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Daniel de Mendonça

DEMOCRATAS TÊM MEDO DO POVO?


O populismo como resistência política1

Daniel de Mendonça*

O objetivo deste artigo é apresentar o populismo de esquerda como resistência política contra regimes estabele-
cidos. Para cumprir esse objetivo, o texto está dividido em três seções principais. Primeiramente, discorremos
acerca do atual estado das democracias liberais. Na sequência, tratamos dos impasses teóricos e práticos do
populismo para, após, apresentar nossa visão conceitual do fenômeno, ou seja, uma lógica político-discursiva
que constitui o povo antagonicamente a seus inimigos. Na última seção, apresentamos a noção de vontade
dos iguais, primeiramente discorrendo sobre a dualidade da igualdade: a invenção democrática da igualdade
como princípio e a igualdade como horizonte. A seguir, analisamos a estrutura da vontade dos iguais, um tipo
específico de populismo de esquerda, o qual entendemos ser capaz de iluminar aspectos referentes às distintas
manifestações que têm tido lugar no mundo desde a Primavera Árabe.
Palavras-chave: Populismo. Democracia. Resistência política. Vontade dos iguais.

A luta política é também a luta pela apropriação das palavras.


Jacques Rancière

1 INTRODUÇÃO suas muitas consequências justamente o fim


do sentimento de bonança econômica e social
O mundo tem assistido ao surgimento que havia no ar em nosso país.
de imensas manifestações populares a par- Se considerarmos as manifestações cita-
tir dos episódios que marcaram a Primavera das acima, veremos, primeiramente, que elas
Árabe em 2011. Além dos levantes no mundo são muito distintas entre si. Não há, portanto,
islâmico – ocorridos no norte da África e no se tomados os conteúdos de suas demandas,
Oriente Médio, que demandaram o fim de re- medidas de comparação entre, por exemplo, o
gimes repressivos que, até então, vigoravam há que ocorreu na Tunísia, no Brasil e nos Esta-
décadas, especialmente na Tunísia, no Egito, dos Unidos. Qualquer tentativa de estabelecer

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na Líbia e na Síria –, suas sementes foram leva- paralelos, tendo em vista as demandas especí-
das a países democrático-liberais do norte, tais ficas de cada evento, encontrará poucos traços
como os Estados Unidos (Occupy Wall Street) comuns.
e a alguns Estados do continente europeu, No entanto, ainda que seus conteúdos
principalmente a Espanha (15M e Podemos) e sejam distintos, entendemos que essas mani-
a Grécia (Syriza). Em 2013, os ares da Prima- festações possuem uma estrutura de articula-
vera chegaram ao Brasil, quando assistimos, ção marcada por três elementos comuns. Pri-
perplexos, às impressionantes manifestações meiramente, em todas elas, os manifestantes
de junho. Junho veio, assim, como um autên- demandaram políticas redistributivas ou de
tico evento inesperado, e teve como uma de reconhecimento. Numa palavra: o que eles
buscavam, independentemente dos diversos
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conteúdos das demandas, era igualdade.
* Universidade Federal de Pelotas. Programa de Pós-Gra-
duação em Ciência Política. O segundo elemento estrutural que per-
Rua Cel. Alberto Rosa, 154, sala 333. Centro. Cep: 96010-770.
Pelotas – Rio Grande do Sul – Brasil. ddmendonca@gmail.com passou tais manifestações foi seu caráter elu-
1
Este artigo recebeu financiamento do Programa Pesquisa- sivo. Tais manifestações resultaram de múlti-
dor Gaúcho – Edital 02/2017 – PqG, da Fundação de Ampa-
ro à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). plas demandas e identidades articuladas. Seus

http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i85.22403 185
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“símbolos” foram, entre outros, “a luta pela de- DEMOCRACIA E PÓS-DEMOCRACIA


mocratização do país”, “contra os efeitos do ca-
pitalismo global”, “mais e melhor distribuição A política é uma luta constante para
de renda”. Tais exigências foram muito além a atribuição e fixação de sentidos, o que vai
de quaisquer demandas laborais ou identitá- muito além do que simplesmente nomear algo
rias específicas: são demandas universais por até então desconhecido. Um novo sentido é, ao
excelência. mesmo tempo, um ato de batismo e uma tarefa
O terceiro e último elemento estrutural de descrição, os quais jamais ocorrem de forma
comum, derivado dos dois primeiros (deman- imparcial ou desinteressada. O processo se-
das por igualdade e multiplicidade de movi- mântico sempre confere uma posição do signi-
mentos), é que, em todos esses eventos, há a ficado em relação ao significante na ordem do
construção de uma identidade que, a despeito discurso. Assim, considerando que o discurso
de sua especificidade em cada um dos casos é o resultado de uma ordem estabelecida pela
acima mencionados, pode ser aqui chamada articulação sempre contingente de momentos
de identidade popular. Assim, todos esses dis- diferenciais, poderíamos dizer, inclusive, que
cursos, como defenderemos ao longo do texto, não somente a política é uma luta constante
representaram um tipo de construção do povo, para a atribuição e fixação de sentidos, mas
uma forma específica de populismo, o de es- que também a construção de sentidos é, cons-
querda, mobilizado pelo que denominaremos tantemente, um processo de luta política.
aqui e desenvolveremos a seguir: a articulação Um sentido somente pode ser compre-
da “vontade dos iguais”. endido no contexto de uma estrutura discursi-
Nesse sentido, o objetivo central de nos- va. Pensemos, por exemplo, no significante “li-
sa análise é apresentar o populismo como re- berdade”. O que, de fato, significa liberdade?
sistência política contra regimes estabelecidos. Tal resposta, sempre contextualizada, depende
Para tanto, o presente texto está dividido em de uma estrutura em que esse significante tem
três seções principais. Primeiramente, discor- um lugar. Dessa forma, é possível articular dis-
reremos acerca do atual estado das democra- cursivamente a palavra liberdade a contextos
cias existentes, visando, entre outros objetivos, tão díspares como, por exemplo, no discurso
a estabelecer a diferença entre cidadão liberal pela independência de uma colônia em rela-
e cidadão democrático. Na seção seguinte, tra- ção à metrópole, ou num discurso populista de
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taremos dos impasses teóricos e práticos do direita, que articula a libertação de um povo a
populismo para, em seguida, apresentar nos- partir da perseguição xenófoba de imigrantes
sa visão acerca desse fenômeno político. Na pobres que ocupam as posições mais baixas no
última seção, apresentaremos nossa noção de mercado de trabalho.
vontade dos iguais, primeiramente discorren- O ponto fundamental – relativamente
do sobre a dualidade da igualdade: igualda- óbvio, ainda que passe, não raras vezes, des-
de como princípio e invenção democrática e percebido –, é que não há significantes com
igualdade como horizonte. A seguir, analisare- significados inequívocos: esses últimos só po-
mos a estrutura da vontade dos iguais, um tipo dem ser conhecidos de forma contingente. E
específico de populismo igualitário, o qual a atribuição contingente de sentidos é sempre
entendemos ser capaz de iluminar aspectos resultado de uma luta política. Pensemos sobre
referentes às distintas manifestações que têm o atual estado das democracias realmente exis-
tido lugar nos mais diversos lugares desde a tentes a partir da contingência a que estamos
Primavera Árabe. nos referindo. Tomaremos o modelo democrá-
tico de Robert Dahl (2001) como exemplar, não

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somente como um representante do discurso dãos – não pode ser simplesmente considerada
hegemônico da teoria democrática, mas tam- “formal”, como se o “formal” fosse, a despeito
bém como exemplo da forma como os regimes de todas as instituições ausentes e que poderí-
democráticos ocidentais estão estruturados. amos incluir, “imparcial”. A maneira como o
O modelo da poliarquia de Dahl (2001) é “formal” de uma classificação minimalista da
exemplar, pois ele se assenta numa indisfarça- democracia se apresenta não tem nada de im-
da tentativa de realmente explicar as democra- parcial: é uma decisão política. E aqui retorna-
cias representativas liberais. O elemento nor- mos ao argumento inicial desta seção. Articu-
mativo dahlsiano diz respeito ao quão mais ou lar elementos diferenciais formais, excluindo
menos distantes os Estados estão dos critérios outros, é uma forma parcial e contingente de
que os classificam, ou não, como poliarquias. construção de um discurso particular sobre a
Dahl é absolutamente consciente do fato de democracia. Quando democracia é um discur-
que tais critérios nunca serão suficientemente so que compreende tão somente as instituições
alcançados, o que indica uma distância entre da lista de Dahl, certamente ele exclui outros.
democracias reais e ideais.2 Assim, a poliar- Incluir e excluir são decisões que marcam um
quia é medida pela distância entre a experiên- comprometimento político específico. No caso
cia (ou realidade empírica) e o ideal, ou seja, das democracias existentes, não há a rigor, por
um Estado será ou não poliárquico sempre em exemplo, qualquer compromisso formal dos
relação aos demais Estados que supostamente regimes com a erradicação da pobreza de uma
cumpram os requisitos normativos estatuídos parte nada irrelevante de seus cidadãos.
pelo modelo normativo. O exercício de “isolar” a política em um
Nesse sentido, segundo Dahl (2001, compartimento específico, como se ela não fos-
p. 99), as seis instituições necessárias e bem se constantemente contaminada pelas relações
conhecidas para qualquer poliarquia são: reais estabelecidas com outras dimensões – tais
“funcionários eleitos; eleições livres, justas e como a economia e, mais especificamente, com
frequentes; liberdade de expressão; fontes de o capitalismo neoliberal em escala global –,
informação diversificadas; autonomia para pode ser comparado com a tentativa de analisar
as associações e; cidadania inclusiva”. Tais o corpo de um animal decepado. Dito de outra
instituições são, a princípio, tão somente po- forma: a política não existe como um reino que
líticas, no sentido de que, conforme o autor, pode ser simplesmente isolado e conhecido de

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é possível isolar a política de outros âmbitos, forma independente. É notório que os regimes
tais como o econômico, o social, o cultural etc. democráticos sofrem influências de fatores
O modelo de Dahl opera num registro formal, sociais, culturais e econômicos, de modo que
o que possibilita classificar como poliarquias, considerar “meramente” descritivas as institui-
por exemplo, a Índia e o Brasil, países com ções presentes no modelo poliárquico de Dahl
imensas desigualdades sociais, da mesma for- (2001) é tomar uma decisão por não discutir
ma que Dinamarca e Inglaterra. Tal classifica- mais profundamente as democracias realmente
ção “formal” – minimalista por não ser mais existentes. Não que cientistas e teóricos políti-
compreensiva, por exemplo, com respeito à cos não percebam as limitações dos regimes de-
busca por igualdade econômica entre os cida- mocráticos e da noção de poliarquia: é evidente
que percebem. Entretanto, não há, no mainstre-
2
Em “Sobre a democracia”, Dahl (2001, p. 97, 50), ao des-
crever o que ele denomina de “a verdadeira democracia”, am da ciência política hegemônica e realista,
apresenta a seguinte advertência: “todas as verdadeiras
democracias jamais corresponderam aos critérios demo- um compromisso efetivo no sentido de alargar
cráticos descritos na Parte II e apresentados na Figura normativamente as instituições democráticas e
4”. Tais critérios apresentados na referida figura são: “1.
Participação efetiva; 2. Igualdade de voto; 3. Aquisição de tornar tais regimes mais inclusivos, sobretudo,
entendimento esclarecido; 4. Exercer o controle definitivo
do planejamento; e 5. Inclusão de adultos”. do ponto de vista econômico.

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Uma consequência imediata das demo- termos, que é resultado de uma forma parcial
cracias existentes é o tipo de cidadão. O cida- de considerar os significantes “democracia” e
dão democrático é tomado sempre de forma “cidadão” a partir de uma perspectiva liberal.
isolada, seja pelo mainstream da ciência polí- Assim, entendemos ser fundamental
tica, seja no dia a dia do funcionamento dos para a imaginação democrática “libertar” o sig-
regimes. Ainda que possamos empiricamente e nificante “cidadão democrático” das amarras
de forma nada contraintuitiva identificar a fór- do liberalismo, visto que ele é historicamente
mula “um indivíduo = um cidadão”, como se anterior ao liberalismo, além de guardar senti-
ela fosse óbvia e neutra, também não há, aqui, dos distintos daqueles estabelecidos pela he-
qualquer neutralidade. Novamente estamos gemonia liberal. Não há qualquer novidade te-
diante de uma decisão política, de uma manei- órica na promoção dessa separação, visto que
ra de considerar uma ideia particular de cida- diversos autores já discorreram sobre a articu-
dão em um modelo particular de democracia. lação entre os princípios democrático (igualda-
Vejamos, em linhas gerais, quem é esse cidadão de) e liberal (liberdade).4 O que apontaremos
democrático e suas consequências políticas. aqui é algo diferente: podemos, ao mesmo tem-
O cidadão é, no contexto das democra- po, falar em “cidadão democrático” e “cidadão
cias ocidentais e das teorias políticas liberais liberal” como significantes distintos, mesmo
que lhes dão suporte, essencialmente um no contexto das democracias representativas
adulto com direitos políticos. É fundamental liberais. Vejamos, portanto, o que os distingue.
ainda levar em consideração que tais direitos Além de atomizado e perseguidor de
são individualmente atribuídos, mesmo aque- seus próprios interesses, o cidadão liberal – ao
les considerados coletivos, como a “autonomia contrário do democrático, como veremos mais
para as associações”. No caso desse último, au- adiante – é politicamente inerte. Também não
tonomia para associar-se significa que cada in- há qualquer novidade aqui, visto que a teoria
divíduo tem o direito de associar-se com outros elitista da democracia parte desse pressuposto.
indivíduos, ou seja, o ato associativo é fruto de Joseph Schumpeter (1984), por exemplo, afir-
uma soma de decisões individuais.3 Nesse sen- ma claramente que, excetuando os assuntos
tido, é crucial considerar que a relação política concernentes a seu interesse imediato, de sua
nas democracias é aquela do Estado com cada família, de seu local de trabalho, o “cidadão
um de seus cidadãos. Os direitos são sempre típico”, nas democracias, não tem capacidade
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e, desde já, individuais e aqueles considerados de refletir sobre a política. Tal incapacidade
coletivos são sempre e, desde já, coletivos, no não está associada à ignorância, à falta de cul-
sentido de serem o resultado da soma de indi- tura ou à estupidez, mas ao desinteresse desse
vidualidades. A relação entre Estado e cidadão indivíduo em relação aos assuntos políticos. A
é, assim, pois o cidadão democrático é visto consequência é descrita de forma crua e impla-
exclusivamente como um indivíduo atomiza- cável pelo economista austríaco:
do e que persegue seus interesses individuais e
Desse modo, o cidadão típico cai para um nível
familiares. Dessa forma, quando o mainstream mais baixo de desempenho mental assim que entra
da ciência política contemporânea está men- no campo político. Argumenta e analisa de maneira
cionando o “cidadão democrático”, devemos que prontamente reconheceria como infantil, se fos-
ler, mais exatamente, o “cidadão liberal”. Há se na esfera de seus interesses reais. Mais uma vez
uma operação de equivalência entre ambos os se torna primitivo. Seu pensamento torna-se asso-
ciativo e afetivo. (Schumpeter, 1984, p. 328)
3
No limite, algo dramaticamente egoísta como Thomas
Hobbes (2002, p. 28), mencionou no Do cidadão: “Toda
associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – 4
Chantal Mouffe (2000), por exemplo, em vários trabalhos,
isto é: não tanto para o amor de nossos próximos, quanto menciona essa articulação contingente entre os princípios
pelo amor de nós mesmos”. da liberdade liberal e da igualdade democrática.

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Schumpeter, o pai fundador do paradig- Schumpeter (1984), Sartori (1965) e os


ma elitista e realista da democracia, não está demais representantes do elitismo democrá-
sozinho nesse diagnóstico. Sartori (1965, p. 93), tico até poderiam estar certos no diagnóstico
ao falar desse mesmo cidadão, quer que “[S]eja- do cidadão liberal desinteressado se esse fos-
mos francos. O eleitor comum é convocado a se, de fato, um diagnóstico, e não um prog-
decidir sobre questões das quais ele nada sabe. nóstico. Eles argumentam que as democracias
Em outras palavras, é incompetente”. Como realmente existentes são como são por serem
resultado dessa incompetência, Schumpeter consequências necessárias do tipo de cidadão
(1984) e Sartori (1965) argumentam que a úni- “democrático”, e não o contrário: os cidadãos
ca forma de considerar a possibilidade de uma são como são por causa de séculos de um pro-
democracia é a partir da representação, mas cesso de “aculturação” política liberal. O lais-
não de uma representação que seja a expres- sez-faire político, assim como o econômico,
são de uma vontade do povo (vontade enten- são reflexos e uma construção discursiva que
dida simplesmente como a soma dos votos de remonta a heróis como Thomas Hobbes, John
cidadãos incapazes), mas aquela que atribui, Locke e Adam Smith. Assim, o cidadão liberal,
como Michels, a centralidade do papel à lide- oportunamente confundido com o democrá-
rança política. Democracia, a partir de então, tico pelas democracias atuais, é fruto de uma
deixa de considerar o elemento demos como estruturação secular, e não um dado de uma
prioritário, dando-se centralidade ao papel de essência individual.
liderança e governo da elite política, essa úl- “Ajustar” as democracias a essas “essên-
tima interessada e especializada na condução cias” individuais dos cidadãos liberais não é,
dos negócios públicos. Schumpeter (1984) é, portanto, uma inexorabilidade, mas uma mui-
“maquiavelicamente” franco quando afirma to bem-vinda conveniência, tanto para as de-
que, numa democracia real, o papel do povo se mocracias realmente existentes, como para a
reduz simplesmente a “produzir um governo”, teoria democrática elitista que lhes dá supor-
sendo que, a partir de então, todas as decisões te. Focar nos regimes democráticos respostas
realmente importantes devem ser tomadas por “democráticas” para a “essência” dos cidadãos
esse governo. Literalmente, o povo, como uma liberais é justificar o discurso do liberalismo
identidade politicamente ativa, sai de cena. clássico de John Locke, o qual previa que os
O cidadão liberal, no contexto da teoria indivíduos deveriam perseguir seus interesses

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política elitista liberal, é incompetente não só particulares e deixar a política para seus re-
politicamente, mas também num sentido on- presentantes. Tal prescrição lockeana encontra
tológico. Faz parte da essência desse cidadão a seu ponto mais alto no neoliberalismo o qual,
incapacidade política, e não há nada a se fazer literalmente, privatiza a política segundo os
para aplacar este fato. Trata-se de uma incom- interesses das grandes corporações e do mer-
petência constitutiva das democracias contem- cado financeiro.
porâneas, segundo as leituras de Schumpeter, Mencionamos acima a articulação entre
Sartori e seguidores. Daí a necessidade da exis- política e economia, num nível mais amplo, e
tência de elites para salvar a democracia. Nada entre democracia representativa e capitalismo
mais irônicodo que uma solução como essa: a neoliberal global, de forma mais estrita. Dizí-
salvação do governo do demos está justamente amos que não há possibilidade de se conside-
na necessidade de afastar o demos do governo. rar a democracia isoladamente, mas sempre
A salvação do governo popular reside na insti- na relação com outros domínios da experi-
tuição de uma aristocracia, ou a real democra- ência humana, tais como o social, o cultural
cia, em nosso tempo, é um “governo do povo”, e, sobretudo, o econômico. Há uma série de
apesar do povo. abordagens teóricas e empíricas críticas às de-

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mocracias existentes por serem elas avessas à seus próprios interesses privados e os do capi-
vontade popular e fundadas antes no império talismo nacional e internacional. A represen-
da lei do que no do demos. O ponto é que a lei tação parece ser uma mera formalidade sem
não é uma decisão imparcial, mas sempre o re- qualquer compromisso do representante para
sultado do que Rousseau (1978) chamou de o com os seus pretensos representados. É aqui
“direito do mais forte”. Em nossas sociedades, que a sinceridade de um conservador como
a lei e a democracia liberal estão diretamen- Robert Michels (1982) ilumina um aspecto que
te a serviço dos “mercados”, ou seja, dos mais é evidente, porém mantido comodamente na
ricos, numa inversão olímpica do que um dia escuridão. Para Michels (1982), a democracia
representou a ideia de democracia como o go- é o autogoverno das massas. No entanto, como
verno do povo, dos mais pobres. É, nesse senti- argumentou o sociólogo alemão, quando o ci-
do, que o termo pós-democracia, cunhado por dadão vota em um representante, ele simples-
Colin Crouch (2004), demonstra claramente a mente aliena sua soberania. Deixa de governar.
quem interessam e se destinam os regimes de- O regime, portanto, deixa de ser uma democra-
mocráticos realmente existentes: cia. Nada mais óbvio. Ou, “nada é mais traiço-
eiro que o óbvio”, como certa feita nos disse
Sob esse modelo [a pós-democracia], enquanto elei-
ções certamente existem e podem mudar governos,
Schumpeter (1984, p. 295).
o debate público eleitoral é um espetáculo rigida-
mente controlado, conduzido por equipes rivais
de profissionais peritos em técnicas de persuasão, POPULISMO E CONSTRUÇÃO DA
considerando-se ainda uma pequena variedade de VONTADE DO DEMOS
assuntos selecionados por essas equipes. A massa
de cidadãos participa de forma passiva, silenciosa
e mesmo apática, respondendo apenas aos sinais
A partir do exposto, define-se que o ob-
apresentados a ela. Por trás do espetáculo do jogo jetivo central deste texto é o de apresentar o
eleitoral, a política é de fato feita de forma privada populismo como resistência política contra
na interação entre os governos eleitos e as elites que situações de desigualdade e de injustiça no
esmagadoramente representam os interesses empre- contexto das (pós) democracias existentes.
sariais. (Crouch, 2004, p. 4, tradução nossa)
Para que possamos chegar a esse ponto, preci-
As pós-democracias em que vivemos samos antes esclarecer o que entendemos por
formalmente remetem-se à vontade do povo, populismo. Parte desse esclarecimento tem a
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como se essa vontade pudesse ser representa- necessária tarefa de desmistificar esse termo
da simplesmente pela eleição de “representan- que, não raras vezes, sob os pontos de vista
tes” em processos eleitorais em que cidadãos teórico e político, é também visto como uma
desinformados são instados a decidir entre ofensa. “Populismo” é uma categoria carregada
candidatos, forjados em convenções partidá- de ideologia(s), usada para descrever distintas
rias, e que estão intimamente vinculados aos experiências políticas, o que tornou esse termo
interesses de grandes empresas e investidores polissêmico, enfraquecendo sobremaneira seu
financeiros. Um dos sinais mais cínicos de potencial heurístico para estudos de fenôme-
nossas (pós) democracias reside na não dis- nos sociopolíticos.
cussão sobre a efetividade da representação. Desmistificar o populismo é, como dis-
No Brasil, escândalos de corrupção em escala semos, primeiramente, realizar a operação da
monumental, envolvendo políticos, donos e retirada da carga negativa que pré-noções à
altos funcionários de grandes corporações em- esquerda e à direita lhe atribuíram. À esquer-
presariais são provas diárias de que os “repre- da, a acusação mais comum é a de que, a des-
sentantes do povo” representam, na verdade, peito de o populismo articular politicamente o
povo, tal articulação nunca é, em última análi-

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se, com o objetivo da emancipação desse povo, Antes de chegar à nossa compreensão
mas para o próprio benefício do líder e da elite de populismo, é importante lembrar, mesmo
política a ele associada. A “verdadeira” eman- de forma sucinta, que esse tema interessa par-
cipação popular deveria, ao contrário, prescin- ticularmente às Ciências Sociais latino-ameri-
dir de líderes carismáticos que iludem o povo canas, seja pelos exemplos clássicos de lide-
para promover políticas que, ao fim e ao cabo, ranças populistas – como a de Getúlio Vargas,
não seriam nada populares. no Brasil, e a de Juan Domingos Perón, na Ar-
À direita, temos a crítica liberal. Para os gentina –, seja pela rica literatura sociológica
liberais, o maior problema de qualquer experi- e política produzida (por ex. Di Tella, 1969;
ência populista é a constante afronta e o des- Germani, 1973; Ianni, 1987; Weffort, 1980).
respeito às instituições democráticas represen- As abordagens clássicas sobre o populismo na
tativas. O populismo promove uma perigosa América Latina consideram o fenômeno como
ligação entre o líder e a massa, passando por uma particularidade histórica do desenvolvi-
cima das normas legais, cujo respeito, defen- mento de um processo incipiente e tardio de
dem os liberais, é fundamental para que possa- industrialização na região na primeira metade
mos assegurar a normalidade democrática. O do século passado, aliado a uma massa urbana
populismo seria uma forma perigosa e engano- desorganizada, recentemente saída do cam-
sa de “pular etapas”, ou seja, com a promessa po e completamente alheia a seus interesses
de “dar ao povo o que é do povo” de forma ime- de classe. A despeito das diferentes interpre-
diata, líderes populistas desrespeitam institui- tações teóricas que têm esse pano de fundo,
ções e enfraquecem a democracia.5 principalmente nas análises do populismo
O que há em comum nas críticas apre- brasileiro, o que há de comum entre elas é o
sentadas acima é a associação que ambas fazem fato de que o fenômeno era considerado tran-
entre as experiências populistas e o “engano” sitório e, portanto, próprio do momento de um
que essas dolosamente provocam no povo. É capitalismo subdesenvolvido.
de se perguntar, no entanto, o que “enganar” de Tal característica, presente nessas aná-
fato significa? E o cidadão liberal, por exemplo, lises clássicas do populismo latino-america-
está livre de idêntico engano nas democracias no, fez com que, mais recentemente, o teórico
ocidentais? E se as instituições estiverem à ser- político uruguaio Francisco Panizza (2005) as
viço dos interesses daqueles que as ocupam?6 classificasse como abordagens historicistas. O

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Tais críticas – poderíamos dizer, políticas – às problema, no entanto, é que as análises histo-
experiências populistas, a despeito de serem ricistas, ainda que tenham tido o mérito de ilu-
constantemente repetidas, não necessitam de minar o desenvolvimento político, econômico
muito esforço para serem repelidas. Basta que e social de distintas realidades latino-america-
façamos a mesma pergunta em relação ao lugar nas, esbarraram na tarefa de tornar o populis-
de onde partem os críticos. O problema real- mo uma categoria heurística para além dessas
mente importante sobre as experiências popu- experiências específicas.
listas refere-se à polissemia interpretativa que Recentemente, o populismo tem sido
as envolve. É nesse sentido que se faz necessá- teoricamente revigorado. Abordagens mais re-
rio olhar para esses fenômenos de forma mais centes, que remontam mais ou menos à déca-
acurada sob o ponto de vista teórico. da de 1990, têm enfrentado o fenômeno, não
5
Os liberais partem de um pressuposto idealista de que as a partir de novas tentativas frustradas de ge-
instituições políticas são neutras e que, se bem conduzidas, neralizações de experiências conhecidas por
garantem o funcionamento normal do regime democrático.
6
O caso do processo de impeachment contra Dilma Rou-
esse nome, mas buscando conhecer a especi-
sseff é o típico exemplo do uso das instituições para o in- ficidade populista presente em todas elas. Tal
teresse privado da maioria dos parlamentares de ambas as
casas legislativas. tarefa é complexa, visto que os estudos empíri-

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cos sobre o assunto indicam que ele ocorre em O ponto fundamental para chegarmos
zonas urbanas (peronismo, varguismo) e rurais na especificidade do populismo está, nesse
(o narodniki, na Rússia, o People’s Party, nos sentido, no entendimento da categoria povo.
Estados Unidos) e pode ser de esquerda (cha- Comumente, a partir da hegemonização da tra-
vismo, kirchnerismo) ou de direita (Jean-Marie dição jurídico-liberal, a expressão povo reme-
Le Pen, na França, Pim Fortuyn, na Holanda). te-se ao conjunto dos cidadãos de um Estado
Assim, primeiramente, as pesquisas empíricas democrático. Essa concepção numérica não é
indicam que uma teorização geral sobre o po- somente hegemônica nos regimes democráti-
pulismo deve ir além dessas experiências, no cos: ela está também sedimentada.8 Trata-se de
sentido de que elas nos fornecem, ao mesmo uma forma despolitizada (ou que visa a evitar
tempo, elementos que, por um lado, devem ser a politização) de considerar o povo por três ra-
abandonados para a elaboração de uma teoria zões principais. Primeiramente, por partir do
geral do populismo (tais como, por exemplo, a indivíduo liberal, um sujeito atomizado que,
atribuição de uma ideologia ao populismo) e, como vimos a partir dos próprios próceres te-
por outro lado, nos permitem realmente pen- óricos elitistas, não tem qualquer interesse em
sar o populismo teoricamente, de uma forma questões políticas. Além disso, considera e
ampla, que torne possível revigorar essa cate- restringe a expressão da vontade popular sim-
goria, tornando-a heuristicamente útil. plesmente ao voto, um expediente esporádico
Vários autores têm pensado o populismo que não retrata necessariamente a vontade de
para além de suas experiências concretas.7 No um povo, mas o resultado de uma soma de vo-
entanto, não há formulação teórica contem- tos de cidadãos liberais desarticulados e mal
porânea tão consistente como a elaborada por informados. Por fim, considerar povo como
Ernesto Laclau. Entendemos que, a partir de A meramente o conjunto de todos os cidadãos
razão populista (Laclau, 2013), o populismo al- de um Estado legitima que um governante
cançou o ápice de sua formulação como cate- simplesmente desconsidere ou não reconheça
goria analítica. A estratégia laclauniana isolou uma manifestação pública como popular, visto
o cerne de seu sentido, ou seja, aquele que está que, em manifestações, sempre haverá, con-
presente em todas as experiências chamadas de siderando o conjunto da população, uma pe-
populistas. O populismo é percebido pelo au- quena parcela do que, segundo essa concepção
tor como uma lógica política que divide antago- jurídico-liberal, seria o povo.
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nicamente o campo social entre o povo e o seu Aqui chegamos ao momento crucial em
inimigo. Assim, independentemente dos con- que discernimos o que acima chamamos de
teúdos políticos reais articulados, o populismo “cidadão liberal” do que chamaremos, a par-
é sempre a construção política de um povo. O tir de agora, de “cidadão democrático”. O ci-
que Laclau (2013) percebe com muita clareza é dadão liberal, como vimos, é apático, egoísta,
que o populismo é uma lógica que compreende atomizado e inerte em relação à política. Já o
múltiplas possibilidades ideológicas nacionais cidadão democrático é politicamente engajado
cuja ocorrência se dá nos lugares mais distin- a ponto de, no limite, ser antissistêmico, como
tos. Portanto, não há qualquer possibilidade a veremos mais adiante. O povo é o resultado da
priori de estabelecer se o populismo é positivo articulação dos cidadãos democráticos. Vol-
ou negativo: experiências populistas podem ser tando à lógica laclauniana, o povo é a cons-
conservadoras ou progressistas, de direita ou trução exitosa da parte (a plebs) que assume
de esquerda, e assim por diante. a condição do todo (o populus). Tal constru-
7
As análises de Margaret Canovan (1999), Cas Mudde 8
A ideia de sedimentação, conforme Laclau, inspirado em
(2004) e Paul Taggart (2000) são exemplos de empreitadas Husserl, pressupõe um esquecimento das origens, ou seja, a
que buscam estabelecer elementos teóricos gerais do po- naturalização de uma decisão que não tem nada de natural,
pulismo para além de experiências específicas. pois que é fruto de uma contingência política (Laclau, 1990).

192
Daniel de Mendonça

ção é sempre política, precária e contingente. de um processo de articulação hegemônica


Isso quer dizer que o povo nunca está dado a (Laclau; Mouffe, 2015), é possível a construção
priori; ele necessita ser constituído, podendo, de uma identidade coletiva, ou seja, a “vonta-
nesse sentido, assumir diversas conformações de dos iguais”.
discursivo-ideológicas (progressistas ou con-
servadoras), nacionais (emancipatórias ou xe-
nófobas), entre outras. Daí a causa da existên- O POPULISMO COMO RESISTÊN-
cia de distintas formas de populismo, as quais, CIA POLÍTICA: a vontade dos iguais
dependendo do compromisso ético de quem as
observa, serão positivas ou negativas. Na seção anterior, focamos nossa atenção
Para os objetivos deste artigo, portanto, nos aspectos centrais das noções de populismo
povo é sempre uma categoria política sem qual- e de povo, com ênfase especial no seu “núcleo
quer conteúdo determinado de forma aprio- duro”, ou seja, o de ser uma lógica político-dis-
rística. Povo é uma identidade coletiva, que cursiva que constitui o povo de modo antagôni-
se autonomeia como tal – cujas partes se arti- co a seu inimigo, ou inimigos. Vimos, também,
culam contra um inimigo comum – e que tem que não podemos determinar a priori uma “ide-
seu status reconhecido hegemonicamente pela ologia do populismo”, uma vez que o fenômeno
comunidade política à qual pertence. O reco- abarca um sem número de experiências com
nhecimento do povo tem, portanto, de ser du- distintos graus ideológicos, sociais, culturais,
plo: um autorrreconhecimento e um reconhe- econômicos. Nesta seção, trataremos do que
cimento externo, ainda que esse último sofra chamamos de populismo igualitário ou de es-
resistências. O reconhecimento externo resulta querda, o qual é evocado como forma de resis-
da impossibilidade de um governo, no âmbito tência política a partir da vontade dos iguais.
da comunidade política, negar a condição de As democracias liberais, como também
povo àqueles que se reivindicam como tal. vimos, são marcadas pelo distanciamento dos
Num primeiro olhar, pode parecer estra- representantes em relação a seus pretensos
nha a necessidade de reconhecimento exter- representados. Decisões fundamentais e que
no a uma identidade popular. Por essa razão, atingem a todos são tomadas em gabinetes
torna-se necessário precisar o sentido que es- fechados e simplesmente apresentadas como
tamos atribuindo à ideia de reconhecimento. as únicas soluções possíveis, devido sempre

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Nesse contexto, reconhecimento é o resultado à “urgência” do momento. Governos à mercê
de um processo discursivo que se torna hege- dos “mercados” e de suas exigências, de fato,
mônico, ou seja, uma força política que obriga não podem representar seus cidadãos, cujas
a comunidade política a reconhecê-la como tal. necessidades são diametralmente opostas. A
Como, em maior ou menor grau, o discurso po- política é também uma dimensão longínqua do
pulista é antissistêmico ou anti-institucional, a cidadão liberal, e uma de suas consequências é
primeira e mais óbvia reação de uma institui- a apatia política ou o “niilismo passivo”, con-
ção (governo) é a de negar ao povo o status de forme sugere Simon Critchley (2012).
povo. Assumir claramente que o movimento é O populismo quebra esse cenário de
popular é admitir que a instituição – ou o go- apatia e de ausência de representação. No en-
verno – é inimiga do povo, o que seria um ônus tanto, como enfatizamos, as experiências, por
democraticamente inaceitável até mesmo para um lado, nos apresentam populismos resultan-
os mais cínicos e reacionários políticos. tes de discursos excludentes e xenófobos, tais
Na seção seguinte, trataremos da cons- como notadamente a Europa tem testemunha-
trução do populismo de esquerda, o qual cha- do nos últimos anos, e, por outro lado, popu-
maremos de igualitário. Veremos que, a partir lismos igualitários, como os que têm ocorrido

193
DEMOCRATAS TÊM MEDO DO POVO? ...

na América Latina. Nossa intenção, conduzida no mesmo patamar indivíduos diferentes (em
por um compromisso ético em nome da polí- distintos aspectos) como cidadãos. Nos regi-
tica e da democracia, é defender o populismo mes democráticos realmente existentes, esse
de esquerda como forma de resistência política mesmo patamar não se verifica. Um cidadão,
em nome de políticas de reconhecimento e de na prática, é diferente em direitos de outro, o
inclusão social. Essa articulação político-dis- que nos leva à conclusão de que a democra-
cursiva populista é, conforme nossa leitura, cia, como forma de socialização, é impossível
resultado da vontade dos iguais. de ser verificada, de fato, em regimes políticos
A vontade dos iguais é a expressão da- estabelecidos. Impossível, porém, como vere-
queles que se autointitulam povo e são reco- mos, necessária.
nhecidos como tal pela comunidade política. A É difícil lidar com a questão democráti-
vontade dos iguais apresenta-se a partir de um ca, ainda mais se ela é posta em relação com as
discurso hegemônico. A ocorrência populista demais formas de governo e regimes políticos.
da vontade dos iguais, até mesmo pelo fato de O fato é que ela se assenta em um fundamento
ser um discurso de resistência política, dá-se que, na verdade, é sem fundamento ou, para
necessariamente à parte e contra as estruturas usar uma expressão heideggeriana, o funda-
políticas institucionalizadas, inclusive questio- mento que é um abismo, um Abgrund (Heideg-
nando as próprias instituições como locais efe- ger, 1999).9 Não há, assim, na democracia, um
tivamente representativos da vontade do povo. princípio de governo baseado em qualidades
Assim, comecemos pela ideia de igualda- (riqueza, honra, linhagem, capacidade distin-
de. No contexto de nossa discussão, igualdade tiva). O que há, de fato, é um nivelamento a
pressupõe uma dualidade de sentidos: igualda- partir da ideia de igualdade, tal como obser-
de como fundamento democrático e igualdade vou Rancière (1996). A igualdade é o funda-
como horizonte de uma democracia ainda não mento que nivela a todos democraticamente,
cumprida. Na democracia, portanto, igualdade justamente porque parte do pressuposto de
é o princípio e também o fim. Começa-se igual que são iguais inclusive àqueles que, em ou-
e busca-se insistentemente a igualdade. tros aspectos, são desiguais. Isso não se refere,
A igualdade, como fundamento, é li- por exemplo, à desigualdade entre os que são
teralmente uma invenção democrática. Nas cidadãos distintos (princípio da aristocracia)
demais formas de governo – se tomarmos as em comparação aos ricos (princípio da oligar-
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clássicas, de onde a democracia também sur- quia), mas à inclusão, nessa “estranha igualda-
giu –, são distintos os fundamentos: linhagem de”, daqueles que não são nem distintos, nem
(monarquia), liderança militar (timocracia), ricos, nem nada. Simplesmente são, em suas
homens de bem (aristocracia), riqueza (oligar- próprias existências (Rancière, 1996). Esse ar-
quia). A democracia pressupõe igualdade entre gumento está claramente presente em Platão e
os cidadãos, mas não uma igualdade de bens, em Aristóteles, para os quais os indivíduos são
de recursos, de posição, não sendo, portanto, naturalmente desiguais, e tais desigualdades
uma homogeneização que possa supor uma so- podiam ser verificadas politicamente em todas
ciedade planificada. A igualdade democrática as formas de governo, exceto na democrática.
é aquela expressa pela fórmula “cidadão = ci- Parece que, nesse sentido, a democracia repre-
dadão”. Tal fórmula, ainda que presente num sentava uma quebra na hierarquia derivada da
nível formal nos regimes assumidamente de- natureza das coisas, o que leva Platão, inclusi-
mocráticos, só pode ser verdadeiramente con- ve e de forma indignada, na ordem das formas
siderada se tomarmos a democracia não como
um regime político, mas como uma forma es- 9
A noção heideggeriana de Abgrund e sua utilidade para
a teoria política foi desenvolvida em detalhes por Laclau
pecífica de socialização que coloca exatamente (2014) e Marchart (2007).

194
Daniel de Mendonça

de governo, a relegar a democracia à condição ponto de partida para estabelecer esse lugar é
de antessala da tirania. novamente Rancière (1996, 2004). Para o filó-
A igualdade como fundamento da de- sofo francês, a igualdade não é um locus onde
mocracia é, num sentido heideggeriano, um devemos chegar ou uma condição a alcançar,
Abgrund, uma vez que esse fundamento é, mas um ponto de partida. Aliás, para Rancière,
como dissemos há pouco, um abismo. Assim, a desigualdade é somente possível tendo em
se a igualdade é fundamento e o fundamen- vista a igualdade: “a igualdade é a condição da
to é igualdade – para tomarmos de emprésti- própria desigualdade. Para obedecer a uma or-
mo o quiasmo do filósofo alemão e aplicá-lo dem, é preciso compreendê-la e compreender
à igualdade –, a igualdade não pode ter seu que devemos obedecê-la. Então, precisamos de
fundamento fora de si mesma, o que signifi- um mínimo de igualdade sem a qual a desigual-
ca, no limite, que o sentido de igualdade varia dade se tornaria vazia” (Rancière, 2004, tradu-
de experiência para experiência democrática. ção nossa). A igualdade, portanto, se dá sobre o
Nas democracias representativas liberais, a conteúdo do mandato entre aquele que manda
igualdade está baseada no princípio “todos são e aquele que obedece; só se produz a desigual-
iguais perante a lei”, o que significa algo dife- dade a partir de um consentimento originado
rente de “todos são iguais”. Nesse caso, a lei é na igualdade. Tal compreensão mútua (entre
o meio de ser igual; um meio que, na verdade, quem manda e quem obedece) está fundada
não é propriamente um meio, mas um obstácu- no que Rancière – inspirado no educador fran-
lo à igualdade. cês do século XIX, Joseph Jacotot – chama de
A percepção da igualdade democrática igualdade das inteligências. Tal princípio, ori-
como Abgrund é fundamental à compreensão ginalmente pedagógico, é levado por Rancière
da dualidade de sentidos acima expressa. Por para o campo social. Assim, se, por um lado, a
um lado, a igualdade, vista como fundamento igualdade é a própria causa da desigualdade,
da democracia, deve ser entendida no sentido por outro lado, é também a igualdade o meio de
de que a “igualdade” nunca alcançará um sig- romper com a forma pela qual está estabeleci-
nificado último, pois é sempre um significante da a partilha sempre desigual do sensível: “[E]
à espera de significados provisórios e contin- xiste política porque – quando – a ordem natu-
gentes. É justamente por essa impossibilida- ral dos reis pastores, dos senhores de guerra ou
de de fechamento de sentidos – pelo fato de das pessoas de posse é interrompida por uma

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a igualdade ser um significante que não tem liberdade que vem atualizar a igualdade última
qualquer significado a priori, mas sempre de- na qual assenta toda ordem social” (Rancière,
pendente de uma situação contingente e pre- 1996, p. 31, grifo nosso). Essa igualdade última
cária para ser significada – que diferentes regi- se deve à igualdade das inteligências, que se
mes democráticos enunciam distintas formas reflete na idêntica compreensão da ordem en-
de igualdade. Por outro lado, no que tange à tre “superiores” e “inferiores”. Um pouco mais
igualdade como horizonte de uma democracia à frente no mesmo parágrafo: “É essa igualda-
ainda não cumprida, novas possibilidades de de que corrói toda ordem natural” (Rancière,
significação constituem discursos emancipató- 1996, p. 31, grifo nosso).
rios e igualitários em nome daqueles cuja dis- Ainda que, com Rancière, concorde-
tribuição da igualdade não é verificada, como mos de que devemos partir da igualdade como
veremos a seguir. princípio democrático (para ele, em realidade,
Antes, passemos para o último ponto a um princípio da política), ao contrário dele,
respeito da igualdade como fundamento demo- não acreditamos que esse fundamento se dê
crático, que se refere ao lugar da igualdade em com base na pressuposição da igualdade das
todo regime autonomeado democrático. Nosso inteligências. Essa forma de conceber a igual-

195
DEMOCRATAS TÊM MEDO DO POVO? ...

dade é onipresente no argumento rancièreano: ta enunciar a igualdade como fundamento de-


a política é possível pela igualdade das inte- mocrático para vivermos em um mundo entre
ligências, da mesma forma que a polícia tam- “iguais”. A igualdade democrática possível é a
bém é, visto que a desigualdade depende da da enunciação de um fundamento político que
igualdade. Assim, a igualdade transgride ao sempre pode ser evocado quando situações
mesmo tempo em que legitima a ordem. Mas, de iniquidade ou de injustiça são percebidas.
por que uma condição meramente psíquica, Sendo a igualdade uma invenção da democra-
como a da igualdade das inteligências, seria cia, ela é evocada em situações que não são,
um fundamento suficiente, ou, ainda, válido em princípio, políticas como, por exemplo, as
para as igualdade e desigualdade políticas? diferenças econômicas entre ricos e pobres.
Para nós, a igualdade é, literalmente, Quando afirmamos que a desigualdade econô-
uma invenção, uma criação da democracia. É mica é um problema a ser enfrentado, somos,
uma decisão radical, que torna politicamente já, sujeitos de uma operação política, ou seja,
iguais aqueles que, em outras dimensões, são um processo de significação de um tipo de de-
“naturalmente” diferentes. Para ser cidadão sigualdade que deve ser reduzido ou extinto.
numa democracia, basta ser uma presença; não A igualdade como fundamento democrático é
é necessário qualquer título, posse ou qualida- o dispositivo acionado sempre quando a per-
de. A democracia é o reino da quantidade, das gunta “Por que existe esse tipo de desigualda-
decisões tomadas por pessoas comuns, que es- de?” torna-se uma questão política, uma vez
tão em número maior, em qualquer sociedade, que a igualdade, por princípio, sempre auto-
quando comparadas com aquelas que detêm riza qualquer sujeito a questionar distintas
riquezas, sabedoria, linhagem etc. A decisão formas de desigualdade. Nesse sentido, ainda
da igualdade democrática é a mais radical e, que a igualdade como fundamento não seja a
por essa razão, a única verdadeiramente polí- verificação fática da igualdade – e nem deve-
tica, sem qualquer interferência ou fundamen- ria, pois, como vimos, a própria igualdade não
to externo a ela. Por exemplo, sabemos, desde possui um sentido final –, ela autoriza a sua
Platão, que, numa oligarquia, é necessário que atualização a partir do sentido contingente da-
existam ricos para que a forma de governo seja queles que a evocam.
um reflexo de tal princípio, que é econômico É nesse momento que surge a segunda
e só depois se torna político. Numa aristocra- face da dualidade acima aludida, a qual cha-
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cia, é preciso haver cidadãos sábios e a própria mamos de a igualdade como horizonte de uma
ideia de sabedoria, para, depois, um governo democracia ainda não cumprida. Para compre-
ser fundado a partir desse princípio. Na demo- ender tal horizonte, é preciso analisar a cons-
cracia, no entanto, não há fundamento, além trução da “vontade” dos iguais, a qual se dá a
da política, que a fundamente. A igualdade, partir da articulação política de um povo (La-
sendo esse princípio, é uma decisão propria- clau, 2013; Laclau; Mouffe, 2015).
mente política, um fundamento politicamente Em nossos termos, horizonte não é abso-
criado: uma invenção. lutamente um ponto de chegada definido, um
A igualdade democrática é a decisão de projeto delimitado a ser cumprido. Nesse sen-
ignorar as desigualdades e as diferenças como tido, não há qualquer possibilidade de efetiva-
princípio de poder. Notemos, no entanto, que ção de uma “democracia” completa, da mesma
ignorá-las não é o mesmo que negá-las: a de- forma que resulta impossível uma “igualdade”
mocracia não apaga as desigualdades e as di- final. O horizonte aponta, ao mesmo tempo,
ferenças; ao contrário, as evidencia, ainda que para o impossível e para o necessário: demo-
não de forma “natural”, como nas demais for- cracia e igualdade, nesse sentido, são impos-
mas de governo. É por essa razão que não bas- síveis e necessárias. A impossibilidade se dá

196
Daniel de Mendonça

pelo mesmo argumento acima exposto do Ab- da vontade dos iguais, e a segunda, quem são,
grund heideggeriano: não há fundamento tanto de fato, os “iguais” que a evocam.
para a democracia como para a igualdade, e é A imagem da vontade dos iguais é a de
justamente essa ausência de fundamento final uma manifestação de tipo populista, ou seja,
que torna possível a existência de fundamen- aquela que se reivindica “o povo” contra seus
tos precários e contingentes em experiências inimigos. Dessa forma, um protesto de profes-
democráticas e igualitárias. A necessidade está sores por aumento de salários e pela qualifica-
na tentativa sempre ineficaz de fechamento ção do ensino não é um exemplo da expressão
de sentidos, que permanecem estruturalmen- da vontade dos iguais, assim como qualquer
te abertos, incapazes de dominar o campo da manifestação identitária não pode ser igual-
discursividade que eles ocupam. A política, mente confundida como tal. O que marca a
nesse particular, é uma possibilidade presen- construção da vontade dos iguais é a articula-
te em um mundo de sentidos sempre abertos. ção de múltiplas demandas em nome de uma
Esse é o caráter do horizonte: uma permanente igualdade que não está sendo verificada pelo
abertura a um futuro imprevisível. poder político. A vontade dos iguais redun-
Tendo em vista a abertura radical que da na constituição de um espaço político de
indica a ideia de horizonte, torna-se possível enunciação discursiva apartado e antagônico
a produção de vontade, essa última, da mes- em relação aos canais ordinários da represen-
ma forma, radicalmente aberta. No contexto tação política. Não há qualquer conteúdo polí-
dessa discussão, vontade é sempre coletiva, a tico dado antes da articulação diferencial que
expressão de uma subjetividade popular con- produz o discurso populista da vontade dos
tingente. Dessa forma, a vontade dos iguais é iguais; ele será conhecido como resultante da
o resultado da articulação de sentidos a par- própria articulação, como veremos na sequ-
tir da construção de significantes vazios10 que ência desta seção. Já os “iguais” que evocam
simplificam um sem número de demandas até a vontade dos iguais são, de fato, aqueles que
então dispersas. reivindicam a igualdade como fundamento da
A questão fundamental acerca da vonta- democracia. Reivindicam a igualdade, alegan-
de dos iguais refere-se à estrutura de sua ocor- do que, por serem iguais, já deveriam tê-la,
rência. Trata-se, primeiramente, da constituição ainda que, de fato, pelas circunstâncias em que
de uma subjetividade política sistemicamente vivem, sejam desiguais. A vontade dos iguais é

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elusiva. Assim, a vontade produzida depende sempre um discurso político de inclusão, de
da hegemonização de certos significantes pre- combate às injustiças e, nesse sentido, confi-
sentes em uma cadeia de equivalências, cujos gura um movimento populista igualitário.
sentidos, se somados, são mais ricos e heterogê- Vejamos, agora, a estrutura da articula-
neos do que aqueles expressos pela vontade dos ção política da vontade dos iguais. Como dis-
iguais. Ela exerce um papel de representação, semos acima, ela é inspirada nas lógicas da
no sentido que Laclau e Mouffe (2015) atribuem hegemonia de Laclau e Mouffe (2015) e do po-
a toda hegemonia, cuja operação será vista pulismo de Laclau (2013), com variações que
adiante. Antes, porém, duas questões merecem serão oportunamente aqui apontadas. Assim,
destaque: a primeira chamaremos de imagem primeiramente, para o filósofo argentino, uma
formação populista origina-se a partir de de-
10
Para Ernesto Laclau, significantes vazios são significan-
tes sem significado, que, ainda assim, fazem parte de um mandas específicas – tais como, por exemplo,
processo discursivo de significação. No ensaio “Por que
os significantes vazios são importantes para a política”, a ausência de saneamento básico, de escola, de
Laclau (2011, p. 77) estabelece uma relação de igualdade posto de saúde em uma comunidade carente –,
entre significantes vazios e hegemonia. No decorrer deste
artigo, utilizaremos precipuamente o termo hegemonia, o que se articulam, tendo em vista a frustração
qual, chamamos aqui a atenção, poderá, grosso modo, ser
substituído por significantes vazios. gerada pelo seu não acolhimento pelas instân-

197
DEMOCRATAS TÊM MEDO DO POVO? ...

cias de poder.11 Ainda que concordemos com a buscam minimizar, pois, politicamente, existe
noção de “demanda social” como unidade mí- esse espaço (o direito de manifestação) ainda
nima da análise de uma lógica populista que que formalmente construído.
evoca a vontade dos iguais, entendemos ser Não é, por exemplo, seguindo as leis e
desnecessária a ideia original do filósofo com a estrutura da economia que haverá inclusão
respeito à conversão da demanda de “solici- econômica e social; é somente pelo rompimen-
tação” para “exigência”. Pois entendemos ser to do que a política representa (no sentido que
irrelevante saber se, primeiramente, houve um estamos propondo) que se tornam possíveis
pedido que, em seguida, se converteu em exi- mudanças efetivas. Rompimento político sig-
gência, até pelo fato de que muitas demandas nifica a necessidade de construir novos canais
já nascem como exigências desde o princípio. de expressão em relação aos canais tradicio-
Sendo a análise laclauniana do populismo de nais, tais como os parlamentos. Não há con-
caráter ontológico,12 não haveria qualquer ra- dição de mudar o jogo seguindo suas regras;
zão para tal conversão, o que denota um estra- é necessário que o tabuleiro seja lançado para
nho “etapismo”. Só interessa à formação po- o ar ou que suas regras sejam drasticamente
pulista demandas no sentido de exigências e, alteradas e ambas as alternativas são possíveis
nesse sentido, em nossa análise, toda demanda somente se o que está dado como certo for
é, sempre e já, uma exigência. questionado e deslocado.
As demandas que compõem a vontade Dito isso, vejamos agora a articulação
dos iguais são demandas por igualdade e por entre as demandas que geram o discurso po-
inclusão.13 São demandas daqueles que rei- pulista igualitário da vontade dos iguais. Pri-
vindicam que a igualdade, como fundamento meiramente, a articulação é sempre entre
democrático, reflita políticas de inclusão, de demandas distintas, no sentido que Laclau e
reconhecimento: que os iguais sejam perce- Mouffe (2015) atribuem ao processo equiva-
bidos pelo Estado e não somente sejam iguais lencial como aquele que é estabelecido entre
“em tese” (formalmente iguais), mas que essa diferenças. Tal processo é sempre contingen-
igualdade, como fundamento da democracia, te, ou seja, não há previsibilidade, condição a
seja o meio para acessar recursos que lhes são priori, ou ainda identidade com privilégio de
negados. Nesse sentido, existem desigualda- liderança. As demandas estabelecem uma re-
des materiais de toda ordem que os “iguais” lação de articulação, pois têm ponto ou pon-
Caderno CRH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 185-201, Jan./Abr. 2019

tos de antagonismo em comum. Esses pontos


11
Laclau parte da “demanda social” como unidade mínima
de análise. Demanda tem dois sentidos: solicitação e exi- de antagonismo igualmente não podem ser
gência. Assim, primeiramente, é demandado (solicitado)
da institucionalidade determinadas medidas, as quais, se determinados de forma apriorística, pois tam-
não satisfeitas, podem gerar o segundo nível da demanda
que é o da exigência. Este segundo nível, fruto da frustra- bém dependem dos tipos de demandas arti-
ção de uma solicitação, é, para Laclau, condição funda- culadas (ainda que o Estado sempre exerça o
mental do início da constituição de uma lógica populista
(Laclau, 2013). papel destacado no polo antagônico, visto que
12
A análise do autor sobre o populismo teve o objetivo de as características inclusivas das demandas que
ir além de qualquer empirismo, focando-se nos aspectos
formais e ontológicos: “o conceito de populismo que estou evocam a vontade dos iguais direcionam-se ao
propondo é estritamente formal, já que todas as suas ca- Estado em suas mais distintas esferas de ação).
racterísticas definidoras estão relacionadas exclusivamen-
te a um modo específico de articulação – a privilégio da A articulação de demandas é uma opera-
lógica equivalencial sobre a lógica diferencial – indepen-
dentemente dos conteúdos reais que se articulam. Este é ção que pressupõe a ocorrência concomitante
o motivo pelo qual [...] afirmei que o ‘populismo’ é uma
categoria ontológica e não ôntica” (Laclau, 2005, p. 44, tra- de duas lógicas distintas: a da equivalência e
dução nossa). a da diferença (Laclau, 2013; Laclau; Mouffe,
13
Isso significa que a vontade dos iguais é um tipo de po- 2015). A primeira representa a suspensão da
pulismo de esquerda cujo objetivo, ao contrário de experi-
ências populistas conservadoras e retrógadas, é incluir os diferença de cada demanda articulada (tal sus-
“iguais” excluídos, no sentido da dualidade da igualdade,
como abordamos acima. pensão é essencial para que haja a própria ar-

198
Daniel de Mendonça

ticulação). Já a lógica da diferença indica jus- qualitativo, exerce a tarefa de representar o


tamente que a articulação é um processo que que lhe é incomensurável (Laclau, 1990). Em
ocorre entre diferenças, o que sugere uma prá- nosso exemplo hipotético, a democracia é esse
tica sempre instável, precária e contingente. ponto nodal que unifica as demandas contra o
inimigo comum, o autoritarismo. A luta pela
Figura 1 - Representação de um processo articulatório
democracia, nesse sentido, é vista, por cada
demanda, como a possibilidade de seu cum-
primento, mesmo que “democracia” não sig-
nifique (tampouco significará) o cumprimento
específico de cada uma delas.
Uma questão fundamental no processo
articulatório é que ele deve ser visto sempre
como precário e contingente. Dessa forma, não
Fonte: Elaborada pelo autor (2017), inspirada em Laclau (2013, p. 196).
há demanda ou identidade que tenha, de an-
temão, prioridade no processo de representa-
No diagrama acima, temos a represen- ção hegemônica. Em nosso exemplo, o fato de
tação de um processo articulatório. A linha a luta pela democracia ter se tornado o ponto
contínua, que separa “Autoritarismo” e “De- nodal significou que, entre as demandas arti-
mocracia”, é chamada de antagonismo. Segun- culadas, essa, insistimos, de forma contingen-
do Laclau e Mouffe (2015), só há política na te, passou a exercer a tarefa de representação
medida em que existem relações antagônicas. hegemônica que poderia ter sido exercida por
O antagonismo é uma presença que nega uma qualquer outra, mas que coube, naquelas cir-
existência. No caso de nosso exemplo, as de- cunstâncias, à luta pela democratização de um
mandas articuladas abaixo da linha antagônica Estado que passava por um regime autoritário.
têm em comum a luta contra o regime autoritá- Entendemos ser o processo articulató-
rio que as nega ou que é incapaz de satisfazê- rio, no sentido expresso por Laclau e Mouffe
-las. O antagonismo, portanto, é a prima ratio (2015), o meio mais adequado para compre-
para a existência da política. ender manifestações políticas que evocam a
Os círculos acima de “D1=D2=D3… vontade dos iguais. Esse processo redunda na
D6...” representam cada uma das demandas constituição de um povo, uma identidade polí-

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articuladas. Notemos que cada círculo possui tica que reivindica ser a expressão de uma to-
duas metades divididas por uma linha central. talidade, em última medida, impossível, ainda
A metade superior indica a relação equiva- que necessária.
lencial, ou seja, cada uma das demandas ar-
ticuladas suspende suas particularidades para
Recebido para publicação em 29 de maio de 2017
tornar-se um polo da relação equivalencial. Já Aceito em 08 de abril de 2019
a metade inferior indica que, ainda que arti-
culadas, cada demanda mantém sua diferença
em relação às demais. “D” é o ponto nodal, o REFERÊNCIAS
qual, na linguagem de Laclau e Mouffe (2015),
é um ponto discursivo privilegiado, que repre- CANOVAN, M. Trust the people! Populism and the two
faces of democracy. Political studies, v. 47, n. 1, p. 2-16,
senta todas as demandas articuladas na cadeia. 1999.
Ele assume a função da representação hegemô- ______. Populism. London: Junction books, 1981.

nica, ou seja, uma representação que não é o CRITCHLEY, S. Infinitely demanding: ethics of
commitment, politics of resistance. London: New York:
resultado da soma das demandas, num senti- Verso, 2012.
do quantitativo, mas, sob um ponto de vista CROUCH, C. Post-democracy. Cambridge: Polity press, 2004.

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DEMOCRATAS TÊM MEDO DO POVO? ...

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Daniel de Mendonça

DO DEMOCRATS HAVE AFRAID OF PEOPLE? LES DEMOCRATES ONT-ILS PEUR DU PEUPLE?


A defense of populism as political resistance Une defense du populisme comme resistance
politique

Daniel de Mendonça Daniel de Mendonça

This article aims at presenting left-wing populism Cet article vise à présenter le populisme de gauche
as political resistance against established regimes. comme résistance politique contre les régimes
For that, the text is divided into three main parts. établis. Pour cela, le texte est divisé en trois
Firstly, we discuss the current situation of liberal parties principales. Tout d’abord, nous discutons
democracies. After we treat some theoretical and de la situation actuelle des démocraties libérales.
practical deadlocks of populism to present our Après,nous traitons certaines impasses théoriques
conceptual vision of this phenomenon, that is, a et pratiques du populisme pour présenter notre
discursive political logic which constitutes the vision conceptuelle de ce phénomène, il s’agit, une
people antagonistically against their enemies. In logique politique discursive qui constitue le peuple
the last part, we introduce the notion of the will de manière antagoniste contre ses ennemis. Dans
of equals, firstly discussing the duality of equality la dernière partie, nous introduisons la notion de
(the democratic invention of equality as principle volonté des égaux, en abordant d’abord la dualité
and equality as the horizon). Following, we analyse de l’égalité (la invention démocratique de l’égalité
the structure of the will of equals, a particular comme principe et de l’égalité comme horizon).
type of left-wing populism, which we understand Nous analysons ensuite la structure de la volonté
to be able to uncover aspects referring to different des égaux, un type particulier de populisme de
demonstrations that have been occurring around gauche, que nous pensons pouvoir découvrir
the World since Arab Spring. des aspects faisant référence aux différentes
manifestations qui se sont déroulées dans le monde
depuis le Printemps arabe.

Keywords: Populism. Democracy. Political resistance. Mots-clés: Populisme. Démocratie. Résistance politique.
The will of equals. Volonté des égaux.

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Daniel de Mendonça – Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
estágio pós-doutoral em Ideology and Discourse Analysis na University of Essex. Professor Associado
e docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal
de Pelotas. Interessa-se e pesquisa sobre os seguintes temas: pós-estruturalismo e o político, teoria do
discurso, ideologia e populismo. Principal publicação: O momento do político: evento, indecidibilidade
e decisão. Dados, Rio de Janeiro, v. 57, p. 745-771, 2014. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9251787953915517

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