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As culturas liberal e democrática de

proteção dos direitos individuais no


constitucionalismo clássico

Rodrigo Brandão

Sumário
1. Notas introdutórias. 2. A Constituição
mista medieval e a Constituição dos modernos.
3. “Constitucionalismo sem democracia”. Raí-
zes teóricas e históricas do constitucionalismo:
a tradição de limitação do poder político na
obra de John Locke e na experiência político-
institucional inglesa. 4. “Democracia sem cons-
titucionalismo”: os riscos da incorporação da
Constituição pela soberania, analisados a partir
da perspectiva do Estado de Direito legalista do
século XIX. 5. Constitucionalismo e democracia
reconciliados: bases teóricas e construção do
modelo norte-americano de supremacia da
Constituição e de controle de constitucionali-
dade. 6. Conclusão.

1. Notas introdutórias
Da leitura das Declarações de Direitos
geradas pelas Revoluções Gloriosa, Fran-
cesa e Americana (Bill of Rights: Inglaterra,
1689; Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão: França, 1789; Decla-
ração de Direitos da Virgínia e as dez pri-
meiras emendas à Constituição dos EUA,
1787 e 1791), infere-se, no que concerne ao
fundamento dos direitos individuais, uma
forte confluência na adoção da perspectiva
jusnaturalista, e, no tocante ao seu conte-
Rodrigo Brandão é Procurador do Município údo, uma uniformidade na incorporação,
do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público pela
basicamente, dos valores da liberdade, vida,
UERJ, Coordenador do Núcleo de Estudos de
Direito Constitucional da PGM/RJ e Professor integridade física, igualdade formal e proprieda-
de Direito Constitucional da EMERJ, da UERJ de. Como principais corolários dos referidos
(2005/2006), do IBMEC (Direitos Humanos), do valores, cite-se, v.g., (i) a igualdade perante
Praetorium, do CEJ e da ESAP. a lei, que representava o fim das sociedades
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divididas em estamentos e do pluralismo lizados à identificação e à tutela dos direitos
de ordens jurídicas existentes da Idade individuais. Antes, porém, cumpre analisar,
Média; (ii) as leis gerais, abstratas e irre- brevemente, a evolução de um conceito
troativas, que, segundo essa perspectiva, “antigo” de constituição para um conceito
garantiriam um tratamento impessoal dos “moderno”, pois somente com a afirmação
cidadãos; (iii) a liberdade religiosa, que se do último estarão presentes os elementos
prenunciava desde a Reforma Protestante; necessários ao delineamento dos direitos
(iv) a tutela jurídica da propriedade; (v) as individuais tal qual hoje os conhecemos.
garantias de caráter processual, tais como
o devido processo legal e seus consectários, 2. A Constituição mista medieval e a
que têm natureza instrumental em relação Constituição dos modernos
aos referidos valores; e (vi) as diversas ma-
nifestações da liberdade, v.g.: liberdade de Muito embora se reconheça que idéias
ir e vir, de expressão, de manifestação do nucleares à noção de direitos individuais,
pensamento, de reunião, de desempenho quais sejam, a igualdade entre os homens
de profissão e atividades econômicas, etc. e a sua dignidade intrínseca, têm origens
Tais garantias se referem aos chamados remotíssimas, como, exempli gratia, na filo-
direitos de primeira geração, os quais, em sofia estóica e cristã (Cf. COMPARATTO,
regra, estruturam-se sob a forma de direitos 2001), vale ressaltar que só há de falar-se
de defesa, na medida em que investem os em direitos individuais em uma acepção
indivíduos da prerrogativa de exigirem do moderna com as revoluções burguesas, na
Estado o cumprimento de prestações nega- medida em que, apenas a partir de então,
tivas, isto é, um non facere, uma abstenção. se afirma a noção de que os indivíduos,
Nítido que tais direitos preservam uma independentemente da sua posição social,
esfera de atuação individual infensa a inge- possuem iguais direitos naturais, oponíveis
rências estatais, em cujo âmbito, portanto, ao Estado e adquiridos pelo só fato da sua
deve prevalecer a liberdade individual em condição humana (direitos do homem,
detrimento da coerção estatal. droits de l’homme, Menschenrechte, the rights
Embora ingleses, franceses e norte-ame- of man). Tais direitos não se assemelham aos
ricanos tenham se utilizado do potencial direitos estamentais, que, por se referirem,
explosivo da afirmação da pré-estatalidade não a indivíduos isolada e abstratamente
e da auto-evidência dos direitos naturais considerados, mas insertos em determi-
para questionarem a legitimidade dos re- nada comunidade (v.g.: segmento social
gimes contra os quais se opunham, convém ou territorial – estamento, feudo, cidade,
sublinhar que, após a poeira revolucionária aldeia, etc.), assumiam uma estruturação
ter baixado, Inglaterra1, França e EUA ado- corporativa. Assim, embora prerrogativas
taram instituições e concepções políticas insertas em pactos firmados entre o Rei e
substancialmente distintas com o escopo de determinados estamentos, como a Magna
tutelar concretamente as liberdades civis. O Carta de 1215, se destinassem à limitação do
objetivo do presente artigo é exatamente o poder, faltava-lhes o atributo da generalidade
de analisar a propensão desses arranjos ins- da sua titularidade, bem como a premissa
titucionais paradigmáticos – e das teorias antropocêntrica que só se consolidará na
políticas a eles subjacentes – em enfatizar teoria política com o advento do pensamento
os ideais constitucionalista e democrático, contratualista e do liberalismo (ANDRADE,
é dizer, a limitação do poder com a finali- 2001, p. 14-15; PECES-BARBA MARTINEZ,
dade de proteger o indivíduo e a afirmação 1999, p. 105, 114).
do poder de autodeterminação do povo, Neste ponto, vale destacar que os
tendo-se em mira os mecanismos disponibi- referidos documentos (Constituições mis-

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tas medievais) se consubstanciavam em Nada obstante, tais documentos não se
“acordos” firmados entre os estamentos ajustam ao conceito moderno de Consti-
que compunham a sociedade, veiculando tuição, pertencendo à família das “Cons-
um grande projeto de conciliação social e tituições dos antigos” ou pré-modernas,
política capaz de disciplinar as funções do especialmente por se referirem a sociedades
governante, da aristocracia e do povo, for- estamentais, cuja pluralidade de poderes
ças essas que, em virtude do caráter misto políticos naturais, insubordinada a qual-
da Carta, se reconheciam reciprocamente quer tentativa de síntese, incompatibiliza-
como componentes da mesma realidade se com a idéia ascendente de soberania.
política. Tratava-se, portanto, de Constitui- Isso porque o caráter absoluto da soberania
ção que não veiculava vontade de instituir – referente não propriamente à ausência
determinado governo, mas que retratava de limites, ante a superioridade do direito
o equilíbrio obtido entre as forças atuantes natural sobre o direito positivo, mas à sua
na sociedade, integrantes de uma realidade natureza una e indivisível – tornava-a in-
política já formada, em cujo âmbito ainda suscetível de qualquer forma de comparti-
não se verificava o monopólio estatal do lhamento ou de balanceamento com outros
poder de império, mas o seu fracionamento poderes3. Note-se que a concentração do
numa complexa teia de estamentos sociais poder político implicada no conceito de
(FIORAVANTI, 2001, p. 55, 63). soberania, tributária, originariamente, da
É bem de ver que tais Constituições pretensão absolutista de conter a anarquia
exerceram a notável função – no mais das que a Constituição mista gerara, ao convo-
vezes, a mera pretensão, com a exceção lar-se na vontade que dá origem às Consti-
honrosa da Inglaterra – de equilibrar os tuições modernas (soberania popular, com
poderes políticos durante a Idade Média, a alteração do monarca pelo povo em sua
associando-se à imagem da monarquia titularidade), coloca uma pá de cal no mo-
limitada, porquanto os pactos nela conti- delo de constitucionalismo anterior, por-
dos destinavam-se a distinguir os poderes quanto se consubstancia em pressuposto
próprios e específicos do Rei (v.g.: declarar frontalmente contrário à fragmentação do
guerra e paz, firmar alianças internacionais, poder político presente na Idade Média.
nomear autoridades, etc.) das prerrogativas Ademais, o contratualismo, como teoria e
cujo exercício se condicionava ao consenti- fato histórico que conduz ao constituciona-
mento do Parlamento (v.g.: impor tributos, lismo moderno, consiste em antítese radical
administrar os bens públicos, etc.), buscan- da teoria política prevalecente na Idade Mé-
do evitar um elastecimento desmedido das dia. Com efeito, no medievo esposou-se uma
prerrogativas régias em detrimento das concepção organicista da sociedade e do Estado,
parlamentares, e vice-versa. caracterizada (i) por considerar a sociedade
A especificação das “atribuições” do Rei um fato natural, já que o homem seria um
e do Parlamento evidencia que a busca de “animal político e social”, não se concebendo
um equilíbrio entre as forças sociais se re- que possa viver fora da sociedade civil, i.e.,
fletia no domínio específico das instituições no Estado de Natureza; (ii) o poder uma função
políticas, constituindo a doutrina das Cons- social necessária, fruto de desígnios divinos ou
tituições mistas medievais, importantíssimo de um conjunto de pactos imemoriais; e, (iii)
antecedente histórico do ideal constitucio- pela analogia da sociedade ao corpo humano, que
nalista de limitação do poder com fins de cada indivíduo não seria apenas parte do
garantia do indivíduo e, mais precisamente, todo, mas, assim como um órgão, cumpriria
da noção de freios e contrapesos entre os ór- uma função especial na vida da sociedade,
gãos do Estado, de maneira a que nenhum equiparada, portanto, a um organismo vivo
deles ostente um poder absoluto2. (MATTEUCCI, 1995, p. 272-283).

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E o contratualismo, por fundar o poder atuação do poder soberano. De fato, com a
político em um contrato firmado entre indi- superação da Constituição dos antigos pela
víduos livres e iguais que marca a passagem afirmação das premissas da igualdade e da
do Estado de Natureza para o Estado Social, liberdade naturais e pela fundamentação
vincula a legitimidade política ao consentimento do poder político no consentimento do
dos indivíduos. Portanto, o Estado e o gover- povo, duas visões acerca da Constituição
no, antes de realidades sociais necessárias, dos Modernos, decorrentes de distintas
revelam-se fruto da vontade do povo, de uma configurações dos modelos contratualistas,
construção artificial que confere ao povo o contrapunham-se: a absorção do conceito
poder de fundar um Estado, de estabelecer de Constituição pelo de soberania (Hobbes
uma forma específica de organização cole- e Rousseau), visto que a lei fundamental
tiva. Compara-se, portanto, o Estado a algo restringir-se-ia ao dever de submissão
que é criado pela inteligência humana, como, incondicional dos indivíduos ao poder
por exemplo, a uma máquina (MATTEUCCI,­ originário, perpétuo e essencialmente livre
1995). Evidentemente que uma tal teoria do soberano, seja ele monarca, Assembléia
política se encontra ligada a uma visão de (Hobbes), ou o povo (Rousseau); e uma con-
sociedade radicalmente distinta da medieval: cepção, por assim dizer, de matiz liberal,
à vinculação da fundamentação do poder que busca incorporar a tradição do governo
político à história e a motivos teológicos moderado e equilibrado à Constituição dos
opõe-se a busca de legitimação racional do Modernos, compatibilizando a teoria do
poder pelo direito; à divisão da sociedade em contrato social com a pretensão constitu-
estamentos opõem-se a igualdade e a liberda- cionalista de equilibrar e limitar os poderes
de naturais do indivíduo; a uma perspectiva com a finalidade de proteger os indivíduos.
coletivista opõe-se um modelo individualista, Em virtude do pioneirismo e da impor-
colocando-se, no centro da associação polí- tância da sua obra, pode-se afirmar que o
tica, indivíduos isoladamente considerados principal teórico na construção da referida
em substituição ao povo concebido como concepção foi John Locke (2001), em seus
unidade orgânica. clássicos Dois Tratados sobre o Governo.
Quanto ao último aspecto, convém
destacar que liberalismo e contratualismo
comungam de uma visão individualista 3. “Constitucionalismo sem democracia”.
acerca da origem do poder político, reve- Raízes teóricas e históricas do
lando que o irromper do Estado moderno constitucionalismo: a tradição de
traz consigo uma cisão profunda de cosmo- limitação do poder político na obra de
visões, visto que se deixou de ver o exercício John Locke e na experiência político-
do poder político segundo a perspectiva do institucional inglesa
soberano (ex parte principis), passando-se à
do indivíduo (ex parte populi) (LAFER, Locke (2001) refuta concepções políticas
1988, p. 125-127; SARMENTO, 2004b, p. 22). pré-modernas que, fundadas em premissas
Como corolário do exposto, esse momento teológicas (Bodin) ou patriarcais (Filmer),
histórico se consubstanciou em uma ponte consideravam haver uma natural sujeição
entre concepções organicistas e individua- dos indivíduos ao poder absoluto dos mo-
listas, na medida em que o indivíduo, e não narcas (natural subjection doctrines) e, via de
mais a sociedade como um organismo, pas- conseqüência, um dever incondicional de
sou a gozar de uma primazia axiológica4. os primeiros obedecerem às determinações
Há, contudo, clara divergência na dos últimos.
tradição contratualista no que concerne à A propósito, Locke dedica o Primeiro
natureza das Constituições e à forma de Tratado a uma frontal oposição ao livro

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Patriarca5, em que Robert Filmer formulara víduo, o caráter e a extensão atribuídos
uma tese muito conveniente às pretensões por Locke ao consentimento dado pelos
absolutistas da monarquia inglesa do século indivíduos no momento da transposição
XVII, assim sintetizada: há uma sujeição na- do Estado de Natureza para o Estado Ci-
tural e ilimitada dos indivíduos ao poder do vil revelam profundas fissuras entre o seu
monarca, de maneira que nenhuma forma jusnaturalismo e o de Hobbes7. Superado o
de resistência se justificaria. Filmer funda- clima turbulento presente na Inglaterra nos
menta tal assertiva numa teoria paternalista idos de 1640, em cujo período a luta inces-
da soberania, pela qual busca assemelhar os sante entre as forças sociais pela aquisição
poderes político e paterno, na medida em do poder soberano redundou em clima
que equipara o poder exercido pelo monarca belicoso e na destruição das bases da Cons-
sobre os seus súditos ao poder ilimitado e tituição mista (Cf. FIORAVANTI, 2001, p.
arbitrário que os patriarcas exerciam sobre 68 et seq.), justificando, de certa forma, a
suas esposas, filhos, escravos e propriedades ênfase hobbesiana na concentração do po-
privadas; ambas as prerrogativas seriam, a der político no Estado, tendo por fim a pre-
seu ver, absolutamente “naturais” (TULLY, servação das liberdades e da ordem pública
1993, p. 16). pelo direito positivo, o problema agora era
Locke, contudo, partilha da visão de au- outro: o menoscabo da liberdade individual
tores como Grotius e Hobbes, no sentido de e, em particular, da liberdade religiosa, pela
que os indivíduos ostentariam uma liber- atuação arbitrária da monarquia inglesa8.
dade natural (natural freedom doctrines), de Por outro lado, afastadas as pretensões
modo que a sujeição política – é dizer, dos absolutistas da monarquia pela Revolução
indivíduos às deliberações das autoridades Gloriosa, as teorias de alienação total das
– somente se perfectibilizaria por alguma liberdades naturais em favor do monarca
forma de consentimento. Todavia, Locke (alienation theories) pareciam crescentemente
não se limita à tradição contratualista, por- implausíveis e indesejáveis a um povo que
quanto diverge dos seus próceres ao negar julgara e executara seu rei, e instituíra uma
que a transposição do Estado de Natureza nova forma de governo, caracterizada, fun-
ao Estado Social implique uma alienação damentalmente, pela limitação do poder do
total ou quase total dessa liberdade natu- Estado com o escopo de proteger os direitos
ral (alienation theories)6. Nesse particular, é individuais (TULLY, 1993, p. 22).
bastante conhecida a formulação pessimista Atendendo aos anseios dos seus con-
de Hobbes, segundo a qual a única alter- cidadãos, Locke (2001) considera que, na
nativa ao anárquico e opressor Estado de passagem do Estado de Natureza para o
Natureza seria a renúncia quase total dos Estado Social, os indivíduos preservariam
direitos naturais – preservando-se apenas os seus direitos naturais ligados à proprieda-
o direito à vida – em favor do Estado Civil, de9, à liberdade e à vida, renunciando, apenas,
de maneira que não subsistiriam, a seu ver, o direito de fazer justiça com as próprias
quaisquer mecanismos (nem mesmo o pró- mãos (LOCKE, 2001, p. 498-499). Assim, a
prio direito natural) de aferição da justiça constituição do Estado Social dar-se-ia com
do direito posto. Considera, portanto, o o fito de garantir que um juiz imparcial zele
soberano acima do direito (legibus solutos), pela aplicação coercitiva das leis naturais.
circunstância que, ainda que por caminho Os órgãos do Estado, e notadamente o
diverso do percorrido por Filmer, impunha principal deles, o Poder Legislativo, são
ao povo um dever de obediência incondi- vistos por Locke como “Fiduciary Power(s)
cional às suas deliberações. to act to certain ends”, de maneira que, se
Em que pese compartilhar com Hobbes os órgãos estatais se voltarem contra os
a premissa da liberdade natural do indi- direitos naturais cuja proteção justificou a

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sua criação, perpetram violação à confian- e notadamente do Parlamento), (ii) a nota
ça que os indivíduos lhe depositaram10. de inalienabilidade, imprescritibilidade e
Na alvitrada hipótese, Locke, mediante universalidade e (iii) serviriam de critério de
o emprego do eufemismo do “apelo aos legitimação do direito positivo, pois as nor-
céus” (appeal to Heaven), defende o direito mas e as práticas que com eles se afigurassem
de resistência, pois, se a constituição da incompatíveis reputar-se-iam inválidas.
sociedade civil se implementou em virtude Note-se que a concepção de Locke se
da necessidade de dar-se maior segurança à inscreve em uma concepção jusnaturalista
fruição das liberdades inatas do indivíduo, moderna, na medida em que o filósofo de
com o “esclarecimento” do seu conteúdo Oxford, por um lado, deixou de conceber
e a garantia de que juízes irão aplicá-las o Estado e o Direito como obra de Deus ou
imparcialmente, na hipótese de qualquer da tradição, mas como produto de seres
dos departamentos estatais as violarem, racionais (PRIETO SANCHÍS, 2003, p. 38),
devolve-se o poder ao povo, que, mediante e, por outro lado, não mais considerava o
o apelo aos céus, reagirá de forma justa ao direito natural como direito objetivo ou um
injusto e abusivo exercício do poder civil conjunto de deveres do soberano, passando
(force without right). Portanto, o governo a vê-lo como uma ordem prenhe de direitos
civil tem a sua legitimidade condicionada individuais oponíveis ao Estado (BOBBIO,
à efetiva observância dos direitos naturais, 1998, p. 29), ordem esta inerente à natureza
não apenas no estabelecimento do direito humana, descoberta pela razão e cuja im-
positivo, mas também na sua aplicação. plementação consistiria no objetivo último
Para fins didáticos, revela-se interes- da constituição do Estado. Para além disso,
sante distinguir os efeitos que uma tal podem-se inferir de sua obra premissas
perspectiva individualista produziu, espe- fundamentais à formulação das proposições
cificamente, sobre os conceitos de liberda- básicas da concepção contemporânea do jus-
des civis e políticas, ou seja, sobre as idéias naturalismo, senão vejamos: a primeira tese,
de limitação do poder para a proteção do de filosofia ética (T.1), preconiza a existência
indivíduo e de autogoverno do povo11. de princípios morais e de justiça que são univer-
Quanto às liberdades civis, a afirmação da salmente válidos e acessíveis à razão humana;
existência de uma sociedade civil de indivídu- e a segunda, concernente ao conceito do
os titulares de liberdades civis e de propriedades, direito (T.2), dispõe que uma norma não pode
que seria prévia à formação do Estado, ser qualificada como jurídica se contrastar com
revela o papel limitado conferido ao direito tais princípios morais ou de justiça12.
positivo, qual seja, o de garantir direitos Por outro lado, a obra de Locke tam-
que emigram do Estado de Natureza para bém projeta intensas e novas luzes sobre o
o Estado Social, conferindo à tutela dessas conceito de liberdade política. Isso porque
situações jurídicas subjetivas a segurança nela se encontra a defesa da preexistência
e a certeza que a ordem jurídica é capaz de (relativamente ao Estado) não apenas de
prover. Não há que se falar, portanto, em uma sociedade civil de indivíduos dotados de
criação de direitos, mas tão-somente no seu direitos naturais, como também de uma socie-
reconhecimento, pois não se pode conferir dade de indivíduos politicamente ativos. Nesse
a quem quer que seja o poder de dar azo a particular, parece que a posição do filósofo
algo que já existe. inglês pode ser melhor compreendida se
Reputando-se os direitos naturais an- extremadas das perspectivas adotadas por
teriores e superiores ao ordenamento jurí- Hobbes e Rousseau.
dico-positivo, eles assumiriam (i) natureza Saliente-se, a propósito, que os princi-
pré-política, porquanto imunes ao poder de pais teóricos do absolutismo e da demo-
deliberação dos poderes políticos (inclusive cracia confluem na utilização do pacto

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de associação (contrato que dá origem ao de direito de resistência, e, via de conseqüên­
Estado Social), de um modo radicalmente cia, estabelece premissas fundamentais à
contrário a Locke, nele vislumbrando uma construção de uma clara divisão entre po-
alienação total dos direitos naturais, pela der constituinte e poderes constituídos, no
incondicional submissão dos indivíduos sentido da impossibilidade de os últimos se
associados a um soberano que não é parte imiscuírem em procedimentos e liberdades
do contrato (Hobbes) ou que vocaliza a presentes em uma normatividade superior
vontade geral da coletividade (Rousseau) (seja o Direito Natural, seja uma Constitui-
(Cf. MATTEUCCI, 1995, p. 279)13. ção) (BRITO, 2000, p. 14-15).15-16
Se o soberano assume o status de legibus Muito embora a precedência da socie-
solutus, não há que se cogitar da sua limi- dade de indivíduos politicamente ativos re-
tação por uma lei fundamental, porquanto vele o início do desenvolvimento da noção
a soberania veicularia uma vontade essen- da superioridade do poder constituinte do
cialmente livre, ilimitada e incessantemente povo em relação aos poderes constituídos,
chamada a redefinir a forma de governo e não se pode identificar claramente na obra
as instituições políticas, traduzindo-se em de Locke elementos fundamentais às mo-
um exercício permanente do poder consti- dernas conceituações de poder constituinte
tuinte. A conclusão inevitável é que, em um do povo ou de soberania popular, especial-
tal modelo, há uma única lei fundamental, mente a atribuição ao seu titular de um po-
a saber: a obediência incondicional às de- der originário de criar novas formas políti-
liberações do monarca ou da Assembléia cas (BRITO, 2000, p. 26). De fato, a extensão
soberana, os quais dispõem de uma vonta- conferida às liberdades políticas revela-se
de originária de criar uma Constituição, de significativamente menos ampla, já que o
maneira que essa norma só terá o condão manejo do direito de resistência destina-se
de limitar os poderes que instituiu, e não tão-somente a restaurar a ordem natural de
o poder soberano que, precisamente por direitos de liberdade e igualdade perturba-
precedê-la e criá-la, pode alterar qualquer da pelos poderes constituídos, refugindo
das disposições constitucionais. Em poucas do seu escopo a definição do conteúdo dos
palavras: o conceito de Constituição como direitos individuais e o estabelecimento de
lei superior (higher law) desvincula-se do uma nova forma de organização política,
escopo de equilibrar e limitar o poder para em ruptura com a que lhe precedeu17.
a proteção do indivíduo (o que seria con- Em síntese, pode-se asseverar que o
trário ao caráter uno e indivisível do poder modelo político individualista, principal
soberano), confundindo-se com a noção de responsável pelo substrato filosófico das
soberania (FIORAVANTI, 2001, p. 84-85), culturas (liberal e democrática) das liberda-
assim entendida a vontade perpétua e abso- des individuais desde a sua gênese na Idade
luta de dispor sobre a forma de organização Moderna, assenta-se na concomitante afirma-
política de uma sociedade concreta14. ção das liberdades civis e políticas, ou seja,
Locke, por sua vez, considera que, se o na concepção de que preexistem ao Estado,
governo se volta contra o propósito mesmo respectivamente, (i) um espaço de autonomia
da sua instituição, é dizer, a tutela dos direi- individual imune a ingerências estatais e (ii)
tos naturais, distancia-se do seu suporte de um poder político originário de os indivíduos
legitimidade, autorizando que os indivídu- disporem sobre a atuação dos órgãos estatais
os, por intermédio do exercício do direito (Cf. FIORAVANTI, 2003, p. 35-46).
de resistência, reassumam o poder político Tal constatação revela que as idéias de
cuja originária titularidade lhes pertence. direitos individuais e de autogoverno do
Tal formulação revela o verniz político con- povo, apesar de recorrentemente expostas
ferido aos conceitos de liberdade natural e como colidentes, uniram-se na construção

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do modelo individualista que se opôs ao p. 515), pois a concentração de tais poderes
absolutismo monárquico18. Contudo, a ênfase em um só órgão redundaria no estabeleci-
conferida por um regime político concreto aos ve- mento de um soberano absoluto, incompatível
tores da limitação do poder político mediante a su- com uma sociedade civil bem ordenada,
premacia dos direitos individuais em face de atos já que inexistirá juiz com capacidade para
políticos ordinários ou, inversamente, ao poder julgar imparcialmente controvérsias, inclu-
de autogoverno do povo e de seus representantes sive e notadamente aquelas que envolvam
em condições ordinárias de deliberação revelará, reparação de injúria causada pelo soberano
respectivamente, uma maior aproximação do (LOCKE, 2001, p. 462-463).
constitucionalismo ou da democracia.­ A vinculação da separação das funções
A concepção lockeana, por sua vez, estatais à necessidade de submissão de
traduz perspectiva tipicamente liberal, governantes e governados à lei evidencia
“mais próxima”, portanto, do constitucio- que Locke esposa a doutrina da separação
nalismo do que da democracia, porquanto orgânico-funcional dos poderes como pré-
confere à liberdade positiva a finalidade requisito da rule of law (Estado de Direito),
específica de restaurar os direitos naturais na medida em que a atribuição das funções
violados pelas instituições do Estado, não legislativa e executiva a órgãos estatais
cabendo ao processo político-deliberativo distintos (separação orgânico-funcional)
decidir acerca do seu conteúdo (conforme justifica-se ante a impossibilidade de os go-
defendido pelos “democratas”). O fruto vernantes sujeitarem-se a lei que eles pró-
do exercício da liberdade positiva – leia-se prios fazem e aplicam (Estado de Direito).
a Constituição e as leis – apresentava, por- Saliente-se ainda que da postulação de que
tanto, um conteúdo necessário, qual seja, o governo se paute por “leis promulgadas
a declaração e a conservação de direitos e estabelecidas”, é dizer, atos genéricos e
naturais suprapositivos, circunstância que abstratos, frontalmente opostos aos decre-
revela o caráter acessório conferido à liber- tos casuísticos utilizados pelo monarca,
dade positiva, e, inversamente, a primazia decorre a supremacia da função legislativa,
da liberdade negativa, erigida, repise-se, já que esta contém os critérios que serão
ao status de direito intangível ao processo necessariamente empregados pela função
político-deliberativo. executiva para a solução de casos concretos,
Cumpre notar que a preocupação de Lo- a qual se restringiria a uma atividade de
cke (2001, p. 514-515) em limitar os poderes aplicação da lei preexistente (PIÇARRA,
constituídos (inclusive o Legislativo) não se 1989, p. 74 et seq.).
restringe à adoção de uma teoria política de Como corolário do exposto, o modelo
caráter individualista, mas atinge também o lockeano de separação de poderes afirma a
domínio prático do desenho das instituições do supremacia do Parlamento, em virtude de
Estado. Efetivamente, o filósofo inglês teme considerar esse departamento estatal a “ex-
não apenas o absolutismo monárquico, mas pressão primacial da vontade popular” (PI-
igualmente a concessão de um poder ilimi- ÇARRA, 1989, p. 76), relegando a contenção
tado ao Parlamento, visto que, partindo de do arbítrio legislativo a limites intra-orgâ-
um pessimismo antropológico, de matiz nicos (participação do monarca hereditário,
tipicamente liberal, considera “uma tenta- da nobreza e de representantes do povo no
ção demasiado grande para a fragilidade âmbito do Parlamento, segundo a fórmula
humana confiar-se aos que já têm o poder britânica do governo misto) e extra-estadu-
de fazer as leis o poder de executá-las”. As- ais (precisamente o direito de resistência
sim, a elaboração periódica das leis e a sua dos indivíduos para a tutela das liberdades
permanente execução devem ser conferidas civis), mas não interorgânicos. Assim, não
a órgãos estatais distintos (LOCKE, 2001, confere, por exemplo, ao Poder Judiciário o

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poder de controlar a constitucionalidade das entre as forças sociais relevantes à época,
leis, inclusive porque lhe negava o status de no âmbito interno do Parlamento. Como
poder autônomo (LOCKE, 2001). Acima do essa variante busca equilíbrio (i) no interior
Legislativo, vislumbrava apenas o poder su- do Legislativo, estabelece mecanismos de
premo do povo, cuja atuação direta somente controle de caráter intra-orgânico, e, por (ii)
ocorreria em momentos-limite, de ruptura, referir-se, precipuamente, à harmonização
em que o Parlamento houvesse abusado do do poder de influência de forças sociais
encargo que lhe fora confiado pelos cidadãos e não de órgãos estatais, avulta a sua di-
(apelo aos céus). mensão político-social em detrimento da
É lícito concluir que Locke, não obstante político-institucional.
considerar a origem e o fundamento do Em que pese a busca de equilíbrio entre
poder político um fato convencional, e, de monarca, aristocratas e comuns repercutir,
conseguinte, não natural – circunstância reflexamente, no âmbito institucional das
que, como salientado alhures, afastava-o relações entre Executivo e Legislativo,
definitivamente do modelo das Constitui- sobretudo ao promover a distinção entre
ções mistas medievais –, não abandonou as prerrogativas régias exercidas isolada-
a tradição de contenção do poder político mente e as que pressupõem autorização
mediante o seu compartilhamento entre parlamentar20, a pretensão de equilibrarem-
órgãos distintos, como fizeram os teóricos se, especificamente, os “poderes” do Estado
da soberania. Nesse viés, Locke (2001) mos- (Executivo, Legislativo e Judiciário), por
trou-se pioneiro em articular a artificialida- meio de mecanismos de controle mútuo
de da criação do Estado pelo contrato social (balança entre os poderes), somente se per-
com uma perspectiva de moderação no fectibilizará quando se firmar a idéia de que
exercício do poder político, que assegurava tais departamentos estatais gozam de fun-
à Constituição o seu tradicional papel de ções típicas (executiva, legislativa e judicial)
espaço de equilíbrio dos poderes públicos que lhes são preferencialmente atribuídas
com o fito de evitar a formação de poder (separação orgânico-funcional dos poderes).
absoluto que pusesse em risco os direitos do Todavia, até o século XVII, a tarefa de legislar
indivíduo, de modo que estabeleceu bases não gozava de autonomia e de relevância po-
filosóficas imprescindíveis para a constru- lítica, estando indissociavelmente imbricada
ção do constitucionalismo moderno. com a de julgar, porquanto se entendia que a
Embora, no domínio teórico, somente lei era declarada, e não feita, com o objetivo de
se vá encontrar a noção de separação dos solucionar casos concretos21.
poderes vinculada ao equilíbrio e às mútuas Com a afirmação da noção de que as leis
interpenetrações entre os departamentos constituíam os critérios genéricos e abstratos
do Estado nos escritos, respectivamente, de para a solução de casos concretos, obtém-se
Montesquieu e Madison (balança entre os a autonomização e a supremacia da função
poderes ou checks ‘n‘ balances), o embrião do legislativa em relação à executiva (que, à
mecanismo da balança de poderes já podia época, abrangia as funções administrativa
ser extraído da experiência constitucional e judicial), já que a função executiva se
britânica do século XVII. restringirá à aplicação de lei anterior para
Há, nesse particular, duas variantes dirimir controvérsias. A doutrina original
cronologicamente situadas. A primeira, do rule of law (Estado de Direito), embora
como salientado acima, é a do governo esteja a serviço da supremacia da função
misto (governo misto ou King in Parliament, legislativa, desconfia da concessão ao Par-
que se desenvolveu no âmbito da “Consti- lamento dos poderes de fazer e aplicar a lei,
tuição dos antigos”19), a qual se destinava sob o argumento de que tal concentração de
a promover equilíbrio e controle recíprocos poderes, em vez de debelar o exercício abso-

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luto e arbitrário do poder, apenas constituiria objetivo imediato é o equilíbrio entre órgãos
novo tirano (o Parlamento em substituição estatais independentes, notadamente Legis-
ao monarca) (PIÇARRA, 1989, p. 82). lativo e Executivo, e não entre forças sociais,
Linhas acima vimos que Locke chegara como o rei, a aristocracia e a burguesia)
até esse ponto, ou seja, esposara um modelo (PIÇARRA, 1989, p. 42)23.
de equilíbrio entre as forças sociais no seio A influência que os métodos da Cons-
do Parlamento (governo misto) e de separa- tituição mista, do governo misto, da sepa-
ção das funções estatais como pré-requisito ração orgânico-funcional e da balança dos
para o governo das leis e não dos homens poderes exerceram na Inglaterra, no que
(separação orgânico-funcional como condi- toca ao equilíbrio e ao fracionamento dos
ção ao Estado de Direito, ou simplesmente poderes estatais, ajuda a compreender a
rule of law). Todavia, fenômeno interessante circunstância de esse país ter evoluído “de
se verificou na Inglaterra a partir da segun- um Estado estamental a um Estado consti-
da metade do século XVII, com a simbiose tucional-representativo, sem praticamente
entre governo misto e separação orgâni- a ter feito conhecer um Estado absolutis-
co-funcional como pressuposto ao Estado ta” (PIÇARRA, 1989, p. 42), possuindo
de Direito, da qual nasce a separação dos o arranjo político que, até o surgimento
poderes como conjunto de mecanismos dos EUA, consistia no modelo de consti-
interorgânicos de controle mútuo (balança tucionalismo por excelência. A propósito,
de poderes), segundo a clássica formulação os ingleses desconfiavam da atribuição
de Montesquieu. de poderes absolutos a quem quer seja,
Com efeito, a balança de poderes ou porquanto tal concepção, ao submeter a
checks­ and balances consiste em mecanismo definição de liberdades consolidadas pela
que comunga da perspectiva de que a atri- história aos atropelos unilaterais daqueles
buição das funções estatais a órgãos dis- “corpos constituintes”, criaria forte dose de
tintos é fundamental ao Estado de Direito, instabilidade política e evidentes prejuízos
assertiva que a aproximava da rule of law à sua tutela, parecendo infactível e algo
(tal noção não foi elaborada pela doutrina totalizante que os diferentes grupos de
do governo misto). Todavia, além de sepa- interesse existentes na sociedade logrem
rar, de conceder atribuições próprias aos unir-se em uma só vontade constituinte,
poderes do Estado, necessário se afigurava comum e essencialmente reta.
também equilibrá-los, conforme preconi- Assim, na obra de Locke e na experiência
zado pelo governo misto e olvidado pelo político-institucional inglesa, as liberdades
rule of law. Contudo, na doutrina da balança políticas, conforme concebidas por Locke,
entre os poderes, tal equilíbrio dar-se-á, assumirão uma abrangência muito mais res-
especialmente, por meio de mecanismos de trita do que a atinente, por exemplo, ao con-
controle mútuo entre os órgãos do Estado22, ceito francês de poder constituinte. De fato,
e não por meio da harmonização das (i) forças a ausência de Assembléias Constituintes na
sociais (ii) no interior do Parlamento (governo Inglaterra denota que não haverá de falar-se,
misto). Assim, enquanto no governo misto nesse país, de momentos constituintes nos
vislumbra-se (i) a preponderância de uma di- quais o povo decide soberanamente sobre a
mensão político-social e a (ii) busca de mode- estruturação do Estado e as normas funda-
ração governamental mediante mecanismos mentais regentes da vida em sociedade. Ao
intra-orgânicos (internos ao Parlamento), na contrário, as liberdades políticas têm como
balança de poderes constata-se a utilização precípua finalidade a garantia da conserva-
de mecanismos interorgânicos (“controle ção dos direitos historicamente adquiridos,
externo dos poderes”), além de a ênfase ser guardando, portanto, uma natureza acessó-
conferida à dimensão político-institucional (o ria em relação às liberdades civis.

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À guisa de conclusão, pode-se afirmar ais na França? A análise desse modelo parece
que o edifício teórico de Locke e a expe- especialmente elucidativa, tendo em vista o
riência político-institucional inglesa, ao mesmo haver fornecido elementos fundamentais
enfatizarem a tutela das liberdades civis à construção do modelo de Estado de Direito
em relação às políticas, por meio (i) dos legalista prevalecente na Europa Continental
citados mecanismos institucionais de do período pós-revolucionário até a Segunda
harmonização entre as forças sociais e as Guerra Mundial.
instituições públicas, (ii) da noção de direi- A França, em oposição à Inglaterra,
tos historicamente fundados e imunes aos ao olhar para trás, não vislumbrava uma
“poderes constituídos”, da (iii) adoção de edificante e vitoriosa luta pela aquisição de
uma postura jusnaturalista carente de toda direitos contra o Estado, mas uma ordem
a carga contra o passado, mas destinada a de privilégios estamentais e de dominação
conservar tais direitos, (iv) da independên- do povo por atos casuísticos e arbitrários
cia dos juízes e da tradição do commom law, do monarca e dos senhores feudais contra
etc., produziram um modelo que enfatizava a qual violentamente se insurgira no perí-
os mecanismos de limitação do poder e odo revolucionário. De fato, constata-se na
de proteção do indivíduo em detrimento experiência francesa forte necessidade de
do poder de autodeterminação coletiva ruptura com os particularismos e privilégios
do povo, aproximando-se mais do ideal do ancièn regime, verdadeira “fratura de épo-
constitucionalista do que do democrata ca” (FIORAVANTI, 2003), circunstância que
(FIORAVANTI, 2001, p. 109). inviabilizou que se seguisse a experiência
britânica de uma lenta e gradual “reforma
da monarquia em sentido constitucional”,
4. “Democracia sem constitucionalismo”: por meio do equilíbrio entre os elementos
os riscos da incorporação da Constituição monárquico, aristocrático e democrático no
pela soberania, analisados a partir da seio do Parlamento (FIORAVANTI, 2003,
p. 59-62). Ao revés, a preocupação dos
perspectiva do Estado de Direito legalista
franceses se referia à questão de saber quem
do século XIX deve legislar e com que programa político
Na França pós-revolucionária, consta- deve fazê-lo, mais do que definir limites ao
ta-se, em cotejo com a experiência inglesa, exercício desse mister. Acabaram, assim,
um equilíbrio distinto no que concerne à por conferir o status de soberano ao povo
relação entre as liberdades civis (direitos ou à nação em substituição ao monarca, alte-
individuais) e as liberdades políticas (sobe- rando-se a titularidade e não propriamente a
rania do povo ou da nação), especialmente natureza perpétua e absoluta que desde Bodin
em virtude de substanciais distinções se atribui à soberania (PRIETO SANCHÍS,
no tocante à disposição das instituições 2003, p. 70).
políticas, à teoria política prevalecente Rousseau (2003a, p. 23), a propósito, sa-
e ao contexto histórico. Nesse diapasão, lienta que as deliberações públicas obrigam
cumpre salientar que a célebre Declaração os súditos, mas não o povo, pois não se afi-
Universal dos Direitos do Homem e do gura possível o soberano obrigar-se em face
Cidadão de 1789 alicerça-se, paralelamente, de si mesmo, sendo “contra a natureza do
na consagração (i) dos direitos individuais corpo político impor-se o soberano uma lei
como valores-guia da ação governamental que não possa infringir”. Estando, portanto,
e (ii) da soberania da nação como fonte de o corpo soberano do povo acima do direito,
todo o poder político24. Qual seria, então, assume a condição de legibus solutus, similar
o liame existente entre soberania da nação à anteriormente atribuída ao monarca, não
ou do povo e tutela dos direitos individu- cabendo cogitar-se de “nenhuma espécie de

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lei fundamental obrigatória para o corpo tentes de forma autônoma, mas elemento necessá-
do povo, nem mesmo o contrato social” rio para a sua definição e tutela (FIORAVANTI,
(ROUSSEAU, 2003a, p. 23) 25. Convém 2003, p. 62-63), conforme dispõe textualmente
ressaltar que o caráter unitário e ilimitado o art. 4 da Declaração. A obra de Rousseau e,
conferido por Rousseau à vontade geral em especial, o seu conceito de vontade geral
fez radicar a soberania no povo26, assim (volonté generalé), desempenharam papel de
entendido o corpo uno e homogêneo de ci- destaque na afirmação do legalismo.
dadãos livres e iguais, em frontal oposição à Rousseau, embora sustentasse que a
fragmentação do poder político e à divisão liberdade é elemento distintivo dos seres
estamental da sociedade típicas da Idade humanos (PARAMO ARGUELES, [199-]) e
Média. Afigura-se, pois, lícito asseverar que que esse valor e o da igualdade dos homens
o filósofo genebrino “forneceu o mais sólido devem ser “o fim de qualquer sistema de
instrumento político-ideológico de ruptura legislação” (ROUSSEAU, 2003a, p. 62), já
com o sistema jurídico-feudal” (PIÇARRA, desconfiava do caráter metafísico e incerto
1989, p. 139). de leis naturais suprapositivas, razão pela
Por outro lado, tal perspectiva inspirou qual considera ser a lei (do Estado) o único
fortemente o alargamento da noção de instrumento capaz de outorgar validade
liberdade política que se verificou com a jurídica a idéias moralmente valiosas
obra clássica de Sieyés (1986), no sentido (PARAMO­ ARGÜELLES, [199-], p. 281),
de vislumbrá-la não apenas como a prerro- visto que o procedimento democrático
gativa de celebrar um contrato de garantia, conferiria às leis da natureza a aceitabi-
que, no caso de malferimento dos direitos lidade recíproca sem a qual seriam vãos
naturais, autorizaria o exercício do direito princípios de justiça (ROUSSEAU, 2002;
de resistência (como no modelo lockeano), ROUSSEAU, 2003a, p. 46). Daí decorre
mas associando-a à noção de poder consti- que “todos os direitos são estabelecidos
tuinte, “entendido como poder originário pela lei” (ROUSSEAU, 2003a, p. 46).
e soberano de os cidadãos politicamente A propósito, o filósofo genebrino promo-
ativos decidirem sobre a sorte futura do ve uma dessubstancialização das cláusulas
modelo político-constitucional”. Trata-se, do contrato social, porquanto as despoja de
portanto, de um poder originário, porque todo o conteúdo substantivo inerente aos
prévio ao Estado; soberano, visto incidir direitos naturais que pudesse vir a condi-
sobre um campo normativo praticamente cionar a vontade dos associados (PIETRO
ilimitado; e cujo conteúdo seria eminente- SANCHÍS, 2003, p. 66), já que “(b)em
mente político, na medida em que se trataria compreendidas essas cláusulas se reduzem
do poder de o povo ou nação eleger um todas a uma só, a saber, a alienação total de
novo modelo político-institucional que cada associado, com todos os seus direitos,
substituísse o antigo, estatuindo metas e a toda a comunidade” (ROUSSEAU, 2003b,
diretrizes que vinculariam os órgãos do p. 46), cabendo à comunidade se expressar
Estado (FIORAVANTI, 2003, p. 63-64).27 soberanamente por meio da lei, reveladora
A ênfase conferida pelo modelo francês às da vontade geral do povo. De tal assertiva
liberdades políticas revela-se não apenas no não decorre que Rousseau haja assumido
conceito de poder constituinte, mas também uma postura de relativismo ético, que
por uma ideologia legalista (FIORAVANTI, marcara a face mais crua do positivismo
2003, p. 62-75). Com efeito, na França atri- jurídico (mormente em sua vertente ide-
buiu-se à lei uma mais-valia em relação à ológica), visto que, embora repute elitista
perspectiva estritamente liberal, porquanto a perspectiva jusnaturalista que vincula a
ela não mais é considerada um mero instru- validade de leis positivas a uma ordem de
mento de conservação de direitos naturais preexis- valores descoberta pela “razão ilustrada

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dos filósofos” (PARAMO ARGÜELLES, a soma de interesses individuais ou a re-
[199-], p. 288), não descura das condições presentação dos interesses da maioria, mas
de justiça do direito. Ao contrário, procedi- seria genuína expressão do bem comum,
mentaliza tais condições, na medida em que do acordo entre interesses individuais
posiciona o seu conceito de vontade geral que tornou possível o estabelecimento das
no espaço antes ocupado pelos direitos sociedades (ROUSSEAU, 2003b, p. 33), e
naturais, como se infere da análise das duas que restabelece a igualdade natural dos
vertentes básicas daquele conceito. homens (ROUSSEAU, 2003c, p. 103)29. De
A primeira delas se refere à autoria e conseguinte, o governo republicano – as-
às condições de elaboração das leis. Com sim entendido aquele em que o interesse
efeito, é assaz conhecida a formulação público cristalizado na lei submete gover-
rousseauniana de que os cidadãos seriam nantes e governados – seria a única forma
efetivamente livres, caso pudessem de- de governo legítimo. Rousseau, ao afirmar
liberar, diretamente e em condições de que “se aquele que manda nos homens não
igualdade, acerca do teor das leis que lhes deve mandar nas leis, aquele que manda
são obrigatórias, de maneira a garantir nas leis não deve mandar nos homens”,
uma identidade entre as figuras de autor e deixa claro que ninguém pode se reputar
destinatário do direito, cidadão e súdito, e, acima da lei, pois apenas o povo soberano,
via de conseqüência, assegurar o conteúdo que se expressa por uma vontade geral
essencialmente justo das leis, pois “não é transcendente dos interesses particulares
preciso perguntar (...) nem se a lei pode de grupos ou facções, tem o status de legibus
ser injusta, porquanto ninguém é injusto ­solutus. Assim, o filósofo genebrino “anteci-
consigo mesmo, nem como se é livre e ao pa a separação entre governo e soberano, e
mesmo tempo submisso às leis, já que estas sua conseqüência mais imediata, o governo
são meras expressões de nossa vontade” das leis”, promovendo clara racionalização
(ROUSSEAU, 2003b, p. 47). Deve, portanto, do poder em oposição à teoria da origem
“todo o povo estatuir sobre todo o povo” divina do poder monárquico, tão em voga
(ROUSSEAU, 2003b, p. 47)28, essa seria a na França­ pré-revolucionária. Evidente se
primeira condição de justiça da lei. afigura a relevância da sua obra para a cons-
Para além da questão relativa à fonte, trução da noção de Estado de Direito.
o conceito de vontade geral traz também À luz do exposto, pode-se concluir que
exigências a respeito da estrutura das o modelo francês apresentou, sobretudo
leis, a saber: devem elas, necessariamente, quando comparado ao inglês, um alarga-
ter conteúdo genérico e abstrato, isto é, mento da noção de liberdade política, porquan-
“consi­dera(r) os súditos coletivamente e to conferiu ao povo ou à nação um poder
as ações como abstratas, nunca um homem originário, soberano e exclusivo de dispor
como indivíduo nem uma ação como par- sobre as instituições políticas e assuntos
ticular” (ROUSSEAU, 2003a), “perdendo de interesse público (inclusive podendo
a sua retidão natural quando tende(m) a proceder a significativas rupturas com a
algum objeto individual e determinado” ordem política anterior e definir o conteúdo
(ROUSSEAU, 2003b, p. 40), como os atos concreto dos direitos individuais). Todavia,
casuísticos do monarca que oneravam mais a enfatização da exigência de legitimidade
intensamente uns súditos do que outros, democrática do direito não correspondeu,
segundo o modelo de dominação pessoal quando menos em teoria, a um descuramen-
característico do antigo regime. to da sua justiça intrínseca. Ao revés, nessa
A vontade geral, ainda que possa ser espécie de legalismo ético, a lei assumia uma
aferida mediante deliberação majoritária, dupla e cumulativa função: (i) instrumento
não se reduz a um conceito estatístico, como de soberania, de autogoverno do povo (ii)

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e mecanismo fundamental à tutela das lições de Rousseau a respeito da noção
liberdades civis (PRIETO SANCHÍS, 2003, de soberania popular e da inviabilidade
p. 67-72. Mas como se hão de equilibrar as do seu exercício mediante representação,
exigências tendencialmente antagônicas de salientava que a revolução se fundou na
positividade e de justiça do direito? Mais atribuição aos cidadãos de um poder sobe-
especificamente, como sanar a contradição rano e originário de dispor sobre a estrutura
inerente à afirmação de que, não obstante do Estado e demais assuntos de interesse
remanesçam como fundamentos da asso- coletivo. Afirma-se, assim, uma concepção
ciação política, as liberdades individuais individualista acerca da origem do poder
podem ser inteiramente configuradas pelo político, frontalmente contrária ao estatalis-
legislador? Enfim, quem garante que o mo prevalecente na tradição monárquica,
Legislador não irá, a pretexto de definir o porquanto se postula a prioridade do corpo
seu conteúdo, suprimir garantia inerente ao de cidadãos constituintes, autonomamente
núcleo essencial de um direito individual? A existente e politicamente atuante, sobre as
resposta a essas complexas perguntas é tre- instituições políticas.
mendamente simples, como anota Fioravan- Ademais, preconizam os jacobinos uma
ti: “o legislador não pode lesionar os direitos cidadania ativa, a participação direta dos
individuais porque é necessariamente justo” cidadãos na vida política pelas assembléias
(FIORAVANTI, 2003, p. 73), exatamente por primárias31, de maneira que a adoção de
vocalizar a vontade geral que, em virtude um modelo representativo de democracia
dos requisitos antes analisados, “é invaria- significaria “trair” o espírito revolucioná-
velmente reta e tende à utilidade pública” rio, visto redundar no restabelecimento da
(ROUSSEAU, 2003b, p. 37).30 noção estatalista de que o povo ou nação
Nada obstante, o transplante mal- não existiria autonomamente senão por
sucedido do sonho comunitário de uma meio da representação de uma autoridade
democracia participativa, acalentado por constituída (Monarca ou Parlamento). Em
Rousseau, para o plano concreto das ins- uma só palavra, a democracia representa-
tituições e da práxis política de um país tiva implicaria apenas a substituição do so-
recém-liberto dos grilhões do absolutismo, berano por outra entidade representativa32:
revelou a fragilidade de conferir-se a tutela não mais o Rei, mas o Parlamento, ambos
dos direitos individuais tão-somente às sem plena legitimidade democrática, já que
“luzes de um Legislador virtuoso”. Tal esta repousaria apenas nas manifestações
circunstância denota que a discussão espe- diretas do povo.
cífica acerca da identificação do conteúdo e Por outro lado, à exaltação da democra-
dos instrumentos de tutela das liberdades cia direta se opõe visão que superlativiza as
civis na Revolução Francesa foi incorporada virtudes da democracia representativa, ao
pelo debate afeto à soberania, às liberdades atribuir ao Parlamento o papel de revelar,
políticas (FIORAVANTI, 2003, p. 75). E, com exclusividade, a vontade geral que
descendo da abstração das teorias políticas transcende as particularidades dos inte-
para as propostas de desenho institucional resses de facção, as quais inevitavelmente
da nação, constatou-se no curso do período se revelam quando o povo é chamado a
revolucionário um movimento pendular participar diretamente da vida política.
entre a defesa de concepções antagônicas: Assim, exatamente por desconfiar-se da
uma radicalmente democrática, de lastro atuação direta do povo, sustenta-se que
individualista; outra conservadora, de ma- os indivíduos devem cuidar da sua vida
tiz estatalista (FIORAVANTI, 2003). privada, delegando o exercício do mister
De um lado, encontrava-se a defesa público à classe política, mediante voto. O
de uma democracia direta que, forte nas objetivo aqui é inverso ao que antes se ex-

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pôs: intenta-se, especialmente, “acabar com Com a impossibilidade demográfica e
a revolução”, ou, mais especificamente, territorial de implantarem-se democracias
com o terror imposto no período jacobino, diretas na grande maioria dos modernos
trazendo estabilidade às instituições políticas. Estados-Nação, afigura-se natural que o
Logra-se, então, obter um modelo em que modelo da representação política, em que
o povo ou nação perde a sua autônoma ca- pese as objeções de Rousseau contidas no
racterização, já que ganhará forma unitária Contrato Social, haja se afirmado como ne-
apenas com o surgimento das instituições cessário à viabilização do modelo democrá-
representativas estatais. tico para além das experiências pretéritas
Do exposto, vê-se que a Revolução no âmbito das Cidades-Estado (v.g.: Grégia
Francesa fez-se vítima de uma verdadeira antiga e Itália renascentista) (DAHL, 1989;
antítese mal resolvida entre versões radicais HARIOU, 1972, p. 50).
das democracias direta e representativa, ou, É exatamente a atribuição ao Parlamento
em outras palavras, entre um permanente da prerrogativa de revelar a vontade geral,
exercício do poder constituinte do povo considerando-se a lei empírica instrumento, por
e uma espécie de soberania dos poderes excelência, da soberania da nação33 e da razão
constituídos: a primeira enfatizava a neces- humana, que marcará profundamente o modelo
sidade de legitimidade democrática dos atos político-institucional prevalecente no âmbito da
do poder público, exigindo a participação Europa Continental do século XIX ao segundo
direta do povo; a segunda priorizava a estabi- pós-guerra (Estado de Direito legalista). De
lidade e a continuidade das instituições políticas fato, o conceito moderno-iluminista de lei,
e, para tal desiderato, negava ao povo uma concebido por Rousseau e desenvolvido
cidadania ativa. A conseqüência desse pro- por Kant, sobre considerar a lei expressão
fundo antagonismo foi a falta de equilíbrio concomitante da vontade do povo e dos im-
entre as exigências igualmente relevantes de perativos da razão, vislumbra nessa espécie
legitimidade e de estabilidade na condução da normativa a única forma de manifestação
coisa pública, como se constata da degene- da soberania, reconduzindo as atividades
ração desses modelos, respectivamente, em estatais à criação e à aplicação do direito, à
voluntarismo político e estatalismo. dicotomia função legislativa versus função
Quanto ao primeiro, saliente-se que o executiva. Ora, parece claro que dessa hie-
recurso constante à vontade constituinte rarquização funcional decorre correlata hie-
do povo subordina toda a estrutura polí- rarquia entre os órgãos estatais, de maneira
tica do Estado – órgãos públicos, direitos a conceber-se a supremacia do Parlamento
individuais e Constituição – a interesses e da lei em relação aos poderes Executivo
fugazes, causando óbvia insegurança e e Judiciário e aos seus respectivos atos.
instabilidade, além de negar aos direitos Essa relação superior–subalterno entre os
individuais a sua conatural função de trun- órgãos do Estado implicará, naturalmente,
fo do indivíduo em face das deliberações um modelo político-institucional cuja nota
políticas ordinárias (FIORAVANTI, 2003, distintiva é o monismo do poder legislativo,
p. 67). O resultado é que a tutela e a própria na medida em que todo o poder político
definição dos direitos hão de flutuar ao sabor efetivo será concentrado no Parlamento.
das contingências da vontade política mo- Assim, a própria separação orgânico-
mentânea, como nos confirma a cristalina funcional dos poderes é colocada a serviço
dicção do art. 28 da Constituição Jacobina da supremacia do Legislativo e da lei,
de 1783, verbis: “Um povo tem sempre o visto que a tripartição das funções estatais
direito de rever, reformar e de mudar sua em legislativa–executiva–jurisdicional e
Constituição. Uma geração não pode sujeitar a sua concessão aos órgãos homônimos
às suas leis as gerações futuras.” destinam-se a garantir que as funções exe-

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cutiva e jurisdicional se limitem à aplicação ou seja, a lei perfeita que seria produzida
das leis, já que tais normas, mercê da sua em um ambiente ideal de deliberação
origem democrática e da sua estrutura ge- (PRIETO SANCHÍS, 2003, p. 74). Como
nérica e abstrata, veiculariam garantias ine- visto, o conceito moderno-iluminista de
quívocas de justiça e de respeito aos direitos lei associava o seu caráter intrinsecamente
individuais. Ora, se as leis são expressões justo à sua origem democrática e ao seu
genuínas da soberania popular e da razão, conteúdo genérico e abstrato. Verificou-se,
a conseqüência natural é a impossibilida- todavia, um afastamento desses requisitos
de de elas cometerem abusos, de modo a de legitimidade no plano da praxis política,
afastar qualquer mecanismo de limitação já que a atuação direta do povo, preconi-
do Poder Legislativo por outros órgãos es- zada por Rousseau, foi substituída por um
taduais. Tais mecanismos interorgânicos de sistema representativo em que vigia o voto
controle, e, notadamente, o mais importante censitário, bem como o conceito de lei sofreu
deles, o controle jurisdicional de constitucio- um processo de formalização, na medida em
nalidade, eram considerados ofensivos ao que essa espécie normativa passou a ser con-
princípio da separação de poderes segundo siderada tão-somente o ato produzido pelo
tal formulação democrático-radical, a qual Parlamento com observância do processo
apenas toleraria que a função legislativa fosse legislativo, abstraindo-se, portanto, de con-
limitada por débeis instrumentos de fiscali- siderações a respeito da sua estrutura.
zação intra-orgânicos (v.g.: bicameralismo, Do exposto, conclui-se que o conceito
maioria parlamentar versus oposição, etc.) e de vontade geral passou a atuar como
extra-estaduais, sobretudo o controle político instância de legitimação racional do que
exercido pelo eleitorado (PIÇARRA, 1989). restara decidido por um Parlamento de
Tal arranjo institucional, sobre con- proprietários, obtendo uma noção sacra-
centrar todo o poder político efetivo no lizada da lei e das virtudes do Legislador,
Parlamento (relegando aos demais “pode- que acabava por justificar a obediência
res” uma tarefa de mera execução da lei), irrestrita dos indivíduos aos seus ditames,
carece de efeito moderador em relação ao pois, por mais que o processo legislativo,
exercício do poder público, de modo que na prática, se distanciasse da participação
a sua distância em relação à separação de equânime e cooperativa do povo idealizada
poderes como freios e contrapesos é abissal, por Rousseau e por mais injustas, casuísti-
porquanto nesse último modelo a finalida- cas e arbitrárias fossem as leis, dever-se-ia
de primeira é a limitação do poder estatal considerá-las como se proviessem da von-
mediante sua fragmentação em órgãos tade uníssona do povo e dos imperativos da
independentes. razão. Assim, a garantia dos direitos se limitara
A realidade, contudo, viria a confirmar a um estéril postulado de reserva de lei, ou, em
a perspectiva liberal de que um alarga- outras palavras, a “um único direito funda-
mento dessa monta dos poderes de órgão mental, o de ser tratado em conformidade
do Estado, ainda que democraticamente às leis do Estado” (FIORAVANTI, 2003, p.
legitimado pelo voto, causaria sério risco à 120 et seq.), promovendo uma espécie de
tutela dos direitos individuais. Com efeito, desconstitucionalização e de dessubstan-
tal constatação adveio quando descortinada cialização das liberdades civis, vez que,
a visão mitificada que o Estado de Direito despidas de qualquer conteúdo necessário,
legalista apresentava acerca das potenciali- a sua definição e eficácia jurídica estariam
dades da lei e do legislador, construída com integralmente condicionadas à sanção do
lastro na justificação da incondicional obe- Estado soberano. Evidentemente que tal con-
diência à lei empírica a partir dos poderosos cepção, como notou agudamente Perez-Luño
argumentos que embasam a lei racional, (1995, p. 297), despe os direitos individuais

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da sua conatural função de trunfos contra ção, assim entendido o documento normativo
atos estatais arbitrários34. superior que, ao fixar-lhes as competências,
Note-se que o conceito de soberania da pretende limitar os poderes constituídos,
nação, e, via de conseqüência, a atribuição inclusive o Legislativo. Tal pretensão ficaria
à Assembléia representativa do monopólio completamente esvaziada caso os órgãos do
da revelação da vontade geral do povo, de- Estado pudessem, por deliberação ordinária,
nota a incorporação da soberania pelo Par- sobrepor-se ao estatuído na Constituição37.
lamento, acabando por dar azo à estranha Esse modelo padece, portanto, da mes-
“soberania dos poderes constituídos”, que, ma patologia que acometeu a democracia
precisamente por se revelar tipicamente direta, na medida em que insere no âmbito
estatalista, subverte a lógica individualista do Estado um soberano, a quem, precisa-
que inspirou o contratualismo revolucioná- mente por se situar acima do direito posi-
rio. Confira-se, a propósito, a feliz síntese tivo, compete alterá-lo quando e como bem
de Prieto Sanchís (2003, p. 78-79): entender. Disso resulta um permanente
“É a apoteose do estatalismo: a exercício do poder constituinte pelo Parla-
soberania popular se dissolve em so- mento, pois a este departamento estatal ca-
berania estatal, o poder constituinte é beria, à mingua de efetivos instrumentos de
diretamente assumido pelos poderes controle do exercício do seu poder38, emitir,
constituídos, o próprio povo é con- incessantemente, uma vontade ilimitada
cebido como órgão do Estado que capaz de redefinir a forma de governo, as
quando vota exerce uma função pú- instituições políticas e o delineamento dos
blica e, enfim, os direitos abandonam direitos individuais. O corolário natural do
a sua condição de “reservas do direito exposto é relegar-se a tutela e a definição
natural” do indivíduo frente ao poder dos direitos individuais ao sabor da insta-
para converterem-se singelamente em bilidade e das idiossincrasias da vontade
direitos definidos pela lei mercê de um política conjuntural,39 muito embora, por
processo de autolimitação do Estado.” se consubstanciarem em prerrogativas
Com efeito, a admissão de que o Par- inerentes à dignidade humana, hajam sido
lamento possa, a qualquer tempo, exercer concebidos como garantias perenes oponí-
um poder soberano coloca-o à margem veis à satisfação de necessidades políticas
da Constituição, com o status de autor momentâneas. Dessa feita, a soberania
do seu próprio poder, já que, na linha de popular não se estabiliza em um texto cons-
Rousseau, não há de opor-se ao legibus titucional, mas, ao contrário, traduz-se em
solutus qualquer lei fundamental de índole cada deliberação legislativa. A Constituição
obrigatória, verificando-se, portanto, uma perde a sua tradicional função de equilibrar
confusão entre os poderes constituinte e e limitar o poder com o escopo de proteger o
constituídos35, pois “os eleitos deixam de cidadão, reduzindo-se a veículo da vontade
ser os representantes da nação soberana, livre e ilimitada do soberano, e, no essencial,
para converterem-se em representantes a um só postulado: a observância irrestrita
soberanos da nação”36. A bem da verdade, da lei. Cumpre repisar que a lei, por sua vez,
o conceito de poder constituinte parece estar era considerada instrumento, por excelência,
vinculado à superioridade e à pré-estatalida- da soberania e da razão humana, e que,
de da vontade do povo sobre a dos poderes portanto, buscava legitimidade em si pró-
constituídos. A efetiva realização dessa dico- pria, e não em parâmetros constitucionais
tomia, por sua vez, parece vincular-se à idéia substantivos.
de rigidez constitucional, ou seja, à noção de Todavia, especialmente em sociedades
que o povo, por intermédio de um processo em vias de uma efetiva democratização,
deliberativo especial, dá a si uma Constitui- mais factível do que confiar a tutela dos

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direitos “às luzes de um Legislador virtu- circunstância que denotaria a incorporação
oso” – que afinal estaria sujeito apenas aos da soberania por poder constituído, e, por
constrangimentos da sua consciência, ao conseguinte, a convolação dos direitos indi-
embate de forças divergentes no seio do viduais em meras tolerâncias, em singelos
Parlamento (bem menos intensos do que atos de autolimitação do Estado. Nesse viés,
os atuais, em virtude do voto censitário parece prestar bom serviço à compatibiliza-
prevalecente à época) e às contingências ção dos conceitos de soberania popular e de
da história e do corpo de eleitores – parece supremacia da Constituição, sobretudo em
ser a adoção de um modelo de separação de sociedades em via de democratização, que o
poderes que substitua tal concentração de poder constituinte do povo, após editada a
poderes no Parlamento pela sua atomização Constituição, retire-se das diuturnas ativida-
intra-estatal em órgãos independentes e des estatais, permanecendo na sociedade em
relativamente equilibrados. Dessa forma, a estado de latência . “Criada a Constituição, a
concessão de funções específicas e de ins- ela caberá a supremacia, não havendo lugar
trumentos de controle mútuo a tais órgãos a poderes à margem, acima ou fora dela. Só
viabilizará que “o poder contenha o poder”, assim se poderá falar de Estado de Direito.
segundo a clássica formulação de Montes- Cada poder constituído apenas pode o que
quieu, a qual, partindo de um pessimismo a constituição lhe permitir”.
antropológico diametralmente antagônico à A conseqüência de tudo o quanto se
profissão de fé do iluminismo francês nas vir- expôs é a debilidade do Estado de Direito
tudes do legislador, confere à balança entre os legalista na proteção dos direitos indivi-
poderes a natureza de garantia institucional duais, especialmente na sua tradicional
dos direitos fundamentais, em cuja ausência acepção de trunfos contra a arbitrariedade
estes são reduzidos a meras declarações estatal, tendo em vista a adoção de um mo-
de intenção do soberano. Efetivamente, o delo institucional estatalista e concentrador
Estado Constitucional, cujo núcleo essencial do poder soberano em um só órgão estatal.
é composto pelos direitos individuais e pela Cuida-se, enfim, de um regime marcado
separação de poderes, distingue-se pela pela democracia40 sem constitucionalismo,
negação de um soberano, de “um centro na medida em que há nítida prevalência da
de poder ilimitado capaz de revogar a todo noção de soberania sobre mecanismos ins-
o momento os ‘direitos’ que antes havia titucionais destinados a limitação do poder
outorgado, sem que os seus destinatários os com vistas à proteção do indivíduo.
possam fazer valer perante outros centros de
poder, especialmente os tribunais”.
Ao revés, no âmbito de um Estado 5. Constitucionalismo e democracia
Constitucional, a soberania popular tende reconciliados: bases teóricas e construção
a ser exercida mediante a edição de um do modelo norte-americano de supremacia
documento normativo dotado de superior da Constituição e de controle de
hierarquia, em cujo âmbito são definidos constitucionalidade
os poderes juridicamente limitados dos
órgãos estatais – competências. Substitui-se, Conforme salienta, com a habitual pro-
portanto, o monismo do legislador pelo priedade, Maurizio Fioravanti, o elemen-
pluralismo dos poderes constituídos, todos to-chave para o entendimento da raiz da
subordinados à partilha constitucional de diferença acerca da forma de proteção dos
competências e dotados de instrumentos de direitos individuais nos EUA e na França
recíproca fiscalização, de forma a impedir reside no exame da realidade contra a qual
que um deles possa, por si só e de modo or- os revolucionários norte-americanos e
dinário, alterar o disposto na Constituição, franceses se insurgiram, e não na letra das

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respectivas Constituições e Declarações de distinção de conteúdo entre os direitos
Direitos, as quais apresentam evidentes proclamados pelos colonos e os historica-
similaridades quanto ao conteúdo dos di- mente incorporados ao patrimônio jurídico
reitos e a sua fundamentação jusnaturalista. dos ingleses, os primeiros assumiram um
Ressaltou-se, no capítulo precedente, que sentido próprio, qual seja, o de situações
a tutela dos direitos individuais na França jurídico-subjetivas de liberdade e igualda-
pressupunha a superação da pluralidade de ostentadas pelos indivíduos no Estado
intrincada de situações de privilégio do de Natureza, cuja conservação e tutela são
antigo regime por uma ordem jurídica confiadas ao Estado Social quando da sua
fundada na liberdade e na igualdade formal instituição. Erigem-se os direitos indivi-
entre os cidadãos. A necessidade de uma duais, portanto, à condição de causa e de
transformação social tão profunda impli- justificação de todo o poder político.41
cou, naturalmente, o fortalecimento do Todavia, o contexto histórico supra
Legislador recém-dotado de legitimidade aludido não poderia jamais levar os norte-
democrática (para os padrões da época, americanos a confiarem a tutela dos seus
que coonestava com a redução do demos direitos naturais a um legislador soberano,
aos proprietários), não se cogitando da sua circunstância que afastou o modelo político
limitação por uma lei fundamental. dos EUA da soberania parlamentar que se
Já nos EUA, os direitos individuais fo- instalara na França. Parece correto afirmar-
ram opostos ao Parlamento inglês em razão se que, enquanto a “revolução francesa
de um alegado exercício ilegítimo e abusi- confia os direitos e liberdades à obra de um
vo das suas competências, notadamente legislador virtuoso, que é assim considerado
no que concerne à instituição de tributos por sua alta representatividade do povo
sobre os colonos, independentemente da ou da nação, para além das facções e dos
aprovação das assembléias locais que os re- interesses particulares, a revolução ameri-
presentavam. Os colonos norte-americanos cana desconfia das virtudes de todo o legislador
não se consideravam representados pelo – também do eleito democraticamente
Parlamento inglês, mas pelas Assembléias – e, assim, confia os direitos e liberdades
coloniais cujos membros não eram apenas à Constituição, é dizer, à possibilidade
eleitos por eles, mas considerados concretos de limitar o legislador a uma norma de
mandatários dos seus interesses. ordem superior” (FIORAVANTI, 2003,
Note-se que os colonos norte-america- p. 82). Efetivamente, é nota distintiva da
nos reputavam-se herdeiros da tradição de revolução norte-americana o temor da
luta dos ingleses pela aquisição de direitos atuação ilegítima e arbitrária dos poderes
individuais, utilizando-se da proteção con- constituídos (especialmente do Legislativo,
ferida pela constituição histórica inglesa aos tido como o mais poderoso deles), no que
bens e à liberdade dos seus súditos em face concerne à incorporação da soberania do
do próprio Parlamento britânico – especial- povo ou à usurpação de competências uns
mente a fórmula no taxation without repre- dos outros. A tendência, por conseguinte,
sentation –, com o intuito de obstaculizar o não é a de confiar ao Legislador a tutela e
governo de imiscuir-se no patrimônio dos a definição dos direitos individuais, mas
seus súditos sem que estes, por meio dos a de vislumbrar na preeminência desses
seus representantes, consentissem. direitos um verdadeiro limite ao legítimo
Vale ressaltar que a alusão aos direitos exercício da função legislativa, na medida em
dos Englishmen vem acompanhada da que – repise-se – a irresignação dos colonos
nova roupagem que lhes foi conferida por norte-americanos referia-se ao prejuízo que a
um jusnaturalismo racionalista de inspi- onipotência do Parlamento inglês causara aos
ração lockeana. Embora não haja sensível seus direitos (Cf. MADISON, 2003, p. 332).

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Desse modo, conferiu-se a tutela dos política do corpo constituinte de cidadãos
direitos individuais a uma Constituição, (PRIETO SANCHÍS, 2003, p. 49-50).
assim entendido o documento legislativo Do exposto, pode-se concluir que a luta
escrito que, exatamente por se revelar pela afirmação da superioridade dos direi-
fruto do poder constituinte do povo, goza tos individuais sobre os órgãos do Estado,
de superioridade hierárquica em relação marcante em seu processo de independência,
às deliberações dos poderes constituídos. criou no constitucionalismo norte-americano
Daí se infere que o conceito norte-ameri- uma ambiência favorável à obtenção de uma
cano de poder constituinte apresenta-se, solução conciliatória entre duas tradições políticas
desde a sua gênese, vinculado às idéias que andavam separadas, quais sejam: as no-
de rigidez constitucional e de limitação ções de governo limitado por direitos individuais
do poder com a finalidade de proteger o e de soberania popular, enfatizadas, respectiva-
indivíduo, porquanto a Constituição se mente, por constitucionalistas e democratas
consubstancia em um conjunto de normas (PRIETO SANCHÍS, 2003, p. 41-42). Um
cuja insuscetibilidade de supressão por exame mais cuidadoso dos fundamentos da
maiorias eventuais se justifica ante o escopo afirmação da supremacia da Constituição na
de colocar os direitos individuais a salvo América afigura-se relevante para a adequa-
do arbítrio dos poderes constituídos (Cf. da compreensão dessa assertiva.
FIORAVANTI, 2003, p. 90). A dualidade lei constitucional e lei or-
Se todo o poder emana do povo, as dinária, fruto, respectivamente, da vontade
autoridades públicas em geral, sendo do povo e da vontade dos poderes constitu-
meros mandatários, não podem se voltar ídos, deve-se à circunstância de a primeira
contra as normas estatuídas pelo titular da resultar de um processo deliberativo di-
soberania (mandante), cristalizadas no texto ferenciado, seja quanto à sua origem e ao
constitucional.42 Saliente-se que a vinculação procedimento observado, seja no tocante à
da supremacia da Constituição à tutela dos sua qualidade intrínseca.
direitos individuais, ao estabelecer o per- Pois bem. Quando a Assembléia de
tencimento de princípios de justiça a uma Massachusetts elaborou a Constituição
norma superior intangível aos poderes cons- do respectivo Estado, defrontou-se com
tituídos, revela nítida transposição à ordem a crítica generalizada – veiculada prin-
político-constitucional da pretensão jusnatu- cipalmente nas town meetings43 – de que
ralista de impor-se ao direito positivo. carecia de legitimidade para tanto, tendo
Todavia, o conceito norte-americano de em vista que, destinando-se o documento
poder constituinte, para além da noção de constitucional a atribuir aos três poderes
governo moderado ao qual estava histori- do Estado – inclusive ao Legislativo – as
camente vinculado, contém claramente a suas competências, limitando, portanto, a
noção de soberania popular, reconhecendo, sua atuação aos ditames constitucionais,
portanto, o poder político originário e so- parece natural que a Constituição provenha
berano de indivíduos livres e iguais dispo- de uma autoridade superior, distinta dos
rem acerca das normas fundamentais que órgãos do Estado. Diante do malogro da
estruturarão o Estado e disciplinarão a vida iniciativa da referida Assembléia, em 1779
em sociedade. O objetivo da Constituição foi eleita uma Convenção com a finalidade
seria duplo: garantir os direitos e instituir o específica de elaborar uma Constituição,
governo. Enquanto os direitos seriam fatos a qual foi aprovada pelas referidas town
naturais, inerentes à razão e auto-evidentes, meetings em 1780.
a estrutura do governo, segundo a teoria A experiência das Constituições estadu-
do contrato social, seria eminentemente ais, iniciada pela Carta de Massachusetts,
artificial, porquanto decorrente da vontade estabeleceu o procedimento-padrão para a

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manifestação do poder constituinte do povo e que propiciou a união e a concórdia; de
na América: “em primeiro lugar, a eleição de uma integral confiança do povo em seus
delegados a uma convenção especialmente líderes patrióticos (...)” (MADISON, 2003,
destinada à elaboração de uma Constitui- p. 314-315).45
ção; em segundo lugar, a adopção expressa Assim, nos momentos de política cons-
de uma constituição escrita pela convenção; titucional (constitucional politics), nota-se
em terceiro lugar, a ratificação do projecto de não apenas o exercício de uma cidadania
constituição pelo povo” (BRITO, 2000, p. 31). ativa, mas, especialmente, que o povo logra
É bem de ver que, na experiência desvencilhar-se da sua tendência natural de
política inglesa do século XVIII, o termo perseguir os seus interesses particulares e
“convention” designava um Parlamento ir- imediatos, de agir passional e irracional-
regularmente constituído, sendo que a mais mente, atuando, ao revés, tendo em vista a
importante delas foi a que reuniu Lordes e realização do bem comum e de expectativas
Comuns sem a presença do Rei e redundou de longo prazo. Em poucas palavras: nos
na Revolução Gloriosa. Foram precisa- raros momentos constitucionais, o ambien-
mente a “irregularidade” jurídico-formal te de insegurança e incerteza que os cerca
das Convenções Constitucionais e a parti- torna possível a concretização da aspiração
cipação efetiva do povo, (i) na eleição dos republicana da virtude ética dos cidadãos
seus membros com a finalidade específica em sua atuação política. Assim, esse proces-
de elaborar um projeto de Constituição, e (ii) so deliberativo eticamente superior retira
na ratificação do produto da sua deliberação, princípios básicos de justiça do alcance de
que levaram a considerar-se o procedimento maiorias conjunturais, as quais, atuando
acima aludido como o que melhor expressava no âmbito da política ordinária (normal poli-
o poder constituinte do povo, distinguindo tics), estarão sujeitas a sucumbir à atuação
os atos políticos extraordinários, resultantes auto-interessada, em prejuízo aos direitos
da manifestação episódica do povo, das leis das minorias.46
ordinariamente editadas pelo Parlamento, Nada obstante, o objetivo principal de
mercê da manifestação de vontade dos seus toda a teorização contida nos escritos reu-
representantes (BRITO, 2000, p. 32). 44 nidos no Federalista não é o de justificar
Todavia, como antes salientado, a supe- racionalmente a supremacia da constitui-
rioridade da manifestação das convenções ção, ou a forma como ela se compatibiliza
constitucionais sobre as do Parlamento e, com as exigências tendencialmente antagô-
via de conseqüência, da Constituição sobre nicas de governo limitado e de soberania
as leis não decorre apenas do consentimento popular. Tendo em vista o assentamento
do We the people, a que se refere a Constitui- social dessas concepções (VEJA, 2000, p.
ção americana, mas também do ambiente 39), busca-se conceber instituições que não
especial de deliberação presente quando apenas se guiem pela soberania popular e
o povo é chamado a atuar ativamente no pela moderação governamental, mas que
processo político. A propósito, o modelo logrem sanar os efeitos da política praticada
do constitucionalismo norte-americano por homens que não são anjos (VIEIRA,
distingue-se pela adoção de uma concepção 1999, p. 53),47 aproximando, tanto quanto
dualista da democracia, porquanto promove possível, o resultado das políticas ordiná-
uma clivagem entre política constitucional ria e constitucional, ou seja, a deliberação
e ordinária. Com efeito, o contexto político ordinária de políticos profissionais daquela
que marcara a criação da Constituição dos oriunda da ocasional participação direta e
EUA caracterizou-se pela comunhão na virtuosa do povo (BRITO, 2000, p. 41).
sociedade de uma sensação “de perigo que Ao lado da transposição dos direitos
conteve os sentimentos mais inamistosos individuais para o domínio de uma Cons-

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tituição rígida, a previsão, em seu bojo, cançando os grupos sociais). Nesse viés,
de um particular modelo de separação de atribuiu-se a cada um deles, por intermédio
poderes destinava-se também a aprimorar de delegação constitucional do poder do
as deliberações políticas e a instituir um povo, um rol de competências próprio e
governo limitado. Os norte-americanos mecanismos de recíproca fiscalização, de
desconfiavam das virtudes cívicas do ho- sorte a evitar que um dos órgãos do Estado
mem comum em condições ordinárias de logre incorporar a soberania popular, ou
deliberação, na linha da filosofia política que se imiscuísse em domínios constitucio-
inglesa do século XVII e em contrariedade nalmente reservados a outros departamen-
à perspectiva republicana de Rousseau.48 tos. Tais instrumentos de independência e
Todavia, a alternativa que se extraía da ex- de controle mútuo entre os órgãos estatais
periência político-constitucional inglesa, qual afigurar-se-iam necessários, ante a insu-
seja, a busca de contenção do poder estatal ficiência de confiar a fiscalização da sua
por meio da sua fragmentação entre as forças atuação apenas ao povo, que, embora seja
sociais que atuavam no âmbito do Parlamen- a “única fonte legítima do poder”, não pode
to (governo misto), encontrava-se vinculada à exercer uma vigilância permanente sobre os
divisão da sociedade em estamentos e, via de seus delegados (MADISON, 2003).
conseqüência, à busca de um equilíbrio entre Dessa configuração do princípio da sepa-
princípios distintos de legitimação política ração de poderes avultam (i) a prevalência da
(monárquico e representativo). Ora, tal rea- dimensão institucional sobre a político-social
lidade não era apenas teoricamente rejeitada, (o objetivo imediato é o equilíbrio entre os po-
mas também inexistente à época nas treze deres do Estado e não entre as forças sociais);50
colônias. De fato, apesar de reconhecer-se a (ii) a sua inspiração liberal, tendo em vista a
divisão dessa incipiente sociedade em classes atomização intra-estatal dos núcleos de poder
sociais guiadas por interesses distintos (v.g.: e os instrumentos de freios e contrapesos
comerciantes, profissionais liberais, fazen- destinarem-se, precipuamente, à contenção
deiros, etc.), “na escala política (tais classes) do poder público; e (ii) a sua vinculação à no-
estavam em pé de igualdade, e entre os seus ção de rigidez constitucional, porquanto, ao
membros não existiam distinções de ordem” preconizar que nenhum dos departamentos
(PIÇARRA, 1989, p. 179). Não se cogitava, estatais seja autor do seu próprio poder, pres-
portanto, de ordens aristocrática e monárqui- supõe que as respectivas competências sejam-
ca sujeitas a regimes jurídicos e legitimidades lhes atribuídas pela Constituição, enquanto
próprias. Ao contrário, cuidava-se de socie- documento normativo superior oriundo da
dade em cujo âmbito prevalecia a igualdade vontade popular. Corolário natural desse
perante a lei e o princípio republicano como último aspecto é a constatação de que a noção
único instrumento de legitimação do poder de poder constituinte emergente na América­
político49. se revela significativamente distinta da
Entretanto, à vista de persistir a neces- prevalecente na França pós-revolucionária,
sidade de engendrarem-se arranjos insti- visto que a admissão de a soberania popular
tucionais destinados a conter o exercício se estabilizar em um texto escrito, o qual
arbitrário do poder estatal com o fito de constitui verdadeiro limite à ação dos pode-
proteger os direitos individuais, utilizou-se res constituídos, afasta o modelo americano
o método da balança entre os poderes em tanto do voluntarismo da democracia direta,
uma perspectiva institucional, na medida quanto do risco de incorporação da soberania
em que o escopo imediato terá residido em pelos poderes constituídos, em cujos âmbitos,
atingir-se, pela fragmentação do poder, consoante salientado no precedente capítulo,
equilíbrio e harmonia entre os “poderes não se admitia a “limitação” do soberano por
constituídos” (apenas reflexamente al- uma lei fundamental.

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O apelo à virtude do povo e a descon- da participação direta do povo no processo
fiança a respeito da deliberação dos poderes político aos momentos constitucionais, cujo
constituídos, ínsitos à dualidade política clima de incerteza e insegurança permitiria
constitucional versus política ordinária, uma atuação dirigida ao interesse público
poderiam levar a crer que os norte-ameri- (ACKERMAN, 1991, p. 176), logra-se obter
canos aproximar-se-iam de um modelo de modelo que prestigia a soberania popular
democracia direta análogo ao defendido e evita a instabilidade ínsita ao recurso
pelos jacobinos, em que o povo é chamado recorrente à vontade popular, rediscutindo
a deliberar, direta e ordinariamente, a res- incessantemente a autoridade dos órgãos
peito dos assuntos de interesse coletivo. De do estado e conteúdos constitucionais es-
fato, a “labareda democrático-radical” que senciais, como os direitos fundamentais.
se acendeu após a Declaração de Indepen- Enfatize-se que a busca por estabilidade
dência acabou por ser rapidamente apa- não se fez à custa da soberania popular,
gada pela afirmação do governo republicano como decorria do modelo estatalista de
em detrimento do governo democrático ou democracia representativa que marcou o
popular, utilizando-nos da terminologia ma- Estado de Direito legalista, o qual acabou
disoniana. A propósito, Madison constatou por gerar uma absorção da soberania pelos
que o governo republicano se destina a con- órgãos do Estado. Consoante destacado, é
trolar a violência das facções que se verifica nota distintiva do processo de independên-
nos governos democráticos, sem, todavia, cia dos EUA a oposição a qualquer forma
afastar-se dos princípios que lhe são caros de estatalismo, de onipotência dos órgãos
(notadamente a soberania popular). do Estado. A conciliação das exigências de
Assevera Madison (2003, p. 80) que é soberania popular e de estabilidade dos
da natureza humana a atuação auto-inte- poderes constituídos se tornou possível
ressada, de maneira que, em uma demo- pela noção da Constituição como lei su-
cracia pura, em que os cidadãos deliberam perior (higher law). Pois bem: reconhece-se
diretamente sobre os assuntos de interesse ao povo um poder soberano, originário e
coletivo, prevalecerá no espaço público o ilimitado, cujo exercício não se prolongará
espírito de facção, que se guia pela busca indefinidamente, mas se estabilizará em
da satisfação de interesses e paixões parti- um documento normativo escrito, editado
culares, criando um clima de animosidade no bojo de um processo deliberativo quali-
mútua incompatível com o espírito de tativamente superior e que, por ser dotado
colaboração recíproca que deve prevalecer de supremacia entre as fontes do Direito,
em uma República. Daí por que em uma de- limita os órgãos do Estado ao estatuído pela
mocracia pura “não há cura para os males vontade superior do povo. 52 Garantida a
da facção”, inexistindo mecanismos hábeis estabilidade dos poderes constituídos pela
a proteger os direitos das minorias contra a definição das suas atribuições e limites
propensão da maioria em usurpá-los. em uma lei superior, a circunstância de
Apesar de o povo ser a fonte última do esta norma suprema resultar da vontade
poder político, salienta Madison (2003, do povo preserva a dualidade entre os
p. 314), em resposta à proposta de Jefferson poderes constituinte e constituídos. Não
de revisão da Constituição a cada dezenove caberia, portanto, aos poderes constituídos
anos – formulada com o escopo de con- (inclusive ao Parlamento) imiscuírem-se
ceder às gerações direito de autogoverno no âmbito de deliberação do povo, pois
idêntico ao da geração constituinte –, que admitir o contrário significaria coonestar
o reiterado apelo ao “poder constituinte do a assertiva de que competiria aos poderes
povo” causaria forte abalo à estabilidade do Estado a definição das competências e li-
das instituições políticas.51. Com a restrição mites aos quais deveriam estar sujeitos, em

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nítida confusão de papéis entre mandante e à Constituição e predispostos a mutuamen-
mandatário, entre titular da soberania e mero te se contrabalançar e, por conseguinte, a
representante (HAMILTON, 2003, p. 470). atuar de forma concertada e comedida.
Ora, se a Constituição veicula delegação Para além de uma desconfiança a res-
do povo aos poderes constituídos, inclusive peito das virtudes da lei e, inversamente,
ao Legislativo, tendo em vista o estabeleci- uma forte expectativa quanto à eticidade
mento de um governo limitado, é corolário das deliberações constituintes, as tradições
natural dessa pretensão a superioridade inglesas do commom law e da independência
hierárquica das normas constitucionais so- dos juízes contribuíram para a construção
bre as leis, obstando que a legislatura altere da doutrina norte-americana do controle ju-
a Constituição por meios ordinários. Assim, dicial de constitucionalidade das leis. Nesse
na hipótese de conflito entre Constituição e particular, destaca-se o magistério de Sir
lei, a primeira, embora mais antiga, há de Edward Coke, no sentido de que os juízes
prevalecer, mercê de sua maior hierarquia, teriam o dever de negar aplicação às leis
considerando-se a lei inconstitucional nula que contraviessem a ancient commom laws
de pleno direito. Cuidando-se, ademais, de and customs of the realm, assim entendido o
conflito entre normas jurídicas, tal ativi- conjunto de leis e direitos profundamente
dade se insere no âmbito da interpretação radicados na história do país, que ostenta-
das leis em sentido lato, domínio próprio riam a condição de lei fundamental oponí-
de atuação do Poder Judiciário53. Esses são vel mesmo às deliberações parlamentares
os contornos gerais da teoria do controle (FIORAVANTI, 2001, p. 67-68). Ademais,
judicial da constitucionalidade das leis, a prática de o governo britânico, mediante
os quais, como se sabe, já se encontravam decisões do Privy Council, do Parlamento
no clássico escrito de Hamilton (2003), e e da Coroa, invalidar as leis oriundas das
vieram a ser empregados por Marshall no Assembléias coloniais que contraviessem o
célebre acórdão proferido no caso Marbury direito inglês estimulou, por assim dizer, o
v. Madison (1803 apud HALL, 1999).54 judicial review (NOWAK; ROTUNDA, 2004,
p. 10)55.
6. Conclusão O modelo norte-americano, contudo,
associou a atribuição de o Judiciário zelar
Do exposto na seção anterior, vê-se que pela intangibilidade de uma lei funda-
o mecanismo norte-americano de separação mental não aos costumes consolidados
de poderes confere ao Judiciário um papel historicamente (Coke) ou puramente a
significativamente mais destacado daquele imperativos da razão (jusnaturalismo), mas
que lhe foi conferido pelo Estado de Direito a uma deliberação superior do corpo cons-
legalista, pois era natural que em um mo- tituinte de cidadãos, cristalizada no texto
delo de separação de poderes marcado pela constitucional. A fundamentação da criação
supremacia do Legislativo não houvesse da Constituição em um ato de soberania do
espaço para que o Judiciário procedesse povo, todavia, não a despiu do conteúdo
à declaração da inconstitucionalidade das que o constitucionalismo historicamente
leis. Na América, contudo, tal atividade lhe havia atribuído, qual seja, o de um es-
insere-se entre os mecanismos de freios e paço destinado a harmonizar os poderes, de
contrapesos, circunstância que evidencia modo a evitar a formação de um soberano
a concessão de um poder efetivo ao Judi- que pusesse em risco a proteção do indiví-
ciário, bem como o objetivo de estabelecer duo. Com efeito, a noção de que a soberania
uma relação de equilíbrio e harmonia que popular seria exercida no ato de edição do
abranja não só o Legislativo e o Executivo, documento constitucional, prevalecendo
mas também o Judiciário, todos submetidos a posteriori a supremacia da Constituição,

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sujeitou os poderes constituídos aos seus que se notabilizou com a obra de Jon Elster
ditames, evitando que um deles se arvorasse (1979)58, é bem ilustrada pelo conto mítico
na condição de legibus solutus56. de Ulisses e as Sereias, relatado por Homero
Por outro lado, aprimorou-se a tradição no Livro XII da Odisséia. Homero noticia
britânica dos freios e contrapesos, ao en- que Ulisses, tendo sido advertido por Circê
fatizar-se a necessidade de equilíbrio e de que, ao passar pela ilha das sereias, acaba-
fiscalização mútua entre os órgãos do Esta- ria por sucumbir ao seu canto irresistível,
do (incluindo-se o Judiciário nesse arranjo) ordenou aos seus comandados que o amar-
e não entre as forças sociais. A autoridade rassem ao mastro, permitindo, assim, que
dos órgãos do Estado passou a fundar-se não cedesse àquela tentação irresistível59.
na vontade superior do povo contida na Conforme salienta Daniel Sarmento (2004a,
Constituição, não concorrendo, portanto, p. 11): “o pré-compromisso de Ulisses, que
com o princípio republicano, outros meca- limitou o poder de sua vontade no futuro
nismos de legitimação (v.g.: monárquico e para evitar a morte, poderia ser comparado
aristocrático). Ademais, ao serem entrin- àquele que se sujeita o povo, quando dá a
cheirados na Constituição e terem a sua si uma constituição, e limita seu poder de
salvaguarda submetida ao Judiciário, órgão deliberação futura, para evitar que, vítima
relativamente insulado do processo políti- de suas paixões e fraquezas momentâneas,
co, os direitos individuais foram retirados possa pôr em risco o seu destino coletivo”.
do alcance de pretensões usurpadoras das Os pré-compromissos constitucionais
maiorias políticas conjunturais, conferindo- se consubstanciam em estratégias de
lhes certo grau de estabilidade (PIÇARRA, auto-incapacitação, extraídas dos pré-
1989, p. 195-196)57. compromissos individuais – cogite-se, por
A par de considerar a separação de exemplo, que pessoa com dificuldades
poderes e os direitos individuais elemen- de acordar cedo coloque seu despertador
tos constitucionais essenciais, saliente-se longe da cama, para evitar que o desligue e
a circunstância de a Carta de 1787 haver continue a dormir –, por meio das quais um
sido submetida a referendo popular e indivíduo ou um povo, em um momento de
produzida num ambiente ideal de delibe- lucidez, afasta a possibilidade de adotar de-
ração, que permitiu aos participantes, em cisões míopes a que estaria tendencialmen-
alguma medida, desvencilharem-se dos te sujeito em momentos de debilidade da
seus interesses particulares em prol do vontade ou de racionalidade distorcida, lo-
bem comum. Do amálgama desses fatores, grando, dessa forma, afastar-se de tentações
que evidencia a busca de um equilíbrio entre os ou fraquezas e, via de conseqüência, atingir
ideais constitucionalista e democrático, parece os seus verdadeiros interesses (BAYON,
lícito concluir, na esteira de Oscar Vilhena 2003, p. 410)60. Adaptando-se tal noção para
Vieira (1999, p. 58-59), que “(se) trata de as deliberações constitucionais, pode-se
uma teoria mais sofisticada de constituição, afirmar que o povo, quando elabora a sua
que fundamenta sua supremacia em um Constituição, retira do poder ordinário de
somatório de razões, que associa valores deliberação dos órgãos do Estado normas e
substantivos, modelo de deliberação e valores reputados fundamentais, evitando
processo de ratificação – ou seja: conjuga que, no futuro, vítima das suas próprias fra-
justificações valorativas, de racionalidade quezas, venha a pôr em risco a tutela desses
procedimental e majoritárias”. preceitos por ceder a pressões impostas por
Uma forma sugestiva de ilustrar tal pro- contingências políticas voláteis.
cesso político-deliberativo qualitativamen- Diversas são as críticas dirigidas ao
te superior consiste na utilização da noção transplante dos pré-compromissos indivi-
de pré-compromisso constitucional. Tal idéia, duais para o domínio político-deliberativo61.

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Dados os propósitos específicos do presente à previdência e à assistência social), cuja
artigo, interessa-nos, por ora, tão-somente satisfação normalmente pressupõe a imple-
destacar que a retirada de normas e valores mentação de custosas políticas públicas64.
fundamentais de uma sociedade do dia-a- Tais circunstâncias, entre outras, indicam
dia do processo político, por meio do seu a retirada de uma miríade de matérias do
entrincheiramento constitucional, consiste alcance do poder deliberativo ordinário
em fenômeno que se generalizou a partir dos poderes constituídos, revelando que o
do segundo pós-guerra, com a afirmação neoconstitucionalismo traz um incremento
na Europa Continental das idéias de supre- do nível de rigidez constitucional quando
macia hierárquico-normativa das Consti- comparado com o constitucionalismo
tuições, rigidez constitucional e de controle liberal.
jurisdicional de constitucionalidade das leis Tal fator institucional deve ser associado
e atos normativos, tendo se consolidado à evolução que se verificou no plano da her-
no quarto final do século passado, com menêutica jurídica. Refere-se à atribuição de
a queda das ditaduras na América Lati- força normativa aos princípios, característica
na e do comunismo no Leste Europeu62. marcante da teoria do direito neoconstitucio-
Trata-se de inequívoca vitória do modelo nalista65, que habilita o juiz, p. ex., a invalidar
de constitucionalismo norte-americano63, leis com lastro em normas de alta abstração e
podendo-se constatar que os constituintes conteúdo moral, a respeito das quais grassa
contemporâneos comungam da perspectiva de profundo desacordo nas sociedades plura-
que algum nível de rigidez constitucional se listas contemporâneas. Evidentemente que
afigura pertinente para, sem prejuízo do ideal a soma das características institucionais e
democrático, garantir a preservação da estabili- teóricas no neoconstitucionalismo reforça a
dade das instituições políticas e de prerrogativas dificuldade contramajoritária66 que acomete o
ligadas à dignidade humana. Judiciário quando do exercício do controle
Nada obstante, cumpre assinalar que de constitucionalidade, pois se o só fato de
as Constituições contemporâneas não se juízes não eleitos afastarem o resultado da
limitam a prever a estruturação do Estado, deliberação majoritária dos representantes
a separação dos poderes e alguns poucos do povo já suscita a alvitrada crítica, que dirá
direitos fundamentais como limites ao o exercício dessa atividade excepcional com
poder público, como se dava nas Consti- base em normas cuja identificação do seu
tuições-Garantia de que é exemplo clássico sentido é dificultada pela sua fluidez e pelas
a norte-americana. Ao contrário, as Cons- divergências acerca do seu conteúdo moral.
tituições típicas do neoconstitucionalismo Assim, embora o atual fenômeno de
predeterminam, em diversas intensidades, generalização da rigidez constitucional haja
a regulação jurídica das mais diversas se- atestado a pertinência da tese de que a pre-
aras, como, p. ex., a economia, as finanças visão de direitos fundamentais e da separa-
públicas, a seguridade social, as relações ção de poderes numa Constituição rígida e
de trabalho, a cultura, o desporto, a co- oriunda de um processo deliberativo supe-
municação social, a ciência, a tecnologia, a rior equilibra os ideais constitucionalista e
defesa do consumidor, da família, do meio democrático, faz-se mister reconhecer que
ambiente, do patrimônio histórico-cultural, as Constituições contemporâneas apresen-
etc. A esse amplo conteúdo normativo tam um nível de rigidez constitucional mais
soma-se a positivação não só de direitos a intenso do que as Constituições-Garantia.
prestações estatais negativas (direitos de Tais considerações dão azo a uma série de
defesa), mas também de direitos a pres- advertências relevantes, que serão adiante
tações estatais positivas (direitos presta- arroladas à guisa de encerramento, sem
cionais, v.g.: direito à educação, à saúde, qualquer pretensão de tratar analiticamente

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da questão, já que isso pressuporia uma dade da Constituição, proporcionalidade,
análise autônoma. razoabilidade, proteção ao núcleo essencial,
Com efeito, a exaltação das virtualida- os instrumentos de auto-restrição judicial
des da supremacia hierárquico-normativa – judicial self restraint –, etc.) e parâmetros de
da Constituição não nos deve conduzir a ponderação (v.g.: prevalência prima facie das
uma “sacralização” das normas constitucio- regras aos princípios, hierarquia axiológica
nais, olvidando-nos dos recorrentes casos subjacente à Constituição e grau de restrição
em que elites valeram-se das supermaiorias aos princípios em conflito) que confiram
necessárias à alteração da Constituição para racionalidade e objetividade mínimas à
entrincheirar privilégios, petrificando o atuação do juiz.
status quo. Tal conduta inequivocamente
atenta contra a democracia (e, no caso bra-
sileiro, contra a pretensão da Carta de 1988 Notas
de promover a justiça social), na medida em
que prejudica o direito de o povo ser artífice
1
Falta, entretanto, na Inglaterra, toda a carga con-
tra o passado que marca, por exemplo, o movimento
do seu destino coletivo. A síntese dessas revolucionário francês. Com efeito, na Inglaterra
visões distintas acerca das virtudes das verificou-se uma lenta e gradual passagem de uma
normas constitucionais é a adoção de uma sociedade estamental para um Estado constitucional,
perspectiva que, por um lado, não chega ao com pequenos interlúdios de exercício absoluto do
extremo de considerar que a rigidez consti- poder. Assim, o jusnaturalismo ali empregado, com
forte influência de John Locke, assume um caráter
tucional significa, necessariamente, a petri- mais de garantia do que de ruptura. Ver, a propósito,
ficação da doutrina defendida por um gru- a seção três.
po social mais bem articulado, nem confere 2
Parece confirmar tais assertivas a circunstância
uma aura de santidade a toda e qualquer de, respectivamente, (i) os opositores do regime
norma constitucional, independentemente absolutista (p.ex.: huguenotes nas guerras religiosas
ocorridas na França na segunda metade do século
da aferição do seu conteúdo. Comunga-se, XVI e, especialmente, os defensores das prerrogativas
portanto, da concepção de John Rawls de que, parlamentares na Inglaterra dos séculos XVI e XVII)
caso a atuação contramajoritária do Judiciário terem se utilizado dos pactos firmados com o Rei para
se restrinja a uma zona de neutralidade polí- questionar a legitimidade de atos do monarca que se
tica, é dizer, à tutela de princípios que sejam desviassem da repartição de poderes neles reconheci-
da e (ii) Montesquieu ter, confessadamente, inspirado
objeto de um consenso sobreposto entre as a sua concepção de separação de poderes na ancient
diversas doutrinas adotadas pelos indivídu- constitution inglesa – sem dúvida alguma onde a noção
os, logra-se obter um modelo que contenha de Constituição mista melhor se desenvolveu.
as deliberações de maiorias ocasionais em 3
Segundo a formulação clássica de Bodin (apud
proteção à dignidade humana, sem colocar FIORAVANTTI, 2001, p. 72 et seq.), além da índole
absoluta, a soberania apresenta a característica da
em risco o direito de autodeterminação cole- perpetuidade ou da originariedade, à vista de cuidar-
tiva da geração atual. se de poder cuja legitimidade busca-se em si próprio,
A segunda advertência concerne à do que decorre não ser fruto de delegação e não se
circunstância de que a indeterminação sujeitar à revogação.
e a conflituosidade que são inerentes à
4
Esclarece Bobbio (1994, p. 14-15) que: “O que une
a doutrina dos direitos do homem e o contratualismo
aplicação dos princípios jurídicos pelo é a comum concepção individualista da sociedade, a
Judiciário devem servir de estímulo para concepção segundo a qual primeiro existe o indivíduo
que a doutrina desenvolva elementos de singular com seus interesses e carências, que tomam
interpretação (v.g.: gramatical, histórico, a forma de direitos em virtude da assunção de uma
sistemático e teleológico), princípios instru- hipotética lei da natureza, e depois a sociedade, e não
vice-versa como sustenta o organicismo em todas as
mentais (v.g.: supremacia da Constituição, suas formas, segundo o qual a sociedade é anterior
interpretação conforme a Constituição, aos indivíduos ou, conforme a fórmula aristotélica
presunção de constitucionalidade, efetivi- destinada a ter êxito ao longo dos séculos, o todo é

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anterior às partes. (...) Sem essa revolução coperni- restaurador, o Rei Guilherme (...)”, Laslett (2001, p. 66
cana, à base da qual o problema do Estado passou a et seq.), na esteira da corrente majoritária, sustenta
ser visto não mais da parte do poder soberano, mas que Locke já vinha se dedicando ao escrito há muito
da parte dos súditos, não seria possível a doutrina do mais tempo.
Estado liberal, que é ‘in primis’ a doutrina dos limites 9
Locke (2001, p. 495) não raro engloba em seu con-
jurídicos do poder estatal. Sem individualismo não há li- ceito de propriedade os direitos à vida e à liberdade.
beralismo” (grifo nosso). Salientando que o liberalismo 10
As noções de consentimento e confiança – trust –,
e o organicismo repousam a primazia axiológica no embora de destacado relevo na arquitetônica lockeana,
indivíduo e na comunidade política, respectivamen- só serão lateralmente abordadas, tendo em vista os
te, ver Sarmento (2005, p. 51-59). No mesmo sentido limites do vertente estudo.
Rouanet (2001, p. 36), que arremata: “No entanto, 11
Utilizar-se-ão como sinônimos de liberdades
sua consciência da dimensão social não impede que civis os termos liberdade negativa, liberdade dos
o iluminismo seja absolutamente alheio a qualquer modernos e autonomia privada; e, no mesmo sentido
concepção holista, a qualquer visão “orgânica” que de liberdade política, as expressões liberdade positiva,
atribua prioridade a uma instância coletiva – grupo, liberdade dos antigos e autonomia pública.
cultura, Estado – ou que diga que a verdade da parte 12
Utiliza-se aqui a profícua síntese de Carlos
está em sua inserção no todo”. Santiago Nino (2003, p. 28) a respeito das proposi-
5
Escrito entre 1628 e 1653 e publicado em 1680 ções básicas do jusnaturalismo. Convém destacar-se,
(Cf. TULLY, 1993, p. 16). contudo, que não há na obra de Locke a atribuição ao
6
Afigura-se oportuno destacar que, embora Locke, Judiciário do papel de guardião dos direitos fundamentais
em sua obra intitulada Two Tracts on government (não contra eventuais violações dos órgãos do Estado. Sobre o
publicada), tenha esposado uma teoria da alienação modelo lockeano de separação de poderes, ver infra
à moda de Hobbes, essa posição foi abandonada em (parte final do presente capítulo).
Essay concerning toleration (1667), tendo consolidado a 13
A propósito, Luis Prieto Sanchís (2003, p. 70)
sua nova concepção com os Dois tratados sobre o governo assinala que: “pode parecer surpreendente, mas os
civil (1690) (Cf. TULLY, 1993, p. 18, 30-32). dois grandes teóricos do absolutismo e da democracia,
7
É bem de ver que a busca desmedida por se- Hobbes e Rousseau, estão de acordo em dois aspectos
gurança e ordem, a utilização do jusnaturalismo em essenciais: devemos obedecer as leis como se fossem
desconformidade à sua histórica função de limitação expressões da nossa própria vontade, e o poder ab-
do poder e a conseqüente redução do Direito ao direito soluto não tem limites”. A questão será aprofundada
positivo tornam Hobbes um jusnaturalista ao partir e no subseqüente item.
um positivista ao chegar (BOBBIO, 1994, p. 41). Nada 14
Vale salientar, contudo, que a colocação da no-
obstante, é bem de ver que as críticas à circunstância de ção de soberania no coração da Constituição dos mo-
a sua tese dar fundamento teórico ao absolutismo não dernos não deve levar à equivocada conclusão de que
raro esmaecem a preocupação hobbesiana com o tema Hobbes e Rousseau coonestassem o exercício arbitrário
da liberdade, cujo relevo é comprovado, como visto do poder político. Ao revés, a soberania era compre-
alhures, pela circunstância de a sua teoria pressupor endida como um poder conferido pelos indivíduos ao
a liberdade natural dos indivíduos. Conflui com tal monarca, à Assembléia soberana (Hobbes) ou ao povo
perspectiva, aliás, a divisão tripartite do De Cive: liber- (Rousseau), pelo contrato social, o qual se afigurava
tas, potestas e religio. Ocorre que, temendo o recrudes- essencialmente justo (Rousseau) e necessário para a
cimento da desordem social instalada na ­Inglaterra de proteção das liberdades civis mediante leis certas, ge-
1640, fomentada, notadamente, por motivos religiosos, rais e abstratas, notadamente em contextos históricos
Hobbes (1992) vislumbrava a proteção da liberdade em que a pluralidade de poderes políticos, típica da
por intermédio do direito posto pelo soberano. É o Idade Média, levara ao corrompimento da sociedade
que nos esclarece, com a habitual acuidade, Merquior em anarquia e desordem, com inegáveis prejuízos à
(1991), arrematando que: “para proteger libertas, po- tutela dos direitos civis (Hobbes). Apesar de esse es-
testas devia controlar a farisaica religio”. copo revelar a adoção de perspectivas individualistas,
8
O objetivo de Locke, confessado no prefácio dos buscar-se-á expor no subseqüente capítulo que o fato
Dois Tratados, era prover uma justificação racional e de descurarem da noção de Constituição como garan-
consistente à monarquia limitada instituída após o tia e limite, é dizer, como locus do equilíbrio entre os
fim da Revolução Gloriosa (1689), com a assunção poderes e da tutela de direitos individuais, permitiu
de Guilherme D’Orange ao trono inglês. Há, a pro- a incorporação da soberania por poderes constituídos,
pósito, uma infindável discussão a respeito de essa abrindo caminho para experiências estatizantes peri-
monumental obra haver sido escrita após a eclosão gosas à tutela dos direitos individuais.
do referido movimento revolucionário, com o escopo 15
É mister notar a improcedência de vislumbrar-se
de justificá-lo, ou, ao revés, durante a década de 1680. na obra de Locke uma defesa democrática da soberania
Em que pese haver no prefácio confissão de que o livro popular. Como bem salienta Miguel Nogueira Brito
destinava-se a “consolidar o trono de nosso grande (2000, p. 24-25): “Apesar do radicalismo das posições

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políticas de Locke e das suas implicações democráti- do Parlamento em determinadas matérias, tais como a
cas, não é correto ver nelas uma defesa da democracia, instituição de impostos e a alienação de bens públicos.
tal como hoje a entendemos, mas antes uma afirmação (Cf. PIÇARRA, 1989).
do carácter essencialmente limitado do poder do Es- 22
Confira-se passagem clássica de Montesquieu
tado. Na realidade, o igualitarismo político presente (1952), verbis: “eis, portanto, a constituição funda-
no Second Treatise foi articulado por Locke tendo em mental do governo de que falamos: sendo o corpo
vista a defesa do direito de resistência por todos os legislativo composto por duas partes, uma encadeará
indivíduos numa situação em que a prioridade ime- a outra pela mútua capacidade de impedir. Ambas es-
diata consistia na oposição ao absolutismo”. tarão ligadas pelo Executivo que, por sua vez, o estará
16
Especificamente sobre o esboço do conceito de pelo poder legislativo. Esses três poderes deveriam
poder constituinte permanente do povo, consigna formar um repouso ou uma inação. Mas, como pelo
Locke (2001, p. 518-519) que: “Embora numa sociedade movimento necessário das coisas, são constrangidos
política constituída, assentada sobre suas próprias a atuar, serão forçados a atuar em concerto”.
bases e agindo de acordo com sua própria natureza, ou 23
Cumpre notar que, com a restauração da
seja, para a preservação da comunidade, não possa ha- monarquia em 1660, por mais que o Legislativo e o
ver mais de um único poder supremo, que é o legislativo, Executivo viessem a, progressivamente, afirmar-se
ao qual todos os demais são e devem ser subordinados, como instituições políticas independentes, havia ainda
contudo, sendo ele apenas um poder fiduciário para um indissociável vínculo entre as prerrogativas do
agir com vistas a certos fins, CABE AINDA AO POVO Rei e a legitimidade monárquica, e as atribuições do
UM PODER SUPREMO para remover ou ALTERAR Parlamento e a legitimidade democrática. Essa querela
quando julgar que age contrariamente à confiança nele depo- de legitimidades impedirá o pleno desenvolvimento da
sitada. Pois, como todo poder concedido em confiança institucionalização acima referida, algo que só acon-
para se alcançar um determinado fim está limitado por tecerá com o movimento revolucionário norte-ameri-
esse mesmo fim, sempre que este é manifestamente cano, que, como se sabe, floresceu em uma sociedade
negligenciado ou contrariado, o encargo confiado deve politicamente homogênea, livre, portanto, de amarras
necessariamente ser retirado e voltar às mãos daqueles estamentais e de formas de legitimação do poder polí-
que o concederam, que podem depositá-lo de novo tico diversas do princípio republicano (não havia nos
onde quer que julguem ser melhor para sua garantia EUA, p. ex., as figuras do monarca e dos aristocratas).
e segurança. E, portanto, a sociedade política conserva 24
Essa Declaração, que consistia em preâmbulo à
perpetuamente um poder supremo de salvaguardar-se Constituição de 1791, continha os princípios de filoso-
das tentativas e propósitos de qualquer pessoa, mesmo fia política que inspiravam o espírito revolucionário.
de seus próprios legisladores, sempre que estes sejam (Cf. BURDEAU, 1980, p. 297).
tolos ou perversos o bastante para conceber e levar a Confira-se, a propósito, os seus artigos 2 e 3,
cabo planos contrários às liberdades e propriedades verbis: “A finalidade de toda associação política é a
dos súditos. (...)” (grifos em maiúsculas do autor, em conservação dos direitos naturais e imprescritíveis
itálico, meus). do homem... (art. 2), cujo desrespeito é a única causa
17
Por outro lado, a concepção, por assim dizer, da desgraça dos governos (acrescenta o preâmbulo).
mais refinada, no sentido de que o poder constituinte O princípio de toda a soberania reside essencialmente
do povo manifestar-se-ia por um diploma jurídico na nação. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo
escrito e superior às demais fontes do direito, bem pode exercer autoridade que dela não emane expres-
assim de que caberia ao Poder Judiciário, por meio samente (art. 3)”.
do mecanismo do controle da constitucionalidade das A tensão entre as perspectivas liberal – prees-
leis, zelar pela precedência da vontade do povo sobre tatalidade e superioridade dos direitos individuais
a dos poderes constituídos, somente se aperfeiçoará – e democrática – caráter ilimitado da soberania do
com a experiência norte-americana. povo ou da nação – se intensifica ao percorrerem-se
18
Veja-se, a propósito, os arts. 2 e 3 da Declaração os demais dispositivos da Declaração. Por um lado,
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de verifica-se um reconhecimento formal da preexis-
1789: “Art.2 – O fim de toda a associação política é a tência de diversos direitos individuais, cumprindo
conservação dos direitos naturais e imprescritíveis citar, além do preâmbulo, a positivação de diversas
do homem. Art. 3 – O princípio de toda a soberania liberdades civis, v.g.: nos arts. 7 a 9, típicas garantias
reside na nação. Nenhuma corporação ou indivíduo processuais; nos arts. 10 e 11, as liberdades religiosas
pode exercer uma autoridade que não emane expres- e de manifestação do pensamento; no art. 17, a invio-
samente dela”. labilidade e a sacralidade do direito de propriedade,
19
Ver seção 2. enquanto o art. 16 estabelece um conteúdo material
20
Ver seção 2. necessário de todas as Constituições não despóticas,
21
Além disso, o Rei, por meio dos seus poderes já que aquelas que não dispuserem da garantia dos
de prerrogativa, era o centro da atividade do Estado, direitos e da separação de poderes não seriam, pro-
embora estivesse cada vez mais jungido à aquiescência priamente, Constituições.

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Por outro lado, nota-se a atribuição de um papel asseverar que: “haveria necessidade de deuses para
extremamente relevante à lei, porquanto os revo- dar leis aos homens” (ROUSSEAU, 2003b, p. 49).
lucionários franceses consideram-na “expressão da 30
Evidentemente que subjaz a tal perspectiva a
vontade geral” (art. 6), fonte de todas as obrigações idéia de cooriginalidade entre democracia e liberdades
(art. 5), única responsável pela definição de crimes e individuais, ou seja, de que existiria uma correlação
cominação de penas (arts. 7 e 8), etc. lógico-normativa entre tais valores, porquanto sem
Todavia, o caráter paradoxal da relação entre cons- democracia não haveria propriamente direitos (meros
titucionalismo e democracia parece melhor sintetizado princípios morais carentes de validade jurídica), e
no art. 4, pois esse dispositivo, apesar de preconizar só um procedimento que reconheça direitos se pode
uma presunção geral de liberdade anterior ao Estado, dizer, efetivamente, democrático (afastando-se de
a qual só poderia ser limitada por igual liberdade concepções formais de democracia).
natural dos demais indivíduos (assertiva típica de um 31
Cite-se, por exemplo, entre os poderes reser-
jusnaturalismo à moda de Locke), acaba por atribuir vados às Assembléias Primárias, as prerrogativas de
à lei a tarefa de determinar concretamente tais limites referendar as leis aprovadas pelo Corpo Legislativo,
(aproximando-se de uma perspectiva democrática). de deflagrar o processo de alteração da Constituição
25
Sieyès (1986, p. 118-119), embora se refira ao con- de 1793, etc. (Cf. BURDEAU, 1980, p. 305 et seq.).
ceito abstrato de nação, esposa entendimento análogo, 32
Considerando a realidade do voto censitário,
ao assinalar que a nação está sujeita unicamente ao e, via de conseqüência, a representação homogênea
(fluido) limite do direito natural, não havendo que se da burguesia no Legislativo, essa situação não era
falar em contenções de ordem jurídico-positiva, pois (i) nada reconfortante às demais classes sociais, i.e., aos
não se pode cercear o poder de o soberano promover sanscullotes.
as mudanças exigidas pelo interesse geral, (ii) nem se 33
Como anota Burdeau (1980, p. 299), a soberania
cogitar de celebração de contrato consigo mesmo. pertence à Nação, que se consubstancia em pessoa
26
Em um primeiro momento, contudo, prevaleceu jurídica distinta dos indivíduos que a integram, de
na França a tese de que a soberania caberia à Nação. modo que a sua vontade não será obtida pela soma de
Ver infra. vontades individuais, mas pela emissão da vontade
27
Sobre a incompatibilidade dessa noção de da própria Nação, cabendo ao Corpo Legislativo ex-
poder constituinte com o modelo inglês, ver seção pressá-la. Acrescenta Hariou (1972, p. 91 et seq.) que
anterior. na França prevalece a tese de que a noção unitária de
28
Ressalte-se que Rousseau (2003b; 2003c), no Nação, e não propriamente os indivíduos isoladamen-
Contrato Social, preconiza uma participação direta e te considerados, preexiste ao Estado. Aprofundando
ativa dos cidadãos no espaço público, considerando tal conceito, o Professor da Universidade de Paris
a soberania popular inalienável e, por conseguinte, salienta que os teóricos franceses inserem no con-
insuscetível de representação. Assinala, por outro ceito de Nação não apenas os elementos relativos à
lado, que a condição de cidadão deveria se dar com raça, língua, religião, etc. (típicos do conceito alemão
abstração de distinções econômicas, relativas ao sexo de soberania), mas também elementos espirituais
ou à formação intelectual ou acadêmica dos indiví- (sentimento de pertencimento ao mesmo grupo),
duos, adotando uma concepção abrangente de povo históricos (participação dos ancestrais nos mesmos
que se consubstancia em relevante antecedente teórico eventos históricos), a comunhão de interesses entre
das lutas pelo sufrágio universal. Por sua vez, Sieyès os nacionais, etc.
(1986, p. 139) considera que os representantes da na- 34
A vinculação da validade e do conteúdo dos
ção reunidos em Assembléia Nacional Constituinte direitos individuais a uma normatividade superior às
em virtude de comissão extraordinária recebida do deliberações ordinárias dos representantes da Nação
titular da soberania são “os únicos representantes da (i.e.: Declarações de Direitos, cujos princípios de justiça
vontade geral, não têm necessidade de consultar os seriam inerentes à razão ou fruto de uma deliberação
constituintes sobre dissenção que não existe”, muito superior, de natureza constituinte) consistiria, ao ver
embora prevalecesse à época o voto censitário. A res- dos juristas que contribuíram decisivamente para a
peito da abrangência do conceito de cidadão na obra construção do Estado de Direito legalista (notadamen-
de Rousseau, confira-se Paramo Arguelles ([199-]). te, Raimond Carré de Malberg e Georg Jellinek), uma
29
Parece evidente que por trás dessa mitificação anacrônica reminiscência do contexto histórico das
das manifestações em geral do povo soberano se revoluções, o qual pressupunha, por um lado, “prestar
encontra a arraigada crença republicana na virtude a devida atenção a pressões contratualistas vindas da
cívica dos indivíduos ou, em termos contemporâneos, base da sociedade, e, por outro lado, criar uma tábua
no resultado inevitavelmente justo da (contrafática) de valores que legitimasse os novos poderes públicos”
participação livre, igual e ativa dos cidadãos no espaço (Cf. JELLINEK, 1973; MALBERG, 1920).
público, que assumiria, assim, as características de um Superado no curso do século XIX, contudo, o con-
ambiente ideal de deliberação. Mitificação essa que texto revolucionário (vide, por exemplo, a estabilidade
parece ter sido reconhecida pelo próprio Rousseau, ao obtida na Terceira República na França e no Segundo

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Império na Alemanha), não mais se colocava a neces- ordinário, cumpre notar que a ausência do controle
sidade de os atores privados e públicos se legitimarem jurisdicional da constitucionalidade das leis e atos
em princípios de natureza político-constitucional. A normativos dificultava a afirmação do princípio da su-
sociedade regia-se pelo Código Civil e os poderes premacia da Constituição em sua vertente hierárquico-
públicos se legitimavam pelo conceito ascendente normativa, segundo a qual as normas constitucionais
de soberania do Estado, que recuperava o sentido gozam de superior hierarquia jurídica em relação às
estatalista da revolução francesa, na medida em que demais normas jurídicas, de modo que, verificando-se
conferia ao Estado a condição de monopolizador da o conflito entre as últimas e as primeiras, as normas
soberania política, cujo exercício se desvinculara, infraconstitucionais contrárias à Constituição seriam
portanto, de qualquer influência de um sujeito pré- consideradas inválidas.
constituído, seja ele o monarca ou o povo. Assim, 38
Como visto, considerava-se o controle jurisdi-
inexistindo qualquer referencial de legitimidade cional de constitucionalidade atentatório à separação
externo ao direito positivo, os direitos individuais de poderes, concebida como arranjo institucional
eram vistos como atos soberanos de autolimitação de garantia do primado da lei. Por outro lado, para
do Estado, fundados, portanto, na soberania estatal, e além de confiar-se nas virtudes do legislador no que
dotados da certeza e da segurança que somente as leis concerne à elucidação da vontade do povo e dos impe-
do Estado, especialmente os Códigos e as normas do rativos da razão, o Estado de Direito legalista conferia
tipo regra, são capazes de prover (Cf. FIORAVANTI, a soberania à nação, enquanto realidade histórico-na-
2001, p. 113 et seq.). tural, e não propriamente ao povo, concebido como
35
Tal fenômeno foi singularmente ilustrado pela conjunto unitário de indivíduos. Assim, à acusação
assertiva de Guizot (apud VEJA, 2000, p. 44): “Se se de voluntarismo legislativo opõe-se uma tentativa
pretende que existam ou devam existir dois poderes de desdramatização da hipótese, argumentando-se
no seio da sociedade, um deles ordinário e outro ex- que o legislador, não obstante soberano, não poderá
traordinário, um constitucional e outro constituinte, nunca reduzir os espaços das liberdades civis para
diz-se uma insensatez cheia de perigos e fatal (...) além do limite fixado pelo desenvolvimento histórico
O governo constitucional é a soberania organizada. da nação. Aduz Fioravanti (2001, p. 123) que “se a
Estejam tranqüilos, senhores, nós, os três poderes sociedade nacional se desenvolve em sentido liberal,
constitucionais, somos os únicos órgãos legítimos de progressiva afirmação e extensão das liberdades
da soberania nacional. Fora de nós não há mais que civis e políticas – como os protagonistas daquele
usurpação ou revolução”. tempo acreditavam firmemente, animados por uma
36
Excerto de G. Berlia (apud VEGA, 2000, p. 231). filosofia otimista da história e do progresso –, o Estado
37
Vale ressaltar que a noção de rigidez constitucio- deve seguir esta tendência, refletindo-a pontualmente
nal não integrava o modelo-padrão de Constituição no na legislação. Se assim não fizesse, converter-se-ia
Estado de Direito legalista, pois prevaleciam à época as rapidamente num corpo estranho, que a comunidade
ditas Constituições flexíveis. É da lavra de James Bryce nacional rechaçaria”. Todavia, relegar-se a tutela dos
(1963) a tradicional distinção entre as Constituições direitos tão-somente ao controle extra-estadual dos
Flexíveis e Rígidas: nas primeiras, conforme o preciso eleitores ou a um determinismo histórico, salvo em
escólio de Canotilho (1992), “as leis constitucionais” contextos particularíssimos (como, i.e., o inglês, à luz
só diferem das demais leis pela matéria, mas não pela do que se expôs no precedente item), parece perigoso,
hierarquia, já que o procedimento apto a produzi-las notadamente em países cuja maturidade política e
é idêntico, inexistindo óbices a que as normas cons- desenvolvimento sócio-econômico não hajam atingido
titucionais sejam alteradas a qualquer tempo pela patamares elevados. Sustentar tal tese no bojo de um
autoridade legislativa ordinária. Assim, no caso de sistema eleitoral em que o voto era censitário soa,
norma constitucional e lei superveniente entrarem todavia, a um escárnio, a uma verdadeira tentativa
em conflito, prevalece a última, precisamente por ser de encobrir-se, sob o pálio da unidade histórica da
posterior àquela. De efeito, inexistindo supremacia, nação, a homogeneidade ideológica de um Parlamento
o conflito há de resolver-se mediante o critério cro- de proprietários, inviabilizando, ao fim e ao cabo,
nológico. Já as Constituições Rígidas se distinguem qualquer instrumento concreto de revisão das suas
pela supremacia hierárquica que ostentam em face decisões. De qualquer sorte, com a progressiva uni-
das leis em geral, mercê de sujeitarem-se a processo versalização do sufrágio e o conseqüente surgimento
de reforma mais rigoroso do que o atinente à produ- dos partidos de massa, será muito mais complicado
ção de leis, de maneira que, na hipótese de conflito reconhecer nos legisladores espelhos fiéis da nação e
entre “lei constitucional” e lei ordinária, prevalece da história, parecendo mais factível conceber a lei como
a primeira, pois, embora cronologicamente anterior, fruto da vontade política de uma maioria vencedora de
goza de maior hierarquia. um processo político cada vez mais contratualizado, cir-
Ainda que antes do segundo pós-guerra haja cunstância que reforça, a mais não poder, a necessidade
experiências de submissão de Constituições a um de serem estabelecidos limites constitucionais à ativida-
procedimento mais dificultoso do que o legislativo de legiferante. (FIORAVANTI, 2001, p. 124-125).

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39
Essa instabilidade constitucional é comprovada, esse fundamento moral justificaria, à luz do princípio
por exemplo, pela história política francesa que, no democrático, a supremacia da Constituição. À luz
período de 1789 a 1875, conheceu nada menos do do quanto se expôs anteriormente, nítido se afigura
que treze Constituições. Sobre a evolução histórica do que esse republicanismo cívico busca inspiração no
constitucionalismo francês, ver, por todos, Burdeau pensamento de Madison.
(1980, p. 293-437). Ressalve-se, apenas, que a defesa de uma sucessão
40
Ainda que mitigada ou postergada pela redução de distintas ordens constitucionais materiais sob a
do demos à classe dos proprietários e pelo embate égide da mesma Constituição formal melhor se adequa
de legitimidades monárquica e democrática, já que ao caráter sintético das Constituições-Garantia, como a
remanescia a forma de governo monárquica. estadunidense, que, sem substancial alteração em seu
41
A propósito, a Declaração de Independência dos texto, comportou profundas modificações durante os
EUA, de 4 de julho de 1776, é cristalina: “Considera- seus mais de dois séculos de vigência. Nesse particu-
mos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber, lar, cite-se, por exemplo, a evolução do tratamento
que todos os homens são criaturas iguais, dotadas conferido aos afro-americanos (escravidão, doutrina
pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre do equal but separate, igualdade formal, igualdade
os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade. material e políticas de ação afirmativa), a progressiva
É para assegurar estes direitos que os governos são universalização do sufrágio (nesse caso e na abolição
instituídos entre os homens, sendo seus justos poderes da escravidão houve alterações formais), a superação
derivados do consentimento dos governados” (Cf. de um radical liberalismo econômico pelo advento do
COMPARATO, 2001, p. 103, grifo nosso). Estado do Bem-Estar social (New Deal de Roosevelt), o
42
Nessa esteira, salienta Madison (2003, p. 313, movimento de proteção dos direitos civis promovidos
331-332): “O povo é a única fonte de poder, sendo pela Corte de Warren, etc.
dele que provém a Carta Constitucional, segundo a 46
Esse modo de agir se revela no conceito de fac-
qual se distribuem os poderes dos diferentes ramos ção, a qual, segundo Madison (2003, p. 78), seria: “um
do governo (...)”. E, de forma ainda mais enfática: grupo de cidadãos, representando quer a maioria,
“A importante distinção, tão bem compreendida na quer a minoria do conjunto, unido e agindo sob um
América, entre uma Constituição estabelecida pelo impulso comum de sentimentos ou interesses contrá-
povo e inalterável pelo governo e uma lei baixada e rios aos direitos dos outros cidadãos ou aos interesses
alterável por este parece ter sido menos observada e permanentes e coletivos da comunidade”. Salienta,
compreendida em qualquer outro país”. ainda, que essa forma egoística de agir seria inerente
43
Cuidava-se de reuniões realizadas nas cidades à natureza humana em um regime de liberdade.
da Nova Inglaterra, revelando a prática de participa- 47
Utilizando-se da expressão de Madison (2003)
ção direta do povo nos assuntos de interesse coletivo no Federalista.
que ali se estabelecera. 48
Ver os dois antecedentes itens. Na esteira do expos-
44
Ackerman (1991, p. 174 et seq.), a propósito, salien- to, salienta Laurence Tribe (2000, p. 7) que os norte-ame-
ta que a forma mais alta de expressão política não se acha ricanos comungavam da concepção de que os direitos
em Assembléias regularmente constituídas com base individuais seriam melhor protegidos pela fragmentação
na lei preexistente, mas por Convenções que, embora do poder em diversos entes estatais. Assim, construiu-se
“formalmente irregulares”, precisamente por contarem não apenas um modelo de repartição horizontal do poder
com o apoio popular, vocalizam a vontade do povo. entre Legislativo, Executivo e Judiciário, mas também um
45
Esse modelo dualista, embora reconstruído mecanismo da separação vertical do poder entre a União
recentemente por Ackerman, em festejada formula- e os Estados-Membros (federalismo).
ção, consiste em um dado da história constitucional 49
Nada obstante, como é notório, foram adotados
norte-americana e é constitutivo do pensamento dos (especialmente nos Estados do Sul) regimes escravo-
Federalistas, notadamente do de Madison (Cf. BRITO, cratas, para além do voto censitário, de modo que a
2000, p. 39-40). prevalência da igualdade perante a lei e do princípio
A propósito, Bruce Ackerman (1991) defende republicano deve ser temperada pela redução do
que a Constituição é resultado de um processo de demos à classe dos homens livres e dotados de pro-
deliberação eticamente superior, não necessariamente priedades.
coincidente com o ato formal de sua elaboração, pois, nos 50
Ver seção 3 in fine.
períodos de excepcional excitação cívica nos quais 51
Em suas palavras: “(...) a repetição desses apelos
são irrompidos tais processos, os grupos afastar-se- (ao povo) privaria a instituição daquele respeito que
iam dos seus interesses particulares e perseguiriam o o tempo confere e sem o qual nem mesmo o melhor
superior interesse público. e mais livre dos governos manteria a necessária
O Professor de Yale funda, portanto, a supremacia estabilidade”.
da Constituição na circunstância de ela ter sido fruto 52
Ackerman (1991, p. 183 et seq.) assevera que os
de um processo deliberativo eticamente superior ao Federalistas adotam uma concepção semiótica acerca
ordinário e no seu conteúdo intrínseco, de maneira que da representação popular por intermédio de um texto

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escrito (Constituição). Isso porque o texto constitucio- 62
Para uma proficiente descrição desse fenômeno,
nal não considera o Parlamento a expressão real da ver Ackerman (1997, p. 1-20) e Ginsburg (2003).
vontade popular, o povo em si (como se poderia supor 63
Refere-se às idéias de supremacia hierárquico-
em uma perspectiva mimética), mas os seus meros normativa da Constituição, rigidez constitucional e
representantes. A melhor forma de realização desse controle jurisdicional de constitucionalidade, e não a
desiderato seria mediante a proliferação do número e características específicas do modelo norte-americano
das espécies de representantes do povo: “The House” de controle de constitucionalidade, como o seu caráter
representa o povo de uma determinada maneira, à difuso e incidental, pois é sabido que o modelo aus-
vista da eleição direta dos seus membros, o Senado tríaco de controle de constitucionalidade concentrado
representa o povo de outra maneira, dada a seleção e abstrato foi adotado, de forma pura ou combinada
dos Senadores pelas legislaturas estaduais, e o Presi- com o modelo norte-americano, em diversos países
dente representa o povo de uma terceira forma, tendo europeus. Ver, a propósito, Cappelleti (1999).
em vista a sua eleição pelo Colégio Eleitoral. Assim, o 64
Prieto Sanchís (2003) assinala, com propriedade,
sistema constitucional confere a uns as virtudes que que as Constituições do neoconstitucionalismo, de que
os outros não têm, competindo, v.g., à House refletir são exemplos a Lei Fundamental de Bonn de 1949, as
qualquer comoção popular, ao Senado um juízo aba- Constituições da Itália de 1947, da Espanha de 1978 e a
lizado e ao Presidente uma ação enérgica e decisiva, brasileira de 1988, incorporam da tradição norte-ame-
impedindo que um grupo social ou órgão estatal possa ricana a idéia da supremacia hierárquico-normativa
se autoproclamar o legítimo representante do povo. A das normas constitucionais e da tradição européia o
bem da verdade, será o embate da pretensão de cada vasto conteúdo normativo. Tais Constituições con-
um dos Poderes de falar em nome do povo que conterá substanciam-se, pois, numa ousada fusão de tradições
as vicissitudes da política ordinária, viabilizando uma constitucionais, que tende a comprimir o âmbito de
deliberação mais qualificada. deliberação das maiorias políticas.
53
Ademais, não há que se falar em predomínio 65
Alude-se, especialmente, à vertente da Teoria
do Judiciário sobre os demais departamentos estatais, dos Princípios, erigida a partir do seminal magistério
pois, além de ser o “mais fraco entre os poderes”, na de Ronald Dworkin (2002) e desenvolvida por Robert
hipótese em tela o Judiciário se limita a preservar a Alexy (1997).
vontade constituinte do povo da ação erosiva dos 66
A expressão foi consagrada na clássica obra de
poderes constituídos. Bickel (1986).
54
Para uma análise detida dessa histórica decisão,
ver Nowak e Rotunda (2004, p. 3 et seq.).
55
James Thayer (1983, p. 603), em artigo clássico,
aduz que o controle jurisdicional de constitucionalida- Referências
de é um resultado natural dessa experiência anterior à ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutiona-
Guerra de Independência. Substitui-se tão-somente o lism. Yale Law School Occasional Papers, Connecticut,
soberano: não mais o Parlamento inglês, mas o povo n. 3, p. 1-20, 1997.
norte-americano (We the People).
56
Sobre a incorporação do conceito de Constitui- ______ . We the people: foundations. Cambridge: The
ção pelo de soberania, ver o antecedente capítulo.­ Belknap University, 1991.
57
Desde o surgimento do primeiro direito fun- ______ . We the people: transformations. Cambridge:
damental – a proteção contra a prisão arbitrária –, The Belknap University, 1998.
afigura-se patente a relevância da existência de um
órgão estatal responsável por zelar, com indepen- ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales.
dência, pela sua salvaguarda, notadamente em face Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
da ação lesiva dos demais departamentos estatais, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fun-
cumprindo ressaltar que, historicamente, coube aos damentais na constituição portuguesa de 1976. 2. ed.
tribunais tal função. Coimbra: Almedina, 2001.
58
A imagem também é usada por Oscar Vilhena
Vieira (1999) para ilustrar especificamente a vincula- BAYÓN, Juan Carlos. Derechos, democracia y consti-
ção do poder de reforma às cláusulas pétreas. tución. In: LAPORTA, Francisco. Constitución: proble-
59
“(...) atai-me com laços bem apertados, de sorte mas filosóficos. Madrid: Centro de Estudios Políticos
que permaneça imóvel, de pé, junto ao mastro, ao qual y Constitucionales, 2003.
deverei estar preso por cordas. Se vos pedir que me
BICKEL, Alexander M. The least dangerous branch: the
desligueis, apertai-me com maior número de laços”
supreme court at the bar of politics. New Haven: Yale
(HOMERO, 2002, p. 161).
University, 1986.
60
Ver também Holmes (1995, p. 134-178).
61
Ver, por todos, a crítica formulada por Jeremy BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São
Waldron (2004). Paulo: Brasiliense, 1994.

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