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Axioma de Arquimedes: sintético a priori ou empírico?

Rafael Tavares Juliani


Doutorando - HCTE/UFRJ e bolsista Capes
E-mal: rafaeljuliani@gmail.com

Francisco Caruso
Professor - CBPF, UERJ e HCTE/UFRJ
E-mail: francisco.caruso@gmail.com

Resumo

Um crescente número de pensadores tem rompido com a dicotomia entre a Física e a Matemática,
em relação à experiência. Mas será a Matemática empírica de fato ou seus juízos são sintéticos a
priori? No âmbito desta ampla discussão, focaliza-se aqui uma questão pontual: O que se pode
dizer do axioma de Arquimedes, o qual foi julgado como empírico por Hilbert? É verdade que o
axioma arquimediano não parece ser uma afirmação puramente matemática, por isso, resta saber
se sua validade depende apenas de uma intuição dos conceitos presentes no axioma ou se sua
validade vem da experiência. Dessa forma, é feita uma análise sobre o axioma arquimediano
quanto às suas formulações e aos seus usos na história da Matemática, a fim de verificar a
possibilidade de uma intuição da maneira sugerida por Kant.

Palavras-chave

Axioma de Arquimedes, empirismo, Matemática empírica, sintéticos a priori.

Introdução

Apesar de a Matemática ser conceituada por muitos como um saber imutável e


independente do mundo sensível e dos desejos humanos, já na Antiguidade, Arquimedes usava
seus conhecimentos de Estática para encontrar a medida da área de alguns objetos geométricos.
Contudo, acreditava-se que o método de Arquimedes era apenas heurístico, visto que na
Matemática desenvolvida atualmente não se usa qualquer princípio de Mecânica. Ou seja, tais
métodos estariam no contexto da descoberta, enquanto que hoje em dia só se usaria o contexto da
justificação, livre de métodos empíricos. No entanto, com o passar dos tempos, cada vez mais os
novos pensadores aproximam a Matemática do mundo sensível ou, pelo menos, argumentam que
ela estaria relacionada a algum tipo de empirismo.
Stuart Mill (1806-1873) sustentava que a Matemática é empírica, mas seus argumentos
eram bastante teóricos e não convenciam, pois muitas questões da aparente necessidade e
universalidade da Matemática precisavam ainda ser respondidas (DA SILVA, 2007).
Já Lakatos (1922-1974) nos oferece inúmeros exemplos nos quais os conceitos da
Matemática passam por diversas revisões de acordo com a necessidade e as novas descobertas da
pesquisa matemática (LAKATOS, 1977). Além de Lakatos apresentar o caráter dinâmico dos
conceitos matemáticos, Quine (1908-2000) pensa em uma Matemática empírica, ao defender seu
argumento de indispensabilidade, com o qual pretende justificar a Matemática como válida por
ser indispensável às boas teorias científicas. Além disso, Quine também sustenta que todas as
afirmações de um sistema, mesmo as afirmações conhecidas como a priori, passam pelo crivo da
experimentação em uma revisão do sistema (QUINE, 1961). Assim, para Quine, a distinção entre
a priori e a posteriori só existe como uma forma de organização estrutural, pois, o que é a priori
em um sistema já foi a posteriori em um outro sistema ou, pelo menos, consultou-se a
experiência para aceitá-lo como a priori de um sistema.
Além desses pensadores citados, pode-se recorrer a um contemporâneo e colaborador do
HCTE1: Gregory Chatin, o qual defende uma ruptura na distinção entre a Física e a Matemática,
no que diz respeito a experimentação.

“Em minha opinião, a concepção de que a matemática proporciona certeza absoluta e é


estática e perfeita, enquanto a física é de natureza experimental e evolui constantemente,
constitui uma falsa dicotomia. Na realidade, a matemática não difere em nada da física.
Ambas são tentativas da mente humana com o fito de organizar e dar sentido à
experiência humana; no caso da física, experiência no laboratório, no mundo físico; no
caso da matemática, experiência no computador, na área mental da imaginação da
matemática pura.” (CHAITIN, 2005).

Essa afirmação de Chaitin é emblemática, pois parece sugerir que a atual defesa da
empiria na Matemática não está no mundo sensível. A argumentação de Lakatos se baseia em

1HCTE - Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
problemas internos à Matemática, embora, em última instância, as mudanças apontadas por
Lakatos possam ser motivadas por questões do mundo sensível. A falsa distinção entre a priori e
a posteriori defendida por Quine, porém, indica uma possível empiria no mundo sensível. No
entanto, Quine não apresenta exemplos ou uma análise sobre algum caso na Matemática. Assim,
não fica claro se existe empiria na Matemática ou se estamos diante dos famosos "sintéticos a
priori" de Kant.
Kant (1724-1804) procurou mostrar que a Física teórica não é dependente da experimentação e
que nem a Matemática é um conhecimento livre do mundo sensível como acontecia na filosofia
escolástica, na qual se discutia “o sexo dos anjos”. Para isso, Kant sustentou a existência dos
sintéticos a priori e, com isso, foi o primeiro a apresentar argumentos fortes sobre a dependência
que a Matemática tem, ou precisa ter, do mundo sensível. É muito provável que o logicismo de
Frege (1848-1925) tenha sido uma tentativa de resposta aos sintéticos a priori de Kant."Então é
manifesto que o predicado está sempre, necessariamente, aderente a esses conceitos, não como
pensado no próprio conceito, antes mediante uma intuição que tem de ser acrescentada ao
conceito." (KANT, 2001)
Os sintéticos a priori são aqueles juízos que tem a universalidade e a necessidade, que são
característicos de um juízo a priori, mas que a relação entre o sujeito e o predicado não provem
nem dos conceitos em si e nem da experiência, e sim da intuição que temos do mundo sensível.
Poder-se-ia começar questionando a "universalidade" e a "necessidade" atribuídas aos
juízos matemáticos; no entanto, não só muitos filósofos, assim como muitos matemáticos
admitem essas características e, então, não abordaremos estas questões por enquanto. Voltemos à
questão sobre o método de Arquimedes.

O Método de Arquimedes

Se a falsa distinção entre a priori e a posteriori de Quine estiver correta, talvez seja
possível encontrar algum falso a priori no cálculo de áreas da matemática moderna, visto que
algum axioma possa ser oriundo do método empírico de Arquimedes. Tal axioma estaria
“camuflado” e não seria explicitamente empírico, obviamente.
Em seu trabalho “Quadratura da Parábola” (ARQUIMEDES, 1897), Arquimedes se
utiliza de uma “balança mental”. Para descobrir a área de um segmento parabólico, ele constrói
dois triângulos: um que circunscreve e outro que é inscrito no segmento parabólico. Supondo que
as figuras planas são compostas pela soma de todos os segmentos de linhas que podem ser
traçadas dentro dessas figuras e, também, que essas figuras têm um peso proporcional à sua área,
Arquimedes colocou as linhas que formam o segmento parabólico e as que formam o triângulo
circunscrito em equilíbrio em uma balança imaginária (figura 1) através de relações geométricas
e, com o uso de princípios de seu "Equilíbrio dos Planos" como a lei das alavancas, ele descobre
a relação entre a área do triângulo circunscrito e a do segmento parabólico. Arquimedes, também
através de manipulações geométricas, descobre a relação entre as áreas dos triângulos,
concluindo que a área do segmento parabólico é quatro terços da área do triângulo inscrito.
Nesse método arquimediano, podemos perceber uma grande semelhança com o moderno
cálculo de áreas através da integral, ou seja, com o Cálculo Integral. Ao invés de se supor que as
figuras são compostas de linhas, supomos retângulos. Mas a principal diferença está na forma em
que o infinito é abordado, na verdade, o infinito era “o nome que não devia ser pronunciado” da
Matemática grega. Arquimedes, ao invés de usar uma soma de séries infinitas, usa uma dupla
“redução ao absurdo”, o que era comum em sua época.

Questões sobre o axioma


de Arquimedes

No prefácio da
"Quadratura da Parábola",
Arquimedes escreve para
um matemático grego seu
Figura 1: Balança imaginária de Arquimedes.
contemporâneo chamado
Dositeo e admite o uso de uma afirmação que hoje é conhecida como axioma de Arquimedes:
"que o excesso pelo qual o maior de duas áreas desiguais excede o menor pode, ao ser
adicionando a si mesmo, exceder qualquer área finita". Esse axioma parece uma tentativa de
Arquimedes para simular a sua balança imaginária em um contexto mais formal e abstrato, mas
ele se defende afirmando que outros matemáticos também fizeram uso desse axioma; e, de fato,
ele aparece no quinto livro dos Elementos de Euclides como uma definição com a seguinte
redação: “Magnitudes são ditas estar em razão com respeito a uma outra se, quando
multiplicadas, podem exceder-se mutuamente” (FITZPATRICK, 2008). No entanto, mesmo que o
axioma tenha surgido antes de Arquimedes, isso não exclui que ele possa ter vindo de uma
relação mais profunda com o mundo sensível, seja de experiências com balanças realizadas por
outros pensadores ou com o cálculo de áreas e magnitudes na prática.
O axioma de Arquimedes é, também, conhecido como axioma de continuidade e garante a
não existência do infinitamente grande e do infinitamente pequeno (infinitésimo). David Hilbert
(1862-1943) formulou o axioma em seu “Grundlagen der Geometrie” e também mostrou sua
independência dos demais axiomas da Geometria (HILBERT, 2005). Além disso, Hilbert faz
algumas constatações interessantes sobre o axioma de Arquimedes:
○ o axioma das paralelas2 não pode ser substituído por nenhuma das formulações
normalmente consideradas como equivalentes se o axioma de Arquimedes não for
considerado como verdadeiro.
○ quando se exclui o axioma de Arquimedes, não se pode afirmar o axioma da
geometria hiperbólica referente às infinitas paralelas a uma reta dada que podem
ser traçadas, no plano, através de um único ponto.
○ o axioma de Arquimedes é de fundamental importância para os “pontos de
acumulação”, assim, consequentemente, também de grande importância para o
Cálculo Diferencial e Integral.
Hilbert, em um discurso para a Sociedade de Matemática da Suíça, alerta que o axioma de
Arquimedes provem da experiência (EWALD, 2005). Ele fala da relação do axioma com a Física
e apresenta alguns casos em que o axioma de continuidade é imprescindível.

Conclusões

Dificilmente poderíamos sustentar que o axioma arquimediano possa ter evidência apenas
dentro da Matemática, visto que a continuidade não é óbvia, pois a incomensurabilidade da raiz
de dois cria “buracos” e fez com que os gregos escolhessem a Geometria como base para os

2 O axioma das paralelas é o famoso quinto postulado dos Elementos de Euclides.


demais ramos da Matemática, porque o que os seus olhos mostravam nos diagramas 3 eram linhas
contínuas. Depois disso, esse desejo de uma Matemática contínua fez com que se desenvolvesse a
teoria do números irracionais para “tapar os buracos”.
O Cálculo Diferencial e Integral foi primeiramente desenvolvido através da ideia de
infinitésimos e isso é justamente o que o axioma de Arquimedes nega. Dessa forma, percebe-se
que o axioma arquimediano não é evidente dentro da Matemática. Posteriormente, foi
desenvolvida a teoria do limites, que substituiu a ideia de infinitésimos.
O difícil é saber se o axioma arquimediano é de fato empírico ou se ele é formado
somente a partir da intuição que temos do mundo sensível, ou seja, sintético a priori. A primeira
vista ele pode parecer um sintético a priori, pois nos mostra uma certa universalidade e
necessidade. É difícil de imaginar que não se consiga juntar vários pedaços pequenos de um cabo
de vassoura de forma que ele fique maior que qualquer outro cabo de vassoura; no entanto, não
parece que se possa concluir isso apenas da intuição que se tem de um pedaço de vassoura, mas
através de muitas comparações feitas na infância com vários tipos de materiais diferentes, ou
seja, com a experiência. Portanto, se pode concluir que o axioma arquimediano é empírico. No
entanto, não se pode esquecer que para se entender a intuição que temos de um objeto no mundo
sensível, é necessário que exista algum conhecimento prévio. Mas se é difícil encontrar algum
conhecimento que seja nato, como é possível fornecer uma base para os conhecimentos
empíricos? A resposta a essa pergunta esclarecerá como é possível uma Matemática empírica.

Referências Bibliográficas

ARQUIMEDES. Quadrature of the Parabola. Tradução de T. L. HEATH, Works of


Archimedes. Cambridge: Cambrigde University Press, 1897.

CHAITIN, J. G. MetaMat!: em busca do ômega. Tradução de G. K. Guinsburg. São Paulo:


Perspectiva, 2009.

DA SILVA, J. J. Filosofias da Matemática. São Paulo: UNESP, 2007.

3Representação gráfica da Geometria.


EUCLIDES. Os Elementos. Tradução de R. FITZPATRICK. Euclid’s Elements of Geometry,
2008.

HILBERT, D. Foundations of Geometry, The. Projeto Gutenberg. Illinois: The Open Court
Publishing Company, 2005.

KANT, I. Crítica da Razão Pura. Ed. 5. Tradução de M. P. Dos Santos e A. F. Morujão. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

LAKATOS, I. Proof and Refutations: the logical of Mathematical discovery. Cambridge:


Cambridge Univesity Press, 1977.

QUINE, W. V. O. Two Dogmas of Empiricism. Cambridge, 1961. Disponível em:


<http://www.ditext.com/quine/quine.html>. Acesso em: 22 set. 2011.

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