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EGRÉGIA 4ª TURMA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA: 2006.70.00.028870-0


APELANTE: KATHIE LEITZKE e outros
APELADO: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ - PUC PR
RELATORA: DESEMBARGADORA FEDERAL MARGA INGE BARTH TESSLER

PARECER

RELATÓRIO

1. Trata-se de mandado de segurança impetrado por fiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia
contra o Presidente do Conselho Universitário da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

2. O “writ” tem por objeto garantir ao impetrantes a realização das provas seletivas designadas
para o dia 25/11/2006, sábado, em horário a partir das 20h16min, horário do pôr do sol.

3. Juntam os impetrantes declarações de Pastores de sua igreja atestando a filiação religiosa de


cada um impetrantes e as prescrições sobre as condutas de seus fiéis no sábado, fls. 21, 25, 30, 34, 39, 44 e
71:
"[...] em harmonia com as normas estabelecidas pelas Escrituras sagradas e
observadas pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, exaradas no livro de êxodo,
capítulo 20, todos os seus membros, livres e conscientemente observam o dia de
sábado com um dia de guarda santificado, de acordo com o 4º mandamento da LEI
DE DEUS, desde o pôr-do-sol de sexta-feira até o pôs-do-sol de sábado; abstendo-
se neste dia de qualquer atividade secular, usando o período considerado sagrado
para participar ativamente das reuniões religiosas diversas, bem como dedicar-se a
fazer o bem, prestando assistência social e moral, e também dar atendimento a
enfermos, deficientes físicos e outros, com o objetivo de cumprir a Lei de Cristo:
'Amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo'."

DIREITO PRIMA FACIE À PRESTAÇÃO (EXAME VESTIBULAR) EM HORÁRIO ADEQUADO ÁS


CRENÇAS RELIGIOSAS. ART. 5º, VI e VII, C/C 6º, DA CF/88.

4. A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu artigo 5º, VI, a liberdade de consciência e
de crença, enquanto o inciso VIII garante o direito de não ser privado de direitos por motivo destas crenças,
salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todas imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei.
5. Tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 18, quanto a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (art. 12.2) e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos (arts. 18, 25 e 26)
possuem disposições análogas as da Constituição brasileira.

6. Entretanto, um acréscimo em termos de conteúdo é dado pela Declaração sobre a


Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com base em Religião ou Crença,
proclamada pela Resolução 36/55, da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 25 de novembro de 1981.

“Artigo 6: De acordo com o Artigo 1 da presente Declaração, e sujeito às


disposições do Artigo 1, parágrafo 3, o direito à liberdade de pensamento,
consciência, religião ou crença deve incluir, inter alia, as liberdades de:
(...)
(h) Observar os dias de descanso e celebrar os feriados e cerimônias de acordo
com os preceitos de sua a religião ou crença”.

7. Dos incisos VI e VIII do art. 5º da CF (e dos tratados internacionais referidos) deduzem-se os


seguinte enunciados deônticos: a) permissão para a consciência e crença (subjetivas) e para o exercício de
atos religiosos e seculares que não contrariem suas crenças e consciências; b) proibição de quaisquer
condutas por parte do Estado e de particulares que prive direitos de cidadão em razão de sua crença
religiosa; c) quando se trata de obrigação legal a todos imposta (obrigação universal), o Estado ou entes
equiparados têm a obrigação de garantir prestação alternativa.
8. Por força do art. 5º, § 1º, a inexistência de lei de que trata o final do inciso VIII não prejudica o
direito. Portanto, trata-se de norma de aplicação imediata, embora sujeita à reserva legal.
9. Embora não tenha encontrado referência à incorporação formal da Convenção Internacional
acima referida ao direito brasileiro, entendo que cai sob o âmbito de proteção dos dispositivos constitucionais
mencionados o direito ao dia de guarda religioso, de acordo com suas crenças e dogmas religiosos, dos fiéis
da Igreja Adventista do Sétimo Dia.
10. Entretanto, a questão posta não diz respeito exclusivamente ao direito ao dia de guarda e
nem exclusivamente a um direito de liberdade, considerado como um direito à omissão do Estado (ou de
particulares). Mais precisamente, não se trata de uma restrição à liberdade dos impetrantes, mas sim da
existência ou não de uma prestação adequada às suas crenças.
11. No caso concreto, trata-se igualmente de uma questão referente ao direito à educação, uma
vez que o processo seletivo é condição de acesso à educação superior, objetivo dos impetrantes.
12. Portanto, buscam os impetrantes uma prestação (direito fundamental à educação) adequada
às suas crenças. Então sustentam que a prestação disponibilizada pelo impetrado não atende às suas
necessidades e impede-lhes de acessar o ensino superior.
13. Penso que não pode ser reconhecido, por força do Estado laico, um direito a um currículo que
não contrarie suas crenças. Mas, o caso presente, o pedido restringe-se a um aspecto de prestação do
exame vestibular em horário especial. Tal pedido deve ser avaliado segundo o esquema argumentativo da
proporcionalidade, mais especificamente no sentido da proibição da insuficiência (Untermassverbot).

PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO AMPLO NO SENTIDO DA PROIBIÇÃO DA INSUFICIÊNCIA.


14. A proporcionalidade em sentido amplo compreende um esquema argumentativo que inclui a
análise da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Quando o direito em discussão é
de cunho prestacional, o esquema a ser seguido é o relativo à proibição de insuficiência, ou seja, o Estado
não pode deixar de alcançar os limites mínimos, sob pena de violação ao direito fundamental. 1

15. O primeiro passo é a identificação da medida pleitada pelos impetrantes: realização de


exame vestibular em horário alternativo, após o pôr do sol. Além disso, os impetrantes dispõem-se a
permanecer em sala reservada e sob fiscalização.

16. Trata-se de uma medida adequada, uma vez que satisfaz a ambos os direitos em jogo: a)
direito à educação (acesso ao ensino superior); b) direito de exercício de crenças religiosas.

17. Quanto à necessidade, cumpre verificar se há outra medida alternativa que garanta o direito
dos impetrantes, mas afete os direitos da outra parte em medida menor. Não vislumbro no caso concreto
outra prestação possível que satisfaça tais requisitos.

18. É evidente que a prestação alternativa pleiteada causa um ônus financeiro à parte impetrada,
pois os impetrantes deverão ser mantidos em espaço afastado dos demais candidatos e em horário
extemporâneo. Isso implica no pagamento a maior de funcionários, que deverão permanecer no trabalho
além do horário inicial previsto.

19. Tal ônus gerado ao impetrado exige então que se proceda a uma ponderação entre o direito
dos impetrantes à realização das provas em horário alternativo e o ônus financeiro gerado por isso ao
impetrado.

20. De um lado temos um verdadeiro direito fundamental, que se reveste da máxima importância
para seus titulares e, assim, deve ser avaliado na máxima medida possível. De outro lado, um pequeno ônus
financeiro que deve suportar uma grande instituição. Ou seja, tal ônus não comprometerá em absoluto as
finanças e nem há notícias que causará qualquer transtorno aos demais candidatos.

21. Destarte, os direitos fundamentais à educação e à liberdade religiosa deve preponderar, no


caso concreto, sobre o direito da universidade de definir os horário do exame seletivo.

Direito de igualdade formal e jurídica. Não há violação de direitos de terceiros.

22. Maria Emília Corrêa da Costa, em excelente dissertação de Mestrado sobre o tema,
“Liberdade religiosa como direito fundamental”, conclui igualmente pela necessidade de se alcançar “postura
que proporcione o exercício de dever a todos imposto com o menor sacrifício da crença professada pelo
cidadão, sem que para isso, por outro lado, seja criada intolerável desigualdade em relação aos demais” (p.
170).

1
A proporcionalidade em sentido estrito nos termos da proibição da insuficiência é objeto de obra de minha autoria:
Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais, Livraria do Advogado, 2006.
23. Cita como paradigma o julgado do Tribunal Constitucional alemão (BVerfGE 33, 23 (1972),
que entendeu por liberar uma testemunha em processo criminal de prestar juramento de dizer a verdade,
tendo em vista razões religiosas.

24. Portanto, há uma exigência constitucional de que a prestação pleiteada não atinja direitos de
terceiros de modo intolerável.

25. No caso concreto, tal prestação não produz privilégio algum aos impetrantes e em razão
disso, não atinge o direito dos demais candidatos à educação e ao acesso ao ensino superior em condições
de igualdade entre todos os candidatos.

Direito da Antidiscriminação. Discriminação indireta.

26. Roger Raupp Rios, em sua obra “Direito da Antidiscriminação”, atualmente no prelo pela
Livraria do Advogado, inclui a hipótese presente dentro da categoria discriminação indireta.

27. Ocorre uma discriminação indireta, no direito estadunidense “disparate impact”, quando um
ato aparentemente neutro e igualitário tem o efeito de colocar indivíduos ou grupos de desvantagem ou em
perda de direitos.

28. Então, enquanto na discriminação direta há um ato volitivo de discriminar, de retirar direitos
ou colocar um grupo em desvantagem, na discriminação indireta essa vontade não existe ou não é
detectável, porém resulta do ato essas conseqüências negativas.

29. O leading case do disparate impact no direito estadunidense é a decisão Griggs v. Duke
Power, Co., no qual a Suprema Corte julgou a ilegitimidade de exigência de requisito escolar (ou
alternativamente, obtenção de certa pontuação em testes de inteligência) para a contratação ou para a
promoção para certos cargos dentro da estrutura da empresa. Entendeu a Suprema Corte o caráter
discriminatório quanto aos resultados alcançados nos testes: uma percentagem muito elevada de negros era
reprovada.

30. Constatou a Suprema Corte, por exemplo, que 58% dos brancos era bem sucedida nos teste
de inteligência, contra apenas 6 % dos negros; bem como 34% dos brancos possuía o diploma secundário,
contra apenas 12% dos negros. Por fim assentou que tais exigências não eram absolutamente necessárias
para a consecução dos negócios.

Tenho como o leading case da discriminação indireta no direito brasileiro o


acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de
inconstitucionalidade da emenda constitucional que estabeleceu o teto dos
benefícios a previdência social. Entendeu o STF pela impossibilidade de
fixação do teto quanto ao salário-maternidade, em virtude do impacto de tal
medida no mercado de trabalho das mulheres.
31. A “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação
fundadas na religião ou nas convicções” prevê especialmente a hipótese de discriminação indireta no seu art.
2.2:

“2. Para as finalidades da presente Declaração, a expressão "intolerância e


discriminação com base em religião ou crença" significa qualquer distinção,
exclusão, restrição ou preferência fundada em religião ou crença, cuja finalidade ou
efeito seja a nulidade ou cerceamento do reconhecimento, gozo ou exercício de
direitos humanos e liberdades fundamentais em bases igualitárias.”

32. Além disso, como afirma Roger Raupp Rios, o direito brasileiro pode conceber um dever geral
de evitar danos decorrentes de medidas de impacto diferenciado discriminatório decorre do dever geral de
evitar danos mesmo em razão de atos culposo (responsabilidade civil), mais precisamente em razão da
negligência.

33. No caso concreto, o ato contra o qual se insurge o impetrante (designação de horário de
prova em dia de guarda religioso), embora formalmente igualitário e certamente não direcionado para a
discriminação dos adeptos da Igreja Adventista, produz o efeito de excluí-los de direitos fundamentais.

34. Além disso, a condição de grupo religioso minoritário em nosso país gera uma presunção de
discriminação (mesmo que indireta) violadora de direitos fundamentais, o que vem a transferir o ônus
argumentativo ao impetrado. Ou seja, cabe ao impetrado demonstrar que não ocorre situação de
discriminação ou que a medida para cessar a discriminação é intolerável.

35. Na doutrina e jurisprudência norte-americana os membros da Igreja Adventista, pela sua


condição minoritária e pelo conseqüente peso político reduzido, seria incluído na categoria de suspect ou
semi-suspect classification, o que confere ao Poder Judiciário um exame mais rigoroso do motivo alegado
para a promoção da medida discriminatória.

36. No direito alemão também é reconhecida uma fórmula semelhante. Em uma decisão de 26 de
janeiro de 1993, o Tribunal Constitucional Federal apresentou uma fórmula segundo a qual existem três
critérios especiais para determinar uma “intensidade graduada para a prática do exame de
constitucionalidade” quanto ao princípio da igualdade. Assim, deve-se aplicar um controle estrito: 1) quando
no caso de diferenciações relativas à conduta, os afetados não possam influir ou possam influir muito pouco
para mudar as propriedades sobre as quais se fundamenta a diferenciação; 2) quando as diferenciações
tenham efeitos negativos sobre o exercício de liberdades (grifos nossos) protegidas pelos direitos
fundamentais; 3) quando se trate de diferenciações relativas à pessoa que se aproxime das propriedades do
art. 3º, alínea 3, da Lei Fundamental (entre os quais está a proibição de discriminação por motivo de religião).

37. O grupo de impetrantes cumpre os critérios 2 e 3 acima, o que confere um rigor na avaliação
judicial do ato discriminatório. Isso significa também uma inversão do ônus argumentativo em favor dos
impetrantes.
CONCLUSÃO

Deste modo, presente a situação de discriminação indireta dos impetrantes e conseqüente violação
do princípio da igualdade, bem como considerando que a prestação alternativa pleiteada é proporcional no
sentido da proibição da insuficiência, cumpre dar provimento ao apelo.

Porto Alegre, 4 de setembro de 2007.

PAULO GILBERTO COGO LEIVAS


PROCURADOR REGIONAL DA REPÚBLICA

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