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O método da teologia

1. ESQUEMA DAS FONTES DA TEOLOGIA

– a) Inspirada: Sagrada Ecritura

– b) Não inspiradas

2. FONTES DA TEOLOGIA NÃO OBJETIVIZADAS

A. OS SINAIS DOS TEMPOS COMO FONTE DE TEOLOGIA

B. O HOMEM COMO FONTE DE TEOLOGIA

a) O teólogo como fonte de teologia

b) O destinatário da teologia como sua fonte

C. A FÉ COMO FONTE DE TEOLOGIA

a) No ponto de partida da teologia

b) Na criação da teologia

D. A EXPERIÊNCIA DAS PESSOAS E COMUNIDADES CRISTÃS

É fácil perceber a grande riqueza das fontes das quais o teólogo extrai as suas idéias, sobre as quais constrói a sua doutrina
e onde busca a fundamentação das suas teses. Os primeiros teólogos recorriam não apenas à autoridade de Cristo, mas
também ao Antigo Testamento, à filosofia e à literatura pagãs; na Idade Média gozavam de enorme prestígio os Padres da
Igreja, principalmente S. Agostinho e o Pseudo-Dioníso Areopagita; a teologia posterior tinha em grande apreço os grandes
escolásticos, especialmente S. Tomás, S. Boaventura e João Duns Escoto; no período pós-reformista – os documentos do
Concílio de Trento, e os teólogos contemporâneos apreciam recorrer sobretudo ao Concílio Vaticano II. Uma apropriada
avaliação do valor das fontes da teologia e a capacidade de servir-se delas definem a qualidade e o valor do trabalho do
teólogo.

O tema das fontes da teologia foi abordado sobretudo por Geraldo de Bolonha (+1317), Melquior Cano (+1560) e Estanislau
Ilowski (+1589). A ciência das fontes da teologia é chamada às vezes de topologia teológica (do grego topos – lugar),
porém mais freqüentemente – em função do título da obra de Melquior Cano De locis thologicis – de doutrina dos lugares
teológicos.

A metateologia não elaborou até agora uma divisão universalmente aceita dos “lugares teológicos”.

A divisão abaixo proposta das fontes teológicas exige certos esclarecimentos:

1) enfatiza o primado fundamental da Sagrada Escritura;

2) entre as fontes objetivizadas adota uma dupla hierarquia: primeiramente distingue as fontes básicas das auxiliares, e a
seguir, dentro desses dois grupos, sugere-as a partir das mais importantes para as menos importantes, embora em muitos
casos a seqüência possa estar sujeita a discussões;

3) o nome “fontes objetivizadas da teologia” foi proposto pelo pe. Granat, que entretanto não utiliza a nomenclatura “fontes
não objetivizadas”;

4) a filosofia e as ciências foram incluídas nas fontes teológicas não por fazerem parte também dos elementos transmissores
da Tradição, mas porque inspiram e de diversas formas apóiam os teólogos, tanto na etapa da análise da Sagrada Escritura
e das fontes básicas, como no processo do aprofundamento e da sistematização da ciência delas haurida, e finalmente na
etapa da preparação da doutrina teológica para a transmissão apostólica e missionária. Não existe nenhuma dúvida de que
a filosofia de certa forma contribui para a criação da teologia sistemática, e as ciências específicas, p. ex. a sociologia ou a
psicologia – para a criação da hologese, catequese, etc.

1. ESQUEMA DAS FONTES DA TEOLOGIA (loci theologici, ou tópicos (lugares) teológicos)

a). Fonte teológica inspirada:

1. SAGRADA ESCRITURA

b). Fontes teológicas não inspiradas:

– objetivizadas básicas:

2. os símbolos da fé (Credo)
3. as liturgias
4. a fé do povo de Deus (sensus fidei)
5. a doutrina dos concílios
6. a doutrina do Papa “ex cathedra”
7. a doutrina da Igreja disseminada pelo mundo (dos bispos e dos sinodos)
8. a doutrina dos Padres e dos Escritores da Igreja
9. a doutrina comum dos Papas
10. a história da Igreja
11. o direito eclesiástico
12. a arte sacra

– objetivizadas auxiliares:

13. a doutrina dos teólogos


14. a filosofia, ciências
15. a arte literária

– não objetivizadas:

16. os sinais dos tempos


17. o ser homano
18. a fé
19. a experiências das pessoas e das comunidades cristãs

2. FONTES DA TEOLOGIA NÃO OBJETIVIZADAS

Vamos dedicar um pouco a nossa atenção às fontes teológicas não objetivadas e seu possível valor.

O tema “A fé como fonte de teologia” pode ser encontrado nos manuais clássicos de teologia; no entanto, em vão
buscaríamos neles reflexões a respeito dos sinais dos tempos e sobre o homem como “loci theologici”. Somente nos últimos
tempos esses tópicos teológicos estão conquistando o seu espaço.

A. OS SINAIS DOS TEMPOS COMO FONTE DE TEOLOGIA

Cristo censurava os judeus porque não sabiam reconhecer os sinais dos tempos (ta semeia ton kairon, signa temporum), e
apontou a aventura de Jonas como um sinal (Mat 16, 3-4). Graças a João XXIII esse nome começou a fazer parte da
linguagem oficial do Magistério da Igreja e em breve tornou-se um termo técnico da teologia. O Concílio Vaticano II fala dos
sinais dos tempos em muitos lugares, p. ex.: CI 4, 10, 11, 42, 44; DA 14; CL 43.

A concepção do sinal dos tempos definiu a estrutura da Constituição pastoral sobre a Igreja. O Concílio dedicou a primeira
parte desse grande documento à análise dos sinais dos tempos, para somente após esse reconhecimento da situação em
que a Igreja cumpre a sua missão definir a posição do Povo de Deus diante do mundo. Os resultados das análises contidas
na primeira parte, antes sócio-descritivas que teológicas, definiram a teologia da constituição, isto é, a escolha da
problemática e a forma da sua elaboração. Dessa forma os sinais do tempo tornaram-se uma autêntica fonte da doutrina do
Vaticano II.

A definição dos sinais do tempo ainda está amadurecendo. Aceita-se que se trata de “distinguir no ‘tempo’, ou seja, no
curso dos acontecimentos, na história, aqueles aspectos, aqueles ‘sinais’ que nos podem dizer algo a respeito da Providência
imanente (essa idéia não é estranha às almas religiosas) ou que nos podem servir de indicações (e é justamente o que aqui
nos interessa) de algum relacionamento com o ‘Reino de Deus’, com a sua misteriosa atividade, ou – o que seria melhor
ainda para as nossas investigações e para as nossas obrigações – com a possibilidade, com a prontidão, com as exigências
que são apresentadas à atividade apostólica. São justamente essas manifestações que nos parecem ser os ‘sinais dos
tempos'”17. Diz-se também que são os sinais que na ‘santa história’ manifestam o propósito de Deus, a economia
transcendental no decurso dos acontecimentos que conduzem a Cristo e provêm de Cristo18, ou que são a chave
hermenêutica para a compreensão da economia cristã, “para no decorrer da história descobrir a presença da palavra de
Deus”19, ou ainda que são os sinais da presença os dos propósitos de Deus, que se localizam nos acontecimentos, nas
necessidades, nas aspirações dos homens contemporâneos (CDI 11). Os peritos do Concílio vêem neles “os fenômenos que
em razão da sua universalidade e freqüência caracterizam a época e por intermédio dos quais se expressam as
necessidades e as aspirações da humanidade de hoje”.

Os padres do Concílio expressaram a convicção de que a Igreja obteve uma especial vocação com relação aos sinais dos
tempos:

“É tarefa de todo o Povo de Deus, especialmente dos pastores e teólogos, auscultar com a ajuda do Espírito Santo as
diversas vozes da contemporaneidade, distingui-las e explicá-las, bem como avaliá-las à luz da palavra de Deus, para que a
Verdade revelada possa ser continuamente e cada vez mais sensível, melhor compreendida e apresentada de forma mais
adequada” (CDI 44).

O Concílio aponta aí:

1) o competente “leitor”, intérprete e juiz dos sinais dos tempos – todo o Povo de Deus, e por conseguinte também todos os
fiéis leigos, mas enfatiza que se trata de uma tarefa sobretudo dos pastores e teólogos;
2) a forma de interpretar e de avaliar: auscultar as vozes da contemporaneidade (loquelae nostri temporis), distinguir,
explicar, avaliar e pôr em prática esses fatores “com a ajuda do Espírito Santo”.

O Concílio Vaticano II e os teólogos modernos, inclusive os escritores católicos, apontam concretamente os modernos sinais
dos tempos: a socialização, o ateísmo prático das massas, a busca de igualdade de direitos por parte das mulheres, o senso
de solidariedade de todas as nações, a consciência a justa autonomia das coisas temporais, a busca de uma grande
comunidade inter-humana, a renovação da liturgia, o movimento ecumênico, o crescimento do significado da classe
operária, a emancipação dos povos coloniais, a busca da justiça e da paz…

Os sinais dos tempos encontrados no passado falam das intervenções da Providência Divina; os sinais dos tempos
interpretados no presente apelam a algum tipo de ação.

O reconhecimento dos sinais dos tempos não é uma tarefa fácil para a Igreja e a teologia.

Com relação às coletividades maiores, esse reconhecimento pode realizar-se em duas etapas: pré-teológica e teológica. Na
etapa pré-teológica realiza-se o reconhecimento dos próprios fenômenos e processos que ocorrem na sociedade, no que
podem prestar grandes serviços a sociologia e a estatística, que ajudam a estabelecer quais os fenômenos e processos que
possuem a posição de marcas da época (do tempo). No entanto, em geral essas ciências não são capazes de avaliar essas
marcas, que em geral trazem consigo o bem e o mal, possuindo portanto um caráter ambivalente. Na etapa teológica, o
teólogo, à luz das fontes com que pode contar, empreende a tentativa de estabelecer nas marcas da época (do tempo) a
presença da voz do Espírito Divino e a semente divina, o divinum semen (CDI 3) ou – em outras palavras – a presença dos
elementos do bem que apontam a direção da história leiga e santa (o cristão, crendo na redenção, adota uma visão otimista
da história, com o seu desenvolvimento em direção ao bem); tenta igualmente perceber através desses sinais a voz do
Senhor da história, que transmite ao homem alguma mensagem e que apela por umas ações concretas.

B. O SER HUMANO COMO FONTE DE TEOLOGIA

Como seu criador e seu destinatário, o homem constitui uma fonte da teologia.

a) O teólogo como fonte de teologia

A teologia é criada pelo teólogo. Isso significa que a qualidade da teologia depende não apenas da Sagrada Escritura e dos
“lugares teológicos” objetivizados, mas também do homem que trabalha com base neles. Então passam a ser significativos:
os traços do caráter do teólogo (cf. a impressionante dependência da teologia de Rahner e de Küng dos caracteres desses
eminentes criadores; ou a expressa dependência entre a teologia de Pio XII ou João Paulo II e os tipos da sua
personalidade); a experiência pessoal (Congar confessa que a sua teologia foi em boa parte definida pelo discreto contato
com as lembranças de Lutero e com os seus escritos, bem como pelos encontros com teólogos de outras Igrejas cristãs; a
teologia do teólogo brasileiro arcebispo Hélder Câmara, como ele confessa, foi moldada em grande parte pelas experiências
de pobreza e de injustiça do povo sul-americano); a formação intelectual (um teólogo com formação escolástica tem imensa
dificuldade para passar à teologia histórico-salvífica; os estudos históricos inclinam o teólogo a uma teologia antes positiva
do que especulativa, ao passo que a especialização na área da filologia bíblica conduz a uma teologia do tipo hermenêutico;
em geral os formados pelas escolas romanas dão mais valor aos documentos do Magistério da Igreja do que os formados
pelas escolas alemãs ou americanas; não é difícil perceber a diferença da formação teológica por exemplo dos formados
pelo Seminário de Tarnów e dos formados pelo Seminário Missionário dos Verbistas de Pieniezno, etc.). E finalmente
decisões aparentemente neutras sob o aspecto teológico, e mesmo os chamados acasos (p. ex. o ingresso nos dominicanos
ou franciscanos praticamente define as futuras simpatias em favor de S. Tomás ou de S. Boaventura, ainda que os jovens
candidatos a filhos de S. Domingos ou de S. Francisco possam ainda não ter ouvido falar dos grandes escolásticos; se o
orientador não tivesse rejeitado a tese de doutorado de Rahner na área de filosofia, provavelmente não teríamos nele um
luminar da teologia, pois ele teria ficado com a filosofia; se não fosse a prisão dos professores de dogma das Universidade
Católica de Lublin no período estalinista, a Faculdade de Teologia não teria “extraído” de Sandomierz o pe. Vicente Granat).
O encontro casual com alguma pessoa, a atenção dispensada a algum livro, uma bolsa de estudos recebida para estudar às
margens do Tibre, do Sena ou do Reno, o ingresso no seminário científico de um determinado professor definem, embora
não com exclusividade, o tipo da nossa teologia.

O homem não é apenas o estilo. O homem é também a teologia.

Portanto, brotaram e continuam a brotar lado-a-lado (os vivos e os falecidos que me perdoem o esquema simplificado) a
teologia bíblico-ecumênica de Bei, a teologia filosofante de Rahner, a teologia agressiva de Küng, a teologia estetizante de
Balthasar, a teologia revolucionária de Boff; e na Polônia a teologia profética dos vates, a teologia universal de Granat, a
teologia sólida e um tanto pesada de Zuberbier e de Rosik, a teologia poética de Rogowski, a teologia bibliográfico-
sintetizante de Przybylski, a teologia provocante de Balter, a teologia literária de Dunajski, a teologia penetrante-ecumênica
de Hryniewicz, a teologia litúrgica de Czerwik, a teologia erudita de Krasinski, a teologia psicologizante de Zynel, a teologia
sorridente de Gogacz, a teologia dialogante de Salij, a teologia bíblico-pastoral de Kudasiewicz, a teologia pastoral-
dogmática de Szafranski, a teologia expositiva de Ozorowski e de Misiurk, a teologia profetizante de Swierzawski, a teologia
radicalmente cristológico-pró-existencial de Nossol, a teologia inquieta de Bartnik ou a teologia audaciosa de Zychiewicz.
Cada teólogo é uma teologia, visto que a teologia brota no homem e, como um espelho, reflete o seu interior.

b) O destinatário da teologia como sua fonte


A teologia é criada pelo seu destinatário. Uma boa teologia deve destinar-se ao homem, e não ao homem em geral – visto
que ele não existe, mas ao homem concreto, que vivencia a sua própria história da salvação num determinado contexto
histórico, político, econômico, social, cultural… Um dos maiores moralistas do período conciliar e posterior a ele, Bernard
Häring, confessou que, ao escrever o seu monumental manual de teologia moral A doutrina de Cristo, não levou em conta
suficientemente a influência das diversas culturas na compreensão e interpretação das normas éticas. Descobriu o seu erro
apenas quando travou conhecimento direto com a situação na Ásia e na África.

Os destinatários da teologia constituem a sua fonte de dupla forma: ajudando a definir a temática e definindo os tipos de
teologia.

Co-definição da temática: Não apenas pessoas de culturas diferentes formulam perguntas específicas endereçadas ao
teólogo, mas também pessoas da mesma cultura apresentam as suas demandas relacionadas com diversos temas,
dependendo da etapa do desenvolvimento individual ou dos acontecimentos vivenciados (guerras, sofrimentos, injustiças,
ameaças, mudanças). Sob a pressão da demanda social alguns teólogos tiveram que criar a cristologia, outros a
pneumatologia, outros ainda tentaram esclarecer o sentido teológico do estado romano para a história da Igreja, enquanto
outros faziam o mesmo em relação à pressão do islamismo. Os cristãos dos séculos VII e VIII exigiam uma teologia do culto
das imagens, no século XV apelavam por uma teologia apropriada da justificação e das indulgências; no século XVIII – pelo
esclarecimento da relação entre a fé e a ciência, e no século XX contam com uma teologia das realidades terrenas, uma
teologia da cultura, da libertação, da solidariedade, da paz, etc. Esse assunto será discutido mais amplamente na
caracterização da teologia inferior.

Co-definição do tipo de teologia: Os destinatários da teologia definem o seu tipo através da sua cultura e das suas
necessidades espirituais.

O Concílio Vaticano II aceitou o princípio da aculturação do Evangelho, que impõe aos missionários e teólogos o respeito à
herança espiritual da nação à qual a Igreja leva o Evangelho. Se por exemplo na cultura da Índia descobrimos como um
grande valor o respeito extraordinariamente profundo à vida e a predisposição para a vivência mística da transcendência, os
teólogos que trabalham em prol da Índia devem levar isso em consideração. Da mesma forma o destinatário polonês da
teologia tem o direito de esperar que os teólogos poloneses demonstrem uma especial sensibilidade ao tema da liberdade.
O princípio da aculturação reclama que se façam tentativas de introduzir na teologia também o mundo dos conceitos
próprios de uma determinada cultura.

Os destinatários da teologia podem moldá-la também pela manifestação das suas necessidades espirituais. Não se trata aqui
de temas, mas da forma de praticar a teologia, da sua atmosfera interior ou do seu estilo. Se em tempos de contínua
incerteza e contestação, milhões de cristãos necessitam de apoio da parte da Igreja, os teólogos devem levar isso em
consideração. Chamou atenção a isso de uma forma quase dramática Hélder Câmara no seu discurso pronunciado na
Universidade de Louvain, quando obteve o doutorado em teologia , no dia 21 de maio de 1970. Dirigindo-se aos teólogos,
dizia ele:

“Tenham piedade de nós, pessoas crentes, que necessitamos de axiomas seguros que possam dar sentido à nossa vida e à
nossa morte. Propriamente eu deveria utilizar-me da palavra dogma, ainda que ela seja fortemente questionada. Mas não
tenho medo dela. Sabemos que todos temos os nossos dogmas. E aqueles que não os aceitam e os combatem são
dogmatistas obstinados.

É claro que existem coisas indispensáveis que exigem purificação, e impõe-se a necessidade de demitização. Mas seria um
absurdo promover a negação total ou pôr tudo em dúvida.

Não percam a melhor parte da sua vida com esse trabalho negativo. Empunhem as verdades permanentes e que elas
tomem conta de vocês de tal forma que em vocês se consolidem, que elas sejam a tal ponto o seu sopro e a sua vida que
neste mundo de dúvidas o teólogo se torne a fé encarnada, audível e perceptível”.

Da mesma forma que num mercado que funciona corretamente a procura e a oferta se definem mutuamente, também a
teologia prucurada e esperada influenciam-se mutuamente a atuam mutamente para a sua criação.

C. A FÉ COMO FONTE DE TEOLOGIA

Em que sentido também a fé constitui uma fonte de teologia, pode ser percebido no ponto de partida do trabalho do
teólogo e no processo de criação da teologia.

a) No ponto de partida da teologia

O teólogo parte da Palavra Divina, ou da Revelação. Visto que ele deve considerar o seu objeto à luz da Palavra Divina,
deve antes aceitá-la através de um ato de fé. Sem um ato de confiança na Palavra Divina, os resultados do seu trabalho
terão um caráter no máximo hipotético (sempre com a condição: “na medida em que se possa confiar na Palavra Divina”).
Obteríamos como resultado uma teologia hipotética, que poderia ser considerada também como uma espécie de exercício
cognitivo ou brincadeira. Se por exemplo o teólogo inicia o seu trabalho conjuntamente com o sociólogo, para extrair de
uma situação concreta do homem indagações para a Palavra de Deus, mesmo assim o problema de confiar nessa Palavra se
manifestará logo no início da tentativa de resposta.
A Palavra Divina entendida de uma forma histórico-salvífica, como revelação do Deus que atua na história pela salvação do
homem, e especialmente a revelação em Jesus Cristo – em primeiro lugar – postula do teólogo a aceitação interior da
interpretação bíblica da história da forma como os profetas interpretam a história, ou seja, exige a aceitação da
hermenêutica bíblica, e até mesmo a interpretação eclesiástica contem-porânea dos sinais dos tempos. A prática da teologia
sem a aceitação pela fé da estrutura histórico-salvífica da Revelação e da sua hermenêutica específica transformaria essa
disciplina do conhecimento numa espécie de historiosofia, ilusionismo ou adivinhação.

A Palavra de Deus entendida como uma informação específica transmitida ao homem por Deus a respeito de Deus, para a
salvação do homem (e esse significado da Palavra Divina não pode ser menosprezado; ele foi aceito pelo Concílio Vaticano
I, o que será comentado mais detalhadamente no capítulo “A Teologia e a Revelação”), antes de tornar-se a luz com a qual
o tólogo tentará iluminar o seu “objeto”, deve ser reconhecida pela fé como sendo essa luz valiosa.

No limiar do seu trabalho, o teólogo aceita pela fé igualmente a autoridade extrabíblica das diversas formas de ensinamento
do magistério da Igreja, bem como a infalibilidade do Povo de Deus naquilo que é essencial à fé (infallibilitas Ecclesiae in
credendo) como fontes valiosas de conhecimento teológico através das quais se manifeta a Palavra Divina.

b) Na criação da teologia

É mais difícil demonstrar a função fundamental (original) da fé no processo da criação da teologia. Parece até que, se a
teologia deve ser um conhecimento intersubjetivamente lógico e fundamentado, não se deveria pressupor no teólogo a fé
como fator de criação científica (excluindo-se o indispensável ato de fé no ponto de partida). A função criativa da fé no
processo da construção da teologia pode ser constatada com relativa facilidade na experiência. Verifica-se, com efeito, que
o teólogo autêntica e profundamente crente, e que portanto também vive com a sua fé, encontra nela uma enorme ajuda
(luz, inspirações…). A fé o apóia na elaboração das perguntas, na realização da acertada escolha das fontes, no apropriado
estabelecimento da sua hierarquia, na descoberta de elementos até então não percebidos da doutrina bíblica, patrística, ou
da ou da doutrina oficial da Igreja, no corajoso questionamento de teses errôneas mas aceitas até por altas autoridades
eclesiásticas e teológicas no criativo confronto dos elementos da fé e da doutrina, etc. A história confirma o fato eloqüente
de que os mais eminentes teólogos geralmente se distinguiram por uma fé profunda e viva. Confirma também uma outra
correção: quando os teólogos – ainda que incomuns – se afastam da fé, desmorona a sua teologia. Eles simplesmente não
têm condições de continuar a praticá-la.

D. A EXPERIÊNCIA DAS PESSOAS E COMUNIDADES CRISTÃS

Na encíclica Redemptoris Mater (de 25 de março de 1987), João Paulo II serviu-se da seguinte formulação ao escrever
sobre os critérios da autêntica devoção mariana: “Trata-se aqui não apenas da própria doutrina da fé, mas também da vida
pela fé – e portanto nesse caso de uma autêntica ‘espiritualidade mariana’ à luz de toda a Tradição, e especialmente
daquela espiritualidade a que nos conclama o Concílio. Tanto a espiritualidade mariana como a sua correspondente piedade
encontram riquíssimas fontes na experiência histórica das pessoas e comunidades cristãs (grifo meu, E. C. N.) que vivem
em meio a diversos povos e nações em todo o globo” (RM 48).

A história fornece muitos exemplos convincentes de tais “ex-periências”: de S. Agostinho (+430); de S. Francisco de Assis
(+1226, que exerceu sobre a teologia uma influência maior que muitos papas; Assis desempenhou e não cessa de
desempenhar um papel mais significativo para a espiritualidade e a teologia cristã do que muitas faculdades universitárias
de teologia); de Tomás de Kempis (+1475), autor do livrinho continuamente reeditado A imitação de Cristo; de S. Inácio de
Loiola (+1556), de S. Teresa de Ávila (+1582), de S. Afonso de Ligório (+1787), de Henrique Newmann (+1890) ou de
madre Teresa de Calcutá, apesar de ela não praticar a teologia. E na corrente do cristianismo evangélico: sobretudo a
experiência religiosa pessoal de Martinho Lutero (+1546), mas também de muitos outros; p. ex. grupos entusiastas do
século XVI apelavam às experiências pessoais de Tomás Münzer (+1525), os espiritualistas apelavam às experiências do
nobre silesiano Gaspar Schwenkfeld (+ 1561), os metodistas – às de John Wesley (+1791), os irwinglianos – às de Eduardo
Irwing (+1834); a “experiência” dos irmãos de Taizé exerce influência na espiritualidade de diversas tradições cristãs, bem
como na teologia moldada no Conselho Ecumênico das Igrejas. A experiência de Dietrich Bonhoeffer (morto em 1945)
exerceu nítida influência nos teólogos que atuaram após a segunda guerra mundial.

Na espiritualidade ortodoxa deixam a sua marca as “experiências de fé” p. ex. de Sérgio Radonez (+1392) ou de Serafim de
Sarov (+1833), conhecido como o S. Francisco de Assis ortodoxo. Desempenhou e não cessa de desempenhar um papel
incomparável a república monacal ortodoxa do monte Athos. Da profundeza da vivência cristã pessoal de Fiodor Dostoievski
(+1881), um homem leigo, continua haurindo não apenas a Igreja ortodoxa, mas também o cristianismo do Ocidente (da
profunda teologia nos romances Crime e castigo, Os demônios, O Idiota, Os irmãos Karamazov).

A teologia característica de uma determinada nação brota das suas experiências (cf. as idéias messiânicas na teologia
polonesa após o Levante de Novembro, as teologias da libertação nos países da América Latina, a “teologia negra” que se
desenvolve na África, a taurologia teológica – de taurus, touro, na Espanha…). Na Polônia uma ilustração da influência da
“experiência pessoal das pessoas” na teologia é o exemplo da ir.

Faustina Kowalski, cujas revelações sobre a misericórdia divina chamaram a atenção criativa dos teólogos para esse tema
(diversos simpósios e muitas publicações). A influência da “experiência” da carismática polonesa na encíclica de João Paulo
II sobre a misericordia divina (Dives in misericordia do dia 30 de novembro de 1980) parece não despertar dúvidas. A
“experiência” pessoal do bispo e mais tarde cardeal Estêvão Wyszynski produziram indubitavelmente uma marca no formato
tanto da piedade como da reflexão teológica na Polônia. É difícil deixar de perceber as “raízes” polonesas da teologia da
solidariedade pregada por João Paulo II.

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