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MOVIMENTOS NEGROS REPETEM “RACISMO CIENTÍFICO”

Antonio Risério*

O mulato Abdias do Nascimento – que caminhou do fascismo


integralista para o racialismo “made in USA” – era um homem
preconceituoso. Basta ver a estranha seletividade com que, apesar
de filho da mestiçagem tristetropical brasileira, ele usa a própria
palavra “mulato”.
Quando quer fazer o elogio de algum mestiço de branco e
preto, Abdias chama-o “negro”. Mas, quando quer execrar o sujeito,
trata-o como “mulato” (muito embora, em seu discurso geral, faça
de conta que o mulato não existe). Assim, nos seus textos e palestras,
o mulato Luiz Gama, filho de branco baiano de origem portuguesa e
da preta Luiza Mahin, era “negro”. Já o mulato capitão-do-mato ou
feitor, não: era “mulato” mesmo.
Pois bem. Descende diretamente do velho guru Abdias do
Nascimento o slogan racialista exibido em manifestação na Avenida
Paulista, no último dia 20 de novembro, pelos ativistas dos
movimentos negros: “miscigenação também é genocídio” –
pregação explícita em favor da implantação de um “apartheid”
amoroso-sexual no país.
Diante da afirmação slogamática, aliás, ficam menores outros
debates, como os estéticos, por exemplo, quando, depois que
conseguimos atirar fora a praga do “realismo socialista”, querem
nos aprisionar no cárcere do “realismo racialista”. E um filme como
“Vazante” (Daniela Thomas) acabou pagando o pato recentemente,
nesse “revival” rácico-stalinista. Agora, com o combate à
miscigenação à frente, o lance é mais grave: passa-se do “lugar de
fala” ao “lugar de cama”.
Mas vamos puxar o fio da meada. Em “O Genocídio do Negro
Brasileiro”, bíblia do nosso racialismo essencialmente colonizado,
um Abdias confuso e sectário monta duas sequências. Numa,
encadeia mestiçagem, branqueamento e alienação da identidade
negra. Noutra, amarra miscigenação, branqueamento e aniquilação
da raça negra.
Neste segundo caso, Abdias vê a mestiçagem/miscigenação
como estratégia de extermínio da população negra: “...o mulato
prestou serviços importantes à classe dominante; durante a
escravidão ele foi capitão-do-mato, feitor... Nele se concentraram as
esperanças de conjurar a ‘ameaça racial’ representada pelos
africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na
escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o
marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil”.
E ainda, como se nunca tivesse se olhado no espelho: “O
processo de mulatização, apoiado na exploração sexual da negra,
retrata um fenômeno de puro e simples genocídio. Com o
crescimento da população mulata a raça negra está desaparecendo
sob a coação do progressivo clareamento da população do país”.
É uma visão unilateral e anacrônica, para dizer o mínimo.
Tanto do ponto de vista histórico, quanto do genético. Por várias
razões. Afinal, quem quer que conheça a história de nosso passado
escravista, sabe muito bem que mulatos não foram somente
capitães-do-mato ou feitores.
Muitíssimo pelo contrário: participaram de rebeliões contra a
elite senhorial branca, criaram (e viveram em) quilombos e, entre
outras coisas, formaram a liderança da Revolução dos Alfaiates
(1798), centrada na luta contra a escravidão e o colonialismo –
liderança que, de resto, foi presa e enforcada em praça pública.
Além disso, não só a miscigenação não é – nem pode ser – um
processo unilateralmente embranquecedor, como tal projeto de
branquear a população brasileira foi coisa datada e exclusiva da
classe dirigente – e nossa vida social e cultural aconteceu, em sua
maior medida, à revelia do Estado e desta classe.
Por fim, é mais do que anacrônica a suposição de Abdias que
sustenta o feminismo negro. A mestiçagem, hoje em dia, não pode
mais ser vista como violência contra a mulher negra. Primeiro,
porque temos uniões de homens pretos com mulheres brancas.
Segundo, porque a união ou o casamento de um homem branco com
uma mulher preta não se dá mais sem o assentimento, a
cumplicidade ou mesmo a iniciativa desta. Melhor não falsear a
realidade com discursos “historicistas”.
Mas é impressionante, paradoxal mesmo, ver como a atual
ideologia racialista, que se alastrou pelo país a partir principalmente
do ambiente “acadêmico”, repete ao pé da letra a velha miragem do
“racismo científico” do século 19, que acreditava na fantasia de uma
desigualdade essencial e insuperável entre as raças.
Naquela época, os teóricos do “racismo científico” defenderam
a tese totalmente sem pé nem cabeça (que agora vemos retomada)
de que era possível branquear a população brasileira através de
processos de imigração e miscigenação, já que nesta prevaleceriam
sempre os genes da “raça superior” – a branca, naturalmente.
Em “Sur les Métis au Brésil”, texto apresentado em 1911 no
Primeiro Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres,
o antropólogo Baptista de Lacerda, do Museu Nacional, chegou até
a fazer suas contas na ponta do lápis. Segundo ele, o branqueamento
do povo brasileiro estaria concluído na segunda década do século
21.
E sempre que recordo isso, lembro também uma deliciosa
“boutade” do mestiço brasileiro Chico Buarque de Hollanda,
falando da obrigação em que estávamos de promover o casamento
do goleiro Taffarel e da apresentadora Xuxa, a fim de tentar evitar a
extinção da raça branca no Brasil.
Agora, como disse, os racialistas repetem o dogma que se
revelou um fracasso histórico espetacular. E adiantam outros passos
esdrúxulos, desde que a paranoia político-social tem seus próprios
desenhos e suas próprias regras.
Com medo de um branqueamento final e total do povo
brasileiro, essa turma parte para o ataque pesado. Dispara chumbo
grosso contra relações amorosas e sexuais que envolvam pretos e
brancos. E isto não é de hoje. Já na década de 1970 esse discurso
contra relações sexo-amorosas interétnicas, abraçando pretos e
brancos, tinha aflorado com nitidez.
O próprio Abdias do Nascimento, que nunca olhava para si
mesmo nem discutia seu próprio cotidiano, era discreta mas
severamente criticado por diversos ativistas político-acadêmicos do
Movimento Negro, em consequência do seu casamento com uma
branca norte-americana, Elisa Larkin, autora do livro (bem
ruinzinho, por sinal) “Pan-Africanismo na América do Sul:
Emergência de uma Rebelião Negra”.
E Abdias, embora defendesse a tese estapafúrdia de que
miscigenação era genocídio, nunca se deu ao trabalho de analisar o
seu caso pessoal. Sempre fez de conta que não ostentava uma
ancestralidade mista – birracial, no mínimo. E que não vivia com a
mulher que vivia. Mas vamos deixá-lo de parte por ora.
O que quero salientar agora é o ponto a que chegaram nossos
atuais “neonegros” (vale dizer, mulatos que sempre foram mulatos e
hoje se apresentam como pretos retintos). Já faz tempo que, em seu
afã de combater a mescla interracial, vêm falando de um tal de
“amor afrocentrado”, rótulo ideológico que mais não é do que um
eufemismo para a segregação erótica.
Tem mais. Uma coisa é o fenômeno objetivo da mistura
genética, outra coisa são as ideologias da mestiçagem. No passado, a
mestiçagem brasileira ganhou leituras mistificadoras, senhoriais.
Para se contrapor a isso, muitos cometeram um equívoco primário:
em vez de rediscutir em profundidade a questão, resolveram
eliminá-la, como um sujeito que, ao fechar a janela, acredita que a
rua deixou de existir.
Mas continuamos mestiços. E a mestiçagem não é indestacável
da fantasia da "democracia racial". Recusar-se a usar a noção é como
se recusar a falar de "raça", por conta do uso que os nazistas fizeram
do conceito, combatendo ferozmente, aliás, a mestiçagem. Se não
entendermos nossas misturas, nunca entenderemos a nós mesmos.
E é bom sublinhar que mestiçagem não é sinônimo de
harmonia. Não exclui o conflito, nem a discriminação. A melhor
prova disso é o Brasil. E, aqui, uma coisa é certa. Não pode existir
delírio ideológico maior, entre nós, do que fantasiar a inexistência
de mestiços. Mestiços nascem diariamente de uma ponta a outra do
país.
Mas vamos finalizar. Se a mestiçagem diminui a população
negra, também diminui a população branca. É curioso que “racistas
científicos” e racialistas atuais acreditem no contrário, que a
miscigenação branqueia, mas não escurece. Mas a verdade é que o
processo biológico não é (nem poderia ser) de mão única,
privilegiando magicamente os brancos.
Um estudioso negroafricano menos delirante, Kabengele
Munanga, em “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil”, vai ao ponto:
“...a realidade empírica, crua, observada por todos, é a de que o
Brasil constitui o país mais colorido do mundo racialmente... fica
insustentável a crença no aniquilamento do contingente negro, por
um lado, e no branqueamento completo de toda a população
brasileira, por outro... O colorido da população desmente as
previsões do modelo”.
Claro. A verdade é que, se um dia não houver nenhum negro
no Brasil, também não haverá nenhum branco. E assim me vejo na
obrigação de repetir aqui uma observação (óbvia), que já fiz
inúmeras vezes: se for pelo caminho da miscigenação, o genocídio
do negro será inseparável do suicídio do branco.

*Antonio Risério é antropólogo, poeta e romancista, autor de “Que Você É


Esse?” (editora Record).

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