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Boa tarde

Meu nome é Isadora Bellavinha, eu sou mestre em Artes pela UFMG e estou aqui para
apresentar o trabalho “Entre – uma casa que se torna”: Transdizer Maria Gabriela Llansol
na pesquisa artística e acadêmica.
Antes de mais nada, eu gostaria de falar sobre uma coisa infinitamente mais importante
que o aumento da nossa pontuação no Lattes, que os inúmeros trabalhos que estão sendo
apresentados aqui durante esses dias de colóquio. Mas o que eu quero falar se alicerça
sobre a possibilidade de estarmos aqui, aumentando a nossa pontuação do Lattes e
partilhando nossos trabalhos pouco ou extremamente interessantes para o âmbito
acadêmico e artístico.
Nós estamos vendo a falência desse país, que nada tem a ver com qualquer crise
econômica mundial. E estamos vendo um projeto de falência, programado, que utiliza a
educação – ou a impossibilidade de manutenção do sistema educacional público - como
uma das vias primordiais desse projeto. Acabar com a universidade pública, com o ensino
médio público, com o pensamento crítico nas escolas é um projeto desse des-governo,
para que se mantenha o abismo social avassalador que sustenta as mesmas elites no poder
desde que se convencionou chamar de descoberta do Brasil a invasão dos portugueses nas
terras indígenas, que seguem sendo invadidas. Aqui, nós estamos entre nós. Eu imagino
que nesse colóquio pelo menos 90% dos participantes estão de acordo comigo – estamos
entre pesquisadores das letras, das artes das ciências socias. Eu gostaria de estar falando
isso em uma faculdade de economia, de direito, de medicina – talvez eu pense uma
comunicação para um congresso nessas áreas – porque eu estaria falando para pessoas
que não fazem par comigo. Isso é importante: se comunicar com a oposição, saber como
eles pensam, como se articulam, como eles manipulam e como eles são manipulados.
Não podemos esquecer o que está acontecendo nesse país agora, não podemos tirar isso
do nosso horizonte. Esse é o pano de fundo, de frente, e de lado de toda pesquisa, mesmo
a que desconsidera as artimanhas políticas e sociais. Porque se isso não estiver no
horizonte diário da nossa consciência, não haverão colóquios onde possamos falar sobre
qualquer coisa improvável e imprevisível, sobre a literatura em si, sobre a arte em si,
mesmo em perspectivas que se queiram deslocada das amarras políticas e sociais. Quero
lembrar também que nós temos nesse país, hoje, o preso político mais importante do
mundo, o ex-presidente operário que lutou pela desarticulação do poder das elites e pela
ascensão das classes desprivilegiadas, e que seria nosso presidente se nesse país a justiça
fosse de fato justa. Dizer Lula livre é muito mais que vociferar um clichê, um slogan
partidário. É demandar a justiça nos parâmetros da lei. É por isso também que eu convoco
vocês a dizerem Lula Livre em todos os eventos acadêmicos que vocês participarem, e
não só, por onde vocês estiverem, se arrisquem ao desprezo porque esse homem não
merece estar preso, e o Brasil não merece o Bolsonaro. Lembrem que essa não foi uma
eleição democrática: não nos enganemos.

Vou então ao tema secundário dessa comunicação.


- A pesquisa de mestrado que eu realizei aqui na Escola de Belas Artes parte da obra da
escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol e de um pensamento entorno da tradução, e
da tradução como modo de conhecer, para criar a instalação-performática “Entre – uma
casa que se torna”. Trata-se de uma prática artística multidisciplinar, que engaja a
literatura, a dança, a performance, o teatro, a música, as artes plásticas e o audiovisual.
- Essa pesquisa tem duas frentes, que se cruzam: uma foi a elaboração da obra artística
“Entre” a partir de um intuito de tradução; a outra, que ainda não passou por nenhum
experimento, mas que eu atravesso no campo teórico, é a prática de tradução
intersemiótica, intermidiática e interartística aplicada ao ensino da literatura e à ativação
das práticas de leitura.
- Este trabalho, então, elege a tradução, em termos gerais, mas especialmente em seu
caráter intermidiático, como ferramenta para o ensino-aprendizagem, valorizando outros
modos de conhecer, que não aqueles tradicionalmente definidos no sistema educativo.
- A prática tradutória e artística torna-se aqui um modo de ressignificar e atualizar a
História, além de uma investigação entorno dos meios, suportes e códigos que conduzem
a vivência humana.
- A tradução é pensada como a “maneira mais atenta de ler” (isso é uma expressão do
Paulo Ronái). Há uma dificuldade atestada por diversas pesquisas quanto à prática de
leitura e interpretação do aluno brasileiro: não se lê, não se quer ler. Com a internet, o
ritmo de leitura tornou-se ansioso: rolando as páginas do Facebook, clicando em
hiperlinks que levam rapidamente a novos hiperlinks, que encadeiam, imagens, vídeos,
GIFs, e notícias - ler já é uma operação multidisciplinar, especialmente potencializada na
atividade virtual. E não tem nada mais desinteressante pro aluno do que ter que ler para
responder a uma prova, as respostas esperadas.
- Então a partir dessa noção de transcrição – que é um termo cunhado pelo Haroldo de
Campos para teorizar a tradução interlingual como um processo altamente criativo e
nunca servil – eu tenho pensado um possível para o ensino da literatura. A transcriação
seria uma possibilidade para a tradução artística em que o tradutor é também criador, e
atua na diferença intransponível entre o original e a obra tradutória. Isso seria a tradução
com criação e como crítica, e o aluno atuaria como tradutor criador, reelaborando a
história, ressignificando o repertório estético e filosófico implicado nas obras literárias, e
desvendando, através desse processo, suas próprias escolhas políticas, estéticas,
ideológicas.
- A atividade tradutória é, simultaneamente, uma reflexão sobre a história, sobre o
passado e o presente, sobre a obra-fonte, o autor/artista, sobre a relação entre as línguas e
os códigos expressivos, como também uma auto reflexão, um processo de auto
conhecimento, e de avaliação crítica do sujeito sobre seu estar no mundo. A leitura
pensada a partir da perspectiva da tradução ganha outros contornos - torna-se um fazer
no mundo, uma abertura para a criação e para a atuação e constituição da própria história
do sujeito.
- E porque pensar especificamente a tradução intersemiótica? Porque isso está implicado
na contemporaneidade, no sistema de redes, na questão dos diferentes suportes. Porque a
literatura já não está só no livro de papel, ou no livro em PDF - mas como as Belas Letras
são muito bitoladas na questão da tipografia sobre papel (mesmo que em disposição
virtual), não se vê os outros processos de escrita criativa, do literário. Além disso, a
diferença intransponível dos suportes é um espaço muito fértil, porque as soluções para
as travessias têm milhares de caminhos possíveis. O avanço tecnológico tampouco aceita
as categorizações, os rótulos, as separações disciplinares que datam da era do
renascimento e que não têm nada a ver com a atualidade (mas segue sendo a prática nas
escolas e nas universidades)
- A experiência que eu tive foi com a criação desse projeto, o “Entre”, em que eu trabalhei
com artistas. E a ideia era estudar o texto da escritora MGL por vias imprevistas, por
práticas corporais, pelo uso de práticas artísticas diversas e produzir algum material ou
ação, que poderia ser qualquer coisa, que não estava pré-definida.
- Essa foi também a minha maneira de estudar essa obra em um espaço acadêmico – afinal
esse estudo rendeu uma dissertação de 220 páginas.
- Como eu achei mais importante falar sobre a questão política do país e eu também quero
muito mostrar um trecho do vídeo desse trabalho, eu vou só mencionar rapidamente
algumas questões do processo e da obra da Llansol.
- A gente começou a pesquisa a partir de um jogo físico chamada Rasaboxes, criado pelo
Richard Schechner, e toda prática de leitura inicialmente se dava dentro do jogo, em
estados de ativação emocional, física e psíquica, e nunca através de uma leitura objetiva,
acadêmica, sentada na mesa. Da obra da Llansol - que a gente não lia só um livro, mas
vários trechos de vários livros sobrepostos, - algumas imagens e noções foram se
destacando. A imagem da Casa, como uma casa viva, mutante, em hospitalidade
incondicional para a diferença, como lugar de batalha, que era também uma imagem do
próprio texto, do corpo, e do mundo foi uma das imagens principais - e foi traduzida nesta
instalação de cerca de 70 m², que era uma casa feita de tecidos transparentes, e como uma
organização imprevista; a questão da metamorfose constante de todas as figuras do texto,
sejam elas humanas, animais, vegetais, ou até a mesmo a casa – tudo em permanente
mudança, foi outra percepção que o texto nos dava; o amor como o continente da escrita
llansoniana, e que passa a ser um operador político do seu texto; a desarticulação da
linguagem objetiva, pela pujança da poética total das coisas; a responsabilidade entre os
seres vivos, reprovando qualquer tipo de escravidão ou opressão entre os seres.
- E a pesquisa física e multiartística associada ao texto mostrava frutos claros no nível das
discussões sobre a obra, nas reflexões que os artistas levavam para a percepção
sociopolítica atual (mesmo que não fosse uma obra panfletária em nenhum sentido e as
conexões não fossem óbvias), na facilidade do improviso com o texto, no rigor estético
das performances. Era outro modo de conhecer, que afetava diretamente a consciência
das performers, e também a criatividade e a capacidade crítica.
- Então, desse aprofundamento, a gente criou uma instalação penetrável, que era essa casa
de tecido, onde os participantes (público ativo) entravam e poderiam se espalhar pelo
espaço e interagir com tudo o que havia ali. A obra ficava exposta pra visitação livre, mas
também realizávamos as performances em alguns dias da semana, e o público era
convocado pra essa convivência conosco, “moradoras”. Nós performávamos seres em
mutação que eram leituras de figuras da obra, mas simultaneamente era a ponte que cada
uma de nós fazia com aquela leitura, com as figuras, com nós mesmas, na medida que
acessávamos o texto que sempre retornava pra gente e pro nosso mundo. Não delimitamos
uma fronteira nítida entre nós performers e nossas figuras performáticas.
-Eu poderia falar vários outros detalhes do processo e da tradução/transcriação que
fizemos, mas eu quero mostrar um trecho do vídeo do trabalho, qe também faz parte de
um dos processos de linguagem da obra. Essa cena tem a ver com a questão do fluxo
permanente de mudança que nós identificamos na obra. Nós criamos um texto em cima
disso. E uma performer, que é a sara, depois de dar um depoimento sobre a compreensão
da permanente transformação do mundo do entendimento dela sobre ela mesma, ela pede
ao publico que mude um pouco, que mude o olhar, o ponto de vista, que circule pela casa
– já que dependendo do ambiente que você está, você vê uma performance
completamente diferente outra, e essa é a cena que se segue.

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