atual, ou novas in- 2. Música e Emoção, algumas abor-
terpretações dos dados existentes, que é pre- dagens.
ciso. Algumas vezes a investigação filo-
sófica sugere novas questões em-
píricas, e aqui a ciência retorna
No caso da emoção em música o
outra vez. Em outras situações, a papel da filosofia é criar teorias que
compreensão de conexões ou dis- explicam o paralelo da expressão musi-
tinções conceituais inesperadas cal com as emoções. Como uma pessoa
nos permite dominar complica- ao escutar uma música a classifica como
ções mentais que anteriormente
nos afligia.1 (Davies, 2001, p. 24)
triste ou alegre, por exemplo, e como
um compositor pode se dizer expres-
sando suas emoções através da música.
1
Para Davies uma abordagem
Tradução livre de “To say that philosophical possível é descobrir recursos técnicos
method is non-empirical is not to imply that
philosophy is indifferente to the fact of science.
de composição. Isso corre o risco de
Philosophical analyses must be consistent with reduzir a expressividade musical a um
the facts, or with interpretation of what these catálogo de técnicas. A maioria das mú-
are. But philosophical analyses must go beyond sicas tristes está em modo menor, mas
the facts in resolving the problems, paradoxes, não quer dizer que soar triste significa
and inconsistencies they can seem to generate.
What is need often is not more facts, but a clari-
“modo menor”. De alguma forma não
fication of the issues raised by those that are bem explicada a modalidade menor
available. The most familiar notions can produ- possui características diferentes que a
ce conceptual puzzles, and then it is not more fazem ser associada à expressão de tris-
facts but a deepening of our current understan- teza. Esse não é o enfoque da pesquisa
ding, or new interpretations of the resident data,
that is needed. Sometimes philosophical inves-
de Davies, sendo pouco aprofundado.
tigation are suggestive of new empirical questi- Contudo, há pesquisadores que se dedi-
on, and here science takes over again. At other
times, a grasp of unexpected conceptual overcome the mental cramps that formerly
connections or distinctions enables us to afflicted us”.

89
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

cam em descobrir a relação entre ele-


mentos musicais e a emoção. Alguns
indicam que um único elemento musical 3. A expressão das emoções e música
é insuficiente para caracterizar a expres-
são de uma emoção específica, sendo a Somente criaturas sencientes
combinação de diversos elementos que podem expressar suas emoções. Música
vai configurar uma emoção. A pesquisa não é senciente, logo emoções não po-
em andamento busca mostrar que aspec- dem ser expressas por elas. Então de
tos fisiológicos, cognitivos e compor- que maneira muitas das músicas expres-
tamentais de uma emoção, como a tris- sam emoções como alegria e tristeza?
teza, possuem semelhanças com fatores
da estrutura musical para que seja con- 3.1 Música como símbolo
figurada a expressão dessa emoção.
Davies observa que achar essas caracte- A primeira teoria adotada prin-
rísticas musicais é importante, mas re- cipalmente pela semiótica sugere que a
presenta apenas um passo inicial para a música opera como símbolo. Alguns
teoria da expressão musical. autores sugerem que a música transmite
Outra teoria vê a expressão mu- ou seleciona algo das emoções de uma
sical como metáfora. Não quer dizer forma parecida com linguagem, combi-
que a música, assim como a figura de nando elementos de acordo com regras
linguagem pode ser descrita metafori- cujo funcionamento gera ou comunica
camente, mas que a música é a própria uma semântica ou conteúdo proposicio-
expressão metafórica. Segundo Davies, nal. Algumas pesquisas usam termos do
chamar a expressão musical de metáfora vocabulário, admitem que a música, a
já é uma metáfora, pois a metáfora é estrutura musical se organiza de uma
primordialmente um recurso lingüístico forma sintática. Davies, contudo, sugere
que depende da relação semântica e não que não existe uma semântica musical,
possui equivalência musical. Isso mos- ao menos que se refira de uma forma
tra como é difícil explicar como a ex- simbólica. Concordo com o autor, pois
pressão musical em seu sentido literal não existe um conteúdo claro para um
mostra um paralelo com a do sentido acorde ou melodia, como tem uma pa-
literal das emoções, mas não oferece lavra, a não ser o conteúdo que empre-
nenhuma solução para o problema. gamos, que não possui uma regra. Nin-
Para Davies uma teoria inaceitá- guém escuta da mesma maneira a músi-
vel é que a expressão musical é sui ge- ca, no máximo de maneira semelhante.
neris, ou seja, tem sua própria maneira Sem essa semântica o paralelo com a
de ser e não é válida a comparação desta lingüística e outros sistemas simbólicos
com emoções. Quanto a isso Davies diz: colapsa. Ao meu ver, a descrição de
“O que repudio é a sugestão de que uma eventos musicais usando a nomenclatu-
análise da expressão musical pode abs- ra da gramática é válida como jargão,
ter-se de explicar se e como a música desde que todos entendam as associa-
realiza um tipo de expressão que é e- ções feitas. Porém, no tocante da minha
quivalente ao biológico”2 (Ibid., p. 28). pesquisa não considero uma ferramenta
que vá solucionar alguma questão, po-
dendo até confundir alguns leitores.
2
Tradução livre para “What I repudiate is the
suggestion that an analysis of music’s
expressiveness can avoid addressing if and how expressiveness that is equivalent to the
the musical medium realizes a kinf of biological one”.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Não é o caso onde a música apon- Davies apresenta uma revisão de


ta ou se refere às emoções que e- algumas teorias que tentaram responder
las vão descrever. Não existe uma
equivalência plausível em música
a questão: somente criaturas sencientes
para predicado ou clausura propo- podem expressar suas emoções. Porém,
sicional, ou qualquer outra função muitos teóricos acreditam que quando
e operação que é essencial para o uma emoção é expressa pela música,
uso significativo da lingüística e existe alguém expressando suas emo-
outros sistemas funcionais verda-
deiros. (Ibid., p. 29).3
ções através dela. Os principais candi-
datos são o compositor, o(s) interpre-
Outra teoria alternativa é que a te(s) ou uma pessoa representada na
música se refere às emoções como o música. Uma alternativa é o ouvinte,
resultado ad hoc, com associações e que utiliza a música como licença para
designações arbitrárias. Suponhamos expressar suas emoções.
que um gesto ou frase musical, por e- A teoria da expressão defende
xemplo, foi com freqüência relaciona- que a expressão em música depende de
dos com determinado texto expressivo o compositor expressar sua emoção no
de uma dada emoção, como em óperas, ato de compor. Para Davies essa teoria
recitativos, canções ou até cinema ou se torna empiricamente falsa já que nem
em ritos e eventos que possuem um ca- toda música dotada de expressão foi
ráter emocional como casamento ou composta por um compositor que sentia
funeral. Se ao longo de anos essa rela- uma emoção tentando expressá-la atra-
ção se mantém, a música puramente vés dela. Por um ponto de vista mais
instrumental, quando possui esse gesto filosófico, tristeza é expressa chorando
ou frase, passa a ser ouvida como ex- ou coisas do gênero, mas não pela com-
pressiva dessa emoção. Considero que a posição musical. Em alguns casos é um
idéia não pode ser descartada, é possível fato os compositores utilizarem a músi-
que se aplique em alguns casos, contudo ca para expressar seus sentimentos. Eles
está longe de dar conta das possibilida- utilizam-se das propriedades expressi-
des da música ligada à emoção. Seguin- vas da música para fazer uma conexão
do esse ponto de vista, uma música agi- com suas emoções. Contudo, estes não
tada e alegre poderia ser utilizada em se expressam de forma direta, é como se
funerais e após um tempo de utilização vestissem uma mascara que representa
passaria a ser associada ao luto e, con- uma expressão para poder se expressar.
seqüentemente, à tristeza. Julgo pouco Só é possível utilizar a música para tal
provável que essa hipótese seja verda- tarefa por que essa possui aspectos ex-
deira. pressivos de emoção. (cf: Davies 1994 e
Kivy 1989)
3.2 Sujeitos na experiência com a A teoria da emoção despertada
música (arousal theory) defende a idéia de que
a expressão musical tem a propriedade
de invocar emoções no ouvinte. Davies
argumenta que para que isso seja verda-
3
Tradução livre para “It’s not the case that deiro a condição é que exista uma cor-
music points or refer to emotions which it then respondência entre o ouvinte atribuir a
goes on to describe. There are no plausible
equivalents in music to predication, to
tristeza à música, por exemplo, porque
propositional clousure, or to any of the other este sente tristeza ao escutá-la. E isso
functions and operators that are essential to the não é verdade. Não é negar que uma
meaningful use of linguistic and other truth- pessoa possa ter uma reação emocional
functional systems”.

91
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

a partir da música. Mas negar que essa musical. Além disso, músicos e não-
seja a condição que torna verdadeira a músicos acessam esses significados com
expressão da emoção por aquela. O que a mesma facilidade, não sendo necessá-
acontece é o inverso: por a música ex- rio nenhum estudo musical específico.
pressar uma emoção é possível se emo- Sendo assim, como se dá o en-
cionar ao escutá-la. As reações diante tendimento e a percepção da emoção em
da música são heterogêneas e é perfei- música? A teoria do contorno (contour
tamente possível o reconhecimento da theory) é talvez a melhor para a pesqui-
expressão emocional diante de uma mú- sa em questão. Esta abandona a expres-
sica sem que ocorra necessariamente sividade musical como dependente da
uma reação emocional no ouvinte. Isso sua conexão com emoções sentidas.
mostra que existe uma dependência mú- Observa que comportamentos, procedi-
tua entre nossa experiência com a músi- mentos, aparências e fisionomias são
ca e o julgamento que fazemos dela de experimentadas como expressivas sem
acordo com suas características. O que estarem expressando emoções ou serem
não implica um possuir precedência conseqüências de emoções. Sua aparên-
explanatória em relação ao outro. cia possui características das emoções.
O cachorro da raça São Bernardo possui
3.3 Teoria do contorno feições de tristeza, e o salgueiro chorão
lembra choro. O cachorro é senciente
Gabrielsson & Lindström (2001) para sentir emoção, contudo sua feição
propõem que um compositor com a in- não indica que está triste. Da mesma
tenção de criar uma música expressiva forma o salgueiro-chorão parece estar
de emoção utiliza os fatores estruturais chorando, como o próprio nome diz,
para atingir uma certa expressão emo- mas, sendo uma planta, não está cho-
cional que pode não ter nenhuma ou rando e muito menos triste. São seres
pouca relação com seu estado de espíri- cujos contornos lembram estados emo-
to. Dentre os fatores mais usuais pode- cionais, mas não representam uma ex-
mos citar o tempo, intensidade sonora, pressão de uma emoção sentida.
dinâmica, altura, modo, melodia, tim-
bre, articulação, ritmo e harmonia. A
pesquisa dos autores se baseia basica-
mente em encontrar de que maneira
esses fatores são apresentados para cada
emoção em música. Por exemplo, uma Figura 1 - São Bernardo
música alegre ser usualmente rápida e
pouco provavelmente lenta. Para os
autores a emoção percebida depende
tanto dos fatores da estrutura composi-
cional quanto da performance. Contudo,
a percepção da expressão emocional Figura 2 - Salgueiro-Chorão
deve ser distinta da reação emocional
individual do ouvinte, ou seja, da emo- A teoria do contorno propõe que
ção sentida. Sloboda & Juslin (2001) peças apresentam características
das emoções, ao invés de dar ex-
colocam semelhança entre o evento mu- pressão para emoções ocorridas, e
sical e a referência não-musical é, de elas a fazem em virtude das seme-
certa forma óbvia para alguém que está lhanças entre suas próprias estru-
familiarizado com a referência não- turas dinâmicas e comportamen-
tos ou movimentos que, em hu-

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

manos, indica características da moções na voz. Davies (2001) considera


emoção. O que se defende não é duvidosa essa hipótese, e julga mais
que a música de alguma forma se
refere além de si mesma às emo-
propício que exista semelhança com as
ções ocorridas; música não é um emoções na dinâmica da estrutura musi-
símbolo icônico de emoções re- cal do que com a sua sonoridade.
sultante da semelhança com suas Para Davies (2001) nenhuma ou-
manifestações externas. Mais exa- tra teoria é mais bem equipada para
tamente, a questão é que a expres-
sividade é uma propriedade da
descrever a relação entre música e emo-
música. Essa propriedade reside ção. A teoria da emoção despertada
na maneira como a música soa pa- somente aponta o que sentimos diante
ra os ouvintes, assim como a apa- da música e os teoristas que vêem a
rência feliz pode se uma proprie- música como símbolo icônico, acredi-
dade disposta em faces e movi-
mentos de criaturas. Por a música
tam em uma narrativa na perspectiva de
ser uma arte temporal, seu caráter pessoa. A teoria do contorno seria a
expressivo é revelado somente mais bem equipada para perceber a se-
gradualmente, e pode ser ouvida melhança entre a música e a emoção,
somente através da atenção sus- que é o mais importante em relação à
tentada para seu entendimento. É
necessário tanto tempo para ouvir
expressividade musical.
as propriedades expressivas quan-
to para ouvir as passagens onde 4. Resultados
essas propriedades são articula-
das.4 (Davies, 2001, p.35) A teoria do contorno não des-
carta a possibilidade da música desper-
Tanto Kivy (1989) quanto Davi- tar a emoção em um ouvinte, e nem que
es (1994) defendem essa teoria. Kivy através dela um indivíduo possa expres-
sugere que uma música instrumental sar suas emoções. Contudo não adota a
expressiva lembra entonações e infle- posição de que essa seja a condição para
xões que são usadas para expressar e- que exista emoção em música, essa é
somente uma conseqüência das suas
4
Tradução livre para “The contour theory propriedades expressivas. O que se faz
proposes that pieces present emotion necessário é que exista uma relação de
characterístics, rather than giving expression to semelhança entre propriedades da estrutu-
occurrent emotion, and they do so by virtue of ra musical com propriedades fisiológicas, cogni-
resemblances between their own dynamics tivas e comportamentais da emoção, para que
structures and behaviours or movements that, in
humans, present emotion characteristics. The
seja traçado um paralelo entre ambas, e
claim is not that music somehow refers beyond se constate a existência de uma relação
itself to occurent emotions; music is not an entre música e emoção. A partir da in-
iconic symbol of emotions as a result of vestigação acerca das contribuições da
resembling their outward manifestations. filosofia da música na discussão sobre a
Rather, the claim is that the expressiveness is a
property of the music itself. This property
relação música/emoção foi possível
resides in the way the music sounds to the construir o quadro teórico necessário
attuned listener, just as happy-lookingness can para a fundamentação da pesquisa em
be a property displayed in a creature´s face or questão e assim definir seu enfoque
movements. Because music is a temporal art, its central.
expressive character is revealed only gradually,
and can be heard only through sustained
attention to its unfolding. It takes as long to hear 5. Conclusão
the music’s expressive properties as it takes to
be hear the passages in which those properties
are articulated”.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

De alguma forma a mente hu- and Emotion. In: JUSLIN, Patrick N.;
mana reconhece semelhanças entre pro- SLOBODA, John A. (Ed). Music and
priedades da estrutura musical e a estru- Emotion: theory and research. New
tura das emoções. A teoria do contorno York: Oxford University Press, 2001,
possibilita afirmar que somente essa pp.71-104.
semelhança é necessária para que exista
emoção em música. A pesquisa em an-
damento busca estudar as características
de algumas emoções selecionadas e
sugerir possibilidades musicais que tra-
çam um paralelo com essas característi-
cas. Em outras palavras, pretende en-
contrar “contornos” musicais que po-
dem se remeter a emoções, explicando
de forma embasada como e porque é
possível a existência desse paralelo.

6. Subáreas de conhecimento

Artes Musicais, lingüística, semiótica e


cognição.

7. Referências bibliográficas

DAVIES, Stephen. Musical meaning


and expression. Ithaca, NY: Cornell
University Press, 1994.
DAVIES, Stephen. Philosophical
Perspectives On Music’s
Expressiveness. In: JUSLIN, Patrick N.;
SLOBODA, John A. (Ed). Music and
Emotion: theory and research. New
York: Oxford University Press, 2001,
pp.23-44.
GABRIELSSON, Alf; LINDSTRÖM,
Erik. Psychological Perspectives On
Music and Emotion. In: JUSLIN,
Patrick N.; SLOBODA, John A. (Ed).
Music and Emotion: theory and
research. New York: Oxford
University Press, 2001, pp.223-248.
KIVY, P. Sound Sentiment.
Philadelphia, PA: Temple University
Press, 1989.
SLOBODA, John A; JUSLIN, Patrik N.
Psychological Perspectives On Music

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Criação musical e cultura infantil: possibilidades e


limites no ensino e aprendizagem da música

Flávia Narita
UnB
flavnarita@yahoo.com.br
Maria Cristina de Carvalho Cascelli de Azevedo

Resumo: As crianças, assim como os adultos, estão imersas numa rede sócio-interativa que
contempla grande diversidade musical. Desde a mais tenra idade, elas adquirem vivências
musicais estimuladas pela cultura familiar, pela escola, pelos colegas e pela mídia formando
valores e preferências musicais (Small, 1980; Campbell, 1998; Burnard, 2006). As crianças
ouvem, vêem, cantam, dançam, brincam e estudam música. Que conhecimentos musicais elas
levam para a sala de aula? De que forma suas vivências musicais se tornam objeto de criação
musical? Essas questões nortearam o trabalho pedagógico que relatamos nesta comunicação
cujo objetivo é discutir as possibilidades e os limites de integração da cultura musical infantil na
criação musical em aulas de música. Nesse sentido, entendemos criação musical de forma
ampla, como atividade musical que explora diferentes formas de manipular e organizar os sons
para elaboração de arranjos musicais, improvisação e composição. Sob essa concepção,
observamos os trabalhos de arranjo musical de um grupo de crianças de 7 a 10 anos. A escolha
das músicas para os arranjos se baseou em alguns critérios: músicas conhecidas e preferidas
pelos alunos; músicas que eles já tocavam em seus instrumentos e músicas presentes na mídia.
Na elaboração dos arranjos foram explorados seus conhecimentos musicais prévios, seus
interesses e suas habilidades cognitivas e motoras. A análise desses arranjos se baseou no
conceito sócio-cultural de criatividade (Burnard, 2006) e no trabalho de Campbell (1998) sobre
cultura musical infantil. O projeto pedagógico realizado destaca a relevância de se privilegiar os
conhecimentos musicais dos alunos na criação, execução e apreciação de músicas. Nesse
sentido, observamos a importância de se planejar ações pedagógicas que integrem as vivências
musicais dos educandos às aulas de música na promoção contínua de seu desenvolvimento
musical.

Palavras-chave: criação musical; criatividade; cultura musical infantil

categorias”(Levitin, 2007, p.24). Essas


1. Introdução funções estão relacionadas a diferentes
fatores de natureza físico-biológica e
As pesquisas no campo da sócio-cultural. Entender, pois, como
cognição musical associam a música às elas se desenvolvem e como são
mais altas funções cognitivas e a mobilizadas no ensino e aprendizagem
consideram uma ferramenta valiosa para musical tem sido um desafio para
compreendermos a mente humana e pesquisadores e educadores musicais.
seus processos cognitivos: “apreciar, Em nossa atividade docente e de
executar e compor música envolvem pesquisa temos observado a relevância
memória (de curta e longa duração), dos estudos sobre a cultura musical
atenção, utilização de princípios infantil (Small, 1980; Campbell, 1998;
agrupados, percepção temporal, Burnard, 2006) para compreendermos a
predição, formação e manutenção de forma como as crianças se relacionam

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

com a música, adquirindo integração da cultura musical infantil na


conhecimentos e habilidades musicais. criação musical em aulas de música.
A partir de questionamentos sobre os Para isso, abordaremos brevemente a
conhecimentos musicais que as crianças criatividade em música e focalizaremos
trazem para as aulas de música, este trabalho no relato e análise da inter-
procuramos observar como suas relação entre cultura infantil e a
vivências musicais (escolar, extra- elaboração de arranjos e improvisos
escolar, influenciada pela mídia, musicais por crianças com idades entre
família, amigos etc.) se tornam objeto 7 e 10 anos em projeto pedagógico de
de criação musical e implicam no seu extensão universitária.
desenvolvimento musical e cognitivo.
Na nossa prática, a criatividade torna-se 2. Criatividade em música
o eixo articulador entre as vivências
musicais das crianças e o ensino e a A literatura sobre criatividade
aprendizagem musical. tem re-definido o conceito do termo a
Portanto, a criação musical é o partir de contribuições de diferentes
foco do projeto pedagógico CRIAMUS, áreas do conhecimento. Burnard (2006),
Oficina de Criação Musical Infantil que relata que os pesquisadores têm
desenvolvemos na extensão investigado: os processos cognitivos
universitária. Essa atividade atende às associados à criatividade e as diferenças
crianças da comunidade local, na faixa pessoais e sócio-culturais que
etária de 7 a 10 anos, em curso interferem no processo criativo.
semestral de 24 horas/aula, dividido em Webster, por exemplo (apud Burnard,
16 encontros de 90 minutos. O curso 2006) reconhece que as diferenças
pretende criar um espaço para individuais afetam o desenvolvimento
investigação da prática docente com do pensamento criativo em música,
foco na aprendizagem colaborativa em enquanto Csikszentmihalyi (apud
práticas de conjunto que integrem Burnard, 2006) provoca uma mudança
execução, criação e apreciação musical. conceitual ao compreender a
Para tanto, contemplamos músicas de criatividade como uma habilidade que
diversos gêneros e estilos: canções e depende do julgamento das pessoas e
brincadeiras infantis, orquestrais, não, simplesmente, de uma capacidade
étnicas, populares; da mídia, entre inata ou que possa ser desenvolvida.
outras. Dessa forma, o repertório Assim, ele defende o conceito cultural
diversificado propicia compreender: 1) do termo, em que o sentido é atribuído
como as crianças se relacionam com a de acordo com o que os outros têm a
música; 2) como ouvem e aprendem as dizer. Na área de Educação Musical,
suas músicas favoritas; 3) como Elliott (apud Burnard, 2006), afirma que
desenvolvem suas preferências e gostos uma realização criativa em música “tem
musicais; 4) que atividades musicais suas origens em comunidades
preferem; 5) como aprendem em específicas de pessoas que
conjunto e colaborativamente; 6) que compartilham uma tradição específica
estratégias de ensino e aprendizagem de pensamento musical” (p. 357). Ou
são mais significativas nesse seja, o que é considerado criativo para
aprendizado. um grupo (de crianças, por exemplo)
Sob essa perspectiva, nesta pode não ser validado por outro grupo
comunicação, nosso objetivo é discutir (de adultos, por exemplo).
as possibilidades e os limites de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

De acordo com conceito sócio- contextual de composição,


cultural de criatividade, a criação improvisação e arranjo, mas
também na construção de
musical com crianças implica o “olhar” realidades mais amplas nas quais
pedagógico sobre a cultura infantil e os atos de execução e audição
seus contextos sociais. Em nosso ocorrem. O ponto principal aqui é
projeto pedagógico-musical, essa que o que constitui criatividade
atitude objetiva validar os “mundos musical e como ela se desenvolve
durante a infância são conceitos
musicais” das crianças incentivando-as culturais. (Burnard, 2006, p. 361)
a expressarem suas idéias musicais por
meio de manipulação e organização Na fala de Burnard, o foco da
sonora em arranjos e improvisos. Dentre definição de criatividade retorna às
as idéias musicais das crianças, tivemos concepções de criação musical que
oportunidade de reconhecer: trechos de interferem no desenvolvimento musical
músicas trabalhadas em nossas aulas; dos alunos. Discutir essas concepções e
melodias que elas cantavam ou tocavam entender como elas são geradas
anteriormente e músicas presentes na socialmente não é objeto deste texto,
mídia (temas do filme Guerra nas mas entender que o conceito de criação
Estrelas por exemplo). Esses trechos musical pode se ampliar para além dos
eram transformados e re-criados de domínios estabelecidos pela cultura
acordo com as interações em sala de musical tradicional nos permite
aula. flexibilizar as atividades de criação
As aulas da Oficina de Criação musical e contemplar de forma
Musical demonstraram a relevância dos significativa o universo musical de
contextos culturais para o nossos alunos.
desenvolvimento da criatividade Assim, ao propor atividades de
musical; contudo Burnard (2006) nos execução, apreciação e composição1
alerta que os efeitos culturais podem ser integradas, oferecemos às crianças
tanto estimuladores quanto limitadores situações diversificadas de escolhas
do processo criativo, pois “o que é musicais. Dentre as diversas situações
denominado criatividade musical e de ensino e aprendizagem musical
como este conhecimento é construído, realizadas, privilegiamos o fazer
estimulado, ou limitado, depende de musical contínuo, em que as crianças:
suposições, crenças e compreensões escolhiam os instrumentos para a
particulares sobre criatividade musical” execução ou composição; variavam
(p. 361). Dessa forma, entendemos que padrões rítmicos e melódicos,
a atividade musical considerada criativa identificando-os na audição de músicas;
depende do conceito de criação selecionavam elementos musicais para
construído pelos envolvidos no elaboração de seus arranjos; decidiam a
processo. A divergência conceitual organização instrumental e comparavam
associada à criatividade gera, pois, uma diferentes versões de músicas ou
dificuldade de consenso sobre o que é
considerado criação musical. No
1
entanto, pesquisadores e educadores Em nosso projeto pedagógico, entendemos o
concordam que a criatividade musical termo composição como uma atividade
abrangente que possibilita “certa liberdade para
permeia todas as formas de escolher a organização de uma música”
engajamento com a música. (Swanwick, 1988, p.60). Assim, denominamos
composição todas as atividades de
A criatividade musical não está improvisações, arranjos e criações mais
apenas incorporada na atividade elaboradas. (ver Narita, 2007)

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

arranjos. Nesse processo, a criatividade 3. O processo de criação musical: O


deixa de ser um produto pessoal e Rondó Criativo
subjetivo e torna-se social e
intersubjetivo. Na criação musical, esse A produção musical do Rondó
tipo de processo interativo tem sido Criativo se baseou num conjunto de
objeto de estudo e, segundo Claire músicas selecionado do repertório
(apud Hickey 2002), as interações entre musical do curso. Esse repertório foi
colegas estimula a criatividade. elaborado com músicas escolhidas no
O desenvolvimento criativo não início das aulas e ampliado no decorrer
é pois um “dom inato”, mas como do curso. As músicas incluídas
sugerem as pesquisas, depende das apresentavam relações rítmico-
vivências musicais, dos contextos onde melódicas e formais com as músicas
ocorrem a prática e a criação musical iniciais e permitiram a construção de
(Burnard, 2006) e dos processos uma “rede” musical centrada nas
interativos. Há pelo menos 30 anos, preferências dos alunos. O repertório
Small (1980) argumentava que a final continha 9 músicas2, que foram
sociedade, a cultura musical e a apreciadas, executadas e arranjadas
educação eram inextricavelmente pelos alunos.
interdependentes e que, encorajando a A aprendizagem das músicas
criatividade, poderíamos propor uma partia do envolvimento direto com a
nova realidade nas mentes de nossos prática musical, mas as estratégias
alunos. Para ele o conhecimento não é pedagógicas variavam de acordo com a
uma entidade independente, mas se familiaridade das crianças com o
manifesta na relação com o homem. Por repertório e o seu interesse por uma ou
isso, Small discorda do ensino em que o outra atividade musical. Dessa forma,
aluno não tem autonomia para decidir podíamos partir da apreciação, da
sobre seu processo de aprendizagem e execução ou da composição musical,
critica a abordagem educacional que privilegiando a interação entre os
enfatiza o conhecimento divorciado da alunos. Nesses momentos, as crianças
experiência. compartilhavam músicas aprendidas em
A visão sócio-cultural e suas aulas de instrumento3, ensinavam e
interativa de criatividade norteou a auxiliavam uns aos outros nas
fundamentação teórica do projeto execuções musicais e discutiam as
CRIAMUS. Nesse sentido, procuramos idéias e temas para os arranjos.
subsidiar as crianças na construção do As produções musicais eram
conhecimento musical, privilegiando registradas em fita cassete e vídeo,
suas escolhas musicais, suas
experiências, seu conhecimento prévio e 2
suas experimentações e descobertas O repertório continha as seguintes músicas:
“Asa Branca”, de L. Gonzaga & H. Teixeira;
sonoro-musicais. A seguir, relatamos e “Poluição”, de Rita Rameh; “Ora Bolas”, de P.
discutimos o processo de criação Tatit & E. Derdyk; “Minha canção”, de L.
musical que orientou o nosso projeto Enriquez & S. Bardotti (versão: Chico
pedagógico a partir do arranjo e Buarque); “We will rock you” (tema), de
improviso musical denominado Rondó Queen; “Ode à Alegria” (tema), de Beethoven;
“Water Lily”, de P. Keveren (Hal Leonard
Criativo. Student Piano Library); “Bate o sino”, de J.
Pierpont; e “Peix’”, de C. França.
3
“Ode à Alegria” (tema), de Beethoven; e
“Water Lily”, de P. Keveren (Hal Leonard
Student Piano Library).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

sendo posteriormente apreciadas pelas que bate em nossos cérebros, e


crianças. Na apreciação, fazíamos uma sim muito mais, algo que nossos
cérebros vão lá e captam, através
escuta direcionada focalizando alguns de sua antecipação. (Jourdain,
aspectos musicais: 1) a análise do 1998, p. 315)
equilíbrio sonoro entre o canto e os
instrumentos musicais utilizados; 2) a O processo contínuo e integrado
análise comparativa entre o arranjo de apreciação, execução e composição
elaborado em sala de aula e a versão das geraram a familiaridade necessária para
gravações originais e 3) a discussão a antecipação, escuta e análise dos
sobre a “qualidade” da execução produtos musicais. O desenvolvimento
musical. Em suas observações, as musical cíclico de experimentar,
crianças associavam o conceito de elaborar, executar e escutar,
“qualidade” musical às idéias de freqüentemente nos remetia à criação de
(des)equilíbrio sonoro, afinação e vários arranjos para cada música, em
fidelidade sonora às versões “originais”. que as crianças decidiam sobre: 1) a
Observamos que essa associação era estrutura e a forma musical (introdução,
intuitiva e estava relacionada com os interlúdio, repetições, coda) 2) a seleção
modelos musicais que norteavam a dos instrumentos musicais4 e a sua
escuta musical das crianças de forma organização em cada música;e 3) a
consciente ou não. Alguns desses expressividade e interpretação musical
modelos estavam presentes no (dinâmica, articulação, fraseado,
repertório selecionado e outros as agógica etc.).
crianças traziam de suas vivências No arranjo do Rondó Criativo,
musicais. Portanto, no desenvolvimento os alunos escolheram a seguinte
das aulas procuramos transformar a estrutura musical: “Asa Branca” – “We
escuta dos alunos tornando-a mais will Rock You” – “Poluição” – “We
consciente e criativa com fins a orientar will Rock You” – “Ora Bolas” – “We
as escolhas musicais para a versão final will Rock You” – “Minha Canção”. O
dos arranjos. Nessa perspectiva, a padrão rítmico do tema do Queen (duas
apreciação torna-se um processo semínimas e uma mínima) e o tema do
criativo de apropriação e reformulação “coro” da música eram os trechos que
de idéias musicais. se repetiam na forma rondó. Em cada
Jourdain (1998) diferencia as seção de “We will Rock You”, os
ações de ouvir e escutar e atribui a cada alunos realizavam uma improvisação
uma delas um local específico do rítmica ou melódica, alternando o
cérebro. Segundo o autor, ouvimos improvisador em cada repetição da
passivamente com nossos troncos do mesma.
cérebro e escutamos ativamente com “o O termo improvisação, tal qual o
córtex cerebral, que busca dispositivos e termo criatividade, gera muita
padrões familiares na música” (p.315). discussão. Azzara (2002) apresenta
Em suas palavras. “a audição é algumas definições que incluem: 1) a
conduzida pela antecipação”:
4
Mesmo quando uma peça é Em nossas aulas utilizamos : 2 teclados, piano,
inteiramente nova para nossos xilofone, metalofone, flautas-doce, carrilhão
ouvidos, nós a entendemos porque (sinos tubulares), violino de uma das alunas,
percebemos partes constitutivas instrumentos de percussão com altura
que já conhecemos bem. Um indeterminada como cajon, guizos, atabaque,
objeto musical não é tanto algo triângulo, pau-de-chuva, tambores, blocos de
madeira, pratos, bongôs.

99
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

habilidade de fazer música introduzir a tonalidade principal. O


espontaneamente prevendo os tema de “We will Rock You”, repetido
resultados sonoros de determinadas três vezes, era executado em lá m com
ações (Kratus, 1990); 2) o “diálogo piano e flauta-doce e acompanhado por
musical” em que fatores extra-musicais um atabaque ou cajon. Na primeira vez,
como contexto, bagagem5 e experiência o improviso era rítmico; na segunda
dos improvisadores devem ser vez, melódico e na terceira, novamente
considerados (Briggs, 1987); 3) uma rítmico. Na música “Poluição”, o refrão
forma de manifestação do pensamento em progressão de quartas justas, tocado
musical na execução espontânea a partir no teclado, é também executado na
da internalização de um vocabulário cabeça de uma flauta doce por um dos
musical (Azzara, 1992) e 4) as alunos. A habilidade técnica do aluno
interações entre os músicos no na flauta foi desenvolvida durante a fase
momento da execução (Pelz-Sherman, de exploração instrumental. Em “Ora
1999). Essas definições, entre outras, Bolas”, exploramos o diálogo musical,
sugerem que a “improvisação permite em forma de pergunta e resposta,
que os alunos se expressem determinado pela letra e pelo
individualmente, desenvolvam acompanhamento instrumental. “Minha
habilidades de raciocínio e uma relação Canção” iniciou com o triângulo
mais abrangente e íntima com a imitando as badaladas do Big Ben,
música”.(Azzara, 2002, p. 182). Nesse seguido por sua melodia característica.
sentido, na improvisação como na O tema se tornou a introdução da
escuta musical, a familiaridade com o canção, e a melodia da música foi
repertório e a associação entre apresentada com um contracanto
elementos musicais conhecidos e novos executado na flauta-doce por uma de
estimulam a capacidade criativa e o nós. O final da canção teve sua letra
desenvolvimento musical. No Rondó modificada para homenagear a
Criativo, a familiaridade dos alunos irmãzinha de uma das crianças.
com o tema do Queen facilitou o Campbell (1998), em sua
domínio da regularidade rítmica e pesquisa, entrevistou e observou
possibilitou a variação rítmico-melódica crianças fazendo música em diversos
na improvisação, promovendo um contextos: aulas de música; refeitório,
sentimento de realização coletiva. parquinho; ônibus escolares etc. Os
As demais músicas do Rondó resultados da autora mostram que as
Criativo foram re-arranjadas de acordo crianças adquirem conhecimento
com as habilidades musicais dos alunos: musical em diferentes fontes sociais:
percepção, memória, leitura e grafia, aprendendo a cantar, a tocar e a dançar;
domínio técnico-instrumental e idéias vivenciando a música em situações
musicais. A tonalidade do Rondó era Dó sociais distintas (religiosa, cívica,
M, mas modulamos para outras saúde, comemorações etc);
tonalidades para contemplar os interpretando-a, absorvendo-a e
conhecimentos musicais prévios dos apropriando-se dela à medida que lhe
alunos. Um deles, por exemplo, imprimem novas idéias. O Rondó
aprendeu a melodia de “Asa Branca” Criativo, como produto musical das
em Ré M, assim, iniciamos o arranjo crianças, demonstra as possibilidades da
com a tonalidade em Ré para depois criação musical como expressão pessoal
e coletiva da cultura infantil.
5
Usamos o termo bagagem como tradução de Percebemos a espontaneidade e
background.

100
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

criatividade das crianças nos improvisos 4. Referências bibliográficas


e no arranjo como um todo. O trabalho
realizado revela o desenvolvimento AZZARA, Christopher. Improvisation.
musical das crianças, principalmente In: COLWELL, Richard;
nas escolhas e decisões musicais RICHARDSON, Carol. (eds.). The new
realizadas. Nas palavras de Campbell, handbook of research on music
teaching and learning, pp.171-187.
Por meio da música, elas [as New York: Oxford University Press,
crianças] refletem sobre elas 2002.
próprias, sobre suas experiências
e sobre as relações que têm com BURNARD, Pamela. The individual
seus amigos e membros de sua and social worlds of children’s musical
família. Ao escutar uma obra
musical, as crianças podem trazer
creativity. In: McPherson, Gary (Ed.)
à mente associações e sentimentos The Child As Musician: A Handbook
que “ouvem” por meio de of Musical Development. Chapter 18,
sonoridades e estruturas pp.353-374. Oxford University Press,
musicais... Quando as crianças 2006.
cantam ou tocam, elas não
revelam meras habilidades, mas CAMPBELL, Patricia. Songs in Their
também pensamentos e Heads: Music and its meaning in
sentimentos que não podem ser children’s lives. New York: Oxford
transmitidos de outra forma. Ao
improvisar espontaneamente, elas University Press, 1998.
expressam o que estão pensando HICKEY, Maud. Creativity Research in
musicalmente naquele instante... e
suas composições são resultado
Music, Visual Art, Theater, and Dance.
de elaborações sobre o que In: COLWELL, Richard &
pensam e sentem sobre música ou RICHARDSON, Carol. (eds.). The new
sobre outros assuntos que são handbook of research on music
importantes para elas. (Campbell, teaching and learning, pp.398-415.
1998, p.175)
New York: Oxford University Press,
Concluindo, acreditamos que o 2002.
trabalho integrado de apreciação, JOURDAIN, Robert. Música, cérebro
execução e composição musical e êxtase: como a música captura nossa
possibilita o desenvolvimento musical, imaginação. Rio de Janeiro: Objetiva,
cognitivo, sensível e afetivo das 1998.
crianças e revela o significado que elas
LEVITIN, Daniel J. Musical Arts,
atribuem à música. Nesse processo, a
Cognition, and Innate Expertise. In:
criatividade permeia todas as atividades
SIMPÓSIO DE COGNIÇÃO E ARTES
musicais e se desenvolve na dimensão
MUSICAIS - INTERNACIONAL. 3,
pessoal e social do grupo. As pesquisas
2007, Salvador: SIMCAM, Anais...,
na área sugerem um olhar mais atento
Salvador: SIMCAM, 2007, p. 21-25.
às manifestações das crianças,
validando suas experiências e NARITA, Flávia. Oficina de Criação
conhecimentos musicais. A criação Musical Infantil: uma viagem musical.
musical como foi discutida é uma opção In: ENCONTRO ANUAL DA ABEM
pedagógica para dar voz às idéias e E CONGRESSO REGIONAL DA
sentimentos das crianças enquanto ISME NA AMÉRICA LATINA, 16,
promove o seu desenvolvimento 2007, Campo Grande. Anais..., Campo
musical. Grande: ABEM-ISME, 2007.

101
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

SMALL, Christopher. Children as


Consumers. In: Music, Society,
Education. pp.182-205 1980 2ed.
Revisada. London: John Calder
Publisher, 2nd Ed. 1980 (1977).
SWANWICK, Keith. Music, Mind,
and Education. London: Routledge,
1988.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Conhecimento, prática e corporalidade musicais

Jorge Luiz Schroeder


UNICAMP
schroeder@unicamp.br

Resumo. Este texto é ao mesmo tempo um resumo e um desdobramento da minha tese de


doutorado, defendida na Faculdade de Educação da Unicamp em 2006, onde pretendi abordar,
sob um ponto de vista cultural e educacional, questões sobre os modos de compreender, avaliar
e investigar as ações do corpo nas atividades de tocar música. Um resumo porque tenta
explicitar rapidamente a noção de corporalidade musical que, desviando das concepções
anatomofisiológicas do corpo que geralmente integram as pesquisas sobre o corpo na música,
propõe uma abordagem cultural e significativa da ação corporal prática na música. Um
desdobramento porque pretende anunciar também outras faces que esta noção possibilita nas
reflexões que integrem conhecimentos e práticas musicais. A idéia de corporalidade musical
tenta se contrapor, principalmente, a um sistema de pensamento que institui pelo menos três
instâncias mais ou menos independentes no mundo musical, quais sejam: as idéias musicais,
transformadas em regras/normas a serem reconhecidas, compreendidas e cumpridas; o músico e
seu instrumento como meios de realização dessas idéias; e as obras, como concretizações mais
ou menos próximas das idéias-matrizes das quais são originárias. Sob o ponto de vista da
corporalidade musical o corpo talvez possa deixar de ser encarado como mero mediador entre
duas grandezas e passar a ser integrante e instaurador de ambas.

Palavras-chave: conhecimento, cultura, corporalidade musical.

lesões ou contusões, enfim, em nome do


1. Introdução prolongamento da vida útil e da
melhoria da execução dos músicos.
Quando se fala de corpo, no Pode-se dizer que esse tipo de
campo musical, quase sempre esse abordagem, ou seja, aquela que utiliza o
assunto é tratado ou no plano empréstimo de concepções
terapêutico ou no plano da eficiência anatomofisiológicas do corpo1, aponta
técnica; muitas vezes os dois juntos. mais para aquilo que interessa ao
Nesses casos, fala-se geralmente de conhecimento biológico, e menos ao
correção postural, utilização adequada que interessa diretamente à
de articulações, controle do tônus compreensão musical. Como é o caso,
muscular e dos esforços, conhecimento por exemplo, os trabalhos de Kaplan
da estrutura óssea, desenvolvimento de (1997), Pinto (2001), Lage (2002),
flexibilidade e alongamento,
1
organização de movimentos, relação Emprestei esse termo e as considerações que o
mais eficaz entre mecânica corporal e envolvem de Carmen Soares (2004, p.54). Ela
mecanismo dos instrumentos etc. Tudo estabelece, em vários de seus trabalhos, um
contraponto entre as concepções biológicas e
isso normalmente em nome do fisio-mecânicas e as concepções antropológicas
desenvolvimento de habilidades, e culturais do corpo humano, através das
aumento da eficiência e precisão, conseqüências sociais e políticas nas ações
contenção de energia, prevenção de sobre os corpos que essas concepções
desencadeiam.

103
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Martins (2003) ou Freitas (2003), que as realizações musicais com a imagem


parecem afirmar toda uma concepção de um triângulo que abriga em seus
psico-fisiológica, de interesse mais vértices as forças originadas nas marcas
direto das ciências do corpo, corporais fixadas nos instrumentos, nas
exemplificando seu funcionamento nas músicas e nos limites e possibilidades
atividades musicais. O resultado corporais dos músicos). Contei ainda
freqüente deste tipo de abordagem tende com a contribuição de Bakhtin (2002,
mais para uma ética corporal, ou seja, 2003), e seus conceitos de gêneros de
na direção dos cuidados na utilização do discurso e estilo, e com Merleau-Ponty
corpo, do que para uma estética (1999), no que diz respeito às
musical, ou seja, na direção de uma dimensões do corpo próprio. Com o
investigação dos papéis que o corpo e a primeiro, recortando as redes de
ação corporal assumem na constituição significados musicais e a atuação dos
das linguagens musicais. Ainda que as músicos dentro delas, e com o segundo,
contribuições da abordagem biológica e na possibilidade dos instrumentos e práticas
terapêutica tenham resultado em musicais tornarem-se prolongamentos da
enormes benefícios para a vida de percepção do corpo e influírem diretamente nas
músicos profissionais, estudantes e ações com o corpo que os músicos
diletantes, sob o ponto de vista das produzem em suas práticas.
possibilidades de pesquisa que essa A partir da constituição desse
fundamentação permite, algumas lastro teórico, foi possível esboçar a
questões musicais importantes me noção de corporalidade musical. Com
parecem terem ficado de lado. A música ela poderiam ser observados tanto os
aparece como uma espécie de contexto modos culturais e coletivos de
intocável, de dado obtido, de local fixo tratamento e concepção da música
onde o corpo atua, e isto limita uma quanto as escolhas pessoais de cada
fronteira além da qual a biologia não músico, isto tudo feito a partir de um
adentra. mesmo ferramental teórico. Levando
Foi tentando desviar desses em conta as fronteiras de circulação dos
interesses mais funcionais sobre o corpo sentidos simbólicos das realizações
que efetuei, em minhas investigações, musicais, o fato da música necessitar de
um deslocamento da fundamentação sistemas sociais cooperativos amplos
biológica para a das ciências sociais. para existir, foi possível tentar esboçar graus de
Busquei, então, o auxílio de autores que distinção mais nítidos entre os trabalhos de
ajudassem a conceber o corpo humano músicos (no caso desta investigação, cinco
em sua constituição sociocultural. violonistas populares), centrados na ação
Dentre eles, Pierre Bourdieu (1999, corporal deles próprios em confronto com as
2001 e 2003) e Michel De Certeau marcas corporais de outros músicos e pessoas
(1994) foram de vital importância com (luthiers, ouvintes, mecenas, diletantes,
as respectivas noções de habitus e apreciadores, empresários, produtores etc.)
campo social (com os quais pude impressas na instituição de gêneros ou línguas
abordar algumas falsas dicotomias como musicais específicas, mas também na
individualidade e coletividade, regra e configuração dos instrumentos. Portanto, a noção
transgressão, pluralidade e singularidade, de corporalidade musical vai um pouco além do
sensibilidade e inteligibilidade, dentro da corpo, atinge as ações e os significados
música), e nas discussões sobre os dessas ações.
encontros e conflitos entre oralidade e As análises foram feitas a partir
escrita (com as quais pude re-elaborar de pelo menos três fontes de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

investigação: 1) a gravação em CD ou afirmar que os cinco se acham


LP de obras desses músicos; 2) a mergulhados numa mesma rede de
apreciação de vídeos e DVDs desses significações musicais. Vejamos como
músicos tocando e; 3) a minha tentativa isto acontece.
de executar algumas das peças desses Nas relações com os
violonistas e, com isso, uma tentativa de instrumentos, os cinco partiram do
aproximação mais pessoal das estudo do violão padrão, erudito ou
exigências músico corporais que cada popular, de 6 cordas de nylon na
uma delas poderia implicar. Contei afinação mais comum (EADGBE, da
ainda com um auxílio extra do fato de já corda grave para a aguda). Contudo,
ter assistido três dos músicos tocando ao cada um desenvolveu essa relação a seu
vivo, em apresentações públicas modo.
(Egberto, Ulisses e André). Baden e Ulisses, mais ligados a
uma tradição do violão popular
2. Sobre os músicos brasileiro (que remonta a Canhoto, João
Pernambuco, Dilermano Reis, Garoto,
Foram escolhidos cinco Dino 7 Cordas, entre muitos outros),
violonistas populares: Baden Powell, não impuseram muitas alterações em
Egberto Gismonti (apenas sua obra para seus instrumentos (eventualmente é
violão), Ulisses Rocha, André possível perceber alterações na afinação
Geraissati e Michael Hedges, que da 6ª corda, de E para D, ou na 3ª, de G
representam um gênero de música que para F#). Entretanto as escolhas de
podemos chamar provisoriamente de sonoridades e dos modos de tocar
música popular instrumental. O fato dos diferem. Baden mostra uma preferência
cinco trafegarem pelas mesmas áreas pela sonoridade das cordas soltas. Isto
permite uma comparação mais implica, por um lado, numa ressonância
detalhada de aspectos mais sutis, mais intensa e prolongada, visto que as
contudo muito marcantes, de cada um cordas soltas vibram em toda sua
deles. amplitude, ao contrário das cordas
Outro fato em comum é que presas pelos dedos da mão direita que
todos os cinco passaram por um tendem a vibrar com menor intensidade
processo de formação que poderíamos por estarem encurtadas3. Este fato
denominar de “escolarização” musical. fornece indícios que apontam para uma
Eles adquiriram seus conhecimentos relação corporal com o instrumento que
musicais e habilidades instrumentais em privilegia a força, o empenho de maior
escolas de música e com professores energia corporal e, por conseqüência, a
particulares. Podemos dizer, por isso, necessidade de obter resultados sonoros
que todos partilham de um mesmo mais fortes e intensos. Por outro lado, também
ideário musical normalmente difundido implica na escolha de uma gama de acordes,
pelas formas escolares do ensino de tonalidades e organização figura/fundo
música2. Portanto, não soa estranho (melodia/acompanhamento) mais determinada e
até reduzida, que favoreça a presença
2
A expressão “forma escolar” foi apropriada do
trabalho de Bernard Lahire (2001) que, embora bastante parecida (ver, Queiroz, 2005 e Penna,
não se refira ao ensino de música, traduz as 2004).
3
características gerais do modo como os As implicações acústicas dessas escolhas são
conhecimentos são abordados nas instituições um pouco mais complexas, entretanto, para a
escolares. E a forma como isso ocorre com a finalidade deste texto, basta sabermos que elas
sistematização dos conhecimentos musicais é diferem em sonoridade e intensidade.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

maior das cordas soltas ao invés das Estas são pistas importantes: as cordas
presas (a audição das várias versões de de aço, por serem mais rígidas que as de
“Berimbau”, tocadas por Baden e nylon, exigem maior pressão no toque,
disponíveis em CD, já dá uma idéia portanto desenvolvem uma outra
dessas preferências). Com Ulisses não é estrutura no toque com os dedos; maior
possível determinar uma preferência esforço na impulsão da corda, portanto
muito marcada entre as sonoridades das unhas (ou palhetas) mais rígidas; e
cordas soltas e presas. Percebe-se, isto implicam respostas sonoras diferentes a
sim, que um de seus pontos de relevo é cada tipo de impulsão (os ligados
a possibilidade de articulação constante ascendentes e descendentes, por
da relação figura/fundo. Esta opção exemplo, são obtidos através de sutis
mostra uma tendência maior para a mudanças de processos articulares, de
contensão, para uma relação de um tipo de corda para outro; o recurso
articulação de maior “engenharia” do das notas bend, pequenas distorções de
que força, já que os modos de obtenção afinação obtidos com um “entortar” da
da simultaneidade entre melodia e corda pelo dedo que a pressiona,
acompanhamento são reduzidas no também variam muito de amplitude e
violão. Isto quer dizer que ele tenta, e intensidade dependendo do tipo de
consegue na grande maioria das vezes, cordas usadas). Michael utiliza também
manter sempre presentes, audíveis, um violão-harpa, com 11 cordas
essas duas dimensões (melodia e individuais (as 6 cordas tradicionais
acompanhamento). Principalmente nas acrescentadas de mais 5 num braço
suas próprias composições. Para que extra, colocado acima do braço
isto aconteça, Ulisses elabora soluções tradicional) que, pelo próprio desenho
que fogem daqueles procedimentos do instrumento, exige uma abordagem
mais comuns entre os violonistas, como corporal diferenciada. Mudam os pontos
por exemplo, o recurso da melodia nua, de apoio, os ângulos de visão que o
ou marcada por pontuações de acordes músico tem do instrumento, os pontos
ou contracantos oportunos; ou dos de equilíbrio entre violão e corpo, e os
acordes ritmados, ambos recursos muito modos de acioná-lo.
usados por Baden e pelos outros Quanto à afinação, Egberto
violonistas analisados4. utiliza, pelo que pude averiguar, a
Já Egberto, André e Michael afinação mais comum nas seis primeiras
transformaram de modo mais contundente seus cordas (EADGBE, contadas de baixo para
instrumentos. Egberto possui violões cima) e complementa, com as cordas adicionais,
especialmente construídos para ele, com 8, 10, 12 alterando-as conforme as músicas que vai
e 14 cordas (8 e 12 de nylon, 10 e 14 de executar. André e Michael, por sua vez,
aço), o que indica uma relação corporal alteram mais freqüentemente as
diferenciada com o instrumento, já que afinações. Michael chega quase a
até mesmo as dimensões do violão (o utilizar uma afinação por música,
braço mais largo, o violão mais pesado) poucas sendo as afinações repetidas
requisitam a mudança de atitude (todas mais graves que a afinação
corporal. André e Michael optaram tradicional). André, embora também
definitivamente pelas cordas de aço. varie bastante as afinações, repete-as em
algumas músicas, explorando um pouco
4
Quero deixar claro que isto não implica em mais os recursos melódicos e
valoração ou hierarquia de procedimentos. harmônicos de cada uma. Nos três
Explicito apenas as diferenças de escolhas e músicos também é possível perceber
resultados, todos igualmente legítimos.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

uma preferência pelo uso das cordas constrói uma proposta estética em que
soltas. Outro traço comum nesse três esses traços de rebeldia (ruídos,
músicos é a utilização freqüente do descontroles, exageros), ao contrário de
recurso dos harmônicos naturais e se instalarem nos cantos escuros de suas
artificiais, tanto quanto da percussão execuções, como em Baden, passam a
sobre as cordas do violão. Estes fazer parte do vocabulário artístico e
recursos permitem que as duas mãos sonoro de Egberto. Adentram em seu
produzam sons no instrumento, quase mundo musical como elementos
como num piano, e, por isso, permitem constitutivos e, por isso mesmo, se
a execução de vários planos sonoros, mostram nítidos e brilhantes.
vários eventos musicais (como melodia, No caso de Ulisses, André e
acompanhamento em vários níveis, Michael, o primeiro dá continuidade à
contracanto etc.) todos ao mesmo tradição do violão popular brasileiro,
tempo. contudo interpondo nessa linha de
No que diz respeito à linguagem continuidade o traço marcante da
musical, cada um dos cinco toma-a, ou realização plena do ideário
a realiza, de forma bastante melodia/acompanhamento, presente na
individualizada. Baden mistura música erudita européia desde os anos
elementos musicais de diversos gêneros, 1600 (Harnoncourt, 1988). Os outros
tais como samba, bossa nova, jazz, dois se instalam na linguagem popular
choro, blues, erudito (principalmente derivada do dedilhado country (o
num estilo “bachiano”) etc., frutos chamado finger style americano),
prováveis de seu esforço em se influência híbrida para André e tradição
legitimar como instrumentista de peso para Michael, de modo que inovam nos
no meio musical popular que, em sua modos inusitados de tocar e atualizam a
época, se consolidava como gênero linguagem.
artístico. Neste quesito, Baden se Outro ponto fundamental sobre
destaca por introduzir fissuras em suas as linguagens musicais que cabe aqui
execuções, por onde vazam traços enfatizar tem relação com os
marcantes de rebeldia e carnavalização procedimentos arquitetônicos utilizados
(Bahktin, 2002), numa tentativa sutil de por esses músicos. Baden, Egberto e
desorganizar a ordem legitimada do André podem ser colocados lado a lado
“bem tocar” em razão de uma no que diz respeito ao uso da
sensibilidade mais popular, no sentido improvisação em suas execuções e
da inversão bahktiniana da ordem social composições. As várias versões da
em uso. A exacerbação dos andamentos, música “Berimbau” com Baden, de
das intensidades e a introdução “Salvador” com Egberto e de “Lobo”
aparentemente desgovernada de ruídos com André já valeriam como amostra
daí provenientes (como o trastejamento desse grau muito apurado e
ou as sonoridades percussivas dos aprofundado de intimidade que cada um
fortíssimos que freqüentemente deles cultiva com a invenção, digamos,
imprime em suas execuções), são imediata da improvisação. Os três se
exemplos claros dessa carnavalização permitem grande liberdade nos modos
que ele propõe como recurso de de alterar suas músicas (e as que
introdução das marcas populares numa executam de outros autores também),
execução erudita. visto estarem absolutamente convictos
Já Egberto, embora se aposse de seu domínio das linguagens musicais
também desse traço de carnavalização,

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que sustentam5 e dos enunciados que Evidentemente que todos eles


pronunciam. Com Ulisses e Michael, atualizam as tradições populares, e seus
pela complexidade de suas propostas reflexos eruditos, de forma marcante,
(Ulisses com a simultaneidade nunca tanto que os cinco são considerados
abandonada de melodia e influências para vários outros
acompanhamento, e Michael com a violonistas. Entretanto, eles
complexidade de movimentos e desenvolvem não somente modos
sonoridades articuladas na construção diferentes de tocar o instrumento (com o
de suas peças), a inventividade aparece uso da percussão nas cordas com ambas
na arquitetônica de suas composições as mãos, ligados ascendentes e
que são executadas com muito menos descendentes, harmônicos naturais e
alterações estruturais, ou mesmo de artificiais, inclusão de ruídos, etc.) mas,
andamento ou articulação do que dos principalmente, propõem outras
outros três (as raras versões de uma relações corporais com o instrumento e
mesma música que Ulisses e Michael de conhecimento com a música. Nesse
gravaram em CD exemplificam essa sentido, esta é, dentre as várias
diferença de procedimentos). contribuições que considero importante
Um último ponto ainda deve ser trazida por esses músicos citados, a
levantado. O fato de que cada um mais importante. E a partir dessa
procede por intermédio de hibridações constatação é que julgo possível
(Canclíni, 2006). Quero dizer que, num redimensionar questões relativas ao
âmbito mais geral, esses músicos corpo humano e ao conhecimento,
equilibram vários graus de mistura entre dentro do campo de atividades musicais.
procedimentos eminentemente tonais e
escriturísticos, e procedimentos 3. Sobre o conhecimento pelo corpo
eminentemente modais e orais (De
Certeau, 1994). Por variados motivos, A música, sob o ponto de vista
mas principalmente pela limitação das da sua produção e analisada através
escolhas provindas das relações desta perspectiva que proponho, pode
particulares que cada um deles cultiva ser desnudada da couraça que a mantém
com seus instrumentos e linguagens, o como um conhecimento fixo e
hibridismo entre tonalismo e modalismo impenetrável para qualquer outro viés
(e portanto entre música de tradição que não o técnico-teórico. O corpo, para
escrita e música de tradição oral), nos esse ideário racionalista musical (um
procedimentos e na compreensão que outro nome para “técnico-teórico”),
fazem de seus próprios trabalhos e dos aparece como um mediador entre a idéia
outros autores, o hibridismo de suas e a realização, e por isso mesmo precisa
obras pessoais ressoam as escolhas ser moldado, lapidado, azeitado,
particulares mas também os diversos afinado, treinado para fazer coincidir a
campos simbólicos musicais pelas quais realização com a idéia musical original.
eles trafegaram. Entretanto, um olhar que considere não
apenas o “corpo”, mas o músico por
inteiro em sua ação de tocar, necessita
5 quase que obrigatoriamente
Não posso deixar de pensar na semelhança que
identifico entre esses músicos e a atitude do
reconsiderar esse papel de mediador.
“narrador” explicitada por Walter Benjamim Como pude observar em minhas
(1986), como aquele que reinventa sempre a análises, aqui apenas anunciadas, os
história que conta, tornando-se forte ligação músicos abordados criaram alternativas,
entre o passado e o presente.

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próximas ou afastadas, daquilo que lado, essas músicas já faziam parte da


conhecemos como “tradição musical” rede simbólica de significações
ou como “formação tradicional”. musicais desses alunos, de modo que as
Mergulhados evidentemente nestas, dificuldades técnicas e teóricas puderam
contudo propuseram procedimentos, ser suplantadas pela familiaridade
alternativas, sonoridades, estruturas, apresentada ou com música
gestos, movimentos, desconstruções e individualmente, ou com gênero do qual
reconstruções dessa tradição que, se fazia parte. Por outro lado, as
comparados àquilo que o discurso do dificuldades, que sempre se mostraram
senso comum musical (e dos músicos) muito diferentes para cada aluno, devem
considera como premissas básicas, estar diretamente ligadas a certos
oferecem um outro universo estados ou “configurações” corporais
completamente diferente de momentâneos que possibilitam ou
possibilidades. impedem certos movimentos ou gestos,
Na minha experiência como durante o processo de formação. De um
professor de violão de iniciantes, tenho modo prático, pude constatar que
entrado em contato repetidamente com qualquer que seja a progressão que
uma realidade que contraria algumas queiramos instituir em nossos processos
dessas premissas mais comuns da educativos musicais, teremos muitos
música, presentes também na educação alunos que não se adaptarão a ela.
musical tradicional. Por exemplo, no Embora não possa afirmar que
esforço de constituir uma progressão no Michael Hedges, por exemplo,
processo de formação que organize os desenvolveu toda sua técnica inusitada
gestos, a compreensão e a percepção de tocar violão por força de prováveis
musicais num crescendo, dos mais dificuldades suas com o modo
fáceis para as mais difíceis. Vários dos tradicional de tocar, é possível inferir
meus alunos realizaram músicas que eu que essa técnica pode ter sido resultado
considerava muito difíceis para o nível de escolhas que provocaram conforto e
em que se encontravam. Músicas que êxito. Eu mesmo tive essa experiência
implicavam o uso de pestanas, ao tentar tocar músicas de Michael. Em
mudanças de andamento, ritmo ou primeiro lugar, foram necessárias várias
compasso, progressões harmônicas alterações no instrumento:
complexas, enfim, um nível de encordoamento apropriado, com outras
compreensão e habilidades musicais dimensões de cordas; regulagem da
muito elevados para um iniciante6. altura das cordas; até mesmo troca dos
Minha interpretação dessa trastes e reforço do extensor. Em
aparente contradição é que, por um segundo lugar, foi preciso conhecer as
6
afinações correspondentes às músicas
Alguns exemplos: “Stairway to heaven” do que queria executar. Em terceiro, foi
grupo Led Zeppelin, “Califórnia” de Lulu
Santos, “Anna Júlia” do grupo Los Hermanos,
preciso ver Michael tocando, pelo fato
“Bilhetinho azul” do grupo Barão Vermelho, de que não era possível imaginar o
todas executadas razoavelmente por iniciantes modo como todos aqueles sons
com apenas semanas de aulas. Evidentemente poderiam sair de um violão solo. Um
que essa execução envolveu algumas quarto ponto foi a impressão de que eu
facilitações e adaptações, além da dedicação e
esforço muito grande por parte dos alunos.
precisaria de anos de estudos para
Entretanto, o resultado educativo desses conseguir me apropriar de uma
empreendimentos foram de altíssimo valor no infinidade de afinações diferentes que
desenvolvimento musical e pessoal dos Michael utilizava, visto que o estudo
envolvidos, inclusive para mim.

109
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

tradicional demanda alguns anos para BENJAMIN, Walter. Obras


que consigamos conhecer todas as notas escolhidas: magia e técnica, arte e
do braço dos violão. Qual não foi a política. 2. ed. São Paulo, SP:
minha surpresa ao constatar que as Brasiliense, 1996.
músicas de Michael, e suas respectivas
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain.
afinações, exploram uma visão mais
O amor pela arte: os museus de arte
geométrica e proporcional do braço do na Europa e seu público. São Paulo,
violão do que propriamente a SP: Editora da Universidade de São
consciência das notas que se está Paulo/Zouk, 2003.
tocando. Desenvolvi, com isso, uma
relação que considero mais corporal e BOURDIEU, Pierre. A economia das
sonora com meu instrumento. E isto trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo, SP:
veio a ajudar também na hora de tocar o Perspectiva, 1999.
violão tradicional. Os desenhos dos BOURDIEU, Pierre. Meditações
intervalos, dos acordes, da conformação pascalianas. Rio de Janeiro, RJ:
das mãos, a relação intervalar entre as Bertrand Brasil, 2001.
cordas, a memória corporal e sonora
tomaram a frente das execuções e das CANCLINI, Néstor García. Culturas
criações. híbridas: estratégias para entrar e sair
Minhas pesquisas neste campo da modernidade. 4. ed. São Paulo, SP:
apenas começaram. Contudo já é Editora da Universidade de São Paulo,
possível afirmar que são fortes os 2006.
indícios de que, ao contrário de DE CERTEAU, Michel. A invenção do
mediador, o corpo do músico em ação é cotidiano: artes de fazer. 7. ed.
o instituidor das linguagens musicais e, Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
mais do que isso, é através das
realizações concretas de suas obras, seja FREITAS, Marcos Tadeu B. O gesto
tocando, gravando ou compondo, que musical: primeira leitura. In Anais da
essas linguagens acontecem. Portanto, Abem, Florianópolis, 2003.
acredito que, ao contrário do corpo ficar HARNONCOURT, Nikolaus. O
à mercê das “leis” da música e por elas discurso dos sons: caminhando para
praticamente ter que sucumbir, é uma nova compreensão musical. Rio
provável que a música é que seja de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor,
caudatária das possibilidades do corpo: 1998.
do corpo do músico e das marcas dos
KAPLAN, José Alberto. Teoria da
corpos tatuadas nos instrumentos e
aprendizagem pianística. 2. ed. Porto
expostas nas exigências da música.
Alegre, RS: Editora Movimento, 1987.
4. Referências bibliográficas LAGE, Guilherme Menezes; BÓREM,
Fausto; BENDA, Rodolfo Novellino;
BAHKTIN, Mikhail. A cultura MORAES, Luiz Carlos. Aprendizagem
popular na Idade Média e no motora na performance musical:
Renascimento: o contexto de François reflexões sobre conceitos e
Rabelais. 5. ed. São Paulo, SP: aplicabilidade. In PER MUSI: Revista
Hucitec/Annablume, 2002. de Performance Musical (v.5-6). Belo
Horizonte: Escola de Música da UFMG,
BAHKTIN, Mikhail. Estética da
2002.
criação verbal. 4. ed. São Paulo, SP:
Martins Fontes, 2003.

110
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

LAHIRE, Bernard, VINCENT, Guy;


THIN, Daniel. Sobre a história e a
teoria da forma escolar. In Educação
em Revista, Belo Horizonte: n°33, jun.
2001.
MARTINS, Denise A. de Freitas. O
corpo numa situação: um estudo
fenomenológico sobre o corpo na
relação aluno-piano-professor. In Anais
da Abem, Florianópolis, 2003.
MERLEAU-PONTY, Maurice.
Fenomenologia da percepção. 2. ed.
São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999.
PENNA, Maura. Apre(e)ndendo
músicas: na vida e nas escolas. In
Revista da Abem, n°9, setembro. Porto
Alegre, RS: Associação Brasileira de
Educação Musical.
PINTO, Henrique. Conceito de
relaxamento. In Violão Intercâmbio,
n°45, ano VIII, jan/fev 2001.
QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. A
música como fenômeno sociocultural:
perspectivas para uma educação musical
abrangente. In MARINHO, Vanildo;
QUEIROZ, Luis Ricardo Silva.
Contexturas: o ensino das artes em
diferentes espaços. João Pessoa, PB:
Editora Universitária/UFPB, 2005.
SOARES, Carmen Lúcia. Educação
Física: raízes européias e Brasil. 3. ed.
Campinas, SP: Autores Associados,
2004.

111
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Análise musical para a interpretação da arietta “Voi che


sapete”, n. 12, Le nozze di Figaro, k492, de W. A. Mozart1

Lara Janek Babbar


UFPR
larajbabbar@yahooo.com.br

Resumo: Neste artigo proponho uma abordagem analítica da ária Voi che sapete, n. 12, da
ópera Le nozze di Figaro (1786), de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), sob o enfoque da
execução e da interpretação da obra. Para tanto, emprego as técnicas analíticas descritas por
John Rink, no artigo “Analysis and (or?) performance” (2002) que contribuem para a
aproximação e maior entendimento da composição e do “contorno” (shape) da obra a ser
executada, com o devido destaque da temporalidade. Dentre as discussões propostas por Rink,
encontra-se a inclusão do conceito de “intuição informada”, a qual permite o acionamento da
experiência e do conhecimento prévio do músico nas decisões de sua interpretação, e que
também é aplicado na análise de Voi che sapete.

Palavras-chave: análise musical; análise para intérpretes; ópera.

5. redução rítmica;
1. Objetivo 6. re-notação da música.

O presente estudo tem como Para a ária escolhida, serão


meta realizar uma análise musical aplicadas as etapas correspondentes à
visando à performance da arietta “Voi divisão formal, à identificação do plano
che sapete”, n. 12 da ópera Le nozze di tonal básico, à forma
Figaro (1786), de Wolfgang Amadeus melódica/motívica, assim como a etapa
Mozart (1756-1791), e para tal, foi correspondente à redução rítmica.
consultada a edição “Neue Mozart
Ausgabe”2, da editora Barenreiter. 3. Fundamentação teórica

2. Método A análise para intérpretes permite


aproximação com uma determinada obra
A técnica analítica adotada teve musical com finalidade de ampliar suas
como referência a empregada por John possibilidades de compreensão e
Rink em seu artigo “Analysis and (or?) execução, sendo que, para John Rink, é
performance” (2002). As abordagens de também considerada uma prática
tratamento analítico sugeridas pelo intrínseca ao processo da performance.
autor são: Para o autor, a análise para intérpretes
“pode ser considerada o estudo minucioso
1. divisão formal e plano tonal da partitura com a atenção particular às
básico; funções contextuais e aos meios de
2. gráfico do tempo; projetá-las” (Rink, 2007, p. 27).
3. gráfico da dinâmica; É interessante observar que sob o
4. forma melódica e idéias/motivos prisma do intérprete a análise tem sua
constituintes; finalidade completada no produto sonoro,
em que a preocupação com a

112
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

comunicação (partitura – intérprete – teria a função de contribuir com a


produto musical – apreciador – etc.) das memorização e a colaborar, ademais, no
funções contextuais e da sintaxe musical combate à ansiedade durante a execução
é inquirida durante a aproximação com a da obra musical.
partitura musical. Talvez por tal A trajetória deste método
característica, Rink afirma que a investigativo pode elucidar panoramas e
conceituação musical do intérprete propriedades presentes na partitura em
privilegia a noção de contorno3, e não que evidenciam as opções, a poética, o
tanto de estrutura, uma vez que aquela gosto e a expressividade do intérprete.
insere na abordagem analítica o fator de Isto porque, conforme John Rink
temporalidade, elemento preponderante esclarece, “mesmo a mais simples
de uma interpretação. Para o autor, “não passagem será formatada de acordo com
se pode negar que uma interpretação em o entendimento do performer, de como
música exige decisões – conscientes ou isto é inserido numa dada peça e as
não – sobre as funções contextuais de prerrogativas expressivas que ele ou ela
características musicais particulares e os sustentam” (Rink, 2002, p. 35). Tal
significados de sua projeção” (RINK, p. postura é coerente com um dos princípios
35). É válido ressaltar que o ato da sustentados por John Rink4 acerca da
projeção, por sua vez, imbui novamente o análise para intérpretes, em que todo o
fator tempo em dinâmica com a relação elemento analítico é incorporado à síntese
tempo/espaço. formada pelos aspectos estilísticos, de
O termo informed intuition gênero, técnicos e também da tradição da
(“intuição informada”) também é disposto performance.
pelo autor para esclarecer que no caso do
intérprete, a intuição é fundamental 4. A obra
durante o processo interpretativo e deve
estar associada ao conhecimento e à Arietta n. 12 “VOI CHE SAPETE”
experiência. Trata-se do uso constante e “Le Nozze de Figaro” – composta por W.
equilibrado da intuição pelo intérprete A. Mozart (1756 – 1791).
durante a aproximação analítica e a Ópera buffa em 4 atos, k492, com libreto
execução musical, em oposição ao de Lorenzo da Ponte (baseado em La folle
tecnicismo, ou à sistematização do fazer journée, ou Le mariage de Figaro, de
musical. O conceito da “intuição Baumarchais, 1748, Paris). Estréia em
informada”, ademais, minimiza a Viena, em 1º maio de 1786.
dicotomia tradicionalmente estabelecida No castelo do conde em Águas Frescas,
entre performance e a análise musical perto de Sevilha, século XVIII .
tradicional, na medida em que cede O personagem é Cherubino (pajem).
espaço às escolhas e à co-criação do II ato
intérprete no fazer musical. Andante, 2/4, em Sib Maior.
A justificativa do autor para o Soprano ou mezzo-soprano (personagem
estudo analítico comprometido ocorre masculino);
pelo fato de que este procedimento vem Madeiras: flauta, oboé, clarineta, fagote.
auxiliar os intérpretes na solução de Metais: trompas (I,II, Mib)
problemas técnicos e conceituais, ao Cordas
estabelecer distintos parâmetros sonoros e Trata-se da segunda ária do
fornecer, assim, terminologias mais personagem, inserida na cena em que
precisas acerca de nuanças a serem contracenam a Contessa Rosina (a
exploradas. Também, o processo analítico condessa) e Susanna (a criada). A

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

primeira ária do personagem “Non so tema central. Nesta ocasião, “Mozart


più cosa son, cosa faccio” (I ato), é uma não só resolveu o problema de
demonstração musical envolvente da introduzir uma canção (‘letra e música’
confusão afetiva - emocional de um de Cherubino) num contexto em que
adolescente. Nesta passagem, todos se exprimem cantando, como
Cherubino revela, pelo libreto, que se compôs uma ária que adquiriu
apaixona facilmente, e se abala com a popularidade universal” (Harewood,
presença feminina, o que o faz palpitar e 1994, p. 86). No enredo, a canção é
inflamar. Estes caracteres são possíveis cantada com o acompanhamento de
de serem identificados pelo emprego já chitarrino da personagem Susanna.
no início da melodia principal, de frases O desafio para o intérprete deste
curtas e fragmentadas, e em anacruse personagem está em sustentar as duas
(vide Figura 9). características que de imediato são
Já na segunda ária, objeto do evidenciadas:
presente estudo, intitulada “Voi che • A adolescência;
sapete”, Cherubino apresenta à • Destaque de uma canção
Condessa, por meio de uma canção (de inserida no enredo da ópera5.
sua própria autoria), o tormento diante
às chamas do Amor, sendo este, então, o

Divisão formal e plano tonal básico (1)

Compasso 1 -20 21 – 61 62 -79


Seção A B A’
Subseção intro A1 B1 B2 transição cadência A1’ coda
Compasso 1 9 21 37 (45) 52 58 62 77
Tonalidade SibM FáM LábM -------MibM FáM SolM ---FáM SibM
I V - ------------------(modulante)----------------V I
Figura 1: Mozart, Voi che sapete: divisão formal e plano tonal básico.

Voi che sapete é uma ária da movimento ascendente. Tal seqüência,


capo, constituída pela estrutura ABA, pode-se dizer, proporciona ótima
na qual o plano tonal obedece à oportunidade para enfatizar a
seqüência I-V-I (Sib Maior – Fá Maior - caracterização do personagem-
Sib Maior). A parte B traz maior adolescente. O movimento cadencial
diversidade no que tange às explorações que se inicia no compasso 58 retorna à
tonais, caracterizadas, entretanto, pela tonalidade de Fá Maior e resolve no
ambiência da dominante, Fá Maior. A compasso 62 em Sib Maior para então
partir do compasso 37, a canção se reiniciar a seção A (A’).
direciona à tonalidade de Láb Maior, Para o intérprete, a seção B
mas já começa a se afastar oportuniza a exploração do libreto. Isto
harmonicamente, e sob esta perspectiva, porque, este, conforme o modelo de
é possível considerar o início de ária, ou seja, está estruturado em duas
transição para o retorno à seção A. A seções, sendo que a primeira (A) dispõe
partir do compasso 52, ocorrem as o pedido de atenção das damas
seqüências de dominante (na 1ª (Susanna e Condessa) para o que
inversão)- tônica (V6/5 – I), Cherubino desconfia ser o Amor (o
percorrendo MibM, FáM, Sol M, com o texto inicial é “Voi che sapete que cosa
baixo e a melodia do canto em é amor, donne vedete s´io l´ho nel

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

cor”). Na parte B, o personagem nuanças e passagens harmônicas, os


discorre sobre as novas sensações que o cromatismos e os desenhos
tomam e que tornam Cherubino muito melódicos, permitem a criação de
confuso com seus sentimentos. um movimento contrastante à
Musicalmente, para o intérprete as seção A.
possibilidades de exploração das

Forma melódica (4) e redução rítmica da estrutura de frase (5)

Figura 2: Mozart. Voi che sapete: redução rítmica da estrutura das frases disposta no hipercompasso.

A figura acima possibilita a distribuição das frases, torna-se uma


visualização da estrutura de frase, e o ferramenta muito eficaz para o
agrupamento fraseológico de cada entendimento e a apreensão global da
seção. No caso da redução rítmica de música.
Voi che sapete, adotou-se que a A discriminação das frases
semínima representa um compasso da acima foi baseada na presença de
partitura, e portanto, a semibreve motivos que as caracterizam. Assim,
condensa uma frase de quatro distinguem-se as frases conforme
compassos, denominada de dispostas abaixo:
“hipercompasso” (Rothstein apud Rink,
2007, p. 41). O destaque da subseção
correspondente à transição é
evidenciado de imediato, visto que a
regularidade fraseológica encontrada
anteriormente não é identificada, mas
sim o é o deslocamento das frase, o que
resulta um movimento diferenciado no
fluxo musical da ária. Apesar disto ser
muitas vezes percebido e incorporado à
interpretação do performer intuitivamente, a
disposição visual da redução rítmica e da

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

abraça um chitarrino para acompanhar


a canção de Cherubino.

Figura 4: Mozart. Voi che sapete: O pizzicato


na cordas, evoca a sonoridade do chitarrino
usado pela personagem Susanna (cc. 1-2)

A melodia realizada pelas


madeiras (dolce) é o tema principal da
Figura 3: Mozart. Voi che sapete: Os motivos ária e sobre o qual o personagem chama
que distinguem as quatro frases encontradas na
a atenção das damas presentes
ária.
(Condessa e Susanna) para ouvir e
Pode-se descrever essas quatro atender ao seu pedido. A troca de
frases da seguinte maneira: instrumentação das madeiras, nas frases
Frase 1 (f1). Motivo: intervalo de 4ª antecedente (clarineta)vi e conseqüente
justa seguida de 5a justa descendente (oboé), traduzem um sutil humor cênico
entre semínima e duas colcheias. (vide Figura 5). A articulação com
Frase 2 (f2). Motivo: intervalo de 3ª ligadura somada à sonoridade do oboé,
menor descendente entre colcheia e esta por Sérgio Magnani (1989, p. 223)
semicolcheia (ou duas colcheias, na descrita como dotada de “personalidade
linha vocal). inconfundível, penetrante e nostálgica,
Frase 3 (f3). Motivo: linha cromática pateticamente nasalada”, torna o apelo
ascendente. mais exagerado, algo dengoso. O
Frase 4 (f4). Motivo: notas repetidas marcato na cadência desta frase (c. 8) é
seguida de semicolcheias que formam mais um elemento que colabora com a
bordadura de dó. situação cênica (marca o início da
Na seção B as variações destas música diegética), por provocar certa
frases são observadas pelas repetições e expectativa para a “entrada da canção”.
variações de seus motivos, conforme as
intencionalidades musicais e do libreto.

5. Percorrendo a “intuição
informada” Figura 5: Mozart. Voi che sapete: A troca de
instrumentação nas madeiras anuncia o humor
Já na introdução, o caráter jovial sutil da ária de Cherubino (cc.1-8)
e leve desta ária é evidenciado com a
instrumentação, o andamento (Andante) A voz feminina repete a temática
que situa o intérprete ao momento do apresentada na introdução, modificado
personagem e da obra. É possível apenas pela inserção de uma frase
afirmar que a linha do baixo em intermediária, entre os cc. 13 e 16. A
pizzicato e os arpejos ascendentes qualidade principal desta frase é o
remetem à sonoridade esperada pela cromatismo ascendente que desperta a
ação da personagem Susanna, que atenção, provoca curiosidade no

116
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

ouvinte, ou seja, de Susanna e Condessa


(recurso de cadência interrompida, ou à
dominante) e, ao mesmo tempo, insinua
o som de dúvida, questionamento,
evocado por Cherubino.

Figura 8: Mozart. Voi che sapete: O canto


apresenta frases deslocadas e intercaladas com o
movimento cromático da orquestra, em mfp (cc.
52-54).
Figura 6: Mozart. Voi che sapete: Cromatismo
ascendente (cc. 13-16).
Expressivamente, o resultado é
de afobação, angústia. Também é
As vozes da flauta e do oboé, nos
possível supor que as progressões
cc. 14-15 e 16-17, respondem imediatamente
harmônicas possuem uma importante
ao apelo do personagem às suas
função de modificar e intensificar as
ouvintes, em forma de “deboche” ou
“temperaturas”, em que as rápidas
gargalhada (com os recursos de tercinas
passagens de tonalidades maiores para
e do staccato). Tal efeito é repetido nos
menores suscitam variações de
cc. 67 e 69.
humores, o que são típicas de um
adolescente. Também é relevante o
emprego de notas dissonantes, como
apoggiaturas na melodia, com uso de
frases interrompidas (“espasmos”).
Nesta seção pode-se afirmar que
Cherubino não sustenta uma
Figura 7: Mozart. Voi che sapete: A tercina e a interpretação de sua canção, mas sim,
seqüência de staccato na linha melódica interfere no momento e no propósito de
descendente nas madeiras proporcionam o efeito sua performance, com as características
de sátira ou deboche (cc. 14-15).
que remetem o temperamento real do
personagem, sendo este verificável na
A parte final da seção B,
primeira ária Non so più cosa son (em
contextualizada como transição em
que de fato Cherubino se sente atingido
função da instabilidade harmônica,
pelos tormentos das paixões).
modulante. No compasso 52, a melodia
ganha novo interesse rítmico, em que as
frases do canto se iniciam no
contratempo, com semicolcheias, e
sofrem interferências, ou impulso da
orquestra, esta com movimento
cromático (nos cc. 54 e 56) em mfp.
Ainda nesta passagem, nota-se a
seqüência de dominante-tônica Figura 9: Mozart. Comparação entre as Non so
anteriormente comentada (cc. 53-58). più cosa son (cc.1-3) e Voi che sapete (cc. 52-
Todo este conjunto contribui para 54).
promover a irregularidade no canto e do
discurso do personagem, criando uma É valioso observar que também
relativa tensão. a escrita musical sustenta coerência em
relação ao libreto. Como exemplo,

117
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

temos notas articuladas (duas colcheias) menor) interessantes de se destacar são


em momentos em que o personagem encontrados nos compassos 33 a 35 em
suplica e insiste pela atenção das damas, que o contraste entre as expressões
ao repetir a expressão “donne vedete” diletto (ornamentado e com
(“senhoras vejam...”) entre os cc. 70 e deslocamento métrico) e martir (mais
71; e cc. 74 e 75, com o motivo contido marcado) é evidenciado (Fig.10). A
em f2, ilustrado no gráfico da redução passagem musical, associado ao libreto,
rítmica (figura 3). é propícia à caracterização da
Ademais, os recursos de adolescência.
ornamento e harmônicos (fá maior, fá

Figura 10: Mozart. Voi che sapete: exemplos de contornos melódicos e da relação com libreto.

.
6. Resultados e conclusão 7. Referências

A partir das ferramentas e BEARD, David; GLOAG, Kenneth.


procedimentos de análise de uma obra Musicology, the Key Concepts. New
musical proposta por John Rink, foi York: Routledge, 2005.
possível estabelecer alguns alicerces HAREWOOD (org.) Kobbè: O Livro
que podem contribuir para as escolhas Completo da Ópera.Trad. de Clóvis
interpretativas da execução de Voi che Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
sapete. A construção da redução rítmica Editor, 1994.
permitiu maior definição do contorno e,
portanto da distribuição temporal dos MAGNANI, S. Expressão e
elementos e seções a serem percorridas Comunicação na Linguagem da
e recriadas na re-criação desta peça Música. Belo Horizonte: UFMG, 1989.
musical, inserida ou não em seu MOZART, W. A. Werkausgabe in 20
contexto original, ou seja na ópera, ou Banden. Munchen: Deutscher
inserida em recitais de canto. Tascenbuch Verlag, 1991.
As incursões à “intuição
informada” permitiram aflorar relações RINK, J. Analysis and (org.)
entre os elementos da composição e Performance. In: RINK, J. (org.)
suas funções contextuais, assim como Musical Performance: a Guide to
conectá-las às expressões contidas no Understanding [pp.35-58). Cambridge:
libreto. A sustentação das características Cambrige University Press, 2002.
imediatas da arietta (a adolescência e a RINK, J. Análise e (ou) Performance.
apresentação da “canção”) pode se valer Trad. de Zélia Chueke. In: Cognição e
das proposições interpretativas e Artes Musicais. Vol. 2 [pp. 25-43].
analíticas abordadas, caso as escolhas Curitiba: DeArtes UFPR, 2007.
de “contorno” (e o uso dos dispositivos
temporais) seja convergente com as 1
Este artigo é parte de um estudo desenvolvido
decisões de sua projeção. na disciplina Análise para Intérpretes, do
PPGMúsica da UFPR, cursada no primeiro
semestre de 2007.

118
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

2
Ao se partir para um estudo analítico de uma
obra musical, é condição ideal a consulta de
fontes primárias (fac-símile ou manuscritos), ou
edições diplomáticas, visto que os riscos de
modificações e interferências dos editores
podem tornar o estudo frágil. Contudo,
encontrando-se tal conjuntura indisponível,
utilizou-se a edição realizada por Ludwig
Finscher (1973) para o Neue Mozart Ausgabe.
3
No texto original se emprega o termo “shape”
(Rink, 2002, p. 36).
4
Outros princípios que norteiam as discussões
levantadas por Rink são:
1. A temporalidade reside no coração da
performance e é fundamental para
análise do intérprete;
2. A importância de descobrir “contorno”
(shape) da música em oposição à
estrutura, e os meios de projetá-lo;
3. A partitura musical não é “a música”, e
“a música” não está se restringe à
partitura;
4. Decisões determinadas analiticamente
não devem ser sistematicamente
priorizadas;
O processo analítico para o intérprete é guiado,
ou ao menos influenciado, pela “intuição
informada” (Rink, 2007).
5
A canção pode ser identificada como música
diegética, assim designada no cinema àquela
empregada como parte da estrutura da narrativa,
em oposição à música não-diegética (Beard,
2005, p. 54).
6
Para Sérgio Magnani, ‘a sua personalidade
verdadeira [do clarinete] reside na expressão do
entusiasmo, do amor apaixonado e heróico, da
romântica inquietação’ (Magnani, 1989, p. 225).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Fidelidade ao texto e a expressividade na interpretação


musical: uma visão neuropsicológica

Márcia Kazue Kodama Higuchi


USP
higuchikodama@uol.com.br

Resumo: Nos últimos 150 anos, a necessidade de respeitar as indicações do compositor tem
sido quase um dogma na performance musical erudita, porém muitos intérpretes questionam
esse paradigma alegando que esta forma de interpretação inibe a expressividade, impedindo a
manifestação da idéia artística individual do intérprete. Esta pesquisa é uma análise descritiva
interdisciplinar apoiada em trabalhos desenvolvidos nos campos da musicologia, ensino
musical, psicologia e na neurociência que visam a explicar ou dar sentido à polêmica
relacionada à função da fidelidade ao texto na expressividade interpretativa musical.
Encontramos dados na musicologia, psicologia e neurociência de que a espontaneidade é um
fator importante na expressividade interpretativa musical e que tocar de acordo com as
indicações pode realmente inibir a expressividade. Por outro lado, encontramos evidências no
ensino musical de que tocar apenas espontaneamente traz uma grande limitação na capacidade
expressiva do instrumentista e a prática de tocar de acordo com as indicações da partitura é um
instrumento de extrema eficiência para desenvolver a capacidade expressiva mais elaborada.

Palavras-chave: expressividade; neuropsicologia; fidelidade ao texto.

Românticos. [...] Beethoven não


1. Introdução tocava suas músicas
‘classicamente’. O que na
profissão é conhecido atualmente
Nos últimos 150 anos, várias como ‘fidelidade ao texto’ era
correntes musicais eruditas têm raramente citado até a segunda
defendido a idéia de que a função do metade do século XIX.
intérprete é fazer a intermediação, da
forma mais precisa possível, entre a Com base nestes princípios,
idéia do compositor e a execução interpretação e expressividade na
musical que efetivamente chega até o didática pianística erudita têm se
ouvinte. Para estas correntes, as utilizado de algumas regras estilísticas
liberdades interpretativas são toleradas, para trabalhar a musicalidade. Porém
porém com uma importante restrição, as esta forma de interpretação não é uma
interpretações têm o dever de respeitar prática consensual, uma vez que
as hipotéticas regras de interpretação enfrenta fortes críticas desde o período
estilística da época, bem como a suposta romântico.1 Segundo Walker (1983), a
idéia do compositor. interpretação fiel ao texto foi um motivo
As origens deste paradigma de grande preocupação para Liszt, que a
provavelmente se situam no período considerava como negação à
romântico. Segundo Walker (1983, p. personalidade artística do intérprete
316):

O termo “interpretação clássica” 1


foi uma descoberta dos Walker (1983); Schuller (1997); Higuchi
(2003).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Evidências — coletadas em lhe era insuportável. Quando a peça era


áreas distintas como: musicologia, espontaneamente expressada, com
neurociência e psicologia cognitiva – musicalidade inata, ele sentia uma
têm apontado que este procedimento grande felicidade. A descrição de uma
pode proporcionar fortes inibições para aula para o seu aluno Peru, demonstra que
a expressividade do intérprete. Por outro Chopin não exigia de seus alunos uma
lado, observações coletadas no ensino interpretação definida. Mas esperava
pianístico demonstram que esta prática deles uma interpretação simples e
é importante para o desenvolvimento da natural de acordo com suas inspirações
interpretação musical mais elaborada. do momento, ou seja, sempre
Este trabalho, portanto, tem como cambiantes de acordo com seu estado de
objetivo fazer uma análise destes dados espírito.
bibliográficos, com o intuito de
compreender de que forma a fidelidade Quantas vezes o vi levantar-se do
do texto influencia a expressividade sofá onde estava deitado e pegar
meu lugar no piano para tocar
interpretativa musical. como ele sentia a peça — que eu
tinha tocado mal, que seja dito —,
2. Praze r, Espontaneidade e de uma forma completamente
Expressividade diferente, apesar d’eu ter
trabalhado longa e arduamente
nela! Assim terminava a aula,
Levantamentos musicológicos para que eu não esquecesse aquela
indicam que Beethoven — um dos experiência, que tinha escutado de
grandes responsáveis pela transição uma forma religiosa. Na aula
rumo ao romantismo na música — não seguinte, quase satisfeito com a
tocava de uma maneira clássica. maneira imitativa como trabalhara
a peça, toquei-a novamente.
“Segundo seus contemporâneos como Infelizmente, quando terminei,
Ries, Cramer, Tomásek e outros, todos Chopin, mais uma vez, esticado
testemunharam a imprevisibilidade das sobre o sofá, levantou-se e com
performances de suas próprias músicas” uma repreensão sentou-se ao
(Walker 1983, p. 316). piano, dizendo: ‘escute, é assim
que deveria de ser’. E ele se pôs a
Liszt — destacava-se não apenas tocar novamente de uma maneira
pela virtuosidade, mas principalmente totalmente diferente. Com
pela sua capacidade de comover seus lágrimas nos olhos, pude
ouvintes — continuamente procurava responder apenas que aquela
novas maneiras de tocar velhas músicas demonstração não se assemelhava
em nada com a primeira. Um
(como sonatas de Beethoven). desencorajamento envolveu todo
Chopin — respeitado e admirado o meu ser. Então ele sentiu pena
por sua musicalidade — exigia de mim, dizendo que estava quase
naturalidade e simplicidade na execução bom, ‘apenas não do jeito que o
pianística. Segundo Hipkins, seu sinto’.(Eigeldinger 1986, p.55 e
56)
contemporâneo, “Chopin nunca tocava
suas próprias composições duas vezes Portanto, ao que parece,
de forma similar, mas variava de acordo Beethoven, Liszt, e Chopin que foram
com seu humor” (apud Eigeldinger compositores intérpretes famosos por
1986, p.55). Nada era mais estranho à sua expressividade, acreditavam que a
natureza de Chopin do que exagero, expressividade estaria vinculada à
fingimento e sentimentalidade. Mas a espontaneidade. Atualmente, alguns
execução seca e inexpressiva também dados conhecidos pela neuropsicologia

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

indicam a hipótese da real existência provoque uma emoção, ativa


desse vínculo. automaticamente uma cadeia de
reações, preparando o corpo para uma
3. Emoção, Expressividade e resposta específica a cada situação.
Espontaneidade As reações procedentes das
emoções, por serem automáticas,
A música tem a capacidade de espontâneas e involuntárias,
causar várias reações nos estados influenciam todas as atividades do ser
mental, físico e emocional do ser humano como a postura do corpo, a cor
humano (Sacks, 2007). Porém, não se da pele, a feição do rosto, os gestos, a
sabe ao certo como a música consegue entonação da voz e a forma de
provocar emoções. No meio musical expressão. Estas reações refletem-se
muitas vezes é bastante difundida a também na forma de tocar música,
idéia de que a expressividade musical influenciando a qualidade timbrística,
está relacionada ao sistema ritmo, ênfases e inflexões
composicional. Nos séculos XVI, XVII interpretativas, propondo que a
e XVIII estava em vigor um conceito expressividade interpretativa musical
teórico conhecido como a doutrina dos tem um princípio similar à prosódia
afetos que relacionava determinados (Juslin, 1997, 2001 e 2005; Pertz,
recursos musicais (ritmos, motivos, 2005). E de acordo com o neurologista
intervalos, etc.) a estados emocionais Oliver Sacks (1987), a prosódia é mais
específicos. Muitas idéias desta doutrina precisa em expressar emoções do que a
perduram até hoje, por exemplo, alguns linguagem verbal.
estudos sugerem que as características Assim esta atual pesquisa
musicais que mais influenciam nas entende que a capacidade da música
respostas emocionais são os modos e o provocar fortes emoções requer uma
andamento (Dalla Bella et al., 2001). composição musical com elementos
Embora seja inegável a expressivos e uma interpretação
importância da estrutura composicional condizente com a obra a ser executada.
na evocação das emoções através da Estas idéias são reforçadas por várias
música, uma composição musical com pesquisas que têm demonstrado que
elementos expressivos não seria músicos profissionais conseguem tocar
suficiente para que as idéias e os uma mesma música com diferentes
sentimentos imbuídos na música fossem nuanças expressivas (Gabrielsson &
transmitidos aos ouvintes. A idéia de Juslin 1996, Juslin 1997, 2000, 2005 e
que a emoção do intérprete exerce um Canazza et al 2003) e que tanto músicos
importante papel neste processo é especialistas como leigos conseguem
bastante defendida por vários identificar a emoção transmitida através
profissionais da área musical. Higuchi da audição (Juslin 1997). E estudos
(2003) elaborou um painel teórico que neurocientíficos indicam que as
fornece elementos e justificativas sobre audições musicais podem desencadear
a importância da emoção do intérprete fortes emoções (Blood e Zatorre 2001;
para que ocorra a transmissão Brown et al. 2004; e Menon e Levitin
expressiva através da interpretação 2005). Portanto, se esta teoria estiver
pianística. correta, a emoção do instrumentista no
De acordo com esse painel momento da performance exerce um
teórico, o sistema nervoso, ao receber papel essencial neste processo, pois é
alguma informação ou estímulo que ela que provoca as reações que se

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

refletem na forma de tocar, resultando parecem mover-se automaticamente,


na expressividade interpretativa. realizando fraseados, nuanças de
Estes dados corroboram a idéia dinâmica e rubatos determinados pelo
de autores (Higuchi, 2003; Grindea estado físico, mental e emocional, ao
2001) que entendem que há relação passo que, ao tocar com a preocupação
entre a expressividade performática de reproduzir uma suposta idéia do
musical e o estado de fluxo descrito por compositor, o intérprete precisa inibir
Csikszentmihályi (1997), estado no qual estas mudanças automáticas para poder
a pessoa consegue se concentrar manter suas mãos sob controle e
totalmente na atividade que está executar todas as indicações descritas
desenvolvendo e toda sua emoção é na partitura, impedindo assim a
dirigida e canalizada para a realização interpretação espontânea.
daquela tarefa. No estado de fluxo, a Estudos na área da neurociência,
pessoa perde noções de espaço e tempo. utilizando ressonância magnética
A qualidade da atenção em fluxo é funcional (aparelho que permite estudar
relaxada, mas altamente concentrada. O quais áreas cerebrais são ativadas
cérebro se encontra num estado frio, e durante a realização de determinadas
as tarefas são executadas com um tarefas) têm apresentado dados que
dispêndio mínimo de energia mental, corroboram a hipótese de que tocar de
ativando apenas circuitos neurais acordo com o original pode inibir a
sintonizados com a demanda do expressividade. De uma forma bem
momento (Goleman 1995). simplificada, a inibição ocorre da
Portanto, se — em fluxo — as seguinte maneira: o cérebro humano
atividades psico-motoras e a emoção da tem aproximadamente 100 bilhões de
pessoa estão focadas na tarefa e são neurônios e é o responsável pelo
ativados apenas os circuitos neurais comando das funções necessárias para a
sintonizados com aquela demanda, isto execução musical, como os movimentos
significa que a emoção, fruto legítimo dos dedos, o processamento rítmico,
daquela expressão, estaria isenta de assim como a audição, percepção,
fingimento, seria autêntica. Assim, toda atenção, memorização e emoção. O
a emoção sentida estaria explicitamente cérebro é dividido em dois lados
representada por cada gesto, toque e (hemisférios) e cada lado está dividido
feição da pessoa que a estivesse em áreas que são responsáveis por
manifestando. funções específicas, por exemplo, as
Desta forma, para inibir, fingir ou áreas que são responsáveis pela audição
exagerar uma emoção, seria necessária uma se encontram nas laterais do cérebro2.
concentração forçada, o que Todas estas funções ocorrem
necessariamente interromperia o fluxo através de transmissões de sinais
expressivo. Portanto seria razoável concluir
(conhecidos por sinapses) entre
que, para atingir o fluxo em uma
performance pianística, é necessário que
determinados neurônios. As sinapses
esta execução ocorra isenta de preocupação, ou podem ser excitatórias quando, como o
seja, o mais espontaneamente possível. próprio nome define, enviam sinais que
Portanto, se esta constatação for excitam o outro neurônio, ou inibitórias
reflexo de um fenômeno natural, a
doutrina da fidelidade ao texto contém 2
Embora cada parte do cérebro tenha função
um elemento inibidor da expressividade específica, o processamento das funções é
em sua essência, considerando-se que – extremamente complexo. A audição de uma
ao tocar em estado de êxtase – as mãos única nota, por exemplo, envolve a ativação de
diversas partes distintas do cérebro.

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quando enviam sinais que inibem o idéias e emoções na interpretação


outro neurônio. Quando uma pessoa espontânea.
estuda música, por exemplo,
determinadas regiões do cérebro são 4. O Limite da Espontaneidade
ativadas, enquanto outras partes são
inibidas. Apesar de haver evidências de que
Segundo estudo de Blair et al. a espontaneidade traga a expressividade
(2007), as ativações de várias áreas como grande benefício, tornando a
cerebrais através da cognição3, podem interpretação rica em nuanças e agógicas
inibir as amígdalas (núcleos cerebrais atreladas às emoções e às idéias do
responsáveis pela emoção). E a prática intérprete, percebe-se que a
de tocar fielmente o texto requer muitas espontaneidade não é suficiente para o
atividades cognitivas, uma vez que esta desenvolvimento de uma execução
musical mais elaborada. A evolução
prática requer conhecimentos
destas execuções fica restrita à limitação
musicológicos específicos e a realização
técnica do instrumentista. Em outras
precisa das indicações de todos esses palavras, a espontaneidade pode atingir o
conhecimentos musicológicos limite mais alto da capacidade
conectadas às indicações apresentadas interpretativa e técnica do instrumentista,
nas partituras. todavia uma interpretação espontânea não
Se, desde já, todos estes chega a levar um pianista ou um
pressupostos forem tidos como válidos, estudante a desenvolver uma capacidade
podemos deduzir que Chopin saberia o técnica acima daquela que possui. Se, por
que exigir de seus alunos para que exemplo, um estudante tiver uma
conseguissem atingir a expressividade. limitação motora que permite tocar piano
Possivelmente por esta razão ele tenha apenas de uma forma pesada e dura, não
repreendido seu aluno por um esforço haverá espontaneidade que faça ele tocar
de imitação de sua própria execução. de outra maneira, ou seja, a diversidade
Além disso, é ainda provável que, na timbrística e a dinâmica da execução
sua opinião, esse caminho não levaria o serão restringidas a apenas uma
aluno a atingir a expressividade alternativa e ainda a uma opção
desejada. inadequada, comprometendo seriamente a
Ao exigir simplicidade, sua capacidade expressiva.
espontaneidade e sinceridade para obter Por outro lado, a habilidade
a expressividade na execução, Chopin motora necessária para um alto nível de
também deveria acreditar que a interpretação pianística é extrema, uma
expressividade estivesse vinculada à vez que a habilidade necessária não se
restringe à agilidade. Estudos indicam que
espontaneidade. Mas este vínculo pode
expressividade na performance musical é
ter sido percebido empírica, intuitiva e
resultado de pequenas e grandes variações
instintivamente, e sem maiores na agógica, na dinâmica, no timbre, nas
conhecimentos conscientes sobre a articulações entre outros aspectos (Juslin
forma pela qual ocorre a transmissão de 2000). Portanto entendemos que a
3
capacidade expressiva do intérprete está
Estudos utilizando tarefas de stroop afetivo,
relacionada também ao grau da sua
indicam que ativações de áreas laterais, orbitais
e dorsolaterais do córtex frontal podem inibir as capacidade técnica, uma vez que
amígdalas. Blair et al. (2007) acrescentaram a pequenas nuanças expressivas requerem
esta hipótese, a possibilidade dos córtices alto grau de precisão motora, o que
temporal, occiptal, e frontal lateral inibirem as raramente é obtido sem um grande e
amígdala por meio de ativação do córtex frontal extenso trabalho técnico. E, de acordo
medial.

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com o ensino musical, tocar de forma fiel técnica, ele proporciona maiores recursos
ao original é a forma mais indicada e para uma interpretação expressiva mais
adequada para conseguir desenvolver toda elaborada. O domínio técnico além de
essa técnica necessária para a diluir a inibição expressiva, permite um
interpretação expressiva mais elaborada. maior repertório de nuanças de timbres,
agógicas, e dinâmicas entre outros,
5. Conclusão aumentando assim a capacidade
expressiva.
Portanto encontramos um grande Um outro aspecto também muito
paradoxo em toda esta questão. Há indícios importante a ser considerado reside no fato
de que a fidelidade ao texto pode inibir a da emoção não ser passiva de controle.
expressividade, porém a prática de estudo Assim, considerando que expressividade
tocando apenas espontaneamente não seja fruto da emoção do intérprete, a
desenvolve recursos técnicos necessários expressividade não pode ser resgatada
para uma execução musical expressiva mais voluntariamente. Se o músico depender
elaborada e, justamente a adoção da exclusivamente da emoção espontânea para
fidelidade ao texto pode contribuir para o sua interpretação, ele ficará refém da
desenvolvimento desses recursos técnicos. “inspiração”, que nem sempre estará à sua
Na verdade, mesmo havendo disposição. Portanto o intérprete necessita
indícios de que a adoção da fidelidade ao de um recurso confiável e controlável que
texto pode, a princípio, inibir a possa lhe garantir uma execução de
expressividade, a tarefa de tocar de qualidade, mesmo sem a “inspiração”.
acordo com as indicações escritas no A interpretação trabalhada
texto desenvolve o controle motor que fielmente ao texto pode possibilitar todos
possibilitará o estudante a ter recursos esses recursos, e talvez por este motivo, esta
para conseguir expressar sua emoção de forma de interpretação seja exigida e
forma mais precisa. Outra contribuição indispensável, tanto nos altos níveis
importante desta tarefa reside no fato de acadêmicos como artísticos, do meio
que tanto as indicações da partitura, como musical erudito.
os conhecimentos resgatados por estudos Portanto, embora a interpretação
musicológicos, proporcionam um fiel ao texto tenha sido um motivo de
conhecimento mais rico e profundo da grande preocupação para Liszt, por
peça e, deste modo, o estudante terá considerá-la como negação à
muito mais recursos e condições de fazer personalidade artística do intérprete, a
uma interpretação coerente e mais execução obedecendo-se às indicações da
expressiva. partitura é uma ferramenta
Embora estudos neurocientíficos importantíssima para o desenvolvimento
indiquem que a cognição pode inibir a expressivo. Porém o trabalho de
expressividade, de acordo com estudo de interpretação não deve se restringir à
Blair, a inibição da emoção através da obediência ao texto. É necessário “tentar
cognição estaria relacionada ao grau de penetrar no fundo do coração das
dificuldade da tarefa. composições, tocando de diversas e
Portanto, ao deduzir que quanto diferentes maneiras, até chegar ao ponto
maior for o domínio técnico, menor será o de encontrar a verdadeira mensagem”,
efeito inibitório, podemos entender por como fazia Liszt (Walker 1983).
que tocar fielmente ao original é A fidelidade ao texto deve ser um
fundamental para uma interpretação meio e não o fim.
expressiva mais elaborada. Por ser um
procedimento eficaz para desenvolver a

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Rigidez métrica e a expressividade na interpretação


musical: uma teoria neuropsicológica

Márcia Higuchi
USP
higuchikodama@uol.com.br
João Pereira Leite
USP
jpleite@fmrp. usp.br

Resumo: O rubato sempre esteve vinculado à expressividade performática musical, mas nos
últimos 150 anos, o ensino da música erudita tem exigido um rigor métrico nas execuções de
músicas anteriores ao romantismo, porém esta prática não é consensual. Esta pesquisa é uma
análise descritiva interdisciplinar apoiada em trabalhos desenvolvidos nos campos da
musicologia, psicologia e na neurociência que visam explicar ou dar sentido à polêmica
relacionada à função da rigidez métrica na expressividade interpretativa musical. Encontramos
dados na psicologia cognitiva que sustentam a relação rubato e a expressão musical, assim como
encontramos na neurociência, evidências de que a rigidez métrica pode realmente inibir a
expressividade, e que a inibição estaria relacionada ao grau de dificuldade que a pessoa tem em
manter o tempo. Apesar do componente inibidor, observações no aprendizado musical indicam
que a prática do rigor rítmico é um instrumento imprescindível para uma interpretação musical
expressiva mais elaborada. Portanto este trabalho pretende analisar a importância dessa prática
para o desenvolvimento da expressividade musical.

Palavras-chave: neuropsicologia; expressividade; rigidez métrica

(Gabrielsson & Juslin 1996, Juslin


1. Fidelidade ao texto e a rigidez 1997, 2000, 2005 e Canazza et al 2003)
métrica indicam que expressividade na
performance musical é resultado de
“Comunicar emoções” e “Tocar pequenas e grandes variações na agógica,
com emoção”, essa é a definição da na dinâmica, no timbre, nas articulações
expressividade para a maioria dos 135 entre outros aspectos, e que as
músicos entrevistados por Lindströn e modificações no tempo é um elemento
seus colegas (2003 apud Juslin 2006). A em que o ouvinte mais relaciona com a
comunicação da emoção é um aspecto expressão emocional (Juslin 2000),
considerado crucial na performance corroborando a visão empírica de que o
musical (Juslin et al 2006), porém, rubato está vinculado à expressividade.
estudos da expressão emocional em Embora as nuanças temporais
música têm se preocupado quase que estivessem sempre vinculadas à
exclusivamente com o impacto de uma expressão musical desde a renascença,
peça em particular, ignorando o aspecto várias correntes de educadores musicais
interpretativo (Juslin 2000). que seguem a doutrina da fidelidade ao
Recentemente, porém, pesquisas texto nos últimos 150, pregam também
a respeito da capacidade expressiva de a rigidez métrica. Esta rigidez é
performances musicais têm geralmente exigida nas interpretações
aumentando. Importantes estudos de obras de compositores anteriores ao

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romantismo. Mas apesar da rigidez música fosse tocada pela severidade fria
métrica ser associada à fidelidade do de um metrônomo.1
texto, estudos apontam que muitos Assim como Beethoven, é
destes compositores não tocavam no comum muitos músicos associarem a
tempo estrito. Segundo Frederick rigidez métrica à frieza interpretativa, e
Dorian: o rubato à expressividade. Atualmente
alguns pesquisadores da psicologia
A frase ‘modificação do tempo’ cognitiva parecem concordar com essa
como tal, havia sido usado desde associação. Bob Snyder, em seu livro
a época de Spohr e de Wagner.
Todavia, o sentido da expressão
Memory and Music (2000), escreve:
foi conhecido já pelos escritores e
intérpretes do Renascimento e “nuanças rítmicas são
empregado a partir de então, instrumentos poderosos para dar
manifestando tão claramente a um sentimento ‘humano’ para o
doutrina dos sentimentos. As ritmo. É preciso compreender que
fontes anteriores ao período numa performance musical real,
clássico nunca deixam de esses tipos de nuanças temporais
apresentar amplas referências à ocorrem constantemente. Quando
modificação do tempo, mas um evento musical está com
sublinham a execução vocal como batidas dentro deste tempo (entre
seu terreno natural. [...]. (1950 p 1/8 a 1/4 do intervalo de tempo da
185) pulsação básica) é simplesmente
ouvido como uma versão de um
daqueles tempos. [...] Lembrar a
Mozart, em 24 de outubro de
proporção exata do intervalo de
1777, escreveu a seu pai: “eles não tempo entre os sons é difícil.
conseguem entender como mantenho a Experimentos nos quais sujeitos
mão esquerda independente no tempo tentam reproduzir a proporção de
rubato de um adágio, pois para eles a duração de diferentes sons fora de
um esquema de uma pulsação
mão esquerda sempre segue a direita”
mostram uma margem relativa de
(Mersmann ed. 1972). erro. Parece que para fazer um
Gunther Schüller afirma que “há julgamento acurado sobre o
em quase todas as escritas mais antigas tempo, nós precisaríamos de
um extraordinário consenso sobre o algum tipo de ‘relógio’ para
compará-los.”
tema flexibilidade do tempo, que
Beethoven costumava chamar de tempo
Ou seja, o controle rítmico
elástico” (Dorian, 1950 p. 185).
humano é bastante limitado. Mesmo
Portanto, são evidentes os
muitas das pulsações que parecem ser
indícios de que os próprios
precisas aos ouvidos das pessoas
compositores, desde o Renascimento,
contêm nuanças, decorrentes
usavam rubato para interpretar suas
características humanas individuais.
obras, o que pode significar que haveria
Esses dados sugerem que, para se obter
uma contradição no que se refere à
uma precisão metronômica é necessária
fidelidade à idéia original do
a utilização do metrônomo. O uso desse
compositor. Porém, além dessa provável
artefato eliminaria as nuanças rítmicas,
contradição, a rigidez métrica enfrenta
destituindo assim a realização musical
uma outra questão.
de elementos poderosos que atribuem
Segundo Anton Schindler,
sentimento ‘humano’ ao ritmo.
Beethoven utilizava a mudança de
andamentos para conseguir
expressividade e não queria que sua 1
Schindler (1966).

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Com base nestes fatos, é viável compassos“ intelectuais, frios e sem


justificar as incontáveis reclamações sentimentos. Em contra-ataque, os
sobre o uso do metrônomo, que regentes conservadores censuravam os
geralmente assumem o formato: “Românticos”, apontando seu excesso
“estudar com metrônomo inibe toda a de indulgência, permissividade e
liberdade e a expressividade e a música excesso de sentimentalismo. Gunther
perde a sua beleza tornando-se fria e Schüller ainda relata que:
feia”.
Essas evidências estabelecem A suposição geralmente é de que
claramente que a manutenção do estes idealistas alemães, na
tradição de Wagner e Büllow,
andamento da música não é reconhecida toleraram excessivamente as
como espontânea ao ser humano. liberdades de tempos subjetivos,
assim como os tempos pesados,
2. Espontaneidade versus métrica muito ligados e lentos enquanto
rígida os jovens regentes da metade do
século, muito influenciados por
Toscanini e seu sucesso
Se a rigidez métrica pode fenomenal, eram expoentes dos
comprometer a expressividade, se há tempos aerodinâmicos,
indícios contraditórios sobre a absolutamente precisos e
manutenção rígida em relação à controlados com literalismo
objetivo. [...] A questão do tempo
fidelidade ao texto, o que então justifica é geralmente confundida com
tanto rigor com relação à exigência outra contenção, a fidelidade ao
métrica na educação musical? texto. Os proponentes da lealdade
A resposta para esta pergunta à partitura – uma filosofia que
pode ser fornecida por fatos históricos Toscanini sintetizou em três
palavras: “como está escrito” –
que determinaram a origem deste tende a harmonizar a devoção
paradigma. rigorosa à partitura com a
De acordo com o livro The inflexível constância de tempo
Complete Conductor, de Gunther quando, de fato, as duas
Schuller,2 no auge da era romântica e características não teriam
necessariamente nada a ver uma
pós-romântica houve uma grande com a outra. A fidelidade textual
polêmica entre os regentes em relação não implica em [...] rigidez
aos andamentos. Havia duas tendências rítmica – apesar de que,
distintas. A primeira, influenciada por logicamente, alguns intérpretes,
Beethoven, estavam os regentes críticos e regentes mal orientados
possam fazer essa associação.
conhecidos como “Alemães (Schuller 1997, p. 70)
Românticos” (Wagner, Furtwängler,
entre outros), reunia os defensores da Apesar de esta questão estar
liberdade da mudança de andamentos. A supostamente relacionada a um contexto
segunda incluía os regentes que histórico, provavelmente a exigência da
defendiam a manutenção rígida de rigidez métrica não sobreviveria tanto
andamentos (Berlioz, Toscanini, entre tempo, caso não proporcionasse um
outros). benefício proporcional ao sacrifício
A linha pró-liberdade de tempo exigido para conquistá-la.
acusava os regentes mais conservadores Ao que parece, a manutenção da
de serem simples “batedores de pulsação traz grande e valiosos
benefícios à clareza de interpretação, à
2
Schuller (1997).
precisão e ao controle rítmico.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Higuchi (2003) fez um rítmico trouxe a eles uma nova opção de


levantamento das características dos interpretação: tocar a música mantendo
estudantes de piano que tem dificuldade uma métrica rígida, para um melhor
em tocar utilizando o metrônomo. equilíbrio da interpretação.
Geralmente eles apresentam um quadro Mas apesar da rigidez métrica
com as seguintes características: muitas vezes ter proporcionado mais
leveza e clareza, e conseqüentemente ter
CARACTERÍSTICAS deixado as interpretações mais bonitas,
Dificuldade para manter a ainda assim, a manutenção da pulsação
1.
concentração. controlada muitas vezes continuava a
2. Excesso de esbarros. inibir a expressividade. Observamos
Dificuldade para execução de que o uso do metrônomo, durante a
3. execução pianística, realmente parecia
andamentos lentos.
4. Dificuldade na leitura à primeira vista. provocar como efeito uma performance
5. Dificuldade para trabalhar detalhes. mais dura e sem nuanças expressivas,
principalmente para os estudantes que
Dificuldade para analisar o melhor
6. apresentavam mais dificuldade em
dedilhado.
manter uma pulsação. Essa constatação
Dificuldade para manutenção do
melhor dedilhado (geralmente
nos levou a interpretar a questão da
7. modificam bastante o dedilhado, às relação entre essa dificuldade e inibição
vezes utilizando opções totalmente da seguinte forma: quanto maior a
inadequadas). dificuldade que o aluno enfrenta para se
Dificuldade para estudar uma peça, por manter numa métrica rígida, maior sua
8. meio do trabalho e repetição de inibição expressiva, e vice-versa. Ou
pequenos trechos. seja, acreditamos que exista uma certa
Apesar da freqüente musicalidade proporcionalidade entre dificuldade
inata, apresentam interpretações para com a métrica e inibição
pesadas e obscuras, pois o rubato expressiva.
desses alunos muitas vezes não parece Estudos na área da neurociência
9. ser conseqüência de uma agógica utilizando ressonância magnética
expressiva, mas da incapacidade de funcional (aparelho que permite estudar
manter a métrica, tornando os rubatos quais áreas cerebrais são ativadas
quase sempre desequilibrados e
durante a realização de determinadas
exagerados.
tarefas) têm apresentado dados que
podem justificar tal inibição. De uma
O desenvolvimento da
forma bem simplificada a inibição
manutenção da pulsação — realizado
ocorre da seguinte maneira: o cérebro
com alguns estudantes que
humano tem aproximadamente 100
apresentavam as características citadas
bilhões de neurônios, e é o responsável
— trouxe alguns importantes
pelo comando das funções necessárias
benefícios. Suas execuções tornaram-se
para a execução musical, como os
mais leves e claras. Uma explicação
movimentos dos dedos, o
plausível para esta mudança poderia
processamento rítmico, assim como a
estar no fato desses alunos terem
audição, percepção, atenção,
conseguido progredir, empregando
memorização e emoção. O cérebro é
gradativamente um controle rítmico
dividido em dois lados (hemisférios) e
maior e, conseqüentemente, puderam se
cada lado está dividido em áreas que
libertar da restrição rítmica da qual
são responsáveis por funções
eram reféns. A ampliação do controle

131
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

específicas, por exemplo, as áreas que estaria relacionada ao grau de


são responsáveis pela audição se dificuldade da tarefa.
encontram nas laterais do cérebro3. Se considerarmos que a
Todas essas funções ocorrem expressividade é “tocar com emoção,”6
através de transmissões de sinais esses dados podem explicar porque
(conhecidos por sinapses) entre tocar com o rigor rítmico pode inibir
determinados neurônios. As sinapses expressividade de alguns estudantes de
podem ser excitatórias que como o música, mas não inibir a expressividade
próprio nome define, enviam sinais que de outros.
excitam o outro neurônio, ou inibitórias Com esses dados, podemos
as quais enviam sinais que inibem o deduzir que apesar da prática em manter
outro neurônio. Quando uma pessoa o tempo estrito possa inibir a
estuda música, por exemplo, expressividade, o domínio rítmico tende
determinadas regiões do cérebro são a diluir essa inibição. Portanto, a prática
ativadas, enquanto outras partes são da métrica rígida é essencial para o
inibidas. desenvolvimento da expressividade
Segundo estudo de Blair et al. musical mais elaborada, uma vez que
(2007), as ativações de várias áreas ela proporciona equilíbrio, clareza na
cerebrais através da cognição4, podem interpretação, precisão e controle
inibir as amígdalas (núcleos cerebrais rítmico, permitindo assim a realização
responsáveis pela emoção). Algumas dos rubatos expressivos resultantes da
áreas ativadas no processamento rítmico emoção e não frutos da restrição
conhecidas como córtex temporal técnica.
inferior e o occipital lateral, giro frontal Mozart conhecia muito bem a
ventral e inferior esquerdo5 (Bengtsson importância de tocar mantendo uma
& Ullén 2005), são áreas que podem pulsação. Em uma de suas cartas ao pai,
inibir a emoção (Blair et al 2007). E ele escreveu:
ainda de acordo com estudo de Blair, a
inibição da emoção através da cognição O senhor Stein está maravilhado
com a sua filha. Ela tem oito anos
e meio e toca tudo de memória.
Algo poderia ser feito por ela, ela
3
Embora cada parte do cérebro tenha função tem talento, mas se ela continuar
específica, os processamentos das funções são nesta linha, será reduzida a nada.
extremamente complexos. A audição de uma Ela nunca irá adquirir muita
única nota, por exemplo, envolve a ativação de velocidade, porque ela está se
diversas partes distintas do cérebro. esforçando ao máximo para ter
4
Estudos indicam que ativações de áreas “mão pesada”. Ela nunca irá
laterais, orbitais e dorsolaterais do córtex frontal dominar o que há de mais
podem inibir as amígdalas. Blair et al. (2007) necessário, mais difícil e o mais
acrescentaram a essa hipótese, a possibilidade importante na música, chamado
dos córtices temporal, occiptal, e frontal lateral tempo, porque ela está
inibirem as amígdala por meio de ativação do acostumada desde a infância a
córtex frontal medial. negligenciar a pulsação.
5
Essas áreas foram ativadas durante a execução (Mersmann ed. 1972, p. 41)
pianística realizada através de leitura a primeira
vista com alterações apenas no aspecto rítmico
(tocando sempre numa mesma nota) dentro de
6
uma determinada pulsação. Portanto essa tarefa Segundo o painel teórico apresentado por
se assemelha ao processamento rítmico Higuchi (2003) a expressividade está
necessário para uma execução pianística através diretamente relacionada às alterações
da leitura de uma partitura, obedecendo a uma fisiológicas resultantes da emoção do intérprete
métrica rígida. no decorrer da execução.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

3. Conclusão GABRIELSSON, A.; Juslin, P.


Emotional Expression in Music
Portanto, rubatos e nuanças Performance: Between the Performer’s
rítmicas são instrumentos da Intention and the Listener’s Experience.
expressividade, mas o desenvolvimento Psychology of Music and Music
do controle do rítmico também é Education, 24, 68 -91, 1996.
necessário para uma execução pianística JUSLIN, Patrik N. Emotional
elaborada. Sobre essa questão Carl Communication in Music Performance:
Phillipp Emanuel Bach oferece uma A Functionalist Perspective and Some
conclusão média feliz, entre a rigidez e Data. Music Perception. Vol. 14, vol.
a liberdade: a simetria. Insiste que as 4, 383-418, 1997.
notas e as pausas (com exceção das
fermatas e as cadências) devem ser JUSLIN, Patrik N. Cue Utilization in
tocadas rigorosamente de acordo com o Communication of Emotion in Music
movimento em geral. De outro modo, a Perfermance: Relating Performance to
versão se tornaria obscura. Contudo, Perception. Journal of Experimental
admite do mesmo modo que se podem Psychology: Human Perception and
cometer ‘as mais esplêndidas faltas Performance, Vol. 26(6), December
contra as regras com bom propósito 2000, p 1797-1813, 2000.
(Dorian 1950, p.185). JUSLIN, Patrik N. Communicating
Emotion in Music Performance: A
4. Referências bibliográficas review and Theoretical Framework. In
JUSLIN, P., SLOBODA, J. (ed.). Music
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284, 2005. JUSLIN, P.; KARLCCON, J.;
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Mitchell,D.G.V., Morton, J., Again with feeling: Computer Feedback
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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

SCHULLER, Gunther. The Complete


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Cambridge: The MIT Press, 2000.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A cinematográfica vingança da música surrealista

Maurício Dottori
UFPR
m.dottori@onda.com.br

Resumo: A curiosa relação entre a composição musical, o movimento surrealista, a psicanálise


e o cinema permite-nos intuir e averiguar elementos do processo que termina por impregnar em
memória e em imaginação sonoras a experiência e a expressão de emoções. Neste artigo
discutem-se os princípios estéticos do movimento surrealista, tanto em sua formulação por
Breton quanto na de Dalí; os usos de música no cinema surrealista e também naquele que, não
sendo imediatamente reconhecido como surrealista, tem cenas cujo conteúdo se aproxima
daquele; e a aporia da música surrealista; para procurar alcançar alguma compreensão dos
aspectos emocionais da música.

Palavras-chave: composição musical; surrealismo; música para cinema.

que por sinal teve seu primeiro


Os mecanismos que originam em florescimento simultâneo ao início do
nós, sujeitos da recepção da arte, a via movimento surrealista. Se tomada
surrealista são suficientemente variados paradoxalmente, a composição em tempo
para não tomarmos aqui a psicanalítica real é uma tentativa de compor
tarefa de explicá-los; nos ateremos a irracionalmente, apenas submetida às
enunciar alguns exemplos comparando- realidades e aos interesses próprios dos
os aos princípios da construção da forma sons. Ou seja, transcreverem-se os sonhos
musical estésica11, fenomenológica. E se sonoros, basicamente reencadeando
alguém se interessar, que tome de outros memórias musicais.
mecanismos, submeta-os à mesma sorte de A respeito destes compositores
ingênuas comparações, que encontrará, ‘em tempo real’ (mas não exatamente
esperamos, resultados semelhantes. deles) nos diz Franco Fortini (1980, p.
Mas antes de debruçarmo-nos 37) que “num texto automático não se pode
sobre o surrealismo paranóico-crítico dizer que a linguagem esteja
como Salvador Dalí preconizava, que verdadeiramente em discussão, na
histórica e esteticamente teve maior medida em que conserva a aparência
importância, vejamos o que acontece se comunicativa do discurso. […] Além
lançarmos mão - à maneira de André disso, não raro,… tendem a tornar
Breton - da escrita automática dos sons, homogêneo o seu léxico, de modo a evitar
ao que se pretende dar o nome de os desníveis entre os diversos planos
‘composição em tempo real’ - pense-se lingüísticos, repudiando as
no jazz como exemplo muito grosseiro, contaminações, …, e a ironia que delas
deriva.” Mas, por ora, abandonemos os
‘compositores em tempo real’ à
1 Nattiez (1984) distingue com muita pretensão de seu sonho.
oportunidade as estratégias de produção do E pensemos agora na
compositor, as suas categorias de pensamento, possibilidade de um compositor
que ele chama de poiética; da forma como os
fenômenos musicais são percepcionados, que paranóico-crítico. Alguém que ao invés
ele chama de ponto de vista estésico. de pretender-se seguindo, em música, o

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

“funcionamento real do pensamento”, se gira o resto; e, mais, nos induzindo a


desse ao trabalho de organizar consciente e passar de um plano de escuta a outro
muito voluntariamente elementos de simultâneo; deixando resoluções
comunicabilidade racional, de maneira suspensas para que nós mesmos no-las
que, juntos e ordenados, estes elementos proponhamos antes que venham a existir
exprimissem determinados conteúdos de fato; e muitos outros artifícios ainda -
oníricos (alucinações, símbolos do todos freudianíssimos deslocamentos e
inconsciente, sexualidades latentes, etc.). condensações oníricos. Tudo muito
Ele o faria organizando motivos musicais engenhoso de forma que, ouvindo
reconhecíveis - isto é, sons no tempo, que finalmente sua música, não teríamos
são estes a matéria da música. (Não que o como saber que se trata de surrealismo.
ouvinte conheça necessariamente a priori Pois há pelo menos 600 anos que
os motivos, basta que os reconheça, ou estes são os processos usados, com vaga
confrontando-os a um sistema pré- consciência, mas “com a rigorosa
conhecido - tonal, por exemplo -, ou coerência que os paranóicos aplicam nos
identificando-os na segunda vez em que seus delírios” (Fortini 1980, p.31), para o
apareçam na peça. Não importa mesmo agrupamento dos sons naquilo que se
que ao último acorde já não se lembre chama forma musical. E como prometido
nem de vestígios daqueles). E lá se vai no primeiro parágrafo, aqui se segue um
nosso compositor paranóico-crítico quadro de exemplos; os termos de
organizando os seus sons: superpondo comparação musicais se restringem ao
motivos para criar contrastes chamado período clássico da música, pela
insuspeitados; unindo-os distância que aparentemente este mantém
desarmonicamente; repetindo-os como do surrealismo:
que para criar um eixo em torno do qual

Um elemento (tema, pessoa, etc.) é


conservado apenas porque está presente por
Forma rondó, e derivadas.
diversas vezes em diferentes pensamentos do
sonho.
Diversos elementos podem ser reunidos numa
unidade desarmônica (personagem compósita, Sonata bitemática, frase periódica, etc.
p. ex.).
Condensação de diversas imagens podem
chegar a esbater traços que não coincidem, Re-exposição. Tema e Variações
mantendo e reforçando os traços comuns.
Seleção e transformação de elementos do
sonho para torná-los aptos a serem Descrição musical de idéias.
representados em imagens.
Todas as formas derivadas da cadência
evitada (é possível, p. ex., que a resolução de
Elementos mais importantes do conteúdo uma cadência nos seja dada depois que nós a
latente são representados por pormenores tenhamos realizado mentalmente em
mínimos. antecipação. A cadência real torna-se uma
(Laplanche e Pontalis 1970: 129, 162 e 250) efetivação de nossos pressentimentos).
Transformação de temas importantes em
discretas figuras de acompanhamento.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Vemos, portanto, porque sempre castelo de Nosferatu? A música; o


fracassam os paladinos da escrita também enevoado prelúdio do Ouro do
musical automática, os compositores Reno de Wagner. Se contam em cento e
‘em tempo real’: enquanto na melhor trinta e tantos os compassos em que se
das hipóteses eles se mantêm na ouve um único acorde de mib maior e, só
superfície do material sonoro, é através ao abrir-se a porta do castelo, Wagner
da elaboração da forma que sempre se modula a sol maior (são afinal as
organizou, à semelhança dos sonhos, a modulações mais eletrizantes: terça maior
música. inferior e terça maior superior; é, por
Então, se não é possível uma exemplo, a única modulação que nos
música surrealista, isto se deve em alivia no finzinho do Bolero de Ravel).
resumo ao simples fato de que não é Não fosse esta modulação e teríamos
possível uma música que não seja assistido a uma abertura de uma porta
surrealista. E foi devido a este fato que qualquer, talvez de uma simpática
a música emprestou a sua forma a estalagem. Não há entretanto nada de
diversas artes temporais em nosso estranho à técnica tonal na música, mas
século. Herzog usa de sua construção formal para
À poesia surrealista, uma vez nos causar um inquietante estranhamento.
abandonada a realidade do discurso e Talvez, não fosse a música, não haveria
limitada a escolher e reordenar o nem ratos, nem peste, nem vampiro.
material irracional, não se pode mais
apreciar pela intelectualidade contida 2ª Cena. Dois exércitos inimigos
nas palavras. O que a faz ainda poesia se confrontam, e pouco a pouco, as poses
ou prosa poética, e não meramente em frente às câmeras de russos e alemães
prosa desconexa, é a música das sucedem-se cada vez mais rápida e
palavras (não os sons, mas a música, freqüentemente até o confronto final. A
entendida como sons organizados numa cena, entretanto, transcende muitíssimo o
forma); e é precisamente por ser ainda simples embate e trai mesmo um
poesia, que é capaz de causar-nos o maniqueísmo atemporal. Tendo composto
estranhamento comum aos sonhos. Mas seu filme sobre música pré-existente,
esta afirmação pode parecer vã, uma vez justamente para utilizar-lhe a forma,
que sempre houve poesia sem conteúdo Eisenstein faz com que uma seqüência de
e exclusivamente dependente de sua imagens que, sem som, praticamente se
música para existir (não se está dizendo desconectariam em sua realidade
aqui, no entanto, que a poesia surrealista absoluta, torne-se um conjunto único e
não tem conteúdo; apenas que este é carregado de ressonâncias, me custa
não-racional). Vejamos, pois, exemplos dizer, surreais. É notório que ouvida a
de outra arte que, moderna, tomou suíte de Prokofiev, sem reportá-la ao
emprestadas à música algumas de suas filme, ela nos soa perfeitamente
formas, as construindo não com sons, neoclássica.
mas com imagens.
*** 3ª, 4ª e 5ª Cenas. Todas as três de
L’âge d’or de Buñuel/Dalí. No início do
1ª Cena. Nosso herói sobe com
filme, uma violenta cena de amor termina
seu cavalo por um vale acidentado,
irrealizada com a também inconclusa
seguindo o curso do rio, em direção ao
exposição do Prelúdio de Amor e Morte
castelo. Tudo muito bonito em seus tons
de Tristão e Isolda de Wagner. A
de azul. Chega ao castelo, a porta se
frustração amorosa da música - um caso
abre. Como sabemos que aquele é o

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

de amor (segundo uma figuração de Clara terreno da realidade e se religou


Schumann, pornográfico) que termina em abertamente às convicções animistas.
morte - é expressa em um atroz pontapé Realização dos desejos, forças ocultas,
num cãozinho. onipotência dos pensamentos, animação
do inanimado, entre outros efeitos
A cena da festa burguesa tem cada concorrentes nos contos e que não podem
um de seus movimentos, de seus gestos, dar, neles, a impressão de inquietante
marcados pela Sinfonia Inacabada. estranhamento (Unheimlich). Pois para
Tomar como música de bailado uma peça que nasça este sentimento, é necessário
de música absoluta, já nos causaria […] que haja a dúvida, a fim de que nós
estranhamento suficiente para afastar da precisemos julgar se o ‘incrível’ que
realidade a festa. Não bastasse isto, aflorou não poderia, apesar de tudo, ser
Buñuel/Dalí, dentro do espírito de real” (Freud, 1917, p. 206).
nihilismo dadá que perpassa todo o filme, Por que sonhamos? A resposta de
inacaba a sinfonia com um tiro de Freud é enganosamente simples: a função
carabina, que seria talvez última do sonho é permitir ao sonhador
incompreensível mesmo como um indício permanecer dormindo. Isto, em geral, se
surrealista, se não o tomamos como uma interpreta como decisivo nos tipos de
expressão textual do título pelo qual é sonhos em que aos nossos sentidos que
conhecida a sinfonia de Schubert. vigiam quando dormimos - especialmente
Finalmente, retomando o tema do a audição e o olfato (este mais importante
amor inicial, para resolvê-lo como numa para mamíferos inferiores) - chegam
grande sonata (tema-desenvolvimento- perturbações externas que ameaçam
reexposição), Buñuel/Dalí simplesmente acordar-nos. Ruído, por exemplo, que é
explicita a sexualidade do Prelúdio de imediatamente ressignificado num sonho
Tristão e Isolda. Desta vez com a que o incorpora. Que a parte do cérebro
orquestra em cena. Mas a realização responsável pela recepção do estímulo e
musical-sexual malogra quando o regente pela atribuição a este de uma carga
atira longe sua batuta interrompendo a emocional - o sistema límbico e, dentro
música. E, enquanto o galã mais uma vez dele, em especial a amígdala - se ligue
frustrado se retira, o maestro troca o também ao comportamento territorial e à
sublimado ato em música pela figura da sexualidade, é mais do que uma
mocinha. coincidência no que tange a música.
É sintomático que Buñuel/Dalí Porém, se são necessários muitos sons à
resolva os problemas que lhe gera a música e basta talvez um só ao sonho,
excessiva proximidade objetiva à forma para que o jogo, que cremos simétrico, dê
musical por atos de violência que a origem às suas formas, isso talvez se dê
truncam, como que para impedir a forma pela diferença fundamental entre o jogo
musical de apossar-se de sua paranóia. no trabalho do sonho e na realidade da
Isto nos suscita uma pergunta vigília. No sonho, as imagens visuais
mais. Por que seria a música incapaz ela engendradas pela memória e pela
mesma de causar-nos o estranhamento imaginação têm um caráter emocional
engendrador do surrealismo, tendo, ao paradoxalmente concreto. Na vigília,
contrário, todos os seus elementos apenas aquele que Nietzsche chamou o
absorvidos como dados estilísticos? A “sentido do medo”, a audição, (quem sabe
resposta talvez esteja com Freud: “o os cães não tenham uma música do
mundo dos contos de fadas [leia-se, da olfato?), tem diretamente impregnadas
música], por exemplo, abandonou o em memória e em imaginação sonoras -

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

que ao fim e ao cabo são os fundamentos


da forma musical - a experiência e a
expressão de emoções. O inconsciente é
estruturado como música.

Bibliografia

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STANGS, Nikos (ed.). Concepts of
Modern Art. London: Thames and
Hudson, 1981.
BODINI, Vittorio. Poetas Surrealistas
Españoles. 2. ed. Barcelona: Tusquets
Editores, 1982.
FORTINI, Franco. O Movimento
Surrealista. 2. ed. Lisboa: Presença,
1980.
FREUD, Sigmund. L’Inquiétante
Étrangeté (Das Unheimliche). In: Essais de
Psychanalyse Appliquée. Paris:
Gallimard, 1933.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B.
Vocabulário da Psicanálise. Santos:
Martins Fontes, 1970.
NATTIEZ, Jean-Jacques. Harmonia. In:
Enciclopédia, v. 3. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1984.

Filmografia

BUÑUEL, Luis; DALÍ, Salvador. L'Âge


d'or: faux-raccord. França: 1930.
EISENSTEIN, Sergei. Alexander
Nevsky. Rússia: 1938.
HERZOG, Werner. Nosferatu –
Phantom der Nacht. Alemanha: 1979.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A invenção de cadências e o exemplo de Schoenberg

Norton Dudeque
UFPR
nortondudeque@gmail.com

Resumo: este artigo visa discutir a noção de cadência. Funcionalmente, cadências articulam
frases, períodos, sentenças e seções formais, seja na música tonal ou não. No entanto, cadências
também podem sofrer uma série de variações que alteram sua função para uma ênfase funcional
maior ou menor. Estas possibilidades são ilustradas através de exemplos tomados de obras de
Arnold Schoenberg e discutidos em relação à percepção de sua função formal.

Palavras-chave: cadência, função formal, encerramento e percepção formal.

I.
No seu Harmonielehre
Schoenberg escreve: “a eficácia do
horizontal é maior que a do vertical.
Uma conclusão realizada
horizontalmente resultará mais vigorosa
do que realizada verticalmente”
(Schoenberg, 1999, p. 204). Assim,
Schoenberg sugere que há uma
facilidade maior para compreendermos
uma melodia do que uma harmonia.
Para ele “o entendimento do fato
musical não é outra coisa que uma
análise rápida, uma determinação dos
componentes e de sua dependência
mútua (meu itálico)” (Schoenberg,
1999, p. 203). Assim, a compreensão
clara de uma melodia e sua terminação Fig. 1a, b, c (Excerto de “Ein Mädchen oder
é, para Schoenberg, independente de Weibchen”, n. 20 de A Flauta Mágica de W. A.
suas harmonias. Para ilustrar seu ponto Mozart, cc. 13–20)
de vista, Schoenberg re-harmonizou um
trecho da ária “Ein Mädchen oder Com esta ilustração Schoenberg
Weibchen” da ópera A Flauta Mágica dá a entender que uma melodia é capaz
de Mozart. Na Fig. 1a encontram-se de encerrar cadencialmente uma
somente a melodia do trecho escolhido estrutura musical de maneira mais
por Schoenberg, na Fig. 1b a adequada e mais direta que um evento
harmonização original de Mozart e na harmônico. Ademais, Schoenberg
Fig. 1c a versão de Schoenberg. declara que a eficácia conclusiva de
uma cadência é mais completa quando
utilizada conjuntamente nas dimensões
harmônica, melódica e rítmica. No
entanto, ele adverte, não há necessidade

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

de utilização de todos esses meios para ambigüidade, i.e. podem não apresentar
ter-se uma cadência, algumas vezes um efeito conclusivo muito claro.
basta um, outras necessita-se vários. Caplin por sua vez argumenta
As afirmações de Schoenberg que cadência é um componente sintático
podem ser ilustradas com excertos de da música, e que se difere de uma
obras suas onde serão observados grande variedade de outros elementos
momentos cadenciais. Estes exemplos componentes da música que são
darão subsídios para a conclusão onde a retóricos em função (Caplin, 2004, p.
argumentação de Schoenberg será 52).
avaliada. As concepções tradicionais e até
históricas de cadência remontam a teoria
II. musical do século XV na Itália, onde
Cadências têm uma importância formações intervalares específicas eram
especial na música, são elas que utilizadas para encerrar passagens de
delineiam o encerramento de estruturas música com textura homofônica e
formais de diversos tamanhos. Estas polifônica. Durante os séculos XVI e
podem ser uma frase, um período ou XVII o termo foi utilizado em conjunto
sentença, seções inteiras e até mesmo com termos qualitativos tais como
uma obra completa. Referindo-se a este cadentia ordinaria, cadentia simplex,
aspecto na música de Schoenberg, cadentia perfecta, cadentia diatonica, etc.
Kurth observa: Estes termos qualitativos definiam o tipo
de cadência e como esta era realizada.
Nas cadências, processos formais Assim, encontramos cadências que
tomam forma no ato de encerrar finalizavam na nota tônica do modo,
ou de começar novas seções (a
cadência final é a exceção), e
cadências que dependiam do estilo de
cadências articulam continuidade contraponto utilizado, cadências que
e descontinuidade, equilíbrio e dependiam da progressão melódica e
desequilíbrio, e expectativa e contrapontística, da modalidade, e de
surpresa. A formação cadencial vários outros fatores presentes na
pode ser efetivada por qualquer
fator musical ativo–seja melodia,
composição. O entendimento de cadência
harmonia, duração, dinâmica, como elemento de gesto de encerramento
articulação, timbre, registro, etc. formal passou a existir a partir do séc.
(Kurth, 2002, p. 245) XVIII, quando houve a associação entre
fechamento gestual representado pela
Segundo Ashforth, a cadência é cadência com a pontuação gramatical da
um fator crítico na articulação linguagem.1 Com o estabelecimento da
composicional de frases e agrupamento teoria harmônica durante este século,
de frases, ou seja, a cadência significa o Rameau estabeleceu a cadence parfait
movimento para um objetivo como o paradigma fundamental de
momentâneo ou definitivo (Ashforth, progressão harmônica conclusiva: “A
1978, p. 195). As cadências na música cadência perfeita é uma certa maneira de
tonal são bem conhecidas e suas
definições dependem de determinadas
1
fórmulas, sejam elas melódicas, Vide por exemplo: Joseph Riepel, Sämtliche
harmônicas ou rítmicas. Muito embora Scriften zur Musiktheorie (1752–1786);
estas sejam relativamente padronizadas, Heinrich Koch, Versuch einer Anleitung zur
Composition (1782–1793); Johann Mattheson,
elas também podem implicar em Der vollkommene Capellmeister (1739); Johann
Kirnberger, Die Kunst des reinen Satzes in der
Musik (1771–1779).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

terminar o fluxo musical tão satisfatória nos diz, portanto, que há outras
que após ela não desejamos nada mais” possibilidades que não apenas as
(Rameau, 1722 [1971], p. 63). A partir de associadas à tonalidade para a
então qualquer progressão harmônica realização de encerramento cadencial.
poderia ser considerada como cadência, Nos exemplos que seguem,
mesmo sem o gesto de encerramento de todos extraídos de obras de Schoenberg,
uma unidade musical. No século XIX espera-se ilustrar algumas
uma progressão cadencial era entendida possibilidades para a realização de
como que envolvendo duas harmonias cadências de encerramento de unidades
somente, a dominante e tônica. Coube a musicais. Alguns destes exemplos
Hugo Riemann expandir esta noção para mostram possibilidades distintas de
a seqüência harmônica completa em cadência com o mesmo material
quatro estágios: I. Tônica (afirmação do temático, procurando, naturalmente, um
início) II. Subdominante (conflito) III. efeito distinto para cada utilização da
Dominante (resolução do conflito) IV. cadência.
Tônica (confirmação) (Riemann, 1887, p.
16). Finalmente durante o século XX, III.
cadência foi entendida em diferentes 1. Cadências que enfatizam a
níveis estruturais da música, até mesmo atividade melódica. Estas cadências
entendida como um elemento expandido podem articular seções e subseções
que refletia a progressão tonal de uma dentro de obras e prover, em particular,
obra inteira.2 continuidade uma vez que não
Apesar da evolução do termo e apresentam um movimento harmônico e
de seu entendimento, cabe levar em melódico cadencial tão definido quanto
consideração no presente trabalho, que uma cadência perfeita V–I. Estas
cadências são relacionadas ao cadências por condução de voz de grau
encerramento formal de uma unidade conjunto têm um papel importante para
musical, tendo em vista vários aspectos a continuidade musical entre as
musicais, tais como: melodia, harmonia, subseções na obra Friede auf Erden,
ritmo, textura, timbre, e até mesmo Op. 13 (1907) para coro a capella de
processos composicionais específicos, Schoenberg. As Fig. 2a e 2b ilustram
tais como, procedimentos de dissolução cadências que levam ao mesmo material
motívica. temático. A cadência nos compassos
Schoenberg declara que o 10–11 (Fig. 2a) é concluída pelo
“sentido de uma cadência harmônica é a movimento de semitom nas partes
restauração de um estado de repouso: a externas. Ela é caracterizada no
tônica não é mais desafiada... Cadências compasso 10 pela prolongação das
completas não somente são um padrão notas Si bemol e Mi bemol (indicadas
para funções necessárias, mas também, pelas setas na Fig. 2a); a primeira nota
em especial no que tange a música que (Si bemol) projeta a progressão
não é ligada à tonalidade, outras melódica da voz superior Si bemol–Lá
funções devem ser capazes de promover natural, e a segunda no baixo a
o efeito articulador por si próprias” progressão Mi bemol–Mi natural. Na
(Schoenberg, 1995, p. 249). Schoenberg Fig. 2b (compassos 88–90) a cadência
cromática introduz o mesmo material
2
Vide Heinrich Schenker, Der Freie Satz temático, no entanto, a condução de voz
(1935); Arnold Schoenberg, The Musical Idea das partes superiores e inferiores são
and the Logic, Technique, and Art of Its combinadas em uma progressão
Presentation (1995).

142
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

cromática. A cadência ilustrada na Fig.


2a está localizada em um ambiente
diatônico da seção de exposição da obra
em questão, já a segunda está na seção
de desenvolvimento (Durchführung).
De fato, cada uma destas duas cadências
cumpre com sua função formal: a
primeira provê continuidade e delimita
Fig. 3 (excerto de Friede auf Erden, op. 13, de
a subseção inicial da obra, a segunda faz A. Schoenberg; compassos 158–159)
parte da retransição que leva à
recapitulação. 3. cadências que apresentam
interdependência entre melodia e
harmonia. Nas Fig. 4a e 4b temos uma
linha melódica inconsistente com o
sentido tonal do trecho. A linha
melódica da canção “Traumleben”, Op.
6, de Schoenberg é tonalmente
relacionada pela harmonia que a
direciona para um encerramento tonal,
projetando uma cadência, V-I-IV7-II-
V9-I em Mi maior. O sentido da melodia
por si só não corresponde a uma
tonalidade clara, pelo contrário, a
melodia pode ser melhor entendida
através da tonalidade expandida, típica
do período tonal das primeiras obras de
Fig. 2a, b (excerto de Friede auf Erden, op. 13, Schoenberg. Assim, as notas Si natural,
de A. Schoenberg; cc. 10–12 e cc. 88–90) Lá natural, Ré sustenido, Dó sustenido,
e Sol sustenido pertencem a tonalidade,
2. cadências que sintetizam mas Mi sustenido (Fá natural) e Si
movimento melódico com progressão sustenido não pertencem à tonalidade de
harmônica. Uma síntese entre cadências Mi maior e podem ser consideradas
que apresentam um movimento V–I notas que a expandem. Ademais a
forte e um movimento melódico finalização cadencial apresenta um
importante é a ilustrada na Fig. 3. Esta intervalo de 4a diminuta ou 5a
ilustração mostra a cadência final nos aumentada, já preparado no compasso 2
compassos 157–160 em Friede auf (Lá-Mi sustenido). Aqui, portanto, se
Erden. A cadência apresenta uma linha observa uma independência entre linha
cromática entre as vozes externas e melódica e harmonia, a linha melódica
entre os compassos 158–159 o por si só não seria capaz de produzir o
movimento de cadência perfeita encerra encerramento cadencial esperado,
a obra. A progressão completa é em Ré somente com a harmonização o
maior: bIII –IV– II – V7–I. Esta encerramento cadencial atinge sua
cadência também cumpre com sua função.
função, i.e. encerra a obra de maneira
definitiva.

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Fig. 4a (excerto de “Traumleben”, op. 6, n. 1, de A. Schoenberg; cc. 1–4)

conclusiva, novamente a melodia


Uma segunda versão da mesma conclui com um intervalo de 4a
melodia aparece re-harmonizada na diminuta (5a aumentada). No entanto, a
canção (vide Fig. 4b). A melodia tem harmonia não dá o suporte esperado e o
algumas notas enarmonizadas e efeito não é conclusivo, após a V de Fá
direcionadas para Fá maior. Assim, Mi maior ocorre a “resolução” e introdução
sustenido é interpretado como Fá de um acorde de Mi maior, a tônica
natural, Si sustenido como Dó natural, principal da obra, e a frase em Fá fica
Ré sustenido como Mi bemol, Dó sem resolução cadencial e promove de
sustenido como Ré bemol. Apesar do imediato a continuação para a última
compasso 23 inserido para enfatizar Fá seção da obra.
maior, a cadência melódica final não é

Fig. 4b (excerto de “Traumleben”, op. 6, n. 1, de A. Schoenberg; cc. 21–25)

A interdependência das excerto do Trio para cordas, Op. 45 de


dimensões horizontal e vertical nesta Schoenberg ilustra como uma
canção de Schoenberg bem representa finalização cadencial é realizada sem a
uma tentativa de, segundo Cone, articulação tonal ou harmônica. Neste
“unificação de eventos simultâneos e caso, somente a articulação melódica e
sucessivos que caracterizam o método motívica é o suficiente para que se
serial” (Cone, 1989, p. 258). Em outras realize o encerramento formal que a
palavras, uma interdependência entre seção da obra necessita.
melodia e harmonia sem a qual a A linha melódica principal na
sintaxe musical, neste caso cadencial, viola (cc. 122–123) apresenta o motivo
não se realiza. principal do trecho bem definido,
mesmo com uma repetição e
3. cadência realizada por modificação de intervalos no compasso
dissolução motívica. A Fig. 5 ilustra um 123. No compasso 125, o cello começa

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duas novas reiterações do motivo, sendo semicolcheia e semínima pontuada; e


a segunda apresentação modificada para finalmente o ritmo de colcheia e
incluir uma anacruse de semicolcheia. colcheia ligada a semínima pontuada
No compasso 126 o motivo sofre uma (vide Fig. 5b). A desaceleração rítmica
liquidação restando apenas o gesto de aliada à dissolução do motivo realiza o
anacruse e nota longa: da primeira vez encerramento cadencial do trecho.
semicolcheia e colcheia; da segunda,
semicolcheia e semínima; da terceira,

Fig. 5a (excerto de Trio para cordas, op. 45, de A. Schoenberg; cc. 120-127)

Fig. 5b (excerto de Trio para cordas, op. 45, de A. Schoenberg; cc. 120-127, linha melódica)

IV. Conclusão o encerramento musical, no entanto,


nem todo encerramento musical é
Cadências apresentam uma cadencial.
função formal importante dentro do O que Schoenberg nos mostra
discurso musical, são elas que com sua argumentação, e nas ilustrações
delimitam unidades formais as mais apresentadas de suas composições, é
diversas. Cadências, portanto, realizam como a percepção do ouvinte pode ser

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

manipulada de acordo com a intenção CONE, Edward. Music: A View from


do compositor. Na ilustração inicial Delft. Chicago: Chicago University
(Fig. 1a, b, c) da ópera de Mozart, a Press, 1989.
harmonização proposta por Schoenberg KURTH, Richard. The Art of Cadence
indica como o sentido da melodia que in Schoenberg’s Fourth String Quartet.
cadencia perfeitamente em Fá maior
Journal of the Arnold Schoenberg
pode ser modificada utilizando um novo Center, 4 (2002), pp. 245–270.
sentido harmônico que altera a
percepção daquela melodia. O mesmo RIEMANN, Hugo, Systematische
ocorre nas Fig. 4a e 4b da canção Modulationslehre als Grundlage der
“Traumleben”, ou seja, uma melodia musikalischen Formenlehre.
que por si só não apresenta um Hamburg: J. F. Richter, 1887.
movimento cadencial é funcionalmente RAMEAU, Jean Philippe. Treatise on
encerrada com a utilização de suporte Harmony. Trad. para o inglês de Philip
harmônico que a encerra por um lado, Gossett. New York: Dover, 1971. Data
mas que por outro (Fig. 4b) lhe dá original de publicação: 1722.
continuidade. Continuidade também é
ilustrada nos excertos de Friede auf SCHOENBERG, Arnold. Harmonia.
Erden (Fig. 2a e b) onde cadências Trad. de Marden Maluf. São Paulo:
melódicas realizam encerramento Editora UNESP, 1999.
formal de maneira a não ser conclusivo. SCHOENBERG, Arnold. The Musical
Finalmente, a Fig. 5b nos mostra uma Idea and the Logic, Technique, and
possibilidade de encerramento cadencial Art of Its Presentation. Trad. de
utilizando dissolução motívica e Patrícia Carpenter e Severine Neff. New
desaceleração rítmica. York: Columbia University Press, 1995.
Nas suas Leis da
Compreensibilidade em música,
Schoenberg enfatiza a necessidade de
apresentação das unidades formais de
maneira clara e inequívoca (vide
Schoenberg, 1995, p. 133-143).
Cadências servem para isso, elas são
uma ferramenta variável que cumpre
sua função formal, perceptiva e
cognitiva na música.

V. Referências bibliográficas

ASHFORTH, Alden. Linear and


Textural Aspects of Schoenberg's
Cadences, Perspectives of New Music,
Vol. 16, No. 2. (1978), pp. 195-224.
CAPLIN, William. The Classical
Cadence: Conceptions and
Misconceptions, Journal of the
American Musicological Society, v.
57, n. 1 (2004), pp. 51–117.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Voz, pneumologia e fisioterapia respiratória: investigação


interdisciplinar sobre a configuração tóraco-abdominal
durante o canto lírico

Rita de Cássia Fucci Amato


FMCG
fucciamato@terra.com.br

Resumo: O objetivo da pesquisa é investigar a configuração tóraco-abdominal durante o canto


lírico, por meio da análise dos resultados obtidos em testes realizados com 10 (dez) cantoras
líricas brasileiras, utilizando o aparelho Respitrace Non Invasive System (sistema de
monitorização respiratória por pletismografia por indutância). Os testes foram compostos por
exercícios respiratórios (estratégias fisioterapêuticas e de técnica vocal), vocalizes e canto
(execução de uma peça musical). O estudo classifica-se como uma pesquisa participativa e, a
partir dos dados obtidos e conclusões, visa delinear propostas para o melhor preparo técnico
respiratório de cantores líricos profissionais.

Palavras-chave: canto lírico, configuração tóraco-abdominal, respiração.

A inspiração é um processo
1. Fundamentação teórica ativo e necessita da contração do
diafragma e aumento do volume da
1.1. Aspectos básicos da respiração no cavidade torácica; esse aumento reduz a
canto pressão intrapulmonar, permitindo que
o ar externo, de pressão maior, entre,
O ato respiratório é realizado igualando-se as pressões. Na inspiração
incansavelmente pela entrada e saída de forçada, soma-se à contração
ar de nossos organismos, com paradas diafragmática e à elevação das costelas
momentâneas denominadas de apnéias (contração dos músculos subcostais e
fisiológicas. Essa troca gasosa ocorre intercostais) a ação dos músculos
nos pulmões através das membranas esternocleidomastóideo e escalenos. Na
alvéolo-capilares. O ato respiratório, expiração, por outro lado, ocorre o
além de nutrir o organismo com relaxamento daqueles músculos
oxigênio, contribui eficazmente para envolvidos na inspiração e, portanto,
outros objetivos: para acompanhar o estabelece-se um processo passivo. Na
ímpeto de um movimento ou de um expiração forçada, porém, vários grupos
prazer, para modificar emoções e tônus musculares do tórax e da cavidade
muscular (decréscimo ou acréscimo), abdominal devem ser contraídos para
para mobilizar vísceras, para abrir ou diminuir o volume torácico (Rizzolo;
fechar o gradil costal, para sustentar a Madeira, 2004).
voz falada ou cantada, etc. Algumas É essencial realçar a
essas manobras respiratórias são possibilidade de manter e mesmo de
acessadas inconsciente; entretanto, para colocar as estruturas musculares citadas
a produção da voz cantada são em posição inspiratória durante a
necessários treinamentos de controle do expiração, configurando uma contração
fluxo inspiratório e expiratório. diafragmática com gradil costal

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

ampliado. Nessa atitude, os músculos cantada ainda urge outros cuidados


inspiratórios continuam a contrair especiais quanto à respiração: por
durante a expiração, com um trabalho exemplo, a tomada de ar durante uma
intenso, se opondo ao retorno elástico peça deve produzir pouco ruído, a fim
do pulmão. O diafragma freia a subida de não prejudicar a qualidade estética da
das bases pulmonares e os músculos performance, e é importante haver uma
inspiratórios freiam a retração dos total sincronia fono-respiratória. Nesses
pulmões sobre as costelas. Esse freio casos, deve dosar adequadamente a
retentor na expiração é amplamente quantidade de ar inspirado para que se
usado em certas técnicas de preparação evite um “afogamento” resultado de
para o canto e para instrumentos de pressão subglótica em demasia. A
sopro (Calais-Germain, 2005). tomada de ar, então, deve ser curta e
A aprendizagem do canto lírico bucal, atuando nas costelas inferiores e
requer anos de dedicação por parte do permitindo sua expansibilidade (Costa,
discente no intuito de dominar – no 2001).
âmbito fisiológico – o funcionamento
do aparato vocal, ou seja, do sistema 1.2. Configuração tóraco-abdominal:
pneumofonoarticulatório: a fonte do achados relevantes
fluxo de ar (pulmões), a laringe, a prega
vibratória (prega vocal) e as cavidades Estudos realizados em várias
de ressonância (cavidades orofaríngea e áreas do conhecimento, tais como as
nasofaríngea). O canto lírico, emissão ciências da saúde (fonoaudiologia,
vocal de alto rendimento, exige uma otorrinolaringologia, pneumologia,
respiração mais sustentada e complexa, etc.), têm implementado a pesquisa e o
adaptada às necessidades performáticas ensino da voz cantada. A elaboração de
musicais, como os fraseados e as um projeto de pesquisa que traga
alterações de dinâmica. De acordo com elementos para estudiosos e professores
seu nível de treino vocal, os cantores aperfeiçoarem seus métodos de ensino
utilizam diferentes métodos de em relação às estratégias respiratórias
respiração a fim de vencer as utilizadas por cantores é, nesse
dificuldades da interpretação (Lassalle contexto, de fundamental relevância.
et al., 2002). Feltrin (1994) investigou o
Durante o canto, a respiração padrão respiratório e a configuração
deve utilizar o diafragma e os músculos tóraco-abdominal em indivíduos
intercostais, sendo a respiração torácica normais, nas posições sentada, dorsal e
superior um prejuízo à boa projeção laterais, com o uso de pletismografia
vocal e a uma dinâmica fonatória respiratória por indutância, concluindo
adequada às nuances da produção que: durante a respiração tranqüila,
musical cantada, que prevê uma homens e mulheres apresentam a
adequação às exigências musicais, mesma configuração tóraco-abdominal;
correspondentes à altura, duração, na posição dorsal há predomínio do
intensidade, timbre e estilo solicitados deslocamento abdominal; e na posição
pelo repertório executado. Ao mesmo sentada há igualdade de participação
tempo, uma boa respiração não deve entre os compartimentos torácico e
causar aumento de tensão muscular na abdominal. Concluiu também que há
coluna cervical do intérprete, que sincronia entre esses movimentos e que
prejudicaria sua performance. Conforme o padrão respiratório é basicamente o
nota Costa (2001), uma boa execução mesmo entre homens e mulheres,

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

havendo aumento no volume corrente e Gould e Okamura (1974), em


no fluxo inspiratório médio na posição outro estudo, mostraram que a
sentada em relação à posição dorsal, musculatura abdominal faz parte de
sem haver interferência no componente uma regra importante na iniciação,
de tempo. regulação e produção da voz; citaram
Iwarsson (2001) comparou, em ainda que existe aparentemente uma
seu estudo com 17 homens e 17 relação direta entre extensão vocal e o
mulheres saudáveis não-treinados para o relativo aumento da capacidade total
canto, os resultados de dois pulmonar e que a musculatura
comportamentos inspiratórios abdominal é fundamental na ampliação
diferentes: o movimento de contração e dessa capacidade.
o de expansão da musculatura Proctor (1980) notou que para
abdominal. Anteriormente à pesquisa, um excelente uso e controle da
acreditava-se que, no movimento de respiração durante o canto existe um
contração dos músculos, a laringe se ótimo relacionamento entre estados
posicionaria de uma forma diferente, torácico-abdominais e que é possível
mais baixa do que na distensão do fazer maior ou menor uso dos músculos
abdome. Entretanto, utilizando a intercostais e do diafragma. Segundo o
pletismografia respiratória por autor, pode-se manter o tórax fixo e
indutância (na qual o ar inspirado foi respirar com ou sem o diafragma,
controlado para alcançar 70% mantendo o diafragma relativamente
capacidade de inspiração) e o registro imóvel e a respiração com ou sem a
da posição da laringe durante a ação torácica; ou, sem usar ainda o
produção vocal por meio de diafragma e os músculos intercostais,
eletroglotografia, o estudo mostrou que mover o diafragma subindo ou
o posicionamento vertical da laringe descendo através da mudança de
ocorre similarmente nos dois casos. pressão no volume abdominal com a
Em relação à produção vocal ação dos músculos abdominais. Alguns
cantada, alguns estudos acerca da ou todos os músculos acessórios da
musculatura abdominal têm trazido respiração podem ser solicitados para
algumas contribuições notáveis, que aumentar a ventilação. Acrescentou,
fundamentam teoricamente o presente ainda, que a exata regra do diafragma e
trabalho de investigação. intercostais é de grande importância na
Gould e Okamura (1973) aplicação do conhecimento dos
concluíram que cantores profissionais mecanismos respiratórios para entender
que se submeteram a um treino vocal a forma certa ou errada de cantar.
longo e rigoroso tiveram um aumento Baken, Cavallo e Weissman
no potencial para o canto, refletindo (1981) estudaram o movimento da
uma significante diminuição da parede da caixa torácica durante o
proporção volume residual/ capacidade intervalo entre o estímulo acústico e a
total pulmonar em comparação com resposta vocal, observando uma
indivíduos não treinados ou cantores manobra de ajuste com direções opostas
com oito anos ou menos de treino vocal. no deslocamento dos componentes da
Os resultados obtidos sugerem que caixa torácica, indicando que os
existe uma correlação entre o aumento movimentos abdominais fazem parte de
da capacidade total pulmonar em uma complexa postura no ato da
cantores profissionais e longos anos de produção vocal.
treino vocal. White (1982) citou em seu

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

trabalho que o desenvolvimento do (colocaram-se cintos de pressão ao redor


controle dos músculos abdominais, do do púbis, da região epigástrica e do
diafragma e dos músculos intercostais é tórax). Durante o exame, foi solicitada
a chave de um bom controle respiratório aos sujeitos a realização de dois
e da manutenção da pressão da coluna de exercícios vocais: a vocalização
ar durante o ato de cantar. sustentada da vogal /i/ e a interpretação
Phillips (1985) estudou a eficácia de uma peça musical do método Vaccaj
do treinamento respiratório para o canto (1981). Concluíram que os cantores
em crianças, analisando as diferenças profissionais inibiram a atividade de seus
entre a performance vocal do grupo antes músculos abdominais retos durante o
e após o treinamento, observando os canto e que usaram mais os músculos
efeitos com relação aos movimentos externos oblíquos e transversais,
torácicos e abdominais e à capacidade sustentando uma o alargamento das
vital. A pesquisa mostrou a mudança da costelas e uma expiração mais longa. Por
respiração baseada na tomada de fôlego outro lado, os estudantes de canto
torácica/ clavicular, predominante antes utilizaram intensivamente todos os
do trabalho educativo-vocal, para a músculos abdominais, levando a um
respiração abdominal-diafragmática- demasiado esforço das costelas; nesse
costal, com uma melhoria sensível nos caso, a gestão da quantidade de ar foi
índices de alcance vocal, intensidade dificultada e o fluxo de ar foi menos
vocal e precisão de pitch (sensação prolongado.
subjetiva de freqüência).
Em um estudo sobre o papel do 2. Objetivos
gradil costal e dos movimentos
abdominais durante a produção vocal Ao estudar a configuração da
cantada de 5 (cinco) cantores de ópera musculatura torácica e abdominal
profissionais, Thorpe et al. (2001) durante a emissão vocal cantada de alto
concluíram que a melhor projeção vocal rendimento – canto lírico –, esta pesquisa
é resultado de uma maior expansão do visa analisar e discutir as estratégias
gradil costal, principalmente na respiratórias utilizadas pelas cantoras
dimensão lateral, porém com uma profissionais, a fim de desenvolver um
pequena diminuição na dimensão lateral mapeamento dos movimentos
abdominal. O trabalho mostrou também respiratórios adequados ao canto.
que o suporte abdominal requerido para Proporcionará, assim, o entendimento
uma ampla projeção vocal é resultado da correto dos movimentos respiratórios
maior ativação dos músculos abdominais durante o canto, nas suas adequações à
que operam medialmente. performance musical, ou seja, propondo
Lassalle et al. (2002) realizaram exercícios relevantes para o suporte da
um estudo acerca das estratégias respiração em emissões prolongadas, em
respiratórias de 7 (sete) cantores líricos fraseados longos e referentes a outras
profissionais e 6 (seis) iniciantes (alunos necessidades da atividade interpretativa
de primeiro ano de um curso de canto de vocal. A partir do estudo poderá ser
conservatório), todos sem histórico de desenvolvido um plano de ensino da voz
patologia vocal. Utilizaram, para tanto, cantada com enfoque em exercícios
os métodos de análise eletromiográfica respiratórios, conforme a proposta de
dos músculos abdominais retos, oblíquos Fucci Amato (2006).
e transversais e de análise cinética, para
estudar o deslocamento da caixa torácica

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

3. Material e método Pletismografia por indutância é um


método semi-quantitativo, não invasivo,
A presente pesquisa tem um para monitorização do padrão
caráter exploratório, visando fornecer respiratório, em repouso e em exercício.
subsídios para o ensino do canto. Dessa A calibração desse aparelho está baseada
forma, constitui-se, basicamente, de em admitir que o sistema respiratório
duas etapas, que buscam conjugar os move-se com dois graus de liberdade,
dados obtidos com uma bibliografia isto é, a caixa torácica e o abdome
especializada. podem se deslocar no sentido anterior e
A revisão bibliográfica focou os látero-lateral. Esses dois compartimentos
temas voz cantada, pressão contribuem para o volume corrente.
transdiafragmática, configuração tóraco- O aparelho consiste de
abdominal, mecânica respiratória calibrador, registrador e oscilador.
muscular, etc., tendo como fontes Faixas de teflon com fios condutores são
principais a Biblioteca Regional de colocados ao redor do tórax e do abdome
Medicina (BIREME), vinculada ao e são conectadas por cabo ao oscilador.
Centro Latino-Americano e do Caribe Alterações nas áreas seccionais
de Informação em Ciências da Saúde e transversas dos dois compartimentos
à Organização Pan-Americana de mudam a auto-indutância dos fios e a
Saúde, e o acesso a periódicos médicos freqüência de suas oscilações, que, com
internacionais. calibração apropriada, refletem o volume
Por outro lado, a pesquisa tem corrente. Os sinais são enviados a um
caráter participativo, sendo realizado o registrador, em que três curvas são
exame dos dados da investigação sobre inscritas: deslocamento de caixa torácica,
a configuração tóraco-abdominal de 10 do abdome e soma, correspondendo ao
cantoras líricas brasileiras profissionais, volume corrente.
com idade média de 37,5 anos e um O protocolo utilizado na
período médio de treino vocal de 12 investigação foi composto por três fases:
anos. Tal amostra foi composta por: 1 exercícios respiratórios, vocalizes e
(uma) soprano dramático, 1 (uma) canto. Na primeira, foi solicitada às
soprano dramático coloratura, 1 (uma) cantoras a realização dos seguintes
soprano lírico, 4 (quatro) sopranos lírico procedimentos: respiração diafragmática
ligeiro, 1 (uma) mezzo-soprano e 2 (entrada e saída nasal), 3x6 / 3x9 / 3x12 /
(duas) mezzo-sopranos lírico. A coleta 3x15 (inspiração em 3 segundos e
de dados foi realizada junto à disciplina expiração em 6, 9, 12 e 15 segundos,
Pneumologia, do Departamento de com a consoante /s/ ), staccato
Medicina da Escola Paulista de (expulsão rápida de ar), manobra
Medicina – Universidade Federal de diafragmática com estímulo (estratégia
São Paulo (EPM-UNIFESP). fisioterapêutica) e ping-pong (estratégia
Nesse exame realizado com as fisioterapêutica). Na fase de vocalizes,
cantoras, o equipamento utilizado foi o foram efetuados: arpejo legato de 8ª,
aparelho Respitrace Non Invasive System ataque de 8ª. descendente e exercício de
(sistema de monitorização respiratória agilidade. Na terceira fase, enfim, foi
por pletismografia por indutância), solicitada a execução de uma peça
pertencente ao Instituto do Coração musical de livre escolha do repertório
(INCOR) do Hospital das Clínicas da lírico/ operístico.
Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (HC-FMUSP).

151
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

4. Resultados a serem obtidos – Escola Paulista de Medicina, São


Paulo, 1994.
Atualmente, os mapas gerados a FUCCI AMATO, R. C. Elaboração de
partir do registro do aparelho Respitrace um plano de ensino da voz cantada
encontram-se em fase de análise considerando a configuração tóraco-
estatística. Após o cumprimento desta abdominal de cantoras líricas brasileiras.
fase, será efetuada a avaliação dos
Anais do XV Encontro Anual da
resultados por uma equipe
Associação Brasileira de Educação
multidisciplinar, que compreende: uma Musical (ABEM). João Pessoa: Editora
cantora lírica, um médico Universitária UFPB. p. 311-317, 2006.
pneumologista e um fisioterapeuta. A
partir do mapeamento da configuração GOULD, W. J.; OKAMURA, H.
tóraco-abdominal das 10 cantoras Respiratory training of the singer. Folia
participantes da pesquisa, serão phoniat – International Journal of
delineadas algumas diretrizes para o Phoniatrics, New York, v. 26, p. 275-86,
estudo prático da respiração no âmbito 1974.
da técnica vocal. GOULD, W. J.; OKAMURA, H. Static
lung volumes in singers. The Annals of
5. Subáreas de conhecimento Otology, Rhinology, and Laringology,
v. 82, n. 1, p. 89-95, 1973.
Este trabalho envolve a área de
música (voz cantada, canto lírico, IWARSSON, J. Effects of Inhalatory
educação vocal), pneumologia, Abdominal Wall Movement on Vertical
fisioterapia e fonoaudiologia (fisiologia Laryngeal Position During Phonation.
vocal). Jornal of Voice: Official Journal of the
Voice Foundation, Philadelphia, v. 15, n.
6. Referências 3, p. 384-394, 2001.
LASSALLE, A.; GRINI, M.-N.,
BAKEN, R. J.; CAVALLO, S. A.; BRETÈQUE, A.; OUAKNINE, M.;
WEISSMAN, K. L. (1981). Chest wall GIOVANNI, A. A comparative study of
movements prior to phonation. Folia breathing strategies in professional
phoniat – International Journal of lyrical singers and beginners. Revue de
Phoniatrics, New York, v. 33, n.4, p. Laryngologie Otologie Rhinologie,
193-203. Bordeaux, v. 123, n. 5, p. 279-290, 2002.
CALAIS-GERMAIN, B. Respiração: Phillips, K. The Effects of Group Breath-
anatomia – ato respiratório. Trad. de Control Training on the Singing Ability
Marcos Ikeda. Barueri: Manole, 2005. of Elementary Students. Journal of
COSTA, E. Voz e arte lírica: técnica Research in Music Education, USA, v.
vocal ao alcance de todos. São Paulo: 33, v. 3, p. 179-191, 1985.
Lovise, 2001. PROCTOR, D. F. Breathing, speech
FELTRIN, M. I. Z. Estudo do padrão and song. Wien: Springer-Verlag, 1980.
respiratório e da configuração tóraco- RIZZOLO, R. J. C.; MADEIRA, M. C.
abdominal em indivíduos normais, nas Anatomia facial com fundamentos de
posições sentada, dorsal e laterais, anatomia sistêmica e geral. São Paulo:
com o uso de pletismografia Sarvier, 2004.
respiratória por indutância.
Dissertação (Mestrado em Reabilitação) THORPE, W.; CALA, S.; CHAPMAN,

152
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

J.; Davis, P. Patterns of breath support


in projection of the singing voice.
Jornal of Voice: Official Journal of the
Voice Foundation, Philadelphia, v. 15,
n. 1, p. 186-104, 2001.
VACCAJ. Metodo pratico di canto
italiano di camera. São Paulo: Ricordi,
1981.
WHITE, B. D. Singing and science. The
Journal of Laryngology and Otology,
Ashford, v. 96, p. 141-157, 1982.

153
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Um estudo sobre a motivação e o estado de fluxo


na execução musical

Rosane Cardoso de Araújo


UFPR
rosanecardoso@ufpr.br
Letícia Pickler
UFPR

Resumo: O presente trabalho consiste na apresentação de uma pesquisa em andamento na qual


procura-se discutir a motivação na prática musical de estudantes como elemento que possibilita
o reportamento para a “experiência de fluxo”, isto é, uma experiência conceituada por
Csikszentmihalyi (1999) como um estado de profundo envolvimento com a tarefa exercitada a
ponto de conduzir o sujeito a uma imersão total no ato praticado, de forma prazerosa e
desafiadora. O objetivo geral é investigar os processos motivacionais que conduzem a prática de
estudantes de música e que favorecem a “experiência de fluxo”. Para tanto, são abordados
inicialmente, por meio da revisão de literatura alguns dados sobre pesquisas que envolvem a
teoria do fluxo, no âmbito da Educação Musical. Em seguida, são apresentados os
procedimentos da pesquisa, conduzida por meio um survey (estudo de levantamento), com
estudantes de música da Universidade Federal do Paraná. Na seqüência apresenta-se uma
análise preliminar dos dados obtidos, na qual são reconhecidas algumas etapas vinculadas à
experiência de fluxo, como o estabelecimento de metas; a vivência de elementos motivacionais
intrínsecos e extrínsecos, entre outros. Como resultados observa-se que embora alguns
participantes não demonstrem vivenciar o estado de fluxo em suas práticas musicais, a grande
maioria dos respondentes indica a incidência de fatores que os conduzem freqüentemente a este
processo, como a perda da noção de tempo, a sensação de bem estar, a vontade de superar
desafios, entre outros. Esta pesquisa, portanto, tem o escopo de contribuir com os estudos da
motivação no contexto músico/educacional brasileiro.

Palavras-chave: motivação; prática instrumental; experiência de fluxo.

fatores) ou como um processo. Tais


1. Introdução e objetivos fatores ou processo asseguram a
persistência e o direcionamento da
O estudo da motivação como atenção e do desenvolvimento das
componente essencial na condução das atividades realizadas. Dentre a
mais variadas atividades humanas tem diversidade de objetos que podem ser
sido desenvolvido por diferentes autores focalizados pelas pesquisas sobre
das áreas da Educação e da Psicologia, motivação na aprendizagem encontram-
como Bzunek (2001); Graham & se estudos sobre estratégias de adaptação,
Weiner ( 1996); Boruchovitch (2001); desenvolvimento da criatividade, qualidade de
Woolfolk (2000); Deci & Ryan (1985), empenho e sua relação nos resultados,
Csikszentmihalyi (1999); Bandura, Azzi desenvolvimento social, entre outros.
& Polydoro (2008), entre outros. De A motivação é pensada,
acordo com Bzunek (2001), a portanto, como um elemento
motivação pode ser entendida como um fundamental nos processos de
fator psicológico (ou conjunto de aprendizagem escolar e, de acordo com

154
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

o objeto deste estudo, no processo de socializadora da atividade musical.


aprendizagem musical. Dentre os O´Neill (apud O´Neill & McPherson
pesquisadores que desenvolveram 2002), por sua vez, procurou relacionar
estudos sobre motivação e música, a quantidade de tempo de estudo e a
pode-se citar alguns autores como experiência de fluxo, com jovens entre
Tsitsaros (1996); McCormick & 12 e 16 anos e variados níveis de
McPherson (2007); O´Neill performance. A autora observou que os
&McPherson (2002); Custodero contextos avaliativos contribuem para a
(2006); Addessi & Pachet (2007). redução da experiência de fluxo,
A partir dos estudos revisados, especialmente de alunos considerados
nos quais são discutidos os fatores menos habilidosos na prática
motivacionais que favorecem a instrumental. Em suas conclusões a
condução do ensino da música, autora advoga para a necessidade de o
especifica-se o trabalho de docente procurar diferentes estratégias
Csikszentmihalyi (1999) como uma para motivar os estudantes que
proposta significativa para a observação apresentam mais dificuldades, como
dos fatores motivacionais presentes na condição de lhes assegurar a qualidade
aprendizagem musical. Em seu trabalho, intrínseca de suas experiências
Csikszentmihalyi apresenta o conceito musicais. Por fim, Addessi & Pachet
de “experiência de fluxo, que define (2007) ao desenvolverem um estudo
como um estado de envolvimento total sobre o uso de sistemas musicais
com a atividade realizada. Tal interativos-reflexivos, com crianças
envolvimento exige concentração e é entre 3 e 5 anos, utilizam a teoria do
adequado às habilidades do indivíduo. fluxo como um elemento de análise nas
Proporciona desafios possíveis de interações vivenciadas pelas crianças,
transpor a ponto de oferecer um tendo em vista o grau de envolvimento
feedback imediato com os resultados, e de interesse observados nos
muito prazeroso ao sujeito. participantes.
Seu estudo foi utilizado por Assim é a partir da discussão
vários pesquisadores na área da música. sobre a “experiência de fluxo” como
Nesta pesquisa têm-se como exemplo os fator otimizador para o processo de
trabalhos de Custodero (2006), O’Neill aprendizagem do indivíduo, que têm-se
(apud O´Neill & McPherson 2002) e a principal discussão deste trabalho.
Addessi & Pachet (2007). Custodero Neste sentido, a hipótese que se destaca
(2006) investigou a experiência de fluxo é de que existe uma relação entre a
com crianças na faixa etária entre de 0 a “experiência de fluxo”, discutida por
11 anos por meio de observações Csikszentmihalyi (1999) – processo no
sistemáticas das interações das crianças qual o sujeito se envolve de forma
com a música. A autora, em suas intensa numa atividade prazerosa e
conclusões sugere três princípios para a desafiadora gerando um bem estar e um
condução das atividades musicais: o momento de imersão total – como uma
reconhecimento e da autonomia dos experiência desencadeadora dos fatores
alunos; o cuidado para com o interesse e perseverança na
estabelecimento de desafios apropriados aprendizagem musical. Tal experiência,
e a manutenção dos mesmos; e o por sua vez, não é comum nem
envolvimento das crianças em freqüente a todos os indivíduos,
atividades próprias da cultura da depende de fatores intrínsecos e
infância, vinculadas à natureza extrínsecos e estão vinculados à

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

condução do processo educativo, anonimato da respostas; e a não


especialmente ao próprio sujeito. exposição, dos pesquisados, a possíveis
O objetivo geral desta influências do pesquisador. O
pesquisa em andamento é, portanto, questionário foi composto de questões
investigar os processos motivacionais abertas, fechadas e dissertativas, tendo
que conduzem a prática de estudantes como foco, a aquisição do maior
de música e que favorecem a número de dados possíveis, para o
“experiência de fluxo”. Como objetivos alcance dos objetivos propostos nesta
específicos pretende-se: Discutir, por pesquisa.
meio da revisão bibliográfica, o Até o presente momento,
conceito de motivação em música e pode-se apresentar como resultado
experiência de fluxo; verificar, por meio parcial desta pesquisa, alguns dados
dos dados coletados, os processos adquiridos após a distribuição e
motivacionais que acompanham a preenchimento do questionário
prática musical dos estudantes e sua encaminhado aos alunos dos cursos de
relação com fatores intrínsecos e música da UFPR. Tais questionários
extrínsecos; e relacionar, por meio dos foram enviados por e-mail,
dados coletados, fatores que condizem aleatoriamente, para um grupo
com a descrição do estado de fluxo. aproximado de 200 alunos. Deste total,
20 questionários foram respondidos e
2. Metodologia e resultados re-enviados também por e-mail. Alguns
preliminares dados sobre o perfil dos participantes
encontram-se na tabela abaixo (Tabela
Para operacionalizar esta 1):
investigação, optou-se pelo estudo de
levantamento, ou survey, que é uma
modalidade de pesquisa social. Segundo
Babbie (1999), a survey é um tipo
particular de pesquisa, que focaliza o
levantamento de determinada realidade
humana que se almeja coletar dados.
Nesta pesquisa, portanto, este método é
utilizado com intenção de atingir um
considerável grupo de estudantes de
música, podendo assim, a partir da
quantificação e análise dos dados, obter
resultados significativos para
interpretação dos mesmos.
Foram convidados a participar
desta pesquisa, alunos dos cursos de
música da Universidade Federal do
Paraná (UFPR) de diferentes períodos e,
para coletar os dados, foi elaborado um
questionário. Para Gil (1999), o
questionário apresenta uma série de
vantagens, dentre as quais cita a
possibilidade de atingir um grande
número de pessoas; a possibilidade do

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Tabela 1 – Perfil dos participantes

Tipo de habilitação Licenciatura em música 12


Bacharelado em música 8

Sexo Masculino 11
feminino 9
Instrumentistas 11
Prática musical
Cantores 2
Ambos 7

Já estudou em algum tipo de escola / academia de sim 17


música, com exceção do ensino superior? não 3
menos de 3 anos 8
Quanto tempo estuda? 3 anos 0
mais de 3 anos 9
não responderam 3
mais ou menos 6
Estuda com frequência?
sim 11
não 3

Recebe apoio / incentivo familiar ou de amigos? sim 16


não 4
sem resposta 2
Onde estuda ou estudou música além da UFPR?
aula particular 5
conservatórios e escolas diversas. 13
Instituições públicas de ensino (Conservatório de MBP,
Fundação Cultural de Curitiba, EMBAP)
10

Do total de 20 participantes, 14 participantes afirmaram que gostam de


afirmaram estudar semanalmente entre 2 estudar tanto quanto se apresentar.
horas ou mais horas o seu instrumento. Por fim ao quantificar as
Destes 14, 10 alunos indicaram de 2 até 8 respostas sobre o tipo de repertório
horas de estudo semanal, enquanto 4 praticado e as preferências musicais dos
indicaram de 14 até 46 horas. Além disso participantes, 10 firmaram que tocam
a maioria dos alunos, ou seja, 12 repertório variado entre erudito e popular,
respondentes afirmaram que não se no entanto, 13 confirmaram sua
submetem periodicamente à provas ou preferência pelo repertório popular.
exames de sua prática musical. Ao serem Em relação à experiência de
questionados sobre apresentações, 11 fluxo dos participantes, foram definidos
afirmaram se apresentar com carta alguns elementos discutidos por
freqüência em diferentes ambientes, como Csikszentmihalyi (1999) e questionados
teatros, igrejas, salas de concerto, clubes e aos participantes para verificar a
bares, entre outros. Além disso, ao serem incidência com que tais elementos eram
questionados sobre a preferência entre vivenciados. Neste sentido, os resultados
estudo e apresentações, 15, do total de 20 da quantificação dos dados foram
tabulados na tabela abaixo (Tabela 2):

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Tabela 2 – Reportamento para experiência de fluxo

estuda / ensaia toca em público

De vez De vez
Quase em Rara- Quase em Rara-
Sempre sempre quando mente Nunca Sempre sempre quando mente Nunca
1. Perder a noção do tempo 3 5 6 3 3 4 3 5 2 3
2. Sensação de bem estar 8 8 4 0 0 5 8 2 2 0
3. Alegria 7 8 4 1 1 6 6 2 0 1
4. Prazer momentâneo 8 8 4 0 0 6 7 3 0 1
5. Vontade de continuar
tocando no momento 8 7 4 0 1 8 5 1 1 1
6. Vontade de superar
desafios 14 3 3 0 2 6 4 5 0 0
7. Satisfação com o resultado 5 7 5 2 1 2 8 6 0 0
8. Sentimento de que sua
prática se torna melhor 6 10 4 0 0 3 9 4 1 0
9. Se desligar de situações
exteriores 8 7 3 0 1 7 6 2 1 1
10. Vontade de tocar/cantar
cada vez mais
12 5 3 0 0 11 3 2 0 1

Ao analisar a tabela observa-se aquela na qual acredita-se que, quanto


que, assim como já apontam os autores mais freqüentes as experiências de fluxo,
Custodero (2006), O’Neill (apud O´Neill maior a probabilidade de o sujeito apostar
& McPherson 2002) e Addessi & Pachet no investimento da aprendizagem
(2007), existe uma relação clara entre a musical.
persistência no estudo e a satisfação da Outro dado significativo
experiência vivenciada. Em termos observado na síntese preliminar desta
gerais, os fatores vivenciados na prática pesquisa é que existem claramente fatores
como o prazer momentâneo, vontade de extrínsecos e intrínsecos que competem
superar desafios, desligamento de para a motivação dos participantes à
situações exteriores – discutidos por prática musical, entre tais fatores,
Csikszentmihalyi (1999) – são alguns dos observa-se o apoio familiar, o interesse
elementos que indicam que a maioria dos pelas apresentações, o prazer e a alegria
participantes da pesquisa, em maior ou na performance, entre outros. Também é
menor grau, já experimentou, em suas possível observar que o estabelecimento
práticas musicais, o estado de fluxo. de metas - elementos essenciais na
Nestes termos, tem-se a confirmação de condução do estado de fluxo conforme
duas hipóteses vislumbradas nesta Csikszentmihalyi (1999) – também foi
pesquisa. A primeira hipótese que indica apontado como situações vividas pela
a possibilidade de que alguns estudantes maioria dos participantes, como a vontade
de música não vivenciam a experiência de na superação dos desafios e o interesse
fluxo em suas práticas musicais. Neste em praticar cada vez mais.
sentido observa-se que de fato um Como conclusão, portanto,
pequeno número de respondentes observa-se que este estudo em andamento
assinalaram certos fatores da experiência, no qual a proposta é investigar os
apresentados na tabela, como “nunca’ processos motivacionais/experiência de
vivenciados”. A outra hipótese, fluxo relacionados com a prática musical
confirmada por meio desta pesquisa, é de estudantes de diferentes níveis, pode

158
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

trazer contribuições significativas para as fluxo e a educação musical. In: ILARI,


discussões sobre prática musical; o papel Beatriz (Org.). Em busca da mente
do professor; o estabelecimento de metas; musical. Curitiba: Editora da UFPR,
e a motivação para aprendizagem. Neste 2006, p. 381-399.
sentido, esta investigação, embora CSIKSZENTMIHALYI, M. A descoberta do
limitada aos dados do estudo de
fluxo. Psicologia do envolvimento com
levantamento, torna-se significativa à a vida cotidiana. Rio de janeiro: Rocco,
medida que pode contribuir para novas 1999.
pesquisas sobre motivação e prática
musical. Assim propõe-se, para finalizar DECI, E. L.; RYAN, R. Intrinsic
este texto, a indicação de novas pesquisas motivation and self-determination in
sobre motivação e fluxo, com diferentes human behavior. New York: Plenum
enfoques, métodos e sujeitos, a partir do Press, 1985.
tangeamento deste tema com questões GIL, A. C. Métodos e Técnicas em
pertinentes à Cognição, bem como à Pesquisa Social. 5. ed. São Paulo: Atlas,
Educação Musical. 1999.
3. Referências GRAHAM, S.; WEINER, B. Theories
and principles of motivation. In:
ADDESSI, A. R.; PACHET, F. Sistemas BERLINER, D. C.; CALFEE, R.
musicais interativos-reflexivos para Handbook of educational Psychology.
educação musical. In: Cognição e Artes New York: S. & S. MacMillan, 1996, p.
Musicais, v.2, n.1. Curitiba: DeArtes 62-84.
UFPR, 2007, p.62-72. McCORMICK, J.; McPHERSON, G.
BABBIE, E. Métodos de Pesquisas de Expectancy-value motivation in the
Survey. Trad. Guilherme Cezarino. Belo context of a music performance
Horizonte: Editora da UFMG, 1999. examination. In: Musicae Scientiae: the
journal of the European Society for the
BANDURA, A.; AZZI, R.G.; POLYDORO, S. Cognitive Sciences of Music. Special
Teoria social cognitiva: conceitos issue. Liége: Escom, 2007, p. 37-52.
básicos. Porto Alegre: ArtMed, 2008.
O´NEILL, S.; MCPHERSON, G. Motivation. In:
BORUCHOVITH, Evely. Inteligência e PARNCUTT, R.; MCPHERSON, G. (Orgs.) The
motivação: perspectivas atuais. In: science & psychology of music
BORUCHOVITH, E.; BZUNECK, J. A. performance. Creative Strategies for
A motivação do aluno: contribuições da teaching and learning. New York:
psicologia contemporânea. 3. ed. Petrópolis: Oxford University Press, Inc., 2002, p.
Vozes, 2001, p.96-115. 31-46.
BZUNECK, José A. A motivação do TSITSAROS, Christos. Practicing at the
alunos: aspectos introdutórios. In: elementary level. In: LYKE, J.; ENOCH,
BORUCHOVITH, E.; BZUNECK, J. A. Y.; HAYDON, G. Creative piano
A motivação do aluno: contribuições da teaching. Champaing, III: Stipes
psicologia contemporânea. 3. ed. Publishing, 1996, p.121-130.
Petrópolis: Vozes, 2001, p.9-36.
WOOLFOLK, A. E. Psicologia da
CUSTODERO, L A. Buscando desafios, Educação. Porto Alegre: Artes Médicas,
encontrando habilidades: a experiência de 2000.

159
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Ação, pensamento, gesto, expressividade e a prática musical

Thiago Cazarim
UFG
thiago_cazarim@yahoo.com.br

Resumo: Ao discutir como se caracteriza o gesto e a feitura da expressividade pelo e no corpo


humano partindo de idéias de Merleau-Ponty, o presente artigo pretende mostrar como se
articulam gesto, expressividade, pensamento e ação na prática musical, além de indicar algumas
direções possíveis para futuras pesquisas que discutam as relações entre performance musical e
corpo.

Palavras-chave: performance musical; gesto; Merleau-Ponty.

assinala é que o agir tem seu


1. Fundamentação teórica pensamento; o olho olhando, a mão em
gesto, a palavra falante, falada, falando,
Em seus textos, Maurice todos estes são pensamentos em plena
Merleau-Ponty faz diversas referências realização.
à importância de se reencontrar o cogito Partindo da idéia de que o gesto
representado, ou melhor, vivido pelo é um pensamento e, de forma mais
corpo humano. Ao se propor a discutir o geral, o corpo tem ele mesmo seu
corpo para além das filosofias e práticas pensar, este artigo se propõe a
científicas mecanicistas e apresentar algumas idéias de Merleau-
intelectualistas, o filósofo se ocupa em Ponty sobre as relações entre gesto, fala,
mostrar como as diversas áreas do expressividade e pensamento, sendo o
conhecimento não conseguem explicar a corpo (que, na linguagem
contento o “funcionamento” do corpo. merleaupontyana, se diz corpo próprio)
As discussões de Merleau-Ponty fundador de experiências e da
apontam para uma indissociabilidade existência. Ao discutir como o corpo
fundamental do que normalmente se acontece ao se fazer gesto, pretende-se
chama “mente” e “corpo”, do mesmo apontar em que sentido o corpo pode ser
modo como o pensamento não pode ser analisado em futuras pesquisas que se
posto fora do plano das ações porque é ocupem em estudar o papel que o corpo
partindo delas que o pensamento se desempenha na performance musical.
completa e se torna possível. Assim,
como o filósofo indica (Merleau-Ponty, 2. Objetivos
2006), a fala não é posterior ao
pensamento: para aquele que fala, não é Considerando que em música
necessário manipular conceitos lida-se na prática (corporalmente, a
mentalmente para que se possa falar; a propósito), desde a musicalização até
fala é uma potência que se desdobra a estágios avançados de performance,
partir de si mesma, apenas enquanto se com os conceitos de expressividade,
faz fala, falada. Deste modo, mais do técnica instrumental/ vocal, postura
que reconhecer pensamento e ação corporal correta, compreensão do texto,
como unidade, o que Merleau-Ponty entre outros, acredita-se ser importante

160
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

entender como a expressividade, gesto, corpo por gestos exploratórios como se


pensamento e ação se conjugam. Ao eu não o fosse, posso fazer incidir sobre
discutir como se caracteriza o gesto e a mim minha gestualidade, como numa
feitura da expressividade pelo e no tentativa de metalinguagem – o poder
corpo humano, o presente artigo de expressão é um pensamento no
pretende indicar algumas direções mundo (voltado para o mundo, e não
possíveis para futuras pesquisas que prisioneiro dele) muito mais do que
discutam as relações entre performance pensamento do mundo, não é jamais um
musical e corpo. para-si (não num sentido plenamente
tético), mas um movimento de
3. Método transcendência. A ação do gesto não é
da ordem do solipsismo: ela vai-se para
Revisão bibliográfica de textos além. Desse modo, a ação não se
de Merleau-Ponty (em português e encerra em ou se justifica por si.
francês).
O princípio: na ação não se devem
levar em conta as conseqüências, e
4. Resultados este outro: julgar as ações de acordo
com os seguimentos e utilizá-los
Ação, expressividade, pensamento, como medida do que é justo e bom,
pertencem ambos ao entendimento
gesto e o corpo próprio abstrato.” [...] o que Hegel sugere [na
passagem precedente] – uma vez que,
“Para compreender o gesto de quando tudo está dito, há uma
diferença entre o válido e o não-
cólera ou de ameaça, eu não preciso válido, entre o que aceitamos e o que
lembrar-me dos sentimentos que recusamos – é um juízo da tentativa,
experimentei ao executar por minha do empreendimento, ou da obra – não
apenas da intenção ou apenas das
conta própria os mesmos gestos. [...] o conseqüências, mas do emprego que
gesto não me faz pensar na cólera, ele é damos à nossa boa vontade, da
a própria cólera” (Merleau-Ponty, 2006, maneira pela qual avaliamos a
situação de fato. O que julga um
p. 250 – 251). O que caracterizaria, homem não é a intenção e não é o
neste trecho, o gesto? O autor expõe fato, é ele ter ou não ter feito passar
aqui uma opinião semelhante à de Sartre valores para os fatos. Quando isso
ocorre, o sentido da ação não se
(2007): a cólera, encarnada na esgota na situação que a causou, nem
expressão de cólera, é um sentido no em algum vago juízo de valor, ela
gesto que a expressa, e apenas nesse permanece exemplar e sobreviverá
em outras situações, sob outra
gesto é possível lê-la como cólera. Há aparência. Ela abre um campo, às
essa modalidade de pensamento que não vezes até institui um mundo, de
exige conceitos, lembranças ou qualquer modo delineia um futuro.
(1991, p. 75 – 76)
formalizações: basta que se instale nele,
que se “creia” nele para entendê-lo.
Merleau-Ponty indica acima que
Mais: é só assim que é possível
aquilo que caracteriza uma ação é
entender a expressão tácita dos gestos.
sobretudo ela ser geradora de sentidos.
Mas seríamos negligentes se
Assim, a ação significativa pertence ao
reduzíssemos a relação de
terreno da poiesis, da criação, é
expressividade ao “é-no” da expressão
parturiente de expressividade. As ações,
que se faz no gesto. Porque o gesto não
assim, devem ser entendidas como
é jamais em-si, ele se distende para o
atividades fundamentalmente
mundo, inclusive se, na tentativa de me
expressivas. É alhures, porém, que
ver fora de mim, começo a tocar meu
Merleau-Ponty discutirá a relação entre

161
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

gesto e expressividade ao dizer que a expressar aquilo que a ela mesma não é
fala é uma modalidade de gesto, o que expresso. É dar de conhecer ao mundo
nos obriga a reavaliar tanto o que aquilo que ela só conhece obliquamente,
entendemos por fala quanto o que e é isso que Merleau-Ponty quer dizer
entendemos por gesto. Vejamos então quando afirma ser
como a relação entre transcendência e
gesto se dá no caso fala. preciso reconhecer então essa
potência aberta e indefinida de
Merleau-Ponty (2006) classifica significar – quer dizer, ao mesmo
as operações de fala em dois tipos: a tempo de apreender e de comunicar
falada a falante. A primeira corresponde um sentido – como um fato último
pelo qual o homem se transcende em
à fala que apenas utiliza os sentidos já direção a um comportamento novo,
criados e estereotipados; a segunda, ao ou em direção ao outro, ou em
contrário, se caracteriza por ser uma direção ao seu próprio pensamento,
através de seu corpo e de sua fala.
atividade expressiva, que não só renova, (2006, p. 263)
mas inaugura sentidos. A criança que
aprende a falar não simplesmente A fala é sempre silêncio, em
maneja as palavras que lhe são dadas; algum grau. Se ela é falada, é silêncio
para ela, a primeira palavra (não os porque não rompe a opacidade dos
balbucios) é, de fato, a primeira sentidos já instaurados – ela apenas os
palavra, a inauguração do mundo da perpetua, se mantém tácita diante deles;
fala; assim, falar pela primeira vez se é falante, não é plenamente expressa
corresponde a se instalar no mundo dos para si mesma – de outro modo, seria
falantes. Merleau-Ponty afirma que é raciocínio, esquema, representação, em
esta a característica essencial de toda a nenhum caso seria ato. O cogito da fala
fala, a de fazer inaugurar sentidos. A é da mesma ordem do gesto (seus
fala falante é um tatear-ao-redor-de-si e pensamentos só são enquanto o gesto
não é nunca assegurada por operações gesticula, a fala fala); assim, fala e gesto
anteriores. A tentativa de falar é próprio se caracterizam por serem atividades
o sentido que a guia, sentido este que expressivas.
não existe antes dela, mas que, uma vez Gesto e fala se relacionam não
expresso, também não reside (“mora”) só pela relação de expressividade, mas
nela – antes, se projeta para além. Nesse por uma outra já indicada que relaciona
sentido, falar é romper o silêncio. Mas o as três: transcendência. Falar em
filósofo dirá também que a fala se guia transcendência não implica um
por si através de um mundo de silêncio, abandono da fala, a ascensão a um nível
e que o ato de falar não pressupõe em que a fala não seja mais necessária.
representações do discurso que se É, antes, uma transcendência que se
pretende cumprir; falar é a única funda na fala, no gesto, que é a
possibilidade de se entrar no mundo da expressividade mesmo quando aponta
linguagem verbal. Daí de se dizer da para além dela. Assim, falar é se
fala que ela é gesto: ela traça no mundo projetar no mundo, é se transcender no
um sentido que não é dado a si, que só mundo, é fazer com que exista um
existe para ela enquanto ela se faz mundo para além do que a biologia ou a
silêncio (obscura) para si no momento metafísica podem dizer da minha fala, e
em que fala; como os gestos manuais ou o mesmo se pode dizer do corpo e do
as expressões de indignação, alegria, gesto. Ora, transcender-se não é senão
tristeza ou horror, ela retoma o mundo reunir, ou fazer existir-para-o-mundo,
através de seu poder de significar, de aquilo que só pode ser entendido como

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

inerte através de análises superficiais. entendimento da atividade musical. Não


Os músculos, o sistema ósseo, os nervos se trata de adotar velhas práticas
e neurônios, as articulações e os pedagógicas que enfocavam o trabalho
sentidos não explicam como existe um técnico separado do expressivo. Tais
mundo cultural; a psique pura, o cogito práticas, que priorizavam o mecânico
cartesiano, não explicam como a ação em detrimento do intelectual, na
pode ela mesma fazer surgir um mundo verdade não supervalorizam, mas
de sentidos; é apenas na operação total ignoram o envolvimento expressivo do
realizada pelo gesto do corpo corpo na música. Por outro lado,
expressivo que se pode compreender também não se acredita ser melhor a
que as descrições empíricas e postura intelectualista que prioriza a
intelectualistas ignoram a operação análise musical, que enfatiza
fundamental do corpo: a significação. É excessivamente a “escuta interna” e o
este corpo sensível, que faz o mundo estudo da performance musical de modo
ganhar sentidos atuando no próprio intelectual. É apenas no corpo que
mundo, este corpo que não conhece a poderemos reencontrar, enfim, o fato de
divisão entre pensamento e ação, que é que o corpo, sensível, sensibilizável,
silêncio mesmo falante, que o filósofo sensibilizador, é ele mesmo um
chamará de corpo próprio, o qual pensamento próprio. Para além da
“Escola dos Dedos” ou da ênfase
não é uma reunião de partículas das
quais cada uma permaneceria em si,
excessiva na psicologia cognitiva, o que
ou ainda um entrelaçamento de redescobrimos é a necessidade de se re-
processos definidos de uma vez por sensibilizar o corpo.
todas – ele não está ali onde está, ele
não é aquilo que é – já que o vemos
Mesmo pesquisas que visam a
secretar em si mesmo um “sentido” prevenção de enfermidades decorrentes
que não lhe vem de parte alguma, da prática musical trazem implícita a
projetá-lo em uma circunvizinhança
material e comunicá-lo aos outros
idéia de que os corpos são “sensíveis”,
sujeitos encarnados.[...] nosso olhar, frágeis e passíveis de adoecer. Tal
advertido pela experiência do corpo conceito é perigoso por dois motivos.
próprio, reencontrará em todos os
outros “objetos” o milagre da
Primeiro porque o corpo é tido como já
expressão. (Merleau-Ponty, 2006, p. sensível, que ele não está por vir, que
276 – 268) ele é um fato e não um processo. Em
segundo lugar, esta crença esconde a
O corpo próprio está sempre por idéia de um corpo-máquina que deve ser
ser feito e está também sempre por se preservado a todo custo para que
fazer. Não como um marceneiro faz preserve seu bom funcionamento. A
uma mesa, porque o marceneiro não é sensibilização do corpo não deve ser
aquilo que faz. O corpo se faz em pensada como mera prevenção de males
silêncio para si, e é essa a única ou da manutenção de uma sensibilidade
possibilidade de comunicação com o já estabelecida e dada ao corpo desde
mundo; sua feitura é da ordem da sempre. Sensibilizar é fazer o corpo
valoração, da expressividade. entrar no circuito da sensibilidade
agindo, e não se esquivando da ação, se
5. Conclusões prestando ao devir e não ao consumado.
A sensibilização é um processo, jamais
O gesto, entendido como um fato; o corpo sensível é um corpo
pensamento não-racionalizado e em situação, e nunca um corpo
realizador da expressividade, se mostra
como a forma primordial de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

plenamente realizado, para além de corpos lhes fazem, e busquem, em suas


todas as situações. práticas, sua transformação).
Ao reencontrar o ouvido na
audição, o toque no tocar, a percepção 6. Subáreas do conhecimento
no perceber; o pensamento-de-ouvir
deve ser recolocado como secundário Fenomenologia; cognição musical;
em relação ao pensamento que é o filosofia; pedagogia musical.
próprio ato de ouvir. Quando se
reintegra a sensibilidade, entendida em 7. Referências
seu duplo sentido de sensualidade e
afetividade, à prática musical, parece MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia
ser possível compreender em que da Percepção. 3. ed. São Paulo: Martins
sentido o gesto é um pensamento e, Fontes, 2006.
como pensamento legítimo, é expressão. MERLEAU-PONTY, M. A linguagem
Mais que isso, pode-se entender que o indireta e as vozes do silêncio. In:
gesto não só é necessário para a Signos. São Paulo: Martins Fontes,
expressividade resultante de 1991. p. 39-88.
determinadas maneiras de se executar
música, mas, principalmente, é um MERLEAU-PONTY, M. Textos
elemento que pode alterar toda a Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural,
expressividade musical. 1980.
Indicando o gesto como MERLEAU-PONTY, M. Le doute de
expressivo, pretendemos apontar que o Cézanne. In: Sens et Non-Sens. Paris:
estudo de novas técnicas de preparação Éditions Nagel, 1966.
para a performance, assim como da
própria possibilidade de se discutir a SARTRE, J-P. Esboço para uma
expressividade de execuções musicais, Teoria das Emoções. Porto Alegre:
deve tangenciar o corpo dos músicos em L&PM, 2007. 1ª reimpressão da 1ª
ação. Futuras pesquisas poderão, a edição de 2006.
exemplo, indicar como o rompimento
dos gestos estereotipados pode ser uma
forma de se ampliar os limites de nossa
percepção; ou ainda, como a
improvisação obriga o intérprete a
gestos jamais pensados ou realizados
(no fundo, “pensado” ou “realizado” diz
o mesmo). De qualquer modo, explorar
mais a fundo as relações entre gesto,
ação e pensamento, redescobrindo o
corpo como fonte de expressividade,
potência criativa dotada de pensamento
característico, mostra-se como
possibilidade de se aumentar e
enriquecer tanto as pesquisas (caso tal
exploração se dê sob esta forma) quanto
a própria prática musical (caso os
performers: se lancem à interrogação
que, diariamente, seus instrumentos e

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Inclusão da música contemporânea pela ampliação do gosto,


através do ensino de flauta transversal para crianças
iniciantes - Resultados parciais de pesquisa

Valentina Daldegan
UFPR
valentina@onda.com.br

Resumo: O objetivo deste trabalho é divulgar resultados parciais de minha pesquisa de


mestrado, “Técnicas estendidas no ensino de flauta transversal para crianças iniciantes,” a qual
almeja produzir subsídios para um aprendizado da flauta transversal que, incluindo técnicas
estendidas — produção de sonoridades não-tradicionais —, possibilite ao iniciante no
instrumento a ampliação de seus horizontes estéticos, e a apreciação e prática de repertório
contemporâneo que se utilize destas técnicas.
No início do aprendizado da flauta transversal os alunos produzem sons que não fazem parte da
sonoridade tradicional do instrumento. Alunos adiantados têm maior dificuldade em começar a
produzir sons “estendidos” do que os iniciantes, que geralmente conseguem fazê-lo brincando,
literalmente. Portanto o incentivo e o trabalho com estas técnicas, desde o princípio, inclusive
com crianças, pode ser de grande valia para o seu desenvolvimento. Por outro lado, a princípio,
as crianças são geralmente abertas a músicas que envolvam sonoridades diferentes e acham
divertido explorar novas possibilidades sonoras. Se essas possibilidades são pouco — ou de fato
não são — vivenciadas, seu universo se fecha e, mais tarde, com maior domínio do instrumento,
em geral somente o repertório tradicional é o que as atrai.
Meu projeto de pesquisa de mestrado é, em parte, um estudo de desenvolvimento em que venho
trabalhando, com quatro de meus alunos de flauta transversal — iniciantes, de oito a treze anos
de idade — durante seis meses, possibilidades de uso de novas sonoridades no instrumento e
música contemporânea. A fim de desenvolver familiaridade com o gênero, os alunos foram
incentivados a escutar, em casa, CDs com gravações de música contemporânea para flauta que
envolvessem novas sonoridades. Antes deste período de seis meses, foi realizado um pré-teste
para avaliar a familiaridade e o gosto por este tipo de repertório. Ao final do programa, através
do mesmo teste, pretende-se verificar se as posições iniciais foram ou não alteradas. Este artigo
versa especificamente esta parte do projeto. Um aspecto importante a ressaltar, porém, é que o
projeto não trata apenas da familiarização das crianças com a música contemporânea pela escuta
passiva, mas a vivência se dará também pela prática no instrumento, com um repertório
desenvolvido especialmente para iniciantes. Durante suas aulas semanais, paralelamente ao
repertório tradicional, o aluno trabalha também com técnicas estendidas — que são maneiras
não-convencionais de tocar o instrumento —, envolvendo a produção de novas sonoridades
através de pequenos estudos musicais e da prática de repertório contemporâneo, com peças
didáticas compostas por vários colegas especialmente para este projeto, pois a alegria maior das
crianças é mesmo tocar.
Até o momento os resultados provisórios do estudo experimental com quatro crianças de oito a
treze anos que iniciaram seus estudos de instrumento há menos de dois anos indicam que
resultados mais positivos são obtidos com crianças mais novas (até dez anos) quanto à abertura
a repertório não tradicional, confirmando resultados de estudos anteriores. Os alunos mais
velhos (treze anos) demonstraram certo estranhamento na apreciação de gravação de obras
contemporâneas para flauta que envolvessem novas sonoridades e sua disposição para a escuta
informal de gravações deste repertório foi muito menor do que a das crianças mais novas. Na
próxima etapa de minha pesquisa, avaliarei se a escuta repetitiva das peças a serem praticadas
pelos alunos trará resultados distintos tanto na facilidade para a execução quanto na abertura
para o repertório.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Palavras-chave: Música contemporânea para crianças; técnicas estendidas na flauta transversal;


familiaridade e gosto.

desenvolvimento em que venho


“Há a polêmica da sala trabalhando, com quatro de meus alunos
de concertos lotada para a de flauta transversal — iniciantes, de
apresentação da nona de oito a treze anos de idade — durante
Beethoven, que todo mundo
seis meses, possibilidades de uso de
gosta, ou a pouca platéia que
assiste com um sorriso novas sonoridades no instrumento e
conflituoso à estréia da obra música contemporânea. Minha intenção
contemporânea que rompe com é dar um passo na direção de quebrar o
a idéia de nota musical.” círculo vicioso “não conheço, não toco,
(Galvão, 2006, p. 169) não gosto” com relação à música nova,
que afeta inclusive instrumentistas
1. Introdução profissionais. A fim de desenvolver
familiaridade com o gênero, os alunos
foram incentivados a escutar, em casa,
No início do aprendizado da CDs com gravações de música
flauta transversal os alunos produzem contemporânea para flauta que
sons que não fazem parte da sonoridade envolvessem novas sonoridades. Antes
tradicional do instrumento. Alunos deste período de seis meses, foi
adiantados têm maior dificuldade em realizado um pré-teste para avaliar a
começar a produzir sons “estendidos” familiaridade e o gosto por este tipo de
do que os iniciantes, que geralmente repertório. Ao final do programa,
conseguem fazê-lo brincando, através do mesmo teste, pretende-se
literalmente. Portanto o incentivo e o verificar se as posições iniciais foram
trabalho com estas técnicas, desde o ou não alteradas. Este artigo versa
princípio, inclusive com crianças, pode especificamente esta parte do projeto.
ser de grande valia para o seu Um aspecto importante a ressaltar,
desenvolvimento. Por outro lado, a porém, é que o projeto não trata apenas
princípio, as crianças são geralmente da familiarização das crianças com a
abertas a músicas que envolvam música contemporânea pela escuta
sonoridades diferentes e acham passiva, mas a vivência se dará também
divertido explorar novas possibilidades pela prática no instrumento, com um
sonoras. Se essas possibilidades são repertório desenvolvido especialmente
pouco — ou de fato não são — para iniciantes. Durante suas aulas
vivenciadas, seu universo se fecha e, semanais, paralelamente ao repertório
mais tarde, com maior domínio do tradicional, o aluno trabalha também
instrumento, em geral somente o com técnicas estendidas — que são
repertório tradicional é o que as atrai. maneiras não-convencionais de tocar o
Porém, um dos problemas no sentido da instrumento —, envolvendo a produção
exploração do repertório de novas sonoridades através de
contemporâneo é que este é em geral pequenos estudos musicais e da prática
muito difícil tecnicamente, o que de repertório contemporâneo, com
impede a sua utilização com iniciantes. peças didáticas compostas por vários
O objetivo deste trabalho é colegas especialmente para este projeto,
divulgar resultados parciais de minha pois a alegria maior das crianças é
pesquisa de mestrado. Meu projeto de mesmo tocar. Como atestam Howe &
pesquisa é, em parte, um estudo de Sloboda (1991, p. 48) numa pesquisa

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

sobre influências significativas em seria o de desenvolver a habilidade de


jovens músicos: “o prazer de uma apreciação para possibilitar uma
criança na audição de música é, talvez experiência estético-musical mais rica
surpreendentemente, muito limitado, até (Bradley 1971: p. 295). Em “Repetition
que ela tenha aprendido um instrumento as a factor in the development of music
por vários anos. Mesmo entre aqueles preferences”, Bradley defende que
jovens músicos muito competentes … treino e experiência têm relação com a
de modo algum eram todos entusiastas formação do gosto, preferência e
por escutar música.” julgamentos de valor, assim como o
desenvolvimento de “atitudes positivas”
2. Fundamentação teórica em relação a composições musicais.
Resultados de seus estudos apontam
A grande maioria dos artigos para a importância da familiaridade com
envolvendo música contemporânea e a música através da repetição, e que
gosto data do final da década de mesmo sem instrução formal em
sessenta. De maneira geral, os artigos apreciação musical, uma rotina simples
pesquisados apontam para a de escuta repetitiva colaboraria para a
familiaridade como fator muito formação de preferências positivas pela
importante no desenvolvimento do música contemporânea de arte (p. 298).
gosto. Por outro lado, num artigo publicado
Existem vários estudos um ano mais tarde, “Effect on Student
relacionando o envolvimento dos pais e Musical Preferences of a Listening
família com aptidão e desenvolvimento Program in Contemporary Art Music”,
de habilidades musicais de crianças. o autor sugere que um programa
Zdzinski, em “Relationships among envolvendo escuta analítica além da
Parental Involvement, Music Aptitude, repetição poderia acarretar mudanças
and Musical Achievement of ainda maiores nas preferências (p. 352).
Instrumental Music Students” (1992) Segundo Radocy & Boyle
cita diversos. Na abordagem do Método (1979: p. 235), as preferências podem
Suzuki, que toma a aquisição da língua ser alteradas, mas os meios e a direção
materna como base para qualquer destas alterações não são sempre
aprendizado — e que de certo modo me previsíveis, e a reordenação destas
serve como fundamentação didática no preferências seria “filosoficamente
ensino de instrumento — o questionável”. (Esta sugestão também
envolvimento dos pais tem papel foi-me feita por uma das mães, que ao
preponderante. Acreditando que o meio ser apresentada à proposta da pesquisa,
é fator fundamental na formação do e ser-lhe dito que não haveria riscos
indivíduo, Suzuki afirma que a música físicos ou psicológicos, comentou que a
que se ouve no ambiente familiar é “mudança de gosto poderia ser
determinante no desenvolvimento considerada um risco psicológico.”) Por
musical da criança, pois assim ocorre a outro lado, através da educação formal,
sua familiarização com a música seria possível e recomendável a
(Suzuki, 1982: passim). Não foi expansão das preferências, com boas
encontrada, porém, bibliografia chances de sucesso. Radocy e Boyle
relacionando especificamente o (1979, p. 235) citam um estudo de
envolvimento dos pais e Hornyak segundo o qual a familiaridade
desenvolvimento do gosto musical. aumentou as respostas positivas de
Ian Bradley afirma que um dos crianças em idade de ensino
principais aspectos do ensino de música fundamental com relação a composições

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

contemporâneas, mas não fez diferença integrar compositores e programas de


nas respostas de crianças mais velhas. educação musical em escolas públicas e
Evidências de que as crianças pagava para jovens artistas trabalharem
mais novas são mais abertas a novos como compositores em residência
repertórios também são encontradas em nestas escolas. Estes descobriram que a
Boal Palheiros et alii (2006), numa maioria dos educadores musicais não
pesquisa que investigou respostas de tinha preparo para lidar com música
crianças brasileiras e portuguesas à contemporânea, por conseqüência
música de arte do século XX. Os tampouco seus alunos. Apesar disso,
resultados mostraram também que a tanto alunos quanto professores
música de arte do século XX não é participantes mostraram-se receptivos à
familiar tanto para crianças portuguesas música nova em sua experiência com os
quanto brasileiras, pois não é tocada na compositores em residência; os
mídia, e raramente é utilizada em professores observaram que o
programas de educação musical nas crescimento musical das crianças e as
escolas. Os autores arrolam algumas atitudes com relação à música
razões pelas quais a música contemporânea foram muito positivas.
contemporânea é considerada Algumas outras conclusões a partir do
“chocante” e não é utilizada na sala de projeto foram:
aula (p. 590): melodias muito difíceis de
cantar, que vão além dos limites da voz — A música
humana; ritmos e compassos contemporânea é apropriada e
irregulares; sons não-convencionais e interessante para crianças de
eletroacústicos; harmonia não-tonal; qualquer idade. Quanto mais
cedo for apresentada, mais
contrastes extremos; freqüentemente o
natural será seu entusiasmo.
feio se torna valioso; misturas de Crianças pequenas deveriam
gêneros, estilos e modos de expressão e ser expostas ao som da música
efeitos sonoros especiais. Segundo o contemporânea antes de serem
texto, a combinação de algumas destas capazes de intelectualizá-la.
características “pertubam o senso de (…)
equilíbrio na apreciação estética”, — Um dos maiores
exigindo do ouvinte mais do que uma objetivos da apresentação de
escuta sedutoramente fácil e passiva música do século XX à
(ibidem). crianças deveria ser ajudá-los a
aumentar a sua discriminação
Já Dalla Bella et alii (2001: B9) auditiva, para que se tornem
parecem mesmo acreditar que o gradualmente capazes de ser
repertório do século XX seria seletivos em suas escolhas de
inapropriado para uso com crianças música contemporânea.
pequenas, sugerindo inclusive o uso de — Seleções adicionais
músicas de filmes do Walt Disney para contemporâneas, que sejam
este propósito. curtas em duração e simples
Entretanto, um projeto de em estrutura, precisam ser
pesquisa com aplicação prática direta na localizadas ou compostas, de
educação musical como o modo que possam ser
incorporadas em um programa
“Contemporary Music Project”, entre maior de educação musical.”
outros, demostra precisamente o
contrário (Mark 1996, 28-34). O
projeto, que aconteceu nos Estados
Unidos na década de sessenta, visava

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

3. Método As crianças também eram livres


para escrever algum comentário sobre
Participam do estudo quatro cada trecho.
crianças de oito a treze anos, alunos Os trechos ouvidos foram os
meus, que haviam iniciado seu seguintes:
aprendizado de flauta transversal há 1. Brian Ferneyhough -
menos de dois anos. Antes do início do Passages - flauta solo
estudo, houve uma reunião com as 2. Will Offermans - Short
mães, explicando o projeto. Elas Version - grupo de flautas
assinaram um consentimento para que 3. Eric Dolphi - Gazzelloni -
seus filhos participassem do estudo. Os flauta solo
nomes aqui apresentados são fictícios. 4. Toru Takemitsu - Cape Cod -
•Alice, de oito anos, no inicio do flauta e orquestra de cordas
estudo tocava há vinte e um meses. A 5. Jean-Claude Risset - Passages
mãe, que é leiga em música mas - flauta e eletroacústica
envolvida com arte contemporânea, 6. Robert Dick - Flying Lesson 5
desde o início do programa mostrou-se - flauta solo
encantada pelo repertório de “música 7. Will Offermans - Etude 8 -
com sonoridades diferentes”. Seu pai é flauta solo
músico profissional. 8. Bruno Maderna - Musica su
•Cecília, de dez anos, no início due dimensione - flauta e eletroacústica
do estudo tocava há dezoito meses. A ***
mãe toca piano, e os dois irmãos Como instrumento de coleta de
também tocam instrumentos. A mãe se dados da audição informal das
diz receptiva “a todo tipo de música”. gravações — cds de música
•Remo e Rômulo, gêmeos de contemporânea para flauta cedidos em
treze anos, no início do estudo tocavam empréstimo — foi organizada uma
havia seis e dezoito meses, agenda individual onde, entre outras
respectivamente. Os pais gostam coisas, cada aluno marcaria os dias em
especialmente de MPB. que as escutasse. Os alunos também
No pré-teste para avaliar a foram incentivados a escrever algum
familiaridade e o gosto pelo repertório comentário sobre o que ouviam na
contemporâneo para flauta que semana.
envolvesse novas sonoridades no • Rômulo não ouviu nenhuma
instrumento, as crianças responderam a gravação.
um questionário que consistia na escuta • Remo ouviu apenas dois CDs.
de oito trechos de música. Após cada Na terceira semana, escutou um com
trecho, respondiam a três perguntas, composições de Toru Takemitsu; seu
marcando numa escala de 1 a 5: comentário foi “na minha opinião o CD
• O quanto esta música parece é horrível, as músicas são muito ruins”.
familiar para você? Na quarta semana ouviu um CD, com
(1 – muito estranha, 5 – bem comum); gravações de concertos de flauta e
• O quanto você gosta desta orquestra, com peças de ...., bem mais
música? tradicional harmonicamente do que o
(1 – nem um pouco, 5 – adorei); e primeiro, e com uso restrito de técnicas
• Gostaria de um dia tocar uma estendidas na flauta. Seu comentário:
música como esta? “Músicas bem elaboradas e melhores
(1 – de jeito nenhum, 5 – com certeza).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

que as do CD anterior”. Depois não quis solo, de Eric Dolphi, mais


mais ouvir. convencionais do ponto de vista da
• Alice ouviu todos os CDs, sonoridade e da harmonia, foram as
regularmente por dez semanas. peças com avaliações mais altas. As
Comentou: “Eu achei que [The Magic peças que envolviam sons
Flute, de Will Offermans] é lindo eletroacústicos foram as que tiveram as
porque tem muitos novos sons”. “Este avaliações mais baixas (9/4-20 — nove
CD [com peças de André Jolivet] não é pontos numa escala de quatro a vinte).
muito contemporâneo, mas é lindo.” “A Estes resultados são, em parte,
melhor música deste CD, é a segunda diferentes dos apontados por Palheiros
[Piece, de Jacques Ibert] — porque é et alii (2006, p. 593), em que, num teste
mais clássica.” de apreciação semelhante realizado em
• Cecília ouviu os CDs com escolas públicas, as peças
muita atenção, e produziu relatórios convencionais obtiveram as avaliações
para cada música. Por exemplo: [Stabile mais altas, porém aquelas com sons
de Jolivet] “Demora para começar. Dá eletroacústicos também obtiveram
para ouvir um sonzinho estranho e resultados positivos.
baixinho. É uma música estranha! Hey! As duas crianças mais jovens
Estou conseguindo ouvir algo… Que avaliaram mais alto o quanto haviam
música estranha. Não consegui ouvir gostado das peças (33/8-40, contra
nada! Ah! Eu não gostei desta música.” 21/8-40 dos mais velhos) e
Ou sobre Hardiment, também de demonstraram vontade maior de tocar o
Jolivet: “Nossa já começa animada? E repertório (31/8-40, contra 23/8-40).
com tambores? Animada! Várias notas As avaliações apresentadas para
agudas. Parece uma festa de pássaros! “familiaridade”, no geral bastante
Já estou gostando desta música! Agora é baixas, como era esperado, pareceram
só a flauta. O tambor voltou! Parece um menos significativas: Alice parece ter
desfile! De escola! Acaba de repente! confundido familiaridade e gosto,
Gostei dessa música!” apresentando valores improvavelmente
altos (14,7/8-40, sem considerar Alice,
4. Resultados contra 30/8-40, para Alice).
Até o momento os resultados
Um fato a ser considerado num provisórios do estudo indicam que
teste de preferências como este é que reações mais positivas são obtidas com
não podemos ter certeza de que as crianças mais novas (até dez anos)
crianças, especialmente as mais jovens, quanto à abertura a repertório não
entenderam completamente o teste, por tradicional, confirmando resultados de
mais simples que pareça ser. Um estudos anteriores (Boal Palheiros et
problema apontado por Radocy e Boyle alii, 2006; Hornyak, 1968, apud Radocy
(1979, p. 224) é que “qualquer tentativa & Boyle 1979: p. 235). Os alunos mais
de medir preferências é arriscada por velhos (treze anos) demonstraram certo
diversos fatores, inclusive porque as estranhamento na apreciação de
pessoas podem não responder gravação de obras contemporâneas para
honestamente às questões sobre suas flauta que envolvessem novas
preferências”. Ainda assim foi possível sonoridades e sua disposição para a
observar alguns pontos: prática das peças simples compostas
As peças Cape Cod, para flauta para o estudo foi muito menor do que a
e orquestra de cordas, de Toru das crianças mais novas. Numa próxima
Takemitsu e Gazzelloni, para flauta etapa de minha pesquisa, avaliarei se a

170
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

escuta repetitiva das peças a serem de ensino, os professores de música


praticadas pelos alunos trará resultados ainda são muito conservadores na
distintos tanto na facilidade para a escolha do repertório — mesmo porque
execução quanto na abertura para o sua formação geralmente não vai além
repertório. dos repertórios dos séculos XVIII e
XIX. Ainda hoje as crianças não têm
5. Discussão contato com música de arte
contemporânea. Os autores defendem
Aspectos relativos à música que a inclusão deste tipo de repertório
contemporânea são de especial em atividades curriculares é uma
interesse para instrumentistas necessidade, pois de outra forma as
mais jovens: as crianças com crianças são privadas de um
frequência conseguem
conhecimento ampliado da música (p.
identificar-se mais
prontamente com questões 594).
pertinentes à música escrita No Brasil, onde grande parte das
recentemente do que com a escolas nem mesmo tem música em
música européia dos séculos seus currículos, a discussão sobre a
XVII e XIX. Aprender como inclusão de música contemporânea nos
introduzir a música programas parece não ter sentido. Mas
contemporânea, suas questões talvez um plano de se começar
técnicas e estéticas, é um dos justamente com atividades de vanguarda
principais deveres dos e música contemporânea — seguindo a
professores de instrumento.
(Olsen, 2001, p. 2)
idéia de Dello Joio — e não com
repertórios do passado ou, no pior dos
Desde a década de sessenta casos, apenas trazendo para a sala-de-
discute-se a importância da inclusão da aula a música simplória do dia-a-dia que
música contemporânea nas atividades os alunos já conhecem pela mídia, fosse
musicais das crianças. Bradley (1972, p. uma alternativa radical e atraente para a
353) comentava sobre a existência de ampliação dos horizontes estéticos das
um consenso entre educadores musicais crianças, juntamente com os dos
de que a falta de exploração da música professores de música.
contemporânea em sala de aula seria Acredito que o projeto
uma deficiência nos currículos “Técnicas estendidas no ensino de
escolares. Ele sugere que, se é para flauta transversal para crianças
tornar a música contemporânea parte iniciantes” venha trazer uma
integral da cultura, seria importante que colaboração neste sentido — decerto
as pessoas fossem capazes de entender a que de modo restrito porque afetará
sua natureza e significado; na educação apenas flautistas — pois, se a
musical, atividades com a vanguarda familiaridade das crianças com o
seriam de valor para tornar as crianças repertório contemporâneo é um objetivo
conscientes desta natureza. específico no meu trabalho, a ampliação
Na prática, em quase meio de seus horizontes estéticos é seu
século, exceto por esforços pontuais propósito final. O objetivo geral de
para incluir-se a música contemporânea minha pesquisa é produzir subsídios
no currículo, como por exemplo o CMP, para um aprendizado da flauta
muito pouco tem sido feito. Atualmente, transversal que, pela inclusão de
como aponta Boal Palheiros et alii técnicas estendidas, possibilite ao
(2006, p. 590 e 593), apesar do iniciante no instrumento a ampliação de
desenvolvimento de novas abordagens seus horizontes estéticos, para a

171
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

apreciação e prática de repertório American music. Council for Research


contemporâneo que se utilize destas in Music Education, vol. 8, p. 1-14,
técnicas. Quem sabe então as crianças, 1968.
que iniciarem seus estudos de
HOWE, M. J. A. & SLOBODA, J. A.
instrumento incluindo músicas “que
Young musicians’ accounts of
rompem com a idéia de nota musical”
significant influences in their early
desde o início, venham a modificar a
lives. 1. The family and the musical
cena retratada por Galvão (2006),
background. British Journal of Music
mostrando não um sorriso
Education, vol. 8, p. 39-52, 1991.
“conflituoso”, mas aquele de satisfação
por ouvir com interesse crítico uma MARK, L. M. Contemporary Music
estréia de obra contemporânea. Education. New York: Schirmer
Books, 1996.
6. Referências OLSON, L. C. The Pedagogy of
Contemporary Flute. 1998. 209 f.
BOAL PALHEIROS, G., ILARI, B. & Doutorado em Artes Musicais –
MONTEIRO, F. Children’s responses to University of Illinois, Urbana-
20th century ‘art’ music, in Portugal and Champaign.
Brazil. In: INTERNATIONAL RADOCY, R. E. & BOYLE, J. D.
CONFERENCE ON MUSIC PERCEPTION Psychological Foundations of Musical
AND COGNITION, 9TH, 2006, Bolonha. Behavior. Springfield: Charles C.
ICMPC9 Proceedings. Bolonha: Thomas Publisher, 1979.
Universidade de Bolonha, 2006. p. 588-
595. SUZUKI, Shin’Ichi. Where Love is
Deep. New Albany, Indiana: World-
BRADLEY, I. L. Repetition as a Factor in Wide Press, 1982.
the Development of Musical
Preferences. Journal of Research in ZDZINSKI, Stephen F. Relationships
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298, Autumn 1971. Aptitude, and Musical Achievement of
Instrumental Music Students. Journal
BRADLEY, I. L. Effect on Student of Research in Music Education, vol.
Musical Preference of a Listening 40, n. 2, p. 114-125, Summer, 1992.
Program in Contemporary Art Music.
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Education, v. 20, n. 3, p. 344-353, Discos:
Autumn 1972.
DALLA BELLA, S., PERETZ, I. CAROLI, Mario. Sciarrino: l’opera per
ROUSSEAUB, L. GOSSELINA, N. (2001). A flauto, vol. 2. Milão: Stradivarius,
developmental study of the affective 2001, STR 33599.
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expertise musical. Psicologia: Teoria e SANDSTRÖM, S. D. The Kroumata
Pesquisa, vol. 22, n. 2, p. 169-174, Percusion Ensemble & Manuela
2006. Wiesler, flute. Estocolmo: Bis, 1985,
HORNYAK, R. R. An analysis of student CD-272.
attitudes towards contemporary

172
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

OFFERMANS, W. The Magic Flute.


Amsterdam: E-Records, 1997, CD E-
971.
OFFERMANS, W. Wil Offermans:
Daily Sensibilities. Amsterdam:
BVHAAST Records, s.d., CD 9206.
SALLINEN, Aulis; TAKEMITSU, Töru;
PENDERECKI, Krzsztok. 20th Century
Music For Flute and Orchestra.
Franklin, TN: Naxos, 1999, 8.554185.
TAKEMITSU, Toru. Toru Taketitsu:
Works for Flute and Guitar. Helsinki:
Ondine, 1994, ODE 839-2.
VALADE, Pierre-André. André Jolivet:
L’œuvre pour flûte. S.l.: Accord, 1996.
4CDW.

173
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Heresia e (re)significação musical nos benditos do Cariri

Cristiano da Costa Cardoso


UECE
Ewelter Rocha
UECE
ewelter2@yahoo.com.br

Resumo: Este estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla que discute, em última instância,
significação musical. Em pesquisa etnográfica destinada a estudar a contribuição do repertório
fúnebre para o êxito da Sentilena – ritual de morte realizado em muitos lugarejos nordestinos,
detectou-se um declarado repúdio ao repertório tradicional pelos católicos dos centros urbanos.
Essa conduta reclama uma discussão acerca dos fatores que elaboram esta forma de perceber os
benditos tradicionais a qual lhes confere um valor de contra-testemunho religioso.
Apresentamos uma reflexão acerca deste problema realizando um estudo de afinação e contorno
melódico em relação a um dos mais importantes benditos fúnebres da região do Cariri.

Palavras-chave: rito fúnebre, significação musical, catolicismo popular

afinação e formas de contorno


1. Etnografia e problematização melódico.
Ainda que as três abordagens sejam
A região do Cariri, situada ao metodologicamente empreendidas em separado,
sul do Ceará, fronteiriça ao Estado de elas participam conjuntamente dos processos de
Pernambuco, serviu de delimitação recepção e de significação musical. Faz-
geográfica para este estudo e nela foi se imprescindível analisar de que forma
realizada a pesquisa etnográfica que o processo de secularização vivenciado
originou o presente artigo. O projeto pela Igreja Católica contribui para o
metodológico utilizado segmenta a aparecimento de uma resistência em
investigação em três pesquisas. relação aos antigos benditos. Segundo
Inicialmente, o estudo da influência das Bolan, a secularização define um novo
mudanças implementadas pelo Concílio ethos cultural, que impõe “[...] um novo
Vaticano II, e sua conseqüente sistema de legitimação, construído a
incorporação pela música de louvor partir da própria estrutura do profano”
Católica, no processo de recepção dos (1972, p. 169), afastando-se
benditos tradicionais. O segundo completamente do modelo de
enfoque penetra a dimensão da catolicismo popular nordestino, o qual
performance, olhando a imagem do manifesta uma centralidade em práticas
canto, gestos, posturas, olhares, o jogo penitenciais que se opõem à feição
simbólico sobre o qual se revela a carismática promovida pelo
dimensão penitencial do bendito. Para empreendimento católico atual. Por esse
este segundo momento se utiliza aportes prisma, em consonância com o
da Antropologia fílmica e da entendimento de Blacking, o qual
Etnomusicologia. A terceira abordagem, entende a música como modalidade de
objeto deste artigo, adentra a dimensão conhecimento que é expresso pela
do som, onde analisam-se aspectos de relação do homem com a sociedade,

174
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

investiga-se as variáveis que elaboram a do processo analítico não implica


significação do bendito fúnebre partindo conceber uma relação de causalidade
da compreensão dos sistemas religioso e entre eles. As análises apresentadas
musical em que se encontra inserido o foram realizadas com vistas aos
receptor. significados que possam ser
correlacionados a determinados
Música é uma síntese dos elementos da execução do canto.
processos cognitivos que estão Interessam aqui os processos de
presentes na cultura e nos seres
humano[s]: a forma que ela toma e
percepção e os processos de construção
seus efeitos sobre as pessoas são simbólica das estruturas sonoras. Assim,
gerados pelas experiências sociais evitou-se analisar as estruturas sonoras
em diferentes ambientes culturais. per si, desvinculadas dos aspectos
(1977, p.89, tradução nossa) simbólicos participantes no processo de
(re)significação musical estudado. Tal
2. O som como expressão de perspectiva
penitência
abre mão do enfoque sobre a
As análises empreendidas neste música enquanto “produto” para
artigo visam a realizar um itinerário que adotar um conceito mais
toma como ponto de partida o bendito abrangente, em que a música atua
como “processo” de significado
tradicional, olhado como evento social, capaz de gerar estruturas
acústico, e termina em inferências que vão alem de seus aspectos
acerca de como e através de que meramente sonoros. (Pinto, 2001,
elementos esse tipo de sonoridade p. 227-228)
constitui-se signo de instâncias
devocionais presentes na visão de Dentro desta perspectiva,
mundo dos católicos do sertão do Cariri. fazendo o estudo transcorrer além das
Esta proposta de análise, ainda que não estruturas musicais, dos elementos
parta de uma noção de semântica comensuráveis, indo em direção às
musical, recorre de forma axiomática ao significações, procurou-se, dentro do
suporte teórico que confere à música a corpus musical selecionado, detectar a
capacidade de engendrar por meios presença de elementos musicais
expressivos, no âmbito sonoro, diversos culturalmente significantes, tentando
elementos da simbólica cultural ao qual encontrar correlações entre as práticas
o repertório musical pertence. expressivas e seus significados sociais a
partir da organização do material
Assim como no plano da sonoro. Coloca-se aqui no propósito de
racionalidade ocorre uma entender de que forma elementos
subsunção dos objetos a uma sonoros, acústicos, podem reforçar
categoria ou idéia, no plano da
afetividade, em especial, no plano
elementos não acústicos, buscando “as
dos aprioris afetivos, ocorre relações entre a música e as esferas
também uma subsunção desta ou mítica e espiritual” (ibid., p. 230)
daquela ordem a uma visão ou presentes na prática religiosa analisada.
sentimento do mundo. O bendito Maria Valei-me foi escolhido
(BRANDÃO, 1996, p. 385)
para guiar esta análise em função de ele
estar presente em todas as cerimônias
O fato de os fenômenos
do catolicismo popular praticado na
musical e social se encontrarem
região do Cariri, dos simples ofícios
reunidos enquanto pares significativos
diários ao rito de exéquias1. Por esta

175
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

razão foram realizados vários registros rezadores e ordem de penitentes


deste bendito, cantado por vários diferentes.

Figura 1: contorno melódico inicial do bendito Maria Valei-me interpretado por Dona Edite.

Uma análise visual do portamento é muito comum; a


caminho melódico2, através do gráfico, parte sustentada da nota varia da
altura verdadeira por um comma
mostra uma tessitura melódica no ou mais em um quarto das notas
âmbito de uma oitava e o predomínio de analisadas. Se somarmos a estes
alturas dentro de duas regiões, nas erros o onipresente vibrato com
proximidades de 200 e de 250 Hz, uma extensão média de um
sugerindo a existência de duas alturas semitom, pode-se se dizer que o
diretor ambicioso e otimista de um
polares. Não se pode, entretanto, coro a capela tem uma tarefa
deduzir facilmente uma escala musical - impossível. (2004, p. 198,
como um conjunto discreto e tradução nossa)
organizado de notas dentro do
continuum sonoro – subjacente ao Todos esses fatores,
contorno melódico analisado. O que se abundantemente presentes no material
observa é um contorno analisado, dificultam a análise e a
predominantemente sinuoso e irregular, dedução de padrões de afinação na
com acentuadas flutuações de performance vocal. Entretanto pode-se
freqüência, superiores às encontradas observar que as alturas exibem
nos usuais vibratos da técnica vocal consideráveis desvios em relação ao
ocidental. Em poucas regiões, mesmo sistema de afinação temperado,
dentro de uma mesma sílaba, se podem constatando-se uma predileção por
encontrar constâncias freqüenciais no intervalos justos3, com um léxico
tempo. Essas sinuosidades, que algumas intervalar exibindo, em certos
vezes podem ser analisadas como momentos, relações freqüenciais
portamentos, dificultam a inferência incomuns à prática musical ocidental,
precisa de alturas. Certas flutuações de como 7/6 (1/6 de tom menor do que a
altura são bastante comuns no âmbito da terça menor temperada) e 9/7 (1/6 de
música vocal. Barbour afirmou, a tom maior do que a terça maior
respeito de um estudo de Carl Seashore: temperada). Outro fato importante é que
apesar da complexidade do contorno
Não existe, entre cantores, algo melódico em sua micro-estrutura, é
como estabilidade de altura: notória, de acordo com o gráfico, numa
variações são encontradas em visão macro, a presença de arcadas
quase metade dos ataques e se
estende por até um tom inteiro; melódicas4, as quais partem de um

176
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

portamento com freqüência inicial na da melodia produzida pela voz,


região grave, adentrando uma região terá uma compreensão muito maior
daquilo que sente quando ouve
média e retornando posteriormente, uma canção. (Tatit, 1989, p. 72)
através de novo portamento, à região
grave de onde partiu. Cumpre ressaltar Cabe também observar que o
que, diferentemente da região média caráter sinuoso e irregular transcende o
onde a distribuição freqüencial plano melódico. Observamos,
possibilita a inferência de alturas, as especialmente no início do excerto,
freqüências de partida e de chegada não consideráveis assimetrias em outros
apresentam uma configuração planos sonoros - instabilidade de
compatível com a intenção de se “afinar amplitude e de metro - com grande
a nota”, antes, sugere um propósito de ênfase dada a determinadas sílabas e
aproximar o canto a uma prece falada, o reforços articulatórios às vogais. Tatit
que é reforçado pelo fato de não haver, (ibid., p.71) explica que o esforço
para os rezadores do catolicismo fisiológico presente no canto é
popular do Cariri, uma distinção clara indicação de uma tensão emotiva,
entre reza e bendito, sendo comum a evidenciando uma instabilidade nas
expressão “rezar um bendito”. condições fisiológicas que controlam a
A presença da fala é a introdução
produção vocal. Como complementação
do timbre vocal como revelador de analítica mostramos abaixo três
um estilo ou de um gesto desenhos entoativos que chamaram
personalista no interior da canção. atenção por suas recorrências nas
Se o ouvinte chegar a depreender o diversas interpretações analisadas.
gesto entoativo da fala no “fundo”

Figura 2: embelezamento da sílaba “vo” nas três versões analisadas do bendito Maria Valei-me (na
seqüência: Edite, Aves e Nilton).

Figura 3: exemplos de portamentos nos benditos Maria Valei-me (Edite e Aves) e Stabat Mater (Edite).

Figura 4: microcromatismos no bendito Maria Valei-me de D. Edite. Temos uma figura de passagem e
uma figura de bordadura superior com utilização de intervalos próximos ao quarto-de-tom.

O trecho abaixo foi extraído católica e serve-nos a título de


de uma gravação da música Salve comparação, para que, através de
Regina5, interpretada por uma cantora procedimento metodológico

177
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

idiossincrático, comparemo-na ao nosso conjunto de interpretações do bendito


espaço amostral básico, a saber, o Maria Valei-me.

Figura 5: contorno melódico final do canto gregoriano Salve Regina interpretado pela cantora Kelly
Patrícia.

São notórias as diferenças em As teorias cognitivistas sobre as


relação ao contorno analisado estruturas musicais, portanto, são
teorias sobre “notas musicais”.
anteriormente. As flutuações de Está implicada sempre alguma
freqüência exibem estruturação linear, forma de categorização discreta do
configurando alturas discretas que, sinal sonoro para permitir-se os
como evidenciado por análise processos combinatórios próprios
freqüencial, mostrou, guardando-se as do sistema musical e das práticas
musicais, e supõe-se que a simples
características do canto vocal, categorização traga consigo
adequação ao sistema temperado. alguma coerção estrutural
Certas estruturas, encontradas no necessária. (Mello, 2003, p. 120)
material analisado, como
microcromatismos, portamentos e A música, segundo Cross (2008,
outros embelezamentos no campo de p.2), constitui um meio comunicativo,
alturas têm uma função que transcende cujas características podem gerenciar
à dimensão puramente estilística, como situações sociais de incerteza, como
ocorrem normalmente em músicas de transições de vida, materializadas nos
tradição européia. Neste sentido ritos de passagem de várias
depositamos nesses elementos um comunidades humanas, contribuindo
primeiro suporte pra explicar o caso de para a manutenção da ordem social.
resignificação musical verificado pela Nesse sentido, o ritual da Sentinela
etnografia. Assim deve-se lançar mão guarda notórias semelhanças com os
de pressupostos metodológicos que não Lamentos Karelianos (itkuvirsi),
tomem a “nota” - unidade descritos por Tolbert (1990). Em
freqüencialmente discreta de altura - ambos, o ritual se situa como uma “[...]
como “unidade básica” de análise, ou o saída institucionalizada para a dor
sistema temperado como uma espécie individual, o medo, o pesar e a raiva.”
de meta-escala musical. Molino ([s.d.], (Dissanayake, 2006, p. 47, tradução
p.151-152) sugere que, através de juízos nossa) Nele o canto se estabelece como
de identidade e diferença, definam-se uma linguagem sagrada, “uma força
classes de equivalência, permitindo a eficaz necessária” utilizada pelo guia na
dedução de uma sintaxe musical conduçãovi do morto à morada celeste,
inerente às obras musicais. A presente ou morada dos ancestrais (Tuonela), de
pesquisa constituiu um passo inicial na forma a “restaurar o equilíbrio social e
elaboração dessas classes, importado individual retransmitindo mensagens
agora verificar como estas engendram entre este mundo e o outro” (Tolbert,
significados dentro do ritual. op. cit., p.80, tradução nossa). As
semelhanças não se limitam apenas à

178
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

função do canto, mas também à sua capitulado por Maria Valei-me. Este
estruturação como material sonoro. fato, em certa medida, reforça a
hipótese de que a sonoridade gerada
[O lamento] é caracterizado por pelo canto dos benditos tradicionais é
instabilidade geral de altura: um capaz de recuperar uma simbologia que
contorno melódico deslizante,
estruturas modais sem escalas
instaura um desacordo cultural e
fixas, uso extenso de intervalos religioso quando confrontado com os
microtonais que continuamente fiéis dos centros urbanos, os quais como
variam em tamanho, um nível forma de “protegerem-se” do estranho
global variável de altura (MAZO, conferem a eles um uso oposto àquele
1994, p.194, tradução nossa).
atribuído à música de louvor católica.
Enquanto esta ressalta aspectos do
3. Considerações finais
triunfo de um Cristo glorioso e
ressuscitado, aquele, através, como já se
Cumpre ressaltar que o caráter
disse, de uma sonoridade de caráter
lamentoso do canto dos benditos é
lamentoso, tem função destinada a
reconhecido por ambos os grupos, o que
excitar o desejo de mortificação do
mostra que as duas formas opostas de
corpo como elemento essencial para
elaborar a significação dos benditos
aplacar os rigores de uma justiça divina
residem no modo diferenciado com que
centrada no pecado e na penitência.
os dois grupos lidam com o caráter de
lamento presente no repertório. A
4. Referências
análise que apresentamos tem por
finalidade promover uma discussão
inicial acerca da participação da BARBOUR, James M. Tuning and
sonoridade do canto do bendito dentro temperament: a historical survey.
do processo de significação musical Mineola, N.Y.: Dover Publications Inc.,
aqui estudado. A nossa hipótese baseia- 2004 [1951].
se no entendimento do bendito BLACKING, John. How musical is
tradicional enquanto evento psico- man? Seattle: University of
acústico que recupera valores Washington Press, 1973.
penitenciais presentes no modelo
catequético e devocional próprios do BOLAN, Valmor. Sociologia da
catolicismo popular, mas que aos secularização: a composição de um
ouvidos dos católicos atuais constituem- novo modelo cultural. Petrópolis:
se arautos de valores que vão de Vozes, 1972.
encontro àqueles professados pelo BRANDÃO, Iulo. Unidade e
modelo pós-conciliar. diversidade como correlatos da ordem e
Herndon e McLeod (1981) da desordem no campo da estética. In:
entendem como indício de antiguidade DEBRUM, M. et al (Orgs.). Auto-
de um repertório musical a utilização, Organização. Campinas, 1996, p. 383-
nas canções, de palavras desconhecidas 400.
para a língua da cultura, assim como
CROSS, Ian. Music as a communicative
conferem à música que tem exercício
medium (No prelo). In: BOTHA, R.;
em uma atividade ritual maior
KNIGHT, C. (Eds.), The prehistory of
resistência a mudanças. A forte
language, Oxford: Oxford University
presença do Latim e a participação em
Press, 2008. Disponível em:
certas etapas do rito de exéquias –
<http://www.mus.cam.ac.uk/~ic108/>
Sentinela, sugerem, a partir do
Acesso em: 25 jan. 2008.
entendimento das autoras, a antiguidade
do repertório estudado, neste artigo

179
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

DISSANAYAKE, Ellen. Ritual and


1
ritualization: musical means of Este bendito apresenta uma paráfrase da oração
Salve Regina. Para uma consulta sobre a função dos
conveying and shaping emotion in benditos dentro do rito funerário do Cariri-CE, cf.
humans and other animal. In: BROWN, Rocha (2002).
2
S.; VOGLSTEN, U. (Eds.). Music and As análises freqüenciais e os gráficos foram feitos a
manipulation: on the social uses and partir do software winpitchpro, Pitch Instruments Inc.
3
Utilizamos o termo “justo” para designar intervalos
social control of music. Oxford, New reduzíveis a razões de “pequenos” números inteiros.
York: Berghahn Books, 2006, p. 31-56. Nem todos os intervalos do sistema temperado se
prestam facilmente a essa redução.
HERNDON, M.; McLEOD, N. Music 4
Um estudo estatístico sobre a presença de arcadas
as culture. 2nd ed. Darby, Pa.: melódicas, e suas configurações, em canções
Norwood, 1981. folclóricas européias pode ser visto em Huron (1996).
5
Interpretação incidental dentro da música Falanges
HURON, David. The melodic arch in Angélicas – CD Kelly Patrícia: Melhores Momentos.
vi
western folksongs. Computing in No caso descrito por Tolbert, o lamento tem
também função nos rituais de casamento, igualmente
Musicology, Vol. 10, 1996, p. 3-23. considerado um rito de passagem.
MAZO, Margarita. Lament made
visible: a study of paramusical elements
in Russian Lament. In: YUNG, B.,
JOSEPH, L. (Eds.) Themes and
variations: writings on music in honor
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MELLO, Marcelo. Reflexões sobre
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(Mestrado). Campinas: Instituto de
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ROCHA, Ewelter S. A sagrada
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TOLBERT, Elizabeth. Women cry with
words: symbolization of affect in the
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180
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Música e Lingüística: uma metodologia para estudos da


prosódia do português arcaico

Daniel Soares da Costa


daniel.fono@superig.com.br

Resumo: O trabalho que ora apresentamos tem como objetivo propor uma nova metodologia
para o estudo da prosódia de línguas mortas, em especial o português arcaico. Partimos de uma
metodologia anterior utilizada por Massini-Cagliari (1995, 1999) que focalizava, em cantigas
trovadorescas, a palavra que aparece em posição de rima poética, visto que somente nessa
posição é possível, por meio da observação da estrutura da cantiga e da maneira como o autor
conta as sílabas poéticas, ter certeza da posição do acento principal da palavra. A partir do
contato com esse trabalho, começamos a desenvolver uma proposta metodológica que desse
conta de localizar os acentos lexicais em outras posições nos versos. Para isso, desenvolvemos
um trabalho de análise das proeminências musicais em comparação com as proeminências
lexicais, tendo como corpus transcrições de algumas das Cantigas de Santa Maria para a
notação musical atual, feitas por Ferreira (1986). Na análise dos dados, pudemos observar que
em pelo menos 72% dos casos o tempo mais forte do compasso marca justamente a sílaba
tônica da palavra. Esse percentual já é suficiente para afirmamos que a observação do nível
musical junto com o nível lingüístico dessas cantigas pode constituir uma metodologia auxiliar
no estudo de fenômenos prosódicos como acentos secundários e/ou eurrítmicos do português
arcaico, na medida em que pode constituir um instrumento de identificação de possíveis
proeminências rítmicas, ao lado de informações trazidas pela estrutura métrica dos poemas.

Palavras-chave: Prosódia; Português Arcaico; Proeminências.

Massini-Cagliari (1995, 1999)


1. Introdução e objetivos elaborou uma metodologia para o
estudo do acento lexical do português
O presente trabalho tem como arcaico, utilizando textos poéticos
objetivo demonstrar a possibilidade da (cantigas trovadorescas, mais
utilização de recursos musicais no especificamente, as cantigas profanas) e
estudo da prosódia de línguas mortas. localizando as palavras que figuram na
Trata-se de uma metodologia que usa a posição de rima poética nos versos, já
observação das proeminências musicais que nessa posição, por meio da
como meio de localizar proeminências observação da estrutura métrica do
lexicais em textos poéticos musicados. poema e da contagem das sílabas
Para isso, foram utilizadas, como poéticas, pode-se ter certeza da
corpus, 5 Cantigas de Santa Maria localização da sílaba em que incide o
(CSM, de agora em diante) que tiveram acento lexical.
suas pautas musicais transcritas por Costa (2006), utilizando a
Ferreira (1986), mais especificamente a mesma metodologia de Massini-
CSM 10, CSM 38, CSM 150, CSM 264 Cagliari (1995, 1999), também estudou
e CSM 293. Todas as 420 CSM o acento lexical do português arcaico,
possuem a pauta musical anotada no porém, utilizou como corpus para a sua
refrão e na primeira estrofe (cf. fac- pesquisa, cantigas religiosas, as
símile em Anglés, 1964). Cantigas de Santa Maria de Afonso X

181
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

(1121-1284), o Rei Sábio. A sua da palavra. Por exemplo, na Figura 1 -


intenção era procurar, no corpus de CSM 10 - transcrição de Ferreira
cantigas religiosas, casos de palavras (1986), analisando o primeiro compasso
que não puderam ser contemplados pela da partitura, pode-se notar que a
pesquisa de Massini-Cagliari (1995, primeira nota está relacionada com a
1999) no corpus de cantigas profanas, sílaba “ro” da palavra “rosa”. Essa é
uma vez que as CSM possuem uma nota com maior intensidade no
temática mais rica que gera um compasso e coincide exatamente com a
vocabulário mais extenso. sílaba tônica da palavra. Feita a análise
Com a metodologia proposta no e a coleta dos dados relativos às cinco
presente artigo, pretende-se, também, cantigas acima referidas, pode-se ver
aumentar o campo de análise para o como essa metodologia se comporta e
estudo do acento e do ritmo do que informações pode-se obter por meio
português arcaico, pois, levando-se em dela a respeito da acentuação e do ritmo
consideração as proeminências do português arcaico.
musicais, pode-se localizar os acentos Para melhor visualização dos
lexicais em outros lugares do verso fenômenos, dividiu-se as palavras
além da posição de rima poética. Além encontradas (palavras que possuem pelo
disso, pode-se buscar pistas para o menos uma sílaba anexada à primeira
estabelecimento dos limites de nota do compasso) em quatro
ocorrência do acento secundário em categorias. São elas: palavras cujo
palavras ou delimitar os constituintes tempo forte do compasso coincide com
prosódicos mais altos. a sua sílaba tônica, seja oxítona,
paroxítona ou proparoxítona; palavras
2. Metodologia cujo tempo forte coincide com alguma
sílaba pretônica; palavras cujo tempo
A metodologia utilizada consiste forte coincide com alguma sílaba
em localizar, primeiramente, a sílaba postônica; e palavras monossilábicas
que está anexada à primeira nota que coincidem com o tempo forte do
musical do compasso, já que esta nota compasso, separando-se estas em
pertence ao primeiro tempo do monossílabos abertos ou travados.
compasso e conseqüentemente possui Para cada cantiga analisada
uma intensidade maior na sua execução. elaborou-se uma ficha de análise, como
Depois, verifica-se a palavra a que essa a que segue abaixo, relativa à
sílaba pertence. transcrição de Ferreira (1986) da CSM
A suspeita inicial é que o tempo 10.
mais forte do compasso coincidiria, na
maioria dos casos, com a sílaba tônica

FICHA DE ANÁLISE – CSM 10


Tônica Pretônica
paroxítona beldade
rosa alegria
rosas sennor
frores toller

182
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

dona
donas Postônica
sennores coitas
piadosa
doores Monossílabo
oxítona átono
sennor e
parecer de
prazer tônico
seer mui

Total de palavras1 = 20 100%


Total de coincidências com tônica = 12 60%
Total de coincidências com pretônica = 4 20 %
Total de coincidências com postônica = 1 5%
Total de coincidências com monossílabo aberto = 2 10%
Total de coincidências com monossílabo travado = 1 5%

Dessa forma, obtém-se uma transcrições das cinco CSM escolhidas,


visualização mais clara das coincidências chegou-se a um total de 151 palavras
entre o tempo forte do compasso e as que possuem pelo menos uma sílaba
sílabas das palavras e tem-se um nessa situação. O quadro 1 abaixo
levantamento quantitativo para cada mostra com maiores detalhes os dados
cantiga nos diversos tipos de estatísticos. Cabe dizer que as palavras
coincidências que se repetem na mesma situação
dentro das cantigas não foram contadas;
3. Resultados obtidos o que aumentaria a porcentagem a favor
das coincidências com sílaba tônica,
Depois de verificar todas as como se pôde observar durante a
coincidências entre as sílabas e os contagem.
tempos fortes dos compassos nas

Quadro 1 – categorização das coincidências

Coincidências Total Percentual em relação ao


total do corpus
com tônica 67 44,37%
com pretônica 19 12,58%
com postônica 22 14,56%
com monossílabos 43 28,46

Pode-se perceber pelo quadro 4. Discussão dos resultados


acima que a maioria das palavras do
corpus tem a sílaba tônica marcada pelo Antes de se começar a discussão,
tempo forte do compasso. convém refletir um pouco sobre a

183
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

questão da tonicidade. As sílabas podem hiatos, em palavras como muito, por


ser átonas ou tônicas. As sílabas podem exemplo, em que a sílaba “mui” aparece
ser tônicas por diversas causas: uma relacionada ao tempo forte, o que reforça
força expiratória maior; uma duração a caracterização de um ditongo nessa
maior; ou uma pronúncia mais aguda. sílaba, ou na palavra neicios, em que
Massini-Cagliari e Cagliari (2001, apenas a sílaba “ci” aparece relacionada
p.113) dizem o seguinte a esse respeito: ao tempo forte, caracterizando um caso
de hiato entre “ci” e “os”. Há ainda
As sílabas são tônicas ou átonas, casos de palavras que possuem vogais
dependendo do grau de saliência dobradas, como em doores, cuja
que apresentam. Essa saliência
provém geralmente, em português,
silabação aparece como do-o-res, sendo
de uma duração maior. Pode vir a palavra paroxítona, já que a sílaba “o”
também de uma elevação ou aparece sozinha relacionada ao tempo
mudança de direção da curva forte do compasso antes de “res”. Casos
melódica em um enunciado e até de consoantes duplas também poderão
por um aumento de intensidade
sonora. (Massini-Cagliari; Cagliari,
ser discutidos. No corpus analisado foi
2001, p. 113) encontrado o caso da palavra sennor,
cuja sílaba tônica é “nnor”, sendo que a
Conclui-se então que consoante dupla aparece apenas no
ataque da sílaba. Como foi encontrado
Uma sílaba só é tônica ou átona apenas um caso de consoante dupla, os
por comparação com as demais. dados não são suficientes para uma
Em termos fonéticos, uma sílaba
discussão a respeito do status dessa
isolada não é tônica nem átona.
(Massini-Cagliari; Cagliari, 2001, consoante (no caso de geminação ou
p. 113) não). No entanto, se o corpus for
estendido para todo o conjunto das
Em relação aos monossílabos, CSM, provavelmente aparecerão
levando-se em consideração a questão diversos outros casos de consoantes
da tonicidade, pode-se dizer que eles desse tipo, o que permitirá abrir uma
podem ser acentuados ou não, discussão a esse respeito.
dependendo da relação que estabelecem No caso das coincidências do
com as demais sílabas das outras tempo forte do compasso com sílabas
palavras. Sendo assim, se eles estiverem pretônicas, pode-se encontrar casos de
localizados em um lugar de representação do acento secundário. Isso
proeminência musical, também serão acontece em palavras como enserrado,
proeminentes em relação às outras que aparece ocupando dois compassos,
sílabas que os rodeiam no nível sendo que, no primeiro compasso, a
lingüístico, já que uma maior sílaba acentuada é “en” e, no segundo
intensidade na nota musical compasso, a sílaba acentuada é “rra”, o
provavelmente exigirá uma maior que poderia caracterizar um caso de
intensidade na pronúncia da sílaba. acento secundário na sílaba “en”. Essa
Essas sílabas podem ser consideradas, coincidência com a sílaba pretônica
então, como tônicas, o que eleva a também pode ajudar na análise de vogais
estatística de coincidências com tônica duplas, como na palavra seer, por
para 72,84%. exemplo. A dúvida paira sobre a
Já em relação às coincidências pronúncia dessas duas vogais, se elas
dos tempos fortes do compasso com a são pronunciadas juntas, sendo a palavra
sílaba tônica da palavra, alguns casos um monossílabo, ou se elas são
problemáticos podem ser visualizados, pronunciadas separadas, sendo a palavra
tais como a distinção entre ditongos e um dissílabo. Pelos resultados

184
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

encontrados, a única possibilidade é a da várias palavras por verso, o que aumenta


pronúncia separada, já que tal palavra significativamente o corpus e também
apareceu em duas situações diferentes. permite novas possibilidades de análise,
Numa vez apareceu com o acento em tais como a observação do
“se” e, na outra, apareceu com o acento comportamento das palavras em relação
em “er”, mas não apareceu nenhuma vez a acentos secundários, ou também a
com o acento relacionado às duas sílabas observação de constituintes prosódicos
juntas. mais altos.
Em relação às coincidências com Trata-se, portanto, de uma
sílabas postônicas, os dados apenas metodologia auxiliar que pode tanto vir a
permitem notar que em geral elas estão confirmar hipóteses levantadas a respeito
relacionadas a um prolongamento no do acento e do ritmo do português
nível musical ou estão relacionadas a arcaico, quanto a levantar outras
um certo tipo de floreio musical, o que hipóteses para casos mais complexos.
também caracteriza um prolongamento. Ou ainda, encontrar outros casos de
Maiores e melhores dados palavras que não tenham aparecido nas
provavelmente levarão ao pesquisas ainda, como é o caso das
estabelecimento da relevância desse palavras proparoxítonas.
fenômeno no nível lingüístico.
6. Referências bibliográficas
5. Conclusão
ANGLÉS, Higinio. La Música de las
A intenção deste artigo não é Cantigas de Santa María del Rey
fazer uma análise detalhada sobre o Alfonso el Sabio. – Facsímil,
acento e o ritmo do português arcaico. transcripción y estudio critico por
Mesmo porque tal empreendimento Higinio Anglés. Barcelona: Diputación
exigiria uma dimensão muito maior. O Provincial de Barcelona; Biblioteca
objetivo principal é mostrar uma Central; Publicaciones de la Sección de
metodologia nova que pode trazer bons Música, 1964. Volume I: Facímil del
frutos para a observação e análise de Códice j.b.2 de El Escorial.
fenômenos prosódicos em línguas COSTA, D.S. Estudo do acento lexical
mortas. Essa metodologia funciona
no português arcaico por meio das
como um instrumento de reforço na Cantigas de Santa Maria. 2006.
busca do constituinte prosódico do Dissertação (Mestrado em Lingüística e
português arcaico em especial e de Língua Portuguesa) – Faculdade de
outras línguas das quais não se tem Ciências e Letras – UNESP –
registros orais. Araraquara, 2006.
Pela pequena análise feita pode-
se perceber que a observação da notação FERREIRA, Manuel Pedro. O Som de
musical junto com a observação da Martin Codax - Sobre a dimensão
estrutura e da métrica do poema pode musical da lírica galego-portuguesa
fornecer argumentos que ajudam a (séculos XII-XIV). Lisboa: UNYSIS,
explicar casos de palavras que geram Imprensa Nacional - Casa da Moeda,
dúvidas quanto à silabação, acentuação 1986.
e ao ritmo. MASSINI-CAGLIARI, G. Do poético
Além do mais, a metodologia ao lingüístico no ritmo dos
proposta permite ampliar o campo de trovadores: três momentos da história
análise, passando de uma palavra por do acento. Araraquara: FCL,
verso, na metodologia criada por Laboratório Editorial, UNESP; São
Massini-Cagliari (1995, 1999), para Paulo: Cultura Acadêmica, 1999.

185
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

MASSINI-CAGLIARI, G.; CAGLIARI,


L. C. Fonética. In: MUSSALIM, F.;
BENTES, A. C. (Org.). Introdução à
Lingüística: domínios e fronteiras. São
Paulo: Cortez, 2001. v. 1, p. 105-146.
MASSINI-CAGLIARI, Gladis.
Cantigas de amigo: do ritmo poético
ao lingüístico. Um estudo do percurso
histórico da acentuação em
Português. Tese de doutorado.
Campinas, UNICAMP, 1995.

1
Descartadas as palavras repetidas.

186
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Percepção e linguagem: uma pesquisa de Mário de Andrade e


de Oneyda Alvarenga

Flávia Toni
USP

Resumo: Pretende-se demonstrar – na cronologia e na expansão da pesquisa – o envolvimento


crescente de Mário de Andrade com os assuntos relacionados à terapêutica, bem como à
cognição musical. As bases para tanto se pautam em matéria vária do autor, bem como na
orientação de sua discípula, Oneyda Alvarenga, que desenvolveu pesquisa abrangente sobre a
linguagem musical.

Palavras-chave: Mário de Andrade; Oneyda Alvarenga; terapêutica musical.

que chega do interior de Minas Gerais


1. Introdução para estudar no Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo,
Jornalista, poeta, professor de Oneyda Alvarenga, moça que cultivava
piano e de matérias teóricas, a poesia, como leitora e como forma de
musicólogo e romancista, Mário de expressão artística, e que desde cedo
Andrade mantinha um Fichário aceita o desafio de se encarregar
Analítico onde registrava as entradas de primordialmente do estudo da
assuntos de seu interesse: em fichas de Linguagem Musical.
cartolina, manuscritas ou datilografadas, Embora a parceria acima
anotando o tema e a bibliografia à mencionada não se traduza, na prática,
disposição para a pesquisa. É assim que em textos assinados pelos dois, é sabido
em seis grandes subáreas - Medicina e que a discípula freqüentava a casa de
Música, Terapêutica Musical, Mário semanalmente, participando de
Meloterapia, Patologia Musical, Poder rodas de estudo sobre História da
da música e Psicanálise e a música – Música, e foi por ele orientada na
ordena assuntos e autores. Veja-se, monografia de conclusão de curso do
como exemplo, os assuntos sobre “A Conservatório. Desta monografia, que o
música como meio terapêutico na cura mestre mantém em seu arquivo pessoal,
da loucura”, ou os “Efeitos terapêuticos crivada de anotações e conselhos,
da música”, que ele vai buscar no Oneyda desenvolverá os capítulos de
Manual de Música de Julio Nombela; um livro que não chegou a editar.
ou ainda, a “Música como agente Enquanto a jovem aprimora seu
terapêutico”, que ele busca em Victor texto, o professor trabalha num ensaio
Marin Corralé. Entre os autores que tem núcleo comum bibliográfico,
franceses, Jules Regnault, Charles publicando a primeira parte com o nome
Koechlin, Charles Baudouin, para citar de Força Biológica da Música, a
apenas alguns. segunda, como Terapêutica Musical e
No início da década de 1930 tempos depois, ao agregar um outro
juntar-se-á a ele nos interesses comuns ensaio para a publicação em livro,
sobre música e poesia uma jovem aluna aquelas duas partes serão batizadas com

187
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

o apelido que encabeça o livro, ou seja, Mário sabia, no entanto, da importância


Namoros com a Medicina. dos significados atribuídos aos
componentes musicais ao longo da
2. Objetivos civilização já que ritmo e melodia estão
presentes como dados espontâneos da
Pretendo aqui historiar a gênese própria natureza.
do ensaio destacando os pressupostos Em 1929, por exemplo, no
do autor acerca dos processos romance Café, o cantador nordestino
envolvidos na percepção da música, inspirado em Chico Antônio é capaz de
bem como, através da orientação da promover o encantamento, a sedução da
aluna, inferir a extensão ou “besta fera” com as virtudes de seu
amadurecimento a que chegaria seu cantar. O personagem, inspirado no
pensamento. Isto não significa uma compositor, cantador e tocador de ganzá
simbiose entre pontos de vista de que conhecera no ano anterior tinha o
personalidades tão diversas, mas em dom de amansar o boi nervoso,
certa medida a bibliografia possibilidade científica que o poeta
compartilhada reúne posições que foram aprendera com a leitura do Dr Marin
discutidas tanto na sala de aula quanto Corralé. Em “Terapêutica Musical”,
no grupo menor de alunos particulares. após citar exemplos onde multidões
foram pacificadas pela música, Mário
3. Métodos de Andrade confessa a “licença
poética”:
Para tanto é necessário “Aliás, não quis propositalmente
primeiramente conhecer um pouco do estudar os efeitos da música sobre os
trabalho que mestre Mário orienta na irracionais, mas este poder que ela tem
condição de professor do Conservatório, de acalmar os irracionalizados pela
pois, além de parcela da bibliografia ser superexcitação, justifica decisoriamente
comum à Força Biológica da Música, as o fenômeno do aboio nordestino que
notas do professor espelham seus muitos põem em dúvida. É contado que
pontos de vista em relação à percepção os vaqueiros do norte do Brasil usam
da música. sistematicamente dum canto
Num segundo momento serão melancólico, as mais das vezes
expostos alguns dos conceitos que ele prodigiosamente agudo, entoado em
formulou para os leitores do ensaio. falsete, cheio de vocalizações, com que
ordenam a marcha das boiadas e
4. Resultados mantêm os bois em calma. [...]” 1
O tema do canto e ritmo
Nos escritos de Mário de reveladores da expressão de estados
Andrade o interesse pelo funcionamento cenestésicos violentos, sempre
de nosso sistema nervoso frente ao associados a manifestações coletivas, é
estímulo sonoro vem à baila a partir de o mote para que em 1930 o crítico
meados da década de 1920 quando, na analise a reação da massa de populares
Introdução à Estética Musical, o autor frente ao discurso político. Em
pretende anunciar os avanços do Dinamogenias políticas, escrito
conhecimento no campo da fisiologia da originalmente para o Diário Nacional,
compreensão musical. Defensor da Mário de Andrade analisa seis
teoria de que a linguagem musical nada
1
traduz, além da construção sonora, ANDRADE, Mário de. Terapêutica Musical,
In: Namoros com a medicina, 4ª ed., p. 30

188
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

documentos – parlendas e cantos Musical de São Paulo. O professor,


entoados pelo público que foi Mário de Andrade, sugerira tema e
recepcionar Getúlio Vargas e João bibliografia antes da moça entrar em
Pessoa.2 férias, indicando um sumário e pontos
De fato, o autor de Terapêutica essenciais a serem desenvolvidos. Em
Musical baseara sua análise em dados Varginha, na casa dos pais, Oneyda
científicos quando em seu ensaio afirma recebe um roteiro, pelo correio,
que o ritmo pode manifestar “toda a sua cumprido à risca, e o trabalho agrada
violenta força dinamogênica sobre o tanto que o mestre guarda-o consigo e
indivíduo e as multidões.” E Mário de faz uma série de anotações para
Andrade continua: trabalhar com a moça.
O trabalho de Oneyda fora
Uma observação vai nos dividido em cinco capítulos, a saber:
caracterizar bem esta afirmativa. Origens técnicas e psicológicas da
É incontestável que a oratória tem
o poder de eletrizar o indivíduo, e
Linguagem Musical; Música vocal e
principalmente a coletividade. [...] instrumental e suas diferenças de
A mais dinâmica manifestação da caráter; Análise técnica da Linguagem
oratória é o béstia; e quanto mais Musical — Constituição da Melodia;
sonoro o béstia, mais glossolálico, Expressão Musical; O papel do
menos exigindo de nós o pacífico
individualismo de bem pensar,
sentimento na Música Pura;
mais ele dinamiza o ser, mais Perturbações da Linguagem Musical
eficaz é a sua rítmica e mais ele se nos indivíduos. No entender do
aproxima da música.” 3 examinador ficara faltando um capítulo
de exame técnico das partes do discurso
No entanto, ao musicólogo não musical.
interessa apenas o fenômeno sonoro O outro trecho observado diz
através do que ele chama de efeito respeito às considerações calcadas na
cenestésico da música. Importa acima obra Do belo musical, de Hanslick, e
de tudo de que forma os elementos que Mário anota:
compõem o discurso musical foram “Aqui a aluna fugiu da pergunta
sendo manipulados ao longo da e em vez de responder a ela, respondeu
civilização, tanto na construção de obras a outra mais geral, mais genérica e...
que permaneceram no repertório mais fácil. A pergunta, resumida de
clássico, quanto nas de uso popular. outras perguntas, da página anterior é: o
Assim, Mário de Andrade sentimento representa ou não um papel
compartilhará seu interesse pelo tema no fenômeno da inspiração musical?
com Oneyda Alvarenga sugerindo à Quer dizer: da mesma forma que tal
aluna que escreva sobre a linguagem sentimento de amor cria a Vita Nuova
musical em sua dissertação de ou a Gioconda, seria mesmo tal
conclusão de curso no Conservatório sentimento de amor que provocou tal
Dramático e Musical de São Paulo. melodia de Beethoven ou de
A 19 de agosto de 1933 Oneyda Schumann?
Alvarenga assina a monografia “A Ora, pra responder, a aluna
linguagem Musical” para a conclusão respondeu que cada autor tem uma
do oitavo ano do curso de História da sensibilidade (não sentimento
Música do Conservatório Dramático e momentâneo, que é o que implica a
pergunta) própria, derivada da sua
2
Idem, Música doce música, 2ª. ed., p. 104. tradição, vida, cultura, raça, etc., etc.,
3
Idem, Terapêutica Musical, Op. Cit.,p. 14/15

189
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

etc. e que essa sensibilidade pessoal se poder compreender. Portanto eu não


reflete nas obras dele. Isso é claro e apenas deformei o sentimento, o
lógico. fenômeno se anulou completamente e
Mas a pergunta, o problema que foi substituído por uma imagem
ela implica, é 10 vezes mais complexo e convencional. O que há de peculiar a
difícil. E, o que é pior, improvável. essa imagem quando realizada por
Tanto um ‘não’ como um ‘sim’, palavras (poesia) ou pela plástica
simplórios, respondendo à pergunta (escultura, pintura, dança) é que ela
podem ser aceitos, discutidos e pode ser apreendida mediata e
defendidos. Essa é a realidade mais imediatamente pelos outros seres
amarga: depois de tantos séculos e humanos porque são fenômenos
tantas provas musicais, é impossível genéricos sociais. Assim mesmo tais
determinar com absoluta certeza se tal convenções genéricas e sociais (a língua
sentimento despertará tal frase, tal linha, inglesa, as gírias, os gestos peculiares a
tal sucessão de acordes. Porque este é regiões ou a raças) só podem ser
apenas o problema. Não foi o amor que apreendidas pelos que as conhecem.
criou a Vita Nuova, foi a criação Pros que as desconhecem não passam
artística de Dante. O amor (real ou não) de música. São incompreensíveis.
por Beatriz, e a dor dele terá criado tal Agradáveis ou desagradáveis.
frase, tal verso, e a idéia geral, a O músico é o ser que tem a sua
inspiração exatamente, do livro. O resto imaginação criadora convertida a criar
é arte, é análise intelectual de junções de sons musicais. A inspiração
sentimentos, é desenvolvimento (quero dizer tal verso, tal idéia, tal
intelectual e artístico de sentimentos. A melodia, tal junção de acordes, tal
isso se resume também o problema forma de peça musical) é subconsciente.
musical em questão: tal amor, tal dor, É possível que tal amor, tal dor, ou
etc. poderá provocar no músico a recordação deles, na precisão de serem
criação de tal linha ou tais acordes? Ora sublimados (precisão subconsciente) pra
eu respondo, aparentemente em que o homem se liberte deles, sejam no
contradição comigo, e músico convertidos a tal imagem
assustadoramente, que ‘sim’! Porque na musical (motivo, linha melódica, junção
realidade mais trágica do ser humano de acordes, forma da peça) a que o
nada pode ser expresso por outra coisa. músico atribua subconscientemente tal
Tal dor, tal amor, só estão neles sentido, ou melhor, em que ele dê vasão
mesmos e expressos por eles mesmos. a tal ou qual estado físico-psíquico.
Desque eu crio um verso, uma idéia de Apenas depois vem a arte do músico,
livro, um quadro, uma ornatura (sic.), eu arte que nada mais tem que ver com o
estou me servindo (de) uma série de amor, ou a dor, criar, desenvolver,
símbolos convencionais, que apenas agenciar, conformar, reformar,
são, com maior ou menor intensidade, a transformar aquela inspiração musical,
inteligência dum fenômeno qualquer da mesma forma que do verso foi feito
psíquico, mas nunca a sua própria um soneto, um poema em metro livre ou
realidade que só pode estar nesse da idéia foi feito o Otelo ou as Lusíadas.
fenômeno psíquico mesmo. Pra dar a Mas já agora, não só a música não
inteligência dele eu usei simbologias expressa tal sentimento, mas embora
orais ou plásticas, palavras, linhas, significando pro artista que a criou tal
volumes que não passam de convenções amor ou tal dor, não expressa mais nem
que a inteligência humana realizou pra pra esse próprio artista (quanto mais pro

190
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

ouvinte!) esse amor, essa dor despertadora de associações mentais,


determinada, pelo simples fato dos compara tal comportamento com a
símbolos musicais não serem pintura e a poesia. Com muita
compreensíveis pela inteligência habilidade o autor propõe a construção
consciente.” de um trecho literário onde são descritas
A Linguagem Musical possui um a existência de uma árvore e um riacho
núcleo bibliográfico comum com o e imagina a transposição desta cena para
ensaio do professor, Terapêutica os versos de um poeta. Em seguida,
Musical, bibliografia que a aluna inspirado pelos argumentos dos poemas
aumentará ao transformar o texto sinfônicos do romantismo, imagina a
original em livro que não chega a editar. possibilidade de se batizar um trecho
Na versão para o livro a musicóloga orquestral de “Paisagem”. Além disso,
arrola 55 títulos, enquanto na edição do para afirmar que a música propicia uma
ensaio que compõe o livro editado em liberdade muito maior de fantasias
1939 Mário arrola 43. Entre ambos, há associativas, Mário de Andrade cita o
seis obras comuns, quais sejam: ouvinte que costuma visualizar imagens
BAUDOIN, Charles. Psychanalyse de enquanto escuta os sons, pesquisa que
l’Art. Paris: Félix Alcan,1929; Oneyda Alvarenga já fizera. Em 1935,
BOURGUÉS, e DENEREAZ. La para aprofundar o tema da dissertação
musique et la vie intérieure. Paris: Félix transformando-a em livro, os dois
Alcan, 1921; COMBARIEU, Jules. Les elaboram um questionário e enviam a
rapports de la musique et de la poésie. personalidades brasileiras perguntando
Paris, Alcan, 1894; DAURIAC, Lionel. quais seus hábitos de fruição musical e
Essai sur l’Esprit Musical. Paris, Félix se costumavam associar imagens aos
Alcan, 1904; INGEGNIEROS, José. Le sons.
Langage Musical et sés troubles Em seu ensaio o musicólogo
hystériques. Paris: Félix Alcan , 1907; estava determinado a entender os
STUMPF, Carl. Die Anfange der Musik. mecanismos de percepção do som e,
Leipzig: J. Ambrosius Barth, 1911. crendo na sua ininteligibilidade,
Além deles há outros dois desassocia ritmo e som “para lhes
autores comuns às duas bibliografias determinar os valores específicos (...)”,
mas foram consultadas obras diversas, fisiológicos, do primeiro, e psicológico,
ou seja, enquanto Oneyda Alvarenga do outro4. Mas desde o início Mário de
consulta, de Paul BEKKER, La musique Andrade fora assertivo ao afirmar que
(Payot, 1929) e, de LEVY-BRUHL, Le “a força biológica excepcional da
surnaturel et la nature dans la mentalité música” advém, sobretudo, “da força
primitive (Paris, Félix Alcan, 1931), contundente do seu ritmo e da
Mário lê, do autor alemão, Von den indestinação intelectual do seu som.”
Naturreichen des Klanges (Berlim, Isto porque o ritmo musical é livre,
1925) e do francês, Les fonctions independe de sentido intelectual - a não
mentales dans les sociétés inférieures ser na poesia – e assim “organiza com
(Paris, 1928). mais energia a dinâmica do ser”5.E
É possível ilustrar outros pontos adiante justifica:
de união entre os dois trabalhos que não “Na música, como os sons não
apenas este conjunto de obras que são representação de coisa alguma, e as
pertencem à biblioteca do professor e melodias são puras imagens sonoras de
dentre eles interessa sobretudo quando
4
ele, ao tratar da música como Idem, Terapêutica Musical, Op. Cit., p. 26
5
Idem, Ibidem, p. 13.

191
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

sentido próprio, o ritmo se apresenta dirige noticiando o resultado positivo do


puro, indisfarçado, não desviado, emprego da meloterapia na medicina
contendo a sua significação em si moderna: relata as observações do Dr.
mesmo. Daí poder ele manifestar toda a Nery Siqueira da Silva, sobre um
sua violenta força dinamogênica sobre o interno do Juqueri que fora acalmado ao
indivíduo e sobre as multidões.6” entregar-se a seu instrumento predileto,
Para tanto Mário de apóia no o violino. E explica:
alemão Buellow que afirmara que “no Entre os trabalhos de assistência
princípio era o ritmo” para defender que social que o Departamento de
o ritmo tem efeito terapêutico. O Cultura vem realizando em São
pesquisador com experiência de Paulo, uma primeira experiência
de música aos alienados do
trabalho de campo entende ter
Juqueri deu excelentes resultados,
comprovado os efeitos da ação do ritmo a julgar pela opinião mais
– tanto a sensação de embriaguez autorizada dos próprios médicos
quanto a de encantação – ao estudar assistentes. O que os levou a
cantos de macumba e catimbó em prosseguir na iniciativa benéfica. 7
conferência proferida na Escola
Nacional de Música, A música de 5. Conclusão
feitiçaria no Brasil.
A experiência profissional Professor de piano e de matérias
aludida diz respeito a pesquisa realizada teóricas, no final da década de 1920, a
em 1928, durante um carnaval em partir do momento que Mário de
Recife, frente a um grupo de Maracatu, Andrade abraça os estudos de música
quando chegou a passar mal na situação popular e folclórica, combina o
de proximidade em que se encontrava interesse no aprofundar o estudo a
dos instrumentos de percussão. respeito da linguagem musical com a
Adiante, ao abordar o tema da questão da cognitividade mais ampla.
indestinação intelectual do som, Mário Ainda que tenha se valido de
defenderá a independência do ritmo da bibliografia variada, pauta-se,
poesia, dando seguimento a análise que sobretudo, nas experiências de campo
iniciara em 1930 quando estudou os para discorrer sobre o assunto em dois
cânticos políticos, ensaio relatado ensaios de fôlego, o primeiro sobre a
acima. Mas para os leitores de música de feitiçaria no Brasil e, o outro,
Terapêutica Musical demonstrará seu voltado para a aplicação da música
ponto de vista a partir do primeiro verso como terapêutica acessória.
do Hino Nacional Brasileiro escrito por No início da década de 1930, ao
Duque Estrada. conhecer Oneyda Alvarenga, jovem
A partir deste ponto, o autor pianista e poeta, com ela divide seus
passa a historiar notícias sobre o poder interesses sobre linguagem e cognição o
terapêutico da música, através de que possibilita ampliar o conhecimento
bibliografia variada, de forma a ampliar dele através da monografia da aluna que
a exemplificação de casos que ele orienta na condição de professor do
corroboram seus pontos de vista. Sendo Conservatório Dramático e Musical de
assim, aproveita a oportunidade para São Paulo.
anunciar uma das iniciativas do Com Namoros com a medicina é
Departamento de Cultura que então possível vislumbrar, tanto o estudioso
dos mecanismos de percepção e
6 7
Idem, Ibidem, p. 14 Idem, Ibidem, p. 39

192
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

transmissão dos elementos da www.mus.cam.ac.uk/~cross/. Acesso em


linguagem musical, quanto o cientista 15 ago. 2006.
que aposta na terapêutica musical. DOTINGA, Randy. Music Makes your
brain happy. Wired News, 23 ago. 2006.
6. Subáreas de conhecimento Disponível em
www.wired.com/news/technology/medtech/
Terapêutica Musical; Linguagem 0,71631-0.html?tw=wn_index_2. Acesso
musical; crítica genética em 30 out. 2006.
MUSZKAT, Mauro; CORREIA, Cleo M.
7. Referências F.; CAMPOS, Sandra M. Música e
Neurociências. Revista Neurociências
8(2): 70-75, 2000.
ALPERT, Michael. New Horizons in
Music Cognition. Yale Scientific
Magazine, Summer 2005, p. 28. Disponível
em www.yalescientific.org. Acesso em 30
out. 2006.
ANDRADE, Mário de. Correspondente
contumaz: Cartas a Pedro Nava,
1925/1944. Edição preparada por Fernando
Rocha Peres. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.
ANDRADE, Mário de. Da criança
prodígio, I-III, Diário Nacional, Coluna
Táxi, 26 e 28 de junho e 10 de julho, 1929.
ANDRADE, Mário de. Dinamogenias
políticas, Diário Nacional, 8 de janeiro de
1930. In: Música, doce música. 2. ed. São
Paulo/Brasília; Martins Fontes/INL, 1976,
p. 104-111.
ANDRADE, Mário de. A Linguagem, I-III,
Diário Nacional, Coluna Táxi, 16, 27 e 28
de abril, 1929.
ANDRADE, Mário de. Música, doce
música. 2. ed. São Paulo/Brasília; Martins
Fontes/INL, 1976.
ANDRADE, Mário de. Namoros com a
medicina. 4. ed. São Paulo/Belo Horizonte;
Martins/Itatiaia, 1980.
ANDRADE, Mário de. Vida do cantador.
Ed. Preparada por Raimunda de Brito
Batista. Belo Horizonte/Rio de Janeiro;
Vila Rica, 1993.
LEBRAVE, Jean-Louis. Du visible au
lisible: comment répresenter la génèse?
Genesis, 27, 2006, p. 11-18.
CROSS, Ian. Musica and meaning,
ambiguity and evolution. Disponível em

193
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Do ritmo musical para o ritmo lingüístico, a partir da análise


de uma Cantiga de Santa Maria de Afonso X

Gladis Massini-Cagliari
UNESP
gladis@fclar.unesp.br

Resumo: Estudo do ritmo lingüístico em Português Arcaico, período trovadoresco, com base na
abstração da estrutura prosódica de um período passado da língua a partir da análise do ritmo
musical das cantigas religiosas escritas em galego-português. A exemplificação é feita a partir
da Cantiga de Santa Maria 35, atribuída a Afonso X, rei de Castela (1121-1284).

Palavras-chave: ritmo lingüístico, prosódia, Cantigas de Santa Maria.

Por muito tempo, acreditou-se


1. Introdução, objetivos e ser impossível o estudo do ritmo
fundamentação teórica lingüístico de períodos passados da
língua, porque esses sobreviveram
Este trabalho objetiva apresentar apenas em registros escritos. No
um estudo do ritmo lingüístico em entanto, estudos mais recentes (entre
Português Arcaico, período eles, Halle & Keyser, 1971, para o
trovadoresco, com base na abstração da inglês, e Massini-Cagliari, 1995, 1999,
estrutura prosódica de um período 2005, para o Português Arcaico – de
passado da língua a partir da análise do agora em diante, PA) têm mostrado que
ritmo musical das cantigas religiosas a escolha de textos poéticos para se
escritas em galego-português. Para estudar fenômenos prosódicos (e, em
exemplificar a adequação da especial, o ritmo) de uma língua,
metodologia aqui proposta, considera-se inclusive e principalmente em seus
a Cantiga de Santa Maria 35, O que a estágios passados, já se provou
Santa Maria der algo ou prometer, de adequada e eficaz, sobretudo quando se
Afonso X (1121-1284). As Cantigas de toma a descrição em um nível “mais
Santa Maria (de agora em diante, CSM) abstrato” (fonológico e não fonético).
são uma coleção de 420 cantigas Massini-Cagliari (1995, 1999)
religiosas em louvor da Virgem Maria, foi a primeira a elaborar um estudo do
com notação musical, mandadas acento lexical do PA, ao propor uma
compilar pelo Rei Sábio de Castela na metodologia que enfoca os itens lexicais
segunda metade do século XIII, que em posição de rima, proeminência
sobreviveram em quatro códices: o de principal do verso, para estabelecer os
Toledo (To), o menor e o mais antigo; o padrões acentuais do PA – período da
códice rico de El Escorial (T), o mais língua para o qual não sobreviveram
rico em conteúdo artístico, que forma registros orais. No entanto, a
um conjunto (os chamados códices das metodologia adotada nesses trabalhos,
histórias) com o manuscrito de Florença mesmo abrindo novos horizontes para
(F); e o mais completo, o códice dos estudos de fenômenos prosódicos como
músicos – El Escorial (E) (cf. silabação, sândi e acento lexical,
Parkinson, 1998, p. 180). mostrou-se limitada para a

194
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

determinação do padrão prosódico de 3. Resultados: análise da CSM 35


itens lexicais que não aparecem em
posição de rima. Por exemplo, há Este trabalho objetiva mostrar
padrões acentuais que são apontados que uma análise em paralelo do texto
como existentes pelos estudiosos desde poético e da notação musical das
a tradição filológica oitocentista, mas cantigas trovadorescas se constitui em
que nunca comparecem no corpus em um instrumento auxiliar importante para
posição de rima. É o caso das a análise lingüística do acento e do
proparoxítonas. No entanto, há ritmo (lingüísticos) do PA.
controvérsias quanto à existência desse A idéia que subjaz a esta
padrão no período arcaico da língua metodologia é a de que as
portuguesa. Os poucos autores que proeminências musicais combinam
tratam do assunto concordam em preferencialmente com proeminências
relação ao fato de que o PA possuía nos níveis poético e lingüístico. Desta
uma grande quantidade de palavras forma, a divisão dos compassos
paroxítonas e oxítonas, mas discordam musicais das cantigas e a localização
quanto à existência de proparoxítonas. dos tempos fortes das batidas musicais
podem auxiliar, por exemplo, na
2. Método determinação de proeminência principal
de palavras que não tenham ocorrido em
Na presente análise, faz-se posição de rima no corpus (a sílaba que
indispensável uma interface com a ocorre em posição de proeminência
Música, já que as poesias medievais musical tem muito mais chance de ser
galego-portuguesas eram cantigas, isto tônica do que a que não ocorre); ou na
é, peças poético-musicais feitas para determinação do status prosódico (átono
serem cantadas. O objetivo principal é ou tônico) de clíticos (que geralmente
extrair elementos da notação musical (a não ocorrem em posição tônica final de
partir da interpretação da notação da verso). O estudo-piloto de Costa (2008,
época e da transcrição para uma notação em preparação), em direção à sua tese
musical moderna que faz Anglés, 1943) de Doutorado sobre o assunto, feito a
que possam se constituir em argumentos partir da análise de uma amostra de
para a realização fonética das cantigas cinco CSM, mostrou que, de um total de
quanto à sua estrutura silábica e ao seu 178 palavras contidas na amostra, o
ritmo lingüístico. Neste sentido, a acento lexical coincidia com a posição
estrutura musical pode providenciar de proeminência musical em 139 casos
pistas para a análise de processos (78,09%, portanto).
lingüísticos, a partir da observação de A coincidência entre sílabas
“acertos” e “desacertos” entre as tônicas e proeminências musicais pode
proeminências musicais e lingüísticas, ser exemplificada a partir da análise da
que fornecem pistas para os limites de interpretação que Anglés (1943: 43) faz
ocorrência do acento secundário, para a da notação musical do refrão da CSM35
silabação e para a identificação do (figura 1), cantiga registrada em To92,
acento lexical de palavras das quais se T35 e E35. A figura 2 traz a lição de
desconhece a posição do acento E35 para o refrão e a primeira estrofe
primário ou acerca das quais se tem dessa cantiga, versão na qual se baseia
alguma dúvida quanto à pauta acentual. principalmente a interpretação de
Anglés (1943).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A CSM 35 é uma longa cantiga


de 134 versos (na edição de Mettmann,
1986, p. 144-149), divididos em 26
estrofes. Para a análise quantitativa, o
refrão foi considerado apenas uma vez,
já que o texto que o acompanha se
repete 27 vezes. A tabela 1, adiante, faz
um resumo da relação entre
proeminência musical e pauta prosódica
das palavras que caem nessa posição,
com relação à notação da CSM35.
A partir da divisão em
compassos proposta por Anglés (1943),
pode-se verificar uma tendência de
sílabas proeminentes no nível
lingüístico caírem em posição de
proeminência musical: a tabela 1 mostra
que, somados os casos em que sílabas
tônicas de polissílabos e monossílabos
tônicos caem no início do compasso
(acento musical), tem-se um total de
58.3% de coincidência entre
proeminências. No entanto, o exemplo
Figura 1. Interpretação de Anglés (1943: 43) da mostra que há a possibilidade de sílabas
música da CSM35. com outra pauta prosódica, átonas
finais, pretônicas ou monossílabos
átonos (clíticos), caírem na posição
proeminente em nível musical.

Tabela 1. Pauta prosódica das sílabas em posição inicial do compasso musical – CSM35.

Pauta prosódica da sílaba em posição inicial do quantidade de unidades de tempo


compasso musical (≅ compassos)
tônica 337 (38.6%)
monossílabo tônico 172 (19.7%)
monossílabo átono (clítico) 148 (16.9%)
pretônica 110 (12.6%)
átona final 107 (12.2%)
TOTAL 874 (100%)

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Figura 2. Refrão e primeira estrofe da CSM35, em E35 (Anglés, 1964: fólios 57v-58r).

Na CSM35, em 19.7% dos casos finais tônicas das palavras prometer e


a proeminência cai sobre monossílabos toller, no refrão. Nesta cantiga
considerados tônicos (ca, que, der, é, fez, específica, inclusive, em posição de
quen, mui, seus, greu, etc.); no entanto, final de constituinte prodósico (por
em 16.9% a proeminência musical cesura ou final de verso), só ocorrem em
principal do compasso recai sobre posição de proeminência musical
monossílabos normalmente considerados tônicas de polissílabos e monossílabos
átonos: artigos definidos, artigos intrinsecamente tônicos. A observação
indefinidos masculinos (un(s)), de fatos desta natureza mostra que a
preposições – de (e contrações com o notação musical pode também servir
artigo: do(s) da(s)) e en (e contrações para dirimir dúvidas quanto à
com o artigo: no(s), na(s)) -, conjunções delimitação de constituintes prosódicos
(se, e), pronomes clíticos (o(s), a(s), em posição final e interna de verso.
lle(s), u), advérbios (y). Esta é uma pista Nesta cantiga em particular,
de que, naquela época, os clíticos talvez também é possível encontrar sílabas
pudessem assumir proeminência, mesmo átonas finais de palavras ocupando a
a principal, em certos versos – o que os posição de proeminência musical (em
torna de geralmente subordinados, mas 12.2% dos casos, cf. tabela 1). Com
não completamente átonos, a exceção de apenas 6 casos (entre 107),
prosodicamente independentes, portanto, as sílabas átonas de final de palavra só
não tão “clíticos”. ocorrem em posições nas quais as
O alongamento é uma marca sílabas tônicas ou pretônicas adjacentes
recorrente de limite de constituinte aparecem alongadas (têm duração maior
musical e prosódico: vejam-se as figuras ou corresponde a uma quantidade maior
musicais correspondentes às sílabas de figuras musicais), em comparação

197
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

com a figura correspondente à àtona leva a pensar que, por razões estilísticas
final – o que, no nível da duração, de manutenção do ritmo poético/musical
mantém a relação de proeminência e da quantidade de sílabas poéticas
original entre essas sílabas: como necessária à constituição do verso, a
exemplo, vejam-se as figuras musicais pronúncia dessa palavra, neste contexto
equivalente às sílabas: ta, de Santa específico, pode ser reliquías.
(refrão); me, de ome (primeiro verso da A mesma alteração de
primeira estrofe); no de inferno (segundo posicionamento da proeminência
verso da 15ª estrofe). principal com vistas à manutenção da
rima pode ser verificada oitava estrofe
desta cantiga, em que as palavras
(também de origem latina) Colistanus e
Brutus rimam com chus (um
monossílabo tônico):
Figura 3. Notação musical correspondente à
palavra inferno (CSM35, segundo verso da 15ª Dun mercador que avia | per nome
estrofe) Colistanus,
que os levass' a Bretanna, | a que
As 6 exceções referidas pobrou rei Brutus;
anteriormente dão conta de 5 casos em e entrou y tanta gente | que non
que a átona final tem duração igual a das cabian y chus,
sílabas tônicas e/ou pretônicas adjacentes de mui ricos mercadores | que
(exemplo: sílaba do de querendo levavan grand' aver.
(terceiro verso da 23ª estrofe: querendo O que a Santa Maria der algo ou
vingar sa Madre, | fez com' aquel que prometer...
aduz) e de um caso em que recai na
posição de proeminência do compasso a A observação da notação musical
sílaba qui da palavra reliquias (terceiro pode também trazer contribuições para a
verso da segunda estrofe). Com relação a solução de dúvidas quanto à posição do
este caso específico, deve ser feita uma acento primário em palavras específicas,
observação importante. A palavra com relação às quais se tem dúvida
reliquias tem apenas uma ocorrência quanto à pauta acentual (por exemplo, se
nesta cantiga, variando com relica(s), paroxítona ou proparoxítona). A notação
que, por sua vez, aparece dez vezes. musical da cantiga CSM35 traz
Como reliquias aparece internamente ao evidências a favor da consideração da
verso, em posição logo anterior à cesura, existência de proparoxítonas em PA,
em conformidade com o que acontece uma vez que, na palavra crerigos
em outras CSM, o poeta pode ter (quarto verso, segunda estrofe), a sílaba
subordinado a estrutura lingüística da que coincide com a posição de acento
palavra às necessidades da rima e da musical é a antepenúltima.
métrica, recorrendo a um termo latino
antigo já em desuso na época, alterando-
lhe a posição do acento, entretanto. Essa
alteração na posição do acento de
palavra pode ser sustentada ao constatar
que a sílaba qui de reliquias é a única
das 26 sílabas nessa posição
(considerando-se que são 26 estrofes
Figura 4. Notação musical correspondente à
cantadas com a mesma melodia) que não palavra crerigos (CSM35, quarto verso da 2ª
é uma tônica primária. Ora, este fato nos estrofe)

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Além da determinação de a realização fonética das cantigas,


proeminências principais em caso de quanto à sua estrutura silábica e ao seu
dúvida, observação da notação musical ritmo lingüístico (no que diz respeito à
pode também fornecer pistas da ocorrência de acentos secundários, à
localização de proeminências identificação do padrão prosódico de
secundárias ou rítmicas. Em outras palavras específicas e à delimitação de
palavras, em palavras longas, com mais constituintes prosódicos mais altos).
de uma sílaba pretônica, a notação Desta forma, a observação da notação
musical pode indicar qual delas era musical pode ser considerada uma fonte
realizada com maior proeminência. secundária de informações relativas à
Nesta cantiga 35, evidências neste prosódia de línguas “mortas”, um
sentido são fartas, uma vez que o instrumento auxiliar confiável, que pode
posicionamento de sílabas pretônicas ser aproveitado para confirmar ou
como proeminência musical pode gerar infirmar hipóteses levantadas com base
uma onda rítmica, que produz/marca nas fontes primárias (registros escritos
proeminências lingüísticas secundárias. das cantigas) e dirimir dúvidas.
Como exemplo, podem ser citadas as
realizações das palavras feramente 5. Subáreas de conhecimento
(terceiro verso da terceira estrofe),
mercadores (primeiro verso da 22ª Lingüística Histórica; Letras,
estrofe) e Emperadriz (primeiro verso da Lingüística e Artes; Língua Portuguesa
24ª estrofe), cuja notação correspondente
favorece a interpretação de um acento 6. Referências
secundário sobre as sílabas fe, mer e pe,
respectivamente – o que favorece a ANGLÉS, H. La Música de las
interpretação do ritmo de base da língua Cantigas de Santa María del Rey
como trocaico. Alfonso el Sabio. – Facsímil,
transcripción y estudio critico por
Higinio Anglés. Barcelona: Diputación
Provincial de Barcelona; Biblioteca
Central; Publicaciones de la Sección de
Música, 1943. Volume II –
Transcripción Musical.
Figura 5. Notação musical correspondente à ANGLÉS, H. La Música de las
palavra Emperadriz (CSM35, primeiro verso da Cantigas de Santa María del Rey
24ª estrofe) Alfonso el Sabio. – Facsímil,
transcripción y estudio critico por
4. Conclusões Higinio Anglés. Barcelona: Diputación
Provincial de Barcelona; Biblioteca
A partir da aplicação de uma Central; Publicaciones de la Sección de
metodologia totalmente nova à análise Música, 1964. Volume I: Facímil del
da CSM100 de Afonso X, foi possível Códice j.b.2 de El Escorial.
mostrar que a interface Música-
Lingüística pode trazer contribuições COSTA, D. S. A relação entre o ritmo
para a análise lingüística da prosódia de musical e o ritmo lingüístico nas
línguas do passado, das quais não se tem Cantigas de Santa Maria. Tese de
registros orais. Os exemplos focalizados Doutorado (em preparação). Araraquara,
mostram que é possível extrair FCL/UNESP.
elementos da notação musical que HALLE, M.; KEYSER, S. J. English
podem se constituir em argumentos para Stress: its form, its growth, and its

199
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

role in verse. New York: Harper &


Row, 1971.
MASSINI-CAGLIARI, G. Cantigas de
amigo: do ritmo poético ao lingüístico.
Um estudo do percurso histórico da
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MASSINI-CAGLIARI, G. Do poético
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três momentos da história do acento.
Araraquara: FCL, Laboratório Editorial,
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MASSINI-CAGLIARI, G. A música da
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METTMANN, W. (Ed.). Cantigas de
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Maria: estado das cuestións textuais.
Anuario de estudios literarios galegos
(1998): 179-2

200
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Timbre e persuasão: análise semiótica do jingle Café Seleto

Lucas Shimoda
USP
lucas.shimoda@yahoo.com.br

Resumo: Com o estabelecimento da semiótica da canção como modelo eficaz de análise da


curva melódica (altura e duração), os trabalhos mais recentes têm se voltado para o estudo de
outros fatores que inflectem na enunciação do texto cancional, por exemplo o timbre.
Assimilando algumas conquistas teóricas recentes, procuraremos verificar o papel do timbre na
persuasão do enunciatário através da análise comparativa de duas interpretações de um jingle
voltado para o público infantil.

Palavras-chave: Semiótica, Timbre, Jingle.

2. Objetivos
1. Fundamentação teórica
Através da análise prática de um
A semiótica da canção jingle, pretende-se observar do ponto de
desenvolveu ferramentas metodológicas vista semiótico como o timbre participa
capazes de analisar a união entre o do processo de construção de sentidos.
componente lingüístico e o melódico Tomando como ponto de partida a
dos textos cancionais como um todo de distinção entre timbre adulto e timbre
significação. Valendo-se dos conceitos infantil, procurou-se observar de que
de tensividade de Claude Zilberberg, modo a alteração do registro timbrístico
Luiz Tatit estabeleceu três processos influencia as estratégias de persuasão
fundamentais para a construção de empregadas pelo enunciador.
sentidos na canção: tematização,
passionalização e figurativização.1 Este 3. Método
modelo teórico extrai os mecanismos de
produção de sentidos presentes na curva A fim de verificar mais
melódica (altura e duração), associada eficazmente os efeitos de sentido
ao plano do conteúdo lingüístico. provocados pelo timbre, foram
Contando com o poder heurístico já escolhidas duas interpretações de um
comprovado deste instrumental teórico, jingle criado para o Café Seleto (1978),
empregaremos ainda as reflexões feitas idênticas quanto à curva lingüístico-
por Peter Dietrich a respeito do estatuto melódica porém recobertas por
semiótico do timbre. Seguindo as diferentes timbre.s Procedeu-se à
diretrizes deste pesquisador, associação entre o componente
consideraremos o timbre como atinente melódico (altura e duração) e o
ao plano do conteúdo2, especialmente componente lingüístico para, em
no que tange o plano discursivo. seguida, relacionar o timbre às
condições de enunciação, notadamente
as categorias lingüísticas de tempo,
pessoa e espaço. Após estas etapas, é
possível delinear a imagem do

201
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

enunciatário construída em cada versão voz infantil, que entoava os dois


do jingle e, dessa forma, apurar as primeiros segmentos da canção, e um
diferentes estratégias de persuasão coro de adultos, que entoava o
empregadas. Através dessa análise segmento final. No entanto, o sucesso
comparativa, pode-se inferir que as comercial da composição levou o
diferenças encontradas residem na anunciante a veicular uma segunda
seleção do timbre, uma vez que os versão, porém entoada apenas por um
parâmetros altura, duração, intensidade coro de crianças.3 Para fins práticos,
e o componente lingüístico permanecem neste texto denominaremos a primeira
inalterados. versão "CM", e a segunda versão, "CC".
Apresentamos abaixo a letra do jingle
4. Resultados transcrita no diagrama melódico
proposto pela metodologia de Luiz
O jingle analisado foi composto Tatit:
em 1978 e contava a princípio com uma

Figura 1

"banho", "Seleto" e "prepara"). Enfim, a


A canção apresenta três partes figurativização se manifesta neste jingle
bem homogêneas, apresentando apenas tanto no tonema descendente de frases
ligeiras variações nas re-exposições melódicas ("escova o dentinho", "com
nomeadas Parte A' e Parte B. De um todo carinho", "cafezinho gostoso")
modo geral, predomina o processo de quanto nos verbos no presente e
tematização, que se manifesta na participa de maneira decisiva na
reiteração dos motivos melódicos, construção de sentidos do jingle por
assinalados na Parte A. Os valores remeter diretamente à situação
eufóricos concretizados por este enunciativa, da qual o timbre também
processo são realçados pela toma parte. Apresentados de maneira
passionalização evidente na amplitude breve, cada um destes processos
dos saltos intervalares que compõe os modifica de maneira estratégica os
motivos (por exemplo, "levanta", conteúdos lingüísticos de forma a

202
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

persuadir o enunciatário de forma mais anterioridade ao passo que, na parte B,


eficaz. ele é utilizado para recuperar o
O motivo delineado por "depois enunciado para o momento presente da
de um sono bom" sempre encabeça as enunciação. Permeando o movimento
frases melódicas e, através do tonema descendente, a elevação de sílabas
descendente, estabelece a referência átonas realça a carga eufórica investida
temporal do enunciado. Na parte A e A', na situação de "tomar café".
o motivo exerce a função de demarcar

Figura 2

Observe-se que o intervalo aquele banho" e, sobretudo, o prazer


ocupado pelo primeiro motivo (de ré a proporcionado pelo "sabor delicioso" do
si) é o mesmo que constituirá o café. A reiteração deste motivo
próximo, alterando-se a direção (ligeiramente modificado na Parte B)
tonêmica. A sucessão de graus realça a dimensão do /ser/ instalada na
imediatos descendentes conduz ao letra e pede a distensão melódica
amplo salto ascendente que, combinado manifestada ora pela descendência, na
à prolongação de vogais, traz à tona a Parte A e na Parte A', ora pela
tensão passional capaz de ressemantizar suspensão, na Parte B.
os atos cotidianos de "levantar", "tomar

Figura 3

Demarcando o limite da Parte A tensão mantida desde a Parte A.


na região mais alta da tessitura, a Enquanto "escova o dentinho"
sentença "escova o dentinho" conserva a permanece apenas dois semitons abaixo
carga passional incutida na elevação das do nível fixado pelos motivos que o
sílabas átonas finais, conforme exposto precedem, o /saber/ sobre o carinho da
no diagrama acima, ao mesmo tempo mamãe é marcado pela queda de sete
em que, através do tonema descendente, semitons.
completa a seqüência de pequenos O efeito distensivo ainda marca
programas narrativos de uso que a passagem fundamental para a Parte B,
desembocarão no programa de base como se este recurso melódico
"tomar café". Na Parte A', o contorno cumprisse o papel de transição do
descendente de "com todo carinho" é trecho enuncivo (composto pela Parte A
mais acentuado e, com isso, desfaz a e Parte A') para o trecho enunciativo.

203
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Aqui, a debreagem enunciativa cria o suspensivo criado pela entoação


efeito de que o próprio enunciador está coloquial de "cafezinho gostoso", este
se dirigindo ao enunciatário por meio da ligeiro abaixamento destaca o pico
canção. Além disso, há uma mudança atingido por "café Seleto", exaltando
crucial na caracterização do objeto assim a conjunção eufórica entre objeto
anunciado. Através das tematizações, as e sujeito. Deve-se notar que a
partes A e A' abordam-no considerando passionalização gera neste caso efeitos
sua relação com o sujeito "mamãe", ao de sentido diversos daqueles
passo que, na parte B, o objeto é encontrados anteriormente. Aqui, o
caracterizado pelos seus atributos grande salto intervalar projeta a
intrínsecos. As diferenças também se entoação para um registro agudo mas
refletem no componente melódico, pois conserva o tonema descendente,
os motivos construídos nas partes atribuindo à expressão "é o café Seleto"
anteriores são parcialmente alterados. um caráter asseverativo, ausente na
Retomando o mesmo padrão Parte A e Parte A'. Por fim, a repetição
rítmico dos motivos já observados, a final de "café seleto" constrói uma
expressão "sabor delicioso" apresenta pequena célula melódica que tematiza
um salto intervalar reduzido de sete para neste jingle as qualidades verdadeiras
cinco semitons. Aliado ao efeito (/parecer/ e /ser/) do café anunciado.

Figura 4

Tendo em vista estes elementos /saber/ que reafirma as qualidades do


do enunciado, é preciso então verificar "cafezinho gostoso".
como eles geram significações no ato A divisão de atores também
próprio da enunciação, da qual o timbre coincide com a divisão temporal
participa fundamentalmente. Em CM, a instalada pela letra. O timbre infantil
distinção lingüístico-melódica percorre o trecho que tematiza a
observada entre Parte A/Parte A' e Parte seqüência de programas narrativos
B é corroborada pela distribuição de localizados em um momento de
timbres: as primeiras partes são referência enuncivo ("depois", "na hora
entoadas apenas por uma criança de tomar café"). Já o timbre adulto
enquanto que a segunda é entoada por retoma o momento da enunciação, como
um coro de adultos. Temos assim a pode ser verificado através das
presença de dois atores que concretizam debreagens enunciativas temporal e
configurações modais distintas, espacial. Além disso, os sujeitos
conforme exemplificado pelo diagrama "criança" e "adulto" contraem relações
acima. Enquanto a criança recobre o distintas com o objeto "café Seleto". O
sujeito do /querer/ (evidenciado na primeiro atribui-lhe um valor no âmbito
elevação da sílaba átona final), o coro das relações subjetais, pois o café
de adultos figurativiza o sujeito do concretiza o contrato fiduciário
estabelecido com o sujeito do enunciado

204
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

"mamãe". Para o segundo, o objeto-café adultos e no segundo, por crianças. A


é valorizado pelas suas propriedades distinção é particularmente importante
intrínsecas de proporcionar prazer por compreender, no plano do conteúdo,
estético gustativo ("sabor delicioso", a etapa narrativa da sanção e, no plano
"cafezinho gostoso"). da expressão, ao grau máximo de
Essa divisão de atores é elevação na tessitura melódica.
suprimida em CC por meio do coral de Considerando isso, pode-se inferir que
crianças. Neste caso, um ator congrega em CM o prazer da fruição gustativa
as duas posições actanciais propriamente dita é reservado ao sujeito
manifestadas por timbres diferentes em "adulto", relegando ao sujeito "criança"
CM de modo que as distinções a valoração existencial do objeto "café".
apontadas acima passam a ser Por sua vez, CC retrata a criança capaz
assumidas por um único sujeito de desfrutar o sabor do café e sancionar
enunciador. Assim, o ator "criança" positivamente suas qualidades,
manifesta igualmente as modalidades do entoando o pequeno tema final que
/querer/ e do /saber/; da mesma repete o nome da marca anunciada.
maneira, os valores que se associavam
em CM a sujeitos diferentes agora 5. Conclusões
convergem na unidade da junção entre
sujeito "criança" e objeto "café". A análise dos elementos do
Além disso, a multiplicidade de enunciado explica apenas parcialmente
vozes que caracteriza o coral de os mecanismos de persuasão
crianças em CC contrasta de maneira empregados em um texto cancional. O
nítida com a singularidade do timbre cotejamento das duas versões de um
infantil em CM. A oposição timbre mesmo jingle revelou a importância de
singular x timbre plural inflecte na considerar fatores da enunciação, dentre
categoria de pessoa, marcada os quais se inclui o timbre. Se, por um
especialmente pela expressão "a gente". lado, a identidade da canção repousa
Este pronome pode denotar tanto um sobre os parâmetros de altura e duração,
sujeito sintático neutro, comparável ao por outro lado, a distribuição de timbres
"on" da língua francesa, quanto uma aos diferentes segmentos lingüísticos
forma de primeira pessoa do plural aponta para as escolhas do enunciador e
utilizada em contextos pragmáticos a imagem que este faz do enunciatário.
marcados pela afetividade. Entoado Em CC, o enunciador delineia um
apenas pela voz infantil em CM, este enunciatário infantil, suficientemente
pronome atualiza a acepção mais modalizado para entrar em conjunção
impessoal, criando um efeito de plena com o café Seleto. Já em CM é
distanciamento do momento possível verificar uma dupla persuasão
enunciativo. Em contrapartida, o coral na construção de um enunciatário
de vozes em CC privilegia a leitura de "adulto" e outro "criança". Enquanto o
"a gente"como equivalente a "nós", segundo é manipulado pelo /querer/, o
associando a primeira pessoa do plural primeiro é manipulado igualmente tanto
do plano do conteúdo à pluralidade de pelo /querer/ (prazer estético do café)
vozes do plano da expressão. Como quanto pelo /dever/ (contrato fiduciário
resultado desta associação, reforça-se o com o sujeito "criança"). Dessa forma, o
efeito de presentificação pretendido pela timbre não só é um "traço metonímico
escolha dos tempos verbais. do intérprete"4, mas também, e
Deve-se notar que, tanto em CM subseqüente a isso, constitui em si uma
quanto em CC, a Parte B é entoada por maneira de construir a verdade
um coro; no primeiro formado por

205
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

discursiva e persuadir o enunciatário


construído no texto cancional.

6. Subáreas do conhecimento

Semiótica; Publicidade

7. Referências bibliográficas

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria


do discurso: fundamentos semióticos.
3. ed. São Paulo: Humanitas, 2002.
DIETRICH, Peter. O estatuto do timbre
no modelo semiótico. Anais do
Primeiro Encontro Nacional de
Cognição e Artes Musicais. Curitiba:
Deartes-UFPR, p.130-135, mai. 2006.
FIORIN, José Luiz. Elementos de
análise do discurso. São Paulo:
Contexto, 2005.
TATIT, Luiz. Musicando a semiótica:
ensaios. São Paulo: Annablume, 1997.
TATIT, Luiz. O Cancionista:
composição de canções no Brasil. São
Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2002.

1
TATIT, L. 2002 p. 20-23
2
DIETRICH, P. 2006. p. 7
3
Ambas gravações podem ser ouvidas
gratuitamente nos endereços eletrônicos:
http://www.clubedojingle.com/realaudio/1978-
cafeseletomenina.ram e
http://www.clubedojingle.com/realaudio/1978-
cafeseletocoral.ram, respectivamente. (acessado
em 15/12/2007)
4
TATIT, L. (1997), p. 158.

206
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Abdução e antecipação na construção do significado musical

Luis Felipe Oliveira


oliveira.lf@gmail.com
Jônatas Manzolli

Resumo: Este artigo apresenta o conceito de antecipação, conforme descrito por David Huron, e
o relaciona com o conceito de raciocínio abdutivo, ou abdução, segundo a filosofia de Charles
Sanders Peirce, para a construção de um modelo de significado musical. A antecipação,
enquanto fenômeno cognitivo, é entendida aqui a partir de uma perspectiva biológica e
adaptativa; a antecipação é um processo que visa uma melhor atuação e percepção do organismo
em seu meio ambiente. No domínio psicológico, a antecipação é descrita pela noção de
expectativa. A expectativa visa determinar, no curso dos eventos futuros, ‘o que’ acontecerá e
‘quando’ acontecerá, possibilitando uma melhor adequação do sujeito ao seu ambiente. Quando
as expectativas falham, em sua função preditiva, surge a surpresa. O primeiro autor a relacionar
a noção de expectativa com significado musical foi Leornard Meyer, em 1956. Meyer entendia
que o significado surge da relação dinâmica entre expectativas erigidas pelo ouvinte e fatos
surgidos no desdobrar da experiência musical. Cinco décadas mais tarde, David Huron
apresenta uma série de experimentos que evidenciam o papel da expectativa na escuta musical,
corroborando o modelo inicial de Meyer. Além disso, a correspondência que Huron apresenta
entre expectativas e emoções parece ser mais sólida do que a sugerida por Meyer. No entanto,
nem um nem outro conseguem explicar como são geradas tais expectativas, i.e., que tipo de
processo (mental) resulta na formação de tais expectativas. Charles S. Peirce, em sua filosofia
pragmática e fenomenológica, estabelece que existem três formas básicas de raciocínio pelas
quais uma mente pode operar, a saber, abdução, indução e dedução. Especificamente, o que nos
interessa aqui é o conceito de abdução, responsável pela capacidade criativa de um sistema
cognitivo qualquer. A abdução é, para Peirce, a única forma pela qual um sistema cognitivo
pode adquirir novos conhecimentos, e opera principalmente pela formulação de hipóteses.
Sendo assim, reunimos as formulações iniciais de Meyer, as evidências experimentais de Huron,
e os conceitos da filosofia peirceanas para caracterizar o significado musical como um processo
de significação, que opera por modos não distintos daqueles empregados em qualquer outra
atividade cognitiva. Esse modelo nos parece ser adequado para explicar a experiência musical,
em seus aspectos mais básicos e fundamentais, i.e., entender como entendemos música.

Palavras-chave: Antecipação; Abdução; Significado Musical

respondendo aos eventos existentes,


1. Introdução mas prevendo quais serão os fatos
prováveis no futuro. A função
A capacidade de antecipar adaptativa da antecipação, então, parece
eventos futuros parece ser uma das mais óbvia: organismos que conseguem
importantes características da mente prever, melhor se preparam, e melhor
humana, tornando-a hábil a melhor lidar agem. A antecipação, ainda, não apenas
com a diversidade de acontecimentos se manifesta no que se refere à ação,
que nos cercam. O que a antecipação mas também na percepção; se
possibilita é que o organismo se prepare entendermos que percepção e ação se
para agir adequadamente, não apenas ligam em uma cadeia de causalidade
circular (Gibson, 1966), onde a ação

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

melhora a percepção e a percepção 1965), em seus Collected Papers1. Em


melhora a ação, fica ainda mais claro o especial, almejamos evidenciar como se
papel da antecipação. Em outras constitui o processo de significação
palavras, a antecipação possibilita, em musical a partir destes dois conceitos:
termos adaptativos, não apenas ações antecipação e abdução. Dessa forma,
mais adequadas, mas percepções em primeiro lugar, descrevemos o
igualmente mais adequadas. conceito de antecipação, conforme
No entanto, o fenômeno da apresentado na Psicologia da Música e,
antecipação não parece se limitar mais recentemente, na Musicologia
apenas ao domínio biológico, da mera Cognitiva. Em segundo lugar,
adaptação ao meio ambiente físico ou apresentamos o conceito de raciocínio
ecológico. Pode-se falar em antecipação abdutivo, conforme a semiótica de
como fenômeno cultural (pode-se Peirce, estabelecendo a relação entre
mesmo falar em adaptação em termos este e a noção de antecipação. Em
culturais). Se assumirmos a descrição terceiro lugar, sintetizamos o modelo
emergentista proposta pela Teoria dos fenomenológico de significado musical
Níveis (Emmeche & El-hani, 1999; El- que atualmente desenvolvemos,
hani & Pihlström, 2002), assumimos a apresentado algumas de suas
tese de que existe uma continuidade características.
entre processos físicos e processos
outros de níveis mais complexos, que 2. Antecipação
apresentam propriedades ou estruturas
emergentes e não-redutíveis. Não Como esboçamos acima, a
iremos nos aprofundar aqui o debate antecipação se manifesta tanto nos
sobre emergentismo ou propriedades domínios biológicos quanto nos
emergentes, mas apenas esclarecer que, culturais. Em termos biológicos a
além da continuidade afirmada acima, antecipação serve à função de melhor
nossa perspectiva entende que preparar o organismo para eventos e
propriedades cognitivas (inclusive situações futuras. Em termos culturais,
semióticas) e perceptivas são o processo é significativamente mais
emergentes, portanto não-redutíveis a complexo, com determinações não
explicações fisicalistas. Acreditamos apenas genéticas e geradas por
que uma das perspectivas adequadas aprendizagem, mas também com
para a descrição de fenômenos influências que refletem aspectos
complexos é a fenomenológica, e uma coletivos ou sociais, padronizados ou
das filosofias fenomenológicas que, convencionalizados. A antecipação
inclusive, é compatível com as teorias conforme manifestada na experiência
emergentistas é a filosofia de Charles S. humana apresenta, portanto, aspectos
Peirce. tanto inatos quanto culturais. Em termos
Sendo assim, buscaremos neste psicológicos, o fenômeno da
trabalho descrever o papel que o antecipação relaciona-se à noção de
fenômeno da antecipação possui na expectativa. Huron (2006, p.3) nos diz:
escuta musical, numa perspectiva “expectativas precisas são funções
fenomenológica, caracterizando-a como
uma instanciação de um tipo de 1
Sempre que nos referirmos aos Collected
raciocínio chamado de Abdução, Papers de Peirce empregaremos seu sistema
descrito por Charles S. Peirce (1931- tradicional de referência, pelo qual a sigla
CP5.143, por exemplo, significa: Collected
Papers , volume 5, parágrafo 143.

208
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

mentais adaptativas que permitem aos Huron (2006) nos oferece uma
organismos se preparem para as ações e interessante descrição da relação entre
percepções apropriadas”. A expectativa, estados afetivos e antecipações. Quando
enquanto fenômeno psicológico, visa as expectativas geradas por um
determinar dois aspectos de um possível organismo falham, e,
evento: ‘o que’ irá acontecer e ‘quando’ conseqüentemente, ele se vê em uma
irá acontecer. Antecipação, assim como situação desfavorável, o estado
sua contra-parte psicológica, a emocional caracteriza-se por uma
expectativa, estão presentes em todas as valência negativa, que através de
esferas da experiência, sendo que uma mecanismos associativos tornam-se
das principais hipóteses sobre a função conectadas (a situação e o estado
primordial e o fator responsável pelo emocional). Ao contrário, quando a
grande desenvolvimento do neocortex previsão é correta, existe um estado
cerebral humano é consensualmente emocional positivo, uma espécie de
considerada como a da geração de recompensa límbica pela eficiente
previsões (Barlow, 2001). antecipação. Anatomicamente, existem
No que se tange à experiência dois circuitos cerebrais que operam
humana, existe outro fato psicológico simultaneamente, que o autor chama de
diretamente correlacionado ao caminho ‘rápido’ e caminho ‘lento’ (cf.
fenômeno da antecipação: a emoção. Fig. 1). O caminho ‘rápido’ resulta no
Apesar de inúmeras vertentes diferentes que se conhece por surpresa. A surpresa
nas pesquisas relacionadas às emoções2, é uma resposta emocional sempre
parece que, em geral, pode-se afirmar negativa, porém extremamente
que elas são correlatos psicológicos de importante, que visa preparar o
processos cerebrais que atuam como organismo para a ação o mais rápido
motivadores, relacionados aos objetivos possível, já que suas previsões
ou propósitos de um organismo (Frijda, mostram-se falhas – ser surpreendido
1987; Frijda, 1986; Scherer & Ekman, significa ter feito as previsões erradas.
1984). Huron (2006, p.4) sintetiza essa Por sua vez, o caminho ‘lento’ envolve
visão afirmando que “as emoções áreas corticais, responsáveis por uma
encorajam os organismos a perseguirem avaliação mais contextualizada, porém
comportamentos que são normalmente que requer mais processamento ou
adaptativos, e a evitar comportamentos atividade cerebral. A avaliação lenta
que são normalmente inadaptativos.” pode apresentar uma valência límbica
Sendo assim, as emoções supostamente contrastiva com relação àquela gerada
exercem um importante papel na pelo circuito rápido, quando a análise da
geração de expectativas, pois as situação evidencia que o estímulo,
expectativas eficientes (aquelas que se apesar de surpreendente, não oferece
mostram verdadeiras no desdobrar de risco ao organismo. O contraste da
eventos) levam o organismo a um valência negativa e positiva ressalta o
estado mais desejável, associado a um estado emocional positivo. Emoções
estado emocional de valência positiva; positivas, portanto, podem decorrer de
enquanto que falhas preditivas levam a duas situações: (i) quando a antecipação
estados indesejáveis ou mesmo mostra-se como correta (recompensa
perigosos, associados a caracteres límbica); ou (ii) quando a antecipação
afetivos de valência negativa. mostra-se equivocada, mas sem causar
perigo ao organismo (valência
2
contrastiva).
Para uma visão geral, cf. Oatley (2001).

209
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Figura 1. Diagrama esquemático dos circuitos cerebrais envolvidos nas reações emocionais. (In:
Huron, 2006, p. 20)

3. Raciocínio Abdutivo falível e dinâmico, instanciado em uma


mente científica (capaz de aprender a
Na filosofia pragmática de partir da experiência)3. A semiótica se
Peirce, desenvolveu-se uma importante dá “no contexto da experiência,
área de estudos conhecida como conferindo-lhe como objeto, não meras
Semiótica, que lida com o processo formas ideais, como são os objetos da
bastante geral da semiose, das relações matemática, mas os signos, como
entre signos. Peirce entende que a pensamento manifesto fenomenologicamente”
dinâmica da semiose não se reduz ao da (Silveira, 2007, p. 20).
oposição binária entre ação e reação, Na experiência humana existe a
mas envolve necessariamente três manifestação de três tipos de raciocínio
elementos, que chama de signo, objeto e lógicos: a indução, a dedução, e a
interpretante. Qualquer processo que abdução. Os dois primeiros tipos são
apresente esta configuração triádica tradicionalmente considerados pela
pode ser chamado de semiótico e envolve filosofia, mas a abdução se constitui
pensamento, independentemente de se manifesto numa das principais contribuições da
na psicologia humana ou em outro sistema filosofia peirceana (Queiroz & Merrell,
qualquer, como nos atesta (Silveira, 2005). Peirce fundamenta a sua lógica
2007). Lógica, em seu sentido lato, é da descoberta sobre tal conceito, pois
equiparada à semiótica, na filosofia de ele é a única forma de se adquirir novos
Peirce, estudando as formas que os conhecimentos a partir da experiência.
signos devem ter, sempre num processo
3
Cf. CP2.227.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Peirce afirma (CP5.171): “A abdução é ainda assim a freqüência relativa


o processo de formação de hipóteses na qual ela está certa é, sobretudo,
a coisa mais maravilhosa em nossa
explicativas. Ela é a única operação constituição. (CP5.173)
lógica que introduz qualquer nova idéia;
porque a indução não faz nada além de 4. Significado musical
determinar um valor, e a dedução
meramente desenvolve as Leonard Meyer (1956)
conseqüências necessárias de uma pura estabeleceu a relação entre expectativa e
hipótese.” Ele prossegue afirmando que significado musical. Meyer distingui
a “dedução prova como algo deve ser; a três tipos de significado: hipotético,
indução mostra como algo realmente é; evidente e determinado. Contrapondo a
e a abdução apenas sugere como algo antiga idéia de que o significado
pode ser” (CP5.171). “Sua única musical é a representação ou a
justificativa é que a partir de suas expressão dos afetos, Meyer postula que
sugestões a dedução pode extrair uma o significado deve ser procurado na
previsão que pode ser testada pela experiência musical, na relação (não-
indução, e que, sempre que nós estamos consciente) que se estabelece entre um
para aprender algo ou para entender objeto, aquilo que ele aponta, e um
totalmente fenômenos, é pela abdução observador4 (Meyer, 1956, p. 34). O que
que isso ocorre” (CP5.171). E, continua é mais importante, para o momento, da
Peirce (CP5.172): “nenhuma teoria de Meyer, é que ela já estabelece
justificativa pode ser dada para ela, até que o significado nesta perspectiva
onde posso descobrir; e ela não precisa fenomenológica surge do levantamento
de razão, porque ela meramente oferece de hipóteses (antecedentes) e seus
sugestões.” Cada item das teorias confirmações (conseqüentes) no
científicas que estão estabelecias desdobrar da obra: significado
atualmente se devem a Abdução” hipotético vs. significado evidente. O
(CP5.172). A abdução não se aplica significado determinado apresenta outra
apenas nas descobertas científicas, mas natureza, sendo fruto de um processo
ela é responsável pela aquisição de objetificante, que opera sobre a
conhecimento na esfera da experiência dinâmica da escuta transformada em
como um todo; ela apresenta uma objeto de análise consciente. O
natureza muito próxima do que significado hipotético, então, é o
chamamos de instinto: processo de geração de expectativas. Na
perspectiva de Meyer, portanto, já se
Um insight, eu a chamo, porque ela
é referenciada à mesma classe
pode afirmar que o significado musical
geral das operações a qual os esta mais para um processo do que para
julgamentos perceptivos um objeto.
pertencem. Essa faculdade é ao Como vimos na Parte 2 deste
mesmo tempo da natureza geral do trabalho, parece existir uma correlação
Instinto, semelhante aos instintos
que os animais possuem,
entre estados emocionais e a eficiência
superando a capacidade geral de das expectativas geradas. Meyer já
nossa razão e por isso nos aponta essa perspectiva, mas sua teoria
dirigindo como se estivéssemos a não estabelece como se dá,
par de fatos que estão totalmente efetivamente, tal correlação. Foi Huron
além do alcance de nossos
sentidos. Ela se assemelha ao
(2006) que, retomando o trabalho de
instinto, também, na sua pequena Meyer cinco décadas depois,
responsabilidade perante o erro;
porque ainda que ela acarrete em
4
erros mais do que em acertos, Traduzido em termos peirceanos, teríamos
respectivamente signo, objeto e interpretante.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

estabeleceu de maneira mais sólida a enquanto que seu significado


correspondência entre expectativa determinado, resulta principalmente de
musical e estados emocionais. No operação do raciocínio dedutivo. Pela
entanto o que tanto um quanto o outro filosofia de Peirce, nos parece, podemos
parecem não ter ferramentas conceituais entender o fenômeno musical, enquanto
para investigar é como se dá a geração fenômeno (potencialmente5) significativo, como
de hipóteses, que culmina na possuindo a mesma natureza que
formulação de expectativas (experiência qualquer outro processo executado por
significativa), que por sua vez, resultam uma mente científica, uma mente que
no aspecto afetivo da escuta musical busca entender o que as coisas,
(experiência emocional). incluindo a si mesma, são.
É justamente sobre tal fato que
trazemos a fenomenologia de Peirce.
5. Referências
Nos parece que existe uma forte
correspondência, poderia dizer-se
mesmo complementaridade, entre a BARLOW, H. Cerebral cortex. In:
formulação inicial de Meyer quanto as WILSON, R.; KEIL, F. (Ed.). The MIT
expectativas musicais, as evidencias Encyclopedia of Cognitive Sciences.
experimentais de Huron para estas e Cambridge, MA: The MIT Press, 2001.
suas correlações emocionais, e a p. 111–113.
semiótica de Peirce, como parte de sua
fenomenologia, oferecendo uma EL-HANI, C.; PIHLSTRÖM, S.
hipótese sobre como são construídas Emergence theories and pragmatic
tais expectativas na escuta musical. Em realism. Essays in Philosophy, v. 3,
suma, nossa tese é de que o que Meyer n. 2, 2002.
chama de significado hipotético, a base EMMECHE, C.; EL-HANI, C.
sobre a qual se dá o processo de Definindo vida, explicando emergência.
significação, nada mais é do que uma Série Ciência e Memória,
das instanciações possíveis daquela que CNPQ/Observatório Nacional,
é a forma inferencial básica para Coordenação de Informação e
aquisição de conhecimento, que Peirce Documentação, 1999.
se refere, entre outros nomes, por
abdução. FRIJDA, N. The emotions. Cambridge:
Significado musical, ou melhor, Cambridge University Press, 1986.
significação musical, é uma forma FRIJDA, N. Emotion, cognitive
particular de um processo mais amplo structure, and action tendency.
de significação que se instancia Cognition & Emotion, Psychology
inicialmente e primordialmente por Press, v. 1, n. 2, p. 115–143, 1987.
meio da abdução. Nosso modelo apóia-
GIBSON, J. J. The Senses Considered
se na co-operação entre abdução,
as Perceptual Systems. Boston:
indução e dedução, entendendo que as
Houghton Mifflin Company, 1966.
três formas de raciocínio estão presentes
no processo de significação, que pode HURON, D. Sweet anticipation: music
ser descrito como uma estrutura and the psychology of expectation.
emergente, i.e., uma estrutura não- Cambridge, MA: The MIT Press, 2006.
redutível nem ao domínio da obra nem
ao ouvinte, isoladamente. O próprio 5
Dizemos que o fenômeno musical é
significado evidente, que Meyer se potencialmente significativo porque para o ser
refere nada mais é do que a existem vários fatores determinantes, como os
manifestação de um processo indutivo; hábitos de escuta ou a ambigüidade do estímulo.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

MEYER, L. B. Emotion and Meaning


in Music. Chicago: Chicago University
Press, 1956.
OATLEY, K. Emotions. In: WILSON,
R.; KEIL, F. (Ed.). The MIT
Encyclopedia of Cognitive Sciences.
Cambridge, MA: The MIT Press, 2001.
p. 273–275.
PEIRCE, C. S. The Collected Papers
of Charles S. Peirce, 8 vols.
Cambridge: Harvard University Press,
1931–1965. Reference to Peirce’s
papers will be designated CP followed
by volume and paragraph number.
QUEIROZ, J.; MERRELL, F.
Abduction: Between subjectivity and
objectivity. Semiotica, v. 153, n. 1/4,
p. 1–7, 2005.
SCHERER, K.; EKMAN, P.
Approaches to emotion. Hillsdale, NJ:
Erlbaum, 1984.
SILVEIRA, L. F. B. d. Curso de
semiótica geral. São Paulo: Quartier
Latin, 2007.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A história de Lily Braun: valores de absoluto e de universo

Peter Dietrich
peterd@uol.com.br

Resumo: Este artigo propõe uma análise integrada dos elementos verbais e musicais da canção
"A história de Lily Braun", de Edu Lobo e Chico Buarque. Para tanto, conjugaremos algumas
proposições da semiótica tensiva de Claude Zilberberg com o modelo de semiótica da canção
desenvolvido por Luiz Tatit.

Palavras-chave: semiótica, música, canção.

circulação de valores. O regime


1. Fundamentação teórica participativo é responsável pelo
surgimento dos valores de universo. O
A referência teórica principal regime exclusivo, por sua vez, é
utilizada neste trabalho é o modelo da responsável pelo surgimento dos valores
semiótica da canção elaborado por Luiz de absoluto. O regime participativo
Tatit, amplamente descrito em obras opera no eixo da extensidade; ele é
como Musicando a semiótica (1996) e responsável pela expansão, seu modo é
O cancionista (1997). o da apreensão O regime exclusivo
Utilizaremos também alguns opera no eixo da intensidade; ele é
desenvolvimentos da semiótica tensiva responsável pela concentração, seu
sugerido por Zilberberg e Fontanille. modo é o foco.
Em Tensão e significação (2001), nos Na maior parte dos casos, estes
capítulos destinados ao estudo da dois regimes de circulação de valores
valência e do valor, temos a operam em relação inversa. Em outras
apresentação de um corpo teórico que se palavras: quanto mais de um, menos do
aplica diretamente à análise desta outro. Isso pode ser facilmente
canção. Os autores propõem que as visualizado no famoso “gráfico tensivo”
oposições participativas (e...e) e as (Zilberberg; Fontanille, 2001, p.47):
oposições exclusivas (ou...ou), em um
nível profundo de construção do
sentido, geram dois grandes regimes de

valores de
absoluto

-
- +
valores de universo

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Por baixo destes valores (de


absoluto e de universo) existem dois 3. Método
pares de operadores – as valências – que
modulam sua disseminação pelo texto. Uma vez que a análise verbal e
São as valências de mistura/triagem e do perfil melódico já se encontra em
abertura/fechamento. Em “A história de estágio de desenvolvimento avançado,
Lily Braun”, podemos notar a forte nossa ênfase recairá sobre os elementos
presença de um sistema de valores do musicais menos contemplados pelo
absoluto, e a valência predominante é a modelo atual. De acordo com a
da abertura/fechamento. Temos então a orientação teórica utilizada, não existe
oposição entre o que é distinto e único, e primazia de um dos componentes
o que é comum e vulgar. A construção (verbal ou musical) sobre o outro. A
desta letra é tão coesa que podemos escolha de iniciar a análise pela letra é
verificar a atuação destes operadores apenas uma escolha metodológica.
praticamente verso a verso.
4. Resultados
2. Objetivos
Na tabela abaixo, encontramos a
O objetivo principal deste letra da canção já organizada segundo a
trabalho é realizar uma análise semiótica forma musical:
da canção "A história de Lilly Braun",
contemplando tanto o componente verbal
quanto musical.

Como num romance Como no cinema Como amar esposa


O homem dos meus sonhos Me mandava às vezes Disse ele que agora
Me apareceu no dancing Uma rosa e um poema Só me amava como esposa
Era mais um A Foco de luz A Não como star A’
Só que num relance Eu, feito uma gema Me amassou as rosas
Os seus olhos me chuparam Me desmilingüindo toda Me queimou as fotos
Feito um zoom Ao som do blues Me beijou no altar

Ele me comia Abusou do scotch Nunca mais romance


Com aqueles olhos Disse que meu corpo Nunca mais cinema
De comer fotografia Era só dele aquela noite Nunca mais drinque no dancing
Eu disse cheese A Eu disse please A Nunca mais cheese A’
E de close em close Xale no decote Nunca uma espelunca
Fui perdendo a pose Disparei com as faces Uma rosa nunca
E até sorri, feliz Rubras e febris Nunca mais feliz

E voltou E voltou
Me ofereceu um drinque No derradeiro show
Me chamou de anjo azul B Co poemas e um buquê
Minha visão Eu disse adeus B
Foi desde então Já vou com os meus
Ficando flou Numa turnê

A letra desta canção apresenta podem ser descritas pelos programas


duas narrativas que se cruzam. Estas narrativos dos seus dois actantes

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

principais: “Lily” e o “homem”. Para mesma faz sobre a atuação do “homem”:


Lily, o objeto de valor desejado é ser “foco de luz”.
especial: uma star. O casamento com o O desfecho da narrativa se dá a
“homem” surge para ela como uma partir do “derradeiro show”. A resposta
oportunidade de perpetuar esse objeto de Lily aos “dez poemas e um buquê” é
que ele, durante a corte, oferece. Para o dizer “adeus, já vou com os meus numa
“homem”, o objeto é a posse da própria turnê”. Desta maneira ela se despede da
Lily, obtida pelo casamento. A teoria “vida comum” para o que imagina ser
semiótica tem um jeito próprio de uma “turnê”, ou seja, um ambiente onde
descrever esta situação: para Lily,o prevalecem os valores de absoluto. No
casamento é um programa de uso; para entanto, o casamento se mostra
o “homem”, é o programa de base. A exatamente como o extremo oposto das
canção reserva um triste fim para a Lily: suas expectativas. Todos os valores de
quando o programa narrativo do absoluto são firmemente negados
“homem” chega ao fim, ela fica sem seu (“nunca mais”), e ela passa a um regime
objeto de valor. de extensidade total, de valores de
Já na primeira estrofe podemos universo. A oposição que existe entre o
ver que o mecanismo que valoriza o que é comum e o que é distinto é
“homem” se constrói sobre a oposição homologada à oposição entre “esposa” e
entre o comum (“era mais um”) e o “star”. O amor dedicado às esposas fica
distinto. Podemos perceber o traço da assim definido como um amor genérico,
distinção em vários aspectos, que serão ordinário, desprovido de glamour.
reiterados por toda a letra. Temos a As reiterações de traços
seleção de um tempo único, que se semânticos produzem o que a semiótica
destaca do tempo comum. Isso se chama de isotopia. Nesta canção,
manifesta na expressão “num relance”. podemos observar isotopias das artes, da
O fechamento também se manifesta na relação amorosa e do glamour. O
metáfora cinematográfica: “Os seus emprego de uma isotopia das artes
olhos me chuparam feito um zoom”. O dentro desse eixo de valores (de
zoom é um processo que focaliza, universo e de absoluto) manifesta um
aproxima e destaca um determinado ponto de vista importante sobre o
elemento em relação aos demais. estatuto das obras artísticas. Alinhada
A reação de Lily à sedução do aos valores de absoluto, a obra de arte
“homem” também se dá no mesmo eixo, recebe a qualificação de algo que é
só que na direção oposta. Enquanto ele único, destacado. A obra de arte
investe no fechamento, ela responde interrompe o fluxo contínuo e constante
com abertura: “fui perdendo a pose”. A da vida comum, promovendo uma
pose é justamente o que diferencia, o desigualdade que é percebida como uma
que destaca. Perder a pose faz com que saliência, um marco. Esse procedimento
o sujeito incline na direção do que é delimita também dois espaços, em que
comum. Este mesmo fenômeno é se circunscrevem dois campos de
observado no verso “Eu feito uma gema atuação dos sujeitos: o espaço onde
me desmilingüindo toda”. À medida que circulam os artistas (cinema, show,
o “homem” concentra, investindo na turnê) e o espaço onde circulam as
intensidade, Lily tende para o lado da pessoas comuns. Dentro desta axiologia,
extensidade, da difusão. Isso pode ser o casamento surge como a
percebido também no verso “minha transformação que promove a
visão foi desde então ficando flou”, ou transposição do espaço do único para o
seja, fora de foco. Isso contrasta espaço do comum.
diretamente com a síntese que ela

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A isotopia do glamour trabalha conteúdos produzidos pelo componente


em conjunto com a das artes. Assim musical se alinham com os do verbal.
como os objetos artísticos, os objetos Este efeito de sentido de coesão
glamorosos destacam-se dos comuns, e é antes o resultado de uma estratégia
portanto também representam os valores enunciativa que uma imposição do
de absolutos. Esta canção constrói um gênero, e por isso mesmo refutamos
glamour do tipo hollywoodiano, que veementemente a idéia de que o musical
pode ser percebido tanto na intersecção apenas “recobre” ou “complementa” o
com a isotopia cinematográfica quanto verbal.
no uso insistente de palavras Esta canção apresenta uma forma
estrangeiras (dancing, zoom, cheese, bastante complexa. Após uma
flou, blues, scotch, please, show, star). introdução com solo de trompete, temos
As palavras em português ficam no a apresentação - seguida da re-exposição
âmbito do comum, do ordinário; as - de um tema com a forma AAB. A
palavras estrangeiras, ao contrário, partir deste ponto podemos perceber
destacam-se. O glamour também uma ruptura: o tema não será mais
qualifica duas situações distintas: o exposto da mesma maneira até o final da
espaço do dancing é glamoroso, a peça. Após uma pequena ponte, temos a
condição de esposa é destituída de reapresentação apenas das partes A, com
glamour. variação (designada por A’ -
Podemos agora proceder à estudaremos este caso mais adiante).
análise musical, tendo em mente a idéia Depois de uma seção de improviso de
de que a música não é um complemento guitarra, observamos um interlúdio
que recobre os conteúdos produzidos orquestrado e o retorno da parte A’. A
pelo verbal. Ao contrário, ela constrói coda é composta por um solo
junto com o verbal o plano do conteúdo orquestrado e vocalizes na região aguda.
da peça. Como veremos, “A história de A forma da canção poderia ser
Lily Braun” é uma canção que investe representada pelo seguinte esquema:
no efeito de sentido de coesão: os

A história de Lily Braun

intro AAB AAB ponte A’A’ improviso interlúdio A’ coda

executa um walking bass, configuração


O primeiro efeito de sentido que característica do gênero. Igualmente
a canção provoca, logo na introdução, é importante é o acompanhamento da
o do reconhecimento de um gênero bateria, com a permanência da célula
musical, uma das inúmeras variantes rítmica no prato. O piano conduz os
daquilo que poderíamos chamar acordes, e a cena completa-se com o
genericamente de swing jazz. São solo de trompete, usando surdina. O
muitos os componentes que atuam na reconhecimento deste gênero insere a
caracterização do gênero. Podemos canção no terreno da música norte-
destacar a atuação conjunta da escolha americana, e ajuda a construir a cena de
de timbres (instrumentação) e do padrão um típico pub de jazz. É glamour em
rítmico de base. O contrabaixo acústico sua forma musical.

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A harmonia da introdução é a ocorrência de duas células estruturais:


mesma das partes A. Trata-se de um uma em forma triangular e outra linear.
turn-around, um clichê harmônico A célula triangular é construída
também ele típico do gênero em com um pequeno deslocamento (grau
questão. Esta estrutura é caracterizada imediato) e faz com que a melodia
por ser pequena e fechada em si: são retorne sempre ao ponto de partida. É
apenas quatro acordes fortemente uma célula que promove o fechamento.
encadeados: Dm7(9) - F#7(b13) - A célula linear, por sua vez, atravessa a
B7(9) - A7(b13). Depois da tessitura realizando saltos e faz com que
determinação de Dm como centro tonal, a melodia progrida. É uma célula de
os outros três acordes circulam em torno abertura. A alternância destas duas
dele – daí o nome turnaround. É uma estruturas promove um efeito similar ao
seqüência de acordes dominantes, cada da silabação da fala cotidiana: uma
qual preparando seu sucessor, formando seqüência de implosões e explosões, de
uma cadeia de elos fechados: Dm7(9), aberturas e fechamentos. Apesar do
F#7(b13), B7(9), A7(b13), Dm7(9). andamento relativamente rápido e da
Podemos notar a atuação da valência de tematização harmônica, a presença de
fechamento nesta construção harmônica. células expansivas não permite que esta
O centro tonal é estabelecido e parte produza o efeito de tematização
reafirmado constantemente. A cada melódica. Por outro lado, a recorrência
parte A, esta seqüência é repetida oito das células de fechamento não permite
vezes. Estamos diante de uma também o efeito de passionalização. O
tematização harmônica. Resta verificar resultado desta conta (não-tematização e
se a melodia segue o mesmo não-passionalização) faz com que esse
procedimento.A melodia da parte A trecho se incline para o lado da
apresenta dois tipos de frases: curtas figurativização, ou seja, se aproxime da
(“Como num romance”, “Era mais um”, fala comum. Este procedimento confere
“Só que num relance”) e longas (“O ao que é dito um forte efeito de
homem dos meus sonhos me apareceu aproximação, de subjetividade, deixando
no dancing”, “Os seus olhos me na melodia um certo tom confessional,
chuparam feito um zoom”). No muito bem aproveitado pela letra.
diagrama de Tatit fica fácil perceber a

Parte A

Lá Co num pa- ceu um


-mo
Sol a- re-

Fá ro meus no
Mi so me e mais
-ra
Ré -mance dos -nhos dancing


-mem
Sib
La
O ho

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Basta uma rápida observação no com uma seqüência de notas espremidas


diagrama da parte B para perceber que por intervalos de meio tom, e termina
há uma nítida mudança estrutural na com saltos cada vez maiores. A coesão
composição das frases. Após um salto com a letra aqui é total: se no verbal
inicial, a melodia atinge o ápice da temos a visão que vai ficando flou (fora
tessitura, e desenvolve uma longa frase de foco), na melodia temos uma
descendente por graus imediatos. Em progressiva difusão das notas graças ao
resposta à essa linha, temos uma outra aumento do intervalo. Nos dois casos,
agora ascendente, construída com a trata-se de um aumento da valência de
superposição de pequenos saltos. O abertura.
intervalo da tessitura em que se Depois da re-exposição do tema,
desenvolve a parte B é o mesmo que na temos uma pequena ponte para a
parte anterior. No entanto, há aqui uma repetição da parte A com variação. O
maior exploração dessa tessitura, já que que acontece aqui é uma modulação. A
as frases a atravessam quase de ponta a ponte nos leva de Dm a Em, um tom
ponta. Os limites criados pelas células acima. Esta mudança de centro tonal
triangulares na parte A desaparecem. coincide com a mudança de estado de
Isso é percebido como um movimento Lily: de solteira para casada, de única
de expansão, responsável pelo para comum. Assim como o sujeito
surgimento do efeito de sentido de apresentado pelo verbal, a harmonia da
passionalização. canção também muda de lugar. Não há
Uma outra maneira de perceber mais retorno para a situação anterior,
este movimento de expansão é pelo nem sequer para a parte B. Após este
número de frases: a parte A é salto harmônico, a canção involui
constituída por cinco frases, e na parte B definitivamente, apresentando apenas
temos apenas duas. Ao efeito de partes A’.
fragmentação da parte A contrapõe-se
aqui o desenvolvimento contínuo. A
harmonia também contribui: a seqüência
harmônica da parte B não apresenta
repetições, trata-se de uma linha
contínua. O ritmo harmônico também
desacelera. Se antes havia dois acordes a
cada compasso, a mudança agora é
menos freqüente.
Completando o quadro, a
orquestra que vinha fazendo pequenas
intervenções fragmentadas na parte A,
agora investe em notas longas. No
entanto, é preciso salientar que mesmo
dentro de um regime de passionalização,
a alternância das valências de abertura e
fechamento ainda pode ser notada.
A primeira frase da parte B
inicia com um salto (abertura), depois
temos a linha descendente em graus
imediatos (fechamento) e a linha
ascendente em saltos (abertura). Este
procedimento é ainda mais evidente na
segunda frase da parte B. Esta inicia

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Parte B

Dó -fe
me o -re -zul
Sib
Lá voltou -ceu -jo a

Sol Um
drin an

Mi -que e

Ré E me de

Dó Cha
-mou

outra, percebemos o sentimento de falta


A seção de improviso e o decorrente da perda do objeto.
interlúdio orquestrado são partes que
confirmam o gênero. Isso enfatiza o 5. Conclusões
caráter de verdade ao que está sendo
dito, tanto pela letra quanto pelo A análise desta canção mostra a
musical. É uma mostra da competência pertinência do modelo de semiótica
do enunciador, que está em conjunção tensiva para este tipo de aplicação. Com
com o /saber-fazer/. um instrumental teórico homogêneo,
Na última parte A, ocorre um pudemos descrever a estratégia de
súbito esvaziamento musical. A construção de sentido tanto do
orquestra desaparece, o contrabaixo componente verbal quanto do musical.
abandona o walking bass, a intensidade
de todos os instrumentos diminui, 6. Subáreas de conhecimento
promovendo uma grande perda de
massa sonora. Manifesta-se aqui a Semiótica; Música; Canção
valência da triagem, cuja atuação
promove a exclusão, criando assim esse 7. Referências bibliográficas
ambiente rarefeito. O narrador, que é
identificado aqui como o sujeito que TATIT, Luiz. Augusto de Moraes. O
canta, vê-se sozinho. O efeito de cancionista: composição de canções no
aproximação é maximizado. Brasil. São Paulo: Edusp, 1996. 322 p.
Finalmente, na coda, temos a repetição
dos versos “Uma rosa nunca” e “nunca TATIT, Luiz. Musicando a semiótica.
mais feliz”. Podemos notar um São Paulo: Annablume, 1997. 163 p.
progressivo aumento na duração das ZILBERBERG, Claude; FONTANILLE,
notas, culminando com a última, que Jacques. Tensão e significação. São
atravessa dois compassos e meio. Nesta Paulo: Humanitas, 2001. 331 p.
parte, talvez mais que em qualquer

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A voz que canta, a voz que fala: o timbre na construção do


sentido em “Tribunal de Rua”, canção de O Rappa

Peter Dietrich
peterd@uol.com.br
Maria Rita Aredes

Resumo: O modelo de análise semiótica de canções criado por Luiz Tatit recai principalmente
sobre a curva melódica que sustenta a letra. No entanto, em canções no estilo rap, a curva
melódica é geralmente dissolvida para dar lugar a uma melodia que se aproxima da fala
cotidiana. Além disso, a canção é construída a partir de uma complexa rede de produção de
sentidos criados pelos instrumentos que nela atuam. Neste artigo realizaremos a análise da
canção “Tribunal de rua”, do grupo O Rappa, e mostraremos que o timbre pode ser usado como
fio condutor dos sentidos construídos pela canção.

Palavras-chave: semiótica, canção, timbre

geralmente canções com andamento


1. Fundamentação teórica mais rápido e com tessitura mais
contraída. Esta é a tematização. Neste
A fundamentação teórica esquema é comum o surgimento de
utilizada para análise de “Tribunal de pequenos fragmentos melódicos que se
rua” é o modelo de Luiz Tatit que, repetem (células), imediatamente
tendo por objeto de estudo a canção identificados aos temas descritos pela
brasileira, vem desenvolvendo um letra (que podem ser por exemplo a
modelo de análise que descreve a descrição de personagens como “Garota
construção do sentido a partir da de Ipanema”, “O que é que a baiana
interação de seus dois componentes: tem”, etc.)
letra e melodia (Tatit, 1997, 2002). O segundo grande processo
A partir de uma comparação decorre de um investimento na
entre a fala cotidiana e a canção, Tatit desaceleração. Temos então uma maior
propõe que a canção é uma “fala valorização do percurso melódico,
estabilizada”. Se a nossa fala usual é percebido principalmente pelo
marcada pela irregularidade tanto alongamento das vogais e expansão da
rítmica quanto melódica, apresentando tessitura. Esta é a passionalização. O
um perfil melódico efêmero e vai-e-vem da melodia dentro dessa
descartável, a canção é por sua vez tessitura alongada é ideal para recobrir o
estabilizada em durações e alturas sentimento de falta sentido pelos
definidas, tendo uma estrutura que é personagens descritos na letra. O
feita para a preservação. percurso melódico é sentido como o
Tatit prevê dois processos percurso do sujeito que está em falta a
globais de estabilização. Se o procurar o objeto perdido (que é, quase
investimento for calcado na aceleração, invariavelmente, um amor distante ou
observamos uma maior valorização do ausente).
pulso, que se manifesta em um ataque O modelo prevê também a
mais freqüente das consoantes. São possibilidade da infiltração de um gesto

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

de fala cotidiana na canção. São sentido de uma canção. Os diversos


geralmente melodias com tessitura componentes musicais (melodia,
extremamente contraída (alguns harmonia e timbre) também “contam a
semitons), mas que não apresentam uma sua história”, ou seja, também atuam em
valorização do pulso como na todos os níveis da análise, do mais
tematização. Nestas situações, cria-se a profundo ao mais superficial. O produto
ilusão de que o intérprete está falando a final é o entrelaçamento destas “duas
letra, pois é a figura da fala que se narrativas”, que podem figurar em graus
instaura. Este é o fato que dá nome ao variados de compatibilidade. Os
processo: estamos diante de uma sentidos produzidos pelo componente
figurativização. musical podem acentuar, atenuar ou até
A grande inovação deste modelo mesmo contrariar aqueles produzidos
é a possibilidade de descrever, dentro de pelo verbal. Teremos então um discurso
um campo teórico homogêneo, o mais ou menos coeso, e uma série de
sentido de um texto que se apóia em novos efeitos podem ser percebidos:
dois componentes distintos: o musical e ênfase, dúvida, ironia, confusão etc. A
o verbal. Graças a ele podemos analisar grande contribuição do modelo de Tatit
a canção como um todo de sentido, sem é justamente a de focalizar esse plano
precisar abrir mão de um de seus de intersecção entre os componentes,
componentes e tratar a canção como um sem nunca perder de vista o sentido de
“poema musicado” ou uma “peça unidade que uma canção
musical com letra”. invariavelmente produz. Portanto,
A pesquisa atual em semiótica contrariando a práxis vigente em
da canção aponta para o análises semióticas, vamos iniciar a
desenvolvimento de novas ferramentas nossa pelo musical – já que assim o faz
descritivas, para que o modelo possa a canção.
integrar os elementos musicais que
foram deixados de lado em um primeiro 4. Resultados
momento. Destacamos aqui a
importância que vem sendo dada ao “Tribunal de rua” começa com o
timbre da voz que produz a melodia som característico da agulha roçando
analisada, à harmonia e à atuação dos um disco de vinil1. Esse signo musical
instrumentos que a acompanham. traz à tona não apenas o sentido de
“antigo”, mas também o de
2. Objetivos “envelhecido”. Isso porque o sistema de
reprodução em vinil começou a ser
Este trabalho pretende mostrar a substituído pelo CD há quase trinta
atuação do timbre no processo de anos. Além disso, a intensidade deste
construção do sentido na canção ruído era proporcional ao
“Tribunal de rua”, do grupo O Rappa. envelhecimento do vinil. Sabemos
agora que o que está para ser contado é
3. Método velho, já com as marcas de deterioração
da passagem do tempo. Uma velha
A opção por descrever primeiro história que é também velha demais,
o componente verbal da canção é neste contexto moderno em que se
apenas uma escolha analítica. Não insere a canção, já na (ou até mesmo no
existe uma supremacia do verbal em final da) era do CD.
relação ao musical na construção do

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O segundo signo sonoro esse flagrante


apresentado é o da sirene da polícia. comigo”
Independentemente de qualquer sentido
que venha a ser depreendido pela letra, A aproximação da viatura é
o simples fato de a polícia ser descrita como a de um animal feroz, que
convocada traz também a sua antítese, se aproxima silenciosamente de sua
que é a marginalidade, e também uma presa para dar um bote certeiro. Além
de suas funções, que é a repressão. O do sentido já convocado de repressão, o
terceiro e último timbre a surgir antes enunciador acresenta aqui o de
da entrada do verbal é o violão que truculência, abuso de poder e injustiça,
executa os três únicos acordes da visto que o policial já sai da viatura com
canção: Am, Dm e Em. Trata-se de uma um veredicto pronto: “cê perdeu”. A
base forte e agressiva, colocada em repressão policial, que deveria
primeiro plano, um toque extrovertido. representar um valor positivo para a
Logo após a entrada do violão o som da sociedade, é aqui apresentada de
sirene aumenta consideravelmente, o maneira disfórica, negativa, como um
que produz um efeito de aproximação. poder que atua onipotentemente
A sensação que temos é que ela “ouviu” restringindo a liberdade do cidadão. É
o violão, e chegou mais perto para interessante notar que a voz entra junto
averiguar. com um baixo pedal, que atenua o
É nesse contexto que entra o movimento produzido pela sucessão de
primeiro timbre de voz, narrando em acordes do violão. Estas são
um estilo rap, no grau máximo de representações musicais dos atores
aproximação com a fala, sustentando verbais, que agora se polarizam na
quase todas as sílabas em um mesmo categoria liberdade (movimento
patamar, na nota lá2. Apesar de a harmônico) vs opressão (baixo pedal).
divisão rítmica gerar um efeito de O violão, que classificamos
aceleração, o timbre de voz empregado anteriormente como “extrovertido”, é
é estável, construindo a imagem de um compensado por um baixo
narrador não exacerbado, em um estado completamente estático e seco. Em um
passional controlado. Ele afirma: contexto de repressão policial, não é
possível descartar o histórico de
A viatura foi associação do violão (e seus
chegando executantes) à marginalidade. Uma vez
devagar que o violão está alinhado com os
E de repente, valores do narrador, o enunciador
de repente
resolveu me
evidencia aqui o preconceito que está
parar por trás dessa marginalização, pois ela é
Um dos caras realizada mediante um julgamento
saiu de lá de sumário e imparcial.
dentro já Essa atuação da polícia
dizendo:
“ Aí
transforma o estado passional do
compadre, cê narrador, fato que percebemos pela
perdeu elevação da nota de sustentação de sua
Se eu tiver proto-melodia para um ré2:
que procurar
cê tá fudido No início
Acho melhor eram três,
cê ir deixando

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

depois vieram de forma autêntica, já que o som é


mais quatro manipulado. Há ao mesmo tempo uma
Agora eram
sete os
modernização (pela aplicação de filtros
samurais da eletrônicos) e uma degradação, pela
extorsão descaracterização do instrumento
Vasculhando original. O efeito de “moderno”
meu carro, contrasta com o “antigo” e
metendo a
mão no meu
“envelhecido” do som de vinil, criando
bolso uma espécie de suspensão temporal,
Cheirando a minha mão como se o fato narrado não fosse nem
velho e nem novo: ele seria permanente,
O fato de o narrador chamar os indiferente à passagem do tempo. E a
policiais de “samurais” nos dá indícios degradação recobre plenamente o fazer
de se tratar de uma espécie de milícia dos policiais, cuja função deveria ser a
dentro da corporação, já que samurai de proteger a sociedade ao invés de
era a designação dada a um guerreiro realizar julgamentos arbitrários no meio
que fazia parte de uma milícia particular da rua.
na época feudal do Japão. Esse O narrador prossegue:
guerreiro tinha como principal De geração em geração todos no
característica servir com total lealdade e bairro já conhecem essa lição
empenho aos senhores que o
contratavam. Seguia um código de Esta frase é a primeira proferida
honra, chamado Bushidô – o caminho no presente, já que todo o relato
do guerreiro, que dizia que um samurai discorre sobre um tempo passado. Mas
não poderia demonstrar medo ou este não é um presente que se posiciona
covardia diante de qualquer situação e em relação ao tempo do narrado: trata-
se preciso fosse, serviria a seu senhor se de um presente gnômico, um
até a morte. Com a retomada do poder presente adverbial, que atesta uma
pelo imperador na Era Meiji, no final do verdade eterna, atemporal. Temos aqui
século XIX, a classe dos samurais foi a verbalização daquele procedimento de
oficialmente abolida e muitos deles ao “suspensão temporal”, que se manifesta
se perceberem desempregados e sem ainda em “de geração em geração”. A
protetores se tornaram marginais ou se entoação usada aqui sai dos patamares
agruparam em milícias, desafiando-se utilizados, e o narrador faz uma curva
mutuamente e causando tumulto e terror melódica que mais parece uma
por onde passavam (Tsunetomo, 2004). caricatura da voz de um professor
Na segunda parte um novo infantil.
timbre é introduzido. Trata-se de um Ao dizer que “todos conhecem
som de cuíca manipulado essa lição”, o narrador desfaz o efeito de
eletronicamente, cuja estridência surpresa que estava no ar desde o início
característica do som original é da canção. Aquilo que deveria ser um
atenuada com a aplicação de filtros e de procedimento fora do comum é agora
reverberação. Os efeitos de sentido classificado como rotineiro, algo que
provocados por esse timbre são todo mundo conhece bem. Uma vez que
diversos. Temos a convocação de um a tensão é refreada, o narrador volta ao
gênero musical – o samba – que patamar inicial em lá2:
também conta com um histórico de
marginalização. Mas ele não vem aqui

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E eu ainda
tentei O cano do fuzil refletiu
argumentá o lado ruim do Brasil
Mas, tapa na Nos olhos de quem quer
cara pra me e quem me viu, único
desmoralizá civil
Tapa, tapa na Rodeado de soldados
cara pra Como se eu fosse o
mostra quem culpado
é que manda No fundo querendo
Porque os estar
cavalos À margem do seu
corredores pesadelo
ainda estão Estar acima do biótipo
na banca suspeito
Nesta cruzada Nem que seja dentro de
de noite, um carro importado
encruzilhada Com um salário
Arriscando a suspeito
palavra Endossando a
democrata impunidade
Como um À procura de respeito
Santo Graal
Na mão (Mas nesta hora) só tem
errada dos (sangue quente)
hômi Quem tem (costa
carregada em quente, quente, quente)
devoção Só costa quente, pois
De geração nem sempre é
em geração inteligente
todos no (Peitar) peitar, peitar
bairro já (um fardado alucinado)
conhecem Que te agride e ofende
essa lição (pra te levar, levar,
levar)
Neste ponto entra em cena um Pra te levar alguns
segundo timbre de voz, que ao invés da trocados (diz aê)
Pra te levar, levar,
interpretação linear em rap canta em levar / Pra te levar
uma tessitura de uma oitava. É uma alguns trocados (segue
enorme explosão passional, a mão)
contrastando com a entoação contida Era só mais uma dura
empregada desde o início da canção. Resquício de ditadura
Mostrando a
Temos aqui um alinhamento claro dos mentalidade
dois sujeitos que estes timbres De quem se sente
representam: um sujeito da resignação, autoridade
que fala, e outro da indignação, que Nesse tribunal de rua
canta. A oposição liberdade vs opressão
aqui se manifesta melodicamente: Aqui está o cerne da crítica feita
enquanto o sujeito da resignação, que pelo enunciador, crítica que se desdobra
aceita a opressão, manifesta-se dentro em várias vertentes. Há uma
de uma tessitura extremamente condenação ao fazer dos policiais, assim
contraída, o outro explode em liberdade como também há uma denúncia de
com uma tessitura que é preconceito racial (biótipo suspeito).
comparativamente muito alongada. Mas há também uma crítica social mais

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profunda e sistêmica. Na medida em objeto de estudo para o qual a teoria


que estar dentro de um “carro está mais desenvolvida.
importado” o colocaria fora da situação A partir de Greimas, vários
de risco, o enunciador traz a autores vêm se dedicando ao
responsabilidade do ocorrido para toda desenvolvimento da semiótica em
a sociedade, e não apenas para os outras áreas de atuação: artes visuais,
elementos degenerados da corporação artes plásticas, cinema, dança e música
policial. É por isso que ele utiliza a são apenas alguns dos exemplos que
expressão “endossando a impunidade”, poderíamos citar. A possibilidade de
ironizando a atitude das classes que análise do sentido em diversos campos é
mostram o anseio pelo respeito, mas uma prerrogativa fundamental da
que não atuam contra a impunidade semiótica greimasiana: ela foi projetada
quando ela é praticada contra as classes para trabalhar na multidisciplinaridade.
menos favorecidas. Esse sentido é Cabe aos semioticistas de cada área
melhor percebido quando se analisa as desenvolver ferramentas descritivas
canções do Rappa como um todo, específicas para seus objetos.
especialmente as outras canções que Para adaptar a semiótica ao
figuram neste mesmo álbum2. A letra estudo da canção, Tatit optou por fazer
termina com uma referência à ditadura um primeiro recorte priorizando a letra
militar, mostrando que embora o e a melodia que a sustenta. A melodia
período tenha acabado há mais de duas não é tomada em sua materialidade:
décadas, algumas de suas práticas ainda dela foram extraídos principalmente as
estão bem presentes. questões relacionadas ao andamento e
Após o final do canto, surge um as alturas e durações relativas. Em
último timbre de voz. Trata-se de uma outras palavras: o modelo original de
voz também manipulada, mas desta vez Tatit analisa essencialmente o “perfil
degenerada até um ponto em que não se melódico”, deixando de lado questões
pode mais entender o que diz. A como timbres, intensidades e harmonia.
opressão atua de maneira tão violenta Uma vez que este modelo está
que a voz surge esmagada, ininteligível. bem consolidado e é usado como a
O timbre metálico lembra a principal referência no estudo de
caricaturização de uma voz de robô: ela canções, é natural que as pesquisas
foi desfigurada até perder o traço de atuais se orientem na direção de avançar
humanidade. cada vez mais no terreno da música. É
nesta perspectiva que se insere o
5. Conclusões presente trabalho. Pudemos verificar
que a escolha de timbres é parte
A semiótica greimasiana, ponto essencial na estratégia de produção de
de partida para o modelo teórico sentido nesta peça. Mais que apenas
desenvolvido por Luiz Tatit, é uma completar os sentidos produzidos pelo
teoria que nasceu em um berço verbal, a escolha de timbres atua junto
lingüístico. É herdeira direta dos com a letra e os outros componentes
trabalhos de Saussure e Hjelmslev – verbais na construção do sentido da
lingüistas eles também. Queremos dizer canção.
com isso que o ponto de partida da
semiótica foi a análise dos discursos 6. Subáreas de conhecimento
verbais – e por isso mesmo este é o
Semiótica; Música; Canção

226
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

7. Referências

AREDES, Maria Rita; DIETRICH,


Peter. Minha alma: construção do
sentido na canção do Rappa. In:
Cadernos de semiótica aplicada,
vol.5, n.1, Fclar, 2007. Disponível em <
http://www.fclar.unesp.br/grupos/casa/a
rtigos/V5n1/CASA2007-v5n1-Art-
Aredes-Dietrich.pdf>. Acesso em:
10/01/2008.
O RAPPA, “Tribunal de rua”. In:
LadoB LadoA, 1999/2000, Warner
Music Brasil Ltda.
TATIT, Luiz. Musicando a semiótica,
São Paulo, Annablume, 1997.
TATIT, Luiz. O cancionista –
composição de canções no Brasil. 2. ed.
São Paulo: Edusp, 2002.
TSUNETOMO, Yamamoto. Hagakure
- O livro do samurai. São Paulo:
Conrad, 2004.

1
O disco de vinil, sucessor do disco de acetato,
foi o grande veículo de distribuição de música
até meados da década de 80, sendo então
progressivamente substituído pelo Compact
Disc (CD). Sua reprodução era feita em vitrolas
(por sua vez, sucessoras do gramofone), em que
uma agulha deslizava sobre as irregularidades
gravadas no disco, transformando as
informações assim registradas em sinais
elétricos, posteriormente amplificados e
convertidos em som.
2
Cf. o artigo “Minha alma: construção do
sentido na canção do Rappa” (Aredes e
Dietrich, 2007)

227
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Os deslocamentos acentuais na canção Expresso 2222

Roberto Luiz Comi


rlcomi@terra.com.br

abordados os componentes prosódicos


1. Fundamentação teórica do estudo em questão seguidos dos
componentes rítmico-musicais.
As bases teóricas para este
trabalho encontram-se definidas no I. Como a Prosódia estuda os
conjunto dos elementos de duas áreas traços fônicos que interferem na
afins – a Fonologia e a Música. Dentre combinação dos sons da fala tais como
os vários elementos comuns às duas a estrutura da sílaba, o acento, a
áreas, destaca-se aqui o ritmo. Dentro da duração, a entonação frasal e o verso.
Fonologia, interessa-se pelos Cabe aqui delimitar tais definições e
componentes prosódicos do verso e suas indicar as notações adotadas neste
implicações rítmicas. Na Música, trabalho em negrito:
importa-se com a divisão musical de
compassos e suas estruturas rítmicas. I.1. Concebe-se a sílaba (σ) como
Por questões metodológicas e uma unidade expiratória na cadeia
objetivas, os conceitos e definições das falada, cuja estrutura fonemática se
áreas de estudo serão apresentados de baseia no contraste entre vogais (v) e
acordo com as etapas de análise deste consoantes (c):
trabalho. Assim, inicialmente serão
σ

Ataque Rima

Núcleo Coda

O núcleo da sílaba (nσ) é sílabas pesadas. As sílabas pesadas


preenchido por (v) . A(s) (c) anteriores preenchem duas posições na rima,
preenchem o ataque (aσ) . A vogal ou enquanto as sílabas leves preenchem
consoante que se segue ao núcleo apenas uma. [Santos, Raquel., I.L.-I,
preenche a coda (cσ). A noção de rima 212]. A sílaba pode ser simples quando
(rσ) incorpora por sua vez o núcleo é formada apenas por uma vogal e
silábico e a coda ou margem direita da composta se constituída de mais de um
sílaba. [Ferreira Netto, W., 153-157]. fonema, esta por sua vez pode ser
Em português, encontram-se as aberta (ou livre) se termina em vogal e
seguintes estruturas silábicas: v, cv, ccv, fechada (ou travada) em caso
cvc, cvv. As estruturas v, cv e ccv são contrário. [Bechara, 52]
consideradas sílabas leves, e as
estruturas cvv e cvc são consideradas

228
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

I.2. “Entende-se por acento o que são medidas relativas de tempo.


relevo de uma sílaba dentro de uma Assim, contam-se 2 moras (2μ) para a
palavra ou “grupo silábico” (GS), sílaba tônica ou tempo forte e 1 mora
tomado este como unidade acentual. (μ) para a sílaba átona ou tempo fraco.
[Lopes, E., 122]. A (σ) pronunciada com [Ferreira Netto, 174].
maior intensidade expiratória é chamada
forte ou tônica (σ+) e aquela com I.2.3.1. O acento de insistência é
menor intensidade fraca ou átona (σ−). um recurso estilístico que consiste em
A (σ−) pode aparecer antes, pretônica alongar vogais ou consoantes para
(σ<σ+), ou depois da (σ+) – postônica enfatizar uma (σ) de um (GS) ou de um
(σ+> σ). Há ainda a (σ) semiforte ou (GF) e pode ocorrer numa (σ) diferente
subtônica, (σ±), que por questões da (σ+). [Bechara, E., 55]. Neste
rítmicas, compensam o seu afastamento trabalho indica-se o alongamento com
da (σ+), fazendo que se desenvolva um sinal mácron (¯) acima sobre o fonema.
acento intermediário entre a (σ+) e a
(σ−) chamado de acento secundário ou I.3. O verso (Vs) é uma unidade
subtônico (±) em contraste com o rítmica que delimita as unidades de
acento principal ou tônico (+). Os sentido de que se compõe um poema.
deslocamentos acentuais neste trabalho Do ponto de vista gráfico, chama-se de
serão indicados sobre a (σ) em que verso a cada linha do poema. [Bechara,
ocorre o desvio: antecipação (←) e E., 352]. Sua unidade elementar é a (σ)
retardamento (→). que por sua vez formam unidades
maiores chamadas de grupos rítmicos
I.2.1. O acento frásico (+φ) é o (GR) ou pés. Adotam-se aqui as
acento principal dentro de um grupo de denominações greco-latinas para indicar
força (GF) que é uma sucessão de dois os (GR)s: 1) – troqueu: [+ −]; 2) –
ou mais vocábulos que constituem um iâmbico: [− +]; 3)– tríbaco [− − −] ou
conjunto fonético subordinado a um [− ± − ]; 4) – dátilo: [+ − −]; 5) –
acento tônico predominante. anapesto [− − +] e 6) – espondeu [± +]
ou [+ ±].
I.2.2. Os clíticos (κ) são certos
vocábulos dentro de um (GF) que I.3.1. Para a contagem de
perdem seu acento próprio para unir-se a sílabas do (Vs), considera-se até a
outro vocábulo tônico (Δt) que os segue última sílaba pronunciada de cada (Vs),
– proclíticos (κ→Δt), ou que os precede seja esta tônica ou átona, destacando-se
– enclíticos (Δt →κ), constituindo um a (σ+) em negrito dentro do (GS) que
vocábulo fonético (Δf). [Bechara, 55- constituem os (GR). [ALI, M. S., 23-
56] 34]. Para separar as (σ)s dentro dos
(GR)s, utiliza-se aqui a barra simples (
I.2.3. A duração de um fonema / ) e a barra dupla ( // ) para separar os
depende da velocidade da prolação, das (GR)s do (Vs).
qualidades fonéticas próprias do grupo
pronunciado e de sua extensão. [Dubois, I.3.2 As pausas são interrupções
204]. Apesar de em português a duração da fonação que servem para separar um
não distinguir vocábulos e formas enunciado. O objetivo delas é satisfazer
gramaticais, com relação à posição do as exigências da respiração, facilitar a
acento tônico dentro de um (GS), pode- elaboração mental e a compreensão e
se aplicar uma contagem de moras (μ) causar uma impressão rítmica. [Câmara

229
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Jr., J. M., PLG, 79]. As pausas fraca do tempo); os tempos fortes são
separativas ( | ) entre os (GR)s e os preenchidos por pausa, e os fracos com
(GF)s ocorrem naturalmente em notas”.
qualquer ponto do verso. Aplicamos, II.1.2.2. Síncopa (ς):
porém, particularmente o nome de deslocamento da acentuação normal dos
cesura ( || ) à pausa intencional e usual tempos do compasso, pela prolongação
em um ponto determinado do verso. de tempo fraco (ou parte fraca do
[Ali, 41]. tempo), para o tempo forte (ou parte
forte do tempo)” [Bona, 3,5,6 e 17)
I.4. O ritmo “fonológico” é a
repetição regular, na cadeia da fala, de III. A canção do Latim cantione,
impressões auditivas análogas, criadas acusativo de cantio, -onis (“canto”,
pelos elementos prosódicos. [Dubois, “canção”) do verbo cano, canis, cecini,
523] cantum, canere (“cantar”). Associada à
poesia lírica, de “lira” (< lira, ae),
II. A Música é a arte de instrumento musical. Daí, o
expressar as combinação de sons de uma entrelaçamento da instrumentação, a
maneira lógica e agradável. É dividida letra e o canto – bases da canção
em três partes: melodia, harmonia e popular vizinha do folclore. [Moisés,
ritmo, possui quatro propriedades: 281-282].
altura, duração, intensidade e timbre.
III.1. A voz do intérprete é o
II.1. O ritmo disciplina o tempo componente melódico que juntamente
na execução dos sons, medida de com o componente lingüístico dão
duração das notas (dos valores). identidade à canção (a instrumentação,
Considera-se valor o tempo de duração os arranjos etc., são variáveis de cada
do som (nota) ou da pausa (P) (silêncio) execução). [Tatit, 23]
que são variáveis.
2. Objetivos
II.1.1. Compasso (Cp) é a
divisão da música em tempos iguais 1. Comparar a “leitura rítmica” do verso
(pequenas partes de duração). É medida “falado” (ou “recitado”) com a do verso
métrica e rítmica, às vezes variável. “cantado” (ou “entoado”) na melodia,
identificar as alterações de acento entre
II.1.2. Tempo (t) é uma pequena as duas leituras e apontar as
parte de duração dentro de um conseqüências e possíveis causas dessas
compasso. Podem ser fortes, meio-fortes variações.
ou fracos, dependendo de sua maior ou 2. Propor uma leitura rítmica da palavra
menor acentuação no discurso musical. “cantada” a partir da leitura rítmico-
Geralmente o 1º. tempo (1) é forte e os melódica.
demais (2, 3, 4) são meio-fortes ou
fracos. Indicam-se aqui os tempos sob a 3. Métodos
escansão de cada (Vs).
I. Comparativo, expositivo e
II.1.2.1. Contratempo (Ct): na demonstrativo.
combinação de valores em uma peça, o
acento normal é deslocado, em vez de I.1. Comparação da leitura dos
ser no tempo forte, cai no fraco (ou parte versos “falados” (ou “recitados”)

230
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

com a entoação (ou o “canto”) dos


versos da canção Expresso 2222 de I.2. Exposição oral e visual (transparência
Gilberto Gil. (demonstração prática) ou software) das indicações apontadas com
demonstrações práticas (interpretação vocal
I.1.1. Divisão dos versos “falados” e acompanhamento de instrumentistas).
em grupos rítmicos ou pés.
(exposição oral e visual) 4. Desenvolvimento

I.1.2. Divisão dos versos “cantados” Apresentam-se a seguir apenas


em grupos rítmicos ou pés. alguns trechos da análise da letra
(exposição oral e visual) “falada” e da letra “cantada”, uma vez
que serão feitas demonstrações práticas
I.1.3. Marcação da divisão musical e exposições orais com as análises
dos compassos da canção com a integrais. Cabe destacar que o enfoque
indicação dos deslocamentos deste trabalho é a letra “cantada” e seus
acentuais ocorrentes na melodia desvios acentuais.
(contratempos e síncopas) bem como
as ocorrências de pausas.

A - Trechos da análise da letra “falada”:

GF1[Co / me / çou // a / cir //cu /lar //] GF2[ o Ex / pres / so // dois dois // dois / dois//]
(σ+) (σ±) (+φ) (+φ) (σ±) (σ+)
[(κ→Δt) + Δt = Δf] [(κ→Δt) + Δt =Δf]
GRs[− − + | − + | − + || − + −| − + | − + ]

GF1[Que / par / te // di / re / to // de / Bon // su / ces / so //] GF2[pra / de / pois//]


(σ+) (σ+) (σ±) (+φ) (+φ)
[(κ→Δt) + Δt = Δf] [(κ→Δt) + Δt = Δf] [(κ→Δt) + Δt = Δf]
GRs [− + − | − + −| − + | − + − | − − + ]
(...)
GF[Da / Cen / tral // do / Bra / sil//
(σ+) (+φ)
[(κ→Δt) + Δt = Δf] [(κ→Δt) + Δt = Δf]
GRs [+ − | + − | − + ]
(...)
GF[Pra / de / pois // do / a / no // dois / mil/]
(σ±) (σ+) (+φ)
[(κ→Δt) + Δt = Δf] [(κ→Δt) + Δt = Δf] [(κ→Δt) + Δt = Δf]
GRs [− − + | − + − | − +]

B – Trechos da versificação da letra “cantada” e a divisão musical de compassos: 2/4


← ←
Co / me / çou // a / cīr //cu /lār // o Ex / prēs6 //7 so / dois // dois / dois / dōis//
1 2 ς 1 ς 2 1 2 ς1 2
[+ − − / − + / − + / − − + / − + / − − + ]
← ←
Que / par / te // di / re // to / dē // Bon / su / ces // so / pra // de / pōis/ P
1 2 ς1 2 12 1 /2
[+ − − / − + / − + / − − + / − + / − + ]

231
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008


Co / me / çou a // cir / cu // lār / o Ex // prēs / so // dois / dois // dois / dōis/
ς1 2 ς1 ς2 1 2 ς1
[+ − − / + − / + − / + − / + − / ± + ]

Da / Cen // tral / do // Bra / sil/


2 1
[+ − / + − / − + ]

Que / par / te // di / re / to // de / Bon // su / ces / so/


2 1 2
[− + − / − + − / − + / − + −]

Pra / de // pōis / do // ā / no // dois / mil/


1 ς2 ς1 2
[+ − / + − / + − / − +]

Segunda parte

Di / zem / que // tem / mui / ta // gēn / te / de a // gō / ra


1 2 ς1 ς2
[+ − − / + − − / + − − / + − ]

Se a / di // an / tān / do, // par / tin / do // pra / lá//
1 2 ς1 2 1
[− + / − + − / − + − / − +];

Pra / dois / mil // e / ūm // e / dois // e / tēm // po a 3 / fō / ra


2 ς1 ς2 ς1 ς2
[− − + / − + / − + / − + / − + − ]

A / tē // on / de ēs / sa es // trā / da // do / tem / po // vāi / dār /


ς1 ς2 ς1 2 ς12 ς1
[− + / − + − / + − / − + − / + ±]
(...)
Do / tem / po // vāi / dar , // me / ni / na, // do / tem // po / vai //
2 ς 1 2 Ct 1 2 ς1 2
[− + − / + ± / − + − /− + / − +]
(...)

Refrão ou estribilho: “Começou a circular...”

Di / zem/ que // pa / re / ce o // bōn / de // do / mōr / ro/


1 2 ς1 ς2
[+ − − /− + − /+ − /− +
← ←
Do / Cor // co / vā // do / da / qui/
1 2 ς1 2
[+ − / ± + / − − +]

Só / que / não // se / pē / ga // e / ēn / tra // e / sēn / ta // e / ān / da


1 Ct 2 ς1 ς2 ς1 ς 2
[+ − − / − + − / − + − / − + − / − + −]

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

O / trī / lho é // fēi / to um // brī / lho // que / não // tem / fīm //


ς1 ς2 ς1 2 ς121
[− + − / + − / + − / − + / − +]
(...)

Ô, / me // ni / na, // que / não // tem / fim//


2Ct 1 2 1 2
[+ − / + − / − + / − +]
(...)

1
De / pois // 2 de /dois / mil //3 e / ūm4 // 5 e / dois //6 e / tem // po a 7 / fo / ra
1 2 ς1 ς 2 ς1 ς2
[+ − /− − + / − + / − + / − + / − + −]

O / Cris / to é // co / mo 2/ quem // foi / vis / to // su / bin // 3 do ao 4 / céu 5//
1

1 2 1 2 ς1 2 1
[− + − / − + − / − + − / − + / − +]
(...)
Su / bin // do ao / céu //
2 ς 1 2 1
[− + /− +].

Num / véu // de / nū1 //2 vem3 / bri //4 lhan / te // su / bin //5 do ao6 / céu//
2 ς 1 2 Ct 1 2 1
[− +/ − + / + − / + − / − + / − +]

5. Resultados acomodar subjetivamente as palavras


conforme seu próprio ritmo. Desta
I.2. Indicação das alterações maneira, uma canção pode adquirir um
prosódicas. ritmo diferente de acordo com a
I.2.1. Indicação dos efeitos das interpretação do cantor.
ocorrências rítmico-musicais em relação Como o ritmo da música
às alterações acentuais lingüísticas e condiciona o ritmo da letra, ocorrem nas
suas possíveis causas divisões silábicas inúmeras pausas
separativas nos grupos de força, para
6. Conclusões que os grupos rítmicos ou pés se
acomodem à divisão musical de
Ao comparar a versificação da compassos. Os contratempos e as
letra da canção selecionada com a síncopas nos compassos musicais
divisão musical de compassos, verifica- determinam aceleração e desaceleração
se que o ritmo do verso entoado na do ritmo da letra.
melodia se acomoda a marcação rítmica A canção de Gilberto Gil aqui
de compassos, ou seja, o intérprete analisada revela uma tendência de não
antecipa ou adianta o acento tônico de obedecer aos padrões convencionais de
acordo com o ritmo que deseja imprimir acentuação, bem como os de divisão
na melodia. Ao sobrepor o ritmo da silábica. Seus versos apresentam
melodia à linguagem verbal, o intérprete bastante variação rítmica e poucos têm
empresta à palavra falada uma prosódia alternância uniforme, na grande maioria
não-convencional, ou seja, acelera ou dos versos, adota seqüências
desacelera o ritmo de acordo com as combinativas, misturando vários grupos
exigências da frase musical. Procura rítmicos.

233
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

7. Subáreas do conhecimento MOISÉS, Massaud. A Criação


Literária – Poesia. 10. ed. São Paulo:
1. Lingüística; 1.1. Fonologia; Cultrix, 1987.
1.1.1. Prosódia SANTOS, Raquel. A aquisição da
2. Música; 2.1. Ritmo linguagem. In: FIORIN, José Luiz (org.)
Introdução à Lingüística. I. Objetos
8. Referências bibliográficas Teóricos. 5. ed. São Paulo: Contexto,
2007.
ALI, Manoel Said. Versificação SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de
Portuguesa. São Paulo: Edusp, 2006. Lingüística Geral. Trad. Antônio
BECHARA, Evanildo. Moderna Chelini, José Paulo Paes e Izidoro
Gramática Portuguesa. 35. ed. Cia. Blikstein. São Paulo: Cultrix.
Editora Nacional. 1994. TATIT, Luiz. Musicando a Semiótica.
BONA, Pasquale. Método Completo São Paulo: Annablume, 1997.
de Divisão Musical. revisão do Prof. WISNIK, José Miguel. O Som e o
Yves Rudner Schmidt. São Paulo: Sentido. Uma outra história das
Irmãos Vitale, 1996. músicas. 2. ed. São Paulo: Cia das
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Letras, 1999.
Estrutura da Língua Portuguesa. 23.
ed. Petrópolis: Vozes. 1995.
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso.
Princípios de Lingüística Geral. 7. ed.
Rio de Janeiro: Padrão Livraria Editora,
1989.
CART, A. et al. Gramática Latina.
tradução e adaptação de Maria
Evangelina Villa Nova Soeiro. São
Paulo: Edusp, 1986.
DUBOIS, Jean. (et al.) Dicionário de
Lingüística. Dir. Coord. da tradução:
Prof. Dr. Izidoro Blikstein. 10. ed. São
Paulo: Cultrix, 1998.
FERREIRA NETTO, Waldemar.
Introdução à Fonologia da Língua
Portuguesa. São Paulo: Hedra, 2001.
GIL, Gilberto. Expresso 2222,
www.gilbertogil.com.br
HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a
uma Teoria da Linguagem. tradução
J. Teixeira Coelho Netto. 2. ed. 1ª.
reimpr. São Paulo: Perspectiva, 2003.
LOPES, Edward. Fundamentos da
Lingüística Contemporânea. São
Paulo: Cultrix, 1995.

234
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Oficinas de Performance Musical: uma metodologia


interdisciplinar para uma abordagem complexa de
performance musical

Abel Raimundo Silva


abelmoraessilva@yahoo.com.br

RESUMO: Esta proposta apresenta resumidamente os referenciais teóricos e as propostas


básicas de uma metodologia interdisciplinar de trabalho didático para as Oficinas de
Performance Musical: vivências simuladas que oferecem a instrumentistas e cantores a
oportunidade de desenvolver competências para a realização de performances musicais
satisfatórias e motivadoras. A metodologia se esforça em abordar a performance musical o mais
próximo possível de sua complexidade, trabalhando sistemicamente os aspectos intrínsecos
(cognitivos, afetivos, psicomotores e comportamentais) e extrínsecos (sociais, culturais,
antropológicos, acústicos e ergonômicos) do processo de preparação e geração das
performances musicais. Além do desenvolvimento de conhecimentos e competências,
possibilita a ocorrência de experiências referenciais e motivadoras (fluxo) para a construção de
uma identidade positiva como sujeito e como músico performer.

ampliar a compreensão dos processos


1. Introdução da performance e para o
desenvolvimento de técnicas e didáticas
As Oficinas de Performance apropriadas.
desenvolveram-se a partir de uma
disciplina inicialmente teórica – 2. Objetivos
Psicologia da Aprendizagem e da
Performance Musical – incluída na As Oficinas de Performance
grade curricular dos cursos de Musical são vivências simuladas que
Bacharelado em Música e de oferecem a instrumentistas e cantores a
Licenciatura em Música/habilitação em oportunidade de desenvolver
instrumento ou canto, de uma competências para a realização de
universidade brasileira. A disciplina foi- performances musicais satisfatórias e
se tornando cada vez menos teórica à motivadoras. Para tanto sustenta-se em
medida que aumentavam as demandas uma metodologia didática
por aulas práticas no auditório da interdisciplinar que visa a abordar a
Escola. Desde 2001, as oficinas têm performance o mais próximo possível
sido oferecidas por este autor em vários de sua complexidade, e oferecer aos
estados brasileiros em festivais, estudantes performers um trato
encontros nacionais de associações de sistêmico dos aspectos intrínsecos
pesquisa e ensino musical, com vários (cognitivos, afetivos, psicomotores e
formatos: oficina em festivais, palestra comportamentais) e extrínsecos (sociais,
integrada à oficina, curso para culturais, antropológicos, acústicos e
professores e oficina, e palestra. Com ergonômicos) do processo de
sete anos de prática efetiva, diversos preparação e geração das performances
referenciais teóricos tem sido musicais. Visam Oferecer ambiente
experimentados e utilizados para favorável à superação de possíveis

235
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

fatores limitantes da espontaneidade e podendo implicar transferências de leis


da concentração, possibilitando aos entre elas ou a construção de uma
intérpretes o alcance de um estado axiomática comum, originado em
psicológico ideal, o mais próximo alguns casos até um novo corpo
possível do seu potencial total, disciplinar. O mais importante é existe
possibilitando-lhes a ocorrência de aí a introdução de uma “noção de
experiências referenciais e motivadoras finalidade maior que redefine os
para a construção de uma identidade elementos internos dos campos
positiva como sujeito e como músico originais” (Vasconcelos, 2002, p. 112)
performer. Neste sentido, as práticas
interdisciplinares são tentativas mais
3. Fundamentação teórica audaciosas, mais ambíguas, mais
vivenciais e, por isso mesmo, mais
3.1 Abordagem Complexa da aparelhadas para apreender e conservar
Realidade a complexidade do objeto pesquisado.
Como afirma Fazenda (2001, p.15) “a
Para Morin, “a ambição da trilha interdisciplinar caminha do ator
complexidade é prestar contas das ao autor de uma história vivida, de uma
articulações despedaçadas pelos cortes ação conscientemente exercitada a uma
entre disciplinas, entre categorias elaboração teórica arduamente
cognitivas e entre tipos de construída”. Portanto, construir uma
conhecimento” (2002 p. 176). Portanto, teoria para a performance musical, e
abordar a performance na sua consequentemente uma abordagem
complexidade é fazer um grande pedagógica, é articular teorias outras de
esforço para não ignorar as relações de diversas disciplinas, e o mais
seus aspectos intrínsecos e extrínsecos. importante, partir de práticas vivenciais
É manter uma visão da primazia das abordadas fenomenologicamente, para
interações sobre as partes do sistema que não se perca a noção do todo, do
componente da performance. Nesta real e do complexo. (das partes ao todo
direção, Morin (2002, p.331) nos e do todo às partes) “O objetivo de uma
propõe treze princípios para um suposto diática e de uma pesquisa
“paradigma de complexidade” que interdisciplinar é a explicação do
deveriam nortear os novos modos de contorno ambíguo dos movimentos e
inteligibilidade. Alguns deles têm sido das ações pedagógicas. Apenas o
contextualizados para uma compreensão exercício da ambigüidade poderá
mais ampla de performance musical e sugerir a multiface do movimento e, por
para a construção de uma metodologia conseguinte, do fenômeno pesquisado.”
interdisciplinar para as oficinas de (Fazenda, 2001, p.17)
Performance Musical. Abordar a performance musical
Vasconcelos (2002) propõe uma sob uma ótica complexa, corresponde
atualização de termos referentes a antes de mais nada em defini-la sob uma
multidisciplinaridade e a perspectiva aberta, temporária e ambígua.
interdisciplinaridade, levando-se em Para esta definição levaremos em conta
conta graus sucessivos de cooperação os padrões culturais ocidentais dos dias de
crescente entre os campos de saber hoje, que norteiam as práticas musicais da
envolvidos. Como interdisciplinaridade, música de concerto. Desta forma, com
o autor afirma que seria uma prática em auxílio de alguns referenciais teóricos
direção a duas ou mais disciplinas, complementares,1 e a partir de uma

236
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

epistemologia da complexidade, encontrou uma unanimidade entre


poderemos arriscar uma definição pedagogos, sociólogos e psicólogos.
complexa de performance musical, como Ramos (2002:39) afirma que “[...] a
sendo: A execução/interpretação de uma noção de competência, original das
obra musical por um músico performer, ciências cognitivas, surge com uma
sob condições psicológicas de densidade marca fortemente psicológica para
existencial e temporalidade específicas, interrogar e ordenar práticas sociais.”
que demanda uma auto-organização das Perrenoud (1999) discute amplamente o
integração entre os elementos termo sob uma visão sistêmica e define-
componentes do sistema o como a capacidade de mobilização e
performer/instrumento/obra musical/meio organização ativa de diversos esquemas
ambiente/momento, sob condição de práticos e mentais, simples e
causalidade complexa entre eles. complexos, adequados e necessários
Para lidar com este conceito de para a realização de uma tarefa ou
performance, a construção da atividade. Como adverte o autor,
metodologia de uma de trabalho didático competências não podem ser entendias
das Oficinas de Performance tem apenas como desempenho (a própria
buscado referenciais de teorias performance), ou potencialidades
pertencentes a vários campos esperando o momento para serem
disciplinares como a pedagogia geral, a aplicadas, externalizadas, ou
educação musical, a psicologia geral, a desenvolvidas. Segundo o autor, uma
psicologia da música e a psicologia da ação competente é “[...] uma ‘invenção-
performance musical, a sociologia da bem-temperada’, uma variação sobre
música e a sociologia da educação temas parcialmente conhecidos, uma
musical, a filosofia e a estética musical, maneira de reinvestir o já vivenciado, o
além de, naturalmente, da musicologia e já visto, o já entendido ou já dominado,
suas subáreas. Os referenciais a fim de enfrentar situações inéditas o
epistemológicos gerais vem bastante para que a mera e simples
principalmente da Abordagem Complexa repetição seja inadequada.” (Perrenoud,
de Edgar Morin, do pensamento sistêmico 1999, p. 31)
de Fritjof Capra e outros, e da Teoria Partindo dos diversos aspectos
Integral de Ken Wilber. Os referenciais envolvidos no fazer musical,
específicos vem da Abordagem poderíamos então definir as
Educacional por Competências de competências para a performance como
Philippe Perrenoud, Marise Ramos e a capacidade de mobilização e
outros, o pensamento estético-músico- coordenação de conhecimentos,
educacional de K. Swanwick em especial habilidades, atitudes e comportamentos
a Teoria Espiral do Desenvolvimento adequados para a realização dos
Musical, a Psicologia Social da Música de processos envolvidos na preparação e
David Hargreaves, a Psicologia Cognitiva na geração da performance. Neste
da Música de John Sloboda e outros, e a sentido a proposta das Oficinas é
Teoria do Fluxo de M. Csiksentmihalyi. exatamente a de oferecer práticas
vivenciais para o desenvolvimento tanto
3.2 Abordagem Educacional por de diversas modalidades de esquemas,
Competências ou possíveis “componentes das
competências”, quanto das
O conceito de competência tem competências para a mobilização e
sido bastante discutido e ainda não aplicação destes esquemas.

237
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A grosso modo, poderíamos aprendizagem, preparação e


listar possíveis componente de performance musical.
competências a serem desenvolvidos e
mobilizados: (1) Conhecimentos: 3.3 Teoria Espiral do
Musicais (explícitos e implícitos, Desenvolvimento Musical de K.
racionais e intuitivos, formais e Swanwick
informais, históricos, estéticos,
biográficos, analíticos, harmônicos, A Teoria Espiral do
interpretativos, metafóricos, analógicos, Desenvolvimento Musical de
simbólicos, etc.); Técnico-instrumentias K.Swanwick (1991, 1994) oferece um
ou vocais; Meta-cognitivos (sobre os referencial abrangente da compreensão
processos de aprendizagem, sobre o musical que o performer expressa
desenvolvimento das habilidades através da performance. A teoria
cognitivas, afetivas e comportamentais); descreve um desenvolvimento musical
Outros campos disciplinares qualitativo e hierárquico que ocorre
(psicológicos, sociológicos, históricos, ascendentemente e alternadamente (daí
filosóficos, neurológicos, médicos, a relação com a figura da espiral) entre
pedagógicos, etc.). (2) Habilidades: maturação biológica e interação
Psicomotoras (programa motor, a cultural, reunido dois dos principais
técnica instrumental ou vocal para a teóricos da aprendizagem e do o
execução e interpretação musical); desenvolvimento: J. Piaget e L.
Cognitivas gerais (atenção, consciência, Vigotsky. Esta compreensão musical é
memória); Inteligências múltiplas tratada como sendo a capacidade de dar
(linguística, lógica, cinestésica, expressividade e coerência estrutural a
visuoespacial, musical, interpessoal, gestos musicais, a frases, a seções
intrapessoal, existencial) Cognitivo- progressivamente maiores e finalmente
musicais (afinação, ritmo, a toda peça, apresentando uma
discriminação de sons e acordes, compreensão das relações intrínsecas
“ouvido melódico”, “ouvido entre as partes, suas implicações
harmônico”, ouvido absoluto, etc.) estilísticas e suas razões expressivas
Afetivas (motivação, equilíbrio, gerais. Com base na Teoria Espiral, o
estabilidade, adequação, tolerância a trabalho de orientação às performances
frustrações, auto-estima, autoconfiança, desenvolvidas nas oficinas consiste em
auto-imagem, auto-conceito, etc.). (3) identificar o nível predominante da
Atitudes: compõem-se, por sua vez, de espiral no qual o performer se expressa
elementos cognitivos, afetivos e e oferecer-lhe recursos de toda ordem
comportamentais, e espera-se que se para ascender ao próximo nível.
manifestem em forma de Em pesquisa realizada por
comportamentos: Pré-disposição para as França (2000) ficou demonstrado que
ações direcionadas ao aprendizado, à dentre as atividades de composição,
preparação, e à própria performance; apreciação e performance, é esta última
Pré-disposição para as ações auto- a que exige um maior esforço
direcionadas: autoconfiança, auto- acomodativo de habilidades especificas
estima, desapego, diversão, tolerância, por parte do aluno, antes que ele possa
etc. (4) Comportamentos: hábitos, se expressar musicalmente com a
ações e respostas adequadas e objetivas mesma desenvoltura das demais
relacionadas às demandas de atividades. Este esforço acomodativo
corresponde em sua maior parte ao

238
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

aprendizado e automatismo da técnica (Csiksentmihalyi, 2000, p. 36). O


especifica do instrumento escolhido reconhecimento do potencial da Teoria
pelo aluno. Ou seja, a técnica do Fluxo para a educação musical e
instrumental é o principal pré-requisito para a performance tem ganhado
para que o aluno possa desenvolver e progressivo interesse desde a última
expressar sua compreensão musical década quando David Elliot (1995)
através daquele instrumento. Esta é a tomou a Teoria do Fluxo para sustentar
razão pela qual se recomenda uma o valor da musica e da educação
especial atenção na escolha de musical para a formação do indivíduo.
repertório para que uma peça Para o autor, “o fazer musical é uma
demasiadamente difícil não impeça a grande e exclusiva fonte de auto-
expressão do real nível de compreensão desenvolvimento, auto-conhecimento
musical, ou o mais próximo dele. É no (ou conhecimento construído), e fluxo.”
equilíbrio entre as habilidades do (ELLIOT, 1995, p.121, minha
estudante e o desejo de se expressar tradução). Em Jackson, S.A., &
musicalmente que está a possibilidade Csiksentmihalyi, M. (1999), os
do desenvolvimento e da motivação elementos estruturais da experiência de
para a performance, e é esta dinâmica fluxo foram contextualizados para a
que nos levará até a Teoria do Fluxo. performance do esporte de uma forma
bastante didática. Correspondem a (1)
3.4 Teoria do Fluxo de Mihaly equilíbrio desafio/habilidades, (2) união
Csiksentmihalyi de ação/consciência, (3) metas claras,
(4) retorno inequívoco, (5)
A Teoria do Fluxo de Mihaly concentração na tarefa imediata, (6)
Csiksentmihalyi (2000, 1990) tem sido senso de controle, (7) perda da auto-
desenvolvida desde a década de consciência, (8) alterações da noção de
sessenta e tem como base as pesquisas tempo, (9) e experiência autotélica.
sobre motivação intrínseca W. Wringley (2005) em
desenvolvidas pelo autor com artistas pesquisa realizada com 373 estudantes
plásticos, e mais tarde com atletas, de uma escola de formação superior de
jogadores de xadrez, alpinistas, música da Austrália, apontou uma nítida
dançarinos e compositores. A metáfora relação das experiências de fluxo com
do fluxo foi adotada porque os efeitos positivos e substanciais nos
entrevistados utilizaram repetidamente diversos aspectos das performances. A
esta palavra para caracterizar o pesquisa investigou a relação dos
envolvimento e a satisfação que as elementos estruturais do fluxo com os
respectivas atividades proporcionavam. vários aspectos das performances
(Csiksentmihalyi, 1990). Em estado de musicais e os resultados revelaram o
fluxo, ações se desenrolam de acordo quanto a teoria pode fornecer
com uma lógica interna que parece não referenciais para o desenvolvimento de
precisar de nenhuma intervenção princípios pedagógicos e propostas
consciente do ator. Ele experimenta isto didáticas para a educação musical e, em
como um fluxo integrado de um particular, para a pedagogia da
momento para o seguinte, no qual ele performance.
está em controle das suas ações e no Nas Oficinas de Performance, é
qual há pouca distinção entre o self e o realizado um trabalho relacionando os
ambiente, entre estímulo e resposta, ou elementos estruturais do fluxo com os
entre passado, presente e futuro” processos cognitivos e fenomenológicos

239
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

da produção da performance. Neste estudo do instrumento, as experiências


trabalho o estudante passa a entender anteriores de performance, etc. (3) Em
como atuam os elementos do fluxo seguida o professor se dirige à audiência
relacionados aos processos cognitivos e pede uma breve avaliação sobre a
que geram (metas claras), realizam performance executada; (4) O professor
(concentração na tarefa imediata), faz uma comparação da auto-avaliação
regulam (retorno inequívoco) e do performer com a avaliação da
aprimoram a performance (união de audiência, confrontando as percepções
ação/consciência, e senso de controle). subjetivas do aluno com as impressões
A possibilidade de fluxo será maior na externas da audiência, fornecendo-lhe
medida em que houver uma referenciais mais objetivos, e
circularidade causal (ou causalidade normalmente mais positivos, sobre sua
complexa) harmoniosa entre estes performance; (5) A partir de então, é
elementos. Neste sentido são realizadas desenvolvida pelo professor uma
atividades de meta-cognição para que o conscientização sobre os elementos
aluno perceba e interfira históricos e culturais nos quais aquela
conscientemente nos próprios processos performance está inserida, sobre as
mentais descritos. Os outros elementos crenças e expectativas das pessoas
estruturais do fluxo - (2) união de presentes na audiência e,
ação/consciência, (6) senso de controle, principalmente, sobre as impressões
(7) perda da auto-consciência, (8) pessoais, na maior parte das vezes
alterações da noção de tempo, (9) e distorcidas sobre a própria performance,
experiência autotélica - não em forma de falsas crenças, impressões
correspondem a operações mentais pessoais falsas e auto-julgamentos
intencionais mas sim a um resultado inadequados em relação a si mesmo e á
percebido (fenomenológicos) da performance realizada; (6) Se
dinâmica dos elementos (cognitivos) já necessário, em seguida, é desenvolvida
descritos. O objetivo é que os alunos uma re-significação sobre os conceitos
desenvolvam tanto habilidades quanto básicos de música, performance,
disponibilidades para a ocorrência do performer, interpretação, impressões
fluxo durante as performances. pessoais e coletivas; (7) Se necessário,
são experimentados exercícios meta-
4. Metodologia cognitivos adequados para a resolução
ou atenuação de algum problema
A metodologia das Oficinas de ocorrente em algum dos aspectos
Performance se desenvolve a partir das afetivos, cognitivos, psicomotores e
seguintes etapas: (1) O processo tem comportamentais da performance. (8)
início com a performance de uma peça Se necessário, uma nova performance é
musical curta por um estudante realizada, ou um trecho dela, com
performer, num auditório ou sala grande aplicação das re-significações ou dos
com a presença de uma audiência de exercícios e das técnicas aplicadas; (9)
alunos e professores, além do professor Se necessário, ao final, é pedida uma
da oficina. (2) Após a apresentação e nova auto-avaliação das impressões
com a ajuda do professor, o performer pessoais e dos resultados obtidos.
faz uma livre avaliação da performance
realizada, com perguntas do professor
sobre os aspectos afetivos, técnicos,
musicais, a prática diária, o tempo de

240
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

4.3 Público-alvo
4.1 Tempo necessário para a
demonstração da metodologia As Oficinas de Performance são
indicadas para estudantes performers de
Um tempo desejável de sessenta nível médio ou superior, e para
minutos seria necessário para a educadores musicais e músico
demonstração da metodologia, pois é educadores (professores de instrumento
esperado que haja duas apresentações, e de canto, regentes de coro e orquestra)
com instrumentistas e/ou cantores com como forma de reciclagem de novos
níveis de desenvolvimento diferentes, conhecimentos e novas abordagens
para que vários aspectos possam educacionais para a música e
emergir das apresentações e serem performance musical.
trabalhados. Uma vez que o trabalho
com cada performer toma cerca de 25 5. Resultados
minutos, e 10 minutos poderão ser
usados ao final para perguntas, um A prática diária deste autor, a
tempo mínimo de 60 minutos seria demanda de professores de outras
desejável para uma demonstração instituições e o interesse dos próprios
satisfatória da metodologia. alunos apontam para alguns resultados
positivos verificados de maneira não
4.2 Material e recursos humanos formal. Dentre eles, temos (1) os
necessários resultados positivos verificados durante
as dinâmicas da própria oficina, (2) o
(1) É necessário que a Oficina de crescente interesse dos alunos
Performance se desenvolva num envolvidos de se apresentarem por
auditório, ou numa sala grande onde conta própria em concertos e audições;
possam ser definidos os locais para a (3) a constatação de melhoras no
audiência (platéia) e para o performer aprendizado, na motivação e na
(palco). (2) É desejável que haja a performance musical, relatados pelos
possibilidades de visualização ou professores de instrumento e canto dos
ilustração dos modelos e esquemas alunos envolvidos.
didáticos utilizados através de um As
computador com um projetor de mídia, oficinas de Performance ainda não
ou um retro-projetor, ou mesmo um foram submetidas a uma investigação
quadro branco com pincéis coloridos. formal de consistência metodológica
(3) É desejável que o auditório ou sala para averiguar a validade de suas
para a demonstração tenha um piano, propostas e a extensão de seus
para possibilitar mais opções de objetivos. Este é o objetivo deste autor
apresentação. Caso não seja possível, as para um futuro bem próximo.
apresentações poderão ser feitas com
instrumentistas solo. (4) É desejável que 6. Referências
se apresentem formações musicais não
maiores do que duos, uma vez que as CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: Uma
formações maiores diluem as Nova Compreensão Científica dos
expectativas e as tensões da Sistemas Vivos. São Paulo: Cultrix,
performance, camuflando algum 1999.
problema ou deficiência que algum
deles poderia apresentar.

241
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

CSIKSENTMIHALYI, Mihaly. Flow: MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-


The psychology of optimal experience. Louis. A inteligência da
New York: Harper & Row. 1990. complexidade. São Paulo: Peirópolis,
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Boredom and Anxiety: Experiencing MORIN, Edgar. Ciência com
Flow in Work and Play. 25th Consciência. 6. ed. Rio de Janeiro:
anniversary edition. São Francisco: Bertrand Brasil, 2002.
Jossey-Bass P. 2000. PERRENOUD, Philippe. Construir as
CSIKSENTMIHALYI, Mihaly; competências desde a escola. Porto
CSIKSENTMIHALYI, Isabella.S. Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
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studies of flow in consciousness. New pedagogia das competências:
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1998. Cortez, 2002.
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FAZENDA, Ivani (org.) Dicionário em Knowledge: intuition, analysis and
construção: interdisciplinaridade. São music education. London, 1994.
Paulo: Cortez, 2001.
VASCONCELOS, Eduardo M.
FRANÇA, Cecília C. Performance
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instrumental e educação musical: a Interdisciplinar: epistemologia e
relação entre a compreensão musical e a metodologia operativa. Petrópolis, RJ:
técnica. PER MUSI - Revista de Vozes, 2002.
performance musical. Belo Horizonte:
Escola de música da UFMG, v. 1, p.30- WRINGLEY, William J. Improving
49, 2000. Music Performance Assessment.
2005. 384f. Unpublished doctoral
JACKSON, Susan.A.; thesis. School of Curriculum, Teaching
CSIKSENTMIHALYI, Mihaly. Flow in and Learning, Faculty of Education,
sports: The Keys to optimal experience Griffth University, Australia, 2005.
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Desempenho: Corpo pulsional & corpo
mocional. São Paulo: Escuta: 2003.

242
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Desenvolvimento musical e musicoterapia em crianças Down:


Um estudo preliminar

Anahí Ravagnani
UFPR
anahiravagnani@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho pretende investigar o papel da música no desenvolvimento


cognitivo das crianças Síndrome de Down baseado em observações de uma sessão de
Musicoterapia, realizada com uma criança SD, na cidade de Curitiba, PR. Trata-se de um estudo
preliminar que faz parte de uma dissertação de mestrado, que encontra-se em andamento.

Palavras-chave: síndrome de down, desenvolvimento musical, musicoterapia, estudo de caso.

exame e classificação das trissomias,


1. Introdução principais comprometimentos e
limitações, a Síndrome de Down vem
O interesse pelo sendo constantemente pesquisada e suas
desenvolvimento musical em crianças e características informadas, cada vez
adultos especiais tem crescido mais cedo, à família do portador.
substancialmente nos últimos anos. Segundo Schwartzman (2008)
Estudos recentes têm investigado, por perdas auditivas uni ou bilaterais são
exemplo, o papel da música em descritas em 40% a 75% de adultos de
portadores de atraso do crianças portadores da SD. Os
desenvolvimento (Loureiro, Guerra, percentuais de prejuízo auditivo
França, 2006), no autismo (Álvares, encontrados variam de 8% a 95%.
2005), e em adultos com esclerose Ainda segundo o mesmo autor, o
múltipla (Moreira, 2005). Porém, até o sistema nervoso central do indivíduo
presente, pouco se sabe sobre as Down apresenta anormalidades
relações entre a música e a síndrome de funcionais e estruturais que determinam
Down. as disfunções neurológicas dos
indivíduos. Essas disfunções variam
2. Fundamentação Teórica bastante quanto às suas manifestações e
o grau de severidade. Por exemplo, há
A Síndrome de Down sempre um determinado grau de
disfunção neuromotora na SD:
Embora seja ainda uma hipotonia (isto é, a diminuição do tônus
discussão velada e carregada de antigos muscular), e hiporreflexia (ou seja, a
preconceitos, muito se progrediu em diminuição dos reflexos primitivos). Os
relação ao estudo da Síndrome de atrasos nos marcos do desenvolvimento
Down. Desde sua antiga denominação motor são perceptíveis já durante os
“mongolismo”, assim caracterizada pelo primeiros meses de vida. No que se
médico inglês John Langdon Down em refere ao atraso das funções cognitiva,
1864, pelo fato deste grupo de pessoas motora e aquisição da linguagem,
apresentar semelhança com as pessoas Schwartzman afirma que, indivíduos
da raça mongol até sua origem genética, portadores desta síndrome as possuem

243
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

em graus e variações diferentes, embora No trabalho intitulado “As


aspectos como habilidades sensório- possibilidades de estimulação de
motoras, conhecimento espacial - portadores da SD em musicoterapia”,
temporal e julgamento moral sejam Augusto (2003) aponta e discute
adquiridos mais lentamente do que no algumas técnicas e atividades
caso de indivíduos em desenvolvimento musicoterápicas que, recolhidas através
típico. de questionários e observações de
Entre os vários fatores que trabalhos de musicoterapeutas que se
podem interferir na variabilidade de dedicam exclusivamente ao trabalho
habilidades está a presença de alguma com o indivíduo SD, e que procuram
condição médica, tal como doenças salientar as possibilidades de
cardíacas congênitas, crises estimulação usando técnicas
convulsivas, hipotireoidismo, e musicoterápicas.
diferentes graus de hipotonia, entre Nos textos de Macedo e Martins
outras. Já o desenvolvimento da (2004) e de Matias e Freire (2005) nota-
linguagem, mostra-se mais atrasado em se uma preocupação em se
relação a outras habilidades cognitivo- contextualizar a SD para poder entender
motoras desenvolvendo-se de forma as expectativas, o relacionamento e o
irregular e não em ritmo consistente estabelecimento das relações entre
como em indivíduos em família e portador através dos tempos.
desenvolvimento típico. Um outro fato A mudança de hábitos bem como o
interessante é que as crianças SD se progresso científico modificaram não só
comunicam melhor com gestos do que a visão de profissionais da área da saúde
com palavras. como também familiares e amigos do
As crianças SD também se portador da síndrome. Na visão de
expressam bem através da música (Joly, Macedo e Martins (2004, p.144):
2003). Aulas de música e sessões de
musicoterapia têm se mostrado ao longo da história da
importantes para o desenvolvimento humanidade, as pessoas com
necessidades especiais foram
delas. percebidas e atendidas, no meio
educacional e na sociedade como
Música e Educação Especial um todo, de forma intimamente
relacionada aos valores
Relatos sobre o papel da música determinantes de cada época,
sejam eles sociais, morais,
na vida de crianças SD são comuns no filosóficos, éticos ou religiosos”.
cotidiano de diversos educadores
musicais e musicoterapeutas. Matias e Freire (2004, p. 02)
Entretanto, tais relatos são bastante afirmam ainda que “cada família se
raros na literatura acadêmica. Alguns adapta à deficiência de acordo com sua
experimentos despontam no cenário cultura, sistema de valores e
acadêmico mas poucos são os personalidade de cada membro”.
pesquisadores e profissionais da área da No que se refere à inclusão do
música que se lançam com afinco à indivíduo especial no contexto de uma
questão da educação musical neste aula de música o texto de Joly (2003)
contexto e, mais raros ainda, são apresenta questionamentos importantes
aqueles que conseguem transformar em a serem colocados antes de se realizar
ação e prática os parcos conhecimentos um trabalho prático em sala de aula. A
que existem a esse respeito. preocupação com o preparo do

244
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

profissional, suas expectativas quanto 3. Objetivos


ao desenvolvimento dos alunos
especiais, o conhecimento de seus Este trabalho, que se encontra
limites e possibilidades bem como o em andamento, está investigando o
conhecimento sobre o próprio ambiente papel da música no desenvolvimento
de trabalho (entendido não só como cognitivo-musical do portador da
espaço físico mas espaço onde Síndrome de Down. Especificamente,
convivem indivíduos diferentes) são este estudo procurou identificar
algumas questões levantadas e questões inerentes ao desenvolvimento
investigadas pela autora durante o musical em uma sessão de
programa desenvolvido com um grupo musicoterapia com uma criança SD.
de indivíduos especiais, de quadros
bastante diferentes Para Joly (p. 80)“é 4. Método
importante manter a mente aberta para
perceber as potencialidades de cada 4.1 Estudo de caso
um. Todo trabalho deve ser feito com
paciência e carinho, lembrando-se de O método de investigação usado
que é preciso valorizar a auto-estima de foi o estudo de caso (segundo definição
cada aprendiz, motivando-o a de Chizzotti, 1991) apresentado aqui na
reconhecer sua contribuição frente ao forma de narrativa de caráter
grupo em que está inserido”. investigativo. Para o presente estudo,
Para Louro (2006), a educação foi observada uma sessão de
musical feita por profissionais musicoterapia com duração de 45
informados e conscientes de seu papel, minutos realizada por uma profissional
educa e reabilita constantemente, uma da área, em um centro de educação
vez que afeta o indivíduo em todos os especial da cidade de Curitiba. A
seus aspectos: físico, mental, emocional criança, um menino SD, tinha, na época
e social. Ela ainda afirma que o aluno da realização da pesquisa, 5 anos de
tem possibilidades para entrar em idade e alternava entre sessões
contato consigo mesmo, no momento individuais de musicoterapia e aulas de
em que se depara com os obstáculos e musicalização em grupo, oferecidas
conquistas do fazer musical. Alvin regularmente pela instituição. A criança
(1966, apud Joly, 2006) concorda com o convive com aproximadamente 10
fato de que a criança especial encontra alunos que fazem parte do mesmo
na música “um mundo não ameaçador grupo, porém são portadoras de
com o qual ela pode se comunicar, se diferentes necessidades especiais como
integrar e auto-identificar-se”.Os autismo e epilepsia, por exemplo.
possíveis benefícios apontados por
Birkenshaw-Fleming (1993, apud Joly, 4.2 Descrevendo a cena
2006) como o reforço da auto-estima
através da realização de atividades Estamos em uma sala pequena,
pensadas especialmente para cada caso, tranqüila e aconchegante. No chão há
a estimulação e interação social, o um teclado, aparelho de som, alguns
desenvolvimento do tônus muscular e instrumentos, almofadas e um grande
da linguagem sugerem a importância da espelho no qual a criança é posicionada
música no contexto da educação de frente assim que se inicia a sessão. A
especial. musicoterapeuta (MT), uma mulher de
aproximadamente 40 anos de idade, que

245
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

há muito se dedica exclusivamente à corpo, mas sempre com lentidão e nem


educação especial, senta-se atrás da sempre coordenando a parte do corpo
criança, permanecendo também de com o trecho da canção.
frente para o espelho, procurando
estabelecer contato visual com a 4.3 Análise da cena: reflexões da
criança, o máximo de tempo possível. pesquisadora
Inicialmente a MT toca no
teclado algumas canções de boas vindas Segundo Joly (2003) alguns
e, ao fazê-lo, pergunta à criança como aspectos devem ser considerados
está o dia, que dia é hoje, se está importantes no trabalho com indivíduos
chovendo ou se faz sol, objetivando especiais. Entre eles a autora destaca a
situar a criança no tempo e no espaço. importância de se ter um “ambiente
Em seguida pergunta sobre o seu estado aconchegante, seguro e motivador”.
de humor e pede que acompanhe-a no Outro aspecto levantado por Joly diz
teclado, da maneira como desejar. A respeito à rotina. Para ela “a presença
criança tenta acompanhar o ritmo constante de uma rotina no cotidiano
escolhido pela MT explorando destes indivíduos propicia segurança e
aleatoriamente todos os registros do garante que o caos e a desordem não se
teclado. Noto que se trata de uma instalem em suas vidas” (p. 81). A
atividade prazerosa, uma vez que à preocupação em manter um ambiente
criança é dada a liberdade de explorar calmo, limpo, tranqüilo e aconchegante
livremente o instrumento musical. se observa tanto na sala de
Num segundo momento da musicoterapia como em todos os
sessão a MT acaricia o rosto da criança, ambientes da escola. O respeito pela
pedindo que ela se olhe no espelho e rotina se faz presente desde a entrada
faça sons com a boca e com a bochecha. das crianças até o planejamento de cada
A criança manda beijos, imita o som de aula. No caso da sessão observada, pude
alguns animais, produz sons com a notar que a MT insiste em manter a
bochecha emitindo sons graves, agudos seqüência de começo, meio e fim de
e de intensidades diferentes. De olhos cada atividade, organizando e
fechados a criança é convidada a tocar ordenando as propostas, possibilitando
sua orelha, seus cabelos e a produzir os assim a interação e a naturalidade da
sons que havia produzido criança.
anteriormente. Neste momento a criança Para Birkenshaw-Fleming (apud
ouve sons de fora da sala e é Joly, 2003) outro aspecto importante é o
questionada, pela MT, quanto ao lugar movimento como parte natural do
de onde vem e de que som se trata. Em processo de desenvolvimento de
seguida, a criança fica em silêncio, e, qualquer criança, auxiliando a aliviar
curiosa tenta ouvir mais uma vez o tensões e ajudando o corpo a assimilar
mesmo som, que não se repete. A MT conceitos, levando a criança a efetuar
insiste que ela responda de que som se contatos sociais. Não houve, nesta
trata, porém nenhuma resposta verbal é sessão, nenhuma atividade que
ouvida. envolvesse movimentos em pé, como a
Ao final da sessão a MT canta a dança de roda, por exemplo. A criança
canção “Se és feliz” e pede que a permaneceu sentada o tempo todo. As
criança acompanhe mostrando as partes atividades que envolviam movimentos
do corpo solicitadas pela música. A da cabeça, olhos, boca, nariz, bochecha,
criança aponta para algumas partes do pescoço, braços e mãos foram

246
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

executadas mediante uma grande em cada sessão e seu desenvolvimento


quantidade de explicações e foi descrito em fichas que direcionam
intervenções da MT (como no caso da todo o trabalho. No que diz respeito à
canção “Se és feliz”). devolutiva de cada paciente, a MT
Para Guerra (apud Augusto, afirmou que é preciso estar atento a
2003) “ao cantar é importante qualquer tipo de reação: um gesto, um
massagear o corpo da criança sempre, olhar direcionado, a tensão ou
dando a ela um continente afetivo; ela relaxamento da criança muitas vezes é
precisa de colo, de aconchego e de mais eficaz que a resposta verbal,
afeto” (p. 10). De fato, a utilização do inexistente em muitos casos. Quanto ao
toque, do carinho e do afeto foi desenvolvimento das crianças em sala
constante durante toda a sessão, o que, de aula, por exemplo, a MT afirmou que
de certo modo pareceu tranqüilizar a as sessões colaboraram de maneira
criança, possivelmente trasmitindo-lhe o positiva em casos de crianças agitadas e
sentimento de aceitação e o de de difícil socialização. Em situações de
pertencer. dificuldades de comunicação a
A participação da criança variou musicoterapia permitiu que algumas
de acordo com a atividade e o tempo de crianças se expressassem de outras
concentração em cada uma delas é formas como na dança, no gesto ou na
pequeno. Segundo Schwartzman (2008) execução de um instrumento musical.
a deficiência mental, desde suas No caso específico da criança
descrições originais, é apontada como observada, a MT afirmou que houve
uma das características constantes da maior desenvolvimento no canto e na
SD. Sinto que, em alguns momentos, a socialização da criança, considerada
criança queria chamar minha atenção pela professora de classe, como agitada,
realizando as atividades “ao contrário” teimosa e impaciente.
daquilo que lhe foi solicitado. Estes
resultados estão de acordo com um 5. Conclusão preliminar
estudo realizado por Gunn e Cuskelly
(1991, descrito por Schwartzman, Embora preliminar, este estudo
2008), que relatou que as mães de sugere que é possível usar a música em
crianças SD percebem seus filhos como programas de educação especial através
sendo menos ativos, mais previsíveis, de uma boa preparação do profissional,
de humor mais positivo, menos que deve ser capaz de planejar, adaptar
persistentes e mais distraídos. e avaliar atividades e procedimentos de
acordo com cada indivíduo.
4.4 Análise da cena: reflexões da Para Birkenshaw-Fleming
musicoterapeuta (1993, P. 81 apud Joly, 2003):

Em conversa com a com um programa de educação


musicoterapeuta perguntei como ela musical bem estruturado e com
objetivos bem definidos é
avaliava o desenvolvimento de cada possível promover o
criança durante o trabalho. A desenvolvimento físico,
profissional me explicou que intelectual e afetivo da criança
primeiramente fazia uma avaliação com necessidades especiais.
prévia da criança baseada em critérios
musicoterápicos. De acordo com estes Entretanto, ainda há um longo
critérios a criança era, então, observada caminho a ser seguido, sobretudo no
que diz respeito à pesquisa científica. O

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

próximo passo desta pesquisa é. analisar aprendizagem musical. In: ILARI, B.


de que maneira o uso da música pode (org.) Em busca da mente musical.
auxiliar no desenvolvimento fisco, Curitiba: Editora UFPR, p. 231-269,
intelectual e afetivo das crianças SD, 2006.
identificando questões específicas ao JOLY, I.Z.L. Música e Educação
desenvolvimento musical , sugerindo especial: uma possibilidade concreta
novas perspectivas para os diversos para promover o desenvolvimento de
setores das áreas da saúde e da educação indivíduo. Revista do Centro de
de um modo geral. Educação da UFSM, Santa Maria, V.
Como sugere Joly (2003, p. 85): 28, n° 02, P. 79-86, 2003.
é preciso estar atento para o fato LOUREIRO, C.M.V.; GUERRA, L.B.;
de que a música tem sido FRANÇA, M.C.C. Musicoterapia na
reconhecida como elemento educação musical do portador de atraso
importante em processos
educativos, profiláticos e do desenvolvimento: período crítico e
terapêuticos, mostrando aos plasticidade cerebral. Anais do I
poucos como é fundamental no Encontro Nacional de Cognição &
processo de desenvolvimento de Artes Musicais. Curitiba: Editora do
crianças, sejam elas especiais ou DeArtes, P. 203-209, 2006.
não.
LOURO, V.dos S. Educação Musical e
6. Subáreas de conhecimento Deficiência: propostas pedagógicas.
São José dos Campos: Ed. Do Autor,
Educação musical, psicologia, 2006.
pedagogia, educação especial. MACEDO, B.C.; MARTINS, L.A.R.
Visão das mães sobre o processo
7. Referências educativo dos filhos com Síndrome de
Down. Revista Educar, Curitiba:
ÁLVARES, T. Música como Editora UFPR, n.23, 143-159, 2004.
propiciadora da (re)organização da
experiência de mundo: musicoterapia MATIAS, R.B.; FREIRE, R.D. A
com crianças portadoras da síndrome do importância da música no
autismo. Anais do Simpósio fortalecimento de vínculos afetivos em
Internacional de Cognição & Artes família com bebês Síndrome de Down.
Musicais. Curitiba: Editora do ICTUS, 6, 01-08, 2005.
DeArtes, P. 392-399, 2005. MOREIRA, S.V. Impacto da
AUGUSTO, M.I.C. As possibilidades musicoterapia na qualidade de vida em
de estimulação de portadores da adultos com esclerose múltipla. Anais
síndrome de down em musicoterapia. do Simpósio Internacional de
Monografia de graduação em Cognição & Artes Musicais. Curitiba:
Musicoterapia apresentada no Editora do DeArtes, p.456-460, 2005.
Conservatório Brasileiro de Música do SCHWARTZMAN, J.S. Vídeo aula.
Rio de Janeiro, 1-27, 2003. Disponível em
CHIZZOTI, A. Pesquisa em ciências http://www.schwartzman.com.br.
humanas e sociais. São Paulo: Cortez, Acesso em 10 jan.2008.
1991.
HARGREAVES, D.; ZIMMERMAN,
M. Teorias do desenvolvimento e

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Transferência de habilidades cognitivas e a música:


uma revisão

Caroline Pacheco
UFPR
carolbrendel@gmail.com

Resumo: O presente trabalho se propõe a revisar alguns estudos sobre transferências de


habilidades cognitivas. Serão apresentadas algumas pesquisas recentes que abordam questões
como a relação entre música e linguagem, o conceito de transferência cognitiva e alguns estudos
que correlacionam o aprendizado musical e as transferências cognitivas entre contextos. Para
tanto, se faz necessário esclarecer algumas questões, ainda hoje divulgadas, advindas dos
resultados do bastante questionável “Efeito Mozart”. São revisados também alguns estudos que
correlacionam a música e a inteligência, assim como a transferência entre os contextos do
aprendizado musical e das habilidades não-musicais. A última parte deste artigo traz
implicações destes estudos para futuros estudos da cognição musical.

Palavras-chave: transferência cognitiva, aprendizado musical e habilidades não-musicais.

o fenômeno mais amplo de qualquer


1. Introdução transporte de conhecimento ou de
habilidades de uma situação problemática
As ciências cognitivas carregam para outra.” (Sternberg, 2000, p. 323).
em seu escopo a multidisciplinaridade, a Uma transferência é positiva – quando há
conversa produtiva que se estende entre facilidade na resolução de um problema
diferentes áreas do conhecimento. atual devido à solução de um problema
O presente artigo se propõe a anterior - ou negativa - quando a
revisar os estudos da área que tomam como resolução de um problema anterior
ponto de partida a multidisciplinaridade dificulta a resolução de um problema
inerente às transferências cognitivas. posterior. A transferência negativa é
Aqui são abordados alguns temas como também conhecida como interferência
a música, a linguagem, as transferências (Schellenberg, 2001). Barnett e Ceci
cognitivas, o “Efeito Mozart”, a (2002 apud Schellenberg, 2004) ainda
inteligência e as habilidades não- propõem uma subdivisão do conceito em
musicais. Sugestões para a pesquisa em transferência próxima (near transfer) e
cognição musical são apresentadas ao transferência distante (far transfer),
final do artigo. estabelecendo que a transferência
próxima acontece quando existem fortes
2. Transferências cognitivas: alguns semelhanças entre os contextos ou
conceitos domínios em questão. Já a transferência
distante, ocorre entre contextos e
Sternberg (2000), tratando de domínios mais afastados.
possíveis obstáculos e/ou facilitadores à
resolução de problemas, conceituou
transferência como um termo utilizado
pela psicologia cognitiva “para descrever

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

itens lexicais que proporcionam, ao


3. Música e linguagem: apontamentos mesmo tempo, condições de legibilidade
iniciais (como um item deve ser falado ou
ouvido) e de compreensibilidade (como
A linguagem pode ser entendida um item deve ser entendido). Há neste
sob diferentes enfoques teóricos, ponto um impasse, visto que a semântica
entretanto se faz necessário estabelecer - entendida como relação entre as
alguns conceitos que possam clarear expressões lingüísticas e o mundo -
possíveis similaridades e diferenciações ficaria de fora da gramática. Neste
entre a música e a linguagem, tornando sentido a discriminação entre semântica e
viável assim, o reconhecimento de pragmática, proposta por Borges (2005),
prováveis pontos de interseção. faz uma diferenciação entre aquilo que as
Baseado nas idéias de Lewis (1983), expressões lingüísticas significam (isto é,
Borges (2005) conceitua a linguagem como a semântica) e o que os falantes querem
um mecanismo que combina sons vocais ou dizer com estas expressões (ou seja, a
marcas (representações no papel) para a pragmática). Segundo Borges (2005), para
constituição de sentenças, formadas por um Chomsky o que existe é a pragmática.
conjunto de seqüências bem estruturadas. É Um tema musical, por sua vez,
necessário estabelecer alguns pontos não possui nenhum significado próprio,
fundamentais para o entendimento e entretanto, adquire algum significado à
articulação deste conceito: (1) as medida que é utilizado querendo dizer
palavras ou morfemas são as menores algo, assim, o significado de uma idéia
seqüências de sons vocais e constituem musical é construído por um processo
um nível de análise chamado de pragmático (Antovic, 2004, apud Borges,
morfologia ou léxico; (2) a sintaxe tem 2005). Isso não significa que a música
como objeto de investigação as seja linguagem. Todavia, seria possível
sentenças, que são as seqüências bem concordar com a idéia de que a música é
formadas de palavras; (3) o mecanismo um sistema biológico semelhante à
que associa as sentenças elaboradas na linguagem humana, uma vez que faz uso
sintaxe com o meio externo constitui a dos componentes do léxico, da sintaxe e
semântica (Lewis, 1983 apud Borges, da pragmática e é utilizada pelas pessoas
2005). A linguagem é entendida, então, para difundir seus próprios significados
como o mecanismo que articula seus (Borges, 2005). O diálogo entre estes
componentes: o léxico, a semântica e a sistemas biológicos - a linguagem e a
sintaxe. música - pode ser fecundo, principalmente,
Borges (2005) argumenta que se tomamos a idéia de que a mente está
para Chomsky (1973) “as línguas são organizada em módulos autônomos,
sistemas biológicos que os homens usam independentes, mas, inter-relacionados
para falar sobre o mundo (ou sobre a (Chomsky, 1973 apud Borges, 2005) e
representação mental que têm dele), que a linguagem e a música podem
descrever, referir, perguntar, comunicar constituir dois estes módulos (Borges,
com os outros, articular pensamentos, 2005).
falar consigo mesmo, etc.” (Borges, 2005, Uma sugestão deste diálogo entre a
p. 6). A gramática, por sua vez, é a linguagem e a música, ou desta organização
representação teórica deste sistema mental em módulos independentes, mas
biológico, da linguagem. Esta gramática é inter-relacionados, pode ser observada nos
entendida como um conjunto de regras estudos conduzidos no Instituto de
que agem sobre um léxico constituído de Neurociências do Mediterrâneo (Schön,

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Magne & Besson, 2004; Magne, Schön & participantes eram músicos com cerca de
Besson, 2006). Partindo das idéias de que 15 anos de estudo; já o estudo
(1) a prática musical intensiva ou a desenvolvido com crianças analisou os
exposição à música podem beneficiar resultados de 26 crianças de 8 anos (14
domínios não-musicais e (2) que o meninas e 12 meninos), metade das quais
treinamento musical pode ser responsável estudava música. Todos os participantes
por importantes diferenças na dos estudos tinham o francês como língua
organização anatomo-funcional do materna, eram destros e não apresentavam
cérebro, os autores buscaram verificar se problemas de audição. As crianças que
a prática musical pode favorecer o participavam da pesquisa estudavam na
desenvolvimento e o funcionamento de mesma escola e provinham do mesmo
áreas cerebrais específicas, favorecendo grupo socioeconômico. Elas foram
não somente o processamento musical, divididas em dois grupos: músicos e
mas também as transferências positivas não-músicos. As crianças do grupo dos
para outros domínios da cognição, como músicos tocavam instrumentos musicais
a linguagem. Para tanto, elaboraram dois há cerca de quatro anos e praticavam
estudos praticamente iguais, um diariamente. Já as crianças do grupo dos
realizado com adultos (Schön, Magne & não-músicos participavam regularmente
Besson, 2004) e outro com crianças de diversas atividades extracurriculares
(Magne, Schön & Besson, 2006). (como natação, judô, tênis, entre outras).
Os pesquisadores usaram técnicas Os participantes foram submetidos
avançadas de imageamento cerebral que a um teste em que ouviam melodias e
ofereceram novas formas de analisar os frases enquanto um equipamento de
resultados do estudo, o que resultou na eletroencefalograma registrava a resposta
diminuição de problemas metodológicos da atividade elétrica cerebral, o potencial
encontrados em outros estudos da área. relacionado ao evento (ERP). Cada
As pesquisas objetivavam verificar se o participante ouviu blocos de melodias e de
treinamento musical influencia o materiais prosódicos (frases) e deveria
processamento de alturas na música e na decidir, com a maior precisão e o mais
linguagem. Para isso, os estudos rápido possível, se a altura da última nota
compararam a percepção de alturas na da melodia e da última palavra da frase
música e na linguagem a partir de testes estava correta ou não. O procedimento
de ERP1,obtidos através da violação, em ocorreu utilizando como estímulo uma série
diferentes graus, da expectativa da de sentenças em francês e uma série de
freqüência fundamental da nota final de melodias que foram apresentadas em três
uma melodia e da última palavra de uma condições experimentais: nota ou palavra
frase. final prosódica ou melodicamente (1)
O estudo realizado com adultos congruente, (2) fracamente incongruente e
(Schön, Magne & Besson, 2004) (3) incongruente. No caso do estudo com as
comparou os resultados de 18 adultos crianças, as frases foram retiradas de livros
(média etária de 31 anos), sendo que nove infantis e as melodias pertenciam ao
cancioneiro infantil.
1
Resumidamente, os resultados
EPRs (sigla de potencial relacionado ao obtidos foram analisados verificando a
evento) compõem uma forma de medição,
através de um eletroencefalograma, da resposta
quantidade de erros, o tempo de reação
da atividade elétrica cerebral que está ao estímulo e os dados elétrico-
diretamente ligada ao resultado de um fisiológicos. Os autores concluíram que
pensamento ou de uma percepção, partindo de (a) adultos músicos detectaram, com
um estímulo interno ou externo.

251
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

maior precisão e em menor tempo, a 4. Transferências cognitivas e o


violação de alturas tanto na música aprendizado musical
quanto na linguagem do que adultos não-
músicos; (b) diferenças significativas na Alguns pesquisadores elaboraram
percepção da violação de alturas de revisões sobre transferências envolvendo
crianças musicistas e não musicistas foram a música. Ilari (2005) revisou estudos
encontradas somente quando a violação sobre os efeitos das transferências
continha fracas incongruências, ou seja, cognitivas entre contextos levando em
todas as crianças do estudo obtiveram consideração o aprendizado musical e
resultados similares na percepção de quatro áreas distintas: a inteligência, a
congruências e incongruências na música matemática, a linguagem e a leitura.
e na linguagem. Entretanto, as crianças Costa-Giomi (2006) também revisou
musicistas obtiveram melhores resultados diversos trabalhos, desenvolvidos a
na percepção de violações de alturas de partir da década de 1970, que versavam
fraca incongruência em ambos os sobre os efeitos do ensino musical no
domínios; (c) adultos músicos e crianças rendimento escolar, no desenvolvimento
musicistas obtiveram melhores resultados de habilidades espaciais e verbais, na
na detecção de violações de alturas tanto memória verbal, na relação entre música
na música quanto na linguagem, quando e leitura e em benefícios neurológicos. A
os resultados foram comparados com autora afirmou que o ‘benefício mais
adultos e crianças sem treinamento importante’ é a música na vida das
musical; (d) os resultados apontaram para crianças. Todavia ressaltou que a
evidências da existência de um pesquisa que relaciona a música e o
mecanismo comum para o processamento desenvolvimento de habilidades é
de alturas na percepção da linguagem e importante para compreendermos melhor
da música. o desenvolvimento infantil e suas
No entanto, é possível fazermos possíveis implicações na educação
algumas críticas. Nos estudos supracitados, musical, uma vez que este conhecimento
a falta de controle de variáveis como nível pode auxiliar na compreensão de como
educacional, situação sócio-econômica e as crianças aprendem e se desenvolvem
gênero, pode ter influenciado o resultado em geral e musicalmente.
obtido na amostra dos adultos. Assim Uma outra revisão, proposta por
como a questão da influência dos sotaques Schellenberg (2001), trouxe uma visão
na fala ou do conhecimento prévio das um pouco diferenciada, pois, situou as
melodias utilizadas no experimento pelos bases teóricas das pesquisas entre a
participantes adultos. Todavia, a sugestão música e as habilidades não-musicais no
da existência de um mecanismo comum domínio da neuropsicologia cognitiva.
para o processamento de alturas na Fica claro que, assim como Ilari (2005),
percepção da linguagem e da música o autor propôs um olhar mais atento aos
corrobora a idéia de que a organização resultados de pesquisas que ganharam
mental pode ocorrer através de módulos grande visibilidade, e força comercial, na
independentes, porém inter-relacionados potencialidade de seus resultados como
(Borges, 2005). produtos vendáveis à população e
facilmente difundidos pela mídia (como
é o caso do Efeito Mozart). Além disso,
outras vias – como, por exemplo, o
estudo desenvolvido por Schellenberg
(2004) - foram propostas para apontar

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

incoerências metodológicas e outras ii. o tráfego de pedestres pode se


explicações possíveis aos resultados tornar mais calmo e,
analisados. conseqüentemente, haverá uma
redução no uso de drogas,
5. O efeito Mozart e sua repercussão iii. o aprendizado do inglês para
estrangeiros recém-chegados a
“Efeito Mozart” foi o nome dado América pode se tornar mais
a uma pesquisa científica, desenvolvida rápido e eficaz.
por Rauscher e colegas (1993, apud Costa- Schellenberg (2001) questionou o
Giomi, 2006; Ilari, 2005; Schellenberg, resultou do “Efeito Mozart” e apontou
2001) onde foi observada uma pequena uma primeira diferenciação importante,
melhoria temporária nas habilidades que diz respeito à confusão criada entre
espaciais dos participantes do estudo. Os leigos e pesquisadores, na relação entre
pesquisadores aplicaram três testes de as conseqüências de curto prazo de se
habilidades espaciais em alunos de um ouvir determinado tipo de música e os
curso de psicologia, sob três condições efeitos de longo prazo da aprendizagem
diferentes: o primeiro grupo ouviu uma musical.
sonata de Mozart antes de resolver os Estudos com delineamentos iguais
testes, o segundo grupo ouviu uma fita ou similares ao estudo que deu origem ao
de relaxamento e o último grupo “Efeito Mozart” foram desenvolvidos.
ficou sentado em silêncio antes do Antes de resolver testes de habilidades
teste. Os escores mais altos foram espaciais os participantes de diversas
alcançados pelo grupo que ouvia Mozart. pesquisas ouviram (1) músicas de
Os pesquisadores então converteram estes Mozart, Philip Glass, Schubert; (2)
resultados em escores de quocientes de narração de uma história gravada; (3)
inteligência (QI) e acabaram difundindo a repetições de uma mesma peça de dança,
idéia que ouvir Mozart passivamente pode entre outros. Até o ano de 2000 mais de
deixar as pessoas mais inteligentes 20 novas pesquisas já tinham sido
(Schellenberg, 2001). realizadas, no entanto, menos da metade
A possibilidade de ouvir W. A. encontrou resultados semelhantes
Mozart e se tornar mais inteligente criou (Schellenberg, 2001).
uma grande confusão. Em 1998, por Os resultados obtidos por
exemplo, um governador americano Rauscher e seus colegas poderiam ser
distribuiu nas maternidades um cd fruto de diferenças na disposição e na
intitulado “Construa o cérebro de seu motivação dos participantes. Porém, há
bebê através da música de Mozart”, uma grande diferença de condição entre
acreditando que dentro de alguns poucos ficar 10 minutos ouvindo Mozart, uma
anos a população de seu estado seria música para relaxar ou simplesmente
mais inteligente que a média (Ilari, permanecer em silêncio, condições em
2005). Outro exemplo foi a aposta de que se encontravam os participantes em
Don Campbell (2005) no ‘poder curativo todos os casos que o “Efeito Mozart”
ou preventivo’ da música de Mozart. Em ficou evidente. Esta situação pode ter
seu livro “O efeito Mozart”, o autor delineado um momento chato para os
descreve diversos benefícios que podem participantes (comparado com ouvir
ser associados à audição da música de música), estabelecendo assim um ‘estado
Mozart, tais como: da mente’ negativo ou ainda níveis
i. as vacas podem produzir mais baixos de estimulação cognitiva
leite, (Schellenberg, 2001). Esta hipótese de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

‘estado da mente ou estimulação’ 144 crianças participaram de aulas


também foi testada e indicou que estados semanais ministradas no Royal
da mente positivos poderiam aumentar o Conservatory of Music de Toronto
nível de circulação do neurotransmissor (Canadá) por dois estudantes de
dopamina, o que contribuiria em uma graduação. As crianças foram divididas
gama de tarefas cognitivas. Sendo assim, em dois grupos experimentais (teclado e
o “Efeito Mozart” teria uma explicação Kodály) e dois grupos controle (teatro e
neuropsicológica, pois, ouvir música nenhuma atividade).
poderia ser uma das maneiras de indução As crianças participantes da
à ‘estados da mente ou estimulação’ pesquisa e seus familiares responderam a
positivos (Schellenberg, 2001). testes antes do início das aulas
extracurriculares e um ano após o início
6. A Música, as habilidades não- destas. Os testes utilizados foram: (1)
musicais e a inteligência Weschler Intelligence Scale for Children,
(2) Kaufman Test of Educational
É crescente o número de Achievement, (3) Parent Rating Scale of
pesquisas que consideram a relação the Behavioral Assessment System for
música, habilidades não-musicais e/ou Children. Os resultados do pré-teste não
inteligência. Como verificar possíveis sugeriram diferenças significativas entre
relações? O aprendizado musical formal os grupos. Entretanto, no pós-teste, todas
prevê concentração, prática diária, as crianças obtiveram melhores escores,
leitura da notação musical, memorização com uma vantagem bem modesta das
de trechos musicais, aprendizado de crianças participantes das aulas de música.
diversas estruturas musicais teóricas e Segundo Schellenberg, o aumento nos
progresso técnico (Schellenberg, 2004). escores de todos os participantes pode ter
Segundo Huttenlocher (2002, apud sido uma conseqüência da entrada das
Schellenberg, 2004) esta combinação de crianças na escola, tendo em vista que o
experiências teria um impacto cognitivo pré-teste foi realizado antes que as
positivo, principalmente durante a crianças começassem as aulas regulares na
infância quando o cérebro é fortemente 1ª série. As crianças dos grupos
passível à plasticidade e sensível à experimentais produziram resultados mais
influência do meio. elevados e similares, independentemente
No entanto, os estudos que da atividade musical desenvolvida. O
investigaram os benefícios decorrentes pesquisador concluiu que a participação
do aprendizado musical em domínios em aulas de música pode proporcionar
não-musicais foram baseados em um pequeno aumento do quociente de
amostras de crianças que tinham aulas de inteligência das crianças de seis anos de
música em contraponto a crianças que idade. No entanto, é necessário examinar
não participavam de nenhuma atividade esta conclusão com cuidado, visto que os
extracurricular, o que dificultou a análise resultados dos grupos não foram
dos resultados destas pesquisas. Partindo apresentados separadamente, o tipo de
desses pressupostos, Schellenberg (2004) tratamento realizado na análise dos dados
realizou um estudo que buscou responder não foi esclarecido e não houve uma
a questão: “A participação em aulas de maior preocupação na argumentação
música pode aumentar o QI?” Através de entre as correlações advindas dos
um anúncio no jornal, o pesquisador resultados da pesquisa e a literatura
ofereceu aulas de artes gratuitas para pertinente. Também não foram
crianças de seis anos. Durante um ano, disponibilizadas informações sobre a

254
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

vida escolar das crianças e não se sabe se de novas diretrizes teóricas para a
o aprendizado formal, ao qual as cognição musical no Brasil.
crianças foram submetidas, teve alguma
influência nos resultados da pesquisa.
8. Subáreas do conhecimento
Schellenberg (2001) ainda revisou
outros estudos que procuraram Cognição musical, educação musical,
estabelecer conexões entre o aprendizado lingüística, neuropsicologia cognitiva.
musical e diversas habilidades não-
musicais como as habilidades espaciais
9. Referências bibliográficas
(descritas anteriormente), as habilidades
de leitura; as habilidades matemáticas; a
BORGES, José. Música é linguagem?.
memória e a inteligência. Porém, o autor
questiona se todos os resultados obtidos In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE
nesses diversos estudos podem ser COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 1,
atribuídos somente à aprendizagem 2005, Curitiba. Anais… Curitiba:
musical e propõe a realização de estudos Deartes-UFPR, 2005, p. 3-9.
rigorosos que levem em conta, também, CAMPBELL, Don G. O efeito Mozart:
o desenvolvimento neurológico nos explorando o poder da música para curar
primeiros anos de vida assim como as
o corpo, fortalecer a mente e liberar a
influências do meio no desenvolvimento
infantil. criatividade. Trad. Nivaldo Montigelli
Jr.. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
7. Conclusões e implicações preliminares ILARI, Beatriz. A música e o
desenvolvimento da mente no início da
Esta breve revisão de literatura vida: investigação, fatos e mitos. In:
aponta para diversas possibilidades de SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE
pesquisa sobre a música e as transferências
COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 1,
cognitivas. Além de desvelar muitas
abordagens metodológicas, assim como 2005, Curitiba. Anais… Curitiba:
suas incongruências, a análise destes Deartes-UFPR, 2005, p. 54-60.
estudos demonstra claramente a ausência MAGNE, Cyrille; SCHÖN, Daniele; BESSON,
de estudos realizados no Brasil. Faz-se Mireille. Musician children detect pitch
necessário um aprofundamento teórico violations in both music and language
desta área e, principalmente, a realização
better than nonmusician children: behavioral
de estudos que tomem dados de amostras
brasileiras e considerem este nosso contexto, and electrophysiological approaches.
amplamente rico e fundamentalmente Journal of Cognitive Neuroscience,
diverso. [S.l.], v. 18, n. 2, p. 199-211, 2006.
Há a necessidade de estudos que SCHELLENBERG, E. Glenn. Music lessons
considerem a língua portuguesa, a escola enhance IQ. Psychological Science, [S.l.],
brasileira e os inúmeros contextos de v. 15, n. 8, p. 511-514, 2004.
aprendizagem musical nos quais os
SCHELLENBERG, E. Glenn. Music and
brasileiros, sejam crianças, adolescentes
ou adultos, estão engajados. Esta nonmusical abilities. Annals of the New
‘pesquisa brasileira’ trará subsídios para York Academy of Sciences, New York,
a verificação da validade de estudos v. 930, p. 355-371, 2001.
estrangeiros ou para o estabelecimento SCHÖN, Daniele; MAGNE, Cyrille;
BESSON, Mireille. The music of speech:

255
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

music training facilitates pitch processing in STENBERG, Robert. Resolução de


both music and language. Psychophysiology, problemas e criatividade. In: R.
[S.l.], v. 41, p. 341-349, 2004. STENBERG. Psicologia Cognitiva.
Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

256
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Música na gestação como processo cognitivo

Celina Maydana
cmaydana@compuland.com.br
Maria de Fátima Brasil

Palavras-chave: gestação – música – cognição

— Sabem para quem isso faz bem?


Rostos umedecidos e sorridentes, — Para o bebê e para a mamãe.
corações acelerados. Afinal, quem não gosta de amor?
Emoção e alegria resultantes da Olha... isso é matéria para escrever
tradução e leitura de um exame feita pelo um livro!
médico.
Estamos grávidos! Buscar informações com nosso
Naquele momento nada melhor que médico é sempre muito importante,
um abraço carinhoso e os parabéns pela porque nenhuma gestação é igual à
nova etapa da vida que virá. A emoção é outra, nenhum parto é igual ao outro,
muito forte, mas dá espaço a um filme nenhum filho é igual ao outro, mesmo
rápido: a realização de um desejo
que sob quaisquer circunstâncias todos
guardado por algum tempo, por algo
planejado com muito carinho, ou uma os filhos sejam sempre e para sempre
surpresa que fortalece, revitaliza, realiza amados pelos pais.
mais uma vez ou pela primeira vez o fato de O Projeto Música Mulher,
que seremos pais. Somos pais natos, mas Programa Música e Gestação foi criado
desta vez construímos, elegemos, em 1999. O Programa tem dois
escolhemos através de um ato de amor o alicerces para as futuras mamães: o
nosso filho. primeiro alicerce são as informações
Inevitavelmente o próximo passo é técnicas - gestação, parto,
contar esta novidade para a família e isso amamentação, pós-parto, etc; o segundo
significa que todos vão dar opinião, contar é a música.
histórias dos outros partos, a discussão
Com o Programa Música e
entre vai ser menino ou menina. E não
adianta fazer cara feia, diga-se de Gestação, cuidamos da futura mamãe,
passagem, o melhor a fazer é ouvir, objetivando seu pleno desempenho na
agradecer, sorrir, “entrar na dança” e promoção da saúde de si mesma e de
aproveitar o que seja interessante. O fato seu bebê. Quando falamos de saúde,
mais maravilhoso desse período é que se referimo-nos a ela de uma forma
haviam birras, desentendimentos entre as holística: física, mental e emocional.
famílias, elas se diluem pela alegria do Neste processo a interação da mamãe
mais novo fruto da árvore genealógica. com seus semelhantes e com o meio em
Papai quer que seja homem e mamãe diz que vive, traduz um processo cognitivo.
que não faz diferença. O amor de mãe é De acordo com Godoy (2006):
soberbo. Os tios e tias querem
experimentar como é ser pai ou mãe. Vovó
Cognição é o ato de conhecer, que
e vovô futuros “bisos” consideram que o envolve atenção, percepção,
mais importante é que venha com saúde. memória, raciocínio, juízo,
Que delícia! As famílias felizes e imaginação, pensamento e
fazendo planos. linguagem. É mais que

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

simplesmente a aquisição de podendo saltar ao ouvir o som de


conhecimento e uma buzina, por exemplo.
conseqüentemente, a nossa
melhor adaptação o meio – mas é Bernini (1989) completa com:
também um mecanismo de
conversão do que é captado para o nos estágios finais do
nosso modo de ser interno. desenvolvimento intra - uterino,
o sentido acústico do feto
De acordo com a NAMT (1980): começa a sonoro intra-uterino.

Musicoterapia é a utilização Por estas afirmações, todo


música para atingir objetivos cuidado é pouco com o que se oferecerá
terapêuticos: a restauração,
manutenção e melhoria da saúde
ao feto.
física e mental. Este processo está baseado em
encontros semanais de duas horas de
Bruscia nos mostra áreas de duração, onde se introduz a música na
mudanças terapêuticas quando se utiliza vida das gestantes de uma forma suave
da musicoterapia. Dentre elas, duas são e sutil, mas eficaz, fazendo-as
importantes no programa que vimos perceberem, por si mesmas, através de
realizando: experiências, a importância e o retorno
que todo este processo pode trazer.
Cognição: amplitude, Desde que foi criado o Programa
profundidade e duração da Música e Gestação recebeu em torno de
atenção; retenção de curto e longo
prazos; habilidades de
200 gestantes.
aprendizagem; nível de CCC (2008) nos fez um relato
conhecimentos ; padrões e sobre sua participação no programa:
processos do pensamento,
atitudes, estilo cognitivo de Estar grávida foi um
crenças, constructos. acontecimento maravilhoso na
Comportamento: padrões, nível minha vida. Vivi intensamente a
de atividade, eficiência, reforços minha gravidez e tive a chance de
contingenciais, produtividade no perceber os efeitos benéficos que
trabalho, segurança, moral. (2000, a música pode trazer para tornar
p. 162) esse período, de tantas mudanças,
bem tranqüilo.
Como utilizamos a música como Como gestante, pude perceber os
recurso do nosso programa, vejamos efeitos tanto no aspecto físico,
quanto no emocional.
como ela atua no decorrer de todo este Fisicamente me sentia mais
processo. relaxada. Dava uma pausa na
Estudos investigativos correria do dia a dia. Aprendi a
demonstram que o sistema auditivo já respirar melhor. A musicoterapia
aparece como um pequeno esboço aos era associada a exercícios físicos
leves e exercícios respiratórios.
18 dias de gestação. Na 12º semana o Aprendi que a respiração é
feto já percebe sons por meio de fundamental para um a qualidade
vibrações. de vida melhor.
Segundo Fridman (2004, p. 44): Emocionalmente, estar em
contato com a música, me
Na 24a semana pode ouvir os permitia estar em contato comigo
ruídos intestinais e cardíacos da mesma, e, é claro com o meu
mãe e dele mesmo, no terceiro bebê. Me sentia ainda mais
trimestre responde aos sons, ligada a ele. Me desligava do
mundo e me envolvia somente

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

com aquele ser dentro de mim. E, responsabilidade materna em


com isso, me sentia menos relação ao filho. (1997)
ansiosa. Era uma sensação
indescritível. Temos verificado que os bebês
participantes são tranqüilos, o período
Hoje, minha filha está com dez de amamentação transcorre sem
meses e venho percebendo como esse problemas, desenvolvem a linguagem
contato com a música tem sido mais precocemente, e pela música
fundamental para o seu vivenciam de forma lúdica situações do
desenvolvimento. É incrível a cotidiano. O ritmo é outro ponto
capacidade que ela tem de reconhecer importante, e percebemos essa diferença
os sons (parece que tudo que ouvíamos observando o desempenho dos bebês
durante a gravidez ficou registrado, nas aulas de musicalização. A produção
pois, percebo que de alguma forma ela musical é significativa, superando as
reconhece essas músicas) e, como tudo expectativas.
que envolve música desperta sua Enfim, são nove anos
atenção. Basta ter uma simples promovendo a saúde - do corpo, da
melodia para ela ficar ligada. Outro mente e da alma - no período pré-natal.
aspecto que percebo desde o seu São nove anos desejando que esta mãe e
nascimento é que além de ser bem este bebê passem os próximos nove
tranqüila ela tem um sono tranqüilo. meses envoltos numa bolsa amniótica,
Quase sempre dorme ouvindo música. que já tem, como o leite materno uma
Enfim, viver tudo isso tem sido fórmula única – com todos os
uma grande experiência e espero ter ingredientes para manutenção de suas
sempre a música presente em nossas vidas, além de pitadas de carinho,
vidas.” cuidado, atenção, amor, paz,
Fazer, por meio de tranqüilidade, conforto, alegria,
acompanhamento técnico e musical, as espera...sim uma espera sem
mamães vivenciarem todo o período preocupação e sem pressa. Sempre
gestacional de uma forma segura, dizemos que a gestação é excelente para
íntegra, saudável, compreendendo o ensinar às futuras mamães a frear.
mais possível tudo o que lhes acontece, Muitas pesquisas científicas
sabendo lidar com as situações e revelam a importância da qualidade de
preparando-se para a maternidade de vida para a mamãe e o bebê durante os
uma forma plena, na certeza de que nove meses de gestação. O bebê vive
estão fortalecendo o vínculo criado um período temporariamente interno,
desde o momento em que a idéia da mas ele participa da vida externa que a
maternidade surgiu, lhes dará mãe lhe proporciona.
tranqüilidade e estrutura (dentro de seu
próprio processo cognitivo), para Referências bibliográficas
oferecer ao seu filho bases sólidas para
o desenvolvimento cognitivo, afetivo e COSTA, C. M. O Despertar para o
social na sua totalidade. outro. São Paulo: Summus Editorial,
Kimura (apud Rubin, 1984) cita 1989.
que:
FREGTMAN, C. D. Corpo, Música e
A despeito da forte natureza Terapia. São Paulo: Cultrix, 1989.
cognitiva a identidade materna
tem um componente afetivo
expresso pela empatia e

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

MCCLELLAN, R. O Poder FRIDMAN, Ruth. La música para el


Terapêutico da Música. São Paulo: ñino por nacer: los comienzos de la
Siciliano, 1994. conducta musical. Buenos Aires
Dunken, 2004.
MILLECCO FILHO, L.A.;
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Ediouro, 2000.

260
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Música em musicoterapia na abordagem músico-centrada:


uma visão cognitivista

Clara Márcia de Freitas Piazzetta


NEPAM-CNPq

Vivemos porque conhecemos e conhecemos porque


vivemos e todo ato de conhecer faz surgir um mundo.
(Maturana & Varela)

Resumo: Este ensaio aborda o tema música em Musicoterapia na visão da Teoria da


Complexidade. Fundamenta-se na Teoria Músico-Centrada e, a partir do princípio
musicoterapêutico viver na música reflete a utilização plena do poder da música nas
experiências musicais compartilhadas. Deste modo apresenta as contribuições da aproximação
entre Teoria da Metáfora e Teoria da Música para o campo da Musicoterapia Músico-centrada.

Palavras-chave: musicoterapia, teoria da Metáfora, musicing, música em musicoterapia.

fenômeno e seu processamento inserido


1. Introdução em um sistema. As Ciências Cognitivas,
mais especificamente as denominadas
Música é uma construção embodied mind embasam a crença de
exclusiva da mente humana, descrita na que o corpo tem um papel importante na
Teoria da Música, primeiramente a partir cognição (Maturana & Varela, 2001;
de regras e conceitos construídos por Lakoff & Johnson, 1980). Portanto, o
estudos analíticos de obras musicais. que se experimenta com a escuta e o fazer
Estudos filosóficos, antropológicos e musical são objetos de estudos da
neurocientíficos mais recentes buscam Neurociência (Baeck, 2002; Correa,1999;
responder: para que serve a música? De Sacks, 2007). Segundo Sekeff (2002) na
onde ela surge? Por que o homem precisa experiência musical ouve-se um discurso
dela? (Blacking, 1973; Zuckerkandl, do que faz sentido às pessoas, que a
1973; Zatorre & Peretz, 2001). Assim, há escuta revela e oculta do inconsciente de
uma aproximação entre a Ciência cada um.
Cognitiva e a Teoria da Música (Saslaw, Na abrangente área da Musicoterapia,
1996; Zbikowiski, 1997, 2002; Brower, definições e conceitos, também envolvem
2000) e esta pode ser entendida também, o campo relacional humano e estão
ao considerar-se a cultura em que está diretamente ligados à forma que cada
inserida. autor os produz. Contudo, o tema música
Com isso, a busca por entendimentos é estudado com mais profundidade nos
e compreensões no campo da Música escritos da chamada Musicoterapia
acolhe a relação homem-música e seu Músico-Centrada. A teoria dessa
campo perceptivo. A mudança de abordagem, descrita por Aigen (2005),
paradigma científico em andamento coloca a Música, considerando-se a
vem ao encontro dessa demanda, e os relação do cliente com ela, como
estudos parecem se aproximar mais do elemento principal no tratamento e, desta
campo das relações homem-música e forma, aproximando-se dos conceitos e
dos mistérios da música. Percebe-se que teorias da Ciência Cognitiva, aplicados à
as explicações baseadas na lógica e na Teoria da Música.
razão dão espaço para as descrições do

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Esse texto tem por objetivos: a experiência com música que a torna
apresentar e refletir o tema música em importante para a terapia?” (Brandalise,
Musicoterapia à luz da teoria da 2001, p. 28). O termo musicoterapia
Complexidade; apresentar as contribuições músico-centrada associado aos conceitos
da aproximação entre Teoria da Metáfora apresentados nas abordagens Nordoff
e Teoria da Música para o campo da Robbins e GIM é uma sugestão da Mt.
Musicoterapia Músico-Centrada. Bárbara Hesser. Sua intenção era
Com isso traz alguns aspectos apresentar elementos que ampliassem a
dessa abordagem que são pouco visão de Música em Musicoterapia
difundidos no Brasil. Não busca a presente nas demais abordagens, ou
verdade sobre música em Musicoterapia, seja, “uma ferramenta no auxílio à
mas sim, possibilita estar em um contemplação de objetivos da terapia”.
caminho que se revela ao caminhante no A manutenção do termo propunha-se a
momento da caminhada por, afastar-se “focar a atenção no porquê e no como
do campo de significados representados e poderia se pensar e utilizar o poder da
aprofundar-se do ambiente de interações e música, em sua capacidade plena, no
relações consensuais. Os sentidos e trabalho. [...] chamar nossa atenção para
significados da experiência musical são a função central da música no
únicos para cada pessoa e emergem junto tratamento musicoterápico” (Hesser,
com a experiência. O ambiente nesse apud Brandalise, 2003, p. 12).
trabalho é de musicalidades em ação O livro Musicoterapia Músico-
onde, mente e corpo, personalidade e Centrada (Brandalise, 2001) apresenta
musicalidade, estão integrados. Fazer uma proposta de sistematização desse
música faz bem às pessoas pelo simples modelo e Music-centedered Music
fato de ser música e pelo que podem Therapy (Aigen, 2005) traz as bases
aprender, delas mesmas, nessa experiência filosóficas e teóricas da Música como
(Elliott, 1995). fundamentações para uma teoria da
Musicoterapia.
2. Musicoterapia músico-centrada Nessa abordagem o processo
musicoterapêutico ocorre com o
A prática científica da equilíbrio dos três elementos: o cliente,
Musicoterapia iniciou-se em meados do o terapeuta e a música. O princípio que
século XX e o IX Congresso Mundial de move esse sistema é a experiência de
Musicoterapia (Washington, 1999) estar na música, (living in the music)
reconheceu cinco modelos teóricos: “terapeuta e paciente vivendo/sendo da
“Modelo Nordoff Robbins ou de forma mais intensa possível suas
Musicoterapia Criativa e Improvisacional; Experiências Criativas na Música”
Modelo GIM (Guided Imaginery and (Brandalise, 2003, p. 20).
Music); Modelo de Musicoterapia O ponto de partida dessa
Analítica; Modelo Benenzon; Modelo de abordagem são os trabalhos de Nordoff
Musicoterapia Behaviorista” (Shapira, & Robbins. Aigen (2005) agrega os
2002, p. 11). conceitos de musicing e teoria da
Desses cinco, o Modelo Nordoff Metáfora aos já existentes: music child2
Robbins e Modelo GIM têm por base o
questionamento1: “O que é único sobre na New York University em 1982. Esse evento
é um marco no desenvolvimento da Musicoterapia
1
Estas inquietações levaram à organização do Mundial.
2
Second World Symposium on Music Therapy, Esta abordagem desenvolveu-se como o
com o tema: Music in the life of Man realizado trabalho musicoterapêutico voltado à clientela

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

que denota uma organização da 2.1. Música em Musicoterapia neste


capacidade receptiva, expressiva e tempo da Complexidade
cognitiva da criança que pode tornar-se
fundamental na organização da O objetivo primário da
personalidade; conditional child que diz Musicoterapia acontece no campo da
respeito às condições de ação e integração Música e Saúde, numa construção
do cliente; clinical musicianship sendo o transdisciplinar entre Arte, Ciência e
processo de formação musical/musicoterapêutica Saúde. Portanto, trabalha-se não apenas
do profissional (Nordoff Robbins, 1977; a música, mas a “experiência musical
Turry, 2001). Os aportes filosóficos: compartilhada” (Bruscia, 2000) e por
“notas musicais são condutores de força. esta especificidade, a visão da função da
Escutar música significa escutar uma música para o ser humano pode ser
ação de forças” (Zuckerkandl, 1973, p. ampliada.
22), também delimitam Música em As reflexões quanto aos
Musicoterapia. entendimentos do tema, música em
Aigen (2005) traz, a partir da Musicoterapia e suas semelhanças e
nova Musicologia, o conceito de diferenças com o entendimento de
Musicing: música integra a vida música na Música, acontecem neste
cotidiana das pessoas e seus afazeres. tempo da complexidade. Momento em
Desta forma, a palavra música passa a que: a construção do conhecimento
ser classificada como um verbo, uma admite o sujeito como observador3
ação, ao invés de um substantivo, um (Morin, 2001) e existe um princípio
objeto. Com isso busca elementos que dialógico, onde o pesquisador pode
fundamentam este princípio living in the trabalhar com conceitos antagônicos que se
music. Musicing “na dimensão da complementam, admite-se a recursividade
performance musical é uma forma organizacional, ou seja, “um processo
particular de ação humana intencional” recursivo é um processo em que os
que favorece o auto-conhecimento produtores e os efeitos são ao mesmo
(Elliott, apud Aigen, 2005, p. 65) e o tempo causas e produtores daquilo que os
trabalho de Lakoff e Johnson (1980), produziu” (ibid., p. 108). Propõe-se,
aplicado à Teoria da Música por também, a compreensão do todo não pela
Zbikowski (1998, 2002) e Saslaw (1996) soma de suas partes, mas por considerar-
complementam a fundamentação teórica se que, em cada parte está o todo –
da visão de Música em Musicoterapia Princípio hologramático.
defendida neste princípio de ‘viver na A obra de Lupasco, no âmbito
música’. da mecânica quântica, traz o conceito de
terceiro incluído e a lógica do Estado T.
Estes favorecem a compreensão dos
mecanismos existentes nos conceitos de
Morin (2001).
[...] o terceiro incluído está
associado à dialética quântica,
[...]. Ela dá acesso à “lógica concreta
de crianças autistas em meados de 1970. Este
que reina, freqüentemente, nas
conceito music child é entendido, hoje,
relacionado à musicalidade do ser humano como 3
um todo, independente de idade cronológica. São Observador é um pesquisador inserido no
aspectos cognitivos e emocionais saudáveis de campo de pesquisa, ou seja, como nos fala
cada pessoa diretamente relacionada à relação Maturana & Varela (2001, p.31): “tudo o que é
homem-música. dito é dito por alguém”.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

profundezas da alma, a lógica que passado (memória), presente e futuro


mais particularmente psíquica” (desejos e expectativas) aconteçam ao
(grifo do autor, Nicolescu, 2001, mesmo tempo.
p.110 e 115). Retornando ao tema música em
O ‘terceiro incluído’ permite a Musicoterapia, a relação triádica:
compreensão da lógica do ‘Estado T’, terapeuta – cliente – música, descrita na
“um terceiro unificador: ele une e e não- proposta de Brandalise (2001) como o
e” (grifo do autor Nicolescu, 2001, p. ‘triangulo de Carpente & Brandalise’, é
111). No princípio dialógico conceitos organizada de tal modo que “a relação
antagônicos são também complementares. entre a música do terapeuta e a música
Já, na compreensão de ‘níveis de do paciente faz emergir outra peça
realidade4’ como “um conjunto de musical” (Brandalise, 2003, p. 20). Do
sistemas que não varia sob a ação de um mesmo modo a descrição do musicing
número de leis gerais. [...] ocorre uma (Elliott, 1995) coloca em movimento
ruptura das leis e ruptura dos conceitos uma energia transformacional. A partir
(como, por exemplo, a causalidade)” do descrito acima, o conceito de níveis
(Nicolescu, 2001, p. 121-122). Na de Realidade aplica-se à experiência
recursividade organizacional não se musical compartilhada onde o campo do
trabalha com relações de estímulos e sentido e da significação emerge na
respostas pois, “sem a conciliação das experiência.
tensões de um primeiro nível (A e não-A) Musicing ou musicalidades em
em um estado T situado em um segundo ação rompe com a visão de música
nível (mas, absolutamente, não secundário), como um objeto, como algo que existe
sua síntese seria apenas uma imensa apenas separado do ser humano. Para
explosão de energia” (Graciunescu, 2001, entender a dimensão de musicalidade,
p. 175-176). Nicolescu (2001) exemplifica associada ao modo de ser de cada
que “o terceiro dinamismo, o do estado T, pessoa, faz-se necessário conceber que a
é exercido em um outro nível de obra musical é apreciada por existir
Realidade, onde o que surge como música dentro e fora das pessoas ao
desunido (onda ou corpúsculo) está, de mesmo tempo. É necessário dialogar com
fato, unido (quânton) e o que parece conceitos aparentemente antagônicos:
contraditório é percebido como não- música como substantivo e música como
contraditório” (Nicolescu, 2001, p. 125). verbo.
As relações de cumplicidade e Craveiro de Sá (2003) ressalta
complementaridade ganham visibilidade. que música e terapia estão unidas na
No campo da Musicologia, Musicoterapia, de modo que uma não é
Cazaban (1992) e Vial-Henninger ferramenta para a outra. “Música e
(1996), desenvolveram pesquisas com musicoterapia são, portanto, dois
esta fundamentação na compreensão da domínios diferentes que se cruzam, que
relação espaço e tempo. “Basta dizer se interconectam” e conclui “a música
que o terceiro incluído induz à na musicoterapia, na maioria das vezes,
descontinuidade do espaço e do tempo” não é a mesma música na música”
(Nicolescu, 2001, p, 119). O discurso de (Craveiro de Sá, 2003, p. 27-28). O que
sentidos na experiência musical permite diferencia música em um ambiente e em
outro? Não se trata do mesmo
4
Nicolescu entende por ‘Realidade’ “o que resiste elemento? Por vezes que sim. Porém, o
às nossas experiências, representações, descrições, campo de sentidos e re-significações
imagens ou formalizações matemáticas” emergentes, presente na musicoterapia,
(Nicolescu, 2002, p. 121).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

estabelece o limite. “Num setting sinais gráficos denominados Schematas.


musicoterápico, a música encontra-se Esses, também, denominados ‘esquemas
num território aberto e flexível ‘entre’ a encarnados’ são “padrões recorrentes de
significação e o sentido” (ibid., p. 28). nossas interações perceptuais e ações
A Teoria da Metáfora ou Teoria motoras que dão coerência e estrutura às
dos Schema (Lakoff & Johnson, 1980), nossas experiências” (Johnson, apud
na Teoria da Musicoterapia Músico- Peñalba, 2005, p.5). Segundo Peñalba
Centrada contempla este espaço da (2005), esta proposta de Johnson (1987)
construção de sentidos a partir de delimita-se como: “estruturas de
experiências corporificadas, encarnadas, conhecimento inter-relacionadas e
ou seja, viver na música. dinâmicas; modificáveis por meio da
experiência; constituem-se pela
2.2. Teoria das Metáforas na recorrência de experiências passadas”
Musicoterapia Músico-Centrada (Peñalba, 2005, p. 5).
No campo da Teoria da Música
O trabalho de Lakoff & Johnson esta abordagem, dentre as teorias da
(1980) defende que o funcionamento do mente, é a que melhor acolhe o campo
pensamento humano é basicamente musical, por apresentar-se como “uma
metafórico, ou seja, utiliza-se de uma alternativa aos modelos tradicionais de
coisa para entender outra. É uma análise musical” (Peñalba, 2005, p. 12).
pesquisa de base presente em uma Zbikowski (1998, 2002) pondera que
grande variedade de áreas, entre elas a esta abordagem demonstra que a
teoria da música (Zbikowski, 1998; compreensão lingüística e a musical
Saslaw, 1996). Com isso, “metáfora ocorrem pelo mesmo processo de
começa a ser vista como um elemento pensamento.
importante no processo de compreensão Nós podemos iniciar um
e entendimento da própria compreensão movimento além do falso
humana e não mais como um simples dualismo mente/corpo, mental/
ornamento do discurso” (Carvalho, físico, cognitivo/emotivo, ciência
2007, p. 1). /arte [...] o significado musical
Esse autor descreve algumas não é algum cidadão forçado a
características da metáfora conceitual: morar na segunda classe saindo
“é uma ponte que liga domínios do domínio prístino do
semânticos diferentes [...] uma maneira significado cognitivo, ao
de expressar o pensamento abstrato em contrário ele é paradigmático do
modo como significados
termos simbólicos”. Sua função é “a de
emergem para nós como
estender as capacidades de comunicação criaturas encarnadas. O fato que
e conceitualização do ser humano” e música habita este domínio de
“enfim, é vista como um elemento de significados lhe dá o poder
elo entre os argumentos lógicos e profundo para nos afetar e
emocionais” (ibid, p. 2). transformar nosso pensamento
Com a Metáfora Conceitual pelo seu movimento interno e
criou-se uma possibilidade de descrição propriedades dinâmicas (Johnson,
do funcionamento do pensamento apud Aigen, 2005, p.174).
humano re-admitindo o corpo nesse Aigen (2005) traz esta fundamentação
sistema. Lakoff & Johnson (1980), para compor a Teoria da Musicoterapia
seguindo o campo de abordagens por algumas razões: é uma abordagem
cognitivas, descreveram um conjunto de retirada de estudos musicais; providencia

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

uma fundamentação para a aquisição de em pólos opostos no campo teórico


insigth no significar-fazendo atividades músico-centrado. Eles estão separados
construtivas e criativas musicais; por por seus campos conceituais, contudo
conectar os mecanismos desta experiência estes aportes são como “uma ponte um
com as capacidades humanas mais para o outro”.
globais. Os schemas, para Aigen (2005),
A proposta músico-centrada embasam o fato que “quando pessoas
concentra-se no argumento do inerente são ‘musicalidades - em ação’, quando
valor clínico da experiência musical elas estão engajadas com a música de
compartilhada. Assim, a “experiência algum modo, elas estão exibindo a
musical pode ser justificada por ela presença mediadora da capacidade
mesma no sentido que o entendimento de cognitiva que é essencial para todo o
seus benefícios não requer análise aspecto de funcionamento humano”
comportamental, fisiológicas, construções (Aigen, 2005, p.175). Eles representam
psicológicas redutivas ou generalizações as bases emocional, psicológica e do
em áreas funcionais não musicais” desenvolvimento de necessidades e
(Aigen, 2005, p.165). aspirações do ser humano.
Deste modo, a Teoria dos Schemas
revela-se como uma possibilidade 3. Conclusão
explicativa para esta forma de ver
música na Musicoterapia. A crença de Música em Musicoterapia, no
que o conhecimento humano é, em maior contexto da teoria Músico-Centrada não é
parte, não literal e metafórico favorece a apenas uma ferramenta aos objetivos da
compreensão de que a experiência terapia. Música e terapia não estão uma a
musical de musicalidades em ação ou o serviço da outra e entender esta dimensão
significar-fazendo seja o lugar de ‘viver de complementaridade entre áreas
na música’. Assim, nas experiências distintas, de modo que, uma terceira, a
musicais clínicas ocorre a emergência de Musicoterapia, possa emergir é tarefa
sentidos. A análise musical desta complexa que une Arte e Ciência. Por
experiência pela teoria da Metáfora este caráter emergente as possibilidades
pode demonstrar “a conecção entre os de compreender Música, inserida neste
constituintes da música e a experiência campo, seguem delimitações diferentes
musical por um lado e, o equilíbrio do de entendê-la na Música, sem que isso
funcionamento humano por outro” seja contraditório. Assim, viver na
(Aigen, 2005, p. 166). música, um princípio e o coração da
O autor destaca que esta Teoria filosofia músico-centrada encontra, neste
das Metáforas vem complementar o tempo de complexidade, aportes teóricos
aporte filosófico de Zuckerkandl na Teoria da Metáfora aplicada á música.
(1973). A primeira “examina como nós Deste modo, busca colocar em palavras
experimentamos, conceitualizamos e o ambiente do sentir, ser e fazer
falamos sobre música a fim de ganhar integrando corpo e mente, emoção e
insigth sobre a natureza da música”; já o ação num significar-fazendo. Pode-se
aporte filosófico “traz os elementos dizer, confirmando o aforismo de
tonais, harmônicos e rítmicos que Maturana & Varela (2001) vivemos
constituem a natureza da música” porque conhecemos e conhecemos
(Aigen, 2005, p. 166). O autor conclui porque vivemos e todo ato de conhecer
que a filosofia de Zuckerkandl e a faz surgir um mundo.
Teoria das Metáforas ocupam lugares

266
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A Teoria da Musicoterapia, que CRAVEIRO DE SÁ, Leomara. A Teia do


aprofunda a compreensão do que seja Tempo e o autismo: Música e
música nesse campo não descreve Musicoterapia. Goiânia: Editora UFG, 2003.
apenas ‘porque’, mas também ‘como’ o
CORREA, Cleo Monteiro. O papel da
poder da música e seu espaço relacional
são aliados importantes e inerentes ao Musicoterapia na Investigação Científica. In:
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268
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Pacientes com deficiência intelectual e espectro autístico e o


fazer musical

Elaine Kafjes
Mirna Domingos
Márcio Andriani

do indivíduo de forma que ele


1. Fundamentação Teórica possa alcançar melhor integração
intra e interpessoal e
conseqüentemente uma melhor
No autista (F.84.0 - CID- 10) a qualidade de vida. (Federação
estrutura interna de linguagem está Mundial de Musicoterapia)
alterada e a externa distorcida inferindo
no domínio da linguagem verbal 2. Objetivos
(registro e estruturação de códigos),
enquanto processo cognitivo. Utilizar a música em
A música no contexto Musicoterapia a fim de abrir um canal
musicoterápico abrange não somente de comunicação re-organizando, re-
objetos sonoros e musicais, mas estruturando e desenvolver organizar e
também uma variedade de outros estruturar a comunicação através do
signos. Dela emergem formas, cores, fazer sonoro musical e auxiliar na
intensidades, temporalidades, gestos, interação com o meio.
movimentos, imagens, pensamentos, Observar a modificação do meio
palavras... Assim, em Musicoterapia, e a inclusão social do paciente e sua
consideramos que "o objeto da música família.
não se restringe ao som, mas a uma
cadeia sígnica que tem, entre outros, o 3. Método
som por motor".
As pesquisas no trabalho de Estimular o paciente a participar
musicoterapia aplicada ao autismo desse universo sonoro e musical,
corroboram ser este o caminho como considerando suas características
primeira maneira de aproximação com o individuais e culturais.
autista possibilitando -lhe a abertura de
canais de comunicação. 4. Resultados

Musicoterapia é a utilização da Há uma assimilação por parte do


música e/ou dos elementos paciente das ocorrências no setting
musicais (som, ritmo, melodia e
harmonia) pelo musicoterapeuta e
musicoterápico e, consequentemente,
pelo cliente ou grupo, em um uma aproximação do paciente com a
processo estruturado para facilitar Música (enquanto Arte), possibilitando
e promover a comunicação, o uma maior comunicação através dos
relacionamento, a aprendizagem, signos sonoros e musicais. Isto
a mobilização, a expressão e a
organização (física, emocional,
influencia todas as outras formas de
mental, social e cognitiva) para comunicação, melhorando sua
desenvolver potenciais e qualidade de vida e sua inclusão social.
desenvolver ou recuperar funções O relatório evolutivo e os depoimentos

269
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

dos familiares corroboram a CID - 10


importância do fazer musical nessa DOMINGOS,Mirna. Musicalização
população. Infantil. Playmusic, ano 03; 1998; nº
20.
5. Conclusões
DOMINGOS,Mirna "Musicalização
Observa-se que, quanto mais o Infantil" - Playmusic, ano 03; 1998; nº
paciente se aproxima do universo 23.
artístistico (Música), mais ele FONSECA,Vítor da.
demonstra "melhoras" em vários outros Psicomotricidade. São Paulo: Martins
níveis (expressão, criatividade, Fontes, 1983.
flexibilização, organização,
comunicação, linguagem, WILLENS, Edgar. Las Bases
sociabilização, etc.) Psicológicas De La Educação
Musical. Ed.Paidós.
6. Subáreas de conhecimento SA, Leomara Craveiro de. A teia do
tempo nos processos de comunicação
Neuromusicologia; musicoterapia; do autista: música e musicoterapia.
neurologia; psiquiatria; Semiótica. Dissertação de mestrado – PUCSP,
2002.
7. Referências bibliográficas
SWANWICK,Keith. Ensinando
BEE, Helen. A criança em música musicalmente. São Paulo:
desenvolvimento. São Paulo: Harbra, Moderna.
1984.
BRUSCIA, K. Definindo
Musicoterapia. Enelivros, 2000.

270
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A importância da interação no desenvolvimento cognitivo


musical: um estudo com bebês de 0 a 24 meses

Esther Beyer
UFRGS
esther.beyer@ufrgs.br

Resumo: A neurociência tem trazido muitas novas descobertas nos últimos anos, a partir de
novas técnicas de estudo do cérebro, menos invasivas e possíveis de aplicar também nos bebês.
Shore (2000) apresenta uma síntese das conclusões da neurociência e suas conseqüências
pensadas para a primeira infância, além de vários outros estudos na área de música (Bastian,
2003; Ilari, 2006; Maffioletti, 2002, entre outros). Assim, este estudo se concentrou em realizar
observações com os bebês do Programa de Extensão “Música para Bebês” (UFRGS), visando
detectar os efeitos de diferentes interações dos bebês com a música. No projeto, atende-se 70
bebês de 0 a 24 meses por semestre, sendo que eles têm uma hora semanal de aula de música,
acompanhados de seus cuidadores (pai, mãe, avó, babá, etc.). Especialmente, buscou-se estudar
os casos de bebês com interação mais frágil com seus cuidadores. Para tanto, foram realizadas
filmagens durante todas as aulas, e gravadas em DVD. Da triagem inicial, foram selecionadas
algumas cenas que poderiam indicar a interação frágil do bebê com a música, provocados por
uma vinculação também mais fragilizada ou ausente com a criança durante as aulas. Após
observação repetida das cenas selecionadas, observou-se como resultados de que quanto mais
cedo eram os momentos de ausência do cuidador, menor parecia a iniciativa do bebê em idade
posterior em relação à música. Dois bebês de um mesmo grupo apresentaram, em seu primeiro
semestre, cuidadores ausentes, pouco envolvidos com as atividades. Ao ver algumas cenas
destes mesmos dois bebês com suas cuidadoras um ano e meio depois, vemos os mesmos
muitas vezes parados, olhando para o que ocorre com os outros, perdidos. Quando há uma
oferta muito interessante, como a aparição de tambores em sala de aula, eles tomam iniciativa
de explorar, porém, sem interação com o adulto que os trouxe. Todavia, nos casos observados e
analisados, não se percebeu nenhum prejuízo maior no desenvolvimento geral ou musical das
crianças. Neste momento é que entra a grande relevância de um trabalho sistemático e grupal de
Educação Musical. Pareceu-nos que, quando não há envolvimento muito intenso por parte do
cuidador com a criança na música, os outros bebês, a professora e as outras mães desempenham
este papel na vida do bebê. São as dinâmicas do grupo que parecem compensar a falta de
interação com os pais ou cuidadores neste momento. Se o bebê não sacode o chocalho que
recebeu, e não é motivado pela sua mãe que ali está, ele pode também se motivar pela ação dos
outros bebês que movimentam freneticamente seus chocalhos, dançam e cantam, além de
receber sorrisos e pequenos impulsos de outras mães e também da professora.

Palavras-chave: Desenvolvimento musical infantil, desenvolvimento cerebral, música para bebês.

confortar seu recém-nascido que chora,


Vários gestos compõem a rotina uma babá que brinca de se esconder
de um bebê, e estes passam despercebidos atrás da fraldinha do bebê ... “Cadê!”,
pela sua simplicidade e número de vezes um irmãozinho de 5 anos que conta ao
que se repetem: uma mãe olha bebê de 10 meses toda a história do
atentamente seu bebê de 3 meses nos Barney que acabou de ver no DVD. E
olhos enquanto o acaricia e amamenta, assim se formam, a partir destes gestos
um pai que caminha pela casa para corriqueiros e cotidianos, milhares de

271
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

células no cérebro desses bebês que incrível capacidade de mudar do


respondem em questão de segundos, cérebro, a neuroplastia cerebral. O
criando novas conexões entre diferentes cérebro pode ser moldado conforme o
áreas, fortalecendo e complexificando interesse e as experiências que o bebê
outras já existentes, formando um mapa vai desenvolvendo. O mesmo não está fixo
intrincado do cérebro, com marcas ao nascer, mas o mapa cerebral será
permanentes para o resto de suas vidas. moldado conforme as vivências que o bebê
A neurociência tem trazido terá. Mesmo em caso de lesão, serão
muitas novas descobertas nos últimos encontrados novos caminhos para recuperar
anos, a partir de novas técnicas de as funções perdidas, especialmente na
estudo do cérebro, menos invasivas e primeira década de vida. Novamente
possíveis de aplicar também nos bebês. pensamos na importância da música em
Shore (2000, p. 9) relata sobre pesquisas contribuir na “construção” do cérebro,
que no decorrer de todo o processo de através de experiências agradáveis com
desenvolvimento, mesmo antes de a música, estimulando uma lógica
nascer, o cérebro é influenciado também cerebral não muito utilizada quando
por condições ambientais, incluindo o enfatizamos apenas o desenvolvimento
tipo de criação, cuidado, ambiente e da fala.
estimulação que o indivíduo recebe. Springer & Deutsch (1998)
Assim, no desenvolvimento humano discutem também uma série de resultados
tanto o que é herdado quanto o meio de pesquisas com os hemisférios direito e
tem sua contribuição, e, sobretudo, esquerdo do cérebro. Em vários estudos,
aquilo com que a criança vai se ocupar concluiu-se que a música é processada
para interagir. primordialmente no hemisfério direito,
Outro resultado das pesquisas dos mas certas funções parecem ser
neurocientistas é que o cuidado inicial e desempenhadas no esquerdo, tais como
a criação têm um impacto decisivo, de leitura de partitura, análise de obras
longa duração, em como as pessoas se musicais, etc. Independente de haver ou
desenvolvem em sua capacidade de não uma localização exata para a função
aprender, e em sua habilidade para cerebral em atividades musicais, sabemos
regular as próprias emoções. O modo que o cérebro está realizando conexões
como o adulto interage com o bebê, a em áreas que não seria estimulado se
ligação forte e segura com um cuidador apenas tivesse aulas de língua
carinhoso parece influenciar de modo (portuguesa) ou matemática. A música
permanente a engenharia do cérebro, parece envolver, inclusive com emoções
equipando-o contra os efeitos positivas, áreas do cérebro pouco
prejudiciais do estresse ou de traumas trabalhadas em nossa civilização atual,
posteriores. Assim, pensamos na tais como sensibilidade estética,
importância de propiciar aos bebês, criatividade e imaginação.
também na música, momentos de Mas muito além disso, o
interação significativa com adultos que pesquisador alemão Bastian (2003),
os amam e com eles brincam de modo está também convencido, através de
organizado e deste modo repetem um estudo longitudinal realizado com
inúmeras vezes atividades simples como crianças em escolas ao longo de 5 anos,
cantar, cutucar, massagear ou dançar que a educação musical modifica
com o bebê. significativamente também a inteligência,
Shore (2000) relata ainda outra o comportamento social e o desempenho
conclusão da neurociência atual, que é a escolar nas crianças. Ilari (2006, p.

272
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

295) igualmente ressalta que a música então, permanece inalterado no


estabelece benefícios no desenvolvimento decorrer da primeira década de
cognitivo musical: psicológicos, fisiológicos, vida. Em conseqüência, um
culturais, auditivo-educativo, estéticos cérebro infantil torna-se super
musicais. Assim, poderíamos dizer também denso, com o dobro das sinapses
de que vai precisar futuramente.
que música estaria desenvolvendo
O desenvolvimento cerebral é,
cognitivamente o cérebro do bebê, se as portanto, um processo de poda.
experiências musicais forem oferecidas É por isso que a experiência
de modo sistemático e criarem desafios inicial é tão importante: aquelas
suficientes para o mesmo. sinapses que tenham sido
Um achado importante é o reforçadas pela experiência
impacto que a experiência negativa repetida tendem a se tornar
parece ter sobre o bebê na falta de uma permanentes; e as que não
interação adequada ou ainda com uma foram usadas constantemente,
experiência negativa. Especialmente os nos anos iniciais, tendem a ser
bebês de 6 a 18 meses parecem ser eliminadas.
prejudicados com uma depressão É importante, portanto, que a
materna, por exemplo, impedindo criança tenha atividades musicais de
certas vezes até a atividade cerebral forma organizada e recorrente, de modo
saudável. Se a depressão pós-parto for a possibilitar ao aluno que crie e amplie
de apenas alguns meses após o suas conexões cerebrais, permeadas de
nascimento, parece não haver efeito tão experiências significativas com a
permanente, e sempre que a mãe música. Segundo Maffioletti (2002, p.
realizar tratamento e se recuperar, a 100) “a experiência que promove a
atividade cerebral de seus bebês aprendizagem do ritmo ou outras
melhora significativamente (Shore, aprendizagens musicais apresenta um
2000). Assim, novamente enfatizamos mínimo de coordenação, ou de ordem
a importância de um trabalho de nas explorações, sem o que não haveria
música, onde esta pode surtir efeito proveito nas atividades realizadas.”
positivo não somente sobre a saúde do Desta forma, ao dançar, ao tentar
bebê quanto de sua mãe, por vezes em balbuciar durante a execução da música,
depressão, ou envolvida em problemas. ao ouvir música enquanto a mãe
Não que música tenha um efeito massageia o bebê, etc., ele estará
mágico de suprimi-los, mas a interação estruturando seu mundo, através da ação
do bebê com a mãe e a música, além do que exerce sobre os objetos, mediante
convívio social com outras mães em os esquemas que já possui e posterior
situação equivalente, as brincadeiras e adaptação aos novos desafios para a
as experiências positivas podem compreensão do momento musical
quebrar esta rotina negativa e contribuir experimentado.
para que a mãe saia mais rapidamente Assim, para Maffioletti (2002, p.102)
de sua depressão.
[...] “as experiências com a música,
Shore (2000, p.9) ainda afirma que desde as mais elementares, são
importantes em dois sentidos:
[...] ocorre um aumento muito porque promovem o conhecimento
rápido na produção de sinapses musical no sentido da aprendizagem
durante os 3 primeiros anos de restrita ou strictu sensu; e
vida. Esse número aumenta com importantes porque são
uma rapidez incrível, até a experiências necessárias à
criança atingir os 3 anos, e

273
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

formação de esquemas e de carro, ou um copo de vidro). Desse


estruturas de pensamento, que modo, também não oferecem nenhuma
funcionam como condições alternativa para que as explorações
prévias para as novas continuem com “objetos mais seguros”.
aprendizagens – que são as Brito (2003) diz que
aprendizagens de sentido amplo,
ou lato sensu.”
[...] ao nascer, a criança é
cercada de sons e esta
Portanto, ao mesmo tempo em linguagem musical é favorável
que o bebê busca captar o evento sonoro- ao desenvolvimento das
musical que lhe é oferecido (caixinha de percepções sensório-motoras,
música, cantar, ninar, etc.), ele está dessa forma a sua aprendizagem
também estruturando sua própria se dá inicialmente através dos
cognição. O que move todo este processo seus próprios sons (choro, grito,
é o interesse que o bebê tem sobre a risada), sons de objetos e da
música, permeado pela questão emocional, natureza, o que possibilita
do seu vínculo com aquele que oferece descobrir que ela faz parte de
esta experiência. Segundo Lino (1999, p. um mundo cheio de vibrações
sonoras.
62) “a música não é abstrata, nem é pura
descarga de emoções; ela é um objeto de
conhecimento palpável que deve ser Ilari (2006) relata que várias
descoberto pelas crianças a partir de seu pesquisas apontam para a importância
fazer musical”. do contorno melódico nas melodias
Temos observado ao longo dos oferecidas para os bebês, sendo que
anos no trabalho com crianças pequenas, esses são sensíveis a mudanças de
que a música é um componente muito padrões melódicos, transposições,
importante para elas, uma vez que enseja alteração de intervalos, mantendo o
que ela se movimente ao seu som, que se contorno melódico. Isto porque,
cante ou balbucie conjuntamente, ou que segundo estas pesquisas, os bebês usam
se toque ou faça som com qualquer estratégias globais para processar esses
objeto, acompanhando sua audição, e até padrões melódicos. Por essa razão é tão
permite que se crie pequenas estruturas importante oferecer a eles melodias
musicais a partir da reorganização dos completas, simples, de modo que
esquemas já construídos. Um importante possam captar a estrutura total
pesquisador do desenvolvimento musical oferecida, e inclusive tentar reproduzi-
segundo Piaget afirma que “a música é la, através de seus processos de
vida para a criança. É ar e gesto para sua assimilação e acomodação. Porém, nem
voz, movimento e pulsação para seu todas as músicas oferecidas aos bebês
corpo, imagem sonora e critério para seu precisam ser elementares. Temos
pensamento” (Barcelò, 2003, p. 230). observado bebês se interessando
Contudo, nem sempre o adulto vivamente também por músicas com
que a cerca está sensível a estas desafios maiores, com sonoridades,
possibilidades, e mesmo muitas vezes modulações e estruturas diferentes.
até cerceia qualquer iniciativa que o A partir da literatura acima
bebê tomar no sentido de explorar sons, apresentada, este estudo se concentrou
justificando que suas iniciativas fazem em realizar observações com os bebês do
“muito barulho” ou então que os objetos Programa de Extensão “Música para
escolhidos para fazer música sejam Bebês” (UFRGS), visando detectar os
muito “perigosos” (como um chaveiro efeitos de diferentes interações dos bebês

274
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

com a música. No projeto, atende-se 70 porém, sem interação com o adulto que
bebês de 0 a 24 meses por semestre, os trouxe.
sendo que eles têm uma hora semanal de Todavia, nos casos observados e
aula de música, acompanhados de seus analisados, não se percebeu nenhum
cuidadores (pai, mãe, avó, babá, etc.). prejuízo maior no desenvolvimento
Especialmente, buscou-se estudar os geral ou musical das crianças. Neste
casos de bebês com interação mais momento é que entra a grande
frágil com seus cuidadores. Para tanto, relevância de um trabalho sistemático e
foram realizadas filmagens durante grupal de Educação Musical. Pareceu-
todas as aulas, e gravadas em DVD. nos que quando não há envolvimento
Posteriormente, foram analisados alguns muito intenso por parte do cuidador
bebês cujos cuidadores pareciam estar com a criança na música, os outros
mais distraídos em aula, ausentes. bebês, a professora e as outras mães
Destaque-se aqui que este não costuma desempenham este papel na vida do
ser um comportamento acentuado ou bebê. São as dinâmicas do grupo que
contínuo, em geral os cuidadores tem parecem compensar a falta de interação
alguns momentos de ausência e depois com os pais ou cuidadores neste
interagem novamente com seus bebês. momento. Se o bebê não sacode o
Da triagem inicial, foram selecionadas chocalho que recebeu, e não é motivado
algumas cenas que poderiam indicar a pela sua mãe que ali está, ele pode
interação frágil do bebê com a música, também se motivar pela ação dos outros
provocados por uma vinculação também bebês que movimentam freneticamente
mais fragilizada ou ausente com a seus chocalhos, dançam e cantam, além
criança durante as aulas. de receber sorrisos e pequenos impulsos
Após observação repetida e em de outras mães e também da professora.
câmera lenta das cenas selecionadas, Hallam (2006) menciona fatores
observou-se como resultados de que sociais como o apoio dos pais, professores
quanto mais cedo eram os momentos de e interações de seus pares para serem
ausência do cuidador, menor parecia a considerados mais importantes do que um
iniciativa do bebê em idade posterior grande tempo de prática para conseguir um
em relação à música. Dois bebês de um nível mais elevado no desempenho
mesmo grupo apresentaram em seu musical. Nós também observamos que o apoio
primeiro semestre cuidadores ausentes, de pais, professores, e principalmente a
pouco envolvidos com as atividades. interação entre os pares (outros bebês)
Uma provavelmente envolvida em foi fundamental para a construção do
depressão pós-parto, outra não era a processo de desenvolvimento musical
mãe e parecia não se importar muito na criança.
com o que aconteceria ao bebê em aula, Concluindo, segundo Beyer (1988,
desde que ele estivesse seguro e não se 1999), só há aquisição do saber
machucasse. Ao ver algumas cenas mediante a ação do sujeito sobre o
destes mesmos dois bebês com suas objeto e a posterior reorganização
cuidadoras um ano e meio depois, interna do mesmo, como preconizado
vemos os mesmos muitas vezes por Piaget. Ação e reflexão – prática e
parados, olhando para o que ocorre com teoria – são vistas como um só conjunto
os outros, perdidos. Quando há uma interdependente. Assim, para que haja
oferta muito interessante, como a construção de estruturas no cérebro, é
aparição de tambores em sala de aula, preciso que haja interação sobre o
eles tomam iniciativa de explorar,

275
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

objeto musical, permeado por vínculos BASTIAN, Hans Günther. Kinder


importantes com os pais ou cuidadores: optimal fördern – mit Musik: Intelligenz,
Sozialverhalten und gute Schulleistung
[...] As pesquisas mostram que durch Musikerziehung. 3. ed. Mainz:
o processamento e a evolução Schott Musik International, 2003.
melódica têm início na BEYER, Esther. A abordagem
infância, e as estruturas cognitiva em música: uma crítica ao
necessárias para a percepção ensino da música, a partir da teoria de
tonal e rítmica estão Piaget. 1988. Dissertação de Mestrado.
disponíveis nos bebês muito UFRGS, Porto Alegre, 1988.
antes que estas surgem em BEYER, Esther. (org.). Idéias em
nossas práticas educacionais Educação Musical. Porto Alegre:
atuais. (Ilari, 2006) Mediação, 1999.
BRITO, Teca Alencar de. Música na
Por isso, devemos ter em mente educação infantil. São Paulo: Peirópolis,
a grande relevância que a música poderá 2003.
ter no desenvolvimento de um bebê nos HALLAM, Susan. Musicality. In: GARY;
seus primeiros anos de vida, se esta for MCPHERSON. The child as musician.
oferecida de modo sistemático, sempre Oxford: [s.n.], 2006.
com novos desafios. Especialmente o ILARI, Beatriz. Em busca da mente
trabalho em grupos ajuda para que as musical: ensaios sobre os processos
trocas sejam exponenciadas, não só do cognitivos em música – da percepção à
bebê com seu cuidador, mas também produção. Curitiba: UFPR, 2006.
com outros bebês, mães e professores, LINO, Dulcimarta Lemos. Música é...
podendo inclusive resgatar o vínculo cantar, dançar... e brincar! Ah, tocar
prejudicado por pais ausentes ou pouco também!. In: CUNHA, S. R. V. da
envolvidos com seu bebê, e assim (org.). Cor, som e movimento: a
prevenir prejuízos maiores em seu expressão plástica, musical e dramática
desenvolvimento posterior. Destacamos no cotidiano da criança. Porto Alegre:
também o valor que tem a música para Mediação, 1999.
mobilizar as emoções e motivação dos MAFFIOLETTI, Leda de Albuquerque.
adultos também, de modo a permitir a Conhecimento e aprendizagem musical.
eles também uma interação significativa In: BECKER, F. (org.). Aprendizagem
com a música, conseqüentemente e conhecimento escolar. Pelotas:
influenciando positivamente o Educat, 2002.
desenvolvimento tanto de seu bebê SPRINGER, Sally P. & DEUTSCH,
como os dos demais presentes no grupo. Georg. Cérebro esquerdo, cérebro
direito. São Paulo: Summus, 1998.
Bibliografia: SHORE, Rima. Repensando o cérebro:
novas visões sobre o desenvolvimento
BARCELÒ, Bartomeu. La génesi de la inicial do cérebro. Porto Alegre:
intelligència musical en l’infant. Mercado Aberto, 2000.
Barcelona: DINSIC, 2003.

276
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

O idoso e a aprendizagem musical: ilusão ou realidade?

Eunice Dias da Rocha Rodrigues


Maria Cristina Azevedo de Carvalho
criscarvalho@abordo.com.br

Resumo: Esta comunicação aborda concepções e tendências sobre o ensino e aprendizagem


musical envolvendo o aluno idoso. A terceira idade ou a “melhor idade” tem sido objeto de
estudo de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento que visam, entre outros objetivos,
conhecer e compreender a cognição humana nessa faixa etária e sua capacidade de se manter
ativa e em desenvolvimento. Na área pedagógico-musical os estudos são ainda incipientes, mas
apontam as possibilidades do ensino e aprendizagem musical para manter a atividade cognitiva
dos idosos. Nesse sentido, o presente texto discute crenças e estereótipos sobre a terceira idade
vigentes na sociedade e apresenta algumas pesquisas que apontam a relevância da aprendizagem
musical para o idoso. Sob a perspectiva pedagógico-musical, a presente comunicação considera
a contribuição da obra de Keith Swanwick e David Elliottt como fundamentação teórica para
nortear o processo de ensino e aprendizagem na terceira idade. As considerações finais em torno
da capacidade do idoso diante da aprendizagem musical indicam que apesar dos mitos e
estereótipos a esse respeito, o idoso adquire conhecimento musical, principalmente, quando a
concepção de saber é ampliada para a vivência e experiência musical dessa faixa etária e os
significados que essa atividade possa exercer em suas vidas.

Palavras-chave: idoso; ensino e aprendizagem musical; conhecimento musical.

Deusa com suas aulas de piano,


1. Introdução descreve uma situação de ensino e
aprendizagem musical cada vez mais
Diz o ditado que “macaco velho freqüente nas aulas de música: o
não aprende truque novo”. Mas interesse do idoso em tocar um
[...] multiplicam-se os casos que
contrariam essa máxima: são
instrumento e aprender música. Mas o
homens e mulheres que, após os idoso é capaz de aprender música? Em
60 anos, decidiram aprender que consiste a aprendizagem na terceira
coisas novas e que têm se saído idade? O que as pesquisas e estudos
muito bem nesse processo. O dizem sobre a aprendizagem musical na
casal Osmar e Deusa Ribeiro
integra esse grupo. Aos 74 anos,
terceira idade? De que forma as teorias
ela decidiu aprender a tocar piano. contemporâneas de Educação Musical
"Sempre gostei de música [...] podem contribuir para o ensino e
"Mas nunca fui estimulada a aprendizagem musical na terceira
aprender a tocar", lembra. O idade? Essas questões colocam em
estímulo veio do marido, Osmar,
73, que aprendeu a tocar piano há
evidência a contradição existente entre
cerca de cinco anos. "É uma o declínio físico e cognitivo na terceira
sensação maravilhosa", diz ele, idade e as novas concepções sobre
após exibir seus dotes artísticos. velhice e suas possibilidades cognitivas
(Luz, 2007, p.01) (Junges, 2004).
O conceito de velhice tem sido
Luz (2007), ao comentar a transformado pelos avanços da
motivação e satisfação do casal Osmar e medicina e pelas mudanças de

277
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

comportamento social, cultural e as aulas de música: “isto está me


econômico do idoso. Essas mantendo jovem, eu acordo toda manhã
transformações, entre outros fatores, feliz por saber que eu tenho muito a
têm aumentado a expectativa de vida do aprender no dia” (Koga, 2005, p. 40).
homem e melhorado a sua qualidade de Relatos como esse são cada vez mais
vida, o que conseqüentemente, tem freqüentes no cotidiano de profissionais
provocado o crescimento da população de música em todo o mundo, mas ainda
de idosos. No Brasil, os dados não desmistificaram a visão de
estatísticos revelam que o país tem incapacidade associada à velhice.
cerca de 15 milhões de pessoas com As dúvidas e incertezas sobre a
idade igual ou superior a 60 anos1 aprendizagem na terceira idade
(Brasil, 2005). Para os próximos 20 estimularam a redação desta
anos espera-se que essa população comunicação que aborda concepções e
ultrapasse os 30 milhões de indivíduos tendências sobre o ensino e
(Mendonça; Araújo, 2007). A melhoria aprendizagem musical envolvendo o
da qualidade de vida dessa faixa etária e aluno idoso. Nesse sentido, discutimos
a mudança do status social do idoso crenças e estereótipos sobre a terceira
podem ser observadas na procura desses idade e apresentamos algumas pesquisas
indivíduos por atividades que que apontam a relevância da
possibilitem o desenvolvimento aprendizagem musical para o idoso. Sob
contínuo de suas capacidades físicas e a perspectiva pedagógico-musical,
mentais. consideramos a contribuição da obra de
Garcia (2007) entende que os Keith Swanwick e David Elliott como
idosos têm preferido as atividades de possível fundamentação teórica para
ensino e aprendizagem às atividades de nortear o processo de ensino e
lazer porque buscam seu lugar como aprendizagem na terceira idade.
cidadãos e como “seres históricos”. Em
pesquisa com os alunos da Universidade 2. O idoso é capaz de aprender
da Terceira Idade, Neri, Cachioni e música?
Resende (2002) observaram que os
idosos se sentem motivados a: adquirir Os avanços científicos sobre a
novos conhecimentos; atualizar-se cognição na medicina, na informática,
culturalmente; satisfazer sonhos na psicologia, na pedagogia, na
pessoais; desenvolver seu sociologia têm transformado o conceito
autoconhecimento e de aprender e conseqüentemente, o
autodesenvolvimento; ampliar o contato conceito de aprendizagem na terceira
social; ocupar o tempo livre e gerar e idade. Segundo Charlot (2000, p. 59)
transmitir conhecimentos “nascer é ingressar em um mundo no
(geratividade). qual estar-se-á submetido à obrigação
As experiências com ensino e de aprender” e por isso “ninguém pode
aprendizagem de música apresentam escapar dessa obrigação, pois o sujeito
motivos semelhantes e constituem uma só pode ‘tornar-se’ apropriando-se do
alternativa educacional para o mundo” (Charlot, 2000, p. 59).
engajamento social do idoso. Koga Aprender, portanto, não se restringe à
(2005), por exemplo, cita o entusiasmo aquisição de um saber (conteúdo
de seu pai, um senhor de 88 anos, com intelectual) instalado nos “objetos-
saberes”, mas se estabelece numa
1
A idade de 60 anos é considerada como o relação com o saber pautada em uma
início cronológico da velhice.

278
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

relação com o mundo no qual se vive A contradição existente entre o


esse aprender. declínio biológico e a necessidade de
manter ativa a atividade mental e física
Aprender significa entrar em um gera três visões divergentes sobre a
dispositivo relacional, apropriar- velhice: 1) a idéia de declínio biológico
se de uma forma intersubjetiva,
garantir um certo controle de seu
inevitável e pré-determinado; 2) a
desenvolvimento pessoal, negação desse inevitável declínio físico
construir de maneira reflexiva que decorre do envelhecimento humano
uma imagem de si e 3) a observação das limitações físicas
mesmo....passar do domínio para causadas pelo envelhecimento, porém
o não domínio, e não construir um
saber-objeto. Trata-se de dominar
associada ao entendimento de que o
uma relação e não uma atividade: desenvolvimento humano é contínuo,
a relação consigo próprio, a resultado de fatores variados que
relação com os outros e envolvem relações interpessoais e
reciprocamente. Aprender é atividades intelectuais. Na última
tornar-se capaz de regular essa
relação e encontrar a distância
vertente, a terceira idade é considerada
conveniente entre si e os outros, uma fase singular do desenvolvimento
entre si e si mesmo; e isso, em humano em que aprender não significa
situação. (Charlot, 2000, p.70) apenas adquirir novos conhecimentos,
mas implica também numa atividade
Na concepção desse autor a necessária à saúde mental e física do
aprendizagem tem base nas relações que homem. O aprendiz, nessa concepção, é
o sujeito epistêmico, afetivo e relacional um sujeito experiente e vivido capaz de
“estabelece com o saber, que é algo gerar e transformar o conhecimento
construído e não definitivamente adquirido ao longo de sua história de
concluído por meio do saber-objeto” vida.
(Charlot, 2000, p.70). A aprendizagem é Na área da Educação Musical,
contínua e não se restringe a Keith Swanwick e David Elliott têm
determinadas fases específicas da vida discutido a relação do homem com o
humana, ao contrário ela se relaciona conhecimento em música e têm
com a própria construção do “ser”. desenvolvido teorias sobre o
A forma como a sociedade desenvolvimento musical que
compreende a relação do homem com o transcendem o ensino tradicional
saber interfere nas suas concepções centrado no “saber-objeto”. Para
sobre o idoso e sobre sua capacidade de Swanwick (1994), o conhecimento
aprender. De modo geral, o idoso é musical é multifacetado e não pode ser
visto como alguém que tem pouco a dissociado da experiência e vivência
contribuir socialmente, como um ser musical. O autor diferencia entre
inativo, em decadência, marginalizado conhecimento proposicional (teórico),
do convívio social, incapaz de adquirir conhecimento pelo fazer (na ação),
conhecimento (Junges, 2004, p.141). conhecimento por familiaridade
Contudo, os estudos têm mostrado que (intuitivo e tácito) e conhecimento
essas crenças e mitos podem conter atitudinal (subjetivo). Em sua visão, o
incoerências, pois as pessoas ativas na ensino de música deve contemplar as
terceira idade apresentam uma redução diferentes formas de conhecimento
da perda de suas habilidades de musical privilegiando as relações do
memória e de flexibilidade de homem com a música. Essa relação
pensamento (Lages, 2007). envolve transformações metafóricas

279
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

internas que englobam aspectos afetivos idoso, a sua história de vida pode gerar
e cognitivos, pois a inter-relação entre elementos significativos para a
as formas musicais e as histórias aprendizagem e o autodesenvolvimento.
pessoais de cada indivíduo produz As idéias e pensamentos de
significado. Portanto, a experiência pesquisadores e teóricos como Charlot,
musical gera significados pessoais, que Swanwick e Elliott iluminam a nossa
motivam as pessoas e as estimulam à compreensão sobre a relação do homem
aprendizagem musical independente de com o saber musical e podem nos
sua faixa etária. orientar na busca por novas formas de
David Elliott (2005), em sua ensino e aprendizagem musical na
filosofia de educação musical2, parte de terceira idade.
duas premissas: 1) a natureza da
educação musical depende da natureza 3. Pesquisas e tendências sobre a
da música e 2) a natureza da música está aprendizagem musical na terceira
relacionada ao seu significado para idade
quem a realiza. Assim, o ensino e
aprendizagem musical devem promover As pesquisas sobre as práticas
o desenvolvimento do musicais na terceira idade enfatizam os
autoconhecimento e da auto-estima benefícios da mesma para os alunos
considerando as diferenças pessoais e (Yarbrough, 2007, Rodrigues, 2007;
culturais (Elliott, 2005, p.10). O fazer Luz, 2006; Ribas, 2006). Os estudos
musical está, pois, entrelaçado a contemplam diferentes práticas de
camadas do conhecimento e da ensino e aprendizagem musical: canto
afetividade, proporcionando coral; musicalização; instrumento;
oportunidade para a expressão musical práticas de conjunto, ensino de jovens e
por meio da emoção, dos sentimentos, adultos (EJA) e atividades musicais
dos pensamentos, dos conhecimentos e intergeracionais. De modo geral,
dos valores. Elliott (2005) reconhece procura-se verificar as motivações,
que o fazer musical é procedimental e expectativas, práticas e metodologias
envolve quatro formas de conhecimento que norteiam as aulas com alunos
musical: o formal (verbal), o informal idosos.
(saber prático), o impressionista Yarbrough (2007) destaca a
(emocional) e o supervisor (elaborações presença do indivíduo idoso nos mais
mentais de imagens musicais que variados ambientes de ensino e
englobam os demais conhecimentos). aprendizagem musical como uma das
Na sua concepção o desenvolvimento novas tendências da Educação Musical
musical é “situado” e difere de uma para o século XXI. Ela ressalta a
prática para outra, tal pensamento importância do ensino de música
implica que o ensino e a aprendizagem articular-se com a vida dessas pessoas,
musical deve contemplar diferentes bem como enfatiza a importância da
experiências musicais. No caso do atuação do idoso em experiências
musicais intergeracionais. Os resultados
2
da pesquisa de Ribas (2006) também
Elliott defende um modelo de educação indicam a importância da música para
musical, Praxial Music Education,
fundamentado no conceito aristotélico de
estudantes de gerações diferentes. Sua
práxis, que entende a educação como uma ação pesquisa mostra que não há fronteiras
humana prática que é refletida e visa o “bem” etárias na relação com a aprendizagem
para o homem, seu auto-desenvolvimento e musical e que todos têm muito a
auto-conhecimento (Elliott, 2005).

280
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

oferecer e aprender (p. 186). A pesquisa em pressupostos teórico-metodológicos


desenvolvida Luz (2006) constatou que contemporâneos, como os já
através da aprendizagem musical os explicitados, observando-se estratégias
participantes tiveram oportunidades de de ensino e aprendizagem musical
desenvolver a cognição, desmistificando adequadas às suas condições físicas,
a “idéia preconcebida de que o idoso emocionais e sociais e.em parceria com
não aprende” (p.47). De forma outras áreas do conhecimento como
semelhante, Rodrigues (2007), em sua Gerontologia, Andragogia, Psicologia ,
análise sobre o canto coral na terceira Sociologia, Musicologia e Pedagogia.
idade, afirma que a experiência musical
proporcionou o rompimento de barreiras 4. Considerações finais
sócio-culturais e promoveu o
desenvolvimento de várias habilidades Este texto abordou concepções e
cognitivas como: o canto; a memória; a tendências sobre o ensino e
leitura de partituras; o repertório aprendizagem musical envolvendo o
musical e o aumento da capacidade de idoso. A reflexão realizada destaca o
concentração. Em suas palavras “o processo de ensino e aprendizagem na
idoso possui inúmeras possibilidades terceira idade como atividade relevante
como sujeito ativo, com amplas para o desenvolvimento cognitivo dessa
capacidades para explorar o seu lado faixa etária. Na Educação Musical, os
intelectual, musical, cognitivo” estudos ainda em número limitado, têm
(Rodrigues, 2007, p. 70). apresentado resultados que confirmam a
Os resultados das pesquisas motivação e aprendizagem musical na
mencionadas apontam para a relevância velhice.
do ensino e aprendizagem musical na Entretanto, o desenvolvimento
terceira idade e revelam o musical na terceira idade requer práticas
aperfeiçoamento das faculdades específicas que visem resgatar as
cognitivas, afetivas e sociais dos idosos. vivências musicais dos alunos e
O desenvolvimento cognitivo do idoso é proporcionar experiências musicais
mais significativo quando a novas e significativas. Por outro lado,
aprendizagem integra suas experiências em decorrência das transformações de
de vida e considera sua forma de se ordem física, mental e social na velhice,
relacionar com o saber. a música deve dialogar com outras áreas
Por outro lado, o ensino e do conhecimento como a Gerontologia,
aprendizagem musical na terceira idade por exemplo, para atender o idoso. A
requer um olhar sobre o educador inserção desse aluno em atividades de
musical no sentido de compreender seu aprendizagem musical implica na
papel no processo do desenvolvimento necessidade de se formar pessoas
cognitivo do idoso. Para Yarbrough profissionalmente preparadas para o
(2007) o surgimento de novas teorias da atendimento a essa faixa etária. Nesse
aprendizagem, dentre elas, as que sentido, julgamos relevante conhecer os
enfatizam a construção do tipos de formação e de atuação dos
conhecimento com base na experiência profissionais de música que atendem
resultarão em novas maneiras de se pessoas idosas em espaços escolares ou
conduzir e avaliar a aprendizagem. Em não. Para tanto, estamos iniciando
se tratando do idoso, acreditamos que a projeto de pesquisa com o objetivo de
condução do seu processo de ensino e investigar a formação e a atuação desses
aprendizagem musical pode ser pautada profissionais. Especificamente,

281
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

pretendemos: 1) conhecer a formação CHARLOT, Bernard. Da relação com


dos profissionais que atendem o saber: elementos para uma teoria.
indivíduos na terceira idade; 2) verificar Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
que concepções sobre ensino e ELLIOTT, David J. Introduction. In:
aprendizagem musical norteiam as ELLIOTT, David J (org) Praxial Music
práticas desses profissionais; 3) Education: reflections and dialogues.
investigar que saberes têm sido New York: Oxford University Press,
desenvolvidos por esses profissionais; 2005. pp.3-18.
4) investigar que saberes são
considerados necessários para atuar GARCIA, Denize S. Mazza. As
nessa faixa etária e 5) investigar os faculdades abertas para a
dilemas encontrados pelos profissionais maturidade. Disponível em:
em seu trabalho docente. De acordo http://www.portaldoenvelhecimento.net/
com os objetivos da pesquisa estamos pforum/fam1.htm Acesso em 18 dez
analisando a possibilidade de 2007.
utilizarmos um survey de entrevista JUNGES, José Roque. Uma leitura
como método de pesquisa, o qual crítica da situação do idoso no atual
deverá ser realizado em 2008. Esse tipo contexto sociocultural. Revista da
de survey é adequado à investigações de UFRGS, Estudos Interdisciplinares
médio porte e permite que o sobre Envelhecimento, Porto Alegre,
pesquisador esclareça dúvidas e obtenha vol. 6, ano 2004. p. 123-144.
respostas mais relevantes (Babbie,
1999). KOGA, Midori. The music making and
As novas tendências para o wellness project. The american music
ensino e aprendizagem da música teacher. Cinccinati, 55, 2, p. 40-41,
indicam que, nos próximos anos, a oct/nov 2005. Disponível em:
integração contínua de idosos em aulas http://proquest.umi.com/pqdweb?did=9
de música será fator fundamental para a 06433171&sid=2&Fmt=6&clientId=42
Educação Musical. Dessa forma, nossa 226&RQT=309&VName=PQD. Acesso
reflexão sobre o ensino e aprendizagem em: 27/11/2007.
musical na terceira idade não pretende LAGES, Amarílis. Nunca é tarde.
esgotar as possibilidades cognitivas e Disponível em:
educativas dessa temática, mas http://www.portaldoenvelhecimento.net/
contribuir para discussão do tema para a artigos/artigo1464.html .Acesso em: 18
formação de professores de música. dez 2007.

5. Referências bibliográficas LUZ, Marcelo Caíres. A educação


musical na terceira idade: uma proposta
BABBIE, Earl. Métodos de pesquisa metodológica de sensibilização e
de Survey. Trad. de Guilherme iniciação à linguagem musical. In:
Cezarino, Belo Horizonte: Ed. UFMG, ENCONTRO ANUAL DA
1999. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
EDUCAÇÃO MUSICAL, 15, 2006,
BRASIL. Lei n. 10.741, de 1º de João Pessoa. Anais... João Pessoa:
outubro de 2003. Dispõe sobre o ABEM, 2006. p. 44-53.
Estatuto do Idoso e dá outras
providências. Estatuto do Idoso,
Brasília, 3. ed., jun. 2005.

282
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

MENDONÇA, Jurilza Maria de; RODRIGUES, Eunice Dias da Rocha.


ARAÚJO, Roberto Costa. Informe Canto coral na terceira idade: suas
sobre a situação do idoso no Brasil. práticas, motivações e perspectivas.
Disponível em Monografia (Especialização em
http://www.un.org/spanish/envejecimie Educação Musical). Brasília: Fundação
nto/idex.html Acesso em 20 nov 2007. Brasileira de Teatro-Faculdade de Artes
Dulcina de Moraes, 2007.
NERI, Anita Liberalesso; CACHIONI,
Meire; RESENDE, Marineia Crosara. SWANWICK, Keith. Musical
Atitudes em relação à velhice. In: Knowledge: intuition and music
FREITAS, Elisabete Viana et al. education. London: Routledge, 1994.
Tratado de Gerontologia. Rio de YARBROUGH, Cornélia. What should
Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. be the relationship between schools and
RIBAS, Maria Guiomar de Carvalho. other sources music learning?
Música na educação de jovens e Disponível em:
adultos: um estudo sobre práticas http://www.menc.org/publication/vision
musicais entre gerações. Tese de 2020/yarbrough.html# Acesso em: 06
Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, set 2007.
2006.

283
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

O pensamento do professor de música:


a resolução de problemas na prática docente

Fernanda de Souza
f_fernandadesouza@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo refere-se a uma revisão crítica de literatura no campo da psicologia
cognitiva no que diz respeito às habilidades normalmente requeridas ao professor de música no
exercício de sua profissão. Junto a isso, busca-se refletir a respeito do pensamento do professor,
principalmente no que se refere à maneira como ele resolve problemas específicos de ensino da
música.

Palavras-chave: resolução de problemas, prática docente.

dados qualitativos do que quantitativos,


1. Introdução as quais focalizam o pensamento do
professor na ação pedagógica a partir de
O objetivo das pesquisas sobre o suas experiências práticas e reais de sala
pensamento do professor busca de aula. Assim, consideram o processo
compreender como os docentes docente como um problema concreto,
entendem e justificam suas práticas que deve ser identificado pelo professor,
pedagógicas e os problemas nelas o qual poderá ser resolvido através da
encontradas. Os temas desenvolvidos reflexão. É o caso dos estudos
nesse campo de pesquisa normalmente realizados por Donald Schön. Assim, o
envolvem as abordagens e escolhas de professor inexperiente pode ser levado a
processos por parte de professores em desenvolver ou ampliar o elenco de suas
diferentes níveis de especialização, habilidades e competências quanto à
especialmente no campo da pesquisa resolução de problemas, quando
experimental. São os casos das inserido em um processo formativo,
pesquisas realizadas por Goolsby, desde que seja também um processo
(1999), Sogin e Wang, (1997, 2002), reflexivo, muito embora perceba-se que
Doerksen (1999) e Teachout (1997), nas possa haver uma interseção entre a
quais é realizada a comparação de dados avaliação experimental direta de coleta
colhidos, sobre professores pouco ou e análise de dados e a pesquisa voltada
nada experientes em relação a na reflexão e construção de saberes
professores com larga experiência de docentes.
sala de aula. Nesse sentido, pode-se
notar um especial interesse na avaliação 2. Professores principiantes e experientes
da maneira como tais profissionais segundo a pesquisa experimental
resolvem problemas específicos de
Segundo Wang e Sogin (2002),
ensino da música e como organizam
são inúmeros os modelos de estudos
suas práticas docentes, tendo-se como
utilizados por pesquisadores sobre a
um fator determinante à comparação
habilidade de ensinar, (Barr, 1958;
das suas experiências acumuladas.
Flanders, 1975). Alguns desses modelos
Por outro lado, encontramos as
dizem respeito aos processos de ensino
pesquisas com interesse maior nos
utilizados pelo professor, incluindo,

284
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

comportamento do professor, as conhecimento do aluno e como


características do professor e a sua proporcionar instruções efetivas (Soing e
interação com os alunos. Outros Wang, 2002).
modelos focalizam nos resultados Algumas pesquisas têm
adquiridos pelo professor no processo investigado quais habilidades específicas
de ensino-aprendizagem. os professores hábeis desenvolvem para
Dreyfus e Dreyfrus relataram em resolver problemas únicos de sala de
seus estudos cinco estágios apresentados aula (Berliner, 1976; Brandt, 1986). Os
pelos professores no exercício de sua resultados destes estudos mostram que
profissão: principiante, iniciante, avançado, professores hábeis fazem inferências
desenvolvimento competente, desenvolvimento quando descrevem ação e interação em
proficiente e hábil (perito), esses estágios sala, enquanto que os principiantes
têm sido muito utilizados nas pesquisas tendem a descrever a ação de um modo
dessa área (Sogin & Wang, 2002). mais literal. Professores hábeis tendem a
A habilidade inclui conhecimento planejar aulas para vários tipos de
que o professor emprega para fazer respostas durante o período de instrução, ao
inferências rápidas e corretas, as quais o contrário dos professores principiantes.
permitem resolver diferentes problemas Os professores hábeis estão continuamente
de sala eficientemente. Segundo os analisando e alterando suas rotinas de
estudos de Stermberg e Horvath (1995) ensinar, ou seja, eles são capazes de
os professores hábeis dividem certas assumir uma postura flexível podendo
similaridades: possuem uma grande modificar e adaptar às diferentes
quantidade do conhecimento específico situações da prática de sala de aula
dominante, são eficientes em seu ensinar (Soing & Wang, 2002).
e demonstram intuição em resolver
problemas (Sogin & Wang, 2002). 3. O professor de música
Nos modelos de estudos desenvolvidos No campo da educação musical
por Wang e Sogin (2002), professores um dos temas mais recorrentes de
hábeis e principiantes são descritos investigação, refere-se à maneira como
conforme características específicas. Os o professor aproveita o “tempo” de aula
professores hábeis confiam em suas para realizar suas atividades de sala,
decisões, enquanto que os principiantes tanto em aulas de instrumento quanto
demonstram insegurança. Os professores em aulas de musicalização e teoria
hábeis estão atentos às pistas do aluno musical. São as pesquisas realizadas por
como dicas para a instrução e os Goolsby (1996) e Sogin e Wang (1997).
principiantes vêem as pistas como dicas Sogin e Wang (1997), realizaram
para gerenciamento do comportamento. um estudo a partir da comparação dos
Os professores hábeis parecem saber planejamentos de professores em diferentes
como tornar o seu meio deles próprios e níveis de especialização, com o intuito de
raramente seguem o que os outros analisar a maneira como os professores
professores têm feito, já os principiantes utilizavam o “tempo” em suas atividades
tendem a utilizar idéias ultrapassadas. Os de sala de aula. A partir deste estudo,
professores hábeis parecem mais constataram que tais professores
criativos e calculam os riscos, enquanto superestimavam a porcentagem de
que os principiantes gastam mais tempo “tempo” que utilizavam para as atividades
planejando e seguem exatamente aos de música. Nos estudos desenvolvidos
seus roteiros. Diferentemente dos por Goolsby (1996), os resultados
principiantes, os hábeis sabem o grau de encontrados indicam que quando se refere

285
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

a aulas de instrumentos, os professores performance e prescrição de soluções. Os


hábeis gastam menos tempo em instrução resultados dessa pesquisa indicaram que,
verbal reservando o maior tempo à prática com relação aos tipos de performance, os
do instrumento e ao ensaio. professores menos experientes apresentaram
Atualmente, não há nenhum mais baixa entonação em relação aos
modelo de estudo de habilidades para professores experientes, e que os
professores de Artes (Sogin e Wang, professores mais experientes demonstraram
2002). Sendo assim, na tentativa de maior acuidade quanto à agógica e à
verificar se os modelos teóricos existentes interpretação e menor atenção a pequenos
podem ser usados para diferenciar problemas de execução. Muito embora, a
professores de música hábeis dos não experiência musical acumulada possa
hábeis Sogin e Wang desenvolveram um nem sempre ser equiparada a um aumento
estudo através de relatórios, de como cada na habilidade de ensinar, há estudos que
professor percebe o ensino hábil à luz de fornecem interessantes dados sobre como
sua própria prática de ensino. Os professores experientes realizam seus
participantes responderam um questionário diagnósticos.
em que as questões foram baseadas nos O estudo realizado por Teachout
modelos teóricos de Brophy, Emmer e (1997), sobre o pensamento do professor
Everton, Barr e Flanders. Os resultados de música, procurou verificar quais
deste estudo piloto sugerem a existência habilidades e comportamentos os
de uma diferença entre professores professores de música consideram úteis
experientes e professores inexperientes. para o desenvolvimento de uma prática
Quanto aos resultados fornecidos sobre a profissional eficiente. Para tanto, ele
eficácia nos modelos teóricos, verifica-se comparou as respostas de estagiários e
que esses podem contribuir para futuros professores de música experientes,
estudos no sentido de auxiliar na quando perguntados sobre as habilidades
diferenciação das características relacionadas e comportamentos que consideram
a um ensino de música bem sucedido. importantes para o sucesso do ensino
Doerksen (1999) realizou um musical nos três primeiros anos de
estudo com a pretensão de comparar experiência profissional. A amostra
professores de música iniciantes e constou de um questionário com quarenta
experientes em relação a sua capacidade habilidades/comportamentos que deveria
de diagnóstico auditivo, de problemas de ser analisada a partir de três categorias:
execução instrumental e suas prescrições pessoal, musical ou de ensino. Tanto os
de soluções em diferentes níveis de professores experientes quanto os
dificuldade e qualidade musical. Assim, professores iniciantes classificaram as
os sujeitos ouviram um tape contendo habilidades de música de maneira
quatro tipos de performance: música significativamente menos importante que
difícil e excelente execução, música as habilidades pessoais e habilidades de
difícil e performance razoável, música de ensino. Os professores de ambos os
dificuldade moderada e excelente execução, grupos, na maioria das vezes, concordaram
música de dificuldade moderada e com as habilidades/comportamentos
performance razoável. Para cada tipo de consideradas as mais importantes para o
performance os sujeitos foram avaliados sucesso do ensino inicial, como por
em quatro áreas: qualidade da performance exemplo, motivação e confiança.
medida por nove elementos musicais Pode-se notar que a maioria das
selecionados, classificação dos nove pesquisas realizadas neste campo de
elementos, diagnóstico de problemas da estudo, indica que há diferenças entre o

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

professor iniciante e o professor envolver situações de incerteza,


experiente. Entretanto, pesquisas como singularidade e conflito, e problemas
de Standley e Madsen(1991), Alen que não estão bem definidos e
(1990), Henry (1989), afirmam que organizados, exigindo assim que o
essas diferenças não se apresentam profissional encontre soluções únicas
necessariamente devido a experiência para problemas específicos. Schön
no ensinar, pois afirmam que o número relativiza a idéia de métodos pré-
de anos de prática em sala de aula não é estabelecidos para resolver problemas
o único fator predominante para se obter práticos, principalmente pelo fato de
um ensino eficaz e de qualidade. que os problemas que encontramos na
prática docente nem sempre são bem
4. O pensamento do professor de definidos e organizados, bem como não
música apresentam metas claras que uma
As pesquisas de caráter experimental simples seleção de técnica possa
realizam o levantamento de dados, solucionar o problema. Para o autor,
chegando a resultados avaliativos que todo o processo docente é orientado por
pretendem fornecer soluções e um problema concreto, que deve ser
melhorias na prática de ensino e identificado pelo professor. Para
aprendizagem de música. Por outro resolvê-lo é preciso identificar, elaborar
lado, pode-se observar que as pesquisas e relacionar as questões que se
relatadas acima se baseiam em dados apresentam, analisar os aspectos
mais quantitativos que qualitativos, e relevantes e os não-relevantes. Esse
mesmo focalizando o pensamento do processo, segundo Alarcão (1996), é
professor em relação a sua ação fruto de uma reorganização de conceitos
pedagógica, se privilegia a perspectiva e interpretativos, que tem origem na situação
a visão dos pesquisadores sobre esses problemática concreta (Alarcão, 1996).
temas, criando assim, um Assim, se analisarmos as
distanciamento entre pesquisadores e pesquisas experimentais acima, bem
professores, entre conhecimentos como as idéias de Schön, verificamos
produzidos e a aplicação nas situações que a prática docente está presente em
reais de ensino. um contexto em que o professor precisa
As pesquisas sobre o resolver situações complexas em sala de
pensamento do professor têm por aula. Essas situações, muitas vezes,
finalidade compreender o conhecimento referem-se a problemas que não podem
voltado para a ação que os professores ser resolvidos apenas através da
utilizam para resolver situações aplicação de métodos e técnicas. Sendo
concretas que se apresentam no assim, os processos cognitivos
contexto prático e real de sala de aula. envolvidos no que chamamos de
Para tanto, existe uma linha de estudo resolução de problemas, estudados no
que reflete sobre questões de ensino campo da psicologia cognitiva, podem
junto com os próprios professores, auxiliar profissionais da educação a
construindo conhecimentos baseados na entender alguns processos relacionados
própria prática profissional e na à prática de ensino.
reflexão sobre a experiência de ensino.
Um dos trabalhos desenvolvidos 5. A resolução de problemas
a partir deste pensamento apresenta-se
na obra de Donald Schön. Para o autor, Para Sternberg (2000), a
a prática docente caracteriza-se por resolução de problemas envolve trabalho

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

mental para superar obstáculos que objetivo de comparar as estratégias de


atrapalham a chegada à resposta de uma resolução de problemas de regentes.
questão. Para o autor, as etapas Essas e outras pesquisas consideram a
fundamentais da resolução de problemas criatividade como fator determinante na
envolvem: identificação do problema, resolução de problemas. Assim, um
definição e representação do problema, estudo complementar á expertise na
formulação de estratégias, organização da resolução de problemas envolve o
informação, alocação de recursos, estudo da criatividade.
monitorização e avaliação. Considerando Para Sternberg (2002), o que
os estudos de Schön nos quais todo o distingue as pessoas criativas das demais
processo docente é orientado por um é a sua expertise e o seu compromisso
problema concreto que deve ser com o esforço criativo. Sendo assim,
identificado pelo docente – sendo que considera o pensamento criativo como o
para resolvê-lo é preciso identificar, resultado da inter-relação de seis fatores:
elaborar e relacionar as questões que se inteligência, estilos intelectuais, conhecimento,
apresentam, analisar os aspectos personalidade, motivação e contexto
relevantes e os não-relevantes – pode-se ambiental. Para o autor, as pessoas
dizer que as etapas de resolução de altamente criativas são caracterizadas por
problemas estabelecidas por Sternberg, apresentar: a) motivação alta para ser
podem auxiliar na organização do criativa em um determinado campo de
pensamento do professor. Assim, o estudo; b) manutenção de autodisciplina;
professor inexperiente pode ser levado a c) crença nesse tipo de trabalho; d) escolha
desenvolver ou ampliar suas habilidades e dos assuntos que utilizam a atenção
competências quanto à resolução de criativa; e) processos de pensamento
problemas, quando inserido em um caracterizados pelo insight e pelo pensamento
processo formativo e reflexivo. divergente; f) assumir riscos; g) conhecimento
Os estudos sobre expertise do domínio relevante; h) compromisso com
revelam que os indivíduos experts o esforço criativo. Além dessas características
diferem dos principiantes tanto no que diz intrínsecas, as características extrínsecas
respeito à quantidade e qualidade quanto como o contexto histórico o domínio e o
na organização do conhecimento que campo de esforço também influenciam na
aplicam para a resolução de um problema expressão da criatividade.
no domínio da sua especialidade Visto que, segundo Schön, a
(Sternberg, 2002). Assim, o conhecimento prática docente se estabelece a partir de
expert melhora enormemente a capacidade um problema concreto que deve ser
de resolução de problemas, tornando-a analisado e solucionado através de uma
mais eficaz. As pesquisas nessa área ação criativa, inteligente e reflexiva
pretendem investigar porque os experts pode-se dizer que o entendimento dos
conseguem resolver problemas em seu processos da resolução de problemas,
campo de domínio com mais qualidade estudados pela psicologia cognitiva, podem
do que os principiantes. contribuir na formação profissional docente.
Neste campo de pesquisa, no Contudo, nas pesquisas realizadas
que se refere à resolução de problemas sobre formação de professores encontramos
aplicada diretamente à música, podemos vários trabalhos de inspiração cognitivista
citar dois autores, Galvão (2006) que que procuram criar modelos para os
trata da resolução de problemas na processos de pensamento durante a fase
performance instrumental e Bergee de planejamento ou durante a prática de
(2005), que realizou estudos com o sala de aula. Mesmo assim, permanecem

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

ainda muitas incertezas quanto ao Preparing Identical Band Compositions:


pensamento cognitivo do professor em An Operational Replication. Journal of
situação complexa. Compreender quais os Research in Music Education, [S.l.],
conhecimentos colaboram para o controle
v. 2, n.47, p.174-87, 1999.
das situações concretas, qual o papel das
PERRENOUD, Philippe; PAQUAY, Léopold;
dimensões afetivas, como acontece a
representação do ofício e se o funcionamento ALTET, Marguerite; CHARLIER, Evelyne.
cognitivo do novato é similar ao do Formando professores profissionais.
experiente, é de relevante importância Quais estratégias? Quais competências?
para os estudos sobre a formação do Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.
professor.

6. Referências bibliográficas STERNBERG, Robert J. Psicologia


Cognitiva. Porto Alegre: Artes
ALARCÃO, Isabel. Reflexão crítica sobre Médicas, 2000.
o pensamento de D. Schön e os SOGIN, David; WANG, Cecília. An
programas de formação de professores. Exploratory Study of Music Teachers’
In: ALARCÃO, Isabel (org.). Formação Perception of Factors Associated with
reflexiva de professores: estratégias de Expertise in Music Teaching. Journal
supervisão. Porto: Porto Editora, 1996. of Music Teacher Education, [S.l.], v. 2,
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and Prescriptive Skills of Preservice and TEACHOUT, David J. Preservice and
Expert Instrumental Music Teachers. experienced teachers’ opinions of skills
Journal of Research in Music Education, and behaviors important to successful
[S.l.], v. 1, n. 47, p. 78-88, 1999. music teaching. Journal of Research
GALVÃO, Afonso. Cognição, emoção e in Music Education, [S.l.], v.1, n. 45,
expertise musical. Psicologia: Teoria & p. 41-50, 1997.
Pesquisa, [S.l.], v. 2, p.169-174, 2006.
GOOLSBY,Thomas W. A Comparison
of Expert and Novice Music Teachers’

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Educação democrática no ensino superior de música:


uma utopia

Graziela Bortz
gbortz@uol.com.br

Resumo: As correntes de educação democrática e de educação libertária ou anarquista, que


mantêm certas afinidades, como a ênfase no processo de desenvolvimento da autonomia dos
indivíduos, opõem-se aos currículos pré-estabelecidos e à educação competitiva visando os
títulos. Em ambas as correntes, este processo é construído no âmbito social. A primeira corrente
baseia-se em pensadores e educadores como Tolstoi, Korckac, Neill, Pacheco e Illich. A
segunda corrente baseia-se nas propostas anarquistas de Bakunin, Proudhon, Robin, Faure e
Ferrer i Guàrdia, autores estudados por Gallo em seu trabalho sobre pedagogia libertária. A
partir desses princípios pedagógicos, é elaborada uma proposta de auto-gestão no ensino
superior de música, sugerindo uma transformação no pensamento educacional da música na
universidade.

Palavras-chave: educação musical, pedagogia libertária, educação democrática.

conversação e livros em casa até as


1. Escolas democráticas e escolas libertárias viagens de férias” (2007, p. 12).
Considera importante tanto as
“A escolaridade não promove oportunidades de aprendizado na escola,
nem aprendizagem e nem a justiça, como aquelas não-intencionais ou que
porque os educadores insistem em acontecem no lazer.
embrulhar a instrução com diplomas”. Illich é igualmente provocador ao
Com esta frase provocadora, Illich afirmar que “precisamos de uma lei que
(2007, p. 16) defende o que chama de proíba toda discriminação na contratação
desescolarização da sociedade. “Sem empregatícia, nas eleições, na admissão a
dúvida, o processo educacional se centros de aprendizagem baseados na
beneficiaria da desescolarização da prévia freqüência a determinado curso”
sociedade, mesmo que esta exigência (2007, p. 16). Acrescenta que um teste
soe para muitos como traição ao de qualificação seria o suficiente para
iluminismo. Mas é o próprio iluminismo comprovar o mérito do candidato.
que está sendo extinguido nas escolas” Ao discutir a burocracia no
(Illich, 2007, p. 29). Estado moderno e a exigência de
Illich não diz, no entanto, que as titulações na concorrência para empregos
escolas devam deixar de existir, mas que privilegiados, Weber diz que a razão
não devem monopolizar a educação, para a adoção de currículos específicos e
afirmando que muito se aprende fora das exames especiais não é “uma ‘sede de
instituições de ensino. Argumenta que as educação’ surgida subitamente, mas o
crianças pobres, ainda que freqüentem as desejo de restringir a oferta dessas
mesmas escolas que as crianças de classe posições e sua monopolização pelos
média, tendem a ter menor rendimento, donos dos títulos educacionais” (1971, p.
já que “não têm a maioria das 279). Acrescenta que os custos
oportunidades educacionais ... desde a econômicos, assim como a demora na

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

aquisição dos títulos leva a “um recuo avaliações ocorrem constantemente para
para o talento (carisma) em favor da que se detectem possíveis falhas ou
riqueza”, ou seja, um recuo do mérito em sucessos na execução dos planos. Notas
favor do poder econômico. ou conceitos são alheios aos princípios
Opondo-se aos currículos pré- das escolas democráticas, que são contra
estabelecidos e à educação competitiva qualquer premiação ou desqualificação. A
visando os títulos estão as correntes de Escola da Ponte baseia a aprendizagem
educação democrática e de educação em pesquisa e projetos. As aulas
libertária ou anarquista, que mantêm raramente ocorrem, a não ser que os
certas afinidades, como a ênfase no alunos as requisitem (Pacheco, 2001).
processo de desenvolvimento da Outras escolas, como a de Summerhill, no
autonomia dos indivíduos. Em ambas as Reino Unido, têm aulas normalmente,
correntes, este processo é construído no apenas a presença dos alunos não é
âmbito social.1 A primeira corrente obrigatória (Neill, 1984).
baseia-se em pensadores e educadores Na corrente libertária, Gallo
como Tolstoi, Korckac, Neill (1984), (1995) diz que é preciso entender que a
Pacheco (2001) e Illich (2007). A segunda educação é essencial ao pensamento
baseia-se nas propostas anarquistas de anarquista e vice-versa, já que um
Bakunin, Proudhon, Robin, Faure e alimenta o outro em movimento circular.
Ferrer i Guàrdia, autores estudados por A concepção de liberdade no âmbito
Gallo (1995, 2007) em seu trabalho anarquista difere do conceito liberal e
sobre pedagogia libertária. neoliberal burguês (que o autor afirma ser
Não é apenas às exigências dos uma reedição da mesma estrutura de
títulos que essas correntes se opõem, mas dominação do liberalismo do século
especialmente aos currículos e à presença XVIII). A liberdade no pensamento
compulsória. São 209 as escolas burguês é considerada “como um fator
democráticas filiadas ao IDEC2 em todo o individual e natural, e não como um fator
mundo – a maioria encontra-se em Israel coletivo e cultural”, isto é, uma liberdade
e na Austrália – embora existam outras que se constrói coletivamente – como
tantas escolas que possuem afinidades de pensam os anarquistas (Gallo, 1995, p.
princípios, mas que não são filiadas. A 165). A liberdade burguesa é para poucos
maneira de lidar com a organização dos e em detrimento da liberdade de outros, a
currículos ou com a presença dos alunos anarquista é para todos. “Ao contrário da
varia de uma instituição à outra. Algumas, perspectiva burguesa, a liberdade de um
como a Escola da Ponte, em Portugal, não termina onde começa a liberdade do
organiza os conteúdos em um sistema de outro, mas ambas as liberdades começam
tutoria, onde o professor e o aluno juntas, e uma é a garantia da outra”
estabelecem um plano de pesquisa (Gallo, 2007, p. 104). A educação que
quinzenal, mas mantêm encontros diários aceita os princípios competitivos e
na chegada do aluno à escola, que possui individualistas do pensamento liberal é,
horário flexível, para estabelecer o plano portanto, uma educação de afirmação,
do dia subordinado àquele quinzenal. As reprodução e manutenção do status quo
da sociedade. A educação libertária
1 pretende ser protagonista de uma
Uma das características comuns a todas as
escolas democráticas são as assembléias
transformação social.
freqüentes, em que todos os membros da escola Assim descreve Gallo:
podem participar.
2
International Democratic Education Conference
<http://www.educationrevolution.org/index.html>.

291
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A educação libertária trabalha 2. O ensino superior democrático


para destruir a padronização dos
indivíduos, proliferando a Gallo imagina uma universidade
singularidade, a criatividade e as libertária, “onde os estudantes devem
diferenças, que acabam por se ser livres na construção de sua vida
harmonizar através da cooperação
e da solidariedade compondo
acadêmica, onde os docentes devem ser
uma totalidade social ... afasta-se livres na construção e na distribuição
radicalmente da sociedade dos conhecimentos, onde as relações
capitalista, fundada na padronização entre professores e alunos tenham como
dos indivíduos, produzidos em princípio a liberdade de ambos” (2007,
massa pela escola baseada na p. 167).
submissão e na transmissão da Para os libertários e as escolas
ideologia dominante (1995, p. 165). democráticas, o iluminismo, embora
tenha feito frente ao poder da Igreja e da
Um fator importante que aparece monarquia, apenas mudou o foco de
tanto no pensamento da educação poder, que passou das mãos destes à
anarquista como na democrática é o que burguesia. Desta maneira, as escolas e
se refere à responsabilidade construída a as universidades funcionam de acordo e
par da liberdade coletiva. As duas a favor dos ideais desta última. Em
correntes acreditam que delegar o poder, outras palavras, a idéia de liberdade
como ocorre na democracia representativa, dentro das instituições de ensino atende
é delegar responsabilidades. Por isso a às necessidades da ideologia dominante,
ênfase dada às assembléias nas escolas que pretende deter o controle e o
democráticas. monopólio do saber, dizer o que deve
É este um ponto crucial no texto ou não ser ensinado e o que está ou não
de Gallo (1995), que se denomina correto.
Pedagogia do risco não por acaso. Ele A auto-gestão é, para as duas
acredita, influenciado pelas idéias de correntes pedagógicas, tão importante
Wilhelm Reich e Erich Frömm, que o como a construção da responsabilidade
indivíduo, ao delegar poder, abdica da construída através da não-delegação do
responsabilidade, o que significa abdicar poder. Por isso, cada escola escolhe a
de projetos próprios, “subordinando-se melhor maneira de gerenciar o aprendizado.
às determinações externas, o que faz A escola superior The Kibbutzim College
com que a vida seja muito mais fácil ... e of Education em Israel é um exemplo de
ele passa a realizar projetos externos, auto-gestão do aprendizado. Ela não só
com toda a segurança” (1995, p. 171). prepara professores para ensinar de
Para a educação anarquista, assim como acordo com os princípios de educação
a democrática, a pedagogia da segurança democrática, mas também opera de
é a pedagogia da obediência e a morte do acordo com esses princípios em sua
indivíduo. Por pedagogia do risco, formação. De acordo com seu projeto
entende-se a oportunidade de ser singular, pedagógico, os alunos passam parte do
mas estar em harmonia com a diversidade tempo de formação na própria escola
e a multiplicidade social. Ao contrário de (“dois dias de estudo intenso”) e parte
tentar ajustar o indivíduo ao sistema, na comunidade, em atividades sociais e
opta-se pelo “não-ajustamento, o diferente, educacionais por quatro anos. Cada aluno
o novo, o criativo” (1995, p. 174). tem seu instrutor pessoal e freqüenta
workshops de, no máximo, dez pessoas.
Cada ano se refere a uma parte do

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

processo de formação, sendo o primeiro também garante que o especialismo não


ano chamado de “pesquisa”, onde os seja uma fonte de poder por ser a
alunos vão buscar seus interesses próprios; detenção monopolista de certos saberes,
o segundo ano, “aprofundamento”, quando pois estes conhecimentos serão
o aluno escolhe uma área e gere ele reconhecidos como posse da comunidade
próprio sua maneira de estudá-la. No como um todo” (Gallo, 2007, p. 171).
terceiro ano, chamado de “produção”, o Acrescenta que tanto a generalização
aluno “desenvolve ferramentas sócio- como a especialização são aspectos do
educacionais para ajudar na criação de conhecimento que devam ser abordados
iniciativas educacionais (ferramentas tais simultaneamente.
como: iniciativas comerciais, arrecadação
de fundos, orientação de grupo)”. No 3. O ensino superior em música
último ano, chamado de “implementação”,
os projetos são colocados em prática Empresto as idéias da educação
[2001?].3 democrática e da pedagogia libertária ou
As iniciativas que excluam parcial anarquista para aplicá-las utopicamente
ou totalmente a aula presencial são várias, no ensino superior de música. No
como o que tem ocorrido no ensino à prefácio à Pedagogia libertária, Morais
distância, mas um programa completo de afirma que a palavra utopia vem do
estudos que incorpore e dê ênfase às original grego outopos, que significa
próprias iniciativas dos estudantes não é “aquilo que ainda não teve lugar” (Gallo,
tão freqüente. De maneira geral, as 1985, p. 10-11). Em sua universidade
escolas tendem a ser conservadoras, imaginária, Gallo (2007, 167-168)
estabelecendo limites de carga horária, afirma que, embora esteja ciente de que a
currículo e programas rígidos, assim palavra utopia pode significar um estado
como presença obrigatória, muitas vezes de alienação, procura usá-la em seu
por razões externas, como limites legais. sentido positivo, como “busca, projeto e
O exemplo do programa da escola construção, nada negativa, portanto”,
The Kibbutzim College of Education, que é o sentido que procuro dar aqui.
ainda que não seja diretamente herdado A formação oferecida nas
do pensamento anarquista, está de acordo faculdades de música no Brasil busca a
com as idéias de Gallo no que diz respeito continuação do conhecimento adquirido
às especialidades. Ele acredita que a nos conservatórios, aulas particulares e
definição destas deva ser feita “de acordo escolas de música. Os quatro a seis anos
com as necessidades e aptidões de cada um, de programa constituem um aprendizado
garantindo um melhor aproveitamento”. essencialmente técnico, desde o estudo
Influenciado pelo pensamento de Robin de um instrumento até as disciplinas
em sua concepção de ensino integral, teóricas que buscam a análise e
onde a ciência e a intelectualidade não compreensão do material explorado por
são separadas da prática e do contato compositores ocidentais até hoje, embora
íntimo com o mundo, acredita que o a ênfase esteja na sistematização da
especialista deva sê-lo apenas em música do passado, principalmente
determinadas situações, “mas não estando aquela que vai até o final do século XIX
alheio às condições gerais que o levam e início do século XX. Em alguns casos,
àquela especialidade. Por outro lado, isto há disciplinas em filosofia e ciências
humanas e, no caso dos cursos de
3
Documento disponível no instituto: Politéia licenciatura, é comum uma sobrecarga
Educação Democrática, associado ao IDEC em de horas-aula pelo fato de acumularem,
São Paulo (http://www.politeia.org.br).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

além das disciplinas em música, aquelas os currículos com disciplinas obrigatórias


em educação. Um fenômeno cada vez e há pouco espaço para workshops de
mais comum no Brasil são as classes criação. Acredita-se que os alunos não
superlotadas, o que logicamente contribui sabem o que é importante para sua
para a massificação do ensino. formação, mas o que se cria, desta forma,
Os estudantes passam pelos são alunos sem autonomia ou iniciativa.
vestibulares comuns a todos os candidatos No caso dos instrumentistas de orquestra
para as diversas carreiras e a maioria das em particular, a busca é o emprego, e
faculdades inclui ainda uma prova como não têm estímulo durante a escola,
específica. Ao ingressar na faculdade, os jamais vivenciam a criação. As
estudantes se confrontam com um disciplinas teóricas são abordadas de
currículo previamente estabelecido, carga maneira abstrata, muitas vezes pela
horária semanal repleta de aulas e necessidade de “cumprir o currículo” e
nenhum espaço para o estudo e preparo demasiadamente alijadas do contexto
para essas mesmas aulas, ou para sua prático que o estudante vivencia.
própria pesquisa. A proposta aqui apresentada
Não somente o currículo das busca criar um espaço para o estudante
disciplinas teóricas é preestabelecido, estabelecer seu próprio ritmo de pesquisa
mas inclusive o repertório particular dos e aprendizado, sendo estimulado a criar
instrumentos, embora exista algum projetos conjuntos que envolvam desde
espaço para escolha (como a “peça de pesquisa nas áreas de estética, teoria,
livre escolha”, que freqüentemente significa história e filosofia, até grupos de criação
uma entre duas ou três obras) o que e execução.
desconsidera características, singularidades
e necessidades particulares do estudante. 4. Uma utopia: a escola de música
Essa é uma das razões pelas quais a democrática
ansiedade em performance acontece. O programa aqui imaginado se
Por ser movido por motivações externas, baseia no projeto pedagógico da escola:
o estudante – e o professor – não pode The Kibbutzim College of Education e na
se concentrar nas motivações internas.4 estutura pedagógica da Escola da Ponte
Um instrumentista que, por (Pacheco, 2001), em Portugal. Este
exemplo, freqüentemente se arrisca em programa duraria quatro anos. No
obras desconhecidas, que tem propensão primeiro ano, os estudantes passariam
a criar ao lado de compositores novos, por vários projetos, tais como: corais e
encontra dificuldades em ter espaço para madrigais, orquestras de câmara,
seguir suas paixões5, com exceção, talvez barroca, grupos de criação (música
dos percussionistas. O mesmo acontece com contemporânea), projetos de pesquisa em
os compositores. As escolas sobrecarregam educação musical e musicologia, grupos
de discussão de textos de estética e
4
Para a influência de fatores externos na história, grupos de análise diversos e
motivação sob o ponto de vista psicológico, cf. workshops e escolheriam aqueles com os
Csikszentmihalyi & Csikszentmihalyi (1988). quais mais se identificam. Durante este
5
Usei o termo paixões propositalmente. Um dos
focos da educação democrática é lidar com as
ano, escolheriam seu orientador, que, a
emoções particulares dos estudantes, facilitando partir do segundo ano (ou antes, quando
sua compreensão e lidando com elas no possível a identificação), manteria
contexto social. Gallo (2007, p. 112) diz que contato com o estudante uma ou duas
Ferrer i Guàrdia defendia uma educação que vezes por semana para estabelecer metas
levasse em conta a razão como intrinsecamente
ligada às emoções.
semanais, mensais e trimestrais, além de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

visualizar metas mais longas (projeto exista um modelo mais ou menos


final). estabelecido pela história da música e da
No segundo e terceiro anos, o educação musical para o aprendizado da
estudante daria continuidade ao tipo de música, e abordamos aqui apenas o
projeto (ou projetos) que escolheu, ensino superior. Disciplinas, tais como:
estabelecendo suas metas, que poderiam coral, harmonia, contraponto e fuga,
tomar a forma de produção escrita história da música nos blocos de períodos:
(produção acadêmica, composição escrita) Idade Média, Renascença, Barroco,
ou musical (performance, regência, Clássico, Romântico, século XX e XXI
captação de recursos para eventos musicais, são matérias obrigatórias em todos os
projetos pedagógicos), de acordo com cursos superiores de música. Os
seus interesses. Os estudantes seriam estudantes têm algumas disciplinas
incentivados a elaborar projetos conjuntos, optativas ocasionalmente, mas raramente
ainda que tivessem, também, planos têm a oportunidade de estruturar seus
individuais, que seriam finalizados no próprios interesses, tornando-se, com o
quarto ano. Projetos incluindo a comunidade, passar do tempo, responsivos,
tais como: educação musical para a desinteressados e apáticos. A Unicamp
terceira idade, crianças, etc. também oferece curso de música popular superior
poderiam ser contemplados desde que e a USP de Ribeirão Preto, viola caipira,
sua execução fosse viável. casos isolados no meio acadêmico.
Além dos dois encontros semanais
com seu orientador, os estudantes (aqueles 5. Conclusão
dos cursos de instrumento e composição)
teriam aulas individuais com o professor Acredito que o conhecimento
especialista e estariam livres para escolher deva ser estruturado a partir dos interesses
sua forma de realizar os projetos e e curiosidades que despertam do próprio
organizar seus horários, de acordo com a estudante e isso deve ocorrer no primeiro
disponibilidade dos espaços, seja através ano do curso (se já não tiver seu próprio
de pesquisa na biblioteca e computadores, interesse estruturado de antemão), quando
salas de estudo individuais (instrumentos) ele entra em contato com os diversos
ou estúdio de gravação e auditórios. projetos em andamento, assim como os
A avaliação seria feita nos materiais disponíveis nos diversos canais
encontros semanais, diante do que foi oferecidos pelos espaços da comunidade
produzido e o que não foi produzido para (biblioteca, concertos, workshops) ou
que novas metas fossem estabelecidas. produzidos pelos colegas e professores.
Uma avaliação mais ampla seria feita Cada indivíduo poderia, assim, estruturar
trimestralmente para que se tivesse um seu aprendizado a partir da exposição aos
panorama do que foi adquirido, o que materiais e orientação de seu professor,
resta adquirir, quais são as dificuldades e que também se responsabilizaria por
o que deve ser feito para se alcançar as estimular sua curiosidade ao indicar
metas autopropostas. Nesta avaliação, textos, gravações ou materiais didáticos.
participariam o orientador e o estudante, 6. Subáreas do conhecimento
além de, posteriormente em reunião,
todos os professores do departamento de Educação musical, educação.
música.
Em relação aos conteúdos, 7. Referências bibliográficas
embora haja controvérsias, a comunidade CSIKSZENTMIHALYI,M.;CSIKSZENTMIHALYI,
acadêmica musical tende a pensar que I. S. (eds.). Optimal experience: psychological

295
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

studies of flow in consciousness. New da Ponte: um outro caminho para a


York: Cambridge University Press, 1988. educação. São Paulo: Suplegraf, 2004,
GALLO, S. Pedagogia libertária: anarquistas, p. 81-104.
anarquismos e educação. São Paulo: POLITÉIA EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA.
Editora Imaginário, 2007. The 'Hothouse' for Educational and
GALLO, S. Pedagogia do risco: experiências Social Initiatives: The Kibbutzim College
anarquistas em educação. Campinas: of Education. Disponível, sob requisição,
Papirus, 1995. em: http://www.politeia.org.br. São
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Summerhill – radical transformação na sociologia. Rio de Janeiro: Zahar. 1971,
teoria e na prática da educação. São p. 292-305. (Traduzido da publicação da
Paulo: IBRASA, 1984. Oxford University Press, 1946).
PACHECO, J. Fazer a ponte. In: CANÁRIO,
R.; MATOS, F.; TRINDADE, R. Escola

296
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A importância do estudo sobre a superdotação


infantil para a educação musical

Hellen Ferracioli
hellenthf@yahoo.com.br

Resumo: As teorias e pesquisas recentes sobre o desenvolvimento humano ainda não oferecem
informações científicas suficientes para explicar a origem e o desenvolvimento de uma
inteligência superior em crianças superdotadas. Contudo, apesar de não haver um consenso na
discussão sobre esta temática, já é possível desmistificar as idéias errônias oriundas do
desconhecimento da população acerca da superdotação, para que esta classe de crianças seja
mais facilmente identificada e assistida de maneira adequada. Desta forma, faz-se relevante um
trabalho que esclareça as dúvidas sobre o desenvolvimento de altas habilidades e as
características comportamentais de crianças superdotadas. Dentre todas as áreas de
conhecimento, este trabalho tem como foco principal a superdotação em Música. Grande parte
das crianças musicalmente superdotadas não são identificadas, principalmente porque a
avaliação do nível de inteligência se dá através de testes de QI, que revelam, em geral, altas
habilidades acadêmicas. Existem crianças superdotadas nas mais diversas áreas, e o
desenvolvimento das habilidades é independente, podendo um indivíduo apresentar divergência
entre os níveis das inteligências humanas.

Palavras-chave: inteligências humanas, crianças superdotadas, música.

do desenvolvimento e comportamento de
1. Introdução crianças superdotadas, este assunto foi
abordado de três maneiras, neste trabalho.
O sistema educacional, até Primeiramente, foi realizado um
então, vinha dando pouca atenção às estudo bibliográfico, visando definir o
crianças superdotadas, considerando conceito de superdotação e outros termos
que muitas nem eram reconhecidas relacionados a este fenômeno. Buscou-se
como tais. No entanto, nos dias de hoje, discutir também alguns dos elementos
a preocupação com o despreparo dos que caracterizam estes indivíduos com
professores e a busca pela informação altas habilidades, e outras informações
sobre a superdotação tem aumentado, relevantes para que a família, a escola e a
pelo menos em teoria. A escola e a comunidade possam atuar de maneira
sociedade enxergam estes indivíduos adequada no processo de desenvolvimento
como seres privilegiados por possuírem e aprendizagem desta classe de crianças.
um “talento especial”, mas não admitem Em um segundo momento, o
que sejam tratados como “crianças trabalho teve como foco a superdotação
especiais”, isto é, necessitados de uma na área da Música, discutindo e
“educação especial”, assim como comparando os conceitos de superdotação
aqueles que possuem um grau de musical e inteligência musical, e
inteligência inferior com relação à abordando os diversos aspectos que
média. implicam no desenvolvimento superior da
Compreendendo a importância de capacidade artística. Nesta etapa,
um estudo sobre a superdotação, a fim de objetiva-se, entre outros fatores, traçar
esclarecer as principais dúvidas a respeito

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

implicações do estudo da superdotação da Universidade de Connecticut, EUA,


em Música para a Educação Musical. entende a superdotação como uma
resultante da combinação de três
2. Superdotação aspectos comportamentais:

2.1 Conceito de superdotação i. Habilidade superior à média em


uma área de conhecimento;
Segundo a Política Nacional de
ii. Motivação e persistência em
Educação Especial de 1994, as crianças
aprender e produzir, o que
superdotadas ou portadoras de altas
envolve grande concentração;
habilidades, como atualmente também
estão sendo tratadas, são indivíduos iii. Criatividade, no sentido de
com desempenho superior em um ou encontrar maneiras diferentes de
vários aspectos descritos abaixo: resolver os problemas e
[...] a) capacidade intelectual descobrir novas definições e
geral (que envolve rapidez implicações para os conceitos já
de pensamento, compreensão e existentes.
memória elevadas, capacidade de
pensamento abstrato); b) aptidão Apesar da importância do
acadêmica específica (atenção, trabalho de Renzulli, utilizaremos o
concentração, rapidez de conceito de superdotação proposto pela
aprendizagem, boa memória, psicóloga Ellen Winner, pesquisadora
motivação por disciplinas que se aprofundou na área da
acadêmicas do seu interesse, aprendizagem e cognição em Artes em
capacidade de produção crianças em desenvolvimento típico e
acadêmica); c) pensamento superdotadas.
criativo ou produtivo
Winner (1998) salienta que o
(originalidade de pensamento,
imaginação, capacidade de termo superdotado deve ser utilizado
resolver problemas de forma para fazer referência a crianças que
diferente e inovadora); d) apresentam três características incomuns:
capacidade de liderança
(sensibilidade interpessoal, i. Precocidade em uma área
atitude cooperativa, capacidade específica ou em várias áreas de
de resolver situações sociais conhecimento;
complexas, poder de persuasão
e de influência no grupo); ii. Persistência em aprender e
e) talento especial para artes produzir de modo particular e
(alto desempenho em artes diferente das demais crianças;
plásticas, musicais, dramáticas,
literárias ou cênicas) e f) iii. Obsessão pelo domínio da área
capacidade psicomotora de conhecimento na qual se
(desempenho superior em destacam.
velocidade, agilidade de
movimentos, força, resistência, Segundo a psicóloga são esses
controle e coordenação motora). três fatores que tornam as crianças
(Virgolim, 2001, p. 2). superdotadas diferentes das outras,
principalmente porque se tratam de
Joseph Renzulli, um pesquisador
indivíduos que precisam de ajuda
reconhecido do Centro Nacional de
Pesquisa sobre o Superdotado e Talentoso,

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

mínima e quase nenhum “empurrão” reservado para descrever apenas os


dos adultos no processo de aprendizagem. indivíduos que já deram contribuições
originais e de grande valor”.
2.2 Definição de outros termos Winner (1998) usa o termo
relacionados à superdotação talentoso para se referir a crianças que
Virgolim (2001, p. 1) compara a possuem altas habilidades em áreas
definição destes termos e conclui que artísticas como Artes Visuais e Música.
“[...] a superdotação, a precocidade, o Deste modo, ela reserva o termo
prodígio e a genialidade são gradações superdotado para designar crianças com
de um mesmo fenômeno, que vem habilidades acadêmicas superiores à
sendo estudado a séculos em diversos média.
países, como China, Alemanha e
Estados Unidos”. A autora ainda 2.3 Os testes de QI e o conceito de
esclarece que a superdotação é a inteligência
classificação mais abrangente dentre os
termos acima citados, e que as crianças A eficiência e veracidade dos
precoces, prodígios e gênios estão resultados obtidos pelos testes de QI,
enquadradas em uma classe geral, sendo principalmente os de escore geral, tem
consideradas como “ramificações” da sido alvo de críticas e questionamentos,
superdotação. por não detectarem as altas habilidades
Um indivíduo precoce é em Artes ou Música, por exemplo. Tais
prematuro no domínio de um avaliações estabelecem principalmente o
conhecimento em uma determinada área, nível de habilidades verbais e matemáticas,
e dentro deste contexto é capaz de mas as habilidades artísticas ou motoras
compreender certos elementos com excepcionais, muitas vezes, não são
muito menos esforço que as outras identificadas.
crianças da mesma faixa etária e em Essa foi uma das discussões de
desenvolvimento típico. Howard Gardner, em sua Teoria das
Ao contrário da criança precoce Inteligências Múltiplas, através da qual
que revela apenas uma das ele demonstra que o ser humano tem
características dos superdotados, a potencial para desenvolver diferentes
criança-prodígio apresenta maximizadas tipos de inteligência, em diversas áreas de
todas as características. Winner (1998, conhecimento. O que varia é o nível desse
p. 13) define o termo prodígio da potencial para o desenvolvimento de
seguinte maneira: “[...] um prodígio é alguns aspectos da inteligência lingüística
apenas uma versão mais extrema de , matemática, musical, ou de qualquer
uma criança com superdotação, uma outro tipo. Gardner (1995, p. 21), ao
criança tão superdotada que desempenha definir inteligência, afirma que: “Uma
em algum domínio em um nível adulto”. inteligência implica na capacidade de
O uso do termo gênio para resolver problemas ou elaborar produtos
designar alguns casos de superdotação que são importantes num determinado
está mais associado ao reconhecimento ambiente ou comunidade cultural”.
desses indivíduos, que foram aclamados No caso da superdotação, o
internacionalmente pelo seu desempenho, desenvolvimento de uma habilidade
suas descobertas e suas realizações. excepcional em Música, por exemplo,
Observemos a afirmação de Alencar significaria uma elevação no nível da
(1986, p. 40) sobre a definição deste Inteligência Musical. Mas é importante
termo: “[...] que o termo gênio seja esclarecer que, mesmo dentro da área da

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Música, pode haver “sub-habilidades”, 2.4.1 Fatores biológicos


como a performance, a composição, a
improvisação, a leitura a primeira vista e O neurocirurgião Joel Augusto
o ouvido absoluto. Além disso, o Ribeiro Teixeira, presidente da Mensa
indivíduo pode se sobressair em apenas Brasil, uma sociedade formada por
uma delas, e não ter sua alta habilidade pessoas com altas habilidades (apud
reconhecida e diagnosticada como uma Mantovani, 2006), ressalta que "[...] a
espécie de superdotação musical. explicação mais simplista é que ocorra
Considerando que o desempenho um maior número de sinapses, ou
de habilidades em uma área específica interligações entre os neurônios, no
está relacionado ao nível de inteligência cérebro dos superdotados".
do indivíduo nesta área, é correto afirmar Tunes (1994), em um artigo para
que o desenvolvimento de uma habilidade a revista virtual Galileu, explica que as
excepcional em Música remete, por áreas relacionadas às altas habilidades
exemplo, à elevação do nível de dos superdotados, sejam as verbais,
inteligência musical, em um ou mais matemáticas ou musicais, possuem uma
aspectos, e conforme a superioridade ativação maior de neurônios, percebida
deste nível de inteligência pode-se através de encefalograma computadorizado
considerar um caso de superdotação feito com crianças superdotadas.
musical. É fato que existem diferenças
A relação entre inteligência e significativas na estrutura e atividade
superdotação, desta forma, pode ser feita cerebral entre superdotados e não-
da seguinte maneira: a superdotação é a superdotados, como muitos estudos já
existência de um nível elevado de comprovaram. Mas a questão é como
inteligência, em uma ou várias áreas de saber se estes “cérebros diferentes” são
conhecimento, após avaliação do assim desde o nascimento do indivíduo,
desempenho de habilidades específicas, ou se a estrutura cerebral se modificou
em comparação com indivíduos em em função de estimulação e treinamento
desenvolvimento típico. intensivo? Certamente a ausência de
uma resposta que satisfaça a maioria
2.4 Fatores influentes no desenvolvimento dos psicólogos e pesquisadores da área
de crianças superdotadas é que impede à chegada de um consenso
sobre a origem da superdotação ser
Existem várias correntes que inata ou adquirida.
dividem suas opiniões a respeito dos
aspectos que implicam na origem e no 2.4.2 Fatores ambientais
desenvolvimento diferenciado desta
classe de crianças. Como ainda não há A pesquisadora Ellen Winner
um consenso sobre qual perspectiva é a considera a visão dos ambientalistas
correta, muitos estudiosos acreditam errônea e generalizada do desenvolvimento
que a visão mais coerente e admissível é da criança, ou seja, que não se preocupa
a de que o nível de inteligência dessas com as particularidades de cada
pessoas é resultado da combinação de indivíduo. Winner (1998, p. 14) afirma
fatores biológicos, ambientais e sócio- que “[...] ainda mais antiindividualista é
culturais. a visão confusicionista de que todos
podem ser hábeis e que as diferenças
em habilidades refletem apenas o

300
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

esforço e comprometimento moral, não do momento em que ela perde o


quaisquer talentos especiais”. interesse pela aprendizagem ou se sente
Não se pode negar que os emocionalmente abalada, pressionada
aspectos ambientais são fundamentais pela expectativa de um desempenho
para o desenvolvimento das habilidades superior, isto é, pela responsabilidade
superiores dos superdotados, mas estes de ser sempre a melhor. Sobre esse
não podem ser tratados como os únicos relacionamento entre o superdotado e a
responsáveis. É evidente que o esforço família, Winner afirma que:
diário e a motivação do meio favorece o
desenvolvimento do talento. Acredita-se que crianças cujos
pais as orientam cedo demais a
2.4.3 Fatores sócio-culturais aperfeiçoar seu desempenho,
fatalmente terminarão como
Segundo o neuropsicólogo Daniel adolescentes ressentidos,
desengajados e deprimidos, que
Fuendes, do Institututo de Psiquiatria do perderam todo o interesse em
Hospital das Clínicas da Universidade de um desempenho superior. Os
São Paulo, existem superdotados nas mais pais são aconselhados a deixar
diversas classes sociais e culturas os filhos em paz e permitir que
mundiais. eles brinquem como crianças
Muitos desses indivíduos, porém, normais. (Winner, 1998, p. 145).
não desenvolvem seu potencial intelectual
pela falta de programas educacionais Em um outro extremo, existem
adequados a essa classe, principalmente pais de superdotados que temem
nos casos em que a situação financeira pela exclusão de seus filhos dos grupos
dos pais de crianças superdotadas não é de crianças da mesma faixa etária, e
favorável ao desenvolvimento de suas fazem questão de omitir ou negar a
capacidades. superdotação, acreditando estar protegendo
Contudo, o fator sócio-econômico a criança.
não é o único empecilho. Muitas famílias Contudo, uma melhor compreensão
com um alto poder aquisitivo não deste fenômeno, e um vínculo afetivo
estimulam o desempenho intelectual fortalecido e sadio entre a criança
superior de seus filhos, receosos de que superdotada e seus familiares ampliam as
isto traga mais malefícios do que condições para a sua adaptação na escola
benefícios, principalmente no e na comunidade.
relacionamento destas com as demais À escola cabe oportunizar
crianças. condições e recursos adequados ao
processo de aprendizagem dessa classe
2.5 A participação da família, da escola de crianças. O ambiente escolar precisa
e da comunidade no desenvolvimento se suficientemente desafiador para que a
das crianças superdotadas criança superdotada tenha interesse em
aprender, pois é preciso acompanhar sua
Alguns pais, cientes de que seus velocidade de desenvolvimento.
filhos possuem altas habilidades, A comunidade em geral, por sua
exigem deles uma dedicação máxima vez, também precisa estar mais preparada
pelo domínio do conhecimento e uma para receber essas crianças, sem fazê-las
produção sempre em nível elevado. A se sentir estranhas, diferentes, anormais.
superestimulação pode ser prejudicial É preciso se informar melhor – pais,
ao desenvolvimento da criança, a partir professores e comunidade – a respeito

301
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

deste assunto, para saber a maneira mais dos superdotados sem acelerar.
adequada de agir diante de um caso de Basta que os professores estejam
superdotação. preparados para estimular essas
crianças em sala de aula, com
conteúdos e atividades além dos
2.6 A educação das crianças
tradicionais. (apud MILAN,
superdotadas 2007, p. 7).
Muitas crianças superdotadas, Do contrário, aqueles favoráveis
inseridas no sistema regular de ensino, à aceleração argumentam que a escola
ainda não foram identificadas. Tais não tem o direito de manter em uma
crianças, na maioria das vezes, são série escolar inicial um aluno que é
vistas como alunos indisciplinados e capaz de se adaptar a um nível muito
displicentes, um comportamento que mais avançado, pois isso seria coibir seu
reflete a falta de estímulo do ambiente interesse pelo domínio do conhecimento.
escolar. A medida principal para
A Lei nº 9394/96, da LDB (Lei derrubar grande parte dos obstáculos
de Diretrizes e Bases), no capítulo que dificultam o trabalho na educação
dedicado à Educação Especial, de superdotados é a informação sobre
pronuncia que, no caso de crianças este assunto, auxiliando na atuação dos
superdotadas, o programa educacional educadores.
deve ser acelerado, para que a conclusão
do Ensino Fundamental se dê em menor 3. Superdotação musical
tempo. Sendo assim, pode-se afirmar
que as escolas estão pecando e muito ao As crianças com altas habilidades
ignorar a presença dos superdotados nas em Artes ou em Música também podem
salas de aula, principalmente porque ser consideradas superdotadas, de acordo
essas crianças possuem o direito, com a visão atual sobre esta temática.
previsto e protegido por lei, de receber Suas habilidades superiores podem se
uma educação especializada para o seu manifestar nos diferentes aspectos da
potencial de desenvolvimento humano. inteligência musical.
Alguns profissionais da educação,
como Maria Lúcia Sabatella, mestre em 3.1 O conceito de inteligência musical
Educação e presidente do Instituto para a
Otimização da Aprendizagem, INODAP, Quando Gardner (1994, p.78)
se posicionam contra a aceleração de discute sobre o desenvolvimento da
crianças superdotadas, e alegam estarem inteligência em Música, ele revela que
preocupados com o isolamento social “[...] nenhum [talento] surge mais cedo
dessas crianças e a privação de uma que o talento musical”. O psicólogo ainda
infância normal em virtude da exigência ressalta que as diferenças particulares
do programa de ensino no qual foram visíveis são mais facilmente encontradas
inseridos. Sabatella, em um artigo para o no aprendizado do canto em comparação
jornal Gazeta do Povo, do mês de à linguagem, quando se trata de crianças
novembro de 2007, explica: em idade tenra:
A primeira opção é não adiantar
Algumas conseguem acompanhar
as séries, porque a criança pode
grandes segmentos de uma
se sentir deslocada em relação à
canção por volta da idade de dois
idade dos colegas. Temos muitos
ou três anos [...]; muitas outras
recursos para suprir a ansiedade

302
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

conseguem emitir apenas as 3.2 As características que implicam


aproximações mais grosseiras de na identificação que crianças
tons neste momento (ritmo e superdotadas musicais
palavras em geral constituem um
desafio menor) e podem ainda Como foi dito anteriormente, as
apresentar dificuldade em
produzir contornos melódicos
crianças superdotadas musicais, assim
precisos aos cinco ou seis anos. como as crianças escolasticamente
(Gardner, 1994, p. 85) superdotadas, apresentam três características
marcantes que as diferenciam das demais:
Sendo assim, é correto afirmar elas são precoces, independentes e têm
que as diferenças entre crianças uma fúria para dominar o conhecimento.
superdotadas musicais e crianças em E a manifestação das altas habilidades é
desenvolvimento típico neste tipo de mais notável quanto mais jovem for a
inteligência são mais notáveis quanto criança.
menor for a idade. Algumas crianças superdotadas
Porém, quando se pensa em em leitura musical são capazes de ler
desenvolvimento da inteligência musical, partitura antes mesmo de atingirem a
típico ou atípico, é importante considerar idade escolar. Esses indivíduos
que existem diversas habilidades a serem interessam-se, desde muito cedo, pela
desenvolvidas dentro desta esfera de apreciação musical, ou por acompanhar
conhecimento. A composição musical, a concertos orquestrais com a partitura da
interpretação vocal, a execução obra em mãos.
instrumental, a capacidade de analisar e Existem alguns casos em que a
representar formalmente uma obra, as criança superdotada musical prefere
habilidades de leitura musical à primeira muito mais compor ou reger a tocar
vista, o ouvido absoluto, a regência, a uma peça. E suas composições se
percepção auditiva, a improvisação e a enquadram em um nível muito mais
memória musical são alguns desses avançado do que o esperado pela sua
aspectos da inteligência musical. Essas e idade.
outras capacidades podem ser Já as crianças superdotadas em
desenvolvidas independentemente, e em execução musical surpreendem com sua
graus variados. performance vocal ou instrumental.
Gardner (1994, p. 82), em sua Possuem uma incrível facilidade para
teoria, ainda apresenta três componentes memorizar e imitar padrões musicais
centrais da inteligência musical, que ouvidos, e também para improvisar
devem ser percebidos e compreendidos seguindo o estilo de preferência.
por qualquer indivíduo que queira Winner afirma que as crianças
exercer uma participação musical em seu superdotadas em performance são mais
meio. São eles: a melodia e o ritmo – facilmente encontradas do que superdotados
“[...] sons em determinadas freqüências em leitura ou composição. No que diz
auditivas e agrupados conforme um respeito ao estilo musical, as estatísticas
sistema específico [...]”, e o timbre – apontam para um maior número de
“[...] as qualidades características da superdotados dedicados ao estudo da
música [...]”, em ordem de importância. música erudita com relação aos demais
Para Gardner, se o indivíduo quiser ter o gêneros.
domínio sobre estes e outros elementos
musicais, é fundamental que se dedique
à audição musical.

303
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

4. Considerações finais 5. Referências

As crianças portadoras de altas ALENCAR, Eunice M. L. S. de.


habilidades não são apenas superiores e Psicologia e educação do superdotado.
mais velozes em algumas habilidades do São Paulo: EPU, 1986. 97 p.
que as outras crianças, mas são GARDNER, Howard. Inteligências
principalmente diferentes. São diferentes Múltiplas: a teoria na prática. Porto
porque são capazes de aprender, produzir Alegre: Artes Médicas, 1995.
e descobrir algo novo praticamente sem MILAN, Pollianna. Eles não se cansam
ajuda de adultos. São diferentes porque de aprender. Jornal Gazeta do Povo,
compreendem o mundo de maneira [S.l.], p. 7, novembro de 2007.
própria. São diferentes na sua obsessão VIRGOLIM, Angela M. R. A criança
de saber cada vez mais, de dominar o superdotada em nosso meio: aceitando
conhecimento de seu interesse e de suas diferenças e estimulando seu
trabalhar incansavelmente para isto. potencial. Brasília: Escola de Pais do
As teorias acerca do desenvolvimento Brasil, Seção de Brasília, p. 08-10, maio,
humano ainda não são capazes de 2001. Disponível em: <http://www.talen
desvendar as origens da inteligência tocriativo.com.br/004_crianca_sd_em_n
superior em crianças superdotadas, osso_meio.pdf> Acesso em: 03 de maio
apenas comprovar o equívoco das de 2007.
perspectivas geneticistas ou ambientalistas, WINNER, Ellen. Crianças superdotadas:
ao considerarem apenas a influência de mitos e realidades. Tradução de Sandra
fatores biológicos ou ambientais no Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
desenvolvimento das habilidades humanas. TUNES, Suzel. Viagem ao espaço
Mas o conhecimento já existente cerebral. Revista Galileu, [S.l.], 1994.
acerca da superdotação deve estar ao Disponível em: <http://galileu.globo.
alcance dos pais e profissionais da área com/edic/94/saude1.htm> Acesso em:
da educação, para que estes possam atuar 26 de abril de 2007.
da melhor forma no desenvolvimento
desta classe de crianças.

304
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Educação musical e suas relações com habilidades auditivas e


o desenvolvimento fonológico de crianças de três e seis anos

Julia Escalda
juescalda@yahoo.com.br

Resumo: O presente estudo busca investigar as relações entre o desenvolvimento musical e o


desenvolvimento das habilidades auditivas e fonológicas de crianças de três e seis anos, alunas
de uma escola de música. Como referencial teórico foram adotados a teoria cognitiva
piagetiana, o Modelo Espiral de Desenvolvimento Musical de Swanwick e Tillman (1986) e
estudos teóricos da área da Fonoaudiologia sobre o desenvolvimento fonológico e auditivo de
crianças. Os procedimentos metodológicos envolveram avaliação fonoaudiológica de
habilidades auditivas e fonológicas e avaliação musical de habilidades de composição e
performance de sujeitos de três e seis anos alunos de uma escola de música em Belo Horizonte.
Os resultados encontrados apontam para a existência de relações positivas entre habilidades
auditivas e o tempo de estudo de música por crianças e para a provável relação entre o estudo de
música e a aquisição fonética das crianças. Entretanto, não foram encontradas relações entre as
habilidades fonológicas e o tempo de estudo de música, ou entre os níveis de desenvolvimento
musical e as habilidades auditivas e fonológicas dos sujeitos. As relações entre educação
musical e o desenvolvimento infantil merecem ser investigadas mais a fundo em estudos
futuros.

Palavras-chave: Educação e Desenvolvimento Musical, Desenvolvimento Fonológico,


Desenvolvimento Infantil.

desenvolvimento lingüístico de
1. Fundamentação teórica crianças. Trabalhos atuais têm sido
produzidos na literatura com a intenção
O desenvolvimento infantil tem de demonstrar relações entre música e
sido objeto de estudo há muitos anos em linguagem infantil.
diversas áreas do conhecimento como Aquisição e desenvolvimento de
psicologia, neurologia, lingüística, linguagem são processos dinâmicos que
fonoaudiologia. Os estudos dessas passam por etapas sucessivas
linhas investem, principalmente, na semelhantes para diversas línguas, são
produção de conhecimento relacionado também processos que envolvem
ao desenvolvimento cognitivo, afetivo, aspectos culturais e sociais que são
motor, lingüístico e musical da criança. peculiares de cada cultura. A aquisição
As tendências atuais sobre o e desenvolvimento do português
desenvolvimento infantil assumem um brasileiro já foram estudados e descritos
papel integrador dos aspectos orgânicos, por alguns autores, entretanto, existem
psicológicos, cognitivos, funcionais, poucos estudos no Brasil que busquem
culturais e sociais. Existe uma relacionar a educação musical infantil
preocupação crescente em buscar com as habilidades lingüísticas e
relações mais estreitas e produzir auditivas de crianças brasileiras.
estudos interdisciplinares entre diversas Como fundamentação teórica
áreas de conhecimento incluindo a foram adotados a teoria cognitiva
música e o desenvolvimento musical e o piagetiana, o Modelo Espiral de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Desenvolvimento Musical de Swanwick escolhidos intencionalmente pelo pesquisador,


e Tillman (1986) e estudos teóricos de de acordo com as necessidades de seu
Yavas, Pereira et al, Azevedo et al, estudo1. Os critérios de inclusão que
Wertzner, Soncini e Costa, entre outros definiram a amostra deste estudo foram:
da área da Fonoaudiologia sobre o a) Estar regularmente matriculado na
desenvolvimento fonológico e auditivo escola de música participante do estudo;
de crianças brasileiras. b) Não apresentar atraso no desenvolvimento
de fala e linguagem observadas durante
2. Objetivos a Avaliação das habilidades auditivas
e fonológicas das crianças do estudo;
2.1. Geral c) Apresentar Reflexo Cócleo-Palpebral
avaliado durante a Avaliação das
ƒ Investigar as relações entre habilidades auditivas e fonológicas das
educação musical e a aquisição e crianças do estudo; d) Concordar em
o desenvolvimento fonológico participar do estudo.
em crianças de três e seis anos. A amostra foi composta por duas
crianças do sexo feminino, uma com
2.2. Específicos três anos e seis meses (N1), outra de
três anos e 11 meses (N2) e duas
ƒ Avaliar o desenvolvimento crianças do sexo masculino, ambas com
fonológico de crianças de três e seis anos e um mês (N3 e N4). As
seis anos por meio de testes crianças N1 (três anos) e N3 (seis anos)
fonoaudiológicos existentes. freqüentavam as aulas de música há seis
ƒ Desenvolver atividades teste meses e as crianças N2 (três anos) e N4
para avaliar o desenvolvimento (seis anos) há três anos. Essas quatro
musical destas crianças. crianças estudavam música em uma
ƒ Comparar a evolução do escola especializada com a seguinte
desenvolvimento fonológico das carga horária semanal: uma hora de aula
crianças no início do aprendizado (crianças de três anos) e uma hora de
musical e com um ano de meia de aula (crianças de seis anos). Os
musicalização infantil com o pais das crianças participantes do estudo
padrão de referência dos testes foram consultados antes da realização
aplicados. das avaliações e deram seu consentimento
ƒ Relacionar o processo de para a sua realização.
desenvolvimento fonológico com
o processo de desenvolvimento 3.2. Coleta e Análise de dados
musical de crianças.
A coleta de dados foi realizada
3. Métodos no período de junho a setembro de 2007
em duas partes:
3.1. Amostra
Parte 1: Avaliações Fonoaudiológicas:
Os seguintes procedimentos
foram realizados a fim de cumprir os Foram realizadas na casa de uma
objetivos do estudo: das crianças e na escola de música em
Foram selecionadas quatro crianças salas disponibilizadas pela escola em
pelo método de amostragem não-aleatório dias e horários nos quais as crianças
por tipicidade, no qual os elementos são tinham aulas de música.

306
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Avaliações auditivas com a presença do avaliador e de cada


criança individualmente. Ela é composta
a) Pesquisa do Reflexo Cócleo- por cinco desenhos temáticos: Veículos,
Palpebral (RCP) por meio de Sons Sala, Banheiro, Cozinha, Zoológico para
Instrumentais2: O RCP é a contração do que a criança fale as 125 palavras
músculo orbicular do olho que pode ser contidas nos desenhos. A análise desta
observada por meio da movimentação avaliação foi realizada segundo a descrição
palpebral. A pesquisa do RCP foi realizada fonética, que se refere à verificação dos
a partir da percussão do agogô a vinte sons que a criança é capaz de produzir e o
centímetros do pavilhão auricular da estabelecimento de seu inventário fonético
criança, com dois segundos de duração. e análise de processos fonológicos que são
resultados da simplificação de determinados
b) Aplicação da Triagem do sons na fala da criança, facilitando
Processamento Auditivo3: Foram aspectos que sejam complexos em termos
avaliadas as habilidades de Localização articulatórios, motores ou de planejamento.
Sonora, na qual foi apresentado o
estímulo sonoro do sino com as crianças Parte 2: Avaliações musicais:
de olhos vendados em cinco direções
diferentes. A partir dos três anos de Foram realizadas durante aulas
idade, a criança deve acertar pelo menos de musicalização e de instrumento, no
duas das cinco direções apresentadas; contexto normal de aulas.
Memória Seqüencial para Sons Verbais,
na qual foram apresentadas três a) Gravação e análise do
seqüências com as sílabas PA, TA, CA, desenvolvimento musical segundo o
FA que a criança deveria repetir na Modelo Espiral do Desenvolvimento
mesma ordem em que foram faladas. A Musical5. As crianças de três anos
partir dos três anos de idade, deve-se foram estimuladas por suas professoras
acertar pelo menos duas seqüências de de música a inventar uma canção. Uma
três sílabas em três tentativas e delas foi gravada em sala de aula e outra
Memória Seqüencial para Sons Não- em casa. As crianças de seis anos foram
Verbais, na qual foram apresentadas três solicitadas a tocar músicas de seu
seqüências com as crianças de olhos repertório que foram gravadas em
vendados dos estímulos sonoros com o contexto normal de aula de música. Os
coco, sino, guizo e agogô em ordens critérios utilizados para análise, foram
variadas. Espera-se que a criança deve os referentes à Composição6 e à
compreender a solicitação e acertar pelo Performance7.
menos uma seqüência de três sons em
três tentativas, aos três anos. Dos quatro 4. Resultados e Discussão
aos seis anos acertar duas seqüências de
três sons em três tentativas e a partir dos 4.1. Avaliações Fonoaudiológicas:
seis anos, acertar duas seqüências de
quatro sons em três tentativas. Avaliações auditivas

Avaliação fonológica Todas as crianças apresentaram


o RCP presente, achado que está de
c) Aplicação da Avaliação acordo com a normalidade8. A presença
Fonológica da Criança (AFC)4: A AFC do RCP determinou a inclusão das
foi aplicada em situações de comunicação crianças no estudo.

307
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A Triagem do Processamento musicalização. Tais achados estão de


Auditivo revelou todos os sujeitos acordo com o estudo que demonstrou
apresentaram as habilidades de que a prática musical melhora a
Processamento Auditivo adequadas ao habilidade de reconhecimento da fala
sexo e idade. As crianças que possuíam um diante de ruído competitivo9, também
tempo maior de aulas de musicalização com um estudo comparativo entre
(N2 e N4), ambos com 3 anos e 6 meses grupos de músicos e não músicos no
de permanência na escola, apresentaram qual foi demonstrado que músicos
performance mais refinada nas tarefas que profissionais obtiveram melhor desempenho
testavam as habilidades de memória em tarefas de padrão de freqüência,
seqüencial para sons verbais e não-verbais. duração e intensidade sonora, quando
Em relação à habilidade de localização comparados a indivíduos não-músicos10
sonora não houve diferença entre o e com o estudo que observou desempenho
desempenho de N1 e N2 (crianças na faixa superior na habilidade do processamento
dos três anos), mas N3 teve performance auditivo de padrão de freqüência em
mais refinada que N4 também nessa grupos de cantores com estudo de
habilidade (ambos de seis anos). música formal11. Da mesma forma,
Os achados do presente estudo acredita-se que diversas atividades
sugerem que existe relação entre o musicais podem vir a contribuir para o
desempenho de crianças de três e seis bom desenvolvimento da criança12, neste
anos em tarefas de memória seqüencial caso, o maior refinamento em habilidades
para sons verbais e não-verbais e de processamento auditivo observado
localização sonora e o tempo de aulas de nas crianças N2 e N4.

308
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Avaliação Fonológica

Aquisição fonética Processos Fonológicos Caracterização


N1 Completa Ausente
Presente
Trocas do tipo feijão por
N2 Completa Dessonorização de
feichão; verde por ferti.
fricativas e africadas
N3 Completa Ausente
Presente
Troca do tipo grama por
N4 Completa Substituição de líquida
glama; tigre por tigle.
não-lateral

imaginativo, pois narra uma história


A partir dos resultados obtidos criada por ele naquele momento. O
com a AFC, observou-se que todas as nível alcançado no Modelo Espiral14 foi
crianças possuíam a aquisição fonética o Pessoal, pois a composição é
completa do Português. No presente “espontânea e associada às experiências
estudo encontrou-se a ocorrência do sonoras externas e impressões sensoriais
encontro consonantal do tipo cc(r)v em da criança”.
idades anteriores às referidas na
literatura já na faixa etária de 3:6 anos13. N2
Entretanto, as crianças com maior
tempo de aulas de musicalização A composição da criança N2
apresentaram desvios fonológicos. Os também foi um canto imaginativo, que
achados do presente estudo não são alcançou o nível Pessoal do Modelo
conclusivos em relação à existência de Espiral15, pois há espontaneidade e
relações entre a aquisição fonológica do controle estrutural, mas sem ainda o
português e o tempo de estudo de desenvolvimento de idéias.
música. Encontramos relações que As composições das crianças N1
parecem ser favoráveis no aspecto e N2 alcançaram níveis no Modelo
fonético da aquisição da linguagem. Espiral16 mais altos dos que os
Entretanto, é necessário considerar que esperados para crianças na faixa etária
o pequeno número de sujeitos não nos de 3:6 anos a 3:11 anos. Esse achado
permite afirmar que essa relação é corrobora estudos que afirmam que
positiva. Estudos futuros poderão crianças mais novas podem atingir
buscar a verificação de tal relação. níveis mais altos no quesito composição
quando utilizam a voz e não
4.2. Avaliações musicais: instrumentos musicais17. Esse achado
pode estar diretamente relacionado ao
Composição estudo de música pelos sujeitos.
A criança N2 (3 anos e 6 meses de
N1 musicalização) apresentou em seu canto
imaginativo afinação bastante precisa,
A composição da criança N1 característica de crianças a partir dos
tem características de um canto cinco ou seis anos. Esse achado pode indicar

309
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

relação entre o nível de desenvolvimento apresentavam dificuldades técnicas


musical com o resultado da Triagem do diferentes, compatíveis com o seu
Processamento Auditivo. A afinação tempo de estudo do instrumento. Assim,
imprecisa do canto de N1 (seis meses de ambas alcançaram o mesmo nível, o que
musicalização) também sugere que tal está de acordo com estudos que
relação possa existir, uma vez que obteve afirmam que a dificuldade técnica das
resultados menos refinados na Triagem peças é um dos fatores que interfere na
do Processamento Auditivo que N2. compreensão musical de crianças21.
Não foi possível estabelecer Pode-se afirmar que as peças
relações diretas entre o nível de apresentadas pelos sujeitos N3 e N4
desenvolvimento musical com o estavam adequadas às suas habilidades
desempenho dos sujeitos nas habilidades técnicas, proporcionando assim alcançar
fonológicas pesquisadas no estudo. o nível Vernacular. A peça executada
Pesquisas futuras, com um número ao piano por N4 (criança com mais
maior de sujeitos poderão vir a melhor tempo de estudo de música) era,
esclarecer tais achados. portanto, mais complexa do que a
executada por N3 ao violão. Entretanto,
Performance não foi possível estabelecer relações
entre o nível de desenvolvimento
N3 musical com o desempenho dos sujeitos
N3 e N4 nas habilidades auditivas e
A performance de N3 foi um fonológicas pesquisadas no estudo.
pot-pourri de canções folclóricas Pesquisas futuras poderão melhor
interpretadas ao violão e cantadas esclarecer tais achados.
simultaneamente. O nível alcançado no
Modelo Espiral de Desenvolvimento 5. Considerações Finais
Musical18 foi o Vernacular, pois a
performance foi fluente e convencionalmente O desenvolvimento musical
expressiva, os padrões rítmicos e assim como o desenvolvimento de
melódicos são repetidos de maneira linguagem vem sido amplamente
semelhante e a interpretação é bem estudado, mas ainda existem poucas
previsível. tentativas de se unir essas duas áreas de
conhecimento. Este trabalho foi uma
N4 iniciativa para esse tipo de investigação,
que leva em consideração relações que
A performance de N4 foi uma são complexas e dependem de diversas
peça executada ao piano caracterizada variáveis.
por arpejos maiores. O nível alcançado Diante dos resultados encontrados
no Modelo Espiral de Desenvolvimento e discutidos verificamos relações
Musical19 foi o Vernacular no Modelo positivas entre habilidades auditivas e o
Espiral de Desenvolvimento Musical20. tempo que as crianças estudam música,
As duas performances analisadas e também em relação ao estudo de
alcançaram o nível Vernacular no música e a aquisição fonética das
Modelo Espiral, apesar de as duas crianças. Não foi possível, entretanto,
crianças estudarem música por períodos estabelecer relações entre as habilidades
de tempo diferentes. Esse achado pode fonológicas dos sujeitos e o tempo de
ser explicado devido ao fato de que as estudo de música, e nem entre os níveis
peças apresentadas pelas crianças de desenvolvimento musical e as

310
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

habilidades auditivas e fonológicas dos ser percorrido no estudo da música como


mesmos. Deve-se lembrar, mais uma ciência do desenvolvimento humano.
vez, que os resultados aqui encontrados
referem-se à análise de avaliações 6. Subáreas do conhecimento
auditivas, fonológicas e musicais de
apenas quatro crianças que estudam Educação Musical, Fonologia, Audiologia,
música. A natureza complexa das Psicologia do Desenvolvimento.
variáveis estudadas envolve uma ampla
gama de fatores como, por exemplo, 1
influências sócio-culturais da família, LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A
construção do saber. Porto Alegre: Artmed,
atividades musicais fora da escola de 1999. p. 170.
música, estado emocional das crianças, 2
AZEVEDO, Marisa Frasson de; VILANOVA,
entre outros. Nesse estudo esses fatores Luiz Celso Pereira; VIEIRA, Raymundo Manno.
não foram investigados, e podem ter Desenvolvimento auditivo de crianças normais
influenciado os resultados. Próximas e de alto risco. São Paulo: Plexus, 1995.
3
PEREIRA, Liliane Desgualdo; SCHOCHAT,
pesquisas, com objetivos semelhantes, Eliane. Processamento Auditivo Central:
deverão utilizar instrumentos capazes de manual de avaliação. São Paulo: Lovise, 1997.
4
considerar variáveis que possam vir a YAVAS, Mehmet S.; HERNANDORENA,
interferir nos resultados. Carmen Lucia Matzenauer; LAMPRECHT,
Foi possível, através desse Regina Ritter. Avaliação fonológica da
criança: reeducação e terapia. Porto Alegre:
trabalho, vislumbrar a possibilidade de Artes Médicas, 1991. 148 p.
se utilizar a educação musical associada 5
SWANWICK, Keith; TILLMAN, June. The
a outros campos do conhecimento para sequences of musical development: a study of
se compreender com mais clareza o children´s composition. British Journal of
desenvolvimento da criança. O Musical Education. Londres, v. 3, n. 3, p. 305-
339, nov. 1986.
educador musical tem grande relevância 6
SWANWICK, Keith. Music, mind and
nesse processo, e deve voltar o olhar education. Londres: Routledge, 1988. p. 76-80.
7
para seu papel no desenvolvimento FRANÇA, Maria Cecília Cavalieri. Composing,
infantil. Nessa perspectiva, a formação performance and audience listeninig as
dos profissionais que atuam nessa área symmetrical indicators of music
understanding. 1998. 297f. Tese (Doutorado em
deve ser o mais completa possível e Educação Musical PhD). Institute of Education,
envolver aspectos tanto do University of London, Londres, 1998.
8
desenvolvimento musical como das AZEVEDO, Marisa Frasson de; VILANOVA,
etapas do desenvolvimento motor, Luiz Celso Pereira; VIEIRA, Raymundo Manno.
cognitivo, lingüístico e auditivo de Desenvolvimento auditivo de crianças normais
e de alto risco. São Paulo: Plexus, 1995.
crianças, entre muitos outros. Além 9
SONCINI, F.; COSTA, M. J. Efeito da prática
disso, a formação continuada desses musical no reconhecimento da fala no silêncio e
profissionais é de suma importância no ruído. Pró-Fono Revista de Atualização
para que se mantenham atualizados Científica, Barueri (SP), v. 18, n. 2, p. 161-170,
sobre novas descobertas nessas áreas de maio-ago. 2006.
10
SILVEIRA et al. Tonalidade (Pitch) e
conhecimento. Processamento Auditivo. In: AQUINO, Antonio
Acredita-se que as interferências Maria Claret Marra de. Processamento
que educação musical pode exercer nas auditivo: eletrofisiologia & psicoacústica. São
diversas facetas do desenvolvimento Paulo: Lovise, 2002. 176 p.
11
infantil merecem ser investigadas a fundo ISHII, C.; ARASHIRO, P. M.; PEREIRA, L. D.
Ordenação e resolução temporal em cantores
por outros pesquisadores em estudos profissionais e amadores afinados e desafinados.
futuros. Existe ainda um longo caminho a Pró-Fono Revista de Atualização Científica,
Barueri (SP), v. 18, n. 3, p. 285-292, set-dez. 2006.

311
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

12 17
ILARI, Beatriz. A música e o cérebro: PARIZZI, Maria Betânia. O canto espontâneo
algumas implicações do neurodesenvolvimento da criança de três a seis anos como indicador de
para a educação musical. Revista da ABEM, seu desenvolvimento cognitivo-musical. 2005.
Porto Alegre, v. 9, p. 7-16, set. 2003. 144 f. Dissertação (Mestrado em Música). Escola
13
MOURÃO, L. F; PARLATO, E. M; de Música, Universidade Federal de Minas
SILVÉRIO, K. C .A; ALTMANN, E. B. C; Gerais, Belo Horizonte, 2005.
18
CHIARI, B. M. Descrição da ocorrência dos FRANÇA, Maria Cecília Cavalieri. Composing,
fonemas da língua portuguesa em pré-escolares. performance and audience listeninig as
Pró-Fono Revista de Atualização Científica, symmetrical indicators of music understanding.
v. 6, n. 1, p. 27-32, 1994. 1998. 297f. Tese (Doutorado em Educação
14
SWANWICK, Keith. Music, mind and Musical PhD). Institute of Education, University
education. Londres: Routledge, 1988. p. 76-80. of London, Londres, 1998.
15 19
idem idem
16 20
Idem idem
21
idem

312
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Entre a razão, a emoção e a imaginação: a percepção de


estudantes de canto lírico a respeito de instruções
baseadas na modelização, na verbalização
concreta e em metáforas e imagens

Lemuel Guerra
lenksguerra@yahoo.com

Resumo: Tendo como base o debate sobre estratégias de ensino de música e a produção de
performances expressivas, esta comunicação apresenta dados sobre percepções de alunos de
canto lírico a respeito das diversas modalidades de instrução utilizadas por seus professores com
o objetivo de traduzi-las em propriedades sonoras da música em suas performances.
Observamos 12 alunos de canto (sendo 6 graduandos e 6 graduados, 6 homens e 6 mulheres)
durante aulas práticas individuais e os entrevistamos sobre sua percepção e processamento das
instruções dadas. Os sujeitos trabalharam com suas experiências mais recentes e anteriores. As
entrevistas de pesquisa guiaram os sujeitos a falar sobre a freqüência em que ocorrem instruções
baseadas em imagens e metáforas, em verbalização concreta e em modelização, além de
discorrerem sobre suas preferências e percepções da produção de efeitos decorrentes delas em
suas performances. Os sujeitos falaram sobre suas impressões e pensamentos ocorridos relativos
às estratégias instrucionais adotadas pelo docente durante e depois das aulas de canto. A análise
dos dados indica que o background musical e o gênero influenciam as preferências em termos
de estratégias instrucionais, mas não o processamento das instruções de todos os tipos
posteriores às aulas. Finalmente discutem-se alguns possíveis desdobramentos das análises em
termos de práticas docentes na área de canto lírico.

Palavras-chave: expressividade, instrução musical, modelização, verbalização.

Dentre as várias estratégias


1. Introdução e discussão teórica docentes que envolvem a verbalização
uma distinção radical é feita entre dois
A produção da expressividade é grupos específicos de instrução para a
o alvo supremo do ensino das artes em transmissão de idéias estéticas e de
geral e da Música especificamente. técnicas procedimentais destinadas a
Tanto no que se refere à pedagogia de produzir performances expressivas. O
instrumentos quanto em referência à primeiro deles, o grupo dos discursos
pedagogia vocal, a maioria dos que utilizam o vocabulário técnico
educadores musicais considera a padrão, com o objetivo de, através de
expressividade o mais importante atributo formulações verbais concretas, sobre
de qualquer performance (cf. Laukka, mecanismos, relações entre variáveis,
2004; Woody, 2000), sendo as alusões ao andamento, à altura do som,
estratégias instrucionais nessa área ao ritmo, aos sinais de dinâmica,
dominadas pela fala dos professores e fraseado, estrutura harmônica e outros
pela modelização auditiva e em alguns conceitos da linguagem musical,
casos gestual (cf. Young, Burwell & produzir efeitos sobre o nível qualitativo
Pickup, 2003; Davidson, 1989). de interpretações instrumentais ou
vocais; o segundo, o grupo da produção

313
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

discursiva que recorre a metáforas, focalizadas é influenciado por suas


imagens e descrições simbólicas, usadas atitudes e crenças relativas à natureza da
com o intuito de produzir cenários expressão musical (cf. Laukka, 2004).
mentais capazes de mobilizar elementos Alguns pensam que instruções verbais
que se traduzam em expressividade concretas produzem uma expressividade
musical. não genuína, necessitada de um
Além desses dois tipos de componente emocional mais profundo.
estratégias utilizadas na educação Outros acreditam que a habilidade de ser
musical em geral e nas aulas de canto expressivo nas performances é inata e
especificamente, outro recurso aparece não poderia ser objeto de estudo/ensino
na literatura como sendo de fundamental (cf. Juslin, 2008; Sloboda, 2002).
importância na transmissão de idéias As três estratégias apresentam de
musicais em experiências didáticas: a per si limites e vantagens. Por exemplo,
modelização auditiva e gestual, ou o estudantes de nível avançado podem
provimento de exemplos de performances imitar modelos expressivos com relativa
para servirem de modelos a serem competência, mas o processo depende
seguidos pelos estudantes. de variáveis tais como a percepção que
A adoção de uma das estratégias eles têm da pertinência da interpretação
acima citadas isoladamente ou de uma oferecida como padrão e da percepção
combinação delas (ou das três) parece que eles têm do procedimento imitativo
depender das crenças individuais dos (por exemplo, numa cultura em que a
professores na eficácia de cada uma imitação seja concebida de forma muito
delas. Uma insuficiente desenvoltura negativa, os estudantes, quanto mais
no uso da linguagem e na produção avançados, tendem a “acreditar” menos
discursiva pode explicar a enorme nos modelos, o que pode comprometer
preferência por abordagens não-verbais, seu compromisso e engajamento com as
a predominância de procedimentos de atividades baseadas em estratégias de
modelização nas intervenções didáticas modelização) (cf. Woody, 2003; 2002b;
na área da educação musical (cf. Lisboa, Williamon, Zicari & Eiholzer,
Dickey, 1992; Lindstrom, Juslin, Bresin 2005).
& Williamon, 2003; Ebie, 2004; Sang, Não se trata aqui de fazer uma
1987). defesa da superioridade de nenhuma das
Por outro lado, docentes com um estratégias acima citadas. Pensamos
background deficiente em termos de mesmo que o ideal seria encontrar, nos
técnica, com baixa competência na educadores musicais dedicados ao ensino
linguagem musical, em musicologia e de instrumento ou de desempenho vocal, a
em áreas da performance, tendem a competência teórica-técnica, performática
rejeitar a demanda por explicações de e a lingüística, de modo a permitir um bom
mecanismos físicos, de variáveis, bem nível de desenvoltura e a combinação das
como podem relutar em utilizar três táticas acima descritas (cf. Davidson,
explicações verbais em termos dos 1989).
elementos concretos da música, Talvez o mais comum seja que
preferindo uma abordagem só em termos nas experiências de aulas de canto e de
de instruções baseadas em metáforas, instrumento, para atingir o objetivo de
imagens ou descrições dramáticas (cf. ensinar como tocar e cantar de modo
Woody, 2000; Davidson, 1989). expressivo, encontremos a combinação
O grau em que um professor usa da modelização com a descrição verbal
as estratégias instrucionais aqui das características da performance

314
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

desejada. As maneiras de apresentar e metodologia por músicos e estudantes


explorar a modelização, de propor a que a vivenciaram (cf. Sheldon, 2004,
imitação como procedimento de Woody, 2002a). Outros pesquisadores,
aprendizagem varia, bem como as entretanto, apontaram problemas e
descrições verbais podem centralizar no limites nessas estratégias, dentre os
que se chama instrução musical quais podemos citar a dificuldade de
concreta (cf. por exemplo, a proposta de interpretar as sugestões simbólicas e as
Juslin & Persson, 2002), ou no uso de imagens propostas, a confusão mental
imagens mentais e metáforas (cf. Woody, posterior às aulas e o desencorajamento
2006; Davidson, 1989; Schippers, 2006; para continuar os cursos de canto, por se
Spitzer, 2004). sentirem incompetentes em relação a
No primeiro caso, o professor esse tipo de instrução e sem “terreno
aborda as propriedades sonoras de uma firme pra pisar” (cf. por exemplo,
performance, incluindo as variações de Persson, 1996).
volume, de andamento e de fraseado,
através de um discurso verbal 2. Objetivos
explicativo, que mobiliza dados técnicos,
musicológicos, teóricos, estilísticos, Este trabalho tem como objetivos
marcando nas partituras e usando discutir e analisar impressões e
estratégias de fixação baseadas na percepções de uma amostra não-aleatória
racionalização dos procedimentos (cf. de estudantes a respeito de suas
Juslin & Laukka, 2000; Johnson, 2000). experiências concretas com as estratégias
No segundo caso, a instrução instrucionais focalizadas acima, em
verbal também aborda as variáveis que situações de ensino/aprendizagem de
informam as performances, só que Canto Lírico, bem como os processos
através de uma construção discursiva cognitivos que os habilitam a usar as
que mobiliza imagens mentais e diversas abordagens instrucionais com
metáforas, podendo estas serem relativas sucesso, no que se refere ao exercício de
a sentimentos (por exemplo, “cante performances vocais expressivas.
como se estivesse furioso”), a descrições
de movimentos (por exemplo, “cante 3. Método
como se estivesse esquiando nas
montanhas”), de objetos e cenários (por A amostra foi construída por
exemplo, “cante redondo como uma indicação de um professor de Canto da
bola”, “cante cor-de-rosa; vermelho Unidade Acadêmica de Arte e Mídia da
não”), de cenários ou situações, de forma Universidade Federal de Campina
a construir um contexto no qual as Grande, que trabalha com Cursos de
canções podem fazer sentido para os Extensão em Técnica Vocal e Canto
estudantes em primeira instância, e para Lírico e de alunos do Departamento de
o público, se a estratégia for eficaz na Educação Musical da UFPB (Licenciatura
produção de efeitos performáticos. em Canto), sendo a mesma estratificada
Alguns educadores musicais têm por gênero e tempo de estudo de canto.
defendido fortemente o uso de A coleta de dados foi organizada
instruções baseadas em imagens e da seguinte maneira:
metáforas (por exemplo, Lindsrom,
2003; Woody, 2002a; Davidson, 1989, I. Realização de observação e gravação
Schippers, 2006). Há dados também em DVD de duas aulas de Canto
sobre a apreciação positiva dessa Lírico (ao todo cobrindo 4 professores

315
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

de Canto, sendo 2 da UFPB e 2 da focalizassem experiências mais recentes


UFCG) de cada uma dos componentes e anteriores. Os sujeitos falaram sobre
da amostras, a saber: 6 homens, suas impressões e pensamentos durante
sendo 3 deles estudantes de graduação as aulas e relataram suas operações
e 3 graduados; 6 mulheres, sendo 3 mentais depois de suas aulas de canto.
da graduação e 3 já graduadas. As
variáveis observacionais foram as 4. Resultados
seguintes:
Os estudantes tenderam a preferir
a) Variações na ocorrência dos discretamente, mais que as estudantes, as
tipos de estratégias instrucionais instruções baseadas em verbalização
nas aulas gravadas; concreta do que as baseadas em metáforas
b) Reações dos estudantes às e imagens.
estratégias instrucionais recebidas
– gestuais e verbais; a) Dentro do grupo dos estudantes,
os com mais tempo de estudo
c) Efeitos das estratégias nas preferiram, mais que os de
performances a elas posteriores. graduação, as instruções baseadas
em verbalizações concretas,
II. Realização de entrevistas estruturadas alusivas ao vocabulário padrão da
gravadas com os 12 componentes da área, se comparadas com as
amostras, realizadas fora do período baseadas em imagens e metáforas.
de aula, constando das seguintes
questões: b) No grupo das estudantes, o
tempo de estudo não influenciou
a) Que tipo de estratégia instrucional significativamente a preferência
você prefere? tendencial pelas estratégias
instrucionais baseadas em
b) Quais as razões da preferência imagens e metáforas.
indicada?
c) Não houve variação nem relativa
c) Quais problemas são associados ao gênero, nem em relação ao
a cada uma das estratégias tempo de estudo no que concerne
instrucionais focalizadas? à valorização da modelização
como estratégia imprescindível
d) Que vantagens são associadas de ser associada aos outros tipos
com cada uma das estratégias de estratégias instrucionais.
instrucionais focalizadas?
d) A grande maioria, embora preferindo
e) Com qual professor de canto uma das estratégias instrucionais,
considera que teve maior afirmou o ideal de combinação
rendimento em termos de dos três tipos de instruções
aprendizagem do canto expressivo? focalizadas neste trabalho.
f) Quais as razões do sucesso da
e) Quanto à observação das reações
metodologia de ensino do(a)
às estratégias verbais concretas e
professor(a) indicado(a)?
as baseadas em imagens e
metáforas, foi difícil detectar
Em termos de estratégia mais
uma tendência predominante.
geral, solicitamos que os sujeitos

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Houve casos em que as aqui na apresentação de poucas das várias


estratégias dos dois tipos idéias a respeito da recepção, percepções
provocaram reações denotativas e preferências dos estudantes no que
de não entendimento. concerne às estratégias instrucionais
praticadas pelos professores de canto,
f) Os estudantes com mais tempo elicitadas pelas entrevistas gravadas com
de estudo, de ambos os sexos, os sujeitos da pesquisa. É claro que a
tenderam a demonstrar menos exigüidade de espaço não nos permite
reações de não compreensão em focalizar a contento as indicações e
relação a instruções baseadas em insights que o corpus das falas registradas
aspectos técnico-teórico e outros possibilita. De qualquer modo, a seguir
dessa natureza, como era de se apresentamos alguns trechos dos discursos
esperar. gravados, comentando-os à luz do já
colocado ao longo do texto.
g) No que se refere às reações às
instruções baseadas em metáforas
Meu professor sabe muito, mas
e imagens, foi difícil também a voz dele “quebra” mais do
enxergar uma tendência, já que que a minha….Ele explicando
as ocorrências eram muito as coisas é legal, mas quando
diferenciadas, e as reações vai mostrar, não é muito não.
dependiam do tipo de imagem, (M., 19 anos, graduando).
de metáfora mobilizada em cada
situação. Nessa entrevista encontramos um
dado que outras pesquisas acima citadas
h) Em relação ao processamento das não tematizam, que é a ocorrência de
instruções recebidas em sala de modelizações desacreditadas pelos
aula, alguns procedimentos se estudantes, devido a falhas na
destacaram: (1) a tática de gravar performance do professor. No trecho
as aulas é praticada por 80% dos acima apresentado, encontramo-nos
estudantes entrevistados; (2) diante de um caso talvez não muito raro
alguns estudantes, de ambos os em nossa realidade de educação musical,
gêneros, declararam usar a já que muitos profissionais assumem
memorização corporal das aulas e atividades para as quais não se
sensações provocadas durante as encontram devidamente preparados
aulas pelas instruções dadas; (3) (professores de Inglês em aulas de
uma parcela considerável dos música, ou graduados em educação
entrevistados declarou realizar artística em aulas de canto, por
pesquisas (freqüentemente na exemplo). A avaliação da competência
internet) sobre aspectos técnicos do modelo oferecido pelo professor é
aludidos nas instruções do tipo essencial para o sucesso dessa estratégia.
verbal concreta, considerados No caso acima trazido, a modelização
pontos frágeis no background do desautoriza o professor, decretando a
sujeito. falência da estratégia de modelização
utilizada (cf. Woody, 2003; 2002b;
5. Conclusões Lisboa, Williamon, Zicari & Eiholzer,
2005).
Deixando os comentários sobre a
análise das situações de aulas gravadas As imagens são boas e ruins. Às
para outro momento, concentramo-nos vezes uma palavra, uma dica

317
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

sobre o cenário da peça e a mais é que mostrar que funciona


gente voa...Outras vezes é muita o que ele tá dizendo na teoria,
viagem, o professor fica lá na descrição. Só explicar, ficar
falando e a gente só fundindo a falando da estrutura, da
cabeça. Mas eu gosto quando harmonia, do acompanhamento,
ele dá sugestões claras! (J., 21 das frases é massa, mas tem que
anos, graduanda). ir mostrando como se aplica
essa coisa toda da teoria! (W,
A utilização de imagens e 28 anos, graduado).
metáforas precisa ser acompanhada da
análise continuada da sua efetividade, 6. Subáreas de conhecimento
da sua funcionalidade para aquela peça,
para aquele estudante. O cuidado para Psicologia, sociologia.
com o nível de compreensão atingido, a
mobilização de signos do domínio dos 7. Referências
que recebem as imagens são aspectos a
serem considerados no uso de DICKEY, M. R. A review of research
estratégias instrucionais baseadas em on modeling in music teaching and
imagens e metáforas (cf. Gabrielsson & learning. Bulletin of the Council for
Juslin, 1996). Research in Music Education, [S.l.],
v. 113, p. 27-40, 1992.
Acho que entender como EBIE, B. D. The effects of verbal,
funciona ajuda muito. É claro
vocally modeled, kinesthetic, and audio-
que você vai ter que traduzir,
ver como é que funciona em visual treatment conditions on male and
você, já que ninguém é igual a female middle-schoolvocal music students'
ninguém, né? Perfeito é quando abilities to expressively sing melodies.
ele explica como funciona, Psychology of Music, [S.l.], v. 32, n. 4,
fisiologia da voz, acústica, tal, e p. 405-417, 2004.
depois mostra, cantando um GABRIELSSON, A.; JUSLIN, P.N.
trecho, aplicando ali, na frente Emotional expression in music performance:
da gente...! (S., 46, anos, between performer’s intention and the
graduada). listener’s experience. Psychology of
Music, [S.l.], v. 24, p. 68-91, 1996.
Esse é trecho é extremamente JUSLIN, P. N. Five myths about
indicativo de que, diferentemente do expressivity in music performance.
afirmado somente em relação às Disponível em: <http://www.hichumanit
instruções baseadas em metáforas e ies.org/AHproceedings/Patrik%20N.%2
imagens, as explicações verbais do tipo 0Juslin.pdf> Acesso em: 20 de janeiro
concreto também exigem tradução, de 2008.
ressimbolização, racionalização e JUSLIN, P. N.; LAUKKA, P. Improving
corporificação. Com ele terminamos emotional communication in music
nosso texto, chamando a atenção para a performance through cognitive feedback.
necessidade de pesquisas na área e nos Musicae Scientiae, [S.l.], v. 4, p. 151-
dispondo aos contatos e mobilizações 183, 2000.
para trabalhos coletivos. JUSLIN, P. N.; PERSSON, R. S.
Emotional communication. In: R.
Não! Mostrar é fundamental. A PARNCUTT & G. E. MCPHERSON
gente tem que ter uma idéia... E (Eds.). The science and psychology of
se o cara é professor, meu, tem

318
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

music performance: Creative strategies of individual differences in musical


for teaching and learning. New York: expressivity. In: K. A. ERICSSON
Oxford University Press, 2002. p. 219-236. (Ed.). The road to excellence. Mahwah:
LAUKKA, P. Instrumental music teachers' Lawrence Erlbaum. Studies in Music
views on expressivity: A report from Education, v. 18, p. 107-126,1996.
music conservatories. Music Education WOODY, R. H. The relationship
Research, [S.l.], v. 6 n. 1, p. 45-56, 2004. between explicit planning and expressive
LINDSTRÖM, E.; JUSLIN, P. N.; BRESIN,
R.; WILLIAMON, A. Expressivity comes performance of dynamic variations in
from within your soul: A questionnaire an aural modeling task. In: Journal of
study of music students’ perspectives on Research in Music Education, [S.l.],
expressivity. Research Studies in Music v. 47, p. 331- 342, 1999.
Education, [S.l.], v. 20, p. 23-47, 2003. WOODY, R. H. Emotion, imagery and
LISBOA, T.; WILLIAMON, A.; ZICARI, metaphor in the acquisition of musical
M.; EIHOLZER, H. Mastery through performance skill. Music Education
imitation: A preliminary study. In: Musicae Research, [S.l.], v. 4, p. 213-224, 2002a.
Scientiae, [S.l.], v. 9, n.I, p. 75-110, 2005. WOODY, R. H. The relationship between
SANG, R. C. A study of the musicians' expectations and their
relationship between instrumental music perception of expressive features in an
teachers' modeling skills and pupil aural model. Research Studies in Music
performance behaviors. Bulletin of the Education, [S.l.], v. 18, p. 53-61, 2002b.
Council for Research in Music Education, WOODY, R.H. Learning expressivity in
[S.l.], v. 91, p. 155-1 59, 1987. music performance: An exploratory
SHELDON, D. A. Listeners' identification study. Research Studies in Music
of musical expression through figurative Education, [S.l.], v. 14, p. 14-23, 2000.
language and musical terminology. Journal YOUNG, V.; BURWELL, K.; PICKUP,
of Research in Music Education, D. Areas of study and teaching strategies
[S.l.], v. 52, p. 357-368, 2004. in instrumental teaching: A case study
SLOBODA, J. A. The acquisition research project. Music Education
of musical performance expertise: Research, [S.l.], v. 5, p. 139-155, 2003.
Deconstructing the “talent” account

319
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Ensino de música para um cérebro em transformação:


reflexões sobre a música na adolescência

Luciane Cuervo
UFRGS
lu_cuervo@yahoo.com.br

Resumo: Esta comunicação tem por objetivo problematizar o ensino de música destinado ao
adolescente, o qual passa por profundas modificações em seu cérebro e em sua forma de
relacionar-se com a sociedade. Aborda características e obstáculos relativos à motivação do
adolescente para a aprendizagem sistemática de música, a partir da reflexão sobre a
personalidade e transformações psicológicas e neurológicas do indivíduo nessa fase,
relacionando-as com seu modo de pensar e fazer música. Levanta a questão: Como pode haver
uma significativa resistência à aprendizagem musical nesta faixa etária quando, em seu
cotidiano, a música é tão marcante? Serão sugeridas estratégias alternativas para possíveis
dificuldades no ensino de música para adolescentes na escola, fundamentadas teoricamente em
trabalhos dos neurocientistas Herculano-Houzel (2005) e Sacks (2007), dos psicólogos Inhelder
e Piaget (1976) e de educadores musicais, especialmente Eliott (1998) e Palheiros (2006). Serão
apresentados relatos da prática docente da autora, como exercício de reflexão teórica. Este
trabalho é um recorte da pesquisa de Mestrado em Educação/UFRGS em andamento, a qual
investiga a questão da musicalidade no processo de aprendizagem da flauta doce.

Palavras-chave: aprendizagem musical, adolescente, flauta doce.

elementos serão discutidos no presente


1. Introduzindo o assunto... texto.
A seguir, refletirei sobre os
Os caminhos que me levam à aspectos mais problemáticos, na minha
elaboração desse artigo surgem da percepção, do ensino de música para
necessidade constante de criar estratégias adolescentes. Para isso, busco
de ensino que incentivem e envolvam o fundamento teórico nas recentes
aluno adolescente no estudo de música, pesquisas da área de neurologia
com o mesmo interesse e engajamento (Herculano-Houzel, 2005; Sacks, 2007)
que dedica à música fora da escola. as quais apontam que, diferentemente do
Em minha prática docente em que se afirmava há alguns anos, as
cursos de formação de educadores, coletei características da personalidade do
relatos de professores de música sobre as adolescente não devem ser somente
dificuldades em manter os alunos relacionadas a questões de ordem
adolescentes envolvidos no ensino formal hormonal ou cultural, mas a um conjunto
de música na escola. Quando esse de transformações que incluem drásticas
objetivo é alcançado, parece difícil mudanças no cérebro deste indivíduo.
mantê-los motivados para a
aprendizagem musical. A natureza das 2. Em primeiro lugar, quem é esse
dificuldades envolvem fatores sócio- adolescente?
culturais, psicológicos, neurológicos e
cognitivos em geral, e alguns desses A adolescência é um período
complexo e desafiador para quem a

320
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

vivencia, mas também exige paciência e Inhelder e Piaget (1976), ainda


disposição ao diálogo por parte de quem na década de 70, apontavam caminhos
educa e convive com jovens que se nessa mesma direção, afirmando que
encontram nessa fase. Este é um “parece evidente que o desenvolvimento
período no qual predominam alguns das estruturas formais da adolescência
conflitos devido à posição desafiadora está ligado ao das estruturas cerebrais”
em relação à família e aos professores, o (p. 251). Os autores seguem afirmando
desrespeito às normas em geral, e a que, para o meio social atuar
desmotivação generalizada – mais efetivamente sobre os cérebros
conhecida como tédio. No entanto, com individuais, “é preciso que estes estejam
o auxílio de pesquisas recentes nas áreas em condições de assimilar as
principalmente da neurologia, encontramos contribuições desse meio, e voltamos à
subsídios para repensar a forma de necessidade de uma maturação
interagir com os indivíduos nesta fase. suficiente dos instrumentos cerebrais
Segundo Inhelder e Piaget individuais” (p. 251). A ocorrência das
(1976), a adolescência pode ser transformações do cérebro está
considerada como a fase de integração profundamente ligada ao meio cultural
do indivíduo na sociedade adulta, do adolescente, e é essa relação que
podendo esse período sofrer grande servirá como base de desenvolvimento
influência do meio. Enquanto a da autonomia e a afirmação de sua
puberdade acontece, mais ou menos na identidade perante a sociedade.
mesma idade em diferentes contextos Desta forma, seria incoerente
culturais e sociais, o período pensar o ensino de música para
relacionado à integração no meio adulto adolescentes com os mesmos objetivos
pode ser tão variado quanto os diferentes e metodologia daquele destinado às
ambientes sociais conhecidos. Em crianças. Por outro lado, este
termos biológicos, ela pode variar entre adolescente ainda não tem a maturidade
10 a 20 anos de idade, incluindo a do adulto, pois está passando por um
puberdade, mas segundo Herculano- profundo processo de transformação em
Houzel (2005), a maturação cerebral - seu cérebro, o que se manifesta em seu
não a capacidade de aprender, esta comportamento. É necessário que o
considerada sem limite de idade(!) - educador musical possua uma postura
deve estar completa somente próximo aberta às características da
dos 30 anos. personalidade, específicas desta faixa
Para Herculano-Houzel, a etária, bem como construa seu plano de
adolescência é a época em que o ensino baseado no diálogo e
cérebro da infância se transforma em sensibilidade, valorizando a vivência e
cérebro de um indivíduo adulto. A atual os gostos de cada um.
pesquisa sobre o desenvolvimento
humano sofreu uma mudança de foco 3. E o ensino de música na
desde o reconhecimento de que “o adolescência, como fica na escola?
cérebro adolescente é fundamentalmente
diferente tanto do cérebro infantil Acredito ser fundamental que o
quanto do adulto, e que essas diferenças educador demonstre abertura às
em várias regiões do cérebro podem preferências de seus alunos, mas que
explicar as mudanças de comportamento também possa interferir na orientação e
típicas dos adolescentes” (Herculano- ampliação destas preferências, para não
Houzel, 2005, p. 12). limitar o ensino de música a poucos

321
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

artistas ditados pela mídia. Maffioletti tomar. Resolvi perguntar aos jovens que
(2001, p. 45), comenta a sobre a estavam saindo da escola pública de
conseqüência da repetição contínua de ensino médio, mas absolutamente todos,
músicas, o que acaba estabelecendo um ou seja, 100% dos estudantes que por
padrão de gosto. E isso define quais mim passaram durante os 15 minutos de
serão as estrelas do showbiz do espera, estavam ouvindo música por
momento, quem serão os artistas mais meio de Mp3. Completamente absortos
ouvidos e vendidos. em trilhas sonoras de suas vidas, não
A ampla presença da música na viam nem ouviam nada além de seu
vida dos adolescentes que me cercam, mundo próprio. (Diário de campo,
sejam eles alunos, familiares ou amigos, 08/11/2007).
me fez refletir sobre as possíveis causas Sacks critica este tipo de hábito,
da grande desistência ou desinteresse, acrescentando que atualmente “estamos
apontado pela maioria dos educadores cercados por um incessante bombardeio
musicais em relação ao aprendizado de musical, queiramos ou não”, e isso
música nesta faixa etária. Como pode acarreta temíveis conseqüências, como
haver uma significativa resistência à a “grave perda de audição encontrada
aprendizagem musical nesta faixa em parcelas cada vez maiores da
etária quando, em seu cotidiano, a população” (Sacks, 2007, p. 57). Talvez
música é tão marcante? É inegável a a visão de Sacks seja um pouco
importância da música no cotidiano do pessimis, já que esse fator negativo
adolescente, seja ouvindo música, poderia ser resolvido com a orientação
tocando em uma banda de rock, sobre a importância de uma redução do
cantando na igreja, dançando na festa volume (intensidade), ainda que não
ou tocando violão em uma roda de deva ser uma solicitação simples a um
amigos, enfim, nas mais variadas indivíduo que precisa de alguns
situações a música está presente na vida excessos para obter satisfação. O
dos jovens em quase todo o mundo. próprio autor afirma ser agradável e
As diferentes maneiras de ouvir estimulante a audição musical como
e “usar” música podem estar resultado do aumento de dopamina no
relacionadas com as funções da música, núcleo acumbens1 e de contribuição do
e podem depender de características cerebelo na regulação das emoções
pessoais do ouvinte (idade, formação Acredito que a satisfação do
musical), da situação (intenção de ouvir, adolescente em ouvir música não foi
atenção) e do contexto (físico, social, ainda produtivamente explorada, em
cultural, educativo) (Palheiros, 2006, p. todo seu potencial, pelos educadores
309). musicais. Constata-se, na prática, que o
O desafio que se impõe, no ensino teórico da música é bastante
ensino de música para adolescentes, é valorizado em sua riqueza de conteúdo
fazer com que a vivência na escola seja e quantidade de informações.
tão rica e apreciada como a vivência Herculano-Houzel afirma que o cérebro
informal, fora da escola. Registrei uma adolescente possui como característica
situação que pode ilustrar a presença da
música na vida do adolescente:
Estava saindo de uma 1
Núcleo Acumbens: é um órgão
observação de aula relativa ao meu neurotransmissor que possui como função a
mestrado (...), e precisava de uma estimulação cerebral, tendo associado a ele
informação sobre a condução correta a respostas motoras e controle de liberação de
dopamina (ligado ao sistema de recompensa).

322
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

fundamental o fato de que “primeiro ele onde era oferecida a disciplina de


faz, e só depois encontra uma música em um turno oposto ao meu,
explicação consciente para o que fez” resolvi assistir a uma aula a fim de
(2005, p. 148). Assim, podemos avaliar se trocaria de turno para estudar
imaginar quão pequeno deve ser o música. No entanto, ao entrar na sala de
engajamento de um adolescente para aula, percebi que o quadro negro estava
com um ensino de música que prioriza a repleto de informações contendo todos
teoria, os conhecimentos literários/históricos os nomes dos instrumentos da orquestra
ou a simples descrição de elementos da sinfônica, divididos por naipes. Ao
estrutura musical. questionar uma colega sobre a função
Para Elliot (1998, p. 15), “a daquelas palavras, ela me relatou que se
musicalidade se demonstra em ações, tratava do “conteúdo da prova” que
não em palavras. É uma forma de ocorreria na semana seguinte.
conhecimento prático”. Um exemplo Conversando sobre as demais atividades
oposto a esta colocação ocorria em uma da aula de música, constatei que eles
escola pública de música em Porto nunca ouviam ou faziam música, e que
Alegre2, onde o tipo de ensino o ensino era baseado somente em
empregado há décadas exigia que os conteúdo teórico. Na mesma hora
alunos cursassem dois anos de teoria até desisti da idéia de estudar à tarde, pois
obter permissão do professor para tocar aquele ensino de música era tudo o que
um instrumento musical. Entre os eu não queria experimentar.
jovens, a desistência era enorme! Paralelamente, segui tocando na banda
Piaget investiga as ações do formada por alunos da escola e que
sujeito sobre o objeto, refletindo sobre ensaiava informalmente no centro
os processos de fazer e compreender, estudantil, dedicada especialmente ao
onde constata que reggae, e por todo ensino médio não
tive contato, dentro da sala de aula, com
(...) a tomada de consciência a música.
parte, em cada caso, dos Hoje, como educadora, percebo
resultados exteriores à ação, quão descritivo era esse ensino e como,
para, somente em seguida, de fato, deveria ser desestimulante para
engajar-se na análise dos meios os alunos.
empregados e, por fim, na
direção das coordenações gerais
4. Que tédio...considerações sobre a
(...), isto é, dos mecanismos
centrais, mas antes de tudo,
desmotivação na adolescência
inconscientes da ação (Piaget,
1978, p. 173). Palheiros realizou um estudo
para examinar as relações entre ouvir
Uma experiência vivenciada por música na escola e em casa,
mim talvez possa indicar algumas pistas comparando crianças britânicas e
dessa divergência entre interesses e portuguesas de dois níveis de idade e
conteúdos. Ao cursar o ensino médio graus de ensino: estudantes da escola
em uma escola pública estadual (RS) primária de 9 e 10 anos, e das escolas
secundárias, de 13 e 14 anos de idade.
Entre os vários aspectos analisados,
2
A Escola de Música da OSPA - Orquestra destaco a questão da desmotivação com
Sinfônica de Porto Alegre fechou suas portas relação ao aprendizado musical na
nos últimos anos por falta de recursos escola, constatada pela pesquisadora:
financeiros.

323
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Alguns participantes mais idiomas musicais, incluindo aqueles


velhos, que tinham deixado de encontrados nas escolas e apresentados
aprender o instrumento que em materiais de instrução”. Este autor
tocavam na escola primária, compara a maior aceitação demonstrada
comentaram sobre um pelo aluno mais jovem, em oposição à
decréscimo na sua motivação
para a música. Pareciam
grande exigência, em termos de
preferir aulas com grau de repertório, que o adolescente impõe.
dificuldade compatível com a Segundo Elliot (1998, p. 26), “a
percepção de suas capacidades. medida que o nível de musicalidade de
(Palheiros, 2006, p. 319). um estudante avança em complexidade
para satisfazer as demandas de obras
A referida “dificuldade compatível cada vez mais desafiadoras”, todos os
com a percepção de suas capacidades” aspectos da consciência são impelidos a
comentada por Palheiros, pode estar seguir adiante. Neste sentido, para o
relacionada à construção de um ego autor, o papel do educador musical é o
frágil que busca recompensar a baixa de proporcionar uma relação equilibrada
auto-estima decorrente de uma crise de entre os desafios musicais apropriados
identidade com a adoção de para cada passo do caminho.
comportamentos narcisistas, fúteis ou A relação entre a motivação do
de risco. Não seria possível falar de adolescente e as alterações do seu
ensino de música para adolescentes sem comportamento é direta: eles sofrem
mencionar a enorme transformação e uma queda brusca na produção de
afirmação de identidade inerente a essa receptores de dopamina (cerca de 1/3),
fase. Segundo Oliveira, é por meio da e isso explicaria o “tédio” que relatam
formação de tribos tipicamente urbanas, ou expressam. A necessidade de suprir
modismos e idolatria de personalidades, esta lacuna com atitudes radicais,
que os adolescentes “exercitam as podem levar a comportamentos
relações socioafetivas, criam códigos de extremos. Como resultado surge “uma
comunicação e atitudes”. No entanto, na súbita incapacidade de estímulos
busca pela semelhança a seus pares outrora interessantes de causar ativação
enquanto desejam a diferenciação dos suficiente do sistema de recompensa”
demais, “se deparam com imagens (Herculano-Houzel, 2005, p. 100). O
ilusórias que podem favorecer o “sistema de recompensa” é descrito
comportamento de risco e o acirramento pela autora como “conjunto de
das divergências sociais” (Oliveira, estruturas no cérebro responsáveis por
2007, p. 20). premiar com prazer ou bem-estar
No contexto da construção de aqueles comportamentos que acabaram
identidades individuais e coletivas, o de se mostrar úteis ou interessantes. (...)
repertório musical selecionado – e a A ativação do sistema de recompensa é
forma como é feita essa seleção – pode o que nos faz querer mais tudo o que foi
ser um elemento crucial no sucesso de ou pode ser bom” (p. 96).
um projeto de educação musical para
adolescentes (ver Cuervo, 2004). 5. Sons Fortes e Graves!
Através de pesquisas sobre performance
musical de crianças e jovens, Swanwick Talvez não haja característica
(2003, p. 72) afirma: “Existe, portanto, mais marcante na escuta musical do
maior aceitação, entre alunos mais adolescente que a súbita apreciação de
jovens, de uma seleção mais ampla de fortíssimo volume. Mas essa é mais

324
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

uma questão complexa a ser tratada torna-se estimulante o contato com a


quando a música entra na escola. Como contralto, em fá, a qual proporcionará o
adaptar esta preferência em um aprendizado do mesmo sistema utilizado
ambiente no qual se preza o silêncio, pelas flautas sopranino e baixo, esta
ou, pelo menos, a menor invasão sonora última podendo ser lida na clave de fá.
possível entre as salas de aula? A Essas oportunidades vêm ao encontro
necessidade de ouvir música alta foi de propostas desafiadoras, motivando o
abordada também no trabalho de adolescente a ampliar sua prática
Herculano-Houzel (2005, p. 104): “A musical coletiva na escola, geralmente
preferência de dicotecas, raves e shows limitada à execução da aguda soprano.
de rock por sons graves e quase
ensurdecedores, portanto, parece ter 6. Algumas considerações finais...
sido feita de ecomenda para fornecer
estimulação vestibular”3. A autora Percebo a necessidade de tornar o
relaciona o hábito de ouvir música alta à ensino formal de música mais interessante
necessidade de confortar o sistema de e instigador para o aluno adolescente, a
recompensa, o qual passa por uma baixa fim de abarcar as singularidades dessa
em sua sensibilidade. fase do ser humano. A adolescência não
Essa peculiaridade do adolescente deve ser vista como uma “fase a ser
não passa somente por um gênero de amenizada”, mas potencializada em suas
música. Se o jovem gosta da obra de melhores características: a inquietude, a
Beethoven, por exemplo, talvez sinta descoberta de novos limites, a busca pela
uma vontade irresistível de ouvir solicialização e aceitação, o gosto pela
alguma de suas sinfonias no volume experimentação e a necessidade por
máximo... novidade.
No ensino de flauta doce é muito A investigação e reflexão sobre
comum a insistência, por parte de um o ensino para a adolescência torna-se
“programa” a ser desenvolvido, de que fundamental para a reestruturação de
os alunos tenham contato apenas com a um planejamento pedagógico-musical
soprano, o que faz com desconheçam a que busque promover a motivação e o
riqueza que o aprendizado do quinteto envolvimento desse adolescente nas
de flautas pode propiciar. Está atividades de educação musical na
constatado por pesquisas que o escola.
adolescente prefere os sons mais graves
(Herculano-Houzel, 2005), por isso 7. Referências
talvez seja mais gratificante a prática
com a flauta doce tenor, por exemplo, CUERVO, L. A. Construção do Repertório
no lugar da soprano. A tenor possui para Flauta Doce em um Projeto de
uma sonoridade grave e aveludada, Inclusão Social. In: ENCONTRO ANUAL
além de ser mais potente e possuir o DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
mesmo sistema de leitura e digitação da EDUCAÇÃO MUSICAL, 13., 2004, Rio
soprano, facilitando seu emprego. Também de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro:
ABEM, 2004. p. 630-635.
ELLIOT, D. J. Música, Educación y
3
Valores Musicales. In: GAINZA, V. H. (Ed.).
Órgão vestibular é uma estrutura vizinha à cóclea La Transformación de La Educación
(que é a parte auditiva do ouvido); em pesquisas
recentes, foi descoberto que o órgão vestibular Musical a las puertas del siglo XXI.
também possui função auditiva. (Herculano-Houzel, Buenos Aires: Guadalupe, 1998. p. 11-32.
2006, p. 103).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

HERCULANO-HOUZEL, S. O Cérebro PALHEIROS, G. B. Funções e modos


em Transformação. Rio de Janeiro: de ouvir música de crianças e adolescentes,
Objetiva, 2005. em diferentes contextos. In: ILARI, B.
INHELDER, B.; PIAGET, J. Da Lógica S. (Org). Em busca da mente musical:
da Criança à Lógica do Adolescente: ensaios sobre os processos cognitivos
Ensaio sobre a construção das estruturas em música – da percepção à produção.
operatórias formais. São Paulo: Livraria Curitiba: UFPR, 2006. p. 303-352.
Pioneira Editora, 1976. PIAGET, J. Fazer e Compreender. São
MAFFIOLETTI, L. de A. Produção Paulo: Melhoramentos, 1978.
musical: o outro lado da diversidade. SACKS, O. Alucinações Musicais: relatos
In: Revista da FUNDARTE, Montenegro, sobre a música e o cérebro. São Paulo:
v. 1, n. 1, p. 41-46, jan./jun 2001. Cia. Das Letras, 2007.
OLIVEIRA, M. C. S. L. Vínculos Imaginários. SWANWICK, K. Ensinando música
In: O Olhar Adolescente: os incríveis musicalmente. Tradução Alda Oliveira;
anos de transição para a vida adulta, São Cristina Tourinho. São Paulo: Moderna,
Paulo, v. 2, p. 21-27, 2007. (Série Mente 2003.
e Cérebro).

326
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A aprendizagem musical por meio da utilização do conceito


de totalidade do sistema Orff/Wuytack

Luís Bourscheidt
gauspa@gmail.com

Resumo: A presente pesquisa em andamento pretende coletar dados acerca da aplicação do


sistema Orff/Wuytack enquanto metodologia de ensino de música, com crianças entre 6 e 8 anos
de idade e sob o ponto de vista do seu desenvolvimento cognitivo e de suas habilidades
musicais. A hipótese deste estudo é que, partindo das atividades presentes neste sistema, e
tomando como referência o princípio da totalidade utilizado na aplicação destas atividades em
uma aula de musicalização infantil, aspecto fundamental para o sistema em questão, há uma
significativa melhora na aprendizagem musical dessas crianças, principalmente com relação à
aquisição melódica. Tendo como delineamento metodológico a pesquisa quasi-experimental,
busca-se refletir acerca das qualidades deste sistema enquanto proposta de ensino de música, no
âmbito da prática docente em educação musical. Dessa forma, presume-se que este princípio
possa ser adotado como estratégia de ensino de música, dentro de uma aula de musicalização
infantil.

Palavras-chave: Educação Musical, Cognição Musical, Sistema Orff/Wuytack.

especificamente de nenhum tipo de ponto


1. Fundamentação teórica de vista metodológico, sendo necessária
a utilização de “fontes secundárias para
1.1 O Sistema Orff/Wuytack e o aprofundar esse entendimento” (Fonterrada,
princípio da totalidade 2003, p. 146).
Jos Wuytack nasceu em Gent, na
O presente estudo pretende Bélgica, em 1935. Atualmente é considerado
verificar a utilização das atividades uma das maiores autoridades mundiais
presentes no sistema Orff/Wuytack na pedagogia musical Orff, sendo convidado
como proposta de ensino da música, em a ministrar cursos de pedagogia musical
diversos níveis e com diferentes ativa em diversos países do mundo. O
conteúdos musicais. Este sistema, que seu sistema, objeto de análise do estudo
foi criado pelo professor belga Jos que segue, pretende que a criança
Wuytack partindo das idéias contidas na aprenda música fazendo música, desde
obra escolar do compositor e educador o seu primeiro contato com a
musical alemão Carl Orff, a Orff- experiência sonora, tendo em vista que,
Shulwerk, pode ser considerado a conforme prevê o sistema, deve sempre
continuação da pedagogia Orff na haver uma adaptação das atividades do
atualidade. Em seu sistema, Jos sistema para a realidade e para o nível
Wuytack, que fora aluno e amigo de desenvolvimento em que a criança se
pessoal do próprio Carl Orff, define encontra, sendo assim, acessível a todas
uma série de princípios e metodologias, as crianças. (Wuytack, 2005).
diferentemente de Carl Orff, que, apesar A metodologia em que o sistema
de elaborar um método amplamente está embasado é construída a partir de
utilizado no mundo inteiro, não trata conceitos, que são designados “princípios”.

327
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Um princípio fundamental para este numa satisfação por parte da criança, já


sistema é a totalidade. Este conceito que a sua tomada de consciência com
refere-se à maneira como se estabelece relação à música representa, dentro do
a relação entre as partes e o todo dentro conceito de totalidade, a realização de
do processo de ensino e aprendizagem um bom trabalho musical.
musical e em uma aula de música. É Além da totalidade, há outros
possível entendê-lo, no entanto, de princípios fundamentais para o sistema.
acordo com dois tipos de análise. A São eles: atividade, adaptação, alegria,
primeira delas, mais abrangente, estabelece arte, articulação, canto, comunidade,
que “a música é uma totalidade entre consciência, criatividade, equilíbrio,
três formas de expressão: verbal, musical motricidade, movimento, a teoria, além
e corporal” (Wuytack, 2005, p. 5). Nesse do envolvimento ativo e expressivo do
sentido, a expressão artística através da aluno frente à experiência musical
música só será possível com a inter- (Palheiros, 1988, 1998; Wuytack, 1970,
relação entre a expressão musical – 1982, 2005; Wuytack & Sills, 1994). É
referente à todos os elementos que possível destacar que, para o método
compreendem a experiência musical, – Orff/Wuytack, há uma grande preocupação
a expressão corporal – caracterizada em desenvolver o sentido estético da
principalmente pelo movimento e pela música e esta deve ser vivida de maneira
dança – e, finalmente, pela expressão ativa, criativa e em comunidade. Wuytack
verbal. sugere que “o professor não é um mero
Uma segunda análise, mais transmissor de conhecimentos; deve
pontual, diz respeito à adequação da saber comunicar com os alunos o prazer
totalidade à aula de música, seja na sua de fazer música; adaptar os materiais à
elaboração ou na sua aplicação. Nesse idade e à personalidade das crianças, às
sentido, o conteúdo apresentando em características do meio em que ensina”
uma determinada aula deve ser (Wuytack, 2005, p. 5).
apresentado de maneira integral – com
início, meio e fim, – devendo envolver 1.2 Aspectos cognitivos do desenvolvimento
também todas as formas de expressão musical infantil
descritas acima (Ibid., p. 58).
Para exemplificar este aspecto, Para entender como o princípio
tomemos como referência o aprendizado da totalidade pode influenciar na
de uma determinada canção. Conforme aquisição dos conhecimentos musicais,
a metodologia abordada, não é possível foram investigadas algumas das principais
que as partes da canção (melodia, letra e teorias do desenvolvimento musical
acompanhamento pelos instrumentos infantil (Gardner, 1997; Hargreaves &
Orff, por exemplo) sejam aprendidas em Zimmerman, 2006; Sloboda, 1985;
aulas diferentes. Os elementos devem Swanwick, 2000) e as suas relações
ser apresentados separadamente, mas com os processos de aprendizagem
numa mesma aula de musicalização, e musical (Gordon, 2000) e de aprendizagem
sempre estabelecendo relações com o geral (Vigotsky, 1994).
todo – ou com a totalidade – da canção. Para Gardner (1997), é comum
Assim, é mais conveniente que seja que a maioria das crianças, durante os
aprendida uma canção mais curta ou primeiros anos de vida, preste atenção
mais simples do que a não execução de aos estímulos musicais ou sonoros e
sua totalidade. Conforme Wuytack, esse responda a estes estímulos das mais
tipo de metodologia implica principalmente diversas formas, “embalando-se para

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

frente ou para trás, marchando, rolando parecer contraditórias, há alguns


ou prestando uma grande atenção” denominadores comuns, o que torna os
(Ibid., p. 203). O que varia, constata o textos que abordam esta temática
autor, é a idade em que a criança complementares.
manifesta-se, desde o balbucio para os Hargreaves & Zimmerman (2006)
bebês pequenos, até o “brincar simbólico” definem o termo desenvolvimento de
com qualquer uma das propriedades maneira abrangente, como sendo as
musicais. Sloboda (1985), no entanto, mudanças nos padrões de comportamento
destaca que a primeira evidência de que ocorrem regular e invariavelmente
consciência musical em uma criança em todo ser humano, e que são decorrentes
está na diferenciação entre as de uma determinada idade. Essas
seqüências de sons musicais e a mudanças de comportamento, no entanto,
seqüência de sons não musicais. Assim, podem ser em conseqüência de uma
segundo o autor, a consciência musical aculturação, que é espontânea em uma
efetivamente não poderia acontecer nos determinada cultura, ou devido ao treino,
primeiros contatos com o som, já que a que está relacionado ao condicionamento
criança muito pequena apresenta consciente à aquisição de determinada
também reações à experiência sonora habilidade. Portanto, é possível distinguir
não musical. Este pensamento se mostra aprendizagem musical de ensino musical,
divergente do pensamento de Swanwick sendo que a aprendizagem está relacionada
(2000), que sugere o início da ao desenvolvimento inconsciente, enquanto
consciência musical – e, portanto, de o ensino, à consciência. Os autores defendem
um desenvolvimento musical a partir de também que, na prática, tanto o treino,
estímulos externos – quando a criança que faz referência ao ensino, quanto à
começa a sentir prazer em ter aculturação, que está relacionada à
experiências sonoras. aprendizagem, são parte essencial do
A partir destas constatações, a desenvolvimento musical. Nesse aspecto,
primeira parte do estudo discorre, tratam menos de estabelecer etapas para o
conforme as teorias desenvolvimentistas desenvolvimento cognitivo musical e
mais recentes, acerca das possíveis procuram abordar com maior ênfase os
etapas em que o desenvolvimento processos evolutivos. Assim sendo, os
musical se fecha, tendo em vista a autores são categóricos em afirmar a
necessidade de se estabelecer estruturas inexistência de estágios referentes às
objetivas e universais para realidades etapas do desenvolvimento musical,
muitas vezes subjetivas e individuais. partindo do conceito piagetiano de
Este talvez seja o grande desafio do estágio, em que as etapas são vinculadas
estudo que segue, na medida em que especificamente a uma faixa etária.
muitas teorias se apresentam divergentes, Desse modo, conforme os autores, o
e, de certo modo, contrárias umas das desenvolvimento deve distanciar-se de
outras. modelos “fechados” em etapas de
Partindo do pressuposto de que desenvolvimento musical, pois o
toda criança tende a responder aos aprendizado acontece como um todo e
estímulos sonoros que recebe (Gardner, deve aproximar-se “para uma maior
1997; Sloboda, 1985; Swanwick, 2000), diversidade e especificidade na área.”
são aqui esboçadas algumas teorias que (Hargreavas & Zimmerman, apud
tratam do desenvolvimento musical Álvares, 2005, p.65). Assim, os autores
infantil. Apesar do fato de que, em preferem utilizar o termo fases, já que
alguns momentos as teorias possam eles próprios reconhecem a existência

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

de mudanças previsíveis, em termos de Outras, no entanto, buscam refletir


desenvolvimento musical. muito mais acerca das relações entre as
Numa análise conclusiva, Gardner etapas do desenvolvimento musical e os
(1997, p.240) afirma que “a qualidade processos cognitivos que a subjazem,
das experiências e os sentimentos que o como Gardner (1997) e Hargreaves &
artista comunica são de crucial Zimmerman (2006). Este último, apesar
importância em qualquer objeto de arte. de não apresentar um modelo como os
Não é suficiente ser tecnicamente anteriores, mostra-se preocupado em
competente: o artista precisa também ter não necessariamente precisar idades,
algo significativo para comunicar”, e mas sim, em discutir os processos de
conclui dizendo que “uma vida inteira de aquisição de habilidades musicais.
desenvolvimento está por trás de uma
obra prima.”. 2. Objetivos
A segunda parte desta revisão busca
coletar dados acerca da aprendizagem Este trabalho pretende investigar
musical. A partir de algumas teorias, a aplicação do sistema Orff/Wuytack
como a de Vigotsky (1994) e Gordon enquanto metodologia de ensino musical,
(2000), que levam em consideração os com crianças entre 6 e 8 anos de idade
fatores psicológicos que influenciam na e sob o ponto de vista do seu
aprendizagem musical, pretende-se desenvolvimento musical.
questionar de que maneira estes Além disso, pretende-se, por meio
aspectos poderão correlacionar-se com deste estudo, refletir sobre as qualidades
as etapas do desenvolvimento musical. deste sistema enquanto proposta de
Para Vigotsky (1994), por exemplo, o ensino da música, no âmbito da prática
ser humano está constantemente em docente em educação musical, tendo
desenvolvimento e, portanto, a criança como foco o princípio da totalidade, em
começa a aprender muito antes da diversos níveis e com diferentes conteúdos
aprendizagem escolar, já que ela possui musicais. Ademais, busca-se descrever,
uma história de experiências sensoriais de acordo com o referencial teórico, os
e cognitivas anteriores ao ingresso na processos de aprendizagem pelos quais as
escola. Assim, é possível concluir que crianças que farão parte do estudo
as crianças desenvolvem e aprimoram estiveram envolvidas relatando de que
seus conceitos em suas próprias maneira a metodologia do sistema em
vivências e desde o seu nascimento. questão foi utilizada na aplicação das
Finalmente, ao final desta breve atividades propostas e de que maneira este
revisão, é possível estabelecer alguns aspecto influencia no seu desenvolvimento
pontos em comum entre as teorias musical.
analisadas. Há um consenso de que,
basicamente, o desenvolvimento musical 3. Método
infantil pode ser dividido em três
etapas, apenas alterando as idades e os O estudo utiliza como delineamento
pontos de vista entre uma teoria e outra. É metodológico a pesquisa quasi-experimental.
evidente que teorias mais desenvolvimentistas Dessa forma, pretende-se verificar a
como a de Swanwick (2000), além de aplicação destas atividades em uma aula
refletir acerca dos conceitos para as de musicalização infantil, com crianças
etapas do desenvolvimento, estejam brasileiras entre 6 e 8 anos de idade e de
também eminentemente preocupadas acordo com dois pontos de vista. O
em estabelecer idades para estes estágios. primeiro tem o foco nas atividades que

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

compreendem o sistema e na sua Orff/Wuytack e de acordo com o


metodologia, ou seja, responde à questão principio da totalidade.
“quais atividades” utilizar e “como” Em virtude da metodologia
utilizá-las. Nesse caso, os dados escolhida, um teste será realizado na
qualitativos são apresentados de maneira primeira e na última aula. Nesse teste,
descritiva. O segundo ponto de vista pretende-se avaliar a desenvoltura das
tem o foco nas crianças e na relação crianças – de acordo os mesmos critérios
entre o seu desenvolvimento cognitivo e avaliados na primeira parte desta pesquisa
o sistema em questão. Wuytack & empírica – frente a atividades muito
Palheiros (1995) entendem que a similares. O problema a ser estudado, ou
experiência musical deve estar de acordo seja, as condições em que se dá a
com a etapa do desenvolvimento cognitivo aplicação deste sistema com crianças
em que a criança se encontra e, por essa brasileiras numa aula de musicalização
razão, as atividades também devem e a sua relação com o desenvolvimento
obedecer a este critério. Sendo assim, os cognitivo/musical destas crianças, pode ser
dados serão apresentados de maneira testado, já que as variáveis dependentes
quantitativa e de acordo com o delineamento que compreendem os testes da pesquisa
quasi-experimental, dispensando a são plenamente observáveis. São elas:
necessidade de um grupo de controle, já
que, nesse caso, entende-se a aplicação 1. Desenvoltura vocal (afinação,
das atividades presentes no sistema como qualidade na imitação vocal);
a variável independente da pesquisa. 2. Desenvoltura instrumental (postura,
Dessa forma, serão filmadas e relatadas manuseio das baquetas, qualidade
06 aulas onde os conteúdos serão na imitação instrumental);
aplicados por um professor especialista, 3. Aspectos rítmicos, na imitação
devidamente treinado e familiarizado com vocal e instrumental;
a metodologia do sistema Orff/Wuytack. 4. Aspectos melódicos, na imitação
As atividades que farão parte vocal e instrumental;
destas aulas foram ordenadas de acordo 5. Criação, num contexto de
com a progressão melódica proposta improvisação musical.
pelo sistema. Esta progressão “inicia
por uma melodia de duas notas É possível notar que, dentro
(bitônica) e se desenvolve por etapas até dessas categorias de análise, a imitação
a melodia de sete notas (heptatônica). O – e, portanto, a maneira como este
interesse pedagógico desta progressão processo ocorre na relação entre o
melódica reside numa mais fácil professor e os alunos – é um fator
assimilação e concsiencialização (sic) importante, tendo em vista que para o
das alturas relativas dos sons, por parte próprio sistema, a aprendizagem musical
das crianças” (Wuytack & Palheiros, e dos conteúdos musicais ocorre por
2000, p. 5). Para este estudo, no entanto, meio de processos imitativos, de acordo
a progressão sugerida por Wuytack e com Wuytack (2005). Portanto, em um
Palheiros é apresentada até a escala primeiro contato com a música, a
pentatônica, sendo que cada atividade criança aprende “de ouvido” e não pela
proposta compreende todos os parâmetros partitura musical. Para avaliar estes
que seriam avaliados posteriormente. parâmetros, serão escolhidos 03 juízes
Assim, cada aula envolve especificamente externos professores especialistas em
duas atividades que são apresentadas educação musical, que avaliarão a
conforme a metodologia do sistema primeira e a última aula da coleta de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

dados. Em termos de estrutura, estas musical inicial às crianças e, nesse


aulas terão atividades muito similares. sentido, deve respeitar a individualidade
Dessa forma, os juizes poderão e emitir de cada criança, conforme pretende o
valores quantitativos aos parâmetros sistema em questão.
acima descritos, em uma escala de 1 a 5, Paralelamente, foi possível evidenciar
conforme o seu entendimento. Os dados algumas co-relações entre os tipos de
serão apresentados de modo descritivo, expressões presentes na totalidade e o
já que as notas atribuídas pelos juízes desenvolvimento destas habilidades nas
externos, além de dados quantitativos, crianças, a citar o desenvolvimento motor,
podem também ser analisadas de acordo o desenvolvimento verbal e, finalmente,
com uma perspectiva qualitativa. Para a desenvolvimento musical.
coleta de dados, as aulas serão filmadas Com relação às etapas do
e posteriormente relatadas em um desenvolvimento musical, Hargreaves
caderno de dados. & Zimmermann (2006) sugerem uma
Por fim, na terceira parte deste inevitável mudança nos padrões
estudo, os dados obtidos na pesquisa musicais, apesar de não fechar as etapas
empírica serão relacionados com a do desenvolvimento musical em idades
revisão de literatura apresentada na de forma pontual. Este aspecto, numa
primeira etapa. Portanto, serão descritas, análise preliminar dos dados também
em forma de relatório, as observações pode ser observado, já que a resposta dos
referentes às 6 aulas que comportam o alunos com relação à aquisição melódica
estudo, as quais todos os aspectos acima se mostrou mais eficiente nas últimas
farão parte das observações. Dessa forma, aulas com relação às primeiras. Observou-
pretende-se descrever os processos de se também um interesse significativo
aprendizagem pelos quais as crianças dos alunos com relação às atividades
que farão parte do estudo estiveram musicais propostas, principalmente quando
envolvidas e de que maneira a as atividades envolviam aspectos rítmicos
metodologia utilizada na aplicação das aplicados por meio da utilização dos
atividades propostas influenciou no se instrumentos Orff. Além disso, foi
desenvolvimento musical. possível observar um crescente interesse
dos alunos envolvidos com relação à
4. Resultados e Conclusões criação por meio do improviso musical.
Finalmente é possível crer que os
A presente pesquisa encontra-se resultados deste estudo apoiarão estudos
em andamento. No entanto, uma análise posteriores, frente à necessidade da criação
preliminar dos dados e da fundamentação e manutenção de uma bibliografia em
teórica deste estudo sugere que o língua portuguesa relacionada à psicologia
desempenho musical das crianças é do desenvolvimento cognitivo/musical
sempre despertado a partir de estímulos infantil. Ademais, pretende-se divulgar
externos. Dessa forma, o principio da um sistema de pedagogia musical vigente
totalidade pode vir a contribuir para e ainda desconhecido por grande parte
a aquisição melódica, já que este dos possíveis interessados brasileiros,
compreende aspectos extramusicais tendo em vista a sua significativa
para a aprendizagem das canções, como aceitação em diversos países do mundo.
a fala e o movimento corporal. Por
outro lado, tendo também como base a
revisão de literatura, observou-se que o
contexto deve proporcionar o estímulo

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

PALHEIROS, G. B. Jos Wuytack, Músico


5. Subáreas de conhecimento e Pedagogo. Boletim da Associação
Portuguesa de Educação Musical,
O desenvolvimento paralelo da
[S.l.], v. 98, p. 16-24, 1998.
mente humana e das artes musicais.
SLOBODA, J. A. The Musical Mind: The
6. Referências bibliográficas Cognitive Psychology of Music. Oxford:
Oxford University Press, 1985. 291 p.
ÁLVARES, Sérgio Luís de Almeida. SWANWICK, K. Música, pensamiento y
Teorias do desenvolvimento cognitivo educación. Madrid: Ediciones Morata, 2000.
e considerações sobre o aprendizado da VIGOTSKY, Lev S.; LURIA, Alexander R.;
música. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL LEONTIEV, Alexis N. Linguagem,
DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 1., desenvolvimento e aprendizagem. São
2005, Curitiba. Anais... [S.l.: s.n.], Paulo: Ícone Editora, 1994. p. 85-102.
2005. p. 63-71. WUYTACK, Jos. 3º Grau – Curso de
FONTERRADA, Marisa Trench de Pedagogia Musical. Porto: Associação
Oliveira. De tramas e fios: um ensaio Wuytack de Pedagogia Musical, 2005.
sobre música e educação. São Paulo: 82 p. (Apostila do curso).
Editora UNESP, 2005. 345 p. WUYTACK, Jos. Actualizar as ideias
GARDNER, Howard. As artes e o educativas de Carl Orff. Boletim da
desenvolvimento humano. Tradução Associação Portuguesa de Educação
de Maria Adriana Veríssimo Veronese. Musical, [S.l.], v. 76, p. 4-9, 1993.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 362 p. WUYTACK, Jos. Musica Viva I.
GORDON, Edwin E. Teoria de Sonnez...battez. Paris: A. Leduc, 1970.
Aprendizagem Musical: Competências, WUYTACK, Jos. Musica Viva. Expression
conteúdos e padrões. Tradução de Maria rythmique. Paris: A. Leduc, 1982.
de Fátima Albuquerque. Lisboa: Fundação WUYTACK, Jos; PALHEIROS, Graça
Calouste Gulbenkian, 2000. 513 p. Boal. Audição Musical Activa. Porto:
HARGREAVES, D. J.; ZIMMERMAN, AWPM – Associação Wuytack de
M. P. Teorias do Desenvolvimento da Pedagogia Musical, 1995. 108 p. (Livro
Aprendizagem Musical. In: ILARI, B. do professor).
(Org.). Em Busca da Mente Musical: WUYTACK, Jos; PALHEIROS, Graça
Ensaios sobre os processos cognitivos Boal. Canções de Mimar. 3. ed. Porto:
em música – da percepção à produção. AWPM – Associação Wuytack de
Curitiba: Ed. da UFPR, 2005. p. 231-269. Pedagogia Musical, 2000.
PALHEIROS, G. B. Jos Wuytack, 30 anos WUYTACK, Jos; SILLS, J. Musica Activa.
ao serviço da pedagogia musical. Boletim An approach to music education. New
da Associação Portuguesa de Educação York: Schott SMC, 1994.
Musical, [S.l.], v. 59, p. 5-7, 1988.

333
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

As impressões do público escolar diante dos concertos


didáticos apresentados pelo Quarteto de Cordas UFPR

Liciê Martin
UFPR
licie1986@yahoo.com.br

Resumo: Quarteto de Cordas UFPR: uma experiência educativa. Este é um projeto de


extensão da Universidade Federal do Paraná, que está em atividade desde maio de 2004 e tem
como principal característica a apresentação de concertos didáticos em escolas municipais da
cidade de Curitiba. Nestes concertos propõe-se não apenas um repertório camerístico, mas
também explicações sobre os mais diversos aspectos envolvidos no fazer musical. A grande
maioria das crianças que assiste ao concerto nunca viu um instrumento de corda a arco de perto.
Assim sendo, a presente pesquisa visou à investigação das impressões do público escolar diante
dos concertos apresentados pelo Quarteto de Cordas UFPR nos anos de 2005, 2006 e 2007.
Para isto, realizou-se uma pesquisa bibliográfica acerca de temas como a atual situação do
ensino de música no Brasil, a importância de atividades de apreciação musical e os concertos
didáticos realizados no país nos últimos anos. Posteriormente essa bibliografia foi comparada
com os dados recolhidos em campo através de respostas enviadas pelo público na forma de
depoimentos e desenhos.

Palavras-chave: concerto didático, quarteto de cordas, educação musical.

E isso é grave, pois a educação


1. Fundamentação teórica musical deve se transformar num
“instrumento de progresso, de
Sabe-se que a situação do ensino soerguimento da personalidade e do
de música no país não é das melhores. estímulo da criatividade” (Koellreuter,
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases 1990. p.6-7). Isso porque a música é
para a Educação Nacional, LDB, Lei n. parte integrante da cultura e da
9.394/96, “o ensino de arte constituirá identidade de qualquer indivíduo,
componente curricular obrigatório, nos tornando-se necessário democratizar o
diversos níveis da educação básica, de acesso às mais variadas formas de
forma a promover o desenvolvimento conhecimento musical. Democratizar,
cultural dos alunos” (PCN - Arte, 1998, pois, segundo Koellreuter (1990):
p.30). Devido a essa imprecisão da lei, a
qual deixa a cargo da própria escola a vida cultural e a vida musical
decidir se haverá ou não o ensino de em particular, encontram-se,
quase sempre, nas mãos de uma
música como conteúdo disciplinar, a
elite social, de uma minoria
música, quando presente na escola, sofisticada, falsamente refinada e
acaba ficando no chamado “currículo esnobista, que despreza relações humildes,
oculto” (Labuta; Smith, 1997 apud minoria com sentimento exacerbado de
Álvares, 2005, p.62), ou seja, ela superioridade e com uma admiração
excessiva do que está em voga.
aparece apenas em atividades
(Koellreuter, 1990. p.6-7)
extracurriculares, projetos comunitários,
experiências socioculturais, etc. E não Carlos Kater (2004) afirma que:
consta, efetivamente, como parte do “no caso da educação musical temos
currículo escolar.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

tanto a tarefa de desenvolvimento da são as atividades de apreciação musical,


musicalidade e da formação musical as quais devem estar incluídas na aula
quanto o aprimoramento humano dos de música, conforme afirma Swanwick
cidadãos pela música” (Kater, 2004, (2003). Segundo ele, após atividades
p.46). Para desempenhar tais tarefas desse tipo “as crianças foram capazes de
com êxito é preciso, segundo Kater ouvir a si mesmas e a cada colega mais
(2004), ter cuidado com aquilo que se cuidadosamente” (Swanwick, 2003,
propõe às crianças e jovens. Propor p.71). Este mesmo autor coloca a
músicas da mídia e clichês dos mais apreciação como elemento essencial
variados tipos pode parecer uma para uma educação musical de qualidade, ao
tentativa de aproximação, mas, na propor o modelo “(T)EC(L)A” (Krüger;
verdade, constitui-se de uma Hentschke, 2003, p.26).
“mediocrização” do ensino, o qual estará Tais atividades, quando possível,
caminhando no “sentido oposto ao de uma devem acontecer ao vivo. Dessa
proposta de educação intencionalmente criativa, maneira, mesmo que o aluno não se
transformadora, sobretudo, possibilitadora de interesse pelo tipo de música
formas mais legítimas de apreensão da apresentado por não ser aquela que ele
realidade e de participação social”. ouve em sua casa ou seu aparelho de
(Kater, 2004, p.48) mp3, ele acabará envolvido pelos
Graça Palheiros (2006) chama a movimentos dos músicos, pela
atenção para esta dicotomia existente proximidade do som e por uma
entre a música do universo do aluno e a característica que só a música ao vivo
música da escola. Segundo a autora, possui: a “irrepetibilidade”. (Barenboim
“ouvir música em casa pode ser uma apud Hikiji, 2006, p.152-153). Ver uma
atividade mais significativa, porque apresentação musical de perto suscita
possui funções que são mais valorizadas envolvimento e emoção, sensações
pelas crianças do que as funções de únicas. Assim sendo, não existem idéias
ouvir música na escola” (Palheiros, preconcebidas, preconceitos, ou terceiro
2006. p.309). Tal dicotomia é reforçada ambiente que resistam a um concerto,
pelas idéias de David Hargreaves show, recital ou a uma simples
(2005), pois o mesmo divide a música apresentação de escola que aconteça
do jovem em três ambientes: a casa, a “aqui e agora”.
escola e um “terceiro ambiente”, este Assim, percebe-se a importância
totalmente livre de influências e da realização de concertos didáticos. No
julgamentos adultos, no qual ocorrem os Brasil, nos últimos anos, houve algumas
maiores índices de prazer e criatividade. iniciativas nesse sentido, dentre as quais
Com o surgimento de novas se destacam o Programa Descubra a
tecnologias, cada vez mais avançadas, Orquestra, da Orquestra Sinfônica do
ouvir música torna-se uma tarefa cada Estado de São Paulo e o projeto
vez mais acessível. De acordo com Concertos Didáticos, promovido pela
Palheiros (2006), antigamente as FUNARTE e patrocinado pela
crianças e jovens dependiam Petrobrás. Especificamente na cidade de
exclusivamente de apresentações ao Curitiba, encontra-se o projeto
vivo para ter acesso a qualquer tipo de Alimentando com Música, da Camerata
música. Hoje, no entanto, estas são cada Antiqua de Curitiba e o projeto de
vez menos freqüentadas. extensão da Universidade Federal do
Uma forma de aproximar a Paraná Quarteto de Cordas UFPR: uma
música da escola do universo do aluno

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

experiência educativa, alvo desta membros. Nestes dois anos, todos os


pesquisa. integrantes eram alunos do curso de
música da UFPR. Já em 2007, tanto a
2. Objetivos coordenação, quanto a formação do
grupo e o repertório mudaram, de modo
O principal objetivo deste que apenas a autora se manteve no
trabalho é discutir as impressões do mesmo.
público escolar diante dos concertos A coleta dos dados analisados
didáticos apresentados pelo Quarteto de neste trabalho se deu através de um
Cordas UFPR, nos anos de 2005, 2006 pedido de resposta ao público que
e 2007. Para atingir tal objetivo, foi assistiu aos concertos, a qual veio por
necessário realizar uma breve pesquisa meio de depoimentos e/ou desenhos.
bibliográfica sobre a atual situação do Tais respostas vieram assim
ensino de música no Brasil, revisando, distribuídas: das cinco escolas visitadas
também, as idéias de alguns educadores em 2005, duas enviaram a resposta
musicais acerca da apreciação musical solicitada; em 2006, de dezessete
em sala de aula. Além disso, foram escolas, três enviaram resposta; e, em
coletadas informações sobre orquestras 2007, de dezoito escolas, quatro
e quartetos de cordas que tenham enviaram algum tipo de resposta. Das
realizado concertos didáticos em, ou respostas recebidas, foi escolhida uma
para escolas, no Brasil. Finalmente, os amostra, a qual atendesse às
dados levantados a partir dos concertos necessidades da pesquisadora.
do Quarteto UFPR foram cruzados com
a pesquisa bibliográfica realizada. 4. Resultados

3. Método Para este trabalho, foram


analisados os dados obtidos em campo,
O Quarteto de Cordas UFPR divididos ano a ano. Foi escolhida uma
está atuando junto à comunidade, desde amostra dos desenhos e depoimentos
o final de 2004 e, para a presente recebidos, a qual contou com alguns
pesquisa, foram analisados alguns dos exemplos de cada escola, os quais
dados coletados ao longo dos anos de trouxessem elementos relevantes à
2005, 2006 e 2007. Neste período, pesquisa. É interessante destacar que,
foram visitadas quarenta escolas da rede caso as cerca de 400 respostas recebidas
municipal de ensino da cidade de tivessem sido analisadas, os resultados
Curitiba. Tais escolas foram não seriam diferentes, apenas os
selecionadas pela Secretaria Municipal números aumentariam, sem grandes
de Educação, de acordo com critérios modificações nas proporções.
estabelecidos por essa parceira do Desta forma, foram analisados
projeto. 14 desenhos e 9 depoimentos do ano de
É interessante relatar que nos 2005, 25 desenhos e 23 depoimentos do
anos de 2005 e 2006 o repertório ano de 2006 e 25 desenhos e 22
apresentado pelo Quarteto se manteve depoimentos do ano de 2007. Os
inalterado. O mesmo aconteceu com a resultados obtidos estão representados
formação do grupo, à qual, em 2006, nos seguintes gráficos:
foram apenas incorporados dois novos

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Gráfico 1: análise dos desenhos enviados pelo público.

Gráfico 2: análise dos depoimentos enviados pelo público.

5. Conclusões autora, isto é muito comum tanto em


crianças musicalizadas quanto naquelas
A análise dos gráficos traz que não têm nenhum tipo de instrução
muitos elementos interessantes a serem musical.
discutidos. Em primeiro lugar, a As representações do Quarteto,
presença maciça de elementos de com seus músicos e instrumentos,
notação musical nos desenhos chamam a atenção pelos detalhes,
recebidos, comprova a tese de Beatriz mostrando que as crianças lembravam a
Ilari (2002). Segundo a educadora, roupa, a maneira de sentar e até os
talvez as crianças “pensem que a “trejeitos” dos integrantes do grupo. Os
representação da música prescinda do desenhos que representaram apenas os
uso dos símbolos da notação instrumentos, e os depoimentos feitos
tradicional” (Ilari, 2002. p.30). Para a acerca destes mostram que o público

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

entendeu a diferença de tamanho alcançados pode-se afirmar que a


existente entre violino, viola e apresentação agradou, e muito.
violoncelo, sendo que os dois primeiros Além disso, tal apresentação foi
sempre vieram representados com ao encontro das idéias de Koellreuter
pouca diferenciação de tamanho e o (1990), democratizando o acesso a um
último, em compensação, vinha em tipo de música, classificado por uma
tamanho muito maior. aluna em seu depoimento, como “difícil
A verdadeira fascinação pelo de escutar”. Talvez por isso, alguns
violoncelo, que apareceu principalmente alunos citaram em seus relatos a
nos desenhos dos anos de 2005 e 2006, oportunidade única de assistir a um
também pode ser comprovada pelo concerto, a qual lhes tinha sido
assédio que acontecia ao violoncelista oferecida. Esta oportunidade também
ao término dos concertos e pelos despertou a vontade de aprender música
depoimentos recolhidos. Tal fascinação em algumas crianças, o que nos leva a
talvez possa ser explicada pelo fato do refletir sobre o ensino de música no
violoncelo ser o maior instrumento do Brasil de hoje. Aqueles que sentiram
grupo, ser pouco parecido com o violino este desejo terão meios para realizá-lo?
e ter, ainda, um nome que lembra o Ou a música é apenas propriedade de
violão, como citado por alguns alunos, uma elite “esnobista” (Koellreuter,
inclusive no jeito que grafaram o nome 1990)?
do instrumento (violão selo). Um pouco Com o concerto didático
desta fascinação pode ter sido criada conseguimos, também, perceber
também pela empatia do instrumentista, claramente a função de expressão
o qual nos dois primeiros anos era, sem emocional e de prazer estético
dúvida, um verdadeiro artista. (Merriam, 1964 apud Humes, 2004) que
Quanto aos depoimentos, os a música é capaz de proporcionar. Estas
elogios recebidos mostram que é funções ficaram evidenciadas em alguns
possível quebrar preconceitos relativos depoimentos, nos quais as crianças
a manifestações culturais que não fazem criaram metáforas sobre o concerto,
parte do cotidiano. Quer dizer, o público comparando-o com a sensação de “estar
que assistiu aos concertos didáticos, na nas nuvens” ou de ouvir “anjos”. Tal
sua grande maioria, jamais tinha visto emoção foi, em grande parte, suscitada
aqueles instrumentos de perto, muitos pela proximidade dos músicos,
conheciam apenas o violino, de nome, e conforme descrito por muitas crianças
nem sabiam da existência do violoncelo em seus depoimentos. Isso comprova a
e da viola. Este público não tem contato tese de Barenboim (2003 apud Hikiji,
com a música erudita em seu meio, mas 2006) acerca da emoção única de
recebeu muito bem um grupo que a acompanhar a execução de uma peça
executaria por cerca de quarenta musical do começo ao fim, fazendo
minutos, inclusive enviando, parte dela, “ao vivo”.
posteriormente, elogios eloqüentes aos Refletindo sobre este projeto, e
integrantes do mesmo. sobre os outros projetos que possuem
Assim, podemos comprovar a características semelhantes e foram aqui
teoria de Kater (2004), já que este autor citados, é possível afirmar que este
destaca a importância de não trabalho visou a atingir um público
menosprezar o público alvo de variado, o qual abrange instrumentistas,
atividades musicais, propondo apenas professores de música, secretarias de
clichês, que supostamente agradariam educação e de cultura, além de
mais do que uma apresentação de um responsáveis por projetos desenvolvidos
quarteto de cordas. Pelos resultados em universidades e comunidades.

338
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Tal interesse deve ser identidade. Trad. Beatriz Ilari. In:


despertado, pois não basta uma boa DOTTORI, M.; ILARI, B.: SOUZA, R.
proposta, é preciso engajamento de C. (eds.) Anais do Primeiro Simpósio
todas as partes. Tal engajamento será de Cognição e Artes Musicais.
percebido através do tripé: preparação, Curitiba: DeArtes – UFPR, 2005. p.27-
aplicação e reflexão. Quer dizer, 37.
qualquer projeto deste tipo precisa de HIKIJI, R. S. G. Música para matar o
um período de preparação, que, no caso tempo: intervalo, suspensão e imersão.
do Quarteto, se deu através dos ensaios In: Mana, Rio de Janeiro, v.12, n.1,
e da pesquisa e elaboração do roteiro 2006. p.151-178. Disponível em:
explicativo. A aplicação ocorre na <http://www.scielo.br/scielo.php?script
comunidade, apresentando o concerto =sci_arttext&pid=S0104-
didático. E a reflexão acontece, ou 93132006000100006&lng=en&nrm=iso
deveria acontecer, ao término deste >. Acesso em: 12 de junho de 2007.
concerto, verificando quais ações deram Pré-publicação.
certo e quais falharam, e porque isso
ocorreu. Então, deveriam ser buscadas HUMMES, J. M. Por que é importante
alternativas para que tais erros não o ensino de música? Considerações
fossem repetidos, voltando à fase de sobre as funções da música na
preparação, de modo a caracterizar este sociedade e na escola. In: Revista da
tripé em um ciclo. Abem, número 11, setembro de 2004.
Em muitos casos, fica-se apenas p.17-25.
na aplicação, com uma preparação ILARI, B. Aspectos da cognição
prévia fraca e sem nenhum tipo de musical implícitos em representações
reflexão sobre as ações realizadas. É inventadas e desenhos de crianças e
isso que justifica a presença de tantos adultos. In: Revista da APEM:
projetos e de tão poucas referências Associação Portuguesa de Educação
bibliográficas sobre os mesmos. E é isso Musical. Lisboa, Portugal. v. 118, n. 1,
também que justifica este trabalho, o 2004. p.27-43.
qual termina com o incentivo ao
engajamento real neste tipo de ação. KATER, C. O que podemos esperar da
educação musical em projetos de ação
6. Subáreas de conhecimento social. In: Revista da Abem, número
10, março de 2004. p.43-51.
A mente e a percepção musical – KOELLREUTER, H. J. Educação
Trabalho de Graduação. Musical no terceiro mundo: função,
problemas e possibilidades. In:
7. Bibliografia Cadernos de Estudo – Educação
Musical, número 1. São Paulo: Atravez,
ÁLVARES, S. L. A. A educação 1990. p.1-8.
musical curricular nas escolas regulares
do Brasil: a dicotomia entre o direito e o KRÜGER, S. E.; HENTSCHKE, L.
fato. In: Revista da Abem, número 12, Contribuições das orquestras para o
março de 2005. p.57-63. ensino de música na educação básica:
relato de uma experiência. In:
BRASIL. Ministério da Educação e da HENTSCHKE, Liane; BEN, Luciane
Cultura. Parâmetros Curriculares Del (Org.). Ensino de música:
Nacionais, Arte. 1998. propostas para pensar e agir em sala de
HARGREAVES, D. ‘Within you, aula. São Paulo: Moderna, 2003. p.19-
without you’: música, aprendizagem e 47.

339
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

MARTIN, L. et al. Quarteto de Cordas


UFPR: uma experiência educativa.
Anais do 12o SPEM / IX ABEM –
SUL. Londrina, 2006.
PALHEIROS, G. B. Funções e modos
de ouvir música de crianças e
adolescentes em diferentes contextos.
In: ILARI, B. (org.). Em busca da
mente musical: ensaios sobre os
processos cognitivos em música - da
percepção à produção. Curitiba: Editora
da UFPR, 2006. p.303-349.
SÃO PAULO. Orquestra Sinfônica do
Estado de São Paulo. Programa
Descubra a Orquestra – 2005.
Programas Formação de Público,
Formação de Professores & Atividades
na Osesp. Curso IV, Educação Musical:
música orquestral para crianças.
Material do professor para o preparo
dos alunos aos eventos didáticos.
SWANWICK, K. Ensinando música
musicalmente. Trad. Alda de Oliveira e
Cristina Tourinho. São Paulo Moderna,
2003.
TERESINA. Secretaria da Cultura.
Quarteto Nômade: relatório de
execução. Projeto FUNARTE/MINC de
concertos didáticos nas escolas.
Associação dos amigos da Orquestra de
Câmara de Teresina.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARANÁ. Pró-reitoria de Extensão e
Cultura. Resolução número 30/01 –
CEPE: Fixa normas para execução do
Programa Bolsa-Extensão da
Universidade Federal do Paraná.

340
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição
  e Artes Musicais — maio 2008

A música em programas de avaliação seriada: que


saberes? Que competências?

Liége Pinheiro Dos Reis


UnB
Maria Cristina de Carvalho Cascelli de Azevedo
UnB

Resumo: Este relato apresenta projeto de pesquisa de iniciação científica (PIBIC) que tem por
objetivo investigar, sob a ótica dos alunos do Ensino Médio, que saberes e competências
musicais estão sendo desenvolvidos nas aulas de música para cumprir as exigências cognitivas
do Programa de Avaliação Seriada (PAS) da Universidade de Brasília. Neste programa, a
música é disciplina obrigatória no processo seletivo para ingresso nos cursos da universidade e
verifica o domínio de saberes e competências que correlacionem a linguagem musical com o
contexto sócio-cultural em que as relações homem-música ocorrem (HARGREAVES, 2005;
GREEN, 1997). O programa de avaliação seriada apresenta uma proposta singular e original,
fundamentada em três princípios: 1) avaliação centrada no domínio de competências e
habilidades cognitivas; 2) interdisciplinaridade entre as diversas áreas do conhecimento humano
e 3) a contextualização da linguagem musical. A presença da música no PAS tem exigido a
necessidade de compreendermos: 1) quê competências e habilidades cognitivas são exigidas no
domínio do conhecimento musical; 2) que competências e habilidades estão sendo
desenvolvidas nas aulas de música no Ensino Médio; 3) que competências e habilidades
musicais têm sido articuladas e integradas às outras áreas do conhecimento no Ensino Médio e
4) até que ponto o domínio dessas competências e habilidades têm transformado a vivência
musical dos alunos. Para responder a essas questões estamos realizando um survey (BABBIE,
2005) de pequeno porte com os alunos do terceiro ano do Ensino Médio. A análise dos dados
terá como referência o conceito de competência (DOLZ e OLLAGNIER, 2004); o Programa de
Avaliação Seriada (PAS/UnB) e autores que discutem a “identidade musical” dos jovens
(HARGREAVES, 2005). Neste texto, apresentamos o projeto em andamento, analisamos o
conceito de competências e habilidades utilizado na proposta de avaliação seriada e
apresentamos a proposta de avaliação da segunda etapa do subprograma de 2006 do PAS/UnB.

Palavras-chave: programa de avaliação seriada, competências e habilidades musicais, música


no Ensino Médio.

seleção para os cursos do ensino


1. Introdução superior. Esse tipo de seleção já faz
parte do cotidiano escolar de jovens do
Os programas de avaliação Ensino Médio e tende a se tornar
seriada têm se tornado uma alternativa obrigatória para todas as universidades
de ingresso nos cursos de graduação de federais caso seja aprovado projeto de
algumas universidades brasileiras. As lei em tramitação no Senado Federal1,
provas são realizadas ao final de cada de autoria do Senador Cristovam
um dos três anos do Ensino Médio e, Buarque (BRASIL, 2006).
segundo as justificativas apresentadas                                                             
pelas universidades, possibilitam uma
1
melhor qualificação do processo de PLS nº 116 de 2006 que altera o art. 51 da
LDB 9394/96.

341
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição
  e Artes Musicais — maio 2008

Na Universidade de Brasília, a habilidades cognitivas em Música.


avaliação seriada é orientada por Assim, pretende diminuir a dicotomia
princípios pedagógicos que questionam entre a música da sala de aula e a
o modelo tradicional do vestibular: a música fora da sala de aula. Segundo
seleção pontual e a aprendizagem Hargreaves (2005), as “identidades
mecânica, conteudista e fragmentada. musicais dentro e fora da escola” têm
Como alternativa, a universidade privilegiado a formação de
propõe uma concepção de seleção que competências e habilidades musicais
se baseia na aprendizagem significativa divergentes e contraditórias, que podem
e no desenvolvimento de competências cristalizar estereótipos, atitudes e
e habilidades, em que a comportamentos, o que pode implicar
contextualização2 e a numa autopercepção depreciativa mais
3
interdisciplinaridade são eixos importante do que as reais habilidades
estruturadores da avaliação. Uma das musicais do jovem. Nesse sentido, o
inovações do programa é a inclusão das PAS/UnB procura articular a “música
linguagens artísticas Música, Artes escolar” e a “ música de fora da escola”
Visuais e Artes Cênicas como objeto de no “terceiro ambiente” identificado por
avaliação. Inicialmente, o aluno optava Hargreaves (2005), em que o “ desafio
entre uma das três linguagens, mas dos educadores musicais é o de
desde 2006, elas se tornaram disciplinas promover o conhecimento, as
obrigatórias nas três etapas do habilidades e os recursos para sustentar
programa. A inclusão da Música tem a ‘música interna’ e própria dos alunos
sido motivo de polêmica no Ensino ao mesmo tempo que permanecem
Médio local e tem gerado controvérsias ‘fora’ dela” (Hargreaves, 2005, p. 37).
entre alunos, professores, diretores de Entendemos que o processo
escola, especialistas em política pedagógico-musical sob essa
educacional e administradores. As perspectiva deve envolver atividades
discussões abordam, principalmente, a musicais em sala de aula que integrem
especificidade do conhecimento musical diferentes músicas e formas de se
e o caráter inovador de sua proposta de relacionar com a música, privilegiando
avaliação (Montandon; Azevedo; Silva, também diferentes modalidades do fazer
2007). musical - apreciação, execução e
A concepção de conhecimento criação musical (Swanwick, 2003) –
musical defendida pela Música no como eixo condutor do
PAS/UnB procura privilegiar o desenvolvimento das competências e
conhecimento tácito e intuitivo dos habilidades musicais dos alunos.
jovens como eixo norteador do Para desenvolver essa proposta
desenvolvimento de competências e e, ao mesmo tempo definir parâmetros
de avaliação das competências e
                                                            
habilidades cognitivas dos alunos, o
2
O conceito de contextualização utilizado no PAS/UnB se baseia em um repertório
PAS se refere à articulação entre os objetos de musical específico para cada etapa do
conhecimento exigidos pelo programa e o programa. O repertório é diversificado e
contexto histórico e sócio-cultural em que estão contempla diferentes gêneros e estilos
inseridos.
3
O termo interdisciplinaridade é entendido no
musicais, privilegiando a
sentido de troca e cooperação, em que a ruptura contextualização histórica, social e
de barreiras disciplinares permite que as cultural da música. As músicas têm
disciplinas compartilhem conceitos, esquemas diferentes fontes sociais e contemplam
cognitivos e objeto de estudo.

342
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição
  e Artes Musicais — maio 2008

exemplos da cultura erudita ocidental, ambigüidades associadas ao conceito de


da cultura popular, de grupos étnicos, da competência: a divergência entre
música popular e da música presente na competência como domínio de
mídia. Nesse sentido, a forma como o habilidades técnicas e reprodutivas,
jovem se relaciona com a música e seus isentas de conteúdo, e competência
conhecimentos musicais são valorizados entendida como a capacidade de
no desenvolvimento de competências e mobilizar recursos cognitivos para
habilidades exigidas pelo programa. solução de problemas no contexto da
ação.
2. O “enigma” da competência: o Na educação, o conceito de
conceito de competências e competência como mobilização de
habilidades no programa de música recursos cognitivos promoveu uma
do PAS/UnB transformação epistemológica com
relação ao conhecimento, sua aquisição
O termo competência é e mobilização pelos sujeitos. Para Dolz
polissêmico e tem sido adotado em e Ollagnier (2004), a competência sob o
várias instâncias da atividade humana: ponto de vista da educação remete à
no estudo da lingüística, no trabalho, na “noção de construção interna, ao poder
formação de professores, na educação e e ao desejo de que o indivíduo dispõe
nos programas curriculares. As para desenvolver o que lhe pertence
discussões que cercam o conceito de como ‘ator’, ‘diferente’ e ‘autônomo’”
competência têm sido analisadas sobre (p.10). Essa noção é perfeitamente
o âmbito da psicologia cognitiva, da coerente com as concepções cognitivas
filosofia, da ética, da sociologia do contemporâneas de aprendizagem e tem
trabalho, da pedagogia e também da influenciado a elaboração de diversas
educação musical. É interessante propostas educacionais nos documentos
observar que essas perspectivas de oficiais. Os programas divergem quanto
análise não são excludentes, mas ao entendimento do conceito, mas para
complementares. De forma geral, a Dolz e Ollagnier (2004) a lógica das
competência é entendida como “a competências tem o mérito de
capacidade de produzir uma conduta em questionar a valorização dos saberes
determinado domínio” (Dolz; Ollagnier, disciplinares e a desvalorização de
2004). Segundo Dolz e Ollagnier (2004) outros saberes como os saberes
ela está presente nos estudos da experienciais por exemplo. A noção de
psicologia cognitiva há pelo menos um competência reflete uma nova
século. Contudo, segundo os autores, concepção de conhecimento e exige
ela se tornou objeto de debate científico novas propostas curriculares e novos
quando Noam Chomsky (apud Dolz; modelos de avaliação. Nessa
Ollagnier, 2004) propõe uma distinção perspectiva, a proposta de avaliação do
conceitual entre competência e PAS/UnB representa uma proposta
desempenho. Para ele, a competência inovadora e relevante como objeto de
representa o que o “sujeito pode realizar estudo, principalmente, quando tem a
idealmente” graças ao seu potencial ousadia de incluir as artes e,
biológico e o desempenho está especificamente, a música como objeto
associado ao comportamento observável de conhecimento.
é, portanto um reflexo imperfeito da Sob o ponto de vista
competência. A distinção proposta por pedagógico-musical, a inclusão da
Chomsky apresenta uma das principais música no PAS/UnB procura integrar o

343
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição
  e Artes Musicais — maio 2008

conceito de competência aos princípios de programa de avaliação seriada da


e tendências contemporâneas do Universidade de Brasília, que saberes e
conhecimento musical. Nesse sentido, que competências musicais estão sendo
espera-se que os jovens desenvolvam desenvolvidos nas aulas de música das
competências musicais que contemplem escolas do Ensino Médio.
os elementos que constituem o discurso Especificamente, pretendemos: 1)
musical como também o contexto sócio- analisar que saberes e competências
cultural em que as manifestações musicais são exigidos como objetos de
musicais ocorrem. Entendemos que o conhecimento na 2ª etapa do programa;
programa pode ser analisado a partir de 2) investigar que vivências e
fundamentos teóricos da sociologia da competências musicais possuem os
educação musical (Green, 1997) que alunos do segundo ano do Ensino
diferencia entre “significado musical Médio; 3) investigar que saberes e
inerente” e “significado musical competências musicais são
delineado”. Segundo Green (1997), o contemplados nas aulas de música do
“significado inerente” “lida com as Ensino Médio; 4) investigar que saberes
interrelações dos materiais sonoros, ou e competências musicais dos alunos são
simplesmente, os sons da música” mobilizados na sala de aula; 5) verificar
(p.27). Para que a experiência musical que transformações e mudanças as aulas
ocorra os materiais sonoros devem ser de música têm provocado na relação dos
“organizados com alguma coerência e jovens com a música.
essa coerência precisa ser racionalmente Nós entendemos que o jovem
percebida pelo ouvinte” (Green, 1997, enquanto sujeito social faz escolhas
p. 27). O “significado delineado” musicais e emite opinião sobre essas
corresponde aos sentidos, valores e escolhas. Portanto, conhecer a opinião
relações que o homem estabelece com dos jovens sobre os saberes e
as músicas, pois nas palavras de Green competências musicais que estão sendo
(1997) a “música, metaforicamente, desenvolvidos nas aulas de música das
delineia uma pletora de fatores escolas do Ensino Médio de Brasília,
simbólicos” (p. 29). Portanto, os possibilitará entender a relação desses
ouvintes constroem os significados jovens com a música e verificar as
musicais intrínsecos e delineados a transformações e as mudanças ocorridas
partir de suas referências pessoais, nessa relação a partir das aulas de
sociais, cognitivas, culturais e afetivas, música.
ou seja, a partir de suas “identidades
musicais” (Hargreaves, 2005). 3. A metodologia de pesquisa
Sob essa perspectiva, o
PAS/UnB entende a música como uma O método de pesquisa utilizado
prática social que ocupa um lugar de será um survey de pequeno porte e de
destaque na vida pessoal dos jovens e corte interseccional. Nesse tipo de
que, por isso é objeto de conhecimento pesquisa, os dados são coletados na
capaz de desenvolver competências mesma época (Babbie, 2005). A seleção
específicas e interdisciplinares. Esse da amostra é intencional, pois é mais
fato justifica a inserção da música no viável economicamente e deverá
Ensino Médio e o interesse de pesquisar atender os seguintes critérios: 1) seleção
o programa do PAS/UnB. Assim, este de escolas de Ensino Médio do
projeto de pesquisa visa investigar, sob perímetro urbano, públicas e privadas,
a ótica dos alunos inscritos na 2ª etapa de fácil acesso para a pesquisadora; 2)

344
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição
  e Artes Musicais — maio 2008

seleção de uma turma de alunos do pergunta e quer saber; 2) indivíduo,


terceiro ano do Ensino Médio e 3) cultura e mudança social; 3) tipos e
participação voluntária. A amostra gêneros; 4) estruturas; 5) energia e
compreende 100 alunos distribuídos oscilações; 6) ambiente e vida; 7) a
entre duas escolas públicas e duas formação do mundo ocidental
escolas particulares. O instrumento de contemporâneo; 8) número, grandeza e
pesquisa será um questionário auto- forma; 9) a construção do espaço; 10)
administrado com questões fechadas e materiais (SUBPROGRAMA 2006).
abertas relacionadas à vivência musical; A matriz destaca cinco grandes
aos conhecimentos sobre o repertório competências: 1) domínio da
musical do programa e às suas linguagem; 2) compreensão dos
impressões e opiniões sobre as aulas de fenômenos naturais e sócio-culturais; 3)
música e a prova realizada. O tomada de decisões; 4) argumentação e
questionário será entregue pessoalmente 5) propostas de intervenção na
para os voluntários da pesquisa e sociedade. Cada competência apresenta
aguardaremos o tempo necessário para uma relação de habilidades que visa o
que os jovens respondam todas as desenvolvimento de processos
perguntas do instrumento. cognitivos relacionados a ações de
Neste trabalho, como parte do interpretação, planejamento, execução e
projeto em desenvolvimento, crítica.
apresentamos o programa da 2ª etapa do O domínio da linguagem
programa e analisamos os saberes, musical é juntamente com a
competências e habilidades musicais compreensão dos fenômenos naturais e
exigidos pelo mesmo. sócio-culturais uma das competências
centrais do programa. A proposta de
4. A Música no programa da 2ª etapa avaliação visa identificar a compreensão
de 2007: repertório, objetos de dos alunos sobre a estrutura formal da
conhecimento e competências e música, seus componentes materiais e
habilidades sua relação com contextos históricos e
sócio-culturais. Exige-se que o aluno
Optamos pela apreciação e entenda a diversidade sociocultural
análise do programa da segunda etapa como um fenômeno inerente à condição
de 2006 do PAS/UnB. Como os demais humana, que se apresenta sob diferentes
programas, esse apresenta uma matriz perspectivas no tempo e no espaço. A
de objetos de avaliação, em que estão avaliação deve verificar o pensamento
relacionadas às competências e crítico e a mobilização de esquemas
habilidades cognitivas que os alunos cognitivos que permitam analisar
devem desenvolver em cada objeto de diferentes músicas e construir
conhecimento (Montandon; Azevedo; argumentos sobre seus elementos
Silva, 2007). Esses objetos formais e contextuais. Em relação às
transversalizam os conteúdos das habilidades exige-se que o candidato
disciplinas, viabilizando a seja capaz de: 1) compreender a
interdisciplinaridade. Geralmente, cada plurissignificação da linguagem
etapa apresenta uma lista de dez objetos musical; 2) identificar informações
de conhecimento, que podem se repetir centrais e periféricas no repertório
em mais de um ano. Na segunda etapa, selecionado, bem como suas inter-
os objetos de conhecimento trabalhados relações; 3) fazer inferências indutivas,
são: 1) o ser humano como ser que dedutivas e analógicas com relação às

345
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição
  e Artes Musicais — maio 2008

músicas do repertório e seu contexto também uma reflexão sobre a função


sócio-cultural e 4) inter-relacionar os desse gênero musical na sociedade
objetos de conhecimento nas diferentes atual. Essa temática possibilita a
áreas do conhecimento, tendo como interdisciplinaridade com História e
foco o conhecimento musical. Espera-se Sociologia por exemplo.
que o candidato seja capaz de analisar Essa dinâmica inter-relacional
criticamente diferentes situações- entre o domínio da linguagem musical e
problema e que possa confrontá-las com sua contextualização se mantém nos
possíveis soluções. demais objetos de conhecimento do
O repertório4 da segunda etapa programa. Aspectos musicais como a
apresenta uma rede interativa de diversidade de timbres, a
conhecimentos que permite realizar expressividade, a estrutura formal, o
associações entre: elementos musicais; gosto musical e a influência da mídia
instrumentação; estruturas e formas são conteúdos relevantes que inter-
musicais; estilos musicais; contexto relacionam o conhecimento musical em
sócio-cultural; significados e valores si e as relações sociais que o permeiam.
musicais. Dentre as músicas Os objetos de conhecimento
selecionadas, o aluno deve escutar, apresentam, ainda, inúmeras
analisar, estabelecer relações intrínsecas possibilidades de conhecimento musical
e extrínsecas, expressar opinião, que possibilitam a construção de uma
argumentar e criticar. As músicas do rede interativa entre as músicas e as
repertório são os eixos norteadores do disciplinas. Essa rede interativa envolve
conhecimento musical e possibilitam a o desenvolvimento e a mobilização de
interdisciplinaridade entre os diferentes saberes e competências dos alunos,
objetos de conhecimento. Os objetos de ampliando o seu universo musical e
conhecimento podem envolver tanto preparando-o como sujeito social crítico
questões intrínsecas quanto questões e autônomo.
extrínsecas à música. Por exemplo, a
influência da fé protestante na obra de 5. Considerações finais
compositores do período barroco e a
forma como essas composições são Acreditamos que a inclusão da
ouvidas e interpretadas mobiliza música em programa de avaliação
conhecimentos musicais que permite seriada das IES brasileiras, ou mesmo
abordar os elementos musicais em aulas de música no Ensino Médio,
característicos desse estilo, o contexto deve procurar valorizar a prática
sócio-cultural que os caracterizou, como musical do jovem e promover a
                                                             mobilização de seus conhecimentos
4
musicais para a construção de novos
  O repertório é formado pelos seguintes conhecimentos. Nesse processo, a
compositores e peças: J. S. Bach:Ária para
soprano e Dueto para Soprano e Baixo Cantata
relação entre os diversos estilos e seu
nº 80; G. F. Haendel: Coro Hallelujah, do contexto sócio-cultural torna o ouvinte
Oratório Messiah ; Martinho Lutero: Ein Feste mais crítico e capaz de emitir opiniões.
Burg ist unsem Gottç Adelino Moreira: Garota A aula de música como prática social
Solitária (cantora: Ângela Maria); Silvinho: não pode prescindir desses saberes e
Quem é?; Banda Calipso: Dançando Calipso;
Eduardo Dusek: A deputada caiu; Juraildes da
competências. Esperamos que essa
Cruz: Nois é Jeca mas é jóia; Braguinha pesquisa venha contribuir com a
Barroso: Catinradê; Hallellujah Soulful reflexão sobre a música no PAS/ UnB e
Celebration – funk Messiah Haendel;ABBA: forneça subsídios para a prática docente
Intermezzo nº1;Dudu Nobre: A Grande Família.

346
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição
  e Artes Musicais — maio 2008

de professores de música do Ensino DOLZ, Joaquim; OLLAGNIER, Edmée


Médio. Segundo Bozon (2000), a (Ed). O enigma da competência em
prática musical é um fenômeno educação. Tradução Cláudia Schilling.
transversal que perpassa todos os Porto Alegre: 2004.
espaços sociais, porquê não, então, os GREEN, Lucy. Pesquisa em Sociologia
programas de avaliação para ingresso da Educação Musical. Tradução Oscar
nas universidades brasileiras? Dourado. Revista da ABEM, nº 4, p.
25-35, 1997.
6. Referências bibliográficas
HARGREAVES, David. ‘Within you
BABBIE, Earl. Métodos de pesquisas without you’: música, aprendizagem e
de survey. Tradução de Guilherme identidade. Trad. Beatriz Ilari. In:
Cezarino. 3. ed. Belo Horizonte: Editora SIMPÓSIO DE COGNIÇÃO E
UFMG, 2005. ARTES MUSICAIS, 1, 2005, Curitiba.
Anais, Curitiba: Deartes-UFPR, 2005,
BRASIL, Senado Federal, PLS 00116- p.27-37.
2006, de 02 de maio de 2006.
Acrescenta parágrafo único ao art. 51 da MONTANDON, Maria Isabel;
Lei nº 9.394 de 1996. Brasília, DF, 02 AZEVEDO, Maria Cristina; SILVA,
de maio de 2006. Disponível em: Conrado. Música no Vestibular: o
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/ programa de avaliação seriada de
Materia/Consulta.asp?RAD_TIP=PLS& Brasília. In: OLIVEIRA, Alda;
SEL_TIP_MATE=ATC&radAtivo=S& CAJAZEIRA, Regina, Educação
selAtivo=ATC&selInativo=ADF&TXT Musical no Brasil. Salvador: P&A,
_NUM=116&TXT_ANO=2006&Tipo_ 2007. p. 207-213.
Cons=6&Flag=1. Acesso em: 07 de SWANWICK, Keith. Ensinando
fevereiro de 2008. música musicalmente. Trad. Alda de
BRASÍLIA, Universidade de Brasília. Oliveira e Cristina Tourinho. São Paulo:
Centro de Seleção e Promoção de Moderna, 2003.
Eventos (CESPE), Programa de
Avaliação Seriada (PAS), Subprograma
2006 – 2ª Etapa. Disponível em
www.gie.cespe.unb.br. Acesso em: 07
de fevereiro de 2008.

347
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

O ensino coletivo: relatos de experiência em escola pública de


educação especial em Salvador-BA; bandinha e capoeira

Marcos dos Santos Moreira

Resumo: Este artigo pretende fazer uma abordagem o processo de ensino da relação e da
interação de Educação Musical e Educação Física através da Capoeira e de banda rítmica,
percussão e flauta doce em Projeto de Educação Especial. O trabalho visa à possibilidade de
utilizar a música como ferramenta de interação, socialização e principalmente educação, entre
os portadores de necessidades especiais com a comunidade escolar, a família e os próprios
alunos, em escola pública soteropolitana.

Palavras-chave: Sociedade, educação musical, educação especial.

suas participações no plano de


1. Introdução discussões na comunidade escolar, na
família do educando, no bairro, na
Realizando breve abordagem, cidade, sobre a inclusão do aluno
relativa à área de Educação musical, especial na sociedade soteropolitana.
utilizando o contexto Música, este
trabalho constitui uma tentativa de citar 2. Abordagem social
a função social e educativa da mesma,
como mediadora no processo de 2.1 A Identidade e um Projeto social
interação e aprendizagem dos jovens e musical Especial
adolescentes e educandos especiais.
Engloba-se no trabalho realizado a A noção de identidade expressa
busca de uma identidade, seu conceito a qualidade do que é idêntico, derivando
de conhecimento musical e cultural etmologicamente de idem, “o mesmo”,
regional, em projeto sócioeducativo de “o que é igual a si” (Hall, 2000, p. 15).
Música e Capoeira realizado no Colégio No plano antropológico, distinto
Estadual Vitor Soares. Situado na do plano puramente psicológico, por
Península de Itapagipe, bairro Ribeira não enquadrar apenas o fato psíquico, a
em Salvador/Bahia, a Instituição identidade nutre-se do solo da razão
pertence à Secretaria de Educação do simbólica, constituindo duas dimensões:
Estado e funciona há mais de 50 anos a pessoal e a social.
oferecendo cursos do ensino regular A identidade pode ser compreendida
(fundamental e médio) e educação como: “Categoria de atribuição de
especial em prédios anexos. Procuramos significados específicos a tipos de
definir aspectos de como a Educação pessoas em relação umas com as outras
Musical e a Educação Física, em e, (...) em relações interétnicas”
particular a Capoeira, agem nesta (Brandão, 1986, p.10).
função, não só sobre o ponto de vista Portanto, a discussão da
dessa aprendizagem e socialização, mas identidade juvenil, particularmente do
também de consciência humana, aluno-músico especial de um projeto
multicultural regional, construindo e social escolar, é complexa e assume
relevando essas questões em relação as grande importância.

348
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A adolescência é tida como fase homogeneização através do qual “um


fundamental no processo da construção da certo número de idéias, de sentimentos e
identidade; momentos de dúvidas e práticas são praticadas indistintamente...
questionamentos; etapas das descobertas. que compreende a preparação da criança
O jovem tem a tendência de sentir necessidade para sua futura atividade ocupacional ou
de se mostrar e ser reconhecido em suas profissional” (Durkeim, 1973, p. 15).
múltiplas identidades e um grupo de Sendo um Projeto que se dá em
musical, um grupo de Capoeira acaba uma determinada área de atuação
sendo um instrumento para essa musical, numa comunidade escolar e de
possibilidade. alunos portadores de necessidades
O enfoque de Educação no que especiais, que se encontra intrínseca em
diz respeito à música como concepções maiores, não deixa de ter
transformadora e “criadora” de cultura, características próprias de sua cultura.
Keith Swanwick (2003, p. 38), Concluímos uma análise das diferentes
educador musical inglês, afirma que formas de como a música pode
todos nós temos um “sotaque musical” e interferir ou agir nesse processo.
que nasce em contextos sociais, fazendo Por fim, era observada também a
intercâmbio com outras atividades culturais, socialização através da integração desde
mas a possibilidade de podermos ver a cada início do ano letivo, aproveitando
música “além de suas relações com alunos dos anos anteriores e mesclando
origens locais e limitações de função com outros alunos do ano corrente,
social”, ou seja, ela evolui e se adapta analisado em pontos específico como:
em diferentes espaços onde, segundo percepção rítmica e melódica, auditiva.
ele, os insights sempre podem acontecer A função melódica é aprimorada pela
mesmo em culturas distintas. flauta doce que emite canções de
O ensino coletivo, com música, capoeira. Sobre isto ainda há a
já é uma realidade em diversas linhas de participação do CORAL AMÃECER,
pensamentos, registradas em muitas grupo de Canto Coral formado por
teses e dissertações do País. Sobre esta mães de alunos da instituição no
concepção, Swanwick1 defende e intuito de integrar a família e a
destaca uma estratégia de ensino eficaz: escola. Quanto à dificuldade técnica do
“A aprendizagem musical acontece instrumento em relação à melodia, é
atrás de um engajamento multifacetado, amenizada com ostinatos, notas
solfejando, praticando, escutando os melódicas, na parte rítmica explora-se a
outros, apresentando, improvisando... o percepção induzida e também a
ensino deve ser musical” (Oliveira, intuitiva, respeitando as características
1993, p.7). da música de capoeira. Não se deixa de
Na questão cultural esta aproveitar o canto paralelamente.
identificação musical se acentua com a
interação. Para Durkeim a educação 3. Justificativa
desempenha função de integração, que
pode ser entendida como uma função de 3.1 Metodologia e a interação Música
e Capoeira
1
Keith Swanwick: Educador Musical inglês Esta integração com a capoeira,
que sistematizou um modelo de ensino musical dança-luta de origem afro-baiana
denominado CLASP traduzido no Brasil pela anteriormente marginalizada e incluída
Profª Drª Alda Oliveira da UFBa por TECLA
(Técnica, Execução, Composição, Leitura e
até em código penal no meado do
Apreciação). século passado (XX) e imortalizada

349
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

pelo mestre “Bimba”, intrinsecamente 6. 01 aluno – Xequerê *


na História cultural da Bahia, hoje (deficiente visual)
adaptada e é um excelente recurso de
aprendizagem corporal e rítmica. 7. 01 aluno – Berimbau-viola
A união destes dois pontos fez (hiperativo)
com que nascesse a possibilidade de
realização em conjunto. A Bandinha 8. 01 aluno – Berimbau- baixo
rítmica é composta por alunos (alteração de comportamento)
selecionados dentre as 10 turmas (por
turno) que já participam das aulas 9. 01 aluno – Berimbau- agudo
regulares de Educação Musical. (alteração de comportamento)
Compartilham alunos com deficiência
10. 10 alunos – capoeiristas
visual, auditiva, mental e hiperativos.
(diversos)
A idéia de formar um grupo
homogêneo com Música e Capoeira se
As aulas foram divididas em etapas:
deu principalmente pela possibilidade
de aproveitar recursos didáticos das
i. Verificação e caracterização da
duas disciplinas. Tanto a Educação
turma dentro de níveis de
Musical quanto a Educação Física
deficiências
(Capoeira) tem seus horários e formas
de práticas pedagógicas distintas e
ii. Divisão do grupo em sub-grupos:
definidas no Plano escolar da instituição
sendo os ensaios acontecendo 2 vezes
a) Alunos executantes de instrumentos
por semana. No total são 24 alunos
percussivos artesanais. (caxixis,
assim divididos (anos letivos 2006 e
agogôs, pandeiros...)
2007):
b) Alunos executantes de instrumentos
de marcação (atabaques, bongôs
e tumbadoras)
1. 04 alunos – Flauta doce
c) Alunos executantes de instrumentos
(hiperativos e alteração
de melodia (flauta doce e teclado3)
de comportamento)

2. 03 alunos – Caxixis2 * iii. O Ensaio Geral


(deficientes mentais
níveis diversos) Aplicação metodológica

3. 01 aluno – Atabaque * As aulas tinham didáticas


(deficiente visual) diferentes e separadas, pois era a forma
do trabalho ter mais aproveitamento. Os
4. 01 aluno – Pandeiro alunos com Deficiência visual (D.V)
(deficiente visual) tinham o momento de experimentação
com os instrumentos de percussão
5. 01 aluno – Agogô * artesanal. (cerca de 90 minutos por
(hiperativo) semana) 1 dia de aula.

2 3
Instrumentos (em asteriscos) de origem O Teclado era utilizado às vezes por um aluno
africana incorporada à cultura local da Bahia da escola regular que não portava deficiência e
desde a época escravidão no Brasil. integrava o grupo na oficina.

350
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

No segundo momento os alunos 3.2 Perfil clínico do público-alvo


hiperativos e deficiência mental leve;
instrumentos de marcação. Ocorria 1. Aluno A:
posteriormente em dia alternado com transtorno de desenvolvimento,
duração de 90 minutos por semana. tacfênico, dificuldade de
E para concluir o treinamento aprendizado.
por subgrupos, alunos que tinham
2. Aluno B:
deficiências mentais, disfunção motora
deficiência múltipla, microcéfalo,
e leve dificuldade de aprendizado de
inteligência verbalizada.
leitura ou deficiência da inteligência
verbalizada. Esse perfil era bem 3. Aluno C:
pequeno não chegava a cinco alunos no deficiência visual (DV).
grupo, mas contribuía com as melodias
da flauta doce, que tinha como 4. Aluno D:
prioridade executar músicas folclóricas deficiência moderada, suspeita
e compositores regionais da Bahia, em de síndrome de Turner.
arranjos facilitados pelo professor.
O Ensaio Geral se caracterizava 5. Aluno E:
pela Bandinha rítmica propriamente síndrome de Down.
dita. Juntava-se todo o trabalho dos
grupos individuais para observar a 6. Aluno F:
unidade das atividades propostas nos hiperatividade.
grupos em separado.
O processo de transmissão musical 4. Resultados e conclusões
era essencialmente oral, utilizando a didática
da repetição tanto melódica quanto 4.1 Resultados
rítmica, pelo tipo de aluno-alvo e tempo
dos resultados a serem alcançados. O projeto não atendia toda a
No entanto, não quero de forma comunidade escolar, por questões de
alguma, desprezar o estudo da notação espaço físico, estruturais, características
musical, mas haveria na minha específicas de deficiências que não se
concepção, e pela estrutura do projeto adequava a proposta do projeto e por
em questão, ser um estudo mais critérios definidos pela coordenação
aprofundado em longo prazo. Os pedagógica escolar.4
objetivos do plano escolar e calendário No entanto os alunos participantes
favoreciam a oralidade musical pela tiveram um desenvolvimento de coordenação
celeridade das apresentações das quais motora, atenção em atividades pedagógicas
tínhamos que cumprir. e menos instabilidades sociais. Todos os
Após a realização de todo o alunos participantes eram acompanhados
trabalho musical, acontecia em dia em seu desenvolvimento escolar pelos
específico na semana o ensaio geral professores de música e educação física,
com a inclusão do grupo de capoeira. para a verificação e adequação dos
Desta forma se chegava ao fundamento conteúdos musicais e físicos aplicados e
principal do projeto que era a integração a sua associação comas outras áreas de
dos dois grupos: Capoeira e Música. conhecimento. Além disso, a proposta
era estender o projeto a novos grupos
4
Eram apenas 1 Professor de Música e 1 de
Educação Física no Projeto.

351
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

dentro da comunidade escolar, de mostrar para a sociedade sua capacidade


acordo com a necessidade do trabalho, de interagir e aprender como qualquer
mas, respeitando, como dissemos educando, como ser humano comum.
anteriormente, as questões estruturais da
Instituição. 5. Referências bibliográficas

4.2 Conclusões ARROYO, Margareth. Um Olhar


Antropológico sobre Praticas de Ensino
É necessário, portanto uma e Aprendizagem Musical. Revista da
reflexão mais ampla política, educativa ABEM, [S.l.], n. 5, 2000.
e social quando se pretende pesquisar BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O
ou atuar em escola para alunos especiais Divino, o Santo e a Senhora. Rio de
seja no âmbito escolar ou não, em projeto Janeiro: Campanha de Defesa do
social em cidades interiorano com pouco Folclore Brasileiro, 1978.
acesso a informação educativa de vários
aspectos, com realidades semelhantes as DURKEIM, Émile. As regras do
das periferias de nossas metrópoles; método sociológico. São Paulo: Abril
realidades geralmente, diferentes no que Cultural, 1973.
se diz respeito à formação do educando. GEETZ, Clifford. A Interpretação das
Encontrar, portanto, pontos de ligação entre Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
essa realidade carente e uma possibilidade
de ampliação de conceitos, informação GIDEENS, Anthony. Modernidade e
e formação e paralelamente contribuir Identidade. Rio de Janeiro: Zahar
com o desenvolvimento, no “despertar” Editor, 2002.
de uma consciência de identificação HALL, Stuart. A Identidade cultural
dessa cidadania, dessa identidade, da na pós-modernidade. Tradução Tomaz
formação cultural desses alunos- Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.
músicos especiais, sendo a música um 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
começo, um meio e um fim na busca de
resultados satisfatórios. Acontece que OLIVEIRA, A. A educação musical no
não há muita alteração brusca dos Brasil. Revista da ABEM, Salvador, v.
integrantes, pois a demanda, a clientela, 1, n. 1, p. 35, 1992.
é basicamente a mesma, onde o aluno OLIVEIRA, A. Permanecendo fiel à
muda de atividade a cada ano e após ter música na educação musical. In:
freqüentado todas as oficinas5, é ENCONTRO DA ABEM, 3, 1998,
encaminhado ao mercado de trabalho Porto Alegre. Anais... Porto Alegre:
local. Assim o entrosamento aprimora- ABEM, 1998.
se a cada ano letivo.
PEREIRA, J. A. A banda de música;
O grupo já participou de
retratos brasileiros. 1999. Tese (Doutorado
diversas apresentações pela Secretaria
em Educação Musical) – Universidade
de Educação do Estado da Bahia,
do Estado de São Paulo, São Paulo, 1999.
proporcionando uma atividade contínua,
dando ao aluno a possibilidade de

5
As oficinas que a escola oferece são:
aprendizado de culinária, marcenaria, bordado,
libras (D.A) e (D.V), serviços gerais e apoio
pedagógico (“ponte” para inclusão em ensino
regular).

352
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Música na vida cotidiana

Maria Carolina Cruz


carol_cruz7@yahoo.com.br
Rosemyriam Cunha
rose05@hotmail.com

Resumo: Este trabalho apresenta a proposta de uma pesquisa vinculada ao Programa


Institucional de Iniciação Científica da Faculdade de Artes do Paraná, e se encontra na fase de
análise de dados. O estudo destina-se a identificar e descrever o significado atribuído à música
no dia-a-dia de pessoas jovens e idosas. Foram considerados aportes teóricos que indicam o
incremento da utilização cotidiana da música em espaços individuais e coletivos como um
fenômeno da contemporaneidade. Estão citadas as proposições apresentadas nos trabalhos
encontrados no decorrer da revisão de literatura, ressaltando a participação de autores da área da
Musicoterapia em pesquisas sobre este tema, mas, em outros campos do conhecimento.
Discorreu-se sobre as concepções de homem e música que norteiam a pesquisa e, em seguida
explanou-se sobre os procedimentos metodológicos propostos. Sendo este estudo o
desdobramento de um eixo de pesquisa de doutorado, concluiu-se pela necessidade de se
aprofundar conhecimentos sobre este tema numa perspectiva musicoterapêutica. Como objetivo
final espera-se que os resultados desse estudo possam contribuir com os campos do
conhecimento que se dedicam ao entendimento da relação homem-música.

Palavras-chave: música, rotina diária, musicoterapia

meios de expressão dos sentidos que são


A realidade da vida diária se partilhados em manifestações
constitui, também, por ações e eventos socioculturais da sociedade ocidental
que se repetem, em determinado meio contemporânea. Eventos coletivos como
social. A presença repetitiva de certas música, shows, histeria coletiva, o
condutas e modos de pensar podem rompimento entre o público e o privado,
agregar um sentido de regularidade à as estéticas diversificadas nos espaços
existência de pessoas individuais e urbanos, se apresentam como marcos da
coletivas (Pais, 2003). O dia-a-dia se atualidade (Maffesoli, 2005).
faz, então, envolto em fatores como a A música, neste contexto, se
cultura, o meio social e tempo histórico insere como um dos elementos que
do qual emerge. permeia a vivência diária das pessoas
As trocas sociais são eventos (Ilari, 2006; Palheiros, 2006). As
presentes no dia-a-dia e se realizam por possibilidades de execução,
meio de variadas formas de expressão. participação, audição e fruição da
A linguagem, os gestos, as posturas música hoje em dia se ampliaram em
corporais, os símbolos, as imagens, os relação às condições existentes antes do
sons e até a mídia, são formas de advento dos aparelhos eletro-eletrônicos
interação que possibilitam a como o rádio, a televisão, o gravador, o
comunicação entre as pessoas computador, o MP3.
(Palheiros, 2006). Com a evolução para os sistemas
Neste sentido, as linguagens portáteis de produção e repetição
artísticas se inserem no âmbito dos sonora, a música parece ter se

353
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

incorporado à vida cotidiana das beleza percebida; a emoção estética


pessoas para além dos espaços (Vygotsky, 1999).
reservados e destinados à sua execução Na busca pela construção de um
e partilha (Palheiros, 2006). Os conhecimento que permitisse a
modernos e minúsculos objetos de aproximação entre as questões e
reprodução da música se agregam aos hipóteses propostas, iniciou-se esta
corpos numa simbiótica relação na qual pesquisa. O estudo tem por objetivo a
fios e fones de ouvido promovem identificação e a descrição do
experiências sonoras individuais e significado atribuído à música na vida
privadas, no seio do coletivo. de pessoas jovens e idosas. Atualmente
A adesão aos avanços em fase de análise dos dados este
tecnológicos, por esta via de trabalho está inserido no Programa
entendimento, parece permitir aos Institucional de Iniciação Científica –
ouvintes, a execução e reprodução de PIC – da Faculdade de Artes do Paraná,
melodias e canções em tempos e na área da Musicoterapia.
espaços múltiplos sendo determinada O tema proposto se apresenta
pela preferência, gosto e disposição de como um desdobramento de um dos
sujeitos individuais e coletivos. eixos de uma pesquisa de doutorado na
A partilha social da música qual mulheres idosas foram convidadas
deveria permitir a reunião de muitas a falar sobre o papel da música na
pessoas ao redor de um mesmo evento rotina de suas vidas. As respostas
sonoro. A modernidade agora, porém, despertaram para a necessidade do
permite agregar a estas manifestações a aprofundamento deste conhecimento.
fruição individualizada das músicas. No universo dos trabalhos até
Nessas situações o ouvinte passa a agora encontrados na revisão de
entrar em contato com aquele que canta literatura, pôde-se perceber que o tema
ou toca, por meio de instrumentos tem despertado a curiosidade do meio
eletrônicos apropriados para este fim. científico. Entre as pesquisas que se
O entendimento do significado da aproximam do assunto aqui tratado
utilização da música nos contextos da destacam-se: Iazzetta (2001)
vida cotidiana individual e coletiva “Reflexões sobre a Música e o Meio”,
parece adquirir importância, na medida publicado nos anais do XIII Encontro
em que vem se tornando uma da Associação Nacional de Pesquisa e
experiência de consenso entre os Pós-Graduação em Música (ANPOM),
membros da sociedade. Que motivos Assano(2004) “Por uma “escuta
levam as pessoas a alterarem o curso de pensante” dos cenários sonoros da
suas vidas para escutar música? Por que cidade”, publicado nos Anais do V
inserem a audição musical entre as Congresso Latinoamericano da
atividades do seu dia a dia? As pessoas Associação Internacional para o Estudo
associam a música a acontecimentos de da Música Popular, Valente; Barreto
sua vida? Qual o significado que (2006) “Música e Mídia”, publicado
atribuem à música que inserem no seu nos anais do XVI Congresso da
cotidiano? Variadas hipóteses podem ANPOM, Godeli; Miranda (2002)
nortear essas questões: o sentido “Avaliação de Idosos Sobre o Papel e a
atribuído à música; a identificação do Influência da Música na Atividade
ouvinte com o intérprete, com o estilo Física”, publicado na 16º Revista
ou com a música em si; a sensação de Paulista de Educação Física e Alvez
(2003) “Cultura e Cotidiano Escolar”,

354
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

publicado na Revista Brasileira de como um fato sonoro, rítmico,


Educação. melódico, poético e harmônico,
Os trabalhos acima citados se construído e produzido pelo homem,
inserem em áreas do conhecimento sem que entrem em discussão as
diversas, porém, numa análise das qualidades estéticas, características de
bibliografias utilizadas, constatou-se a estilos ou época histórica de sua
participação de autores da composição. A música passa a ser
Musicoterapia. Este fato, longe de considerada como uma manifestação
diminuir a importância dos estudos, ao acústica cultural e socialmente
contrário, valoriza-os, porém, ressalta a partilhada.
importância da existência de uma O pressuposto fundante é de que a
pesquisa consistente versando sobre música constitui-se num elemento de
música e a rotina de vida diária sob social e cultural que permite a expressão
uma visão musicoterapêutica. e interpretação das experiências que as
Sob a ótica da Musicoterapia pessoas adquirem no decorrer de sua
considera-se que melodias, sonoridades trajetória de vida. Como atividade, a
e canções são elementos que fazem música é considerada essencial para o
parte da vida das pessoas (Bruscia, desenvolvimento integral do homem, já
2000, Ruud, 1998). É provável que que seu potencial criativo, pensamento,
essas sonoridades envolvam fatos imaginação e emoção, estão presentes
vivenciados no decorrer da rotina diária em todas as dimensões da realidade por
tornando-se parte das histórias de vida, ele vivida (Cunha,2003).
ou da biografia das pessoas. Somando a estas perspectivas a
Nessa perspectiva, apontada pelo tendência sociológica de Stuart Hall
musicoterapeuta Even Ruud (1998), a (1997) que considera os homens como
presença da música no cotidiano se seres interpretativos e construtores de
amplia. Além de ser um elemento de sentido acredita-se que as pessoas se
distração e entretenimento ela passa a expressam por meio dos elementos
abordar e marcar vivências concretas. A disponíveis na sua cultura - conjunto de
música, ao se tornar parte da história valores, saberes, conhecimentos,
das pessoas, pode eliciar lembranças, instrumentos, ferramentas, costumes
sentimentos e emoções referentes a desenvolvidos por um grupo social.O
estas vivências. homem passa a ser visto como a pessoa
Na medida em que a música se que se manifesta, escolhe, cria,
configura como um elemento emociona-se, interage e dá significado
interpretativo das vivências do dia-a- aos fatos de seu cotidiano. Assim, torna-
dia, também se expandem as se capaz de transformar-se ao mesmo
possibilidades de utilização da arte tempo em que transforma o meio em
musical. Ela pode então se constituir em que vive movido pelo pensamento e
instrumento terapêutico. É como um pelo sentimento (Vygotsky, 2000).
evento construtor da história de vida Inserida neste conjunto de
musical das pessoas que a música se fenômenos, a musicoterapia vai se situar
torna elemento central da Musicoterapia no espaço entre a cultura, o tempo
(Camargo; Bulgakov; Cunha, 2003). histórico, a manifestação criativa
Por esta ótica, esta proposta parte musical do homem e a ação do
de concepções de homem e de música terapeuta. A relação que aí se estabelece
que se fundamentam numa perspectiva utiliza a música como catalisadora do
sócio-histórica. A música será abordada interesse por outras atividades criativas

355
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

como a execução musical, a expressão escutam, tocam, ou cantam música


corporal, a dramatização, a poesia. A todos os dias. O grupo de participantes
ação criativa, ao revelar aspectos da idoso de Curitiba disse que interage
realidade interna da pessoa que age e com a música às vezes ou todos os dias.
interage, proporciona a re-significação Nas duas cidades o lugar em que os
de elementos de sua subjetividade e a idosos entrevistados mais escutam
tomada de consciência de sua realidade música é em casa. O rádio é o aparelho
oportunizando a apropriação de si e de eletro-eletrônico mais utilizado por
suas vivências históricas (Cunha, 2003). ambos os grupos de idosos, seguidos do
Com base nestes aportes teóricos aparelho de Cd e televisão.
estabeleceu-se uma proposta Todos idosos entrevistados
metodológica para a realização de uma afirmaram ser importante ter música em
pesquisa de caráter qualitativo, que seu dia-adia, e quanto aos sentimentos
investigou os significados e os sentidos eliciados, quando estão em contato com
que as pessoas atribuem à música em a música, indicaram distração e
suas rotinas diárias. relaxamento e em Curitiba
Os dados foram obtidos por meio acrescentaram a meditação.
de entrevistas compostas por perguntas Quanto aos jovens as respostas
abertas e fechadas, realizadas nas foram semelhantes ao grupo de idosos.
cidades de Curitiba-PR e Tupã-SP. Os entrevistados responderam que
Participaram deste trabalho dois grupos ouvem, tocam ou cantam música todos
distintos. O primeiro composto por 10 os dias. Apontaram a casa como o local
pessoas dentro da faixa etária de 18 a 30 em que mais escutam música. Também
anos. O segundo grupo contemplou 10 utilizam o rádio para ouvir música, o
pessoas com mais de 65 anos. A aparelho de Cd e o computador.
designação destas faixas etárias Tanto o grupo de jovens tupãenses
justifica-se pela necessidade - já como de curitibanos afirmaram ser
percebida na análise de dados em importante a presença da música em seu
andamento - do confronto entre dia-a-dia. E que a música ocupa um
opiniões de sujeitos com visões e espaço de lazer, distração e
rotinas de vida distintas. Os dois relaxamento.
contextos geográficos foram escolhidos Os resultados até aqui
com objetivo de se comparar possíveis apresentados, embora sejam parciais,
semelhanças e diferenças entre as indicaram que a música é um elemento
respostas. Variáveis socioeconômicas que faz parte da rotina diária destes
não foram pré-determinadas. entrevistados. Os participantes deste
Os dados foram considerados estudo relataram que a música traz
segundo a análise dos discursos lembranças de eventos significativos de
presentes nas respostas abertas e a suas vidas e apontaram o rádio a fonte
quantificação das respostas fechadas. reprodutora de som mais utilizada.
Os conjuntos das respostas de ambos os Pretende-se que, ao término da análise
grupos, após analisados, foram dos dados, se possa articular a
confrontados buscando-se conhecer os totalidade dos resultados encontrados
significados atribuídos à música com teorias e práticas das áreas que se
conforme os grupos etários e as cidades dedicam ao estudo da relação homem-
de origem dos participantes. música, entre elas, a Musicoterapia.
Como resultados parciais os
idosos de Tupã responderam que

356
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

HALL, Stuart. A centralidade da


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357
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Memória operacional para tons, palavras e


pseudopalavras em músicos

Mariana Werke
UNIFESP
marianawerke@yahoo.com.br

Resumo: Segundo o modelo de memória operacional de Baddeley e Hitch (1974), a alça


fonológica é um subsistema de armazenamento temporário, necessário para a recordação de
curto prazo de material verbal, ao passo que o executivo central é um sistema responsável por
manipular estas informações. O armazenamento de seqüências verbalizáveis pode depender do
tamanho e similaridade fonológica das palavras, além do contexto semântico no qual se
inserem. Há controvérsias acerca de como se dá o armazenamento e manipulação de material
melódico na memória operacional. Este trabalho pretendeu investigar se a memória operacional
é capaz de lidar igualmente com sons verbais (números e pseudopalavras) e não-verbais (tons)
e, com isso, verificar se o executivo central manipula de forma semelhante estes três tipos de
material através da comparação do teste de amplitude, na ordem direta e inversa, para dígitos,
pseudopalavras e tons em três grupos: cantores amadores, cantores profissionais e músicos com
ouvido absoluto. Foi encontrado que, na ordem inversa, a amplitude melódica é menor que a
amplitude para material verbal, com ou sem significado, o que sugere que material melódico
tem características diferentes do material verbal, pois a manipulação de seqüências melódicas na
memória operacional parece ser mais difícil do que a manipulação de seqüências verbais para os
três grupos experimentais. Porém, quando há a utilização de estratégias verbais para a
recordação dos tons, ocorre um aumento na amplitude melódica no grupo de ouvido absoluto,
indicando que a associação de códigos verbais aos tons pode ajudar na evocação. Os resultados
ainda não permitem afirmar a existência de uma alça exclusiva para material melódico, dão
suporte à necessidade de se caracterizar melhor as condições em que seqüências melódicas são
armazenadas e manipuladas na memória operacional.

Palavras-chave: memória operacional; tons; teste de amplitude.

funções cognitivas superiores, como


1. Fundamentação Teórica linguagem, raciocínio, planejamento
etc. (Cohen et al., 1997). Segundo o
Em 1974, Baddeley e Hitch modelo, a alça fonológica está
propuseram um modelo que intimamente relacionada ao
compreenderia e substituiria o conceito armazenamento temporário de sinais
clássico de memória de curto prazo. Tal que podem ser nomeados e/ou
modelo, denominado de memória associados verbalmente (Baddeley,
operacional, pressupõe a existência de 1990, 2003). O executivo central, o
três componentes relacionados: o componente controlador da atenção
executivo central, a alça fonológica e o seria responsável pela manipulação da
esboço vísuo-espacial. Estes três informação armazenada na alça
componentes em conjunto seriam fonológica. O teste de retenção imediata
responsáveis pelo armazenamento de de dígitos na ordem direta, conhecido
curto prazo e manipulação em tempo como teste de amplitude numérica
real da informação necessária para as (forward digit span test), é bastante

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

usado para avaliar a capacidade do Logie & Edworthy, 1986; Zatorre et al.,
sistema de armazenamento de curto 1994) e não por testes de recordação
prazo para material verbal (Richardson, serial. Nesses estudos, tipicamente se
1977; Saito, 2001; Shebani et al., 2005). apresenta um tom (estímulo) que deve
Neste teste, os indivíduos devem repetir ser comparado a algum outro
seqüências de dígitos na mesma ordem apresentado alguns segundos depois
em que lhes são apresentados. As (alvo), sendo que entre a apresentação
seqüências aumentam acrescentando-se do primeiro e do alvo pode-se
outro dígito a cada apresentação e o apresentar outros tipos de estímulos.
indivíduo deve esperar até o final de Baseados nesse tipo de estudo, alguns
cada seqüência para repetir os dígitos autores mostraram ocorrer interferência
apresentados. no reconhecimento de seqüências
Na língua inglesa, a habilidade melódicas por testes verbais (Logie &
humana em processar informação neste Edworthy, 1986, p. 36). Por outro lado,
tipo de teste é de sete, mais ou menos Deutch (1970) verificou que em um
dois itens (7 ± 2; Miller, 1956). Este teste de reconhecimento de tons, a
número, no entanto, difere interpolação de outros tons causa queda
significativamente entre os idiomas no desempenho, mas quando o mesmo
(Ardila, 2003) e tais diferenças podem teste é realizado com dígitos a serem
depender de fatores como tamanho, recordados no intervalo entre os tons
similaridade fonológica das palavras a principais, o declínio é mínimo. Este
serem lembradas (Baddeley, 1990, último dado sugere, ao contrário de
2003) e contexto semântico nos quais Logie e Edworthy, que os mecanismos
estas palavras se inserem (Ardila, 2003; de armazenamento de material melódico
Thorn et al. 2002; Thorn & Gathercole, e verbal na memória de curto prazo
1999). seriam independentes.
Os aspectos fonéticos e De acordo com o modelo de
semânticos da informação são sempre memória operacional de Baddeley &
bem contemplados nos estudos da alça Hitch (1974), os itens armazenados na
fonológica e memória operacional, alça fonológica também são passíveis
porém o modelo de memória de manipulação através do executivo
operacional de Baddeley não propõe central. Um dos testes que pode avaliar
explicitamente como outros tipos de a manipulação interna das
materiais, que claramente são representações mnemônicas da
armazenados na memória de curto informação verbal é o teste de
prazo, se relacionam com os amplitude numérica na ordem inversa
componentes do modelo. Este é o caso (Alptekin et al. 2005; Conklin et al.,
de material melódico, que não se 2000). Neste teste, é apresentada ao
encaixa facilmente na categoria verbal indivíduo uma seqüência de números a
ou vísuo-espacial. ser lembrada, e ele deve repetir a
Os poucos estudos sobre seqüência ouvida na ordem inversa. Na
armazenamento de material melódico, ordem inversa é possível se utilizar de
ou mais especificamente, do estratégias vísuo-espaciais além de
armazenamento de seqüências de tons, estratégias verbais para executar a tarefa
sem significado nem estrutura fonética, (Hoshi et al. 2000; Rudel & Denckla,
e com freqüências diferentes, é feito 1974). Provavelmente, esta estratégia
sempre por testes de reconhecimento não é utilizada quando o material a ser
(Berti et al., 2006; Deutsch, 1970, 1973; lembrado é de difícil visualização como

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

as pseudopalavras ou sons sem amplitude para sons de diferentes


significado ou estrutura fonética. alturas.
As controvérsias existentes
acerca de como a memória de curto 3. Método
prazo armazena cada propriedade dos
sons (fonética, semântica, tom) Cinqüenta e três sujeitos foram
permitem questionar se a retenção e divididos em três grupos: cantores
manipulação destas informações pela amadores (n = 18), cantores
memória operacional seriam profissionais (n = 20) e músicos com
semelhantes para cada propriedade. ouvido absoluto (n = 15).
Para a inclusão dos participantes
2. Objetivos na amostra foram definidos os seguintes
critérios: idade entre 18 e 65 anos; ter
O presente trabalho pretendeu ensino médio completo; ter como
verificar se o executivo central primeiro idioma o Português; não
manipula de forma semelhante material possuir perda auditiva diagnosticada;
melódico, pseudopalavras e dígitos, ser afinado, isto é, capaz de reproduzir
comparando a amplitude de recordação dez tons ouvidos sem qualquer
desses tipos de material na ordem direta distorção, ou com distorção de, no
e inversa, em testes de recordação serial máximo, um quarto de tom (teste de
construídos à semelhança do teste de afinação). Para o grupo de músicos com
amplitude numérica. Tais estímulos ouvido absoluto, além desses critérios,
foram utilizados pelos seguintes fatores: os sujeitos deveriam conseguir dizer o
dígitos possuem significado, fonética e nome correto de dez notas apresentadas
som; pseudopalavras não possuem auditivamente, sem a necessidade de
significado, apenas fonética e som; tons recorrer a qualquer parâmetro (teste de
não possuem significado, nem fonética, ouvido absoluto).
apenas o som. Portanto, utilizando-se As listas utilizadas para os testes
estes tipos de estímulos poder-se-ia de amplitude incluíram seqüências
avaliar se o significado é importante crescentes de dígitos; pseudopalavras
para o armazenamento e manipulação foneticamente semelhantes a estes
na memória de curto prazo, assim como dígitos, e, portanto, criadas a partir da
a fonética. modificação de alguns fonemas das
O teste de recordação serial de palavras que representam os números
tons exige prática anterior, pois os (ex: timbo ao invés de cinco); e sons de
indivíduos devem ser capazes de voz humana, gravados por uma cantora
reproduzir os sons ouvidos. Como o amadora, com variação das notas de C3
contato prévio com a música parece a A3, e por um cantor amador, variando
influenciar o armazenamento de curto de C2 a A2.
prazo de material tonal (Berz, 1995), o Cada voluntário leu e assinou o
presente estudo utilizou como Termo de Consentimento Livre e
voluntários cantores de coral amador e Esclarecido, e foi aplicado um
cantores líricos profissionais. Além questionário, com o qual a triagem
disso, um grupo de ouvido absoluto foi descrita acima foi realizada.
incluído, pois este pode diferir quanto à Posteriormente foram realizados os
possibilidade de usar estratégias (verbal testes de afinação e de ouvido absoluto
ou não-verbal) para executar o teste de (quando necessário). Então, os testes de
amplitude numérica, amplitude de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

pseudopalavras e amplitude melódica profissionais (p < 0,05). Em relação a


foram aplicados nas ordens direta e anos de estudo de teoria musical os
inversa. No teste em ordem direta, grupos também diferiram, F(2, 50) =
seqüências crescentes de estímulos (de 20,24, sendo que cantores amadores
duração de meio segundo) foram apresentaram significativamente menos
apresentadas auditivamente, à anos de estudo de teoria musical (p <
velocidade de um item por segundo. Ao 0,05). Por fim, os três grupos se
final de cada seqüência, o sujeito a apresentaram diferentes com relação à
repetia na ordem direta. O teste experiência em canto, F(2, 50) = 18,78,
terminava quando ocorriam erros em cantores profissionais têm mais
duas seqüências de mesmo número de experiência do que músicos com ouvido
itens. O teste em ordem inversa foi absoluto e estes, mais experiência do
semelhante ao de ordem direta, porém o que cantores amadores (p < 0,05).
sujeito repetia as seqüências ouvidas na Com relação aos testes de
ordem inversa. A amplitude para cada amplitude, tanto na ordem direta como
estímulo foi dada pelo total de itens na ordem inversa os resultados não
contidos na seqüência máxima repetida mostraram efeito de grupo, F(2, 50) =
corretamente, tanto no teste em ordem 0,24, (para ordem direta) e F(2, 50) =
direta como no teste em ordem inversa. 1,13, (para ordem inversa). Porém,
Depois da aplicação de todos os testes, houve efeito dos tipos de estímulos para
os voluntários foram questionados sobre ordem direta, F(2, 100) = 95,16, e para
as estratégias utilizadas para recordarem ordem inversa, F(2, 100) = 87,58. O
as seqüências em cada tipo de teste (na teste post-hoc deste efeito mostra que na
ordem direta e na ordem inversa). ordem direta a recordação dos dígitos
Posteriormente, foi calculado um foi maior que a de pseudopalavras e de
índice da diferença de desempenho para tons (p < 0,05), e estas últimas
os testes de amplitude da ordem direta semelhantes entre si. Na ordem inversa
em relação à inversa, usando a fórmula: ocorreu um decréscimo na recordação,
(índice = ordem inversa direta – ordem sendo que a amplitude numérica foi
inversa)/ordem direta. maior que a de pseudopalavras e esta
Os dados foram analisados por maior que a melódica (p < 0,05).
ANOVAs de duas vias para medidas e Houve interação significativa
testes post-hoc de Newman-Keuls entre os tipos de listas e os grupos na
quando necessários. O nível de ordem direta, F(4, 100) = 7,93. A
significância adotado para as análises análise do teste post-hoc para esta
foi de 0,05. interação mostrou que para o grupo de
O estudo foi aprovado pelo cantores amadores a recordação dos
Comitê de Ética em Pesquisa da dígitos foi maior do que a de
Universidade Federal de São Paulo pseudopalavras, e esta, maior do que a
(processo nº 1350/05). de tons (p < 0,05), e para os outros dois
grupos a amplitude numérica foi maior
4. Resultados que as outras duas amplitudes, estas
últimas sendo semelhantes entre si. Ao
Os grupos diferiram em relação se analisar apenas a amplitude melódica
à idade, F(2, 50) = 5,04, e à média de entre os três grupos, observa-se que, na
anos de participação em coral, F(2, 50) ordem direta, os três grupos tiveram
= 18,65, sendo que os dois parâmetros amplitudes semelhantes (p > 0,05).
foram maiores para cantores

361
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Na ordem inversa, a ANOVA de ouvido absoluto apresentou-se muito


também detectou interação entre os heterogêneo para alguns fatores, como
tipos de listas e os grupos, F(4, 100) = por exemplo, melhor reconhecimento
6,39, e o teste post-hoc mostrou que das notas em timbres ou alturas
para os grupos de cantores amadores e específicas, certa reflexão ou nenhuma
profissionais a recordação numérica foi reflexão para nomear as notas, idade em
maior do que a de pseudopalavras e esta que descobriram ou adquiriram o
foi maior do que a de tons (p < 0,05), ouvido absoluto e estratégia utilizada
mas para músicos com ouvido absoluto para a recordação das notas.
a amplitude numérica foi maior que as As mesmas análises foram
outras duas e estas foram semelhantes realizadas e os mesmos efeitos antes
entre si. descritos foram detectados. Os grupos
Ainda na ordem inversa, mantiveram os mesmos perfis de
comparando-se apenas a amplitude recordação, exceto para a o teste post-
melódica, o grupo de ouvido absoluto hoc da interação entre tipo de listas e
apresentou amplitude maior que os grupo na ordem direta, (F(4, 90) =
outros dois grupos (p < 0,05). 9,16), em que o grupo de músicos com
Devido ao fato de as amplitudes ouvido absoluto apresentou uma
na ordem direta terem sido diferentes amplitude melódica maior do que a de
para cada tipo de estímulo, para melhor cantores amadores (p < 0,05). Além
visualização da diferença de recordação disso, houve uma tendência para a
entre ordem direta e ordem inversa, amplitude melódica dos músicos de
foram analisados os índices de diferença ouvido absoluto que utilizaram
de desempenho (cálculo descrito estratégia verbal ou mista ser maior que
anteriormente) das amplitudes a de pseudopalavras (p = 0,054). Na
numérica, de pseudopalavras e ordem inversa, o perfil de recordação se
melódica. Quanto maior o índice, menor manteve o mesmo que o da análise
a amplitude na ordem inversa em anterior (com os todos os músicos com
relação à direta. A análise estatística ouvido absoluto) e na analise do índice
mostrou efeito dos índices de também não mostrou alteração.
recordação, F(2, 100) = 21,91, sendo
que os índices de amplitude melódica 5. Discussão e conclusões
foram maiores do que os de amplitude
numérica e de pseudopalavras (p < Os três grupos experimentais
0,05) e os índices de amplitude não diferem quanto à amplitude
numérica e de pseudopalavras não numérica e de pseudopalavras, porém a
diferiram entre si. Não houve efeito de recordação numérica dos três grupos é
grupo, tampouco interação entre os sempre maior do que o de
grupos e os índices de recordação. pseudopalavras, tanto na ordem direta
Posteriormente a estas análises, como na inversa.
o grupo de ouvido absoluto sofreu uma No caso dos testes de amplitude
reclassificação. Foram excluídos do numérica e de pseudopalavras, os
grupo os músicos que não relataram ter efeitos de comprimento da palavra e
se utilizado de estratégias verbais para o similaridade fonológica (Baddeley,
reconhecimento e recordação das 1990, 2003) foram controlados.
seqüências melódicas. O grupo, então, Portanto, pode-se supor que a diferença
passou a ter dez indivíduos. Esta na recordação de pseudopalavras na
reclassificação foi feita porque o grupo ordem direta em relação aos números

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

seja devida à falta de contexto centros tonais, nos são mais familiares
semântico. auditivamente (ver Bennett, 1986). É
Embora o número de possível que a amplitude na ordem
pseudopalavras recordadas na ordem direta seja diferente se listas forem
inversa seja menor que o de dígitos, o construídas usando outros tipos de
índice calculado, que reflete a queda do escalas como a diatônica ou a
número de palavras lembradas na ordem pentatônica. Trabalhos estão sendo
inversa em relação à direta, é desenvolvidos no sentido de se explorar
semelhante para os dois tipos de se estes fatores influenciam a amplitude
material. Isso indica que a memória da memória de curto prazo melódica.
operacional para material verbal é Os indivíduos com ouvido
semelhante para material com absoluto possuem a capacidade de
significado ou sem significado. associar sons verbais às notas (Zatorre
Com relação aos estímulos que et al., 1998) e esta habilidade pode
não possuem significado, ou seja, em conferir vantagem na recordação das
relação às amplitudes de pseudopalavras melodias. No entanto, nem todos
e melódica na ordem direta, a análise utilizaram tal estratégia para recordar os
mostra que o grupo de cantores tons. A nova análise realizada apenas
amadores apresenta uma queda de com os sujeitos que utilizaram
desempenho no teste melódico em estratégias verbais mostrou que o
relação ao de pseudopalavras, fenômeno número de notas recordadas chega a ser
este não observado nos outros dois maior que o de pseudopalavras.
grupos. Isto sugere que o contato Na ordem inversa o material
profissional com a música, ou o tempo melódico é menos recordado que
de estudo de teoria musical facilita a pseudopalavras e estas menos
memorização melódica, fenômeno este recordadas do que os números,
já observado por Berti (2006) em testes sugerindo que a inversão de melodias é
de reconhecimento de tons. mais difícil que a inversão de material
O teste de amplitude melódica verbal. Este fenômeno também pode ser
na ordem direta para cantores evidenciado pela análise do índice.
profissionais e músicos com ouvido Como afirmado anteriormente,
absoluto pode parecer baixo (4,6 ± 0,99 as médias dos índices de amplitude
para profissionais e 4,87 ± 0,92 para numérica e de pseudopalavras
ouvido absoluto) levando-se em conta encontradas foram semelhantes,
que músicos conseguem guardar na portanto a manipulação de itens verbo-
memória melodias bastante longas. As acústicos sem significado na memória
escalas melódicas do presente estudo operacional parece não ser mais difícil
foram construídas a partir da escala do que a manipulação de itens verbo-
cromática e com seqüências sorteadas acústicos com significado. Porém, o
ao acaso e, portanto, não previsíveis. índice de amplitude melódica é maior
Isto foi feito com o intuito de impedir do que os dos outros dois tipos de
que os músicos buscassem esquemas amplitude, isto é, a queda no
melódicos pré-armazenados na memória desempenho quando na ordem inversa é
de longo prazo. A música ocidental é maior para material melódico do que
baseada em escalas tonais, isto é, para verbal. Logo, os resultados
sempre construída com base na escala sugerem que tanto cantores amadores
diatônica, composta por tons e como profissionais têm dificuldade em
semitons. Tais melodias, que possuem

363
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

inverte melodias e esta é maior que a 7. Referências bibliográficas


dificuldade de inverter pseudopalavras.
Uma revisão da literatura ALPTEKIN, K.; AKVARDAR, Y.;
utilizando resultados dos testes de AKDEDE, B. B. K.; DUMLU, K.;
amplitude na ordem direta e inversa IYVK, D.; PIRINC, F.; YAHSSIN, S.;
executados em adultos normais mostra
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que se o índice definido neste estudo for
calculado para dados de amplitude with cognitive impairment in
numérica em outras línguas, como schizophrenia? Progress in Neuro-
inglês, espanhol (Ardila et al., 2000), Psychopharmacology & Biological
hebraico (Silver et al., 2003) e alemão Psychiatry, 29, p. 239– 244, 2005.
(Merten et al., 2005), este varia de 0,09 ARDILA, A. Language representation
a 0,26. O índice para amplitude verbal and working memory with bilinguals.
calculado no presente trabalho foi da
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ordem de 0,13 ± 0,25 para dígitos e 0,16
36, p. 233-240, 2003.
± 0,19 para pseudopalavras, em cantores
amadores, por exemplo. A exceção ARDILA, A.; ROSSELLI, M.;
encontrada na revisão foi o resultado do OSTROSKY-SOLÍS, F.; MARCOS, J.;
índice para amplitude numérica em GRANDA, G., SOTO, M. Syntactic
mandarim (Hsieh & Tori, 2007), uma comprehension, verbal memory, and
língua tonal, o qual foi de 0,48 ± 0,05. calculation abilities in Spanish-English
Tal exceção se assemelha ao índice bilinguals. Applied Neuropsychology,
encontrado para material melódico
7(1), p. 3-16, 2000.
(0,54 ± 0,31).
Em suma, os resultados sugerem BADDELEY, A. D. The role of
que material melódico tem memory in cognition: working memory.
características diferentes do material In: Lawrence Erlbaum Associates
verbal (seja com ou sem significado), (Eds.), Human Memory – Theory and
pois a manipulação de seqüências Practice. (pp. 67-95). Hillsdale, USA,
melódicas na memória operacional 1990.
parece ser mais difícil do que a
BADDELEY, A. D. Working memory
manipulação de seqüências verbais. Não
é possível afirmar ainda a existência de and language: an overview. Journal of
uma alça exclusiva para lidar com Communication Disorders, 36, p.
material melódico, como sugere Berz 189–208, 2003.
(1995), mas é necessário considerar BADDELEY, A. D.; Hitch, G. Working
que, em termos gerais, os resultados dão memory. In: G. H. Bower (Ed.), The
suporte à necessidade de se caracterizar Psychology of Learning and
melhor as condições em que seqüências
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1986.
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366
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Representação sonoro-musical e o alerta atencional na Clínica


Musicoterápica

Maristela Smith

Resumo: Este trabalho tem por objetivo comentar sobre a aplicação técnica de escalas musicais
diatônicas, dentro do sistema temperado, em pacientes submetidos ao processo musicoterápico.
Tais pacientes tiveram aprendizado musical formal em piano e, portanto, treinaram
procedimentos que desenvolveram os aspectos motor e mental relacionados com percepção
intervalar, a partir dos quais foram observadas representações sonoro-musicais. Numa
abordagem neurocientífica, do estudo da relação entre música e cérebro, pretende-se discorrer a
respeito de respostas imediatas obtidas em sessões individuais, de onde resultaram esquemas
seqüenciais, com compreensão temporal, advindas da memória musical anterior a lesões nos
lobos frontais, parietais e/ou occipitais do cérebro. Vista a possibilidade de se interpretar o fato
como um “alerta atencional”, a previsão expressada de subseqüências intervalares, por um certo
número de pacientes, motivou a autora a pesquisar a questão, levantando a hipótese de que o
efeito da escala musical diatônica, em sistema temperado, em indivíduos que, em cujas histórias
pessoais insere-se o aprendizado técnico pianístico, anterior a uma lesão cerebral é imediato, se
comparado à lentidão do processamento auditivo quando decorrente de ferimentos
intracranianos por armas de fogo. Após observações e registros sonoro-musicais, feitos por
meio de gravações, filmagens e grafias, aventou-se a possibilidade de se utilizar, de maneira
criativa, a escala tonal de Dó maior como base, por ser a única do gênero a não possuir
alterações em sua estrutura, explorando-se várias técnicas musicoterápicas e musicais
propriamente ditas, de modo a se obter as mesmas categorias de respostas imediatas por parte
desses pacientes. Será evidenciado, neste artigo, um deles, cuja lesão foi conseqüência de
ferimento por projétil de arma de fogo com hidrocefalia derivada, a partir do qual o paciente foi
submetido à craniotomia frontal bilateral e occipital direita e dilatação dos ventrículos
supratentoriais, permanecendo a região temporal praticamente intacta. Detectaram-se, entre
outras, extensas alterações seqüelares com áreas de atrofia regional secundária. O caso em
estudo tem demonstrado a percepção sonoro-musical temporal dos eventos intervalares, como
fatores de alerta da atenção auditiva, o que possibilita o desenvolvimento, tanto mental quanto
motor, isto é, de compreensão e execução do paciente.

Palavras-chave: musicoterapia, representação mental, escala musical diatônica, memória


sonoro-musical.

estímulos. A atenção favorece certas


1. Fundamentação Teórica informações em detrimento de outras
(atenção seletiva), o que significa que
O alerta atencional é uma modula o curso da atividade mental.
preparação para uma determinada tarefa Percepções, motivações, emoções,
e constitui o primeiro aspecto intenções e pensamentos fazem parte
fundamental da atenção, segundo Lent dessa atividade. A consciente se
(2002). Este representa o estado geral expressa por meio da fala,
de sensibilização dos órgãos sensoriais principalmente, e caracteriza o ser
e o estabelecimento e manutenção do humano, uma vez que está relacionada
tônus cortical para a percepção dos com a linguagem. Assim, a atividade

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

consciente depende estreitamente de desenvolver uma posterior atenção.


mecanismos neurais localizados no Lima (2005) refere que:
hemisfério esquerdo, segundo
Gazzaniga (2003). Esses mecanismos Um determinado nível de alerta é
permitem a interpretação subjetiva dos fundamental para que haja
condição de se pensar em atenção.
sinais sensoriais, mnemônicos, Esse nível, também considerado
motivacionais, emocionais e motores. vigília plena, é o que mantém o
No ciclo de atividade há um circuito cérebro em constante preparo para
determinado pelos sinais no cérebro, desempenhar suas funções,
que ativam os mecanismos recrutando para seu
funcionamento uma complexa
implementadores da linguagem orquestração de subsistemas que
(incluindo as áreas de Broca e de vão desde o tronco cerebral até o
Wernicke), que enviam sinais de volta córtex (...) O estar desperto
para o sistema do cérebro, dando depende tanto de um processo de
origem a um novo ciclo de atividade. É tonificação de diversos
departamentos cerebrais, quanto
uma atividade reverberatória, da qual de um determinado mecanismo
resulta a fala interna (grifo meu), que cortical responsável pela seleção
pode ser considerada equivalente ao que de objetos de atenção e interesse.
chamamos de pensamento. Entretanto, é Há, então, dois mecanismos em
na atividade mental subconsciente que jogo: o ascendente, que mantém o
sistema apto a oferecer os
se expressa a maioria dos candidatos à atenção, e o cortical,
comportamentos que exibimos, entre que os seleciona, tal fosse foco
eles, reações diante de estímulos móvel sobre protagonistas no
sonoro-musicais. A atividade mental, palco. (apud Del Nero, 1997, p.
seja ela subconsciente ou consciente é 295)
gerada por sinais emocionais, que
A capacidade de detectar
acontecem nas estruturas límbicas.
seletivamente os estímulos na
Essas estruturas são modeladas pela
modalidade auditiva foi descrita por
experiência da espécie e do indivíduo e
Cherry, citado por Eysenck & Keane
se ajustam momento a momento à via
(In: Lima, 2005), como coktail party
preferencial do fluxo de informações
effect (efeito coquetel), ou seja, as
nas áreas sensoriais e motoras. O ciclo
maneiras pelas quais o indivíduo pode
percepção-ação interno corresponde a
atender apenas uma voz e conversar
uma atividade mental sem expressão
com um amigo, em meio a uma
comportamental. Isto acontece quando,
variedade de sons e ruídos. Quando seu
por um certo tempo, sinais motores
nome é citado meio a uma conversa,
agem sobre mecanismos sensoriais e
imediatamente “escolhe” o que ouviu
sinais sensoriais geram novos sinais
por pertencer à sua própria história de
motores, sem uma efetiva
vida e, portanto, ser-lhe significativo.
implementação de qualquer ação no
Esse tipo de atenção seletiva nos
meio ambiente. Mas, quando um
permite perceber opções à nossa frente e
estímulo sonoro-musical, apresentado a
fazer escolhas, que são frutos de nossos
um indivíduo com ou sem significância
interesses. Provavelmente, as
para ele, pode gerar reações físicas,
representações sonoro-musicais em
emocionais ou sensoriais importantes e,
sessões musicoterápicas, são advindas
por meio de uma via de expressão de
de escolhas feitas anteriormente às
sua maior identificação (corpo, voz ou
lesões instaladas (processo de alerta e
instrumento musical), ativá-lo
atenção seletiva) e, portanto, passaram a
mentalmente, permitindo a aquisição de
ter, inconscientemente, significado para
um estado de alerta suficiente para
os pacientes. O estudo neurológico da

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

relação entre o cérebro e a música vem na tentativa de suprir suas necessidades.


sendo feito de forma intensiva há pouco As escalas musicais caracterizam-se
mais de 20 anos. Nele tenta-se como “uma seqüência de notas em
compreender como o cérebro percebe, ordem de altura ascendente ou
memoriza, cria e processa música. A descendente”, de acordo com o
série harmônica - sons parciais que Dicionário Grove de Música (1994),
compõem a sonoridade de uma nota dentro do sistema temperado, entendido
musical - é de relevante importância por pianistas e harpistas. Na teoria de
nesse estudo, pois significa a forma Piaget, segundo o comentário de Borges
relativa que proporciona a qualidade (2006), “... o desenvolvimento cognitivo
sonora (timbre) da nota tal como é resultado da ação do indivíduo com o
ouvida. Segundo Oliveira (2005), o objeto. Tal afirmação encontra
cérebro das pessoas age de forma aplicação direta na compreensão do
individualizada, não podendo existir um processo individual de aprendizagem
procedimento único de atuação. Assim, tanto da linguagem musical quanto no
na clínica musicoterápica, após análise desenvolvimento relacionado ao
de reações advindas de um paciente, há domínio técnico de um instrumento”.
que se considerar em que categoria de Um outro comentário relevante a este
“tipos de ouvintes” o mesmo se encaixa, trabalho ressalta a importância da
para se planificar as sessões que se representação mental, referida por
seguirão. Zolberg (2006) explicita Beyer (1999). A autora entende as
muito bem formas de ouvintes imagens mentais “calcadas” sobre a
perceberem e absorverem a música em audição como sendo “imagens aurais”.
seu livro Para uma Sociologia das Afirma, em seguida: “São as imagens
Artes. Oliveira (2005) refere que a aurais que possibilitam ao indivíduo que
complexidade, “no caso da música, dá- evoque simbolicamente a realidade
se em ambos os hemisférios, sendo cada musical ausente”. Borges afirma que
um deles especializado em “tal representação deverá estar
determinadas funções musicais”. alicerçada no domínio do objeto sonoro
Em estudo preliminar de atuação (linguagem musical) ou na capacidade
musicoterápica vêm sendo observadas de resposta sensório-motora (domínio
respostas imediatas de pacientes técnico de um instrumento)”. Borges
submetidos a esse tipo de processo ainda cita Fonterrada (1999), que
terapêutico, mais especificamente na afirma: “... a linguagem musical é um
utilização técnica de escalas musicais meio de organização da realidade e [...]
diatônicas. A complexidade referida por sua compreensão não é anterior a seu
Oliveira (2005) põe fim a muitos uso: é seu uso que organiza a
“tabus” relacionados à teoria e experiência e permite sua compreensão”
harmonia musicais, quando (grifo meu).
determinadas afirmações são feitas e
não revistas ou experienciadas 2. Objetivo
anteriormente como, por exemplo, a de
que “o tom tem nove comas”. O que Refletir sobre uma possível
ocorre é que a acústica musical aproximação entre a representação
encontra-se na zona de limite entre a musical expressada por pacientes
ciência e a arte, tal como a própria portadores de lesão cerebral, com
musicoterapia, que se utiliza dos seqüelas de acidentes por armas de fogo
componentes sonoro-musicais e a utilização técnica de escalas
manuseando-os com a finalidade de diatônicas analisadas - por meio de
trabalhar o conteúdo interno do sujeito representações sonoro-musicais - como

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

alerta atencional na clínica memória de curto prazo demonstrando


musicoterápica. rápidas respostas, tanto na imitação
quanto na complementação, nos níveis
3. Método rítmico e melódico; quanto à memória
episódica de evocação o paciente
“A Musicoterapia é a utilização apresentou dificuldades nas associações
da música e/ou seus elementos (som, propostas, mas com potencial a ser
ritmo, melodia e harmonia) por um desenvolvido; a memória episódica de
musicoterapeuta qualificado, com um reconhecimento foi apresentada
cliente ou grupo, num processo para satisfatoriamente quando solicitado a
facilitar e promover a comunicação, responder nomes de músicas e
relação, aprendizagem, mobilização, compositores de renome. Também
expressão, organização e outros foram avaliadas as memórias
objetivos terapêuticos relevantes, no retrógrada, semântica e implícita, por
sentido de alcançar necessidades físicas, meio de propostas sonoro-rítmico-
emocionais, mentais, sociais e musicais, utilizando-se técnicas de
cognitivas. A Musicoterapia objetiva imitação, complementaridade, re-
desenvolver potenciais e/ou restabelecer criação e audição musical; Linguagem
funções do indivíduo para que ele/ela Verbal de Compreensão preservada e de
possa alcançar uma melhor qualidade de Nomeação em déficit moderado, no que
vida, pela prevenção, reabilitação ou diz respeito á fluidez e capacidade de
tratamento” (REVISTA BRASILEIRA emissão da voz; para trabalhar esse
DE MUSICOTERAPIA, 1996). aspecto vem sendo utilizada a flauta-
O exemplo prático aqui exposto doce como intermediária ao
encontra-se em processamento, o que fortalecimento da intensidade sonora e
significa que, surgidas novas reflexões também o canto, embora a função
ao longo dos atendimentos, haverá mais melódica ainda não se manifeste; como
aspectos observados e maior a compreensão na língua inglesa está
sistematização da técnica. acontecendo por meio da comunicação,
algumas letras de canções foram
4. Procedimentos Metodológicos estimuladas em inglês; as Funções
Executivas e de Atenção mostraram-se
A) Coleta de Dados (Montagem bastante prejudicadas, embora o
da História Sonoro-Musical) paciente tivesse se esforçado muito para
integrar-se e manter sua atenção em
Com o intuito de se determinar o perfil atividades musicais que exigiram sua
sonoro-musical do paciente buscou-se colaboração, como foi o caso do uso do
coletar dados referentes à sua história teclado (com as duas mãos).
pessoal, clínica e sonoro-musical, que
foram posteriormente analisados, B) Objetivos Prioritários
comparados entre si e que serviram de
fatores desencadeadores à elaboração do 1) Desenvolver a orientação temporal,
“Plano de Ação Musicoterápica” por meio de repertório de músicas da
(Smith, 2003), apresentado a seguir: atualidade, da década de 60 e de
Funções Intelectuais – desempenho herança genética; 2) Desenvolver a
musical dentro do esperado, devido ao atenção imediata e a concentração, por
aprendizado adquirido anteriormente ao meio de exercícios de associação e
acidente, com grau de compreensão raciocínio lógico musical; 3)
favorável ao desenvolvimento do Desenvolver a percepção do esquema
potencial artístico; Memória Musical – motor, por intermédio de movimentos

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

amplos, médios e finos, utilizando-se o engajamento teórico, aprendido


instrumentos musicais de pequeno porte anteriormente à lesão.
e emissão forte; 4) Fortalecer a emissão A abordagem musicoterápica de
vocal, através do sopro na flauta-doce e recuperação global enfoca as
do canto, desenvolvendo o aspecto propriedades vibratórias da música e
melódico; 5) Trabalhar a Memória dos sons. A música como terapia tem
Sonoro-Musical, por intermédio de sido utilizada como harmonizadora e
técnicas de audição musical e de equilibradora para o trabalho de relação
exercícios de memorização imediata e intra e interpessoal.
da memória retrógrada por meio do
resgate musical; 6) Desenvolver o D) Resultados
aspecto criativo, através de
improvisações e composições no Até o momento constataram-se:
teclado; 7) Treinar a percepção auditiva Melhoras no relacionamento
explorando alturas e intervalos sonoros com os terapeutas envolvidos nas
ascendentes; 8) Lograr relaxamento equipes multidisciplinares; Aumento da
corporal, por meio da técnica auditiva capacidade de percepção global ao
new age; 9) Orientar a memória redor dos ambientes; Maior
seqüencial, utilizando-se o “piano” compreensão das propostas verbais para
como objeto intermediário de realização de tarefas; Melhora no estado
comunicação maior, aplicando-se de humor; Expressão facial
aumento da extensão sonora de oitavas descontraída; Diminuição das queixas
e ritmando-as no controle do tempo. de dores freqüentes; Aumento do grau
de extensão dos membros superiores;
C) Técnicas Maior conscientização dos limites e
possibilidades; Aumento do grau de
1) De Empatia, aproveitando auto-estima; Maior capacidade de
respostas que, de início pareciam sem concentração nas atividades; Aumento
nexo, mas que poderiam ter sentido para na execução motora de movimentos
ele; 2) De Estruturação, que costumam finos; Diminuição do sono; Maior
trabalhar a forma rítmica e/ou melódica, rapidez nas respostas que exigem
embora se limitem a curtos intervalos; raciocínio; Desenvolvimento da
3) De Intimidade, de muito boa capacidade de ordenação mental; Maior
aceitação, pois criam laços afetivos e de permissividade na expressão das
percepção de seus próprios limites; 4) próprias emoções e sentimentos; Maior
De Complementaridade, que motivação; Aumento da capacidade de
proporcionam uma extensão e memorização de fatos ocorridos em
valorização de momentos que podem sessões anteriores. Verificou-se também
ser desencadeados; 5) De Incorporação, que, quanto ao aspecto motor, o
por intermédio de gravações de sons paciente já consegue executar quatro
vocais e/ou corporais e instrumentais escalas no teclado (timbre de piano),
emitidos, ou mesmo reproduzindo-as com a mão direita (não lesada),
com a finalidade de serem escutadas por ascendentes e descendentes, através das
ele; 6) De Repetição, que têm trazido quais o pensamento seqüencial vem
resultados positivos e aberto sendo muito explorado e a compreensão
possibilidade de engajar exercícios de de velocidade rítmica vem se tornando
percepção auditiva. 7) De cada vez mais consciente; o uso de
Discriminação Auditiva, em que se instrumentos musicais como: par de
incluem tanto a prática da escuta quanto snuj (pratinhos), para preensão fina,
bolas chinesas para fortalecimento

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

muscular das mãos, castanhola simples concentração. Como resultado dessa


de mão para desenvolvimento vísuo- técnica observa-se um aumento na
espacial e bongô para relaxamento duração temporal chegando-se a um
concomitante das mãos e a bola chinesa nível de concentração não compatível
também tem trazido resultados positivos com as seqüelas decorrentes das lesões
de balanceamento entre as duas mãos e por arma de fogo. É óbvio que se trata
posicionamento central dos membros de todo um conjunto de intervenções
superiores. O Aspecto Emocional (verbais, instrumentais, rítmicas,
permeia todo o trabalho, já que a visão corporais e expressivas) terapêuticas
do mesmo é holística e a aplicação de que são realizadas de modo muito
técnicas terapêuticas com e pela música complexo mas, como o próprio objetivo
permitem um desenvolvimento global. do trabalho é justamente refletir sobre
algo que chamou atenção e levou à
5. Conclusão curiosidade científica, justifica-se um
estudo mais aprofundado. A hipótese
A utilização de muitas técnicas, está lançada: haveria alguma relação
a maioria baseada em Bruscia (2000), direta entre o uso técnico de escalas
levou-nos à observação de reações musicais diatônicas em musicoterapia e
muito rápidas, por parte de pacientes o alerta atencional? Outros casos, em
que apresentam lesões cerebrais, atendimento musicoterápico, também
principalmente nas regiões frontais, estão sendo observados e, se se
parietais e/ou occipitais, não tendo sido configuarem dados mais precisos, talvez
danificada a área temporal do cérebro, possamos responder à questão levantada
cuja função principal é processar os com maior precisão.
estímulos auditivos. Entretanto, a
técnica que utiliza escalas musicais 6. Subáreas do conhecimento
diatônicas tem surtido efeitos mais
duradouros e de maior qualidade. As áreas do conhecimento
Segundo informações virtuais definem-se na relação entre a
(Wikipédia), “Os sons produzem-se Neurociência e a Musicoterapia. Porém,
quando a área auditiva primária é o entrelaçamento tem sido feito com as
estimulada. Tal como nos lobos seguintes subáreas:
occipitais, é uma área de associação - Educação Musical, pela utilização
área auditiva secundária- que recebe os psicopedagógica da música e as
dados e que, em interacção com outras correspondências encontradas na
zonas do cérebro, lhes atribui um harmonia funcional nas técnicas
significado permitindo ao Homem musicoterápicas aplicadas;
reconhecer o que ouve”. O caso exposto Psicoacústica, pela pesquisa da
- extraído de um grupo de pacientes influência acústica do som na mente
trabalhado em musicoterapia, com humana; Etnomusicologia, pelo
características similares - e que ainda se conhecimento das raízes culturais
encontra em andamento, tem pertencentes às histórias sonoro-
demonstrado, como conseqüência de musicais dos pacientes;
observações diretas advindas da prática Neuromusicologia, pelo estudo das
musicoterápica, a importância da funções musicais cerebrais;
aplicação de escalas musicais diatônicas Neuropsicologia, pela importância das
como uma das técnicas responsáveis funções neurológicas do som e da
pela seqüenciação do pensamento e, música na mente humana.
antes disso, pelo alerta, que pode levar à
atenção e ao aumento da capacidade de

372
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

7. Referências www.wikipedia.org/wiki/Cérebro_huma
no.
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Musical. Cadernos de Autoria. Porto das Artes. São Paulo: Senac, 2006.
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LENT, R. Cem Bilhões de Neurônios:
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Cognição; Ano 02, Vol.06, nov/2005.
OLIVEIRA, J.Z. de. Leituras sobre 10
Temas Musicais. Livro 1. São Paulo:
Lábaron Gráfica e Editora Ltda., 2005.
REVISTA BRASILEIRA DE
MUSICOTERAPIA. Ano I, nº 02. R.J.:
UBAM (União Brasileira das
Associações de Musicoterapia).
Comissão de Práticas Clínicas, 1996.
SMITH, M. P. da C. A Leitura do Fazer
Musical falando do "SER" Pessoa.
Anais do V Fórum Paranaense de
Musicoterapia. Curitiba: Fundação
Araucária, 2003, p.45.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

O papel da memória na leitura à primeira vista

Milson Fireman
milsonfireman@gmail.com

Resumo: O desenvolvimento de uma boa leitura musical tem sido um obstáculo para muitos
músicos. Provavelmente por compreender uma série de habilidades combinadas. Embora muitos
não concordem, a leitura à primeira vistaparece estar atrelada ao desenvolvimento musical.
Habilidades mneumônicas, cinestésicas, perceptivas e de resolução de problemas estão
envolvidas e podem ser desenvolvidas através da leitura musical. O presente trabalho tem como
objetivo principal reunir e discutir conceitos relacionados ao papel da memória durante o
processo de leitura à primeira vista. O texto está distribuído em quatro partes principais:
Introdução, A memória humana, A leitura e a memória e Considerações finais. Pude observar
que a memória tem um papel fundamental para que se possa alcançar fluência tanto na leitura
quanto na execução de peças musicais e que também pode ser aprimorada através treinamentos.

Palavras-chave: leitura à primeira vista, memória e percepção musical

interessado em entender de que maneira a


1. Introdução memória pode estar envolvida quando uma
pessoa se lança em uma leitura musical.
Para muitos músicos desenvolver a Através de uma revisão bibliográfica,
habilidade de leitura à primeira vista não pretendo apontar e discutir as relações já
tem sido uma coisa muito fácil de se fazer. conhecidas. Embora pareça controverso
Embora muitos discordem, a leitura falar de memória em uma atividade que
musical parece desempenhar um papel teoricamente precisa ser executada sem
fundamental no desenvolvimento cognitivo consulta prévia, tenho observado que boa
humano, assim como a leitura e parte do sucesso na leitura musical
compreensão textual. Atualmente, depende das habilidades mnemônicas de
conhece-se um pouco mais sobre os seus realizadores.
processos cognitivos necessários para
realizar tal tarefa. lehmann2002 2. A memória humana
argumentam que a “leitura à primeira
vista certamente compreende habilidades Existe um modelo de estrutura da
de percepção, cinestesia, memória e memória humana que é aceito pela
resolução de problemas [Lehmann e sociedade científica [Williamon, 2007;
McPherson, 2002]”1. Entender um dado Hadad e Glassman, 2006; Aiello e
fenômeno é o primeiro passo para Williamon, 2002; Baddaley, 1999]. Ele
posteriormente montar estratégias de como está representado na figura 1.
desenvolver determinadas habilidades
evitando gastos desnecessários de energia.
Dentro das habilidades citadas
pelos autores lehmann2002 estou

1
sight-reading comprises certain perceptual,
kinesthetic, memory, and problemsolving skills.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Figura 1: Representação da memória humana

A figura apresenta três estágios de


memória. O primeiro, uma memória 3 A leitura e a memória
sensorial, que seria o ponto de entrada das
informações. O outro é chamada de 3.1 Distância perceptiva
memória de curto prazo (MCP), também Naturalmente, todo leitor costuma olhar o
chamada de memória de trabalho, onde, que está adiante, enquanto reproduz um
após uma atenção seletiva, pode-se trecho anterior, ou seja existe uma
armazenar temporariamente a informação diferença de tempo entre a entrada
enquanto é trabalhada. Essa informação é (estímulo) e a saída (resposta). Essa
codificada e passada ao último estágio, diferença é conhecida como “distância
conhecido como memória de longo perceptiva”2 [Lehmann e McPherson,
prazo (MLP). Tulving descreveu três tipos 2002; Wristen, 2005]. Em leitura de textos,
de memória que compõem a MLP [Hadad a distância entre o que o olho está fixando
e Glassman, 2006]. Essas categorias de e o que está sendo falado é chamado de
memória diferem no tipo de informação “eye-voice span”. Na música, o termo tem
armazenada. A episódica recolhe sido considerado mais como “eye-hand
conhecimentos sobre eventos e span”3 [Sloboda, 1985; Sloboda, 2005;
experiências (acontecimentos e datas); a Lehmann e McPherson, 2002; Gabrielsson,
semântica lida com os conceitos e a 2003; Kopiez et al., 2006], mas é possível
processual armazena as ações e processos, encontrar como “eye-preformance span”
“por exemplo, tocar piano ou assar um [Thompson, 1987].
peru” [Hadad e Glassman, 2006].
Dois significados são importantes O eye-hand span nos possibilita
para o entendimento do acesso à observar a capacidade da memória de curto
informação na memória. Um deles é prazo. Supostamente, quanto maior a
recuperação, que foi utilizado na figura 1, distãncia perceptiva, maior a capacidade.
que significa lembrar deliberadamente do Porém, essa distância não diz muito em um
dado. O outro é reconhecimento, o qual primeiro exame, pois não adianta olhar
não implica ter consciência de que a muito à frente sem poder processar todas
memória esteja interferindo. as informações [Kopiez et al., 2006].
“Reconhecimento, na memória é o
processo de identificação da informação 2
Perceptual span.
apresentada como familiar [Hadad e 3
O termo poderia ser traduzido para o português
Glassman, 2006]”. como distância entre o olho e a mão, ou distância
olho-mão, mas acredito que fica mais compacto no
idioma original, continuarei utilizado em inglês.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Estudar o eye-hand span (EHS) tem demonstrar essa realidade, inverti duas
demonstrado diferenças significativas entre letras no texto “por exemplo”, logo a cima,
leitores com mais ou menos habilidade. e é fácil o leitor passar por ele
Leitores mais habilidosos tem demonstrado desapercebido.
maior EHS [Sloboda, 2005; SLoboda, Trabalhos anteriores que pesquisaram
1985; Lehmann e McPherson, 2002]. Não leitura, avaliaram a habilidade de
é difícil deduzir que quanto mais à frente o datilógrafos ao copiar textos [Sloboda,
leitor estiver olhando, ou seja, quanto 1985]. Alguns deles já relatavam
maior for seu EHS, terá mais tempo para resultados de que a leitura era realizada em
resolver os problemas que estão por vir. unidades e outros, que a coerência textual
Outro aspecto é que os leitores mais interferia no processo de leitura [Butsch,
habilidosos realizam mais fixações durante 1932]. Não só se lê em unidades, como
uma leitura e que essas fixações são mais também as unidades podem ser
curtas, em outras palavras, os mais estabelecidas pelo próprio leitor. O termo
habilidosos capturam mais flashes de freqüentemente utilizado para isso é
imagens [Waters e Underwood, 1998]. “chunking”. Vários autores argumentam
Alguns pesquisadores observaram nas que a abrangência da unidade pode variar.
performances de leitores mais habilidosos sloboda2005 em um estudo realizado em
a presença de “sacadas regressivas”4 1977 “descobriu que os instrumentistas
[Furneaux e Land, 1999], que é voltar a um apresentavam um maior EHS quando liam
ponto que já foi fixado. Supõe-se que essa música com coerência tonal, sendo
regressão pode ser para analisar melhor contrário quando liam música que
partes problemáticas. Possivelmente por quebrava as regras de progressão tonal
estar lendo bem à frente da performance o [Sloboda, 2005].”6 Paralelamente aos
leitor tenha mais tempo para planejar sua resultados das pesquisas sobre leitura de
performance e rever partes duvidosas, textos, as unidades (chunks) em música
melhorando sua performance. podem ser uma escala ou acorde. O
instrumentista ao ler reconhece estruturas
3.2 Chunking familiares e constrói sua performance a
furneaux1999 apresentam duas partir dessas interpretações. Os indivíduos
possibilidade para medir o eye-hand span. lêem em unidades porque têm a capacidade
“Este atraso [da performance], o ’eye-hand de reconhecer estruturas familiares. Eles
span’ (EHS), pode ser medido de duas buscam satisfazer estruturas já conhecidas,
maneiras: como o tempo de atraso da ou armazenadas na memória de longo
fixação à performance ou como o número prazo. Então, dependendo da estrutura
de notas entre a posição do olho e a musical e do entendimento que o músico
performance [Furneaux e Land, 1999].”5 tiver no momento da leitura a medida do
Mesmo que seja claro o entendimento eye-hand span pode não gerar dados
dessa proposta de medida, algumas coerentes.
questões surgem. Trabalhos, tanto em Em uma primeira vista essa busca pela
textos quanto em música, tem demonstrado coerência do discurso musical pode não ser
que os leitores, principalmente os mais deliberada. O instrumentista pode não
habilidosos, não capturam as informações recuperar a informação na memória
segmentadas. Por exepmlo, não se lê sílaba durante o processo de leitura, mas pode
a sílaba e sim palavras inteiras. Para reconhecer as estruturas e tentar satisfazê-
las.
4
regressive saccade.
5
This lag, the “eye-hand span” (EHS), can be
6
measure in two ways: either as the time delay from it was found that performers had grater EHS when
fixation to performance, or as the number of notes reading tonally coherent music than when reading
between eye position and performance. music that broke rules of tonal progression.

376
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

3.3 Proofreaders’ error Goldovsky [Sloboda, 2005]. Ao ouvir uma


aluna iniciante tocar uma edição muito
Ao observar resultados de usada de um Capriccio de Brahms,
pesquisas anteriores também pude perceber acreditou que ela tivesse cometido um erro
que a percepção auditiva desempenha um de leitura durante o estudo da peça, pois
papel fundamental. Para entender melhor ela estava tocando um sol natural, o que
eu faço a seguinte pergunta: é possível era musicalmente impossível para o
imaginar alguém lendo um material sem contexto. A partir daí percebeu que o erro
reprodução sonora? Ao observar o era dele e de tantos outros colegas e
fenômeno de chunking é visível a pupilos que já haviam tocado a peça muitas
interferência da audiação. O leitor tenta vezes. Todos cometiam o mesmo erro de
estruturar o material musical em algo leitura, inseriam um sustenido no sol
coerente, ele reorganiza o material de natural, satisfazendo o contexto. Ao
acordo com representações mentais observar isso, Goldovsky planejou o
sonoras estabelecidas anteriormente. “experimento Goldovsky”8 [Sloboda,
Gordon ressalta a importância da audiação 2005]. O experimento consistiu em
para a leitura e argumenta que: convidar leitores habilidosos para que
encontrassem o erro na peça. Ele permitia
A notação é uma “janela” através da que as pessoas lêssem quantas vezes
qual se espreita; a audiação está do achassem necessário. Foi surpreendente
outro lado. Um músico que consegue constatar que nenhum músico encontrou o
audiar é capaz de dar significado
musical à notação. Um músico que
erro.
não consegue audiar só pode atribuir A partir disso, Sloboda em um
um significado teórico à mesma outro trabalho provocou erros nas
[Gordon, 2000]. partituras [Sloboda, 2005]. O material
utilizado foi do período clássico de um
Audiação é considerada como compositor pouco conhecido,
sendo a capacidade de reproduzir a música contemporâneo de Mozart.
na mente [Hiatt e Cross, 2006; Fine, Berry
e Rosner, 2006]. Fine, Berry e Rosner Todos os sujeitos eram pianistas
argumentam que Brodsky utiliza a competentes e foi solicitado a eles que
expressão “ouvido interno”7 [Fine, Berry e apresentassem duas performances para cada
Rosner, 2006 ]. Seria a representação peça de piano em primeira vista, sendo
extremamente cuidadosos para tocar
mental de como uma música é ou seria se exatamente o que estava escrito. Embora
fosse reproduzida. De acordo com os o nível geral de erro na performance
resultados em EHS, pode-se observar que foi muito baixo para todos os sujeitos
isso ocorre frequentemente. O (2,9% para a primeira performance,
instrumentista quando se lança em uma 1,7% para a segunda performance) o
nível de erro sobre os erros de
leitura vai desenvolvendo as imagens impressão foi alto (38% para a primeira
mentais e obtendo o feedback à medida que performance, 41% para a segunda
executa a música. A partir desse feedback performance) [Sloboda, 2005].9
faz os devidos ajustes.
Uma série de estudos interessantes 8
Goldovsky experiment
foram realizados para observar um 9
The subjects were all competent pianists and they
fenômeno chamado de “proofreaders’ were asked to give two performances of each piano
error” [Waters, Townsen e Underwood, piece at sight, being particularly careful to play
1998; Sloboda, 1985; Sloboda, 2005]. Um exactly what was written. Although the overall
caso muito famoso, relatado por Sloboda, é level of error in performance was very low for all
subjects (2,9% for first performance, 1,7% for
o de um professor de piano chamado second performance the level of error on the
misprint was high (38% for first performance, 41%
7
inner hearing for second performance).

377
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Esses relatos são importantes para conceitos musicais. Alguns tipos de


demonstrar como a percepção e o memória citados acima são considerados
conhecimento interferem na leitura de uma implícitos ou não-declarativos. Por
música. Ao ler o indivíduo vai exemplo, a facilidade que se tem ao se
interpretando como em um texto, tentando executar uma peça pela segunda vez, após
extrair sentido. Ao obter o feedback, com a uma primeira leitura. A prática anterior vai
execução, ajustará sua “interpretação”. É facilitar a execução da peça, mesmo não se
importante ressaltar que os músicos tendo consciência de que informações na
envolvidos nas pesquisas eram memória estão contribuindo para isso
considerados bons leitores, porém não [Fireman, 2007].
estavam cumprindo o que estava escrito. Acredito que ao buscar uma coerência
Outra informação importante é o aumento estrutural o instrumentista, consciente ou
de erros sobre os erros de impressão, não, está sendo ajudado por sua memória
relatados por Sloboda. Para mim, significa implícita. Dispositivos da memória
que na segunda performance os recebem e processam os estímulos
instrumentistas tiveram tempo para sensoriais para que as respostas sejam
organizar a execução de acordo com coerentes com as representações mentais já
estruturas pré-estabelecidas por eles, ou presentes no indivíduo.
anteriormente conhecidas e adaptadas ou
reorganizadas novamente. Se as notas 5. Referências
apresentadas não estavam de acordo com a
estrutura musical, eles alteravam as notas AIELLO, R.; WILLIAMON, A. Memory.
para que se tornassem coerentes. In: MCPHERSON, G. E.; PARNCUTT, R.
(Ed.). The Science & Psychology of
4. Considerações finais Music Performance: Creative Strategies
for Teaching and Learning. New York:
Os trabalhos têm demonstrado que a Oxford University Press, 2002. cap. 11, p.
memória interfere não só diretamente a 167–181.
partir da memória de curto prazo, como BADDALEY, A. Memory. In: WILSON,
apresentado no fenômeno do eye-hand R. A.; KEIL, F. C. (Ed.). The MIT
span. Nesse caso, a memória contribui para Encyclopedia of The Cognitive Sciences.
uma leitura mais eficiente, essa distância Cambridge: The MIT Press, 1999. p. 514–
perceptiva pode ajudar o músico a ter 517.
tempo para ler e executar a peça com
fluência. Os leitores também podem buscar BUTSCH, R. L. C. Eye movements and
desenvolver essas habilidades. Alguns eye-hand span in typewriting. Journal of
trabalhos citam maneiras de como Educational Psychology, v. 23, n. 2, p.
melhorar a memória [Lehmann e 104–121, Fevereiro 1932.
McPherson, 2002; Sloboda, 2005]. FINE, P.; BERRY, A.; ROSNER, B. The
A memória de longo prazo contribui de effect of pattern recognition and tonal
diversas maneiras. Ao realizar uma predictability on sight-singing ability.
determinada peça através de uma leitura Psychology of Music, v. 34, n. 4, p. 431–
musical o instrumentista utiliza sua 447, 2006.
memória processual. Ele tem consciência
FIREMAN, M. A escolha de repertório na
corpórea e sabe onde as notas estão
aula de violão como uma proposta
localizadas no instrumento, sabe qual o
cognitiva. Em Pauta, Porto Alegre, v. 18,
movimento e a força necessária para
n. 30, p. 93–129, 2007.
realizar cada uma delas. A memória
semântica, conhecimento dos fundamentos FURNEAUX, S.; LAND, M. F. The
necessários à interpretação dos signos e os effects of skill on the eye-hand span during

378
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

musical sight-reading. Proceedings of The WATERS, A. J.; UNDERWOOD, G. Eye


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sight reading: A study of pianists. The
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Publications, v. 89, p. 123–149, Fevereiro
1998.

379
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Práticas musicoterápicas e o desempenho cognitivo em idosos


com queixas de memória

Patrícia Gatti

Resumo: A presente proposta tem como objetivo, para comunicação no IV SIMCAM,


apresentar a intervenção realizada, com recursos musicoterápicos, num grupo de idosos usuários
de uma unidade básica de saúde da periferia de Campinas/SP. A intervenção visou à otimização
da esfera cognitiva, promoveu a oportunidade de convívio e de participação social e cultural aos
idosos. O conjunto das práticas utilizadas apresenta vários recursos sonoro-rítmico-musicais que
visaram proporcionar estímulos à linguagem, memória, percepção auditiva e esquema corporal.
Buscou-se assim uma intervenção sensível e adequada às características e identidades culturais
desse grupo.
O critério de seleção foi em grupos de idosos com queixas de memória, com alterações
cognitivas leves, mas não demenciados. Participaram do estudo 24 sujeitos, com idade entre 57
a 86 anos (M 71.2), de ambos os sexos, encaminhados por profissionais de saúde da unidade.
Fez-se para cada sujeito uma avaliação da cognição através do (MEEM) Mini Exame do Estado
Mental (M = 21,5, DP 3,6). Além disso, os dados foram coletados por meio de uma entrevista
semi-estruturada denominada “Inventário de Experiências Musicais (IEM)”, compreendendo
dados sócio-demográficos, preferências, receptividade e antecedentes musicais. A partir dos
tipos e das frequências de respostas definiu-se um repertório musical para o desenvolvimento
das práticas musicoterápicas. O estudo teve duração aproximadamente de 6 meses, consistindo
da coleta de dados individuais, do desenvolvimento da intervenção em grupo e da verificação
dos efeitos na promoção de bem-estar subjetivo mediante os auto-relatos.
Por fim, foram verificados, através dos relatos, os efeitos no bem-estar subjetivo dos idosos
categorizados em três domínios: afetos positivos, evocações e interação social. O resultado
mostrou que a atividade musicoterápica culturalmente sensível é um instrumento bem aceito e
benéfico para a promoção do bem-estar para idosos com queixas de memória e de baixo nível
socio-econômico, num contexto de unidades básicas de saúde.

Palavras-chave: idosos; musicoterapia; alteração cognitiva leve.

imaginação, a capacidade para produzir


1. Introdução respostas às solicitações e estímulos
externos, dentre outras. E dentre as
O conceito de cognição é amplo funções cognitivas a memória é uma das
e se refere a todos os processos pelos mais estudadas, devido ao fato do
quais a entrada sensorial é declínio desta função ser uma das
transformada, reduzida, elaborada, grandes preocupações referidas por
armazenada, recuperada e utilizada. É o indivíduos idosos.
termo empregado para descrever toda a O desempenho cognitivo, em
esfera de funcionamento mental (Vieira; adultos idosos, varia em função dos
Koenig, 2000). Inclui entidades como a vários fatores próprios ao sujeito, como
percepção, as imagens mentais, a seu nível de escolaridade, sua
memória, o aprendizado, o motivação, sua saúde, sua
conhecimento, a consciência, a personalidade, suas dificuldades, e
inteligência, o pensamento, a mesmo das condições de realização de

380
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

tarefas cotidianas (a velocidade e o desenvolvimento de demência e


modo de apresentação, as condições de usualmente acompanhado de
recuperação, etc.). Com o anormalidades em testes objetivos.
envelhecimento, principalmente, alguns Os critérios para o diagnóstico
aspectos da memória, mesmo na da Alteração Cognitiva Leve (MCI) são
ausência de patologias graves, encontrados na população idosa, nas
apresentam um declínio gradual. Porém alterações de memória, indicado por
as mudanças não ocorrem de maneira leve rebaixamento na pontuação de
uniforme e variam muito de indivíduo testes, como o Mini-Exame do Estado
para indivíduo, em função de diferentes Mental - MEEM (Folstein; Mchugh,
combinações de fatores: tais como 1975), com escore de pelo menos 24
saúde, estilo de vida, alimentação, pontos (desempenho de
atividades físicas, hábitos intelectuais, aproximadamente 1,5 desvio padrão
motivação e personalidade. De um abaixo da média de controles normais
modo geral, no processo de da mesma idade e escolaridade), porém,
envelhecimento, a memória fica mais permanecendo normais as funções
lenta e seletiva e os estados de tensão e cognitivas gerais, assim como as
estresse, depressão e alcoolismo podem atividades sócio-ocupacionais.
afetá-la negativamente (Yassuda, 2004). A identificação das alterações
De outro lado, a ineficácia das cognitivas em idosos é uma tarefa
funções da memória para o idoso pode complexa e ainda não bem
representar a possibilidade de quebra da sistematizada. Para avaliação do estado
sua identidade pessoal, da capacidade mental, inúmeros testes têm sido
de interagir com eficácia no mundo, de propostos, observando pontos de corte
gerir sua própria vida e ser a expressão apropriados, uma vez que os resultados
de um adoecimento no plano físico e/ou podem variar em diferentes populações
mental e/ou emocional. e de acordo com a faixa etária,
O termo Alterações Cognitivas escolaridade, ocupação, condições de
Leves (ACL) foi proposto para se referir saúde, estilo de vida e estimulação do
aos indivíduos não-demenciados1: ou ambiente.
seja, portadores de um leve déficit Embora as queixas subjetivas de
cognitivo que se expressa em queixas de falhas de memória sejam extremamente
memória. A ACL, segundo Canineu & comuns entre os idosos e a presença de
Bastos (2002), representa uma zona de uma série de fatores possa contribuir
transição entre o estágio assintomático e para um desempenho ineficaz, é a
uma possível demência inicial minoria de indivíduos – cerca de 15%
diagnosticável. Os autores apresentam acima de 65 anos – que apresenta algum
uma diferenciação entre Transtorno tipo de demência em evolução. Uma
Cognitivo Leve (MCD, mild cognitive boa performance cognitiva constitui-se
disorder) e Alteração Cognitiva Leve num importante fator para a promoção e
(MCI, mild cognitive impairment). O a manutenção da autonomia e qualidade
Transtorno Cognitivo Leve apresenta, de vida ao longo do envelhecimento.
na Classificação Internacional de As necessidades de programas
Doenças, versão 10 (CID 10), de 2000, que fortaleçam as capacidades de
a presença de uma deterioração reserva do indivíduo por meio de
cognitiva que precede, sucede ou atividades educacionais, motivacionais
acompanha transtorno cerebral; e, e relativas à saúde, além de fortalecer a
portanto, não está associado formação e a manutenção de laços
especificamente ao envelhecimento, sócio-afetivos (Freire, 2000) são
podendo apresentar fator de risco para o desafios das políticas de saúde

381
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

contemporâneas, para se chegar a uma agressividade e de agitação; além de


velhice satisfatória. Nesse sentido, Neri estimular a sociabilização e interação
e Cachioni (1999) alertam que o através da prática em grupo (Bright,
elemento essencial do conceito de 1993).
velhice bem-sucedida não é a A intervenção musicoterápica
preservação de níveis de desempenho proposta aos idosos com queixas de
parecidos com os de indivíduos mais memória, com base numa abordagem de
jovens, mas a idéia de que o requisito otimização cognitiva, compreende um
fundamental para uma boa velhice é a conjunto de estratégias que utiliza
preservação do potencial para o recursos sonoro-rítmico-musicais, com
desenvolvimento do indivíduo. Isso, vistas a estimular e otimizar a atividade
dentro dos limites individuais e cognitiva. Segundo Abreu e Tamai
estabelecidos por condições de saúde, (2002), a cognição tem sido vista como
pode ser identificado no estilo de vida e uma função cortical com a capacidade
de educação. de processar, organizar e integrar
Na perspectiva de proporcionar informações com experiências
práticas de estimulação cognitiva para anteriores, podendo ser dividida em
idosos, as intervenções com base nas subdivisões distintas, como atenção,
reminiscências, associando música, orientação, memória, organização
canto e memórias orais, segundo visual-motora, raciocínio, função
Thompson (1992), podem promover a executiva, planejamento e solução de
mudança das atitudes de inúmeras problemas.
maneiras e possibilitar a reflexão e Na observação destas questões, a
restabelecimento da auto-identidade. metodologia aplicada procurou utilizar
A prática musicoterápica explora recursos sonoro-rítmicos-musicais na
a relação entre emoção e música e promoção de novos estímulos e algumas
abrange: a produção sonora do canto, da habilidades cognitivas, compreendendo
improvisação, das audições musicais, uma estrutura que objetiva estimular a
das composições, da percepção rítmica, linguagem, orientação, atividades
de músicas que emergem explorando as sensoriais, esquema corporal, memória
várias fontes sonoras (corpo, ambiente, e gestualidade. A abordagem
objetos, natureza). A utilização dos musicoterápica aplicada foi motivada
instrumentos musicais - jogos, pela reminiscência ou lembranças como
experiências musicais, movimentos sobrevivência do passado (Bosi, 2003),
corporais e as várias formas de constituindo-se das recordações sonoras
expressão, aplicadas às técnicas e e de memórias antigas. Os estímulos
recursos sonoro-rítmico-musicais - adequados às reminiscências têm de
procuram dar atenção às dificuldades estar adaptados à cultura, ao estilo de
físicas, sociais e emocionais do ser vida e à experiência vivida pelos
humano (Bruscia, 2000). sujeitos, conduzindo, por conseguinte, a
Diversas propostas existentes de uma melhor da autonomia pessoal e
práticas musicoterápicas para idosos afetando positivamente no bem-estar
partem de abordagens e interesses subjetivo dos indivíduos.
variados, e principalmente buscam O conjunto de técnicas e de
compreender as atitudes culturais a exercícios propostos foi organizado a
quem são dirigidas. Os programas partir da sensibilização auditiva e
terapêuticos para idosos, baseados na motora, dos estímulos nos níveis de
música, apresentam melhora dos atenção, da concentração, da
aspectos emocionais e comunicação verbal, do ritmo e
comportamentais, de humor, de coordenação, utilizando estratégias

382
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

simples e motivadoras envolvendo o musicoterápicos utilizados visaram


canto, exercícios rítmicos e melódicos e explorar as reminiscências musicais,
práticas com instrumental de fácil identificando a riqueza cultural
manuseio nas atividades em grupo. guardada na memória individual,
Em cada encontro, foram buscando atribuir um caráter
propostos séries de exercícios, com psicologicamente positivo e
vários recursos sonoro-rítmicos- recompensador à afirmação da própria
musicais, seguindo um planejamento identidade cultural dos sujeitos
básico: percepção auditiva (rítmica e envolvidos.
melódica), linguagem (emissão, dicção,
imagem vocal, ritmo das palavras, letras 3. Método
de canções, vocalizes etc.), memória
(recordações pessoais e sociais através Intervenção musicoterápica
de canções culturalmente durante seis meses que compreendeu
experimentadas, memória episódica um conjunto de estratégias sonoro-
autobiográfica e semântica), esquema rítmico-musicais e cognitivas, visando
corporal (percepção do corpo, ação novos estímulos às capacidades de:
motora, respiração, relaxamento etc.) e linguagem, orientação, memória,
gestualidade (percepção e manipulação identidade, percepção auditiva e
de coordenadas espaciais, abstração e esquema corporal, em um grupo de 24
representação mental do gesto idosos (idade 71,2 ± 8,4 anos) com leve
utilizando-se de sons e músicas). déficit cognitivo, expresso por queixas
O estudo não compreendeu de memória, usuários de uma unidade
medidas avaliativas do impacto da básica de saúde. Foi aplicado um
intervenção na capacidade cognitiva dos “Inventário de Experiências Musicais”,
sujeitos. Não se tratou, portanto, de uma identificando-se as preferências e o
pesquisa neuropsicológica com idosos. histórico musical de cada sujeito.
A cognição foi abordada enfatizando a A organização geral da atividade
percepção subjetiva dos idosos sobre enfocou os seguintes segmentos:
suas falhas e capacidades. Isto porque
se considera que propostas de atividades Linguagem — ativação de linguagem a
que estimulem a atividade mental e as partir de estímulos verbais, levando em
funções cognitivas são contribuições conta: emissão, vocabulário, dicção,
importantes, pois fortalecem o registro canto, imagem vocal, ritmo das
da informação e a organização dos palavras. Enfoque na Linguagem oral
dados na memória, ajudando a (estímulos a partir de: letras de músicas,
compensar o declínio cognitivo e versos, discurso, narração, repetição,
retardando o desenvolvimento de “grupo de discussão” (conversa),
doenças. vocalizes, canto coral).

2. Objetivo Orientação — reforçar dados de espaço


e tempo. Relato de dados biográficos,
Proposta de intervenção com informação do passado e do presente,
recursos musicoterápicos para idosos seguindo sucessão de fatos e episódios
com queixas de memória, de baixo nível (através de estímulos de canções
sócio-econômico, em uma unidade familiarizadas desde a infância até a
básica de saúde, como instrumento de escuta atual).
promoção de bem-estar, avaliada sob a
ótica dos idosos participantes Atividades Sensoriais com enfoque na
(qualitativa). Os recursos Audição; Atenção/Concentração. A

383
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

partir de estímulos rítmicos - A caracterização da identidade sonora


manipulação de instrumentos de cada um dos indivíduos apontou as
percussivos, atividade motora, palmas afinidades musicais latentes do grupo,
rítmicas e marcações com pés. Enfoque possibilitando traçar a escolha de um
no sistema perceptivo da audição repertório musical sensível às memórias
(reconhecer sons e canções). culturais do grupo. Em seguida
Esquema corporal — percepção do realizou-se intervenção musicoterápica
corpo, enfocando consciência corporal; em grupo, adaptada às características e
Ação motora das articulações; identidades culturais dos sujeitos
Movimento corporal (com música); avaliando os efeitos e o bem-estar
Respiração / relaxamento. subjetivo.

Memória — estímulo de recordações 4. Resultado


pessoais e sociais, por canções
culturalmente experimentadas, Os dados foram coletados a
enfocando os tipos de memórias de partir do Inventário de Experiências
acordo com o seu conteúdo: a) Musicais (IEM), entrevista individual,
Episódica que se refere à memória de com o objetivo de verificar como se
eventos específicos, recordação de fatos compõe a identidade sonora-musical de
reais, autobiográficos; b) Semântica: cada um dos participantes, assim como
refere-se ao aprendizado das palavras e um histórico das experiências musicais
seu significado, conhecimentos gerais. ativas e passivas.
A tabela abaixo apresenta parte
Gestualidade - percepção e da descrição da receptividade musical
manipulação de coordenadas espaciais. do grupo na constituição das
Desenvolvimento de Marchas; Danças; experiências culturais, que possibilitou
Abstração e representação mental do a montagem do repertório musical e a
gesto. abordagem da atividade musicoterápica.

5. Análise descritiva - Receptividade e Antecedentes Musicais

Estilo musical preferido


Religiosa 5 20,8%
Sertaneja/caipira 19 79,2%
Instrumento Musical preferido
Sanfona 17 70,8%
Violão/viola 7 29,2%
Música que não aprecia
Barulhenta/moderna 20 83,4%
Não lembra 2 8,3%
Sentimental triste 2 8,3%
Cantor preferido
Duplas sertanejas antigas 17 70,8%
Romântico/popular 7 29,2%
Cantar
Cantava / cantava muito 19 79,2%
Cantava pouco 5 20,8%
Vivências sonoras na infância
Festas/Canções 17 70,8%
som do rádio/outros objetos 7 29,2%

384
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Relação musical dos pais


Cantava/ouvia 15 62,5%
Não cantava e não tocava 3 12,5%
tocava instrumentos 6 25,0%
Sons na memória
Festejos/ritmos de dança 6 25,0%
dupla Tonico e Tinoco 4 12,5%
Canção específica/instrumento musical 14 58,3%

O levantamento e a identificação seus próprios padrões, sentimentos,


do perfil dos sujeitos indicaram as percepções acerca das experiências
motivações, atitudes, valores e vivenciadas na atividade. Observando o
tendências culturais, e com isto conjunto das respostas, verificou-se a
possibilitou estabelecer o similaridade das palavras orientadas em
aprofundamento necessário para a três domínios distintos da dimensão do
construção das práticas musicoterápicas bem-estar subjetivo: AFETOS POSITIVOS,
e cognitivas empregadas. EVOCAÇÕES e INTERAÇÃO SOCIAL, que
Conforme proposto no método, foram categorizados na análise das
ao final da intervenção, foram respostas. Desse modo, observou-se que
formuladas questões com intuito de a totalidade do grupo avaliou
verificar de forma aberta os efeitos da positivamente o programa
atividade realizada. Todos os musicoterápico, levando em conta os
participantes do grupo expressaram diferentes aspectos do bem-estar
palavras que refletiam a avaliação promovido:
subjetiva do indivíduo, tendo por base

25%
(n=6) Afetos positivos
58% Evocações
17% (n=14) Interação social
(n=4)

AFETOS POSITIVOS: sentimentos experimentados, emoções prazerosas


EVOCAÇÕES: Relação direta com o rememorar como senso de identidade
INTERAÇÃO SOCIAL: novas redes de contato

6. Conclusão cognitivo, contribuiu para o bem-estar


subjetivo dos idosos.
A retomada das lembranças, das Foram particularmente
memórias sonoras e musicais dos idosos enfatizadas as recordações de festas,
e sua utilização na condução das sensações vividas e experimentadas em
dinâmicas musicoterápicas contribuíram outros tempos, assim como as vivências
para a ativação de aspectos cognitivos e musicais ativas e passivas de cada um
afetivos positivos, assim como na dos idosos participantes. Os relatos dos
mobilização das sensações e percepções eventos sócio-históricos e culturais
das trajetórias individuais e coletivas. O funcionaram como vias de acesso das
realce dos potenciais artísticos e trajetórias pessoais e sociais,
criativos, ao invés de reforçar o declínio contribuindo para a retomada de

385
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

experiências prazerosas e a FREIRE, Sueli A. Envelhecimento bem-


continuidade da herança cultural. sucedido e bem-estar psicológico. In:
O programa de intervenção NERI, A.L.; FREIRE, S. A. (Orgs.). E por
utilizando recursos musicoterápicos, ao falar em boa velhice. Campinas: Papirus
Editora, 2000. p. 21-31.
longo de seis meses, foi capaz de
proporcionar um espaço de GIGLIO, Joel S.; GIGLIO, Zula G.
reminiscências musicais, culturais e de Contribuições do enfoque psicodinâmico à
reflexão que foi percebido compreensão do fenômeno musical. In:
positivamente pelos sujeitos. Verificou- Acta psiquiátrica América Latina, 26,
se, através do conjunto de relatos, que 1980. p. 293-299.
este programa contribuiu e demonstrou HANSON, N.; GFELLER, K.; GARAND,
ser eficaz para promoção de bem-estar L. A comparison of the effectiveness of
subjetivo do grupo de idosos com different types and difficulty of music
queixas de memória e de baixo nível activities in programmings for older adults
sócio-econômico, num contexto de with Alzheimer´s disease and related
disorders. Journal of Music Therapy, 33,
unidades básicas de saúde.
1996, p. 93-123.
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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

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aspectos afetivos e cognitivos, Campinas:
Papirus, 2004. p. 141-162.

1
Demência é o termo médico utilizado para
denominar as disfunções cognitivas globais,
(orientação, linguagem, julgamento, função
social e habilidades de realizar tarefas motoras),
podendo ocorrer em várias afecções diferentes
(Aisen et al, 2001).

387
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Musicalidade, fala expressão das emoções

Patrícia Pederiva
UnB
pat.pederiva@uol.com.br
Elizabeth Tunes

Resumo: Neste trabalho, examina-se como a musicalidade surge no homem, o que acontece em
estreita relação com a possibilidade de os animais poderem expressar sons por meio de seus
órgãos vocais. Busca-se examinar sua gênese e função, fazendo uma descrição sintética de sua
história natural, desde a expressão musical nos animais, no homem primitivo até chegar ao
homo sapiens sapiens. A biomusicologia, a antropologia da música e a psicologia histórico-
cultural são as bases teóricas da presente análise. O exame empreendido permite concluir que,
do ponto de vista da gênese, a musicalidade é anterior à fala articulada e que, como animais
humanos, temos todos a condição da musicalidade e, portanto, a possibilidade de nos expressar
musicalmente.

Palavras- chave: musicalidade, emoção, fala.

de cantos catalogados. Não


A musicalidade, uma forte obstante os inúmeros dialetos
regionais identificados, próprios
marca dos seres humanos, pode ser de coletividades significativas, há
encontrada também nos animais. Por ainda, a interpretação individual
exemplo, nos pássaros, animais que de um mesmo dialeto por
possuem maior ritmo, tonalidade e espécimes diferentes. Cada
variedade na produção de sons vocais, a bicudo impõe sua própria
personalidade, no andamento, na
capacidade de cantar tem sido voz e na melodia e acrescenta ou
considerada como algo próximo da omite notas na execução do seu canto.
musicalidade humana (Cross, 2006). Dificilmente encontraremos dois bicudos
Muitos dos sons que emitem são com cantos idênticos. Por mais
classificados como canções1. semelhantes que sejam, mesmo
executando as mesmas notas, cada
Uma das funções da produção um irá impor suas próprias
sonora dos animais é a comunicação. características ao executar seu
Em diversas espécies, ela tem uma canto. (FEBRAPS, 2007).
função sexual, pois os machos cantam
para atrair as fêmeas (Slater, 2001). Os Há pássaros que também
pássaros possuem um vasto repertório executam duetos o que, segundo Slater
que, em algumas espécies, encontra-se (2001), poderia prover indícios das
em constante mudança. Os bicudos são origens e funções do fenômeno do canto
exemplos de pássaros que se distinguem grupal humano. No canto em duetos, os
pela variedade em seu canto: pássaros participantes contribuem para a
canção, apresentando, por vezes, uma
Muito provavelmente, sejam os alta precisão de tempo. As duplas
bicudos os pássaros silvestres, podem ser formadas por machos e
criados em cativeiro, com o maior
número de notas em um mesmo
fêmeas que usam notas diferentes,
canto e com a maior diversidade podendo alternar-se nas melodias. Para

388
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

o autor, o fenômeno do canto dos animais, indicando que há musicalidade


pássaros indica claramente que os em outras espécies. Isso sugere que o
humanos possuem um ancestral comportamento musical humano, bem
musical. como o condicionamento de seus
O aprendizado do canto dos sistemas neurais, seria uma extensão de
pássaros abarca diferentes processos. atributos filogenéticos gerais (Cross,
Segundo Whaling (2001), há uma 2006). Nos gibões encontra-se um
primeira etapa de memorização e uma exemplo de comportamento musical.
segunda, de repetição. Envolve a Eles são primatas originários das
escolha da canção que servirá como florestas tropicais do sudeste da Ásia
modelo, bem como a recuperação do (Geissmann, 2001). Suas canções são
modelo adulto. Para aprender a cantar, séries de notas reconhecíveis pelas
muitos pássaros ouvem a canção de sua seqüências e padrões temporais. Podem
espécie durante certo período crítico em durar de dez a trinta minutos,
seu desenvolvimento. Se privados de dependendo da espécie e do contexto.
escutar e memorizar canções, podem Produzem oitavas musicais, subindo e
aprendê-las posteriormente em uma fase descendo na escala por semitons (dó, si,
adulta, se monitorados, mas si bemol, lá, lá bemol, etc.). Elas podem
apresentarão alguma dificuldade para ser provocadas pelo canto de outros da
isso. A escolha da canção é guiada pelo espécie, têm a função de alarme e,
instinto, mas eles reconhecem o canto quando executadas em duetos, podem
de sua espécie. As primeiras servir como demarcador de território.
performances das canções apresentam De um modo geral, os primatas
irregularidade no tempo, hesitação na costumam utilizar diversos tipos de sons
altura, problemas de afinação e na que funcionam como chamadas de
ordem de reprodução das notas e da alarme entre seus pares. Isso significa,
melodia. Quando a repetição não é bem para Mithen (2006), que eles possuem
sucedida, repetem a canção por muitos uma natureza musical, com ritmos
meses, até aprender. A vocalização é característicos e possibilidades de
vital para os pássaros. Elas permitem execução de canções em pares. Assim,
identificar indivíduos da espécie, bem vocalizações, gestos e posturas
como servem para estabelecer e corporais de primatas não humanos de
defender território. Os papagaios e seus hoje seriam análogos aos dos primeiros
parentes também podem ser incluídos hominídeos.
em uma lista de nove mil espécies de Vigotski (2001) relata que
aves em que há aprendizagem do canto. Learned, colaboradora de Yerkes
Para Whaling (2001), os pássaros se conseguiu selecionar 32 vocábulos de
aproximariam mais dos homens, das chipanzés que são semelhantes a
baleias e dos golfinhos no que diz elementos da fala humana, e que são
respeito à musicalidade. derivados de situações que têm relação
Diversos mamíferos também com prazer e desprazer, ou inspiram
apresentam comportamentos próximos estados emotivos como medo,
às canções ou à música dos seres ressentimento ou desejo, e que indicam
humanos. Diferentes tipos de conduta claramente a existência de uma
que denotam expressão de estados linguagem emocional. Para esse
afetivos, similares às formas de estudioso, as reações vocais expressivas
expressão da musicalidade humana, são seriam a base do surgimento da fala
também encontrados entre esse tipo de humana.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Tanto nos homens quanto nos relacionam-se explicitamente, como no


animais, a emissão de sons vocais, exemplo queixoso do sibilo agudo pelo
segundo Darwin (2000), pode ter sido focinho produzido por cães. A emoção
desenvolvida por contrações da raiva e todo o tipo de sofrimento
involuntárias dos músculos do tórax e também articulam-se ao uso da voz. O
da glote e sem qualquer finalidade. hábito de produzir sons como meio de
Habitualmente, os animais sociais fazer a corte entre amigos, nos
utilizam seus órgãos vocais e isso pode ancestrais dos humanos, segundo
ter sido freqüentemente útil em algumas Darwin (2000), é associado a intensas
situações e relacionado a prazer, dor e emoções, tais como amor, rivalidade e
fúria. Para esse teórico, o ancestral do triunfo. A passagem de um estado de
ser humano deve ter emitido sons vibração da laringe humana para outro,
musicais antes de adquirir a capacidade produzido por diversas seqüências de
de articular a fala. A esse respeito, ele sons, e a maior ou menor facilidade
faz referência a um ensaio sobre a mecânica para tal produção, pode ter
música de autoria de Spencer que sido causa primária do uso humano da
demonstra que as falas emotivas estão voz e dos sons.
relacionadas à música vocal e Informações obtidas por meio de
instrumental e que estas possuem uma fósseis de primatas permitiram
base fisiológica. Darwin (2000) destaca identificar que eles possuíam, nas áreas
a lei geral formulada por Spencer, cerebrais correspondentes à habilidade
segundo a qual um sentimento é uma musical e de controle da fala, a
incitação à ação muscular, sendo a voz possibilidade de produção e de
modificada de acordo com essa lei. As processamento de sons. Assim, segundo
diversas qualidades de voz poderiam ter Cross (2006), na vocalização dos
surgido da fala de emoções fortes que, primatas, haveria a probabilidade de se
por sua vez, podem ter sido transferidas encontrarem indícios dos precursores da
dos músculos do tórax e da glote para a musicalidade humana.
música vocal. Desse modo, a
vocalização animal, ainda que primitiva, A comunicação sonora do homem
seria uma e a mesma expressão: a primitivo
expressão das emoções.
Em diversos animais, a “voz” é Pelo que foi exposto, pode-se
utilizada para chamar incessantemente afirmar que uma das formas mais
pelo sexo oposto no período de cio, o antigas e universais de comunicação é
que Darwin (2000) aponta como de caráter musical e tudo indica que o
possibilidade de ter sido este também mais remoto dos instrumentos foi a voz.
um dos meios de desenvolvimento da Os sons dos primeiros hominídeos
voz. O uso dos órgãos vocais parece ter parecem ter sido análogos aos dos
sido associado nos animais com a macacos atuais. Sons barulhentos para
antecipação do mais intenso prazer que longas distâncias, características tonais
eles poderiam sentir. Assim, a voz teria nas notas, um sobe e desce nas frases,
um caráter musical quando empregada principalmente nos finais dessas, notas
sob qualquer emoção forte. Machos de bifásicas, e acelerando rítmico. A
animais inferiores empregam sua "voz" expressão das emoções de um ou mais
para agradar suas fêmeas, parecendo ter indivíduos exerce influência
prazer em seus exercícios vocais. diretamente no corpo do receptor do
Tonalidades de "voz" e emoções som, levando-o por vezes ao movimento

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

a partir da audição. Não é de se sapiens neanderthalis1 quanto o Homo


estranhar, portanto, que, sapiens sapiens 2 utilizaram o sistema
freqüentemente, a música esteja hmmmmm, como indicam dados
associada à dança (Geissman, 2001). originários da África, que revelam,
Para expressar emoções, os inclusive, outros tipos do sistema
Australopithecines2 possuíam um vasto hmmmmm, como uma espécie de proto-
repertório de chamados que eram hmmmmm, nos ancestrais do Homo
utilizados em contextos sociais. As sapiens sapiens.
linhagens hominídeas posteriores, a Ao definir fala, Bannan (2006)
julgar pelo desenvolvimento e enfatiza-a como um modo de
proporções cerebrais, indicam o comunicação serial, em que os
desenvolvimento de interações sociais indivíduos se revezam na troca de
cada vez mais complexas, que exigiram representações com propriedades
respostas cada vez mais sofisticadas recursivas. O ato de cantar, por sua vez,
para os desafios do meio ambiente. Os permitiria igualmente, o
sons organizados podem ter sido os compartilhamento de uma atividade
primeiros meios de expressão dos simultânea entre seres humanos, e que
hominídeos, cujas propriedades pode, enquanto canto grupal, ter
acústicas estariam mais próximas das desempenhado importante papel no
formas e estruturas da música do que da momento pré-linguístico da
fala semântica (Bannan, 2006). comunicação humana. Para Bannan
Como sistema comunicativo e (2006), o processamento musical possui
expressivo, a música tem muita um papel fundante em relação à fala. O
similaridade com a fala, bem como com autor destaca a altura, a possibilidade e
a expressão sonora relativa à emoção o controle do volume, a duração, a
nos animais. Mithen (2006) apresenta capacidade de variar timbres como
dados de fósseis arqueológicos que parâmetros de uma comunicação
provêm substanciais evidências da co- potencialmente significativa presentes
evolução entre música e fala. Como na fala e no canto, o que não considera
sistema de comunicação, fala e música como uma simples coincidência, já que
têm uma origem comum e possuem em constituem a anatomia complexa do
sua raiz características holísticas, instrumento vocal humano. Tais
manipulativas, multi-modais, musicais e funções seriam frutos da evolução,
miméticas, o sistema hmmmmm. Holo- presentes hoje na produtividade vocal
frases que possuíam um largo e único moderna, na fala e na canção.
significado, e que não eram quebradas
em suas partes constituintes, faziam
parte da conversação primitiva. Tais
frases faziam uso de variação de alturas,
ritmo e melodia, que expressavam e 1
O Homem sapiens neanderthalis data de
induziam o falante e o seu ouvinte à 220,000-30,000 AP Possuíam largos peitos,
emoção (Mithen, 2006). Ainda mãos fortes, largas cavidades nasais, evidencias
conforme esse autor, os fósseis de base cranial flexionada e diferentes idades
arqueológicos sugerem que a entre crianças. Estavam bem adaptados a climas
frios e eram extremamente fortes. É possível
capacidade de comunicação vocal de que tivessem capacidade limitada de linguagem.
nossos ancestrais era similar aos Atribui-se autoria a eles de supostas ferramentas
modernos humanos. Tanto o Homem e artefatos (Bannan, 2006).
2
O Homo sapiens sapiens data de 100,00 AP
até o presente (Bannan, 2006).

391
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

DARWIN, Charles. A expressão das


Conclusões emoções nos homens e nos animais.
São Paulo: Companhia das Letras,
Se, na comunicação animal e 2000.
primitiva, música e “fala” (podendo ser FEBRAPS. Federação Brasileira de
aqui entendida como vocalizações, ou Pássaros. Disponível em
ainda por sonorizações), são um só e o http://www.cantoefibra.com.br/FrameC
mesmo processo, e se o papel da anto/AlvoCanto.htm. Acesso em
comunicação sonora nesse contexto é o 04/06/2007.
de expressão de estados afetivos, então,
tudo indica que a música, em seu GEISSMAN, Thomas. Gibbons songs
estágio primário, elementar é and human music from an evolutionary
igualmente o veículo comunicativo de perspective. In: The origins of music.
expressão das emoções. Isso está London: MIT Press, 2001. p. 103-123.
presente e se afirma no percurso MITHEN, Steven. The singing
filogenético. Neanderthals: the origins of music,
Essa base biológica da atividade language, mind and body. UK:
de caráter musical permite afirmar sobre Cambridge Archeological Journal.
a universalidade da musicalidade, isto é, 16; 1, 97-112. Disponível em
se depender das possibilidades enquanto http://journals.cambridge.org/download.
animais humanos, todos somos capazes php?file=%2FCAJ%2FCAJ16_01%2FS
de nos expressar musicalmente, de 0959774306000060a.pdf&code=25286
expressar nossas emoções por meio de 9eddb86b3437ed3eff3d6c22b2f. Acesso
sons, do mesmo modo como, de modo em 02/10/2006.
geral, se depender da anatomia e
fisiologia humana, todos somos capazes SLATER, Peter. Birdsongs repertoires:
de nos expressar por meio da fala. Isso é their origins and use. In: The origins of
dado ao ser humano, music. London: MIT Press, 2001. p. 49-
independentemente das formas que 63.
possam assumir. A musicalidade possui VYGOTSKI, L.S. A construção do
assim, caráter universal. Não se trata de pensamento e da linguagem. São
um dom para alguns. É um dom para Paulo: Martins Fontes, 2001.
todos.
WHALING, Carol. What’s behind a
Referências song? The neural basis of song learning
in birds. In: The origins of music.
London: MIT Press, 2001. p. 66-76.
BANNAN, Nicolas. Engenharia reversa
1
na voz humana: examinando os pré- Aqui, a canção não deve ser entendida como
requisitos de adaptação para canção e forma musical, mas tal como denominada pelos
linguagem. In: Cognição e artes estudiosos de sons de pássaros.
2
musicais. Vol. 1, n. 1. Curitiba: Os Australopithecines datam 4.000.000 AP a
3.000.000 AP. Um exemplo característico é o de
DeArtes EFPR, 2006. p. 30-39. Lucy, fragmentos de esqueleto de criança
CROSS, Ian. Music and evolution: the encontrados na Etiópia. Possuíam traços de
nature of the evidence. Disponível em primatas combinados com os de hominídeos.
<http://www.ext.mus.cam.ac.uk/~ic108/ Eram adultos pequenos e bípedes (Bannan,
PDF/ICMPC7ICIM.pdf>. Acesso em 2006).
02/10/2006.

392
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Os processos precoces de aprendizagem musical:


uma abordagem construtivista

Paula Pecker
UFRGS
Patrícia Kebach
UFRGS

Resumo: Este artigo tem como objetivo discorrer sobre os processos de aprendizagem e
desenvolvimento da criança em relação à música, nos primeiros anos de vida, e propor formas
construtivistas de agir pedagogicamente no ambiente de Educação Musical. Será dado destaque
à fase que vai desde o nascimento até os quatro anos de idade. Para enfocar as construções
cognitivas musicais, utilizaremos como fundamentação teórica a Epistemologia de Jean Piaget e
demais autores que concordam com a idéia de que dentro da sala de aula é necessário que o
olhar não seja somente sobre os conteúdos a serem desenvolvidos, mas para a interação entre a
criança e os objetos propostos.

Palavras-chave: epistemologia genética – processos de ensino-aprendizagem – construção


musical

2. O desenvolvimento da criança
1. Introdução segundo a Epistemologia Genética:
um olhar sobre as condutas musicais
O presente trabalho tem como
(...) cada vez que ensinamos
objetivo descrever os processos de
prematuramente a uma criança
aprendizagem musical em período alguma coisa que poderia ter
precoce sob a ótica da Epistemologia descoberto por si mesma, esta
Genética. Para tanto, vamos expor como criança foi impedida de inventar e
ocorre o desenvolvimento cognitivo da conseqüentemente de entender
completamente. Isso obviamente
criança em relação à música em seus
não significa que o professor deve
primeiros anos de vida, ou seja, desde o deixar de inventar situações
seu nascimento até a aquisição da experimentais para facilitar a
função simbólica, o que lhe permite o invenção do aluno. (Piaget apud
uso da linguagem verbal. Proporemos, Becker, 2005)
baseadas na mesma teoria, formas de
agir pedagogicamente em ambiente de O comentário acima revela uma
Educação Musical para auxiliar nas das maiores contribuições da
construções musicais das crianças, com Epistemologia Genética ao campo
vistas às observações realizadas em pedagógico. Diz respeito ao cuidado do
nossas pesquisas em andamento. Nossa educador em deixar seu aluno explorar,
proposição é a de que a construção jogar, refletir e tirar suas próprias
musical ocorre de forma homóloga à conclusões sobre o mundo que o cerca.
construção dos outros objetos de Como já reiterado em diversos
conhecimento. trabalhos, este tipo de atitude não se
propõe a deixar o aluno livre ou sem
orientação, pois deixa claro o papel

393
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

ativo do professor, que atua como recém assimilado. Com isso, um novo
desafiador e orientador na busca de esquema surge finalizando a adaptação.
proporcionar à criança novas Foquemos desde o início como
descobertas. Para Becker & Marques ocorrem as primeiras apreensões do
(2001), “afirmar que a criança é capaz objeto musical. A partir de um ponto de
de aprender qualquer coisa em qualquer vista construtivista, podemos dizer que
idade é um mito que realimenta o as primeiras descobertas musicais que a
verbalismo que tanto mal tem causado à criança realiza têm a ver com o
aprendizagem escolar”. Esta afirmação exercício do aparelho fonador e de seus
reitera a importância de entendermos movimentos espontâneos. A partir
como se dá o desenvolvimento musical dessas ações ocorrem, por exemplo, a
da criança, pois este é o objeto que aqui progressão de sua emissão sonora, ou o
procuramos abordar. Trataremos, domínio rítmico pelos embalos do
portanto, de explicar como o sujeito vai tronco, controle dos gestos, etc.
se adaptando ao real e como isso se dá Conforme o patamar (estágio)
em termos musicais. que o indivíduo se encontra, a maneira
As estruturas da inteligência de “resolver um problema” (ou adaptar-
humana são construídas à medida que o se a um objeto) acontecerá de forma
sujeito é desafiado por uma perturbação distinta. Do nascimento até por volta de
interior ou pelas resistências dos objetos um ano e meio de idade, Piaget refere-
em relação às suas ações. A cada nova se ao estágio sensório-motor, no qual a
situação, processos assimilativos e criança, através de seus movimentos
acomodativos entrarão em ação e isto físicos, dirige as sensações provenientes
resultará na adaptação do sujeito ao do seu redor (bem como o contrário). A
objeto (Becker, 2002). coordenação dos espaços auditivo,
Piaget nomeou como esquema visual e tátil, dá a ela a possibilidade de
cada nova aquisição mental passível de construir para si os objetos de seu
ser generalizada em uma determinada interesse (Kesselring, 1990). O estágio
ação. Os esquemas já formados define o nível de complexidade do
funcionam como ferramentas a serem pensamento do indivíduo, revelando
coordenadas entre si e usadas para a qual a estratégia mais evoluída que será
formação de novos complexos, usada por parte do sujeito para adaptar-
desenvolvendo assim a inteligência do se a algo. Assim, no estágio sensório-
indivíduo. Para que o esquema seja motor, as condutas são
interiorizado pelo sujeito, é fundamental predominantemente exploratórias. A
que haja interação entre este e os criança pode sacudir um objeto
objetos em seu entorno. A interação aleatoriamente para produzir sons, ir
proporciona que dois mecanismos controlando progressivamente a força
distintos atuem e alcancem a adaptação de seu gesto, embala-se ao som de uma
do sujeito ao novo. Estes dois música, emite explorações vocais de
mecanismos são chamados de consoantes, vogais, balbucios, ruídos,
assimilação e acomodação, e funcionam etc. Isto é, as coisas são percebidas
como dois pólos complementares de especialmente através dos órgãos dos
todo processo de adaptação. O primeiro sentidos, pois a criança ainda não possui
incorpora o novo desafio à ação do a capacidade de representação mental, o
sujeito, o segundo modifica esquemas que lhe permitiria estabelecer relações
antigos para se adequarem ao objeto entre várias fontes de informação. No
período sensório-motor, as crianças se

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

apropriam do conhecimento musical operatório (2 a 4 anos, em média), que


pelas explorações sonoras que partem iniciam as representações mentais das
de condutas corporais. O corpo é o ações; contudo, nessa fase, ainda não há
principal instrumento de apropriação reversibilidade de pensamento
dos objetos que servem de alimento (operações inversas), compensações e
para as condutas estruturantes, de modo conservação de determinadas formas
geral. Isto não quer dizer que mais tarde que garantiriam uma organização
os movimentos corporais sejam coletiva em alguma produção musical,
abandonados na apropriação da por exemplo. As crianças, nessas
linguagem musical, e sim, que há a primeiras etapas de desenvolvimento,
predominância de ações sensório- são incapazes de refletir e comparar
motoras nesse estágio; portanto, nesse suas invenções sonoras com as de
período, não podemos falar ainda de outrem. Criam formas de se adaptar às
organizações sonoras, e sim, de jogos de canções ouvidas, inventam estruturas
explorações, como bem observa com trechos de músicas diferentes,
Delalande (1982). Beyer (1996) imitam as condutas dos adultos ao
explicitou muito bem todo esse tocarem algum instrumento, não em
processo em sua Tese de Doutorado. relação direta aos sons ouvidos, mas
São necessários, em média, dois anos, àquilo que percebem visualmente, ou
como período de preparação, para que a seja, os movimentos e gestos dos que
criança comece a modificar suas executam, por exemplo.
condutas musicais, até que chegue ao Após adentrar este segundo
domínio da função simbólica, que lhe estágio, nota-se que a criança é capaz de
permite a capacidade de representações se comunicar através do vernáculo com
mentais (lembrar de objetos ausentes, seus pares e o número de palavras que
cantar trechos de músicas recordadas, já sabe começa a ficar incontável. Poder
etc.), mesmo que estas sejam expressas compreender o que o outro diz e se
de modo rudimentar. fazer compreender usando as palavras é
Piaget enfatiza o fato que as uma grande revolução para o mundo da
idades que dividem os estágios não criança Esses recursos da fala auxiliam
passam de médias. A individualidade de inclusive na elaboração do
cada um poderá modificar sua forma de conhecimento musical e vice-versa. Ela
pensar antes ou depois do tempo já é capaz de escolher determinada
proposto. Porém, jamais será esperado música, de brincar com melodias
que alguém passe pelos estágios em diferentes trocando suas letras, atender
ordem diferente da pré-estabelecida. às demandas do adulto, quando este
Uma criança não terá condições, por propõe alguma atividade musical e
exemplo, de demonstrar-se pré- assim por diante.
operatória sem antes vivenciar a A função simbólica está para a
aprendizagem sensório-motora. aquisição da linguagem, em termos de
Segundo Marques (2002), por importância, como a linguagem se
meio de um longo processo, a criança apresenta para a socialização do
construirá a capacidade de imitar e de indivíduo. Mas a linguagem oral não é a
jogar. A capacidade de representar a única forma de expressão existente. A
realidade através de imagens mentais é criança, justamente por tentar se adaptar
o que difere a criança sensório-motora ao real por condutas simbólicas, apesar
da criança pré-operatória. Assim, é na de também utilizar a linguagem oral,
primeira etapa do período pré- utiliza outras formas de expressão,

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

como através de gestos, de desenhos e totalmente dos esquemas ou


da música, por exemplo. Basta que o estruturas construídos pelo
conjunto das atividades anteriores
adulto proporcione esses espaços de do sujeito; para tanto é necessário
livre expressão para que condutas propor ações capazes de gerar tais
expressivas diversas apareçam nesse esquemas ou estruturas. Nenhuma
período. Aos poucos, a criança vai aprendizagem acontece de graça.
(Becker, 2002)
relacionando todos esses instrumentos
de comunicação para se adaptar ao meio
físico e social e desenvolve sua Segundo Kebach (2007),
capacidade criativa. “exercer uma postura construtivista
No período mencionado, ela tem significa aproveitar as tendências
a sua disposição apenas a intuição, que próprias e atividades espontâneas da
a ajudará a diferenciá-la de sua mãe, de criança. A busca contínua é uma
seus colegas, de sua professora, mas não necessidade do ser humano”. Esta
saberá diferenciar seus sentimentos das postura dá ao professor um papel ativo
sensações dos demais, o que Piaget perante seus alunos, isto é, o docente
chama de egocentrismo. É por isso que deve permanecer todo o tempo atento ao
uma realização musical em conjunto fazer das crianças, aproveitando suas
aparecerá como algo desorganizado: na novas descobertas e realimentando seus
falta do manejo das relações entre os interesses. Essa é uma forma produtiva
elementos da linguagem musical e de de se tentar conduzir a aula de
suas ações musicais com a dos outros, a musicalização para crianças entre dois e
produção sonora poderá parecer quatro anos. A aula de música deve ser
improdutiva; todos tocam juntos, cada construída junto e para os alunos.
um para si, mas pensam estarem Maffioletti (2005) fala sobre
tocando “a mesma música”. De fato, voltar o olhar para a observação dos
isso não tem nada de improdutivo. Pelo processos de pensamentos, dando
contrário, é através de auto-regulações espaço para a criança se expressar
progressivas que as crianças vão aos naturalmente, e, mesmo na situação de
poucos construindo sua musicalidade. O grupo, permitir-se ao professor e aos
“egocentrismo”, dessa forma, significa a alunos admitir e prever suas
incapacidade de distinguir a perspectiva individualidades, buscando o meio mais
de outrem da sua própria (Kesselring, eficaz para todos expressarem sua
1990). forma de pensar.
Becker (2002) salienta que a Ouvir e observar as crianças são
concepção de aprendizagem mais atos fundamentais no processo de
comum diz respeito a algo ser ensinado ensino-aprendizagem musical. Devemos
e retido satisfatoriamente pela memória. utilizar o conhecimento espontâneo da
Para ser fixado, usa-se, então, a criança, isto é, aquele construído em seu
repetição. O combate a esse ensino núcleo familiar, ou seja, na sua própria
pobre e danoso é travado quando se cultura e partir daí para propor
toma consciência sobre a importância atividades interessantes e significativas.
de se pensar na aquisição de É preciso saber o sentido e significado
conhecimento através da experiência que um objeto, uma ação ou uma
que se desenvolve no tempo. Na prática demanda verbal tem para a criança que
isto significa que os traz. A observação das ações e o
diálogo são partes essenciais num
(...) um programa de ambiente pedagógico construtivista e
aprendizagem qualquer depende servem de ferramenta clínica para

396
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

observar as estruturas mentais já Genética piagetiana, pois mesmo com


construídas pelos pequenos e seus objetivos muito claros sobre o
processos de aprendizagem. Agir dessa aprendizado, acreditamos que as
forma, aproveitando o que há de condutas docentes devem ser norteadas
espontâneo nas condutas das crianças, pela observação da criança, por seu
demandará um pouco de criatividade, modo de desenvolvimento e por seus
mas, na maioria das vezes, a própria processos de aprendizagem, ou seja, o
criança poderá ser um agente condutor desenvolvimento das tarefas e a
desta atividade, se lhe for emergência de um currículo deve se
proporcionado espaço para agir adequar às necessidades inferidas a
espontaneamente, em meio às tarefas partir das ações e interesses das crianças
mais dirigidas. que procuram se adaptar ao objeto
musical. Propomos, desse modo, que
3. Considerações finais são essas primeiras ações observadas e
aproveitadas em ambiente pedagógico
A abordagem e suas aplicações que se constituirão nas relações dos
descritas acima, tentam entender os elementos da linguagem musical e
processos de aprendizagem musical da garantirão a apropriação progressiva
criança pequena e sugerir posturas deste conhecimento de modo prazeroso
pedagógicas construtivistas. e significativo.
Procuramos descrever as condutas
musicais infantis e explicar a 4. Referências
importância de adequar as ferramentas
práticas pedagógicas a uma teoria de BECKER, F. Ação, função simbólica e
compreensão dos processos de capacidade representativa. In: Função
aprendizagem. Assim, esta deve nortear Simbólica e Aprendizagem. Porto
práticas que sejam ricas em Alegre: 2002.
explorações, coordenação de ações, BECKER, F. Ensino e pesquisa: Qual a
jogos simbólicos, exercícios de auto- relação? In: BECKER, F; MARQUES,
regulação, imitação espontânea. A T. Ser professor é ser pesquisador.
retomada de atividades antigas entra Porto Alegre: Mediação, 2007.
nesta fase como aliada do
desenvolvimento, dando tempo e espaço BECKER, F. Um divisor de águas.
para as crianças absorverem pontos que Coleção Memória da Pedagogia. Jean
acharem interessantes e significativos Piaget. São Paulo: Duetto, v. 1, 2005.
num evento de organização sobre os BEYER, Esther. Musikalische und
objetos a serem descobertos. Essas sprachliche Entwicklung in der
proposições têm a ver não somente com frühen Kindheit. Em português: O
os processos de aprendizagem musical, desenvolvimento musical e da fala na
mas também com os gerais. infância precoce. Trad. Adriana
Por fim, é possível que muitas Bozzetto. Porto Alegre: Instituto de
vezes o docente pense antes no Artes - Departamento de Música, 1996.
conteúdo a ser transmitido às crianças,
para só depois passar à montagem do DELALANDE, Fr. Vers une psycho-
currículo e aos planos de sala de aula. musicologie. In: CÉLESTE, Delalande;
Essa postura não corresponde ao DUMAURIER. L’enfant du sonore au
construtivismo e ao interacionismo, musical. Paris: INA GRM, Buchet
conforme descritos pela Epistemologia Chastel, 1982. p.155-178.

397
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

KEBACH, P. O professor
construtivista: um pesquisador em ação.
In: BECKER, F; MARQUES, T. Ser
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KESSELRING, Thomas. Os quatro
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398
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Crítica da musicologia e apontamentos de fenomenologia

Rael B. Gimenes Toffolo


UEM
rbgtoffolo@uem.br
Luis Felipe de Oliveira
UNICAMP
oliveira.lf@gmail.com
André Luiz Gonçalves de Oliveira
UNOESTE
alguns@gmail.com

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar princípios que consideramos fundamentais para o
desenvolvimento de uma musicologia de orientação fenomenológica. Iniciamos por uma
descrição histórica da musicologia apresentando os estudos sobre música relevantes para a
formação da cultura ocidental e tratamos também dos limites e alcances dos estudos
musicológicos a partir do século XVIII. Classificamos os estudos sobre música em três vertentes
musicológicas principais e apontamos uma crítica sobre problemas conceituais específicos a
cada vertente. Como última etapa descrevemos princípios organizadores de uma musicologia
fenomenológica. Tais princípios são apenas descritos como um primeiro conjunto conceitual
para o desenvolvimento de estudos futuros que poderão decorrer em novas tendências nos
estudos musicológicos.

Palavras-chave: Musicologia, Fenomenologia.

a descrição da atividade musical prática,


1. Introdução em especial da composição, abordagem
esta inaugurada no Micrologus de Guido
Os estudos sobre música remontam d´Arezzo, que tem por seqüência as obras
à formação da história do ocidente. As teóricas de Vitry à Rameau, passando por
primeiras abordagens que anacronicamente Tinctoris e Zarlino. Essas visões sobre
podemos chamar de musicológicas são música se mantêm de forma muito similar
resultantes dos princípios pitagóricos que até o fim da renascença, só sendo
consideravam a música como parte de uma sobrepujadas pela revolução copernicana.
cosmologia fundada no conceito de No século XVII a influência de
número enquanto unidade, conceito este Descartes foi tão significativa que
que se aplicava às várias instâncias do podemos considerar a Idade Moderna
cosmos; através do número é que se como a era do pensamento cartesiano,
entendiam as proporções dos corpos caracterizado por duas principais
sonoros, sua relação com o nível humano e doutrinas: o racionalismo, inclusive
com o movimento das esferas celestes. Tal enquanto fundamento de uma metodologia
abordagem, remodelada de formas científica, e o dualismo mente-corpo,
diferenciadas por Platão e Aristóteles, se também chamado de Dualismo cartesiano.
estendeu pelo mundo Romano e por toda a Obviamente, tanto a nova cosmologia
idade média. É neste período que além de possibilitada pela revolução copernicana
tratados com abordagens mais filosóficas quanto as novas práticas científicas e
(cosmológicas) surgem outros que visavam filosóficas decorrentes do pensamento

399
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

cartesiano alteraram as formas de como se músicos e a música dos nativos e


fazer, experimentar e falar sobre música. estrangeiros. Ainda no século XVIII,
A posição cartesiana assumida pela Forkel apresenta uma divisão diferenciada
ciência e filosofia moderna e por que se caracteriza pelos estudos da física
conseqüência nos estudos sobre música do som, da matemática do som, da
incorre em oposições como pode ser gramática musical, da retórica musical e da
verificado nos trabalhos de caráter crítica musical. A preocupação com a
fisicalista de Helmholtz e Stumpf, de um música não ocidental tem início nos
lado, e a filosofia metafísica de trabalhos de Fétis no século XIX, sendo
Schopenhauer, por exemplo, de outro. Essa este considerado o formador das bases para
oposição também pode ser encontrada o surgimento da Musicologia Comparada
entre Hanslick e Wagner; entre a música ou Etnomusicologia. Guido Adler, em
entendida como representação de nada 1855, foi o responsável pela distinção entre
além de si mesma e a música servindo a musicologia histórica e musicologia
um ideal máximo e sintético da obra de sistemática, que amplia a área de estudos
arte total, da Gesamtkunstwerk, que musicológicos para além daqueles de
Wagner retirou da tragédia clássica. Áreas natureza histórica, incluindo aspectos
como a Psicologia1 não surgiriam teóricos e analíticos, sociológicos e
descoladas da física não fosse o rumo culturais, estéticos e educacionais. De fato,
cartesiano da história da ciência. Há, como o termo musicologia, ou
consenso, uma posição distinta entre os Musikwissenschaft, que significa Ciência
assuntos chamados de ciências humanas e da Música, surge como título do trabalho
os chamados de ciências naturais. Tal de Johann Bernhard Logier, em 1827
distinção é tão carente de fundamento que, (apesar de que os termos musikalische
sem querer aprofundar a crítica, poder-se- Wissenschaft e tonwissenschaft remontam
ia questionar se o próprio homem não faz a textos do século XVIII).
parte da natureza (cf. Merleau-Ponty, No entanto, quando se fala em
2000). No entanto, para retornar ao ramo musicologia enquanto ciência,
central do nosso interesse, a musicologia é tradicionalmente o que se tem em mente
fruto de uma ciência objetivista e de uma são as áreas das ciências humanas,
filosofia e psicologia metafísicas, que se principalmente as ciências sociais e a
entendem como distintas, quando não filosofia. No século XX inclusive, existe
como excludentes. uma grande ênfase em aspectos
Ainda não havia uma área de sociológicos, antropológicos e etnológicos,
estudos denominada musicologia e é talvez mesmo até em detrimento de
somente a partir do século XVIII que questões filosóficas (epistemológicas e
Framery apresenta uma das primeiras mais ainda ontológicas). Dentro dessa
divisões que demarcaram o escopo da linha, alguns musicólogos do século XX
musicologia. Tal autor estabeleceu um hall irão sugeriram que a etnomusicologia
de disciplinas e áreas de atuação que tem deixasse de ser uma sub-área da
como raiz a Acústica subdividida em musicologia para, na verdade, ser ela
ciências quantitativas e ciências própria a visão de musicologia que deveria
metafísicas, a Prática Musical subdividida ser praticada. Segundo tal visão, a
em composição e interpretação e a História musicologia deveria englobar, estudar e se
da Música que engloba os fatos presentes e relacionar com aspectos estruturais e
passados, a história da música e dos estéticos, porém sempre dentro de uma
visão sociológica, não eurocentrada, que
1
Apesar do termo único, entendemos que a substituísse a musicologia essencialmente
Psicologia abarca áreas distintas e nossa crítica histórica feita até o momento. Dessa forma
encaminha-se especificamente àquelas mais ligas à a musicologia tradicional deveria adotar a
metafísica dualista.
400
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

metodologia aplicada aos estudos chuva” de musicologia, estipula duas


etnomusicológicos como afirmam grandes categorias nos estudos sobre
Harrison, Hood, & Palisca (1963): “É música da atualidade: musicologia
função de toda musicologia ser na verdade sistemática e musicologia histórica e
etnomusicologia.” Essa visão recuperada e etnológica. A musicologia sistemática
revisitada a partir da década de 1980, divide-se em dois sub-grupos. O primeiro
recebeu o nome de Nova Musicologia e foi seria a musicologia sistemática científica,
protagonizada por trabalhos influenciados incluindo a relação entre a música e áreas
pela Nouvelle Historie, pela Antropologia como a psicologia, as ciências sociais, a
Cultural, pela Sociologia, pela Crítica acústica, a fisiologia, a neurociência e a
Literária e pelos trabalhos da Escola de ciência cognitiva. Por sua vez, a
Frankfurt. Kramer (2003), em sua musicologia sistemática humanística,
Musicologia Cultural, afirma que suas incluiria a filosofia estética, a sociologia, a
preocupações centram-se, antes de tudo, semiótica, a hermenêutica, a crítica
em questões do significado musical musical e os estudos culturais e de gêneros.
amplamente elaboradas em um contexto Nos últimos anos, temos visto a
antropológico. A tendência geral na manifestação de uma área que se auto-
musicologia pós década de 1980 denomina Musicologia Interdisciplinar que
caracteriza-se pela investigação dos tem como principal fundamento a
fenômenos musicais a partir dos aspectos aproximação entre as duas vertentes da
sociológicos, significações de tais Musicologia Sistemática, segundo o
manifestações em grupos sociais, não entendimento de Parncutt e outros. De
devendo considerar questões que se qualquer forma, a delimitação das ciências
afastem disso. que constituem uma área como a
A partir dos anos de 1990, surge musicologia vai sempre ser limitada,
um outro tipo de musicologia que se mesmo porque a prática de pesquisa,
concentrou não sobre aspectos sociais e principalmente dentro das perspectivas
antropológicos, mas sobre aspectos multi ou interdisciplinares, que têm se
psicológicos e cognitivos da experiência destacado na atualidade tendem escapar a
musical. Tal área, chamada de Musicologia uma sistematização. Nesse sentido,
Cognitiva, se caracteriza em primeiro parecem mais fácil delimitar agendas de
lugar, por uma reformulação da agenda de pesquisa e questões a serem estudadas do
pesquisa da psicologia da música e em que áreas e metodologias que podem
segundo lugar pelo apoio sobre os exercer tais investigações. Mesmo porque,
desenvolvimentos da chamada Revolução aparentemente, a Musicologia sempre teve
Cognitiva dos anos de 1970. Huron (1999), no mínimo uma vocação interdisciplinar.
aponta que a Musicologia Cognitiva se
opõe a Psicologia da Música, porque esta 2. Limites e alcances da Musicologia
última se apóia fortemente no positivismo
devido a seus protocolos behavioristas A partir deste momento o que nos
sendo, dessa forma, impedida de responder interessa é verificar se tais vertentes
questões ligadas à experiência musical musicológicas consideram questões
num sentido amplo. A Musicologia fundamentais sobre aquele que
Cognitiva possui ainda um forte apelo consideramos como ponto de partida para
computacional, decorrente das modelagens os estudos sobre música: a música
da Inteligência Artificial e do enquanto experiência.
Conexionismo, surgidos com a Revolução Propomos aqui uma taxonomia que
Cognitiva. somente visa destacar alguns pontos que
Parncutt (2007), no artigo que nos parecem estar razoavelmente
busca destrinchar o conceito “guarda- negligenciados em distintas orientações da

401
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Musicologia. Sendo assim, descrevemos não entendemos, ao contrário de Harrison,


três vertentes musicológicas: a) Hood, & Palisca (1963), que a musicologia
musicologia estruturalista, preocupada deve ser única e exclusivamente
com aspectos da sintaxe musical, que se etnomusicologia. Se a etnomusicologia
apóia na Teoria da Música e na Análise fosse capaz de responder nossas perguntas,
Musical; b) musicologia sócio-etnológica, poder-se-ia até cogitar tal possibilidade,
que pretende entender a música enquanto mas, de fato, esse não é o caso. Outra
fenômeno social e cultural; e c) problema sintomático do tipo de pesquisa
musicologia cognitiva, ocupada em que atrai os etnomusicólogos, é aquele
descrever como ocorrem determinadas referido ao interesse acentuado por
atividades musicais, entendidas como aspectos sociais sobre os propriamente
fenômenos cognitivos, atuando em musicais, e isso faz com que a musicologia
colaboração com a Psicologia, Filosofia, se torne uma parte da Sociologia, perdendo
Neurociência, entre outras. seu foco, assim como seu objeto de estudo
No entanto, observamos que as três (e.g. Bohlman, 1993; Brett, et al. 1994;
vertentes apresentam problemas. Não que Seeger, 1961).
sejam problemas ligados a suas próprias A musicologia estruturalista parece
constituições, mas são problemas que sofrer do contrário. Muitas vezes, torna-se
decorrem da defesa de uma musicologia de difícil distinguir entre os objetos de estudo
caráter o mais amplo possível, preocupada da Musicologia e da Teoria Musical. O
em lidar com questões conceituais básicas surgimento de novas formas de pesquisa e
o bastante para serem simplesmente de metodologias joga luz sobre antigos
desconsideradas nas abordagens mais postulados de tratadistas, teóricos e
tradicionais. Tais vertentes não enunciam compositores. O próprio desenvolvimento
questões como: qual é a natureza da da área analítica com novas técnicas
música, o que é e como é o fenômeno numéricas e computacionais (e. g. Forte,
musical, como experienciamos música, 1977; Oliveira, 1998) e a semelhança
como entendemos música, como sintática entre a música e a linguagem
percebemos música, para que serve natural (e. g. Raffman, 1993) favoreceram
música, por que gostamos de música? as investigações musicológicas de caráter
Talvez essas perguntas sejam básicas estruturalista. Mas, existe nessa
demais para serem investigadas em musicologia um domínio dos estudos sobre
abordagens musicológicas que já tenham o sistema tonal (e.g. Krumhansl & Kessler,
suas agendas preenchidas com suas 1982; Krumhansl & Shepard, 1989),
especificidades. Ao mesmo tempo são porém, ao contrário da musicologia sócio-
musicais demais, para serem meramente etnológica, estuda-se o sistema tonal sob o
lançadas à área da Epistemologia ou da enfoque das estruturas sintáticas e não das
Estética Geral. influências sócio-culturais correlacionadas.
Uma musicologia sócio-etnológica A vertente estruturalista tem grande apreço
pode lidar com algumas destas questões e, pela História da Música - o contrário
normalmente nem considera outras delas. também se mostra verdadeiro (e. g.
Na melhor das hipóteses tal orientação Dahlhaus, 1983). A Teoria Musical é uma
levará a respostas que consideram sempre área de conhecimento indispensável, assim
a música enquanto fenômeno social. No como a Análise Musical, mas a redução da
entanto, pode-se muito bem perguntar se é musicologia a elas ou, na melhor das
função da musicologia sócio-etnológica hipóteses a uma história da teoria musical,
responder e mesmo se interessar por que tem como metodologia a prática
indagações como as que levantamos acima. analítica, parece ser um estreitamento
Por outro lado, isso não faz com que tais muito acentuado do que pode ser a
questões sejam irrelevantes, mesmo porque musicologia; esse fato é ainda agravado

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

pela falta de diálogo entre essa apontar à vertente musicológica cognitiva é


musicologia estruturalista e a sócio- o uso de modelos psicoacústicos baseados
etnomusicológica. no paradigma do processamento de
A musicologia cognitiva, inclusive, informação, que carregam questões no
dedica-se à investigação acerca das mínimo controversas como seu caráter
relações entre níveis semântico e sintático, desincorporado e abstrato, do uso
porém através de um encaminhamento exagerado de representações físicas de
problemático, no qual o nível semântico é conteúdo simbólico que remontam ao
redutível ao sintático, ou seja, os aspectos problema do homúnculo, e a entender a
de significação do fenômeno musical são percepção como um processo do tipo de
explicados a partir da organização dos resolução (abstrata) de problemas, sem
elementos estruturais da obra (e.g. Lerdhal nenhuma consideração dos papeis que a
& Jakendoff, 1983). Naquelas propostas ação e o corpo exercem (cf. Clarke, 2005;
que não aceitam tal reducionismo, observa- Oliveira e Toffolo, 2005; Haselager, 2004;
se uma volta à perspectiva dualista – em Oliveira & Oliveira, 2003, Oliveira, 2002;
certo sentido uma perspectiva reducionista Merleau-Ponty, 1999). Nos parece,
formal, e ao mesmo tempo inclusive por decorrência do apreço pelo
conceitualmente dualista, já era defendida processamento de informação e das origens
por Hanslick (1989). Numa observação computacionais da mencionada revolução
panorâmica, pode-se ter a impressão de cognitiva, que a musicologia cognitiva
uma contradição entre os métodos e carrega consigo, mesmo que
objetivos desta musicologia; enquanto os implicitamente, a perspectiva dualista que
primeiros são bastante restritos, os separa de um lado uma mente que recebe
segundos são amplos e visam abranger informações precariamente estruturadas, e
todo um universo de casos. Como exemplo as elabora na construção de representações
do que acabamos de argumentar, podemos simbólicas sobre o qual o conhecimento se
tomar as pesquisas de Leman (1984). Tal sustenta, e de outro, o mundo enquanto
autor emprega uma metodologia bastante realidade física desordenada, que de
restritiva e simplista, como no caso do uso alguma forma propicia tal operação mental
das reduções em pitch-class. Porém suas de construção do conhecimento (cf. M-
conclusões, ou seus objetivos, visam dar Ponty, 2005 e 1999; Searle, 1998). Um
conta de explicar processos complexos, outro aspecto ainda a realçar é que para ao
como o de ontogênese do sistema tonal. paradigma do processamento de
Não pensamos que o conexionismo não informação, a sintaxe é responsável única
contribua com a pesquisa sobre cognição e pela realização do significado. Em outras
musicologia. O que ressaltamos é que ele palavras, há problemas quanto ao
não pode ser tomado como única estabelecimento de relações explicativas
abordagem possível. Em outras palavras, entre os níveis sintático e semântico, sem
nossa crítica aponta que essa vertente da mencionar o papel que o domínio coletivo
musicologia cognitiva fica presa em uma exerce na determinação do significado.
lacuna epistemológica quando transpõem
resultados e conclusões de experimentos de 3. Musicologia fenomenológica
laboratório, como os feito com Mapas
Auto-Organizados de Kohonen, para Entendemos que a musicologia até
conclusões sobre ontogênese de um aqui não concentrou esforços em responder
sistema musical, ou ainda para explicar perguntas básicas, fundamentais para o
funções que ocorrerem em sistemas direcionamento dos caminhos da pesquisa
neuronais de maior complexidade, como o em música. Assim, a partir do
dos humanos. (cf. Janata et al., 2002). encaminhamento de novas saídas para
Outro grave problema que podemos problemas antigos e através da abordagem

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

filosófica chamada de fenomenologia é que tecnologia desenvolvida no fim do século


esperamos apresentar uma possibilidade de XX trouxe novos horizontes aos modelos
direção aos estudos musicológicos, mais matemáticos, ampliou seu campo
especificamente àqueles que envolvem epistemológico e permitiu a reflexão sobre
percepção, significação e cognição relações antes impossíveis. Dupuy (1999)
musical. apresenta um caminho para a ontologia que
Em seu último livro, Maurice passa por uma naturalização da
Merleau-Ponty (2000), tece uma crítica a epistemologia e que vai ao encontro de
posicionamentos objetivistas e subjetivistas uma verdade heideggeriana sobre o Ser
como dois pólos de oscilação do mesmo (Sein), como diz: "a truth that involves a
paradigma; de um lado um mundo dado, deconstruction of the metaphysical view of
independente e anterior a um percebedor, the subject."
de outro lado, um percebedor que também Há grande proximidade entre essa
existe independente do mundo, que existe corrente filosófica, a fenomenologia, e
enquanto uma subjetividade, um áreas como a cibernética ou mesmo a
homúnculo, que pensa, considera, toma ciência cognitiva, por exemplo. Isso abre
decisões e, não sendo matéria, age sobre a caminho à proposta ontológica já iniciada
matéria. O autor aponta que todo no princípio de naturalização da
desenvolvimento da filosofia e da ciência Fenomenologia, presente no Visível e
modernas se dá sob o fundamento dualista Invisível de Merleau-Ponty, e as ciências
cartesiano, o que dificulta a tarefa de uma naturais. Em outras palavras, cremos que
investigação que procure na matéria e em uma musicologia fenomenológica pode
seu funcionamento particular as causas de encontrar nos estudos sobre percepção,
seus comportamentos específicos. A significação e cognição realizados pela
musicologia é uma das áreas do fenomenologia naturalizada, ou pela
conhecimento que vem apresentando uma ciência cognitiva atuacionista, um rico
transição bastante lenta entre o paradigma material para sua reflexão e descrições de
dualista cartesiano da modernidade e novas fenômenos musicais diversos; que ela pode
possibilidades paradigmáticas. Por isso nos reservar espaço em sua agenda e que
interessa voltar aos conceitos mais possui meios para desenvolver pesquisas a
fundamentais, para que a partir de novas fim de responder questões sobre a natureza
colocações acerca deles tenhamos novas do fenômeno musical, sobre a percepção
descrições sobre a experiência musical. musical, sobre significação e cognição
Fenomenologia tem sido um termo musicais.
empregado por diferentes filósofos e com A circunscrição do que estamos
certa variedade de significados. No denominando por musicologia
presente trabalho estamos nos referindo a fenomenológica envolve o exame de
uma tradição filosófica que se intitula alguns princípios ou conceitos
husserliana e que tem sido tema de fundamentais para a explicação de
comentários e encaminhamentos de uma qualquer fenômeno que se considere
série de autores2 durante todo o século XX musical: (i) a música é um fenômeno que
e na atualidade. Essa corrente tem envolve interação entre diferentes agentes
representado filósofos que buscam a para sua existência e desenvolvimento; (ii)
articulação dos saberes conceituais com a cognição musical é um caso particular de
práticas de laboratório, que permitem uma descrição geral de cognição
modelos onde as hipóteses conceituais (assumindo que se pode estabelecer um
podem ser implementadas ou testadas. A contínuo entre os processos cognitivos e os
processos naturais); e (iii) a significação
musical é um caso particular de um
2
M. Merleau-Ponty, M. Heidegger, H. Maturana, processo geral de significação.
F. Varela, J. Petitot, J.-M. Roy, entre outros.
404
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

É plausível afirmar que vários HARRISON, F.; HOOD, M.; PALISCA,


pesquisadores ligados à musicologia não C. Musicology. Englewood Clifis:
estão satisfeitos com os resultados obtidos Prentice-Hall, 1963.
pela prática científica cartesianamente HASELAGER, W.F.G. O mal estar do
orientada. A crença de que existe um representacionismo: sete dores de cabeça
objeto musical independente de um agente, da Ciência Cognitiva. In: FERREIRA, A.;
ou de que música é pura interiodade, ou de GONZALEZ, M.E.Q.; Coelho, J.G.
que o significado musical está contido Encontro com as ciências cognitivas. São
naquele objeto, ou ainda de que a música Paulo: Cultura Acadêmica, 2004.
nada significa, são pressupostos que vêm
sendo gradativamente abandonados. HEIDEGGER, M. El Ser Y el Tiempo.
Entender a música enquanto experiência, México: Fondo de Cultura Económica,
enquanto fenômeno, parece possibilitar 1997.
uma compreensão muito mais ampla do HURON, D. Music and mind:
domínio musical, ao apoiar-se naquilo que Fundations of cognitive musicology.
consideramos como o fato mais essencial Online, 1999. Disponível em: http://music-
de qualquer musicologia, ou seja, no cog.ohio-
entendimento de música como um state.edu/music220/bloch.lectures/bloch.le
processo interativo entre os vários ctures.html.
elementos que constituem um sistema
musical. JANATA, P. at al. The Cortical
Topography of Tonal Structures
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406
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A família como ambiente de musicalização: a iniciação


musical de 8 compositores e intérpretes sob uma ótica sócio-
cultural

Rita de Cássia Fucci-Amato


FMCG
fucciamato@terra.com.br

Resumo: Este artigo visa a analisar sociologicamente a constituição cultural do ambiente


familiar de oito músicos brasileiros eruditos e populares (Almeida Prado, Carlos Gomes, Chico
Buarque, João Bosco, Magdalena Tagliaferro, Milton Nascimento, Tom Jobim e Villa-Lobos).
Tomando seus depoimentos e biografias como material de pesquisa, analisa suas trajetórias sob
a perspectiva do capital cultural, conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.
O estudo delineia, assim, o papel da família como primeiro ambiente de musicalização do
indivíduo, oferecendo uma perspectiva crítica à noção de talento musical inato ou dom e
entendendo o desenvolvimento da habilidade artística como um fator socialmente constituído.

Palavras-chave: capital cultural; sociologia da música; educação musical; cognição musical;


família e cultura.

formas de capital constituem a estrutura


1. Fundamentação teórica de um capital global, mobilizado em
maior volume pelas classes mais
A sociologia da educação pode favorecidas socialmente. Assim, na
trazer relevantes contribuições para a dimensão que nos interessa para uma
compreensão do processo de análise do meio musical, a visão
transmissão de saberes culturais no seio bourdieuniana considera que a posição
familiar, que constitui um tipo de do indivíduo com relação à cultura é
educação musical informal. Oferece, condicionada pelo meio familiar. Nesse
assim, uma perspectiva diferente da matiz sociológico, os saberes, o estilo, o
predominante no senso comum, que bom gosto, a habilidade aparecem
considera a habilidade musical um dom principalmente como frutos do acúmulo
divino, talento inato desenvolvido por de capital cultural, não como uma
intuição, e não um fruto da influência simples subjetividade (um dom inato),
do contexto social ou da dedicação ao mas como uma “objetividade
estudo técnico artístico. Nesse sentido, interiorizada” (Ortiz, 1983), fruto da
destacaremos no presente trabalho as interação entre sociedade e indivíduo,
idéias do sociólogo francês Pierre do acesso a formas materiais de cultura,
Bourdieu (1930-2002), destacando o proporcionada por uma certa condição
conceito de capital cultural. econômica favorável. Segundo
Bourdieu Bourdieu (1998), o capital cultural pode
(1974;1983;1998;2003) prevê que a manifestar-se de três formas:
família transmite à sua descendência um • Estado incorporado: como um
conjunto de bens como herança: os patrimônio adquirido e
capitais econômico, escolar, social e, interiorizado no organismo, que,
dentre estes, o capital cultural. Estas portanto, exige tempo e submissão

407
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

a um processo de assimilação (ou formação do indivíduo, em diversos


cultivo) e interiorização por parte sentidos (e.g. formação ética, cultural,
do indivíduo – aprendizagem. No social), se processa principalmente
caso da música, o indivíduo é nessa fase do desenvolvimento
incitado ao estudo dessa arte e à cognitivo humano. Na família, o
prática de algum instrumento. Tal indivíduo desde seu nascimento interage
forma de capital cultural passa, com o meio onde vive para conhecê-lo e
então, a ser indissociável da passa a tomar este meio social (em seus
pessoa, a constituir uma aspectos materiais e simbólicos) como
habilidade que a valoriza. padrão para seu comportamento, em um
• Estado objetivado: como bens de processo de sociabilização. Assim, a
consumo duráveis – livros, família pode desempenhar o papel de
instrumentos, máquinas, quadros, principal agente social de iniciação
CDs, DVDs, esculturas, etc. cultural do indivíduo, intrínseco à sua
Portanto, é tributário da aquisição condição de instituição social. A
de bens materiais e dependente musicalização promovida pelo meio
diretamente do capital econômico. familiar pode constituir-se, então, desde
Para ser ativo, material e as formas simbólicas pela qual a criança
simbolicamente, deve ser passa a interessar-se (como as cores e
utilizado, apreciado e estudado, formato de capas de discos e livros) e,
transformando-se em estado para saciar sua curiosidade toma contato
incorporado. mais profundo (desejando ouvir
• Estado institucionalizado: como determinado disco, ler ou ouvir a leitura
uma forma objetivada, caso de um de algum livro, etc.).
certificado emitido por uma escola Dessa forma, o conhecimento
de artes, por um conservatório. Tal desses objetos culturais vai se tornando
certidão de “competência cultural” rotineiro e se aprofundando dia-a-dia,
não necessariamente indica o real permitindo com que a criança, ao
acúmulo de capital cultural, e sim conhecer, passe a gostar de
o reconhecimento oficial de tal determinados repertórios musicais, por
processo. O valor do certificado exemplo. Outrossim, as atividades
depende de sua raridade e permite culturais, como escutar música e assistir
a convertibilidade do capital à televisão, passam a fazer parte do
cultural em capital econômico. cotidiano do indivíduo, incitando-o a
A teoria bourdieuniana permite tomá-las como normais e necessárias,
colocar, então, que o capital cultural sentimento que, ao longo do tempo,
prevê as condições objetivas de cristaliza-se e permanece nas fases
aquisição da cultura. Por meio do futuras de sua vida. A família é, assim,
incentivo à leitura ou à audição musical, a primeira instituição de iniciação
com o acesso a livros e discos (estado musical do indivíduo. Cabe salientar,
objetivado), o indivíduo é aguçado em portanto, que os hábitos da família
sua curiosidade para entender estas determinarão os hábitos de seus filhos,
formas de expressão artística e, já que estes são formados
habituando-se a conviver com estas, cognitivamente em um processo que
passa a cultivá-las. Há, assim, uma envolve a imitação da atitude daqueles
grande importância de se dar acesso aos que estão a seu redor e este toma como
bens culturais às pessoas desde a padrão. Dar maior ou menor
infância, devido ao fato de que a importância a determinadas práticas

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

culturais, assistir a dados programas conversão em capital econômico, por


televisivos e escutar alguns repertórios exemplo, no acesso ao mercado de
musicais específicos serão, por trabalho como profissional capacitado.
conseguinte, atitudes reproduzidas pela Vale notar, que além de poder
descendência. A partir do momento em proporcionar lucros financeiros por
que o indivíduo passa a escutar um meio de sua conversão em capital
disco, este deixa de ser uma simples econômico e da possibilidade de acesso
forma material simbólica e passa a grupos de poder, o capital cultural
constituir um emissor de conteúdos, os também é capaz de conferir ao
quais, aprisionados pelo ouvinte, farão indivíduo lucros de distinção, status e
parte de sua formação. prestígio social.
Portanto, ao interiorizar os
O modo como essa forma [o conteúdos artístico-culturais por meio
capital cultural] realmente se dos estados objetivado e
desenvolve, como as
características maleáveis da
institucionalizado, o indivíduo passa
criança recém-nascida se então a constituir em si mesmo uma
cristalizam, gradativamente, no forma de capital, o estado incorporado.
contorno do adulto, nunca Aplicando a teoria sociológica
depende exclusivamente de sua de Bourdieu ao campo da educação
constituição, mas sempre da
natureza das relações entre ela e
musical, em um estudo acerca das redes
as outras pessoas [principalmente de configurações sócio-culturais de ex-
na família]. (Elias, 1997, p. 28) alunos e ex-professores de um
conservatório musical, Fucci Amato
Ademais, a forma objetivada (2004; 2005) concluiu, analisando a
prevê que o capital cultural também trajetória familiar e escolar destes, que
pode ser adquirido por meio de um dos principais motivos dos
atividades especificamente voltadas à depoentes para o encaminhamento ao
formação artística, ou seja, de educação estudo do piano foi o convívio destes
musical formal, no caso, como a compra em um meio familiar que valorizava a
pela família de um instrumento musical cultura e o estudo e que proporcionava
e a contratação de um educador o acesso a bens materiais culturais
capacitado que transmita o expertise (livros, discos, rádio, etc.), o que os
musical aos filhos, ou por meio do permitiu transcender o estado
acesso a uma escola especializada que objetivado do capital cultural rumo ao
emita certificados oficiais. Cabe notar estado incorporado (aprendizagem de
que, no caso de freqüência a piano) e ao estado institucionalizado
organização especializada de ensino (freqüência e diplomação por um
artístico (como um conservatório conservatório). Ademais, foram
musical), passa-se a compor o chamado salientadas as raízes de suas
estado institucionalizado. Esta forma de ascendências encontradas em famílias
aquisição de cultura abrange o estado imigrantes européias, que possuíam o
objetivado – já que permite a aquisição hábito de cultivo à cultura, da prática de
objetiva de conteúdos artísticos –, algum instrumento e do canto, ainda
porém, além de permitir que o indivíduo que, na maior parte dos casos,
tenha acesso ao saber musical, tem a realizados de forma amadora, apenas
condição oficial de atestar a submissão dentro do círculo de parentes e amigos.
a tal processo de ensino, permitindo
lucros mais diretos quando de sua

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

2. Metodologia e objetivos interpretando tanto a música erudita


como a popular.
Este artigo utiliza como método
de pesquisa a análise de entrevistas [...] o pai educou os filhos na
música e, logo que pôde, formou
(gravadas de forma audiovisual e uma banda, ou orquestra, com a
transcritas) e biografias de oito músicos família. [...] A tradição musical
de destaque na história da música vinha de longe, pois o pai de
brasileira, sendo quatro destes do Carlos Gomes tinha sido aluno de
âmbito erudito (Carlos Gomes, Villa- André da Silva Gomes, mestre-
de-capela da Sé paulistana [...].
Lobos, Magdalena Tagliaferro e Aos dez anos de idade, Carlos
Almeida Prado) e quatro do âmbito iniciou os estudos musicais com o
popular (Tom Jobim, Chico Buarque, pai e aprendeu a tocar vários
Milton Nascimento e João Bosco). Estes instrumentos. Mais tarde seria um
dados podem ser entendidos segundo a bom pianista acompanhador e
possuía uma voz agradável de
fundamentação teórica da história oral, tenor. Auxiliava o pai dando
que entende os depoimentos como lições de música em Campinas,
documentos orais, reveladores de tanto que se encontram nos
identidades sociais e pessoais (Fucci jornais daquela cidade, em janeiro
Amato, 2004). Ao conjugar tais dados a de 1858, anúncios seus de
oferecimento para ensinar
uma revisão bibliográfica sobre a teoria noções de música, canto e
do capital cultural de Pierre Bourdieu, o piano. (Mariz, 2000, p. 75-
objetivo do artigo é corroborar com este 6)
ponto de vista sociológico, enunciando
a idéia de que as habilidades musicais Heitor Villa-Lobos (1887-1959),
são desenvolvidas socialmente, tendo a maestro e principal expoente da música
família como sua principal origem, o brasileira, também revelou a grande
que contraria a perspectiva influência da cultura familiar,
predominante no senso comum, que determinante para sua incursão ao
julga tais habilidades artísticas mundo da música, destacando a
provenientes como um dom inato aos influência de seu pai:
grandes “gênios” da música.
Desde a mais tenra idade iniciei a
vida musical, pelas mãos de meu
3. Resultados
pai, tocando um pequeno
violoncelo.
Ao se analisar as biografias e os Meu pai, além de ser homem de
depoimentos dos músicos selecionados aprimorada cultura geral e
para a pesquisa quanto à importância da excepcionalmente inteligente, era um
músico prático, técnico e perfeito.
família na sua formação cultural, pôde-
Com ele, assistia sempre a
se notar nesses dados a consonância ensaios, concertos e óperas, a fim
com a teoria bourdieuniana do capital de habituar-me ao gênero de
cultural. conjunto instrumental. (Villa-
Antonio Carlos Gomes (1836- Lobos, 1987, p. 14)
1896), considerado por muitos o maior
compositor das Américas no século Outrossim, Mariz (1989)
XIX, teve contato com a atividade comenta que uma tia de Villa-Lobos era
musical desde cedo, já que seu pai, pianista e que seu avô também era um
Manuel José Gomes (Maneco Músico), homem de cultura elevada, autor de
era mestre de banda e compositor, uma obra famosa no século XIX:
Quadrilha das moças. Raul, pai de

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Villa-Lobos, o ensinou a tocar sozinha” (Tagliaferro, citada por Leite,


violoncelo e clarinete, ministrando-lhe 2001, p. 38).
também noções básicas de teoria da Aluno de Villa-Lobos e
música. O musicólogo ainda comenta Koellreutter, o compositor Tom Jobim
que, caso não houvesse nascido e vivido (1927-1994) revela que não possuía
no ambiente bastante musical que era grande interesse em adotar a música
cultivado por sua família, como uma profissão: “Eu tinha um
provavelmente teria seguido outra preconceito enorme contra música,
carreira, como a medicina, a matemática contra piano, eu achava que piano era
e o desenho. Nota, por outro lado, que, negócio de menininha. Eu queria jogar
ao contrário de seu pai, a mãe de Villa- futebol da praia” (Jobim, 2006). Depôs,
Lobos chegou a proibir-lhe de estudar por outro lado, que seu pai era um
piano, para que o menino não se homem de denso saber cultural: “Meu
entusiasmasse e decidisse tomar a pai, Jorge Jobim, poeta, literato,
música como profissão. parnasiano, pertenceu ao Itamaraty. [...]
A pianista brasileira de Morreu quanto eu tinha 8 anos” (Jobim,
ascendência francesa Magdalena 2006). Porém, dado o curto tempo de
Tagliaferro (1893-1986) “teve a música convivência com seu progenitor, não foi
como parte integrante de toda a sua este quem mais influenciou Tom Jobim
infância. Em sua casa, o piano e as em sua formação cultural e determinou
vozes eram uma constante” (Leite, seu encaminhamento para a música,
2001, p. 37). Seu pai estudara com os mas sim seu padrasto: “Meu padrasto
franceses Gabriel Fauré, renomado foi o homem que me inventou. Ela era
compositor, e Raoul Pugno, pianista de um humilde funcionário público. Não
nível internacional, ambos docentes do tinha dinheiro. O primeiro piano que eu
Conservatório de Paris, que mais tarde conheci era um piano velho, alugado,
Magda freqüentaria. Engenheiro, mas ela tava ali o tempo todo [me
quando veio ao Brasil Paulo Tagliaferro incentivando] [...]” (Jobim, 2006).
decidiu exercer a música como Pode-se notar no depoimento do
profissão, lecionando canto e piano em compositor, assim, a importância que o
seu domicílio: “A pequena Magdalena meio familiar teve ao incentivá-lo à
ouvia atenta o que se passava nas aulas prática musical e proporcionar-lhe,
e, já aos 7 anos, acompanhava os coros ainda que em meio a dificuldades de
de seu pais, os coros de Sansão e ordem econômica, o acesso a um
Dalila” (Leite, 2001, p. 37), tendo sido instrumento musical, forma de capital
o canto a primeira perspectiva de sua cultural em estado objetivado, que
inserção no mundo da música. O piano determinaria seu futuro sucesso
também se manifestou desde a infância, profissional.
atraindo o interesse daquela menina Também o compositor Chico
desde os 5 anos de idade. Segundo seu Buarque (1944-) evidencia uma
próprio relato: “Meu pai, como você configuração familiar notável com
sabe, era professor de piano e canto. relação às atividades de cultivo do saber
Diante disso, isso me levou a ouvir e da cultura: seu avô, Aurélio Buarque
música desde os cinco anos de idade. de Holanda Ferreira, era crítico literário,
Num cantinho da sala eu me ensaísta e filólogo, tendo sido membro
aconchegava e assistia às aulas. Quer da Academia Brasileira de Letras; seu
dizer, eu fui direto para o piano pai, Sérgio Buarque de Holanda,
importante historiador brasileiro,

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

lecionou nas Universidades de Roma meio maxixe, antigo assim e tal.


(Itália) e São Paulo (USP): “O meu pai Mas ele sabia alguma coisa de
música. E cantava. Eu lembro dos
tinha toda uma formação [...] erudita, dois cantando. É uma lembrança
como historiador, como critico literário bonita que eu tenho, o pai e a mãe
e tal [...]”. (Buarque, 2006b). Com cantando, assim, mas cantando
relação ao papel do pai, o compositor distraidamente, cantarolando ali,
destaca o apoio que este lhe deu quando sei lá, arrumando os livros e coisa
assim, e cantando sambas de Noel
passou a praticar a música [Rosa]. É uma música muito
profissionalmente. Coloca também que, presente na minha memória de
apesar de ainda não conhecer a obra de infância, O último desejo de Noel
seu pai na adolescência, ter crescido em Rosa. (Buarque, 2006a)
um ambiente cercado por livros de fato
o influenciaria no âmbito de sua A mãe do compositor e cantor
educação familiar. Chico Buarque faz Milton Nascimento (1942-), empregada
notar ainda que não somente seus pais doméstica, trabalhava em uma casa
foram importantes na constituição de onde havia duas meninas que
um ambiente familiar propício à estudavam piano. Uma delas, Lília,
formação de um futuro músico, mas que chamava o futuro músico e o colocava
também sua babá o influenciou, no colo para ele ouvi-la tocar, ainda
levando-o ao cinema e ouvindo música bebê, conforme relata:
no rádio: “Eu tinha uma babá que ouvia
Ela, além do piano, foi a primeira
rádio o dia inteiro. Então uma parte
voz de mulher que eu escutei na
muito importante da minha influência minha vida, [...] e ela, apesar de
era minha babá. [...] E ela ficava lá de não ser cantora profissional [...],
noite ouvindo aquele rádio, era a rádio ela cantou regida por Villa-Lobos,
Nacional, eu ia muito tempo, passava ela cantava nas festas de rua,
festas de igreja [...]. E eu ia com a
muito tempo na cozinha ouvindo o rádio
sanfoninha [...], que é terrível,
da babá”. (Buarque, 2006a). porque não tem nenhum
Prosseguindo seu depoimento, delineia sustenido, nenhum bemol, e aí era
o influxo de sua mãe na sua formação uma coisa incrível, porque quando
cultural, o gosto de seus pais pela ela ia, eu sentia que ia vir uma
nota que não tinha na sanfona, aí
música popular e a grande presença da
eu pegava, fazia com a voz,
música em seu ambiente familiar. imitando a sanfona. (Nascimento,
Destaca ainda como uma ótima 2007)
recordação a lembrança de seus pais
cantando informalmente: O compositor e violonista João
Bosco (1946-) revelou em seu
Mas meu pai adorava música depoimento ter crescido em um
também, adorava música popular, ambiente familiar cercado pela música.
e tinha vários amigos que
gostavam de música. Minha casa
Iniciou sua prática musical ao violão
era freqüentada por gente de sob o incentivo de sua irmã, pianista
música. Muito por causa de profissional, que possuía estudos
Vinicius [amigo do meu pai]. musicais formais, cantava com uma voz
Vinicius levou lá pra casa toda a muito bonita “e ficava entre a música
turma da Bossa Nova e tal. [...]
Minha casa sempre foi muito
mais formal e a música popular”
musical, por causa do meu pai e (Bosco, 2007). Também destacou: “A
por causa da minha mãe, os dois. minha mãe sempre gostou de violino,
Meu pai tocava um piano, era um toca violino até hoje, tem 90 anos. A
piano meio, o samba dele era

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

minha vó, mãe de minha mãe, era babás, etc.) é inserido no universo
bandolinista” (Bosco, 2007). Seu pai, artístico-musical, desenvolvendo sua
finalmente, era comerciante e apreciava cognição voltada à compreensão do
bastante música popular, levando à sua fenômeno artístico, que pode ser,
casa diversos discos que adquiria no futuramente, tomado como linha diretriz
comércio do Rio de Janeiro. de sua vida.
Finalmente, José Antonio de
Almeida Prado (1943-), um dos o 5. Áreas de pesquisa
compositores eruditos brasileiros mais
relevantes da história de nossa música Educação musical, sociologia da
contemporânea, também tem em sua música, musicologia, fundamentos
família configurações socioeconômicas históricos, filosóficos e sociológicos da
e culturais específicas que lhe educação, história (história oral).
permitiram iniciar-se na música desde a
infância: 6. Referências

O artista vem de uma das famílias BOSCO, João. Entrevista a Paulo


mais ilustres de São Paulo [...]. Moska. In: Canal Brasil. Zoombido: a
Sua iniciação musical começou
em casa, pois sua mãe e sua irmã
canção é de ninguém. Programa de
tocavam piano muito bem. José entrevistas. Rio de Janeiro: Canal
Antonio e a irmã Teresa Maria Brasil, 2007.
tinham um teatrinho de fantoches
e ele fazia a trilha sonoro: BOURDIEU, Pierre. A economia das
tempestades, galopes e acordes trocas simbólicas. São Paulo:
para sublinhar as passagens mais Perspectiva, 1974.
emocionantes. (Mariz, 2000, p.
391) BOURDIEU, Pierre. Questões de
sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero,
4. Conclusões 1983.
BOURDIEU, Pierre. Os três estados do
O delineamento da trajetória capital cultural. Trad. Magali de Castro.
musical dos oito músicos brasileiros In: NOGUEIRA, Maria Alice;
escolhidos para ilustrar e comprovar a CATANI, Afrânio (Orgs.). Pierre
teoria sociológica do capital cultural, Bourdieu: escritos de educação. 2 ed.
fundamentada por Bourdieu, Petrópolis: Vozes, 1998b. p. 71-79.
desvelaram o papel do ambiente
familiar na constituição de um impulso BOURDIEU, Pierre. Capital cultural,
inicial dado a estes para que escuela y espacio social. Madrid: Siglo
futuramente fizessem do capital cultural XXI, 2003.
seu maior patrimônio, trilhando uma BUARQUE, Chico. Depoimento. In:
carreira profissional na área de música, OLIVEIRA, Roberto de (dir.). Chico, a
seja popular, seja erudita. série: Estação Derradeira.
Assim, pôde ser notado o fato de Documentário em DVD. Manaus:
que o ambiente cultural influi Videolar, 2006a.
decisivamente na formação do
indivíduo, que, ao ouvir música via BUARQUE, Chico. Depoimento. In:
discos, rádio ou por meio da OLIVEIRA, Roberto de (dir.). Chico, a
interpretação das pessoas que compõem série: Palavra-chave. Documentário em
o círculo familiar (pais, irmãos, tios, DVD. Manaus: Videolar, 2006b.

413
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

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discente de um conservatório musical.
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compositor brasileiro. 11. ed. Belo
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414
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

O desenvolvimento da motivação na gestão dos recursos humanos


em corais: conceitos e práticas

Rita de Cássia Fucci-Amato


FMCG
fucciamato@terra.com.br

Resumo: Este artigo analisa o papel do regente coral em motivar seu grupo, a partir de uma revisão de
literatura multidisciplinar, envolvendo as áreas de gestão de recursos humanos, música e psicologia. A
pesquisa bibliográfica foi conjugada a dados coletados empiricamente, por meio de um questionário
aplicado a 19 (dezenove) estudantes graduandos em Música (bacharelado e licenciatura) na Faculdade de
Música Carlos Gomes (São Paulo), que freqüentam as disciplinas Regência coral II e Prática coral. Por
meio da pesquisa, foi possível delinear a relevância da motivação na prática coral e fatores motivacionais
que influem nesse contexto.

Palavras-chave: motivação, regência coral, gestão de recursos humanos, fatores motivacionais,


criatividade.

principalmente, em recursos humanos


1. Revisão de literatura (regente, coralistas, etc.). Portanto, o
trabalho de gestão de pessoas se aplica a
Há diversos tipos de coros, com todos os grupos vocais e, sob esse ângulo, o
objetivos diferentes, como a inclusão social, processo de motivação é intrínseco e
o lazer e a difusão de repertórios musicais necessário a estes conjuntos artísticos.
específicos. Nota-se a existência de grupos Motivação é um estado psicológico
profissionais e amadores e, nesse sentido, no qual o indivíduo tem disposição para
que os coralistas destes dois tipos de coro realizar uma ação, seja no trabalho, seja em
são motivados por diferentes fatores. qualquer esfera de sua vida. Na raiz latina da
Enquanto para alguns o canto coral é uma palavra, movere, encontra-se uma de suas
atividade que demanda maiores exigências e características-chave, o movimento, a
profissionalismo, para outros consiste em um dinâmica, ou seja, motivação não é algo
lazer. Assim, há fatores de motivação, como implantado no indivíduo de forma
a remuneração, que somente se aplicam a um permanente, mas sim um processo contínuo
dos tipos de coro. O objetivo deste estudo é em que fatores de diversas naturezas atuam,
oferecer contribuições para prática coral a partir da concretização dos desejos das
amadora, porém há aspectos discutidos que pessoas, do cumprimento de suas metas e do
também podem contribuir no âmbito de atendimento de suas expectativas (Amato
coros profissionais e de outros tipos de Neto, 2005). Para motivar, é preciso cultivar
conjuntos musicais. a auto-estima individual, integrar a pessoa ao
O que pode ser definido como seu grupo de trabalho e fazê-la se sentir
comum a todos as vertentes do canto coral é importante para o sucesso coletivo.
que o coro constitui uma organização – Segundo Maximiano (2006), a
formal ou informal – ou grupo social que se motivação é constituída por fatores (ou
funda em recursos materiais (como motivos) internos, como as constituintes
instrumentos musicais, partituras) e, psicológicas de comportamento específicas

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

de cada pessoa, e por fatores externos, caso das necessidades fisiológicas, quando uma
das recompensas e punições oferecidas pela necessidade é satisfeita, aquela que fica no
organização ou grupo. Para ser motivado nível imediatamente superior passa a se
dentro de um grupo social, o indivíduo manifestar (Kondo, 1994; De Masi, 2003). A
precisa ser atendido em três necessidades necessidade da pessoa em dado nível da
interpessoais (Schutz, citado por Bergamini, hierarquia precisa ser atendida para que a
1988): inclusão, controle e afeição. Ao ser pessoa tenha seu nível de motivação
incluída, a pessoa passa a estabelecer e aumentado (Maxiamiano, 2006). Ademais,
manter um relacionamento estável com as necessidades que já foram satisfeitas não
outras pessoas, realizando trocas materiais e influem mais no comportamento humano;
simbólicas, que influem em seu auto- somente aquelas ainda não cumpridas
conceito e desenvolvem sua sociabilidade. A exercem potencial de motivação sobre o
necessidade de controle, por sua vez, indivíduo (Chiavenato, 2003), porém deve-
consiste em influenciar o comportamento se sempre buscar um processo dinâmico,
das outras pessoas, o que faz o indivíduo com o cumprimento gradual das
sentir-se importante naquele grupo social. A necessidades, para que o ciclo motivacional
afeição, finalmente, é um prolongamento da seja prolongado. A interpretação rígida da
necessidade de inclusão, ou seja, além do hierarquia de Maslow, entretanto, incorre em
senso de pertencimento ao grupo, a pessoa se erro, já que as necessidades podem variar de
sente amparada por outras em termos acordo com a personalidade do indivíduo,
psicológicos. Segundo Bergamini (1988, p. sua faixa etária e condição socioeconômica:
87), a teoria de Schutz “aponta um fator de “todas as cinco necessidades estão sempre
grande importância que reside na busca do presentes, mas suas importâncias relativas
equilíbrio, que é constantemente almejado, variam de um nível baixo para um alto,
entre o comportamento da própria pessoa e conforme nosso padrão de vida se eleva [...]”
das demais com os quais lhe é dado (Kondo, 1994, p. 17).
interagir”. A partir da teoria de Maslow, pode-se
No âmbito da gestão de recursos incluir o canto coral em um cenário de
humanos, a temática da motivação foi qualidade de vida e equilíbrio social, já que a
desenvolvida pela administração. Dentre as participação em atividades que promovam o
teorias motivacionais mais relevantes, aumento da auto-estima e do senso de auto-
destacam-se as abordagens efetuadas por realização constitui significativo aspecto da
Maslow e Herzberg. formação do indivíduo. Nessa perspectiva, o
Para Maslow, citado por Mathias canto coral auxilia a pessoa no seu
(1986), Kondo (1994), Chiavenato (2003), crescimento pessoal e, a partir de então, em
De Masi (2003) e Maximiano (2006), a sua motivação (Fucci Amato e Amato Neto,
motivação ocorre a partir do cumprimento 2007; Fucci Amato, 2007).
das necessidades do indivíduo, agrupadas em Aplicando-se a visão de Herzberg
uma hierarquia, convencionalmente (citado por Kondo, 1994; Chiavenato, 2003;
representada por uma pirâmide, em que o Maximiano, 2006) ao trabalho coral, pode-se
grupo de necessidades básicas ou delinear que há basicamente duas categorias
fisiológicas ocupa a base e o conjunto de de fatores determinantes da motivação
necessidades de auto-realização se localiza humana em um grupo: a primeira,
no topo. Tais necessidades motivacionais constituída por fatores extrínsecos ou
seriam, portanto, as: básicas ou fisiológicas, higiênicos, refere-se aos aspectos: salário
de segurança, sociais ou de participação, de condizente com a tarefa e a função do
estima ou ego e de auto-realização. A partir profissional (aplicável somente a coros

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

profissionais), políticas de recursos humanos tornar cansativo quando se visa a um bom


da organização, estilo de supervisão do nível de performance, e este reclama que o
trabalho, relações interpessoais e as coralista esteja motivado para que a
condições ambientais de higiene e segurança atividade não perca seu caráter “lúdico” e
do trabalho (local adequado de ensaio, por para que o nível de qualidade musical/ vocal
exemplo). A presença de tais fatores na do coro não seja prejudicado.
prática gerencial – da instituição que Stamer (1999) estudou quais os
mantém o coro e do regente – constituiria comportamentos que um regente coral deve
apenas as condições básicas para se adotar para criar uma atmosfera no ensaio
minimizar o estado de insatisfação dos coral que motive os coralistas a aprender,
colaboradores/ coralistas. Para que houvesse utilizando-se de seis variáveis desenvolvidas
um clima grupal favorável à consecução dos por Hunter acerca da motivação do
objetivos do coro, seria necessário estudante: nível de preocupação/
incorporar-se àqueles fatores os chamados engajamento, expressão de sentimentos
fatores intrínsecos ou motivacionais. Tais relacionados à atividade, interesse na
fatores estão intimamente relacionados à atividade, sucesso, conhecimento dos
natureza do trabalho em si e podem resultados e grau de recompensa
despertar o sentimento de responsabilidade e proporcionada pela atividade (sentimento de
a percepção de crescimento e de auto- realização). Ainda destacou que a
realização do indivíduo. especificidade de cada grupo torna
Assim, ao participar de um coro, necessária a aplicação de diferentes
pode-se efetivar a integração interpessoal – estratégias motivacionais, ou seja, estas
por meio do tratamento do regente visando à devem ser condizentes com a faixa etária dos
igualdade na transmissão de conhecimentos coralistas/ estudantes, os objetivos
novos para todas as pessoas, independente pretendidos por estes ao participarem do
da origem social, faixa etária ou grau de coro e as metas grupais. Ainda para Stamer
instrução – e se promover a motivação, pela (1999, p. 26): “A técnica motivacional mais
própria natureza desta atividade – artística e efetiva que os educadores musicais corais
criadora -, que permite envolver os coristas podem empregar é prestar atenção ao
em um processo de “fazer o novo” (cantar desenvolvimento pessoal e musical de seus
diferentes repertórios, apresentar-se em estudantes (‘atenção regente/ estudante’)”.
diversos locais, etc.). Além disso, há uma Cabe finalmente notar que a
motivação intrínseca à construção de motivação é entendida, no presente estudo,
conhecimentos de si (de sua voz, de seu como uma habilidade que compõe a
aparelho fonador, de suas habilidades competência da regência coral. Nesse
artísticas) e da realização da produção vocal sentido, compreende-se que habilidades
em conjunto, culminando no prazer estético seriam constituintes de determinada
e na alegria de cada execução com qualidade competência, sendo esta constituída por
e reconhecimento mútuo – entre os coralistas habilidades correlacionadas e pelo
e por parte de expectadores diante do grupo conhecimento teórico já previamente
vocal (Fucci Amato, 2007). adquirido pelo indivíduo (Fleury e Fleury,
Por outro lado, apesar de ser uma 2000; Dutra, 2001; Zacharias, 2008; Garcia,
prática que notadamente gera a motivação 2008). Dessa forma, a competência da
pessoal (Mathias, 1986; Gumm, 2004; Fucci regência coral se funda no conhecimento
Amato, 2007) – no caso de coros amadores, musical, pedagógico e de outras áreas e em
em que as pessoas cantam por lazer – o diversas habilidades, dentre as quais se
trabalho técnico-musical em corais pode se destaca o saber motivar.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

2. Metodologia experiência adquirida e as reflexões


efetuadas durante a freqüência a tais
O presente trabalho foi realizado em disciplinas específicas; nota-se, ainda, que
duas etapas: revisão bibliográfica e coleta alguns alunos também possuem prática de
empírica de dados. A literatura compulsada canto e/ou regência coral externa à
teve como eixo central o conceito de Faculdade. Considera-se, então, que este
motivação, essencial no campo da gestão de grupo de respondentes à pesquisa é uma
recursos humanos. A bibliografia buscou ter população que possui certo nível de
um caráter multidisciplinar, envolvendo as conhecimento das atividades corais e da
seguintes áreas do conhecimento: prática musical, podendo realizar uma boa
administração, engenharia de produção, avaliação acerca do fator motivação em
psicologia, música (regência coral), grupos corais.
educação musical e pedagogia. Tal revisão
conceitual foi conjugada a uma pesquisa de 3. Objetivos
opinião, aplicada junto a 19 (dezenove)
alunos de cursos de graduação (bacharelado O objetivo deste trabalho é refletir e
e licenciatura) em Música da Faculdade de apresentar propostas para a melhor gestão
Música Carlos Gomes (FMCG), em São dos recursos humanos de coros no que se
Paulo-SP. refere ao fator motivacional dos coralistas.
Os dados foram coletados, durante o Para tanto, apresenta uma revisão conceitual
segundo semestre de 2007, por meio da e a opinião de uma população que contém
aplicação de um questionário que avaliou a conhecimento específico da prática coral.
opinião dos discentes acerca da relevância da
habilidade de motivar por parte do regente 4. Resultados e conclusões
coral e das principais ações de motivação
que poderiam ser implementadas nesse tipo A coleta das opiniões dos discentes
de grupo musical. Os índices graduandos em Música revelou que a
correspondentes às respectivas respostas habilidade do regente coral de saber motivar
foram obtidos segundo uma escala pré- os coralistas obteve a média 3,26, o que
definida, tendo os respondentes atribuído revela que essa habilidade é considerada
seus conceitos segundo os índices: não entre muito importante e essencial. Esse
importante (0), pouco importante (1), resultado foi obtido pela média aritmética
importante (2), muito importante (3) e simples das opiniões dos discentes, tendo 3
essencial (4). (três) destes a considerado importante, 8
Cabe destacar que os respondentes (oito) discentes a apontado como muito
são discentes das disciplinas Regência coral importante e 8 (oito) alunos a julgado como
II (7 alunos) e Prática coral (12 alunos) e essencial. Não foram colhidas respostas
que os questionários foram aplicados ao final considerando a habilidade como sendo não
do semestre letivo, visando permitir uma importante ou pouco importante. O gráfico a
melhor avaliação por parte do alunado sobre seguir ilustra tal resultado.
tais aspectos da gestão de um coro após a

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Gráfico 1 – A importância da habilidade do regente de saber motivar os coralistas

Como é possível notar, os discentes, muito importante); 3) saber reconhecer os


representando nesta pesquisa coralistas, defeitos e qualidades de cada um (2,89 –
atribuem relevância ao processo entre importante e muito importante); 4)
motivacional no contexto da prática coral e escolher democraticamente um repertório
consideram a habilidade de motivar um fator variado (2,79 – entre importante e muito
importante dentro da competência da importante); 5) estimular a criatividade dos
regência coral. coralistas (2,63 – entre importante e muito
Com relação à postura e às atividades importante); 6) aplicar um sistema de
que um regente de coro, em geral, poderia punições e compensações (mais privilégios
promover para motivar os coralistas, foram para os mais esforçados) (1,42 – entre pouco
destacadas as seguintes ações, em ordem importante e importante); 7) outras ações
decrescente de pontuação: 1) valorizar os (0,47 – entre não importante e pouco
conhecimentos e experiências musicais dos importante). O gráfico que se segue ilustra
coralistas (média = 3,10 – entre muito visualmente a participação relativa de cada
importante e essencial); 2) ouvir as opiniões uma das citadas ações no conjunto total de
dos coralistas (2,95 – entre importante e fatores motivacionais no coro.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Gráfico 2 – Ações para a motivação no canto coral

Cabe notar que dentre as outras ações influência do trabalho educativo-musical


propostas para a motivação no canto coral, 4 com o repertório de interesse do discente na
(quatro) discentes destacaram a importância motivação deste em um curso de violão. A
de o regente ser aberto a diferentes tipos de autora concluiu que a flexibilização do
música, 3 (três) alunos colocaram o fator de repertório, de acordo com os interesses e
interação e respeito entre regente e conhecimento musical prévio dos discentes,
coralistas e 2 (dois) estudantes citaram a ao promover uma adaptação às
promoção de encontros de lazer com o coro. especificidades do grupo de aprendizagem
Os resultados obtidos nos três musical – que não seria possível com um
primeiros índices apontam que os discentes/ repertório pré-determinado – permite que se
coralistas atribuem uma grande parcela de utilize a bagagem musical do indivíduo para
sua disposição para a participação na motivá-lo a avançar e ampliar seu
atividade coral ao fator de reconhecimento e conhecimento musical de repertório. Dessa
valorização individual, ou seja, sentem-se forma, acredita-se que o regente possa
motivados ao serem valorizados em seus promover uma escolha democrática de uma
conhecimentos e opiniões com relação à parte do repertório, adaptando as sugestões
prática coral. Nesse sentido, desvela-se o dos coralistas às necessidades técnico-
desejo de participação dos coralistas, que pedagógicas do processo de educação
pode ser efetivado por uma gestão mais musical. Porém, também há que se manter
participativa e democrática, com discussões uma parcela do repertório escolhida pelo
lideradas e organizadas pelo regente. regente visando ao desenvolvimento musical
A escolha do repertório também é um e estético pretendido por aquele coro.
fator de destaque na motivação dos Com relação ao estímulo da
coralistas, conforme revelaram os dados criatividade dos coralistas, podem-se
coletados. Este resultado corrobora com a desenvolver diversas atividades, como
pesquisa de Tourinho (2002), que avaliou a montagem de espetáculos cênicos, o

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

estímulo a atividades de pesquisa (de relacionamento mais próximo entre estes.


repertório, de teoria musical, etc.), a Portanto, a motivação no canto coral
composição de músicas (paródias, canções se configura como um processo que somente
sobre temas determinados, como saúde pode atingir sua eficácia a partir de um
vocal), a realização de jogos pedagógicos/ processo de liderança do regente, que,
musicais e outras estratégias criativas fazendo uso de habilidades de gestão de
(dramatização de um texto de música, pessoas, há que desenvolver um ambiente
atividades para descontração). Pode-se humano propício à (re)criação artística
incentivar, assim, “a espontaneidade e a coletiva.
impulsividade das pessoas [...] [fazendo-as]
brincar com as idéias e com os elementos, 5. Subáreas do conhecimento
justapondo-os e combinando-os de maneiras
incomuns, inesperadas e engraçadas” Psicologia da música, gestão de
(Wechsler, 1993, p. 73). Nesse sentido, recursos humanos em música.
destaca-se a experiência relatada por
Bündchen (2005), que investigou o uso do 6. Referências
movimento corporal na composição criativa
de peças musicais, inserida em uma proposta AMATO NETO, J. Organização e
de utilização do construtivismo no canto motivação para produtividade. São Paulo:
coral. Ao desenvolver a estratégia criativa de FCAV/ EPUSP. Apostila do Curso de
composição utilizando o corpo como Especialização em Administração Industrial,
instrumento musical – possibilitando a 2005.
criação de sons, movimentos e sensações
BERGAMINI, C. W. Psicologia aplicada à
diferentes -, a autora notou que a exploração
administração de empresas: psicologia do
da utilização corpo-movimento-ritmo
comportamento organizacional. 3. ed. São
culminou em uma melhoria da performance
Paulo: Atlas, 1988.
coral, na afinação, descontração e
expressividade do grupo. BÜNDCHEN, D. A relação ritmo-
Quanto ao estabelecimento de um movimento no fazer musical criativo: uma
sistema de punições e compensações aos abordagem construtivista na prática de canto
coralistas, esta pesquisa evidenciou que isso coral. Dissertação (Mestrado em Educação)
pouco os motivaria, incutindo um sentimento – Universidade Federal do Rio Grande do
de obrigatoriedade e coerção que cercearia Sul, Porto Alegre, 2005.
suas liberdades de participação e ação CHIAVENATO, I. Administração de
colaborativa na construção dos objetivos Recursos Humanos – Fundamentos
coletivos do coral. Básicos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
Finalmente, dentre as outras ações
propostas pelos respondentes à presente DE MASI, D. Criatividade e grupos
pesquisa, vale notar a preocupação com a criativos. São Paulo, Sextante, 2003.
relação do respeito interpessoal (regente- DUTRA, J. S. (Org.). Gestão por
corista e corista-corista), evidenciando o competências. São Paulo: Gente, 2001.
importante papel do regente como
solucionador de eventuais problemas de FLEURY, A.; FLEURY, M. T. Estratégias
caráter pessoal que surjam no coro, e a empresariais e formação de competências.
sugestão da promoção de eventos extra- São Paulo: Atlas, 2000.
ensaio, que permitam aos coralistas FUCCI AMATO, R. C.; AMATO NETO, J.
desenvolverem sua sociabilidade e um Choir conducting: human resources

421
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

management and organization of the work.


In: Proceedings of the 18th. Annual
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habilidades. Disponível em:
<http://www.centroref-
educacional.com.br/compehab.htm>. Acesso
em: 12 jan.2008.

422
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Refletindo sobre o talento musical na


perspectiva de sujeitos não-músicos

Sergio Luiz Ferreira de Figueiredo


UDESC
Luciana Machado Schmidt
UFSC
schmidt.luciana@gmail.com

Resumo: Em dois trabalhos anteriormente publicados pelos autores, a questão do talento


musical foi discutida com objetivos específicos. No primeiro texto, os autores apresentaram uma
breve revisão de literatura sobre essa temática. No segundo trabalho, o talento musical foi
discutido na perspectiva de estudantes universitários de música. As contradições apresentadas
naquele estudo motivaram a continuação da pesquisa sobre o mesmo tema. Este trabalho se
propõe a discutir o que sujeitos não-músicos afirmam sobre o talento, no intuito de conhecer o
que estes sujeitos pensam e verificar se estes sujeitos expressam as mesmas opiniões que os
estudantes universitários de música. Participaram do estudo 19 indivíduos respondendo a um
questionário com 7 questões abertas. Os participantes apresentaram diferentes definições sobre
o que seria talento e afirmaram a possibilidade de todos os indivíduos se desenvolverem
musicalmente. Os sujeitos não-músicos consideraram que não é necessário talento para se
desenvolver musicalmente, ao passo que os sujeitos estudantes de música da pesquisa anterior
afirmaram o contrário. Assim como a literatura da área não apresenta aspectos conclusivos
sobre o talento musical, a presente pesquisa não tem a intenção de encerrar este debate. Muito
pelo contrário, este estudo demonstra a necessidade de que este tema, tão complexo, continue a
ser abordado. Outras investigações podem trazer resultados que se somem aos já discutidos na
literatura, contribuindo para que a educação musical não seja privilégio de uns poucos, mas
oportunidade para muitos.

Palavras-chave: Música, educação musical, talento musical.

musical foi discutido na perspectiva de


1. Introdução estudantes universitários de música, que
apresentaram opiniões diversificadas
Em dois trabalhos anteriormente sobre o talento musical, tendendo a
publicados pelos autores (Figueiredo & considerar que para lidar com música é
Schmidt, 2005, 2006), a questão do preciso ter talento, apesar de também
talento musical foi apresentada com dois expressarem a idéia de que todos os
objetivos específicos. No primeiro texto, indivíduos podem se desenvolver
os autores apresentaram uma breve musicalmente. As contradições
revisão de literatura sobre o talento apresentadas neste estudo motivaram a
musical, tratando dos seguintes tópicos: O continuação da pesquisa sobre o talento
legado ocidental do ideário Romântico; musical.
Uma nota sobre as Psicologias do século Na continuidade das reflexões
XIX ao século XXI; Música e Psicologia; sobre o talento musical, o referencial
Refutando a idéia de talento ou dom teórico adotado nos dois trabalhos
musical a priori (Figueiredo & Schmidt, anteriores mencionados permanece o
2006). No segundo trabalho, o talento mesmo, uma vez que a presente pesquisa

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

tem a intenção de investigar diferentes psicologia histórico-cultural, todas as


grupos de sujeitos. Este estudo analisa habilidades do ser humano são
aspectos referentes ao talento musical a necessariamente desenvolvidas na e a
partir de um grupo de sujeitos não- partir da cultura, como enfatiza Vygotski
músicos. (1997), sendo “uma falácia
considerarmos que exista algo ‘natural’,
2. Fundamentação teórica como dons independentes de educação e
desenvolvimento numa cultura”
Na literatura sobre talento (Figueiredo & Schmidt, 2006, p. 210).
musical, verifica-se que não há um Pensar em como o meio pode
consenso entre os pesquisadores sobre o contribuir para desenvolver habilidades é
que é talento, de que forma ele é medido, extremamente importante do ponto de
se é inato ou adquirido, ou se pode haver vista educacional. Assim, vários autores,
uma relação direta entre talento e tais como Campbell (1998) e Bellochio et
desenvolvimento de habilidades. al. (2001), chamam a atenção para o risco
(Figueiredo & Schmidt, 2006). Vários são de que a educação musical se volte
os pesquisadores que apresentam em seus apenas para aqueles indivíduos já
trabalhos resultados de diversos estudos considerados ‘talentosos’, uma vez que
sobre o talento musical. Howe et al. esta atitude contribui para que “se
(1998), por exemplo, definem o que seria perpetue a discussão sobre a necessidade
talento inato e adquirido: ou não da música estar inserida na
a) talento inato – parece existir em educação escolar e para que se promova
alguns indivíduos que possuem [ou não] uma educação musical voltada a
facilidades especiais para a poucos” (Figueiredo & Schmidt, 2006, p.
realização de certas tarefas; 210).
b) talento adquirido – através de São muitos os autores que
oportunidades, treinamento e consideram que a musicalidade é uma
incentivo, os indivíduos podem característica da espécie humana e, sendo
desenvolver habilidades que não assim, que todos os seres humanos
eram evidentes anteriormente. estariam aptos a se desenvolverem
(Figueiredo & Schmidt, 2006, p. musicalmente (Sloboda, 1985;
209-210) Hargreaves, 1986; Sloboda, Davidson,
Com relação a diferenças inatas Howe & Moore, 1996; Hodges, 2000;
entre os indivíduos, Howe et al. (1998, p. Figueiredo & Schmidt, 2005). Tal
30) apresentam que tais habilidades não desenvolvimento é sempre dependente de
podem ser previstas. Além disso, sendo o vários fatores culturais, tais como
talento uma elaboração exagerada ou oportunidade, mediação pedagógica,
simplificada de um conjunto de quantidade de prática, motivação, entre
elementos, as pesquisas não são outros. Conforme destacado por
conclusivas, levantando inúmeras Figueiredo e Schmidt (2005) discutindo
questões sobre diversos aspectos que as pesquisas de Hargreaves (1986),
poderiam ser determinantes para o estudo Sloboda (1985), e Davidson et al. (1997),
do talento musical. não há
Sobre o talento adquirido, os
pesquisadores enfatizam o meio como [...] um consenso entre os
elemento fundamental no psicólogos sobre o que seria o
desenvolvimento de habilidades musicais ‘talento musical’ ou se este
(Davidson et al.,1997). Na perspectiva da poderia realmente ser inato ou
desenvolvido com o tempo.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Entretanto, há atualmente uma o fato dos sujeitos não atuarem como


tendência a se relativizar o músicos, embora alguns deles pudessem
papel da genética em ter breves experiências musicais durante a
comparação com o papel ativo vida. Outro critério relaciona-se ao acesso
exercido pelo meio ambiente. dos pesquisadores a estes sujeitos que se
Podemos pensar nosso
‘repertório genético’ mais
disponibilizaram a participar do estudo.
como uma série de Participaram indivíduos com idade entre
‘potencialidades’ que podem 21 e 54 anos.
ser ativadas pela cultura, do O questionário continha 7
que como algo que se impõe questões abertas, e os participantes
por si, absolutamente separado responderam livremente sobre os tópicos
do meio. (Figueiredo; Schmidt, apresentados. Alguns participantes
2005, p. 388-389) responderam ao questionário escrevendo
as respostas à mão e outros digitaram suas
Esse referencial demonstra que o respostas, enviando-as por e-mail.
desenvolvimento do talento musical é O questionário utilizado para este
uma questão complexa, sendo inadequado estudo foi adaptado daquele
considerar a existência do talento musical anteriormente utilizado com os estudantes
a priori, ou inato. A educação musical é, universitários de música (Figueiredo;
portanto, fundamental para oportunizar Schmidt, 2006). As questões versaram
experiências significativas que promovam sobre: o hábito de ouvir música; o acesso
o desenvolvimento de habilidades à formação musical e à participação em
musicais. atividades musicais; o conceito de talento;
a necessidade ou não de talento para se
3. Objetivos fazer música e, finalmente, a
possibilidade de desenvolvimento
O presente trabalho se propõe a musical; o questionário também abriu
discutir brevemente questões relacionadas espaço para comentários que os
ao talento musical na perspectiva de participantes quisessem acrescentar.
sujeitos não-músicos. Um dos objetivos é A análise predominantemente
conhecer o que estes sujeitos pensam qualitativa dos dados gerados pela
acerca do talento musical. Outro objetivo investigação foi realizada a partir das
é verificar se tais sujeitos expressam as respostas dos participantes, visando à
mesmas opiniões que os estudantes compreensão daqueles sujeitos sobre o
universitários de música. Ao analisar talento musical. A análise qualitativa foi
estes dados, pretende-se aprofundar as escolhida em função do número de
reflexões sobre o talento musical, participantes e do objetivo de conhecer a
contribuindo para o esclarecimento de visão destes sujeitos sobre a temática
questões complexas que envolvam a proposta, sem a intenção de generalização
educação musical dos indivíduos. de resultados. Todas as citações em
itálico, ao longo do texto, referem-se às
4. Método respostas literais dos participantes.

A coleta de dados foi realizada a 5. Resultados


partir de um questionário aplicado a
dezenove sujeitos, dos quais quinze são Em relação à questão sobre o
do sexo feminino e 4 do sexo masculino. hábito de ouvir música, os participantes
O critério de escolha dos participantes foi foram unânimes em suas respostas: todos

425
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

ouvem música em seu cotidiano. Os oportunidades para participar de


gêneros musicais foram bastante atividades musicais contínuas. Outro
diversificados. Os mais recorrentes participante relatou que ‘foi considerado
foram: MPB e Rock nacional e surdo para a música’ em sua primeira
internacional. Alguns dos participantes experiência musical, o que certamente
detalharam artistas e grupos musicais de não é motivador para que um indivíduo
sua preferência. Outros gêneros incluídos continue seus estudos musicais.
foram: blues, jazz, samba, pagode, Sobre o talento musical, as
sertanejo, música evangélica, música respostas dos participantes também foram
instrumental, música clássica e baladas. O diversificadas. Habilidade e aptidão
fato de todos os participantes ouvirem foram as definições mais utilizadas,
música reforça a idéia da presença e da seguidas de dom, facilidade,
importância da música na vida dos seres potencialidade, vocação, predisposição e
humanos, ainda que tais sujeitos não capacidade. Três sujeitos acreditam que o
sejam músicos. talento nasce com a pessoa, sendo que
Sobre a formação musical ao outros dois afirmaram que talento é um
longo da vida, infelizmente poucos (n=9) dom que não depende de conhecimento
foram os que tiveram a oportunidade de formal ou de prática. Outros quatro
estudar formalmente música durante os sujeitos mencionaram que talento é uma
anos escolares, sendo esta experiência habilidade natural - que nasce com a
relatada como descontínua. Dois deles pessoa -, mas que pode ser desenvolvida
tiveram alguma formação musical fora da ao longo da vida. Dois sujeitos
escola, mas quase sempre por pouco enfatizaram a idéia de estudo, trabalho e
tempo. Esta situação dos participantes não persistência no desenvolvimento de
é exceção no contexto brasileiro. São habilidades, onde o talento é um dos
raras as escolas de educação básica que elementos, mas não o único. Diante
incluem a música como componente destas respostas, evidencia-se a idéia do
curricular sério e significativo para a inatismo com relação ao talento. No
formação integral dos indivíduos. Em estudo realizado com estudantes
outros casos, a música somente está universitários de música, estes mesmos
presente como acessório e ornamentação, conceitos sobre o talento foram
sem a devida relevância no contexto empregados, apontando para a crença
escolar. na existência do talento inato e
A participação em atividades simultaneamente na possibilidade de
musicais foi apresentada pelos sujeitos desenvolvimento do talento, relacionado
deste estudo de forma variada. Sete “à força de vontade, ao desejo de
pessoas nunca tiveram oportunidades aprender algo e à oportunidade”
musicais; praticamente todos os demais (Figueiredo; Schmidt, 2005, p. 211).
(n=10) participaram de corais ou grupos Uma das questões respondidas
musicais por pouco tempo, de poucos pelos participantes referiu-se à
meses a dois anos; duas pessoas relataram necessidade de talento para lidar com
sua participação em corais de igreja pelo música. Treze dos sujeitos consideraram
período de 5 a 7 anos. Esta pequena que não é necessário ter talento para tal,
amostra revela a falta de continuidade das ressaltando que estímulo, força de
experiências musicais dos participantes. vontade, dedicação e estudo são
Dois sujeitos manifestaram fundamentais para o desenvolvimento
explicitamente sua insatisfação com este musical. Quatro participantes afirmaram
fato, e desejariam ter tido maiores que é necessário ter talento para lidar com

426
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

música, associando-o a idéias de sucesso, afirmando que para tocar ou cantar ‘com
destaque, algo único e inatingível. Um alma... só os que têm o dom’; outro
dos participantes acredita que nem acredita que talvez seja possível este
sempre o talento é necessário para fazer desenvolvimento, mas que ‘a pessoa já
música, e outro não respondeu a esta nasce com talento’. Resultados bastante
questão. Os números decorrentes similares foram encontrados na pesquisa
desta tabulação são praticamente realizada com estudantes universitários
inversos aos resultados da pesquisa com de música, onde a maioria acredita que
estudantes universitários de música, onde todas as pessoas podem se desenvolver
13 afirmaram a necessidade de talento musicalmente com a mediação
para lidar com música, 4 consideraram o pedagógica adequada. Um único
talento relativo para o desenvolvimento estudante afirmou que “não pode se
musical e 3 não achavam necessário a desenvolver musicalmente quem não
existência de talento para lidar com possui uma ‘alma artística’” (Figueiredo;
música. Os dados parecem sugerir que Schmidt, 2005, p. 212).
para se fazer música profissionalmente é Os comentários apresentados por
preciso talento. Neste estudo realizado 2 participantes incluíram o desejo de ver
com não-músicos, alguns participantes a música em todas as escolas, oferecendo
responderam que é necessário talento mais oportunidades para todos na
para ser músico, para ter destaque ou aprendizagem de voz e instrumentos
fazer sucesso. No entanto, quando musicais. A necessidade de se incentivar
afirmaram que para lidar com música as pessoas a aprenderem música foi
não é preciso ter talento é possível que destacada por um dos sujeitos deste
estivessem se referindo ao fato de lidar estudo; outro participante fez uma crítica
com música rotineiramente, sem a a métodos em vigor na escola, que
pretensão ou intenção de ser músico. muitas vezes desestimulam os estudantes
Alguns participantes se referiram a para a prática musical, lembrando da
diferentes velocidades de aprendizagem, necessidade de se promover melhor
sugerindo que a pessoa talentosa poderia preparo dos professores de música.
ser aquela que aprende mais rápido do Outro participante enfatizou o
que as outras. Um participante enfatizou reconhecimento da música como forma
que ‘estudo e esforço superam o talento’. de inclusão e valorização do ser humano.
A última questão dizia respeito Um último comentário está reproduzido
à possibilidade de todos os indivíduos a seguir:
se desenvolverem musicalmente se
tivessem orientação adequada. Dezessete A Arte em qualquer das suas
sujeitos responderam que acreditam na modalidades é fundamental
possibilidade de aprendizagem musical a para o ser humano e eu
partir de uma orientação adequada, acredito neste ser, portanto
sendo que 3 deles foram enfáticos tenho plena certeza de que se
todos pudessem estar
respondendo ‘com certeza’. Quatro
envolvidos com arte, neste
sujeitos incluíram em suas respostas caso particular a música (de
reflexões sobre a importância dessa qualidade), nosso planeta
orientação para o desenvolvimento estaria mais tranqüilo e
musical, valorizando o papel do equilibrado.
professor de música. Um participante
não acredita na possibilidade de todas as
pessoas se desenvolverem musicalmente,

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

diversos componentes relacionados à


6. Conclusões educação musical, nesta visão, são
desconsiderados ou alocados em uma
A presente investigação condição inferior. É como se o talento
confirmou a complexidade da questão do fosse tratado de forma isolada e abstrata
talento, complexidade esta já desconsiderando os diversos elementos
evidenciada na pesquisa anterior que constituem as condições concretas
realizada com estudantes universitários de aprendizagem. Sob esta concepção,
de música e na literatura sobre o tema. O quem não tem talento não poderá se
inatismo está presente nas respostas dos desenvolver musicalmente, mesmo que
participantes que consideraram o talento se dedique ao estudo da música.
uma característica independente da Como não existe uma definição
aprendizagem: ‘saber fazer algo sem ter única de talento, tanto na visão dos
estudado e praticado, e fazer isso muito sujeitos, como na literatura sobre o tema,
bem’. Ao mesmo tempo, o e também são inexistentes mecanismos
reconhecimento de que a realização objetivos de medição de talentos,
musical depende de muitos fatores, além assumir esta postura é uma falácia. Além
do talento, fez parte de várias respostas. disso, tal visão impede uma educação
Há semelhanças entre as duas musical democrática, restringindo o
pesquisas realizadas com sujeitos acesso de todos os indivíduos à
estudantes de música e sujeitos não- aprendizagem da música. Assim como a
músicos. Em ambos os estudos, as literatura da área não apresenta aspectos
definições de talento são similares, conclusivos sobre o talento musical, a
apresentando desde a visão do dom inato até presente pesquisa não tem a intenção de
a possibilidade de desenvolvimento encerrar este debate. Muito pelo
musical onde elementos como motivação, contrário, este estudo demonstra a
vontade, dedicação, estudo, podem ser necessidade de que este tema, tão
mais fundamentais do que o talento. A complexo, continue a ser abordado.
possibilidade de todos os indivíduos se Outras investigações podem trazer
desenvolverem musicalmente também foi resultados que se somem aos já discutidos
um ponto comum entre as pesquisas. na literatura, contribuindo para que a
No entanto, uma grande educação musical não seja privilégio de
diferença entre as duas investigações está uns poucos, mas oportunidade para
nas respostas da questão que trata da muitos, se não para todos.
necessidade de talento para lidar com
música. Os estudantes de música 7. Subáreas de conhecimento
consideraram necessário o talento, ao
passo que os não-músicos afirmaram o Música, educação musical, psicologia
contrário. O que se pode inferir com
da música, psicologia histórico-cultural,
relação a esta divergência de opinião
estaria relacionado à existência, em nossa psicologia cognitiva.
sociedade, de uma crença em que os
músicos precisam de talento para exercer 8. Referências bibliográficas
sua atividade, crença esta amplamente
propagada no meio musical. Nesta BELLOCHIO, C. R.; GEWEHR, M.;
perspectiva, o talento seria uma condição FARIAS, C. H. B. Educação musical,
a priori e possivelmente inquestionável formação e ação de professores dos anos
para alguém se tornar músico. Os iniciais de escolarização: Um estudo em

428
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

processo. In: ENCONTRO REGIONAL COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 1,


DA ABEM SUL E I ENCONTRO DO 2005, Curitiba. Anais... Curitiba: UFPR,
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MÚSICA/LEM-CE-UFSM, 4, 2001, HARGREAVES, D. The
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HARGREAVES, D. J.; NORTH, A. C. SLOBODA, J. A.; DAVIDSON, J. W.;
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188-206. performing musicians. British Journal
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COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 1,
2005, Curitiba. Anais... Curitiba: UFPR,
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FIGUEIREDO, S. L. F.; SCHMIDT, L.
Discutindo o talento musical a partir da
visão de estudantes de música. In:
SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A “escuta diferenciada” dos problemas de aprendizagem


mediada pela musicoterapia na educação

Sandra Rocha
srochakanda@gmail.com

Resumo: Este trabalho aborda uma proposta investigativa interdisciplinar entre as áreas de
Educação e Música, especificamente entre a Psicopedagogia e a Musicoterapia frente às
dificuldades de aprendizagem. Tem como objetivo apresentar uma experiência desenvolvida na
área da Musicoterapia (1999), realizada dentro do contexto escolar com crianças e adolescentes
que apresentavam elevados índices de agressividade e inquietação psicomotora, desvelando as
significações das condutas infanto-juvenis consideradas atípicas. Posteriormente, apresenta uma
proposta de investigação ampliando os estudos da aplicabilidade da Musicoterapia nos casos de
dificuldades de aprendizagem (2006).
No decorrer dos atendimentos musicoterápicos realizados com os alunos-pacientes com níveis
elevados de agressividade, observou-se uma diferenciação nas suas expressões musicais, ou
seja, suas condutas psico-musicais retrataram suas características psicológicas e
comportamentais peculiares, projetando seu mundo interno. Percebeu-se que ao proporcionar a
re-organização das condutas psico-musicais desses alunos, vivenciando momentos de aceitação
e valorização do que é e de como se expressa através do fazer musical, uma nova música foi
introjetada, ocasionando mudanças em suas condutas sociais. Desta forma, a ampliação dos
estudos sobre a aplicabilidade da Musicoterapia na educação objetiva constatar a possibilidade
de re-significação nos casos de dificuldades de aprendizagem, através de uma abordagem
investigativa interdisciplinar onde várias áreas do conhecimento contribuem para a ‘leitura’ dos
déficits no ensino-aprendizagem, oportunizando modificações desde a percepção docente sobre
o aluno até o proporcionamento de novas maneiras de aprender.
Conclui-se que ao proporcionar diversos estudos sobre a utilização da Musicoterapia nas
questões do ensino-aprendizagem, configura a possibilidade de ampliar as investigações sobre a
eficácia da música nos processos cognitivos. A Musicoterapia, acolhendo e trabalhando com a
auto-expressão que se apresenta, pode proporcionar aos indivíduos envolvidos no processo
ensino-aprendizagem o restabelecimento da capacidade de aprender e ensinar, ampliando e/ou
resgatando a interação entre os envolvidos no processo, auxiliando na re-estruturação
intrapessoal e interpessoal e, consequentemente, a uma abertura à aprendizagem. Condição sine
qua non para essa possibilidade investigativa é ancorar-se na abordagem interdisciplinar,
favorecendo a construção de redes de conhecimentos buscando compreender os fenômenos que
são apresentados em suas múltiplas perspectivas.

Palavras-chave: Musicoterapia na Educação; Condutas psico-musicais; Dificuldades de


Aprendizagem;

professora de educação artística na rede


1. Fundamentação teórica regular e como musicoterapeuta no
ensino especial, utilizando tanto o
O interesse pela utilização da desenho como a música como meios de
Musicoterapia na Educação, frente às oportunizar a auto-expressão dos
dificuldades de aprendizagem, surgiu a alunos. Na prática musicoterápica foi
partir das observações obtidas nas possível perceber alguns resultados
práticas pedagógicas enquanto alcançados com os alunos com

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

necessidades especiais quando da são, geralmente, utilizados


introdução de elementos musicais indiscriminadamente dentro das escolas,
durante as atividades, principalmente na sem critérios conscientes e planejados,
reestruturação de comportamentos configurando-se como “pano de fundo”
inadequados, proporcionando pensar na para as atividades pedagógicas. A
operacionalização de novos estudos esse respeito Nogueira (s/ data) realizou
junto ao alunado sem deficiência. uma pesquisa sobre a utilização de
Um tema polêmico na músicas dentro de instituições de
atualidade, em diversos contextos em educação infantil do município de
que se trabalha com crianças e Goiânia, CIMEIS (Centros Municipais
adolescentes, é o aumento dos de Educação Infantil), onde constatou
comportamentos inadequados e anti- que no campo teórico, após o
sociais daqueles. Quer seja na família, levantamento de trabalhos referentes à
na escola, na comunidade ou em outros música na Educação Infantil, “o
ambientes sociais, a queixa de maior trabalho pedagógico na área de música
evidência é a falta de limites, bem como encontra-se bastante defasado em
a presença constante de ações e/ou relação a outras áreas do conhecimento,
reações agressivas entre si e com as as quais, em sua grande parte, já
demais pessoas com que convivem. No apontam para uma concepção de
contexto escolar, essa ‘falta de limites’ educação infantil mais crítica e
é denominada como ‘indisciplina’, transformadora”(p.03). Nogueira
ocasionando situações desestruturantes (op.cit) enfatizou ter percebido a música
em todo ambiente educacional. Jover sendo “sub-utilizada”, afirmando que
(1998) afirma que atualmente as escolas “(...)ela (a música) não está presente na
vivenciam uma situação onde os rotina das crianças, e as poucas
professores não conseguem desenvolver atividades com a linguagem musical
os conteúdos escolares por que seus aconteciam sem a intervenção das
alunos encontram-se “desinteressados, educadoras (música ambiente). Na
apáticos, bagunceiros, isto é, maioria dos CMEIs vimos que a
indisciplinados”. Em consonância com direção e a coordenação pedagógica
a autora, foi possível observar que as também não estimulavam práticas
reações que os docentes manifestam, musicais”(p.08), verificado-se pouca
vão desde a grande dificuldade em modificação na dinâmica do uso da
ministrar suas aulas, passando pela música na escola após a intervenção da
excessiva preocupação e elevado nível pesquisadora. Esse estudo explicita o
de queixas, principalmente nos quanto a música é utilizada de forma
momentos de planejamento pedagógico, descontextualizada e sem planejamento
até a própria mobilização emocional dentro do ambiente escolar, sendo
através de acessos de ira ou quadros explorada, muitas vezes, através dos
depressivos. exemplos midiáticos, negando toda a
Frente a esse quadro de riqueza cultural do universo musical
indisciplina e presença de casos de infantil e pessoal de cada aluno.
agressividade infanto-juvenil, efetivou- Encontrar material teórico sobre
se uma experiência musicoterápica a aplicabilidade da musicoterapia com a
dentro da escola. Verificou-se, a partir clientela com deficiência objetivando a
das observações realizadas re-estrutruração dos déficits
assistematicamente nas escolas, que a comportamentais foi de fácil acesso.
música e seus elementos constitutivos Mas ainda ficava em aberto a

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

compreensão sobre a influência da


música nos processos cognitivos do (...) atitude de reciprocidade que
alunado. Busquei compreender o que se impele à troca, que impele ao
diálogo - ao diálogo com pares
apresentava nos momentos idênticos, com pares anônimos ou
musicoterápicos através de estudos consigo mesma, atitude de
ligados a variadas áreas do humildade diante da limitação do
conhecimento - Pedagogia, Psicologia, próprio saber, atitude de
Educação Musical, Psicopedagogia, perplexidade ante a possibilidade
de desvendar novos saberes,
Psicologia do Desenvolvimento, atitude de desafio - desafio
Neurociências e Musicoterapia- para perante o novo, desafio em
entender e justificar como aconteciam redimensionar o velho- atitude de
as evoluções no processo de envolvimento e comprometimento
aprendizagem. É perceptível que tanto a com os e com as pessoas neles
envolvidos, atitude, pois, de
construção da práxis musicoterápica compromisso em construir sempre
quanto à formatação de novas propostas da melhor forma possível, atitude
investigativas sobre a aplicabilidade da de responsabilidade, mas,
Musicoterapia na Educação, evidenciam sobretudo, de alegria, de
uma similaridade com o enfoque revelação, de encontro, enfim, de
vida.
interdisciplinar, visto que me percebo
em constante busca de outros olhares
Identificações com a presente
que possam me fazer ‘ver’ e
proposta de investigação encontram-se
compreender meu objeto por diversas
quando a autora descreve como surge
perspectivas bem como empreendendo
uma pesquisa interdisciplinar, onde
ações numa práxis que ‘acolhe’ outros
expõem que “(...) a pesquisa que
pares no processo de resgate da unidade
denominamos interdisciplinar nasce de
do ser que ajudamos: nosso aluno com
uma vontade construída. Seu
problemas no aprender.
nascimento não é rápido, exige uma
A perspectiva interdisciplinar na
gestação prolongada, uma gestação em
construção do conhecimento científico,
que o pesquisador se aninha no útero de
muito estudada e defendida por vários
uma nova forma de conhecimento- a do
teóricos, oferecendo subsídios
conhecimento vivenciado e não apenas
importantíssimos para as propostas de
refletido, a de um conhecimento
pesquisas interdisciplinares como uma
percebido, sentido e não apenas
nova forma de se conceber a construção
pensado”. (Fazenda, apud Guimarães,
do conhecimento. Guimarães (2002,
2002, p.21)
p.24) aborda que o pesquisador, para
Através da intercessão entre as
pensar na pesquisa interdisciplinar,
áreas estudadas, possibilitada pela
precisa estar embasado na sua
construção de trabalhos
especialidade, de onde “distende (...) do
monográficos1[1], um novo
seu saber especializado para buscar
delineamento começava a ser
outras disciplinas (ou especialidades) e
construído: a musicoterapia voltada para
até em outros campos do conhecimento,
a identificação precoce de dificuldades
subsídios para enriquecer o seu objeto
de estudo”. Fundamental a “atitude 1[1]
“As linguagens artísticas numa abordagem
interdisciplinar” que Fazenda (apud psicopedagógica” (UCG,1992); “A
Nogueira, 1998, p. 31) enfatiza como Musicoterapia como facilitadora de um processo
condição ao pesquisador inserido nesta de aprendizagem” (UFG, 1995); “A
perspectiva: Musicoterapia no contexto escolar: uma ‘escuta’
diferenciada (UFG, 1999).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

de aprendizagem, visando sua variados, desde proporcionar o


minimização e/ou extinção. Desta desenvolvimento da capacidade de
forma, a construção de uma nova atenção, estimular a imaginação,
proposta investigativa sobre a estimula a criatividade, ser fonte de
aplicabilidade da Musicoterapia na admiração, desenvolver a memória,
educação, encontra-se prioritariamente entre outros aspectos. Para o autor, a
antecedida pelas experiências música também “ayuda al niño a
vivenciadas, dos quais apresento um transformar su pensamiento,
deles. eminentemente pre-lógico, em lógico,
Compreender a música debido a que la música da conciencia de
influenciando no desenvolvimento tiempo y ello sin apagar su afectividad.
cognitivo da criança, pressupõe dialogar (...) desarrolla el sentido del orden y
com vários estudos que buscam análisis”(p.75).
investigar como esse fenômeno atua no Outra área em que encontro-me
ser humano. Na área da musicoterapia, ancorada é a Psicopedagogia. Enquanto
poucos estudos são verticalizados às área do conhecimento que investiga
questões da aprendizagem em sobre os problemas de aprendizagem, já
indivíduos ‘normais’, ficando as tem avançado, em muito, nos estudos
investigações centradas nos casos de acerca das possíveis conexões entre o
presença de deficiências e/ou aprender e os aspectos psicoemocionais
psicopatologias, onde as várias envolvidos. Para tanto, utiliza provas
investigações na área da música foram pedagógicas e projetivas, geralmente o
realizadas objetivando compreender brincar e o desenho, que sinalizam
como ela atua no cérebro humano como está a articulação do cognitivo e
ativando áreas lesadas ou que possam suas emoções. Evidencia, nos estudos
substituir funções perdidas. Dentre os realizados, os vários fatores que possam
estudos, Queiroz (2003, p.34) relata que interferir na aprendizagem, dentre os
“o modo global e integrador da música quais algumas condições são
nos envolver talvez seja reflexo de sua consideradas como fatores acentuadores
decodificação multiprocessada pelo na configuração do quadro de
cérebro”. Continua, afirmando que, a ´dificuldades de aprendizagem’.
partir do modo como o cérebro Sendo assim, o presente trabalho
organiza-se para processar a música, a não pretende ser conclusivo, mas
musicalidade parece ser uma função apresentar alguns resultados obtidos nos
integradora, uma função que coordena casos de dificuldades de aprendizagem,
outras funções ou que as enriquece e, através da musicoterapia na educação,
ainda, uma função capaz de colocar o apontando para novas investigações.
meio cerebral em movimento, em fluxo,
pois para processar a música formam-se 2. Objetivos
diversas cadeias neurais e ativam-se
diferentes centros trabalhando em Demonstrar a aplicabilidade da
conjunto (p.33). No campo da Musicoterapia na educação frente aos
Psicologia da Música, muitos estudos problemas de aprendizagem, nos casos
evidenciam como os estímulos musicais de distúrbio de conduta.Dar a conhecer
proporcionam respostas em variados a continuidade dos estudos sobre a
aspectos do ser humano. Blasco (1999) aplicabilidade da Musicoterapia na
afirma que os efeitos intelectuais da Educação, propondo a Musicoterapia no
música no ser humano podem ser contexto escolar no favorecimento da

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

identificação e modificação das verbal e física aos colegas ou aos


dificuldades de aprendizagem. materiais alheios) e a grande dificuldade
de centrar a atenção na execução das
3. Método atividades propostas. Estas condutas
apresentavam uma intensidade elevada,
Na experiência musicoterápica gerando transtornos na dinâmica da sala
realizada, foi utilizada a abordagem de aula bem como nos momentos de
qualitativa inter-ativa da Musicoterapia. lazer, dificultando a fruição das
Compreender esses comportamentos atividades e a interação grupal.
sob um outro enfoque, diferente do Realizou-se um total de dezoito
senso comum que os denomina como encontros musicoterápicos, dentro da
‘indisciplina’, ‘falta de educação’, ‘falta escola, em horário e sala estabelecidos
de limites’, ‘culpa dos pais/família’, junto à coordenação pedagógica, sem
entre outras rotulações, foi a primeira prejuízo aos alunos nas demais
atitude buscada, ou seja, fez-se atividades. Utilizou-se alguns
necessário estabelecer uma “escuta instrumentos de percussão (tambores,
diferenciada” desde o início do processo chocalhos), melódicos (flauta-doce, voz
de investigação, suspendendo as com microfone) e harmônicos (violão),
rotulações advindas das variadas e de técnicas musicoterápicas como a
queixas, quer seja dos professores, dos recriação musical, a improvisação livre
outros alunos, da direção e dos e contextualizada, jogos melódicos com
funcionários da escola, bem como dos a voz (canto de desafio, tipo
familiares. Após uma explanação do “repentistas”). Para o registro dos dados
quadro de indisciplina no contexto utilizaram-se relatórios escritos
escolar, buscando teóricos que discutem descritivos e gravações em áudio K-7.
as diferenças entre ‘disciplina’ e Na continuidade dos estudos
‘indisciplina’, realizou-se um estudo sobre a aplicabilidade da Musicoterapia
sobre os aspectos psicopatológicos que na educação, frente às dificuldades de
poderiam configurar a possibilidade de aprendizagem, objetivando
um quadro de Distúrbio de Conduta, compreender os diversos aspectos
onde foi possível verificar quando as relacionados com o aprender e suas
condutas do indivíduo transcendem a dificuldades, acredito que o processo
normalidade e podem configurar investigativo que proponho se
comportamentos apresentados nos fundamenta numa perspectiva
quadros psicopatológicos descritos pela interdisciplinar, onde os estudos já
Psiquiatria na área da Saúde Mental. A realizados em duas áreas parecem se
escolha dos alunos-pacientes foi fazer necessários: na área da Música
realizada junto aos docentes e à (verticalizando nos achados da
coordenação da escola, elegendo os Psicologia da Música e da
casos de crianças e/ou adolescentes Musicoterapia) e na área da Educação
ditos “problemáticos” na sala de aula (com as contribuições da
e/ou na escola, apresentando sinais de Psicopedagogia). A ampliação dessa
agressividade exagerada, tanto verbal investigação, através do projeto de
quanto física, e inquietação persistente pesquisa de doutoramento (2006),
durante as atividades escolares. Dentre possibilitará constatar a efetividade da
todos os sinais observados, o que mais Musicoterapia na re-significação das
chamou a atenção foi o alto nível de dificuldades de aprendizagem, através
comportamentos agressivos (agressão de uma abordagem investigativa

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

interdisciplinar onde várias áreas do do setting (sala), entre outras ações que
conhecimento possam contribuir para a foram consideradas como condutas
‘leitura’ dos déficits no ensino- apresentadas e que pareceram retratar as
aprendizagem, oportunizando características psicológicas do grupo
modificações desde a percepção docente e/ou de um aluno-paciente, projetadas
sobre o aluno até o proporcionamento no ‘fazer musical’ e nas movimentações
de novas maneiras de aprender. A corporais, caracterizadas por uma
metodologia pensada na investigação “desorganização e não-comunicação”.
configurar-se-á como pesquisa-ação, Percebeu-se que, ao proporcionar a re-
propondo intervenções musicoterápicas organização das condutas psico-
aos alunos que apresentam dificuldades musicais desses alunos, vivenciando
de aprendizagem, bem como aos seus momentos de aceitação e valorização do
professores envolvidos. que é e de como se expressa através do
fazer musical, uma nova música foi
4. Resultados introjetada, ocasionando mudanças em
suas condutas sociais. Possibilitando a
No decorrer dos atendimentos modificação no ‘fazer musical’,
musicoterápicos realizados na modificações foram observadas e
experiência psicopedagógica e relatadas por seus pares em outras
musicoterápica, observou-se que os situações fora do setting. A partir da
alunos-pacientes selecionados leitura musicoterápica das principais
manifestavam uma diferenciação na condutas psico-musicais manifestadas
expressão musical, ou seja, suas pelos alunos-pacientes, foi possível
condutas psico-musicais2[2] retratavam perceber que há uma íntima relação
características psicológicas e entre a expressão sonora e corporal e os
comportamentais peculiares, projetando conteúdos intrapsíquicos, sendo
seu mundo interno. Os alunos com esclarecidas a partir do referencial da
quantidade maior de condutas área da Musicoterapia, buscando
inadequadas, no início do processo, realizar uma análise musicoterápica
apresentaram musicalmente, as para compreender as mensagens que
seguintes condutas psico-musicais: estariam sendo manifestadas naquelas.
intensidade sonora muita elevada (ff);
escolha de instrumentos sonoros que 5. Conclusões
possibilitavam essa intensidade; ritmos
desestruturados; intensidade vocal Poucos estudos existem na área
muito elevada; rompimento e/ou quebra da Musicoterapia investigando sobre
de instrumentos e objetos sonoros; sua aplicabilidade na educação, com
agressões verbais e/ou ameaças indivíduos “normais”. A escassez de
(xingamentos, palavrões); agressões literatura sobre o tema é uma realidade,
físicas (empurrões, chutes, socos); fugas onde a maioria das pesquisas
musicoterápicas ligadas à educação
2[2]
encontram-se no campo do ensino
O termo Condutas psico-musicais foi proposto especial, onde se centram nos casos que
pela autora, tendo como definição “aquelas condutas
apresentadas e que parecem retratar as características apresentam deficiências, com
psicológicas do grupo, projetadas nas manifestações investigações efetivadas dentro de
sonoro-musicais e movimentações corporais. As instituições especializadas ou em
condutas psico-musicais representam TUDO que o
aluno-paciente ‘escolheu’durante o “seu momento”de contexto clínico.
fazer música junto com o grupo, retratando seus
aspectos psico-afetivos” (1999, p.27)

435
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Proporcionar diversos estudos 7. Referências


sobre a utilização da Musicoterapia nas
questões do ensino-aprendizagem, com BLASCO, Serafina Poch. Compendio
indivíduos ‘normais’, configura a de Musicoterapia (I). Barcelona,
possibilidade de ampliar as Espanha: Empresa Editorial Herder
investigações sobre a eficácia da música S.A., 1999.
nos processos cognitivos. A partir da GUIMARÃES, Flávio Romero. Um
compreensão ampliada das olhar sobre o objeto da pesquisa em
‘dificuldades de aprendizagem’ onde se face da abordagem interdisciplinar. In:
possa perceber desde a inabilidade do
O Fio que Une as Pedras: a Pesquisa
aluno em comunicar suas necessidades interdisciplinar na pós-graduação. In:
e/ou dificuldades pelas vias ‘normais’ FERNANDES, Aliana; GUIMARÃES,
da comunicação (linguagem verbal), Flávio Romero; BRASILEIRO, Maria
manifestando através de do Carmo Eulálio (Org.), São Paulo:
comportamentos expressivos Biruta, 2002.
inadequados, ‘carregados de mensagens
subliminares’ referentes ao seu não- JOVER, Ana. Indisciplina: como lidar
aprender, até as representações que os com ela? Revista Nova Escola, São
professores efetivam sobre esse aluno, Paulo, Ano XIII, nº 113, Junho de 1998.
proferindo seus discursos que validarão MASINI, Elcie F. Salzano. Enfoque
ou não o não-aprender, a aplicabilidade Fenomenológico de Pesquisa em
da Musicoterapia na educação se Educação. In: FAZENDA, Ivani (Org.).
configura como uma “escuta Metodologia da Pesquisa
diferenciada” das dificuldades de Educacional. 2. ed. aumt. São Paulo:
aprendizagem sob um enfoque Cortez, 1991.
interdisciplinar, objetivando alcançar
um paralelo entre essas manifestações NASCIMENTO, Sandra Rocha do
do não-aprender e as condutas psico- Nascimento. A Musicoterapia no
musicais que caracterizam a contexto escolar: uma “escuta”
especificidade das produções sonoras diferenciad. Goiânia: UFG, 1999.
dos alunos, quer na fase de identificação NASCIMENTO, Sandra Rocha do
(diagnóstica) quanto no processo de Nascimento. O psicodiagnóstico e a
intervenção, bem como influenciando intervenção psicopedagógica através
nos outros fatores que possam manter da música: uma “escuta
ou modificar o processo de ensino- diferenciada” das dificuldades de
aprendizagem. Condição sine qua non aprendizagem mediada pela
para essa possibilidade investigativa é musicoterapia. Goiânia: FE/UFG,
ancorar-se na abordagem (projeto de pesquisa de Doutorado),
interdisciplinar, favorecendo a 2006.
construção de redes de conhecimentos
buscando compreender os fenômenos NOGUEIRA, Monique Andries.
que são apresentados em suas múltiplas Música e educação infantil:
perspectivas. possibilidades de trabalho na
perspectiva de uma pedagoga da
6. Subáreas de conhecimento infância. UFG: Goiânia, (Tese), s/ data.
QUEIROZ, Gregório J. Pereira de.
Musicoterapia; Psicopedagogia; Aspectos da Musicalidade e da
Música de Paul Nordoff e suas

436
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

implicações na prática clínica


musicoterapêutica, São Paulo:
Apontamentos Editora, 2003.

437
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Musicalidade, desenvolvimento e educação:


um olhar pela psicologia vigotskiana

Silvia Nassif
USP
rscnassif@terra.com.br

Resumo: Este trabalho analisa algumas questões referentes às relações entre desenvolvimento
cognitivo e aprendizagem musical e suas implicações para o ensino de música. Toma como
ponto de partida concepções de musicalidade e musicalização predominantes entre importantes
autores do cenário da educação musical no século XX, as quais revelam um conflito entre um
discurso marcado por uma visão inatista da musicalidade e propostas práticas de cunho
fortemente empirista. À luz da psicologia histórico-cultural vigotskiana, considerada mais
promissora no sentido de superar determinados dualismos (biológico/cultural, individual/social),
procura mostrar a inconsistência de algumas dessas concepções quando se observa o
desenvolvimento de um ponto de vista mais abrangente. Os objetivos dessa análise incluem não
apenas contribuir para o conhecimento sobre a aquisição e o desenvolvimento da musicalidade,
mas principalmente permitir que os educadores musicais se apropriem de propostas educativas
para musicalização de uma maneira mais consciente e crítica.

Palavras-chave: musicalidade; musicalização; desenvolvimento musical.

Levantando a hipótese de que o


1. Introdução problema talvez estivesse no modo
como a musicalização era concebida e
Como professora de iniciação ao conduzida pedagogicamente, resolvi
piano por quase vinte anos, costumava então empreender uma pesquisa (que
notar que as facilidades ou dificuldades posteriormente se tornou meu doutorado
musicais que os alunos apresentavam ao e obteve financiamento da FAPESP) no
ingressar no curso de instrumento sentido de verificar quais os pressupostos teóricos
aparentemente pouco tinham relação (concepções de música, desenvolvimento,
com o fato deles terem tido ou não aulas aprendizagem etc.) que fundamentavam as
prévias de musicalização. Observava principais propostas de musicalização. Tomando
também que, por outro lado, as como fio condutor uma discussão sobre
experiências musicais não formais a musicalidade, analisei métodos e
anteriores desses alunos (na família, na textos teóricos de alguns dos principais
igreja, na rua, nas reuniões com amigos ícones da educação musical do século
etc.) não eram de modo algum XX1 e cheguei a uma síntese desse
irrelevantes para o seu desempenho nas pensamento que mostrava um conflito
aulas de instrumento. Em resumo, entre um discurso marcadamente
minhas observações me indicavam que inatista e propostas práticas
os fatores ambientais eram primordiais
no desenvolvimento de uma 1
musicalidade e, paradoxalmente, as Entre os autores analisados, estão, por
exemplo, Dalcroze (1965), Howard (1984),
aulas de musicalização pouco Lavignac (1950), Schafer (1991), Orff
contribuíam. (Graetzer; Yepes, 1961), Willems (1962, 1969),
Gaínza (1964, 1977) e outros.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

influenciadas pelo empirismo físico-sonora. Nesse sentido, a presença


escolanovista e que, guardadas as de “modelos” a serem seguidos
muitas nuances entre os autores geralmente é considerada perigosa,
analisados, poderia ser enunciada mais visto que eles podem, de acordo com
ou menos assim: esse raciocínio, limitar ou até mesmo
impedir o que seria o curso natural do
O desenvolvimento da desenvolvimento.
musicalidade, principal Esse tipo de abordagem confere
objetivo da musicalização, é ao desenvolvimento certo caráter
um processo universal e universal e invariável que se aproxima
espontâneo, que acontece de da perspectiva de Piaget, embora a
modo natural, principalmente
através do manuseio da
apropriação da teoria piagetiana nem
realidade físico-sonora. sempre seja feita de maneira
consistente, sobretudo nos autores mais
A partir dessa forma de entender antigos. Contrapondo essas idéias
o processo de musicalização, várias encontradas nas análises à perspectiva
questões emergiram2. Nos limites deste vigotskiana, emergem outras respostas
texto, ater-me-ei a duas em particular: para a questão da relação entre o
1- as relações entre desenvolvimento e desenvolvimento e a aprendizagem
aprendizagem musical e 2- as relações musicais. Vejamos.
entre percepção musical e manipulação Segundo Vigotski (1998a), o
sonora, mostrando também alguns de cérebro humano é um sistema
seus desdobramentos educacionais. extremamente plástico, sendo que as
É importante assinalar que, principais estruturas cerebrais (aquelas
desde o início, minhas indagações, responsáveis pelas funções psicológicas
questionamentos e críticas em relação à superiores) vão ser formadas a partir da
musicalização estavam inseridas numa imersão do indivíduo numa determinada
perspectiva teórica histórico-cultural e cultura. Desse modo, dependendo do
foi essa mesma perspectiva, tipo de cultura no qual se desenvolve, o
notadamente pelo viés da psicologia indivíduo vai formar determinadas
vigotskiana, que me forneceu as estruturas e não outras, ou seja, vai
ferramentas de análise do pensamento desenvolver algumas capacidades
dos educadores musicais. específicas. Assim sendo, não há como
explicar as especificidades de cada tipo
2. Desenvolvimento e Educação de comportamento (ou facilidades)
Musical apenas a partir do tipo biológico. Infere-
se daí que não existe um
Pelas análises efetuadas, desenvolvimento psicológico universal,
conforme já enunciado, o pois este está sempre condicionado ao
desenvolvimento da musicalidade é tido contexto social e cultural. Adotando-se
como um processo mais ou menos essa perspectiva, então, fica difícil
espontâneo, que acontece praticamente tentar estabelecer, por exemplo, etapas
sem a interferência de outras pessoas, fixas para o desenvolvimento musical,
pelo simples manuseio da realidade visto que esse contexto é extremamente
variável – mesmo entre pessoas que
vivem num mesmo tempo e lugar – e
2
Para um aprofundamento nos dados que pode dar origem a modos
levaram a essas e outras questões cf. ..... (minha completamente diferentes de processar a
tese de doutorado).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

música (além, obviamente, de diversos Considerando a música parte da


gêneros musicais)3. cultura e, portanto, uma atividade
Essa incorporação da cultura à especificamente humana, não há como
mente, que vai dar origem a diferentes condicionar o desenvolvimento da
estruturas mentais e diferentes modos musicalidade exclusivamente a fatores
de ação no mundo, não se realiza, de maturacionais. Estando totalmente
acordo com Vigotski (1998a), vinculada ao desenvolvimento histórico
diretamente, mas por mediações. Não do indivíduo, qualquer tipo de
incorporamos o mundo tal qual ele se capacidade musical depende
apresenta para nós, mas as significações integralmente de um processo de
de mundo que nos são dadas pelos aprendizagem. Sem ela, ou seja, sem a
outros. Para isso precisamos de interferência de outros indivíduos, não
mediadores simbólicos – a linguagem, a há como ativar os mecanismos
religião, a arte etc. Decorre daí a biológicos exigidos para o
importância dada à aprendizagem como desenvolvimento de capacidades
o principal modo de transmissão de musicais, mesmo que o indivíduo
significados e, conseqüentemente, de possua todos os pré-requisitos
apropriação da cultura. Na verdade, necessários a esse fim.4 É
para Vigotski (1998d), a aprendizagem importante frisar que essa aprendizagem
é considerada a grande ativadora do não precisa ser necessariamente formal,
desenvolvimento e, sem ela, ou sem a pois, como já foi comentado, muitas
interferência da cultura através da crianças quando chegam a uma escola
mediação de outros indivíduos, o para aprender um instrumento, já trazem
desenvolvimento ficaria restrito aos consigo um universo musical
processos de maturação do organismo. previamente internalizado, adquirido
Nesse sentido, ela não só antecipa, mas assistematicamente, e que fará muita
é uma condição sine qua non para que diferença no processo educacional.
ocorra o desenvolvimento.

3 4
Pensemos, por exemplo, em dois músicos “Tal como um filho de surdos-mudos, que não
profissionais, um que aprendeu música na ouve falar à sua volta, continua mudo apesar de
escola e, portanto, lê partitura e, outro que toca todos os requisitos inatos necessários ao
“de ouvido”, desconhecendo o código escrito da desenvolvimento da linguagem e não desenvolve
música. Se conseguíssemos refazer os seus as funções mentais superiores ligadas à
processos de aprendizagem musical, linguagem, assim todo o processo de
dificilmente encontraríamos muitos pontos em aprendizagem é uma fonte de desenvolvimento
comum no desenvolvimento de ambos. Embora que ativa numerosos processos, que não
aparentemente esses dois músicos sejam poderiam desenvolver-se por si mesmos sem a
equivalentes em termos de domínio musical (ou aprendizagem.” (Vigotski, 1998d, p.115). Vale
habilidade de se expressar musicalmente), uma aqui também um comentário sobre casos de
análise mais profunda revelaria modos distintos lesão cerebral nos quais pessoas sem formação
de “pensar musicalmente”, ou seja, de trabalhar musical anterior aparentemente “acordam”
operacionalmente com a música. Enquanto o músicos após o acidente. Esses casos poderiam
primeiro terá sempre a partitura como ser contra-exemplos à teoria vigotskiana da
mediadora entre a idéia musical e sua realização relação entre desenvolvimento e aprendizagem.
sonora, para o segundo a relação com a música Entretanto, de acordo com Sacks (2007), os
é mais direta, a idéia já acontece em forma de “músicos pós lesão cerebral” também passam
som. Isso sem falar na diversidade de “línguas por um processo de aprendizagem, embora num
musicais” existentes que requerem habilidades ritmo aceleradíssimo. Sem um contato intenso
musicais tão distintas e que, provavelmente, com a música, nem mesmo eles, com toda a sua
exigem “etapas” de desenvolvimento estrutura cerebral favorável, seriam capazes de
específicas. realizações musicais significativas.

440
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Estudando a criança, Vigotski como, a meu ver, é o único modo de


(1998a) estabelece a diferença entre musicalização possível. Não há como
dois tipos de desenvolvimento (ou dois musicalizar “de maneira geral”, fora de
estágios nos processos de um universo musical definido e
desenvolvimento): o desenvolvimento principalmente sem contato com o
real ou efetivo – definido pela mundo musical existente, conforme
capacidade mental da criança medida sonharam alguns educadores.
pelo que ela pode realizar sozinha – e o
desenvolvimento potencial ou proximal 3. Percepção e Manipulação Sonora
– capacidade da criança de realizar
determinadas ações somente com o O segundo ponto a ser discutido
auxílio de outras pessoas mais é derivado da idéia, também
experientes. A distância entre essas duas predominante entre os educadores, de
etapas foi denominada zona de que o trabalho de manipulação livre
desenvolvimento proximal, definida, com o som, deva ser o ponto de partida
então, pelo local onde determinadas do processo de musicalização.
funções, embora ainda não tenham Poderíamos dizer que a concepção de
amadurecido, já se encontram em percepção subjacente a essa idéia é uma
processo de maturação. Assim, por concepção associacionista. De acordo
exemplo, uma criança pode não ser com esse modo de ver, segundo a
capaz de compor uma música sozinha, análise que Vigotski (1998b) faz dele, a
mas conseguir fazê-lo com a ajuda do percepção se constituiria “da soma de
professor. Isso significa que esse tipo de sensações isoladas mediante a
elaboração está na zona de associação destas entre si” (p.4). Desse
desenvolvimento proximal dessa modo, ao nascer, a criança começaria a
criança e que, cedo ou tarde, ela será perceber sensações dispersas, depois
capaz de realizar uma composição passaria a perceber grupos de sensações
musical sem ajuda externa. relacionadas entre si e só mais tarde
O estabelecimento desse seria capaz de uma percepção global.
conceito é de extrema importância na Nessa linha de raciocínio, a percepção
teoria vigotskiana, pois evidencia a musical seria constituída pela soma de
relevância da mediação do outro no todas as percepções sonoras que entram
desenvolvimento cognitivo. Nesse em jogo na música. Como os principais
sentido, a imitação – ou a capacidade de traços distintivos musicais dizem
reproduzir ações alheias – é considerada respeito às durações, alturas,
particularmente importante nesse intensidades e timbres, o manuseio e
processo, pois ações que podem ser experimentações com essas grandezas
imitadas pressupõe-se estarem dentro da possibilitaria, devido a associações
zona de desenvolvimento proximal. A entre os diversos tipos de percepção
imitação permite uma antecipação de sonora, desenvolver uma percepção
etapas posteriores do desenvolvimento, musical propriamente dita. A essa
uma elaboração interpsíquica de ações abordagem associacionista, Vigotski
que mais tarde passarão para a esfera (1988b) contrapõe a psicologia
intrapsíquica. Isso significa, no caso estrutural, que preconiza exatamente o
específico do ensino musical, que a oposto, ou seja, que a percepção do
presença de modelos (universos conjunto precede a de partes isoladas.
estéticos já constituídos), ou a fixação De acordo com essa abordagem, a
de um sistema, não somente é desejável, percepção é integral desde o início, não

441
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

existem percepções parciais que necessidade de iniciar o processo de


somadas vão possibilitar uma apreensão musicalização manuseando livremente
global. Adotando-se esse ponto de vista os sons repousa numa analogia que
estruturalista para a percepção musical, muitos fazem desse processo com a
rapidamente percebemos que pouco aquisição da língua materna.5 De acordo
sentido faz qualquer tipo de trabalho com esse raciocínio, assim como a
educacional com sons isolados, pois ele criança começa balbuciando,
nunca levará, como se supõe, a uma experimentando os mais variados sons,
percepção global da música. depois passa a formar palavras e, por
Essa questão do sentido na último, frases inteiras, também na
percepção, aliás, foi um dos pontos musicalização, ou seja, no processo
desenvolvidos por Vigotski e que nos educacional que visa a aquisição da
interessa particularmente. Segundo linguagem musical, deveríamos
experimentos, não há como separar a respeitar as mesmas etapas. Penso que
percepção de um objeto do sentido existem vários pontos a serem
atribuído a ele. Mais do que isso, a esclarecidos nessa idéia. Vamos abordar
própria capacidade perceptiva está os que têm um interesse imediato na
condicionada à possibilidade de nossa discussão neste momento.
atribuição de sentido. Ainda segundo Em primeiro lugar, precisamos
Vigotski (1998b), essa característica de investigar qual a função do balbucio
significância da percepção é fruto do para a criança pequena. Segundo
desenvolvimento e, portanto, Vigotski (1998c), ele tem a dupla
diferenciada na criança e no adulto. função de alívio emocional e de
Sendo inicialmente uma relação direta estabelecimento de contato social. É a
entre o indivíduo e o meio, a percepção chamada fase pré-intelectual do
vai se tornando cada vez mais uma desenvolvimento da linguagem.
relação mediada pelas significações Considerando-se que uma criança inicia
culturais. seu processo formal de educação
Trazendo essas conclusões para musical geralmente por volta de quatro
a música, vemos o quanto é ilusória a ou cinco anos, quando já domina vários
possibilidade de resgatar uma audição sistemas simbólicos – entre os quais a
espontânea, pré-musical, no processo de própria linguagem verbal –, qual o
musicalização (desejo esse muito sentido dessa experimentação pré-
presente no discurso de alguns musical para uma musicalização? Ou
educadores). Uma vez imersa num ainda, será possível para a criança
ambiente onde a música existe, não só é abstrair todo o universo musical que a
muito difícil para a criança uma circunda e mergulhar, numa espécie de
percepção sonora totalmente regressão, nesse mundo pré-musical?
desvinculada desse universo musical,
quanto muitas percepções só serão 5
“As etapas que se sucedem no
possíveis quando associadas a ele. Faz desenvolvimento da linguagem musical na
parte do senso comum a idéia de que o criança são equivalentes, do ponto de vista
interesse por sons é indício de uma evolutivo, às que se observam durante a
aprendizagem do idioma. Ambas as linguagens,
predisposição para a música. Penso que, musical e falada, se iniciam com um balbucio –
ao contrário, é o interesse musical que cantarola na caso da música – que
leva a um apuro na percepção sonora. progressivamente vai se ajustando e afinando
Fato interessante é que uma das até alcançar um nível médio de maturidade
justificativas mais comuns para a comum a todos os indivíduos normais” (Gaínza,
1977, p.3).

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Em segundo lugar, quando a a aquisição da língua materna. Na


criança começa a dizer palavras inteiras, verdade a analogia com a aquisição da
estas já estão carregadas de sentidos linguagem pode ser bastante
completos e não são apenas partes de enriquecedora, mas desde que tratemos
algo maior que ela ainda não domina. a música como uma língua estrangeira,
Na educação musical, porém, o trabalho como algo que não está presente, salvo
com elementos isolados (não apenas raríssimas exceções, de modo intensivo
sons, mas também escalas, acordes, no universo da criança desde o seu
células rítmicas etc.) comumente não nascimento6. E ninguém pensaria, na
confere a esses elementos uma atualidade, em ensinar uma língua
completude significativa e, muitas estrangeira partindo do seu nível
vezes, nem faz referência a qualquer fonológico, passando pelo sintático e, só
contexto maior com significação depois, chegando ao semântico. Penso
musical. Isso faz muita diferença, pois que é mais ou menos isso que se tenta
desde o balbucio até as palavras e as fazer em relação à música: parte-se do
frases inteiras, todo esse processo não som, passa-se pelos elementos musicais
ocorre no vazio, mas tem como pano de e, por último, chega-se (às vezes) à
fundo o tempo inteiro um contexto linguagem.
significativo, dado pela mediação das
outras pessoas que convivem com a 4. Considerações finais
criança no período de aquisição da
linguagem. De todas as As relações entre música e
experimentações, a criança vai fixando desenvolvimento cognitivo já há algum
ou criando um repertório apenas tempo vêm sendo objeto de pesquisas
daquelas que tem uma resposta no campo da educação musical. Penso,
significativa do ambiente, sendo que contudo, que muito há ainda a ser feito
todos os sons ou complexos sonoros que no sentido de trazer essas pesquisas para
carecem dessa resposta tendem a o campo da prática educacional,
desaparecer. As experimentações permitindo-se um olhar crítico e,
musicais, contudo, muitas vezes são conseqüentemente, uma re-apropriação
feitas buscando-se uma isenção total em mais consciente de propostas de
relação a qualquer sistema já
6
constituído. Contrariamente ao processo Essa afirmação pode parecer contraditória em
de aquisição da língua materna, tenta-se relação ao que foi dito anteriormente sobre a
impossibilidade de se abstrair o universo
a todo custo, em muitos autores musical no qual a criança está imersa desde o
analisados, que a criança permaneça o nascimento. Trata-se, com efeito, de uma
mais distante possível dos referenciais situação contraditória: a música é, ao mesmo
que ela possui, como se isso evitasse tempo, uma presença familiar e estranha no
que ela sofresse influências, universo infantil. Familiar porque sempre
presente, estranha porque não de modo tão
consideradas perniciosas à livre intensivo e ativo que possibilite a sua apreensão
expressão musical infantil. Resta saber, enquanto um sistema. Daí a comparação com a
porém, sendo a música uma linguagem, língua estrangeira: não é porque vamos
de onde a criança vai tirar elementos freqüentemente ao cinema que aprenderemos a
para chegar a fazer sintaxe? falar inglês. De maneira similar, não é porque
ouvimos música tonal desde o nascimento que
Como conseqüência dos pontos seremos capazes de nos apropriar
anteriores, temos, então, a espontaneamente desse sistema. Para que isso
impossibilidade de se comparar o ocorresse, seria necessária uma exposição muito
processo escolar de musicalização com mais intensa do que ocorre normalmente na
maioria dos ambientes.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

musicalização legitimadas pela história. VIGOTSKI, Lev Semenovich.


Este trabalho tenta, em última análise, Aprendizagem e desenvolvimento
dar um pequeno passo nesse sentido. intelectual na idade escolar. In:
VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.;
5. Referências bibliográficas LEONTIEV, A. N. Linguagem,
desenvolvimento e aprendizagem. São
DALCROZE, Emile Jaques. La Paulo: Editora Ícone/Edusp, 1998d,
musique et l’enfant. In: DALCROZE, p.103-117.
Emile Jaques. Le rythme ,la musique WILLEMS, Edgar. La preparación
et l’education. Lausanne: Foetisch musical de los más pequeños. Buenos
Frère S.A. Éditeurs, 1965. p.46-56. Aires: Editorial Universitaria de Buenos
GAÍNZA, Violeta Hemsy. Aires, 1962.
Fundamentos, materiales y técnicas WILLEMS, Edgar. Las bases
de la educación musical. Buenos psicológicas de la educación musical.
Aires: Ricordi Americana, 1977. Buenos Aires: Editorial Universitaria de
GAÍNZA, Violeta Hemsy. La Buenos Aires, 1969.
iniciación musical del niño. Buenos
Aires: Ricordi Americana, 1964.
GRAETZER, Guillermo; YEPES,
Antonio. Introduccion a la practica
del Orff-Schulwerk. 4. ed. Buenos
Aires: Barry, 1961.
HOWARD, Walter. A música e a
criança. São Paulo: Summus, 1984.
LAVIGNAC, Albert. La educacion
musical. Buenos Aires: Ricordi
Americana, 1950.
SACKS, Oliver. Alucinações musicais:
relatos sobre a música e o cérebro. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SCHAFER, Murray. O ouvido
pensante. São Paulo: Editora Unesp,
1991.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A
formação social da mente. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998a.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. O
desenvolvimento psicológico na
infância. São Paulo: Martins Fontes,
1998b.
VIGOTSKI, Lev Semenovich.
Pensamento e linguagem. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998c.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Formação de grupos vocais: aprendizagem pela interação

Simone Marques Braga


UFBA
ssmmbraga@gmail.com

Resumo: Este artigo descreve a experiência pedagógica realizada na disciplina Canto-Coral, no


Centro de Educação Profissionalizante de Música Pracatum, situado em Salvador. Fundamentada na
Metodologia da Aprendizagem Cooperativa a atividade teve como objetivo o desenvolvimento da
participação e responsabilidade individual em aulas coletivas pela interação entre alunos. A proposta
de formação de grupos para a elaboração e execução de arranjos vocais promoveu a assimilação e
contextualização dos conteúdos abordados pela participação efetiva dos alunos.

Palavras-chave: aprendizagem cooperativa, formação de grupo, canto-coral.

através de procedimentos
1. Introdução metodológicos eficazes e precisos,
responsáveis por um comportamento
O processo da construção do participativo e autônomo. Paulo Freire
conhecimento na chamada era da (1996) discute esta questão da
informação requer novas concepções de autonomia e do seu desenvolvimento,
aprendizagem, revisão e atualização do assim como Piaget (1973), que inter-
papel e das funções de professor. relaciona os conceitos de cooperação e
Ensinar, hoje, não significa a autonomia. Segundo Ramos (1999) para
transmissão de conhecimentos, implica que a autonomia se desenvolva é
na mediação da construção de necessário que o sujeito seja capaz de
conhecimentos através da interação com estabelecer relações cooperativas.
troca de experiências, idéias e Tendo por base a interação
conceitos, entre as pessoas que defendida pelas teorias citadas, a
aprendem se relacionando umas com as aprendizagem cooperativa é uma
outras e com o meio ambiente. metodologia educacional na qual os
É de extrema importância essa sujeitos inseridos confiam e auxiliam
interação no processo de construção e uns aos outros para atingir uma meta
reconstrução das funções cognitivas, estabelecida, utilizada no
como argumenta o educador e desenvolvimento desta experiência.
pesquisador Vygotsky (1984), que o ser
humano cresce num ambiente social e a 2. A base para a experiência
sua interação com outras pessoas é
essencial ao seu desenvolvimento. A A aprendizagem cooperativa
sua teoria juntamente com a de Piaget desenvolveu-se na década de 80, sendo
defende a importância da interação do objeto de várias pesquisas desde então.
sujeito com outros indivíduos no O pesquisador Dr. Spencer Kagan foi
processo de aprendizagem. um dos primeiros a utilizá-la e na sua
Entretanto, para a realização contribuição, considerou quatro
deste processo de interação é importante aspectos fundamentais: (P)
despertar no indivíduo o sentimento de interdependência positiva, (I)
pertencer, de participar ativamente, responsabilidade individual, (E)

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

participação de igual valor e (S) aproximadamente 16 pessoas e grupo


interação simultânea, desenvolveu uma vocal - trio, quarteto, quinteto, sexteto,
abordagem estrutural constituída de cada qual com sua linha melódica.
criação, análise e aplicação sistemática Segundo Crismarie Hackenberg (2004)
de aproximadamente duzentas o concurso mais famoso no mundo de
estruturas. grupos vocais a cappella, o Harmony
Estas estruturas são atividades a Sweepstakes, produzido pela Primarily
serem aplicadas por meio da interação, A Cappella e realizado anualmente
podem ser utilizadas em diversos desde 1985, em São Francisco (EUA),
momentos de uma aula, em diferentes estabelece como uma das regras para a
séries e disciplinas. O comum entre elas competição o número de integrantes do
é o comportamento dos indivíduos grupo: no mínimo 3 (três) e no máximo
envolvidos que devem trabalhar juntos, 7 (sete) cantores, considerando estes
de forma ativa, trocando idéias em números como ideais para a formação
busca de um objetivo comum. Ao de um grupo vocal.
professor cabe a tarefa de escolher a A quantidade de participantes é
mais adequada para a situação de aula e um fator determinante no processo de
integrá-la ao seu conteúdo. interação. Em um grupo vocal a
Segundo Kagan (apud Jortitz- interação entre os indivíduos possibilita,
Nakagawa, 2003), através da aplicação em um curto período, o
destas estruturas, algumas das desenvolvimento da autonomia,
inteligências múltiplas1 podem ser diferente do processo em um coral.
desenvolvidas contribuindo com o Neste as formas de interação
processo cognitivo do indivíduo. desenvolvidas em pequenos grupos
como as existentes entre regente e
3. A experiência coralistas, os diferentes naipes, coral e
público, dificulta este desenvolvimento
Um grupo vocal de uma maneira no mesmo prazo.
geral, difere de um coral na quantidade Em relação à técnica vocal, em
e função de seus participantes. Desta um grupo vocal há maior exploração da
forma, a regente Patrícia Costa (2007), extensão vocal e utilização do
estabelece algumas definições como: microfone como amplificador desta
coro - grupo de pessoas que cantam produção. Por executarem linhas
juntas; coral - sinônimo de coro; ou melódicas únicas e diferentes, capazes
ainda, um coro um pouco mais de reproduzir vocalmente diferentes
numeroso; madrigal - grupo de sonoridades, todos os membros podem
ser considerados solistas, facilitando um
1
A teoria das inteligências múltiplas foi comportamento autônomo, porém
desenvolvida pelo psicólogo norte-americano dependente musicalmente. O equilíbrio
Howard Gardner. Depois de muitos anos de
pesquisas com a inteligência humana, o
sonoro encontra-se na harmonia entre
psicólogo concluiu que o cérebro do homem estas linhas melódicas. Esta
possui oito tipos de inteligência. Porém, a dependência viabiliza o
maioria das pessoas possui uma ou duas desenvolvimento da atividade a ser
inteligências desenvolvidas. Isto explica porque realizada pela interação: formação de
um indivíduo é muito bom com cálculos
matemáticos, porém não tem muita habilidade
grupos vocais, dentro do coral, para a
com expressão artística. De acordo com elaboração de arranjos vocais.
Gardner, são raríssimos os casos em que uma O trabalho em grupo, uma das
pessoa possui diversas inteligências estruturas da aprendizagem cooperativa,
desenvolvidas.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

foi adotado nesta experiência para A etapa inicial foi importante


atingir os objetivos em promover o para promover a discussão a cerca do
desenvolvimento vocal e a conceito de arranjos através da
responsabilidade individual no canto- observação, análise e execução,
coral pelo desenvolvimento de influenciando nas etapas posteriores. O
habilidades como a liderança, a processo das elaborações dos arranjos
comunicação em grupo, a autonomia e a foi acompanhado através de
colaboração. interferências pedagógicas de professor
A atividade foi desenvolvida na e colegas. Havia espaço nas aulas para
disciplina Canto-Coral, no Centro os ensaios dos arranjos sendo
Pracatum, na cidade de Salvador, com observados e discutidos diversos
jovens e adultos das turmas do 1º e 2º aspectos tais como a distribuição da
anos do curso profissionalizante em música entre participantes, as linhas
música, na terceira unidade escolar, melódicas criadas para cada voz,
período em que foram concretizados igualdade de volume vocal,
aspectos necessários para a sua aproveitamento dos diferentes timbres,
realização: desenvolvimento de noções as interferências acústicas e a
básicas de canto, segurança e confiança performance dos grupos.
na produção vocal, maior conhecimento Durante todo o processo foram
e envolvimento entre os alunos. Foram registradas as apresentações e aplicados
seis as etapas realizadas: análise, dois questionários, sendo o primeiro, na
execução e definição de arranjos vocais, etapa inicial, com perguntas
formação dos grupos, elaboração dos estruturadas, focalizando o processo da
arranjos, ensaios abertos com elaboração de arranjos e o segundo, na
interferências pedagógicas, fase final, com perguntas semi-
apresentação final e avaliação. estruturadas, centralizando a avaliação
Para a formação dos grupos não da atividade por parte dos participantes.
houve interferência, entretanto, alguns
aspectos foram estabelecidos: 4. Resultados
1) Quantidade: mínimo 3 (três) e
máximo 7 (sete) componentes. Os resultados obtidos por meio
2) Repertório: ser extraído da música da aplicação do primeiro questionário
popular brasileira por ser de fácil acesso apontaram para um entendimento
e da preferência dos participantes. consciente a cerca dos aspectos
3) Textura Musical: todos deveriam ter, envolvidos na elaboração de arranjos.
em algum momento, uma linha 85% dos alunos consideraram que a
melódica própria podendo ser a capela criatividade, conhecimento teórico,
ou com acompanhamento instrumental. distribuição da linha melódica entre
4) Limites vocais: as tessituras e vozes, estética, boa sonoridade,
extensões vocais de cada membro do conhecimento de outros arranjos, entre
grupo deveriam ser respeitadas. outros, são habilidades que podem ser
5) Partitura dos arranjos: o registro não desenvolvidas.
foi exigido por se tratar de alunos O processo cognitivo
iniciantes na prática de leitura e escrita desenvolvido por meio da interação
musicais. A tentativa em registrar tendo a partilha e troca de idéias e
poderia limitar o processo de criação experiências, garantiram a participação
dos arranjos. ativa de todos. O envolvimento com a
atividade promoveu a aproximação com

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

a disciplina, à música vocal e ao individualizada do desenvolvimento


desenvolvimento de habilidades e vocal.
competências para o trabalho em equipe
e a prática vocal, comprovados pelas 6. Subáreas do conhecimento
gravações e resultados obtidos no
segundo questionário. Esta experiência envolve tanto a
Questionados sobre a atividade, área de Artes Musicais quanto as áreas
90% dos alunos opinaram sobre a de Educação, Relações Humanas e
importância desta para a assimilação e Psicologia Cognitiva.
contextualização dos conteúdos
desenvolvidos, 85% para o 7. Referências
desenvolvimento vocal, 80% para
integração entre colegas e 77% para a COSTA, Patrícia. Regentes de corais.
preparação performática artística. Disponível em:
<http://www.orkut.com/CommMsgs.asp
5. Conclusão x?cmm=993285&tid=25221261548076
44655>. Acesso em: 26 dez.2007.
Os resultados obtidos pela FREIRE, P. (1996). Pedagogia da
análise de dados permitem concluir que Autonomia: saberes necessários à
a interação é uma importante ferramenta prática educativa. São Paulo: Paz e
no processo de ensino-aprendizagem. Terra, 1996.
As habilidades como a liderança, a
comunicação em grupo, a autonomia, a HACKENBERG, Crismarie. Música
colaboração, o desenvolvimento vocal e vocal a cappella. Disponível em:
cognitivo foram desenvolvidos por meio <http://www.rioacappella.com.br/faqs.a
deste processo. Segundo Santiago e sp>. Acesso em: 19 dez.2007.
Pederiva (2007) a cognição é um grande JONASSEN, David. O uso das novas
sistema de redes em conexão revelados tecnologias na educação a distância e a
em algumas vertentes do pensamento aprendizagem construtiva. In: Revista
contemporâneo que pode ser favorecida Em Aberto, Ano 16, N. 70, abril a
pela interação, comprovando as teorias junho de 1996.
propostas por Piaget e Vygotsky.
A expectativa em promover o JORITZ-NAKAGAWA, Jane. Spencer
desenvolvimento vocal e a Kagan's Cooperative Learning
responsabilidade individual no canto- Structures. Disponível em:
coral foi obtida e ampliada <http://www.jalt.org/pansig/PGL2/HT
proporcionando novos resultados como ML/Nakagawa.htm>. Acesso em: 20
a contextualização dos conteúdos dez. 2007.
estudos. A utilização dos ressonadores, MONEREO, Carles; GISBERT, David
falsete, quebra de registro, extensão e Duran. Tramas. Procedimentos para a
tessitura vocais, entre outros, ganharam Aprendizagem Cooperativa. Porto
novos significados, superando a barreira Alegre: ARTMED, 2005, p. 9-27.
entre a teoria e a prática, possibilitando
ao aluno maior clareza na assimilação e PIAGET, J. Estudos Sociológicos. Rio
compreensão, responsável pela de Janeiro: Editora Forense, 1973.
mudança de atitudes em relação à RAMOS, Edla Fausti. O papel da
música e prática vocais, além de avaliação educacional nos processos de
proporcionar uma avaliação aprendizagem autônomos e

448
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

cooperativos. In: LISIGEN, Irlan, et. al.


Formação do Engenheiro:Desafios da
atuação docente, tendências curriculares
e questões da educação tecnológicas.
Florianópolis/SC: Ed. da UFSC, 1999,
p. 207-228.
SANTIAGO, P.; PEDERIVA, P.
Cognição e corpo na performance
musical . In: Simpósio Internacional de
Cognição e Artes Musicais, maio de
2007, Salvador. Anais do III Simpósio
de Cognição e Artes Musicais.
Salvador: SIMCAM, 2007, p. 287-292.
VYGOTSKY, L. A. Formação Social
da Mente: O Desenvolvimento dos
Processos Psicológicos Superiores. São
Paulo: Martins Fontes, 1984.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A neurociência e o ensino e aprendizagem das artes

Vera Cury
veracury@gmail.com

Resumo: Essa pesquisa visa estabelecer as possíveis relações entre a neurociência e o ensino e
aprendizagem das artes. Desse modo o ato de desenhar, cantar, dançar, observar, perceber e
imaginar, exercidos na ação artística, é considerado a partir da fisiologia do sistema nervoso. O
conhecimento do funcionamento encefálico oferece subsídios importantes para futuras formulações
metodológicas para o ensino e a aprendizagem das artes. Numa primeira fase foi realizado
levantamento bibliográfico de temas como percepção, memória, atenção imaginação, emoção e
cognição. Na segunda fase foram selecionadas as pesquisas que investigam as prováveis bases
neurais relativas a atividades artísticas, essas são pesquisas recentes e começam a ser publicados
com mais freqüência apenas a partir de 2004. Os resultados evidenciam um aumento das pesquisas
experimentais que buscam estabelecer as bases neurais de determinados aspectos de uma atividade
artística e apontam como desafios a definição da ação artística e o desenvolvimento de teorias
abrangentes capazes de dar conta da complexidade do funcionamento cerebral. Concluiu-se que a
compreensão das vantagens e limitações das técnicas de neuroimagem, assim como a necessidade
de conduzir rigorosos protocolos cognitivos, é uma etapa importante no entendimento de como a
neurociência pode fornecer dados significativos às áreas educacionais e artísticas.

Palavras-chave: ensino/aprendizagem, arte, cognição.

2. Objetivos
1. Introdução
O objetivo deste trabalho teórico
Embora seja extremamente antiga foi analisar as relações existentes entre a
e persistente a presença de manifestações neurociência e o ensino e aprendizagem
artísticas nas sociedades humanas, como das artes.
pintura, escultura, desenho, música,
dança, entre outros, apenas recentemente 3. Método
os cientistas dirigiram seus esforços, de
uma maneira mais sistemática, no sentido Sendo este um trabalho teórico, o
da investigação dos mecanismos método utilizado foi uma extensa revisão
neurobiológicos subjacentes à complexa e bibliográfica e análise conceitual e
sofisticada capacidade cognitiva referente argumentativa de temas comuns à
à produção da arte e da apreciação neurociência e ao ensino e aprendizagem
estética. das artes. Tais como percepção, memória,
As razões para que essas pesquisas atenção, imaginação, emoção e cognição.
só estejam sendo realizadas recentemente No período de 2004 a 2007,
referem-se à inexistência anterior, tanto realizamos um levantamento com uma
de teorias abrangentes capazes de dar revisão crítica dos poucos artigos que
conta da complexidade do funcionamento investigaram as possíveis bases neurais da
cerebral quanto de tecnologia adequada dança, da música e do ensino e
para esse tipo de investigação científica. aprendizagem das artes.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

4. Resultados: Pesquisas avaliaram [13] o


resultado do desempenho cerebral de
Pesquisas realizadas na área da crianças com quatro a seis anos de idade,
percepção visual humana relacionam os submetidas às lições musicais pelo
processos cognitivos com o que método Suzuki. Este desempenho
consideram ser a função da arte e da mostrou ser superior quando comparado a
apreciação estética [2, 5,14]. Estudos [3, crianças da mesma escola e faixa etária,
4, 9] fizeram análise de diversas pinturas, porém sem o treinamento musical.
do ponto de vista neurocientífico, Estudos [11] têm apontado diferenças
considerando como os artistas se estruturais e funcionais nos cérebros de
utilizaram de técnicas para conseguir músicos adultos comparados com não
determinados efeitos de reflexos, músicos pertencentes ao grupo controle.
coloração, sombras e contornos; Assim como pesquisas [11, 8, 7] também
independente dos conceitos da física ou demonstram que o treinamento musical
mesmo considerando as características de apresenta resultados em crianças quanto
algumas patologias. Dos resultados destas ao desempenho visuo-espacial, verbal e
comparações, eles consideraram a matemático.
possibilidade de obter dados para avaliar
a fisiologia do sistema visual a partir da 5. Conclusões
análise pictórica de quadros disponíveis
nos museus. Assim, consideraram que A percepção e a cognição humana
pinturas e desenhos, registrados há cerca apresentam um estágio de complexas
de 40.000 anos seria a fonte de amplo construções de atividades
material para estudos neurocientíficos. neurofisiológicas enquanto o indivíduo
Na área da dança, pesquisas está realizando uma ação artística. Assim,
apontam as relações existentes entre o as pesquisas sobre os processos mentais
sistema motor, o sistema sensorial, a envolvidos na dança, na música, nas artes
cognição e a memória [6, 12]. Existem visuais e na apreciação estética, tanto
artigos que relacionam as sensações podem fornecer dados para compreensão
advindas da apreciação estética de um da cognição humana como subsídios para
espetáculo de dança com aspectos educadores e arte-educadores.
neurofisiológicos do funcionamento do Constatamos que com o avanço
sistema nervoso e com os neurônios- tecnológico e o resultado de pesquisas
espelho [1, 6]. sobre a psicofisiologia da memória, da
Na área da música os artigos percepção e da atenção (três faculdades
fazem considerações sobre as áreas mentais essenciais para a realização da
corticais e sistemas neurofisiológicos ação artística), torna-se viável realizar
envolvidas ao tocar, ouvir e criar músicas pesquisas com uma equipe
[10]. Essas atividades envolvem multidisciplinar que se proponha a
praticamente todas as funções cognitivas. investigar as bases neurais
As publicações procuram explicar como a correspondentes a determinadas ações
música poderia dar subsídios artísticas.
neurocientíficos para compreensão do Embora seja recentes as
discurso verbal, da plasticidade neuronal publicações de artigos neurocientíficos na
e até eventualmente suposições sobre a área da educação e das artes, há um
origem das emoções. interesse crescente pelo tema.
Considerando a carência de estudos mais

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

específicos é que apontamos para a [9] CAVANAGH, Patrick. The artist as


necessidade de futuras investigações neuroscientist. Nature, 434, 301-307,
sobre a temática. 2005.
[10] ZATORRE, Robert. Music, the food
6. Referências of neuroscience? Nature, 434, March
2005.
[1] CALVO-MERINO, B.; GRÈZES, J.;
GLASER, D.E.; PASSINGHAM, R.E.; [11] SCHLAUG, G.; NORTON, A.;
HAGGARD, P. Seeing or doing? OVERY, K.; CRONIN, K.; LEE, D.J.;
Influence of visual and motor familiarity WINNER, E. Effects of music training on
in action observation. Current Biology children’s brain and cognitive
16(19), 1905-1910, 2006. development. ICMPC8, Evanston, IL,
2004.
[2] GOGUEN, Joseph; MYIN, Erik. Art
and the brain II: investigations into the [12] BROWN, Steven; MARTINEZ,
science of art. Thorverton (UK): Imprint Michael J.; PARSONS, Lawrence M. The
Academic, 2000. Neural Basis of Human Dance. Cerebral
Cortex, August, 2006; vol. 16, nº8 :1157-
[3] LIVINGSTONE, Margaret. Vision 1167.
and art: the biology of seeing. New
York, N.Y. : Harry N. Abrams, 2002. [13] FUJIOKA, Takako; ROSS,
Bernhard; KAKIGI, RYUSUKE;
[4] SOLSO, Robert L. The Psychology PANTEV, Christo; TRAINOR, Laurel J.
of Art and the Evolution of the One year of musical training affects
Conscious Brain. The MIT Press. 2003.
development of auditory cortical-evoked
[5] ZEKI, Semir. Inner vision: an fields in young children. Brain, October
exploration of art and the brain.Oxford; 2006; 129: 2593 - 2608.
New York: Oxford University Press, [14] RAMACHANDRAN, V. S.;
1999.
HIRSTEIN, William. The science of art:
[6] HAGENDOOEN, Ivar. Some a neurological theory of aesthetic
speculative hypotheses about the nature experience. Journal of Consciouness
and perception of dance and Studies, 6, Nº 6-7, 1999, pp. 15-51.
choreography. Journal of Consciousness
Studies, 11, No.3-4, 2004, p. 79-110.
[7] OVERY, K.; NORTON, A.;
CRONIN, K.; GAAB, N.; ALSOP, D.;
WINNER, E.; SCHLAUG, G. After one
year of musical training, young children
show a left-hemispheric shift for melody
processing. Neuroimage, 22S, p.S53,
2004.
[8] OVERY, K.; NORTON, A.;
CRONIN, K.; GAAB, N.; ALSOP, D.;
WINNER, E.; SCHLAUG, G. Comparing
rhythm and melody discrimination in
young children using fMRI. ICMPC8,
Evanston, IL, 2004.

452
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Álgebra musical

W.M. Pontuschka
USP

Resumo: Desde a mais remota antigüidade já se conhecia a importância dos números como
elementos integrantes da natureza dos sons musicais. As relações numéricas entre as freqüências
dos tons fundamentais das escalas naturais e temperadas são bem conhecidas. O que se pretende
mostrar neste trabalho é a profunda relação que as notas musicais possuem com a teoria dos
números. Em particular, apresentamos uma demonstração de que as propriedades das notas
satisfazem às condições que permitem classificar a escala natural como grupo aberto e a
temperada como grupo fechado, de acordo com os critérios estabelecidos pela Álgebra Linear.
Como as relações entre as freqüências fundamentais das notas musicais são números e estes
podem ser multiplicados entre si, as notas também possuem esta propriedade. Os resultados das
multiplicações são notas que podem ou não fazer parte do conjunto originalmente formado com
as notas de uma dada escala. Entre os exemplos discutidos neste trabalho, mostramos que a
escala diatônica maior natural não é grupo, a escala cromática natural é um grupo aberto e a
escala temperada (cromática) é um grupo aberto e, portanto, adequada para música polifônica.
Em termos práticos, o produto entre duas notas equivale à multiplicação da primeira pelo
intervalo existente com a segunda, resultando o número que identifica esta última nota. O fato
de que a escala temperada é um grupo fechado significa, portanto, que qualquer intervalo entre
duas notas quaisquer é um número que representa uma das notas já preexistentes nessa escala.

1. Introdução a relaciona com a tônica (cuja


freqüência determina a tonalidade dessa
O tom de uma nota musical escala). Conhecendo a freqüência de
emitida por um determinado uma determinada nota, poderemos
instrumento é determinado pela sua conhecer também a freqüência de outra
altura, caracterizada pela freqüência do nota situada a um determinado intervalo
seu componente fundamental. As acima, bastando multiplicar essa
contribuições dos demais harmônicos, freqüência pelo fator característico do
cujas freqüências são múltiplos inteiros intervalo considerado. Como em
do fundamental, determinam o timbre qualquer tonalidade as relações entre as
do instrumento, de tal modo que cada freqüências se mantêm sempre as
componente contribui com a sua mesmas, cada grau pode ser identificado
intensidade relativa característica. Neste simplesmente pelo fator numérico que o
trabalho estaremos lidando apenas com relaciona com a tônica correspondente.
as relações entre as freqüências Assim, por simplicidade, vamos usar
fundamentais dos tons considerados. como tônica de referência fDO = 264 Hz.
Vamos nos limitar, também, a
considerar apenas pares de notas 2. Intervalos associados aos números
musicais associando o quociente entre inteiros
as duas freqüências como o fator
numérico que caracteriza o respectivo Como se sabe, a escala diatônica
intervalo musical. Assim, em uma natural foi construída por fatores que
escala musical, por exemplo, cada nota são expressos pelo quociente Q entre
está associada com o fator numérico que dois números inteiros N (numerador) e

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

D (denominador), representado pela A oitava é a nota que se


fração Q = N/D, onde o número Q caracteriza pelo dobro da freqüência da
pertence ao conjunto dos números nota de referência e que pertence ao
racionais. A diferença entre este mesmo grau da escala:
procedimento e o adotado por Pitágoras A primeira oitava acima da nota
e Zarlino [1,2] é que preferimos lidar DO tem a freqüência dada por
com freqüências ao invés de fDO (8a) = fDO × 2
comprimentos de onda (ou então, e representamos a nota correspondente
comprimentos da corda). pela fração 2/1 que também é uma
nota DO. Conseqüentemente, se
2.1 O uníssono como elemento dividirmos por 2, obteremos a oitava
unidade abaixo, que também é uma nota DO. A
inversão da oitava acima gera a oitava
Como fDO = fDO × 1 = fDO , inferior, ou seja, o inverso da fração
associamos a nota DO à fração 1/1 que 2/1 é 1/2. Multipicando-se uma fração
também representa o uníssono, ou o pela outra, obtemos a unidade que é o
grau da escala ocupado pela tônica. centro de inversão. Assim, a tônica é
representada pela unidade e pela série
2.2 A oitava como a repetição da de potências de 2 e de 1/2:
tônica

...1/8 1/4 1/2 1 (centro de inversão) 2 4 8... ou


−3 −2
...2 2 2−1 1 21 2 2 3
2 ...

sendo a n-ésima oitava reconhecida pelo as operações trabalhando na oitava de


logaritmo ±n = log2 2±n. referência baseada em fDO, salvo
Em conseqüência, podemos emitir o indicação em contrário.
seguinte enunciado:
“Um tom cuja fundamental tem 2.3 O número 3 como base da escala
a freqüência f, pode ser transladado de de Pitágoras
uma oitava para outra mediante o
produto de 2±n por f, sem perder a sua Já é bem conhecido que a
identidade dentro de uma dada escala geração dos tons musicais de Pitágoras
musical”. é procedente da sucessão de quintas
Assim, a mesma nota musical justas adicionadas para cima e para
pode ser representada pela freqüência f baixo da nota de referência DO. A
× 2±n, qualquer que seja n. O fator 2±n primeira quinta (SOL) obtém-se
efetua a operação de translação cuja multiplicando fDO pelo fator 3/2, que
função é o transporte da nota musical de nada mais é do que o produto de fDO,
uma oitava para outra, sem que esta transladado de volta para a oitava de
perca a sua identificação. Em outras referência por meio da divisão por 2.
palavras, podemos dizer que todas as Basta, portanto, associar o número 3
operações efetuadas são válidas para as com a nota SOL, 32 com RE, 33 com
demais oitavas. Além disso, as relações LA e assim por diante. Analogamente, a
permanecem inalteradas se trocarmos a série das quintas inferiores obtém-se
freqüência da nota de referência da com os fatores 3−1 FA, 3−2 SI , 3−3 MI
escala fDO por outra de uma tonalidade etc. obtendo-se a série
qualquer. Doravante efetuaremos todas

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

... 3−4 3−3 3−2 3−1 1 31 32 33 34 ...


... LA MI SI FA DO SOL RE LA MI ...

ou seja, a n-ésima nota da série é dada


pela potência ± 3±n. Devido à sua complexidade os fatores
52 e 5−2 não foram utilizados.
2.4 O número 5 introduzido por A correção de Zarlino é um
Zarlino intervalo conhecido por coma sintônico
(CS), igual à fração de 81/80. De fato,
A simplicidade da série de pela igualdade
Pitágoras teve o inconveniente de que 5/22 × CS = 34/26 ou
algumas notas, tais como o MI, não CS = 34/26 . 22/5 =
4 4
apresentarem um grau de consonância (3 )/(2 5) = 81/80 .
satisfatório, o que proporcionou a A introdução do algarismo cinco
intervenção de Zarlino no sentido de também melhorou a consonância de MI
substituir a fração 34 por 5 (com as bemol (6/5) e do LA (5/3). Com estes
respectivas translações para a oitava de elementos, chegou-se à escala diatônica
referência), dando origem ao fator 5/4 natural, na tonalidade maior de Zarlino:
para a nota MI e 8/5 para a nota LA ,
isto é, multiplicando e dividindo a
unidade por 5, respectivamente.

DO RE MI FA SOL LA SI DO
1/1 32/22 5/4 4/3 3/2 5/3 (3×5)/8 2/1

2.5 Construção da escala cromática 1/LA = 3/5  6/5 (MI )


natural a partir da escala diatônica 1/SI = 8/(3×5)  16/15 (RE )

Introduzindo, agora a operação No presente caso da escala


da inversão, obtemos as notas que natural, devemos ter o cuidado de não
faltam para completar a escala confundir SI com DO#, LA com
cromática natural, com a exceção do SOL#, etc. assim como os dois trítonos:
trítono [3,4]: FA# e SOL que não são coincidentes,
mas muito próximos.
1/RE = 1/(32/23) = 23/32  A partir dos resultados acima,
(translação de oitava)  24/32 = podemos visualizar a escala natural
16/9 (SI ) cromática (segundo Zarlino) como se
1/MI = 4/5  8/5 (LA ) segue:
1/FA = 3/4  3/2 (SOL)
1/SOL = 2/3  4/3 (FA)

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

1/1 9/8 25/24 6/5 5/4 4/3 3/2 8/5 5/3 16/9 15/8 2/1

16/15 135/128 16/15 25/24 16/15 16/15 st2 st1 st3 st1
st1 st3 st1 st2 st1 st1

Os intervalos entre os sucessivos 3. Definição do conceito de grupo em


semitons da escala cromática natural álgebra linear
são ligeiramente diferentes entre si,
distribuídos simetricamente em relação Um grupo G é o conjunto de um
ao centro de inversão, um número determinado número n de elementos a1,
irracional, igual a 21/2. Vamos a2, a3,..., an que podem ser multiplicados
denominar os três tipos de semitons entre si, de acordo com as regras
como st1 = 16/15, st2 = 25/24 e st3 = definidas da seguinte maneira [5]:
135/128, respectivamente. O centro de a) ai × aj = ak, onde ai e aj є G. (Se
inversão nada mais é do que o centro de ak є G, diz-se que o grupo é
simetria da escala, definido pela média fechado; caso contrário, o grupo
geométrica entre a tônica e a sua é aberto).
primeira oitava: (1/1 × 2/1)1/2 = 21/2. b) Todo grupo tem um elemento
Como existem dois trítonos na escala, a unidade, tal que
saber, 1/1 × (9/8)3 = 729/512 (FA# a1 × a i = a i × a1 = a i
natural) e 2/1 × (8/9)3 = 1024/729 c) Todo elemento do grupo possui
(SOL natural), vamos adotar o um único elemento inverso
respectivo ponto médio que coincide associado ai-1 = 1/ai, tal que
com o FA# da escala temperada, ai-1 × ai = ai × ai-1 = a1.
definido pelo fator 21/2 para evitar a d) Propriedade associativa do
ambigüidade. Como a inversão do produto de elementos ai, aj, ak
centro de inversão i deve reverter sobre pertencentes a G:
ele próprio, reconduzido para a oitava ai × (aj × ak) = (ai × aj) × ak.
de origem mediante a multiplicação por e) Se ai × aj = aj × ai, o grupo G é
2, temos: comutativo.

i = (1/i) × 2 = 2/i ou i2 = 2, 4. Fundamentos de uma álgebra


musical
donde i = 21/2 = FA# temperado (ou
O centro de inversão FA#
SOL temperado).
(temperado) = 21/2 é um elemento
O número 21/2 não pode ser
estranho ao conjunto das notas
representado sob a forma de uma fração
representadas por frações de números
entre dois inteiros pertencendo,
inteiros (números racionais Q = N/D,
portanto, ao conjunto dos números
onde N e D são inteiros). Assim, para
irracionais. Dentro de uma oitava, o
podermos formalizar uma álgebra
trítono mantém o intervalo constante
musical, é preferível voltar a considerar
com uma determinada nota da escala e a
DO = 1/1 como o elemento de inversão,
sua respectiva inversão.
igual à unidade do grupo e depois,

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

considerar as notas invertidas, situadas SOL × LA = 3/2 × 5/3 = 5/2


em outras oitavas, como equivalentes às (>2), ou então, efetuando a
suas análogas, situadas no intervalo translação de uma oitava, 5/2 ×
[DO = 1/1, DO = 2/1[, onde o colchete 2-1 = 5/4 = MI, ou resumindo,
aberto à direita indica que DO = 2/1 está podemos escrever :
excluído do conjunto.
Definimos como produto de DO × MI = DO e SOL × LA = MI.
duas notas musicais o produto entre as
respectivas frações representativas, Por simplicidade, não iremos
posteriormente multiplicado por 2±n mais fazer menção explícita às
onde ±n representa a potência de 2 translações mediante o produto do
necessária para trazer o resultado para a resultado por 2±n para que o mesmo
oitava de referência, i.é, correspondente figure na oitava de referência.
ao intervalo [1/1, 2/1[.
Exemplos:
4.1 Conjunto {DO, SOL, FA}
DO × MI = 1/1 × 5/4 = 5/4 = MI
Consideremos, agora, o conjunto
Percebe-se claramente que DO é {D O, SOL, FA} e efetuemos todos os
o elemento unidade, representado pela produtos possíveis entre os seus
fração 1/1; elementos. Na Tabela 1 representamos
todos esses resultados através de uma
matriz 3 × 3:

Tabela 1: Matriz 3 × 3 contendo todos os produtos possíveis entre DO, SOL e FA.

DO SOL FA
SOL (RE) DO
FA DO (SI )

Em primeiro lugar, verificamos 4.2 A escala diatônica natural


que a inversão de todos os elementos do
conjunto {D O, SOL, FA} recai no Verifiquemos, agora, o que
mesmo conjunto: DO-1 = DO; FA-1 = acontece com o conjunto formado pelas
SOL e SOL-1 = FA. De acordo com as notas da escala de DO maior natural
definições estabelecidas na seção 4, o {DO, RE, MI, FA, SOL, LA, SI}. Basta
conjunto é um grupo aberto, pois os efetuar as inversões para constatar que
produtos apenas as inversões de DO, FA e SOL
SOL × SOL = (SOL)2 = RE recaem no conjunto da escala e as
e demais geram notas não pertencentes à
FA × FA = (FA)2 = SI mesma. Portanto, o conjunto formado
são resultados que não pertencem ao pelas notas da escala diatônica não é
conjunto original, portanto, {D O, SOL, grupo.
FA} é um grupo aberto.

457
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

escala cromática natural (menos o


4.3 A escala cromática natural trítono) é um grupo comutativo aberto,
pois neste caso cada inversão gera uma
Procedendo analogamente com das notas já pertencentes ao conjunto
as notas da escala cromática natural dos elementos da mesma escala
(com a exclusão do trítono), podemos cromática. Os resultados dos produtos
considerar o conjunto {DO, RE , RE, que ficaram fora do grupo ainda são
MI , MI, FA, SOL, LA , LA, SI , SI}, números racionais, pois são frações
efetuar todas as multiplicações possíveis entre dois inteiros e que ficam
e construir a matriz quadrada de 11 × inteiramente contidos em uma matriz
11, conforme representadas na Tabela 2, complementar 16 × 16 que também não
de modo que o grupo formado pela está inteiramente preenchida.

Tabela 2: Matriz 11 × 11 contendo somente os produtos pertencentes ao conjunto {DO, RE , RE, MI ,


MI, FA, SOL, LA , LA, SI , SI}.

DO RE RE MI MI FA SOL LA LA SI
SI
1/1 16/15 9/8 6/5 5/4 4/3 3/2 8/5 5/3 16/9
15/8

DO
1/1 DO RE RE MI MI FA SOL LA LA SI SI
RE RE ---- MI ---- FA ---- LA ---- SI ---- DO
16/15
RE RE MI ---- ---- ---- SOL DO ---- SI DO ----
9/8
MI MI ---- ---- ---- SOL LA ---- ---- DO RE RE
6/5
MI MI FA ---- SOL ---- LA SI DO ---- ---- ----
5/4
FA FA ---- SOL LA LA SI DO RE ---- ---- ----
4/3
SOL SOL LA DO ---- SI DO RE MI MI FA ----
3/2
LA LA ---- ---- ---- DO RE MI ---- FA ---- SOL
8/5
LA LA SI SI DO ---- ---- MI FA ---- ---- ----
5/3
SI SI ---- DO RE ---- ---- FA ---- ---- ---- LA
16/9
SI SI DO ---- RE ---- MI ---- SOL ---- LA ----
15/8

4.4 A escala cromática temperada inteiros. Cada semitom cromático é


representado pelo número irracional
Na escala cromática os intervalos 21/12. Conseqüentemente, DO# = RE ,
entre as notas sucessivas são RE# = MI , etc. Podemos, então,
rigorosamente todos iguais ao semitom utilizar o símbolo # para obter com
cromático que não pode mais ser exatidão todas as notas da escala:
representado pelo quociente entre dois

458
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

(trítono)

1 21/12 21/6 21/4 21/3 25/12 21/2 27/12 22/3 23/4 25/6 211/12 2

21/12 21/12 21/12 st st st st st st st st st

onde st tem o significado de semitom a escala cromática temperada é um


temperado. grupo comutativo fechado. Todos os
O conjunto das 12 notas da escala intervalos entre as notas são
cromática temperada é então {DO, representados pelos mesmos números
DO#, RE, RE#, MI, FA, FA#, SOL, (irracionais) que caracterizam as
SOL#, LA, LA#, SI} e os fatores que notas do mesmo conjunto.
caracterizam cada nota são os seguintes:
5. Conclusão
DO = 1 (elemento unidade)
DO# = 21/12 A relação existente entre os
RE = (21/12)2 = 22/12 = 21/6 números e as notas musicais permite
RE# = 23/12 = 21/4 associar um número natural e irracional
MI = 24/12 = 21/3 no caso da escala temperada. As
FA = 25/12 propriedades algébricas desses números
FA# = 26/12 = 21/2 (trítono) conferem às notas musicais a
SOL = 27/12 possibilidade da aplicação de algumas
SOL# = 28/12 = 22/3 características inerentes à teoria dos
LA = 29/12 = 23/4 números.
LA# = 210/12 = 25/6 A operação da multiplicação de
SI = 211/12 uma nota por outra foi definida,
resultando uma terceira nota. O conceito
A matriz dos produtos entre os de grupo estabelecido pela Álgebra
elementos do conjunto da escala Linear permite classificar determinados
cromática temperada pode ser conjuntos de notas (que podem ser
representada por uma matriz 12 × 12, escalas naturais ou temperadas) como
conforme se observa na Tabela 3. pertencentes ou não às categorias de
Como neste caso a matriz está grupo aberto ou grupo fechado.
totalmente preenchida, concluimos que

459
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Tabela 3: Matriz 12 × 12 dos produtos entre as notas da escala cromática temperada.

DO DO# RE RE# MI FA FA# SOL SOL# LA LA# SI


1/12 1/6 1/4 1/3 5/12 1/2 7/12 2/3 3/4 5/6
1 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 211/12

DO DO DO# RE RE# MI FA FA# SOL SOL# LA LA# SI


1
DO# DO# RE RE# MI FA FA# SOL SOL# LA LA# SI DO
21/12
RE RE RE# MI FA FA# SOL SOL# LA LA# SI DO DO#
21/6
RE# RE# MI FA FA# SOL SOL# LA LA# SI DO DO# RE
21/4
MI MI FA FA# SOL SOL# LA LA# SI DO DO# RE RE#
1/3
2
FA FA FA# SOL SOL# LA LA# SI DO DO# RE RE# MI
5/12
2
FA FA# SOL SOL# LA LA# SI DO DO# RE RE# MI FA
25/2
SOL SOL SOL# LA LA# SI DO DO# RE RE# MI FA FA#
27/12
SOL# SOL# LA LA# SI DO DO# RE RE# MI FA FA# SOL
22/3

LA LA LA# SI DO DO# RE RE# MI FA FA# SOL SOL#


3/4
2
LA# LA# SI DO DO# RE RE# MI FA FA# SOL SOL# LA
5/6
2
SI SI DO DO# RE RE# MI FA FA# SOL SOL# LA LA#
11/12
2

Uma análise simples permite concluir 7. Referências bibliográficas


que a escala diatônica natural (maior ou
menor) não é grupo. A escala cromática [1] O. Abdounur. Matemática e Música:
natural (excluindo o trítono) é um grupo o pensamento analógico na construção
aberto e a escala cromática temperada é de significados. São Paulo, 2002, 2a
um grupo fechado. edição, Editora Escrituras.
Finalmente, podemos afirmar que [2] B. Lechevalier, H. Platel, F.
somente o grupo fechado é compatível Eustache. Le Cerveau Musicien, De
com a música polifônica. Boeck & Larcier s.a., 2006, Bruxelles.
[3] Hugo de Andrade Só. Ciência e
6. Agradecimento Música: física dos sons musicais, ed.
H.A. Só, São Paulo, 1961.
Aproveito a oportunidade para [4] W.M. Pontuschka. Música, ondas e
expressar o meu sincero agradecimento números. Grupo Santanna Gomes,
ao Grupo de Estudos Musicológicos Campinas, 1993.
Santanna Gomes pelas numerosas e [5]
estimulantes discussões que inspiraram http://www.on.br/glossario/alfabeto/a/al
o presente trabalho. gebra.html/

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Um modelo de rugosidade para um patch de afinação


adaptativa em puredata controlado por sensores de antenas

Alexandre Porres

Resumo: A sessão de demonstração, aqui projetada, descreve um patch desenvolvido em


puredata1 (Pd) que está centrado na implementação de um modelo de Rugosidade. A
implementação fornecida por Sethares (2005) em Matlab foi, como ponto de partida, traduzida
para Pd, porém, devido às alterações e melhorias do modelo, apenas rotinas de cálculos foram
mantidas intactas. Em torno do modelo de Rugosidade, diversos módulos foram desenvolvidos.
A Figura 1 apresenta a tela inicial do patch (jargão de usuários de Pd, referente ao programa
desenvolvido) e suas seções principais.

Figura 1 – Tela Inicial do Patch em Pd

De cima para baixo, temos, primeiramente, uma seção de síntese sonora por tabelas (wavetables
- formas de onda ou amostras de som) e síntese aditiva. Logo abaixo, encontramos duas seções
de análise baseadas no modelo de Rugosidade: Geração de Curvas de Dissonância (Dissonance
Curves) e Análise de Rugosidade no tempo via FFT (Dissonance Scores). Por fim, foi
desenvolvida uma seção de Afinação Adaptativa, que permite ajustar a afinação de acordo com
uma dada escala. A análise de Rugosidade no tempo é uma seção que não está diretamente
vinculada às outras seções. Por outro lado, o patch segue um fluxograma de gerar um espectro
sonoro a partir da seção de síntese, para então retornar análises pelas Curvas de Dissonância e
extrair uma escala com pontos consonantes e dissonantes. Essas, assim como outras escalas,
podem ser inseridas para performance nos módulos de Afinação Adaptativa.

fim, uma aplicação desse sistema é


1. Introdução apresentada pelo conceito de Afinação
Adaptativa, que permite uma correção
Uma sessão de demonstração automática da Afinação. Esses módulos
desse software permite explicar de são conectados a sensores de antenas que
maneira didática os conceitos sobre a funcionam como um Theremin, e são,
Percepção de Rugosidade, assim como por eles, afinados em tempo real.
discorrer pormenorizadamente sobre o os Algumas informações e seções do
experimentos de Plomp e Levelt. Além trabalho se encontram no texto abaixo.
desses fundamentos, a demonstração
explica o processo de modelagem e 2. O modelo
implementação computacional, e
demonstra na prática as possibilidades O algoritmo fornecido por
dessa ferramenta para análise sonora. Por Sethares recebeu novas fórmulas

461
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

psicoacústicas como 5 conversões funções, foi adotada a Equação de


diferentes de Hertz para a Escala da Vassilakis no redimensionamento de
Banda Crítica. Um objeto em Pd, amplitude. Já o trabalho de Fletcher e
denominado de HzToCbrz, possui uma Munson (1933) foi implementado via
entrada de valores em Hertz e cinco uma tabela de referência que possui
saídas distintas, de acordo com cada valores em dB e midicents. A tabela
procedimento de conversão. A saída pode ser consultada e convertida em
mais à esquerda é considerada a mais amplitude relativa com os objetos
acurada. A conversão é necessária para nativos do puredata: ftom e
acessar as aproximações da Curva de rmstodb/dbtorms.
Plomp e Levelt (1965) por Sethares
(2005) e Parncutt (1993). Além dessas

Figura 2 – HzToCBRz, conversão de Hertz Para Barks no patch.

462
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Figura 3 – Implementação de Fórmulas

O diagrama da Figura 4 representa Rugosidade de um tom complexo, ao somar


o fluxo de informação do patch, que retorna o valor de cada combinação de pares de
R(f1-A1,f2-A2), ou seja, o valor de freqüências na seção de análise de Curvas,
Rugosidade para um par de freqüências em ou apenas se analisa o som no tempo, via
Hz e suas respectivas amplitudes relativas. uma FFT, na seção Dissonance Score.
A partir desse modelo, é que se calcula a

Figura 4 – Fluxograma da informação no Patch para um par de tons puros [Porres, 2007, p. 44]

463
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

3. Seção de Síntese paralelo fornecem a lista de amplitudes relativas


que, automaticamente, geram uma Série
É possível extrair listas de Harmônica (até o 32º termo), a partir de
freqüências e amplitudes relativas tanto uma freqüência fundamental. Listas de
via Síntese Aditiva quanto por amostras amplitudes relativas geram, assim,
em wavetables, necessárias para dar automaticamente formas de onda como
entrada no modelo de Rugosidade. No dente-de-serra e onda quadrada até 32
caso da Síntese Aditiva, 32 osciladores em parciais.

Figura 5 – Seção de Síntese Aditiva

Pode-se, assim, escolher um ser gerada e inserida em tais análises.


preset de onda quadrada e limitar o Logo, um número maior de parciais
conteúdo espectral de 1 a 32 parciais pode ser extraído de uma análise FFT
(vide a caixa numérica Partial Limiter no caso de uma amostra de um
na Figura 5). Outro procedimento insere instrumento musical, que depende da
um índice de inarmonicidade que capacidade de processamento do
comprime (se negativo) ou expande (se computador em questão. Em média, há
positivo) o espectro original a partir de um grande custo computacional para
um valor em cents. É possível também listas com mais de 32 parciais.
gerar parciais em relações não
harmônicas, mas em relações 4. Seção de Análise de Curvas
aritméticas e geométricas2. Os
subpatches “Pd Freq” & “Pd Amp” Tanto a seção de síntese quanto
permitem um ajuste fino da freqüência e a seção de análise não fazem parte de
amplitude os 32 osciladores via controle um processo em tempo real, mas sim de
MIDI. Em última instância, uma lista de um estágio de pré-processamento, que
freqüências e amplitudes pode ser concerne o desenvolvimento de um
inserida à mão. Na verdade, qualquer banco de espectros e respectivas escalas
lista de freqüências (até 32 derivadas. Na análise de Curvas, a lista
componentes) pode ser extraída de uma do espectro é duplicada e um
análise FFT e inserida na seção de deslocamento de uma dessas listas no
síntese aditiva. espaço de freqüências é realizado pelo
Contudo, as análises de curvas algoritmo. Isso significa que o espectro
de Dissonância Sensorial não dependem analisado pelo modelo de Rugosidade
da seção de síntese sonora. Uma lista nas Curvas de Dissonância é, na
maior de componentes espectrais pode verdade, a soma de dois tons com

464
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

mesmo conteúdo espectral em pode ser definido como argumento e, se


diferentes intervalos3. A resolução da negativo, significa que o tom varia de
variação desses intervalos, assim como um ponto mais grave. Por exemplo, se o
o registro, pode ser definido pelo registro da Curva possui 1.200 cents
usuário. Como Default, adota-se o (uma Oitava), e o início da análise for
registro de uma Oitava mais um Quarto definido como menos doze Semitons
de Tom e uma resolução de um cent, de (também uma Oitava), o tom variante
modo que a curva possui 1.250 pontos. partirá de uma Oitava no grave até o
As Curvas são elaboradas a Uníssono em relação ao tom fixo. A
partir de um tom fixo em Hertz, que análise da Figura 6 foi realizada com
equivale à fundamental da lista de resolução de um cent, em um registro de
freqüências do espectro. O registro do 2.400 cents (duas Oitavas), e com o
tom variante e a resolução dos passos ponto inicial definido a menos doze
em cents são argumentos do subpatch Semitons. Logo, o tom variante parte de
que gera o gráfico em curvas. Um ponto uma Oitava abaixo e percorre em passos
inicial da análise em Semitons também de um cent até uma Oitava acima.

Figura 6 – Curva de Dissonância derivada pelo Modelo de Rugosidade para


uma onda triangular com 07 parciais – o eixo X representa Semitons, e Y a
Rugosidade relativa. O tom fixo é de 440Hz (no centro do gráfico), esse
registro da Curva de Dissonância em duas Oitavas é de 220Hz a 880Hz –
uma Oitava acima e abaixo de 440Hz.

5. Seção de Afinação Adaptativa Theremin), baseado no trabalho de Smirnov


<http//asmir.theremin.ru/sensors.
As escalas derivadas de htm>. Os parâmetros de reação do
espectros sonoros – pontos máximos módulo são: ajustar para o passo mais
(picos) e mínimos (vales) das Curvas – próximo da escala, para o vale mais
podem ser inseridas na seção de próximo, ou para o pico mais próximo.
Afinação Adaptativa. Assim, um Todavia, qualquer escala pode ser
mesmo som gerado na seção de Síntese inserida nesses módulos, inclusive, uma
pode ter sua escala derivada pelo adaptação para o banco de dados com mais
Modelo de Rugosidade e ter sua de 3.000 escalas do software Scala
afinação manipulada, em tempo real, <http://www.xs4all.nl/~huygensf/scala/> foi
via os módulos de Afinação programada com uma rotina de
Adaptativa. Como controle de exportação do formato.scl para .txt, no
afinação, foram utilizadas formato de arquivo gerado pelo próprio
antenas como sensores de patch para as escalas provenientes da
proximidade (princípio do análise de Rugosidade.

465
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Figura 7 – Dois módulos de Afinação Adaptativa.

O conceito de Afinação os controles de antenas, é representado


Adaptativa – assim como os módulos na Figura 7.
implementados no patch – podem,
portanto, também ser independente do 6. Seção de Análise no tempo
modelo de Rugosidade. O conceito pode
ser definido como um “corretor de Via uma FFT, o módulo
alturas”, que a ajusta para uma escala Dissonance Score permite uma análise
dada. Todavia, os módulos possuem em tempo real da rugosidade de um
parâmetros de adaptação automática ou sinal digital, na Figura 8, um sinal
não. No caso de adaptações não digital em “b)” foi analisado em “a)”,
automáticas, elas podem ocorrer em trata-se de uma sucessão e superposição
determinado tempo ou velocidade (cents de senóides, logo, os valores de
por segundo). O fluxograma de Rugosidade foram apenas acusados nos
informação do patch desenvolvido, com trechos de superposição.

Figura 8 – Dissonance Score – Análise de Rugosidade no tempo.

7. Informações finais partida de uma pesquisa de doutorado,


que tem como objetivo incorporar mais
O software foi elaborado em ferramentas de análise e criação sonora,
uma pesquisa de mestrado e está em também baseados em princípios
constante processo de aperfeiçoamento. psicoacústicos. A defesa do trabalho de
Esse trabalho também é o ponto de mestrado foi conduzida inteiramente

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

sobre uma demonstração do software, o curvas, afinação adaptativa, e controle


que motivou a apresentação do mesmo por antenas (apenas não inclui a análise
como uma sessão demonstrativa em um de Rugosidade no tempo – Dissonance
simpósio. A última Figura é da versão Score). Pode-se acompanhar a evolução
do manual em inglês, que representa o desta pesquisa e baixar o patch pelo
fluxo de informação do programa, que sítio
agrega as seções de síntese, análise de <http://porres.googlepages.com/home>.

Figura 9 – Fluxograma do patch de Pd, manual em inglês

8. Referências VASSILAKIS, P. N. Perceptual and


Physical Properties of Amplitude
FLETCHER, H; MUNSON, W.A. Fluctuation and their Musical
(1933), Loudness, its definition, Significance. Tese de Doutorado.
measurement and calculation. Journal UCLA, 2001.
of the Acoustical Society of America
n. 5, 82-108, 1933.
PARNCUTT, R. Parncutt's implementation of
Hutchinson & Knopoff roughness model, 1
1993. Disponível em: <http://www-gewi.uni- Ver <http://puredata.org/info>.
2
Esse procedimento é bem incomum, e foi
graz.at/staff/parncutt/rough1doc.html>. adotado como um meio de gerar conteúdo
PLOMP, R.; LEVELT, W.J.M. Tonal espectral inusitado.
3
Uma alteração no algoritmo poderá permitir a
Consonance and Critical Bandwidth. análise de Rugosidade para dois tons de
Journal of the Acoustical Society of componentes espectrais distintos.
América, n. 38, 548-568, 1965.
PORRES, A. T. Processos de
Composição Microtonal Por Meio do
Modelo de Dissonância Sensorial.
Dissertação de Mestrado. UNICAMP,
2008.
SETHARES, W.A. (1999) Tuning,
Timbre, Spectrum, Scale. London:
Springer-Verlag. 2.ed. com CD-ROM,
2005.

467
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Aspectos do processo de cognição musical e suas possíveis


contribuições para a composição

Antenor Ferreira Corrêa


FPA

Resumo: este artigo é desenvolvido tendo por base as idéias de Leonard Meyer, sobretudo as
formuladas em seu livro Music, the arts, and ideas. Partindo de definições de termos
relacionados ao processo de cognição musical (como percepção, compreensão e significação),
algumas correspondências com a teoria da informação são avaliadas. Por fim, são apontados
aspectos desse processo que podem embasar as linguagens musicais contemporâneas com
intuito do restabelecimento da comunicação entre compositor e ouvinte.

Palavras-chave: Leonard Meyer, percepção musical, composição musical

em 1925 e seu posterior desdobramento


1. Introdução: apresentação do tema, no serialismo integral da segunda
objetivo, fundamentação teórica e metade do século XX), obras que por
metodologia vezes não são mais consideradas como
manifestações artísticas, mas sim como
Vários compositores e teóricos propostas matemáticas ou científicas.
da música contemporânea entendem a Todavia, apesar do que parecem sugerir
necessidade do resgate da comunicação algumas correntes pós-modernistas, um
entre autor e audiência. Jorge Antunes, retorno ao estilo composicional do
por exemplo, atesta: passado não é apregoado pelos
compositores de vanguarda, mas sim
a música contemporânea busca uma reformulação do pensamento
desesperadamente a comunicação estético (e, por que não dizer, técnico)
imediata com o público de hoje. intrínseco à arte moderna, que não
Aparentemente a maioria dos pretende desconsiderar os aspectos e
compositores não mais pretende impactos perceptuais envolvidos na
escrever cartas à posteridade sem a
espera de resposta. A busca de uma
recepção da obra de arte. Assim, o
comunicação efetiva com o público é citado resgate da comunicabilidade
bastante lógica, coerente, musical no âmbito da música complexa
compreensível e necessária. Tenta-se precisa de novos critérios e parâmetros
conquistar o público o mais amplo balizadores que podem ser encontrados,
possível e para isto são usados os entre outras, nas ciências da cognição e
mais diversos métodos. da informação.
(Antunes, 2003) Em 1994, Leonard Meyer
realizou uma revisão do seu livro Music,
O alegado motivo desta perda de the arts, and ideas, publicado pela
comunicabilidade é o alto grau de primeira vez em 1967, no qual apresenta
cerebralismo presente nas obras uma série de reflexões envolvendo, entre
musicais de vanguarda (sobretudo, outros assuntos, a percepção e a
desde a promulgação da técnica cognição da música complexa. Meyer
dodecafônica por Arnold Schoenberg desenvolve um rol de tópicos que

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

concorreriam para a compreensão e revalidam a questão: o que é entender


significação musicais, tendo por base a uma música? Há várias tentativas de
psicologia gestaltista e a teoria da resposta, mas para os fins perseguidos
informação. A hipótese principal de sua neste artigo considere-se a sugestão do
argumentação é que a fruição da música esteta Roger Scruton: “compreender
envolve processos prognósticos, música é em parte uma atividade
oriundos do aprendizado (que traz cognitiva: uma atividade de organização
implícitos fatores culturais) e da mental que congrega sons e registra-os
experiência individual com os diversos como tons, arranjados em uma ordem
estilos, os quais norteariam a escuta e, tonal” (Scruton, 1997, p. 211). Embora
conseqüentemente, a compreensão inicial, essa definição já traz algumas
musical. Ao longo de seu texto implicações. A primeira (vai aqui uma
encontram-se diversas comparações visão particular) é a não ocorrência em
entre as músicas tonal e serial com língua portuguesa da diferenciação,
intuito de avaliar a diferença nos graus existente em outros idiomas, entre ‘som’
de cognição que estes repertórios e ‘tom’ (com ênfase nas aspas de tom).
envolvem. Em português, a palavra ‘tom’ adquire
Propõem-se aqui, tendo por base um significado errôneo quando substitui
principal os escritos de Meyer ‘tonalidade’. É comum (mesmo entre os
confrontados e complementados com músicos) ouvir a frase “em que tom você
outros autores, considerar os aspectos canta essa música?”, quando o correto
envolvidos na recepção e na seria em qual tonalidade. ‘Tom’ deveria
compreensão da música contemporânea referir-se exclusivamente à medida
de modo a criar alguns critérios que intervalar formada por dois semitons.
sirvam como balizas para o plano Contudo, a palavra é atestada pelo uso e,
composicional objetivando reativar a com isso, abonada pelos dicionários (o
comunicação entre compositor e ouvinte novo Michaelis contém 14 possibilidades
da obra musical contemporânea. Para para este termo), que também designam
tanto, inicia-se com definições dos como ‘tom’ a referência ao caráter ou
conceitos envolvidos, seguindo-se inflexão de voz; assim, diz-se “dirigiu-se
incursões nos textos de Meyer à platéia em tom doutoral”, ou
(complementados com estudos no campo “repreendeu-o em tom áspero”. Há,
da cognição, especialmente James logicamente, o uso feito pelas artes
Gibson, e da teoria da informação) de plásticas como “tom pastel”, entre outros.
modo a elencar aspectos envoltos na No inglês, como dito, há a distinção entre
compreensão e comunicação musicais, tom e som (tone e sound). Sound é aquilo
finalizando com sugestões para a captado pelo sentido da audição, ao passo
possível extrapolação destes pontos no que tone implica no estatuto musical que
campo composicional. Espera-se, assim, o som adquire, isto é, sua altura, timbre,
promover a reflexão sobre o tema duração e intensidade. Assim, tone é um
gerando posteriores desdobramentos na som que existe no domínio musical,
literatura sobre composição musical. similar ao que Schaeffer designava como
objeto sonoro (sound) e objeto musical
2. Compreensão e significação (tone). Desse modo, fica esclarecida a
definição “congregar sons e registrá-los
Para muitos a música não é para como tons”, pois implica justamente na
ser entendida, mas somente apreciada. atribuição de sentido musical a uma
Outros tantos, no entanto, repetem e ordem sonora.

469
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

A segunda implicação percepção do som enquanto estímulo


terminológica da frase de Scruton reside físico e segue com sua posterior inserção
no entendimento de ‘ordem tonal’. Se a como membro constituinte de um padrão
intenção é fornecer uma definição ou de uma forma. Para engendrar uma
abrangente, então essa expressão não impressão formal uma ordem deve ser
pode simplesmente restringir-se às estabelecida, na qual os estímulos
sucessões pertencentes ao sistema tonal individuais tornem-se parte de uma
(mesmo porque, vale lembrar, tonal estrutura maior e realizem distintas
refere-se àquilo que é próprio dos sons, funções dentro dessa estrutura. Esse
em oposição, por exemplo, a rítmico, processo resulta da habilidade cognitiva
pertencente ao ritmo, ou timbrístico, em “relacionar as partes constituintes
particular ao timbre). A possibilidade da entre si de maneira inteligível e
disposição ordenada de elementos não se significativa” (Meyer, 1956, p.157). Além
limita à tonalidade clássica, podendo de revelar sua base gestaltica, Meyer faz
ocorrer em quaisquer sistemas sintáticos acoplar neste último entendimento a
musicais, o serialismo integral, por questão da compreensão com a
exemplo, é tido como altamente significação. Mas, o que é, pois, o
estruturado1. Cabe, porém, a ressalva significado musical? Obviamente o
fundamental de que o importante é a assunto é amplo para tencionar-se
atribuição desta ordem pelo cérebro discussões exaustivas no âmbito deste
durante o ato da escuta. Com isso, é lícito trabalho, o próprio Meyer dedicou um
pensar que a compreensão musical é a livro inteiro ao tema. Todavia, algumas
organização impingida no processo considerações são necessárias para a
cognitivo aos eventos sonoros de modo continuação desta exposição.
que estes adquiram sentido. Esta Segundo Meyer, “o significado
aquisição de sentido implica que esses musical surge quando nossas respostas
componentes compartilhem alguma habituais esperadas são retardadas ou
espécie de relação, pois do contrário bloqueadas – quando o curso normal dos
correriam o risco de serem tidos como eventos estilístico-mentais é perturbado
informações díspares, não pertencentes ao por alguma forma de desvio” (Meyer,
mesmo contexto. A compreensão musical 1994, p.10). O som, após ser registrado e
pode ser então tomada analogamente a acolhido como objeto musical, adquire
qualquer sistema de comunicação em que uma configuração e é inserido em um
estejam envolvidos mensagem e contexto musical. Este contexto forma o
decodificação. Compreender é desvendar pano-de-fundo para o desenvolvimento da
o sentido, sendo esse desvendamento obra e a sua existência engendra o fluxo
realizado por meio da associação entre de expectativas, isto é, os prováveis
sons, ou seja, pela habilidade humana de modos de continuação e desfecho, e os
relacionar os eventos sonoros. ‘desvios’ deste fluxo. A partir desse
Esta atividade organizacional é ponto, o cérebro passa a analisar o
realizada no percurso que se inicia com a desenrolar dos acontecimentos musicais
de maneira probabilística, avaliando
1
continuidade e contraste segundo os
A própria definição de estrutura é útil no desvios impostos ao decurso dos eventos.
contexto desta argumentação, designando a
congregação de relações entre elementos de
De acordo com Meyer (cf: 1994, p.10),
modo a criar uma ordem, ou também “o são possíveis três maneiras de desvios:
conjunto de relações lógicas e racionais que se retardamento (o evento conseqüente não
deixam descrever sob a forma de leis” surge no momento esperado), incerteza
(Jakobson apud Pomian, p. 151).

470
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

(ambigüidade de uma situação precedente hipótese de que “as condições psico-


não permite certeza sobre a conseqüente), estilísticas que proporcionam o
surpresa (o evento conseqüente surgido significado musical, seja este afetivo ou
era improvável). Assim, “reformulando o intelectual, são similares àquelas que
enunciado anterior, o significado musical comunicam informação” (idem, p.5).
surge quando uma situação antecedente, Ao lado dessa natureza probabilística do
que requer a estimativa de prováveis estilo musical, outros paralelos podem
modos de padrões de continuação, produz ser notados com a teoria da informação,
incerteza sobre a natureza temporal e como a importância da incerteza na
tonal do conseqüente esperado” (Meyer, comunicação musical e a operação do
1994, p.11). processo Markoff (ver adiante).
Ao exposto sobre significado De acordo com a teoria da
musical, um elemento primordial deve ser informação (cujas bases foram
acrescentado: o estilo. O estilo (ou as formuladas, sobretudo, pelo cientista
normas estilísticas) cumpre o papel de norte-americano Claude Shannon), a
uma espécie de background perceptual, quantidade de informação contida em
formando o cenário para o uma mensagem é medida pela
desenvolvimento do enredo musical, e é a probabilidade de incerteza na relação
partir dele que as expectativas são antecedente versus conseqüente. A
formatadas e desviadas. “O estilo partir de dados antecedentes, eventos
constitui o universo do discurso dentro do conseqüentes adquirem graus de
qual o significado musical surge” (idem, probabilidade. O menos provável é
p.7). Essa situação pode ser formalizada menos esperado (e seu aparecimento
como segue: percepção e registro de causará maior surpresa). Quando uma
eventos sonoros em um contexto musical, situação antecedente é altamente
cuja existência é viabilizada pela organizada, a liberdade de escolha do
experiência com determinado estilo, que conseqüente é baixa, portanto o grau de
engendrará probabilidades de informação também é baixo. Ao passo
continuação, criando assim expectativas e que uma situação caracterizada por alto
frustrações no desenvolvimento da obra. grau de incerteza, cujos conseqüentes
Daí Meyer entender que “uma vez que sejam equiprováveis, possui taxas de
um estilo musical tenha se tornado parte informação e de entropia elevadas.
das respostas habituais de compositores, Assim, quanto maior liberdade de
intérpretes e ouvintes iniciados ele pode opções para um conseqüente, maior será
ser considerado como um sistema o grau de incerteza e maior a
complexo de probabilidades” (idem, p.8). informação. É preciso lembrar que a
palavra informação na teoria da
3. Significação musical e teoria da comunicação difere do que é entendido
informação normalmente como significado, dizendo
respeito não ao conteúdo semântico
O aspecto prognóstico envolvido literal de uma mensagem, mas àquilo
no processo de compreensão musical é a que a mensagem poderia,
base para a associação entre prognosticamente, comunicar. Esse
significação e informação, pois quanto processo assemelha-se ao que em física
maior a certeza sobre a possibilidade de é conhecido por entropia, ou seja, é a
um evento vir a ocorrer futuramente, medida da desordem ou aleatoriedade
maior será o impacto se algum tipo de de um sistema; é o número de
desvio acontecer. Meyer lança então a reorganizações das partes de um sistema

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

que deixam a aparência geral inalterada; incerteza e informação diminuem. No


“é a tendência dos sistemas físicos início de uma música, no entanto, não
tornarem-se cada vez menos há ainda material para o cérebro derivar
organizados e mais e mais possibilidades de continuação, existe o
perfeitamente embaralhados” (Weaver, que Meyer denomina incerteza
página da web sem data). sistêmica. Com o desenvolvimento da
Informação e entropia da obra e a percepção do estilo, o grau de
mensagem relacionam-se diretamente e previsão aumenta e informação diminui.
são calculadas matematicamente pela No entanto, a interferência do
teoria das probabilidades. A aplicação compositor aparece, pois este controla
de cálculos de probabilidades aos dados os níveis de informação (inclusive com
coletados estatisticamente é chamada intuito de combater o tédio e a
estocástica. Assim, diferindo de um obviedade) por meio da incerteza
sistema determinista, o processo designada, compensando o decréscimo
estocástico é aleatório e tem resultados das expectativas (já que estas se tornam
equiprováveis, onde cada uma das mais previsíveis) e do significado.
variáveis em jogo no processo possui Além destas, outras
função própria e não necessitam estar aproximações com a teoria da
relacionadas no resultado futuro do informação podem ser realizadas. À
processo, sendo calculadas em razão da medida que a percepção e compreensão
distribuição de suas probabilidades. do mundo ocorrem (em grande parte por
Pode-se perceber que esse processo meio de modelos e padrões
compreende uma alta taxa de estabelecidos tradicionalmente), estas se
indeterminação, pois uma situação tornam agentes estruturadores ativos
inicial conhecida pode gerar inúmeras deste mundo, uma vez que têm
possibilidades de continuação, embora influência na organização posterior dos
algumas sejam mais prováveis que estímulos valendo-se, justamente, de
outras. Uma cadeia de Markoff (nome modelos aprendidos. A este ciclo
do matemático russo Andrei Markov) é percepção-aprendizado-repercepção
um caso especial do processo Meyer dá o nome de redundância
estocástico. Em uma cadeia de Markoff perceptual. Em música, o nível de
a lei das probabilidades encontra-se na aprendizado que um ouvinte possui com
dependência de um valor assumido em as normas e procedimentos intrínsecos a
um determinado instante, ao invés de determinado estilo irá afetar a
compreender toda a evolução anterior compreensão das obras, pois quanto
do sistema. Os estados anteriores desse mais enfronhado com o estilo em
sistema são irrelevantes para a predição questão, maior a percepção de ordem.
dos estágios posteriores, desde que o Isso implica que as expectativas
estado atual seja conhecido. Embora oriundas da escuta são mais previsíveis
possa parecer controverso, Meyer quanto mais informações sobre o estilo
entende que o fato da música constituir- o ouvinte possui. Isso poderia levar,
se similarmente ao processo Markoff obviamente, ao comentado decréscimo
permite ramificações práticas. Na no nível de informação de uma obra.
medida em que a música se desvela, a Contudo, existe a relativa desordem ou
probabilidade de uma conclusão aleatoriedade imposta pelo compositor
esperada aumenta, pois a percepção já que complementa a redundância
conta com um número maior de dados perceptual, a isto Meyer denomina
para efetuar essa previsão. Portanto, informação perceptual. Redundância

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

reveste-se como importante componente sobre o qual a composição foi baseada.


do processo de comunicação, O relevante para a compreensão musical
constituindo “a parte de uma mensagem são as respostas suscitadas nos ouvintes,
que é determinada pelas regras justamente por perceberem relações
estatísticas aceitas que governam o uso sonoras implicativas que lhes são
de símbolos em questão, e não pela apresentadas. O ouvinte não precisa, por
escolha arbitrária do emissor” (Meyer, exemplo, entender a sintaxe harmônica
1994, p.16). compartilhada pelo repertório originário
do período da prática comum ou os
4. Informação e percepção métodos de transposição e permutação
próprios do serialismo para
Percepção é um poder compreender a obra, inclusive porque os
epistemológico natural do padrões de relações sonoras são
organismo, cujo exercício específicos da peça musical que os
independe de qualquer utiliza, isto é, constituem a realização
contexto social. A experiência única de um conjunto de regras
musical, entretanto, não é
meramente perceptual. Está
sintáticas. Daí a distinção mostrada por
fundamentada em uma Meyer (Cf: 1994, p.267) entre dois tipos
metáfora, surgindo quando um de compreensão: de um lado a
movimento irreal é ouvido em compreensão das estruturas musicais e
um espaço imaginário. Tal seus processos apresentados à mente do
experiência ocorre somente ouvinte; de outro a descoberta do
dentro de uma cultura musical, repertório de materiais tonais e das
na qual tradições de regras envolvidas na sua manipulação
performance e escuta (que via de regra provém da análise
formatam as expectativas musical). Soma-se a isso, a afirmação
(Scruton, 1997, p.239).
de Scruton “não se pode dar significado
convencional para uma frase musical”,
A definição de Scruton remete
pois as regras de organização musical
diretamente ao que Meyer apontava
são sempre a posteriori, derivadas da
como sendo a preponderância que o
tradição e da prática, como as regras da
contato com determinado estilo
harmonia clássica, por exemplo.
desempenha na compreensão musical.
Convenções ou regras a priori tem
A música da prática comum, por
preponderância no trabalho do
exemplo, desenvolvia-se tendo como
compositor, mas sua obediência não é
arcabouço organizacional o sistema de
uma necessidade tampouco é suficiente
tonalidades. A tonalidade fornecia um
para lograr êxito.
paradigma de organização musical e a
Todavia, o entendimento das
experiência com o estilo tonal agia
normas e regras influencia a percepção.
formatando as expectativas inerentes a
Já que percepção é um ato aprendido de
esse estilo.
discriminação, o contato prévio com a
A música serial, todavia, buscou
linguagem ou com determinado código
introduzir uma ordem previamente
age ditando o que deve ser discriminado
estabelecida às relações sonoras baseada
e em que níveis. Nesse ponto, Meyer
em uma proposta teórica imposta desde
vincula percepção e tradição, pois
fora, tendo como foco principal o
segundo ele, “percebemos, entendemos
aspecto estrutural da obra. Porém, o que
e respondemos ao mundo, incluindo
é percebido no ato da escuta não é a
música, em termos de padrões e
“arquitetura” ou arcabouço teórico

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

modelos, conceitos e classificações que que nossa experiência passada nos disse
foram estabelecidos em nossa tradição” constituir uma relação” (idem, p.280).
(Meyer, 1994, p.273). Conclui também As mudanças e revoluções
que a percepção não é passiva, pois ocorridas durante a história da música
participa da organização dos estímulos deram-se conservando uma grande parte
valendo-se de modelos aprendidos. Isto do estilo. A música pós-tonal
traz implícito que a compreensão da ocasionou, entretanto, uma diversidade
música complexa está na dependência estilística que rompeu fortemente com
da familiaridade e do aprendizado com os padrões perceptuais, já que as obras
esse repertório. Quanto mais complexas não conservaram um estilo
familiarizado com o estilo, maior a comum (background perceptual). As
percepção de organização, porém, por revoluções no idioma do sistema tonal
não aprendermos as linguagens foram um processo linear e gradual. No
complexas da música desde tenra idade, serialismo, porém, não há um núcleo
estas se tornam mais difíceis. homogêneo estilístico para servir como
ponto de origem (idem, p. 279).
5. Música contemporânea e A compreensão musical reside
comunicação primordialmente na capacidade de
lograr associações entre os eventos
Algumas questões perceptuais sonoros. Estes eventos podem
foram trazidas com as pesquisas e relacionar-se de maneira implicativa e
constituição do repertório funcional, como exposto sobre
contemporâneo. Algumas destas antecedente e conseqüente. A
questões interferem com maior ou diferenciação funcional é que propicia
menor grau de contundência na aos eventos musicais gerarem estruturas
compreensão e conseqüente hierárquicas formalmente articuladas.
comunicação musical. A seguir, alguns “Uma vez que um evento musical
pontos relatados por Meyer são implica, ou é signo de, algum outro
comentados. evento musical somente para um
A falta de familiaridade com observador ou ouvinte, a percepção de
repertório logicamente tem grande relações funcionais é o resultado de
interferência no entendimento musical. inferências feitas pelo ouvinte sobre as
Entre suas causas está o aprendizado possíveis implicações de um evento
durante a infância, isto é, aquele que musical” (idem, p.296). Com isso,
vem dos hábitos de escuta durante os percebe-se que a impossibilidade de
primeiros anos de vida, mas que serão promover conexões funcionais age
responsáveis por formatar a percepção comprometendo e/ou restringindo a
durante o período adulto. Como esse compreensão.
aprendizado se dá com o estilo tonal, o A dificuldade em promover
confronto perceptual com outros implicações de ordem funcional faz
repertórios sempre irá ocorrer de com que os conseqüentes tenham baixa
maneira comparativa com este estilo probabilidade de ocorrer. Com isso, o
aprendido. Isto põe em relevo o fato da índice de informação é alto. Porém, essa
tradição formatar a percepção, que situação revela-se contraditória, pois
tenderá a balizar-se naquilo que tem na muita informação satura os níveis
memória, pois “nossa habilidade em perceptuais do ouvinte, sendo
perceber relações depende em parte do desfavorável à compreensão. Quando
tudo pode acontecer, qualquer coisa será

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

esperada, conseqüentemente, não também que mecanismos cognitivos


haverá desvios nas expectativas apresentam maior facilidade em operar
responsáveis pelo significado musical a partir de elaborações, isto é,
apregoado por Meyer. Daí inclusive, a derivações de algum tipo de enunciado
constatação feita por muitos teóricos de apresentado inicialmente, ao invés de
que o serialismo integral e a música focarem as inúmeras combinatórias
aleatória soam tão semelhantes. Soma- possíveis deste enunciado. Assim, a
se também a esta situação a rápida taxa tentativa em imputar uma ordem
de apresentação de eventos, que perceptual a partir de modelos ou
justamente em razão da não projetos próprios da teoria da
familiaridade com as normas estilísticas composição pode não ser bem sucedida,
e sintáticas deveria ser lenta, fato que sobretudo considerando os hábitos
compromete ainda mais a compreensão adquiridos de escuta. A organização
e inibe a comunicação. advém da percepção dos eventos
sonoros e sua subseqüente relação em
6. Conclusões acordo com certos graus de semelhança
entre esses estímulos sonoros. “Se o
Em face dessa breve incursão no texto estímulo não é percebido como sendo
de Meyer, pode-se especular algumas similar, então ele vai falhar em criar
possíveis reformulações do pensamento coesão ou em formar um grupo ou
composicional visando a restaurar a unidade, e será percebido como
comunicação com o público, contudo separado, isolado, e ‘não significará
sem prescindir das conquistas obtidas nada’” (Meyer, 1956, p.158). Idéias
com as novas linguagens musicais. contrastantes, sem nenhum tipo de
Logo de saída considere-se a assertiva: similaridade, produzem dispersão,
difusão e novidade. Obviamente, os
A gramática composicional contrastes musicais existem, todavia são
não combina com a gramática caracterizados em função do contexto.
perceptual (...). A gramática da Gibson já enfatizava o fato do contexto
escuta repousa sobre nossa influenciar a cognição, pois a cognição
exigência de que a superfície
se dá pela distinção gradual a partir de
musical deve ser analisada em
eventos discretos, com uma
conjuntos amorfos. Meyer,
organização métrica, simetrias, similarmente, fez entender contexto
prolongações e paralelismos. A como o estilo e as regras dele derivadas,
organização serial não produz, nela cuja simples existência condiciona a
mesma, essas coisas. Trata-se de um compreensão.
sistema de permutações, enquanto Em vista disto, permite-se supor
nossa gramática da escuta é de que a atenção para com o plano
elaboração: organizamos a superfície perceptual deva ser uma constante. Se a
musical em termos de simetrias e expressão tradicional da tonalidade é
prolongações, de uma maneira que executada por um número de eventos
não é tipicamente produzida por
coordenados (por exemplo, progressões
permutação. (Lerdahl;
harmônicas, escalas, etc.) que
Jackendoff apud Scruton,
1997, p.295). concorrem para a compreensão musical,
as novas linguagens musicais podem
Esta visão subentende a valer-se também de certos tipos de
existência distinta entre os planos coordenação, que embora diminuam a
composicional e perceptual. Sugere taxa de informação com o aumento da

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

previsibilidade, aumentam a MEYER, Leonard . Explaining Music.


redundância perceptual e, Chicago: University of California Press,
conseqüentemente, o significado. Ao 1973.
mesmo tempo, é justo pensar em novas MEYER, Leonard . Music, the Arts,
relações funcionais, posto que a and Ideas. Chicago: University of
funcionalidade (ou relações de ordem Chicago Press, 1994.
implicativa entre elementos sonoros)
age diretamente sobre os procedimentos POMIAN, K. Estrutura. In:
de seleção e ordenação que irão Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
viabilizar a compreensão da estrutura Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
musical. 1992. Volume 21, p. 141 – 182.
Como estágio final desse SCRUTON, Roger. The Aesthetics of
processo encontra-se a figura do Music. New York: Oxford University
intérprete, que na posse desses Press, 1997.
entendimentos pode basear sua
atividade de maneira a ressaltar WEAVER, Warren. Claude Shannon’s
conexões funcionais. Interpretar The Mathematical Theory of
também é comunicar. Assim, se o Communication. In:
ouvinte é levado à compreensão de http://www.uoregon.edu/~felsing/virtual
certas estruturas da obra pode-se dizer _asia/info.html .
que a interpretação logrou êxito.

7. Referências

ANTUNES, J. O novo discurso


musical que dá asas à criação.
2003. In: <http://www.ex-
machina.mus.br/artigos_antunes.h
tm>.
COOPER, Grossvenor; MEYER,
Leonard. The Rhythmic
Structure of Music. Chicago:
University of Chicago Press,
1963.
DELATRE. P. Função. In:
Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1992. Volume 21, p. 289 – 304.
GIBSON, James. The Perception of
Visual World. Boston: Greenwood
Press, 1950.
MEYER, Leonard. Emotion and
Meaning in Music. Chicago:
University of Chicago Press, 1956.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Percepção de instrumento musical sintético construído por


modelo experimental

Luis Carlos de Oliveira


luis@nics.unicamp.br
Ricardo Goldemberg
ricardo@nics.unicamp.br
Jônatas Manzolli
jonatas@nics.unicamp.br
UNICAMP

Resumo: Este trabalho apresenta uma proposta teórica para o desenvolvimento de um conjunto
de experimentos que tem por finalidade o reconhecimento psicoacústico de timbres de
instrumentos musicais. Após uma explanação teórica acerca dos parâmetros vinculados à noção
de timbre, descreve-se um procedimento experimental para distinguir o som de algumas notas
musicais da clarineta, pré-determinadas, e tocadas por um instrumentista humano daquelas
produzidas por um modelo experimental. O modelo apresentado no artigo tem como objetivo
formar critérios para estabelecer uma métrica perceptiva para avaliar diferenças timbrísticas,
que do ponto de vista musical pode ser mais interessante, em detrimento da clássica métrica
utilizando-se somente sistematização matemática.

Neste ponto surge a seguinte


1. Introdução questão: como verificar o grau de
distanciamento ou proximidade do som
Um instrumento musical produzido pelo modelo com o som do
encostado num canto pode ser um instrumento real? Esta “medida” é
objeto qualquer. Quando (bem) tocado tratada classicamente por métricas
proporciona estados emotivos que difere morfológicas matemáticas, por
para cada indivíduo. A dificuldade em exemplo, a métrica euclidiana.
descrever as emoções vivenciadas pela Este trabalho investe na procura
experiência musical também se reflete de medidas de ordem cognitivista, onde
na compreensão da sonoridade a percepção de um grupo de ouvintes
produzida pelo instrumento. Em estabelecerá a menor diferença entre o
particular, nos instrumentos de sopro e som produzido pelo modelo e aquele
especificamente para a clarineta. produzido por um instrumentista.
É esta a motivação que norteia a Conseqüentemente, com a aproximação
proposta deste trabalho. Para obter tal das sonoridades estabelecida, os valores
compreensão sobre a sonoridade da paramétricos do modelo matemático são
clarineta tem-se por ponto de partida um determinados.
modelo matemático, obtido Nesta direção o trabalho
experimentalmente, que procura principia com uma ligeira explanação
reproduzir o som deste instrumento. teórica acerca da definição do timbre de
Alterações nos valores dos parâmetros instrumentos musicais desde o período
envolvidos no modelo permite a clássico às definições contemporâneas.
variação da sonoridade produzida. Em seguida, é apresentada a
metodologia para atingir a meta

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

proposta. Os resultados, ainda que que caracterizam o som são a altura,


incipientes, são apresentados na duração, intensidade e timbre.
seqüência e encerra com a conclusão e Evidencia-se, atualmente, que as três
com a indicação da continuidade do primeiras propriedades possuem uma
trabalho. métrica que torna possível “medir” a
atuação daquelas propriedades no
2. Objetivos evento sonoro. Por exemplo, a
freqüência pode ser medida em hertz
O ponto de partida do trabalho (Hz), a intensidade em decibel (dB) e a
aqui apresentado é avaliar o quão duração em segundo (s), por exemplo.
distante ou próximo o som produzido Para o caso do timbre surge,
por um modelo digital representativo da aparentemente, uma certa dificuldade
sonoridade da clarineta está do som do em elaborar uma organização similar.
instrumento real (produzido pelo Resgatando as palavras de Danhauser
músico) e do som mecânico (produzido (1983) percebe-se o grau de
por aparato experimental). O critério subjetividade na definição:
aqui proposto para se determinar este
distanciamento ou similaridade está ...timbre é a qualidade
baseado no conceito psico-acústico particular do som a qual
denominado “Just Noticeable permite que dois instrumentos
Difference” (JND) que é aqui traduzido musicais produzindo um som
com a mesma altura,
por ‘Mínima Diferença Perceptível’.
intensidade e duração não
Como conseqüência, será
serem confundidos entre si.
possível comparar como métricas
derivadas de morfologia espectral Isto significa, por exemplo, que
matemática, usualmente empregadas, um C4 (dó 4)1 tocado por uma clarineta
são compatíveis com medidas de ordem não soará da mesma forma que um C4
cognitivista na aferição de diferenças tocado por um oboé devido às
perceptíveis do timbre de instrumentos diferenças peculiares de cada
musicais. instrumento. Sob o ponto de vista físico
a diferença é uma relação complexa
3. Referencial teórico entre os grupos das freqüências
componentes dos sons, do seu modo de
Nesta secção pretende-se geração (sopro, cordas, etc), dos
esboçar o panorama da análise do som, formantes (grupo de freqüências
em particular, proveniente de privilegiadas pelo corpo físico do
instrumentos musicais, desde o período instrumento), incluindo ainda o modo
clássico até os dias de hoje. Distante de de ataque, sustentação e dissipação do
esgotar o assunto, a intenção é situar o som. Sem contar com a virtuosidade do
leitor para as discussões posteriores. instrumentista que pode produzir uma
sonoridade pouco comum aos ouvidos
3.1 Abordagem clássica leigos. Outro ponto de relevância, é a
sincronia do ataque, onde pequenas
Remonta-se no trabalho clássico diferenças entre o início de cada
de Helmholtz (1876) “On the
Sensations of Tone” (a primeira edição
1
em alemão remonta 1876 e a revisada Será considerado o C3 (dó 3) como sendo o dó
em inglês 1954) que as propriedades central. Sua freqüência é aproximadamente de
262 Hz, portanto C4 tem 524 Hz.

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componente do espectro sonoro, causam que a amplitude do som varia com o


um grande impacto na percepção do tempo, é importante no modo que
timbre resultante. percebemos diferentes sons.
A concepção clássica de timbre, Além das envoltórias Helmholtz
sob certas considerações, está estabeleceu uma correspondência entre
fundamentada nas observações do final sons que emitem uma sensação de altura
do século XIX estabelecidas por definida com ondas periódicas (ondas
Helmholtz (1876). Nesta concepção os que se repetem em um certo período de
sons são caracterizados como ondas de tempo). As diferentes formas destas
formas arbitrárias (não somente ondas correspondem a diversas fontes
senoidais, por exemplo) confinadas em timbrísticas. Aplicando-se os conceitos
um envelope (envoltória) de amplitude, do Teorema de Fourier, estas ondas
atualmente descrito(a) por quatro partes: podem ser decompostas em ondas mais
ataque, decaimento, sustentação e simples, as conhecidas ondas senoidais.
relaxamento (da sigla em inglês, Cada componente senoidal tem por característica
ADSR). três parâmetros: amplitude, freqüência e fase. É
O ataque corresponde ao tempo notório que este último parâmetro não
que a amplitude do som parte de exerce grande influência sobre o timbre
intensidade zero até atingir o seu valor como os demais. Assim, uma
de pico. Em seguida há um pequeno representação plausível do som é
decaimento da amplitude até seu valor através do seu espectro, isto é,
atingir uma região de estabilidade, amplitude e freqüência de cada
correspondendo à sustentação, onde a componente senoidal.
amplitude é idealmente constante. O Então, ainda sob a óptica da
relaxamento corresponde ao período de física clássica, ao ser mencionado
tempo em que a produção sonora se qualitativamente que determinado som é
extingue. “brilhante” isto é indicativo que este
Sob este prisma, diferentes sons som possui maior energia (amplitude)
têm diferentes envoltórias de amplitude. Ao nas componentes espectrais de alta
pretender caracterizar timbristicamente o piano e freqüência. Outros termos como som
o violino, observamos suas respectivas “aveludado”, “pesado”, etc engendram
envoltórias: o piano apresenta um ataque os limites da fronteira tênue entre a
curto seguido de um período estável e observação quantitativa e qualitativa.
apresenta um relaxamento longo, Daí a necessidade de procurar novos
quando após tocar deixa-se a nota solta; modelos para a caracterização do
o violino possui um ataque mais lento timbre. Este é o assunto do próximo
(indicando que o piano possui uma tópico.
característica mais percussiva que o
violino), o período estável tem duração 3.2 Uma proposta contemporânea de
variável e o relaxamento é curto. timbre e cognição
A forma de excitação sonora
(por exemplo, diferentes golpes de arco Uma abordagem contemporânea
nos instrumentos de corda) pode sobre a percepção timbrística procura
resultar em diferentes envoltórias e, escapar à orientação clássica. Ela
portanto diferentes características considera que a percepção timbrística
timbrísticas. depende da variação dinâmica (com o
Assim, na abordagem clássica o tempo) de propriedades como altura,
envelope de amplitude, isto é, a maneira intensidade e duração microtemporal

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

além da relação do objeto sonoro com o explícitas e declarativas duram de


ambiente. Esta noção de timbre está minutos a anos e décadas; e as
apoiada na perspectiva ecológica outras, geralmente, a vida toda.
proposta na Teoria da Percepção Direta
desenvolvida por Gibson (1979/1986) e 3.3 Tratamento experimental para
atualmente é material de pesquisa de reconhecimento timbrístico
Oliveira e Oliveira (2002).
A percepção timbrística pode ser Dois experimentos corroboraram
analisada sob o foco da fisiologia com a visão não clássica de
humana. Estudam-se os diferentes reconhecimento timbrístico: o primeiro
mecanismos de percepção e interações mostrou que uma variação radical do
nas regiões cerebrais de diversos timbres espectro devido a uma distorção na saída
musicais. Samson (2003, 1997) apresenta de um rádio transistorizado não
alguns procedimentos experimentais para necessariamente aboliu o reconhecimento de
a análise das características espectrais e um instrumento musical (Eagleson e
temporais na percepção timbrística no Eagleson, 1947). De modo inverso, o
cérebro. timbre das notas gravadas de um piano
No trabalho aqui reportado é percebido como completamente
pretende-se observar se o timbre sintético distinto quando tocado no sentido
de um instrumento musical acústico tem inverso, mesmo sabendo que o som
ou não uma certa “aproximação” com o original e o invertido têm o mesmo
instrumento real. Para tanto, este estudo espectro (Berger, 1964). Citando
tomará por base a memória do timbre Samson (1977),
que o ouvinte possui. Este é um aspecto
subjetivo onde futuramente procurar-se-á Estes resultados indicam que o timbre
musical não depende apenas de uma
o apoio de uma “medida” apropriada para
única dimensão física. Vários outros
estabelecer o grau de “aproximação” com atributos, tais como os padrões de
o instrumento real. amplitude e fase e em particular, as
As incertezas sobre quais e características temporais de uma nota
quantos sistemas de memória existem não podem também influenciar na
impediu de se chegar a um consenso percepção timbrística.
sobre os principais sistemas de memória
da mente e sobre as áreas do encéfalo Para vários autores, a remoção
mais importante para cada um deles. ou alteração do ataque na emissão do
Conforme menciona Eisenkraemer som pode também influenciar no
(2006): reconhecimento de instrumentos
musicais (Berger, 1964; Grey e Moorer,
segundo Squire e Kandel (2003), 1977; Saldanha e Corso, 1964). Estas
‘os esquemas de classificação pesquisas mencionam a importância das
utilizam simplesmente diferentes características temporais na percepção
termos para as mesmas distinções do timbre e fornecem um suporte para a
básicas. Por exemplo, a memória
noção de multidimensionalidade da
de fatos e a memória de
procedimentos (habilidades) são
percepção timbrística tomada também
conhecidas, alternativamente, como atributo psicológico.
como memórias com e sem
registro, memórias explícita e
implícita, memórias declarativa e
não-declarativa’. As de registro,

480
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

4. Metodologia

O ponto de partida está centrado


num aparato experimental que possui a
função de produzir o som de algumas
notas da clarineta mecanicamente, isto
é, sem a presença do instrumentista. A
principal razão do emprego deste
sistema é a interferência do músico,
quase involuntariamente, nos resultados
experimentais proporcionando análises
equivocadas.
Figura 1: a) Aparato experimental
O conjunto experimental está indicando o compressor, caixa
apresentado na Figura 1a e o acrílica e clarineta; b) Detalhe do
mecanismo de contato com a palheta na contanto com a palheta.
Figura 1b. Os detalhes podem ser
obtidos dos trabalhos anteriores, ver Os modelos propostos para a
Oliveira et al (2006a, 2006b, 2005a, clarineta foram estabelecidos
2005b). Basicamente, ar é injetado separadamente para três regiões do
através de um compressor a uma caixa instrumento: chalumeau, clarino e
acrílica que funciona como caixa de agudíssimo. Foi estabelecida uma nota
ressonância onde a clarineta está em cada uma dessas regiões: E2, C3 e
conectada. Um mecanismo de contato D6, respectivamente. O modelo, para
com a palheta é feito através de cada situação, é uma equação algébrica
pequenas borrachas de diferentes áreas. linear que tem cinco variáveis de
Através deste conjunto entrada (dureza da palheta, posição na
experimental um modelo para o timbre palheta, área de contato, volume da
sintético de uma clarineta vem sendo caixa de ressonância e abertura da
desenvolvido há algum tempo. O boquilha) e como variável de saída,
modelo foi obtido através de um freqüência e amplitude da nota (inclui
conjunto otimizado de experimentos fundamental e as suas componentes
conhecido por Projeto Fatorial de espectrais superiores) emitida.
Experimentos. Nestes primeiros O procedimento apresentado a
experimentos o ataque e decaimento seguir foi baseado na análise
foram eliminados e, portanto o modelo multidimensional de timbre, sugerida
corresponde à parte estacionária por Gabrielson (1981) e implementada
(sustentação) do som. em por Wassermann et al (2003).
Tendo em mãos os modelos
digitais constrói-se um conjunto de
amostras sintéticas. As amostras serão
obtidas da seguinte forma: para cada
nota, uma única variável de entrada é
alterada por vez, linearmente, de acordo
com os coeficientes do modelo. As
freqüências obtidas com cada alteração
são armazenadas. Estas notas terão
duração pré-fixada, por exemplo, 6
segundos. Altera-se a variável de

481
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

entrada e faz-se novamente a alteração abordagem clássica de timbre com


linear armazenando as freqüências. outras abordagens desenvolvidas
Quando todas as variáveis de entrada recentemente na literatura que incorpora
foram modificadas obtém-se uma a noção de cognição à percepção
“malha” com várias amostras da nota timbrística. O estudo tem por base a
estudada em distintas condições. memória que o ouvinte possui do
Em seguida, a mesma nota é timbre do instrumento em estudo, neste
gravada por um músico (ou pode ser caso da clarineta.
aquela gravada pelo aparato A proposta conceitual aqui
experimental) nas suas condições usuais apresentada tem por desdobramento a
de performance musical e com a mesma possibilidade de aplicação experimental
duração das notas sintéticas. em um grupo de ouvintes para
Finalmente, formam-se pares de identificação timbrística. Uma
amostras cegas onde cada par constitui investigação informal e sem critério
da nota tocada pelo músico e uma da científico mostrou que o modelo,
“malha”. O ouvinte deverá responder se preliminarmente obtido, ainda está bem
as notas são iguais ou diferentes. A distante do som do instrumento real.
“mínima diferença perceptível” (JND) Novos testes, agora embasados
será o critério de determinação dos cientificamente, serão realizados com os
valores paramétricos envolvidos nos novos modelos já determinados.
modelos. A metodologia adotada tem
Uma questão a ser estudada no como objetivo inicial estabelecer uma
momento anterior à execução experimental será relação entre os parâmetros utilizados
qual o critério a ser adotado para a escolha da no conjunto experimental (vide figura
população de ouvintes. A população 1) e uma aproximação de primeira
formada por ouvintes que possuem ordem que foi estabelecida através de
ouvidos treinados (músicos) é bastante um modelo de síntese já implementado
distinta daquela formada por leigos, sem Oliveira et al (2005a, 2005b). O
formação musical prévia. Um critério segundo ponto de análise vem da
adequado será estudado para o própria sonoridade de um instrumento
momento de aplicação do teste. acústico, executado pelo músico.
Outra questão refere-se à Ressalta-se aqui que há uma relação
quantidade necessária de participantes entre parâmetros como dureza da
que possibilite um certo grau de palheta, posição na palheta, abertura da
confiança nos resultados. Sem margem boquilha, entre outros, e os parâmetros de
à dúvidas, far-se-á necessário um estudo síntese implementados através do projeto fatorial.
estatístico para determinar o grau de Desta forma, há um elo entre o modelo de síntese
confiança dos resultados experimentais. que incorporar apenas os parâmetros advindos
Finalmente, os testes devem ser do Teorema de Fourier e o modelo
realizados em um intervalo de tempo experimental que incorpora parâmetros
total que não provoque a fatiga mental relacionados com a natureza e
dos participantes. Este tempo será construção do instrumento. Ao se
também objeto de análise. construir a malha de possibilidades,
pretende-se estabelecer uma possível
5. Discussão e conclusão métrica perceptiva que vinculará os
fatores da natureza física do
Este estudo teórico mostrou a instrumento com os de natureza
possibilidade de confrontar a espectral através dos experimentos para

482
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

determinar a “mínima diferença ed. Hillsdate: Lawrence Erlbaum


perceptível” para pares de sons Associates Publishers, 1986.
apresentados à população teste. GREY, J.M.; GORDON, J.W.
Nas próximas etapas do projeto Perceptual Effects of Spectral
o objetivo será realizar um estudo piloto Modifications on Musical Timbres. The
com uma população de 10 a 12
Journal of the Acoustical Society of
indivíduos. Desenvolver um ambiente America, NY, v.63, no5, p.1888-1891,
software para realizar os testes de forma May, 1978.
a ter uma precisão metodológica.
Posteriormente, a pesquisa deverá ser HELMHOLTZ, H.L.F. (1877). On the
aplicada numa escala ampliada e em Sensations of Tone as a Physiological
indivíduos com características Basis for the Theory of Music. 4th ed.
populacionais e contextuais diferentes. (Trad. ELLIS, A.J.). New York: Dover,
1954
6. Subáreas do conhecimento OLIVEIRA, A.L.G.; OLIVEIRA, L.F.
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483
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

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484
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Composição eletroacústica por timbre e contraponto

Orlando Scarpa
UFPR

Resumo: Em seu livro On Sonic Art, Trevor Wishart, entre outras coisas, descreve uma série de
diferentes categorias de timbre. Wishart também descreve o que ele chama de "contraponto
eletroacústico". Neste trabalho sobrepusemos os diferentes tipos de timbre descritos por Wishart
com seu conceito de contraponto, e vimos de que maneira uma idéia complementa a outra.
Segundo Wishart, o nosso ouvido escuta alguns tipos de timbre como unidades independentes e
bastante diferentes entre si. Em sua idéia de contraponto eletroacústico, Wishart diz que uma
das preocupações é criar a independência das diferentes vozes e a interação entre uma voz e
outra. Mostramos aqui como grupos de timbre podem ser úteis para a criação desta
independência e interação. Em seguida, estes resultados obtidos foram relacionados com
conceitos desenvolvidos por outros autores que estudam música eletroacústica, mesmo que boa
parte destes não tivesse como objetivo, segundo seus autores, servir à composição musical. A
maioria pretendia descrever a nossa escuta da música eletroacústica e outros poucos serviam a
análise musical. Nosso objetivo foi, ao contrário, ver se conseguiríamos criar novas maneiras de
organizar composições a partir destes conceitos. No fim da pesquisa foi possível extrair dos
resultados obtidos uma séria de táticas composicionais. Foi concluído que para realizar o
"contraponto eletroacústico" de Wishart é essencial que se tenha algum tipo de diferenciação
sistemática de grupos de timbres. Também foi concluído que conceitos que não serviam, a
princípio, à composição musical, mas à análise ou à descrição de nossa escuta, quando
relacionados uns aos outros da maneira certa, podem criar ótimas ferramentas de composição
musical.

Palavras-chave: música eletroacústica, composição de música eletroacústica, análise de música


eletroacústica.

idéia musical complementa a segunda,


1. Objetivos seria possível relacionar estes resultados
com outros conceitos, de outros autores,
O objetivo geral deste trabalho é que tratam da maneira como escutamos
relacionar diferentes conceitos (sendo música eletroacústica, com o objetivo
que a maioria pretendia originalmente de criar novas táticas composicionais.
descrever como escutamos música
eletroacústica), criados por diferentes 2. Fundamentação teórica
autores, que servem à música
eletroacústica. Em seu livro On Sonic Art
O objetivo específico deste (1996), Wishart descreve como seria um
trabalho é relacionar o conceito de contraponto eletroacústico, que
contraponto eletroacústico de Trevor elementos ele teria que ter, e como
Wishart com sua discussão sobre tipos poderia ser trabalhado. O autor, no
de timbres.1 A hipótese deste trabalho é entanto, dedica pouco de sua obra a este
que, uma vez visto como a primeira assunto. Wishart diz que para o
contraponto funcionar em música
1
Onde ele usa conceitos como multiplexo, massa,
eletroacústica seria preciso “[...] analisar
morfologia dinâmica, entre outros (WISHART, 1996). o conceito de contraponto da música

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

baseada em grades2 e tentar generalizar poderiam ser separadas por


o conceito de forma que ele não características do timbre, espaço (tipos
dependa mais da estrutura de grades” diferentes de reverberação) e/ou altura.
(Wishart, 1996, p.115).3 Quando Este trabalho explora como a discussão
Wishart diz contraponto, ele se refere a sobre tipos de timbre de Wishart (1996)
uma polifonia com interação entre as pode ajudar na criação da independência
vozes, onde a independência das vozes dos fluxos. Os tipos de timbre no qual
seria essencial. Além da independência nos referimos são conceitos criados por
entre as vozes, o contraponto precisaria Trevor Wishart para descrever sons,
do que o autor chama de princípio sendo os conceitos abordados neste
arquitetônico e princípio dinâmico. O trabalho massa, granulação (periódica
princípio arquitetônico é para nos dar e aperiódica), multiplexo e morfologia
“pontos de referência durante a dinâmica. O conceito de deslize
progressão do material musical. No espectral de Robert Erickson (1975
contraponto tonal isto é chamado de apud Wishart, 1996, p. 94) e o conceito
tonalidade” (Wishart, 1996, p. 116).4 Já de allure de Pierre Schaeffer (1966
o princípio dinâmico, Wishart descreve apud Wishart, 1996, p. 94) também
como: serão relacionados com a idéia de
Em segundo lugar, [seria contraponto eletroacústico. Estes dois,
preciso] um princípio dinâmico que embora não sejam criações do próprio
determina a natureza do movimento. No Wishart, são muito próximos das idéias
contraponto tonal de nota contra nota, apresentadas por ele. Mais será dito
isto é relacionado com a fluência da adiante sobre estes conceitos.
coordenação rítmica e com a fluência Uma vez que consegamos criar a
das relações de dissonância e independência dos fluxos usando as
consonância [...] sendo que ambas idéias de timbre de Wishart, surge a
derivam da relação das notas de uma questão de como articularmos estes
parte individual com as notas de outra fluxos. Este trabalho examinou de que
parte. A estrutura de grades da musica maneira as idéias de W. Luke Windsor
tonal permite um desenvolvimento (1997), Denis Smalley (1992; 1997),
contrapontístico detalhado e elaborado Francesco Giomi e Marco Ligabue
(Wishart, 1996, p. 116).5 (1998), C. Landy (1991), Robert
As vozes, que Wishart chama de Erickson (1975 apud Wishart, 1996, p.
fluxos (streams), para não usar a mesma 94) e Pierre Schaeffer (1966 apud
terminologia da música tradicional, Wishart, 1996, p. 94) podem nos ajudar
a criar pequenos procedimentos para a
2
Tradução de lattice-based. Grosso modo, Wishart entende
articulação dos fluxos.
por grade (lattice) a estrutura da música ocidental que é Como este trabalho quer
formada por um ritmo baseado em subdivisões e por notas relacionar vários conceitos partindo do
com freqüências definidas.
3
“[...] analyse the concept of counterpoint in lattice-based conceito de contraponto eletroacústica
music and attempt to generalize the conception so that it is de Wishart (sobre o qual pouco foi
no longer dependent on the existence of a lattice structure”.
4
“[...] points of reference in the overall progression of the escrito) e de sua discussão sobre
musical material”. timbres, obviamente desde o inicio não
5
“Secondly, a dynamic principle which determines the
nature of the motion. In tonal note-against-note esperávamos encontrar algo que tivesse
counterpoint this is related to the ebb and flow of rhythmic exatamente a mesma proposta. Porém,
co-ordination and the ebb and flow of harmonic
consonance-dissonance [...] both of which arise from the existem alguns trabalhos que são
way in which notes in individual parts are placed relative to parecidos com este por, terem uma
notes in other parts. The lattice structure of tonal music
allows us to develop a detailed and elaborate sense of aproximação semelhante (mesmo que o
contrapuntal development”.

486
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

tema seja um pouco diferente) ou por alguma(s) maneira(s) de triangulação


tratarem do mesmo tema (mesmo que como parte do projeto, e
com outra aproximação). – aplicabilidade/correlação no
Um artigo interessante chamado que concerne qualquer resultado obtido
Reviewing the musicology of (Landy, 1999, p. 66).6
electroacoustic music: a plea for O terceiro item desta lista é
greater triangulation, escrito por Leigh justamente o que pretende este trabalho:
Landy, foi muito importante para esta relacionar diferentes conceitos uns aos
pesquisa. Landy (1999) revisa as outros. A contextualização e
principais tendências da musicologia aplicabilidade deste trabalho foram
eletroacústica dos últimos 50 anos e discutidas brevemente na introdução e
conclui que a produção acadêmica nesta serão discutidas mais adiante..
área tem sido dominada pelo Denis Smalley, em seu artigo
formalismo. Um dos motivos que fazem Spectromorphology: explaining sound-
com que boa parte do que foi escrito shapes (1997), explica o que é a
sobre música eletroacústica seja espectromorfologia. A
considerado formalista é que, na espectromorfologia “[...] não é uma
maioria das vezes, não existe nenhum teoria composicional ou método, mas
esforço para explicar, em detalhes, a uma ferramenta descritiva baseada em
aplicabilidade dos conceitos nossa percepção auditiva” (Smalley,
apresentados. Outra coisa que, segundo 1997, p. 107).7 Segundo Smalley,
Landy, caracteriza uma aproximação apesar de não ser uma teoria da
formalista é não relacionar os resultados composição musical, a
obtidos com os de outros autores, e não espectromorfologia pode influenciar
relacionar diferentes subáreas umas com métodos de composição e este é
as outras (psicoacústica e composição justamente um dos objetivos do autor. A
eletroacústica não poderiam andar lado semelhança do trabalho de Smalley com
a lado?). Esta falta de interação entre o nosso é que ambos tentam, a partir de
uma área e outra cria o que o autor conceitos sobre a nossa experiência
chama de “mentalidade de ilha”. Landy auditiva, compreender musica
propõe uma solução: eletroacústica. A diferença do trabalho
Embora esta mentalidade de ilha de Smalley para o nosso é que
tenha seu lugar durante a fase mais queremos dar mais um passo e descobrir
experimental do desenvolvimento da maneiras de compor a partir deste
musica eletroacústica, gente demais material.
usando isto enquanto um modus Outro autor que cabe citar é W.
operandi é perigoso. Uma solução Luke Windsor. Em seu artigo
imediata para esta tendência ao Frequency structure in electroacoustic
isolamento seria que as pessoas
incluíssem o seguinte em seus
6
trabalhos: “Although there is a place for this island mentality during
the ongoing experimental phase of electroacoustic music’s
– uma indicação da relevância development, too many using this as a modus operandi is
pretendida para os resultados da dangerous. An immediate solution to the bias towards
isolation would involve people including the following: 1) a
pesquisa. Isso enfatizaria o porquê do statement of the intended relevancy of any research
projeto ou pelo menos o outcome; this could emphasize the ‘why’ of the project or at
least contextualize it, 2) the use of an action research model
contextualizaria; or at least the inclusion of some sort(s) of triangulation as
– o uso de um modelo pesquisa- part of any project, and 3) applicability/ linkage with regard
to any outcomes”.
ação ou pelo menos a inclusão de 7
“[…] Spectromorphology is not a compositional theory or
method, but a descriptive tool based on aural perception”.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

music: ideology, function and contraponto eletroacústico. Em seguida,


perception (1997), Windsor discute o contrapor a idéia de contraponto
descompasso entre teoria e prática da eletroacústico com os tipos de timbre e
composição de música eletroacústica. ver como uma idéia complementa a
Segundo o autor, o modo como outra.
funciona a nossa escuta não é levado em 2. Leitura crítica de diversos
consideração por vários compositores. autores que falem sobre como
Para Windsor, a idéia de que os sons escutamos música eletroacústica.
não necessariamente significam algo, Selecionar conceitos e idéias que podem
que eles podem existir apenas em um servir a composição musical, mesmo
campo abstrato, vai contra o modo que os autores não entrem em detalhes
como percebemos o mundo: nós sobre a aplicação composicional destas
sempre, inevitavelmente, tentamos idéias.
decifrar qual a fonte de algum som para 3. Contrapor as idéias de Wishart
dar significado a ele. Para Windsor, com a dos outros autores.
temos que levar em consideração o fato 4. Ver se e como poderíamos criar
de que sons significam algo além deles táticas composicionais a partir dos
mesmos, e é essencial que a “[...] resultados do item 3 e comprová-las na
exploração desta estrutura [da escuta] prática, experimentando-as em
seja central no fazer musical” (Windsor, composições eletroacústicas.
1997, p. 81).8 O que Windsor propõe é
explorar conceitos sobre a nossa escuta Os autores que serão usados no
em um contexto composicional. O autor item dois são: Leigh Landy (1994),
conclui que “[...] futuramente, nossas Denis Smalley (1992;1997), W. Luke
pesquisas, enquanto ouvintes, Windsor (1997), Francesco Giomi
compositores ou acadêmicos, poderiam (1998), Marco Ligabue (1998), Robert
se preocupar em mais com o modo que Erickson (1975 apud Wishart, 1996, p.
a estrutura de freqüência [aquilo que, de 94) e Pierre Schaeffer (1966 apud
certo podo, poderia ser entendido como Wishart, 1996, p. 94).
timbre] pode ser explorada para criar
significado, ao invés desta estrutura ser 4. Resultados
um fim em si mesma.” (Windsor, 1997,
p. 81).9 Este trabalho sugere a hipótese
de que conceitos sobre a nossa escuta,
3. Método desde que lidos com o enfoque correto,
podem ser úteis para a elaboração de
Este trabalho é uma pesquisa táticas composicionais. A relação entre
bibliográfica e a metodologia usada o contraponto eletroacústico de Wishart
pode ser dividida em quatro pontos com sua discussão sobre tipos de
principais: timbre, uma vez contraposta a conceitos
1. Leitura crítica do livro “On sobre nossa escuta, serviu à elaboração
Sonic Art”. Dando atenção especial a destas táticas. Estas foram testadas nas
discussão sobre tipos de timbre e composições “Orange, Fornax e o Vale
da Morte” e “Causalidade e Espaço”10,
8
“[…] the exploration of such structure must surely exist at
na qual se demonstra a adequação das
the heart of music-making”.
9
“[…] perhaps our future research, as listeners, composers
and scholars might focus more upon how frequency
10
structure may be exploited to create meaning, rather than Ambas as peças estão disponíveis no formato mp3 através
upon frequency structure itself”. do email orlandoscarpa@gmail.com

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

hipóteses e dos processos em discussão, esteja constantemente mudando, de uma


com resultados esteticamente forma descontínua. [...]. Para complicar
satisfatórios. ainda mais, multiplexos também podem
Trevor Wishart em sua discussão ter uma morfologia dinâmica! Neste
sobre tipos de timbre cria uma série de caso, a natureza dos componentes
conceitos. O primeiro que nos interessa individuais do multiplexo passa por um
é o de morfologia dinâmica; se diz que processo gradual de mudança pelo
um objeto sonoro tem uma morfologia espaço do timbre, de forma que as
dinâmica quando “[...] sua altura características gerais do multiplexo
percebida, espectro, envelope de mudam com o tempo” (Wishart, 1996,
amplitude, etc. evoluem no tempo” p. 95).12
(Wishart, 1996, p. 64). O conceito de Estas idéias são apresentadas por
morfologia dinâmica foi criado baseado Wishart em sua tentativa de achar
na descoberta que o timbre depende estruturas sonoras bem definidas no que
parcialmente dependente da evolução da ele chama de continuum: um espaço,
suas características espectrais no tempo. que não é sujeito a grade
Em seguida temos o conceito de massa ritmo/freqüência/tempo, onde a música
(mass),11 sons que tem massa definida tradicionalmente acontecia. A
são resistentes a filtragem, mas não à morfologia (essencialmente, a variação
transposição. O som do piano é um bom das características de um som no tempo)
exemplo de um som com massa de qualquer som pode ter a sua estrutura
definida: após bastante filtragem ele definida pode duas coisas no
ainda não perde suas características continuum: pela sua informação gestual
essenciais, porém quando transpomos o (a maneira como articula o continuum) e
mesmo som duas ou três oitavas, o “em relação ao fenômeno naturalmente
mesmo não acontece. Se pegarmos um percebido” (Wishart, 1996, p. 102). A
pulso que se repete de forma lenta, e aos estrutura física de qualquer organismo
poucos aumentarmos a velocidade da ou som (fenômeno naturalmente
repetição, chegará uma hora que o pulso percebido) e o desenvolvimento de suas
terá uma altura bem definida. O que ações no tempo (seus gestos) é
existe entre esses dois extremos é o que separada, segundo Wishart, por pura
Wishart (1996) chama de granulação. A conveniência, já que a própria idéia de
granulação pode vir de um pulso continuum anularia a validade desta
periódico ou aperiódico. O ultimo separação. Mais dois conceitos ainda
conceito que vamos usar de Wishart é o precisam ser introduzidos antes de
de multiplexo. Nas palavras do autor: prosseguir: o de deslize espectral
“Existe, porém, outra categoria (Erickson, 1975 apud Wishart, 1996, p.
de sons a ser considerada: sons com 94) e o de allure (Schaeffer, 1966 apud
uma morfologia instável. Estes sons
podem ser concebidos como sons que
12
variam aleatoriamente entre um número “There is, however, a further class of sounds to be
considered: sounds of unstable morphology. These may be
definido de estados. Estes sons são conceived of as sounds which flip rapidly back and forth
coerentes pelo fato do campo total de between a number of distinct states. In my own writing II
often refer to theses as multiplexes. Such sounds are
possibilidades se manter constante, coherent in the sense that the overall field of possibilities
mesmo que o estado imediato do som remains the constant but the immediate state of the object is
constantly changing in a discontinuous fashion. […]. To
complicate matters further, multiplexes themselves may have
a dynamic morphology! In this case, the nature of the
individual components of the multiplex undergo a process of
11
Não confundir com o conceito de massa de Pierre gradual change through the timbre space so that the general
Schaeffer (1966) field characteristic of the multiplex changes with time”.

489
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

Wishart, 1996, p. 94). Ambos são, porque que um multiplexo que, ao


segundo Wishart, exemplos de longo do tempo, sofre mudanças no
morfologias dinâmicas. Um deslize espectro e na dinâmica, mas mantém
espectral consiste em variações no sua massa definida (quer dizer, não
espectro de um som de altura constante, deixando de ser um multiplexo), é um
e a allure é definida por variações sutis tipo de multiplexo com uma morfologia
no espectro a na dinâmica em um som dinâmica.
de massa constante. É importante Sobre o princípio arquitetônico13 do
observar que alguns sons podem se contraponto, Wishart diz que a progressão de
enquadrar em mais de uma categoria. uma tonalidade para outra da música
Um multiplexo produzido vocalmente, tonal pode ser substituída pela “[...]
na maioria dos casos, terá uma massa transformação de uma área tímbrica ou
definitiva, o som de um clarinete sendo de uma única morfologia sonora por
tocado com bastante chiado terá uma outra” (Wishart, 1996, p. 117).14 Mais
massa definida e um tanto de uma vez podemos usar multiplexos,
granulação, etc. quantidades diferentes de granulação, e
Multiplexos, sons com massa grupos de sons com massa definida para
definida e a quantidade e periodicidade a criação destas áreas tímbricas. Em
da granulação podem ser usados para a relação ao princípio dinâmico,15
separação de fluxos em um contexto Wishart nos diz que a relação entre
contrapontístico. Um fluxo que se consonância e dissonância em
caracteriza por ter sons com massa progressões harmônicas tonais poderia
definida soa bastante diferente de um ser substituída, em um contexto
fluxo que é caracterizado por ser um eletroacústico, pela “[...] idéia de
multiplexo com morfologia dinâmica; interação e evolução gestual entre dois
assim como um fluxo que apresenta fluxos diferentes” (Wishart, 1996, p.
uma grande quantidade de granulação é 117).16
bastante diferente de um fluxo com O conceito de casualidade,
nenhuma granulação, mas com massa desenvolvido por Denis Smalley (1992),
definitiva. pode ser útil para a interação e evolução
Deslize espectral e allure podem gestual dos fluxos. Causalidade,
ser usados para articular fluxos. Deslize segundo Smalley:
espectral pode ser usado para articular
fluxos com massa definida, assim como […] não se refere apenas ao
a allure. Um deslize espectral não gesto físico. Ela está mais
descaracterizaria um fluxo formado por preocupada com a atuação de
sons de massa e altura definidas, já que um som sobre o outro, seja
causando a ocorrência de um
sons com massa definida são resistentes
segundo evento seja
à filtragem. Como dissemos, a allure
serve para a articulação de fluxos com
massa definida. Isto porque o próprio 13
O princípio arquitetônico consiste em “[...] pontos de
conceito de allure nos diz que a massa referência durante a progressão do material musical. No
se mantém constante durante as contraponto tonal isto é chamado de tonalidade” 13.
(WISHART, 1996, p. 116). Ver “Fundamentação Teórica”.
mudanças no espectro e na dinâmica. O 14
“[...] transformation of one timbral or sound
conceito de allure além de poder ser morphological area to another”.
15
O princípio dinâmico é, segundo Wishart, a “[...] fluência
usado para articular um fluxo de massa da coordenação rítmica e com a fluência das relações de
definida, também pode ser usado para dissonância e consonância” (Wishart, 1996, p. 95). Ver
“Fundamentação Teórica”.
articular fluxos de multiplexos. Isto 16
“[...] idea of gestural evolution and interaction between
the separate streams”.

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

provocando mudança em um as idéias de Wishart é o de afinidade


som já existente. Relações entre fontes (source bonding).
causais podem ser sinônimas Afinidade entre fontes é, segundo
do mundo real quando o falar Smalley, a “[...] tendência natural de
humano, os sons ambientais ou relacionar sons à supostas fontes e
culturais, são incorporados
numa peça. Porém, em
causas, e de relacionar sons uns aos
ambientes menos realistas, a outros porque aparentam ter origens
causalidade é mais livre e pode parecidas ou associadas” (Smalley,
ser percebida como forte ou 1997, p. 110).18 É importante não
fraca. Ela é então associada aos confundir o fato de dois sons partirem
campos do gesto, energia, movimento da mesma fonte com o de dois sons
e objeto/substância, e [...] tende a dar terem a mesma ambiência ou o mesmo
ímpeto e impulso à estrutura tipo de reverberação, embora uma idéia
musical. (Smalley, 1992, p. não anule a outra. O conceito de
527).17 afinidade de fontes ajuda a explicar por
que escutamos um fluxo formado por
Criado uma relação de causa e multiplexos e outro fluxo formado
efeito entre dois gestos em fluxos apenas por sons estáveis, de massa
diferentes, conseguimos unir a idéia de definida, articulados por deslize
causalidade com a de interação entre espectral, como coisas diferentes e
fluxos. E, de acordo com Smalley, independentes. O conceito de afinidade
quando eventos têm uma relação causal de fontes também pode nos ajudar a
entre eles, acabam impulsionando a colocar sons que tem outra morfologia,
música para frente. Com isso, pensando diferente daquela característica do fluxo
sempre em termos de causalidade na (no caso de um fluxo formado apenas
hora de criar a interação entre os fluxos, por um tipo de morfologia): mantendo
conseguimos a “evolução gestual”, da algumas características dos outros sons
qual Wishart fala. Podemos imaginar neste novo som podemos dar a
uma peça em que, em determinado impressão que, embora diferente, ele
momento, a energia de um fluxo, vem de uma fonte parecida. O conceito
formado apenas por multiplexos, é tão de afinidade de fontes também mostra
grande que cause uma mudança na um cuidado a ser tomado: sons que
natureza do fluxo, fazendo com que ele remetem demais a conteúdos
não tenha mais multiplexos, e sim extrínsecos devem ser usados com
apenas sons de morfologia mais estável cautela. Quando usamos estes sons
e com massa definida. Isto seria corremos o risco de criar uma relação
possível se uma causalidade entre os entre dois sons de fluxos diferentes, o
dois eventos fosse escutada. que pode ser problemático para a
Outro conceito discutido por percepção da independência entre eles.
Smalley que pode ser relacionada com Uma coisa única à música
eletroacústica é a maneira como
17
“[...] does not refer narrowly to physical gesture. It is podemos articular a espacialização.
more concerned with one sound’s acting upon another, Uma peça pode se passar em vários
either causing the second event to occur or instigating
change in an ongoing sound. Casual relationships may be espaços diferentes com varias
synonymous with the real world when human utterance, reverberações, realistas ou não,
environmental or cultural sounds are incorporated in a
work. But in less realistic contexts musical causality is freer
and may be perceived as weak or strong. It is then linked to
18
the fields of gesture, energy, motion, and object/substance, “[…] the natural tendency to relate sounds to supposed
and […] tends to add impetus and forward motion of sources and causes and to relate sounds to each other
musical structure”. because they appear to have shared or associated origins”.

491
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

diferentes. Segundo Smalley “Além de Ainda no mesmo artigo, Giomi e


realçar o caráter e impacto de Ligabue discutem outro conceito que
espectromorfologias, mudanças na pode ser interessante para nosso
perspectiva espacial são uma maneira contraponto: o conceito de sintagma
de delinear a estrutura da música” (syntagm). Sintagma, para os autores, se
(Smalley, 1997, p. 122).19 A música refere a uma “combinação seqüencial de
instrumental ou vocal pode acontecer eventos sonoros que têm unidade,
com a reverberação de um espaço real, autonomia e coerência” (1998, p. 45).
porém “a música eletroacústica não se Para Giomi e Ligabue, os eventos de um
limita a realidade espacial, e o sintagma podem ser articulações de
compositor pode, por exemplo, justapor tipologia de timbre e espacialidade. Os
e romper com espaços, uma experiência autores, então, concordam com este
impossível na vida real.” (idem).20 trabalho ao afirmar que articulando
Sendo a música eletroacústica livre de apenas a espacialidade e a tipologia do
limitações espaciais e a espacialidade timbre conseguimos uma seqüência de
uma maneira de dar ordem à forma, gestos coerente, com relações causais
colocando espacializações diferentes em entre eles e que, ao longo da peça,
fluxos diferentes damos a eles, devido podem criar narrativa e evolução
ao fato que nosso ouvido procura gestual.
afinidade entre fontes, independência e Uma dos procedimentos que o
caráter. Uma maneira de articular os contraponto eletroacústico deveria ter,
fluxos pela espacialização é, fazendo para Wishart, era a modulação de uma
um gesto com bastante energia, causar a área tímbrica para outra. Está
mudança do espaço, sendo que esta modulação seria a principal forma de
mudança pode ser no espaço do fluxo organizar o princípio arquitetônico.
onde ocorreu o gesto ou no espaço de Uma maneira de fazer isso seria usando
outro fluxo. Isto é possível pelo fato de um processo que Leigh Landy chama de
nosso ouvido procurar relações causais transformações sonoras (sound
entre vários gestos. transformations). Transformações
Como observado por Francesco sonoras são “[...] a habilidade de criar
Giomi e Marco Ligabue (1998), no desenvolvimento timbríco de uma
artigo Understanding electroacoustic textura sonora básica para outra”
music: analysis of narrative strategies (Landy, 1993, p. 3).21 Um exemplo
in six early compositions, Ligeti faz deste processo é encontrado na peça
algo parecido com isso em sua peça “Red Bird”, de Trevor Wishart (1978),
Artikulation (1988). O compositor tenta quando o “ss” de listen se transforma
fazer uma metáfora para vários diálogos em canto de pássaro, e na peça Mortuos
ocorrendo em diferentes espaços, com Plango Vivos Voco de Jonathan Harvey
caráter diferentes. Este processo é (1990), onde o som de um sino se
conseguido, em parte, pelo uso criativo transforma em canto. As transformações
de diferentes reverberações e a sonoras podem ser usadas para
articulação do recurso estéreo (Giomi; transformar um fluxo formado apenas
Ligague, 1997, p.48). por multiplexos em um fluxo formado
apenas por sons que não são
19
“As well as enhancing the character and impact of
multiplexos. Segundo Landy, existem
spectromorphologies, changes in spatial perspective are a
means of delineating musical structure”.
20
“But electroacoustic music is not limited to spatial reality,
21
and the composer can, for example, juxtapose and rupture “[...] the ability to create timbral development from one
spaces, an impossible experience in real life”. basic sound-texture to another”.

492
Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

três maneiras básicas de se fazer isso: esteticamente do que uma com 3 fluxos
eletroacusticamente, por síntese e por re- independentes. Quanto mais informação
síntese. Eletroacusticamente este processo nosso ouvido recebe, mais difícil fica para
seria possível através do tratamento nossa memória e raciocínio dar sentido a
analógico e/ou digital de dois sons. Por musica. Nossa memória, inteligência e
síntese isso seria possível gerando um paciência não são infinitas.
som que faria a ponte entre outros dois
sons (Landy sugere programas como 5. Conclusões
Csound e Cmusic. Estas duas técnicas
são, segundo Landy, difíceis e um pouco Este trabalho, tanto a parte teórica
frustrantes. A maneira mais adequada quanto a composição, confirmou a
seria por re-síntese, usando um vocoder hipótese de que a relação entre o
de fase que tenha funções como contraponto eletroacústico de Wishart
interpolação, deslocamento do espectro com seus conceitos sobre timbre, uma vez
(spectral shift), time stretch, etc. Todos contraposta a conceitos de diversos
estes parâmetros podem ser usados a autores sobre a escuta musical, pode ser
favor da transformação sonora (Landy, útil para a elaboração de táticas
1994, p.14). É importante observar que composicionais.
Landy (1994), assim como Wishart (1988 A primeira coisa que percebemos
apud Landy, 1994, p.15), afirmam que os é que os conceitos sobre timbre podem
sons atuando em uma transformação têm ser úteis para diferenciação e criação de
que ter no mínimo quatro segundos de independência dos fluxos. Idéias como a
duração para que sejam reconhecíveis. de causalidade, de Denis Smalley, podem
O último autor que iremos ajudar a criar o que Wishart chamaria de
abordar nesta seção é W. Luke Windsor. princípio arquitetônico e princípio
Windsor afirma que sons significam dinâmico. Idéias, desenvolvidas por
coisas além deles mesmos, qualquer som Smalley, como a de afinidade de fontes
mais ou menos complexo produz algum (source bonding) podem ser usadas para
significado (Windsor, 1997, p.78). As pensarmos em outras maneiras de criar a
idéias de Windsor são compatíveis com o independência dos fluxos, e a sua
que discutimos aqui: este trabalho só é discussão sobre espacialidade pode nos
possível porque sons significam coisas, e ajudar a pensar em ainda outras maneiras
tanto Smalley como Wishart estão de fazer a interação, articulação e criação
preocupados em descobrir maneiras de da independência dos fluxos.
descrever (e no caso específico de O conceito de Deslize espectral,
Wishart, prever) como esta significação de Erickson (apud Wishart, 1996, p.94),
ajuda no processo de entender música, e pode ser usado para a articulação de
no caso de Wishart, como esta fluxos com massa definida, e a idéia de
significação ajuda na composição. allure, de Schaeffer (apud Wishart, 1996,
Por ultimo, é importante ressaltar p.94) pode ser usada para a criação de
que quanto maior o número de fluxos multiplexos com uma morfologia
maior a chance destes procedimentos não dinâmica.
funcionarem. Uma música livre de grades Francesco Giomi e Marco
(lattice-free) contrapontística exige do Ligabue, com o conceito de sintagma
ouvinte certo nível de concentração (e, (syntagm), reforçam a idéia de que
em alguns casos, boa vontade). Uma articulando a tipologia do timbre e a
música com 10 fluxos independentes tem espacialidade dos sons conseguimos criar
maior chance de não funcionar uma narrativa musical com frases

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Anais do SIMCAM4 – IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais — maio 2008

musicais coerentes. A discussão sobre WISHART, T. Red Bird. In: Red Bird:
transformações sonoras (sound A Political Prisoner's Dream (LP).
transformations) de Leigh Landy (1994) Iorque: York Electronic Studios, 1978.
nos deu idéias a respeito de como
modular de uma área tímbrica para outra.
8. Referências
Esta modulação, segundo Wishart, seria
um elemento necessário para o GIOMI, F; LIGABUE, M. Understanding
contraponto eletroacústico. W. Luke SMALLEY, D. Spectromorphology:
Windsor finalmente, ao afirmar que sons explaining sound-shapes. In: Organised
significam algo além deles mesmos, nos Sound, Vol. 2, issue 2. Cambridge:
ajudou a perceber como a significação Cambridge University Press, 1997,
dos sons pode ajudar na composição p.107-126.
musical.
Este trabalho também mostrou LANDY, L. Reviewing the musicology
que usar as críticas à musicologia da of electroacoustic music: a plea for
música eletroacústica de Landy (1999) greater triangulation. In: Organised
para a estruturação de um trabalho rende Sound, Vol. 4, issue 1. Cambridge:
bons resultados. Este trabalho também Cambridge University Press, 1999, p.
prova que conceitos que descrevem a 61-70.
nossa escuta da música eletroacústica ou LANDY, L. Sounds Transformations
servem a análise musical podem, desde in Electroacoustic Music, 1994.
que lidos com o enfoque certo, servir à Disponível em:
composição musical. <http://people.bath.ac.uk/masjpf/CDP/la
As idéias apresentadas neste ndyeam.htm>. Acesso em: 18 Mar.
trabalho foram testadas nas peças de 2007.
minha autoria, chamadas “Orange,
Fornax e o Vale da Morte” e SMALLEY, D. The Listening
“Causalidade e Espaço”, e continuarão Imagination: Listening in the
sendo aplicadas em futuras composições. Electroacoustic Era. In: Contemporary
Podem também ser aplicadas por Music Review: Live Electronics, Vol.
qualquer compositor(a) interessado(a). 13, No. 2. Londres: Harwood Academic
Publishers, 1995, p.77-107.
6. Subáreas do conhecimento WINDSOR, W. L. Frequency structure
in electroacoustic music: ideology,
A mente e a produção musical function and perception. In: Organised
Sound, Vol. 2, issue 2. Cambridge:
7. Discografia Cambridge University Press, 1997,
p.77-82.
HARVEY, J. Mortuos Plango, Vivos
Voco. In: Computer Music Currents WISHART, T. On Sonic Art. Nova
5. Mogúncia: Wergo, 1990. Iorque: Routledge, 1996.

LIGETI, G. Artikulation. In: Continuum / Zehn


Stücke Für Bläserquintett / Artikulation /
Glissandi / Etüden Für Orgel / Volumina
(CD). Mogúncia: Wergo, 1988.

494
Índice de autores

Andriani, Márcio ................................................................................................................... 269


Araujo, Rosane Cardoso de ................................................................................................ 154
Aredes, Maria Rita ............................................................................................................... 221
Azevedo, Maria Cristina de Carvalho Cascelli de ......................................................... 95; 341
Babbar, Lara Janek ............................................................................................................. 112
Beyer, Esther ....................................................................................................................... 271
Bortz, Graziela ..................................................................................................................... 290
Bourscheidt, Luís ................................................................................................................. 327
Braga, Simone Marques ...................................................................................................... 445
Brasil, Maria de Fátima ....................................................................................................... 257
Cardoso, Cristiano da Costa ............................................................................................... 174
Carvalho, Maria Cristina Azevedo de .................................................................................. 277
Cazarim, Thiago .................................................................................................................. 160
Comi, Roberto Luiz .............................................................................................................. 228
Corrêa, Antenor Ferreira ..................................................................................................... 468
Costa, Daniel Soares da ..................................................................................................... 181
Cruz, Maria Carolina .......................................................................................................... 353
Cuervo, Luciane .................................................................................................................. 320
Cury, Vera ........................................................................................................................... 450
Daldegan, Valentina ............................................................................................................ 165
Dietrich, Peter .............................................................................................................. 214; 221
Domenici, Catarina ................................................................................................................ 28
Domingos, Mirna ................................................................................................................. 269
Dottori, Maurício .................................................................................................................. 135
Drahan, Snizhana .................................................................................................................. 68
Dudeque, Norton ................................................................................................................. 140
Escalda, Julia ...................................................................................................................... 305
Ferracioli, Hellen ................................................................................................................. 297
Figueiredo, Sergio Luiz Ferreira de ..................................................................................... 423
Fireman, Milson ................................................................................................................... 374
Freire, Ricardo Dourado ....................................................................................................... 54
Fucci-Amato, Rita de Cássia ............................................................................... 147; 407; 415
Gatti, Patrícia ....................................................................................................................... 380
Gerling,Cristina Capparelli .................................................................................................... 28
Goldemberg, Ricardo .................................................................................................... 61; 477
Guerra, Lemuel ................................................................................................................... 313
Higuchi, Marcia ............................................................................................................ 120; 128
Hora, Edmundo ..................................................................................................................... 35
Kafjes, Elaine ....................................................................................................................... 269
Kebach, Patrícia .................................................................................................................. 393
Leite, João Pereira .............................................................................................................. 128
Loureiro, Alexandre ............................................................................................................... 77
Manzolli, Jônatas ......................................................................................................... 207; 477
Martin, Liciê ......................................................................................................................... 334
Martingo, Angelo ................................................................................................................... 17
Massini-Cagliari, Gladis ....................................................................................................... 194
Maydana, Celina ................................................................................................................. 257
Moreira, Marcos dos Santos ............................................................................................... 348
Narita, Flávia ......................................................................................................................... 95
Nassif, Silvia ........................................................................................................................ 438
Oliveira, André Luiz Gonçalves de ...................................................................................... 399
Oliveira, J. Zula de ................................................................................................................ 42
Oliveira, Luis Carlos de ....................................................................................................... 477
Oliveira, Luís Felipe de................................................................................................. 207; 399
Oliveira, Maria Gabriela M. de ............................................................................................... 46
Oliveira, Marilena de ............................................................................................................. 42
Otutumi, Cristiane .................................................................................................................. 61
Pacheco, Caroline ............................................................................................................... 249
Pecker, Paula ...................................................................................................................... 393
Pederiva, Patrícia ................................................................................................................ 388
Pellon, Bernardo .................................................................................................................... 88
Piazzetta, Clara Márcia de Freitas ...................................................................................... 261
Pickler, Letícia ..................................................................................................................... 154
Pontuschka, W.M. ............................................................................................................... 453
Porres, Alexandre ........................................................................................................ 2; 9; 461
Ravagnani, Anahi ................................................................................................................ 243
Reis, Liége Pinheiro dos ..................................................................................................... 341
Rocha, Ewelter .................................................................................................................... 174
Rocha, Sandra ..................................................................................................................... 430
Rodrigues, Eunice Dias da Rocha ...................................................................................... 277
Salgado, Antonio ................................................................................................................... 81
Santos, Regina Antunes Teixeira do ..................................................................................... 28
Santos, Rosemyriam ........................................................................................................... 253
Scarpa, Orlando .................................................................................................................. 485
Schmidt, Luciana Machado ................................................................................................. 423
Schroeder, Jorge Luiz ......................................................................................................... 103
Shimoda, Lucas ................................................................................................................... 201
Silva, Abel Raimundo .......................................................................................................... 235
Smith, Maristela ................................................................................................................... 367
Souza, Fernanda de ............................................................................................................ 284
Toffolo, Rael B. Gimenes .................................................................................................... 399
Toni, Flávia .......................................................................................................................... 187
Traldi, César .......................................................................................................................... 22
Vanzella, Patrícia ................................................................................................................... 46
Werke, Mariana ............................................................................................................. 46; 358

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