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André Breton
*
Literatura, dirão?
Especulação intelectual?
(...) Mas nem a literatura, nem a especulação
intelectual são inocentes ou inofensivas.
Aimé Césaire, “Discurso sobre a Negritude”
As palavras de Aimé Césaire possuem a virtude de alterar a face das coisas ao seu
redor. Ao contrário de certa doutrina segundo a qual as palavras em nossa época estão
destituídas de força, perdidas num mundo tomado por imagens e afastadas do seu
referencial, em presença deste que talvez tenha sido o poeta mais estranho e
necessário do século XX, as palavras são atos, ações, poderes. Não nos deixemos levar
pelas aparências: o logos não civiliza. Muito mais do que lógica, a palavra de Césaire é
Mas atenção: estas são as palavras daqueles que tiveram sua voz saqueada, apagada e
domesticada ao longo da história. Este poeta só pôde aceitar como suas as palavras
que ele mesmo roubou de volta, as que ele mesmo forjou para saquear velhos templos
Não é raro encontrar em sua obra palavras do mundo inteiro, ampliando o idioma
trago à tona, que eu invoco e convoco” 1. Sobre a poesia e (sendo ele) também sobre a
palavra, Césaire diz: “Surgida do vazio interior, como um vulcão que emerge do caos
primitivo, ela é nosso lugar de força; a situação eminente de onde se soma; magia;
magia”2.
sua aparição, trata-se de uma tomada de postura não apenas de seu autor, mas de
todo o mundo colonizado em prol de sua emancipação. Ali, o dedo é apontado para o
verdadeiro responsável pelos problemas mais críticos do mundo, retirando dos povos
explorados todo o complexo de culpa que havia sido inculcado pelos teóricos do
racismo. É bom lembrar que, na primeira metade do século, ainda era vigente a
uma mudança de parâmetros e demonstra ponto por ponto, no lugar certo e na hora
certa, que aquela estrutura estava ultrapassada e que sua superação era urgente. Tudo
isso poderia parecer um exagero retórico, não estivesse o Discurso na base de todo o
europeias ainda sobreviventes nos anos 1950, 60, 70 e mesmo na luta contra o
1 Césaire, 2007, p. 5. (Todas as citações cujos originais estão em francês foram traduzidas pelo
prefaciador).
2 Idem, p. 6.
Serão de Césaire, portanto, as palavras que ele mesmo envenenou contra as
iniquidades do mundo, as que ele mesmo lavou com as ervas de seus ancestrais.
opressão, estejam elas na voz de atores em suas peças teatrais ou mesmo em diálogos
amigáveis (suas entrevistas), elas são sempre entidades pulsantes, nunca ingênuas.
André Breton foi um dos primeiros a notar que “da mais simples à mais rara, todas as
palavras passadas por sua língua estavam nuas”3. Seus poemas, mesmo as
homenagens aos amigos nunca soam a discursos laudatórios. São urros, uivos. Suas
palavras, mesmo as de afeto, são gritos de protesto, apelos pela liberdade humana.
Não se passa impunemente pelas palavras de Aimé Césaire, suas “armas miraculosas”,
suas “ferramentas”4. “Não é uma obra de arte o que eu quis fazer, eu estava num
combate e usava todas as armas possíveis. O combate não era apenas um assunto
capitalismo ocidental ou mesmo aqueles que surgem dentro das próprias revoluções, é
essa rebeldia, essa consciência de que suas ações de intelectual produzem de fato uma
mudança no mundo, tudo isso faz Aimé Césaire um escritor imprescindível nesta
**
3 No Cahier, p. 79.
Aimé Césaire6
A palavra Negritude aparece escrita pela primeira vez em 1935 no artigo de Césaire
assimilação] e publicado em Paris no número 1 do jornal l’Étudiant Noir, criado por ele
racista. Assimilação, para Césaire, significava, acima de tudo, querer ser (não ser:
querer ser) como o outro, aquele que detinha o poder. Nesta operação alienante, o
“Essa palavra que nos lançavam, negro, nós a recolhemos” 8. A ideia da Negritude surge
como luz no fim do túnel de um mundo cuja semântica havia sido estrategicamente
estrangulada e desarticulada.
Ao lado de Césaire estavam também os poetas Léopold Sédar Senghor e Léon Gontram
Damas que, negros, numa cidade de brancos (a Paris dos anos 1930, onde tinham ido
“Você sabe, não se é impunemente negro”, asserta Césaire, “seja você de cultura
francesa, seja você de cultura americana, há um fato essencial: saber que somos
negros e que isso conta. Eis aí a negritude”. Com esses poetas, encontravam-se ali três
visões da colonização. Três mestres da palavra. Três respostas a uma mesma opressão.
“Falando com Senghor da história da Martinica, percebi que muitas das coisas que me
explicava as coisas”9.
A Negritude começa como um movimento literário. E na França dos anos 1930, foi no
Surrealismo que encontraram a melhor identificação estética. Não o fizeram sem dar às
ideias de André Breton uma cara própria. O Surrealismo permitia explorar o que há
para além ou abaixo das superfícies. Retirar camada por camada, imaginava Césaire, o
levaria às suas origens africanas. Ao explorar o que está por baixo da minha superfície,
“o que eu encontro? O Negro Essencial”. Césaire cantava, ao final dos anos 1930:
O próprio André Breton assinaria mais tarde o prefácio do primeiro livro de Césaire, o
Cahier d’un retour au pays natal, depois de tomar contato com sua obra numa loja de
mais além:
10 Trecho do Cahier d’un retour au pays natal, pp. 46-47. “ma négritude n'est pas une pierre, sa surdité
ruée/contre la clameur du jour/ma négritude n'est pas une taie d'eau morte sur l'oeil mort de la
terre/ma négritude n'est ni une tour ni une cathédrale/elle plonge dans la chair rouge du sol/elle plonge
dans la chair ardente du ciel/elle troue l'accablement opaque de sa droite patience.”
homem no seio borbulhante da Natureza e o faz aluno ao mesmo
tempo da Natureza por afirmação do Direito à insatisfação 11. (...)
Para melhor entender a Negritude (uma palavra perturbadora, diria Césaire), valeria a
pena seguir o pensamento de Léopold Sédar Senghor, que chamava os jovens de 1935
presente nesses autores, mas talvez nem isso equivalesse com exatidão.
O que esses poetas pretendiam era trazer à baila as verdadeiras contribuições da África
grandes autores do mundo ocidental. Onde o modernismo europeu via exotismo, eles
negros: mais que isso, era urgente lançar uma pedra fundamental que apontasse para
12 Idem, p. XXVIII
13 Cahier, p. 50.
o papel do homem negro na civilização universal. “O universal, com certeza, mas não
primeiro com seus autores mergulhados nas suas culturas originárias. Em seguida, na
política: sem abandonar nunca a escrita, Césaire e o guianense Damas são eleitos
Martinica, num mandato que vai de 1945 a 2001 e Senghor, a partir de 1960, se torna
presidente e governa o Senegal por vinte anos. Finalmente, a Negritude aparece como
o pano de fundo das lutas pela emancipação dos países africanos ao longo dos anos
“Quando falo Negritude”, é Césaire quem diz, “é precisamente para responder aos
racistas. Eles dizem ‘Negro!’ e eu respondo: ‘sim, sou Negro, não repita. Eu sei que isso
com sua pesquisa identitária, com suas lutas para compreender quem somos, de onde
viemos, é um elemento de união entre pessoas que, outrora sem voz, agora possuem
não apenas o direito mas também o poder de dançar, de cantar, de denunciar, de fazer
parte do grande coro do planeta. Onde o politicamente correto parece querer dizer
“não” (não me humilhe, não me atinja), onde ele parece partir de uma premissa
baseia-se num enorme sim. E convida até mesmo pessoas não negras a retirar suas
15 No Documentário da TV5
camadas superficiais e encontrar lá no fundo sua africanidade inconsciente como quem
diz: vamos adiante, quem quiser que nos acompanhe. E Senghor responde:
***
contra o clima de assimilacionismo dos anos 1920, uma tendência social e política que
ele reconhecia em todo o povo da ilha e que era defendida pelo próprio Partido
seria, pois, esta: a da luta contra a assimilação. “Há duas maneiras de se perder: por
Maurice Thorez em meados dos anos 1950. Tratava-se de uma luta acirrada, na qual
não via saída: de um lado, o opressor regime francês com seu sistema espoliatório, de
outro, o próprio cidadão clamando por ser assimilado pelo colonizador. Ele protestaria:
A doutrina do assimilacionismo era, para Césaire, uma face da servidão. Nada podia
haver de pior. Além disso, não identificava uma vida cultural autônoma propriamente
18 Em Louis, 2004.
19 Em “Nègreries: jeunesse noire et assimilation”. L’étudiant noir, 1935 em Louis, 2003, p. 42.
conversas com amigos, nas páginas da história francesa e na própria geografia
europeia.
Numa de suas entrevistas, Césaire narra a seguinte cena, que remonta ao momento de
criação de seu primeiro grande poema: em visita a Petar Guberina 20, na Iugoslávia, ele
pergunta o nome da ilha que via da janela do quarto em que ficaria hospedado.
Martinica!” Césaire manifesta grande surpresa: “Eu vou para a Iugoslávia e o que é que
eu descubro? A Martinica, onde eu não pisava havia cinco anos. Naquela mesma noite,
eu escrevo Cahier d’un retour au pays natal [Caderno de um retorno à terra natal]”21.
Seu poema mais longo se tornou também o mais célebre. Repleto de insights e
recua e se alarga//e aqui está, entre as nuvens rasgadas o fulgurar de um signo” 23.
21 Em Louis, 2004.
22 Et je cherche pour mon pays non de coeurs de datte, mais de coeurs d'homme qui c'est pour entrer
aux villes d'argent par la grand'porte trapézoïdale, qu'ils battent le sang viril, et mes yeux balayent mes
kilomètres carrés de terre paternelle et je dénombre les plaies avec une sorte d'allégresse et je les
entasse l'une sur l'autre comme rares espèces, et mon compte s'allonge toujours d'imprévus
monnayages de la bassesse.. Cahier d‘un retour au pays natal, p. 58
Às vezes reminiscente, às vezes exortativo, às vezes mordaz, às vezes no mais
orgulhosa, aqueles que dizem à Europa: ‘Vejam, sei me curvar como vocês, não sou
diferente de vocês; não prestem atenção na minha pele negra: foi o sol que me
vestes. E eu sei que é o homem que fala. Ainda e sempre, e eu escuto” 25.
Mas Césaire não proclama nenhuma vitimização. “Nós somos daqueles que dizem não
às sombras”. As vozes, os olhares que habitam o Cahier, são os dos homens que
Jean-Paul Sartre, eufórico ao ler a poesia da Negritude, comenta: “Eis aqui homens
negros de pé que nos olham e eu faço votos de que vocês também sintam como eu o
assalto de estar sendo vistos”. O olhar poderoso daquele que foi oprimido, perfura a
alma do branco europeu: “Hoje, esses homens negros nos olham e nosso olhar retorna
a negrada assentada
inesperadamente de pé
de pé no porão
de pé nas cabines
de pé sobre a ponte
de pé ao vento
de pé sob o sol
de pé no sangue
de pé
e
livre28
Em última análise, é possível ler o Caderno de um retorno à terra natal como o grande
premonição, todas as lutas levadas ao longo da longa vida de seu autor. No poema
inaugural de Césaire, já se encontra o que ele diria mais tarde no Discurso sobre o
francês, nas lutas pela emancipação dos povos colonizados, na poesia que escreveu ao
longo das décadas seguintes, enfim. O Caderno é um poema fundador, e é hoje leitura
obrigatória em todo o mundo negro. Não porque seu autor pretendesse fazer parte de
algum panteão literário, mas por sua incontestável rebeldia: “Não quero fazer literatura
tradicional. Eu escrevo poemas à minha maneira porque era preciso dizer não a todo
Patrice Louis29.
****
Para Aimé Césaire, tomar as coisas pela raiz passa por estar atento aos limites da
linguagem. Não apenas usá-la bem, mas saber até onde ela vai, até onde ela deixa de
ser verbo e se transforma em gesto. É preciso também conhecer o seu reverso e não se
deixar cair no engano a que as palavras levam. Tampouco cair numa paixão cega pelas
ideias primeiras. Estar atento à micropolítica que envolve a palavra falada e a palavra
Ao entrar para a política, eleito em 1945 pelo Partido Comunista Martinicano, Césaire
ponto por ponto, ao longo das décadas seguintes. Contradição? Ele mesmo responde:
assimilacionismo que vinha sendo discutido havia décadas nas Antilhas e nas outras
colônias francesas. Mas as coisas não são tão fáceis. Embora a Departamentalização da
(ou seja, a alienação, a diluição ou mesmo a perda de coletividades inteiras ali nos
É nesse contexto que surge o Discurso sobre o colonialismo. Escrito no final dos anos
1940 e publicado pela primeira vez em 1950, o Discurso possui uma base marxista.
Césaire parece estar buscando um socialismo que inclua também o homem negro. O
desconhecia, para o qual propositalmente fechava (fecha?) os olhos. Não apenas revela
o que ocorre nas terras coloniais, mas mostra ao colonizador o Hitler que ele guarda
políticas, sociais e mesmo psicológicas de uma sociedade burguesa que, apegada a seu
dos horrores do nazismo, estava aos destroços. Atacar a base nesse momento era
independentista do Haiti, caso único nas Américas, com seus ecos da queda da Bastilha
Colônia francesa desde o século XVII, o Haiti havia sido tomado da Espanha por volta
divida entre a República Dominicana e o Haiti). Sua principal atividade econômica era a
escravos que habitavam a ilha, liderados pelo negro Toussaint Louverture, depois de
haver lutado por mais de uma década (entre 1791 e 1803) conquistavam enfim a sua
onde a Negritude se pôs de pé pela primeira vez e disse que acreditava em sua
inevitável. Mesmo porque seu discurso vinha eivado de palavras de ordem dos
república, não sem algumas crises internas e, durante algum tempo, uma divisão em
33 “Haïti où la négritude se mit debout pour la première fois et dit qu'elle croyait à son humanité”. No
Cahier d’un retour au pays natal, p. 24
do cárcere35.
Césaire demonstra, entretanto, que, supor que a revolução francesa era possível em
uma colônia como o Haiti seria ir com demasiada pressa ao ponto. Uma coisa é uma
revolução surgida em meio a uma população que possui cada vez mais poder
desse contraste foi exatamente o que se viu (e se vê ainda hoje): um país rodeado de
Logo se perceberá que o foco assimilacionista pode estar em qualquer lado da mesa. O
insurgente corre o risco de enganar-se por suas vitórias aparentes e perder o foco
posição na escala social (é o negro com chapéu coco e gravata dos anos 1930). Algo
parecido com isto ocorre quando, em certas ocasiões, o insurgente chega ao poder
num mundo não totalmente reconvertido em favor dos novos vencedores (é o tema de
sua peça La tragédie du roi Christophe e o que acabou ocorrendo em diversas ex-
35 Wordsworth, poeta do romantismo inglês, tocado pela história dos últimos dias do herói, escreveria
um poema “To Toussaint Louverture”. Louverture foi também o tema de uma famosa peça teatral do
romantismo francês, Toussaint Louverture, de Alphonse de Lamartine.
36 Leia-se a esse respeito o livro Os jacobinos negros: Toussaint Louverture e a revolução de São
Domingos de C. L. R. James.
colônias depois de suas emancipações). Por fim, a alienação política pode aparecer
Nesta carta, onde Césaire pede demissão do Partido Comunista, ele mantém claro que
sua postura é contra um regime de opressão e não contra a doutrina marxista. Que ela
multidão.
Por fim, as ideias que ele mesmo defendeu correm o risco de surgir como elemento de
intelectual. Esse parece ser o recado do “Discurso sobre a Negritude”, proferido nos
para trazer à tona “o conjunto de valores de civilização do povo negro”: pode ser válido
colonialismo. Usa-a para criticar a maneira como ela é explorada pelos belgas no
Congo. Dentro desta mesma ontologia, poderia também ter comentado que, para o
mesmo organismo. E que a voz, as palavras (la parole), exercem um incrível efeito
sobre esse organismo. Esta talvez pudesse ser considerada a sua principal base política,
ética e estética, a que perpassa todas as suas palavras, a que tenha movido o cerne de
sua negritude. A que o faria dizer, por detrás do Discurso, as palavras do Rebelde,
Breton, André. “Un grand poète noir” in Césaire, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal. Paris:
Présence Africaine, 2004.
Césaire, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine, 2004.
Ferlinghetti, Lawrence. Poetry as insurgent art. New York: New Directions Books, 2007.
Hardt, Michael; Negri, Antonio. Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2000.
Hénane, Réné. Glossaire des termes rares dans l’oeuvre d’Aimé Césaire. Paris: Jean Michel
Place, 2004.
James, C. L. R. Os jacobinos negros (tradução de Afonso Teixeira Filho). São Paulo: Boitempo,
2000.
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
Louis, Patrice. Aimé Césaire: rencontre avec um nègre fondamental. Paris: Arléa, 2004.
Sartre, Jean Paul. “Orphée noir” in Senghor, Léopold Sédar. Anthologie de la nouvelle poésie
nègre et malgache de langue française. Paris: PUF/Quadridge, 2008.
Senghor, Léopold Sédar. Oeuvre poétique. Paris: Seuil, 1989.
________. La poésie de l’action: conversations avec Mohamed Aziza. Paris: Stock, 1980.
Yépez, Heriberto. Todo es otro: a la caza del lenguaje en tiempos light. Tijuana: Tierra Adentro,
2002.
Filmografia:
Cahier d’un retour au pays natal. Direção: Philippe Bérenger. (France, 2008). 69 min.