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Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD)

5(1): 38-47 janeiro-junho 2013


© 2013 by Unisinos - doi: 10.4013/rechtd.2013.51.05

Direito e justiça em Kant

Law and justice in Kant

Thadeu Weber1
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
weberth@pucrs.br

Resumo
O texto procura explicitar a concepção moral do direito na doutrina do direito de
Kant, mediante a distinção entre leis jurídicas e leis éticas, a partir das leis morais.
Chama a atenção, no entanto, para uma incoerência entre essa concepção e o re-
conhecimento dos direitos de equidade e o de necessidade, por um lado, e a não
realização desses direitos, por outro. O intuito é mostrar que a efetivação daqueles
direitos pode dar-se pelo recurso aos princípios morais, deixando de aplicar leis com
consequências injustas.

Palavras-chave: justiça, direito, formalismo, equidade, necessidade.

Abstract
This paper aims to clarify the moral concept of law in Kant’s doctrine of law through
the distinction between legal laws and ethical laws, on the basis of the moral laws.
However, it points to an inconsistency between this conception and the recognition
of the rights of fairness and necessity, on the one hand, and the non-realization of
these rights, on the other. It intends to show that the realization of those rights can
take place through an appeal to moral principles, omitting the application of laws with
unfair consequences.

Key words: justice, law, formalism, fairness, necessity.

1
Doutor em Filosofia (UFRGS). Professor dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Av. Ipiranga, 6681, 91530-000, Porto Alegre, RS, Brasil.
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Introdução (a) Arbítrio e desejo. Deve-se observar que,


quando falamos de relações jurídicas, estamos tratando
Qual é propriamente a relação entre direito e de arbítrios e não de desejos.Arbítrio é a consciência da
justiça? Quem define o que é justo? Qual é o critério? capacidade de produzir determinado objeto e realizar
Qual é a relação entre moral e direito? É o direito po- determinado desejo; desejo é a mera “representação de
sitivo capaz de realizar a justiça ou não tem nenhuma um objeto determinado colocado como fim” (Bobbio,
relação com ela? Essas são questões de muita discussão 1969, p. 68; ver também Beckenkamp, 2009). É a “facul-
e controvérsia, mas de extrema relevância e atualidade. dade (capacidade) de fazer ou deixar de fazer o que se
Kant, certamente, é um dos autores modernos tem vontade de fazer” (Kant, 1982, p. 316) e da maneira
que mais se dedicou a esses assuntos e influenciou de- que se quer fazer. O arbítrio é a consciência da capaci-
cisivamente o pensamento político e jurídico contem- dade de alcançar o objeto desejado. Quando, portanto,
porâneo. Os temas do direito e da justiça são centrais, se diz que a relação jurídica é uma relação de arbítrios,
notadamente, em sua Metafísica dos Costumes. estamos supondo tratar-se de “duas capacidades cons-
A discussão central gira em torno da fundamen- cientes do poder que cada um tem de alcançar o objeto
tação moral do Direito. Se, por um lado, Kant distingue de desejo” (Bobbio, 1969, p. 69).
leis éticas e leis jurídicas e lhes atribui um fundamento A vontade, por sua vez, é “faculdade de desejar”
comum – as leis morais –, isto é, defende um conceito enquanto “fundamento de determinação do arbítrio
moral do Direito, por outro, ignora essa base comum para a ação” (Kant, 1982, p. 317). Ela é razão prática,
ao discutir o direito de equidade e o direito de neces- na medida em que pode determinar o arbítrio.Vontade
sidade. Por que reconhecer um direito e não assegurar pura significa, pois, a capacidade de determinar ime-
sua efetivação? Se esses são reconhecidos como direi- diatamente as ações, sem instâncias mediadoras, tais
tos, ainda que “duvidosos”, dentro do direito em sentido como as motivações empíricas. Só que a vontade o faz
amplo, por que não assegurá-los a partir dos princípios de acordo com princípios a priori, dados pela razão.
do direito natural que, segundo o próprio Kant, orien- O arbítrio, na medida em que é determinado pela ra-
tam e dão conteúdo ao direito positivo? Esse é o foco zão pura, é arbítrio livre; enquanto determinado so-
básico desse artigo. mente pelas inclinações, o arbítrio é bruto (brutum),
próprio dos animais. Para que tenha valor moral, o
Distinções preliminares arbítrio humano certamente pode ser “afetado” por
estímulos sensíveis, mas não pode ser “determinado”
Algumas distinções conceituais são oportunas por eles. Kant registra o aspecto positivo e negativo
para entender a Doutrina do Direito, primeira parte do arbítrio: o negativo refere-se à “independência de
da referida obra. Inicialmente é importante obser- sua determinação por estímulos sensíveis” (Kant, 1982,
var o título: Princípios Metafísicos do Direito. Há que p. 317); o positivo diz respeito à determinação da ra-
se distinguir a metafísica do direito da “práxis jurídi- zão pura como prática, isto é, que determina imedia-
ca empírica”. Ao propor uma metafísica, Kant está se tamente a vontade. É a capacidade autolegisladora da
referindo aos princípios a priori que orientam e dão razão. A vontade, por sua vez, não é livre nem não livre.
conteúdo ao direito positivo, existente no espaço e Somente o arbítrio, considerando que dele provêm as
tempo. Tentativa análoga ocorre na Fundamentação da máximas, pode ser livre.
Metafísica dos Costumes, só que em relação à moral. (b) Moralidade e legalidade: essa distinção já é
Nesta, o intuito é a determinação do princípio su- amplamente discutida na Fundamentação da Metafísica
premo de moralidade. Sendo a priori, esses princípios, dos Costumes. No entanto, não se diferencia moral e éti-
tanto do Direito quanto da Moral, só podem originar- ca, e uma separação entre moral e direito parece estar
se da razão. Considerando que o direito positivo (as claramente configurada. Pelo menos essa é a leitura que
leis civis) enuncia o que é lícito ou ilícito, cabe à razão tradicionalmente é feita do filósofo de Königsberg. Na
estabelecer, através de princípios, o critério a partir Metafísica dos Costumes, no entanto, a distinção entre
do qual se pode definir o que é justo ou injusto. Fi- moral e ética passa a ser decisiva, e a fundamentação
xar esse critério é o propósito de uma “metafísica do moral do direito entra em pauta. Diferentemente das
direito”. Kant a faz preceder por uma “introdução à leis naturais (que dizem o que é), as leis da liberdade são
metafísica dos costumes”. as leis morais (moralisch), na medida em que dizem res-
Para o que nos interessa quanto à doutrina do peito à autolegislação da razão e enunciam o que deve
direito, importa explicitar os seguintes conceitos: ser (cf. Kant, 1982, p. 318). Trata-se da moral em sentido

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amplo, na medida em que inclui a legislação prática2. tipo de motivação é suficiente. Segundo Kant, a legisla-
Dessa forma, as leis morais (gênero) dividem-se em leis ção de que promessas devem ser cumpridas é própria
jurídicas e leis éticas (espécie). As leis jurídicas referem- do Direito e não da ética. A ética ensina que, em não
se às ações “meramente externas” e à sua legitimação. É havendo coerção externa, própria da legislação jurídica,
a liberdade externa.As leis éticas têm como fundamento como móbil para o cumprimento de promessas, a ideia
de determinação das ações o respeito às leis. A confor- do dever, por si mesma, é suficiente como motivação.
midade das ações externas às leis jurídicas é a legalidade; Cumprir promessas ou contratos é um dever; é uma or-
a conformidade das ações às leis éticas é a moralidade dem da razão. O que move o seu cumprimento é o que
(Moralität). Pela divisão apresentada, as leis jurídicas e distingue as duas formas de legislação. Podemos cumprir
as leis éticas são subclasses das leis morais (ver Almei- promessas feitas por coerção externa ou por respeito
da, 2006, p. 215; Nour, 2004b, p. 96; Beckenkamp, 2009, ao dever. A primeira (jurídica) é externa; a segunda (éti-
p. 68, 2003, p. 154). Kant confere, assim, às leis jurídicas ca) é interna. Do ponto de vista da legislação jurídica,
um estatuto moral. O imperativo categórico, enunciado a legislação ética é insuficiente para motivar o cumpri-
pela razão, diz respeito a ambos, direito e ética. mento dos contratos. Considerando a “insociável so-
É fundamental salientar que a demonstração de ciabilidade” do homem, a legislação jurídica, mediante
um conceito moral do direito passa por essa distinção coerção externa, é o recurso do Estado para organizar
entre moral e ética. “Na medida em que incidem apenas a vida em sociedade como um sistema cooperativo, isto
sobre as ações meramente externas e sua legalidade, as é, para fazer cumprir os ditames da razão. Na verdade, é
leis morais se chamam jurídicas; mas, se exigem também a própria razão que autoriza outro móbil (externo) para
que elas sejam mesmo os fundamentos de determina- fazer cumprir as obrigações decorrentes da legislação
ção das ações, elas são éticas” (Kant, 1982, p. 318). Se moral. Isso é autonomia. Os que se submetem às leis
quisermos sustentar um conceito moral do direito, é são os mesmos que participam de sua elaboração.
essencial observar o aspecto categórico da legislação Uma metafísica dos costumes se impõe para es-
moral que se aplica tanto à legislação ética quanto à tabelecer os princípios a priori de uma legislação univer-
jurídica. Ambas decorrem de princípios práticos a priori sal, que pode ser ética ou jurídica, dependendo do móbil
da razão. das ações. Ambas, no entanto, dizem respeito às leis da
Pode-se observar que o que propriamente dis- liberdade, portanto, às leis morais. Pode-se, então, falar
tingue uma legislação de outra é a motivação, os móbeis de um conceito moral do direito. É fundamental salien-
das ações ou a distinta maneira pela qual obrigam. Na tar que o princípio da autonomia, isto é, a capacidade
legislação ética, o móbil da ação é o dever, ao passo que, de se submeter às leis das quais se é autor ou a que
na legislação jurídica, a motivação é dada pelas inclina- se possa dar o seu consentimento, é comum às duas
ções ou aversões. Neste caso, a legislação é coercitiva. formas de legislação. Tanto no direito quanto na ética
A legalidade, portanto, diz respeito à mera concordância há uma mútua imbricação entre liberdade e a lei à qual
ou não de uma ação com a lei, sem levar em conta seu se obedece. Liberdade implica a prescrição da lei para
móbil; a moralidade, por sua vez, refere-se à concordân- si próprio.
cia da ação com a lei, tendo em vista a ideia do dever (c) Pessoa e personalidade moral: a ideia de
como móbil. O que caracteriza a legislação ética é a pessoa implica ações passíveis de imputação (cf. Kant,
realização de ações simplesmente por serem deveres, 1982, p. 329); a personalidade moral indica sujeição da
fazendo do princípio do dever o “móbil suficiente do liberdade de um “sujeito racional” às leis morais. Pessoa
arbítrio” (Kant, 1982, p. 326). Na legislação jurídica, os é o sujeito com qualidades morais: a racionalidade e a
deveres são externos, pois não se exige o cumprimento razoabilidade. Estas capacidades significam que a pessoa
do dever pelo dever. Esta é uma exigência própria da está apta para “ouvir a voz da razão” e está disposta a
legislação ética. Nesta, o fundamento de determinação escutar e levar em consideração a razão dos outros.
do arbítrio do sujeito agente é o dever. O racional e o razoável implicam “sensibilidade moral
Se o fundamento é comum, não se trata, obvia- e uma capacidade de juízo moral” (Rawls, 2005, p. 191).
mente, de estabelecer uma oposição entre as duas for- Estas capacidades estão pressupostas na filosofia prática
mas de legislação. Se o que as distingue é a motivação das de Kant; são condições de sua possibilidade. Para ser
ações, temos que avaliar até que ponto um determinado passível de imputação, pressupõe-se competência ético-

2
Sobre esse conceito amplo da moral, ver Terra (1987, p. 50): “moral em sentido amplo compreende a doutrina dos costumes englobando tanto o direito quanto a
ética”. Sobre a relação entre moral, ética e direito, embora não a partir de Kant, ver Forst (2010), principalmente o segundo capítulo.

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jurídica. Dessa forma, personalidade moral importa na donar o nível da experiência e recorrer à razão. Soraya
ideia de autonomia e, por isso, só ela tem dignidade. Nour comenta: “O direito positivo deve encontrar seu
Significa que a pessoa está submetida àquelas leis que critério de justiça e seu fundamento no direito natural”
ela se dá, tanto jurídicas quanto éticas. Essa capacidade (Nour, 2004a, p. 5). Em outro texto, destaca: “Se, por um
de justificar suas regras de ação mediante princípios é o lado, o direito positivo deve buscar seu fundamento no
que confere dignidade à pessoa humana. Enquanto capa- direito natural, por outro, uma comunidade não pode
cidade de ter boa vontade é que a personalidade moral ser governada apenas pelo direito natural, e sim pelo di-
“nos faz fins em nós mesmos e determina a condição reito positivo que o direito natural deve fundar” (Nour,
de sermos membros do reino dos fins” (Rawls, 2005, 2004a, p. 94).
p. 241). Kant busca, em sua filosofia prática, o autoco- Elaborar um critério de justiça para a legislação
nhecimento, ou seja, conforme comenta Rawls, “um positiva é o intuito fundamental da doutrina do direito.
conhecimento do que desejamos enquanto pessoas O direito natural (a razão) trata dos princípios; o direito
providas das faculdades da razão livre teórica e prática” positivo das leis. Estas dizem o que é lícito, aqueles es-
(Rawls, 2005, p. 171). Se pessoa é o sujeito com qualida- tabelecem o critério de justiça. Isso indica que a funda-
des morais, pessoa de direito é a portadora de direitos; mentação do jurídico é a moral. Só a razão pode forne-
é “sujeito do direito” (Forst, 2010, p. 38). cer “os princípios imutáveis de toda legislação positiva”
(Kant, 1982, p. 336).
O conceito do Direito A “inversão copernicana” também deve ser apli-
cada à doutrina do direito. É o problema do transcen-
A definição kantiana do Direito refere-se à ideia dental. A revolução metodológica realizada pelo autor
de Justiça. A discussão passa, então, a girar em torno do na Crítica da Razão Pura delineia toda a sua filosofia. O
que é o justo. Temos de ter presente que a doutrina do a priori somente é possível na razão (sujeito) e não no
direito do autor distingue claramente o direito natural objeto. Dessa forma, o fundamento de uma legislação
do direito positivo. O primeiro trata dos princípios a positiva só pode ser estabelecido pela razão, uma vez
priori, originários da razão. Refere-se ao imperativo ca- que tem validade apriorística. “Uma doutrina do direito
tegórico do Direito. O segundo trata das leis positivas, meramente empírica é [...] uma cabeça que pode ser
originárias do legislador. Estas são as que existem empi- bela, mas infelizmente não tem cérebro” (Kant, 1982,
ricamente; constituem-se pelas leis de um determinado p. 337). Kant, desse modo, faz uma dedução transcen-
espaço e tempo e sua fonte é o direito natural. Dessa dental do direito. O cérebro de uma doutrina empírica
forma, para não incorrer em falácia naturalista, fica cla- do direito, nesse caso, é o direito natural.
ro que a definição do que é justo/injusto não pode ser Isso reporta aos elementos constitutivos do
estabelecida a partir do direito positivo. Não se pode conceito do Direito:
partir do que é para o que deve ser. Para definir o di- (i) O Direito refere-se às relações externas en-
reito como justiça (uma espécie de dever ser), deve-se tre as pessoas e não às suas motivações internas;
abandonar o empírico e recorrer à razão. Isso mostra (ii) O Direito se constitui na relação de arbítrios
que o direito natural é o fundamento racional do direi- e não de desejos. Numa relação jurídica, é preciso que
to positivo. É o imperativo categórico do Direito que o arbítrio de um esteja relacionado com o arbítrio de
enuncia o critério de justiça e é dele que derivam as outro e não com o desejo de outro. A relação jurídica
leis positivas. Os princípios de justiça que orientam o é uma relação de capacidades conscientes, de alcan-
direito positivo (tanto o privado como o público) são çar os objetivos desejados. Numa relação de compra
determinados ou derivados do direito natural. A razão e venda, por exemplo, o arbítrio do comprador deve
é, portanto, a fonte da justificação das regras de ação. encontrar-se com o arbítrio do vendedor e não com o
Estas deixam de ser arbitrárias quando justificadas pelos seu mero desejo;
princípios, proclamados pela razão. A experiência diz o (iii) O Direito não se preocupa com a matéria
que é, mas não o que deve ser. O direito positivo pode do arbítrio, mas com a forma do mesmo. Na relação de
dizer o que “dizem ou disseram as leis em certo lugar dois arbítrios, não são relevantes os fins subjetivos ou as
e tempo”, isto é, o que é lícito ou ilícito, mas não se é intenções que movem as vontades dos sujeitos agentes.
justo ou injusto. Aliás, ele (o direito positivo) diz o que é O importante é a forma do arbítrio, isto é, na medida
lícito/ilícito em relação ao justo/injusto. Para dizer o que em que é livre. Importa saber se a ação de determina-
é justo e determinar o “critério universal” mediante o da pessoa é ou não um obstáculo à liberdade de outra,
qual se pode definir o justo ou o injusto, é preciso aban- de acordo com uma lei universal. Bobbio, interpretando

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Kant, diz que “o Direito, na regulação de uma relação de à ideia de justiça como liberdade, ou mais precisamente,
arbítrios, não se preocupa em estabelecer quais sejam à ideia de justiça como coexistência de liberdades ex-
os fins individuais, utilitários, que os dois sujeitos pre- ternas. Se uma ação que pode coexistir com a liberdade
tendem, os interesses que estão em pauta, mas somente de qualquer um segundo uma lei universal for impedida
em prescrever a forma, ou seja, as modalidades através por alguém, estará caracterizada a injustiça. A coexis-
das quais aquele fim deve ser alcançado e aqueles inte- tência de liberdades de acordo com leis universais é o
resses, regulados” (Bobbio, 1969, p. 69). Na regulação critério de justiça. Colocar obstáculos ao livre exercício
dos contratos de compra e venda, o Direito se preocu- das liberdades externas é cometer uma injustiça. É isso
pa tão somente com as condições formais dentro das que diz o imperativo categórico do direito, originário da
quais eles devem ser cumpridos e não com os interes- razão (direito natural). Como visto, é esta que estabe-
ses e as vantagens de vendedor e comprador. lece o critério de justiça. Se, por um lado, é injusto co-
O Direito é mais regulador do que emancipador. locar impedimentos à liberdade do outro, por outro, é
Esse é o chamado formalismo kantiano que, segundo justo colocar um impedimento ao obstáculo de alguém
alguns, vai inspirar o formalismo jurídico (Bobbio, 1969, à minha liberdade. Exercer uma coerção sobre alguém
p. 70). Dar ênfase ao caráter formal significa que tanto o que representa um obstáculo à liberdade segundo leis
Direito quanto a Ética não prescrevem o que é ou o que universais é justo. É justo coagir alguém que é injusto.
se deve fazer, mas como se deve proceder. O imperati- Essa é a função das leis jurídicas. O Direito exer-
vo categórico, tanto do Direito quanto da Ética, indica ce a função de criar impedimentos aos obstáculos da
basicamente um procedimento. É o procedimento do liberdade. Ele está autorizado para isso. “Tudo o que é
imperativo categórico, para usar a expressão de Rawls injusto é um impedimento para a liberdade segundo leis
(2005, p. 188 ss.). É uma fórmula que não enuncia conte- universais” (Kant, 1982, p. 338). Trata-se de um critério
údo, mas que se aplica a qualquer conteúdo moral, seja fundamentalmente formal, pois não diz o que é propria-
ético ou jurídico. A partir disso pode-se definir o Direi- mente justo, todavia indica o procedimento mediante
to como “o conjunto das condições por meio das quais o qual se realiza a justiça. Dessa forma, o direito po-
o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio sitivo terá que garantir o exercício dessas liberdades;
de outro, segundo uma lei universal da liberdade” (Kant, deverá estabelecer limites determinando o que é lícito
1982, p. 337). Observa-se que: (a) trata-se do conjunto ou ilícito, tendo em vista o critério de justiça. O Direi-
das condições, portanto, de aspectos formais e não de to, portanto, está autorizado para coagir, ainda que seja
interesses pessoais ou intenções; (b) trata-se da relação uma coerção externa, e nisso se distingue da legislação
de arbítrios e não de desejos; (c) trata-se da obediência ética. Daí ser muito apressado concluir para qualquer
à lei da liberdade, lei esta que determina os limites do forma de positivismo jurídico, por um lado, ou para um
exercício de cada arbítrio, tendo em vista a compatibili- liberalismo, por outro.
dade das ações. É isso que diz “a lei universal do direito”:
“age externamente de tal maneira que o livre uso de teu A superação do formalismo?
arbítrio possa coexistir (estar de acordo) com a liberda-
de de qualquer outro segundo uma lei universal” (Kant, Uma das críticas comuns feitas a Kant diz respei-
1982, p. 338). Esta é uma lei da razão, e que estabelece to ao seu excessivo formalismo, seja do ponto de vista
o critério de justiça/injustiça das ações. É o imperativo ético, seja do ponto de vista jurídico3. Hegel o acusa de
categórico do Direito. Está clara a ideia da coexistência cair num “vazio formalismo”, como decorrência da se-
das liberdades externas. São irrelevantes as motivações paração indevida entre forma e matéria de um princípio
internas do sujeito agente. É exatamente nisso que se ou de uma lei. Para ele, um princípio ético é resultante
distingue a legislação jurídica da legislação ética. da determinação e mediação das vontades livres dos
O que é, então, uma ação justa? Para Kant, “uma sujeitos agentes. Constitui-se de historicidade e tempo-
ação é justa, quando por meio dela, ou segundo a sua ralidade4.
máxima, a liberdade do arbítrio de um pode coexistir Mas e o positivismo jurídico, tido como de forte
com a liberdade de qualquer outro, segundo uma lei uni- influência nos neokantianos do direito, tal como Kelsen,
versal” (Kant, 1982, p. 337). É importante salientar que a que escreve uma Teoria Pura do Direito? Terão eles razão
ênfase de Kant em toda a doutrina do direito refere-se ao verem em Kant uma separação entre moral e direito

3
Soraya Nour chama a atenção para esse equívoco de interpretação (Nour, 2004a, p. 91-103).
4
Não entro aqui na crítica de Hegel ao formalismo da moral, pois já foi objeto de outra pesquisa minha (ver Weber, 2009).

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ou não distinguem devidamente ética e moral? O que equidade se reconhece um direito, embora estejam au-
significa dar ênfase à forma da lei? Como vimos, há cer- sentes as condições formais requeridas pelo judiciário
tamente, em Kant, uma distinção entre legislação ética para efetivá-lo. Há, dessa forma, um direito que não é
e legislação jurídica, mas, pelo visto até aqui, parece não assegurado. Pela equidade, aquele que investiu e produz
haver uma separação entre moral e direito. mais numa determinada empresa deveria poder exigir
Dará a distinção entre direito estrito e direito um retorno maior, em caso de acidente com grandes
em sentido lato feita no “apêndice à introdução à dou- perdas. No entanto, pelo direito estrito, esta exigência
trina do direito”, ao referir-se ao “direito equívoco”, não pode ser atendida: o que importa são as cláusulas
alguma luz às questões colocadas? Não trará essa dis- contratuais. É a justiça entendida de maneira formal e
tinção ainda mais margem às divergências nas interpre- abstrata. O exemplo do salário corroído pela moeda in-
tações referentes à moral e ao direito? flacionada mostra bem que o critério é o contrato de
Ao sustentar que, no direito estrito, todo direi- trabalho previamente assinado. Pela equidade, no entan-
to vem “acompanhado da faculdade de obrigar”, Kant to, cria-se um direito de não ser prejudicado. É notório
mostra que há um outro direito, no “sentido lato”, onde que, nesse caso, circunstâncias externas modificaram as
essa faculdade não ocorre. Ao definir o primeiro (direi- condições do contrato e sua execução acaba por lesar
to estrito) como sendo “aquele que não exige outros uma das partes. Mas por que as cláusulas contratuais
fundamentos de determinação do arbítrio a não ser os não previram formas de efetivação desse direito, mesmo
meramente externos”, distingue-o claramente da ética, por coerção?
tendo em vista que, na sequência, afirma que o direito Kant reconhece a “contradição” do “tribunal da
estrito “é aquele em que não se mescla nada de ético” equidade”, todavia não considera a equidade como di-
(dem nichts Ethisches beigemischt ist) (Kant, 1982, p. 339), reito a ser efetivado pelo direito estrito, embora seja
sendo por isso “puro”. Ao dizer que o direito estrito é um direito presumido pelo direito em sentido lato. Pela
puramente externo, o autor salienta que ele não tem equidade há um direito por parte do assalariado, mas
por base de motivação do arbítrio a consciência da para a sua efetivação não há coerção possível, pois o
obrigação segundo a lei. O direito se fundamenta “no “tribunal” não decide com base na equidade e sim com
princípio da possibilidade de uma coação externa, que base no direito estrito (justiça abstrata). É um direito
pode coexistir com a liberdade de qualquer um segundo sem coerção. Mas por quê? Porque não há “condições
leis universais” (Kant, 1982, p. 339). Do ponto de vista definidas segundo as quais o juiz deveria se manifestar”
do direito estrito, não é a consciência do cumprimen- (Gomes e Merle, 2007, p. 140). A equidade, para Kant, é
to do dever que obriga um devedor ao pagamento de um direito em sentido amplo e não em sentido estrito.
uma dívida, mas a coerção segundo uma lei externa. No Quando ele diz que “o ditado da equidade” é o de que
que se refere, portanto, ao direito estrito, não saímos de “o mais estrito direito é a maior injustiça” (Kant, 1982,
uma doutrina pura do direito, uma vez que não contém p. 342) e que esse mal não pode ser remediado pela via
nada de ético. Mas como entender então que seu crité- judicial, ele certamente desvincula o direito formal da
rio de justiça é moral? É preciso salientar, mais uma vez, justiça e não considera a efetivação da equidade, embo-
que, quando falamos de uma base comum entre moral e ra a reconheça como um direito. Há um recurso a uma
direito, estamos nos referindo à moral em sentido am- concepção de justiça no nível moral (dado pela razão),
plo, no sentido de legislação prática. A diferença, então, mas não assegurada pela via jurídica, pois diz que, nesses
se dá entre direito e ética. A distinção agora é entre “casos duvidosos” (equidade e necessidade), “não pode
direito em sentido estrito e direito em sentido amplo. ser encontrado um juiz” (Richter) para a tomada de de-
Se ao direito estrito está ligada a autorização cisão (Kant, 1982, p. 341). Mas como então sustentar
para coagir, no direito em sentido lato (ius latum) essa um conceito moral do direito? A lei jurídica não deve-
autorização “não pode ser determinada por uma lei” ria, exatamente, garantir o conteúdo da lei moral, isto
(Kant, 1982, p. 341). É o caso do direito de equidade e é, a justiça? Ou os dois casos (equidade e necessidade),
do direito de necessidade (Notrecht). No primeiro, te- por serem “anômalos”, para usar a expressão de Bob-
mos “um direito sem coerção” (Recht ohne Zwang) e, bio, ou situações de um “direito duvidoso”, devem ser
no segundo, uma “coerção sem direito” (Zwang ohne desconsiderados na relação moral e direito? Todavia, se
Recht) (Kant, 1982, p. 341). Em outras palavras: pela são direitos em sentido amplo, não é exatamente nesses
equidade admite-se um direito que não pode obrigar; casos que precisamos da interpretação e das decisões
pela necessidade coloca-se uma exigência sem direito. de juízes? De que critérios estes se valeriam? Isso nos
Concretamente, embora sejam “casos de direito duvi- reporta aos princípios enunciados pela razão, portanto,
doso”, como se dá a relação entre moral e direito? Pela ao direito natural.

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É precisamente nos hard cases (casos difíceis) equidade aplicada ao exemplo da moeda inflacionada,
que se deve recorrer aos princípios. É um engano pen- existem dois direitos concorrendo: um segundo a justi-
sar que, no direito decorrente da equidade, “faltam as ça (abstrata) e outro segundo a equidade e diz que Kant
condições requeridas pelo juiz”. Isso significa reduzir a opta pela prevalência do primeiro (Bobbio, 1969, p. 80).
sua atuação ao direito estrito. Ele deve dizer o direi- O problema está exatamente aí: considerar como justa
to, sobretudo nos casos difíceis. Quando a aplicação do a aplicação de uma lei com consequências injustas. Até
princípio do precedente conduz a consequências injus- que ponto é possível falar em justiça formal ou abstrata?
tas, o recurso à equidade é “um recurso do juiz contra Como positivista que é, Bobbio simplesmente endos-
a lei” (Perelman, 2005, p. 163). O juiz pode e deve re- sa Kant. Por um viés hegeliano, poder-se-ia dizer que o
correr aos princípios da justiça a fim de assegurar esse problema está na concepção apriorística de justiça for-
direito. Deve fundamentar e justificar suas escolhas. mal ou na validade apriorística da lei. É o problema do
Segundo Kant, um tribunal sempre decidirá pela justiça formalismo, também no direito.
abstrata (formal), e não pelo direito de equidade. No O imperativo categórico é, por excelência, um
entanto, isso indica a insuficiência da legislação jurídica princípio metafísico do Direito e que define o critério
para realizar a justiça e dá margem à leitura de uma se- de justiça. Ao afirmar que o “o mais estrito direito é a
paração indevida entre moral e direito, contradizendo a maior injustiça”, o autor está se valendo desse critério
introdução à doutrina do direito acima referida. enunciado pela razão e não pelo direito positivo. Toda-
A distinção entre princípios e regras nos ensina via, ao admitir que esse mal não possa ser remediado
que, quando a aplicação de regras trouxer consequên- pela via judicial, parece ignorar a fundamentação moral
cias injustas, deve-se recorrer aos princípios que as fun- do direito. É exatamente nos casos duvidosos que de-
damentam. Estes não são extralegais, conforme sustenta vemos abandonar as regras e recorrer aos princípios
Dworkin (1997). Assim, o recurso à equidade poderia a fim de evitar consequências injustas. Ao “jogar” o di-
justificar a não aplicação de uma lei com consequências reito de equidade para o tribunal da consciência, des-
injustas, ainda que seja um caso de direito duvidoso. Pe- vincula o direito propriamente dito (estrito) da justiça,
relman escreve com acerto: “Desejamos, de fato, que isto é, dos princípios do direito natural, enunciados
o ato justo não se defina simplesmente pela aplicação pela razão.
correta de uma regra, seja ela qual for, mas pela aplica- Já o caso do direito de necessidade é mais em-
ção de uma regra justa” (Perelman, 2005, p. 167). Kant blemático. Kant o define como um “suposto direito”,
reconhece o direito de equidade, mas não o contempla que autoriza alguém para, no caso de extremo perigo de
na efetivação do direito estrito. Diz claramente que “o perda da própria vida, poder tirar a vida de alguém, ain-
juiz não pode sentenciar de acordo com condições in- da que este alguém não lhe tenha feito mal algum (Kant,
determinadas” (Kant, 1982, p. 342). Logo, o juiz, no caso 1982, p. 343). É o famoso caso dos dois náufragos que
da equidade, não pode fazer justiça. Ele decide de acor- se seguram num pedaço de madeira que não os suporta.
do com a lei que, nesse caso, tem consequências injustas. A necessidade de empurrar o outro é o caso de sobre-
Por que então falar em direito à equidade, já que não vivência de um deles. O que autoriza o ato de violência
tem eficácia? Se pelo direito estrito não se pode assegu- é o direito de necessidade. Nesse “ato de autopreser-
rar o direito à equidade, uma vez que pertence ao direi- vação”, sustenta o autor, certamente há culpa, embora
to em sentido amplo, dever-se-ia fazê-lo pelos princípios esse ato não possa ser punido. Daí Kant incorporar o
morais, já que fundamentam as leis jurídicas. É o próprio “ditado do direito de necessidade”: “a necessidade não
Kant que escreve: “Pois se perece a justiça, não tem mais tem lei” (Not hat kein Gebot) (Kant, 1982, p. 343). A ne-
nenhum valor que existam homens sobre a terra” (Kant, cessidade é uma exceção. Se nesse caso não pode haver
1982, p. 453)5. Por que, então, recorre ao direito estrito, lei que obrigue uma ação ou proíba, também não pode
mediante o qual não se resolve o problema? O critério haver lei que puna um ato resultante do exercício do
passa a ser a lei e não a justiça. direito de necessidade. A necessidade pode tudo, no
Era de se esperar que a distinção entre direito sentido de se estar autorizado. Só que Kant acrescenta:
em sentido estrito e direito em sentido lato trouxes- “[...] mesmo assim, não pode haver necessidade que tor-
se um encaminhamento para além do meramente legal nasse legal o que é injusto” (Kant, 1982, p. 343). Mas o
(jurídico), ou seja, que se buscasse nos princípios da ra- que, nesse caso, é injusto? Empurrar alguém para salvar
zão uma forma de fazer justiça. Para Bobbio, no caso da a própria vida? Punir alguém por esse ato? Kant dá a en-

5
“Denn, wenn die Gerechtigkeit untergeht, so hat es keinen Wert mehr, dass Menschen auf Erden leben.”

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tender que um ato resultante do estado de necessidade zões como justo por si mesmo pode não ser confirma-
pode ser qualificado de injusto, ainda que não possa ser do por um tribunal, e aquilo que ele mesmo deve julgar
punido e que isso não significa que se possa legalizar injusto em si pode conseguir absolvição perante um
uma injustiça só por ser originária de uma necessidade tribunal” (Kant, 1982, p. 344). Todos consideram como
extrema. Punir seria injusto. Além disso, não há lei que justo que se corrija um salário corroído por uma moeda
autorize a matar alguém para salvar a própria vida. Isso inflacionada. Contudo, o juiz não tem disposições legais
é próprio do estado de necessidade, que Hegel chamará para efetivar este direito. Deve zelar pelo cumprimento
de “direito de emergência”. Por isso, não pode haver lei do contrato de trabalho. Problemas de segurança jurí-
penal que puna uma ação originária do estado de ne- dica? O problema do direito positivo, portanto, não é
cessidade. Neste estado, a “autorização para coagir não a justiça e sim o cumprimento da lei (o que pode ter
pode ser estabelecida por uma lei” (Kant, 1982, p. 341). consequências injustas).
Mas não é justo matar alguém para defender a Todos dirão que é injusto o empregador que
própria vida? Ou é apenas lícito? Ora, ser lícito não sig- apenas paga o salário acordado, mas que perdeu seu
nifica ser justo; significa apenas estar autorizado. Talvez poder aquisitivo por causa da inflação. Dirão também
a questão devesse ser colocada de outra forma. É lícito que é injusto o judiciário que não reconhece o direi-
(erlaubt) fazer uso de todos os meios disponíveis para a to de equidade do trabalhador. Embora Kant diga que,
autoproteção. A intenção não é matar, mas a autodefesa, do ponto de vista da equidade, “o direito estrito é a
ainda que a consequência seja a morte de alguém. Se líci- maior injustiça”, nem com o direito em sentido lato re-
ta é “uma ação que não é nem ordenada nem proibida”, solve o problema da injustiça. Era de se esperar que
seria ela uma ação “moralmente indiferente”, tendo em não só fosse reconhecido o direito de equidade, mas
vista que não há lei restritiva da liberdade? (Kant, 1982, também efetivado. Surpreendentemente trata-se de
p. 329). Parece que Kant não admitiria essa possibilidade. uma “divindade muda [a equidade], que não pode ser
Não se pode esquecer que Kant dá ênfase às ouvida” (Kant, 1982, p. 342). Era de se esperar que, nos
condições de responsabilidade subjetiva, embora aí este- casos duvidosos, o recurso à equidade tivesse o intui-
ja também sua insuficiência. Propõe uma ética das inten- to de mostrar a insuficiência da justiça formal e indi-
ções, mas não da responsabilidade objetiva. Na verdade, car a necessidade do recurso ao direito natural. Não
Kant não refere o direito da legítima defesa, pois fala da há, então, uma incoerência com a fundamentação moral
autorização para fazer um mal a quem “não fez um mal” do direito? Além do mais, do ponto de vista jurídico,
e nem representa uma ameaça. Entretanto, pelo direito o acordo entre empregado e empregador poderia ter
de necessidade, a conclusão parece óbvia. Ao afirmar previsto uma atualização monetária caso houvesse uma
que a necessidade não pode tornar legal algo injusto, depreciação do dinheiro, na execução do contrato (Go-
Kant parece não admitir a possibilidade da lei injusta, à mes e Merle, 2007, p. 136). As prescrições do contrato,
qual, portanto, caberia desobediência. Mas, mais do que nesse caso, não são justas, enquanto as de equidade, o
isso, está dizendo que a necessidade não precisa de lei, são. Para Perelman, “a equidade pode prevalecer sobre
e mesmo que houvesse necessidade prevista em lei, esta a segurança, e o desejo de evitar consequências iníquas
não poderia legalizar uma injustiça como, por exemplo, pode levar o juiz a dar nova interpretação da lei, a mo-
penalizar um ato praticado em estado de necessidade. dificar as condições de sua aplicação” (Perelman, 2005,
Nesse contexto, compreende-se por que Kant não ad- p. 166). Considerar a equidade na aplicação da lei é um
mite o direito de resistência (a desobediência civil)6. recurso para evitar as consequências injustas do “ato
Diante disso, parece não haver propriamente formalmente justo”. A regra da justiça segundo a qual si-
uma superação do formalismo, tendo em vista que nem tuações semelhantes devem ter tratamento semelhante,
nos casos de direito duvidoso se amplia o espectro de o que se pode chamar de regra de justiça formal, implica
decisões. O autor permanece preso ao estritamente previsibilidade, todavia nem sempre é suficiente para as
previsto pelo direito positivo. Além do mais, quando se necessidades da justiça.
introduzem os conceitos de razão e de justiça, perma- Seria o caso do direito de necessidade diferente?
nece certa ambiguidade na doutrina do direito kantiana. O fato de não punir atos praticados nessa situação mos-
O autor diz claramente que, nos casos de equidade e tra que o direito reconhece exceções à lei, em situações
necessidade, “o que cada um reconhece com boas ra- de extrema necessidade. Nesse caso, não se comete uma

6
Sobre a negativa do direito de resistência, ver Metafísica dos Costumes (doutrina do direito) (Kant, 1982, p. 439). Saliente-se que, para o autor, não é permitida uma
“resistência ativa”, mas apenas uma “resistência negativa” (Kant, 1982, p. 441).

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injustiça, embora o assassinato seja por definição uma in- natural dão conteúdo ao direito positivo, conforme
justiça. É o mesmo caso que prevê o direito de mentir claramente sustentado na referida introdução, por que
para a defesa de um inocente, ainda que dizer a verdade não buscar nessa fonte a justificação e efetivação dos
seja um preceito fundamental do Direito. O estado de referidos direitos? Os princípios não são extralegais,
necessidade justifica uma exceção. Na verdade, a exce- como querem os positivistas, mas são constitutivos da
ção deixa de ser tal quando a sua máxima puder ser uni- ciência normativa do Direito. Se os referidos direitos
versalizada, ou seja, passar pelo teste da universalização. são efetivamente direitos, já que reconhecidos, é preci-
Assim, mentir para proteger um inocente está justificado so encontrar uma forma de assegurá-los juridicamente,
e, portanto, é legal e eticamente correto. No entanto, ao tendo por base os princípios da razão, fonte da justiça.
admitir a culpa no estado de necessidade, mas não a pu- A não definição das condições do ponto de vista jurí-
nição, Kant permanece preso à ideia de justiça puramente dico para efetivar aqueles direitos mostra que não é
formal e abstrata. Não reconhece a justiça dos atos prati- possível fazer leis para tudo. Por isso, é na ausência delas
cados em estado de necessidade, uma vez que não exime que os princípios devem ser arrolados.
de culpa, ainda que não preveja punição. Ao reconhecer o ditado de que “o mais estrito
Ora, tais atos não são passíveis de culpa, muito direito é a maior injustiça”, Kant pressupõe uma con-
menos de punição. Não se deveria, nesses casos, recor- cepção de justiça expressa pelos princípios racionais,
rer aos princípios, tendo em vista as consequências in- uma vez que são estes que dão conteúdo ao direito po-
justas da aplicação das regras do direito positivo? sitivo. Assim, é possível encontrar uma solução para os
Embora se possa sustentar um conceito moral problemas da efetivação dos direitos de equidade e de
do direito na “introdução à doutrina do direito”, no necessidade a partir da fundamentação moral do direito,
apêndice da mesma, o filósofo de Königsberg parece expressa na doutrina do direito do filósofo de Königs-
dar, nos casos de equidade e de necessidade, margem à berg, coisa que ele não fez. Não aplicar as regras formais,
interpretação de uma independência entre moral e di- mesmo a regra do precedente, em vista das consequên-
reito e, assim, ficar preso ao formalismo jurídico, isto é, a cias injustas, aponta para a supremacia do justo sobre
uma doutrina pura do direito. É curioso que Kant faça a o legal e mostra claramente que este (o legal) não é
distinção entre direito estrito e direito em sentido lato, critério de justiça.
onde trata da equidade e do direito de necessidade (ca- Temos na introdução da doutrina do direito
sos de direito duvidoso), e apresente uma solução para um problema metodológico. O autor defende uma
esses casos a partir do direito estrito (positivo formal). concepção moral do direito apontando os princípios
Por que, então, falar em direito em sentido lato? Não se da razão como orientadores para o direito positivo;
trata de direitos duvidosos. Tanto o direito de equidade reconhece os direitos de equidade e de necessidade,
quanto o de necessidade são direitos líquidos e certos, todavia não assegura sua efetivação. Reconhece direi-
ainda que em situações concretas nem sempre seja fácil tos que não são direitos, isto é, que não têm eficácia.
qualificá-las como tais. O problema está em defender uma concepção moral
do direito e não se valer dela para garantir direitos
Considerações finais tacitamente reconhecidos.
O imperativo categórico do direito “age exte-
Na introdução da Doutrina do Direito pode-se riormente de tal maneira que o livre uso de teu arbí-
efetivamente falar em conceito moral do direito. Isso trio possa coexistir com a liberdade de qualquer um
não é claro na Fundamentação da Metafísica dos Costu- segundo uma lei universal” é uma formula que não in-
mes e na Crítica da Razão Prática. A legislação jurídica e dica nenhum conteúdo. Indica, apenas, um procedimen-
a legislação ética têm como base comum as leis morais. to. Não diz o que é justo, mas enuncia como se deve
O que as distingue é a diferente motivação (móbil). No proceder para que uma ação seja justa. O problema é
entanto, a distinção entre direito em sentido estrito e saber quando e em que circunstâncias uma ação pode
direito em sentido amplo não contribuiu para forne- coexistir com a liberdade do outro, enquanto não for
cer elementos de garantia de efetivação do direito de apontado um conteúdo determinado. Ou se pressupõe
equidade e do direito de necessidade. Kant permanece uma lei que diga o que deve ser feito e, então, o impe-
preso ao formalismo do direito positivo. Qual é, então, rativo ou princípio universal do direito não diz nada de
o sentido dessa distinção? Pela equidade se reconhece novo, ou cai-se num vazio formalismo, tal como o im-
um direito, mas que não é direito, pois não é efetivável perativo categórico da ética. Temos, então, uma noção
pela legislação positiva. Ora, se os princípios do direito de justiça formal e abstrata. O tratamento dado aos

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direitos de equidade e de necessidade é um exemplo FORST, R. 2010. Contextos da Justiça. São Paulo, Boitempo, 382 p.
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