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Johann Gottlieb Fichte - O Programa da Doutrina da Ciência - 1800

Há seis anos a doutrina da ciência se encontra diante do público alemão. A acolhida que
teve, da parte de leitores variados, foi muito variada - encontrou na maioria deles
adversários veementes e apaixonados, em alguns deles apologistas insuficientemente
informados, em alguns poucos deles adeptos e colaboradores brilhantes. - Há cinco anos
encontra-se em minha mesa de trabalho uma nova exposição dessa ciência, segundo a
qual eu costumava orientar minhas aulas. Neste inverno estou cuidando de uma
elaboração dessa nova exposição e espero poder apresentá-la impressa ao público na
próxima primavera.
Gostaria muito que o público, provisoriamente, isto é, até que se torne possível sua
própria convicção, tivesse a bondade de acreditar em mim quanto às duas afirmações
seguintes e de tomá-las como pressupostos para a leitura dessa nova exposição. A
primeira: Que, com exceção de alguns poucos indivíduos (e meus ouvintes diretos, dos
quais não cabe falar aqui), é como se não houvesse entre o público intelectual nenhuma
notícia da doutrina da ciência. A segunda: Que essa ciência é uma ciência inteiramente
recém-inventada, da qual nem sequer a ideia existia antes, e que só pode ser tirada da
própria doutrina da ciência e só pode ser julgada a partir de si mesma.
Quanto ao primeiro ponto: A Fundação da Doutrina da ciência, publicada há seis anos
como manual para meus ouvintes, não foi, ao que eu saiba, entendida por quase
ninguém e não foi útil para quase ninguém, a não ser para meus ouvintes diretos. Ela
parece não poder legitimamente dispensar uma complementação oral. Em minha
Filosofia do Direito e em minha Filosofia dos Costumes tive, parece-me, mais êxito em
expor claramente meus pensamentos, mesmo sobre a filosofia em geral. Mas - não sei se
por terem habitualmente dado pouca atenção às introduções e aos primeiros capítulos
desses escritos, ou se porque em geral é difícil dar às proposições derivadas de meu
sistema, sem suas primeiras premissas, a mesma evidência que se pode com facilidade
dar às premissas - parece, a julgar por todas as manifestações que encontrei depois da
publicação desses livros e mesmo por ocasião dela, que mesmo com eles o público não
chegou muito mais longe em relação ao ponto capital. Só as duas introduções à doutrina
da ciência e o primeiro capítulo de uma nova exposição desse sistema, que foram
publicados em um jornal filosófico, parecem ter sido melhor compreendidos e ter
despertado, em alguns leitores imparciais, expectativas favoráveis quanto à doutrina da
ciência. Mas, com esses textos, só é possível engendrar, no máximo, um conceito
provisório de meu projeto; neles esse projeto não é, de nenhum modo, executado e
completado efetivamente.
Em que medida meu brilhante colaborador, o Professor Schelling, em seus escritos
referentes à ciência da natureza e em seu sistema do idealismo transcendental,
recentemente editado, teve mais êxito em facilitar o acesso ao ponto de vista
transcendental, é algo que não quero examinar aqui.
Já declarei certa vez, em outro lugar, que - quanto a mim - estou disposto a assumir toda
a responsabilidade pela incompreensão quase universal que meu sistema encontrou no
passado, se com isso puder levar o público a interessar-se novamente pelo assunto
trazido à baila. Em se tratando de um sistema totalmente novo, que não segue a via de
um desenvolvimento a partir da ciência anteriormente existente e que foi encontrado por
uma via inteiramente outra, seu inventor precisa de uma longa prática com os mais
variados indivíduos, para adquirir a habilidade de tirá-lo de seu próprio espírito e
apresentá-lo diante de outros espíritos.
Gostaria, portanto, para garantir melhor êxito ao estudo da investigação anunciada, que
- não apenas, como é óbvio, os conceitos filosóficos hauridos em outros sistemas, mas
também os conceitos sobre a doutrina da ciência engendrados a partir daquilo que
escrevi até agora sobre ela - fossem deixados inteiramente de lado no estudo da nova
exposição, que meus escritos anteriores fossem provisoriamente considerados como
inexistentes e que os leitores se acreditassem convidados para uma investigação nova,
jamais trazida à baila anteriormente. Provisoriamente - digo eu -, isto é, até que seja
possível retomar aqueles conceitos com mais legitimidade e com outra clareza, e
considerar sob outra luz aqueles escritos, que com isto não são, de modo nenhum,
declarados ineptos. Pois não se creia que a preocupação já várias vezes manifestada por
pessoas cautelosas que não gostam de ocupar-se aleatoriamente com as coisas do
pensamento - eu poderia, depois de ter atormentado o público com o estudo intensivo de
uma doutrina abstrata, mais cedo ou mais tarde retirá-la, e então toda a fadiga aplicada a
seu estudo estaria perdida -, que essa preocupação, digo eu, se tenha concretizado agora.
Só é possível retirar aquilo que se opinou; mas aquilo que se soube efetivamente não se
pode retirar. Aquilo que se pode saber é o que é cabalmente e permanentemente certo
para sempre; para quem essa certeza se revelou uma vez, ela permanece enquanto ele
próprio permanecer. Ora, se com a descoberta da doutrina da ciência engendrei em mim
um saber efetivo, como certamente o afirmo, então esse saber pode bem ser exposto
com mais clareza para outros (não para mim), mas nunca poderá ser retirado; e se algum
de meus leitores, por ocasião daqueles escritos, engendrou em si um saber, este não
pode nunca ser tomado dele, mesmo que eu, por doença ou velhice, viesse a cair em tal
fraqueza de espírito que deixasse de perceber aquilo que agora percebo muito bem,
deixasse de entender meus próprios escritos e nessa incompreensão os retirasse.
Passo ao segundo ponto. A doutrina da ciência, disse eu, é uma ciência cabalmente
nova. Antes dela não existiu nada que lhe fosse sequer semelhante.
Desde Kant - que ele conduziu a filosofia até uma altura nunca atingida antes é algo tão
certo, quanto é certo que sua Escola não foi mais adiante do que ele

(O Professor Beck, como autor de O Único Ponto de Vista Possível, eu não considero
como pertencente a essa escola, assim como também Kant se afastou dela. Ele estava a
caminho da doutrina da ciência. Se tivesse tornado seu projeto inteiramente claro para si
mesmo, ele a teria descoberto. Nota do Autor)

-, desde Kant a filosofia é um conhecimento racional a partir de conceitos, e é oposta à


matemática justamente por ser esta última um conhecimento racional a partir de
intuições.
A propósito deste modo de ver a filosofia, há muita coisa que não foi levada em conta.
Em primeiro lugar: já que deve haver também um conhecimento racional a partir de
intuições, como se afirma quanto à matemática, então, se com aquele conhecimento
todo conhecer e pensar não chega a seu termo, e, aliás, apenas para que a mera
afirmação de que há tal conhecimento seja possível, é preciso que haja, por sua vez, um
conhecimento desse conhecimento, e, uma vez que uma intuição como tal só pode, em
si mesma, ser intuída, que este seja um conhecimento por intuição. Onde, então, está
realizada essa máthesis da máthesis?
Em segundo lugar, eis como eu continuaria a falar àqueles que pensam assim: Vocês
querem instituir um conhecimento racional (e isto deve querer dizer aqui, sem dúvida,
do mesmo modo que no caso da matemática, um conhecimento pela razão, como
cognoscente, e aliás como razão pura, sem qualquer ingerência da percepção), querem
instituir um tal conhecimento por conceitos - conceitos que vocês, sem dúvida, têm
anteriormente ao conhecimento instituído a partir deles, conceitos que vocês
decompõem, explicitando aquilo que está coligido neles. Aqui percebo muito bem como
vocês reencontrarão corretamente nesses conceitos aquilo que anteriormente já estava
neles, e como vocês, pelo desenvolvimento desses conceitos, tornam seu conhecimento
mais claro, mas nunca como, com essa operação, os ampliam, os criticam, os fundam e,
caso sejam incorretos, os depuram.
Vocês têm o conceito, e o pressupõem para o desenvolvimento de um conhecimento a
partir dele. Mas como chegaram a esse conceito? O que é aquilo que nele concebem, e
como o tinham e o mantinham até o conceberem e enquanto o concebiam? Portanto,
simplesmente para que sejam possíveis os conceitos que vocês pressupõem em sua
ciência e que para esta são o (ponto) supremo, vocês têm de admitir algo superior a todo
conceito. Em contrapartida, que vocês concebam o não concebível, aquilo que não se
encontra naquele (ponto) supremo que contém a matéria para todos os conceitos, e que
assim estabeleçam para nós conceitos dessa natureza, é algo de que, sem dúvida, a
essência da razão já cuidou, e é certo que não temos algo semelhante a temer de sua
parte. Mas sem dúvida vocês, já que pretendem estabelecer ciência necessária e
universalmente válida, partem de conceitos cuja necessidade como conceito vocês
afirmam, isto é, dos quais afirmam que o diverso coligido neles é coligido com absoluta
necessidade e é inseparável entre si. Como e onde pensam então demonstrar o
fundamento dessa necessidade do coligir? Esse fundamento, sem dúvida, não pode estar
no próprio coligir, de tal modo que este fosse seu próprio fundamento, portanto livre e
não necessário; mas então em algo fora dele? Assim, vocês seriam sempre levados para
além do conceito.
Desde que se começou a falar de uma crítica da razão, de um conhecimento da razão,
como conhecida, e tornou-se tarefa da razão conhecer em primeiro lugar a si mesma, e
somente a partir disso deduzir como pode conhecer algo fora de si mesma, deveria ter-
se tornado claro que essa razão, para apreender-se e captar-se, não poderia fazê-lo em
algo derivado, que não tem seu fundamento em si mesmo, como o conceito, mas teria de
fazê-lo no único imediato, na intuição; que, portanto, se de agora em diante só se deve
chamar de filosofia o conhecimento da própria razão por si mesma, a filosofia não pode
absolutamente ser um conhecimento por conceitos, mas tem de ser um conhecimento
por intuição.
E, como de fato a matemática existe efetivamente entre nós, já deveria ser para todos
algo bem conhecido e corrente, a partir dela, que o fundamento da evidência imediata,
da necessidade e da validade universal não está nunca no conceito, mas na intuição do
conceber; intuição que, aliás, nunca é necessária, ou contingente, ou algo dessa ordem,
mas que apenas é, pura e simplesmente, e é assim como é - e que tampouco é
universalmente válida, pois permanece eternamente uma e a mesma, mas justamente por
isso comunica a todo conceito que a concebe, porque a concebe e na medida em que a
concebe, sua inalterabilidade. Com isso se teria descoberto que tudo aquilo que nas
filosofias pre-kantianas e na kantiana é efetivamente evidente e universalmente válido
se funda - mas sem que essas filosofias tenham consciência clara disso - não no
conceito, mas exclusivamente na intuição.
Desde que em nossa época se verificou com toda clareza e por toda parte que a
linguagem não basta mais para o entendimento sobre conceitos filosóficos e chegou a
ser feita a proposta irônica, que mais tarde Herder e seu parente espiritual Jean-Paul

(Este último, em sua Clavis Fichtiana. Esta chave pode bem ser que não funcione, pois
seu fabricante não conseguiu entrar. Nota do Autor)

levaram a sério, de fazer preceder - digo: preceder! - a crítica da razão por uma
metacrítica da linguagem, deveria ter-se tornado claro que, já que na vida efetivamente
nos entendemos, teria de haver na razão, tanto para esse entendimento como para a
eterna cisão sobre a filosofia, um meio de unificação superior ao conceito e à sua cópia
de segunda mão, frequentemente tão falsificada, que é a palavra. E que esse meio de
unificação superior poderia ser a intuição, diante de cujo tribunal teriam de colocar-se o
próprio conceito e seu suplente, a palavra; de tal modo que, de agora em diante, uma
metacrítica da linguagem filosófica seria tão pouco necessária quanto uma metacrítica
das expressões: ponto matemático, linha, e assim por diante.
Logo, a filosofia seria um conhecimento da própria razão por si mesma - por intuição. A
primeira parte desta definição é a importante descoberta de Kant, que este, contudo, não
chegou a executar; a segunda, como condição de possibilidade dessa execução, foi
acrescentada pela doutrina da ciência; logo, esta é uma ciência inteiramente recém-
descoberta.
Só peço que não rejeitem de antemão e sem exame essa ideia, tão logo ouçam
pronunciar as palavras doutrina da ciência e intuição e intuição intelectual (pois é de tal
intuição que parte a doutrina da ciência) - à maneira de Kant, que recentemente se pôs a
explicar às pessoas as expressões que elas mesmas utilizam, de tal modo que estas têm
de ser consideradas incorretas de qualquer modo que se empreguem. "Doutrina da
ciência é...lógica pura; por isso é trabalho vão tentar extrair dela um objeto real".

(Conforme a declaração de Kant sobre a doutrina da ciência, na gazeta literária de Iena.


Nota do Autor)

Intuição intelectual "seria... uma intuição não sensível de algo consistente e em repouso;
o que é absurdo".

(Este é o sentido, ainda que não com as mesmas palavras, do artigo de Kant contra
Schlosser: Sobre o Tom Pomposo em Filosofia. Nota do Autor)

Doutrina da ciência, para mim, absolutamente não é lógica; chego a banir inteiramente a
lógica pura do âmbito da filosofia. Intuição intelectual, para mim, não é intuição de algo
consistente. O que ela seja, justamente porque toda intuição está em um plano superior
ao conceito, não pode tornar-se concebível; só é possível travar conhecimento com ela
tendo-a. Quem ainda não a conhece, que espere por nossa exposição; ou pense,
enquanto isso, em sua consciência do traçar uma linha (não na linha traçada), que -
espero eu - também não é algo consistente. A doutrina da ciência é máthesis, não
somente segundo a forma exterior, mas também segundo o conteúdo. Descreve uma
série contínua da intuição e demonstra todas as suas proposições na intuição. É a
máthesis da própria razão. Assim como, por exemplo, a geometria abrange o sistema
inteiro de nossas delimitações do espaço, ela abrange o sistema da razão inteira. - Eu
desejaria que ninguém se dispusesse ao estudo da doutrina da ciência sem algum
conhecimento da matemática - o único procedimento materialiter cabalmente científico
que existe entre nós - e sem uma clara penetração do fundamento da evidência imediata
e da validade universal dos postulados e teoremas matemáticos. A quem percebe, por
exemplo, por que a proposição: "Entre dois pontos só é possível uma linha reta" - colige
a infinidade dos casos possíveis em uma unidade e os presentifica, e de onde nasce a
certeza imediata de que, se a razão permanece razão, nunca ocorrerá nenhum caso que a
contrarie; a este posso prometer com bastante confiança que entenderá a doutrina da
ciência, em sua nova exposição, com a mesma facilidade com que entende a geometria.
Quem não o percebe - e tenho razões para acreditar que em muitos chega a faltar o
sentido para aquela evidência e validade universal, e que estes só não contradizem a
geometria porque esta está estabelecida como ciência evidente -, a estes eu poderia
desaconselhar o estudo da doutrina da ciência. Ela se encontra em um mundo
absolutamente inexistente para eles.
Porque a doutrina da ciência é matemática, ela tem as vantagens da matemática.
Em primeiro lugar, a mesma evidência imediata. Nela não tem lugar nenhuma
vacilação, nenhum vaivém da reflexão, nenhuma ponderação para saber se se quer ou
não aceitar uma afirmação. Quem não acerta o ponto correto, absolutamente não a
entende; quem o acerta é arrebatado por ela com clareza e necessidade imediatas; não
pode ver de outro modo, que não seja assim. - A mesma determinidade completa. Seja
qual for o signo a que ela vincule seu objeto, que ela o chame de eu, de não eu, de X ou
de Y - o signo não é nada: só aquilo que aparece na intuição imediata de cada um é o de
que se trata. Isto não pode vacilar e alterar-se entre as mãos, como um punhado precário
trazido de uma linguagem precária, ao qual um associou mais, outro menos em sua
fantasia, e que o mesmo sujeito desenvolve ora com mais precisão, ora com menos; mas
é para toda razão o mesmo, e permanece o mesmo para todo ser racional, pelo menos
enquanto este permanece para si mesmo. - A mesma irrefutabilidade. Sobre a doutrina
da ciência - e contra a doutrina da ciência - absolutamente não se pode discutir. Ou se
penetra sua proposição, e nesse caso ela é aceita imediatamente, ou não se penetra essa
proposição. Neste caso, ela absolutamente não está existindo para nós; e se contudo a
contradizemos, não estaremos contradizendo o que ela disse, mas algo que nós mesmos
forjamos. - Como, e a partir de que premissas, se pode então discutir contra aquela
ciência? Acaso, como até agora se tentou, a partir de conceitos e proposições
desenvolvidas por conceitos? Mas, segundo a regra de toda discussão, o adversário tem
de estar de acordo com aquilo a partir do qual se argumenta contra ele. Ora, a doutrina
da ciência não deixa, terminantemente e sem nenhuma exceção, valer nenhum conceito
que ela não tenha engendrado, no interior de seus limites, a partir da intuição; e nenhum
de seus conceitos vale para ela mais, ou algo outro, do que aquilo que estava contido na
intuição. - Ou quer-se recusar então a ela a intuição e o que está contido nesta? -Nesse
caso, ela é meramente negada, mas não refutada. Quem nega ao geômetra que entre dois
pontos não é possível mais de uma linha reta é, sem dúvida, alguém que não pode ser
convencido disso, e suprimiu a possibilidade de toda geometria. Mas penso que nenhum
homem de entendimento são se importará com ele.
Mas, como a filosofia não conta com a mesma autoridade que a geometria - será que
contra a matemática, quando esta foi tratada cientificamente pela primeira vez, não
foram levantadas as mesmas objeções que agora são feitas contra a filosofia; e será que
os não pensantes de nossa época são impedidos por outra coisa, que não a autoridade, de
fazer ainda hoje, contra a matemática, objeções semelhantes?

(E o criador de um pretensamente novo sistema dogmático (o Pastor Wemer) não se


manifestou deste modo diante dos ouvidos dos contemporâneos: "A afirmação da
divisibilidade infinita" do espaço é um contrassenso dos geômetras, que "desonra sua
ciência", de resto tão "útil"? Nota do Autor)

- como ainda não lhe é permitido deixar de se importar, sumariamente, com aquele que
afirma em seu domínio coisas semelhantes ao que seria, no domínio do geômetra, a
afirmação: "Entre dois pontos são possíveis infinitas linhas retas diferentes" - ela tem,
em contrapartida, um recurso que o matemático não tem em seu domínio, embora o
tenha em geral, para esse caso, na filosofia: consiste em poder fazer com que aquele que
a contradiz regrida da afirmação que faz para outra qualquer, que ele próprio não
entende e para cuja explicação não é capaz de pronunciar uma palavra inteligível
sequer; e assim torna claro para todos - e para ele próprio - que seu entendimento e sua
razão são derivados propriamente de um desentendimento e de uma irracionalidade
absoluta.

Praza aos céus que, com esta nova exposição - cujo entendimento garanto a todo aquele
que simplesmente seja dotado de inteligência cientifica -, o público filosofante tenha a
ocasião de, afinal, interessar-se seriamente pela doutrina da ciência. Desde Kant, as
cabeças um pouco melhores nesse domínio, com exceção de poucas, continuaram a falar
cada uma para si, sem escutarem umas às outras; e assim, em vez de um diálogo
cientifico, elevou-se um clamor selvagem, confuso e entrecruzado de todas. Revelou-se
alguma autonomia de pensamento; mas o dom de entender aos outros parece ter-se
perdido inteiramente. É tempo, para o bem da ciência, de encetar outro caminho. Por
mais profundamente que eu, quanto a mim, possa estar convencido da evidência e da
irrefutabilidade da doutrina da ciência, ainda assim, para com os outros, a fim de
reconhecer a autonomia de sua razão e simplesmente tornar possível o exame próprio de
cada um, e provisoriamente, isto é, até que a tenham estudado, devo-lhes a
pressuposição de que posso, contudo, ter-me enganado; do mesmo modo que o
matemático tem de pressupor isso, no início de seu ensino e quando, diante do
discípulo, parece ainda apenas procurar sua ciência. Faço aqui, explicitamente, essa
pressuposição; em contrapartida, exijo de todos os seres racionais, provisoriamente, isto
é, até que me tenham refutado, a pressuposição equivalente de que, do mesmo modo,
posso também estar certo.
Depois que, diante dos ouvidos do mundo todo, a partir de considerações como as que
foram feitas acima e que forçosamente levam a meditar todo aquele que sabe algo de
ciência, são feitas promessas como a que foi feita acima - depois de ter sido prometido,
como já ocorreu muitas vezes, que tal filosofia elevaria à pureza e à clareza todas as
outras ciências -, seria, sem dúvida, imperdoável que continuassem a falar, sem sequer
parar para ouvir o que será dito em seguida, ou, como tem ocorrido até agora, se
limitassem, quando muito, a atirar apressadamente ao autor um gracejo tolo ou um
insulto.
Leia-se, portanto, e aliás até ter entendido - em seguida aceite-a ou refute-a quem puder;
ou, quem não quiser fazer tudo isso,fique calado de agora em diante sobre tudo que diz
respeito à filosofia. Não é possível adotar razoavelmente, nestas circunstâncias, outro
critério. É preciso, em nome de Deus, levar a sério de uma vez por todas a revolução na
filosofia, sobre a qual há mais de um século se fala tão a torto e a direito. Que fique para
trás quem ficar para trás, mas que saiba que está atrás, se cale e não extravie os outros,
que querem seguir adiante.
Não me interessarei em assinalar os numerosos erros que, desde o aparecimento da
doutrina da ciência, contra esta ou sem tomar conhecimento dela, se elevaram no
domínio da filosofia. O que é passado passou. Mas, depois que a nova exposição - cujo
entendimento presumo, com todo direito, em todos, e a cujos princípios poderei referir-
me -, estiver diante do público, passarei a fiscalizar, em um periódico próprio, o
progresso da filosofia.
O choque provocado, mais uma vez, por este próprio anúncio e pelo seu tom, peço que
o contenham por ora, até terem entendido a própria exposição anunciada. Mesmo o tom
decorre do assunto e só pode ser julgado a partir dele.
Nas acusações de arrogância, feitas tão frequentemente contra mim e contra outros
defensores da doutrina da ciência, foi esquecido precisamente o ponto mais execrável de
nossas presunções, a saber, que com toda seriedade temos a pretensão de possuir e
ensinar ciência - eu digo: ciência. Aqueles que narram uns aos outros suas opiniões têm
de ser tolerantes e corteses entre si, pois a opinião do outro pode muito bem ter tanto
valor quanto a sua. Entre eles se diz: viver e deixar viver, conjeturar e deixar conjeturar.
Eles têm de ser modestos na forma exterior porque no essencial são completamente
arrogantes; pois é a mais monstruosa das arrogâncias acreditar que importa algo para o
outro saber o que nós opinamos. Mas alguém cuja ciência - que não é nunca assunto dos
indivíduos, e sim propriedade de todo o reino da razão - deva ser modesta para com a
ignorância, é uma das coisas que nunca pude conceber. Logo, tudo depende unicamente
de saber se nossa pressuposição - de que possuímos ciência - é correta. Decida-se
primeiro algo quanto a isso: em seguida, o mesmo se dará também quanto à arrogância.
Muito estranha é a excitação desses filósofos de bando contra o filósofo sozinho.
Quanto a este ponto, não o concebo de outro modo, a não ser assim: ou se é filósofo
sozinho ou se é não filósofo; e, enquanto não demonstrarem que somos este último,
consideraremos, depois como antes, que somos o primeiro.

Para concluir: Espero fazer tanto pela clareza e pela inteligibilidade nesta nova
exposição, que não seja preciso, quanto a isso, mais nenhum auxílio suplementar e
nenhuma nova exposição ainda mais clara. Quanto à elegância científica, a sequencia
rigorosa das partes, com exclusão de tudo o que for alheio, à determinação da
terminologia por signos verbais, a um sistema de signos para conceitos puros (como a
característica universal já buscada por Leibniz, que só é possível depois da doutrina da
ciência), cuidarei disso mais tarde, depois que se verificar que a época utilizou esta
próxima exposição e está preparada para uma exposição puramente científica.

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