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Capítulo 1

O insucesso escolar
no brasil do século XX
Um processo de exclusão social

(FONTE: Mafalda –http://www.educar.files.wordpress.com/2007/01/ Neste capítulo, o leitor refletirá


mafalda.jpg acesso em 18/01/2009)
sobre os conceitos de fracasso/
insucesso escolar, exclusão
social, sucesso escolar improvável;
atualizar-se-á em relação aos
dados recentes no Brasil sobre
repetência, evasão e fracasso/
insucesso escolar e acesso e
permanência escolar; aprenderá
alguns procedimentos de avaliação
e obtenção de indicadores de
escolarização, por meio do
exercício da metodologia de
estudos de casos e narrativas de
vida; poderá se identificar como
brasileiro numa cultura recente
de escolaridade de mais longa
duração, popularização de im-
pressos e democratização dos
letramentos, podendo assumir
uma postura protagonista em
relação ao muito que a escola
(FONTE: http://www.stockxpert.com/browse_image/view/565036
pode fazer para minorar a
acesso em 11/05/2009 exclusão social.

O insucesso escolar no brasil do século XX


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Souyla está cursando a 2ª série do 1º grau. Seu pai, ex-operário da constru-
ção civil, não qualificado, está aposentado. Ele e sua mulher, dona de casa,
são analfabetos, dominam com dificuldade a língua francesa e têm um
conhecimento bastante restrito do sistema escolar (de seu funcionamento
cotidiano, do desempenho de seus filhos, das aulas que frequentam...). O
casal teve onze filhos e vive na periferia de uma grande cidade. Souyla
está indo muito bem na escola (Bernard Lahire, Sucesso escolar nos meios
populares — as razões do improvável, p. 11).

É desta maneira que Bernard Lahire, um sociólogo da educação


francês, começa seu interessante livro Sucesso escolar nos meios popu­
lares — as razões do improvável, dedicado a estudar casos de sucesso
escolar que tinham tudo para dar em fracasso escolar, mas que, impon-
deravelmente, acabaram como casos de sucesso. O caso de Souyla na
França lembra muitos casos e contextos familiares brasileiros, confir-
mados inclusive por pesquisas regulares de letramento1 no Brasil, como
é o caso da pesquisa responsável pelo INAF — Indicador Nacional de
Alfabetismo Funcional, levado anualmente a cabo pelo IBOPE para o
Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa2.

Podemos, por exemplo, comparar o caso de Souyla com o brasilei-


ríssimo e comum caso de Zé Moreno, narrado por Ana Maria Galvão
(2003: 146-147):

Zé Moreno, negro, “daqueles que vão atrás de maracatu”, nasceu em 1925,


em um engenho em Nazaré da Mata, cidade da zona da mata pernambu-
cana, onde o índice de analfabetismo era, em 1940, entre a população com
mais de 5 anos, de 81% entre os homens e 87% entre as mulheres (IBGE,
1950). Entre os alfabetizados, que o entrevistado denomina “bambambans”
ou “os tais”, estavam seu pai, encarregado do engenho, e seu tio. Esses dois
personagens marcaram profundamente a trajetória de vida de Zé Moreno.
Como eles, o menino também queria saber ler para poder participar mais
ativamente dos “serões” em que ocorria a leitura coletiva e oralizada dos
folhetos de cordel. Era a experiência do prazer de ler que movia Zé Moreno

1
Este conceito será discutido e aprofundado mais adiante. Tomemos, por enquanto,
letramento como a participação nas práticas sociais que, de alguma maneira, envolvem
a leitura e a escrita (Kleiman, 1995).
2
Ver, a respeito, Ribeiro (org.) (1992), Letramento no Brasil. São Paulo: Global.

14 LETRAMENTOS MÚLTIPLOS: ESCOLA E INCLUSÃO SOCIAL | ROXANE ROJO


a procurar os meios formais de escolarização. Chegou a frequentar a escola,
mas, segundo seu depoimento, nela, onde “só fazia aprender bobagem”,
“só viu a Carta do ABC e nem toda”.[...]
Zé Moreno migrou para ao Recife aos 16 anos e, depois de trabalhar em pe-
quenos serviços — como em uma padaria, por exemplo –, foi taxista durante
a maior parte de sua vida. O fato de ser taxista lhe permitia conversar com
muita gente, “conhecer o mundo”. O fato de ser homem e de morar em um
centro urbano importante também possibilitou sua inserção em esferas onde
as práticas de letramento eram permanentes. Na época em que foi entrevis-
tado, Zé Moreno era um leitor “fluente”: assiduamente, lia revistas, jornais,
romances policiais, histórias em quadrinhos, “poesia matuta” (no suporte
livro ou no suporte folheto), possuía livros e outros materiais de leitura na
pequena casa onde morava, reconhecia signos da cultura letrada como, por
exemplo, o índice e o prefácio de um livro, e distinguia gêneros literários —
como a prosa e a poesia.
Como se deu sua trajetória como leitor? Além da precária alfabetização
inicial, segundo as palavras do entrevistado, foi o “professor mundo” quem
lhe ensinou quase tudo.

Entre Zé Moreno e Souyla há mais diferenças que semelhanças. Na


história de letramentos de Zé Moreno, as figuras masculinas letradas —
o pai, o tio — são marcantes e o despertam para as letras e, mais tarde,
para os livros. Souyla convive com analfabetos. Para Zé Moreno, a esco-
la foi inútil e irrelevante e ele logo a abandonou (ou foi abandonado por
ela). Na história de Souyla, talvez ela venha a ser fundamental. No caso
de Zé Moreno, resta saber de quem é o fracasso: se de Zé Moreno ou se
dos “bambambans” da escola.

No Brasil dos séculos XIX e XX, a trajetória de Zé Moreno é exem-


plar. Durante o século XX quase todo, até a década de 1990, a relação da
escola com os meios populares é de exclusão e de fracasso. Os dados são
impressionantes. Ferraro (2002: 33) vai apontar duas “dinâmicas opostas
do analfabetismo” convivendo simultaneamente no Brasil dos séculos XIX
e XX: “A queda secular da taxa porcentual de analfabetismo e o aumen-
to, também secular, do número absoluto de analfabetos”. Paradoxal, não?
Vejamos os dados na tabela 1. Nela constatamos que, portanto, há um de-
créscimo progressivo das taxas de analfabetismo no país, que se manteve
estável em torno dos 80% da população no século XIX e início do XX, mas

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que começa a declinar por volta dos anos 1940 e que se acelera no final
do século, de 1990 a 2000, chegando a 16,7% da população. No entanto, o
decréscimo é desproporcional ao crescimento populacional. Os gráficos 1
e 2, também retirados de Ferraro (2002: 35), mostram essa dinâmica.

Tabela 1: Evolução do número de analfabetos e da taxa de analfabetismo entre


a população de 5 anos ou mais, 10 anos ou mais e 15 anos ou mais, segundo
os censos demográficos. Brasil, 1872 a 20003
POPULAÇÃO
ANO DO CENSO NÃO ALFABETIZADA
TOTAL
NO %
a) População de 5 anos e mais
1872 8.854.774 7.290.293 82,3
1890 12.212.125 10.091.566 82,6
1920 26.042.442 18.549.085 71,2
1940 34.796.665 21.295.490 61,2
1950 43.573.517 24.907.696 57,2
1960 58.997.981 27.578.971 46,7
1970 79.327.231 30.718.597 38,7
1980 102.579.006 32.731.347 31,9
1991 130.283.402 31.580.488 24,2
2000 153.423.442 25.665.393 16,7
b) População de 10 anos ou mais
1940 29.037.849 16.452.832 56,7
1950 36.557.990 18.812.419 51,5
1960 48.839.558 19.378.801 39,7
1970 65.867.723 21.638.913 32,9
1980 87.805.265 22.393.295 25,5
1991 112.860.254 21.330.966 18,9
2000 136.881.115 17.552.762 12,8

c) População de 15 anos ou mais


1920 17.557.282 11.401.715 64,9
1940 23.709.769 13.242.172 55,9
1950 30.249.423 15.272.632 50,5
1960 40.278.602 15.964.852 39,6
1970 54.008.604 18.146.977 33,6
1980 73.542.003 18.716.847 25,5
1991 95.810.615 18.587.446 19,4
2000 119.533.048 16.294.889 13,6

3
Retirado de Ferraro (2002: 34): Fontes: Para 1872, 1890 e 1920, ver: Brasil, Recensea­
mento Geral do Brasil 1920, v. IV, 4ª parte - População, e IBGE, Censo 1940, os quais

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Gráfico 1: Tendência secular das taxas de analfabetismo entre a população
de 5 anos ou mais, 10 anos ou mais e 15 anos ou mais, segundo os censos
demográficos. Brasil, 1872 a 2000.
% de analfabetos

Gráfico 2: Tendência secular do número de analfabetos entre a população de 5


anos ou mais, 10 anos ou mais e 15 anos ou mais, segundo os censos demo-
gráficos. Brasil, 1872 a 2000.
analfabetos

reproduzem os dados dos censos anteriores. Para os demais censos, ver: IBGE, Censo
demográfico, 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000. O Censo de 1900 não foi con-
siderado em razão das distorções sobre o analfabetismo resultantes do sub-recensea-
mento de extensas áreas rurais em alguns estados. Sobre isto ver: Brasil, Recenseamento
Geral 1920, e Ferrari (1985).

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