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Daniel de Mendonça*
O objetivo deste artigo é apresentar o populismo de esquerda como resistência política contra regimes estabele-
cidos. Para cumprir esse objetivo, o texto está dividido em três seções principais. Primeiramente, discorremos
acerca do atual estado das democracias liberais. Na sequência, tratamos dos impasses teóricos e práticos do
populismo para, após, apresentar nossa visão conceitual do fenômeno, ou seja, uma lógica político-discursiva
que constitui o povo antagonicamente a seus inimigos. Na última seção, apresentamos a noção de vontade
dos iguais, primeiramente discorrendo sobre a dualidade da igualdade: a invenção democrática da igualdade
como princípio e a igualdade como horizonte. A seguir, analisamos a estrutura da vontade dos iguais, um tipo
específico de populismo de esquerda, o qual entendemos ser capaz de iluminar aspectos referentes às distintas
manifestações que têm tido lugar no mundo desde a Primavera Árabe.
Palavras-chave: Populismo. Democracia. Resistência política. Vontade dos iguais.
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v32i85.22403 185
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taremos dos impasses teóricos e práticos do direita, que articula a libertação de um povo a
populismo para, em seguida, apresentar nos- partir da perseguição xenófoba de imigrantes
sa visão acerca desse fenômeno político. Na pobres que ocupam as posições mais baixas no
última seção, apresentaremos nossa noção de mercado de trabalho.
vontade dos iguais, primeiramente discorren- O ponto fundamental – relativamente
do sobre a dualidade da igualdade: igualda- óbvio, ainda que passe, não raras vezes, des-
de como princípio e invenção democrática e percebido –, é que não há significantes com
igualdade como horizonte. A seguir, analisare- significados inequívocos: esses últimos só po-
mos a estrutura da vontade dos iguais, um tipo dem ser conhecidos de forma contingente. E
específico de populismo igualitário, o qual a atribuição contingente de sentidos é sempre
entendemos ser capaz de iluminar aspectos resultado de uma luta política. Pensemos sobre
referentes às distintas manifestações que têm o atual estado das democracias realmente exis-
tido lugar nos mais diversos lugares desde a tentes a partir da contingência a que estamos
Primavera Árabe. nos referindo. Tomaremos o modelo democrá-
tico de Robert Dahl (2001) como exemplar, não
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somente como um representante do discurso dãos – não pode ser simplesmente considerada
hegemônico da teoria democrática, mas tam- “formal”, como se o “formal” fosse, a despeito
bém como exemplo da forma como os regimes de todas as instituições ausentes e que poderí-
democráticos ocidentais estão estruturados. amos incluir, “imparcial”. A maneira como o
O modelo da poliarquia de Dahl (2001) é “formal” de uma classificação minimalista da
exemplar, pois ele se assenta numa indisfarça- democracia se apresenta não tem nada de im-
da tentativa de realmente explicar as democra- parcial: é uma decisão política. E aqui retorna-
cias representativas liberais. O elemento nor- mos ao argumento inicial desta seção. Articu-
mativo dahlsiano diz respeito ao quão mais ou lar elementos diferenciais formais, excluindo
menos distantes os Estados estão dos critérios outros, é uma forma parcial e contingente de
que os classificam, ou não, como poliarquias. construção de um discurso particular sobre a
Dahl é absolutamente consciente do fato de democracia. Quando democracia é um discur-
que tais critérios nunca serão suficientemente so que compreende tão somente as instituições
alcançados, o que indica uma distância entre da lista de Dahl, certamente ele exclui outros.
democracias reais e ideais.2 Assim, a poliar- Incluir e excluir são decisões que marcam um
quia é medida pela distância entre a experiên- comprometimento político específico. No caso
cia (ou realidade empírica) e o ideal, ou seja, das democracias existentes, não há a rigor, por
um Estado será ou não poliárquico sempre em exemplo, qualquer compromisso formal dos
relação aos demais Estados que supostamente regimes com a erradicação da pobreza de uma
cumpram os requisitos normativos estatuídos parte nada irrelevante de seus cidadãos.
pelo modelo normativo. O exercício de “isolar” a política em um
Nesse sentido, segundo Dahl (2001, compartimento específico, como se ela não fos-
p. 99), as seis instituições necessárias e bem se constantemente contaminada pelas relações
conhecidas para qualquer poliarquia são: reais estabelecidas com outras dimensões – tais
“funcionários eleitos; eleições livres, justas e como a economia e, mais especificamente, com
frequentes; liberdade de expressão; fontes de o capitalismo neoliberal em escala global –,
informação diversificadas; autonomia para pode ser comparado com a tentativa de analisar
as associações e; cidadania inclusiva”. Tais o corpo de um animal decepado. Dito de outra
instituições são, a princípio, tão somente po- forma: a política não existe como um reino que
líticas, no sentido de que, conforme o autor, pode ser simplesmente isolado e conhecido de
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Uma consequência imediata das demo- termos, que é resultado de uma forma parcial
cracias existentes é o tipo de cidadão. O cida- de considerar os significantes “democracia” e
dão democrático é tomado sempre de forma “cidadão” a partir de uma perspectiva liberal.
isolada, seja pelo mainstream da ciência polí- Assim, entendemos ser fundamental
tica, seja no dia a dia do funcionamento dos para a imaginação democrática “libertar” o sig-
regimes. Ainda que possamos empiricamente e nificante “cidadão democrático” das amarras
de forma nada contraintuitiva identificar a fór- do liberalismo, visto que ele é historicamente
mula “um indivíduo = um cidadão”, como se anterior ao liberalismo, além de guardar senti-
ela fosse óbvia e neutra, também não há, aqui, dos distintos daqueles estabelecidos pela he-
qualquer neutralidade. Novamente estamos gemonia liberal. Não há qualquer novidade te-
diante de uma decisão política, de uma manei- órica na promoção dessa separação, visto que
ra de considerar uma ideia particular de cida- diversos autores já discorreram sobre a articu-
dão em um modelo particular de democracia. lação entre os princípios democrático (igualda-
Vejamos, em linhas gerais, quem é esse cidadão de) e liberal (liberdade).4 O que apontaremos
democrático e suas consequências políticas. aqui é algo diferente: podemos, ao mesmo tem-
O cidadão é, no contexto das democra- po, falar em “cidadão democrático” e “cidadão
cias ocidentais e das teorias políticas liberais liberal” como significantes distintos, mesmo
que lhes dão suporte, essencialmente um no contexto das democracias representativas
adulto com direitos políticos. É fundamental liberais. Vejamos, portanto, o que os distingue.
ainda levar em consideração que tais direitos Além de atomizado e perseguidor de
são individualmente atribuídos, mesmo aque- seus próprios interesses, o cidadão liberal – ao
les considerados coletivos, como a “autonomia contrário do democrático, como veremos mais
para as associações”. No caso desse último, au- adiante – é politicamente inerte. Também não
tonomia para associar-se significa que cada in- há qualquer novidade aqui, visto que a teoria
divíduo tem o direito de associar-se com outros elitista da democracia parte desse pressuposto.
indivíduos, ou seja, o ato associativo é fruto de Joseph Schumpeter (1984), por exemplo, afir-
uma soma de decisões individuais.3 Nesse sen- ma claramente que, excetuando os assuntos
tido, é crucial considerar que a relação política concernentes a seu interesse imediato, de sua
nas democracias é aquela do Estado com cada família, de seu local de trabalho, o “cidadão
um de seus cidadãos. Os direitos são sempre típico”, nas democracias, não tem capacidade
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e, desde já, individuais e aqueles considerados de refletir sobre a política. Tal incapacidade
coletivos são sempre e, desde já, coletivos, no não está associada à ignorância, à falta de cul-
sentido de serem o resultado da soma de indi- tura ou à estupidez, mas ao desinteresse desse
vidualidades. A relação entre Estado e cidadão indivíduo em relação aos assuntos políticos. A
é, assim, pois o cidadão democrático é visto consequência é descrita de forma crua e impla-
exclusivamente como um indivíduo atomiza- cável pelo economista austríaco:
do e que persegue seus interesses individuais e
Desse modo, o cidadão típico cai para um nível
familiares. Dessa forma, quando o mainstream mais baixo de desempenho mental assim que entra
da ciência política contemporânea está men- no campo político. Argumenta e analisa de maneira
cionando o “cidadão democrático”, devemos que prontamente reconheceria como infantil, se fos-
ler, mais exatamente, o “cidadão liberal”. Há se na esfera de seus interesses reais. Mais uma vez
uma operação de equivalência entre ambos os se torna primitivo. Seu pensamento torna-se asso-
ciativo e afetivo. (Schumpeter, 1984, p. 328)
3
No limite, algo dramaticamente egoísta como Thomas
Hobbes (2002, p. 28), mencionou no Do cidadão: “Toda
associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – 4
Chantal Mouffe (2000), por exemplo, em vários trabalhos,
isto é: não tanto para o amor de nossos próximos, quanto menciona essa articulação contingente entre os princípios
pelo amor de nós mesmos”. da liberdade liberal e da igualdade democrática.
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mocracias existentes por serem elas avessas à seus próprios interesses privados e os do capi-
vontade popular e fundadas antes no império talismo nacional e internacional. A represen-
da lei do que no do demos. O ponto é que a lei tação parece ser uma mera formalidade sem
não é uma decisão imparcial, mas sempre o re- qualquer compromisso do representante para
sultado do que Rousseau (1978) chamou de o com os seus pretensos representados. É aqui
“direito do mais forte”. Em nossas sociedades, que a sinceridade de um conservador como
a lei e a democracia liberal estão diretamen- Robert Michels (1982) ilumina um aspecto que
te a serviço dos “mercados”, ou seja, dos mais é evidente, porém mantido comodamente na
ricos, numa inversão olímpica do que um dia escuridão. Para Michels (1982), a democracia
representou a ideia de democracia como o go- é o autogoverno das massas. No entanto, como
verno do povo, dos mais pobres. É, nesse senti- argumentou o sociólogo alemão, quando o ci-
do, que o termo pós-democracia, cunhado por dadão vota em um representante, ele simples-
Colin Crouch (2004), demonstra claramente a mente aliena sua soberania. Deixa de governar.
quem interessam e se destinam os regimes de- O regime, portanto, deixa de ser uma democra-
mocráticos realmente existentes: cia. Nada mais óbvio. Ou, “nada é mais traiço-
eiro que o óbvio”, como certa feita nos disse
Sob esse modelo [a pós-democracia], enquanto elei-
ções certamente existem e podem mudar governos,
Schumpeter (1984, p. 295).
o debate público eleitoral é um espetáculo rigida-
mente controlado, conduzido por equipes rivais
de profissionais peritos em técnicas de persuasão, POPULISMO E CONSTRUÇÃO DA
considerando-se ainda uma pequena variedade de VONTADE DO DEMOS
assuntos selecionados por essas equipes. A massa
de cidadãos participa de forma passiva, silenciosa
e mesmo apática, respondendo apenas aos sinais
A partir do exposto, define-se que o ob-
apresentados a ela. Por trás do espetáculo do jogo jetivo central deste texto é o de apresentar o
eleitoral, a política é de fato feita de forma privada populismo como resistência política contra
na interação entre os governos eleitos e as elites que situações de desigualdade e de injustiça no
esmagadoramente representam os interesses empre- contexto das (pós) democracias existentes.
sariais. (Crouch, 2004, p. 4, tradução nossa)
Para que possamos chegar a esse ponto, preci-
As pós-democracias em que vivemos samos antes esclarecer o que entendemos por
formalmente remetem-se à vontade do povo, populismo. Parte desse esclarecimento tem a
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como se essa vontade pudesse ser representa- necessária tarefa de desmistificar esse termo
da simplesmente pela eleição de “representan- que, não raras vezes, sob os pontos de vista
tes” em processos eleitorais em que cidadãos teórico e político, é também visto como uma
desinformados são instados a decidir entre ofensa. “Populismo” é uma categoria carregada
candidatos, forjados em convenções partidá- de ideologia(s), usada para descrever distintas
rias, e que estão intimamente vinculados aos experiências políticas, o que tornou esse termo
interesses de grandes empresas e investidores polissêmico, enfraquecendo sobremaneira seu
financeiros. Um dos sinais mais cínicos de potencial heurístico para estudos de fenôme-
nossas (pós) democracias reside na não dis- nos sociopolíticos.
cussão sobre a efetividade da representação. Desmistificar o populismo é, como dis-
No Brasil, escândalos de corrupção em escala semos, primeiramente, realizar a operação da
monumental, envolvendo políticos, donos e retirada da carga negativa que pré-noções à
altos funcionários de grandes corporações em- esquerda e à direita lhe atribuíram. À esquer-
presariais são provas diárias de que os “repre- da, a acusação mais comum é a de que, a des-
sentantes do povo” representam, na verdade, peito de o populismo articular politicamente o
povo, tal articulação nunca é, em última análi-
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se, com o objetivo da emancipação desse povo, Antes de chegar à nossa compreensão
mas para o próprio benefício do líder e da elite de populismo, é importante lembrar, mesmo
política a ele associada. A “verdadeira” eman- de forma sucinta, que esse tema interessa par-
cipação popular deveria, ao contrário, prescin- ticularmente às Ciências Sociais latino-ameri-
dir de líderes carismáticos que iludem o povo canas, seja pelos exemplos clássicos de lide-
para promover políticas que, ao fim e ao cabo, ranças populistas – como a de Getúlio Vargas,
não seriam nada populares. no Brasil, e a de Juan Domingos Perón, na Ar-
À direita, temos a crítica liberal. Para os gentina –, seja pela rica literatura sociológica
liberais, o maior problema de qualquer experi- e política produzida (por ex. Di Tella, 1969;
ência populista é a constante afronta e o des- Germani, 1973; Ianni, 1987; Weffort, 1980).
respeito às instituições democráticas represen- As abordagens clássicas sobre o populismo na
tativas. O populismo promove uma perigosa América Latina consideram o fenômeno como
ligação entre o líder e a massa, passando por uma particularidade histórica do desenvolvi-
cima das normas legais, cujo respeito, defen- mento de um processo incipiente e tardio de
dem os liberais, é fundamental para que possa- industrialização na região na primeira metade
mos assegurar a normalidade democrática. O do século passado, aliado a uma massa urbana
populismo seria uma forma perigosa e engano- desorganizada, recentemente saída do cam-
sa de “pular etapas”, ou seja, com a promessa po e completamente alheia a seus interesses
de “dar ao povo o que é do povo” de forma ime- de classe. A despeito das diferentes interpre-
diata, líderes populistas desrespeitam institui- tações teóricas que têm esse pano de fundo,
ções e enfraquecem a democracia.5 principalmente nas análises do populismo
O que há em comum nas críticas apre- brasileiro, o que há de comum entre elas é o
sentadas acima é a associação que ambas fazem fato de que o fenômeno era considerado tran-
entre as experiências populistas e o “engano” sitório e, portanto, próprio do momento de um
que essas dolosamente provocam no povo. É capitalismo subdesenvolvido.
de se perguntar, no entanto, o que “enganar” de Tal característica, presente nessas aná-
fato significa? E o cidadão liberal, por exemplo, lises clássicas do populismo latino-america-
está livre de idêntico engano nas democracias no, fez com que, mais recentemente, o teórico
ocidentais? E se as instituições estiverem à ser- político uruguaio Francisco Panizza (2005) as
viço dos interesses daqueles que as ocupam?6 classificasse como abordagens historicistas. O
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cos sobre o assunto indicam que ele ocorre em O ponto fundamental para chegarmos
zonas urbanas (peronismo, varguismo) e rurais na especificidade do populismo está, nesse
(o narodniki, na Rússia, o People’s Party, nos sentido, no entendimento da categoria povo.
Estados Unidos) e pode ser de esquerda (cha- Comumente, a partir da hegemonização da tra-
vismo, kirchnerismo) ou de direita (Jean-Marie dição jurídico-liberal, a expressão povo reme-
Le Pen, na França, Pim Fortuyn, na Holanda). te-se ao conjunto dos cidadãos de um Estado
Assim, primeiramente, as pesquisas empíricas democrático. Essa concepção numérica não é
indicam que uma teorização geral sobre o po- somente hegemônica nos regimes democráti-
pulismo deve ir além dessas experiências, no cos: ela está também sedimentada.8 Trata-se de
sentido de que elas nos fornecem, ao mesmo uma forma despolitizada (ou que visa a evitar
tempo, elementos que, por um lado, devem ser a politização) de considerar o povo por três ra-
abandonados para a elaboração de uma teoria zões principais. Primeiramente, por partir do
geral do populismo (tais como, por exemplo, a indivíduo liberal, um sujeito atomizado que,
atribuição de uma ideologia ao populismo) e, como vimos a partir dos próprios próceres te-
por outro lado, nos permitem realmente pen- óricos elitistas, não tem qualquer interesse em
sar o populismo teoricamente, de uma forma questões políticas. Além disso, considera e
ampla, que torne possível revigorar essa cate- restringe a expressão da vontade popular sim-
goria, tornando-a heuristicamente útil. plesmente ao voto, um expediente esporádico
Vários autores têm pensado o populismo que não retrata necessariamente a vontade de
para além de suas experiências concretas.7 No um povo, mas o resultado de uma soma de vo-
entanto, não há formulação teórica contem- tos de cidadãos liberais desarticulados e mal
porânea tão consistente como a elaborada por informados. Por fim, considerar povo como
Ernesto Laclau. Entendemos que, a partir de A meramente o conjunto de todos os cidadãos
razão populista (Laclau, 2013), o populismo al- de um Estado legitima que um governante
cançou o ápice de sua formulação como cate- simplesmente desconsidere ou não reconheça
goria analítica. A estratégia laclauniana isolou uma manifestação pública como popular, visto
o cerne de seu sentido, ou seja, aquele que está que, em manifestações, sempre haverá, con-
presente em todas as experiências chamadas de siderando o conjunto da população, uma pe-
populistas. O populismo é percebido pelo au- quena parcela do que, segundo essa concepção
tor como uma lógica política que divide antago- jurídico-liberal, seria o povo.
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nicamente o campo social entre o povo e o seu Aqui chegamos ao momento crucial em
inimigo. Assim, independentemente dos con- que discernimos o que acima chamamos de
teúdos políticos reais articulados, o populismo “cidadão liberal” do que chamaremos, a par-
é sempre a construção política de um povo. O tir de agora, de “cidadão democrático”. O ci-
que Laclau (2013) percebe com muita clareza é dadão liberal, como vimos, é apático, egoísta,
que o populismo é uma lógica que compreende atomizado e inerte em relação à política. Já o
múltiplas possibilidades ideológicas nacionais cidadão democrático é politicamente engajado
cuja ocorrência se dá nos lugares mais distin- a ponto de, no limite, ser antissistêmico, como
tos. Portanto, não há qualquer possibilidade a veremos mais adiante. O povo é o resultado da
priori de estabelecer se o populismo é positivo articulação dos cidadãos democráticos. Vol-
ou negativo: experiências populistas podem ser tando à lógica laclauniana, o povo é a cons-
conservadoras ou progressistas, de direita ou trução exitosa da parte (a plebs) que assume
de esquerda, e assim por diante. a condição do todo (o populus). Tal constru-
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As análises de Margaret Canovan (1999), Cas Mudde 8
A ideia de sedimentação, conforme Laclau, inspirado em
(2004) e Paul Taggart (2000) são exemplos de empreitadas Husserl, pressupõe um esquecimento das origens, ou seja, a
que buscam estabelecer elementos teóricos gerais do po- naturalização de uma decisão que não tem nada de natural,
pulismo para além de experiências específicas. pois que é fruto de uma contingência política (Laclau, 1990).
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na América Latina. Nossa intenção, conduzida no mesmo patamar indivíduos diferentes (em
por um compromisso ético em nome da polí- distintos aspectos) como cidadãos. Nos regi-
tica e da democracia, é defender o populismo mes democráticos realmente existentes, esse
de esquerda como forma de resistência política mesmo patamar não se verifica. Um cidadão,
em nome de políticas de reconhecimento e de na prática, é diferente em direitos de outro, o
inclusão social. Essa articulação político-dis- que nos leva à conclusão de que a democra-
cursiva populista é, conforme nossa leitura, cia, como forma de socialização, é impossível
resultado da vontade dos iguais. de ser verificada, de fato, em regimes políticos
A vontade dos iguais é a expressão da- estabelecidos. Impossível, porém, como vere-
queles que se autointitulam povo e são reco- mos, necessária.
nhecidos como tal pela comunidade política. A É difícil lidar com a questão democráti-
vontade dos iguais apresenta-se a partir de um ca, ainda mais se ela é posta em relação com as
discurso hegemônico. A ocorrência populista demais formas de governo e regimes políticos.
da vontade dos iguais, até mesmo pelo fato de O fato é que ela se assenta em um fundamento
ser um discurso de resistência política, dá-se que, na verdade, é sem fundamento ou, para
necessariamente à parte e contra as estruturas usar uma expressão heideggeriana, o funda-
políticas institucionalizadas, inclusive questio- mento que é um abismo, um Abgrund (Heideg-
nando as próprias instituições como locais efe- ger, 1999).9 Não há, assim, na democracia, um
tivamente representativos da vontade do povo. princípio de governo baseado em qualidades
Assim, comecemos pela ideia de igualda- (riqueza, honra, linhagem, capacidade distin-
de. No contexto de nossa discussão, igualdade tiva). O que há, de fato, é um nivelamento a
pressupõe uma dualidade de sentidos: igualda- partir da ideia de igualdade, tal como obser-
de como fundamento democrático e igualdade vou Rancière (1996). A igualdade é o funda-
como horizonte de uma democracia ainda não mento que nivela a todos democraticamente,
cumprida. Na democracia, portanto, igualdade justamente porque parte do pressuposto de
é o princípio e também o fim. Começa-se igual que são iguais inclusive àqueles que, em ou-
e busca-se insistentemente a igualdade. tros aspectos, são desiguais. Isso não se refere,
A igualdade, como fundamento, é li- por exemplo, à desigualdade entre os que são
teralmente uma invenção democrática. Nas cidadãos distintos (princípio da aristocracia)
demais formas de governo – se tomarmos as em comparação aos ricos (princípio da oligar-
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clássicas, de onde a democracia também sur- quia), mas à inclusão, nessa “estranha igualda-
giu –, são distintos os fundamentos: linhagem de”, daqueles que não são nem distintos, nem
(monarquia), liderança militar (timocracia), ricos, nem nada. Simplesmente são, em suas
homens de bem (aristocracia), riqueza (oligar- próprias existências (Rancière, 1996). Esse ar-
quia). A democracia pressupõe igualdade entre gumento está claramente presente em Platão e
os cidadãos, mas não uma igualdade de bens, em Aristóteles, para os quais os indivíduos são
de recursos, de posição, não sendo, portanto, naturalmente desiguais, e tais desigualdades
uma homogeneização que possa supor uma so- podiam ser verificadas politicamente em todas
ciedade planificada. A igualdade democrática as formas de governo, exceto na democrática.
é aquela expressa pela fórmula “cidadão = ci- Parece que, nesse sentido, a democracia repre-
dadão”. Tal fórmula, ainda que presente num sentava uma quebra na hierarquia derivada da
nível formal nos regimes assumidamente de- natureza das coisas, o que leva Platão, inclusi-
mocráticos, só pode ser verdadeiramente con- ve e de forma indignada, na ordem das formas
siderada se tomarmos a democracia não como
um regime político, mas como uma forma es- 9
A noção heideggeriana de Abgrund e sua utilidade para
a teoria política foi desenvolvida em detalhes por Laclau
pecífica de socialização que coloca exatamente (2014) e Marchart (2007).
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de governo, a relegar a democracia à condição ponto de partida para estabelecer esse lugar é
de antessala da tirania. novamente Rancière (1996, 2004). Para o filó-
A igualdade como fundamento da de- sofo francês, a igualdade não é um locus onde
mocracia é, num sentido heideggeriano, um devemos chegar ou uma condição a alcançar,
Abgrund, uma vez que esse fundamento é, mas um ponto de partida. Aliás, para Rancière,
como dissemos há pouco, um abismo. Assim, a desigualdade é somente possível tendo em
se a igualdade é fundamento e o fundamen- vista a igualdade: “a igualdade é a condição da
to é igualdade – para tomarmos de emprésti- própria desigualdade. Para obedecer a uma or-
mo o quiasmo do filósofo alemão e aplicá-lo dem, é preciso compreendê-la e compreender
à igualdade –, a igualdade não pode ter seu que devemos obedecê-la. Então, precisamos de
fundamento fora de si mesma, o que signifi- um mínimo de igualdade sem a qual a desigual-
ca, no limite, que o sentido de igualdade varia dade se tornaria vazia” (Rancière, 2004, tradu-
de experiência para experiência democrática. ção nossa). A igualdade, portanto, se dá sobre o
Nas democracias representativas liberais, a conteúdo do mandato entre aquele que manda
igualdade está baseada no princípio “todos são e aquele que obedece; só se produz a desigual-
iguais perante a lei”, o que significa algo dife- dade a partir de um consentimento originado
rente de “todos são iguais”. Nesse caso, a lei é na igualdade. Tal compreensão mútua (entre
o meio de ser igual; um meio que, na verdade, quem manda e quem obedece) está fundada
não é propriamente um meio, mas um obstácu- no que Rancière – inspirado no educador fran-
lo à igualdade. cês do século XIX, Joseph Jacotot – chama de
A percepção da igualdade democrática igualdade das inteligências. Tal princípio, ori-
como Abgrund é fundamental à compreensão ginalmente pedagógico, é levado por Rancière
da dualidade de sentidos acima expressa. Por para o campo social. Assim, se, por um lado, a
um lado, a igualdade, vista como fundamento igualdade é a própria causa da desigualdade,
da democracia, deve ser entendida no sentido por outro lado, é também a igualdade o meio de
de que a “igualdade” nunca alcançará um sig- romper com a forma pela qual está estabeleci-
nificado último, pois é sempre um significante da a partilha sempre desigual do sensível: “[E]
à espera de significados provisórios e contin- xiste política porque – quando – a ordem natu-
gentes. É justamente por essa impossibilida- ral dos reis pastores, dos senhores de guerra ou
de de fechamento de sentidos – pelo fato de das pessoas de posse é interrompida por uma
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cia, é preciso haver cidadãos sábios e a própria mamos de a igualdade como horizonte de uma
ideia de sabedoria, para, depois, um governo democracia ainda não cumprida. Para compre-
ser fundado a partir desse princípio. Na demo- ender tal horizonte, é preciso analisar a cons-
cracia, no entanto, não há fundamento, além trução da “vontade” dos iguais, a qual se dá a
da política, que a fundamente. A igualdade, partir da articulação política de um povo (La-
sendo esse princípio, é uma decisão propria- clau, 2013; Laclau; Mouffe, 2015).
mente política, um fundamento politicamente Em nossos termos, horizonte não é abso-
criado: uma invenção. lutamente um ponto de chegada definido, um
A igualdade democrática é a decisão de projeto delimitado a ser cumprido. Nesse sen-
ignorar as desigualdades e as diferenças como tido, não há qualquer possibilidade de efetiva-
princípio de poder. Notemos, no entanto, que ção de uma “democracia” completa, da mesma
ignorá-las não é o mesmo que negá-las: a de- forma que resulta impossível uma “igualdade”
mocracia não apaga as desigualdades e as di- final. O horizonte aponta, ao mesmo tempo,
ferenças; ao contrário, as evidencia, ainda que para o impossível e para o necessário: demo-
não de forma “natural”, como nas demais for- cracia e igualdade, nesse sentido, são impos-
mas de governo. É por essa razão que não bas- síveis e necessárias. A impossibilidade se dá
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pelo mesmo argumento acima exposto do Ab- da vontade dos iguais, e a segunda, quem são,
grund heideggeriano: não há fundamento tanto de fato, os “iguais” que a evocam.
para a democracia como para a igualdade, e é A imagem da vontade dos iguais é a de
justamente essa ausência de fundamento final uma manifestação de tipo populista, ou seja,
que torna possível a existência de fundamen- aquela que se reivindica “o povo” contra seus
tos precários e contingentes em experiências inimigos. Dessa forma, um protesto de profes-
democráticas e igualitárias. A necessidade está sores por aumento de salários e pela qualifica-
na tentativa sempre ineficaz de fechamento ção do ensino não é um exemplo da expressão
de sentidos, que permanecem estruturalmen- da vontade dos iguais, assim como qualquer
te abertos, incapazes de dominar o campo da manifestação identitária não pode ser igual-
discursividade que eles ocupam. A política, mente confundida como tal. O que marca a
nesse particular, é uma possibilidade presen- construção da vontade dos iguais é a articula-
te em um mundo de sentidos sempre abertos. ção de múltiplas demandas em nome de uma
Esse é o caráter do horizonte: uma permanente igualdade que não está sendo verificada pelo
abertura a um futuro imprevisível. poder político. A vontade dos iguais redun-
Tendo em vista a abertura radical que da na constituição de um espaço político de
indica a ideia de horizonte, torna-se possível enunciação discursiva apartado e antagônico
a produção de vontade, essa última, da mes- em relação aos canais ordinários da represen-
ma forma, radicalmente aberta. No contexto tação política. Não há qualquer conteúdo polí-
dessa discussão, vontade é sempre coletiva, a tico dado antes da articulação diferencial que
expressão de uma subjetividade popular con- produz o discurso populista da vontade dos
tingente. Dessa forma, a vontade dos iguais é iguais; ele será conhecido como resultante da
o resultado da articulação de sentidos a par- própria articulação, como veremos na sequ-
tir da construção de significantes vazios10 que ência desta seção. Já os “iguais” que evocam
simplificam um sem número de demandas até a vontade dos iguais são, de fato, aqueles que
então dispersas. reivindicam a igualdade como fundamento da
A questão fundamental acerca da vonta- democracia. Reivindicam a igualdade, alegan-
de dos iguais refere-se à estrutura de sua ocor- do que, por serem iguais, já deveriam tê-la,
rência. Trata-se, primeiramente, da constituição ainda que, de fato, pelas circunstâncias em que
de uma subjetividade política sistemicamente vivem, sejam desiguais. A vontade dos iguais é
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DEMOCRATAS TÊM MEDO DO POVO? ...
cias de poder.11 Ainda que concordemos com a buscam minimizar, pois, politicamente, existe
noção de “demanda social” como unidade mí- esse espaço (o direito de manifestação) ainda
nima da análise de uma lógica populista que que formalmente construído.
evoca a vontade dos iguais, entendemos ser Não é, por exemplo, seguindo as leis e
desnecessária a ideia original do filósofo com a estrutura da economia que haverá inclusão
respeito à conversão da demanda de “solici- econômica e social; é somente pelo rompimen-
tação” para “exigência”. Pois entendemos ser to do que a política representa (no sentido que
irrelevante saber se, primeiramente, houve um estamos propondo) que se tornam possíveis
pedido que, em seguida, se converteu em exi- mudanças efetivas. Rompimento político sig-
gência, até pelo fato de que muitas demandas nifica a necessidade de construir novos canais
já nascem como exigências desde o princípio. de expressão em relação aos canais tradicio-
Sendo a análise laclauniana do populismo de nais, tais como os parlamentos. Não há con-
caráter ontológico,12 não haveria qualquer ra- dição de mudar o jogo seguindo suas regras;
zão para tal conversão, o que denota um estra- é necessário que o tabuleiro seja lançado para
nho “etapismo”. Só interessa à formação po- o ar ou que suas regras sejam drasticamente
pulista demandas no sentido de exigências e, alteradas e ambas as alternativas são possíveis
nesse sentido, em nossa análise, toda demanda somente se o que está dado como certo for
é, sempre e já, uma exigência. questionado e deslocado.
As demandas que compõem a vontade Dito isso, vejamos agora a articulação
dos iguais são demandas por igualdade e por entre as demandas que geram o discurso po-
inclusão.13 São demandas daqueles que rei- pulista igualitário da vontade dos iguais. Pri-
vindicam que a igualdade, como fundamento meiramente, a articulação é sempre entre
democrático, reflita políticas de inclusão, de demandas distintas, no sentido que Laclau e
reconhecimento: que os iguais sejam perce- Mouffe (2015) atribuem ao processo equiva-
bidos pelo Estado e não somente sejam iguais lencial como aquele que é estabelecido entre
“em tese” (formalmente iguais), mas que essa diferenças. Tal processo é sempre contingen-
igualdade, como fundamento da democracia, te, ou seja, não há previsibilidade, condição a
seja o meio para acessar recursos que lhes são priori, ou ainda identidade com privilégio de
negados. Nesse sentido, existem desigualda- liderança. As demandas estabelecem uma re-
des materiais de toda ordem que os “iguais” lação de articulação, pois têm ponto ou pon-
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nica, ou seja, uma representação que não é o CRITCHLEY, S. Infinitely demanding: ethics of
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This article aims at presenting left-wing populism Cet article vise à présenter le populisme de gauche
as political resistance against established regimes. comme résistance politique contre les régimes
For that, the text is divided into three main parts. établis. Pour cela, le texte est divisé en trois
Firstly, we discuss the current situation of liberal parties principales. Tout d’abord, nous discutons
democracies. After we treat some theoretical and de la situation actuelle des démocraties libérales.
practical deadlocks of populism to present our Après,nous traitons certaines impasses théoriques
conceptual vision of this phenomenon, that is, a et pratiques du populisme pour présenter notre
discursive political logic which constitutes the vision conceptuelle de ce phénomène, il s’agit, une
people antagonistically against their enemies. In logique politique discursive qui constitue le peuple
the last part, we introduce the notion of the will de manière antagoniste contre ses ennemis. Dans
of equals, firstly discussing the duality of equality la dernière partie, nous introduisons la notion de
(the democratic invention of equality as principle volonté des égaux, en abordant d’abord la dualité
and equality as the horizon). Following, we analyse de l’égalité (la invention démocratique de l’égalité
the structure of the will of equals, a particular comme principe et de l’égalité comme horizon).
type of left-wing populism, which we understand Nous analysons ensuite la structure de la volonté
to be able to uncover aspects referring to different des égaux, un type particulier de populisme de
demonstrations that have been occurring around gauche, que nous pensons pouvoir découvrir
the World since Arab Spring. des aspects faisant référence aux différentes
manifestations qui se sont déroulées dans le monde
depuis le Printemps arabe.
Keywords: Populism. Democracy. Political resistance. Mots-clés: Populisme. Démocratie. Résistance politique.
The will of equals. Volonté des égaux.
Daniel de Mendonça – Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
estágio pós-doutoral em Ideology and Discourse Analysis na University of Essex. Professor Associado
e docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal
de Pelotas. Interessa-se e pesquisa sobre os seguintes temas: pós-estruturalismo e o político, teoria do
discurso, ideologia e populismo. Principal publicação: O momento do político: evento, indecidibilidade
e decisão. Dados, Rio de Janeiro, v. 57, p. 745-771, 2014. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9251787953915517
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