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MARCOS DANIEL DA SILVA

PSICOSE E FOLIE A DEUX: UMA TRAJETÓRIA


PSICANALÍTICA À LUZ DA TEORIA LACANIANA

SÃO PAULO

2011
MARCOS DANIEL DA SILVA

PSICOSE E FOLIE A DEUX: UMA TRAJETÓRIA


PSICANALÍTICA À LUZ DA TEORIA LACANIANA

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade Camilo
Castelo Branco UNICASTELO,
Faculdade de Psicologia, como parte
dos requisitos para conclusão de curso
de Formação de Psicólogos em
Psicologia. Orientador(a): Profª. Drª.
Maria Madalena de Freitas Lopes.

SÃO PAULO

2011
MARCOS DANIEL DA SILVA

PSICOSE E FOLIE A DEUX: UMA TRAJETÓRIA


PSICANALÍTICA À LUZ DA TEORIA LACANIANA

Aprovado em _____/_____/_____

Banca Examinadora

_________________________________________________

Orientador(a): Profª. Drª. Maria Madalena de Freitas Lopes

_________________________________________________

Examinador(a): Maria Lúcia Bulgari

_________________________________________________

Examinador: Sidnei Celso Corocine

SÃO PAULO

2011
“Mas a mente talvez não me atenda
Se eu quiser novamente retornar
Para o mundo de leis me obrigar
A lutar pelo erro do engano
Eu prefiro um galope soberano
À loucura do mundo me entregar”

Zé Ramalho – “Canção Agalopada”

“Andarão dois juntos, se não estiverem


de acordo?”

Amós 3:3
AGRADECIMENTOS

Não tem como não agradecer a Deus primeiramente pela realização deste trabalho,

por me capacitar para realizar tal empreendimento e possibilitar que meu caminho

fosse trilhado com sabedoria, paciência, repleto de transformações e encontros

gratificantes.

À minha mãe, Vera Aparecida, por ter me ensinado o correto a se fazer nas

situações mais complicadas. Por ter me incentivado e cobrado incessantemente o

término deste trabalho que vocês lerão. A isto, fica minha imensa gratidão, no que

fez algo difícil se tornar uma breve explanação sobre um assunto que interessa duas

pessoas em uma conversa amena.

À minha orientadora, Maria Madalena de Freitas Lopes, pois com ela aprendi o

melhor da psicanálise e fui picado com a vontade de conhecer mais sobre os

mistérios a serem desvelados. Neste caminho, aprendi que o silêncio produz uma

resposta, porque é nele que o sujeito tem o espaço para existir e se construir, é com

isto que busco encontrar o novo, o não descoberto, questionar onde me sinto

questionado.

Enfim, dedico também a todos aqueles que estiveram presentes comigo nesta

jornada, ao professor Sidnei e professora Maria Lucia, que aceitaram prontamente

estar comigo nesta empreitada, avaliando com esmero e profissionalismo este

trabalho. Cinco anos de caminhada, com suas dificuldades, mas, sobretudo com

muitas realizações e conquistas.

Marcos Daniel da Silva


ÍNDICE

RESUMO...................................................................................................................07

1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................08

2. CAP. I - FORACLUSÃO.....................................................................................11

2.1 Produções do Recalcamento versus Produções Foraclusivas....................13

2.2 Conceito de Foraclusão para J.D Nasio......................................................16

2.3 Significante do Nome-do-Pai........................................................................18

2.4 Contribuições da teoria edípica...................................................................19

2.5 Imaginário e Simbólico, a partir dos fantasmas do infants.......................22

2.6
Aforismo.........................................................................................................25

3. CAP. II - PSICOSE...............................................................................................28

3.1 Daniel Paul Schreber – Relato de um doente dos nervos..........................30

3.2 Delírio.............................................................................................................34

3.3 Constituição da Fala: Significado e Significante........................................35

3.4 Incomunicabilidade entre Neurose e Psicose..............................................42

3.5 Paranoia e esquizofrenia: Distinções...........................................................44

3.5.1 Paranoia e suas formas de delírio.......................................................44

3.5.2 Esquizofrenia por falta de delírio.......................................................48

4. CAP. III - FOLIE A DEUX..................................................................................51

4.1 As irmãs Papin – A loucura a dois..............................................................52


4.2 Motivações Criminosas.................................................................................57
4.3 Considerações finais sobre irmãs Papin.....................................................59

4.4 Condições para o folie a deux.......................................................................61

5. OBJETIVOS..........................................................................................................65

5.1 Objetivo Geral...............................................................................................65

5.2 Objetivo Específico.......................................................................................65

6. MÉTODO..............................................................................................................66

7. DISCUSSÃO..........................................................................................................67

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................75

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................77
SILVA, M.D. Psicose e Folie a Deux: Uma Trajetória Psicanalítica à luz da Teoria
Lacaniana; Trabalho de Conclusão de Curso - UNICASTELO, 2011.

RESUMO

Este estudo surgiu de uma proposta em tentar compreender o nascimento da psicose


e seus mecanismos de desencadeamento. Para tal, foi concebido pensar tais aspectos
a partir da teoria psicanalítica, em particular os conceitos lacanianos sobre foraclusão
do Nome-do-Pai e a teoria dos significantes. Pensando numa evolução psíquica e
estrutural, deve-se conceber a criança como um ser em formação subjetiva, que
precisa ser inserido na ordem simbólica para existir como sujeito; é com isto que as
crianças enfrentam as provações primeiras para vencer estas adversidades. A tais
provas, podemos denominá-las como pré-edípicas e edípicas, que em seu
desenvolvimento geram uma castração e uma superação do trauma. Caso algo ocorra
nesta ordem, o sujeito pode não responder ao significante estruturador e não
consolidar uma estrutura neurótica, da ordem do recalque. O sujeito psicótico está
fora do discurso, o trauma foracluido não pode aparecer no simbólico, por
conseguinte, acaba aparecendo no real sem nenhuma capacidade para se interpretar o
que surge, gerando alucinações e delírios. Isto foi o que ocorreu com Schreber, em
uma situação estressora o mesmo, acaba por construir delírios e construir todo um
sistema imaginário para reportar a construção da foraclusão. No caso das irmãs
Papin, um caso de folie a deux, que ocorre quando um sujeito psicótico, geralmente
do tipo paranóico, acaba por influenciar um indivíduo com laços sociais próximos
como familiares e cônjuge a crer em seu delírio, este segundo membro da relação é
um neurótico com condições mais passivas, de baixo intelecto que se deixa dominar
pela crença delirante. O trabalho teve esta premissa de entender a psicose como
formação e uma das possibilidades de ocorrência que ela pode assumir, o folie a
deux, que, apesar de raro em sua condição pura, pode estar presente em muitas
famílias com estrutura paranoica, e seus membros responderem a tal dinâmica.

Palavras - chave: psicose, folie a deux, foraclusão, significante do Nome-do-Pai,


Schreber, irmãs Papin.
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1. INTRODUÇÃO

Entender a origem e o funcionamento da psicose nos indivíduos foi o que motivou

este trabalho. A muito que o ideário popular perscrutina variadas possibilidades para

explicar a loucura, sendo a maioria do senso comum, pincelando várias faces num

conglomerado confuso e tão fora do sentido quanto o próprio louco que, aliás, possui

uma lógica delirante mais convicta que o neurótico.

A psicose para a psicanálise consiste rudimentarmente na alienação do sujeito, ou

seja, o mesmo não é capaz de produzir laços sociais com o outro por estar fora do

pacto com a realidade que exige de cada um de nós um preço a ser pago. Esta dívida

vem de uma herança impossível de se desvencilhar denominada Édipo, pois é nesta

provação traumática que o sujeito se constitui como tal e começa a adquirir um

arcabouço psíquico para enfrentar as vicissitudes da vida, tanto que para aqueles que

suplantam tal provação ganham como recompensa o superego, um elemento

fundamental, mas de papel dúbio, exercendo coerção em muitos momentos.

Para trilhar o caminho da psicose a partir de uma perspectiva psicanalítica, este

trabalho é dividido em três capítulos. O primeiro capítulo pretende reunir o material

referente ao mecanismo de defesa da psicose, a foraclusão.

A foraclusão é um termo proposto por Lacan para “nomear uma grave falha

psíquica na resposta do eu ao impacto violento de um trauma infantil” (Nasio, 1987

p. 10). O mecanismo funciona gerando uma defesa para impedir que o sujeito se

lembre de um fato penoso, de não sentir a violência do choque traumático, porém

foracluir um trauma é diferente de recalcá-lo, mecanismo do neurótico. Na


10

foraclusão o trauma é abolido do psiquismo, causando uma anestesia das sensações,

mas anunciando possíveis sintomas psicóticos posteriormente, pois, tal como Lacan

postulou, existe uma tendência em tudo aquilo que foi abolido do simbólico regressar

no real, na forma corporal, nas sensações, presentificações, no caso as alucinações e

vozes seriam um possível retorno destes elementos foracluídos em algum momento,

cabendo maiores explicações posteriormente sobre a importância do processo para a

psicose.

No segundo capítulo, é abordado o caso Schreber e seus correlatos teóricos. Este

caso é o mais famoso caso de psicose na literatura, sua análise proveu embasamento

para a teoria psicanalítica, estando em voga até hoje seus conceitos. Lacan (1956-57)

analisa o caso, incluindo novos elementos para estudá-lo, e é a partir das descobertas

de Freud, juntamente com a revisão de Lacan que revemos o que é postulado sobre a

psicose.

Lacan constrói um sistema para se pensar o psiquismo e o inconsciente como se

este fosse estruturado por linguagem. Logo é a constituição da mesma, juntamente

com as atribuições valorativas que Lacan postula de que somos formados numa

relação com o outro a partir de uma relação de significantes, no que um sujeito é um

significante para outro significante, respondendo a uma rede que evoca a linguagem

como mediadora das relações.

No terceiro capítulo é abordado a psicose em uma de suas classificações. O folie a

deux, descrito no caso das irmãs Papin, constitui uma nova forma de psicopatologia

envolvendo geralmente um psicótico paranoico influenciando um neurótico mais

passivo, geralmente possui laços sanguíneos com o psicótico ou conviveu por muitos

anos com o mesmo.


11

O aprofundamento do quadro será feito a partir da apresentação do caso. Ocorrido

na França em 1933, mobilizou a população pela barbárie cometida pelas irmãs, num

crime de assassinato contra as patroas de uma família burguesa, no caso, mãe e filha.

O caso apresenta elementos próximos aos apresentados por Schreber, podendo

correlacionar o que se destaca como os traços homossexuais, presença de delírios

religiosos e de perseguição, presença de um Outro absoluto como estruturador do

delírio e muitos outros aspectos.

Acreditamos que a correlação, mais a conjunção da teoria freudiana com os

conceitos lacanianos, são capazes de abarcar os principais móbeis suscitados nos

casos e, por conseguinte, definir ao final desta trajetória, o significado das psicoses.
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2. CAPÍTULO I

FORACLUSÃO

A loucura antes de ser considerada uma problemática individual, situava-se no

campo social. Foucault (1997), remontando a história da loucura, relata que a

segregação sempre ocorreu, porém em formas diferentes; se primeiramente os

leprosos eram internados, em meados do século XV a lepra desaparece, no fim da

idade média. Com isto, aparece um vazio no espaço de confinamento. A Europa

renascentista da época segregava os loucos, transportando-os em naus, retirando-os

assim das cidades e criando um imaginário de que teriam melhores oportunidades em

outros locais, enquanto que a meta de limpeza social, segurança dos cidadãos e a

retirada de circulação deles era incutida em toda a população.

Uma pólis não consegue lidar com aquilo que para eles parece incompreensível. O

desejo de se livrar dos loucos a partir do século XV, assombrou o imaginário do

homem ocidental ao mesmo tempo que exercia fascínio sobre ele.

O renascentismo gerou algo que permaneceu até o século XX e contribuiu em

parte para uma douta ignorância sobre a temática, trata-se de visualizar a loucura a

partir de uma experiência cósmica, uma viagem que tem que estar no concreto (nau

dos loucos), como uma forma de isolar os componentes que fogem de uma

compreensão empírica. Gera também uma experiência crítica (ligação que o homem

mantém consigo mesmo), dotada de uma dimensão filosófica e que confronta o

homem com sua essência. No século XVI, a consciência crítica domina a visão

cósmica, que persiste nos modelos religiosos, o que não anulou o misticismo.
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Para Foucault (1997), foi a partir do classicismo que a loucura foi entendida em

relação à razão, pois para o pensamento da época uma complementava a outra,

tomando como pressuposto de que a loucura só pode ser entendida como contraparte

da razão. É a partir deste contexto, que a segregação dos loucos praticada no século

XV, cheio de ideais imaginários, fantasmáticos, vem dar lugar a um internamento

compulsório no século XVII.

Foucault (1997) afirma que o classicismo inventou o internamento, e que tal não

responde a finalidades médicas, senão semijurídicas, como forma de acabar com a

miséria, desemprego, ócio, ou seja, uma cidade onde a obrigação moral se uniria à lei

civil nas formas autoritárias da coação.

Assim como na idade média com os leprosos, os loucos ocuparam estes espaços de

confinamento no classicismo, que como dito, possui implicações políticas, sociais,

religiosas, econômicas e morais. Estes são temas que permaneceram até os

intelectuais e interessados sobre a temática se proporem a desmistificar os conteúdos

da loucura e suas formas, no que chegamos à Freud e sua compreensão de histeria

como oposta a loucura, respondendo a neurose e sendo o sintoma de um trauma

inconsciente.

É a partir de Freud, Lacan e outros autores que se propuseram a entender tais

mecanismos que nos orientamos para entender o que é loucura, a se dizer psicose

como oposição a neurose e como tal com características próprias, tanto na sua

origem, como na forma que ela se articulará ou não com o social, a ser explicitado

posteriormente.
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Antes de falar de psicose propriamente, considero necessário apreender alguns

aspectos sobre a produção psíquica dos indivíduos. Tema central das produções

psicóticas, pouco mencionada, mas de suma importância para distinguir os

fenômenos oriundos do recalcamento, a foraclusão vem para contrapor este aspecto

tão singular da psicanálise e desvelar o cerne da psicose e seus mecanismos de

atuação.

Segundo Nasio (1987), Freud cunha três mecanismos de defesa do eu para que um

indivíduo não se lembre de uma experiência sexual traumática, pois são

representações insuportáveis decorrentes da cena primária, a se dizer: conversão

histérica, transposição obsessiva e rejeição psicótica. As duas primeiras têm a

missão de fazer com que esta representação insuportável, torne-se aceitável,

tornando-a assim banal. Como este afeto insuportável não pode coabitar no eu, na

histeria ele se apresentará transmutado no corpo, na obsessão para uma representação

consciente, ou seja, uma ideia fixa que tampona o trauma e faz com que o eu

subsista. Falar destas duas condições é por excelência falar do desenvolvimento

estrutural neurótico mais ou menos sadio invariavelmente, contudo, quando

deparamo-nos com a terceira forma de defesa do eu, a rejeição psicótica, falamos de

outra operação realizada para dar conta das representações do inconsciente, sendo a

mais brutal de todas elas. É sobre esta, que dedicaremos este capítulo e suas nuances.

2.1 Produções do Recalcamento versus Produções Foraclusivas

Freud em (1926) repensa o termo recalque como mecanismo de defesa, “mas

afirmando que ele deve designar de forma geral todas as técnicas de que o ego se
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serve nos seus conflitos, que podem levar eventualmente à neurose” (Freud [1926],

Vol. XX; 1977 p. 163). Para Freud, os mecanismos de defesa são operações em que

as defesas em questão auxiliam o eu a elaborar os conflitos. Terminologia utilizada

por Freud desde o inicio, que destaca que tais defesas se encontram nos fenômenos

histéricos e como traçaremos, também possui preponderância nas instâncias

psicóticas com o verwerfung ou foraclusão. (Laplanche e Pontalis, 2001 p. 277).

Os conteúdos recalcados escapam do domínio do sujeito, possuem leis próprias,

mas é uma operação dinâmica porque busca conciliar a força do desejo inconsciente

que tenta retornar a consciência através do retorno do recalcado sob a forma de

sintomas, sonhos, atos falhos, chistes, etc.

O recalque não incide sobre a pulsão, pois esta é correlacionada com funções

orgânicas, ou seja, a pulsão seria:

Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de
motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma
pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão). O seu objetivo
ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou
graças a ele que a pulsão pode atingir sua meta. (Laplanche e Pontalis, 2001 p. 394).

A pulsão também não incide sobre os afetos. Somente os representantes/

representação (ideias, imagens, etc.) da pulsão são recalcados, que se ligam ao

recalque primário como uma forma de complementação deste.

Nas respostas aos traumas infantis, o recalque faz a mágica do esquecimento, não

sem o seu preço imputado ao eu, que significa que o eu usa defesas contra. Esta

forma de esquecimento é uma espécie de superação das castrações que as crianças

têm de enfrentar para conseguir operar realizações simbólicas e habitar sem grandes

intercorrências no plano social.


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Nesta superação traumática que imputa uma provação a esta criança, pode ocorrer

a rejeição psicótica falada por Freud e melhor definida pelo termo foraclusão. Esta

denominação proposta por Lacan, oriunda do vocabulário jurídico serve para

“denominar uma falha psíquica na origem dos estados psicóticos” sendo esta falha “a

incapacidade que o indivíduo tem de reconhecer o que percebe... percebe o

acontecimento, mas não o identifica, não o reencontra em sua memória e é incapaz

de lhe dar um nome” (Nasio 1987, p. 82).

Para Nasio (1987), o futuro psicótico opõe ao choque traumático uma rejeição

categórica e definitiva, o que o impede de sentir a dor. Quanto a este efeito

foraclusivo, afirma:

Penso naquele jovem, atualmente psicótico, que sendo uma criança sadia e muito
apegada ao pai, recebeu a noticia da morte acidental deste com total indiferença. Ele
ficou brincando e rindo no meio da família enlutada como se nada estivesse
acontecido (Nasio 1987, p. 83).

O autor nomeia isto de “anestesia das sensações”, que também pode se estender a

consciência, perceber algo sem saber que percebeu, este é o paradoxo do foracluído.

Devemos entender este processo como uma forma de recusa, porém esta recusa se dá

num patamar diferente de outras defesas do psiquismo, pois está expulsando a

representação dolorosa do simbólico sem que algo venha substituir como é o caso de

outras defesas.

De acordo com o autor, o nível de violência ao psiquismo é grande, e neste

primeiro momento pode-se reconhecer na foraclusão seu aspecto insidioso e

determinante da psicose futura como no papel de incubadora dela até que os

primeiros sintomas psicóticos advenham. (Nasio, 1987).


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Quando uma criança foraclui um trauma ela produz um buraco, “onde algo existia,

não mais está”, isto produz uma perturbação no sistema psíquico e anuncia a

ocorrência de um estado psicótico. Os sintomas psicóticos que daí advém como o

delírio, alucinação, despersonalização, passagem ao ato, serão puras tentativas de

fazer o tamponamento deste buraco aberto pela foraclusão.

Em suma, estamos falando que “uma defesa contra o mal é mais nociva que o mal

que ela pretende combater” (Nasio, 1987 p. 11), na impossibilidade de um

enfrentamento claro ante as vicissitudes impostas pela castração, escotomiza-se o

trauma que aparecerá no real.

2.2 Conceito de Foraclusão para J.D Nasio

Entendendo que existem dois processos constituintes estruturalmente falando, os

produzidos por “recalcamento” e por “foraclusão”, não podemos descartar que

embora sejam processos distintos, ambos podem coabitar em um mesmo sujeito

segundo Nasio. Este autor, criador de uma teoria sobre “foraclusão”, diz que pode

haver uma “foraclusão local”, esta sua postulação a respeito deste termo advém de

sua visão de sujeito e nos levanta alguns questionamentos sobre como podemos

proceder e entender pessoas que aparentemente normal em vários aspectos de sua

vida possa enlouquecer em apenas um deles, sendo este o promotor do surto, do

desvincular com a realidade, pois “todo indivíduo é uma pluralidade de pessoas

psíquicas, ou seja, há uma multiplicidade de estados subjetivos, sadios e doentes

coexistindo nele. Acreditamos que somos um, quando, na verdade, somos vários”

(Nasio 1987, p. 08).


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A partir disto, este autor cunha o termo “foraclusão local” para nos definir como

“sujeitos folhados”, significando que somos superpostos por fantasias e desejos e

nada nos garante que uma dessas folhas possa ser tóxica ao eu, sem que, no entanto,

nos recorramos a ela sempre; somente em alguns episódios ela pode atuar e produzir

um efeito patogênico no indivíduo podendo ser momentâneo ou duradouro.

Concebendo esta visão de sujeito podemos entender porque psicóticos e

esquizofrênicos graves possuem aspectos saudáveis em sua vida.

Na psicose, o indivíduo se aliena em sua fantasia tóxica, que embora possa

desencadear um surto na tenra infância, geralmente a psicose aparece na

adolescência como decorrência de uma estruturação psíquica claudicante

corroborada pelo período de latência em que questões edípicas tendem a adormecer.

A incapacidade que o adulto tem de reconhecer o trauma e utilizar mecanismos

para amortecê-la é o mesmo que afirmar que “a origem da psicose não é o trauma em

si, é a reação ruim do eu contra o trauma” (Nasio 1987, p. 09).

Este mesmo autor defende o ponto de vista de Freud que qualificou a psicose de

“psicose de defesa”, porque a causa da psicose é a defesa, no caso excessiva ao

extremo, que rejeita o trauma, desaparecendo com ele do simbólico.

Podemos incluir a foraclusão como sendo a defesa ruim da psicose causando a

cegueira psíquica diante de um trauma, defesa esta que atuará no real em alguma

fantasia do indivíduo. “Logo, o que é estar louco? É ter a certeza visceral, irracional

da verdade do que se pensa e do que se faz” (Nasio 1987, p. 85), mas também pode

ser não ouvir mais nada além do que se quer ouvir, do que sobrou fora do trauma e

das anestesias.
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Lacan, em Escritos (1998), ao falar do conceito de foraclusão, diz ser este um

processo de não vir à luz do simbólico uma afirmação primordial, isto pode ser

escrito na forma de um de seus aforismos mais famosos: na foraclusão “o que é

rejeitado do simbólico, reaparece no real” (Lacan, 1998 Pg. 390).

Nesse aspecto podemos dizer que a foraclusão seria uma ausência da inscrição

simbólica, um “acidente de percurso” que ocasiona uma impotência de existir

simbolicamente.

Os parágrafos acima são de difícil compreensão, pois unem aspectos cruciais da

teoria psicanalítica, em particular conceitos lacanianos. Os parágrafos a seguir tem a

missão de clarificar estes conceitos e introduzir novos para uma melhor

compreensão.

2.3 Significante do Nome-do-Pai

A teoria freudiana prezou por construir uma visão dinâmica de sujeito, ou seja, a

partir dos aspectos constituintes, das instâncias formadoras, a se dizer, recalque,

nascimento do inconsciente a partir deste e, por conseguinte um sistema imaginário e

de desejos em atividade neste âmbito, podemos dizer que as provações da castração

sendo a principal a edípica, têm o papel de forjar um sujeito através do caos, pois é

nessa desordem entre o trauma e a sua superação que nasce a dor. A sublimação aí

envolvida chamamos de aquisição simbólica a partir do conflito vivido, deste modo,

um ser inserido nessa ordem é um ser que passou pela provação do desejo,

interiorizou a lei porque suplantou a castração, processo feito através das

identificações.
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Existe um significante que dá consistência a esta rede simbólica da criança, que é

o “significante do nome-do-pai”. Este significante possibilita a aquisição simbólica

ao indivíduo, ou seja, uma noção de sentido a uma ação feita, sendo a figura paterna

a maior responsável por esta transposição. No caso de uma criança foracluída, ela

simplesmente aboliu este significante do nome-do-pai.

Para a criança, o nome-do-pai não é um ser, mas uma função, que tem a missão de

promover uma substituição denominada “metáfora paterna”. Como consideramos

que o indivíduo está inserido numa rede simbólica, algo sempre aparece para

significar uma fala, então algo ou outro significante sempre vem preencher o

discurso incluindo outro significante que dê conta do nome-do-pai, promovendo a

metáfora paterna, fazendo assim com que o indivíduo sempre esteja na cadeia

simbólica, em plena coesão, portanto, não se pode enganar pensando que o nome-do-

pai é algo fixo e imutável, ele é e sempre será a cadeia simbólica a se mostrar a partir

da articulação do discurso. Neste aspecto, a foraclusão do nome-do-pai significa que

nada virá ocupar o lugar do significante da metáfora, e nessa incapacidade percebe-se

a inconsistência de sua trama, do vazio que responde a ação foraclusiva. “A

foraclusão é uma não resposta ao chamado do outro” (Nasio 1987, p. 102).

2.4 Contribuições da teoria edípica

Em alguns momentos, foram lançadas alusões ao complexo edípico nestas

postulações e cabe aqui uma rememoração sobre seus principais aspectos e influência

neste modelo de pensamento a respeito da falência simbólica e do cerne psicótico.

O mito, à medida que é cultural, é estrutural, o que pertence a todos define esse

todo, conforme os esclarecimentos do conceito lacaniano de que “o inconsciente é


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estruturado como linguagem”. Nestes termos, a importância do mito torna-se sua

forma de replicação, em que os interlocutores são os pais. Freud diz que os mitos são

produzidos pela repetição dos sonhos típicos, pois antes de serem mitos eram sonhos,

e como sonhos também dramatizações, envolvendo todos na comunicação. Estes

sonhos em comum, repetitivos, se transformam em mitos, portanto indissolúveis.

Para Lévi-Strauss (1978) os mitos têm a função de “explicar uma aparentemente

insolúvel contradição”, mostrando que existe uma estrutura latente do mito onde o

conteúdo manifesto é a própria condição imaginária dos fantasmas encontrada nas

indagações infantis.

Existem alguns “momentos” que se apresentam no Édipo na teoria de Freud, o

primeiro consolidador, foi associá-lo com a sexualidade, dando a esta criança um

ímpeto sexual e tornando-a desejante, que traz a problemática da histeria pelo trauma

a partir das fantasias, em um segundo momento o indivíduo não precisa

necessariamente sofrer um trauma real, porque as fantasias já foram traumáticas para

ela. O terceiro momento, podendo ser comparado com a solução edípica, que é a

“criança ser como o pai para ter a mãe, ou ser como a mãe para ficar com o pai”, um

complexo de Édipo ativo e passivo, a partir do qual gerará o superego, um herdeiro

do complexo de Édipo.

Freud, em seu texto “Organização genital infantil da libido” constata que para

todas as crianças, existe um só sexo, o masculino, “o sujeito não admite senão um só

órgão genital, o masculino, para ambos os sexos” é a isso que Freud irá chamar de

falo (Freud, S. (1923), S.E., Vol. XIX, 1972 p.23).


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O primeiro momento do Édipo também diz respeito à díade mãe-bebê, uma

relação de absoluta dependência. O pai fecundador não tem espaço algum aqui,

existe uma onipotência em ação completamente exclusiva ante a sua figura. O pai

não precisa ter nenhuma relação direta com a gênese do bebê, porque o pai opera no

simbólico; neste aspecto, somente a mãe pode mostrar para a criança a importância

desta figura, nomeando-o como seu objeto de desejo.

Sem este reconhecimento da mãe, do demonstrável, o pai não pode penetrar na

díade e promulgar o interdito produzindo o sentido. Somos permeados pelo

simbólico, pois é ele que faz a criança dar conta das rivalidades imaginárias que no

texto “Totem e Tabu” (1913) é a exemplificação do filho matando o pai para ocupar

seu lugar.

Nessa ocasião, o nome-do-pai é aquele que a mãe faz referência em seu discurso,

tornando-a castrada, pois ela se mostrou incompleta, necessitando do outro. Podemos

também encontrar o nome-do-pai nos mitos infantis como o “bicho-papão”, o “lobo”

de chapeuzinho vermelho, “saci”, dentre outros.

Finalizando, o nome-do-pai é o representante da lei que atua na subjetividade da

criança, inscrevendo-o como significante, um articulador da função fálica com o

complexo de castração, mostra as limitações da mãe e eleva o nome-do-pai como

algo que barra o outro absoluto e instaura a castração e um significante da falta do

outro.

O que nos importa deste traçado edípico para complementar as colocações sobre a

foraclusão é justamente essa noção de simbólico recém vista, pois o simbólico não é

inato, mas transmitido e se a mãe ao reconhecer no outro, parceiro ou não, a


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dedicação de seus desejos, se mostrará ao filho como castrada, mas direcionando-o a

aquele que pode instaurar o simbólico e lhe fundar um superego. As consequências

desta falha transmissora será a incapacidade da simbolização nesta criança e, por

conseguinte, uma falta de laço com o social por não advir um significante que dê

conta das relações com o outro, estando este indivíduo preso nas fantasias

imaginárias e a deriva delas.

2.5 Imaginário e Simbólico, a partir dos fantasmas do infants

Entendamos melhor esta rede e suas consequências a partir do seu ponto de

origem, o sistema imaginário, vide gráfico abaixo:

Imaginário Simbólico

Fantasma Sujeito Enigma Referente


Cena original Pai-Mãe Origem das crianças Identificação

Sedução por um adulto Mãe Origem da sexualidade Libido

Castração Pai Origem da diferença sexual Superego/Ideal

Grafo copiado de CABAS, Antônio Godino. Curso e discurso da obra de Jacques Lacan, 1982 Pg. 41.

Segundo Freud (1913), as fantasias são universais, para isto, ele leva em

consideração suas descobertas da cena primária ou cena original na horda primeva,

descritas em “Totem e Tabu”.

A cena original diz respeito à realização do coito entre (papai e mamãe) que

exclui a criança e pode ser visto como um ato de agressão/submissão por parte dela

que basicamente explicaria muitos sistemas perversos em adultos, porém temos que
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considerar a pergunta que advém desta visualização que é puramente imagética, é a

indagação da origem, pois o coito é excludente à medida que quem participa dele é

somente o pai e a mãe. A criança sabe que ambos têm um papel preponderante sobre

sua concepção, o papel do pai é mais misterioso para ele, mas ainda sim tem que

conceber que ele tem alguma participação em sua origem, começa daí um jogo de

identificações que envolvem ora a mãe, ora o pai, como forma de satisfação mais

agradável para exercitar a libido, então “uma identificação sempre tem a ver com a

libido (desde que toda identificação é o resultado das catexias passadas e

acumuladas)” (CABAS, 1982 pg. 43). A partir disto, entendemos que uma libido sem

um modelo para se efetivar é inconcebível, por isto ela se cola aos modelos homo ou

heterossexual de identificação e volta seu quantum de afeto para elas.

O primeiro objeto elencado pela criança no Édipo é a mãe, e neste aspecto tanto o

menino como a menina sofrem a mesma sedução, é no curso do Édipo que a criança

se vê obrigada a deslocar seus afetos para o pai. O jogo neste primeiro momento

edípico é uma fantasia de sedução que envolve um aprisionamento numa libido

cedida pela mãe através dos cuidados maternos, este móbil de desejo faz com que

nasça o impulso à sexualização, a ter novamente os prazeres obtidos outrora.

A castração edípica advém da diferença sexual anatômica, “se há diferença dos

sexos é porque papai interveio amputando o pênis a certos indivíduos que são as

mulheres” (CABAS, 1982 pg. 40), logo é reconhecido o papel do pai que interdita e

que impõem na mente desta criança fantasisticamente escolhas para sua subsistência,

é a morte ou a identificação, mas que premia com o superego.

Para Cabas, “É uma carência simbólica a que promove o desejo. Na realidade, o

desejo é sempre de algo que esteve e já não está” (1982 pg. 48), pensando por este
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viés entende-se que o fantasma na constituição da criança tem as premissas de

produzir história através das fantasias. Esta seria a primeira tentativa de se ver na

condição de homem, e quando ele realiza este movimento, estes fantasmas se

subjetivam. Em suma: o fantasma é ilusório, logo “imaginário”, e por se representar

através do universal acaba construindo o “simbólico”, estas duas vertentes regem a

formação do inconsciente que é por excelência universal por ser forjado através de

atos míticos.

Colocamos aqui a importância da linguagem, que se mostra na relação do símbolo

com a coisa apresentada, basicamente quando uma criança vê uma cadeira e

nomeiam para ela como sendo uma cadeira, ela apreende o signo a partir do

enunciado do outro e através da introjeção da imagem, ela vê algo que tem a

finalidade de sentar, possui um encosto, quatro pernas, e quando em outro recinto

com uma outra cadeira, a criança tem que renunciar a primeira cadeira para permitir

a inclusão de outros objetos que respondam a ideia do primeiro signo apreendido,

mesmo que tenham formas e dimensões diferentes, demonstrando a capacidade de

abstração.

O código depende da língua, ao mesmo tempo em que esta língua é estruturada por

outros, outro este que tem a função de esclarecer o que não é sabido por outrem, o

regulador social da criança.

Apreendemos com Lacan (1966) que uma palavra tem a dimensão de ser símbolo

e estar estruturada pelo outro, dando a noção de que um sujeito somente se constitui

a partir da relação com o outro e se conseguir transpor o nível empírico deste

contato, da imediatez; caso isto não ocorra, têm se o risco desta criança ficar “fixada”
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no seio, e que “essas falhas na simbolização redundam em fixações a etapas pré-

genitais, etc.” (CABAS, 1982 p. 53).

Pensemos no conceito de fixação freudiano como uma estrada vicinal para a

regressão, a fixação está ligada a teoria da libido e a um retorno a algo prazeroso,

que sem a possibilidade de ser efetivado a partir do outro será satisfeito no plano da

fantasia, e é nesta incapacidade de transcender a experiência traumática edípica que o

indivíduo acaba por não conseguir simbolizá-la, fazendo seu regresso então as etapas

pré-edípicas, com seus modelos de satisfações emergentes.

O fracasso em avançar emperra a consolidação de uma estrutura coesa, que pagará

seu preço em algum âmbito futuro da vida. A estrutura é a exemplificação de um

modelo fechado com o qual o indivíduo enfrentará as vicissitudes da vida. Estando

desarticulado com o simbólico, só podemos imaginar que o imaginário terá muito

mais forças do que tem um indivíduo que se empenha em simbolizar suas relações.

2.6 Aforismo

Após termos discorrido sobre o Significante do nome-do-pai, papel do Édipo na

constituição do sistema Simbólico na criança, podemos retornar ao aforismo

lacaniano “o que é rejeitado do simbólico, reaparece no real” e suas consequências

no sujeito foracluído.

Falar deste aforismo é por excelência falar sobre foraclusão e suas consequências

imputadas ao eu. Rememorando este conceito, Freud (1924) fala novamente sobre a

forma de defesa enérgica e completamente violenta ao psiquismo.


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Nela, o eu rejeita a representação intolerável juntamente com seu afeto e se


comporta como se a representação nunca tivesse chegado a ele [...] O eu se
desprende da representação intolerável, mas está inseparavelmente ligada a um
fragmento da realidade, de modo que, ao realizar essa ação, o eu também se separa,
na totalidade ou em parte, da realidade. (Freud (1924 [1923]). Vol. XIX, 1996 p. 12).

O eu é um conjunto de representações, que inscrevem no indivíduo o desejo

sexual. O eu na foraclusão rejeita a representação porque essa sensação do desejo

neles é extremamente viva, faz com que ele sempre tenha o ímpeto de transgredir o

interdito e de sempre estar exposto ao fantasma da castração; quando ele rejeita de

forma contundente essa representação, rejeita também querer saber sobre sexo e a

punição da castração.

Enquanto a representação faz parte do eu, a realidade do desejo sexual fica

vinculada a ela. Quando ela é foraclusivamente arrancada “o eu se dilacera e perde

um pedaço que, uma vez rejeitado, é uma coisa totalmente diferente de sentido e

representação” (Nasio 1987, p. 90). Como nenhum significante vem dar conta do

conteúdo sexual rejeitado, por consequência o simbólico falha, o eu se torna

fragmentado e a representação rejeitada retorna a este eu, transformada em percepção

alucinada, “o eu alucina o eu”.

Para Nasio o preço da foraclusão é uma lesão local, e seu correlato é a alucinação,

“uma coisa do eu dói, este a arranca sem discriminação, rejeita-a para fora e

finalmente a reencontra transformada em uma sensação corporal onipresente” (Nasio

1987, p. 90).

Freud primeiramente e Lacan a posteriori falam deste conceito centrando-o no

movimento de rejeitar; neste aspecto, rejeição na psicanálise é sinônimo de

foraclusão, somente a foraclusão não consegue dar conta do fenômeno “psicose”, que

é ampla e mal compreendida até mesmo na teoria psicanalítica com muitas


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generalizações, a foraclusão não pode ser tida como um sinônimo da psicose, ela tem

uma importância constituinte maior que apenas um parelhar com a psicose. A

foraclusão tem a meta, segundo Nasio, de dar luz ao cerne dos estados psicóticos e

remeter aos interessados sobre os fenômenos intrapsíquicos que a psicose se mostra

como estrutura; como estado traumático que coloca em jogo forças antagonistas, a

foraclusão local vem para preencher muitas lacunas de concepções sobre a psicose

que ainda podem advir ao indivíduo, mas ainda é uma folha da vida do sujeito e,

neste aspecto, julgar uma fantasia tóxica como psicose é precipitado, um vir à ser, é a

postura do analista investigativo, que tenta a partir da transferência do paciente

verificar como se manifestam estas folhas e como isto está recaindo em seu eu.
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3. CAPÍTULO II

PSICOSE

O que será o início de uma psicose? Uma psicose tem, como uma neurose,
uma pré-história? Haverá, ou não, uma psicose infantil? Eu não digo que
responderemos a essa questão, mas ao menos a colocaremos.
Tudo parece mostrar que a psicose não tem pré-história. Mas acontece
apenas que, quando, em condições especiais que deverão ser precisadas,
alguma coisa aparece no mundo exterior que não foi primitivamente
simbolizado, o sujeito se acha absolutamente desarmado, incapaz de fazer
dar certo a Verneinung com relação ao acontecimento. O que se produz
então tem o caráter de ser absolutamente excluído do compromisso
simbolizante da neurose, e se traduz em outro registro, por uma verdadeira
reação em cadeia ao nível do imaginário, seja na contradiagonal de nosso
quadradinho mágico.
O sujeito, por não poder reestabelecer de maneira alguma o pacto do sujeito
com o outro, por não poder fazer uma mediação simbólica qualquer entre o
que é o novo e ele próprio, entra em outro modo de mediação,
completamente diferente do primeiro, substituindo a mediação simbólica por
um formigamento, por uma proliferação imaginária, nas quais se introduz, de
maneira deformada, e profundamente a-simbólica, o sinal de uma mediação
possível. (LACAN, J. [1955-56] 1985 p. 104).

Lacan, ao escrever o seminário três, um tratado dedicado ao tema “psicose”,


levantou os questionamentos acima e dedico este capítulo a explorar as
consequências da estrutura psicótica e suas atuações no indivíduo; para tal serão
explicitados casos clínicos pertinentes ao assunto de Freud e Lacan, mais
precisamente os casos de “Daniel Paul Schreber” de Freud e “As Irmãs Papin” e
“Aimée” de Jacques Lacan.

O caso máximo de psicose na psicanálise freudiana é o caso de Schreber, caso que

guiou Freud em novas descobertas sobre esta psicopatologia e impulsionou a

construção de uma clínica sobre a psicose e a abertura da possibilidade de dar luz aos

conceitos da sua segunda tópica.

Freud nunca se encontrou com Daniel Paul Schreber e este é um fato curioso, mas

que não retira a importância das descobertas de Freud sobre o funcionamento


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psíquico do sujeito psicótico. Em 1903, Schreber escreve seu livro autobiográfico

Memórias de um doente dos nervos, sobre sua história, seus períodos de internação e

a transcrição de todas as suas alucinações, tendo uma finalidade de reorganização

mental e sua entrada no delírio parcial como diagnosticou Lacan, a ser explicado

posteriormente.

Em 1909, Freud estudou o livro do Schreber e concluiu taxativamente que se

tratava de um psicótico. Em 1911 escreveu oficialmente sobre o caso em Notas

psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia

paranoides), conteúdo localizado no volume XII de sua obra.

As extrações mais importantes desta análise foram: Conseguiu um maior

embasamento da teoria das pulsões, elaborou a teoria do narcisismo que já estava em

construção, afirmando que o eu é tomado como objeto libidinal nestes casos, e

também para construir uma teorização sobre a psicose, fato que, até aquele momento,

não havia uma definição palpável de psicose em sua obra, apenas fragmentos que

deveriam ser reorganizados. Com isto, o corpo teórico psicanalítico ganha um grande

reforço para as bases que conhecemos hoje da paranoia, alucinação, delírio e seus

cernes estruturais.

Neste caso, Freud, ao descrever a formação do delírio através da projeção, diz não

ser certo pensar que o pensamento recalcado no psicótico tenha sido projetado para

fora, e sim o que foi abolido do interior do sujeito volta a aparecer do lado de fora.

Esta afirmação dá a possibilidade da revisão de Lacan através da definição de

foraclusão (Werwerfung), ou seja: o que é foracluído no simbólico retorna no real.

Lacan propõe a foraclusão como o mecanismo específico da psicose, um mecanismo


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assim como o recalque (Verdrändung) é para o neurótico e o desmentido

(Verleugnung) é para o perverso. (Quinet, 2011 p. 06).

Em alguns textos de Freud, encontra-se também uma confusão entre os

mecanismos específicos da psicose e fetichismo, em um momento é reconhecida a

castração da mulher e em outros não, sendo este o processo do desmentido

(Verleugnung). No artigo O fetichismo (1927) esta castração inexiste, e no artigo A

divisão do eu no processo de defesa (1938) Freud faz “equivaler o processo do

fetichista com o processo do psicótico devido à grande perturbação da relação do

fetichista com a realidade” (Quinet, 2011 p. 06).

O que nos interessa deste processo de retorno no real da coisa abolida é que este

fragmento da realidade rejeitada retorna sem parar, e que este retorno faz um

processo distinto do retorno do recalcado. Para Lacan, devemos considerar a

foraclusão do Nome-do-Pai como o mecanismo específico da psicose que sempre

demonstrará a anulação do simbólico, portanto é a partir da ordem simbólica que

deve ser pensada a questão da psicose, e no âmbito clínico, conversar com os

elementos primitivos do Édipo pode ser o caminho para lidar com a dialética deste

indivíduo.

3.1 Daniel Paul Schreber – Relato de um doente dos nervos

Convém conhecermos sucintamente o caso Schreber para poder inferir os

correlatos teóricos sobre sua história e permitir maior aprofundamento nos modelos

paranoicos da psicose:
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Schreber (1842-1911) era de uma família protestante burguesa, seu pai fora

médico e educador, atuante em vários movimentos e servindo de inspiração aos

movimentos social democrata que existem até hoje.

O irmão mais velho de Schreber sofria de psicose evolutiva, suicidou-se aos 38

anos. Sua irmã mais nova, Sidonie, morreu doente mental. Daniel Paul Schreber era

um intelectual, doutor em direito, juiz-presidente da Corte de apelação da Saxônia,

de invejável cultura, de personalidade curiosa e de grande observação e análise.

Foi hospitalizado pela primeira vez aos 42 anos, devido a uma crise de

hipocondria que durou vários meses, sendo tratado pela primeira vez pelo doutor

Flechsig. Nesta crise ele já era casado e após sua recuperação viveu oito anos com

sua mulher, qualificado por ele como “muito felizes”, apenas com desapontamento

de não terem filhos.

Em 1893, foi nomeado presidente da Corte de Apelação, estava com 51 anos neste

momento, e antes de assumir a função, sonhou muitas vezes que estava novamente

enfermo. Foi em uma destas manhãs em estado de semivigília, que ocorreu-lhe a

ideia de que “seria muito bom ser uma mulher submetendo-se ao coito”. Esta ideia

foi rechaçada com extrema indignação segundo ele.

Alguns meses após a nomeação começou a apresentar insônia, sensações de

amolecimento cerebral. Começaram a aparecer ideias de perseguição e morte

iminente, assim como sensibilidade a luz e barulho. Algum tempo depois destes

sintomas, começou ter alucinações visuais e auditivas, que o fez mergulhar num

estado de estupor alucinatório, chegando a desejar a morte em várias ocasiões e


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tentativa de suicídio. Estas ideias delirantes foram se transformando em misticismo,

numa relação direta com Deus e aparições milagrosas. (Nasio, 2000 p).

Schreber nos mostra o movimento contrário a que estamos acostumados sobre a

psicose, pois nos fornece os dados de sua psicose por si mesmo e não por um

observador, pelo lado do delirante. Apesar das contradições de seu relato, notadas

por ele mesmo, não deixava de engendrar aquilo que falava com comentários

pertinentes. Quando o seguimos em seus delírios, vê-se que a temática explorada

passa a ser a “perseguição” e sua potencial “transformação em mulher” (Nasio, 2000

p. 46).

Quando surgem para Schreber questões homossexuais no plano da consciência,

sem conseguir dar conta deste significante que remete a sua sexualidade e a forma

que a resolveu, ele encontra um modo de elaborar esta questão em forma de delírio,

em transformar-se na mulher de Deus. Em Schreber, o Nome-do-Pai foi abolido do

simbólico, mas retorna ao real na forma delirante de procriação, de modo que a partir

de seus nervos uma nova raça de homens poderia ser criada, onde Deus gozaria de

seu corpo para tal finalidade.

Schreber sofre, neste percurso delirante, o que Lacan nomeou como “eviração”,

proposto para nomear a Entmanung que significa desmasculinização. Para Schreber,

isto colocava “Ordem no Mundo”, ou em seu mundo caótico ante as impossibilidades

de se deparar com o sexual. Lacan qualifica estes delírios de Schreber de erotomania

divina, no sentido explicitado por Clérambaut: “O Outro me ama”, sendo este Outro

o próprio Deus. (Quinet, 2011 p. 23).


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A primeira fase do delírio de Schreber, descrita por ele como “tempo sagrado” é

uma morte em vida, segundo Quinet. Seu mundo não possuía consistência, e quando

isto ocorre o sujeito espelha a própria morte, demonstrado no seu estado catatônico

ante estas primeiras manifestações do delírio expostas na ideia de fim do mundo e

em sua nova noção de que as pessoas que o circundavam eram a “imagem de homens

feitos às pressas”.

Schreber não possui mais a capacidade de sustentar sua imagem e é confrontado

com o estádio do espelho e com a ideia de corpo fragmentado, desprovido de

qualquer ligação entre suas partes, todas destrutivas, que o empurravam para a

questão homossexual. Por não poder dar conta da sua sexualidade e dos levantes

homossexuais, em sua eviração, Schreber cria delírios em que passa a culpar o doutor

Flechsig por sua transformação em homossexual, este tomava conta do céu e

subjugava Deus exigindo o coito; neste momento, Flechsig tornara-se o Outro

absoluto para Schreber, porém não supre a carência do Nome-do-Pai e não gera

consistência aos pensamentos de Schreber.

Na segunda fase do delírio ocorre uma revolução nos céus, Deus retoma o poder

no céu e exige a transformação em mulher para gozar do corpo de Schreber, o

objetivo deste ato é a criação de uma nova raça de homens. “A metáfora delirante

Mulher de Deus vem, então, suprir o furo no simbólico correspondente à foraclusão

do Nome-do-Pai, na medida em que ela lhe permite, ainda que assintoticamente,

como observa Freud, vir um dia a procriar”. (Quinet, 2011 p. 25).

A partir desta metáfora delirante de Schreber, o significante foracluído da

procriação retorna no real, e seu delírio se estabiliza. Retomando o segundo

parágrafo deste capítulo, é aqui que a psiquiatria define como entrada em delírio
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parcial, um delírio localizado, como uma foraclusão local em uma das folhas tóxicas

expostas por Nasio (ver o conceito no capítulo I). As relações com seus semelhantes

tornam-se possíveis, voltando a adquirir a consistência perdida no começo do delírio.

Como houve a inclusão de um significante que deu suporte ao reestabelecimento da

ordem simbólica, Schreber conseguiu processar o ocorrido consigo, torna-se seu

próprio advogado, escreve suas memórias, faz um apelo a Corte Suprema e em 1903

sai do hospício depois de oito anos internado.

3.2 Delírio

O delírio tem a função de suprir a foraclusão do Nome-do-Pai. Sendo como “uma

peça que se cola aí onde houve uma falha na relação do sujeito com o mundo da

realidade, mundo que, como se sabe, é para o homem estruturado pelo simbólico”.

(Quinet, 2011 pg. 25). Percebe-se a função do delírio como tentativa de cura, que

surge após o desmoronamento do psiquismo quando ocorre a retirada da libido sobre

os objetos; deste modo: a reconstrução delirante vem para refazer um investimento

libidinal progressivo.

A metáfora delirante é importante no caso Schreber, pois possui a função de

produzir significação, introduzindo uma ordem no significante que se apresenta,

permitindo que o sujeito tenha acesso a uma significação que não passa pela ordem

fálica. Essa é a maneira que o psiquismo encontra para se reorganizar sem as

possibilidades do arcabouço simbólico adquiridos com o Édipo. Diferentemente da

metáfora paterna, a metáfora delirante provoca o efeito de amenizar o gozo, tendo a

finalidade de ser mais localizado e de não barrar completamente o Outro.


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Schreber não podia ser o falo que falta à mãe, portanto, em sua incapacidade de

significar o Édipo, encontrou a solução sendo a mulher que falta aos homens. Sua

força o impulsiona em ser o falo, por isto ele é levado a se transformar em mulher,

pois sua equivalência simbólica é de que ser mulher é igual a ter o falo. “Por não ter

acesso ao significante que lhe permitiria situar-se como homem na repartição dos

sexos e por dever ser falo, o psicótico é levado a situar-se do lado da mulher.”

(Quinet, 2011 p. 27). A isto Lacan denominou como “efeito empuxo-à-mulher”, ele

reproduz o bebê identificado com o falo, com o objeto de desejo da mãe.

Tem-se que levar em consideração para pensar o caso do Schreber assim como as

demais psicoses, que nelas inexiste o Édipo, pois não foi significado pelo Nome-do-

Pai. Existe uma carência do significante paterno, em que nenhum outro significante

consegue preencher a não ser o sistema delirante. Retornando o contexto foraclusivo

para reforçar esta posição, significante é aquilo que torna o infans em sujeito,

podendo simbolizar suas relações e as provações traumáticas do Édipo, juntamente

com a internalização destes elementos, quando isto não ocorre, o que foi abolido no

simbólico retornará no real em forma de delírio porque não tem nenhum significante

regulador da cadeia de discurso do sujeito.

3.3 Constituição da Fala: Significado e Significante

Ferdinand de Saussure (1916) diz que nossa constituição da linguagem quando

criança passa por intermédio dos signos, que são dotados de significado. Estes signos

produzem imagens acústicas para o outro que podemos chamar de significante. Este

é o processo de constituição linguística para Saussure, porém sua utilização na


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psicanálise foi invertida por Lacan, para ele o significante antecede o signo. Este

argumento parte do princípio da existência do inconsciente e de sua capacidade de

registro, logo o sujeito tenta dar cabo de sua história, dos significantes internos se

expressando por signos. Existe o significante maior que chamamos de significante do

Nome-do-Pai, significando o enfrentamento do Édipo, instaurando a lei, fazendo com

que a comunicação do sujeito com o significante seja delimitada como uma barreira

que pode ser identificada como recalque.

Para Lacan, falar é antes de qualquer coisa falar a outros, o que leva a

problemática da estrutura da fala. Para explicar este conceito o autor nos leva a

pensar a fala sob a luz de dois componentes: “fides” e “fingimento”. Fides

(fé/crença) é a própria palavra manifestada, o “você é minha mulher”, esta palavra

funda um lugar, localiza e define a posição dos dois sujeitos. Seu contraponto é o

fingimento, o signo pelo qual se reconhece a relação de sujeito para sujeito ao invés

de uma relação sujeito a objeto, com esta dialética pode existir o fingimento a partir

do qual existe outra faceta sobre a comunicação direcionada ao sujeito. Freud conta a

história da mulher judia que diz: Eu vou a Cracóvia. E o outro responde: Por que

você me diz que vai a Cracóvia? Você me diz isso para me fazer crer que você vai

alhures. “O que o sujeito me diz está sempre numa relação fundamental a um

fingimento possível, aonde ele me remete e onde eu recebo a mensagem sob uma

forma invertida.” (Lacan, 1985 p. 48).

Sobre estes aspectos, tomamos a fala nas suas duas vertentes, ser fundadora de

diálogo e ser mentirosa enquanto tal porque está sempre respondendo ao Outro, a

este Outro Lacan toma a liberdade de explicitá-lo sempre com a letra A maiúscula. É

na comunicação com o outro que comunicamos a incógnita, que a partir de um


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fingimento encontramos o Outro absoluto. Retomando o parágrafo anterior, ao dizer

a alguém “Você é minha mulher, você lhe diz implicitamente Eu sou seu homem,

mas você lhe diz em primeiro lugar Você é minha mulher, isto é, você a institui na

posição de ser reconhecida por você, mediante o que ela poderá reconhecer você”

(Lacan, 1985 pg. 63).

Um jogo é instituído a partir da palavra. O sujeito não diz a verdade, sempre diz

meia-verdade ou simplesmente mente, fazendo com que a verdade que se há dito seja

“não toda”. A esse “não todo” da verdade é o que poderíamos chamar a

impossibilidade de não mentir, “a verdade não pode se dizer toda”. De modo que a

verdade para ser escutada paga o preço de deixar de sê-la. Complementando, o fides

seria aquilo que nos impulsiona a comunicar algo que traz a carga interna e o

fingimento à impossibilidade de transmitir claramente esse enunciado, mascarando-o

sob outras formas, por vezes invertida ante a ordem do desejo para que o outro não

apreenda aquilo que diz respeito ao objeto causa do desejo representado pela letra a

minúscula (a).

Sujeito Fides Fingimento


Sempre comunica algo Manifesta o desejo em Manipula o diálogo de
(desejo). forma de palavras. forma que o desejo não se
encontre no enunciado (ou
de forma invertida).
A quem se direciona a Relação sujeito – objeto Relação sujeito - sujeito
comunicação.
Está com o saber Comunica-o (Semi-dizer) Camufla-o (inverte)

Esta construção da gênese da fala nos importa a medida que nos indagamos se o

psicótico realmente fala algo que deve ser apreendido ou assimilado integralmente.

Quando um indivíduo fala ele responde a algo, o mesmo encontra-se num jogo

simbólico envolto com os signos, suas ações subsequentes poderiam ser recusar,
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renegar, confirmar, refutar o que lhe foi apresentado e tantas outras cabíveis.

Poderíamos pensar esta situação como um sujeito num jogo de cartas, os símbolos

regem os movimentos das próximas cartas, forçando o jogador a se comportar

mediante as regras para obter êxito. Creio que expondo desta forma já se pode ver a

correlação com o significante e sua importância na ordenação do sentido que deve

possuir um discurso, é como se o significante do Nome-do-Pai fosse à carta

mandatária, um coringa que detêm e manipulam todas as jogadas subsequentes. O

que ocorre com o psicótico é de natureza outra, que não pode responder ao apelo do

simbólico e de evocar um significante que dê conta das regras, isto já foi dito outrora,

mas, não se pode perder o foco de que isto estrutura a busca por uma

complementaridade, quase como um apelo para trazer o que se falta.

O apelo de Schreber é justamente este, o de conseguir produzir sentido ante a

falência dos significantes e daquilo que lhe impõe como trauma não resolvido, no

caso, sua sexualidade e a relação com o falo no momento edípico de identificação. A

isto que não pôde vir por algum motivo que é passível de muitas hipóteses, é que se

instala o delírio como única ordem de conseguir construir o Outro absoluto e reparar

o significante foracluído.

Schreber ficou as voltas com seu sistema delirante, cada vez mais com a

necessidade de criar um sistema coeso para conseguir coabitar com seus delírios, e

não lidar com o significante primário que lhe remeteria ao sistema fálico; percebe-se

sempre a tentativa de fazer a simbolização materna que não pôde ser finalizada no

Édipo; quando Schreber elenca o Outro absoluto na figura de poder que pode salvá-

lo ou ser o algoz que lhe gera toda sua problemática, os dois Outro absoluto em seus

delírios foram à figura do doutor Flechsig, que outrora havia ajudado na internação
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devido à crise hipocondríaca e que sempre o auxiliou nas outras internações, mas que

passa da benevolência ao malfeitorismo com a inabilidade de lidar com seu conflito,

a isto, Freud fala que um mecanismo peculiar na psicose, em específico a paranoica é

a capacidade que o indivíduo tem em utilizar o mecanismo da projeção para isolar o

efeito destrutivo nele mesmo. A segunda tentativa de recriar o Outro absoluto é

regressar as características místicas da religião e projetá-la em seu ideal de Deus. Um

Deus que agora tem planos maiores para Schreber, um Deus que quer refazer a

humanidade a partir dele, que embora queira seu corpo, o quer para finalidades

maiores, e não para ser mulher dos homens, enfim, isto faz Schreber aceitar seu fardo

e preferir adotar as características do feminino a sucumbir ante as alucinações e urros

que a resistência trazia para perturbar sua mente. Sua saída foi abraçar a metáfora

delirante, que por mais claudicante que se apresentou forneceu o tripé necessário

para o psiquismo de Schreber e isto faz com que sua produção linguística possa se

equivaler ao socialmente aceito, ou seja, uma nova incursão no mundo dos homens.

O significante na fala delirante sofre uma modificação, quando alguns de seus

elementos se isolam eles ganham um valor, uma força de inércia particular, e

carregam-se de significação, sendo esta que responde pela articulação dos

significantes, tendo à sua disposição o conjunto do material da língua, é como se

conhecêssemos o animal boi e a partir deste pudéssemos deduzir a vaca, novilho,

bezerro e assim sucessivamente com tudo que é passível de estar numa cadeia.

(Lacan, 1985 p. 67).

Com isto, podemos levantar outro questionamento. Qual a realidade do sujeito

na psicose? Ele sempre está na dependência da relação do sujeito com o significante,

colocando isto em ordem cronológica, antes do surto, o indivíduo está sustentado por
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uma bengala imaginária, quando o surto se dá, é porque ocorreu uma situação

catastrófica que abalou estes suportes imaginários, é a sensação de fim de mundo

iminente que toma conta do sujeito, que não encontra algo que contrabalanceie tal

perda de orientação; sobra para o sujeito recriar tais bengalas a partir do delírio que

vem tamponar o buraco. Schreber fica catatônico, sem mundo quando se depara com

as questões homossexuais, esta foi a situação desestabilizadora e que pode ser

comparada com a morte e a anulação dos suportes imaginários.

Um mundo sem investimento de libido é um mundo árido, assim é o psiquismo.

Sem a capacidade de se investir energia sobre os objetos e poder simbolizar esta

relação, o sujeito estará iminentemente em pulsão de morte.

Pré-psicose Bengalas Imaginárias


Desencadeamento Dissolução imaginária
Estabilização no delírio Restauração do imaginário
Grafo reproduzido de (Antonio Quinet, 2011 p. 57).

Recomendamos que, sobre isto, os leitores possam assistir ao filme “Um Novo

Despertar” (The Beaver, 2011), que se trata da história de um homem casado, com

dois filhos, que desde que assumiu o controle de uma empresa de brinquedos que era

do seu falecido pai está manifestando sintomas depressivos, inabilidade em lidar com

seu cotidiano, e ante as situações encontra a solução dormindo. A mulher o expulsa

de casa após três anos de quadros depressivos, e estando sozinho tenta cometer

suicídio, é paralisado em seu ímpeto por um fantoche de castor que encontrara no

lixo, a partir desta situação ele pode recriar um eu potente, que reage ante as

vicissitudes da vida e toma este fantoche como locutor de sua vida, ao ponto disto

imbricar ele ser o castor por completo e desligar sua existência.


42

Quando o fantoche está no controle a voz muda de tonalidade, a personalidade

torna-se mais expansiva, ambos estão em simbiose, não se sabe quem fala. Pode-se

dizer que o fantoche se torna o ideal-de-eu do protagonista e por isso ele consegue

sustentar o discurso delirante, fazendo do fantoche com sua própria voz o

significante que sustenta sua atuação no social, dando-lhe um Outro absoluto em que

pode se apoiar.

A situação somente poderia ter êxito caso a fusão fosse permanente, o choque

entre o imaginário e a realidade provocam embates dolorosos ao psicótico, que

sempre se vê obrigado a rearranjar o delírio conforme se modificam as situações do

real, e é com isso que se dá a falência deste Outro da metáfora delirante que não

sustenta a situação. Ao se deparar novamente com situações conflitivas, que

envolvem um posicionamento real, as possibilidades são tomar o curso do discurso

com sua própria fala ou com a fala do outro alucinado. O problema da sua própria

fala, é que ela simplesmente mostra a falência do significante, de não conseguir

sustentar ou se deparar com tudo que já viveu, que sempre encarou com muito pesar,

em contrapartida falar a partir da alucinação não gera progresso e ainda se sente

cindido entre ser o doente e o fantoche ser o potente. A saída do protagonista para

acabar com o delírio é brutal, aquela personalidade alucinada que já estava colada em

seu eu precisou ser amputada, então, no filme, o mesmo decepa o seu braço e descola

do Outro imaginado que vinha sendo seu suporte.

Em outros termos, quando um fantoche fala, não é ele que fala, é alguém que está
atrás. A questão é saber qual é a função da personagem que se encontra nessa
circunstância. O que podemos dizer é que, para o sujeito, é manifestamente alguma
coisa de real que fala... ela recebe dele sua própria fala, mas não invertida, sua
própria fala está no outro que é ela mesma (Lacan, 1985 p. 63).

Evocando o pensamento de Descartes o “cogito, ergo sun”, Husserl nos leva a

questionar tudo o que percebemos. O pensamento de Descartes nos empreende a


43

duvidar da existência das coisas, com isso só pode confiar em uma coisa: seu pensar.

Husserl estende isto para todos nossos atos de pensamento, só quando eu duvido de

algo é que posso ter a certeza de que eu penso, assim, se eu duvidar daquilo que vejo

certamente ele existe, pois existe no plano do pensamento. E que outra coisa faz o

psicótico senão isto? Acreditar com fé cega naquilo que seu próprio eu cindido o

comunica como sendo verdade, duvidará do que se apresenta? Certamente que não, o

jogo do imaginário ganha força sobre o símbolo que se retirou e começa uma lógica

delirante de ordem inteiramente outra.

3.4 Incomunicabilidade entre Neurose e Psicose

Apreendemos com Lacan que o sujeito é da ordem do simbólico, regido pelos

significantes, o sujeito é o que um significante representa para outro significante,

portanto o mesmo está subordinado à linguagem e sua cadeia. A contrapartida desta

relação é a ordem dos objetos, o objeto é da ordem do real, portanto fora do

significante.

Antes de nos tornarmos sujeitos ambivalentes (neuróticos), na alienação ao

significante, situamo-nos numa relação singular com o real, a se dizer os objetos.

Para Freud, a criança chega ao mundo como objeto, antes de ser o sujeito do

significante. Em Luto e Melancolia (1917), Freud nos diz que a identificação da

criança com o objeto é anterior ao amor objetal (sendo assim da ordem do

narcisismo), encontram-se estas identificações na base das afecções narcísicas, isto é,

na psicose. “Em suma a criança, na sua relação dual com a mãe, torna-lhe

imediatamente acessível o que falta ao sujeito masculino: o próprio objeto de sua

existência aparecendo no real.” (Quinet, 2011 p. 110).


44

Desta colocação se distingue, então, o sujeito da neurose é aquele que é

representado por um significante para outro significante, submetido ao recalque e a

condensação do gozo; enquanto o sujeito da psicose está correlacionado com o gozo,

mas principalmente a um Outro que dele goza, como em Schreber.

A relação do psicótico também é sujeita ao significante, porém trata-se de uma

relação conturbada devido à foraclusão do Nome-do-Pai, que, por conseguinte, não

produz barreira, submetendo-o a um gozo infinito, sendo ele próprio o objeto de gozo

do Outro. (ídem, p. 111).

Os ensinamentos de Lacan nos permite fazer uma distinção sobre as estruturas

psicóticas e neuróticas, vide:

NEUROSE PSICOSE
Sujeito do Significante Sujeito correlacionado ao gozo
Discurso Fora-do-discurso
Édipo Não existe Édipo
Recalque Foraclusão
Formações do inconsciente Inconsciente a céu aberto
Habita a linguagem Habitado pela linguagem
Outro inconsciente Outro desvelado
Grafo sintetizado de (Quinet, 2011 pg. 111).

Lacan em O avesso da psicanálise (1969-1970) define discurso como laço social:

“é a instauração pelo instrumento da linguagem de relações estáveis no interior das

quais se inscrevem enunciados primordiais” (Lacan, 1992 p. 11), no caso do

psicótico, não existe produção significante que o permita produzir um laço social,

pois esse laço é da ordem da alienação, do pacto que produz a subtração do gozo.

O Outro é o tesouro dos significantes, é o lugar que a mãe ocupava inicialmente

para o sujeito. Quando a criança é castrada, esse Outro silencia internamente, torna-

se mudo, vai reger o sujeito a partir de outra ordem, do barrado. Para o psicótico, não
45

existe a castração do Outro, pois não existe Édipo, ele não foi capaz de suplantar as

provações edípicas e, por conseguinte, este Outro ainda fala, fica do lado de fora, já

que não está simbolizado internamente, e com isto o Outro se presentifica nas

alucinações.

Este Outro ser silencioso na neurose não significa que ele deixou de existir,

somente que ele se mostrará de outras formas, geralmente em algum sintoma ou na

histeria, entre outras incidências. Na psicose este Outro grita para anunciar a falha,

produzindo a alucinação que reflete no corpo, em forma auditiva, visual e as

respectivas distorções dos campos sensoriais que é antes de tudo uma distorção

mental antes de ser biológica, quiçá foi algum dia, salvo surtos psicóticos por

utilização de entorpecentes.

3.5 Paranoia e esquizofrenia: Distinções

3.5.1 Paranoia e suas formas de delírio

Para Nasio (2000), partindo dos pressupostos de Freud, diz que a paranoia é a

expressão de uma fixação narcísica e também da luta contra essa fixação. Para Freud

a gênese da paranoia estaria na função do narcisismo e nas fases de desenvolvimento

infantil, a se dizer: auto-erotismo, o próprio narcisismo e amor objetal.

A partir destes aspectos, o que determinaria para Freud a paranoia é que a escolha

homossexual seria de natureza narcísica, e que sempre precede a escolha

heterossexual. Ocorre que o sujeito toma a si mesmo como objeto amoroso, para a

posteriori promover este investimento no social, na amizade, família, etc. Neste


46

aspecto, os paranoicos se defenderiam da sexualização destes investimentos sociais

que tem uma proximidade narcísica acentuada (ibidem).

Para explicar este modo de defesa do paranoico, Freud propôs uma gramática da

paranoia; trata-se da célebre forma:

“Eu (um homem) o amo (a ele, um homem).” (Quinet, 2000 p. 57)

Neste caso, o trabalho do paranoico consiste em contradizer esta frase, gerando as

seguintes modalidades de delírio (ibidem):

1. “Eu não o amo, eu o odeio” que convertido por projeção se transforma em

“ele me odeia”. Essa transformação gera o delírio de perseguição.

“Eu não o amo” é uma expressão de recusa, “eu o odeio” é uma inversão no

contrário pelo mecanismo projetivo, que gera uma explicação, “porque ele me

persegue”.

2. “Não é a ele que amo, é a ela”, neste caso é o objeto da proposição que é

contradito, que também por projeção acaba se convertendo em “é ela que me

ama”. Ocorre aqui a introdução na erotomania, que também é um delírio “o

outro me ama”, visto no Schreber como Deus o amando e necessitando dele.

3. “Não sou eu que amo o homem, é ela que o ama”. O que se contradiz aqui é

o sujeito da proposição e não o objeto, o que gera o delírio de ciúme.

4. “Eu não o amo, só amo a mim mesmo”. Rejeita-se a proposição inteira,

caracterizando o delírio de grandeza.

Com o “eu o amo”, Freud devolve a linguagem ao sujeito psicótico e promove

novas possibilidades de se analisar o delírio. Com a troca de lugar, das proposições, é


47

possível ver a metáfora delirante num funcionamento em rede que necessita de uma

elaboração para responder ao chamado do outro.

Como visto nas quatro formas assumidas pelo delírio na paranoia, Freud utiliza o

mecanismo da projeção como pivô do desencadeamento do sintoma paranoico.

Invoco aqui o conceito de projeção, no sentido que gostaria que apreendessem o

termo, pois as suas muitas variáveis formas pouco tem a ver com o que Freud queria

exprimir:

O sujeito atribui a outros as tendências, os desejos, etc., que desconhece em sim


mesmo... A projeção foi descoberta primeiro na paranoia... A projeção é descrita
aqui como uma defesa primária, um mau uso de um mecanismo normal que consiste
em procurar no exterior a origem de um desprazer. O paranoico projeta as suas
representações intoleráveis que voltam a ele do exterior sob a forma de
recriminações (Laplanche e Pontalis, 2001 p. 375).

Pensar a psicose a partir deste único elemento é perigoso, pois a projeção é um

importante mecanismo utilizado pelos neuróticos dos quais todos não psicóticos se

enquadram. Este mecanismo permeia ambas as estruturas, e ficar com a noção que o

psicótico se defende somente é uma postura precoce e que desconsidera a construção

psíquica deste indivíduo. Porém, elucida o funcionamento do delírio que pode ser

uma via régia para entender as formas de comunicação do psicótico, mesmo que

distorcidas.

Freud por priorizar o narcisismo no cerne da paranoia, foi obrigado a criar um

paralelo do que ocorreria com o recalcamento nestes casos. Nasio (2000, p. 58)

expõem que “na paranoia, o recalcamento consistiria num desligamento da libido,

parcial ou geral. A libido anteriormente ligada a objetos externos volta-se para o eu...

O que caracterizaria a paranoia não seria a retirada da libido, mas o retorno dessa

libido para o eu.”.


48

Para Lacan (1966), a paranoia trata-se de um Outro que não é barrado pelo

significante da castração e que invoca o gozo, “há uma atribuição subjetiva a esse

Outro, o sujeito designando o Outro que goza dele, como Schreber que diz “Deus

exige de mim um estado constante de gozo, então é meu dever oferecer-lhe este

gozo” (Quinet 2011 pg. 114).

No neurótico o Outro falta por ser barrado, no psicótico ele é consistente, “ele é

fulano de tal” (ibidem), portanto jamais falta. Isto anuncia a ocorrência de delírios

paranoicos já descobertos por Freud no caso Schreber e consolidado por Lacan em

sua tese de doutorado quando ele define o delírio de perseguição.

Sobre a paranoia, a revista Época, relatou um caso em que uma dona de casa

registrou um boletim de ocorrência alegando que havia sido estuprada por

pensamento, segue a nota da matéria:

“ESTUPRO por pensamento.” Esse foi o crime do qual uma dona de casa de 39
anos, do bairro Rio Pequeno, em São Paulo, disse ter sido vítima. Ela procurou a
polícia para denunciar ter sido violentada de forma imaginária por dois homens. A
queixa foi registrada com frases como: “Declara que (o acusado) mentaliza e possui
o poder de lhe forçar o ato sexual por pensamento, sem lhe tocar”. O registro
mobilizou policiais da Delegacia de Defesa da Mulher, que pediram um exame
psicológico da dona de casa. Como a autora da denúncia desapareceu, o inquérito foi
arquivado. (Época, 26 de setembro de 2011. Ed.697 p.13).

Demonstra-se, a partir deste breve relato, que a paranoia está intimamente

relacionada com a perseguição e com conteúdos sexuais, permeando os delírios no

imaginário e indo para o real na forma de uma aguda agressão sentida com extrema

violência.
49

3.5.2 Esquizofrenia por falta de delírio

Freud não se interessa muito pelos fenômenos da esquizofrenia, mas fez uma

distinção rigorosa entre as duas categorias, para ele a paranoia é um regresso da

libido ao estado do narcisismo, enquanto que na esquizofrenia ocorre um regresso

além do narcisismo, um abandono por completo do amor objetal, retornando assim

ao autoerotismo infantil. (Quinet 2011 p.116)

Lacan considera que existe um gozo primeiro, anterior a todos os outros, trata-se

do gozo do corpo, que é autoerótico à medida que o corpo tem sua finalidade inicial

de gozar. Tal gozo está correlacionado com a libido autoerótica, é um gozo da

imagem, isto é o que ocorre com Schreber quando se vê na frente do espelho e sente

seu corpo se modificar, seus seios aumentarem quando Deus deseja gozar de seu

corpo, uma imagem transexualista o invade.

Portanto, pensando em neurose e psicose em resposta ao gozo, na neurose o

indivíduo responde ao falo, portanto à falta, tornando o gozo sexual; no psicótico, o

gozo não está ligado à falta, deixando-o fora do sexual por anular o falo. (ibidem).

A esquizofrenia está relacionada com a alucinação, ou seja, as vozes e as

manifestações corporais de todas as ordens. Estas vozes testemunham que o Outro

fala, emitindo significantes que não podem se sustentar num significante fálico que

calaria estas vozes, pois quando um significante de ordem fálica entra em ação, não

se tem acesso ao Outro. “O assim chamado esquizofrênico, diz Lacan, se especifica

por ser tomado sem o socorro de nenhum discurso estabelecido. Ele está fora do

discurso” (ibidem).
50

A frase da alucinação do esquizofrênico não possui consistência e não se sustenta,

ela se desmancha no momento de sua significação, ou de repente sua fala some. O

pensamento não consegue ser contínuo, e com isto, o Outro não consegue ser

subjetivado. Acaba por acontecer das vozes invadir o sujeito e isto não poder ser

subjetivado por nenhuma metáfora delirante como no paranoico. “É no

esquizofrênico que podemos detectar aquilo que Lacan fala de forma geral para o

psicótico: que ele é mais habitado do que habita propriamente a linguagem.” (Lacan,

1985 p. 284).

Na esquizofrenia, geralmente ocorrem casos de despedaçamento do corpo do

sujeito, este corpo é cortado pelas pulsões que o invadem, tal como ocorreu com

Schreber no início dos seus sintomas. Lacan, ao criar o estádio do espelho afirma que

“é através da imagem do outro que esse corpo despedaçado toma uma forma uma a

que Lacan chama de forma ortopédica” (Quinet 2011, p. 117). Para o autor, isto dá

ao sujeito a ilusão de possuir um corpo unificado, e pelo fato de sermos formados a

partir da imagem do outro, desenvolvemos com este, uma relação conflitiva e que

inspira rivalidade em muitas situações. Logo, o eu sendo constituído pelo outro, dá à

personalidade um caráter paranoico, no que podemos concluir que o eu sempre tem

uma estrutura paranoica por nunca estar sozinho, ele sempre está acompanhado do

outro de um eu-ideal.

Lacan denominou o estádio do espelho (fase que a criança constitui a noção de

sujeito distinto da mãe a partir da aquisição de sua imagem, que gera uma castração e

uma prova de superação para existir no mundo dos homens, formadora do

narcisismo) como constituinte de uma matriz simbólica, porém, não é essa provação

da criança que a faz incluir no mundo simbólico, é preciso que haja o significante
51

fundamental para que a operação da metáfora paterna seja realizada, sem isto, os

avatares do estádio do espelho não podem consolidar a imagem do sujeito

respondendo as demandas que surgirem, “é preciso fazer a prova do Édipo”. (Quinet

2011, p. 117).

Um corpo só ganha a dimensão de corpo unificado, se o corpo simbólico estiver

em atuação, ou seja, só a imagem não basta para isso, ela não sustenta o edifício,

dependemos da palavra para reger a imagem que sozinha tem o poder de paralisar,

como é o caso da esquizofrenia.

Podemos dizer que a paranoia situa-se ao lado do estádio do espelho, enquanto que

a esquizofrenia no despedaçamento da imagem construída, no corpo despedaçado no

real por falta de um significante mestre (a se dizer o Nome-do-Pai S1). “E a

esquizofrenia é esquizofrenia por falta de paranoia.” (Quinet 2011, p. 121).

Pode ocorrer o que Freud nomeou como demência paranoide, rótulo dado para

Schreber que passou de um estado esquizofrênico para a parafrenia, sendo formas

mistas muito comum de encontrar na clínica, quando um delírio acaba por se

estabilizar e virar um metáfora delirante, com seus mecanismos projetivos em ação.


52

4. CAPÍTULO III

FOLIE A DEUX

No dia 02 de fevereiro de 1933 ocorreu um terrível crime cometido por duas irmãs

contra suas patroas, mãe e filha. Este crime chocou a França e reverberou em todas

as mídias com análises dos mais variados espectros. Lacan que defendeu sua tese de

doutorado no ano anterior também se interessou pelo ocorrido, para ele o crime

continha motivações paranoicas do qual dedicou um artigo na revista Le Minotaure

nº 3, publicada em dezembro daquele ano.

Irmãs Papin não constituem propriamente um caso teórico, pois assim como as

observações feitas de Schreber, não ocorreu nenhuma intervenção terapêutica por

ninguém que discorreu sobre elas. O interesse vem dos móbeis suscitados pelas irmãs

e a impossibilidade de não analisar tais variáveis, foi com isto que grandes autores

adotaram a história deste crime para promover suas concepções.

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir tornaram a história das irmãs Papin em luta

de classes, empregados versus patrões nos ideais marxistas da época, os surrealistas

as transformaram em heroínas, a vida cotidiana estava sendo engrandecida e os

motores do indizível aumentavam o interesse sobre o caso. A produção literária,

peças teatrais e versões para o cinema renderam e fazem com que a história não

adormeça, e é com a construção dos psicanalistas, que presenciaram o momento

como Lacan e outros, que se debruçaram sobre a teoria para entender as reais

motivações uma vez que este caso explana - como caso clínico - uma análise tão

rigorosa quanto qualquer outro, com o auxílio de Lacan e Nasio.


53

4.1 As irmãs Papin – A loucura a dois

Christine e Léa Papin, irmãs, uma de vinte oito anos e outra de vinte um, ambas

eram criadas exemplares de uma tradicional família burguesa da França, um

advogado, sua mulher e uma filha, os Lancelin.

Pode-se dizer que era uma família com um modelo rígido, e tinham sérias reservas

em se comunicar com as criadas, um silêncio que podia invocar o vazio e uma

resposta a uma não resposta. Foi no fatídico dia 02 de fevereiro que o grande ato

ocorreu, a patroa e a filha chegavam da rua após saírem para realizar compras

quando foram surpreendidas com o breu do local e com um violento ataque, de

súbito conheceram o furor desmedido de duas irmãs; sabemos que Christine que

iniciou o rompante e Léa a imitava. Cada uma delas subjugou uma adversária e em

vida os olhos delas foram retirados da órbita, foram espancadas com diversos

utensílios, esmagaram lhes a face, deixaram a mostra o sexo delas, cortaram

profundamente a coxa e as nádegas, realizaram uma carnificina que deixou as duas

irreconhecíveis, sobrando uma papa humana perto da entrada da casa.

Após o ato atroz, as duas lavam os instrumentos utilizados para cometer o crime,

guardam os em seus respectivos lugares, purificam-se a si mesmas, deitam na mesma

cama conclamando: “Agora está tudo limpo!”, que no sentido original do francês

remete ao sentido de se livrar de algo sujo, indecente, imoral “c’est du propre”, com

isto ficam na cama esvaziadas de qualquer emoção, como quem espera para ser

apanhado. (Lacan, 1987 p. 381).


54

Este ato criminoso que foi narrado, pode ter ocorrido somente devido a um curto

circuito ocasionado por um ferro de passar roupa que queimou, deixando a casa na

mais profunda penumbra? Analisemos a história das Papin e de suas motivações.

Sabemos que apesar de Clémence, mãe de Christine e Léa ser uma figura ausente,

ela é determinante para o desencadeamento do surto e do sistema paranoico em

Christine e do tipo de relação que ela desenvolverá com Léa.

Christine com vinte oito dias de idade foi dada por Clémence para morar com

Isabelle, uma cunhada solteira. Com Isabelle, Christine viveu sete anos felizes e de

paz até que Clémence interrompeu para retomá-la e interná-la no instituto Bom

Pastor; neste local já se encontrava Emília, irmã mais velha de Christine, Clémence

teve três filhas ao todo. Foi sobre o olhar cuidadoso de Emília que Christine ficou

por oito anos no instituto, lá aprendeu a obedecer e servir, até que a irmã vestiu o

hábito.

Christine tinha quinze anos quando Clémence foi buscá-la, transtornada e

apressada, pois Christine desejava seguir o mesmo caminho que Emília e também

vestir o hábito, incentivada pela vocação religiosa apregoada no Bom Pastor.

Clémence não aceitaria perder a segunda filha e por isso tratou de agir antes que não

houvesse mais tempo de retirar sua filha do instituto e reivindicou novamente os

direitos sobre ela.

Já em idade de trabalhar, Clémence colocava e retirava ao seu bel prazer Christine

de casa em casa. Com Léa, ocorreu quase o mesmo procedimento, com um mês de

vida foi entregue para uma tia que a criou até determinada idade, quando fora
55

retomada e internada no orfanato Saint-Charles, de onde foi retirada aos treze anos

quando Clémence achou que já estava com idade para trabalhar.

Clémence colocou Christine para trabalhar na casa dos Lancelin quando ela estava

com vinte e dois anos. Desde a separação de Emília do Bom Pastor, Christine sentia

muita saudade da irmã e, por conseguinte, acabou se afeiçoando bastante à Léa, que

estava com dezesseis anos neste momento. Christine passou a querer que Léa

estivesse sempre do seu lado, chegando o momento em que pediu para a senhora

Lancelin que também contratasse Léa para auxiliá-la nas tarefas domésticas. A

senhora Lancelin aceitou prontamente e foi delimitado que Christine seria cozinheira

e governanta enquanto Léa, a arrumadeira.

As regras da casa era que somente a patroa dava as ordens e que os serviços de

Léa seriam instruídos por Christine, pois a senhora não queria familiaridades entre a

classe dos patrões com os serviçais, o que foi muito bem aceito pelas duas que

tinham um caráter altivo e desconfiado.

No tempo em que ficaram na casa, elas tinham um quarto só para elas, que

chamavam de “nossa casinha”, saiam sempre bem arrumadas para as missas de

domingo, porém em toda esta estadia na casa, que foram seis anos de trabalho para

os Lancelin, neste período, não se encontraram com nenhum rapaz, com nenhuma

empregada doméstica das casas vizinhas, nunca foram ao cinema, ao ponto que

ninguém conseguia arrancar delas mais do que dez palavras. Contudo, eram

consideradas empregadas modelos, dos quais todos os amigos dos Lancelin

invejavam.
56

Christine e Léa se tornaram realmente inseparáveis, nos tempos de folga, ficavam

no seu quarto, bordando enxovais, dos mais nobres tecidos, ao ponto que poucas

moças teriam condições de ter um material similar, o que era algo paradoxal, pois

nunca consideraram a possibilidade de um homem se aproximar delas, era um

juramento entre as duas, pois isto encerraria a união delas.

Outro traço estranho das irmãs era que elas não suportavam “receber ordens”.

Principalmente Christine, que tinha uma natureza ensimesmada e não admitia

observações, nem mesmo de sua mãe que a enchia de críticas, tampouco de patroa

alguma. Houve um episódio em que Léa deixou cair um pedaço de papel e a senhora

Lancelin segurando a manga de sua blusa com dois dedos fez Léa se ajoelhar e pegar

o papel. Na cozinha depois do ocorrido, em coro as duas esbravejavam após jogar

uma pesada chapa de ferro do fogão no chão: “Ela que não comece nunca mais,

senão...”. Ambas ficavam extremamente ariscas sob o sinal de repreensão, era algo

intolerável para elas, “uma ferida narcísica vivida como persecutória, que

comportava para ela, infalivelmente, um suposto prazer do outro em humilhá-la”.

(Nasio, 2001 p. 200).

Três episódios merecem um proeminente destaque para os eventos que ocorrerão

no dia 02 de fevereiro. O primeiro deles é uma mudança de regras no sistema de

pagamento do soldo do trabalho das empregadas. A senhora Lancelin, feliz pela

dedicação de suas empregadas não acha justo que o salário delas ficasse

integralmente com Clémence, e dali por diante decidiu intervir para que as duas

ficassem com a íntegra de seus salários.

A partir deste momento, a senhora Lancelin começou a ser vista por Christine e

Léa com mais afeição, deixava de ser a patroa para se tornar uma pessoa que se
57

importava com o bem-estar delas. Um gesto que sem duvida poderia ser traduzido

como um vínculo materno, o símbolo da boa maternagem, ao contrário da má

maternagem de Clémence, que sempre fora possessiva, reivindicatória e invejosa.

O segundo episódio foi consolidar este rompimento de Léa e Christine com a mãe,

Clémence. Um rompimento súbito, definitivo, sem brigas e sem palavras. Não

quiseram mais ver Clémence, a partir daí, a senhora Lancelin ocupou o lugar materno

no imaginário, tornando a personalidade das duas mais sombrias e taciturnas, se

ensimesmaram ainda mais e passaram a já não dirigir a palavra a ninguém.

O terceiro episódio se dá na prefeitura de Le Mans. Quando os Lancelin estavam

de férias, ambas foram até a prefeitura e apresentaram seu pedido ao prefeito, de que

Léa fosse emancipada, porém de que e de quem elas não sabiam dizer. “Diante do

prefeito atônito as duas evocaram um suposto sequestro, reiterando ao mesmo tempo,

vigorosamente, seu desejo de continuarem juntas na casa dos Lancelin, onde estavam

muito bem”. (Nasio, 2001 p. 201). O prefeito as enviou ao comissariado central, lá

diante do comissário, elas se disseram perseguidas pelo prefeito que, ao invés de

defendê-las, as perseguia. Quando os Lancelin voltaram, o comissário conversou

com o senhor Lancelin e o instruiu a demiti-las dizendo: “Se eu fosse o senhor, não

ficaria com essas moças: elas são verdadeiras perseguidas.” Porém, como René

Lancelin não permitia que ninguém se intrometesse em sua vida, não deu ouvido ao

aviso do comissário e esqueceu este comentário até que houve um ferro quebrado

que causou um curto circuito que causou uma orgia sangrenta no fatídico 02 de

fevereiro de 1933. (Nasio, 2001 p. 196-202 Relato sintetizado e reorganizado para

melhor compreensão dos fatos).


58

4.2 Motivações Criminosas

Algo crucial na história das Papin é observar a importância que tem as ações de

Clémence. Ela “coloca e retira”, “toma e retoma” suas filhas puramente como se

fossem objetos, aliás, esta é sua real relação com as filhas, uma relação de escambo

que a favorece em determinadas situações, neste jogo ela já havia perdido Emília e

não suportaria perder mais nenhum objeto, falando que era seu direito “vigiá-las” e

que continuassem “submissas” a ela.

Houve duas cartas de Clémence endereçadas a Christine e Léa em fevereiro e

março de 1931, dois anos antes do ocorrido. Nessa carta é possível visualizar o

mecanismo delirante de Clémence, que fala sobre a inveja que um outro abstrato

sentia delas: “Têm inveja de vocês e de mim”, em outro trecho fica claro o

sentimento de perseguição: “Eles vão derrubar vocês pra ser dono de vocês, vão

fazer o que quiser com vocês”. (Nasio, 2001. P. 198).

Este “eles” da carta de Clémence é algo impessoal, pode-se dizer que é a crença

delirante, a projeção dos aspectos que não comportam em seu eu sendo

exteriorizados e repassados a Christine que captura tudo que vem desta mãe, e

replica com o mesmo ímpeto tais crenças. Sabemos que Christine possuía a estrutura

psicótica, a sua paranoia conduziu Léa em todos os atos e podemos, por ora, pensar a

loucura de Christine sendo a loucura de Clémence manifestada na impessoalidade

que aguçou suas cismas.

Em outro trecho de suas cartas Clémence diz: “A gente pensa que tem amigos e

são grandes inimigos”. Sempre num movimento de projeção, Clémence imputa ao

outro enigmático a grande culpa de algo que não sabemos dizer, e que pode suscitar a
59

questão: este “a gente” inclui Christine e Léa? Ou seria apenas uma repreensão sobre

os Lancelin? Ficamos com o que podemos especular sobre a paranoia. O vilão é

sempre vago por se tratar de uma construção, quanto mais encurralado e menor o

conhecimento do delirante, mais claudicante torna-se sua construção, elas não são tão

elaboradas como as de Schreber, que remonta um sistema para conseguir coabitar

com sua loucura. Neste aspecto, a inveja levanta mais móbeis, do que qualquer

situação da realidade, esta é a força motriz que impulsiona Clémence a agir sobre o

“dar e retomar”.

Nestas cartas, Clémence buscava o controle sobre as filhas, mas percebe-se

também que o olhar para ambas é em caráter objetal. Em Clémence certamente se

encontrava um delírio de ciúme; em resposta a tal delírio, Christine faz um delírio

paranoico de perseguição e reivindicação.

Fato importante para nos atentarmos para a natureza do crime é que quando

Clémence controla, faz um delírio de ciúme, é o “olhar” dela que paira sobre as

irmãs, é este “olhar” controlador que critica e diz que ambas estão sob sua tutela.

Este relacionamento perdurou até o crime romper o jogo do “olhar”, que levou a

passagem ao ato.

A partir do momento em que a senhora Lancelin passou a ocupar o lugar materno

inconscientemente para as irmãs, o deslocamento do olhar repreensivo passou a ser

da patroa, ou seja, o olhar dela sustentava a cena das duas irmãs, no que a

imperfeição ou uma possibilidade de afronta reativaria o olhar que Clémence tinha

com elas - e Christine não suportaria tal fato, sob a ameaça de se tal acontecer, a

mesma se encontraria num abismo sem referências de qual o significante não pode

reportar.
60

Para Nasio (2001), os fenômenos paranoicos são essencialmente imaginários, e

como em um jogo de espelhos o outro sou eu e eu sou o outro. Logo, as motivações

paranoicas para o crime estão neste jogo especular em que o autor tenta remontar:

Se eu o amo, digo que é ele que me ama, e se o odeio, penso que é ele que me odeia.
São processos ilustrados pelas palavras de Christine ao comissário: “Olhe”, disse
ela depois do crime, “preferi acabar com a raça das minhas patroas a serem elas a
acabar com a minha e a da minha irmã.” Ou então: “Ela me deu um pontapé, e eu
a cortei em pedaços para me vingar do chute que ela me deu, no mesmo lugar em
que fui atingida.” Mas acrescentou: “Nunca tive nenhum motivo para querer mal a
minhas patroas.” (Nasio, 2001 p. 210).

A economia mental de todo paranoico é: “Ele(a) quer me matar”, no que ataco

aquilo que iminentemente pode me atingir. Se primeiramente a mãe e posteriormente

a patroa podiam paralisá-las, matar com o “olhar”, então Christine simplesmente age

para matar este “olhar”.

4.3 Considerações finais sobre irmãs Papin

Christine enquanto estava na prisão pedia incessantemente para ver Léa. Para

alcançar este objetivo fez greve de fome, de sono e deixou de responder qualquer

pergunta dirigida a ela. Depois de alguns meses tem uma alucinação em que Léa

estava em uma árvore com as pernas cortadas e a partir deste momento se desliga da

realidade. Tenta furar seus próprios olhos em um ataque e declara que as senhoras

Lancelin não haviam morrido, pede para ver o senhor Lancelin e seu filho, atira-se

contra as paredes e a porta. Uma alucinação que desencadeou a loucura. (Nasio, 2001

p. 211).

Nasio (2001), invocando o conceito lacaniano, diz ser a alucinação “uma

representação psíquica que irrompe do lado de fora e se impõe como uma percepção”
61

(p. 212). Para Lacan este é o aforismo de que a alucinação é o aparecimento no real

daquilo que não pode advir no simbólico, que não pode ser escrito de alguma forma.

Esta não inscrição, que gera a falta, pode ser nomeada como castração. Christine

estava sofrendo com a castração de Léa, uma figura que promovia um sustentáculo,

um suporte para as ideações. Agora a ausência era sentida como uma mutilação, um

corpo despedaçado, que equivalia ao desmoronamento e uma morte psíquica que

desencadeia a loucura (ou mais precisamente o surto).

Sobre o surto psicótico de Christine na cadeia, Nasio (2001 p. 213) relata que da

mesma forma que no momento do ataque as patroas, Christine age fazendo uma

passagem ao ato como sendo o único recurso convocado pelo principio de prazer,

“um prazer que não residia no arrancamento dos olhos, mas na redução de uma

tensão insustentável.”

Após se encontrar novamente com Léa, Christine nunca mais proferiu seu nome

ou pediu sua presença. O vínculo entre as duas já não era o mesmo e Léa não era

passiva e submissa em relação a Christine como era outrora. Após este encontro,

Christine afundou-se num delírio místico e passava horas ajoelhada rezando,

beijando o chão e fazendo o sinal da cruz com a sua língua. Colocou seu destino nas

mãos de Deus.

Nasio (2001) considera o apelo de Christine para Deus como salvador como sendo

sua última tentativa de instauração do Nome-do-Pai, de criar um pai simbólico, que

porta a lei, que ela não pôde inscrever.

Tal como em Schreber, Christine encontra a solução do simbólico, do Nome-do-

Pai na religião, na forma de um delírio místico. No que Nasio (2001 p.213) afirma:
62

Na falta da castração simbólica, foi o corpo inteiro que ela abandonou à morte.
Como ponto de ancoragem da identidade, restava apenas esse real de um corpo
reduzido ao simples real da carne. Assim, Christine deslizou progressivamente para
a esquizofrenia, ou, como chegaram a dizer alguns, para o autismo.

4.4 Condições para o folie a deux

Houve muitos termos comparativos sobre o vínculo das irmãs Papin, chamavam-

nas de “almas siamesas”, portanto, a maioria queria responsabilidade igual pelo

crime. O vínculo entre Christine e Léa sempre fora assimétrico, ou seja, Christine era

sua porta-voz, mandando em Léa e a mesma obedecia prontamente tais ordenações,

mas também, possuíam um vínculo que poderíamos denominar de mãe e filha, era

Christine que ansiava em proteger Léa das mazelas do mundo e ela se deixava amar.

“Não estamos diante de dois seres idênticos, mas antes, da roupa e seu forro, do

original e sua cópia, da voz e seu eco”. (Nasio, 2001. Pg. 200).

Para Nasio (2001) as condições necessárias para que ocorra o folie a deux

(Loucura a dois) são:

- É necessário que haja dois sujeitos: um ativo que imponha o delírio a outro

sujeito que ele exerce uma influência segura. Este tem a personalidade mais dócil e

aos poucos se deixa dominar pela loucura do outro.

- Na maioria das vezes, são pessoas da mesma família, com laços sanguíneos –

irmão e irmã, mãe e filha, ou no nosso caso, irmã e irmã. Pode ocorrer também entre

marido e mulher.

- Para que o delírio se torne comum a ambos é necessário que esses dois

indivíduos convivam num mesmo meio por muito tempo e cultivem os mesmos

interesses, alheios as influências externas.


63

- Quanto menos brutal for o delírio, ou seja, mais calcado na realidade, portanto,

comunicável é a probabilidade do outro poder aceitar o enunciado do mesmo. Um

louco completamente alucinado e implacável dificilmente conseguirá convencer o

outro das suas ideias, mesmo que este seja mais frágil e comprometido.

Isto vai de encontro com o que os criadores do termo folie a deux propuseram.

Charles Lasègue e Jules Falret criaram o termo e o explicaram em uma monografia

no ano de 1877. Nele, Lasègue (1816-1883) um clínico francês, descreve o délire de

persécution (delírio de perseguição), um quadro paranoico de evolução progressiva,

que produz alucinações fundamentalmente auditivas.

A descoberta principal dos dois autores foi colocar o folie a deux na ordem de

sujeito ativo e passivo com peculiaridades para sua ocorrência. A influência do

passivo para eles dependeria que este tivesse uma “inteligência fraca, mais disposta à

docilidade passiva do que à emancipação” (Pereira, M.E.C ano IX, n.4 dez/2006 pp.

709-713). A segunda distinção que viriam a fazer é que somente o sujeito ativo da

relação era o legitimamente psicótico, o passivo, era apenas envolvido.

Outro termo muito utilizado para também falar de folie a deux é o termo folie

induites (loucura induzida). Termo cunhado por Eugen Bleuler (1967) que destaca

que isto ocorre principalmente em pacientes paranoicos que consegue produzir a

legitimidade dos seus delírios para o outro sujeito envolvido, para ele, o indutor tem

um caráter enérgico que com a longa convivência consegue imprimir “sobre o

parceiro traços leves dos fenômenos psicóticos, tais como desconfiança e ideias

sobrevalorizadas”. (Pereira, M.E.C ano IX, n.4 dez/2006 pp. 709-713).


64

Segundo Pereira (2006) o folie a deux é uma condição psicopatológica

extremamente rara, estudos sobre prevalência e incidência não existem, sendo

estudado sempre a partir de relatos de casos.

Outras possibilidades do folie a deux são o folie simultanée, que se instala

simultaneamente nos dois parceiros, e a loucura compartilhada entre mais membros,

podendo ocorrer o folie à trois, à quatre, e assim por diante; geralmente os

fenômenos que envolvem mais que um membro, são fenômenos psicóticos

compartilhados por uma família (folie en famille).

Dentre os possíveis tipos de família, podem se incluir os modelos paranoicos como

possíveis. Richter (1996) retrata a família paranoica como modificadora da realidade

a sua volta, revestindo-a de fantasias, diferentemente da família neurótica, que

adotam comportamentos para evitar que o equilíbrio seja ameaçado.

O autor ressalta que uma família pode manifestar relações paranoicas, sem, no

entanto estar atrelada ao sentido psiquiátrico. Muito frequentemente, estes tipos de

famílias tendem a supervalorizar ideias ou ideologias, e a partir delas tentarão se

defender desesperadamente. Acabam construindo um mundo menor, de restos, que

oferecem uma última tentativa de solidariedade, “que não poderia ser obtida de outra

forma, em geral por causa da extraordinária pressão da agressão descontrolada”

(Richter, 1996 p. 67).

Richter (1996) afirma que é comum entre as famílias paranoicas conseguir

descarregar seus impulsos hostis em outras pessoas ou grupos. Atacam os sistemas

contrários aos deles, os sistemas familiares, as filosofias de vida alheia e, com isto,

tudo que não pode ser suportado por eles é simplesmente projetado no outro. Com
65

isto, criam para si a ficção que se dão bem juntos, projetando sempre os problemas

internos aos grupos externos, mas, ao realizarem este movimento, atacam

inconscientemente seus próprios egos.

Os modelos de família paranoica traçados por Richter (1996) convergem com a

teoria sobre folie a deux de Lasègue e Falret, pois o mesmo comprova que, nos

núcleos familiares, o membro paranoico é geralmente o mais ativo, irritável e

fanático; “uma vez que assume a posição paranoica, seu parceiro, ou os demais

membros da família, são pressionados a se unirem a ele, ou a adotarem uma posição

hostil, polarizada.” (Richter, 1996 p. 68).

Com isto, a linha de raciocínio alucinatória do paranoico acaba considerando o

outro um amigo ou inimigo; companheiro de arma ou inimigo declarado, no que gera

grandes confusões aos membros mais frágeis, que acabam cedendo a este membro

por medo de represálias, adotando uma postura servil e que anula qualquer crítica

intelectual por remontar sistemas de dominação que agem em consonância com as

dinâmicas distorcidas em relação aos laços parentais. Podemos visualizar, nesta

breve explanação familiar, alguns dos dilemas enfrentados pelas irmãs Papin, em que

Léa sucumbiu ao sistema delirante de Christine, mas que tudo estava em perspectiva

com o que Clémence articulou em toda a vida de ambas.


66

5. OBJETIVOS

5.1 Objetivo Geral

• Investigar como se origina as estruturas psicóticas a partir de compreensão

teórica e casos clínicos, a se dizer, caso Schreber de Sigmund Freud e

irmãs Papin de Jacques Lacan.

• Entender como desencadearam os surtos e os elementos preponderantes

em ambos os casos.

5.2 Objetivo Específico

•Apreender como o mecanismo foraclusivo contribui para o desencadeamento

da psicose e definir sua estrutura.

•Visualizar como o processo edípico consolida o significante do Nome-do-Pai,

instituindo a lei e a inclusão na mediação simbólica.

•Verificar a importância da fala, bem como sua ausência referente ao modelo

discursivo coerente.

• Distinguir os modelos paranoicos da psicose e suas formas de delírio em

contraposição com as alucinações e esquizofrenia.

• Contribuições sobre o folie a deux e as condições específicas para que ocorra.

6. MÉTODO
67

O trabalho consistiu em uma revisão de literatura sobre o tema escolhido. Pelo

mesmo ser de cunho psicanalítico, foram explorados os principais livros sobre a

temática na obra freudiana e lacaniana, por meio do estudo massivo sobre aqueles

que consideravam como objetivo central a temática aqui exposta e, como bibliografia

complementar, artigos científicos e acadêmicos de psicanalistas que se debruçaram

sobre o tema.

7. DISCUSSÃO
68

Lacan, ao escrever o seminário III: “as psicoses”, não havia introduzido a noção de

significante do Nome-do-Pai, porém já havia estabelecido elementos para o

diagnóstico estrutural das psicoses e os fenômenos da linguagem.

Já que não conhecemos o sujeito Schreber, devemos de qualquer maneira estudá-lo


através da fenomenologia da sua linguagem. É pois, em torno do fenômeno da
linguagem, dos fenômenos de linguagem mais ou menos alucinados, parasitários,
estranhos, intuitivos, persecutórios de que se trata no caso Schreber, que vemos
esclarecer uma dimensão nova na fenomenologia das psicoses. (Lacan, 1956-57,
1988, p. 120).

Com isto, Lacan estava preocupado em demonstrar a falha que se apresenta na

estrutura do inconsciente a partir de um significante privilegiado, o significante do

Nome-do-Pai. Este passa a ser o critério para se fazer um diagnóstico diferencial

entre neurose e psicose.

Na psicose, como foi visto, as formações do inconsciente são determinantes para

que a psicose ocorra. Lacan se interessa pela função da lei à medida que ela se

articula no campo do significante, considerando que o que funda a significação não

depende apenas do significante, mas de algo além que confere a lei.

O que autoriza o texto da Lei basta por estar ele mesmo no nível do significante.
Trata-se do que chamo o Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico. Esse é um termo que
subsiste no nível do significante e que no Outro como da Lei. Esse é o Outro no
Outro. (Lacan, 1957-58, 1999, p. 152).

Desta forma, para que ocorra produção de sentido ou ocorrência de significação,

não basta somente a presença do significante, mas deve estar presente o texto da lei,

a teia de significantes, para que a posteriori a produção da significação se inicie.

Neste aspecto, quem efetivamente põe ordem nos significantes é o Nome-do-Pai,

promovendo uma articulação entre eles, garantindo a ordem, a estrutura,

possibilitando o engendramento das significações em uma unidade coesa.


69

Lacan pensa a psicose a partir da ausência do significante fundamental, o Nome-

do-Pai, que é o significante do Outro como lugar da Lei. É então o mecanismo

foraclusivo que retira a produção de significação ante um trauma na formação.

A questão do significante é reportada na teoria como normal nos processos

linguísticos, sendo associado ao discurso e a produção de significados que é feito

universalmente. É neste ponto que coube dedicar um espaço para entender as

diferenças entre neurose e psicose, pois, por existirem em ambas, é uma diferença

sutil que modifica a forma de encarar a relação significante/significado.

Miller (1999) relata que na neurose, existe uma desarticulação momentânea entre

significante e significado e que quando isto ocorre é seguida por uma sensação de

surpresa, abrindo espaço para uma nova significação para o que ocorreu. Na psicose,

esta mesma desarticulação, produz um enigma, seguido por extrema certeza; e sobre

isto afirma que quanto mais o significante não é passível de decifração, maior será

seu efeito de certeza.

É isto que relatamos como enigma, ou seja, a articulação do significante com o

real. Os significantes não são dialetizáveis, pois carregam consigo uma rigidez do

enigma e que, por conseguinte, não interage com outros significantes a fim de

promover uma significação de sua dialética, tornando-se preso no delírio.

A função do enigma pode ser vista em Schereber nos fenômenos alucinatórios

peculiares em alguns enunciados em específico. Permitindo-nos pensar que ocorreu

uma articulação do significante com o real, com um grau de convicção impossível de

se desvincular, sem que nenhum significante mestre faça isto.


70

Entender que a foraclusão é o mecanismo específico da psicose foi um dos

objetivos do trabalho. O cerne do indivíduo está na sua aquisição simbólica e na

superação do trauma; e foracluir o trauma neste momento refletirá em uma

perturbação do sistema psíquico, produzindo um buraco e retirando algo que ali

existia, explicando o delírio, alucinação, despersonalização e tantos outros estados

próprio de um sistema claudicante.

Os processos foraclusivos anunciam uma estrutura psicótica, porém não a psicose

em imediato. Como falamos em estrutura, a mesma só se irromperá caso algo

perturbe ou o significante não dê conta devido a sua frágil construção de não

introjeção da lei e superação do trauma. Nem sempre isto ocorre cedo, tanto que a

psicose tende a ocorrer geralmente no final da adolescência com o final do período

de latência, embora seja possível de acontecer antes, atendendo o critério citado

acima.

Uma das possibilidades levantadas neste trabalho foi a de uma loucura parcial, se

pode ser chamada assim. Nasio (1987) trabalhou em uma tese sobre a foraclusão em

que, para ele, todos teríamos condições foraclusivas em nosso psiquismo. Esta visão

permite compreender e explicar muitos estados clínicos de pacientes que promovem

surtos momentâneos, mas saem dele após algum tempo. Mexer em aspectos

delicados da vida, como sexualidade, morte, figuras parentais sempre causam abalos,

na dependência do modo em que estas foram concebidas como estruturais para este

sujeito.

O que Nasio propõe é que somos superpostos por fantasias e desejos e que entrar

em contato com estas fantasias pode ser extremamente tóxico ao sujeito, anunciando

estados psicóticos, que para o autor seria uma reação ruim do eu contra o trauma.
71

Para a teoria psicanalítica, a psicose só ocorre após um “não Édipo” ou a

impossibilidade deste se consolidar. Devemos entender que o Édipo é uma provação

universal que tem a ver com a sexualidade e imputa um trauma à criança.

Posteriormente, as fantasias se tornam extremamente traumáticas e, no final do

Édipo, período identificatório com os pais, variam entre meninos e meninas, e disto

resulta que a criança adquire como bônus em seu término: o supereu.

Logo, apreendemos do Édipo que o pai é o representante da lei, atuando na

subjetividade da criança e a inscrevendo como um significante e barrando o Outro

absoluto, no caso, o acesso à mãe. Se o pai, ou o representante da lei não conseguir

incutir um sistema simbólico, pode ocorrer uma falta de vínculos com o social e

deixar o sujeito a deriva de suas fantasias, não advindo nenhum significante que dê

conta da inclusão social.

É este mesmo social que estrutura a relação com o outro, à medida que a

linguagem é escópica e responde a este outro. É na linguagem que se une o

significante ao significado, e o sujeito torna-se capaz de produzir significações que

sustentem seu discurso.

O Édipo é o termômetro da psicose. O profissional que erege sua prática sobre tais

embasamentos, tem a seu favor uma consonância de fatos ocorrendo com a criança,

que, desta forma, é possível trabalhar na reparação do significante enquanto a criança

está em formação, ou trabalhar sobre estes aspectos de forma preventiva caso o

mesmo já tenha se consolidado.

É neste momento relativo à questão edípica que se configura as estruturas que

embasam os casos clínicos mais notórios, contribuindo para o entendimento da teoria


72

em questão. Na literatura psicanalítica, o caso mais emblemático e estudado sobre

psicose é o caso Schreber, justamente por abarcar a maior parte dos conceitos

envolvendo a psicopatologia na visão psicanalítica. Este trabalho teve a missão de

percorrer este caminho novamente para embasar os conceitos lacanianos que, por sua

vez é a melhor fonte para falar de psicose.

Com o caso discorrido anteriormente, sobram pontos que destacamos. Percebe-se

claramente em Schreber que o Nome-do-Pai foi abolido do simbólico e retorna ao

real na forma de procriação. Schreber cria o delírio para tentar tamponar a falta do

significante central, encontrando o suporte no delírio místico e na homossexualidade,

encontrando o Outro absoluto em duas figuras, a do médico e posteriormente em

Deus. O delírio acaba servindo como tentativa de cura, e em certos aspectos Schreber

obtém êxito por algum tempo, porém não conseguiu sustentar indefinidamente,

entrando em surto novamente e uma passagem progressiva para um estado mais

próximo da esquizofrenia.

Além de somente reconhecermos o outro através da linguagem, ela é sempre um

jogo de significantes em que a ordenação de sentidos depende do significante do

Nome-do-Pai. Como o psicótico está fora desta ordem, seu discurso se torna vazio e

inconsistente, não produzindo uma rede significante com suas possíveis articulações

e respostas apropriadas.

Em Schreber, algumas palavras ganharam um peso particular, no que Lacan

chamou de erotização das palavras, que ganham força para o sujeito e que o faz

penetrar numa lógica de discurso própria a ele, um discurso comum; nota-se que é

um discurso que não é desconexo para ele, pois foi ele que delimitou a produção de

significação dos significantes elencados. É isto que se caracteriza fazer alusão, o


73

doente sempre remeterá a outra significação da ordem do significante escolhido para

tamponar a falta do Nome-do-Pai.

Pensar em psicose remete também a uma de suas formas mais conhecidas e

predominantes, a paranoia. Freud trabalha este elemento em Schreber, e revela que a

paranoia está intrinsecamente relacionada com as afecções narcísicas e escolha

homossexual realizadas na infância. Por estas fases cercearem a infância da criança,

o paranoico teria uma incapacidade em lidar com tais investimentos no social, de tal

forma que se defenderiam desta relação de forma mais exacerbada.

Freud relata que o paranoico estabelece uma linguagem própria, denominada de

metáfora delirante para responder ao chamado do outro. O delírio do paranoico é

realizado pelo mecanismo projetivo traçado por Freud, em que o paranoico projetaria

as representações intoleráveis, mas que elas voltariam para ele do exterior como

formas de recriminação. É importante ressaltar que a projeção não é um mecanismo

exclusivo da psicose, mas é também essencial na neurose para a resolução de alguns

conflitos; a principal questão da projeção está como fomento ao delírio, originando

as sensações de perseguição como tamponamento daquilo que não pôde advir do

simbólico e está ressurgindo a partir do real.

A psicose paranoica é central no caso das irmãs Papin. Lacan as estudou como

embasamento de seu doutorado escrito em 1932. Alguns móbeis mais evidentes neste

caso já foram discutidos, mas ressaltamos em favor da paranoia das irmãs algumas

possibilidades. Uma delas se encontra no olhar de Clémence, e nos próprios delírios

de ciúmes dela, imputando ao outro a culpa de algo virtual. Logo, seus delírios de

ciúmes, fomentando com persecutoriedade um terceiro, propiciam grandes


74

probabilidades de desenvolvimento de traços paranoicos exacerbados; e no caso de

um indivíduo com estrutura psicótica evidenciada, uma fatídica psicose paranoica.

Para Nasio (2001) a psicose é um jogo de espelhos, em que o outro sou eu e eu sou

o outro, daí a importância da reação exacerbada para aniquilar aquilo que pode

aniquilá-la, pois se eu penso mal de outro, por projeção o outro pensa o mesmo, e por

defesa não é mais o sujeito que pensa mal e sim o outro, ocasionando motivos para

retaliação.

Porém, o caso das irmãs Papin vai além da psicose paranoica, ela é o motor

propiciador de tudo. Neste caso em específico, os atos somente se irromperam

devido a presença de um terceiro elemento, a irmã mais nova, que ao atacar a patroa

juntamente com a irmã, protagonizou um ato de folie a deux.

Para ocorrer o folie a deux é necessário que um sujeito psicótico de postura ativa

imponha o delírio a uma pessoa que ele exerça influência, geralmente mais passivo e

dócil, deixando-se dominar pela loucura do outro. Ou seja, é um sujeito psicótico

influenciando um neurótico a acreditar em seu delírio e compactuar dos mesmos

atos, e no extremo cometer assassinato juntamente com o psicótico, tal como foi o

caso das irmãs Papin.

O folie a deux tende a ocorrer em pacientes paranoicos, imprimindo ao outro suas

desconfianças. A psicopatologia é extremamente rara e de difícil de diagnóstico e

pouca literatura, encontra-se casos somente na literatura, porém, autores como

Richter (1996) crêem que o folie a deux seja comum em famílias paranoicas, pois

atacam aqueles que são contrários as seu sistema, mantendo-se alheios da sociedade,

sendo este um dos critérios para o folie a deux.


75

Estas famílias acabam por ter um membro centralizador, que boicotará qualquer

levante dos membros impondo medo e praticando represálias ante qualquer ato que

possa ser subversivo.

Creio que as condições do folie a deux apareça em maior número que o previsto,

considerando os modelos familiares. Cabe atenção especial aos serviços de saúde

para as famílias que necessitam de seus serviços, pois a família como uma unidade

pode ser desconsiderada, privilegiando aquele que apresenta o sintoma em

detrimento dos outros.


76

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, a intenção foi apresentar a psicose como uma segunda via possível
de constituição estrutural básica, e quanto a estes caminhos, se restringem a apenas
dois: neurose ou psicose. O ser humano não escapa destes dois possíveis destinos,
porém a psicose pode ser contornada por uma série de motivos, assim como a
neurose como condição essencial, não se apresenta em sua totalidade como
patológica.

Da visão da psicose como possessão à liberdade de se expressar, entre tantas


outras visões que a história privilegiou, é sem dúvidas a psicanálise e a psicologia
que mais se interessaram sobre seus mecanismos e em possibilitar intervenções a
estes pacientes, gerando um tratamento humano nos locais que se propõe a tal
cuidado.

Entender como a psicose funciona desde seu gênese é primordial para não
descartar o sujeito que está sofrendo ante uma impossibilidade de se desvencilhar dos
traumas que não podem ser superados facilmente, pelo menos não sem o auxílio de
uma reparação destes significantes foracluidos; tanto que este poderia se tornar o
ponto de partida daqueles que desejam se dedicar a análise e cuidados de sujeitos
psicóticos.

Não trilhamos o caminho interventivo neste trabalho por considerar que o saber é
promotor da ação factual, preparando o olhar para as pequenas nuances, as repetições
do paciente, sobre o que elas tentam falar, quais são os significantes em ação, as
buscas e motivações de cada delírio, relação de parentescos e como lidam com eles.
Acreditamos que tudo isto são dados interpretativos, que quando realizados com
dedicação, e tendo em vista uma potencial reabilitação do paciente, a linha de
investigação se torna deveras recomendada.

De forma que cada um de nós, mesmo que não tenhamos estrutura psicótica,
podemos em algum momento de nossas vidas sermos psicóticos, por algo atingir
violentamente fantasias e desejos que operem em um plano sensível, promovendo
um surto sob aquelas condições. Pensar assim é não desconsiderar o poder do
77

inconsciente, pois ele rege as fantasias ao seu bel prazer, atravessando-nos a todo
instante, pois até o sonho está sob seu total controle e nos dá uma cota diária de uma
psicose permitida e que quiçá esgota toda catexia acumulada em algum aspecto que
não se lida de maneira efetiva.
78

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Moraes, 1982.

DSM-IV. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre,


Ed. Artes Médicas, 1995.

ÉPOCA, Editora Globo, 26 de setembro de 2011. Ed.697 p.13.

FOUCAULT, Michel. A História da loucura na idade clássica. 1997. São Paulo,


Perspectiva.

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Inibição, Sintoma e Angústia, Análise Leiga e outros trabalhos. Edição Standard
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1977.

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Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

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Completas de Sigmund Freud, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_______O ego e o id (1923). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas


Completas de Sigmund Freud, Vol.XIX. Rio de Janeiro. Imago, 1974.

_______Totem e tabu - Alguns pontos de concordância entre a vida mental dos


selvagens e dos neuróticos (1913[1912-13]) Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol.XIII. Rio de Janeiro. IMAGO 1974.
79

_______Três ensaios sobre a sexualidade [1905] Edição Standard Brasileira das


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