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EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
POR PARCEIROS ÍNTIMOS
POLÍTICAS PÚBLICAS
NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA
FLORIANÓPOLIS | SC
UFSC
2014
POLÍTICAS PÚBLICAS FICHA TÉCNICA/CRÉDITOS 2
NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA
GOVERNO FEDERAL
Presidente da República
Ministro da Saúde
Secretário de Gestão do Trabalho e da Educa-
ção na Saúde (SGTES)
Diretora do Departamento de Gestão da Educa-
ção na Saúde (DEGES)
Coordenador Geral de Ações Estratégicas em
Educação na Saúde
Responsável Técnico pelo Projeto UNA-SUS
EQUIPE DE PRODUÇÃO
Coordenação Geral de Equipe de Produção
Eleonora Vieira Falcão
Coordenação de Produção Giovana Schuelter
Design Instrucional Agnes Sanfelici
Diagramação Fabrício Sawczen e Thiago Vieira
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC
POLÍTICAS PÚBLICAS
NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA
FLORIANÓPOLIS | SC
UFSC
2014
POLÍTICAS PÚBLICAS FICHA CATALOGRÁFICA 6
NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA
U588p
Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências
da Saúde. Curso Atenção a Homens e Mulheres em Situação
de Violência por Parceiros Íntimos - Modalidade a Distância.
ISBN: 978-85-8267-036-1
CDU: 361.1
Caro aluno,
Bons estudos!
POLÍTICAS PÚBLICAS OBJETIVO DO MÓDULO 9
NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA CARGA HORÁRIA
Ainda na década de 1970 foi aprovada a Conven- reconhecimento dos direitos das mulheres, for-
ção sobre a Eliminação de Todas as Formas de necendo alicerces para a criação de políticas de
Discriminação contra a Mulher que representou enfrentamento à violência baseada em gênero.
um novo marco histórico para o compromisso dos Os eventos mais emblemáticos desse período fo-
governos com a promoção e a proteção dos direi- ram os seguintes:
tos das mulheres.
• Conferência de Viena e seu Programa de Ação
(1993): enfatizou o reconhecimento dos direi-
Conheça na íntegra a “Convenção sobre a eliminação de tos das mulheres como parte dos direitos hu-
todas as formas de discriminação contra a mulher”. Dis- manos, nomeando a violência contra a mulher
ponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/ como violação de direitos humanos;
bibliotecavirtual/instrumentos/discrimulher.htm • Declaração das Nações Unidas sobre a Elimi-
nação da Violência Contra as Mulheres (1993):
definiu a violência em suas múltiplas formas
Entretanto, foi somente em 1990 que o setor de de manifestação e reconheceu sua prática no
saúde começou a assumir oficialmente a violên- âmbito público e privado;
cia não só como questão social, mas de saúde • Conferência sobre População e Desenvolvi-
pública (MINAYO, 2004). mento (Cairo, 1994) e sua Plataforma de Ação:
É importante assinalar que a década de 1990 especialmente por considerar que “a humani-
foi particularmente promissora em termos de dade não é um todo homogêneo, o Plano se
inclusão dos direitos das mulheres na agenda debruça sobre a existência de desigualdades
mundial de direitos humanos e na pauta política sociais, destacando grupos tradicionalmente
dos governos. Em diversos países destacam-se os mais atingidos por tais desigualdades, dentre
ciclos de conferências internacionais – regidas eles as mulheres”, e o reconhecimento dos di-
pelas Nações Unidas – que fortaleceram a luta reitos sexuais e reprodutivos como parte dos
dos movimentos sociais e contribuíram para o direitos humanos;
POLÍTICAS PÚBLICAS UNIDADE 1 14
NO ENFRENTAMENTO POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À
DA VIOLÊNCIA VIOLÊNCIA NO BRASIL
mulheres e para promover ações de erradicação Vale lembrar que tratados, convenções e pactos
da violência – baseada em gênero –, em todas as assinados pelo Brasil em fóruns internacionais e
suas formas (Machado, 2001). ratificados pelo Congresso Nacional Brasileiro têm
Com base em várias discussões em âmbito inter- status constitucional. Por outro lado, as declara-
nacional e nacional, por meio de conferências e ções internacionais e os planos de ações das con-
convenções, o Brasil construiu políticas públicas ferências internacionais são utilizados como prin-
hoje vigentes que abrangem a violência por par- cípios gerais, orientando a produção legislativa e
ceiros íntimos. No período de 1992 a 2012 muitas de políticas públicas em saúde.
alterações institucionais e legais ocorreram no A seguir apresentaremos as principais legislações e
país, no que concerne às políticas de enfrenta- políticas vigentes para subsidiá-lo no entendimen-
mento à violência contra as mulheres. Como mos- to de como estão estruturadas as formas legais e
tra o Relatório sobre o Progresso das Mulheres no jurídicas de enfrentamento à violência no Brasil.
Brasil, entre os anos de 2003 e 2010 houve sig-
nificativos avanços no enfrentamento à violência 1.2 LEGISLAÇÃO SOBRE VIOLÊNCIA
contra mulheres, que se traduzem na mudança da
legislação, na produção crescente de estudos e Em 2004, por intermédio da Portaria GM/MS nº
dados estatísticos sobre a incidência da violência 936/2004, o Ministério da Saúde (MS) iniciou a es-
contra as mulheres, na criação de serviços públi- truturação da Rede Nacional de Prevenção da Vio-
cos especializados de atendimento, e na adoção lência e Promoção da Saúde com a implantação de
de planos nacionais para enfrentar o problema. Núcleos de Prevenção à Violência e Promoção da
Saúde. O objetivo dos Núcleos é discutir a temática
e fortalecer as ações de intervenção locais, bem
Confira o “Relatório sobre o Progresso das Mulheres no como melhorar a qualidade da informação sobre
Brasil”. Disponível em: http://www.unifem.org.br/si- acidentes e violência. Em seguida, estabelece a no-
tes/700/710/progresso.pdf tificação compulsória de violência contra a mulher,
conforme dispõe a Portaria GM/MS 2.406/2004.
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NO ENFRENTAMENTO POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À
DA VIOLÊNCIA VIOLÊNCIA NO BRASIL
pulação; ou que limite ou anule o exercício de incluam os homens. A seguir estão listados os ar-
seus direitos sexuais e reprodutivos. tigos da lei que destacam essas ações.
d) Violência patrimonial: entendida como qual- Artigo 35: A União, o Distrito Federal, os Esta-
quer conduta que configure retenção, subtra- dos e os Municípios poderão criar e promover, no
ção, destruição parcial ou total de seus ob- limite das respectivas competências: centros de
jetos, instrumentos de trabalho, documentos educação e de reabilitação para os agressores
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos (BRASIL, 2006).
econômicos, incluindo os destinados a satisfa- Artigo 45, que altera a redação do art. 152 da
zer suas necessidades. Lei n° 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Exe-
e) Violência moral: descrita como qualquer con- cução Penal), que define em parágrafo único: Nos
duta que configure calúnia, difamação e injúria. casos de violência doméstica contra a mulher, o
juiz poderá determinar o comparecimento obri-
gatório do agressor a programas de recuperação
Há que se pensar que a reabilitação para os autores de e reeducação” (BRASIL, 2006).
violência contra a mulher é, junto a outras medidas ju- Assim, a criação da Lei Maria da Penha no Brasil
diciais e sociais, uma atuação necessária. Tratar o agres- foi um reconhecido avanço na área da violência
sor não significa isentá-lo de sua responsabilidade, assim contra a mulher. Apesar disso, ainda são necessá-
como é um falso dilema considerá-lo como maldoso, que rios maiores esforços da sociedade para reduzir
merece as medidas punitivas adequadas; ou como en- as desigualdades sociais que geram e reproduzem
fermo, que necessita então de um tratamento médico e as diferenças entre homens e mulheres.
psiquiátrico (Sanmartín, 2004).
1.3 POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE VIOLÊNCIA
Uma conquista importante quanto à reabilitação Em relação aos mecanismos institucionais de gê-
do agressor na Lei Maria da Penha é o reconheci- nero, ocorreu um avanço importante em 2003
mento da necessidade de implementar ações que com o reconhecimento de status ministerial dado
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NO ENFRENTAMENTO POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À
DA VIOLÊNCIA VIOLÊNCIA NO BRASIL
pelo Governo Federal à Secretaria Especial de Mulher, que admite como um dos principais te-
Políticas para as Mulheres (SPM). mas a promoção da atenção às mulheres e aos
Essa secretaria resgatou a atuação do Conselho adolescentes em situação de violência. O plano
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) na dé- tem como objetivo organizar as redes de atenção
cada de 1980, intensificou sua interlocução com integral a mulheres e adolescentes em situação
os movimentos de mulheres e foi reconhecida, de violência doméstica e sexual.
por esses movimentos, como aliada na defesa de
políticas públicas com a perspectiva de gênero.
A atuação dessa secretaria, em sintonia com os Conheça na íntegra a “Política Nacional de Atenção In-
movimentos de mulheres e em interlocução com tegral à Saúde da Mulher”. Esse documento incorpora,
o Congresso Nacional, foi de grande importância num enfoque de gênero, a integralidade e a promoção da
na aprovação da Lei Maria da Penha. saúde como princípios norteadores, procurando consoli-
No plano nacional a SPM foi, no período de 2003 dar avanços no combate à violência doméstica e sexual.
a 2010, um importante mecanismo de defesa dos Acesse esse documento que está disponível em: http://
direitos das mulheres. No plano estadual, mesmo conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2007/politica_
considerando a ampliação desses mecanismos – mulher.pdf
no final de 2010 existiam secretarias de políti-
cas para as mulheres em 23 estados brasileiros –,
grande parte deles estavam sem força capaz de Esse plano definiu algumas metas para o período
impulsionar políticas locais mais significativas. de 2005 a 2007: a integração de serviços em re-
Por outro lado, esses mecanismos locais, em arti- des locais, regionais e nacionais; a instituição de
culação com movimentos de mulheres, foram de redes de atendimento envolvendo um conjunto
grande importância para a realização de confe- de instituições; o aumento dos serviços de aten-
rências municipais e estaduais de mulheres. ção à saúde da mulher em situação de violência;
Em 2004, fruto desse processo, o MS elaborou a a ampliação do número de Delegacias Especiali-
Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da zadas de Atendimento à Mulher (Deams).
POLÍTICAS PÚBLICAS UNIDADE 1 20
NO ENFRENTAMENTO POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À
DA VIOLÊNCIA VIOLÊNCIA NO BRASIL
Como resultado da realização da II Conferência Esse pacto apresenta como eixos estruturantes:
Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2007, a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos e
a SPM elaborou o II Plano Nacional de Políticas a feminilização da Aids; o fortalecimento da rede
para Mulheres (PNPM) e, voltado especificamente de atendimento e implementação da Lei Maria da
à problemática da violência contra as mulheres, Penha; o combate à exploração sexual da mulher
o Governo Federal aprovou o Pacto Nacional de e da adolescente e ao tráfico de mulheres; a pro-
Enfrentamento da Violência contra a Mulher. moção dos direitos humanos das mulheres.
Esse pacto nacional consiste no desenvolvimen-
to de um conjunto de ações a serem executadas
no período de 2008 a 2011. Tem como meta de- Leia na íntegra o “Pacto Nacional de Enfrentamento à
senvolver políticas públicas amplas e articuladas, Violência contra as Mulheres”. Disponível em: http://
prioritariamente direcionadas às mulheres rurais, spm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2011/politi-
negras e indígenas em situação de violência, con- ca-nacional
siderando a dupla ou tripla discriminação a que
estão submetidas. O pacto estimula a articulação
federativa por meio de convênios com estados e No plano formal a legislação nacional e os tra-
municípios, disponibilizando recursos financeiros tados e as convenções internacionais ratificadas
para criação de serviços, compra de equipamen- pelo Brasil apresentam avanços quanto à insti-
tos, promoção de cursos de capacitação de agen- tucionalização de direitos, pautando-se nos prin-
tes públicos, dentre outras ações. Como resul- cípios da universalidade e da igualdade. No en-
tado dessa articulação federativa, observa-se no tanto, tais avanços não se concretizam na vida
período de 2007 a 2010 um aumento significativo de milhões de homens e mulheres, na medida
de serviços voltados à atenção às mulheres em em que se materializam por meio das políticas
situação de violência e a possibilidade de forta- implementadas pelo Estado num contexto social
lecimento dos mecanismos locais de defesa dos marcado por contradições de classe, gênero e ét-
direitos das mulheres. nico-raciais. (ROCHA, 2005).
POLÍTICAS PÚBLICAS UNIDADE 1 21
NO ENFRENTAMENTO POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À
DA VIOLÊNCIA VIOLÊNCIA NO BRASIL
avanços, desafios e experiências regionais, 2011. TRISTAO, K. M. et al. Mortalidade por causas ex-
(Relatório regional) Disponível em: <http:// ternas na microrregião de São Mateus, estado
www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_ do Espírito Santo, Brasil: tendências de 1999 a
crime/Publicacoes/Respostas_Violencia_Gene- 2008. Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília, v. 21,
ro_Cone_Sul_Port.pdf>. Acesso em: 07 out. 2013. n. 2, jun. 2012. Disponível em: <http://scielo.
iec.pa.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
OPAS (Organización Panamericana de La Salud). d=S1679-49742012000200013&lng=pt&nrm=iso>.
Resolucion XIX: Violencia y Salud. Washington, Acesso em: 09 abril 2013.
DC: Opas, 1993.
Alguns autores destacam que a atenção às mu- pela democracia no país, que em 1988 ganhou
lheres em situação de violência tem se organiza- estatuto constitucional. Entretanto, a trajetória
do de maneira fragmentada e pontual, além de de construção dessa conquista tem enfrentado
que alguns serviços não estão preparados para muitos obstáculos e desafios, tanto no que se re-
atender aos envolvidos de maneira integral. De fere à atenção aos usuários quanto no campo da
um modo geral, as vítimas de violência percor- gestão da saúde.
rem vários caminhos, em decorrência de um pro-
cesso desarticulado dos serviços, transformando
o que deveria ser um itinerário terapêutico de Acesse o documento “Política Nacional de Humaniza-
proteção da pessoa numa verdadeira via crucis, ção”. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/
repleta de preconceitos e negação de direitos. arquivos/pdf/doc_base.pdf
Em relação à assistência, o profissional de saúde
tende a fragmentar ação e objeto de trabalho,
reduzindo a abordagem da saúde (doença) aos Como um dos marcos iniciais desse debate da hu-
saberes biomédicos desarticulados do contexto manização no SUS, podemos apontar o final dos
biopsicossocial (LACERDA, 1998). anos de 1990. Depois de uma década de funciona-
mento do SUS, a situação problemática em que se
2.2 HUMANIZAÇÃO DA ATENÇÃO E DA GES- encontravam a atenção ao usuário e as condições
TÃO DO SUS de trabalho dos agentes de saúde – prejudicando
o acesso e a qualidade dos serviços de saúde – le-
Entender o locus que a Política Nacional de Hu- vou o Ministério da Saúde (MS) a inserir a humani-
manização (PNH) ocupa no âmbito do SUS atual- zação no SUS como pauta de sua agenda institu-
mente requer situá-la historicamente no proces- cional. Assim, durante a 11ª Conferência Nacional
so de construção da efetivação mais radical do de Saúde, ocorrida em 2000, a humanização se
sistema de saúde. Como apontam Pasche e Passos tornou pauta no debate do SUS, traduzida mais
(2008), o SUS é uma conquista nascida das lutas formalmente pela escolha do tema central: “Efe-
POLÍTICAS PÚBLICAS UNIDADE 2 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO A HOMENS 29
NO ENFRENTAMENTO E MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DA VIOLÊNCIA
tivando o SUS – acesso, qualidade e humanização mento à saúde, promovendo o respeito à dig-
da atenção à saúde com controle social” (CONFE- nidade humana. Simultaneamente outras duas
RÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 2001). iniciativas do Ministério da Saúde surgiam, volta-
Simultaneamente ao debate político, no mesmo das à humanização: o Programa de Humanização
ano, o Ministério da Saúde, sensível às manifes- no Pré-Natal e Nascimento (2000) e a Norma de
tações setoriais e às diversas iniciativas locais de Atenção Humanizada do Recém-Nascido de Baixo
humanização das práticas de saúde, criou o Pro- Peso – Método Canguru (2000) (BENEVIDES; PAS-
grama Nacional de Humanização da Assistência SOS, 2005).
Hospitalar (PNHAH). Entretanto, o fato de o PNHAH enfocar apenas
Esse programa estimulava a disseminação das instituições hospitalares e restringir-se à assistên-
ideias da humanização, os diagnósticos situacio- cia, sem um método que avançasse efetivamente
nais e a promoção de ações humanizadoras de sobre a raiz das causas associadas ao quadro de
acordo com realidades locais, com o objetivo esgotamento da saúde, levou o MS a extingui-lo
de fomentar ações para a melhoria da qualida- em 2002. Ao analisar o sentido de humanização
de da atenção à saúde, porém restritas ao âm- contido nos documentos do PNHAH, Deslandes
bito hospitalar e à dimensão assistencial, focan- (2004, p. 13) critica assinalando como:
do inicialmente em ações voltadas ao usuário
e, posteriormente, ao trabalhador. Inovador e
bem construído, o programa tinha forte ênfase [...] aspecto fundamental e pouco explorado nos docu-
na transformação das relações interpessoais pelo mentos (do PHNAH) diz respeito às condições estruturais
aprofundamento da compreensão dos fenômenos de trabalho do profissional de saúde, quase sempre mal
no campo das subjetividades. remunerado, muitas das vezes pouco incentivado e su-
No PNHAH o foco era a criação de Grupos de Tra- jeito a uma carga considerável de trabalho. Humanizar
balho de Humanização Hospitalar (GTH), cujo a assistência é humanizar a produção dessa assistência
papel centrava-se na condução de um processo (DESLANDES, 2004, p. 13).
permanente de mudança da cultura de atendi-
POLÍTICAS PÚBLICAS UNIDADE 2 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO A HOMENS 30
NO ENFRENTAMENTO E MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DA VIOLÊNCIA
No início de 2003, após análise situacional do Um dos maiores desafios da PNH, desde o início,
PNHAH, o MS decidiu fazer uma aposta na huma- tem sido o de conferir à humanização o sentido
nização como re-encantamento do SUS, seu for- desejado pela política. Trata-se de um termo po-
talecimento como política pública, incorporando lissêmico, permitindo vários enunciados, perme-
o ideário da reforma sanitária. Assim nasceu a ados por várias imprecisões e conflitos de inter-
Política Nacional de Humanização da Atenção e pretações, refletindo distintas práticas de gestão
Gestão do SUS (PNH), que passou a ter status e e de atenção encontradas na saúde (HECKERT;
espaço de política e incorporou definitivamente PASSOS; BARROS, 2009). É possível encontrar sen-
a ideia da integralidade no sistema, abrangendo tidos diversos nas produções sobre humanização,
todos os níveis de atenção e a inseparabilidade e que não correspondem ao seu marco ético-po-
das práticas de atenção e de gestão. lítico. Sentidos associados à ideia de voluntaris-
mo, assistencialismo, paternalismo, ou mesmo
de caridade, ser bom e educado, entre outros,
Para conhecer mais sobre a “Política Nacional de Huma- distanciam-se da PNH e provocam o que Fuganti
nização da Atenção e Gestão do SUS”acesse o documen- (1990) aponta como práticas marcadas por ações
to disponível em: www.ufjf.br/hu/files/2010/07/DADOS individualizadas, tutelares e compassivas, abso-
-BASICOS-HUMANIZAÇÃO.pdf lutamente contrários àquele impresso na PNH.
O sentido de humanização proposto pela PNH é o
da valorização dos diferentes sujeitos implicados
Supera-se assim o nível de programa, assumindo no processo de produção de saúde, valorização
a PNH ou HumanizaSUS um status de política em entendida como fomento da autonomia, prota-
virtude de colocar-se transversalmente aos dife- gonismo e corresponsabilidade entre os sujeitos
rentes setores e programas do Ministério da Saú- da saúde. Ao mesmo tempo, assume-se implicita-
de, focando na valorização da dimensão humana mente o estabelecimento de vínculos solidários,
nas práticas de saúde como proposta para a pro- de participação coletiva no processo de gestão,
dução de um plano comum no SUS. no mapeamento, e interação com as demandas
POLÍTICAS PÚBLICAS UNIDADE 2 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO A HOMENS 31
NO ENFRENTAMENTO E MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DA VIOLÊNCIA
sociais, coletivas e subjetivas de saúde, bem como ção – portanto, em movimento – e que há um SUS
a defesa de um SUS que reconhece a diversidade, que dá certo, mas também apresenta grandes fragi-
sem quaisquer tipos de distinção (BRASIL, 2008). lidades e desafios a serem enfrentados, surgiram os
princípios, o método, as diretrizes e os instrumen-
tos de ação, os denominados dispositivos da PNH.
Esse sentido de valorização dos sujeitos configura-se A PNH ancora-se numa tríade de princípios arti-
como um dos eixos fundamentais para o debate sobre culados e indissociáveis:
políticas públicas voltadas a situações de violência, pois • indissociabilidade entre modos de gestão e
se colocam em foco os valores que balizam o olhar sobre de atenção à saúde, que são mutuamente in-
a realidade das relações violentas e os princípios que fluenciados e determinados – ou seja, a po-
sustentam as escolhas políticas e a estruturação das prá- lítica e a clínica são vistos como elementos
ticas de saúde no enfrentamento dessa realidade. inseparáveis, como dimensões presentes nas
práticas de saúde;
• transversalidade de saberes, poderes e afe-
Para pensar a realidade das práticas de saúde, tos na ação cotidiana dos serviços e das prá-
a PNH aponta para um processo de criação que ticas de saúde;
envolve três dimensões: ética, porque implica a • autonomia e protagonismo dos sujeitos e cole-
mudança de atitude de usuários, gestores e tra- tivos, que aposta na ação transformadora dos
balhadores de saúde em direção à corresponsabi- sujeitos na produção de serviços, de si pró-
lização pela qualidade das ações e dos serviços; prios e do mundo.
estética, por se tratar do processo de produção Para dar sentido concreto a esses princípios, o
de saúde e de subjetividades autônomas e prota- HumanizaSUS elegeu o princípio da inclusão, am-
gonistas; política, porque diz respeito à organiza- plificando-o e qualificando-o como método da trí-
ção social e institucional das práticas de atenção plice inclusão:
e gestão na rede do SUS (SANTOS FILHO, 2009). • inclusão de sujeitos – inclusão de trabalhado-
Com a constatação de que o SUS está em constru- res, usuários e gestores nos arranjos, proces-
POLÍTICAS PÚBLICAS UNIDADE 2 – HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO A HOMENS 32
NO ENFRENTAMENTO E MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DA VIOLÊNCIA
sos e dispositivos de gestão, na clínica e na arranjos operativos para promover mudanças nos
saúde coletiva; processos de trabalho. Essas diretrizes operacio-
• inclusão de coletivos, redes e movimentos so- nalizam-se por meio de dispositivos e arranjos de
ciais – o SUS se consolida tomando por base a processos de trabalho com os quais atua na prá-
experiência coletiva, como síntese da pluralida- tica, em contextos políticos, sociais e institucio-
de de interesses e necessidades heterogêneas; nais. Na PNH foram desenvolvidos vários dispositi-
• inclusão de analisadores sociais – inclusão de acon- vos postos a funcionar nas práticas de produção de
tecimentos, perturbações que produzem análise saúde, envolvendo coletivos e visando promover
e rupturas, o que impõe aprender a lidar e gerir mudanças nos modelos de atenção e de gestão.
conflitos, entendidos como espaços de abertura, Então, quais são as diretrizes e os dispositivos
condição necessária à produção de mudanças da PNH? No quadro a seguir são apresentadas as
(BENEVIDES; PASSOS, 2005; PASCHE, 2009). principais diretrizes, com alguns dispositivos cor-
respondentes. Porém, é importante ressaltar que
no processo de produção de saúde a PNH incen-
Humanizar significa incluir as diferenças nos processos tiva a criação de novos dispositivos como ferra-
de gestão e de cuidado, construindo, de modo coletivo mentas potencializadoras da transformação das
e compartilhado, novos modos de cuidar e novas formas práticas de saúde no SUS.
de organizar o trabalho. Mas de que modo incluir? A PNH
aposta no diálogo, nas rodas de conversa, no incentivo
a redes e movimentos sociais e na gestão dos conflitos
gerados pela inclusão das diferenças.
DIRETRIZES DISPOSITIVOS
ACOLHIMENTO
Escuta qualificada que possibilita analisar a demanda, garantir atenção Acolhimento com classificação de riscos
integral, resolutiva e responsável por meio do (a) acionamento (articulação)
das redes internas dos serviços (visando à horizontalidade do cuidado) e das
redes externas, com outros serviços de saúde e de outros setores sociais, para
a continuidade da assistência quando necessário.
CLÍNICA AMPLIADA
A ampliação da clínica implica: 1) tomar a saúde como seu objeto; 2) ampliar o Projeto Terapêutico Singular
grau de autonomia dos sujeitos; 3) articular o saber clínico e epidemiológico, Projeto de Saúde Coletiva
assim como a história dos sujeitos; 4) considerar a complexidade biopsicosso- Equipe Transdisciplinar de Referência e de Apoio
cial das demandas de saúde na intervenção terapêutica. Matricial
t=sci_arttext&pid=S010412902004000300004&ln- www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
g=en&nrm=iso>. Acesso em 29 set. 2013. d=S0104-07072010000300002&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 01 out. 2013.
FUGANTI, L. A. Saúde, desejo e pensamento. In:
LANCETTI, A. (org.) Saúde e Loucura. São Paulo: SANTOS FILHO, Serafim Barbosa. Avaliação e hu-
Hucitec, 1990. manização em saúde: aproximações metodológi-
cas. Ijuí: Editora Unijuí, 2009.
GOULART, B. N. G.; CHIARI, B. M. Humanização das
práticas do profissional de saúde: contribuições
para reflexão. Rev. Ciência & Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, v. 15, n. 1, jan. 2010, p. 255-268.
mulheres como traumas, gravidezes indesejadas profissionais para perceber sinais e auxiliar no
e repetidas, doenças sexualmente transmissí- enfrentamento das situações de violência, bem
veis, hemorragias, lesões e infecções gineco- como a fragilidade das políticas e dos programas,
lógicas e urinárias, distúrbios gastrointestinais prejudica a organização de uma atenção qualifi-
crônicos e depressão. Diante de tantos reflexos cada a essas situações.
negativos sobre a vida da mulher, a violência
muitas vezes leva ao óbito, tanto por homicídio
quanto por suicídio. Apesar do crescente reconhecimento da violência como
Em relação aos homens, o estudo conduzido por um problema de saúde, e de suas consequências na vida
Coker et al (2002) concluiu que a violência físi- das pessoas, por que os profissionais de saúde ainda en-
ca ocasionada pela parceira íntima representou contram dificuldades para identificar, acolher e atender
pior autopercepção de saúde, maiores taxas de homens e mulheres em situação de violência conjugal?
sintomas depressivos, uso abusivo de álcool e ou-
tras drogas, doença mental crônica e lesões em
comparação com aqueles que não vivenciaram Os serviços de saúde são estratégicos no que diz
esse tipo abuso. respeito à assistência integral necessária em situ-
Tanto para os homens quanto para as mulheres ação de violência e nas ações de prevenção, uma
as consequências da violência são traduzidas, so- vez que estão comprovadas as repercussões da
bretudo, pelo surgimento de múltiplas queixas violência sobre a saúde. Porém, o atendimento
somáticas, aspecto particularmente negativo que a situações de violência no âmbito da saúde per-
se refere ao fato de a violência ainda ser pouco manece invisível. Assim, mesmo estando em posi-
abordada pelos profissionais de saúde, em de- ção privilegiada para identificar sinais e sintomas
corrência de múltiplos fatores culturais, sociais, de violências intrafamiliares nos seus processos
políticos e técnicos. Do ponto de vista cultural, de trabalho, esta parece não ser ainda uma prá-
a violência ainda representa um tabu, o que con- tica corrente entre os profissionais de saúde da
tribui para manter-se velada. O despreparo dos Atenção Básica.
POLÍTICAS PÚBLICAS UNIDADE 3 – A VIOLÊNCIA NA ATENÇÃO À SAÚDE 41
NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA
Esses princípios éticos são deveres independentes, ma de tudo, uma atitude compreensiva e não
não excludentes, cujo exercício é condicionado às julgadora, que contribua para evitar o dano.
circunstâncias do atendimento nos diversos momentos Também é papel do profissional evitar o ques-
de sua execução (HIRSCHHEIMER e BARSANTI, 2011). tionamento repetido à pessoa agredida, sobre
Entretanto, nesse contexto, outros princípios éticos o mesmo aspecto do problema, a fim de impe-
são fundamentais para garantir a atenção integral dir que se forme um processo de revitimização.
aos sujeitos envolvidos na situação de violência. • Tempo e decisões pessoais – ao sofrer violên-
Dentre eles, destacam-se os que seguem. cia, cada pessoa lida com essa situação com
• Sigilo e segurança – o compromisso da confi- as condições emocionais e materiais de que
dência é fundamental para conquistar a con- dispõe. Muitas vezes o fato de ela solicitar au-
fiança do usuário. O manejo e as ações da xílio não significa que está apta a colocá-lo
equipe devem incluir mecanismos para pro- em prática, em razão dos complexos efeitos
teger o segredo das informações, visto que o da violência sobre sua saúde mental. Não é
respeito a esse princípio ético encoraja ho- papel do profissional acelerar esse processo
mens e mulheres em situação de violência a ou tentar influenciar as decisões das pessoas,
procurarem ajuda, além de proteger a vítima muito menos as culpabilizar por permanece-
da discriminação que pode resultar da revela- rem na relação de violência, mas sim confiar
ção de informações pessoais. e investir na sua capacidade para enfrentar os
• Intervenção e não dano – abordar situações de obstáculos (BRASIL, 2001b).
violência intrafamiliar significa desbravar um
caminho complexo e delicado. O ato de expor
detalhes pessoais e dolorosos ao outro pode Leia o artigo “Bioética e Atenção Básica: um perfil dos
fragilizar ainda mais a pessoa vitimada, pro- problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos do
vocando fortes reações negativas. Portanto, o Programa Saúde da Família, São Paulo, Brasil”. Disponí-
profissional deve estar consciente dos efeitos vel em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v20n6/28.pdf.
de sua intervenção e capacitado a adquirir, aci-
POLÍTICAS PÚBLICAS RESUMO DA UNIDADE 46
NO ENFRENTAMENTO
DA VIOLÊNCIA
COKER, A. L. et al. Physical and Mental Health SCHRAIBER, L. A. F. et al. Violência vivida: a
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POLÍTICAS PÚBLICAS MINICURRÍCULO 49
NO ENFRENTAMENTO DOS AUTORES
DA VIOLÊNCIA