Bioética nas pesquisas com seres humanos-

Uma análise crítica do filme O Jardineiro Fiel.

Cristiane Ferreira Mendes

Flaviana Fatima Mariano
Rodrigo Luís Vogt1
Adriana Dias Basseto 2

INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende construir, em forma de análise crítica, uma
articulação teórica entre os princípios éticos básicos que devem nortear as pesquisas
realizadas com seres humanos e a bioética, com o filme O Jardineiro Fiel, que apresenta
uma realidade fictícia em que esses princípios norteadores para manter a dignidade
humana são feridos e ignorados, frente aos interesses econômicos de grandes empresas
e governos. Na elaboração do artigo será apresentado, o que é a bioética, em que
contexto ela surgiu, quais são e como foram propostos princípios em que a bioética se
baseia, além do Código de Nuremberg e seus pilares que orientam a prática de pesquisas
com seres humanos.

ANÁLISE CRÍTICA
O filme O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, 2005) é uma obra fictícia que
apresenta a história de Justin Quayle3, um diplomata britânico que recebe uma missão
no Quênia e de sua esposa, Tessa Quayle, uma ativista e defensora dos direitos
humanos. A trama se desenvolve a partir do assassinato de Tessa e do Dr. Arnold
Bluhm, com quem ela estava aliada para desvendar as misteriosas relações entre uma
empresa comercializadora de medicamentos, uma indústria farmacêutica, o governo
britânico e o governo queniano. Tessa e o Dr. Bluhm acreditavam que essas empresas e
o governo estavam utilizando de forma indiscriminada seres humanos para testagem de
medicamentos. Após a morte de sua esposa, o filme acompanha a luta empreendida pelo

1
Acadêmico do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR/Toledo.
2
Psicóloga Clínica na Abordagem Fenomenológica-Existencial, Mestre em Saúde Coletiva, Especialista
em Psicologia Jurídica. Docente orientadora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
PUCPR/Toledo. E-mail: adriana.basseto@pucpr.br / adrianabasseto@hotmail.com.br.
3
Os nomes de pessoas, empresas e medicamentos apresentados no filme e reproduzidos neste artigo são
fictícios.
fiel Justin para descobrir quais foram os verdadeiros motivos desse crime, seguindo os
passos já caminhados por Tessa.
Apesar de se tratar de uma obra fictícia, esse filme aponta situações importantes
e polêmicas que ocorrem na sociedade moderna, que levantam questionamentos sobre o
impacto que a tecnologia e as descobertas científicas, nesse caso as médicas e
farmacêuticas, podem causar na vida das pessoas. A bioética atua para ajudar a tentar
solucionar esses questionamentos.
O termo bioética é relativamente novo, surgiu nas últimas década do século XX,
a partir dos grandes avanços tecnológicos que aconteceram na área da Biologia, e os
consequentes problemas éticos derivados das descobertas e aplicações das ciências
biológicas, que podem causar um grande impacto sobre a vida humana e a natureza
(KOERICH et al. 2005). Mas foi a partir da década de 80 que a bioética ganhou impulso
definitivo, a partir do advento da AIDS, percebeu-se a necessidade de uma “profunda
reflexão bioética em razão das consequências para os indivíduos e a sociedade”
(KOERICH et al. 2005, p. 108).
A bioética tem caráter multidisciplinar, é um estudo sistemático da conduta
humana na área das ciências da vida e da saúde, examinadas a luz dos valores e
princípios morais. Não se limita ao individuo, mas tem como enfoque a
responsabilidade social e aplicação dos diretos da cidadania (KOERICH et al. 2005).
O avanço do conhecimento científico é extremamente importante para o
desenvolvimento da humanidade, porém Potter, o primeiro a utilizar o termo bioética
em 1971, aponta que o conhecimento pode ser perigoso, quando não há sabedoria
suficiente para gerencia-lo (KOERICH et al. 2005).
Além de atuar em dilemas éticos polêmicos, como a eutanásia, aborto, projeto
genoma (KOERICH et al. 2005), a bioética atua em casos em que há conflitos de
valores. No caso do filme, por exemplo, em que são realizadas pesquisas com seres
humanos, devem ser discutido “a liberdade e os limites da pesquisa científica em
contraponto aos princípios gerais da Bioética e à dignidade” (OLIVEIRA e FILHO,
2006, p.1191).
Os princípios básicos da bioética são o resultado de um trabalho da Comissão
Nacional para Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental,
dos Estados Unidos da América, apresentados em 1978, que buscava identificar os
princípios éticos básicos que devem ser aplicados no desenvolvimento das pesquisas
que envolvem seres humanos, e acabaram por se estender a todas as projeções da
bioética (OLIVEIRA e FILHO, 2006).
Além da bioética existe um documento, o Código de Nuremberg, formulado por
juízes dos EUA em 1947 para julgar os médicos nazistas acusados por um tipo singular
de crime, que consistia na experimentação de pesquisas, frequentemente fatais em
prisioneiros de guerra (CÓDIGO DE NUREMBERG, 1997).
O Código de Nuremberg, em conjunto com a Declaração de Helsinki (1964-
1996) e as Diretrizes para Pesquisa em Seres Humanos da CIOMS (Conselho
Internacional de Organizações de Ciências Médicas 1993) estabeleceram alguns pilares
da ética moderna para orientar a prática de pesquisa em seres humanos (CÓDIGO DE
NUREMBERG, 1997).
No filme, uma empresa chamada ThreeBees testa medicamentos (o Dypraxa,
produzido pela indústria farmacêutica KDH) contra a tuberculose na população do
Quênia, sendo essa testagem legitimada tanto pelo Governo do Quênia, quanto pelo
Governo Britânico, que são beneficiados com os lucros gerados pelas ThreeBees e
KDH.
É exatamente na testagem dos medicamentos no povo queniano que fica
evidente que os princípios básicos da bioética e da pesquisa com seres humanos são
deixados de lado pelas empresas e organizações envolvidas no esquema, visando
somente interesses comerciais e econômicos.
O filme mostra que a empresa ThreeBees fornece Unidades Médicas Móveis,
onde são coletadas amostras de saliva da população queniana, usadas para identificar
tuberculose e AIDS. Aqui se encontra um dos problemas referentes ao desrespeito aos
princípios da bioética. Os quenianos não são informados de que essas amostras servirão
também para diagnosticar a presença da bactéria da tuberculose, além do vírus do HIV.
Isso fere o principio da autonomia, que garante à pessoa ser reconhecida como
um ente capaz de tomar suas próprias decisões, e devendo ser previamente informadas a
respeito de todos os procedimentos, riscos e consequências, podendo assim, livremente
decidir se deseja ou não participar da pesquisa (OLIVEIRA e FILHO, 2006). No caso
apresentado pelo filme, os testes de medicamentos estão sendo feitos com pessoas sem
o prévio consentimento ou conhecimento acerca desses riscos.
O agravante no caso da testagem dos medicamentos, apresentado na obra, é que
esse medicamento para tuberculose é um medicamento novo, que ainda não possuía
comprovações de sua eficácia e nem informações precisas sobre os efeitos colaterais
decorrentes do seu uso.
A dignidade humana é ferida, pois os quenianos são forçados a assinalar nas
fichas do governo que concordavam em receber o medicamento, mesmo sem conhecer
as razões de sua aplicação. Essa coerção para que eles concordassem em receber esse
medicamento, se dava pelo fato de que caso recusassem, seriam cortados qualquer tipo
de convênio médico e acesso a tratamento de outras doenças. Por se tratar de uma
população vulnerável, sem condições financeiras de arcar com tratamentos, eles cedem.
Segundo o primeiro pilar apontado no Código de Nuremberg sobre o
consentimento voluntário de quem será submetido ao experimento é essencial, ou seja,
ele deve ser feito sem a intervenção de elementos de fraude, força, mentira, coação, e
que estes devem ter conhecimento suficiente para tomarem uma decisão lucida. Esse
conhecimento deve abranger sobre a duração, propósitos, métodos, inconveniências e
riscos possíveis desse experimento. Dessa forma o pesquisador tem responsabilidade na
qualidade desse consentimento (CÓDIGO DE NUREMBERG, 1997).
Nesse caso, o principio da justiça também é ferido, pois este garante
imparcialidade na distribuição dos benefícios da pesquisa, assim como tratamentos
igualitários ao todos, o que não acontece com os quenianos que necessitam de
tratamento para AIDS. Além de que a injustiça se faz presente quando um dano é
imposto ou algum beneficio é negado a alguém de forma injustificada (OLIVEIRA e
FILHO, 2006).
Posteriormente, Justin em suas investigações, seguindo os passos de sua esposa,
descobre que mais de sessenta quenianos que recebiam esse medicamento morreram,
foram queimados e jogados em um cemitério clandestino, além de que suas fichas
médicas desapareceram, assim, para o governo é como se elas nunca tivessem recebido
algum tipo de tratamento. Há quatro pilares no Código de Nuremberg claramente
desrespeitados nessa descoberta feita por Justin: o quarto pilar que diz sobre a
necessidade de o experimento ser conduzido de tal forma que evite todo sofrimento e
dano físico ou mental desnecessários. O quinto aborda sobre a proibição da condução de
qualquer experimento em que existam razões para acreditar que possa ocorrer morte ou
invalidez permanente. O sétimo que expõe a necessidade de serem tomados todos os
cuidados especiais para proteger os participantes de qualquer dano, invalidez ou morte,
mesmo que essas possibilidades sejam remotas. E o décimo orienta ao pesquisador, que
caso ele acredite que essas possibilidades de danos ou fatalidades sejam reais, mesmo
que remotamente, ele deve estar preparado para suspender o experimento (CÓDIGO DE
NUREMBERG, 1997).
Outros dois princípios da bioética feridos nessa testagem de medicamentos, são
o da beneficência, que aponta o dever de não causar danos, e maximizar os possíveis
benefícios e minimizar os prejuízos, e da não maleficência que consiste na obrigação de
não causar danos intencionalmente (OLIVEIRA e FILHO, 2006). A empresa ThreeBees
não se mostrou disposta a retornar o medicamento aos laboratórios para aperfeiçoa-la,
pois isso custaria muito tempo e dinheiro, assim apenas os prejuízos financeiros foram
levados em consideração e não os prejuízos que a falta da avaliação dos riscos
potenciais do uso desse medicamento causariam aos seres humanos utilizados na
pesquisa. Outro ponto importante, em que a dignidade do ser humano não é respeitada,
está representado no fato de que esses testes estão sendo realizados e causando prejuízos
em uma população que não usufruirá dos futuros benefícios da descoberta da cura para a
tuberculose, uma vez que a empresa pretende comercializar esse medicamento para os
países ricos, e caso eles fossem comercializados no Quênia, os valores dele não seria
acessível à população local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O filme O Jardineiro Fiel, mesmo se tratando de uma produção científica,
apresenta situações que ainda ocorrem na sociedade moderna. Apesar dos grandes
avanços da bioética, principalmente após as atrocidades feitas com seres humanos
durante a Segunda Guerra Mundial, ainda assim, os princípios éticos básicos
estabelecidos para pesquisas que utilizam seres humanos, visando manter sua dignidade,
continuam sendo burlados constantemente.
No Brasil questões relacionadas à Bioética são analisadas e fiscalizadas pela
Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP) criado em 1996, que é uma
comissão do Conselho Nacional de Saúde (CNS) com função de implementar normas e
diretrizes que regulamentam pesquisas envolvendo seres humanos. Tem função
normativa, deliberativa e educativa que atua em conjunto á uma rede de Comitês de
Ética em Pesquisa (CEP) que atualmente ultrapassa o numero de 700 unidades
abrigados em instituições de pesquisa, de ensino e de assistência á saúde.
Analisando as questões apresentadas no filme O Jardineiro Fiel e o Projeto de
Lei nº 200/2015 que modifica regras para testes de medicamentos em seres humanos,
pretendendo acelerar a liberação de análise e registro de medicamentos para doenças
como câncer, diabetes e Alzheimer pode-se perceber que os interesses econômicos e
políticos estão norteando as decisões, tanto na ficção como na vida real as questões
éticas relacionadas à vida humana.

REFERÊNCIAS

OLIVEIRA, PAULO HENRIQUE; FILHO, ROBERTO. Bioética e pesquisa com

seres humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 101
p. 1187- 1227, jan/dez 2006.

O JARDINEIO FIEL. Direção: Fernando Meirelles, Produção: Simon Channing-

Williams. EUA: Focus Features, 2005, 1 DVD.

KOERICH et al. Ética e bioética: para dar inicio à reflexão. Texto Contexto Enferm.
Santa Catarina, v.14, n.1, p.106-10, 2005.

CÓDIGO DE NUREMBERG. Disponível em

http://www.gtp.org.br/new/documentos/nuremberg.pdf. Acesso em 18 de abril de 2018.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Atribuições. Disponível em:

http://conselho.saude.gov.br/Web_comissoes/conep/aquivos/conep/atribuicoes.html.
Acesso em: 18 de abril de 2018