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Martires Vermelhos PDF
Martires Vermelhos PDF
Wanju Duli
2016
Imagem de Capa: Wanju Duli
Capítulo 1
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– Mais cedo ou mais tarde ela vai ter que descobrir como os bebês
nascem – disse Augusto.
– Mesmo que nossos pais fossem pobres, eles nos deram a vida, que
é o maior dos presentes – disse Catarina.
– Não sei de onde surgiu essa superstição de que ter nascido é melhor
do que nunca ter nascido – observou Augusto.
– Você sabe muito bem de onde surgiu – disse Catarina – é um
ensinamento religioso.
Augusto deu um largo sorriso irônico.
– Não me diga! – ele exclamou – os respeitáveis ascetas vermelhos,
com suas visões místicas, conhecem verdades superiores que nós, meros
mortais, não entendemos, simplesmente porque eles derramam o
próprio sangue num copo...
– Sacrilégio! – exclamou Catarina, horrorizada – como ousa
desrespeitar nossa religião?
Eu assistia a todo o diálogo, completamente confusa.
Todo domingo às cinco da manhã nós assistíamos a uma cerimônia
religiosa no templo. A cerimônia era dirigida por um sacerdote trajando
um manto com capuz completamente dourado. Seu rosto era totalmente
coberto por uma máscara e suas mãos com luvas. Não ouvíamos nem
mesmo a voz dele.
Cada mártir sacrificava uma parte de si pelo Deus Cordeiro. Diziam
que alguns eram cegos ou surdos. Mas todos eles faziam voto de silêncio
e eram proibidos a mostrar qualquer parte do corpo, nem mesmo os
olhos.
Eu tinha apenas oito anos, então não entendia o que aquilo tudo
significava. Às vezes eu tinha medo de perguntar. Pois ao mesmo tempo
que eu admirava aquelas pessoas extremamente esquisitas, também
possuía temor.
– Essa religião tornou-se completamente obsoleta às necessidades
dos tempos atuais – disse Augusto – a separação entre sacerdotes e
leigos foi crescendo cada vez mais, até surgir um abismo. Não vejo mais
nenhum sentido nisso tudo.
– É melhor você ver – disse Catarina – porque você está prometido a
uma princesa de Tiatira.
Augusto arregalou os olhos e abriu a boca.
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– Vossa Alteza sabe que não podemos vê-los. Eles sempre usam
máscaras e luvas, em todas as ocasiões.
– Mas depois de conversarem tanto, mesmo que por sinais, você deve
ter aprendido traços da personalidade dele – falei.
– Um pouco. Meu professor tinha certo senso de humor.
Fiquei fascinada. Por que um cara com senso de humor iria escolher
passar a vida inteira em silêncio e escondendo o rosto? Religião era algo
assim tão importante? Antes eu achava que só pessoas sérias e
monótonas escolhiam se dedicar a religião. Augusto sempre achou isso.
Mas Lisa era legal. Talvez aquele monte de desconhecidos anônimos
também fossem legais.
– Será que você pode me ensinar essa linguagem de sinais? –
perguntei.
– Eu sinto muito. Não tenho autorização para passar adiante. Eu fiz
um voto.
Então mesmo a “linguagem para leigos” deles era secreta.
Às vezes eu ficava braba com tanto segredo. Augusto tinha razão: era
desnecessário! Eles tinham um clubinho de adoradores do Cordeiro. E
daí? Eu também podia formar um.
Resolvi fazer uma pergunta que estava me perturbando.
– Por que os vermelhos morrem?
– Eles sentem que devem morrer.
– Por quê?
– Porque a fé deles é muito grande. Então eles se voluntariam a
morrer pelo Cordeiro.
– Como eles fazem isso?
– Há um ritual com sangue, mas não se sabe muito a respeito. Eles
partem pelo mundo.
– Que mundo?
– Mundos inexplorados e hereges.
– Fora dos sete reinos? – perguntei, horrorizada.
Eu já tinha ouvido falar que havia outros países fora dos limites dos
nossos reinos. Os “selvagens” fora do nosso mundo civilizado.
Diziam que eles cometiam muitos pecados imperdoáveis, como
praticar magias. Havia poderosos magos lá fora, adoradores do Dragão,
que era o inimigo do Cordeiro.
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– Tudo bem que você pense assim – disse Augusto – porque você
ainda é uma criança. Mas um dia você vai encontrar algo pelo qual valha
a pena dar a sua vida e morte.
– Você também é uma criança, seu idiota...
E foi assim que aos 14 anos Augusto foi enviado para Tiatira.
Sempre achei que Teresa seria a primeira de nós a se casar. Seguida de
Catarina. Mas Augusto sempre foi a ovelha negra da família. Ele tinha
que bagunçar tudo.
Senti que Teresa sentiu inveja dele até mesmo nisso. Ele se casou
antes dela. Conquistou o poder antes.
Finalmente eu era capaz de entender os sentimentos de Teresa um
pouco mais. Eu consegui enxergar a personalidade gelada de Teresa na
indiferença da minha mãe e na ferocidade do meu pai.
Eu não sabia o quanto ela já tinha sofrido. Ela era a primeira filha.
Ela não compartilhava com ninguém a dor que sentia.
Talvez ela também não quisesse ser membro daquela família. Podia
ser que não desejasse ser rainha. Mas não tinha escolha.
Provavelmente ela optou por aguentar tudo por nós. Para nos poupar
daquela desgraça. Ou talvez eu quisesse acreditar nisso para perdoá-la.
Estava na hora de eu também começar a me sacrificar pelos outros,
como meus irmãos. Era meu momento de imitar o Cordeiro.
Quando informei a meu pai que eu gostaria de assistir à execução da
empregada, ele ficou realmente surpreso.
– Por que, Bibiana? – ele perguntou – você só tem nove anos.
– Eu quero me acostumar a ver essas coisas – menti.
– Fale com sua mãe.
Lá fui eu pedir permissão para a minha mãe. Mas foi ainda mais fácil.
– Se realmente quer... – disse minha mãe – pode ser bom para você.
Aquilo tudo era um teatro. Meus pais sentindo que se preocupavam.
Depois de fazer toda aquela porcaria na nossa frente. Meu pai surrando
meu irmão na nossa frente. E na frente do meu irmão de quatro anos.
Foi uma execução rápida. Enforcamento. Amarraram o nó ao lado e
apenas quebraram o pescoço, sem tortura.
Isabel se portou de forma admirável. Parecia quase tranquila.
Pensei que seria pior. Achei que eu ficaria traumatizada.
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estava longe e já devia ter sido há muito tempo corrompido pela sua
terrível esposa.
Eu apenas aceitei tudo isso. Me conformei à realidade inevitável.
Meu pai escolheu um dos filhos do rei de Esmirna para mim.
Pensando bem, não seria tão ruim. Esmirna era perto de nosso castelo
de verão. Eu poderia ver minha família ao menos uma vez ao ano.
Mas será que eu queria mesmo estar perto? Talvez aquilo tudo não
fizesse diferença. Podia ser que eu desejasse mesmo me casar e ir para
longe. Pena que eu não era tão otimista em acreditar que morar em outra
família real fosse melhorar a situação.
O rapaz fez uma longa viagem para me visitar, pois queria me
conhecer antes do casamento, que se daria dali quatro anos.
Até achei gracioso o gesto dele. Se ainda houvesse um sentimento
assim dentro de mim. Foi como Teresa falou: eu não acreditava mais em
contos de fadas.
Ele se chamava Tiago. Tinha minha idade. Era mais ou menos o que
eu esperava: boa aparência, ótimas maneiras, sorriso charmoso. O
perfeito príncipe encantado, com conhecimento de todas as línguas
relevantes de nosso mundo e sem nenhum outro assunto interessante
para tratar além da qualidade da tapeçaria do meu castelo.
Era um pesadelo. Porém, um pesadelo que ambos parecíamos
dispostos a suportar. Ele devia estar pensando mais ou menos o mesmo
a meu respeito e eu fiz questão de me portar de acordo. Além de falar da
tapeçaria, fiz comentários adequados sobre as porcelanas caras. E
passamos o resto da tarde falando sobre as porcelanas do castelo dele.
Quando Tiago foi embora, eu me perguntei se poderia haver algum
veneno no meio de todas aquelas garrafas que havia espalhadas pelas
adegas.
Eu não era forte o bastante para fugir e tentar iniciar uma nova vida
em outro lugar. Principalmente porque, após uma vida de tanto luxo e de
tanto ser paparicada, eu jamais aguentaria viver como uma camponesa
qualquer.
– Está tudo bem, Bibi?
Lucas entrou na sala. Eu o tranquilizei.
– Está sim – foi minha resposta – que achou de Tiago?
– Não sei. Ele não parecia ser uma pessoa.
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– Como assim?
– Parecia ser um quadro. Um que ganhou o primeiro prêmio num
concurso e está muito orgulhoso.
Eu desatei a rir. Fiquei mais relaxada com esse comentário
inesperado.
– Mas ele não parece tão ruim, né? – perguntei – não do tipo que vai
começar guerras idiotas ou que vai matar inimigos de forma covarde?
– Acho que ele ainda vai precisar de muita maldade para ficar
parecido com o João.
João era o marido da Teresa. Como ele ainda não era rei, ainda não
havíamos tido a oportunidade de apreciar toda a sua sede pelo poder.
Mas ele já havia dado muitas sugestões estúpidas para meu pai, que
parecia adorá-lo.
– Tem uma coisa que eu queria te contar, Bibi – disse Lucas – um
gálata apareceu para mim nos sonhos.
– Mas isso não pode ser – falei, surpresa – você precisa ofertar seu
sangue para recebê-lo. Você matou um cordeiro?
– Não... ele apenas veio para mim.
Será que Lucas era assim tão puro?
– O que o gálata te disse?
– Ele me revelou profecias – falou Lucas – ele mandou que nós dois
saíssemos de Pérgamo imediatamente. Nós precisamos fugir o quanto
antes.
Eu ri.
– Eu não vou fugir – deixei claro – tenho muitas provas essa semana.
Já estudei muito. Quero garantir o primeiro lugar.
– Se continuarmos aqui, vamos morrer – disse Lucas.
– Por quê?
Eu não estava levando aquela conversa realmente a sério.
– O castelo está amaldiçoado – revelou Lucas, misteriosamente – o
Dragão está aqui.
– O Dragão? Que Dragão?
Digamos que eu não andava muito religiosa naqueles tempos. Tinha
muitos outros afazeres importantes para me preocupar com aquelas
lendas da minha infância.
– O gálata me disse que uma feiticeira poderosa amaldiçoou o castelo.
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Perguntei para meu pai, como quem não quer nada, se ele já tinha
planejado minha aula de religião para o sábado.
– É o de sempre – ele respondeu – por quê?
– Nada.
Já fazia dois anos que eu não tinha mais aulas com a Lisa. Agora
quem me ensinava era Artur, um professor bem velhinho e que sabia
tantas coisas que até ficava difícil de entender o básico que eu queria
saber.
Porém, no dia seguinte meu pai contou que aconteceu um
imprevisto.
– Infelizmente o seu professor morreu.
– Mas..!
Na verdade foi bastante trágico. Eu gostava muito do professor Artur
e fiquei meio chocada. Para alguém com poucos sentimentos, até que
fiquei bem emotiva ao saber da morte dele.
Fomos convidados para o funeral. Fazia muitos anos que eu não ia
num funeral. Já nem me lembrava como era.
Havia alguns negros. Com nenhuma parte do corpo à vista, como
sempre. Enterraram o corpo, realizaram as cerimônias religiosas e tudo
acabou.
Meu pai também gostava do Artur. Ao saber que o rei compareceria
ao funeral, houve ainda mais convidados. Depois fiquei sabendo que
meu pai trocou algumas mensagens escritas com um negro.
– Arranjei um novo professor para você, Bibi – informou meu pai.
– É mesmo? – perguntei – é o eremita negro com quem você estava
conversando?
– Não. Contei a ele que você sempre admirou os vermelhos, desde
pequena. Então achei que você iria gostar se um deles fosse te dar aulas.
O eremita me contou sobre um membro muito inteligente que ingressou
recentemente na Ordem dos Mártires.
Eu gelei. Um vermelho ia me dar aulas. O que Lucas disse era
verdade. Então o resto também devia ser verdade, certo?
Voltei para casa gritando e pulando de alegria.
– Eu não vou sair desse castelo nunca mais, ouviu? – garanti a Lucas.
– Como assim? Você não ouviu a profecia...?
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Até Teresa e João quiseram ficar para ver. Percebi que alguns
empregados nossos também não resistiram em espiar. Seria uma boa
história para contar quando chegassem em casa.
Quando o rapaz de manto vermelho entrou pela porta, prendi a
respiração. Ele era tudo o que eu imaginava e muito mais. Senti a
sensação de nostalgia ao relembrar da infância. Sim, era exatamente o
querido manto vermelho da minha memória!
O empregado que abriu a porta para ele sentiu um pouco de receio e
medo e imediatamente se afastou. Comunicamos a todos do castelo a
regra dos dois metros e estavam todos tomando o maior cuidado.
– Seja bem-vindo, respeitável mestre mártir vermelho! – clamou meu
pai – fico muito feliz que tenha aceitado meu convite. Espero que se
sinta à vontade em nossa humilde morada.
Nossa morada não tinha nada de humilde. Ela mostrava ostentação
exagerada.
A relação da realeza com os sacerdotes calicianos era de respeito
mútuo. Por isso, era frequente uma situação incômoda de não se saber
quem devia fazer uma reverência maior.
O vermelho curvou-se claramente diante de meu pai. E ele também
curvou-se ligeiramente diante de cada um de nós, os príncipes, quando
fomos apresentados.
Concluí que aquele cara não era cego e nem surdo. Fiquei contente.
Mesmo assim, era exótico receber uma reverência de alguém que eu
admirava tanto. Meu pai não perdeu tempo e explicou ao vermelho que
eu iria lhe mostrar o caminho da sala de estudos para que ele me desse
minha aula particular.
– Por favor, me acompanhe – eu disse a ele.
E o vermelho me seguiu. Sempre mantendo a distância correta. Acho
que ele já estava tão acostumado a calcular os dois metros que não via
necessidade de manter uma distância muito maior que essa para garantir
que sua regra fosse mantida.
Indiquei a ele uma cadeira. Contudo, ele sentou-se no chão.
Subitamente me lembrei que eles evitavam sentar em cadeiras,
especialmente se fosse uma muito confortável. Infelizmente só havia
cadeiras confortáveis por lá.
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Para ser educada, sentei-me no chão com ele. Sabia que não era
cortês sentar-se acima de um sacerdote.
Subitamente, fiquei nervosa. Pensando bem, tudo nele me deixava
nervosa: a máscara, o fato de eu não ver os olhos dele, suas mãos com
luvas. Como será que ele conseguia enxergar? A visão e a audição dele
deviam ter limites embaixo daquele manto.
E agora? O que iria acontecer?
– Vamos... começar a aula? – sugeri.
Ele retirou um bloco de anotações de dentro do manto e escreveu.
Eu fiquei com o coração na mão enquanto ele fazia isso.
Quando terminou, ele levantou-se, dirigiu-se a um canto da sala de
estudos e botou o bloco lá. Eu tive que me levantar para pegá-lo. Aquela
conversa não seria muito prática.
O que ele escreveu foi o seguinte:
Vossa Alteza deve estar ciente de que essa se trata de uma situação muito
especial. Sua Majestade certamente lhe informou das circunstâncias.
Sinta-se à vontade para me fazer algumas perguntas que Vossa Alteza julga
mais urgentes. Contudo, sinto o dever de informar que seu castelo foi vítima de uma
poderosa maldição e eu fui aqui enviado para realizar um exorcismo dessa residência.
Trata-se de um exorcismo muito perigoso que pode custar-me a vida. Por isso fui
aqui enviado em vez de um sacerdote dourado. Sou o servo do Cordeiro imolado e meu
mais profundo desejo é morrer por ele.
Sendo assim, caso aqui se dê a minha morte, já foi acertado com Sua Majestade
que aqui poderão repousar as minhas relíquias”.
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Capítulo 2
Tudo aquilo era tão emocionante e mágico que eu nem sabia por
onde começar a fazer minhas perguntas. Se eu fosse seguir minha razão,
teria preparado uma longa lista com pelo menos umas cem perguntas.
Mas resolvi seguir meu coração.
– Por que você se tornou um mártir vermelho? – perguntei – por que
quer dar a sua vida pelo Cordeiro? De onde veio tanta fé?
Eu devia ter mencionado a profecia de Lucas e o gálata, mas resolvi
ignorar a questão da maldição por enquanto. Porque a busca pela
verdade era mais importante que o medo do poder do Dragão. E essa
busca seria meu escudo.
O vermelho pôs-se a escrever imediatamente. Ele escrevia muito
rápido. Provavelmente era fruto de muito treino.
Quando ele colocou seu bloco de anotações no mesmo lugar da outra
vez, resolvi prestar atenção na letra dele. Ligeiramente difícil de ler
numas partes, mas um pouco elegante. Consideravelmente riscada e
meio de lado.
“Tornei-me isso que sou porque é meu dever. Não há mais nada a ser feito.
Nós não pertencemos a esse mundo. Nosso destino é outro lugar. Quando há esse
entendimento, não somente racional, mas do fundo de nosso espírito, que mais há para
ser realizado?
A missão de todos nós é servir ao Cordeiro imolado. É verdade que ele tem planos
diferentes para cada um. Por isso, mesmo que eu deseje estar com ele hoje no mundo
dos gálatas, devo aceitar o meu fardo de estar separado do meu maior amor.
O pensamento de continuar vivo no mundo material é quase insuportável, mas eu
jamais abreviaria minha existência. O Cordeiro enviou cada um de nós aqui por uma
razão. Para nos conectarmos por carne e espírito. Aceitarei essa dor terrível de estar
separado da Pomba, da Luz, de sua Voz de Trovão.
Morrer para mim é grande sorte. Ao sentir dor, me uno ao Cordeiro Imolado. A
alegria é sangrar. O conforto me separa.
A fé não veio de mim, mas daquele que sempre é e será pela eternidade”
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Foi uma resposta completa. Quase uma poesia. Ele era muito mais
sentimental do que pensei.
Inicialmente imaginei que aqueles que se tornavam mártires o faziam
por motivos racionais. E ele tinha suas razões: não há felicidade em
tapetes, certo? Eu entendia isso.
Mas desejei ouvir da boca dele. Ou ler das mãos dele.
Confesso que fiquei imensamente satisfeita com essa resposta longa e
floreada. Ele levou a sério minha pergunta. Pelo jeito gostou dela.
Afinal, os vermelhos gostavam de pregar os Selos. Claro que ele
queria me selar também E eu queria ser selada na fé.
– Obrigada – eu disse – acho que entendo seus sentimentos. Não
compartilho completamente deles, pois ainda me sinto muito presa a
esse mundo. Você não sente prazeres e tentações? Não é difícil? Não é
doloroso? Não sente saudades da família e dos amigos?
Ele voltou a escrever. Meu coração batia forte. Eu me sentia um
pouco unida a ele naquela conversa. Era o mais perto que eu havia
estado de um vermelho. Queria conhecer pelo menos o mínimo de seu
coração.
É claro que o coração dele era inatingível. Como eu poderia entender
um mártir? Aquele que se sacrifica pelo mundo? Era muito maior do que
qualquer coisa que jamais sonhei.
Meu irmão já quis morrer por uma pessoa que mal conhecia. Uma
empregada da nossa casa. Será que então cada um de nós também
possuíamos potencial para ser um mártir? Nem mesmo precisávamos ser
vermelhos.
Li o que ele escreveu dessa vez.
“O maior prazer para mim é cumprir o meu dever. Simplesmente fazer o que deve
ser feito. A coisa mais nobre do mundo é a obediência.
Devo obedecer aquele que é infinitamente sábio. Que aquilo que quero seja aquilo
que o Cordeiro quer.
De que vale minha vontade? Sou falho, sou fraco. Eu só me levanto porque ele me
levanta.
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Até que ele era bom com palavras. Devia ter se tornado um dourado
para escrever livros e ensinar aos leigos. Não acabar com todos aqueles
dons e inteligência buscando a própria destruição.
Mas eu desconfiei que não era assim que funcionava o raciocínio
dele. Pela lógica, ele iria beneficiar muito mais gente estando vivo. Podia
dedicar sua vida para ajudar os outros, para escrever, para curar. Em vez
disso, ele queria jogar seu corpo e mente fora.
Só que ele não estava jogando fora. Estava dando-os totalmente para
o Cordeiro.
Era tudo ao mesmo tempo muito complicado e muito simples. Mas
eu não era forte o bastante para entender.
Eu tinha um pouco de vontade de perguntar sobre a infância e
juventude dele antes de tornar-se um vermelho. Mas eu sabia que ele não
tinha autorização para responder aquilo. Decidi que eu mesma poderia ir
atrás dessa informação posteriormente, já que eu conhecia o nome dele e
sua família.
– Você já leu as cinco mil páginas dos Selos? – perguntei – você
acredita literalmente em tudo que está nos nossos livros sagrados? Eles
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“Eu já havia lido todos os Selos antes de entrar para a Ordem. Porém, na
Ordem somos obrigados a decorar a maior parte deles. Devemos decorar o máximo
que conseguirmos antes de morrer. Conheço um mártir que sabe as cinco mil páginas
de cor, pois ele já leu os livros completos dezenas ou centenas de vezes desde criança.
Mas de nada adianta ler apenas a Letra e não penetrar no seu Espírito. Um
acadêmico pode analisar apenas as palavras, mas lê-las dessa forma causa morte. Ler
pelo Espírito é o caminho da imortalidade.
As pessoas que enxergam apenas a Letra pensam que só existem dois caminhos:
interpretar os textos literalmente ou por símbolos. Contudo, o outro mundo não é
como esse. Esse texto retrata o Espírito do outro mundo.
Os textos são perfeitos e sagrados para a mente do outro mundo. O Cordeiro é
perfeito e assim também são seus profetas. Quando lemos, é preciso nos esvaziar de
nós mesmos. Devemos ser nada, para que o Cordeiro nos preencha.
Devemos ser purificados pelo sangue e pelo fogo antes que a palavra penetre em
nosso coração”.
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Se fosse mesmo verdade que tínhamos uma alma imortal, não havia
dúvidas. Qual era a prioridade: salvar um corpo que não viveria mais de
cem anos ou dedicar-se a uma alma que não conheceria a morte?
Eu entendia tudo o que ele dizia. Mas como eu poderia nutrir
semelhante paixão?
– Mas como ter certeza que o Espírito é real? – perguntei – como
saber se existe o Cordeiro, a vida eterna e o outro mundo? E se você
morrer por nada? E se os gálatas forem apenas imaginários? Você já se
comunicou com um deles?
Queria poder ver o rosto dele para olhar as expressões que ele fazia
conforme minhas perguntas. Afinal, dessa vez fui particularmente
ousada.
Ele respondeu à altura:
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”Não temos certeza se a matéria é real. Você sente a matéria fortemente em seu
coração? Capta sua eternidade? Ela é finita, se transforma em outras coisas, morre
diante de nossos olhos. Mas o Cordeio e nossa alma não se transformam em outras
coisas. Eles não podem ser divididos em partes, mas são feitos da mesma substância
espiritual.
Esse é um entendimento metafísico que adquirimos pelo estudo, mas mesmo sem
adentrar na ontologia o coração sente. Mas o que é o coração? Não é essa bomba que
bate no peito. Nossa inteligência vem da alma, reflexo do Cordeiro Imolado.
Pelo Espírito sentimos todo o resto e ele possui consciência de si mesmo e daquele
que o criou. Sabemos que o amor é eterno. O amor não termina. Não o verdadeiro
amor. Pois só é verdadeiramente real aquilo que não conhece a corrupção e a morte.
A matéria não é completamente falsa, mas ela é o servo do espírito. Ela é boa,
mas passa por corrupção. Ela só possui beleza quando se torna uma serva daquele
que criou esse mundo e irá destruí-lo.
Posso te explicar tudo isso pela Letra, mas enquanto você não captar o sentimento
imortal pulsando nessas palavras, será letra morta. A letra é cheia de morte quando
não se apoia no coração sangrento do Imolado.
Mesmo com carne, sentimos o Espírito e o Cordeiro. Participamos do céu quando
o corpo é escravizado por seu Senhor. Pois o céu não é sentido somente na morte.
Participamos dele em sua perfeição após a morte, mas agora já vemos com considerável
clareza. É o bastante para seguirmos em seu caminho.
Nós morremos por nada quando ignoramos o Cordeiro. Quando vivemos pelo
prazer do corpo. Quando somos selvagens, sem mestre.
Os gálatas são seres puros sem corpos completamente reais. Mas só chegamos a
eles após passar por uma imitação da morte. É preciso sangue. Aquele sangue que
derrama do espírito.
O sangue do corpo vem fácil. É a seiva da terra. Mas o espírito brilha e acorda
quando há o sacrifício.
Já vi um gálata e já me comuniquei com eles. Os gálatas são espírito, mas eles não
são perfeitos. Extremamente bons, mas conseguimos nos tornar parecidos a eles com
muito esforço. Por isso podemos chegar a eles. Isso é possível ainda nessa vida. Mas
ver a face do Cordeiro só é possível com a morte: quando nos livramos de tudo que é
finito e mergulhamos na imortalidade”
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“A morte é aquilo que nos purifica. O Cordeiro, em sua infinita sabedoria, nos
deu a morte não como punição, mas como possibilidade de salvação e redenção.
Não devemos fugir da morte e sim persegui-la. Ela é o único meio para
alcançarmos plena comunhão com o eterno. É só através dela que largamos a finitude
que tanto veneramos em vida.
Venerar a finitude é venerar falsos Deuses. As coisas do mundo são bonitas
somente quando são vistas pela Luz do Imolado. Ele deve vir em primeiro lugar.
Todo o resto será escuridão se não tivermos sua luz.
A dor e a morte são como presentes que nos unem ao Cordeiro. Pois o Cordeiro
sangrou e foi sacrificado. Devemos imitá-lo em tudo.
É dito que alguns santos já subiram aos céus sem passar pela corrupção da morte.
No entanto, isso foi pela vontade do Cordeiro, que sabe mais que nós.
Não devemos desejar sermos poupados da morte. Mesmo que fosse possível, de que
nos serviria? Dor e morte estão aqui por uma razão. O Cordeiro quis que dor e morte
nos mostrassem o que realmente importa na vida, separando o real do imaginário.
Alegrias verdadeiras de alegrias falsas.
A morte não deve ser superada ou derrotada, mas abraçada. O Dragão será
derrotado pela morte. Quando morremos pelo Cordeiro, o Dragão treme de medo e
grita.
O Dragão deseja que nós odiemos a morte e a dor e nos seduz com os prazeres.
Por isso, só chegaremos ao Cordeiro amando sofrimento e morte. Não encontrando um
prazer doentio neles, mas enxergando que tudo aquilo que Deus fez é puro. Então até
a morte pode ser pura e plena de significado quando morremos por ele”.
“Eu sou fraco e limitado. Jamais conseguiria isso por mim mesmo. Isso só é
possível quando largamos de nós mesmos e confiamos completamente no Cordeiro.
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Nós devemos seguir o exemplo dele. Fazer o que ele fez. Isso se chama fé, o
tesouro mais precioso desse mundo.
Só encontramos esse tesouro através da humildade. É preciso humilhar-se
completamente. Servir ao mundo por caridade, morrer pelo mundo. Mas não morrer
por amor às coisas finitas. Morremos por elas quando as vemos como reflexo da
compaixão do Imolado.
Nada do que faço de bom vem de mim. Nenhuma força que possuo é minha.
Tudo que há de bom em mim veio do Cordeiro. Ele também me dá a fé. Eu apenas a
aceito pelo meu livre-arbítrio.
Tudo de mal que possuo não vem de Deus, mas de minhas limitações: quando
escolho, por vontade própria, me separar do Cordeiro para venerar a mim mesmo e ao
mundo finito. É o que o Dragão deseja. Mas não devemos dar ouvidos a ele.
Minha disciplina é bênção exclusiva do criador. Ela não vem de mim. Mas eu
não sou perfeito. Tudo o que faço de errado é quando falho em fé e entendimento. Eu
falho porque ainda tenho limites. Com a morte largarei os limites do corpo e serei puro
espírito.
Com a morte vem medo, mas também amor. Sentir medo da morte é pensar que
estamos sozinhos e iremos desaparecer. É o medo da solidão, da separação, do não ser.
Mas quando morremos pelo Cordeiro não há um medo real, apenas um medo falso
fabricado pelo Dragão. Pois a morte nos separa do mundo finito, mas nos une ao
mundo imortal, ao Cordeiro Imolado. Por isso a morte é a maior alegria. É estar
junto, é cumprir nosso destino”
Derramei algumas lágrimas. Não pude evitar. Acho que ele notou.
– Perdão – falei, enxugando as lágrimas – você é tão sábio! Queria
poder me aproximar... por que vocês não podem tocar as pessoas? Isso
também não é um tipo de amor?
Lá foi ele escrever outra vez. Eu já tinha feito muitas perguntas
nobres. Estava na hora de eu satisfazer minha mera curiosidade de
adolescente. Eu me permitiria esses pequenos caprichos.
Ele escreveu o seguinte:
“As regras de nossa Ordem são extremamente rigorosas. Não é errado que as
pessoas se toquem e se amem. Esse amor é genuíno. Quando acreditamos no Cordeiro
podemos viver e morrer pelas pessoas que amamos, pois cada um de nós possui uma
alma imortal. Esse tipo de vida também é admirável e possui sua beleza.
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Ser um mártir não é para todos, pois o Cordeiro possui planos diferentes para
cada um. Ele não deseja que a raça humana se extinga. Virá um dia em que o
Cordeiro destruirá o mundo. Ele abrirá os sete selos e os gálatas assolarão a terra.
Nesse momento, irá julgar os vivos e os mortos.
Enquanto aguardamos a vinda do Imolado, a carne é necessária. Porém, para
cumprir minha vocação, é preciso que as coisas sejam dessa forma.
Eu sou fraco. As regras da Ordem me ajudam a preservar a disciplina. A fé me
sustenta, é meu alimento. Nós fazemos jejuns rigorosos e temos uma vida sofrida. Isso
porque os mártires são como cordeiros se preparando para o abate. Eis nossa missão.
Quem se prepara para a morte deve preparar seu coração, unindo-o completamente ao
do Cordeiro.
É sabido que no instante exato da morte chegam muitas tentações. O Dragão
ataca com força total. Para isso, devo domar o corpo e sentir cada vez mais o Espírito.
O gálata contou-me que irá proteger-me na hora da morte. Ele levará minha
alma para o céu num globo de fogo. Assim, o Dragão não poderá abocanhá-la”
A vida que ele levava era como um belo conto de fadas. Na verdade,
uma história trágica de guerra espiritual, com animais mágicos, dragões e
espíritos.
E ele acreditava seriamente em todas essas coisas. Aquilo não era
admirável?
Eu também queria acreditar. Mas como eu conseguiria imitar o
Cordeiro? Desde criança eu rezava e lia os Selos todos os dias. Assistia as
cerimônias do templo todos os domingos. Então por que a minha fé
ainda era tão fraca?
Eu disse tudo isso a ele. E o vermelho escreveu:
“Às vezes apenas isso não é o bastante. Não basta fazer somente o mínimo,
embora o mínimo seja o primeiro passo.
Quando nosso coração endurece demais com as amarguras do mundo, é preciso
uma purificação mais forte, mais violenta. Não são poucos os que encaram a dor e a
morte como reflexo da maldade do mundo. Essas coisas devem ser vistas pelo que são:
expiação. Uma maravilhosa oportunidade de penitência.
Você deverá buscar imitar o Cordeiro na medida de suas forças. Mas nunca se
contente com o que consegue fazer. Tente sempre melhorar. Cada dia deverá identificar
as suas falhas, pedir perdão, perdoar e prosseguir na jornada”
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Mártires Vermelhos
Essa foi uma resposta gentil e leve. Ele teve piedade de mim. Podia
ter sido um pouco mais cruel comigo, mas ele optou por não ser.
Talvez eu quisesse que ele fosse cruel, mas eu também tinha um
pouco de medo de escutar certas coisas.
Eu sabia o que precisava ouvir: eu devia colocar o Cordeiro como o
centro da minha vida. Todo o resto era supérfluo. Mas isso doía um
pouco. Senti que fazendo isso eu perderia uma parte daquilo que sou.
Mas perder-se era necessário para reencontrar-se. A morte era necessária
para renascer.
E por que apesar de eu saber de todas aquelas palavras bonitas eu não
fazia o que tinha que ser feito?
– Você é feliz? – perguntei.
Ele escreveu:
“Vossa Alteza deve saber que eu não tenho autorização da Ordem para
comentar detalhes sobre minha vida pessoal e sobre meu passado. Por isso peço minhas
sinceras desculpas”
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Wanju Duli
“Ao nos tornarmos vermelhos, morremos para o nosso passado. Essa é a primeira
morte. Portanto, não há mais necessidade de mostrarmos nossa pele, nosso rosto ou
olhos. Não é necessário sermos identificados. Nós recebemos novos nomes, mas esses
nomes só são conhecidos entre os membros da Ordem. Eu não sei a identidade dos
outros membros e não preciso saber. Não faço a menor ideia quem era rico ou pobre,
embora certas coisas possam ser identificadas por diferenças na escrita e atitude.
Apenas tentamos reduzir essas diferenças ao mínimo.
O silêncio também é um desejo de humildade. Ao pronunciarmos palavras,
muitas vezes nos enchemos de vaidade com nossa sabedoria. No silêncio, ouvimos
Deus. Quando falamos, muitas vezes tropeçamos. Ao escrever, é possível montar o
raciocínio com mais clareza e reflexão, cuidando para não trair o Espírito do
Cordeiro”
Ele escrevia muito rápido. Mas devia fazer isso tantas vezes que já
tinha se acostumado.
– Há quanto tempo você entrou na Ordem?
– Quando você partirá para fora dos sete reinos para cumprir seu
sacrifício? Dizem que vocês não vivem muito mais de um ou dois anos
após saírem. E a maior parte de vocês parte logo que completa o
treinamento, certo?
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Mártires Vermelhos
“Isso está correto. A Ordem solicitou que eu permanecesse um tempo a mais por
aqui porque eles precisavam de alguém com conhecimento dos Selos para atualizar as
regras da Ordem. Mas agora que já obedeci a incumbência de meu superior, devo
partir o quanto antes. No máximo em um mês”
“Rezei ao Cordeiro para que me desse paciência para suportar isso tudo. Quanto
mais me aproximo do dia de minha partida, mais meu coração se alegra”
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Wanju Duli
Mas o mais importante era: como eu poderia viver por ele? Afinal, eu
não tinha nascido só para morrer. Desejaria fazer algo bom com a minha
existência antes do fim.
Eu não queria passar o resto dos meus dias com uma existência
egoísta.
E ali estava na minha frente a pessoa perfeita para pedir conselhos!
Eu precisava aproveitar. Talvez eu nunca mais tivesse uma oportunidade
parecida.
– Você pode fazer algum ritual para me abençoar? – perguntei – o
que você pode fazer para me ajudar?
Dessa vez ele parou um pouco para pensar antes de escrever. Achei
aquilo curioso.
Ele escreveu o seguinte:
“No meu entendimento, uma das formas mais efetivas de comunicar a sabedoria
dos Selos é através da Letra viva. Falamos de forma simples para pessoas simples,
mas Vossa Alteza conhece a teologia, a filosofia e a história. Por isso, esse seria um
caminho particularmente forte para dobrar seus joelhos.
Mas eu entendo que não somos apenas razão. Precisamos de mais para seguir o
Cordeiro. É preciso que todo nosso ser seja tocado. Sendo assim, além do
entendimento racional precisamos das experiências místicas.
Isso é completamente fora do protocolo e eu teria que fazer penitência por isso
depois, mas eu posso abençoar Vossa Alteza brevemente. No caso de uma visita de
um gálata, terá que passar por um ritual de purificação”.
O que ele queria dizer com isso? O que ele pretendia fazer?
– Eu aceito, mas você pode me dizer antes o que vai fazer? –
perguntei – eu confesso que estou com um pouco de medo.
Eu conhecia o envolvimento deles com rituais com sangue. E se ele
fosse me cortar? Eu queria me preparar psicologicamente. Mesmo para
um pequeno corte eu precisaria me concentrar. Não queria ser pega de
surpresa.
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“Peço o perdão da Vossa Alteza por ter apagado as luzes sem autorização. Senti
que deveria iniciar a preparação o quanto antes. A atmosfera do castelo está se
tornando cada vez mais pesada. Sinto cheiro de doença. Uma doença da alma, que
reflete na carne. Peço que se sentem a um metro de mim. Na ocasião de rituais, é
permitida a distância de um metro”
“É comum que em rituais acabemos por nos aproximar menos de um metro. Não
se preocupem. Se ocorrerem acidentes, a culpa não recai sobre quem recebe o ritual. Eu
realizarei todas as penitências posteriormente para cobrir minhas falhas”.
“Não é necessário muito sangue. Sugiro um corte na ponta de um dos dedos, que é
mais fácil pingar do que um corte na palma da mão, que precisaria ser mais fundo.
Não precisamos de sangue de pulso. Não tanto assim. Peço que tentem fazer por si
mesmos antes de eu interferir. Basta que cada um pingue algumas gotas e me retornem
o cálice. Concluirei os procedimentos”
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Só podia ser porque ele era criança. Dizem que os gálatas protegem
as crianças. Mas eu já era adolescente. Provavelmente tinha perdido
minha proteção e minha pureza.
Ou talvez porque fosse mais fácil para as crianças terem fé. Elas ainda
não tinham sido corrompidas pelas mentiras do mundo. A mentira de
que o Cordeiro era fruto da imaginação.
A próxima mensagem do vermelho foi bem assustadora:
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Mártires Vermelhos
Ele correu para uma direção da sala. Nós corremos atrás dele. Não vi
nada parecido com um gálata, embora eu não fizesse a menor ideia da
aparência que eles tinham.
Mas foi lá que localizamos o vermelho. Ele estava caído no chão,
provavelmente desmaiado, em cima de uma poça de sangue.
Eu nunca vi tanto sangue em toda minha vida. E o sangue pingava
dos móveis caídos sobre os quais o corpo dele se estendia.
– Ele está morto? – perguntei, apavorada.
– E agora? – perguntou Teresa – qual é o procedimento? Não temos
permissão de encostar nele nem quando há riscos de morte?
Coloquei meu cérebro para funcionar. Eu já tinha feito essa pergunta
para o professor Artur uma vez. E se ele estivesse certo...
– Usem um cobertor – instruí – envolvam o corpo nele para movê-lo.
Meus pais também tinham acordado. Bem, nós tínhamos médicos.
Eles não moravam dentro do castelo, mas nas proximidades.
Quando chamamos os médicos, eles conseguiram mover o corpo do
vermelho da maneira correta, com segurança, cuidando para não quebrar
o pescoço dele ou qualquer outra fatalidade que poderia resultar da parte
de um leigo.
Ele foi levado para um hospital. O problema foi que lá no hospital
eles fizeram tudo sem consultar a Ordem dos Mártires.
Eu e Lucas resolvemos ficar na sala de espera, enquanto meus pais e
Teresa foram para a cerimônia religiosa dos domingos. Meus pais nos
permitiram faltar para ficar no hospital.
É verdade que a situação do vermelho era de urgência. Um caso de
vida e morte. Mesmo assim, os médicos deviam saber que os vermelhos
tinham regras específicas para esses casos. Só não sabiam quais eram.
Eles simplesmente optaram por proceder como fariam com qualquer
um. Mas logo que a Ordem foi informada do ocorrido, algumas horas
depois, eu e Lucas avistamos três vermelhos nos corredores do hospital.
Havia um rapaz acompanhando os três vermelhos. Ele usava um
manto branco, mas não cobria o rosto ou as mãos. Ele tinha o mesmo
símbolo dos mártires no manto, mas tinha permissão para falar.
Esse cara tinha um sotaque bem forte. Não identifiquei de onde era.
Nos sete reinos falávamos o mesmo idioma, mas havia diferença de
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Wanju Duli
sotaque. Prestando atenção, concluí que ele fosse de Tiatira e aquilo fazia
sentido: lá era onde havia mais vermelhos. Era a sede deles.
A conversa do cara de branco com o médico começou de forma
pacífica. Mas em pouco tempo o rapaz de manto branco se
descontrolou. Ele começou a gritar alto, falando sobre o absurdo da
situação.
Pelos gritos dele, eu entendi que os médicos tinham retirado a
máscara e as luvas do vermelho. Na verdade, tinham removido também
o manto dele.
Mas o pior não era isso. Eu escutei que o vermelho usava um tipo de
cinto e outros instrumentos de mortificação pressionando a pele e esses
instrumentos foram removidos pelos médicos.
Eu entendi a posição do médico. Ele queria salvar a vida do
vermelho. Era natural para ele remover tudo aquilo que estivesse
prejudicando de alguma forma a saúde do seu paciente.
Mas o objetivo dos monges vermelhos não era preservar a saúde do
corpo e sim do espírito. O cara de branco em algum ponto da conversa
gritou:
– Então devia tê-lo deixado morrer!
Eu e Lucas nos entreolhamos e arregalamos os olhos quando
ouvimos isso.
Eu também sabia que o vermelho estava disposto a morrer no nosso
castelo naquela noite. Inclusive, se isso tivesse acontecido as relíquias
dele nos pertenceriam.
Mas mesmo sabendo que ele partiria para sempre do nosso reino dali
no máximo um mês, eu ainda o preferia vivo do que ter um braço dele
no nosso cofre. Queria ter a oportunidade única de me comunicar com
ele de novo, mesmo que por escrito.
Pessoas muito santas geralmente não ficavam muito tempo vivas.
Elas queriam se matar o quanto antes pelos outros. Era difícil para nós,
meros mortais, ter acesso a elas em suas breves vidas.
Soubemos que o vermelho estava são e salvo. Ele já tinha acordado.
Mas é claro que não tivemos permissão de vê-lo.
Mesmo assim, ele enviou uma mensagem para nós, que nos foi
entregue pelo cara de branco. Diferente dos seus gritos com o médico,
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Mártires Vermelhos
ele se dirigiu a nós com enorme reverência. Ele sabia que éramos os
príncipes de Pérgamo.
Eu e Lucas abrimos a folha de papel e lemos juntos. Era realmente a
letra do vermelho
“Vossa Alteza,
Muito respeitosamente,
O.M. 10091
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É claro que sempre havia a chance de ele ter escrito tudo aquilo com
intenção séria. Mas não achei que fosse isso. Era verdade que ele queria
ter sido martirizado naquela madrugada. Também era verdade que ele
não ficou brabo com os médicos.
Porém, ainda havia algo mais verdadeiro que tudo aquilo: o vermelho
tinha habilidade com as palavras. Então ele deu um jeito de, ao mesmo
tempo, comunicar a verdade sem erro, mas também colocar um pouco
de sentimento nessas palavras, quase como um convite para termos uma
maior aproximação.
Mesmo assim, ele não mencionou nada sobre um segundo encontro.
Imaginei que, como os membros da realeza éramos nós, o convite devia
partir de nossa parte.
– O que significa “O.M. 10091”? – perguntou Lucas.
– É uma forma antiga de denominação que eles usam para se referir
uns aos outros dentro de certos círculos – expliquei – mas não é o nome
secreto deles. “O.M.” é “Ordem dos Mártires”. E o número deve ser o
número dele na Ordem.
– Isso quer dizer que mais de dez mil vermelhos já foram
martirizados? – perguntou Lucas, impressionado.
Eu também fiquei surpresa. Era muita gente com vocação e fé para
morrer pelo Cordeiro! Mas a Ordem já era bem antiga, então, pensando
melhor, não era tanta gente quanto parecia.
– Não quero sair de Pérgamo – eu disse – e sim marcar um próximo
encontro com o vermelho. Com o nosso caríssimo “O.M. 10091”. Que
acha, Lu?
– Eu concordo – disse Lucas – mas você não está com medo dessa
doença que ele falou?
– Bem, se eu pegar essa doença irei simplesmente usar como
oportunidade para dedicar meu sofrimento à imitação do Cordeiro –
brinquei.
Mas quando eu disse isso eu não imaginava o quão terrível seria a tal
doença. E o quão despreparada eu estava para aguentar algo tão horrível.
Enquanto eu estava saudável, eu não estava nem um pouco
preocupada com essas coisas. Tudo parecia fácil. Na segunda-feira, levei
todas as anotações do vermelho para mostrar para Sara e Paula, sem nem
mesmo saber se eu tinha autorização para isso.
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Mártires Vermelhos
Mas para nós era tudo um jogo. Nós admirávamos o mártir vermelho
como se ele fosse um cantor famoso. Tudo bem, nós tínhamos apenas
14 anos. Era nosso jeito de ter interesse por religião.
Geralmente os maiores mestres não deixavam nada escrito. Eles não
estavam interessados em folhas de papel que eram comidas pelas traças.
Eles queriam ser um exemplo vivo.
O vermelho não tinha adquirido todos os seus conhecimentos para
depois se exibir escrevendo um livro com palavras bonitas. Não. Tudo o
que ele aprendeu teve apenas uma finalidade: inflamar seu coração para
desejar ser mártir pelo Cordeiro.
Mas aquilo era insano! Como uma pessoa tão fantástica como ele
poderia existir? Alguém que aceitava dar a vida por um ser invisível.
Ou será que invisível era nosso mundo? Por que viver por coisas que
terminam? Provavelmente porque nos viciamos nisso. E era muito
doloroso deixar esse vício para trás.
– Até que o irmão dele é bonitinho – observou Paula – será que não
tem jeito de você usar sua autoridade de princesa para mandar que ele
tire a máscara?
– Você sabe que a realeza não está acima das ordens religiosas – eu
disse – meu pai está conseguindo essas reuniões para mim a muito custo.
Os mártires são missionários. Eles viajam muito. Não têm o dever de
ficar presos a uma família real específica, como instrutor.
Contei a elas também sobre a confusão que aconteceu no hospital e
sobre o cara escandaloso vestido de branco. Se ele já tinha dado queixas
formais por causa de um procedimento médico, eu nem queria imaginar
o que aconteceria se o vermelho se prejudicasse por causa dos caprichos
da filha do rei.
Eu o respeitava demais para prejudicá-lo por minha causa. Ele quase
tinha morrido para tentar remover a maldição que caiu sobre nosso
castelo. Eu não podia ser assim tão mal agradecida.
Quando um dos empregados bateu na porta do meu quarto para me
avisar que meu professor havia chegado, minhas duas amigas deram
gritinhos de alegria.
Eu torcia para que elas se segurassem e não fizessem nada que não
deviam. Mas aquilo era altamente improvável. Eu vi isso no rosto delas:
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Wanju Duli
Fico satisfeito em vê-la bem, mas devo reforçar as minhas advertências anteriores:
a praga de Pérgamo já se espalhou. Recebi notícias da capital. Se ainda tem intenções
de deixar o reino, sugiro que parta na direção de Éfeso. A praga pretende seguir seu
curso para Tiatira, onde se fará o foco. Fui informado por Galácia.
De minha parte, irei partir para Tiatira daqui poucos dias e de lá para o reino de
Tarsus, terras do Novo Mundo. Ouço falar que os vermelhos enviados para esses
lados são prontamente martirizados. Em alguns casos são devorados vivos. Soa
promissor.
Possivelmente essa será a última vez que nos vemos, por isso não hesite em fazer
suas perguntas. Será uma imensa honra poder ajudar no que estiver ao meu alcance”.
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Mártires Vermelhos
Então a doença era mesmo real! Será que já tinha feito suas primeiras
vítimas?
Ele falou que iria viajar para o futuro foco da doença, Tiatira, como
se não fosse nada. Quase como se sugerisse que estava indo para lá
exatamente para tentar pegar essa doença.
Mas é claro que ele não iria admitir aquilo claramente, sendo que
estava me advertindo a evitá-la. De qualquer forma, a jornada dele me
soava poderosa.
Mas não era um pouco injusto? Enquanto ele viajava com um destino
triunfante e completamente sem temor ao encontro da morte, ele me
mandava seguir o caminho para escapar da morte.
Ele certamente disse isso porque sabia que eu não estava preparada
para lidar com a dor. Eu nem mesmo conseguia enxergar o gálata.
– Posso viajar com você? – perguntei.
Talvez ele tenha ficado meio surpreso com minha pergunta, pois
pareceu inicialmente desorientado quando começou a escrever.
Certo, certo. O vermelho não precisava agir como se fosse meu pai.
Digamos que ele não estava em posição de dar conselhos sobre minha
segurança, sendo que ele não fazia o menor esforço para viver mais um
dia.
Eu adoraria ver o rosto de uma pessoa que dizia com tanta
naturalidade que gostaria de ser devorado vivo.
– Ei – Paula falou antes de mim – nós já entendemos que você é
admirável. Será que você precisa ficar esfregando isso na cara da Bibi a
cada segundo? Você fica dizendo coisas como “quero ser martirizado”,
mas isso é óbvio. Foi para isso que entrou para a Ordem dos Mártires. A
cor do seu manto já mostra como você é elevado. Não precisa elevar a si
mesmo ainda mais através de toda essa vaidade. A nossa religião ensina
que a humildade é a joia mais preciosa. De que adianta ser devorado vivo
se você deixou para trás o mais importante? Se quer morrer pelo
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Wanju Duli
“Peço profundas desculpas se deixei essa impressão. Minha intenção não era
contar vantagem, mas uma tentativa de fazer uma piada. Confesso que meu senso de
humor nunca foi muito refinado.
Eu acredito que Sua Alteza possui plena capacidade de enfrentar a praga se
assim o desejar. Contudo, eu a alerto porque eu mesmo já caí doente por ela e minha
luta não foi fácil. Cresci muito em moralidade e espiritualidade após essa batalha.
Para alguns, trata-se da última luta.
Não irei impedi-la de se tornar mártir. Seria belíssimo buscar a doença pelo
Cordeiro. Mas é preciso ter clareza a respeito de seu chamado. É necessário rezar ao
Imolado para que ele lhe revele seus planos com mais detalhes antes de tomar uma
decisão que poderá não ter volta”
Palavras fortes.
Como desconfiei: ele estava mesmo tentando fazer piadas gentis para
me deixar à vontade, e não meramente se gabando.
Eu não imaginava aquele vermelho tendo uma luta difícil. Então
aquela doença devia ser pior que o Dragão. Bem, teoricamente ela foi
provocada pelo Dragão. A tal maldição.
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Mártires Vermelhos
– Tem uma coisa que eu queria saber – disse Sara – o que vocês
comem? Ou vocês raramente comem?
Fiquei aliviada com a mudança súbita de assunto. Felizmente, Paula
não insistiu na discussão.
Essa era uma pergunta fácil. O vermelho escreveu:
“Só temos autorização de comer uma vez ao dia. Deve ser feito entre as onze da
manhã e meio-dia. Somente são permitidos pão, água, frutas e vegetais, sem nenhum
tipo de tempero. Nunca podemos comer na frente dos outros, nem mesmo dos outros
vermelhos. É frequente que façamos jejuns de longas semanas a pão e água. Também
há jejuns de alguns dias ou uma semana nos quais ficamos somente com água ou
cortamos tudo completamente. Não é permitido comermos nem em caso de doença. Só
a água pode ser retomada na doença em um retiro sem ela”
“Não tenho autorização para dar detalhes sobre todas as nossas penitências. Elas
consistem em nos preparar para momentos de morte e dor. Toda a dor que sentimos
tem em vista imitar o sofrimento do Cordeiro ao ser imolado. Mas diferente do que as
pessoas pensam, nossas austeridades mais importantes envolvem abstinências. Jejuns e
vigílias são nossas mortificações mais importantes. Aprender a suportar a dor da fome
e do sono é nosso primeiro passo. Quem não sabe lidar com alguns dias sem dormir,
sem comer e sem beber água, não estará preparado para aguentar as outras coisas”.
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Wanju Duli
“O Cordeiro não deseja mostrar o rosto para quem não é digno dele. Se ele se
mostrasse claramente, de que adiantaria? Algumas pessoas são tão céticas que mesmo
se vissem os mortos se levantarem dos túmulos não acreditariam. Nós, seres humanos,
normalmente só aprendemos as grandes verdades da vida pela dor. Não há outro
caminho para o sério buscador. É claro que alguns poucos indivíduos são capazes de
enxergar o Cordeiro nas pequenas belezas do mundo e para esses a jornada será mais
leve. O Cordeiro quis que fosse assim. Ele facilitou o caminho para uns e dificultou
para outros porque cada um necessita de graus diferentes de purificação antes de
estarmos preparados para fitá-lo face a face. Por isso, é dito que aquele que fita a face
do Imolado sem ser puro, morrerá. Mas aquele que é puro e o olha, viverá para
sempre”
Eu já tinha lido algo parecido com isso nos livros dos Selos. Mas por
que quando aquelas palavras vinham dele pareciam muito mais
relevantes? Provavelmente porque eu sabia que ele vivia tudo o que dizia.
Ele falava de coração e não da boca pra fora.
Lembrei que ele usava aqueles instrumentos de mortificação perto da
pele. Ele devia estar sentindo a dor deles naquele exato instante. Eu
também tinha ouvido falar que o tecido dos mantos deles era feito de um
material que intencionalmente machucava a pele e causava desconforto.
Mas quando se vive assim o tempo todo, a dor passa a ser a vida e a
verdade. Por isso para ele uma doença ou a morte não eram nada. Nós,
por outro lado, sempre correndo atrás de confortos, sofríamos muito
cada vez que experimentávamos a dor de um espeto no dedo.
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Mártires Vermelhos
“Há controvérsias. Cada pessoa carrega consigo dons diferentes, não importa de
onde venha. É verdade que a religião ainda é mais forte no campo. É normal que lá
os filhos sejam educados com rígida tradição de práticas religiosas, o que faz com que
eles sigam esse caminho de forma natural. Eles também podem sentir o Cordeiro na
beleza da natureza. Nos centros urbanos, por outro lado, experimenta-se mais
distrações. Porém, é exatamente por isso que nesses lugares fica evidente que coisas
como dinheiro e diversões vazias não valem nada. Os jovens da cidade sentem os dois
lados da moeda: buscam um prazer desenfreado, mas nunca estão saciados. Eles
sentem que não podem saciar seu desejo de imortalidade em coisas finitas. Poderão
saciá-lo somente em Deus. Mas suas cabeças estão cheias de estudo. Por isso, a forma
mais certa de levar um nobre para a verdade é através dos livros.
Em nossa Ordem, aqueles que chegam do interior costumam ter uma fé mais
natural, ingênua e pura. É algo bonito de se ver, como se fossem gálatas de carne. Por
outro lado, essa ingenuidade também pode derrubá-los. Eles estão mais acostumados a
suportar o frio e o calor, a fome e a sede. Mas não sabem explicar direito porque são
tão fortes. Eles são puro sentimento. Porém, só o sentimento vago de amor e a intenção
sincera não bastam. Os sentimentos devem ser guiados pela razão.
Quando nobres se tornam vermelhos, seus corpos chegam como peles de bebê,
extremamente sensíveis a qualquer tipo de fogo. Suas mentes, por outro lado, são como
diamantes. Eles conhecem a alta teologia, pois seus pais lhes pagaram professores
sábios. E sendo guiados pela razão, ocorre um fenômeno singular: no começo, eles
sofrem mais que todos. Muitos nobres não aguentam. Mas os poucos que ficam são
exatamente aqueles que no futuro são capazes de ir mais longe. Os camponeses
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aguentam a dor porque suas peles já são como couraças. Mas os nobres aguentam a
dor porque suas mentes são fortes escudos. Ter pele de papel ou de ouro não importa
para eles. Eles só querem derreter, pois sabem que deve ser feito. Eles não querem
vencer a dor. Desejam senti-la em cada vez maior intensidade, para entregá-la ao
Imolado. Nesse sentido, é bom que sintam mais dor, pois sua recompensa será maior”
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Mártires Vermelhos
os pobres, que não tinham nada mesmo, não precisaram fazer sacrifício
nenhum. Eu já ouvi falar que tem gente morrendo de fome que entra
para a Ordem, pois mesmo os jejuns rigorosos que os vermelhos fazem
ainda são menos rigorosos do que não ter comida nenhuma.
– Isso que você disse fortalece ainda mais o ponto dele – observei –
que os nobres entram na Ordem por motivos... nobres. Enquanto
muitos camponeses entram nela para ter o que comer ou para honrar a
família. Morrer pelo Cordeiro é um destino grandioso para quem iria
morrer de fome de qualquer forma, então nem é preciso muito esforço
para escolher.
Em vez de escrever alguma coisa, o mártir vermelho levantou-se.
Caminhou na direção da porta, abriu-a e simplesmente saiu!
– O que ele está fazendo? – perguntou Sara, confusa.
– Não sei – falei.
– Será que ele vai ao banheiro? – perguntou Paula – eles têm
permissão para isso?
Eu saí do quarto também e o segui. Ele dirigiu-se para a porta da
frente, para sair do castelo. Mas eu não permiti.
– Barrem a saída dele! – ordenei.
E os guardas do castelo me obedeceram. Dessa vez, o vermelho foi
obrigado a escrever uma mensagem, que deixou sobre a mesa do salão
principal.
“Vossa Alteza, eu desconheço os meios que foram usados para que minha
identidade fosse descoberta, mas confesso que estou desapontado. Uma princesa tão
bem educada e inteligente certamente sabe que essa informação não poderia ser
buscada e muito menos espalhada. A Ordem é muito estrita em relação a isso.
Existe a seguinte regra: quando uma pessoa pronuncia meu nome, minha origem
ou qualquer coisa relacionada, devo me levantar e sair sem dizer nada.
Eu sou proibido de contatar minha família, pois a regra me proíbe de dirigir a
palavra a qualquer um que saiba minha identidade. Isso significa que a partir de
agora nunca mais poderei pisar nesse castelo e me dirigir a Vossa Alteza.
No final, isso não fará diferença, pois devo partir em poucos dias para cumprir
meu destino. É lamentável que tenhamos que nos separar nesses termos, mas não
nutrirei ressentimentos. Ainda possuo o sincero desejo de que Vossa Alteza encontre
sua missão no mundo e a alerto uma última vez a partir para Éfeso.
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Meus cumprimentos”
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culpa maior foi minha e não dela. Era hora de eu assumir minhas
responsabilidades.
Fiquei tão triste naquela noite que tive dificuldade para dormir.
Chorei um pouco.
Não jantei e não dormi. Não porque eu quisesse fazer penitência, mas
simplesmente porque eu sabia que a comida não ia descer. E o sono não
ia vir.
Devo ter dormido apenas uma ou duas horas. Acordei com uma
febre alta.
Para a minha alegria, o médico do castelo confirmou minha febre
para meus pais e eu fui liberada do colégio e das aulas particulares
naquele dia. Fiquei contente porque teria o dia inteiro todinho para mim.
Fazia muito tempo que eu não desfrutava daquela sensação.
Infelizmente, minha doença era real e não aproveitei o dia como eu
imaginava. Eu apenas piorei cada vez mais. Não saí da cama o dia todo e
até recebi meu almoço na cama. Só que eu acabei vomitando tudo
depois.
Tive que faltar o colégio por uma semana inteira. Fazia muito tempo
desde a última vez que tive uma doença tão grave. Nessa ocasião eu era
muito pequena para me lembrar direito.
A cada dia eu piorava mais. A febre e o enjoo só aumentavam.
Chegou um ponto em que não consegui mais comer absolutamente
nada. Por mais que eu vomitasse, o enjoo não tinha fim.
Meu vômito se transformou praticamente numa água nojenta sem
nada. Afinal, como eu não comia, não havia mais nada para jogar para
fora.
Eu sentia dores intensas na barriga. Minha rotina era alternada por
vômitos e diarreias. Meu corpo clamava por ficar deitado, mas eu não
conseguia parar de levantar para ir ao banheiro.
Em mais de uma ocasião acabei vomitando no meu quarto e na
minha cama. Também acabei defecando na minha roupa e no meu lençol
depois de tomar um remédio idiota que um médico idiota me deu.
Mas depois eu percebi que não era culpa do remédio. Eu estava
praticamente me desmanchando, como se houvesse alguma coisa
horrível dentro de mim que desejasse escapar para fora a qualquer custo.
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Sem o espírito a vida não era vida. Apenas sombras do que a vida
poderia ter sido, iluminada pela Luz do Cordeiro.
Mais dois dias depois, meu pai se conformou e mandou chamar um
eremita negro para administrar em mim os últimos ritos.
Quando uma pessoa estava prestes a morrer, um sacerdote caliciano
era chamado para colocar gotas de sangue em nossa testa, representando
o sangue do Cordeiro Imolado. Essa era a única ocasião em que eles
tinham permissão de falar: eles pronunciavam a Reza da Ascensão.
Tratava-se de uma reza curta para abençoar aqueles que estavam para
morrer e protegê-los, para que chegassem em segurança no outro
mundo.
Normalmente quem realizava esse rito eram os eremitas negros, que
se especializavam nos rituais para a morte. Ultimamente, com a praga se
espalhando, era difícil conseguir um deles.
Porém, na falta de um desses, qualquer outro podia administrar os
ritos finais. Um sacerdote dourado ou um monge vermelho também
poderiam fazê-lo.
Foi só então que eu entendi o que eu deveria fazer.
Antes que o eremita negro chegasse no castelo, eu me levantei da
cama. Caminhei com dificuldade, apoiando-me nos móveis e fui até o
quarto de Lucas, que também estava de cama.
Felizmente, a doença ainda não estava tão forte nele quanto em mim.
E ele parecia estar suportando tudo muito mais bravamente que eu.
– Vamos fugir – eu disse.
– O quê? – perguntou Lucas, sentando-se na cama, com voz meio
sonolenta – por quê? Para onde?
– Quero que aquele mártir vermelho me dê meus últimos ritos.
– Devíamos ter fugido daqui antes, como ele e Galácia disseram –
reclamou Lucas.
– Bem, agora já está feito – eu falei – se tenho que morrer, quero pelo
menos poder ouvir a voz dele antes disso.
– Ele disse que não tem mais permissão para nos ver agora que
sabemos sua identidade – lembrou Lucas – e se ele se recusar a aplicar os
ritos?
– Aceito correr esse risco – falei – precisamos ir atrás dele o mais
rápido possível. E se ele já tiver saído da cidade?
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– Sinto muito – ele disse – embora não tenhamos mais contato direto
com ele, a Ordem envia correspondências regularmente para nossa
família. O meu irmão já partiu de Pérgamo.
– Merda! – exclamei – ele foi para Tiatira?
– Isso – ele respondeu, com cautela – mas a essa altura ele já deve ter
chegado em Tarsus.
– Porcaria! Ele está com tanta pressa assim para morrer? Pois eu não
estou. Eu juro que vou encontrá-lo! Quando parte o próximo navio para
Tarsus?
– Como vou saber?
– Certo, obrigada. Eu te vejo por aí... no outro mundo.
E saí correndo, arrastando Lucas pelo braço.
– Então... a gente vai viajar de navio mesmo? – perguntou Lucas –
você tem dinheiro?
– Sim, eu fugi com dinheiro, não sou burra – falei.
Nos apressamos na direção do porto. Comprei duas passagens.
– Estamos com sorte – eu disse para Lucas – o próximo navio sairá
daqui poucas horas. Chegaremos lá em três dias.
– É muito tempo – falou Lucas – será que a gente vai aguentar?
– Mesmo se eu morrer, você continua nossa jornada – eu disse a ele –
não morra até encontrá-lo, ouviu bem?
– Sim...
Felizmente, nós dois estávamos tão feios, magros e doentes que eu
achava simplesmente impossível que alguém nos reconhecesse e nos
identificasse como príncipes. Nem foi preciso disfarce nenhum. Aquela
doença simplesmente acabou não só com minha saúde, mas também
com minha beleza.
Era melhor ninguém saber que estávamos com a praga, ou poderiam
nos impedir de embarcar. Eu e Lucas cuidaríamos para ficar longe das
pessoas no navio, para não contaminar os outros. Eu mentiria, dizendo
que estávamos com um mal estar qualquer.
Mas aqueles três dias não foram nada fáceis. Meu enjoo voltou com
força total. Eu estava definhando. Aqueles três dias foram como três
meses. Não passavam nunca.
Lucas também estava sentindo muita dor. Ele apenas abraçava a
barriga e se encolhia num canto.
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– Mas...
Eu não sabia o que dizer.
Ele não via a grandiosidade da situação? Que importava se meus pais
sabiam ou não onde eu estava?
Eu ia morrer em breve e precisava dos últimos ritos para salvar
minha alma! Por que ele precisava ter preocupações tão mundanas logo
na hora que eu mais estava interessado nas coisas do espírito?
Mas talvez ele tivesse razão. Eu era princesa. Eu tinha 14 anos e meu
irmão tinha nove. Estávamos numa terra distante e perigosa. Se eu
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morresse aos pés dele, o que eles iam dizer para meus pais? Eu iria
colocá-lo numa situação realmente incômoda.
Eu já me achava muito adulta com 14 anos, mas ele certamente me
via como uma criança.
Tentei me imaginar no lugar dele. Realmente, eu fui uma idiota
irresponsável, fugindo de casa assim e levando meu irmão junto. Mesmo
que eu estivesse prestes a morrer. Meus pais deviam estar mortos de
preocupação.
No fundo, eu ainda era muito egoísta. Tudo que fiz foi por egoísmo,
não por amor ao Cordeiro ou por desejo de me tornar uma pessoa
melhor.
Eu só estava tremendo de medo da morte e queria um último
consolo.
Eu baixei os olhos.
– Meus pais não sabem... mas não se preocupe. Vai ficar tudo bem.
Eu só quero morrer perto de ti. Tem como me dar a bênção de teus ritos
finais... por favor... senhor?
Eu não sabia mais o que dizer.
O vermelho voltou a escrever.
“É uma situação difícil. Sua Alteza é menor de idade. Não me sinto à vontade
dando seus ritos finais sem a permissão de seus pais.
Mas também entendo que você já tenha idade suficiente para algo assim. A
decisão final deve ser sua. E já que veio até aqui, não vejo porque te negar algo tão
fundamental que é meu dever realizar a todos que me pedirem.
Posso perguntar por que fez uma viagem tão longa apenas para fazer esse pedido?
Eu imagino que Vossa Alteza tenha possibilidade de requisitar os melhores eremitas
negros através dos seus pais”
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“Eu te disse uma vez que não poderíamos mais entrar em contato. Porém, como é
um pedido de ritos finais, irei conceder”.
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Capítulo 3
Estrelas vermelhas.
Cheiro de esperança. Uma forte esperança que nascia em meio ao
caos. O mundo vibrava, tremia. Eu vivia num mundo assim.
Eu queria acreditar que tudo daria certo no final. Que eu poderia ter
um final feliz, mesmo com morte no fim.
Porque a morte não era o fim.
Eu abri os olhos. Aqueles olhos de carne.
Onde eu estava? Por que eu ainda respirava? Por que meu coração
batia? Aquilo não se parecia nada com céu e inferno. Parecia ser um
misto de ambos.
Mundo real. Eu ainda estava nele.
Sentei-me. Abracei o corpo. Eu sentia frio.
Encontrei-me sozinha na barraca em meio à escuridão. Eu a abri e
saí, descobrindo a noite magnífica.
Aquele não era realmente o mundo real. Comparado ao outro, era
apenas pó.
Ainda assim, eu não conseguia deixar de amar o espetáculo das
estrelas. Parecia que em Tarsus as estrelas brilhavam mais.
É claro que era belo. O Cordeiro tinha feito aquilo tudo. Mas eu só
poderia desfrutar plenamente do nosso mundo se o enxergasse à luz do
outro.
Onde estava Lucas? E o vermelho? Havia muitas barracas no
acampamento. Todos dormiam.
Resolvi verificar na barraca imediatamente ao lado da minha.
Simplesmente entrei nela.
Havia um vermelho dormindo no chão duro. Devia dormir sem
nenhum conforto como parte de sua penitência.
Seria “meu” vermelho? O meu salvador.
Eu não estava mais enjoada. A dor de cabeça tinha sumido. Todas as
dores. Não restou absolutamente nada. Eu me sentia mais saudável do
que nunca.
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Ao que parecia, havia uma série de debates teológicos por lá, entre os
vermelhos e os sacerdotes azuis chamados luzeiros. Bem, se os luzeiros
estavam dispostos a ouvir os argumentos deles, não deviam ser tão
intolerantes assim.
Resolvi ler a segunda parte, que tinha a caligrafia do vermelho que eu
conhecia.
“A presciência já resolve uma série de problemas. Deus sabe tudo. Ele vive fora
do tempo. Para ele, não há passado, presente e futuro, mas uma coisa só. Nós,
humanos limitados, vemos o tempo como algo linear. Por isso há essa superstição de
tentar adivinhar o futuro. E se adivinharmos, de que adiantará? É preciso desvendar
o presente e não o futuro, pois o que realmente muda o futuro é o que fazemos agora.
O que se deve fazer agora é entregar-se completamente ao Cordeiro. Quem o
obedece em tudo não precisará se preocupar com nada mais. Inclusive, ele irá
presentear alguns com poderes, de acordo com os dons de cada pessoa. Não é preciso
buscar tais poderes nesses tais „Deuses‟ da natureza. O poder pelo poder é vazio.
Eles possuem Deuses para tudo: o Deus do vento, da colheita, do lar. Eles fazem
oferendas aos Deuses quando precisam de algum favor. Mas por que tantos Deuses se
o Deus único já resolve tudo? É como você disse: eles se dispersam, não sabem o que
querem. Eles mudam de ideia conforme as próprias paixões.
Um Deus com limites e defeitos não serve para muita coisa. O Deus da colheita
só entende de colheita e não vê o quadro completo. Ele é um especialista e não um
generalista. O Cordeiro sabe de tudo, não só da colheita. E sabendo de tudo, ele sabe
muito mais da colheita do que aquele que só enxerga a colheita e mais nada. Porque o
Cordeiro também sabe sobre o Sol que aquece as plantas e a chuva que as molha.
A questão das esposas exemplifica isso bem. Os tarsianos são glutões. Querem ter
demais de tudo: dezenas de roupas caras, quatro esposas bonitas para exibir para os
outros.
Como se pode amar quatro esposas? Acabará por não dar amor o bastante para
nenhuma delas. Mal poderá conhecê-las direito. É como os Deuses: por que dar toda
a sua energia para adorar vários Deuses diferentes se direcionando seu espírito para o
Deus onipotente não é preciso mais nada?
As pessoas são cheias de preocupações e ansiedades com isso ou aquilo: com o
futuro, com o passado, com a conta para pagar, com a úlcera. Elas não percebem que
se entregando totalmente para o Cordeiro a conta e a úlcera não importam mais. Se
tornam problemas pequenos, obstáculos para crescimento.
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Eles querem fazer feitiços para acabar com as doenças em vez de ofertar a dor que
sentem para o Cordeiro. Eles estão completamente confusos e perdidos.
Estão cegos pela tecnologia, por esse conhecimento humano fugaz. Existem até
terras ateístas que acham que não precisam mais do divino e podem resolver tudo por
si mesmos, sem ajuda. Eles são orgulhosos. É o orgulho o que mais nos afasta do
Cordeiro.
Nunca fui para Manisa, mas ouço falar coisas boas. Imagino que lá faríamos
bons amigos e inclusive aprenderíamos muito.
Eu acredito que podemos aprender com os ensinamentos bons das outras religiões.
No entanto, os tarsianos são um exemplo extremo. Eles precisam da nossa ajuda.
Eles acham que não precisam, que estamos nos metendo.
Claro que cada um tem seu livre-arbítrio. Não obrigamos ninguém a nada. Mas
temos o dever moral de comunicar a verdade às pessoas, especialmente em lugares em
que a verdade ainda é apenas um rumor distante”
“Lista de faltas:
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Havia várias daquelas listas de faltas. Pelo jeito ele fazia uma por dia.
Essa era a do dia anterior.
Subitamente, senti uma grande ternura ao ler aquilo. Especialmente
quando li sobre os tomates. Ele não estava sendo duro demais consigo
mesmo? Mas era exatamente o que ele queria.
Nunca pensei que ele fosse tão humano. Sentir fome e sono era algo
simplesmente natural e esperado. Mas ele sentia coisas como raiva e
vontade de rir de besteiras. Seria divertido começar a contar uma piada
atrás da outra e tentar fazê-lo rir. Até que eu sabia umas boas.
Mas era melhor não. Eu não tinha intenção de fazê-lo perder o dia
inteiro lavando pratos.
Eu me perguntava de onde tinham surgido aquelas imagens sexuais
na mente dele. Então até ele era atormentado por isso.
Na idade em que eu estava, eu já entendia certas coisas.
Soprei a chama da vela. Era melhor eu parar de ler as coisas dele. Eu
estava me sentindo culpada. Aquilo era muito pessoal.
Levei um susto quando ouvi um som de ronco, bem baixinho. Olhei
para o lado. O vermelho se moveu no chão, mas ainda estava dormindo.
Acho que ele não conseguia fazer voto de silêncio enquanto dormia.
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Então era assim que vivia um cordeiro sendo preparado para o abate.
Era uma vida difícil. Ele dormia até mesmo mascarado.
Saí da barraca. O céu escuro aos poucos se coloria. Estava
amanhecendo.
Resolvi ficar lá fora e assistir ao nascer do Sol. O Sol surgiu
gigantesco no horizonte. Pinceladas de amarelo em meio ao azul claro.
As pessoas lá já começavam a acordar mesmo antes do amanhecer.
Lucas saiu da barraca ao lado da minha e me abraçou.
– Você também está curado? – perguntei, surpresa.
– Sim – disse Lucas – Jeremias me explicou tudo.
– Shhh!! – exclamei – os outros vermelhos não sabem o nome dele. É
melhor não falar em voz alta.
– Desculpe. Sabia que esse cara super inteligente e disciplinado
também tem poderes? Ou talvez ele os tenha adquirido exatamente por
ser tão inteligente e disciplinado.
– Poderes? Do que está falando?
O vermelho disse em sua carta que o Cordeiro irá presentear alguns
com poderes, conforme os dons de cada pessoa. Então era a isso que ele
se referia?
– Deus deu a ele a capacidade de realizar milagres como recompensa
por sua vida de extrema dedicação e sacrifício.
– Entendi. Ele é um taumaturgo. Ele é perfeito em tudo. Ele tem
uma rotina impecável, vê gálatas, faz milagres e ainda vai sacrificar a
vida pelo Cordeiro.
– Você está com inveja? – perguntou Lucas, estranhando – ele salvou
a nossa vida!
Minha vida não merecia ser salva. Eu era simplesmente indigna.
Eu não queria viver e morrer por ninguém. Apenas por mim mesma.
Eu sentia prazer em comer tomates e não sentia nenhuma culpa nisso.
Uma pessoa como eu nunca poderia conquistar algum tipo de poder
espiritual ou ter a capacidade de enxergar seres celestiais.
– Vim aqui para morrer – falei – e ganhei uma nova vida. Fui salva
pelo poder do Cordeiro. Isso significa que devo dar minha vida por ele?
– Essa é uma escolha sua, Bibi – disse Lucas – o Cordeiro não obriga
a nada. Ele apenas dá, sem pedir nada em troca.
Eu fitei o chão.
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Mas não precisava ser assim. E o vermelho havia nos mostrado com
clareza a verdade.
Eu precisava falar com ele.
Contudo, logo eu descobri que aquilo seria difícil. Ele era muito
ocupado. Tinha muitas tarefas para realizar o dia todo. Muitas delas
envolviam ajuda com limpezas. Eu e Lucas também nos prontificamos a
ajudar, já que estávamos lá no acampamento como visitas.
– Quando vamos voltar para casa? – perguntou Lucas.
– Em breve – falei.
– O pai e a mãe devem estar preocupados.
– Eu sei. Só quero ficar mais uns dias. Queria falar mais com o
vermelho. Perguntar umas coisas.
Ajudar com as limpezas foi muito mais difícil do que eu imaginei. Eu
nunca tinha feito nada daquilo na minha vida. Como princesa, eu tinha
empregados para tudo. Até se eu não quisesse tomar banho sozinha eu
teria uma empregada disponível para passar uma esponja nas minhas
costas.
Tomei banho de balde naquele dia, com uma água gelada, e foi quase
insuportável. Eu não sabia quantos dias ia aguentar naquele lugar. Até a
comida era horrível. Apenas a minha vontade de falar com o vermelho
me permitiria suportar mais alguns dias daquela vida sofrida.
Enquanto eu estava no caminho para Tarsus, eu só tinha um objetivo
em mente: encontrar o vermelho antes de morrer. Por isso não me
importei com a dor e o desconforto. Ironicamente, agora que eu já
estava saudável, cada pequeno desconforto me incomodava de uma
maneira inacreditável. Às vezes eu queria simplesmente gritar de raiva,
especialmente por causa dos odiosos mosquitos.
Nunca pensei que eu fosse uma pessoa que sentisse raiva. Foram só
aparecer os pequenos problemas que eu descobri a minha fúria.
Finalmente consegui uma “audiência” com o vermelho. Ele era tão
popular e o tempo dele era tão requisitado que até uma princesa como
eu precisava marcar horário.
Bem, por lá ninguém sabia que eu era princesa e eu queria que as
coisas continuassem dessa forma ou seria mandada direto para casa.
Ele permitiu que eu entrasse na barraca. Obviamente, não contei
nada sobre minha visita de madrugada ou que mexi nas coisas dele.
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“Esses poderes não são meus. São uma bênção do Cordeiro. Só ele tem o poder de
conceder um dom ou de retirá-lo. Somente o Imolado decide sobre a vida e a morte. Se
ele a queria para si naquele dia, eu não teria o direito de mantê-la.
Ainda assim, rezei pela sua vida. Vossa Alteza é jovem, tem planos e sua
maturidade espiritual ainda não atingiu o ápice. Por isso, intercedi por ti. Agradeça
ao Cordeiro e não a mim.
Fiz o mesmo por seu irmão. Ele é puro. A fé dele o salvou.
Fico feliz de vê-los salvos e em segurança. Agora, só peço que retornem o quanto
antes para Pérgamo. A doença não mais irá tocá-los. Não deixem o rei e a rainha
esperando por mais tempo”
“Aprecio que queira ficar mais para conversar, mas seus pais estão preocupados.
Eu soube que eles já enviaram pessoas para procurá-los. Por enquanto a busca se
restringe aos sete reinos, mas não demorará muito para que eles descubram o navio
que vocês dois pegaram. Sugiro que voltem antes de serem encontrados para evitar
comoção.
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Além disso, vocês conhecem minha identidade. Eu já alertei sobre as regras. Não
é permitido que continuemos a conversar a partir daqui”
“Eu não encorajo essa decisão. Mas se essa é sua escolha e a de seu irmão, não
colocarei maiores impedimentos. A Ordem não foi informada que vocês sabem quem
sou. Eu irei realizar penitência por isso, se é o que quer. Mas depois desses três dias,
peço que não dificulte mais as coisas.
A situação por aqui está mais tensa do que parece. Sugiro que hoje assista a um
dos debates para entender do que falo. Se permanecer, é possível que veja um dos
nossos irmãos serem martirizados nos próximos dias. Imagino que você não deseje
isso”
Era doloroso saber que ele faria penitência devido aos meus
caprichos. Mas eu era egoísta a esse ponto. Eu era como os luzeiros: eu
queria muito de tudo. Queria conforto, mas também queria todos os
ensinamentos espirituais que pudesse arrancar dele. E também queria
saber mais sobre ele.
Mas eu não poderia ter tudo. Na vida é preciso fazer escolhas.
Precisamos nos focar naquilo que é mais importante para nós.
Para mim, era mais importante ouvir mais ensinamentos dele do que
evitar que ele sofresse. Essa era a diferença entre nós: um vermelho se
sacrificaria por outra pessoa. Eu não queria fazer isso. Desejava tudo
para mim.
Eu não sabia de que situação tensa ele estava falando. Os sacerdotes
de turbante azul pareciam calmos e simpáticos. Até ali, eu tinha sido bem
tratada. Eles me deram uma muda de roupas, comida e água. Eu não
conseguia ver aquelas pessoas gentis matando outras, do nada.
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“Vossa Alteza, a morte por enforcamento é uma das mais piedosas. Eles não
matam de maneiras tão doces.
Por aqui, se alguém for decapitado antes disso terá os dedos, as pernas e os braços
lentamente decepados. Quando se é queimado vivo, começa-se pelos dedos dos pés.
E mesmo isso é muito pouco. Algumas formas de tortura podem durar longos
dias. Só não fazem durar semanas porque eles têm mais o que fazer.
Essas pessoas se entediam facilmente. Inventam formas de tortura e morte cada
vez mais cruéis, porque já são indiferentes às mortes sem dor e desafio.
Para um mártir, essa é a melhor morte: lutar contra o Dragão e unir-se ao
Cordeiro, mas isso não é espetáculo para uma princesa. Ainda mais uma tão jovem,
que apenas conheceu a visão da morte uma única vez”
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De que adianta fazer longos jejuns e apenas passar fome? Jejuns só possuem
significado quando atingem a alma.
Você não está pronta para presenciar o martírio de um vermelho. Não ganhará
nada com isso. Apenas sofrimento. O seu espírito não será tocado.
Confusão, depressão, tristeza, choque, delírios. São muitos os sintomas daqueles
que assistem a uma morte cruel sem entenderem aquilo que ela significa. Apenas
perturba a mente sem chegar na alma.
A morte é natural e necessária para que sejamos dignos de receber a outra vida.
Um corpo se despedaça para fortalecer o espírito pelo fogo e pela lâmina.
Aos seus olhos, morte é apenas dor. Você se despedaça por dentro. Você não pode
ver o que nós vemos.
Para nós, ver o irmão martirizado nos traz alegria. Muitos de nós derramamos
lágrimas de felicidade ao ver o irmão sendo despedaçado. Sabemos que ao desprender-
se de si mesmo e estar vazio de si poderá finalmente ser preenchido com o Cordeiro.
A tortura purifica a alma e a morte leva ao céu. Como poderíamos ficar tristes
com isso? Esse efeito é sentido plenamente por aqueles que estão preparados.
Mas você irá se segurar para não sofrer. Para você, a vida é apenas carne e a
morte da carne é o fim de tudo.
Espero ter sido claro. Nós vivemos em mundos diferentes. Você precisa atravessar
a barreira que nos separa para entender. Mas por enquanto você não deseja isso”.
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Mártires Vermelhos
“Não, você não quer. Está dizendo isso da boca para fora.
Se realmente quiser, prove-me. O que está disposta a ofertar ao Cordeiro? O seu
sangue? A sua carne? Os seus ossos?
Ninguém que deseja manter o corpo desse mundo pode chegar no outro. Somente
aquele que aceita perder tudo de si pode se imolar.
Se deseja renascer no mundo dos gálatas é preciso passar pela morte. E não pode
ser qualquer tipo de morte. Toda pessoa experimentará a corrupção do corpo. Mas
nem todos terão a força de largar a carne pelo espírito.
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Nascemos para morrer por ele. Só poderemos viver por ele com a morte”.
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erradas. Devemos fazer tudo que está ao nosso alcance dentro de nossas
limitações, mas sempre visando à perfeição. O nosso objetivo aqui não é
apenas convertê-los, mas que exista uma troca. Aprendemos muito com
os ensinamentos corretos que vocês possuem. Nós apenas pedimos que
considerem tudo aquilo que temos a dizer, como críticas construtivas.
O sacerdote de azul riu alto.
– Não nos subestimem – disse o sacerdote – suas palavras são vazias.
Vocês são especialistas em nos ofender de forma educada e pomposa.
Enquanto isso, nós somos bem diretos e dizemos: nós não os queremos
aqui. Saiam do nosso país. Nós possuímos leis que nos protegem. Nosso
patrimônio histórico e cultural é o futuro das próximas gerações. Eles
devem ser preservados. Vocês querem destruir o nosso futuro não
através de uma forma direta, incendiando nossas cidades pela guerra,
mas de uma forma muito mais cruel: destruindo aquilo que mais
prezamos, aquilo que nossos antepassados nos ensinaram. Vocês fazem
parecer que são bondosos e suaves, mas esse tipo de afronta também é
uma forma de destruição e morte. Se vocês matassem metade da nossa
população, ainda poderíamos nos recuperar e viver como nós mesmos.
Mas se vocês corromperem a juventude com esses ensinamentos
estranhos e estrangeiros, nunca mais nosso país voltará a ser o mesmo.
Será apenas uma cópia imperfeita dos sete reinos, desprovida de
identidade ou espírito.
Uau! Aqueles caras eram bons. Não era à toa que os vermelhos
precisavam se dedicar bastante ao estudo da teologia para poder
confrontá-los.
O vermelho escreveu uma resposta. O branco leu:
– Não temos nenhuma intenção de dominá-los pela cultura,
simplesmente porque não é nossa intenção dominá-los e sim salvá-los. A
verdade é a verdade, independente da cultura na qual está inserida. É
correto dizer que todos somos um produto de nosso tempo. Não
podemos fugir disso. Nós não somos perfeitos, mas viemos para
apresentar a vocês aquele que é perfeito. O Cordeiro sacrificou a si
mesmo por todos nós e queremos espalhar essa maravilhosa notícia.
Todos podemos nos alegrar juntos. Não é preciso fazer mais nada,
apenas adorar o Cordeiro em toda sua glória. Todo o resto é supérfluo.
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Mas eu não deveria ver as coisas dessa forma. Por um lado, havia um
pouco de teatro sim. Mas por outro os vermelhos se esforçavam por
tecer bons argumentos e tinham a real vontade de tentar convertê-los,
mesmo sabendo que aquilo era quase impossível.
Talvez os azuis não pudessem ser convertidos por meros
argumentos. Aquilo que poderia convertê-los de verdade era ver o quão
longe os vermelhos estavam dispostos a ir para defender a fé deles.
Como alguém poderia fazer aquela loucura por uma fé falsa? Eu
duvidei que os azuis, presos a seus prazeres como eram, estariam
dispostos a morrer sob tortura apenas para defender sua fé. Eles não
fariam isso, porque gostavam demais desse mundo para deixá-lo antes
que o próprio corpo caísse na corrupção.
Já era muito tarde quando os gritos terminaram. Eu finalmente tive
coragem para abrir a barraca.
– Não olhe para a fogueira – avisei meu irmão.
Eu também não ia olhar. Talvez eles já tivessem recolhido as
relíquias, mas eu não queria arriscar.
Eu espiei a barraca do Jeremias.
– Senhor... mártir? Podemos conversar?
Eu nunca sabia direito como me referir a eles.
O vermelho estava muito concentrado em alguma coisa. Mas
interrompeu o que estava fazendo para escrever para mim:
“Estarei ocupado pelo resto da noite. Não dormirei essa madrugada, pois será
ocasião de vigília. Mas podemos conversar um pouco antes disso, se for breve.
Eu vi que você e seu irmão saíram de lá antes de começar. Foi uma boa escolha.
Não teriam gostado de assistir. Chocou até a mim”
O que ele queria dizer com “chocou até a mim?”. Pensei que ele
estivesse completamente preparado para vê-los completar seus destinos
como mártires.
Sentei-me e aguardei que ele terminasse de escrever outra mensagem
que ele havia começado a rabiscar.
“Aquele que morreu era meu mestre. Foi ele que me guiou ao longo desses três
anos. Ensinou-me tudo que sei. Ele era extraordinário. Muito mais forte que eu. De
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origem muito humilde. Os pais dele eram pobres camponeses. Ele já passou fome e
muitas privações. Foi um autodidata. Aprendeu a ler e escrever sozinho.
Ele aprendeu e viveu coisas durante a sua dura vida que eu jamais poderia
experimentar como nobre. Eu acho valioso essa troca que existe entre nós.
Aprendemos muito uns com os outros, exatamente porque cada um de nós vem de
lugares muito diferentes”.
“Para mim o Cordeiro é a única verdade. Todos que vivem pelo Cordeiro são
meus irmãos. Eles já estão no caminho correto, rumo à salvação. Por isso, devo morrer
não pelos servos do Cordeiro, mas pelos hereges. Nós não estamos nos martirizando
aqui para salvar a nós mesmos, mas por compaixão pelos luzeiros.
Existe uma troca entre nós, mas é uma troca muito mais de espírito do que por
palavras. Nós nos conectamos aos luzeiros pelo espírito quando morremos pelas mãos
deles. É esse tipo de conexão com eles que buscamos: a do torturador e a do torturado.
Nós mártires vermelhos não temos permissão para revelar nossa identidade uns
para os outros. No entanto, conversas assim acabam por escapar brevemente através
dos anos. Tudo o que sei sobre ele são apenas pequenos pedaços de conversa que
eventualmente escaparam. Não sei a fundo sobre a vida de meu mestre”
“Chorei de alegria e emoção, mas também chorei de medo e saudade. Esse é o ser
humano, princesa Bibiana, não importa o quão elevado seja. Nós também somos
corpo e sentimentos.
Eu sabia que ele estava sentindo dor e medo, mesmo que junto a isso sentisse a
melhor sensação do mundo: a libertação de seu espírito. Todo esse mar de sensações
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deve estar conosco antes do fim. Eis nosso destino. Nem o próprio Cordeiro foi
poupado disso.
Amanhã será minha vez de defender a fé. Por isso não dormirei. Deverei preparar
meu espírito e torná-lo como rocha. Não aceitarei nada menos que isso”
Eu levei um susto. Era inacreditável saber que ele tinha chorado, mas
eu me assustei muito mais com a última informação.
– Você será martirizado amanhã? – perguntei, chocada.
“Estou tremendo. Sempre esperei por esse dia. Vivi até hoje apenas para me
preparar para amanhã: o glorioso encontro com o Imolado.
Quero imitá-lo. Foi tudo que sempre quis. Eu quero seguir meu mestre. Ele está
esperando por mim.
Galácia estará comigo por toda a madrugada. E ele também estará comigo ao
longo de todo o martírio. Será ele que carregará meu espírito para o céu num globo de
fogo”
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“Não seja tola. Sabe que não estaria preparada para algo assim. Você morreria
por nada. Só deve se martirizar aquele que aprendeu a ofertar a própria dor ao
Cordeiro. Morrer pelo prazer da morte ou medo da vida é uma ofensa grave”
“Irei verificar isso agora mesmo. Peço que espere aqui. Logo voltarei”
“Não tenho posses, não tenho o que deixar para trás. Por isso, nesse testamento
apenas informarei o destino que desejo para minhas relíquias.
Como servo do Cordeiro, não devo desejar nada. Não devo apegar-me ao meu
corpo, de modo que meus restos mortais deverão ser enviados para onde o Imolado
desejar que devem ir.
Contudo, se isso for possível, gostaria que minha cabeça fosse enviada de volta à
minha família, para meus pais. Meu torso deverá ir para Mateus, filho do marquês
de Van. Sobre minhas pernas e braços não há destino certo. Creio que um dos
membros poderia ser enviado para a família real de Pérgamo.
Qualquer decisão final a esse respeito deverá ser tomada por O.M. 10060. Ele é
de minha inteira confiança.
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“Consegui alguém para acompanhar o príncipe Lucas. Ele será escoltado logo
pela manhã. Eu também já comuniquei isso ao príncipe, que está de acordo”.
Fiquei aliviada.
– Acho que já estarei preparada para voltar para Pérgamo na manhã
seguinte ao seu martírio – informei a ele – pois sem você aqui, não terei
mais nada a fazer nesse lugar.
A próxima mensagem dele foi bem curta:
“Pretende assistir?”
– Quero ter a coragem para ver até o fim – eu disse – você quer que
eu veja?
Ele escreveu:
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Wanju Duli
“Minha vontade é a vontade do Cordeiro. Se ele quiser que você veja, que assim
seja”.
“Ouvi-la dizer algo assim me traz uma imensa alegria. Por favor, faça isso.
Auxilie não só os pobres de corpo, mas de espírito. E lembre-se que estarei te
assistindo do outro mundo e velando por você. Quando precisar de ajuda, reze para
mim. Farei tudo o que estiver a meu alcance”
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Mártires Vermelhos
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Wanju Duli
vida que esse santo Deus Cordeiro lhes deu. Isso é justiça? Isso é
bondade? Colocar lágrimas nos olhos dos pais de vocês e abandoná-los a
ter uma velhice solitária?
Ele estava apelando para o emocional. Ele era bom nisso.
Jeremias começou a escrever. Imaginei que ele estaria suando de
nervosismo por baixo daquele manto. Ou será que, após passar a
madrugada com o gálata, foi capaz de conquistar uma paz sobrenatural?
O rapaz de manto branco leu a mensagem dele:
– Caro sacerdote, você é muito sábio e tem o meu respeito. Estou
certo de que sabe que uma vida não se conta em anos. De que adianta
gastar cem anos venerando a si mesmo? É isso o que eu chamo de jogar
a vida fora. Desperdiçar a vida é viver apegado a ela a tal ponto de
mesmo com a pele enrugada, ossos quebradiços e vista fraca ainda não
ter aprendido a deixar a vida para trás. Em certo ponto devemos ser
maduros o bastante para dizer que já chega. Aquele que ignora o criador
e destruidor do mundo não sabe nada. Minha vida não veio dos meus
pais. Ela veio do Cordeiro. Meu espírito não é propriedade de meus pais,
mas possui um único Senhor: o Imolado, que poderá fazer dela o que
quiser. Sou o escravo absoluto de um ser muito maior que eu e que
possui uma sabedoria muito superior a minha. Você pensa que possui
poder sobre mim: o poder de me matar ou de me deixar viver. Contudo,
somente o Senhor tem essa força. Se aos 65 anos ainda não
compreendeu uma verdade tão fundamental, sua vida foi em vão. Mas
nunca é tarde para dobrar os joelhos e se arrepender.
– Maldito insolente! – berrou o sacerdote – em sua terra não ensinam
o respeito aos mais velhos? Vocês são apenas um bando de moleques
entediados. Cansaram da vida. Acharam tudo vazio. Desejam morrer por
um ideal maior do que vocês mesmos, mesmo que seja um ideal
inventado. Vocês vivem por uma mentira. São apenas masoquistas. Se
orgulham tanto de suas penitências, vestidos de saco e comendo pó! De
que isso adianta? É tudo um jogo para vocês. Os jovens zombam da vida
para irritar e desafiar os adultos. Qual é a diferença entre fazer o que
vocês estão fazendo ou morrer de uma overdose de prazer? Vocês estão
tomados de orgulho por si mesmos. Se acham superiores a qualquer um.
Pensam que estão acima de todos. Então vocês inventaram esse ser
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Mártires Vermelhos
chamado “Cordeiro”. Qual o problema que ele seja maior que vocês
mesmos se ele não existe? Quem adora a si mesmo são vocês.
Ah, que debate delicioso! Eu daria a minha vida e a minha alma para
saber a resposta de Jeremias. Senti que ele responderia de forma sublime:
– Eu sou jovem e tolo, senhor. Nisso você está certo. Mas perto da
sabedoria suprema do Cordeiro, todos somos tolos e como crianças.
Nada daquilo que faço vem de mim. Eu não poderia dar sequer um
passo se o Cordeiro não me desse sua força. Eu não busco nada mais
que a verdade. Como posso me orgulhar do que sou se tudo que fiz foi
obedecer? Eu não inventei nada do que sou. Apenas fiz o que meu
Senhor me ordenou, como um escravo obediente. Meu corpo e meu
espírito são todos dele. Sou sujo e baixo. Eu vejo minhas falhas e não me
acho digno. Só faço penitências para esvaziar-me de mim mesmo e
encher-me de Deus. Todo o resto é vão. Comer ou não comer, vestir ou
não vestir. Essas coisas simplesmente não importam. Tudo é puro aos
olhos do Imolado. Por outro lado, até a mais pura criação do Senhor se
torna impura quando é usada para servir a nós mesmos. Como o
Cordeiro pode ser inventado se ele é incriado? As coisas inventadas são
os valores meramente humanos. O Cordeiro transcende o entendimento
humano e não pode ser entendido por nossa razão. Por isso ele é o que
é. O seu não entendimento do Cordeiro prova que ele está acima da
razão dos homens e não veio dos homens.
O sacerdote estava cada vez mais irado. Estava muito claro que
Jeremias não escaparia com vida. Era apenas questão de tempo. Desde
seu primeiro pronunciamento, o vermelho já encheu-o de ódio.
– Essa é a coisa mais absurda que já escutei – disse o sacerdote – seu
Deus é incompreensível porque ele é absurdo e não porque está acima
da razão. Todos os seus atos e palavras são ilógicos porque isso tudo é
insano. Vocês pensam que todo esse universo infeliz que construíram
possui uma consistência interna. Mas esse outro mundo de que falam é
um atentado contra a vida. Uma negação da existência. De que adianta
uma filosofia que prega a morte? Ela é vazia e sombria. Vocês dizem que
são mais felizes que qualquer um, mas estão apenas enganando a si
mesmos. Para quem não come nada por dias, comer um grão de arroz é
uma grande felicidade. Essa é a vida que vocês moldaram para si: uma
grande enganação. Vocês se enchem de extrema dor para encontrar o
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orgulhosos! São vocês que não passam de insetos, estrangeiros sujos que
vieram cuspir em nossa terra e em nossa cultura milenar. Há quantos
anos existem os sete reinos? Dois mil anos? Três mil anos, no máximo?
Pois Tarsus já conta mais de dez mil anos. Você diz que seu Deus é
eterno, então por que ele demorou tanto para mostrar-se?
Jeremias ergueu-se do chão. Endireitou-se e voltou a escrever. O cara
de branco leu:
– Segundo o velho adágio, o Cordeiro demorou para vir porque
estava construindo o inferno para quem fizesse essa pergunta. Mas
deixando a piada de lado, o Cordeiro está fora do tempo. Ele criou o
tempo. Antes de ele criá-lo não existia nada. Para ele, dez mil anos são
como um sopro. Vocês olham para as estrelas para tentar ver o futuro,
mas foi o Cordeiro que posicionou as estrelas. Há um gálata segurando o
Sol e outro segurando a Lua. Você acha que o Sol nascerá amanhã? Essa
é uma certeza para os tolos. Virá o dia em que o Cordeiro dirá: “Que se
exploda o Sol” e ele não mais existirá. Também virá o dia em que ele
falará: “Que as estrelas caiam” e todas elas cairão nos mares e irão
envenená-lo com sangue e fogo.
O sacerdote começou a rir descontroladamente.
– Vocês não trouxeram um mártir, mas um poeta. Infelizmente, você
está desperdiçando seu talento com teologia ruim. Eu quero toda essa
poesia que ele escreveu em minhas mãos. Irei guardá-la. Os
ensinamentos são péssimos, mas as palavras têm a sua beleza.
– Senhor – disse o cara de branco, agora por si mesmo – tudo o que
os vermelhos escrevem é guardado em nosso arquivo. Não podemos
entregar nada.
– E depois vocês se julgam desapegados das coisas do mundo? –
zombou o sacerdote azul – são apenas pedaços de papel. Estamos aqui
generosamente gastando nosso tempo com vocês e não teremos acesso
nem mesmo a essas folhas manuscritas?
– Você pode chamar um copista para copiá-las, mas exigimos guardar
as originais.
– Eu exijo as versões manuscritas – disse o sacerdote azul.
Eu fiquei boquiaberta. O sacerdote azul estava brigando para guardar
os textos que o Jeremias havia escrito. Aquilo estava mesmo
acontecendo?
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Eu também estava perto o bastante para ver, embora não tão perto
quanto o azul. Jeremias era extraordinariamente parecido com seu irmão
mais novo. Porém, seus cabelos eram um pouco mais cacheados e
longos, pouco abaixo dos ombros. Sua pele ligeiramente mais escura.
Além disso, ele era espantosamente mais magro. Apesar disso, ainda
tinha um certo encanto, principalmente no brilho dos seus olhos, que
mostravam vida e determinação.
Eu fiquei fascinada com o olhar dele. Jeremias encarou o sacerdote
azul diretamente, sem mostrar medo nenhum. Na verdade, se eu fosse o
azul ficaria completamente apavorado se alguém olhasse para mim
daquele jeito. Não era ódio: era uma seriedade suprema.
– Que menino mau! – exclamou o sacerdote azul, com um sorriso
irônico – quantos anos você tem, minha criança? Quinze? Onde estão os
seus pais? Ou você é produto daqueles porcos que você falou? Não tinha
comida suficiente no curral? Os seus pais não te alimentaram direito?
Merda. Ele não iria apenas matá-lo. Iria humilhá-lo. Iria provocá-lo
para que ele retrucasse alguma coisa, mas Jeremias não podia falar nada.
Se ele falasse, romperia uma regra da Ordem e o sacerdote azul venceria.
O sacerdote tocou no rosto dele com o dorso da mão.
– Você está bem? Parece meio doente. Sua pele está com uma cor
meio amarela... ou seria verde? Eu poderia te emprestar um creme.
O azul cuspiu no rosto dele. Jeremias não expressou a menor reação.
Ele tocou nos cachos dele com os dedos.
– Você já lavou alguma vez esses cabelos sebosos? Qual é a utilidade
de ter cabelos se você está sempre de capuz? É mais uma de suas
penitências? Mas até que está bem barbeado. Queria estar sem barba
para sua execução? Em nosso país, a barba representa respeito e
sabedoria. Mas você certamente não sabe nada sobre essas coisas.
Por que ele não o matava de uma vez? Eu não sabia por quanto
tempo eu ia aguentar ver aquilo.
Era uma coisa sem sentido. Por que os azuis se rebaixavam a esse
ponto? Ao tentar humilhar os vermelhos, eles humilhavam ainda mais a
si mesmos. Mostravam que eram como crianças mimadas que não
sabiam perder.
Ou será que as crianças eram os vermelhos que invadiam o país dos
outros e perturbavam seus residentes sem serem convidados? Eu não era
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capaz de ver nenhum inocente ali. Por que aqueles dois grupos de
pessoas não viviam suas próprias vidas ignorando que o outro existia?
Mas não era assim que vivíamos nos sete reinos? Cada família
fechada em si mesma, casando seus filhos com o clubinho favorito de
famílias nobres, esquecendo completamente que havia outras pessoas no
mundo: aqueles que eram diferentes deles.
Eles sabiam que unir pessoas com pensamentos diferentes ia gerar
briga. Talvez até uma guerra. Será que o medo de perder o corpo devia
ser maior do que a vontade de buscar a verdade?
Mas aquilo não era uma busca da verdade. Era só um confronto
gratuito. Será que algo realmente bom podia nascer daquele teatro
trágico? Eu não tinha esperanças. Mas Jeremias precisava ter se queria
aguentar tudo aquilo até o final sem perder a dignidade.
O sacerdote azul rodeava Jeremias lentamente, analisando-o de cima
a baixo. Era um momento tenso. Eu não sabia o que ele queria fazer.
– Aquela sua última observação sobre os porcos – comentou o azul –
você odeia comida e sexo tanto assim? Comida eu posso ver que você
odeia. Você está só pele e osso. Será que você ainda consegue satisfazer
uma mulher, magro como está? Ainda consegue fazer seu sangue circular
para seu membro subir? Pelo jeito está faltando sangue em todos os
lugares, principalmente no cérebro. Chamem as prostitutas.
Quê? Eles tinham prostitutas no acampamento? Os sacerdotes?
Em pouco tempo chegaram cinco mulheres belíssimas, com roupas
muito arrumadas, cheias de enfeites e maquiagem. Elas já chegaram
rindo e tocando no Jeremias.
– Então esse é o rosto de um vermelho? – disse uma delas – parece
uma caveira.
– Vamos te fazer gozar no seu leito de morte – disse outra, em tom
sombrio – você devia nos agradecer de joelhos.
Elas pegaram facas e rasgaram o manto dele. Tiraram tudo e
deixaram-no completamente nu.
Eu fechei os olhos e rezei. Mas eu não conseguia me concentrar,
porque aquelas mulheres não paravam de falar putaria.
Eu corri de lá. Enfiei-me na minha barraca e tapei os ouvidos.
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Ele não aguentou. Não foi capaz de manter o voto de silêncio. Cada
vez que Jeremias dava um grito alto, os azuis celebravam.
– E agora o grande prêmio – disse o sacerdote azul – a cabeça. Ela
será minha.
– O gálata traz a morte porque ela não é o mal – bradou Jeremias – a
vida só é recebida pela morte e para os servos do Imolado a morte é
grande sorte. Aquele que vive em veneração de si mesmo já morreu
ainda em vida.
– Isso é uma reza? – perguntou o sacerdote de azul, maravilhado –
ele finalmente falou! Essas são suas palavras finais?
– Não – disse Jeremias – são as suas. O inferno não está no outro
mundo.
O sacerdote de azul decepou a cabeça de Jeremias. No exato instante
que fez isso, seus dois braços que seguravam a espada também foram
decepados, seguidos de sua cabeça.
Os braços de todos os que seguravam uma das relíquias de Jeremias
foram decepados e suas cabeças explodiram numa chuva de sangue. Isso
ocorreu a umas dez pessoas.
Diante de mim estava a criatura mais magnífica que minha
imaginação jamais seria capaz de conceber por si mesma.
Era um corpo de luz semelhante ao humano flutuando no ar. Ele
tinha três cabeças que eram como o Sol. Três pares de asas coloridas. Ele
tirou uma espada de dentro da boca. Foi com ela que arrancou os braços
de todos os portadores das relíquias.
A criatura alada gritou. E seu grito tinha o som de um trovão.
O céu tornou-se escuro. O dia tornou-se noite. Uma chuva
arrasadora varreu a terra. Uma chuva de pedras.
Ao meu redor, quase todos gritavam. Os sacerdotes azuis fugiram
correndo, aos gritos e com imenso desespero.
Dois dos vermelhos ao meu redor também morreram, atingidos na
cabeça por pedras que caíam do céu.
Eu me ajoelhei. Não consegui me mover. Se aquele fosse o momento
do julgamento divino, eu certamente morreria.
Aquela calamidade ainda durou alguns minutos. Até que, de repente,
tudo parou.
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– Obrigada!
Corri para a barraca e reuni meus poucos pertences. Mas antes de
sair, eu ainda entrei uma última vez na barraca do Jeremias.
Eu não sabia se eu podia fazer aquilo, mas eu peguei uma das folhas
dele e guardei comigo. Acho que só uma folha não faria falta. Eles nem
iam reparar quando fossem reunir os escritos de Jeremias para
acrescentar nos arquivos deles.
Vinte minutos depois, segui o vermelho. Caminhamos em silêncio
por um tempo. Pegamos os dois juntos uma carona num carro de boi.
Seria impossível seguir a regra dos dois metros naquele carro apertado,
então eu fiquei mais próxima do vermelho do que era permitido.
Depois ele ia ter que fazer penitência por minha causa. Coitado.
– Está feliz por seu amigo ter ido para o céu? – perguntei.
Ele escreveu alguma coisa em seu bloco de notas e me mostrou:
“Todos estão felizes. Galácia levou-o em segurança. O gálata nos disse que o
mártir nos aparecerá em visões mais tarde”.
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Ele escreveu:
“Não foi essa a razão. Eles foram simplesmente martirizados mais cedo. O
Cordeiro levou-os para si porque eles já estavam preparados”
“Quanto a isso não sei. Não se deve julgar essas coisas. Só o Cordeiro sabe quem
cai no céu ou no inferno. Alguns vermelhos podem cair no inferno e alguns azuis
podem cair no céu. O coração de cada um é um mistério desvendado somente pelo
Imolado. Os bons e os maus não são tão facilmente discernidos”.
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“O.M. 10091 era uma figura. Eu gostava muito dele. Agora ele está onde eu
quero estar. Espero encontrá-lo em breve”
“Devo partir o quanto antes. Posso ficar no máximo três dias. Depois disso,
realmente terei que partir”
Ele não tinha que partir coisa nenhuma. Ele só queria ir embora
porque estava ansioso para morrer, como todos os outros.
Mesmo assim, tentei tirar o máximo de conhecimento dele que
consegui naqueles três dias. Pedi que ele me desse aulas de longas horas,
que foram muito proveitosas.
Logo que voltei para casa já tive que retomar minhas aulas. Eu teria
que estudar muito para recuperar a matéria perdida.
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Aquilo era tudo muito chato. Depois de ver tudo o que vi, eu estava
muito distraída em relação aos meus estudos. Já não estava tão
interessada neles.
Eu não precisava ser uma aluna modelo. Bastava passar de ano. Eu já
tinha meu futuro garantido, me casando com algum príncipe. A questão
das notas era só para me exibir. Se eu tirasse boas notas, eu talvez
conseguisse conquistar a atenção de um príncipe mais rico.
E de que isso me importava depois de tudo que vivi? Qualquer
príncipe servia. Eu não tinha a ambição por poder das minhas irmãs. Por
que eu precisava perder meu precioso tempo me dedicando a estudos de
coisas que não importavam se aprender teologia era tão mais
importante?
Descobri que o tal O.M. 10060 era muito inteligente. Ele sabia
responder qualquer coisa que eu perguntava sobre teologia caliciana
como se tivesse engolido um livro.
Foi então que descobri que esse era o misterioso mártir que Jeremias
mencionou uma vez, que sabia as cinco mil páginas dos Selos de cor!
Fiquei maravilhada. Eu tinha uma enciclopédia viva diante de mim. Eu
me tornaria imensamente sábia com um professor como ele.
Quando os três dias se passaram, o vermelho me informou que
deveria partir.
Mas eu já tinha perdido Jeremias. Não queria perder outro vermelho
para a morte. Eu precisava dar um jeito de impedir sua partida.
Na verdade foi bem fácil. Mandei que ele entrasse num cômodo da
casa e o tranquei lá. Somente eu tinha a chave.
Meus pais descobriram o que fiz somente dois dias depois e brigaram
comigo.
– Eu quero esse vermelho para mim! – exclamei – quero um
vermelho como professor de religião. Não aceito um mero acadêmico.
Aprendo mais com um vermelho em um dia do que aprendo com um
acadêmico em um mês!
E dei uma série de argumentos tentando provar ao meu pai a
importância de eu ter aulas de religião todo dia com um vermelho. Sendo
assim, eu precisava mantê-lo no castelo por tempo indeterminado.
– Só irei permitir isso se suas notas não caírem – disse minha mãe.
– Combinado – falei.
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– Querida, você já perguntou para esse vermelho se ele aceita ser seu
professor? – perguntou meu pai.
É claro que nenhum vermelho ia querer ficar preso no meu castelo e
fazer algo tão mundano como dar aulas para a princesa. Todos eles
queriam partir para terras selvagens e distantes para serem martirizados
de formas horríveis e heroicas.
Eu estava estragando tudo. Sabia disso. Mas eu disse ao vermelho que
seria uma boa oportunidade para ele fortalecer a virtude da paciência.
Eu tive muita sorte, pois aquele vermelho era inacreditavelmente
educado. Ele me escreveu o seguinte:
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Capítulo 4
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– Que horror! – exclamou Sara, sem nem querer pensar nisso – nem
fale essas coisas! De que adianta conquistar muita saúde e riquezas
através desses poderes se perdermos nossa alma?
Era como Jeremias tinha dito: o poder pelo poder era vazio. Os
calicianos que recebiam poderes geralmente não pediam por eles. O
Cordeiro presenteava as pessoas conforme queria, de acordo com as
virtudes de cada espírito.
E, assim como o Imolado dava, também podia tirar. Então ter ou não
ter poderes não importava. Havia somente uma coisa que devíamos
ofertar nossa vida para não perder: a fé. Separar-se do Cordeiro era
morte. Uma morte espiritual muito pior que a morte física.
Também contei a elas sobre a tortura de Jeremias e o momento
extraordinário da aparição do gálata.
– Você viu o gálata? – perguntou Sara, impressionada.
– Sim, por um breve momento – respondi – mas acho que ele já
estava lá o tempo todo. Desconfio que só fui capaz de vê-lo porque ele
escolheu mostrar-se a todos naquele instante. Não acho que eu já tenha
reunido méritos suficientes para ter uma visão como essa.
– Significa que nem todos que estavam lá o viram? – perguntou Sara.
– Parece que nem todos os azuis que restaram vivos puderam vê-lo –
falei – alguns só correram quando viram os outros azuis morrerem e a
chuva de pedras.
Isso me deixava intrigada. Talvez eu tivesse sido abençoada pela
breve visão porque eu realmente mereci. Mas eu não entendia direito
essas coisas.
Eu sabia que no fundo eu não devia buscar coisas como visões. Mas
eu era uma adolescente. Estava curiosa e empolgada com tudo aquilo,
como minhas duas amigas. É claro que gálatas e curas eram tópicos
empolgantes para nós.
Provavelmente as pessoas espiritualmente avançadas como os
vermelhos estavam mais interessadas em ajudar os outros e purificar a si
mesmos não porque queriam obter visões, poderes ou qualquer
vantagem com isso, mas simplesmente porque fazer tudo isso eram
coisas boas por si mesmas.
Era como o mundo: quem queria viver pelos prazeres do mundo,
perdia esse mundo e também o outro. Mas quem virava as costas para os
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– Será que agora que ele morreu o irmão dele concorda em soltar
algumas informações sobre ele? – perguntou Paula.
Eu duvidava disso, mas nós três fomos procurá-lo no intervalo.
– Tem certeza de que você não está mais doente? – perguntou o
rapaz, se afastando um pouco, como se pudesse ser contaminado ao
chegar muito perto de mim.
– Estou totalmente curada – garanti a ele – graças ao seu irmão.
– Então você o encontrou.
– Sim. Eu o vi ser martirizado. Você quer que eu fale sobre isso?
– Não – ele baixou os olhos – já recebemos uma carta formal da
Ordem. Só lamento que as relíquias tenham se perdido.
Quase perdi o fôlego olhando para aquele rapaz. Era quase como ver
Jeremias revivido.
Mas fora a aparência, os dois pareciam ser muito diferentes. Elias
tinha medo de pegar uma doença. Jeremias correria para tentar contraí-
la.
– Você também é religioso? – perguntei, curiosa.
– Recebemos educação religiosa moderada desde o berço – ele
respondeu – mas eu nunca me interessei tanto por religião quanto ele.
– Ficou orgulhoso quando seu irmão decidiu ser mártir?
– Todos odiamos – ele respondeu – quando não se tem uma fé tão
grande, é horrível saber que quem você ama decidiu partir para outro
mundo.
– Ele sempre amou religião tanto assim?
– Nem sempre – respondeu Elias – ele já fez coisas bem mundanas
no passado. Mas eu não darei detalhes sobre isso. Na verdade, nem
devíamos estar tendo essa conversa. Você sabe que nossa família jurou
sigilo mesmo após a morte dele.
Eu sabia disso. Mesmo assim, fiquei contente com as poucas
informações valiosas que obtive naquela breve conversa.
Quando nos despedimos, eu fiquei pensativa. Nas últimas semanas
minha vida se resumiu a desejar conversar mais com aquele vermelho.
Eu o chamava para a minha casa e fui atrás dele até mesmo em outro
continente.
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– Viva! – celebrei – eu ainda não sei falar muita coisa em sinais. Sou
muito ruim com isso. Essa linguagem se chama “galatiano”, embora eles
não a usem para se comunicar com os gálatas.
Ele escreveu:
“Sobre a nossa linguagem de sinais secreta eu não posso dar detalhes. Só posso
dizer que se chama „galac‟ e que possui semelhanças com o galatiano. O galac tem
mais de dois mil anos e trata-se de uma língua complexa e muito mais refinada. Nós
só a usamos para nos comunicar entre nós, mártires. No entanto, existem leigos
acadêmicos ou místicos que desejam se iniciar em certos mistérios de nossa Ordem e
para esses ensinamos o galatiano, que é uma variante mais simples do galac, bem
mais fácil de aprender.
É claro que o galatiano tem menor riqueza linguística, mas serve bem ao
propósito de comunicação. Para quem entende galac é muito fácil compreender a versão
mais simples da língua. Mas o contrário não é verdadeiro. Quem conhece a versão
simples pode até entender uma ou outra palavra que nós mártires usamos. Mas não
entende mais que isso”.
“Nós temos três graus na Ordem dos Mártires. O terceiro grau são os leigos que
desejam realizar algumas de nossas penitências e aprender mais a fundo nossa
doutrina. Eles não têm autorização para fazer nossas mortificações mais rigorosas. A
eles ensinamos o galatiano. O segundo grau são uma classe de „meio monges‟ que
levamos conosco para as terras que viajamos. Eles usam um manto branco e não
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podemos ajudar ainda mais. Após ver Deus face a face recebemos muito mais
capacidades para dar consolo aos seres desse mundo”
“O mártir leigo de terceiro grau deverá jurar que pelo resto da vida assistirá às
celebrações religiosas dos dourados todos os dias. Ele deve rezar e ler os Selos todo dia.
E também deverá realizar doações diariamente para os pobres, de comida, roupa,
medicamento ou doar uma parte de seu tempo. Além disso, a cada semana ele irá
selecionar uma penitência, como abster-se de doces, fazer um jejum só com água no fim
de semana e deixar para trás muitas pequenas coisas. Tudo isso é feito sob a
orientação de um diretor espiritual. Os leigos podem se casar ou ser solteiros”
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comum que havia nos diferentes idiomas dos reinos. Era como aprender
as “regras do jogo”, então era bem interessante e estimulante.
A quinta língua que eu sabia era uma coisa extremamente chata
chamada “pompena”. Era uma antiga língua da realeza que eu era
obrigada a estudar aos sábados. Ela foi criada por um erudito idiota que
não tinha mais nada para fazer. Seu objetivo era dar às famílias reais mais
um motivo para se exibir. Ela não era secreta e nem nada, mas era
exageradamente complicada.
Havia línguas complicadas de uma forma boa, que tinham uma lógica
emocionante e geravam um desafio. Mas pompena foi um idioma criado
por uma única pessoa cujo objetivo era ser pedante. Então ele inventou
centenas de declinações ridículas. Não havia nenhum motivo para
aquelas coisas existirem e não enriqueciam a língua em nada. Apenas a
tornavam difícil pela simples vontade de torná-la difícil de aprender.
Isso significava que ninguém ia perder tempo para aprender essa
língua por hobby. Então, literalmente, só os reis e príncipes a conheciam
porque eram obrigados a aprender aquela porcaria e no fundo ninguém a
sabia falar direito. Só fingíamos que sabíamos. Acho que a única pessoa
que soube falar pompena com perfeição foi seu criador.
Uma das coisas que mais me irritava quando havia encontros entre
famílias reais para chás de noivados era os reis se cumprimentando em
pompena e falando frases de efeito nesse idioma. Lembro que essa era a
coisa que mais fazia Gus revirar os olhos e ter vontade de pular da janela.
Eu apenas ria.
Augusto. Nossa, que saudades dele! Meu pai todo ano dava desculpas
dizendo que estava ocupado demais para que viajássemos para Tiatira.
– Quais são os dez idiomas que você sabe? – perguntou Sara.
O vermelho escreveu:
“Não posso dizer. Se eu respondesse, vocês saberiam minha origem. Como regra
da Ordem, não posso revelar minha identidade”
Ele era um nobre, sem dúvidas. Não havia como esconder isso. Um
camponês podia até aprender a escrever outra língua além da língua
geral, mas eu duvidava muito que chegasse a aprender dez.
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Para mim, ver dourados não era nada muito emocionante. Eu os via
todos os domingos e os achava pessoas muito comuns, embora
excepcionalmente inteligentes, que apenas liam e celebravam ritos.
Os eremitas negros já eram mais misteriosos, mas o pensamento de
apenas ficar rezando sem fazer mais nada parecia muito entediante. Eles
também faziam algumas mortificações como jejuns ou até usavam o
cilício, mas nada de arrancar muito sangue.
Dos três, eram os vermelhos que mais me atraíam. Geralmente os
jovens ficavam mais fascinados com os vermelhos porque eles levavam
uma vida bem dramática: rituais com sangue, a vida dedicada para se
sacrificar aos outros. Parecia um ideal nobre.
– Como foi que você decorou tantos livros? – perguntou Paula.
Ele escreveu:
“Quando eu era bem pequeno, eu já lia os livros religiosos várias vezes seguidas.
Fiz isso por toda a minha infância como passatempo, sem a intenção de decorá-los.
Aos poucos fui sabendo de cor passagens inteiras. Eu as recitava para os adultos e
eles ficavam impressionados. Por isso, eu quis decorar cada vez mais, para que eles me
elogiassem.
Eu era realmente muito novo, então acho que não devo ser duro demais comigo
porque meus motivos para decorar os Selos não foram exatamente nobres. Mesmo
assim, aos poucos fui descobrindo sozinho boas técnicas para decorar coisas. Fui
inventando meus próprios meios de fazer isso, até que se tornou algo muito natural.
Nós normalmente não notamos o incrível potencial da mente porque a
desperdiçamos dando atenção a coisas que não importam. Se parar para pensar,
sabemos de cor milhares de coisas banais, por mera exposição repetida. Não fizemos
grandes esforços para sabê-las.
É assim que decoro a maior parte dos meus livros: mera exposição repetida.
Muito do que decorei veio naturalmente e não de forma forçada. Outras coisas eu
acabei me induzindo a decorar.
Claro que não sou perfeito. Eu cometo erros, assim como qualquer outra pessoa,
mesmo em coisas que já decorei há muito tempo.
E como sou natural nisso, para mim não foi tão difícil aprender línguas. Quanto
mais você entende a lógica que existe por trás dos textos e das línguas, mais fácil todo
o processo de torna”.
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“Eu já li demais. Acho que foram mais de dois mil livros, embora eu tenha lido
livros específicos dezenas ou centenas de vezes. Eu quero que a Letra morta se torne
viva em mim”
“Ouso dizer que eles demonstram o tipo de ideal de sacrifício que deve ser
direcionado ao Cordeiro.
O cavaleiro está pronto a morrer por sua dama. E será o bastante se apenas tiver
uma breve visão dela ou receber algo suave como um beijo no rosto. Por mais que ele
154
Mártires Vermelhos
anseie tê-la por inteiro, o nobre cavaleiro irá se sacrificar apenas porque ama sua
dama, independente de receber algo em troca.
Não é assim o amor pelo Imolado? Imolar-se por ele, não importando se veremos
Deus ou iremos para o céu. Nós apenas cumprimos nosso dever como vassalos de
nosso Senhor”.
“Eu não disse que sei sobre o passado dele. Ao longo dos anos deixamos escapar
algumas coisas, mas eu não sei tanto assim.
Nós nos tornamos amigos na época em que estávamos modificando alguns detalhes
da regra da Ordem. Alguns de nós, que tínhamos alto conhecimento teológico, fomos
selecionados para fazer isso.
Tanto eu como ele achamos a tarefa bastante aborrecedora, pois nós não nos
tornamos mártires para afundar em livros. No entanto, a obediência é a coisa mais
importante para nós. Aceitamos a tarefa que nos foi proposta e nos pusemos a
trabalhar.
Ele ficou muito impressionado que eu soubesse nossas regras de cor e que as citasse
de cabeça frequentemente. Ao mesmo tempo, acho que ele ficou com um pouco de
inveja, pois sempre fazia questão de falar longamente a respeito de temas teológicos que
eu não sabia muito a fundo e ele conhecia.
Nós discutimos muito nesse período. Brigamos de verdade. Tínhamos um ponto de
divergência fundamental. Ele defendia que a chave para o avanço espiritual era
realizar uma série de pequenos exercícios curtos e penitências ao longo do dia.
155
Wanju Duli
Quanto a mim, eu achava esse método bastante chato. Sempre gostei de dedicar-
me a uma tarefa só por longas horas seguidas, de forma intensiva, como leituras e
mortificações. Ele não queria saber disso. Queria fragmentar completamente nossa
rotina.
No final, tivemos que tornar a regra mais flexível nesse ponto. O irmão poderia
escolher entre a regra normal, que era esta fragmentada, mas de tempos em tempos
podia optar por realizar retiros mais rigorosos nos quais focaria sua atenção num
único ponto da regra para fazer penitência.
A posição dele prevaleceu, pois era a mais conservadora. Ainda assim, fiquei
satisfeito porque a minha proposta também foi levada em consideração e incluída na
regra. Pensei o seguinte: valeu a pena participar daquele projeto. Mesmo depois da
minha morte, minha contribuição fará uma diferença real na vida dos irmãos que
pensam como eu e que possuem vocação para esses retiros.
Foi só depois que terminamos de atualizar a regra que eu e 10091 conversamos
direito. Antes só brigávamos. Mas logo descobrimos que nos dávamos muito bem.
Sempre tínhamos assuntos para discutir.
Descobri que, enquanto eu era mais voltado aos livros e, de certa forma, um
“dourado” de coração, ele era um “negro” de coração. Sempre gostou da solidão e de
entregar-se a fortes penitências.
Nunca gostei muito da solidão. Apesar de gostar de ler, eu sempre fui um cara
sociável. A Ordem dos Mártires me atraiu porque era uma comunidade forte de
amigos que queriam morrer pelo mesmo ideal. A ideia de viajar com eles para terras
distantes também ressoou fortemente, pois era como ser o protagonista de um romance
de cavalaria. Foi a analogia que fiz antes: morrer pela minha dama, pelo meu Deus.
Acho que nisso nós dois éramos parecidos: éramos ambos românticos. Mas sempre
gostei mais de prosa e ele de poesia.
Não sei se posso dizer que realmente o conheci. Parando para pensar, não sei
tanto assim sobre ele. Aos poucos fui aprendendo sobre sua personalidade. Isso dava
para sentir bem.
Ele era o cara quieto que gostava de ficar isolado num canto. E eu o cara que o
incomodava para que ele tentasse socializar mais.
Ele nunca gostou de se abrir muito para as pessoas. Então, cada vez que eu
conhecia um pouco mais dele, me sentia lisonjeado.
Sempre foi muito sério e rigoroso consigo mesmo. Ele sempre levou as regras da
Ordem muito a sério. Não pegava leve consigo, mas quando podia ajudar outra
156
Mártires Vermelhos
pessoa quebrando uma regra, era o único modo de abrir algumas concessões. Nisso
pude atestar seu caráter.
Nunca fui tão bom como ele. Não está em minha natureza seguir regras. Sempre
gostei de fazer as coisas do meu jeito. Se estou lendo um livro maravilhoso de teologia,
não gosto de parar de ler porque chegou a hora da reza. Ou se estou mergulhado num
transe místico, não gosto de sair dele porque está na hora de fazer penitência.
Mas ele nunca pensou assim. Ele sabia que a obediência era a maior das virtudes.
Então, a forma mais sublime de largar de si mesmo era ser capaz de interromper uma
tarefa que nos trazia prazer, mesmo que fosse um prazer espiritual.
Nós podemos experimentar sensações extraordinárias de união ao Cordeiro. Mas
nós devemos aprender até mesmo a largar essa sensação. Devemos levar uma rotina
rigorosa regrada pelo relógio na completa secura espiritual e escuridão.
A vida dele era assim. Ele preferia sentir a escuridão da alma do que o êxtase
místico. Ele dizia que o estado de abandono era o melhor de todos, porque se estamos
juntos com Deus achamos que ele já está garantido. Precisamos enfrentar a separação
de Deus para termos a honra de entregar nossa vida para reencontrá-lo.
Esse é o coração da paixão dos vermelhos por doença, morte e sacrifício. Devemos
nos imolar pelo Cordeiro completamente. Desde o primeiro dia que entramos na
Ordem já nos martirizamos. É errado pensar que somos vermelhos porque estamos
treinando para martirizar nosso corpo um dia. O certo é pensar que ao longo de nosso
treinamento iremos martirizar nosso espírito.
No dia da morte de nossa carne já não somos nada, porque já martirizamos o
espírito há muito tempo. Aquele só é o dia formal de uma separação que já ocorreu
bem antes.
Tornar-se um vermelho é morrer. Eu já estou morto, ou ao menos esse é o
pensamento que devo ter.
Na prática, nunca fui tão sábio ou tão bom quanto O.M. 10091. Ele ficava
admirado comigo porque eu aguento fazer jejuns que duram um mês inteiro ou
permanecer acordado por dias a fio. Ele nunca foi capaz de fazer essas coisas. Ele
dizia que era fraco, mas eu não achava isso. O corpo dele podia ser mais fraco que o
meu, mas seu espírito sempre foi mais forte.
Eu conseguia ficar muito tempo sem comer, mas de que adiantava? Eu acabava
me apegando ao prazer místico que eu sentia com isso e não queria parar. Ele, pelo
contrário, quando tinha que interromper uma mortificação para ajudar seu irmão o
fazia de bom grado.
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Wanju Duli
Ele também dizia que tinha muita dificuldade de domar o prazer sexual que
sentia e por isso ele sempre levava um chicote consigo para bater em si mesmo sempre
que um desejo como esse surgia.
Para mim era fácil não pensar em sexo e nunca precisei me mortificar seriamente
para evitar esses pensamentos. Mas tanto eu como ele sentíamos certa admiração e
respeito pelo amor apaixonado. Só podíamos suprimir esse sentimento ao focar no
amor pelo Cordeiro. Ele tinha uma pessoa para lembrar. Pelo menos eu não tinha
nenhuma.
Bem, creio que isso seja o bastante. Se eu continuar escrevendo vou acabar falando
mais do que devo”
“Ele me pediu um favor. Como eu poderia negar? Eu entendi que ele pediu
aquilo a mim porque eu era de sua inteira confiança. O príncipe precisava ser
escoltado de volta para casa. Como ele poderia pedir isso para qualquer um? Mesmo
sendo um vermelho, e mesmo respeitando meus irmãos de Ordem, eu sei que não são
todos que estão preparados para certas tarefas.
Fiz questão de trazer seu irmão até o castelo. Eu não poderia simplesmente
deixá-lo no porto ou no meio do caminho. Claro que isso me impediria de ver a
martirização dele. A viagem de navio dura três dias. Eu apenas disse que sim, que
faria isso.
Será que ele me pediu aquilo porque não queria que eu o visse morrer? Não sei.
Nunca vi o rosto dele. Mas agora vejo que isso fazia parte dos planos do Cordeiro.
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Mártires Vermelhos
Ele era como um diretor espiritual para você. Com ele morto, você precisa de outro.
Por isso eu ainda estou aqui e não porque você me prendeu”.
“Talvez eu possa fazer um milagre assim. E talvez eu veja gálatas. O que você
acha?”
“Eu evito pensar no que sou capaz de fazer, ou me tornaria muito vaidoso. É
realmente um enorme perigo”.
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Wanju Duli
“A esse ponto você já deve ter entendido que eu, por mim mesmo, não sou capaz
de fazer nada. Qualquer poder que eu porventura tenha não vem de mim. Eu não o
tenho de verdade.
Se eu ficar vaidoso demais, perderei tudo o que tenho. Mas não me importo em
perder. Não preciso de nada. Só de Deus.
Não me importo de ficar preso para sempre em seu castelo se tenho Deus. É claro
que quero me unir a ele completamente e para isso preciso me livrar do meu corpo.
Mas o Cordeiro tem planos diferentes para cada um. Irei apenas obedecer”
É claro que ele ia dizer algo assim. Eles diziam que os poderes não
eram deles e que eles não se importavam com isso. Só queriam Deus.
Mas é claro que tendo Deus eles dificilmente perderiam os poderes,
então dava na mesma.
– O.M. 10091 nunca deixou muito claro o que ele conseguia fazer –
eu disse – sei que ele sabia curar e ver gálatas. Ele não me revelou o
resto.
“Essas coisas não precisam ser ditas. Nem nós mesmos conhecemos a extensão e
os limites de nossos dons até que precisemos aplicá-los numa situação real. Isso às
vezes também depende tanto da fé daquele que cura como daquele que é curado.
Às vezes eu penso que possuo certo poder. Mas toda vez que o vejo como meu ele
desaparece. Houve ocasiões em que manifestei poderes que eu não sabia que possuía e
outras em que perdi poderes que eu estava certo de ter.
Esse é um valioso aprendizado. Nada disso é nosso, princesa. Nem minha vida,
nem meu corpo, nem minha humildade. Tudo é como vento. Agora sou humilde e logo
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Mártires Vermelhos
sou orgulhoso. Agora consigo fazer um jejum de 30 dias e amanhã fico doente e não
sinto forças nem mesmo para fazer jejuns leves.
Tudo passará. Somente o espírito não muda. Só o Cordeiro é eterno. Como eu
posso confiar nas minhas próprias forças? Ser bondoso, humilde, caridoso. Tudo é vão.
Só consigo ser qualquer coisa quando não sou eu mesmo, mas quando me esvazio de
mim mesmo e cedo espaço para o Imolado habitar em mim”
“Eu não me sinto à vontade dando detalhes sobre a vida pessoal dele para você.
Pois se ele não lhe contou é muito provável que não queria que você soubesse. Ou isso
ou ele só estava sendo totalmente obediente às regras da Ordem, como de costume.
Se eu responder essa pergunta, você jura que não vai mais ficar me perguntando
sobre o passado dele? Eu me sinto mal contando seus segredos. Os poucos que ele
compartilhou comigo”
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Wanju Duli
“Sim, ele era. E ele deixou claro que não tinha sentimentos por mim. E
acrescentou: „Eu nunca vi a sua cara. Por que teria?‟ e eu respondi: „Parece justo‟.
Sinto como se fosse ontem que tivemos essa conversa.
Ele só pensava nesse rapaz chamado Mateus. Acho que não teve sentimentos por
ninguém mais. E todos os conflitos sexuais que lhe atormentaram ao longo de suas
penitências o envolvia.
A história que ele me contou foi a seguinte: o pai dele queria casá-lo com a filha
de um conde. Mas ele era apaixonado por esse rapaz. O pai dele disse que casamentos
só servem para se ter laços financeiros. Ele disse que ao longo da história muitas
mulheres lésbicas se casaram com homens só para formar esses laços e mantinham
secretamente amantes mulheres para sexo. O mesmo ocorreu com os homens que
casavam com mulheres para levar adiante o nome da família, enquanto mantinham
amantes do mesmo sexo na cama.
Mas ele sempre foi uma pessoa muito religiosa e não aceitava essas coisas. Para ele
casamento era algo sagrado e devia ser feito por amor. Ele não aceitaria se casar com
alguém que não gostasse.
E ele não sentia atração nenhuma por mulheres. No entanto, os pais dele faziam
questão que ele se casasse com a filha desse conde.
Ele já sentia inclinações para a vida religiosa desde a adolescência. Então ele
aproveitou essa situação para levar adiante sua vocação.
É errado pensar que ele tornou-se um vermelho para fugir desse casamento. Esse
evento foi somente o ápice para que ele tomasse essa decisão”.
“Não sei”
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Mártires Vermelhos
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Wanju Duli
“Foi uma sensação estranha, mas também especial. Estou grato por tê-lo
conhecido”
Já que por minha causa ele não havia visto Jeremias ser martirizado,
achei que eu devia a ele pelo menos isso.
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Mártires Vermelhos
“Então foi o rei que descobriu a identidade dele. Você também pediu para que ele
procurasse informações sobre mim?”
“Eu não sou mais aquela pessoa, aquele nome e aquela família. Você sabe que já
morri para todas essas coisas. Mas acho que é natural para uma adolescente ter essas
curiosidades em vez de aproveitar para me perguntar detalhes sobre a doutrina e pedir
orientação espiritual”
“Como desejar, Vossa Alteza. Mas devo lembrá-la que além de me auxiliar em
meus jejuns, você também deve se dedicar às suas próprias mortificações se deseja
melhorar a sua espiritualidade”
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Mártires Vermelhos
“Não é grande coisa. Na verdade, é uma piada bem sem graça. Um vermelho e
um dourado estão diante de um herege que carrega um livro religioso herege. No meio
deles há uma fogueira. O que o vermelho e o dourado fazem?”
“O dourado arranca o livro herege da mão do herege e grita: „Seu herege, vou
queimar seu livro herege! Ele está todo errado, porque a exegese assim indica‟ e joga o
livro na fogueira. Enquanto isso, o vermelho escreve a seguinte mensagem em seu bloco
de anotações: „Seu herege, por que está lendo livros? Deus não está aí, está lá!‟ ele
aponta para a fogueira, se joga nela e é queimado vivo. O herege sorri contente,
dizendo: „Fico feliz que meu livro herege tenha entrado no céu‟”.
– Tem razão, essa piada não tem a menor graça – falei – uma versão
reduzida poderia ser: “Qual a diferença entre um dourado e um
vermelho? Os dourados jogam livros na fogueira e os vermelhos jogam a
si mesmos”. A propósito, está com fome?
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Wanju Duli
“Acho que ainda aguento mais alguns dias, se for sua vontade”
– Você é durão, hã? Mas está começando a ceder. Você apenas acha
que aguenta. Então você não tem certeza se aguentaria mais vinte e três
dias, certo?
Ele escreveu:
Espera. Será que ele queria aquilo? Se ele dissesse que queria, seria
suicídio. Ele não podia dizer que queria, mesmo que quisesse.
– Não vou fazer isso – decidi – eu sei que você prefere morrer de
uma forma mais dramática, torturado e humilhado numa terra distante.
Seria muito fácil morrer aqui nesse quarto confortável. Por isso, para seu
azar, eu acabei de trazer sua comida. Só coisas sem graça, como folhas
sem tempero e pão seco, do jeito que você adora não gostar.
Saí do quarto por um momento, alcancei o prato de comida e o
entreguei para ele.
– Posso te assistir comendo? – perguntei, só por perguntar.
Ele escreveu:
“Bem, eu não me importo, mas a Ordem se importa. Preciso seguir as regras, até
mesmo as aparentemente irrelevantes, para não ser expulso”
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Mártires Vermelhos
“Até que ficou legal. Espero também ganhar um folheto bonito como esse”
– Não sei porque eu mostro as coisas, só para você ficar tirando sarro
– reclamei – eu acho que os folhetos são positivos. É bom que muita
gente saiba que há mais um santo velando por nós no paraíso e peçam a
ajuda dele.
“Eu não acredito que você vai tirar a nossa diversão, princesa! Onde nós vamos
morrer se você eliminar os hereges? Não tire todos eles de lá, pois ainda precisamos de
gente para nos matar”
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– Mas esse bolo foi preparado especialmente para você, com todos os
ingredientes que você tem permissão de consumir – argumentei – eu só
usei as frutas que estão na sua regra. Os pães que você come também são
feitos de farinha. Não coloquei açúcar.
Ele escreveu:
“Só vou aceitar porque é seu aniversário, mas terei que fazer penitência por isso
depois”
– Eu sei que você não tem, por isso mesmo eu perguntei – falei –
sabia que hoje eu vou conhecer um dos príncipes de Éfeso?
– Por que você é tão bem informado sobre o nome dos príncipes de
Éfeso? – perguntei, estranhando – por acaso você é de lá?
“Pensei que seu pai estivesse procurando informações a meu respeito. Sendo assim,
você já devia saber a resposta para essa pergunta”
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Fiquei furiosa. Eu não queria contar a ele que ainda não tínhamos
encontrado nada. Como foi que ele conseguiu apagar os próprios rastros
tão bem? Seria porque ele era filho de um camponês tão pobre e
desconhecido que não havia sequer registro do nome da família dele?
Seria o maior choque.
Aquele encontro com o príncipe Samuel me deixou profundamente
irritada. Ele era ainda mais monótono que o príncipe dos tapetes. E era
inacreditavelmente arrogante.
Quando cheguei em casa, deixei bem claro para o meu pai que eu não
queria nada com ele.
– Você é uma mal agradecida, sabia? – disse meu pai – você não se
contenta com nada. Não existe homem bom o bastante no mundo para
te agradar. Não basta ser rico, bonito, inteligente e ter sangue azul? O
que mais você quer?
– Eu quero que ele vista um manto vermelho – respondi, de
imediato.
– Eu estou farto desse seu fascínio irracional pelos vermelhos – disse
meu pai – isso já passou dos limites. Eu vou botar esse vermelho para
fora, ouviu?
– Foi só uma brincadeira, pai...
– Eu sei. Mas vindo de você eu não duvido de nada.
Alguns dias depois, o vermelho me fez uma pergunta totalmente
surpreendente:
“Será? Eu sinto que há um espírito morto aqui que não descansa. Não vai nem
para o céu e nem para o inferno”.
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“Quem está assombrando seu castelo é uma moça que foi enforcada nas
proximidades há muitos anos”
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Da última vez que eu o vi ele tinha 14 anos. Agora já estava com 20.
Ele estaria muito diferente? Imaginei que ele provavelmente se
surpreenderia mais conosco do que nós com ele. Afinal, ele me viu com
nove anos e agora eu tinha 15. Lucas tinha quatro anos na época e agora
estava com dez.
A frente do palácio era iluminada por luzes fortes na noite escura. Eu
estava começando a ficar com frio. Queria que Gus chegasse logo. O
pobre Lucas também estava tremendo.
Quando ele finalmente chegou, eu não o reconheci imediatamente.
Tive que prestar atenção para descobrir que era ele.
Augusto estava muito mais alto e forte. Não era mais um adolescente
magrelo, mas um homem feito. E ele estava de barba! Nunca vi Augusto
de barba antes.
– Bibiana? – ele perguntou.
A voz dele estava bem mais grave. Era uma sensação muito esquisita:
ao mesmo tempo em que tudo nele era maravilhosamente familiar, era
simultaneamente tudo estranho. Um conhecido desconhecido.
Eu queria abraçá-lo, mas não tinha coragem. Eu estava tímida para
abraçar um homem adulto desconhecido. Jamais imaginei que eu ficaria
tão constrangida na frente dele. Baixei os olhos por um momento, mas
logo levantei-os outra vez.
Quando os levantei, Augusto já estava abraçando Lucas, que correu
na direção dele. Ver aquilo foi realmente lindo. Eu me emocionei.
– É você mesmo, Lu? Você tá enorme!
Quando Gus sorriu daquele jeito tão sincero, eu soube: era ele
mesmo. Meu irmão querido.
Eu também abri um grande sorriso. Meu abraço nele foi mais contido
do que o de Lucas, mas também foi cheio de amor.
– Bibi, você tá linda! Qua saudades!
Eu tinha acabado de chegar de uma viagem exaustiva. Eu não estava
me achando nem um pouco linda naquele momento.
Mesmo assim, fiquei feliz com o elogio. Augusto animadamente nos
convidou a entrar. Ele logo nos apontou quartos e banheiros. Eu estava
com muita vontade de tomar um banho, comer e dormir. Restava decidir
a ordem em que eu faria aquelas coisas. Queria poder fazê-las todas
juntas.
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Mas eu senti que ele ficou feliz e aliviado. Até assumiu um ar sério e
grave quando estava prestes a ouvir o que eu tinha a dizer.
– Eu queria te perguntar – falei – será que vocês dois naquela época
faziam algum tipo de magia draconiana?
– O quê?
– Sei que parece loucura, mas tem um vermelho que me disse que
nosso castelo foi amaldiçoado pelo fantasma da sua... da empregada.
Como era mesmo o nome dela?
– Isabel.
– O que você acha disso?
– Eu não adoro o Dragão, se é isso que você quer saber. Hoje em dia
sou um caliciano devoto. Algo que eu jamais imaginaria me tornar na
adolescência.
– Entendi – eu disse – que tipo de pessoa ela era?
– Eu não conheci Isabel muito bem. Nós apenas ficávamos juntos
nos breves momentos que tínhamos. Foi uma relação mais... como
posso dizer? Mais carnal do que emocional.
– Ela provavelmente odiou nosso pai pelo que ele fez – falei – então
você acha que tem alguma chance de ela ter amaldiçoado a mim e ao
Lucas? Eu e ele pegamos a praga no ano passado. Por pouco não
morremos.
– Vocês pegaram a praga? – ele perguntou, boquiaberto – mas como
isso aconteceu?
– Não sei. Apenas pegamos. Os vermelhos acham que foi por causa
da maldição dela.
– Se você me dissesse isso no passado eu provavelmente iria rir. Não
vou rir agora porque entendo um pouco mais de religião. Mas qual é o
seu plano? Você acha que eu teria poder para acabar com a maldição por
eu ter sido companheiro dela?
– Ela confia em você – falei – não há meios de você contatá-la e
pedir para que deixe esse mundo em paz?
– Eu posso pedir ajuda de um sacerdote para tentar fazer isso – ele
disse – então não se preocupe. Tentarei cuidar dessa questão.
– Agradeço de coração.
Eu já tinha até me esquecido como eu me sentia tranquila perto dele.
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fácil burlar essa regra nas famílias dos camponeses. Já nas famílias dos
nobres é diferente. Os pais precisam deixar o nome da família ao
descendente. Você entende?
– É claro.
– Por isso, no caso dos nobres e especialmente da família real o filho
único é proibido de se tornar mártir mesmo com os pais mortos. Ele
simplesmente tem o dever de herdar o nome da família. Jezabel queria
impedir o irmão dela de ir embora. Então ela foi até o Templo de Tiatira
e usou o argumento de que ela é prima do irmão dela. É uma filha
adotada. Portanto, teoricamente a regra do filho único se aplicaria.
– Que coisa complicada – falei.
– Pois é. E ela conseguiu ganhar a causa. O irmão dela foi proibido
de se tornar mártir. Mas ele se tornou mesmo assim. Ele fugiu e se
apressou logo em ser martirizado.
Devia fazer mais de seis anos que o irmão dela tinha morrido, pois
lembro que desde que Augusto marcou o casamento com ela já diziam
que ela era filha única.
– Os reis não podem ter outros filhos? – perguntei.
– Não filhos biológicos – respondeu Augusto – dizem que o
nascimento do irmão de Jezabel foi um milagre. Eles rezaram muito para
uma santa e ela realizou esse milagre.
Será que se eu rezasse bastante para Jeremias ele também realizaria
milagres para mim? Ele realizou milagres para mim em vida, então não
era impossível que ele continuasse a fazer isso depois da morte.
– Agora, mudando de assunto – disse Augusto – Bibi, você realmente
precisa soltar aquele vermelho. Você está cometendo uma falta muito
grave.
– Eu sei – falei.
– Até eu já ouvi falar desse vermelho desaparecido – ele disse – não é
tão incomum que vermelhos desapareçam nas terras distantes em que
eles vão pregar, mas esse vermelho desapareceu nos sete reinos. Nunca
se ouviu algo assim antes. Eles têm o registro de esse mártir ter
desembarcado em Pérgamo. Escutou, Bibi?
– Sim. Vejo que agora que mora em Tiatira você está por dentro de
todas as fofocas religiosas.
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– Nem me fale. Só ouço isso o dia todo. Sempre tenho que ajudar o
Templo a resolver problemas como esses. É frequente que o poder
secular tenha que interferir em certos assuntos religiosos e é comum que
o rei me peça conselhos.
– Que legal – eu sorri – isso significa que ele confia em você.
– E ele também já quer me treinar para ser o futuro rei. Nada mais
natural.
– Você já está com porte de rei – falei – principalmente com essa sua
barba.
– Deixei crescer a barba exatamente para tentar parecer mais velho e
maduro. Sinto que as pessoas me levam mais a sério dessa forma.
No dia seguinte, como haveria de ser, chegaram os guardas de
Pérgamo para arrastar a mim e a Lucas de volta para casa. Resolvemos
retornar sem resistência. Até porque eu não tinha a menor vontade de
voltar naquele cavalo outra vez e ter outra viagem exaustiva.
Nós nos despedimos de Augusto. Ele prometeu que faria o ritual
para se livrar da maldição em breve.
O caminho de volta para casa foi muito tranquilo. Senti-me orgulhosa
por ter feito aquela viagem. Foi maravilhoso rever Augusto.
Mas meus pais não estavam nada orgulhosos quando eu cheguei em
casa. Da outra vez que fugi eu estava doente, então eles me deram um
desconto. Mas dessa vez eu fugi, na visão deles, sem absolutamente
motivo nenhum.
– Para mim já chega – disse meu pai – você agora está proibida de
sair do castelo. Será vigiada no caminho de ida e volta do colégio e não
sairá para nenhum outro lugar.
– Que grande injustiça! – exclamei.
– Fique quieta! Injustiça é o que você fez a mim. Você e seu irmão
somem de repente e nos enchem de preocupação. Eu e sua mãe nem
conseguimos dormir na primeira noite.
– A culpa é sua que me proibiu de viajar.
– Eu sou o seu pai. Você deve me obedecer em tudo. Depois que se
casar poderá fazer o que quiser.
– Então acho que eu vou me casar o quanto antes mesmo! – exclamei
– não tenho liberdade nessa casa!
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Pensei que você tinha feito mal a mim por me transformar em um prisioneiro no
seu castelo. Mas agora você fez algo muito pior.
Para compensar, agora sou eu que preciso de sua ajuda. Gostaria que você me
ajudasse a fugir para Tarsus. Eu preciso ser martirizado imediatamente”
Eu fiquei perplexa.
– Por que você não quer ir para Tiatira? – perguntei – você tem medo
de te colocarem em outra tarefa burocrática outra vez, como fazer
correções nas regras da Ordem, e você ser impedido de morrer por mais
um ano?
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“Vou ter que romper uma regra importante, mas peço para que eu possa me
apoiar em você até que eu consiga caminhar para fora do hospital. Não terei forças
para sair sozinho”
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“O.M. 10060, você definitivamente não entende os meus sentimentos por Mateus.
E como entenderia?
Você nunca se apaixonou por ninguém de verdade. Sempre só teve olhos para o
Cordeiro.
Mas eu não o culpo. Você nasceu em Tiatira. Lá eles só pensam em religião.
Para eles, somente o Cordeiro é a verdade. Mais da metade dos vermelhos que existem
nascem em sua terra. Vocês são mártires natos.
Eu sei que seu caso é especial, porque você é da realeza. Certamente isso fez com
que amasse a religião ainda mais e desejasse morrer por seu povo.
Você já pensou em ser rei e ajudar o povo de Tiatira através do poder político?
Mas você jamais faria isso. Sabe que o poder político corrompe e que o único poder
realmente puro é a religião. Somente ela pode nos arrancar de toda tentação e purificar
a alma.
Mas você sabe que alguém precisa sujar as mãos com esse poder. Então por que
precisa ser Jezabel? Você disse que ela não é uma pessoa boa. Então por que quer
deixar o trono para ela?
Será que no fundo para você ser um mártir não é fugir de suas responsabilidades?
Não está sendo egoísta? O que você mais quer é morrer pelo Cordeiro. E quer isso
tanto que virou um desejo pessoal seu. Já parou para pensar que o Cordeiro pode ter
outros planos para você?
Nesse caso, o verdadeiro sacrifício, o real ato de soltar de si mesmo, seria você
deixar para trás o seu desejo de ir para o céu o quanto antes e sacrificar-se para
ajudar os que ficaram aqui na terra. Sujando suas mãos. Talvez esse seja o destino de
Deus para você.
Eu temo pelo futuro da Ordem dos Mártires nas mãos de Jezabel. E você tem o
poder de impedir que a nossa Ordem seja destruída. Você é o único que pode se
martirizar por todos os mártires exatamente deixando de ser mártir.
Essa mensagem ficou muito mais dramática do que planejei. Eu só escrevi tudo
isso para dizer o seguinte: você não sabe nada. Nem de política, nem de religião e nem
de amor. Decorando tantos livros você só penetrou na Letra. Falta viver o seu
Espírito”
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que Jeremias escreveu para ele, que muito provavelmente ele não tinha
lido.
Mas eu também sabia de uma coisa: aquele cara daria um jeito de
escapar. Ele iria voltar para Tarsus. E agora que eu compreendia o
quadro completo, eu faria questão de ajudá-lo nesse nobre objetivo.
As pessoas achavam que só era possível mudar o mundo através do
poder político. Mas eu entendia Rafael: ele queria mudar o mundo de
outra forma. Ao lado do Cordeiro, ele teria um poder muito maior que
jamais poderia ser concedido por qualquer governo desse mundo.
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Capítulo 5
192
Mártires Vermelhos
– Consegue mesmo? E que coisa tão grandiosa é essa pela qual deseja
sacrificar o seu conforto e a vida que conhece?
– O amor – respondi, de imediato – Deus.
– O que é o amor?
– Amor é o que sentimos pelo que as pessoas são – respondi – não
pelo que elas possuem ou pelo que elas sabem.
– Isso é lindo, filha – disse minha mãe – realmente tocante. E como
pretende chegar num amor tão puro?
– Através de Deus.
– O que é Deus?
– Deus não pode ser explicado porque ele transcende a razão humana
– respondi.
– Então se ele transcende tudo que é humano, de que ele serve?
Onde ele está?
– Ele transcende somente a razão – expliquei – ele não pode ser
explicado, mas pode ser sentido. Deus está fora de nós e por isso nos
sentimos sozinhos. Uma vida humana significa uma busca por Deus. É
somente por isso que nascemos: para entrar em comunhão com o
divino. E isso é feito pela lança de ouro com ponta de fogo.
– Está citando os Selos – reconheceu minha mãe – e como você
interpreta essa passagem?
– Existe um fogo dentro de nós – eu disse – é nosso espírito. O
objetivo da vida é incendiar o coração, a ponto de consumir o corpo
inteiro. O fogo do espírito deve queimar todo nosso ser. Devemos ser
como cordeiros que se atiram na chama pela redenção do mundo.
Somente assim nos tornamos pombas e conseguimos voar até o céu.
Finalmente chegamos a Deus e cumprimos nossa missão. Só atingimos a
vida eterna através da morte. Mas antes mesmos da morte do corpo
devemos nos preparar para morrer para nós mesmos. Nós nos
esvaziamos de nós para que o Cordeiro queime no coração. A lança de
ouro mata o Cordeiro. Essa lança se chama obediência, humildade,
caridade e fé.
– Tive uma conversa muito parecida com essa com sua irmã quando
ela tinha a sua idade.
– Com quem? – perguntei – Catarina?
– Não. Com Teresa.
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Wanju Duli
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Mártires Vermelhos
optar por esse Deus terrível, doloroso e escuro pela sua vontade? Sabe
que só pode chegar a ele pela morte. Ainda assim, você aceita?
– Eu aceito – disse – do fundo do coração.
– Eu vou te mostrar o seu Cordeiro. Sei onde ele está. Eu mostrei
para Teresa e ela não gostou do que viu. Está na hora de você encarar a
verdade e parar de fingir que acredita em algo que não conhece.
Minha mãe levantou-se. Eu estava completamente perdida, mas eu a
segui.
Nós saímos do castelo e fomos até os fundos. Eu raramente ia para
aqueles lados.
Ela me levou para uma região do castelo completamente escura e
suja.
– Entre, filha – disse minha mãe, em tom doce – Deus está aí.
Eu obedeci. Entrei.
Olhei ao meu redor. Aquele ar tinha um cheiro abafado. Estava um
pouco frio e eu tremi.
– Algumas pessoas morreram sob tortura nesse lugar no passado –
contou minha mãe – no tempo de seus bisavós.
– Interessante – falei, embora não estivesse interessada.
Eu sabia que havia locais sinistros no castelo e que eu tinha
antepassados loucos. Mas às vezes eu esquecia que não eram apenas os
antepassados que eram loucos.
A porta se fechou por trás de mim. Levei um susto. Ouvi o som de
uma chave ser passada na fechadura.
Eu me desesperei. Estava tudo completamente escuro. Eu esmurrei a
porta.
– Mãe? – chamei-a – mãe?!
Gritei cada vez mais alto, mas não houve resposta. Somente depois
de alguns minutos ela perguntou:
– Você confia em mim?
– Confio – respondi.
– Então não há nada a temer.
– Você vai me soltar?
– Isso importa? Se você confia em mim, realmente importa se irá
morrer aí ou se será libertada?
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Wanju Duli
– Por favor, mãe, não faça isso – supliquei – sei que não sou a filha
perfeita. Mas eu ainda quero viver. Sei que posso me tornar uma pessoa
melhor.
– Mas você não queria morrer pelo Cordeiro?
– Sim, mas... eu ainda não estou preparada!
– Quanto tempo você vai esperar? Só há essa vida. Você já ficou
doente e quase morreu. Estou fazendo isso por você. Não mofe de Deus
fazendo-o esperar para sempre.
Ao dizer isso, ela saiu. Ouvi seus passos se afastando.
Eu continuei a chamá-la aos gritos, mas ela não retornou.
Não desisti. Continuei gritando e esmurrando a porta. Eu fiz isso por
muito tempo. Não sei bem quanto.
Eu fiz até que minhas mãos estivessem vermelhas e doessem. Até que
minha garganta arranhasse.
Depois eu simplesmente caí no chão exausta.
Estava escuro. Eu estava com medo. E se tivesse algum bicho ali
dentro? Insetos ou coisa pior? Caveiras e espíritos mortos?
Comecei a chorar muito forte. E eu chorei por muito tempo, até
soluçar. Eu não estava conseguindo respirar direito, de tanto que chorei.
Fiquei deitada no chão, encolhida, abraçando o corpo. Apenas
mergulhada no meu terror. Eu esqueci de todo o resto.
Não sei quanto tempo se passou. Provavelmente longas horas. Eu
estava com frio e com medo. Sentia dores pelo corpo, deitada naquele
chão duro.
Eu normalmente não ficaria com fome, mas, do nada, senti sede e
fome com muita força, talvez porque eu soubesse que era provável que
demorasse muito até eu comer outra vez. Ou talvez eu não comesse
nunca mais.
Minha mãe não era assassina, certo? Ela ia voltar. Em breve.
Mas a espera era insuportável. Não saber se ela ia voltar e quando
faria isso era o que mais doía.
Eu simplesmente esqueci porque eu estava lá. Esqueci do Cordeiro,
da lança, do espírito, do fogo e de todas as alegorias bonitas que usei.
Nada daquilo tinha força naquele lugar. Eu era apenas dor e desespero.
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Mártires Vermelhos
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atravessado pela lança de ouro com ponta de fogo e ele sangrou pelo
mundo.
Eu deveria imitá-lo. Devia agradecer a ele por me dar aquela dor, pois
era somente através dela que eu seria capaz de retornar para ele. Somente
a separação me permitiria reencontrá-lo.
No meio da escuridão ajoelhei-me. Juntei as mãos e rezei em voz alta,
mesmo que minha garganta arranhada ainda doesse:
– Sagrado Cordeiro Imolado. Obrigada por essa solidão e por essa
escuridão. Agradeço pela minha fome e sede. Pelos meus joelhos e
garganta arranhados. Pelo medo e pelo vazio. É somente por tudo isso
que agora eu te sinto mais perto de mim do que a minha própria
respiração. Você está mais perto do que minhas mãos e meus pés.
Senti meu peito aquecido e queimando por dentro. Derramei lágrimas
de alegria. Eu ri sozinha. Falei baixinho, num sussurro:
– Então aí está você. Estava escondido. Pobre de mim. Eu não sou
nada. Só contigo sou tudo. Por favor, Cordeiro, não tenha piedade de
mim. Eu aceito morrer. Dá a mim a maior dor. Mas será que eu sou
digna desta dor? Não, eu não sou digna. Nem dessa dor, nem desse
mundo e nem do outro mundo. Então, o que me resta? A destruição
completa. Por favor, meu Deus, me mata e me destrói com toda a dor e
desespero!
Senti algo forte perfurando minhas costas. Eu gritei alto.
Apoiei os braços e as mãos na parede de pedra, suando forte. Eu
respirava intensamente, transpirava. Descobri uma luz por trás de mim.
Era uma dor tanto no corpo quanto no espírito. Começava no
espírito e se espalhava para todo meu ser.
Meus joelhos já estavam doloridos de tanto tempo que fiquei
ajoelhada. Não sei quanto tempo fiquei lá. As lágrimas não escorriam
mais por meus olhos, pois a fonte secou. Então eu pedi:
– Onde estão as minhas lágrimas para eu chorar contigo?
Foi então que me dei conta: era aquele o estado de secura espiritual.
Eu estava toda seca. Não sentia o êxtase no espírito. Queria chorar e me
emocionar, mas não conseguia. Não havia nada, apenas escuridão
perpétua.
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Mas ela não estava lá. Porém, uns quinze minutos depois ela chegou.
Ou um pouco mais. Eu estava com dificuldade de entender o tempo
depois daquela situação que vivi, que parecia estar em outro tempo.
Ouvi o barulho da chave na fechadura. A porta se abriu.
Eu a abracei e chorei.
– Desculpe, querida – ela falou – fiz para seu bem. Se sofrer agora, o
futuro será menos sombrio.
– Eu sei – respondi, ainda em lágrimas – quanto tempo se passou?
Três dias?
– Foram exatamente 24 horas.
– O quê...? Só um dia?
Então por que pareceu uma eternidade? Minha barriga estava
roncando de fome. A boca seca. Eu estava com dores, com frio, exausta.
E meus joelhos pareciam um ralador de cenoura. Minhas mãos e
pulsos também estavam um pouco machucados, de tanto que esmurrei a
porta. Ainda sentia a garganta meio arranhada.
Mas fora isso, eu ainda parecia totalmente viva. Talvez mais viva do
que nunca.
Quando o abraço terminou, minha mãe disse:
– Não desobedeça seu pai outra vez.
Obediência. Eu finalmente entendi.
– Sim, mãe.
Eu ia seguir o conselho do gálata. Daria um jeito de viajar para Tiatira
dali a dez dias e ao mesmo tempo obedecer meu pai. Seria complicado.
Mas certamente um desafio.
Assim que voltei para o castelo, encontrei-me naquela velha situação
de não saber o que fazer primeiro: tomar banho, comer ou dormir. Em
vez disso, bebi três copos d‟água seguidos. Não me lembrava se já tinha
feito isso alguma vez antes.
Depois peguei uns restos de comida com os cozinheiros na cozinha e
comi. Eu estava completamente perplexa: como raios aqueles doidos
completos dos mártires vermelhos conseguiam fazer aquelas porcarias de
jejuns enquanto faziam muitas outras penitências?
Lembrei do meu vermelho. Eu o deixei sem comida por uma semana.
E depois fiz isso de novo. Senti um arrepio só de pensar nisso. Não
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Mártires Vermelhos
importava que ele já tivesse feito um jejum de 30 dias uma vez. Ele não
devia ser capaz de fazer aquilo o tempo todo.
Afinal, tudo que fazemos depende de nossa fé no Cordeiro. Se nosso
coração treme um pouco, tudo desaba.
Depois que tomei um maravilhoso banho de banheira que parecia o
céu fui bater na porta do quarto de Teresa.
– Oi – ela disse – ouvi falar que a mãe te prendeu no “quarto dos
prazeres”.
– É um nome apropriado – reconheci.
– Você teve sorte – ela disse – ela me deixou lá por dois dias. Se você
tivesse ficado dois dias, aposto que teria esquecido dos seus vermelhos.
É fácil ficar só 24 horas. A mãe pegou leve com você porque ficou com
pena. Você sabe que os pais pegam mais leve com os filhos mais novos.
– Você já quis ser uma eremita negra?
Ela revirou os olhos.
– Eu era apenas uma adolescente burra, como você é agora.
– Mas eu não quero ser uma vermelha.
– Menos mal. Agora sai daqui.
Obedeci. Eu estava no modo “obediência” agora.
Fui contar para Lucas que vi o gálata.
– Era Galácia?
– Não tenho certeza – confessei – não reparei. Mas ele perfurou meu
coração com uma lança. E ele fez um milagre: minhas lágrimas rolaram
como um rio e furaram as pedras.
– Você trouxe as pedras furadas com você?
– Não. E eu não estou muito a fim de voltar para lá.
– Mesmo que o gálata ainda esteja lá?
– Não vou voltar nem se o Cordeiro estiver lá.
Às vezes a dor das coisas da vida era tão forte que dizíamos coisas
desse tipo. Isso só mostrava que eu ainda tinha muito que aprender.
Fui dormir mais cedo, porque me sentia quebrada. E ainda tive que ir
para a aula na manhã seguinte. Era uma segunda-feira.
Contei para minhas amigas a aventura que fui obrigada a passar.
– Eu nunca teria feito isso por mim mesma – confessei – isso tudo
foi horrível. É estranho. Às vezes sinto que eu seria capaz de morrer pelo
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Wanju Duli
Cordeiro. E outras vezes sinto que não sou capaz nem de arranhar meus
joelhos por ele.
– Isso é normal – disse Sara – o corpo quer uma coisa e o espírito
quer outra. Por isso o espírito deve domar o corpo. É uma longa
jornada.
Nunca invejei e admirei tanto os vermelhos como naquele dia. Antes
eu via as penitências deles como coisas distantes. Depois de passar por
aquela situação terrível, eu finalmente tinha uma vaga ideia do horror que
eles viviam.
Mas era um horror para mim, que não estava preparada. Para o
coração que está pronto aquilo tudo devia ser o céu.
Senti o céu por breves instantes, mas só porque aceitei atravessar o
inferno.
Ainda assim, parecia que eu não aprendia. Naquele mesmo dia deixei
tudo para lá: a visão do gálata, o milagre das lágrimas, o coração
perfurado. Eu não estava interessada em ter outra experiência como essa
tão cedo porque dava muito trabalho.
Eu ainda preferia me afundar nos meus prazeres mundanos e ficar
sem Deus do que sofrer e ter Deus. Eu era uma pessoa assim.
Por que a minha fé era tão fraca? Mesmo depois de tudo o que eu já
tinha passado e vivido. Parecia que eu era duas pessoas: uma que merecia
ver o gálata e outra que apagava aquilo da mente de propósito para ter a
desculpa de voltar a mergulhar nos meus prazeres convencionais.
Eu queria ter tudo: todos os prazeres do mundo e também o
Cordeiro. Mas eu não podia ter tudo. Era como os vermelhos diziam: se
eu adorasse vários Deuses ao mesmo tempo iria perder o foco, me
distrair. Não iria prestar atenção no que realmente importava. Pois eu só
precisava de uma coisa única. Tendo o Cordeiro eu teria todo o resto.
Mas mesmo que eu não passasse a realizar penitências e não mudasse
minha rotina em nada após aquela experiência, eu ainda me sentia
disposta a fazer o que o gálata disse.
Em dez dias eu voltaria para Tiatira. E daria um jeito de, até lá, obter
a permissão dos meus pais para fazer essa viagem.
O que o gálata disse sobre Jezabel foi meio assustador. E ela parecia
uma moça tão simpática...
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Mártires Vermelhos
Talvez eu devesse alertar o Gus sobre isso. Já que eu iria para Tiatira,
não deixaria de lhe fazer uma visita.
Não consegui pensar em nada persuasivo o suficiente para que meus
pais me deixassem viajar. Por isso, simplesmente contei a eles a verdade:
disse que um gálata desceu do céu para me dizer para ir até Tiatira.
Eu não contei a parte que ele me disse para obedecer minha mãe,
pois se ela me proibisse de viajar eu teria que obedecer. Era um dilema:
como cumprir as duas ordens do gálata ao mesmo tempo?
– Essa é nova – riu meu pai – um gálata mandou que você viajasse?
Agora está vendo gálatas como seu irmão?
– Estou – respondi.
– Culpa desses seus vermelhos! – exclamou ele – sabia que não é bom
se apegar demais a essas visões? Isso pode gerar vaidade e distrair.
– Sei disso.
Meu pai me fitou com desconfiança.
– Está determinada a fazer essa viagem, não é? – ele perguntou.
– Sim.
– Então eu vou junto. Eu e sua mãe já estávamos querendo visitar
seu irmão faz tempo. Eis a oportunidade.
– Sério? – perguntei, contente.
– Por que eu iria mentir?
Então, dez dias depois nós viajamos. Nunca pensei que seria tão
simples. Às vezes ser simplesmente direto e sincero era o melhor
caminho.
Dessa vez não somente Lucas iria conosco, mas Teresa e o marido
também.
Durante a viagem, João, marido de Teresa, ficou dando sua opinião
furada sobre minha visão do gálata.
– Tem certeza que ele era real? – ele perguntou – não era uma
alucinação?
– Quando você vê uma mesa fica se perguntando se é uma
alucinação? – perguntei.
– Quando estou sóbrio normalmente não – ele respondeu – está
dizendo que este gálata era tão real quanto uma mesa?
– Ainda mais real – garanti.
– E como pode ser isso?
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Wanju Duli
– Uma mesa só mexe com minha razão e meus sentidos físicos, mas
o gálata moveu todo meu ser: todo meu corpo e espírito – expliquei –
então isso o faz mais real que objetos materiais.
– E por que você pediu um milagre tão inútil como lágrimas? – ele
perguntou – por que não pediu muito dinheiro?
– Vocês já são cheios da grana e ainda querem mais? – perguntei,
impressionada – o que você quer fazer com tanto dinheiro?
– E o que você quer fazer com tantas lágrimas? – retrucou ele – já
não está satisfeita com as que tem?
– Tem razão, fui muito gananciosa – zombei – vou tomar mais
cuidado para ser mais humilde da próxima vez.
Eu me perguntava onde andava meu vermelho. Será que estava no
Templo de Tiatira? Depois eu precisaria descobrir isso. Eu estava
levando comigo a folha manuscrita por Jeremias para entregar a ele.
Às vezes eu me esquecia que aquele vermelho não era mais meu. Era
triste pensar nisso. E em breve ele não seria de mais ninguém, pois
estaria morto. Aos poucos eu aceitava que as coisas deviam ser dessa
forma.
Fui fazendo meus deveres de casa durante a viagem. Meu pai avisou
meu colégio que eu precisaria faltar dois dias de aula devido a deveres da
realeza e blá, blá, blá, então minhas faltas foram abonadas. Mas meus
pais raramente faziam aqueles favores para mim. Só mesmo o milagre de
um gálata para aquela viagem estar acontecendo.
Nossa familia não era o que se poderia chamar de unida. Cada um
gostava de ficar no seu canto. De certa forma eu gostava que fosse
assim. Mas eu também gostava quando fazíamos algo todos juntos.
Descobri isso naquele dia. Embora João fosse um chato. Queria que ele
não estivesse lá.
Foi a maior alegria quando chegamos no palácio de Tiatira. Eu não
me lembrava de já ter visto meus pais tão contentes. Por mais que eles
criticassem Augusto, eu sabia que eles gostavam dele.
Até Teresa cumprimentou Augusto com educação. Na verdade, ela
parecia realmente feliz em vê-lo. Era difícil entendê-la. Só tinha malucos
na minha família. Eu era a única sã.
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Mártires Vermelhos
E lá fomos nós almoçar todos juntos como uma grande família feliz.
Após o almoço, ficamos todos na sala conversando, aquecidos por uma
lareira. Estava meio friozinho.
As conversas eram as de sempre, extremamente chatas: família,
política, fofocas dos nobres, casamentos, mais política...
Em certo ponto eu já estava bocejando. Eu observava Jezabel e ela
ainda me parecia uma moça muito gentil. Eu não tinha cara para chegar e
falar para Augusto: “Ei, sabia que sua esposa é uma adoradora do
Dragão?”.
O gálata não devia estar mentindo. Jezabel podia até ser uma caliciana
extremamente devota, mas pelo jeito ela também fazia experimentos
com feitiços e outras coisas proibidas.
Quando começaram as fofocas religiosas eu prestei mais atenção.
Afinal, aquilo era Tiatira! Fofocas religiosas não podiam faltar. Sempre
havia um escândalo diferente no Templo e a realeza adorava apontar
tudo o que os sacerdotes faziam de errado, mesmo que fossem coisas
absolutamente triviais. Só porque eles eram sacerdotes a sociedade exigia
deles que não falhassem em nada. Nem um pouco hipócrita.
– Como se sente agora sem o seu mártir vermelho, pequena ladra?
Quem me perguntou isso foi Jezabel. Ela estava começando a
mostrar as suas garras. Mas ela o fez num tom muito doce, então não me
ofendi muito.
Tanto meus pais como os pais dela pareceram pouco à vontade
quando o assunto foi levantado. Era um tema muito delicado.
Estávamos todos lá reunidos, conversando animadamente, como se
os dois reinos não tivessem quase entrado em guerra poucas semanas
atrás.
Imaginei que a ameaça de guerra não foi séria. Foi só um rumor
exagerado. Mas era verdade que eles exigiram o vermelho de volta em até
48 horas ou “algo muito sério” aconteceria.
– Eu realmente sinto muito – eu disse – gostaria de pedir desculpas a
todos pelo enorme transtorno que causei.
– Pelo menos você não sabia a identidade dele quando o prendeu –
disse Jezabel – pois se soubesse, essa ofensa não seria facilmente
perdoada.
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foi uma coisa boa, pois graças a isso a religião cresceu mais. As pessoas
preferem o caminho mais fácil.
Eu fui arrogante, mas não resisti. Eu estava começando a ficar com
raiva do que aquela Jezabel dizia.
– Agora entendi porque vocês se deram bem – disse Jezabel – os dois
são cabeça-dura.
– Jezabel, já chega – disse o pai dela.
– Você devia ter visto o espetáculo que Rafael deu no Templo –
Augusto me disse – além de sua argumentação fenomenal, ele fez alguns
milagres.
– Diante de todos? – perguntei, impressionada.
– Foram coisas pequenas, mas milagres genuínos – disse Augusto –
muita gente viu o rosto dele se iluminando enquanto falava. Eu também
vi. Parecia que havia uma luz no meio dele. Como se o próprio Deus
estivesse jogando a luz nele e dizendo: “escutem o que meu servo diz,
pois é a verdade”.
– E mesmo assim eles não foram convencidos – eu disse.
– Não. E sabe o que ele fez depois? Ele simplesmente fugiu.
– Para onde? – perguntei.
– Ele pegou um barco e foi remando sozinho até a Ilha de Emek. É
uma ilha com selvagens canibais. Ele até conhecia o idioma deles!
Começou a pregar para eles e queria ser martirizado sendo devorado
vivo, como de costume. Mas antes que isso ocorresse mais vermelhos
chegaram para tirá-lo de lá.
– Uau! – eu exclamei.
– E isso não foi tudo. Disseram que havia uma criança na ilha que
morreu devido a uma doença e Rafael a reviveu.
– M... maravilhoso! – eu quase disse “merda!”
– O problema é que fugindo para a ilha ele desobedeceu claramente à
Ordem – disse Augusto – mesmo que o cara seja santo e faça milagres,
ele precisa obedecer aos seus superiores. É a regra. Então depois do que
ele fez não houve mais discussão. Ele foi expulso da Ordem. O objetivo
dos mártires é cumprir o plano de Deus para eles, mas Rafael não estava
mais tentando cumprir o plano do Cordeiro. Ele só queria ser
martirizado por si mesmo. Quando um vermelho chega nesse ponto
deve ser expulso.
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Mártires Vermelhos
– Entendi – falei.
Eu também percebi que o vermelho estava meio perdido em seus
objetivos quando estava no hospital. Ele só queria ser martirizado
imediatamente. Não estava pensando direito, não estava mais tentando
entender a vontade de Deus para ele.
– Mas mesmo que ele não seja mais um vermelho, se ele quiser pode
fugir de novo para pregar e ser martirizado – argumentei.
– É isso que estamos tentando evitar – disse Jezabel – por isso nós o
prendemos no quarto com correntes.
– E depois você reclamou de mim quando o prendi! – exclamei –
pelo menos não usei correntes.
– Nós somos a família dele e temos esse direito – argumentou Jezabel
– está muito claro que o Rafael não está em condições psicológicas de
tomar nenhuma decisão importante agora. Os vermelhos colocaram um
monte de besteiras na cabeça dele e vai levar um bom tempo até fazê-lo
voltar ao normal.
– O que é o “normal”? – perguntei – é ele se envolver com dinheiro e
poder e viver pelos prazeres?
– Eu sabia que você ia dizer isso – Jezabel deu um sorriso de ironia –
você fala como ele. Vocês dois são iguais. Têm a mesma doença.
– Por que você acha que só sua interpretação religiosa é a correta? –
perguntei – eu concordo que podemos interpretar vários ensinamentos
dos Selos levando em conta os simbolismos e alegorias, mas algumas
passagens são para ser entendidas literalmente. Se não aplicarmos
nenhum ensinamento dos Selos de forma literal em nossa vida, eles não
passarão de um livro de histórias que não irão gerar nenhuma
transformação real e consistente dentro de nós. E o objetivo da religião
não é apenas nos entreter, nos fazer pensar e nos confortar, mas nos
levar a uma busca séria pela verdade. Para isso, devemos estar dispostos
a fazer certos sacrifícios. As melhores coisas da vida não são recebidas de
forma fácil. O ser humano é como uma espada que exige forja no fogo.
– Você acha que essa sua última citação dos Selos deve ser entendida
de forma literal? – perguntou Jezabel.
– No caso dessa, tanto literal quanto simbólica.
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Meu santo Cordeiro! O que era aquele sorriso? Eu quase caí para trás.
Fui pega desprevenida. Eu precisava me assegurar que aquilo não
aconteceria de novo.
O sorriso daquele rapaz era extremamente lindo. Não sei explicar: era
tão sincero e espontâneo. Emanava tranquilidade e paz. Nem parecia que
ele havia voltado há poucos dias de uma ilha na qual tentou ser devorado
vivo por canibais.
Era ele mesmo. Somente ele era capaz de manter aquela calma
mesmo estando no olho do furacão. Ele sempre foi assim. No fundo eu
sabia que ele sofreu a cada dia que ficou preso na minha casa, porque
desejava ser martirizado. Ainda assim, ele sempre aguentava firme, com
paciência e bom humor.
No hospital ele experimentou um breve momento de desespero, mas
aquilo fazia parte. Afinal, ele era humano.
E lá estava ele: ainda sorrindo. Ele era realmente admirável.
– Está bem, eu vim para te ver – confessei – e não por causa da
política. Se importa de eu me sentar ao seu lado? Ou você ainda mantém
a regra dos dois metros?
– Claro, pode sentar. Aos poucos estou eliminando as minhas regras.
Ainda sou apegado a algumas, enquanto outras farei questão de manter
pelo resto da vida.
E eu me sentei no chão ao seu lado, apoiando as costas na parede
como ele fazia. Era muito emocionante estar assim tão perto e poder
prestar atenção em cada detalhe de seu rosto.
Seus cabelos negros eram curtos, ondulados e ligeiramente crespos. E
ele também tinha os mesmos olhos pequenos e puxados de Jezabel.
Quando ele sorria, os olhos diminuíam ainda mais.
Ele estava usando roupas comuns: calça e blusa. Eu tinha tantas
perguntas a fazer a ele que nem sabia por onde começar.
– Essas correntes são desconfortáveis? – perguntei.
– Nem tanto quanto parece – ele respondeu.
– Como é usar calça depois de tanto tempo?
– Normal.
– Não está com frio?
– Não.
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– Eles não precisam de mim – ele disse – pois eles têm Jezabel, que
será a rainha. E seu irmão será rei.
– Mas nem seus pais e nem sua irmã querem que você morra – falei.
– Todos vamos morrer um dia. Eles precisam aceitar isso.
– Não dá para esperar mais uns cinquenta anos? – perguntei.
– Para quê?
– Você pode ajudar muita gente nesse período.
– Poderei ajudar ainda mais estando no céu – ele respondeu – você
sabe que quando perdemos esse corpo aqui e ganhamos o outro nossas
capacidades morais e espirituais se elevam. Especialmente porque
veremos Deus face a face.
Era difícil achar um bom argumento. Simplesmente não havia. Tudo
que ele dizia estava certo e de acordo com a tradição de nossa religião.
Então só havia uma última chance de convencê-lo. Dei a ele a folha
de papel dobrada.
– Malaquias escreveu isso – expliquei – não sei se você leu.
– Não – ele disse.
Aguardei que ele terminasse a leitura. Quando terminou, ele apenas
sorriu.
– Típico dele. Dramático desse jeito. Mas foi uma boa leitura.
Obrigado.
– Só isso? – perguntei, desapontada – você não se sentiu tocado pelas
palavras dele?
– Ele já me disse coisas assim muitas vezes. E não me convenceu.
– Tem certeza que os planos de Deus para você são o martírio? –
perguntei.
– Nunca temos certeza dos planos dele – respondeu Rafael – mas eu
possuo uma forte convicção de que é isso que devo fazer. Quero
acreditar que todos esses contratempos não foram enviados pelo
Cordeiro, mas são obstáculos do Dragão para tentar diminuir a minha
determinação.
– Você já tentou perguntar para algum santo ou gálata a respeito do
seu caminho? – perguntei.
– Eles raramente respondem de forma clara, pois respeitam muito
meu livre-arbítrio.
– Então peça que respondam claramente – falei.
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Mas por algum motivo não estou. Agora vejo que aquele período na sua
casa foi necessário. Eu entendi muitas coisas nesse tempo.
– Quais coisas? – perguntei.
– Paciência. Não era isso que você queria me ensinar?
– Suponho que sim.
– E creio que o Cordeiro também quis me mostrar isso – ele disse –
vocês estão certos quando dizem que ultimamente ando fazendo as
coisas da minha cabeça em vez de tentar prestar atenção no que o
Cordeiro quer. Mas eu sou todo dele. E ele fará comigo o que desejar. Se
o gálata mandou que você viajasse tão longe só para me entregar essa
carta é porque as palavras do Malaquias são as dele.
– Além de estar aprendendo paciência, você está aprendendo
confiança – eu disse – você não deve ter fé somente em Deus, mas
também nos seus amigos.
– É verdade. Eu acreditei na sua visão do gálata porque tenho fé em
você.
– O Cordeiro não envia sinais apenas através de gálatas – eu disse –
mas também através das pessoas.
– Acho que, em minha cegueira e teimosia, acabei por me esquecer
dessa verdade fundamental – disse Rafael – confesso que errei. Me
desculpe.
– Não precisa pedir desculpas.
Eu já tinha feito tantas coisas ruins para ele sem pedir desculpas.
– Pode me tratar informalmente como de costume – eu disse – não
precisa ser formal. Até porque somos ambos príncipes, então não precisa
daquela frescura de “Vossa Alteza”.
– Você não gosta do “Vossa Alteza”?
– Não sou muito fã.
– Eu também não. Nem os mártires vermelhos possuem um título
formal.
– Não pensa mesmo em ser rei?
– Já disse que Jezabel cuidará disso – falou Rafael.
– Mas você é o filho de sangue, então teoricamente se quisesse ser rei
em vez dela você poderia, certo? – perguntei.
Rafael me lançou um olhar desconfiado.
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– É para esse mundo que você quer que eu vá, Bibiana? – ele
perguntou – já está me incitando a brigar pelo poder.
– Não estou incitando – defendi-me – só estou perguntando, como
curiosidade.
– Não tenho interesse no poder e na política – ele disse – eu aceitaria
carregar esse fardo somente se fosse a vontade do Cordeiro.
– Tenho uma pergunta mais importante para você – falei – por que se
dedicou tanto a aprender pompena? É uma língua de pedantes!
– Tem razão. Mas eu a estudo desde pequeno e sempre gostei de
desafios. Eu acabei aprendendo muito bem antes que percebesse.
– Você é muito esquisito! – exclamei – você decora e aprende coisas
por acidente.
– Bem, isso não me torna melhor ou pior que ninguém – disse Rafael
– o que torna as pessoas melhores é cumprir a lei moral tendo em vista a
glória do Cordeiro, para elevar seu espírito até ele.
Eu resolvi reler a carta escrita por Jeremias. Havia algumas coisas nela
que eu precisava perguntar.
– Então você acha que Jezabel não é uma pessoa boa? – perguntei – é
o que diz na carta.
– O problema é que ela não gosta dos vermelhos – explicou Rafael –
então temo que ela tome alguma medida no futuro que prejudique a
Ordem.
– O gálata me disse que ela é uma adoradora dos servos do Dragão –
contei.
Rafael franziu a testa.
– O quê?
– Se o gálata me mandou entregar essa carta é porque o Cordeiro
quer que você tome o poder dela – falei – não está bem claro? Ou fiz
uma interpretação errada?
Rafael ficou pensativo.
– Não gosto dessa história de tomar o poder – ele disse – e não quero
brigar com Jezabel. Já briguei muito com ela por causa dessa história da
Ordem.
– E o que importa o que você gosta ou quer fazer? – perguntei – o
que importa é obedecer a Deus.
– Nisso você tem razão.
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– Hm?
– Eu queria falar sobre casamento.
– Que surpresa. Você nunca quer falar sobre isso. O que foi agora?
Você quer casar com o príncipe da Ilha de Emek para converter os
selvagens canibais?
– Não. Quero me casar com o príncipe Rafael de Tiatira. Nós nos
apaixonamos.
– Espere. O quê? Você quer se casar com o vermelho?
– Ele não é mais vermelho! Além disso, já nos conhecemos bem e
nos damos bem. Então está tudo certo. Não acha?
– Não sei o que dizer. Você me pegou de surpresa.
– Diga apenas: “sim, filhinha, como você quiser!”
– Você sabe que aquele rapaz tem sérios problemas mentais, não é?
– Pai, não era isso que você tinha que dizer. Era: “sim”.
– Ele fugiu sozinho de barco para uma ilha pelo “desejo sincero” de
ser devorado vivo!
– Eu juro que, apesar disso, ele é uma ótima pessoa!
Ele acabou concordando. E os pais de Rafael também, apesar de
Jezabel ser contra. Augusto, por outro lado, ficou feliz da vida.
Era triste saber que eu não veria mais Lucas com tanta frequência.
Mas um dia ele também se casaria e teria que tomar o seu caminho. Ao
menos agora eu ficaria mais perto de Gus.
Digamos que nosso noivado foi bem curto, pois estávamos ansiosos
para casar logo. Então pressionamos nossos pais a organizar a festa de
casamento o quanto antes.
A festa foi em Tiatira. Até arranjei um jeito de levar minhas duas
colegas.
Elas ficaram impressionadas com a pompa e elegância daquele
casamento. Nunca tinham visto nada igual.
Estavam todos tão felizes como se o próprio Cordeiro tivesse
retornado. Principalmente nossos pais. Aquele casamento significava
reforçar ainda mais a aliança entre os dois reinos.
Ouso dizer que os pais de Rafael eram os mais alegres de todos. Além
de eu ter salvado seu filho da morte após prendê-lo em casa, eu havia
criado um motivo poderoso para que ele não retomasse seu desejo de ser
mártir.
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despedace, não haveria dor maior que privar-me de ti. Tenho sede pela
sagrada comunhão. Sei que sou apenas um escravo, mas terias tu a
compaixão de fazer esse escravo ser a carne da tua carne?
– Ah, não, você quer fazer sexo comigo! – eu me deitei na cama e me
escondi por baixo dos lençóis, entre risos – bem que eu estranhei que
esse discurso estava muito longo e dramático. Era porque você queria
alguma coisa!
– Assim você me embaraça – ele sorriu – eu estava tentando dizer
isso de uma forma bonita. Mas não precisa ser hoje, se não quiser. Quer
esperar mais alguns anos para ter seus dois gêmeos lindos que parecem
gatinhos?
– Anos? De jeito nenhum! – exclamei – todos os meus irmãos, com a
exceção do meu irmão mais novo, já tiveram filhos. Não quero ser
deixada para trás.
– Independente da vontade dos seus pais, da sociedade ou de
qualquer outro, você quer ter filhos?
– Acho que sim. E você?
– Também acho que sim. E deixando os filhos de lado, irei respeitar
o seu desejo se você não quiser fazer isso hoje. Pode ser em qualquer
outro dia. Não há pressa.
– É claro que há pressa! – exclamei – eu só estou fazendo manha.
Você não faz ideia do quanto tenho pensado em você... desse jeito.
Estamos finalmente juntos. Não quero esperar nem mais um dia!
– Eu também não quero esperar – ele disse.
– Eu sei que você não quer – eu sorri – eu te conheço. Sempre
correndo desesperadamente para ser martirizado. A paciência nunca foi
sua virtude mais forte.
– Isso porque meu amor é muito grande.
– Tão grande que machuca – eu disse.
E nos beijamos. Dessa vez foi um beijo muito mais profundo e
apaixonado do que nosso primeiro. Da primeira vez foi algo delicado e
ingênuo. Agora estávamos queimando. As analogias espirituais eram
óbvias. Eu não sentia apenas meu coração queimando, mas meu corpo
inteiro. Eu estava sendo consumida pela chama, pronta para ser
martirizada.
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– Não preciso pensar nisso agora – ele disse – meus pais estão vivos e
com saúde e quero que eles continuem assim por muitos anos. Mais
algumas décadas, de preferência.
Infelizmente, eu não era tão bondosa e dedicada quanto ele. Eu
mantinha apenas as práticas religiosas num nível mínimo e não realizava
penitências muito relevantes. Eu também não tive mais interesse em
acompanhá-lo nessas visitas aos pobres, embora tenha sido uma
experiência marcante tê-lo acompanhado uma vez.
Mesmo assim, ele sempre respeitava minhas decisões e nunca forçava
nada. Ele deixava claro que eu seria sempre bem-vinda a acompanhá-lo
em qualquer coisa que ele fizesse quando eu desejasse. Mas eu realmente
não me via acordando um dia às quatro da manhã e dizendo: “puxa, me
deu muita vontade de ir na cerimônia religiosa! Acho que vou com você
hoje”.
– Se um dia quiser usar, eu tenho vários instrumentos de mortificação
da carne – ele me mostrou uma gaveta – em geral, estes não machucam
muito. Deve-se usá-los o dia inteiro e o objetivo é manter uma sensação
ligeiramente desconfortável toda vez que a roupa roça com a corda ou
metal. É uma lembrança constante da existência do Cordeiro. É para nos
lembrarmos que Deus está em tudo: tanto na alegria quanto na dor. É
uma forma de nos imolarmos por ele: aceitamos sentir desconforto por
ele porque o amamos. E cada vez que a roupa roça na perna somos
constantemente lembrados desse imenso amor. Nós só podemos chegar
a ele se aceitarmos sofrer por ele. Tudo que fazemos deve visar sua
glória. Mas você não precisa experimentar um deles agora, é claro. Se um
dia você se sentir chamada à vocação da mortificação, fale comigo que
será uma honra dar-lhe maiores orientações e explicações de como
funciona cada etapa de uso dos instrumentos.
– Claro – eu disse – obrigada.
Eu acho que eu me sentiria muito vaidosa usando uma daquelas
coisas, então não daria certo. Eu não achava que possuía a humildade
suficiente para me mortificar. Eu ficaria facilmente orgulhosa do alto
grau meritório das minhas práticas e assim elas não teriam muito valor.
Eu não gostava muito quando Rafael deixava de jantar comigo para
fazer os seus jejuns ou não ia dormir junto comigo para fazer suas
vigílias. Quando expressei a ele minha incomodação, ele imediatamente
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Aquele eremita negro tinha feito uma coisa que nem mesmo Jeremias
foi capaz de fazer. Então ele era digno de meu respeito.
Embora os vermelhos possuíssem altos méritos espirituais,
comunicações com os espíritos dos mortos não eram sua especialidade.
Mesmo assim, Jeremias conseguiu me proteger, me curar e me salvar. Eu
me sentia profundamente grata por isso.
O próprio Rafael inicialmente pensou que era Isabel quem estava nos
amaldiçoando. Mas ela era apenas um instrumento que Jezabel usou.
– Então foi Jezabel que amaldiçoou a mim e ao Lucas com a praga? –
perguntei.
– Ela estava visando atacar Isabel, que ainda habitava nosso castelo
na forma de espírito – ele explicou – pode ser que vocês tenham sido
atingidos ou porque eram espiritualmente puros ou porque estavam
muito vulneráveis a esse ataque.
Lucas podia até ser puro, mas eu não. Achei mais aceitável a
explicação de que nós dois não éramos espiritualmente fortes na época
para aguentar toda aquela carga de maldições.
Ou quem sabe Deus tenha permitido que pegássemos a doença para
nos dar ensinamentos? Mas se fosse assim, por que ele havia enviado o
gálata que pediu para que Lucas fugisse?
Não havia como ter certeza sobre o que Deus queria. Era um
completo mistério.
Pelo menos aquela questão estava resolvida. Porém, surgiu uma outra
que me era particularmente preocupante.
Eu estava ligeiramente resfriada ultimamente. Depois de ouvir o
relato assustador de Augusto, eu imediatamente associei minha doença
com Jezabel. Ele achou graça.
– Deve ser apenas um resfriado ou gripe. Essas coisas são comuns no
inverno. Em breve você já estará bem.
– Espero que sim.
À noite, perguntei se Rafael poderia me curar.
– Você quer que eu faça um milagre? – ele riu.
– Não pode?
– Eu posso rezar por você – ele disse – e o Cordeiro fará o resto.
E ele rezou. Não melhorei imediatamente. Mas pela manhã eu já me
sentia renovada. Até o fim do dia eu já estava completamente curada.
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Não sei se teve relação com a reza dele ou não, mas sempre que ele
rezava por mim eu já me sentia automaticamente abençoada. Eu
acreditava que um santo como ele era capaz de fazer milagres reais.
– Por que não faz milagres o tempo todo, já que você consegue? – eu
perguntei.
– Eu acho muito mais importante agradecermos a Deus todos os dias
pela bênção da vida e da morte, da alegria e da dor, do que pedir coisas o
tempo todo – foi a resposta dele – por isso eu evito pedir, especialmente
para mim. Mas eu intercedo pelos outros. É importante que a vontade
do Cordeiro seja respeitada. Que ele cure, mas somente se ele quiser. É
melhor morrer por uma doença por vontade de Deus e ser recebido em
seus braços protetores após a morte do que ficar curado e perder o céu.
Ele sabe mais o que é melhor para nós, então devemos apenas confiar.
– Também é por isso que você não se comunica com os gálatas com
mais frequência?
– Essa é uma vocação dos eremitas negros – ele respondeu – eles se
afastam das coisas do mundo e são capazes de encontrar os seres
espirituais na solidão dos desertos. Para isso, eles largam de si mesmos
completamente. Porém, é importante não se perder demais nessas visões
para não esquecer do mundo. Por isso os negros voltam para nós,
ajudando a velar os mortos e facilitando a passagem para a outra vida.
Alguns meses depois, completei 16 anos. Eu estava desapontada,
porque ainda não tinha ficado grávida do meu primeiro filho.
– Tenha paciência – disse Rafael – o Cordeiro nos dará um filho
quando for a hora certa.
Nenhuma das minhas irmãs teve dificuldade de engravidar. Tanto
Teresa quanto Catarina ganharam filho pouco tempo depois de casarem.
E esse também foi o caso de Augusto.
O que haveria de errado comigo? Tive um pouco de medo. Mais
alguns meses se passaram. Comecei a ficar meio deprimida.
Quando se passou um ano desde o dia do nosso casamento, tive uma
conversa com Rafael.
– O que vai acontecer se eu nunca for capaz de engravidar? –
perguntei a ele.
– Nós apenas não teremos filhos – disse Rafael – você acha ruim? Ou
prefere adotar?
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coisa e me queixava. Cada mês que vinha minha menstruação outra vez
eu chorava.
Eu nem mesmo sabia porque eu estava com tanta vontade de ter um
filho. Não sei de onde veio essa vontade. Eu apenas sabia que queria
muito ter o filho e não conseguia.
Enquanto isso, as filhas de Augusto e Jezabel cresciam a cada dia
mais bonitas. Jezabel frequentemente me dava indiretas idiotas do tipo:
– É tão maravilhoso ter filhos! É realmente uma bênção. É uma pena
que nem todas as mulheres sejam capazes de se tornar mães.
Aquela bruxa. Ela tinha feito alguma coisa a mim! Só podia!
– Gus, chame aquele seu eremita negro – eu disse – aquele que
enviou Isabel em segurança para o céu.
O eremita negro foi me visitar no palácio alguns dias depois.
Eu nunca tinha visto um negro tão de perto antes. Eles eram como
os vermelhos: usavam máscara, luvas e mantinham um voto de silêncio.
Também havia a distância de dois metros. Ele escreveu alguma coisa a
mim no bloco de notas quando expliquei minha situação:
Compadeço de sua situação. Porém, deve saber bem que a especialização dos
eremitas negros é com os mortos e não com os vivos. Por isso, não garanto que serei
capaz de resolver essa questão, mas irei investigar a possibilidade da maldição”
– Eu agradeço.
Rafael ainda não tinha tentado seriamente realizar um milagre para
que eu engravidasse, mas ele já tinha rezado muito. Por isso, se aquele
eremita negro resolvesse meu problema, aquilo poderia sugerir que ele
era ainda mais poderoso do que o próprio Rafael.
Eu já desconfiei disso quando ele salvou Isabel sem maiores
dificuldades depois de Jeremias quase morrer tentando. Então eu
esperava grandes coisas daquele negro.
Ele solicitou permanecer algumas horas num dos cômodos do
castelo. Disse que iria entrar em transe ou algo assim. Eu o deixei a sós.
Quando retornou, ele tinha um relato completo da situação:
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“A princesa Jezabel foi responsável por essa maldição. Venha até aqui e te
libertarei dela. Tenho permissão de tocá-la?”
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Capítulo 6
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você, que teve tudo: aventuras perigosas em terras distantes e até mesmo
uma dramática história de amor.
– Quanto mais passa o tempo, mais vejo que houve uma razão para
tudo ter acontecido dessa forma – eu disse – até mesmo as dores mais
excruciantes que tive um dia, e que na época pareciam sem significado,
agora têm um novo sentido. É o quebra-cabeça de Deus.
Se não fosse a maldição de Jezabel, eu não teria contraído a praga. Se
eu não a tivesse contraído muito provavelmente não teria corrido
desesperadamente até Tarsus para ter tempo de ver Jeremias morrer e ter
a visão de Galácia e da chuva de pedras. E Rafael só foi para meu castelo
porque levei Lucas junto comigo. Foi tudo perfeitamente calculado para
acontecer da melhor forma possível. Mas esse era um cálculo divino e
não um cálculo humano. É claro que eu não era capaz de ver nada disso
na época. Se eu pudesse escolher, teria pedido para o Cordeiro remover a
minha praga. Eu teria casado com um príncipe arrogante e pedante e
minha vida teria sido muito diferente. Eu toparia enfrentar qualquer
doença do mundo e o pior dos horrores para poder me encontrar com
Rafael.
Então era por isso que os vermelhos topavam encarar o maior dos
horrores: porque eles precisavam encontrar Deus de qualquer maneira.
Será que eu devia agradecer Jezabel pela maldição? Ou devia agradecer o
Augusto por ele ter namorado a empregada? Ou quem sabe também
devia agradecer meu pai, pois foi ele que falou com o eremita negro e
conseguiu encontrar um vermelho para me dar aulas: Jeremias. Foi lá que
tudo realmente começou.
Eu não teria feito nada na minha vida por mim mesma. Se parasse
para pensar, eu teria pelo menos dezenas de pessoas para agradecer por
ter chegado onde eu estava naquele momento e por ter vivido todas as
situações preciosas que vivi. No entanto, era o Cordeiro que estava no
centro de tudo. Era ele o protagonista da história da minha vida e da
história do mundo.
Era emocionante ter a honra de ser uma personagem de uma história
tão espetacular. O Cordeiro era como o escritor de um romance de
cavalaria e ele tinha grandes planos para mim. Mas ainda que ele
conhecesse meu destino, eu também tinha meu livre-arbítrio.
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Catarina riu.
– Você sempre foi assim, irmãzinha – disse Catarina – boa com
palavras, pronta para dar belos discursos. Mas na hora de aplicar o que
você mesma está dizendo, fica aborrecida por causa de algo trivial como
um chá.
– Acho que você está certa – eu disse – mas quero acreditar que
amadureci um pouco nos últimos anos. Especialmente depois de me
tornar mãe. Eu já amava Rafael de uma forma tão intensa que chegava a
doer. E então quando eu tive filhos senti um tipo de dor e amor que
superava tudo o que conheci. Aquelas criaturinhas pequenas e indefesas!
Como não amá-las? Eu precisava protegê-las, dar minha vida por elas.
Agora entendo como o Cordeiro enxerga os seres humanos: aos olhos
dele, nós somos como bebês delicados. Por isso ele se sacrificou por nós.
Eu encontrei Deus em Rafael. E o encontrei novamente nos meus filhos.
A cada dia o amor vai crescendo e crescendo, mas sem jamais separar-se
da dor, que é o supremo mestre.
– E como vão os seus deveres de rainha? – perguntou Catarina –
deve ser bem estressante.
– Foi depois que subimos ao trono que eu e Rafael tivemos nossas
primeiras brigas realmente pesadas – expliquei – ficamos chocados um
com o outro, como se fôssemos completos estranhos. Onde antes eu via
um santo, parecia que eu via o Dragão. Em certo momento até cheguei a
ter esse pensamento horrível: “por que eu me casei com esse monstro?
Eu estava louca?”, mas quando resolvi parar de culpá-lo por todas as
nossas discussões e olhar para mim mesma, comecei a perceber que
grande parte da culpa por nossas discussões intermináveis era minha. Eu
sempre ponho muito peso nele, pois ele foi o vermelho, ele é o sábio, ele
é o santo. Ele que faz milagres e fala com gálatas. Eu sempre exijo que
ele tenha uma solução mágica que vai resolver tudo e quando ele não
tem eu fico frustrada. Como ele leva uma vida quase perfeita, cada vez
que ele falha eu me choco em descobrir que ele não é Deus, mas apenas
humano.
– Seu marido é realmente um santo – disse Catarina – mas lembre-se
que até mesmo o Cordeiro virou as mesas do Templo. Até mesmo a
raiva tem um papel no mundo, Bibi, assim como a dor. E ela tem o seu
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papel contanto que até ela seja usada para glorificar o Cordeiro: indignar-
se diante de injustiças.
– O povo ama Rafael – contei – ele já é venerado como um santo.
Como um rei santo. Espalhou-se a história do adolescente que abdicou
do trono e fugiu de casa para tornar-se mártir. Todos sabem que ele
viajou para Tarsus e para a ilha de Emek para tentar se martirizar e não
conseguiu. Não eram apenas palavras vazias: ele foi sério em seu
objetivo. Passou pelo rigoroso treinamento dos vermelhos e quase
atingiu o martírio. Mas os planos do Cordeiro eram outros. Até hoje,
Rafael ainda vai visitar as zonas pobres da cidade, todos os dias, para
distribuir comida e ensinamentos religiosos para os mais humildes.
Histórias sobre ele já estão sendo contadas em todos os reinos.
– As histórias chegaram em Sardes – disse Catarina – ele é um
modelo para todos os reis.
– Mas nem mesmo ele escapa de críticas – eu disse – muitos o
acusam de usar a religião para manipular o povo. Também dizem que
essas caridades que ele faz todos os dias são apenas esmolas vazias, algo
simbólico para ganhar a aprovação popular. Muitos dizem que ele ainda
não realizou medidas políticas o bastante para ajudar a população e que
todo esse ideal de bondade e nobreza é mera aparência. Que aquilo que
precisamos são mudanças sociais profundas e não apenas consolos
religiosos vazios para desviar a atenção do povo daquilo que realmente
importa.
– E como ele responde a essas críticas? – perguntou Catarina.
– Ele regularmente escreve cartas para recitar publicamente, sobre
uma variedade de tópicos – expliquei – uma vez ele escreveu uma carta
defendendo o uso do cilício e recentemente outra defendendo o jejum.
Os seus detratores o criticaram dizendo que ele deve falar sobre tópicos
relevantes que trarão uma mudança real na vida do povo em vez de fugir
para esses “temas doentios de práticas religiosas antiquadas que nada
resolvem”. Eu vou ler para você a carta que ele escreveu sobre a prática
de jejum, chamada: “O jejum como caminho para a caridade e para a
elevação do espírito”.
Levantei-me e procurei as cartas guardadas numa gaveta. Essa era
uma carta relativamente recente e estava logo em cima, então foi fácil
encontrá-la. Iniciei minha leitura:
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“Jejuar é uma prática religiosa que existe por tempos imemoriais, espalhada e
defendida pelas mais variadas religiões do mundo. Infelizmente, tal prática já não é
tão popular nos dias de hoje, especialmente entre os leigos. Isso se deve a uma série de
fatores, os quais iremos examinar.
Atualmente, temos uma grande variedade de opções de entretenimento,
especialmente após a invenção da imprensa. Antigamente, além de haver uma menor
taxa de alfabetização, o acesso aos livros era difícil. Eles deviam ser copiados por
inteiro completamente à mão pelos copistas. Ainda existe a profissão de copista, mas
desde que livros começaram a ser impressos em papel e pergaminho com pigmentos a
base de azeite por tabelas e blocos de pedra, a atividade da leitura tornou-se não
apenas um entretenimento de nobres que tinham dinheiro suficiente para adquirir
livros.
Nos tempos em que muitas pessoas pobres não sabiam ler e mesmo se soubessem
não teriam dinheiro para comprar livros, as práticas religiosas se restringiam a assistir
as cerimônias dos sacerdotes e realizar práticas de penitência. O jejum sempre foi uma
prática gratuita e que todos teriam acesso. Era comum que aqueles realmente pobres e
que passavam fome dedicassem sua fome para a glória de Deus. Esse era,
infelizmente, um jejum forçado, mas ainda assim meritório.
Um grande número de pessoas começou a descobrir o potencial imenso dos jejuns.
Passar fome é algo horrível e todos que já passaram por isso sabem que se trata de um
dos sofrimentos mais insuportáveis. Nenhum ser humano devia passar por essa
vivência assustadora contra a própria vontade, mas o sábio Deus conseguiu até mesmo
nisso esconder um valioso tesouro, assim como ele esconde em todas as coisas.
O jejum com propósito religioso é uma mortificação da carne tendo em vista atingir
o espírito. Um jejum realizado com o mero propósito de passar fome não trará
nenhum bem, mas apenas sofrimento. Por isso, para dominar essa prática é preciso
muito treino e dedicação. Deve-se fazer tudo aos poucos, de forma moderada e com a
orientação de um diretor espiritual.
Nossa religião nos ensina o caminho da morte para se chegar ao Imolado. Para
isso, deve-se aprender a morrer pouco a pouco ao longo da vida, soltando cada pequeno
pedaço de nós pelo caminho. Se soltássemos tudo de uma vez, sem preparo, haveria
uma dor indescritível. Por isso, deve-se ter paciência de caminhar passo por passo. No
começo, serão passos trôpegos e pequenos. Com o tempo, aprende-se a caminhar de
forma mais confiante.
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Os alimentos são presentes abençoados por Deus e nos dão a vida. Não é errado
experimentar prazer ao comer se o fazemos pela glória do Cordeiro Imolado. No
entanto, deve-se sempre lembrar qual é o propósito da comida: a vida. Aquele que
busca seguir o Cordeiro seriamente deve, em certo momento de sua existência, entender
que a morte também faz parte da vida e deve ser buscada para que tenhamos uma
vivência completa de tudo de abençoado que está no mundo.
A comida nos dá a vida e a visão da criatura. O jejum nos leva à morte e à visão
do criador. É importante ter isso em mente para que ao longo da nossa existência
possamos buscar ambos: um pouco de vida e de morte. Por isso os leigos que realizam
jejuns regulares, como toda sexta-feira, são capazes de seis dias por semana ver Deus
nas suas criaturas e glorificá-lo através delas, enquanto um dia por semana verão
Deus por si mesmo, pela bênção de experiências místicas ou das trevas que levam à
luz.
Desejar glorificar o Cordeiro por suas criaturas ou através da busca de sua visão
beatífica são vocações diferentes, mas tanto os leigos quanto os sacerdotes
experimentam ambas ao longo da vida. Elas apenas variam em intensidade, de
acordo com os planos do Imolado para cada um.
Não é preciso realizar jejuns muito longos para beneficiar-se deles. Algumas horas
de jejum, um dia ou poucos dias já serão o bastante para os iniciantes. Pode-se optar
por abster-se de tipos específicos de alimento, ficar apenas com água ou ficar sem nada.
O jejum tradicional é feito apenas com água, mas os outros tipos também podem ser
experimentados. Cada pessoa é chamada para um tipo de jejum diferente e que varia
em duração.
Lamentavelmente, nos dias de hoje são poucos aqueles que possuem tempo ou
interesse para dedicar sequer algumas horas para jejuar pelo Imolado. Pessoas jejuam
por outros motivos, mas para que se adquira mérito espiritual através disso é
importante que durante o período de jejum possamos nos recolher a práticas espirituais
específicas, como orações, leituras dos Selos, silêncio e outras penitências. A própria
penitência do silêncio é pouco compreendida num mundo em que as pessoas confiam
muito em suas próprias ideias e nunca param para escutar o que Deus tem a dizer.
Outro dos inúmeros benefícios do jejum é igualar-se ao pobre. Quando nos
abstemos de comida por um longo período, por mais que estejamos com saúde,
mentalmente e espiritualmente preparados, não somos capazes de permanecer como
fortalezas ao longo de todo o processo. Eventualmente, sentimos uma fome genuína.
Até o Cordeiro sentiu fome após seu jejum de 40 dias no deserto, que os eremitas
negros imitam.
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mas a religião deve ser vista como fim e não como meio. Ela é a verdade e a vida. A
elevação moral, a busca de igualdade e a justiça servem para nos levar a Deus e não o
contrário.
Os valores estão invertidos num mundo em que os jovens preferem ler romances de
cavalaria e se deleitar com as nobres batalhas dos cavaleiros que salvam a donzela do
Dragão. Jamais repararam eles que todas essas novelas que exaltam o ideal
cavaleiresco no fundo são alegorias para que desperte no leitor a vontade de viver a sua
própria aventura e batalha espiritual em seu corpo e espírito, em sua própria vida?
O Dragão é o Inimigo do Imolado, é o gálata caído. A donzela é o Cordeiro. O
cavaleiro é nosso espírito e seu cavalo é nosso corpo. Sua espada é nossa fé. Além da
espada ele poderá se equipar com outras armas, como a armadura dos jejuns e outras
penitências.
Mas há outra interpretação. A donzela indefesa somos nós. Podemos apenas
rezar para que o Cordeiro nos salve, pois isso depende da vontade dele e não da nossa.
Está em nosso livre-arbítrio irmos até a janela e termos a humildade de pedir ajuda.
Nós não vamos até Deus. É Deus que vai até nós. Esse entendimento é fundamental
para prosseguir: sem ele, não teríamos a força de dar o menor passo. Sem ele somos
como mortos, meros cadáveres vivos. É ele que dá a vida, o espírito imortal.
Os livros e as outras diversões da vida são importantes e nos inspiram, mas nunca
deixem de viver suas próprias aventuras na vida real. Não se deve viver somente a
aventura do corpo, mas da alma, que é nossa real missão tanto nesse mundo quanto
no outro.
Os jejuns nos esvaziam de nós mesmos para dar espaço para Deus habitar em
nós. No dia a dia nos enchemos de outras coisas para suprir a necessidade de
preenchimento, que só pode ser plenamente atendida pela presença do Imolado. Mas o
Cordeiro não pode habitar um templo preenchido por outros Deuses.”.
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Eu era a soma do amor que tive por todas as pessoas queridas que
cruzaram meu caminho ao longo da vida e também do amor que elas
tiveram por mim. Pensar assim me fazia sentir bem, pois eu me sentia
protegida. Eu admirava as pessoas ao meu redor, por mais que, em
épocas mais críticas e pessimistas da minha vida, eu só visse seus
defeitos. Se eu tivesse adquirido um pouco da bondade que tinha em
cada uma delas, já seria o bastante.
Naquela noite, quando fui dormir, encontrei Rafael sentado na nossa
cama, ainda vestido, rodando a coroa entre os dedos.
– Não vai tomar seu banho para deitar? – perguntei.
– Daqui a pouco.
– Você parece desanimado.
Após alguns segundos de silêncio, ele disse:
– Bibiana, eu não sou digno. Eu sou fraco.
– Do que está falando?
– Esse negócio de ser rei não é para mim.
– Que absurdo! – eu ri – nunca vi alguém com tanta vocação para ser
rei quanto você. Eu acho que você é o rei mais justo, mais nobre e mais
espiritual que já caminhou sobre a terra.
– Esse é o problema – disse ele – sou “espiritual” demais. Sou bom o
bastante como mártir, mas não bom o bastante como rei. As pessoas me
criticam e dizem que só falo sobre jejuns, mortificações e rezas e
raramente dou resposta para os “problemas reais” que a população está
enfrentando.
– Então eles não leram as cartas maravilhosas que você escreveu –
respondi – lá você explica tudo: a importância de colocar o espírito em
primeiro lugar para que possa ocorrer uma transformação realmente
estável e definitiva no mundo.
– Sim, as pessoas gostam das minhas cartas, mas depois dizem: “e
daí? Quando você vai resolver o problema dos hospitais sucateados e
dos esgotos a céu aberto?”.
– Mas você está resolvendo! – exclamei – estamos trabalhando em
muitos projetos para isso e já aplicamos vários deles.
– Ainda assim a população não está satisfeita. Dizem que só estou
“tapando buracos” com minhas esmolas para os pobres, minhas lições
dos Selos e minhas cartas sobre confissões e vigílias. Tudo isso que estou
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falavam em reuni-las num livro que no futuro poderia fazer parte das
nossas escritas religiosas de caráter santo e divinamente inspiradas.
Havia uma pequena parcela da população muito influente que estava
começando a se opor diretamente a toda essa santidade atribuída ao rei.
Na opinião deles, Rafael poderia ser reverenciado como santo quando
estivesse morto e não fosse mais capaz de tomar nenhuma medida
política que pudesse causar danos graves. Eles não cansavam de apontar
vários pequenos erros que Rafael havia cometido e com isso defendiam
que ele não era santo coisa nenhuma, mas apenas um ser humano
vaidoso que queria enganar a multidão. Eles temiam que o fanatismo e a
reverência do povo o levassem a apoiá-lo cegamente se de repente Rafael
instituísse alguma medida polêmica e perigosa.
Eu entendia a posição deles e o medo que sentiam com toda aquela
tensão que a santidade do rei provocava. Mas Rafael não declarou-se
santo. Ele apenas gostava de falar de religião publicamente e de visitar os
pobres. Porém, isso se somava à lenda do fabuloso passado que ele teve.
A veneração era inevitável.
Rafael já havia reduzido suas práticas devocionais, então as únicas
coisas que ainda estariam em seu poder mudar para acalmar a multidão
seria parar de escrever suas cartas e parar de visitar os pobres.
Na verdade, esse grupo que se opunha ao rei exigia que ele fizesse
isso. Diziam que as cartas e as visitas ludibriavam o povo. As cartas
tocavam a razão e as visitas tocavam o coração, fazendo com que o povo
se dobrasse por inteiro. Se não houvesse mais falatórios e aparições
públicas, o problema estaria resolvido.
Mas se Rafael simplesmente obedecesse aquela exigência e fizesse o
que havia sido pedido, ele seria visto como um rei fraco.
– Não importa se serei visto como fraco ou forte – ele me disse – eu
só quero cumprir a vontade de Deus.
Acho que aquela simples sentença já mostrava sua força e
determinação. Mas, acima de tudo, mostrava sua fé.
– Reze – eu disse a ele – para descobrir o que o Cordeiro espera de
você nesse momento.
– Ele me deixou na escuridão. Sinto-me abandonado. Parece que eu
falo com ele e ele não me responde.
– Então eu rezarei por ti.
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ficou para trás. Hoje sou apenas seu rei, o servo do povo. Não quero
governar conforme minha vontade, mas de acordo com a vontade de
Deus. Isso é tudo que defendo quando falo de tópicos religiosos. Não
tenho intenção de estabelecer um governo teocrático. Os poderes regular
e secular ainda continuam formalmente separados, embora unidos em
espírito.
Ele ainda falou mais algumas coisas depois disso, mas apenas aquele
começo já foi o bastante para “comprar” o povo, nas palavras de seus
detratores.
O pequeno grupo que se opunha ao rei tinha um nome: Frente Laica,
ou F.L. Segundo eles, aquele pronunciamento do rei piorou ainda mais a
situação. Disseram que não era muito diferente falar aquelas coisas e
mostrar um milagre. A suposta humildade do rei já era um milagre
suficiente para impressionar a multidão e comprovava ainda mais sua
santidade em vez de diminuí-la.
– Não tenho para onde fugir – Rafael me confessou – não importa o
que eu faça ou o que eu diga. Estou encurralado.
– Não se preocupe – eu disse a ele – agora que isso aconteceu, faça o
que já devia ter feito: cancele as cartas e as visitas aos pobres.
– Posso cancelar as cartas – disse Rafael – mas como posso deixar de
visitar meu povo? Muita gente ficará sem comer se eu não levar-lhes pão
amanhã.
– Em vez de levar pão você mesmo, mande outra pessoa levar ou
simplesmente estabeleça alguma medida política forte que impeça os
cidadãos de passarem fome! – exclamei.
– Bibi, isso não é tão simples... você sabe que essas coisas não são
fáceis. As pessoas acham que política é assim, um passe de mágica.
Pensam que basta boa vontade. Mas a realidade é bem diferente. Não
importa o quão rico seja o reino de Tiatira, o nosso dinheiro é limitado.
Estou fazendo tudo que posso. Eu até mesmo estou vendendo os artigos
ricos do nosso palácio. Eu já vendi praticamente metade do patrimônio
que meus pais me deixaram para apressar as reformas. Só não vendi a
outra metade porque pertence a Jezabel e ela não quer se desfazer de sua
parte.
– E mesmo assim não há dinheiro suficiente? – perguntei.
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– Você me disse para não levar os pães eu mesmo, mas mandar outra
pessoa levar. Mas agora eu recebi uma ordem divina para fazer isso.
Você entende, não é?
– Parece que a mensagem do sonho foi bem clara – falei – e você não
quer contrariar a vontade do Cordeiro, certo?
– Isso – ele sorriu – que bom que você entende.
Ele me abraçou, mas ainda estava chorando.
– Desculpe – ele disse – estou apenas muito estressado com tudo
isso.
– Eu entendo. Pode chorar o quanto quiser. Fico feliz que você
finalmente recebeu o seu sinal. Rezamos tanto para receber uma
indicação do que deveríamos fazer a seguir. Nossas preces foram
finalmente atendidas.
– Também me sinto muito feliz. Tão feliz que nem consigo parar de
chorar.
– Suas lágrimas são de alegria ou de tristeza afinal? – eu ri.
– Acho que um pouco dos dois.
– Seu bobo. Não me assusta desse jeito.
– Você tinha razão, Bibi. Parece que tudo vai ficar bem agora. Tudo
está resolvido, finalmente.
– É mesmo – eu disse – os pobres terão o pão e você estará
protegido por Deus.
No dia seguinte, Rafael foi para Dinar. Ele quis ir sozinho para lá,
sem seguranças. Montou num cavalo que levava uma carroça carregada
de uma quantidade enorme de pães.
Quando voltei para o quarto para pegar um casaco no guarda-roupa,
havia uma moça desconhecida movendo minha cama de lugar.
– Com licença? – eu disse.
– Perdão, rainha Bibiana – disse a moça – recebi ordens para remover
a sua cama.
Será que aquilo era coisa de Jezabel?
– Ordens de quem? – perguntei.
– Do rei.
Era só o que faltava! Rafael era bastante caridoso, mas agora ele já
estava exagerando. Ele já havia vendido muitos móveis da nossa casa.
Precisava vender também a nossa cama? Ele certamente não se
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fazê-la mudar de ideia. Sendo assim, o resgate não seria pago. Não havia
o que discutir.
Eu poderia pedir auxílio de fora. Podia falar com meus pais ou com
meus irmãos para mandarem dinheiro. Será que eu deveria? Era uma
possibilidade.
Mas não demorou muito para recebermos uma segunda mensagem.
Ela dizia que o resgate devia ser pago em até 24 horas. Se não fosse,
Rafael seria assassinado no ato.
– E agora você se convenceu? – Augusto perguntou.
– Não – disse Jezabel – eu irei procurar esses desgraçados e matá-los.
Reúnam o exército. Nós vamos para Dinar.
Lá estava Jezabel agindo como se fosse a rainha. Mas por enquanto
eu iria deixar que ela fizesse as coisas do seu jeito. Eu sentia que a minha
tarefa era outra.
Bati na porta do cômodo no qual se encontrava o eremita negro. O
coitado estava eternamente confinado em meu palácio, mas acabou se
acostumando. Pelo menos ele não tinha pressa em ser martirizado. Os
eremitas normalmente viviam até uma idade bem avançada, então ele
talvez não tivesse tanta pressa para retornar ao seu deserto.
Entrei e sentei-me diante dele. Ele estava sentado no chão e rezando.
– Por favor – eu disse – eu te imploro. Salva meu marido. Ele foi
sequestrado.
O eremita saiu de sua oração para escutar o que eu tinha a dizer.
– Ontem ele teve um sonho – expliquei – um gálata e um santo o
mandaram ir até Dinar. E lá ele foi preso por extremistas da F.L. O que
isso significa? O Cordeiro quis que ele fosse preso? Eu quero saber o que
precisamos fazer a seguir.
Ele escreveu:
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– O quê?!
Aquela era uma penitência popular da cidade. A escadaria do Templo,
que dava para o alto de uma torre, tinha mais de mil degraus. Eu levaria
longas horas para completar meu objetivo e seria doloroso.
– Está bem, farei isso – respondi, simplesmente – mas o que devo
fazer depois que chegar lá?
A resposta foi a seguinte:
“Quando chegar ao topo da torre, o próprio Galácia lhe dirá o que deverá fazer a
seguir”
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Cordeiro só aceitaria aquele que caiu por ele. Aquele que diminuiu a si
mesmo ao máximo para deixar espaço para o Imolado preenchê-lo.
Notei que eu já estava na metade do meu caminho. Aquilo era bom?
Aquilo era ruim? Não importava. Eu só devia continuar, sem olhar para
trás e sem olhar para frente. Eu devia seguir Deus no presente e não no
passado ou no futuro. Se ainda faltava muito ou pouco não importava.
Eu faria a minha parte. O Cordeiro faria o resto.
Mas estava muito quente. O suor escorria de mim e pingava. Minha
boca estava seca. Eu não sabia se iria desidratar no meio do caminho.
Só que aquilo não importava. Rafael estava sofrendo muito mais.
Estava nas mãos de estranhos, sem nenhum amigo, enquanto eu tinha
dez companheiros. Rezei por ele. Eu disse:
– Imolado, eu aceito esse calor e essa sede. Obrigada pela dor e pela
sede. Salva o Rafael. Faz com que eu sinta o sofrimento que ele sente e
diminui a dor dele. Por favor, coloca tudo em mim.
Poucos minutos depois dessa reza, começou a chover.
Primeiro os pingos d‟água caíam de forma tímida. Depois se
intensificaram, a ponto de eu me perguntar se o Cordeiro havia aberto
um chuveiro na minha cabeça.
Finalmente o calor terminou. Até a sede diminuiu parcialmente, pois
consegui beber um pouco da água da chuva.
Agora eu estava com frio e medo. O céu ficou nublado. Aos poucos a
noite caía.
Eu me assustei. Como podia? Já era noite? Quanto tempo eu fiquei
nos degraus? A que velocidade eu subia?
Eu me sentia numa espécie de transe. A dor era tanta que eu já não
sentia meu corpo. Eu apenas subia de forma automática, como se o
corpo não fosse mais meu. Eu era movida por Deus e não por mim
mesma.
Foi só então que avistei o topo. Ainda assim, eu me mantive em meu
caminho com paciência, sem apressar as coisas.
Quando finalmente subi o último degrau, atirei-me no chão. Eu caí,
completamente exausta, sem conseguir levantar mais.
Eu estava ensopada e tremendo. Minhas mãos e meus joelhos
estavam sangrando.
Rezei para o Cordeiro e ofereci a ele todo meu sofrimento.
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Eu tremi quando ouvi isso. Sua voz era calma como água, mas
terrível como um trovão.
Ainda chovia.
– Por favor, salve Rafael...
Foi isso que consegui dizer. Eu repeti isso algumas vezes, até perder
quase todas as forças.
– Rainha Bibiana, ele está salvo.
Eu suspirei aliviada diante daquela revelação. Agora eu finalmente
poderia ficar em paz. Tinha cumprido meu objetivo.
– Onde ele está? – perguntei.
– O rei está conosco – disse o gálata – e agora contempla o maior dos
reis.
Ao ouvir isso, meu coração morreu dentro de mim. Eu caí num
choro violento.
– Por que vim até aqui? – perguntei, em meio às lágrimas – pensei
que pudesse salvar sua vida...!
– Em breve tudo ficará claro. Come esse maná que te dará forças
para descer a escada. Conforta tua família. Dá a eles a boa notícia. E
amanhã vai ter com o Papa Dourado.
Minha visão ficou momentaneamente turva. Eu estava exausta.
Fechei os olhos por breves instantes. Quando voltei a mim alguns
segundos depois, o gálata já tinha se retirado.
Em seu lugar estava o tal maná. Ele se parecia com um pão redondo
sem fermento.
Depois de comer do maná, senti minhas forças voltarem por inteiro.
Era como se eu tivesse renascido.
Desci os mil degraus tão rapidamente e com tanta facilidade que mal
percebi. Já tinha parado de chover.
Antes que eu me desse conta, já estava em casa. Realmente, parecia
que era Deus que me movia e não eu mesma.
Todos estavam chorando muito. Desesperadamente.
Eu nunca tinha visto aquilo antes: até mesmo empregados choravam
forte como se um parente querido tivesse morrido. Todos o amavam.
Eu e Augusto nos abraçamos. Foi somente quando o abracei que
voltei a chorar. Desde que o gálata sumiu, eu consegui conter minhas
lágrimas. Mas agora não dava mais.
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– Então não fiz mal em matá-lo – disse o líder – eu o levei para o céu.
Que mal eu fiz?
Eu queria torturar aquele desgraçado horrivelmente. Queria matá-lo
com muita dor.
– O rei te perdoou? – perguntei.
– É claro que sim, mesmo sem eu pedir por isso – ele riu – aquele
santo de merda. Ele perdoaria até o Dragão.
Dei-lhe um soco na cara. Eu não era muito boa em dar socos, mas
aquele foi bem dado. Pareceu doer bastante. Fiquei satisfeita.
– Você ainda não entendeu, Vossa Majestade? – ele perguntou com
ferocidade e com um sarcasmo ainda maior – um santo como ele não
tem lugar nesse mundo. Essa terra é para pecadores. Eu fiz um favor a
ele. O maior dos favores. Com isso ganhei méritos suficientes até para
subir ao céu.
– Eu juro que se você subir ao céu eu prefiro até habitar com o
Dragão do que ter que olhar para sua cara outra vez.
Ele deu um largo sorriso, como se estivesse gostando da minha raiva.
– Devo torturá-lo, Vossa Majestade? – perguntou o guarda.
– Eles não deverão ser torturados ou mortos – decidi – eles terão
prisão perpétua. E passarão o resto dos seus dias lendo os Selos.
– Os Selos? – o líder gargalhou – por que tenho que ler aquela
porcaria? Prefiro morrer.
– Seria muito piedoso matá-los e mandá-los ao inferno, para onde ele
quer ir – expliquei – se eu quero torturá-lo de verdade, irei obrigá-lo a ler
os Selos, rezar e assistir cerimônias religiosas. Essa será sua punição
eterna. Para o servo do Dragão, o que causa mais dor é uma reza. O céu
é o inferno e o inferno é o céu. Então só haverá dois destinos para eles:
ou a conversão ou um sofrimento terrível de estar diante de Deus e ver-
se eternamente separado dele.
– Puta.
– Guarda – eu disse – faça-o copiar as primeiras cem páginas dos
Selos e me entregar pela manhã. Se não o tiver feito, ele deverá rezar o
“Magnífico” duas mil vezes.
Eu saí de lá.
Eu sabia que eu era uma pessoa terrível. Nunca fui uma santa. Mas eu
simplesmente me descontrolei. Eu era humana. Uma mera humana que
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Era uma boa pergunta. A vida fazia muito mais sentido se houvesse
outro mundo. Minha penitência devia ter auxiliado Rafael de outra
forma.
Foi então que me dei conta: Rafael devia estar sendo torturado e
martirizado no exato instante em que eu subia os degraus.
Aquele foi o presente que Deus me deu: a honra e a glória de sofrer
junto ao meu amado. De sentir parte de sua dor em meu corpo e em
meu espírito.
Quando me dei conta disso, eu chorei muito. Ajoelhei-me para rezar,
mesmo com os joelhos ainda doloridos. Agradeci ao Cordeiro por aquela
bênção inacreditável que havia me concedido, que quase superava o que
eu mesma pedi.
Cada vez mais o mundo fazia um sentido assustador. Os planos do
Cordeiro eram cada vez mais claros.
Por mais gentil que Rafael fosse, eu sempre soube que seu grande
sonho era o martírio. Mas ele ao mesmo tempo me amava. Então ele não
podia simplesmente largar a mim e aos filhos.
Morrer martirizado enquanto distribuía pães aos pobres era a forma
mais nobre de perder a vida. A única forma que se equiparava a essa ou
até a superava era morrer pregando os Selos, como Jeremias tinha feito.
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“Eu não gosto de revelar o segredo de nossos irmãos, mas o seu eremita negro é
uma mulher. Achei que gostaria de saber disso”
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– Eu sei.
– Eu poderia deixá-los com Augusto, mas não sou louca de deixá-los
com sua irmã!
Rafael riu.
– Está feliz? – perguntei.
– Mais que nunca – garantiu Rafael – eu só estava preocupado com
você.
– Prometo que vou ficar bem – eu disse – será difícil ficar sozinha a
partir de agora, mas eu aguento. Porque sei que estará me esperando.
– Não precisa ficar sozinha, Bibi. Quando estiver junto do Cordeiro
também estará comigo.
– Eu sou egoísta – falei – quero seu corpo, quero sua alma, quero
todo seu ser.
– É claro que você quer – ele me deu outro sorriso amável – eu amo
sua sinceridade, Bibi. Amo tudo em você.
E trocamos um beijo na boca, repleto de amor.
– Esse é um beijo de despedida? – perguntei.
– Sinto muito. Eu preciso ir.
– Vocês vão voltar para junto do Imolado? – perguntei.
– Sim.
– O que eu devo fazer a partir de agora? Por favor, me guie! Eu
desejo saber qual é minha missão no mundo!
– Você já se esqueceu, Bibi? Não é preciso saber o futuro. O que
importa é apenas confiar no Cordeiro no presente. Você não precisa
fazer mais nada além de não largar a mão do Cordeiro nunca mais e não
largar a mão daqueles que sofrem. Fazendo apenas isso, você virá para
junto de nós sem falta após a morte.
Foi uma despedida dolorosa. Mas eu fiquei feliz da vida ao ver
aqueles dois, sorrindo e felizes. Se eles estavam em paz, eu teria forças
para prosseguir em meu caminho, não importava o quanto doesse.
– Você me viu na escada? – perguntei, antes de ele partir.
– É claro que te vi. Obrigada por sofrer comigo. Fui eu que mandei a
chuva para saciar o teu calor e a tua sede. Ela caiu quando morri.
Eu também queria ter a fé e a força para me tornar a chuva para
alguém após a morte.
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Quando os dois foram embora, Mateus retornou. Ele sorriu para nós
e levou a mim e a eremita negra de volta ao Templo. Os dois
recolocaram a máscara e o capuz.
Retornamos para o palácio. Contei a Augusto tudo que vi.
– Você acredita? – perguntei.
– Quero acreditar – respondeu ele.
Agora eu estava sozinha como rainha. Aquilo era meio assustador. Eu
me sentia tranquila na maior parte do tempo porque Rafael me dava
forças. Mas e agora? Como competir com Rafael pela aprovação do
povo?
Resolvi iniciar fazendo somente o mínimo: eu iria manter os projetos
que o Rafael começou. E depois de toda aquela tensão com assuntos
religiosos, eu iria cuidar para não envolver tão diretamente religião e
política como ele fez. Eu entendi o que ele quis dizer. Não estava
misturando os poderes. Mas o povo não interpretava dessa forma.
Eles criticavam os fanáticos que queriam obedecer Rafael até se ele
mandasse matar todo mundo, mas os extremistas da F.L. foram piores:
não aceitaram morrer, mas mataram.
Nos meses seguintes, não houve grandes protestos. Na verdade, não
houve comentários em geral. Todos ainda estavam de luto pela morte de
um santo e aceitavam respeitar minhas decisões de governo em memória
dele. Por enquanto.
Quando completei 21 anos, senti que estava começando a me
acostumar a governar. Era bem mais difícil sem Rafael estar por perto
em carne e osso, mas eu tive forças para continuar porque sabia que ele
estava comigo em espírito.
Foi também nessa época que o rei de Laodicéia morreu. Lucas
assumiu o trono como rei, aos 16 anos. Eu enviei a ele uma cópia da
última carta escrita por Rafael para fortalecer seu espírito.
Quatro anos depois, meu pai caiu doente. Eu estava começando a
ficar furiosa com Teresa. Pelo modo que agia, dava a entender que ela
queria que nosso pai morresse logo para que ela pudesse assumir o
trono. Mas ele morreu somente um ano depois.
Quando fomos ao seu funeral, eu não sabia se ficava mais triste do
que deveria. Eu me perguntava se meu pai tinha ido para o céu. Ele tinha
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feito muitas coisas ruins ao longo de sua vida. Mas será que as coisas
boas poderiam salvá-lo?
Optei por não tentar tirar aquela dúvida. Eu desconfiava que a
eremita negra saberia a resposta, mas tive medo de perguntar. Eu era
uma covarde.
Para o desgosto de Teresa, nossa mãe assumiu o poder em vez dela.
Porém, isso só durou três meses. Depois disso a rainha morreu e Teresa
tomou o trono para si aos 34 anos, ao lado de João.
Confesso que fiquei chocada. Minha mãe não poderia ter morrido
assim, do nada! É comum que quando o marido ou a esposa morre o
companheiro que ficou para trás entre em depressão e não viva muito
tempo depois disso. Mas minha mãe não estava depressiva. Ela tinha
superado a morte do meu pai e estava saudável.
Aquilo só tinha uma explicação: Teresa tinha dado um jeito de
assassinar a nossa mãe. Eu desconfiava que João a tinha ajudado ou até
mesmo tinha executado o plano.
Esse foi outro acontecimento que não tive coragem de confirmar
com a eremita negra. Eu temia muito receber a confirmação daquele fato
horrível. Eu queria acreditar que no fundo Teresa ainda tinha um bom
coração, mas era difícil.
Para completar, Teresa se envolveu numa briga política
completamente trivial com Laodicéia. Ela praticamente comprou a briga
e a situação estava por um fio. Em suma, Teresa estava prestes a declarar
uma guerra. Lucas estava numa situação delicada.
Eu queria apoiar Lucas se houvesse a guerra, é claro. Queria poder
ficar do lado dele. Mas a situação era mais complicada que isso. Muitos
dos meus conselheiros reais em Tiatira me sugeriam manter a
neutralidade e simplesmente não me envolver. Pérgamo devia certos
favores militares para Tiatira, mas o contrário não era verdadeiro. Pelo
menos eu não teria que apoiar Teresa. Aquilo seria o fim.
– Vossa Majestade, sei que é difícil, mas sugiro que não envolva
sentimentos pessoais na política.
Era fácil para meu conselheiro falar algo assim. Eu não iria
simplesmente ver meus dois irmãos se matarem sem fazer nada.
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“Vossa Majestade,
Seus novos hábitos são incompatíveis com minha presença aqui. Eu peço que
recue. Se parar agora os danos não serão tão grandes. Esse é o primeiro aviso.
Se você for até o Templo, ajoelhar-se, se confessar e pedir perdão, ainda poderá
voltar atrás.
Caso contrário, terei que me retirar do palácio e voltarei a meditar nos desertos”.
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“Nenhum humano desse mundo possui a sabedoria para julgar outro e jamais
deve exercer seu julgamento. É preciso ser lavado pelo sangue do Cordeiro para se
tornar digno de julgar. Um dia os santos poderão julgar até os gálatas caídos. Até lá,
deve-se focar na própria purificação e em ajudar o outro. Os teus atos atuais poderiam
ser compatíveis com a sabedoria de um Deus, mas somente se você fosse Deus. Um
médico que faz uma cirurgia dolorosa pode salvar uma vida. Um leigo que tentar
fazer essa mesma cirurgia certamente matará seu paciente. No que você é diferente de
sua irmã se também tentou matá-la? E no que você é diferente dela no descaso com o
povo se através da tua chuva muitas pessoas inocentes caíram mortas? Um humano
que tenta julgar os outros acaba fazendo cair tanto inocentes quanto culpados na hora
errada e do jeito errado. Esses não são os planos do Cordeiro”
“Será que sabe mesmo? Você parece um pouco perdida. Você sabe que só há uma
coisa que precisamos fazer nesse mundo: glorificar o Cordeiro, confiar nele, imolar-se
por ele e oferecer cada ato nosso ao Imolado. Se você perder essa única coisa, será difícil
diferenciar bem e mal com clareza, pois estará sozinha. Mas você não precisa estar só,
Vossa Majestade. Sabe que eu e seus amigos estamos contigo. Eu me disponho a
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ajudá-la, mas você precisa confiar em mim. É melhor você se apressar antes que seja
tarde”
“Está ouvindo a si mesma? Você só diz: „eu quero‟. Mas um humano sozinho
não tem poder de enxergar o quadro completo. Ele só consegue enxergar a dor e não a
expiação através da dor. O sofrimento veio ao mundo através do livre-arbítrio
humano. Nós só conhecemos a dor pela primeira vez porque optamos por nos separar
de Deus. Mil anos são como um dia para o Imolado. Ele tem grandes planos para
cada um daqueles que possuem a paciência de manter a fé mesmo estando no olho do
furacão”
“Está tudo claro como água. No fundo, nós sabemos sim o que é certo e errado.
Deus nos guia para aperfeiçoarmos esse entendimento. Sabemos quando estamos
mentindo para nós mesmos como desculpa para fazer coisas erradas que nos trará
benefícios. Para saber se uma coisa é certa, basta pensar: „esse pensamento ou ato pode
ser ofertado para a glória do Cordeiro?” e terá sua resposta. É claro que podemos ser
fracos e confusos em muitos momentos. Por isso devemos nos apoiar no Imolado. E
aqueles que possuem dificuldades para desvendar as coisas do coração podem ler nossos
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para que ela me mate. E até parece que Augusto concordaria com esse
absurdo!
– Nenhum dos dois saberá o que foi feito – prometeu a fera – eu
deixarei seu irmão bêbado e mandarei Jezabel para fora da cidade
momentaneamente.
– Nada feito – eu disse – não tem outra tarefa mais fácil para mim?
– Eu posso te propor outra em vez dessa. Mas será ainda mais
desafiadora. Eu quero que você vá até o Templo, roube as chaves do
jardim e traga para mim um fruto da Árvore da Vida.
– Eu ouvi dizer que o fruto da Árvore da Vida leva à morte –
comentei.
– Mentiras – disse a fera – você acredita mesmo no que aqueles
infelizes dizem? Eles só disseram isso para te manter longe do jardim.
Querem a imortalidade só para eles. São egoístas. Eles não merecem ser
imortais, mas você merece. Você é bela, sábia e corajosa. E então? Me
trará o fruto?
– Eu posso tentar – falei – mas não prometo que conseguirei.
– Está tudo bem. Eu não sou como aqueles imbecis que exigem
perfeição. Já ficarei satisfeito pelo seu esforço. Sei que dará o melhor de
si, minha rainha.
– Pode me dar alguns poderes para me ajudar a roubar a chave?
– Todos que você quiser, bela dama. Você fará um bem à
humanidade através desse ato nobre. Eles querem esconder os frutos da
árvore para dá-los somente a um pequeno número de suicidas
adoradores da morte que chamam de “eleitos”. Isso é uma grande
injustiça. Todos merecem imortalidade, até os pecadores. Você não acha
que merecemos ser iguais?
– É claro que sim – concordei – acho uma palhaçada todo esse
sistema de hierarquias que diferencia pessoas entre boas e más. Quer
dizer... o bem e o mal não são assim tão definidos, certo? Um bem maior
pode vir de um mal como esse. Dizem que roubar é errado, mas nesse
caso será justo.
– Raciocínio perfeito, como eu esperaria de Vossa Majestade.
Deixei o palácio e fui na direção do Templo. Usei poderes especiais
que a Fera me deu para localizar as chaves. Fiquei invisível e roubei-as.
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FIM
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