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cético e equipolente (imparcial, talvez, se fizermos certas concessões), ele As artes do Trivium na Idade Média

coleta, transmite, comenta e interpreta o mundo bizarro ao seu redor.


Com esses elementos, podemos sintetizar uma lógica de interpretação
Guilherme Wyllie
para a disparidade de perícopes de Dos Coxos de modo relativamente coe-
rente. No que diz respeito ao conteúdo, temos as superstições, articuladas
na análise dos rumores e do contágio informacional (que se deslocam a uma
velocidade impressionante, retomando e ampliando a retórica de desloca-
mento já presente no texto). As superstições estão submetidas, do ponto
de vista crítico-hermenêutico, às equipolências e aos posicionamentos céti- De modo geral, a tradição clássica acessível no início da Idade Média
cos do narrador, que conduzem, ao que parece, a narrativa de viagem a um restringia-se em grande parte ao que fora preservado nas obras dos enciclo-
posicionamento diferente das questões de ordem deambulatórias (mirabilia pedistas latinos sobre as artes liberais. Inspirados pela enkyklios paideia dos
e interpretação de signos) das narrativas de viagem clássicas. Nesse novo gregos, os educadores romanos adotaram um currículo cuja organização
lugar, os mirabilia intraeuropeus são apresentados e repensados como faits coincidia com o sistema das artes liberais descrito nas Disciplinarum libri IX
divers, submetidos assim a uma auctoritas informacional moderna. de Varrão (116 a.C.–27 a.C.). Tal abordagem, porém, sofreria algumas modi-
ficações até assumir uma forma definitiva no século V. Mediante a seleção de
referências bibliográficas disciplinas que Agostinho de Hipona (354–430) efetuara no De ordine com
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. 3 v. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
a finalidade de preparar as almas para a contemplação das coisas inteligíveis
(ASHWORTH, 2006, p. 73-74), Marciano Capela (c. 400 – c. 440) fixa em De
GERVAISE OF TILBURY. Otia Imperialia. Recreation for an Emperor. In: BANKS, S.E. &
BINNS, J. W. (eds). Oxford: Oxford University Press, 2002. [Oxford Medieval Texts].
nuptiis Mercurii et Philologiae aquela que se tornaria a lista canônica das
artes liberais, vale dizer, gramática, retórica, lógica, aritmética, música, geo-
LE GOFF, Jacques. “Uma coleta etnográfica no Delfinado no início do século XIII”.
metria e astronomia. Posteriormente, ao tomar cada uma dessas disciplinas
In: O Imaginário Medieval (original francês L’Imaginaire Médiéval, 1985). Lisboa:
Editorial Estampa, 1994. ora como uma arte da palavra, ora como uma arte do número, não só Boécio
(c. 480–525/26), mas também Cassiodoro (c. 490–580) e Isidoro de Sevilha
ZEMON DAVIS, Natalie. The Return of Martin Guerre. Cambridge (MA): Harvard
University Press, 1983. (c. 560–636) contribuíram para que Alcuíno de York (c. 732–804) fornecesse
as bases do ensino medieval, consolidando a divisão das sete artes liberais
em dois grupos: o trivium, que incluiria as três artes verbais, isto é, a gra-
mática, a retórica e a lógica, e o quadrivium, que abrangeria as quatro artes
matemáticas, a saber, a aritmética, a música, a geometria e a astronomia.

1. gramática
Embora as disciplinas do quadrivium fossem imprescindíveis na medida
em que ofereceriam os conceitos e métodos responsáveis pelo incremento da
ciência na Idade Média, seu conteúdo essencialmente matemático aliado à
carência de mestres que lecionassem tais assuntos acabaram por limitar a sua
difusão sobretudo nos primeiros séculos do período medieval. Nessa época,

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porém, as artes do trivium revelaram-se mais atraentes e acessíveis, passando de formas gramaticalmente corretas. Preocupado com o estabelecimento
a constituir a principal alternativa para quem desejasse dar seguimento aos dos princípios da gramática, Apolônio fora responsável por relevantes ino-
estudos. Enquanto a lógica e a retórica dispunham dos meios para pensar vações no âmbito da sintaxe como, por exemplo, a distinção entre verbos
com clareza e expressar-se de modo persuasivo, ao estabelecer como discor- transitivos e intransitivos, além da consequente identificação das diferenças
rer corretamente, a gramática garantiu um papel particularmente relevante sintáticas entre sujeito e objeto.
como a disciplina mais básica do trivium (DALES, 1973, p. 10-12). No Ocidente Romano, Varrão destacou-se como um dos gramáticos
De início, verifica-se que a gramática medieval fora amplamente influen- mais prolíficos da tradição latina. A despeito disso, nenhuma das contribui-
ciada pelas doutrinas clássicas presentes tanto na Ars maior e Ars minor de ções presentes nos 25 livros do seu De lingua latina pôde ser diretamente
Donato (fl. 350 d.C.), quanto nas Intitutiones grammaticae de Prisciano (fl. acessada na Idade Média, já que esse monumental tratado de gramática,
500 d.C.). Na realidade, os aspectos essenciais das teorias gramaticais gre- assim como os Disciplinarum libri IX, não circulou entre os eruditos da
gas encontravam-se de tal modo expostas nessas obras que a sua difusão ao época. Por outro lado, a existência de centenas de reproduções, paráfrases e
longo da Idade Média fez com que mesmo indiretamente a gramática da comentários medievais aos De partibus orationis ars minor e Ars grammatica
época incorporasse vários elementos clássicos. ou Ars maior redigidas por Donato no século IV indicam que ambas as obras
Basicamente, duas foram as tradições clássicas que determinaram a foram intensamente empregadas no ensino da gramática ao longo de toda a
evolução da gramática medieval: a tradição gramatical grega dos estoicos Idade Média. Enquanto a Ars minor é um manual rudimentar de gramática,
e dos alexandrinos Dionísio o Trácio (fl. séc. II a.C.) e Apolônio Díscolo cuja organização orienta-se pela divisão da sentença em cada um de seus
(fl. séc. II a.C.) e a tradição gramatical latina de Varrão, Donato e Prisciano constituintes, vale dizer, as partes do discurso, a Ars maior revela-se mais
(HUNTSMAN, 1986, p. 61-62). elaborada, embora sua enorme influência durante a Idade Média proceda
A tradição grega desenvolveu-se em meio às controvérsias motivadas fundamentalmente do interesse especial dos gramáticos da época pelo ter-
não só por naturalistas e convencionalistas, que discutiam se a relação entre ceiro livro da obra, a saber, o Barbarismus, que trata das figuras de lingua-
os nomes e as coisas nomeadas seria natural ou dependeria de convenção, gem (ASHWORTH, 2006, p. 73). Se Donato é reconhecido como o autor do
mas também por anomalistas e analogistas. Enquanto os estoicos acredita- manual de gramática mais difundido entre os mestres medievais, Prisciano
vam que a linguagem estava essencialmente sujeita às anomalias inexplicá- deve ser particularmente celebrado por ter redigido a principal fonte de
veis em qualquer sistema gramatical, os alexandrinos concentravam-se nas estudos gramaticais da Idade Média, as Intitutiones grammaticae. Nessa
regularidades sintáticas, avaliando as formas gramaticais incomuns por ana- obra, a abordagem semântica é predominante. Influenciado por Apolônio
logia com as formas consagradas. Discípulo de Aristarcos (c. 217–145 a.C.), Díscolo, Prisciano não apenas sustenta que a gramaticalidade (congruitas)
primeiro gramático atuante da tradição alexandrina, Dionísio o Trácio fora de uma sentença depende de um ajuste específico entre os elementos concei-
o suposto autor da Techne grammatike, uma obra de grande importância tuais significados pelas palavras constituintes, mas também define as partes
sobretudo por difundir entre os gramáticos medievais a teoria das oito par- do discurso em termos de seus significados, desprezando suas respectivas
tes do discurso, a saber, nome (onoma), verbo (rhema), particípio (metoche), funções nas sentenças (HUNTSMAN, 1986, p. 66-74).
artigo (arthron), pronome (antonymia), preposição (prothesis), advérbio A partir do Renascimento Carolíngio, a atividade de gramáticos como
(epirrhema) e conjunção (syndesmos). Apolônio Díscolo – outro alexan- Remígio de Auxerre (c. 841–908), por exemplo, resumir-se-ia basica-
drino chamado por Prisciano de maximus auctor artis grammaticae – forne- mente em comentar as obras de Donato e Prisciano a fim de esclarecer e
cera uma descrição sintática que serviria de modelo para as gramáticas da sistematizar as doutrinas ali expostas. Em torno de 1140, no entanto, essas
Idade Média. Na obra Peri syntaxeos, ele tratara do artigo, pronome, verbo, modestas contribuições foram compiladas por Pedro Helias na Summa
preposição e advérbio, embora não se contentasse em elaborar meras listas super Priscianum, cuja classificação das partes do discurso em função das

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propriedades gramaticais que constituem seus modos de significar (modi averroístas como João de Jandum e João Aurifaber provocassem o abrupto
significandi) despertaria o interesse dos eruditos medievais por questões declínio da gramática modista (PINBORG, 1982, p. 267-269).
puramente teóricas sobre a natureza e a organização da linguagem. Apesar
disso, evidencia-se no final do século XII o surgimento de novos manuais 2. lógica
de gramática exclusivamente dedicados à prática pedagógica, como o
Doctrinale puerorum de Alexandre Villa Dei e o Graecismus de Everardo de Ao longo da Idade Média, a lógica1 passou por uma das etapas mais
Béthune, que por serem escritos em verso facilitariam a memorização. vigorosas e criativas de sua história. Além de assimilar e refinar impor-
Na segunda metade do século XIII, alguns dos gramáticos mais admi- tantes doutrinas da Antiguidade, os lógicos medievais ainda elaboraram
ráveis da época, como Boécio de Dácia, Martinho de Dácia e Raul Brito, novas técnicas que permitiram o desenvolvimento de diversas teorias capa-
começaram a desenvolver uma teoria gramatical de caráter eminentemente zes de suplementar a lógica antiga e contribuir para o esclarecimento de
abstrato, cuja difusão sobretudo em Paris resultou no estabelecimento de assuntos particularmente relevantes como a noção de consequência lógica
uma nova tradição linguística. Preocupados em assegurar o estatuto cien- e o comportamento semântico de certos termos em diferentes contextos
tífico da gramática mediante o estudo das características universais da lin- proposicionais.
guagem, tais mestres – geralmente conhecidos como modistas – concentra- Em princípio, a lógica medieval surgiu após uma longa fase de estag-
ram suas investigações nos itens semânticos que constituiriam o verdadeiro nação intelectual, que motivou o declínio da lógica antiga e só foi inter-
objeto da gramática, isto é, os modos de significar (modi significandi) disse- rompido pelo Renascimento Carolíngio, período em que a disciplina em
minados entre as categorias gramaticais. De forma sucinta, os modistae não questão volta a ocupar um lugar relevante graças ao interesse dos eruditos
só acreditavam que cada constituinte da realidade (res ou natura communis) da época pela possibilidade de aplicá-la à teologia. No início do século IX,
contaria com certo número de modos de ser (modus essendi), de forma que Alcuíno de York redige a primeira obra medieval de lógica, a De dialectica, e
para cada um desses modos haveria outro modo segundo o qual tais cons- disponibiliza um dos textos de lógica mais estudados durante os dois séculos
tituintes seriam entendidos (modus intelligendi), mas também atestavam subsequentes, as Categoriae decem, uma antiga paráfrase às Categorias de
que os próprios modos de os entender determinariam em que modo eles Aristóteles, cuja autoria foi equivocadamente atribuída a Agostinho.
poderiam ser significados (modus significandi). Nesse caso, dado que cada A partir do século X, o estudo da lógica, que até então se restringia
categoria gramatical envolveria um modo de significar os itens da realidade, à Academia Palatina, começou a se intensificar nos grandes mosteiros da
segue-se que qualquer palavra poderia envolver diferentes modos de signi- Europa Ocidental. Neste contexto, sobressai-se Gerberto de Aurillac, que
ficar. Por exemplo, tomada como uma unidade significativa, a palavra ‘dor’ contribuiu de maneira decisiva para o incremento da lógica ao assimilar as
ocorrerá ora como um substantivo (dolor), ora como um verbo (doleo) ou traduções, comentários e monografias lógicas de Boécio, além de dominar
um particípio (dolens) ou um advérbio (dolenter) ou uma interjeição (heu) as doutrinas lógicas elaboradas nas décadas precedentes. Durante o período
(EBBESEN, 2003, p. 273-274). em que lecionou em Reims, ele foi o primeiro a empregar um conjunto de
Por volta de 1310, Tomás de Erfurt reúne e sistematiza as principais obras posteriormente chamado de velha lógica (logica vetus), que seria basi-
doutrinas dos modistae no Tractatus de modis significandis seu ­grammatica camente constituído pela Isagoge de Porfírio, Categorias e Da interpretação
­speculativa, obra que acabaria por substituir os Modi significandi de Martinho de Aristóteles, Tópicos de Cícero e os escritos lógicos de Boécio.
de Dácia. Nessa época, porém, eram cada vez mais raras as contribuições No século XI, ocorreu um grande debate acerca dos limites da lógica,
originais dos gramáticos de tal tradição linguística, de modo que nem a que foi essencialmente motivado por reflexões relativas à possibilidade da
imensa popularidade do manual de Tomás impediu que as críticas contun-
1 De certa forma, pode-se dizer que ao menos entre o final do século VIII e o início do século XIII
dentes de nominalistas como Guilherme de Ockham e João Buridan e de os termos ‘lógica’ e ‘dialética’ eram equivalentes (Cf., por exemplo STUMP, E. Dialectic, p. 127).

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sua aplicação em contextos teológicos e pelo uso aparentemente indiscri- técnica de análise dos sofismas (sophismata), isto é, sentenças problemáti-
minado de diversas técnicas argumentativas nas respectivas discussões. cas que possibilitam o esclarecimento de alguma concepção ou dificuldade
Nessa época, a compreensão das doutrinas presentes no Da interpretação lógica, motivaram a elaboração de valiosas teorias lógico-semânticas que
e nas monografias de Boécio sobre os silogismos permitiu tanto o reco- caracterizariam a lógica terminista ou simplesmente lógica dos moder-
nhecimento da lógica como uma disciplina autônoma, quanto o abandono nos (logica modernorum) em detrimento de uma lógica dos antigos (logica
da tendência de assimilação da lógica pela metafísica, que era tão comum ­antiquorum), formada pela logica vetus e pela logica nova.
nos dois séculos anteriores. Tais fatos, por sua vez, também acarretaram a No início do século XIII, a difusão da teoria das propriedades dos termos
primazia da avaliação crítica da lógica nas discussões sobre a eucaristia e a (proprietates terminorum), que representaria a lógica terminista ao lado da
onipotência divina, uma vez que estes assuntos suscitaram várias questões teoria das palavras consignificantes ou sincategoremas (syncategoremata), foi
sobre a viabilidade da análise lógica dos mistérios da fé. favorecida pelo surgimento de alguns manuais de lógica amplamente adota-
Ao final do século XI, o caráter linguístico da lógica foi particularmente dos não só nos studia das novas ordens religiosas, mas também nas faculda-
enfatizado nas discussões sobre as conexões entre a lógica e a gramática, des de artes das recém-criadas universidades medievais. Entre eles, cabe des-
que se propagaram pelas escolas urbanas e concorreram para o desen- tacar as Introductiones in logicam de Guilherme de Sherwood, o Tractatus de
volvimento da lógica propriamente escolástica. Em 1080, por exemplo, Pedro Hispano, a Logica de Lamberto de Lagny e as Summulae dialectices de
Anselmo da Cantuária discute algumas questões levantadas pelos eruditos Roger Bacon. Em geral, os lógicos terministas reconheciam ao menos qua-
da época sobre os vínculos entre as Institutiones grammaticae de Prisciano tro propriedades dos termos. De acordo com eles, a significação (significatio)
e as Categorias, Da interpretação e os respectivos comentários de Boécio ao seria aproximadamente o sentido ou a definição de um termo fora do con-
tentar esclarecer se o que a palavra grammaticus expressa é uma substância texto proposicional, de sorte que ‘animal racional’, por exemplo, revelar-se-ia
ou uma qualidade. a significação de ‘homem’. A apelação (apellatio) consistiria na referência de
O desenvolvimento da lógica no século XII está fundamentalmente vin- um termo aos objetos atualmente existentes por ele significados e, portanto,
culado à educação e à pesquisa promovidas por vários mestres das esco- a apelação de ‘homem’ em ‘Todo homem é mortal’, por exemplo, compreen-
las de Paris que prosperaram ao longo da margem esquerda do Sena. Entre deria todos os homens atualmente existentes. De certa forma, a copulação
eles, cumpre destacar Adão de Balsham, autor da Ars disserendi e funda- (copulatio) seria uma propriedade que os adjetivos apresentariam ao serem
dor de uma escola próxima a Petit-Pont, cujos integrantes chamar-se-iam predicados de algum sujeito, tal como em ‘Um homem é sábio’, onde o adje-
Parvipontani, Gilberto de Poitiers, que lecionou para os Porretani na escola tivo ‘sábio’ encerraria a propriedade de copulação por estar associado ao
episcopal do centro de Paris e supostamente redigiu o Liber sex principio- sujeito ‘homem’. Enfim, a suposição (suppositio) poderia ser superficialmente
rum, último opúsculo a integrar a logica vetus, e, sobretudo, Pedro Abelardo, caracterizada como a referência de um termo em determinado contexto pro-
um dos lógicos mais célebres da Idade Média, que instruiu os Nominales nas posicional. Neste caso, ‘homem’ em ‘Este homem é justo’, por exemplo, supo-
escolas do monte Sainte-Geneviève e expôs inúmeras doutrinas relevantes ria ou faria referência a um homem em particular, ao passo que ‘homem’ em
para a história da lógica medieval em obras como a Dialectica, antes de ser ‘Todo homem é justo’ suporia cada indivíduo da espécie humana.
substituído por Alberico do Monte, mestre dos Albricani, e por Roberto de A predileção dos lógicos da primeira metade do século XIII pela elabo-
Melun, cujos discípulos eram conhecidos como Melidunenses. ração de teorias semânticas capazes de evitar a ambiguidade, a vagueza e a
Por volta de 1175, tanto a recuperação do restante das obras lógicas de argumentação falaciosa que aparecem com frequência na linguagem ordiná-
Aristóteles, cujas traduções latinas ou seus respectivos conteúdos seriam ria, confirma que a lógica do referido período fora fundamentalmente conce-
coletivamente denominados nova lógica (logica nova), quanto o crescente bida como uma ciência discursiva (scientia sermocinalis). No final do século
interesse pelo estudo das falácias, que estimulou o desenvolvimento da XIII, porém, a influência crescente das doutrinas epistemológicas oriundas

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dos Segundos Analíticos e a adoção da tese aviceniana conforme a qual a aborda sobretudo a distinção entre o sentido composto e o sentido divi-
lógica objetivaria estudar os entes de razão de segunda intenção, modifica- dido das proposições modais, e Ricardo Billingham, cuja obra Speculum
ram a concepção medieval sobre a natureza da lógica, que seria então ava- ­puerorum encerra a primeira exposição da teoria das provas dos termos
liada preferencialmente como uma ciência racional (scientia rationalis). (probationes terminorum). Todavia, essa situação excepcional começaria a
Neste contexto, surge a lógica modista ou gramática especulativa mudar ao longo da segunda metade do século XIV, quando a lógica entra
(grammatica speculativa), que floresce nas universidades de Paris, Bolonha paulatinamente em declínio, embora ainda conte com as contribuições iso-
e Erfurt, mas parece não estar presente de modo efetivo em Oxford, distan- ladas de alguns lógicos ilustres como Alberto de Saxônia e Paulo de Veneza.
ciando-se da lógica terminista basicamente por defender uma interpretação Na realidade, a tendência crescente e pouco inspirada de consolidar os
ontológica dos modos de significar (modi significandi). Entre as contribui- resultados previamente obtidos em lugar de renová-los ou até mesmo de
ções de modistas como Boécio de Dácia e Raul Brito, é importante mencio- alterá-los e o surgimento da lógica humanista, antecedida pela devastação
nar a subdivisão da lógica em função das operações mentais de apreender, causada pela Peste Negra, concorreram de maneira decisiva para o fim da
julgar e raciocinar, que resultam nas segundas intenções correspondentes, a lógica medieval no início do século XVI.
saber, a intenção simples, o juízo e o raciocínio. Não obstante a lógica desenvolvida na Idade Média ser geralmente cele-
Durante as três últimas décadas do século XIII, verifica-se o declínio da brada pela grande variedade de doutrinas criativas, algumas delas se desta-
lógica terminista e a tentativa isolada de Raimundo Lúlio de reformar toda cam em razão da sua complexidade e sofisticação. Tal é o caso, por exem-
a lógica através da sua Ars generalis, um sistema semimecânico formado plo, das teorias da suposição (suppositio), das obrigacões (obligationes), das
por uma notação simbólica e diagramas combinatórios capazes de forne- consequências (consequentiae), dos insolúveis (insolubilia) e das provas das
cer argumentos cujas conclusões serviriam de fundamento para as ciências. proposições (probationes propositionum).
Em 1301, porém, Walter Burley, um eminente lógico realista inglês, começa Em princípio, a teoria da suposição concentrou a maioria das ino-
a escrever importantes obras sobre diversas teorias associadas à lógica ter- vações lógico-semânticas da época, tornando-se um dos resultados mais
minista, como as duas versões do De puritate artis logicae e um influente expressivos da lógica medieval. De certa forma, é lícito dizer que a supo-
tratado sobre as obrigações (obligationes), que trata das técnicas argumenta- sição corresponde a uma relação entre um termo e aquilo que ele designa
tivas nas disputas medievais, contribuindo assim para o resgate da referida enquanto atua como sujeito ou predicado de uma proposição. Por ser par-
tradição lógica, que permanecerá vigente até o final da Idade Média. ticularmente sensível não só aos elementos semânticos, mas também aos
Além de Burley, outros lógicos notáveis apresentaram doutrinas igual- aspectos sintáticos e pragmáticos que distinguem os contextos proposi-
mente relevantes para o desenvolvimento da lógica no início do século XIV. cionais dos respectivos termos, a suposição apresenta uma série de notá-
Entre eles, convém destacar Guilherme de Ockham, autor de valiosos traba- veis variações. Entre elas, cumpre ressaltar a suposição material, que se dá
lhos como a Summa logicae, que inclui sofisticadas teorias sobre a linguagem quando um termo representa um item linguístico tal como ‘homem’ em
mental, a conotação e a suposição, e João Buridan, restaurador da lógica ‘Homem é dissílabo’, a suposição simples, uma das mais discutidas pelos
terminista na França e autor de inúmeras obras extremamente interessantes lógicos medievais na medida em que envolve aqueles termos cuja referên-
como o seu tratado sobre as consequências (consequentiae). cia se restringe aos universais como ‘homem’ em ‘Homem é espécie’, e a
Na mesma época, ainda era possível encontrar concepções refinadas suposição pessoal, que se desdobra em vários tipos e ocorre quando um
e inovadoras nos escritos dos lógicos em atividade em Oxford, como por termo designa algo que normalmente dele se predica, como ‘homem’ desig-
exemplo Tomás Bradwardine e Roger Swineshead, que elaboraram influen- nando Sócrates em ‘Homem é filósofo’.
tes doutrinas sobre certos paradoxos semânticos ou insolúveis (insolubilia), Além das distinções anteriores, a teoria da suposição ainda encerra uma
Guilherme Heytesbury, autor do tratado De sensu composito et diviso, que exposição detalhada dos tipos de suposição pessoal, que parecem fornecer

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alguns procedimentos úteis para a avaliação de inferências e a identificação ao opponens encerrar a disputa ou interrompê-la para fazer alguma obser-
de falácias. Resumidamente, a suposição pessoal divide-se em suposição vação ou assinalar um erro na réplica do respondens. Por último, é impor-
discreta, que concerne aos termos singulares, e suposição comum, que diz tante assinalar que os principais tratados De obligationibus foram escritos
respeito aos termos gerais. Neste contexto, os componentes sintáticos que por Guilherme de Sherwood, no século XIII, e por Walter Burley e Roger
caracterizam a estrutura das proposições constituídas por um termo cuja Swineshead no século XIV.
suposição seja comum, assim como o respectivo descenso aos singulares Basicamente, a teoria das consequências distingue-se pelo estudo das
(descensus ad singularia), permitem o reconhecimento de três tipos de supo- formas válidas de inferência. Em geral, as primeiras discussões medievais
sição amplamente estudados durante a Idade Média, a saber, a suposição sobre o referido tema eram motivadas por certas investigações realizadas no
determinada, que se aplica a ‘homem’ em ‘Algum homem é filósofo’, pois final do século XI acerca das proposições condicionais e revelavam alguma
de tal proposição é possível inferir que ‘Este homem é filósofo ou aquele influência de elementos estoicos e aristotélicos oriundos daquelas obras de
homem é filósofo ou ...’ , a suposição meramente confusa, que se aplica a ‘ani- Boécio que tratavam dos silogismos hipotéticos e dos tópicos. Contudo, só
mal’ em ‘Todo homem é animal’, uma vez que a referida proposição implica no início do século XIV é que aparecem os primeiros livros exclusivamente
logicamente que ‘Todo homem é este animal ou todo homem é aquele ani- dedicados ao desenvolvimento da teoria em questão. Realmente, a maioria
mal ou ...’ , e a suposição confusa e distributiva, que se aplica a ‘homem’ em desses textos evitava as reflexões teóricas para se concentrar na listagem de
‘Todo homem é mortal’, pois a partir desta proposição segue-se que ‘Este regras basicamente destinadas à prática de disputas e à elucidação de sofis-
homem é mortal e aquele homem é mortal e ...’ . mas. Com efeito, poucas eram as obras que apresentavam uma definição
De modo geral, a obrigação (obligatio) destaca-se como uma modali- de consequência ou discutiam o que uma consequência é. Na verdade, a
dade de disputa incluída no currículo de lógica das faculdades de artes a maioria delas simplesmente admitia que uma consequência é uma relação
partir do século XIII e, ainda que não se saiba exatamente qual era o propó- entre um antecedente e um consequente. Apesar de obscura, tal afirma-
sito de tal prática, sua estrutura altamente refinada e complexa faz dela uma ção reflete a concepção corrente segundo a qual uma consequência poderia
das principais inovações da lógica medieval. Já no início do século XIII, veri- designar tanto a relação entre o antecedente e o consequente de uma pro-
fica-se seis tipos de obrigações. A institutio consiste na alteração do signifi- posição condicional, quanto a relação entre a premissa e a conclusão de
cado de algum termo utilizado durante a disputa correspondente; a petitio é uma inferência.
uma solicitação feita pelo opponens ao respondens; a positio envolve a obriga- Após tratar da noção de consequência, os lógicos medievais se con-
ção de sustentar determinada proposição como verdadeira; a depositio con- centravam em determinar a adequação das mesmas a partir de um único
siste em sustentar a falsidade de uma proposição; a dubitatio caracteriza-se critério de verdade ou validade. De modo geral, eles acreditavam que uma
por tomar uma proposição como duvidosa; e a sit verum é o compromisso consequência é adequada se e somente se for impossível que o consequente
de responder a uma proposição como se sua verdade, falsidade ou dúvida seja falso quando o antecedente for verdadeiro. A despeito de sua plausibi-
já estivesse assegurada. Entre as obrigações, a positio era indubitavelmente lidade, tal concepção acarreta aquilo que hoje se conhece como os parado-
a mais difundida. De modo sucinto, tal tipo de disputa começa quando o xos da implicação estrita, isto é, que qualquer proposição se segue de uma
opponens declara ‘proponho que p’, onde p é uma proposição denominada proposição impossível e que uma proposição necessária se segue de qual-
positum. Em seguida, o respondens afirma ‘admito’ ou ‘ nego’, dependendo de quer proposição. Para evitar tal dificuldade, alguns lógicos da época con-
certas condições. Se o respondens negar o positum, a disputa termina, mas se vencionaram que a referida noção de adequação também deveria garantir
ele o admitir, o opponens deverá propor uma série de proposições, de modo que o consequente fosse de algum modo compreendido pelo antecedente.
que cumprirá ao respondens manifestar-se sobre cada uma delas, respon- Neste contexto, um dos temas mais debatidos pelos lógicos medie-
dendo ‘concedo’, ‘nego’ ou ‘duvido’, segundo certas regras. Finalmente, cabe vais diz respeito à classificação das consequências. De fato, observa-se um

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grande número de discussões em torno desse tema ao longo dos séculos XIII falso’ e nada mais diz, não diz absolutamente nada. Tal solução apresenta
e XIV. Todavia, apenas as divisões entre as consequências formais e materiais duas variedades: cassatio da potência, a saber, é impossível dizer ‘Digo o
e as consequências absolutas (simplex) e fatuais (ut nunc) notabilizaram-se falso’, e a cassatio do ato, isto é, não é impossível dizer ‘Digo o falso’, mas caso
na Idade Média. Geralmente, a primeira distinção estabelece que as con- o diga, não estará dizendo nada; (2) Restrictio: na proposição ‘Digo o falso’, a
sequências formais são proposições condicionais ou inferências adequadas expressão ‘o falso’ não supõe a proposição da qual faz parte; (3) Transcasus:
em virtude da disposição dos termos sincategoremáticos que a compõem, o verbo ‘digo’ não designa o momento do proferimento, mas o instante ante-
ao passo que as consequências materiais são proposições condicionais ou rior; (4) Secundum quid et simpliciter: os insolúveis são falsos absolutamente
inferências adequadas em decorrência do sentido dos respectivos termos (simpliciter), mas verdadeiros em certo aspecto (secundum quid). Por outro
categoremáticos. Em relação à distinção entre as consequências simples e lado, cabe ainda destacar que o insolúvel, enquanto proposição utilizada
fatuais, pode-se afirmar que as primeiras são adequadas devido às condições nas disputas obrigacionais, nada mais é do que um exemplo entre outros
de adequação previamente descritas e as últimas são análogas às determina- do modo de argumentação sofística tão comum no contexto universitário
ções que caracterizam a moderna implicação material. medieval (SPADE, 1982, p. 246-253).
Além disso, a teoria das consequências ainda encerra uma seção des- Enfim, verifica-se que a teoria das provas das proposições difundiu-se
tinada ao estabelecimento e à sistematização de regras gerais e especiais de a partir da metade do século XIV sobretudo através do Speculum ­puerorum
inferência, que resumem certos resultados da lógica antiga, como as leis de de Ricardo Billingham. Em princípio, a noção de prova utilizada pela refe-
oposição, equipolência e conversão das proposições categóricas, e anteci- rida teoria é mais ampla do que a demonstração aristotélica dos Analíticos
pam algumas tautologias modernas como as leis de De Morgan. Posteriores. Na realidade, ela é expressa por qualquer argumento que evi-
Outra contribuição medieval de grande importância para a história da dencie a verdade de determinada proposição. Note, porém, que proposi-
lógica foi a teoria dos insolúveis. Embora poucos foram os lógicos medie- ções como essas devem ser provadas a partir de proposições imediatas,
vais que propuseram uma definição rigorosa de insolúvel, é lícito identificar vale dizer, aquelas que não podem ser provadas simplesmente por atua-
os insolúveis com certos tipos de proposições auto referenciais, vale dizer, rem como premissas em todas as provas. Nesse contexto, há três tipos de
proposições que geram paradoxos semânticos como o paradoxo do men- prova: a exposição, a resolução e a prova com termos auxiliares (officialis).
tiroso. A problemática medieval dos insolúveis comporta três períodos: (i) De modo resumido, a proposição exponível é aquela cujo sentido é obs-
no século XII, o insolúvel é regularmente tratado como um paralogismo, curecido por um termo exponível. Com efeito, ela deve ser analisada ou
cuja análise é realizada no âmbito da teoria das falácias; (ii) no século XIII, exposta em proposições mais simples chamadas de exponentes, que captu-
o insolúvel é uma proposição e um tipo especial de sophisma, cujo instru- ram o sentido da proposição original. A resolução efetua as provas através
mental conceitual é basicamente fornecido pela prática da disputa sofística; de silogismos expositórios. Assim, ‘Um homem corre’ é provada pela infe-
(iii) no século XIV, o insolúvel ainda é identificado com um tipo particular rência ‘Isto corre e isto é um homem; logo, um homem corre’. Finalmente,
de sophisma, embora o instrumental conceitual correspondente seja enri- provar uma proposição que contenha um termo auxiliar como um verbo
quecido pelas inovações da disputa obrigacional. Ainda que nem todos os epistêmico ou uma expressão modal significa fornecer um argumento que
insolúveis tratados pelos lógicos medievais estejam ligados à autorreferên- esclareça o papel de tal termo. Por exemplo, ‘É contingente para ele correr’
cia, a forma mais conhecida de insolúvel é aquela na qual o enunciado de é provada por ‘‘Ele corre’ é contingente e ‘Ele corre’ significa para ele correr;
partida (positum) de uma disputa obrigacional é uma proposição que sig- logo, é contingente para ele correr’ (SPADE, 2003, p. 418-420).
nifica a sua própria falsidade, ou seja, ‘Ego dico falsum’.
Em geral, as principais soluções medievais do insolúvel supracitado
podem ser resumidas como se segue. (1) Cassatio: aquele que diz ‘Digo o

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3. retórica outra estabelecera tal objeto com base na distinção entre tese (propositum)
e hipótese (causa), limitando a atividade dos retóricos ao estudo da argu-
Em geral, quatro são as etapas que tradicionalmente constituem a his-
mentação provável sobre questões especificamente subordinadas à lógica
tória da retórica na Idade Média. A primeira delas se estende até o final do
(MCKEON, 1942, p. 12 e 14).
século X e depende em grande parte do que fora escrito por Agostinho e os
Ao longo do século XI, a influência da lógica sobre a retórica revela-se
enciclopedistas latinos a respeito da retórica. A segunda etapa, por sua vez,
ainda mais intensa, sobretudo após a inclusão nos currículos escolares do
tem início no século XI e termina na primeira metade do século XII, sendo
De topicis differentiis de Boécio. No quarto e último livro dessa obra, há
marcada sobretudo pela difusão das doutrinas retóricas de Cícero e Boécio.
uma significativa discussão sobre as relações entre ambas as disciplinas,
Já a terceira etapa surge no fim do século XII e ocupa todo o século XIII, ao
distinguindo-as em termos de matéria, uso e finalidade. De acordo com
passo que a última etapa compreende o século XIV e se encerra nas primei-
Boécio, embora a matéria da lógica seja basicamente a tese, a da retórica é a
ras décadas do século XV, quando passa então a vigorar a retórica humanista
hipótese. Ademais, enquanto a lógica emprega um método de perguntas e
(MCKEON, 1942, p. 13).
respostas que envolve o uso de silogismos completos, o método da retórica
Durante o Renascimento Carolíngio, a opinião de Agostinho até certo
caracteriza-se pela aplicação de silogismos incompletos ou entimemas em
ponto favorável ao estudo da retórica, aliada às exposições sumárias de
discursos contínuos. Enfim, a lógica se propõe a refutar um único conten-
Marciano Capela, Cassiodoro e Isidoro de Sevilha sobre tal assunto, con-
dor, ao passo que a retórica tem por objetivo persuadir um juiz (BOÉCIO,
correram de modo decisivo para a preservação do ensino da retórica, que
De topicis differentiis, IV, 1205-1207).
desde o século VII entrara em franco declínio, sendo até mesmo substituído
Embora o quarto livro do De topicis differentiis tenha sido particular-
pelo ensino da gramática. Embora Agostinho tenha algumas vezes se posi-
mente relevante para o desenvolvimento da retórica medieval, nenhuma
cionado de maneira um tanto reticente em relação à retórica por conside-
obra sobre tal assunto foi tão popular no início da Idade Média quanto o De
rá-la indigna de um bispo (AGOSTINHO, Epistola CXVIII ad Dioscorum, I.
2), ao afirmar em De doctrina christiana que em favor da verdade os cris- inventione de Cícero. Objeto de inúmeros comentários, paráfrases e tradu-
tãos não deveriam dispensar o uso de tal disciplina (AGOSTINHO, De doc- ções, esse texto – sugestivamente chamado de Rhetorica vetus – destacou-se
trina christiana, II. 41), ele promoveu aquela que seria a mais importante como a principal fonte de teorias retóricas até a primeira metade do século
XII (MURPHY, 1974, p. 109-110). De fato, é notável como os capítulos iniciais
apologia cristã dos estudos retóricos na Idade Média. Com efeito, eviden-
cia-se entre o final do século VIII e o início do século IX uma retomada do primeiro livro de De inventione fornecem um excepcional panorama
gradual do interesse pela retórica. Alcuíno em Disputatio de rhetorica et dos temas que caracterizaram a retórica da época. Inicialmente, Cícero – o
de virtutibus e seu discípulo Rabano Mauro em De institutione clericorum, magister eloquentiae – não só defende que entre a eloquência e a ética há
por exemplo, sustentavam devidamente apoiados tanto nas Institutiones de uma conexão necessária, mas também atesta que a finalidade da retórica é
Cassiodoro, quanto nas Etymologiae de Isidoro de Sevilha, que a retórica é a persuasão através do discurso, esclarecendo que sua matéria se desdobra
a ciência do bem dizer em disputas cíveis (bene dicendi scientia in civilibus em três tipos: deliberativa, judicial e demonstrativa. Em seguida, ele dis-
­quaestionibus). Subsequentemente, os distintos modos segundo os quais tingue os casos especiais das questões gerais – que são próprias da filosofia
tal concepção fora interpretada ainda motivaram a consolidação de duas – para então elencar as cinco partes da retórica, a saber, a inventio, que trata
abordagens que tomadas em conjunto acabariam por definir a etapa inicial da descoberta de argumentos, a dispositio, que determina a organização dos
da história da retórica medieval. Enquanto uma delas dividira o objeto da argumentos descobertos, a elocutio, que esclarece de que maneira a lingua-
retórica em função dos três tipos de oratória, a saber, deliberativa, judicial e gem deve ajustar-se à matéria correspondente, a memoria, que especifica
demonstrativa, enfatizando assim as peculiaridades e virtudes do orador, a como reter e evocar a matéria e as palavras na mente, e a pronuntiatio, que

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estabelece quais são os modos mais adequados de expressar tanto a maté- BURSILL-HALL, G. L. Speculative Grammars of the Middle Ages: The Doctrine of the
ria, quanto as palavras (CÍCERO, De inventione, I, cap. 1-7). partes orationis of the Modistae. Mouton: The Hague, 1971.
Com início do século XII, o ensino da retórica atinge seu ápice, devido CÍCERO. De inventione, De optimo genere oratorum, Topica. Cambridge, Mass: Loeb
em grande parte à tendência ainda mais vigorosa de concebê-la como uma Classical Library, 1954.
parte da lógica e ao consequente aproveitamento de tal disciplina como DALES, R. The scientific achievement of the Middle Ages. Pennsylvania: University of
uma ferramenta interpretativa de doutrinas teológicas. Nesse contexto, a Pennsylvania Press, 1973.
Rhetorica ad Herennium – uma obra equivocadamente atribuída a Cícero – DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998.
passa a exercer o papel de destaque que outrora fora desempenhado pelo EBBESEN, S. The Paris Arts Faculty: Siger of Brabant, Boethius of Dacia and
De ­inventione, sendo inclusive denominada de Rhetorica nova pelos erudi- Radulphus Brito. In: MARENBON, J. (Ed.) Medieval Philosophy. London: Routledge,
tos medievais. Em particular, sua detalhada discussão sobre a elocutio no 2003, p. 269-290.
influente livro IV contribuiu ao lado do Barbarismus de Donato para a con- HUNTSMAN, J. Grammar. In: WAGNER, D. (Ed.) The Seven Liberal Arts in the Middle
solidação da doutrina medieval das figuras de linguagem, além de motivar o Ages. Bloomington: Indiana University Press, 1986.
fortalecimento de uma abordagem estritamente prática que caracterizaria a MCKEON, R. Rhetoric in the Middle Ages. Speculum, 17, 1, 1942, p. 1-32.
retórica até o fim da Idade Média. De fato, nem a recuperação e a tradução de MURPHY, J. Rhetoric in the Middle Ages: A History of Rhetorical Theory from St.
obras importantes no começo do século XIII como a Retórica de Aristóteles, Augustine to the Renaissance. Berkeley: University of California Press, 1974.
a Rhetorica ad Alexandrum de Anaxímenes de Lampsaco, o De elocutione PINBORG, J. Speculative Grammar. In: KRETZMANN, N., KENNY, A., PINBORG, J. The
de Demétrio e o comentário de Averróis à Retórica de Aristóteles impedi- Cambridge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge: Cambridge University
ram que os aspectos teóricos da retórica clássica fossem negligenciados em Press, 1982, p. 254-69.
razão do crescente interesse dos mestres da época por doutrinas retóricas que ROBINS, R. H. A Short History of Linguistics. 4. ed, London: Longman, 1997.
pudessem ser diretamente aplicadas em contextos específicos. Tal é o caso, ROSIER, I. La grammaire spéculative des Modistes. Paris: PUF, 1983.
por exemplo, da arte de redigir cartas ou ars dictaminis, que inspirou obras
SPADE, P. Insolubilia. In: KRETZMANN, N., KENNY, A., PINBORG, J. The Cambridge
de enorme prestígio entre os séculos XIII e XIV como a Summa dictaminis de History of Later Medieval Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1982,
Tomás de Cápua e a Practica sive usus dictaminis de Lourenço de Aquileia, e p. 246-253.
da arte de elaborar sermões ou ars praedicandi, cujas obras mais representati- _____. Late Medieval Logic. In: MARENBON, J. Medieval Philosophy. New York:
vas são a De arte praedicatoria de Alan de Lille, a Summa de arte praedicandi Routledge, 2003, p. 402-425.
de Tomás de Chabham e a Forma praedicandi de Roberto de Basevorn. STUMP, E. Dialectic. In: WAGNER, D. (Ed.) The Seven Liberal Arts in the Middle Ages.
Bloomington: Indiana University Press, 1986, p. 125-146.
referências bibliográficas
AGOSTINHO. Opera omnia. In: MIGNE, J. P. (Ed.) Patrologiae cursus completus series
latina. Paris: 1844-64, v. 32-47.
ASHWORTH, J. Language and Logic. In: MCGRADE, A. (Ed.) The Cambridge
Companion to Medieval Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2006,
p. 73-96.
BOÉCIO. De topicis differentiis. In: MIGNE, J. P. (Ed.) Patrologiae cursus completus
series latina. Paris: 1844-64, v. 64.

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