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ESTUDOS ALLEMÃES

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N-ATURAL DE SERGIPE

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PIH:UEIR SERrE

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41
AOS MOÇOS SERGIPANOS

QUE CURSARAM

.A FACULDADE DE MEDICINA DA. BARrA.

í O ANNO PROXfMO FtNBO

OFFERECf:

o Au.,to·r.

Recife 1 ele Janeiro rle 1383.


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PROLOGO

o qlle cn podia dizer para ju. Linear-me


da exquisitice de dar ao publico um livro
desta natureza, apparentelllcnte em [lni-
dade e sem homogeneidnde,-o leitor eo-
contrará na lntl'oclucção. Continl1am á. vigo-
rar as ra õe alli expEnclichs. ,1ulgo porém
dever fazer Llma adv.ertenc:ia:- em alguns
dos artigos rllle compoern O' presente VOlLl-
me, ha mais de llIna ideia nascida em outra
epocha e sob ontras influencias com que já
não me sinto ele toclo idenLificado. E:u sou
um pOLlCO volul'el. Esta \'eHIade, ql1e 11a
trinta annos já me dizia em tom convicto a
minha primeira deidade, quando e vio a-
crificada á LlIl1 rosto Illais gentil, perma-
nece no mesmo c ·tado ele (resc,lln, I elo lue
toca, nào á amore', ~TIas á theorias, quo
nnnca tiveram for(:.a ele ganhar-me o ora-
eão, e que por tanto nuo lllvido desprezar
de ol\1os erlxutos, por cau a le olltnu', que
melhores me I aracem. S lima tal (ran·
queza de minha parte está em condições
de prodllúr scandalo, 6 o 'aso ele repeti I'
com 'cllOpenlHlller:- ummetla-~c o 5-
andalo, porém diga-se a verelade.
O qlle este livro . igni(jca, Ile !TIcsmo
di-Io-llao Nàohci mi .. ter eleeltll'al' eID prc\Oias
ex[ licaçõe·. Para h m jlll:;a-Io, o leitol' l1elO
perca cl \-j. ta que lê o trai alho cle nm e -
r irito inflllit:lo, o qual l11uilas \" 'LC:, ela sua
lucta jacobica, na falta de anjos do ceu, com
demonios da terra, ainda que victorioso,
todavia teve de sahir, não côxo, porém
sceptico.
Releva tambem ter sempre em mira
que OS dez anHOS que passei na Escada
(187'1-8'1) constitueiu uma phase distincta
da minha vida intelLectual, e ú essa phase
pertencem todos OS escriptos, ou parte
delles, ele data an terior á olltubm de 188'1.
'Outrosim: o livro esLá desfêado por :in·
numeras erros typographicos, e nào leva
uma errcLta. Quero crer quenào se me fará,
como autor, expiar semelhante falta.
Somente isto.

TOBIAS B. DE ~fE EZES.


INDICE
Cumo 3I1u·odllcçãu..
I.-A [lIma tia lillllllPr. 7
11.- As Faculdadcs jurislicas como faclores lIu di-
reito nacional. . . . . . . . . . . :'17
Ii 1..- DIREITO CRU\ITNAL: dos delicias por omis··fio. 15
I V.-O Haeckelisl1lo no loolo"in. 77
V.-A orD'anisação eommunal da Hu "ia. JOl
VL -Da Íllflucllcia do alão obre a lilleralul·a. 13::1

\'11.- Um eil 'aio sobre a tClllativa em maLeria cri-


minal. • . . • . . . . . . . • IUI

Y1lJ.- obre a codelilJqucncia c _ tiS effeilos na


praxc proces unI. . . 179
I X.- Uma Lhe. e dc COllcnl'SO. 1H3

X.- Dns ligeiros lra 'OS sobrc a vida rclio-iosa no


J3rasi I.. . . . . . . . . . . . , 231

XI.-O que s dcvc cnlendcl' por dil"ilo auloral. 251


XII.-CRl'lICA M ICAL: Divc,"o al'ligo. ' . ':n:~
ESTUDOS ALLEMÁES

,COMO INTRODUCÇÃO

o que eu pretendo publicar, sob o titulo


de Estudo,s allemães, abrange uma serie
indefinida de escriptos de diverso conteúdo
e datas diver as, mas em sua maioria inspi-
rados e dir'igidos pelo principio commum á
todos os trabalhos, que tem occupado, ha
mais de dez annos, a minha vida espiritual.
Nem é preciso que o diga, pois que já se
sabe: esse principio é o da critica severa e
despreoccupada, no interesse unico da ver-
dade, isto é, no interesse de alguma "Cousa
,de encantador e delicioso, cuja posse,
entretanto, como a de mulher adorada,
muitas vezes encerra menos prazer do que
a ancia mesma de possui-la e gosa-Ia.
O epitheto de - allemães, - que dou aos
escriptos aqui promettidos, não serve para
indicar o momento objectivo do meu pro-
gramma, visto como não tenho em mira
fazer da Allemanha, em todas ou qualquer
das relações, em que elIa possa e deva ser
considerada, o assumpto obrigado das mi-
nhas indagações; mas esse epitheto indica,
sem excepção alguma, o momento subjec-
tivo da cousa, quero dizer, põe logo á des-
coberto o meu ponto de partida, a minha
-2-
intuição, as presupposições necessarias do
meu escrever e criticar. Isto é um mal, eu
o reconheço, que póde até dar em resul-
tado um desgosto antecipado, uma preven-
ção destavoravel á obra que emprehendo.
As ideias ditas allemans ainda são entre nós
umas hospedas importunas, e os poucos,
bem poucos adeptos, que ellas contam, con-
tinuão á passar, se não de todo por uns
typos irrisorios, ao menos por extravagan-
tes, que insistem no proposito irrealisavel
de implantar no espirita nacional o gosto
das cousas germanicas. A escola, se de
eS.cola.merece o nome, que aprouve á litte-
ratos fluminenses designar pelo titulo de
teuto-ser.gipana, com o claro intuito de pro- .
duzir impressão comica, pela associação da
ideia da Allemanha á da provincia natal de
dous infatigaveis promotores do germanis-
mo nas lettras brasileirc.s, mas sem saber
que dest'arte lhes conferem, bem como á
suá terra, uma honra immensa, cujo valor
exacto só ao futuro é dado conhecer e aqui-
latar-uma tal escola ainda tem álutar com
difficuldades e emb&.raços, que annos e
annos de combate não tem podido arredar.
Entretanto permaneço firme no men ter-
reno. Se á outros é facil um riso desde-
nhoso da minha teima, não me custa esforço
algum rir-me tambem da cegneira delles. E
aquelles que ainda julgam fazer acto de
civilisação, ignorando, com toda a sizudez,
as grandes manifestações da litteratura te-
desca, eu pediria, em caso de necessidade,
que attendessem para as seguintes palavras
de um excellente escriptor italiano, o pro-
-3-
fessor Alberto Errera: « Nós V~mos na
Italia, diz elte, não poucos doutos de nm
saber indubitavel e de um elevtl(10 espirita,
que opiniaticamente pelejam contra os a11e-
mães, posto que não saibam a sua lingua
nem conheçam os seus escriptos. Vivem
cheios da cOo}vlcção, bebida desde o berço,
de que ainda, á esta hora, os hegelianos, os
ideologos ou, como dizem, os utopistas são
os portadores do pensamento altemão. Em
vão mostrar-se-lhes-hia as descobertas po-
sitivas, os trabalhos e experiencias reaes de
homens, que em todos os ramos do saber
tem provado, por factos, que a sciencia te-
desca não é a noite ou o crepuscul0, m:.:s a
luz diurna da verdade. o" o » Isto foi expres-
so em 1874. Eu não sei se temos tambem
do'utos com as qualidades mencionadas pelo
sabio economista veneziano, mas é certo
que sobram-nos opiniaticos 'do genero, que
nunca se deram nem se dão ao trabalho de
estudar a língua e a liLteratura a11emans, .
para terem ao menos o prazer de despre-
sa-Ias sciente e conscientemente. Insisto
pois na minha velha ideia fixa. Hael'et la-
teTi lethalis an.tnclo. Nem tenho que pedir
desr:.ulpas a ninguem.
A resoluçao do problema, que me propuz
com a presente publicação, não é um tribu-
to pago á uma certa litteromania, que cara-
cterisa a nossa epocha. Acho muitissiml)
rasoavel a opinião de H. von Treitschke, que
ao escriptor não é permittido tornar-se es-
tranho ao modo de vid.l do seu tempo, e
que nos nossos dias, que elte qualifica de
1tiiche~veTschlingencl, devoradores de livros,
-4-
deve escrever muito, quem muito quer in-
fluir. E' razoavel, sim; mas ha sempre á
popderar que o illustre escriptor desligou
do tempo o seu inseparavel, o espaço, não
pesou devidamente a circumstancia de
lugar. Assim, é certo que a epocha do Sr.
von Treitschke, por exemplo, é justamente
a minha epocha, porem mui diversas são as
terras que pizamos; e ahi vae quasi tudo.
Não me parece bastante sensato escrever e
publicar segunda, terceira, quarta e mais
obras, somente pela razão de que a primei-
ra não foi lida, não achou quem a lesse; o
que entre nós é o caso. Accresce que sem-
pre tive e continúo á ter uma repugnancia
invencivel contra a bibliopea, de que pader.e
por ahi muito espirito ligeiro, para quem o
merito dos escriptores se determina, de pre-
ferencia, pela· consideração puramente ari-
thmetica do numero dos livros fabricados,
e pela geometrica da sua extensão e volume,
sem fanar na parte esthetica da mão de
obra, no optimo do papel e no nítido da im-
pressão. Não sei se me engano, mas quer
me parecer que, se reduzir á livro todos os
meus trabalhos jornalisticos, todos os meus
escriptos de occasião, todas as minhas no-
tas de carteira e até todos os apanhados de
minhas conversações par~iculares, fosse
cousa, que não custasse dinheiro superior
ás minhas forças, eu já poderia. ter em torno
de mim, para proteger-me contra os inimi-
gos, uma escolta de dez ou doze volumes,
que dariam testemunho de minha coristan-
cia no trabalho, de minha sciencia precoce,
e não pouco tambem de minha madura
-5-
ignorancia; o que tudo, bem avaliado, con-
ferir-me-hia incontestavel direito 'promo-
ver no Brasil, ou ao menos em Pernam-
buco, a reunião de algum congresso antro-
pologico, ou outro qualquer, em' que eu
tivesse de representar justamente a ultima
figura. Felizmente porem não soffro de
uma tal mania. Comprehendo a necessi-
dade, que ha para o homem de lettras, de
dar constantemente ao publico uma copia
do seu estado intellectual, por assim dizer,
uma historia estatistica documentada das
suas ideias. Mas essa necessidade, creio
eu, póde ser bem satisfeita por este modo:
um jornal, uma revista, ou cousa que o
valha, em que se concentrem todos os esfor-
ços de um espirita, neste ou naquelle do-
minio do mundo litterario, além de qu~, por
outro lado, é este um meio suave, para
quem, como eu, não tem os recursos e fa-
cilidades, de-que ha mister qualquer autor,
de publicar pouco á pouco e insensivel-
mente uma obra em grande escala, a qual
possuirá a vantagem de ir traduzindo e
accentuando de dias á dias as varias trans-
formações e mudanças do tempo.
Outro sim: 'conhecido dest arte o cami-
nho e alvo do meu emprehendimento, que
sem duvida não deixará de enContrar apoio
nos que tomam interesse por trabalhos de
tal ordem, julgo entretanto que não impor-
ta derogar a seriedade scientifica tio pro-
gramma, fazer na minha ?'evista, a parte
devida á leitura de puro entretenimento lit-
terario. Para isso darei ahi tambem á poe-
sia, á bella litteratura em geral, ainda que
-6-
em menores proporções, o lugar que lhes
compet~.
Vou concluir; e concluo pOl' uma adver-
teocia: os meus escriptos, tenho por certo,
hão de desagradar á mais de um desses es-
piritos felizes, que trazem a verdade na ca-
beça, como dinheiro no sacco, segundo a
expressão do Nath3 n, der Weise, e provocar
naturalmente algllmas contradicções ; mas
elevo ser franco: não acceito a minima po-
lemica, e darei todos os meus contradic-
tores como não existentes, bem seguro e
confiado no conselho de Dante:
Se[Jlâ il tuo C01'SO, e lascia di?' le gentil
-7-

I
A alma da mulhel' (1)

Julho de 1874..

Adolpho Jellinek é um distincto israelita


allemão contemporaneo.
Os seus escriptos e as suas predicas, na
synagoga de Berlim, occupam lugar de hon-
ra entre os productos do genero, e fazem que
o proclamem um estilista perfeito e um bri-
lhante orador: predicados adjacentes, ou
superpostos á uma sciencia solida.
O trabalho que tenho presente e que vai
ser o assumpto deste artigo, não é de natu-
reza apropriada á fornecer a medida, eu
digo, toda a medida, do merito do autor.
E' uma conferencia feita, em 1872, no gym-
nasio academico de Vienna, sobre a questão
da mulher, oncarqda e esclarecida 'pelo lado
psychologico. Facilmente comprehende-se
a impossibilidade, na qual devia achar-se o
orador, de vasar em cadinho tão pequeno
uma grande porção do ouro da sua mina.
Todavia me parece que abi mesmo se póde
ver a viveza e lucidez de um va!:lto espirito.
Fallando na questão da mulher, não sei se
posso contar com a disposição dos meus
leitores para uma 'certa ordem de ideias, con-
densadas nessa phrase, e que não são entre

('1) Vie Psyche des Weibes, von A. Jellinek, 1873.


-8-
n6s muito communs. Por quanto é s6 ne
longe em longe que nos chega alguma no-
ticia dos reclamos e protestos de illustres
representantes do sexo feminino, quer na
Europa, quer na America, em prol dos seus
direitos, desconhecidos e vilipendiados.
Entretanto não ha duvida que a mulher e
suas relações domesticas e sociaes formam
um dos problemas superiores, qLie se deba-
tem na actualidade. E' digno de notar-se
que, sendo uma das mais robustas propu-
gnadoras da chamada emancipação do sexo
a judia Fanny Lewald, celebre escriptora e
romancista da Allemanha, seja tambem um
homem da mesma raça, que pretenda de-
monstrar, por sua vez, a.falta de fundamento,
a irracionalidane de semelhante intuito .. Se
eUe attingiu, ou não, o alvo que visara, é
ponto que entrego inteiro ao juizo do leitor
autorisado, sem com tudo abdicar a minha
opinião de espectador attento e conscien-
cioso sobre o alcance da controversia e os
modos de resolvê-la.
« A essencia feminina em' sua generali-
dade,-diz Jellinek,-como um phenomeno·
particular da vida natural e humana, tem
sido sempre apreciada, nas diversas phases
do desenvolvimento do espirito e da historia
dos povos; a mulher, porém, como perso-
nalidade, com todos os attributos que se
ligam á este conceito, fOi s6 nos tempos mo-
dernos que se tornou objecto de serias inda-
gações e fortes debates. »
Depois disto, e para comprova-lo, o autor
faz uma especie de resenha das opiniões que
dominaram entre varios povos da antigui-
-9-
dacle: á respeito da mulher... A poesia my-
tllOlogicu do g-rego', a philosophia allego-
ricu do alexandrinos, CJ mystica de muitas
confissões religiosas, até os gnostas chr~s­
tãci e kabalistas judeus, trovadores, mine-
sa/nger e cavalheiros da idade media, -tudo
lhe dá testemunho de não ter sido olvidada
a excel1encia feminina. Como era natural e
adequado ás proporções estreitas do seu tra-
balho, o sabio israelita passou rapidamente
por esses dados da historia, e não se quiz
demorar em extrahir, quanto podera, a sub-
stancia deltes. Ha uma cousa, porém, que
não merece desculpa: é a maneira, meio
atropellada, por que o auctor nos apresenta,
em epochas diffbrentes, o concerto psycho-
logico de Eva. Não seria mais conforme ao
espirita scientifico, ou para melhor dizer,
ao espirita allemão, mostrar, ainda que em
ligeiros traços, o desenvolvimento dessa
grande ideia, as viagens que tem feito atra-
vés dos seculos até chegar ao ponto de hoje?
Uma vez que se propoz, segundo as proprias
expressões, fundar a dignidade da mulher
por meio de uma analyse philosophica, o
methodo á seguir, - eu imagino, podia ter
sido outro.
I
Janeiro de 1881.
O pensamento que presidiu á confecção
das linhas iniciaes do presente escripto, é o
mesmo que me leva actualmente á conti-
nua-lo e conclui-lo (2). Se alguma differença
(2) O artigo traz na frenLe da sua priffi(·.ira parte a data
de 1874, data cuja identidade o leitor terá dõ notar em
10 :..-

se faz por ventura notar entre as ideias de


outr'ora e as ideias de hoje, é tão somente a
que pode consistir entre um estado de flo-
rescencia e um estado de fructificação. Ver-
dade é que seis janeiros difficilmente pas-
sam por um espirito, sem---d$ar abatidos
muitos anhelos, muitas esperai)~s,. e não
poucas vezes tambem até muit.as· convie:
ções. Mas no que toca ao as~wnpto, qu~
nos occupa, eu pude resistir; depois d·e ..;.
tanto tempo de abanqono, encontrei o velho' ~'
alaúde perfeitamente afinado, quero dizer, o
coração, como d'antes, expansivo e predts-
posto para a questão da mulher, tanto ·mats
quanto neste interim ella tomou· uma feição
mais correcta e enriqueceu-se de novas ad':
hesões.
O illustre rabino, á quem aprouve refor-
çar tambem com a suaquotí:l. o capital,já tão
crescido, de prejuizos obscurantes sobre a'
natureza, o destino, a vocação feminina, §le
á esta hora ainda existe, não deve olhar com
muito orgulho para o seu trabalho de 1872,
que bem podera denominar-se- um ensaio
de gynecologia biblica-; deve antes sentir-se
mais de um trabalho contido neste volume. Não lhe faça
especie. Todos esses artigos foram começados e publi-
cados naquelle anno em um jornal, que aqui redigi, inti-
tulado - Um signal dos tempos -. A' primeil'3 vista nada
importava que eu, continuando-os boje, 1l1es desse a data
hodierna; mas ba uma rasão em contrario, que não deixa
de ter seu peso: sem a indicação do tempo, em que fo-
ram publicados, eu correria actualmente, em muitos pon-
tos, o risco de passar por um epigonu, se não por um
plagiaria. Não se levará pois á mal que queira livrar-me
de t~l pecha; é isto ainda uma das formas da probidade
litteraria.
-11
tristemente impressionado de ver que as
suas ideias, ainda que elevadas pouco acima
do nivel do senso commum, que é a cha-
mada pbilosophia. do povo, não consegui-
ram ganhar terreno. A part.e louca da huma-
niriade, aquella que gyra em ellipse alonga-
dissima em torno da velha pratica da vida,
e que é dotada de maior grau de adaptabi-
lidade, insiste no seu proposito de outorgar
á mulher, na esphera da prosa, uma fracção
ao menos do que se lhe confer e na esphera
da poesia.
E a questão já chegou á tal ponto, que os
doudos enthusiastas da emancipação de Eva
começam a ser os mais arrazoados no de-
bate. Já vae soando como um ruido de ma-
traca a pretenção fradesca de não abrir-se
no gynecet~, nem se quer uma janella, que dê
para o grande mundo, para a vida em pleno
ar, e de permittir-se apenas uma fresta, por
onde a mulher veja.somente o ceu. O nosso
autor não leva tão lDnge, é verdade, as suas
exigencias de opposicionista convicto; mas
não é por isso menos erroneo e inacceitavel
o seu ponto de vista. O seu ponto de vista,
disse eu; porém não 8 de todo exacto. O sa-
bio israelita não pisa em terreno proprio.
A sua intuição sobre a mulher, á despeito
das graças e encantos do seu bom dizer, é a
mesma velha intuição judeo-christan: a
perpetua dependencia e inferIoridade femi-
nina, ou antes-a mulher rainha e subdita,
senhora e escrava ao mesmo tempo. E' de
balde que o autor entôa aqui e alli um psal-
mo á belleza e á uma ou outra excellencia
psychica da companheira do homem; o con·
-12 -
ceita geral não se modifica: é sempre a mu-
lher exclusivamente votada á vida da fami-
lia, a mulher sem autonomia, sem iniciativa,.
sem talento, sem originalidade. E tudo isto
sob que pretexto? Ainda sob o de um plano
divino, ou de uma lei da natureza.
Eu não contesto que nas actuaes relações
de subordinação e dependencia da mulher
para com o homem ha uma certa regula-
ridade, uma especie de eonfo?'mação ao fim,
para que ambos existem. Mas justamente
no modo de apreciar este fac1io é que reside
o erro da escola, á que se filia Adolpho J el-
linek. Alem de que as cousas regulares ou
irregulares são como as boas ou más, das
quaes diz Shakspeare (Hamlet Ae. II se. 2. a) .
que não o são por si mesmas, que é o pen-
samento quem as torna taes, accresce que a
sociedade, bem como a natureza, sem ser
dominada por um principio de finalidade,
pode chegar á resultadoo de caracter fina-
listico. E se é possivel, por meio da selec-
ção natural ou artistica, interromper a serie
evolutiva de phellomenos que já attingiram
esse grau de regularidade, e por um pro-
cesso de differenciação dar á uma classe de
seres qualidades novas, nenhuma razão mi-
lita contra a possibilidade de abrir nuvos
caminhos ao desenvolvimento feminino, de
apagar pela instrucção, que tarnbem é um
meio de selecção, a inferioridade actual da
mulher e celloca-l::r dignamente ao lado do
homem. E' esta a grande questão, de que
aliás J ellinek parece ter tido apenas um vago
pressentimento. Assim encarado, o pro-
blema tem outra face; e para a sua solução,
-13 -
ou antes para tentar resolvê-lo, pois que
todas as soLuções de problemas humanos
rara vez transpõem os limites da tentativa,
já não basta alIegar que a mulher é um ente
fraco, mais receptivu que productiva, mais
sensivel que intelligente, etc. etc.; por
quanto tudo isto se concede, mas tud@ isto
não involve para elIa. a impossibilidade de
uma adaptação superior á herança e por
conseguinte de uma transformação de poten-
cias, de um augmento de predicados.
O nosso autor, por um acto de lealdade
não commum, declara reconhecer que o
assumpto em questão offerece logo em prin-
cipio uma seria difficuldade; e é que, no
presente estado das cousas, é impossivel
formar um juizo seguro sobre o espirito
feminino e applicar uma justa medida ás
a12tttudes intellectuaes do bello sexo, attento
que, por effeito dos prej uizos sociaes, as mu-
lheres não têm podido até hoje desenvolver e
pôr em prova as suas capacidades. A objec-
ção é realmente seria; mas o autor não hesita
em dá-la por facilmente respondivel, alle-
gando, como resposta, que no presente
estado social nós temos occasião bastante
de observar a vida espiritual do outro sexo
e dest' arte convencer-nos que a psyche mas-
culina e a psyche feminina não são iden ticas ;
modo este de discorrer, que não passa de
um crasso paralogismo, e não deixa de pro-
vocar um riso de desdem.
Em defeza da sua these Jellinek ainda
invoca a chamada economia da natureza1
que nada faz superfluamente, que não se
repete em seus typos... Mas elle não se
-14 -
lembra que a natureza é como Deus, que se
presta á ser invocado. com igual direito e
chanças iguaes de triumpl1o, por qualquer
de duas hostes belligerantes; nada resolve
por ccrnseguinte. « Em quanto, diz e11e, a
vóz masculina de uma mulher fôr, como é,
uma cousa chocante e estranhavel, nós tere-
mos tambem por justificado o fallar-se ele
uma psycbologia feminina ... » Sim, senhor;
mas o que prova istQ? Absolutamente nada
em relação ao tbema proposto. De bom
.grado concedo a existencia de uma psycbo-
logia feminina, mas ... quem a faz? quem lhe
·formula as leIs? Jellinek tem o defeito com-
mum á todos os commungadores da mesma
ideia: -só parece que, ao menos uma vez
na vida, já fizeram parte do sexo amavel,
-tal é o tom de segurança com que fallam,
psychologicamente, das fraqu.ezas da mulher.
Eu não duvido em subscrevê-lo: a mu-
lher com qualidades masculas, a mulher
ossuda e barbada, é na verdade um pbeno-
meno chocante, e autorisa-nos a pressuppor
uma grande differença entre os I apeis de
cada sexo; mas tambem é certo, que, em
quanto se nos não explicar plausivelmente,
porque razão, uma vez admittida a unidade
de lei no desenvolvimento das especies, o
pavão, por exemplo, é mais bonito que a
pavôa, o gallo mais que a gallinha, o novi-
lho mais que a novilha, o leãu mais que a
leóa, só a mulher entretanto é mais banHa
que o homem, n6s temos o direito de admit-
til' uma superioridade feminina e de recla-
mar para ellas as regalias que entendemos
competir-lhe.
-15 -
II
A chamada questão da mulher, depois de
atravessar a pbase poetica e rbetorica, na
qual se queimou muito incenso em honra
da cleusa, e tambem, conforme os gostos,
muito grito de execração se fez ouvir contra
a cliaba, depois de deixar o estado crepus-
cular do ideialismo phantastico, cbegou em-
fim ao pleno dia do realismo scientifico, onde
até a estatistica com toda a fria prosa dos
seus dados, não se recusa á lhe prestar ser-
viços. Não se trata mais boje pois de escrever
livros ásaudeda mulber.. Cessou o banquete
dos deuses, e com as musas que adormece-
ram, emmudeceu tambem a lyra dos poetas.
Bem entendido, não para sempre, por algum
tempo somente; - pois dá-se no dominio
gynecologico alguma cousa de semelhante
ao que se dá no dominio astronomico: por
mais longe que va o espirito observador,
nunca poderá affirmar ter conhecido tudo
que é cognoscivel e capaz de entrar no cam-
po objectivo dos seus instrumentos de ob-
servação; e é justamente esta esphera de
conjecturas e pressentimentos, tangente ao
circulo, grande ou pequeno, do nosso saber,
quer no districto das estrellas, quer naquelle
dos bellos olhos femininos, que ha de sem-
pre constituir o mundo da poesia.
Com razão diz Elisa Oelsner, relativa-
mente á este ponto: - «Assim como para a
consciencia ·religiosa o deus transcendente
tem ido po ueo á pouco se transformando em
deus immanente, assim tambem o nosso ba-
talhar pelo futuro não se dirige mais á
'""":'" 16-
ideiaes de alem, infinitamente longínquos,
porem os modelos do nosso produzir sahem
de nós mesmos, do nosso saber e poder, e.
este ideialismo, que quer o que pode, e por
isso póde o que quer, parece-nos o unico
autorisado; os esforços, que vão alem delle,
são pura phantasmagol'ia» (3) Todo e qual-
quer escripto, por conseguinte, que se pro-
põe na epocha hodierna addicionar uma
pagina ao. grande livro do chamado sexo
fraco, é anachronico e atrazado, desde que
não encara a questão pelo seu lado pratico,
mas se límlta a repetir, com bem poucas va-
riações, o thema: popular, que se assobia nas
ruas, quero dizer, a velha cantiga da belleza
feminina, unida á incompetencia para outros
mysteres, que não sejam os do conchego
farqiliar, e da sua despoetisação pelo contacto
C. com a vida politica e social.
Não sei l11e$mo como um espirito, qual
Adolpho Jellinek, julgou poder, na terra de
Betty Paoli, oppor um dique á corrente em
que se- immergem Marianna Hainisch, Au-
gusta von Litrow, Johanna Leitenberger,
Josephina Wertheimstein e outras muitas
naturezas demoniacas, com phrases de pas-
sageiro effeito e sediços conselhos de pru-
dencia (4).

(3) F?'auen-Anwalt-I Jahrgang pago l:i9.


(k) A expressão - natlll'ezas demoniacas -, que não .
duvido pareça e tl'anba, eu a emprego com o proposíto de
ftrmar a anlitbese que existe entre mulheres inlelligentes
e conscias do seo destino, de um lado e de outro lado o
grande numero de simplorias, fl'ias, indilfel'entes, mal
sabendo externar uma ideia, que se eleve alguns pontos
á cima do mezzo sopl'ano da moda, do tricot e do croche~,
-17 -
Os escriptores que ainda·se dão ao trabâ-
lho de bradar contra as justas pretenções da
mulher, tem o ar de quem se julga unico
inieiado nos grandes mysterios de um olhar
amoroso, ou de um arfar de seio feminino.
Dir-se-hia que só elLes conhecem, que só
elles experimentaram a magia de um abraço,
ou a inebriante doçura de um beijo, e que
por isso tratam de mostrar a nós outros, po-
bres profanos, a quem são desconhecidas
estas divinas cousas, que a mulher não é
isso que nós pensamos, mas um ente á parte,
o qual ao muito l'ode entrar comnosco na
luta pela vida em sua forma rudimentar, que
é a conquista elo pão quotidiano, porem
nunca entrar comnosco na luta pelo direito,
pela luz, pela verdade 1.... São muito inge-
nuos estes senhores! Tambem nós sabemos
que gosto tem o nectar, e de que carne é
feito o manjar dos numes; mas não é este o
ponto em discussão. O desenvolvimento da
essencia feminina, no sentido de concen-
tra-la e reduzi-la ao circulounico da família,
tem sido natural e regular? Alem do tbeatri-
nho do lar domestico, em que ella realmente
representa o primeiro papel, não ha um thea-
tI'O mais vasto, onde ella possa expandir ta-

-mulheres bonecas, em quem se pode, é verdade, adivinhar


umas lindas e polpuda pernas, um umbigo ideial, delicia
dOll olhos ou de qualqueroutl'o entido ainda mais exigente,
e que faria lembrar o proprio alabastntm~tnguenti pretiosi,
derramado soure a cabeça do Chrislo, mas tambem se
reconhece um espirito pauperriulo) e ás quaes aliás se dá
o titulo de-naturezas angelicas-, sem duvida por já
moslrarem na terra o idiotismo transcendental, que as
espera no ceu.
2
-18 -
lentos e forças ainda não aproveitados? Em
uma palavra, a mulher é instructivel pelo
mesmo modo e nas mesmas proporções que
o homem? Eis a questão, que aliás não é
mais uma tal, visto como já bem pouco falta
para dar-se, pelo menos no campo da theo-
ria, a victoria completa da emancipação fe-
minina.
O começo de toda cultura, diz Julio Frre-
bel, é uma opposição á natureza, opposição
que não se envergonha de dar mesmo prefe-
rencia ao que é antlnatural,s6paradocumen-
tal' o direito do capricho (5). Esta asserção
involve uma verdade profunda, que bem
explica, por que razão a mulher, desde os
primeiros tempos, foi tolhida em seu desen-
volvimento natural e mandada segllir um
caminho, que nunca poderá leva-la ao cimo
do outeiro, onde ha secuIos a esperam
seus titulos e seus direitos. Releva porém
saber, se este falseamento da evolução his-
torico-humana, no que pertence ao bello sexo,
é ou não susceptivel de correcção. (6) Eu
creio que sim; e o meio de corrigir uma tal

(5) Die Gesichtspwnkteund Aufgaben der Politik. -1878.


pago 243.
(6) A velha p11rase bello sexo já me vae causando sus-
peitas; quer parecer-me que ella, PO!' si s6, exprime tudo
que 11a de frivolo e leviano no modo commum de apreciar
a natureza feminina. Dá- e com o bello sexo o que sé dá
com as bellas letl'l'as: assim como, á respeito destas. bem
poucos são os que consideram-nas mai que um a sumpto
de puroenlretenimento, assim tambem,á respeito daquelle,
são rarissimos os que e elevam á cima do ponto de vista,
não direi mesmo e t11elico, mas puramenle plastico; e
este é o mal, que deve er combalido.
-19 -
cenogenesis, individual e social, é sobre tudo
a instrucçào, profunda e seriamente minis-
trada, de modo á despertar e accender no
espirita feminino em geral uma centelha,
que rara vez tem brilhaào, isto é, o senti-
mento da p8rsonalidade, a conscieneia do
proprio valaI'. O cerebro da mulher ainda
nào está atrophiado e, á falta de exerci.cio,
reduzido á inercia funccional dos olhos da
coruja, ou nas azas da ema. Ainda é passi-
veI uma reacção salvadora, que aliás só póde
vir pelo meio indicado. Desta especie de
renascimento do sexo feminino depende, em
alta escala, o futuro da humanidade. Quem
espera fmetos do futuro, diz Henrique von
Sybel, deve bem cuidar das flores da actua-
lidade, e a melhor florescencia de um povo
.são justamente as suas m\llheres.
Minha ideia, pondere-se bem, a ideia que
eu esposo. não é a da rapida transição de
um extremo a outro. Nada haveria de mais
perigoso do que essa passagem, por exemplo,
da Silencieuse á P hilosophie des Unbewttssten...
A natureza não dá saltos; mas seria um salto
mortale a roca immediata da familiaridade
com Singer ou Howe pela familiaridade com
Hartmann ou Schopenhauer. Não sigo por
esse caminho. Os pósteros poderão nm dia
comprehender e admirar, verbi gmtia, uma
schopenhaueriana costureira; porem hoje é
incomprehensivel e deteôtavel uma costu-
. reira - schopenhawJ'I'iana, uma costureira
- philosopha, - epitheto este, que entre-
tanto caberia de direito á toda e qualquer
mulher do nosso tempo e da nossa terra, a
quem aprouvesse subitamente emancipar-se
-20-
da almofada por amor do livro, pois que
todas, em ultima analyse, qualquer que seja
a sua condição economica e posição social,
qão sahiram ainda do terreno em que flo-
resce a sciencia da agulha e do dedal. Festi-
na lenté - tambem é neste, como n'outros
pontos, a minha norma de conducta.
Mas não se julgue que, assim opinando,
eu queira fazer côro com uma certa classe de
neptunistaspoliticos,que não admittem catas-
trophes, que explicam tudo pelo tempo, que
exigem para a extincção de um erro ou o
reconhecimento de uma verdade a mesma
somma de seculos, que se requer para a for-
mação de um arrecife ou a de um banco de
coral (7). Est modus inrebus, sunt certi deni-
que fines. Da arvore que plantarmos hoje, os
nossos netos poderão apenas colher as pri-
meiras flores, mas ao certo já os seus filhos
estarão no caso de recolher os fructos.
(7) O destino tem ironias!. ... A minha querida Allema-
nha é a creadora ou pelo menos a formuladora da theo-
1'ia da evolução, que em muitos casos não passa de uma
theoria da paciencia, por força da qual o plutonismo poli-
tico e social é um ataque á historia, um absurdo scienti-
fico. Entretanto di fti cilmente encontrar-se-ha. nesta esphe-
ra, um phenomeno plutonico mais caracterisado do que a
subita elevação da patria de Kant ao grau de primeira
potencia politica do mundo actual; elevação merecida,
sem duvida, mas nem por isso menos inesperada e fóra
. dos calculos communs, tanto quanto podia sê-lo o aplJare-
cimento de uma ilha por effeito de uma erupção volca-
nica. Já se vê que nem sempre a evolução e sufficiente
para solver certos embaraços. Da combinação do neptu-
nismo com o plutonismo é que póde resultar a verdadeira
doutrina, dando-se á cadá um o seu papel: ao inconsciente
da historia - a lentidão das aguas no seu labor de accu'"
mulação e petrefacção; á consciencia humana - orapido
processo igneo dos abalos e agitações necessarias.
-21-
III
.
No modo de expor os termos do problema,
cuja resolução tomou á seu cargo, Jellinek é
mais poeta do que philosopho, um poeta
porem de antigo estylo, que se delicia na
pintura dos mil encantos, mas lambem na
descoberta de cem mil defeitos na face diur-
na da natureza humana. O seu pretendido
estudo psychologico não deixa de apresentar,
aqui e alli, observações razoaveis; mas mes-
mo assim, encarado de alto á baixo, consi-
derado em seu todo, é simplesmente um
trabalho de phantasia; mimoso na verdade,
mas sempreexaggerado. Sobre que classe de
seres não se pode ideiar uma psychologia?
As proprias flores tem a sua, á crer-se nos
poetas, que lhes conferem este ou aquelle
sentimento. A psychologia da mulher, por
Jellinek, é vasada em molde igual.
Mas o que causa maior estranheza, é que
o autor, como já fiz sentir. não tomou uma
posição definida no campo do combate.
Embalde buscar-se-hia saber, como elle se
mantem em relação ao grau de cultura,á que
deve chegar o sexo feminino; - nem uma
palavra á tal respeito; antes porem, se é
passiveI algum signal do seu pensamento
neste sentido, encontra-se a velha ideia da
vocação exclusiva da mulher para.... « dar á
vida humana o seu verdadeiro valor, para
lidar ao lado do homem, aconselha-lo, apoia-
lo, anima-lo, enthusiasma~lo, disciplina-lo,
modera-lo, enternece-lo.; nobilita-lo, aper-
feiçoa-lo .... » o que tuna quer dizer: para
ser esposa e mãe; missão esta que ninguem
~ 22-
ainda negou á mulher, e que não é o que se
trata de esclarecer.
Não é sem muita razão que F. Holtzendorff,
um .dps grandes defensores da causa femi-
nina, assim se exprime: « Entre as phrases
oucas e retumbantes dos modernos tempos, '
não se acha uma só, que tenha produzido
mais confusão ou prejuizo, do que a de vo-
cação natw·al. A verdade, q:ue nella se des-
figura, significa somente que a esposa,mãe,
e dona de casa, tem o seu mais alto e ultimo
mister á cumprir no seio da familia, não fóra
della. Fallar de vocação natttral, é cousa que-
teve um sentido, só emquanto foi preciso
oppor barreira á desnaturalidade da com-
pressão elas virgens ná. vida claustral. Hoje.
é differente. A phrase ele vocação nattwal,
até das que ficam solteiras, é a mais carac-
teristica fraqueza de cabeça e falta de pell-
mento, que se retrae diante da actuali-.
dade (2).
Nada mais claro e decisivo. Se a mulher
existe unicamente, comu sôe dizer-se, para
a vida da familia, para as funcções supremas
de mãe e de esposa, a conclusão é que, uma
vez não attingido este alvo, pois que á todas
não é dado enfiar no dedo o anneL esponsa-
licio, nem o cingir-se da charpa da materni-
dade é acto que só dependa do desejo de
cada uma, a vida da mulher que lá não che-
ga, é uma vida falhada. uma existencia
espectral, uma peregrinação 1as t i m av e 1.
Mas esta conclusão é absurda em si mesma,

(8) Fmuen:Amvalt I. pago 53.


- 23-
e ainda mais, porque ella importaria justifi-
car o prostibulo, quasi como uma bella insti-
tuição social, estabelecida para corrigir os
erros do destino. Assim aquelles que não
cançam de repetir o estribilho da chamada
vocação nat'U'ral, deviam lembrar-se, antes de
tudo, que no grande bai.le da vida muita
senhora fica sem cavalhei?'o, que a sociedade
não tem a sua disposiç~o o numero de noi-
vos, de que carecem as noivas, e que, por
tanto, é uma extravagancia, na educação da
mulher, só ter em vista o futuro estado de
mãe de família. Pondo de parte o que de
mau tem causado esta maneira de ver, attento
que mais de um casamento infeliz só deve a
sua infelicidade ao velho preconceito, pelo
qual a mulher que não se casa, é um ente
inutil, como o segundo tomo de uma obra
de dois, dos quaes perdeu-se o primeiro, eu
me limito á seguinte observação: dado mes-
mo de barato que a unica missão femenina
fosse a de ter filhos e de viver ao lado do
homem, ba por ventura alguma incompatili-
dade entre esta nobre missão e um grau
superior de cultura? Tão simples é o papel
de esposa e mãe, que dispensa a luz intelle-
ctual, ou até repelle-a como perturbadora do
socego dorpestico? Será tambem uma lei
providencial que o homem culto, quando
casado, não tenha urna mulher, com quem
converse, nem seja por ella entendido?
Estas perguntas trazem em si mesmas as
suas respostas, isto é, o espanto, se não
antes o riso, que provocam; e todavia ellas
são naturalmente suscitadas pela opinião
commum â respeito da educa ão do outro
- 24
sexo, opinião burlesca e anachronica, que
eu sempre estarei dispo'sto a combater.
Como se vê, a questão central no presente
assumpto ja não é a de saber, de quantas
azas se compõe a psyche de Eva, ou se ella é
realmente apta para os grandes vôos, mas
somente a de faze-la entrar com o homem
na partilha dos mais altos gosos da vida,
que são os gosos da intelligencia, E aqui
seja-me permittido lembrar ideias, já uma
vez por mim enunciadas na defensão deste
mesmo thema, qua'ndo tive a honI'J., como
deputado provincial, de apresentar um pro-
jecto de lei sobre a instrucção superior femi-
nina nesta provincia (9).
Sustentando a utilidade da minha pro-
posta, eu disse, entre outras COUSélS, o se-
guinte: - « O projecto não tem em vista
inaugurar na provincia o dominio das blue
slocking ou das p1'écie~~ses 'ridict~les, mas sim-
plesmente abrir caminho, en tre nós, á solu-.

. (9) Este projecto, que teve apenas o StlCCCS cl'estime de


passar em primeira discussão, continha a ideia da crea-
ção de um estabelecimento publico do cultura Iitteraria
e pl'Ofessional para as moças, sob a denominação de Pm'-
thenogogio 'do Recife, e dividido em duas escolas: escola
media (1l1iltelscht~le) eescola supel'il.ll' (Haltere Schule). Não
preciso dizer que a minha ideia pareceu então um sonho
de poeta. E' possivel que hoje, depois que a mãe França
entendeu devoI', como obrigação do estado, elevai' o ni-
vel da instrucção do outro exo, E'stragada e abatida
pelas doutoras do sacni emitI' & G.a, já se cornprehenda o
alcance do llIel! projecto, lOas é certo que n'aquella epo-
cha (maio de 1879) julgaram-no objecto de delibera ão
por mera conrlescendencia ; e tanto assim foi, que um
3nl10 depois, quando en não el'a mais deputatlo, fizeram-
no cah.ir em segun.da disCll são, por ser 11m pl'lljdCto, ....
despondemdo e até immorall. ...
- 25-
ção lenta e gradual de uma das mais graves
questões da actualidade: - a elevação do _
nivel intellectual da mulher ou, se assim
posso dizer, a purificação, pela luz, da_
atmosphera em que ella gira.
« E para demonstrar. Sr. presidente, a
utilidade da cousa como primeiro assignata-
rio do projecto, eu não tenho necessidade
de altear o cothurno, lançar mão da harpa
romantico-revolucionaria e entoar um canto
ao bello sexo. Não hei mister de dizer com
Olympia de Gourges, uma celebre decapitada
de 93: - se a mulher tem o direito de subir
ao cadafalso, ella deve ter igllalmente o di-
reito de subir á tribuna; - o qlle é de certo
uma bonita aspiração, mas não deixa de ser
tambem llm pedido exaggerado. E tão pOllCO
tenho necessidade de collocar-me no ponto
de vista do emancipacionismo rllSSO e ãmeri-
cano para reclamar, em favor das mulheres,
o exercicio de fllncções, que ellas ainda não
podem exercer; para fazer, em seu nome,
exigencias extravagantes, que se culminam
na pretenção extrema, não só de uma igual-
dade de direitos, como até mesmo da igual-
dade no trajo.. Nem tomarei por norma o
grito de alarma das mais illustres represen-
tantes do radicalismo feminino, as Paulina
Davis, as Lucrec.ia Mott, Elisabeth Stanton e
não raras outras agitadoras do tempo. Nada
disso é o que nós queremos.
« A pretenção contida no projecto é bem
differente, muito simples e modesta: - ella
importa menos uma homenagem aos encan-
tos da mulher do que uma seria attenção
prestada ao bem commum, ao interesse ge-
- 26-
ral, ao progresso e desenvolvimento da
sociedade em que vivemos.
« Se eu tivesse de filiar a minha ideia á
algum principio mais elevado, não filia-la-hia
por certo á este ou aquelle arroubo de so-
nhador, mas á uma verdade pratica, bella.-
mente expressa por um homem pratico.
Frederico Diesterweg, um notavel espírito
allemão, o qual, com Pestalozzi e Froobel, é
o terceiro na serie dos grandes pedagogos
da idade moderna, se exprime deste modo:
- A liberdade do povo, e a felicidade do
povo, pela cultura do povo, não pode ser
conseguida por meio da instrucção parcial,
ministrada á um só sexo.
(/. Eis o que é incontestavel; e possuido'
de tal verdade é que eu ouso confiar que o
projecto não parecerá indigno da attenção
desta casa. Trata-se nene da creação de
um estabelecimento de instrucção publica;
tantobasta-créio eu, -paraattrahira sym-
patbia e adhesão de todos. Mas ha uma
circumstancin peculiar e quasi estranha:
- é a de ser um estabelecimento de ins-
trucção publica superior feminina; - poderá
ella influir 'para denegar-se a medida pTO-
posta? E' doce esperar que não; e assim
o espero.
«Julgando-me dispensado, Sr. presidente,
de entrar em apreciações sobre a maior ou
menor capacidade da mulher para o cultivo
intellectual (10), eu tenho para mim, como
('10) Este a sumpto já tinha sido debatido na mesma
a sel1lbléa provincial de Pernambuco, na qual anterior-
mente ao dec!'eto de '19 de Abril do 1879, discutira-se a
questão da,tude da mulher para os estudos universi-
- 27-
verdade clarissima, que um dos maiores
embaraços, com que lucta a civilisação, é a
ignorancia desproporcional ela bella metade
do genero humano; ignorancia que, por
cumulo de infelicidade, aos olhos de uns
ainda é uma cousa indHferente, aos olhos
de outros uma cousa desagradavel, sim, mas
á fi.nal fatalmente determinada por lei da
naturesa, e até aos olhos de maitos .... uma
graça de mais,umadorno poetico,um attrac-
tivo Iyrico 1. ... Não terá entretanto chegado
para nós tambem a occasião de acabar com
estes erros de velhas eras? Se as mulheres
são seres humanos, que tem uma missão na
sociedade e deveres á cumprir para com ella,
se, como seres humanos, as mulheres tra-
zem comsigo thesouros espirituaes que
devem ser aproveitados e d8senvolvidos, é
preciso todo o escrupulo de uma freira, ou
toda a logica de um frade, para entender
que estabelecimentos da ordem do que se
acha indicado no projecto, não passam de
appendices ou excrescencias inuteis, quando
elles são, pelo contrario, complementos in-
dispensaveis da educação total de um povo
civilisarlo, ou mesmo civilisavel, - se não é·
que nós outros brasileiros pertencelDo~
áquella classe de povos cl'epusculares, de que
falla H. Klencke, povos que vivem no lusco e
fusco perpetuo de uma semi-cultura banal,
sem saberem o que são, nem o que devem,
atacados da mais 'grave das psychoses, a

tados. á propo ito de um pedido de auxilio que fizel'um


duas c!ist.inclas illQças. à .fim de estudarem mediciu<l no
estra~geil'o; e nessa discussão eu tive alguma parte.
-28-
photophobia intellectual, o medo da luz, o
horror da claridade. ,
« Já é tempo, meus senhore!:;, de irmos
comprehendendo que o bello sexo em Per-
nambuco, bem como no Brasil inteiro, tem
direito á maior somma de in'strncção do que
lhe tem sido até hoje fornecida pelos pode-
res,publicos. A escassa instrucção elem.en-
tal', que a provincia proporciona ás suas
filhas, não satisfaz, não pode satisfazer as
exigencias da epoca. A chamada secun-
daria, que é dada nos collegios particulares,
com rarissimas excepções, está á baixo de
qualquer critica (11); e a superior é tbtal-
mente nulla. ·Por uma velha metaphora con..;
sagrada costuma-se dizer que a instrucção
é o alimento do espirito. Dou que s8ja; mas
tambem é força confessar que esse alimento,
pelo que toca ás mulheres, ainda se limita á
pobres migalhas cahidas da parca meza da
cultura masculina, ou antes, para servir-me
da expressão de uma escriptora alleman
contemporanea, Josephina Freytag, o ali-
mento espiritual do bello sexo - são con-
feitos, em vez de pão. Sim, nada mais do
que confeitos; e a relação de semelhança
conserva-se até na propriedade de enfastiar
e indispor o espirito para tomar o verda~

(11) Mais de urna discipula aproveitada de taes eolle-


gios não sabe l1em se cfuer conjugal' o verbo saber. « V.
Exc. far-me-ha o obsequi.o de tocaI' ao pianno um noet1b?'no
de Chopin? não seio» - é a resposta commum, Bem
poucos seriam, na vordade, os qu~ não quizessem fazer
dos propl'ios labios eateeh1b, para apagar na bocca da
baila aquella lettrinba de mais - porém o seio em vez
de sei - faz mal ao nervos.
- 29-
deiro sustento. Assim, um pouco de mu-
sica, algumas peças de salão para o piano,
um pouco de desenbo, gaguejar uma ou duas
linguas estrangeiras, e ler as bagatellas litte-
rarias do dia, eis o t::ltal da maior cultura
do sexo feminino em nossos tempos, cul-
tura anomala, que E. von Hartmann justa-
mente qualifica de instrucção systematica
na vaidade, e que entretanto,-não é pre-
ciso dizeI-o, - redobra de esterilidade e de
penuria entre nós. »... (12)
Estas ideias,com que preambulei a defeza
do projecto 1101' mim ,apresentado, conser-
vam ainda boje aos olhos de muita gente,-
não quero dissimula-lo, -a novidade, o des--
proposito, a extravagancia de então. Mas eu
insisto em crer que a verdade está do nosso
lado, do lado em que nos achamos todos os
propugnadores de um melhor cultivo da
intelligencia feminina. Em assumpto de

(12) Ao menos em quanto não chegar a epocha prefixa


pelo propheta V. Hugo, o nosso atrazo ha de ser sempre
snperlativo, em relação a outros paizes; temos para is o
muito boas razões. Mas é consoladora, se não para mim,
todavia pam outros, a esperança gerada pelo verho do
vidente, isto é, que no seculo L1:, de 1900 em diante, o
Brasil ha de ser alguma cousa de grande e extraordina-
rio. S6 ha á ponderar o seguinte: é que, no mesmo
secul0 vindouro, segundo o proprio alcance de V. Hugo,
a França tem de el' deusa (Paris g!áde); e como este,
multos outros factos dar-se-hão, á crer-se no vaticinio do
mestre, que aliás são inconciliaveis com a promellida
grandeza do Bra iI. Oh 1.. misera fraqueza humana I
O republicano V. Hugo, não achando palavras bastantes
para agradecer a honra que lhe adveio da visita de um
rei, como Pedro II, deita-se a dormir e sonha maravilhas
para esta terra, que esse rei aliás tão desastradamente
governal!. .......
- 30-
instrucção, sobre tudo, é soberanamente
injusto que a mulher continue á fazer, em
relação ao homem, o papel de Ruth-colli-
gm'e spicas post terga metentium, - e isto
mesmo, nos casos excepcionaes, pois que
de vrdinario o seu labor mental nào se es-
tende nem se quer á entrar na ceara scien-
. tifica, para apanhar as espigas que caem
das mãos dos segadores.
Até hoje, diz Clemens Nohl, em todas as
questões da vida publica só se tem immis-
cuido uma parte da humanidade; á outra
tem-se imposto silencio, conservando-a bem
longe das soluções reclamadas, como inca-
.paz de. julgar á tal respeito. Chamou-se
metade do genero humano para um traba-
lho, que s6 por todo elte pode ser executado.
Isto foi uma loucura, que a humanidade
mesma tem pago bem caro» ('13). Meu ponto
de vista é identico; e não canço de confes-
sa-lo alto e bom som.
Limitada como tem sido em geral, e como
ainda hoje ha qU.~J,n pense que deve ser, não
passando alem da elementaridade, a instruc-
ção feminina é totalmente inutil, e quasi
podia dizer,-perniciosa efatal. Si já houve
quem opinasse que a arte de ler e eSC1'ever,
sem cultura espiritual propriamente uita, é
mais um mal do que um bem, pois importa
para os agitadores um meio seguro de pro-
paganda, tendo elles por esse modo um
rebanho de leitores doceis, que não reflec-
tem, que não reagem criticamente,-parece

(13) Ein neuer Schttlarganis1llus pago -151.


- 31-
que isto é applicavel com igual, se não maior
propriedade, á instrucção elementar femi-
nina. No velho prejuizo, ainda mal extincto
actualmente, pelo qual não se admitte que
a mulher saiba ler e escrever, a fim de não
abusar desta sciencia com epistolas amo-
rosas, ba um fundo de verdade. O a b c,
reduzido á sua propria efficacia, é uma força
perturbadora do equilíbrio moral. Antes a
casa de todo não varrida, do que somente
começada a varrer e deixada em meio Gami-
nho, para acudir-se de prompto á outros
misteres: a impressão da immundicie fica
mais pronunciada. Da poesia do billet doux á
baixa prosa do ?'ol de roupa s'uja vae apenas
a distancia de um salto de gato; e todavia
são estes os dous paIos da esphera litte-
raria da mulher, como eUa deve ser, segundo
o conceito que' na pratica infelizmente ainda
predomina.
Não falta mesmo quem julgue que a hones-
tidade é uma flor selvatica, que só viceja
em terreno virgem, não revolvido por mãos
humanas; que a honradez da mulher é um
producto da natureza, e como tal somente
medra e floresce na razão inversa do cultivo
mental. Singularissiina ideia. E' uma triste
honestidade aquella que só pode existir por
favor da ignorancia, ao lado da estupidez.
Será de minhá parte uma exquisitice, mas
eu não comprehendo a attitude de certos
homens, que calculam o grau da propria
venlura pela bruta honradez da cam metade,
sentindo-se elevados e orgulhosos de terem
o seu relogio de oW'O de lei. Que novidade 1
Comprár o annel de brilhante como tal, e
- 32""::
depois mostrar-se desvanecido e aditado
com a legitimidade da pedra 1. .. A-honradez
na mulhel não é um acto, mas um estado;
e nesta presupposição é tão conciliavel com
a. estolidez da mulher de um Haydn, que
rasgava-lhe as pa1'tituras para fazer embru-
lhos, como com o talento e illustração de
uma qualquer, que esteja no easo de se-
cundar seu marido no mais difficil dos tra-
balhos-o trabalho de pensar-que não viva
delle eternamente separada q1wad tho1''l.tm
et mensam do espirito. A honestidade femi-
nina, quanto a mim,' é uma cousa muito
commum e faz parte da bagagem ordinaria
da vida; é um predicado tão pouco carac-.
teristico desta ou daquella individualidade,
como o langor dos cabellos, ou a pequenez
dos pés. Não é phenomeno tão siq.gular,
nem que custe tanto esforço, para formar-se
delle uma virtude, excepto uma virtude que
só pode ser bem garantida pelas quatro
grossas paredes da parvoice. Alguma cousa
de analogo, talvez, ao que se dá com a Liber-
dade: deve ser muito poetica para quem
está na cadeia; porem eu, graças á Deus,
acho-a prosaica e trivial, como a agua que
.bebo e o ar que respiro.
·De mais, a moralidade que se pretende
salvaguardar COQ1 a pressão cerebral femi-
nina, está bem longe de ser, como se crê,
um rebento da natureza-é um facto de
convenção. A moral convencional chega até
lá. E para bem explica-la, seja-me permit-
tido repetir a seguinte narrativa: - Um via-
jante do oriente achando-se em Constanti-
nopla, sahiu uma tarde á passeiar e contem-
- 33-
pIar em suas particularidades á cidade dos
sultões. Aproximando-se de um parque,
onde havia um bosquesinho, cuja sombra
era attrahente, elie sentiu UIÍl murmurio de
vozes humanas; tornou-se curioso, esprei-
tou e viu: - odaliscas que se banhavam! ...
E algumas delIas iam então sahindo das
aguas. Que espectaculo! Mas... oh! terror!
As belIas pressentiram que alguem as lobri-
gava, e á um grito unisono, fugiram todas...
todas nuas, cada qual mais linda, mais pro-
vocadóra, com a pelIe de seda humedecida
e ondulante,
Comrne si, goutes á goutes,
Tombaient toutes
Les pe1'les de son collie't,
em procura dos veus que pendem da folha-
gem,e com que logo cobrem os rostos,aban-
donando tudo mais á extatica contemplação
do feliz obsE;rvador; pois é esta uma lei do
Koran: a mulher não deixar que o homem
lhe veja a cara; o resto é indifferente. Não
. se parece um tal preceito com o do Evan-
gelho sagrado e profano da nossa morali-
dade, pelo qual está assentado que a mu-
lher saber escrever um livro. é cousa que
gera suspeitas contra '0 seu caracter; não
assim porém saber escrever uma carta de
namoro? FaZe?' litteratura no salão, con-
versando e di8cutindo com qualquer ho-
mem culto, está fóra dos limites da regular
instrucção feminina, e compl'omette a sua
reputação; mas é justo e regulari6simo
fazer tbeologia com o J.1adre no confessio-
3
-34-
nario 1... Isto é digno de riso; mas tem
tambem o seu lado serio, o lado triste e las-
timavel.
O alteamento da instrucção da mulher
é um facto já incorporado ao movimento
evolucional do processo historlco. E' inutil
levantar lamentos e objecções á respeito.
A faisca do fogo celeste, que alguem já disse
continha o coração da mulher fiel, pode
carecer, para bem brilhar, da noite da des-
graça, mas não carece das trevas da igno-
rancia. Em tomo de uma cabeça opaca
difficilmente se move um coração luminoso.
A sciencia não seria digna dos nossos prei-
tos, nem dos nossos sacrificios, se nas mãos
da mulher ella sempre se transformasse em
instrumento de perdição. Nem o que se
quer em geral, é collocar a mulher na torre
solitaria da especulação scientifica. Entre
a mulher sabia e a mulher instr'uida, diz
com acerto o hollandez van der Wyk, ha
uma grande differença, e no que toca á
pratica da vida, aquella não é mais impro-
pria e desageitada do que o homem sabio, á
quem não poucas vezes o habito de pensar
confere uma certa asperesa de trato, que não
se dá bem com as luvas de pellica. Mas o
que importa, porque é tambem o que basta,
é ter mt~lheres instruidas; altura esta que
pode ser vingada pelo espirito do sexo, que
é um digno irmão do nosso espirito. (14).

(1!~) lI'mão mais moço e mais sadio, e pelo que nos diz
respeito, visivelmente sUflerior em talento.. Não é um
galanteio de escriptor, é uma convicção; a mulher bra-
sileil'a é em geral, guardadas as proporções, mais intelli-
- 35-
A chamada questão da mulher não tem outro
sentido.
Assim estudado, o probletl1él á resolver é
muito mais complexo e exigente do que o
suppoz Jellinek, cumprindo assegurar que
para a sua solução, á despeito das forças de
que dispõe, o illustre rabino con tribuiu bem
ponco.

gente que o homem. Nota-se-lhe um certo desembaraço,


nma crrta viveza de intuição, que não é commum no sexo
masculino, em sua grande maioria assignalado por uma
talou qual inercia, devida talvez ao excesso de calOl', á
cuja malefica influencia o homem está mais exposto.
E este pllenomeno da supr.rioridarle intellectual femi-
nina, salvo uma ou outra incolTecção dalingua, podalta de
in trucção, manifesta-se até no circulas palm'es da no sa
rulil al'istocracia, onde as mutlleres são quasi todas ageis,
vivaces, conversaveis, ao passo que os homens são ordi-
nariamente !Ie uma lastimavel cUl'leza de vistas, revelando
á cada passo a preponderancia do elemento animal.
- 37-

II

As faculdades jUl'isticas como factores do


direito nacional

A fonte em que hauri a ideia da presente


questão, eu bem podia esconde-la, sem cor-
rer o risco de ser sorprehendido por qual-
quer dos criticas patrios no acto de apro-
priar-me do bem alheio. Mas não é esté,
com orgulho o digo, - não é este o meu cos-
tume. Antes de satisfazer ao publico, bem
antes de procurar merecer a sua conside-
ração, eu trato de satisfazer a mim mesmo,
de merecer o a.poio da minha consciencia
litteraria, tão veneranda e respeitavel, como
apropria consciencia ethica, de quem é ape-
nas uma forma nova, um resultado de adap-
tação social. E não sei como é possivel sen-
tir-se aquelle prazer, tão semelh~nte ao da
pratica da virtude, que resulta alias do
exercicio da penna, da pratica do estudar,
do saber em qualquer grau, se não se tem
escrupulo de fazer proprio, e dar como tál o
pensamento de outrem. As ideias, á IDeu
ver, partilham da sorte juridica das pombas,
qure ab redificiis nostris volant... ou das abe-
lhas, qure ex alveis nôstris evolant: - não
saem da posse do seu dono; e eu respeito
muito esse direito. .
O presente escripto me foi inspirado por
outro de igual substancia, do dr. Rudolf
Heinze, professor na Faculdade Juristica da
- 38-
Universidade de Heidelberg (1), Elle sus-
tenta nesse escripto a these ácima enun-
ciada, isto é que as Facllldades devem en-
trar com a sua parte ele actividade para a
formação do direito, não dl:\ certo como tri-
b,unaes, que profiram sentenças, mas como
co PQs.Jlcientificos, qne merecem ser ouvi-
dos, quer no interesse da sciencia 1TIesma,
quer para o fim de augmentar e desenvolver
o capital j uridico das nações.
E não pareça estranha a expressão de
-ca' ·uridico. Toda nação tem real-
me Ce o se , c-om"prehenden o-se 01' tal,
ou devendo-se 01' tal com rehender o_c.on-
june e questões-elUCida as, de proble-
m;lS resolvidos, nas multipIas rela oes 'e
direitQ, que acompanham a yeid-a-sociul.
Ouçàmos porem o nosso autor: - « Não
padece a menor duvida, diz elle, que seria
um bem para as Faculdades e para o estudo
jnristico, se de novo se tratasse de pô-las em
contacto com a praxe. Sem esta fecunda
aproximação, a theoria corre perigo de sec-
cal' ou de brotar exoticos rebentos. O abys-
mo que se abriu, ha alguns decennios, entre
a theoria e a praxe j uridica, é attribuivel em
grande parte á esse isolamento da primeira.
Os contrastes e anthitheses ainda mais
reforçar-se-hão, se continúa-se a afastar os
theoreticos do verde pasto da vida.» Não
dir-se-hia que estas palavras, com diffe-
rença, ao muito, de um millesimo. silo escri-
ptas para nós outros, que mais que ninguem

('1) Beilageheft zum Gel'icht saaJ. Stralin'úcessuale


E'rol'terungen, 1875, pago 124.
- 39-
padecemos dos effeitos de um tal isola-
mento?
Eu não dou muito, já é superfiuo dizê-lo,
.pela sciencia das nossas Faculdades; mas
ainda de menos valor me parece o traquejo
rude e grosseiro dos nossos tribunaes, onde
Themis e Minerva não se beijam, porem bri-
gam e esbofeteam-se. Um dos nossos pro-
fessores de direito,-os quaes em regra pou-
co fertil de excepções, não são espiritos que
tenham coragem de dar aos pobres, ou de
sacudir pelajanella toda a sua velba mobilia
scientifica, e munir-se de outra nova, no
gosto e altura do tempo,-toma feiçõesgigan-
tescas, comparado com a maioria da magis-
tratura, para a qual se recrutam de prefe-
rencia os mais perfeitos exemplares da classe
dos acephalophoros. E isto provem justa-
mente da especie de muralha chineza, que
os nossos habitas lançaram entre os homens
da sciencia, como tal, e os homens da pra-
tica, do direito em acção; sendo porem
que os primeiros devem aguentar com a
maior parte da culpa desse estado de segre-
gação, prejudicial á ambos. Porquanto em
vez de regarem continuamente a arvore da
sciencia, que foi posta á sua guarda, em vez
de fazerem render os talentos que lhes foram
confiados, os juristas da cadeira sacrificam
os interesses da theoria scientifica aos inte-
resses da chicana especuladôra, qne elles
exercem de commum com a rabulice roti-
neira. Em geral o sIMerdos juris, que julga,
só conhece o sacm'dos ,j'Lwis, que ensina com-
pletamente embrulhado, não na toga romana
dos Pomponius e dos Labeo, porem no manto
-40-
atheniense dos Gorgias e dos Hippias; não
conhece o jurisconsulto, mas somente o
advogado, quero dizer, o sophista, que se
habitua á sustentar com igual vantagem o
P?'Ó e o contra nas lides forenses, acabando
por cerrar o espirito á tona sorte de convic-
ções sinceras (2).
Entretanto havia um meio de pôr termo á
esta anomalia: - era ligar entre si por um
laço de cooperação para o mesmo fim,
as corporações docentes e as corporações
judiciarias; era dar ás Faculdades, como
orgãos pensantes, uma funcção nova, a de
contribuir, em forma de pareceres e con-
( sultas, para a solução das questões mais
graves, que fossem levantadas na esphera
do direito. E esses pareceres não seriam
appendices de luxo, mas elementos neces-
sarios e indispensaveis, lugo que as partes
interessadas os reclamassem, incumbindo
então aos tribunaes o imprescindivel dever
de solicitá-los, e ás Faculdades o de expe-
di-los em um prazo breve e improrogavel.
Não se julgue, porem, que já tenhamos
alguma cousa de semelhante nos pareceres

(2) Sobre este a'3sumpto eu acceito as observações de


Auguste Comte, que exerceu contra a classe dos advo-
gados uma critica severa; mas é diverso o meu ponto de
vista. pois não tenho os advogados, nem vejo como se
possa tel-os na conta de methaphysicos. A cuLLura philo-
:>ophica em qualquer grau, ainda mesmo sob a forma das
vagas generalidades, dos pl'incipios pegados no ar, éjus-
tamente o que lhes falta. Podem ser tachados de tudo,
mellos de metaphysicos. Tanto valera dar este qualifi-
cativo ao mercador que faz bem o seu officio, susteu-
tando com eloquencfa os predicados da sua mercadoria.
- 41-
e consultas dos advogados. Alem de serem
opiniões particulares, sem caracter legal,
accresce que taes consultas são quasi sem-
pre determinadas, não por amor da causa,
mas por amor da parte; e isto concorre
poderosamente para falsear o desenvolvi-
mento juridico do paiz. A ideia proposta
seria ao contrario um meio seguro de col-
locar as luclas do direito em terreno mais
amplo, de torná-Las mais solemnes. e mais
significativas, sobre tudo, considerando-se
que essas luctas, como diz von Ihering, não
constituem questão de interesse, porem
questão de caracter. A sciencia ganharia
em ossos e nervos, o que perdesse em car-
nosidade superfiua; ganharia em factos e
inducções verdadeiras o que se lhe tirasse
de abstracções indefinidas e frívolas con-
jecturas.
Nem é licito pôr em duvida os proventos
de tal ideia. Já os romanos, que na juris-
prudencia foram mestres inexcediveis, tive-
ram a lembrança de uma pratica igual, ou
semelhante. Os seus juristas·tinham a van-
tagem de pôr continuamente ·a sciencia em
harmonia com a riqueza da experiencia e
rectificar a praxe crescente por meio da
theoria das escolas. « A existencia de uma
classe de homens de negocias juristicos,
- diz um historiador allemão, - aos quaes
competia emittir pareceres, que gozavam de
uma certa autoridade perante os tribunaes,
foi muitissimo proveitosa á formação e pro-
gresso da sciencia juridica romana.» O ex-
emplo é digno de imitar-se.
Este assumpto,-eu o reconheço,-pres-
- 42-
tava-se á mais larga explanação. Mas jul-
go-me satisfeito com o que ahi vai dito.
No meio em que vivo, ha perigo em dar-me
qualquer apparencia ele estudo e applicação,
como ha perigo em dar signaes de riqueza
no meio de larapios. São actos de levian-
dade, que rara vez passam impunes. De
mais, -e isto vale um epilogo de todos os
trabalhos precedentes, - eu estou somente
á referir-me á Allemanha, á appellar para a
Allemanha, sem attender que á mais de um
leitor, benevolo ou malevolo, semelhante
appello ainda se afigura como um dispa-
rate.
Conta um viajante europeu dos nossos
dias ter encontrado na America uma tribu
selvagem, a tribu dos Accawai, que entre
outras singularidades possue tambem a da
formosura de suas mulheres. Fez-lhe so-
bre tudo profunda impressão a belleza de
duas moças de 12 á 15 annos. Suas formas
estavam já tão perfeitamente acabadas,
eram de tão cl?ssico desenho, que poderiam
servir á um esculptor como modelo de uma
Venus. Nada dos beiços grossos e dos na-
"rizes chatos, que são communs aos typos da
raça; mas narizes ideialmente afilados, e
rubros labias regularmente polpudos, como
que abertos pela mão invisivel, que distende
a corolla dos cravos; tudo isto rematado ou
realçado pela bagatella dos pés e o diminu-
tivo das mãos. Mas eis aqui o mais extraor-
dinario : - o viajante refere que fez "á estas
duas moças um presente de fios de aljofar,
que ellas acceitaram com muito prazer; em
paga do que pede-lhes elle que cada uma lhe
-43-
. dê um beijo. ElIas olham-se como que
espantadas; nenhuma sabe o que é um
beijo, nem·o modo de dar semelhante cousa;
e quando elle mostrou praticamente ás duas
bellezas o valor dessa incognita, os sel-
vagens presentes romperam n'uma garga-
lhada: nunca tinham visto esse pheno-
meno,chamado beijo. Ora pois-eu tambem,
com o meu continuo citar de autores allA-
màes e ideias allemans, nào estarei sujeito á
alguma risada aeeawaina? Tenho meus re-
ceios.
-45-

III

Dil'eito CI'iminal (1)

DOS DELICTOS POR OMISSÃO

I
o codigo criminal brasileiro, estatuiI).do
como crime (art. 2 § 1) - «toda acção ou
omissão voluntaria, contraria ás leis penaes»
- parece ter presupposto duas unicas ca-
thegorias de factos criminosos, sujeitos ao
seu dominio: - a dos d~lictos commissivos,
os quaes consistem na practica de um acto,
que' a lei tem prohibido, e a dos delictos
omissivos, consistentes, pelo contrario, em
deixar de fazer uma cousa, que a lei tem
preceituado. Destas duas ordens de factos
é a primeira que occupa mais largo espaço
no terreno dos casos previstos pela legisla·
ção penal. As disposições do codigo são em
sua maioria disposições prohibitivas. Das
tres especies ou classes precipuas de crimes
- publicos, pa'tticulares e policiaes, em que
elle dividiu o conceito geral do delicto, é a
classedos crimes publicos, a que ainda deixa
vêr não raras hypotheses de caracter pre-
ceptivo; o que aliás se explica pela naturesa
do sujeito desses delictos, o qual é, em regra,

(1) Este artigo. em grande parte, já foi publicado no


CorTeio da Noite, e depois no Contm a Hypocrisia, mas so
agora é que sae, pela primeira vez, completo.
- 46-
um orgão da autoridade publica, um empre-
gado ou funceionario, á quem a lei indica de.
ante-mão certas normas do proceder, que
elle não póde impunemente postergar. Nas
outras classes, porém, e em relação ao cida-
dão, unicamente como tal, - alem dos pre-
ceitos legdes dos arts. 188, 260, 29!\ 303,
304 e307, -julgamos não existirem mais dis-
posições, que correspondam perfeitamente
ao verdadeiro conceito do delicto omlssivo.
Como se vê,os delictos omissivos se carac-
terisam pela postergação de um mandamen to
da lei, cuja omissão é ameaçada com penas.
O facto esgota-se e completa-se com a mes-
ma omissão, sem attender-se aos resultados
do não cumprim~nto punido. Estes podem
somente ser levados em corsideração, nas
gradações da penalidade. Pelo dolú ou a má
fé, é aqui tomada a consciencia. que tem o
agente, de existirem as presupposições, sob
as quaes a ordem legal deve ser cumprida.
Os motivos de escusa, as razões justificativas
do delicto, são neste caso as mesmas, que
nos outros crimes. Nada obsta, por exem-
plo, que o delinquenLe, por força ou mêdo
irresistiveis, tenha sido constrangido á inac-
ção, a não cumprir o dever prescripto;
como podem ainda outras circumstancias,
superiores á vontade do agente, impedi-lo
de obedecer á norma da lei.
Tudo isto é claro e liquido; e mal se com-
prebende que se possa, á tal respeito, susci-
tar a menor duvida. Mas o assumpto muda
de figura. Alem dos delictos commissivos e
omissivos, segundo a divisão commum, que
acabamos de apreciar, e que é sem contesta-
- 47-
ção, a doutrina scientifica admitte uma outra
ordem de factos puniveis, á saber, a dos
delictos cornrnissivos, que entretanto se com-
mettem por meio de orn.issão.
O caso bem diverso, e a questão, que de
facto é uma, consiste em elucidar, até que
ponto, quando uma acção, segundo o seu
conteúdo positivo, é designada pela lei como
crime, e cllmnlÍnada com a sancção penal, é
passiveI dar-se por um deixa?" de fazer, a res-
ponsabilidade de qualquer individuo, corno
autor, co-autor, ou curnplice de um tal
delicto.
Não é de Certo uma questão ociosa. «'Um
dos mais graves problemas do diFeito crimi-
nal, diz L. von Bar, é sem duvida a indaga-
ção de como a]guem, em virtude da sua
inacção, póde tornar-se causadeum successo
positivo e determinado» (1). -Apar deste,
novissimos outros criminalistas allemães
tem dado entrada no quadro de seus estudos
e pesquizas á questão que nos occupa. Más
á crer-se no que diz um delles, Oscar Sch-
warz, todos tem-na discutido no sentido
unico de sabe até que grau se póde ser
participante do crime alheio, por meio de
omissão, e sob este ponto de vista, tomado
particularmente em linha de conta o caso
do intencional ou negligencioso não impedi-
mento de um crime prepetrado por outrem,
ao passo que, a seu vêr, o problema apre-
senta uma face mais geral, e tem maior signi-
ficação (2).

(I) Die Lehl'e vom Causalzusammenhange pago 90.


(2) Commentar zum Strafgcsetzbuche 3 Auf 1873, p. 45.
-48-
Não sei se o sabio jurista, um dos melho-
res commentadores do codigo penal do im-
perio allemão, é inteiramente rasoavel neste
seu modo de julgar o estado da questão;
nem isso me interessa. Porem sei,- e tanto
me basta, - que ella ainda existe no dominio
da sciencia respectiva, para ser debatida e
estudada. As soluções de Schwarz mesmo,
como de -muitos outros, não são decisivas,
para não dizer, sati'l,factorias. Não é, por -
tanto, fõra do proposito discutir entre nós
uma materia, que no mundo superior não
teve ainda a ultima palavra; motivo -geral,
que por outro lado se addiciona á um motivo
particl;llar de complicação dada ao assumpto
pelas deficiencias dQ nosso codigo.
Deficiencias do nosso·- codigo I! E' muito
arrojo de minba parte! Esta expressão, por
si só, é capaz de arredar o interesse de algu-
mas duzias de leitores. E todavia, não cedo
á necessidade de riscar deficiencias, e escre-
ver excellencias.
O codigo criminal brasileiro, respeitavel
como lei, é acanhado e mesquinho, como
producto intellectual. Não.basta dizer que
elle não satisfaz, é mister reconhecer que
nunca satisfez, nem podia satisfazer, ás exi-
gencias da epocha, bem como da sociedade,
para quem foi legislado.
Com os 49 annos· de existencia, que
actualmente conta, é singulé\.r que essa obra
lacunosa e incompleta ainda não tivesse sus-
citado a ideia da urgencia de uma revisão,
e de uma reforma pelas bases. Sem fallar do
facto, já em si estranho, de um codigo penal,
que não foi feito para um pequeno ducado,
ou cidade lim'e, mas para um grande Estado,
onde ambieo tes diversos, climatericos e
sociaes, provocam cosLumes diversos, e a
diversidade dos costumes produz necessa-
riamente a diversidade e variedade das per-
turbações da ordem publica, conter apenas
o numero de 313 artigos, um terço dos
quaes, pouco mais ou menos, é consagrado
á exposição dos principios regulares, quando
não é de conteúdo meramente doutrinario,
ou processual, de maneira ·que o polymor-
phismo do crime se reduz á pouco mais de
duzentas modalidadts ou fórmas distin-
ctas; sem fallar deste tacto, que entretanto
é de pezo, eu tenho para mett. uso outras ra-
zões e documentos da pobreza do nosso
codigo.
Não é aqui o lugar de entrar em detalhes
sobre este assumpto; aguardarei melhor
occasião. Com tudo, não posso vencer o
desejo de citar um ou dous exemplos da ra-
dical imperfeição da nossa lei penal.
Ainda ha pouco, e ao correr a noticia da
ultima tentativa de morte praticada contra o
imperador Guilherme, perguntava-me um
pobre homem do povo, honrado sapateiro,
monarchista e liberal: - esse tal dr. Nobi-
llng, que quiz matar o seu soberano, em que
pena incorreu, segundo as lei"s do seu paiz?
Na pena de morte, disse-lhe eu. E como
neste caso a associação das ideias, não sei
se por effeito do contraste, ou da analogia,
era muitissimo natural, replicou o velho: -
se alguem entre nós Omll1ettesse um crime
igual contra o imperador, que pena teria?
A mesma que podera ter, tentando matar,
4
- 50-
verbi g~'atic~, qualquer desses trapentes ?'eti-
rantes, median te alg'uma paga. Como assim?
acode o homem, - pois não é certo dizer a
constituição que a pessoa do monarcha é
inviolavel e agrada, isto é, superior á todas
as mais pessoas, e entretanto o codigo, pelo
que diz respeito á vida, o poz ao nivel de
qualquer pobre diabo? ...
E' dmo! O meu interlocutor sahiu espan-
tado.
E realmente a cousa é de causar espanto;
porem é vardade. Dado que o facto aconte-
cesse, - quod De'us avertat,·- se não é que a
exegése dos aulicos chegasse á fazer o res-
pectivo delinquente cahir em conflicto com
a lei de 10 de Junho de 1835, seria elle jul-
gado pela bitola commum.
Bem pode-se dizer que o legislador, assim
procedendo, quiz fazer acto de democmtismo.
Mas isso é inadmissivel, em quem taxou
penas especiaes para as calumnias e injmias
ao monarcha;em quem estabeleceu a não vul-
gar bagatela de 12 annos de prisão com tra-
balho para o ousado, que tivesse a infeliz
lembrança de tentar provar que o imperador,
por exemplo, esteja soffrendo deuma ophtal-
mia incuravel, ou de alguma grave psychose.
Hypotbeses estas, - para dizê-lo de passa-
gem, -soffrivelmente estupidas, sem base
rasoavel na ordem normal das possibilida-
des, e contra as quaes parece que de propo-
sUo se apresenta a maravilhosa saude de
S. M. r.
Para tornar este ponto ainda mais fri ante,
façamos uma supposição: imagine-se, por
exemplo, que algum argyrocrata brasileiro,
- 51-
algum Peabody da nossa terra, tivesse um
accesso febril de patriotismo, e, como Ri-
cardo III, offerecendo o seu reino por um
cavallo, gritasse ao publico por todas as
bôr:.cas da imprensa: -a metade da minha
. fortuna, das minhas centenas de milhares
de contos, a quem livrar-nos da fatal figura
do pantosopho senhor professor de Alcan-
tara!... Que crime commetteria? Em face
do codigo, nenhum' nem mesmo o de
ameaça, pois o facto figurado involve uma
condição, - a de encontrar o rato, que po-
nha o guiso no pescoço do gato, - e não
existe ameaça condicional. Mas isto é justo?
Felizmente a hypotbese não passa de bypo-
these. Todos os nossos patriotas são pobres j
não por que o patriotismo produza a pobre-
za, mas, ao contraio, por que a pobreza é
quem gera o patriotismo.
Tambem podera-se allegar, por outro lado,
que ao nosso legislador, nos pontos em
questão, occorreu a mesma ideia,que ao an-
tigo legislador grego, á respeito do pa?'l'ici-
dia: deixou de menciona-los, por conside-
ra-los impossiveis. Muito boa escapatoria.
Porem em todo caso, e pelo lado que me
tóca, na qualidade de brasileiro, confesso
que mais honrar-me-hia de que o legisla.dor
me julga e incapaz de furtar on de roubar,
do qne podera lisongear-me da pre umpção
de incapacidade para o regicidio.
Não é que me inta, - apre so-me em
declara-lo, - com, o ação para o mister
ou tenha algum intere se que a cou a e
realise' porem acho que o facto é possi el,
e como tal, o legislador não tem desculpa,
ou de have-Io considerado de importancia
commum, o que é assás dubitavel, ou de
have-Io de todo desapercebido, o que para
mim é o certo.
Ainda uma outra prova, e esta de maior
pezo. O codigo desconhece o conceito da
concurrencia ideial, e da concu1'Tencia real dos
.delictos, como tambem parece que não en-
trou nos seus calculos a ideia do delicto
continuado, do delicto momentaneo ou dura-
dou1'o, transitario ou pel'manente. Destas
la"cunas, ainda mais aggravadas pela am,en-
cia de uma verdadeira doutrina scientifica e
uma praxe regular, que as possam supprir,
resulta o espectaculo de um sem numero de
disparates observados na decisão do gover-
no, que se arvóra em criminalista e.c cathe-
dt'a, e nos julgados dos tribunaes, sempre
incertos, vacillantes, e tacteando as trevas
da sna propria incerteza. Assim, ba cousa
alguma de mais divertido, do que vêr sobre
a hypothese do art. 222 do codigo criminal,
levantar-se a questão, - se sendo virgem a
mulher violentada, e menor de 17 annos,
deve o réo responder não só pelo crime
daquelle, como pelo do art. 219? Só conheço
de mais ridiculo o serio imperturbavel, com
que o governo responde ao jU1'Ísta, que o
consulta, que o planeta attrae o satellite,
e os dedos de cada mão são justamente
cinco.
Mas voltemos ao assumpto. A excursão
foi talvez demasiado longa, ainda que não de
todo improficua. Estabelecido, como deixei,
o conceito do delicto commissivo, que se
commette por omissão, releva saber se de
"':"53-
facto, e em que medida o nosso codigo com-
porta a realisação desse conceito.
II
o habito gerado pelo contaGto dos crimi-
nalistas da tabella, cuj a chymica j uridica de-
compõe o acto criminoso em dois elemen-
tos, nem mais, nem menos, de modo que
se falla continuamente' do elemento moml,
e do elemento matet'ial do delicto com o
mesmo grau de segurança, com que se pode
fallar do oxygeneo e hydrogeneo, de que se
compõe a agua; - esse habito, digo, infe-
lizmente radicado nos espiritos, é a pri-
meira, se não a unica difficuldade a vencer,
para tornar commum a ideia em discussão.
Com effeito, a quem não occorre logo ob-
jectar: onde se acha, em semelhantes cri-
mes, o elemento matm'ial? O que vale dizer
em outros termos: qual é o facto exterior,
objectivo, que entra na construcção do
conceito do crime? Mas esta arguição é
infundada. Por quanto a primeira exigen-
cia conceituaI do delicto, não é que elle
tenha as duas metades, de que na escola se
faz tanta questão, porem outra, um pouco
mais ampla. Para que um individuo seja
responsavel por um phenomeno violador do
direito, é necessario, antes de tudo, que
entre uma acção delle e o phenomeno refe-
rido exista um nexo causal, isto é, que uma
acção desse individuo seja causa mediata
ou immediata do mesmo facto. Creio que
isto é inquestionavel. Quando e como a
acção de um homem deve ser considerada
- 54-
como causa responsavel de um phenomeno
dado, ja é outro ponto, que influe no valor
daquella primeira verdar'le. Sendo assim, a
questão, que nos detem. se reduz aos se-
guintes termos :-t: passiveI que uma omis-
são do homem, do mesmo modo que a sua
acção seja causal ~ Pode haver um nexo de
causal'idade entre um acontecimento, offen-
sivo do direito, e uma omissão, ou um dei-
xar de pmtica1" da' parte do individuo? E
mais restrictamente á materia discutida: -
pode dar-se nexo ca'l.bsal entre uma omissão
e uma violação das leis penaes? Eis o
P'~bnctum saliens; e a affirmativa é irrecu-
savel.
Comprehende-se por si mesmo que não
se trata aqui de uma pesquisa metaphysica
da ca'l.~salidade, e tão pouco de saber, se a
vontade humana é realmente uma c:usa.
São cousas estas, que nada interessam ao
direito, o qual suppõe como certo, por um
lado, que o homem pode ser causa de um
phenomeno exterior, e por outro, que po-
dem apparecer phenomenos exteriores, que
não são dominados pela vontade humana, e
pelos quaes ninguem responde.
Deste modo o que nos importa indagar, é
somente, como, e sob .que presupposições,
uma omissão voluntaria pode causar, por
si só, ou co-operativameote.. um facto qual-
quer, com todas as qualidades caracteris-
ticas do crime; e isto quer logo deL'<ar
subentendido que a questào não é encarada,
sob o ponto de vista do direito civil, como
por ventura se acha resumidamente accen-
tuado pelo L.31 D. ad lego Aq'l.b... culpam
- 55-
autem esse, q'uod, cum a diligente p1'ovicle1'i
poterit, non esset provisum. Encaro unica-
mente a face criminal.
Alguns criminalistas, - Feuerbach na
frente, - ensinam que a omissão, em regra,
não é punivel, mas somente recebe este ca-
racter, quando motivos particulares impoem
o dever de obrar; e este só existe, determi-
nado por lei ou por um contracto, ou mes-
mo por effeito de certas relações, quaes por
exemplo, as relações de parentesco ou de
família etc. E' facil, porém, de compre-
hender que esta doutrina se ressente de
uma estreiteza de amhito, que não abrange
todos os casos possiveis de omissões rimi-
nosas, além de, por um rodeio, cahir, em
ultima analyse, na consideração unica dos
delictos omissivos propriamente ditos.
Assim, dado um infanticidio por effeito de
hemorragia resultante de não atar-se o cor-
dão umbilical, seria criminosa a mãe desal-
mada, que de proposito tives e escolhido
esse meio de livrar-se do fructo de sua des-
honra' não assim, porem, a parteira ou
assistente, que entrasse no plano da execu-
ção 'da obra; porque aC.fUella, como mãe,
tinha uma obrigação po itiva de obrar,-
obrigação que aliás á esta não cumpria.
Outro sim: -o encarregado de policia por
exemplo, que, podendo, não prendesse um
desordeiro publico, um homicida, em fla-
grante delicto de a a sinato, seria culpado
de omissão crimino a' porem, ao envez dis-
to, praticaria um acto licito o cidadão,
como tal, que tendo ú crimino o á seu
alcance, deL\.a~se, ntretanto, de captura-
- 56-
lo por meras considerações de ganho e in-
teresse pessoal. Mais clal'o ainda: o pae
austero e cruel, que empan'd:lsse uma filha
para puni-la de um erro, e fingindo-se esque-
cido, deixasse de mandar ministrar-lhe a
alimentação, resultando d' ahi a morte da
emparedada, commetteria uma infracção
punivel,' porem não commette-Ia-hia por
ventura a pessoa, estranha á familia, mas
conhecedora da cousa, que annuisse em
silencio á pratica de tal barbaridade.
Entr'etanto salta aos olhos o lacunoso e
inacceitavel desta maneira de vêr. Ena não
escapou á critica de Luden, que foi o pri-
meiro á denuncia-la como elTonea (3). O
delicto commissivo não póde consistir so-
mente no não cumprimento de uma obli-
gatio acl faciencl'l.~m; e tão ponco pode uma
siMples relação contractual tornar-se o fun-
damento de direito da criminalidade desses
act.os. O principio capital de Luden é o
seguinte: « Como a omissão não se exclue
do conceito da acçã~, póde qLlalquer pheno-
meno dessa natureza, lue tiver uma direc-
ção activa, constituir delicto, sem attender-
se a que exista, ou não, um dever de activi-
dade positiva ».
Porém a theoria deste criminalista ainda é
acanhada e pouco satisfactoria. Com quanto
elte reduzi. se com justeza a doutrina dos
delictes commissivos por meio de omissão
á theoria do nexo causal, todavia não poude
chegar á conclusões inteiramente admissi-

(3) A])handlungen ... II. 232.


- 57-
veis, ou por que, como diz von Bar, lhe fal-
tasse a base segura de uma verdadeira theo-
ria da causalidade em materia criminal, ou
por outro qualquer motivo, que não releva
aqui indagar. E desta arte foi passiveI á
Glaser involvê-Io tambem na sua critica de
todas as opiniões relativas á semelhante
assumpto, sem que aliás coubesse ao mes-
mo Glaser a ultima palavra sobre elle (4).
Por quanto este autor. em mais de um pon-
to, identifica as relações de causalidade com
as de condicionalidade; e assim demonstra
não achar-se para eUe bem determinado o
verdadeiro conceito dos delictos em questão.
Verdade é que elle estabelece um principio
fecundo, cuja applicação póde ser um meio
seguro de chegar ao termo desconhecido do
problema. Tal me parece esta synthese:
« Se busca-se abstrahir, diz e]]e, o preten-
dido autor de um crime dado da samma dos
factos, que o constituem, e mostra-se que,
não obstante, o resultado apparece, que,
nào obstante, a seriação das causas inter-
medias permanece a mesma, então é claro
que o acto criminoso ou a sua immediata
consequencia, não pólle ser posta á conta
desse individuo)l. Mas importa reconhecer
que uma tal prova ainda não é sufficiente;
e o mesmo Glaser confessou que não são
raros os casos, em l.Jue ella encontra serias
difficuldades.
Entretanto é fóra de duvida que todos estes

(l~) Abbandlunv;en aus dem oeslerreichischen Slra-


fl'ecbl I. 300. 1858.
- 58-
achados e opiniões de homens competentes
não ficaram perdidos para a sciencia respec-
tiva; e é justamente com o apoio de seme-
lhantes dados, que terei de sondar o intimo
da questão proposta, em relação ao nosso
direito penal.
O delicto commissivo, omissivamente
perpetrado, faz parte do systhema de direito
criminal brasileiro? Eis o problema, do
qual não posso assegurar que alguem entre
n6s já o tenha resolvido deste ou daquelle
modo; mas é certo que ao menos na pra-
tica, onde aliás elle tem uma grande impor-
tancia, nunca foi conscientemente agitado.
E para tornar evidente, quão pouco os nos-
sos criminalistas se têm preoccupado de tal
materia, bastaria lembrar qLle o dr. Mendes
da Cunha, especie de putriarcba dos juristas
brasileiros, cujo distincto caracter funccio-
nou como talento distincto, e cujo merito·
real, sotoposto á fama que o illustra, nos
traz a ideia de alguma cousa de semelhante
ao celebre symbolo da cosmogonia indiana:
- o mundo inteiro em cima de uma tarta-
ruga, - o dr. Mendes da Cunha, digo eu,
na sua analysL3 do codigo criminal, não se
julgou obrigado á consagrar aos delictos, de
que se trata, mais de tres paginas, e estas
mesmas vasias de ideias, r8velando pelo
modo, por que encarou a questão, não ter
della nem se quer um leve pressentimento;
o que se põe f6ra de qualquer objecção, se
se attende que o honrado jurisconsulto de
quem diz a legenda, que seria capaz de com-
petir com Triboniano na systhematisação
de jus civile, deixou então passar o melhor
- 59-
ensejo de mostrar-se, qual o julgavam, um
romanista de força. Por quanto o assumpto
dos crimes por omissão podera bem leva-lo
á utilisar-se da abundan te casuistica, offe-
recida á tal respeito pelo direito romano, e
não fa-lo-hia limitar-se, como limitou-se, á
.um ou dous textos estereis e quasi estra-
nhos á materia, se de facto elle fosse um
perfeito conhecedor desse direito.
E' pois facillimo de conceber que, se um
jurista da tempera do mencionado não con-
tribuiu, nem com um traço de penna, para
suscitar-se e esclarecer-se o ponto, que ora
discuto, nada havia á esperar dos seus epi-
ganas, aos quaes esta questão com todo o
. seu alcance, eu creio, nunca, se quer, appa-
receu em sonho.
Isto na esphera simplesmente theoretica.
No mundo pratico, porem, se o defeito não
é igual, é ainda maior. Eu me recordo de
já ter assistido ao julgamento de um pro-
cesso celebre, no qual os defensores do
accusado, quasi todos tidos em conta de
juristas abalisados, allegavam seriamente
que a melhor prova da innocenciu do reu era
que, no momento do facto arguido, elle nada
praticara de positivo, mas ao contrario se
distinguira pela inacção; 'e quando se lhes
oppunha que nesta mesma inacção, que
nesta mesma falta de um acto positivo, que
no caso teria servido para obstar o morti-
cinio (tratava-se de um tal), consistia o cri-
me questionado, os bons juristas riam-se
com emphase, como diante de uma extra-
vagancia. Elles não comprehendiam a solu-
ção do problema, se não involto nesta velha
-BO -
casca: A mandou por B, C, D, E matar à F?
E assim, quando o juiz presidente do tri-
bunal, que dignara-se de ouvir previamente
o escriptor destas linhas, juntou ao quesito
esperado mais dous inesperados que diziam:
- Caso não tenha A mandado matar a F,
todavia concorreu directamente, por outro
qualquer modo, para a pratica do crime,
fazendo isto, ou deixando de fazer aquillo? ..
Não tendo assim concorrido, houve com
tudo da parte de A um acto de impru-
dencia, quer positiva, quer negativamente,
que foi a causa, ainda que involuntaria, do,
homicidio?-quando se leu taes quesitos,
que eram outras tantas torturas para a con-
sciencia dos julgadores, visto que ao primei-,
1'0 sozinho era passiveI responder negando,
e sem expor-se ao mInimo remorso, osjuris-
tas da defeza cahiram das nuvens, chegando
até 'um delles á fazer ponderações ao juiz
sobre a inconveniencia das perguntas, que
entretanto foram mantidas; e ainda hoje é
criveI que todos estejam convencid03 do
exotico e disparatado dellas I ...
Tudo isto dirige-se á um fim: provar que
a ideia dos delictos omissivos não é com-
mum entre nós, e como tal, necessita de
abrir-se caminho através das verdades feitas
na academia, como pílulas na botica (5).

(5) Não são poucos os exemplos de impunidade, resul-


tantes deste acanhamento de vistas. lia juizes, que não
comprehendem a complicicidade de 11ma mulher, por
meio da maquerellage, nos crimes contra a honra, pela
simples rasão de que a muUler não pode exerceI' funcções
viris; e de mais, isto nuuca foi explicado na Faculdade,
- 61-
Mais o que importa, sobre tudo, é mostrar
que essa ideia não repugna. ao espirito do
codigo, sem o que bastaria, em muitos casos,
um grau superior de habilidade da parte do
criminoso para por-se fóra do alcance das
leis penaes ; e deste modo a vida social com-
plicar-se-hia de mais um embaraço, por
falta de garantia.
III
Para attingir o nosso desideratum cons-
truamos algumas hypotbeses, começando,
como parece mais natural, pela autoria pro-
priamente dita. E figuremos logo um facto
de caracter ordinario. A- deposita no seu
po?'ta-licÓ1' uma garrafa de bebida especial-
mente preparada para provocar vomitos
em B, velho borracho, que não dispensa
occàsião alguma de saborear a santa pinga,
Eis chega porem a, cuja natureza é mui
diversa, mas que hoje cedendo a um estra-
nho desej o dirige-se ao p01·ta-licó?\ e lança
mão justamente do frasco predestinado.
A-não ter;n a menor duvida deque a bebida
pode ser fatal ã C; entretanto cala-se de pro-
posito, ainda que de um proposito occasio-
nal, dolus eventttalis. e deixa que a haura o
pernicioso licor. Momentos depois appare-
cem os resultados: os vomitos em excesso,

Conheço mesmo IIns cel'tos, para quem o procedimento


de pae corruptos, que vendessem ao prostibulo filhas
menores de -J 7 annos, seria, como elles chamam, uma
especie nova, que deve ficaI' impune. paI' não ser prevista
pela lei. E de tal gente é composta. em sua maioria, a
magistratura brasileira I
- 62-
o mal estar geral, a febre, a doença e ap6s
disto, por qualquer complicação possivel, a
propria morte; o que de certo A não tivera
em mira, porem devêra presuppor e evitar.
Uma verdadeira culpa dolo determinata, e
por conseguinte á cima da cathegoria tra-
çada pelo art. 19 da lei de 20 de Setembro
de 1871. E qual é o momento ca'usal do de-
licto? Precisamente a omissão de A em
prevenir e prohibir, que C tomasse a fatal
bebida.
Outra hypothese: M-em viagem para um
certo lugar, tem de passar necessariamente
pela porta da casa de N-que demora á mar-
gem de um rio, sobre o qual ha uma ponte
de transito geral e quotidiano. Succede
porém que nesse dia a ponte se acha dete-
riorada e intransitavel sem perigo. Mignora,
mas N conhece esse estado; e não s6 d'eixa
de advertir o transeunte da catastrophe
imminente, como ainda se compraz em as-
sistir ao espectaculo, dizendo cynicam.ente :
vejamos a queda daquelle demonio. Dito e
feito: M cáe da ponte arruinada, e quebra
uma perna. Não baverá imputabilidade cri-
minosa no proceder de N? Eu acho na ver-
dade justo o que di.z von Buri, que seria ir
muito longe com o principio de direito, que
faz a qualquer responsavel pelo resultado de
um acto, que elle podera, querendo, ter evi-
tado se se transportasse esse principio, sem
limitaç.ão alguma, do dominio da ethica para
\) do direito penal (6). Mas tambem me pa-

(6) Der Gerichtssaal 1875, pago 26.


- 63-
rece inquestionavel que seria difficll de con-
servar-se n'um certo pé de ordem e tran-
quillidade uma sociedade. onde factos de
semelhante natureza tivessem por unico obi-
ce, ou por correctivo unico a voz da con-
sciencia moral, que é relativa ás individuali-
dades, segundo a sua educação, o seu tem-
peramento e as suas paixões habituaes.
Mais outro exemplo: J e L andam á caçar
nas florestas, e não sabem que, á pequena
distancia delLes, acha-se'tambem P, entre-
gue ao mesmo entretenimento. Acontece
entretanto que J, assestando e disparando a
sua arma contra um veado, ou outro ani-
mal bravio, ouve um grito de pessoa estra-
nha, qLle acaba de ser ferida. J e L correm
ao lugar, e lá encontram P banhado em san-
gue, mas não mortalmente ferido, ainda que
impossibilitado de caminhar. L. reconhece
em P seu velho inimigo, e não s6 deixa de
prestar-lhe qualquer auxilio, como veda que
J o preste, ficando assim P abandonado por
horas do dia e da noite ás influencias do ar,
que lhe aggravam o mal, e trazem-lhe a
morte. ão ha aqui um nexo causal entre a
omissão de L e o fallecimento de P? Sem
duvida; e por conseguinte uma responsabi-
lidade criminal, caracterisada pelo dolt~s
s~~bseqnens, com que elle, aproveitando o
ferimento de seu inimigo, fê-lo chegar á um
resultado, que não éstava conUdo na natu-
resa do pl'oprio facto original. Este caso,
que aliás não e adapta á bypotbese do
art. 194 do nosso codigo, e tão pouco á do
já citado art. 19 da lei da reforma, seria uma
offensa ao sentimento do direito, se fosse
=- 64-
considerado impunivel; nem haverá, quem
seriamente assim o considere.
1)e mais facil concepção do que a autoria,
por que tambem mais facil de realisar-se, é
a complicidade por omissão. Em geral defi-
nem a complicidade, de que trata o art. 5 do
codigo, « a concurrencia directa para se
commetter crimes ». Mas esta definição,
posto que autorizada pelo uso, involve um
erro, por faltar-lhe o que se chama na logica
vulgar (/; c1itt'e1"ença especifica. EUa não con-
vem á todo o definido e a eUe somente.
Tambem se concorre directainente para a
pratica de um delicto, por meio do mandato,
ou do constrangimento; e ambos, entretanto,
constituem autoria. Assim a verdadeira defi-
nição de complicidade, segundo o nosso
direito, é a seguinte: a concurrencia directa
para se commetter crimes, por outro qual-
quer modo que não seja, mandando ou cons-
trangendo. Isto é evidente, e tão evidente,
que não reclamo para mim a gloria da des-
ceberta.
Outro tanto não direi da maneira de inter-
pretar a expressão - di-rectamente. - que se
lê no mencionado artigo. O erro, que al1i se
commette, é muito mais grave; e eu não
rejeito a honra de aponta-lo e torna-lo bem
sensivel. O desacerto geral, á tal respeito,
consiste em que aqnelle adverbio não é to-
mado como exprimindo um facto subjectivo,
mas como significando uma modalidade
objectiva da acção, que constitue complici-
dade. Julga-se desta arte que a concurrencia
para o crime ha mister de meios directos,
que conduzam regularmente ao fim dezeja-
- 65-
do; quando aliJls a palavra-di1'ectamente-
não tem outra funcção, senão a de marcar
o momento subjectivo do delicto, sem attenção
ao modo de perpetra-lo e á natureza dos
meios empregados. Nem se diga, em apoio
da opinião contraria, que esse momento
caracteristico da concurrencia criminosa;
das Schulclmoment, como chamam os j uris-
tas allemães; já se acha presupposto, em
virtude do art. 3, que estabelece a exigencia
psychologica da má fé, e que por tanto a
repetição desta ideia no art. 5 seria uma
especie de pleonasmo juridico. Antes de
tudo, responder-se-hia que a lei, principal-
mente em materia criminal, nunca é pleo-
nastica, não corre o risco de offuscar por
excesso de luz. Depois, sobrevem ajusta e
decisiva advertencia que é impossivel deter-
mina.r á priori, quaes são os meios directos
de auxilio prestado á pratica de um delicto ;
e se por taes se devesse entender aquelles
que já são conhecidos pela observação e
experiencia communs, então aleidesappare-
ceria diante do sophisma, e a habilidade do
criminoso rir-se-hia triumphante da estoli-
dez do juiz. Por exemplo: F, que agarra em
G, para este ser mais facilmente apunhalado
por H, é um complice em regra, por usar de
um meio, de que a estatistica criminal offe-
rece varios specimin~t; não assim porem C,
que machinando a perda de dous individuas,
entre os quaes sabe ellc exibtil' uma velha
intriga.. -á fim de leva-los á explosão, escre-
vesse cartas anonymas e empregasse outros
iguaes manejos sordidos, até que um dos
dous illudidos fosse impellido á assassinar o
5
- 66-
out1'.o. Porem isto seria absurdo e visivel-
mente attentatorio do senso Juridico, não só
da parte culta, como da parte inculta mesma
de qualquer sociedade legalmente con-
stituida.
Admittido pois, como não pode deixar de
sê-lo, que a concurrencia para o commetti-
mento de crimes é possivel realisar-se por
um modo indirecto, mais claramente se
comprehende que essa concurrellcia seja
tambe.m realisavel por meio de omissão.
Exemplifiquemos: Q sorprehende S no acto
de lançar veneno na comida, de que vae ser-
vir-se R, patrão do segundo. Est8 não recúa
d~ante d'aquella testemunha, mas antes trata
de induzi-la a que guarde o segredo; Q acce-
de ao seo pedido. Uma palavra ctelle teria
bastado para frustar o plano de S; mas tal
palavra não se faz ouvir, R não é avisado do
mal que o aguarda, e o drama projectado
tem o seo natural desfeixe: S envenena seu
amo. Não tem Q em semelhan te crime a
parte do auxilio, correspondente á sua omis-
são, isto é, ao seu silencio'? Sem duvida.
E pouco importa que o facto se dê, como
figuramo-lo, entendendo-se previamente o
autor com o complice omittente, ou que
não haja uma tal intelligencia. Se em casos
taes deve haver não um só designio commum
á ambos, mais tambem a consciencia com-
mum dessa communhão, é uma questão di-
versa, que aqui nada interessa. Da mesma
forma nada importa a allegação da difficul-
dade da p.rova, quer nos casos de concur-
rencia positiva por meios indirectos, quer
nos delictos omissivos, onde o auxilio dado
- 67-
ao crime costuma-se designar pelo epitheto
de negativo (7). A difticuldade da prova não
altera a natureza do facto.
Construamos uma outra hypothese. Pelo
art. 226 do codigo é punivel o rapto, que
consiste no acto positivo da tirada violenta
de qualquer mulher da casa ou lugar, em que
estiver, para fim libidinoso. A complicidade
positiva pode apparecer por varios e sabidos
modos: um adjutorio immediato, prestado
ao raptor, no momento da execução, já ani-
mando-o, já segurando nos braços da beIla
sabina resistente, ou abafando-lhe a voz, já
emfim empregando doees palavras, que lhe
abrandem o pudor enfurecido ...
Mas pode igualmente, em taes emergen-
cias, dar-se uma com plicidade negativa.
ImaginemGs que no lugar, onde UUla scena
destas se representa, com ares de quem nada
vê e nada ouve, se acha uma experta e ma-
dura gouve?'nante; uma dessas mulheres da
estatura moral da senhora Dobson no F1'O-
mont 8: Risl8l', de Daudet, a qual de certo
ignorava tudo, e como tal p&sseava descui-
dosa com a sua alunma, porem que, ao apro-
ximar-se o autor do crime, recebe deste o
signal de por-se immovel, por intermedio de
uma brilhante somma... a presupposição
de que, se elia gritasse, ou désse qualquer
subita providencia, o delicto não se executa-
ria, - salta aos olhos que nelle tem o seu
quinhão de responsabilidade.

(7) Die olhwendige Theilnahme am Verbl'echen von


Scbütze- § 50, pago 350. .
- 68-
Até aqui tenho exemplificado a complici-
dade por omissão,realisada aliás nos proprios
delictos commissivos. Entretanto ella tam-
bem é concebivel nos crimes, que se perpe-
tram omissivarnente. Assim no infanticidio
já figurado, pela perda de sangue provinda
de não atar-se o cordão umbilical, a mãe que
deu o plano do fingido descLüdo, é autora do
crime, e segundo as circumstancias, é co-au-
tora, ou complice a parteira que annuiu.
O mandato, segundo o nosso direito, con-
stitue autoria, mas não deixa de ser um facto
de concurrencia, de synergia criminal; por
isso, no que lhe diz especial respeito, a
questão não offerece maior difficuldade,
emquanto se figura o caso de alguem man-
dar outro abster-se de um acto, que serviria
de obstaculo á pratica de um crime, e dessa
abstenção intencional resultar o mesmu
crime. Aqui a omissão é do mandatario,
inspirada pelo mandante. Mas não é pos~i­
vel dar-se tambem a omissão do mandante,
causando o acto positivo do mandatario,
não é possivel, em uma palavra, o mandato
por omissão?
Se toma-se o mandato no sentido restricto
de um contracto entre o mandante e o man-
dataria, por um dos q1Linque l1wdis, que
ensina o direito romano (I. ele mandato-
P?' ... 3,26), ou mesmo no sentido de uma
ordem directa e imperiosa, 'ainda cIue sem
constrangimento moral, não ha duvida que
o mandato por orn it;;são é um a contnLdictio in
adjecto. Porem não é crivei, oem passivei
que este seja o sentido do codigo. Ao con-
trario, estaria aberto o caminho á toda a
- 69-
sorte de sorrelfas na apreciação de uma das
mais graves manifestações da criminalidade.
No mandato, o que importa ponderar, não
é a sua fOfJlla, quer seja a simples com-
missão, quer a m'dem, quer a vis compulsiva,
quer a supplica mesma, - porem o seu con-
teúdo, que é um s6: - suscitar no agente
physico a idéa do crime á commetter, ou
seja que o mandante figure. no primeiro mo-
mento dessa ideia, fazendo-a nascer, ou que
elle appareça em qualquer momento poste-
rior, fazendo que ella se realize. E' sempre
o nexo causal, que decide, e pelo cruaI o man-
dante deve ser sempre o architectus, clux
atqtte princeps sceleris.
No thesouro do direito romano já se encon-
tra, em larga escala. a consagração desta
doutrina. As expressões que servem para
designar o mandante, assim concebido, são
as seguin tes : - qui dolo malo fecerit, '1-tt ... (L.
4 § 4 D. 47. 8, L. 11 pr. D. 47. 10);-qui
auctot' ftterit... (L. 3 § 4 D. 48. 8, L. 38 § 2 D.
48. 19); - si quis cumverit ou p1'ocwraverit
(L. 11 nr. D. 47. 10, L 15 § 10 D. 47. 10);-
is cujus .nstinctu (L. 5 D. 47. '11 ), cujus opem,
dolo malo (L.1 pr. D. 48.8). Para designar a
provocação,os maus conselhos,a seducção ...
encontra-se ainda: - consili'um dare (L. 36
pr. D. 47.2); solticita?'e (L. 1 § 1 D. 48.4);
concitare (L 1 § 1 D. 48.4, L. 3 ibid., L. 16 D.
49. 1); suadere, persuadere (L. 12 D. 48. 5, L
51 § 3 D. 47. 2). Para a ordem propriamente
dita acha-se: imperare (L. 7 § 4 D. 47. 7);
jube1'e (L. 7 D. 48. 6); para a commissão-
mandat'e (L. 11 § 3 e 5 D. 47.10, L. 5 C. 9.2);
para a offerta e promessa de paga-condu-
- 70 -..:
ce?'e, commoda1'e (L. 11 § 4 D. 47. 10, L. 4 D.
48. 6). A expressão ca'l.tsctm prcebere, que
tambem é frequente, se adapta em geral aos
differentes casos de mandato; e neste sen-
tido é que se lê :- Nihil interest, occidat q'l.tis,
an Ca'l.lSam mo?'tis p1'cebeat (L. 15 ad lego Corn,
de sicc. et venef. D. 48. 8). O cct'l.tsam mortis
prcebe?'e não sujeita-se á uma definição, e
tão pouco á uma enumeração. O mandato é
uma das formas, e de certo a mais impor-
tante, da participação no crime; e, como
diz Benoit Champy, a pretenção de prever,
de apreciar as modalidades infinitas de par-
ticipação, que podem apresentar-se na pra-
tica, é urna pretenção chimerica (8). Isto
assentado,_ par~(;e incontestavel que não
repugna á essencia do mandato, realiza-lo
por meio de omissão. Nem ha mister de ir
muito longe, para attestar com factos, e fac-
tos da vida ordinari.a, a realidade da cousa.
Uma ouduas hypotheses bastarão. Zacaba
de ser publicamente insultado por X, e vol-
tando á casa, depois .de referir á sua familia
o que lhe aconteceu, ouve a voz de um seu
fiel escravo, que diz lá no meio dos 1: arcei-
ros: se meu senhor não se zanga, eu vou
vinga· lo boj e mesmo; e á isto Z nada res-
ponde. Poucas horas depois, X é assassi-
nado por esse escravo. Não ouve abi um
mandato tacito? Simples questão de facto,
simples questão de provas: se os preceden-
tes do executor davam direito á suppor que
ene, não encontrando obs~aculo, cumpriria

(8) Essai S1W la complicité... pago 75.


-71-
a sua promessa; se o silencio de Z foi um
acto de má fé, dolo malo fecerit, está fora de
contestação que Z é um mandante.
Ainda mais: supponhamos alguma cousa
de analogo ao que se lê nos s':lguintes versos,
que são de certo uma pintura poetica, mas
uma pintura d'apTés nature. São palavras
postas na bocca de um espirito barbaro e
intransigen te:
«Lembro-me que, á meu pae contando um dia
Ter visto minha irmã, com os pés descalços,
Desgrenhada,-ella ó-fallando á um homem,
Meu pae me perguntou: onde a enterraste? .1>

Supponhamos com effeito que alguem, col-


locado em semelhante collisão, recebendo
de seu pae uma tal pergunta, que importa
ao mesmo tempo uma censura e uma pro-
vocação, fosse logo depois realizar a ideia,
que essa pergunta insinúa; presuppondo-se
que o pae nada oppozesse ao manifesto in-
tuito do filbo, o mandato de fratricidio, co-
meçado por um meio positivo indirecto, e
acabaü:) por omissão, seria evidente.
Outro sim: um caso igual ao de Tarquinio
com o mensageiro de seu filbo Sexto (Liv.
1. 54) não seria de todo um mandato do ge-
nero; - o smnma papaverttm capita ... bacttlo
clecussisse - é um signal positivo; mas dado
que o mensageiro, comprehendendo o sym-
bolo, mostrasse logo attribuir-Ibe maior
alcance do que elle porventura comportava,
e não fosse obstado por Tarquinio, é claro
que este far-se-hia culpado de uma omissão
criminosa.
Não ha mister de multiplicar os exemplos.
- 72-
Estes illustram, mas não augmentam o valor
da theoria, que aliás defende-se por si mes-
ma. A questão se resolve, com todas as suas
particularidades e nuanças inlinitas, n'uma
simples questão de causa e effeito. Quer en-
tenda-se por causa, segundo Stuart Mill, um
facto que se isola da cadeia de antecedentes
de um phenomeno dado (9), quer por tal se
comprehenda, segundo Trendelenburg, a
mais activa das multiplas condições de um
acontecimento (10); ou tal seja, segundo
Herbart e von Buri, a somma de todas as
forças productivas de um pbenomeno (11);
o certo é que, nos chamados delictos por
omissão, como nos proprios delictos com-
missivos, o crime é um effeito, que se prende
á causa voluntaria, obrando, ou deixando de
obrar. E seria singularissimo que entre nós,
v. g. sendo punivel o homicidio involuntario,
resultante de uma imprudencia, não o fosse,
porem, o homicidium dolos'/,~m, prqveniente
de uma omissão proposital e calculada. Uma
tal maneira de ver só tem de notavel a sua
extravagancia, nem eu duvido que haja
quem seriamente esteja por ella. Em mais
de um ponto, a nossa sciencia do direito,
principalmente na esphera criminal, é a
ignorancia ensinada com methodo, e ainda
mais mE:;thodicamente aprendida. Mas eu é
que não estou pelos 15 pc~d'l'e-nossos e 150 ave-
marias da patria jurispericia. O meu rosario

(9) Systhem deI'Logik-traducç. de Schiel- 1. 887.


(10) Logische Untel'suchwngen li 18k.
(11) Ueber Callsalitiít und del'en Verant wortung. pag.1
1873.
tem muito maior numero de contas, que se
augmenta de dia em dia. Creio com isto não
fazer mal a ninguem; e, pois, descanço nesta
doce crença.
Ha um ponto final, sobre o qual não me
estenderei, mas é mister dizer sempre algu-
ma cousa: é saber, se tambem seria conce-
bivel a omissão constmngente. Em relação ao
constrangimento physico, é claro que não;
porem quanto ao constrangimento moral; a
questão não é sem proposito. E para formu-
la-la, eu me limito á exhibição de um docu-
mento, que acha muitos iguaes nos fastos
do amor desventurado. E' a carta de uma
perdida ao seu seductor, pouco mais ou me-
nos, nestes termos: ... «Tu me disseste uma
vez, como Falkland á Emilia, no celebre ro-
mance de Bulwer, que eu não podia sentir a
deshonra, se não partiLhando-a comtigo: e
cheguei a crer, como me ensinuaste, que o
amor alimentado pela vergonha e pelos sof-
frimentos, é mais profundo e mais santo, do
que aquelle que cresce no orgulho e no pra-
zer... Mas não é isto o que me afflige; o que
me leva ao desespero, . o teu silencio, a tua
inacção. Se dentro destes oito dias não vie-
res realisar o promettido, ou pelo menos
não me escreveres, saberei pôr termo á
. minha desgraça... Tu me entendes!)} E esta
linguagem, em vez do effeito dezejado, Pl'O-
duz justamente o contrario: o seductor
exulta, e se algum acto pratica, é só o de tor-
nar mais significativa a sua indifferença, com
o designio patente de livrar-se da sua perse-
guidora. Dito e feito: a infeliz suicida-se.
E com0 julgar-se-hia, pela bitola do nosso
- 74-
direito penal, um caso desta ordem, que
pertence á esphera das possibilidades, ainda
que pouco apreciado por succed.er quasi
sempre nas regiões crepusculare~ da socie-
dade humana? Não arrisco uma resposta,
que só as mulheres são capazes de dar com
rectidão e justiça. Verdade é que o contin-
gente do amor na estatistica criminal, como
incentivo, como moveI de acção, decresce
de dia em dia. Como o patriotismo, como a
amisade, como todos os grandes sentimen-
tos, que parece foram mais viçosos nos tem-
pos de outr' ora, o amor tem tido o seu des-
envolvimento, e de tal arte, que boje matar
por amor, ou deix.ar-se moner por e11e, já
vae tomando as porporções de um pheno-
meno atávico. Mas é certo que, uma vez o
facto dado, não involve menos que outros
um verdadeiro delicto.
O resultado de tudo isto é que, se bem se
attende para a natureza dos crimes em ques-
tão, elles se adaptam perfeitamente ao con-
. ceita philosophico da criminalidade. Eu sei
que mais de um exemplo, aqui apresentado
para illustrar a doutrina, pode bem parecer
estranho e produzir a impressão do exage-
rado. Pouco importa. Isto é devido talvez á
necessidade de reacção contra uma tenden-
cia peior, que nos vae arrastando, necessi-
dade que sente qualquer espirita ambicioso
de harmonia e serenidade na communhão
social. Quando até os mais horripilantes
feitos da cabeça e da mão do homem, pouco
falta que se considerem phenomenos inno-
centes, se não actos de virtuoso heroismo,
não é muito que, por contragolpe, se pro-
-75 -
penda para o extremo opposto, e se cuide
ver um crime "üé na petulancia elo vento,
que fareja as pernas de uma mulher bonita,
ou desorganisa o corpinho de uma pobre
flor. A polarisação é tambem uma lei no
mundo das ideias.
Ao terminar, - e já é tempo,-julgo dever
pedir ao leitor a precisa desculpa de entre-
tê-lo largamente com estes assumptos, que
são, que devem ser, por sua natureza, des-
pidos de poesia, isento de apparato r11eto-
rico, -- por assim dizer, inodoros, como a
linfa de uma fonte pura, ou como o seio de
bella moça, modestamente asseada. Mas
elles me agradam; e não sei que voz occulta
está á dizer-me continuamente que, persis-
tindo neste terreno, bem posso eu, depois
de alguns annos, vestir tambem a lllinha
clamyde de criminalista. Etiam capillus un'l./.s
habet '/.lmbmm suam. Anima-me esta espe-
rança.
-77-

IV
o Haeckelismo na Zoologia (1)

Eu creio já te-lo affirmado algures: o mun-


do intellectual allemão é alguma cousa de
semelhante ao mundo de Heraclito. Este
philúsopho, qUI~ foi o primeiro evolucionista,
o que porém não obsta que os senhores
positivistas queiram por ventura tambem
reduzi-lo á um discipulo de Comte, em cuja
cabeça aliás nunca fez ninho a ideia da evo-
lução (2), dizia como é sabido: não se
passa duas vezes o mesmo rio. Assim tam-
bem se podera dizer que na Alle.manha .....
não se lê duas vezes a mesma obra, Lê-se
a primeira vez um livro de theoria, e a se-

(.J) Der Haeckelismus in der Zoologie - von Cm'l Sem-


pel'.
(2) Quando llluilo, parece QUI' soo leve ideia de uma
evolução já feita, por meio dos t1'es estados; concepção
esta, ([ue não foi propriamente sua, que já tinha sido
bem commqm de philosophos escocezes do seculo 18, e
que enlretanto não passa de uma reminiscencia lheologica
da virtude do numel'otret. Est enim ternariu.s numerU$ per·
{eetissimus. As t-res virlndes lheologaes, os tres inimigos
da alma, os t'res rei magos, o tres dias de Jonas no ven-
1re da balêa, e outros muitos temos, que a religião ensina,
são todos sabidos da mesma fonte que a Sanlissima Trin·
dade, irmãos mais velhos dos tres poderes, de Montesquieu,
e do celebel'l'imos tres estados, os ql1aes ainda uma vêz
confirmam o dito de um padre da igreja: ln tl'initale
1'obu1"; e i lo, porque, segundo dlle, omnes bonre 1"es, •.
sunl t1'es.
-78 -
gunda já se lê um livro de historia. Tal é a
marcha constante, a rapidez cométaria do
processo de creação e transformação das
ideias!
Entretanto) nesse continuo redemoinhar
do espirito indagador, nessa incessante ebu-
lição do pensamento, não é raro succeder
que esta ou aquella cabeça, elevando-se á
cima do nivel da grandeza commum, consiga
de um certo modo retardar, á seu respeito,
·a marcha do tempo e dar á um, dous, tres
decennios a feição característica de sua
propria individualidade. Como exemplo,
basta citar, á par dos nomes de um Strauss
ou de um Hartmann, o nome de Ernesto
Haeckel.
O sabio professor da Universidade de Jena
é com effeito um desses poucos, á quem
tem CJbido a gloria de não ser arrastado
pela corrente ordinaria e occupar com os
seus trabalhos a acti.vidade in tellectual de
uma epocha inteira. Ha cerca de vinte annos
queelle pertence, como phenomeno notavel,
ao mundo scicntifico, e ainda nenhuma
das 'suas obras, póde-se bem assegurar,
perdeu a frescura da actualidade, o vigor
das cousas vivas, que combatem pela exis-
tencia, respectivamente - pela "luz e pela
verdade. Ainda hoje os seus trabalhos
dos primeiros tempos resistem á prova de
fogo da critica acercima de adversarios
rouvinhosos, que não toleram de bom grado
a demolição do seu velho edificio empirico
pelas mãos deste revolucionario, cujas theo-
rias, se não são outras tantas verdades, são
outros tantos verdadeiros problemas, de
-79 -
occupar e inquietar qualquer espirito pen-
sante; e segundo Kuno Fischer, com quem
me conformo, ... wah1"e Probleme sind auch
Wahrheit.
Mas basta de phrases encomiastas; bem
que muito e muito merecidas. Elogiar a
Ernesto Haeckel já é cousa que deve soar
aos bons ouvidos, como uma tautologia. O
melhor meio de render-lhe preito é estudar
as suas obras e penetrar-se do seu espirito
vivificante e illuminador.
Eu sabia, e por informação do mesmo
Haeckel (3), que entre os seus contendores
da escola empirica, á par de Carl Claus,
Alexandre Agassiz (4) Elias Metschnkoff e
muitoa outros. contava-se tambem Carl Sem-
per,. professor de zoologia e anatomia com-
parada em Wurzburgo. O nome deste sabia
não me era de todo desconhecido, e eu an-
ceiava por 'travar com elle mais estreitas
relações intellectuaes. A occasião para isso
me foi offerecida pelo escripto supra indi-
cado: o haeckelismo na zoologia.

(3) Ziele und Wege der lJeutigen Entwickelungsges-


chichte, 1875. pago 10.
(!~) Os critico do dia não exultem de me prender em
flagrante delicto de inexactidão, por entenderem que eu
dou o nome de Alexandre á quem se chamava Luiz. O
Agassiz à que me refiro, não é o velho, mais ou menos
conhecido entre nós, que cantou, em paga da boa hospi-
talidade, algumas das nossas patrias maravilhas, porém
seu filho, mais sabio do que elle, sobre cujos acquestos
scienlilico o bom Luiz exerceu com toda habilidade o
direito de u ufl'UcLo; uma da muitas razões, por que
Haeclcel chamou a este... o mais genial e mais activo cava-
lheiro ele inelust1'ia em todos os dominios da sciencia na-
tural.
- 80-
Mas não hesito em declara-lo: a leitura
deste escripto foi-me uma dura decepção.
Phantasticos e vãos forão os meus pressen-
timentos. Onde eu julgara encontrar a veia
aurifera, encontrei apenas pouco mais que
pedra e cascalho. O trabalho de Carl Sem-
per não é digno de um sabia. e muito menos
de um sabio allemão. Ainda tive este en-
sejo de ver confirmada a ideia de Borne: -
o professor de 'iVurzburgo póde ser que te-
nha por costume eSCTeVC1' OU1'o,mas desta vez,
força é reconhecê-lo, fallou e eSCTeveu cob1'e.
Se não na parte t~:eorica, posto que muitis-
simo limitada, certamente na parte critica
do seu pequeno escripto.
Carl Semper se propõe combater o que
elle designa por haeckelismo na zoologia. A
expressão de haeckelismo não é creação sua,
mas de Buber, um outro naturalista adver-
sario de Baeckel, com a mesma in Ll1ição de
um A. Gcette, ou de um G. Bis, para quem
o processu scientifico do sabio de Jena...
« é um leviano brincar com os factos, ainda
mais perigoso que o velho e desacreditado
brinco de palavras ». Nesta mesma atmos-
phera de acanhadissimo empirismo, onde
os factos não tem um sentido, nem se ad-
mitte que se lhes dê, sob pena de ser mal-
sinado de dogmatismo metaphysica, move-
se Carl Semper. Asua ideia dirigente consiste
em fazer crer que o haeckelismo, seg mdo a
phrase de Bis, ou a haeckelogonia, segundo
o espi1'ito do padre Michelis (5), é um sys-

'(5) Haeckelogonie. Ein akademischer Pl'otest gogen


Haeckels Antropogenie. Von Dr. FI'. Michelis, Professor
- 81'-
thema degenere, uma aberração da sciencia.
Qual o motivo? E' o que vamos apreciar.
I
Accentuemos primeiro uma coincidencia
digna de nota: -o trabalho de Carl Semper,
que é uma conferencia feita em Hamburgo,
tem a data de outubro de '187:1, - e nessa
mesma dala publicouHaeckel, como vê-se da
respecti\'a dedicdtoria á Ernesto Baer, o
seu escripto - Ziele ttnd Wege der hetttigen
E'ntwickeltl.ngsgeschichte, - no qual apreciou
agrupadamente, para bale-las de urna vez, as
objecções dos seus adversarios. Neste nu-
mero figura, como já observei, o empirista
de Wurzburgo, mas certamente por traba-
lhos anteriores, que aliás nào me sào conhe-
cidos. E' pois para sentir que o professor de
Jena não podesse, ao tempo da confecção do
mencionado escr11 to, ter noticia da confe-
rencia de. emper e da ?'iqueza de a?'gumentos,
que ella encerra, para entregar o seu autor
ao mesmo destino dos tres pares de antago-
nistas, que eUe fustigou: Alexandre Grette
e Guilherme Hi::s, Agassiz e Miehelis, Bastian
e Alberto, Wigand, todos os quaes, ainda que
partam dê pl'incipios, real ou apparente-
mente diversos, com tudo e dirigem á um
fim commum, que é negar á zoologia o di-

dei' Philosophie. Bonn 1875. E 'le SI'. Micheli é o


velho calholico anli-valicani la, que gaslou papel e tinla
em demonstrar que o papa não é infallivel, como podera
ga ta-los, em oull'os tempos, para provar que « ôvo não
é peixe» ou que « caboclo é gente ».
6
- 82-
reito de abrir novos caminbos e elevar-s e á
novas concepções. Carl Semper, ao certo,
não seria tratado com mais doçura do que
foram os seus companheiros de intuição
retrograda.
Em uma das ultimas paginéls da-NaWI'-
líche Schopfungsgeschíchte - encontra-se um
bello pedaço, onde Haeck81 caracterisou e
refutou, á meu ver, uma vez por todas, os
naturalistéls empiricos, da familia de Sem-
per, que teimam em não transpor os limites.
da inducção cautelosa e timida de qualquer
passo aventuroso no terreno da bypothese,
tanto quanto esteril e improflcua para a for-
mação de um largo conceito philosophico do
homem e da natureza. Elle exprime-se nes-
tes termos: - «Ao passo que um edificio de
doutrina, puramente especula ti "O, absoluta-
mente philosophico, qu.e não leva em linha
de conta a base indispensavel dos factos
empiricos, é um castello aereo, que se des-
faz ao menor sopro da experiencia, por outro
lado tambem um corpo de doutrina, pura-
mente empirico, só composto de factos, não
passa de um arido montão de pedras, que
nunca meTecerú o nome de um edificio. Os
factos singelos, estabelecidos pela eXl erien-
eia, são somente as pedras, que sérvem para
a eonstrucção, e sem appllcação do pensa-
mento sobre ellas, sem o competente liame
philosophico, não pode levantar-se sciencia
alguma..... Só por meio das mais intimas
relações e reciproca penetração de philoso-
phia e empiria é que surge o edificio inaba-
laveI da verdadeira sciencia monistica ou,
o que é o mesmo, da sciencia natural. Desta
- 83-
lastimavel separação entre a pesquisa natu-
ralistica e a philosophia, do rude empirismo
que hoje infelizmente é considerado pela
maioria dos natural istas omo sciencia exacta,
resultam todos a luelLes singulares saltos
obliquos da intelLigencia, aquelles grossei-
ros attentados contra a -logica elementar,
aque11a impotencia para tirar as mais sim-
ples conclu'sões, que actualmente se pode
encontrar em todos os caminhos dasciencia
natural, parLiculannen te pOr6111 na zoologia
e na botanica..... Nil0 admira pois, se á esses
rudes empiristas permanece incomprehen-
sivel a intima e profunda verdade da theol'ia
ela ele 'cenclencia ..... ») (6)
Depois disto, não sei como á um espirito
serio., á um sabio de merecida nomeada,
ainda pode occorrer a infeliz lembrap.ça de
dar-nos á saborear O'S mesmos velhos argu-
mentos, para nào dizer aS.mesmas banalida-
des, já de ha muito refutadas, contra as
tendencias philo ophicas da zoologia mo-
derna. Difficilmen te com prehendo que Carl
Sem per podesse capacitar-se da efficacia
dos embaraço', por elle oppostos á invasão
da corrente metaphysica, segundo a phrase
ela moda, nos dominios da sciencia natural.
Mas ouçamo-lo, que é melhor. «A zoologia,
diz e11e, é uma scieucia natural fundada
sobre a observação; seu methodo é exclu-
sivamente o inductivo. Como qualquer outra
sciencia do mesmo genero, ella tem tambem

(6) Nat iil'liche chõ'p{ungsgescllicllte, 640 e 61.1. Fü une


Auflage.
- 84-
seus.limites nat1waes e invcwiaveis, que pode
deslocar, ]Jrotrahir, porem nunca ultrapas-
sar, se não quer perder o caracter de scien-
cia. Estes limites são determinados pelo
conteúdo dos phenomenos á explicar, pelo
methodo e pelos meios aux.iLiares á seu ser-
viço. O conteúdo da sciencia zoologica são a
forma material e os phenomenos vitaes do
corpo animal. EUe encontra seus limites,
para baixo, na origem da vida organica, e
para cima, no desenvolvimento da psyche.
Ambos não podem ser transpostos pelo zoo-
logo como naturalista observador..... » (7)
E assim por dian te com esta mesma graça.....
Eis ahi. en tl'etanto mais de um daquelles
saltos, mais de u.n daqup-lles ata 1ues á loglca
elementar, de que falla Haeckel. - «O me-
thodo da zoologia é exclusivamente inc1uc-
tivo ... »-mas por que? D'onde vem essa
exclusividade P... «Ella tem os seus limites
nattt1'aes e inva1'iaveis ... » mas não é isto mes-
mo que constitue o fundo da questão: se é
ou não permittido ao zoologo ir alem da ve-
lha meta e entrar em dominios, lue os em-
piristas julgam estranhos ao seu mister? ...
O que se deve entender por limites natu-
raes e invariaveis de uma sciencia, maxime
de uma sciencia de observação, em cuja
natureza está mesmo fundada a ausencla de
qualquer limite d' ante-mão traçado, pois que
elia augmenta de dia em dia o circulo da sua
acção, é o que eu bem não comprebendo !
E muito menos que esses limites não possam

(7) Der Haeckelismus ... .... pago 21.


- 85-
ser ultrapassados, sob pena de perder a zoo-
logia o caracter de sciencia, quando é certo
que o que lhe dá, como ás demais sciencias
congeneres, o verdadeiro cunbo 'scientHico,
é justamente esse continuo avançar para o
desconhecido,.sem um programma que de-
termil1u á p'tiori o fesLlltado e o valor das
observa ões procedidas.
Carl Semper não quer que se vá alem do
marco assignado á zoologia pelo seu metho-
do, bem como pelo seu con teúdo, e quasi
que no tom de Romulo - Sic deinde, q'l.dcun-
que alit~s tl'ansiliet menia mea - demitte da
funcção de zoologo e naturalista a quem quer
que ouse saltar por cima da pequena mura-
lha. Mas é licito pergun tar : - o proprio da-
nuinismo,queentretanto oprofessor de Wurz-
burgo não rejeita, o darwinismo, por si só,
não será uma transposição das barreiras na-
lU1'C/,es e inalteraveis da ciencia de Cuvier? E'
difticil contesta-lo. O grande reformador da
biologia não subordinou-se ao canon rece-
bido, ao principio do mal'e clauswm em mate-
ria de methodo e conteúdo zo logico. E' sabi-
do, - e tão sabido que não me faço um
merito de repeti-lo, - que foi lendo, por um
feliz acaso, segundo elle me mo e exprime,
a obra de Malthus sobre a população, que
Darwin sentiu nascer-lhe o pensamento, da
selecção nalural. Ora este pensamento, se
não é que se pretenda toma-lo por uma ins-
piração genial, no velho sentido mythologico
do genio filho dos deu es, não foi mais do
que uma conclusão, e esta conclusão não foi,
ao certo, exclt~sivamenle inductiva; antes
porem ella apresenta os caracteres de uma
- 86-
legitima deducção. A luta resultante da con-
currencia dos individLlOS no processo pura-
mente economico é tranS1Jortudo ao proceso
biologico propriamente ditu, e d aqui ainda
por uma stwcessive geneI'CLlisr;r,tion, como diria.
WheweLl, o historiador da indLlcção, trans-
portada a todos os dominios, conhecidos e
desconhecidos, do mundo organico. Neste
pon to, induzida a grande lei do st1'tLgle /01' life,
e adrnittida como presupposto scientifico,
era natural que se deduzisse a ideia da selec-
ção. Por quanto, se na lucta universal, como
em toda e quaLquer lLlcta particular, suc-
cumbem os fracos e triumpham os fortes, a
conseqLlencia é que só aos uLtimas é dado,
como senhores do campo, con tinuar no tra-
balho da vida ~ e assim, de combate em com-
bate, vão se apurando e melhorando todas
as classes de seres, que sã:l outras tantas
classes de 1uctadores. FOJ'tes Cl'erLnttW fOl·ti-
btLS et bonis. E dahi con lue-se, ainda por
via de deducção, que, saLvo um ou outro
caso de degenerescencid. ou desenvolvimento
falseado, tudo que existe é uma cousa electa,
-tudo que existe é melhoJ' do LI1e tudo q7.be
existiu. Mas eis que surge o espirita pl1i-
losophico, e apoderanclo se destes dados,
raciocina e diz: e o homem de hoje é ip o
facto superior ao homem de hontem, se ()
homem historico é melhor qne o homem pre-
historico, não ha duvida que a humanidade,
attento oseu actualestado,oin essanteaper-
feiçoamento dos seus attribu tos e o immenso
espaço de tempo necessario para attingir á
posição hodierna, deve ter tido uma origem
muito baixa e iniciado a vida especifica, o
-87 -
desenvolvimento antropomorphico, por um
esboço grosseit o, do qual só o gorilla ou
outro qualquer typo ela aristocracia simiana
nos pode dar uma ideia aproximada. Isto
assentado, é pois altamente provavel a des-
cendencia do homem de alguma cousa igual
ou semelhanto aos grandes macacos africa-
nos e asiaticos, que aliás bem pouco distam
dos infimos exemplares da especie humana,
taes quaes se mostram hoje mesmo aos olhos
de mais de um observador.
Semelhante raciocinio, que conclue deduc-
tivamente, é tão cabivel na zoologia como
em outra qualquer sciencia. ~em vejo razão
plausivel porque tal modo de concluir deva
ser abandonado pelas sciencias de observa-
ção como uma esterl1 aventura do pensa-
mento, quando aliás é certo que não raras
conquistas do espirito indagador foram feitas
por meio desta arma. Outro não foi, exempli
gratia, o raciocinio de Leverrier á respeito
elo seu planeta. Fazendo-se, por assim dizer,
a psychologm da descoberta de Neptuno,
vê-se que o calculo do astronomo se reduz a
esta operação logica: - uma vez admittida a
lei newtoniana da gravitação, attenta á dis-
tanciaem que Urano se acha dos outros cor-
pos conhecidos e a influencia reciproca-
mente exercida entre elles, é deductivel
que as perturbações dadas nos movimen-
tos do mesmo ,rano só podem provir de um
factor estranho; que deve encontrar-se em
talou qual região celeste; logo é, não certo,
mas aI tamen te provavel 1ue esse factor
exista. E qua i ao IPesmo tempo que a cle-
ducção chegava a este resultado} a observa-
- 88-
ção por meio de Galle, confirmava-o solem-
nemente, descobrindo o planeta calculado.
Qual épois a differença enL:' o raciocinio do
astronomo e o raciocinio do zoologo, que de
principios admittidos deduz, como verdade
probabilissima, que nelles se contem, a pro-
cedencia pithecoiclica do homem? No fun-
do, nenhuma. O zoologo tambem calc'Ma e
diz entre si: uma vez estabeleci'das as leis
da evolução transformistica e da selecção
natural, é deductivel que o hornem, em vista
do seu actual estado, sahin de uma serie de
estados inferiores, o primeiro dos quaes, na
ordem ascenci.on:.l e em relação aos mammi-
feTos de primeira classe, não pode ter sido se
não alguma cousa ele analogo aos mais per-
feitos macacos; e, pois q ue os factos, em vez de
desmentir, concorrem cada vez m:lis para tor-
nar plausivel o parentesco do homem com os
o?'angs, chimpansés e olltros calarhinos conhe-
cldos, sobe de pon to a probabilidade de que
elle realmente descende de avoengos simia-
nos. Esta hypotpese, que tanto escandalisa
os empiristas e theologos, é todavia uma
hypothese scientifica, tão acceitavel como
aquella outra. Só lhe falta uma cousa: - é
ser verificada pela observação. Mas isto
será impossivel? A' que principio logico, :L
que lei ela natureza, repugna uma tal verifi-
cação? Ninguem ha que possa dizê-lo, por
que tambem ninguem está no caso de asse-
gurar-nos que não é dado á paleon tologia e
ethnologia poderem um dia documentar a
existencia do alali, do lJithecantl'opo de Hae-
cke1. AWts uma verdade pressen tida pelo
proprio espirito popular. O povo costuma
- 89-
dizer que macaco já foi gente; a sciencia não
quer mais do que redarguir convicta que ....
gentejá foi macaco. E é jusLumente naespe-
rança de assentar, entre outros, este ponto,
que ella avança e avança sempre, desconhe-
cendo a autoridade ele quem quer que ainda
hoje pretenda eml argnr-lhe o passo.
II
o professor de Wurzburgo não perdôa ao
seu collega de Jena o impulso dado a zoolo-
gia na direcção de regiões desconhecidas,
em busca de uma solução para o problema
capital da sciencia humana. A zoologia novís-
sima, como elle a qnalifica, é, a seu ver, uma
degeneração da verdadeira scien ia em phi-
losophia da nattweza ou metaphysica, e Hae-
ckelo fundador dest.a fatal direcção.
Entretanto é para lamentar que Carl Sem-
per não se empenhasse um pouco mais em
demonstrar as suas as erções. Não bastava
affirmél.r que, nas mãos de Haeckel, a zoolo-
gia é uma metaphysica, ou antes uma dogma-
tica de novo genero, que se impõe a fé, não
menos do que qualquer doutrina ecclesias-
tica; importava, antes de tudo e mais que
tudo, iniciar o leitor profano nos mysterios
dessa logica particular, pela qual ás sciencias
de observação só é permittido tirar a somma
dos factos observados, nunca porem fazer,
se quer, uma ligeira conjectura ou, por assim
dizer, saccar llma hypothese por conta do
futuro e do progresso scientifico em geral.
Mas isto' um perfeito engano. A sciencia
de hoje não pode, como pretendem Semper
-00-
e os demais empiristas, resignar-se á ser
simplesmente uma addição dos factos. Elia
é, sim, uma somma üe observaç!io e expe-
riencia, mas uma somma potenciada pela
reflexão, ou um montão de ossos animado
pelo sopro ezequielico do espirito philoso-
phico. Se os dados da observação não são
multiplicados pelo raciocinio, a sciencia re-
duz-se á um mero trabalho de descripção e
classificação, á um esteril proc3sso logico,
que pode bem constituir UQ1 entretenimento
para o observador, mas é de pouca ou ne-
nhuma vantagem para a intuição do mundo.
Haeckel mesmo já o disse, e com toda a ra-
zão: - «Quem hoje ainda considera a histo-
ria do desenvolvimento como sciencia pU?'a-
mente clesct'iptiva (uma cont'l'aclictio in adjecto),
quem hoje ainda não conhece a distincção á
fazer entre saber e sciencia, entre noção e cú-
nhecimento, não tem direito de fanar no meio
dos represen tantes da verdadeira sciencia, e
mesmo na historia do desenvolvimento só
vae atrás de entreter a alma e os olhos,
não em busca de alvos realmente s(',ienti-
ficos» (8) .....
E estes alvos realmente scientificos a-
cham-se na verdade em tal altura, que elLes
se confundem com os alvos philosophicos,
mas não desdizem do caracter da sciencia.
Uma zoologia, como quer Semper, unica-
mente encarregada de estudar, isto é, dedes-
cl'ever a forma material e os ph13nomenos
vitaes do corpo animal, e que por tanto nada

~8) Zicle unelH- cge... pago 4.


- 91-
explica, nem tenta explicar, fica sendo ape-
nas um pedaço, se assim posso exprimir-me,
de fria e.statistica da natureza, --uma cousa
rude e quasi sem proveito. Não valera a pena
cultivar uma tal sciencia, desde que fosse
peremptoriamente decidido que não lhe com-
pete ir alem dos velhos dom inios conhecidos,
qu.es6lhe édado camioharde àia,nopleno dia
da observação empirica, nunca porem entrar
pela noite, por mais clara que ella se mostre,
a noite das conjectmas, elos altos pressenti-
mentos, dos rasgos divinatol'ios. e quaesquer
que sejam as chanças ele tudo isto ser algu-
ma vez confirmado.
Eu creio que Sem per mesmo, pur uma feliz
inconsequencia, não está longe deste ponto
devista. Elledizexpressamente: «Umacom-
paração transcendental, ou uma interpreta-
ção metaphysica da forma do corpo humano
não tem caracter scientifico; mas a tentativa
de explica-la em sua actual perfeição e com-
pleto afastamento de outras, por meio da
hypotbese de um successivo proceder de
mais simples formas animaes, é rigorosa-
mente zoologicâ, sem ser com tudo metaphy-
sica., ... » (9)
Se isto porem não é um pouco semelhante
ao grito do camponcz allemão: -'Uiva a 1'eplL-
blica, e o nosso dtLque lambem, - eontesso não
saber o que isto seja. Essa hypotbese (An-
na,h/11,8) de uma successiva procedencia de
formas inferiores tem muito de parecido com
o desenvolvimento morphologico, no sentido

(9) Der Haec7relismlls... pago 17.


· - 92-
haecketiano, e não está menos exposta ao re-
proche de sonho meta physico, uma vez que
por tal se deve entender tudo aquillo que não
é dado pela observação, nem adquirido pelo
rigoroso methoc1o inc:uctivo. E dest'arte bem
poder-se-hia dizer que o nosso zoologo tem
de commum com os positivistas francezes;-
progonos e epigonos, -- a mania de atacaI' a
metaphysica com o mesmo calor, com que
se costuma defender um privilegio (4).
Eu não estou longe de adoptar a opinião
de A. Spir, que considera a metaphysica
como uma cloençc~ espiritual, impossivel dr.
curar-se por meio de argumentos :5), se bem
que o mesmo Spir não e mostre de todo
isempto do mal diagnosticado. Mas, dá-se
com esta doença o mesmo que, na espbera
da physio-patholQgia,dá-se com as moles tias
epidemicas : - a diagnose, que não é mais
do que uma operação logica, pela qual se
prende o particular ao geral, perturba-se em
seus calculos, tomando muitas vezes a se-
melhança pela identidade, ou confundindo
a relação de tempo om a relação de cansa,
e a final só julga pelo s hem ma da epiclemic~
1'einante pbenomenos que com ella nada tem
que ver. Bem entendido, isto succede á
medicas ignorantes, amo são-no igualmente

(!~) E' realmente singular: - os positivista fazelll uma


guerra de morte ao transcendentalismo, e todavia não
can am de repelir à todo pr po ito as expressões caba-
Iistica de mentalidade) e OlllCào (por elle. mal enten-
dida), lei dos Ires estados, sociolalria e outros muito
e tribilhos da eila 1. .•
(5) Denken und Wi,'lclic!te'it. I) 6.
- 93-
tod'os aquelles que andam topando a cada
instante com o espectro da 1netaphysica e
pondo de lado, como fu til eindiscutivel, mais
de uma questão scientifica e digna de ser
meditada.
Nãu dissimulo. nem hei mister de dissi-
mular que o abLLso da especulação desnor-
tea os e piritos e leva-os ao ponto de pre-
tenderem descl)Lrir Deus e muita cousa
mais no fundo da chamada razão humana,
da mesma forma que o povo crê com todo o
seria ver claramente no disco da lua o caval-
leiro S. Jorje. Mas este facto, que é incon-
testavel, não dá direito á condemnar-se toda
e qualquer especulação, sujeitando a intel-
ligencia á uma especie de póda, que acaba
por deixa-la esterilisada e incapaz de povos
rebentos. Est nwcl'tLs in 1'eb'tLs. A isLo pre-
valecer, e a repelLir-se como anti-scientífico
tudo que excede a estreita medida experi-
men tal, o resultado é que a logica mesma,
com seus principios e suas leis, não passa
de uma metaphysica, pois que essas leis e
esses principias não são dados immediatos
da observação, e as proprias consequencias
que s6e-se tirar dE'. taes ou quaes premissas,
não tem, não podem ter valor perante a
sciencia positiva, a qual só se nutre de fac-
tos. Mas isto é cou a que se eleve seria-
mente á altura de uma questão, mesmo
pequena, porém capaz de ser discutida?
Certo qne não. Nem o zoologo de \iVurz-
burgo, com todo o seu empirismo, quereria
ver assim entendida a sua estreita doutrina,
posto qne seja indubitavel que a methodo-
logia empirica, praticada com coherencia,
- 94-
não poderia chegar á outros resultados, se
a coherencia se fizesse notar em maior dose
nos trabalhos da escola, il que pertence
Carl Semper.
Entretanto vejamos ainda algumas outras
ponderações do acanhado naturalista. « O
haeckelismo, - diz e11e, - que bem quizera
fazer da zoologia uma philosophia da natu-
reza, carece naturalmente de uma resposta
para a questão de saber-se, como foi que
surgiu a vida organica em geral. Essa res·
posta deve ser dada pela theo1'ia do ca1'bono;
a sua precipua e unica asserção é.que o
carbono deve ser a materia plastica, a ma-
teria formadora de todos os corpos organi-
cos, pela razão de ser encontrado em todos
e11es. Mas neste ponto essa theoria ignora
a e(I.istencia de uma outra hypothese, se-
gundo a qual a vida que se expande na terra
procede de germens organicos de outros
corpos. do universo, que cahiram sobre elLa
bem antes da existencia de toda e qualquer
vida terrena, em uma primiti.va epocha geo·
logica; a theoria não apresenta uma só pro-
priedaue do carbono, capaz de explicar a
forrra organica como tal; antes esquece
que a vida dos organismos não repousa na
forma, que esta, pelo contrario, segando
toda verosimelhança, é um producLo da vida
mesma »... (6)
Eu não sou nenhum zoologo de profissão,
nem tenho. como tal, o arrojo de pizar, sem
descalçar-me, o terreno sagrado da sciencia

·(6) DeI' Haeckelismus ... pago 29.


- 95-
all:eia; mas quer-me parecer que as pala-
vras, que acabo de citar, dão somente teste-
munho de uma profunda e lastimavel fra-
queza. Bem consideradas, ellas encerram
pouco mais do que a repetição de uma anti-
gualba, e esta sobremaneira futi! e banal.
Antes de tudo :-.. , «a vida dos organismos
não repousa na forma » •.• - Sim? Em que
santo livro está isto escripto? Carl Semper
não terá a coragem de nos propor seme-
lhante frioleira como urna novidade. Mais
ainda: - «a forma é um producto da vida
mesma » Mas quem diz isto? Justamente
os que recorrem á essa hypothese, para dar
ganho de causa á uma ideia preconcebida.
E eu que pensava que o uitalis?1'w otganico,
ao menos no sentido em que agora o vejo de
novo mencionado, já tinha morrido de ve-
lhice !... Enganei-me. O nosso zoologo jul-
gou-se ainda autorisado a repetir-nos que a
forma dos organismos é um resultado da
vida. Mas o que é a vida? Qual o valor
dessa incognita., que se nos dá como an terior
e sHperior á toda organisação? Não será
aqui então o casá de dizer com Carns Ster-
ne : - no 1J?'incipio era o ca1'bono, - e de vol-
tar, por tanto, nolens volens á thcoria de
Haeckel? São perguntas, que aventuro, sem
a minima pretenção de competencia para
fazê-las; porém não posso resistir ao demo-
nio, .que m'as inspira, e que, se não é o de-
monio socl'atico, é certamente o demonio
aristophanico, zombeteiro e e3earnecedor
da parvoice dos sabios.
E' uma cousa, entretanto, que me parece
bem simples: - se a vida não repousa na
- 96-
forma, se esta não éuma condição daquella,
- o que equivale á dizer Iue ella não con-
corre- de modo alg'l m para o exercicio nor-
mal das funcções vitaes, - o resultado é que
existe completa indifferença entre a morpho-
logia e a physiologia, ou antes que a morpbo-
logia não passa de uma sciencia puramente
nominal, um jogo artistico, um brinquedo
de palavras. Mas é superfiuo acrescentar
que este ponto de vista é atrazado. E não
ba mister de grande esforço para compre-
bender-se que a vida em geral, inclusive a
propria vida psycbica, assenta em condições
morphologicas, que não podem ser elimi-
nadas sem que se dê tambem a eliminação
da vida mesma. Se a forma pesasse tão
pouco na balança dã economia organica, se~
fia incomprebensivel, já não digo a causa,
mas simplesmente o modo, porque não só a
morte se acba li'gada á atropbia e hypertro-
phia de certos orgãos, como tambem a intel-
lígencia, a elevação de espirito prende-se
regularmente á craneos largos, á cabeças
bem conformadas e vice vel'sc~. Para fazer
conhecer a estupidez de Thersita, Homero
lhe dá um corpo contrafeito e uma cabeça
disforme, ao cont"ario do que pratica com
seus heroes e seus deuses, á quem elle sabe
. dar uma cunfiguração magestosa e impo-
nente. _
« A vida não repousa na forma » -sim,
senhor; - mas a forma é um suppórte da
vida, considerada em qual Iuer das suas ma-
nifestações. O celebre Borne disse uma vez
que o espirito humano passaria por uma
transformação monstruosa, de que não te-
=97 -
mos nem sequer um leve presentitnf'nto,
~:e o circulo da sua efficacia se alargasse con-
sideravelmente. E depoi.s do grande alle-
mão. disse tambem o medico francez Re-
veillé - Parise que, se a divindade fizesse
de repente ao homem o magnifico presente
de um accrescimo de substancia cerebral,
espanta imaginar á que gráu chegaria a intel-
ligl'ncia hllmaDa; nem lia (luviclCl que () nCI!"'-
so sy~thema :-lctLHlL de conbeclmentos seria
inteil'HlIlente transformado. Mas ú que vi-
ria á ser um accrescimo de, substancia ce-
rebl'Cll, ou mnsmo um alargamento do circu-
lo da efficacia do espirita, se não, em ultima
analyse, uma alteração de reL"lções morpho-
Logicas no organismo liumano?
A morphologia, quer como sciencia das
formas desenvolvidas, quer como historia
do desenvolvimento das formas que vão
surgindo, segundo o duplo sentido haecke-
liano, não está no caso, - eu concordo, -
de dar uma explicação satisfactoria do gran-
de phenomeno da vida; porém tão pouco e
ainda menos se acha em taes condições a
zoologia empirica de Semper e consortes.
Dir-se-ha que isto não' é um argumento,
attento que nem Sempernem os outros em-
pil"istfls se orcup 3.m dauuelle probLema Não
contesto. Mas tambem Haeckel nunca se
prnpoz tão ardua tarefa, no sentido que lhe
attl'ibuem os seus adversa rios. Assim, quan-
do o zoologo de WurzbLlrgo o accusa de não
ter uma resposta para dar á questão davida e
de supprir esta lacuna com hypotheses gra-
tuitas, chegando llté, por amor da theoria, á
crear um reino especial, o reino dos p1'otis-
7
-9 -
las, só se lhe J..lóde redarguir COl)1 as pergun-
tas que IIaeckel mesmo dirigiu á Alexandre
Goette : - onde foi que eu affirmei uma crea-
çào dos primeiros organismos'. Todo o sexto
capitulo da minha- Genetelle Ylol'phologie-
não tem por alvo banir da sciencia o con-
ceito sobrenatural da cl'eação e substitui-lo
pelo conceito natural do desenvolvimento?
Ou onde jámais fiz eu os primp.iros organis-
mos sahirem de uma só vez, perfeitos e aca-
bados, de elemen tos anórganos?...
E estas perguntas seriam, á meu ver, suf-
ficientes para desbaratar mais de metade das
criticas e arguições de Carl Sem per, que
commette em grande escala o mesmo erro
de Goette.
Nào fica ahi. O critico de Haeckel ainda
foi infeliz em outros pontos da sua censura.
Por exemplo: - elte increpa o celebre pro-
fessor de Jena pelo facto, - vêde bem o gra-
ve delicto---pelo facto singularissimo de tor-
nar a estructura da sua doutrina, com cada
novo volume que publica, mais completa,
mais arredondada e segura. Mas onde está
o fundamento de semelhante critica? E' por
ventura defêso á sciencia tratar de aperfei-
çoar-se? Ou faz parte do seu destino nunca
poder exprimir-se resoluta e confiadamente
sobre os assumptos de sua competencia?
Não atino com os motivos de uma accusação
de tal ordem.
A despeito de todo~ os esforços em con-
trario, a doutrina de Haeckel ou o haecke-
lismo, - eu acceito o nome, - apoderou-se
dos espiritos, que não tem medo de pensar.
- 99-
Os ataques dos seus contendores propendem
de dia em dia para cahir no ridículo, do qual
não os salva a sua sciencia incontestavel,
mas lambem já um pouco prejudicada. Pos-
sa o valente professor de Jena continuar,
ainda por 111llÍto tempo, á instruir-nos e illu-
minar-nos.
- '101 -

\'

.\ ol'U3.uisação COillwullal da Russia. (I)

Ag-O'lO de J1)71.

Ha cerca de tres annos que se publit.:tl em


S, Petersbmgo uma Revista mensal, espe-
cialmente destinada ~l tornar sensivel para o
estrangeiro a marcha progressiva, o largo
irradiamenLo do imperio russo, sob o go-
verno de Alexandre II. Essa Revista, escrip-
ta em allemão,.e que tem por edital' a Kal'1
Hottger, se havia prenunciarIo com o desig-
nio de supprir uma lacuna; «a qual de nen-
hum modo, como se lê na exposição de mo-
tivos do seu Prospecto, podia ser preenchida
por meio da imprensa diaria que alli exist "
mesmo nas lingJas franceza e alleman. II
Quero crer que as promessas do editor não
se tem realisado com aquella e actidão. que
era mais conforme ás esperanças elo pllhlico
e 'ao bom destino de semelhante empreza.
O compromisso de se nos dar em ctrtigo o1"i-
ginctes., 'i'elalorios e tl'ad'Lwções, noticias ob)ec-
tivas, authenticas olJ1'e a vida social, polit1"ca,
economia e espi1'itual de todas as pa'/'tes elo
imperio, ao que parece, (lcon em m ia cami-

(J) Russische Revue J874, ::l, Hefl pag~, :H7 e 'eguilJ"


te . 5. Hefl !~2.6 e eguinle .
-102 -
nho. Os nomes de Besobrasow (2), Osten·
Sacken (3), Thorner (4), e alguns mais tIue
foram mencionados como activos collabo-
radores, foram-no quasi só no intLrito dedes-
pertar attençào e curiosiclade. A litteratura
russa, sobre tudo a bella litteratura. de que
formamos llma ideia vantajosa, bebida em
outras fontes, não tem de certo occLlpado
na Revista o lugar que lhe compete, e assim
lhe foi promettido.
Não obstante, é inne.gaveI que o novo or-
gão da grande capital do sl.avismo exerce
Llma funcçào distincta. Nem imaginem os
meus leitores t.er entre màos urna futilidade
do genero das que sobram no Rio de J anei-
roo A côrte de Alexandre nào é a côrte de
Pedro II. A patria de GogoI e Ivan Tnrgeni-
e\\ não é·a patria de Macedo e Alencar. Sob
o regimen do autocrata liberal, no curto es-
paço de '19 annos, brotou mil vezes mais
vida, fez· se alli mil vezes mais luz, do que se
ha podido aqui fazer em meio secuIo de um
chamado governo constitucional represen-
tativo. Bem sei que a opinião dominante
no Brasil á respeito da Russia é ainda, em
regra, a mesma que se tinha ao tempo da
guerra da Crimea; opinião porém erronea~
indescl1lpavel, somente filha da nossa igno-
rancia politica, histori a e lilteraria. Releva

(2) Membl'o da Acarlemia da' . ciencias de . Pelei' -


bUl'go um dos abio, que em elembro do anilo pa •
. ado e tiveram pm ente á funrlação do ln titulo de
rlircito illlel'llacionnl em Gnnd.
(3) rcrclario lIa illlpcrial sOl:ieuade goographica.
(1.) Membro do cou elho cio mini lerio qas [jnan~as.
- '103-
contribuir, por qualquer modo, para a for-
mação de melhor juizo. Pelo nobre empe-
nho do actual czar, a Russia é menos temi-
vel, do que admirave}, A velha ideia de uma
força immen a, que I adia ameaçáf a paz do
mundo inteiro, ja não entra em linba de
con ta. E oxalá que aprendessemo nós ou-
tros, pobres infatuados, com a bocca cheia \
de ?'egimen liV1'e e sobercmia nacional, tudo o
que tem á ensinar-nos, de util e gmndioso,
o autocratico imperio do norte. .
I
Quando observo que a RI.Lssische ReVtLe
L1evia cumprir melhor a tarefa que se impoz,
não tenho em vista dar á suppor fraqueza e
esterilidade em seu cont.eúdo. Póde isto
apenas ser a expressão de um desejo parti-
cular, ex.agerado talvez, que não vi, segundo
me afigurára, de todo satisfeito. Como quer
que seja, o certo é lue o motivo e a occa-
sião do [resente escripto me foram forneci-
dos pela proficua leitura de um dos eu
artigos mais sul tanciaes.
E um quadro histúrico da organisação
r.ommunal, dá vida e constituição das cida-
des, na Rnssia; um estudo do sell des n-
volvimento, desde o tempo d P dro Grande
até a ultima forma recebida na nova organi-
sação de 16 de Junho de 1870. P. Scbwa-
nebacb assigna-se o autor do pequeno esbo-
ço, á quem seria fazer um elogio banal E'.
lnsignitican te c1 izeI' que elte e di tingue pela
clareza e suavidade de e tilo, pois este' sem
duvida o menor dos seus merecimen tos.
- '104-
Comprehende-se que genero de interesse
ligar-se p6dp. á um tal asslImpto. Se a [Io~sa
vida publica tem necessidi:ldf'S, cllja satis-
facção é de direito reclamada, nenhuma del-
las se nos mostra mais sensivel, mais urgen-
te, do que a de dar-se um pouco mais de
expansão e desenvolvimento ao mnnicipio.
Não é que eu pense, com os discipulos de
uma escola de Liberalismo francez, entre nós
muito corrente, poder-se conseguir uma cel'':
ta autonomia communal, sem voltar á idade
media, isto é, sem o rompimento d~ laços,
que' já o inconsciente da historia tornou in-
dissoluveis. Não é que pense, portanto,
ser possivel completa reforma neste sentido;
como não creio que, além do ]J1'ovincialismo
que se pretende, em vão fortalecer e erigir á
altura de um principio politico, tambem se
possa crear o municipalismo, para fazer frente
ás invasões do poder. (5) São projectos e
tentativas de quem la~óra na mais protunda
insciencia do no'3SO estado mI 'ral e das nos-
sas condições sociaes e economicas.

(5) E' sabido que o S.', Tavares Hastos e 'Creveu um


livro intitulado a Província>' e 11a muito corre a noticia
de que elle e acha occupado com outra proclucção do
mesmo genero, intitulada o llfun-icipio. Quem nos e cre-
verá a Pa:rochia e o Q!w1'teínio? E' pena que o SI'. Bas-
tos não applique o seu espirito à trabalhos m'ais impor-
tantes e mai ' demonstrativos do seu tillento, do que esse
palavreados ela guiza da Província. - O leitor uão perca
de vista que assim me exprimia, quando ainda era vivo o
iIlustre alilgoano. Como eotendo que o de mOl'tuis -nihil
nísi bene não tcm applicação ao mundo lillerariu, maxime
tralando-se de UIll immOltal, ainda que de uma immor-
talidade relativa, deixo sahiI' inalterada a nota de então.
- i,05 -
Dizendo que no Brasil a vida municipal é
geralmente acanhada e mesquinha, que eUa
ha mi::itér de maior franqueza e liberdade de
acção, apenas indico e estabeleço o facto;
não determino-lhe as causas, ou a causa, se
é que só uma existe, como entendem muitos:
a vontade do governo. Este modo de expli-
car os phenomenos da ordem politica, pelo
unico arbitrio de uma força, de um poder
qualquer. individual ou collectivo, não tem
valor perante a sciencia; e todavia é entre
nós o mais usado e o mais comprehE'nsivel.
O imperador é um factor exclusivo: deUe
vem tudo, tudo se move segundo o seu que-
rer. Explicação tão phiLosophica e rasoavel,
como a dos gregos, attribuindo a origem dos
ventos aos pulmões de Eólo ou de Boreas.
As provincias não se engrandecem,os muni-
cipios não se desenvolvem, pO?'que o Estado.
isto é, o imperador assim quer. Os dias do
inverno são mais curtos do que os do verão,
p01'que Helios ancioso de se atirar nos bra-
ços da sua amada, a.ccelera os seus corceis á
se immergirem no oceano. Em ambos os
casos, a razão é uma só, mythica e futil, que
não demonstra nem esclarece cousa alguma.
Em ambos os casos, é a imaginação posta á
serviço da ignorancia; porém com esta dif-
ferença: aqui poética e elevada, alli prosai-
ca e rasteira; aqui prestando azas, aUi uma
mulêta.
O fim que viso, na apreciação do artigo
indigitado, não é tornar conhecido dos meus
leitores um novo systherna de organisação
municipal, como modelo á seguir. Entrego
esse trabalho aos politicos de officio. Se
- '106 -
algum sentimento pretendo despertar, não
é tanto a admiração da grandeza alheia,
como a vergonha da miseria propria.
II
Dezembl'O de 1880.

No, seis annos decorridos depois que pu-


bliquei estas linhas de introducção ao estudo
critico, que me propuzera escrever, sobre
o trabalho de Schwanebach, a Russia tem
sido theatro de mais de um acontecimento
perigoso e assustador. As esperanças que
se haviam ligado ao governo de Alexandre II,
foram panca á pouco diminuindo de intensi-
dade, e vendo-se frustradas, acabaram por
converter-se em outras tantas exigencias,
opportunas e inopportunas, que obrigaram
o filho de Nicolau a reatar o fio, que elle
havia partido, da phylogenesis politica d.o seu
paiz, e a ser simplesmente-'l.L1n czcLr, como
foram-no os seus ascendentes.
Entretanto as minhas ideias de então não
passaram por modificação alguma. Insisto
em crer que a. Russkaja Sta1'ina, a Rl.1Ssia de
. lexandre, ainda mesmo com todas as des-
vantagens inberentes á urna autocracia,-
que aliás não nos sào estranhas, - tem mui-
to que offerecer ao estudo e admiraçào do .
Brasil constitucional; e nào só no que!3 con-
cernenteá vida scientifica e litteraria, porem
mesmo em assumpto de governo. Por mais
paradoxal que esta ultima as erção possa
soaraosouvidos da santa gente, que se delicia
na contemplação das Mas intenções do Sr, d.
- '107 -
PedroII,ousoex.primil-asema menor sombra
de duvida. Entre o despotismo liberalisante
de um autocrata e o liberalismo despotisante
de um rei que entôa e não canta,ou que reina
e não governa, eu não hesi to em escolher o
primeiro, até porque, quasi sempre, vem
cercado de infelicidades .
. Nem ha mai.s motivos de illusão á tal res-
p;ito. Nós não temos, é verdade, um gover-
no que veja-se forçado á imp0r-se pelo ter-
ror, chamando em seu Jluxilio uma justiça
que cavalga o pallido clJ1'cel da morte; mas
tambem não temos homens que lancem a
inquietitude e o desgosto no espirito do im-
perador. o momento em que no Brasil a
clynarnite se posesse á serviço da republica,
nas mãos de homens impavidos e possessos
da sua ideia, - não nos enganemos, - em
qualquer dos nossos mais faceiros liberaes
surgiria um Loris-Melikow, guardadas ape-
nas as tHfferenças ele talento. Insisto pois
na minha velha opinião: - o governo do i-
colaiewitsch é mil vezes preferivel ao do
Bourbon-Bragança -Hapsburgo, (l qual de
certo não expede Prikas, mas faz expedir Avi-
sos; não dá ordem para sermos decepados,
mas faz-nos, á meu ver, cousa peior: -nos
avilta e envergonha. Minha velba opinião,
tJlnto mais arraigada, quanto não posso
conceder ao imperador a pureza de inten-
ções, que os proprios descontentes russos,
como por exemplo A. Kocheleff (<< Unsere La-
ge») , corceelem ao seu monarcba. Só não lbe
contesto um merito: é o de estragar-nos e
entorpecer· nos por sua conta e risco, sem di-
rec ão espiritual d quem quer que seja. E
-108 -
isto mesmo já eu disse mais alto, para ser
ouvido por um publico menos conhecedor
das nossas relações e ainda ílludido, á nosso
respeito, por apparencias phantasticas. Na
minha Ca1'ta cLbe1'ta cí imprensa allcman 1ê-se o
seguinte: «D. Pedro pertence ~l classe da-
quellas naturezas, de que não se póde affir-
marquetenbam les eléfatLts deleu?'s ve'l'ttLS, mas
as virtudes dos seus defeitos. Accresce que
estas virtudes se resumem no unico facto de
deixar-se cercar de lacaios e ministros, que
lhe são, em todos os pontos, rnuitissimo infe-
riores. Se pelo que tóca a politica, eLle nos
tem reduzido á uma especie de co?'porJ,ção ele
mão morta, é certo que para este fim não se
fez instrumento de ninguem. Os males que
diariamente sacóde das mangas em cima
do paiz, tem sido todos originados da sua
propria inspiração. ElLe é por conseguinte,
segundo a realidade das cousas, um ma-
ligno autocrata, que certamente não caça
nem gosta da guerra, mas em compensação
phiLosópha, quer ser emulo dus sabias e re-
presenta de liberal. 0h I quand'o acaba-
rá semelhante far a? A farça, já um panca
usada, de um rei seriamente amante da liber-
dade, alguma cousa de anti-natural e con-
tradictorlO, como um patL ele fe;,l'o, ou um boi
com azas, para não faltar aqui com CastelLal'
de um deus athetL?.. O que teria dito o as-
tuto Metternich, - elle, para quem um papa
liberal assemelhava-se á uma larva, - se
tivesse testemunhado este novo quadro
phantastico de um liberalismo regia?... U lU
rei phiLosopho, um rei conhecedor e despre-
zador das vaidades humanas, não é para
-109 -
Illim umFl consa nbsnrda; pelo contrario,
mnito comprehensivel; mas quer me pare-
cer que, em semelhante caso, o primeiro
lever d(\ Diogenes coroado seria o ele r ntll1-
eiar o tllrono e o sceptro.» (6)
},is abi expresso, com toda a sincerielade,
o meu modo de pensar, que ainda boje é o
mesmo. Esta ordem de observações, porém,
[u fez-me insen::;ivelmente transpôr os li-
mites elo assumpto principal, obriga-me ú
Ilma xplicação. En dissera ao principio
(rUe ail1lputação de todas as desordens da
liOS a vida politiea social ~ vontade unica
do imperador, é uma extravagancia, um tan-
to parecida com a maneira pueril, por que
nos tempos mytl1ologicos se attribuia o ven-
to aosplllm-esdeBoreas. Dizendoagoraqne
o imperador a'l.(,loc?'atisa, que elle nos arrui-
na por sua conta e risco, não serei contra-
dictorio? De maneira nenhuma. Não é
que a contradicção, principalmente quando
ella resulta da confrontação de escriptos de
datas differentes, seja para mim um deme-
rito; ao contrario, não poucas vezes, é uma
11'ova,pel0 menos,def1'anquezaelealdadena
emissão das ideia.. Porem aqui o caso é
outro; nem hei mister de recorrer á expedi':'
entes d defeza. Continúo á pensar como
outr' ora, que da falta de vida, por exemplo,
ela inanição politica dos nossos municipios,
o imperador não tem a minima culpa, como
elle tambem não é responsavel por mil
phenomenos pathologicos do organismo so-

(C) Ein o{{enel' Bl'ief an die deutsche P1'esse. -1879.


-pago 37.
-110 -
cialbrasileiro. Não é eLle quem manda aos
cidadãos que não tenham civismo, como
tambem não é eLle q uem faz q ue a race
'I1w1ttonnié1'e dos assuca1'o-e caféoc7'atas do
paiz sotoponha ao interesse das SLlas safras
toda sorte de deveres e direiLos que lhes a::;-
sistem. (7)
Se a nossa vida intelLectual é quasi nnHa,
se a instrucção publica' minima, o impera-
dor tem bem pouca ou nenhuma parte em
semelhante estado de cousas (8). Querer··
se por tanto descobrir um nexo de causali-
dade eutre elle e todas quantas anomalias
acanham e entot'pecem as nossas relações
politicas e sociaes, anomalias que provém
de um defeito do caracter nacional, é justa-
mente o que chamo uma extravagancia,

(7) Os pedante e pul'istu , lVas eirtentlicll eine Bl'lIf ist,


como diíd. Gl'imrn, vão ter ulOa 'yncope ao ver a pelu·
tancia, com flue escrevo - llSSUCal"O-e cafeoc/"{llas. Um
gel'manismo, uma cou 'a d.a Iingua alleman, não é assim?
Pode ser; mas não sei ainda o motivo. por que essa
ou outra semelhante expres ão deva ser Ilrohibida el1J
uma Iingua, onrle e distribue com dous adverbias uma
só terminação, dizendo, v. g. santlt e bellamente, sublime
e admvl'avelmente, elc., etc., em uma lingua, onde se usa
ii cada passo rla phra 'e ob-e sttbl'epticiamenle, sem cau-
saI' escandalo a ninguem.
(8) A' proposilo de instrucção basta lembrar que o Acto
addicional poz o sen de envolvimento á cargo das provin-
cia, sem dependencia do poder centl'al; e todavia,
qual é o progresso ensi veI. que ella tem feito? Será po I'
causa do veto imperial que até nas capitaes das provincias
de primeira ordem não existem, por exemplo, estabeleci-
mentos publicos de humanidades para o bello sexo? Ou
e isto é muito, será pela mesma cau a que, em maleria
de analphabetismo, temo a honra de emular com a devota
Re panha? Respondam os entendido .
- 111-
uma explicação mythologica dos factos. Al-
guma cousa de analogo ao modo vulgar de
explicar o rapido estrago e acabamento
de uma beJLa prostituta, não pela s) philis,
que agarrou-se-Ihe ao sangue e aos ossos,
mas pelas reza·ç e feitiços de sua cruel rival.
Por outro lado, porém, o quadro é mui
diverso. No terreno das largas iniciativas,
das grandes ideias á realisar, das questões
ardentes á resolver, o imperador representa
um importante papel e, como tal, é respon-
savel, não tanto pelo que faz, como pelo que
deixa ele fazer.
E, note-se bem :--- não sou, em these, um
sectario dos governos unos, dos governos
entregues á direcção de um só homem; mas
tambem não dou muita importancia ás pro-
mettidas venturas do constitucionalismo,
que é uma especie de deismo politico, da
mesma forma que o deismo não passa de um
constitucionalismo theologico; ambos pro-
vindos do mesmo espirito e - o que ainda
não foi, que eu saiba, por outrem accen-
tuado -ambos filhos da lliesma terra. Não
menos que um deus inerte, um rei inactivo
é facilmente dispensavel, e nessa presuppo-
sição,nada admira que o astronomo politico
chegue a dizer de um. o que Laplace disse
do outro: julgo superfIua semelhante hypo-
these. Assim me parece que, uma vez
admittida a parte dE} infIuencia,que o monar-
cha deve exercer sobre a marcha dos nego-
cios publicas, uma vez admittido que elle, á
ter algum sentido, não deve reduzir-se, phy-
siologicamen te, ao triste mistér de um orgão
-112 -
sem funcção, um penduricalho inutil do
corpo nacional, ou, economicamente, ao de
um immenso consumidor, que nada produz,
isto é, um mendigo immenso, é claro que o
Sr. d. Pedro de Alcantara, se muito bem não
nos faz, é só porqu e não quer; tanto mais,
quanto é certo que nos movimentos do astro
imperial ainda ninguem calculou a influen-
cia de factores, que nos obriguem á suppor
a existencia de algum corpo opaco e in-
visivel, que o tenha reduzido á seu plane-
ta, - ou seja o sapatinho de uma mulher
bonita, ou a grosseira chinella de um frade.
Bem sei que, pondo-me por detrás de
Henry Thomas Buckle, ou do seu immediato,
o dilettante Draper, poderia demonstrar,
com argumentos já feitos e accommodados
ao caso, que me acho em completo erro, que
o imperador do Brasil, á despeito de tudo,
está sujeito á grande lei dirigente de todos
os reis, estadistas e legisladores: elles não
passam de títeres movidos pelo espirita de
seu tempo. Mas eu conheço, á tal respeito,
um livro mais instructivo do que a Histo1'Y
ofthe civilizo,tion in Engtand: é a experiencia
dos meus vinte annos de vida publica, que
tem sido outros tantos annos de reflexão. E
até onde chega o duminio das minhas obser-
vações, a somma dos factos é que d. Pedro
tem sido, como ainda é, a unica força histo-
rica do nosso desenvolvimento. No selltido
inverso, é verdade, dó que devera ser; mas
sempre uma força. Se menos synergica do
que antagonica e perturbadora da marcha
evolucional do Estado, e até hoje incapaz,
-113 -
por capricho, de eliminar as irregularidades
dominantes no processo cormogenetico, ou
biologico nacional,-ahi mesmo é que reside
o motivo do seu denegriment.o perantea'bis-
toria; e é isto que tambem, no meu sentir,
determina e justifica o pouco amor que lhe
consagro. (9)
E' tempo de voltar ao centro do assumpto
proposto, de que me desviei por uma curva,
demasiado longa talvez, mas dentro do mes-
mo plano. Quero crer que não podia melbor
dar entrada á ordem de ideias, que ahi ficam
expendidas, do que justamente á proposito
ele um estudo sobre a organlsação commu-
nal ela Russia. A' l'esp~ito ele outro paiz,
uma igual apreciação pode causar-nos in-
veja; porém quanto á Russia, é de natureza
á causar-nos vergonha; e este sentimento é
o que resta,unico efficaz, para produzir a re-
acção moral, de que tanto carecemos.

(9) Releva adverlir que nào lenho o r. d, Pedl'o fi na


conta de um homem 1'epresentativo; pelo conll'drio, eslou
convencido que, se oulro fóra o eu berço, se tive se
nascido na 01J curidade e na pobreza, c não fosse um
ducruelles que, ao abrirem os olhos á luz, já encontram
decidida em seu favor a lula pela existencia, com lodos
os proventos da victoria facilmente ganha, os seus talen-
los não chegariam para alva-lo do e quecimento, que
aguarda as pohres mediocridades. Mas a verdade é que,
ou pOl' effeilo da posição, ou pela Ma índole do povo, a
quem govema, elle é em todo caso o lJaStOl' do se!' 1'e-
banho.

8
III
elembro de '1881.

U leitor ba de lembrar-se do que deixei es-


cripto em uma daspaginas an tefiores,com re-
lação á Alexandre II e ao nosso amabilissimo .
Imperador:--«Entre o despotismo liberalisan-
te de um autocrata e o libAralismo despotisante
de um reiqueentôaenão canta, ou que ?'eina e
não gove1'na, eu não hesito em escolher o pri-
meiro,até pOl'que,quasi sempre, vem cercado
de infelicidades.»- Foram palavras quasi fa-
tidicas. Tres mezes depois, em março deste
anno, como é sabido, o filho de Nicolál1 teve
o tragico fim que lhe proporcionára a sua
má estreUa, se não antes a sua má politica.
A mão dos zelótas, que tomam ao sério o
nome e o bem da pat1'ia., tentou corrigir o
erro da historia, eliminando o homem, cuja
insistencia na denegação de reformas pedi-
das afigul.'ára-se-lhes uma força perturbadora
do progresso nacional. Maseste facto ainda
não poude alterar o meu modo de ver. Per-
maneço no mesmo pé de convicção, quanto
á Russia despotisada, que tenho por mais
feliz do que o Brasil constitucional. E isto
não quer dizer que eu me sinta com vocação
para nihilista, ou que pretenda não só absol-
ver, mas até exigir que sejam apreciados,
como outras tantas virtudes, os criminosos
excessos da terrivel sociedalte. Como todos
os phenomenos historicos, inclusive a reale-
za e o papado, que não são dos menos
perniciosos, o nihilismo não deixa de ter
o seu lado bom e aproveitavel. . O que ne11e
-115 -
existe, digno de lastima ou de reprovaç.ão, é
menos, no meu parecer,a ferocidade da ern-
preza pelos meios empregados para realizá-
la,do que a esterilidade do seu objectivo(10).
Esta insufficiencia do alvo traz com sigo o
enfraqueci men Lo elo direito, pois que... de?'
Zweck isl .der Schõpf81' des ganzen Rechtes,
como pensa acortadamenteRudolph vonlhe-
ring; e uma empreza que se clestina á con-
secução de pequenas cousas, difficilmen te
l'0der-se-ha justificar da desproporção irra-
cional en tre a grandeza dos meios e a insig-
nificancia do fim. E' sempre um mal des-
perdiçar forças, que poderiam ter uma util
applicação. Os homens que na Russia pu-
zeram a dynamite á serviço da politica, se
caracterisam sobre tudo por um desperdicio
de heroismo, que está bem longe de ser
compensado pelo pro])rio ganho da causa,
quando mesmo ella chegue á triunfar.
Quizera ir um pouco mais adiante,-
porém retraio-me. Não é aqui o logar adap-
tado á ex.pressão clara e completa de seme-
lhan tes ideia13.
Entretanto importa reconhecer: - quaes-
quer que tenham sido os erros,- e forarr
muitos ---, do infeliz autocrata, não podem
obscurecer os seus merecimentos. Sem fal-
lar no grande feito, geralmente conhecido,
que assignalou a sua ascenção ao throno,---a

('10) Ao olbos de nós Outl'O que abemos paI' expel'ien-


cia o que vaiAm uma constitui ão e um parlamento) é com
elfeilo ingular, pal'd não dizer, extravagante e riuiculo,
que espíritos elevado façam qnestão de vida e morte, e
acrifiquem e acabem por amor de tae~ frivolidaues.
- 1:16 .:...-

libertação dos servos. --- Alexandre II illus-


trou os seus vinte e seis annos de governo
com mais de uma reforma geDerosa e
salutar. Entre outras, por exemplo, a da
legislação penal, que desde a Prawda-Rus-
skaja, do principio do seculo -11, até a Swod
Sakonow,da epocl1a de Nicoláu,não obstante
as modificações produzidas pelo tempo,
ainda conservava o cara~ter de velha barba-
ria; e s6 de 1855 em diante foi que, por
impulso do czar liberalisante, appareceu a
reacção, no sentido de dar á leis penaes
da Russia uma tendencianova e um t;3spirito
de brandura. até então desconhecido.
Mas a reforma que melhor accen tuou as
bôas disposições é largas vistas do governo
de Alexandre foi a da organisação com-
munaI, introduzida pelo decreto de 16 de
Junho de 1870.«-Nessa r forma, dizScbwa-
nebach,os principaes traços caracteristicos
daquelle governo, isto é, decentralisação e
abolição de privilegios de classes, encontra-
ram a sua mais alta expressão. Esta grande
ideia forma o éLo que prende a transformação
da vida municipal á importante obrada liber-
tação dos servos e a in troducção de uma vi-
da administrativa autonoma nas provincias
e circulos, na qual o povo é convidado á
tomar parte. A reforma no dominio mu-
nicipal deve ser considerada o complemen to
necessario dessas duas significativas inno-
vações, e será, junto com ellas, designada
pela historia como;:) refurma russa de nossos
dias, mais rica de consequencias » - (11).
(11) RussischeRevue•.. 1874- pago 433.
-'117 -
« Mais rica de consequencias» - é ver-
dade; até mesmo de consequencias fa taes
para o grande reformador. O tL1ws de 16 de
junho ele '1870 está para Alexandre II. pouco
mais ou menos, como o decreto de novem-
bro de 1860, aquelle famoso decreto, em
que o despotismo francez voluntariamente
retrabiu-se e Umitou- se, e9tá para Napo-
leão III. Ambos marcam o momento,c1f'sde o
qual começou para os dous monar 'llas o
processo bistorico, que devia trazer a sua
ruina. Ha menos perigo em ser-se déspota
n'um paiz livre, do que em ser-se liberal n'um
paiz escravisado. O despotismo que des-
menteo seu conceito, o conceito racional de
um poder in transigen te, que pode augmentar
de forças, mas nunca diminui-las, tem lavra-
da, ipso facto, a sua condemnação. Praticar
larguezas politicas, fazer concessões libera-
listicas e, não obstante, continuar á ser um
autocrata, --- é cousa que, quando mais não
importe, importa ao menos uma flagran l
violação da logica; e a logica neste mundo
presta sempre algum serviço, e nem sempre
é violada impunemente.
Foi o que deu-se com o Nicolaiewilsch.
Abrindo caminbo ao pleno desenvolvimento
das municipalidad s,pela nova organisação
quelbes outhorgára,ellecreou-se o melindro-
so·deve, de responderliberalmeote,bom gra-
do ou máu grado seu, ás exigencias de novas
franquezas, que por ventura lbe fossem
feitas, nas relâções politicas e sociaes do
imperio. O nibilisl1l0, certamente, não é um
prodllcto do governo, incompletamente
generoso elo filho de icolau; mas elle lIau-
-118 -
riu nas prop1'ias ideias desse governo um
grande reforço para as suas pcetenções.
E, por tanto, nada ele mais 10gico, para não
dizer de mais justo, do que 3cabar o auto-
crata, inundado pela torrente, cujo dique
elle mesmo abrira. Não é sempre ise~11pto
de más consequencias distribuir em peque-
nas rações o direito do povo. Antes deixar'
o leão inteiramente em jejum,do que lançar-
lhe um escasso bocado,que s6 pode ter por
effeito sobreexcitar a gula do monstro e aug-
. mental' a sua fereza. Bem entendido: ---
quando se trat1 de povo, no sentido elevado
da expressão, e não, como succede, por
exemplo entre n6s, de um sirnples nome
collectivo,qne significa uma multidão de ho-
mens, como porca.da quer dizer um grande
numero de porcos.
II t'a'l.bt savoir son métier ele roi. Estas pala-
vras de um rei constitucional assentariam
melhor na bôca de um autocrata. O mister
de governar por si s6, exige com effeito
muito mais sciencia do qlle os chamados
governos livres, com seus minisLerioseseus
parlamentos. Alexandre II foi victima de um
certo desázo no seu métiel' de czar. Pelo
menos. uma cousa é indubiLavel: - elle
provou com o seu exemplo que os padres e
os reis em geral não são destituidos de
razão, quando se mostram pouco affeiçoa-
dos ao derramamento da luz. N'tlma côrte,
çomo S. Petersburgo, onde existem setenta
e dois estabelecimen tos de instrucção su-
\ perior, para os quaes o czar mesmo não se
dedignava de contribuir com a quota da sua
munificencia, difticilmen te poderia o des-
-'119-
pot~smo viver incolume e tranquillo. Isto
está contido no proprio fundo conceituaI
da cultura humana. O espirita, o verdadeiro
espirita scientifico, não existe por certo
para ser um alliado dos reis. E' minha con-
vicção. Se porém, pelo contrario, a ultima
palavra da sciencia deve ser, como insi-
mí.am algun escriptores, um hymno de
louvor e eterno reconhecimento aos mOuar-
chas de todos os tamanhos, quer de grande,
quer de pequeno estilo, ou sejam magna-
nimos e inditosos, cumo Alexrél.ndre II, ou
tacanhos e bemaventurados, como aquelle
que me é, por infelicidade, mais que todos
conhecido, - então .... vale a pena por-se
fogo nos tbesouros accumulados do saber
humano, e voltar-se á barbaria.
O leitor desculpar-me-hâ, se orfendo por
este modo os seas sentimentos monarchi-
cos, e mais ainda, St: distrabido por uma tal
ordem rle ideias, afastei-me demasiado do
assumpto precipuo, com o qual entretanto
passo de novo á occupar-me.
IV
A orgamsação communal da Russia, no
estado em que se acha, não é um producto
de occasião, um phenomeno que surgisse
de improviso, sem ser determinado por
qualquer antecedente, mas, como todos os
grandes factos da ordem natural, social e
politica, um resultado ue desenvolvimento.
Foi Pedro Grande quem deu o primeiro
impulso para uma reforma em tal sentido;
e esse acto do illustre déspota pode bem
-120-
considerar-se a ceLlula, d' onde proveio o
actual organismo da municipalidade russa.
O ideial que então elle teve em mente, foi
a constituição medieval uas cidades alle-
mans, que tinha sido tão favoravel ao com-
mercio e á industria; e todéls dS medidas,
por elle cogitadas, para attingir ofim projec-
tado, resumem-se nestea dois pellsamentos
capitaes :- por um lado,. asse-gurar ás cida-
des uma constituição independente, e pres-
tar, por outro lado, aos seus habitantes o
caracter de uma classe particular, premuni-
da de direitos, a qual, se subdividindo em
corporações, receberia assim uma forte
hierarchisação.
Este ensaio de autonomia municipal,
passando ás mãos de Catharina II, tomou
novas e mais largas proporções. Em virtude
-da lei de 21 de abril de '1785, a mesma lei
que regulou os direitos da nobreza russa,
houve um trabalho de reorganisação com-
munal, cujos effeitos permaneceram até os
ultimos tempos e ainda hoje .:e fazem sen til'
em muitos logares do imperio. Nesse ter-
reno, assim preparado, é evidente que a
obra de Alexrandle II não podia ser uma
planta exotica, mas an tes uma filha legitima
da disposição geologica do mesmo sól0.
Bastante comprehensiva para fazer, por si
só, toda a gloria de um reinado, a organisa-
ção communal de junho de '1870, que aliás
fôra destinada á completar o que existia, á
preencher as lacunas dos trabalhos ante-
riores, pareceu entretanto já não correspon-
der aos vOt0S e aspirações do tempo, que se
dirigiam á alyos mais elevados.
-121 -
E' uma bella palavra esta palavra---a'1.lto-
nomia,--- maxime quando se trata da cha-
mada autonomia 1rltmicipal. Mns tambem é
,força reconhecê-lo :--- a palavra está desvi-
ada do seu conceito primitivo, e semelhante
desvio tem sido e continúa á ser de más
consequencias praticas. Nas condições de
existencia e desenvolvimento, em que se
acha o Estado moderno, a autonomia com-
munaI, ao menos como ena foi antigamente
concebida e realisada, é hoje impraticavel ;
e quando mesmo seja possivel, aqui ou ani,
ser levada á effeito, é uma cousa estel'il,
uma conquista insignificante, em face de
outros problemas, graves e fecundos, para
cuja solução ella não contribue de modo
algum. Neste ponto é digno de nota o que
diz um escriptor belga :--- « A vida commu-
nal não se improvisa; as melhores leis são
impotentes para fazê-la surgir. Ena é hoje
mais intensa nas villas russas, onde a libel'-
dade politica e a prosperidade commercial
são desconhecidas, do que em muito paiz
do occidente, onde o egoismo da burguezia
moderna e a exageração das lutas de partido,
transportadas sem proposito ao terreno da
com muna, tem esterili::;ado os antigos sen~
timentos de fraternidade, e s6 deixam sub-
sistir entre os habitantes obrigações de vi-
sinhos, que se conhecem pouco, e muitas
vezes sedetestam »(12). Isto é exacto. Nada
prohibe que n'um paiz, em que existe amais

(12 Léoo Vanderkindere. Revlle histol'ique rie Monoel r


Fagniez. 1879. I-pag. 476.
-122 -
franca autonomia municipal, seja esta ao
mesmo tempo um dos melhores alliados
do despotismo. A liberdade politica é um
producto de factores diversos, nunca porém.
uma somma de centenas e centenas de mu-
nicipios autónomos. No estado actual' da
civilisação, em presença dos grandes corpos
nacionaes, que tem uma existencia propria,
o municipio tem apenas uma individLlali-
dade anatomica; só pode viver com o todo
e para o todo, de que faz parte. E' uma falta
de criterio, para não dizer uma falta de
senso, que não raro toma as proporçÕés de
um disparate inqualificavel, andar á todo
proposito, como é costume entr~ os politi-
castras do dia, invocando a autonomia com-
munal contra os males que se fazem sentir
nos governos centrali3ados. Não é mais li-
cilo deixar-se arrastar por semelhante .illu-
são. A felicidade de um povo está muito á
cima do galho,d'ondepende ofructo iclyl1ico
da vida municipal, autónoma e indepen-
dente.
O exemplo da Russia é instructivo. Paiz
nenhum se gaba de possuir um modêlo do
genero,mais perfeito e digno de ser imitado.
Em virtude da nova organisação, que com-
pletou a obra de dois seculos, assegurou-se
ás com munas independencia e autonomia
nos limites do c:rculo de acção, ql1e lbes
foi franqueiado. Este circulo de acção
abrange todo o dominio da policia rro mais
largo sentido da palavra :-.- a policia de edi-
ficação, a vigilançia sobre o trafego publico,
a policia hygienica e o cuidado da pobreza,
a vigilançia e regulamentação do commercio
- '123-
e da industria; tanto' quanto estes podem
ser sujeitos á limitações ;---elle abrange
ainda a administra ão do que a communa
possue, bem como das suas finanças, a
creação de bolsl'.ls, de instItutos de credito
comm unaes, de t11eat1'os, bibliotecas, mu-
seus, e outros semelhantes estabeleeimen·
tos-hospitaes e casas de beneficencia; em
fim, a nova lei permitte ás com munas tomar
uma certa parte na instrucção publica,
principalmente no Dooto de vista econo-
mico. -
Os orgãos da administração communal
são; - as assembléas eleitoraes, o concelho
urbano (f1ot'odskaja Duma) e o comité executi-
vo (gm'odskajcL Upl'awa). As assembléas são
convocadas ele quatro em quatro annos pelo
concelho urbano, e a ellas pertence exclu-
sivamente a eleição dos membros do mesmo
concelho, que são de trinta á setenta e dois,
conforme a população da respectiva cidade
e o numero dos eleitores. Tem direito de
votar nessas assembléas qualquer habitante
da localidade, sem distincção de classe,
uma vez que seja sl1bdiL.o russo, maior de
25 annos, que possl.la uma casa, ou pague
impostos municipaes (13).

(13) I to abre caminbo ii uma ponderação,l'elativamenle


ús no sas municipalidade~. Não seria por ventura uma
vantagem ]Jara a maior pal'le della , que fo e vedado,
pelo menos, exel'cer o cargos de presidenle e vice-presi-
dente das camara municipaes. á quem quer que não ba-
bHas e dentro elu' 1'e pectiva séde-villa ou cidade.- que
não tive se inlere es a ella ligados, ou como prop1'ieta-
rio, ou oh outro qualquer caracter? Ao certo, se i lo e
-124 -
Tem igualmente o direito eleitoral activo,
que alias é exercido por meio de represen-
tantes, todas as corporações, sociedades,
claustros e egrejas, con tribuintes da com-
muna. Assim tambem tomam parte no pro-
cesso eleitoral, por via de representação,
as mulheres e os menores, se satisfazem ás
outras condições impostas ao exercicio do
voto (14).
Os eleitores communaes são divididos em
trez secções, cada uma das quaes elege um
terço do concelho urbano. A primeira
secção é formada dos mais altos contribuin-
tes,que entram com um terço da receita ge-
ral ela communa ; á segunda secção perten-
cem os que na linha descendente formam o
terço immediato da mesma receita; á tercei-
ra em fim todos os mais votantes. Por este
meio, é facilmente comprehensivel como a
lei quiz assegurar áquelles elementos da
população, que segundo a medida. de suas
prestações fiscaes tem o maior interesse em
uma administração regular, a influencia
que lhes compete.

dê"se, não ter-se-hia de lamenlar o facto, já inveterado e


reduziddo á habito incon ciente, de serem aquellas func-
ções commettidas áorgão inutris, á ru licos e estupidos
agricultores, á quem falla o senso do bem commum, que
só cuidam no plantio das suas cannns. no fabrico do en
a sucal', e que portanto não entem a minima neces i-
dade de trabalhaI' para o incremento e prosperidade dos
municipios.
(14) Como,segundo o direilo russo. não ha commuuhão
de bens entre o conjuge. e a mulher casada lem a fa-
culdade de administrar e dispor da sua propriedade, o
direito do voto electivo do conr.elho commllnal compete
á ella do me mo modo que as viúvas e as môças.
-125 -
A presidencia das assembléas pertence ao
chefe da commnna (g01'odskoja Golowa), que
tambem preside ao concelho urbano (go1'ocl-
skaja Duma) e ao com,ité exectivo (gol'oclskaja
Uprawa). O chefe dacommuna:, osmembros
do comité e seu secretario são eleitos qua-
triennalmente pelo concelho urbano. Para
estas funcções são elegíveis todos os que
podem tomar parte na eleição municipal,
e o concelho não tem obrigação de tirá-los
do seu proprio seio. Para o logar de secre-
tarios podem tambem ser nomeados aquel-
les que ainda não attingiram a idade legal
da elegibilidade como igualmente é displ'n-
savel que elles pertençam' á categoria dos
proprietarios ou contribuintes. Do duplo
caracter presidencial, que tem o chefe da
communa, em relação ao concelho urbano
e ao comité executivo, se deprel~ende a sua
importancta.entre os orgãos administrativos
locaes. Nelle repousa o centro de gravidade
da administração municipal, assim como
. elle é o medianeiro entre ella e o governo,
perante o qual vem á ser o representante
responsavel dos interesses da communa.
O numero dos membros do comité é esta-
belecido pelo concelho urbano, e não pode
ser [menos de dois, sem contar o chefe
Gommunal. Ao concelho compete determi-
nar que objectos devem ser submettidos á
deliberação collegial desses membros, e
quaes os qne o chefe tem de d8cidir por
propria autoridade, sendo que este ultimo,
em casos extraordinarios, tem competencia
para empregar medidas, que regularmente
exigiriam uma decisão collegial; mas tambem
-126 -
e111 taes casos elle é obrigado á dar conta
do seu acto ao comité, na proxima sessão.
Tudo isto é bem disposto, e attesta por
si só um alto senso adminisLratlvo. Porém
não fica ahi. A parte financeira da nova lei
organisatriz do municipio russo me parece
não menos fecunda e interessanLe.
A' despeito de todos os esforços dos go-
vernos anteriores para firmar uma bôa
economia municipal, ainda esta permanecia
em estado rudimentar,posto quejá no tempo
de Catharina II houvesse alguma cousa de
bom, neste sentido,alguma cousa de melhor,
sem duvida, do que mesmo presentemente
existe no Brazil. Foi a nova organisação de
1870 que produziu tambem neste dominio
uma transformação completa.
Sobre a base dessa lei o concelho urbano
tem o poder de lançar as seguintes contri-
buições; (Ct)- um imposto sobre a edifica-
ção; (b)- um imposto de sello sobre as pa-
tentes de commercio e industria, assim como.
(c)- um imposto sobre os ?'estaumnts, casas
de pasto e hospedarias. Por via legislativa
podem ser sujeitos á contribuição mais os
seguintes Qbjectos: (a) a industria de con-
ducção e transporte,- (b) os cavallos, equi-
pagens e cães, que se acham na posse pri-
vada.
Alem destes impostos directos, a nova 01'-
ganisação. deu ás cidades alguns outros in-
directos, que formam uma receita avultada.
A' isto accrescem os soccorros que algu-
mas cidades recl"b m do Estado, ou das pro-
vincias, ou districtos, para fazer frente á
-127 -
certas despezas, que repousam fóra dos li-
mites das necessidades communaes. (14)
O exame e confirmação do budget muni-
cipal é da compétencia do concelho urba-
no. (15)
Uma qnestão interessante, de cuja exacta
solução depende o desenvolvimento pro-
gressivo dos municipios, é a qne diz respei~
to ás relações existentes,ou que devem exis-
ti1',entre elles e a administração das provin-
cias e dos circulas. Os governadores pro-
vinciaes tem na verdade um direito de alta
vigilancia á respeito da administração das
communas; porem esse direito é vinte
vezes mais resLricto, do que se mostra, ve1'bi
gmtia, no nosso paiz de decantadas franque-
zas. Para resolver sobre negocios muniei-
paes, que a nova lei commetteu ao governa-
dor, este ultimo tem á seu lado um comité
composto de seis membros, o qual, sob a
presidencia do mesmo governador, delibéra
e decide sobre tudo que interessa as com-
munas, e que é levado ao conhecimento
delle. A' este comité o governador é obriga-
do a apresentar, como objectos de sua deli-
beração, os seguintes assumptos:- 1.°
queixas e accusaçães, que levantem os ha-
bitantes de qualquer cidade por occasião
de organisar-se a lista dos eleitores, como
em geral á respeito de illegalidades havidas

(14) Não seria tão bom que oe: nossos legisladores tra-
duzissem na lingoa micional, alem de outros, este excel-
lente pedaço de in tiLui ão slava ?!
(15) Um outro ponto importanlissimo, que oxalá po-
dessem os imitar !....
-128 -
no processo eleitoral; nestes dois casos o
comité do governo forma a segunda instan-
eia, pois que taes queixas e accusações
devem ser primeiro dirigidas ao concelho
urbano. O conlité tem o direito de annullar
eleições illegaes e mandar proceder á novas.
-2.° Contestações entre o chefe da cidade e
os membros do comité executivo, assim
como entre este ultimo e o concelho urba-
no;- 3.° accusações sobre a illegalidade da
eleição de funcionarias municipap-s;- 4.° u
exame dos actos do' concelho urbano. caso
pareçam illegaes ao governador, assim
como quaesquer con testações suscitadas
entre a administração policial e o mesmo
concelho á respeito desses actos;- 5.°
queixas e accusações sobre desmandos do
chefe da cidade e do comité ex~cutivo ;-- 6.°
finalmente todas as contestações por ventu-
ra levantadas entre a administração munici-
pal e os funccionario:::. administrativos pro-
vinciaes.
As deliberações do comité governamen-
tal são tomadas por simples maioria de
v6tos. Se o governador não concorda com a
decisão, tem o direito de appellar para o se-
nado; direito este que tamhem co mpete aos
orgãos da administração municipal e pro-
vincial. .
Como se vê, o municipio russo tem uma
beUa organisação, a mais bella, talvez, que
se pode, não direi --imaginar, mas ao certo
pôr em movimento e fazer funccionar. En-
tretanto, quaes os proventos politicos de
semelhante instituto? Não se sabe, ou, se
alguma cousa se sabe, é somente que essas
-129 -
tão àmplas liberdades communaes deixa-
ram o espirita nacional no mesmo estado de
inq uietude e anciedade por um melhor
governo. Quando era de esperar que depois
de uma tal éoncessão, --- que aliás não foi o
unico testemunho da sua magnanimidade,--
Alexandre II podesse viver tranquillo, ou,
como dir-se-hia em guindada linguagem
cortezan, encontrasse no coração de seu
povo o mais sincero alliado e dedicado
amigo,--- bem ao contrario disso, as obras
do czar foram pesadas e se acharam muito
leves.... De quem a culpa? A historia res-
ponderá.
Meu thema esta esgotado. Antes porém
de terminar, quero ainda insistir sobre um
ponto, que nos toca de perto, e que forma,
por assim dizer, o lado pathologico do as-
sumpto: - a mania do municipalismo. em
face da improficuidade das franquezas mu-
nicipaes. Não é de hoje, mas já de ha muito
tempo, que entre nós se proclama a autono-
mia dos municipios, como uma ideia salva-
dora, como uma necessidade, cuja completa
satisfacção trará para o paiz incalcu1aveis
beneficias. Esta exigencia faz parte do pro-
gramma de um partido, isto é, do seu pro-
gramqla de opposição. Mas não deixa por
isso de ser geral e profunda a convicção de
que no desenvolvimento das municipalida-
des está o segredo dei nossa ventura politica.
e que esse desenvolvimento pode vir pelo
caminbo da lei, ou melhor, pela vontade do
governo. Porém isto será exacto? Creio
que não.
E' um engano, e bem pouco honroso para
9
-130 -
quem se deixa enganar, crer que ainda nos ..
.'.

,
é possivel recomeçar a marcha da historia e
tomar direcção diversa da que temos segui-
do até hoJe, em relação á vida municipal:.
Os municipios, no Brasil, não passarão ja-
mais de meras circumscripções administrq.~
tivas, sem cohesão politica, sem força prà~
pria, incapazes, pllr conseguinte, de ter
qualquer influencia nos calculos do poder
publico. A autonomia que se redama para
elles, ainda mesmo limitada e muito distan-
te daquella que os romanos faziam consistir
no ... legibus s'uis ~~ti (16), não pode SAI' levada
á effeito, pela razão mui simples, mas tam-
bem a unica irresistivel, de não haver pro-
priamente entre nós um espirito communal,
que é a primeira transforma ão, por que
passa o egoismo, do apêgo exclusivo ao
bem individual na consideração elo bem de
todos. .
A analogia que TocqueviLLú descobriu
entre a communa e a escola é uma .daquel-
las cousas, que são bonitas de mais, para
serem verdadeiras. Pelo menos é certo que
a escola I recisa de quem a frequente; assim
tambem a communa de quem a dirija. Os
nossos municípios, pela mór parte, fazem a
impressão de... escólas no desel'to. São por
tanto bem duvidosas as vantagens que nos
promette o liberalismo loquace com uma per-
feita autonomisação das communas. Omaior
numero dellas, alem de serem semelhantes
aos ... vici et castella et pagi, de que falLa

(16) Tit. Liv. 33.32,5.- eneca de bene(. 5, IG.-Cre aI'


de b. g. 7, 76.-Cic. ad Alt. 6, 2, 4.
-131-
Isidoro, q'LuJ?, nulla dignitate civitatis ol'nantul',
s~d 'Vulgari hominum convent'L~ incolunt'ut, tra-
z~m no seio o germen da morte,- o aca-
nhamento e a mesquinhez de suas condições
economicas. O grande proprietario, o rico
representante da nossa agricultura, que nào
esimplesmente um incola, mas um civis ela
communa, julga-se entretanto mil vezes
mais honrado com qualqner titulo, com
qualquer apparencia de distinc .ão, que lhe
venha da côrte do imperio, do que, por
ex.emplo, com o modesto, sim, mas impor-
tante cargo de presidente da camara de seu
municipio. Na vida da comml1na brasileira,
nessa que se concentra em dois fócos :-a
feira e a egreja, o pequeno commercio e a
pequena religião, -não ha nem mesm
aquiUo que podéra indemnisa-la do muito
que lue falta, isto é, o ar puro da moralida-
de, a nobl'eZd dos caractéres. Até lá tambem
já chegou a corrupção das grandes cidades
e matou a innocente poesia dos campos.
Nada embaraça, - eu concordo, - que os;
nossos municipios tenham mais indepeden-
cia, que se despreudam alguma cousa dos
laços governamentaes' mas não nos illuda-
mos :- a autonomia municipal, no sentido
e extensão em que a reclamam, é uma im-
possibilidade; e quando mesmo fosse reali-
savel, nada traria de util a nós outros, que
arcamos com problemas de ordem mui su-
perior.
- 133-

VI

Da influencia do salão sobre a littel'atul'u,

I
Este assumpto não é novo, nem eu pre-
tendo dá-lo como tal. Bem entendido, não é
novo em outros circulas; porém não con-
testo que seja novissimo entre nós. Em sua
importante Histo?'ia da litte'ratu1'a do seculo
18, já Hermann Hettner,-illustre nome não
sabido das loquaces boccas dos belLetristas
da terra, - consagrou aLgumas paginas á
apreciação do muito que os salões contri-
buiram para o aperfeiçoamento das leUras
francezas n'aquelLe tempo(1). Sem fallar de
outros, que trataram do mesmo them&., basta
lembrar que uma das mais beBas partes da
grande obra de Taine sobre t.S origens d&.
França contemporanea, éjustamente a parte
dedicada á descripção pinturesca do movi-
mento do salão e do impuLs0 que eLl'3 dava
á vida espiritual da naldão, posto que, im-
porta declará-lo, o ceLebre escriptor exage-
rasse, CGOlO le costume, as dimensões do
seu objecto, e o saLão represente no indica-
do livro o mesmo papeL que a falcttté mai-
tresse em livros anteriores - aI parec I do

(1) LUel'lltllrgesc1Lichte .... I. •. pago ~83.


-134 -
em todas as scenas, para explicar e dar a
razão de tudo.
ão seria ell pois qllem viesse fazer de
novo aquillo qu está feito e muito bem feito.
~as isto não quer dizer que seja um trabalho
inutil ou superlluo para os meus leitores
entretê-los por alguns instantes com seme-
lhante materia, que não deixa de ser sympa-
thica e attrahente.
O salão, como conceito historico-littera-
rio, é um producto legitimamente francez,
mas um producto menos devido á propria
indole e caract':lr do povo, do que as ideias
e ten~encias ·de uma epocha. Pelo menos, é
sabido que o primeiro momento evoluciQnal
de uma tal instituição não germinou n'uma
cabeça franceza, . poré111 n'uma italiana, e
esta de uma mulher, a famosa marqueza de
Rambouillet. Desc.endente, pelo lado mater-
no, da familia dos Strazzi, motivo por onde
eUa era ainda aparentada com as duas rai-
nllas de França, Catharina e Maria de Me-
dici, a bella e intelligente Catharina de Vi-
vonna de Pisani casara-se na idade de '16
anno , em 1600. com o marquez daquelle
lJome. O hotel Pi 'ani que ella herdara de
seu paf',e lue era situado entre as T1~ilherias
e o Louv1'e, recebeu então o titulo de hotel
Rambouillet, e como ponto central da con-
vivencia espiri tual dos mai significativos
personagen do tempo, attingiu á uma alta
celebridade. De Roma, sua cidade natal,
trouxera a jovem senhora o gosto das bellas
artes, pril1cipalmente da pintma e esculptu-
ra, e fizera adornar o seu palacio com as
obras dos mestre mais afamados. Era abi
-135 -
a séde das musas e da sciencia. Afastada
da côrte corrupta de Henrique IV, a mar-
queza procurou os prazeres da vida em urna
socied8.de de nova especie. Principes de
sangue, mulheres virtuosas e cultas, das
classes mais elevadas, sabios, poetas, escri-
ptores - Malherbe, Corneille, Balzac, St.
Evremout, Scarron, Mad. la FayettC', Made-
leine Scuderi e a espirituosa Marie de Sevig-
né - eram hospedes frequentes do hotel
Rambouillet (2). A conversação era scienti-
fica. politica, litteraria, e ao mesmo tempo
graciosa e elegante. Qualquer expressão as-
pera; qualquer palavra mesmo, que fosse
innocente em si, mas encerrasse um con-
ceito baixo, era banida da sociedade. Alguns
sabios e litteratos, temendo que as snas
reuniões, posto que muito attractivas, não
fossem bastante cheias de succo, tiveram a
ideia de discutir em commum questões lit-
terarias e linguisticas; e assim foi lançada
a primeira pedra para a fundação da Acade-
mia franceza. Durante decennios a marqueza
de Ramboqillet empunhou o sceptro do es-
pirito, como soberana des e pequeno Estado
da intelligencia e do saber. Posteriormente,
porem, outras mulheres de talento recebe-
ram a berança da marqueza. Deu-se-lhes o
nome de P1'écie1.lses, por que seus admira-
dores achavam-nas tão sublimes, que ne-
nbum outro adjectivo parecia mais convir-

(2) E' cal'actel'i Uco do lempo, que Bossuet, nos eus


16 anllOS, enll'ando lambem na sociedade, fo e uma vez,
e em horas avançada da Iloile, convidado pal'a pl'egal',
o que e][c satisrez, impl'ovi alHlo UI1l sel'mão !...
-136 -
lhes, E tão alto era o seu apreço, que Mo-
liere· mesmo respeitava-as; com as suas
Précieuses ?'idicules elle só teve em mira
zombar das epigonas e imitadoras ridiculas.
Em pouco tempo o numero das Preciosas
subiu á perto de 800, que dividiram-se em
diversos circulos. Estas polidas e elegan-
tes francezas, á despeito dos rigores da eti-
queta, admittiam toda a liberdade, que era
favoravel á cultura espiritual, e excluiam
somente aquillo que a virtude e a decencia
não deviam tolerar. O esforço de alguns es-
criptores, a sociedade e as mulheres, que
sempre governarão, onde a sociedad~ go-
verna, predispozeram aquella maneira de
fallar clara e conciza, que até hoje tem per-
manecido como a língua da pura e perfeita
prosa (3), As P1'écieuses deram assim' ao es-
tilo um impulso extraordinario, ajudando a
cultiva-lo e aperfeiçoa-lo, não só pelo que

(3) Isto hão quel' dizer que s6 os francezes, segundo elles


mesmos parecem crer', s~ibam fazer bóa prosa. A elles
cabe, é verdade, o merito da prioridade, no que respeita
á prosa moderna j mas hoje é uma tólice entender que
nenhuma outra nação possue igual predicado. Em toda
a litteratura franceza deste seculo, aliás tão rica de pro-
adore perfeitos, não conheço um só, nem mesmo Er-
nesto Renan, que seja comparavel, Flor exemplo, ao
allemão Theodol'o l\fommsen, cujas graças eslilisticas
são tanto mai admiraveis, quanto eUe não tem ii sua
disposição uma lingua feita, uma lingua que pensa pelo
escriptoJ'. Dil'-se-hia que em suas mãos o marmore da
lingua alleman se transforma em cera, que se adelgáça
afeiçoa à capricho da sua sciencia e da sua imaginação.
E Mommsen nào é o ualco. Lêde ainda, por exemplo, de
um lado Aug. TllielTY, e de outro lado L. RanRe, e dizei-
me depois se sou exagerado.
-137 -
ellas megmas faziam, mas tambem pelo cui-
dado e interesse que despertavam nos
outros.
Entretanto releva dizer :-qualquer que
tenha sido a benemerencia litteraria do hotel
Rambouillet,elle não foi mais que um ensaio
daquillo que mais tarde devia manifestar· se
em grau superior. O salão da celebre ita-
liana, posto que de incontestavel influencia
sobre a vida litteraria de então, não podia
ter todavia o alcance politico e social, que
depois tiveram os circulos do mesmo gene-
1'0. Alem de que aFrança, nesse tempo, não
era ainda a directora da civilisação europea,
accresce que apropria litteratura permane-
cia aristocratica e limitada á um bem peque-
no numero de eleitos. Os dias do ancien ré-
gime ainda não estavam contados, nem os
espiritos presentiam a vi nda de uma nova
era. Fazia-se mister que a realeza chegasse,
com Luiz XIV, ao ponto culminante do seu
desenvolvimento, para tomar tambem, logo
após, a direcção do abysmo. com a rapidez
de um::t pedra que rola do alto de uma mon-
tanha. Era precizo, em uma palavra, o ap-
parecimento de uma força nova, creadora e
destruidora ao mesmo tempo, que desper-
tasse no povo o tedio da propria vida e a a '-
piração do melbor. Essa força appareceu,
representada e encarnada em homens e
mulheres, que ensaiavam nos seus salões o
prologo do grande drama que devia dar-se
nas ruas.
E foi então que o salão elevou-se á altura
de um poder social, influindo directamente
sobre as lettras e, por meio destas, sobre o
-138 -
espirita nacional. « O que nós actualmente,
diz Karl Frenzel, o que DÓS actualmente cha-
mamos sociedade c'ulta e opinião pt~blica, é
um invento dos francezes na época do 1'OCOCO.
Alguns circulas consagrados unicamente
aos labores do espiriLo deve ter havido em
todos os tempos, entre todos os povos de
uma cultura mais ou menos adiantada. De
bom grado representamo· nos pela phanta-
sia, com cores pomposas, a casa de Aspa-
sia, a villa r'l.e Mecenas, o palacio dos Medi-
ci, como asylos, das musas e das graças.
Mas quão diminuto ('ra o numero dos que
ahi se reuniam 1 A luz do espirito, que
sahia de tal meio, devia ao longe e ao largo
lançar seu brilho no futuro; immediata-
mente porém, quão estreito era o espaço
que ella esclarecia! A perfeita antithese
disto foi o influxo dos salões parisienses,
dos chamados bureaux d'esp?'it, no seculo
passado. Para a posteridade, mais apraren-
cia fulgida, do que calor, - tal como uma
chnva d'etoiles filantes-para os contempora-
.neos, um grupo de sóes, que suscitaram
um viver s~ti genel'is, de Cl',res variadas, e que
assim conservaram-no por longo tempo»" .(4)
E no pensar deste mesmo ensaista, duas
foram as causas qlH:; pruduziram taes socie-
dades e fizeram-nas centros de todos os in-
teresses espil'itnaes: o vôo do escl'iptorismo
ou da'nova classe dos chamados escripto-
res publicas, com o qual coincide a deca-
dencia da arte ideial, e o urgir do tel'cei1'o

(!~) Renaiswl!ce ltl!(l Rococo pag, '298.


-139 -
estado, com que tambem coincide a queda
da côrte, quer no poder, quer na dignidade,
Dest' arte a litteratura fez-se a propugnadora
de ideias novas. A intima necessidade, que
a impellid. á assumir uma tal l)osição, asso-
ciaram"se circumstancias externas; para os
escriptores tornara-se não só mais glorioso,
como mais proficuo, fazer guerra á desor-
dem e á corrupção existentes na egreja e no
Estado. Cada vez mais de~appareciaapossi­
bilidade de celebrar com decencia o rei e
sua regia vida, como Boil~au, Racine e Mo-
liére tinham glorificado as victor ias e as
festas de Luiz XIV; e ao mesmo tempo a
côrte cessara de ser um publico agradecido.
Neste meio surgiram os celebres salões dô
secula 18 em Fri:lnça, dos quaes o primeiro
foi o de madame Tencin,mãe de d' Alembert,
e á cuja frente figuravam, pela mór parte,
mulheres que, como disse humoristicamen-
te Voltaire, tinham sempre á seu lado dois
. ou tres escript.ores como ministros.
II
Em todos os tempos, o poder da mulher
como belleza, da mulher como alma, que
está.... 'Ltbi amat, se fizera sentir de um
modo despotico e irresistivel. Mas a mulher
como espirito, a mulher como intelligencia,
pensando, discutindo, criticando ao lado do
homem, e sendo ouvida de uma ~ociedade
inteira, foi entào que deu á conhecer a for-
ça do seu encanto. inguem ign0ra qual foi,
101' exemplo, a influencia do hetail'iato na
Grecia; e eu, por minha parte, nào hesito
-140 -
em declarar que prefe.ria hoje mesmo con-
versar meia hora com Phl'yné on Lais á en-
treter-me largamente com a baroneza de tal
ou a viscondessa de qual, onde o vicio não
tem attracUvos, ou a virtude é demasiado
plebea. Sem me dar ao trabalho de indagar,
de que natureza eram as relaçõ6s entre os
homens cultos de Athenas e a bella mitesi-
ana, discípula de Anaxagoras, nem de bus-
car saber se a sua l'ebabilitação bistorica
por esforços de AdoH .Schmidt não é do
mesmo quilate que a rehabilita .ão de Tibe-
rio por Adolf Stahr, ou a de Lucrecia Borgia
por Gregorovius; ou fosse eUa uma hetaira,
ou simplesmente uma sophistl'ia (5), o certo
é que o circulo da sua acção foi muito limi-
tado. Alguma cousa de semelhante, mas não
talvez de tão significativo,como ó circulo de
Stael em Coppet.
Na epocba do renascimento, e no seio
mesmo da aristocratica Venesa, historiado-
res e chronitas nos dão testemunho do
quanto a mul~~erconcorreu, com a SLla quota
de olhares, de seducções e de beijos, mais
preciosa que a quota de luz que o sol con-
tribuia, para a formação das genialidades.
As deusas da belleza, as Floms, de Ticiano,
eram copiadas ao vivo do modelo das Fran-
cescbina, das AnzeLa Zaffeta, das P2rinu
Riccia, das Bianca CapeUo .... todas pel'tMn-
cen tes, é verdade, ao derni-moncle de en tão,
mas todas dominando e dirigindo, por seus
predicados, o espirita de grandes homens.

(5) A. Schmidt. Epochen lwd Kastastro]JhM. pago 95.


-141 -
Porém era sempre a mulher funccionando
como espectadora, não como actora, no the-
atro ln vida inLellectll2.l.
N50 assim, CIllanto ao. bwreau.. cl'esp1'it do
seculo 18. Foi. ahi que a mulher, pela pri-
meira vez, introduziu-se na sociedade, e
transformou a arte, a litteratura e apropria
vida social. Já de ha muito, nas festas, nos
bailes, em todas as occasiõ6s solemnes,
proclamada rainha por graça de Deus e de
seus bellos olhos, por amor de seus encan-
tos, visiveis e invisiveis. a mulher não tinha
sído com tudo até então mais do que uma
soberana esLdctamente constitucional: rei-
nava-não govemc~va. Para que lhe advies-
se o governo espiritual da sociedade, era
mister uma disposição do tempo, exclusiva-
mente litteraria; era mister um crescido
numero de cabeças activas, zelosas, mas
tambem mediocres, que ao envez do que
I ra ticam os grandes espíritos creadores,
não produziam só comsigo e com sen genio,
mas procuravam animação para seus planos,
e empre estavam dispostos á se fazerem sa-
tellites de uma áama, que mostrava gosto e
dedicação pela sciencia ou pela arte. Ao
que releva acrescentar: - somente na
França podia dar-se llma tal inversão na
pratica da vida socIaL Os francezes são
sohretudo uma raça de conversadores. Um
cl'entre elles, e não do menos notaveis, já o
disse francamente :- Nous méditons peu,
mais nous causons beaucoup, et la conver-
sation excite autan t l' esprit que le férait la
méditation. La causerie, quand elle est
bonne et entre gens qui se valent, a même
-142 -
cet avantage sur la méditation, qu'elle est
plus exigeante et oblige l'esprit á plus
d' étforts--- (6).
Aqui ha sem duvida alguma cousa de hy-
perbolico e inexacto nes.te modo de apreciar
o talento da conversação, mas resta sempre
urna parte de verdade, que tem seu peso.
E' uma caracteristica do espirita francez,
tanto mais completa, quanto é feita em pou-
cas palavras,e estas escriptas Gom o intuito,
menos de uma critica, do que de uma apo-
logia. Sim, -- Saint Marc Girardin tem ra-
zão :- os francezes meditam pouco, porém
conversam muito, e s6 n' um meio social,
onde a loquéla se eleva á altura de uma
arte, familiarmente praticàvel, como a do
canto ou a da dança, poderia desenvolver-se
uma influencia directa da mulher sobre as
leUras.
Essa influencia se fez realmente sentir.
EUa pode ter sido, sob este ou aquelle ponto
de vista, desvantajosa e fatal; porém no
todo, encarada em sua complexidade, é in-
dubitavel qUl~ foi um avanço do espirita,
uma phase evolucional da cultura humana.
E não deixa de ser bem digno de nota que.
justa.nente no momento, em que os mem-

(6) Não é f6ra de proposito, diante deste byinno'á gar-


rulice. entoado por um fl'ancez, lembrar que para Grelhe
- uma das mais bellas eucarnações do espirito germa-
nico. - a aI'te da conversação era a antithese perfeita da
M'te da educação; pensamento e te que Hermann ReUner
(LiteratU1'yeschicltte 'I . 2. pag. 289) interpreta no sentido
de ser a conversação prejudicial, pOl' nelta entrar em
maior escala o humorislico e espil'ituoso do que o funda-
mental e scientiflco,
-143 -
bras da primeira assembléa constituinte,
em maio de 1789, se reuniam em Versailles
e Paris, fechavam-se os salões. E' que o sa-
lão, como uma especie de instituto exclusi-
vamente social, nada tinha que ver com a
politica activa, deixava que esta viesse edifi-
car BO terreno, para cujo preparo elle havia
concorrido.
Seria impossivel enumerar todos os circu-
las e sociedades litterarias que existiram
por aquelle tempo. Mas pode-se indicar,pelo
menos, seis, que tiveram para a litteratura
uma significação real: - o de madame Ten-
cin, cujo patrimonio passou ao salão ele ma-
dame Geoffrin, o da marqúeza du Deffand,
de mademoiselle Lespinasse, de madame
I-Ielvetius, e ,) salão de Holbach. Claudina
Tencin foi a primeira, que reuniu em torno
si, com uma f',erta regularidade, homens cul-
tos e illustrados. Fontenelle e Montesquieu
eram os principaes apoios do seu salão. Ao
publicar-se o Espirito das leis, ella comprou
duzentos exemplare , que distribuiu cum
os am igos; e fica va pouco satisfeita, quan-
do aquelles, que a frequentavam, não
fallavam no livro, que ella protegia. Duas
vezes por semana dava grandes jantares, em
que toma am parte não menos de cem cón-
vivas.
E este pbenomeno foi se repetindo nos
outros centros, que se iam formando, de
movimento e vida intellectual. Do salão da
Geoffrin, por exemplo,s9be-se que eram ha-
bitwfç homens como d' Alembert, Raynal,
Helvetius, Galiani, Marmontel e Diderot.
Um documento evidentissimo da sua influ-
~ 144-
encia, é que, quando Geoffrin, no anno de
1766, visitou em Varsovia o rei Estanilau,
a nobreza polaca recebeu-a triunfalmente.
Tambem na côrte de Vienna obteve eUa as
maiores distincções, e em Petersburgo a
imperatriz Catbarina convidou-a para jantar
com sigo.
Tudo isto é esplendido e grandioso, mas
tambem caracteristico do espirito de uma
epocba. E somente de uma epocha, não po-
rem do espirito particular de um povo. A
prova é que o salão, como eUe se consti-
tuira e funccionára no seculo 18, foi incapaz
de desenvolvimento. Os circulos de caracter
similar, que posteriormente appareceram,
como os da Stael e da Recamier, os circu-
los berllnenses da Herz e da Rahel, já foram
copias do velho modelo. Surgiram novás
relações no mundo social, a litteratura tor-
nou-se pensativa, e os bureaux d'espirit su-
miram-se como as estrellas que se apagam
ao clarão do amanbecer. O actu~.l Pariz
mesmo, com todas as suas pompas,com to-
dos os seus thesouros de delicias, nada offe-
rece entretanto, que se possa chamar uma
continuação ou ao menos uma nova forma
do~salões do seculo passado. Dir-se-hia que
a prosa dos parlamentos veio substituir a
poesia daquelles dinets e soupers philosophi-
cos ou artísticos, conforme eram dados
á artistas ou a philosophos, e arrancar da
mão das mulheres o sceptro do espirito,que
elias tinbam por tanto tempo divinamente
empunbado. A reaccão catholico-monar-
cbica, que inutilisou mais de um provento'
salutar da revolução, teve tambem este mau
-145 -
effeito; pôz o salão t\ serviço da egreja; e
aquellas g-randes almas femininas, que cul-
tivavam, como uma flor, a liberdade do pen-
samento, não foram até hoje substituidas
por outras de igual grandeza, mesmo por
que a sociedade moderna, de acordo com o
canon recebido, relega-las-hia para a solidão
das pTecitas, ou das emcmcipadas, como se diz
em phrase õrthodoxa.
O seculo "19 não fez render, é verdade, o
capital accumulado pelo seculo que o prece-
deu, AinDLlencia do salão sobre a vida nacio-
nal, no ponto de vista litterario,deixou-se re-
duzir por certo á um minirnurn insignificante,
que não occupa lugar proprio na historia
da litteratura dos paizes cultos, se antes não
é que o salào, tal qual existiu na epocda do
1'OCOCO, o salão organisado e sempre dirigido
por uma mulher, d'onde aliás as outras mu-
lheres eram arredadas, tornou-se uma cousa
inteirameute desconheccida. (7) Mas isto
nào quer dizer, - e aqui está o alvo princi-
pal do presente escripto, - não quer dizer
que o salão, como temo-lo actualmente, me-
nos brilhante, talvez, porém tàmbem menos
exclusivo e limitado á uma ceeLa ordem de
ideias ou de pessàas, que as representem,
seja destituido de qualquer influxo provei-
toso ao espirito litterario.

(7) Este phenomeno é singular: - nos salões de Ten-


cin. GeofTl'in, Quinanlt e ns (leUlais, não havia Outl'<lS
lIlulhl'n)~ Se 1l~1U t>lIas 1I1l~~IIJaS, carla uma nu seu c!lImi-
nio, Só a lIlill'qlWZ,1 dn Defralld abriu UUla excepção
á respeito de Julia Lespinasse; teve lJOl'ém de arrepen-
der-se, pois que esta ultima lhe foi infiel.
10
-146 -
Infelizmente porém tambem é verdade
que, no que tóca em particular á sociedade
brasileira, a vida elo salão ainda é uma cousa
amorpha e indecisa, se não antes uma cousa
anómala, cuja influencia, dada que se fizes-
se sentir,seria,em geral, n:1ais en torpecedora
do que favoravel á expressão das ideias.
Um homem ele salão e uma ?n-ulhe?' de salão, no
sentido usual da palavra, são duas grandes
banalidades, que não deixam todavia de ter
o seu lado interessante, o lado comico e
risiveL U canto e a dan<;a, o jogo e a male-
dicencia - são ainda por ora as unicas, ou
ao menos as occupaçães preponderantes do
salonismo brasileiro. lnvento a expressão
para mai s accentuar a estranheza do con-
ceitu". O que entre nós se conversa,é sarnen-
to por amor da propria conversação, que
deste modo, como alvo de si mesma, não
como meio de um fim superior, torna-se
pmo ruido e flllnaça inntil. Em 11m accesso
de orgulho nacional, madame de .'tael disse:
- a couversacão como talento só exbte em
França. -Pode ser. McLS uma cousa é 19ual-
monte l; rta, '011 pelo menos provavel: - a
conversação como vicio só existe no Brasil.
A guerra, a politica, os partidos, a ambi-
ção, o luxo, a moda,- diz Emerson em sua
linguagem imaginosa e poetica,- tudo isto,
são burros carregados de cestos c):leios de
fiares e fructos, para o erviço da mêza do
rei espil'ito. Mas esse rei, quan to á nós. é
alguma cousa de messianico : - estamos á
sua espéra. A politica) os partidos, o luxo,
a moda, a ambição e todos os mais asnos
ou camêlos, que formam a régia caravana
-147 -
do espirita, são, entre nós, outros tantos
senhores absolLltos elo entretenimento, onele
aliás o me, mo espirita só brilha pela au-
sencia.
Karl Frenzel diz CJue no, salões do secuio
18 em França, um Kant 'eria tão impossivel,
como um Sl1akspeare. Nos nossos circulas,
porém, é que mais exactamen te um Shak-
speare ou um Kant faria a impressào de
uma peça de artilheria no boucloir de uma
moça. Em parte nenlmma o homem tanto
se parece com o animal lue se nutre de
palhas, como entr"l nós, nos fócos aristo-
crat.icos da nossa sociedade, onde o homem
se mltre ele bagatélas. E' certo que a mu-
lher brasileira não se oppõe á lei commum
pela qual á chamada bel1a metade do genero
humano foi outorgado com largueza o dorrJ
ela conversação' e posto qLle della não se
possa dizer o que Shenstone clis e das fl'an-
cezas, --- que s<i.o capazes de arrancar fais-
cas de intelligencia até da cal eça de um
saneleLl, --- não oh 'Lante, seria injusLo sup-
por que nenlllll1l prov ito 11a Ú tirar do com-
mercio mental com o sexo amavel. Mas tam-
bem é fóra de dLl\'ida, ainda CJue bem con-
tristador, que-muita bôcca de rosa nào pon-
cas vezes e entreabre, para deixar sahir,
ele envolta com as graças e perfumes da
belleza, o alm iscar ela tôlice, Colerielge cha-
mava as mulheres cultas ele seu paiz --- as
zeladoras elo PUl'O ingle::.. l ão Iodemos or-
gulhar-nos de pos uir um semelhan te vestCL-
lato da lingua. Com tudo, insisto em rer
que, para um espirito alado, pal'a um e pi-
rito com g1'andeza, ba menos perda de tempo
-148 -
e mais occasiào de excitamento intellectual,
conversando em um salão, no meio mesmo
de um grupo de ingenuas, do qUA assistindo,
por exemplo, a qualquer sessão das nossas
grandes ou pequenas assernbléas parlamen-
tares. Quanto ao mais,mera questão de grau
cultural.
A influencia do salão, que é synonima da
influencia da mulher, não sendo perturbada
por factores estranhos, é em todo caso uma
força civilisatriz, um elemento poderoso da
viela espiritual.
- '149 -
"VII
UIU ensaio sobre a lenlaliva em maleJ'ia
criminal
I
Se 11a no di"eito penal uma theoria, que
tenha sido entre nós inteiramente descu-
rada, é a theoria da ten tat.i va. Já se vê qu ,
assim me pxpr;mindo, dou pouca impnrtan-
cia, porque pouca lhes descubro, aos Lraba-
lhus criminalistico-industriaes dos nossos
commentadores. Mas o facto é explicavel:
- uma theoria scientifica da tentativa pre-
suppõe alguma COLlsa de mais que a facLll-
dade mechánica de citar Avisos do governo;
unica sciencia, em que são profundamente
versados os jnrisconsultos da terra, salvo
uma ou outra excepção, tão rara, que se
perde e desapparece na sombra dos rabLl-
listas, cujo numero é legião. ('1)
O nosso codigo criminal, sem definir re-

(I) O predomínio rios Avisos lia Llecísão das nos as


rjue lões jurídicas eXprillll) mais do que uma falta de
ciencia da parle do juizes e tribunaes, -exprime a ill-
dole byzantiuamenle imperialí lica do "overno hrasi-
leiro. Se eu qlliz~ssc pL'elleler esw allolllalia Ú algum
anlecedente IJistorico, não poderia fazê-lo mell10r do
que relembrando as lei -I e 12 du Cad. ele I gibllS (1.11.)
-C0!1 tanlino disse: - Intel' requitatem .iu que inlerpo i-
lam InterprelaLionem nobis solis et oportel et licet inspi-
~el'O. E Justiniano accre centou ; - Si imperial is ma-
Je ta. causam cognitionaliler examinaverit, et parlibus
COmll1l1 con tilulis. senlenliam dixerit; omne omnino
judlce, qui ub noslro illlperio unt scianl "anc . e
legem .110n sotuID ilJi causal, pro qua prodllcla esl ecl
Blomnlbus similihlls. Ora, não é isto mesmo que se dLl
com os Avisos?
- '150 -
gularmen te a telltativa, deu todavia materia
para uma defini .ão, exprimindo os diversos
conceitos que entram na comprehensão da
ideia deflnienda. Assi111 diz eUe que tam-
bem considerar-se-lia crime ou delicto a
tentativa do crime, quando for manifes-
tada por actos exteriores com principio
de execução, que não teve effeito por cir-
cumstancias 'independentes ela vontade do
delinquente. Ma .esta de.fini ão, ou esboço
de uma tal, que se lê no artigo 2 § 2 do codigo,
abre caminho a mais de uma ponderação
critica. Deho de parte a especie de tautolo-
gia que se lhe nota, ou. seja um defeito pura-
mente redaccional, ou seja uma lacuna COIl-
ceitual, nas palavras :- a tentativa do crime,
quando fôr manifestada, etc., etc--. como se
para o legislador houvesse U 111 oLltro concei to
da tentativa, que não o daqllella, por elle
caracterisac1a pelo modo supra indicado.
Não é isto, porem, 1ue se presta ú analysee
á censura. O [ue, á meu ver, vicia a ideia
que em geral forma mos da ten ta tiva, segun-
do o codigo, é o ressabio da, fonte, em qlle
ella foi bebida.
Ninguem ignora 1ue o cocligo francez nos
serviu de guia em muitos pontos da no sa
lei criminal. Entre outros, o conceito da
tentativa é o mesmo do artig02 do GocZe pénal,
cuja revisão de 28 de abril de '1832, pouco
tempo depois da confecção do codigo brasi-
leiro, tirou as expressães- actes exté?'iew's et
uivie- qllenósaliás ainda hojem.antemos.
E com eHas ficaram tambem a ominosas pa-
lavras- ]J1'incLpio ele execução-, que não são
menos vagas que as primeiras, e dão lugar
-151 -
á muitos erros de applicação (2). Tuno devido
á influenciá da lei franceza, que entretanto
não se fez sen til' somente na lei brasileira,
mas em quasi todos os codigos dos paizes
civilisados, e estendeu-se, o que mais admi-
1'3., até o Stmfgesetzbttch do imperio alLemão
Cart 42), pãsto que a phrase-p1'incipio de
execução-(Ilnfang de!" Attsfühl'ung) já venlla
modificada pelo complemento -do crime ou
delicto tentado (dieses Tlerb1'echens oder Tl81'ge-
hens), que confere á ideia da cousa um ca-
racter mais concreto e accentuado.
Dentro do circulo mesmo que o codigo
brasileiro traçou á tentativa, se deixálevan-
tal' mais de uma questão importante. Alem
da eterna controversia, ú qLle dão pretexto
as· mencionadas pbrases- actos extel'io)'es
com pl'incipio ele execução, - sllscita-se a
questào do u,1')'ependimento, a da pl'0pl'iedade
ou imp?'opriedaele dos meios, bem como da
propriedade ou impropriedade do objecto, e
ainda olltras que se prendem á theoria da
concurrencia 1'eal ou ieleial dos deLictos . .TLll-
gando-me dispensado de entrar em largas
considerações sobre os muitos disl aralm;;,
occasionados na pratica j udiciall ela imI os-
sibilidade de caracterisar ex.actamente o que
seja um p1'inci]1io ele e.,CeGaçâo, q!te não teve
effeito P01' cÍ1'cttmsta ncias independentes ela
vontade elo delinqlwnte, bitola esta que não
se acommoda.á todos os crimes, resultando
dahi que muitos delles, onde aliás é possivel
uma tentativa, são expostos pelos nossos

(2) Haebel'lill. Gal'iclltsscw.l. 1875. pag.020.


-152 -
commentadores como não admitindo con-
ceitualmente a ideia de uma tal,- eu passo
á occupar-me dos outros pontos.
O arrependimento, que pode apparecer
por occasião de um delicto não consumma-
do, e que tem importancia j Llridica, não é o
a1'1'ependimento do peccado, como porlera crer
qualquer jurista theoLogo, mas o aI'Tepe·ndi-
menta do c1"ime, para o qual não ha mister de
virtude; o aJ'Tepenelimento de {eGeto, que se
traduz por actos oppostos á consumação elo
deLicto, ou quando este depende de um re-
sultado particular, ao apparecimento desse
resultado. Mas isto estará contido na dis-
posição do codigo? Eu creio que sim; e
nos proprios termos da lei encontro a prova
de meu asserto.
Por quanto, se o delicto intentado, porém
que não teve effeito, requer [ue não o tenha
tido por circumstancias independentes da
vontade do delinquente, é claro que. a con-
tra1'io sens1L, quando aqueLLe effeito nào se dá
por força de circumstancias dependentes
dessa vontade. a tentativa não existe. E nào
existe, justalI'ente por lhe faltar, na hypo-
Lhese figurada, o presupposto psychologico
de um acto de que1'el' o crime, como eUe foi
concebido, em Loda a sua plenitude.
Todas as vezes que, na esphera criminal,
o objectivo e o subjectivo nào se cobrem,
não se ajustam em todos os pontos, o crime
está alterado na sua unidade e totalidade
jurídica. Esta incoBgruencia pode dar-se
de dois moelas principaes: ou o que1'ido,
elemento subjectivo, vae alem do acontecido,
elemento objectivo; ou este alem elaqnelle.
-153 -
Se o phenomeno, que se quiz, é mais du que
o phenomeno, que se deu, ahi têmos a tenta-
tiva; se porém o facto ultrapassa o circulo
da vontade, ahi temos um desses muitos
casos de acções culposas, desde a culpa levis,
até a culpa dolo dete?'minata, com todas as
suas differenças de grau e intensidade.
Disto resulta que não !la, nem pode haver
tentativa culposa. Na tentativa o dol'l.~s é es-
sencial. Já se vê pai que, nestas condiçõe ,
o arrependimento, isto é, a interrupção da
serie dos momentos successivos elo crime
por vontade do agente, desfigura o caracter
da tentativa, e esta deixa de existir.
Expliquemos. A dispára contra B, seu
inimigo, a quem esperava para matar, um
tiro ele rewolver. B cae ferido, mortal-
mente ferido, e pede soccorro' mas nin-
guem ha que possa acudi-lo. O lugar é de-
serto, e a bora já avançada. A dirige-se para
e11e, ainda de rewolver em punho, e encon-
tra-o lavado em sangue, mas vivo e capaz de
resistir á morte, se prestado lhe fôl' o neces-
sario auxilio. O criminoso ainda tem á sua
disposição meia dnzia de balas, que I adem
corrigir o erro da primeira, mas não faz uso
dellas; pelo contrano, atira para um lado
o seu instrumento homicida, toma nos
braços o ferido, que leva a sua propria casa,
onde lhe proporciona os meios de salvação,
que são efficazes. E' admissivel nesta hy-
potbese a permanencia da tentativa. A affir-
mação é elifficil, porque repugna a indole da
justiça, mesmo ela justiça fallivel, em qLle
se apoia a sociedade humana.
Um outro exemplo :-0, creado de D, en-
- '154-
venena a: corpida ou bebida, de que este
vae servir-se. E com effeito D haure o licor
intoxicado, sentindo logo hpÓS um mal estar
estranho, mas sem ter a mais vaga suspeita
do veneno. O mal augmen ta, e elle chama
por C, que nesse momento entra em casa, já
acompanhado do medico, a quem foi con-
fessar o acto e pedir que vies e soceorrer a
seu amo. O remedia é applicado em tempo,
e o mal desapparece. O arrependimento,i to
é, uma serie de factos partidos da vontade
do agente, obstou que o crime chegasse á
sua ultima phase, e isto qUando o objecto
do mesmo crime ainda estava ao alcance do
sujeito dentro das raias da sua actividade.
A tentativa, que é o acto volnntario ma11o-
grado,desapparece por tanto, ab orvida pelo
crime que fica, p'eto que ha ele criminal-
mente onsummado. ou seja o ferimento,
ou outro qualquer delicto, conforme a hypo-
the e dada (3). .
Os exemplos illustram, e en quero ainda
lançar mão de um outro t.irando-o de pro-

(3) e no exemplo do 'uvenenamenlo, cujo etreito'


são evilado p lo proprio uv neuador. o prejuizo que
por ventura obrevie 'se ii aú le da vi 'Lima ai va. não
•el'ia punido entre nó , como U111 crime á parle. \ culpa
do no, o codiCTo, que Ó reconllf'ce a po ibilidade de
uma altera ão rimino a do orgaui mo humano por
meio de iu tl'llmeuto corlant perfurante e contun-
dente". Deli to conll'a a aúde em gel'a! não e~i tem
para elle' e tle ['arte quem ([ner que miui Ira e maJi-
cio aru Ilte á oulTem I1ma b lJer3 CT mIaI, qu o puze se
de cama por mai d um m z, nào commeHeria um cri-
me poi o facto, como co tomam dizer, não foi previ lo
pelo codigo I Que bOa' lei temo uó 1. ..
- '155-
posHo da supposição de um dos crill.les, em
que os nossos exposltores, isto é, compu-
tadores de penas para gSO e g11-iC~ dos ... .i uizes
de. direito, não admittem a tentativa. Seja o
delicto subsumido no art. 224 do codigo
criminal; e para melhor e)(empli5cação ap-
pliquemos á llma velha legen la [radesca a
medida do direito. E' bem abichl. a historia
do fervoroso devoto do nome de Maria, que
namorando uma bella freira, poude conse-
gnir penetrar até o sancta sanclol'um da cel-
lula virginal, até il gruta mystica da fada,
noiva de Jesus; mas abi chegando, e uando
a beU za acabava de saeudir de si os habitas
gros eiras, produzindo-lhe de subito a
ly,eSma impressão alfa tiva que o arrancar
violento do cortice de um tronco de sandalo,
elle sabe do s u nome-:- é o nome que ell.e
respeIta. Recúa do seu pLano. A tentativa
foi interrompida demotn prOL rio do agente,
e como tal. não encerra criminalidade.-
Resta porém á. saber, e delictos desta ordem
são realmente susceptiveis de um conatus
proximus, corno diziam os velhos jurista' 1a-
tinjsantes. _
Bem podia esculherpara a minba hyl. othe-
se, em vez do artigo 224, o artigo 219, Mas
não sei, se soror 1aria; que dou como
menor de 17 annos, com os . eus bonitos
dentes, tão symetricam n te emparelhados,
como as touches branca de um teclado de
piano novissimo, com os seus alvo braços
nús, que valem no diametro e no ) em ta-
l;~ado do marmore as pernas de muitas
outras, ainda tem, todavia, algum .floreo
botão á abrir; considero-a pois como sim-
-156 -
plesmente honesta, no sentido vulgar da
expressão. E neste presupposto, admitta-
mos agora rue o seu é1 mante não fosse um
typó de devoção, poróll1 de libertinagem; e
que no ardor do seu donjuan-ismo em vez de
encontrar, como diz a legenda, o braço do
Cl1risto de madeira, que se estendesse para
salva-lo do perigo, em recompensa do res-
peito ao santo nome de sua mãe, encontrasse
logo ao colher o primeiro beijo da hostia
risonha a voz do gendanne, que lhe gritasse
atrús, em florida linguagem nobil iarcl1ico-
pernambucann :-estd preso, cab1'a!- e a fi-
gura da velha abbadessa, que dando bons
conselhos, na impossibilidade de dar maus
exemplos, dissesse, com as mãos erguidas
pará o ceu: graças á Deus, qu~ pudemos
chegar em tempo de obstar a consummação
do saúrilegio na casa do Senhor! Não dar-
se-hia então uma verdadeira tentativa do
crime indicado no art. 224! Não seria o pri-
meiro beijo um Gommencement d'exécutíon
do respectivo delicto, no sentido do GocZe
pénal e do seu imitador, o codigo brasileiro!
Ou seria simplesmente um (tcto prepa1'at01'io,
com todo o valor ethico e estlJetico, mas sem
valor j midico? De neuhum modo hesito em
sustentar a ideia, que parece inacceitavel,
isto é, a ideia dcl tentativa, e neste caso a
possibilidade tambem de um arrependimen-
to, que a torne. impunivel.
Insisto neste terreno. Com rasão diz
Berner :-~« Se quizessemos tomar a exigen-
cia de um p1'incipio cZe execução no sentido
absolLlto de uma exigencia daquelLa acção
-principal, que funda a existencia do facto,
-157 -
vel'-nos-hiamos obrigados á attdbuir ao le-
gislador um sem numero de disparatf:Js. POI'
exempLo: alguem projecta um homicidio; di-
rige-se ao lugar proprio; carrega a sua arma,
assesta-a contra a victima, engatilha e-d8
repen te um ou tro põe a mão no feixe da
arma e impede o tiro, isto é, a acção preci-
pna, que fLlOda a existencia do facto. Será
criveI que o legislador tenha querido a im-
punidade de semelhante acto? » (4).
Nas mesmas condições se acham as hypo-
theses dos arts. 219 á 224, dos quaes, como
já notei, 1la quem não admitta uma tenta-
tiva, nos termos do direito climinal. Suppo-
nhamos que Porcia, a be11a filha da imagi-
nação de Musset, estivesse na idade legal
la seducção criminosa, e que o seu amante.
o pescador DaHi, tendo com el1aaquelle fatal
encontro nocturno, no momento em que
por ventura, semelhante ao misero impera-
dor-besta-fera, que se deliciava na arena do
irco romano em cheirar as carnes palpitan-
tes das bel1as mart rres nuas, amarradas em
postes, ingtbina invadebcbt,et cum affatirn desCE-
visset, mas antes de qualquer acto ulterior,
fosse agarrado pelo brdço de Bonorio, o
inditoso marido, que com elle não se duella,
mas o trarluz perante a justiça: qual seria
neste aso o crim do seductor (5)? Haverá

('~) Grundsul::;e des jJ,'eussiscllen Sl1'a{l'ecltles, pag. 7.


(5) O meus joven leitores não se riam, e o velhos
nüo e escanda Usem ele certa - expressões menos apro-
priadas á leituJ'U feminina, que tenho aqui empregado.
Para o puro tudo é puro; e não conheço maior pUl'eza
qu a do espirita scienlifico. Se a anatomia e a physiolo-
- 158-
qLlem seriamente afflrme que nenhum?
Nem se diga, para eludir a questão, que
dado o facto entre nós, não conviria mesmo
puni-lo, pela desproporção enorme entre a
gravidade do delicto e a insignificancia da
pena (6). Isto não altéra a theoria, nem
prova outra cousa se não a pobresa da nossa
legislação penal.

gia, por exemplo, podem fallar com lodo o seria de parles


do corpo LJumano, que se designa pejo mal cabido epi-
LheLo de obscenas, sem corarem de pejo e esconderem o
rosto, não vejo rasão paI' que o direito nào deva gozar do
mesmo indulLo.
(6) Dois a nnos de desLerro para fóra da comarca, no
maximo \.. , Contam qne um sabia eSll'ang'eil'O, não se
sabe qnal, di se do codigu criminal brasileiro Ler sido
feito por l,b1n laclnio, e nDl ladrão sem honra, Esta pala-
vra nunca fui proferiria por sabiu algum, mas ha nella
um fundo de critica sensala e jnsta, que lama a cousa
verosimil. HesLa 'omente á ohserlraL' que o codigo ainda
pUlle menos o crimes conLra a Ilonl'a, do qnu contra a
propriedade, Para convencer-se disLo, ba La ler e medi-
taI' sobl'e os arts. 222 e 274., E como esle faclo serve á
minha velba Lbese rIa miseria brazileira, qne desejo bem
conhecida do ll1unrlo civilisado, ell o exponho na Iingua
da scienci:l :-lch habe schon einl1lal gesagL, in tlrasi-
lien ziebe man der Ebre daR Leben, dem Lebtln aber das
EigeuLbum vor. Nichl olme Beschãmllng- muss ich e be-
!cenueu ; aber die Thalsacben reden. Hier ist ein Beweis
dafür: oach dem bra iliauL bell SLrafgeseLzbllch wird
der ver nchLe Haub (arl. 271.) mil eler elben Slrafe bu-
slraft wie der 1'0llendeLe, wãhl'end hinsicllllich der Nolh-
zuchL d r Versuch (art. 223) eine um 15/16 mindere
SlI'afe erãhll ai das vollendele VerLJrechen (arl. 222).
Das i Lzwar zu \\'enig, aIs dass iciJ mich di.1I'i.1uf basiren
kõnnLe, um Bra ilien in die Acbl der ch'ili irten Welt
zu erklãren' aber doch liget in dia el' unrl andel'lm
Geselzbe LimmLlogen de Kai el'l'eich so eLwa \Vie ein
Stiick Nationalp ychologie, das nicht ullberiickslchtigt
zu lasseu isto
-159 -
o exemplo de Porcia, a quem o poeta figu-
ra como conjuge, dá lugar á uma questão
accesso?'ia, que eu mesmo quiz provocar.
Se a mulher honesta, de que falla o art. 224,
é mulher casada, qual o modo de eonciliar
a concu?Tencia ideial desse artigo com o 250?
Recorrer-se-ha por ventura ao principio da
absorpção das penas, que são maiores neste
do que naqueJle, á fim de não poder ter
lugar a puni ão, se não nos termos do art.
253, não obstao te a menoridade de 17 annos
e com ella a presuposição de um espirito
ainda não bem reflectido, que a lei quiz pro-
teger? Basta indicar o problema; não cabe
aqui tratar de resolvê-lo.
Voltemos porém ao primeiro ponto. O
que em geral difficulta a com prehensão da
tentativa impunivel pelo arrependimento, é
o modo err011eo de formar ° seu conceito.
De ordinario conrelJe-se a tentativa, não
como um todo comI lexo, que abrange em
si uma serie de actos po 'siveis para a con-
summação de um crime, que todavia não se
consnmma, porém como alguma cousa de
concreLo e deLerminado, que não tem mo-
mentos diversos, que se exgota logo no pri-
meiro acto frustrado. Dahi a illusão em que
se labora, supponclo-se; por exemplo, que a
vontade crimjnosa manifestada pelo indivi-
duo, a quem falhou o primeiro tiro do seu
rewolver, não acertando em cbeio no cora-
ção da victima, não pode mais ser neutrali-
sacla por nm acto qualquer no sentido de
apagar a t.enta1iva. Isto porém é facillimo de
refutar, e 1 01' uma reclucção ad absu1'dum.
Com ef1'eito, se o ambito da tentativa não
-160 -
fosse até onde começa a impossibilidade de
acção da parte do delinqnente, se ella se
desse por fechada e conclnida em cada acto,
que encerrasse um principio de execução,
teriamos que, no exemplo Ogurado, suece-
dendo que A fosse errando, nnl após ontro,
todos os oito tiros do seu rewolver, seria á
final criminoso de oito tentativas, ou mais
ainda, conforme a riquesa de mólas do ame-
1'icano? Mas isto é inadmissivel.
O que só ha de duvidoso na questão do
arrependimento, é o modo de ponderar o
motivo que o determi na. As circumstancias,
que dependem, ou não, da vontade do agen-
te, podem ser puramente internas, de natu-
resa psychologica. Ora, o direito criminal
não conhece o principio estoico -coacta vo-
luntas, sempc1' vol'Ltntas. Se a coacção moral
é capaz de fundar a irresponsabilidade do
dgente coagido (art. 10 § 3 do cod.), essa
mesma coacção deve ter força para tirar o
merito juridico ao arrependimento do crime
iniciado, mas não acabado. Assim aquelle
que, ainda podendo proseguir nos actos
conducentes á realisação completa elo de-
licto, recuasse do seu plano, não por um
livre impulso da vontade. mas pelo medo
de um phantasma, que então se lhe afigu-
rasse tetrico e ameacador, não deixaria de
ser responsavel pela tentativa dada. Eu
imagino alguma cousa de semelhante áquel-
la terrivel scena do Monge ele Cistel" em que
Va::>co assassina o homem que se int.erpuze-
ra entre elle e a estrella da sua felicidade-a
mulher dos seus amores ;- mas supponho
tambem que o assassino amante seja um
-161 -
espirita prejudicado por uma ferrenha edu-
cação religiosa, e que assim, ao vibrar a
primeira punhalada, ouvindo tocar á Ave
Maria, que nunca ouviu na sua vida, sem
descobrir-se, rezar e pedir á Deus perdão
dos peccados do dia, sinta-se preso de um
estranho terror, que o faz cahir de joelhos
aos pés do inimigo, ferido no peito, mas
vivo e com forçabastante para uma reacção,
entregando a este o punhal e pedindo-lhe
que se vingue... Se o offendido não morre,
e na hypothese d'J que o offensor s6 deixou
de proseguir na sua obra por effeito de um
excesso de bigoterie, que matou-lhe a vonta-
de, não hesito em affirmar que um tal arre-
pendimento não tem significação juridica;
a tentativél permanece (7).
A historia nos ministra, neste sentido,
um importante exemplo. E' o do escravo
cimbro, hussardo de Minturna, qu.e foi man-
dado assassinar o grande guerreiro, inimigo
da aristocracia romana. O mandatariu as-
sombrou-se diante dos olhos faiscantes do
seu antigo vencedor, e a machadinha cahiu-
lhe das mãos. aO perguntar-lhe o general
com voz imperiosa e atterradol'a, se elle era
o homem capaz de matar n Caio Mario I ? ...

(7) Um dos pontos que, neste dorninio, mais urge es-


tudar, é a Psychologia dos motivos. A sciencia tem ne-
cessidade de reunir ao seu corpo de doutrina alguma
Cousa de no\'o, que e poderia r1e'ignar pelo titulo de
Theol'ia da motivaçlio em malel'út criminal; theOl'ia que
ainda não foi estabelecida, e de que apenas e:dste, que
eu saiba, na respectiva littel'atura, um pequeno en aio.
o escripto de Holtzendol'lf - Psychologie des Mordes, -
que é digno de estudo,
-162 -
Applicando-se á este facto a medida do di-
reito, é fóra de duvida que a tentativa de
mort.e por parte do cimbro não podia extin-
guir-se pelo Heu arrependimento involunta-
rio, devido somente ao medo que lhe incu-
tia, como se fosse um ente sobrenatural, o
terrivel adversaria de 8y11a.
O que de perto ainda interessa ao presen-
te assumpto, é saber até que ponto o recuar
do agente, no caso de uma concurrencia de
criminosos, aproveita ao mandante, ou á
qualquer outro membro da societas delicti. A
questão não é das menos importantes; mas
discuti-la aqui teria a desvantagem ae levar-
nos muito além do plano traçado ao meu
trabalho. Passemos pois á outra cousa.
II
Antes de entrar na questão ulterior' da
prop?'iedade ou imp?'op?'iedade dos meios e do
objecto do crime, importa ainda, com rela-
ção ao assumpto precedente, elucidar um
ponto duvidoso. E' o de saber, não só se é
passiveI a tentativa por ornissão, como tam-
bem, uma vez admittida, se é passiveI, e em
que consiste o arrependimento de uma tal
tentativa.
Que a tentativa dos delictos cornmissivos,
que se perpetram ornissivarnente, é logica-
mente concebivel e practicamente realisav~IJ
alguns exemplos bastam para provar. ASSIm
no caso figurado á pago 55 destes Estudos,
não verificada a morte do recem-nascido,
por vir em seu auxilio uma circumstancia
alheia á vontade da mãe delinquente, a ten-
-163 -
tativa por omissão é incontestavel. Mais
ainda: supponhamos que Pedro, homem
casado)já tem a experieocia feita por treí ou
quatro vezes que um desejo de sua mulher,
no estado interessante, não sendo logo sa-
tisfeito,produz o aborto) e com este sempre
um decrescimento de saúde. Já ouviu
mesmo do medico a :::;ingular declaração de
que, se o phenomeno repetir-se, a morte é
probabilissirna. Porém elle mostra-se surdo
a ta] observação. A jovem gravida insiste
agora em querer satisfazer um dos seus ca-
prichosos appetites; mas Pedro responde·
lhe com a indifferença, e não só deixa de
acudir ao seu appello, como tambem previne
e ordena a creadagem que nada façcb. A habi-
tação é solitaria; a doente está prostrada.'
A' isto .i unta-se a particularidade de haver
Pedro escrlpto á sua amante, dizendo-lhe
em termos claros: desta vez, creio eu, fi-
caremos livres do embaraço que se oppõe á
nossa felicidade. A in feliz espo 'a aborta em
fim, e pouco falta que snccnmba, o que
ter-se-hia dado, ú não ser a intel'po ição de
cil'cumstancias estranhas, que desmancha-
. ram o criminoso planr) de Pedro. Seme-
lhante a~to será .i Lll'idicamente inapreciavel?
E se não é, como me apraz assegura-lo, qual
então o seu caracter, senão de uma tentativa
de delicto com missivo , que se commette
por omissão? A linha que, neste exemplo,
separa o dominio ethico lo juridico. é tão
uelicada, que para muitos será difOcil per-
cebe-la e admitti-Ia Imaginemos um outro
facto: o aiguillew' de uma machina de vapor
se deixa corromper por dinheiro, para que
-164 -
em uma hora prefixa, se esqueça do seu
mister, á fim de produzir um desastre de
ante-mão calculado; e com effeito, quinze
mil1L~tos antes, elle embriaga-se, de accordo
com o plano dado, pará bem dissim ular o seu
desleixo inteneional; mas o facto não chegaá
consummar-se, graças á descoberta do con-
l'.Jio, que é confessado ] elo criminoso,
obstando-se assim que o Crime se realise.
Como julgar-se um facto semelhante? Reco-
conheço que, na practica, a apreciação juri-
dica de phenomenos de tal ordem é de uma
enorme difficuldade; mas nem por isso a
theoria deixa de ser, no fundo, verda-
deira. (8)
Entretanto busquemos torna·la mais com-
prehensivel. Um medico tem dois doentes
em uma mesma casa, A e B; mas de tal
arte, que o que faz bem á este, pode trazer
a morte daquellle. O medico é peitado para
envenenar a A; neste intuito elle pres reve
á amb03 os doentes medicamentos seme-
lhantes, tão semelhantes, que, sem muito
cuidado, podem ser facilmente confundidos.
De proposito .e11e deixa de observar o perigo
de tal confusão, que não trazendo maL al-
gum á B pode com tudo ser fatal a A, que é
o que elle tem em mira. E assim acontece:
o enfermeiro troca os remedios, ministran-
do á um o que era destinado para o outro;
A sente-se peior' a curiosidade desperta:
reconhece-se o envenenamento, bem como

(8) Ernst Rubo. Kommental' úbel' da l'l'a{ueSelzbuc/l,


pago 240.
- 165 -
a causa que o determinou, podendo-se-Ihe
porém obstar as ultimas consequencias,
mau grado elo delinquente. E ha aqui outro
delicto que não () da tentativa ele morte,
omissivamente perpetrada?
Ainda uma vez importa observar: muitos
exemplos, que tenho aprcesentado em favor
da theoria em discussão, bem podem pare-
cer estranhos a certos olhos d.esarmaclos de
instrumento logico e energia racional. Mas
é mlster não perder de vista q.ue toda the-
oria consiste em um traçamento de linhas
rectas; não é possivel. indicar á priori as
curvas e entrelinhas da reaJidade,que é sem-
pre mais comprehensiva que o mais vasto
ambito das pesquisastheoreticas.
Nas hypotheses figuradas de tentativa por
omissão, o arrependimento é tão faci! ele
conceber, como nos crimes commissivos
propriamente ditos. O que por ventura se
possa oppôr, dirige-se, não ao arrependi-
mento, mas au conceito geral do delicto p01'
omissão; e este, por sua vez, só encontra
opposição da parte daquelles, que não se
dão ao trabalho de pensar, nem admiUem
que além do estreito circulo das prelecções
catbedraticas existam outras e mais impor-
portantes questões do direito criminal.
Quem se habitúa, v. g. á estudar problemas
como e"te: «o casamento do complice com
a estuprada produz o effeito do art. 225?»
e a tê-los na conta de cousas capazes ele
confundir doutores, perde o senso das gran-
des questões j uridico-penaes. As ideias afei-
çoam o cerebro; e se ellas são acanhadas,
acanhado fica o orgão que as contém, como
-166 -
uma luva de homem, engelhada e acommo-
dJdaemmãosinl1a decriança. Dest'artenão
admira que aquelle conceito nilo entre fa-
cilmente em todas as cabeça , e que até
haja quem julgue poder combatê-lo, appel-
lando para o codigo criminal, que fa1la so-
mente de accão ou omissão voluntaria cón-
tra?'ia ds leis penaes. Este modo de refutar é
um testimonium paupe1'tatis, é um symptoma
de insufficiencia da valvtda intellectual, e isto,
ainda mesmo que o refutante seja algum
professor da maleria. O codigo faHa, é ver-
dade, de acções voluntarias, contrarias ús
leis penae', isto é, .delictos commissivos, e
de omissões volun tarias, con trarias ás leis
penaes, isto é, clelictos omissivos; acções e
omissões previstas e ameaçadas com penas.
Até ahi nenhuma clLwida. Mas a questão
vem de outro lado; ella consiste em saber
se na categoria das acções podem compre-
l1ender-se phenomenos, que se dão de um
modo negativo, porém que t.razem todos os
caracteres positivos do rime. Assim, por
exemplo, mata?' alguem é lJma acção contraria
as leis penaes' mas pergunta-se: não é pos-
sivel mala?' cLlguem., isto ó, produzir volun-
tariamente o effeito chamado homicíclio por
meio de uma omís. ão? Eis o ponto vacU-
lan te, lue a sciencia trata de firmar, que dis-
cuti no meu escripto, e lue entretanto en-
canecidos doutores não compr benderam! ...
Eu os lastimo; e entrego-os, de corpo e
alma, ao esquecimento que os espera.
Para rIne se POSSfl neste a sumpto, com-
bater a minha lembrança, considerando-a
exotica e inacceitavel, é mister provar tres
-167 -
cousas, impossiveis de provar: 1° que á
sciencia do direito criminal não se occupa,
nem liga importancia á tal questão; 20 que
a observação da vida social não dá
testemunho de factos criminosos, que
tenham por causa uma omissão voluntaria;
;1° finalmente que, embora seja admissivel
a negligencia cttlposa, como temo-la presup-
posta pelo art. 19 da lei de 20 de setembro
de 187'1, não é todavia psychologicamente
concebivela negligenciadolosa,a non--chalance
calculada para attingirum alvo,por exemplo,
a morte de um individuo, ou outro qualquer
phenomeno criminoso. Em quanto pois não
se me prcwar tudo isto, - e eu quizera que
Deus me concedesse viver até o dia em que
tal prova fosse produzida, - tenho direito
de rir-me da ignorancia dos sabios crimina-
listas do paiz, cuja intuição scientifica é
igual, bem que mil veze menos poetica, á
intuição geographicado velho camponio,que
nunca sahiu da sua choça: além da serra
fronteira, por detrás da qual elle vê todos
os dias levantar-se o sol, não ha mais nada,
se não ~'einos encantados ou terra de mouros.
Voltemos á tentativa. Se esta consiste na
practica de nm acto, que já por si constitue
um dos elementos objectivos do crime, e se
esse acto, como todos os outros que podiam
seguil-o, necessita a applicação de meios
para chegar á um fim qt~erido, é claro que
uma vez admittida a improp~'iedade de taes
meios, o fim é inattingivel, isto é, o delicto
não p6de dar-se, e como tal é logicamente
inconcebivel a sua tentativa. Um principio de
execução involve a possibilidade dessa mesma
- 1,68-
execução. Um crime impossivel desde o
primeiro momento da sua genesis rião é um
crime. O legislador pune somente crimes
?'eaes e o começo da realisação ele crimes pos-
siveis. Deixemos porém de tbeoretisar, e
vamos á exemplificação. Escolho de indus-
tria um delicto, á cuja tentativa, ou á uma
das suas formas, o nosso codigo consagrou
artigo especial ,_o é o aborto. Oartigo 200, com
effeito. impõe penas ao acto de.... «fornecer
com conbecimento de causa drogas ou quaes-
quer meios para produzir o aborto, ainda
que este se não verique». A expressão com
conhecimento de causa é ahi syn onima do conhe-
cimento do mal, de que falia o art. 3, isto é,
significativa do dolus. As palavras, porém,-
ainda que este se não ve?'ifique - presuppõem
sem duvida a possibilidade da verificação,
que entretanto foi obstada por circumstan-
cias independentes da vontade do agente.
O contrario seria absurdo. Se alguem por
eng'ano,ou P9r ignorancia,ministrasse á uma
mulher pejada, com intuito criminoso, uma
substancia inoffensiva, incapaz de produzir
qualquer alteração na economia organica,e
muito mais de fazer 8xpellir o fcto,não com-
metteria uma tentativa de aborto, porque
este, desde o acto pelo qual o pretenso pro-
prinador lançou mão da droga inefficaz,tor-
nou-se impossivel; não houve principio,
nem mesmo preparo de execução." A' insis-
tir-se, em tal hypothese, na ideia da tenta-
tiva, sob O pretexto de que, em todo caso,
existe abi uma intenção malevola, uma von-
tade criminosa, a logica exige que se faça
disso applicação á todos os rhenomenos do
-169 -
genero ; e então teremos um sem numero
de consequencias irrisorias, não só no que
diz respeito á impropriedade dos meios,
como tambem no que tóca a impropriedade
do objecto. Deixo ao cuidado do leitor fi-
gurar os casos em que o lado comico da
ideia se torne bem saliente.
Nenhuma duvida sobre este ponto: o co-
nat'/.~s do crime impossivel pela insufficien-
cia dos meios não tem caracter criminal.
Um homem que assesta, no proposito de
dispara-la contra outrem, uma arma des-
carregada, qualquer que seja o seu impeto,
a sua sêde de sangue, não é réu de tenta-
tiva, por que o meio, isto é, a arma não- se
prestava ao fim quet'ido; o crime, assim pro-
jectado, não podia ter um começo em ne-
nhum dos momentos successivos ao da sua
concepção.
Imaginemos o seguinte passo. Um indivi-
duo casado está prestes á casar-se segunda
vez. Sua mulher é Zulmira, sua noiva é
Adalgiza. O matrimonio vae celebrar-se;
o altar espera os nubentes. Ei-Ios que che-
gam : tudo I.'iso, luzes, flores, e o lnais que
soe haver em semelhantes casos. No mo-
mento porém em que o sacerdote vae collo-
cal' sobre a da noiva a mão do noivo, ouve-
se um grito como que de pessôa afflicta e
angustiada. A turba attonita volve-se para
. o lado, d'onde elle partiu, e divisa então
.l,. quem o 'deu: uma mulher de feições lindas,
; ': p.orém nubladas pela tristeza, com o desali-
l).'ho da fadiga de uma longa viagem. E' Zul-
mira, que atravessa a multidão e apontando
para o nubente, que tremulo a contempla,
- 1'70-
diz em tom de vingança: este homem é
meu marido! Todos os rostos cobrem-se de
vergonha: o casamento não se realisa. Tal
facto, que é verosimil, não tem todos os ca-
racteres de uma tentativa da polygamia, in-
criminada pelo nosso- codigo? (9)
Mas figuremos que nesse momento extre-
mo, ao rasgar-se o veu que encobria a frau-
de do marido ingrato, e quando o adio geral
já ia se accumulando sobre a cabeça do cri-
minoso, para exigir a sua punição, a bella
Adalgiza é a unica pessôa que nào se mostra
incommodada ; pelo contrario parece achar
prazer naquelle espectaculo, que os outros
não toleram. E firme, com ar risonho, sem
o minimo signal de intima inquietude, elIa
diz aos circumstantes :-engodo contm engodo;
eu não sou wma mulher I- Adalgiza é com
effeito um Ganymedes gaiato, que quiz assim
mystificar um misero mystificador. E' claro
que, em taes condições, ou se considp,re a
noiva, no crime da polygamia, como meio,
ou como objecto do mesmo crime, o que não
é ainda uma verdade assen tada, a tentativa
não existe.
Eu podia, para melhor exemplificar a im-
p?'opriedade do meio do delicto supposto,
imaginar que Sua Reverendissima, o minis-
tro celebrante, á semelhança dos bispos es-
trangeiros, que costumam apparecer entre
nós,não fosse realmente um padre; mas a

(9) Respondam os Cordeiro, Paula Pessoa, Araripe et


lc reste, para os quaes é inconccbivel a tentativa des e
crime,
-171 -
questão, assim proposta, iria talvez parar no
vasto campo da theologia, que corno todos os
vastos campos, inclusive o da Samba, na pro-
vincia deSergipe,só se distingue pela esteri-
lidade,e pelo grande numero de bestas bra-
vas,que nelle pastam (/10). Recuei pois diante
da terrivel questão, que entretanto o leitor,
se lhe aprouver,pode bem levantar e discutir
com sigo mesmo.
Uma ultima hypothese illustradora do as-
sumpto. Invertendo, ou modificando a bem
conhecida e poetica historia de Piramo e
Thisbe, supponhamos que o mõço namora-
do conseguisse da bel1a Thisbe, que ima-
gino menor de 17 annos, um t'endez-vous de-
licioso em lugar êrmo e pinturesco, no qual
podesse dizer e desejar, como o poeta:
Que o mnrmurio da linfa crystallina,
Fallando á sós por baixo do arvoredo,
Abafasse o rumor dos nossos beijos,
Para mais esconder este segredo.
Ei-los chega rios aoponto ajustado. ElIe avan-
ça, e ella treme... Mas isto é uma afronta ao
meu bom OvidiO. Piramo e Thisbe, como
Leandro e I-lera, são dois mimos da ima-
ginação antiga, que não é licito utili-

(10) Refiro-me á um euorme descalvado, que se encon-


tra entre as yillas de CamlJOS e Lagm'to. á igual di tancia
de ambas. com uma extensão de mais de duas legoas de
sul á norte e de le te á oésle, edo qual poder-se-hia dizer,
em eslilo pompo o, que é esteril, como a corõa de um
frade, se á grande e Lerilidacle elle não associasse uma
grande belleza.
- 172-
sal' para outro fim, que não seja o de
reconfortar-se, como o velho David ao
calor da sunamitide Abisag', na taça do
melhor dos nectares- o amor, ainda que
de11a não se receba mais, se não o aroma.
E' uma. falta de gosto lançar mão de um
bronze de Pompea, umaGraça ou uma Venus,
para destiná-lo á serviço de balança. Suppo-
nhamos pois, não que Piramo, porém que
um be110 moço dos muitos que seexhibem na
rua do Ouvidor, nQ Rio de Janeiro, alcance
a dita de um 'rendez-vous com a belleza do dia,
com aquella menina loura epallida, que ful-
ge em todos os salões, como uma estrella
caudata.... dt adoradores. O encontro tem
lugar no Passeio publ'ico, ou PJelhor.... no
Jardimbotanico. A hora é das mais propicias.
Tudo convida, tudo provoca o delicto, isto
é, o goso ; nem foi para outro mister, que
o rapagão bonito, de C1'Oisé quasi talár, moço
faceiro, litterato, palavroso, e até um pouco
abolicionh;ta, seduziu a sua dea. Ambos se
encaram, calados, anciosos, como dois
guerreiros que se medem fren te á fren te.
Por um rapido movimento de coquetterie, a
menina faz soltar-se-lhe o cabeUlo, que róla
pelos hombros, como uma toálha de a.gua
límpida, dourada pelos raios do sol poente,
que a subita abertura de um dique fize se
precipitar-se por cima de um outeiro, e
inunda de perfumes a face do homem que
já a tem segura e palpitante em seus bra-
ços. Que momento! Mas oh I dór! A emo-
ção é tão forte, a posse da felicidade é tão
esmagadora, que ao fogo succede o gêlo, e
só vê-se, em ultima analyse, uma figura
-173 -
de estafermo, e junto de uma mulher... outra
mulher! O campeão está desarmado; o meio
do crime ficou em casa; e neste aperto, ain-
da malS afflictivo que o da cinta beriberica,
chega o pae da moça, que agarra o brejeiro
pela gola para o terrivel ajuste de contas.
Apparentemente, o crime deixou de realisar-
se, por interpur-se, como {·.ausa antagonica,
ét. presença do velho; mas esta causa não
fOI, no fundo, que gerou o obstaculo á con-
summação do delicto, a qual, mesmo sem
e1la, nào podia dar-se, em virtude da impos-
sibilidade Cl'eada pela insufliciencia do meio.
Por conseguinte a tentativa do estupro, que
Rrn outras condições seria admissivel, não
se adl1litte no caso descripto.
Entretanto aqui levanta-se uma questão,
que se prende a questão geral da impossibili-
dade nbsoluta e 1'elatwa, concernente ao cona-
t'l.~S c1'irninis. E' a seguinte: o bom do moço
faceiro, lepido, cheiroso como uma casa de
perfumaria, ja tinha d'antes o defeito da
invirilidade, ou este mal lhe apparecen occa-
sionalmente e s6 por for a da emoção sem
igual? No primeiro caso, a tentativa não
existe, por que além da lrrealisabílidade do
facto criminoso, accresce que ella não tem
a base psychologica do dolus. Quem traz no
bolço um revolver sem capsulas, cão pode
ter seriamente a intenção crimiuosa de mel-
Ler, om e11e, uma bala na cabeça de alguem.
Quem se apresenta na liça, armado de uma
badine, não presume de modo algum poder
esmigalhar de um golpe o craneo de seu
adversario. No segundo caso, porém, é que
o conatus apparece. A profundeza e intensi-
-174 -
dade da emoção produzida pela posse dessa
ave azul, que se confunde com o azul do céu,
e que chamamos o impossivel- bella encan-
tada avesinha, cujo desencanto não raras
vezes consiste em tomar a forma de uma
mulher - a força detal emoção, sendo capaz
de neutralisar os impetos da ca1'ne, como
dizem os padres, é uma daquellas circums-
taneias, independentes da vontade, que en-
tram na comprehensão da ideia ·da tentati-
va. Assim, quanto affirmei qLle, na hypothe-
se dada, o bom do moço sedllctor não era
~riminoso, foi presuppondo que, alem dô .ex-
citação nervosa do momento, ainda. elle
padecesse de fraqueza viril proveniente,
quer de alguma affecção rnorbida, quer do
abuso dos banhos aromaticos, dos cosmeti-
cos e fricções, muito em voga entre os ho-
mens da côrte, por via de regra indolentes
e effeminados pela influencia dele teria, que
sobre elles exerce a tempnratura pyretica da
atmosphera imperial.
O que se diz dá impropriedade ou ineffica-
cia dos meios, é igualmente certo á respeito
da inaptidão ou impropriedade do objecto
para a l'ealisação do deLicto.
Não dissimúlo haver criminalistas que
pelejam com mãos e pés contra esta theoria.
Felizmente, porém, o que eLles escrevem,
não tem pés nem mãos; e as vezes acontece
que são incoherentes, para não se tornarem
ridiculoso Basta citar o exemplo de Schwarz.
Este jurista rejeita a impunidade da tentati-
va, na hypothese do meio ou do objecto im-
pr'op')'io, pela unica rasão, que aliás é com-
mum á todos os seguidores da mesma dou-
175 -
trina, de ser, nessa hspothese, a intenção
criminosa igual á que se manifesta na tenta-
tiva ordinaria. O elemento subjectivo do
crime,- pensa e11e,- não soffre a minima
alteração pelo erro que leva o agente á ser-
vir-se de um meio inapropriado ou á exer-
cer a sua acção sobr8 um objecto incapaz
de recebê-la (11).
Sim, senhor,- concedo que assim seja;
mas tambem reclamo que se respeite a 10-
gica, e esta exige, em taes condições, que
os feiticeiros, por exemplo, fiquem inscriptos
no circulo da lei penal, não em nome da re-
ligião,. corno outrora, mas em nome da sci-
encia, qLle deve considerá·los verdadeiros
criminosos. Por que não? Que differença
existe entre o facto de descarregar sobre
outrem uma espingarda sem ca?"ga e o de
lançar-lhe um sortilegio,""':"'ambos no intuito
de pôr termo ávida? Schwarz não é capaz de
apontá-la. E tanto não é, que, em plena
consciencia da difficuldade, querendo evitar
a pécha de inconsequente, creou uma clas-
se á parte d.e crimes tentados por meios su-
pe?'sticiosos, á respeito dos quaes desappa-
rece a ideia da tentativa (12), Praticar,· por
engano, uma acção inefficaz, acreditando en-
tretanto que ella pode sortir todo o seu ef-
feito, é o mesmo que praticá-la por supersti-
ção, pois que o s'l.tpenticiosÇ) não crê menos
que o enganado nos resultados de seu acto.

('1'1) Commental' zum St1'afgesetzbuch-pag. 126-Hand-


buch des cletttschen Stmfrechts in einzeln Beit1'iigen --11·-
pago -290 e seguintes.
(12) C01nmentm'". pag.-127.
-176 -
S'upe'l'stição e engano- são ambos factos sub-
jectivos, phenomenos complex0s, que lan-
çados na retorta metachymica da analyse
psychologica, dão identico resultado, isto é,
reduzem-se á um simples illogismo. pelo
qual se confere á um sujeito um predicado,
que lhe não compete, ou se attribue á uma
cousa qualidades, que elia não tem. Quer
n'um,quer n'outro caso, o dol·us facto cont1'a-
1'i'Us ou o {act'um dolo cont'ra1'i'Um permanece
inalterado. Se a doutrina subjectivista, dá '
todo o peso á má fé, na hypothese da tenta-
ti va mallograda, exempli gratia, por mi,nis-
.trar-se erradamente assucar em vez de a1'se-
nico, porque não te-la em conta igual, quando
se trata de um maliôgro do mesmo genero,
por pretender-se matar ou causar á outrem
qualquer mal, fornecendo-lhe raspa deunha,
cabello queimado,' ou outra semelhante dosa-
gem do receituario da feiticeria? Escapam
á minha percepção os signaE;s da differença,
que possa haver entre os dois phenomenos,
e que determine, dest-arte, um modo diver-
so de apreciá-los juridicamente. Conside-
ro-os reductiveis ao commum denominador
da tentativa frustrada pela impropriedade
dos meios, assim como do objecto.
Este ultimo offerece, é verdade, maiores
embaraços á solução pratica do problema;
porém isto não quer dizer que a theuria seja
falsa. A falha do crime, pela ausencia de
objecto adaptado, não é só logic~mente con-
cebivel, mas tambem de facto realisavel. O
viajante nocturno queimaginando ver diante
de si a perigosa figura de um salteador,
que o espera para roubá-lo, fdZ jogo contra
-177 -
ella de toda a munição de seu coldre, mas â
final reconhece que o projectil dirigiu-se á
um velho tôco, ou a uma palma de bwrity;-
não repugna ao bom senso faz -lo reu de
tentativa de morte? Incontestavelmente. E
que diremos do individuo, que armado de
instrumen tos aptos para arredar os obsta-
culos supervenientes á practica de um furto,
ao põr a mão na porta, que elle tenta for ar,
encontra-a destrancada, e ao tocar na gavê-
ta, onele suppõe achar um tbesouro, encon-
tra,-a tambem aberta, e, o que mais é, vasia
como a algibeira de um fidalgo preguiçoso?
E' alü POI' ventura admissivel o cúnatus?
Não de certo. Os actos praticados chegam
apena para revelar a in tenção úriminosa;
mas não ha jJl'Íncipio de execu ão. Desde o
seu primeiro momento genetico, o crime é
impossivel; e não se concebe que offt::nsa,
publica ou particular, possa advir do tenta-
men de uma impossibilidade. Ao muito,
factos de tal ordem podem dar logar aos ex-
pedientes preventivos, porém nunca ao em-
prego de m didas punitivas, que serão sem-
pre, no eé:lso, erroneas e injustas.

f2
-179 -

VIII

Sobre a co-deliJlquencia e seus· elteUos


ua praxe pl'ocessual.

No mundo em que vivemos, neste mundo


de bonitas miserias, no qual Deu e o diabo,
não sei se il cima ou ao lado do irn perador,
formam com eHe os tres unicos factores
da historia nacional, os problemas juridicos
são os mais aptos para dar a medida exacta
dos nossos dotes moraes. Se fosse possivel
a invenção de um instrumento graduador
ela intelLigencia dos individuas e dos povos,
e ao querer-se tomar o grau da temperatura
mental brasileira, o direito, o estudo do di-
reito, as relações juridicas em ger'al, fariam
o mesmo papel que a axilla dosfebricitantes
-seriam o ponto mais adequado á collo a-
ção do noómel1'o.
O meu distincto amigo Sylvio Romero,
em nm dos sells felizes momentos de acer-
tada clíagno e social, 'estabeleceu que o
Brasil é o paiz nato dos legnleios: quem não
acha em que se occupe, tem logo ao alcance
da mão um meio commodo de corrigir a
fortuna: é munir-se de um Assessol' fm'ense
e augmentar o enxame dos rabulas, Esta
ideia é muitissimo justa,e não pode ser con-
testada. Facla, lOi]'/.mnlu1'. M,IS é sempre ca-
bivel observar que o talentoso escl'iptor
deixou de laoo o grande numero de pheno-
- H~O-

menos que se prendem, antecedente e con-


sequentemente, á importante verdade, por
elle enunciada, O leguleismo brasileiro não
se manifesta somente, como meio de vida,
nas regiõ~s inferiores da pobreza desarran-
jada, mas tambem, como expediente politi-
co, na alta espbera governamental. A nossa
politica tem sido e é em geral uma lolitica
ele advogados, D'ahi os males que nos asso-
berbam, pois que os nos, os estadista,
em sua maioria homens da lei, quando tem
de defender e sustentar uma ideia, fazem-no
sempre com o mesmo grau de convicção,
com que escrevem umas 1'QSÕeS (inaes, para
firmarem logo o direito ao recebimento da
segunda metade do hOn01'al'io ('1). D'abi o
estrago dos caracteres, o embotamento
ruasi completo do senso da justiça, e a falta
de seriedade, que se Tllostra em todas as
luctas do direito em accão, Mas não fica
nisto. Os leguleios, que- preponderam nas
diversas direccões da actividade publica,
não são productos de si me mos,ou resulta-
dos dealgllma curvatura irregular, que tenba
tomado o desenvolvimento nacional. São
effeitos ela indole originaria do povo, que
tem um talento chicanistico assás pronun-
ciado,coOlo j~ foi com G.Gerto notado por Bur.-
meis ter (Reise nachB1'asilien) (2). E esse talen-

(1) E' hom nolal': o raro estadistas que lemos Lido,


um pouco á cima da bilóla commum, nunca exerceram a
advocacia,
(2) Vem ;1 pl'OpO ilo ainda aqui a signalal' um faclo
bem ignHicalivo: o typo sociologico do bl'a ileiro,-
alguma cousa de parallelo ao yallkee,-do brasileiro de
-1'81 -
to innegayel, flue se phenomenisa cá em
baixo por actos de pequeno alcance, vae
crescenllo e se avolumando para éima. até
que ostenta-se grandioso e inexcedivel,
como vemo-lo, nos conselhos da corôa, no
seio do parlamento. Rasão pela qual damos
ao mundo este espectaculo singularissimo :
somos realmente um povo de advogados, mas
tambem é certo que não ha outra nação,
ollde tão DLlllo Lenha sido o desenvolvimen-
to do direito, quer cQmo ideia, quer como
força - como sciencia e consciencia do
justo.
« I popoti,- diz Settembrini.,- che banno
forte personalitá naturale han no molti giuri.s-
ti, perche questa personalitá e la coscienza
deI proprio diritto individual€.: e dov' e ques-
ta coscienza negli uomini,na cano frequenti
contr8.sti, quindi la eecessitá di deffinirli ri-
salendo a principli di ragione general e (3) »),
Sem duvida algnma. Os povos qne tem uma
forte personalidade, I ossuem muitos juris-
tas' e não hesito mesmo em admittir a re-
ciproca: onde 11a muitos juristas, ha nma

corpo e alma, como elle e fel( valer no primeiro tempo


da nos a vida hisLorica. é o uemandi la. A proptia poli-
lica ahin de le embryão. Quasi lodos o chefes de loca-
lidades e conlendore eleiLoraes de hoje furam demandi -
La ,011 ão de ceodenles de Lae , que ga taram do eu
melhor em defender a lia lerras da invasão do vi inho
ambicio. o, que queria lomal' o~rumo do pé da aroeira,
quando devia er do jatobcí, na direcção da ca 'a de ~faria
de Ot~;:;a, elc elc, :eguodo re;:;aL'a (esLe rezar é caracLeri -
lico) a esmaria do capitão mór A ou B. Já se v(} (Iue a
no sa politica, por via de regra, não pode deixar de ser
lambem uma chicana imperlillflOte.
(3) L/dani di letterutnra italiana. UI, pago 1J•
-182 -
forte personalidade do povo. Mas nós nào
temos nem nma nem outra cansa. Advoga-
dos e pl"axistas, que de cerLo possuimos em
numero legionarlo, não são jurisconsultos;
e um povo que se curva humilde te resignado
á to los os arbitrios e impudencias do poder,
como lue seguindo o exemplo dos negros-
escravos, incapazes de reagir até contra os
bichos, que lhes ata 'am os pés, não tem per-
sOflalidade. E' nm povo rebanho, no verda-
deiro sentido evangelico,- duplamente re-
banho, em relação á egreja e em relação ao
Estado. Não pode ter, por tanLo, aquella
consciencia da propria individualidade,
d'onde saem as divel'gencias e contrastes,
que determinam a prü-ducção elo direito e a
ed uca ão dos j mi tas (4).

(!~) A nossa vicIa juritlicaé com errei to digna de lastima.


lia neste paiz muita genle, cuja unica lOis ão é bradar
conlra os padres; enLretanto eu acho mais motivo ne
clamor contra os magistrados. Je uiLi mo por jesuiLismo,--
anLes quero o da olaina, que o da beca. Se 11a juize
inLegros, tambem ha padres hone tos. Em re~L'a. o
nos os padres não sabem ler o laLim do breviano . em
I'eerra, os no so juizes não ahem ler o latim das insLiLu-
la . Em regra, os nos o padre- ~ão carne de CXCOIl1-
ll1um er ar a quem quer que lhes roube a posse de ua
amantes; ~m regra. o nos o juize. fio capaze d fa-
bricar proce os para julgar e condemnar os seu ini-
migos, 'uma palavra, a egreja de que somo fieis, é
uma digna irman do EsLado, de que amos subdiLos ;
só lla uma djfferen a: "que a e~l' .ia nos rrarante a bemu7
vOllturança por muito meno' dlllheiro do que o Eslado
110S garaule a ju Liça. A alva ão de uma alma, egllndo
a ultima tarifa do bilhele de pas agem no purgatorio ao
t:cu, cu La apena qnall'o vinlen de 11m re pon o; o
ganho de uma cau <I, ainda que justa, e por sé-lo mesmo,
-183 -
Tudo ·isto está escripto no protocollo da
experiencia de todos, que não é nenhum
livro apocalyptico, fe,.'<.ado com sete se11os.
Bem podia chamar á dar testemunho da ver-
dade dos meus assertos mais ele um typo
da especie degenere, que eu q111zera ver ex.-
tincta' mas não pretendo aqui instal1rar o
processo de lesa- ciencia contra o nutaveis
e acreditados j mistas da terra; mesmo por
que d'entre elLes uns' sào juizes, out.ros
advogallos, outro professores, outros es-
criptores; e nestas condições, ainda que
haja unidade de delicto, seria mister toda-
via, por força ele uma certa dOLLt?·ina corrente,
citar a cada um perante o seu fOTo' o que
importaria o consumo de muito papel.
Este ultimo salpico de tinta que sahiu-me
da penna, por mero de enfado bl1rnoristi 'o,
revoca-me a consciencia da obrigação con-
traida pelo titulo do presente artigo, e do
muito cril me afastei do terreno indicado.

importa em conto de r is, Ilcando sempre salva a possi-


bilidade de renovar-se o jog-o 1 perder- e o que seganbou.
Enlão! Qual eril prererivel ? Em lodo o caso, e pelo que
me intere sa,o' minislros impuros de uma religião, il que
sou inrlifferente, não me parlem cau ar lanlo mal, como
o acerdole corrupto de uma ju li 'a, de que po 50
precisar á cada momento, Ha ainda ;:l pond I'ar ulTla Gil'-
Gnmstancia importante: C/uasi sempre o padre devasso'
encontram na pl'Opria d va. idão um ob laculo in 'uJlO-
ravel á ua elevação hierarchica; não a im por' m o
magi trado corrllptos, que 5lÍ lem á vencrr o 01'1'1'11-
pulo da con cieucia; veucido estes, i]lIJO {acto e LUa
de carreira feita.
-= 1~­
II
Não menos que a concllLTcncia dos cri-
mes, a concurrencia dos criminosos involve
para a sciencia respectiva mais de uma
questão momentosa. I.nfelizmente porém,
quer um, quer outro assumpto, não tem sido
entre nós capaz de produzir li tteratura , de
fornecer, nem uma pagina, proficuamente
legivel, á exagese do direito criminal. Tudo
devido ás causas particulares, que foram á
cima indicadas, e que muito importa com-
bater e arredar; ou ao menos procurar di-
minuir o seu perigoso influxo.
Neste intuito é que me proponho discuti"
a questão enunciada; e isto não só de accol"-
do com os dados da doutrina scientifica,
mas tambem em harmonia com as disposi-
ções do noss\) direito positivo.
Segundo o conceito do crime em geral,
é indifferente qLle elle seja praticado por
um, ou por muitos sujeitos. A circum-
stancia da unidade ou plLlfalidade, em
relação ao agente, é uma circumstancia
de facto, que não altera a comprebensão
da idea do delieto. Por quan to, o maior nu-
mero dos crimes podem ser commettidos
por um só individuo, e sem que outras pes-
soas tomem parte na empreza, CJuer por
uma co-operação act.ual, quer dirjgindo
ou apoiando o exeeutol',-hypol.hese esta
que constitue o chamado cOnCt~1'Sl/S fac'ulta-
ti1J'lM3. Ha crimes porém,-e estes formam a
excep .ão da regra - cujo conceito legal
pl'esuppõe uma plmalidade de sujeitos par-
ticipantes da aCl,,:ão criminosa, e nos quaes
· = 185 --
por conseguinte uma tal pluralidade é ele-
men to essencial e característico de. ses
mesmos delidos (conw1'sus necessCt1'ius).
Exemplos: a peita, o subo1'no, o adulteTio, a
insw'reição, a sedição, a 'I'ebellião . .- todos
crimes, em cuja ideia estú comprehenc1.ido
o concursttS plul'ium ad delictum, como sub-
jectiva e objectivamente indispensavel para
sua existencià.
Desta divisão da co-elelinquencia ou pa.rti-
cipação do delicto em necessct1'ia e facultati-
va, bem como da subdivisão da ultima em
mediata e immediata, pTemeditacZa e evenlual,
simultaneB, e posterior .... resultam conse-
quencias de grande alcance practico, e que
não deixdll1 ele preoccupar ainda hoje os
homens da tbeoria. Mas não é sob este pon-
to de vista que eu me criei a obrigação de
t.ratar do concurso dos delinquentes. E' tão
somente por uma de suas faces, e a mais
rasteira, por assim dizer, que semelhante
assumpto entra agora no quadro do meus
estudos. Refiro-me ao lado puramente pro-
cessual. da questão, isto é, ao modo, por
que, e a medida, segundo a qual a co-deli n-
quencia pode influir na ordem do processo
de instrucção criminal.
E taes são os termos do problema: uma
vez d(ido o COJWU1'SUS plUl'ittm ael deliclum,
em um caso particular, a unidade do delicto
determina, em qualquer bypothese, a uni-
dade processual? Ou suc edenda" lue al-
gum dos concurrentes tenha o que se cha-
ma privilegio de {õ,-o, esta circllffistancia :.
de natureza á quebrar a indivisibilidad.e da
Gausa, e fazer que sejam separados no pro-
-186 -
cesso sujeitos que estiveram unidos no crime~
Ainda mais: tratando-se mesmo de um
clelicto ele (uncção, de um daquelles, que u
nosso direito designa pela pbrase tôlamente
pleonastica de c)'imes elenspon cbbilielade(5)-
alguma cousa de tào caracteristico e expres-
sivo, corno medo ele susto, ou quadntpeele de
quat'r'o pés,- tratando-se mesmo de um des-
ses, em que porém tomaram parte individu-
as não funccionarios, é rasoavel que estes
respondam no intitulado (Mo commum, des-
Ligados dos seus sacias, que devem respon-
der no fôro determinado pela natureza do
crime'! Eis os pontos precipuos da questão,
que para mim é rei:>oluvel em sentido bem
diverso do modo ardina rio de. pl'oeeder entre
nós,
A minha these é que, em todo e qualquer
caso, a unidade do delicto determ ina e ne-
cessita a unidade do proce::3So. Por qua.nto,
e antes de tudo, importa observar que a
palavra processo, em materia j uridica, sig-
nifica simplesmente um methodo, um con-

(5) Como lenho a petlllau\;ia cie ser nomeado na Alle-


manha, onde conto amigo. que e difTuam de ler-me,-
para lOl'llar bem sensivel ao leilor estrallfTeiro o di parate
r1aqllella eX)JreE ão, ;Jliá lão cornmllm enlre o 110. o
jllri la~, eu digo a cou a em allernão:- Dn' bra iliuni -
che Slmfge elzbllch bezeicbnet dio sogenannten Aml ver-
urechen mil dem sOllderbarell Allsrtruck- Veraulworl-
licl.1keil ver1Jrechen' - ai ub nichl :llle llncl iede slraf-
bare Handlllng die Veranlworllichl eil de Verbrecher
'-oraus ol"te! E' versleht 'icb VOII elb-l wie weit e die
Wi en chaO un erer Krilllinali. ten bringl) die nicht ein-
lUal irn Slande sind, eíuen alLen slrafrechllichen Begrifl
cOl'l'ecl zu noLiren 1. .•
-187 -
.luncto de formulas para chegar á descober-
ta da verdade, cujo conhecimbnto interessa
á justiça. Ora, não ha di!' iLo contra a ver-
dade; e tudo que pode contribuir para que
ella appareça evidente e incontestavel: não
deve ser omittido, sob qualquer pretexto
que seja. Quando pois o crime, em sua ge-
nesis, offerece um caracter cúrpora livo e
social, uma combinação de agentes cliver-
sos, ainda mesmo a simples combina üo bi-
naria de um autor e um complice, de um
mandante e um mandatario, é natural que
a justiça se apodere do facto, para conlJece-
lo e julga-lo, pela mesma forma e nas mes-
mas condições, enOl C-.tue elle foi realisado.
Commettido por um só, ou commettido por
muitos sujeitos, quer seja igual, quer dUfe-
rente o quinhão de cada um na construcção
do delicto, este' sempre um todo compacto,
e como tal deve ser estudado, sob pena de
dispersar-se e perder-se mais de uma cir-
cumstancia importante, cujo desconheci-
mento pode alterar a fei ão do crime e dos
criminosos.
« Em lIualquer processo penal, dlz-R.
Heinze, o accusado é ao mesmo tempo uma
parte e um objecto de execução fLltllra. O
terceiro papel, que lhe cabe, é o de servir
de um meio de p1'OVa» (6). Este principio,
que é verdadeiro, está de accordo com o
nosso systema de instrucção criminal, pelo
qual o réu, com a sua presença, com as
suas explicaçõe.·, e não pOLlcas vezes até

(6) Beilaglte{l zum GericltlssClul- 18;5- pllg.- 23.


- 4'88
com a propria confissão, isolada de outros
quaesquer dados,é lllU (los meios ernendi ve-
?'itate1n. Os íntel'roga.tol'ioR, autos ele perguntas,
ou como quer que se chamem os diversos
expedientes anaJnnesticos do crime, empre-
gados pelos juizes, não tem outro sentido
que nào o de fazer do indiciado criminoso
um instrumento de prova.
Neste presupposto, é claro que', dada a
hypothese ele uma societas elelicti, onde ha
Llma intenção commllm e, por assim dizer,
uma quota de responsabilidade para cada
socio, segundo a sua ent?'ada, a sua parle de
actividade na causação do phenomeno pu-
nivel, nenhuma rasão de ordem publica
pode autorisar a in tallfação ele processos
diversos á respeito de um só crime, sobre a
base de gozar este ou aquelle delinquente
do privilegio de foro,- em prejuizo da ver-
'dade, em detrimento da justiça (7), E custa
crer que ainda á esta hora, na altura mesma
em que voam as aguias da patria sciencia
juridica, já não digo se ponha em pratica o
erroneo principio da sepamção, mas até não
se tenha ao menos uma vaga ideia da velha

(7, O leitol' não estl'anhe o uso coptinuo que fa o de


ccrta expl'es õe cm latim. Bem como ti danr:a tem ti
sua teclmolugia I'raDceza (c/wine de dames, c/wine aU(jlaise,
pantalon.. .. ), a mu ica o seu vocabulario italiano ~con
anima, sfol'zanclo, sostenttto ele), assim lambem a religi-
:\0 e o direito tem a sua phra cologia latina: surswn
corda, rlominlls lecllm) jus in l'e, jus od rem. concurslls
plnl'illm. socii delicti... e mil outra. Quanto à e te ulti-
1110 conceilo,- o da ,'ociedade no crime,- eHe não ;
de 'conhecido do nos o direito. O artigo 117 tio Cod. do
proc. criminal falia de., .. [( delinquente e eu socio ".
-189 -
controversia, qlle acabou por d€ixar o ter-
reno livre ao principlo da indivisibilidade.
Este principio vem de muito longe. O di-
reito romano já o bavia consagrado na L. '10.
Cod. de judicii ,no seguintes termos: uUi
prorsus audientia pr::ebeatur, qui causre COJ1,-
tinentia111. diuidet, et ex beneficii I r::erogati.va
id qllod in tmo eoelemque judicio poterat ter-
minari, apud iliue1'sos judit;es volllerit venti-
láre... E é o mesmo pensamento de Paulo ...
L. 54. D. 5.)1. Per minorem causam majori
cognitioni pr::ej Lldicium fieri non oporLet:
major enim qn::estio minúrem causam ad se
tTahit. O que reslllta, sobre tudo, .ele taes
disposições, é a exigencia juridica de não
tomar-se conhecimento de uma questão de
facto, á que se tem deapplicar o direito, se
não em sua unidade e em sua totalidade,
devendo 8otopôr-se ao interesse da justiça
todo e qualquer outro interesse, por cuja
causa se pretenda isolar os elementos da
materia li tigada.
Mas sem demorar-me, por mais tempo,
sobre a questão, tbeoricamenl;e considera-
da, eu quero aprecia-la pelo lado practico.
Para isso basta a constl'l1cção de algumas
hypothese.3, tiradas da observação do mundo
real, mesmo do nosso acanhado mundo.
Por exemplo: nos crímes de peita e subor-
no, onde ha concurso necessario, onde ha,
como em todos os casos de participa.ção
criminosa, unidade ele delicto e recip1'ocidade
de co-operação ( ) I O codigo criminal brasi-

(8) Reinhold Schutze. Die nothwendige Theilnahrne ..•


pago 322 e 336.
-190 -
leiro faz punir com as mesmas penas o pei-
tante e () peitada, o corruptor e o corrt:lpto.
(arts. '132 e lR4). Ora, á admittir-se a theoria
da separação, teriamos que o juiz ou outro
funccionario, Iue acceitasse a peita, respon-
deria em foro diverso daquelle em que de_o
vesse responder o peitante; o que .por cer-
to importaria uma difficuldade invencivel
na justa applicação da penalidade. A menos
que nm dos julgadores esperasse pelo outco,
ou mandasse saber delle, qual a pena que
impunha ao respectivo accusado, não se
concebe, na hypothese dada, a possibilidade
de um exacto cumprimento do art.132.
Entretanto, por mais extravagante que o
caso seja, não duvido que rios annaes da
nossa jurisprudencia, onde se encontram
clispal'ates de toda sorte, já figmem tal"lbem
exemplos de uma tal praxe processual. Se-
ja-me pois permittido lançar mão de uma
outra hypothese, menos commum, e ainda
mais significativa. Supponhamos que a
princeza Quinti\ia Cavalcanti,do Sec1'elai?'e in-
time de G.·Sand, ou - deixando de parte a
princeza, para não escandalisar os seus pa-
rentes de Pernambuco-suponhamos ante~
que a senhora Fann •a creação de Feydeau,
tivesse o capricho de vir passar uns dias na
Escada, á tomar banhos no lpojuca, e en-
contrasse na pessoa do juiz de direito daco-
marca um outro opiniatico e apaix.onado
Rogerio, a quem ella chamasse, não de certo
mon enfant, porém mon gmnd papa. O ve-
lho pegava fogo, e commetia um desatino.
O marido de Fanny não estava pela graça,
e recorria as leis do paiz para vingar-se da
-191 -
affronta recebida. No artigo 250 do codigo
<:riminal acharia elle a solução do embaraço;
mas logo após surgiria maior clifficuldade,
resultante da disposição do artigo 153. Com
effeito, á prevalecer a doutrina da multipli-
ação dos processos, conforme o fôro de
cada 11m dos criminosos, qual seria o meio
ele promover conjunctamente a accusação dos
dois réus da nossa hypothese, e ainda mais,
de não ser um ondemnado sem o outro,
omo está escripto naquelle artigo? O po-
bre Rogerio adultero, victima de uma paixão
infeliz, iria contar a historia dos seus amo-
res no tribunal da Relação, ao passo que a
capricbosa Fanny seria levada, como se diz
e111 florida linguagem forense, á b(J//Ta do
tribunal do jury deste termo, depois de cor-
rer o processo perante o juiz municipal.
Como seria então possivel dar-se na pena a
mesma sociedade que deu-se no delicto ?
Nem se diga.-·- e é este o unico reducto
dos sectarios da separação,-- não se diga
Que no caso proposto, a concorrpncia sen-
do necessaria, não se concebendo a practi-
ca do crime sem a co-opera ão reciproca
do dois agentes, pode-se conceder que a
jLll1cção elos criminosos em um só processo
seja tambem uma necessidade; não assim
porém nos casos de concurrencia falcutati-
va. A' isto responderia, antes de tudo, que
os objectantes servem-se de uma arma que
n mesmo lhes empresto. A sua doutrina
e ·tende-se á todas as bypothese', a distin-
ção de concu/'sus neceSSa1'itLS e facultatiuus
lhes é desconhecida. Mas acceitemos a ob-
jecção como fructo de pomar alheio,e apre-
-192 -
ciemo-Ia de perto. A distincção das duas
especies de concurrencia, sendo verdadei.
ra e incontestavel na theoria, não tem en-
tretanto importancia na .pratica. E' certo
que não se concebe o crime de suborno,
por exemplo, sem 03 dois termos da rela-
ção : o subornan te e o subornado. E' uma
necessidade logica, uma exigencia concei-
tuai, aprioristica. Mas ha tambem nas hypo-
theses, uma vez verificadas, de concurren-
cia facultativa, uma necessidade de facto,
que chamarei á postel'io?'i, tão indeclinavel,
como a primeira. Assim, era possivel,exem-
pli gratia, que Affonso IV, de Portugal,' as-
sassinasse, de seu proprio punho, a Ignez
de Castro; ma uma vez dado o facto, como
se deu, convertida a póssibiLidade indeter-
minada em realidade con creta, é tão neces-
sado, no dominio da bistoria, que ao rei
mandante se addicione os tres mandatarias,
como é, no dominio da rasão, que á ideia
da mulher infIel se associe a de um comrli-
ce, á da venturosa Fanny, na bypothese fi-
gurada, a do seu velho e inditoso amante.
E d'ahi resulta qLle, em ambas as especies
de concurso, as consequencias são as mes-
mas, no que respeita a instrucção criminal.
-193 -

IX
Uma these de concurso

Qual a extensão da ideia do mandato,


de que tmta o aTt. 4' do Codigo C1'imi1lal ?

o nosso Codigo Criminal,-seja este logo


o meu primeiro asserto, do qual não posso
dizer se involve um elogio, ou uma critica,
em todo caso, porém, não deve causar es-
tranheza, pois ahi vae uma verdade qnasi
de geral noticia,- o nosso Codigo: repito,
em muitas de suas disposições, produz uma
impressão de epigraphia millennaria, de ve-
lhas e gastas inscripções lapidares. Bem
como à estas, não poucas vezes, faltam let-
tras e palavras, que só ao esforço e pacien-
cia dos epigraphistas é dado restabelecer, as-
sim falta ao Codig'o Criminal brasileiro um
grande numero de conceitos e achados da
sciencia do direito 'penal, que somente uma
san doutrina e uma praxe regular estão no
caso de supprir (1), E' certo,-e eu concordo,
-que os limites tbeoreticos do direito não
coincidem com os artigos de uma lei, ainda
mesmo a mais comprehensiva e a mais cheia
de detalhes; porém isto não é bastante para
explicar, e muito menos justificar a chocante

(1) O que eu aqui entendo pOI' pmxe, ~ão é a. p~I'Le


ceremoniaL e burlesca, mas a parte dl'amatlca do dll'eJLo.
- é o direito em acção.
13
- 194-
anomalia de serem ainda passiveis entre nós,
de ergutrern-se enti e nó ainda questões,
que não são taes, que difficilmente deixar-
se-hiam sLlscitar no domínio da legislação
penal de outros paizes.
Neste ü<:l.:io se acha a questão ácimu pro..
posta. Só diante do laconismo e estreiteza
de ambito da respectiva disposição do Co-
dig'ú, é que a ideia do mandato, considerada
em suas relações quantitativas e qualitati-
vas, ou como dizem os logicos, considerada
em sua extensão e em sua comprebensão,
pode assumir uma feição problematica. Fei-
ção anachronica,sem duvida, porque importa
reduzir á um slatus causre et cont,'ouel'sire mais
de um ponto liquido e assentado na sé,ien-
cia,- mas assim mesmo séria, milito mais
séria, do que os termos da questão induzem
á suppor. O que ahi se faz notar como já
um pouco fMa de.tempo e alguma COLlsa atra-
sado, é por culpa unicamente do legislador
criminal, que traçou artigos insignes de con-
cisão, exceLlentes para serem, por ventura, .
gravados nos cópos de uma espada, ou até
me 'mo na pedra de um annel, mas não para
abraç3.rem todas as variações phenomenicas
do crime, nem para satisfazerem de prompto
as exigencias crescen tes do espirita scienti-
fico.
Entretanto importa declarar :-a questão,
de que me occapo, não é uma semente lan-
çada no terreno esteril da pura e peculação.
Não se trata de pôr em jogo velllas ideias
aprioristicas de um direito criminal abstrac-
to. E' uma questão, pelo contrario, mera-
mente positiva, levantada nos dominios do
-.195. -
direito positivo. Tanto melhor, digamo-lo
en tre parenthesis, - tanto melhor para
quem, como eu, reconhece na positividade
o caracter essencial de todo e qualquer di-
reito, e eão admitte oLltros principias racio-
naes do justo, que não sejam os resultantes
de um lento processo de est.ratificação his-
torica, no desenvolvimento geral das socie-
dades humanas.
Destarte circulJ1scripta étO circulo da ob-
servação e ela inducção, tanto qUdnto é com-
pativel com uma sciencia de operações pre-
ponderantemente deductil'as, como é o di-
reito. a que tão presente tem pelo menos
um mer1to sobre outras de iO'Llal
., .,.
O'enero :-é
não dar azo ao palavreado, nào obstante con-
ter materia sufflciente para um serio e pro-
fundo estudo. Encaremol-a pois mais de
perto.
I
Perguntar qual é a extensão da ideia do
mandato, de que trata o art. 4 do Corligo Cri-
minal, é o mesmo que perguntar quaes são
os factos da ordem jmidico-penal, que ele-
vem ser subordinados á categoria daquelLa
forma do crime, aLli mencionada. Mas inda-
gar quaes são esses factos não consiste em
um simples processo arithmetico, em uma
sirnplex en1J,rnemtio, como diria Bacon, de
Cêi,SOS reaes ou passiveis, qLle satisfa am as
exigencias conceituaes do mandato. Digo
somente conceituaes, porque legaes não exis-
tem; o codigo nào prescreveu-a. -Indagar
quaes sào esses factos importa sem duvida
uma pesquisa de maior alcance,- em nada
-1-00-
men.os que um trabalho expositivo, interpre-
tativo e, até um certo ponto, completivo da
respectiva lettra da lei.
Logo,- é claro,- a nossa questão poder-
se-hia bem enunciar nos seguintes termos-
(( expor, interpretar e completar, segundo os
principios reguladores da exposição elas leis
penaes, o art. 4 do Codígo Criminal, na parte
que diz respeito ao mandato». :Mas nesse
mesmo trabalho expositivo, interpretativo e
completivo, é que consiste a funcção de com-
mental' qualquer disposição legal. Logo,-
tambem é claro,-a nossa these ainda podbr-
se-hia simplificar e exprimir assim :-com-
mentar, no que pertence ao mandato, o art.
4 do Codigo. E é justamente Uni commen-
tario, não uma dissertação no sentido acade-
mico e usual da palavra, o que eu pretendo
escrever. Tenho sempre em mente o que já
disse um escriptor francez: La disserta tion
est verbeuse de sa nature; elle est rarement
exempte de pédanterie; l' auteur y étale avec
complaisance tout ce qu'il sait-bem que
isto não queira dizer que a pec1anteria, se-
gundo o modo commum de comprehendel-a,
a étalage de conhecimentos, seja sempre dig-
na de censura. Ante esta erronea opinião,
ante este ridiculo escrllpulo de coquettm'ie
litter·aria, não é menos rasoàvel o parecer de
H... Dietsch: Nu]' Verkennen des wahren We-
sens der Wissenchaft kõnnte vielen den
Vorwurf der Mikrologie unc1 der zu grossen
Specialitât machen-« Só o desconhecimento
do verdadeiro espirito da sciencia poderia
levantar contra mllitus escriptores a accu-
sação de micrologia e demasiado especia-lis-
-197 -
mm), A verdade está pois no meio termo.
E' o caminho do meu trabalho. A execução
pode ser má, porém o methodo seguido é o
unico regular.
Depois de estabelecer como presupposto 10-
gico do crime a necessidade de uma lei an-
terior que o qualifique (art.1) ,e como presu-
posto psychologico do criminoso o conheci-
mento do mal e intenção de o praticar (art.
3); depois de differenciar o conceito do cri-
me, dividindo-o em quatro especies ou or-
dens diversas (art. 2 e §§), o Codigo passa á
fazer tambem urna differenciação do con-
ceito do criminoso, dividindo-o por sua vez
em duas classes precipuas :-autores e com-
plices Carl. 4 e 5). Nestes limites,-não ba
duvida :-a nossa lei penal é um modelo de
simplicidade. ~as nem sempre a simplici-
dade exclue a imperfeição. Pelo menos é
certo que o seu ponto de vista identifica-se
com o dos velhos criminalistas latinisantes,
os quaes tambem concebiam a delinquencia
sob as unicas formas da autoria e da com-
plicidade (2), aquella attribuida á todos os .
qui causamdant criminis-e esta á todos os .
auxiliatores; sendo porém de notar que a pro-
posição synthetica- qui causam dant crimi-
nis-é muito mais clara e comprehensiva do
que a disposição tripartita do artigo 4 do
Codigo.- Por quanto, ao passo que ali o
conceito da autoria tem uma base philoso-
phica na larga e fecunda ineia da causalida-

(2) Rossirt.-Ent1Vicklung deI' (}I'undsátze des Stmf1'e-


chts-253.
-198 -
de. vemo-lo aqui subordinado e restricto á
tres ordens de factores Oll grupos de sujei-
tos, que não abrangem logo intuitivamente
toda a extensão genel'ica das causações cri-
minosas. E dahi o estado de permanente
controversia, nas qllestões de applicação
pratica do referido artigo. .
Com efteito, diz elle: «São criminosos
como autores os que commetterem, cons-
trangerem ou mandarem alguem commetter
crimes )l-Muitissimo bem, se estas tres ul-
timas proposições, ou por as im dizer, estes
tres segmentos dés em a somma do ciL'clLlo
inteiro da realidade dos factos,
Não é porém dubitavel Iue tal condição
tenha sido preenchi la'l O Codigo não parece
lacunoso ~ Considerado como [[ma denni-
ção da autoria, o art. 4 é urna fonte de c1is-
plltas, pois que o sujeito e tl1f1stra mais ex-
tenso que o attributo. Na :-oimples expressão
-os que commettaem,- por menos IuesLio-
navel que eLLa pareça, ha sempre motivo de
duvida. inguem hesita, é verdade, sobt'e o
que seja e em que consista o facto de r,om-
metter um c1'ime. As !Doeial idades . ão innu-
meras, porém a forma é uma só ;.- a de pra.-
ticar a acção criminosa por sua propria
conta, de modo que a vontade do delinquen-
te é a causa unica do delicto. Mas isto não
basta para deixar tudo liqu:do Os casos de
coautoria immedi.ata, em qlle muiLos indi.-
viduos se reunem para a realisa ão de um
crime, que entretanto um 'omente d'entre
elles é sufficiente para commettel-o, e de
facto commette-o,--como serão devidamente
apreciados, de accordo com o Codigo, se
-199 -
este não pôz em relêvo a ideia de uma tal
coautoria" Qualquer dos associados é um
autorperpetrante, ou dado o crime, na hy-
potbe~e figurada, por um só do grupo, ficam
os outros para com ene na relação de com-
plices? A doutrina está assentada sobre
este ponto; mas ninguem dirá seriamente
que o codigo tenha-o collocado á cima de
qualquer contestação. O mesmo acontece
com a autoria dos que const?·angem... Não é
que eu julgue digna d.e nota a falta de dis-
tincção entre o constrangimento physico e
psychico, falta que aliás parece ter sido sup-
prida pelo ~ 3 do artigo 10, ai nda que me in-
eline á crer queabi mesmo se trata somente
do constrangimento. ps 'chico, pois o pby-
sico, pela nimia raridade, não estava no caso
de uma inducção juridica :. ad ea potitbS debet
ctpta?'i J'us, qWJ3 et fl"eq1tenter et facüe, quam
. quce pm'ral'Q eveniunt. Nem tambem faço ca-
bedal de acharem-se confundidas a vis abso-
luta e a vis compulsiva, desde que pratica"
mente os resultados são os mesmos. Ou tra-
te-se'de uma coacção qe tal arte, que fica
sempre livre ao coagido reagir contra lla,-
caso em que o const1'angente pode en traI' na
categoria do mandante, ou se trate de um
constrangimento absoluto, que não deixa
espaço para a liberdade,-- em ambos os r.a-
sos o constrangente é criminoso como
autor. Porém a cousa não é assim tão sim-
ples, como se suppãe. Os factos de cons-
trangimento absoluto podem complicar-se
de uma. circumstancia particular, que gera
llma questã? difficil, até hoje ignorada pela
- 2ÔO-
sciencia e pela praxe (3). Eis aqui.: - exis-
, tem certos crimes, por cuja natureza está
determinado que só possa ser considerada
como agente punivel aqu Ue que praticou
mesmo physicamente a acção externa, que
contém us caracteres objectivos desses cri-
mes, nos quaes, por conseguinte, não se
concebe que o autor punivel possa' utilisar-
se da actividade de uma outra pessoa como
meio de executar o acto exterior criminoso.
Estes crimes são, entre outros, os mencio-
nados nos aTts.169, 22'1,249 e 250 do Codigo.
Comprehende-se facilmente que alguem
possa commetter um homicidio, forçando,
por exemplo, uma enfermeira á dar ao seu
enfermo, em vez de remedio, veneno. Com-
prehende-se a possibilidade de falsificar-se
um documento, de subtrahir-se um papel
verdadeiro. por meio de outrem, que á isso
se constrange. Mas não é igualmente cum-
prehensivel que se possa commetter um
perjurio ou um incesto, por intermedio de
outra pessoa, que constrangidamente os
pratica. Esta differença c.onceitual dos de-
lictos involve, como se vê, urna llllestão mo-
mentosa, com a qual entretanto não é aqui
o lugar proL rio de occupar-me, segundo a
sua imnortancia. Enunciei-a somente como
um exe~mplo da difficuldade enorme, em que
nos collocam o Jitteralismo jurídico, não
permittindo que certas lacDnas da lei sejam
suppridas por outro caminho que não o da
reforma, e o chauvinismo nacional, para

(3) Gamp-Gel'ichtssval- Bd. XXVII- 72.


- 201-
quem o Codigo é um chef-d'ceuvre da sabedo-
ria humana, cuja reformabilidade é tão ín-
comprehensivel como a do decalogo.
Além dos que commetteTem, e dos que con-
st1'angerem, são ainda cri,rlÍnosos, como au-
tores,- conclue o art. 4. -o que mandarem
alg~lem commetter c?'Ímes, E' O tJonto cen Lral
da nossa these. Já vimos que a autoria ím-
mediata, a autoria propriamente dita, ma-
nifesta-se debaixo de um só schema: o de
perpetrar o agente a acção punivel pOJ' si
mesmo, sem o antecedente causal da vonta-
de de outrem; assim como o constrangi-
mento se dá sob duas formas unica,s,- a
physica e a psychica,- sendo que cada uma
deltas é ainda manifestavel sob uma du pIa
forma,- o da vis absoltlta e o da vis compul-
siva. Quaes são agora os modos de ser da au-
toria pelo mandato? Eis a questão.
II
Logo em principio importa observar que
o Codigo não usa mesmo da expressão-
mandato;- foi a doutrina quem a creOll e
introduziu na praxe. Mas em vez de escla-
recer, a doutrina concorreu, dessa maneira,
para turvar a ideia da cúusa; porquanto, já
existindo determinado na esphera juridico-
civil o conceito do mandato, como Luna das
formas que tomam as relações contractuaes,
era facil transportaI-o ao dominio do direito
penal, e provocar destarte, como de facto, a
mais estranha confusão. O mandato crimi-
nal ficou assim reduzido á propor ões aca-
nhadas, e muito aquem dos limites, que lhe
- 202-
foram, segundo supponho, traçados pela
propria lei.
Com effeito, o Oodigo diz que são tambem
criminosos como aI) tore os que ... «manda-
rem alguem commetter crimes ».-Mas o
que é e em qlle consiste manrlar alguem
commetter um crime?' A casuistica ordi-
naria do mandato, isto é, a figura ão dos di-
v~rsos modos, porque se pode mandar al-
guem prat.icar uma acção ou omissão puni-
vel, não 6sgota a ideia contida nessa dispo-
sição, se não é que se pretenda attribuir ao
legislador uma estreiteza mental digna de
lastima. Eu creio que elle não pensou cla-
ramente, até onde podia estender-se, no
mundo dos factos, a participação criminosa
do mandante; mas não é criveI que eUe
tenha querido restringir á tal ponto a ideia
do mandato, que bastasse uma duse de ha-
bilidade, á cima do commum, para o autor
intellectual de um delicto desviar de si o
raio da justiça. E' preciso ás vezes estabe-
lecer 6st.a distincção entre o pensamento e
a vontade do legislador; sem o que não ba
meio de justifical-o em mais de um ponto,
que se apresenta como erroneo e extrava-
gante.
Na formação e applicação da lei, o legis-
lador ind1Lz e o juiz deduz. A' sciencia com-
pete ratificar as inducções de um, e escla-
recer as deducções do outro. .
E' fóra de duvida que o nosso legislador
criminal exerceu mal a sua funcção logica,
entendendo subsumir ou induzir sob a ex-
pressão os que mandarem alguem commetter
crimes todos os casos, em que um homem
- 203-
influe, persuade e determina outrem á prac-
tica de uma acção criminosa. Nenhuma
das diver as accepções elas icas do v( rbo-
manclc1lr- é bastante comprehensiva para
constituir uma synthese desses case. (4).
Mas é tambem certo que elle não quiz, nem
podia querer a impunidade de um em nu-
mero de factos,visivelmente delictuoso ,sob
o pretexto de não darem no molde ordi nario
de uma Q1'dem, commissão 01t enca1'go directo
para aIguem os perpetrar.
Talvez se me objecte qlle abi mesmo ú que
reside a questão, isto é, em saber se O~ au-
tores mencionados na ultima parte do art. 4
vão alem do que oTclenam,commissionwn on
enca1'l'egam, outrem da perpetração ele um
crime; objecção e ta,qlle ainda pode er re-
forçada pela consideração de ficarem com-
prehendidos na amplitude do art. 5 todos os
que, não obstan te provocarem a ideia elo de-
licto e seu commettimento, nãu se deixam
todavia medir por aquella bitóla. Porém isto
é ina<.:ceitaveL Admittindo, por hypotbese,
que o Codigo tivesse querido realmente li-
mitar, como figuramos il autoria do man-
dante, o que elle teve em mira, nesses limi-
tes mesmos, 'punir mais fortemente que
qualquer outra participação delictuosa, e
elevar, por assim dizer, á segunda potencia
da crimioa.lidade, não foi por certo a {ot'nw
dessa autoria, mas somente o seu conteúdo.
Ora este é o facto da juncção de duas causas
\'olunt<lrlas e livres} influindo uma sobre ou-

(4) Vide-Aulette- verbo mandar.


-204-
tra, para produzirem um phenomeno cri-
minoso_ Mas esta causação complexa não
se dá unicamente pelos modos indicados.
Qual seria pois a rasão, por que o Codigo de-
vesse restringir a;;;sim o circulo da autoria
mediata, corno quem atlribuisse mais peso
ao acciden te elo (lue á substancia do crime?
« Qnando o legislado!" diz Merkel, opéra
com ideia.s, que não se acham desenvolvi-
das dentro do espaço da legislação, não in-
cumbe ao jurista immergir-se ~la alma delle
e tirar de lá a definição e fixação dos con-
ceitos questionados. Por quan to o silencio
do legislador nào pode ter o sen tido de uma
proposta de enigmas. Esses conceHos, ou
fazem parte da sciencia, ou entram no do-
minio intellectual do povo. O legislador in-
dicando-os, sem exprimir um modo particu-
lar de Gomprehendê-los, sancciona a intui-
ção que vigóra na esphera, á que elles per-
tencem-(5) ».
Tal é pouco mais ou menos o nosso caso.
Ao tempo da confecção do Oodigo, a ideia
do mandato em materia criminal era uma
dessas que não se achavam bem desenvol-
vidas dentro do espaço da legislação; mas
já a sciencia tinha chegado á alguma cousa
de certo e determinado neste sentido. Nào
era licito ao nosso legislador interromper a
continuidade do desenvolvimento juridico e
presuppor para eSS8 e out?-OS conceitos do
genero uma extensão inferior áquella que a

. (5) Holtzendorlf's Handbuclt eles deutschen Stm(rechts


-ll72.
- 205-
sciencia lhes reconhecia. Nós tínhamos, é
verdade, um meio efficaz de tirar á limpo a
in tenção do legislador;- era recorrer as
fontes directas do Codigo e assistir de novo
á sua genesis, pela leitura das discussões
parlamen tares; porém os fastos do parlá-
menta são pauperrirnos de dados instructi-
vos á ta Lrespeito (6).
Resta-nos pois, sem que aliás tomemos o
tl'abalho de mergulhar na alma de L[uem fez a
lei, somente apreciar os materiaes que esta-
vam ou podiam e tal' á disposição do legis-
lador, para forrnt~la1' o artigo do Codigo, á
lue nos referimos, e na parte que nos inte-
ressa.
O mandato criminal já existia na velba le·
gislação portugueza, á que eram os ujeitos,
e justamente nos termos, em que o nosso
legislador o aclmittiu, quero dizer, como um
equivalente da autoria physica.
A Ord. do Liv. 5.° til. 35- pr. e § '1 falla
de qualquer pessoa «qne matar outra, ou
mandar matanl-bern como de «toda a pes-
soa que á ontca dê!' peç.onha para a matar,
ou lha m,andm' dár)). Já se vê paI' tanto que o
Codigo braileiro, desviando-se, no modo de
compreht-mder o mandato, da doutrina con·
sagrada pelo Code pénal, que em alguDs ou-
tro pontos lhe serviu r1 mod lo llào teve

(G) O [ue, á meu \'el', a!)pul'Oceu de mai ignificativo


na occasião em que se tratou de emelbante as umpto,foi
a oITert- feila -á Camu1'3 por.To é Silve tre Rebello de UOJ
exemplar do Codigo criminal da Lniziun<l (Sessào de 12
de maio de 1830).
- 206-
outro meríto senão o de manter-se no ter-
reno ela historia.
O que l1a de propl'io c origi nal de sua parte
é a maior generalidade da fot"l~1Llla legal, tra-
çada para todos os crimes, e não para esta
011 aquella especie somente.
Porém no seio da velha legislação meSITla
já a ideia do mandato, em sua significação
primitiva de oTdem ou enca1"go directo de
commetter um crime, se havia diffe"enciado
e assumido outras formas. E' assim que a
citada Ord. do Liv.. 5°. til. 54 pr., tratando
do falso testemunho, diz que a mesma pena
do perj uro baverá o que induzir', e CO?TOrnpe1"
alguma testemunha, fazendo lhe testemu-
nhar falso .... Nestas condições, não é criveI
que, quando a lei an tiga formára uma ideia
mais larga da autoria intellectual, não a li-
mitando ao simples mandato, o Codigo bra-
sileiro retrocedesse alguns seculos, e fosse
collocar-se quasi no ponto de vista da pri-
meira phase evolucional do direito em ital
assumpto.
Mas não é tudo. Nada obstava que o legis-
lador criminal. por força de um liberalismo
ignorante ou de uma ignorancia libera li an-
te, que estava então na epocha de sua me-
lhor florescencia, entendesse realmente de-
ver abandonar os presuppostos bistoricos
de um novo direito penal, como barbaras,
despoticos e em regra menos favoraveis no
criminoso elo qLle á SLla victima, e quizes e
tomar um outro ponto de partida. Admit-
tamos pois que assim fosse, e que o legis-
lador não tivesse com effeito querido dar á
autoria intell.ectual se não o sentido estricto
- 207-
do mandato. Qual seria a consequencia?
E' que elle teria saltf:do por cima de millen-
nios, e revestido dest'arte um caracter de
anterioridade ao proprio direito romano l. ..
Retiro a hypotliese; a consequencia é ab-
surda. Vamos á provas mais positivas.
III
A ideia da participação cnmmosa ou da
codelinquencia não era desconhecida dos
romanos. Mas levanta-se a questão de saber,
se o respectivo direito estabelecera o princi-
pio geral de uma punição contra toda e
qualquer par ticipação do crime; e ba quem
responda negativamente. Entre outros, Rein
assim se exprime:- « O direito romano não
tinha um principio geral sobre a penalidade
do autor e dos mai.s concurrentes,-como
em regra os romanos não gostavam da ge-
neralisação;- mas elle dava para cada cri-
me determinações especiaes, e na maioria
delles col1ocava a actividade do autor e dos
participantes nas mesmas condições de pe-
nalidade; o que e ex.plica pelo facto de
que o direito romano, logo que dei.xoll atr2.s
de si o primeiro grau do seu desenvaivi-
menta, enttOU á dar menos valor á relação
objectiva do que á manifestação da má von-
tade» (7). E nesta opinião Rein é secundado
por I-1alschner, que tambem diz :-({ O direi-
to romano é de pouca importancia para a
doutrina da codeliquenda; ainda que o fac-

(7) C'l'iminaln!cht der ROmer-'185.


- 208-
to de um concursus plurium ad delictum não
.lhe tenha escapado, ainda que em geral ene
faça menção dos socii e mais detalhadamente
do provocador e dos auxiliadores do crime,
todavia falta-lhe o conhecimento da distinc-
ção essencial da culpa dos diversos parti-
cipantes, tanto que todo o interesse con-
centra-se em saber, quem é, em regra, pu-
nivel como autor, ao passo que a differença
conceituai das especies de participação é
posta de lado » (8). .
Entretao to, por mais respeitaveis que me
pareçam o dois escriptores citados, sinto-
me obrigado á rejeitar as suas opiniões. E
isto, ainda Iuando acbasse-me sosinbo no
l1Jodo de ver coo trario. Porém felizmente
não estou só. Em primeiro lugar, e em fa-
vor da ideia de que os romanos não foram
tão maus criminalista , quan tu aquelles es-
criptores parecem suppor,eu encontro apoio
na anloridade de Kô tlin, que se exprime
desta maneira :-«Não raras vezes ouve-se
af[Jrmat' qCle o dir81to penal foi tratado com
escassez pelos j LlristaR romanos. Mas isto
sem razão. Neste dominio elLes prestaram e
deram tudo que podia-se esperar de taes es-
piritos. Uma grande parte do direito penal
romano e tá intimamente ligado com o di-
reito privaria, e é ilhi exactamente qUA as
fontes romanas correm tão abundantes,como
em qual luer .das part2s mai bem elabora-
das do eu direito» (9). Em segundo lugar,
e 00 que toca em particular á questão da co-

(8) ystliem eles Preuss. Strctfrechts. Bd. '1-301.


(9) Lelwe vom MordI! und Todschlag-'17
- 209-
delinquencla, maxime da autoria intellectu-
aI, basta que os textos tenham quem os in-
terpelle. O trabalho é penoso,porém fecundo.
Bem antes que os juristas dos tempos mo-
dernos chegassem á construir uma theoria
completa sobre o assumpto, já os romanos
haviam-na formulado e traduzido na pratica,
dando á concurrenci:l. moral e autonomica,
na esphera criminal, o mesmo valor juridico
da autoria pbysica ou autoria propriamente
dita. E' verdade que a participação positiva
não apparece no direito romano sob uma
forma geral para todos os delictos; mas
nota-se que todas as especies de influencia,
que se possa prestar á acção dos outros:
foram ahi tomadas na devida conta. Os
exemplos silo em grande numero, porém li·
mito-me aos seguintes, tirados do disposto
á respeito de crimes bem diversos entre si.
Assim lê·se na L. 11. D. De injuriis et fa-
mosis libellis-(47, 10) Non solum is injuria-
rum tenetur, qui fecit injuriam, hoc est, qui
percussit, vemm iUe quoque continetLU', qui
dolo (ecit vel qui eumvit, ut cui mala pugno
pcrcuteretur. (Comparar com Inst. liv. 4.
tit. 4. § 1'l.)
Do me'3mo màdo :-L. 15 D. ej't~sdem tituli.
-Ait prretor: qui adversus banas mores
conviclLlm cui fecisse cujusve opera factunl
esse dicetur, quo adversus bonos mores
convicium fieret: in eum judicinm dabo.
Assim tambem : - L. 4 § 4 D. Vi bono7'um
mptorum et de turba (47,8)-Hoc autem edic-
to tenetur non solum qui damnum in turba
dedit, sed et is, qui dolo malo fecerit, ut in
turba damni quid daretur.
J!~
- 210-
Mais ainda :-L. 1 § 1 D. ld legem JLtl'iam
majestatis (48,4) ... quo teneLUl' is, cujus ope-
?'a dolo malo consílium initum erit.
Não fica ahi. L. 5 D. de extrcw?'dina?'iis cl'i-
minib'!.ts (47,'1l) ln eum cujus instincttt ad in-
famandum c10minum servus ad statuam con-
fugisse compertus erit, &&:.
E mais: L. 7 D. Ad legem Juli(tm de '/,Ii pu-
blica (48,6) ... de vi publica tenetur, qui ne-
caverit vulneraverit,jtl.ssel'ilve quid fieri.
L. 7. § 4 D. A?'bor-wn tUTlim cmsamm (47,7)
Sive antem quis suis manibL1S, sive dLlll1 im-
perat servo arborem cingi subsecari coodi,
hac actione tenetur. Idem et si libero im-
pe1'et.
No mesmo circulo de ideias :-L. 11 § 5 D.
De inj'/,wiís et famosis libellis (47,10) Si man-
datu meo facta sit alicui inj uria, plerique
aiunt tam me qui mandavi quam eum qui
suscepit injuriarum tener1. ProculLls recLe
ait si in hoc te cond/lxerim, Ll t inj mia 111 fa-
cias, cum utroque nostwm injurial'llm agi
posse, quia mea opem facta sit injuria. 1dem-
que ait et si filio meo mandavero.
Lo 5 Cod. De acctLsationibus et inscl'iptioni·
btts (9,2) ... prooter principalem reum, man-
dato1'em quoqLle ex sua personu conveniri
posse ignotl1m non est.
L. 1. D. Acllegem JLtliampecttlattts (48,13) ...
ne quis ex pecunia... aufel'at neve in rem
suam vertat neve faciat, quo qLlis élu[et'iêlt,
&&c.
L. 8. 32 § 1. D. iid legem Juliam, de arlttltel'iis
coeTcendis. (48,5)-Ql1i domnm suam, Llt stu·
prum fieret, sciens proool1erit vel quoosLum
ex adLllterio uxoris SLiOO fecerit,-qllasi adttl-
- 2'1'1 -
ter punitm.-Non tamen prohibetm accu-
sator... eum quoque accusare, qui domum
suam prcebuit vel consílio (uit, ut crimen re-
dimeretur.
L. 50 § 1. D. De fUl'tis (47,2) ConsiLium au-
tem dare videtur, qui pe?'stutdet et impellit
atque instntit consílio ad furtum [aciendum ..
L. '1. D. De lege Pompeia de pa1'1'icidiis (48,9) ..
si quis patrem matrem.;. occiderit cujusve
dolo malo id factum erit etc., etc.
FinaLmente: L. '15. D. Ad legmn C01'neliam
de sica?'iis et veneflcis (48,8). NihiL interest,
occidat quis an causam 11'WTtis pl'mbeat.
Do exposto é faciL de inferir que ideia for-
mavam, e que importancia attribuiam os
romanos á participação intellectual. As ex.-
1 ressões-cttjus ope, c.onsilio, cujus dolo malo
icl factu11'I, uit, quive id (t,eTi y"LbSSel'it {acienclum-
ve c/'braveJ'it, e outras que apparecem em
quasi todas as leges juclicio?'Lbm publico?'tbm,
são características da maneira por que eLles
comprehenc1iam o papel dos instigadores,
provocadores e maus conseUwiros na gene-
tica do crime. Não era somente pelo nUln-
clattbm ou pelojLlssus, que podia dar-se o cor-
reato da instigação, puniveL com as mesmas
penas imposLas á acção principal. Mas to-
dos os modos directos e indirectos, porqu
algLlem induzia outrem, fazia qLle outrem
(tecerit, 'ul) commettesse este ou aqnelle de-
licto, entravam na comprehensão da anto-
ria moral. Isto é claro e indubitavel.
PosLo ele parte o direito canonico,em mais
de um ponto influencíad.o pelo direito roma-
no, porem sempre dirigido pelo principio da
subjectividad e attendendo menos para o
- 2'l2-
cJ'ime do que para o 1Jeccado, é licito affirmar
que a ideia romana da parLicipação crimi-
nal, Gomo acabamos de expôl-a, acbouapoio
no espírito das epochas e legislações poste-
riores. A velba escola jmidica italiana, re-
presentada por nomes, como, entre outros,
Clarus e Farinacius, foi quem primeiro su-
jeitou o conceito da codelinquencla a uma
clialectica rigorosa. JulilJS Clarus lwinci-
palmellt.e, em seus-Sententia?'WnTeceptw'um
libl'i, quinque-, firmou a cloutrina, sob o pon-
to de vista triplice elo consilium, do manda-
ta,ln e do aU;,t;iliwn. E não deixa de ser nota-
vel que muita cousa do que 0110 disse, ba
mais ele trezentos annos (i5GO),ainda hoje go-
ze,entre os criminalistas,de geral acceitaçào,
crl1ando nãu acontece que alguns, menos /i-
dos elo que é preciso, c1(~m como verdade
nova e descoberta propl'ia aquillo qne o íl-
JLlsLl'e contemporaneo ele Gior'dano Dl'unojú
cOllsiderava liquido e esclarecido. (tO) Fa-
J'ínacius. por sua vez, OCCLlpou-se éla qlles-
ttiu e Cu-Ia. render. aPllicando-lbe uma larga
ccl,.'uistica, em relaçuo á todos os persuaden-
ies, inflcunmantes instigante:i, hOJ'luntes, inci-
tantes etinst1'nentes,·--nam persnasio, inflcunma-

(11l) Por c'\c:npl'J:-l1lll1oit r,iI:1I11p~) cm slla mOl1o-


g"rapilia :oilro a complicidadc, qlle IlÜO dei'\il (le ser il1-
InrcsS:ll1lr, pal'ece exultar de haver Cl' ,](10 lllna forlllula
p'\r:1 rlistinguir o aula!' do complice' e e a segllinle :-0
f;lelo rm que 1;10 deli na cimento n crime, Oll somenh)
facllilou-o?- i lO primeiro cu o, co-autoria; no l'guntlo,
complicidade, Ora> c_le modo de I' 1', que C!lalllflr illge,
1I11aUlellle '!lama-noll'lJ Iltcol'ic)-Jlllills Clal'lls j;OI o ro-
nllrrb al{' os (1rlnl11r;; !o"
- 2'13-
l'io, instigatio, !Lorlatio, insLl'tlclio uon clirrerl a
consílio. E O consell1O, segundo elJe, de ac-
corda com Clarus, equivalia ao mandaLo, no
sentido de dever-se impor ao consellleü'o a
mesma pena lue ao autor aconsell1ado. 1"a-
rinacius,---pocle-se dizer---cleixou a' entada
a doutrina du conseH10; e a elle rel11ontan~
1GtH) muitas ideias, que hoje são triviaes na
theol'iJ. e na praxe criminal. (1'1)
Passando ás mãos elos criminalistas suc-
cedentes, a doutrina da autoria mediata
p6d - ter-se enriquecido intensiva, mas nào
extensivamente. Foi assim que, por exem-
plo, Benedicto Carpzow, ú quem tl scien 'ia
é ele\'l::clora ele não poucas acquisições,man-
teve os dados ele seus antecessores italia-
nos, apenas aelclicionando-Ihes alguma cou-
sa de novo sobre a tl1eoria da ?'eceptatio.
Dest'arte a ideia do mandato, luero dizer,
da auLoria intellectual, em slIa evotução
historica, entrou no dominio elos temp'Js e
dos Codigos modernos.

[V

Na serie das leis penaus do vigunLe seCII·


lo, o Codigo CrimiL~al bra ileil'o occupa,
cl1roI101ogir.amente, um !LIgar il1 termecl.io ;

(I J) Enlrc ouLra~, a C:-'pl' ão c a ideia r1ecorpo de ,le-


liclo:- Jnqui ilionclu nou po c conLra ali([llCm formari
lJisi cOllslel de "OI'JlUI't' dalieli, dixi.
- 2'14 -
e é muitissimo provavel que dos sellS ante-
ceden tes, fosse ao Goele Penal sobre tlldo,
que eIle peuisse inspirações. Isto até naquel-
les artigos, que dIvergem do modêlo, e nos
quaes se nota, como no art.' 1, um intuito
allusivo ao legislador francez. em sempre
o nosso Codigo foi feliz nes"as di vergencias;
mas tambem é innegavel Iue o legislador
teve seus momentos de bom senso juridico,
desvidndo-se de proposito da trilha do Goele
penal. Foi assim na delimitação dos concei-
tos de autor'ia e compliciclade. Ao passo que o
direito francez restringira uma ElOS actos
executivos ou de concurrencia material e
directa para a execu(/ão de um crime, e a ou-
tra aos actos de participação se~undaria,
como e11es são de6nidos no art. 60 do Goele,
a nossa lei penal afastou-se desta norma,
distribuindo os autores em tres classes, e
não dando á complicidade outro caracter
j uridico se não o de ser, genericamente, a
concurreneia directa para a execução deum
crime por meiús c1iver.-os dos meios co-
operativos, já elevados á posição de aL1tll-
ria. E ao passo lambem LJl1e pela. lei fran-
ceza o mandato ficou sendo um modo de
l'cLnccionar como complice, pelo nosso 00-
digo, ao contrario, o mandato veio á expri-
mir urna funcçào de autor. Verdade é que,
na pratica, esta c1ifferença entre as duas le-
gblacões quasi que n~o tem importancia,
em virtude do principio de assimilação penal
de compl\ces e autores, seguido pelo Gode.
Ma mesmo assim, permanece incontesta-
vel que o nosso legislador andou mais bem
- ~15-

avisado na sua mane'ira de apreciar a crimi-


nalidade do mandato.
I áo cabe aqui, por ser estranho á nossa
questão, fazer a critica. das vistas contrari<i.s
Ú dou~['ina consagrada pelo Codigo. O que
nos importa, é mostrar que o mandato, con-
siderado por elle como cansa sUfliciente paTa
p1'odu:;i1' o effeito criminoso, como diria A.
Feuerbach, i to é) o mandato, qualiticado de
au oria, não vai somente até onele chegam
as ideias, qne vulgarmente aeompanham
':JSsa palavra, porem muito além. Os motiyos
que poderam determinar o legislador á con-
ferir á actividade mandante um augmento de
valor j mielico 'obre a complicidade em ge-
rai, são os mesmos que me determinam á
crer q1l8 a ultima parte do art. 4 é muito
mais ampla, do que a lettra da lei parece
signifi~ar.
Esses motivos foram banrido,' na relação
de causalidade que exist entre a acção do
manelan te e o delicto, mediatizados pela acção
do mandataria, e nestas condições, não ha
razão de suppor qLle outros factos, anele se
estabelece uma relaçào identica, eleb'.em de
ler' os caracteristicos ela autoria, só por que
a linguagem vulgar nilo lhes dá o nome de
mandato.
Para que um homem seja re [1oosavel por
um phenomeno offen ivo do direito, é antes
de tudo preciso que entre uma acção ou
omissão do mesmo homem e o phenomeno
criminoso haja um nexo causal, isto é, que
uma acção ou omissão sua seja causa me-
diata ou immediata desse facto. Ora, é por
força deste principio que o mandante: no
- 2'10 -
sentido ordinario da expressão, é responsa-
vel pela acção criminosa do mandatario.
Mas só se diz que um homem é causa da
acção de outrem, quando e11e, intencional
ou não intencionalmente, o determina de
qualquer modo á praticaI-a.
Não é portan to admissivel que o legislador
tivesse considerado como o unico modo de
'ser causa moral de um crime alheio,de deter-
minar alguem á perpetrar um crime, o man-
dato em tErmos restricto::>, o mandato impe-
?'ativo OLl de commissão. ('12)
Dir-se-ha talvez que esta maneira de in-
terpretar é por extensão aoalogica, incabi-
vel no direito criminal. Vas eu declaro alto
e bom som que nào tenho, como os crimi-
nalistas francezes e seus epigonos, um fanto
hO?TO?' da analogia (13). Não conheço [lO ge-
nero maior extravagancia.
Hegel disse uma vez qLle um juizo acerta-
do, quando succede tornar-se bem commum

(J2) A expressão-causa moral-(calJsa ?/toralis) appli-


cada ao mandantc, remonta á Bohemcr, no 8eclllo pas ado.
(l3j Como se a alJalogia não fossc llma operac:ão logi-
ca. tão cumpctente como (Jualqucr outra ~ O ridiculo
desta espccie de onalo{jo]Jhobia sobe de ponto entre nós,
qllB temo um Cocligo, no qual a anall)gia representa lJm
imporl:ante papel. Por exemplo ;-l1ão ha artigo de lei,
que ordeno cxprc samcntc a punição do mandante;
quando pois, vel'bi {j)"lflia, o mandante de um bomicitlio
vae acnbal' seu~ dia na cadeia, é só cm virtllde de llm
1':Jciocinio analogico. endo :IS. im, para qlle tania medo
da noalogia,?!
- 2'17 -

da multidão, converte-se de repente em um


tôlo prejuizo. A exactidão destas palavras
se manifesta ao vi.vo na questão da an'tlogia.
E' uma verdarle que o raciocinio anaIogi-
co não deve ser empregado abusívamen te no
direito criminal, isto é, no sentido de multi-
plicar os delictos, pois á estes se pode adap-
tar o pensamento do pl1ilosopho medieval
á respeito dos seres :-non sunt mtdtiplican-
da prcetel' necessitatem.-Mas o vulgacho dos
criminalistas apoclerOtt-se dessa verdade e
transformou-a n' llma tolice,á Gujos encan tos
já não resistem uté espiritos notaveis. (14)
Qual seja porem a razão por que a analo-
gia, em toda e qualquer l1ypothes8, deve ser
excluída do direito penal, é o CJ ue ninguem
ainda tomouo trabalho de dizer-nos de modo
satisfactorio. Dado que fosse, todavia) evi-
dente e irrecusavel o qne pretendem esses
senhores, a nossa causa ficava no mesmo
pé. Não é tanto pelo que... ad e.xemplum legis
víndicandum est, como pelo que... ex sC1'ip-
tum legis descendit, 1ue a autoria intellectuaJ,
de que trata a ultima parte ào art.---4 do Co-
digo, se me afig~wa um conceito de propor-
ções mais largas do que as palavras do
mesmo artigo parecem indicaI-o. Etsi max?:-
me vel'ba legis htmc habent intellectum, tamen
mens legis~ato1'is aliud V~ttl. Assim, e dentro

(J4) Huus-Principcs genel'tlux <lu dl'oit pénal belga-


-J5] •
O que esle :lulol', aliás com;jrleravel. bem que eja dos
que ainda sotfrem ela mnnia Ll'an ccnrlenlal dos: ]JI'inci-
1JeS élel'ncl' du,juslr, fJSCl'eVClI sobl'e lal assumplo, " dig-
no de lustima.
- 218-
das raias da propl'ia lei: a ideia do mandato
estende-se á todos os casos, em que um in-
dividuo, sci.en$}Jl'uclensque, determina outrem
a commetter, tambem sciente e consciente-
mente, uma acção ou omissão criminosa.
Tal a intellig-encin, que reputo a unica
verdadeira, da respectiva disposição do Co-
digo. Ahi se acba comprehenelida toda e
qualquer influencia psychologica ou intellec-
tual, provinda ele uma pessoa e exercida
sobre a vontade de outra, que é levada, por
for'ça dessa mesma influenc"ia, l-\ tomar uma
deliberação e perpetrar nm certo crime; is-
to ao envêz do que se dá, por 11m lado, com
a coacção pb sica OLl psychologica, pela
qual a vontade desappal'ece e o pretenso
perpetrador se converte em instrumento nas
rriãos do coagente, e ao env ~z do Lfue sllcce-
de, poe outro lado, com a complicidade in-
tellectual, que limita-se a confirmar e refor-
çar no autor a deliberação já existente.
As exigencias conceituaes do mandato,
assim exposto, são as seguintes :-'lo-que a
vontade do mandante se tenba proposto
praticar uma acçilo punivel, el'ta ede/i,niclCl,
pelo medútm da actividade physica de ou-
Uem; 2.° que elle, em consequencia des 1 e
animLtS clelinquendi, tenha det-rminado, por
um meio effica::;, uma outra pessoa á com-
metter a acção criminosa; 3.0 que e sa ou-
tra pessoa, em virtuue da detel'mina(',ão de
sua vonta 1e por intel'medio elo mandante,
tenba commettido a acção respectiva.-E'
facU mostrar: existe uma distincção essen-
cial entre o mandato e a aLltoria propria-
mente dita' e éque naquelle a acção l'uni-
- 2'19 -
vel comrnettida e a vontade criminosa do
mandante sao medializadcLs pela vontade cri-
minosa do agente physico,ao passo qlle nes-
tao crime tem sua ausa unica na vo tnde
do autor. Ainda faz parte do coneeito do
mandato,-que exista entre o acto do man-
dante e o acto do mandatario não só um
nexo causal, mas tambem um n xo chl'ono-
logico ele antecedente e consequente. A
vontade dolosa do mandante é sempre ante-
rior a von tade dolosa do mandataria. Esta
circumstsncia torna comprehensivel que o
mandato, quando se dirige a um ,jam alias
factttnts, se reduza á simples complicidade,
bem como que a aprovação posterior dada
á um crime, por mais significativa que ella
seja, nüo possa t0davia assumir o caracter
de au toria moral.
Eu disse que o mandante devia det~rmi­
nar o mandataria, por 'um meio efTlcaz, a pra-'
lica do delicto. Mas esta efficacia do meio
é toda relativa ás condições pessoaes, ás
condições de tempo, lugar e outras, em que
se acha o autor. Não l1a mistér de meios
geralmente conhecidos corno fortes, pura in-
duzir outrem á praticar um acto criminoso.
O contrario importa uma opinião erron a,
C[ue arrasta censequencias exquisitas, se
nào disparatadas.
Foi assim que Mittermaier via se obriga-
do, por força desse erro, á excluir a cO?n-
missão dos meios de mandato (15). Asso-
cio-me neste ponto á opinião de Haeberlin,

(1-) tll'clti,; des Cl'imiltall'cl'lIts-A d. 3, 125.


- 220 --
o qual diz que para o conceito do mandato
é inclifTel'ente saber, por lue meios o agente
foi determinado a realizar o delicto ('16). O
principio é app1icavel ao casso direito, ex.-
cepto quanto a um OLl antro caso de concu?'-
sttS necessa1'ius, como a peita e o suborno,
onde o meio do mandato, que é a paga QLl a
influencia pessoal, é um elemento snbstan-
ci3l do crime; porém no mais, pode ella
apenas alguma vez constituir circumstancia
aggra van te .
E' impos3ivel enumerar os meios, de que
o mandante pode servir· se para faze?' nascer
no animo do mandatario o conhecimento elo
I al e a intenção de o praticar.
A vontade hu.llana tarnbem tem ti sua me-
chanica, e ha mistér de f01'ça.) que ponham-
na em jogo. Se é certo que urna vontade
energica pesa mais que o mundo, e oflerece
menos que o mundo L1m ponto de ar,oio ú
alavanca de Archimedes, é igualmente cer-
to que uma vontade fraca se amolga com
facilidade á pressão dos homens e das cou-
sas. Os meios que determinam alguem,-e
esta determinação é sempre ull1a [nlllLl:.lza
-á commetter uma acção criminosa, são
innumeros, é verdade, mas podem reduzir-
se á classes, que a.b-I:angem qua i todos. As-
sim costllma-se mencionar a cvmmissão,-
que nào precisa ser expressa por palavras
algumas vezes basta que o seja por gestos e
signaes,-a ordem, a vis compulsiva, até onde
esta deixa in tacta a liberdade de obrar; a

(I G) Gerichtssarrl : &. - G'2 L


- 2'2'1 -
suppliw, a suscitação ou utili:;ação PI'oposital
de t.f,m CI'1'0, até onde tambem este não ex-
clue a imputabilidade, o lottvor, e o applatL-
SO, o conselho e mesmo a cXjJ1'essâo de ?,I.m de-
sejo, como as f01'mas mais gerae3, sob que
sõe realizar-se o manliato, o qual pode dar.-
se,-note-se bem,--não só paI' actoB positi-
vos, mas ainc1d por actos negativoB.
Pela natLll'eza da autoria intellectual, 50-
gLlndo temol-a até aqui estüclado, é evidente
que o clolus lhe é essencial. Não existe l11:1n-
d.ato culposo ('171. Daqui resulta que, quando
peln suscitaçào ele um erro, succecle que o
mandataria seja um simples in trumento do
mandanto, sem que haja culpa alguma de
sua parte, ou mesmo havendo-a em qual-
quer gran, p()n~m na ausencia completa do
dol:i.s, dú·se o que os ct'Íminalistas qualifi-
cam ele mandato appa'l'cnte (schc'inba?'c ilnst-it'-
tung-dizem os allemues). Sirva J.e exem-
plo o <.;eguinte fa to I eferidú pur Mitlel'-
I'laier : -Uma l11ulher (sem duvida Ulll pou-
co ingenua) ouvira dizer que havia um moio
de faze?' reviver o amor de seu mal'ido, que
ellajulgava extincto.
Um seu visinha, inimigo occulto daquelle,
e ú quem ella dirigia-so para pedir i1l{onna-
çães, apontou-llle, corno meio apr,)priado,
um certo pó, 1'1 era eD tl'etanto de n il tme-
zn toxica, e cuja opplícação teve por cons8-
cIu8Dcia a morte do homem. ('18) Eis a ui

(17) Gr.ycl'-]Ioll:;endol'(rs Tlrmdbnch II, 2~3 e 3· ~­


Scbwal'z-Commenlar·... 151. John-EnlLL!lr(mit n[otil:ell.
2\.8 Scltulz ],ehrb1l1/ch : 153.
(IS) Archiv... DcI. 3, I !~2.
- 222-
um caso bem caracterisado de manclato ap-
paTente. A vontade criminosa do visinho é
com e({eito medintisada pela vontade da mu-
lher, mas esta não encerra, nem mesmo em
dúse minima, o dolus preciso para formar o
delicto. e por isso lesappacece a ideia da
participaçãc, ãa societas delicti, que en tra na
comprebensão cio mandato.
Aos que por ventura ainda insistissem so-
bre a interpretação restrictiva da terceira
parte do art. 4. eu pediria que se dignas-
sem de applical' ao exemplo indicado a bito-
la do nosso direito. Qual seria entre nós a
pena do maligno insinuador da mulher es-
tolida? De duas uma :-011 tinha-se de ac-
ceital' da doUtrina, pois que o {acto não ca-
bia na categoria do constrangimento. o con-
ceito elo mandato appc~rente, e punir o preten-
so mandante, como se fosse autor pbysico e
immediato,-ou havia-se de deixar itlll'une,
por escrupu\os de interpretação, um delicto
gravi simo, que punha-se fóra da acção da
justiça por erreito de uma cousa, que aliás
constitue para outros uma circmnstancia
aggravante, isto é, por e({eito da fraude.
a.da porém de mais ridiculo do que esta
renuncia elo direito de punir um malvado
com um simples-cllria igno1'at jW'CL
O crime do mandanLe, mesmo isolado elo ..
crime do mandatario. admitte a sociedade'
e a:lj oco-mandato (jlJita.nsliftttng, como se
diz em allcmão), o qual podesersimultaneo,
0\1 sdGcessi\ o. A ronnul(~ d primeiro;-
A -;- 13 mandam C commeLLer um crime. A
f01'lrtala do segundo ;-A transmitte a B, paI'
qunlLll1er dos meios do mandato, o desígnio
- 223-
que este fctz seu, de commetter um crime
por intermedio de terceiro. Ü primeiro é
ommum na prétxe ; o segundo por(~m! bem
que menos conhecido, não é por isso menos
acceitavel.
Como ideia coordenada com o mandato
de mandato, é concebivel tambem o manda-
to de complicidac1e.
Alberto Berner é de opinião qne, Df' ta
hypothese, não existe participação crLmino-
sa do mandante; elle de\'e ficar impune.
(19) Não me parece porem acertado este
modo de pepsar. Verdadeira considero a
opinião de Scl1"\varz, ql18 admitte aquella
f01'lnct do mandato, não só como logicamen-
te concebivel, mas tambem como pratica-
mente realisavel e sujeita á pena. .Assim
como o mandante do mandante é um man-
dante, do mesmo modo o mandante do com·
plice é um complice ; e esta doutrina é tan-
Lo mais admissivel, quanto é certo que ella
se adapLa ao nosso direito. Para liDem só
comprehenrte o clil'Bctamente do art. 5 do Co-
digo no sentido subjectivo, que f. o ,erda-
<leiro, um homem, que manda ouLrem auxi-
liar alguem na pratica de um delicto, não é
mais nem menos do que um complice.
Igualmente, se não ainda mais clara é a
concepção da complicidade do mandato.
] or exemplo :-A empresta ú B a somma de
dinheiro por este desejada ara o fim de,
com etla, determinar C á assassinar D. Ren-
lisado o homicidio, não ha duvida (rue A con-

(19) GI'Uluisál::e des Preussisclten Ira{l'echtes-2.


- 224-
correu directamente para o delicto de B; e
por-que este se acba 10gicR. e jl1l'idicamente
associado ao delicto rJe C, tambem A con-
correu para elle, posto que a relação de cau-
salidade entre o seLl acto e o acto de ü seja
uma relação mediata. Assim sob a ideia
geral de participação pode subsumir-se não
só o mandato de mandato, o mandato de
compliciclade e a complicidade do mandato,
como até mesmo a comrJlicidade da compli-
cidade in-infinitum ;-0 qne nos abre uma
perspectiva semell1ante, como diz Geyer, ú
uma dessas grandes salas, c.ujas paredes
cobertas de espelbos repetem cada objecto
em innumeras imagens, e o(ferece ama enor-
me (U(fi.culdacle pratica. Mas as difficulclades
praticas não excluem a verdade ex.istente no
fundo de uma tbeoria.
Agora uma ou tra questão. E' concebivel
a tentativa do mandato? E dado que o seja,
o nosso Codigu den entrada á essa doutri-
na? Ou anta ao primeiro ponto, as opiniões
são divergentes. Criminalistas corno Baner,
Zacharim;-LLlden, Heffter e outros admittel.l1
aquelIe conceito. Outros porém como Golt-
dammer, OUo, Hugo Meyer e não poucos
mais, combatem uma tal ideia. Como a
opinião dos autores, tambem varia a legis-
lação de diversos paizes. Assim, por exem-
plo, o Codigo penalde Wurtemberg (art. 79),
o de Brunswik (art. 37), o de Altenburgo
(art. 36), o ele Thuring(D.rt. 34·), o de Sach-
sen (art. 04), dão conta da tentativa de man-
dato. Ao cOl1trariú o Coele pénal, o Codigo
da Prnssia (art. 34), os codigos ele Hesse
(art. 72), de Oldenburgo (art. 31), Lubeck
(art. 32), o Codigo do imperio allemão (art.
:1:8), e ainda outros, consagram doutrina dif-
ferente. Qual é entretanto a theoria mais
rasoaVEJ?
,'e eu estive se incumbidG de discorrer ele
tcge ferertâa, não hesitaria um só momen to em
acceitar a doutrina ela primeira ordem de
autores e legislações. Mas não tenl10 essa
incumlJencia; e como tal, limitando-me ao
de lege lata, sou obrigado a dizer :-0 nosso
Codigo não admittil1 a tentativa do mandato.
Para isso seria mister Iue eUe tivesse feito
do ultimo um cril1le autonomo e indepen-
dente da acçào principal.
Na tentativa do mandato, como ella é con-
cebivel, com!:irehendem-se tres casos: 1°
quando aquelLe Iue qLlerinduzir um outro á
perpetrar um delicto, não consegue desper-
tar nelle á intenção criminosa; o mandata~
rio não se deixa manda?'· 20 quando o man-
dato é bem succedido, só porque o manda-
taria chega ~t tomar a deliberação de com-
metter o crime, mas não chega a executaI-o,
nem mesmo a tentaI-o; 3 0 quando o man-
dante encontra um individuo omni·na factu-
·ms (segundo a expressão da L. 1 § 4 D de
Bl'UO cor1'ttpto), isto é, um individuo já de-
terminado ao crime, e que por isso não pó-
de mais ser induzido á praticaI-o. enhu-
ma das tres hypotheses se acha positivada
em nussa lei penal.
Mas do principio da impunidade do cona-
tus o Codigo parece ter feito excepções, que
aliás cunflrmam a regra. Os arts. 90, 99 e
'119 tratFllTI de deLictos que tem alguma se-
melhança com a tentativa em questão. A
13
- 22G-
provocação por escriptos ou discursos Ó Lll11
delicto suí genel'is; mas a lei não aLtura a
natureza dos factos, podendo apenas dal'-
lhes um maior ou menor valor juridico ; e o
facto da provocação, conforme a sua ener-
gia, pMe assumir todos os caracteres de
um mandato. O contrario seria absurdo,
quilo absurdo é admittir, por exemplo, que
o homem que por meio de um discurso na
praça pl1blica pro, oca outros á-praticarem
Uf!l assassinato, e ainda este immediata-
men te se dando, não tem responsabi lidade
-criminal. Os delictos, cuja provocação .
ameaçada com penas pelos citados artigo,::;,
tem duas phases : a tentativa e a consnm-
mação. Dado o caso que, peLo meio indica-
do, um desses c.rimes se consummasse,
qual seria a I ena do provocador? E' uma
questão que levanto; não é preciso expla-
na-la.
a Codigo, repito, não deu entrada a ten-
tati\ a, de que se trata. Será um bem ou um
mal? A resposta é difficil. Mas cabe aqui
observar que alguns paizes, cujas leis penaes
não consagravam e se principio, acabaram
por sentir a necessidade da cousa. Foi as-
sim que a questão Duchêsne na Belgica deu
lugar á lei de 7 de JuLho de 1875, e esta, por
sua vez, occasionou o art.. 49 a do Stmf.c;e-
setzbuch da ALlemanlJa (L876). Ambas.as dis-
posições pLlnem o mencionado conat'l.M;'
Ainda outros pontos do assumpto. A idéa
do mandato é appLicavel, em regra, a todos
os delictos. Tem-se procurado muitas vezes
e8tabelecer excepções tiradas da diversida-
de flos motivos. Mas o motivo da a Cão é
- 227
tUa pouco decisivo, como o (lo mandato
meS\llo. A intenção comrnum póde.repousur
sobre motivos diversos. Nem mesmo os
delictos de funcção, os chamados crimes de
)'esponsabilidade, constituem legitimas excep-
..ões, pois que, quanto a elles, o mandato s
especialisa em peita ou suborno.
O chamado excessus mandati, que é talll-
bem umadéls Iuestõesdonosso pl'ogral11 111 a,
não tem entretanto a importancia (Ille s
lhe costuma dar. O CIue faz illusào á tal re .
peito, ~ a analogia tomada das relações ju-
ridico-civis. Actualmente l1a completo ac-
corda em que, tambem no mandato, como
em todas as formas .da criminalidade, não
se admitte a p)'eswnptia dali; as regras gemes
sobre a imputação penal, quer dolo a, qu r
cnlposa, dão a medida das soluções recla-
madas. A responsabilidade do mandan t:>
chega somente atO onde o crime do manda-
taria é um producto do mandato. A deter-
minaçào ou indLlzimento de um e a acção
crirnino a elo outro devem cobrir- e como
causa e effeito.
Semelhantemente o <.llTepel1Llímento do
mandante. Bem entendido :-não é o arre-
pendimento subjectivo, poré.m o obj ctivo,
signill ado por facto. Nelle distingu 111- e.
dons momentos :-0 mandato póde tornar-
se sem erfeito, ou por lue o mandante ex-
tinguia a força elos motivos, que determi·
navam o mandataria, ou porque eUe 0\. poz-
. c dil'Gctamen te ao com mettimen to elo ]e-
Jicto. No primeiro ponto de vi ·ta resolve- 'e
todas a difllcllldade, mantendo-se 01 rin-
ipio :-a a çiío puniv 1 . impntav lao mano
- 228-
dante, quando ella é o resu lLado do mandato.
Ee elle recúa em tempo, e não obstante o
mandatario executa o crime, já fal·o por
moUros autonomicamente proprios. Porém
releva notar :-os motivos postos em jogo
l. elo autor ültellectual podem permanecer,
mesmo depois CJue elle os procL1rou abolir.
Por exemplo: A provocoLl o ciume de B.
para induzil-o a matar C, e busca depois,
mas em vão, acalmar esse ciume. Pelo qu
toca aos obstaculos oppostos á realisaçuo
do crime, não ha duvida que elles podem
ser efficazes ou inefficazes, considerados em
si mesmos, assim como podem vir cedo ou
tarde. Quando a inefficaeia ou a demora é
attribuiveL á culpa do mandante, não lhe
aproveita o seu arrependimento. Na mesma
classe de obstaclllos inefficazes ou tardios
está E. denuncia, c]lle por ventura dê o man-
dante a autoridade publica, elo delicto a
commetter-se, se por ella não se chega ~l
impedil-o Ainda que isto aconteça por des-
leixo da autoridade. não lla razão I ara negtll'
a causalidade entre o mandaLo e a acçào
criminosa, e descobrir uma inL rrupçào
dessa caus::.tlidade no desmando do funceio-
nario. Nem mesmo tem ahi applicação o
principio ela compensação ela culpa (20).
Quanto ao arrependimento lo auUlOr pby-
sico, é de fuciL comprehensào, segundo o
exposto sobre o mandato mallogrado ou im-
proficuo, que o mandante nào é l'E)sponsa-
vel, quando, tendo suscitado a intenção do

(20) eh\\ il 1'7.-(;1) Ill1n 'li/II}' .... 161.


- 220-
mal no eSLJirito de um outro, este, antes c1;}
entrar no estadio da tentaLiva abandona por
si mesmo o projecto cnmino. a. Mas a cou-
sa . bem diversa quando o mandataria,
depois de já ter-se feito culpado (le um ten-
tamen, recúa da con.'ummaçüo, CJue ainda
lhe 6 possivel. Um tal recuamen to 11<:IUa telll
que ver com u mandante, o lllul eleve ,;er
punido como réu de um conatu.s dclinq1wndi
ao passo que o mandataria Só tem ele res-
ponder pelo qne ha ele olJjecLiyamenL cri-
minoso no facto. Se pOl'élll ú autol' intel-
lectual quiz por \'etlturé\ me mo qne o ele-
licto só chegasse a.o gráu da tentaliva, clle
converte-se então n um agenl1Jl'ovocatelll',-
conceito rlue:' estranho ao no 'so direilo
penal,-e pór1e ao muito considerar-se au-
tor cltlposo de lualqoer mau 1'e ultado, at-
tribuivel a impl'L1dencia.
A dialectica do mandato ou o seu desen-
volvimento logico leva-nos maia adiante.
Que influencia exercem entre si,-costuma
se questionar,-as relações pe 'soaes rll
mandante e do mandatario? A J'e oosla
nào é duvidosa. Tor1as as circuITIstanLcia,',
que influem obre a penalidade de lJma de-
terminada pes àa, isto é, 'que tem um ca-
racter subjeGtivo, nilo Iodem aft'ecLar a pc-
ualidade de lima outra, Circllmstallcias ao
contrario, que transformal11 o rime em lIllI
crime essen 'ialrneote diverso, e ql1e pus-
SLlem por consegniute um caracter olJ,jecli-
vo, devem 8r tomadas em consi lel'ação Ú
respeito de Lodos o Ille cooperam scient~
e conscientemente pnra o delicto. E. ta dOLl-
l;rina appal'enlumell .'ilnpl s, L'111 LOL!l1Viu
- 230-
difficuldades occultas, que se fazem valer,
qlJando trata-se de examinal·a nos detalbes
e de traçar alinha de sepação entre circum-
stancias objectivas e subjectivas. Em todo
o ca-'o, permanece verdadeirQ que o prin-
cipio director, na esphera da penalidade, é
o da incliL'irlLbal'isação, isto é, o principio, se-
gundo o qual a existencia desta ou daquella
espeCte ele intenção criminosa deve ser
apreciada inclividnalmente em qualquer dos
participes do crime. E' a opinião vigente
([ ct'iminalistas notaveis, entre estes o ita-
liano TololTJei, o qual ainda observa que a
scola jurídica do seu paiz sempre rendeu
homenagem ú semelhante intLlição. (2'1).
O mandato ainda comport8.. outros pro-
blemas, bem qLle de caracter puramente
processLlal. Mas é inopportl1no aqui discu-
til-os. Contento-me com a indicação de al-
gnns. Sirvam de eXemlJlo a presCripção e a
flagrancia, que, segundo as relações de in-
fluencia reciproca entre o mandante e o
mandatario, podem dar nascimento a ques-
tões d0 não ponca monta. Eu deixo-as de
lado; pois Iue ellas, em summa, não se
acham contidas na extensão da ic1éa do
manda~_ •
Tanto quanto ~ .ompativel com um tra-
balho (le tal na'ture7.G, o thema estú e. gota-
elo. "'6 resta-me pois repetir o que disse no
[lrincil io :-a execuçuo pMe s r m{l, po-
rém o mel1JOc1o seguido é o unico ,"crda-
deiro.
I\ccife,2 de Abril de '1882.

(::! I) f)irillIJ (' /lI'Ilc,'d',r l ( /JCllrlle-j;jU.


23i
x
U IlS liueiros tl'aços sobre a vida l'eLiu iosa 110
Brasil

Março de 1881
1
Hu ceeca de tres annos, que escrevi as se-
guintes palavras, cuja verdade ainda con-
serva, aos meu. olbos, o fros ar do primei.-
ro momento, que alias em muitas out.ras~·
enganoso e pas ageil'O. t( Não IJa,-diss en,
-n50 lla ra.são suf[]ciente, maxime enLr
nós, para t.ee-se a religião como dispensada
do seu mister de illwli?' e can.·ola)'. Ainda
por muito temI 0,-0 quem pol1 af'segurul'
que não sempre ?-o organismo social Lerú
fLlncções religiosa', o carecerú para ellas de
orgãos especiaes. Em quanto o homem, en-
contrando neste mundo somente dLlrezas,
injustiças e miserias, crear-se pela pl1anta-
sia um Il1Llndo mell10l', uma corno ilha en-
cantada, onde e11e it'á repousar das fadigas
e enjôos ela existencia, a religião sel'ú, COIllO
at:' hoje, um factor poderoso na historia das
nações.» (1).
Apadrinho-me logo em principio com es-
tas linhas, qlle tllClo podem conter, menos
nill manHesl:o ele intllit;ão alheislica, para
Clll , no correr elo presente ::lItigo, não "C
receln em mau sentido a expre' 'ào úe cer-
tas verdacle I nem. e mc ponha á conta cIos
- 23... -

impios ele profissào, inscrevendo-se o men


nome no livrlJ dos condemnac1os.
E importa ainda. notar :- as palavras que
citei Dão são fios vermelhos que se desta-
quem da cór f!/-H'al do men pensamento em
mater-ia religiosa. Já muito untes, á propo-
sito de nssmnpto unalogo, e combatendo as
ideias de Vacherot, eu tinlJu. escripto:
« Dizer que éJ religião não tem raizes pro-
fundas no mais intínlO da alma humana, "
lllTIa calulTInia psychologica. Se por qLle o
estado religioso ele alguns espíritos pode
aLtenuar-se á ponto 1e parecer 11Ullo, d'abi
e deduz que elle é provisorio e nào corres-
ponde á uma faculdade permanente, não
seria injust.o assegLlfar tambem queo esta-
tio philosoplJico é ela Illesma natureza, por
CJue vemo-lo muitas vezes tornar-se vaga--
mente indeciso e pel'uer-se nos vapores de
mysticas visões ... E' certo qne nào perten-
cemos ao grupo dos que pensam que o lla -
saro, á quem se cortam as azas, não pode
mais viver, ou que a alma, de quem se tiram
as e 'peranças e bellas perspecLi\ as de alem-
tUl11ulo, perde por isso as forças, e rola no
abysrno ela aujecção e ela rniserla. Este in-
SllltO que se faz á razão e á liberdade, jul-
gada. incapazes de a1Jra1}ê:11' a \;irtudepor si
111 e.. 111 U, fIliando não s lhes deixa cabir no
seio um titulo de debito pagaYel em outro
mundo; este suborno hediondo, prat.icado
em nome de Deus, é a mais vivn trova da
tacanhice humana, ó a theoria do ganho
{.·/'anscendenfal. Teio a disc.utimos, despre-
zamoL-a. Mas lamb rn não ]lodemos aclmit-
til' I/lle a pl1ilnsopllia \'enbn iJ(\rlnl' stc.. lan-
ces p~imitivos, estas primeirus folhas de
coraçao, como estereis e cabidiças, para
produzir mais vigorosos reben tos. )) (2).
Já se vô, por tanto, que na ordem dos 11e-
resiarchas da actualidade não occupo um
lugar salien te. As minhas ideias religiosas
não são, é verdade, totalmente estremes do
sa tanico influxo da sciencia vigen te; mas
não são tambem ele todo pern iciosas. E com
quanto, ainda assim, eu seja um grande
peccador diante do papa e ela sua igrej::l)
cO?'am [eone pont'i(ice, todavia, se fosse can-
didato á bemaventuran a eterna, a minha
candidatura não seri.a tào pouco segura, co-
mo a de muito actual pretendente á depu-
taçJ.o parlamentar pela novissima lei elei-
toral. o fundo da minha impiedade, um
olhar menos envesgado e mais perspicaz
que, por exemplo, o do autor dos novos
Elementos de philosophic~ do cZil'eito, e de seus
dignos irmãos em S. Thomaz, descobrirá tal-
vez ainda um resto de senso religioso, que
é a unica herança dos meus avós, se é que
me concedem tel-os, herança aliás tão su-
jeita á lei elo homoch1'Onismo, como a dequal-
ruer qua1irIade physica ; d'onde resulta que
ha uma idade da religião, da mesma forma
que 11a uma idade da pubescencia, e uma
outra da caoicia. ElI me acho nessa idade;
rasão pela qua I já (;omeoo tam1 em a, duvidar
das minha duvidas e á ficar um pouco mais
seria rIiante do pen alllento da morte flue

('~) .IIJlI'I';erlllll. 1/. (J paI!. ::l::. IlPi'il',' IH7ll


- 234-
é e ha de ser sempre o 7'm~sa,get(L da pllilo-
sophia,
Dest'arte é facU comprehendel' que, pro- .
pondo-me apreciar, bem CJue ligeiramente, a
symptomatologia da vida religiosa enlre nós,
não tenho segLlOda intenção, nem deixo-me
levar por este ou aqueILe sentimento de ran-
cor e hostilidade contra o negoc'io dos pa-
dres, que por ven tnra faça m" I ao nleu ne-
gocio. A cousa é mui diversa; é um estudo
de occasião, ou, se quiZ8l'ern, um enti'üte-
nimento de artista, perfeitamente adaptado
á natureza do assumpto.
E, com effeito, a nossa religiosidade é um
pedaço de esthetica, e de estl1etica naciC)-
nal, adequada ao grau illferior da nossa
cultura, na qual, ú semelhança das plantas
e animaes, ainda os espiritos são incapaz s
de transnüttir ii materia, que os circLLnda,
as ideias que os animam, e l) eõforço pelo
bello se exprime unicamente por manifes-
tações immediatas de formas e côres har-
monicas em seu proprio corpo, como a (;0-
1'0lla da rosa ou a plumagem do beija flor.
O que vão ii igreja, que é 11m t,heé'ltro sa-
grado, como os que vão ao theatro, que "
uma igreja profana, pensam e tratam, sobre
tudo, de embellecer fi. si mesmos. Um pe-
daço de esthetica, disse eu, mas esthetica
selvagem, que maneja o que ba de mais (ü-
ttl na loesia de mais sediço na mnsica, de
mais ridiculo na escultura. D'alü o velho,
mas sempre estranho espHctacLllo dos nos-
. os festins religiosos, que nada encerram
de edificante e pLlt'illcaclor, e onde o perfu-
me elo in('ell. 0, (1I1e :-;e tem por agradavcl ao
- 235-
olfacto divino, post9 que o bom Deus, na
phl~ase de DanielSpitzer,-o famoso foll1ete-
nista de Vienna,- se comI raza tanto e mas-
pirar a fumaça de um thuribulo, como a que
sae de um bonito eachimbo de écume ele
m,~l', onde o incenso, repito, se allia ao cle-
tonar da polvora, cnjo cheiro sulphurotio é
aliás, segundo a crença dominante, um dos
mais vivos característicos do diabo. Muito
mais demonologica elo qlle theologica, a
nossa \"ida religiosa ., justamente por isso
menos tragica do que comica, pois que o
cl1amado principe da. treva, com o genio
folgazão rlue todos lhe reconhe.cem, intro-
mettendo-se em toda e qmdquer conversa,
que o homem trave com Deus, constitue o
momento de mais interesse na comddia lrp'-
moya,nte da existencia,

II
E' um erro grosseiro, ainda que multo
seguido em nossos dias, suppor que a hu-
manidade se acha em caminho para um es-
tado rle cousas, nele a religião só brilhe
pela ausencia. E penso com Julio Frcebel
que esta opinião seria erronea, quando mes-
mo a religião não fosse mais do que a mA-
tapbysica do povo, incapaz de ren xão plli-
losopbica. Porquanto nem estú no destino
cio genero humano compor-se todo de plJi-
losopho , nem a necessidade metaphy ica
se extingue jamais naquelles, Jue não phi-
losopham, e tampouco se dá por satisfeita
com os resultados materialistico-scientifi-
'o· rfne locam ~om nl.o na snperflcie ela:
- '130 --

cousas, admittindo-se mesmo (-!ue taes re-


sultados fossem acces:siveis á inteltigencii:1
do cummum dos homens. Mas tambem ú
certo, por outro lado, que a religião, sujeita,
como tudo mais, á esse continuo proces ()
de differeociu(;i:" o e integração, que COU'ti-
Lue o progresso humano, está igltalmente
sujeita, como tudo mais, ao íalseamento ela
sua evol ução, consisten te em adqLtiril' fur-
mas e caracleres, não d terminados pela
sua natureza. Assim o cllrislianismo, que
eu não hesito em 'ol1side ',H como uma
c1ifferenciaçào natural no movimento roligio-
so da antigLüdaclE', falseou- e logo no seu
começo. transformando-se em catlJolicis-
mLJ, que já é em si um caso cenogenetíco
ua primitiva religião christhn; e '1 propor-
ção que mudam-se as ideias e modificam-se
os sentimentos, a l;enogenia augmenla, e
cada vez mais distante vae ficando o chris-
tianismo do seu ponto Je partida; o que en-
tretanto não impede que eUe venllH ú ter-
minar, cOrPo pensa E, von Hartmann, por
ser a religião dos pobres de espirito, do.'
miseros d todo genero, Com o seu caracter
deuniversalidade, com o :3en ambito humani-
tario, o christianismo, mais que outro qual-
quer systema de crenças e convicções, com
que o homem [lI ncm'a satisfazer a sua ne-
cessidade ele paz inlilua, ele conLentamento
e de ventul'a, é dotado de uma alta capaci-
dade de adaptação) llle o tem feito até hoje
resi, til' á todas as causas ele di solução
aniquilamento. Phenomeno este que na-
da tem de miracoloso, Tllas antes é explica-
ve[ II laslei' gera('s, qile l'eglllam i1 exist n·
- 287-
cia Ja 'ol'ganisa ;.ães fOl'les e bem constitui·
das. QLlando, ]JOl' exemplo, se diz de um
bomem que eUe é sadio, semelhante pbrase,
traduzida na linguagem scientifica moder-
na, só significa, á mell ,er, que esse ho-
mem, considerado como todo orgao ico,
possne uma gt'ande adl1'fJtabüidade; o esta,
(lue em ulLima analyse so rec1Llzsimplesmen-
I e á fUDCção physioJoai 'u da nutrição, con,
,'iste então na propriedade organica, cellu-
lar, plasticlular, de assimililr-se, de poder
nutrir-se d'[l.luillo que em geral é para os
untros um elemenlo de destnlição, lima
causa de morte. E ahi est'í a expliuação do
mi/agve dos individrLOs. que passam illesos
no meio ele uma poplllaçãc acommettida
de ]Jeste, como abi tambem, para notal-o
incidentemente, se aclla t;üvez contida a
possibilidade de uma dal'wí'lvisação, se assim
posso dizer, da patllOlogia, tal qual se deu
com a pll rsiologia, l1<IS mãos de Ernesto
Bm ke, I rofessol' univer ario de Vienna, e
o maior physiulogr) hodierno.
Mas saúde e Jongevirla ]e não luerem di-
zer immortalidade. Quem nào succumbe pela
tloen ;8, acaba eml1m pelo ma1'a 'mns senilis;
verdade, quanto aos individuos <.las espe-
cies vivas, Iue permanece a mesma, quan-
to as ideias organisadn.s, r[uanto aos cor-
pos e instItui _ões soeiae. O christianis-
mo, isto é, o onjun to de religiões diffe-
rente " quesal:liram da velha epa, está nes-
se caso: -desfolhado, secco, inaniJo, e
L[Llasi já em condições de poder-se-lhe ap-
plicar as bellas palaHas de LLlcauo sobre
Pompen : ~tfll magni nominis umb1'a! Quando
- 23
uma religião chega ao ponto de nada mais
inspirar de grande e elevado. quer no domi-
nio ethico, quer no domi'nio esthetico, é
concludente qne a historia vai dispensar os
seus serviços, aríojando-a sem piedade para
o remanso das ngua .. A religião dos no sos
pais . hoje incapnz, I1::iO só de produzir
um h<"roe; um martyre, um santo,' ou
mesmo de alimentar um poeta ou um artis-
ta, mas até de provocar um feito digno, uma
acção nobilitant.e. E' possivel que ainda ac-
tualnlente, onde quer que se achem, reuni-
das em nome de Christo, duas ou tres pes-
soas, o espirita do homem-deus esteja com
elles; mas é mister confessar, ou que n'1o
l1a mais quem se l'euna em nome delle, ou
elltão que a sua assistencia é de lodo estel iI
e impotente para suscitar ieleias g-randes e
abrir caminho á grandes commettimentos.
Nada, por tanto, de mais inexacto do 1ue
um juizo qne eLl mesmo já uma vez enunciei,
bem convencido aliás de exprimir uma ver-
dade, á proposito da influencia intermina-
vel da doutrina elo evangelho. Foi em tem-
pos mais poeticos, em que'o arroubo do
jestLismo, a velha mania dacruz, na sua forma
moderna de um vago e romantico enthusias-
mo pelo Christo, tambem se apoderou ele
mim e fez-me então proromper, entre on-
tros, no seguinte elithyrambo :-« Platão é
hoje apenas uma palavra impotente ela eru-
dição philosophica, c ainda muitas vezes
destituida de senso. Mas onde quer que
baja um banquete em nom elas grandes
ideias bumanitarias, Je ns occupa a I resi·
eleneia da me fi o (listri! Ile o pilo el 51. eln.
- 239-
delicias ineffaveis. ») (3). E' o exordio c1
uma Clwistiade, no gosto do tempo; ma
hoje vejo que ahi ha uma cousa superior á
bonHesa da phmse: é a falsidade da asser-
ção. Não que eLl contestR ao fundador do
christianismo os seus altos merecimentos;
porém contesto ao espil'ito moderno, 50)) a
forma mesnlo pÜ'uco ele\'é;lda~ que elle veste
entre nó , a faculdade de sentir e pensar
evangelicamente. A inflLlenciadeJesus sobre
a vida psyehica está reduzida á um minino
imperneptivel, que já não é suff1ciente, nem
"!lesmo para servi r de pretexto Ú con Li n uaçào
do espectaculo gruteseo fle padres e frades,
papes e banzas, catholicos. gregos e pro-
testan teso O proprio eldorado da bemaven-
turan ,a eterna não tem mais u efficacia ele
outr'o"ra. A fé que trélnsportava' montanhas,
não transporta nm grão de areja. O reino
dos cel.lS, Cjlle se prometteu aos pobres, aos
sequiosos cle ju Liça, tnrooLl-se alguma cou
sa de semel\)ante ao imperio (los Incas : -
uma recordc.çuo bi toricn, ou antes uma
reminiscencia poeUca. E tenhamos cora-
gem de clizel-o :- em materia.de amor e fra-
ternidade, que con Lítuem o umago da 'ua
doutrina, JesLls perdeL~ ú seu latim. Eu mes-
mo já tive o pressentimento de ta vereladc,
(Iue exprimi em verso: :-

Se ao griLo elos CJlle padecem


O mundo cerra os ouvidos,
Se do prazeI' nos ruidos

(3) () AIIll'rirflllfl. png'. ;:;1 r .-.:) - IlfiO.


- 240-
Perdeu-se de Deus a voz ,-
De torpesas maculada
Do Christo a veste inconsutil,
Parece que foi inutil
O Ler'morrido por nós.
Patece,-clisse o poeta; mas. não direi o
pl1ilosopho. porém o erue hã de philosophico
em mim, Ollsa affirmal-o sem a minima re-
serva.
Mais qLle todos os esforços dos Strauss e
dos Renan, ha um facto que ataca Íl'refuta-
velmeote n. divilJdade do mestre :-é o patL-
petismo dos nossos dias, com todo o seu
sequito de prostituições e ele miserias, Não
é mais licito deixar-monos illuclir por phra-
ses vans, que não aguentam uma analyse
severa. Ainda que de longe, muito de lon-
ge, tambem eu pertenço ao---liVil'---, á que
se referiu o venerando autor do-Dei' aUe
nncl de?' ne1W Glaube.Sim,-nós não somos
mais christãos, E pelo que particularrnen te
me toca, na qualidade de nmfilho da egreja
romana, eu vcu ainda adiante: -nós não
somos rnais cathoJicos. Attestam-no o pro-
saismo e esterilidade da nossa \'ida reli-
giosa,
III
Outubro de 1882,

Dezesete mezes depois! E' tempo suf-


ficiente para gastar-se uns vint.e pares ele
sapatos e abandonar-se, como erroneas, ou-
tras tantas opiniões. Bem entendido.-
quando se t.1'8 t.a de espiritos que não andam
- %1-
com os pés descalços, nem com n. célbeça
núa de ideias. Só á estes é dado passar mais
de um anno com Llm trajo unico, e levar
até a vida inteira com uma unica opinião.
Eu não pertenço á esta classe; o que entre-
tanto não quer dizer, nem que mejuJgue
por is'3o mais feliz que os outros meuS ir-
mãos em f:aqueza humana, nem que Lam-
bem me considere obrigado ii pôr todos os
dias os meus livros em leilão, para munil'-
me de novos, ou á nunca tl)r uma t1leoria
t

definitiva, um modo de ver peremptorio. Não


sou do numero dos que, uma vez j ulgando-
se de posse da verdade, nunca mais se con-
vencem de que tomaram cob7'e por OW'O, e
vivem capacitados de terem tudo quanto é
preciso, de nada deverem acrescentar ao
capital adquirido. Mas tambem não me en-
fileiro com os que s guem sempre a dou-
trina expendida pela ultima obra, que lhes
chegou ás mãos; o que é em todo caso um
pouco melhor do que ser sempre da opinião
do primeiro livro que se leu, ou seja o ca-
tecismo, ou a historia. de Ca7'los Magno, ou a
do Conmlaclo e elo Impe?'io, ou em fim Iual
CIuec tratado de pbilosophia franceza.
Eis aqui uma prova. Dezesete mezes
depois que foram escl'iptas as linhas, lue o
leitor acaba de percorrer, ainda não sinto
que tivesse passado, na ordem de ideias en-
tão enunciadas, por modificação alguma.
Phenomeno, para mim mesmo, tanto mais
digno de nota, quanto é certo que não
me faltaram moti.vos de completa alteração
psychologica, se por tal deve-se entender,
como e\l entendo, rJualquel' mudan a de
Iii
convicçuesasseotadas. Insisto pois no meu
juizo: - nós não somos mais calbolicos. .A
chan'ada religião de nossos paes parece que
não quer ser a religião de nossos filhos. O
minimo de sinceri{iaele que e precizo para
ennobrecer qualquer pratica religiosa e clis-
tingui-la da pantomimica tbeatral, - esse
mesmo já nào existe. nem se quer nos do-
minios inferiores ela nossa sociedade.
Ha ceI' a rh~ dez annos, Garibaldi, es-
crevendo á Karl Blincl em Londres, dizia :-
.« Creio que no mundo inteiro não ha um
paiz, que seja menos catholico elo que a
Italia. O governo e as classes superiores
apreselJtam ainda externamente uma certa
elevação, que elles, porém, no intimo não
sentem. Pelo que toca á massa do povo, ella
está muito long'e d..> ser inteiramente catbo-
lica; nos botequinspadl'escos não se vê senãu
velhas bigottes. »-Sim, senhor' eu não
ontesto, a verdade do facto, ail'lda que
me pareça um pouco incomprehensivel,
COlHO 6 que o catholi ismo, que tem o seu
centro na ItaHa, pode a11i se sustentar so-
mente pejo cone.urso das velhas; mas creio,
por minba vez, ser-me llcito afflrmar que a
alluclida incatholic-iclade, ou seja uma ventura,
ou seja uma desgraça, não 6 privilegio, nem
característico dos italianos. Não somos de
certo, como elles, um IJovo de artistas;
porém somos, do mesmo medo, se não até
em maior escala do que elles, um povo de
scepticos.
Na epoclla da cruzad"s, quando todos
os christãos ardiam no c1ezejo de derramar
o sangue e a viela para remir o Sa.nto Sep~l.l-
chJ'o, os mercadores de Veneza e Florença
vendiam armas aos infieis. Ainda niio Aze-
mos outro tanto,-é verdad6,-mas fazemos
cousa peior: - reduzimos o templo, a res-
peitavel clomu oratiúnis, de que tanto fabu-
Jam os padres, á lugar ele r'enclez-vou,s. Us
amantes, á quem é vedado avistarem··se no
theatro, avistam-se na igreja, onde é mais
faci 1 u troca ue olhares, e não raras vezes
lambem a troca de beijos. A casa do Senhor
com todos os seus terriveis mysterios,-
qu,am ter'1'ibilis est locus iste,-não é bastante
sagrada, para que ne11a nos abstenhamo'
de actos ainda mais indecentes do que Ilm
beijo á furto on um olhar amoroso. Dentro
do templo ftlZ-se jorrar o sangue e commet-.
te-se assassinatos. O ponto ó Iue um mo-
tivo sLlperior de interesse humano jtlslinque
o desrespeito ás coosas divinas. Entre nós
não se costLlma ajoelhar diallt.e da Madonna,
an tes de ir perpetrar \lm crime; porém não
se duvida, no fervor de uma Incta eleitoral,
juebrar a cabeça de om adversario politico,
atirando-lhe em cima até uma imagem da
San ta Virgem. Onde está pois a nossa a-
Lhocic1crde?
O escriptor soisso M. G, Conrad, para
mosLrar o estado de decadencia religiosa na
propria patria elo catbolicismo, refere o se-
gninte facto;- « No MaIo, em apoles,-
diz elle,-um domtoicano e5taya fazendo
uma pr'edica quaresmal ao ar livre. 'ão
longe dalli brincava um polichinello. O
frade era en treteneelor, mas polichinello
entretinba mais. O que faz então o povo le-
viano? Elle abandona o sa 'erdotal come-
-2,M-

diante e precipiLa-se em busca do brincão ..


Apenas o frade observa esta deserção de
bandeira,- empertiga-se, levanta o seu cru-
cifixo e grita aos fugitivos em tom de cbo-
lera: - Ri1nanete qucí, ecco il ve)'o P'l.~lci­
nella !. » (4)
Paulo Schramm, citando esta narrativa
de Conrad, observa convicto: - Um tal in-
terlnezzo seria na Allemanba absolutamente
impossivel. »-(5) E eu o creio bem. Uma
questão de raça, se não antes de evolução
cultural:- a fé germanica é toda sisudez e
gravidade; não admitte portanto semelhan-
tes profanações.
Mas o caso é outro. A bistoria que refere
Cot1rdd, pode ser a expressão de um facto
realll1enLe acontecido; porém parece antes
creação da musa faceta,que produz os can tos
e as legendas populares. Entre nós tarubem
se sabe mais ele uma historia analoga. Não
6 o frade dominicano, apresentando ChrisLo
ao poro como o llni00 e verdadeiro polichi-
neLlo; mas 6 o \ligaria do sertão, ministran-
do o pão eucharistico ao compadce mori-
bundo, em Jucta com u ideia fixa de Llm bode
tIUE' havia furtado,- e dizendo-lhe piedosa-
mente qLle não pensasse em mais nada, se
não naq ueLle Senhor ele misel icordia, (1 ue
era o seu ventàclei1'o bode. ;6) Quem já não

- (I~) 1iwnanitas! Ji/'itisclte Bel1'CLclltllngen tlbel' ClIris-


lenl/tttlll, WllIulel' lOteI Kel'nlicd- pug. 00.
(5) Libel'alisnws wul Scilule in Delllschlcmd -pago GO.
(O) Anle de [1U<.IIIIICI' censuru sobl'o a haix za da
e:qll'e são, o Icilol' allelHl::l p,lra o ponLo dc que e tl'ala :
-uma ligcil'a cal'acteri Lica da nossa vidu I'cligio a. ()
faclo, qllo ahi se refCl'11, (. um lra<:o hem ignificalivo.
- 213-
ouviu contar esta anedocta? ElIa faz parle
do nosso herbario de pêtas; nel11 eu dar-
lhe-hia a honra de aqui mencionai-a, se não
tivesse, para justil1car-mc, o ediflcante ex-
emplo do philosopho snisso. Seja porém,
como fó1', o certo é que a historia possue
tambem no Brasil a sua va'l'icmte, menos
subtil e delicada, sem dllvida, mas nem por
isso menos imlJia. O que ella, por velltura,
póde provar á respeito da Italia, prova
igualmente a nosso respeito, isto ." que
somos mais incredulos do que se imagina.
A nossa religiosidade (com ffeito mais
epidermica do que visceral. Não é raro,-
eu o reconheço,- que ainda ntre nós o
sentimento religioso desça até as fan tes do
pranto; mas tambem nas lagrimas de muita
bella devota não seria t.alvez impossivel ao
microscopil) descobrir alguma indecencia...
O chóro é simplesmente um acto de vollll'ia.
Destes factos, 'porém, que são inn~ga­
yeis, á indLlcç.5.o de ll1l1 total clesappareci-
mento do astro que unico fulge no ceu da
phantasia popular,-o astro da religião,--
vae uma longa, vai uma immensa di tan ia.
ão estou longe de crer que o que ainda
possa existir, de verdade e seriedade, nos
nossos actos religiosos, é insufficienle para
oppor barreira á invasão do mal COmmlll11,
quero dizer, á invasão do espirito de du-
vida, que vae por toda parte diminuindo
os crentes e isolando os lemplos. Todavia
mantenl1o-a convicção de lU , se realmente
está iniciada a epoeha de uma nova fé,
provenieate de um novo saber, filha legilima
da sciencia noya essa opa !la aill 1[1 nfln
- 216
se abriu, nem tão cedo abl'ir-se-ha para
nós. E a ser sincero, devo accrcscentar :-
a ideia de uma no\ a, que venha substituir a
,"elha fé, não me parece das mais acertadas.
A historia da sciencia e seus trinnfos é ao
mesmo tempo a 11istoria da religião e suas
derrotas, a historia de Deus que se torna
cada \'ez mais obscuro e problematico. Um
augmento, Cfllalqner a1.l,gmento no dominio
ela sciencia,importa semt re uma diminuição
no dominio da pbantasia; e entretanto a
pha ntasia é a verdadeira clei rjel1itl'ix, o prin-
cipio gerador tia ideia do divino. Qual será
pois essa nova fé, que tem de florescer sobre
as ruinas da velha crença? Acbo difficil de-
termina-la. Epicuro dizia;- os deuses habi-
tam nos espaços intermediarias elo uni-
verso; e ú isto observa o barão du FreI que
l'óra melhor ter dito: nos espaços interme-
diarios do con heci mento flue temos do uni.-
v~rso. (7) Exactamen te. Porém nesses in,
tervallos baverá sempre escondrijos, onde
nllnca !la de penetrar o ôlho indagador do
espirita ciontifico. Dest'al'te, qualquer que
seja o desenrolvimento que tome a cultura
humana, 11a de sempre tlaver na humaniilade
lima parte culta e outm inculta, sem que
acruella possa jamais quebrar todos os ido los
fubricados por E. 'ta. ELl creio na marcba as-
encional, no constante engrandecimento
do bomem . lllns isto não quer dir.er que
julgue possÍ\'cl o cumprimento de todas as
- 217-
suas esperanças. O exclusivo dominio da
scienci':i é um dos mais bellos ideiaes , de
quepóde nutrir· se a humanidade; ma,s.bem
antes que eIla chegue á v(,,)-lo realisado, o
planeta será um cadaver. Se nos é licito,
para explicar certos phenomenos cosmicos,
romper com a velha cbronologia, prolon-
gando o nosso passado e ac<;umulando mi-
lhares sobre milhares de annos, o mesmo
não se dá em relação ao foturo. Não está
em nosso arbitrio conferir á terra Llma du-
ração inelefiniela, su búrelina ela ao en cerra-
mento evol.ucional ela especie bllll1ana., á
realisação do mais longinquo, do mais ethe-
.rea, do ultimo dos nossos ideiaes. Al' m
disto, acho alguma rasão no devoto CIlf'is-
tiano Muff, quando diz C[U8 Ú. humanidade
que sóbe, e por mais alto que ella suba,
póde-se sempre repetir a palavra de Me-
pbistopheles - Setz ditO PeI'"J'tbecken cm!' I'on
\íillionen Lod en, Set" cleinen FLbSS alb( ellen-
hohe Socken, DtL bleibst cloch imme?', was cltb
bist,- isto é, uma pobre e lastimavel 11L1-
manidade. (8)
Mas deixemos este ponto, que é melin-
droso. Nem aqui 11a\ eria lugar para desell-
volv~-lo. Restrinjamo-nos pois ao pequeno
assumpto inicial:- a nossa inccbtholi idade.
E creio que ninguem será eapaz d- COIl-
testa-la. Já não basta lJerguo tar, - onde
está o horto de delicias, onde estão as
flores, os frLl tos 8 os quatro rio lo I'-'den '?
- 248-
São velhos sonhos, ou velhas utopias, de que
ninguem mais se lembra, nem se quer para
compor uma figura de rhetoricét. Adam (:'.
Eva mesmos estariam de todo esquecidos,
se porventura, expulsos pelo gladio ignito
elo archanjo, não se tivessem refugiado no
pa1'aiw de Milton, lJem que até nesse refugio
não estejam1ivres de já ir produzindo uma
certa impressão comica. Não é isto que
merece m8nção. O que eleve ser ponderado,
é de muito maior alcance. Com effeito, nós
somos um povo inculto. Ainda não affirma-
mos em cousa a Iguma a nossa incEvidualida-
de, o nosso caracter nacional. A pbilosopbia
e a sciencia, entre nós, continuam á ser urna
especíe ele 1'oupa feita em Paris, que é uma
profanação descozer e recortar, e como taes
nenhuma influencia t6m podido seriamente
exercer sobte a evolução das nossas ideias
religiosas. D'ende vem pois que, sem o
salutar reactivo ela cultura, o nosso povo,
não obstante, apresen ta vivos signaes de mo-
difLca 'ão radical em suas crenças? Quem
disse ao povo rude e analphabeto que o ceu
pode ser bom, porém a terra é melbor,-
que esta pequena filial cá em baixo é cem
vezes preferível á grande séde da empreza
lá em cima (t Quem lhe disse, quem' lhe
in 'utiu no espirita que é mister, até sobre
Deus e suas promessas, transmittidas pelos
seus prepostos, fazer a parte do scepticis-
mo') ... O problema é gr:we; e não é a mim
que incumbe resolvê-lo. Em todo caso,
porém, não deixa de causar estranbesa aos
olhos do observador despreoccupado que
um povo ignorante vá pouco ~t pouco il1sen-
- 249 --
sivel e inconscientemente, partindo as ca-
deias da superstição tradicional. Feuer-
bach disse que o desenvolvimento de Deus,
pois que Deus tambem se desenvolve, tem
por presuppo:sto o desenvolvimento dos
homens. Póde ser. Mas faço a seguin te
nota :-0 desenvolvimento que por ventma,
no correr dos ultimas vinte annos, tenha
tido o espirita do povo brasileiro, é quasí
nnllo :-a]guma cousa, talvez, dê semelhante
ao que póde ter-se dado, du ran te esse
mesmo tempo, com o resfriamento da terra,
ou com a força que o sol, ele entàó para cá,
lenha gasto em dar movimento e vida á tudo
que lhe está sujeito ;-ao passo que o nosso
Deus de hoje não é precisamente o Deus de
ha viote annos. Dir-se-bia que envell1eceu
um panca e assumiLl a POsiÇãO de um bom
avô, condescendente em extremo e capar. de
tolerar o que o melhor dos paes não tole-
rarja.
E' digno de reflexão :-0 povo brasi-
leiro, que ainda não sabe ler, já sabe entre-
tanto rir-se de muita ousa, respeitavel e
sagTada I...
Acho rasão em Steub, quando diz que
todos os theologastros, desde Origenes alé
o barão von Ketteler, não nos tem feito mais
rico, nem se quer de uma unica ideia nova;
mas é falsa a sua aotithese, quando affirma
que tambem todos os scepticos não nos tem
deixado de menos nem um Ó, se quer, dos
velhos prejuízos. (9) Conheço mais de um

(!l) KII';,/I' 81'(,1';/"11-11-2. I1d. paI!. ::fifl.


- ",50-
preconceito reHgiQso, que ha perdido o seLl
valor, a sua efficacia de outrora. O povo,-é
certo,-difficilmente poderá representar-se
o ideia] debaixo de outra forma, que não seja
a forma da religião; porém é igualmente
ex.acto que, de tempos em tempos, elle
quebra os antigos moldes e vasü em novos
cadinhos a sna religiosidade. São para elle
as epochas de crise na evolução do conceito
ele Deus. E até nós achamo-nos hoje em
li ma dessas epocl1as ! ...
- 23J -

XI
o que se de"e entender }JOI' direito autoral

Em uma das theses pOI' mim apresenta-


das no uI timo concmso, pareceu-me justo,
ao fazer' a classificação do~ dil'eitos civis,
inclnir nma nova categoria, que designei
pelo nome, llm pouco exquisi.to, de elú;eito
emloml. .1 in;;lJem, mais do cfue eu mesmo,
pudera ter a certeza de produzir com essa
novidade a impressão elo inaudito: e foi pre-
'cizamente armado n'essa ideia que ousei
esperar ser arguido n'aqnelle ponto. Mas
as minhas esperanças ['oram frLlstl'adas. A
tbese passou incolume, nilo obstante ser
ella a qll talvez melbol' occasião offere-
cesse para um espirito ]e tal nto mostrar a
sua valia, dando batalha ao sen ontendor;
u que se torna ainda mais comprebensivel,
quanrlo se pondera que e tá em via de for-
mação o cocligo civil brasileiro, e as qnestões
suscitadas pela thesc deviam trazer, agm do
mais, Llm certo caracter de actnaliclade.
Fntretanto, nem isso teve força para
chamar a 'attenção, principalmentt de um
ou ontro mo('o espel'ançoso, á quem incum-
iJia e,c ui da!:: snas [Jl'etE:nf;ÜeS, lançar por
terra o (J)'gulho e as singnlaridades do
velho con ul'rente desprotegido. Porém ...
lual. 1. .. Ninguem e lembrou de ombater
a minlJa extravagancia sendo digno de nota
(llH, a cousa não deixara de causal' es-
panto e motivar mais de urna interpellaçZo
pnl'lit::lllar :obre o seoticlo e o a1C', n(' cl'a-
LIuella especie de corvo brctnco, por mim
qualificada de direito automl.
Como sou (lotado da faculdade de re-
presentar-me, até as ideias mais prosaicas
e abstractas, sob o schemrna de uma mulher
bonita, posso dizer que a minha these foi
semelhante á uma linda moça, que provo-
casse um rapaz iogenuo, mostrando-lhe,
em toda a sua peregrina belleza, os eburnaos
hernispheroicles de um seio de fada, ou a pólpa
dialJolica de uma perna brasileira (as func-
çoes do cresce?' e engrossai' são vegetativas, e
no Brasil a vegetação 6 luxuriante), porém
fosse repellida pelo ditoso mancebo, que
esconjura o anjo máo e foge das tenta 'oes.
Mas note-se bem :-para o puro tudo é
puro. Não vão por V80 tura descobri r n' essa
minha compara ,ão, qne aliás tem mais de
poesia do que ele realidade, algum docu-
mento comprobatorio da maiDI capacidade
do meu antagonista para o lugar que l reten-
demos. O qne eu [juiz deixar gravado, por
meio de uma imagem, no espirita do leitor,
foi que a minha these, iovolvendo uma ideia
nova e até- posso affirmal.·b,-c'óm appa-
rencias de he1'esia jtwiclica, segundo a phrase
corriqueira, não teve com tudo a sorte de
attrd.hir um olhar, nem se quer de piedade,
da parte de qLlem ao certo devia ser o mais
interessado em demonstrar a sua exquisi-
tice, quando não a sua erroneidade.
Não sei se me é vedado, em tal as-
sumpto, que é serio, pcrmittir <1ue se
movam livremente os musculos do riso'
mas eu não posso conter-me ainda mais,
porrrne tenho. obrn a {((enfdadc clr l'il' uma
- :Jb:l -
tbeoria assentada. Concordo com o profes-
sor italiano An tania Tilri que ... l' uomo fu
ben definHo - animctle elel1'iso. Opino com
GoeLhe que o caracter elo homem não se
pMe determinar melhor do que pelas cousas,
de que elle zomba, e n'este ponto ainda
associo-me ú Diderot, que afirma ser o riso
11 peclm ele toque, não só do nosso go to, mas
tambem da bondade e da just'iça... Quando
outra me falte, sirva-me ao menos, no meio
ern que vivo, e na pl1rase do meu litLe-
rato, ... « la sapienza del s01'1'iso, che pme era
iI senno di Socrate. »- Este pequeno capi-
Lula de esthetica elCt pilhel'ia veio apenas para
jusLificar-me de não poder reprimir uma
gostosa risada, ao lembrar-me dos e.scru-
pulos e receios que causou a tal historia de
clil'eito Cttttol'al. E é certo que não se Lratava,
como ainda n3,o se trata, de um simples
aclo a(;ademico, mas de urna exhibição de
conhedmentos sufficientes para o professo-
rado de lima I'ClcuIdade Jurlstica I Se aqui
não é permittido dar largas ao riso, nRo sei,
anele s \-lo-11a.

I
PonlJamos porém de lado, por ser alheio
e improprio da sciencia, tudo que possa
parecer uma allusão peso oal, e passemos ao
assumpLo, que nos esper n .
Na rriinha resposta á um elos pontos
qLlestionados pela Faculdade, eu di e que
a elassificação preferiveL dos direitos civi. ,
por abranger o quadro de todo o direito pri·
va lo, é a que os dispõe nas cinco sep'uintes
- '134 -

categorias :- -l. ° direito das pessoas, inc1u-


si ve o dãs pessoas j midicas e o direito a1do-
ral; 2.°- direito de família; 3.°- <lil'eito das
cousas; 4.°- clireito das obrigações; 5.°-
direito hereditario.
Não é meu intuito, nem viria ú propo-
sito, apreciar aqui, em todas as SLlas partes,
a these mencionada. Permaneço flrme na
convicção de que o quadro esti.\ completo.
A penas julgo-me obrigado ú decl81'ur que a
classificãção, assim feita, não é de todo in-
contestavel, e poderia dar lugar á muitas
qLlestães impol'tontes, qLle entretanto nin-
g'uenl se dignou de suscitor. Pelo menos, é
sabido que a theoria das pessoa.s jlwiclicas
pertence ao numero das mais controvertidas,
e índagar, por exemplo, si a distincção entre
as 'l.miuersilates personCtl'um e as univel'sitales
úonontln tem ou n80 alguma influencia ua
classificação dos direitos das pessoas, nno
era um ponto ele pequeno valor. Tampouco
se poderia considerar como tal a indagação
da parte, que ainda se deve fazer ao direito
romano, na genesis conceitual da pes oa ju-
rídica. Mas tudo isto lião cabcria no plano
do presente escripto.
O que aqui nos occupa, é a ideia do di-
'reito cmtoml. E perguntemos logo:- que
sentido está ligado á um tal direito. Como
se .iustiflca a Slla illc1L1São na ordem dolS di-
reitos civis, e ainda mais-que elle seja ius-
cripta no circulo do direito das pessoas?
Eis a questão, ou antes as questões, que me
proponho eluciL1ar.
(j leitor attenda; eu careço ele na at-
tenção. o cursar o primeil'O an no (la Fa-
- 253-
culdaLle, o estudante que toma ao seria o
seu compenclio de Direito natuml,. trava
conhecimento com uma theoria, que lhe
absorve longo tempo de medit:;çào, para
tambem posteriormente elesapparecer de
todo e durante o reslo do curso não figurar
mais no qU<.1l1ro elos estudos juridicos. Re-
1Jro-me a tl1eol'ia da chamada pro]J1'iedadc
littera1'ia. Esta propriedade, sobre a qual se
costuma dizer, no dominio de um imagina-
rio direito natural, as cousas mais bonitas,
posto que o conceito de litteratum seja tão
eonciliavel com o de um estado de nat'l.weza,
como a ideia de croisé com a de orcmgotango,
essa propriedade é quasi como se não exis-
tisse, Iuando se passa ao dom:inio do direito
positivo.
Ião ha duvida,-e todos sabemos, que
o Codigo Criminal, no art. 201, comminou
penas, para garantir ulIla tal propriedade.
'Mas isto nada resolve. Além da sancçào
1enal referir-se s6mente a uma ordem de
factos, que nào abrange a totalidade elos
casos possiveis, resta sempre de pé a questão
de sab r, de que natureza é o direito, que o
Codigo alli garantia, e qual a po ição que
elle deve occupar no systema da sciencia
juridica.
A ex pressão- P1'op1'1:eclacle li ttercwia , co 01
q ue se costLlma, segundo a ma neira franceza,
designar o direito do autor de um producto
qualquer ela ordem espiritual, é intuitiva-
mente incapaz de bem representar o con-
ceito da cousa. Etlaclálugará lüeseattribua
ti esse conceito uma extensão menor do que
elle tem. Realmente, é difficil ele ompre·
- :2SU -

hender como póde ter applicação a ideiq. de


uma pJ'opTiedade litteJ'a?'ia, tra tando-se de
musica ou de pintura, de desenhos e mode-
los, ou de quaesquer obJ'as urtisticas; nas
quaes se accentua a individLléllidade de um
talento, e que nada entretanto tem que ver
com a lltteratura. A expressão - direito cm·
to)'al, que é correspondente ao UJ'hebeJTecht
dos allemães, não se J'essen te de igual de·
feito, é muito mais cOll1prehensiva.
E para lue se não me aCClJse, logo aqui,
de querer introdUZIr entre nós ideias
germanicas, porventma inacceitaveis, eu
observo que, pondo de part8 mesmo a Alte-
manha e sellS juristas, se quizerlTIos expri-
mir por uma phrase ampla o direito garan-
tido e consagrado pelo artigo :.26J do Codigo
Criminal, a de dú'eitú a~~tOl'al se adapta
melhor ao pensamento do legislado!', do que
a de propTiedacle litt8'l'cp'ic~' Basta lembrar
que o Codigo falta de ... « quaesquer es-
criptas ou estampas»- e este ultimo con-
ceito póde estender-se muito além rlo circulo
das lettras. Assim aquelJe Iue imprimisse
ou litbograpbasse, por exemplo, sem con-
sentimento do pintor, a copia de um be110
quadro, não seria menos criminoso, dadas
as outras presupposições do crime, do que
áquelle que contrafaz um livro; e todavia,
aUi não se· trata de litteratul'a, não ha, no
rigor do termo, uma propriedade litteraria.
Mas este ponto é secundaria; vamos ao
mais importante.
A doutrina do direito autoral, como elle
acaba de ser determi.nado, é ainda na hora
presente um campo de batalha) em flue se
- 257-
debatem opiniões diversas. Com effeito, no
parecer de alguns, é contestavel, se existe
realmente esse direito, ou se ao contrario,
não são s6mente pl'ohibidas certas acções,
que vão de encontro aos interesses elos au-
tores. Disputa-se mais sobre a' cathegoria
juridica, ú que eUe pertence, e ainda sobre
saber, em geral, se eUe é um direito de pro-
lJriedade, ou um direito pessoal, ou uma es-
pecie particular de direito.
Dest'arte, entre outros, von Gerber
contesta que ao autor pertença um direito
ubjectivo com relação {t sua obra. U
autor, pensa elle, luer ter a satistacção de
influir sobre o publico por meio do seu tra-
balho, e tern., além disto, interesses pecll-
niarios, á respeito dos quaes é protegido
pela prohibição legal da contrafacção. ('1)
Este modo de vêr, porém, não passa incon~
testado. auo Stobbe, por exemplo, é ele pa-
recer que, quando a lei, cedendo ás <;)xigen-
cias dajustiça, prohibe a contrafacção, ella
nüo quer s6mente salvaguardar os interesses
elo autor, mas tambem reconhece que o
contrafactor viola um direito.
Na protecção dispensada ao interesse
do autor repousa implicitamente o reconhe-
cimento do direito, autoral corno um direito
privado. (2) Não fica ahi. A ordem juridi-
ca,- prosegue Stobbe,- não garan te só-
mente o autor em seu interesse, quando
este é violado por outrem, mas ainda consi-

( I) Prival,l'echt - 'S 219 -Abhandl.-pag.26G.


(2) llanelbuch eles delllschen Pl'it"lll'echts lII-pag. 7.
, 17
- 2::;~-

dera o direito autorai como um objecto,


sobre o qual são passiveis certos negocias
e luctas de direito, sem que mesmo se tenha
dado uma contrafacção. Até aqui Stobbe é
irrefLltavel, mas elle abandona o verdadeiro
ponto de vista, combatendo sem razão as
opiniões de BLuntscllli, Beseler, Ortloff e
outros, que susten tam o caracter pessoal
elo direito em questào, e de quem mais se
approxima a sua propria doutrina.
IIa ainda escriptores que ex pressamen te
classificam o direito autoral no direi to das
cousas, e outros que o collncam no diroito
das obrigações por delictos e quasi-delictos.
Mas todos elles, posto qLle não deixe ele
existir em suas theorias uma boa parte ele
verdade, comtudo não attingem o ponto
precipuo ela questão.

IJ

o direito aLltoral, como todós os direi-


tos, LjLier objectiva, quer subjectivamente
considerados, Lambem tem a sua historia.
Cornprehende-se de prompto que fóra de
qualquer gráo de cultura, nào se pócle faliar
de semelhante direito. Mas é um erro sup-
por, como fazem alguns autores, lue a his-
toria d'elle começa propriamente com a in-
venção da imprensa. Com effeito, não só já
na antiguidade encontram-se queixas sobre
a violação elo direito autoral (em Marcial,
por exemplo, que nos conservou o nome de
llm plagiario, fi'iclentino, e chamou o seu
- 2J~1 -

procedimenLo um {llrlwn 11wnifeslulil (3"


mas Lambem na idade média aquelles sabios
e artistas, que primeiro protestaram con tra
a indevida multiplicação de suas obras,
queixavam-se justa men te ele s(~rem reprodu-
zidos, sem o seu consentimento, productos
espiritllaes, aliás não impressos.
Não obstanLe, porém, deve reconhecer-
se que só depois de apparecer a imprell 'a, é
que principiou o desenvolvimento propria-
mente dito na historia da contrafacção, ao
passo que antes d isso toda esta materia
tinha uma significação secundaria, tanto
na praxe, como na propria scienciajuridica.
A tall'espeito diz com acerto Wachtel':
- « Em quanto os livros só eram multiplica-
dos por meio de cópia, o autor nào tinha
razão sufficiente para reclamar um Hreito
exclusivo á multiplica~ão dos exeml. laréS.
Isto porém alterou-se desde que appal'eceu
a arte typographica. E La forneceu um facil
meio mechanico ele vasta multiplicação e pOi'
este modo, tambem llm alargamento do com-
mercio litterario' pelo que então as obra
dos escriptores adquiriram Lllna significa-
ção inteiramente nova. »), .. (4)
E são tambem dignas ele menção as se-
guintes palavras de Ileydemann:- « Pro-
priedade litteraria e astistlCa, no sen tido
moderno, era desconhecida ela antiguidade.
A exigencia, que se faz, de uma protec ão
do dir ito de autor, se liga e.A'lel'nmnente ao.

(3) Liv. 'lo epig. 53, ~1, i3' Liv. 10 ('pi" /lIO.
(Ij) T'rl'lf/gsJwlil-f- pag, \.
- 200-
meios modernos de multiplicação e diffusão,
e internamente ás vistas modernas sobre
uma industria de natureza espirituaL» (5)
Isto é exacto; e para melhor compre-
hendel-o, basta observar qne os jnriscon-
sultos romanos tinham i:.l idéa do ganho por
inconciliavel com a vocação do jurista, e
aincla 00 terceiro seculo do Imperio, Ulpiano
não hesitou em dizer :-. o' est quic1em res
sanctissima civilis sapientia, sed qure pretio
nummario non sit restimanda nec debones-
tancla. (6) E quanto aos philosophos espe-
cialmente : - boc primum profiteri eos
oportet mercenariam operam speroereo. o
Mas esta velha intuição não tem mais razão
de ser; nem ha hoje quem seriamente ouse
pôr em dllvida a legitimidade das pretençães
do pensador, do escriptor, do artista, á au-
ferir uma vantagem do seu trabalbo.
Assim, já l1a longo tempo, esse direito
foi reconhecido, e a primeira forma do seu
reconheçimento foi o privilegio, quer do
autor, quer do editor. Porém essa primeira
phase, posto que se prolongasse desde o
decimo quinto alé o presente seculo, devia
acabar 1 o]' mostrar a insufficiencia do meio.
o'urgio então o conceito de uma propriedado
litteraria, artistica etc.;- reclamação ab-
surdamente consequente, como diz Felix
Dahn, de um d1'oit (Jtel"l~el ele l'autetw, se·
gundo a phrase do congresso de BrLlxellas

(5) I'ortrag in der ]Jltilosopltisclwn Gescllsclw(/ iII


Herlil/ 1872.
(6) L.1o ~ ",5 D. ria cor/r. tO(j11. ( 0,13).
- 2(jl -

em '18tH. (7) Veio delJois um terceiro estct-


dio, em que a doutrina dominante 8 a de um
clireito autoral identico ao direito do editor
e do livreiro,- puro direito ele propriedade.
Mas não paroo ahi. O que ha de eXUGto
em tal doutrina, isto é, a impLJrtancia dada
ao interesse real, ás relações economicas
elo autor, não suppre, nem compensa o que
eUa tem de erroneo. A theoria tomou uma
outra feiçào, e chegou-se em fim á conceber
o direito autoral como llma derivação da
pessoa, como um direito Qlassificavel entre
os direitos pessoaes.
Neste pé se acha Ll questão. Os diversos
modos de encaraI-a e resolvei-a, t8m todos
aindB. os seus representantes. Entretanto
me parece que a verdade está eló lado dos
que seguem o ultimo ponto de vista. O di-
n~ito autoral, diz Bluntscltli, pertence ú
classe dos direitos gemes humanos. A obra
é uma expressão do espirito pessoal do
autor, um pedaço da sua personalidade. (R)
E, cobercntemente, Bluntschli trata do
direito autoral na secção elo dil'eHo das pes-
soas, depois das pessoas j ul'idicas.
Semelhante é o pensar de Ortlot'f, Ga-
reis, Lange, Dahn, OrcUi e algun' ll1ai::;.
Orelli, é verdade, faz uma modificacà0,
porém de pouca importancia; pois diz que
o direito em questão é realmente pessoal
em sua origem, mas á elle se prendem COI1-

(7) lJt:ul~t:lIe~ Pl'ivrJ/l'L'c/t/. UI'u'ldl'i's (1~/~) pag.-'I.L


(ti) Pl'iCU/l'l"'/I/- ~ \(;.
- 2G~-

sequencias atli nen tes á propriedade, e é j us-'


tamente a estas que o legislador protege. (9)
Exacta;. porém, totaLmen te exacta con-
sidero a opinião de F' Dahn. Elle se exprime
assim : - cc O aulor tem uma acção para fazer
reconhecer a slIa autori.a, onde aLIa é con·
Lestada; só depois, e por via de consequen-
cia, é que lhe cabe uma acção para prohihir
cel'tos actos incompativeis com essa autoria
juri.dicamenLe protegida, bem como pal'a fa-
zer-se indemnisar de qualquer prejuizopro-
duzido pela violação do direito de autor;e em
rimll1e cabeaacção criminalpara fazerpunir
a quem quer que o tenha viülado. ») . ('10)
E' esta, por tanto, a opinião que abraço,
a opinião do sabio professor de Kcenig berg,
que externei na minha Lhese, e que preten-
dia Sl..lsten tal" porém os espiritos supe)'iol'es,
C1l1e hoje sejuJgam mais competentes do que
eLl para o professorado, tiveram o cuidado
de não] olir com arruiJlo que não entende-
ram. Ainda foi lima prova de magistml pru·
"deneia! Mas tambem é o caso ele repetir o
([Lle o rrue uma vez cu disse, ao pegar um
jlretencioso em f1F1grante delicto ele ignoran-
ia: - só siJ;1to que a lingua escripta seja im-
potente para exprimir uma gargalhada !...
Não ei se me engano, porém quero
crer que, para a 01' 18m dos espiritos Incidas,
ti. Ll1eoria civilistica. rIne acabo ele expor,
posto Cjne nova enLre nós " todavia mui tis-

(!:) DeI' SCItIl/:; rle lill. 1/. It"/IlI~l/. liige/ll//lflll~­


pago IIG.
r I()) Pl/I('III!IC~('/:: - pat!o :;:-;1\.
- :263 _.-

simo acceitavel. Hasómente conlra elLa uma


objecção, que tambem só póde vir daquelLes
que, com os seus decennips e :ltficennios ele
pratica, applicando ao direito o conceito
naturalistico da e pecie, vêm-se sempre di-
ante de estranbas novidades: um burro
mesmo, ao qual se cortasse o rabo e as ore-
lhas, seria para elles uma especie nnnca
vista. A objecção é a eguinte:- o direito
de autor á garantido entre nós pela lei penal;
o que cae no dominio da lei civil, é simples-
mente a indernnisação do mal cansado pela
violação desse direito, e istlJ nada tem que
ver com a personalidade. mas sómente com
o ({'uanti intel'est, com as reJac.~ões economi-
cas do autor. Sendo assim, parece incabivel
dar-se à autoria o caracter de nm direito
pessoal. -
Não asseguro qLle a objecção me pu-
desse ser feita nestes mesmos termos:
porém, no fondo, seria i. so pouco mais
ou menos. Vejamos en tretan to o que a11i
l1a de analysavel. E' certo CJue o direito
le autor é protegido pela lei penal' ma..
tambem é certo que o dumno é um crime
definido pelo Corligo, e com tudo as acções
ele damno não ficaram exclui das da esphera
civIl. A garantia do art. 26l só existe para
os casos dolosos, não comprehende os ca os
de natureza Juridica different . Mas estes
podem estender-se até um terreno, em que
se levant.e contestação ou luta de direito,
não tanto sobre o intere se, como sobre a
qualidade aut.oral ele quem reclama esse
mesmo interesse, e em taes coneliçõe , o
ponlo jL1l'iclico á decidir" moram nle I e..-
- 26~-

soaI. Dir-se-ha por ventura que questões de


semelhante ordem, por sua nimia raridade,
não merecem ser tomadas em consideração,
para alterar-se o velho systema de direito
privado. Isto, porém, nada adianta. Nós vi-
vemos, é verdade, em um paiz, onde taes
questões nunca se deram, nem é provavel
que se dum. Mas tambem vivemos em um
paiz, onde nunca se tentou, nem jamais
tentar-se-ha, 'verbi gratw, oppor-se directa-
mente e por factos á reunião da Assembléa
Geral Legislativa, e todavia abi está o art.
92 do Codigo Criminal, á par de nào poucos
outros, que de igual modo punem delictos
puramente suppositicios e entre nós quasi
impossiveis.
III
A constrncção de bypotlleses, a figlll'a-
ção ele casos, muitas vezes presta ao estudo
do direito o mesmo serviço que os proces-
sos graph icos ao estudo das mathematicas.
Supponhamos, pois, que um escriptor bra-
sileiro publicasse uma obra, na q.ual pare-
cesse ha\ et' um crime por abuBo da liber-
dade da imprensa,·em que coubesse a acção
da jllSti a. A promoturia iniciava o pro-
Gesso; mas apparecia como responsavel,
não o autor do escripto, por' m, como de
costume, o autor que se obrigara. Seguidos
os termos legaes, acontecia á final que a
accLlsaçào fosse julgada ineffIcaz, absolven-
do-se o accusado. Mas a obra fazia época,
e o chamado testa ele (el'ro, persuadido do
poder fazeI-o, vendia a um livreiro D j)1'O-
- 203-
priedade delLa. O escriptor 0PPul1lm-se,
porém o seu subrogaclo insistia, Uma ver-
dadeira luta pelo direito. E qual seria então
o ponto central da contenda, se não o reco-
nhecimento da autoria, da qualidade pessoal
de autor, como presupposto da faculdade de
dispor da obra em questão?
Mais outra hypothese. Imaginemos que
um mLlsico da terra, com a mais profunda
boa fé, entendesse poder imprimir um vo-
lume ele va?"iações sobre os mais bellos mo-
tivos de todas as operas do Sr. Carlos Go-
mes, e agora mesmo, nas barbas do compo-
nista, atirasse-o á publicidade. O maestro
reclamava, mas o íllustre vcwiaelo?', que fi-
guro ser um desses muitos génies méconntts,
de quem diz a leg'enda que, quanto mais ctl-
coolisaelos, mais gigantescos se mostram no
manejo do seu instrumecto, contestava que
chegasse á tal altura o direito do reclamante.
Era, pois, uma questão de limites juridicos.
Sendo ena POl? ventura levada aos tribuna6s,
qual seria o ponto á elucidar e decidir.
Unicamente o direito pessoal de autor.
Ainda não hasta. E' bem conhecida a
luta qne, ha alguns annos, travou-se entre
dois litteratos francezes a respeito do drama
Supplicio ele uma m'l.tlh81' Nada mais nem
menos do que um wmbate pelct glo?"ia, pelo
nome de autor da peça. Ora, se o caso se
desse no Brasil, e os dois contendores,
comprebendendo que o direito é um processo
ele eliminação das i'tTegularülaeles ela vida so-
cial, que o circulo da justiça abrange muito
mais do que as questões por 'uma cangalha,
OLl por um Ct1Tendamenlo ele engenho, quizes-
- 266-
sem j llf'idicamente definir as suas posições,
- de que é q ue, em ultima anal 'se, se trata-
ria no caso? De esclarecer e firmar o ver-
dadeiro conceito da autoria litteraria, de
alguma cOLlsa, por tanto, que é "Ílll1el'ente á
.personalidade.
Bem sei,e não dissimulo,que todas as hy-
põtheses, com que acabo de illustrar a tl1eo-
r.ia, são capazes de produzir até emlettrados
uma certa impressão comica. Se os homens
nunca ouviram isto! ... Se as Ordenações são
omissas, se os praxistas nada lhes dizem, se
apropria litteratl1l'a civil istica franceza quasi
nada lhes ensina a respeito, como, pois, não
perdoar-lhes que se espantem do meLl di-
Teito attloral, que ~l final de contas é sempre
uma g,el'lnanict, uma cousa da AlLemanha!?
Mas eu estou exagerando e commet-
tendo uma injustiça. Mes arnis les ennemis ...
nunca disseram que se tratava de uma ieléa
alLemã, l'· simplesmente pela razão de não
saberem o que era. Dahi o religioso aca-
tamento, de que (\ minha these foi merece-
clora. Não 11a duvida, portanto, que SOLl um
homem aspero e intractavel, nào de.ixando
de ser até prejudIcial a mim mesmo.
Todavia, insisto na explanação da dou-
trina que abracei; e não para dar aqui mais
uma prova dos meus esforços, ma8 tào só-
mente para ser agradavel á serias e dedica-
dos amigos.
Figuremos ainda algu ns casos ilLustra-
dores do assumpto. ,upponhamos que uma
especie de fi I' nt Ct social Wlera1'ia, como
Erkmann-Chatrian, OLl ChauveaLl et Hélie,de
á luz um livro ele nlta importancia. Um elos
- ':.ü7-

membros da empreza intelIectual, visando


de preferencia o interesse economico, quer
transmitLir, por bom preço, a su:\. proprieda-
de, mas o outro, que é mer,os interesseiro,
oppõe-3e á isso, e não l1a vantagem pecunia-
ria, que o faça ceder.
Não temos al'li uma complicação, uma
irregularidade da vida? E quem pMe eli-
minal-a? Sómente a justiça por seus orgãos.
ão é nm caso de appella?' pa1'a Detts. Dado
porém que surja o pleito, o seu fim não seni
outro, se não traçar a raias jurídicas da
collaboração liLtel'aria e, por conseguinte,
determinar o direito pessoal do autor.
Ainda mais:- alguem reduz á drama
um romance de outrem, que prot8sta contra
o facto e suscita uma questão sembll1ante á
que se dell na Allemanha entre Rertholdo
Allerbach e Charlotte Birscl1pfeiffer, a illus-
tro mãi de \iV'illlelmine von Hillers, mCtt1'e
pttlchm filia pnlchrior,- sobre a col111 osição
dramatica - D01'f uncl Staclt-, que a escrip-
tora elerivára ela narrativa do escriptol',-
[r'ralL Prato ·sO)'in.-i ão se trata ele uma paga
ali honorario, fIlle nm exija, e outro negue.
'1 rata-se sóoJente ele um direito, que o ro-
mancista jlllga ter, de er respeilado em sua
obra I ara ninguem poder utilisar-se della,
sem sua licença, direito este, por m, que o
elramatLUgo conte ta. E' uma questão nova,
sem duvida, mas não im possivel no domínio
da jurisprlldcllcla; llll1a questão juridico-
pessoal, que uma vez 'uscitada, não poderia
ser resolvida com o allxilio das ideias ro-
manas da confttsio e da JI1i.-clio; havia mister
(lo prin ipios ,llpcriore . Era a questão da
- 268-
ol'iginalidade encarada como facLor determi-
nante de consequeneias juriclicas, e destarte
in teiramen te fóra do ci rculo dI) s demandas
comuns sobre l~~C}'Llm cessans e damnwn
emergens.
Basta de casuistica. Se o que tenho fi-
gurado, não é sufflCiel1te para escla':ecer a
doutrina, nalla mais se1-0-ha. Resta porém
ainda um lado do assumpto, que não foi
apreciado, e nào deve passar desapercebido.
Com effei to, podem objectar-me:- se uma
dessas questões, que ahi foram hypothetisa-
das, apparecesse entre nós, como seria pos-
sivelj ulgal-a, desde que não temos lei, nem
estylo ou costume nacional á tal respeito?
Objecção especiosa: mas no fLIndo fr1vola e
insignificante. Nós somos ainda, em materia
juridica,um povo da boa1\1.são,-pelo meno ,
da boa rasào de fus gentiwn, que continúa á
ser uma f011 te do nosso direito. Quantas
não são as causas, jud1cialmenie decididas,
sem que aliás exista para ellas uma lei ex-
pressa '?
A velha rusão, infallivel e ab. olnta, dos
inven tores de nt11 direilo nalt~l'al, essa nào
deve, ao certo, ser mais invocada como ora-
culo de verdades. .Mas o mesmo nüo se diz
da rasão subj ecti va, esclarecida pela scien-
cia e sempre dependente do grau de cul-
tura, do espirita do povo, n' uma epocha de-
tenninada. Ella se faz oLlvir pelo orgão de
todos os conelitm'es jUl'is, que não silo só-
mente os legisladores, mas tambem os juizes
e, em gera], todos aquelles que de qualq~er
modo contribuem para a formação do direIto
nacional. ada pois do ntais elC ciLavc]
- 26~) -

noste terreno, do que a opinião de Franz


Adickes. Elle diz :-« Onde a lei e o costumE'·
não dão preceitos, onde não existe uma geral
convicção jurúlica, o que póde decidir as
questões, é a propria convicção individual;
e deve-se reconhecer que ha duas especies
diversas de direito objeütivo, isto é, o direito
já objectivado no mundo exterior, e ao lado
. deste tambem nm outro direito, que só nasce
pela urgencia dos casos particulares. O
principio, assim descoberto, é um verda-
deiro principio juridico, e a fonte, donde eUe
sabe, isto é, a rasão subjectiva, tambem uma
verdadeira fonte de direito.» (H)
Esta maneira de ver tem todo cabimento
entre nós outros, que não podemos lison-
jear~nos de possuir boas leis para resolver
quaesquer complicações da vida civil. ELl
sustento a theoria da positiviclCLCle de todo
direito; mas para mim positividade tem
mais ex.tensão que legalidade. O silencio da
lei não tI pois, em caso nenhum, uma rasão
peremptoria d negar-se a distribuição da
.justiça, quando esta ú reclamada. A pbrase
forense-ca1'ecel" deacção-é um invento da
chicana} quando não é um ef'feit:l da igno-
rancia. Só carece de acção quem carece de
direito. Os ramanos deram disso grandes
provas. Se vemos que, entre elles, poude
uma vez o pretor Q. \ alerio litigar judicial-
mente com o consnl C. Catulo para deci-
clir-se, á qual dos dois pertencia a gloria de

( I J ) ZIU' Lo/wc t'on deli HI'l'h/sqIlPllell - p:1g. 9.


- 270-
uma batalha naval ('12), l10rque rasão não
poder-se-hia entre nós propor uma acçào
em juizo para decidir-se, á quem compete,
por exemplo, a gl.oria ele um bom livro?...
Vou concluir; mas, ao fazeI-o, julgo
c1eYér dirigir um pedido aos meus adversa-
rios. E' para que se dignem de, em quanto
eu continúo á rir-me dos tctZentos apl'oveita-
veis, que li veram medo do meLl cliTeilo a1./.lo-
vaZ, enviar ao governo, inclusive. o impera-
dor, o presente escripto como um dos
maiores desaforos do genero. E se quizerem
levar bem adiante o manejo clipl.o1natico, até
lhes aconselho que façam chegar ao conhe-
cimentf) imperial que sou o autor da-
OffeneJ' B1'ief cm clie (Zelttsche Pl'esse - na
qual, aos olhos de quem poude ler me, eu
me mostrei um subdito petulante. Contem
isso, que talvez tirem proveito.
Segundo li ulti,l1amente em Lll11 jornal
do sul do imporio o sabio naturalista aUe-
mào, Fritz Mneller, qne alti reside, acalJa de
descobrir que a natureza, entre nó , cercou
cert.as pLlntas selvagens de meios de pro-
tecçào contra o ataquE' elas lagarta. E'
assim que o 1nal'awjá, diz e1le, é dotado de
umas glandulas, que secretam um mel
especial, o qual atLrahe umas formigas
pretas, que deliciada por aqueJle nectar
nào consen tem que as lagartas s~ appro-
ximem.

(I~) VaI. M:1\:. rapo ) ~ 2.


- 27'1 -

Eu sou uma dessas planLas selvagens.


Tambem guardo o meu mel: - é um pouco
de poesia, que não me abandona mesmo nos
momentos mais criticas da existencia. Te-
nho tambem commigo uma formiga preta:-
é a ironia,- a ironia reflexa, que zomba até
da pl'opria zombaria,-a ironia que me de-
fende elus más impressões Iue me possa
cau. aI' a in triga. e o me.ciclo cl:\s alma.' pe·
q uen inas.
- 273-
XII
Critica musical: -- diversos artigo'

I
CARLOS GOMES E A ~UA OPERA «SALVATOR ROSAD

Julho de 1882.

Não me proponho,- fique isto logo as-


::;entado,- escreyer uma cousa que tenba
feição de estudo critico sobre a obra men-
cionada do maestro brasileiro.
Para que possam ser devidamente jul-
gadas, as pal'tit'IJi'as tambem se estudam,
tambem pr ci am de ser submettic1as á um
proc~sso regular de reflexão e de Clnalyse.
Dizem-no os competentes, que não
cessam de illllstrar o preceito com o exem-
phL Mas esse ingrato mister de apreciar as
bellezas ou os defeiLos de uma opera no- si-
lencio do gabinete, nem eu sinto-me com
forças para curr.pril-o, nem, dado mesmo
que as forças me não faltassem, teria tempo
e gosto bastante para executaI-o.
Além disto, não estoLl longe de pensar
com o meu Settembrini que ... i critici che
vollero ?'agionfL?'e sul melocl1'amma clieclero in
molte sciocchezze, e chi tece qnalche ossel'vc~­
zione sennata non tu ascollato.- Guardadas
as reservas, eu continno á julgar dos pro-
ductos lTIusicaes, não segundo a lettra de
um frio programma philosophico, mas se-
18
- 271,. -

gundo as impres ões, mais ou menos pro-


fundas, CJue elles m8 causam.
As ['elações que O!antenhn com H mu-
sica, não são de p'lua inhúção, mas ainda ele
caracter pallwlogico: - enthLlsiasmo-me,
apaixono-me por ella.
Não compl'ehendo aqueJla especie de
serenidade celeste, com que Hanslick pre
tende que o beUo ))HLsicctl deve ser coo tem-
piado.
Se é exacto, e eLl não contesto, que a
musica nüo existe vara servir de meio a
outra qnalquer arte. nem tem por finl sus-
citar sentimentos ela ordem moral, é igual-
mente indubitavel que muitas vezes, mau
grado mesmo dos autores, ella aSSll1l1e func-
ções ai heias, e um pedaço de bella m lIsica,
se não produz, ao menos le1nbm Ü emoção
produzida por objectos que não são estric-
tamenlemnsicaes: -um quadro, urna poe-
sia, uma c.umpina em flor, e até mesmo uns
bellos olh(Js, que nos fallaram.
A musica não é directamente repl'esen-
tl,'ttiua, mas pl)de-se dizer que ella o é indi-
rectamente, por força de uma associação,
não de ideias, IJOrém de sentimentos; pro-
cesso psych'ologico este apenas pl'esentido
e ainda não analysado.
Seria ao certo um desproposito affirmar,
por e.\eml'lo, qLle esta 1)l1 aquella phrase de
uma opera de Bellini ou Donizetti 6 a ex-
pressào determinada do amor, do ciume, ou
ele outra qualquer paixão, CJLle tem Llm nome
proprio na linguagem eum caracterdistincto
na consciencia.
Mas i to não exclue o segnint facto
- 275.-
que aliás até hoje não tem sido estudado:-
assim como a physiolo~ia conhece os )}'/,Ovi-
mentos consensuaes, é natural que na psycho-
logia 'lambem exista uma certa consenstlali-
clade das emoções.
li:' em virtude destas emoções consen-
suaes, que a musica póde ir muito a l:fJ1 dos
seus proprios limites e operar effeitos, qne
parecem estranbos á sua natureza.
E um dl)s signaes caracteristicos do
genio musical está mesmo ahi: - em des-
pertar com uma só phrase, com um ó ae-
cordo, um sem numero de sentimentos di-
versos, adormecidos no fundo da alma.
Ouvi um Liecl de Schubert, - St~leik.a,
por examplo.
Ninguem dirá que o componista qui-
zesse produzir mais elo que a .. imples emo-
ção da belleza musical.
Entretanto, e por forçadaquella consen-
su.aliclacle, -que mistura de praier e de tris-
teza, que pensamentos de amor, que recor-
dações, que saudades, ao enLoarem-se as
palavras :-

Ach, die w(~7we Herzenskwncle,


Liebeshauch, er'frischtes Leben,
WiTcl mil' nt~l' aus seinem ~flmde,
Júmn ?nil' ntM' se1'n Athem geben! !

Como se di este consensus emocional,


esta magica evocação de sensações differen-
tes?
Eu não sei; nem ba quem saiba.
Mas o facto existe; e não só existe,
- 27ü -

como objecto de observação e de estudo,


porém é Lambem, á meu ver, a prova mais
inelfuivoca da grancteza genial dos compo-
nisto.5.
A respeito da musica e seus effeitos,-
já o fiz ver,-o meu modo de pensar se con-
funde com o meu molio de sentir.
Não tenho nem sigo theorias.
O meu doutor é o meu entusiasmo ..
Gu seja defeito de raça, ou defeito de
educação, se realmente é um defeito, a ver-
dade é que o meu l)Onto de vista está de ac-
cardo com o do grande patriota e pensador
italiano, que diz.: - « Si, andate á teatro,
IlrJiLe la Norma cantata da Maria Malibran,
e poi pensate ai critici se potete. La gente
non ragiona piú, e 'ce dai Leatro, ucceode i
tOl'chi, riconduce trionfante la donna a
casal e va ri petendo per le vie qu ali' arl110nia
he ancora rlsuona nell'aoima. »)
Como S8 ve. é o ponto de vista do fre-
nesi e (la loucura.
A minha phiLosophia musical não renega
esLa sua origem.
Dado, porém, de barato que os theore-
ticos tenham razão, e que seja mistér, em
todo caso f1lial'-se á e ta ou aquella doutri-
na, já feita e assentada, que dispensa qual-
f1 ner novn indagação,- em tal hypothese,
eu matrículo-me na escola de.W. 1\mbros;
e ac1mi ttiodo com este critico alLemão, como
phases evoluciollaes, uma mnsica da f01'1na,
11 ma musica da alma, uma terceira do e::;pi-
I'ilo, e finalmente uma ontl a dapalavl'Ct solta,
não hesito entretan to um só instante em
confessar o meu atl'azo, pois a despeito de
- 277-
todos os thesouros e maravilhas das dilas
ultimas, ainda estou 'pela segunda phase,-
só comprehenc1o a musica cl[L alma.

2.°

Neste pé,-e antes que o leitor me peça


contas da minha rligressão,- quero expli-
car-me á respeito della. .
AristoteJes deixou escripLo, para ainda
hoje repetir-se, ql.1e a admiração é a causa
da pbilosopbia.
Ora, eu admiro o Sr. Carlos Com s;
logo nada de m(Ii~' natural. ele mais acceiLa-
vel, n::tc1a de mais aristotelieo, em summa,
do que pl1ilosollhar tll11 pouco sobre si ou Ú
pro! osito de sua pessàa. E philosophar
quer dizer entrar n'uma ordem ele conside-
rações, que não são especialmenL8 destina-
das para o cl.lb'l.{'?n do componistil, nem feita.'
no unico intllito de seguir a corrente ela
moda, mas podem. ao certo, prestar nm
grande serviço - () deixar bem a CCé'· 11 tnada
a physiognomia do maestro, que at.é hoje as
nuvens de incenso nflo 1105 Lern pcrmittirlo
ver em sua verdndeim ex pressão, em sua
slllgela clareza.
O Sr. Cm los Gomes... E te senho)' ú de
mais. Tanto valera dizei', cmtetis lKu'ibus, o
senho)' Gounod on o senhor Richard Wagner.
Um elos phenomenos communs aos homen .
notaveis é a perda dessa senho)'ia inherent
á todas ns 'V'I.{,lgal'idacles, qu'e sem ella, ao
menos entre nós, di.fficiJmente se distinguem
elos escravos. Carlos Gomes,-é o CJue eu ia
- 27'-
dizendo, - não declignar-se-ha ele descul-
par-me, se uso aqui de uma franqueza, á
que elle talvez nào esteja halJituado.
JLl]gO dever fazer-lhe a mais sincera
confissào :- um dos traços caracteristicos
da minha natureza é o odio ús fables conve-
nHes, ás phrases de effeito, aos estribilhos
do dia.
Não ll'esto a minha assignatma ao en-
thusiasmo que se formula, em estylo de ca-
rido'a subscripção, para glorificar-se em
familia o nome bl'asilóiro, do qual não tenho
lá grandes motlvos de ser orgulhoso. Pilatos
perguntou á Christo :-quicl est vetitcts? Eu
pergu nto aos pa tri otas : - quicl est pat1'ia?
A té o I resen te esta cleusn não me tem
querido apparecer, senão sob as unicas
formas do 'imposto, que se me exige, e do
solLlaclo que m8 faz mêdo.
E' natural, portanto, que esse velho
idolo não occLlpe logar no meu oratorio.
Patriotismo é cou a qLle tambem diminue,
acaba-se mesmo, á poder de decepções.
EstOLl Ilvre gesta virtLlde, que peço perdão
de já haver sentido e praticádo.
I.sso <1ue Lessing chamava uma hel'oicct
fJ'ctq/wza,-tempo da de vir, em que limi-
tar-se-11a a ser simplesmente um objecto de
estudo para os psychiatras como uma nova
especie de manict sine clelil'io, como uma
psychose, como Llma doença.
A prova é que hoje mesmo, ainda bem
longe des a phase nnal do amor da patria
não se apresenta, não ha um patriota sin-
cero, realmente sillcero, L1ue não seja, mais
ou menos um candidato d hospital, ou
- "27\)-

como idiota, ou como mendigo. Uma cousa


v1'1le a outra.
Bem póde aqu i o lei tor in terrogar-me:-
a que vem isto? Muito a proposito, é a res-
posta. Desde que trato de Carlos Gomes,
para cujos triumpbos, entre nós, a par de
uma adrniral,!ão desinteressada, tem contri-
buído elll igual e cala o arl oubo elo patrio-
tismo, eu que não sou patriota de velha tem-
perd., devia declarai-o alto e bom som, afIm
de que, por ventura, não se aLtribui. se a um
criminoso desconhecimento, de mim r ara
com o genio, aquillo que é apenas o re5nl-
tado tle uma falta de febre paLI ioLi"a.
Sem duvida, o pendor elo caracter bra-
sileiro, em geral, faz do [atriotismo o que
os fr'ancezes fazem do amor, na opinião de
Taine, isto é,- non lLne passion, mais 1Ln joZ?"
festin, al'rcmgé cwee gO'iU,- e muitos dentre
aquelles mcsmos,que ora en tôam ao maestro
os mais fervoroso hymnos,cantar-lhe-híam,
no mesmo tom e com a me ma cara. uma
comprida nenia, caso o mae 'tro se dign::lsse
de fornec r-lhes ainda essa occasião de
brilha1'. ,ill1ples questão de pretexto e op-
portunidade para as agui6tas quebrarem a
casca e sallil'em do ovo ..
Mas é sempre um modo de servir á pa-
tria, e eu não me presto a isso.
Esta minha franqueza tem dir ito a uma
descompostura, que ao certo não se fará es-
perar por muito tempo.
Schiller tinha razão d dizE'!' llle todas
as at tes ão Olhas do pueril e innocente
gosto ele bl'ineal'. Escrever taml em é lima
arte, a qual para mim, em mai de um !.Jonto,
- 280-
sClbstitl1e um dos meus predileutos brinque-
cios ela 1T1eninice. Era boEr com as vaccas
paridas, ou com os ca1'neil'os nUL?'1'ado1'es. E o
meu maior prazer consistia justamente em
ver o animal atirar-se de corpo e alma
contra mim, mas quando batia com a testa
no tronco, já eu estava trepado na COpél. da
engazeiTC~.
Continüo no folguedo, sob forma menos
perigosa, mas ígllalmente aprazivel. E' dar
alflnetac.1as na vaidade de uma sucia de
parvos, para rir-me da sua furia e dos seus
insultos, que aliás me deixam ílleso.
Eu disse que das quatro phases musi-
caes, indicadas por Ambros, só comprehen-
cIo a m1.~sica da alnw. Por tal entendo e creio
dever-se entender a-ql1ella que não nos causa
sómente a pnra impressão do bellc musical,
qlle é difficil de determinar, mas nos deixa
sempre como que um sedimento de felici-
dade c bem estar, algl1ma cousa que se
parece com uma flôr peregrina que se acaba
de aspirar, on com um primeiro beijo que
se acaba de colher. Não comprehendo olltra
musica, senão essa, tão bem caracterisad'a
nos seguintes versos da anthologia latina de
Tucciani:

eunUco gi.lJlúl amor, et all/orem NlI1tiÇI1 gigultul ;


Cmllalldutll ('si) ut amelll1', el, /lI Cctl1lel1t1', amandnlll,

E ú não ser um desses philosopllos be111-


aventurados, qlle se nos afiguram taes,
quaes se pintam os cherl1bins: cabeça ali-
gera sem corpo, in telligencia sem coração,-
:linl:!l1em ha CJue seriamenle deixe de admit-
- 281-
tir, mais ou menos, est'J moelo ele sentir e
apreciar a musica.
Conta se que, durante ü concilio de
Trento, para obviar as censuras levantadas
pelos protestan tes, se tratou em Roma de
banir totalmente a mnsica das fuocções sa-
gradas.
Achava-se ahi entào o celebre Luigi Pa-
lestrina (1529-1594), o qual sllpplicou a
todos que não matassem a sna cara arte, qne
não comni.eLtessem aquelle furioso peccado,
pedio a cardeaes e prelados que o ouvissem
Dela ultima vez, e fel-os realmenLe ouvir a
slJa i\ilessa, di Pnpct ~1a1'cello, que comrnovell
os crueis e salvon a arte.
O granele critico, 1'llltor clo-Musicalisch-
Schmnen, para ll1em « quanto menor é a 1'e-
sisteneia ela cnltura, I.<'lllto maiore são os
golpes ela força musical. que exerce por isso
sobre os selvagens a sna mais fOl'teinOnen-
cia, )) nRO acha ria em sell1elhan te facto llma
refutaçào da Slla doutrina? Ou será q118
aCJll811es prelados e c;lrdea S fossem barba-
ros e incnltos, ao ponto mesmo 1e deixarem
os sons plangentes do mae::;Lro influir na sna
vontade? ..
Eu eston certo que ante um concilio de
criticos e doutores musicaes, coro a frieza
dos seus racion ias e o np1'iorismo das suas
ideias, o pohre Palestrina choraria em vào.
Mas tRmbem nilo be ito em pàr-me,
neste ponto, do laelo CIos padres, ainda cor-
rendo o risco ele pasSRr por 1l1n pow;o selva-
gem. Tirai dô mnsica a parte cOOlmovente,
a parte que me convida. ao prazer ou á tris-
toza, um innocente prazer e uma tristAza
doce, tirai-lhe essa parte, e eu não percebo
nella mais do qLle a qualiClade de Hrn ')'tticlo,
que não me incol11modá, porém tambem não
me agrada.
Tuuo isto deve levar-me a um fim de-
terminado.
Aqui está elle :-a opera Saluatol' Rr:sa
tem para mim o defeito de não impl'es io-
nar-me lyricamente, segundo o sentido em
que comprehendo a impressão lvríca.
Muita complicação artistica, e podia
GleSmO dizer, m Lli ta maestria no 11ano archi-
tectural da obra, mas á isto, qLlêlSi só á isto,
se reduz o seu merecimento.
Fallei de plano a'fchitectuml,:- e o leitoe
não estranhe a apQarente novidade da ex-
Dl'essão.
. Entre as muitas phrascs,- não mais do
que phrases,- com que se tem qllel'ido ca-
l'actel'isar a musica, figura eloqLlentemente
a que lhe confere o predicado de urna a1'chi-
tect'u1'a clel'l'eNcla,-para fazer contraste com
a definição, não meno eXCjuisita, de F.
Schlegel, qLle chamoLl a architectma uma-
musica gelada.
O que eu qlllZ, por tanto, dizer foi que
no Salunto)' Ro5Ct o elen'jento architectonico
apparece mais como sujeito, e o musical
como attributo ...
A opera resente·se realm nte de um
pouco de frieza. .
Cabe aqui uma pequena historia.
lotem po da maior florescencia do he-
lairinto na Grecia, quando brilhavam mulhe-
re notaveis, como Lai , Diotima, Phryne e
Mania, achavi.l-Si um r1ia, em cu a desta ul-
- 283-
tima, um grupo de moços athenienses, ú
divertir-se e banquetear··se. A bella Mania
dl::;tribuia espirita e sorriso com todos os
seus convivas.
a vinho espul1lava nas taças. Já nesse
tempo se usava gelo no vinho; e um c outro
havia em abundancia. Eis que um dos com-
mensaes, de nome Diophilo, poeta comico,
sentia-se tentarlo úperguntar:-oh! minha
cara Mania, onde achas tanto gAlo?
« Não se iocommode com isso, acudia
a bella grega,- Cjuando o gêlo me faltar,
terei o cui lado de deitar nos copos os pro-
logo das suas comedias. »
Eis ahi:- não raros longos pedaços do
Snluatol' Rosa prestariam o mesmo serviço.
Com todos os seus defeitos de primeiro
trabalho, que são aliás compensados por
oLltras tantas quq1idades incontestaveis, o
(;-7.tamny me parece dez vezes superior.
Bem di verso L óde ser o.i uizo do maes-
tro mesmo.
Mas isto não importa. Em geral, o pais
estremecem pejos fllhos fracos e doentes;
de preferencia aos fortes e ..adias.
a que ha de certo, é que se o Saluatc,7'
tivesse sido a Slla primeira prova, o maestro
não teria conquistado um terreno tão largo.
Estas minhas observações podem ser
erroneas, porém ão sinceras.
Ainda que ontida dentro de certos li-
mites, :l minha admiração pelo componista
não é menos verdadei ra.
E seja comu fôr, eu digo sem rebu('o :-
na galeria de estatuas mutiladas, que enchem
o pequeno pantheon flas notabilidades bra-
- 28t --
sileiras, Carlos Gomes é 11 m dos poucos, que
temna1'iz, isto é, qlle tem uma feição propria,
uma feição individl1al e caracteristica, adap-
tada ao nosso espirita e ao nosso estarlo de
cultura.

II

AS ULTIMAS REPRESENTAÇÕES na «FAUSTO»

Junho de 1882.

Com toda a minha predilecção pela mu-


sica e pela critica lllusical, SOll obrigado á
confessar que o Fcwsto nunca pôde produzir
em mim uma e1110(;80 esthetica bem accen-
tLlada. lIa nesta õllera, aliás tno celehre,
alguma cousa que <::e me afigura como uma
parodia, se não antes alguma cousa ele ridi-
culoeextravagante, quepertenceú primeira
pllase elo desenvolyimento da l!J1'ica
5,0 subscrevo, é verdade, a opinião da-
quelles que julgam-n'a uma especie de afQ
fronta ao vulto 01) mpico de Gmthe, pelo
simples facto ele reduzir-se um dos melhore'
pl'oductos da poesia moderna Ú assumpto
de lib1·eUo. Semelhante con. id6ração tem
proporções de argumento que prova de
mais. Qnan tos ou tras llrodnctos elo gento
pactico não. e hão accommodaelo RS exigen-
cias da opera, em que com tudo se tenha
levantado a accus[\.(;ão ele meno prezo cios
respectivosautore '? Ainclaqueo ex.emplos
não fossem em grande 1111fIJero, ba. taria
. unicamente o· de GlllCk, flue não besitou em
pôr á sen serviço a:- trag~dias de Racine' e
- 2~G-

nào bouve então quem se insurgisse contra


a audacia do componista,
Mas tambem não posso associar-me ao
gl'upo de elogiastas, que o Fcmsto teve a dita
de suscitar, menos por effeito do seu l11ere-
imento, do llLle,- digal11ol-o francamente-
do que por ser, em ultima analyse, um cos-
metic;o frL1.lJcez, uma cousa que veio de Pariz,
Dizer que o .F'a1tsto nào tem originalidade é
enunciar um juizo cOn1mum, com o qual
estão de accorLlo até mui Los dos seus admi-
I'adores, qlle se limItam dest'artb á apreciar
o que elles chamam um singular eclectismo,
um poder Lle assimilação sem igual. Creio,
porém, que esse mesmo eclectismo nào passa
dtl uma pltrase, com que se [retende enco-
brir fr:lquezas, por antro modo injuSl.ifica-
veis. ~~em sei como um critico, da força do
meu Hanslick, cedendo ao impulso de suas
mM disfarçadas sympathias francezas, e
,omo q ue só para 11àr-se em polaridade
com a cri tica allemã, pôde achar que.Gounocl
nua tem de certo a eure 'is musical, que as
snas fontes são Weber e i\1eyerbeer, Auber e
H.. Wagn r, mas descobria-lhe com tudo
lllUa facnldade ctssimilatl'iz, ljUe quasi em-
parelha COlll o genio cl'eador 1. .. Não enten-
do este supremo grito ele differenciação,
Assimilar é transformar, e de uma transfor-
mação bem difli ii, quan Lo é converter o
alheio em I ropl'io.
PUl'a dar-se assimihç:ào é mistél' que
desappal'eçall1 todos os signaes de eSlranha
°
ol'igem; sem o qlle prd nuido assimilador
nào fica sendo mais que um plagiario, se é
que melhor não lhe assenta e nome ele ca1'i-
- 28() -

catluisla. E não serú este o caso de Gounod ?


A falta de originalidade, qne se lhe nota,
CJuero crer que não é effeitú de uma lacuna
do seu talento, mas antes nm resultado da
influencia da epocha e do meio social. Bee··
thoVfm deixoLl escripto :-dem Geist sei:neJ'
Zeit nicht nachgeben! - san t ist es mil aller
OrigincLlitaet ans ;-« não condescender com
o espirita de seu tempo; de outra sorte per-
de·se toda a originalidade. »- Gounod tla-
rece Ler condescendido com esse espirito.
() Fa'LLsto, bem ponderado, pertence á
e5pecie das offenbcLchiacles. De formas e di-
mensões mais nobres, sem davida, porém
sempre um indi.viduo da especie.
Longe de mim,- é bom que o declare,-
longe de mim a ideia de contestar ao (:om·
pooista francez as ex.celLencias que lhe são
ioherentes. E' certo que, quaoLo á mi.m,
pelo que toca a mnsica france7.a, p6de-se em
geral dizer dos sel! autores o que o celebre
partic1ario de Masaniello,. alvatore di Rosa,
disse dos pl'incipes, isto é, qne ...
San simili ai melloni,
Jfolti sciapiti son, pachi 'i perfetli

Mas Gounod, em todo caso, e gnardadas


as proporçõns devidas, ficará no numero dos
pochi. Urna consa, obreLudo, é incontesta-
vel :-[10 F..-I.L. to, ainda que a esLhetica seja
quasi nulla, a technica é maravilhosa; c1ahi,
por cel'Lo, a facilidade, com que uma é to-
mada pela onLra, e acaba-se por ter em conta
de creaçãú genial o que não vai além de uma
hal iii sima combinação arListica.
- 2 7-
o nobre alltor das-Leziononi di litte-
'l'atm'a italiana --diz que o melodm'ma tem
passado por... tre nW1nenli principali. Il
primo, continúa elle, di conrt~sione, in cui la
poesia era sLrana, la 111 usica scomposta, e sn
l'LlIJil. e sua l'alL"a prevale\'a 11 t'antasNco ap-
paroto scenico. Ora, se o predominio desle
pl1unlusLico ~qJparaLo roi UIll caracterisLico
do primeiro momento elo drama Iyrlco, 'eria
inju. L 8 (Tirmar que o F(/tbsto, em mais dE,
llm ponto, ~stá ao nivel da Dú{ne, da Euridice
e da A1'iann(~, que foram as primeiras mani-
testações da opera '?
Não condemno qLle o diabo e outros
Lypos mythologicos menos sympathicos
~ejam levados á scena ; mas noto que o Me-
phisto ele GOl1nod não tenha a bossa musical,
pois canta pessimamente. O que aprouve ao
componista fazel-o exprimir em sons, é
sempre da peior qualidade. Porque razão?
Haveria algum elesprop,osito em pór na
JJocca ele Mephistopheles umas notas menos
rudes? Grethe disse: Nichls abgeschmacktel'
als ein Teufel, eler ve1'zwei{elt, « nada ele mais
insulso do que um diabo que desespera. »
EL!- conheço uma cousa mais inslpic1a :-é
um diabo que canta mal; e em taes condi-
ções se acha o de Gounod.
En tretan to, por felicidade, ah i temos
um artista, cujo talento superIor acaba de
elevar o papel de Mephistopheles á uDla al-
tura dc: Ljne nào Linhamos onhecimento.
Quero fallar rl0 Sr. Tansini. E' impossivel
recusar-.'e á este insigne cantor o tributo de
admiração, á que elle tem direito. AquelLes
me. mos que, como Ll, não descobr m
- 28~-

grande mer1to na prodLlcção de Gounod, e


muito menos na part~ de l\lepbistopheles
são forçados á reconhecer que o Sr. Tansini
soube dar á esse papel uma importancia e
originalidade, que o proprio componista
não lhe dera.
E se ao perfeito desempenho, ás attitu-
des realmente diabolicas do Sr. Tansini as-
sociamos a voz, as atLitudes divinas da Sr. 3
Drog, a sor1'ma é que temos tido uma ver-
dadeira in terpretação do Fa~Lsto.
Não deixo de concordar, até 1.1111 certo
ponto, eOI11 Os que opinam qne a Sr. a Drog
não se presta ele todo á exprimir uma Gret-
chen. Ha na sua brilhante figura o que quer
flue seja, de magestoso e imponente, que
contrasLa com a poetica ingenuidade de
Margarida. Não sei se isto é defeito; mas
dado que seja, é s6mente por excesso de
qualidades. A Sr a j)rog póde realmente nào
possnir um 011 outro dote especial para bem
represenLar de Gretchen; porém é certo que
possne ét belleza pre isa para figural' na
{jaleria de GceLhe. Eu mesmo já tive o cLll-
elado de confrontar a imagem que me ficou
na mente, com a Margarida de Friedrich
Pecht, e achei qne havia muita semelhança.
Na ILalia, segnndo diz o proverbio, basta um
belJo nariz para fonllal"' tlm", bella mulher-
Hn bel '/wso {a WUL bella clona; mas a belleza
da no~sa cantora nflo se limita. á sse unico
predicado; assenLa em base' maL largas.
O philosopho Leibnitz disse que a mu-
sica era uma algebl'rt sentida. NLlnca ·esLa
definiçào LJarecen-me tRO jLlsLa, como agora,
apreciando a Sr. a Drog. lI::; no todo dn bella
- 280-
prima-dolllltl, inclusire a::> mãos e os OlllOS,
uma especie de equaçilo divina, cujaincognita
é de fazer perder a cabeça á mais de um pen-
sador.
Em um dos seus felizes momentos,
Byron dec1aroLl que s6 desejava possuir a
força de quarenta frades para 0antar o louvor
da hypocrisia. Se eu tivesse tão deseuvol-
vida a ract~ldaele ele deseja)', não quizera por
certo a força de quaren ta frades, mas a de
quarenta Tansinis para entoar um hymno á
Sr. a Drog.
13ELLlNI E A. « NORMA. »

Junho de IlSlS:2.

A ultima vez que assisLimos aqLti á uma


representação da NO'J'ma, foi ha cerca de 13
annos, em setembro de 1~69. Já é Lempo
sufficiente para apagar de todo quaesquer
impressões e fazer esquecer até o nome dos
artistas, (lue por venLuI'Cl. então se distingui-
ram. Com effeíto, não me lembro mais lelles,
nem posso mesmo affirmar em consciencia,
qual tenha si lo Ilessa epocha o desempenho
da ope~'a. Apenas resta-me nma vaga remi-
nlscencia da pl'irnadonna, uma tal Sr.'" Amal-
di, que não era destituiela ele merLLo,-sem
falIar no bom 6 syrnpathico Scolari, qne
tornou-se-nos posteriormente bastante co-
nhecido,
'Era pois muito natural, se é {ue a na-
tureza entra nestas cousas, que hoje uma
representação da :Vo)'J)'U~ tivesse, como teve,
19
- 290 -'-
para m[111, e creio que para muitos outros,
um certo ar de estran hesa e novidade. Pode
isto, aos olhos da gente boa, dar s6mente
prova de meu gosto pouco apuraêlo em ma-
teria musical. Não questi6no sobre esse
ponto.
U lue porém parece-me acima de qual-
quer duvida, como facto psychologico, é que
todos nós, velhos e moços, cultos e incultos,
somos sempre, mais ou menos, um resul-
tado das emoções ela meninice. Bellini, as
musicas de Bellini foram uma das fontes de
minha primeira educação esthética. Che-
guei ao ponto de amar o meu Vincenzo,
como amava o meu Virgilio. O autor da
Sonnambula não me era menos amigo do que
o autor das Eclogas. Ambos mellífluos,
ambos serenos:- eram os dois mais intimas
frequentadores do meu palacio de chymeras.
Esta quadra passou, é certo; mas não pas-
saram com elia todas as ítlusões, de que se
nutre um espirita, uma daquellas nature-
zas problematicas, vara quem, a despeito
de tudo, um galho de rosa, que entra
pela janella, offerece maior delicia do que
um bonito prato de assado sobre a mesa.
A minha velha sympathia por Bellini é talvez
um resto de sonho juvenil, porém um sonho
lIue ainda me agrada. Aliquando {as est insa-
ni1'e.- algumas vezes é bom romantisa1' a
vida, e eu não conheço força mais apta para
fazer-me estremecer a fibra romantica do
que o bel canto do grande poeta siciliano.
Ha um proverbio francez, segundo o
qual todas as cousas teM a sua manhã :- il
n'ya lJ.ue 1e matin en toutes choses. E' uma
- 291 --

verdade; mas nós podemos addicionar-Ihe


uma outra,-e é que ha cousas que sempre
se acham no estado matinal. A Nonna per-
tence a esta classe. Com os seus 51 annos
de existencia,~idade mais que bastante
para desdentar a grega Helena, ou abril'
meia duzia de sulcos na face de Maria Dag-
mar,-aNorma ainda tem viço e conserva
intactas as suas mil bellezas.
Não foi sem muita rasão que o celebre-
historiador da lítteratura italiana, Luigi Set-
tembrini, apreciando a natureza das diffe-
rentes artes, escolheu a popularissima opera
como typo de perfeição na musica;- « né
poesia né pittura,- diz e11e,- potrebbero
farci sentire la bellezza deI Laocoonte, deI
Duomo di Firenze, della N01'1na deI Belli-
nL »- ELl creio que o famoso professor da
Universidade de Napoles merece mais res-
peito do que qualquer elos nossos cliIettantes,
que em todo coso preferem um grito ou uma
risada de Verdi á uma Jagl'ima do mimoso
componista, compatriota de MeU. Não ha
duvida que a musica de Bellini, já por effeito
ela propria indole do poeta,já pela influencia
do tempo em que appareceu, ressente-se ás
vezes de um excesso de m01'bide:::;:m, de al-
guma cousa que só pode bem faflar á um
coração doente. Porém .qual é o feliz, que
dispense qualquer afago, qualquer consola-
ção, daquellas que só á mulher e ás flores, á
musica e·ú poesja~ 6 dado distribuir?
A Norma, como S8 sabe, é pl'oducto de
uma das epochas mais cheias de sonhos,
mais esperançosas elo vigente secuIo. E'
contemporFln n rIa r8\'oltlç'fio rl Julho (' d('
202
Roberto elo Diabo ;-a quadra da maior flo-
rescencia do romantismo ·na Europa. Em
Paris concentrára-se o grande movimento,
OLl antes Paris tornara-se a Roma de um pa-
pado Jitterario, do qual V. I-Iugo era o Inno·
cencio Hr. Alfl'edo de l\1usset tinha 2'1 an-
nos. Era 11 ma epocha de expansões geniaes,
a epocha jl.lstamente, em que mais de uma
notabilidade europea firmou a sua gloria.
Ao mesmo tempo que no tbeatro do Palais
royal fulgurava Paulma Dejazet, na Opem
italiana deslumbrava Malibran. Giovanni
Battista Hubini conquisLava o seu renome
universal, e Luigi Lablache, que desde 1812
se fizeraconhecido, colossal na figma corno
na força da voz, attingia então o apogeu do
seu brilho. Era a epocha em que na Italia
as genialidades al'tisticas não se limitavam
á individuos, mas estendiam-se á familias.
Por exemplo:- na c11oreotechnica, a celebre
familia Taglioni, e no canto as irmãs Grisi,
Giulia e Ginc1itta, sem fallar em CarloLta,
prima destas, que posteriormente adquiriu
fama 18 grande dançarina, e cuja irman,
'Ernestina (;:isi, tornou-se tambem cantora
disLiucta do theatro italiano.
Como se 1'8, os factos mesologicos eram
en Wc os mais adaptados ao elesenvolvimen to
dos espiritos Eduardo I-Ianslick nos faHa de
uma geheimnissvolle historische ~Vechselwir­
knng, segundo a qual os gl aneles compo-
n istas de um c1eterll1 inado período provocam
os cantores correspondentes, e vice-versa.
Este secuIo nào apres ota uma lJuadra', onêle
essa ?'ec?lJJ'ocidcule hisl.oriw mais se ten 11a
feito vai r, do qne no lempo ela NO/'IHa e
- 203 -

ontras operas de igual quilaLe. Comprehen-


de·se facilmente, qual devera ser, naejllelles
felizes dias, a impressão causada por se-
melhantes produeções,que são ontros tantos
monumentos da força do espirita humano.
E é tambem l:omprel1ensivel que ainda
hoje a musica ele Bellini se faça apreciar e
sentir, se não em todas, na maior parLe das
suas fJnezas. Dão pleno test.ernul~ho deste
facto as duas representações da Norma, que
houve ultimamente em nosso tl1eatro. Se
por um lado é de lastimar que o pap81 de
Pollione tenha sido confiado á uma vulgar
figura, na qual só 'se nota uma qualidade
10uvavel, isto é, o perfeito equilibrio entre a
falta de pretenção e a falta ele mel'ecimen-
to,- por outro lado é innegavel que os ou-
tros papeis foram cabalmente desempenha-
dos. E' justo mesmo qLle se diga: - ou fosse'
por que o publico, altenclenelo exclusiva-
mente para o Sr. Tansini e as Sr. as Drog e
Orlandi, se esquecesse do Sr. P .... , ou por
que este, não obstante a sua fraqueza, se
mostrasse todavia menos importnno do (lue
se podéra esperar,- a ver Jade é que nosso
Pollione passou cles(lpercebúlo,-o que não
constitue, nD caso, um pequeno triumpho.
A Sr. a Drog, importa declara-lo com
toda a franqueza,-a Sr." Drog' elevou-se á
uma altura, de que talvez mais ele uma apre-
ciador não a julgasse capaz. Por minha
parte, eu o con fesso,- mesmo para ter o di-
reito ele ser perdoado:- ~~ sua voz se me
afigurava um pouco vela,la' mas vi em fim
que e~ta\ a illudido. \..l\orma veio provar-me
qn ella tambem pod mo trar-se, como a
- 2W~-

deusa druicliGCt, senza 1.wbe e senzct velo Bem


entendido - refiro-me á voz da Sr. a Drog, e
não á Sr.. Drog mesma. Isto (1e uma bella
mulher, nas condições da nossa cantôra,
deixando-se ver e admirar. senza nube e sen-
za veZ, é ... uma historia,. ~ aliás tão attra-
hente, como a de Cleopatra apparecendo á
Cesar. E realmente a Sr. a Drog tem alguma
cousa de cleo[Jatl'ico, snperposto ou juxta-
posto á alguma cousa de rlutlibranico, se é
verdade que a Maria Felicitas se distinguia,
além do mais, por uma estatum impet"Clloria.
Nem eu hesito em declarar que, se fosse
Antonio, o malfadado dictador romano, fa-
la-hia vir fi. minha presença, como aphrodi-
te, cercada de nereiclas, para julga-la e puni.-
la, ainda q0.e:. corresse o risco de ver·me de-
pois escré,vlsado aos encantos da lindé!- Pto-
lemaide. Um ponto, ao menos, é bom que
fique assentado,- é que, se a filha de 01'0-
vezo possuia os dotes da Sr." Drog, Pollião
era um idiota. Posso affirma-lo em nome do
publico i.nteiro, que parece involver-se no
côro dos dnticlas, e dirigindo-se, não á I na,
porém á Sr. a Drog, vae murmmando contri-
to ;-A noi vo~gi il bel sembiante ... Entretan-
to, voltemos ao assumpto; mas isto deixo
para outro artigo.

Fim

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