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criminalização
Este trabalho consiste em uma reflexão a respeito da Cannabis, tendo como objetivo
contextualizar a sua proibição no Brasil e no mundo para, em seguida, buscar compreender o
uso desta planta dentro da cultura Rastafari, um movimento político-religioso surgido na
Jamaica na década de 1930. Com uma história milenar que se originou na Ásia, a Cannabis é
uma planta que atravessa os tempos na humanidade (Escohotado), com vestígios datados de
pelo menos 4000 a.C. que evidenciam seus usos e contribuições para diversos fins, quando as
fronteiras entre o lúdico, terapêutico, religioso e até mesmo econômico se mostram, na prática,
bastante borradas. Apesar de toda esta versatilidade, ou até mesmo em sua razão, a partir do
século XX a Cannabis foi se tornando cada vez mais polemizada dentro do panorama da guerra
às drogas que foi se instaurando ao longo da época em muitos países, uma guerra muito bem
demarcada por um recorte de raça e de classe que mata e aprisiona setores muito específicos
da população brasileira de modo a estabelecer uma verdadeira higienização social (Adiala).
Para que seja possível expurgar a ingenuidade da consciência de tal forma a se desenvolver um
pensamento crítico a respeito da Cannabis - e do uso de substâncias psicoativas em geral -
devemos considerar que o juízo de valor atribuído a esta planta vai depender, invariavelmente,
das múltiplas conotações, práticas e significações que são elaboradas nos diferentes contextos
em que ela é utilizada. Neste caso, diferentes fatores sociais irão determinar normas, regras e
tabus bastante específicos para controlar (ou não) o seu uso. É fundamental, então, ressaltar
que os efeitos da Cannabis sobre o organismo humano podem receber interpretações bastante
plurais, e muitas vezes contraditórias, quando a planta pode estar socialmente integrada, em
uma posição de centralidade, dentro de determinado grupo social, enquanto que em outro grupo
pode ocupar um papel de marginalidade e fortemente estigmatizada.
A política de drogas proibicionista é uma guerra encabeçada pelos Estados Unidos em uma
época marcada pela influência político-econômico imperialista deste país sobre o resto do
mundo. Devido a esta influência, muitos países aderiram à cruzada que se tornou conhecida
por “war on drugs”, uma guerra que buscou se justificar, ao longo do século XX, por sua
associação com determinantes muito particulares que foram sendo gerados, de fato, em meio
às especificidades das relações históricas e culturais atravessadas por questões de ordem
política, econômica, religiosa, social e cultural que vigoravam no mundo ocidental da época.
Nesse sentido, foi-se delineado todo um cenário propício para que ocorresse a trama do
proibicionismo que – supostamente - em nome da saúde pública e da segurança nacional deu
credibilidade para que fosse empreendida uma intensa repressão sobre o uso de certas
substâncias psicoativas em praticamente todo o mundo.
Como aponta Adiala, o proibicionismo tem uma visão que compreende o uso de drogas a partir
de duas vias: a medicalização (patologização) e a criminalização, vias que se retroalimentam
na narrativa proibicionista, com a conformação de um cenário marcado pela intensa repressão,
intensificada a partir do século XX, ao uso e circulação de determinadas drogas. Esta repressão
se legitimou enquanto um empreendimento para se preservar a saúde pública e a segurança
nacional, quando algumas ideias e concepções que logo se tornaram estereótipos do que diz
respeito aos usuários de drogas foram sendo difundidas e bem aceitas no imaginário social –
principalmente através dos meios de comunicação de massa - ao longo do tempo: o viciado;
dependente químico; toxicômano; criminoso; marginal; etc.
De fato, a degenerescência que pode ocorrer devido ao uso abusivo de entorpecentes levaria o
usuário inevitavelmente a perder o domínio da razão e da consciência, o que poderia
recorrentemente conduzi-lo a impulsos criminosos, bem como outros tipos de comportamento
moralmente inadequados para o status quo classificados como procrastinação,
improdutividade, preguiça, falta de vontade para o trabalho, perversão sexual e o que mais
abstrato e difusamente definido pela psiquiatria seja a loucura. Ainda, um fator crucial que
determinaria o impulso criminoso para “sustentar o vício” seria a síndrome de abstinência, a
chamada “fissura” pela qual os dependentes químicos passam quando estão privados da droga.
De fato, como aponta Adiala (ano), a Ciência, representada pelos psiquiatras, foi o braço do
proibicionismo que ficou a cargo de argumentar a favor da premissa de que não haveria
possibilidades de uso moderado para determinadas substâncias psicoativas, devido ao alto risco
que apresentariam de provocar dependência química (toxicomania). A narrativa proibicionista
foi, então, evidentemente marcada pelos direcionamentos das instituições médicas que se
estabeleciam no período da Primeira República, que defendiam a ideia de que as próprias
substâncias proscritas seriam as responsáveis por gerar adicção. Neste caso, as razões que
levariam o usuário ao abuso seriam creditadas à simples e despretensiosa experimentação que
o conduziria fatalmente à loucura e demais distúrbios psíquicos, independentemente das suas
condições de vida, que são impossíveis de serem normatizadas.
Por outro lado, atualmente, e cada vez mais, o uso lúdico e terapêutico de algumas drogas,
principalmente a Cannabis, vem sendo descriminalizado e regulamentado em diversos países
(inclusive os Estados Unidos, talvez o principal e mais influente expoente na história do
proibicionismo) o que vem alterando todo um conjunto de estigmas e estereótipos que foram
sendo associados ao uso da planta durante o proibicionismo. Apesar desta notável
flexibilização nas políticas de drogas pelo mundo, especificamente sobre o uso da Cannabis,
no Brasil a repressão segue a todo vapor, muito embora seja evidente o seu fracasso, quando
mesmo após quase noventa anos de criminalização esta planta continua a ser cultivada,
comercializada e utilizada para as mais diferentes maneiras, ainda que de modo clandestino.
Diante de tal panorama que revela contradições entre as políticas de drogas de diferentes países
surgem, assim, uma série de questionamentos a respeito das razões pelas quais esta guerra
esteja sendo empreendida com tanto vigor no Brasil ainda nos dias de hoje: quais as principais
personagens envolvidas nesta guerra? Quais as ameaças este grande vilão que constitui as
“drogas” pode imprimir sobre a sociedade? O que se está buscando defender de verdade? Como
as drogas se transformaram em algo a ser perseguido com tanto empenho pelas forças oficiais
do Estado? Quais são as razões que verdadeiramente sustentam o proibicionismo no Brasil?
Quem são os principais beneficiados (o que se defende) e prejudicados (os que são atacados)
pela guerra às drogas?
O projeto civilizatório de uma Nação moderna iluminada pela Ciência, conforme pretendia o
Brasil durante o período conhecido como Primeira República, foi o cenário em que o
proibicionismo ganhou forças.
Nesse sentido, com um abandono do poder imperial, por um lado, e da economia escravista,
por outro, a antiga relação entre escravo – senhor havia se transformado, agora, em uma nova
relação entre empregado - patrão, o que gerou novos deveres, direitos e obrigações para ambos
os lados. Porém, para o status quo que persistia até então (cujos efeitos vigoram até os dias de
hoje) havia uma inconsistência nessa transformação abrupta que incidia na figura do negro,
concebido até certo momento como um não-sujeito, propriedade de seu senhor, quando
inesperadamente deveria, a partir de 1888, receber salários, como um novo funcionário,
cidadão de direitos e vínculos empregatícios devidamente reconhecidos e legitimados pelo
Estado (direitos conquistados gradativamente pela classe trabalhadora ao longo da história,
apesar da exploração de classes intrínseca ao novo sistema capitalista que se impunha
rapidamente). Com isso, as transformações nas relações de trabalho que surgiram a partir do
pós-abolição em quase nada beneficiaram os ex-escravos de descendência africana, que logo
foram substituídos por novos europeus que chegavam ao Brasil para ocuparem o seu lugar.
Os pressupostos eugenistas que vigoravam na época atribuíam, enfim, à herança genética (no
caso a negritude, ou africanidade) um dos principais fatores para a pré-disposição a certos tipos
de condutas e comportamentos considerados como degradantes ao projeto civilizador, o que
contribuiu para a consolidação de políticas públicas para a “higienização” social creditada na
ideia de que uma população civilizada não deveria se deixar “contaminar” pelos maus-hábitos
ligados a selvageria e a barbárie. Nesse sentido, como parte constituinte de um projeto de Nação
que se gerava durante a Primeira República brasileira, a liberdade e integração social dos
negros eram colocadas à prova não mais pela escravidão, como nos tempos de colônia, mas
sim mediante a criminalização de sua cultura, seus hábitos e costumes - como o Candomblé e
a capoeira - culminando em um encarceramento cada vez mais expressivo que se perpetua
ainda atualmente. Do mesmo modo, enquanto um costume trazido ao Brasil pela população
afrodescendente, o uso da Cannabis logo foi criminalizado nas primeiras décadas do século
XX, quando o status quo buscava argumentos para manter a segregação racial acometida sobre
este grupo social desde a escravidão.
Diante deste panorama, buscaremos evidenciar na sequência como a guerra às drogas consiste,
antes de tudo, em um modo de controle sobre os hábitos e costumes de segmentos específicos
da população. De fato, o período histórico em que a guerra às drogas se desenvolveu e ganhou
forças foi marcado pelo protagonismo cada vez mais evidente nos debates públicos (Adiala) de
todo um papel atribuído às “drogas” como uma das principais razões das mazelas sociais, o
grande vilão cuja disseminação deveria ser combatida pelas forças médicas e policiais a bem
da saúde pública e da segurança nacional.