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08/04/2019 contracampo :: revista de cinema

 A PARALISIA DA AFECÇÃO
 
(sobre A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martel)

A Mulher Sem Cabeça mostra uma mulher de meia­idade,
Verónica, que atropela um ser vivo (um dos meninos que
aparecem na cena de abertura? ou o cachorro que está com
eles? ou algum outro que sequer vimos antes?) numa
estrada de terra, mas não presta socorro e segue em frente.
A cena do atropelamento é paradigmática: um plano­
sequência filmado de dentro do carro, focado no rosto de
Verónica; há um solavanco, ela pára o carro, mas não
sabemos ainda o que aconteceu, a câmera permanece nela,
o fora­de­campo se infla na nossa imaginação à medida que
nos é adiado o acesso a ele. Depois que Verónica recoloca o
carro em movimento, corta para um plano em que vemos,
pelo vidro traseiro, bem ao longe e se distanciando cada vez
mais, um corpo estendido na estrada. Os dias que se
seguem ao incidente são filmados igualmente do ponto de
vista dessa clausura empirística que pautou a cena do
atropelamento. A câmera se cola em Verónica, e uma
profusão sensorial nos impede de concatenar os fatos;
estamos mergulhados num cotidiano atormentado pela
culpa, pela dúvida, pela indefinibilidade.
   
O que quer que tenha cruzado o caminho de Verónica, sua
presença­ausência agora assombra todos os
enquadramentos do filme. O drama se internaliza e se
virtualiza, dilui­se nos espaços, na paisagem, na banalidade
cotidiana, no fundo quase sempre desfocado das imagens,
evanescendo a presença do mundo ao redor da personagem
principal à medida que o peso da consciência dela aumenta.
Os estímulos aferentes do mundo objetivo e da apreensão
sensível são desproporcionais a seus prolongamentos
subjetivos. O olhar seleciona patologicamente as partes do
real que lhe interessam e afetam. A ficção, ou o que sobra
dela, consiste na errância de uma mulher desconectada de
um arrière­monde tornado mais e mais abstrato. A narrativa
é pura passagem, passagem que não progride, não vai de A
a B, mas de A a A', A'' e assim por diante – sutis variações
em torno de um mesmo estado afetivo instaurado desde o
início. No lugar da ação, a afecção. O filme se constrói à
semelhança do comportamento de Verónica na cena do
atropelamento: dilatando o intervalo entre ação e reação (a
atuação de María Onetto, rosto transformado em placa
reflexiva imóvel, parte de um limitado repertório de nuances
de expressão). É a imagem­afecção – tal como Deleuze a
definiu em Imagem­Movimento – quase que didaticamente
exposta: a imagem que absorve uma ação exterior e reage
interiormente. 
   
Lucrecia Martel, seus longas anteriores já demonstravam,
elabora seu cinema às custas de muita amarração plástico­
conceitual e muita consciência sobre a forma. Mas o que se
prefigurava em A Menina Santa agora se confirma: o
horizonte estético da diretora é algo ali entre um blablablá
conceitual pautado por modas recentes e uma propensão ao
academicismo. A Mulher Sem Cabeça deriva não exatamente
de Antonioni, mas do que Deleuze escreveu sobre Antonioni,
sobre fracasso sensório­motor, situações puramente óticas e
sonoras etc. Se o filme se encaixa tão bem no panorama do
“cinema contemporâneo”, é porque esses conceitos, embora
já tenham sido digeridos e regurgitados há pelo menos vinte
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anos, acham­se nele reciclados pela nova norma gramatical
do cinema de autor, que prescreve como regras inalteráveis
o minimalismo narrativo e a ambiguidade generalizada.
Martel parece ter calculado (com sucesso) uma fórmula de
sutileza paradoxalmente nutrida por uma violência latente,
peça importante em sua dramaturgia desde o longa de
estréia, O Pântano. Essa violência, antes presença sólida
mesmo que encoberta, a partir de A Menina Santa começou
a soar um pouco farsante, um subterfúgio para dar
consistência e tensão a uma visuália pretensiosa mas
inoperante. A Mulher Sem Cabeça é o ápice disso, uma
sucessão de vagos exercícios de estilo. Lá pela metade do
filme, o deslumbramento de Martel com o cinemascope se
torna até ingênuo. 
   
Ela faz um cinema predestinado a festivais internacionais, o
equivalente a uma arte predestinada a museus que Valéry
criticaria pelo excesso de pontos “admiráveis” e pela falta de
“delícias”. Epítome de um novo academicismo sobre o qual
já discorri em outros textos, Martel vem sendo o farol de
muitos jovens cineastas e estudantes de cinema. Uma
sensibilidade lugar­comum que, a curto e médio prazo, só
poderá engendrar formas banais.
   
O mar agitado e a piscina com cloro
   
O melhor modo de expor o ponto central de minha recusa ao
falacioso último longa­metragem de Lucrecia Martel é
compará­lo a O Intruso, filme de uma cineasta, Claire Denis,
que também trabalha bastante as noções de fragmento e
passagem, substituindo a “trama” pelo simples (nada
simples, no fundo) impacto estético da luz, do corte, do
movimento, da apreensão fugidia de corpos que se esfregam
e se misturam. Um cinema que deriva de um olhar não mais
diante do mundo, como é em Eastwood, como foi em Hawks,
Lang, Fuller e tantos outros, mas sim imerso no mundo. 
   
Os filmes de Denis, como os de Martel, fazem o espectador
imergir nas imagens: o olhar, antes em atitude de
afrontamento, agora está envelopado, não consegue
determinar com clareza os contornos dos eventos, e por isso
os fatos filmados possuem bordas esfarrapadas, imprecisas.
Mas há uma diferença que é de natureza e não apenas de
grau: ver O Intruso é como mergulhar num mar turbulento;
ver A Mulher Sem Cabeça é tomar um banho de audiovisual
na piscina do condomínio. 
   
O tropismo de Denis pela superfície bidimensional da
imagem e pelas qualidades primárias da matéria é uma
espécie de volta ao “magma original” de onde brotam as
formas. Já em Martel, observa­se um outro movimento: das
matérias às maneiras, dos afetos aos efeitos. Outra forma
de distingui­las é a partir de um tema importante para
ambas: a intimidade. Em Denis, ela passa pelo limite fluido
entre corpos e espécies (pensar no devir­animal de seus
personagens), pela ductilidade entre o ser e o mundo
exterior (já que as fronteiras entre um e outro não são
permanentes). Em Martel, a intimidade é preparada, desde a
raiz, para o desfrute seguro dos curadores e frequentadores
de grandes festivais – uma intimidade, portanto, sem
segredo, sem confissão, somente confirmação do que já se
espera dela.
   
 Luiz Carlos Oliveira Jr.

 
 

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