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Nelson Rodrigues

A ESTRELA DO
ATROPELADO
Ah, não me esqueço do Quintanilha Ribeiro. Per-
dão, perdão. Não é o homem de Jânio. Falo do puro e
simples Quintanilha, figura que jamais teve, na vida, o
mais tênue e longínquo vínculo presidencial. Era repór-
ter e já acrescento: — de polícia. O leitor, que é um in-
gênuo, não entende de hierarquia de redação. Eis o que
eu queria dizer: — salvo em O Dia e na Luta Democrática,
o repórter de polícia é, em nossa imprensa moderna, um
sujeito antigo, obsoleto, como que espectral.
E pior: — deixou de existir em várias redações. No
Jornal do Brasil, por exemplo, é mais fácil encontrar uma
girafa do que um repórter de polícia. Na folha do dr.
Brito (antigamente, chamava-se jornal de folha), na folha
do dr. Brito, dizia eu, não abrem espaço para o crime.
Todos os dias há a mulher que mata o marido e, inversa-
mente, o marido que mata a mulher. O brasileiro é um
fascinado pelo crime passional (cada um de nós se identi-
fica ou com a vítima, ou com o criminoso, ou com am-
bos).
Mas, em vão o brasileiro mata e se mata; em vão é
atropelado e fica estendido, no asfalto, rente ao meio-fio;
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em vão os namorados fazem pactos de morte e os consu-
mam (há cada vez menos namorados e cada vez menos
pactos de morte). Tudo inútil. O dr. Brito não lhes dá
cobertura nenhuma, nenhuma.
(Mas eu queria falar, ainda, do atropelado. Há sem-
pre alguém, jamais identificado, alguém sem nome e sem
cara, que acende uma vela e a põe ao lado do morto de
rua. É a estrela do atropelado; sim, estrela que nenhum
vento apagará. E o Jornal do Brasil não pinga uma palavra
sobre o defunto do asfalto. Por que o silêncio cruel e aris-
tocrático? Recusar uma notícia ao atropelado é o mesmo
que furtar a vela que o alumia.)
Volto ao Quintanilha. Já o conheci velho, velho de
uma idade inimaginável. Teria seus sessenta e tantos,
quase setenta. Mais velho que o século, pertencia a uma
geração prodigiosa. Nos bons tempos, o repórter de po-
lícia estava a dois passos do patético, a dois passos do su-
blime. O grande crime tinha primeira página e subia às
manchetes.
Eu começava no jornal. Era garoto e fui ser repór-
ter de polícia. Bem me lembro dos meus primeiros dias
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profissionais. Até os contínuos me fascinavam. Cada qual
tinha seu patético. Revisores, linotipistas, todos, todos
sugeriam não sei que mistério. Mas, pouco a pouco, fui
percebendo tudo. Acabei descobrindo que os mais im-
portantes eram os piores. Dois ou três faziam o artigo de
fundo. E andavam pela redação como pavões enfáticos.
Mas não tinham nada que dizer.
A grande figura da redação era mesmo o repórter
de polícia. O Quintanilha, por exemplo, sabia de tudo,
vira tudo. Por trás de suas histórias, havia toda uma cá-
lida, maravilhosa experiência shakespeariana. Seria talvez
analfabeto, sei lá. E estava sempre bêbado. Deixara de
beber há meses, anos, e continuava bêbado. Não im-
porta. Contava coisas lindas.
Mas foi Quintanilha Ribeiro (agora vai assim
mesmo) que me falou de Clementino. Clementino. Eis
aí um nome que não diz nada, não insinua nenhum vati-
cínio, não emana nenhum mistério. Clementino, como
Oliveira, é um nome de vizinho. Muito bem. Aos 23
anos, Clementino deixou o segundo ano de Medicina —
para ser barbeiro de necrotério. A família esbugalhou-se,
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sem entender nada. Todos repetiam a pergunta, sem lhe
achar a resposta: — e por quê? Se fosse barbeiro de salão,
barbeiro de barbearia, vá lá. Nunca de necrotério.
Clementino tinha um tio que se dava com o então
ministro da Fazenda. E o tio estava disposto a arranjar-
lhe uma nomeação para fiscal do Imposto de Consumo.
Era o emprego que qualquer brasileiro, vivo ou morto,
pedia a Deus. Pois Clementino ergueu a fronte e, trê-
mulo, respondeu: — “Obrigado, mas não aceito”. Pausa
e completa: — “Vou ser barbeiro de necrotério”. O tio
foi o primeiro que soube e o primeiro que se horrorizou.
No dia seguinte, o rapaz tomava posse.
Podia ser uma opção profissional. Assim como se
nasce poeta, arquiteto, Chico Buarque de Hollanda, flau-
tista ou domador, Clementino teria nascido barbeiro de
necrotério. Nem isso. Não podia ver morto e jamais vira
um cadáver. (Não comparecera nem ao velório da pró-
pria avó.) A morte era a sua náusea. E ninguém entendia
que, de repente, por vontade própria, o rapaz começasse
a escanhoar defuntos. Uma tia veio de Belém do Pará
perguntar-lhe: — “Por que barbeiro de necrotério?”.
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Respondera apenas: — “Deus sabe”. Só uma pessoa nada
perguntou, nada quis saber: — o pai.
Um ano depois, a mãe cai doente, muito doente.
Depois se diria que seu desgosto mortal fora o emprego
do filho. Do fundo da cama, chama o Clementino. Sua
voz é um sopro: — “Meu filho, estou morrendo. Quero
saber. Por que você foi ser barbeiro de necrotério? Diz”.
E, então, só então, respondeu: — “Fui ser barbeiro de
necrotério porque dei na cara do meu pai”. Pausa e re-
petiu: — “Dei na cara do meu pai”. A mãe, com a luci-
dez dos que vão morrer, deve ter entendido tudo, tudo.
Suspirou: — “Morro feliz”. Pôs a mão diáfana na do fi-
lho. Sorria: — “Deus te abençoe”.
Era por expiação que estava no necrotério. Castigo.
Um dia, discutira com o pai e o esbofeteara. Ninguém
viu, ninguém soube. E ambos calaram. Só a morte arran-
cou o segredo que nem o pai, nem o filho contariam ja-
mais. Seu horror aos mortos estava intacto; continuava a
náusea em flor. Só não estourava os miolos porque teria
nojo do próprio cadáver. E precisava sofrer. Fazia a barba

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até do defunto que ninguém reclama. Era uma autoflage-
lação de cada minuto. E nada o assombrava mais do que
a nudez ofendida, a nudez humilhada da autópsia. Mil ve-
zes tinha de sair para vomitar, atrás das portas.
Quintanilha me dizia sempre: — “Formidável o
Clementino”. Isso aconteceu em 1925, por aí. E eu
penso que as Novas Gerações não dariam um Clemen-
tino. De 25 para cá, algo mudou no brasileiro e repito:
— há um novo brasileiro, de potencialidades imprevisí-
veis. Ainda ontem encontro, numa esquina da cidade, o
Eduardo Chermont de Brito. Ele me chama para um
canto: — “Seu Nelson, vem ouvir essa, vem ouvir essa”.
A tarde caía, invisível, por trás dos edifícios. E o
Chermont me contou tudo. Eis o episódio: — certa mãe
grã-fina surpreende o filho arrombando o cofre do pai.
Balbucia: — “Que é isso, meu filho? Que é que você está
fazendo?”. E o rapaz, sem pena, nem medo: — “Meu pai
não morre e eu tenho que roubar”. Entupia os bolsos de
dinheiro e repetia: — “O culpado é meu pai, que não
morre”.
O ódio ao pai. O ódio ao pai que não morre. É a
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paixão que está encravada em tantos lares brasileiros.
Não sei se já se pode falar num Brasil Karamazov. Ima-
gino um jovem brasileiro que vê o pai como o velho De-
métrio Karamazov e forma dele essa imagem vil.

[O GLOBO, 6/2/1968]

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