Você está na página 1de 6

ARTHUR DANTO E O FIM DA ARTE

Prof. Dr. João Epifânio Regis Lima

Em tempos de Bienal, nunca é inoportuno falar sobre arte. Especialmente porque


o tipo de arte ali exposta nem sempre corresponde àquilo que o senso comum assim
costuma classificar. Por isso mesmo, não se pode dizer, infelizmente, que as Bienais
internacionais sejam propriamente eventos populares, apesar dos valiosos esforços de
curadores e artistas para mudar esse quadro. Assim, vimos a Bienal ir às ruas, em sua
última edição de 2008, e espalhar obras por toda a cidade, e lembramos da tentativa de
Hélio Oiticica de trazer para dentro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, na
exposição Opinião 65, a ala de passistas da Mangueira, que foi proibida de desfilar com
seus parangolés dentro do museu. A festa teve que ser feita do lado de fora e o público
adorou.

Adorou, mas à custa de muito rebolado. Temos aqui algo de diferente em relação
ao modo como o público se relaciona com as obras de arte, se compararmos, por
exemplo, com a maneira como isto se daria em uma exposição de arte do Renascimento.
Nesse caso, um conhecimento profundo acerca da estética desse período não é condição
de possibilidade para a apreciação das obras. A fruição decorre de uma experiência
estética que envolve pura contemplação, sem recurso necessário à história da obra ou de
seu autor. Isso porque, em grande medida, os códigos envolvidos em sua produção e
avaliação costumam ser partilhados por todos os membros de uma determinada cultura,
advertidamente ou não, por envolverem um decoro e cânones estéticos consagrados por
uma tradição. É assim que se tornava possível a um vitral gótico, por exemplo, ser lido e
compreendido pela população, em grande parte analfabeta, que a ele tinha acesso. Além
disso, em paradigma mimético, a imitação dos mestres é valor estético que resulta em
reprodução modelar de procedimentos e composições, de modo que o que faz a obra
saltar aos olhos é a engenhosidade do artífice, capaz de introduzir o novo, mesmo
estando de mãos atadas, em um universo que, de outra maneira, estaria condenado à
mesmice. A arte opera, nesse período, antes dele e ao menos até o século XVII, uma
reprodução de tópicas (lugares-comuns) consagradas, requisitadas, todas elas, às
oficinas nos infindáveis contratos que impulsionavam e garantiam a produção artística
naquele período, como nos mostra a deliciosa obra de Michael Baxandall, O olhar
renascente.

É outro o caso da arte contemporânea. Para Arthur Danto, filósofo americano e


professor da Universidade de Columbia de Nova York que tem dado uma importante
contribuição para o pensamento acerca da arte produzida nos dias de hoje, essa história
a que nos referimos no parágrafo anterior chegou a seu ponto final. É o que diz em seu
artigo O fim da arte (1984) e em seu livro Após o fim da arte (1997). É importante notar
que, com a ideia de fim da arte1, Danto não quer dizer que não há mais artistas, que
ninguém mais produz arte ou que não se produz arte de qualidade. A ideia é que um
determinado modo segundo o qual a arte se desdobrou na história encontra o seu fim.
Tal modo obedece primeiramente, segundo Danto, a um paradigma mimético – definido
pela imitação do mundo externo ou do mundo interno – e, em seguida, às ideologias dos
manifestos dos modernos. Tudo isso, agora superado, cede lugar à situação em que nos
encontramos hoje, na qual não há mais regras definidas a serem seguidas ou manifestos
a serem defendidos na produção estética. Do mesmo modo, não há mais escolas ou
vanguardas, mas uma pulverização das normas e preceptivas e proliferação de conceitos
e procedimentos, que desafiam a própria definição de arte. A partir desse ponto, cada
caso é um caso, cada obra uma obra, que define, tão autonomamente quanto possível, as
normas de sua própria leitura. Em outro texto, A transfiguração do lugar-comum
(1981), Danto comenta que não é mais possível dizer se um objeto é artístico ou não
apenas olhando para esse objeto. Não há diferença visível, por exemplo, entre as caixas
de sabão Brillo feitas de madeira e pintadas a mão por Andy Warhol (como não-ready-
mades) e expostas nos museus e as caixas de sabão de verdade que podemos ver nas
prateleiras dos supermercados. Do mesmo modo, como diferenciar as famosas latas de
sopa Campbell tidas como objetos de arte, também de Warhol, da infinidade de outras
latas de sopa que se confundem com os objetos comuns? A perplexidade das pessoas
diante desse tipo de situação, tão comum na arte contemporânea, pode ser uma das
razões principais para que elas se afastem dos museus e das bienais. Danto admite que,
nos dias de hoje, virtualmente qualquer coisa pode ser considerada arte, bem como
virtualmente qualquer um pode ser considerado artista. É necessário, portanto,
estabelecer um critério de demarcação que possa dar fim ou aliviar esse incômodo. No
critério proposto por Danto, a principal diferença entre um objeto de arte e um objeto
comum está justamente no fato de que as obras de arte incorporam um significado não
partilhado com os objetos comuns. Dito de outro modo, as caixas de sabão tidas como
obras de arte ressignificam aquelas que não o são.

Para que essa ressignificação seja possível e seja capaz de orientar a


discriminação entre o que pode e o que não pode ser classificado como arte, Danto
recorre ao conceito de Mundo da Arte, noção que influenciará, posteriormente, a
elaboração da teoria institucional da arte por George Dickie. Por Mundo da Arte, o
filósofo americano entende o conjunto dos elementos teóricos, históricos e culturais que
fornece as condições para considerar um objeto qualquer como arte. Na concepção de

1
Eis como o próprio Arthur Danto diferencia sua noção de fim da arte daquela proposta por Hegel:
“Hegel acreditava que a arte não mais encontrava as necessidades espirituais da humanidade. Somente a
filosofia poderia encontrá-las. Minha visão é a oposta.
 Por causa de seu pluralismo radical, a arte é capaz
de encontrar nossas necessidades espirituais de beleza – pense em arte feminista, arte gay ou no
multiculturalismo. Mas a filosofia perdeu sua capacidade de fazer algo por alguém. Ninguém pode pensar
como Hegel hoje em dia. Minha visão do fim da arte é baseada na história interna da arte. Sua natureza
filosófica emergiu para a consciência filosófica na década de 1960. Para Hegel, o fim da arte está baseado
em sua filosofia do espírito – passamos da fase da arte e entramos na fase da filosofia. Mas no século XX,
caímos verdadeiramente em tempos difíceis. Ninguém sabe realmente o que ela é, para mais além.”
Entrevista concedida à Folha de São Paulo, Caderno Mais! de 19 de março de 2006.

2
Dickie, o mundo da arte é definido como o campo de ação da arte, no qual atuam
instituições (museus e galerias), pessoas (artistas, produtores, marchands, críticos e
estudiosos de arte) e toda a infraestrutura envolvida na produção, circulação e
comercialização das obras de arte. Nas palavras do próprio Danto (1964, p. 580):

“Vislumbrar algo como arte requer algo que o olho não pode
desprezar – uma atmosfera de teoria sobre a arte, um conhecimento da
história da arte: um mundo da arte.”

Isso é completamente distinto da experiência estética puramente contemplativa a


que nos referimos há pouco, adequada à apreciação da arte antes do século XVIII. Essa
situação seria extensível aos nossos dias apenas no caso de o apreciador da obra estar
imerso em um certo universo de códigos e valores estéticos que desempenhem o papel
de mundo da arte conforme foi definido acima. Ocorre, entretanto, que a proliferação de
valores, contextos e procedimentos adotados pelos artistas contemporâneos torna
extremamente difícil o estabelecimento de referências claras para balizar a experiência
estética. Por essa razão, é desejável uma mínima preparação prévia para o visitante de
uma exposição de arte contemporânea para que ele possa se inteirar do universo no qual
circula cada uma das obras expostas e cada um dos artistas expositores. Dessa forma, o
público estará em condições de penetrar em dimensões das obras que estão para além
daquele primeiro contato superficial e pouco elaborado (por mais instigante que possa
ser). Não se trata de desprezar essa rica experiência imediata e desinteressada, mas de
abrir-se a outras possibilidades de exploração das obras, o que, certamente, enriquece a
experiência estética. Essa preparação prévia é parte de uma exigência recente das obras
de arte, a saber, a efetiva participação do público na obra, que assim se torna mais do
que mero espectador.

É assim que muitas obras aparentemente despropositadas ou sem sentido


adquirem uma significação relevante. Podemos citar como exemplo a música concreta
de Pierre Schaeffer, que proporciona uma audição difícil para o ouvido desavisado, já
que Schaeffer se utiliza de ruídos como matéria compositiva. Entretanto, essas
composições tornam-se muito mais interessantes à medida que se toma conhecimento
das motivações teóricas e estéticas que estão na base das experiências feitas pelo
compositor. Schaeffer estava interessado em emancipar o ruído incluindo-o no rol dos
sons musicais. Considerava um absurdo ter que limitar-se, em suas composições, à
paleta de timbres disponível em uma orquestra tradicional. Se ao pintor não é imposta
uma paleta de cores fechada, não seria justo impor tal limitação ao compositor. Aliada a
esta preocupação, havia também uma tendência, no referido compositor, de dar um
tratamento fenomenológico – na perspectiva de Husserl – à experiência da escuta
musical. Assim, Schaeffer propunha uma reeducação da escuta musical de maneira a
tornar possível para o ouvinte a busca da essência (eidos) dos sons – enquanto
fenômeno – no modo como estes aparecem para uma consciência auditiva que a eles se
lança intencionalmente. A busca pela essência é também a busca pelo núcleo estético-
epistêmico da música, o que abre um possível caminho para a conquista da autonomia
da música enquanto modalidade artística.

3
Algo semelhante ocorre com a apreciação de obras como a pintura Quadrado
preto sobre fundo branco de Kasimir Malevitch. Que graça pode haver em uma pintura
que mostra, tão simplesmente, um quadrado preto pintado no centro de uma tela branca?
Ora, tal obra somente revela seu pleno sentido quando abordada a partir da perspectiva
do suprematismo. É necessário ter em mente que o pintor busca, nesse caso, fugir a
qualquer tipo de representação (re-apresentação) do mundo. Ao invés de re-apresentar
o que já está dado, cumpre apresentar algo novo e não dado. Declina o figurativismo,
assoma o abstracionismo. Assim, a pergunta que se faz é: como pintar, sem pintar algo?
Não se trata de perguntar como não pintar, pergunta que não traria dificuldades, mas
como pintar nada, ou como pintar coisa alguma. Das inúmeras respostas possíveis a essa
pergunta, Malevitch propõe pintar algo que não existe na natureza – uma forma
geométrica pura – e que, portanto, se apresenta de modo inaugural em vez de re-
apresentar algo já previamente existente.

Seriam inúmeros os exemplos de obras de arte contemporânea cuja leitura exige


imersão no referido mundo da arte. Resta-nos deixar um convite à mudança de postura
da população em geral em relação aos museus e exposições. Quando entendermos que
museus devem ser frequentados e não apenas visitados estaremos criando as condições
para tornar a arte contemporânea mais acessível e palatável ao grande público.

BIBLIOGRAFIA

ARCHER, M., Arte Contemporânea. S. Paulo: Martins Fontes, 2001.

BAXANDALL, M., O olhar renascente. S. Paulo: Paz e Terra, 1991.

CHIPP, H.B., Teorias da Arte Moderna. S. Paulo: Martins Fontes, 1999.

DANTO, A., The Artworld in The Journal of Philosophy, Vol. 61, No. 19, American
Philosophical Association Eastern Division Sixty-First Annual Meeting. (Oct. 15,
1964), pp. 571-584.

DANTO, A. C. Após o Fim da Arte. São Paulo: Odisseus/Edusp, 2006;

DEGEN, Natasha. A filosofia da arte: entrevista com Arthur Danto. Entrevista


publicada na versão eletrônica da revista The Nation em 18 de agosto de 2005
(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002005000300009).

FARIAS, A. Arte Brasileira Hoje. S. Paulo: Publifolha, 2002.

GUINSBURG, J. e BARBOSA, A. M. (org .), O Pós-modernismo, S. Paulo:


Perspectiva, 2005.

LIMA, J.E.R. A crise do objeto de arte. In: PANSARELLI, D. (Org.) Curso


incompleto de filosofia. São Bernardo do Campo: Editora da UMESP, 2010.

4
ZAGONEL,B. Arte contemporânea em questão. Joinville, SC: UNIVILLE/Instituto
Schwanke, 2007.

Caixas de Brillo – Andy Wahrol, 1969

5
Quadrado negro sobre fundo branco Malevitch, 1913 - 1915

Você também pode gostar