O mulato Abdias do Nascimento – que caminhou do fascismo
integralista para o racialismo “made in USA” – era um homem preconceituoso. Basta ver a estranha seletividade com que, apesar de filho da mestiçagem tristetropical brasileira, ele usa a própria palavra “mulato”. Quando quer fazer o elogio de algum mestiço de branco e preto, Abdias chama-o “negro”. Mas, quando quer execrar o sujeito, trata-o como “mulato” (muito embora, em seu discurso geral, faça de conta que o mulato não existe). Assim, nos seus textos e palestras, o mulato Luiz Gama, filho de branco baiano de origem portuguesa e da preta Luiza Mahin, era “negro”. Já o mulato capitão-do-mato ou feitor, não: era “mulato” mesmo. Pois bem. Descende diretamente do velho guru Abdias do Nascimento o slogan racialista exibido em manifestação na Avenida Paulista, no último dia 20 de novembro, pelos ativistas dos movimentos negros: “miscigenação também é genocídio” – pregação explícita em favor da implantação de um “apartheid” amoroso-sexual no país. Diante da afirmação slogamática, aliás, ficam menores outros debates, como os estéticos, por exemplo, quando, depois que conseguimos atirar fora a praga do “realismo socialista”, querem nos aprisionar no cárcere do “realismo racialista”. E um filme como “Vazante” (Daniela Thomas) acabou pagando o pato recentemente, nesse “revival” rácico-stalinista. Agora, com o combate à miscigenação à frente, o lance é mais grave: passa-se do “lugar de fala” ao “lugar de cama”. Mas vamos puxar o fio da meada. Em “O Genocídio do Negro Brasileiro”, bíblia do nosso racialismo essencialmente colonizado, um Abdias confuso e sectário monta duas sequências. Numa, encadeia mestiçagem, branqueamento e alienação da identidade negra. Noutra, amarra miscigenação, branqueamento e aniquilação da raça negra. Neste segundo caso, Abdias vê a mestiçagem/miscigenação como estratégia de extermínio da população negra: “...o mulato prestou serviços importantes à classe dominante; durante a escravidão ele foi capitão-do-mato, feitor... Nele se concentraram as esperanças de conjurar a ‘ameaça racial’ representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil”. E ainda, como se nunca tivesse se olhado no espelho: “O processo de mulatização, apoiado na exploração sexual da negra, retrata um fenômeno de puro e simples genocídio. Com o crescimento da população mulata a raça negra está desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população do país”. É uma visão unilateral e anacrônica, para dizer o mínimo. Tanto do ponto de vista histórico, quanto do genético. Por várias razões. Afinal, quem quer que conheça a história de nosso passado escravista, sabe muito bem que mulatos não foram somente capitães-do-mato ou feitores. Muitíssimo pelo contrário: participaram de rebeliões contra a elite senhorial branca, criaram (e viveram em) quilombos e, entre outras coisas, formaram a liderança da Revolução dos Alfaiates (1798), centrada na luta contra a escravidão e o colonialismo – liderança que, de resto, foi presa e enforcada em praça pública. Além disso, não só a miscigenação não é – nem pode ser – um processo unilateralmente embranquecedor, como tal projeto de branquear a população brasileira foi coisa datada e exclusiva da classe dirigente – e nossa vida social e cultural aconteceu, em sua maior medida, à revelia do Estado e desta classe. Por fim, é mais do que anacrônica a suposição de Abdias que sustenta o feminismo negro. A mestiçagem, hoje em dia, não pode mais ser vista como violência contra a mulher negra. Primeiro, porque temos uniões de homens pretos com mulheres brancas. Segundo, porque a união ou o casamento de um homem branco com uma mulher preta não se dá mais sem o assentimento, a cumplicidade ou mesmo a iniciativa desta. Melhor não falsear a realidade com discursos “historicistas”. Mas é impressionante, paradoxal mesmo, ver como a atual ideologia racialista, que se alastrou pelo país a partir principalmente do ambiente “acadêmico”, repete ao pé da letra a velha miragem do “racismo científico” do século 19, que acreditava na fantasia de uma desigualdade essencial e insuperável entre as raças. Naquela época, os teóricos do “racismo científico” defenderam a tese totalmente sem pé nem cabeça (que agora vemos retomada) de que era possível branquear a população brasileira através de processos de imigração e miscigenação, já que nesta prevaleceriam sempre os genes da “raça superior” – a branca, naturalmente. Em “Sur les Métis au Brésil”, texto apresentado em 1911 no Primeiro Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres, o antropólogo Baptista de Lacerda, do Museu Nacional, chegou até a fazer suas contas na ponta do lápis. Segundo ele, o branqueamento do povo brasileiro estaria concluído na segunda década do século 21. E sempre que recordo isso, lembro também uma deliciosa “boutade” do mestiço brasileiro Chico Buarque de Hollanda, falando da obrigação em que estávamos de promover o casamento do goleiro Taffarel e da apresentadora Xuxa, a fim de tentar evitar a extinção da raça branca no Brasil. Agora, como disse, os racialistas repetem o dogma que se revelou um fracasso histórico espetacular. E adiantam outros passos esdrúxulos, desde que a paranoia político-social tem seus próprios desenhos e suas próprias regras. Com medo de um branqueamento final e total do povo brasileiro, essa turma parte para o ataque pesado. Dispara chumbo grosso contra relações amorosas e sexuais que envolvam pretos e brancos. E isto não é de hoje. Já na década de 1970 esse discurso contra relações sexo-amorosas interétnicas, abraçando pretos e brancos, tinha aflorado com nitidez. O próprio Abdias do Nascimento, que nunca olhava para si mesmo nem discutia seu próprio cotidiano, era discreta mas severamente criticado por diversos ativistas político-acadêmicos do Movimento Negro, em consequência do seu casamento com uma branca norte-americana, Elisa Larkin, autora do livro (bem ruinzinho, por sinal) “Pan-Africanismo na América do Sul: Emergência de uma Rebelião Negra”. E Abdias, embora defendesse a tese estapafúrdia de que miscigenação era genocídio, nunca se deu ao trabalho de analisar o seu caso pessoal. Sempre fez de conta que não ostentava uma ancestralidade mista – birracial, no mínimo. E que não vivia com a mulher que vivia. Mas vamos deixá-lo de parte por ora. O que quero salientar agora é o ponto a que chegaram nossos atuais “neonegros” (vale dizer, mulatos que sempre foram mulatos e hoje se apresentam como pretos retintos). Já faz tempo que, em seu afã de combater a mescla interracial, vêm falando de um tal de “amor afrocentrado”, rótulo ideológico que mais não é do que um eufemismo para a segregação erótica. Tem mais. Uma coisa é o fenômeno objetivo da mistura genética, outra coisa são as ideologias da mestiçagem. No passado, a mestiçagem brasileira ganhou leituras mistificadoras, senhoriais. Para se contrapor a isso, muitos cometeram um equívoco primário: em vez de rediscutir em profundidade a questão, resolveram eliminá-la, como um sujeito que, ao fechar a janela, acredita que a rua deixou de existir. Mas continuamos mestiços. E a mestiçagem não é indestacável da fantasia da "democracia racial". Recusar-se a usar a noção é como se recusar a falar de "raça", por conta do uso que os nazistas fizeram do conceito, combatendo ferozmente, aliás, a mestiçagem. Se não entendermos nossas misturas, nunca entenderemos a nós mesmos. E é bom sublinhar que mestiçagem não é sinônimo de harmonia. Não exclui o conflito, nem a discriminação. A melhor prova disso é o Brasil. E, aqui, uma coisa é certa. Não pode existir delírio ideológico maior, entre nós, do que fantasiar a inexistência de mestiços. Mestiços nascem diariamente de uma ponta a outra do país. Mas vamos finalizar. Se a mestiçagem diminui a população negra, também diminui a população branca. É curioso que “racistas científicos” e racialistas atuais acreditem no contrário, que a miscigenação branqueia, mas não escurece. Mas a verdade é que o processo biológico não é (nem poderia ser) de mão única, privilegiando magicamente os brancos. Um estudioso negroafricano menos delirante, Kabengele Munanga, em “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil”, vai ao ponto: “...a realidade empírica, crua, observada por todos, é a de que o Brasil constitui o país mais colorido do mundo racialmente... fica insustentável a crença no aniquilamento do contingente negro, por um lado, e no branqueamento completo de toda a população brasileira, por outro... O colorido da população desmente as previsões do modelo”. Claro. A verdade é que, se um dia não houver nenhum negro no Brasil, também não haverá nenhum branco. E assim me vejo na obrigação de repetir aqui uma observação (óbvia), que já fiz inúmeras vezes: se for pelo caminho da miscigenação, o genocídio do negro será inseparável do suicídio do branco.
*Antonio Risério é antropólogo, poeta e romancista, autor de “Que Você É