Você está na página 1de 441

Estudos Avançados

Quanto mais nos aprofundamos no aprendizado dos ensinamentos


budistas, mais eficaz se torna nossa prática na transformação de nossas
vidas. Nossas mentes são extremamente complexas, por isso
precisamos de métodos que possam combiná-los; o estudo
aprofundado do Dharma revela tais métodos, um por um. Como quando
juntamos as peças de um quebra-cabeças, nós encaixamos essas peças
de Dharma umas nas outras para revelar uma maneira de aplicá-las ao
nosso cotidiano, através da contemplação e meditação.
Lam-rim
Os ensinamentos em etapas, também conhecidos como lam-rim, fornecem uma estrutura na
qual podemos encaixar todos os ensinamentos do sutra de Buda, do início ao fim. O lam-rim
mostra claramente como todos os ensinamentos se encaixam. Trata-se de uma instrução
pessoal para nosso próprio desenvolvimento espiritual.

V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 Impermanência e Morte
 Os Cinco Agregados
 Samsara e Nirvana

Impermanência e Morte

Paráfrase do "Conselho de um
Homem Velho e Experiente"
Geshe Ngawang Dhargyey

[Estes ensinamentos sobre o sofrimento vêm de Conselhos de um


Experiente Velho (Nyams-myong rgan-po'i 'bel-gtam yid-'byung dmar-
khrid), pelo precioso mestre Gungtang Rinpoche (Gung-thang-tshang
dKon-mchog bstan-pa'i sgron-me) (1762 – 1823). Contendo muitas
parábolas, fluem como uma história em forma de verso baseada nas
escrituras. O principal objetivo do ensinamento é o de nos ajudar a
desenvolver a renúncia e a determinação de sermos livres e, em geral, a
preparar o terreno para bodhichitta a fim de alcançarmos a iluminação
para o bem de todos.]

Homenagem ao imaculado Buda que abandonou as sementes dos


renascimentos incontrolados, recorrentes pela força do karma e das
emoções perturbadoras e que, por conseguinte, não experiencia os
sofrimentos do envelhecimento, da doença e da morte.

No meio da vasta, solitária e selvagem planície do samsara vive orgulhoso


da sua saúde e juventude. Eles têm este diálogo:
"Ó velho, por que ages, falas e tens uma aparência diferente dos outros?"

A isto, o velho responde: "Se dizes que ajo, ando, falo e me movimento de
uma maneira diferente, não te sintas voando pelo céu. Põe os pés no chão
como eu e escuta as minhas palavras."

[Alguns jovens sentem que a velhice é apenas para os idosos e que nunca
lhes chegará. São muito arrogantes e não têm paciência para se
envolverem com os velhos.]

O velho continua: "Há uns anos atrás eu era muito mais forte, mais bonito
e mais vigoroso do que tu. Não nasci como sou agora.

[A maior parte dos idosos falam deste modo. O presente nunca é tão bom
como outrora.]

"Quando eu capturava algo, conseguia até nas terras nômades apanhar


bois selvagens apenas com as minhas mãos. O meu corpo era tão flexível
que podia mover-se como um pássaro no céu. O meu corpo era tão
saudável que eu parecia um jovem deus. Eu usava roupas das cores mais
brilhantes e muitos ornamentos de ouro e prata, comia toneladas de
doces e comidas deliciosas e cavalgava poderosos cavalos. Praticamente
nunca me sentava sozinho sem brincar, rir e passar um bom tempo. Não
existe praticamente felicidade alguma que não tenha experienciado."

"Nessa época nunca pensava na impermanência da minha vida nem sobre


a minha morte. Nem esperava passar pelo sofrimento do envelhecimento
como agora."

[Uma vez, na região onde vivi, havia um jovem que levava uma vida
luxuosa, abandonando-se continuamente aos prazeres. A pouco e pouco
tornou-se velho, seu corpo encurvou e seu provento diminuiu. Ele disse
aos seus amigos: "Nunca pensei que a velhice chegasse tão de repente"]

“Vivendo distraído com amigos, festas e entretenimentos, a velhice


avança subrepticiamernte e derruba-te a meio da tua gargalhada”

[Geshe Kamapa disse: "Devemos estar gratos que a velhice venha


lentamente. Se surgisse de repente, seria insuportável. Se fôssemos
dormir aos trinta anos e acordássemos aos oitenta, não aguentaríamos
vermo-nos ao espelho. Nós não compreendemos a nossa própria velhice.
Para nós, o modo como envelhecemos é totalmente um mistério. Quando
de repente nos apercebemos da nossa velhice, demoramos um pouco a
aceitá-la. Depois, é tarde de mais. Embora se diga que seja útil praticar o
Dharma durante algumas horas antes da morte, precisamos de um corpo
saudável e forte para praticarmos o tantra. Por isso é importante
começarmos a prática tântrica enquanto ainda jovens.]

"Quando ficamos muito velhos, não gostamos de nós quando nos vemos
ao espelho. Nessa altura os nossos corpos e mentes tornam-se fracos. Os
nossos corpos começam a degenerar, da cabeça aos dedos dos pés. As
nossas cabeças ficam curvadas, como se estivessem sempre recebendo
uma iniciação do vaso."

"Os meus cabelos brancos, sem nenhum preto que lhes reste, não são
sinal de purificação. São a seta da geada da boca do Senhor da Morte que
aterrou na minha cabeça. As rugas da minha testa não são os vincos de
um bebê gorducho bebendo o leite de sua mãe. É a contagem dos anos
que já vivi pelos mensageiros do Senhor da Morte. Quando entorto os
olhos, não é que o fumo esteja nos meus olhos. É um sinal de impotência à
degeneração dos meus poderes sensoriais. Quando tento fazer um grande
esforço para ouvir pondo a mão na minha orelha, não é que esteja
fazendo uma comunicação secreta. É um sinal de degeneração da minha
audição."

"Quando me babo e me pinga ranho do nariz, não é um adorno de pérolas


na minha cara. É um sinal do degelo do vigor da juventude pela luz do sol
da velhice. A perda dos meus dentes não é sinal do aparecimento de um
novo conjunto de dentes, como numa pequena criança. É sinal do
desgaste das ferramentas para comer que o Senhor da Morte está
retirando. Quando me babo e cuspo quando falo, não é como o polvilhar
de água na terra para a limpar. É sinal do acabar de todas as palavras que
direi. Quando falo incoerentemente e tropeço nas palavras, não é que
esteja falando numa estranha língua estrangeira. É sinal do cansaço da
minha língua, de toda uma vida de tagalerice sem propósito."

"Quando a minha aparência se torna feia, não é que me esteja tentando


esconder por trás de uma máscara de macaco. É sinal da total
degeneração do corpo que tenho por empréstimo. Quando muito me
treme a cabeça, não é que esteja em desacordo contigo. É sinal do poder
subjugante da vara do Senhor da Morte que me bateu na cabeça. Quando
ando curvado, não é que esteja tentando encontrar a agulha que perdi. É
uma clara indicação da degeneração do elemento terra no meu corpo."

"Quando me levanto usando as mãos e os joelhos, não estou imitando um


animal de quatro pernas; é que já não é suficiente o suporte dos meus pés.
Quando me sento é como se deixasse cair um saco cheio de qualquer
coisa. Não é que esteja irritado com os meus amigos; é a perda do
controle do meu corpo."
Quando ando lentamente, não é que esteja tentando andar como um
grande líder. É que o meu corpo perdeu completamente o sentido de
equilíbrio. Quando me tremem as mãos, não é que esteja acenando com a
avidez de obter algo. É sinal do medo que tudo me seja levado pelo
Senhor da Morte. Quando só consigo comer e beber pouco, não é que seja
avarento. É o sinal da degeneração do calor digestivo no meu umbigo.
Quando uso roupas leves, não é que esteja tentando imitar os atletas. É
que a fraqueza do meu corpo torna o uso de qualquer roupa num peso.

"Quando me é difícil respirar e fico sem fôlego, não é que esteja curando
alguém soprando um mantra. É sinal da fraqueza e da exaustão das
energias do meu corpo. Quando faço muito pouco e tenho poucas
atividades, não é que esteja controlando intencionalmente as minhas
atividades. É devido às limitações do que um velho pode fazer. Quando
sou muito esquecido, não é que julgue os outros com menor importância
nem que os olhe com superioridade. É sinal da degeneração da
consciência da minha memória."

"Ó jovem, não gozes nem zombes de mim. O que eu agora experiencio não
é meu exclusivo. Todos experienciam isto. Espera para ver; em três anos,
chegarão os primeiros mensageiros da velhice. Não acreditarás no que
digo nem gostarás de o ouvir, mas aprenderás da experiência. Nesta
época das cinco degenerações, serás afortunado se chegares à minha
idade. Mesmo que vivas durante tanto tempo quanto eu, não serás capaz
de falar tanto quanto eu".

O jovem responde: "Em vez de poder viver tanto tempo quanto tu e


tornar-me tão feio e ignorado como és e posto na posição dos cães, seria
preferível morrer."

O velho sorriu. "Jovem, és muito ignorante e estúpido por desejares viver


por muito tempo e ser feliz, mas sem envelhecer. A morte pode soar
simples, mas não é assim tão fácil. Para podermos morrer em paz e felizes
temos de ser alguém que não aceitou oferendas obtidas de modos
incorretos nem quebrou a moralidade das dez ações positivas, e que
acumulou muita escuta do Dharma, contemplação e meditação. Então a
morte é simples."

"Porém, eu não me sinto assim. Não estou certo de ter feito algo de
construtivo. Tenho medo da morte e estou grato por cada dia que posso
permanecer vivo. O meu grande desejo é o de continuar vivo todos os
dias."
O jovem muda de ideias e diz: "Ó velho, tudo o que dizes é verdade. O que
os outros me disseram sobre o sofrimento da velhice está de acordo com
o que vejo em ti. A demonstração da velhice que me fizeste foi muito útil à
minha mente. Estou espantado com o sofrimento da velhice. ."

O velho diz de uma maneira simpática: "Há sem dúvida um método. Se o


souberes, é fácil de seguir. Com pouco esforço rapidamente nos
poderemos libertar deste sofrimento. Embora todos os que nasçam
morram, muito poucos morrem velhos. Muitos morrem ainda jovens sem
a oportunidade de chegar à velhice. Os métodos estão nos ensinamentos
de Buda. Estes contêm muitos métodos para a obtenção da liberação e da
iluminação, por outras palavras, para não renascermos, envelhecermos,
adoecermos ou morrermos; mas nós não os praticamos."

[Uma vez, numa casa de um mosteiro, havia um self-made lama. Era um


membro júnior do mosteiro e a maioria dos monges não lhe prestava
atenção. Tiveram uma reunião para discutir o futuro da casa. Ele disse
que preparassem lençóis e cordas para amarrar cadáveres. Todos
disseram que isso era mau agouro e ficaram irritados com ele. Discutiram
então o que deviam todos fazer para ajudar o mosteiro. Ele disse que
meditassem sobre a impermanência. Ao dizê-lo, deu-lhes um grande
ensinamento. Muitos Dalai Lamas mais recentes o elogiaram. A fim de nos
prepararmos para o futuro, precisamos de nos preparar para a morte.]

“Todos querem a imortalidade e os métodos para a alcançar. Mas nascer e


não morrer é impossível. Até os milhares de seres completamente
iluminados faleceram, incluindo o Buda Sakyamuni. E quanto aos
bodhisattvas e aos grandes gurus do passado, só restam os seus nomes. O
mesmo é evidente na história mundial. Todas as grandes figuras
históricas morreram e só restam as ruínas. Assim, não nos devemos
esquecer da realidade das nossas mortes iminentes. Até os grandes gurus
do presente irão morrer. Todos os bebês nascidos hoje estarão mortos
daqui a cem anos. Assim, ó jovem, como podes pensar que só tu irás viver
para sempre? Portanto, é aconselhável que te prepares espiritualmente
para a morte.”

“Uma longa vida não pode ser comprada com dinheiro nem obtida
através do conforto físico. Se tiveres confiança espiritual e souberes o que
queres da vida, então quanto fisicamente mais velho ficares, mais
felicidade e juventude mental terás. Se gozares muito conforto físico mas
tiveres levado uma vida vazia, então quanto mais velho ficares mais
infeliz te tornarás. Terás de viajar como turista para distraires a tua
mente da preocupação com a morte. Por outro lado, mesmo se tiveres
apenas um pouco de confiança espiritual, quanto mais perto estiveres da
morte, mais te sentirás como um filho que regressa feliz a casa. Não
sentirás aversão à morte, mas olharás em frente para as contínuas vidas
de felicidade."

[Uma vez, um grande mestre espiritual disse: "Como tenho confiança total
nos meus nascimentos futuros, não tenho preocupações nenhumas. A
morte pode vir a qualquer altura; será bem-vinda.”]

“Como o sofrimento da morte é inevitável, temos de fazer algo sobre tal.


Não nos devemos apenas sentar e ficar deprimidos. Como seres humanos,
temos sabedoria para tentar muitos métodos. Nem mesmo Buda pode dar
ensinamentos mais explícitos, ó jovem. Eu falei com o meu coração.
Embora estes sejam os meus genuínos e sinceros conselhos, não confies
apenas nas minhas palavras; analisa-as por ti mesmo. Faz tu mesmo as
práticas sobre a impermanência. Há um provérbio: 'Pede as opiniões dos
outros, mas toma a decisão por ti mesmo'. Se deixares que muitos tomem
decisões por ti, muitos dar-te-ão conselhos diferentes.”

O jovem diz: "Tudo o que dizes é verdade e muito útil. Mas durante os
próximos anos não posso fazer essas coisas. Tenho outros trabalhos a
fazer. Tenho uma grande propriedade, tenho bens e assim por diante.
Tenho muitos negócios a fazer e preciso de cuidar da minha propriedade.
Daqui a alguns anos encontro-me outra vez contigo, e então farei as
práticas."

O velho fica muito infeliz e diz: "Tudo o que me acabas de dizer não
passam de palavras vazias e sem sentido. Tive o mesmo desejo de fazer
algo de significativo para depois de alguns anos, mas nunca fiz nada e
agora estou velho. Eu sei como é ilusório o que dizes. As coisas a fazer
daqui a alguns anos nunca acabarão. Irás adiá-las para sempre. As coisas
a fazer daqui a alguns anos são como a barba de um velho; se a fizer hoje,
mais crescerá amanhã. Depois de adiares até amanhã e depois, depressa
verás que a tua vida acabou. Este adiamento da prática do Dharma tem
enganado a todos. Não tenho confiança nenhuma de que um dia irás
praticar o Dharma. Por isso, falarmos é um total desperdício. Regressa à
tua casa, faz o que quiseres e deixa-me dizer uns manis (mantras)."

O jovem fica muito surpreendido e sente-se um pouco magoado. Diz ele:


"Como podes pensar e dizer-me essas coisas? Diz-me, quanto tempo
levam as coisas materiais a serem realizadas nesta vida?"

O velho ri: "Fazes-me essas perguntas, por isso acho que devo responder
o quanto tempo demora a realizar qualquer coisa. Em direção ao sul vive
o Senhor da Morte, que não se importa nada se acabaste ou não o teu
trabalho. Ele faz o que quer. Se puderes ter relações amigáveis com ele e
obter a sua permissão para realizares algo na vida, então podes relaxar.
Caso contrário, nunca o poderás fazer. As pessoas morrem a meio de uma
xícara de chá, enquanto a comida está na mesa, ao passearem, antes de
conseguirem acabar de fumar um cigarro."

"Isso acontece a todos, até aos grandes mestres. Muitos dos seus
ensinamentos estão incompletos porque morreram antes de os acabarem
de escrever. Por isso, quando o Senhor da Morte vier, não poderás dizer:
'Eu tenho uma grande propriedade e muito trabalho por fazer'. Não te
poderás gabar de nada; terás de deixar tudo. A este respeito somos
completamente impotentes. Não podemos determinar a duração da nossa
vida. Portanto, se puderes fazer qualquer coisa, começa a praticar agora.
Isso será significativo; senão, as tuas propriedades, em si, não têm
sentido. Mas hoje há poucas pessoas falando verdade sobre o que é útil. O
que ainda é mais raro é alguém que escute os conselhos sinceros."

O jovem fica profundamente comovido e, tendo acumulado grande


respeito pelo velho, dá uns passos atrás e prosterna-se a ele, dizendo:
"Nenhum lama rodeado por bandeiras douradas, Geshes ou iogues têm
ensinamentos mais profundos do que aquilo que me disseste. Tens a
aparência de um velho comum, mas na verdade és um grande amigo
espiritual. e, no futuro, por favor dá-me mais ensinamentos.”

O velho concorda e aceita. Diz ele: "Eu não sei muito, mas experienciei
bastante. Com isso posso ensinar-te. A coisa mais difícil é começar e
estabelecermo-nos no Dharma. Começar a praticar depois de velho é mais
difícil. Por isso, é importante começarmos com uma idade jovem."

"Quando jovens, a nossa memória está fresca, temos uma inteligência


dinâmica e robustez física para acumularmos força positiva ao fazermos
prosternações. Em termos de tantra, a força e o vigor dos nossos canais
de energia são muito bons quando jovens. Se na tua juventude puderes
quebrar a barreira da avidez e do apego às posses materiais e te
envolveres em atividades espirituais, isso é muito valioso. Quando tiveres
aceitado o Dharma, compreendido os seus pontos essenciais e penetrado
no seu espírito, então tudo o que fizeres, disseres e pensares será
Dharma."

[Milarepa e Ra Lotsawa disseram o mesmo: "Quando como, ando, sento-


me ou durmo – [isso] é prática de Dharma.”]

“No Dharma não há regras rígidas. Por isso tenta não teres demasiados
pensamentos nem uma mente errática. Começa agora e mantém o teu
interesse no Dharma. Não mudes de ideias a cada momento. A partir
deste momento, dedica a tua vida – o teu corpo, palavra e mente – à
prática do Dharma."

Agora o velho diz ao jovem o que o Dharma envolve: "Primeiro, encontra


um mentor espiritual bem qualificado e devota-te a ele corretamente em
pensamentos e ações. O quanto podes beneficiar os outros, depende de
encontrares um mentor espiritual apropriado e do teu dedicado e
devotado relacionamento com ele.”

[Atisha deu ênfase a esta questão. Contava com frequência que tinha uma
igual dedicação e devoção a todos os seus 155 gurus.]

“Depois, necessitas de cumprir as tuas palavras de honra e os teus votos


de praticar as dez ações construtivas. Protege-os como protegerias os
teus olhos. Quebra o teu apego a esta vida, como um elefante selvagem
quebrando uma corrente. Acumula então os ensinamentos, a
contemplação e a meditação e pratica todos os três. Reforça tudo isto com
a prática dos sete ramos. Esta é a maneira de construir força positiva, de
acumular mérito. Depois de isto feito, a Budeidade estará na ponta dos
teus dedos.”

[O V Dalai Lama disse que se um mentor qualificado guiasse um discípulo


qualificado, a Budeidade poderia ser moldada nas nossas próprias mãos.
Milarepa também disse que se tivermos um mentor qualificado e um
discípulo qualificado praticando os seus ensinamentos qualificados, então
a Budeidade não estará fora mas dentro de nós. Contudo, devemos
sempre salientar que o guru deve ser apropriadamente qualificado.]

“Isto é felicidade; isto é alegria. Ó querido filho, se praticares desta


maneira todos os teus desejos serão satisfeitos”

[Estes ensinamentos são muito úteis para domesticar a mente. Eles


amaciam uma mente dura. Diz um provérbio: "Não sejas como um saco de
couro para conter manteiga. Não sejas como uma pedra num riacho". Um
saco de couro não se torna macio independentemente da quantidade de
manteiga que tiver dentro. Não importa quanto tempo fique uma pedra
num riacho, ela também não se tornará macia.]

A partir desse dia, o jovem praticou puramente o Dharma, não misturado


com os oito sentimentos mundanos e infantis.

[Nós precisamos de tentar fazer o mesmo. Quantos mais ensinamentos


tivermos escutado, tanto mais precisamos de praticar e de nos cultivar
através deles e não sermos como as pedras nos riachos que nunca se
tornam macias.]

O velho diz: "Eu ouvi estes ensinamentos dos meus mentores espirituais e
eles também são baseados na minha própria experiência. Que isto possa
beneficiar os ilimitados seres sencientes na obtenção da sua felicidade."

O autor acaba: Embora tenha praticado pouco e me falte a experiência do


Dharma, contudo, devido à diversidade das inclinações dos seres
sencientes, talvez estes ensinamentos sejam úteis para alguns. Na
esperança de beneficiar as mentes dos seres limitados, escrevi isto com
sinceridade e pura motivação. Estes ensinamentos sobre a
impermanência não são apenas uma interessante estória que inventei
para contar, mas são baseados nas Quatrocentas Estâncias, de Aryadeva.
Os Cinco Agregados

Esquema Básico dos Cinco


Agregados
Dr. Alexander Berzin

Cada momento da nossa experiência é composto de uma multitude de


variáveis. Os cinco fatores agregados da experiência (phung-po,
sânsc.: skandha, agregados) constituem um esquema de classificação
dessas variáveis – em outras palavras, desses componentes
impermanentes (não estáticos).

A palavra agregado significa conjunto, assim, cada agregado é um


conjunto de muitos componentes. Os componentes de um agregado
podem ser tipos diferentes de fenômenos, como o amor e a raiva, ou
possibilidades diferentes para um mesmo fenômeno, como as sensações
dos diferentes níveis de felicidade. Como parte de nossa experiência, cada
componente variável muda momento a momento e cada um também tem
uma duração diferente.

Como a definição de existência é ser validamente conhecível, e como tudo


que é validamente conhecível pode ser objeto de nossa experiência,
conclui-se que tudo o que existe pode ser objeto de nossa experiência.
Assim, todos os fenômenos impermanentes podem ser classificados
dentro dos cinco agregados. Alguns estão ligados ao nosso contínuo
mental (sems-rgyud, fluxo-mental), como a nossa própria felicidade; e
alguns estão ligados ao contínuo mental de outros seres sencientes, como
a felicidade de qualquer outra pessoa. E existem ainda os fenômenos
impermanentes que não estão ligados a um contínuo mental, como é o
caso de uma rocha. Já os fenômenos permanentes, tal como o espaço,
podem até fazer parte de nossa experiência, mas não estão incluídos no
esquema de classificação dos cinco fatores agregados.

Assim, os cinco fatores agregados assemelham-se a cinco sacos. Cada


momento da nossa experiência tem um ou mais componentes de cada
saco, e cada variável que constitui a nossa experiência está em um dos
sacos. Contudo, esses sacos são meras abstrações imputadas nos
conjuntos de componentes, pois os sacos e os seus componentes não
existem por si próprios em algum lugar no nosso interior ou exterior.
Quando um fator agregado, como a felicidade ou a raiva, não está
presente em nossa experiência momentânea, ele não existe como algo
encontrável em outro lugar.

O Agregado das Formas de Fenômenos Físicos

Em cada momento de nossa experiência, uma ou mais formas de


fenômenos físicos estão presentes. Essas formas encaixam-se nos onze
conjuntos de agregados das formas de fenômenos físicos (gzugs-kyi
phung-po, agregado da forma). São eles:

Os cinco objetos sensoriais:

1. visões
2. sons
3. odores
4. sabores
5. sensações físicas.

Os cinco sensores cognitivos físicos (dbang-po, poder dos sentidos):

1. células dos olhos sensíveis à luz


2. células dos ouvidos sensíveis ao som
3. células do nariz sensíveis ao odor
4. células da língua sensíveis ao sabor
5. células do corpo sensíveis às sensações físicas.

E todas as formas de fenômenos físicos cognoscíveis apenas pela cognição


mental. Tecnicamente, são:

1. formas de fenômenos físicos que se encaixam apenas entre os


estimuladores cognitivos que englobam todos os fenômenos (chos-kyi
skye-mched-kyi gzugs). Essa categoria de estimuladores cognitivos
engloba formas de fenômenos físicos que são imperceptíveis aos
sensores cognitivos físicos [órgãos dos sentidos], como é o caso das
imagens e dos sons que vivenciamos nos sonhos.

Os dez primeiros componentes deste agregado compreendem os cinco


estimuladores cognitivos externos e os cinco estimuladores cognitivos
internos, como, por exemplo, o estimulador cognitivo externo visão
(gzugs-kyi skye-mched) e o estimulador cognitivo interno (células
fotossensíveis dos) olhos (mig-gi skye-mched) e assim por diante.

Mesmo quando estamos em sono profundo sem sonhos, ainda temos um


corpo como base para a nossa experiência de dormir. Assim, todos os
momentos de nosso sono possuem um agregado das formas de
fenômenos físicos.

O Agregado das Sensações de Níveis de Felicidade

A palavra sensação exprime uma enorme variedade de significados,


incluindo sensações de diferentes níveis de felicidade e infelicidade,
sensações táteis, como macio ou áspero, e sensações físicas, como quente
ou frio, prazer ou dor e movimento. As sensações também podem referir-
se às emoções, como a sensação de irritação; ou às intuições, como a
sensação de que no dia seguinte irá chover. Podem também referir-se à
sensibilidade estética, tal como a sensibilidade artística, ou à
sensibilidade emocional, tal como a sensação de estar magoado.

O agregado das sensações de níveis de felicidade (tshor-ba'i phung-po,


agregado das sensações) inclui apenas o primeiro tipo de sensação listado
acima. Seja com cognição sensorial ou mental, cada momento da nossa
experiência traz uma determinada sensação de felicidade, numa escala
que vai desde felicidade, passando pelo neutro e indo até infelicidade
total ou sofrimento.

O Agregado das Distinções

Cada momento de nossa experiência também inclui um dos fatores do


agregado das distinções ('du-shes-kyi phung-po, agregado da percepção,
agregado do reconhecimento). Distinguir é um fator mental (sems-byung,
consciência subsidiária) que faz parte da cognição sensorial ou mental de
qualquer coisa. Esse fator distingue entre o aspecto característico e
especial do objeto focado e os aspectos característicos e especiais dos
objetos não focados. Por exemplo, quando você vê o rosto de alguém,
distingue a forma e a cor desse rosto das formas e cores de tudo que não é
esse rosto – ou seja, de todo o resto que é visto, no momento, no campo
cognitivo da visão.

Assim, reconhecimento não é uma tradução exata deste tipo de fator


mental. Reconhecimento implica em já termos vivenciado previamente
algo semelhante ao que estamos vivenciando agora, e então compararmos
os dois objetos da experiência e conhecê-los conjuntamente como
pertencentes à mesma categoria. Assim, embora o processo de
reconhecimento inclua distinção, ele também envolve a consciência
profunda (sabedoria) da igualdade (mnyam-nyid-kyi ye-shes), que não é
um componente deste fator agregado.
O Agregado das Outras Variáveis Influentes

O agregado das outras variáveis influentes ('du-byed-kyi phung-po,


agregado das formações mentais, agregado das formações kármicas)
inclui todas as variáveis que afetam nossa experiência e não estão
incluídas nos outros quatro agregados.

Algumas das variáveis influentes são concomitantes (ldan-pa'i 'du-byed)


com a consciência primária (rnam-shes) da experiência, tais como as
emoções positivas e negativas, a atenção e o interesse. Outras variáveis
influentes são não-concomitantes (ldan-min 'du-byed), tal como os
hábitos. Concomitante significa que compartilham cinco características
em comum, como por exemplo o mesmo objeto focal. Cada momento de
experiência contém muitos itens deste fator agregado.

O Agregado das Consciências Primárias

O agregado das consciências primárias (rnam-shes-kyi phung-po,


agregado da consciência) engloba os seis tipos de consciências primárias:

1. consciência do olho
2. consciência do ouvido
3. consciência do nariz
4. consciência da língua
5. consciência do corpo
6. consciência mental.

A maioria das teorias cognitivas ocidentais considera a consciência como


sendo um único fator que pode conhecer todas as categorias de objetos
cognitivos – visões, sons, cheiros, sabores, sensações físicas e objetos
puramente mentais, como pensamentos. Em contrapartida, o esquema
dos cinco fatores agregados especifica tipos diferentes de consciências
primárias, com base no sensor cognitivo de que ela depende para surgir.

Uma consciência primária conhece meramente a natureza essencial ou a


categoria do fenômeno (ngo-bo). Por exemplo, a consciência do olho
conhece uma visão como meramente uma visão.
Samsara e Nirvana

Canções de Milarepa sobre o


Desapego
Geshe Ngawang Dhargyey

Milarepa tinha uma irmã que insistia que ele encontrasse uma esposa e
tivesse casa e filhos, mas ao invés disso Milarepa deixou sua casa e
encontrou seu professor, Marpa. Quando sua irmã descobriu que Marpa
era casado e tinha casa e família, ela voltou a insistir com Milarepa.

“Por que você não faz como o seu professor?” ela perguntou.

“Se uma raposa ladra onde um leão ruge, isso é um erro.”

Mais tarde Milarepa visitou a casa de um casal que, apesar de todos os


esforços, não conseguia ter filhos. Eles queriam adotar Milarepa, mas ele
recusou. “Não existe nenhuma possibilidade de eu ficar com vocês como
seu filho adotado. Mas digam-me, o que é que os incomoda?” O casal
reclamou que eles não teriam ninguém para cuidar deles durante a
velhice.

Milarepa pensou e então respondeu:

“Quando um jovem e uma jovem se conhecem, eles são tão belos que
parecem deuses um para o outro e têm um desejo insaciável de olhar um
para o rosto do outro. Mas, quando eles já se conhecem há um tempo,
começam a olhar feio um para o outro. Em breve, se um disser duas
palavras, o outro dirá três. Logo eles começam a brigar. Se um toca o
cabelo do outro, o outro agarra o seu pescoço. Então um ameaça bater no
outro com uma vara e o outro pega uma colher de madeira para bater de
volta.

“Meu aluno, Rechungpa, teve uma experiência parecida. Rechungpa


deixou seu professor e renunciou seus votos para casar com uma esposa
muito dominadora. Um dia ele se deparou com um pedinte na rua que
implorou a ele que lhe desse seu colar de turquesa. Rechungpa lhe deu o
colar, mas quando chegou em casa sua mulher lhe perguntou o que tinha
acontecido com a turquesa. Quando Rechungpa lhe disse, ela ficou com
tanta raiva que lhe deu uma surra com a concha da sopa de tugpa.
Rechungpa resmungou, “Eu recebi muitas iniciações em minha vida, mas
nunca a iniciação da concha. E vesti muitos ornamentos, mas nunca uma
sopa de tugpa!”

“Algum tempo depois, eu dei uma iniciação para a qual Rechungpa veio.
Eu mostrei um cordão de turquesas e disse, “se você quiser receber a
iniciação, terá que me dar isso”, sabendo muito bem que Rechungpa já
tinha dado sua turquesa! Como vocês veem, casais brigam. Quando
envelhecem e perdem os dentes, eles se parecem com bois e vacas.
Eventualmente se parecem com demônios e fantasmas! Por isso, não,
obrigado, eu não aceitarei sua oferta de me adotar.”

O homem persistiu, insistindo que ele tinha que ter um filho para cuidar
dele e de sua esposa, para lhes dar segurança. “Se você for nosso filho, nós
arranjaremos um casamento e você poderá ter filhos que cuidarão de
você.” Mas Milarepa recusou.

“É tão bom ter filhos. Quando você tem filhos, no começo eles são tão
belos – como os filhos dos deuses! E eles trazem tanta felicidade! Mas aos
poucos, quando crescem, eles exigem tudo de você. Agem como se
tivessem lhe emprestado dinheiro, constantemente importunando e
lembrando-o de pagá-los. Um dia os filhos trarão estranhos para casa,
amigos e namoradas para que os pais alimentem. Então eles tomam conta
da casa e aos poucos expulsam os pais de sua própria casa.

“Se você lhes perguntar algo amavelmente, eles gritam com você. Eles o
menosprezam quando você está velho e ficam com vergonha de você –
mesmo de sua própria mãe. Portanto, eles ficam totalmente diferentes do
que eram – doces principezinhos. Nunca te dão paz de espírito, nunca
retribuem sua bondade. Sempre farão o oposto do que você quer que
façam – cabelo bagunçado, roupas estranhas, sapatos esquisitos.”

“Se um filho dá tanto trabalho assim, nós preferimos uma filha”, sugeriu a
esposa sem querer desistir.

“A princípio”, Milarepa respondeu pacientemente, “uma filha é


exatamente como um menino, muito bem comportada e obediente. Mas
elas também eventualmente se tornam poderosas e possessivas – elas
têm desejos e exigências ilimitadas. Ao invés de trazerem riqueza para a
casa, pedem por tanto dinheiro quanto você possa dar. Bajulam o pai e
roubam da mãe, tomando sem pedir. Nunca têm gratidão – achando
natural que o dever de seus pais seja dar tudo que querem.

“Elas causam aos pais frustração mental e preocupações sem fim,


andando com os jovens errados, voltando tarde para casa... Seu modo de
retribuir a bondade dos pais é fazer caretas para eles, como o abominável
homem das neves. Então, vão embora para começar um novo lar, e levam
da casa dos pais o máximo possível. Elas só voltam para visitar se
estiverem com problemas.

“Por isso,” Milarepa disse, “eu abandonei todo esse sofrimento


desnecessário permanentemente. Não quero filhos ou filhas.”

O casal continuou, ainda não convencido. “E ter amigos? É tão triste e


ridículo não ter ninguém de quem se é próximo – parente ou amigo!”

“Eles são iguais! Quando você os conhece, são todos sorrisos, tão
agradáveis, fazem você se sentir tão feliz. Então começam a contar
histórias e novidades, te convidam para ir aqui e ali e você nunca tem um
momento para si mesmo. Então você tem que voltar para casa para visitar
todos os parentes deles – eles contam todas as novidades e você nunca
tem paz. Depois disso, vocês trocam presentes e comida, preparam
refeições um para os outros. Logo começam a competir entre si. Cada um
precisa saber o que o outro está fazendo, eles ficam com ciúmes e as
rivalidades aparecem.

“Se você nunca foi próximo de ninguém, não há desentendimentos. Mas


quando você faz amizades, mais cedo ou mais tarde haverá discussões.
Quando as pessoas fofocam, elas fofocam sobre as pessoas mais próximas
delas. Se você vive próximo de alguém, você sempre encontrará defeitos.
Aqueles que não são amigos te deixarão em paz, mas os amigos que vêm
visitar, mais tarde irão fofocar sobre os defeitos que encontraram em
você. Eu não quero amigos e parentes assim, que tiram vantagem dos
meus momentos de felicidade e não querem compartilhar dos meus
momentos infelizes,” disse Milarepa.

Sem se deixar intimidar, o marido e sua esposa fizeram uma última


tentativa. “Nós entendemos, você não quer amigos, filhos ou família. Mas
nós temos muita riqueza. Se ficar conosco, você pode herdar tudo quando
morrermos.”

Milarepa balançou a cabeça. “Isso também é inútil. Eu não sacrificarei


meu objetivo de alcançar a iluminação por todos os seres senscientes pela
riqueza que vocês oferecem.

“A riqueza não é permanente ou duradoura. O desejo por riqueza é como


beber água salgada – você nunca tem o suficiente. Quanto mais tem, mais
quer. A riqueza, quando você começa a acumulá-la, te dá alegria e faz os
outros ficarem com inveja. Mais tarde, quanto mais rico você é, mais
mesquinho, mais relutante em compartilhar com os outros você se torna.
É a sua própria acumulação de riqueza que atrai inimigos. A família e
amigos correrão para se aproveitar de você e mesmo assim se tornarão
seus inimigos porque têm muita inveja de você.

“Finalmente, quando você envelhecer os outros acabarão consumindo o


que você acumulou. Muitas pessoas já foram assassinadas por ladrões por
causa de sua riqueza. Sua riqueza pode te matar. A acumulação de riqueza
é como um trampolim para renascimentos mais baixos. Por isso, não,
obrigado, eu preciso recusar a generosa oferta de sua riqueza. É uma isca,
como a música dos demônios. Mas nosso encontro foi benéfico e no futuro
eu certamente os ajudarei a ir para um campo búdico. Eu rezarei por
vocês, já que me ofereceram tanto.”

Então, por fim, o casal se convenceu das desvantagens de todas essas


coisas. Eles se tornaram devotos de Milarepa, usando sua riqueza para
oferendas. Receberam ensinamentos dele e finalmente atingiram um
estado de confiança e percepção antes de morrerem.

Esses são, portanto, os ensinamentos que Milarepa deu sobre desapego a


filhos, amigos, parentes e riqueza e como viver confortavelmente com o
Dharma.
As Forças Demoníacas: Os Quatro
Maras
Dr. Alexander Berzin

Mara na Mitologia Hindu

Na mitologia Hindu, Mara (bdud) é equivalente a Kama (‘dod-pa’i lha), o


deus do desejo. Essa equivalência também é aceita no budismo. A figura
búdica do Kalachakra, por exemplo, tem Kama embaixo de seu pé direito,
representando todos os quatro maras. Kama era um dos filhos de Krishna
e Rukmini, e casado com Rati. Os deuses enviaram Kama para tirar Shiva
do estado meditativo, a fim de que ele se interessasse por Parvati e juntos
tivessem um filho, Karttikeya, que, segundo profecias, quando tivesse sete
anos de idade conseguiria matar o demônio Taraka. Para tirar Shiva do
estado meditativo, Kama lançou cinco flechas:

 Para deixar estático (dga’-byed)


 Para deixar desejoso (sred-byed)
 Para deixar estupefato (rmongs-byed), ou seja, desatento ou senil.
 Para deixar magro, emaciado e seco (skem-byed), que nesse contexto
pode significar que ele ficaria fatigado, com fome e com sede, de forma
que abandonaria a meditação. Em outro contexto, no entanto, talvez
seja pelo trabalho de Mara que nos tornemos secos, amargos, sem o
sumo da compaixão.
 Para deixar morto, ou seja, deixar Shiva preocupado em morrer
durante a meditação, fazendo-o abandonar o estado meditativo por
medo.

Essas cinco flechas são os cinco obstáculos considerados os trabalhos de


Mara. Shiva irritou-se com Kama e carbonizou-o com o fogo de seu
terceiro olho, porém, mais tarde, atendendo a um pedido de Rati,
permitiu que ele renascesse como Pradyaumna. Quando Pradyumna
completou seis anos de idade ele foi roubado pelo demônio Shambara,
que o jogou no mar por causa da profecia que dizia que Pradyumna o
mataria. No mar, o menino foi engolido por um peixe, que foi pescado por
um pescador, que tirou o menino do estômago do peixe e o deu para a
amante de Shambhara, Mayavati, que o criou. Mayavati, por sua vez,
acabou desenvolvendo desejo por Pradyumna, tamanha era sua beleza,
mas Pradyumna a rejeitou porque pensava que ela era sua mãe. Então
Mayavati lhe revelou que ele era filho de Krishna e Rukmini, e que
Shambara o havia atirado ao mar. Pradyaumna ficou com raiva de
Shambara e o matou usando seu poder de emanação. Então Mayavati o
levou à casa de Krishna e Pradyumna e Mayavati se casaram.

Portanto, Mara pode ser personificado na forma de um ser divino. Na


cosmologia budista ele vive no mais elevado dos reinos divinos do plano
dos desejos sensoriais (Reino dos Desejos), no topo do Monte Meru. Esse
lugar é chamado de Paraíso Daqueles Que Tem o Poder de Emanar
(gZhan-‘phrul dbang-byed, sânscr Paranirmita-vashavartin). Os budistas
normalmente dizem que esse paraíso é o lugar onde os deuses têm o
poder de apreciar a emanação dos outros, mas os termos tibetano e
sânscrito fazem mais sentido quando entendidos no contexto da
mitologia hindu.

Mara na Mitologia Budista

No Budismo, Mara personifica as visões não-budistas incorretas, que foi a


última coisa que o Buda precisou superar com o terceiro olho da
sabedoria; em um episódio análogo ao da mitologia hindu, em que Kama
tenta perturbar Shiva e ele o destrói com o fogo de seu terceiro olho.
Vários relatos em vários sutras descrevem o Buda derrotando Mara.
No Sutra do Esforço (Padhana Sutta) no cânone Pali, por exemplo, Mara
aproximou-se de Shakyamuni enquanto ele fazia práticas ascéticas
dizendo “Você está tão magro e pálido. Não busque a liberação — o que
significaria afastar-se o mundo — mas fique no mundo e faça o bem”. Em
outras palavras, Mara intima Shakyamuni a viver uma vida mundana,
apesar de dedicada a ajudar os outros, e manda um exército para derrotá-
lo. Shakyamuni especificou os exércitos de Mara da seguinte forma:
desejo sensual, descontentamento, fome, sede, anseio, preguiça, medo,
indecisão, inquietação, desejo pelas coisas transitórias da vida (ganhos,
elogios, honra e fama) e elogiar a si próprio enquanto critica os outros. O
Buda percebeu que, para superar tudo isso, ele teria que parar de
identificar-se como os pensamentos sobre essas coisas.

Mais tarde, Mara apareceu como um fazendeiro pobre e como um velho


brâmane bufão — simbolizando o mundo. Shakyamuni reconheceu Mara
em todos os agregados que apareceram, e disse que Mara não tinha como
se esconder. Shakyamuni o viu como a criatura patética que era,
simbolizada pelas formas patéticas do fazendeiro e do brâmane. Mara
então apareceu como desastres naturais e feras perigosas, mas
Shakyamuni não tinha medo da morte. Mara mandou suas três filhas para
que tentassem seduzi-lo, mas elas não tiveram sucesso. Então Mara
tentou enganar Shakyamuni concordando que não havia nada a temer na
morte e que portanto poderia ignorá-la. Mas, seguindo essa linha de
raciocínio, ele também tentou convencer Shakyamuni de que a vida é
longa e portanto ele deveria simplesmente aproveitá-la. Shakyamuni
disse não, a vida é curta e devemos viver como se nosso cabelo estivesse
pegando fogo. A qualquer momento a vida pode terminar, abruptamente,
portanto, devemos aproveitar imediatamente a preciosidade de nossa
vida humana. Assim, Mara desistiu e retirou-se.

Os Quatro Maras

O termo mara deriva da raíz sânscrita mr, que significa assassinar.


Portanto, mara é aquilo que assassina ou causa interferência em nossa
vida, como seres limitados, e em nossas ações construtivas que nos levam
aos três objetivos espirituais: renascimentos melhores, liberação e
iluminação. Também explica-se mara como “aquilo que dá fim” (mthar-
byed, Skt. antaka) – aquilo que dá um fim à prática espiritual.

Existem quatro tipos de mara:

 O mara da morte (O Senhor da Morte)


 O mara das emoções e atitudes perturbadoras

 O mara dos fatores agregados da experiência (os cinco agregados,


skandhas)
 O Mara que é filho dos deuses.

O Mara da Morte
A morte, logicamente, é o que mais interfere em nossa prática espiritual.
Não há como ter certeza de que nossa próxima vida será uma vida
humana preciosa, com todas as folgas e oportunidades que nos permitem
praticar sem obstáculos. Mesmo que tenhamos tal renascimento,
precisamos começar novamente o caminho espiritual como criança. Além
disso, a morte é um evento incontrolavelmente recorrente ao final de
cada vida.

Portanto, Mara também é considerado Yama (gShin-rje), o Senhor da


Morte (‘Chi-bdag); e no sistema do anuttarayoga tantra, o Buda é
Yamataka (gShin-rje gshed), Aquele Que Dá Fim à Yama. Entretanto, no
tantra, Yama não é simplesmente a morte em si, mas existem três níveis
de Yama, que detalham os três níveis daquilo que está envolvido na
morte.

 Yama exterior - é a morte em si.


 Yama interior - são as emoções e atitudes perturbadoras, que ativam o
rescaldo kármico e nos propulsionam em direção a renascimentos
subsequentes, perpetuando o ciclo de renascimento e morte.

 Yama oculto ou secreto - são as três mentes conceituais mais sutis que
criam as aparências de uma existência verdadeira: limiar (nyer-thob,
quase-atingimento, aparência preta), difusão (mched, aumento,
aparência vermelha), e aparecimento (snang, aparência, aparência
branca). Cada renascimento começa com essas três mentes conceituais
sutis criando aparências que parecem existir verdadeiramente. Tendo
por base a falta de consciência, acreditamos que essas aparências
correspondem à realidade, e assim nos agarramos à existência
verdadeira e temos todas as emoções e atitudes perturbadoras que
derivam da falta de consciência e do agarramento.

Se ignorarmos a morte, seis obstáculos podem surgir e interferir em


nosso estudo e prática espiritual; são eles:

 Não nos lembrarmos das medidas do dharma

 Mesmo que nos lembremos delas, não as colocarmos em prática.

 Mesmo que as coloquemos em prática, não o fazer com pureza.

 Não ter a determinação para praticar fervorosamente o tempo todo.

 Devido às nossas ações destrutivas, não estarmos aptos a obter a


liberação.

 Morrer com arrependimentos.

Não praticamos o dharma com pureza porque, por ignoramos a morte,


somos pegos nas oito situações transitórias da vida (‘jig-rten-pa’i chos-
brgyad, os oito dharmas mundanos):

 Elogio ou crítica

 Boas notícias ou más notícias — inclusive ter ou não ter notícias das
pessoas que amamos; ou ouvir sons agradáveis ou desagradáveis

 Ganhos e perdas — tais como dinheiro e posses

 Coisas darem certo ou darem errado — tal como estarmos saudáveis e


felizes ou doentes e depressivos.
Ficamos contentes e encantados com as primeiras situações dos pares
acima e ficamos deprimidos, desencantados e desapontados como as
segundas situações.

Mas podemos manter equanimidade diante das oito situações transitórias


da vida, adotando as dez atitudes internas que são como joias, da tradição
Kadam (bka’-gdams phugs-nor bcu). Esse conjunto de dez atitudes é
composto pelas quatro aceitações confiantes (gtad-pa bzhi), três
convicções adamantinas (rdo-rje gsum), e as atitudes maduras em relação
a ser expulso, a encontrar e a conquistar (bud-rnyed-thob gsum).

As quatro aceitações confiantes são:

 Estarmos dispostos a aceitar com total confiança as medidas do


dharma, sendo esse nosso posicionamento mais profundo em relação à
vida.

 Estarmos dispostos a aceitar até mesmo virar um mendigo, sendo esse


nosso posicionamento mais íntimo em relação ao dharma.

 Estarmos dispostos a aceitar até mesmo a morte, sendo esse nosso


posicionamento mais íntimo em relação a virar um mendigo.

 Estarmos dispostos a aceitar até mesmo morrer sozinho e sem amigos


em uma caverna vazia, sendo esse nosso posicionamento mais íntimo
perante a morte.

As três convicções adamantinas são:

 Seguir com nossa prática do dharma sem nos importar com o que os
outros pensam à nosso respeito
 Manter sempre nossos compromissos e a consciência profunda
 Seguir continuamente com nossa prática sem nos deixar levar por
preocupações inúteis.

As atitudes maduras em relação a ser expulso, a encontrar e a conquistar


são:

 Estar disposto a ser expulso do grupo das assim-chamadas pessoas


“normais”.
 Estar disposto a encontrar-se na mesma posição hierárquica de um
cachorro.
 Estar totalmente envolvido na conquista da posição divina de um Buda.
É lógico que, em um nível mais profundo, só conseguiremos vencer o
mara da morte quando tivermos uma compreensão da vacuidade,
atingido a liberação e não estivermos mais sujeitos à morte e ao
renascimento samsárico.

O Mara das Emoções e Atitudes Perturbadoras


Emoções e atitudes perturbadoras, (nyon-mongs, sânscr. klesha),
interferem enormemente em nosso estudo e prática espiritual. As
principais são desejo e apego, hostilidade e raiva, ingenuidade, orgulho,
indecisão e atitudes perturbadoras relacionadas à nossa visão da
realidade, como uma visão enganosa sobre coisas transitórias, por
exemplo.

Quando sentimos que alguma dessas emoções e atitudes perturbadoras é


muito forte, podemos praticar tonglen (gtong-len, dando e recebendo)
pensamos em todos os outros seres que tem a mesma emoção ou atitude
perturbadora e que isso não é um problema só nosso, mas de todo
mundo. É razoável pensarmos dessa forma porque esse é um problema
que afeta a todos os seres samsáricos e nós fazemos parte desses seres,
portanto, precisamos lidar com isso por todos os seres. É como se
fossemos uma mulher que estivesse enfrentando preconceito no
ambiente de trabalho. O preconceito contra mulheres não seria um
problema só nosso, pois é um problema de todas as mulheres. Portanto,
para nos livrarmos do preconceito que sofremos por ser mulher,
precisamos enfrentar o preconceito contra todas as mulheres.

No Treinamento da Mente em Sete Etapas (Blo-sbyong don-bdun-ma) por


Geshe Chaykawa (dGe-bshes ‘Chad-kha-ba), uma das quatro ações (sbyor-
ba bzhi) da etapa de transformar as condições adversas no caminho para
a iluminação é fazer oferendas aos espíritos maléficos (maras) e pedir a
eles que nos deem circunstâncias mais difíceis. Essa prática de “alimentar
o demônio” é parecida com o tonglen. Mas aqui, nós primeiro praticamos
o “dar” e depois pedimos ao demônio que nos ajude a receber mais
sofrimento dos outros. Na prática de Vajrayogini, e também em outros
rituais tântricos de oferendas, alimentar os demônios é parte da prática
de fazer oferendas aos vários convidados: especialmente aos convidados
que são nossos inimigos.

O Mara dos Agregados


O mara dos agregados refere-se aos agregados maculados (zag-bcas-kyi
phung-po, agregados contaminados). Assim como Shakyamuni identificou
que o sofrimento permeia todo o samsara (khyab-byed-kyi sdug-bsngal),
ele identificou Mara em todos os agregados.
No Tesouro de Tópicos Especiais de Conhecimento (Chos mngon-pa’i
mdzod, sânscr. Abhidharmakosha), Vasubandhu define “fenômenos
maculados” como fenômenos não-estáticos (impermanentes) que
derivam de uma atitude ou emoção perturbadora. Quando esses
fenômenos são objetos de cognição de nossa mente limitada o resultado é
mais emoções e atitudes perturbadoras no nosso continuum mental.
Também são maculados os cinco fatores agregados que acompanham as
emoções e atitudes perturbadoras. Portanto, Vasubandhu especifica os
fenômenos maculados como sendo todos os fenômenos não-estáticos,
excetuando-se aqueles que constituem a quarta nobre verdade.

Na Antologia de Tópicos Especiais de Conhecimento (Chos mngon-pa kun-


las btus-pa, sânscr. Abhidharmasamuccaya), Asanga desenvolve mais esse
tópico e considera a definição de Vasubandhu como apenas uma das
categorias de fenômenos maculados. Asanga inclui entre esses fenômenos
os fatores agregados que surgem do anseio e que geram outras situações
samsáricas. Portanto, essa é a situação em que os fatores agregados de
nossa experiência derivam do anseio e da inconsciência (que ativam os
ventos kármicos), eles contém inconsciência e perpetuam a inconsciência.

Portanto, o “hardware” dos nossos agregados — nossa mente e corpo


limitados — é o mara dos agregados, porque nos limita com mais e mais
sofrimento e mata nossas chances de liberação

O Mara Que É Filho dos Deuses


Originalmente, parece que o Mara que é filho dos deuses refere-se a
Kama, filho do deus Krishna, e a sua tentativa de interferir na meditação
de Shiva. Os budistas consideram esse mara como sendo as visões
enganosas dos não-budistas ou, conforme a escola Prasangika, até mesmo
as perspectivas dos sistemas inferiores de filosofia budista que, apesar de
úteis, devem ser superadas.

Esse mara também pode referir-se às 62 visões errôneas (lta-ba ngan-pa,


visões más) propostas pelos 18 não-budistas extremistas (mu-stegs,
sânscr. tirthika). E ainda, em A Filigrana de Realizações (mNgon-rtogs
rgyan, sânscr. Abhisamayalamkara), Maitreya enumera 46 falhas que
interferem no desenvolvimento das sabedorias aplicáveis aos
bodhisattvas (sbyor-ba’i skyon). Essas falhas também são consideradas o
trabalho de Mara que é o filho dos deuses.
Os Quatro Maras de Acordo com o Kalachakra

Em Notas sobre a Suprema Mandala do Glorioso Kalachakra, Fonte de


Todas as Boas Qualidades (dPal dus-kyi ‘khor-lo’i dkyil-chog yon-tan kun-
’byung-gi zin-bris), Buton (Bu-ston Rin-chen grub) explica que no
Kalachakra os quatro maras tem o seguinte significado:

 O mara dos agregados refere-se aos obscurecimentos do corpo, que são


imputados na gota de energia criativa sutil do despertar.

 O mara das atitudes perturbadoras refere-se aos obscurecimentos da


fala, que são imputados na gota de energia criativa sutil do sonho.

 O mara do Senhor da Morte refere-se aos obscurecimentos da mente,


que são imputados na gota de energia criativa sutil do sono profundo
sem sonho.

 O mara que é filho dos deuses refere-se a entrar externamente na


inconsciência (phyi-rol-gyi ma-rig-pa la ‘jug-pa), que talvez refira-se ao
obscurecimento associado com a quarta gota, a gota de energia criativa
sutil da bem-aventurança. Talvez isso refira-se aos obscurecimentos da
inconsciência, que fazem com que emitamos nossas energias sutis
quando da bem-aventurança do orgasmo. Quando atingimos a bem-
aventurada consciência imutável da vacuidade, podemos dizer que
temos o comportamento totalmente puro da realidade (de-kho-na nyid-
gyi tshangs-spyod), onde estamos sempre na imutável bem-
aventurança (mi-‘gyur-ba’i bde-ba) e nunca sentimos a bem-
aventurança da emissão orgástica (dzag-bde). Isso porque nossa mente
permanece absorvida na clara luz da realização da vacuidade e não se
afasta dela quando da geração das três mentes conceituais de criação
de aparências, que são análogas à emissão orgástica. Referimos a essa
conquista como ter um bastão vajra (rdo-rje dbyug-pa) para derrotar
os maras. Ter um bastão vajra é uma das dez qualidade de um mestre
vajra, de acordo com o Kalachakra.
Ciência da Mente
Para superar emoções perturbadoras e alcançar todo o potencial de nossa mente,
precisamos saber como a mente funciona. O budismo apresenta um mapa abrangente da
mente, explicando as nossas emoções e o funcionamento conceitual e não-conceitual do
pensamento. Usando este conhecimento, podemos discriminar entre ideias válidas e
incorretas, desconstruir os componentes mentais da nossa experiência de vida e
aprender a domesticar nossas mentes.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 Fatores Mentais e da Mente

Os 51 Principais Fatores Mentais


Dr. Alexander Berzin

Mente e Atividade Mental

De acordo com a definição budista, mente é apenas mera claridade (sems) e


consciência (gsal-rig-tsam) e refere-se à atividade mental subjetiva de
vivenciarmos coisas (myong-ba). Claridade significa dar surgimento à aparência
cognitiva das coisas (‘char-ba), uma espécie de holograma
mental; consciência significa nos engajarmos cognitivamente com elas, e mera é
porque isso acontece sem que haja a presença de um “eu” separado e incólume
controlando ou observando a atividade. O “eu” existe, mas meramente como algo
imputado sobre a continuidade de momentos, sempre mutantes, de experiência de
coisas sempre mutantes.

Formas de Estarmos Conscientes de Algo

As formas de estarmos conscientes de algo (shes-pa) envolvem todos os tipos de


atividade mental, que são:

 Consciência Primária (rnam-shes)

 Fatores mentais (sems-byung, consciência subsidiária).

E os sistemas filosóficos Sautrantika e Chittamatra incluem ainda um terceiro tipo:

 Consciência reflexiva (rang-rig).

A consciência reflexiva acompanha todos os momentos de cognição conceitual e


não conceitual de um objeto, apesar de ela própria permanecer sempre não
conceitual. Ela foca e reconhece apenas as outras consciências — a consciência
primária e os fatores mentais — e a sua própria validade, e não reconhece os
objetos da consciência primária e dos fatores mentais em que foca. Ela planta a
abstração não estática (ldan-min ‘du-byed, variável não-concomitante influenciada)
de uma impressão mental (bag-chags) da cognição do que conhece, o que depois a
permite lembrar dessa cognição (dran-pa, presença mental). A lembrança ocorre
por meio da cognição conceitual de um aspecto mental parecido com o do objeto
previamente conhecido e da categoria (spyi, universal) que deriva mentalmente do
objeto e na qual se encaixam todos os aspectos mentais que se assemelham ao
objeto.

De acordo com a tradição Gelug, apenas a subdivisão Yogachara Svatantrika-


Madhyamaka do sistema Madhyamaka aceita a consciência reflexiva. A
Sautrantika-Svatantrika Madhyamaka e a Prasangika-Madhyamaka rejeitam até
mesmo sua existência convencional (tha-snyad-du yod-pa). Mas, segundo as escolas
não Gelug, todas as divisões da Madhyamaka aceitam a existência convencional da
consciência reflexiva.

Consciência Primária

Todos os sistemas budistas aceitam a existência de pelo menos seis tipos de


consciências primárias:

1. Consciência visual (mig-gi rnam-shes)


2. Consciência auditiva (rna’i rnam-shes)
3. Consciência olfativa (sna’i rnam-shes)
4. Consciência gustativa (lce’i rnam-shes)
5. Consciência tátil (lus-kyi rnam-shes)
6. Consciência mental (yid-kyi rnam-shes).

Ao contrário da visão ocidental, que considera a consciência como uma faculdade


geral que pode reconhecer todos os objeto sensoriais e mentais, o budismo
distingue seis tipos de consciência, uma para cada campo sensorial e uma para o
campo mental.

Uma consciência primária reconhece apenas a natureza essencial (ngo-bo) do


objeto, ou seja, a categoria fenomenológica a qual ele pertence. Por exemplo, a
consciência visual reconhece uma visão como uma mera visão.

A escola Chittamatra adiciona mais dois tipos de consciência primária, o que faz de
sua lista um entrelaçamento de oito consciências primárias (rnam-shes tshogs-
brgyad):

7. Consciência equivocada (nyon-yid, ing. deluded awareness)

8. Consciência de base alayavijnana (kun-gzhi rnam-shes, consciência


fundamental que a tudo engloba, consciência armazém).

Alayavijnana é uma consciência individual, não é universal, e está por trás de todos
os momentos de cognição. Ela tem ciência dos mesmos objetos que aparecem para
as demais consciências, mas é uma cognição que não define o que aparece (snang-
la ma-nges-pa, cognição desatenta) e não percebe com clareza seus objetos. Ela
carrega os legados kármicos e as impressões mentais de memórias, ambos
abstrações não estáticas imputadas no alayavijnana. A continuidade de uma
alayavijnana individual cessa quando se atinge a iluminação.

A consciência equivocada mira no alayavijnana e reconhece seu fator de


amadurecimento (rnam-smin-gi cha) como sendo um “eu” falso. Em um nível
grosseiro, o reconhece como um “eu” que existe de modo estático, uma entidade
monolítica e independente de seus agregados (rtag gcig rang-dbang-can), dos
cinco agregados (phung-po, Skt. skandha) que compreendem cada momento de
nossa existência: as cinco formas de fenômenos físicos (incluindo o corpo), níveis
diferentes de felicidade, a habilidade de distinguir, outras variáveis subjacentes
(emoções e assim por diante) e a consciência primária.

Em um nível mais sutil, a consciência equivocada reconhece o fator de


amadurecimento do alayavijnana como um “eu” cognoscível de forma substancial e
independente, que consegue manter-se por si só (rang-rkya ‘dzin-thub-pa’i rdzas-
yod).

De acordo com as escolas não Gelug, todos os sistemas Madhyamaka aceitam a


existência convencional da alayavijnana e da consciência equivocada. De acordo
com a escola Gelug nenhum dos sistemas Madhyamaka aceitam sequer sua
existência convencional.

Discussão Geral Sobre Fatores Mentais

Assim como a consciência primária, os fatores mentais também são meras formas
de estarmos cientes de algo. Eles tem consciência de seus objetos de uma forma
especial, mas sem inserção (sgro-‘dogs, adicionando algo que não está lá) ou
repúdio (skur-‘debs, negando algo que está lá). Alguns executam funções que
ajudam a consciência primária a tomar cognitivamente (‘dzin-pa) seu objeto.
Outros adicionam um sabor emocional à tomada do objeto.

Uma rede de fatores mentais acompanha cada momento de consciência primária e


cada um compartilha cinco características concomitantes (mtshungs-ldan
lnga, cinco coisas em comum) com a consciência primária a que acompanha, como,
por exemplo, focar simultaneamente no mesmo objeto.

Consciência Principal

Algumas das formas de se estar consciente de um objeto não se encaixam nas


categorias de consciência primária ou fator mental. Os exemplos mais comum são
os das consciências principais (gtso-sems). Em uma cognição, a consciência
principal é uma consciência composta de uma consciência primária e dos fatores
mentais que a acompanham, que é a forma proeminente de se estar consciente de
um objeto de cognição. Ela caracteriza o tipo de cognição que está ocorrendo. Um
exemplo de consciência principal é bodhichitta. Bodhichitta é um composto de
consciência mental focada na iluminação do próprio indivíduo e fatores mentais
como a intenção de atingir tal iluminação para beneficiar todos os outros seres.
Contagem dos Fatores Mentais

Existem muitos sistemas diferentes de abhidharma (chos-mngon-pa, tópicos


especiais de conhecimento), cada um com sua contagem e lista de fatores mentais.
Frequentemente, quando listam uma mesma consciência, sua definição difere de
um sistema para outro.

Por exemplo, o sistema Teravada apresentado em Um Texto Que Tudo Inclui dos
Pontos de Tópicos de Conhecimento (Pali: Abhidhammattha-sangaha) de Anuruddha
especifica cinquenta e dois fatores mentais. O tratado padrão do Bon sobre esse
tópico, encontrado no texto Núcleo Mais Profundo de Tópicos de
Conhecimento (mDzod-phug) de Shenrab Miwo (gShen-rab mi-bo), desenterrado
como um texto-tesouro (gter-ma, terma) por Shenchen Luga (gShen-chen Klu-dga’),
lista cinquenta e um fatores.

Em Tesouro de Tópicos Especiais de Conhecimento, Vasubandhu especificou


quarenta e seis fatores mentais; já no Tratado dos Cinco Agregados Mentais (Phung-
po lnga rab-tu byed-pa, Skt. Panchaskandha-prakarana), listou cinquenta e um.
Asanga também apresentou cinquenta e um fatores mentais em sua Antologia de
Tópicos Especiais de Conhecimento. Esta lista repete os cinquenta e um itens de
Vasubhandu, mas com definições diferentes para muitas das consciências e, em
alguns lugares, uma ligeira mudança na ordem.

As escolas Madhyamaka seguem a versão de Asanga. Aqui, apresentaremos seu


sistema baseando-nos nas explicações do mestre Gelug do século XVII, Yeshey-
gyeltsen, (Kha-chen Ye-shes rgyal-mtshan) em sua obra Indicando Claramente o
Modo (de ser) dos Fatores Primários e Mentais (Sems-dang sems-byung-gi tshul gsal-
bar bstan-pa). Apontaremos algumas variações básicas, mas apenas na obra de
Vasubandhu, Tesouro de Tópicos Especiais de Conhecimento, pois os tibetanos em
geral também estudam esse texto.

Asanga listou:

 Cinco fatores mentais que estão sempre em funcionamento (kun-’gro lnga)


 Cinco determinantes (yul-nges lnga)
 Onze emoções construtivas (dge-ba bcu-gcig)
 Seis aflições mentais fundamentais (rtsa-nyon drug)
 Vinte emoções perturbadoras auxiliares (nye-nyon nyi-shu)
 Quatro fatores mentais mutáveis (gzhan-‘gyur bzhi).

Essas listas de fatores mentais não são completas e definitivas. Existem muitos
outros fatores além dos cinquenta e um. Muitas das boas qualidades (yon-tan)
cultivadas no caminho budista não estão listadas separadamente – por exemplo,
generosidade (sbyin-pa), disciplina ética (tshul-khrims), paciência (bzod-pa), amor
(byams-pa) e compaixão (snying-rje). De acordo com a apresentação Gelug, os cinco
tipos de consciência profunda (ye-shes) – do espelho, equalizadora,
individualizadora, realizadora e esfera da realidade (Skt. dharmadhatu) – também
são fatores mentais. As várias listas são compostas apenas de determinadas
categorias significativas de fatores mentais.
Os Cinco Fatores Mentais Que Estão Sempre em Funcionamento

Os cinco fatores mentais que estão sempre em funcionamento acompanham todos


dos momentos de cognição.

(1) Sentimentos de níveis diferentes de felicidade (tshor-ba, sentimento) é como


experimentamos o amadurecimento de nosso karma, o que inclui:

 Os fatores agregados com os quais nascemos


 O meio ambiente em que vivemos

 Os evento que acontecem conosco e são similares a outros que aconteceram no


passado
 Os sentimentos de querer repetir padrões anteriores de comportamento.

Um sentimento de felicidade é aquilo que experimentamos quando um karma


positivo amadurece, e um sentimento de infelicidade é o que experimentamos com
o amadurecimento de um karma negativo. Felicidade, neutralidade e infelicidade
formam um espectro contínuo. Cada um desses sentimentos pode ser físico ou
mental. Felicidade é aquele sentimento que, quando acaba, queremos mais.
Infelicidade ou sofrimento é o sentimento que, quando surge, queremos que vá
embora. Um sentimento neutro é aquele que não se encaixa nas duas categorias
acima.

Os sentimentos envolvidos nos vários níveis de felicidade podem ser agradáveis ou


desagradáveis (zang-zing). Eles são desagradáveis quando compartilham as cinco
características concomitantes com o anseio (sred-pa; sede) por fatores agregados
maculados (zag-bcas) da nossa experiência, ou seja, misturados com confusão, e
perpetuadores do samsara. Eles não são desagradáveis quando compartilham as
cinco características concomitantes com a absorção total de um arya na vacuidade.
Apenas os sentimentos não perturbadores de felicidade ou neutralidade
acompanham a absorção total de um arya.

(2) A habilidade de distinguir (‘du-shes, reconhecimento) toma uma característica


incomum (mtshan-nyid) do objeto que aparece (snang-yul) em uma cognição não
conceitual ou o conjunto de características de um objeto que aparece em uma
cognição conceitual, e atribui um significado convencional (tha-snyad ‘dogs-pa) a
ele. Mas não atribui necessariamente um nome ou rótulo mental ao objeto, nem o
compara com objetos previamente reconhecidos. O rotulamento mental de
palavras e nomes é um processo conceitual extremamente complexo. Portanto,
distinguir é muito diferente de “reconhecer”.

Por exemplo, com a cognição visual não conceitual, conseguimos distinguir formas
coloridas no campo sensorial visual como sendo uma forma amarela, por exemplo.
Segundo a tradição Gelug, a cognição visual também nos permite distinguir objetos
comuns, como uma colher. Nesses casos, a distinção não atribui o
nome amarelo ou colher, nem mesmo sabe que a cor é amarela ou que o objeto é
uma colher, apenas distingue o objeto como um item convencional. Assim, até um
recém-nascido consegue distinguir luz de escuridão e calor de frio. Isso é
conhecido como a distinção que toma a particularidade característica de um item
(don-la mtshan-mar ‘dzin-pa’i ‘du-shes).

Na cognição conceitual, a distinção atribui um termo ou significado convencional


(sgra-don) ao objeto — o objeto que aparece para a cognição, ou seja, uma
categoria auditiva (sgra-spyi) ou de significado (don-spyi) — excluindo aquilo que é
outra coisa (gzhan-sel), apesar disso não ser um processo de eliminação de
possíveis alternativas uma a uma. E as alternativas também não precisam estar
presentes para serem excluídas.

Assim, ao atribuir um nome a seu objeto, como “amarelo” ou “colher”, esse fator
mental distingue essa categoria de tudo o que não é essa categoria; a categoria
“amarelo” não é a categoria “preto”, por exemplo, e a categoria “colher” não é a
categoria “garfo”. Isso é conhecido como a distinção que toma a particularidade
característica que diz respeito a uma convenção (tha-snyad-la mtshan-mar ‘dzin-
pa’i ‘du-shes). A cognição não conceitual não faz esse tipo de distinção.

(3) Um impulso (sems-pa) faz com que a atividade mental olhe para um objeto ou
vá em sua direção. Em geral, ele move o continuum mental para tomar
cognitivamente um objeto. Um continuum mental é uma sequência eterna e
individual de momentos de atividade mental.

O karma mental (yid-kyi las) é o equivalente a um ímpeto mental. Segundo as


escolas Sautrantika, Chittamatra, Svatantrika-Madhyamaka, e as escolas
Prasangika-Madhyamaka não-Gelug, karmas físicos e verbais também são
impulsos mentais.

(4) A consciência de contato (reg-pa) distingue (yongs-su gcod-pa) o objeto de


cognição como agradável (yid-du ‘ong-ba), desagradável ou neutro, servindo,
portanto, como base para o experimentarmos com um sentimento de felicidade,
infelicidade ou um sentimento neutro.

(5) Prestar atenção ou trazer à mente (yid-la byed-pa) engaja (‘jug-pa) a atividade
mental com o objeto. O engajamento cognitivo pode ser simplesmente prestar uma
certa atenção ao objeto, desde muito pouca atenção a muita atenção. Pode ser
também focar no objeto de uma certa forma. Por exemplo, a atenção pode focar o
objeto de forma minuciosa, de forma a retomá-lo, de forma ininterrupta, ou mesmo
sem esforço.

Alternativamente, ou adicionalmente, a atenção pode considerar o objeto de uma


determinada forma. Ela pode considerar seu objeto de forma concordante (tshul-
bcas yid-byed; ponderação correta), ou seja, o que ele realmente é; ou discordante
(tshul-min yid-byed; ponderação incorreta), o que ele não é. As quatro maneiras de
se prestar atenção discordante aos cinco fatores agregados de nossa experiência é
considerá-los estáticos ao invés de não-estáticos, felicidade ao invés de sofrimento
(problemáticos), limpos aos invés de sujos e tendo uma existência verdadeira ao
invés de não tendo um “eu”. As quatro maneiras de prestar atenção concordante
são o oposto disso. Todos os quatro fatores mentais que estão sempre em
funcionamento estão necessariamente presentes em cada momento de cognição de
qualquer coisa. Caso contrário, nosso uso do objeto (longs-su spyod-pa) como um
objeto de cognição estaria incompleto. Asanga explicou,

 Na verdade, não experimentamos um objeto a não ser que sintamos algum sentimento
do espectro que vai de feliz, passando por neutro, a infeliz
 Não tomamos algo no campo sensorial como um objeto de cognição a menos que
consigamos distinguir alguma particularidade nele.
 Nós sequer olhamos ou nos direcionamos a um objeto de cognição a não ser que
tenhamos um impulso para tal.
 Não temos nenhuma base para sentir alguma coisa em relação ao objeto a menos que
tenhamos consciência dele através do contato, para que possamos distinguir se é
agradável, desagradável ou neutro.
 Não nos engajamos verdadeiramente com o objeto específico a menos que prestemos
algum nível de atenção a ele, mesmo que seja extremamente baixo.

Os Cinco Fatores Mentais Determinantes

Vasubandhu definiu esses cinco fatores de forma genérica e afirmou que também
acompanham todos os momentos de cognição. Já Asanga os chamou de fatores
mentais determinantes e os definiu de forma mais específica. Para Asanga, eles
acompanham apenas as cognições construtivas que apreendem (rtogs-pa,
entender) seus objetos e, portanto, são subcategorias do que Vasubandhu definiu.
Eles permitem que a atividade mental determine (nges-pa) seu objeto, ou seja, que
o identifique com certeza.

(1) Intenção Positiva (‘dun-pa) não é a mera motivação para tomar qualquer objeto,
alcançar qualquer objetivo ou para fazer algo com o objeto ou o objetivo, uma vez
que o tenhamos tomado ou alcançado. É a vontade de ter o objeto construtivo
desejado, de fazer algo com ele, ou de atingir o objetivo construtivo desejado. A
intenção pode ser o desejo de encontrar um objeto construtivo previamente
conhecido, de não se separar dele ou um forte interesse (don-gnyer) em um objeto
construtivo que pode ser obtido no futuro. A intenção positiva leva à uma alegre
perseverança (brtson-grus) para conseguir o objeto ou atingir o objetivo desejado.

(2) Uma Convicção firme (mos-pa) foca em um fato que tenhamos validamente
identificado como sendo isso e não aquilo. Sua função é fazer com que nossa crença
na veracidade de um fato seja tão forte que outros argumentos e opiniões não
possam nos dissuadir. Para Vasubandhu, esse fator mental significa consideração.
Ele simplesmente considera que o objeto tem uma certa quantidade de boas
qualidades — no espectro que vai de nenhuma boa qualidade à todas as boas
qualidades — e essa percepção pode estar correta ou distorcida.

(3) Presença mental que se recorda (dran-pa) não é simplesmente manter o foco em
um objeto reconhecido. Aqui, ela evita que a atividade mental esqueça ou perca o
objeto construtivo com o qual está familiarizada. Possui três características:

 O objeto deve ser algo construtivo com o qual estejamos familiarizados (‘dris-pa)
 O aspecto (rnam-pa) deve ser que foca nesse objeto e não o esquece ou perde
 A função deve ser prevenir a mente de vagar.
Assim, a presença mental é equivalente a uma “cola mental” (‘dzin-cha) que segura
o objeto em foco e não o larga. Sua força está no espectro que vai de fraca a forte.

(4) Fixação mental (ting-nge-‘dzin, concentração) não é simplesmente fixar em


qualquer objeto de cognição tomado por qualquer tipo de cognição, incluindo a
cognição sensorial. Aqui, ela faz com que a atividade mental fique unifocada, com
continuidade, em um objeto rotulado como sendo construtivo (btags-pa’i dngos-
po). Em outras palavras, o objeto de fixação precisa ser algo especificado pelo Buda
como construtivo.

Além disso, é necessário que se tome o objeto com consciência mental. Isto porque
o rotulamento mental é uma função restrita à cognição conceitual, que é
exclusivamente mental. Fixação é a permanência da mente em um objeto e pode
variar em força, desde fraca até forte. Serve como base para a consciência
discriminativa.

As tradições Karma Kagyu e Sakya ensinam focarmos em um objeto visual, como a


estátua do Buda, como método para atingirmos shamata (um estado mental calmo
e estável). Essa instrução não contradiz a definição de Asanga de fixação mental.
Isto porque essas tradições referem-se à estátua do Buda como um objeto
universal. Segundo suas afirmativas, os objetos de cognição visual são meros
momentos de formas coloridas. Objetos universais, como a estátua de um Buda,
são reconhecidos apenas pela cognição mental conceitual. Isto porque objetos
reconhecidos universalmente que perduram e que abrangem a sensibilia
reconhecida por outros sentidos são rotulados mentalmente aqui com base em
uma sequência de momentos de formas coloridas visualmente reconhecidas.

(5) A Consciência discriminativa (shes-rab, “sabedoria”) foca em um objeto para


análise e distingue seus pontos fortes de suas fraquezas, assim como suas boas
qualidades de suas falhas. Faz essa distinção com base em quatro axiomas (rigs-pa
bzhi): dependência, funcionalidade, estabelecimento através da razão e natureza
das coisas. Portanto, assim como no caso da determinação dos outros fatores
mentais, a consciência discriminativa entende (rtogs-pa) seu objeto —por
exemplo, como sendo construtivo, destrutivo ou não tendo sido especificado pelo
Buda como um ou outro. Funciona para acabar com qualquer indecisão.

Vasubandhu chamou esse fator mental de consciência inteligente e o definiu como


o fator mental que descrimina decisivamente que algo é correto ou incorreto,
construtivo ou destrutivo e assim por diante. Ela adiciona uma certa decisão na
distinção de um objeto de cognição — mesmo que em um nível extremamente
baixo —e pode ser acurada ou inacurada. Assim, a consciência inteligente não
necessariamente compreende seu objeto corretamente.

As Onze Emoções Construtivas

(1) Acreditar que um fato é verdadeiro (dad-pa) - foca em algo existente e


conhecível, algo com boas qualidades ou com um potencial real, e o considera
existente ou verdadeiro, ou considera um fato a seu respeito como sendo
verdadeiro. Logo, implica em aceitar a realidade.
Existem três tipos:

 Acreditar com lucidez em um fato (dang-ba’i dad-pa) - é ter clareza a respeito de um


fato e, como um purificador de água, isso deixa a mente clara.
 Acreditar em um fato tendo como base a razão (yid-ches-kyi dad-pa) - considera um
fato real com base em razões que o comprovam.
 Acreditar em um fato com uma aspiração a seu respeito (mngon-‘dod-kyi dad-pa) -
considera verdadeiro tanto o fato quanto a aspiração que consequentemente temos em
relação ele, como o fato de podermos atingir um objetivo positivo e a aspiração de
atingi-lo.

(2) Dignidade moral (ngo-tsha, um sentido de se resguardar) - é o sentido de


evitarmos comportamentos negativos por nos importarmos com o resultado de
nossas ações sobre nós mesmos. De acordo com Vasubandhu, esse fator mental
significa ter valores. É ter respeito pelas qualidades positivas e pelas pessoas que
as possuem.

(3) Cuidado com o reflexo de nossas ações nos outros (khrel-yod) - é o sentido de
evitarmos comportamentos negativos por nos importarmos com o reflexo de
nossas ações naqueles que estão conectados a nós. Estes podem ser nossa família,
professores, grupo social, grupo étnico, ordem religiosa ou conterrâneos. Para
Vasubandhu, esse fator mental significa ter escrúpulos, e é evitar sermos
descaradamente negativos. Este, juntamente com o fator mental anterior,
acompanha todos os estados mentais construtivos.

(4) Desapego (ma-chags-pa) - é um aversão tediosa (yid-‘byung) com a existência


compulsiva (srid-pa) e, consequentemente, uma falta de desejo por esse tipo de
existência (srid-pa’i yo-byad) e seus objetos. Mas isso não implica necessariamente
em liberdade total de todos os desejos, apenas um certo nível de liberdade. O
desapego pode ser pelas buscas compulsivas desta vida, de todas as vidas em geral
ou pela serenidade da liberação (Sânsc. nirvana) da existência compulsiva. Serve
como uma base para não nos engajarmos em comportamentos problemáticos
(nyes-spyod).

(5) Imperturbabilidade (zhe-sdang med-pa) - é não desejar causar mal (mnar-sems)


em resposta às ações dos seres limitados (seres sencientes), ao nosso próprio
sofrimento ou à situações de sofrimento que surgem de um desses dois casos, ou
simplesmente situações de sofrimento. Não implica em liberdade total da raiva,
mas também serve como base para não nos engajarmos em comportamentos
problemáticos.

(6) Ausência de ingenuidade (gti-mug med-pa) - é a consciência discriminativa que


está ciente de cada detalhe (so-sor rtog-pa) que diz respeito às causas e
consequências do comportamento ou à realidade, e que age se opondo à
ingenuidade. A ausência de ingenuidade pode surgir no nascimento (skyes-thob),
devido ao amadurecimento de um karma. Alternativamente, pode surgir de nos
aplicarmos (sbyor-byung) a ouvir ou ler escrituras e refletir ou meditar sobre seu
significado, considerando que já o tenhamos compreendido corretamente. Não
implica em liberação total da ingenuidade, mas também serve como base para não
nos engajarmos em comportamentos problemáticos.
(7) Perseverança (brtson-‘grus) - é uma energia vigorosa para sermos construtivos.
Asanga explicou cinco aspectos ou divisões da perseverança:

 A coragem que funciona como uma armadura (go-cha’i brtson-‘grus) para suportar
dificuldades. Vem de nos lembrarmos da alegria com a qual iniciamos nossa
empreitada.

 Dedicação constante e respeitosa ao que nos propusemos a fazer (sbyor-ba’i brtson-


‘grus).

 Nunca perder a esperança ou se deixar intimidar (mi-‘god-ba’i brston-‘grus).

 Nunca desistir (mi-ldog-pa’i brtson-‘grus).

 Nunca se tornar complacente (mi-chog-bar mi-‘dzin-pa’i brtson-‘grus).

(8) Aptidão (shin-sbyangs, flexibilidade) - é uma sensação de maleabilidade e


presteza do corpo e mente que permite que a atividade mental permaneça
engajada com um objeto construtivo pelo tempo que desejarmos. É obtida através
da interrupção de posturas prejudiciais na continuidade do corpo e mente, como o
vagar mental e a inquietação. A aptidão induz um sentimento de animação não
perturbada que vem da bem-aventurança física e mental.

(9) Atitude cuidadosa (bag-yod, cuidado) - é um fator mental que, ao permanecer


em um estado desapegado, imperturbável, de ausência de ingenuidade e
perseverança alegre, nos faz meditar em coisas construtivas e nos resguarda de
aprendermos coisas maculadas (negativas). Ou seja, estar desgostoso com a
existência compulsiva e não desejá-la, não querer causar mal como resposta ao
sofrimento, não ser ingênuo a respeito dos efeitos de nosso comportamento, tomar
com alegria as ações construtivas e ter uma atitude cuidadosa nos leva a agir
construtivamente e a evitar comportamentos destrutivos. Isto porque nos
importamos com nossa situação e a dos outros e com os efeitos de nossas ações em
ambos; as levamos a sério.

(10) Equilíbrio (btang-snyoms) ou serenidade - é um fator mental que, ao


permanecermos em um estado desapegado, imperturbável, livre de ingenuidade, e
alegremente perseverante, permite à atividade mental permanecer imperturbável
sem que seja preciso nos esforçarmos e sem inconstância ou torpor, em um estado
natural de espontaneidade e abertura.

(11) Não ser cruel (rnam-par mi-‘tshe-ba) - não é apenas a imperturbabilidade de


não desejar causar mal a seres limitados que estão sofrendo, ou de não desejar
irritá-los ou perturbá-los. Deve-se adicionar a isso a compaixão (snying-rje), o
desejo de libertá-los de seu sofrimento e das causas do sofrimento.

As Seis Aflições Mentais Fundamentais

Uma aflição mental (emoção ou atitude perturbadoras) (nyon-mongs, Skt. klesha,


“emoção aflitiva”) é aquela que, quando surge, nos faz perder a paz mental e o
autocontrole, nos incapacitando. Existem seis que são fundamentais, que formam a
base para as aflições mentais auxiliares. Vasubandhu classificou cinco delas como
não tendo uma visão (filosófica) sobre a vida (lta-min nyon-mongs), sendo,
portanto, emoções ou estados mentais perturbadores. Já a sexta é um conjunto de
cinco, mas neste caso existe uma visão sobre a vida (nyon-mongs lta-ba can) e
portanto são cinco atitudes perturbadoras. Asanga chamou este conjunto de “cinco
visões perturbadas equivocadas (ing. deluded) sobre a vida” (lta-ba nyon-mongs-
can). Para ficar mais fácil, vamos chamá-las apenas de “visões equivocadas”.

Com exceção da escola Vaibhashika, todos os outros sistemas filosóficos budistas


indianos afirmam que (grub-mtha’) todas as aflições mentais, com poucas
exceções, têm dois níveis: aprendida (kun-brtags) e automática (lhan-skyes).
Aflições mentais aprendidas surgem da estrutura conceitual de uma visão
distorcida da vida. As que surgem automaticamente não precisam dessa base.

A exceção no caso das emoções perturbadoras sem visão é a dúvida aflitiva, e no


caso das emoções perturbadoras com visão é manter uma visão equivocada como
sendo suprema, ou seja, uma visão que considera uma moral ou conduta
equivocada como sendo suprema, e uma visão distorcida. Essas exceções não
ocorrem de forma automática, só quando as aprendemos. O sistema de princípios
filosóficos Sautrantika também não afirma o surgimento automático de uma visão
extremista. O sistema de princípios filosóficos Vaibhashika não afirma o
surgimento automático de nenhuma atitude perturbadora (visão equivocada).
Nesse sistema, todos as cinco visões equivocadas são aprendidas.

(1) O desejo (‘dod-chags) mira em qualquer objeto maculado (associado com


confusão), externo ou interno — animado ou inanimado — e deseja adquirí-lo por
considerá-lo atrativo pela própria natureza. Funciona de forma a nos trazer
sofrimento. Apesar do desejo ou ganância acontecer na cognição sensorial ou
mental, ele é baseado em uma inserção conceitual anterior. Veja que a cognição
sensorial é sempre não conceitual, enquanto a cognição mental pode ser conceitual
ou não conceitual. A inserção anterior exagera as boas qualidades do objeto
desejado ou adiciona as boas qualidades que lhe faltam. Assim, a inserção
conceitual presta atenção ao objeto desejado de forma discordante (consideração
incorreta) — por exemplo, considera algo que é sujo (um corpo cheio de
excrementos) como limpo. Do ponto de vista ocidental, podemos ainda dizer que
quando o desejo tem como objeto outra pessoa ou grupo, pode tomar a forma de
desejo de possuir a pessoa ou o grupo como nosso ou querer pertencer à pessoa ou
grupo. Também parece que o desejo é frequentemente sustentado por um repúdio
conceitual ou negação antecipada das qualidades negativas de seu objeto.

Vasubandhu definiu essa emoção perturbadora fundamental como apego ou


possessividade. É o desejo de não largar qualquer desses cinco tipos de objetos
sensoriais desejáveis (visão, som, odores, gostos e sensações físicas) (‘dod-pa’i
‘dod-chags) ou nossa própria existência compulsiva (srid-pa’i ‘dod-chags). Também
tem como base uma maneira exagerada ou discordante de prestar atenção a
objetos maculados. Apego a objetos sensoriais desejáveis é apego a objetos do
plano dos objetos sensoriais desejáveis (‘dod-khams, reino do desejo). Apego à
existência compulsiva é apego aos objeto do plano das formas etéreas (gzugs-
khams, reino da forma) ou do plano dos seres sem forma (gzugs-med khams, reino
sem forma), ou seja, apego aos profundos estados de transe meditativo atingido
nesses reinos.

(2) A raiva (khong-khro) mira em outro ser limitado, em nosso próprio sofrimento,
nas situações de sofrimento que surgem de um dos dois ou simplesmente em
situações de sofrimento. A raiva é impaciente (mi-bzod-pa) e deseja se livrar do
sofrimento, danificando (gnod-sems), machucando ou combatendo (kun-nas mnar-
sems). Tem como base considerarmos um objeto repulsivo por sua própria
natureza e funciona de forma a nos trazer sofrimento. Hostilidade (zhe-sdang) é
uma categoria da raiva e é direcionada principalmente, mas não exclusivamente, a
seres sencientes. Assim como acontece com o desejo, apesar da raiva poder
ocorrer na cognição mental e sensorial, ela se baseia em uma inserção conceitual
anterior. A inserção exagera ou adicional qualidades negativas ao objeto. Assim, a
inserção conceitual presta atenção ao objeto de forma discordante — por exemplo,
considerando incorretamente algo que não é responsável como sendo responsável.

Da perspectiva ocidental, podemos também dizer que quando a raiva ou


hostilidade é direcionada a outra pessoa ou grupo, pode tomar a forma de rejeição
a essa pessoa ou grupo. Alternativamente, por medo da rejeição por parte de
outras pessoas ou grupo, podemos direcionar a raiva a nós mesmos. Parece que a
raiva também é frequentemente sustentada por um repúdio ou uma negação
conceitual anterior das boas qualidades do objeto.

(3) Arrogância (nga-rgyal, orgulho) é uma mente inflada (khengs-pa) com base em
uma visão equivocada em relação a um entrelaçamento transitório (‘jig-lta).
Conforme explicado abaixo, essa visão equivocada foca em algum aspecto ou um
entrelaçamento de aspectos do nossos cinco agregados e o identifica como um “eu”
monolítico e inalterável, separado dos agregados e senhor deles. Dentre as várias
formas e níveis de visão equivocada em relação a um entrelaçamento transitório, a
arrogância está baseada especificamente no surgimento automático de um
agarramento a um “eu” (ngar-‘dzin lhan-skyes). Funciona de forma que não
apreciamos os outros ou respeitamos suas boas qualidade (mi-gus-pa) e faz com
que não aprendamos coisas. Existem sete tipos de arrogância:

 Arrogância (nga-rgyal) - é uma mente inflada que acha que eu sou melhor do que
alguém inferior a mim em certas qualidades.
 Arrogância exagerada (lhag-pa’i nga-rgyal) -é um mente inflada que acha que eu sou
melhor que alguém igual a mim em certas qualidades.
 Arrogância ultrajante (nga-rgyal-las-kyang nga-rgyal) - é uma mente inflada que acha
que eu sou melhor do que alguém superior a mim em determinadas qualidades.
 Arrogância egoísta (nga’o snyam-pa’i nga-rgyal) - é uma mente inflada que pensa “eu”
ao focar em seus agregados perpetuadores do samsara (nyer-len-gyi phung-po).
 Arrogância falsa ou antecipatória (mngon-par nga-rgyal) - é uma mente inflada que
acha que eu tenho alguma qualidade que na verdade não tenho ou ainda não tenho.
 Arrogância modesta (cung-zad snyam-pa’i nga-rgyal) é uma mente inflada que acha que
sou apenas um pouquinho inferior a alguém que é extremamente superior a mim em
determinadas qualidades, e que sou superior a quase todo mundo.
 Arrogância distorcida (log-pa’i nga-rgyal) é uma mente inflada que acha que um
aspecto perverso que adquiri (khol-sar shor-ba) é uma boa qualidade— como, por
exemplo, ser um bom caçador.
Vasubandhu mencionou que os textos budistas listam nove tipos de arrogância,
que podem ser resumidas em três das categorias acima — arrogância, arrogância
exagerada e arrogância modesta. Os nove tipos de arrogância são uma mente
inflada que acha que:

 Sou superior aos outros


 Sou igual aos outros
 Sou inferior aos outros
 Os outros são superiores a mim
 Os outros são inferiores a mim
 Não existe ninguém superior a mim
 Não existe ninguém igual a mim
 Não existe ninguém inferior a mim.

(4) Ignorância (ma-rig-pa), segundo Asanga e Vasubandhu, é a perplexidade ou


desorientação (rmongs-pa) de não saber (mi-shes-pa) as causas e efeitos do
comportamento e da natureza da realidade (de-kho-na-nyid). A perplexidade é um
peso na mente e corpo. Ignorância, que nesse caso é um estado mental perturbado
que causa e perpetua o ciclo incontrolável de renascimentos (samsara), não quer
dizer não saber o nome de alguém. A ignorância produz uma certeza distorcida,
uma dúvida aflitiva e total confusão (kun-nas nyon-mongs-pa). Em outras palavras,
a ignorância nos faz teimar em nossa certeza incorreta sobre algo, nos deixa
inseguros, incertos e estressados.

De acordo com o texto Um Comentário Sobre (“Compêndio de Dignaga Sobre)


Mentes que Fazem Cognição Válida” (Tshad-ma rnam-‘grel, Skt. Pramanavarttika)
de Dharmakirti, ignorânica também é lugubridade e apreender algo de forma
invertida (phyin-ci log-tu ‘dzin-pa). O comportamento destrutivo surge e é
acompanhado de ignorância sobre as causas e efeitos do comportamento. Assim,
Asanga explicou que através dessa ignorância geramos o karma para
experimentarmos renascimentos em estados piores. Ignorância da verdadeira
natureza da realidade faz surgir e acompanha qualquer atividade: construtiva,
destrutiva ou não especificada. Focando apenas em comportamentos construtivos,
Asanga explicou, geramos o karma para experimentar estados melhores de
renascimento samsárico.

Segundo Vasubandhu, e todos os sistemas filosóficos Hinayana (Vaibhashika e


Sautrantika), a ignorância da verdadeira natureza da realidade refere-se apenas à
ignorância a respeito de como as pessoas existem, tanto nós quanto os outros. Isto
porque as escolas Hinayana não reconhecem a ausência de uma identidade
impossível nos fenômenos (chos-kyi bdag-med, ausência de um “eu” nos
fenômenos, ausência de identidade nos fenômenos).

De acordo com as interpretações Sakya e Nyingma da visão Prasangika e com a


interpretação de todas as quatro tradições tibetanas a respeito das visões
Svatantrika-Madhyamaka e Chittamatra , quando Asanga se refere à ignorância da
verdadeira natureza da realidade ele também não está considerando a ignorância
quanto à existência dos fenômenos. Isso porque essas tradições acreditam que a
ignorância a respeito da existência dos fenômenos não é um estado mental
perturbador e não nos impede de atingir a liberação. Elas incluem este fator
mental entre os obscurecimentos cognitivos (shes-sgrib), ou seja, os
obscurecimentos em relação a tudo o que pode ser conhecido e que impede a
onisciência.

A interpretação da visão Prasangika-Madhyamaka pelas escolas Gelug e Karma


Kagyu inclui a ignorância a respeito da verdadeira natureza da existência dos
fenômenos em um tipo de ignorância que é um estado mental perturbador. Assim,
a incluem tanto na referência de Asanga quanto nos obscurecimentos mentais
(nyon-sgrib), ou seja, nos obscurecimentos que são aflições mentais e que impedem
a liberação.

Ingenuidade (gti-mug) é uma subcategoria da ignorância e, quando usada no


sentido mais estrito, refere-se apenas à ignorância que acompanha os estados
mentais destrutivos — a ignorância a respeito das causas e efeitos do
comportamento e da verdadeira natureza da realidade.

Desejo (ou apego, dependendo da definição), hostilidade e ingenuidade são as três


emoções venenosas (dug-gsum).

(5) Dúvida aflitiva (the-tshoms, dúvida) é ter duas opiniões sobre o que é verdade,
ou seja, é a indecisão entre aceitar e rejeitar aquilo que é verdade. O que é verdade
refere-se a fatos como as quatro nobres verdades e causas e efeitos
comportamentais. E ainda, a indecisão pode pender para o lado da verdade, para o
lado do que é falso ou estar igualmente dividida entre os dois lados. A dúvida
aflitiva funciona como base para não nos engajarmos no que é construtivo.

Asanga apontou que a principal causa de problemas aqui é a dúvida aflitiva e


perturbadora (the-tshoms nyon-mongs-can). Refere-se à dúvida que pende mais
para uma decisão incorreta sobre a verdade. É a causadora de problemas porque,
se a dúvida tender para o que é correto ou se estiver igualmente dividida, pode nos
levar a nos engajarmos em coisas construtivas.

(6) Visões equivocadas (ing. deluded awareness) olham para o objeto de uma certa
maneira. Buscam nele e considerm-no algo a que se aferrar (yul-‘tshol-ba), sem
antes examinar, analisar ou investigar. Em outras palavras, é uma mera atitude em
relação aos objetos. Só ocorre em cognições conceituais e é acompanhada de
inserção ou repúdio. Entretanto, como fator mental elas por si só não inserem ou
repudiam nada.

Existem cinco visões equivocadas. Asanga explicou que cada uma é uma
consciência discriminativa (shes-rab nyon-mongs-can) equivocada e perturbadora.
Entretanto, não são subcategorias da consciência discriminativa que é um fator
mental determinante. Isto porque não preenchem o critério de Asanga para essa
consciência determinante, que é compreender corretamente seu objeto.

Além disso, Asanga explicou que cada uma das cinco visões equivocadas implica
em:
 Tolerância com a visão equivocada, uma vez que consegue discriminar que ela traz
sofrimento.

 Apego a ela, uma vez que não percebemos que é equivocada.

 Considerá-la inteligente.

 Prender-se a um quadro conceitual.

 Especular que é correta.

As Cinco Visões Equivocadas

(1) A visão equivocada sobre um entrelaçamento transitório (‘jig-tshogs-la lta-ba,


‘jig-lta, visão falsa de um entrelaçamento transitório) busca e se aferra a um
entrelaçamento transitório de nossos próprios skandhas (cinco agregados)
perpetuadores do samsara. E os toma como base para inserir (projetar) um quadro
conceitual (atitude) ao qual está apegado. O quadro conceitual é o da existência de
um “eu” (nga, bdag) ou “meu” (nga’i-ba, bdag-gi-ba). Não foca nos agregados dos
outros. Entretanto, o “eu” e “meu” não são os “eu” e “meu” convencionais, são falsos
e não correspondem a nada que seja real. O “eu” falso pode ser estático e
monolítico, existindo independentemente dos fatores agregados (rtag-gcig-rang-
dbang-gi bdag) ou um “eu” auto-conhecedor (rang-rkya thub-‘dzin-pa’i bdag).
Assim, uma visão equivocada sobre um entrelaçamento transitório está baseada na
ignorância a respeito de como o “eu” convencional existe, e está acompanhada de
uma avidez por uma alma impossível de uma pessoa. Essa avidez pela (existência
de uma) alma impossível da pessoa é o que na verdade projeta a inserção de um
falso “eu” ou “meu”; não é a visão equivocada em si que faz isso.

Detalhando, uma visão equivocada sobre um entrelaçamento transitório é uma


consciência discriminativa perturbadora e equivocada que “se fixa” a um
entrelaçamento transitório de agregados como sendo idêntico a “mim”, ou seja, a
um falso “eu”. Ou se fixa nele como sendo “meu” (nga-yir ‘dzin), ou seja, totalmente
diferente do falso “eu”, que é, por exemplo, aquele que possui, controla ou habita.
“Fixar-se”, aqui, significa reconhecer conceitualmente seu objeto através de uma
ou mais categorias inseridas e considerar a inserção dessas categorias correta. As
categorias conceituais constituem o quadro conceitual a que essa visão equivocada
se fixa. Neste caso, as categorias inseridas incluem tanto um “eu” impossível
quanto “totalmente idêntico (um)” ou “totalmente diferente (muitos)”.

Além disso, uma visão equivocada sobre um entrelaçamento transitório busca e se


aferra a um ou mais dos nossos fatores agregados, com base na distinção de um ou
mais deles de tudo o mais. Como uma consciência discriminativa perturbadora e
equivocada, adiciona certeza a essa distinção. A consideração incorreta (prestar
atenção discordantemente) também acompanha essa visão equivocada e é o fator
mental que considera (leva à mente) o fator ou fatores agregados focados como
sendo as categorias inseridas.
Segundo Tsongkhapa, uma visão equivocada sobre um entrelaçamento transitório
não foca nos agregados, conforme Asanga e Vasubandhu explicam. De acordo com
seu sistema Gelug Prasangika, ela foca no “eu” convencional, que é imputado em
um entrelaçamento transitório de nossos fatores agregados. E ainda, o falso “eu” a
quem se fixa também tem uma existência verdadeiramente estabelecida.

(2) Uma visão extrema (mthar-‘dzin-par lta-ba, mthar-lta) considera nossos cinco
agregados perpetuadores do samsara de forma eternalista (rtag-pa) ou niilista
(‘chad-pa). Em sua Grande Apresentação dos Estágios do CaminhoGradual (Lam-rim
chen-mo), Tsongkhapa explicou que uma visão extrema é uma consciência
discriminativa equivocada e perturbadora que foca no “eu” convencional que a
atitude perturbadora anterior identificou com um entrelaçamento transitório. Ela
considera que o “eu” convencional tem uma identidade permanentemente ou que
não tem continuidade em vidas futuras. De acordo com Vasubandhu, uma visão
extrema enxerga os agregados produtores do samsara como durando eternamente
ou se extinguindo com a morte, sem continuidade em vidas futuras.

(3) Considerar uma visão equivocada como suprema (lta-ba mchog-tu ‘dzin-pa, uma
visão de falsa supremacia) considera suprema uma de nossas visões equivocadas e
os agregados através dos quais ela é produzida. Tsongkhapa especificou que a
visão que essa consciência discriminativa equivocada e perturbadora considera
pode ser nossa visão equivocada de um entrelaçamento transitório, nossa visão
extrema ou nossa visão distorcida. Segundo Vasubandhu, essa atitude
perturbadora pode considerar os agregados perpetuadores do samsara, que são a
base para as três visões equivocadas, com a atenção discordante de que são
totalmente limpos por natureza ou a fonte de felicidade verdadeira.

(4) Uma visão que toma uma moral ou conduta equivocada como suprema (tshul-
khrims-dang brtul-zhugs mchog-tu ‘dzin-pa) considera como pura, liberada e
definitivamente liberada alguma moral ou conduta equivocada, e também os
agregados perpetuadores do samsara que geram essa moral e conduta. Essa visão
equivocada vem de termos uma visão equivocada de um entrelaçamento
transitório, uma visão extrema ou uma visão distorcida. Ela considera a moral ou
conduta equivocada como o caminho que nos purifica (‘dag-pa) de forças kármicas
negativas (sdig-pa, potenciais negativos), nos libera (grol-ba) das emoções
perturbadoras e nos tira definitivamente (nges-par ‘byin-pa) do samsara (ciclo
incontrolável de renascimentos). Também considera os agregados produtores do
samsara, quando disciplinados por tais visões e condutas como tendo sido
purificados, liberados, e definitivamente liberados.

Tsongkhapa explicou que uma moral equivocada é nos livrarmos de um


comportamento quando não faz sentido fazermos isso, como andar sobre dois pés,
por exemplo. Uma conduta equivocada é engajarmos decididamente nosso corpo,
discurso e maneira de vestir de uma forma que não faz sentido, como a prática
asceta de ficar nu apoiando-se em um só pé no sol quente, por exemplo.

(5) Uma visão distorcida (log-lta, visão falsa) considera uma verdadeira causa, um
verdadeiro efeito, um verdadeiro funcionamento ou um fenômeno existente, como
não sendo verdadeiros ou existentes. Assim, é acompanhado de repúdio, por
exemplo, ao fato dos comportamentos construtivos e destrutivos serem as
verdadeiras causas da experiência de felicidade ou infelicidade. O repúdio pode ser
ao fato da felicidade e infelicidade serem o resultado do amadurecimento de forças
kármicas positivas e negativas. Pode ser também ao fato de que vidas passadas e
futuras realmente funcionam; ou ao fato de que podemos atingir a liberação e a
iluminação. Segundo Tsongkhapa e a escola Gelug-Prasangika, uma visão
distorcida pode também considerar uma causa, efeito ou funcionamento falso ou
um fenômeno não existente como verdadeiro e existente. Assim, também pode vir
acompanhada de um inserção, por exemplo, de que a matéria primal ou o deus
hindu Ishvara é a causa ou o criador dos seres limitados.

As Vinte Emoções Perturbadoras Auxiliares

As vinte emoções perturbadoras auxiliares derivam das três emoções venenosas


do desejo, hostilidade e ingenuidade.

(1) Ódio (khro-ba) faz parte da hostilidade, e é a intenção veemente de causar mal.

(2) Ressentimento (khon-‘dzin) faz parte da hostilidade e é guardar rancor. Sustenta


a intenção de vingar-se e retaliar por conta do mal que foi feito a nós ou a entes
queridos.

(3) Ocultar o comportamento impróprio (‘chab-pa) faz parte da ingenuidade e é


esconder ou não admitir, aos outros ou a nós mesmos, nossas atitudes menos
dignas (kha-na ma-tho-ba). Podem ser atitudes naturalmente indignas (rang-bzhin-
gyi kha-na ma-tho-ba) como a ação destrutiva de matar um mosquito ou atitudes
indignas proibidas (bcas-pa’i kha-na ma-tho-ba), que são ações neutras que o Buda
proibiu para determinados indivíduos e que tomamos votos para evitar, como
comer após o meio dia se somos um monge ou monja totalmente ordenados.

(4) Afronta (‘tshig-pa) faz parte da hostilidade e é a intenção de falar de forma


abusiva, com base em ódio e ressentimento.

(5) Inveja (phrag-dog) faz parte da hostilidade e é uma emoção perturbadora que
nos torna incapaz de suportar as boas qualidades e boa sorte alheias, devido a um
apego excessivo ao nosso próprio ganho e ao respeito que recebemos. Além disso,
a inveja deseja possuir as qualidades ou boa sorte dos outros e frequentemente
deseja que os outros não as possuam.

(6) Avareza (ser-sna) faz parte do desejo e é um apego ao ganho material ou ao


respeito e, ao não querer se desfazer de suas posses, se agarra a elas e não quer
compartilhá-las com os outros ou mesmo usá-las para si. Assim, avareza é mais do
que a palavra portuguesa mesquinharia. Mesquinharia é simplesmente não querer
compartilhar ou usar algo que possuímos, mas não possui o aspecto de acumulação
que a avareza possui.

(7) Pretensão (sgyu) está na categoria do desejo e ingenuidade. Por apego


demasiado a ganhos materiais e ao respeito do qual desfrutamos, e por desejo de
enganar os outros, a pretensão é fingir possuir ou dizer possuir uma boa qualidade
que não temos.

(8) Ocultar deficiências ou hipocrisia (g.yo) faz parte do desejo e da ingenuidade.


Por apego demasiado aos nossos ganhos materiais e ao respeito do qual
desfrutamos, é o estado mental que busca esconder dos outros nossas falhas e
deficiências.

(9) Convencimento ou presunção (rgyags-pa) faz parte do desejo. Ao ver sinais de


uma vida longa ou qualquer outra glória samsárica — saúde, juventude, riqueza e
assim por diante — a presunção é um estado mental inflado que fica feliz e tem
prazer nisso.

(10) Crueldade (rnam-par ‘tshe-ba) faz parte da hostilidade e possui três formas:

 Vandalismo (snying-rje-ba med-pa) é uma falta de compaixão cruel com a qual


desejamos prejudicar ou machucar a outros.
 Autodestruição (snying-brtse-ba med-pa) é uma falta de amor próprio cruel com a qual
desejamos prejudicar ou machucar a nós mesmos.
 Prazer perverso (brtse-ba med-pa) é alegrar-se cruelmente quando se tem
conhecimento do sofrimento dos outros.

(11) Falta de dignidade moral (ngo-tsha med-pa, ausência de um sentido de honra)


faz parte de todas as três emoções venenosas. É a ausência de qualquer disposição
em evitarmos comportamentos destrutivas por nos importarmos com o reflexo de
nossas ações em nós mesmos. Segundo Vasubandhu, esse fator mental quer dizer
não ter nenhum sentido de valores. É uma falta de respeito às qualidades positivas
ou às pessoas que as possuem.

(12) Não importar-se com o resultado de nossas ações sobre os outros (khrel-med) é
parte de qualquer das emoções venenosas. É a ausência de qualquer disposição em
evitarmos comportamentos destrutivos por nos importarmos com o reflexo de
nossas ações nos outros. Esses “outros” podem ser nossa família, professores,
grupo social, grupo étnico, ordem religiosa ou nossos conterrâneos. Para
Vasubandhu, esse fator mental quer dizer não ter escrúpulos, e é não evitar ser
descaradamente negativo. Este, e também o fator mental anterior, acompanham
todos os estados mentais destrutivos.

(13) Mente nebulosa (rmugs-pa) é parte da ingenuidade. É uma sensação de peso


corporal e mental que faz com que a mente fique turva, imprestável e incapaz para
fazer surgir uma aparência cognitiva de seu objeto ou apreendê-lo corretamente.
Quando a mente realmente perde a clareza por estar nebulosa chamamos isso de
torpor mental (bying-ba).

(14) Distração mental (rgod-pa) é parte do desejo. É o fator mental que faz com
que nossa atenção fuja do objeto e lembre-se ou pense em algo atraente que já
experimentamos. Assim, faz com que percamos a paz mental.

(15) Desacreditar de um fato (ma-dad-pa) é parte da ingenuidade e possui três


formas, que são contrárias às três formas de acreditar que um fato é verdadeiro:
 Desacreditar de um fato que está baseado na razão, como, por exemplo, desacreditar de
causas e efeitos comportamentais.
 Desacreditar de um fato, como as boas qualidades das Três Jóias de Refúgio, de forma
que nossa mente fique enlameada com aflições mentais, e infeliz.
 Desacreditar de um fato, como a existência da possibilidade de atingirmos a liberação,
de forma a não ter interesse algum nisso e nenhuma aspiração de alcançar a liberação.

(16) Preguiça (le-lo), faz parte da ingenuidade. Com a preguiça a mente não busca e
nem se engaja em coisas construtivas, porque se agarra ao prazer de dormir,
deitar, relaxar e assim por diante. Existem três tipos:

 Letargia e procrastinação (sgyid-lugs) - não sentir vontade de fazer algo construtivo no


momento e deixar para depois devido a apatia frente ao sofrimento incontrolavelmente
recorrente do samsara, e agarrar-se ao prazer de não fazer nada ou ansiar pelo sono
como uma válvula de escape.
 Agarrar-se a coisas ou atividades negativas ou triviais (bya-ba ngan-zhen) como apostar,
beber, más influências, ir a (muitas) festas, e assim por diante
 Desencorajamento e sentimentos de inadequação (zhum-pa).

(17) Não importar-se (bag-med, negligência, imprudência). Tem como base o


desejo, a hostilidade, a ingenuidade ou preguiça. É o estado mental de não engajar-
se com nada que seja construtivo e não evitar atividades maculadas com confusão.
É não levar a sério e não se importar com os efeitos de nosso comportamento.

(18) Esquecimento (brjed-nges). Tem como base a lembrança de algo que nos
desperta uma emoção ou atitude perturbadora. O esquecimento é perder nosso
objeto de foco de forma que a mente vagueie em direção ao objeto perturbador. O
esquecimento serve como base para a distração mental (rnam-par g.yeng-ba).

(19) Ser desatento (shes-bzhin ma-yin-pa) é uma consciência discriminativa


equivocada e perturbadora associada com o desejo, a hostilidade e a ingenuidade.
Faz com que nos engajemos em atividades físicas, verbais ou mentais sem
sabermos corretamente o que é próprio e o que é impróprio. Dessa forma, não
tomamos as atitudes necessárias para corrigir ou evitar comportamentos
impróprios.

(20) Vagar mental (rnam-par g.yeng-ba) é parte do desejo, hostilidade e


ingenuidade. É o fator mental que faz com que nossa mente se distraia do objeto
focado, devido a alguma emoção venenosa. Se nos distraímos devido ao desejo, o
objeto do desejo tem que ser algo com que já tenhamos familiaridade, assim como
no caso da distração mental.

Os Quatro Fatores Mentais Mutáveis

Asanga listou quatro tipos de fatores mentais que que têm um status ético mutável.
Eles podem ser construtivos, destrutivos ou não especificados, dependendo do
status ético da cognição com a qual compartilham as cinco particularidades
concomitantes.
(1) Sono (gnyid) é parte da ingenuidade. O sono é um retirar-se da cognição
sensorial, caracterizada por uma sensação física de peso, fraqueza, cansaço e
escuridão mental. Nos faz deixar nossas atividades.

(2) Arrependimento (‘gyod-pa) é parte da ingenuidade. É um estado mental que não


deseja repetir algo, seja próprio ou impróprio, que tenhamos feito ou que alguém
nos fez fazer.

(3) Detecção grosseira (rtog-pa) é o fator mental que investiga apenas


superficialmente, detectando, por exemplo, se existem erros em uma página.

(4) Discernimento sutil (dpyod-pa) é o fator mental que examina minuciosamente


para discernir detalhes específicos.

Fatores Mentais Que Não Se Encaixam nas Categorias Acima

Por inserir um modo impossível de existência em seu objeto, o apego à uma


existência verdadeira (bden-‘dzin) não é nem um fator mental nem um fator
primário, apesar de acompanhar ambos. E ainda, por não ser um fator mental, o
apego à uma existência verdadeiratambém não é uma emoção ou atitude
perturbadora.

Segundo a explicação Gelug-Prasangika, o apego a uma existência verdadeira


acompanha todos os momentos de cognição conceitual e não conceitual, com
exceção da cognição não conceitual da vacuidade por parte de um arya. Com
exceção também do momento de cognição da vacuidade por alguém que está no
caminho mental da diligência (sbyor-lam, caminho da preparação), o momento
anterior a essa pessoa atingir o caminho mental da visão (mthong-lam, caminho da
visão) com uma cognição não conceitual da vacuidade. Durante uma cognição
sensorial ou mental não conceitual o apego à existência verdadeira não está
manifesto (mngon-gyur-ba). De acordo com os livros de Jetsunpa (rJe-btsun Chos-
kyi rgyal-mtshan), o apego à existência verdadeira está presente como uma
consciência sublime (bag-la nyal), mas que ainda é uma forma de se estar
consciente de algo. De acordo com os livros de Panchen, ele está presente apenas
como um hábito constante, que não é uma forma de se estar ciente de algo, mas
sim uma variável não concomitante subjacente. Segundo as apresentações
Madhyamaka não-Gelug, apesar dos hábitos de apego à existência verdadeira
estarem presentes durante uma cognição não conceitual mental ou sensorial, o
apego não está presente. Segundo afirma a tradição Karma Kagyu, o apego à
existência verdadeira também não está presente durante o primeiro momento de
cognição conceitual.

De forma similar, a consciência profunda da total absorção na vacuidade (mnyam-


bzhag ye-shes) e a consciência profunda do atingimento subsequente (rjes-thob ye-
shes, sabedoria pós-meditação) não são fatores primários ou mentais, apesar de
acompanhar ambos. Isto porque não são simplesmente formas de se estar
consciente de um objeto; elas também refutam sua verdadeira existência.
Abhidharma e Sistemas de Ensinamentos
O estudo do abhidharma, ou tópicos especiais de conhecimento, revela as diferentes
formas que podemos usar para dividir e compreender todos os fenômenos do mundo.
Com esse conhecimento, podemos navegar pelas complexidades da vida e dar sentido
ao que nós experimentamos. Assim, aprendendo e meditando com os métodos e ideias
dos diferentes sistemas budistas, podemos vir a perceber a natureza mais profunda da
realidade.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 A Comparação das Tradições Budistas


As Tradições Tibetanas
A Comparação das Tradições Budistas

Os Termos Hinayana e Mahayana


Dr. Alexander Berzin

Os termos Hinayana (theg-dman, veículo menor, veículo modesto)


e Mahayana (theg-chen, veículo maior, veículo vasto) aparecem pela
primeira vez no Sutras Prajnaparamita (Sher-phyin mdo, Sutras do Longo
Alcance da Consciência Discriminativa, Sutras da Perfeição da Sabedoria),
aproximadamente no segundo século da era moderna. Esses sutras estão
entre os mais antigos textos Mahayana e neles foram usados os dois
termos para que ficasse claro que o alcance e a profundidade de seus
ensinamentos em muito excediam as escolas budistas precedentes.

Apesar dos dois termos carregarem conotações sectárias e aparecerem


exclusivamente em textos Mahayana é difícil achar substitutos adequados
que sejam “politicamente corretos”. “Hinayana” tornou-se um termo
comum a dezoito escolas budistas, das quais apenas uma ainda existe, a
Theravada. Da mesma forma, “Mahayana” alcança várias escolas. Quando
a tradição Indo-Tibetana estuda e discute os sistemas filosóficos da
doutrina Hinayana, suas referências são Vaibhashika e Sautrantika, que
são Sarvastivada, uma das dezoito escolas. Como algumas das escolas
Hinayana apareceram depois da Mahayana, não podemos chamar o
Hinayana de “Budismo Antigo” ou “Budismo Original” e o Mahayana
“Budismo Recente”.

O budismo Theravada é atualmente encontrado no Sri Lanka e Sudeste


Asiático. A Dharmagupta, outra das dezoito escolas Hinayana, se espalhou
pela a Ásia Central e China. A tradição monástica chinesa segue a versão
Dharmagupta das regras de disciplina monástica (sânsc. vinaya).
Ademais, o Mahayana espalhou-se pela Indonésia, mas não sobreviveu
nesse país. Portanto, chamar Hinayana de “ Budismo Meridional” e
Mayahana de “Budismo Setentrional” também é inadequado.

Tanto a escola Hinayana quanto a Mahayana traçam caminhos


para shravakas (ouvintes dos ensinamentos do Buda)
e pratyekabudas (auto-realizadores) alcançarem o estado puro de
um arhat (ser liberto), e para bodhisattvas atingirem o estado de Buda.
Portanto, não fica claro se chamarmos Hinayana de “Shravakayana” e
Mahayana de “Bodhisattvayana”

Consequentemente, apesar dos praticantes do budismo Theravada


considerarem os termos Hinayana e Mahayana ofensivos, devemos
relutantemente usá-los para nos referirmos à classificação das escolas
budistas, devido a falta de acuidade dos termos politicamente mais
corretos mencionados acima.
Hinayana e Mahayana: Comparação
Dr. Alexander Berzin

Os termos Hinayana (Veículo Menor ou Veículo Modesto)


e Mahayana (Veículo Maior ou Veículo Vasto) surgiram com o Sutra
Prajnaparamita (O Sutra da Sabedoria Discriminativa de Longo Alcance, O
Sutra da Sabedoria da Perfeição). Mas são termos que podem ter uma
conotação um tanto depreciativa, engrandecendo o Mahayana e
desvalorizando o Hinayana. Entretanto, as alternativas também tem seus
problemas, então usarei os termos que são normalmente utilizados, que
são mais conhecidos.

O Hinayana engloba dezoito escolas. As mais importantes para o nosso


objetivo são a Sarvastivada e a Theravada. A Theravada é a escola
dominante hoje no Sri Lanka e Sudeste Asiático. A Sarvastivada era
amplamente difundida no Norte da Índia quando os tibetanos começaram
a viajar para lá e transplantar o budismo para o Tibete.

A Sarvastivada possuía dois ramos principais, baseados em diferente


filosofias: o Vaibhashika e o Sautrantika. O sistema de ensinamentos
Hinayana estudado nas universidades monásticas da Índia, como
Nalanda, e mais tarde pelos tibetanos Mahayanistas, provém dessas duas
escolas. Já a linhagem de votos monásticos seguida pelos tibetanos vem
de outra subdivisão da Sarvastivada, a Mulasarvastivada.

Budas e Arhats

Existe uma diferença bastante significativa entre as apresentações


Hinayana e Mahayana no que diz respeito a arhats e budas. Ambas
concordam que arhats, ou seres liberados, são mais limitados que os
budas, seres iluminados. O Mahayana coloca essa diferença em termos de
dois conjuntos de obscurecimentos: os emocionais, que impedem a
liberação, e os cognitivos, que impedem a onisciência. Os arhats estão
livres apenas do primeiro, enquanto os budas estão livres dos dois. Essa
divisão não é encontrada no Hinayana. É uma definição exclusivamente
Mahayana.

Para obtermos liberação ou iluminação, tanto o Hinayana quanto o


Mahayana afirmam que é necessária a cognição não-conceitual da
ausência de uma “alma” impossível. Essa ausência de “alma”,
ou anatma em sânscrito — o idioma principal das escrituras
Sarvastivadas e Mahayanas — e anatta em pali — o idioma das escrituras
Theravada — é frequentemente traduzida como ausência de um “eu”. As
escolas Hinayana afirmam que essa ausência de uma “alma” impossível
aplica-se apenas a pessoas e não a fenômenos. Pessoas não possuem uma
“alma”, um atman, invulnerável, sólida, que pode ser separada do corpo e
da mente e reconhecida. Tal “alma” é impossível. Através apenas da
compreensão de que não existe algo que seja a “alma” de uma pessoa, é
possível tornar-se um arhat ou um buda. A diferença fica por conta da
quantidade de força positiva, ou “mérito”, acumulada. Os budas possuem
muito mais força positiva do que os arhats, por terem desenvolvido a
aspiração iluminadora de bodhichitta.

O Mahayana afirma que budas compreendem a ausência de uma “alma”


impossível tanto no que diz respeito à pessoas quanto aos fenômenos.
Eles chamam isso de “vacuidade”. As várias escolas indianas Mahayana
discordam quanto aos arhats terem ou não a compreensão da vacuidade
dos fenômenos. Dentro do Mahayana, a escola Prasangika Madhyamaka
afirma que eles têm essa compreensão. Entretanto, as quatro tradições
tibetanas apresentam explicações diferentes da Prasangika. Algumas
dizem que a compreensão dos arhats sobre a vacuidade dos fenômenos é
diferente da compreensão dos budas; outras dizem que as duas
vacuidades são a mesma. Algumas dizem que o escopo dos fenômenos aos
quais a vacuidade se aplica é mais limitado para os arhats do que para os
budas; e algumas dizem que não. Aqui, não precisamos de todos esses
detalhe.

Questões Adicionais a Respeito a Arhats e Budas

No que diz respeito a arhats e budas, Hinayana e Mahayana diferem em


muitos outros pontos. A escola Theravada, por exemplo, afirma que uma
das diferenças entre um shravaka - ou “ouvinte”, que busca a liberação
como arhat, e um bodhisattva, que busca a iluminação como um buda, é
que shravakas estudam com professores budistas, e bodhisattvas não. O
buda histórico, Shakyamuni, por exemplo, não estudou com outro buda.
Ele estudou apenas com professores não budistas, cujos métodos acabou
rejeitando. A Theravada afirma que a sabedoria de um buda é maior que a
de um arhat, porque a compreensão e conquista do buda não foram
alcançadas por meio de um professor budista.

Além disso, bodhisattvas trabalham para tornarem-se professores


budistas universais; shravakas não, apesar de, como arhats, eles
certamente terem discípulos. Antes de sua morte, o próprio Buda
ordenou a seu discípulo Shariputra, que era um arhat, que continuasse
“girando a roda do Dharma.” Entretanto, de acordo com a Theravada,
budas sobressaem-se sobre os arhats em razão de seus métodos de
liberação serem mais eficientes e abrangentes. Isso se deve a onisciência
dos budas. Entretanto, de acordo com essa escola, um buda não saberia o
endereço de todo mundo e teria que pedir informação aos outros.

De acordo com a escola Vaibhashika do Hinayana, a onisciência de um


buda aplicaria-se a essa informação, mas o problema é que eles só
saberiam uma coisa de cada vez. Já de acordo com o Mahayana,
onisciência significa saber tudo ao mesmo tempo, o que vem da visão de
que tudo é interconectado e interdependente; portanto, não poderia
haver uma informação que fosse separada, que não estivesse relacionada
ao resto.

O Hinayana afirma que o buda histórico alcançou a iluminação em vida e,


assim como um arhat, seu continuum mental terminou quando ele
morreu. Portanto, segundo essa escola, os budas ensinariam apenas até o
final da vida na qual eles atingiram a iluminação. Eles não emanariam
para infinitos sistemas de mundos e nem seguiriam ensinando para
sempre, conforme afirma o Mahayana. O Mahayana é a única escola a
afirmar que o buda histórico iluminou-se em uma vida prévia, há muitos
eons, estudando com professores budistas. E também afirma que o que
ele efetuou embaixo da árvore bodhi foi apenas demonstrar a iluminação,
como uma das dozes ações iluminadas de um buda. O relato precursor
dessa afirmação é encontrado na escola Mahasanghika do Hinayana,
outra das dezoito escolas Hinayana, mas não é encontrado na
Sarvastivada ou na Theravada.

Outra grande diferença, no que diz respeito aos budas, é que a escola
Mahayana é a única a afirmar a existência dos três corpos de um buda —
nirmanakaya, sambhogakaya e dharmakaya. O Hinayana não os
reconhece. Portanto, o conceito de buda é significativamente diferente
entre o Hinayana e o Mahayana.

Os Caminhos Mentais Que Levam à Liberação e à Iluminação

Tanto o Hinayana quanto o Mahayana afirmam que temos que


desenvolver cinco níveis de caminhos mentais — os assim chamados
“cinco caminhos”— nos estágios progressivos até o estado purificado, ou
“bodhi”, tanto de um arhat quanto de um buda. Ou seja, temos que
desenvolver o caminho mental da construção ou o caminho da
acumulação, o caminho mental da diligência ou caminho da preparação, o
caminho mental da visão ou o caminho da visão, o caminho mental da
habituação ou o caminho da meditação, e o caminho que não requer mais
treinamento ou que não requer mais aprendizagem. Shravakas e
bodhisattvas que alcançam o caminho mental da visão tornam-se aryas,
seres altamente realizados. Ambos têm a cognição não conceitual dos
dezesseis aspectos das quatro nobres verdades.

Tanto o Hinayana quanto o Mahayana concordam que o caminho mental


da visão livra os arya shravakas e arya bodhisattvas das emoções
perturbadoras que surgem baseados em doutrinas, enquanto o caminho
mental da habituação os livra das emoções perturbadoras que surgem
automaticamente. As primeiras estão baseadas na aprendizagem das
teorias de alguma das escolas indianas não-budistas, enquanto as últimas
surgem automaticamente em todo mundo, inclusive nos animais. A lista
das emoções perturbadoras de que os arya shravakas e bodhisattvas
estão livres é parte de uma lista maior de fatores mentais. Cada uma das
escolas Hinayana tem sua própria lista de fatores mentais, e o Mahayana
tem ainda outra lista. Muitos dos fatores mentais têm definições
diferentes nas diferentes listas.

Tanto o Hinayana quanto o Mahayana concordam que o progresso


através dos cinco caminhos da mente está ligado à prática dos 37 fatores
que levam a um estado purificado. Um “estado purificado” ou “bodhi”
refere-se tanto ao estado de arhat quando ao estado de buda. Esses 37
fatores incluem as quatro aplicações da presença mental, os oito ramos
do caminho da mente arya (o nobre caminho óctuplo), e assim por diante.
Eles são muito importantes. No anuttarayoga tantra, os 37 são
representados pelos 34 braços de Yamantaka juntamente com seu corpo,
fala e mente, e também pelas dakinis da mandala corporal de Vajrayogini.
Esses 37 fatores são um conjunto padrão de práticas. Contudo, as práticas
específicas frequentemente diferem no Hinayana e no Mahayana.

Tanto o Hinayana quanto o Mahayana afirmam que o esquema de entrar-


no-fluxo, retornar-uma-vez, não-mais-retornar e tornar se um arhat
refere-se a estágios do caminho de um arya shravaka, mas não do
caminho de um arya bodhisattva. Pessoas que entraram no fluxo tem a
cognição não conceitual de todos os dezesseis aspectos das quatro nobres
verdades, inclusive da ausência de uma “alma” impossível nas pessoas.
Portanto, não devemos pensar que o estágio de entrada no fluxo é para
principiantes. Se alguém disser ter atingido esse estágio, suspeite.

O Hinayana não fornece uma explicação extensa a respeito dos caminhos


mentais do bodhisattva. Mas o Mahayana explica que o caminho de um
arya bodhisattva até a iluminação se dá através do progresso pelos dez
níveis de mente-bhumi. Esses níveis mentais não pertencem ao caminho
shravaka.
Tanto o Hinayana quanto o Mahayana concordam que percorrer o
caminho do bodhisattva até a iluminação leva mais tempo do que
percorrer o caminho shravaka para tornar-se um arhat. Entretanto, o
Mahayana fala em criarmos as duas redes-de-construção-da-iluminação
— as duas coleções — por três zilhões de eons. “Zilhão”, normalmente
traduzido como “incontável”, significa um número finito, porém tão
grande que não conseguimos contar. Shravakas, por outro lado, podem
atingir o estado de arhat em apenas três vidas. Na primeira vida entra-se
no fluxo, na segunda chega-se ao estágio de retornar-uma-vez e na
terceira chega-se ao estágio de não-mais-retornar, atinge-se a liberação e
torna-se um arhat. Para muitas pessoas, isso é bastante tentador.

A afirmação de que arhats são egoístas é uma propaganda bodhisattva.


Sua função é simplesmente indicar um extremo a ser evitado. Os sutras
registram que o Buda pediu a sessenta de seus discípulos, que eram
arhats, para que ensinassem. Se eles realmente fossem egoístas, não
teriam concordado em fazê-lo. No entanto, a ajuda de um arhat é mais
limitada que a de um buda. Mesmo assim ambos só conseguem ajudar
àqueles que tem o karma para serem ajudados por eles.

Bodhisattvas

É importante entendermos que as escolas Hinayanas afirmam que para


tornar-se um buda é necessário seguir o caminho do bodhisattva. Tanto o
Hinayana quanto o Mahayana têm versões dos contos
de Jataka descrevendo vidas anteriores do Buda Shakyamuni como
bodhisattva. Desde o século III AC, muitos dos reis do Sri Lanka se
intitulavam bodhisattvas, começando pelo Rei Siri Sanghabodh. É claro
que é um pouco complicado desenrolar essa história, uma vez que já
haviam seguidores do Mahayana no Sri Lanka nessa época. É difícil
afirmar que a ideia de reis bodhisattvas já existia antes da influência
Mahayana, mas o fato é que ela existiu. Ainda mais surpreendente é que
no século V DC, os anciãos da capital do Sri Lanka, Anaradhapura,
declararam que Buddhaghosa, um grande mestre Theravada do
Abhidharma, era a reincarnação do bodhisattva Maitreya.

O Mahayana afirma que surgirão mil budas nesse “eon afortunado” e que
eles fundarão religiões universais, e também afirma que já existiram e
ainda existirão muitos outros budas em outras eras. O Mahayana também
afirma que todos podemos nos tornar budas, porque todos temos os
fatores da natureza búdica, que possibilitam isso. O Hinayana não fala
sobre a natureza búdica; entretanto a escola Theravada menciona
centenas de budas do passado. Um dos sutras Theravada lista 27 nomes.
E todos foram bodhisattvas antes de tornarem-se budas. O Theravada
também afirma que haverão inúmeros budas no futuro, incluindo
Maitreya, o próximo, e que qualquer um pode tornar-se um buda se
praticar as dez atitudes de vasto alcance.

As Dez Atitudes de Vasto Alcance

O Mahayana diz que as dez atitudes de vasto alcance são praticadas


apenas pelos bodhisattvas e não pelos shravakas. Isso porque o
Mahayana define uma atitude de vasto alcance, ou “perfeição”, como
aquela que é sustentada pela força do ideal de bodhichitta.

Entretanto, de acordo com a Theravada, contanto que as dez atitudes


sejam sustentadas pela força da renúncia, a determinação de se liberar,
não é necessário bodhichitta para que a prática tenha um vasto alcance e
aja como causa para a liberação. Portanto, a Theravada afirma que tanto
os bodhisattvas quanto os shravakas praticam as dez atitudes de vasto
alcance. Além da motivação, a diferença principal entre a prática das dez
atitudes de um bodhisattva e de um shravaka é sua intensidade. Cada
uma das dez atitudes de vasto alcance tem três estágios, ou graus:
comum, médio e elevado. Por exemplo, uma prática de generosidade mais
elevada seria dar seu próprio corpo para alimentar uma tigresa faminta,
como o Buda fez em uma de suas vidas anteriores, quando era um
bodhisattva.

A lista das dez atitudes de vasto alcance também difere ligeiramente


entre o Theravada e o Mahayana. A lista Mahayana é:

 Generosidade
 Autodisciplina ética
 Paciência
 Perseverança
 Estabilidade mental (concentração)
 Consciência discriminativa (sabedoria)
 Meios hábeis
 Preces de aspiração
 Força
 Consciência profunda.

A lista Theravada omite estabilidade mental, meios hábeis, preces de


aspiração, força e consciência profunda, e acrescenta:

 Renúncia
 Sinceridade
 Determinação
 Amor
 Equanimidade.

As Quatro Atitudes Incomensuráveis

Tanto o Hinayana quanto o Mahayana ensinam a prática das quatro


atitudes incomensuráveis do amor, compaixão, alegria e equanimidade.
Ambas definem amor como a aspiração de que os outros sejam felizes e
encontrem as causas da felicidade, e compaixão como a aspiração de que
estejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento. O Hinayana, no
entanto, não desenvolve essas atitudes incomensuráveis através de uma
linha de raciocínio, como a de que todos os seres já foram nossas mães e
assim por diante. Nessa escola, começa-se direcionado amor a todos os
que já amamos e estendendo esse amor, em etapas, em direção a um
número cada vez maior de seres.

As definições de alegria e equanimidade incomensuráveis são diferentes


no Hinayana e no Mahayana. No Hinayana, alegria incomensurável
significa ficarmos felizes com a felicidade alheia, sem sentirmos inveja, e
desejar que ela aumente. No Mahayana, alegria incomensurável é desejar
que os outros obtenham a felicidade da iluminação sem fim.

Equanimidade é o estado mental livre de apego, aversão e indiferença. Na


Theravada, significa termos equanimidade em relação ao resultado de
nosso amor, compaixão e alegria. O resultado de nosso esforço em ajudar
os outros realmente depende do karma e do esforço deles; apesar de,
assim como no Mahayana, a escola Theravada aceitar a possibilidade de
transferir-se força positiva, “mérito”, para os outros. Desejamos que
sejam felizes e que estejam livres do sofrimento, mas vemos o que quer
que aconteça de forma equânime. Isso porque sabemos que terão que
fazer o trabalho por si mesmos. No Mahayana, equanimidade
incomensurável significa aspirar que os outros seres estejam livres de
apego, aversão e indiferença porque essas atitude e emoções
perturbadores lhes causam sofrimento.

Apesar de precisarmos desenvolver amor e compaixão para atingirmos o


estado liberto de um arhat, não é necessária uma determinação
excepcional ou um ideal de bodhichitta. Determinação excepcional é um
estado mental de estar absolutamente determinado a tomar para si a
responsabilidade de ajudar a levar todos os seres à liberação ou
iluminação. Ideal de bodhichitta é o estado mental de querer atingir a
iluminação para conseguir levar adiante o objetivo da determinação
excepcional. Como o Hinayana não detalha o caminho do bodhisattva, ele
não explica essas duas atitudes. O Mahayana explica detalhadamente as
práticas meditativas para desenvolvê-las.

O Hinayana, portanto, enfatiza o desenvolvimento das quatro atitudes


incomensuráveis como uma forma de superarmos as emoções
perturbadoras opostas. Amor é o oposto de animosidade; ele nos libera
temporariamente de pensamentos de inimizade, agressão ou indignação e
ansiedade ou medo. Compaixão é o oposto de ter-se uma atitude cruel ou
nociva. Alegria ou regozijo é o oposto de inveja, e equanimidade é o
oposto de expectativa, preocupação ou desapontamento e indiferença.
Além disso, na Theravada, desenvolvemos essas quatro atitudes primeiro
em relação a nós mesmos, e só depois as direcionamos aos outros. No
Mahayana, a ênfase é no que os outros vivenciam, ao invés de na nossa
experiência em relação a eles.

As Duas Verdades

Apesar do Hinayana não afirmar a ausência de uma “alma” impossível nos


fenômenos, ou vacuidade, isso não quer dizer que não discuta a natureza
dos fenômenos em geral. O Hinayana aborda isso na apresentação das
duas verdades em relação aos fenômenos. O que precede a compreensão
da vacuidade dos fenômenos é a compreensão das duas verdades. No
Mahayana, as duas verdades são dois fatos que dizem respeito ao mesmo
fenômeno. No Hinayana, as duas verdades são dois conjuntos diferentes
de fenômenos. Existem fenômenos superficialmente, ou
convencionalmente verdadeiros e fenômenos profundamente, ou
absolutamente, verdadeiros.

Na escola Sarvastivada, o ramo Vaibhashika afirma que os fenômenos


superficialmente verdadeiros são os objetos físicos e os estados mentais
(formas de estar-se consciente). E os fenômenos profundamente
verdadeiros são todos os átomos que constituem os objetos físicos e
todos os pequenos momentos de cognição. É importante percebermos
que aquilo que vemos são os fenômenos superficialmente verdadeiros, e
no nível mais profundo tudo é constituído por átomos. Podemos perceber
como isso leva ao entendimento de que o nível superficial é uma ilusão.

De acordo com a escola Sautrantika, os fenômenos superficialmente


verdadeiros são entidades metafísicas, nossas projeções sobre os objetos;
enquanto os fenômenos profundamente verdadeiros são as coisas em si.
Aqui, começamos a entender que as projeções são como ilusões. Se nos
livrarmos das projeções, veremos o que está objetivamente lá fora.
Nossas projeções são como ilusões.
Segundo a Theravada, os fenômenos superficialmente verdadeiros são
fenômenos imputados, e referem-se tanto a pessoas quanto a objetos,
estejam eles dentro ou fora do corpo. Os fenômenos profundamente
verdadeiros são aqueles sobre os quais os fenômenos superficialmente
verdadeiros são imputados. O corpo e os objetos físicos são imputados
nos elementos e nos campos sensoriais que percebemos. O que é uma
laranja? É a visão, o cheiro, o gosto, a sensação física? Uma laranja é
aquilo que é imputado sobre tudo isso. Da mesma forma, uma pessoa é
aquilo que pode ser imputado nos fatores agregados do corpo e mente
(skandhas). Os fenômenos profundamente verdadeiros são os seis tipos
de consciências básicas e os fatores mentais, porque são a base sobre a
qual rotulamos ou imputamos uma pessoa.

Apesar de nenhuma das escolas Hinayana falarem sobre a vacuidade de


todos os fenômenos elas afirmam que, para obtermos a liberação, é
importante compreendermos os fenômenos profundamente verdadeiros
de forma não conceitual. Portanto, a visão geral é muito semelhante à
argumentação Mahayana.

O Theravada também tem uma explicação muito particular do karma, que


não é encontrada nas escolas Sarvastivada ou no Mahayana, mas não
entraremos nisso agora.

A partir dessa introdução, podemos começar a apreciar as escolas


Theravada e Sarvastivada do Hinayana como elas realmente são, dentro
do contexto completo dos ensinamentos budistas. Isso pode nos ajudar a
não cometer o equívoco de renunciar ao Dharma alegando que um
determinado ensinamento do Buda não é budista. Quando temos uma
compreensão apropriada das escolas budistas, a partir de seu próprio
ponto de vista, desenvolvemos grande respeito por todos os
ensinamentos do Buda. Isso é muito importante.
As Quatro Incomensuráveis nas
Escolas Hinayana, Mahayana e Bon
Dr. Alexander Berzin

Introdução

As quatro atitudes incomensuráveis (tshad-med bzhi, sct. apramana,


pali: appamanna) são:

 amor incomensurável (byams-pa, sct. maitri, pali: metta)


 compaixão incomensurável (snying-rje, sct: karuna, pali: karuna)
 alegria incomensurável (dga'-ba, sct: mudita, pali: mudita)
 equanimidade incomensurável (btang-snyoms, sct: upeksha,
pali: upekkha).

Essas quatro atitudes também são chamadas de “as quatro moradas de


Brahma” (tshangs-gnas bzhi, sct. brahmavihara, pali: brahmavihara) e são
encontradas nas várias tradições Hinayana e Mahayana do budismo,
assim como na tradição Bon. As diversas escolas e textos as interpretam
de formas ligeiramente diferentes e algumas práticas de determinadas
tradições trocam sua ordem.

A Tradição Theravada do Hinayana

Dentre as dezoito escolas do Hinayana, a tradição Theravada deriva sua


prática das quatro atitudes incomensuráveis do “Sutra das Moradas de
Brahma” (Pali: Brahmavihara Sutta), encontrado em “A Coleção de
Divisões Progressivas” (pali: Anguttara Nikaya). Nele, o Buda especifica
que todas as quatro atitudes são livres de apego, aversão e indiferença e
acompanhadas de presença mental e vigilância. O Caminho da
Libertação, escrito por Upatissa no século I (pali: Vimuttimagga), O
Caminho da Purificação, escrito por Buddhaghosa no início do século V
(pali: Visuddhimagga) e O Texto que a Tudo Inclui sobre os
Pontos dos Tópicos Especiais do Conhecimento, escrito por Anuruddha no
século IX (pali: Abhidhammattha-sangaha) contém explicações completas
sobre sua prática.

As quatro atitudes incomensuráveis são chamadas “moradas de Brahma”,


pois os quatro reinos de Brahma do plano das formas etéreas (reino das
formas) correspondem às quatro atitudes incomensuráveis e aos quatro
níveis de estabilidade mental (bsam-gtan, sct. dhyana, pali: jhana). Os
deuses Brahma do primeiro reino de Brahma têm amor incomensurável;
os do segundo reino têm compaixão incomensurável; os do terceiro,
alegria incomensurável; e os do quarto, equanimidade incomensurável.
Da mesma forma, praticantes do primeiro nível de estabilidade mental
têm a concentração de absorção no amor incomensurável; praticantes do
segundo nível a têm na compaixão incomensurável, e assim por diante.
Como a palavra Brahma significa puro, excelente, ou sublime, os
praticantes que desenvolvem essas atitudes incomensuráveis vivem com
estados mentais puros e sublimes, como os deuses Brahma. E ainda, as
moradas de Brahma são chamadas atitudes “incomensuráveis” porque
incluem todos os seres limitados (seres sencientes) em todas as
condições, e cada atitude não tem limites em sua intensidade.

As quatro atitudes incomensuráveis estão incluídas na lista Theravada


dos 52 fatores mentais. Na explicação de Anuruddha, para esses fatores
mentais, duas das quatro atitudes estão especificadas como fatores
ilimitados, pois seus objetos são seres infinitos:

 Compaixão – é o fator que faz o coração tremer quando os outros


sofrem e é o desejo de que o sofrimento seja removido. O inimigo
direto da compaixão é a atitude cruel ou prejudicial (pali: himsa). O
inimigo indireto é o pesar, ficar emocionalmente arrebatado pelo
sofrimento alheio.
 Alegria Empática ou Alegria – é o fator de ficar feliz com a
prosperidade alheia. O inimigo direto disso é a inveja e o inimigo
indireto é a exultação, ficar tão animado com a prosperidade alheia que
seu estado mental fica perturbado.

As formas básicas, e não as formas incomensuráveis, das duas outras


atitudes estão incluídas na lista dos dezenove fatores que acompanham
todos os estados mentais construtivos:

 Amor – o desejo de que os outros sejam felizes, que está incluído na


não-raiva (pali: adosa; imperturbabilidade). Seu inimigo direto é o
apego, chegar perto demais.
 Equanimidade – o fator de ter serenidade frete ao seu objeto, o que
inclui ter uma mente imperturbável (Pali: tatra majjhattata). Seu
inimigo direto é o apego (Pali: raga) e seu inimigo indireto é a
indiferença.

A explicação de Buddhaghosa sobre a equanimidade incomensurável traz


mais clareza em relação a este estado mental. A função da equanimidade
incomensurável é vermos a igualdade de todos os seres. Caracterizada
como uma atitude imperturbável em relação a todos os seres, ela se
manifesta como uma diminuição do apego e da animosidade em relação
aos outros. Ela falha quando se manifesta como indiferença. Sua causa é o
entendimento de que todo ser limitado é responsável por seu próprio
karma.

A meditação sobre essas quatro atitudes inclui gerar cada estado mental,
um de cada vez, primeiro dirigido-o a si mesmo, e depois à mãe, ao pai, à
família, aos estranhos, inimigos, aos compatriotas, e assim por diante, até
que o sentimento alcance todos os seres limitados. Depois de fazer esta
sequência com a primeira atitude incomensurável, geramos a próxima, e
a estendemos aos outros da mesma forma. As atitudes são:

 Desejar o bem a todos os seres limitados.


 Desejar que seu sofrimento seja removido.
 Alegrar-se com o seu bem estar e seus esforços para serem
construtivos e trabalhar para a libertação.
 Ser imperturbável em relação aos outros, no sentido de ficarmos
calmos quando os ajudamos, não nos envolvendo demais nem sendo
indiferentes, já que, em última instância, todos precisamos alcançar a
libertação através de nosso próprio esforço.

Como preliminar para desenvolver o amor incomensurável, Upatissa


explica que primeiro é necessário pensar nas desvantagens da raiva e do
ressentimento, que são os estados mentais negativos que impedem o
amor, e meditar para superá-los e desenvolver paciência. Depois,
geramos amor, que é a aspiração de que nós mesmos e os outros sejam
felizes. Buddhaghosa elabora esta aspiração de amor para que inclua a
aspiração de que nós e os outros estejamos livres da infelicidade: que
sejamos felizes e não infelizes. Buddhaghosa também oferece uma versão
mais extensa dessa aspriração, listando três estados mentais de
infelicidade que impedem o amor e a felicidade: que estejamos livres de
inimizade (livrando-nos da animosidade e da hostilidade), de agressão
(livrando-nos da irritabilidade) e de ansiedade (livrando-nos do medo), e
que vivamos felizes.

As Tradições Vaibhashika e Sautrantika do Hinayana

As tradições Vaibhashika e Sautrantika da escola Sarvastivada do


Hinayana compartilham o texto Comentário sobre “Um Tesouro de tópicos
Especiais do Conhecimento” (Chos-mngon-pa'i mdzod-kyi rang-'grel,
sct. Abhidharmakosha-bhashya) escrito por Vasubandhu no século IV ou
V, como fonte para a apresentação das quatro atitudes incomensuráveis.
As tradições budistas tibetanas também compartilham esse texto, como
uma de suas fontes.
Vasubandhu aceita a explicação Theravada de que as quatro atitudes são
incomensuráveis porque querem alcançar um número incomensurável de
seres limitados. Apesar de anteriores a Buddhaghosa e Anuruddha, as
explicações de Vasubandhu estão de acordo com as desses dois mestres:

 O amor é o oposto da animosidade.


 A compaixão é o oposto de uma atitude cruel ou prejudicial.
 A alegria é o oposto da falta de alegria.
 A equanimidade é o oposto (1) do desejo por pessoas ou objetos do
plano de desejos sensoriais (plano do desejo) e (2) da animosidade.

A falta de alegria significa não alegrar-se com a felicidade e realizações


construtivas dos outros, o que também é uma característica da inveja.
Vasubandhu comenta que não aceita a afirmação Vaibhashika de que a
equanimidade é o oposto do desejo por relações sexuais, mas aceita a
afirmação Sautrantika de que se trata do oposto do anseio pelo próprio
pai, pela mãe, pelos filhos, e outros entes próximos. Equanimidade é
também o oposto de animosidade, pois a animosidade em relação a
alguns seres é gerada por desejo por outros.

Vasubandhu explica isso melhor:

 Tanto o amor quanto a compaixão têm a natureza (rang-bzhin) da não-


raiva (zhe-sdang med-pa, sct: advesha; imperturbabilidade), o que
Anuruddha concorda quanto ao amor.
 A alegria tem a natureza funcional da felicidade mental (yid bde-ba).
 A equanimidade tem a natureza/identidade (bdag-nyid) do não apego
(ma-chags-pa; desapego).

Os quatro níveis de estabilidade mental (bsam-gtan), assim como os


quatro reinos de Brahma, são livres de raiva. No entanto, este tipo de
simetria falta na explicação de Vasubandhu sobre a alegria como sendo
felicidade mental. Embora a alegria, como terceira atitude
incomensurável, esteja correlacionada com o terceiro nível de
estabilidade mental, este nível mental está isento de felicidade mental,
assim como o terceiro nível de Brahma. Seres nesses estados têm apenas
a alegria calma da paz mental.

Vasubandhu também explica os aspectos de pensamento que cada uma


das atitudes incomensuráveis gera enquanto pensamos nesses seres
limitados, que experimentam a felicidade e a dor físicas e a felicidade
mental. Esses seres limitados são exclusivamente os renascidos
atualmente no plano dos desejos sensoriais (no reino do desejo). Os
renascidos atualmente nos planos das formas etéreas (reino das formas)
e dos seres sem formas (reino sem forma) não têm experiências de dor;
aqueles no segundo reino de Brahma e acima não têm experiências de
felicidade física; enquanto os que estão no terceiro reino de Brahma e
acima não têm experiências de felicidade mental.

 O amor presta atenção nesses seres limitados pensando: “Que todos os


seres limitados tenham felicidade física.”
 A compaixão presta atenção pensando: “Que os seres limitados não
sofram (dor).”
 A alegria presta atenção pensando: “Que todos os seres limitados
tenham felicidade mental.”
 A equanimidade presta atenção pensando: “Os seres limitados são
iguais”. (mnyam-pa)."

No que diz respeito à alegria incomensurável, Vasubandhu difere


consideravelmente da apresentação Theravada. Ao invés da alegria ser
apenas o estado mental de regozijo, que se alegra em relação a qualquer
alegria que os outros tenham, trata-se do estado mental que também
deseja que outros tenham felicidade mental (alegria).

Vasubandhu também indica como desenvolver as atitudes


incomensuráveis. Para desenvolver amor incomensurável, pensamos que,
assim como eu tive breves experiências de felicidade e os budas,
bodisattvas, aryas e arhats alcançaram uma felicidade mais estável, que
todos os seres limitados alcancem a felicidade. Pensando desta forma,
imaginamos que os seres limitados são felizes. Se não conseguirmos, por
termos muitas aflições mentais (emoções e atitudes perturbadoras), é
possível fazer isso em etapas. Podemos dividir nossos amigos em três
categorias de proximidade. Primeiro dirigimos a aspiração de felicidade
para aqueles que são muito próximos, depois para aqueles que são meio
próximos, e finalmente aqueles que são apenas um pouco próximos.
Quando o sentimento de amor se tornar igual para todos os três grupos,
dirigimos a aspiração de felicidade para pessoas com quem temos uma
relação comum, depois aquelas com quem temos uma leve inimizade,
depois uma inimizade média, e finalmente uma grande inimizade. Quando
sentirmos a mesma intensidade de amor em relação ao nosso amigo mais
querido e nosso maior inimigo, podemos estender o amor em etapas para
pessoas em nosso bairro, nossa cidade, nosso distrito, país, e depois o
mundo inteiro.

Vasubandhu também explica que aqueles que são capazes de perceber


boas qualidades em todos os seres são capazes de rapidamente
desenvolver o amor incomensurável. Eles percebem que a presença ou
ausência de boas qualidades em um determinado momento é devido ao
amadurecimento dos resultados kármicos positivos ou negativos.

Desenvolvemos compaixão e alegria incomensuráveis através da mesma


sequência que fizemos com o amor incomensurável. Para a compaixão
incomensurável, pensamos: “Os seres limitados estão afundados no rio
dos muitos tipos de sofrimento. Como seria maravilhoso se eles se
livrassem rapidamente de seu sofrimento!” Para a alegria
incomensurável, pensamos: Como seria maravilhoso se eles também
ficassem alegres!” Vasubandhu não especifica o pensamento para
desenvolver a equanimidade incomensurável, mas menciona que
começamos a sequência estendendo a equanimidade incomensurável
para pessoas com quem mantemos uma relação comum. Ele também
menciona que apenas os humanos podem desenvolver as quatro atitudes
incomensuráveis.

A Tradição Mahayana

Dentro da tradição Mahayana, as quatro atitudes incomensuráveis são


mencionadas em muitos sutras, como:

 O Sutra do Lótus Branco do Dharma Sagrado (Dam-pa'i chos pad-ma


dkar-po zhes-bya-ba theg-pa chen-po'i mdo, sct: Saddharmapundarika-
nama Mahayana Sutra; O Sutra do Lótus)
 O Sutra da Grande Libertação Final de todos os Sofrimentos (Yongs-su
mya-ngan-las 'das-pa chen-po'i mdo, sct: Mahaparinirvana Sutra).

A tradição Nichiren do budismo japonês interpreta amor, compaixão e


alegria incomensuráveis, meramente mencionados no Sutra do Lótus, de
forma parecida com a encontrada na apresentação Theravada. Portanto, a
alegria incomensurável, por exemplo, é a atitude de se alegrar quando os
seres limitados são felizes. A equanimidade incomensurável, no entanto, é
explicada como a atitude imperturbável em relação à felicidade e
infelicidade, à dor e ao prazer, em todas as circunstâncias, como quando
encontramos amigos ou inimigos. Trata-se de um estado de completa
tranquilidade. Além disso, a equanimidade incomensurável é o estado
mental livre das atitudes de amor, compaixão e alegria incomensuráveis.
É estar consciente dos outros de uma forma que não sentimos felicidade
nem infelicidade, e também não sentimos atração nem repulsão. Assim
sendo, a equanimidade incomensurável é paralela ao quarto nível de
estabilidade mental, no qual estamos livres de todos os sentimentos de
infelicidade, de felicidade física e mental e da alegria tranquila da paz
mental.
Outro sutra Mahayana, O Sutra Ensinado pelo Arya Akshayamati (Blo-gros
mi-zad-pas bstan-pa'i mdo, sct: Arya Akshayamati-nirdesha Sutra), contém
uma explicação sobre os resultado em vidas futuras do desenvolvimento
das quatro atitudes incomensuráveis na meditação. Parecem consistentes
com a interpretação abaixo do Sutra do Lótus:

 Ao desenvolvermos grande amor – renascemos livres de dor.


 Ao desenvolvermos grande compaixão – renascemos com as raízes de
virtude estáveis.
 Ao desenvolvermos grande alegria – renascemos possuindo felicidade
física, uma crença firme na verdade e uma suprema alegria mental.
 Ao desenvolvermos grande equanimidade – renascemos com uma
mente que não se agita com a felicidade ou infelicidade.

Aqui, as atitudes mencionadas são “grande” amor, “grande” compaixão, e


assim por diante. Não fica claro se as “grandes” formas e as formas
“incomensuráveis” são equivalentes. Ainda assim, juntando os resultados
mencionados acima com os estados inimigos da mente, especificados por
Vasubandhu (não obstante que Vasubandhu defina a alegria
incomensurável de forma diferente), podemos talvez entender esses
resultados da seguinte forma:

 O amor derrota seu inimigo: a animosidade e o ódio. Assim, no que diz


respeito ao resultado dessas causas em nossa experiência (myong-ba
rgyu-mthun-gyi 'bras-bu), não desejar mal aos outros tem como
resultado não sofrer mal.

 A compaixão derrota seu inimigo: uma atitude cruel ou prejudicial. O


ódio e a raiva, ou o desejo de cometer uma violência contra alguém de
quem não gostamos, destrói as raízes de nossa força construtiva (dge-
rtsa, raízes da virtude) e faz com que seu amadurecimento se atrase e
seja muito mais fraco. Portanto, desejar que os outros fiquem livres do
sofrimento, ao invés de desejar que sofram, faz com que essas raízes de
virtude fiquem estáveis em nosso continuum mental.
 Alegrar-se com as boas qualidades, com as realizações no Dharma e
com a felicidade alheia, derrota o inimigo da alegria: a inveja ou o não
alegrar-se com as boas qualidades alheias e assim por diante. Portanto,
no que diz respeito ao resultado dessas causas em nosso
comportamento (byed-pa rgyu-mthun-gyi 'bras-bu), reconhecer as
verdadeiras qualidades alheias e alegrar-se com elas resulta em uma
crença firme naquilo que é verdadeiro, já alegrar-se pela felicidade
alheia resulta em felicidade mental e física.
 A equanimidade supera seus inimigos: o apego, o desejo e a
animosidade. É um sentimento neutro em relação a todos os outros.
Portanto, o resultado dessas causas em nosso comportamento é não
nos agitarmos com sentimentos de felicidade ou infelicidade.

Os Textos Indianos Mahayana de Maitreya e Asanga


A Estabilidade Mental e a Consciência Discriminativa Necessárias para que as
Quatro Atitudes Sejam Incomensuráveis
As quatro atitudes incomensuráveis também aparecem nos textos
indianos Mahayana, como em Uma Filigrana de Realizações (mNgon-rtogs
rgyan, sct. Abhisamayalamkara), um comentário do futuro Buda,
Maitreya, sobre os Sutras Prajnaparamita (Pha-rol-tu phyin-pa'i
mdo; Sutras sobre a Consciência Discriminadora de Vasto Alcance, A
Perfeição dos Sutras da Sabedoria). Nesse texto, cultivar as quatro atitudes
aparece como uma das nove práticas nas quais os bodhisattvas ('jug-
sgrub) se engajam a fim de alcançar a consciência onisciente (rnam-
mkhyen, onisciência) de um Buda. Portanto, cultivamos as quatro atitudes
incomensuráveis depois de desenvolver o ideal de bodhichitta, que é
alcançar a iluminação para o benefício de todos.

De acordo com Maitreya, embora seja possível alcançarmos essas quatro


atitudes com uma mente que ainda está na esfera do plano dos desejos
sensoriais, as atitudes desenvolvidas com esta mente não são
“incomensuráveis”. As formas incomensuráveis são apenas as alcançadas
com uma mente que atingiu o estado efetivo (dngos-gzhi) de um dos
quatro níveis de estabilidade mental.

Em Um Rosário Dourado de Explicações Excelentes (Legs-bshad gser-


phreng), um comentário sobre Uma Filigrana de Realizações, o fundador
da escola Gelug do início do século XIV, Tsongkhapa (Tsong-kha-pa Blo-
bzang grags-pa), explica que bodhisattvas precisam praticar as quatro
atitudes incomensuráveis em conjunto com todas as seis atitudes de
amplo alcance (pha-rol-tu phyin-pa, sct. paramita, perfeições), e não
apenas com um nível de estabilidade mental. Em especial, os bodhisattvas
precisam fazer pleno uso de seu entendimento da natureza de todos os
fenômenos, aplicando-o em benefício dos outros seres através das quatro
atitudes. Uma vez que o apego (mngon-zhen) a formas impossíveis de
existência é o principal obstáculo para beneficiar os outros é preciso,
sobretudo, desenvolver as quatro atitudes incomensuráveis com a
consciência discriminativa de amplo alcance (a perfeição da sabedoria).
Em outras palavras, as quatro atitudes têm de ser desenvolvidas sem um
alvo de referência (dmigs-med, sem objetivo) a um modo impossível de
existência da ação de aspirar, do que se aspira que ocorra e do meditador
que está aspirando. “Sem um alvo de referência” significa sem focar nos
três círculos (‘khor-gsum) da ação de aspirar – a ação em si, o objeto, e o
agente – que existem de uma forma impossível, e são aquilo que está
implicado na atitude incomensurável ou aquilo a que ela se refere.

Quando não é acompanhada pelas seis atitudes de amplo alcance, a


prática das quatro incomensuráveis age meramente como causa para um
renascimento como um deus Brahma em um dos quatro reinos de formas
etéreas. Portanto, o mestre Gelug do fim do século XVIII, Detri (sDe-khri
'Jam-dbyangs thub-bstan nyi-ma), em sua Apresentação do Estágio de
Geração do Glorioso Kalachakra (dPal-dus-kyi ‘khor-lo’i bskyed-rim-gyi
rnam-bzhag ‘jam-dpal zhal-lung), explica que "tshangs-pa" (sct. brahma)
pode significar deuses Brahma ou nirvana, já que ambos são puros,
excelentes e sublimes; enquanto "gnas" (sct. vihara, morada) também
pode significar uma causa. “Nirvana", aqui, significa o estado iluminado
de um buda.

Condições para Desenvolvermos as Quatro Atitudes Incomensuráveis


Citando Maitreya em seu Filigrana para os Sutras Mahayana (Theg-pa
chen-po'i mdo-sde rgyan, sct. Mahayanasutra-alamkara), Tsongkhapa
continua, no mesmo comentário, a explicar as condições necessárias para
desenvolvermos as quatro atitudes incomensuráveis, como a compaixão
incomensurável, por exemplo. A explicação está de acordo com as teorias
do sistema de princípios Chittamatra seguido no texto de Maitreya.

 As condições causais (rgyu'i rkyen) – são as sementes para as quatro


atitudes, não estão associadas com confusão (zag-med-kyi sa-bon) e são
imputáveis na consciência base que a tudo engloba (kun-gzhi rnam-
shes, sct. alayavijnana; consciência depósito). Essas sementes são
aspectos dos traços da família que permanece naturalmente (rang-
bzhin gnas-rigs; natureza búdica que permanece). Em outras palavras,
as tendências que permitem o desenvolvimento das quatro atitudes
incomensuráveis estão presentes em todos os seres limitados, como
aspectos de suas naturezas búdicas.
 A condição dominante (bdag-po'i rkyen) para o desenvolvimento das
quatro atitudes é a inspiração e a orientação de um professor
espiritual. Uma condição dominante é a condição que exerce o papel de
influência principal em trazer um resultado, tal como os sensores dos
olhos para o surgimento de uma cognição visual.

 A condição imediatamente precedente (de-ma-thag rkyen) é a


compreensão da natureza própria (rang-bzhin) de todos os fenômenos.
A consciência de tal compreensão precisa ser o precedente imediato ao
surgimento das atitudes incomensuráveis. Em outras palavras, os
fatores necessários para que as sementes de natureza búdica e as
quatro atitudes incomensuráveis cresçam são a influência positiva de
um professor espiritual e um entendimento correto da natureza de
todos os fenômenos, especialmente a natureza de todos os seres
limitados. Além disso, conforme mencionado acima, a mente que
desenvolve as quatro atitudes incomensuráveis precisa ter um ideal de
bodhichitta e um nível avançado de concentração.

Definições de Asanga Para as Quatro Atitudes


Tsongkhapa cita as definições das quatro atitudes incomensuráveis dadas
pelo mestre indiano do século III, Asanga , em sua Antologia de Tópicos
Especiais de Conhecimento (Chos mngon-pa kun-las btus-pa,
Skt. Abhidharmasamuccaya):

 O amor incomensurável é a concentração absorta (ting-nge-'dzin,


sct. samadhi) ou consciência discriminativa (shes-rab, sct. prajna;
sabedoria), baseada em um dos níveis de estabilidade mental, que é
aplicada ao âmbito (situação) do pensamento “Que os seres limitados
encontrem a felicidade”. Também inclui as consciências primária e
subsidiária (mente e fatores mentais) congruentes (mtshungs-ldan)
com uma das duas.

As outras três atitudes incomensuráveis têm a mesma definição básica do


amor incomensurável, mas com diferentes pensamentos:

 A compaixão incomensurável tem o pensamento: “Que os seres


limitados estejam livres do sofrimento.” Em outra parte, Asanga explica
esse sofrimento que aqui inclui três formas: o problema do sofrimento,
o problema da mudança, e o problema que a tudo engloba.
 A alegria incomensurável tem o pensamento: “Que todos os seres
limitados nunca se separem da felicidade.”
 A equanimidade incomensurável tem o pensamento: “Que os seres
limitados sejam beneficiados (phan-pa)."

As Quatro Características Necessárias para que as Quatro Atitudes


Incomensuráveis Sejam Estáveis
Para um entendimento mais claro das quatro atitudes incomensuráveis,
Tsongkhapa retorna à Filigrana para os Sutras Mahayana, de Maitreya.
Aqui, Maitreya lista as quatro características específicas que as quatro
atitudes incomensuráveis devem ter para serem estáveis. Elas precisam
(1) livrar o continuum mental daquele que as desenvolve de seus fatores
desarmônicos específicos, (2) gerar a realização dos estados específicos
que se opõem a esses fatores, (3) ter formas específicas de focar em seus
objetos, (4) realizar uma função específica.
1. Os fatores desarmônicos dos quais as quatro atitudes libertam o
praticante são malevolência, uma atitude cruel ou prejudicial, falta de
alegria, e malevolência e desejo conjuntamente. Aqui, Maitreya
concorda com Vasubandhu.
2. Os estados específicos que a pessoa alcança, que se opõem aos fatores
desarmônicos, são os estados de consciência profunda e não-conceitual
(rnam-par mi-rtog-pa'i ye-shes) que são livres destes fatores.
3. As maneiras específicas de focar em seus objetos são: como seres
limitados, como fenômenos (chos, skt. dharma) e sem um alvo de
referência (dmigs-med, sem alvo). Essa característica é um
detalhamento da compreensão da realidade, necessária como condição
imediatamente precedente ao desenvolvimento das quatro atitudes,
conforme mencionado acima. Em outra passagem do mesmo texto,
Maitreya afirma que os objetos aos quais as quatro atitudes estão
direcionadas são os seres limitados que não são felizes, os que
experimentam sofrimento, os que já têm felicidade e os que têm
atração ou repulsão a outros seres por dividi-los entre próximos e
distantes.
4. A função específica que as quatro atitudes têm em comum é
amadurecer plenamente os seres limitados. Esta característica está de
acordo com a explicação de Maitreya das quatro atitudes
incomensuráveis, em Uma Filigrana de Realizações, como práticas nas
quais os bodhisattvas se engajam para alcançar a consciência
onisciente. Com a consciência onisciente, bodhisattvas serão mais
capazes, através de seus ensinamentos habilidosos, de prover as
condições para que as sementes da natureza búdica possam
amadurecer no continuum mental de todos os outros seres. Desta
forma, os bodhisattvas ajudam a guiar todos os seres limitados para a
iluminação.

As Três Formas como as Quatro Atitudes Focam em Seus Objetos


Tsongkhapa então elabora o terceiro ponto, as maneiras específicas como
as quatro atitudes focam em seus objetos, de acordo com as teorias
Chittamatra de Maitreya e Asanga.

 "Quando as quatro atitudes incomensuráveis focam em seus objetos


como seres limitados, consideram que eles têm a natureza essencial de
ser pessoas sólidas. (gang-zag-kyi rdzas-kyi ngo-bo).
 Quando focam em seus objetos como fenômenos, consideram que eles
não têm existência sólida mas ainda têm a natureza essencial dos
meros fenômenos (chos-tsam).

 Quando focam em seus objetos sem um alvo referencial, os consideram


meros fenômenos, separados de uma forma impossível de existir no
que diz respeito à consciência que os toma como objetos e eles mesmos
como objetos desta consciência (gzung-'dzin-dang bral-ba)." Em outras
palavras, as variações sem alvo das quatro atitudes focam nas pessoas
e nos momentos de consciência que as reconhece como não vindo de
fontes (rdzas tha-dad) diferentes – ambos derivam da mesma semente
kármica no alayavijnana daquele que as reconhece.

Em Esclarecendo a Intenção: Um Comentário para o Grande Tratado (de


Chandrakirti) "Supplemento ao Caminho do Meio” (bsTan-bcos chen-po
dbu-ma-la 'jug-pa'i rnam-bshad dgongs-pa rab-gsal), Tsongkhapa
apresenta a explicação Madhyamaka para as três formas como as atitudes
incomensuráveis focam em seus objetos. A explicação Madhyamaka
esclarece a concisa apresentação Chittamatra dos dois primeiros tipos de
foco, dada por Tsongkhapa em Um Rosário Dourado de Explicações
Excelentes. Ao explicar todos os três tipos de foco em termos dos
diferentes níveis de consciência discriminativa, Tsongkhapa expande a
colocação de Maitreya, em Uma Filigrana de Realizações, de que as quatro
atitudes incomensuráveis precisam ser desenvolvidas conjuntamente
com as seis atitudes de amplo alcance, especialmente a consciência
discriminativa de amplo alcance. Sua explicação também é a conclusão da
elaboração feita por Asanga na Antologia de Tópicos Especiais do
Conhecimento, deque as quatro atitudes incomensuráveis são estados de
concentração absorta ou de consciência discriminativa. De acordo com o
versículo de Chandrakirti sobre o qual tece o comentário, Tsongkhapa
explica os três tipos de foco, aqui apenas nos termos da compaixão.

 A compaixão que foca em seus objetos como seres limitados é


acompanhada da consciência discriminativa de que os seres limitados
têm uma visão equivocada em relação ao entrelaçamento transitório
('jig-lta) de seus agregados. Com esta atitude perturbadora, eles se
apegam aos fatores agregados de sua experiência como sendo “eu” e
“meu”, apesar de seus agregados não existirem desta forma impossível.
Por conseguinte, eles renascem repetidamente sob a influência do
karma e das aflições mentais, experimentando os três tipos de
sofrimento. A formulação Chittamatra dessa primeira maneira de focar
está em harmonia com a explicação Madhyamaka. Ela apenas indica
outro aspecto dessa primeira maneira de focar, que dessa maneira os
bodhisattvas ainda reconhecem as pessoas como seres estáticos,
monolíticos, independentes (rtag gcig rang-dbang-gi sems-can) e/ou
como seres inerentemente cognoscíveis (rang-rkya thub-pa'i rdzas-
yod-kyi sems-can).
 A compaixão que foca em seus objetos como meros fenômenos não
reconhece mais as pessoas como seres estáticos, monolíticos e
independentes ou como seres inerentemente cognoscíveis. Ao invés
disso, ela vem acompanhada da consciência discriminativa de que as
pessoas são meramente imputadas nos fenômenos não-estáticos de
seus agregados, que servem como base para a imputação. Esse é o
significado da formulação Chittamatra que afirma que essa maneira de
focar foca em seus objetos como meros fenômenos. Esta maneira de
focar é exemplificada pelo foco nos seres limitados como sendo
fenômenos não-estáticos, mas é bem mais profunda que isso. Não se
trata apenas do fato de que as pessoas mudam de um momento para o
outro, mas de que são imputadas em bases que mudam de momento a
momento.
 A compaixão que foca em seus objetos sem um alvo referencial foca
nos seres limitados como vazios de uma existência estabelecida por
sua própria natureza (rang-bzhin-gyis grub-pas stong-pa, vazios de
existência inerente). Este tipo de vacuidade significa que os seres
limitados não podem ser encontrados, tendo uma existência
estabelecida por si mesmos, como os objetos a que se referem (btags-
don) os nomes e conceitos usados para eles. Tais objetos referenciais
ou objetos conceitualizados (zhen-yul) não existem. Por isso, esse tipo
de compaixão foca nos seres limitados sem destinar à compaixão um
objeto referencial encontrável. Este tipo de foco, sem um objeto
referencial, existe unicamente na Prasangika-Madhyamaka.

Tsongkhapa continua, em Um Rosário Dourado de Explicações Excelentes,


destacando duas apresentações sobre o nível dos praticantes que
desenvolvem cada um desses níveis de foco. De acordo com o Sutra
Ensinado pelo Arya Akshayamati, quando as quatro atitudes
incomensuráveis têm com alvo os seres limitados, esse é o nível de
prática de quando bodhisattvas começam a desenvolver bodhichitta;
quando têm como alvo os fenômenos, está no nível de quando eles
entram no comportamento de bodhisattvas com os votos de bodhisattvas;
e quando não têm alvo está no nível de quando alcançam as cinco mentes
do caminho (cinco caminhos). No entanto, de acordo com Shakyabodhi,
mestre indiano do século VII, quando as quatro atitudes incomensuráveis
têm como alvo os seres limitados, a prática está no nível dos seres
comuns (so-skye) – que não têm a cognição não-conceitual da ausência de
uma identidade impossível nas pessoas (gang-zag-gi bdag-med). Quando
as quatro atitudes tem como alvo os fenômenos, sua prática está no nível
compartilhado por shravakas e pratyekabuddhas; e quando não têm alvo,
está no nível dos budas e bodhisattvas.
As Duas Variantes Principais da Alegria Incomensurável e da Equanimidade
Incomensurável
A partir desta pesquisa, torna-se evidente que a alegria incomensurável
tem duas principais variantes. De acordo com as tradições Theravada e
Nichiren, trata-se do estado mental que se alegra com a felicidade alheia.
De acordo com as duas tradições do abhidharma (mngon-par chos,
tópicos de conhecimento) e seus textos associados, seguidos por várias
escola de budismo tibetano, esse estado mental vai além de meramente
alegrar-se. Vasubandhu, que representa a posição
Vaibhashika/Sautrantika, afirma que a alegria incomensurável também é
essencialmente o desejo de que os outros tenham felicidade mental;
enquanto Asanga, que representa a escola Chittamatra, explica que
também é essencialmente o desejo de que os outros nunca deixem de ter
a felicidade que já têm. As várias tradições do budismo tibetano adotam
ou a formulação de Asanga ou de Vasubandhu e, portanto, diferem em um
primeiro momento, em suas explicações sobre a felicidade da alegria
incomensurável, que pode ser a felicidade que desejamos aos outros ou a
felicidade que desejamos que os outros não deixem de ter. E também
diferem no que diz respeito aos outros já terem ou ainda não terem a
felicidade.

De acordo com o Filigrana para os Sutras Mahayana, os objetos a que se


destina a equanimidade incomensurável são seres limitados que têm
atração ou repulsão em relação aos outros, por dividi-los entre próximos
e distantes. Em outra passagem do mesmo texto, Asanga especifica o
objeto da equanimidade incomensurável como sendo a mente que tem
aflições mentais. No entanto, uma mente sob influência das aflições
mentais pode ser simplesmente a mente do meditador como também a
mente de todos os outros seres.

A apresentação de Asanga, na Antologia de Tópicos Especiais do


Conhecimento, sobre o pensamento que acompanha a equanimidade
incomensurável, “Que os seres limitados sejam beneficiados”, afirma que
há duas formas de equanimidade aqui, já que a frase está aberta a duas
interpretações. Uma é “Que os seres limitados sejam igualmente
beneficiados” e portanto indica equanimidade na mente do meditador. A
outra é “Que os seres limitados sejam beneficiados por seu próprio
desenvolvimento da equanimidade.”

Portanto, Tsongkhapa, na Grande Apresentação dos Estágios do Caminho


Gradual (Lam-rim chen-mo), identifica dois tipos de equanimidade
incomensurável. Um tipo é livre de apego e aversão, com uma atitude
imperturbável dirigida aos outros, o que está de acordo com as
apresentações Theravada, Nichiren, e Vaibhashika/Sautrantika. O outro
tipo deseja principalmente que os outros seres tenham equanimidade,
que estejam livres de atração e repulsão. Novamente, diferentes textos
dentro das várias tradições do budismo tibetano afirmam um ou outro
tipo.

Atitudes que Levam ao Desenvolvimento da Bodhichitta

Diferentes textos dentro das várias tradições do budismo tibetano


também divergem no que diz respeito à colocação da meditação das
quatro atitudes incomensuráveis no caminho do bodhisattva. Alguns
seguem a apresentação de Maitreya em Uma Filigrana de
Realizações e Uma Filigrana para os Sutras do Mahayana, colocando a
meditação das quatro atitudes depois do desenvolvimento de bodhichitta,
como sendo uma das práticas nas quais os bodhisattvas se engajam a fim
de alcançar a iluminação para o amadurecimento de todos os seres.
Outros seguem a apresentação oferecida pelo mestre indiano Atisha, do
fim do século X. Em Um Comentário sobre os Pontos Difíceis em “Uma
Lâmpada no Caminho Para a Iluminação” (Byang-chub lam-gyi sgron-me'i
dka'-'grel, sct. Bodhimargapradipa-panjika) e Método de Redação Concisa
para Realizar o Caminho do Mahayana (Theg-pa chen-po'i lam-gyi sgrub-
thabs yi-ger bsdus-pa, sct. Mahayana-patha-sadhana-varna-samgraha),
Atisha afirma que as quatro atitudes incomensuráveis são preliminares
ao desenvolvimento do ideal de iluminação de bodhichitta.

Antes de fazer essa afirmação, no primeiro desses dois textos, Atisha cita
uma longa passagem de O Sutra Ensinado pelo Arya Akshayamati, que
contém a citação mencionada acima. Assim sendo, poderíamos supor que
Atisha concorda com a ordem das quatro atitudes incomensuráveis
encontrada neste sutra, que começa com amor. No entanto, muitos dos
textos tibetanos que seguem sua orientação a respeito da sequência das
meditações mudam a ordem e colocam a equanimidade em primeiro
lugar.

Exemplos Nyingma onde Atisha Coloca a Meditação nas Quatro


Atitudes antes da Bodhichitta e a Equanimidade em Primeiro Lugar
"Repouso e Restauração na Natureza da Mente" de Longchenpa
Dentro da tradição Nyingma, o mestre Longchenpa (Klong-chen-pa Dri-
med ‘od-zer), do século XIV, segue a explicação de Atisha. Em Repouso e
Restauração na Natureza da Mente (Sems-nyid ngal-gso; Gentilmente
Curvado para nos Aliviar), ele apresenta uma explicação extensa das
quatro atitudes incomensuráveis como prática preliminar ao
desenvolvimento de bodhichitta. Ele afirma que, embora a ordem
tradicional das quatro seja amor, compaixão, alegria, e equanimidade,
elas não possuem uma ordem fixa de prática. Para iniciantes, é mais
adequado meditar primeiro na equanimidade; caso contrário as outras
três atitudes serão parciais e não serão estendidas igualmente a todos.
Quando este é o caso, as quatro atitudes geram apenas resultados
samsáricos.

Quanto às características que definem as quatro atitudes:

 Equanimidade incomensurável – uma mente que considera a todos


igualmente
 Amor incomensurável – o desejo de que todos os seres sejam felizes
 Compaixão incomensurável – o desejo de que estejam livres do
sofrimento
 Alegria incomensurável – o desejo de que nunca se afastem da
felicidade

A lista de Longchenpa junta o tratamento de Asanga da alegria


incomensurável com o tratamento de Vasubandhu da equanimidade
incomensurável. No entanto, a elaboração de Longchenpa sobre as quatro
atitudes revela diferenças significativas das duas apresentações indianas:

 A equanimidade incomensurável é desenvolvida em estágios. Primeiro


nos livramos das emoções destrutivas do apego, aversão e indiferença
em relação aos outros, bem como de qualquer noção de proximidade
ou distância dos outros seres. Na terminologia Gelug usada na Coleção
de Trabalhos do Tutor Trijang Rinpoche (Yongs-'dzin Khri-byang gsung-
‘bum), essa é a “mera equanimidade” (btang-snyoms-tsam): a
equanimidade compartilhada entre Hinayana e Mahayana. Depois vem
o segundo tipo de equanimidade, que é a desenvolvida quando estamos
prestes a ajudar alguém. Na terminologia Gelug, esse tipo de
equanimidade é desenvolvida exclusivamente no Mahayana (thun-
mong ma-yin-pa'i btang-snyoms). Para desenvolvermos esses dois tipos
de equanimidade pensamos que a pessoa foi nossa amiga, inimiga ou
simplesmente uma estranha em várias vidas, e depois geramos o
desejo de que, assim como essa pessoa, todos os seres possam estar
livres do apego, aversão e indiferença e da noção de proximidade e
distância. Assim, Longchenpa apresenta os dois tipos de equanimidade
mencionados por Tsongkhapa: uma atitude mental igualitária para
com todos e o desejo de que tenham essa mesma atitude. Dessa forma,
desenvolve-se uma atitude de igualdade, tanto no que diz respeito a si
mesmo quanto no que diz respeito aos outros.
 O amor incomensurável aspira que todos tenham a felicidade
temporária dos renascimento melhores e a felicidade definitiva do
estado iluminado. Esse amor é maior do que o amor de uma mãe por
seu filho. Aqui, Longchenpa apresenta o amor incondicional como
sendo muito mais do que a aspiração de que os outros seres tenham
felicidade física, conforme afirma Vasubandhu. E é maior inclusive do
que a aspiração de que os outros tenham felicidade mental, que é o
pensamento que, segundo Vasubandhu, acompanha a alegria
incomensurável.
 A compaixão incomensurável aspira que todos os seres estejam livres
do sofrimento, temos a mesma intolerância frente ao sofrimento dos
outros seres que temos com o sofrimento de nossos próprios pais. Essa
atitude também oferece a todos os seres em sofrimento nossa força
positiva (mérito), do passado, presente e futuro, assim como nosso
corpo e posses, a fim de ajudá-los a livrarem-se de sua dor.
 A alegria incomensurável está baseada na compreensão de que não há
necessidade de fazermos com que todos os seres permaneçam em um
estado de felicidade suprema, já que todos os seres tem a felicidade
como um aspecto de sua natureza búdica. Portanto, essa atitude
incomensurável é a aspiração de que nunca se afastem da realização de
sua felicidade inata. Os seres não realizam sua felicidade inata quando
a falta de consciência de sua existência a obscurece.

Em conformidade com os ensinamentos do dzogchen (rdzogs-chen,


grande completitude), Longchenpa explica que cada uma das quatro
atitudes incomensuráveis tem duas formas. Uma tem todos os seres como
alvo (dmigs-bcas) da mente limitada (sems) e está misturada com as
máculas fugazes dos obscurecimentos emocionais e cognitivos (nyon-
sgrib e shes-sgrib). A outra baseia-se na consciência prístina (rig-pa) e não
tem um alvo (dmigs-med) como a anterior, entretanto, difere
significativamente das apresentações sobre as formas sem alvo das
escolas Chittamatra e Madhyamaka, conforme explicado por Tsongkhapa.
Depois de desenvolver cada uma das quatro incomensuráveis na forma
com alvo tenta-se desenvolve-las na forma sem alvo.

 Na equanimidade sem alvo, repousamos no aspecto de espaço aberto


(klong) da consciência prístina, primordialmente livre das máculas
efêmeras das aflições mentais, como o apego ou aversão e o conceito
de proximidade ou distância.
 No amor sem alvo, repousamos no aspecto de igualdade (mnyam-nyid)
do espaço aberto da consciência prístina que, com o amor, estende-se
igualmente para todos os lugares.
 Na compaixão sem alvo, repousamos no aspecto de absorção total
(mnyam-bzhag) do espaço aberto da consciência prístina, que também
se estende pela fase de realização subsequente (rjes-thob) com a
inseparabilidade da abertura e compaixão.

Após a meditação nas formas com alvo e sem alvo das quatro atitudes
incomensuráveis, utilizando-se a sequência que começa com a
equanimidade, Longchenpa descreve mais meditações, mas agora
começando pelo amor. Estas meditações, que utilizam a ordem
tradicional das quatro atitudes, ajudam na diminuição do apego que pode
surgir ao alvo da meditação.

 Quando, por conta da meditação do amor com alvo, nos apegamos à


todas as pessoas como sendo nossos amigos devemos meditar na
compaixão sem alvo, a fim de superarmos o sofrimento que surge do
entrelaçamento kármico confuso com os outros.
 Quando nos fixamos demais nos outros seres como objetos realmente
existentes, por conta da compaixão com alvo, devemos meditar na
alegria sem alvo, a fim de superarmos a depressão e a exaustão que
surgem de tal fixação.
 Quando nossa mente fica muito entusiasmada ou inconstante, por
conta da alegria com alvo, devemos meditar na equanimidade sem
alvo, a fim de nos livrarmos do apego à proximidade ou distância dos
outros.
 Quando nos tornamos indiferentes ou passivos, por conta da
equanimidade com alvo, devemos meditar no amor sem alvo, que se
estende igualmente para todos.

Quando nossa prática das quatro atitudes tornar-se estável, podemos


meditar usando qualquer ordem.

Longchenpa também conecta a meditação nas quatro atitudes


incomensuráveis com as práticas para dissolver as cinco aflições mentais
em suas formas subjacentes de consciência profunda:

 O amor age como a circunstância que permite ao ódio e à raiva


dissolverem-se na consciência profunda subjacente do espelho (me-
long lta-bu'i ye-shes).
 A compaixão age como a circunstância que permite ao desejo e ao
apego dissolverem-se na consciência profunda subjacente da
individualização (so-sor rtogs-pa'i ye-shes).
 A alegria age como a circunstância que permite ao ciúme e à inveja
dissolverem-se na consciência profunda subjacente realizadora (bya-
ba grub-pa'i ye-shes).
 A equanimidade age como a circunstância que permite ao orgulho e à
arrogância dissolverem-se na consciência profunda subjacente da
esfera da realidade (bya-ba grub-pa'i ye-shes).

“Instruções Pessoais de Meu Professor Totalmente Excelente” de


Patrul

Em seu livro Instruções Pessoais de Meu Professor Totalmente


Excelente (Kun-bzang bla-ma'i zhal-lung; Palavras de Meu Professor
Perfeito) Patrul, um mestre Nyingma do século XIX, também segue a
colocação de Atisha no que se refere às quatro incomensuráveis como
preliminares para o desenvolvimento de bodhichitta. Assim, Patrul
estruturou o método para o desenvolvimento do ideal de iluminação de
acordo com as quatro atitudes e seguiu Longchenpa ao mudar sua ordem
tradicional, colocando a equanimidade em primeiro lugar.

Além disso, ele entremeia a meditação das quatro atitudes


incomensuráveis com grande parte dos componentes dos ensinamentos
em sete partes da quintessência da causa e efeito para desenvolver-se
bodhichitta (rgyu-'bras man-ngag bdun), derivado dos Estágios Mentais
do Bodhisattva (Byang-chub sems-dpa'i sa, Skt. Bodhisattvabhumi), do
mestre indiano Asanga. As sete partes são: desenvolver equanimidade,
reconhecer todos os seres como tendo sido nossas mães em vidas
passadas, lembrar da gentileza materna, apreciar e aspirar retribuir essa
gentileza, amor, compaixão, uma resolução excepcional e um ideal
bodhichitta.

Patrul explica:

 Equanimidade incomensurável: é o estado mental que está livre de


apego, aversão e indiferença em relação a todos os seres, e também
está livre de considerar alguns seres como próximos e outros como
distantes. Baseia-se em reconhecer todos os seres limitados como
tendo sido igualmente nossa mãe em vidas anteriores,
independentemente desse status ter mudado na vida atual.
 Amor: desenvolvemos o amor ao considerarmos todos os seres da
mesma forma que os pais consideram seus filhos, ou seja, com um
amor que aquece o coração (yid-du ‘ong-ba’i byams-pa). Esse é o amor
que nos dá alegria ao encontrarmos alguém e tristeza se algo de ruim
acontecer a essa pessoa. Além disso, é necessário pensarmos que todos
querem ser felizes, assim como nós. A ênfase está em sermos gentis
com os outros, especialmente com nossos pais, como retribuição por
sua gentileza.
 Compaixão: vem de vermos os seres que sofrem como se fossem nossa
própria mãe sofrendo, portanto, vem de vermos os outros como tendo
sido nossas mães.
 Alegria: é o estado mental que se regozija com a alegria e prosperidade
do outro e, sem inveja, deseja que ele tenha ainda mais. A alegria
incomensurável leva à bodhichitta, a aspiração de que todos os seres
limitados tenham a felicidade (bem aventurança) da iluminação.

Exemplos Gelug em que a Prática das Quatro Atitudes


Incomensuráveis Vem Depois do Desenvolvimento de Bodhichitta e
Começa com Equanimidade
A Razão Para Essa Sequência
Diversos textos da tradição Gelug para a prática de recitação colocam a
equanimidade em primeiro lugar na apresentação das quatro
incomensuráveis. Entretanto, de acordo com as explicações de Maitreya e
Asanga, esses textos apresentam a meditação nas quatro
incomensuráveis depois do ideal bodhichitta. Os dois textos mais
praticados são:

 Um Yoga Extensivo de Seis Sessões (Thun-drug-gi rnal-‘byor rgyas-pa),


do mestre do século XVII, o Quarto Panchen Lama (Pan-chen Blo-bzang
chos-kyi rgyal-mtshan)
 Um Texto Ritual de Práticas Preparatórias (Byang-chub lam-gyi-rim-pa’i
dmar-khrid myur-lam-gyi sngon-‘gro’i ngag-‘don-gyi rim-pa khyer bde-
bklag chog bskal-bzang mgrin-rgyan, sByor-chos; Jorcho: O Puja do Lam-
Rim) do mestre do final do século XIX, Dagpo Jampel-lhundrub (Dvags-
po Blo-bzang 'jam-dpal lhun-grub).

Esses textos começam com o verso genérico de darmos uma direção


segura à vida (tomar refúgio) e desenvolvermos o ideal bodhichitta:
“Tomo a direção segura até o estado purificado dos Budas, do Dharma e
da Suprema Assembléia. Pela força positiva das minha oferendas e assim
por diante, que eu possa atingir o estado búdico para ajudar a todos os
seres errantes.” A isso seguem os versos para o desenvolvimento do ideal
bodhichitta e depois para tomar-se os votos de bodhisattva com
bodhichitta engajada. Depois disso, vem o verso para o desenvolvimento
das quatro atitudes incomensuráveis.

Em Liberação na Palma da Mão (rNam-grol lag-bcangs), o mestre do


início do século XX, Pabongka (Pha-bong-kha Byams-pa bstan-'dzin 'phrin-
las rgya-mtsho), explica a razão para essa sequência ao comentar o texto
de Dagpo Jampel-lhundrub. As quatro atitudes incomensuráveis não são
práticas cujo objetivo é desenvolvermos o ideal bodhichitta pela primeira
vez. A meditação nessas quatro atitudes serve para fortalecermos o ideal
de iluminação, uma vez que já o tenhamos desenvolvido. Na prática,
primeiro reafirmamos nosso ideal bodhichitta e depois nos perguntamos
porque ainda não atingimos a iluminação. A resposta será que não
desenvolvemos totalmente as quatro atitudes incomensuráveis. Isso nos
leva a meditarmos nas quatro atitudes.

Pabongka explica um outro motivo para essa sequência em A Maneira de


se Praticar a Yoga das “Cem Deidades de Tushita” (Zab-lam dga'-ldan lha-
rgya-ma'i rnal-'byor nyams-su len-tshul snyan-brgyud zhal-shes lhug-par
bkod-pa'i man-ngag rin-chen gter-gyi bang-mdzod). Nesse comentário,
Pabongka adiciona, como prática preliminar a das Cem Deidades de
Tushita, a formulação das quatro atitudes incomensuráveis do texto de
Dagpo Jampel-lhundrub. Ele explica que, além de fazer com que o poder
de nossa bodhichitta cresça, as quatro atitudes também aumentam nossa
bodhichitta ao eliminar interferências.

“Yoga Extensivo de Seis Sessões” do Quarto Panchen Lama


A definição das quatro atividades incomensuráveis segundo o Yoga
Extensivo de Seis Sessões, do Quatro Panchen Lama, é:

 Equanimidade incomensurável - “Que todos os seres sencientes


estejam livres (de sentimentos) de proximidade ou distância e apego
ou aversão"
 Amor incomensurável - “Que eles obtenham a felicidade que é
especialmente nobre”
 Compaixão incomensurável - “Que se livrem do oceano de seus
sofrimentos insuportáveis”
 Alegria incomensurável - “Que nunca se afastem da felicidade da
iluminação”

Diferentemente da apresentação de Longchenpa e de Patrul, aqui a


equanimidade incomensurável é o estado mental que aspiramos que
todos os seres obtenham, e não uma atitude igualitária que nós
desenvolvemos em relação a todos os seres. Entretanto, considerando-se
que nós estamos incluídos entre todos os seres sencientes, também
estaremos aspirando ser equânimes. Assim, ambas as formas de
equanimidade mencionadas por Tsongkhapa são desenvolvidas.

“A felicidade que é especialmente nobre” é o estado de bem aventurança


de um arya, um ser altamente realizado que tem uma cognição direta e
não conceitual da vacuidade. O amor incomensurável deseja que os
outros seres experimentem esse nível de felicidade, enquanto a alegria
incomensurável deseja que nunca se afastem do estado de bem
aventurança da iluminação de um buda.

Em Breves Notas de um Discurso Explanatório sobre o "Yoga Extensivo de


Seis Sessões" (Thun-drug bla-ma'i rnal-'byor bshad-khrid gnang-ba'i zin-
tho mdor-bsdus), Pabongka destaca que a geração da equanimidade
incomensurável faz com que seja cumprido o compromisso (dam-tshig,
Skt. samaya) de Ratnasambhava de libertar os seres do sofrimento.
Quando não temos medo de nos agarrar a alguém com apego, rejeitar
com aversão, ignorar com indiferença ou considerar esse alguém mais
próximo do que realmente é, essa pessoa nos libertou do medo. Nenhum
ser limitado a teme.

“Texto Ritual de Práticas Preparatórias” de Dagpo Jampel-lhundrub


O Texto Ritual de Práticas Preparatórias de Dagpo Jampel-lhundrub
também apresenta a meditação das quatro atitudes incomensuráveis
como sendo uma forma de reforçarmos o ideal bodhichitta, depois de já o
termos desenvolvido. Ele também começa a sequência com a
equanimidade incomensurável.

De acordo com sua definição,

 Equanimidade incomensurável - é a aspiração de que todos os seres


limitados tenham equanimidade, que estejam livres (de sentimentos)
de proximidade ou distância e apego ou aversão
 Amor incomensurável - é a aspiração de que tenham felicidade e
encontrem as causas da felicidade
 Compaixão incomensurável - é a aspiração de que não sofram e não
cultivem as causas do sofrimento.
 Alegria incomensurável - é a aspiração de que nunca se afastem da
felicidade pura dos estados superiores de renascimento (mtho-ris) e da
liberação.

O que é digno de nota aqui é que o amor incomensurável é a aspiração de


que os seres limitados obtenham não apenas a felicidade, mas também as
causas da felicidade. Compaixão incomensurável aspira que não sofram,
mas também que não cultivem as causas do sofrimento. Essas adições
estão de acordo com as definições padrão das quatro atitudes
incomensuráveis encontradas em vários textos de escolas não Gelug do
budismo tibetano e do Bon.

No que diz respeito à alegria incomensurável, Dagpo Jampel-lhundrub


adiciona à apresentação do Quarto Panchen Lama — a aspiração de que
os seres limitados tenham sempre a felicidade da iluminação — a
aspiração de que tenham a felicidade pura dos estados superiores de
renascimento. Desta forma, ele inclui na esfera da alegria incomensurável
a felicidade de se alcançar todos os três objetivos espirituais progressivos
discutidos na tradição dos estágios mentais graduais do lam-rim. Aqueles
com um nível inicial de motivação objetivam a liberação como um arhat.
Aqueles com um nível de motivação avançado têm como objetivo a
liberação completa de um buda iluminado.

No texto Liberação na Palma da Mão, Pabongka explica que, de acordo


com o texto ritual de Dagpo Jampel-lhundrub, cada uma das quatro
atitudes incomensuráveis tem outras quatro atitudes incomensuráveis.
No caso da compaixão, por exemplo, essas atitudes seriam:

 Intenção incomensurável ('dun-pa tshad-med) - “Seria maravilhoso se


todos os seres limitados se livrassem do sofrimento e de suas causas”
 Aspiração incomensurável (smon-pa tshad-med) - “Que eles se livrem”
 Resolução excepcional incomensurável (lhag-bsam tshad-med) - “Eu
devo fazer com que se livrem”
 Solicitação incomensurável (gsol-'debs tshad-med) - “Para que eu seja
capaz disso, guru/deidade, solicito inspiração”

Dagpo Jampel-lhundrub elabora, aqui, os quatro aspectos do amor e


compaixão que o mestre Sakya Ngorchen Konchog-lhundrub (Ngor-chen
dKon-mchog lhun-grub) apresenta em A Filigrana para Embelezar as Três
Aparências (sNang-gsum mdzes-par byed-pa'i rgyan, O Belo Ornamento das
Três Visões). Entretanto, na apresentação de Ngorchen Konchog-lhundrub
o aspecto da resolução excepcional é chamado de aspecto da bodhichitta,
e vem antes do aspecto da aspiração. O aspecto da solicitação é o guru e
as três jóias.

Exemplos em que se Coloca a Meditação depois do


Desenvolvimento de Bodhichitta e com o Amor Primeiro Lugar
A Tradição Bon
Um dos exemplos tibetanos mais antigos, no que se refere a colocar a
meditação das quatro atitudes incomensuráveis depois do
desenvolvimento de bodhichitta e com a ordem tradicional de começar
com o amor incomensurável, está na tradição Bon. Além disso, essa é uma
das definições tibetanas mais antigas onde as causas da felicidade e do
sofrimento são explicitamente mencionadas. A especificação de Asanga
de que a consciência discriminativa relacionada às três formas de focar
deve acompanhar as quatro atitudes incomensuráves implica um
entendimento das causas da felicidade e do sofrimento. No entanto, os
textos indianos parecem não mencionar essas causas em suas
formulações das quatro atitudes.

Em Uma Caverna de Tesouros (mDzod-phug), desenterrado como uma


texto tesouro Bon por Shenchen Luga (gShen-chen Klu-dga’) no início do
século XI, as quatro atitudes incomensuráveis são:

 Grande amor - a aspiração de que todos os seres limitados encontrem a


felicidade e as causas da felicidade.
 Grande compaixão - a aspiração de que estejam livres do sofrimento e
de suas causas
 Grande alegria - o estado mental que se alegra quando eles encontram
a felicidade e suas causas
 Grande equanimidade - a atitude que estende essas aspirações
imparcialmente a todos, sem discriminar amigos, inimigos e estranhos.

Ao definir a grande alegria como sendo o estado mental que se alegra com
a felicidade alheia, o Bon concorda com o Theravada, com o Nichiren e
com Patrul, mestre da tradição Nyingma. Apesar de muitas tradições e
textos tibetanos incluírem menções às causas da felicidade no amor
incomensurável e às causas do sofrimento na compaixão incomensurável,
o Bon parece ser o único a mencionar as causas da felicidade na alegria
incomensurável.

A definição Bon da grande equanimidade também parece única. Em


outras definições, em que a equanimidade incomensurável é uma atitude
de se ter uma mente igualitária com todos os seres e seu desenvolvimento
vem por último na sequência das quatro atitudes, a ênfase parece estar
em deixar a sequência paralela ao quatro níveis de estabilidade mental.
Na tradição Theravada, por exemplo, equanimidade é termos a mesma
atitude em relação a todos os seres, no sentido de ter igualdade ao ajudar,
não se deixando envolver demais e não sendo indiferente, uma vez que
todos precisam atingir a iluminação através de seu próprio esforço.

No Nichiren, o paralelo com os quatro níveis de estabilidade mental é


muito maior. Nessa tradição, a equanimidade incomensurável é um
estado mental completamente tranquilo e equânime em relação à
felicidade e à infelicidade, em todas as circunstâncias, como, por exemplo,
quando encontramos amigos ou inimigos. É um estado mental livre das
atitudes de amor, compaixão e alegria incomensuráveis.

No Bon, por outro lado, a equanimidade incomensurável não é um estado


livre das outras três atitudes, mas que as estende igualmente a todos. No
entanto, na definição dos mestres Nyingma, Longchenpa e Patrul, o
estado mental imparcial que é livre das noções de amigo, inimigo e
estranho é necessário antes, e não depois, de se desenvolver o amor,
compaixão e alegria incomensuráveis, para que seja possível
estendermos igualmente essas três atitudes á todos.

A Formulação Padrão nas Tradições Kagyu e Sakya


Na tradição Sakya e nas várias escolas Kagyu do budismo tibetano –
Karma Kagyu, Drigung Kagyu e Drugpa Kagyu – a definição mais comum
das quatro atitudes incomensuráveis é:

 Amor incomensurável - “Que todos os seres limitados sejam felizes e


encontrem as causas da felicidade”
 Compaixão incomensurável - “Que todos os seres limitados estejam
livres do sofrimento e das causas do sofrimento”
 Alegria incomensurável - Que todos os seres limitados nunca se
afastem do felicidade pura, livre de qualquer sofrimento”
 Equanimidade incomensurável - “Que todos os seres estejam sempre
em equanimidade, livres do dualismo (de sentimentos) de proximidade
ou distância e apego ou aversão.”

Na formulação de alegria incomensurável, “felicidade pura, livre de


qualquer sofrimento” refere-se ao estado bem aventurado da liberação
pura de um buda, conforme o Yoga Extensivo de Seis Sessões do Quarto
Panchen Lama.

Um exemplo dessa fórmula da tradição Karma Kagyu é Uma Sadhana de


Sahaja Vajrayogini (dPal-ldan lhan-cig-skyes-ma rdo-rje rnal-'byor sgrub-
thabs dkyil-'khor-gyi-cho-ga gsang-chen mchog-gi myur-lam gsal-ba'i-
'dren-pa) escrita pelo Sexto Karmapa, no começo do século XVI (rGyal-ba
Kar-ma-pa mThong-ba don-ldan). Um exemplo da tradição Sakya é Uma
Sadhana Média de Hevajra (dPal kye rdo-rje'i mngon-par rtogs-pa 'bring-
du bya-ba yan-lag drug-pa'i mdzes-rgyan) de Ngorchen Konchog-
lhundrub.

Essa formulação padrão também está presente em vários textos Gelug.


Por exemplo:

 Uma Sadhana de Longa Vida de Tara, a Roda Realizadora de


Desejos (Kun-mkhyen rGyal-ba bsKal-bzang rgya-mtsho'i lha-tshogs
sgrub-skor-las rje-btsun sgrol-ma yid-bzhin 'khor-lo'i tshe-sgrub) escrita
pelo Sétimo Dalai Lama no século XVIII (rGyal-ba bsKal-bzang rgya-
mtsho)
 Uma Sadhana de Vajrapani Mahachakra (bCom-ldan-'das gsang-bdag
'khor-lo chen-po'i mngon-rtogs dngos-grub kun-gyi gter-mdzod)
 Uma Sadhana de Chittamani Tara, (rJe-btsun sgrol-ljang bla-med lugs
nye-brgyud 'phags-ma'i zhal-lung tsitta ma-ni-las sgrub-thabs rkyang-
pa'i 'don-sgrigs zur-du bkol-ba)
 Um Yoga do Mestre Espiritual Inseparável de Avalokiteshvara (Bla-ma-
dang spyan-ras-gzigs dbyer-med-kyi rnal-'byor dngos-grub kun-'byung)
por Sua Santidade o Décimo Quarto Dalai Lama (rGyal-ba bsTan-'dzin
rgya-mtsho).

Nesses exemplos, ao invés da equanimidade ser um estado mental


igualitário em relação aos outros é o desejo de que todos os seres
limitados tenham equanimidade. Conforme a explicação oral de Tsenzhab
Serkong Rinpoche (mTshan-zhabs Ser-kong Rin-po-che Ngag-dbang blo-
bzang thub-bstan stobs-‘byor), após aspirarmos que os outros seres
tenham sempre a felicidade pura (bem aventurança) da iluminação,
devemos refletir sobre por que eles ainda não atingiram esse estado. O
motivo é que ainda não desenvolveram equanimidade. Portanto,
desejamos que desenvolvam equanimidade. Essa é a razão para colocar-
se a equanimidade por último na sequência das quatro atitudes
incomensuráveis.

Variações Gelug
As várias práticas da tradição Gelug para nos efetivarmos como uma
figura búdica expõem uma grande diversidade de variações na
formulação das quatro atitudes incomensuráveis.

Kalachakra
Em Uma Sadhana Extensa da Mandala do Corpo, Fala e Mente de
Kalachakra (bCom-ldan-'das dpal dus-kyi 'khor-lo'i sku-gsung-thugs yongs-
su rdzogs-pa'i dkyil-'khor-gyi sgrub-thabs mkhas-sgrub zhal-lung) do
Sétimo Dalai Lama, repetida em Um Guru-Yoga Kalachakra Juntamente
com uma Prática de Seis Sessões (Thun-drug-dang ‘brel-ba’i dus-‘khor bla-
ma’i rnal-’byor dpag-bsam yongs-’du’i snye-ma) de Sua Santidade o
Décimo Quarto Dalai Lama, colocada em verso por Ling Rinpoche (Yongs-
’dzin Gling Rinpoche Thub-bstan lung-rtogs rnam-rgyal ‘phrin-las):

 Amor incomensurável - a aspiração de “Que todos os seres limitados


sejam felizes”
 Compaixão incomensurável - “Que estejam livres do sofrimento”
 Alegria incomensurável - “Que tenham a alegria de estarem sempre
felizes (em bem aventurança)
 Compaixão incomensurável - “Que tenham a equanimidade da
igualdade (mnyam-nyid).
Aqui, os pensamentos de amor e compaixão incomensuráveis não fazem
nenhuma menção às causas da felicidade ou do sofrimento. Mas de
acordo com a explicação oral, elas devem ser incluídas. No que diz
respeito à alegria incomensurável, ao invés de seguir a formulação de
Asanga, “Que os seres limitados estejam sempre felizes”, o Sétimo Dalai
Lama segue a de Vasubandhu, “Que eles sejam felizes”. Ao adicionar a
palavra sempre, o Sétimo Dalai Lama quer dizer que a felicidade a que se
aspira com a alegria incomensurável é a infinita consciência bem
aventurada da iluminação.

Aqui, a definição de equanimidade incomensurável também lembra a de


Vasubhandu, “Seres limitados são iguais (mnyam-pa).” Também nos faz
lembrar da discussão de Longchenpa de que a equanimidade age como
circunstância para que o orgulho e a arrogância se dissolvam na
consciência profunda equalizadora (mnyam-pa nyid-kyi ye-shes). Assim, a
equanimidade inclui tanto uma atitude igualitária perante todos os seres,
livre de apego e aversão, quanto um compreensão de que todos são iguais
no sentido de não terem uma existência verdadeira encontrável.

A Mandala do Corpo de Chakrasamvara


Em Uma Sadhana Abreviada da Linhagem Ghantapada da Mandala do
Corpo de Chakrasamvara (Grub-chen Dril-bu-pa'i lugs-kyi 'Khor-lo bde-
mchog lus-dkyil-gyi bdag-bskyed mdor-bsdus) de Trijang Rinpoche (Yongs-
'dzin Khri-byang Rin-po-che Blo-bzang ye-shes):

 Amor incomensurável - é a aspiração de “Que todos os seres obtenham


a felicidade que é especialmente nobre”
 Compaixão incomensurável - “Que todos os seres limitados estejam
livres do sofrimento e das causas do sofrimento”
 Alegria incomensurável - “Que todos os seres limitados nunca se
afastem da felicidade (bem aventurança) que já conquistaram”
 Compaixão incomensurável - “Que todos os seres limitados se livrem
de todas as aflições mentais primárias e secundárias”

Trijang Rinpoche usa a mesma formulação do amor incomensurável que


o Quarto Panchen Lama usou em Um Yoga Extensivo de Seis Sessões. A
felicidade que é especialmente nobre refere-se à consciência de bem
aventurança de um arya. Não é feita nenhuma menção às causas dessa
felicidade. Entretanto, a compaixão incomensurável repete a definição
mais comum e inclui explicitamente a aspiração de que os outros também
estejam livres das causas de sofrimento.

A definição de alegria incomensurável lembra a especificação de


Maitreya, em Uma Filigrana para os Sutras Mahayana, de que o objeto
para essa atitude é todos os seres senciente que já possuem felicidade.
Segundo a explicação oral, “a felicidade que já conquistaram” refere-se ao
estado de bem aventurança de um buda. Assim, a definição de Trijang
Rinpoche é semelhante à do Quarto Panchen Lama em Yoga Extensivo de
Seis Sessões, na qual alegria incomensurável é a aspiração de que os
outros seres tenham sempre a felicidade da liberação pura.

A definição de equanimidade incomensurável parece ser uma forma mais


geral de se expressar a aspiração de que todos os seres limitados tenham
a equanimidade que não inclui pensamentos de aflições mentais de apego
ou aversão. Parece derivar da menção de Maitreya em Uma Filigrana para
os Sutras Mahayana, de que o objeto da equanimidade incomensurável é a
mente que tem aflições mentais. Também parece estar de acordo com a
explicação de Asanga sobre a função da equanimidade, em Antologia de
Tópicos Especiais de Conhecimento, “nunca permitir que a mente fique sob
influência de aflições mentais primárias ou secundárias e nunca dar
oportunidade para o surgimento de fatores associados com confusão
(zag-bcas; fatores maculados, fatores contaminados).”

Nesse texto, Asanga afirma que existem três tipos de equanimidade: uma
variável subjacente ('du-byed, Skt. samskara) incluída no agregado de
outras variáveis subjacentes, um sentimento (tshor-ba, Skt. vedana) e
uma atitude incomensurável. A função mencionada acima é a da
equanimidade como variável subjacente, não da equanimidade
incomensurável. Como variável subjacente, a equanimidade é definida
por Asanga como um estado mental apropriado, que espontaneamente
realiza seu propósito sem se deixar influenciar por agitação ou torpor.

Vajrabhairava e Hayagriva
Outra variação na formulação ocorre em:

 Uma Sadhana Extensa de Vajrabhairava de Treze Deidades (dPal rdo-rje


'jigs-byed lha bcu-gsum-ma'i sgrub-thabs rin-po-che'i za-ma-tog) do
Primeiro Changkya (lCang-skya Ngag-dbang blo-bzang chos-ldan)
 Uma Sadhana Extensa de Ekavira Vajrabhairava (bCom-ldan-'das dpal
rdo-rje 'jigs-byed dpa'-bo gcig-pa'i sgrub-thabs bdud-las rnam-rgyal-gyi
ngag-'don nag-'gros blo-dman las dang-po-pa-la khyer bde-bar bkod-pa)
de Pabongka
 Uma Sadhana Extensa da Linhagem Kyergang Lineage de Hayagriva
Secretamente Realizado (sKyer-sgang lugs-kyi rta-mgrin gsang-sgrub-
kyi sgrub-thabs rgyas-pa rTa-mchog rol-pa'i zhal-lung).

Segundo essa formulação:


 Amor incomensurável - é a aspiração de “Que todos os seres sejam
felizes”
 Compaixão incomensurável - “Que todos os seres limitados estejam
livres do sofrimento”
 Alegria incomensurável - “Que todos os seres limitados nunca se
afastem da felicidade (bem aventurança)”
 Equanimidade incomensurável - “Que todos os seres limitados
permaneçam em equanimidade, sem que sejam perturbados por
pensamentos conceituais sobre as oito coisas transitórias da vida ou
sobre a consciência que toma objetos e os objetos por ela tomados.”

Aqui, de acordo com uma explicação oral, faz-se necessário preencher


várias lacunas. Por exemplo: as causa da felicidade no caso do amor
incomensurável e as causas do sofrimento no caso da compaixão
incomensurável. Apensar de não estar explícito, a felicidade a que se
refere a alegria incomensurável é a consciência bem aventurada de um
buda.

A definição da equanimidade incomensurável parece seguir a Antologia


de Tópicos Especiais de Conhecimento, de Asanga, assim como na Sadhana
da Mandala de Corpo de Chakrasamvara. Pensamentos conceituais sobre
as oito coisas transitórias da vida ('jig-rten-gyi chos-brgyad, oito dharmas
mundanos) e sobre a consciência que toma objetos, e seus objetos, caem
na esfera da função da equanimidade de não permitir que surjam fatores
associados a confusão. As oito coisas transitórias da vida são elogio e
crítica, ganhos e perdas, coisas indo bem e coisas indo mal, e boas e más
notícias. Os pensamentos conceituais sobre elas, e associados com
confusão, são os de sentir-se animado com o primeiro item dos pares
acima e deprimido com o segundo. Não se deixar perturbar por
pensamentos conceituais associados a confusão sobre a consciência que
toma objeto e seus objetos lembra a interpretação Chittamatra das
formas sem alvo das atitudes incomensuráveis. Asanga escreveu seu texto
a partir do ponto de vista Chittamatra.

Colocando a Compaixão em Primeiro Lugar


A Linhagem Luipa de Chakrasamvara
Outra variação encontrada nas sadhanas Gelug é a colocação da
compaixão em primeiro lugar. Por exemplo, em Uma Sadhana para a
Linhagem Luipa de Chakrasamvara (dPal 'khor-lo sdom-pa lu-yi-pa lugs-
kyi mngon-rtogs) do Quarto Panchen Lama,

 Compaixão incomensurável - é a aspiração de “Que todos os seres


estejam livres do sofrimento”
 Amor incomensurável - “Que todos os seres limitados sejam felizes
(bem aventurados)”
 Alegria incomensurável - “Que todos os seres limitados estabilizem a
felicidade (bem aventurança) que já conquistaram”
 Equanimidade incomensurável - “Que todos os seres limitado tenham
mentes que permaneçam no gosto único da natureza da realidade (de-
bzhin-nyid).”

A compaixão também vem antes do amor na prática de dar e receber


(gtong-len, tonglen). Esta prática implica em darmos felicidade aos outros
com amor e tomarmos seu sofrimento com compaixão. No verso sobre o
dar e receber do texto Cerimônia de Oferendas ao Mestre Espiritual (Bla-
ma mchod-pa, The Guru Puja), do Quarto Panchen Lama, a tomada do
sofrimento com compaixão precede a doação de felicidade com amor. Em
Liberação na Palma da Mão, Pabongka explica que primeiro precisamos
tomar com compaixão o sofrimento dos outros, caso contrário eles não
conseguirão sentir a felicidade que tentamos dar com amor. Novamente,
apesar das causas do sofrimento e felicidade não serem mencionadas,
estão implícitas.

A aspiração da alegria incomensurável, de que a felicidade já alcançada


permaneça estável, é a aspiração de que os seres permaneçam sempre no
estado de bem aventurança de um buda. O que é semelhante à aspiração
de alegria incomensurável encontrada nas Sadhanas da Mandala de Corpo
de Kalachakra e Chakrasamvara, citada acima.

A definição de equanimidade incomensurável, como a aspiração de que a


mente de todos os seres permaneça no gosto único da natureza da
realidade, é uma aspiração de que suas mentes permaneçam na
compreensão de que todos os seres estão livres de maneiras impossíveis
de existência. Essa definição também está de acordo com a da Sadhana
Kalachakra, em que essa atitude aspira que todos os seres tenham a
igualdade da equanimidade.

Akshobhya
Em Uma Sadhana de Vajra Akshobhya (bCom-ldan-'das rdo-rje mi-'khrugs-
pa'i sgrub-dkyil yongs-su rdzogs-pa'i cho-ga mngon-par dga'-ba'i sgo-
'byed), também do Quarto Panchen Lama,

 Compaixão incomensurável - é a aspiração de “Que todos os seres


estejam livres do sofrimento”
 Amor incomensurável - “Que todos os seres limitados nunca se afastem
da felicidade.”
 Alegria incomensurável - “Que todos os seres limitados tornem-se
felizes (bem aventurados) com a felicidade (bem aventurança) de um
buda”
 Equanimidade incomensurável - “Que todos os seres limitados passem
para o nirvana com o nirvana incomparável de um buda”

Aqui, o amor incomensurável é formulado da mesma maneira que, em


geral, a alegria incomensurável é formulada. No entanto, a alegria
incomensurável ainda é a aspiração de que os outros tenham a felicidade
ou bem aventurança de um buda. A equanimidade incomensurável é a
aspiração de que todos consigam atingir a iluminação de um buda, com a
qual ajudamos igualmente a todos, compreendendo que nada e ninguém
possui uma existência encontrável.

Conclusão

A partir desta pesquisa, fica claro que existe uma grande variedade de
entendimentos, definições e práticas das quatro atitudes
incomensuráveis. Essa diversidade indica o amplo escopo da prática e, se
ao invés de vermos as diferentes tradições como contraditórias
tomarmos consciência da grande variedade de formas, enriqueceremos
nossa prática.

Resumindo, amor incomensurável pode incluir a aspiração de que todos


os seres limitados:

 Sejam felizes
 Sejam fisicamente felizes
 Tenham a felicidade de um ser limitado (um ser que ainda não é um
buda)
 Nunca se afastem a felicidade de um ser limitado
 Tenham a felicidade de um arya
 Tenham a felicidade temporária de um dos estados melhores de
renascimento e a felicidade definitiva da iluminação
 Tenha qualquer dessas felicidades e as causas dessas felicidades

Compaixão incomensurável pode incluir a aspiração de que todos os


seres limitados:

 Estejam livres do sofrimento (os três tipos de sofrimento)


 Estejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento

Alegria incomensurável pode incluir alegrar-se com:


 O bem estar e o esforço dos seres limitados em serem construtivos e
trabalharem para a liberação
 A prosperidade dos seres limitados
 A alegria em geral dos seres limitado
 O fato dos seres limitados encontrarem a felicidade e as causas da
felicidade.

Também pode incluir a aspiração de que todos os seres:

 Tenham felicidade mental


 Tenham a alegria de estarem sempre felizes (a felicidade de um buda)
 Nunca se afastem da felicidade
 Sempre percebam a felicidade inata como parte de sua natureza búdica
 Nunca se afastem da felicidade pura dos estados superiores de
renascimento e da liberação
 Nunca se afastem da felicidade pura da liberação
 Nunca se afastem da felicidade pura de um buda
 Nunca se afastem da felicidade pura (de um buda) que é livre de
sofrimento
 Nunca se afastem da felicidade (de um buda) que já conseguiram
 Permaneçam estáveis com a felicidade (de um buda) que já
conseguiram

Equanimidade incomensurável é um estado mental que inclui:

 Tratar todos os seres da mesma forma, no sentido de ajudá-los


igualmente, não se envolvendo demais e nem sendo indiferente, já que,
em última análise, todos precisam atingir a liberação por seu próprio
esforço.
 Estar totalmente tranquilo e considerar igualmente a felicidade e a
infelicidade, o prazer e a dor, em todas as circunstâncias, como quando
encontramos amigos ou inimigos, e estar livre das atitudes de amor,
compaixão e alegria incomensurável
 Estender amor, compaixão e equanimidade igualmente para todos, sem
importar-se se são amigos, inimigos ou estranhos
 Estar livre de apego, aversão e indiferença em relação aos outros e não
sentir que algumas pessoas são próximas e outras distantes
 Com a compreensão de que todos são iguais
 Com a aspiração de que todos os seres sejam igualmente beneficiados.

Também pode incluir a aspiração de que todos os seres:

 Não tenham sentimentos de proximidade ou distância e atração ou


repulsão,
 Tenham a equanimidade que é livre de sentimentos de proximidade ou
distância e atração ou repulsão
 Tenham a equanimidade que é livre de sentimentos duais de
proximidade ou distância e atração ou repulsão,
 Tenham a equanimidade da igualdade (a consciência profunda
equalizadora de que todos os seres são iguais em sua necessidade de
estarem livres do sofrimento e de que todos são igualmente destituídos
de formas impossíveis de existência),
 Estejam livres de todas as aflições mentais primárias e secundárias,
 Estejam sempre na equanimidade, imperturbáveis por pensamentos
conceituais sobre as oito coisas transitórias da vida e pela consciência
tomadora de objetos e seus objetos,
 Tenham mentes que permaneçam sempre no gosto único da natureza
da realidade (vacuidade),
 Passem para o nirvana com o nirvana supremo de um buda.

Além disso, para que as quatro atitudes sejam incomensuráveis, é


necessário que tenham como alvo todos os seres limitados ou, mais
especificamente, todos os seres presentes em um dos seis estados de
renascimento do plano de desejos sensoriais. Conforme algumas
explicações Mahayana, para que as quatro atitudes sejam
incomensuráveis, elas precisam estar acompanhadas das seis atitudes de
amplo alcance (seis perfeições), e principalmente de um dos quatro níveis
de estabilidade mental e um dos três tipos de consciência discriminativa.

A sequência das quatro atitudes incomensuráveis pode começar com o


amor, a equanimidade ou a compaixão. E ainda, na prática Mahayana, as
quatro podem ser cultivadas como um método para desenvolver-se
bodhichitta, a fim de alcançarmos a iluminação de forma mais eficiente.
As Tradições Tibetanas

Como Diferem as Tradições


Budistas Tibetanas entre Si?
Dr. Alexander Berzin

As quatro tradições tibetanas tem muito em comum, e a maioria das


diferenças está na forma como interpretam a vacuidade e o
funcionamento da mente. Aqui, analisamos algumas das semelhanças e
diferenças entre as escolas Nyingma, Sakya, Kagyu e Gelug.

Tradição Monástica

Dezoito diferentes escolas do Hinayana desenvolveram-se na Índia e


somente três linhagens principais de votos monásticos do vinaya existem
hoje, que são:

 Theravada – no sudoeste asiático


 Dharmagupta – no leste asiático
 Mulasarvastivada – no Tibete e Ásia Central.

Todas as quatro tradições tibetanas compartilham a linhagem


Mulasarvastivada de votos de noviços para monges e monjas e votos
completos para monges, e todas as quatro também têm praticantes leigos.
Entretanto, assim como na tradição Theravada, a Mulasarvastivada não
mais tem monjas com ordenação completa — elas somente podem ser
encontradas na escola Dharmagupta — uma vez que a linhagem de
ordenação nunca foi transmitida no Tibete.

A tradição Nyingma também tem ordenação ngagpa (mantrika). Os


Ngagpas possuem um extenso conjunto de votos tântricos e são
especializados em meditação e em fazer rituais para a comunidade leiga.
Tornar-se um ngagpa nunca foi a principal alternativa para a instituição
monástica e por isso eles sempre foram bastante raros.

Estudos, Rituais e Meditação

Todas as quatro tradições combinam estudos dos sutras e tantras com


rituais e meditação. A educação budista em cada um deles compreende
memorização de textos dos quatro sistemas principais indianos e debate
formal de seus significados. Diferenças na interpretação de pontos sutis
de diferentes textos de estudo monástico aparecem não somente nas
quatro escolas tibetanas, mas até dentro de cada escola. Tais diferenças
tornam os debates mais vividos e geram uma compreensão mais clara.

Após completar com sucesso os seus estudos, os Gelugpas recebem o


titulo de “Geshe” e nas outras três tradições o título de “Khenpo”.
“Khenpo” também é o título conferido aos abades. Todas as quatro
tradições também tem o sistema de “tulkus” de lamas reencarnados.
Tulkus e abades recebem o título de “Rinpoche”, independente de seu
nível de escolaridade.

Práticas rituais em todas as quatro tradições incluem cantos


acompanhados por címbalos, tambores e trombetas, e oferenda de bolos
esculpidos em forma de cones, chamadas tormas, feitos de farinha de
cevada e manteiga. Cantos e estilos musicais são geralmente similares,
embora o canto gutural harmonioso é encontrado mais frequentemente
entre os monges Gelugpa.

Todas as quatro tradições instruem seus seguidores a fazer as práticas


preliminares do ngondro com 100 mil repetições de várias práticas, como
prostrações e guru yoga. Os versos recitados e o número específico de
repetições, contudo, diferem levemente. Meditação em cada escola inclui
prática diária, retiros curtos de alguns meses e retiros de três anos. A
principal diferença é a época da vida em que os praticantes farão os seus
retiros. Sakya, Nyingma e Kagyu tendem a fazer o ngondro e retiros mais
cedo em seus treinamentos, enquanto que os Gelugpas fazem mais tarde,
ao longo do caminho.

Definições e Pontos de Vista

Algumas das principais diferenças nas explicações que as três tradições


dão dos ensinamentos vêm do seu modo de definir e usar os termos
técnicos, bem como, da apresentação do Dharma a partir de pontos de
vista diferentes.

Por exemplo, a dupla “permanente/impermanente” pode significar tanto


estático/não estático como eterno/temporário. Quando os Gelugpas
dizem que a mente é impermanente, estão se referindo ao fato de a mente
estar ciente de diferentes objetos a cada momento e assim nunca está
estática. Por outro lado, quando Kagyu e Nyingma explicam que a mente é
permanente, referem-se ao fato de que a natureza da mente nunca muda
e que não tem nem início nem fim. Ambos concordariam, porém, com a
asserção do outro, embora a sua posição perante a impermanência ou
permanência da mente, superficialmente, seja diametricamente oposta.
Outra diferença é que os Gelugpas explicam o Dharma do ponto de vista
dos seres comuns, a tradição Sakya do ponto de vista de aryas altamente
realizados no caminho, enquanto as Kagyu e Nyingma do ponto de vista
de seres iluminados. Então, por exemplo, Gelugpas dizem que a mente
mais sutil ainda tem os hábitos da ignorância, como na hora da morte; a
escola Sakya diz que ela é bem-aventurada por natureza ; enquanto que
as Kagyu e Nyingma explicam que ela é completa e plena de boas
qualidades, como no caso dos Budas . Além disso, Gelug e Sakya explicam
do ponto de vista do praticante que procede lentamente, em etapas,
enquanto Kagyu e Nyingma frequentemente apresentam o caminho como
ele ocorre com aqueles praticantes raros, para quem “tudo acontece de
uma vez”.

Explicação e uma Forma de Meditar sobre a Vacuidade

Todas as quatro tradições concordam que as explicações da vacuidade —


a ausência de existência realmente estabelecida — dadas nos textos
Madhyamaka são as mais profundas. Elas diferem, contudo, em como
dividem a Madhyamaka em sub-escolas e como estas escolas diferem uma
da outra. O ponto último é atingirmos o reconhecimento não conceitual
da vacuidade — utilizando o nível grosseiro da mente, no sutra, e a mente
mais sutil de clara luz, ou consciência pura de rigpa, no tantra mais
elevado. Isso significa atingir um certo estado mental e reconhecer um
certo objeto, a vacuidade, como o seu objeto. Os Gelugpas enfatizam o
objeto na meditação, enquanto as tradições Sakya, Kagyu e Nyingma,
enfatizam a mente.

Cada tradição ensina seus próprios meios hábeis para atingirmos o


entendimento não conceitual e para acessarmos e ativarmos a mente
sutil. O que os Gelugpas chamam não conceitual, as escolas Kagyu e
Nyingma chamam “além de palavras e conceitos.”

No que diz respeito à relação entre mente e seus objetos, os Gelugpas


explicam que somente podemos contar com a existência de objetos como
sendo aquilo a que as palavras e conceitos se referem; mas claro que
rotular mentalmente com conceitos e designar com palavras não cria
nenhum objeto possível de ser encontrado. Sakya, Kagyu e Nyingma
enfatizam a não dualidade da mente e seus objetos; mas isso não significa
que os dois são iguais. Neste caso, estão se referindo a inseparabilidade
da mente e suas aparências. As duas posições das escolas tibetanas não
são contraditórias.

Além do mais, ambos os lados concordam que, após análise, nada pode
ser encontrado existindo independentemente, por si só, estabelecendo
sua existência por si só, embora causa e efeito ainda funcionem. Os
Gelugpas explicam que as aparências da existência verdadeiramente
estabelecida são como uma ilusão, ou seja, não correspondem a nada real:
enquanto as outras três tradições enfatizam que a existência
verdadeiramente estabelecida é de fato uma ilusão.

Teoria da Percepção

As escolas não Gelug dizem que o que percebemos não-conceitualmente é


apenas sensibilia – o que nossos sentidos captam, como as formas
coloridas em nossa visão, por exemplo. Além do mais, percebemos apenas
um momento de cada vez. E ainda, objetos convencionais podem ser
reconhecidos através de vários sentidos diferentes: podemos apreender
uma maçã pela visão, olfato, paladar ou sensação física em nossas mãos, e
isto se dá através de uma série de momentos de percepção. Por conta
disso, as escolas Sakya, Kagyu e Nyingma pressupõem que só
conseguimos reconhecer objetos comuns convencionais, como uma maçã,
de forma conceitual. Claro que isso não significa que maçãs só existem em
nossas mentes conceituais, mas que somente podemos reconhecê-las
através de construções mentais.

Gelugpas afirmam que mesmo de forma não conceitual, nós não vemos
somente um momento de formas coloridas, mas a cada momento também
vemos objetos convencionais, como maçãs, que podem ser reconhecidos
através de vários sentidos e que perduram no tempo. A relação entre
pensamento conceitual e objetos convencionais não é que objetos só
possam ser reconhecidos conceitualmente, ou que eles sejam apenas a
criação do pensamento conceitual. Mas que só podemos explicar sua
existência em termos de rótulos mentais do pensamento conceitual,
conforme explicado acima. Portanto, ambos os lados concordam que
entender o papel do pensamento conceitual no nosso caminho para
reconhecer o mundo é essencial para sobrepujar e eliminar para sempre
nossa confusão e ignorância sobre a realidade – a causa mais profunda de
todo nosso sofrimento.

Conclusão

É muito importante seguir uma abordagem não sectária, como Sua


Santidade o Dalai Lama constantemente enfatiza. Não há necessidade de
torcermos como para um time de futebol pelas linhagens, e pensar que
uma é melhor que a outra. O melhor antídoto contra o sectarismo é a
educação. Quanto mais aprendemos sobre as diferentes tradições, mais
vemos o quanto elas se complementam, mesmo que frequentemente
descrevam as coisas de forma bem diferente. Desta forma, podemos
respeitar os ensinamentos de todas as linhagens.
O Bon e o Budismo Tibetano
Dr. Alexander Berzin

Introdução

Esta noite pediram-me para falar sobre a tradição Bon e a sua relação
com o budismo. Quando Sua Santidade o Dalai Lama fala das tradições
tibetanas, refere-se frequentemente às cinco tradições do Tibete:
Nyingma, Kagyu, Sakya, Gelug e Bon. Do ponto de vista de Sua Santidade,
Bon tem um lugar igual com as quatro linhagens do budismo tibetano.
Sua Santidade é muito aberto. Não todos concordam com essa posição.
Houve, e ainda há, várias ideias muito estranhas sobre Bon entre
professores budistas. Do ponto de vista da psicologia ocidental, quando as
pessoas estão tentando com muito esforco enfatizar coisas positivas das
suas personalidades antes que terem realmente resolvido coisas a um
nível profundo, então o lado-sombra é projetado em um inimigo. "Nós
somos os Bonpos, seguindo um trajeto puro e correto e eles são o diabo".
Infelizmente, os Bonpos têm sido os objetos tradicionais desta projeção
na história tibetana. Olharemos para as razões históricas para isto. Isto
precisa mesmo de ser compreendido dentro do contexto da história
política tibetana.

De fato o Bon recebeu muita publicidade negativa e uma má imagem


dentro do próprio Tibete. Os ocidentais são frequentemente atraídos à
controvérsia, como se algo que recebesse uma má imagem fosse mais
interessante. As outras tradições são menos excitantes e mais diretas .
Uma ideia igualmente estranha é que o Bon é mais exótico do que o
budismo tibetano. Alguns ocidentais vêem-no como um lugar onde
podem encontrar magia, coisas tipo Lobsang Rampa, como perfurar um
buraco nas testas das pessoas para abrir os seus terceiros olhos.
Nenhuma das perspectivas é exata. Nós temos de tentar obter uma
perspectiva mais equilibrada e olhar para o Bon com respeito, como faz
Sua Santidade . É importante compreendermos a história tibetana para
vermos como a opinião negativa sobre o Bon se desenvolveu e para
vermos como a sua abordagem ao desenvolvimento espiritual se
relaciona ao budismo tibetano.

Traçando as Origens do Bon – Shenrab Miwo

De acordo com a própria tradição Bon, foi fundada por Shenrab Miwo,
que viveu há trinta mil anos. Isso colocá-lo-ia algures na Idade da Pedra.
Eu não acho que isto significa que ele era um homem das cavernas. Uma
maneira comum de demonstrar grande respeito a uma linhagem é dizer
que ela é antiga. Em qualquer caso, as datas reais da sua vida não são
possíveis de provar. Shenrab Miwo viveu em Omolungring. A descrição
deste lugar parece ser uma mistura das ideias sobre Shambhala, Monte
Meru, e Monte Kailash. É a descrição de uma terra espiritual ideal. Diz-se
estar dentro de uma área maior chamada Tazig. A palavra "Tazig" pode
ser encontrada tanto no persa como no árabe para se referir à Persia ou à
Arábia. Em outros contextos, refere-se a uma tribo nomádica. Na tradição
Bon, Tazig é descrita como sendo a oeste do reino de Zhang-zhung, que
era no Tibete Ocidental.

Isto sugere que o Bon veio da Ásia Central, e provavelmente de uma área
cultural iraniana. É possível que Shenrab Miwo tenha vivido numa cultura
iraniana antiga e tenha depois ido para Zhang-zhung. Algumas versões
dizem que ele veio entre os séculos XI e VII a.C. Isso também foi há muito
tempo atras e, uma vez mais, não há maneira de provar uma posição ou
outra. O que é claro é que na altura da fundação da Dinastia Yarlung no
Tibete Central (127 a.C.) já havia algo como uma tradição nativa. Nós nem
sequer sabemos o que era chamada nessa altura.

A Conexão Iraniana

A conexão iraniana é fascinante. Houve muita especulação sobre ela. Tem


de ser analisada não só sob o ponto de vista Bon, como também do ponto
de vista budista. Há uma tremenda quantidade de material em comum
entre Bon e o budismo. Os Bonpos dizem que os budistas obtiveram-no
deles e os budistas dizem que os Bonpos o obtiveram deles. Cada lado
afirma ser a fonte. É uma questão difícil de decidir. Como é que sabemos?

O budismo foi da India para o Afeganistão muito cedo. De fato, diz-se que
dois dos discípulos do próprio Buda vieram do Afeganistão e que levaram
o budismo para lá. Nos séculos I e II a.C., vemos que o budismo foi para o
próprio Irã e até mesmo à Ásia Central. O budismo estava lá. Se Bon diz
que ideias que parecem ser muito semelhantes ao que o Buda ensinou
vieram de uma área persa para dentro do Tibete Ocidental durante um
período muito antes de terem vindo diretamente da India, é muito
possível que tenham vindo de uma mistura de budismo e ideias culturais
iranianas locais que estavam presentes nessa área. A área que parece ser
a mais lógica fonte das ideias budistas iranianas é Khotan.

Khotan

Khotan é para o norte do Tibete Ocidental. Como sabem, o Tibete é um


platô muito elevado com muitas montanhas. Ao irmos mais para o norte
para o fim desse platô, há outra cadeia de montanhas, e depois o terreno
vai para baixo, até chegar abaixo do nível do mar, a um deserto no
Turquistão Oriental, que é agora a província Xinjiang da China. Khotan
estava no pé dessas montanhas ao entrarmos no deserto. Era uma área
cultural iraniana; o povo veio do Irã. Era um enorme centro de budismo e
de comércio. Teve um impacto cultural significativo no Tibete, embora os
tibetanos minimizem isto e digam que tudo veio da India ou da China.

Até sistema de escrita tibetano veio do alfabeto khotanês. O imperador


tibetano Songtsen-gampo enviou um ministro a Khotan para obter um
sistema de escrita para a língua tibetana. A estrada comercial para Khotan
atravessava Caxemira, e o grande professor de Khotan que esperavam
encontrar estava lá. Assim, obtiveram dele o sistema de escrita em
Caxemira, e a história passou a ser que obtiveram um sistema de escrita
de Caxemira. Se analisarmos o sistema de escrita, podemos ver que vem
realmente de Khotan. É claro, o sistema khotanês veio originalmente da
India. O ponto é que havia muito contato cultural com Khotan.

Podemos ver que a apresentação do Bon é muito plausível. Pode bem ser
que veio de Khotan. Deste ponto de vista, poderíamos dizer que o
budismo chegou ao Tibete de duas direções: de Khotan ou das culturas
iranianas para o Tibete Ocidental e depois, mais tarde, da India. No
primeiro caso, poderia ter vindo na forma do antigo Bon. É bastante
possível que o budismo, e em especial o dzogchen, tenha vindo de ambos
os lados e que cada lado tenha emprestado do outro. Isso está
provavelmente mais perto da verdade.

Descrição do Universo e da Vida após Morte

Um elemento Bon que vem de uma crenca cultural iraniana é a narrative


de como o universo evoluiu. O budismo tem os ensinamentos do
abhidharma sobre Monte Meru e assim por diante, mas essa não é a única
explicação. Há também a explicação de Kalachakra, que é ligeiramente
diferente. Os textos Bon contêm a explicação do abhidharma, tal como
está no budismo, mas também têm a sua própria explicação para com
certos aspectos que parecem totalmente iranianos, como um dualismo
entre a luz e a escuridão. Alguns eruditos russos observaram
semelhancas entre os nomes persas antigos e osnomes tibetanos para
vários deuses e figuras. Esta conexão iraniana é para onde estão
apontando.

O que é muito único ao antigo Bon é uma ênfase na vida após a morte,
especialmente no estado intermediário. Quando os reis morriam, íam
para uma vida após a morte. Porque precisavam de coisas para a sua
viagem, havia sacrifício de animais, e possivelmente até sacrifícios
humanos, embora isso seja discutível. Certamente, enterravam retratos,
alimentos e todas as coisas que uma pessoa necessitaria na sua viagem
após a morte.

É bastante interessante reparar que o budismo tibetano adotou esta


ênfase no estado entre vidas. No budismo indiano há menção do bardo,
mas ele recebe uma ênfase muito pequena, enquanto que há muitos
rituais de bardo e assim por diante no budismo tibetano. Também
podemos encontrar uma ênfase na preparação para a vida após a morte
na antiga cultura persa. O único aspecto do antigo Bon de que podemos
falar com confiança é a prática de rituais de enterro, e o que é encontrado
nos túmulos mostra essa crença na vida após a morte. Todo o resto é é
apenas especulação. Podemos ainda ver os túmulos dos reis antigos.

A influência de Zhang-zhung chegou à área Yarlung do Tibete Central e


durou desde os tempos mais antigos até à fundação do primeiro império
tibetano por Songsten-gampo. Ele criou alianças casando com princesas
de países diferentes. Todos sabem que casou com uma princesa da China
e outra do Nepal. Contudo, ele também se casou com uma princesa de
Zhang-zhung. Por conseguinte, este primeiro imperador tibetano foi
influenciado por cada uma destas culturas.

Os ensinamentos completos do budismo não chegaram ao Tibete durante


este período mais antigo, e a sua influência foi na verdade muito pequena.
No entanto, o imperador construiu templos budistas em vários "pontos-
poder". O Tibete era visto como uma demónia deitada de costas, e
acreditava-se que a construção de templos em vários pontos de
acupuntura iria subjugar as forças selvagens. Ver as coisas em termos de
pontos de acupuntura, subjugar demonios e assim por diante é uma coisa
muito chinêsa. Esta era a forma de budismo presente no Tibete naquela
época. Aqui, o que é relevante é que o imperador Songtsen-gampo, apesar
da sua adoção do budismo, manteve os rituais Bon de enterro que eram
praticados em Yarlung antes dele. Isto foi obviamente reforçado pela sua
esposa rainha de Zhang-zhung. Assim, os rituais de enterro, com os
sacrifícios e assim por diante, continuaram neste primeiro período
budista.

O Exílio dos Bonpos

Por volta de 760, o imperador Songdetsen convidou Guru Rinpoche,


Padmasambhava, da India. Construíram o primeiro mosteiro, Samye, e
começaram uma tradição monástica. Em Samye, tinham um
departamento de tradução para traduzir textos não só das línguas indiana
e chinesa, como também da de Zhang-zhung, que pelos vistos já era uma
língua escrita nessa época. Há dois sistemas tibetanos de escrita. O
sistema impresso é aquele que o imperador Songtsen-gampo obteve de
Khotan. De acordo com a pesquisa de alguns grandes eruditos, como
Namkhai Norbu Rinpoche, Zhang-zhung teve um sistema de escrita mais
antigo, que era a base para a forma do tibetano escrito à mão. Em Samye,
estavam traduzindo textos Bon, supostamente sobre enterros e assim por
diante, da língua de Zhang-zhung em sua própria escrita, para o tibetano.

Em Samye, houve o famoso debate entre o budismo indiano e chinês; a


seguir um conselho religioso foi estabelecido e, em 779, o budismo foi
declarado a religião estatal do Tibete. Estiveram envolvidas, sem dúvida,
muitas considerações políticas. Pouco depois, em 784, houve uma
perseguição à facção Bon. É aqui que toda a hostilidade começa. É
importante analisar isto. O que se estava realmente se passando?

Dentro da corte imperial havia uma fação pró-China, uma fação pró-India
e uma fação nativa xenófoba ultra-conservadora. O pai do imperador Tri
Songdetsen tinha casado uma rainha chinesa que tinha muita influência e
consequentemente o pai tinha sido pró-Chinês em muitos assuntos
políticos. A fação conservadora tinha assassinado o pai. Eu penso que esta
é uma das razões por que os chineses perderam o debate. Não havia
maneira de conseguirem ganhar um debate. Os chineses não tinham a
tradição do debate e foram postos contra o melhor debatente da India.
Não tinham uma língua em comum, por isso em que língua debateram?
Tudo estava sendo traduzido. Obviamente, foi uma estratégia política
para se livrarem da fação chinesa. Por causa dos chineses, o pai do
imperador tinha sido morto. Agora, além disso, o rei também se queria
livrar da fação anti-estrangeiros. A fação indiana era a menor ameaça ao
poder político do imperador. Assim, a fação política conservadora foi
enviada para o exílio. Esses eram os Bonpos.

O que é confuso é quando as pessoas dizem que os Bonpos estavam a


fazer rituais de enterro na corte. Esses não eram os Bonpos que foram
enviados para o exílio. Os Bonpos que estavam exilados eram estes
ministros conservadores e figuras políticas que tinham sido expulsas.
Interessante, os rituais de enterro e os rituais de sacrifício continuaram
na corte mesmo após o seu exílio. Para comemorar um tratado com a
China assinado em 821, uma coluna foi erigida que descrevia as
cerimónias. Sacrificaram animais. Embora já não tivessem enterros
imperiais, ainda havia ali alguma influência. Eu penso que é muito
importante compreender que a hostilidade entre os budistas e os Bonpos
era na verdade uma coisa política; não era realmente sobre religião ou
rituais.
A facção conservadora foi enviada para duas áreas. Uma é Yunnan, na
atual área do sudoeste da China, norte de Burma, e a outra foi Gilgit, no
noroeste do Paquistão, muito perto de onde tinha vindo Guru Rinpoche.
Podemos inferir que os Bonpos podem ter obtido alguns ensinamentos
sobre dzogchen dessa área, onde Guru Rinpoche também os recebeu, e
que os Bonpos os poderiam ter mais tarde levado de volta para o Tibete,
independentemente de Guru Rinpoche. Há muitas explicações possíveis
para Bon ter uma tradição de dzogchen separada da tradição budista
vinda de Guru Rinpoche. Não é apenas uma questão de alguém diz que
sim e por isso é verdade. Temos de investigar a história.

Textos-Tesouro Bon Enterrados

Muitos textos Zhang-zhung foram enterrados na altura do exílio,


colocados nas paredes de barro do mosteiro Samye por um grande
mestre chamado Drenpa-namka. Guru Rinpoche também estava
enterrando textos ao mesmo tempo , porque sentiu que na época , as
pessoas não eram suficientemente sofisticadas para os compreender.
Enterrou apenas textos dzogchen. Os Bonpos enterraram todos os
ensinamentos Bon, incluindo dzogchen. Assim, embora Bonpos e
Nyingmapas tivessem enterrado textos ao mesmo tempo, as razões para o
fazer e os textos enterrados eram bastante diferentes.

O imperador tibetano seguinte, Ralpachen, era um fanático. Decretou que


cada sete casas sustentassem um monge. Muitos dos impostos foram
desviados para sustentar os mosteiros. Os monges do conselho religioso
tinham uma quantidade enorme de poder político. O imperador que se
seguiu, Langdarma, é retratado como o diabo porque perseguiu o
conselho religioso e fez com que todos os impostos deixassem de ir para
os mosteiros. Dissolveu os mosteiros, mas não se livrou das bibliotecas.
Nós sabemos disto porque quando Atisha foi para o Tibete no século XI,
ele comentou que as bibliotecas eram maravilhosas. Langdarma
basicamente acabou com as instituições monásticas porque estas se
estavam tornando demasiado fortes politicamente. Assim, houve uma
época em que os mosteiros estavam abandonados.

Os textos Bon enterrados em Samye foram descobertos pela primeira vez


em 913. Alguns pastores estavam de estadia no mosteiro e quando se
inclinaram contra uma parede, esta quebrou-se, revelando alguns textos.
A maior parte dos textos Bon foi descoberta cerca de um século depois,
por um grande mestre Bonpo chamado Shenchen Luga. Em 1017, ele os
codificou. Eram, na maior parte, material não-dzogchen, cobrindo o que
chamaríamos de ensinamentos em comum com o budismo tibetano. Foi
só depois disto que os Nyingmapas começaram a descobrir textos em
Samye e em outros mosteiros. Uns quantos mestres encontraram textos
Bon e Nyingma, e muitas vezes no mesmo lugar. Os textos Nyingma eram
principalmente sobre dzogchen. Aqui, na nova fase de Bon, a historia é
mais sólida, em contraste com a antiga fase que decorreu antes do exílio e
dos textos serem enterrados.

Comparando Bon com o Budismo Tibetano

Podemos ver que há muito em comum com as tradições do budismo


tibetano. É por isso que Sua Santidade chama ao Bon uma das cinco
tradições. Os Bonpos não gostariam, mas poderiamos chamá-los uma
outra forma de budismo tibetano. Depende de como definimos uma
tradição budista. A maior parte da terminologia é a mesma. O Bon fala
sobre a iluminação, alcançar a iluminação, Budas, e assim por diante.
Certos termos são diferentes, tal como o são os nomes de várias deidades,
mas os ensinamentos fundamentais estão lá. Há algumas diferenças muito
triviais, tais como circumambular no sentido anti-horário em vez de no
sentido horário. O tipo de chapéu cerimonial é diferente. As vestes dos
monges são idênticas, exceto que parte da veste é azul em vez de ser
vermelha ou amarela.

O Bon tem uma tradição de debate, tal e qual as tradições budistas


tibetanas. A tradição de debate é muito antiga, por isso, uma vez mais,
podemos perguntar quem a começou. Ela estava certamente presente nos
mosteiros indianos muito antes de ter aparecido no Tibete. Contudo,
poderia ter chegado à tradição budista tibetana através do Bon. Por outro
lado, não tem necessariamente de ser que uma a copiou da outra.

O que é muito interessante é que a tradição de debate dos Bonpos segue a


tradição de debate Gelug muito proximamente. Muitos dos monges
Bonpos treinam em debate nos mosteiros Gelug e até fazem cursos de
Geshe. Isso sugere que embora o Bon tenha dzogchen, a interpretação
Madhyamaka está mais perto da interpretação Gelug do que da
interpretação Nyingma. Senão, não poderiam participar nos debates
Gelug. As similaridades entre Bon e o budismo tibetano não são apenas
em relação a Nyingma. Não é apenas um clone de Nyingma com nomes
diferentes. É muito mais complexo do que isto. Bon também enfatiza as
várias ciências indianas tradicionais, que eles estudam com muito maior
intensidade do que nos mosteiros budistas – medicina, astrologia, métrica
poética, e assim por diante. Dentro dos mosteiros budistas, estas matérias
são enfatizadas muito mais em Amdo, no Tibete Oriental, do que no
Tibete Central.
Tanto o Bon como o budismo tibetano possuem mosteiros e votos
monásticos. É bastante interessante que embora muitos dos votos sejam
os mesmos nas duas tradições, o Bon tem certos votos que esperariamos
que os budistas tivessem mas não têm. Por exemplo, os Bonpos têm um
voto de serem vegetarianos. Os budistas não. A moralidade Bon é um
pouco mais rigorosa do que a budista.

O Bon tem um sistema de tulkus, que é o mesmo do que o dos mosteiros


budistas. Têm Geshes. Têm prajnaparamita, madhyamaka, abhidharma, e
todas as divisões que encontramos nos textos budistas. Parte do
vocabulário e das apresentações são ligeiramente diferentes, mas a
variação não é mais dramática do que aquela entre uma linhagem budista
e outra. Por exemplo, o Bon tem a sua própria narrativa da criação do
mundo, mas nós também encontramos uma narrativa particular em
Kalachakra. Este é um retrato geral. Bon não é assim tão estranho.

Cultura Tibetana e Ensinamentos Essenciais

Eu penso que é importante tentarmos discernir os aspectos do budismo


que foram adotados do Bon, que refletem a nativa abordagem tibetana, de
modo a termos uma ideia mais clara do que é a cultura tibetana e do que é
budismo essencial. É também importante tentarmos discernir aspectos
culturais dos ensinamentos Bon essenciais.

Um processo de cura com quatro partes foi adotado por todas as


tradições budistas tibetanas. Para alguém que aparece com uma doença, a
primeira coisa que se faz é jogar um mo, que é um método de predição.
Isso vem do Bon. Em épocas antigas, não se faziam mos com os dados,
como geralmente o fazem agora, mas com uma corda amarrada em vários
nós. Omo indica se espíritos nocivos estão causando a doença e, se assim
for, que rituais executar para fazer paz com eles. Em segundo lugar,
consulta-se a astrologia para determinar o momento mais eficaz de fazer
os rituais. A astrologia é feita em termos dos elementos segundo a
tradição chinesa – terra, água, fogo, metal e madeira. Em terceiro lugar,
são feitos os rituais para remover as influências nocivas externas. Depois
disso, em quarto lugar, toma-se medicina.

A teoria por trás dos rituais é ligeiramente diferente no budismo e no


Bon. De um ponto de vista budista, nós trabalhamos com o karma e
olhamos para a situação externa como sendo basicamente uma reflexão
do karma. Um ritual ou um puja ajudam a ativar potenciais kármicos
positivos. O Bon coloca uma ênfase igual na harmonização das forças
externas e na situação kármica interna.
Em ambos os casos, estes pujas para a cura usam tormas, que são
resquícios atenuados dos antigos rituais de sacrifício. As tormas, feitas de
farinha de cevada, moldadas na forma de pequenos animais, e usadas
como bodes espiatórios, vêm indubitavelmente do Bon. São dadas aos
espíritos nocivos: "Tomem isto e deixem a pessoa doente em paz".

Toda a questão dos sacrifícios é muito interessante. Os Bonpos dizem:


"Nós não fizemos isso, isso era uma tradição do Tibete mais antiga ". Os
budistas dizem: "Foram os Bonpos, nós não fizemos isso". Obviamente,
todos querem negar terem feito sacrifícios – porém, não há duvida que
haviam sacrifícios. Milarepa menciona que estavam ocorrendo no seu
tempo. Até tão recentemente quanto 1974, quando Sua Santidade o Dalai
Lama deu o empoderamento de Kalachakra em Bodhgaya pela primeira
vez, ele falou muito fortemente às pessoas vindas das regiões fronteiriças
do Tibete sobre o abandono das práticas do sacrifício de animais. Este é
algo que vem ocorrendo há muito tempo.

Retratos de várias deidades são usados em rituais do bardo Bonpo e


também em muitos rituais do bardo budistas. Isto já vem dos rituais de
enterro iranianos/Bonpo onde coisas eram colocadas no túmulo com a
pessoa morta.

Outra coisa emprestada por Bon ao budismo tibetano é a "teia de


harmonia do espaço", uma configuração, tipo teia de aranha, de cordas
multicoloridas representando os cinco elementos. Vem da ideia de termos
de harmonizar os elementos externos antes de podermos trabalhar nos
elementos ou karma interno. Uma teia é desenhada de acordo com a
predição e outras coisas, e é pendurada lá fora. São chamadas às vezes
agarra-espíritos, mas não é bem isso que são. Sua função é a de
harmonizar os elementos e dizer aos espíritos para nos deixarem em paz.
É muito tibetano.

O conceito de espírito vital (bla), que se encontra no Bon e no budismo,


vem da ideia túrquica, da Ásia Central, de qut, o espírito de uma
montanha. Quem governava a área em torno de uma certa montanha
sagrada era o Khan, o governador dos turcos e mais tarde dos mongóis. O
rei era a pessoa que representava este qut ou espírito vital. Ele tinha
carisma e podia governar.

O espírito vital de alguém podia ser roubado por espíritos nocivos. Todas
as tradições budistas tibetanas têm pujas para enganchar de volta um
espírito vital que tinha sido roubado por espíritos nocivos. Envolvem um
resgate: aqui está uma torma, dá-me de volta o meu espírito vital. Como é
que sabemos que o nosso espírito vital foi roubado? De um ponto de vista
ocidental, podemos chamá-lo um esgotamento nervoso ou estresse pós-
traumático, onde não podemos lidar com a vida. Alguém cujo espírito
vital foi roubado é incapaz de organizar a sua vida. Este espírito vital
governa a nossa vida como o Khan domina o país. A palavra tibetana para
espírito vital, "la", é usada na palavra lama. Um lama é alguém que tem
realmente um espírito vital. “La” é usado também em alguns contextos
para traduzir a “bodhichitta branca”, por isso é uma força ou essência
material muito forte dentro do corpo.

Depois há o espírito da prosperidade. Se for forte, tudo correrá bem e


seremos prósperos. A palavra tibetana é "yang" (g.yang). "Yang" também
é a palavra chinesa para carneiro. No Losar, o ano novo tibetano, come-se
a cabeça de um carneiro e molda-se uma cabeça de carneiro no tsampa,
grão de cevada torrado. Isto representa o espírito da prosperidade. Vem
claramente dos antigos rituais Bon.

A ideia das bandeiras de orações também vêm do Bon. Elas vem com as
cores dos cinco elementos e são penduradas para harmonizar os
elementos externos para que as coisas estejam equilibradas para que
possamos fazer o trabalho interno. Muitas bandeiras de orações têm a
imagem do cavalo de vento (lungta, rlung-rta), que está associado com o
cavalo da fortuna. A China foi o primeiro país a desenvolver um sistema
de correio, em que os carteiros andavam de cavalo. Havia certos lugares
onde paravam e mudavam de cavalos. Esses cavalos dos correios eram os
cavalos do vento. As palavras chinesas são as mesmas. A ideia é que a boa
fortuna virá num cavalo como o carteiro traz bens, cartas, dinheiro, etc. É
muito tibetano/chinês.

Certos aspectos da cura Bon vieram para o budismo, tal como borrifar
água consagrada com uma pena. Em todos os rituais de iniciação budistas,
encontramos uma pena de pavão num vaso. O queimar das folhas e ramos
da árvore de junípero, chamada sang em tibetano, é feito nos topos das
montanhas para saudar alguém que está vindo. Fazem-no ao longo do
lado da estrada quando Sua Santidade regressa a Dharamsala. É
associado com o fazer-se oferendas aos espíritos locais.

A ênfase nos oráculos no budismo tibetano é frequentemente confundida


com o xamanismo, mas os oráculos e os xamãs são bastante diferentes.
Um oráculo é um espírito que fala através de um medium. Está
canalizando. Os xamãs, encontrados na Sibéria, Turquia, África, etc., são
as pessoas que entra num transe em que vão a reinos diferentes e falam
com vários espíritos, geralmente os espíritos dos antepassados. Os
espíritos dão-lhes respostas a várias perguntas. Quando os xamãs saem
do transe, entregam a mensagem dos antepassados. Em contraste, um
médium geralmente não tem nenhuma memória do que o oráculo disse
através dele ou dela. Os oráculos foram associados aos protetores. O
oráculo de Nechung também é o protetor chamado Nechung. Porém, um
traço de xamanismo é refletido numa divisão das coisas como estando na
terra, acima e abaixo da terra, que é prevalente no material Bon e depois
chegou ao budismo.

Buda ensinou muitíssimo sobre muitos tópicos. Onde quer que o budismo
esteve na Ásia, as pessoas salientaram os elementos que íam ao encontro
da sua cultura. No budismo indiano existe uma menção de terras puras
porém não foi enfatizada. (Por outro lado,) os chineses, que tinham a
ideia taoista de irem para a terra ocidental dos imortais, puseram uma
enorme ênfase nas terras puras e expandiram-na muitíssimo. Assim,
temos o budismo da terra pura. É uma das escolas budistas chinesas mais
significativas. Do mesmo modo, dentro do budismo indiano, nós
encontramos a discussão dos protetores, dos vários espíritos, do
oferecimento de pujas, e assim por diante, mas os tibetanos expandiram
muitíssimo estes elementos porque se encontravam na sua cultura.

Conclusão

Eu penso que é muito importante ter-se muito respeito pela tradição Bon.
Há muitas coisas que podem ser identificadas como Bon ou como cultura
tibetana que não são completamente em comum com o budismo tibetano.
Há vários elementos nos ensinamentos budistas que também são
encontrados no Bon. O debate sobre quem copiou o que de quem não é
útil. O budismo e o Bon tiveram contato um com o outro e não há razão
porque não se influenciariam um ao outro.

É importante compreender que fazer dos Bonpos os “maus” é, por um


lado, político – um resquício de terem sido super-conservadores no
século VIII. Por outro lado, é psicológico – as pessoas que salientam os
seus próprios lados positivos tendem a projetar os seus lados negativos
em alguém. Este fenômeno é encontrado especialmente em tradições
budistas fundamentalistas com super-devoção ao guru e uma grande
ênfase num protetor. O protetor torna-se a coisa importante. Os textos
dizem coisas terríveis sobre quem quer que seja contra o Dharma ou
contra a dita tradição. Esmagar os nossos inimigos, espezinhá-los, retirar
seus olhos, etc. Eu penso que é muito mais correto seguir o exemplo de
Sua Santidade, de pensar que há cinco tradições tibetanas, cada uma
ensinando caminhos totalmente válidos à iluminação. Compartilham
muitas coisas em comum e falam de alcançar o mesmo objetivo, a
iluminação.
Dentro do que compartilham em comum, há certas coisas que podem ser
identificadas como cultura tibetana e outras que são mais budistas.
Somos nós que temos de decidir o que queremos seguir. Se quisermos
aceitar certas coisas da cultura tibetana, tudo bem, porque não? Porém,
não é necessário. Se conseguirmos distinguir os elementos (da cultura)
tibetana do budismo essencial, então pelo menos poderemos estar claros
sobre o que estamos seguindo. Não podemos ser puristas no budismo. Até
o budismo indiano estava de acordo com a sociedade indiana. Não
podemos divorciar o budismo da sociedade em que foi ensinado, mas
podemos estar claros sobre o que é cultural e o que é valido acerca das
quatro verdades nobres, o caminho à iluminação, bodhichitta e assim por
diante.
Vajrayana
Ganhamos uma forte confiança nos métodos sofisticados de tantra ao entender como
suas práticas avançadas funcionam para conseguir gerar a iluminação da maneira mais
eficiente possível. O conhecimento claro nos permite abordar a prática tântrica - seja
Kalachakra ou outro sistema - de uma forma realista, sem perdermos o ânimo por sua
dificuldade.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 Tantra: Teoria
 Tantra: Avançado
 Dzogchen: Avançado
Tantra: Teoria

As Principais Características do
Tantra
Dr. Alexander Berzin

O Significado de Tantra

A palavra tantra (rgyud) significa um continuum eterno. Existem três


níveis de tais continuums:

1. o continuum eterno de base – o continuum mental individual (fluxo-


mental) de cada ser limitado (ser senciente), com todos os seus fatores
de natureza búdica (khams de-bzhin snying-po) que tornam a
iluminação possível
2. o continuum eterno do caminho interior – a continuidade das práticas
Mahayana com figuras búdicas (yi-dam, deidades tântricas), que
podem ser utilizadas sempre, visto que as figuras búdicas nunca ficam
cansadas; também não envelhecem e nunca morrem
3. o continuum eterno resultante – a continuidade interminável dos
corpuses (corpos) iluminadores de um Buda.

A prática do continuum do caminho interior purifica as manchas fugazes


do continuum de base de uma pessoa, transformando-o no continuum
resultante. Os textos que discutem estes tópicos também são chamados
de tantras.

As Classes do Tantra

As três linhagens de budismo tibetano do Novo Período de Tradução – ou


seja, Sakya, Kagyu e Gelug – dividem o tantra em quatro classes:

1. kriya (prática ritual de uma figura búdica) – que enfatiza práticas de


rituais exteriores, como abluções, dieta e jejum;
2. charya (prática comportamental de figura búdica) – que salienta
igualmente o comportamento externo e os métodos interiores;
3. yoga (prática integrada de figura búdica) – que enfatiza a utilização de
métodos interiores de yoga;
4. anuttarayoga (prática integrada incomparável de uma figura búdica) –
que ensina métodos de práticas interiores especiais e mais avançados.
A linhagem Nyingma, do Antigo Período de Tradução, transmite seis
classes de tantra, ou seja: as mesmas primeiras três e, outras tres que
correspondem a estágios progressivamente mais avançados de
anuttarayoga:

4. mahayoga (prática muito integrada de figura búdica) – que enfatiza a


visualização;

5. anuyoga (prática integrada subseqúente de figura búdica) – que


enfatiza o trabalho com sistemas de energia sutil;

6. atiyoga (prática supremamente integrada de figura búdica)


ou dzogchen (rdzogs-chen, a grande perfeição) – que enfatiza o nível
mais sutil de atividade mental (mente).

Preliminares

Todas as classes de tantra requerem que se atinja um nível de


proficiência spiritual com práticas preliminares (sngon -'gro, "ngondro")
como preparação, antes se de embarcar nos seus caminhos. Estas incluem
a obtenção de um nível de estabilidade nas práticas preliminares
partilhadas em comum com a prática sutra de um bodhisattva, como
também o completar de um certo número de práticas especiais não
compartilhadas com o sutra.

Preliminares Partilhadas
As práticas preliminares partilhadas em comum com a prática sutra do
bodhisattva incluem a obtenção dos quatro pensamentos que
encaminham a mente para o Dharma (blo-ldog rnam-bzhi). Elas são a
apreciação:

1. do precioso renascimento humano,


2. da morte e a impermanencia,
3. das leis da causa e efeito comportamentais (sânsc. karma),
4. das desvantagens dos renascimentos incontrolavelmente
recorrentes (sânsc.samsara).

Todas as classes de tantra exigem uma base estável nas outras práticas
sutra do bodhisattva. O tantra, na verdade, é um método para combinar e
praticar simultaneamente todas elas. As práticas do sutra incluem:

 a direção segura (refúgio);


 uma determinação de ser livre (renúncia),
 a auto-disciplina ética,
 a concentração,
 a sabedoria (shes-rab, sânsc. prajna) do vazio (sânsc. shunyata,
vacuidade),
 o amor e compaixão,
 bodhichitta (um coração dedicado à obtenção da iluminação e ao
ajudar os demais),
 as outras atitudes de vasto alcance (sânsc. paramita, perfeições) de
generosidade, paciência e perseverança entusiástica.

Preliminares Não-Partilhadas
Para purificar forças negativas internas (sdig-pa, sânsc. papa, potenciais
negativos) e acumular forças positivas (bsod-
nams, sânsc. punya, potencialidades positivas, méritos), a prática do
tantra também exige pelo menos um certo número de preliminares
especiais que não são compartilhadas com a prática sutra. Na maior parte
das vezes, elas incluem cem mil repetições de:

1. Prosternações , feitas juntamente com um verso para a tomada de


direção segura e que também reafirma a motivação bodhichitta;
2. o mantra de cem sílabas de Vajrasattva (rDo-rje sems-pa), para
purificação;
3. oferendas da mandala, simbólicas de se dar tudo para a obtenção da
iluminação e o benefício dos demais;
4. um verso ou mantra de guru-ioga (bla-ma'i rnal-'byor, "lamay neljor"),
para integrar o nosso corpo, fala, e mente com os dos mestres
espirituais – que para nós são budas.

Mantras (sngags), que são palavras e sílabas repetidas em sânscrito.A


etimologia do termo sânscrito significa "proteger a mente" de
negatividades. A mandala (dkyil-'khor) é o símbolo de um universo. Cem
mil ou mais repetições também podem ser exigidas para várias outras
práticas preliminares não-compartilhadas. A tradição Gelug, por exemplo,
conta as prosternações e os versos de direção segura e bodhichitta como
duas práticas preliminares distintas, acrescentando normalmente mais
quatro. Isto torna o número total de preliminares em nove:

1. o mantra de Samayavajra (Dam-tshig rdo-rje), para purificação dos


elos próximos especiais (dam-tshig, sânsc. samaya) que temos com
nossos mestres espirituais;
2. oferendas de sementes de sésamo a Bhuji Vajradaka (Za-byed rdo-rje
mkha-'gro), feitas num fogo para queimar as forças negativas dos
nossos continuums mentais;
3. oferendas de tigelas de água;
4. fazer tabuletas de barro votivas (tsa-tsa), imprimindo nelas alguma
figura búdica ou mestre da linhagem.

Todas as tradições tibetanas exigem as preliminares básicas do sutra, tais


como a direção segura e o que a tradição Gelug chama de "os três
principais caminhos interiores mentais" (lam-gtso rnam-gsum) que são: a
renúncia, bodhichitta e a compreensão correta do vazio. No minimo,
precisamos ser capazes de gerar estes caminhos interiores mentais de
uma maneira artificial (bcos-ma), quer dizer, trabalhar até atingirmos um
estado conceitual correto deles. Isto se faz com uma base numa linha de
raciocínio válida. Para ser sincero, não e necessário que um caminho
interior mental seja não-conceptual e para que nós o sintamos a um nível
emocional.

Antes de receber uma iniciação, a tradição Gelug recomenda que se tenha


pelo menos começado a prática de cem mil repetições de cada uma das
preliminares especiais, com a condição de que sigamos continuando a
fazê-las depois. As tradições não-Gelug recomendam que se complete
pelo menos um conjunto de cem mil repetições de cada uma destas
praticas preliminares especiais antes de se receber uma iniciação. No
entanto, todas as tradições salientam a continuação da prática das
preliminares especiais como parte constante da prática diária.

Três Tipos de Cerimônia Iniciatória

Após a conclusão de um certo número de práticas preliminares, o próprio


envolvimento na prática tantrica exige uma cerimônia iniciatória. Existem
três tipos:

1. empoderamento (dbang, "wang," iniciação);


2. permissão subsequente (rjes-snang, "jenang," permissão);
3. recolha-de-mantras (sngags-btus).

Empoderamento
A visualização de nós próprios como figuras búdicas exige primeiro que
se receba um empoderamento. Um empoderamento permite-nos ter
sucesso na nossa prática:

 estabelecendo, como uma fonte viva de inspiração (byin-rlabs,


bênçãos), um vínculo estreito com um mestre tântrico;
 ligando-nos com a tradição viva, que já vem desde o proprio Buda;
 atribuindo votos, que precisaremos manter de uma forma pura, para
moldar de maneira adequada o nosso comportamento e práticas;
 purificando ainda mais uma variedade de forças negativas interiores;
 ativando os fatores da nossa natureza búdica;
 reforçando esses fatores, deixando assim um legado (sa-
bon, “plantando sementes"), nos nossos continuums mentais a partir
da experiência consciente de estados mentais e insights específicos
durante o ritual – tais como a consciência de êxtase do vazio (em
anuttarayoga Gelug), ou das nossas naturezas búdicas (em tradições
não-Gelug).

Na verdade, nós não receberemos um empoderamento a menos que

 tenhamos respeito e confiança no método tântrico, idealmente já tendo


uma boa compreensão do mesmo;
 tenhamos plena confiança, com base em provas indiscutíveis, que os
nossos mestres tântricos possuem a capacidade de conduzir-nos
corretamente no caminho tântrico;
 nos sintamos muito inspirados pelos nossos mestre tântricos;
 recebamos e prometamos manter puros os votos conferidos;
 participemos ativamente no processo de visualização, o melhor que
pudermos;
 obtenhamos experiências conscientes dos estados mentais ou insights
específicos descritos pelos nossos mestres tântricos durante a
cerimônia, ao nível a que formos capazes.

Sadhanas, Pujas e Tsog


Tendo recebido um empoderamento, podemos então praticar uma
sadhana (sgrub-thabs). A palavra sadhana significa um método de
realização, ou seja, a realização de nós mesmos como sendo a figura
búdica para a qual tenhamos recebido o empoderamento. Outros nomes
para sadhana são "auto-geração" (bdag-bskyed) e, em anuttarayoga,
"prática que antecede uma realização" (mngon-rtogs).

Fazer uma sadhana implica a recitação (kha-'don) de um texto de


meditação ritual que descreve o processo de auto-visualização e uma
complexa série de outras práticas baseadas nessa auto-geração, tal como
a recitação de mantras e o fazer de oferendas. Fazer toda uma série de
visualizações e meditações da sadhana assemelha-se a fazer um treino
extenuante dos exercícios físicos nas artes marciais ou da formação de
balé.

Nem uma sadhana nem um guru-ioga é o mesmo que um puja (mchod-


pa). Um puja é um ritual de oferendas durante o qual fazemos oferendas
aos nossos mestres tântricos vistos como indissociáveis de figuras
búdicas. Se já tivermos recebido algum empoderamento, também nos
visualizamos como figuras búdicas durante o puja; se não, não podemos.
Se não tivermos recebido empoderamento, só podemos assistir e
observar o ritual, mas não podemos participar nele como um membro da
ceremonia de oferecer um generoso banquete (tshog-'khor, ganacakra).

Durante um puja, oferecemos tsog (tshogs), um generoso banquete ritual,


que geralmente inclui uma torma (gtor-ma) – um cone esculpido de
farinha de cevada torrada e manteiga – como refeição tsog oferecida ao
mestre tântrico. Em anuttarayoga, o banquete também inclui álcool e
carne especialmente consagrados, representando a transformação e uso
dos agregados, elementos e energias sutis nos nossos corpos para obter
uma compreensão mais elevada. Depois que o mestre tântrico e demais
participantes houverem provado as oferendas, o álcool e a carne, cada um
torna a dar uma pequena porção do que ainda resta, que o assistente do
mestre recolhe num prato e oferece lá fora aos espíritos protetores da
região. No final da cerimônia, os participantes comem ou levam para casa
o resto da comida que sobrou. No entanto, se considera uma degeneração
da prática se os participantes consumirem a bebida alcoólica restante,
como se o tsog fosse uma desculpa para ficar embriagado.

Permissão Subsequente
Depois de recebermos o empoderamento para uma determinada figura
búdica, podemos também receber uma permissão subsequente para a
figura:

 para fortalecer ainda mais os fatores de natureza búdica anteriormente


activados;
 para “regar” as sementes anteriormente plantadas;
 para reafirmar os nossos votos.

A maior parte das permissões subsequentes contêm pelo menos três


partes:

1. elevação (byin-rlabs, benção) do corpo;


2. elevação da fala;
3. elevação da mente.

Em geral podemos distinguir uma permissão subsequente de um


empoderamento pelos itens rituais usados na cerimônia. Geralmente os
empoderamentos têm a representação de uma mandala (a residência de
uma figura búdica) colocada dentro de uma estrutura semelhante a um
palácio construída sobre uma base. Os participantes recebem fitas
vermelhas para tapar os olhos, que colocarão nas suas testas durante
partes da cerimônia. Também receberão cordas para amarrar em torno
dos seus braços, e duas “ palhetas” de erva kusha para colocarem sob os
seus travesseiros e colchões para assim poder analisar os sonhos que
tiverem durante a noite.

Permissões subsequentes não usam nenhuns destes itens. Especialmente


nas tradições Gelug, Kagyu e Nyingma, a sua marca reveladora é uma
torma na mesa ao lado do mestre tântrico. Coroando a torma está uma
gravura pintada da figura búdica colocada sobre um pau com uma
pequena sombrinha sobre a pintura. Durante a cerimônia, o mestre
tântrico põe de leve esta torma em cima das cabeças dos discípulos, ao
mesmo tempo em que toca um sino ritual.

Se recebermos uma permissão sem qualquer empoderamento prévio, só


poderemos visualizar a figura búdica à nossa frente ou em cima das
nossas cabeças. Não será permitido imaginar-nos como a figura. Se, no
entanto, tivermos recebido um empoderamento para uma figura búdica
de uma determinada classe de tantra – por exemplo, Avalokiteshvara de
Mil Braços (sPyan-ras gzigs Phyag-stong) para kriya tamtra ou Kalachakra
(Dus-'khor) para anuttarayoga – podemos nos visualizar como qualquer
outra figura dessa classe ou mais baixa, como a Tara Branca (sGrol-dkar),
apenas com a permissão subsequente para essa outra figura. Neste caso,
ja não há necessidade de um empoderamento completo para a Tara
Branca.

Recolha de Mantras
Depois de recebermos um empoderamento para uma figura búdica
específica, também podemos receber uma recolha de mantras para essa
figura, quer tenhamos recebido a sua permissão subsequente ou não.
Para uma cerimônia de recolha de mantras, as vogais e consoantes (a-li
ka-li) do alfabeto sânscrito são escritas com pó coloridos na superfície de
um espelho metálico, geralmente com cada letra num quadrado separado
numa grade. Durante o ritual, o mestre tântrico lê, uma a uma, a
localização, na grade, da consoante e vogal para cada sílaba do mantra
principal da figura – por exemplo, as coordenadas vertical e horizontal do
quadrado que a contem. Depois de cada sílaba, um assistente tira algum
pó colorido do espelho e usa-o para escrever a sílaba na superfície de
outro espelho metálico. Através do ritual, obtemos firme convicção na
exactidão dos mantras.

Votos

Os votos (sdom-pa) estabelecem os limites além dos quais prometemos


não transgredir. Eles são formulados em termos de dois tipos de "acções
indescritíveis" (kha-na ma-tho-ba) que prometemos evitar.
1. Ações naturalmente indescritíveis (rang-bzhin-gyi kha-na ma-tho-ba)
são naturalmente destrutivas (mi-dge-ba, não-virtuosas), como matar.
2. acções indescritíveis proibidas (bcas-pa'i kha-na ma-tho-ba) são ações
eticamente neutras (lung ma-bstan, não especificadas) proibidas pelo
Buda como prejudiciais para certos tipos de praticantes. Um exemplo é
comer depois do meio dia, o que é proibido para monges ou monjas
porque tende a fazer mais sonolenta a mente para a meditação da
noite.

Na tradição Gelug, praticantes que pretendem receber um


empoderamento ou permissão subsequente têm de ter previamente
tomado e mantido puramente algum nivel de
votos pratimoksha (libertação individual), leigos ou monásticos. Se não o
tiverem feito, deverão receber algum nível de votos pratimoksha leigos
durante a cerimônia. As tradições não-Gelug exigem que se tome e se
mantenham puramente pelo menos os votos de refúgio, que também
poderão ser tomados pela primeira vez durante a cerimônia.

Cada empoderamento, permissão subsequente e recolha de mantras


implica tomar os votos de bodhisattva, que são a abstenção de acções
erradas (nyes-pa) , que nos impediria de ser o mais prestáveis aos outros
quanto possível. Por exemplo, suponham que, a fim de atrair estudantes,
nós nos gabamos, enquanto que criticamos outros, por causa do nosso
apego à obtenção de dinheiro, amor, fama ou atenção. Fazemos votos
para nos abstermos de tal comportamento errado, dado que nos impede
de ser capaz de ajudar os outros efetivamente. Isso ocorre porque as
nossas prioridades são egoístas.

Empoderamentos, permissões subsequentes e recolhas de mantras para


as duas classes mais avançadas de tantra implicam também a tomada de
votos tântricos, para nos restringirmos de ações erradas que nos
impedem de ter sucesso na nossa prática tântrica. Por exemplo,
suponham que pensamos mal dos nossos professores e achamos que são
pretensiosos, hipócritas e incompetentes. Essa atitude cria obstáculos no
seguimento das práticas que eles nos ensinam. Isto porque, pensando
deste modo, não temos confiança nas instruções que eles nos dão. Sem
confiança, não podemos praticá-las eficazmente e ganhar realizações.
Essa confiança vem de uma análise aprofundada da qualificação do
professor antes de se receber uma cerimônia iniciatória da pessoa, por
forma a estarmos livres de indecisão e dúvida.

Não recebemos votos pela primeira vez assistindo a um mero


empoderamento ou cerimônia de permissão subsequente. Para receber
votos, precisamos tomá-los conscientemente e prometer mantê-los tão
puramente quanto possível. Prometemos manter os votos pratimoksha
para o resto desta vida. Por outro lado, prometemos manter os votos de
bodhisattva e tântricos durante todas as nossas vidas até atingirmos a
iluminação.

Prática de Laços Íntimos e Promessas de Prática Contínua

Empoderamentos implicam também aceitar-se certos grupos de práticas


de laços íntimos (dam-tshig, Sânsc. samaya, promessas, palavras de
honra). Práticas de laços íntimos são formuladas em termos de ações
construtivas ou eticamente neutras, conducentes para a prática espiritual,
que prometemos adotar.

Seguir-se práticas de laços íntimos liga-nos intimamente a:

 uma certa classe de tantra, tal como anuttarayoga,


 uma subdivisão específica de anuttarayoga, tal como tantra-mãe (ma-
rgyud), ou
 uma das famílias búdicas (sang-rgyas-kyi rigs).

Tantra mãe salienta métodos para a obtenção da cognição não-conceptual


mais sutil do vazio. Uma família búdica é um aspecto da natureza búdica,
representada por uma figura búdica masculina principal – conhecida em
línguas ocidentais como“Dhyani-Buddha”. Famílias búdicas contêm
também outras figuras, incluindo budas femininas e bodhisattvas
masculinos e femininos.

Empoderamentos e permissões subsequentes normalmente também


envolvem promessas de prática contínua (khas-len, compromisso) para o
resto da vida. Estas podem incluir um ou mais dos seguintes
[procedimentos]:

 um compromisso de recitação diária de um certo número de repetições


de mantras;
 um compromisso de recitação diária de uma sadhana;
 um compromisso bimensal de oferecer tsog (especialmente no tantra
mãe);
 um compromisso de retiro.

Retiros Tântricos e Pujas de Fogo

Geralmente, um compromisso de retiro envolve fazer-se um retiro de


servicibilidade (las-rung). Completar um retiro destes, juntamente com o
seu puja de fogo conclusivo (sbyin-sreg), torna as nossas mentes serviçais
com a figura búdica e sua prática. Serviçal significa capaz de receber o
auto-empoderamento (bdag-'jug, auto-iniciação) para purificar e renovar
os nossos votos, para qualificar, para fazer outros rituais da figura búdica
e, se cumprirmos requisitos adicionais, para conferir qualquer uma das
três cerimônias de iniciação a outros.

Durante cada retiro de servicibilidade, repetimos os mantras da figura


búdica principal várias centenas de milhares de vezes, dependendo da
prática e do número de sílabas no mantra. Também repetimos os mantras
das outras figuras associadas da mandala dez mil vezes. Podemos fazer
isto no contexto de quatro, três, duas ou uma sessão por dia. Durante
cada sessão, recitamos a sadhana, omitindo certas pequenas partes em
determinadas sessões.

Se estivermos praticando quatro sessões por dia, restringiremos os


nossos movimentos a um perímetro limitado à volta das nossas casas e
também restringiremos o número de pessoas que poderemos encontrar
durante o retiro. Se estivermos praticando menos de quatro sessões por
dia, não será necessário restringir nossos movimentos nem contacto com
outras pessoas. Apenas precisaremos fazer cada sessão no mesmo lugar e
no mesmo assento.

Um puja de fogo é uma oferenda de um grande número de determinadas


substâncias atiradas para um fogo durante um ritual elaborado.
Visualizamo-nos na forma de uma figura búdica enquanto o fogo é
visualizado na forma de Agni (Me'i lha), a deidade do fogo comum ao
budismo e hinduísmo, com a figura búdica da nossa prática no coração de
Agni. O puja de fogo queima ou purifica quaisquer erros que possamos ter
feito durante o nosso retiro e proporciona elos ainda mais profundos com
a figura búdica.

Transmissões Orais e Discursos Tântricos

Além dos três tipos de cerimônias iniciadoras, precisamos receber a


transmissão oral (lung) e um discurso (khrid, "tee") sobre a sadhana
antes de começar a prática intensiva ou fazer o seu retiro de
servicibilidade.

Durante uma transmissão oral, o nosso mestre tântrico lê em voz alta,


geralmente muitíssimo rápido, a sadhana ou o texto do discurso
explanatório. Ouvir tal recitação por alguém que também já a tenha
recebido transmite-nos a linhagem intacta, que volta à sua origem.
A tradição da transmissão oral deriva da época do Buda, quando, durante
quatro séculos após o seu falecimento, nenhum dos seus ensinamentos
haviam ainda sido escritos. Vários grupos de monges memorizaram
ensinamentos diferentes e passaram-nos às gerações seguintes recitando-
os repetidamente em voz alta e em uníssono até os seus discípulos
também os sabiam de cor sem quaisquer erros. A recitação em grupo
garantia que a memória defeituosa de um monge indivídual não fosse
corromper o texto.

Não era relevante para o sucesso da transmissão se os monges


recitadores ou os discípulos ouvintes compreendiam ou não o significado.
O único ponto relevante era captar todas as palavras corretamente e
evitar omissões, adições ou erros no texto. Ao estudar e praticar qualquer
ensinamento budista, é importante estarmos confiantes que o conteúdo
está livre de corrupção. Só com confiança no texto de um ensinamento é
que podemos investigar corretamente o seu significado. Se não
conseguirmos compreender alguns pontos, sabemos que o problema
reside na nossa falta de conhecimento ou experiência, e não nas palavras.
Assim, ainda hoje, monges, monjas e praticantes leigos tibetanos
memorizam os textos principais, e fazem-no através da repetida recitação
em voz alta, antes de começarem o estudo ou a prática dos seus
conteúdos. No mais, eles ainda recitam esses textos de cor regularmente,
todos juntos, nas suas assembléias.

Hoje em dia, quando todos os ensinamentos estão em forma escrita, a


transmissão oral raramente é feita mediante a recitação por memória ou
pelo grupo. Normalmente, uma pessoa dá-la sozinha, lendo o texto em voz
alta. Ocasionalmente, diferentes edições de um texto são comparadas
durante a transmissão para verificar e eliminar quaisquer leituras
corruptas que podem ter aparecido inadvertidamente.

A tradição de transmissão oral não se limita a materiais tântricos. É o


costume seguido com todos os textos budistas. Além disso, não está
limitada às palavras do Buda. As obras de autores indianos, tibetanos e
mongóis que surgiram mais tarde também têm linhas de transmissão
oral, iniciadas pelos próprios autores.

Retiros de Três Anos

Nas tradições não-Gelug, os praticantes normalmente fazem retiros de


três anos durante os quais eles

 repetem as práticas preliminares especiais;


 treinam mais intensamente em algumas das práticas comuns sutra
boddhisattva, tais como atitudes que purificam (blo-sbyong, "lojong,"
treino da mente);
 aprendem a realizar rituais, incluindo como tocar os instrumentos
musicais usados nos rituais;
 completam os retiros de servicibilidade das figuras búdicas principais
das suas linhagens.

Praticantes da tradição Gelug completam as mesmas práticas, uma a uma,


de quando em quando, no decurso da sua formação. Eles não as fazem
consecutivamente como seria o caso num retiro de três anos.

Após suficiente treino tântrico, praticantes de todas as tradições podem


fazer retiros de "grande aproximação" (bsnyen-chen), de três anos, de
uma determinada figura búdica, durante o qual eles repetem dezenas de
milhões de mantras e executam um grande número de pujas de fogo
extremamente complicados. O objetivo é aproximarmo-nos e realizarmo-
nos a nós mesmos como a figura búdica específica(bsnyen – sgrub) e obter
verdadeiras aquisições / realizações (dngos-grub, Sânsc.siddhi).

Yidams, Dakinis e Protetores do Dharma

Yidams são figuras búdicas do sexo masculino ou feminino com as quais


formamos elos com o nosso corpo, fala e mente, como um método para
atingir a iluminação. Tornamos estes laços íntimos (dam-tshig,
Sânsc. samaya) visualizando-nos a nós próprios como estas figuras,
fazendo oferendas, recitando mantras e oferecendo pujas de fogo.

Dakinis (mkha'-'gro-ma) e dakas (mkha'-'gro) são figuras búdicas do sexo


feminino e masculino, respectivamente, que representam e ajudam a
aumentar a nossa experiência da consciência gozoza do vazio. Durante
uma sadhana, imaginamos que os emanamos como os chamados deuses e
deusas das oferendas, fazendo as várias oferendas aos Budas, a todos os
seres limitados e, na tradição Gelug, a nós próprios em forma de figuras
búdicas. Na prática de anuttarayoga, também os imaginamos em pontos
vitais dos nossos sistemas de energia sutil.

Outro nome para dakas é viras (dpa'-bo, heróis espirituais), e outros


nomes para dakinis são virinis (dpa'-mo, heroínas espirituais)
e yoginis (rnal-'byor-ma). Freqüentemente, as
expressões dakinis e yoginis são usadas genericamente para se referirem
a praticantes do sexo feminino e a todos as figuras do sexo feminino
numa mandala. Ocasionalmente, dakinis também podem servir como
yidams em cujas formas nos visualizamos, tal como Vajrayogini (rDo-rje
rnal-'byor-ma).

Protetores do Dharma (chos-skyong, Sânsc. dharmapala) são figuras do


sexo masculino ou feminino que ajudam a evitar interferências à nossa
prática. No nível mais profundo, representam a nossa bem-aventurada
consciência do vazio em formas enérgicas fortes – a melhor proteção
contra interferências. Conosco como figuras búdicas, visualizamos certos
protetores em cada direção à volta ou dentro das nossas mandalas.

Em determinadas práticas yidam, também convidamos outros tipos de


protetores do Dharma – tais como Mahakala (dGon-po) ou Palden Lhamo
(dPal-ldan lha-mo, Sânsc.Shridevi) – para as nossas mandalas para lhes
fazer oferendas e dar-lhes instruções para que nos ajudem nas nossas
atividades iluminadoras. Muitos protetores deste último tipo eram
originalmente espíritos poderosos, fantasmas amarrados (yi-
dags,espíritos famintos) ou seres divinos (lha, deuses) de tradições não-
budistas. Alguns eram malévolos e outros eram simplesmente guardiões
dos topos das montanhas ou das regiões locais. Grandes mestres do
passado amansaram-nos e fizeram-lhes jurar proteger o Dharma Budista
e os seus praticantes.

Como figuras búdicas, nós somos como mestres, e os protetores do


Dharma que usamos são como os nossos ferozes cães da guarda. A menos
que tenhamos força para os controlar e alimentar regularmente, eles
podem se virar contra nós. Assim, as práticas com os protetores do
Dharma em que convidamos determinados protetores para dentro das
nossas mandalas são extremamente avançadas, e não são para
principiantes. O engajamento nas suas práticas exige normalmente que se
tenha recebido determinadas permissões subsequentes (jenangs) para
elas.

As práticas com os protetores do Dharma incluem complexos rituais de


“ cumprir e restaurar” (bskang-gso), em que nós, enquanto figuras
búdicas, recordamos aos protetores que cumpram suas promessas;
também restauramos os nossos laços íntimos com eles fazendo ofertas
especiais. Outro ritual comum é a libação áurea (gser-skyems), em que
oferecemos álcool ou chá preto aos protetores, mas sem o provar.
Também podemos simplesmente convidar os protetores para as nossas
mandalas para fazer oferendas, especialmente de tormas, e para fazer
pedidos (gsol-'debs). No ocidente, todas estas práticas são chamadas
informalmente de “ pujas de protetor”.
Para criar um laço ainda mais íntimo com um protetor do Dharma,
também podemos fazer um retiro de protetor em que recitamos os
mantras associados a ele centenas de milhares de vezes e oferecemos um
puja de fogo conclusivo.

Como figuras búdicas, podemos invocar certos protetores do Dharma, tal


como Palden Lhamo, para auxiliar na execução de adivinhações
(mo, thugs-dam) com dados ou missangas de rosário. É necessária a
conclusão de um retiro de protetor para tal prática.

Certos protetores do Dharma em algumas tradições do budismo tibetano


também podem servir como yidams, tais como Mahakala na tradição
Kagyu. Geralmente, porém, não nos visualizamos como protetores do
Dharma.

A Rapidez do Tantra

As três primeiras classes do tantra são muito mais rápidas do que os


métodos do sutra, porque através das suas práticas é possível aumentar a
duração das nossas vidas e, dentro de uma vida prolongada, alcançar a
iluminação. No entanto, seguindo os métodos do anuttarayoga, é possível
atingir a iluminação dentro da duração normal da nossa vida. Na verdade,
até poderiamos atingir a iluminação dentro do período de três anos e três
fases da lua (lo-gsum phyogs-gsum) – uma fase da lua sendo da lua nova à
lua cheia ou da lua cheia à lua nova.

O período de três anos e três fases da lua não deve ser tomado muito
literalmente nem usado como publicidade falsa ou propaganda de
marketing para seduzir pessoas para a prática de anuttarayoga. Ele
deriva da apresentação Kalachakra da contagem de um tipo especial de
respirações de vento-energia sutis (rlung, Sânsc.prana) durante uma vida
de cem anos e simplesmente representa um tempo muito curto. Por
razões propícias, os retiros de grande aproximação decorrem por essa
duração, tal como os retiros de formação básica em tantra de
anuttarayoga nas tradições não-Gelug.
A Prática de Visualização no Tantra
Dr. Alexander Berzin

Visualização Significa Trabalhar com a Imaginação

O tópico desta noite é a visualização e seu lugar na prática do budismo


tibetano. Uma das coisas que caracteriza a forma tibetana do budismo é o
uso extensivo da visualização, muito mais do que em qualquer outra
forma de budismo. Claro que todos esses métodos se desenvolveram na
Índia, mas lá o budismo morreu.

Para que possamos compreender os diversos níveis e utilizações da


visualização, precisamos primeiro jogar fora a palavra visualização. A
palavra está errada porque visualização implica em algo visual. Em outras
palavras, implica em trabalhar com imagens visuais e também implica em
trabalhar com os olhos. Isso não está correto. Ao invés disso, estamos
trabalhando com a imaginação. Quando trabalhamos com a imaginação
estamos não só trabalhando com visões imaginárias, mas também com
sons, aromas, sensações físicas, sentimentos – emoções – imaginários – e
assim por diante. E é obvio que fazemos isso com nossa mente e não com
nossos olhos. Se pensarmos na divisão psicológica ocidental do cérebro,
em um hemisfério direito e um esquerdo, o budismo tibetano desenvolve
os dois. Tanto o lado intelectual e racional quanto o da imaginação
criativa. Portanto, quando falamos de visualização no budismo, não
estamos falando de um processo mágico. Estamos falando de algo bem
prático, no sentido de como desenvolver e usar todo nosso potencial,
porque temos potencial tanto no hemisfério direito quanto no hemisfério
esquerdo do cérebro. Quando trabalhamos com a imaginação, estamos
lidando com criatividade, aspectos artísticos e assim por diante.

Trabalhamos com a imaginação em vários níveis diferentes. Podemos


dividir esses níveis em métodos sutra e métodos tantra. Desses dois, os
do tantra são os mais avançados.

Métodos de Visualização no Sutra

No sutra, usamos nossa imaginação primeiramente para superar aspectos


negativos de nós mesmos, em outras palavras, emoções e atitudes
perturbadoras. Se estivermos muito sob o controle de desejos obsessivos,
digamos, o desejo por alguém jovem e atraente como objeto sexual,
imaginemos essa pessoa com 80 anos. Lembre-se, desejo obsessivo
baseia-se no exagero de algumas qualidades, e então, quando temos esse
desejo sexual, estamos imaginando que essa pessoa será jovem e bonita
para sempre, o que obviamente não é verdade. Imaginá-la velha, gorda,
decrépita nos ajuda a ter uma atitude mais realística em relação a essa
pessoa e nos relacionarmos com ela como uma pessoa e não como um
corpo jovem. Essa é uma utilidade da imaginação e, você pode ver, é
criativa, é artística e muito útil.

Da mesma forma, podemos usar nossa imaginação para nos ajudar a


desenvolver qualidades positivas como a compaixão. Podemos, por
exemplo, imaginar uma ovelha prestes a ser abatida e nos imaginar como
essa ovelha e como gostaríamos desesperadamente de nos livrar desse
destino. Isso nos ajuda a desenvolver um forte desejo de que ela também
se salve da morte. Depois. podemos tentar imaginar nossa mãe, nosso pai
ou nossos amigos como sendo esta ovelha. E eventualmente pensamos na
ovelha que está para ser abatida. Dessa forma, abrimos nosso coração
para desenvolver mais compaixão pelos outros, desejando que eles se
livrem do sofrimento.

No caminho sutra, imaginamos uma variedade tremenda de coisas para


nos ajudar a superar qualidades negativas, desenvolver qualidades
positivas e nos tornar mais realistas. Como, por exemplo, imaginarmos
que estamos prestes a morrer. Será que estaríamos emocionalmente
preparados?

Como Visualizar

Muitas pessoas dizem, “Bom, eu não consigo visualizar. Então como posso
utilizar esses métodos?” Na realidade, se investigarmos por um minuto,
perceberemos que todos temos poderes imaginativos. Por exemplo, tente
se lembrar como sua mãe ou seu melhor amigo, não importa qual, se
parece. Por favor, faça isso por um momento. Todos somos capazes de
lembrar como nossos entes mais queridos se parecem. Portanto, somos
capazes de visualizar.

Lembro-me que certa vez estava na Índia com uma amiga que realmente
tinha problemas em visualizar. Estávamos em uma longa viagem de
ônibus, juntos em um dia muito quente, e ela sofria com calor e sede.
Então comecei a, de certo modo, torturá-la dizendo, “Nossa, não seria
ótimo se tivéssemos nove laranjas geladas? Imagina como seria
refrescante o sabor. E o cheiro?” E de repente ela descobriu que
conseguia visualizar e imaginar muito bem uma laranja. Portanto, todos
somos capazes; é apenas uma questão de treinamento.
Outra utilização da imaginação no sutra é quando imaginamos um Buda
na nossa frente como objeto de concentração para ganharmos
concentração perfeita. O caminho sutra é dividido em Hinayana e
Mahayana, o “modesto veículo da mente” e o “vasto veículo da mente”.
Nas escolas Hinayana, a maneira usual de desenvolver concentração é
focar na respiração, o que utiliza a consciência sensorial. Focamos na
sensação física do ar entrando e saindo do nariz. O Mahayana, entretanto,
mostra que precisamos considerar o propósito para o qual estamos
usando a concentração. Usamos a concentração para sermos capazes de
focar concentradamente na realidade e permanecermos focados em
sentimentos de amor e compaixão. Portanto, o que queremos ser capazes
de fazer é concentrar com nossa consciência mental e não com a
consciência sensorial. Assim, no Mahayana, o método preferido para
desenvolver concentração é num Buda imaginário.

Quando imaginamos um Buda, imaginamos uma figura do Buda muito


pequena em nossa frente, na altura dos olhos, a uma distância de
aproximadamente um braço e imaginamos que essa figura não é concreta,
mas feita de luz e viva. Imaginamos que há um pouco de corporalidade –
algum peso para a luz. Isso é apenas um pequeno truque para manter a
imagem estável. Se pensarmos muito na imagem sendo apenas luz, ela
tende a flutuar muito facilmente. O importante em trabalhar com esse
tipo de prática de visualização é que não focamos olhando para a frente,
como se tivéssemos olhando o Buda em nossa frente. Ao invés disso
olhamos para o chão e imaginamos algo na altura da sobrancelha. Tente
por um momento. Agora, enquanto olha para o chão, você pode se
concentrar onde está sua mão e imaginar que sua mão está lá, mesmo que
você não a esteja vendo. Você consegue? Então é possível. Isso é o que
fazemos quando visualizamos uma figura na nossa frente.

Mas não estamos apenas imaginando uma maçã na nossa frente, estamos
imaginando um Buda. Isso é muito significativo, porque no budismo,
como você sabe, temos a tendência de fazer muitas coisas ao mesmo
tempo. Focando no Buda para ganharmos concentração também focamos
nas qualidades do Buda. Isso nos ajuda a manter nossa concentração
perfeita nessas qualidades. Além do mais, ao nos concentrarmos no Buda,
nossa concentração é acompanhada de uma forte tomada de refúgio. Em
outras palavras, “Essa é a direção segura que quero tomar na minha vida”.
Podemos acompanhar nossa concentração com um intuito de
desenvolver bodhichitta também, em outras palavras, “Quero me tornar
um Buda, como essa figura que estou imaginando, para beneficiar a
todos.” Se conseguirmos desenvolver concentração perfeita na figura do
Buda, tendo em mente as qualidades do Buda, e quisermos seguir a
direção segura que o Buda indica e nos tornarmos um Buda para ajudar a
todos – se isso é o pacote em que estamos nos concentrando – então trará
muito mais benefícios do que simplesmente nos concentrarmos nas
sensações do ar entrando e saindo do nariz. Esse é um método vasto. Por
isso é chamado “Mahayana”, um veículo vasto de treinamento por
técnicas vastas.

Métodos de Visualização no Tantra

O tantra é a principal área onde encontramos o uso da imaginação e,


portanto, o resto desta palestra será sobre tantra. Eu acho que mesmo
que não estejamos ainda envolvidos em práticas tântricas, ou nem
tenhamos a intenção de nos envolvermos em práticas tântricas nesse
ponto de nosso treinamento no Dharma, ajuda termos alguma idéia sobre
o que acontece na prática do tantra. Isso nos ajudará a afastar quaisquer
concepções errôneas que possamos ter a respeito do tantra, como a de
que é tudo mágica, sexo exótico e esse tipo de coisas. Termos uma idéia
clara do que é o tantra, nos ajuda a decidir de forma mais racional se
queremos ou não nos envolver com esse nível de prática.

O uso da imaginação no tantra é um tópico bastante sofisticado, portanto


gostaria de apresentá-lo de um modo relativamente sofisticado.
Comecemos no nível geral. No tantra utilizamos nossa imaginação para
imaginar várias figuras budicas, yidam (yi-dam) em tibetano. Essas
figuras budicas são algumas vezes denominadas “deidades”, apesar do
termo tibetano que está sendo traduzido aqui, lhag-pay lha (lhag-pa’i lha),
na verdade querer dizer “deidades elevadas . Elas são elevadas no sentido
de que não são deuses samsáricos de um reino samsárico de deuses, mas
estão além do renascimento incontrolavelmente recorrente de seres
limitados. Portanto, elas não são deuses criadores e não são como os
deuses gregos da antiguidade e nem nada do gênero. São sim
representações da completa iluminação de um Buda e cada uma delas
também representa proeminentemente um aspecto particular do estado
de um Buda, como Chenrezig ou Avalokiteshvara encarnando a
compaixão, e Manjushri encarnando a consciência discriminativa ou
sabedoria.

Quando trabalhamos com essas figuras búdicas, as imaginamos em nossa


frente ou no topo da cabeça ou, mais frequentemente, nos imaginamos na
forma de uma delas.

“Clareza” e “Orgulho”

Quando imaginamos essas figuras, precisamos trabalhar dois aspectos


simultaneamente, que são em geral traduzidos como “clareza” e
“orgulho”, o que pode ser enganoso. Um dos maiores problemas que nós
ocidentais encontramos quando lidando com o budismo é que a maioria
dos termos traduzidos podem levar ao engano.

Primeiro, “clareza” não significa o que geralmente entendemos por


clareza. A palavra traduzida como clareza aqui não significa “em foco”,
mas sim “fazer alguma coisa aparecer ou a aparição de algo”. Isso quer
dizer que nossas mentes fazem com que uma imagem realmente apareça.
Essa é uma parte da história, fazer uma imagem aparecer. Quando
trabalhamos com essas figuras, o que tentamos fazer é focar no que
nossas mentes fazem aparecer e, à medida que nossa concentração se
desenvolve, o foco, os detalhes irão então automaticamente melhorar.
Não há necessidade de esforço para que todos os detalhes apareçam e
que tudo fique em foco. Para começar, o que precisamos é uma imagem
grosseira de alguma coisa aparecendo, mesmo que seja apenas uma bola
de luz.

O segundo aspecto, “orgulho”, não significa arrogância. Significa, sim,


sentirmos que realmente somos essa figura búdica ou sentirmos que algo
realmente está presente, na nossa cabeça ou na nossa frente, por
exemplo. Esse é um uso especial da palavra orgulho, como no caso
encontrado no capítulo sobre perseverança alegre no livro Engajando no
Comportamento do Bodhisattva de Shantideva. Lá, esse mestre budista
indiano escreveu:

(VII.55) Devo triunfar sobre tudo e nada deve triunfar sobre


mim! Eu, um filho do Leão Triunfante, devo manter essa
autoconfiança. Seres errantes que se deixam conquistar pelo
medo são perturbados: eles não possuem autoconfiança; pois
aqueles que a possuem não se submetem ao poder do inimigo,
e sim tem poder sobre o inimigo.

(VII.59) Mas aqueles que se valem de sua autoconfiança para


vencer o inimigo, o orgulho, esses são os que tem a verdadeira
auto-confiança, esses são os heróis triunfantes. E aqueles que
exterminam o inimigo colossal, o orgulho, concedem aos seres
errantes o fruto da vitória, o que eles quiserem.
Portanto, se estamos visualizando algo em nossa frente, tal como um
Buda, não só fazemos alguma coisa aparecer, como realmente sentimos
que esse Buda está efetivamente ali, com as qualidades de um ser
iluminado.

Esses dois aspectos, conforme os descrevemos – que algo está


aparecendo e sentimos que está realmente ali – são comuns com o sutra,
como quando imaginamos um Buda em nossa frente para nos
concentrarmos. Porém, conforme já comentamos, a função principal de
imaginarmos essas figuras búdicas no tantra é imaginarmos que nós
somos essas figuras.

Podemos entender o que significa “manter o orgulho da deidade”


analisando a palavra tibetana que é traduzida como
“orgulho”. ngagyel (nga-rgyal). Essa palavra é formada por duas silabas, a
primeira, nga, significa “eu”, e a segunda, gyal, literalmente significa
“triunfar”. Quando falamos de orgulho como uma emoção aflitiva, o que
realmente significa é considerarmo-nos triunfantes ou melhores que os
outros – em outras palavras “auto-importancia”. Nesse contexto,
entretanto, o termo significa “triunfar sobre o eu” – ou seja, triunfar sobre
o conceito comum de nós mesmos, no sentido de superarmos e nos
livrarmos desse conceito. Isso significa não sentirmos mais que temos
todas essas limitações, as falhas do nosso “eu” ordinário, como confusão,
não conseguirmos compreender as coisas e assim por diante. Ao invés
disso imaginamos que realmente temos as qualidades da figura búdica –
que somos Manjushri por exemplo, que temos clareza mental e
consciência discriminativa; somos capazes de entender tudo.

Podemos ver através desse exemplo o quanto a palavra “visualização” é


enganosa, porque nos leva a pensar que a única coisa envolvida é
realmente ver a imagem. Estamos treinando nossa imaginação, então não
estamos só imaginando a figura no sentido dela aparecer, mas estamos
imaginando como seria se realmente fossemos aquela figura com todas as
suas qualidades. Por exemplo, sentimo-nos como Chenrezig, sentimos que
temos amor e compaixão. Portanto, o uso da imaginação aqui é bastante
amplo.

Entre imaginar que algo está realmente aparecendo, e imaginar que


temos as qualidades daquilo que está aparecendo, o mais importante é
sentirmos que temos as qualidades. Só precisamos de uma vaga imagem
para nos ajudar a manter o foco, mas colocamos nossa energia em
tentarmos sentir como se tivéssemos, por exemplo, consciência
discriminativa e clareza mental. Então, conforme nossa concentração vai
aumentando, os detalhes da imagem vão automaticamente ficando mais
claros.

Treinando a Imaginação para a Visualização

Para visualizarmos uma figura búdica, é claro que precisamos saber que
aspecto ela tem. Mas nos visualizarmos em um formato especial não é tão
difícil como poderíamos pensar. Por exemplo, tente sentir sua cabeça.
Primeiro, vamos tentar imaginar algo no topo de nossas cabeças. A
maneira de fazer isso é colocando a mão em cima da cabeça. Você
consegue sentir sua mão em cima da sua cabeça? Agora tire a mão.
Continua sentindo o topo da sua cabeça? É assim que se imagina algo
sobre a cabeça. Foque ali. Tudo o que precisa é sentir alguma coisa ali.
Não precisa estar em foco para fazer a meditação. Realmente não é tão
difícil.

Agora, para se imaginar como uma figura, tente estar consciente de sua
cabeça e também de seus braços e pernas e de seu corpo todo. Consegue
estar consciente de todo seu corpo? É assim que você imagina que é uma
figura búdica. Podemos não ser capazes de ver nosso rosto, podemos não
ser capazes de visualizá-lo, mas você consegue sentir que tem olhos, nariz
e uma boca? Portanto, é assim que os visualiza, que os imagina.

Mesmo quando essas figuras tenham muitos braços, também não é tão
difícil. Vamos tentar Chenrezig com quatro braços. Ponha suas mãos na
sua frente. Consegue sentir? Agora ponha suas mãos para os lados. Agora
imagine uma foto com dupla exposição. Ponha suas mãos no colo. Pode
sentir esses quatro braços? Não é tão difícil. É assim que trabalhamos
com nossa imaginação com essas figuras.

Mesmo quando fica mais complicado, não é terrivelmente difícil. Vamos


imaginar três faces. Ponha suas mãos nas laterais de seu rosto. Primeiro
tente sentir a parte da frente do rosto. Agora tire suas mãos. Consegue
sentir um rosto em cada uma de suas bochechas também?

Algumas vezes imaginamos que estamos dentro de uma mandala, que é


estar no palácio em que uma dessas figuras búdicas vive. Isso também
não é muito difícil. A chave para isso é não trabalharmos com os olhos.
Agora estamos sentados nesse quarto, não estamos? Você consegue sentir
que tem quatro paredes em volta? É assim que se visualiza a mandala.
Você não precisa efetivamente ter uma imagem visual de uma parede
atrás de você para sentir que ela está lá. E você consegue ter consciência
de que tem um jardim e uma rua lá fora? É assim que se visualizam coisas
fora da mandala: é só um sentimento de essas coisas estarem lá. Portanto,
esse é efetivamente o processo de treinar a imaginação.

A Imagem Surge na Vacuidade

Para que tudo isso seja muito mais significativo, é crucial gerarmos todos
esses sentimentos, imagens e assim por diante, dentro do contexto de
nossa compreensão da vacuidade.

Vacuidade não significa não existência, vacuidade é ausência total. A


ausência de maneiras impossíveis de existir que nossa mente cria e
projeta em objetos e eventos, assim como em nós mesmos e nos outros. O
termo sânscrito e o tibetano para essa ausência total é geralmente
traduzido como “vazio”, mas esse termo é um pouco enganador. “Vazio”
implica em algo estar vazio, como uma garrafa vazia. Apesar de haver algo
desprovido de formas impossíveis de existir, o termo aqui denota apenas
a ausência total dessas formas impossíveis. O termo sânscrito shunya e
sua tradução tibetana, tongpa (stong-pa), são afinal palavras que também
significam “zero”. Essa distinção entre vacuidade e vazio tem uma
ramificação importante em termos de como meditamos nesse
ensinamento budista crucial.

Vejamos um exemplo simplificado do que significa vacuidade.


Suponhamos que eu tenha feito algo destrutivo e, cheio de culpa, acredito
que sou um monstro. Ninguém, entretanto, existe como um monstro. Isso
é totalmente impossível; monstros não existem. Quando focamos em
vacuidade, focamos simplesmente na “não existência”. O que nossas
mentes estão projetando não corresponde a nada que seja real; há a
ausência total de uma referência verdadeira para nossas projeções.

É preciso que dissipemos todas as fantasias loucas que temos sobre nós
mesmos, como as de que somos monstros. Isso se aplica especialmente no
tantra, onde trabalhamos com nossa autoimagem, que é com o que
estamos lidando quando nos imaginamos como uma figura búdica.
Contemplamos como nossa autoimagem usual é insana, sem nenhuma
referência. Compreendemos, “Não sou um monstro, porque monstros não
existem”. E então recitamos em uma prática tântrica de visualização
(a sadhana), “Na vacuidade eu surjo assim e assim.”

Frequentemente essa frase que recitamos é traduzida como “Da


vacuidade eu surjo assim e assim”, mas a frase não significa que deixamos
nossa compreensão da vacuidade. E sim que, dentro dessa esfera em que
toda esta loucura se foi, e mantendo a compreensão de que nunca
correspondeu a nada real, nos imaginamos como uma dessas figuras. Isso
significa que, nesse estado em que todos os modos impossíveis de
existência estão ausentes, eu agora surjo como o que é possível em
relação ao meu objetivo, bodhichitta.

Com bodhichitta baseada em amor e compaixão por todos os seres


limitados, focamos em nossa iluminação individual que ainda não
aconteceu, mas que pode acontecer com base nas qualidades de nossa
natureza búdica. A figura búdica que visualizamos como sendo nós
mesmos representa o estado iluminado que ainda não foi atingido. Em
outras palavras, sermos iluminados e termos todas as qualidade de um
ser iluminado é possível, não impossível. Por que é possível? Porque
todos temos uma natureza búdica, o que significa que todos temos o
potencial e a capacidade de sermos iluminados. E então rotulamos o “eu”
com base nesses fatores da natureza búdica de nosso continuum mental e
de nossa iluminação que ainda não aconteceu, mas que pode ser inferida
com base nesses fatores.

Isso é muito importante porque, quando afastamos todas as fantasias que


temos sobre nós mesmos, também afastamos as emoções aflitivas que as
acompanham. Quando pensamos “eu sou um monstro”, existe aí uma
grande dose de raiva de si mesmo e baixa autoestima. Portanto
dissipamos isso. O mesmo método funciona com outras emoções aflitivas,
como quando pensamos “Sou um presente de Deus para o mundo; sou tão
maravilhoso”. Isso é muito arrogante. Temos que dissipar isso também. E
então do vazio surgimos como essa figura búdica, baseados no fato de que
realmente temos o potencial para nos transformar nela como parte de
nossa natureza búdica.

Isso não é autoengano porque sabemos que não chegamos lá, ainda não
somos um Buda. Mas também não é uma loucura ou distorção, porque
temos o potencial para chegarmos lá. Claro, podemos argumentar que
também temos o potencial para renascer como um cachorro. Mas não é a
mesma coisa, uma vez que não há nenhum benefício em nos imaginarmos
como cachorro. Mas há sim um grande benefício em imaginarmos que
temos compaixão e sabedoria perfeitas. Imaginar e praticar agora como
se tivéssemos sabedoria perfeita e assim por diante nos ajuda a
desenvolver mais rapidamente essas qualidades.

Obviamente, é absolutamente essencial que não nos enganemos


acreditando que já chegamos lá; caso contrário, nunca progrediremos.
Assim como, quando treinamos concentração no sutra, imaginamos um
Buda em nossa frente, aqui imaginamos todas as qualidades de um Buda
e isso nos ajuda a mantê-las como nossas guias. Da mesma forma como
fazemos com objetivo bodhichitta, o desejo de atingirmos a iluminação
para o benefício de todos os seres sencientes, nos imaginarmos dotados
dessas qualidades búdicas fortalece nosso ainda-não-atingido o estado de
Buda.

Criação Pura e Impura de Aparências

Para compreendermos o significado muito mais profundo de


trabalharmos com nossa imaginação, precisamos entender como nossas
mentes fazem as coisas aparecerem. A maneira como nossas mentes
fazem as coisas aparecerem é misturando duas coisas, que geralmente
são chamadas de aparências puras e aparências impuras. Para realmente
apreciarmos o significado disso precisamos tomar a palavra tibetana que
é traduzida como “aparência”, nangwa (snang-ba) tanto como um
substantivo quanto como um verbo, mas mais como um verbo. Apesar de
podermos falar sobre aparências puras e impuras, se deixarmos nisso,
parece que elas existem por si próprias. Mas na verdade estamos nos
referindo à mente criando aparências. Portanto temos a criação pura e a
criação impura de aparências.

Querendo ou não, as aparências impuras existem apesar de algumas


vezes querermos ignorá-las ou não acreditarmos nelas, mas elas estão ali.
Portanto temos que lidar com elas. O que queremos é que nossas mentes
parem de fazer as coisas aparecerem de uma maneira impura. Podemos
fazer isso porque podemos trabalhar com nossas mentes. Mesmo se for a
única coisa desta discussão da qual conseguir se recordar, terá aprendido
algo muito, muito importante.

Criação de aparências – é sobre isso que estamos falando no budismo.


Toda essa discussão sobre tantra e vacuidade é sobre como conseguir que
nossas mentes parem de fazer com que as coisas apareçam de uma
maneira louca e impossível – em outras palavras, parar de projetar
fantasias.

Aparências puras e impuras tem dois significados. Geralmente não os


distinguimos com clareza e, portanto, acabamos nos confundindo. Vamos
tratar cada um de uma vez. Colocando de uma forma simplificada, uma
aparência impura é a aquela na qual as coisas parecem existir de uma
maneira concreta – em outras palavras, uma projeção disparatada de algo
que é impossível. Já a criação de aparências puras é fazer com que as
coisas surjam de maneira não concreta, que é a maneira como elas
realmente existem. Portanto, “impuro” é fazer com que as coisas surjam
de uma forma que não existem, de uma forma disparatada, e “puro” é
fazer com que as coisas surjam da maneira como elas realmente existem.
Podemos entender isso melhor com um exemplo superficial: quando
vemos uma pessoa de quem não gostamos, nossa mente faz com que dois
aspectos apareçam – como ela se parece fisicamente e como ela existe.
Vamos deixar de lado, por enquanto, a aparência física. No que diz
respeito a como ela existe, nossa mente mistura duas aparências. Além da
aparência realmente existente de um ser humano, nossa mente também
projeta sobre a pessoa sua existência como um monstro. O que vemos
então, em termos de como ela existe, é uma mistura desses dois modos de
existência. Mas o que predomina é que para mim ela parece um monstro,
uma pessoa horrível. Da mesma forma, quando vemos uma pessoa bonita,
nossa mente não só cria uma aparência de como ela realmente existe, mas
também projeta nela uma existência como “a pessoa mais bonita e sexy
que eu já vi”. Baseados nisso, desenvolvemos desejo sexual. Entretanto, se
analisarmos bem, veremos que não é assim que ela realmente existe. Isso
porque, se ela realmente existisse desse modo, todos iriam vê-la como
sendo sexy, até mesmo um bebê ou um cachorro. Mas obviamente eles
não a vêem como uma pessoa sexy. Portanto, isso é uma projeção de
nossa mente misturada com a aparência real de como a pessoa existe. É
um dos níveis no qual nossa mente mistura aparências puras com
impuras. A aparência pura é o modo como algo realmente existe e a
impura é um modo impossível de existência.

O outro significado é que aparência impura se refere a nossa aparência


comum, como somos, e aparência pura é nossa aparência como uma
figura búdica. A aparência impura que nossa mente origina pode ser
precisa ou distorcida, dependendo, por exemplo, de estarmos usando ou
não nossos óculos, no caso de precisarmos de óculos para enxergar
direito. Aqui, não estamos falando de aparências impuras distorcidas.
Entretanto, quando falamos de aparências impuras precisas e aparências
puras, no que diz respeito a como nos parecemos, é como se elas
estivessem em diferentes níveis quânticos. Por exemplo, temos um corpo
grosseiro visível, esse é um nível quântico. Mas também temos um corpo
invisível composto de canais de energia, que na medicina chinesa são
chamados “meridianos.” Esse é outro nível quântico de nossos corpos.
Sabemos que esses canais de energia existem porque eles funcionam:
podem-se enfiar agulhas de acupuntura em certos pontos desse corpo
sutil e elas afetarão inclusive nosso corpo grosseiro. Uma aparência pura
na forma de uma figura búdica é ainda outro nível quântico de nossos
corpos. Portanto, o segundo sentido para aparências puras e impuras diz
respeito a esses dois níveis de aparências, os dois níveis quânticos: o nível
comum e o nível de nossa aparência búdica.

Se juntarmos esse dois níveis quânticos de nossa aparência com o


primeiro significado de aparências puras e impuras no que diz respeito a
como existimos, teremos uma aparência pura de como ambos os níveis
quânticos realmente existem e uma aparência impura de alguns modos
impossíveis de existência que nossas mentes projetam em ambos.
Podemos perceber como é possível nos confundirmos com essa questão
de aparências puras e impuras se não as distinguirmos claramente.

É importante compreendermos que perceber uma mistura de aparências


puras e impuras, em relação a como as coisas existem, envolve tanto os
olhos como a mente. Tanto a consciência visual quanto a mental
confundem a aparência de uma identidade não concreta com a de uma
identidade concreta. Podemos entender isso através de um exemplo
muito simples. Quando vemos algo, o que realmente estamos vendo?
Estamos vendo várias coisas misturadas. A primeira coisa é inúmeros
pontos de luz de cada uma das células de nossa retina e os percebemos
surgindo de maneira não concreta. Além disso, nossa mente junta esses
pontos e também percebe não só a aparência de um objeto convencional,
mas a aparência de um objeto convencional que existe de maneira real e
concreta. Não estamos só falando de ver alguém como um monstro;
estamos falando como nossa visão convencional funciona.

Um dos pontos importantes que Tsongkhapa, o fundador da tradição


Gelug, frisou é que o objeto a ser refutado pela vacuidade, aquilo no que
precisamos trabalhar, é a maneira como nossa mente opera a cada
instante de nossas vidas. Não é algo que só acontece quando perdemos a
sanidade; Tsongkhapa não está apenas falando de paranóia. Ele está
falando de como nossa mente opera normalmente. A mente junta os
pontos e projeta neles não apenas uma figura convencional, mas uma
figura convencional que parece existir de maneira concreta, como isso ou
aquilo. Todos os sentidos funcionam dessa maneira. Quando ouvimos o
som de uma voz, todas aquelas estruturas capilares dentro do ouvido
vibram e emitem pulsos elétricos para o cérebro; este, por sua vez, os
agrupa em palavras e então os compreendemos.

Agora, o problema aqui é que acreditamos que coisas existem de maneira


concreta, da maneira como nossa mente as agrupa e as faz surgir.
Tomemos esse assunto no nível das emoções. Voltando ao nosso exemplo,
existem todos esses pontos de luz e os vemos combinados em um objeto
convencional, que aqui será uma aranha. Isso é exato. Mas então
projetamos na aparência da aranha convencionalmente existente uma
maneira impossível de existir, como “a aranha” concreta. Gritamos “Ai!
Tem uma aranha” e projetamos nessa aparência, que é correta, algo que é
impossível: “É um monstro e vem me pegar”. Todos tipos de paranóia e
medos surgem disto.
A base para esse cenário é juntarmos os pontos: primeiro formando uma
aranha e depois projetando nela uma identidade concreta, não só como
aranha, mas também como um monstro que vem me pegar. Em outras
palavras, não estamos negando a aparência correta dos pontos em outro
nível como sendo a aparência da aranha. Mas a aranha é meramente um
ser limitado que tem uma vida própria. Está na parede tentando
encontrar comida e então irá para casa alimentar seus bebês e assim por
diante. Mas juntamos os pontos e ao invés disso vemos “uma aranha”. Não
a vemos mais como um mero ser limitado com uma vida própria e normal
de aranha. Ao invés disso, uma vez que a transformamos no monólito
concreto “aranha”, nos agarramos a esse quadro de que ela é concreta e
inerentemente um monstro. É daí que vêm nossa paranóia e medo.

O mesmo acontece com os sentimentos que temos a nosso respeito.


Misturamos sentimentos puros e impuros sobre como existimos. O puro é
que estamos abertos a muitas possibilidades; temos muitas facetas de
personalidades e talentos. Em cima desse sentimento básico e geral do
que realmente somos, misturamos o sentimento de termos uma
identidade concreta e monolítica: “Sou um presente de Deus para o
mundo” ou “Sou um fracassado”. E então nos identificamos com esse
sentimento monolítico e nos tornamos completamente neuróticos. Todas
as nossas emoções destrutivas vêm daí.

Gerando-nos Como Figuras Búdicas

O que precisamos fazer primeiro é parar de acreditar que existimos nas


formas impossíveis de existência projetadas pela mente. Para isso,
precisamos focar na vacuidade, o que significa que precisamos focar no
fato de que essas nossas projeções fantasiosas não correspondem a nada
real. É muito útil usarmos uma palavra rude, que nos choca, para vermos
que isso é ridículo, ou seja, pensar: “Isso é ridículo! Eu não sou assim.
Ninguém é assim.” É ridículo pensar que sou um presente de Deus e
também é ridículo pensar que sou esta coisa solida, monolítica. Na
verdade, isso nos deixa com o sentimento de que o que somos está aberto
a muitas possibilidades, baseadas na nossa natureza búdica, como em
talentos e assim por diante.

Na falta de todas essas coisas ridículas, surgimos com uma identidade


baseada na abertura das qualidades búdicas. É assim que surgimos como
uma figura búdica. E temos o orgulho da figura, em outras palavras,
tentamos nos sentir como ela. Ao invés de sentirmos que somos esse
presente monolítico de Deus, sentimos que estamos abertos a muitas
possibilidades e com o desenvolvimento dessas possibilidades podemos
nos tornar um Buda. Portanto, é assim que nos “visualizamos” como uma
deidade, como imaginamos ser uma dessas figuras búdicas. É um
processo bastante sofisticado.

A Inseparabilidade de Samsara e Nirvana

A tradição Sakya, uma das quatro tradições do budismo tibetano, fala


sobre a inseparabilidade de samsara e nirvana. Isso se dá em vários
níveis. Um nível – nós já discutimos isso, só estou colocando de outra
forma – é a inseparabilidade de como nossa mente faz com que coisas
pareçam concretas ou não-concretas. “Inseparável” aqui significa que está
misturado. Se olharmos alguma coisa, a partir de um determinado ponto
de vista, vemos que existe uma fabricação de aparências concretas; se
olharmos por um ponto de vista diferente, vemos que tem uma fabricação
de aparências não-concretas. Mesmo quando somos um Buda, mesmo que
nossa mente não faça com que as coisas pareçam por si só concretas,
ainda assim um Buda verá que para os outros seres acontece o oposto. A
mente de seres limitados faz com que as coisas pareçam existir como
sendo concretas por si só, e isso torna samsara e nirvana inseparáveis.

O outro nível de inseparabilidade de samsara e nirvana é a


inseparabilidade de nossa aparência grosseira comum e nossa aparência
sutil como uma figura búdica. Dentro de cada um de nós temos dois níveis
quânticos. Um é o nível grosseiro de nossa aparência comum; o outro é a
aparência sutil que possuímos em termos dessas figuras búdicas.
Portanto, partindo da mente da clara luz, nossa energia pode surgir ou de
forma grosseira ou de forma sutil. A grosseira é impura; a sutil é pura. A
grosseira é samsara; a sutil é nirvana, usada em um sentido especial. Não
estamos falando do corpo sutil que encontramos em outros sistemas
tântricos, com os canais etc. Estamos falando de um corpo sutil puro. O
Buda também tem isso. O Buda aparece como Nirmanakaya, um corpo de
Emanação, com formas comuns, e como Sambhogakaya, um corpo para
uso total, naquelas figuras búdicas incríveis que somente bodhisatvas
altamente realizados conseguem enxergar. A tradição Sakya explica esse
ponto mais claramente que as outras tradições.

Eu acho que a maneira mais fácil de compreendermos isso é


considerarmos dois níveis quânticos que estão misturados em nosso
corpo. Se olharmos para o pacote completo de nosso corpo, de um
determinado ponto de vista vemos uma pessoa comum e se olharmos por
outro ponto de vista, vemos uma figura búdica. Essa é uma das chaves
para entendermos a visão tântrica de nos enxergarmos como figuras
búdicas ou vermos nosso mentor espiritual como um Buda, e assim por
diante. Quando trabalhamos no tantra com visualizações, com
imaginação, estamos mudando de um nível impuro para um nível puro,
não só em termos da aparência de não-solidez; mas também estamos
mudando de nível quântico para o plano de uma figura búdica.

Nossa mente pode fazer com que essa mistura dos dois níveis quânticos
apareça com tendo aparência concreta ou não concreta. O problema,
entretanto, é que nossas mentes automaticamente farão com que essa
nossa aparência com uma figura búdica, baseada na natureza búdica,
surja como uma identidade concreta. E então podemos achar que temos
essa identidade concreta tipo, “Oba! Eu tenho clareza mental” “Oba! Eu
tenho sabedoria. Eu sou Manjushri”. Não tem que ser emotivo assim, pode
ser bem sutil, mas ainda há esse sentimento de solidez. Quando estamos
fazendo isso, esquecemos de todos os nossos outros aspectos, e então
pensamos que isso é “a minha identidade monolítica concreta”.
Entretanto, sabemos que ainda não chegamos lá.

Aplicando Isso no Dia a Dia

Esse é um método maravilhoso para ganharmos insight sobre como a


mente trabalha normalmente, isto porque podemos aplicar a analogia do
que estamos vivenciando com essa figura búdica para a nossa percepção
comum da vida. Isso nos ajuda a não nos agarrarmos àquele sentimento
concreto das nossas identidades comuns de “eu sou um fracassado” ou o
que quer que seja, porque sabemos por analogia que, apesar de nos
sentirmos solidamente como fracassados, na verdade não existimos dessa
maneira. Da mesma forma que sabemos que podemos ter a sensação
concreta de sermos Manjushri e sermos muito espertos, mas ainda não
chegamos lá. Transferir esse insight para nossa experiência comum nos
ajuda a compreender a vacuidade na nossa vida comum, assim como
superar nossas emoções destrutivas.

Projetando a imaginação dessa figura búdica e focando totalmente nela e


no sentimento de sermos ela, temporariamente interrompemos a
projeção de nossa aparência comum como uma identidade concreta. Isso
não é o mesmo que interrompermos a projeção de nossa aparência
comum quando dormimos. O que não é de muita utilidade; uma vez que
não faz com que algo aconteça. O que é significativo aqui é que, nós não só
paramos de projetar nossa aparência concreta comum, como também
geramos uma aparência especial dentro do contexto de nossa
compreensão da vacuidade. Isso faz com que comecemos a desenvolver o
hábito de gerarmos até nossa aparência comum grosseira dentro do
contexto da compreensão da vacuidade, como fizemos com essa
aparência especial. Assim, damos um tempo a nossa construção habitual
de aparências concretas. Ainda que possamos nos sentir solidamente
como essa figura búdica gerada dentro do contexto da vacuidade, nosso
apego a ela é muito mais fraco que o normal porque lembramos que a
geramos dentro da compreensão da vacuidade. Assim, a visualização no
tantra budista não é o mesmo que “o poder do pensamento positivo” ou
“visualização criativa”, onde imaginamos a tacada perfeita antes de
darmos uma tacada. Esses métodos não contemplam a compreensão da
vacuidade, sem falar que também não contemplam o objetivo bodhichitta.

Visualizando-nos como Figuras Búdicas o Dia Inteiro

Na prática tantrica, tentamos nos visualizar como figuras búdicas não


apenas nameditação, mas durante todo o dia. Da mesma forma,
visualizamos todas as outras pessoas como figuras búdicas e o ambiente
como uma mandala – o palácio e entorno puro de uma figura búdica.
Ainda assim, temos que nos mover, funcionar e fazer coisas normais da
vida. A visão da inseparabilidade de samsara e nirvana sugere uma boa
maneira para entender como fazer isso.

Se andarmos por aí no nosso dia a dia nos visualizando como figuras


búdicas e tudo à nossa volta como um palácio mandala, provavelmente
seremos atropelados por um carro. Ao invés disso, o que precisamos fazer
enquanto andamos por aí o dia todo, é enxergarmos os dois níveis
quânticos, de aparências puras e impuras, superpostos um sobre o outro.
Isso é muito bem simbolizado na forma como a tradição Nyingma
visualiza mandalas, por exemplo. Nessas visualizações, visualizamos as
paredes da mandala consistindo de dois níveis de imagens sobrepostas.
Um nível é como se fossem cinco paredes finas coladas umas nas outras,
sendo que cada uma é luz em uma cor diferente. O outro nível é como três
paredes finas coladas umas nas outras, sendo cada uma feita de crânios
em diferentes estágios de decomposição. Sobrepomos e visualizamos os
dois níveis simultaneamente. Isso nos treina a ver outros tipos de níveis
diferentes sobrepostos. Isso não é tão difícil de fazer quando usamos
nossa imaginação e assim nos treinamos a ver tanto o nível comum
quanto o da figura búdica sobrepostos no dia a dia. A tradição Gelug nos
dá uma descrição técnica de como isso é feito.

Anuttarayoga tantra, a mais alta classe de tantra, tem dois estágios de


prática. No primeiro estágio, o estágio de geração, vemos aparências
comuns com o olho de nossa consciência, mas nossa consciência mental
sobrepõe a elas imagens de figuras búdicas e mandalas. Concebemos
essas aparências impuras como sendo puras. Então, no segundo estágio, o
estágio de completitude, começando com o primeiro passo, chamado
“isolamento do corpo”, somos capazes de trabalhar efetivamente com a
energia – ventos da consciência visual e gerá-los na forma de uma figura
búdica. Quando assim fazemos, as aparências puras das figuras búdicas e
mandalas não são mais reconhecidas através de um processo conceitual.

Se estudarmos diferentes tradições tibetanas teremos diferentes visões


que, quando juntas, fazem com que compreendamos como o processo de
nos visualizarmos como figuras búdicas realmente funciona de uma
maneira muito mais completa. É como os três homens cegos descrevendo
o elefante. Um toca as pernas, um toca o corpo e o outro toca as orelhas.
Quando juntamos as informações de cada um, temos a figura do elefante.

Os Benefícios de Sobrepor Aparências

O benefício de vermos esses dois níveis simultaneamente durante todo o


dia – a sobreposição da aparência comum e da aparência de figura búdica
– é que nos ajuda a compreender que também misturamos uma aparência
de realidade comum concreta e realidade não concreta. Em outras
palavras, nos ajuda a ter o insight de que não existimos no mundo
simplesmente do modo como aparentamos existir. Em outro nível, nos
ajuda a não nos identificarmos solidamente com nossa aparência
grosseira comum, seja ela gorda, velha ou incompetente. Ao invés disso,
nos ajuda a sentir que também possuímos várias qualidades budicas, mas
tudo dentro, é claro, da nossa compreensão da vacuidade. Isso, por sua
vez, nos ajuda a lidar com nossa vida com uma atitude muito mais
positiva, sem corrermos o risco de ficarmos com um ego super inflado.

Além disso, focando numa figura búdica durante a meditação, que pode
ser nós mesmos como uma figura búdica, faz com que seja muito mais
fácil desenvolvermos uma concentração absorta perfeita do que focando
em nosso corpo grosseiro. Essa é outra vantagem. A razão para isso é que
nosso corpo grosseiro está em constante mudança. A posição do nosso
corpo está sempre sofrendo uma leve mudança, mesmo quando estamos
sentados em meditação. E também tem dias em que nos sentimos bem e
outros nos quais não nos sentimos tão bem, e assim por diante. Sentimos
várias dores, sem falar nas coceiras. Devido a essas constantes mudanças,
não temos um objeto consistentemente estável para desenvolvermos
concentração absorta. Por outro lado, se nos concentrarmos nessa figura
búdica que imaginamos, ela nunca muda. Podemos sempre voltar para a
mesma visualização. Aquilo que imaginamos permanece sempre o
mesmo, portanto é muito mais fácil desenvolvermos uma concentração
estável focando nela.

Também é muito mais fácil desenvolvermos concentração total na


vacuidade da figura búdica imaginada do que conseguirmos concentração
total na vacuidade de nossos próprios corpos. A vacuidade em si não
muda; mas nesse caso, se a base para a vacuidade – em outras palavras, o
que não existe de maneira impossível – é algo que está em constante
mudança, como nosso corpo, sua vacuidade fica de certa forma – a
palavra que usam em tibetano é “infectada” por sua instabilidade. Por
outro lado, se a base para a vacuidade é algo que não muda, fica muito
mais fácil mantermos um foco estável em sua vacuidade. Portanto,
focando na vacuidade da figura búdica, fica mais fácil entendermos a
vacuidade em si.

A Interpretação Gelug Prasangika

O que estamos fazendo quando nos identificamos com uma figura búdica?
Estamos nos rotulando, nos denominando figuras búdicas baseados na
nossa natureza búdica. Ainda assim não conseguimos achar a figura
búdica e não conseguimos achar um Buda concreto dentro de nós.
Compreendemos, entretanto, que rotularmo-nos como figuras búdicas é
válido. Estamos nos rotulando como figuras búdicas, o segundo nível
quântico, tomando como base nossa natureza búdica. Mas não
conseguimos achar essa figura búdica, e não conseguimos localizar com
precisão esse segundo nível quântico de sermos uma figura búdica, mas
ainda assim compreendemos que esse é um rótulo válido. Assumimos
esse nível quântico de figura búdica porque temos os fatores da natureza
búdica que nos permitirão alcançar esse nível. Portanto, existimos como
figura búdica meramente na medida em que podemos nos rotular de
maneira válida como tal. Não há nada concreto ou que consigamos achar
em nosso interior que nos torne uma figura búdica.

Então, o que é na realidade essa figura búdica que somos? Se não


conseguimos efetivamente achá-la, não conseguimos efetivamente vê-la, é
meramente aquilo ao que o rótulo válido, ou nossa imaginação dele, se
refere. Desse modo fica mais fácil entendermos que, em geral, nossa
existência como isso ou aquilo, como uma mãe, um trabalhador, o que
quer que seja, é estabelecida somente por um rótulo mental válido e não
pelo poder de algo concreto que possa ser encontrado dentro de nós. Por
exemplo, vamos supor que existimos convencionalmente como mãe. O
que faz com que existamos como mãe? Existimos como mãe porque
podemos validamente ser chamados de mãe com base no fato de que
temos um filho. Não há nada dentro da gente para o que possamos
apontar, que nos faça uma “mãe” por si só, independentemente de
qualquer outra coisa.

É muito importante que compreendamos isso, porque se


inconscientemente imaginarmos que tem algo dentro de nós que nos faz
“mãe” independentemente de qualquer coisa, teremos que ser “mãe” o
tempo todo e pra todo mundo. É daí que surgem as síndromes neuróticas
devido à identificação como sendo solidamente “mãe”. Só existimos como
mãe se pudermos ser chamados “mãe” e tal rótulo ou nome é válido
porque é dependente do fato de termos um filho. Esse raciocínio nos leva
a nos estabelecermos validamente como um amigo tendo como base
nossos amigos, como uma mulher de negócios tendo como base nosso
trabalho, e assim por diante. Portanto isso nos permite uma tremenda
abertura para ajudar os outros. Chamamos esse tipo de existência
“originação dependente”.

O que descrevemos é a interpretação Gelug da doutrina da escola indiana


Madhyamaka Prasangika. Existem quatro escolas budistas indianas de
pensamento filosófico. E existem ainda quatro tradições budistas
tibetanas, e cada uma delas tem um modo diferente de compreender cada
uma das quatro escolas indianas. Isso se torna bastante complicado. Mas
a apresentação Gelug da visão Prasangika é que a existência de todos os
fenômenos se dá meramente através dos rótulos mentais. Não há nada
encontrável da parte dos objetos que por si só, quer seja sozinho ou em
conjunto com um rótulo mental, estabeleça a existência de alguma coisa.

Podemos entender isso de uma maneira muito mais fácil nos imaginando
como figuras búdicas, porque é obvio que não podemos encontrar nada
dentro de nós que nos faça uma figura búdica, nem mesmo uma figura
búdica que possa ser encontrada. Podemos estabelecer que existimos
como uma figura búdica meramente porque podemos validamente nos
imaginar assim e validamente nos referimos a nós próprios dessa forma e
validamente sentirmos que somos assim, com base nos fatores de nossa
natureza búdica. Na mera dependência desse fato – é isso que queremos
dizer com a expressão “originação dependente” – podemos dizer que
existimos como uma figura búdica, apesar de não haver nada dentro de
nós, concreto e encontrável, que nos faça assim.

Existem níveis mais profundos de compreensão da importância da


visualização e imaginação, mas isso é suficientemente profundo para
adquirirmos uma apreciação de quão sofisticado é o uso da imaginação
no budismo.

Resumo

Resumindo, essa tem sido nossa avaliação do processo de visualização, o


uso da imaginação no budismo. Como podemos ver é um método muito
útil e muito sofisticado de prática. Em todos os níveis de trabalho, desde o
nível mais simples, como quando imaginamos como uma pessoa jovem e
atraente irá se parecer quando tiver 80 anos, até o nível mais sofisticado,
a visualização nos ajuda a superar nossas emoções destrutivas e
consequentemente nossos problemas e dificuldades. Permite-nos usar
plenamente nosso potencial e ajudarmos mais os outros. Apesar da
imaginação não ser de modo algum um método fácil, ele é muito eficaz
para alcançarmos a liberação e continuarmos até nos tornarmos Budas.

Perguntas
Seguindo o seu último raciocínio, devemos concluir que a natureza
búdica em si também é vazia?

Sim, tudo é vazio de modos impossíveis de existência. O que quer que seja
que exista efetivamente, ou seja, o que quer que seja validamente
cognoscível, não possui nada internamente que estabeleça sua existência.
Algo que seja encontrável dentro de um objeto é uma maneira impossível
de estabelecer que o objeto existe, porque não existe nada encontrável
dentro de alguma coisa. O que a vacuidade nega é a maneira impossível
de existência, pela qual haveria algo dentro, concreto e encontrável, que
por si só estabelecesse sua existência e consequentemente desse uma
identidade concreta, permanente, que nunca foi e nunca fosse afetada por
nada. Portanto, a única coisa que podemos dizer, se tivermos que dizer
algo sobre o que estabelece a existência das coisas, é somente rótulo
mental.

Isso não significa que o rótulo mental os cria, uma vez que podemos
rotular mentalmente alguém como um monstro, mas isso não faz da
pessoa um monstro. O que estabelece a existência de alguma coisa é que
ela é meramente o objeto de referência de nomes e conceitos, validado
por uma cognição valida do objeto ao qual nos referimos. Esse fato diz
respeito a tudo, inclusive à natureza búdica, iluminação, Budas e até a
vacuidade em si. Obviamente, temos que pensar profundamente sobre
isso para entendermos e compreendermos que é verdade.

Nós temos a tendência de questionarmos, talvez de um ponto de vista


científico ocidental, “O que faz com que eu seja eu?” E podemos dizer,
“Bem, é o padrão genético dos cromossomos nas minhas células; é o meu
genôma único. É algo dentro de mim que faz com que eu seja eu”. Mas o
budismo diria “Ei! Olhe mais de perto. Esses cromossomos e genes são
feitos de moléculas, e as moléculas são feitas de átomos, que são feitos de
partículas subatômicas, que por sua vez são feitas de campos de energia.
Onde está alguma coisa encontrável?” Não há nada concreto dentro dos
cromossomos que os faça cromossomos.

Portanto, existimos como essa pessoa que somos porque as pessoas nos
concebem, pensam sobre nós, nos rotulam e nos chamam pelo nosso
nome; e é um rótulo correto. E é só isso! Nada mais é necessário para
estabelecer nossa existência. É o que queremos dizer com “apenas rótulo
mental”. O budismo tem toda uma argumentação bastante complicada
sobre como saber que um rótulo ou um nome está correto. Mas de novo,
só porque eu chamo aquela almofada de cachorro não faz dela um
cachorro. Mas formas válidas de saber é outro tópico muito grande nos
estudos budistas e não podemos entrar nisso hoje.

Não temos nada do que um Buda é; mal podemos imaginar o que


isso significa ou o que isso pode ser. O que quer que pensemos o que
é ser um Buda é só uma projeção de nossas mentes. Portanto, se eu
só posso projetar isso, quando eu visualizo uma figura búdica ela é
uma mera projeção. Como posso saber se essa projeção da figura
búdica é correta ou incorreta? Em outras palavras, devo
simplesmente confiar em minha natureza búdica – isto é, por causa
da minha natureza búdica, a maneira como eu projeto a figura
búdica na minha frente está correta?

Eu acho que a abordagem Sakya sobre a inseparabilidade do samsara e


nirvana pode nos ajudas com essa pergunta. De acordo com o sistema
Sakya, o samsara e nirvana não são só inseparáveis – compreendendo que
samsara e nirvana têm muitos níveis diferentes de significado – como
também os níveis de base, caminho e resultado também são inseparáveis.
Portanto, quando vemos alguém como um Buda, o nível básico é a
natureza búdica, o potencial que permitirá alcançar o estado de Buda. O
nível resultante, o nível final, é o estado efetivo de Buda que as pessoas
podem obter e que agora existe em potencial. O caminho para irmos da
base ao resultado são nossos diferentes níveis de conceitualização cada
vez mais apurados, e realização desse estado de Bu

Portanto, quando estamos vendo alguém como um Buda, esses três


aspectos estão inseparavelmente misturados. Durante o caminho, nossa
conceitualização do que é o estado de Buda, que está na base do nível
fundamental – os fatores da natureza búdica – é só uma aproximação do
resultado, o estado de Buda. É natural que o nível do caminho seja apenas
uma aproximação; não poderia ser diferente. É claro que precisamos
validar nossa aproximação de acordo com as várias descrições de um
Buda que lemos. Não queremos ter uma aproximação, digamos, de um
Buda onipotente como na descrição de Deus Todo Poderoso na Bíblia.
Essa não é uma qualidade de Buda. Se nossa conceitualização é baseada
nas verdadeiras descrições das escrituras e assim por diante, poderemos
trabalhar de maneira válida com ela, mesmo sendo uma aproximação.
Como podemos trabalhar com essas figuras búdicas quando temos
essa barreira cultural tão forte no que diz respeito às suas
iconografias originais – Tibetana, Indiana, ou o que seja. Por serem
tão estranhas e tão alheias a nós, à nossa cultura e forma de
enxergar, não consigo me relacionar com elas. Portanto, seria válido
que quando eu tentasse desenvolver compaixão, que ao invés de
visualizar Chenrezig, eu visualizasse um rosto que fosse significativo
para mim – um rosto cheio de compaixão ou amor ou sabedoria ou o
que seja?

Bem, temos que ser um pouco cuidadosos aqui. Primeiro, todas essas
figuras búdicas também eram alheias à cultura tibetana, ainda assim os
tibetanos conseguiram, com o tempo, sentir-se confortáveis com elas. Ser
de uma cultura diferente não é uma barreira inerente. Segundo, essas
figuras não devem ser consideradas só pela aparência. Elas são usadas em
um método muito sofisticado. Todos os braços, rostos e assim por diante
representam muitos níveis diferentes de significado e carregam um
profundo simbolismo. Eles representam, por exemplo, diversas
realizações diferentes que estamos tentando ter simultaneamente em
nossas mentes. Tentar ter 24 insights simultâneos em nossa mente é
muito difícil se fizermos isso de maneira abstrata, não só
conceitualmente, mas também não conceitualmente. Estamos falando de
amor, paciência, compreensão e assim por diante. Mas se representarmos
esses 24 insights ou qualidades de maneira gráfica como 24 braços,é
muito mais fácil imaginarmos tudo isso ao mesmo tempo. Assim sendo, a
visualização dessas figuras com vários braços e varias faces é um
dispositivo para nos ajudar a manter todas as coisas que elas
representam simultaneamente em nossas mentes.

Portanto, temos que ser muito cuidadosos para não jogarmos fora um dos
principais propósitos dessas figuras, que é ter todos esses braços, pernas
e faces. Entretanto, quando a iconografia dessas figuras foi de um país
para o outro – da Índia não só para o Tibete, mas também para a China e
Japão – as características faciais, por exemplo, mudaram de indianas para
chinesas. Algumas roupas também mudaram. A mudança mais dramática
foi que Avalokiteshvara mudou de sexo e se tornou uma mulher na China.
Ele era um homem na Índia e no Tibete. Portanto, existem algumas coisas
que podem ser adaptadas em um nível superficial, mas temos que ser
muito cuidadosos. Fazer qualquer adaptação cultural, como meus
professores sempre disseram, requer um conhecimento muito completo
tanto da cultura original quanto da cultura para a qual estamos indo e,
logicamente, um conhecimento completo do budismo. Isso requer um
conhecimento muito vasto; não só profundo, como vasto.
Entendo que existem duas maneiras de se dissolver uma
visualização, e quero saber se isso é correto. Uma é, por exemplo,
quando visualizamos Vajrasattva no topo de nossa cabeça, no fim da
nossa prática ele se dissipa e se dissolve em luz e vai para o nosso
coração, certo? Esse é um tipo de dissolução. A outra é como com o
campo de mérito, onde uma figura se dissolve na outra. Isso está
correto?

Existem muitas maneiras diferentes de dissolver uma visualização. Uma


delas certamente é dissolver a visualização em nosso coração. Isso tem
vários propósitos no que diz respeito à compreensão de como as
aparências vêm da clara luz da mente e assim por diante. Algumas vezes
as visualizações, conforme você disse, colapsam em si próprias e então
podem tomar dois rumos: ou se dissolvem na vacuidade ou se dissolvem
em nós. Algumas vezes as visualizações se expandem até ficarem do
tamanho do universo e então se dissolvem. Algumas vezes as
visualizações vão para um campo búdico. Portanto, existem muitas
maneiras diferentes e cada uma delas tem seu propósito específico.

Dedicação

Vamos então dissolver nossa sessão com uma dedicação – que é outra
maneira de dissolvermos uma aparência. Pensamos que qualquer
entendimento, insight ou força positiva que possamos ter ganhado nesta
noite cresça cada vez mais. Particularmente, o que discutimos nesta noite
não foi fácil; é bastante sofisticado. Portanto esperamos que nosso
entendimento torne-se cada vez mais profundo à medida que ouvimos as
gravações ou lemos as transcrições e tentamos compreender cada vez
mais, se estivermos interessados em fazer isso. Que possamos obter cada
vez mais benefícios a partir da integração desses ensinamentos na nossa
prática e na nossa personalidade, para que eles possam nos ajudar a
superar dificuldades e realizar mais e mais nosso potencial de ajudar da
melhor maneira a todos. E que tentemos juntar todos os pedaços do
quebra cabeça do Dharma, para que compreendamos mais e mais, e
possamos obter mais e mais benefícios dos ensinamentos e práticas.

Tome por exemplo o conselho de ver o professor espiritual como um


Buda quando ele está ensinando – o que, por sinal, é uma prática somente
para discípulos muito avançados, não para iniciantes. É para praticantes
que já deram a direção segura do refúgio em suas vidas e que visam o
ideal bodhichitta de se tornarem Budas para beneficiar todos os seres.
Para esses praticantes, então, é de muito benefício enxergar o professor
espiritual como um Buda enquanto recebem os ensinamentos. Mas o que
isso significa?

Precisamos juntar as peças do quebra cabeça do Dharma. Isso significa


mudar de nível quântico, do nível comum para o da natureza búdica, o
nível da figura búdica. Lembre-se, samsara e nirvana inseparáveis. O
professor tem defeitos, mas também qualidades, inseparavelmente. Um é
o nível grosseiro; o outro é o nível mais sutil. O nível sutil são as boas
qualidades. Assim como na meditação, só focamos no nível sutil por
diversas razões benéficas, da mesma forma, enquanto recebemos
ensinamento ajustamos o foco no nível mais sutil do professor, no que se
refere a esse nível quântico mais sutil de ser um Buda. Isso nos permitirá
focar e apreciar as boas qualidades do professor enquanto estivermos
recebendo um ensinamento, o que nos ajudará a ter uma mente mais
aberta e receptiva para entendermos o que o professor está dizendo.
Focar nos problemas grosseiros do professor enquanto escutamos os
ensinamentos nos distrai do que ele está dizendo. Isso não ajuda em nada
quando estamos escutando os ensinamentos.

Não obstante, considerando o professor como um Buda enquanto


escutamos os ensinamentos, em outras palavras, focando nesse nível
quântico mais sutil, não significa que perdemos nossa habilidade
discriminativa de diferenciar o que o professor diz de correto e o que ele
diz de incorreto. É isso. Ver um nível quântico diferente não impede o
funcionamento da consciência discriminativa. Desta forma, precisamos
juntar as peças do quebra cabeça do Dharma para realmente entender em
um nível mais profundo alguns dos ensinamentos mais complicados.

Que a nossa compreensão e nosso processo de juntar as peças cresçam


mais e mais, para que realmente possamos beneficiar os seres da melhor
forma.
Estados Extra-Corpóreos no
Budismo
Tsenzhab Serkong Rinpoche

A literatura e tradição oral budistas registram muitos exemplos da


consciência viajando com uma forma sutil fora do corpo grosseiro. Tais
fenómenos foram também observados no ocidente e frequentemente
designados por "viagem astral do corpo". Embora seja difícil
correlacionar experiências e identificar casos individuais de uma cultura
para uma outra dentro do esquema de classificação dessa outra cultura,
não obstante, pode ser útil esboçar algumas variedades desse fenómeno,
como verificado nas tradições budistas da Índia e do Tibete.

Corpo Ilusório

Através da prática intensiva e profunda da meditação, é possível


conseguirmos um corpo ilusório (sgyu-lus). Este é o resultado da prática
extremamente avançada do estágio completo (rdzogs-rim, estágio da
completude) da classe mais elevada do tantra, o anuttarayoga. É com este
corpo que adquirimos a compreensão não-conceptual da vacuidade com a
mente mais sutil de luz clara. Desta forma, é possível viajarmos
vastamente para além dos limites do nosso corpo físico, trabalhando para
benefício dos outros.

A fim de alcançarmos um corpo ilusório, é necessário conseguirmos


antecipadamente a renúncia do sofrimento, uma orientação bodhichitta
para atingir a budeidade a fim de podermos ajudar todos os outros a
conseguir o mesmo, e uma correta compreensão conceptual da
vacuidade. Além disso, o praticante [já] deve ter alcançado a
concentração absorta unifocada (ting-nge-`dzin, sânsc. samadhi), ter
recebido as iniciações tântricas apropriadas de um mestre tântrico
totalmente qualificado, ter mantido puramente todos os votos e ter
alcançado proficiência no estágio da geração (bskyed-rim) e nas práticas
iniciais do estágio completo do anuttarayoga tantra.

O Corpo Onírico

Com muita meditação, também podemos obter a faculdade de usar um


corpo onírico (rmi-lam-gyi lus). Esta forma é particularmente apropriada
para a prática da atenção unifocada, uma vez que, enquanto adormecidos,
não temos as distrações das consciências sensoriais. Por conseguinte, os
praticantes cultivam-na frequentemente a fim de obterem um adicional
progresso nos seus estudos. Tendo obtido controlo sobre o estado onírico
e dominado este tipo de emanação, podemos preparar os livros no nosso
quarto e memorizá-los enquanto adormecidos. Porém, como o corpo
onírico é incapaz de ter contato com objetos concretos e não pode virar as
páginas, é necessário arranjar diversas cópias dos livros de modo a que
não haja necessidade de mudar de página.

Além disso, o corpo onírico e o corpo ilusório estão ligados ao corpo


grosseiro meramente pelo karma. Não há nenhuma ligação física entre os
dois.

Distúrbios do Corpo Sutil

O que é conhecido como corpo sutil (lus phra-mo) não é um corpo que
pode deixar a nossa forma física grosseira. Em vez disso, é o sistema de
energia sutil dentro dos nossos corpos grosseiros. É a rede dos canais
invisíveis de energia (rtsa, sânsc . nadi), dos nós de energia (rtsa-
`khor, sânsc. chakra), das gotas de energia criativa (thig-le, sânsc . bindu)
neles situadas, e dos ventos de energia (rlung, sânsc. prana) que correm
através deles. Partes deste sistema estão envolvidas no funcionamento
normal da percepção dos sentidos. Com absorta concentração e
treinamento avançado de yoga, é possível fazermos um uso especial deste
sistema para obtermos poderes extra-físicos e extra-sensoriais, tais como
telepatia e clarividência. No entanto, há também muitas doenças que
resultam de distúrbios e desequilíbrios dos ventos de energia. Tais
desordens podem produzir alucinações e percepções anormais, tal como
a sensação de se estar fora do próprio corpo.

Os Efeitos Colaterais das Práticas de Visualização

Além disso, existem muitos tipos de meditação em que cultivamos e


exploramos os poderes da imaginação a fim de progredirmos
espiritualmente. Por exemplo, aprendendo a visualizar todos os seres
como esqueletos, podemos diminuir a nossa atração compulsiva e o nosso
desejo obsessivo pelo corpo e, assim, eliminar o sofrimento e a ansiedade
do desejo ardente. Podemos treinar a nossa mente a visualizar
simultaneamente todas as direções e até a ver os órgãos internos do
corpo. Com a mestria de tais práticas, é possível termos essa alargada
percepção mesmo fora das nossas sessões de meditação. Conseguindo ver
tudo ao nosso redor, podemo-nos sentir como se estivéssemos para além
dos limites do nosso próprio corpo.
Corpos com Estados Mistos de Existência

Devido ao karma precedente, registra-se que uma pessoa pode renascer


como alguém meio-humano, meio-espírito. Alguém nessa situação pode
verificar que quando o seu corpo humano está inconsciente ou de alguma
forma inativo, a parte “como espírito” da sua natureza viajará juntamente
com a sua consciência. Houve também casos conhecidos de pessoas que
eram meio-humanas e meio-celestiais (deuses). Aqui, um ser celestial
tomou um corpo humano grosseiro, mas sob certas condições atuou à
parte dessa forma. Os casos acima descritos envolvem a consciência de
apenas um ser vivo que pode ter aspectos, contudo, de dois estados
diferentes de existência.

Entrando na Cidadela de um Outro Corpo

É também possível que uma experiência extra-corpórea envolva mais do


que um ser. Existem certas meditações tântricas avançadas do
anuttarayoga denominadas "entrar na cidadela" de um outro corpo
(grong-`jug). Com concentração absorta, pode-se projetar a mente para
dentro do corpo de alguém que acabou de morrer ou de alguém que
esteja inconsciente. Como isso podia ser facilmente usado e abusado com
fins nocivos, a tradição oral direta da sua prática foi interrompida no
século XI, antes que fosse levada da Índia para o Tibete.

Possessão

É também possível que o nosso corpo ou mente seja possuído por um ser
do reino dos espíritos. Isto pode ocorrer por razões benéficas, como no
caso dos oráculos em transe, ou por razões nocivas, como com um
encosto (espíritos famintos). Na literatura budista também há referências
de seres que morreram e renasceram como espíritos ou criaturas do
inferno e que, nestes estados, comunicaram com os seus anteriores
familiares e amigos. Isto é baseado em fortes conexões kármicas, como é
o reconhecimento, por exemplo, de um asno como a reencarnação do seu
falecido tio.

Experiência Extra-Corpórea Devida à Prática de Meditação Anterior

Não importa o tipo de fenómeno extra-corpóreo que alguém não treinado


em meditação possa experienciar, pois isso é o resultado das suas
anteriores ações nesta vida ou em vidas anteriores. Pessoas diferentes
têm experiências diferentes, e até um indivíduo raramente experienciará
a mesma coisa duas vezes. Isto é devido aos diferentes karmas e instintos
das vidas anteriores.

Se previamente alguém tenha treinado a mente com meditações budistas


avançadas envolvendo visualizações ou os corpos ilusórios, oníricos ou
sutis, poderá nascer com fortes instintos para essas práticas. Assim, sem
qualquer esforço, o fenómeno extra-corpóreo poderá ocorrer. Em tais
situações, esse alguém também demonstraria uma forte inclinação para
as outras meditações e introvisões em cujo contexto seriam feitas essas
práticas avançadas. Por outras palavras, teria instintos para todo o
conjunto da prática e não só para os seus pontos avançados. Assim, desde
a infância, teria também um sentimento intuitivo para a causa e efeito,
renascimento, renúncia, compaixão, vacuidade e assim por diante. Pelo
menos teria uma crença instintiva sobre vidas passadas e futuras. Para
tais pessoas, valeria a pena ser encontrado um mestre espiritual
totalmente qualificado a fim de ser recebido o treinamento apropriado de
meditação para o desenvolvimento dos seus potenciais.

Experiências Extra-Corpóreas Causadas por Distúrbios

Se alguém não tiver qualquer inclinação para as meditações básicas,


podem haver outras causas kármicas para as suas experiências
extracorpóreas. Se a experiência for precedida por uma sensação de
aperto e ânsia no plexo solar, descargas de energia do coração à cabeça,
zumbidos ou silvos nos ouvidos, ranger de dentes, períodos de
inconsciência e assim por diante, isto pode ser sinal de um distúrbio no
sistema de energia do corpo sutil. Com estes sintomas, não é aconselhável
o engajamento nos estados de percepção anormal que este tipo de
distúrbios vai produzir. Um sério desequilíbrio de energia no corpo,
particularmente quando centrado na região do coração, pode conduzir a
uma paranóia extrema, à insanidade e mesmo à morte. Deve consultar-se
um médico tibetano para tratamento.

Pode acontecer que espíritos ou forças nocivas estejam fazendo com que
a pessoa tenha percepções alteradas ou perca o controlo da sua
consciência. Esta é também uma situação perigosa e deve ser cuidada por
um lama, por um médico [medicina tibetana] ou por um oráculo que seja
perito nos rituais de exorcismo. Se a sensação extracorpórea for uma
alucinação causada por uma droga, esta também não deve ser engajada.
Podem ocorrer efeitos a longo prazo causados por uma exposição
prolongada à distorção da consciência.
Conclusão

Em resumo, se, sem prática de meditação e treinamento específico,


alguém tiver uma experiência extracorpórea descontrolada, não deve
tratá-la levianamente ou como uma curiosidade divertida. A causa pode
ser uma das explicações acima, uma combinação de fatores ou algo
completamente diferente. Qualquer que seja a causa, se alguém se
alarmar quando a sua consciência sai do corpo físico, a conexão entre
ambos é muito facilmente cortada. A literatura budista registra muitos
casos de tais mortes. Por conseguinte, é extremamente importante não se
fazer experiências com tais estados extra-corpóreos isoladamente. No
entanto, com uma correta orientação, boa motivação e intensa prática de
meditação, esses estados podem ser aproveitados para aumentar os
nossos potenciais com vista a ajudarmos a nós e aos outros para benefício
de todos.
Tantra: Avançado

As Cinco Famílias Búdicas e os


Cinco Dhyani Budas
Dr. Alexander Berzin

Características das Famílias Búdicas e Elementos da Natureza


Búdica

As famílias búdicas referem-se aos aspectos da natureza búdica. Ou seja,


famílias búdicas são famílias (grupos) de características búdicas. Essas
características são inatas no continuum mental de todos os seres e nos
permitem tornarmo-nos budas.

o No nível básico, esses aspectos não estão purificados, o que significa


que sua continuidade está misturada com ignorância (falta de
consciência) e aflições mentais; mais especificamente, com os
obscurecimentos emocionais e cognitivos.

o No nível do caminho, estão parcialmente purificados e parcialmente


não purificados. Este nível é o nível dos aryas, quando alguns dos
obscurecimentos foram removidos para sempre.

o No nível resultante, eles estão totalmente purificados, e funcionam


de forma desimpedida como os aspectos iluminados de um buda.

Os Tantras Kriya e Charya

As duas primeiras classe do tantra, Kriya e Charya, têm três famílias de


características búdicas:

1. A família Tathagata, ou Buda, na qual as principais figuras búdicas


(yi-dam, deidades) são Shakyamuni e Manjushri
2. A família Lótus (Skt. padma), que tem Amitaba, Avalokiteshvara e
Tara como principais figuras búdicas
3. A família Vajra, na qual Akshobia e Vajrapani são as principais
figuras búdicas.

No nível mais amplo:


1. Manjushri representa o corpo
2. Amitaba e Avalokiteshvara representam a fala
3. Vajrapani representa a mente.

No que diz respeito à mente:

1. Manjushri representa o entendimento (sabedoria)


2. Amitaba e Avalokiteshvara representam a compaixão
3. Vajrapani representa as habilidades poderosas.

Yoga Tantra

A terceira classe do tantra, o yoga tantra, tem quatro famílias de


características búdicas, uma para cada um dos quatro tópicos discutidos
nos textos desta classe:

1. A família Tathagata, liderada por Vairochana, para o corpo


2. A família Vajra, liderada por Akshobia, para a mente
3. A família Lótus, liderada por Amitaba, para a fala
4. A família Joia (Skt. ratna), liderada por Ratnasambhava, para ações.

A quinta família búdica, Karma (ação), liderada por Amogasidi, está


subordinada à família Joia.

Anuttarayoga Tantra

Anuttarayoga, a quarta classe do tantra, tem cinco famílias (grupos) de


características búdicas:

1. A família Tathagata (representada por uma roda), em que


Vairochana é a principal figura búdica
2. A família Joia, com Ratnasambhava como principal figura búdica
3. A família Lotus, com Amitaba e Avalokiteshvara como principais
figuras búdicas
4. A família Karma (representada por uma espada), com Amogasidi e
Tara como principais figuras búdicas
5. A família Vajra, com Akshobia como principal figura búdica.

Na forma mais ampla:

1. Vairochana representa o corpo


2. Ratnasambhava representa as boas qualidades
3. Amitaba representa a fala
4. Amogasidi representa as ações
5. Akshobia representa a mente.

No que diz respeito aos cinco fatores agregados de nossa experiência


(skt. skandhas, cinco agregados), segue a descrição do Guhyasamaja
Tantra com as cores e direções de acordo com a mandala Guhyasamaja:

1. Vairochana (branco, leste) representa os agregados das formas dos


fenômenos físicos (agregado da forma)
2. Ratnasambhava (amarelo, sul) representa o agregado das sensações
de níveis de felicidade (agregado das sensações)
3. Amitaba (vermelho, oeste) representa o agregado da distinção
(agregado da percepção)
4. Amogasidi (verde, norte) representa o agregado das outras variáveis
influentes (agregado das formações mentais)
5. Akshobia (azul, centro) representa o agregado dos tipos de
consciência (agregado da consciência).

No que diz respeito ao agregado da forma dos fenômenos físicos (corpo),


as cinco famílias búdicas estão associadas aos cinco elementos:

1. A família Vairochana representa o elemento terra


2. A família Ratnasambhava representa o elemento água
3. A família Amitaba representa o elemento fogo
4. A família Amogasidi representa o elemento vento
5. A família Akshobia representa o elemento espaço.

No que diz respeito ao agregado dos tipos de consciência (mente):

1. A família Vairochana representa a consciência visual


2. A família Ratnasambhava representa a consciência auditiva
3. A família Amitaba representa a consciência olfativa
4. A família Amogasidi representa a consciência gustativa
5. A família Akshobia representa a consciência corporal.

As Cinco Famílias de Características Búdicas em termos das Cinco


Consciências Profundas

No que diz respeito às boas qualidades, ou seja, aos cinco tipos de


consciência profunda (ye-shes, cinco sabedorias), que são um outro
aspecto do agregado da consciência:

1. Vairochana representa a consciência profunda do espelho


(sabedoria do espelho)
2. Ratnasambhava representa a consciência profunda da igualdade
(sabedoria da igualdade)
3. Amitaba representa a consciência profunda da individualidade
(sabedoria discriminativa)
4. Amogasidi representa a consciência profunda realizadora
(sabedoria da causalidade)
5. Akshobia representa a consciência profunda da esfera da realidade
(consciência da realidade, Skt. dharmadhatu, sabedoria dharmata).

As dezenove práticas para estreitarmos nosso vínculo (dam-tshig,


Skt. samaya) com as cinco famílias de características búdicas e,
especificamente, os cinco tipos de consciência profunda são:

1. As seis práticas para estreitarmos nosso vínculo com a consciência


(sabedoria) do espelho (Vairochana):

 Direção segura (refúgio) nas três jóias: O buda, o dharma e a


sangha de aryas.
 Os três tipos de autodisciplina ética: evitar comportamentos
destrutivos, engajar-se em comportamentos construtivos, como a
meditação, e ajudar os seres sencientes.

2. As quatro práticas para estreitarmos nosso vínculo com a


consciência (sabedoria) da igualdade (Ratnasambhava):

 Os quatro tipos de generosidade: doar objetos materiais, doar


dharma, doar liberdade do medo e doar amor (o desejo de que
todos sejam felizes e encontrem as causas da felicidade).

3. As três práticas para estreitarmos nosso vínculo com a consciência


da individualidade (sabedoria discriminativa) (Amitaba):

 Apoiar os ensinamentos do veículo sutra (shravaka,


pratyekabuda, e bodhisattva), das classes externas do tantra
(kriya and charya) e das classes secretas (confidenciais) do tantra
(yoga e anuttarayoga) (no Nyingma: yoga, mahayoga e atiyoga ou
dzogchen).

4. As duas práticas para estreitarmos nosso vínculo com a consciência


realizadora (sabedoria da causalidade) (Amogasidi):

 Fazer oferendas
 Manter nossos votos.
5. As cinco práticas para estreitarmos nosso vínculo com a consciência
da esfera da realidade (sabedoria de dharmata) (Akshobia):

 Manter um vajra e o que ele representa, a clareza de aparecer em


uma aparência pura e a consciência bem-aventurada, como um
símbolo do método
 Manter um sino e o que ele representa, a consciência da
vacuidade, como símbolo da sabedoria
 Manter o mudra (selo) de nos visualizarmos como um casal de
figuras búdicas em união, representando a união não dual de
método e sabedoria
 Nos comprometer, de uma maneira adequada, em um
relacionamento saudável com nosso mestre tântrico.

Quando os cinco tipos de consciência profunda são não purificados


(misturados com ignorância sobre a natureza da realidade):

1. A consciência do espelho (Vairochana) torna-se ingenuidade


2. A consciência da igualdade (Ratnasambhava) torna-se arrogância e
avareza
3. A consciência individualizadora (Amitaba) torna-se desejo e apego
4. A consciência realizadora (Amogasidi) torna-se inveja
5. A consciência da realidade (Akshobia) torna-se raiva.

Amitaba

Para trabalharmos com alguma família búdica, como a de Amitaba,


precisamos agrupar, de uma forma coerente, todas os vários fatores
associados com os aspectos da natureza búdica que são característicos
dessa família. Consideremos o exemplo de Amitaba. Os aspectos
associados são:

o A consciência profunda das individualidades


o O agregado da distinção
o A fala
o A consciência olfativa (como um animal capaz de distinguir
precisamente pelo cheiro)
o O fogo
o O desejo e apego (com os quais focamos ou exageramos as boas
qualidades que distinguem um indivíduo)
o O símbolo do lótus (nascido em águas lamacentas, mas que não é
sujo de lama)
o Compaixão.
Quando relaxamos nossa forma de distinguir pessoas e coisas, colocando-
as em categorias fixas de palavras e conceitos, como fala e cheiro, e
afrouxamos o desejo e apego que surgem quando exageramos as boas
qualidades individuais de pessoas e coisas, distinguindo-as como
especiais, naturalmente permanecemos na qualidade búdica subjacente
da consciência profunda das individualidades. Essa consciência é como a
chama de uma lamparina, ela apenas ilumina as coisas, permitindo-nos
que as especifiquemos. Por natureza, essa consciência profunda não é
manchada por desejo e apego, assim como no exemplo do lótus.

Portanto, a consciência das individualidades nos permite estabelecer uma


comunicação compassiva com cada indivíduo.

Para conseguirmos chegar a esse nível, sustentamos todas as classes de


sutra e tantra distinguindo suas características individuais, mas sem nos
apegarmos a um como sendo mais especial em detrimento dos outros.
Dzogchen: Avançado

A História do Dzogchen
Dr. Alexander Berzin

Introdução

Dzogchen (rdzogs-chen), a grande perfeição, é um sistema de prática


Mahayana conduzindo à iluminação e envolve uma visão da realidade, um
modo de meditar e uma forma de comportamento (lta-sgom-spyod gsum).
É encontrado nas primeiras tradições (pré-budistas) Nyingma e Bon.

Bon, de acordo com a sua própria descrição, foi fundado por Shenrab
Miwo (gShen-rab mi-bo), em Tazig (sTag-gzig), uma área de cultura
iraniana na Ásia central, e foi levado no século XI a.C. para Zhang-zhung
(Tibete Ocidental). Não há nenhuma forma disto ser validado
cientificamente. O Buda viveu no século VI a.C., na India.

A Introdução do Budismo Pré-Nyingma e dos Ritos Zhang-zhung


ao Tibete Central

Em 645 d.C., Zhang-zhung foi conquistado por Yarlung (Tibete Central). O


imperador de Yarlung, Songtsen-gampo (Srong-btsan sgam-po), teve
esposas não só das famílias reais chinesa e nepalesa (ambas trouxeram
alguns textos e estátuas budistas), como também da família real de
Zhang-zhung. A corte adotou rituais funerários e sacrifícios de animais, de
Zhang-zhung (Bon), embora Bon diga que o sacrifício de animais era
originário do Tibete e não um costume Bon. O imperador construiu treze
templos budistas em redor do Tibete e do Butão, mas não fundou
nenhuns mosteiros.

Esta fase pré-Nyingma do budismo, no Tibete Central, não continha


ensinamentos dzogchen. De fato, é difícil verificar o nível de prática e
ensinamentos budistas que foram introduzidos. Eram sem dúvida muito
limitados, como terá sido com o caso dos ritos de Zhang-zhung.

Guru Rinpoche e a Introdução de Dzogchen Nyingma

O imperador Tri Songdetsen (Khri Srong sde-btsan), a principal figura


seguinte, era cauteloso com relação aos chineses e paranóico àcerca de
Zhang-zhung, muito provavelmente por seu pai, pró-chinês, ter sido
assassinado pela xenófoba e conservadora facção política da corte
imperial de Zhang-zhung. Em 761, convidou Shantarakshita, o abade
budista indiano, que fosse ao Tibete. Havia uma epidemia de varíola. A
facção zhang-zhung, na corte, acusou Shantarakshita e expulsou-o do
reino. Seguindo o conselho do abade, o imperador convidou então Guru
Rinpoche (Padmasambhava) de Swat (noroeste do Paquistão), que
expulsou os demónios que tinham causado a varíola. O imperador tornou
então a convidar Shantarakshita para o seu regresso.

Guru Rinpoche partiu em 774, sem ter terminado a completa transmissão


do dzogchen. Vendo que os tempos não estavam ainda maduros, enterrou
alguns textos como textos-tesouro enterrados (gter-ma, "terma"). Eram
textos exclusivamente sobre dzogchen.

O Mosteiro de Samye e o Exílio dos Bonpos

O mosteiro de Samye (bSam-yas) (o primeiro mosteiro no Tibete com os


primeiros sete monges tibetanos) foi completado pouco depois. Chineses
da tradição Chan (Jap. Zen), indianos e tradutores de Zhang-zhung
trabalharam lá conjuntamente. O budismo tornou-se a religião do estado
em 779, provavelmente porque o imperador Tri Songdetsen precisava de
uma cultura alternativa a Zhang-zhung para unificar o país. O imperador
incumbiu três famílias para o sustento de cada monge.

Em 781, o Tibete conquistou Dunhuang (Tunhuang, um oásis budista na


Rota da Seda, no noroeste do Tibete) à China. Não obstante, desde esse
ano de 781, para manter a sua influência, o imperador chinês enviou para
Samye, em anos alternados, dois monges chineses.

Shantarakshita morreu em 783, alertando sobre os problemas com os


chineses, e aconselhou que convidassem o seu discípulo Kamalashila para
os debater, e os tibetanos assim o fizeram.

No ano seguinte, em 784, uma grande perseguição e o exílio dos Bonpos


(seguidores do Bon) tiveram lugar. A maioria foi para Gilgit (norte do
Paquistão) ou para Yunnan (sudoeste da China). De acordo com o relato
tradicional Bon, Zhang-zhung Drenpa-namka (Dran-pa nam-mkha')
enterrou nesta altura os textos Bon (todas as categorias, não apenas
dzogchen) para os salvaguardar.

A análise histórica e política revela que o motivo para o exílio teve como
base a suspeita de que a conservadora e xenófoba facção política de
Zhang-zhung poderia assassinar o imperador por ele ser pró-indiano, tal
como tinham feito a seu pai. Apesar disso, o estado manteve os rituais
funerários e os sacrifícios Bon. Daí, é razoável concluir que se tratava de
uma perseguição à facção política de Zhang-zhung, e não uma
perseguição à religião Bon.

Por este motivo, vários eruditos ocidentais afirmam que neste período o
termoBonpo (seguidores do Bon) tinha principalmente uma conotação
política em vez de religiosa. Era usado para a facção política de Zhang-
zhung da corte e para os seus seguidores, em vez de ter sido usado para
os líderes espirituais que executavam os ritos religiosos de Zhang-zhung
na corte, e para os seus seguidores.

Vairochana, Vimalamitra, e o Debate de Samye

O imperador Tri Songdetsen enviou, à India, Vairochana, um dos sete


monges tibetanos originais de Samye, para trazer mais textos. De
regresso, ele trouxe tantras de medicina budista e dzogchen, e convidou
Vimalamitra, o mestre de dzogchen indiano, que trouxe mais textos.

O debate de Samye entre o budismo indiano e o chinês ocorreu em 792-


794. O lado indiano, liderado por Kamalashila, venceu; os chineses,
conduzidos por Hoshang Mahayana (chinês para “monge Mahayana”),
foram expulsos do Tibete. Os tibetanos adotaram oficialmente o budismo
indiano e a medicina budista indiana, embora tivessem mantido algumas
influências da medicina chinesa a ela combinadas.

Pouco tempo depois, o tibetano Vairochana exilou-se após os abades


indianos o terem difamado por revelar de mais e, assim, ele enterrou mais
textos dzogchen, tal como o fez o indiano Vimalamitra.

As Três Divisões de Textos-Tesouro Nyingma

Dos textos-tesouro enterrados por Vairochana e Vimalamitra e daqueles


anteriormente enterrados por Guru Rinpoche, os ensinamentos dzogchen
foram mais tarde divididos em três divisões.

1. semdey (sems-sde, divisão da mente) – enfatizando a consciência pura


(rig-pa) como base para tudo (kun-gzhi, Sânsc. alaya),
2. longdey (klong-sde, divisão do espaço aberto) – enfatizando o aspecto
do espaço aberto cognitivo (klong) da consciência pura como base para
tudo,
3. menngag-dey (man-ngag sde, divisão das instruções pessoais) –
também chamada nyingtig (snying-thig, divisão da essência do
coração), enfatizando a consciência pura como sendo
fundamentalmente pura (ka- dag).

As duas primeiras derivam dos textos-tesouro enterrados pelo monge


tibetano Vairochana e não são atualmente muito praticadas. A divisão da
mente vem dos textos indianos que Vairochana traduziu; a divisão do
espaço aberto [vem] dos seus ensinamentos orais. A divisão das
instruções pessoais tem duas seções [vindas] de dois professores
indianos: uma do Guru Rinpoche – Kadro Nyingtig (mKha'-'gro snying-
thig, Ensinamentos sobre a Essência do Coração da Dakini) – e a outra de
Vimalamitra – Vima Nyingtig (Bi-ma snying-thig, Ensinamentos de
Vimalamitra sobre a Essência do Coração).

A Perseguição ao Budismo

Em 821, o imperador Ralpachen (Ral-pa-can) (um budista fanático), após


ter assinado um tratado de paz com a China (incluindo sacrifício animal),
fez do abade de Samye o líder do Conselho de Estado. Decretou que cada
monge no Tibete fosse sustentado por sete famílias. Também formou um
Conselho para a autorização dos vocábulos a serem incluídos num grande
compêndio Sânscrito-Tibetano de vocábulos de
tradução, Mahavyutpatti (Bye-brag-tu rtogs-pa chen-po, Grande [Léxico]
para Compreender [Termos] Específicos), que ele tinha mandado compilar.
Nenhum vocábulo tântrico foi incluído. O imperador e o seu Conselho
decidiam o que era traduzido e permitiam a prática somente das duas
primeiras classes do tantra.

Muito provavelmente devido aos excessos do imperador Ralpachen, o seu


sucessor, o imperador Langdarma (gLang-dar-ma), fechou os mosteiros e
perseguiu os monges, de 836 a 842. As bibliotecas budistas e a tradição
leiga ngagpa (sngags-pa, tântrica), no entanto, foram preservadas.

Em 913, os primeiros textos-tesouro Bon enterrados foram casualmente


recuperados em Samye.

As Novas Escolas de Transmissão

No final do século X, Atisha foi chamado da India, para clarificar mal


entendidos acerca do budismo, especialmente sobre o tantra, a respeito
do sexo e dos sacrifícios. Novas traduções foram feitas do sâ nscrito,
começando com as obras de Rinchen-zangpo (Rin-chen bzang-po).

Durante o início do século XI, as tradições Kadam (mais tarde tornou-se


Gelug), Sakya e Kagyu desenvolveram-se como Escolas Sarma (gSar-ma,
Nova Transmissão, Novo Tantra). Em contraste, Nyingma é a Escola da
Antiga Transmissão ou do Antigo Tantra.

O Bon também se reavivou nesta altura, mas agora os seus conteúdos são
muito budistas. Os textos Bon foram sistematizados em 1017 – na maior
parte textos não-dzogchen, nas categorias principais da literatura budista.
Mais tarde no século XI, textos Nyingma e mais textos dzogchen Bon
foram encontrados, frequentemente pela mesma pessoa.

As Linhagens dos Textos-Tesouro do Sul e do Norte

Na primeira metade do século XIV, o mestre Sakya Buton (Bu-ston Rin-


chen grub) compilou o Manuscrito Zhalu, que foi o precursor
do Kangyur (bKa'-'gyur, as palavras do Buda). Nele, não incluiu quaisquer
matérias dzogchen, nem matérias das traduções dos tantras do Período
da Antiga Tradução.

Longchenpa (Klong-chen Rab-'byams-pa Dri-med 'od-zer),


comtemporâneo de Buton, uniu Kadro e Vima Nyingtig em Zabmo
Nyingtig (Zab-mo snying-thig, Ensinamentos Profundos da Essência do
Coração), e compilou e organizou os textos dzogchen disponíveis no seu
tempo. Dele deriva a Linhagem Nyingma de Textos-Tesouro do Sul (lho-
gter).

Na segunda metade do século XIV, Bon sistematizou o seu equivalente


do Kangyur, que inclui dzogchen.

A Linhagem Nyingma de Textos-Tesouro do Norte (byang-gter) foi


iniciada, no final do século XIV, por Rigdzin Godem Je (Rig-dzin rGod-ldem
rJe dNgos-grub rgyal-mtshan), um descendente de antigos reis tibetanos.
O líder desta linhagem é denominado de Rigdzin chenpo (rig-'dzin chen-
po).

Compilação do Cânone Nyingma e dos Textos Principais

No início do século XV, Ratna Lingpa (Ratna gling-pa) compilou


o Nyingma Gyubum (rNying-ma rgyud-'bum, Grande Número de
Tantras Nyingma), a coleção de todos os textos dzogchen e de todas as
traduções da Antiga Transmissão dos tantras, desenvolvendo o trabalho
de Longchenpa.

No final do século XVIII, Jigme Lingpa ('Jigs-med gling-pa mKhyen-brtse


'od-zer), reviu Zabmo Nyingtig de Longchenpa e o transformou
em Longchen Nyingtig (Klong-chen snying-thig, Ensinamentos de
Longchenpa sobre a Essência do Coração), o principal sistema de dzogchen
Nyingma praticado presentemente. O Primeiro Dodrubchen (rDo-grub
chen 'Jigs-med 'phrin-las 'od-zer), um discípulo seu, escreveu para ele um
texto ritual de práticas preliminares, Longchen ngondro (Klong-chen
sngon-'gro).

Paltrul (rDza dPal-sprul 'O-rgyan 'jigs-med dbang-po; Patrul Rinpoche),


uma das reencarnações de Jigme Lingpa, escreveu Instruções e
Recomendações do Meu Mentor Espiritual (Samantabhadra) Totalmente
Excelente (Kun-bzang bla-ma'i zhal-lung,Palavras Perfeitas do Meu
Excelente Professor, Kunzang Lamey Zhellung). Este é o texto Nyingma
mais detalhado sobre o equivalente do lam-rim (estágios graduais do
caminho) e sobre as preliminares para Longchen Nyingtig.

O Movimento Não-Sectário Rime

Também na geração seguinte, depois de Jigme Lingpa, dos três


fundadores principais do Rime (movimento não-sectário): Kongtrul
(Kong-sprul Yon-tan rgya-mtso), Jamyang-kyentsey-wangpo ('Jam-
dbyangs mkhyen-brtse dbang-po), e Mipam ('Ju Mi-pham rgya-mtsho), o
último escreveu os principais comentários Nyingma para os textos
fundamentais.

Choggyur Lingpa (mChog-gyur bde-chen gling-pa) era tanto um discípulo


e mestre de Kongtrul e Jamyang-kyentsey-wangpo. Seu ciclo de
terma, Chogling Tersar (mChog-gling gter-gsar; O Novo Texto-Tesouro de
Chogling), é seguido por ambas as escolas Nyingma e Karma Kagyu.

O Terceiro Dodrubchen (rDo-grub-chen 'Jigs-med bstan-pa'i nyi-ma),


discípulo de Peltrul e Jamyang kyentsey-wangpo, escreveu os mais claros
comentários sobre dzogchen – Ciclos Dzogchen (rDzogs-chen skor)
e Escritas Variadas sobre Dzogchen (rDzogs-chen thor-bu) – pondo
dzogchen no contexto das outras tradições do budismo tibetano. Estes
são os comentários nos quais Sua Santidade o XIV Dalai Lama confia
fortemente como fonte para as suas explicações àcerca da teoria unificada
de todas as quatro tradições tibetanas.

Dzogchen é Budista ou Bon?

Dzogchen é budista ou Bon? Ambos levam à iluminação, e usam a


expressão budeidade. Dharmakirti, o mestre indiano do século VII, disse
que se um trabalho estiver de acordo com os temas principais do Buda, é
um ensinamento do Buda. Assim, tanto o dzogchen Nyingma como o Bon
são claramente ensinamentos budistas Mahayana porque ambos
possuem características compartilhadas com os sutras Mahayana. Cada
um, é claro, tem também as suas características únicas e não-comuns.
Além disso, se dissermos que dzogchen é uma divisão do tantra ou que
ultrapassa as divisões do sutra e do tantra, dzogchen Nyingma e Bon
também possuem características em comum com as várias classes do
tantra.

Dado que tanto Nyingma como Bon asseveram ser a origem de dzogchen
e que a outra [tradição] copiou-o dele, há três possibilidades:

1. Dzogchen desenvolveu-se muito cedo no budismo, e Bon recebeu-o


através da primeira propagação do budismo no Irão e na Ásia central,
através de Zhang-zhung. Assim, dzogchen Bon teve uma origem
budista, mas não diretamente do budismo indiano.
2. Bon aprendeu dzogchen do Guru Rinpoche, em Samye, e enterrou-o
quando a facção Bon de Zhang-zhung foi exilada em 784,
principalmente para Gilgit (norte do Paquistão).
3. Quando os Bonpos de Zhang-zhung estavam exilados em Gilgit, aí
aprenderam-no, separadamente do Guru Rinpoche.

Não é possível chegarmos a uma conclusão decisiva sobre qual das


possibilidades seja a correta.

Dzogchen nas Tradições Kagyu

Vindo do final do século XII do seu fundador Tsangpa Gyaray (gTsang-pa


rGya-ras), dzogchen é também encontrado em Drugpa Kagyu.

O III Karmapa (Kar-ma Rang-byung rdo-rje) introduziu o dzogchen em


Karma Kagyu no início do século XIV e escreveu Karma Nyingtig (Kar-ma
snying-thig, Ensinamentos sobre a Essência do Coração, de Karmapa).
Estudou dzogchen com Kumararaja, o mesmo professor de dzogchen que
Longchenpa teve. Assim, o Guru Rinpoche é visualizado no coração do II
Karmapa, Karma Pakshi, na prática de Karma Pakshi. Há também uma
prática Karma Kagyu do Guru Rinpoche.

Dzogchen entrou na tradição Drigung (Drikung) Kagyu através dos


textos-tesouro descobertos pelos mestres do século XVI Drigung Ratna
(rGyal-dbang Rin-chen phun-tshogs ‘Bri-gung Ratna) e o IV Drigung Lho
Jedrung (‘Bri-gung Lho rJe-drung O-rgyan nus-ldan rdo-rje).
Dzogchen e os Dalai Lamas

Em meados do século XVII, o V Dalai Lama teve visões puras de dzogchen.


Compilou-as em Carregando o Selo do Silêncio (gSang-ba rgya-can) e
introduziu estas práticas dzogchen no seu Mosteiro Namgyal cujas
práticas são, na maior parte, Gelug.

O Guru Rinpoche profetizou que se a linha dos antigos reis tibetanos –


cujos descendentes, a linha dos Rigdzin-chenpos, eram os líderes da
Linhagem dos Textos-Tesouro do Norte – fosse interrompida, isso seria
prejudicial ao Tibete. Assim, o V Dalai Lama transmitiu as suas linhagens
dzogchen também ao Rigdzin-chenpo da sua época. Consequentemente, a
Linhagem dos Textos-Tesouro do Norte também pratica os ensinamentos
dzogchen do V Dalai Lama.

O Rigdzin-chenpo seguinte transmitiu ao Mosteiro de Nechung, o


mosteiro do oráculo estatal, Nechung (gNas-chung), os ensinamentos
dzogchen do V Dalai Lama. Em Samye, o oráculo de Nechung foi
incumbido pelo Guru Rinpoche de proteger o Tibete. Tem havido uma
ligação pessoal entre os Dalai Lamas e o oráculo de Nechung desde a
época do II Dalai Lama, quando ele foi do Mosteiro de Tashilhunpo para o
Mosteiro de Drepung.

O V Dalai Lama também designou o detentor do trono do mosteiro


Nyingma de Mindroling (sMin-gling khri-can, "Minling Trichen") como
líder da Linhagem dos Textos-Tesouro do Sul. Assim, o V Dalai Lama
suportou as duas principais linhagens Nyingma. Tem havido, desde então,
uma conexão próxima entre a linha dos Dalai Lamas e a tradição
Nyingma.
Orações e Rituais
A principal prática budista é transformar nossas mentes através da eliminação
de nosso lado destrutivo e melhorar as nossas emoções positivas. Embora a
oração e o ritual não possam fazer isso sozinhos, eles podem ajudar a nossa
meditação e o nosso estudo, dando estrutura às nossas atividades do Dharma.
Um equilíbrio de elementos intelectuais, emocionais e devocionais faz com que
a nossa prática budista se torne holística e completa.

.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 Votos
 Preliminares
Práticas Tântricas
Votos

Ações para Treinar a Partir da


Tomada de Refúgio
Dr. Alexander Berzin

Introdução

Tomar refúgio (skyabs-'gro) significa darmos formalmente às nossas


vidas uma direção segura e positiva, indicada pela Tripla Jóia – os Budas,
Dharma e Sangha – e prometermos manter esta direção firme, constante e
resolutamente, até ela nos levar à liberação ou à iluminação.

A tomada formal de refúgio numa cerimónia de votos bodhisattva ou


numa iniciação tântrica, quer num empoderamento completo
(dbang, “wang”) quer numa cerimónia de permissão subsequente (rjes-
snang, “jenang”), é equivalente à tomada de refúgio num ritual separado
com um professor espiritual. Cortar um pouco de cabelo e receber um
nome de Dharma não são componentes essenciais do procedimento. São
dispensáveis quando se toma refúgio numa cerimónia de votos de
bodhisattva ou numa iniciação, mesmo se for pela primeira vez.
Quando formalmente orientamos as nossas vidas com a direção segura e
positiva do refúgio, comprometemo-nos a praticar dois grupos de ações
(skyabs-'gro bslabs-bya) que são úteis para manter esta direção:

(1) práticas especificadas em Texto Todo-Inclusivo (bsdu-ba-las 'byung-


ba'i bslabs-bya),

(2) práticas especificadas em instruções pessoais (man-ngag-las 'byung-


ba'i bslabs-bya).

O primeiro deriva do Texto Todo-Inclusivo para Determinar


Certezas (gTan-la dbab-pa bsdu-ba, Sânsc. Vinishcaya-samgraha), um dos
cinco textos do Níveis da Mente para Comportamento Integrado (rNal-
'byor spyod-pa'i sa, Sânsc. Yogacaryabhumi) por Asanga, o mestre indiano
do século IV ou V.

O segundo contém dois sub-grupos:

(1) práticas individuais para cada uma das Três Jóias (so-so'i bslab-bya)

(2) práticas partilhadas com todas as Três Jóias (thun-mong-ba'i bslab-


bya).

Estes três grupos de ações a praticar não são votos. Se transgredirmos


qualquer um deles, apenas enfraquecemos a nossa direção segura na
vida. Não perdemos essa direção a não ser que formalmente a
abandonemos.

Práticas Especificadas em Texto Todo-Inclusivo

As ações a praticar com base no texto de Asanga incluem dois grupos de


quatro ações. O primeiro grupo abrange uma ação que é paralela à
tomada da direção segura dos Budas, duas do Dharma, e uma do Sangha.
O segundo grupo de quatro ações está relacionado com a Jóia Tripla como
um todo.

Paralelamente à tomada da direção segura dos Budas, (1) o compromisso


com todo o coração a um professor espiritual. Se ainda não tivermos
encontrado um professor pessoal para dirigir a nossa prática, este
compromisso será o de encontrar um.

A tomada formal de refúgio na presença de um professor não implica


necessariamente comprometermo-nos a seguir esse professor como
nosso guia espiritual. É importante, naturalmente, manter sempre
respeito e gratidão por essa pessoa que abriu as portas à nossa direção
segura na vida. Contudo, o nosso refúgio é na Jóia Tripla – representada
por uma estátua ou pintura de Buda durante a cerimónia – e não na
pessoa específica que conduz o ritual. Só dentro do contexto de uma
iniciação tântrica é que o professor personifica as Três Jóias de Refúgio e
que a tomada de direção segura cria a ligação formal entre mestre
espiritual e discípulo.

Além disso, independentemente do contexto, a nossa direção segura é a


da Jóia Tripla em geral, não a de uma linhagem específica ou tradição
budista. Se o professor que conduz a cerimónia de refúgio ou a iniciação
for de uma linhagem particular, receber dele a direção segura ou
empoderamento não nos torna necessariamente um seguidor dessa
mesma linhagem.

Para manter a direção do Dharma na vida, [temos de] (2) estudar os


ensinamentos budistas e (3) focalizar a atenção nos aspectos dos
ensinamentos para superar especificamente as nossas emoções e atitudes
perturbadoras. O estudo académico não é suficiente; nós precisamos de
aplicar o Dharma às nossas vidas pessoais.

Para a tomada de direção da comunidade Sangha de praticantes


altamente realizados (aryas), [precisamos] (4) seguir o seu exemplo.
Fazê-lo não significa necessariamente nos tornarmos monásticos mas, em
vez disso, fazer esforços sinceros para compreender direta e não-
conceptualmente os quatro verdadeiros fatos da vida (as quatro verdades
nobres). Estes são: a vida é difícil; as nossas dificuldades vêm de uma
causa, isto é, a confusão sobre a realidade; nós podemos acabar com os
nossos problemas; e para fazê-lo precisamos da compreensão da
vacuidade como uma mente do caminho interior.

Paralelamente à tomada da direção segura na Jóia Tripla como um todo,


[temos de] (5) afastar as nossas mentes da perseguição aos prazeres
sensoriais, quando elas distraidamente os perseguirem e, em vez disso,
trabalhar em nós próprios, como tarefa principal das nossas vidas. Isto
significa devotarmos o nosso tempo e energia à superação das nossas
falhas e à realização dos nossos talentos e potenciais, em vez de
perseguirmos sempre mais e mais entretenimento, alimento e
experiências sexuais, e de acumularmos sempre mais e mais dinheiro e
posses materiais.

(6) Adotar os padrões éticos que o Buda estabeleceu. Esta ética é baseada
no claro discernimento entre o que é útil e o que é prejudicial a uma
direção segura na vida, e não na obediência a um grupo de leis ordenadas
divinamente. Assim, seguir a ética budista significa nos refrearmos de
certos modos de conduta porque são destrutivos e dificultam as nossas
capacidades de beneficiar a nós ou aos outros, e abraçarmos outros
modos de conduta porque são construtivos e nos ajudam a crescer.

(7) Tentar ser benevolente e compassivo para com os outros tanto quanto
possível. Mesmo se os nossos objetivos espirituais forem apenas os de
obter a liberação dos nossos problemas pessoais, isto nunca [deve ser] à
custa dos outros.

Finalmente, para manter a nossa ligação com a Tripla Jóia, (8) fazer
oferendas especiais de fruta, flores e assim por diante, nos dias santos
budistas, tais como o aniversário da iluminação de Buda. Observar
feriados religiosos com rituais tradicionais ajuda-nos a sentir que
fazemos parte de uma comunidade maior.

Práticas Individuais para Cada Uma das Três Jóias

O primeiro grupo de ações que deriva das instruções recomendadas


abrange a prática das três ações a evitar (dgag-pa'i bslabs-bya) e das três
ações a praticar (sgrub-pa'i bslab-bya), ligadas individualmente a cada
uma das Três Preciosas Jóias. As ações evitadas conduzem a uma direção
contrária na vida, enquanto que as adotadas promovem a consciência do
objetivo.

As três ações a evitar são: (1) a tomada de direção predominante de outro


lugar, apesar da tomada de direção segura dos Budas. A coisa mais
importante da vida já não é o acumular de tantos objetos materiais e
experiências divertidas quanto possíveis, mas de tantas boas qualidades
quanto as conseguirmos – tais como o amor, a paciência, a concentração e
a sabedoria – a fim de sermos mais úteis aos outros. Isto não é um voto de
pobreza e de abstinência mas, pelo contrário, uma afirmação de termos
uma direção mais profunda na vida.

Mais especificamente, este compromisso significa não tomarmos refúgio


final em deuses ou espíritos. O budismo, particularmente na sua forma
tibetana, contém com frequência ceremónias rituais (puja) dirigidas a
várias figuras búdicas (yidam, deidades tântricas) ou protetores ferozes, a
fim de ajudar a afastar obstáculos e a realizar alvos construtivos. A
execução destas cerimónias faculta circunstâncias que fazem com que os
potenciais negativos amadureçam em obstáculos triviais, em vez de
grandes obstáculos, e que os potenciais positivos amadureçam mais
depressa em vez de mais tardiamente. Porém, se tivermos acumulado
potenciais extremamente negativos, estas ceremónias serão ineficazes no
desvio das dificuldades. Por conseguinte, pacificar deuses, espíritos,
protetores, ou até mesmo Budas nunca será um substituto à atenção ao
nosso karma – evitar a conduta destrutiva e agir de uma maneira
construtiva. O budismo não é um caminho espiritual de adoração a
protetores nem mesmo de adoração ao Buda. A direção segura do
caminho budista é o trabalho para nos transformarmos a nós próprios em
seres liberados ou iluminados.

(2) Prejudicar ou causar problemas a seres humanos ou animais, apesar


da tomada de direção segura do Dharma. Uma das principais
recomendações que Buda ensinou foi ajudar os outros tanto quanto
possível, e se não pudermos ajudar pelo menos não causar nenhum mal.

(3) Associar intimamente com pessoas negativas, apesar da tomada de


direção segura do Sangha. Evitar tal contato ajuda-nos a não sermos
facilmente afastados dos nossos objetivos positivos quando a nossa
direção na vida ainda é fraca. Não significa termos de viver numa
comunidade budista mas, em vez disso, termos cuidado com as
companhias que mantemos e tomarmos as medidas necessárias e
adequadas para evitar influências prejudiciais.

As três ações a adotar como sinal de respeito são: honrar (4) todas as
estátuas, pinturas e representações artísticas de Budas; (5) todos os
livros, especialmente os relacionados com o Dharma; e (6) todas as
pessoas com votos monásticos budistas, e até os seus mantos.
Tradicionalmente, os sinais de desrespeito são: pisar tais objetos; sentar
ou estar de pé em cima deles; e colocá-los diretamente no assoalho ou no
chão sem colocar pelo menos um pedaço de pano embaixo deles. Embora
estes objetos não sejam as verdadeiras fontes de direção segura, eles
representam os seres iluminados, as suas realizações supremas e os
praticantes altamente realizados e avançados nesse objetivo, e nos
ajudam a permanecer conscientes deles.

Práticas Partilhadas Com Todas as Três Jóias

O último grupo de compromissos da tomada de direção segura é a prática


das seis ações relacionadas com as Três Preciosas Jóias como um todo. As
seis são:

(1) Reafirmar a nossa direção segura lembrando-nos continuamente das


qualidades das Três Jóias de Refúgio, e das diferenças entre elas e outras
possíveis direções na vida.

(2) Oferecer diariamente à Tripla Jóia, com gratidão pela sua bondade e
apoio espiritual, a primeira porção das nossas bebidas e refeições
quentes. Geralmente isto é feito por imaginação, embora possamos
também colocar uma pequena porção da nossa primeira bebida quente
do dia perante uma estátua ou pintura de Buda. Mais tarde, imaginamos
que os Budas nos devolvam a oferta, para nós próprios a apreciarmos e a
bebermos. Seria altamente desrespeitoso deitar as nossas oferendas para
a latrina ou derramá-las no lavatório.

Não é necessário, ao fazer oferendas de comidas ou bebidas, recitar um


verso numa língua estrangeira que não conhecemos, a não ser que
achemos o seu mistério inspirador. Pensar simplesmente “Budas, por
favor, Budas, apreciem isto” é suficiente. Se as pessoas com quem
estamos comendo não forem budistas, é melhor fazer esta oferenda
discretamente, de modo a que ninguém saiba o que estamos fazendo. Dar
um espetáculo com a nossa prática apenas favorece o desconforto ou o
zombar dos outros.

(3) Conscientes da compaixão da Tripla Jóia, incentivar indiretamente os


outros a irem em sua direção. A intenção deste compromisso não é a de
nos transformamos em missionários tentando converter os outros. Não
obstante, as pessoas receptivas a nós e que estão perdidas na vida, sem
direção ou com uma direção negativa, geralmente acham útil a nossa
explicação sobre a importância e o benefício que nós próprios obtivemos
por termos uma direção segura e positiva. Que os outros se tornem
budistas ou não, não é o objetivo. Os nossos próprios exemplos podem
incentivá-los a fazer algo construtivo com as suas vidas, trabalhando em
si próprios para crescerem e melhorarem.

(4) Recordar os benefícios de ter uma direção segura, reafirmando-a


formalmente três vezes todas as manhãs e três vezes todas as noites –
geralmente de manhã logo após o acordar e à noite imediatamente antes
do dormir. Esta afirmação é normalmente feita, repetindo: “eu tomo
direção segura dos professores, Budas, Dharma e Sangha”. Os professores
espirituais não constituem uma quarta jóia preciosa, mas fornecem o
acesso às três. Dentro do contexto do tantra, os mestres espirituais
personificam todos eles.

(5) Seja o que for que aconteça, confiar na nossa direção segura. Em
épocas de crise, a direção segura é o melhor refúgio porque lida com a
adversidade procurando eliminar a sua causa. Os amigos podem nos dar
simpatia mas, a menos que sejam seres iluminados, deixam-nos
inevitavelmente desapontados. Têm os seus próprios problemas e são
limitados naquilo que podem fazer. Porém, trabalhar constantemente
para a superação das falhas e dificuldades de uma maneira séria e
realista, nunca falha na hora da nossa necessidade.
Isto conduz ao compromisso final; (6) nunca abandonar esta direção na
vida, seja o que for que aconteça.

Tomar Refúgio e Seguir Outras Religiões ou Caminhos Espirituais

Algumas pessoas perguntam se fazer votos de refúgio significa


converterem-se ao budismo e abandonarem para sempre as suas
religiões nativas. Este não é o caso, a menos que o queiramos fazer. Não
há nenhuma palavra em tibetano literalmente equivalente a “budista”. A
palavra utilizada para um praticante significa “alguém que vive no
interior”, ou seja, dentro dos limites da tomada de uma direção segura e
positiva na vida. Viver esse tipo de vida não requer o uso de uma corda de
proteção vermelha à volta dos nossos pescoços e nunca entrar numa
igreja, sinagoga, templo hindu, ou altar confuciano. Pelo contrário,
significa trabalhar em nós próprios para superarmos as nossas falhas e
realizarmos os nossos potenciais – ou seja, para realizarmos o Dharma –
como os Budas o fizeram e os praticantes altamente realizados, Sangha, o
estão fazendo. Pomos os nossos principais esforços nesta direção. Como
tantos mestres budistas disseram, incluindo o meu próprio já falecido
professor, Tsenzhab Serkong Rinpoche, se examinarmos os ensinamentos
sobre a caridade e o amor das outras religiões, como o cristianismo,
teremos de concluir que seguí-los não vai contra a direção ensinada pelo
budismo. Em todas as religiões a mensagem humanitária é a mesma.

A direção segura e positiva do nosso refúgio é principalmente o abandono


das dez ações mais destrutivas (dez não-virtudes): tirar a vida de
qualquer criatura viva; tirar o que não é dado; dar rédea solta ao
impróprio comportamento sexual; mentir; falar de um modo que crie
divisões; usar uma linguagem áspera e cruel; conversar sem sentido; e
pensar numa maneira cobiçosa e maliciosa ou distorcida e antagónica.
Tomar uma direção budista na vida apenas envolve o nosso afastamento
dos ensinamentos de outros sistemas religiosos, filosóficos ou politicos
que incentivam a ação, fala ou pensamento envolvendo essas ações
destrutivas, e que é prejudicial tanto para nós como para os outros. E
mais, embora não haja nenhuma proibição de ir à igreja, manter uma
direção constante significa não focalizar todas as nossas energias nesse
aspecto das nossas vidas, à negligência do nosso estudo e à prática
budista.

Algumas pessoas pretendem saber se a tomada de refúgio como parte de


uma ceremónia tântrica requer que deixem de praticar zen ou sistemas
de treinamento físico, tais como hatha yoga ou artes marciais. A resposta
é não, porque esses também são métodos para realizar os nossos
potenciais positivos e não comprometem a nossa direção segura na vida.
Porém, todos os grandes mestres recomendam que não se misturem nem
se adulterem as práticas de meditação. Se quisermos comer uma sopa e
um tomar um café ao almoço, não derramamos o café na sopa e bebemos
os dois juntos. Fazer cada dia vários tipos de práticas diferentes não faz
mal. No entanto, é melhor fazê-los em sessões separadas, fazendo cada
prática de uma forma que honre os seus costumes individuais. Assim
como seria ridículo ao entrar numa igreja oferecer três prostrações ao
altar, do mesmo modo seria impróprio recitar mantras durante uma
sessão de meditação zen ou vipassana.
Ações para Treinar a Partir das
Promessas de Bodhichitta
Dr. Alexander Berzin

Bodhichitta de Aspiração e de Engajamento

Os bodhisattvas são aqueles que possuem bodhichitta (byang-sems) – um


coração totalmente dedicado aos outros e dirigido à iluminação para
beneficiá-los tão inteiramente quanto possível. Há dois níveis de
bodhichitta:

1. aspirativa (smon-sems),
2. engajada ('jug-sems).

A bodhichitta aspirativa é o forte desejo de superar as nossas falhas e


realizar os nossos potenciais para benefício de todos. Bodhichitta
engajada significa o engajamento nas práticas que levam a esse objetivo, a
obtenção dos votos de bodhisattva, e a abstenção das ações a ele
prejudiciais. A diferença entre os dois níveis é semelhante à diferença
entre o desejo de nos tornarmos num doutor e ingressarmos
efetivamente numa escola de medicina.

Bodhichitta Meramente de Aspiração e Prometida

Através da participação numa cerimónia especial, podemos gerar o


estado aspirativo de bodhichitta. Isto, porém, não envolve o recebimento
dos votos de bodhisattva.

A bodhichitta aspirativa tem dois estágios:

1. o mero desejo de nos transformarmos num Buda para o benefício dos


outros (smon-sems smon-pa-tsam),
2. a promessa de nunca abandonar esse alvo até ele ser alcançado (smon-
sems dam-bca'-can).

Com o estado prometido de bodhichitta, prometemos praticar as cinco


ações que nos ajudam a nunca perder a nossa determinação. Desenvolver
o mero estado de desejo não envolve essa promessa. As primeiras quatro
práticas ajudam a nossa determinação bodhichitta a não declinar durante
esta vida. A quinta prática ajuda-nos a não perder a nossa determinação
nas vidas futuras.
Quatro Práticas para a Determinação Bodhichitta Não Declinar
Nesta Vida

1. Cada dia e cada noite, pensar nas vantagens da motivação bodhichitta.


Tal como superamos imediatamente a nossa fadiga e obtemos energia
quando precisamos de dar atenção aos nossos filhos, também
superamos facilmente todas as dificuldades e usamos todos os nossos
potenciais quando a nossa principal motivação na vida é a bodhichitta.
2. Reafirmar e fortalecer essa motivação, tornando a dedicar os nossos
corações à iluminação e aos outros três vezes cada dia e três vezes cada
noite.
3. Fazer um esforço para fortalecer as redes de força positiva e de
profundo apercebimento (coleções de mérito e sabedoria),
construtoras da iluminação. Ou seja, ajudar os outros tão eficazmente
quanto pudermos, e fazê-lo com tanto profundo apercebimento da
realidade quanto possível.
4. Nunca deixar de tentar ajudar alguém ou, pelo menos, desejar ser
capaz de o fazer, não importando quão difícil ele ou ela possa ser.

Prática para Não Perder a Determinação Bodhichitta nas Vidas


Futuras

O quinto ponto a praticar implica livrarmo-nos dos quatro tipos de


comportamento sombrio (nag-po'i chos-bzhi, quatro ações “pretas”) e, em
vez disso, a adoção dos quatro tipos de comportamento radiante (dkar-
po'i chos-bzhi, quatro ações “brancas”). Em cada um dos seguintes quatro
grupos, o primeiro tipo de comportamento é o sombrio, que nós tentamos
abandonar, e o segundo é o radiante que tentamos adotar.

1. Deixar, de uma vez por todas, de enganar os nossos professores


espirituais, pais ou a Jóia Tripla. Em vez disso, ser sempre honestos
com eles, especialmente sobre a nossa motivação e esforços para
ajudar os outros.
2. Deixar, de uma vez por todas, de criticar ou demonstrar desprezo pelos
bodhisattvas. Em vez disso, como só os Budas podem ter a certeza de
quem são realmente bodhisattvas, considerar todos de uma maneira
pura como nossos professores. Mesmo se as pessoas agirem de
maneiras grosseiras e desagradáveis, elas ensinam-nos a não nos
comportarmos desse modo.
3. Deixar, de uma vez por todas, de fazer com que os outros se
arrependam de qualquer coisa positiva que fizeram. Se alguém
cometer inúmeros erros ao datilografar para nós uma carta e nós
gritarmos violentamente, essa pessoa pode nunca mais nos oferecer
ajuda. Em vez disso, encorajar os outros a serem construtivos e, se
receptivos, a trabalharem para superar as suas falhas e realizarem os
seus potenciais para maior benefício de todos.
4. Deixar, de uma vez por todas, de sermos hipócritas ou pretensiosos ao
lidar com os outros, ou seja, deixar de esconder as nossas falhas e de
fingirmos ter qualidades que não temos. Em vez disso, assumir
responsabilidades na ajuda aos outros, sendo sempre honestos e
francos sobre as nossas limitações e habilidades. É muito cruel
prometer mais do que podemos fazer, dando falsas esperanças aos
outros.
Os Votos-Raiz de Bodhisattva
Dr. Alexander Berzin

Contexto

Um voto (sdom-pa) é uma forma invisível, sutil, num continuum mental,


que molda o comportamento. Especificamente, é um refreamento de uma
"ação não recomendável" (sdom-pa), que é naturalmente destrutiva
(rang-bzhin-gyi kha-na ma-tho-ba) ou que o Buda proibiu (bcas-pa'i kha-
na ma-tho-ba) a indivíduos específicos que estão treinando para alcançar
objetivos específicos. Um exemplo do primeiro tipo de ação seria matar
alguém; um exemplo do segundo seria comer depois do meio-dia, que os
monásticos precisam evitar para que suas mentes estejam mais claras ao
meditarem à noite e na manhã seguinte.

Dos dois estágios do desenvolvimento da bodhichitta, aspirativa (smon-


pa'i sems-bskyed) e engajada ('jug-pa'i sems-bskyed), somente com o
último fazemos votos de bodhisattva.

Tomar votos de bodhisattva (byang-sems sdom-pa) envolve a promessa


de refrear dos dois grupos de atos negativos que Buda proibiu àqueles
que estão treinando como bodhisattvas para alcançar a iluminação, para
serem de tanto benefício a outros quanto possível:

1. dezoito ações que, se cometidas, constituem uma queda-raiz (byang-


sems-kyi rtsa-ltung),
2. quarenta e seis tipos de comportamentos errados (nyes-byas).

Uma queda-raiz significa a perda de toda a série dos votos de bodhisattva.


É uma "queda" porque conduz a um declínio no desenvolvimento
espiritual e dificulta o crescimento das qualidades
positivas . A palavra raiz significa que é uma raiz a ser eliminada. Para
facilidade de expressão, esses dois grupos são geralmente chamadosvotos
de bodhisattva- raiz e secundários. Eles oferecem guias excelentes para os
tipos de comportamento a evitar se desejarmos beneficiar os outros de
uma maneira tão pura e completa quanto possível.

Atisha, o mestre indiano dos finais do século X, recebeu essa versão


particular dos votos de bodhisattva do seu professor de Sumatra,
Dharmakirti (Dharmapala) de Suvarnadvipa e depois os transmitiu ao
Tibete. Esta versão deriva do Sutra de Akashagarbha (Nam-mkha'i snying-
po mdo, Skt. Akashagarbhasutra), como citado emCompêndio de
Treinamentos (bSlabs-btus, Skt. Shikshasamuccaya), que foi escrito na
India por Shantideva no oitavo seculo. Atualmente, todas as tradições
tibetanas seguem-no, enquanto que as tradições budistas que derivam da
China observam versões variantes dos votos de bodhisattva.

A promessa de manter os votos de bodhisattva aplica-se não só a esta


vida, mas também a cada vida subsequente até à iluminação. Assim, como
formas sutis, esses votos perduram nos nossos continuums mentais em
vidas futuras. Se tivermos feito os votos numa vida passada, não os
perderíamos se agora cometêssemos uma transgressão total sem saber, a
não ser que os tivéssemos tomado recentemente durante a nossa vida
atual. Retomar os votos pela primeira vez durante esta vida fortalece o
momentum dos nossos esforços em direção à iluminação que têm
crescido desde que os tomamos pela primeira vez. Por conseguinte, os
mestres Mahayana enfatizam a importância de morrer-se com os votos de
bodhisattva intactos e fortes. Sua presença duradoura em nossos
continuums mentais estará acumulando força positiva (mérito) em vidas
futuras, mesmo antes de os revitalizarmos tomando-os uma vez mais.

Seguindo Uma Explanação da Disciplina Ética dos Bodhisattvas: O


Principal Caminhoà Iluminação (Byang-chub sems-dpa'i tshul-khrims-kyi
rnam-bshad byang-chub gzhung-lam), um comentário do século XV sobre
os votos de bodhisattva por Tsongkhapa, o fundador da tradição Gelug,
vamos examinar as dezoito ações negativas que constituem uma queda-
raiz. Cada uma tem várias estipulações que precisamos saber.

Os Dezoito Queda-raízes Bodhisattva

(1) Elogiarmo-nos a nós mesmos e/ou rebaixar os outros

Esta queda refere-se a falar assim com alguém de posição inferior. A


motivação tem de conter o desejo de obter lucro, elogio, amor, respeito, e
assim por diante da pessoa a quem nos dirigimos, ou ciúmes da pessoa
que rebaixamos. Não faz diferença se o que dissermos é verdadeiro ou
falso. Os profissionais que se dizem budistas necessitam ter cuidado para
não cometerem essa queda.

(2) Não partilhar ensinamentos de Dharma ou riqueza

Aqui, a motivação deve ser especificamente o apego e a avareza. Esta ação


negativa inclui não só não querer compartilhar nossos apontamentos ou
gravações (de ensinamentos), como também ser avarentos com nosso
tempo e recusar oferecer ajuda se for preciso.

(3) Não escutar as desculpas dos outros ou atacá-lo


A motivação para qualquer uma destas ações é a raiva. A primeira refere-
se a uma situação em que estamos gritando ou batendo em alguém que
nos pede perdão ou na qual outra pessoa nos pede para parar e nós
recusamos. A segunda é simplesmente bater em alguém. Às vezes, pode
ser necessário dar uma palmada em crianças ou animais de estimação
traquinas para fazer com que não corram para a estrada por não
prestarem atenção (no que estamos lhes dizendo), mas nunca é correto
ou útil disciplinar movido pelaa raiva.

(4) Rejeitar os ensinamentos Mahayana e prop ô r outros fictícios

Significa rejeitar os ensinamentos corretos sobre tópicos a respeito dos


bodhisattvas, tal como sobre seu comportamento ético, e inventar em seu
lugar uma instrução plausível, mas enganadora, sobre o mesmo assunto,
afirmá-la ser autêntica e, depois, ensiná-la a outros a fim de obter
seguidores. Um exemplo dessa queda é quando professores, ansiosos por
não assustar possíveis estudantes, desculpam o comportamento moral
liberal e explicam que qualquer tipo de ação é aceitável, desde que não
prejudique ninguém. Não precisamos ser um professor para cometer essa
queda. Podemos cometê-la até em conversações com os outros.

(5) Tirar oferendas destinadas à Tripla Jóia

Esta queda é roubar ou defraudar, pessoalmente ou através de outra


pessoa, qualquer coisa oferecida ou pertencente aos Budas, Dharma ou
Sangha, e depois considerá-la como nossa. Sangha, nesse contexto, refere-
se a qualquer grupo de quatro ou mais monásticos. Exemplos incluem:
defraudar fundos doados para a construção de um monumento budista,
para imprimir livros sobre Dharma, ou para alimentar um grupo de
monges ou monjas.

(6) Abandonar o sagrado Dharma

Rejeitar ou, exprimindo as nossas opiniões, fazer com que os outros


rejeitem os ensinamentos escriturais dos veículos dos shravakas (nyan-
thos), pratyekabuddhas (rang-rgyal), ou bodhisattvas como as palavras
de Buda. Shravakas são aqueles que escutam os ensinamentos de um
Buda enquanto ainda estão vivos, enquanto que os pratyekabuddhas são
praticantes que auto-evoluíram e que viverão principalmente durante as
eras das trevas, quando o Dharma já não estará diretamente disponível.
Para fazerem progresso espiritual, confiam na sua compreensão intuitiva,
obtida através do estudo e da prática feitas durante vidas passadas.
Coletivamente, os ensinamentos para ambos constituem o Hinayana, ou o
"veículo modesto" para obter a liberação pessoal do samsara. O veículo
Mahayana enfatiza métodos para se alcançar a completa iluminação.
Negar que todas ou mesmo apenas determinadas escrituras de qualquer
veículo (budista) derivam do Buda é uma queda de raiz.

Manter este voto não significa abdicar de uma perspectiva histórica. Os


ensinamentos de Buda foram transmitidos oralmente durante séculos,
antes de serem postos em escrito e, assim, ocorreram, sem dúvida,
corrupções e falsificações. Os grandes mestres que compilaram o cânone
budista tibetano certamente vão haver rejeitado textos que consideraram
inautênticos. Porém, em vez de basearem as suas decisões em
preconceitos, usaram o critério de Dharmakirti, mestre indiano do século
VII, para avaliar a validade de todo o material – que é a possibilidade de
praticá-los para realizar os objetivos budistas: um renascimento melhor,
a liberação, ou até mesmo a iluminação. Diferenças estilísticas entre
escrituras budistas, e até dentro de um texto específico, indicam
frequentemente diferenças na época em que várias partes dos
ensinamentos foram escritas ou traduzidas em línguas diferentes.
Portanto, estudar as escrituras através de métodos de análise textual
modernos pode frequentemente ser frutífero e não está em conflito com
esse voto.

(7) Expulsar os monásticos ou cometer ações como roubar as suas vestes

Esta queda refere-se especificamente a fazer algo que cause dano a um,
dois ou três monges ou monjas budistas, não obstante o seu status moral
ou nível de estudo ou prática. Tais ações são motivadas pela inimizade ou
malevolência, e incluem bater ou insultá-los, confiscar seus bens, ou
expulsá-los dos seus mosteiros. No entanto, expulsar os monásticos não é
uma queda, caso eles tiverem quebrado um dos seus quatro votos
principais, que sao: não matar, especialmente outro ser humano; não
roubar, particularmente algo pertencendo à comunidade monástica; não
mentir, especificamente sobre realizações espirituais; e manter o celibato
total.

(8) Cometer qualquer um dos cinco crimes abomináveis

Os cinco crimes abomináveis (mtshams-med lnga) são: (a) matar nossos


pais, (b) nossas mães, ou (c) um arhat (que é um ser liberado), (d) com
más intenções ferir até sangrar um Buda, ou (e) causar uma divisão na
comunidade monástica. Este último crime abominável refere-se a rejeitar
os ensinamentos de Buda e a instituição monástica, atraindo os
monásticos para longe deles, e alistá-los na nossa própria recentemente
fundada religião e tradição monástica. Não se refere a deixar um centro
ou organização de Dharma – especialmente devido à corrupção na
organização ou nos seus professores espirituais – e a fundar outro centro
que ainda siga os ensinamentos de Buda. E mais, nesse caso, o
termo sangha refere-se especificamente à comunidade monástica. Não se
refere à "sangha" no uso não traditional do termo inventado por budistas
ocidentais como equivalente à congregação de um centro ou de uma
organização de Dharma.

(9) Mantendo uma perspectiva distorcida e antagonista

Significa negar o que é verdadeiro e de valor – tal como a lei de causa e


efeito comportamental, uma direção segura e positiva na vida, o
renascimento e a liberação – e ser antagonista em relação a tais ideias e
àqueles que as mantêm.

(10) Destruir lugares tais como cidades

Esta queda inclui intencionalmente demolir, bombardear, ou degradar o


ambiente de uma vila, cidade, distrito ou área no campo, e torná-la
inadequada, nociva ou, para os seres humanos ou animais, difícil de nela
viver.

(11) Ensinar a vacuidade àqueles cujas mentes não estão treinadas

Os principais objetos desta queda são pessoas com motivação bodhichitta


que ainda não estão prontas para compreender a vacuidade. Essas
pessoas ficariam confusas ou assustadas com esse ensinamento e,
consequentemente, abandonariam a via do bodhisattva e seguiriam para
o caminho de liberação pessoal. Isso pode acontecer como o resultado de
se pensar que, já que todos os fenômenos são vazios de existência
inerente e encontrável, então ninguém existe e, neste caso, para quê
incomodarmo-nos trabalhando para o benefício de outros? Essa ação
também inclui ensinar a vacuidade a qualquer pessoa que a entendesse
mal e, como resultado, abandonasse completamente o Dharma, pensando
por exemplo que o budismo ensina que nada existe e que por isso é
totalmente absurdo. Sem percepção extrassensorial é difícil saber se as
mentes dos outros estão suficientemente treinadas de modo a que não
interpretem mal os ensinamentos sobre a vacuidade de todos os
fenômenos. Portanto, é importante conduzir os outros a esses
ensinamentos através de explanações de níveis graduais de
complexidade, e verificar periodicamente a sua compreensão.

(12) Desencorajar os outros de procurarem a completa ilumina ção

Os objetos para esta ação são as pessoas que já desenvolveram a


motivação bodhichitta e estão se esforçando em direção à iluminação. A
queda é dizer-lhes que são incapazes de constantemente agir com
generosidade, paciência e assim por diante – dizer-lhes que não é possível
que se tornem um Buda, e que por isso seria muito melhor se se
esforçassem apenas pela sua própria liberação. Porém, a não ser que
realmente rejeitassem a iluminação como sua meta, essa queda raiz ficaá
incompleta.

(13) Afastar os outros dos seus votos de pratimoksha

Pratimoksha, ou votos de liberação individual (so-thar sdom-pa), incluem


aqueles que se destinam a homens e mulheres leigos, monjas provisórias,
monges noviços, monjas noviças, monges completos e monjas completas.
Aqui, os objetos são pessoas que estão mantendo um desses grupos de
votos pratimoksha. A queda é dizer-lhes que, como bodhisattvas, não faz
sentido manter os votos pratimoksha, porque todas as ações de um
bodhisattva já são puras. Para que essa queda seja completa eles têm que
realmente abandonar os seus votos.

(14) Rebaixarmos o veículo do shravaka

A sexta queda- raiz é rejeitar os textos dos veículos dos shravakas ou dos
pratyekabuddhas como sendo as palavras autênticas do Buda. Aqui,
aceitamos que são, mas estamos negando a eficácia de seus ensinamentos
e afirmando que é impossível livrarmo-nos das emoções e atitudes
perturbadoras por intermédio das suas instruções, por exemplo, as
do vipassana (meditação da introvisão).

(15) Falsamente proclamarmos que compreendemos a vacuidade

Cometemos esta queda se, embora não compreendamos completamente a


vacuidade, a ensinamos ou escrevemos sobre ela fingindo que a
compreendemos, devido à nossa inveja dos grandes mestres. Não faz
diferença se quaisquer estudantes ou leitores forem enganados pela
nossa pretensão. No entanto, é necessário que compreendam o que
explicamos. Se não compreenderem o que dissemos, a queda é
incompleta. Embora esse voto se refira a proclamar falsas realizações,
especificamente sobre a vacuidade, é claro que também precisamos evitar
cometê-lo, mesmo quando ensinamos bodhichitta ou outros tópicos do
Dharma. Porém, não há falha em ensinar a vacuidade antes de a
compreendermos inteiramente, desde que admitamos abertamente
estarmos apenas explicando com o nosso nível atual de compreensão.

(16) Aceitar o que foi roubado da Jóia Tripla


Esta queda consiste em aceitar como um presente, oferenda, salário,
recompensa, multa ou suborno algo que alguém roubou ou apropriou-se
fraudulentamente, (pessoalmente ou delegando a outra pessoa), dos
Budas, Dharma ou Sangha, incluindo os pertences de somente a um, dois
ou três monges ou monjas.

(17) Estabelecendo procedimentos injustos

Significa ser parcial ou preconceituoso contra praticantes sérios, por


causa de raiva ou hostilidade em relação a eles, e favorecer os que tem
pouca ou nenhuma realização, devido ao apego a eles. Um exemplo dessa
queda é, como professores, darmos a maior parte do nosso tempo a
estudantes particulares ocasionais que podem pagar quantias elevadas, e
negligenciar estudantes sérios que não podem pagar.

(18) Abandonar a bodhichitta

É abandonar o desejo de alcançar a iluminação para o benefício de todos.


Dos dois níveis de bodhichitta, aspirativa e engajada, refere-se
especificamente a rejeitar a aspirativa. Ao fazê-lo, abandonamos também
a engajada.

Ocasionalmente, uma décima nona queda -raiz é especificada:

(19) Rebaixar os outros com versos ou palavras sarcásticas

Porém, isto pode também já estar incluído na primeira quedaraiz do


bodhisattva.

Mantendo os Votos

Quando as pessoas aprendem sobre votos como esses, às vezes sentem


que são difíceis de manter e têm medo de recebê-los. Evitamos esse tipo
de intimidação, ao saber claramente o que significam os votos. Há duas
maneiras de explicá-los. A primeira é que votos são uma atitude que
adotamos em relação à vida, de nos abstermos de certos modos de
conduta negativa. A outra é que são uma forma ou um delineamento sutil
que damos às nossas vidas. Em qualquer dos casos, manter os votos
envolve atenção plena (dran-pa), vigilância (shes-bzhin), e autocontrole.
Com a plena atenção, mantemos nossos votos na mente todos os dias.
Com vigilância, mantemos vigia no nosso comportamento para verificar
se concorda com os votos. Se descobrirmos que estamos a transgredí-los,
ou quase a transgredí-los, exercitamos o autocontrole. Dessa maneira,
definimos e mantemos uma forma ética nas nossas vidas.
Guardar os votos e manter a plena atenção deles não é assim tão estranho
ou difícil de fazer. Se dirigirmos um carro, concordamos seguir
determinadas regras a fim de minimizar acidentes e maximizar a
segurança. Essas regras dão forma ao nosso dirigir – evitamos acelerar e
mantemo-nos no nosso lado da estrada – e delineiam a maneira mais
prática e mais realística de chegar ao nosso destino. Depois de alguma
experiência, seguir as regras torna-se tão natural que estarmos cientes
delas sem esforco e nunca são um peso. A mesma coisa acontece quando
mantemos votos de bodhisattva ou quaisquer outros votos éticos.

Os Quatro Fatores Que Amarram Que Fazem Perder Votos

Perdemos nossos votos quando os abandonamos totalmente, ou


desistimos de tentar mantê-los. Isto e o que chamamos de uma queda-
raiz. Quando ocorre, a única maneira de adquirir novamente essa forma
de ética é reformarnossas atitudes, seguindo um processo de purificação,
tal como a meditação no amor e compaixão, e retomando os votos. De
entre as dezoito quedas-raiz do bodhisattva, se chegamos ao estado
mental da nona ou décima oitava queda-raiz – manter uma atitude
distorcida e antagonista ou abandonar a bodhichitta – perdemos, pelo
fato da nossa própria mudança de atitude, a forma ética das nossas vidas
proporcionada pelos votos do bodhisattva e, assim, abandonamos
quaisquer esforços para mantê-la. Consequentemente, perderemos
imediatamente todos os nossos votos de bodhisattva (e não apenas
aquele que rejeitamos especificamente).

Transgredir os outros dezesseis votos de bodhisattva não constitui uma


queda- raiz a não ser que a atitude acompanhando o ato contenha os
quatro fatores que amarram (kun-dkris bzhi), que precisariam de ser
sustentados e mantidos desde o momento imediatamente depois de se
desenvolver a motivação de quebrar o voto, até o momento
imediatamente após ter-se completado o ato de transgressão.

Os quatro fatores que amarram são:

(1) Não considerar a ação negativa como sendo prejudicial, ver apenas
vantagens e cometer a ação sem nenhum arrependimento.

(2) Tendo tido anteriormente o hábito de cometer a transgressão, não ter


nenhum desejo ou intenção de deixar de repeti-la agora ou no futuro.

(3) Ter prazer na ação negativa e cometê-la com alegria.


(4) Não ter autodignidade moral (ngo-tsha med-pa, não ter sentido de
honra) nem consciência de como as nossas ações afetam outros (khrel-
med, nenhum sentido de vergonha) como nossos professores e pais e,
assim, não ter nenhuma intenção de reparar os danos que estamos
fazendo a nós próprios.

Se todas essas quatro atitudes não estão acompanhando a transgressão


de qualquer dos dezesseis votos, a forma bodhisattva das nossas vidas
continuapresente, assim como o esforço de mantê-la, mas ambas se
tornaram fracas. Em relação aos dezesseis votos, há uma grande
diferença entre apenas quebrá-los e perdê-los completamente.

Por exemplo, suponhamos que não queremos emprestar um dos nossos


livros a alguém devido ao apego e à avareza. Não vemos nada de errado
com isso – afinal, essa pessoa poderia derramar café nele ou não devolvê-
lo. Nunca o emprestamos antes e não temos intenção de mudar esse
procedimento agora ou no futuro. Além disso, quando recusamos,
sentimo-nos felizes com a nossa decisão. Faltando-nos autodignidade
moral, não temos vergonha de recusar. Também não nos importamos
com as conseqüências da nossa recusa, apesar de que estamos,
supostamente, desejando levar todos à iluminação.. Sendo assim, como
poderíamos não estar dispostos a partilhar qualquer fonte de
conhecimento que temos? Sem nenhuma vergonha, não nos importamos
de como nossa recusa se reflete nos nossos professores espirituais ou no
budismo em geral. Além do mais, não temos nenhuma intenção de
contrabalançar o nosso ato egoísta.

Se tivermos todas essas atitudes ao recusar emprestar o nosso livro,


perdemos definitivamente a forma bodhisattva da nossa vida.
Fracassamos totalmente no treinamento Mahayana e perdemos todos os
votos de bodhisattva. Por outro lado, se nos faltarem algumas dessas
atitudes ao não emprestar o livro, o que fizemos foi apenas relaxar nossos
esforços de manter uma forma bodhisattva na nossa vida. Ainda temos os
votos, mas numa forma enfraquecida.

Enfraquecendo os Votos

Na verdade, transgredir um dos dezesseis votos sem nenhum dos quatro


fatores obrigatórios presentes não enfraquece nossos votos de
bodhisattva. Por exemplo, não emprestamos o livro a alguém que nos
pede, mas basicamente sabemos que isso está errado. Não pretendemos
fazer disso um hábito, sentimo-nos tristes em dizer não, e estamos
preocupados sobre como a nossa recusa se reflete em nós e nossos
professores. Temos uma razão válida para recusar emprestá-lo, tal como
uma necessidade imediata do livro, ou talvez já o tínhamos prometido à
outra pessoa. Aqui, a nossa motivação não é o apego ao livro nem a
avareza. Portanto, desculpamo-nos por não poder emprestá- lo agora e
explicamos o porquê, assegurando que o emprestaremos o mais cedo
possível. Para compensar a perda, oferecemos partilhar nossas notas.
Dessa forma, continuamos mantendo completamente a forma bodhisattva
das nossas vidas.

Progressivamente, ao ficarmos cada vez mais sob a influência do apego e


da avareza, começamos a enfraquecer essa forma bodhisattva de vida e a
relaxar o controle dos nossos votos. Notem, por favor, que manter o voto
de abster-se de não partilhar os ensinamentos de Dharma ou quaisquer
outras fontes de conhecimento não nos livra do apego ou da avareza com
relação aos nossos livros. Apenas nos ajuda a não agir sob a sua
influência. Podemos emprestar o nosso livro ou, devido a outra razão, não
o emprestar agora, mas podemos continuar apegados a ele e sermos
basicamente avarentos. Os votos, contudo, ajudam na luta para eliminar
essas emoções perturbadoras e obter a liberação dos problemas e do
sofrimento que trazem. No entanto, quanto mais fortes forem as emoções
perturbadoras que causam problemas, mais difícil será exercitar o
autocontrole e não as deixar ditar o nosso comportamento.

Ficamos progressivamente mais dominados pelo apego e avareza – e os


nossos votos ficam progressivamente mais fracos – quando, ao não
emprestar o nosso livro, sabemos que isso está errado, mas temos
presente um, dois, ou todos os três dos outros fatores obrigatórios. Estes
constituem os níveis menor, médio, e principal de corrupção menor (zag-
pa chung-ba) dos nossos votos. Por exemplo, sabemos que não emprestar
o livro é errado, mas isto já e hábito e não fazemos exceções. Se nos
sentíssemos mal sobre isso e ficássemos envergonhados com o reflexo da
nossa recusa sobre nós e nossos professores, o estilo de vida bodhisattva
que estamos tentando adotar ainda não está demasiado fraco. Mas se,
adicionalmente, agora nos sentíssemos felizes sobre isto e , além disso,
não nos preocupássemos com o que os outros pensam de nós ou dos
nossos professores, estaríamos caindo mais e mais vítimas do nosso
próprio apego e avareza.

Um nível ainda mais fraco de manter essa forma nas nossas vidas começa
quando não reconhecemos que haja algo de errado em recusar emprestar
o livro. Esse é o nível menor de corrupção média (zag-pa 'bring).
Acrescentando um ou dois dos outros fatores que amarram,
enfraquecemos essa forma ainda mais, com corrupção média principal e
corrupção principal (zag-pa chen-po) respectivamente. Quando todos os
quatro fatores que amarram estão presentes, cometemos uma queda- raiz
e perdemos completamente nossos votos de bodhisattva. Estamos agora
inteiramente sob o controle do apego e da avareza, o que significa que já
não estamos engajados na sua superação ou na realização dos nossos
potenciais de modo a podermos beneficiar os outros. Ao abandonarmos o
estágio engajado da bodhichitta, perdemos nossos votos de bodhisattva
que estruturam esse nível.

Fortalecendo os Votos Enfraquecidos

O primeiro passo para restaurar os nossos votos de bodhisattva, se os


tivermos enfraquecido ou perdido, é admitir que fizemos um erro.
Podemos fazer isso por meio de um ritual de expiação (phyir-'chos, phyir-
bcos). Esse ritual não envolve confessar nossos erros a outra pessoa ou
procurar o perdão dos Budas. Precisamos simplesmenteser honestos
conosco e com nosso compromisso (de bodisattva). Se ao quebrar um
voto específico já havíamos sentido que era errado, agora tornamos a
admitir nosso erro. Depois, geramos os quatro fatores que agem como
forças oponentes (gnyen-po bzhi). Estes quatro fatores são:

(1) Sentir arrependimento pela nossa ação. O arrependimento ('gyod-


pa),quer na altura da transgressão de um voto ou mais tarde, não significa
sentir a culpa. O arrependimento é o desejo de nãocometer o ato que
estamos cometendo ou que já cometemos. É o oposto de sentir prazer ou
de mais tarde regozijarmo-nos coma nossa ação. A culpa, por outro lado, é
um sentimento forte de que a nossa ação é ou foi realmente má e, que isto
nos torna verdadeiramente maus. Considerando estas identidades como
intrínsecas e eternas, amofinamo-nos morbidamente e não as largamos.
Por isto, a culpa nunca é uma resposta apropriada ou útil aos nossos
erros. Por exemplo, se comermos algo que nos faz mak, arrependemo-nos
dessa ação – foi um erro. Porém, o fato de termos comido algo que nos fez
mal não nos torna intrinsecamente maus. Somos responsáveis pelas
nossas ações e suas consequências, mas não somos culpados por elas no
sentido condenador que nos priva de qualquer sentimento de autovalor
ou dignidade.

(2) Prometer tentar não repetir o erro. Mesmo se tivéssemostido essa


intenção ao transgredir o voto, reafirmamos conscientemente a nossa
resolução.

(3) Voltar à nossa base. Isso significa reafirmar a direção segura e


positiva nas nossas vidas e tornar a dedicar os nossos corações a
conseguir a iluminação para benefício de todos – ou seja, revitalizar e
fortificar o nosso refúgio e nível aspirativo de bodhichitta.
(4) Tomar medidas corretivas para contrabalançar a nossa transgressão.
Essas medidas incluem a meditação no amor e na generosidade, pedir
desculpas pelo nosso comportamento cruel, e engajar noutras ações
positivas. Agir de maneira positiva requer autodignidade moral e
consciência de saber como nossas ações afetam aqueles que respeitamos,
por isto contrabalança a falta dessas (qualidades positivas) que pode ter
acompanhado o nosso ato negativo. Mesmo se tivéssemos sentido
envergonhados e acanhados no momento da transgressão, esses passos
positivos fortalecem o nosso auto-respeito e consideração pelo que os
outros possam pensar dos nossos professores.

Observações Conclusivas

Podemos ver, então, que os votos de bodhisattva são de fato muito


difíceis de perder completamente. Desde que os respeitemos
sinceramente e tentemos mantê-los como diretrizes, na verdade nunca os
perderemos porque os quatro fatores que amarram nunca estarão
completos – mesmo se nossas emoções perturbadoras nos fizerem
quebrar um voto. E, mesmo no caso de uma atitude distorcida e
antagonista ou se houvermos abandonado a bodhichitta, se admitirmos o
nosso erro, reunirmos as forças oponentes do arrependimento e assim
por diante, e retomarmos os votos, podemos recuperar e recomeçar o
nosso caminho.

Consequentemente, ao decidir se tomamos os votos ou não, é mais


razoável basear a decisão numa avaliação da nossa capacidade de
sustentar um esforço contínuo em mantê-los como diretrizes, em vez de
baseá-la na nossa capacidade de mantê-los na perfeição. O melhor,
contudo, é nunca enfraquecer ou perder os nossos votos. Embora
possamos voltar a andar outra vez depois de quebrar um pé, podemos
também acabar coxeando.
Os Votos Secundários de
Bodhisattva
Dr. Alexander Berzin

Introdução

Os votos secundários do bodhisattva são de abstenção das quarenta e seis


ações erradas (nyes-byas). Estas ações erradas estão divididas em sete
grupos, cada um deles prejudiciais ao nosso treinamento nas seis atitudes
de longo alcance (pha-rol-tu phyin-pa, sânsc.paramita, perfeições) e ao
nosso beneficiar os outros.

As seis atitudes de longo alcance são:

1. generosidade
2. autodisciplina ética
3. paciência
4. perseverança
5. estabilidade mental (concentração)
6. consciência discriminativa (sabedoria).

Embora as ações erradas sejam contrárias ao nosso progresso à


iluminação e o dificultem, cometê-las, mesmo com os quatro fatores que
amarram (kun-dkris bzhi) completos, não constitui uma perda dos nossos
votos de bodhisattva. No entanto, quanto menos completos esses fatores
estiverem, menos danos ocorrerão ao nosso desenvolvimento espiritual
ao longo do caminho bodhisattva. Na eventualidade de cometermos
algumas destas ações erradas, reconhecemos nosso erro e aplicamos os
poderes oponentes, como no exemplo dos votos raiz do bodhisattva.

Há muitos pormenores a aprender sobre esses quarenta e seis, com


muitas exceções quando não há falha em cometê-las. Em geral, porém, o
grau de dano ao desenvolvimento das nossas atitudes de vasto alcance e
ao benefício que podemos dar aos outros depende da motivação por trás
dos nossos atos errados. Se essa motivação for um estado mental
perturbado, tal como o apego, a raiva, a malícia ou o orgulho, o dano é
muito maior do que se for um estado não perturbado – embora
prejudicial – como a indiferença, a preguiça ou o esquecimento. Com a
indiferença, falta-nos a fé ou o respeito adequado pelo treinamento que
precisamos seguir. . Com preguiça, ignoramos a nossa prática porque
achamos mais agradável e mais fácil não fazer nada. Quando nos falta a
plena atenção , esquecemo-nos completamente do nosso compromisso de
ajudar os outros. Para muitos dos quarenta e seis, não há falta se tivermos
a intenção de eliminá-los do nosso comportamento, embora no momento
asnossas emoções e atitudes perturbadoras ainda estejam fortes demais
para que um auto-controle total seja exercitado.

Aqui, a apresentação que se segue foi dada por Tsongkhapa, o mestre


Gelug do século XV em Uma Explanação da Disciplina Ética dos
Bodhisattvas: O Principal Caminho à Iluminação (Byang-chub sems-dpa'i
tshul-khrims-kyi rnam-bshad byang-chub gzhung-lam).

Sete Ações Erradas Prejudiciais ao Treino da Generosidade de


Longo Alcance

A generosidade (sbyin-pa, Sânsc. dana) é definida como a atitude que está


dispostas a dar. Inclui estar-se disposto a dar objetos materiais, proteção
de situações temíveis, e ensinamentos.

Das sete ações erradas que afetam de uma forma negativa o


desenvolvimento da nossa generosidade, duas são prejudiciais à nossa
vontade de dar objetos materiais aos outros, duas à nossa vontade de dar
aos outros proteção de situações temíveis, duas envolvem não fornecer
circunstâncias para que os outros cultivem e pratiquem a generosidade, e
uma prejudica o desenvolvimento da nossa generosidade de dar
ensinamentos.

Duas Ações Erradas Prejudiciais ao Desenvolvimento da Vontade de Dar


Objetos Materiais aos Outros
(1) Não fazer oferendas à Jóia Tripla através dos três portões do nosso
corpo, fala e mente

de mau humor, por exemplo,estarmos irritados , ou por causa da


preguiça, indiferença ou do simples esquecimento, não oferecemos aos
Budas, Dharma e Sangha, três vezes cada dia e três vezes cada noite, pelo
menos prostrações com os nossos corpos, palavras de elogio com a nossa
fala, e memória das suas boas qualidades com as nossas mentes e
corações. Se não pudermos pelo menos ser suficientemente generosos
para oferecer isto com alegria cada dia e noite às Três Jóias de Refúgio,
como poderemos vir um dia a aperfeiçoar a nossa vontade de dar tudo a
todos?

(2) Seguir nossas mentes de desejo


Por causa de um forte desejo, apego ou falta de contentamento, deleitar
em alguns dos cinco tipos de objetos sensoriais desejáveis – vistas, sons,
fragrâncias, sabores ou sensações táteis. Por exemplo, por causa do apego
a deliciosos sabores, comemos o bolo que está no refrigerador mesmo
quando não estamos com fome. Isto é prejudicial à nossa luta contra a
avareza. Depressa nos encontramos buscando o bolo, e até o escondemos
no fundo da prateleira para não termos de partilhá-lo com alguém. Se
realmente pretendermos superar este mau hábito, mas ainda não somos
capazesdecontrolá-lo porque o nosso apego à comida é muito forte, não
estamos em falha ao buscar uma fatia de bolo. Não obstante, tentariamos
aumentar o nosso autocontrole buscando fatias menores e não tão
frequentemente.

Duas Ações Erradas Prejudiciais ao Desenvolvimento da Vontade de Dar aos


Outros Proteção de Situações Temíveis
(3) Não mostrar respeito aos que são mais velhos

Os objetos desta ação incluem nossos pais, professores, aqueles com


excelentes qualidades e, em geral, qualquer pessoa com senioridade ou
simplesmente mais velha do que nós. Quando não lhes cedemos nossos
assentos no ônibus, não lhes esperamos no aeroporto, não lhes ajudamos
a carregar as suas malas, e assim por diante, por causa do orgulho, raiva,
malevolência, preguiça, indiferença ou esquecimento, deixamos-lhes
numa situação assustadora, preocupadora e difícil.

(4) Não responder àqueles que nos fazem perguntas

Por causa do orgulho, raiva, malevolência, preguiça, indiferença ou


esquecimento, não responder de boa vontade às sinceras perguntas dos
outros. Igonorando-os desta maneira, os deixamos num dilema sem
terem ninguém a quem se voltar – uma posição também assustadora e
insegura.

Como ilustração do tipo de pormenor encontrado no comentário de


Tsongkhapa a estes votos, vamos examinar as exceções em que não há
falha em permanecermos silenciosos ou em adiarmos a nossa resposta.
Em termos de nós próprios como a base para esta ação, não precisamos
responder se estivermos muito doentes ou se a pessoa que nos fizer a
pergunta nos acordar propositadamente no meio da noite. A não ser que
seja uma emergência, não há falha em dizermos à pessoa para esperar até
nos sentirmos melhor ou até de manhã.

Há exceções de acordo com a ocasião, por exemplo, quando alguém nos


interrompe com uma pergunta quando estamos ensinando os outros,
dando uma aula, conduzindo uma ceremónia, oferecendo palavras de
conforto a outra pessoa, recebendo uma lição ou escutando um discurso.
Dizemos-lhes educadamente para fazerem as suas perguntas mais tarde.

Certas situações, por necessidade, requerem o silêncio ou o adiamento da


resposta. Por exemplo, se respondêssemos detalhadamente a uma
pergunta sobre os infernos durante uma palestra pública no ocidente
sobre o budismo, arriscaríamos afastar muitas pessoas, causando
obstáculos à sua participação no Dharma. O silêncio é preferível se, ao
respondermos à uma pergunta racista sobre a nossa origem étnica ,
fizéssemos com que essa pessoa não gostasse mais de nós e, assim, não
fosse receptiva à nossa ajuda. O silêncio também é melhor se fizer com
que os outros parem de agir destrutivamente e os conduzir a uma
modalidade mais construtiva de comportamento – por exemplo, quando
pessoas que estão psicologicamente dependentes de nós nos pedem
conselhossobre cada problema nas suas vidas, enquanto queremos
ensiná-las a tomar suas próprias decisões e a resolver os seus próprios
problemas.

Além disso, se estivermos num retiro de meditação em que haja uma


regra de silêncio e alguém nos fizer uma pergunta, não há necessidade de
falar. Finalmente, é melhor concluir e fechar uma sessão de perguntas e
respostas no fim de uma aula quando a audiência já está cansada e for
muito tarde, para evitar ressentimentos e raiva contra nós. .

Duas Ações Erradas de Não Proporcionar as Circunstâncias para os Outros


Cultivarem e Praticarem a Generosidade
(5) Não aceitar um convite

Se recusarmos fazer uma visita, ou um convite para uma refeição, por


causa do orgulho, raiva, malevolência, preguiça, indiferença ou
esquecimento, privamos a outra pessoa de uma oportunidade para
acumular força positiva (bsod-nams, sânsc.punya, potencial positivo,
mérito) de oferecer hospitalidade. A não ser que tenhamos boas razões
para declinar, nós aceitamos não importa quão humilde a casa possa ser.

(6) Não aceitar presentes

Pelas mesmas razões que no caso anterior.

Uma Ação Errada Prejudicial ao Desenvolvimento da Generosidade de Dar


Ensinamentos
(7) Não dar o Dharma àqueles que desejam aprender
Aqui a motivação para recusar a ensinar sobre o budismo, emprestar
nossos livros de Dharma , partilhar nossos apontamentos, e assim por
diante, é a raiva, a malevolência, o ciúme que a outra pessoa nos irá
eventualmente exceder, a preguiça ou a indiferença. No caso do segundo
voto-raiz do bodhisattva, nós declinamos por causa do apego e da
avareza.

Nove Ações Erradas Prejudiciais ao Treino da Auto-Disciplina Ética


de Longo Alcance

Autodisciplina ética (tshul-khrims, sânsc. shila) é a atitude de abster das


ações negativas. Inclui também a disciplina de engajar em ações positivas
e ajudar os outros.

Das nove ações erradas que dificultam o desenvolvimento da nossa


autodisciplina ética, quatro dizem respeito a situações em que a nossa
consideração principal são os outros, três referem-se à nossa própria
situação, e dois concernem ambos nós e os outros.

Quatro Ações Erradas Que Concernem Situações em Que a Nossa Consideração


Principal São os Outros
(1) Ignorar aqueles que não mantiveram a ética

Se, por causa da raiva, malevolência, preguiça, indiferença ou


esquecimento ignorarmos, negligenciarmos ou rebaixarmos aqueles que
quebraram os seus votos ou que até mesmo cometeram crimes
abomináveis, enfraquecemos a nossa autodisciplina ética de engajar em
atos positivos e ajudar os outros. Essas pessoas têm uma necessidade
especial do nosso interesse e atenção visto que acumularam as causas
para sofrimentos e infelicidade presente e futura. Tentamos ajudar-lhes,
sem indignação moral, por exemplo, ensinando meditação aos
prisioneiros interessados na cadeia.

(2) Não manter o treino moral por causa da fé dos outros

Buda proibiu muitas ações que, embora não naturalmente destrutivas,


são prejudiciais ao nosso progresso espiritual – proibiu por exemplo as
pessoas leigas e monásticas de beberem álcool, ou os monásticos de
partilharem o mesmo quarto com um membro do sexo oposto. A
abstenção de tal comportamento é um treino compartilhado em comum
pelos praticantes Hinayana e bodhisattvas. . Se, como bodhisattvas
principiantes, ignorarmos estas proibições devido à falta de respeito ou
de crença nos ensinamentos de Buda, ou devido à preguica de exercitar o
autocontrole , fazemos com que os que virem o nosso comportamento
percam a fé e a admiração pelos budistas e pelo budismo.
Consequentemente, prestando atenção na impressão que nossa conduta
causa aos outros, refreamo-nos, por exemplo, de tomar drogas
recreacionais.

(3) Não se importar com o bem-estar dos outros

Buda deu muitas regras menores para os monásticos treinarem seu


comportamento, por exemplo ter sempre os os três conjuntos de
vestes/mantos onde dormem. Às vezes, porém, as necessidades dos
outros cancelam a necessidade de se seguir este treino menor, por
exemplo, se alguém ficar doente e precisarmos passar a noite fora
cuidando da pessoa. Se, devido à raiva ou malevolência em
relação à pessoa, ou simplesmente à preguiça de não querer ficar
acordado toda a noite, recusamos dizendo que não temos nossos três
conjuntos de vestes conosco, cometeremos esta ação errada. Ser fanático
rígidos com relação às regras dificulta o desenvolvimento equilibrado da
nossa autodisciplina ética.

(4) Não cometer uma ação destrutiva quando o amor e a compaixão


chamam por isso

Ocasionalmente, surjem certas situações extremas em que o bem-estar


dos outros é seriamente posto em perigo e não há mais alternativa para
impedir uma tragédia a não ser cometer uma das sete ações físicas ou
verbais destrutivas. Estas sete são tirar a vida, tomar o que não nos seja
dado, deleitar no comportamento sexual impróprio, mentir, falar
divisivamente, usar uma linguagem áspera e cruel, ou tagarelar sem
sentido. . Se cometermos essa ação sem termos naquele momento
nenhuma emoção perturbadora, como a raiva, o desejo ou a ingenuidade
sobre a causa e o efeito, mas motivados somente pelo desejo de impedir
que os outros sofram – estando totalmente dispostos a aceitar quaisquer
consequências negativas que possam vir, mesmo uma dor infernal – não
danificamos a nossa autodisciplina ética de vasto alcance. De fato,
acumulamos uma quantidade tremenda de força positiva que acelera o
nosso caminho espiritual.

Porém, recusar cometer estas ações destrutivas quando a necessidade o


demanda seria uma falha somente se tivéssemos tomado e guardamos
agora com pureza os votos do bodhisattva. A nossa reticência de trocar
nossa própria felicidade pelo bem-estar dos outros dificulta a perfeição
da nossa autodisciplina ética de sempre ajudar os outros. Não há falha se
nossa compaixão é superficial e não estamos guardando os votos do
bodhisattva nem treinando na conduta por eles delineada.
Compreendemos que a nossa compaixão é fraca e instável, assim que o
sofrimento que experienciaríamos das nossas ações destrutivas poderia
facilmente gerar ressentimento à conduta de bodhisattva. Poderíamos até
abandonar o caminho que trabalha para o benefício dos outros. Como a
injunção que os bodhisattvas dos estágios mais baixos de
desenvolvimento apenas se prejudicam a si mesmos e às suas
capacidades de ajudarem os outros se empreenderem as práticas dos
bodhisattvas dos estágios mais elevados – tal como alimentar uma
esfomeada tigresa com a carne do seu próprio corpo - é melhor termos
cautela. .

Como pode haver confusão sobre que circunstâncias chamam o


bodhisattva a tal ação, vamos examinar exemplos tirados da literatura
dos comentários. Estejam cientes que essas são ações de último recurso
quando, na tentativa de aliviar ou impedir que os outros sofram, todos os
outros meios falharam. Como bodhisattvas principiantes, estariamos
dispostos a tirar a vida de alguém que está para cometer um massacre.
com relação a medicamentos destinados aos esforços de alívio num país
destroçado pela guerra, não hesitariamos em confisca-losde alguém que
os tirou para vender no mercado negro. Também não hesitariamos em
remover os fundos de uma organização de caridade das mãos de um
administrador corrupto, . Como homens, estariamos dispostos a ter sexo
com a esposa de outro - ou com uma mulher solteira cujos pais o
proíbem, ou com qualquer outra parceira imprópria – se ela deseja
desenvolver a bodhichitta mas está apaixonada e quer fazer sexo conosco.
Em tal situação, se ela morresse sem ter tido sexo conosco, carregaria o
ressentimento como um instinto para vidas futuras, e, como resultado,
seria extremamente hostil aos bodhisattvas e ao caminho do bodhisattva.

O fato de os bodhisattvas estarem dispostos a engajar em


comportamentos impróprios quando todo o resto não ajuda a impedir
que alguém desenvolva uma atitude extremamente negativa em relação
ao caminho espiritual do altruismo, levanta uma questão importante a ser
considerada por casais no caminho do bodhisattva. Às vezes um casal
torna-se envolvido no Dharma e um deles, por exemplo, a mulher,
desejando ser celibatária, deixa de ter relações sexuais com o seu marido
quando ele não é da mesma opinião. Ele ainda tem apego ao sexo e leva a
sua decisão como uma rejeção pessoal. Às vezes o fanaticismo e a falta de
sensibilidade da esposa leva o seu marido a culpar o Dharma pela sua
frustração e infelicidade. Ele deixa o casamento e vira as costas ao
budismo com um amargo ressentimento. Se não houver outra maneira de
evitar a sua reação hostil ao caminho espiritual e a mulher estiver a
manter os votos de bodhisattva, ela faria bem em avaliar a sua compaixão
para determinar se é suficientemente forte para lhe permitir ter
ocasionalmente sexo com seu marido sem prejudicar seriamente a sua
capacidade de ajudar os outros. Isto é muito relevante em termos dos
votos tântricos a respeito do comportamento casto.

Como bodhisattvas em desenvolvimento, estariamos dispostos a mentir


quando isso salva a vida de outros ou impede que outros sejam
torturados e feridos. Não teriamos hesitação em falar divisivamente para
separar os nossos filhos de um grupo errado de amigos – ou discípulos de
professores enganosos – que estão exercendo influências negativas neles
e incentivando atitudes e comportamentos prejudiciais. Não nos
refreamos de falar de um modo áspero para afastar os nossos filhos de
caminhos negativos, como não fazerem os seus deveres, quando não
ouvem a razão. E quando outros, interessados no budismo, estiverem
totalmente viciados na conversa sem propósito, bebida, festas, cantar e
dançar, ou contar piadas pesadas ou histórias de violência, estariamos
dispostos a juntar-nos a eles se a nossa recusa fizer com que essas
pessoas sintam que os bodhisattvas, e os budistas em geral, nunca se
divertem e que o caminho espiritual não é para elas.

Três Ações Defeituosas a Respeito da Nossa Própria Situação


(5) Ganhar a nossa vida através de ações errados

Tais meios de subsistência são desonestos ou fraudulentos,


principalmente de cinco tipos principais: (a) pretensão ou hipocrisia, (b)
lisonja ou usar palavras polidas para enganar os outros, (c) chantagem,
extorsão ou manipulação da culpa das pessoas, (d) exijir subornos ou
multas severas por ofensas imaginárias, e (e) dar subornos para obter
algo maior de retorno. Recorremos a tais meios ao não ter nenhum
sentido de autodignidade ou de pudor.

(6) Ficar empolgados e correr atrás de alguma atividade frívola

Ao sentirmo-nos descontentes, agitados, aborrecidos ou hiperativos, e


desejosos de algum excitamento, correr atrás de alguma distração frívola
– como passear num centro comercial, percorrer as estações da televisão,
jogar jogos de computador e assim por diante. Ficamos totalmente
imersos e fora de controle. Se, por outro lado, engajarmos nessas
atividades para acalmarmos a raiva de outras pessoas ou aliviar a sua
depressão, para lhes ajudar se estiverem viciados nessas coisas, para
ganhar a sua confiança se suspeitarmos que são hostis para conosco, ou
para fortalecer velhas amizades, não prejudicamos o nosso treino de
disciplina ética a agir positivamente e para ajudar os outros. Contudo, se
nos voltamos para essas atividades sentindo que não temos nada de
melhor para fazer, estamo-nos iludindo. Há sempre algo melhor a fazer.
Às vezes, porém, nós precisamos de uma pausa para ajudar a renovar o
nosso entusiasmo e energia quando ficamos cansados ou deprimidos. Não
há nenhuma falha nisso, desde que estabeleçamos limites razoáveis.

(7) Querer continuar vagueando no samsara

Muitos sutras explicam que os bodhisattvas preferem ficar no samsara a


obter a liberação . É um erro interpretar isto literalmente, pensando que
não precisamos trabalhar para superar as nossas emoções e atitudes
perturbadoras e alcançar a liberação, mas que apenas mantemos as
nossas delusões e trabalhamos com elas para ajudar os outros. Aqui, há
uma diferença entre este e o décimo oitavo voto raiz do bodhisattva – de
abandonar a bodhichitta – em que decidimos deixar completamente de
trabalhar para a liberação e a iluminação. Aqui, apenas consideramos sem
importância e desnecessário livrarmo-nos das emoções perturbadoras, o
que enfraquece seriamente a nossa autodisciplina ética. Embora no
caminho do bodhisattva, especialmente quando este envolve o
anuttarayoga tantra, transformamos e usamos as energias do desejo para
realçar o nosso progresso espiritual, mas isto não significa que damos
corda livre aos nossos desejos, e nem de não trabalhar para nos livrar
deles.

Duas Ações Erradas a Respeito de Nós Mesmos e dos Outros


(8) Não nos livrar de comportamentos que nos fazem cair em má
reputa ção

Suponhamos que gostamos de comer carne. Se estivermos entre budistas


vegetarianos e insistirmos em comer um bife, estaremos atraindo
criticismos e desrespeito. Não levarão as nossas palavras sobre o Dharma
a sério e espalharão estórias sobre nós, fazendo que também os outros
não fiquem receptivos à nossa ajuda. Como bodhisattvas em
desenvolvimento, seria um grande erro não livrarmo-nos deste tipo de
comportamento.

(9) Não corrigir aqueles que atuam sob o poder das emoções e atitudes
perturbadoras

Se tivermos uma posição de autoridade num escritório, escola, mosteiro


ou em casa e, por causa do apego a certas pessoas ou ao desejo de que
gostem de nós, não repreendemos ou punimos aqueles que, com emoções
e atitudes perturbadoras estão agindo desenfreadamente,
prejudicaremos a disciplina e a moral do grupo inteiro.
Quatro Ações Erradas Prejudiciais ao Treino da Paciência de Longo
Alcance

A paciência (bzod-pa, sânsc. kshanti) é o vontade de lidarmos, sem raiva,


com aqueles que fazem mal, com as dificuldades envolvidas na prática do
Dharma e com os nossos próprios sofrimentos.

(1) Rejeitar os quatro treinamentos positivos

Estes treinamentos são: não retaliar quando (a) verbalmente abusado ou


criticado, (b) ser feito o alvo da raiva dos outros, (c) levar uma surra , ou
(d) humilhado. Como o treino de não retaliar nestas quatro situações atua
como causa para o crescimento da nossa paciência, se pusermos isto de
lado danificaremos o nosso desenvolvimento desta qualidade positivo.

(2) Ignorar aqueles que estão irritados conosco

Se outras pessoas estiverem irritadas conosco ou guardando um forte


ressentimento, se não fizermos nada sobre isso e não tentarmos acalmar
a sua raiva, devido ao orgulho, malevolência, preguiça, indiferença ,
dificultaremos o aperfeiçoamento da nossa paciência ao permitir que o
seu oposto, ou seja, a raiva, continue em toda a sua intensidade. Para
evitar esta falha, pedimos desculpa, quer tenhamos ou não ofendido ou
feito algo de errado.

(3) Recusar a aceitar as desculpas dos outros

A terceira queda raiz do bodhisattva é não escutar as desculpas dos


outros quando nos pedem perdão no momento em que estamos zangados
com eles. Aqui, nós não aceitamos os seus pedidos de desculpa depois da
ocasião, porque estamos guardando um forte ressentimento.

(4) Continuar com raiva

Quando ficamos irritados em qualquer situação, iremos contra o


desenvolvimento da nossa tolerância paciente ao remoer nisso,
guardando um forte ressentimento, sem aplicar as forças oponentes para
acabar com isso. . Se, porem, ao aplicar essas forças, tais como a
meditação no amor, para com os objetos da nossa irritação, mas não
obtivermos sucesso, não estaremos em falha. Como estamos pelo menos
tentando, não enfraquecemos o cultivo da nossa paciência.
Três Ações Erradas Prejudiciais ao Treino da Perseverança de
Longo Alcance

Perseverança (brtson-grus, sânsc. virya, entusiasmo positivo) é vigor em


fazer o que é construtivo.

(1) Reunir um círculo de seguidores devido ao desejo de venera ção e


respeito

Quando reunimos um círculo de amigos, admiradores ou alunos, ou


decidimos casar ou viver com alguém, se o nosso motivo for o desejo de
que o outro nos mostre respeito, dê-nos amor, afeição e muitos presentes,
sirva-nos, massageie as nossas costas, e faça as nossas tarefas diárias,
perderemos o entusiasmo para fazer qualquer coisa de positivo, tal como
ajudar os outros. Somos atraídos a um modo inferior de agir, isto é, , dizer
aos outros o que fazer para nós.

(2) Não fazer nada devido à pregui ç a e outras coisas mais

Se cedermos à preguiça, indiferença, apatia, sentimentos de não nos


apetecer fazer nada ou de não estarmos interessados em absolutamente
nada, ou ao vício de dormir longas horas, ficando na cama o dia inteiro,
dormindo à tarde, ou relaxando sem fazer nada, ficaremos viciados e
perderemos todo o entusiasmo para ajudar os outros. É claro que
descansamos quando estamos doentes ou exaustos, mas é um grande
erro estragarmo-nos sendo demasiado moles.

(3) Passar o tempo com histórias, devido ao apego

O terceiro obstáculo que dificulta o crescimento do entusiasmo para


ajudar os outros é desperdiçar tempo de uma forma despropositada. Isto
se refere a falar sobre, , ouvir, ler, ver na televisão ou em filmes, ou surfar
a internet para histórias sobre sexo, violência, celebridades, intrigas
políticas, e assim por diante.

Três Ações Erradas Prejudiciais ao Treino da Estabilidade Mental


de Longoo Alcance

A estabilidade mental (bsam-gtan, sânsc. dhyana, concentração) é o


estado da mente que não perde o seu equilíbrio ou foco devido às
emoções perturbadoras, fugacidade ou torpor mental.

(1) Não procurar os meios para obter a concentração absorta


Se, devido ao orgulho, malevolência, preguiça ou indiferença não formos a
ensinamentos de algum mestre sobre a concentração absorta (ting-nge-
'dzin, sânsc.samadhi) , como poderemos vir a cultivar ou melhorar a
estabilidade da nossa mente? Se estivermos doentes, ou se suspeitarmos
que as instruções estejam incorretas, ou já tivermos alcançado uma
concentração perfeita, então, já não precisamos ir.

(2) Não nos livrarmos dos obstáculos que impedem a estabilidade mental

Ao praticar a meditação para obter a concentração absorta, encontramos


cinco obstáculos principais. Se cedermos a eles e não os tentarmos
eliminar, danificaremos o desenvolvimento da nossa estabilidade mental.
Se tentarmos removê-los mas não somos ainda capazes de fazê-lo, não
estaremos em falha. Os cinco obstáculos são: (a) intenções de ir atrás de
quaisquer dos cinco tipos de objetos sensoriais desejáveis, (b)
pensamentos de malevolência, (c) nevoeiro mental e sonolência, (d)
fugacidade da mente e arrependimentos, e (e) indecisão ou dúvidas.

(3) Ver o sabor do êxtase, que é um resultado da estabilidade mental, como


sua vantagem principal

Normalmente, gastamos uma quantidade enorme das nossas energias no


nervosismo, preocupação, indecisão, pensamentos de desejos
insatisfeitos ou ressentimentos e outras coisas do gênero, , ou então
caímos no torpor e na sonolência. Ao nos concentrarmos e absorvermos
as nossas mentes mais e mais a fundo , libertaremos quantidades cada
vez maiores desta energia. Experienciamos isto como um sentimento de
êxtase físico e mental. Quanto mais forte esse êxtase, tanto mais nos puxa
para a absorção. Por esta razão, no anuttarayoga tantra geramos e
usamos estados mentais extasiantes ainda mais intensos do que aqueles
obtidos meramente através da perfeita concentração, a fim de
alcançarmos a atividade mental de luz clara mais sutil e absorvê-la na
compreensão da vacuidade. Se ficarmos apegados ao gosto do êxtase que
obtemos em qualquer estágio do desenvolvimento da estabilidade
mental, quer em conjunção com a prática do tantra ou não, e se
considerarmos a apreciação do prazer que obtemos desse êxtase como o
objetivo principal da nossa prática, prejudicamos seriamente o
desenvolvimento da nossa estabilidade mental de vasto alcance.
Oito Ações Erradas Prejudiciais ao Treino da Consciência
Discriminativa de Longo Alcance

A consciência discriminativa (shes-rab, sânsc. prajna, sabedoria) é o fator


mental que que sabe definitivamente discernir entre o que é correto e
incorreto, adequado ou inadequado, útil e prejudicial, e assim por diante.

(1) Abandonar o veículo do shravaka (ouvinte)

A sexta queda raiz do bodhisattva é afirmar que os ensinamentos textuais


do veículo do shravaka não são as palavras de Buda, enquanto que a
décima quarta é dizer que as instruções neles são ineficazes para a
eliminação do apego e assim por diante. A décima terceira é dizer aos
bodhisattvas guardando votos pratimoksha (liberação individual)
monásticos ou leigos – parte dos ensinamentos do veículo do shravaka –
que não há necessidade para eles, sendo bodhisattvas, protegerem estes
votos. Para que esta queda raiz esteja completa, os bodhisattvas ouvindo
as nossas palavras têm de realmente abandonar os votos pratimoksha.
Aqui, a ação errada é simplesmente pensar ou dizer a outros que os
bodhisattvas não precisam escutar os ensinamentos do veículo do
shravaka - especificamente a respeito das regras de disciplina dos votos
pratimoksha – ou guardá-los ou treinar-se neles. Na verdade, ninguém
precisa abandonar os seus votos.

Ao estudar e ao manter as regras de disciplina que prometemos guardar,


aumentamos a nossa capacidade de discernir entre os tipos de
comportamento que devem ser adotados ou abandonados. Ao negar a
necessidade de treinar com votos pratimoksha, enfraquecemos o
desenvolvimento da nossa consciência discernente. Também destamos
discernindo, incorretamente, que os ensinamentos shravaka são
essenciais somente para os shravakas, e não têm valor para os
bodhisattvas.

(2) Exercer esforço tendo simultaneamente os nossos próprios métodos

Se exercermos todos os nossos esforços meramente em estudar e guardar


nossos votos pratimoksha à negligência do estudo e do treino dos vastos
ensinamentos bodhisattva a respeito da compaixão e da sabedoria, nós
também enfraqueceremos a nossa consciência discernente. Enquanto
exercemos esforço nos ensinamentos do veículo shravaka, também
devemos trabalhar simultaneamente no veículo bodhisattva.

(3) Exercer esforço no estudo de textos não budistas quando isso não dever
ser feito
De acordo com os comentários, os textos não budistas referem-se a obras
sobre lógica e gramática. Podemos sem dúvida incluir aqui também livros
para aprender línguas estrangeiras ou qualquer tópico do curriculum
educacional moderno, tal como a matemática, a ciência, a psicologia ou a
filosofia. A falha aqui estaria em colocar todos os nossos esforços no
estudo destes assuntos e negligenciar nossos estudos e práticas do
Mahayana, de modo que eventualmente acabamos por esquecer-nos de
tudo sobre eles. Se, porém, formos extremamente inteligentes, capazes de
aprender coisas rapidamente, tivermos uma compreensão sadia e estável
dos ensinamentos do Mahayana com base na lógica e no raciocínio, e
formos capazes de reter esses ensinamentos nas nossas memórias por
muito tempo, não haverá falha em estudar textos não budistas se também
mantivermos, a cada dia, os nossos estudos e prática do Mahayana.

Estudantes não tibetanos de budismo que desejam estudar a língua


tibetana fariam bem em manter presente esta recomendação. Se forem
capazes de aprender línguas rápida e facilmente, já tiverem uma forte
fundação no budismo, e bastante tempo para estudar tanto as línguas
como o Dharma, ganhariam muito benefício de aprender o tibetano.
Podem usá-lo como uma ferramenta para estudos mais aprofundados.
Contudo, se acharem a língua difícil, tiverem limites no tempo e energia
disponíveis, e ainda não tiverem uma boa compreensão do budismo ou
uma prática diária de meditação estável, prejudicariam e dificultariam o
seu desenvolvimento espiritual estudando tibetano. É importante
discernir as nossas prioridades.

(4) Mesmo se capaz de exercer esforço nelas, ficarmos gamados

Se tivermos a capacidade de estudar material não budista, tal como a


língua tibetana, com todas as estipulações acima , se nos apaixonarmos
por esse tópico podemos chegar a abandonar a nossa prática espiritual e
concentrarmo-nos totalmente nesse tópico menos vital. Dominar o
tibetano ou a matemática não nos traz a liberação das nossas emoções e
atitudes perturbadoras, nem dos problemas e sofrimento que elas
engendram. Não nos dá a capacidade de ajudar os outros de maneira
completa. Somente o aperfeiçoamento da bodhichitta e das atitudes de
vasto alcance, especialmente da consciência discernente da vacuidade,
pode conduzir-nos a este objetivo. Consequentemente, para nos
protegermos contra a fascinação pelos tópicos não budistas – cujo
aprendizajo certamente pode ser útil , mas não é a coisa principal em que
focar – estudamo-los a serio, mantendo uma perspectiva apropriada.
Desta maneira, nós discernimos corretamente o que é essencial e
salvaguardamo-nos de ser levados por matérias menos importantes.
(5) Abandonar o veículo Mahayana

A sexta queda raiz é afirmar que os textos Mahayana não são as palavras
de Buda. Aqui, aceitamos que em geral eles são autênticos, mas criticamos
certos aspectos , especificamente os textos sobre as ações
inacreditavelmente extensas dos bodhisattvas e os ensinamentos
inconcebivelmente profundos sobre a vacuidade. Os primeiros incluem
relatos de Budas multiplicando-se em formas incontáveis, ajudando
simultaneamente inúmeros seres em uma miríade de mundos, enquanto
que os últimos incluem coleções de versos breves e concisos, e
extremamente difíceis de compreender. Degeneramos a nossa
consciência discernente ao repudiá-los em qualquer uma destas quatro
maneiras, pensando: que (a) o seu conteúdo é inferior – o que dizem é
absolutamente absurdo, (b) a sua forma de expressão é inferior – estão
mal escritos e não fazem sentido, (c) o seu autor é inferior – não são as
palavras de um Buda iluminado, ou que (d) o seu uso é inferior – não são
de benefício a ninguém. Discernindo falsamente deste modo, com a mente
fechada e impetuosa, danificamos a nossa capacidade de discernir as
coisas de maneira correta.

Quando confrontados com ensinamentos ou textos que não


compreendemos, nós permanecemos abertos. Pensamos que embora
agora não os possamos apreciar ou compreender, os Budas e os
bodhisattvas altamente realizados compreendem as suas palavras e,
através do entendimento do seu significado, beneficiam os outros de
maneiras infinitas. Desta forma, desenvolvemos a firme resolução (mos-
pa) de tentar compreendê-los no futuro. Não há falha se não tivermos
esta firme resolução, desde que não rebaixemos e não difamamos os
ensinamentos. Pelo menos mantemos a equanimidade, reconhecendo que
por agora, não os compreendemos.

(6) Elogiarmo-nos a nós mesmos e/ou rebaixarmos os outros

A primeira queda raiz do bodhisattva é fazer isto motivado pelo desejo de


ganho ou pelo ciúme. Aqui a motivação é o orgulho, o amor-próprio, a
arrogância ou a raiva. Tais motivações surgem quando nos achamos,
falsamente, como sendo melhores do que os outros.

(7) Não seguir pelo interesse do Dharma

A segunda queda-raiz do bodhisattva é não dar o Dharma por causa do


apego e da avareza. Aqui, a falha é não ir ensinar, executar rituais
budistas, atender ceremónias budistas, ou escutar discursos devido ao
orgulho, raiva, malevolência, preguiça ou indiferença. Com essa
motivação, não discernimos corretamente o que é de valor. Não há falha,
porém, se não o fizermos porque sentimos que não somos um professor,
ou porque estamos demasiado doentes, ou porque suspeitamos que os
ensinamentos que ouviríamos ou daríamos estariam incorretos, ou
porque sabemos que a audiência já os ouviu repetidamente e já os sabe,
ou já os recebemos por completo e os compreendemos e dominamos
completamente de modo que já não precisamos de escutá-los, ou já
focalizamos nos ensinamentos e por isso não precisamos ser lembrados
deles, ou que são difíceis demais e apenas ficaríamos confusos ao escuta-
los. E mais, se os nossos professores ficassem ofendidos se nós fossemos
– por exemplo, se ele ou ela nos tivesse dito para fazer qualquer outra
coisa – certamente não iríamos.

(8) Julgar um professor pela sua línguagem e ridicularizá-lo por causa


distoEnfraquecemos nossas capacidades de discernir corretamente
quando julgamos professores espirituais pela sua maneira de falar.
Geralmente, ridicularizamos e rejeitamos os que falam com uma forte
pronúncia, cometendo erros gramaticais, embora o que eles expliquem
esteja correto, e corremos atrás daqueles que falam elegantemente, mas
sem sentido nenhum.

Doze Ações Erradas Que Contradizem o Trabalho para Beneficiar


os Outros

(1) Não ajudar aqueles que precisam de ajuda

Por causa da raiva, malevolência, preguiça ou indiferença, não irmos ao


auxílio de qualquer dos oito tipos de pessoas que precisam de ajuda: (a)
para tomar uma decisão sobre algo positivo, por exemplo, numa reunião,
(b) ao viajar, (c) para aprenderem uma língua estrangeira que nós já
sabemos, (d) para desempenhar alguma tarefa de maneira ética, (e) para
proteger uma casa, templo ou suas posses, (f) para acabar com um
conflito ou com um argumento, (g) na comemoração de uma ocasião
especial, como um casamento, ou (h) para fazer algum trabalho de
caridade. Porém, não ir ajudar não prejudicará nossos esforços de ajudar
os outros se estivermos doentes, já tivermos prometido auxílio noutro
lugar, enviarmos outra pessoa que é capaz de fazer o trabalho, se
estivermos engajados numa tarefa positiva que é mais urgente, ou se
formos incapazes de ajudar. Também não haverá falha se a tarefa for
prejudicial aos outros, oposta ao Dharma ou disparatada, ou se as pessoas
pedindo-nos ajuda forem capazes de encontrar auxílio noutro lugar ou
tiverem alguém de confiança para encontrar-lhes ajuda.
(2) Negligenciar servir os doentes

Por causa da raiva, malevolência, preguiça ou indiferença.

(3) Não aliviar o sofrimento

Também por causa das mesmas razões. Sete tipos de pessoas afligidas
por dificuldades requerem cuidado especial: (a) os cegos, (b) os surdos,
(c) os amputados e aleijados, (d) viajantes cansados, (e) aqueles sofrendo
de alguns dos cinco obstáculos que impedem a estabilidade mental, (f)
aqueles com inimizades e fortes preconceitos, e (g) aqueles que caíram de
suas posições de algum status elevado.

(4) Não tentar ensinar os que atuam de modo irresponsavel de acordo com
o seus caráteres

Pessoas irresponsáveis (bag-med) refere-se àquelas que não se importam


com as leis de causa e efeito comportamental e, consequentemente, cujo
comportamento lhes trará infelicidade e problemas nesta e em futuras
vidas. Não poderemos ajudar essas pessoas se estivermos
moralisticamente indignados e formos condenatórios. Para entrar em
contacto com elas, precisamos ser hábeis e modificar nossa abordagem
para ir de encontro às suas situações específicas. Por exemplo, se o nosso
vizinho for um fervoroso caçador, nós não vamos dar-lhe um sermão
extremista dizendo que irá arder no inferno. A pessoa provavelmente
nunca teria mais nada a ver conosco. Em vez disso, tornamo-nos amigos
do nosso vizinho dizendo-lhe que amável serviço ele fornece fazendo a
carne de caça disponível aos seus familiares e amigos. Quando ele já
estiver receptivo ao nosso conselho, poderemos aos poucos sugerir
melhores maneiras de relaxar e de fazer os outros felizes – sem tirar
vidas.

(5) Não retribuir a ajuda recebida

Não querer retribuir aos outros a ajuda que eles nos deram, ou não nos
lembrarmos de retribuir ou nem sequer pensarmos nisso. Não haverá
falha, porém, se ao tentarmos fazê-lo. por ejemplo, ao estarem
consertando os seus carros, nos faltar o conhecimento e a habilidade, ou
se estivermos demasiado fracos. Além disso, se aqueles que nos ajudaram
não desejam nada de retorno, não os forçaremos a aceitar a nossa oferta
de ajuda.

(6) Não aliviar a dor mental dos outros


Por causa da malevolência, preguiça ou indiferença, se não tentarmos
confortar aqueles que perderam uma pessoa amada, dinheiro ou posses
estimadas, estaremos em falha. Aqueles que estão perturbados ou
deprimidos requerem a nossa afeição, simpatia e compreensão sincera –
mas certamente não a piedade.

(7) Não dar àqueles que precisam de caridade

Por causa da raiva, da malevolência, preguiça ou indiferença. Se por causa


da avareza, seria uma queda raiz.

(8) Não cuidar das necessidades do nossos entes mais próximos

É uma grande falha negligenciar, devido à malevolência, preguiça ou


indiferença, o nosso círculo de familiares, amigos, colegas de trabalho,
empregados, discípulos, e assim por diante, especialmente quando já
estamos engajados no trabalho social ajudando os outros. Nós precisamos
prover para as suas necessidades físicas e cuidar do seu bem-estar
espiritual. Como poderiamos fingir ajudar todos os seres sencientes se
ignorarmos as necessidades daqueles mais perto de nós?

(9) Não agir de acordo com as preferências dos outros

Desde que o que os outros querem que façamos ou o que eles gostem não
seja prejudicial a ninguém, é uma falha não concordar. Todos nós fazemos
as coisas de modos diferentes e temos gostos individuais. Esta falha
ocorre se não honrarmos isto, por causa da malevolência, preguiça ou
indiferença, ou se discutimos sobre coisas triviais como onde comer, ou
se somos insensitivos às suas preferências e causamos o seu desconforto
ou ressentimento ao escolher a comida.

(10) Não falar elogiar os talentos ou as boas qualidades dos outros

Se não elogiarmos os outros quando eles fizeram algo bem ou


concordarmos com qualquer outra pessoa que os louva, por causa da
raiva, malevolência, preguiça ou indiferença, enfraquecemos o nosso
interesse e entusiasmo de que eles continuem a crescer. Se os outros
ficarem acanhados ao serem elogiados, em privado ou em público, ou se
ficassem orgulhosos ou vaidosos se elogiados diretamente, controlamos
as nossas palavras.

(11) Não reprimir de acordo com as circunstâncias

Para ajudar os outros, é importante discipliná-los se estiverem agindo de


maneira traquina. Se não o fizermos, porque ficamos embaraçados com
isso, ou preguiça , indiferença, ou não nos importarmos, danificaremos a
nossa capacidade de sermos guias eficazes.

(12) Não usar poderes extrafísicos ou a magia (se já tivermos tais


abilidades)

Certas situações chamam por métodos especiais para ajudar os outros,


tais como usar poderes extrafísicos (rdzu-'phrul). Se tivermos estes
meios, mas não os usarmos quando eles seriam adequados e eficazes,
danificamos a nossa capacidade de ser de ajuda. Devemos usar quaisquer
talentos, habilidades e poderes que tivermos para beneficiar os outros.
Os Votos-Raiz Tântricos Comuns
Dr. Alexander Berzin

Sumário

Assim como com os votos do bodhisattva, há voto tântricos raiz e


secundários , que prometemos manter até alcançarmos a iluminação e
que continuam nos nossos continuums mentais nas vidas futuras. As
tradições Gelug, Kagyu e Sakya oferecem estes votos em cada
empoderamento (dbang, iniciação), permissão subsequente (rjes-snang,
permissão), ou recolha-de-mantras (sngags-btus) para qualquer prática
de uma das duas classes mais elevadas do tantra – yoga ou anuttarayoga –
de acordo com o seu esquema quádruplo de classificação. A tradição
Nyingma oferece-os com quaisquer dos três rituais acima descritos para
qualquer prática de uma das quatro classes mais elevadas do tantra –
yoga, mahayoga, anuyoga ou atiyoga (dzogchen) – de acordo com o seu
esquema sêxtuplo.

A maior parte dos pormenores da discussão sobre os votos do


bodhisattva também pertence aos votos tântricos.

Os votos-raiz tântricos são a abstenção de quatorze ações que, se


cometidas com os quatro fatores que amarram (kun-dkris bzhi),
constituem uma queda-raiz (sngags-kyi rtsa-ltung) e precipitam a perda
dos votos tântricos. Sem estes votos dando forma às nossas vidas, não
poderemos obter realizações ou entendimentos da prática tântrica
porque a nossa prática não terá o necessário contexto de suporte. Com
exceção de uma das ações de queda-raiz tântrica, abandonar a
bodhichitta – o mesmo que nos votos-raiz do bodhisattva – uma
transgressão de qualquer das outras treze, sem os quatro fatores que
amarram estarem completos, apenas enfraquece os votos tântricos. Não
os elimina dos nossos continuums mentais.

Há duas variações de votos-raiz tântricos, uma específica a Kalachakra e


uma comum a todos os tantras yoga e anuttarayoga, incluindo
Kalachakra. Aqui, seguiremos a explanação dos votos-raiz tântricos
comuns, dada em Uma Explanação da Disciplina Ética do Mantra Secreto:
Um Cacho de Fruta de Verdadeiras Realizações (gSang-sngags-kyi tshul-
khrims-kyi rnam-bshad dngos-grub-kyi snye-ma) por Tsongkhapa (Tsong-
kha-pa Blo-bzang grags-pa), o fundador da tradição Gelug do início do
século XV. Iremos suplementá-lo com Uma Lâmpada para Iluminar as
Práticas Intimamente Ligadas (Dam-tshig gsal-ba'i sgron-me) por Kedrub
Norzang-gyatso (mKhas-grub Nor-bzang rgya-mtsho), o mestre Gelug do
final do século XV.

As Quatorze Quedas-Raiz Tântricas Comuns

(1) Desrespeitar ou desprezar os nossos mestres vajra

O objeto é qualquer professor de quem tenhamos recebido


empoderamento, permissão subsequente, ou recolha-de-mantras em
qualquer classe de tantra, explanação parcial ou completa de qualquer
dos seus textos, ou recomendações orais para qualquer das suas práticas.
Desrespeitar ou desprezar esses mestres significa mostrar-lhes desprezo,
criticá-los ou ridicularizá-los, ser desrespeitoso ou descortes, ou pensar
ou dizer que os seus ensinamentos ou conselhos eram inúteis. Tendo-os
anteriormente tido em alta consideração, com honra e respeito,
completamos esta queda-raiz quando abandonamos essa atitude, os
rejeitamos como nossos professores, e arrogantemente os consideramos
com desdém. Tal ação ofensiva, então, é completamente diferente de
seguir o conselho, no Kalachakra Tantra: manter uma distância
respeitosa e já não mais estudar ou associarmo-nos com um mestre
tântrico o qual tínhamos decidido s ser impróprio para nós,
incorretamente qualificado, ou que age de uma maneira imprópria.
Desprezar ou depreciar os nossos professores de tópicos que não são
únicos ao tantra, tal como a compaixão ou a vacuidade, ou que nos
conferem apenas a direção segura (refúgio), ou os votos pratimoksha ou
do bodhisattva, não constitui tecnicamente esta primeira queda-raiz
tântrica. Porém, tais ações dificultam seriamente o nosso progresso
espiritual.

(2) Transgredir as palavras de um iluminado

Os objetos desta ação são especificamente os conteúdos dos


ensinamentos de um ser iluminado sobre os votos pratimoksha, do
bodhisattva, ou tântricos – quer essa pessoa seja o próprio Buda ou um
grande mestre mais recente. Cometer esta queda não é simplesmente
transgredir um voto particular de um destes grupos , depois de tê-los –
tomado, mas fazê-lo com dois fatores adicionais presentes. Estes são:
reconhecer completamente que o voto se deriva de alguém que removeu
todos os obscurecimentos mentais, e trivializá-los pensando ou dizendo
que violá-los não traz nenhuma consequência negativa. Trivializar e
transgredir proibições que nós sabemos terem sido dadas por um ser
iluminado mas que não são aquelas em qualquer dos três grupos de votos
que tomamos, ou conselhos que não nos apercebemos terem sido
oferecidos por um ser iluminado, não constitui uma queda-raiz tântrica.
Porém, cría obstáculos no nosso caminho espiritual.

(3) Por causa da raiva, censurar os nossos irmãos ou irmãs vajra

Os irmãos e as irmãs vajra são aqueles que têm votos tântricos e que
receberam um empoderamento em qualquer sistema de figura búdica de
qualquer classe de tantra do mesmo mestre tântrico. Os empoderamentos
não precisam ter sido recebidos ao mesmo tempo, nemprecisam ser do
mesmo sistema ou classe de tantra. Esta queda ocorre quando, sabendo
muito bem que certas pessoas são nossos irmãos ou irmãs vajra, nós os
importunamos ou abusamos verbal e diretamente sobre falhas, defeitos,
fracassos, erros, transgressões e assim por diante que eles podem ou não
possuir ou ter cometido, e eles compreendem o que dizemos. A motivação
tem de ser uma de hostilidade, raiva, ou o ódio. Indicar as fraquezas de
tais pessoas de uma maneira amável, com o desejo de as ajudar a superá-
las, não é uma falha.

(4) Abandonar o amor pelos seres sencientes

O amor é o desejo que os outros sejam felizes e tenham as causas da


felicidade. A queda (deste voto) é desejar o oposto a qualquer ser,
incluindo até o pior assassíno – ou seja, desejar que alguém seja
desprovido da felicidade e das suas causas. As causas da felicidade são
compreender totalmente a realidade e as leis kármicas de causa e efeito
comportamental. Nós desejaríamos pelo menos que o assassino obtivesse
uma compreensão suficiente destes pontos, de modo que nunca repetisse
as suas atrocidades em vidas futuras e, assim, pudesse eventualmente
experienciar a felicidade. Embora não seja uma queda-raiz tântrica
ignorar alguém que somos capazes de ajudar, seria uma queda pensar
quão maravilhoso seria se um ser em particular nunca fosse feliz.

(5) Abandonar a bodhichitta

Esta é a mesma que a décima oitava queda-raiz do bodhisattva, e é


equivalente a abandonar o estado aspirativo da bodhichitta pensando que
somos incapazes de alcançar a budeidade para o bem de todos os seres.
Mesmo sem os quatro fatores que amarram presentes, tal pensamento
faz-nos perder os votos do bodhisattva e os votos tântricos.

(6) Desprezar princípios filosóficos tanto nossos quanto as dos outros

Isto é o mesmo que a sexta queda-raiz do bodhisattva, abandonar o


sagrado Dharma, e refere-se a proclamar que qualquer dos ensinamentos
textuais budistas não são as palavras de Buda . “Principios filosóficos dos
outros” refere-se aos sutras dos veículos dos shravakas, pratyekabuddhas
ou bodhisattvas (Mahayana), enquanto que “os nossos” são os tantras,
também dentro do grupo Mahayana.

(7) Revelar ensinamentos confidenciais àqueles que não estão maduros

Ensinamentos confidenciais (secretos) dizem respeito a práticas


especificas dos estágios de geração (bskyed-rim) ou completo (rdzogs-
rim) para compreender a vacuidade, que não são compartilhadas em
comum com níveis menos avançados de prática. Estas (práticas) incluem
detalhes de sadhanas específicas e de técnicas para uma realização
profunda da vacuidade altamente bem-aventurada com atividade mental
de luz clara. Pessoas não maduras para isto são aquelas que não
receberam o apropriado nível de empoderamento, quer tivessem ou não
fé nestas práticas se as soubessem. Explicar qualquer destes processos
não partilhados e confidenciais em suficiente detalhe a alguém que
sabemos muito bem não estar maduro de modo a que tenha bastante
informação para tentar a prática, e esta pessoa compreender as
instruções, constitui a queda-raiz. A única exceção é quando há uma
grande necessidade de explanação explícita, por exemplo para ajudar a
dispersar má informação e visões distorcidas e antagonistas sobre o
tantra. Explicar a teoria do tantra geral de uma maneira erudita, não
suficiente para a prática, também não é uma queda-raiz. Não obstante,
enfraquece a eficácia da nossa prática tântrica. Porém, não há falha em
divulgar ensinamentos confidenciais a observadores interessados
durante um empoderamento tântrico.

(8) Injuriar r ou abusar os nossos agregados

Cinco agregados (sânsc. skandha), ou fatores agregados, constituem cada


momento da nossa experiência. Estes cinco são: (a) formas de fenomenos
físicos tais comoobjetos de visão ou sons, (b) sentimentos de felicidade ou
infelicidade, (c) distinguir uma coisa da outra (reconhecimento), (d)
outros fatores mentais tais como o amor ou o ódio, e (e) tipos de
consciência tais como a visual ou mental. Em resumo, os nossos
agregados incluem o nosso corpo, mente e emoções.

Normalmente, estes fatores agregados estão associados com a confusão


(zag-bcas) – traduzidos geralmente como estando “contaminados”. Com a
prática de anuttarayoga tantra, nós removemos essa confusão sobre a
realidade e, assim, transformamos totalmente os nossos agregados. Em
vez de cada momento de experiência conter cinco fatores associados com
a confusão, cada momento transforma-se finalmente num composto de
cinco tipos de consciência profunda desassociados da confusão (zag-med
ye-shes), e que são as naturezas fundamentais/subjacentes dos cinco
agregados. Estas são a consciência profunda que é como um espelho, da
equalidade das coisas, da individualidade, de como alcançar objetivos, e
da esfera da realidade (sânsc. dharmadhatu). Cada um dos cinco é
representado por uma figura búdica (yi-dam): Vairochana, e assim por
diante; denominados no ocidente “os cinco dhyani-Budas”.

Um empoderamento anuttarayoga planta as sementes para realizar esta


transformação. Durante a prática do estágio da geração, nós cultivamos
estas sementes imaginando que os nossos agregados já estão nas suas
formas purificadas, visualizando-os como as suas correspondentes
figuras búdicas. Durante a prática do estágio completo, nós trazemos
estas sementes à maturidade engajando os nossos agregados em métodos
especiais de yoga para manifestar a atividade mental de luz clara com que
realizamos os cinco tipos de consciência profunda.

A oitava queda-raiz é desprezar os nossos agregados, pensando que eles


não têm a capacidade de atravessar esta transformação, ou danificá-los
propositadamente devido ao ódio ou ao desprezo. Praticar o tantra não
significa negar ou rejeitar a visão dos sutras, que propõe ser uma
consideração incorreta (tshul-min yid-byed) considerar o corpo como
limpo e como tendo a natureza da felicidade. . É claro que os nossos
corpos ficam naturalmente sujos e nos trazem sofrimentos tais como a
doença e a dor física. Não obstante, nós reconhecemos no tantra que o
corpo humano também tem uma natureza mais profunda, tornando-o
capaz de ser usado em muitos níveis ao longo do caminho espiritual para
assim beneficiar aos outros de maneira mais completa. . Quando não
estamos cientes de ou não reconhecemos essa natureza mais profunda,
nós odiamos os nossos corpos, pensamos que as nossas mentes não são
nada boas, e consideramos as nossas emoções como más. Quando
mantemos tais atitudes de baixa auto-estima ou, além disso, abusamos os
nossos corpos ou mentes com comportamentos masoquistas, estilos de
vida desnecessariamente perigosos ou castigadores, ou poluindo-os com
drogas recreacionais ou narcóticas, cometemos esta queda-raiz tântrica.

(9) Rejeitar o Vazio

Aqui, o vazio (vacuidade) refere-se ao ensinamento geral de Os Sutras


sobre a Consciência Discriminativa de Longo
Alcance (sânsc. Prajnaparamita Sutras), em que todos os fenómenos, não
só as pessoas, são vazios de modos impossíveis de existência; ou aos
ensinamentos especificamente Mahayana Chittamatra ou de qualquer das
escolas Madhyamaka a respeito de os fenómenos serem vazios de uma
particular maneira impossível de existir. Rejeitar tais ensinamentos
significa duvidá-los, não acreditar neles ou rejeitá-los com desprezo. Não
importa que sistema de asserções filosóficas Mahayana mantemos ao
praticar o tantra, precisamos de total confiança nos seus ensinamentos
sobre o vazio. Senão, se rejeitarmos o vazio durante o curso da nossa
prática, ou tentarmos qualquer procedimento fora do seu contexto,
chegaremos a acreditar, por exemplo, que as nossas visualizações são
concretamente reais. Tais concepções errôneas apenas perpetuam os
sofrimentos do samsara e podem até conduzir a um desequilíbrio mental.
Pode ser necessário, ao longo do caminho, elevar o nosso sistema de
asserções filosóficas budistas de Chittamatra a Madhyamaka – ou, dentro
da Madhyamaka, de Svatantrika a Prasangika – e, no processo, refutar os
ensinamentos sobre o vazio do nosso sistema de princípios filosóficos
anteriores. Porém, rejeitar uma explanação menos sofisticada não
significa abandonar uma visão correta do vazio de todos os fenómenos
adequada aos nossos níveis de compreensão.

(10) Ser amável com as pessoas malévolas

Pessoas malévolas são aquelas que desprezam os nossos professores


pessoais, mestres espirituais em geral, ou os Budas, o Dharma ou a
Sangha, ou que, além disso, fazem mal ou prejudicam qualquer deles.
Embora seja impróprio abandonar o desejo de que essas pessoas sejam
felizes e obtenham as causas da felicidade, cometemos uma queda-raiz
agindo ou falando afetuosamente com elas. Essa ação inclui ser amigável
com elas, apoiá-las comprando coisas produzidas por elas, os livros que
escrevem, e assim por diante. Se, motivados puramente pelo amor e pela
compaixão, possuirmos os meios para parar o seu comportamento
destrutivo e conduzi-las para um estado mais positivo, tentaríamos
certamente fazê-lo, mesmo se isso significasse recorrer a métodos que
venham a usar a força. . Porém, se não tivermos estas qualificações, não
incorremos falha em simplesmente boicotar essas pessoas.

(11) Não meditar continuamente no vazio

Tal como com a nona queda-raiz tântrica, o vazio pode ser compreendido
de acordo com o sistema Chittamatra ou o sistema Madhyamaka. Quando
obtemos um entendimento (de uma destas visões) , é uma queda-raiz
deixar passar mais do que um dia e noite sem meditar nela. O costume
normal é meditar sobre o vazio pelo menos três vezes durante o curso de
cada dia e três vezes cada noite. Precisamos continuar essa prática até
nos termos livrado de todos os obstáculos que impedem a onisciência
(shes-sgrib) – ponto esse em que permanecemos diretamente cientes do
vazio o tempo todo. Se pusermos um limite pensando que já meditamos
suficientemente no vazio antes de alcançar este objetivo, poderemos
nunca vir a alcançá-lo.

(12) Dissuadir r aqueles que possuem fé

Isto significa propositadamente desanimar alguém de fazer uma certa


prática tântrica na qual tem fé e para a qual seja um recipiente aptos, com
os corretos empoderamentos e assim por diante. Se acabarmos com o seu
desejo de engajar nesta prática , esta queda-raiz estará completa. Porém,
se esta pessoa ainda não estivere pronta para essa prática não haverá
falha em delinear, de uma maneira realista, o que ela deve dominar em
primeiro lugar, mesmo que possa parecer desanimador. Engajando os
outros deste modo, levando os seus interesses a sério, em vez de os
rebaixar como incapazes, na realidade aumentará sua auto-confiança
para seguir em frente.

(13) Não confiar corretamente nas substâncias que nos ligam intimamente
à prática tântrica (dam-rdzas)

A prática do anuttarayoga tantra inclui a periódica participação em


cerimonias de oferendas conhecidas como tsog pujas. Elas envolvem
provar álcool e carne especialmente consagrados. Estas substâncias
simbolizam os agregados, elementos corporais e, em Kalachakra, os
ventos-energia - fatores normalmente perturbadores que têm uma
natureza de serem capazes de dar consciência profunda quando
desassociados da confusão e usados para o caminho. A queda-raiz é
considerar essas substâncias nauseantes, recusá-las devido a não beber
álcool ou ser vegetariano, ou alternativamente, tomá-las em grandes
quantidades com entusiasmo e apego.

Se formos ex-alcoólicos e se houver o perigo de que o mero provar de


uma gota de álcool possa nos levar de novo ao alcoolismo, podemos
apenas imaginar provar o álcool quando estivermos num tsog com
outros. Ao fazer assim, fariamos apenas os gestos de provar o álcool, mas
sem realmente o provar. Ao oferecer tsog em casa, podemos substituir o
álcool por chá ou suco.

(14) Tratar as mulheres com desprezo

O objetivo do anuttarayoga tantra é ter acesso à atividade mental de luz


clara e utilizá-la para apreender o vazio para superarmos tão
rapidamente quanto possível a confusão e os seus instintos - os principais
fatores que impedem a liberação, a onisciência e a capacidade de
beneficiar os outros por completo. Um estado bem aventurado de
consciência é extremamente conducente a alcançar a atividade mental de
luz clara uma vez que nos leva a níveis de consciência e energia cada vez
mais profundos, mais intensos e refinados. Além disso, quando a
consciência bem aventurada alcança o nível de luz clara e foca no vazio
com compreensão total, ela transforma-se na ferramenta mais poderosa
para remover os instintos da confusão.

Durante o processo de obter a concentração absorta, experienciamos uma


consciência cada vez mais bem-aventurada como resultado de livrar as
nossas mentes do torpor e da agitação. A mesma coisa acontece ao
obtermos uma compreensão e uma realização cada vez mais profunda do
vazio, como resultado de livrar as nossas mentes de emoções e atitudes
perturbadoras. Combinando os dois, experienciamos níveis cada vez mais
intensos e refinados de profunda felicidade à medida que obtemos uma
concentração cada vez mais forte de entendimentos cada vez mais
profundos do vazio.

No anuttarayoga tantra, os homens aumentam o extase da sua


consciência concentrada do vazio ainda mais contando com mulheres.
Esta prática envolve contar ou com mulheres reais (las-kyi phyag-rgya,
sânsc. karmamudra), visualizadas como figuras búdicas femininas de
modo a evitar confusão ou, para praticantes de faculdades mais refinadas,
com mulheres que são apenas visualizadas (ye-shes phyag-rgya,
Sânsc. jnanamudra). As mulheres realçam o seu êxtase [bem aventurança]
através dos homens de uma forma semelhante confiando no fato de
serem mulheres. Por conseguinte, é uma queda-raiz tântrica rebaixar,
tratar com desprezo, ridicularizar, ou considerar inferior tanto uma
mulher específica como as mulheres em geral, ou também uma figura
búdica feminina. Quando expressamos baixa opinião e desprezo
diretamente a uma mulher, com a intenção de desrespeitar o sexo
feminino, e ela compreende o que dizemos, completamos esta queda-raiz.
Embora seja impróprio desprezar homens, fazê-lo não é uma queda-raiz
tântrica.
Preliminares

Explicação da Prece de Sete Ramos


Dr. Alexander Berzin

Esta noite gostaria de uma maneira simples explicar as preliminares que


fazemos no início de cada uma das nossas aulas sobre o texto de
Shantideva, Engajando no Comportamento do
Bodhisattva (Bodhisattvacharyavatara). Elas incluem a prática de sete
ramos, que deriva deste texto. Fazer estas preliminares antes de ouvir e
aprender o Dharma nos ajuda a estabelecer um estado mental
adequadamente receptivo. Nós usamos o mesmo grupo de práticas antes
da meditação diária ou das sessões caseiras de estudo do Dharma.

Limpar o Quarto e Arrumar as Oferendas

Se estivermos fazendo estas práticas, como as preliminares para a


meditação em casa, precisamos de previamente varrer e arrumar o
quarto, como fazemos antes da aula. Por exemplo, se estiverem
espalhados por todo o quarto papéis ou roupas, precisamos de guardá-
los. Ao fazermos isso, pensamos: “Que a minha mente se torne clara,
limpa e ordenada, assim como estou fazendo com o quarto”.

É muito importante meditar e estudar num ambiente onde tudo esteja


arrumado, limpo e em ordem. Isso também é verdade para o nosso local
de trabalho. Aquilo que nós vemos, mesmo perifericamente, afeta
bastante os nossos estados mentais. Se tudo ao nosso redor estiver
desarrumado, as nossas mentes também tendem a ficar desarrumadas.
Além disso, é benéfico tornarmos os nossos lugares de estudo e
meditação esteticamente agradáveis. Ver um ambiente bonito geralmente
torna a mente feliz, e um estado mental alegre é receptivo a se fazer algo
de construtivo. Se o que vemos ao nosso redor for feio, tenderemos a
rejeitá-lo, o que afeta negativamente os nossos estados mentais. Assim,
nós geralmente montamos no quarto um altar atraente – algum tipo de
prateleira ou mesa, coberta com um tecido bonito, no qual colocamos
pelo menos uma estátua do Buda ou uma figura representando aquilo que
estamos fazendo, nossa direção segura na vida (refúgio).

Toda as manhãs, depois de tomarmos banho e limparmos o quarto,


fazemos uma oferenda de tigelas de água. Se isso for inconveniente, a
oferenda não necessita de ser feita com as usuais sete tigelas. É suficiente
oferecer apenas uma xícara de água limpa. Não estamos tentando
impressionar ninguém. Se quisermos, também podemos oferecer velas,
flores, incenso e assim por diante, mas isso é opcional. Não estamos
criando apenas um espaço bonito para convidar os Budas e os grandes
mestres em nossas visualizações, como é tradicionalmente explicado;
estamos também arrumando o quarto de tal maneira que nos faça sentir
jubilosos e confortáveis em lá estar. Ao fazermos isso, entramos num
estado mental conducente à meditação, ao estudo ou a escutar os
ensinamentos.

Concentração na Respiração

O usual é fazermos três prostrações à imagem do Buda no altar, antes de


nos sentarmos. Para evitarmos que as nossas prostrações sejam feitas
mecanicamente, sem nenhum sentimento, precisamos primeiro de levar
as nossas mentes a um estado adequado. Para fazermos isso,
concentramo-nos na respiração e reafirmamos a nossa motivação. Apesar
de geralmente fazermos as duas depois de nos sentarmos, é melhor fazê-
las antes, de pé.

Primeiro, precisamos de nos acalmar e de criar um espaço entre aquilo


que estivemos a fazer e o que iremos fazer a seguir. Precisamos levar
nossas mentes a um estado tranquilo e neutro, antes de gerarmos uma
atitude positiva. Fazemos isso ao nos concentrarmos na respiração, com
os nossos olhos focalizados no chão à nossa frente, de uma forma
relaxada. Se estivermos particularmente perturbados ou estressados,
podemos fechar os olhos enquanto nos aquietamos, mas o método
preferível é deixá-los ligeiramente abertos.

Normalmente, respiramos através do nariz, nem muito rápido, nem muito


devagar; nem muito profundamente e nem muito superficialmente. Não
prendemos a respiração, mas pausamos depois de expirar, antes de
inspirar novamente. O método usual é contarmos silenciosamente o ciclo
de saída, pausa e entrada [do ar] como um, mas se isso for confuso,
podemos também contar a entrada, saída e pausa como um.
Habitualmente, contamos dessa forma até onze, e depois repetimos duas
ou três vezes esse ciclo de onze.

Usamos o processo de contar a respiração, apenas quando as nossas


mentes estão particularmente agitadas, presas a pensamentos
irrelevantes. Se as nossas mentes não estiverem muito distraídas, não
haverá razão para a contagem; é suficiente o simples enfoque na sensação
da respiração entrando e saindo pelas narinas. Alternativamente,
podemos contar durante alguns ciclos e depois continuarmos sem a
contagem. Qualquer que seja o modo com que foquemos na respiração,
continuamos até alcançarmos pelo menos algum nível de quietude e
calma interiores. Se as nossas mentes estiverem agitadas com
pensamentos irrelevantes, nunca seremos capazes de meditar bem ou de
escutar com atenção os ensinamentos.

Examinar a Motivação ou Objetivo

Quando as nossas mentes estiverem relativamente tranquilas, nós


examinamos por que motivo vamos meditar ou estudar, ou por que razão
viemos a uma aula do Dharma. Por outras palavras, examinamos a nossa
motivação, que no budismo significa o nosso objetivo ao fazermos algo ou
aquilo que almejamos. Será que aqui viemos esta noite devido apenas a
um hábito mecânico, sem nenhum objetivo particular em mente, ou para
uma reunião social para vermos amigos e estarmos numa atmosfera
agradável? Ou será que aqui viemos para realmente aprendermos alguma
coisa? Será que queremos aprender algo que é apenas intelectualmente
interessante ou desejamos aprender algo prático, que possamos aplicar
nas nossas vidas? Se é algo que queremos aplicar em nossas vidas, por
que queremos fazê-lo? Qual é o objetivo? Será para tornarmos a nossa
vida um pouco mais fácil? Para superarmos alguma dificuldade que
temos? Ou, além disso, será para sermos capazes de causar menos
problemas aos outros; será para sermos capazes de ajudar mais os
outros? Talvez seja uma combinação de tudo isso.

Nós queremos seguir em frente e aprender o texto de Shantideva de


maneira a estabelecer hábitos que nos tragam renascimentos
afortunados, com mais oportunidades de continuar estudando e
praticando o Dharma? Além disso, será que vamos fazê-lo para estarmos
aptos a alcançar a liberação de todos os tipos de renascimentos
recorrentes sem controlo? Ou, indo mais além ainda, será que queremos
aprender este texto sobre o comportamento do bodhisattva, para
ajudarmos os outros a evitarem renascimentos incontroláveis ou se
libertarem deles? Mesmo que não sejam por estas três últimas
motivações, pelo menos tentamos desenvolver e seguir nessa direção em
nossas vidas?

Seguimos o mesmo processo introspectivo antes de em casa começarmos


a meditar e estudar o texto de Shantideva. Se nós descobrirmos que as
nossas motivações ou objetivos não são muito nobres, tais como meditar
devido ao hábito ou para evitar sentimentos de culpa se não o fizéssemos,
então nós corrigimos as nossas motivações por umas mais salutares. Se já
tivermos motivações construtivas, nós as reconfirmamos. É muito
importante seguir este processo, pois é fácil escutar ensinamentos ou
meditar mecanicamente, e nesse caso retiramos disso muito pouco.
Prostração, com Refúgio e Bodhichitta

Depois, nós “tomamos refúgio e desenvolvemos bodhichitta”. Isto


significa que reafirmamos o nosso objetivo e intenção de seguir numa
direção segura e positiva na vida, que é como eu traduzo “ tomar refúgio”.
Tentamos pensar e sentir que queremos seguir numa direção segura, de
maneira a evitar problemas e dificuldades; não os queremos ter.
Receamos continuar com a nossa situação difícil. O que é que indica a
direção positiva para se evitarem problemas? Um estado mental
completamente livre de confusão e cheio de todas as qualidades boas e
positivas. Tal estado de purificação e crescimento é o Dharma. Aqueles
que atingiram por completo esse estado e mostram essa direção são os
Budas. Aqueles que atingiram esse estado parcialmente também mostram
essa direção. Eles são o Sangha. Essa é a direção que damos às nossas
vidas. Tomar refúgio significa reafirmar essa direção na vida.

Além disso, estamos tomando essa direção segura e positiva de maneira a


sermos capazes de ajudar os outros o melhor possível, e não apenas para
beneficiar a nós mesmos. Para alcançar essa meta, precisamos de
caminhar nessa direção até ao final – à iluminação – e não desistir nem
ficar satisfeito em andar apenas parte do caminho. Isso é o que fazemos
quando reafirmamos o refúgio e bodhichitta.

Quando sentimos esse estado mental ou postura de ir numa direção


segura para sermos capazes de ajudar os outros e seguir completamente
nela para beneficiarmos o máximo possível os outros, então fazemos a
prostração. Se já estivermos sentados e decidirmos não nos levantar nem
nos prostrar fisicamente, então podemos simplesmente imaginar que
estamos fazendo prostrações. Em certo sentido, prostrarmo-nos é como
atirarmo-nos completamente nessa direção; e fazê-lo com respeito –
respeito por aqueles que seguiram nessa direção e respeito por nós
próprios e pela nossa capacidade de fazer o mesmo. Assim, fazer
prostrações não é um ato de nos auto-denegrir; não nos colocar para
baixo, mas nos elevar para cima.

Essa é a primeira prática dos sete ramos: prostração com refúgio e


bodhichitta. Se estivermos praticando numa aula, sentamo-nos nesta
altura.

Oferendas

Depois vem as oferendas. O principal estado mental a desenvolver,


quando se fizer oferendas nesse contexto, é: estou seguindo nessa
direção. Não só entro completamente nela; mas estou disposto a dar de
mim, o meu estilo de vida, o meu tempo e a minha energia para alcançar
esse objetivo. Estou disposto a dar todo meu coração para seguir nessa
direção e ajudar mais aos outros. Nesse estado mental, nós fazemos as
oferendas.

Apesar de geralmente nós fazermos isso mediante visualizações,


podemos no entanto fazer as oferendas de uma maneira física se
estivermos praticando na nossa sala de meditação. Depois de fazermos as
prostrações e antes de nos sentarmos, vamos até ao altar, colocamos os
quatro dedos da nossa mão esquerda na tigela de água e aspergimos três
vezes algumas gotas, como símbolo de oferecimento. Em certo sentido,
estamos fazendo uma oferenda aos Budas, mas não com uma atitude de
darmos um presente para que os Budas nos ajudem, e caso não déssemos
nada eles nos ignorariam. Pelo contrário, estamos oferecendo tudo à
direção que estamos tomando na vida. Nós tentamos fazê-lo com um
estado mental alegre, felizes por sermos capazes de nos dar.

Se desejarmos, podemos fazer oferendas elaboradas, como no texto de


Shantideva. Não é necessário, entretanto, passar por uma longa lista de
coisas que estamos oferecendo, apesar de que poderíamos imaginar toda
a sorte de objetos bonitos. O importante é sentir que nos estamos dando.
Esse é o segundo ramo da prática preliminar; as oferendas. Se tivermos
feito isto no altar, podemos agora tomar nossos assentos.

Admitir Nossos Defeitos

A terceira parte é admitirmos honestamente nossas fraquezas,


dificuldades e problemas. Arrependemo-nos de tê-los, pois eles nos
impedem de ajudar mais os outros. Desejamos estar libertos das nossas
imperfeições e tentamos obstinadamente não repetir nossos erros.
Reafirmamos a direção segura e positiva que nós estamos tentando tomar
na nossa vida, para que sejamos capazes de melhor ajudar os outros; e
finalmente lembramo-nos de que o estudo do texto de Shantideva e a
meditação sobre ele são ações positivas que estamos tomando para
combater nossos erros. Este terceiro ramo é muito importante, pois ao
admitirmos que temos problemas, nós reafirmamos nossa motivação e
meta ao estarmos aqui. Queremos aprender e depois praticar os métodos
para superá-los.

Regozijo

O quarto ramo é o regozijo, que nos ajuda a combater qualquer


sentimento de baixa auto-estima que possa surgir do reconhecimento dos
nossos problemas, erros e dificuldades. Nós precisamos de equilibrar o
reconhecimento dos nossos defeitos com a reafirmação das nossas
qualidades positivas. Todos nós temos qualidades e fizemos algumas
coisas positivas. Podemos descobrir, por exemplo, que tentámos dar
ajuda, tentámos ser pacientes, tentámos ser compreensivos ou o que quer
que tenha sido. Lembramo-nos disso e nos regozijamos. Também nos
regozijamos das nossas naturezas búdicas: temos os potenciais e
capacidades para crescermos. Temos uma base com que trabalhar; existe
esperança. Também olhamos para os exemplos das qualidades e ações
positivas dos outros e também nos regozijamos nelas, sem sentimentos
de inveja. É maravilhoso que existam outros que sejam tão positivos e
prestativos, especialmente os grandes mestres. Isso refere-se não só ao
mestres espirituais vivos, como também aos Budas e Shantideva.
Pensamos como é maravilhoso que Shantideva tenha escrito este texto.
Eu me regozijo nisso. Obrigado Shantideva. Este é um importante estado
mental.

Pedir Ensinamentos

Depois de nos regozijarmos com as qualidades dos grandes mestres e de


agradecermos a Shantideva por ter escrito este texto, nós estamos
prontos para o quinto ramo; pedir ensinamentos. Nós pensamos:
“Shantideva, é fantástico que tenha escrito este texto. Ensine-me algo
sobre ele; eu quero aprender. Este pedido combate a postura com a qual
lemos ou ouvimos algo sobre o texto e só pensamos nas exceções, por
exemplo, no caso das atrocidades de Hitler, como é possível que os
ensinamentos sobre a paciência possam funcionar? Embora seja
importante examinar os ensinamentos para vermos se eles são válidos,
precisamos primeiro pensar em termos de como eles seriam aplicados
nas nossas vidas cotidianas. Depois de entendido e apreciado como eles
funcionam, então podemos considerar se existem exceções. Então
podemos analisar se exemplos extremos, tais como os de Hitler, são casos
em que os ensinamentos sobre a paciência não se aplicam de algum
modo, ou são casos em que os ensinamentos só podem ser aplicados num
nível avançado. Quando ouvimos um novo ensinamento, uma resposta
instantânea de “mas” é contraproducente a atitude aberta do desejo de
aprender algo. Assim, abordar o texto com a atitude de “ensine-me algo” é
crucial. Com tal postura, nós tentamos ver primeiro como poderíamos
aplicar o que lemos ou ouvimos. Vemos tudo no texto de Shantideva como
um ensinamento prático, aplicável a nós pessoalmente – em nossas casas,
nossos escritórios, entre nossos familiares e amigos.

Se estamos praticando as preliminares de sete ramos antes de uma sessão


de meditação, também pedimos aos professores e aos textos que nos
ensinem mais, no sentido de que queremos obter mais avanços através da
nossa meditação. Pedimos que nos inspirem a termos mais conhecimento,
mais compreensão e mais realização daquilo que eles ensinaram.

Suplicar aos Professores Que Não Morram

Assim, nós estamos prontos para o sexto ramo, que é suplicar aos
professores que não morram. Nós pensamos, por favor nunca deixem de
ensinar; continuem para sempre! Nós não estamos suplicando dessa
maneira por causa do apego aos nossos professores. Mas, sim, estamos
reafirmando que somos sérios e sinceros em nossa prática. “Eu quero
seguir por completo até a iluminação, para ser capaz de ajudar todos.
Assim, não morra! Eu preciso de aprender”. Nós também nos dirigimos
aos ensinamentos em si; continuem a nos ensinar – Shantideva e seu
texto. Nos ensinem mais e mais. Deixem-nos obter cada vez mais
compreensão, e ter cada vez mais progresso com esse material. Nunca
párem até alcançarmos a iluminação; até que todos atinjam a iluminação.

Dedicação

O sétimo e último ramo é a dedicação. Nós pensamos que, o que quer que
aprendamos, o que quer que entendamos, isso possa agir como uma
causa para alcançarmos a iluminação e, assim, sermos capazes de
beneficiar os outros o mais possível. Possa nossa compreensão se
aprofundar mais e mais. Possa ela se entranhar e causar uma grande
impressão em nós, de maneira que gradativamente sejamos capazes de
aplicá-la ao longo do caminho para a iluminação. Especificamente,
possamos ser capazes de aplicar na nossa vida diária aquilo que
aprendemos, para que comece a fazer diferença na maneira como lidamos
com os outros, para que a pouco e pouco lhes possamos levar mais
alegria.

A Prece dos Sete Ramos de Shantideva

Se desejarmos, podemos então recitar os versos de Shantideva que


cobrem estes sete pontos juntos com os versos que os precedem, para
estabelecer motivação, e os versos posteriores de oferecimento de
mandala:

Tomo direção segura, até meu purificado estado, nos Budas,


Dharma e Suprema Assembleia. Pela força positiva da minha
generosidade e coisas mais, que eu possa alcançar a Budeidade
para ajudar aqueles que vagueiam.

Que em todas as direções a superfície da terra possa ser pura,


sem nenhuma pedra que seja, tão suave como a palma da mão
duma criança, naturalmente brilhante, tal como uma esmeralda.

Que os objetos de oferenda, divinos e mundanos, realmente


oferecidos ou simplesmente visualisados como inigualáveis
nuvens de oferendas de Samantabhadra, possam preencher
totalmente a esfera do espaço.

(1) Prostro-me perante os Budas que agraciaram os três


tempos, ao Dharma e à Suprema Assembleia, reverenciando
com corpos tão numerosos quanto os átomos do mundo.

(2) Assim como Manjushri e outros fizeram oferendas aos


Triunfantes, faço também oferendas aos que Assim
Progrediram, nossos Guardiões, e aos sua prôgenie espiritual.

(3) Desde o samsara sem início, nesta e noutras vidas, tenho


inadvertidamente cometido atos destrutivos, ou levado outros a
agirem da mesma forma, oprimido pela confusão da
ingenuidade. Tenho até regojizado com tudo isso. Vendo esses
erros, eu abertamente os declaro à vos, nossos Guardiões, do
fundo do coração.

(4) Com alegria, me regojizo do oceano de força positiva do


desenvolvimento de bodhichitta,
desejando levar felicidade a todos os seres limitados e
trabalhando para bem de todos.

(5) Com mãos pressionadas juntas, peço aos Budas de todas as


direções que acendam a luz do Dharma àqueles que estão
tateando na escuridão do sofrimento.

(6) Triunfantes, desejoso eu de passar além da dor, vos suplico


com as mãos em prece: estes seres vagueiam cegos sem
ninguém para guiá-los; por favor, vivam por eras incontáveis.

(7) Pela força positiva acumulada por tudo o que fiz dessa
maneira, que todos os sofrimentos
de todos os seres limitados possam desaparecer.

Ao dirigir e oferecer aos campos búdicos esta base, ungida com


água aromática, espargida com flores; e ornada com o Monte
Meru, quatro ilhas, um sol e uma lua, que todos aqueles que
vagueiam possam ser levados às terras puras. Om idam guru
ratna mandala-kam nir-yatayami. A vós, preciosos gurus, eu
vos envio este mandala.

Ajustes Finais da Concentração

Com este receptivo estado mental que gerámos, estamos quase prontos
para começar as nossas aulas ou sessões de meditação. No entanto, é útil
primeiramente tomar a decisão consciente de ouvir, estudar ou meditar
com concentração. Nós decidimos que no caso da nossa atenção vaguear,
iremos trazê-la de volta, e caso comecemos a ficar sonolentos, iremos nos
alertar. Quando tomamos estas decisões conscientemente, temos uma
melhor chance de concentração.

Por último, ajustamos a nossa concentração e energias com mais apuro.


Se sentirmos sonolência ou letargia, precisamos de erguer as nossas
energias e acordar. Como os ensinamentos de Kalachakra instruem, para
fazermos isso enfocamos na área entre as nossas sobrancelhas, com os
nossos olhos olhando para cima e com a nossa cabeça direitas. Se nos
sentirmos um pouco agitados ou estressados e com nossas mentes
vagueando, precisamos de centrar as nossas energias para que elas se
acalmem. Para isso, nós focamos então num ponto ligeiramente abaixo do
umbigo, no centro do nosso corpo, com os olhos olhando para baixo e
com a cabeça direita. Inspirando normalmente, nós prendemos a
respiração até precisarmos de expirar.

Isso completa toda a série de preliminares para as aulas, meditação ou


estudo privado do Dharma. O próprio Shantideva enfatizava os benefícios
e a necessidade de se fazer a prática dos sete ramos, e todos os mestres
budistas tibetanos que eu encontrei também as enfatizaram como base da
prática diária. Até por si sós, elas próprias constituem uma prática diária
completa. Nós podemos fazer essas preliminares através da recitação de
versos, como os do texto de Shantideva, ou podemos fazê-las sem versos,
apenas com nossas próprias palavras, ou simplesmente com sentimentos.
O principal é termos sentimentos para cada um dos sete ramos. Sentir
algo é o que leva a mente a um estado conducente à meditação ou ao
estudo.

Para as nossas sessões de meditação propriamente ditas nós podemos,


depois destas preliminares, concentrar na respiração, num tópico dos
estágios graduais do caminho (lam-rim), ou em alguns versos de
Shantideva. As preliminares levam-nos a um estado mental
adequadamente receptivo, não importando o que se escolha para a nossa
sessão. Podemos até decidir só fazer as preliminares, que por si sós são
uma excelente prática. O tempo que demoramos nas preliminares pode
variar e depende de nós. No entanto, independentemente de as fazermos
depressa ou devagar, precisamos de evitar fazê-las como um ritual vazio.
Precisamos de ter em mente os seus significados e tentar sentir cada
passo com sinceridade.
Práticas Tântricas

Como Praticar Vajrasattva


Dr. Alexander Berzin

Introdução

A prática de Vajrasattva (rDo-rje sems-dpa’) é uma meditação tântrica


para a purificação do karma. Sendo uma prática Mahayana, é
empreendida com o ideal de bodhichitta, ou seja, de purificarmos todos
os karmas a fim de atingirmos a iluminação o mais rápido possível para
conseguirmos ajudar melhor os seres sencientes. Em última instância, a
prática de Vajrasattva é uma meditação não conceitual na vacuidade mas,
em um nível provisório, implica na recitação repetida do mantra de cem
sílabas (yig-rgya), com estados mentais opositores e visualizações
complexas.

A visualização e recitação do mantra de Vajrasattva pode ser feita no


contexto da prática sutra antes de começarmos qualquer prática tântrica.
Neste caso, pode ser feita isoladamente ou como parte das “práticas
preliminares” formais do tantra, onde repetimos o mantra 100.000 vezes.
A recitação e visualização também pode fazer parte de uma “sadhana”
(sgrub-thabs) tântrica formal para nos efetivarmos como uma figura
búdica (yi-dam). A sadhana pode ser de qualquer classe tântrica.

Independente do nível em que praticamos a meditação de Vajrasattva,


seu objetivo é purificar nosso karma. Karma (las) refere-se aos ímpetos
mentais incontroláveis e recorrentes que nos levam a agir, falar e pensar
de determinada forma e aos impulsos com os quais levamos a cabo as,
assim chamadas, “ações kármicas”. Existem diversas explicações
ligeiramente diferentes dadas por vários mestres budistas indianos, mas
aqui não precisamos detalhar essas diferenças.

Ações kármicas geram “repercussões kármicas”, que podem ser, por


exemplo, tendências kármicas (sementes), em nosso contínuo mental.
Mais adiante, geralmente em um renascimento futuro, a repercussão
kármica amadurece como, ou gera os, “resultados kármicos” que de
alguma forma correspondem às ações kármicas. Usamos a palavra
“amadurecer” para passar a ideia de que o resultado não aparece
imediatamente (skyes-bu byed-pa'i 'bras-bu, Skt. purushakaraphalam),
como a dor de batermos o dedo do pé ou o resultado imediato de nossas
ações nos outros. “Purificação de karma” é, na realidade, uma forma
concisa de se dizer “purificação da repercussão kármica”. Neste contexto,
“purificar” significa eliminar a possibilidade de vivenciarmos os
resultados kármicos do amadurecimento da repercussão kármica.

A tradição Mahayana é a única a afirmar a possibilidade de purificação do


karma antes dele terminar de amadurecer. De acordo com as escolas
Hinayana, toda nossa repercussão kármica deve amadurecer antes de
morrermos na vida em que atingirmos a liberação como um arhat ou a
iluminação como um Buda, mesmo que a experiência resultante seja
insignificante.

O Processo de Purificação em Geral


Contexto: As Quatro Nobres Verdades
Para entendermos como o karma pode ser purificado, precisamos
entender as quatro nobres verdades. A purificação do karma só pode
ocorrer no contexto das quatro nobres verdades: sofrimentos
verdadeiros, causas verdadeiras (origens verdadeiras), cessação
verdadeira e caminhos mentais verdadeiros (caminhos verdadeiros)

Sofrimentos Verdadeiros
Sofrimentos verdadeiros referem-se à nossa experiência dos resultados
do amadurecimento do karma. Esses resultados podem ser sentimentos
maculados de felicidade, sentimentos de infelicidade ou fatores agregados
maculados da experiência (phung-po, Skt. skandha). Em geral, “maculado”
(zag-bcas, contaminado) refere-se a algo que vem da falta de consciência
(ma-rig-pa, Skt. avidya; ignorância) da realidade, ou seja, não saber como
os fenômenos existem ou ter uma compreensão equivocada sobre como
eles existem.

Existem três variedades de sofrimento:

 A experiência da infelicidade - que vem do comportamento destrutivo


que, por sua vez, vem da falta de consciência a respeito de suas causas
e efeitos e da natureza da realidade. Em geral, uma ação destrutiva é
motivada por emoções destrutivas de apego, hostilidade ou
ingenuidade, e pela falta de valores e de escrúpulos.
 A experiência da felicidade maculada e efêmera - é uma felicidade que
não satisfaz, já que não impede que a infelicidade retorne e, quando
acaba, não sabemos o que acontecerá depois. Surge por nos
comportarmos construtivamente porém sem consciência sobre a
natureza da realidade. Em geral, uma ação construtiva é motivada pelo
desapego e pela ausência de hostilidade e ingenuidade, assim como
pela presença de valores e escrúpulos.
 A experiência do surgimento dos fatores agregados juntamente com o
ciclo de renascimentos incontroláveis (‘khor-ba, Skt. samsara) - Os
fatores agregados da experiência constituem a base e o contexto para
experimentamos os dois primeiros tipos de sofrimento. Esses fatores
agregados também surgem dos dois tipos de comportamento,
destrutivo e construtivo, e de comportamentos específicos
comprometidos pela falta de consciência da realidade. Este terceiro
tipo de sofrimento verdadeiro refere-se à experiências de:

o Fatores agregados de um renascimento, ou seja, a forma de vida, as


características físicas e mentais e os instintos com os quais
nascemos. Esses fatores são o resultado do amadurecimento do
karma e são eticamente neutros - nem construtivos, nem destrutivos
o Lugar e situação de um renascimento. Surge como o resultado
predominante (bdag-po'i 'bras-bu, Skt. adhipatiphalam, resultado
prevalecente, resultado abrangente) do karma.
o Momentos em que sentimos vontade de fazer, dizer ou pensar de
forma semelhante a nossas ações kármicas passadas ou, mais
precisamente, gostar (dga’-ba) ou desejar (‘dod-pa) agir, falar ou
pensar de tal forma. Tais experiências são resultados kármicos que
manifestam-se em nosso comportamento (byed-pa rgyu-mthun-gyi
‘bras-bu).
o Coisas acontecendo conosco de forma similar às nossas ações
passadas. São resultados kármicos que manifestam-se na forma
como vivenciamos as coisas (myong-ba rgyu-mthun-gyi ‘bras-bu).

Causas Verdadeiras
As verdadeiras causas desses três tipos de sofrimento são o karma e as
aflições mentias (nyon-mongs, Skt. klesha; emoções e atitudes
perturbadoras). “Aflições mentais” são fatores mentais que, quando
acompanham um momento de nossa experiência, nos fazem perder a paz
mental e o autocontrole. Além de motivarem ações kármicas, também
servem como condição para o amadurecimento das repercussões
kármicas dessas ações. Porém, em última análise, tanto o karma quanto
as aflições mentais derivam da falta de consciência sobre a natureza da
realidade ou, mais especificamente, do apego à existência inerente (bden-
‘dzin).

De acordo com a lei da certeza do karma, quando nos sentimos infelizes é


certo que essa infelicidade é o resultado do amadurecimento de
repercussões kármicas de ações destrutivas. E quando vivenciamos
felicidade maculada, certamente ela resulta do amadurecimento das
repercussões kármicas de ações construtivas. Entretanto, tanto as ações
construtivas quanto as destrutivas são motivadas e executadas sem
consciência sobre natureza da realidade.

São três as condições que fazem com que as repercussões kármicas


amadureçam como o terceiro tipo de sofrimento verdadeiro, ou seja,
como a experiência de agregados maculados que são a base para a
experiência dos dois primeiros tipo de sofrimento verdadeiro: a
experiência de infelicidade e felicidade maculada. As duas primeiras
condições são aflições mentais, já a terceira é um desejo kármico. Todas
as três condições surgem no contexto de um nível de felicidade maculada,
infelicidade ou um sentimento neutro. Os três tipos de sentimentos
maculados, por sua vez, são o que já amadureceu de outras repercussões
kármicas. As três condições são:

 Um anseio (sred-pa)
 Uma aflição obtentora (len-pa)
 Um desejo kármico por mais uma existência

“Anseio” — cuja tradução literal do sânscrito é “sede” (trsna) - é a emoção


perturbadora de ansiar em se livrar da infelicidade, em não se separar da
felicidade ou em manter um sentimento neutro. Sendo uma aflição
mental, o anseio exagera as qualidades positivas ou negativas do
sentimento em que foca. Além disso, a anseio vem acompanhado do
apego à existência inerente (verdadeiramente estabelecida), que projeta
uma existência inerente no sentimento e em suas qualidades.

A aflição “obtentora” pode ser a emoção destrutiva do desejo por algum


objeto sensorial — pode ser apego por um objeto que já temos ou o
desejo por um que não temos. Assim como no caso do anseio, esse desejo
ou apego da aflição obtentora exagera as boas qualidade do objeto
sensorial em que foca.

E o apego à existência inerente, que acompanha a aflição obtentora,


projeta uma existência inerente no objeto sensorial.

Alternativamente, a aflição obtentora pode ser uma das várias atitudes


perturbadoras. A principal é a visão equivocada sobre um entrelaçamento
transitório (‘jig-lta), que nesse caso é ao apego aos agregados maculados,
como sendo um “eu” verdadeiramente existente. Os agregados maculados
são a base para os sentimentos maculados e o resultado do
amadurecimento de repercussões kármicas. Essas aflições obtentoras são
acompanhadas do apego à existência inerente, que foca nos agregados
maculados projetando, neles e no “eu” convencional imputado sobre eles,
uma existência inerente.

Assim, tanto o anseio quanto a aflição obtentora surgem devido à falta de


consciência sobre a natureza da realidade — mais especificamente devido
ao apego a uma existência inerente — e também são acompanhados da
falta de consciência e do apego. Assim, o anseio e a aflição obtentora
causam o impulso kármico que faz surgir uma nova existência. Esse
impulso ativa as repercussões kármicas das ações que têm poder de gerar
um novo renascimento. As repercussões kármicas ativadas consistem
tanto dos impulsos kármicos que lançarão nosso contínuo mental na
experiência de seu próximo renascimento quanto os impulsos kármicos
que farão surgir a experiência das condições desse renascimento. Esses
impulsos são conhecidos, respectivamente, como “karma de lançamento”
(‘phen-byed-kyi las) e “karma de conclusão” (rdzogs-byed-kyi las).

Resumindo:

 Devido à nossa falta de consciência sobre a realidade, cometemos


ações kármicas. Essas ações geram repercussões kármicas que, por sua
vez, amadurecem na forma de sentimentos de felicidade maculada,
infelicidade ou neutralidade. E vivenciamos esses sentimentos
maculados no contexto dos agregados maculados, que amadureceram
a partir de outras repercussões kármicas.
 A falta de consciência sobre a realidade gera um anseio direcionado ao
sentimento maculado que vivenciamos e faz surgir uma emoção
obtentora direcionada ao objeto pelo qual temos os sentimentos
maculados, ou uma atitude obtentora em relação aos fatores agregados
nos quais ocorre a experiência do objeto.
 O anseio e a aflição obtentora servem como condição para o
surgimento do impulso kármico de um novo renascimento. Esse
impulso kármico ativa mais uma repercussão kármica que, agora na
forma de um karma de lançamento, gera nossa futura experiência de
agregados maculados.
 Depois, mais uma repercussão kármica amadurece, dessa vez como o
sentimento maculado que vivenciamos no contexto desses agregados.
Também vivenciamos esses sentimentos com falta de consciência
sobre a realidade.

Em última instância, a verdadeira causa do sofrimento é a falta de


consciência da realidade ou, mais especificamente, o apego a uma
existência inerente.
Esse mecanismo complexo descreve o ciclo de renascimentos
incontroláveis, ou seja, o samsara, que é repleto de sofrimento do início
ao fim. Os doze elos da originação dependente detalham todo esse
mecanismo.

Verdadeiro Cessar
O verdadeiro cessar do sofrimento só pode acontecer se houver um
verdadeiro cessar de suas causas. Assim, um verdadeiro cessar refere-se
à ausência absoluta de karma e de aflições mentais, e também daquilo que
deles amadurece: a experiência de sofrimento verdadeiro dos
sentimentos e agregados maculados. “Ausência absoluta” significa cessar
de forma a nunca mais surgir.

Verdadeiro Caminho Mental


Um verdadeiro caminho mental, que gera um verdadeiro cessar, é a
cognição não conceitual da vacuidade que tem como base a direção
segura (refúgio) e a renúncia, e pode estar acompanhada ou não de um
ideal bodhichitta.

 “Renúncia” é uma forte determinação de se livrar de todos os


sofrimentos verdadeiros e suas causas.
 “Bodhichitta” é uma mente focada em nossa própria iluminação, que
ainda não aconteceu mas que pode ser legitimamente imputada em
nosso contínuo mental e acontecer com base nos fatores de nossa
natureza búdica. Esse foco vem acompanhado da intenção de atingir a
iluminação e beneficiar todos os seres limitados por meio disso.
 No contexto do anuttarayoga tantra, essa cognição não conceitual é
feita com a consciência de clara luz (‘od-gsal) e uma realização bem-
aventurada da vacuidade. “Consciência de clara luz” é o nível mais sutil
de consciência que os seres podem ter. No contexto da prática
dzogchen, essa cognição não conceitual e bem-aventurada da
vacuidade é feita com a consciência pura (rig-pa, rigpa). Para
simplificarmos a discussão, limitaremos nossa apresentação à
consciência de clara luz, já que os pontos mais relevantes também se
aplicam à consciência pura.

Vajrasattva representa a realização total da consciência de clara luz em


dois aspectos:

 Seu aspecto de pureza dupla (dag-pa gnyis-ldan) da terceira nobre


verdade - tem (1) a pureza natural de sua natureza que nunca foi
maculada pelo karma ou por aflições mentais e (2) a pureza alcançada
pela remoção das máculas efêmeras, de forma que nunca mais surjam.
 Seu aspecto de quarta nobre verdade — aquele que nos livra dos
verdadeiros sofrimentos e suas verdadeiras causas.

A meditação de Vajrasattva é praticada focando-se na purificação do


karma. Quando purificarmos todo o karma com a consciência de clara luz
de Vajrasattva, atingimos a iluminação.

Aquilo que é Purificado: Repercussões Kármicas


Visto que purificar karma significa purificar as repercussões de nossas
ações ações kármicas, vejamos os três tipo de repercussões kármicas que
precisam ser purificadas. Cunhei o termo repercussão kármica para nos
referirmos a todos os três:

 Redes de forças kármicas (tshogs, coleções)


 Tendências kármicas (sa-bon, sementes, traços)
 Hábitos kármicos constantes (bag-chags).

O sistema de princípios Mahayana é o único a afirmar a existência de


hábitos kármicos constantes; o sistema de princípios Hinayana não fala
nisso.

Forças kármicas incluem forças negativas (sdig-pa, “pecados”) e forças


positivas (bsod-nams, “mérito”). Quando as forças kármicas amadurecem,
vivenciamos os agregados maculados do renascimento samsárico, mas
isso não ocorre com as tendências kármicas. No entanto, tanto as forças
quanto as tendências kármicas amadurecem durante o renascimento
transformando-se em:

 Sentimentos maculados de felicidade ou infelicidade


 Sentirmos vontade de repetir ações kármicas parecidas com ações que
já cometemos anteriormente
 Coisas acontecendo de forma similar às ações kármicas que já
cometemos
 Os ambientes onde as experiências acima ocorrem.

As forças e tendências kármicas também são similares no que diz respeito


à forma como amadurecem. Ambas amadurecem de forma intermitente, e
não continuamente, e quando terminam de manifestar seu resultado
exaurem-se e não podem mais ser ativadas. Porém, apesar de exauridas,
continuam presentes em nosso contínuo mental na forma de “sementes
queimadas” e continuam a ser um obstáculo à nossa liberação até que
sejam totalmente eliminadas, o que acontece apenas quando atingimos o
verdadeiro cessar de todos os obscurecimentos emocionais (nyon-sgrib)
através da cognição não conceitual da vacuidade. E mais, as forças
kármicas são fenômenos que podem ser construtivos ou destrutivos,
enquanto as tendências kármicas são fenômenos não especificados, ou
seja, são eticamente neutros.

Os hábitos kármicos são constantes, ou seja, manifestam seus efeitos


continuamente. Eles dão origem à consciência limitada em cada momento
de nossa experiência e também à falta de habilidade de reconhecermos as
duas verdades simultaneamente — o que existe e como cada coisa existe.
Assim como as tendências kármicas, os hábitos kármicos são fenômenos
não especificados, mas a forma como os hábitos kármicos constantes dão
origem à consciência limitada e à falta de habilidade não é denominada de
“amadurecimento”. Um amadurecimento (smin-pa) é o fim natural de
alguma coisa, após o qual ela se exaure e não é mais capaz de dar
resultados, mas os hábitos kármicos constantes nunca se exaurem; eles
nunca desaparecem de forma natural. Eles só desaparecem quando a
cognição não conceitual da vacuidade nos liberta dos obscurecimentos
cognitivos (shes-sgrib), ou seja, quando atingimos a iluminação.

Repercussões Kármicas são Variáveis Influentes Não Concomitantes


“Purificar karma” significa livrar nosso contínuo mental dos três tipos de
repercussão kármica, incapacitando-os de manifestar resultados futuros.
Mas não podemos purificar ou eliminar resultados que já tenham surgido,
como ter nascido cego, por exemplo.

Para entendermos como a purificação é possível, precisamos


compreender o tipo de fenômeno que é a repercussão kármica. Apesar de
haverem explicações mais complexas, aqui veremos a menos complicada.

Conforme essa explicação, os três tipos de repercussão kármica são


abstrações não estáticas (impermanentes) e são imputadas em um
contínuo mental. Na terminologia técnica diríamos que são variáveis
influentes não concomitantes (ldan-min ‘du-byed), o que significa que são
fenômenos não estáticos (impermanentes) e que não são nem fenômenos
físicos e nem formas de estar-se consciente de alguma coisa. Elas não
compartilham as cinco características concomitantes com a consciência
primária do momento de cognição.

Quando dizemos que a repercussão kármica é “não estática”, significa que


ela surge na dependência de causas e condições e, portanto, é afetada por
elas. Além disso, por ser afetada por condições, muda momento a
momento. Conforme as repercussões kármicas vão produzindo efeitos,
vão afetando nossa experiência.
O “eu” convencional também é uma variável influente não concomitante
imputada em um contínuo mental, mas não pode ser removida, nem
mesmo quando nos iluminamos; ao contrário da repercussão kármica,
que pode ser removida definitivamente, sendo possível chegarmos ao seu
verdadeiro cessar.

Um “eu” convencional é definitivamente imputado no contínuo mental,


para sempre, uma vez que não possui um oponente mutuamente
exclusivo que possa destruí-lo ou eliminá-lo. Já as repercussões kármicas
só podem ser imputadas em um contínuo mental que contenha a
experiência das ações kármicas causais e que possa conter os futuros
momentos de experiência de seu resultado kármico.

A produção de um efeito só acontece na dependência de causas e


condições. Quando eliminamos as causas e condições que fazem com que
a repercussão kármica provoque seus efeitos a produção do efeito não é
mais possível. Quando a produção de um efeito não é mais possível, não
podemos mais imputar validamente a existência de repercussões
kármicas que possam produzir o efeito. Afinal, os três tipos de
repercussões kármicas não são verdadeiramente existentes como
“coisas” encontráveis em um contínuo mental.

Essa é a forma de purificarmos repercussões kármicas. Pela cognição não


conceitual da vacuidade eliminamos o apego à existência inerente e,
consequentemente, o anseio e as emoções ou atitudes obtentoras que
podem agir como condição para que as repercussões kármicas sejam
ativadas e deem origem a seus efeitos.

O Processo de Purificação
Primeiro livramos (spang-ba) nosso contínuo mental da rede de forças e
tendências kármicas. Esse termo, spang-ba, aqui traduzido como “livrar”
— normalmente traduzido como “abandonar” — significa purificar nosso
contínuo mental de alguns fenômenos maculados, de forma que eles
cessem verdadeiramente. Nos livramos de nossa rede de forças kármicas,
tanto positivas como negativas, e de todas as nossas tendências kármicas
quando atingimos o estado de arhat, ou seja, quando atingimos a
liberação.

Quando atingimos a liberação, durante o resto da vida ainda


experimentamos os agregados maculados com os quais nascemos. Além
disso, ainda vivenciamos as coisas acontecendo conosco de maneira
parecida com nossas ações kármicas passadas. Entretanto, não
experimentamos mais os sentimentos maculados de felicidade e
infelicidade e não temos mais vontade de repetir o comportamento
kármico passado.

Quando renascemos em uma terra pura, depois de atingirmos a liberação,


não temos mais a experiência dos agregados maculados ou de coisas
acontecendo de forma similar às nossas ações kármicas passadas.
Entretanto, nossa consciência ainda é limitada.

Só nos livramos dos hábitos kármicos constantes quando atingimos a


iluminação e nos tornamos Budas.

Prática Provisória de Vajrasattva

A derradeira prática de Vajrasattva é a meditação não conceitual na


vacuidade dentro do contexto da prática tântrica do anuttarayoga e com a
consciência da clara luz. Já a prática provisória é feita com visualizações e
recitações de mantra e, na melhor das hipóteses, com uma compreensão
conceitual da vacuidade. O resultado da prática provisória é que os
potenciais e tendências kármicas tornam-se “sementes queimadas”, que
não podem mais ser ativadas e produzir resultados kármicos, como no
caso dos potenciais e tendências kármicas que exauriram sua capacidade
de gerar resultados kármicos. No entanto, essas sementes ainda estão
imputadas no contínuo mental e nos impedem de atingir a iluminação. E
mais, como ainda não nos livramos do apego à existência
verdadeiramente estabelecida, continuaremos a desenvolver emoções
perturbadoras e impulsos kármicos, e, portanto, a gerar repercussões
kármicas. Todavia, a purificação provisória nos dá um “tempo pra
respirar” a fim de conseguirmos produzir mais causas para a iluminação.

Vamos destacar vários níveis e contextos nos quais normalmente fazemos


essa prática de purificação. Todos os níveis precisam ser praticados no
intuito de atingirmos a iluminação para beneficiarmos todos os seres, ou
seja, com o ideal de bodhichitta.

O Nível Pré-Tantra
Apesar da meditação no mantra de Vajrasattva ser uma prática tântrica, a
maioria das pessoas começa a fazê-la antes de se engajar no tantra. Essa
prática inicial estaria no estágio em que treinam apenas no nível sutra do
Mahayana. Esse nível tem três estágios, de acordo com os níveis graduais
de motivação e metas apresentados nos ensinamentos dos caminhos
mentais do lam-rim: inicial, intermediário e avançado. Apesar de apenas o
nível avançado do lam-rim estar no nível de motivação estritamente
Mahayana, os níveis iniciais e intermediários precisam entrar como
degraus no caminho para o desenvolvimento da motivação avançada. E
ainda, todos os três níveis de motivação do lam-rim desenvolvidos no
contexto da prática sutra Mahayana precisam ser praticados como
degraus para a prática do tantra.

Nível Inicial de Motivação


A princípio, podemos nos engajar na prática do mantra e visualização de
Vajrasattva com o objetivo de evitar o sofrimento grosseiro. Fazemos a
prática por estarmos apavorados com o probabilidade de sentirmos
tristeza ou dor. Nesse caso, a prática está em um nível equivalente ao
nível inicial de motivação delimitado nos ensinamentos do lam-rim.

A meta desse nível inicial da prática de Vajrasattva é purificar nosso


contínuo mental apenas em relação às forças e tendências kármicas
negativas, que juntas amadurecem como o primeiro dos três tipos de
sofrimento verdadeiro — renascimentos piores e infelicidade grosseira
mesmo em um renascimento humano. Trabalhamos para purificar nosso
contínuo mental dessas forças e tendências negativas que acumulamos
não apenas durante esta vida mas ao longo de nossas infinitas vidas
anteriores. Lutamos por um renascimento em estados melhores, como
um ser humano ou como um ser divino, um “deus”.

Neste nível, trabalhamos para nos purificar dos efeitos dos seguintes
karmas negativos:

 Ter cometido cada uma das dez ações destrutivas (dez não virtudes)
 Ter transgredido e, portanto, enfraquecido nossa direção segura
(refúgio) em cada uma das Três Joias Preciosas
 Ter nos comportado de forma inapropriada com cada um de nossos
mentores espirituais e assim enfraquecido nosso vínculo de
proximidade (dam-tshig, Skt. samaya) com eles.
 Ter transgredido ou enfraquecido cada um de nossos votos de
pratimoksha para liberação individual, cada um de nossos votos de
bodhisattva e cada uma das dezoito práticas de compromisso e vinte e
dois pontos de treinamento para limpar nossas atitudes (lojong;
treinamento de atitude; treinamento da mente).

Entretanto, se a meditação de Vajrasattva fosse praticada dessa maneira,


como um fim em si mesma, seria o equivalente não budista da purificação
de pecados pela graça de Jesus Cristo a fim de irmos para o paraíso. A
purificação budista tem que estar baseada na direção segura — alvejando
a terceira e a quarta nobre verdade: o verdadeiro cessar e o verdadeiro
caminho mental — e ver a eliminação das forças e tendências kármicas
apenas como um degrau na escada para a liberação ou iluminação.
Neste nível, para que a meditação de Vajrasattva seja uma prática
Mahayana ela também deve estar baseada em um ideal de bodhichitta.
Além disso, precisamos enxergar a eliminação do futuro amadurecimento
de forças e tendências kármicas negativas em sofrimento grosseiro como
essencial para sermos mais capazes de ajudar os outros. O objetivo de
obtermos renascimentos melhores, especificamente uma vida humana
preciosa dotada de lazer e oportunidades que permita a prática ótima do
dharma, é tirar vantagem de tais renascimentos para alcançar a
iluminação para o benefício de todos os seres.

Nível Intermediário de Motivação


Tendo a renúncia como motivação, praticamos a meditação de
Vajrasattva com o objetivo de atingirmos a liberação de todo o
sofrimento. Tal prática está em um nível equivalente ao nível
intermediário de motivação, delimitado nos ensinamentos do lam-rim. O
objetivo, neste caso, é purificar nosso contínuo mental da rede positiva e
negativa de forças kármicas e das tendências kármicas positivas e
negativas. Com isso, evitamos experimentar os três tipos de sofrimento
verdadeiro: infelicidade, felicidade maculada e o ciclo incontrolável de
renascimentos com agregados maculados. Atingindo isso, atingimos a
liberação do samsara.

Entretanto, a meditação de Vajrasattva com motivação de nível


intermediário também precisa estar baseada no ideal de bodhichitta. É
necessário percebermos que, para sermos mais capazes de ajudar os
outros, precisamos nos livrar para sempre do ciclo incontrolável de
renascimentos com seus altos e baixos de felicidade e infelicidade e seus
sofrimentos de nascimento, doença, velhice e morte. Caso contrário,
nosso trabalho de beneficiar os outros ficará severamente prejudicado.
Não precisamos esperar até purificarmos totalmente nosso contínuo
mental das forças e tendências kármicas negativas para focarmos nossa
prática de Vajrasattva em purificar o contínuo mental das forças e
tendências positivas também. À medida que nossa motivação for
evoluindo do nível inicial para o intermediário, naturalmente ampliamos
o âmbito daquilo que tentamos purificar.

Nível Avançado de Motivação


Tendo o ideal bodhichitta como nossa única motivação, a prática de
Vajrasattva se expande para purificar nosso contínuo mental não só de
todas as forças e tendências kármicas mas também de todos os hábitos
kármicos constantes. Para conseguirmos beneficiar ao máximo os seres,
precisamos atingir o estado onisciente de um buda. Isso significa que
precisamos nos livrar da consciência limitada, que é o que resulta,
momento a momento, de nossos hábitos kármicos constantes. Sem
termos os meios hábeis completos, sem termos imenso amor, e assim por
diante, como seremos capazes de ajudar todos os seres?

Resumindo, os níveis iniciais e intermediários de motivação do lam-rim


são para purificar nosso contínuo mental dos problemas associados com
o extremos do samsara compulsivo (srid-mtha’). O nível avançado é para
purificá-lo dos problemas associados como o extremo da paz tranquila do
nirvana (zhi-mtha’).

O Nível de Prática do Ngondro


Quando nos engajamos na prática do mantra e visualização de Vajrasattva
no contexto estritamente sutra da prática Mahayana, o escopo da
motivação do lam-rim não faz diferença. Em qualquer dos três escopos
precisamos considerar nossa prática como um degrau para um eventual
engajamento no tantra. Quando realmente estivermos prontos para
avançar para o tantra, praticamos a meditação de Vajrasattva como parte
do “ngondro”, as práticas preliminares formais. Repetirmos o mantra de
cem sílabas 100.000 vezes, em quatro, três, duas ou uma sessão diária,
sem pular nenhum dia, até completarmos todas as repetições. Fazemos
isso para nos purificar ao menos dos obstáculos mais grosseiros que
podem prejudicar nosso sucesso na prática do tantra, com o objetivo final
de alcançarmos a iluminação e beneficiarmos todos os seres.

A Meditação de Vajrasattva na Prática Tântrica


Em todas as quatro classes de tantra, praticamos o mantra e visualização
de Vajrasattva na sessão de preliminares de todas as sadhanas completas
das figuras búdicas. Mais adiante nas sadhanas, repetimos a prática de
Vajrasattva de forma bem abreviada após a recitação do mantra da figura
búdica, a fim de purificarmos qualquer repercussão kármica de erros na
recitação.

A prática do yoga tantra e do anuttarayoga tantra dentro das tradições


Sakya, Kagyu e Gelug — e também a prática do yoga tantra, mahayoga,
anuyoga e atiyoga na tradição Nyingma — implica em tomarmos votos
tântricos em alguma iniciação. Em tais casos, também podemos praticar o
mantra e visualização de Vajrasattva para purificar votos tântricos
enfraquecidos ou um compromisso enfraquecido. Se perdermos os votos
tântricos por termos transgredido-os completamente, podemos purificar
a força negativa da ação com a repetição de 100.000 mantras de cem
sílabas e então tomar novamente os votos.
Em todos esses contextos tântricos da prática de Vajrasattva a motivação
também precisa ser bodhichitta. Queremos evitar as consequências
negativas das ações que podem prejudicar ou atrasar a obtenção da
habilidade de ajudar os outros e a nossa iluminação. A motivação não é
apenas uma motivação não Mahayana inicial, ou seja, não é simplesmente
evitar renascimentos em situações piores e o sofrimento da dor e da
infelicidade.

Resumindo, qualquer que seja nosso nível de prática, o mantra e


visualização de Vajrasattva precisa ser uma prática Mahayana. Afinal, só o
Mahayana afirma que o karma pode ser purificado. Assim, meditações
para purificar karma só fazem sentido quando praticadas com motivação
Mahayana.

As Quatro Forças Opositoras


Independente do nível de motivação com o qual nos engajamos na prática
de purificação de Vajrasattva, precisamos começar cada sessão admitindo
abertamente (bshags-pa, “confissão”) as ações kármicas cometidas,
reconhecendo que foram equivocadas e que, a menos que sejam
purificadas, nos trarão sofrimentos e problemas. A seguir, aplicamos as
quatro forças opositoras (stobs-bzhi):

 O arrependimento sincero
 A decisão firme de tentar não repetir a ação
 A reafirmação de nossa base, ou seja, nossa direção segura e ideal de
bodhichitta
 A aplicação de ações construtivas contrárias, tais como a meditação e
visualização de Vajrasattva.

De acordo com o Mahayana, mesmo que tenhamos cometido ações


kármicas podemos diminuir a força de suas repercussões com orações e
outros meios. Se outras pessoas nos oferecerem orações depois de nossa
morte e enquanto ainda estivermos no período do bardo, entre
renascimentos, a força das repercussões kármicas pode ser diminuída.
Isto porque as orações afetam o surgimento das condições que podem
amadurecer a repercussão. Similarmente, se admitirmos abertamente
nossas ações kármicas e aplicarmos as quatro forças opositoras
diminuímos os peso do amadurecimento kármico, já que isso se
contrapõem aos fatores que fazem com que o karma amadureça com
força:

 Admitir abertamente o erro — opõe-se a não considerarmos a


transgressão como prejudicial
 Arrepender-se — opõe-se à falta de arrependimento, a nos alegrarmos
com a ação kármica negativa e a termos agido com alegria.
 Tentar não repetir a ação — opõe-se a não termos desejo ou intenção
de parar de repetir a transgressão
 Reafirmar a direção segura e o ideal de bodhichitta — opõe-se a não
termos autodignidade moral e não nos importarmos com a forma como
nossas atitudes refletem nos outros
 Aplicar ações construtivas contrárias — opõe-se a não pensarmos em
reparar o dano.

Qualquer ação construtiva contrária precisa estar acompanhada do ideal


bodhichitta e das seis atitudes de amplo alcance (pha-rol-tu phyin-pa,
Skt. paramita; perfeições) — generosidade, autodisciplina ética,
paciência, perseverança alegre, estabilidade mental e consciência
discriminativa — assim, nossas ações contrárias qualificam-se como
conduta de bodhisattva. Isso significa, principalmente, praticar a
meditação de Vajrasattva com algum nível de concentração correta e
cognição da vacuidade — especificamente, algum nível de realização
subsequente (rjes-thob, estado pós-meditativo) de ver tudo como uma
ilusão. Inicialmente, nosso nível de cognição correta da vacuidade será
conceitual e pode não estar de acordo com a mais sofisticada
compreensão Madhyamaka.

Note que a aplicação das quatro forças opositoras muda nossa


compreensão das ações kármicas cometidas, de compreensão incorreta
(tshul-min yid-la byed-pa) para compreensão correta.

 Vermos a ação kármica como algo prejudicial indica uma mudança na


forma como a consideramos, de felicidade para sofrimento e de pura
para impura.
 Arrependermo-nos da ação ao invés de nos alegrarmos com ela, é o
resultado da mudança na forma como a consideramos.
 Prometer tentar não repetir a ação, indica uma mudança na forma
como consideramos esse tipo de comportamento, de permanente para
impermanente.
 Impermanente, ou não estático, significa que pode ser afetado por
outros fenômenos e, assim, reafirmarmos nossa direção segura e
bodhichitta, e aplicarmos medidas opositoras indica que
compreendemos isso.
 Agregar alguma compreensão da vacuidade às ações opositoras
construtivas indica que mudamos a forma como consideramos as ações
kármicas, de possuindo uma identidade inerente para não possuindo
uma identidade inerente.
Para que consigamos ver tudo como uma ilusão, precisamos primeiro
analisar e depois focar nos “três portais para a liberação” (rnam-par thar-
pa’i sgo gsum) e seu relacionamento com as ações kármicas e a
purificação de suas repercussões.

Os três portais são:

 Vacuidade (stong-pa-nyid) — que refere-se à vacuidade dos fenômenos


existentes.
 Ausência de um sinal (mtshan-ma med-pa) – que refere-se à ausência
de qualquer sinal de uma causa verdadeiramente existente para esse
fenômeno.
 Ausência de esperança (smon-pa med-pa) – que refere-se à ausência de
esperança no que diz respeito à existência de um resultado
verdadeiramente existente para o fenômeno.

Portanto, precisamos focar na vacuidade:

 Dos fenômenos em si, ou seja, das ações kármicas e de suas


repercussões.
 Das causas das ações kármicas e das causas que purificarão suas
repercussões kármicas
 Dos resultados que surgirão das repercussões kármicas e dos
resultados que surgirão da purificação das repercussões kármicas

Também podemos analisar com base nos “quatro portais para a


liberação”. No caso, o quarto portal é:

 A ausência de variáveis influentes em uma ação (mngon-par ‘du-byed


med-pa) – que refere-se à ausência de existência verdadeira dos “três
círculos” (‘khor-gsum) de uma ação, ou seja, um ato a ser feito, um
agente e uma ação (bya-byed-las-gsum).

Portanto, também precisamos focar na vacuidade:

 Da purificação que deve ser feita


 De nós mesmos como agentes que fazemos a purificação
 Do ato de meditar na vacuidade para purificar e do ato de purificação
em si.

Apego à Existência Inerente e Purificação


Conforme já vimos, o apego a uma existência inerente é o que está por
trás do anseio e da aflição obtentora, que são os fatores que ativam a
repercussão kármica para que gere seus resultados kármicos,
especialmente na hora da morte. Também vimos que mesmos os métodos
provisórios de purificação, como a meditação no mantra de Vajrasattva,
requerem pelo menos uma compreensão básica da vacuidade da
existência inerente. Precisamos perceber que a aparência de existência
inerente projetada pela nossa mente não se refere à maneira como as
coisas existem. Não existe existência inerente. São muitas as
consequências dolorosas que experimentamos por projetar e acreditar na
existência inerente. Por exemplo, podemos nos apegar:

 À existência de uma ação kármica destrutiva que cometemos como


sendo inerentemente “má”, independente do rótulo “má”
 À existência de nós mesmos como inerentemente “maus” por termos
cometido essa ação.
 À existência dos resultados kármicos dessa ação como sendo
inerentemente uma “punição inevitável e eterna”.

Esse apego à existência inerente está por trás da aflição mental da culpa.

Da mesma forma, podemos nos apegar:

 À existência de uma ação kármica construtiva que cometemos como


sendo inerentemente “boa”
 À nossa própria existência como sendo inerentemente “boa”, já que
cometemos tal ação
 À existência dos resultados kármicos da ação como sendo
inerentemente uma “recompensa inevitável”.

Tal apego está por trás da emoção perturbadora do orgulho.

A compreensão da vacuidade que acompanha nossa prática do mantra


Vajrasattva pode não ser muito precisa ou sofisticada e, portanto, seria
incapaz de purificar completamente a repercussão kármica. Todavia,
meditar um pouco sobre a vacuidade de nossas ações kármicas não é
apenas apropriado, é também essencial. Assim, podemos nos livrar, pelo
menos em um nível provisório, da culpa e do orgulho, e dos problemas
que deles derivam.

Mesmo que pratiquemos a meditação de Vajrasattva sem a compreensão


correta da vacuidade, se praticarmos com uma motivação pura e uma boa
concentração, as quatro forças opositoras tem o poder de purificar a
repercussão kármica provisoriamente, pelos menos até certo ponto. Isso
nos lembra do poder que a meditação sobre a feiúra tem para
superarmos provisoriamente o desejo e o apego. Meditarmos sobre a
feiura de um corpo sem pele pode eliminar o desejo e o apego que
sentimos por esse corpo. No entanto, não previne a reincidência do desejo
e do apego, pois não atacou, e muito menos eliminou, a causa e condição
fundamental para o reaparecimento do desejo e do apego, que é o apego à
existência inerente.

Tipos de Práticas de Vajrasattva para Purificação

A meditação com o mantra e visualização de Vajrasattva pode ser


praticada mesmo que nunca tenhamos recebido iniciação tântrica (dbang,
Skt. abhishekha; “wang”) de alguma figura búdica. Podemos praticar
Vajrasattva com ou sem a permissão subsequente (rje-snang; “jenang”) de
Vajrasattva, mas precisamos pelo menos da transmissão oral (lung) do
mantra.

Se praticarmos Vajrasattva juntamente com a prática de uma figura do


anuttarayoga tantra, Vajrasattva será um casal. Os dois membros do casal
devem ser brancos e terem uma face e dois braços. O homem tem uma
expressão pacífica na boca, como a de Guhyasamaja e Yamantaka, ou uma
expressão semi pacífica e com presas, como a de Heruka Vajrasattva, que
é praticado com Chakrasamvara, Vajrayogini e Hevajra. No Kalachakra,
Vajrasattva é azul, sua parceira é verde e ambos tem três faces e seis
braços.

Se praticarmos Vajrasattva sem a iniciação em uma figura búdica, nos


visualizamos em nossa forma normal durante a prática. Visualizamos
todos os seres ao nosso redor com um Vajrasattva sobre suas cabeças e
sendo purificados. Se praticarmos já tendo iniciação em uma figura
búdica, nos visualizamos como a figura búdica durante a prática, mas com
o “orgulho da deidade” (lha’i nga-rgyal) bem fraco. E nos visualizamos em
nossa forma comum em um disco de lua em nosso coração, rodeado por
todos os seres, todos sendo purificados. “Orgulho da deidade” é o
sentimento de realmente ser a figura búdica.

As tradições Nyingma e Sakya praticam Vajrasattva também como figura


búdica (yidam) e, no caso, podemos receber uma iniciação de Vajrasattva.
Se já tivermos recebido a iniciação, podemos nos visualizar como
Vajrasattva durante a prática, com nós mesmos sentados em um disco de
lua e rodeados por todos os seres em nosso coração. Também podemos
imaginar todos os seres a nossa volta e nós, como Vajrasattva, após
termos atingido a purificação, emitindo raios de luz e purificando a todos.
As tradições Gelug e Kagyu não praticam Vajrasattva como um yidam e,
portanto, não possuem iniciação de Vajrasattva. Nestas tradições, não nos
visualizamos como Vajrasattva e não visualizamos luzes saindo de nós e
purificando todos os seres a nossa volta.
A Sessão de Meditação de Vajrasattva
Preliminares
Para a meditação de visualização e mantra de Vajrasattva, começamos as
preliminares nos acalmando através do foco na respiração enquanto
respiramos normalmente pelo nariz. Se nossa mente já estiver
razoavelmente calma, focamos meramente nas sensações da entrada e
saída do ar nas narinas. A seguir, podemos visualizar Vajrasattva à nossa
frente incorporando à visualização todos os objetos que indicam a
direção segura. Depois, reafirmamos nossa motivação de tomar a direção
segura e o ideal bodhichitta. Podemos, como opção, fazer a prática dos
sete ramos:

 Prostrações, feitas no contexto da direção segura e de bodhichitta


 Oferendas
 Admitir abertamente nossas falhas e aplicar as quatro forças
opositoras
 Alegrar-se com as boas qualidades nossas e dos outros, e com as boas
qualidades de Vajrasattva como consciência de clara luz totalmente
iluminada
 Requisitar ensinamentos — neste caso, requisitar purificação: que
Vajrasattva como consciência de clara luz torne possível a purificação
 Suplicar ao professor que não morra — neste caso, acessando
Vajrasattva, como consciência de clara luz, para que não nos deixe, que
continue permitindo a purificação e nos ajudando até a iluminação.
 Dedicar qualquer purificação que consigamos à obtenção da
iluminação, para podermos ajudar os outros o máximo possível.

Depois tomamos a decisão consciente de meditar com concentração e


então focamos no ponto entre as sobrancelhas para combater o torpor ou
no umbigo para combater a agitação.

Se não fizermos a prática dos sete ramos, simplesmente nos lembramos


daquilo que queremos purificar, admitimos abertamente e aplicamos as
quatro forças opositoras. Para a quarta força opositora, fazemos a parte
principal da prática de Vajrasattva com a decisão consciente de nos
concentrarmos.

Visualização de Vajrasattva
De acordo com o contexto em que estivermos praticando, visualizamos a
forma correspondente de Vajrasattva sentado no topo de nossa cabeça. Se
tivermos dificuldade de visualizar em detalhes, podemos visualizar
apenas uma bola de luz branca. O aspecto de manter o orgulho da deidade
— neste caso, o sentimento de um Vajrasattva realmente sentado em
nossa cabeça — é mais importante do que o aspecto de nitidez da figura
em nossa imaginação. Um método para aprendermos a visualizar algo no
topo da cabeça é pôr a mão na cabeça e depois tirar. Ainda podemos
sentir o ponto em na cabeça onde nossa mão estava e ainda sentimos
como se algo estivesse lá.

O Mantra de Cem Sílabas


A pronúncia tibetana do mantra difere do original sânscrito. Alguns
mestres tibetanos instruem seus alunos a pronunciarem o mantra
conforme os tibetanos o fazem e alguns recomendam que o pronunciem
no estilo sânscrito. Sua Santidade o Dalai Lama recomenda que não
tibetanos sigam a pronuncia sânscrita:

OM VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA, VAJRA-SATTVA


TVENO-PATISHTA, DRIDHO ME BHAVA, SUTOSHYO ME BHAVA,
SUPOSHYO ME BHAVA, ANURAKTO ME BHAVA, SARVA SIDDHIM
ME PRAYACCHA, SARVA KARMA SUCHA ME, CHITTAM SHRIYAM
KURU HUM, HA HA HA HA HOH BHAGAVAN, SARVA TATHAGATA
VAJRA, MA ME MUNCHA, VAJRI BHAVA, MAHA-SAMAYA-
SATTVA, AH HUM PHAT.

A tradução literal do mantra é:

Om Vajrasattva, mantenha seu compromisso. Faça com que eu


permaneça próximo a esse estado de Vajrasattva. Faça com que
eu permaneça estável. Faça com que eu seja feliz. Faça com que
eu seja alegre. Faça com que eu esteja protegido. Conceda-me
todas as realizações. Faça com que todas as minhas ações
sejam excelentes. Faça com que minha mente seja suprema -
HUM. HA HA HA HA HO, Mestre Vencedor Que a Tudo Supera,
estado vajra de todos os que Assim se Foram. Não me deixe
solto, Oh Ser Vajra, ser que possui o grande compromisso. AH,
HUM, PHAT.

Existem várias maneiras de explicar cada frase do mantra, uma é esta:


 OM = silaba semente para o corpo; VAJRASATTVA = ser cuja mente é
forte como o diamante. Oh, ser cuja a mente é forte como o diamante —
significando você cujo estado mental é indestrutível, que é Vajrasattva,
que representa a consciência bem-aventurada de clara luz da
vacuidade. O OM no começo do mantra acompanha o AH e o HUM no
final, que referem-se à fala e à mente, indicando corpo, fala e mente
que precisam ser purificados e o estado purificado de corpo, fala e
mente atingido como resultado da purificação.

SAMAYAM = compromisso; ANUPALAYA = manter

 Mantenha o compromisso - o compromisso ou promessa de que,


através da consciência bem-aventurada de clara luz da vacuidade, eu
serei capaz de purificar todas as repercussões kármicas

VAJRASATTVATVA = estado de Vajrasattva; ENA = isso; UPATISHTA =


permanecer próximo

 Faça com que eu permaneça próximo do estado de Vajrasattva — ou


seja, o estado de consciência de clara luz.

DRIDHO = estável ; ME = eu ; BHAVA= faça.

 Faça com que eu seja estável — através de minha eliminação das redes
de forças kármicas e tendências kármicas negativas do contínuo
mental.

SUTOSHYO = feliz; ME = eu; BHAVA = faça.

 Faça com que eu seja feliz — através da minha eliminação das redes de
todas as forças kármicas e todas as tendências kármicas negativas do
contínuo mental, para que eu atinja a liberação, com sua felicidade
imaculada.

SUPOSHYO = alegre; ME = eu; BHAVA = faça.

 Faça com que eu seja alegre — através de minha eliminação de todos


os hábitos kármicos constantes, para que eu atinja a iluminação, com
sua eterna bem-aventurança.

ANURAKTO = protegido ; ME = eu; BHAVA = faça.

 Faça com que eu esteja protegido — de forma que minha mente nunca
se afaste da consciência bem-aventurada de clara luz da vacuidade.
SARVA = tudo; SIDDHIM = realização; ME = eu; PRAYACCHA = conceder.

 Conceda-me todas as realizações — especificamente, a realização


suprema da iluminação.

SARVA =tudo; KARMA = ações; SUCHA = excelente; ME = eu.

 Que todas as minhas ações sejam excelentes — em termos de


iluminação, que eu obtenha o Rupakaya (corpo de formas) de um buda,
para que todas as minhas ações sejam excelentes, a fim de que eu possa
beneficiar melhor os seres.

CHITTAM = mente; SHRIYAM = suprema; KURU= faça;

 Faça com que minha mente seja suprema — em termos de iluminação,


que eu obtenha um Dhamakaya (um corpo que a tudo abrange) para
ter a consciência onisciente e um coração que a todos acolhe.

HUM = sílaba semente para a mente;

HA= representa o caminho mental da construção (caminho da


acumulação); HA = representa o caminho mental da diligência (caminho
da preparação); HA = representa o caminho mental da visão (caminho da
visão); HA = representa o caminho mental da habituação (caminho da
meditação); HOH = representa o caminho mental de não mais treinar
(caminho de não mais aprender).

 Que minha mente se desenvolva progressivamente nos cinco caminhos


mentais.
 Alternativamente, HA HA HA HA HOH pode representar os cinco tipos
de consciência profunda que, em seus estados totalmente purificados
constituem a mente onisciente de um buda. Neste caso, essa linha
significa: Que minha mente se transforme nos cinco tipos de
consciência profunda purificada.

BHAGAVAN = Mestre Vencedor que a Tudo Supera ; SARVA = tudo;


TATHAGATA = Que Assim se Foi; VAJRA = forte como um diamante.

 E que assim eu me torne alguém que subjugou e purificou todas as


repercussões kármicas e dominou e, portanto, ganhou todas as boas
qualidades, superando todos os outros seres. Em outras palavras, que
eu atinja o estado adamantino de todos aqueles que assim se
iluminaram.

MA = não; ME = eu; MUNCHA = largar,


 Não me deixe largar ou perder a consciência bem-aventurada de clara
luz da vacuidade.

VAJRI = forte como um diamante; BHAVA = ser,

 Oh Ser Vajra - nominalmente, Vajrasattva

MAHA = grande; SAMAYA = vínculo estreito; SATTVA = ser com mente,

 Oh você cuja mente tem o grande compromisso - em outras palavras,


Oh consciência bem-aventurada de clara luz da vacuidade que possui o
grande compromisso de purificar completamente.

AH - sílaba semente para a fala; HUM = sílaba semente para a mente;


PHAT = sílaba estabilizadora.

 O AH e o HUM para fala e mente completam o OM, para o corpo, do


início do mantra. Que todas as interferência para o corpo, fala e mente
cessem e que a purificação possa permanecer estável.

Variações do Mantra
O mantra acima é a forma genérica do mantra de cem sílabas e aparece na
maior parte das práticas de kriya, charya e yoga tantra, bem como nas
práticas de Guhyasamaja, Mahachakra Vajrapani e Kalachakra do
anuttarayoga tantra. No entanto, existem diversas variações do mantra de
cem sílabas. Alguns mantras, por exemplo, terminam em AH HUM PHAT,
ou AH HUM, ou simplesmente AH, mas não faz diferença qual você usa.

Em algumas partes da prática de Vajrabhairava (rDo-rje ‘jigs-byed),


também conhecido como Yamantaka (gShin-rje gshed):

 OM YAMANTAKA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-


SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
 YAMANTAKA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-
PATISHTA,
 YAMANTAKA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA
MA ME MUNCHA,
 YAMANTAKA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas de Chakrasamvara (‘Khor-lo sdom-pa, ‘Khor-lo bde-


mchog), também conhecido como Heruka (He-ru-ka), assim como nas
práticas de Vajrayogini (rDo-rje rnal-‘byor-ma), também conhecida como
Vajravarahi (rDo-rje Pag-mo):
 OM VAJRA HERUKA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-
SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
 HERUKA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-
PATISHTA,
 VAJRA HERUKA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA
MA ME MUNCHA,
 HERUKA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas de Hevajra (Kyai rdo-rje):

 OM SHRI VAJRA HERUKA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM


VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
 HERUKA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-
PATISHTA,
 SUTOSHYO ME BHAVA, ANURAKTO ME BHAVA, SUPOSHYO ME
BHAVA substitui SUTOSHYO ME BHAVA, SUPOSHYO ME BHAVA,
ANURAKTO ME BHAVA,
 VAJRA HERUKA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA
MA ME MUNCHA,
 HERUKA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas de Guhyasadhana Hayagriva (rTa-mgrin gsang-sgrub):

 OM PADMA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-


SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
 PADMA-SATTVA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-
PATISHTA,
 PADMA-SATTVA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA
VAJRA MA ME MUNCHA,
 PADMA-SATTVA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas da forma Tamdrin Yangsang (rTa-mgrin yang-gsang)


de Hayagriva:

 OM PADMA SHRI HERUKA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM


VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
 PADMA SHRI HERUKA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA
TVENO-PATISHTA,
 PADMA SHRI HERUKA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA
VAJRA MA ME MUNCHA,
 PADMA SHRI HERUKA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas de Padmasambhava (Pad-ma ‘byung-gnas) Guru


Rinpoche (Gu-ru rin-po-che), como Sasum-rigdzin (Sa-gsum rigs-‘dzin) e
Yangsang Dorje-trolo (Yang-gsang rDo-rje Gro-lod):
 OM GURU PADMA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-
SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
 GURU PADMA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-
PATISHTA,
 GURU PADMA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA
MA ME MUNCHA,
 GURU PADMA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Existe uma versão concisa do mantra de Vajrasattva que também pode


ser repetida para purificação, mas não é tão usada quanto a versão de
cem sílabas:

 OM VAJRASATTVA HUM, como em alguma práticas Nyingma.

Visualizações da Purificação
Vários textos e professores apresentam diferentes conjuntos de
visualizações para fazermos junto com a meditação no mantra de
Vajrasattva. Vamos detalhar um desses conjuntos de múltiplos passos.

Para Purificação de Acordo com o Nível Inicial de Motivação


Como um primeiro passo no processo de purificação necessário para
atingirmos a iluminação, trabalhamos para nos purificar de forças e
tendências kármicas negativas. Considerando-se que esses tipos de
repercussões kármicas negativas amadurecem como sofrimento
grosseiro nos piores estados de renascimento, o âmbito da prática está de
acordo com o nível da motivação inicial do lam-rim. Ele foca na
purificação do primeiro dos três tipo de sofrimento verdadeiro.

Para purificar as repercussões kármicas negativas que amadurecem na


forma de experiências horríveis que afetam nosso corpo e fala, aplicamos
um conjunto de três visualizações — um conjunto completo para o corpo,
seguido de um conjunto completo para a fala. À medida que recitamos o
mantra de Vajrasattva repetidamente dentro de uma prática sutra, ou de
alguma das três primeiras classes do tantra, imaginamos luzes saindo do
dedão do pé de Vajrasattva, entrando no topo de nossa cabeça e
preenchendo nosso corpo. Quando praticamos no contexto de uma
prática do anuttarayoga tantra, imaginamos luzes e néctar saindo do
lugar de união do casal Vajrasattva, entrando em nosso corpo de forma
similar e nos preenchendo.

No que diz respeito a nosso corpo, imaginamos luz, ou luz e néctar,


preenchendo o corpo de cima para baixo e as impurezas relevantes
saindo por nossos orifícios inferiores de excreção de resíduos sólidos e
líquidos. No que diz respeito à fala, imaginamos a luz, ou a luz e o néctar,
preenchendo nosso corpo de cima para baixo e as impurezas deixando o
corpo pelos orifícios superiores, ou seja, boca, nariz, olhos e ouvidos.

 As repercussões kármicas negativas que nos levam a vivenciar (1) o


sofrimento grosseiro da infelicidade e da dor e (2) as coisas
acontecendo de forma similar às nossas ações kármicas passadas
deixam os orifícios na forma de fuligem, alcatrão e tinta preta.
 As repercussões kármicas negativas que nos levam a vivenciar (1)
obstáculos kármicos, bloqueios e máculas em nossos agregados e o
ambiente dos renascimentos futuros piores ou (2) impedimentos
físicos ou verbais em um futuro renascimento humano, assim como (3)
momentos em que sentimos vontade de agir, falar ou pensar de forma
similar à nossas ações kármicas passadas deixam nosso corpo na forma
de ranho, muco, pus, fezes e urina.
 As repercussões kármicas negativas que nos levam a vivenciar (1)
doenças e outras interferências, tais como forças malignas, no futuro,
deixam nosso corpo da forma das criaturas de que temos mais medo,
como escorpiões, aranhas, ratos ou cobras.

Para purificarmos a mente, empregamos apenas uma visualização,


aplicando-a três vezes, uma para cada tipo de impureza. Assim,
imaginamos em nosso coração cada um dos três tipos de impureza, um de
cada vez, na forma de um nódulo negro. Enquanto recitamos o mantra de
Vajrasattva, imaginamos que um raio sai do coração de Vajrasattva e
entra em nosso coração desintegrando o nódulo.

Para purificarmos alguma outra impureza que tenha ficado no corpo,


podendo afetá-lo ou à nossa fala e mente, aplicamos a visualização para o
corpo, fala e mente conjuntamente, simultaneamente, para cada um dos
três conjuntos de impurezas.

Purificação de Acordo com os Níveis Intermediário e Avançado do Lam-Rim.


Para atingirmos a liberação, meta do nível intermediário de motivação do
lam-rim, precisamos nos livrar não apenas dos obscurecimentos
emocionais (nyon-sgrib), mas também de todas as forças e tendências
kármicas - tanto positivas quanto negativas. O foco, portanto, é a
purificação de todos os três tipos de sofrimento verdadeiro. Já para
alcançarmos a iluminação, meta do escopo avançado, precisamos nos
livrar não apenas dos obscurecimentos cognitivos (shes-sgrib), mas
também dos hábitos kármicos constantes que impedem nosso corpo, fala
e mente de funcionar como os de um buda.
Nesse segundo passo da meditação do mantra de Vajrasattva, repetimos
as mesmas visualizações do primeiro passo. Mas no que diz respeito à
purificação do corpo e fala, imaginamos que:

 A fuligem, alcatrão e tinta preta representam as forças kármicas


 O ranho, muco, pus, fezes e urina representam as tendências kármicas
 As criaturas de que temos medo representam os hábitos kármicos
constantes

No que diz respeito à purificação da mente, imaginamos um nódulo preto


em nosso coração representando cada um dos três tipos de repercussão
kármica, uma de cada vez. Note que, em ambos os passos desse esquema
de purificação, as três visualizações, fuligem, ranho e criaturas
atemorizantes, são iguais às empregadas na prática do dar e receber
(gtong-len, “tonglen”). Nesta prática, imaginamo-nos recebendo dos
outros tudo aquilo que essas três coisas representam, visualizadas nessas
três formas. A questão é que a maioria das pessoas deseja cada vez mais
se livrar dessas três coisas e se limpar, como se elas estivessem lhes
contaminando.

Resultados da Prática de Vajrasattva


Purificação Provisória
Os resultados da prática de purificação com o mantra são limitados. Se
repetirmos o mantra 21 vezes ao dia, evitamos que as forças e tendências
kármicas negativas fiquem cada vez mais fortes. Isso porque, a
intensidade com que aplicamos as forças opositoras combate e diminui o
peso de nossas ações destrutivas. Desta forma, a prática diária neutraliza
a força de amadurecimento da repercussão kármica. Uma das leis do
karma é: de pequenas ações podem amadurecer grandes resultados.

Se repetirmos o mantra 100.000 vezes com o ideal de bodhichitta,


concentração adequada e, de preferência, compreensão conceitual da
vacuidade, conseguiremos uma “purificação provisória” das forças e
tendências kármicas construtoras do samsara. Ao fazermos a purificação
provisória com esses métodos Mahayana — que não utilizam a cognição
não conceitual da vacuidade — as repercussões kármicas anteriormente
criadas tornam-se “sementes queimadas” e não poderão mais ser
ativadas ou gerar resultados kármicos. No entanto, como continuam em
nosso contínuo mental, geram obstáculos à liberação. Enquanto não
conseguirmos um verdadeiro cessar do apego à existência
verdadeiramente estabelecida, continuaremos a gerar as repercussões
kármicas perpetuadoras do samsara. Porém, como fizemos purificações
provisórias com o ideal de bodhichitta, e dedicamos a força positiva
(mérito) para atingirmos a iluminação a fim de beneficiar todos os seres,
também geramos muita força positiva de iluminação.

Purificação Derradeira
A purificação derradeira é equivalente a um verdadeiro cessar, ou seja, à
remoção total das repercussões kármicas de nosso contínuo mental.
Conseguimos esse verdadeiro cessar através da repetida cognição não
conceitual da vacuidade junto com o ideal de bodhichitta — em outras
palavras, com a consciência discriminativa de amplo alcance da
vacuidade (perfeição da sabedoria), prajnaparamita. Tal cognição é o
derradeiro mantra de Vajrasattva. Conforme está escrito no Sutra do
Coração, “a consciência discriminativa de amplo alcance (perfeição da
sabedoria) é o (grandioso) mantra protetor mental, o mantra protetor
mental do grande conhecimento, o mantra protetor mental insuperável, o
mantra protetor mental igual ao inigualável, o mantra protetor mental
que subjuga todo sofrimento”

Ao conseguirmos um verdadeiro cessar de todos os obscurecimentos


emocionais, livramos nosso contínuo mental do apego à existência
verdadeiramente estabelecida. Sem apego, não há possibilidade de
desenvolvermos os anseios e as atitudes obtentoras que podem ativar
algum criador-de-samsara não purificado e que ainda não tenha
amadurecido. E também não há mais possibilidade das “sementes
queimadas” impedirem nossa liberação. Isso inclui tanto as sementes que
foram queimadas por terem se exaurido quanto as que foram purificadas
com a prática provisória de Vajrasattva. Uma vez que as tendências e
potenciais kármicos criadores-de-samsara tornam-se incapazes de gerar
resultados, sua presença não pode mais ser imputada em nosso contínuo
mental. Conseguimos assim, seu verdadeiro cessar.

Com o verdadeiro cessar dos obscurecimentos cognitivos, livramos nosso


contínuo mental do hábito constante de se apegar à existência verdadeira
e alcançamos a onisciência, ou seja, a cognição não conceitual e
simultânea das duas verdades. Assim, os hábitos kármicos constantes não
poderão mais impedir nossa iluminação, eles também cessaram
verdadeiramente.

Podemos atingir a cognição não conceitual com a cognição yóguica (rnal-


sbyor mngon-sum) ou com a consciência de clara luz.

 A cognição yóguica é usada no caminho sutra e nas primeiras três


classes do tantra. Ela emprega a consciência mental sutil, que é um
nível de consciência em que a criação de aparências de existência
inerente pode ocorrer e que é incapaz de reconhecer simultaneamente
as duas verdades.
 A consciência de clara luz é usada exclusivamente no caminho do
anuttarayoga tantra. Ela emprega o nível mais sutil de consciência, que
é o nível de consciência que não cria aparências de existência inerente
e que é capaz de reconhecer simultaneamente as duas verdades.

Com a cognição yóguica da vacuidade e o ideal de bodhichtta podemos


progredir até atingirmos o bhumi-mente do décimo nível. No entanto,
para atingirmos completamente o verdadeiro cessar dos hábitos
kármicos constantes e, portanto, a iluminação, precisamos conseguir a
cognição não conceitual da vacuidade com a consciência bem-aventurada
de clara luz. Vajrasattva representa essa cognição não conceitual.
História e Cultura
O Budismo ensina que tudo surge de causas e condições, e o Dharma não é exceção. A
história e a cultura de cada país onde o budismo foi disseminado afetaram o seu
desenvolvimento. Ao longo do tempo, os budistas trocaram ideias com pessoas de
muitas fés diferentes, o que enriqueceu a todos. Agora, à medida que as ideias e os
métodos budistas se espalham por todo o mundo, as pessoas estão adaptando princípios
budistas a muitas novas esferas da vida.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 O Budismo na Índia
 O Budismo no Tibete
 O Budismo na Ásia Central
 O Budismo no Sudoeste da Ásia
 Diálogo Interreligioso
 Budismo e Islã
 Budismo e Islã: Avançado
 Astrologia Tibetana
 Medicina Tibetana
 Shambhala
 O Budismo nos Tempos Modernos
 Transmissão do Budismo no Ocidente
O Budismo na Índia

A Sociedade e o Pensamento
Indianos antes e durante a Ēpoca do
Buda
Dr. Alexander Berzin

Harappa-Mohenjadaro

Durante o terceiro e o segundo milénios a.C., a civilização Harappa-Mohenjodaro


floresceu no Vale do Rio Indo. Ela tinha contato comercial com os sumérios pré-
babilônicos da área da Mesopotâmia, no atual Iraque, mas deles tinha reduzida
influência cultural. O povo era muito provavelmente proto-drávida, com uma
religião de um deus supremo que, representando a fertilidade, a criação, iogues
ascéticos com poderes supernaturais e o senhor do gado, era um pouco como um
protótipo de Shiva, o deus hindu mais recente. As crenças religiosas incluíam
também uma deusa mãe, rituais de ablução, adoração fálica, uma reverência à
figueira sagrada (sânsc: pippala) e a animais sagrados, tais como a vaca. A figueira
sagrada é um tipo de figueira baniana, conhecida no budismo como árvore bodhi.

Começando na segunda metade do segundo milénio a.C., as tribos indo-iranianas


invadiram e conquistaram o Vale do Rio Indo. Subsequentemente, estabeleceram-
se lá e mais além, para o leste, na India setentrional. Estas tribos eram muito
provavelmente originárias da área do Afeganistão, do Irão oriental e do Turquistão
ocidental meridional, e eram conhecidos como os “arianos”, os “nobres”. A
palavra Irão, de fato, deriva da mesma fonte da palavra ariano. Através destas
tribos, as antigas culturas iranianas e indianas partilham em comum certas
características linguísticas e religiosas.

Com a invasão ariana, muitos dos povos nativos de Harappa-Mohenjodaro de pele


mais escura tornaram-se escravos, enquanto que outros mudaram-se para o sul da
India. A divisão de classes ariana em aristocracia e membros das tribos foi
desenvolvida para se tornar o sistema de castas da India. A palavra sâncrita para
casta, varna, também significa cor.

Os Vedas

No século XIII a.C., os arianos estabeleceram o Império Paurava no norte da India.


Pelo século IX a.C., a sua religião estava sistematizada nos Vedas.

Os deuses védicos são menos humanizados do que as suas contrapartes gregas


antigas. Eles são os que mantêm a ordem cósmica e a boa moral. Durante o seu
período mais antigo, a prática da religião védica consistia, na sua maior parte, em
cantar hinos de elogio e pedidos aos seus deuses. Contudo, com a sistematização
dos Vedas, a sociedade incumbiu a uma casta de sacerdotes a função de fazer
oferendas sacrificiais aos deuses dentro de um fogo sagrado. Os sacerdotes eram
conhecidos por “brâmanes”. As oferendas tinham que ser feitas por forma a
compelir os deuses a manter a ordem; se não, os deuses não o fariam. As oferendas
cerimoniais feitas ao fogo sagrado consistiam em leite, manteiga clarificada (ghee),
grãos e especialmente “soma”, o suco inebriante de uma planta possivelmente
psicoativa.

O ato ritual de fazer oferendas era venerado ainda mais do que os próprios deuses
e, por conseguinte, os sacerdotes brâmanes desempenhavam um papel essencial
na sociedade. Ou seja, a sociedade acreditava que o seu bem-estar derivava não
tanto do favor dos deuses mas, pelo contrário, da correta execução pelos brâmanes
das oferendas rituais. Consequentemente, o hinduismo antigo é referido
geralmente como “bramanismo”. Além disso, a sociedade via o ritual das oferendas
como uma dívida aos deuses. Essa crença fez surgir o conceito bramânico dos atos
positivos como sendo o desempenho do nosso dever.

Os “mantras” eram originalmente os hinos métricos dos Vedas, especificamente


o Rig Veda, cantados nas oferendas rituais aos deuses. Os seus sons eram vistos
como possuidores de um poder especial e eram venerados como sendo imutáveis e
eternos.

E mais, de acordo com os ensinamentos bramânicos, o universo foi criado através


do sacrifício de Brahma, que era um pouco como um gigante primordial. Ou seja,
Brahma era o ser original do qual evoluiu o universo e que agora sustenta o
universo e toda a vida. As partes do seu corpo transformaram-se nos diferentes
aspectos do universo e nas castas da sociedade. Assim, a sociedade via o universo
como um todo orgânico, espelhado no corpo humano. Após a morte, os espíritos
humanos viajam, através do caminho do fogo crematório, para o céu mais elevado
da eterna luz. Aqueles que são negativos afundam-se na escuridão subterrânea.

Uma extensa literatura evolveu a partir dos Vedas. Os Brahmanas, em prosa,


explicavam os rituais védicos e ajudavam na sua execução. Os Puranas divulgavam
crónicas históricas. Uma história épica, em particular o Mahabharata, tornou-se
seminal para o desenvolvimento do hinduismo popular mais recente. Foi composta
no século IX a.C.. Também durante esse período, desenvolveram-se as primeiras
ideias sobre Vishnu, um outro grande deus.

Os Upanishads

O Império Paurava começou a declinar no século VIII a.C., depois de uma enorme
inundação ter forçado a mudança da sua capital. Lentamente, o império dividiu-se
em numerosos pequenos estados. Alguns eram reinos; outros eram repúblicas.
Estas grandes mudanças na sociedade indiana marcaram o começo de um período
de especulação filosófica e religiosa.
A parte final dos Brahmanas eram os Upanishads, um corpo de literatura que
desenvolveu mais completamente a base filosófica para o bramanismo. Escrito no
decurso de várias centenas de anos, começando por volta do final do século VII a.C.,
doze dos Upanishads são anteriores ao Buda. Embora cada um dos doze
apresentasse ensinamentos ligeiramente diferentes, eles partilhavam contido
muitos temas gerais.

Da ideia bramânica do paralelismo entre os seres humanos e o gigante primordial,


os Upanishads desenvolveram a asserção da identidade de atman – o eu individual
ou a “alma” – com Brahma. Além disso, eles explicaram que, como causa principal
do universo, Brahma criava periodicamente o mundo a partir dele mesmo e
retraía-o de volta para dentro de si. Dependendo do Upanishad específico, este
processo ocorre de uma das duas maneiras: ou Brahma evolve no universo e em
todos os seres vivos dentro dele, ou o universo e todos os seus seres vivos são
meras aparências de Brahma. Em qualquer dos casos, a verdadeira realidade é a
unidade de tudo e todos como Brahma. O mundo das aparências de objetos
separados e seres individuais é ilusão (sânsc: maya). Os atmans individuais, ou
almas, são todos, de fato, idênticos a Brahma.

Os Upanishads introduziram também as asserções do carma e do renascimento.


Estas asserções concordam com as suas explanações de que o universo atravessa
ciclos repetitivos de criação e destruição em enormes extensões de tempo. Do
mesmo modo, almas individuais experienciam nascimentos e mortes recorrentes
ao longo de vidas incontáveis. Este ciclo de renascimentos recorrentes
(sânsc: samsara) ocorre devido ao seu não-apercebimento das suas próprias
identidades e da de Brahma. Além disso, é conduzido pela força do seu “karma” –
das suas ações baseadas no seu não-apercebimento de que tudo é ilusão. Quando
se apercebe como as coisas sempre foram, nomeadamente, a unidade fundamental
entre nós próprios e Brahma, com a separação entre os dois sendo uma ilusão
total, alcança-se a liberação (sânsc: moksha). O caminho para a liberação envolve o
desenvolvimento do não-apego e o cultivo de uma compreensão correta da
realidade através de ouvir, pensar e meditar sobre a unidade do universo. Contudo,
o curso usual do desenvolvimento espiritual humano atravessa quatro estágios da
vida:

 Conduzindo-se a vida celibatária de um estudante (sânsc: brahmacharya),


 Casando-se (sânsc: grhastha) e criando uma família,
 retirando-se para as florestas (sânsc: vanaprastha) e viver como um hermita,
 renunciando tudo (sânsc: sannyasa) e, ao viver ainda sozinho nas florestas, seguir uma
prática espiritual intensiva para alcançar a liberação.

Assim, os Upanishads enfatizavam que o universo é compreensível e que para


alcançar a liberação dos sofrimentos dos renascimentos recorrentes devido ao
não-apercebimento e ao carma, é necessário ver-se a verdadeira natureza da
realidade e experienciá-la por si próprio. O budismo e muitos dos outros sistemas
filosóficos e religiosos indianos mais recentes aceitam estas premissas.
A Situação Política na India durante a Época do Buda Shakyamuni

A divisão do norte da India em repúblicas e reinos continuou dentro da época do


Buda Shakyamuni (566 – 485 a.C.). As principais eram a república Vrji, com
assembleias públicas e instituições democráticas, e os reinos autocráticos de
Kosala e Magadha. No entanto, ambos os tipos de estado funcionavam dentro da
estrutura ritual do bramanismo, porque o bramanismo descreveu os deveres de
um regente, em vez dos seus poderes e forma de governo. O Buda nasceu em
Shakya, uma ex-república incorporado no reino de Kosala, e ensinou em Kosala e
Maghada, bem como na República Vrji.

A época de Buda viu a ascensão da classe mercantil e a acumulação de grandes


fortunas, medidas agora em dinheiro em vez de gado. Os mercadores tornaram-se
mais ricos do que os reis e, consequentemente, reagiram os reis tomando medidas
mais autocráticas para controlar o comércio e a sociedade em geral. Assim, dentro
dos reinos, a preocupação principal era ganhar poder econômico e político. Por
conseguinte, com a ênfase no dinheiro e o uso da força violenta, os reinos
tornaram-se muito mais fortes do que as repúblicas – económica, política e
militarmente. Como resultado, as pessoas experienciaram a progressiva redução
da sua liberdade e um sofrimento cada vez maior. Muitos filósofos da época,
incluindo Buda, procuraram a liberação através de meios espirituais.

Havia dois grupos espirituais principais oferecendo caminhos à liberação, em


resposta a esta difícil situação.

 Os brahmanas eram a ortodoxia, que mantinha os antigos rituais bramânicos. Seguiam


os Upanishads como sua base filosófica, mas dentro do contexto de primeiro
conduzirem uma vida de dever dentro da sociedade e apenas se tornarem renunciados
celibatários depois de se aposentarem. Eram exclusivamente da casta dos brâmanes e
seguiam o caminho à sua liberação como ascetas solitários que viviam nas florestas.
 Os shramanas eram buscadores espirituais mendicantes e vagantes. Vinham de todas as
castas, à exceção dos brâmanes, e procuravam a liberação abandonando a sociedade
desde o começo. Viviam juntos nas florestas, sem diferenças de castas, como uma
comunidade espiritual (sânsc: sangha), em vez de como ascetas solitários. Organizavam
as suas comunidades autónomas de acordo com o modelo das repúblicas, com decisões
tomadas em assembleias. Além disso, todos eles rejeitavam um deus supremo, tal como
Brahma, ou qualquer outra forma de um criador. Embora as
comunidades shramana não considerassem diferenças de casta dentro delas, os leigos
que seguiam mais superficialmente os seus ensinamentos, e que os apoiavam, viviam
ainda dentro da estrutura do sistema de castas.

As Cinco Escolas Shramana Principais

Quando o Buda Shakyamuni renunciou a sua vida de príncipe, juntou-se


aos shramanas. Como eles, depois da sua iluminação, organizou buscadores
espirituais que o seguiam em comunidades autónomas de acordo com as mesmas
linhas dos outros grupos shramana. Assim, o budismo tornou-se a quinta das cinco
escolas shramana da época.
As cinco escolas shramana e as suas visões básicas eram como se segue:

 A Escola Ajivaka, fundada por Gosala, era determinista e, assim, rejeitava o processo
causal do carma. Afirmavam que os elementos constituintes do universo – terra, água,
fogo, vento, felicidade, infelicidade, e almas viventes (sânsc: jiva) – são mónadas ou
átomos indivisíveis não-criados que não interagem uns com os outros. Como tudo é
predeterminado, embora ações ocorram através dos átomos destes constituintes; não
obstante, nem as próprias ações nem os átomos causam realmente o acontecimento de
algo. As almas vivas atravessam um número enorme de renascimentos e, depois de
terem experienciado todas as vidas possíveis, entram automaticamente num estado de
paz e ficam assim livres do renascimento. Como consequência, a liberação não depende
do que alguém realmente faz.
 A Escola Lokayata ou Charvaka, ensinada por Ajita, também rejeitava o carma. Não só
isso, rejeitava também o renascimento e qualquer coisa como uma alma viva. Advogava
o hedonismo, ensinando que todas as ações devem ser espontâneas e deviam vir da
nossa própria natureza (sânsc:svabhava) – ou seja, devem ser naturais. O objetivo da
vida era experienciar tanto prazer sensual quanto possível. Esta escola rejeitava todas
as formas de lógica e de raciocínio como modos válidos de se conhecer algo.
 A Escola Jainista ou Nirgrantha, fundada por Mahavira, afastou-se da Escola de
Lokayata como uma forte reação contra ela. Por isso, asseverava a existência de almas
vivas experienciando renascimentos através da força do carma. O jainismo, existente
ainda hoje como um dos principais sistemas religiosos indianos, ensina um
comportamento ético extremamente estrito e, de fato, um ascetismo extremo como
meio de atingir a liberação.
 A Escola Ajnana Agnóstica, liderada por Sanjayin, afirmava que era impossível obter
um conhecimento conclusivo sobre algo mediante especulações filosóficas ou debates
baseados na lógica. Advogava a vida em comunidades celibatárias que colocavam a sua
ênfase apenas na amizade.
 O budismo desenvolveu-se como uma escola shramana que aceitava o renascimento
sob a força do carma, enquanto que rejeitava a existência do tipo de alma que as outras
escolas propunham. Além disso, o Buda aceitava, como parte do caminho para a
liberação, o uso da lógica e do raciocínio, assim como também o do comportamento
ético, mas não ao nível do ascetismo dos jainistas. E assim, o budismo evitou os
extremos das quatro escolas shramana precedentes.
Buda e os Eventos Políticos de Seu
Tempo
Dr. Alexander Berzin

A vida do Buda histórico emerge em diversas camadas nos textos


clássicos da literatura budista. A versão mais recente não aparece em
nenhum texto, só pode ser montada através dos vários acontecimento
registrados no sutta pali (Sânscr. sutra) e na literatura vinaya da tradição
Theravada. Textos mais recentes, das tradições Mahasanghika,
Sarvastivada e Mahayana, ornamentam o perfil simples dos textos antigos
atribuindo ao Buda várias qualidades, muitas vezes sobre-humanas. No
entanto, o perfil original, que emerge da literatura pali, revela uma pessoa
muito humana que, vivendo em tempos conturbados e inseguros,
enfrentou numerosas dificuldades e desafios, tanto pessoais quanto em
sua comunidade monástica. Aqui, destacaremos a versão mais antiga da
vida do Buda, baseando-nos em uma pesquisa acadêmica de Stephen
Batchelor apresentada em seu livro Confession of a Buddhist
Atheist(Confissões de um Ateu Budista, ainda sem tradução para o
português). Todos os nomes serão escritos na versão pali.

O Buda nasceu em 566 AC no Parque Lumbini (Lumbi-na’i tshal), onde


atualmente é o sul do Nepal. Esse parque fica perto de Kapilavatthu (Ser-
skya’i gnas, sânsc. Kapilavastu), capital de Sakiya (Sha-kya, sânsc. Shakya).
Apesar de seu primeiro nome, Siddhattha (Don-grub, sânsc. Siddhartha),
não aparecer no cânone pali, o utilizaremos aqui por uma questão de
conveniência. Gotama (Gau-ta-ma, sânsc. Gautama), outro nome
frequentemente usado para o Buda, era na realidade o nome de seu clã.

O pai de Siddhattha, Suddhodana (Zas tsang-ma, sânsc. Shuddhodana),


não era um rei, conforme descrito na literatura budista mais recente. Ele
era um nobre do clã Gotama, talvez um governador regional em Sakiya. O
cânone pali não fornece o nome de sua mãe; mas fontes posteriores a
identificam como Maya-devi (Lha-mo sGyu-‘phrul-ma). A mãe de
Siddhattha morreu pouco tempo depois de seu nascimento, e ele foi
criado pela irmã dela, Pajapati (sKye-dgu’i bdag-mo chen-mo,
sânsc. Mahaprajapati), que depois casou-se com seu pai, conforme o
costume da época.

Sakiya era uma antiga república mas, na época do nascimento de


Siddhattha, fazia parte do poderoso reino de Kosala (Ko-sa-la,
sânsc. Koshala). Kosala se estendia desde a margem norte do Rio Ganges,
onde atualmente é Bihar, até as encostas do Himalaias. Sua capital era
Savatthi (gNyan-yod, sânsc.bShravasti).

Considerando-se que uma breve descrição geográfica dos principais


lugares por onde o Buda esteve pode fazer com que seja mais fácil seguir
sua biografia, vamos falar um pouco deles. Sakiya ficava na parte leste de
Kosala, com a província de Malla (Gyad-kyi yul, sânsc. Malla) a sudeste. A
leste de Malla ficava a República Vajji (sânsc. Vrji), cuja capital era Vesali
(Yangs-pa-can, sânsc. Vaishali). A República Vajji era governada por uma
confederação de clãs; o clã Licchavi (Li-ccha-bi, sânsc. Licchavi) era o mais
famoso. Ao sul de Vajji e Kosala, do outro lado do rio Ganges, ficava o
poderoso reino de Magadha (Yul Ma-ga-dha, sânsc. Magadha), cuja capital
era Rajagaha (rGyal-po’i khab, sânsc. Rajagrha). A oeste de Kosala, onde
atualmente fica a província do Punjab, no Paquistão, ficava Gandhara (Sa-
‘dzin, sânsc. Ghandhara), que era uma satrapia do Império Aquemênida
Persa. Em sua capital, Takkasila (rDo-‘jog, sânsc. Takshashila), ficava a
universidade mais famosa da época. Lá, as ideias e cultura grega e persa
misturavam-se com o seu equivalente indiano contemporâneo.

Kapilavatthu, onde Siddhattha cresceu, era uma das maiores cidades da


Rota Norte, a principal artéria comercial daquela época. A Rota Norte
ligava Kosala a Gandhara, a oeste, e depois à Magadha, ao sul, passando
por Sakiya, Malla, e pela República Vajji. Portanto, apesar do cânone Pali
falar muito pouco sobre o período da vida de Siddhattha Gotama antes
dos vinte e nove anos de idade, ele provavelmente foi exposto a várias
culturas. Pode ser até que ele tenha estudado em Takkasila, apesar disso
não poder ser comprovado.

Siddhattha casou-se com Bhaddakaccana, conhecida na literatura


sânscrita como Yashodhara (Grags‘dzin-ma). Ela era sua prima e irmã de
Devadatta (Lhas-byin, sânsc. Devadatta). Mais tarde Devadatta tornou-se
o maior rival do Buda. Siddhattha e Bhaddakaccana tiveram apenas um
filho, Rahula (sGra-gcan‘dzin, sânsc. Rahula). Quando tinha vinte e nove
anos de idade, logo depois do nascimento de seu filho, o Buda deixou
Kapilavatthu e foi para para Magadha em busca da verdade espiritual.
Viajando pela Rota Norte e atravessando o rio Ganges, ele chegou a
Rajagaha. Naquele tempo, Magadha era governada pelo rei Bimbisara
(gZugs-can snying-po) e Kosala pelo rei Pasenadi (rGyal-po gSal-rgyal,
sânsc. Prasenajit). Como parte da aliança entre Magadha e Kosala, os dois
reis casaram-se com a irmã um do outro. A irmã do rei Pasenadi
chamava-se Devi (Lha-mo, sânsc. Devi). Em Magadha, Siddhattha estudou
nas comunidades de dois professores, Alara Kalama (sânsc. Arada
Kalama) e Uddaka Ramaputta (sânsc. Udraka Ramaputra). Vindos da
tradição brâmane, eles ensinaram Siddhattha a alcançar a concentração
absorvida na vacuidade e em nem distinguir e nem não distinguir alguma
coisa. Entretanto, Siddhattha estava insatisfeito como essas realizações e
deixou seus professores. A partir de então, seguiu uma rotina de extremas
austeridades, comendo quase nada. Mas novamente ele sentiu que as
práticas que estava fazendo não o levavam à liberação. Então ele quebrou
o jejum e foi para perto de Uruvela (lDeng-rgyas, sânsc. Urubilva),
atualmente Bodh Gaya, onde atingiu a iluminação embaixo da árvore
bodhi aos trinta e cinco anos de idade. Isso aconteceu seis anos após ele
ter chegado à Magadha.

Depois de atingir a iluminação, ele tomou a direção oeste rumo a


Migadaya (Ri-dvags-kyi gnas, sânsc. Mrgadava), o Parque dos Cervos, em
Isapatana (Drang-srong lhung-ba, sânsc. Rshipatana), atualmente Sarnath,
vizinha à Varanasi. Apesar dessa área estar ao norte do Rio Ganges, o rei
Pasenadi havia cedido-a para o reino de Magadha como parte do dote de
sua irmã Devi, quando ela se casou com o rei Bimbisara. O Buda passou a
estação chuvosa no Parque dos Cervos, com cinco companheiros, e logo
atraiu um pequeno número de seguidores que formaram uma
comunidade celibatária, da qual ele precisou cuidar.

Mahali, um nobre do clã Licchavi, de Vesali, ouviu falar do Buda e sugeriu


ao rei Bimbisara que o convidasse à Magadha. Então, após a monção, o
Buda e sua crescente comunidade voltaram para o leste, para a capital de
Magadha, Rajagaha. O rei Bimbisara ficou impressionado com os
ensinamentos do Buda e ofereceu a ele um parque que não estava sendo
usado, chamado “Veluvana” (‘Od-ma’i tshal, sânsc. Venuvana), o “Bosque
dos Bambus”, onde ele poderia ficar com sua comunidade durante a
estação chuvosa.

Logo depois, Sariputta (Sha-ri’i bu, sânsc. Shariputra) e Moggallana (Mo’u


dgal-gyi bu, sânsc. Maudgalyayana), os principais discípulos de um
proeminente guru local, juntaram-se à comunidade do Buda. Mais tarde
eles tornaram-se os discípulos mais próximos do Buda. Sariputta pediu ao
Buda que formulasse votos para a crescente comunidade monástica e o
rei Bimbisara sugeriu que a comunidade adotasse alguns dos costumes de
outros grupos espirituais mendicantes, como os jainistas. O rei
recomendou especificamente que eles fizessem assembléias trimestrais
(gso-sbyong, sânsc. uposhadha) para discutirem os ensinamentos. O Buda
concordou.

Certo dia, Anathapindika (dGon-med zas-sbyin, sânsc. Anathapindada), um


próspero banqueiro de Savatthi, capital de Kosala, foi a Rajagaha à
trabalho. Impressionado pelo Buda, ele lhe ofereceu um lugar para passar
a estação chuvosa em Savatthi, a capital do reino. Logo depois, o Buda e
sua comunidade de monges mudaram-se para Kosala; mas vários anos se
passaram antes que Anathapindika pudesse lhes oferecer um lugar
apropriado.

Nesse meio tempo, o Buda retornou a Kapilavatthu para visitar sua


família. Seu pai, Suddhodana, logo tornou-se um de seus seguidores e seu
filhos Rahula, de oito anos, juntou-se a comunidade monástica como
noviço. Durante os anos seguintes, diversos nobres de Sakiya também se
juntaram à comunidade, inclusive Ananda (Kun dga’-bo, sânsc. Ananda),
Anuruddha (Ma-‘gag-pa, sânsc. Anuruddha), e Devadatta, primos do Buda,
e também seu meio irmão Nanda (dGa’-bo, sânsc. Nanda), também
conhecido como “Sundarananda” (mDzes-dga’, sânsc. Sundarinanda),
“Nanda o Belo.”

A madrasta e tia do Buda, Pajapati, pediu para juntar-se à crescente


comunidade, mas de início o Buda negou. No entanto, sem desencorajar-
se, ela raspou a cabeça, colocou uma veste amarela e, juntamente com um
grande grupo de mulheres, segui o Buda assim mesmo. Pajapati
continuou a pedir ao Buda que lhe ordenasse, mas ele negou pela segunda
e terceira vez. Finalmente, alguns anos antes do Buda morrer, Ananda
intercedeu por Pajapati e solicitou mais uma vez que o Buda ordenasse as
mulheres, e ele finalmente concordou. Isso aconteceu em Vesali, na
República Vajji, e foi o começo da ordem de monjas no budismo.

Anathapindika era conhecido por sua grande generosidade e, alguns anos


após o retorno do Buda à Kosala, ele pagou uma enorme quantidade de
ouro na compra de um parque em Savatthi, chamado “Jetavana” (rGyal-
byed-kyi tshal, sânsc. Jetavana), o “Bosque de Jeta”. Lá ele construiu uma
residência extremamente luxuosa para o Buda e seus monges passarem a
estação chuvosa. Finalmente, cerca de vinte anos após sua iluminação, o
Buda instituiu o costume do retiro formal da estação chuvosa (dbyar-
gnas, sânsc. varshaka) para sua comunidade monástica, durante o qual os
monges e monjas ficavam em um único lugar durante os três meses das
monções, todos os anos, ao invés de andarem de um lugar para outro
conforme faziam durante o resto do ano. Em suma, o Buda passou
dezenove retiros de monção no Bosque de Jeta, durante os quais fez 844
discursos. Anathapindika continuou a ser o principal patrono da
comunidade monástica do Buda, mas no final de sua vida foi à falência.

Pasenadi, o rei de Kosala conheceu o Buda Gotama no Bosque de Jeta,


quando o Buda tinha aproximadamente quarenta anos. O Buda causou
uma forte impressão no rei, e posteriormente Pasendi também tornou-se
um de seus patronos e seguidores. No entanto, o relacionamento do Buda
com o rei Pasenadi sempre foi muito delicado. Apesar do rei ser um
patrono intelectual do aprendizado, ele também era um sensualista e
frequentemente muito cruel. Por exemplo, por pura paranóia ele mandou
matar Bandhula, seu amigo de Malla e comandante de seu exército; mas,
arrependido, indicou o sobrinho de Bandhula, Karayana, para assumir o
exército. Muitos anos depois, o General Karayana depôs Pasenadi em um
ato de vingança pela morte do tio. O Buda, no entanto, tolerava o
comportamento errático e as mudanças na sorte do rei, sem dúvida
porque precisava de sua proteção contra ladrões e animais selvagens,
bem como o acesso à patronos ricos que pudessem sustentar sua
comunidade.

Para assegurar a sucessão de sua dinastia, o rei Pasenadi precisava ter um


filho. Sua primeira esposa, a irmã do rei Bimbisara, de Magadha,
aparentemente não lhe deu filhos. O rei então casou-se com uma segunda
esposa, Mallika (Ma-li-ka, sânsc. Mallika), uma linda seguidora do Buda,
de casta baixa. Os sacerdotes brâmanes da corte real ficaram
escandalizados. Mallika deu uma filha ao rei Pasenadi, Vajiri (rDo-rje-ma,
sânsc. Vajri).

Mas o rei sentiu a necessidade de uma terceira esposa, para lhe dar um
filho homem. E casou-se com Vasabha, a filha de Mahanama (rDo-rje-ma,
sânsc. Vajri), primo do Buda, que tornou-se governador de Sakiya após a
morte do pai do Buda. Mahanama era irmão de Ananda e Anuruddha,
discípulos próximos do Buda. Apesar de Mahanama ter apresentado
Vasabha como uma mulher nobre, na realidade ela era sua filha ilegítima
com uma escrava. Apesar de Vasabha ter dado um filho ao rei Pasenadi,
Vidadabha, sua posição como herdeiro do trono de Kosala era precária,
por conta da fraude em relação à linhagem sanguínea de sua mãe. Essa
fraude também colocou o Buda em uma posição difícil por ser parente de
Vasabha.

Sem nada saber a respeito de sua ilegitimidade, quando tinha dezesseis


anos Vidadabha foi visitar Sakiya, e seu avô Mahanama, pela primeira vez.
Enquanto estava lá, Karayana, o comandante do exército de Pasenadi,
soube da verdadeira origem da mãe de Vidadabha. Quando o chefe de seu
exército contou a Pasenadi que seu filho era o neto ilegítimo de uma
escrava, o rei rompeu em raiva contra os Sakiyas. Ele destituiu sua esposa
e filho de suas posições reais e os entregou à escravidão. O Buda
intercedeu por eles e o rei finalmente os reinstituiu.

Entretanto, após esse episódio, Kosala tornou-se um lugar inseguro para


o Buda, que na época tinha cerca de setenta anos de idade, e ele retornou,
pela primeira vez, para Magadha e sua capital Rajagaha. Lá ele ficou no
Bosque das Mangueiras, propriedade de Jivaka (‘Tsho-byed, sânsc. Jivaka),
o médico real, ao invés do Bosque dos Bambus, que era propriedade do
rei. Isso indica que talvez o Buda já estivesse doente nessa época.

Quando o Buda tinha setenta e dois anos, seu primeiro patrono, o rei
Bimbisara de Magadha, foi forçado a abdicar do trono em favor do filho,
Ajatasattu (Ma-skyes dgra, sânsc. Ajatashatru). Ajatasattu prendeu o pai e
o deixou morrer de fome. A viúva de Bimbisara, Devi, irmã do rei
Pasenadi, morreu de desgosto. Como vingança pela morte da irmã,
Pasenadi declarou guerra a seu sobrinho Ajatasattu para tentar reaver os
vilarejos em torno de Varanasi, ao norte do Ganges, com os quais ele
havia presenteado Bimbisara, como parte do dote de Devi. A guerra foi
inconclusiva, e, para assegurar a paz, Pasenadi foi forçado a casar sua
filha Vajiri com Ajatasattu.

Mais ou menos na mesma época, o primo do Buda, Devadatta, que havia


tornado-se professor de Ajatasattu, tentou ganhar o controle da ordem
monástica. Devadatta tentou convencer o Buda a impor várias regras
disciplinares adicionais aos monges, tais como viver em florestas, dormir
embaixo de árvores, não adentrar casas de pessoas leigas, vestir apenas
trapos, não aceitar tecidos como presente e serem estritamente
vegetarianos. O Buda recusou-se a impor tais regras, uma vez que achava
que isso faria com que a ordem se tornasse muito ascética e afastada da
sociedade. Devadatta desafiou a autoridade do Buda, atraindo muitos dos
jovens monges com suas ideias, criando uma dissidência ao formar sua
própria comunidade monástica rival. De fato, Devadatta tentou
repetidamente, porém sem sucesso, assassinar o Buda. No final, Sariputta
e Moggallana persuadiram os monges que haviam deixado a comunidade
do Buda a voltar.

Parece que Devadatta arrependeu-se de suas ações, mas morreu antes de


ter a oportunidade de pedir perdão ao Buda. De qualquer forma, o Buda
não guardou rancor contra ele. O rei Ajatasattu também arrependeu-se de
matar seu pai e, seguindo o conselho do médico real, Jivaka, admitiu
abertamente ter matado o pai e procurou redimir-se.

Cerca de um ano mais tarde, o Buda viajou novamente para sua terra
natal, Sakiya. Durante a visita do rei Pasenadi ao Buda, para prestar-lhe
os seus respeitos, o General Karayana armou um golpe e colocou o
príncipe Vidadabha no trono de Kosala. Pasenadi, o rei deposto, não tinha
para onde ir, fugiu para Magadha buscando a proteção de seu sobrinho e
genro, o rei Ajatasattu em Rajagaha. Entretanto, Pasenadi foi impedido de
entrar na cidade e foi encontrado morto no dia seguinte.
Enquanto isso, o novo rei de Kosala, Vidadabha, declarou guerra contra
Sakiya, como vingança pela fraude de seu avô Mahanama em relação a
sua linhagem sanguínea. Mahanama, você deve lembrar, era primo do
Buda e governador de Sakiya. Apesar do Buda ter tentado, por três vezes,
convencer o rei a não atacar, ele não teve sucesso. As forças de Kosala
foram ordenadas a matar todos os habitantes de Kapilavatthu, capital de
Sakiya. Sem conseguir evitar o massacre, o Buda fugiu para Rajagaha em
Magadha, buscando a proteção do rei Ajatasattu, a mesma proteção que
Pasendi não conseguiu fornecer.

O caminho para Magadha passava pela República Vajji, onde Sariputta,


seu discípulo mais próximo, o aguardava na capital Vesali. Lá, no entanto,
um dos antigos assistentes do Buda, Sunakkatta (Legs-pa’i rgyu-skar,
sânsc. Sunakshatra), um nobre de Vesali que havia devolvido os votos
monásticos e deixado a comunidade budista, difamou o Buda junto ao
parlamento de Vajji. Ele afirmou que o Buda não possuía nenhum poder
sobre-humano e ensinava seus discípulos a livrarem-se do desejo apenas
através da lógica, e não os ensinava a obter estados transcendentais. O
Buda tomou isso como um elogio.

Entretanto, essa denúncia, provavelmente junto com o fato dele ter


fundado uma ordem de monjas, fez com que o Buda perdesse seu
prestígio e apoio em Vajjri. Consequentemente, o Buda teve que cruzar o
Ganges e seguir para Rajagaha, onde ficou nas cavernas próximas à
Gijjhakuta (Bya-rgod-kyi phung-po, sânsc. Grdhrakuta), o Pico do Abutre.

Vassakara, o primeiro ministro do rei Ajatasattu, foi visitar o Buda. Ele lhe
contou sobre os planos de Ajatasattu em expandir o reino, e sua intenção
de invadir a República Vajji em breve. Apesar do Buda avisar que não
conseguiriam vencer a República Vajji pela força, que eles sempre
tentariam manter sua forma de governo, ele não conseguiu impedir a
guerra, da mesma forma que não conseguiu impedir a invasão de Kosala
pelos Sakiyas. O Buda ainda sofreu outra perda nessa época, Sariputta e
Moggallana morreram. O velho Sariputta morreu de uma doença e
Moggallana foi espancado até a morte por bandidos enquanto fazia um
retiro solitário.

Sem receber nenhuma solidariedade ou apoio em Magadha, o Buda


decidiu retornar para o norte, provavelmente para sua terra natal, Sakiya,
talvez para ver o que havia sobrado após o ataque de Kosala. Antes de
iniciar a viagem, o Buda pediu a Ananda que reunisse os monges no Pico
dos Abutres, e lá deu-lhes seu última recomendação. Ele os instruiu a
copiar na comunidade monástica o sistema democrático do parlamento
da República Vajjri. Eles deveriam fazer assembléias regulares, viver em
harmonia, compartilhar as esmolas, e respeitar os mais velhos. O Buda
logo deixou o Pico dos Abutres em direção à Magadha e, chegando a
Vesali, na República Vajjri, parou para fazer o retiro da estação chuvosa.
Ele encontrou uma sociedade em decadência, apesar da iminente ameaça
de guerra. Tendo perdido seu prestígio junto ao parlamento de Vajji, o
Buda passou a monção sozinho e disse à seus monges que buscassem
abrigo entre amigos e apoiadores.

Durante o curso das chuvas de monção, o Buda, já com oitenta anos, ficou
gravemente doente e estava à beira da morte. Ananda pediu que desse
uma última recomendação aos monges. O Buda disse que já os havia
ensinado tudo o que sabia e que, no futuro, os ensinamentos seriam seu
principal refúgio e direcionamento. Para se libertarem do sofrimento,
deveriam incorporar os ensinamento, e não depender de um líder ou
comunidade para salvá-los. E então o Buda anunciou que morreria em
breve.

Com seus primos discípulos, Ananda e Anuruddha, o Buda foi mais uma
vez atrás das chuvas. À caminho de Sakiya, eles pararam em Pava, uma
das duas principais cidades de Malla. Lá, um ferreiro chamado Chunda
(Tsu-nda, sânsc. Cunda) serviu porco envenenado ao grupo. Suspeitando
de alguma coisa, o Buda disse a seus primos que não comessem porco,
mas ele, por sua vez, comeu e pediu que enterrassem o que havia
sobrado. Malla era a terra natal do General Karayana, que liderou os
massacres em Sakiya, e é possível que o veneno tivesse como alvo
Ananda, que era famoso por ter memorizado todos os ensinamentos do
Buda. Se Ananda morresse, os ensinamentos e a comunidade do Buda não
resistiriam.

Sofrendo de aguda diarréia sanguinolenta, o Buda disse a Ananda que o


levasse a Kusinara (Ku-sha’i grong-khyer, gNas-rtsva-mchog,
sânsc. Kushinagara). Lá, em uma cama arrumada entre duas árvores, o
Buda perguntou a uns poucos monges que estavam com ele se tinham
perguntas ou dúvidas. Assoberbado de dor, Ananda e os demais
permaneceram em silêncio. E o Buda morreu aos oitenta anos, em 485
AC.

Quando os restos mortais do Buda estavam prestes a serem cremados,


um grupo de monges chegou, vindo de Pava. Eles eram liderados por
Mahakassapa (‘Od-srung chen-po, sânsc. Mahakashyapa), que insistiu que
a cremação esperasse até que eles prestassem seus respeitos.
Mahakassapa era um brâmane de Magadha que tornara-se monge quando
já era idoso, há alguns anos. Quando o Buda o conheceu, ele deu suas
velhas vestes a Mahakassapa em troca das vestes novas do brâmane. Mais
tarde, essa troca de vestes foi vista como uma representação da
transmissão de autoridade e o começo de uma linhagem budista
patriarcal.

Entretanto, o Buda disse explicitamente a seus discípulos, em diversas


ocasiões, que após sua morte o dharma seria o professor. Ele desejava
que sua comunidade continuasse seguindo o modelo do sistema
parlamentar de Vajji. Ele não queria que sua comunidade seguisse o
modelo de reinos, como Kosala e Magadha, com um único monge como
líder. Entretanto, depois da morte do Buda, parece que houve uma
disputa de poder entre Mahakassapa e Ananda, em outras palavras, uma
disputa entre um sistema tradicional indiano de transmissão autocrática
de autoridade do guru para o discípulo e um sistema mais igualitário de
monges mendicantes vivendo em pequenas comunidades e seguindo um
conjunto de práticas e princípios. Mahakassapa perdeu a disputa.

Após o Buda ser cremado e suas relíquias serem distribuídas, os monges


concordaram com a proposta de Mahakassapa de fazer um concílio em
Rajagaha na próxima estação chuvosa, para relatarem, confirmarem e
codificarem o que o Buda havia ensinado. Mahakassapa escolheria os
anciãos que participariam do concílio. Ele só escolheu arhats, aqueles que
alcançaram a liberação, ao todo eram 499. A princípio, Mahakassapa não
incluiu Ananda, justificando que ele não era um arhat. Mahakassapa
excluiu Ananda, mesmo ele tendo a melhor lembrança dos discursos do
Buda. Além disso, Ananda era um grande simpatizante e defensor do
desejo do Buda de que a ordem não tivesse um único líder. Outro fator
que talvez tenha feito com que Mahakassapa não gostasse de Ananda é o
fato de que foi ele quem convenceu o Buda a ordenar mulheres. Isso teria
ofendido o lado brâmane conservador de Mahakassapa. Mas, no final, os
monásticos anciãos protestaram contra a exclusão de Ananda, e
Mahakassapa cedeu, permitindo que ele participasse do concílio. Segundo
a escola Theravada, Ananda alcançou o estado de arhat na noite anterior
ao concílio.

Entretanto, enquanto aguardava o concílio ser convocado, Ananda


encontrou-se com Vassakara (dByar-gyi rnam-pa, sânsc. Varshakara), o
primeiro ministro do rei Ajatasattu. Ananda soube através dele que, além
do exército Magadha estar preparando um ataque a Vajji, eles também
estavam se preparando para um ataque por parte do rei Pajjotta (Rab-
gsal, sânsc. Pradyota) de Avanti (A-banti’i yul, sânsc. Avanti), o reino à
oeste de Magadha. Portanto, apesar do Buda não ter planejado uma
linhagem de patriarcas liderando sua comunidade, não há dúvidas de que
o fato de Mahakassapa ter tomado a liderança contribuiu para a
sobrevivência dos ensinamentos do Buda e da comunidade monástica em
tempos difíceis e incertos.

Quinhentos arhats participaram do Primeiro Concílio Budista, em


Sattipanniguha (Lo-ma bdun-pa’i phug, sânsc. Saptaparnaguha), na
Caverna das Sete Folhas, perto de Rajagaha. Mahakassapa presidiu,
Ananda recitou de memória a maioria dos suttas, e Upali (Nye-bar‘khor,
sânsc. Upali) recitou as regras de disciplina monástica do vinaya. De
acordo com a versão Theravada do concílio, os ensinamentos do
abhidhamma (chos mngon-pa, sânsc. abhidharma) sobre tópicos especiais
de conhecimento não foram recitados na época. Entretanto, na tradição
Sarvastivada, a versão Vaibhashika relata que Mahakassapa recitou
alguns, mas não todos, os ensinamentos do abhidhamma. Mas segundo
afirma a escola Sautrantika, esses ensinamentos do abhidhamma não
eram a palavra do Buda, eles foram compostos por sete arhats. De acordo
com a tradição tibetana, Mahakassapa começou uma linhagem de sete
patriarcas (bstan-pa’i gtad-rabs bdun). As tradições Chan da China,
seguidas das tradições Son da Coreia e Zen do Japão, traçam um linhagem
de vinte e oito patriarcas na Índia, sendo Bodhidharma o vigésimo oitavo.
Bodhidharma foi o mestre indiano que levou os ensinamentos Chan para
a China. No leste asiático, ele é tido como o Primeiro Patriarca Chan.

Em suma, a literatura pali do Theravada revela a figura do Buda como um


líder espiritual carismático e quase trágico, que lutou para estabelecer e
sustentar sua crescente comunidade de discípulos e seguidores em
circunstâncias extremamente difíceis. Ele teve que enfrentar intrigas
políticas, várias guerras, o massacre de pessoas em sua terra natal, uma
difamação pessoal perante um governo, a contestação de sua liderança
entre seus discípulos, o assassinato de um dos seus discípulos mais
próximos e, no final, a morte por envenenamento. Entretanto, durante
todas essas provações, o Buda manteve a paz de espírito e não se
desencorajou. Durante os quarenta e seis anos que ensinou após ter
atingido a iluminação, ele permaneceu firme em seu compromisso de
mostrar ao mundo o caminho para a liberação e para a iluminação.
O Budismo na Índia antes das
Invasões do Século XIII
Dr. Alexander Berzin

Introdução

As expressões Hinayana (Theg-dman) e Mahayana (Theg-chen), que significam


respectivamente “pequeno” ou modesto veículo e “grande” ou espaçoso veículo,
apareceram primeiro em Os Sutras sobre a Consciência Discriminativo de Longo
Alcance (Sher-phyin-gyi mdo, sânsc. Prajnaparamita Sutras; Sutras da Perfeição da
Sabedoria) como uma forma de expressar a superioridade do Mahayana.
Historicamente, havia dezoito escolas pré-datando o Mahayana, cada uma com sua
versão ligeiramente diferente das regras de disciplina monástica (‘dul-ba,
sânsc. vinaya). Embora haja quem tenha sugerido expressões alternativas para
referirem as dezoito [escolas] como um todo, iremos usar o termo geralmente mais
conhecido para elas, Hinayana, mas sem qualquer intenção de conotação
pejorativa.

Theravada (gNas-brtan smra-ba, sânsc. Sthaviravada) é a única das dezoito escolas


do Hinayana que atualmente existe. Floresce no Sri Lanka e no Sudeste Asiático.
Quando os textos Mahayana, tibetanos e indianos, expõem as visões filosóficas das
Escolas Sautrantika (mDo-sde-pa) e Vaibhashika (Bye-brag smra-ba), estas duas
escolas Hinayana são divisões da Sarvastivada (Thams-cad yod-par smra-ba), outra
das dezoito. As regras de disciplina monástica tibetanas vêm da Escola
Mulasarvastivada (gZhi thams-cad yod-par smra-ba), outra divisão da Sarvastivada.
Assim, não devemos confundir a apresentação tibetana do Hinayana com a da
Theravada.

As tradições budistas do Leste Asiático seguem as regras de disciplina monástica


da escola Dharmagupta (Chos-srung sde), outra das dezoito.

Buda Shakyamuni

O príncipe Sidarta, que se tornou no Buda Shakyamuni, viveu de 566 a 486 a.C. na
parte central do norte da India. Após ter alcançado a iluminação com a idade de
trinta e cinco anos, vagueou como mendicante, ensinando aos outros. Uma
comunidade de buscadores espirituais celibatários depressa se reuniu em seu
redor acompanhando-o enquanto ele viajava. Por fim, quando surgiu a
necessidade, Buda estabeleceu regras de disciplina monástica para esta
comunidade. Os “monges” reuniam-se quatro vezes por mês para recitar essas
regras e purificar todas as infrações que pudessem ter ocorrido.

Cerca de vinte anos depois da sua iluminação, Buda iniciou o costume dos monges
permanecerem no mesmo local, todos os anos, durante a estação das chuvas, para
um retiro de três meses. A construção de mosteiros budistas desenvolveu-se a
partir deste costume. Poucos anos antes de falecer, Buda introduziu também uma
tradição de monjas.

O Primeiro Concílio Budista

Buda ensinou no dialecto Prakrit (Tha-mal-pa) de Magadha (Yul Ma-ga-dha), mas


nada foi escrito no decurso da sua vida. De fato, os ensinamentos de Buda só foram
escritos pela primeira vez no ínicio do século I a.C., e eram da Escola Theravada.
Foram escritos no Sri Lanka, na língua Pali. Nos séculos anteriores, os monges
preservaram os ensinamentos de Buda memorizando-os e recitando-os
periodicamente.

O costume de recitar de memória os ensinamentos de Buda começou uns meses


depois de Buda ter falecido. Isto ocorreu no Primeiro Concílio Budista, em
Rajagrha (rGyal-po’i khab, atual Rajgir), com a presença de quinhentos discípulos.
Relatos tradicionais registam que todos os participantes eram arhats (dgra-bcom-
pa), seres liberados.

De acordo com a versão Vaibhashika, três dos arhats recitaram os ensinamentos de


memória. Se todos os outros membros da assembleia concordassem que o que
estes arhats recitaram era exatamente o que o Buda tinha realmente dito, isto
confirmaria a exatidão dos ensinamentos.

 Ananda (Kun-dga'-bo) recitou os sutras (mdo) – os discursos acerca dos vários temas
da prática.
 Upali (Nye-bar ‘khor) recitou o vinaya – as regras de disciplina monástica.
 Mahakashyapa (‘Od-bsrung chen-po) recitou o abhidharma (chos mngon-pa), acerca dos
tópicos especiais de conhecimento.

Estas três divisões dos ensinamentos de Buda formaram As Três Coleções tipo-
Cestos (sDe-snod gsum, sânsc. Tripitaka, Três Cestos).

 O Cesto do Vinaya continha os ensinamentos sobre a suprema auto-disciplina ética;


 O Cesto dos Sutra, sobre a suprema concentração absorta;
 O Cesto do Abhidharma, os ensinamentos sobre a suprema consciência discriminativa
ou a suprema “sabedoria”.

O relato Vaibhashika inclui a questão de que nem todos os ensinamentos de Buda


sobre o abhidharma foram recitados neste Primeiro Concílio. Alguns foram
transmitidos oralmente fora da jurisdição do Concílio tendo sido adicionados
posteriormente.

De acordo com a versão Sautrantika, os ensinamentos do abhidharma recitados no


Concílio não eram, de modo nenhum, as palavras de Buda. Os sete textos do
abhidharma incluídos neste cesto foram na verdade compostos por sete dos
arhats.
O Segundo Concílio Budista e a Fundação da Escola Mahasanghika

Em 386 ou 376 a.C. ocorreu o Segundo Concílio Budista em Vaishali (Yangs-pa-


can), com uma assembleia de setecentos monges. O propósito do Concílio era
resolver dez questões acerca da disciplina monástica. A principal decisão acordada
foi a de que não era permitido aos monges aceitarem ouro. Na prática, isto significa
que os monges não têm permissão de lidar com dinheiro. O Concílio recitou
então O Cesto de Vinaya para reconfirmar a sua pureza.

De acordo com o relato Theravada, a primeira divisão da comunidade monástica


ocorreu neste Concílio. Os monges ofendidos sairam para formar a Escola
Mahasanghika (dGe-‘dun phal-chen-po), enquanto que os idosos que
permaneceram tornaram-se conhecidos como a Escola Theravada. “Theravada”
significa, em Pali, “seguidores das palavras dos anciãos”. “ Mahasanghika” significa
“a comunidade da maioria”.

De acordo com outros relatos, a verdadeira divisão aconteceu mais tarde, em 349
a.C. O ponto de disputa não era sobre questões de disciplina monástica, mas antes
sobre visões filosóficas. A divergência foi sobre a questão dos arhats – seres
liberados – serem ou não limitados.

 Os anciãos Theravada concordaram que os arhats são limitados no seu conhecimento.


Por exemplo, ao viajarem, podiam não saber as direções e podiam receber informações
dos outros sobre tais coisas. No entanto, sabiam tudo sobre matérias do Dharma. Os
arhats podiam até ter dúvidas sobre as suas próprias realizações, embora não
recaíssem. Contudo, insistiu Theravada que os arhats são completamente livres de
emoções perturbadoras, tais como o desejo.
 O grupo Mahasanghika, ou o “grupo da maioria”, não concordou com a questão das
emoções perturbadoras. Afirmou que os arhats podiam ainda ser seduzidos em sonhos
e ter emissões noturnas, porque os arhats tinham ainda um traço de desejo
sexual.Assim, Mahasanghika fez uma distinção clara entre um arhat e um Buda.

Os seguidores da escola Theravada tendiam para a parte ocidental do norte da


India. Os seguidores da Mahasanghika tendiam para a parte oriental do norte da
India e depois espalharam-se até Andhra, na parte oriental do sul da India. Foi lá,
em Andhra, que mais tarde Mahayana emergiu. Os eruditos ocidentais vêem
Mahasanghika como o precursor de Mahayana.

O Terceiro Concílio Budista e a Fundação das Escolas Sarvastivada


e Dharmagupta

Em 322 a.C., Chandragupta Maurya fundou o Império Maurya, na região central do


norte da India, que tinha sido conhecida como Magadha, a terra onde nasceu o
budismo. O império cresceu rapidamente, alcançando sua maior extensão entre
268 e 232 a.C. sob o regime do Imperador Ashoka (Mya-ngan med-pa). Durante o
seu tempo, o Império Maurya se estendia do atual Afeganistão Oriental e de
Baluchistan a Assam, e cobria a maior parte do sul da India.
Durante o reinado do imperador Ashoka, em 237 a.C., a Escola Sarvastivada
também se separou da Theravada, devido a certas questões filosóficas. Segundo a
Escola Theravada, o momento desta separação foi o Terceiro Concílio, conduzido
sob patrocínio imperial na capital de Maurya, Pataliputra – atual Patna. No entanto,
datam este concílio como tendo ocorrido em 257 a.C., vinte anos mais cedo do que
o registro da separação segundo Sarvastivada. Isto porque, de acordo com
Theravada, foi só depois deste concílio ter reafirmado a pureza da visão Theravada
que o imperador Ashoka enviou no ano seguinte missões para introduzir o
budismo nas novas regiões do seu império e mais além. Mediante estas missões, o
budismo Theravada foi introduzido no atual Paquistão (Gandhara e Sindh), no
atual sudeste do Afeganistão (Bactria), Gujarat, a parte ocidental do sul da India,
Sri Lanka e Burma. Após a morte do imperador Ashoka, o seu filho Jaloka
introduziu Sarvastivada na Caxemira. Daí, espalhou-se por fim ao atual
Afeganistão.

Pondo de lado a data em que ocorreu o concílio, a sua principal tarefa era analisar
os ensinamentos de Buda e refutar o que os ortodoxos anciãos Theravada
consideravam como visões incorretas. Moggaliputta Tissa, o monge-líder do
concílio, compilou estas refutações analíticas em Motivos de
Controvérsia (pali: Kathavatthu), que se tornou o quinto dos sete textos do Cesto do
Abhidhamma Theravada.

Outras tradições Hinayana não relatam este concílio do mesmo modo que
Theravada. Em qualquer caso, um dos principais pontos filosóficos sobre o qual a
separação ocorreu era a existência de fenómenos passados, presentes e futuros.

 Sarvastivada afirmava que tudo existe – as coisas que já não estão acontecendo, as
coisas que estão acontecendo atualmente e as coisas que ainda não aconteceram. Isto
porque são eternos os átomos de que as coisas são feitas; apenas mudam as formas que
eles tomam. Assim, as formas que tomam os átomos podem se transformar de coisas
que ainda não estão acontecendo em coisas que estão acontecendo agora e, depois, em
coisas que já não estão acontecendo. Mas os átomos que constituem cada uma destas
coisas são os mesmos eternos átomos .

 Não só Theravada, mas também Mahasanghika, afirmavam que só existem as coisas


que estão acontecendo agora, e aquelas coisas que já não estão acontecendo mas que
ainda não produziram os seus resultados. Estas últimas existem porque ainda podem
executar uma função.
 Entretanto, Sarvastivada concordava com Mahasanghika que os arhats têm limitações
quanto a traços de emoções perturbadoras.

Em 190 a.C., a Escola Dharmagupta também se separou da Theravada.

 Dharmagupta concordava com Theravada que os arhats não têm emoções


perturbadoras.
 Contudo, tal como Mahasanghika, Dharmagupta tendia a elevar Buda. Afirmava que é
mais importante fazer oferendas a Budas do que a monásticos, e em especial enfatizava
as oferendas a estupas – monumentos contendo relíquias de Budas.
 Dharmagupta adicionou uma quarta coleção tipo-cesto, o Cesto de Dharani. “Dharanis”
(gzungs), significando em sânscrito“poder de retenção” e “medidas vitais” na tradução
tibetana, são fórmulas sânscritas devocionais que, quando cantadas, ajudam o
praticante a reter as palavras e o significado do Dharma, por forma a conservar os
fenómenos construtivos e a eliminar os destrutivos. Este desenvolvimento
dos dharanis seguia em paralelo o espírito devocional da época, marcado pelo
aparecimento do clássico hindu, Bhagavad Gita.

A Escola Dharmagupta estendeu-se ao atual Paquistão, Afeganistão, Irão, Ásia


Central, e até à China. Os chineses adotaram a versão Dharmagupta quanto aos
votos de monges e monjas. Com o decorrer dos séculos, esta versão de regras de
disciplina monástica foi transmitida à Coreia, ao Japão e ao Vietname.

O Quarto Concílio Budista

As Escolas Theravada e Sarvastivada conduziram, cada uma delas, o seu próprio


quarto concílio.

A Escola Theravada conduziu o seu quarto concílio em 29 a.C., no Sri Lanka, sob o
patrocínio do rei Vattagamani. Face aos vários grupos que se tinham afastado da
Theravada devido a diferenças de interpretação das palavras de Buda,
Maharakkhita e quinhentos anciãos da Theravada reuniram-se para recitar e
escrever as palavras de Buda a fim de preservar a sua autenticidade. Esta foi a
primeira vez que os ensinamentos de Buda passaram a escrito e, neste caso, foram
transcritos na língua Pali. Esta versão das Três Coleções tipo-Cestos, Tipitaka, é
geralmente conhecida como o Cânone Pali. As outras escolas Hinayana, entretanto,
continuaram a transmitir os ensinamentos oralmente.

Dentro da Escola Sarvastivada, surgiram gradualmente várias diferenças de


interpretação dos ensinamentos. A primeira a surgir foi o antecessor da Escola
Vaibhashika. Depois, por volta do ano 50 d.C., desenvolveu-se a Sautrantika. Cada
uma tinha as suas próprias asserções acerca de muitas questões sobre o
abhidharma.

Entretanto, a situação política no norte da India, em Caxemira e no Afeganistão


estava em vias de uma grande mudança, com a invasão dos Yuezhi (Wade-Giles:
Yüeh-chih), da Ásia Central. Os Yuezhi eram um povo indo-europeu vivendo
originalmente no Turquistão Oriental. Conquistando uma vasta área para oeste e
depois para o sul, no fim do século II a.C., estabeleceram por fim a Dinastia Kushan,
que durou até 226 d.C. No seu apogeu, o Império Kushan estendia-se desde o atual
Tadjiquistão, Usbequistão, Afeganistão e Paquistão, através de Caxemira e do
noroeste da India, até à parte central do norte da India e à India Central. Ligando a
Rota da Seda com os portos de mar na foz do rio Indo, esta dinastia levou o
budismo ao contacto com muitas influências estrangeiras. Também através deste
contacto, o budismo chegou à China.

O mais famoso dos regentes de Kushan foi o rei Kanishka que, de acordo com
algumas fontes, governou de 78 a 102 d.C. e, segundo outras, de 127 a 147 d.C. Em
qualquer caso, a Escola Sarvastivada conduziu o seu quarto concílio durante o seu
reinado, na sua cidade-capital de Purushapura (atual Peshawar) ou em Srinagar,
Caxemira. O concílio rejeitou o abhidharma Sautrantika e sistematizou o seu
próprio abhidharma em O Grande Comentário (sânsc. Mahavibhasha). O concílio
também supervisionou a tradução de prakrit para sânscrito da versão Sarvastivada
das Três Coleções tipo-Cestos, e a escrita destes textos em sânscrito.

Entre os séculos IV e V d.C., a Escola Mulasarvastivada afastou-se da predominante


Sarvastivada Vaibhashika em Caxemira. No final do século VIII d.C., os tibetanos
adotaram a sua versão das regras de disciplina monástica. Nos séculos posteriores,
espalhou-se do Tibete para a Mongólia e para as regiões mongóis e algumas
túrquicas da Rússia.

Ramos da Escola Mahasanghika

Entretanto, a Escola Mahasanghika, situada principalmente no sul da India


Oriental, ramificou-se em cinco escolas. Todas concordavam que os arhats são
limitados e que os Budas são supremos, e cada uma delas desenvolveu esta
asserção abrindo caminho para o Mahayana. Acerca das três escolas principais:

 A Escola Lokottaravada (‘Jig-rten ‘das-par smra-ba) postulava Buda como um ser


transcendental, cujo corpo está para além dos perecíveis deste mundo. Este postulado
formou a base da explanação Mahayana dos Três Corpuses (Três Corpos) de um Buda.
A Escola Lokottaravada espalhou-se para o Afeganistão onde, entre os séculos III e V
d.C., os seus seguidores construíram os colossais Budas de Bamiyan, refletindo a sua
visão de Budas transcendentais.
 A Escola Bahushrutiya (Mang-du thos-pa) postulava Buda como tendo dado
ensinamentos tanto mundanos como além deste mundo. Isto conduziu à divisão
Mahayana entre o Corpus de Emanações (sprul-sku, sânsc. nirmanakaya) e o Corpus de
Pleno Uso (longs-sku, sânsc. sambhogakaya) de um Buda.
 A Escola Chaitika saiu da Bahushrutiya e postulava que Buda já era iluminado antes de
ter aparecido neste mundo e estava apenas demonstrando a sua iluminação a fim de
mostrar aos outros o caminho. Este postulado também foi aceite mais tarde por
Mahayana.

O Surgimento do Mahayana

Os sutras Mahayana apareceram pela primeira vez entre o século I a.C. e o século
IV d.C., em Andhra, no sul da India Oriental, área em que Mahasanghika estava
florescendo. Segundo as tradicionais narrativas budistas, estes sutras tinham sido
ensinados por Buda, mas tinham sido transmitidos oralmente e mais em privado
do que as obras Hinayana tinham sido. Alguns até tinham sido protegidos em
reinos não-humanos.

Os sutras Mahayana mais importantes que abertamente apareceram naquela época


foram:

 Durante os primeiros dois séculos, os Sutras sobre a Consciência Discriminativa de


Longo Alcance (sânsc. Prajnaparamita Sutras) e o Sutra Instruindo sobre
Vimalakirti (Dri-ma med-pa grags-par bstan-pa’i mdo, sânsc. Vimalakirti-nirdesha
Sutra). O primeiro diz respeito à vacuidade (vazio) de todos os fenómenos; enquanto
que o último descreve o bodhisattva leigo.
 Por volta de 100 d.C., o Sutra da Glória da Bem-Aventurada (Terra Pura), (bDe-ba-can-
gyi bkod-pa’i mdo, sânsc. Sukhavati-vyuha Sutra), introduz Sukhavati, a Terra Pura de
Amitabha, o Buda da Luz Infinita.
 Cerca de 200 d.C., o Sutra Lotus do Sagrado Dharma (Dam-pa’i chos padma dkar-po’i
mdo, sânsc. Saddharmapundarika Sutra), enfatiza a capacidade que todos têm de se
tornarem Budas e, deste modo, de todos os veículos de ensinamentos de Buda se
encaixarem como meios hábeis. A sua apresentação é muito devocional.

Dentro do Mahayana, as Escolas Madhyamaka (dBu-ma) e Chittamatra (Sems-tsam-pa)


também apareceram primeiramente em Andhra, no sul da India.

 A Escola Madhyamaka, vinda de Nagarjuna, que viveu em Andhra entre 150 e 250 d.C.,
explica os Sutras Prajnaparamita. De acordo com narrativas tradicionais, Nagarjuna
recuperou estes sutras do fundo do mar, onde os nagas os tinham protegido desde a
altura em que Buda os tinha ensinado no Pico dos Abutres (Bya-rgod phung-pa’i ri,
sânsc. Grdhrakuta), perto de Rajagrha, no centro do norte da India. “Nagas” são seres
meio-humanos meio-serpentes que vivem debaixo da terra e debaixo de corpos de
água.
 A Escola Chittamatra baseou-se no Sutra da Descida a Lanka (Lan-kar gshegs-pa’i mdo,
sânsc. Lankavatara Sutra). Embora este sutra tivesse primeiro aparecido em Andhra, os
ensinamentos Chittamatra foram desenvolvidos ainda mais por Asanga, que viveu
durante a primeira metade do século IV d.C., em Gandhara, no atual Paquistão Central.
Asanga recebeu estes ensinamentos através de uma visão do Buda Maitreya.

O Desenvolvimento das Universidades Monásticas e do Tantra

No início do século II d.C., Nalanda, a primeira universidade monástica budista, foi


construída perto de Rajagrha. Nagarjuna ensinou ali, assim como muitos mestres
Mahayana subsequentes. No entanto, estas universidades monásticas floresceram
especialmente com a fundação da Dinastia Gupta, no início do século IV d.C. O seu
curriculum enfatizava o estudo dos sistemas de asserções filosóficas e os monges
participavam em debates rigorosos com os proponentes das seis escolas hindus e
jainistas que se desenvolveram entre os séculos III e VI d.C.

O tantra também emergiu entre os séculos III e VI d.C., com o primeiro aparecendo
uma vez mais em Andhra, no sul da India. Este foi o Tantra Guhyasamaja (dPal
gSang-ba ‘dus-pa’i rgyud). Nagarjuna escreveu vários comentários. De acordo com
a tradição budista, os tantras também tinham sido transmitidos oralmente desde a
época em que Buda os ensinou, mas de um modo ainda mais privado do que
tinham sido os ensinamentos dos sutras do Mahayana.

Rapidamente o tantra se espalhou para o norte. De meados do século VIII a meados


do século IX d.C., floresceu especialmente em Oddiyana (U-rgyan), atual Swat
Valley no noroeste do Paquistão. O ultimo tantra a aparecer foi o Tantra de
Kalachakra (dPal Dus-kyi ‘khor-lo’i rgyud), em meados do século X d.C.

As monásticas universidades budistas alcançaram o seu apogeu no decurso da


dinastia Pala (750 – finais do século XII d.C.), no norte da India. Muitas outras, tais
como Vikramashila, foram construídas com patrocínio real. O estudo do tantra foi
introduzido em algumas destas universidades monásticas, especialmente a
Nalanda. Mas o estudo e a prática do tantra floresceram fora dos mosteiros,
especialmente com a tradição dos oitenta e quatro mahasiddhas (grub-thob chen-
po), entre os séculos VIII e XII d.C. “Mahasiddhas” são praticantes de tantra
extremamente realizados.
O Budismo no Tibete

Como o Budismo Tibetano Se


Desenvolveu?
Dr. Alexander Berzin

O budismo foi introduzido no Tibete através de patronagem real, trazendo-se,


inicialmente, os professores da Índia. Com o passar do tempo, o budismo
tibetano transformou-se em uma força dominante, não somente no Tibete,
mas também em toda a região do Himalaia, Mongólia e China. Este artigo é
uma breve introdução à história do budismo tibetano, seu desenvolvimento
inicial e como surgiram as quatro principais escolas.

Songtsen-gampo

No século VII DC, o imperador Songtsen-gampo conquistou Zhang-zhung, um reino


a oeste do Tibete, onde a tradição Bon teve sua origem, unificando o Tibete em um
grande império. Como era o costume fazer alianças através de casamentos, ele
tinha diversas esposas, pelo menos uma da China, uma do Nepal e uma de Zhang-
zhung. Cada uma destas esposas trouxe consigo textos de suas próprias tradições
para o Tibete Central e o início do budismo no Tibete normalmente remonta a isso.
Há também relatos míticos de textos descendo dos céus no século I AC mas, de
qualquer forma, neste período inicial havia pouca ou quase nenhuma influência do
budismo na sociedade tibetana.

Songtsen-gampo queria desenvolver uma linguagem escrita e, portanto enviou o


seu ministro Thonmi Sambhota à Khotan, um reino fortemente budista na Rota da
Seda a noroeste do Tibete, onde a dramática cordilheira tibetana desce até abaixo
do nível do mar, desde o planalto tibetano. Atrás está o belo e formidável deserto
de Taklamakan – uma palavra turca que significa “entre e não saia.” Hoje essa área
é a província de Xinjiang na China, mas na época de Songtsen-gampo, as terras ao
pé das montanhas, um pouco antes do deserto começar, era Khotan.

Essa região era fortemente budista e tinha sido influenciada principalmente pela
cultura iraniana. Seu idioma estava relacionado com idiomas iranianos que tinham
grande influência no Tibete, mas isso não é muito enfatizado nas histórias escritas.
Por exemplo, o alfabeto tibetano na verdade deriva da escrita Khotan, que por sua
vez já era uma adaptação do alfabeto sânscrito. Acontece que os professores
khotaneses que Thonmi Sambhota iria encontrar estavam na Caxemira, e era
necessário cruzar a Caxemira para chegar a Khotan. Por este motivo é dito
frequentemente que a grafia tibetana vem da Caxemira, mas após análise histórica
detalhada, vemos que não é o caso. Além disso, o sistema de tradução para o
tibetano foi fortemente influenciado pelo estilo khotanês de separar sílabas e dar
significado a sílabas individuais.

Naquele tempo não havia muito desenvolvimento do budismo no Tibete. Relatos


históricos dizem que o Tibete surgiu através de um demônio feminino deitado no
chão, e para subjugar suas forças malévolas, templos tiveram que ser construídos
em certos pontos de acupuntura de seu corpo. Desse modo, treze templos foram
construídos em uma grande área geográfica para domar o espírito selvagem do
Tibete. Esses templos, juntamente com textos e estátuas que as rainhas trouxeram
consigo, foram o início do budismo no Tibete.

Mais tarde, o contato com a China e Khotan aumentou, e depois com a Índia. A
princesa de Zhang-zhung trouxe muitos rituais Bon para o estado, embora fossem
muito diferentes daquilo que chamamos de Bon hoje.

Imperador Tri Songdetsen

Aproximadamente 140 anos depois, em meados do século VIII DC, o Imperador Tri
Songdetsen focou na expansão do império e entrou em guerras com a China e
vários reinos turcos. De acordo com uma profecia, ele convidou o grande abade de
Nalanda, Shantarakshita para vir da Índia e ensinar no Tibete.

Naquele tempo, havia muitas facções políticas dentro do governo, umas das quais
era conservadora e contra estrangeiros e que nada gostou do fato de o Imperador
convidar Shantarakshita. Infelizmente, a chegada de Shantarakshita coincidiu com
uma pequena epidemia de catapora e ele acabou levando a culpa e servindo de
bode expiatório, sendo expulso do Tibete.

Shantarakshita voltou à Índia e, através da influência do Imperador, foi capaz de


fazer com que Guru Rinpoche, Padmasambhava, fosse convidado ao Tibete. A
história conta que ele veio para domar os demônios, mas na verdade era para fazer
sumir a pequena epidemia de catapora ou os demônios que a estavam causando.
Tudo isso tem referências históricas, portanto não é meramente uma lenda. Guru
Rinpoche chegou e a epidemia cessou, e depois disso Shantarakshita recebeu novo
convite para ir ao Tibete. Junto com os dois, o Imperador Tri Songdetsen construiu
Samye, o primeiro monastério Tibetano.

Antes disso, existiam templos, mas não monastérios que orientassem os monges
ordenados. Guru Rinpoche não achou as pessoas muito receptivas ou maduras
para ensinamentos mais avançados, e por isso enterrou textos sobre o dzogchen, a
classe mais elevada de ensinamentos do tantra de sua tradição, dentro dos muros e
pilares de Samye e em outros diversos locais no Tibete e Butão. A tradição
Nyingma vem dele.

Primeiramente havia três grupos em Samye – eruditos da China, Índia e Zhang-


zhung. Cada um trabalhava traduzindo tanto a partir de seu idioma quanto para
ele. O budismo tornou-se religião do Estado e o imperador chinês Dezong enviava
dois monges chineses a cada dois anos para Samye. Shantarakshita previu que
conflitos iriam surgir neste sentido e aconselhou que, no futuro, o Tibete
convidasse o seu aluno Kamalashila para ajudar a resolver conflitos e
controvérsias.

Mais professores foram enviados para estudar na Índia e outros professores


vieram da Índia para ensinar no Tibete. A facção conservadora dentro do governo
ficou muito triste com esses acontecimentos, que via como perseguição da tradição
Bon. Não há referências a perseguição religiosa, pois “Bon”, aqui, significa um
grupo de pessoas envolvidas em assuntos de estado, sendo assim uma facção anti-
Zhang-zhung. Os rituais de Estado naquele tempo continuaram a ser os antigos
rituais Bon e, portanto, era claramente um assunto politico, mais do que religioso.
Entretanto, muitos Bonpos enterraram seus textos para mantê-los seguros. Nesse
caso, obviamente sentiram que sua tradição estava em perigo. Estive uma vez em
Tuva, Siberia, onde a tradição mongol do budismo tibetano é seguida. As pessoas lá
enterraram todos os seus textos em cavernas nas montanhas, durante o período
stalinista. A partir desse evento histórico recente, podemos ver que enterrar
textos, e a necessidade de fazê-lo muitas vezes, é bem real e não somente um mito.

A certa altura a facção de Zhang-zhung foi expulsa e as pessoas também estavam


desconfiadas dos chineses. Foi decidido abrir-se um grande debate entre um
monge indiano e um monge chinês para ver qual tradição os tibetanos deveriam
adotar. O melhor debatedor da tradição Indiana, Kamalashila, que foi recomendado
por Shantarakshita, estava com pena de um monge Zen, que não tinha treino em
debate e estava claro, desde o princípio, quem iria ganhar. Além disso, os tibetanos
já estavam esperando ansiosos para expulsar os chineses e, assim, os indianos
foram declarados vencedores. Os chineses partiram e a tradição Indiana foi
adotada no Tibete.

Padronizando Termos e Estilos

Os textos continuaram a ser traduzidos, alguns do chinês, mas a grande maioria do


sânscrito. No início do século IX foi criado um dicionário e termos e estilos foram
padronizados por outro grande rei, Imperador Tri Ralpachen. Nesse dicionário
inicial, ele decretou que nenhum material tântrico deveria ser incluído, pois abria
espaço para muitos mal entendidos.

Em meados do século IX, Tri Ralpachen decretou que sete lares deveriam ficar
responsáveis por apoiar cada monge. Objetivamente podemos dizer que ele era um
fanático religioso. Ao invés de impostos irem para o governo, todo o dinheiro era
destinado ao apoio de monges e monastérios. Isso devastou economicamente o
país e o governo. Ele também indicou ministros monges e os monastérios
ganharam mais e mais poder.

O próximo rei, Imperador Langdarma, é conhecido por ser o verdadeiro bicho-


papão do Tibete, devido à sua perseguição ao budismo. Se analisarmos a situação,
ele só fechou os monastérios porque eram muito poderosos, e expulsou os
ministros monges do conselho governamental. Ele não destruiu nenhuma das
bibliotecas dos monastérios. Quando Atisha chegou, 150 anos depois, ficou
bastante impressionado com as bibliotecas existentes. Isto sugere que não foi o
tipo de perseguição religiosa severa contada nas histórias.
Contudo, fechar todos os monastérios de fato criou enormes obstáculos para o
budismo. O país tornou-se fragmentado e como todos os monges foram forçados a
tornarem-se leigos, as linhagens monásticas foram interrompidas e tiveram de ser
renovadas. Tudo continuou de forma clandestina ou privada, pois não havia
instituição monástica alguma para apoiar os ensinamentos básicos e as práticas.
Muitos mal entendidos e abusos surgiram, especialmente com relação ao tantra,
que passou a ser entendido literalmente, principalmente o seu aspecto sexual e a
ideia de liberação da consciência. Através de extremos mal entendidos, as pessoas
foram se envolvendo em sacrifícios e assassinatos.

Novo Período de Tradução

No final do século X, surgiu novamente um reino organizado no Tibete ocidental e


houve interesse em esclarecer os ensinamentos. Havia muitos mal entendidos na
tradição Nyingma, então mais tradutores foram enviados para a Índia e Nepal,
marcando assim o início de um novo período de tradução. Na verdade, é um novo
período de “transmissão”. Dessa onda surgiram as tradições Kadam, Sakya e
Kagyu. Se vemos “pa” no final de uma palavra, como Kagyupa, ela refere-se à
alguém que segue essa tradição, embora, hoje em dia, pessoas que não são
tibetanas não fazem essa distinção.

Kadam e Gelug

A tradição Kadam remonta a Atisha, um grande mestre de Bengala. Ela enfatizava


os ensinamentos de treinamento da mente, lojong. A tradição dividiu-se em três
linhagens que posteriormente foram reunificadas por Tsongkhapa, no século XIV e
início do século XV, tornando-se a tradição Gelug.

As tradições Nyingma, Sakya e Kagyu, seguem, em grande parte, um único estilo de


interpretação com pequenas variações. Tsongkhapa era realmente radical e
basicamente refez a interpretação de quase tudo na filosofia budista. Tsongkhapa
estudou desde muito jovem e examinou todas as diferentes traduções de textos
para ver quais partes foram interpretadas incorretamente. Ele comprovou tudo
baseando-se em lógica e em vários recursos espirituais.

Por isso, houve uma profunda análise das traduções tibetanas de alguns textos
indianos mais complicados. Ao contrário de outros muitos autores que o
precederam, Tsongkhapa simplesmente não pulou partes obscuras. Estas
passagens complicadas eram aquelas que ele prazerosamente tentava entender e
explicar. Assim, chegou a uma interpretação radicalmente diferente de quase tudo.
De fato, Tsongkhapa era um grande revolucionário. Entre os seus vários discípulos
está o monge que posteriormente seria conhecido como o Primeiro Dalai Lama. O
título lhe foi dado postumamente, na época do Terceiro Dalai Lama. “Dalai” é um
nome mongol que significa “oceano”.

Houve uma terrível guerra civil por aproximadamente 150 anos até que os
mongóis chegaram e terminaram com ela. Naquela época, os mongóis
transformaram o V Dalai Lama no líder político e espiritual do Tibete e seu
professor passou a ser conhecido como o IV Panchen Lama. Em 2011, o XIV Dalai
Lama acabou com a tradição de os Dalai Lamas terem qualquer posição política.

Sakya

A segunda tradição que surgiu da nova transmissão no final do século X foi a


tradição Sakya, com a sua linhagem derivando de Virupa e outros tradutores. O seu
principal ensinamento proveniente de Virupa é conhecido por
“lamdre”. Lam significa caminho e dre resultado. Este sistema de “caminho e seus
resultados” é uma combinação de material tipo lam-rim juntamente com a prática
tântrica de Hevajra.

Os mestres Sakya, na verdade, formam uma linhagem familiar, e a linhagem Sakya


é sempre herdada. Após a reunificação do Tibete pelos mongóis no século XIII, a
família Sakya governou politicamente o país por aproximadamente um século. Isto
ocorreu porque Sakya Pandita, provavelmente o mais conhecido mestre Sakya,
criou estreitos laços com os mongóis e, juntamente com seu sobrinho Phagpa,
tornou-se o tutor de Kublai Khan.

Os tibetanos e os uighurs, povo turco de Xinjiang no noroeste do Tibete, foram os


únicos que não lutaram contra Genghis Khan, e por isso foram deixados em paz. Os
uighurs proporcionaram aos mongóis seu primeiro contato com o budismo,
através de seu sistema de escrita e fórmulas administrativas de como organizar um
Estado, já os tibetanos forneceram uma forma mais organizada de budismo. Foi
nesse conjunto de circunstâncias que o Phagpa e os lamas Sakya ganharam o
domínio politico do Tibete por aproximadamente um século.

A linhagem Sakya também compreende as sublinhagens de Ngor, Tsar e Jonang.


Esta última considerada, por vezes, como a quinta escola do budismo tibetano.
Cada uma destas sub-linhagens tem os seus próprios mestres.

Kagyu

Dentro da tradição Kagyu há duas linhagens principais: a Shangpa Kagyu e a Dagpo


Kagyu. Shangpa Kagyu vem do professor tibetano Kyungpo Naljor, que detinha
todos os três conjuntos de práticas avançadas das seis yogas. Estas yogas
deveriam, na verdade, serem chamadas de “dharmas” ou “ensinamentos”, mas o
termo “yoga” aqui tornou-se lugar comum. Um dos conjuntos é o de Naropa, as
“seis yogas de Naropa”, e os outros dois vêm de grandes praticantes mulheres,
Niguma e Sukhasiddhi. A linhagem Shangpa Kagyu transmite os três conjuntos de
ensinamentos. O falecido Kalu Rinpoche, que era bastante conhecido no ocidente,
era dessa tradição.

A tradição Dagpo Kagyu vem da linhagem de Tilopa, Naropa, Marpa, Milarepa e


Gampopa. Gampopa combinou ensinamentos mahamudra de vários mahasiddhas
indianos (mestres tântricos altamente realizados) com os
ensinamentos lojong Kadampa. A partir de Gampopa desenvolveram-se as doze
linhagens Dagpo Kagyu — as doze tradições Kagyu de seus alunos e do alunos de
um de seus alunos, Phagmodrupa. A mais conhecida dessas é a Karma Kagyu, na
qual o maior expoente é o Karmapa. Há também as tradições Drugpa Kagyu e
Drigung Kagyu, também presentes no ocidente hoje em dia.

Nyingma

Como mencionado anteriormente, mestres da antiga tradição Nyingma enterraram


textos do dzogchen, mas outros textos continuavam sendo transmitidos durante
todo o tempo, ainda que com muitos mal entendidos. Eles começaram a abrir seus
textos no início do século XI, aproximadamente um século após os Bonpos
começarem a desenterrar os seus. Isso coincidiu com uma nova onda de
ensinamentos provenientes da Índia.

Muitos textos foram descobertos e era bastante confuso entender como eles
estavam conectados. Eles foram padronizados e esclarecidos no século XIII pelo
grande mestre Nyingma, Longchenpa, que é o verdadeiro pai da tradição Nyingma
que encontramos hoje. Há uma divisão entre a linhagem do tesouro norte e a
linhagem do tesouro sul. A tradição Nyingma é mais fragmentada que outras e não
conforma um estilo particular.

O Movimento Rima

Outro grande fator na história do budismo no Tibete é o movimento (não sectário)


Rima, que foi iniciado no século XIX por diversas figuras, a mais brilhante sendo
Kongtrul Rinpoche. Ele tinha o objetivo de preservar linhagens mais obscuras que
estavam desaparecendo e não estavam amplamente disponíveis dentro de
nenhuma das quatro tradições.

O movimento Rima reacendeu e enfatizou a linhagem Jonang que, de um ponto de


vista histórico, tinha sido perseguida e suprimida por sua visão doutrinária.
Novamente, havia fatores políticos envolvidos, pois ela estava associada a certas
facções da guerra civil daquela época. De certo modo, o movimento Rima também
surgiu, particularmente em Kham, como reação à crescente influência da linhagem
Gelug no governo central.

Conclusão

Derivando primeiramente da Índia, através de vários séculos e esforços de um


grande número de professores e tradutores, o budismo tibetano gradualmente
transformou-se em quatro tradições principais. A Nyingma deriva do Antigo
Período de Tradução, enquanto que Sakya, Kagyu e Kadam, que posteriormente
transformou-se em Gelug, surgiram durante o Novo Período de Tradução. Embora
hoje em dia o budismo seja severamente restringido no Tibete, está florescendo na
Índia, Nepal e toda a região dos Himalaias e, lentamente, está se espalhando pelo
resto do mundo.
O Budismo na Ásia Central

A História do Budismo e do Islã no


Afeganistão
Dr. Alexander Berzin

Geografia

Várias escolas budistas Hinayana estiveram presentes no Afeganistão


desde os tempos mais antigos, ao longo dos reinos que se encontravam na
rota comercial em direção à Ásia Central. Os reinos principais
eramGandhara e Bactria. Gandhara incluía as áreas do passo Khyber,
tanto do lado do Punjabe paquistanês como do lado afegão.
Posteriormente, a metade afegã, desde o passo Khyber até ao Vale de
Kabul, recebeu o nome Nagarahara; enquanto que o lado punjabe reteve
o nome Gandhara. Bactria estendia-se do Vale de Kabul para o norte e
incluia o Usbequistão e o sul do Tajiquistão. A seu norte, no Usbequistão
Central e no noroeste do Tajiquistão estava Sogdia. A parte sul de Bactria,
a norte do Vale de Kabul, era Kapisha; enquanto que mais tarde a parte
norte recebeu o nome Tocharistan [Tocaristão].

Primeiro Estabelecimento do Budismo

De acordo com as antigas biografias Hinayana do Buda, tais como o texto


Sarvastivada O Sutra do Jogo Extensivo (sânsc.: Lalitavistara Sutra),
Tapassu e Bhallika, dois irmãos mercadores de Bactria foram os
primeiros discípulos a receber votos leigos. Isto ocorreu oito semanas
após a iluminação de Shakyamuni, tradicionalmente fixada em 537 a.C..
Mais tarde, Bhallika tornou-se monge e construiu um mosteiro próximo
da sua cidade natal, Balkh, perto da atual Mazar-i-Sharif. Trouxe com ele
como relíquias oito cabelos do Buda, para os quais construiu um
monumento stupa. Bactria tornou-se por esta altura parte do Império
Aquemênida do Irão.

Em 349 a.C., vários anos após o Segundo Conselho Budista, a tradição


Mahasanghaka Hinayana saiu da Theravada. Muitos Mahasanghikas
mudaram-se para Gandhara. Em Hadda, a cidade principal do lado afegão,
perto da atual Jalalabad, fundaram por fim o Mosteiro Nagara Vihara,
levando com eles uma relíquia do crânio do Buda.

Um Theravada idoso, Sambhuta Sanavasi, depressa seguiu o exemplo e


tentou estabelecer a sua tradição em Kapisha. Não teve sucesso, e
Mahasanghaka tornou-se a principal tradição budista do Afeganistão.

Posteriormente, os Mahasanghikas dividiram-se em cinco escolas


secundárias. No Afeganistão, a principal era Lokottaravada a qual mais
tarde se estabeleceu no Vale de Bamiyan, nas montanhas Hindu Kush. Aí,
entre os séculos III e V d.C., os seus seguidores construíram a maior
estátua ereta do Buda do mundo, de acordo com a sua asserção do Buda
como figura transcendente, super-humana. Em 2001 d.C., os talibã
destruiram o colosso.

Em 330 a.C., Alexandre o Grande da Macedónia conquistou a maioria do


Império Aquemênida, incluindo Bactria e Gandhara. Era tolerante com as
tradições religiosas dessas regiões e parecia estar principalmente
interessado na conquista militar. Os seus sucessores estabeleceram a
Dinastia Selêucida. Porém, em 317 a.C., a Dinastia Mauryana indiana
tomou Gandhara aos selêucidas e, assim, a área foi apenas
superficialmente helenizada durante esse curto período.

Ashoka, o imperador de Maurya (governou 273 – 232 a.C.), favorecia o


budismo Theravada. Na parte final do seu reinado, enviou uma missão
theravadan a Gandhara, conduzida por Maharakkhita. A missão erigiu
“colunas de Ashoka” com declarações baseadas em princípios budistas
tão longe ao sul até Kandahar. Através dessas missões, Theravada
estabeleceu uma pequena presença no Afeganistão.

A Escola Sarvastivada e o Reino Greco-Bactriano

Para o final do regime de Ashoka, após o Terceiro Conselho Budista, a


Escola Sarvastivada Hinayana também se separou da Theravada. Após a
morte de Ashoka, o seu filho Jaloka introduziu Sarvastivada em Caxemira.

Em 239 a.C., a aristocracia grega local de Bactria revoltou-se contra o


regime selêucida e ganhou a independência. Nos anos que se seguiram,
conquistaram Sogdia e Caxemira, estabelecendo assim o reino greco-
bactriano. Os monges de Caxemira depressa difundiram a Escola
Sarvastivada Hinayana até Bactria.

Em 197 a.C., os greco-bactrianos conquistaram Gandhara aos mauryanos.


Posteriormente, Sarvastivada chegou também à parte sudeste do
Afeganistão. Devido à forte interação entre as culturas gregas e indianas
que se seguiram, o estilo helenístico influenciou fortemente a arte
budista, particularmente a sua representação da forma humana e o
drapejar dos mantos.

Embora Theravada nunca tivesse sido forte no reino greco-bactriano, um


dos seus reis, Menandros (pali: Milinda, governou 155 – 130 a.C.), era um
seguidor Theravada devido à influência de Nagasena, um visitante monge
indiano. O rei fez muitas perguntas a esse mestre indiano e o seu diálogo
tornou-se conhecido como AsPerguntas de Milinda (pali: Milindapanho).
Pouco depois, o estado greco-bactriano estabeleceu relações com Sri
Lanka e enviou uma delegação de monges à cerimónia de consagração do
grande stupa construído ali pelo rei Dutthagamani (governou 101 – 77
a.C.). Devido ao contato cultural que se seguiu, os monges greco-
bactrianos transmitiram oralmente As Perguntas de Milinda ao Sri Lanka.
Tornou-se mais tarde um texto extra-canônico da tradição Theravada.

O Período Kushan

Entre 177 e 165 a.C., a expansão para o Ocidente do Império Han da


China, para Gansu e Turquistão Oriental (em chinês: Xinjiang), forçou
mais para o Ocidente muitas das tribos nómadas nativas da Ásia Central.
Uma destas tribos, os Xiongnu, atacou uma outra, os Yuezhi (Wades-
Giles: Yüeh-chih), e assimilou uma grande parte deles. Os Yuezhi eram um
povo caucasiano que falavam um antigo idioma indo-europeu ocidental e
representavam a emigração da raça caucasiana mais para o Oriente. De
acordo com algumas fontes, uma das cinco tribos aristocráticas dos
Yuezhi, conhecida em fontes gregas como os tocarianos, emigrou para o
atual Cazaquistão Oriental, forçando para sul os nómadas shakas
(Iraniano Antigo: Saka) locais, conhecidos pelos gregos como os citas
[Scythians]. Tanto os tocarianos como os shakas, no entanto, falavam
línguas iranianas. Devido a esta diferença de idiomas, é discutível se estes
tocarianos eram ou não aparentados com os descendentes dos Yuezhi,
também conhecidos como “ tocarianos”, que estabeleceram no segundo
século d.C. prósperas civilizações em Kucha e Turfan, no Turquistão
Oriental. É óbvio, no entanto, que os shakas não eram aparentados com a
tribo Shakya da parte central do norte da India, na qual Buda Shakyamuni
nasceu.

Os shakas conquistaram primeiro Sogdia aos greco-bactrianos e depois,


em 139 a.C., durante o reinado do rei Menandros, conquistaram também
Bactria. Ali, os shakas voltaram-se para o budismo. Em 100 a.C., os
tocarianos conquistaram Sogdia e Bactria aos shakas. Ao estabelecerem-
se nestas áreas, assimilaram também o budismo. Este foi o começo da
Dinastia Kushan, que se estendeu por fim à Caxemira, ao norte do
Paquistão e ao noroeste da India.

O rei mais famoso de Kushan foi Kanishka (governou 78 – 102 d.C.), cuja
capital ocidental era em Kapisha. Ele apoiava a Escola Sarvastivada
Hinayana. A sua subdivisão Vaibhashika era especialmente proeminente
no Tocaristão. Ghoshaka, o monge tocariano, foi um dos compiladores dos
comentários Vaibhashika sobre oabhidharma (tópicos especiais de
conhecimento), aceites durante o Quarto Conselho Budista, conduzido
por Kanishka. Quando, após o Conselho, Ghoshaka regressou a Tocaristão,
fundou a Escola Vaibhashika Ocidental (Balhika). Nava Vihara, o mosteiro
principal em Balkh, rapidamente se tornou o centro de estudos
superiores budistas para toda a Ásia Central, comparável ao Mosteiro
Nalanda na India Setentrional Central. Enfatizava principalmente o
estudo do abhidharma Vaibhashika e apenas admitia monges que já
tivessem composto textos sobre o tema. Visto que abrigava uma relíquia
do dente do Buda, era também um dos principais centros de peregrinação
ao longo da Rota da Seda, da China à India.

Balkh tinha sido o local do nascimento de Zoroastro, cerca do ano 600


a.C.. Era a cidade santa do zoroastrismo, a religião iraniana que cresceu
dos seus ensinamentos e que enfatizava a veneração do fogo. Kanishka
seguiu a política greco-bactriana de tolerância religiosa. Assim, o budismo
e zoroastrismo coexistiram pacificamente em Balkh, onde influenciaram o
desenvolvimento um do outro. Por exemplo, mosteiros-caverna desse
período tinham nas paredes pinturas de Budas com auras de chamas e
com inscrições chamando-os “Buda-Mazda”. Isto era uma amálgama do
Buda e de Ahura Mazda, o deus supremo do zoroastrismo.

Em 226 d.C., o Império Sassânida persa derrubou o domínio Kushan no


Afeganistão. Embora fossem fortes admiradores do zoroastrismo, os
sassânidas toleraram o budismo e permitiram a construção de mais
mosteiros budistas. Foi durante o seu reinado que os seguidores de
Lokottaravada erigiram as duas estátuas colossais do Buda, em Bamiyan.

A única exceção à tolerância sassânida foi durante a segunda metade do


século III, quando Kirder, um alto sacerdote zoroastriano, dominou a
política religiosa do estado. Ele ordenou a destruição de vários mosteiros
budistas no Afeganistão, dado que a amálgama do budismo e do
zoroastrismo parecia-lhe uma heresia. Contudo, o budismo recuperou
rapidamente após a sua morte.
Os Hunos Brancos e os Turki Shahis

No começo do século V, os Hunos Brancos – conhecidos pelos gregos


como Heftalitas e pelos indianos como Turushkas – tomaram a maioria
dos antigos territórios Kushan aos sassânidas, incluindo o Afeganistão.
Inicialmente, os Hunos Brancos seguiam a sua própria religião, que se
assemelhava ao zoroastrismo. Porém, depressa se tornaram fortes
aderentes ao budismo. O peregrino han chinês Faxian (Fa-hsien) viajou
através do seu território entre 399 e 414 d.C., e relatou o florescimento de
diversas escolas Hinayana.

Os Turki Shahis eram um povo túrquico descendente dos Kushans.


Depois da queda da Dinastia Kushan pelos sassânidas, eles incorporaram
partes do antigo império que se estendiam na India Setentrional e
Noroeste. Governaram-os até à fundação da Dinastia Gupta Indiana, no
início do século IV, e depois fugiram para Nagarahara. Conquistaram
partes dela aos Hunos Brancos e, em meados do século V, expandiram o
seu domínio até ao Vale de Kabul e Kapisha. Como os Kushans e os Hunos
Brancos antes deles, os Turki Shahis apoiaram o budismo no Afeganistão.

Em 515, Mihirakula, o rei Huno Branco, sob a influência na sua corte de


facções invejosas não-budistas, suprimiu o budismo. Destruiu mosteiros e
matou muitos monges por todo o noroeste da India, Gandhara e
especialmente em Caxemira. A perseguição foi menos severa nas zonas de
Nagarahara que ele controlava. O seu filho inverteu esta política e
construiu novos mosteiros em todas essas áreas.

Os Turcos Ocidentais

Vindos do Turquistão Ocidental Setentrional, os turcos ocidentais


incorporaram em 560 a zona ocidental da Rota da Seda Asiática Central.
Lentamente, expandiram para o interior de Bactria, conduzindo os Turki
Shahis mais para o leste, em Nagarahara. Muitos líderes turcos ocidentais
adotaram o budismo do povo local e, em 590, construiram um novo
mosteiro budista em Kapisha. Em 622, Tongshihu Qaghan, o regente
turco ocidental, adotou formalmente o budismo sob a orientação de
Prabhakaramitra, um monge visitante do norte da India.

De caminho para a India, o peregrino chinês han Xuanzang (Hsüan-tsang)


visitou os turcos ocidentais aproximadamente em 630. Descreveu que o
budismo estava florescendo na parte bactriana do seu império,
especialmente no Mosteiro Vihara Nava, em Balkh. Citou a universidade
monástica não só pela sua erudição, como também pelas suas bonitas
estátuas do Buda, drapejadas com vestes de seda e adornadas com jóias
ornamentais, de acordo com o costume zoroástrico local. Naquela altura,
o mosteiro tinha ligações próximas com Khotan, um reino fortemente
budista do Turquistão Oriental, e enviou muitos monges para lá ensinar.
Xuanzang descreveu também um mosteiro perto de Nava Vihara,
dedicado à avançada prática de meditação do
Hinayana, vipashyana (pali: vipassana) – a percepção excepcional da
impermanência e da falta de identidade independente da pessoa.

Em Nagarahara, sob os Turki Shahis, Xuanzang encontrou o budismo


numa condição muito pior. Como no lado punjabe de Gandhara, a área
parecia não ter recuperado completamente da perseguição pelo rei
Mihirakula, há mais de um século. Embora Nagara Vihara, com a sua
relíquia do crânio de Buda, fosse um dos locais mais sagrados de
peregrinação do mundo budista, Xuanzang relatou que os seus monges
tinham-se tornado degenerados. Estavam cobrando a cada peregrino uma
moeda de ouro para ver a relíquia, e não havia nenhuns centros de estudo
em toda a região.

Além disso, embora Mahayana tivesse avançado, durante os séculos V e


VI, de Caxemira e Gandhara punjabe para o interior do Afeganistão,
Xuanzang apenas anotou a sua presença em Kapisha e nas regiões Hindu
Kush, no oeste de Nagarahara. Sarvastivada permaneceu como tradição
budista predominante de Nagarahara e de Bactria Setentrional.

O Período Umayyad e a Introdução do Islamismo

Cinco anos após a morte do profeta Maomé, em 637 os árabes derrotaram


os sassânidas persas e, em 661, fundaram o Califado Umayyad. O califado
governava o Irão e grande parte do Médio Oriente. Em 663 atacaram
Bactria, que os Turki Shahis tinham por essa altura conquistado aos
turcos ocidentais. As forças de Umayyad capturaram a área em torno de
Balkh, incluindo o mosteiro Nava Vihara, forçando os Turki Shahis a
recuarem para o Vale de Kabul.

Nas terras que conquistavam, os árabes permitiam que os seguidores de


religiões não-muçulmanas mantivessem a sua fé desde que se
submetessem pacificamente e que pagassem um imposto (árabe: jizya).
Embora alguns budistas em Bactria, e até um abade de Nava Vihara, se
tivessem convertido ao islamismo, a maioria dos budistas da região
aceitaram o estatuto dhimmi como sujeitos leais não-muçulmanos
protegidos dentro de um estado islâmico. Nava Vihara permaneceu
aberto e a funcionar. Por volta de 680, o peregrino chinês han Yijing (I-
ching) visitou Nava Vihara e relatou que estava florescendo como um
centro de estudos Sarvastivada.
Al-Kermani, um autor persa de Umayyad, elaborou uma descrição
detalhada de Nava Vihara do começo do século VIII, preservada na obra
do século X, o Livro das Terras(árabe: Kitab al-Buldan), por al-Hamadhani.
Descreveu-o em termos facilmente compreensíveis para os muçulmanos,
fazendo a analogia com o Kaaba, em Mecca, o local mais santo do
islamismo. Explicou que o templo principal tinha um cubo de pedra ao
centro, drapejado com panos, e que os devotos o circunvagavam e faziam
prostrações, como é o caso com o Kaaba. O cubo de pedra referia-se à
plataforma em que os stupas assentavam, como era costume nos templos
bactrianos. O pano que o drapejava estava de acordo com o costume
iraniano de mostrar veneração, aplicado igualmente às estátuas de Buda
como também a stupas. A descrição de al-Kermani mostra uma atitude
aberta e respeitosa dos árabes de Umayyad ao tentarem compreender as
religiões dos não-muçulmanos que encontravam nos seus territórios
recentemente conquistados, tal como o budismo.

A Aliança Tibetana

Em 680, Husayn liderou no Iraque uma rebelião contra os Umayyads sem


sucesso. Esse conflito desviou o foco da atenção dos árabes para fora da
Ásia Central, ali enfraquecendo o seu controlo. Em 705, tirando vantagem
da situação, os tibetanos formaram uma aliança com os Turki Shahis e,
juntos, tentaram em vão expulsar de Bactria as forças de Umayyad.

Os tibetanos tiveram conhecimento do budismo a partir da China e do


Nepal cerca de sessenta anos antes, embora nessa época ainda não
tivessem nenhuns mosteiros. Em 708, Nazaktar Khan, o príncipe Turki
Shahi, conseguiu expulsar os Umayyads e estabelecer em Bactria um
fanático regime budista. Ele até decapitou o abade anterior de Nava
Vihara que se tinha convertido ao islamismo.

Em 715, o general árabe Qutaiba reconquistou Bactria aos Turki Shahis e


seus aliados tibetanos. Como punição pela insurreição precedente
destruiu Nava Vihara. Muitos monges fugiram em direção ao leste, para
Khotan e Caxemira, estimulando o crescimento do budismo,
especialmente no último. O Tibete muda então de aliança e, como
expediente político, alia-se às forças de Umayyad contra as quais tinha
acabado de lutar.

Nava Vihara rapidamente recuperou e depressa começou a funcionar


como outrora, indiciando que a danificação dos mosteiros budistas em
Bactria pelos muçulmanos não tinha sido um ato motivado pela religião.
Se tivesse sido, eles não teriam permitido a sua reconstrução. Os
Umayyads estavam apenas repetindo, em relação ao budismo, a política
que tinham seguido anteriormente nesse mesmo século quando
conquistaram as regiões Sindh, do atual Paquistão Meridional. Eles
destruiram apenas seletivamente os mosteiros sobre os quais
suspeitavam que mantinham oposição ao seu domínio, mas depois
permitiam a sua reconstrução e que os outros [mosteiros] prosperassem.
O seu objetivo principal era a exploração económica e, assim, exigiam um
imposto aos budistas e um imposto de peregrinação aos visitantes dos
locais sagrados.

Apesar da tendência geral de tolerância religiosa por anteriores califas de


Umayyad, decretou Umar II (governou 717 – 720) que todos os aliados de
Umayyad tinham que adotar o islamismo. A sua aceitação, contudo, devia
ser voluntária, baseada na aprendizagem dos seus princípios. Para
tranquilizar os seus aliados, os tibetanos mandaram em 717 um enviado à
corte de Umayyad para convidar um professor muçulmano. O califa
enviou al-Hanafi. O fato de não haver registros de sucesso deste professor
em obter conversos no Tibete demonstra que os Umayyads não eram
insistentes nas suas tentativas de difundir a sua religião. Além disso, a fria
recepção que al-Hanafi teve foi devida principalmente à atmosfera
xenófoba disseminada pela facção da oposição na corte tibetana.

Durante as décadas subsequentes, as alianças políticas e militares


mudaram frequentemente conforme árabes, chineses, tibetanos, Turki
Shahis e várias outras tribos túrquicas lutavam pelo controlo da Ásia
Central. Os Turki Shahis reconquistaram Kapisha aos Umayyads e, em
739, os tibetanos restabeleceram a sua aliança com eles através de uma
visita a Kabul pelo imperador tibetano, na comemoração de uma aliança
de casamento entre os Turki Shahis e Khotan. Os Umayyads continuaram
a governar o norte de Bactria.

O Período Inicial Abássida

Em 750, uma facção árabe derrubou o Califado Umayyad e fundou a


Dinastia Abássida. Eles mantinham o controlo sobre o norte de Bactria. Os
abássidas não só continuaram a política de conceder o estatuto dhimmi
aos budistas da região, como também tomaram um grande interesse pela
cultura estrangeira, particularmente a da India. Em 762, o califa al-
Mansur (governou 754 – 775) envolveu arquitetos e engenheiros
indianos na planejamento da nova capital abássida, Bagdá. Tirou o seu
nome do sânscrito Bhaga-dada, significando “Oferta de Deus”. O califa
também construiu uma Casa do Conhecimento (árabe: Bayt al-Hikmat),
com um departamento de tradução. Convidou eruditos de várias culturas
e religiões para traduzirem textos para o árabe, particularmente sobre
lógica e tópicos científicos.
Os primeiros califas abássidas eram patronos da Escola Mu’tazila de
Islamismo que procurava explicar os princípios do Quran [a partir]
do ponto de vista da razão. A ênfase principal estava na aprendizagem do
grego antigo, mas também era dada atenção às tradições sânscritas.
Contudo, na Casa do Conhecimento não eram traduzidos apenas textos
científicos. Eruditos budistas traduziram para o árabe alguns sutras do
Hinayana e do Mahayana que lidavam com temas devocionais e éticos.

O califa seguinte, al-Mahdi (governou 775 – 785), ordenou que as forças


abássidas em Sindh atacassem Surashtra ao sudeste. Face a um
pretendente rival da Arábia, que também tinha sido declarado Mahdi, o
messias islâmico, a invasão fazia parte da campanha do califa no sentido
de estabelecer o seu prestígio e supremacia como líder do mundo
islâmico. O exército abássida destruiu os mosteiros budistas e os templos
jainistas, em Valabhi. Porém, como foi o caso com a conquista de Sindh
pelos Umayyad, parece que destruiram apenas os centros sob suspeita de
abrigar oposição ao seu regime. Mesmo sob o califa al-Mahdi, os
abássidas deixaram em paz os mosteiros budistas no resto do seu
império, preferindo explorá-los como fontes de rendimento. Para além
disso, al-Mahdi continuou a aumentar as atividades de tradução da Casa
do Conhecimento, em Bagdá. Não tinha a intenção de destruir a cultura
indiana, mas dela aprender.

Yahya ibn Barmak, o neto muçulmano de um dos chefes administrativos


budistas (sânsc.: pramukha, árabe: barmak) do Mosteiro Nava Vihara, foi
ministro do califa abássida seguinte, al-Rashid (governou 786 – 808). Sob
sua influência, o califa convidou a Bagdá muitos eruditos e mestres da
India, especialmente budistas. Um catálogo de textos muçulmanos e não-
muçulmanos preparado nessa altura, Kitab al-Fihrist, incluía uma lista de
obras budistas. Entre elas estava uma versão árabe da narrativa das vidas
passadas de Buda, Livro do Buda (árabe: Kitab al-Budd).

Nessa época, o islamismo estava ganhando terreno em Bactria entre os


latifundiários e as classes urbanas superiores e educadas devido à atração
ao seu alto nível de cultura e aprendizagem. Para estudar o budismo
tinham de entrar para um mosteiro. Nava Vihara, embora ainda
funcionasse durante esse período, era limitado na sua capacidade e
requeria treinamento extensivo antes da entrada. Os estudos e a alta
cultura islâmica, por outro lado, eram mais facilmente acessíveis. O
budismo permaneceu forte principalmente entre as classes mais pobres
do campo, geralmente na forma de práticas devocionais em locais
religiosos.
O hinduismo também estava presente por toda a região. Visitando-a em
753, o peregrino chinês han Wukong (Wu-k’ung) relatou a existência de
templos, tanto hindus como budistas, especialmente no Vale de Kabul.
Enquanto o budismo declinava entre as classes dos mercadores, o
hinduismo crescia mais forte.

Rebeliões contra os Abássidas

Os primeiros abássidas foram afligidos por rebeliões. O califa al-Rashid


morreu em 808 no seu trajeto para pôr fim a uma rebelião em
Samarkand, a capital de Sogdia. Antes da sua morte, dividiu o império
entre os seus dois filhos. Al-Ma'mun, que tinha acompanhado seu pai na
campanha de Sogdia, recebeu a metade oriental, incluindo Bactria. Al-
Amin, o mais poderoso dos dois, recebeu a mais prestigiosa metade
ocidental, incluindo Bagdá e Meca.

Para obter apoio popular na conquista da metade de al-Amin do império


abássida, al-Ma'mun distribuiu terras e bens em Sogdia. Depois, atacou o
seu irmão. Durante a destruidora guerra que se seguiu, os Turki Shahis de
Kabul, juntamente com os seus aliados tibetanos, uniram forças com os
rebeldes anti-abássidas, em Sogdia e em Bactria, a fim de obterem
vantagem da situação e tentarem derrubar o regime abássida. Al-Fadl,
ministro e general de al-Ma'mun, encorajou o seu regente a declarar
uma jihad, uma guerra santa contra essa aliança a fim de realçar ainda
mais o prestígio do califa. Apenas os regentes que mantêm uma fé pura
podem declarar uma jihad para se defenderem daqueles que cometem
agressão contra o islamismo.

Após ter derrotado o seu irmão, al-Ma'mun declarou essa jihad. Em 815,
derrotou o regente Turki Shahi, conhecido como o Xá de Kabul, e forçou-
lhe a converter-se ao islamismo. O que mais ofendia os credos
muçulmanos era a idolatria. Os cultos árabes pagãos que precederam
Maomé adoravam ídolos e mantinham as suas estátuas em Meca, na
sagrada Kaaba. Ao estabelecer o islamismo, o profeta destruiu-os todos.
Consequentemente, como símbolo de submissão, o al-Ma'mun fez o Xá
enviar para Meca uma estátua de ouro do Buda. Indubitavelmente com
finalidades de propaganda a fim de assegurar a sua legitimidade, al-
Ma'mun manteve a estátua em exposição pública no Kaaba, durante dois
anos, com o anúncio de que Alá tinha convertido o rei do Tibete ao
islamismo. Os árabes estavam a confundir o rei do Tibete com o seu
vassalo, o Xá Turki de Kabul. Em 817, os abássidas derreteram a estátua
do Buda para fazerem moedas de ouro.
Após o seu sucesso contra os Turki Shahis, os abássidas atacaram a região
de Gilgit, controlada pelos tibetanos, no atual Paquistão Setentrional, e
em pouco tempo também a anexaram. Enviaram de volta para Bagdá um
comandante tibetano capturado e humilhado.

As Dinastias Taharid, Safárida e Hindu Shahis

Por essa altura, os líderes militares locais em várias partes do Império


Abássida começaram a estabelecer estados islâmicos autónomos, apenas
com lealdade nominal ao califa de Bagdá. A primeira região a declarar a
sua autonomia foi Bactria Setentrional, onde o general Tahir fundou a
Dinastia Tahirid, em 819.

Voltando a sua atenção para estas matérias mais pressionantes, conforme


os abássidas se retiravam de Kabul e de Gilgit, os tibetanos e os Turki
Shahis adquiriam novamente as suas terras anteriores. Apesar das
conversões forçadas dos líderes destas terras, os abássidas não
perseguiram lá o budismo. De fato, os árabes mantiveram o comércio com
os tibetanos durante todo esse período.

O general islâmico seguinte a declarar autonomia sob os abássidas foi al-


Saffar. Em 861, o seu sucessor estabeleceu a Dinastia Safárida no sudeste
do Irão. Após ter obtido o controlo do resto do Irão, os safáridas
invadiram o Vale de Kabul em 870. Face à iminente derrota, o último dos
regentes Turki Shahi budistas foi derrubado pelo seu ministro brâmane,
Kallar. Abandonando Kabul e Nagarahara aos safáridas, Kallar
estabeleceu a Dinastia Hindu Shahi em Gandhara punjabe.

Os safáridas eram conquistadores especialmente vingativos. Pilharam os


mosteiros budistas do Vale de Kabul e de Bamiyan, e enviaram ao califa as
suas estátuas de “ídolos” de Buda como troféus de guerra. Esta severa
ocupação militar foi o primeiro golpe sério contra o budismo na área de
Kabul. A derrota anterior e a conversão ao islamismo do Xá de Kabul, em
815, tinham tido apenas pequenas repercussões no estado geral do
budismo na região.

Os safáridas continuaram para norte a sua campanha de conquista e de


destruição, capturando Bactria aos Tahirids em 873. Porém, em 879, os
Hindu Shahis retomaram Kabul e Nagarahara. Continuaram a sua política
de patrocínio entre os seus povos, tanto ao hinduismo como ao budismo,
e os mosteiros budistas de Kabul depressa adquiriram uma vez mais a
sua anterior riqueza.
As Dinastias Samânida, Gaznávida e Seljúcida

Ismail bin Ahmad, o governador persa de Sogdia, declarou autonomia a


seguir e fundou a Dinastia Samânida, em 892. Conquistou Bactria aos
safáridas em 903. Os samânidas promoviam o retorno à cultura iraniana
tradicional, mas eram tolerantes ao budismo. Por exemplo, durante o
reinado de Nasr II (governou 913 – 942), ainda eram feitas e vendidas
imagens esculpidas do Buda na capital samânida, Bukhara. Não eram
proibidas como “ídolos” budistas.

Os samânidas escravizaram os povos das tribos túrquicas do seu reino e


alistaram-nos nos seus exércitos. Se os soldados se convertessem ao
islamismo, davam-lhes a liberdade nominal. Os samânidas, entretanto,
tinham dificuldade em manter o controlo sobre estes homens. Em 962,
Alptigin, um chefe militar túrquico que tinha adotado o islamismo, tomou
Ghazna (atual Ghazni), a sul de Kabul. Ali, em 976, o seu sucessor, o
Sebuktegin (governou 976 – 997), fundou o Império Gaznávida como
vassalo dos abássidas. Depressa conquistou o Vale de Kabul aos Hindu
Shahis, correndo com eles de volta para Gandhara.

O budismo tinha florescido no Vale de Kabul sob o regime Hindu Shahi.


Asadi Tusi, em seu Nome de Garshasp, escrito em 1048, descreveu a
opulência do seu mosteiro principal, Subahar (Su Vihara), quando os
gaznávidas invadiram Kabul. Parece que os gaznávidas não o destruiram.

Em 999, o regente gaznávida seguinte, Mahmud de Ghazni (governou 998


– 1030) derrubou os samânidas, com a ajuda dos soldados escravos
túrquicos ao serviço samânida. O império gaznávida incluia agora Bactria
e Sogdia Meridional. Mahmud Ghazni também conquistou a maioria do
Irão. Continuou a política samânida de promover a cultura persa e de
tolerar religiões não-muçulmanas. Al-Biruni, um erudito persa e escritor
ao serviço da corte gaznávida, relatou que, no dobrar do milénio, os
mosteiros budistas em Bactria, incluindo Nava Vihara, ainda estavam
funcionando.

Contudo, Mahmud de Ghazni era intolerante às seitas islâmicas, à


excepção da sunita ortodoxa que suportava. Seus ataques a Multan, no
Sindh Setentrional, em 1005 e de novo em 1010, eram campanhas contra
a seita ismaelita do islão xiita, suportada pelo estado, que os samânidas
também tinham favorecido. A Dinastia Fatímida ismaelita (910 – 1171),
centrada no Egipto desde 969, era a principal rival dos abássidas sunitas
na supremacia do mundo islâmico. Mahmud estava também empenhado a
terminar o derrube dos Hindu Shahis, que seu pai tinha iniciado. Assim,
atacou e expulsou os Hindu Shahis de Gandhara, e depois prosseguiu para
a conquista de Multan.

Nos anos que se seguiram, Mahmud expandiu o seu império conquistando


as regiões para o leste, até Agra, na India Setentrional. Suas pilhagens e
destruição de ricos templos hindus e mosteiros budistas, pelo caminho,
faziam parte da sua tática de invasão. Como na maioria das guerras, as
forças invasoras causavam frequentemente tanta destruição quanto
possível por forma a convencerem a população local a render-se,
especialmente se oferecessem resistência. Durante as suas campanhas no
subcontinente indiano, Mahmud Ghazni deixou em paz os mosteiros
budistas sob seu regime em Kabul e Bactria.

Em 1040, os túrquicos seljuques, vassalos dos gaznávidas em Sogdia,


revoltaram-se e estabeleceram a Dinastia Seljúcida. Rapidamente
conquistaram Bactria e a maioria do Irão aos gaznávidas, que se
retiraram para o vale de Kabul. Por fim, o império Seljúcida estendeu-se
até Bagdá, à Turquia e à Palestina. O seljuques foram os “terríveis infiéis”
contra os quais o Papa Urbano II declarou, em 1096, a Primeira Cruzada.

Os seljuques eram pragmáticos no seu regime. Estabeleceram centros de


estudos islâmicos (madrasah) em Bagdá e na Ásia Central, a fim de
ensinarem a burocracia civil a administrar as várias partes do seu
império. Toleravam nos seus domínios a presença de religiões não-
islâmicas, tal como o budismo. Assim, al-Shahrastani (1076 – 1153)
publicou, em Bagdá, o seu Kitab al-Milal wa Nihal – um texto em árabe
sobre religiões e seitas não-muçulmanas. Continha uma explicação
simples dos sistemas de asserções filosóficas budistas e transcrevia o
relato feito em primeira-mão por al-Biruni um século antes, segundo o
qual os indianos aceitavam o Buda como um profeta.

As muitas referências budistas, existentes na literatura persa do período,


fornecem também provas deste contato cultural islâmico-budista. A
poesia persa, por exemplo, usava frequentemente a analogia para
palácios: eles eram “tão bonitos quanto um Nowbahar (Nava Vihara)”. E
mais, em Nava Vihara e em Bamiyan, as imagens de Buda,
particularmente de Maitreya, o futuro Buda, tinham discos de lua atrás
das suas cabeças. Isto levou à descrição poética da beleza pura como
alguém que tem “a cara em-forma-de-lua de um Buda”. Assim, os poemas
persas do século XI, tais comoVarqe e Golshah por Ayyuqi, usavam a
palavra bot como uma conotação positiva para “Buda” e não como seu
segundo significado negativo como “ídolo”. Implicava o ideal da beleza
assexual em homens e mulheres. Tais referências indicavam que, ou os
mosteiros e imagens budistas estiveram presentes nestas áreas culturais
iranianas pelo menos durante o primeiro período mongol no século XIII,
ou, no mínimo, que um forte legado budista tivesse lá permanecido
durante séculos entre os budistas conversos ao islamismo.

As Dinastias Qaraqitan e Ghurad

Em 1141, os Qaraqitans, um povo que falava mongol e que governava o


Turquistão Oriental e o norte do Turquistão Ocidental, derrotaram os
Seljuques em Samarkand. O seu regente, Yelu Dashi, anexou Sogdia e
Bactria ao seu império. Os gasnávidas controlavam ainda a área do Vale
de Kabul para o oriente. Os Qaraqitans seguiam uma mescla de budismo,
taoísmo, confucionismo e xamanismo. Yelu Dashi, entretanto, era
extremamente tolerante e protegia todas as religiões nos seus domínios,
incluindo o islamismo.

Em 1148, Ala-ud-Din, dos turcos Guzz, nómadas das montanhas do


Afeganistão Central, conquistou Bactria aos Qaraqitans e estabeleceu a
Dinastia Ghurid. Em 1161, prosseguiu e tomou Ghazna e Kabul aos
gasnávidas. Em 1173, colocou o seu irmão, Muhammad Ghuri, como
governador de Ghazna e incentivou-o a invadir o subcontinente indiano.

Tal como o seu precedente Mahmud Ghazni, Muhammad Ghuri capturou


primeiro, em 1178, o domínio ismaelita de Multan no Sindh Setentrional,
o qual tinha retomado independência ao regime gasnávida. Prosseguiu
então na conquista de toda a região punjabe, do Paquistão, e do norte da
India e, depois disso, a planície Gangética até ao atual Bihar e Bengal
Ocidental. Durante a sua campanha, saqueou e destruiu, em 1200, muitos
dos grandes mosteiros budistas, incluindo Vikramashila e Odantapuri. O
rei Sena local tinha-os transformado em postos militares numa tentativa
de prevenir a invasão.

Os líderes Ghurid podem ter estimulado as suas tropas ao fervor da


batalha mediante instrução religiosa, tal como qualquer nação usa a
propaganda política ou patriótica. No entanto, o seu objetivo principal,
como o da maioria dos conquistadores, era ganhar território, riqueza e
poder. Assim, os Ghurids destruiram apenas os mosteiros que se
encontravam na linha direta da sua invasão. Os mosteiros Nalanda e Bodh
Gaya, por exemplo, estavam situados fora da rota principal. Assim,
quando o tradutor tibetano Chag Lotsawa os visitou, em 1235, encontrou-
os danificados e pilhados mas ainda funcionando com um pequeno
número de monges. O Mosteiro Jagaddala, em Bengal Setentrional, não foi
afetado e estava florescendo.
E mais, os Ghurids não procuraram conquistar Caxemira nem lá converter
os budistas ao islamismo. Caxemira estava empobrecida naquela época, e
os mosteiros quase não tinham nenhuma riqueza para pilhar. Além disso,
visto que os Ghurids não pagavam aos seus generais ou governadores,
nem lhes forneciam provisões, esperaram que eles suportassem as suas
tropas e a si próprios mediante ganhos locais. Se, à força, os governadores
convertessem ao islão todos sob a sua jurisdição, não poderiam explorar
grande parte da população com impostos adicionais. Assim, tal como no
Afeganistão, os Ghurids continuaram o costume tradicional de conceder,
na India, o estatuto dhimmi aos não-muçulmanos e de exigir o imposto
jizya.

O Período Mongol

Em 1215, Gengis Khan, o fundador do Império Mongol, conquistou o


Afeganistão aos Ghurids. Tal como era sua política noutros lugares,
Gengis destruiu aqueles que se opuseram à sua invasão e devastou as
suas terras. Não é claro como se desembaraçaram nessa época os
vestígios do budismo que ainda existiam no Afeganistão. Gengis era
tolerante a todas as religiões desde que os seus líderes rezassem pela sua
longa vida e pelo seu sucesso militar. Em 1219, por exemplo, chamou ao
Afeganistão um famoso mestre taoista, da China, a fim de executar
ceremónias pela sua longa vida e para lhe preparar o elixir da
imortalidade.

Após a morte de Gengis, em 1227, e a divisão do seu império entre os seus


herdeiros, o seu filho Chagatai herdou o governo de Sogdia e do
Afeganistão, e estabeleceu o Chagatai Khaganate. Em 1258, Hulegu, um
neto de Gengis, conquistou o Irão e derrubou o califado abássida de
Bagdá. Estabeleceu o Il-Khanato e depressa convidou para a sua corte, no
noroeste do Irão, monges budistas do Tibete, de Caxemira e de Ladakh. O
Il-Khanato era mais poderoso do que o Chagatai Khaganate e,
inicialmente, lá dominava os seus primos. Dado que os monges budistas
tinham de atravessar o Afeganistão a caminho do Irão, receberam sem
dúvida apoio oficial pelo caminho.

De acordo com alguns eruditos, os monges tibetanos que foram ao Irão


eram muito provavelmente da Escola Drikung (Drigung) Kagyu e o
motivo que levou Hulegu a convidá-los pode ter sido político. Em 1260, o
seu primo Khubilai (Kublai) Khan, o regente mongol da China
Setentrional, declarou-se a si próprio o Grande Khan de todos os mongóis.
Khubilai apoiava a Tradição Sakya do budismo tibetano e deu aos seus
líderes a suserania nominal sobre o Tibete. Antes disso, os líderes
Drikung Kagyu tinham ascendência política no Tibete. O principal rival de
Khubilai era um outro primo, Khaidu, que governava o Turquistão
Oriental e apoiava a linha Drikung Kagyu. Hulegu poderia querer aliar-se
ao Khaidu nesta luta pelo poder.

Há quem especule que o motivo para a viragem de Khubilai e Khaidu para


o budismo tibetano era o de obter o apoio sobrenatural de Mahakala, o
protetor budista praticado pelas tradições Sakya e Kagyu. Mahakala tinha
sido o protetor dos tangutes,os quais tinham governado o território entre
o Tibete e a Mongólia. Afinal, o seu avô, Gengis Khan, tinha sido morto em
batalha pelos tangutes, que devem ter recebido ajuda sobrenatural. É
improvável que os líderes mongóis, incluindo Hulegu, tivessem escolhido
o budismo tibetano por causa dos seus profundos ensinamentos
filosóficos.

Após a morte em 1266 de Hulegu, o Chagatai Khaganate tornou-se mais


independente dos Il-Khans e formou uma aliança direta com Khaidu, na
sua luta contra Khubilai Khan. Entretanto, a linha de sucessores de
Hulegu alternava o seu apoio ora ao budismo tibetano ora ao islamismo,
aparentemente também por motivações políticas. Abagha, o filho de
Hulegu, continuou a apoiar o budismo tibetano tal como seu pai. Porém,
Takudar, o irmão de Abagha que o sucedeu em 1282, converteu-se ao
islamismo quando invadiu e conquistou o Egipto para obter ajuda e
suporte local. Arghun, o filho de Abagha, derrotou o seu tio e tornou-se Il-
Khan em 1284. Fez do budismo a religião estatal do Irão e ali fundou
diversos mosteiros. Quando Arghun morreu em 1291, o seu irmão
Gaihatu tornou-se o Il-Khan. Monges tibetanos tinham dado a Gaihatu o
nome tibetano Rinchen Dorje, mas ele era um bêbado degenerado e
dificilmente uma honra à fé budista. Ele introduziu no Irão o dinheiro de
papel da China, o que causou um desastre económico.

Gaihatu morreu em 1295, um ano após a morte de Khubilai Khan. Ghazan,


filho de Arghun, sucedeu-lhe ao trono. Restabeleceu o islamismo como
religião oficial de Il-Khanato e ali destruiu os novos mosteiros budistas.
Alguns eruditos afirmam que a mudança de Ghazan Khan à política
religiosa de seu pai era para se distanciar das reformas e das crenças de
seu tio, e para afirmar a sua independência da China Mongol.

Apesar de ordenar a destruição de mosteiros budistas, parece que Ghazan


Khan não pretendia destruir tudo o que estivesse associado com o
budismo. Por exemplo, ordenou que Rashid-al-Din escrevesse
uma Historia Universal (árabe: Jami’ al-Tawarikh), com versões tanto em
persa como em árabe. Na sua seção sobre a história das culturas dos
povos conquistados pelos mongóis, Rashid-al-Din incluiu aVida e os
Ensinamentos de Buda. Para ajudar o historiador na sua pesquisa, Ghazan
Khan convidou à sua corte Bakshi Kamalashri, um monge budista de
Caxemira. Tal como o trabalho mais antigo de al-Kermani, o trabalho de
Rashid apresentou o budismo de uma forma que os muçulmanos
pudessem facilmente compreender, apresentando o Buda como um
Profeta, os deuses deva como anjos e Mara como o Diabo.

Rashid-al-Din relatou que, na sua época, onze textos budistas traduzidos


em árabe estavam circulando no Irão. Estes incluiam textos Mahayana,
tais como: O Sutra sobre o Ornamento da Terra Pura da Bem-
Aventurança (sânsc.: Sukhavativyuha Sutra, sobre a Terra Pura de
Amitabha), O Sutra sobre o Ornamento como uma Cesta
Entretecida(sânsc.: Karandavyuha Sutra, sobre Avalokiteshvara, a
personificação da compaixão) e Uma Exposição sobre
Maitreya (sânsc.: Maitreyavyakarana, sobre Maitreya, o futuro Buda e
personificação do amor). Estes textos estavam sem dúvida entre aqueles
que foram traduzidos sob o patrocínio dos califas abássidas, na Casa do
Conhecimento em Bagdá, começando no século VIII.

Rashid-al-Din terminou a sua história em 1305, durante o domínio de


Oljaitu, o sucessor de Ghazan. Contudo, parece que os monges budistas
ainda estavam presentes no Irão, pelo menos até à morte de Oljaitu em
1316, dado que os monges tentaram, em vão, fazer com que o regente
mongol voltasse de novo para o budismo. Assim, pelo menos até essa
altura, os monges budistas ainda transitavam pelo Afeganistão e, deste
modo, podiam ainda ser bem-vindos na corte de Chagatai.

Em 1321, o Império Chagatai dividiu-se em dois. O Chagatai Khaganate


Ocidental incluia Sogdia e Afeganistão. Desde o início, os seus khans
converteram-se ao islamismo. O Il-Khanato, no Irão, fragmentou-se e
desfez-se em 1336. Depois disso, não há nenhuma indicação de uma
presença continuada do budismo no Afeganistão. Tinha lá durado quase
mil e novecentos anos. Contudo, o conhecimento do budismo não morreu.
Timur (Tamerlão) conquistou, em 1364, o Chagatai Khaganate Ocidental,
e os pequenos estados sucessores do Il-Khanato, em 1385. Shah Rukh,
filho e sucessor de Timur, patrocinou o historiador Hafiz-i Abru para
escrever, em persa, Uma Coleção de Histórias (árabe: Majma’ al-
Tawarikh). Completada, em 1425, na capital de Shah Rukh, Herat,
Afeganistão, a história continha uma descrição do budismo modelada no
trabalho de Rashid-al-Din, um século antes.
Budismo entre os Povos Turcos
Dr. Alexander Berzin

Entre os muitos povos do mundo que adotaram o islã, muitos tiveram


uma sólida formação budista, nomeadamente os turcos, afegãos,
paquistaneses, indonésios e malaios. Vamos olhar mais de perto para a
expansão do budismo nos primeiros deste grupo.

Os Turki Shahis

O primeiro povo turco a adotar o budismo foram os turki shahis. Sua


soberania se estendeu pelo noroeste da Índia do meio do século 3º até o
início do século 4º d.C. e depois mudou para o oeste, para o que
atualmente é o Afeganistão central e, eventualmente, para o norte e
centro do Paquistão até o meio no século 9º. Eles herdaram esta mistura
de budismo Hinayana e Mahayana de seus predecessores, os cuchãs
(kushans) e os hunos brancos, nessas regiões, e eram fortes patronos dos
grandes centros monásticos de estudo que anteriormente haviam sido
fundados ali. Durante o fim do século 8º e o início do século 9º, os turki
shahis eram vassalos aliados do Império Tibetano e influenciados pelo
florescimento do budismo ali.

Os Turcos Orientais e Ocidentais

O próximo maior grupo turco a adotar o budismo foram os goturcos


(gokturcos, göktürks), que deram seu nome aos povos turcos. O Canato
Túrquico Oriental teve a soberania da Mongólia do final do século 6º até
meados do século 8º. Com o patrocínio real, mestres da índia, da Ásia
Central e da China traduziram muitas escrituras budistas para a língua
goturco. Muitos dos termos budistas técnicos em goturco se tornaram
padrão na Ásia Central e mais tarde foram adaptados pelos uigures e
mongóis. Os goturcos mesclaram ao seu tipo de budismo a veneração aos
tradicionais e antigos deuses turcos ou “tengri”, como também aos deuses
zoroástricos que lhes eram familiares por causa dos outros povos da Ásia
Central. Esta característica eclética foi herdada e continuou com os
uigures e mongóis. No início do século 8º, uma princesa da família real
turca oriental casou-se com o imperador do Tibete e foi responsável pelo
convite para ir ao Tibete a muitos monges budistas do Khotan (Hotan), no
sul do Turquestão Oriental.

O Canato Túrquico Ocidental também foi um grande patrocinador do


budismo desde o início do século 7º ao início do 8º. Seus soberanos
construíram monastérios no Uzbequistão. Um ramo dos turcos
ocidentais, as tribos turgas, foi responsável pela disseminação do
budismo para o Quirguistão e sudoeste do Cazaquistão durante o fim do
século 7º e o início do século 8º. Os turgos também foram aliados do
Império Tibetano.

Os turgos foram substituídos no Quirguistão e Cazaquistão no início do


século 8º pelos carlucos (qarluqs), uma tribo turca oriental que também
abraçou o budismo e também se tornou um aliado dos tibetanos. Um
ramo dos carlucos, as caracânidas (qarakhanids), estabeleceu um reinado
no Quirguistão Oriental e na região Kashgar do sudeste do Turquestão em
meados no século 9º. Por mais de um século, as caracânidas seguiram
uma mescla de budismo de kashgar e seu xamanismo nativo.

Os Uigures

A forma mais proeminente de budismo turco, no entanto, ocorreu com o


povo uigur do Turquestão Oriental (Xinjiang). Depois de migrarem da
Mongólia para a região Turfan do atual noroeste do Xinjiang no século 9º,
eles adotaram uma forma de budismo que foi uma mescla de elementos
das fés da comunidade comerciante do atual Uzbequistão, os tocharianos,
nativos de Turfan, e os mercadores chineses da região. Ele se disseminou
em todo o reinado uigur qocho que se alastrou por todo o atual Xinjiang
exceto nas regiões do sudeste Kashgar e Khotan.

Os uigures, por sua vez, passaram sua forma de budismo como também
seu alfabeto e suas habilidades administrativas aos mongóis no início do
século 13 no tempo de Gengis Khan. No final do século 13, os uigures
mudaram o estilo de sua prática e adotaram a forma tibetana de budismo
como fizeram seus aliados mongóis. Os uigures traduziram um vasto
número de textos budistas para a língua turca a partir do sânscrito,
sogdiano, tochariano, chinês e tibetano, e foram tradutores pioneiros das
escrituras budistas para mongol. Seu estilo de traduzir, mantendo muitos
termos técnicos do sânscrito, foi adotado pelos mongóis. O budismo
continuou entre os uigures até aproximadamente o século 17.

Três outros ramos dos uigures também se tornaram seguidores do


budismo. Um deles migrou da Mongólia em meados do século 9º para o
vale do rio Chu no nordeste do Quirguistão e seguiu a forma de budismo
praticada ali sob o patrocínio dos carlucos e previamente dos turcos
turgos. Outro grupo migrou naquele tempo para a região Kashgar do
Turquestão Oriental e seguiu a tradição kashgar do budismo que também
foi adotada pelos turcos caracânidas que se tornaram soberanos da área
um século mais tarde. O terceiro grupo são os yuguros amarelos, que
também migraram da Mongólia em meados do século 9º para a atual
província Gansu da China, que na época fazia parte do Império Tibetano.
Embora sejam pouco numerosos, os yugurosde amarelos ainda seguem a
forma tibetana de budismo hoje em dia.

Tuva

O ultimo grupo turco a adotar o budismo foi o povo de Tuva, na Sibéria


atual, ao norte da Mongólia Ocidental. Eles têm seguido a forma tibetana
de budismo em uma aliança próxima com a subdivisão mongol desde o
século 18.
O Budismo no Sudoeste da Ásia

Muara Jambi: Onde Atisha estudou


na Indonésia
Elisabeth Inandiak

No ano de 671 D.C., o peregrino chinês Yijing (I-Tsing) partiu do porto de Cantão
em um navio persa, para visitar a Índia e estudar budismo. A lembrança de
Xuanzang (Hsüan-Tsang), o famoso monge e tradutor, que havia morrido alguns
anos antes, lhe deu a coragem para empreender essa perigosa viagem. Mas, ao
contrário de seu compatriota, Yijing não viajou pela famosa Rota da Seda. A
demanda pela seda chinesa estava diminuindo, já que Bizâncio havia desenvolvido
uma bem-sucedida sericultura desde o ano 551. Além disso, a Rota da Seda havia
se tornado cada vez mais perigosa: desde o início do século VII, campanhas
militares árabes bloquearam a passagem terrestre pela Pérsia. O comércio entre a
China e Sind (atualmente uma província do Paquistão) foi interrompido devido às
intermináveis guerras na Ásia Central entre a dinastia árabe Umayyad, a Dinastia
Tang chinesa, os tibetanos e os turcos orientais. Mercadorias e peregrinos chineses
tinham que viajar pelo mar através do Estreito de Malaca, já uma das mais
importantes rotas do comércio internacional.

Yijing se tornaria o primeiro cronista dessa nova rota marítima, que também seria
uma rota do budismo. Em seu relato de viagem, traduzido para o inglês em 1896
por Junjiro Takakusu, e entitulado “Um relato da religião budista praticada na
Índia e no arquipélago Malaio, 671-695 D.C.” Yijing conta que, após vinte dias no
mar, parou em uma cidade fortificada desconhecida, localizada em uma ilha
chamada “Fo-Che”:

Na cidade fortificada de Fo-Che, (viviam) mais de mil monges budistas


cujas mentes estavam dedicadas aos estudos e boas práticas.

Após nove anos em Nalanda, cidade que abrigava a maior universidade monástica
budista mahayana da época, no atual estado de Bihar na Índia, Yijing voltou duas
vezes para esse misterioso reino na ilha de Fo-Che, que ele também chamava “San-
fo-ts'i” ou “Mo-lo-yeu.” Yijing escreveu:

Eles (os monges em Fo-Che) investigam e estudam todas as disciplinas


que existem, assim como no Reino Médio (Madhya-desa, Índia).

Isso indica que disciplinas como lógica, gramática e filologia, medicina, artes, assim
como metafísica e filosofia eram ensinadas em Fo-Che. De acordo com os relatos, lá
ele copiou centenas de manuscritos sânscritos antes de voltar para a China em 694.
Onde se localizava esse misterioso reino de Fo-Che? O enigma permaneceu sem
resposta por mais de doze séculos. Em 1918, o epigrafista francês George Coedès
finalmente identificou Fo-Che ou San-fo-ts’i como o reino de Srivijaya com capital
em Palimbão, Sumatra. Nos anos 1980, escavações arqueológicas confirmaram que
o porto fluvial de Palimbão era de fato a capital política e militar desse poderoso
reino do Estreito de Malaca, no encontro do comércio marítimo entre China, Índia
e o Oriente Médio. Apesar da descoberta de uma gigantesca estátua do Buda em
um monte de Palimbão, não havia qualquer evidência definitiva do grande centro
de estudos budistas que Yijing comparou com Nalanda.

No século XVIII, oficiais holandeses da Companhia das Índias Orientais (VOC)


encontraram Muara Jambi (Muaro Jambi), um enorme sítio arqueológico em ambas
as margens do rio Batanghari, há cerca de trinta quilômetros da foz e no centro de
uma exuberante floresta e da quente névoa equatorial, no norte de Palimbão. As
escavações iniciadas em 1970 pelo governo indonésio mostraram que esse sítio
arqueológico impressionante, que se espalha por mais de dois mil hectares, contém
84 “complexos de templos” de tijolos vermelhos, chamados localmente de
“menapo”, ligados por um engenhoso sistema de canais. Oito desses “complexos de
templos” foram escavados e muitas estátuas e pedaços de cerâmica chinesa do
século IX ao XII foram encontrados. Mas já que muito poucas epígrafes foram
encontradas, o que confirmaria a transmissão de conhecimentos, os arqueólogos
ainda não ousam falar abertamente sobre uma “universidade.” Ainda assim, eles
reconhecem que esses complexos não eram templos, mas centros de estudos com
dois a seis palanques em cada, anteriormente protegidos do sol e da chuva por
telhados sustentados por pilares de madeira. Os monges-alunos se sentavam com
as pernas cruzadas ao redor do palanque no chão de tijolos.

Na realidade, a estrutura do complexo Muara Jambi é muito similar à de Nalanda,


onde monges viviam em um conjunto de prédios fortificados ou murados de
acordo com o vinaya, as regras monásticas. Assim, a “cidade fortificada” citada por
Yijing provavelmente se referia ao complexo de Muara Jambi.
Tinggi Temple

Três séculos e meio mais tarde, outro relato de viagem apóia o de Yijing: Um Relato
Sobre o Encontro Com o Mestre Serlingpa Chokyi Dakpa, escrito em tibetano, em
primeira pessoa, por Atisha, um importante mestre budista indiano. Atisha nasceu
no Reino de Zahor (atualmente próximo de Daca, Bangladesh) em 980, filho do rei
Kalyana, e foi chamado de príncipe Chandragarbha. Em sua adolescência, Atisha
deixou seu reino e viajou por florestas e montanhas buscando a sabedoria de
mestres que viviam na natureza ou nas universidades monásticas de Nalanda e
Odantapuri. Aos 29 anos, foi ordenado monge budista e recebeu o nome
Dipamkara Jnana, “Aquele Cuja Consciência Profunda Serve como Lâmpada.”

O Canto 132 da biografia tibetana de Atisha (rNam-thar rgyas-pa, escrita por volta
de 1355) diz:

O mestre mais importante de Atisha foi Serlingpa, também conhecido


como Dharmakirti, que desfrutava de ampla fama. Atisha já havia ouvido
falar dos ensinamentos de Serlingpa sobre compaixão e bodhicitta e
tinha certeza que ele havia sido seu professor mais precioso por
infinitas vidas.

Com 125 alunos e um grupo de comerciantes que buscava ouro, Atisha partiu. Seu
relato diz:
Homenagem a Maitreya e Avalokiteshvara! Eu, bhikshu (monge)
Dipamkarashrijana, viajei de navio por treze meses e fui onde o Lama
Serlingpa estava. Após cinco meses, o Filho do Deus Indra enviou
grandes tempestades para me impedir de continuar minha missão de
Bodhicitta. Ele também apareceu na forma de um makara gigante para
me deter, e enviou relâmpagos. Naquele momento, eu fiz uma
meditação intensiva em Amor e Compaixão. Como resultado, a
tempestade se acalmou e seis enormes relâmpagos foram vistos presos
no céu sem poder cair. Entretanto, o makara conseguiu nos interromper.
No mesmo momento um vento violento fez nosso navio se tornar
instável como bandeiras ao vento: tremendo, agitando, vindo à tona e
afundando. Os quatro mastros nos quatro cantos foram abaixados e as
quatro grandes pedras foram lançadas para ancorar o navio. Mas a
atmosfera se tornou ainda mais assustadora. Terríveis sons retumbaram
das quatro direções seguidos de relâmpagos...

Após quatorze meses no mar, Atisha atravessou o Estreito de Malaca.


Desembarcou na famosa “ilha dourada,” chamada em sânscrito de Suvarnadvipa.
George Coedès identificou essa ilha como Sumatra. Muitos historiadores e
arqueólogos confirmaram posteriormente a hipótese do epigrafista francês. As
regiões do oeste de Sumatra eram de fato conhecidas na época por serem ricas em
ouro.

Atualmente, a foz do rio Batanghari, Muara Sabak, é apenas um cais. O mar fica
distante, pelo menos duas horas de barco, mas a terra acaba onde o rio se divide
em dois braços. Os dois braços cercam uma ilha que fica em frente ao Estreito de
Malaca, guardando a entrada do rio. Essa ilha fluvial faz parte de um parque
nacional com muitos crocodilos e mangues. Exatamente como na descrição de
Atisha.

Assim que cruzamos o oceano, eu (Atisha) fui diretamente para a estupa


dourada que o imperador tibetano havia construído há muito tempo. Era
lá que os seis discípulos do Lama Serlingpa se dedicavam ao samadhi.
Essa estupa estava localizada a oeste da floresta de Suvarnadvipa, ao sul
dos alegres lótus, ao norte dos perigosos pântanos e a leste do
crocodilo Kekeru. Fiquei lá por quatorze dias, investigando a vida do
Lama Serlingpa.

Várias descrições no relato de sua viagem sugerem que foi em Muara Jambi que
Atisha encontrou Serlingpa e estudou com seu querido mestre, tais como o grande
número de monges que viviam lá e a excelência dos textos budistas que eram
ensinados:
Então eu (Atisha) vi de longe os bhikshus vindo em procissão seguindo
seu mestre. Eles estavam bem vestidos com os três mantos. Cada um
levava um recipiente com água e um bastão. Eram quinhentos e trinta e
cinco e tinham a aparência compassiva dos arhats. O mestre estava
acompanhado por sessenta e dois sramaneras. Ao todo havia
quinhentos e setenta e dois monges. Assim que vi isso, senti como se
estivesse vendo o Buddha rodeado por arhats. Que cena agradável! ...
Então fomos para a residência do Lama, o Palácio do Guarda-sol
Prateado, e nos sentamos... Após nos instalarmos, o Lama começou os
ensinamentos do “Abhisamayalamkara” em cinco sessões, para me
apresentar as características da “originação dependente”. Hospedado no
Palácio do Guarda-sol Prateado, continuei minhas práticas de escuta,
concentração e meditação. O Lama Serlingpa me guiou durante esse
processo de prática.

Em 1025, após receber os preciosos ensinamentos de Serlingpa, Atisha voltou para


a Índia, pouco tempo antes do reino Chola, do sul da Índia, atacar Srivijaya. Foi
morar no monastério Vikramashila. Em 1041, o rei do Tibete Ocidental, Yeshey-wo
(Ye-shes ‘od), o convidou para recuperar todos os aspectos dos ensinamentos do
Buda – theravada, mahayana e vajrayana – como aspectos complementares. Atisha
permaneceu treze anos no Tibete e lá faleceu em 1054. Seu ensinamento mais
conhecido é Uma Lâmpada no Caminho para a Iluminação (Byang-chub lam-gyi
sgron-ma, scr. Bodhipathapradipa), que mais tarde se tornou, no Tibete, a base
para o gênero lam-rim de níveis graduais, um gênero textual que, como uma
lâmpada que ilumina durante as tempestades da vida, resume os pontos mais
importantes de todos os ensinamentos dos sutras em ordem progressiva. Atisha
teve muitos mestres, mas todas as suas biografias contam que, ao ouvir a simples
menção de Serlingpa, seus olhos se enchiam de lágrimas. Ele dizia que toda a
bondade que possuía era devida ao seu mestre da Ilha Dourada.
Gumpung Temple

Não se sabe o motivo pelo qual Muara Jambi caiu em esquecimento após o século
XIII. Alguns especialistas mencionam o ataque do reino hindu dos Cholas, do sul da
Índia, que queria controlar o lucrativo e estratégico Estreito de Malaca. Mas esse
ataque, que teria acabado com o poder de Srivijaya, aconteceu em 1025, e uma das
estátuas mais bonitas descobertas em Muara Jambi é uma Prajnaparamita datada
do século XIII ou XIV. Outros especialistas sugerem que o reino Mo-lo-yeu,
mencionado por Yijing e localizado onde Muara Jambi está, era um feudo, um
concorrente ou uma “matriz” dos Cholas e portanto foi poupado do ataque e
floresceu após a queda de Srivijaya. Diferente dos grande monastérios indianos de
Bihar, que foram transformados em ruínas por ataques turcos e afegãos, Sumatra e
todo o arquipélago indonésio não passou por invasões muçulmanas. O saque de
Muara Jambi, se é que aconteceu, não pode ser atribuído ao Islã, a religião
dominante na região atualmente.

Na mesma área de Muara Jambi há uma vila em que todos os habitantes são
muçulmanos. Suas casas são feitas de madeira e construídas sobre palafitas, ao
longo do rio Batanghari. Seus pomares com cacau e durio se prolongam até as
ruínas do templo. Muitos jovens da região trabalham ocasionalmente nas
escavações, sob supervisão dos arqueólogos. Eles conseguem identificar cada
pedra, cada monte de terra vermelha, cada árvore da floresta onde seus pais têm
pequenas cabanas que usam para vigiar a queda dos durios durante a noite. Eles
conseguem identificar diversas espécies de árvores do subcontinente indiano que
não crescem em nenhum outro lugar de Sumatra, exceto nas florestas de Muara
Jambi. Por exemplo, a árvore de kapung ou kembang parang (tib. metog
dzambaka), que possui, dentro de sua casca, pétalas brancas semelhantes a
películas, que são usadas na Índia e no Tibete como oferendas de flores em
iniciações tântricas.

Os arqueólogos ainda não conseguiram desvendar o mistério desses 84


misteriosos complexos de templos rodeados por muros e canais, muitos dos quais
são pilhas de ruínas e montes de terra no meio dos pomares e plantações de cacau
dos aldeões, e, assim, adotaram o termo “menapo” para designá-los. “Napo”
significa “veado” na língua de Muara Jambi e “me” significa “lugar.” Durante as
enchentes anuais do rio Batanghari, que submergem a vila sob mais de um metro
de água, o menapo é o lugar mais alto onde animais selvagens da floresta podem se
abrigar, como na arca de Noé. Os próprios jovens locais têm certeza que os 84
complexos de templos foram de fato faculdades e que Muara Jambi foi a primeira
universidade verde de budismo mahayana na Indonésia. Na fronteira entre Índia e
China, esse campus abrangia a floresta tropical, que era usada como pomar,
biblioteca, farmácia viva e refúgio para meditação:

“Nós entendemos que a essência do budismo é colocar os outros à frente de nós


mesmos,” dizem os jovens da aldeia.
Dvarapala (photo: Gilles Massot)

Eles fundaram um centro comunitário e uma escola ecológica, Saramuja, para


escavar a história antiga desse lugar esquecido à própria sorte, e transmitir a
cultura local e o respeito pelo meio ambiente para as crianças da aldeia.
Recentemente, se organizaram em um centro comunitário maior, a fundação
Padmasana, para profissionalizar suas pesquisas e compartilhá-las mais
amplamente. Seu símbolo é o Dvarapala, o guardião das entradas em templos
hindus e budistas, que é tradicionalmente retratado com aparência assustadora.
Mas a estátua de Dvarapala descoberta em um templo de Muara Jambi, mesmo que
armada com um pequeno escudo e uma maça quebrada, está sorrindo e tem uma
flor na orelha.
Diálogo Interreligioso

A Relevância da Religião nos


Tempos Modernos
O 14º Dalai Lama

Eu gostaria de falar sobre a relevância da religião nos tempos modernos.


Por natureza, todos nós temos um sentimento do eu e, com ele,
experienciamos os fenômenos conhecíveis com um sentimento de
felicidade, dor ou neutro. Isto são fatos sem necessidade de investigar o
por quê. Os animais também possuem isto. Por natureza, todos nós
gostamos da felicidade e não da infelicidade ou dor. Isto também não
precisa de ser provado. Tendo isto como base, podemos falar do direito
que todos temos a uma vida feliz e à superação do sofrimento.

Há duas categorias de dor e prazer. Uma está ligada à experiência


sensorial física e a outra ao nível mental. O nível sensorial é comum a
todas as espécies de mamíferos com cinco sentidos. Quanto ao nível
mental, alguns animais o possuem. Mas, como os seres humanos têm uma
sofisticada inteligência, têm uma memória a longo prazo e pensamentos
sobre o futuro. Isto é mais do que têm os animais. Assim, os seres
humanos têm prazer, satisfação ou dor mental – esperança, expectativas,
medos. Por isso, a felicidade e infelicidade físicas e a felicidade e
infelicidade mentais são coisas distintas. Podemos experienciar dor física
com felicidade mental e, em outras ocasiões, o nosso nível físico está bom
mas o nosso nível mental está cheio de preocupações e
descontentamentos.

O nível físico está relacionado aos recursos físicos – alimento, roupa,


abrigo, vistas agradáveis, sons, cheiros, sabores, sensações físicas, coisas
materiais. Algumas pessoas são muito ricas. Têm fama, educação, respeito
e muitos amigos. Mas no entanto, como pessoas, são muito infelizes. Isto
porque os bens materiais não trazem satisfação nem conforto mental.
Alguém com muito estresse, preocupação, competitividade, ciúme, ódio,
apego – tudo isto produz infelicidade mental. Assim, o bem-estar físico e
material tem limites. Se ignorarmos o nível interior, a vida não pode ser
feliz. As sociedades afluentes têm conforto material, mas não podem
garantir que as pessoas dali tenham mentes felizes, calmas, confortáveis.
Por conseguinte, precisamos de um mecanismo para trazer a paz mental.
Geralmente, a religião é um instrumento para trazer paz e satisfação
mentais e o conforto mental mediante uma determinada fé. Muitos
concordam na necessidade de uma forma secular para se alcançar a paz
mental, mas disso falarei na minha palestra pública. Mas se falarmos na
maneira de se alcançar a paz mental através da fé, então há duas
categorias de religião – fé sem filosofia e fé com filosofia.

Antigamente, as pessoas usavam a fé para manter a esperança e o


conforto quando enfrentavam situações desesperadas – problemas fora
do nosso controlo, desespero. Nessas situações, a fé dá-nos alguma
esperança. Por exemplo, à noite temos a ameaça dos animais e, por isso,
mais medo no escuro. Com luz sentimo-nos mais seguros. A fonte de luz é
o sol, por isso o sol é algo sagrado e algumas pessoas veneravam o sol. O
fogo conforta-nos quando estamos com frio e por isso havia quem
considerasse o fogo como algo de bom. O fogo às vezes vem dos
relâmpagos, que são misteriosos, e consequentemente ambos são
sagrados. Estas são fés primitivas, sem filosofia.

Outra categoria inclui talvez a antiga sociedade egípcia. Não sei muito
sobre ela. A civilização egípcia recua a seis ou sete mil anos atrás e tinha
fé. Quando estive numa das universidades do Cairo, expressei o interesse
de que, se tivesse mais tempo, gostaria de lá estudar e aprender mais
sobre esta antiga civilização egípcia, mas infelizmente não tive tempo. De
qualquer modo, outra categoria de religião inclui as civilizações do Vale
do Indo, na India, e a civilização chinesa. Estas tinham religiões com uma
ideologia mais sofisticada. Talvez fosse mais sofisticada na civilização do
Vale do Indo do que noutras. Na India, há três ou quatro mil anos, já havia
uma fé com uma certa filosofia. Assim, outra categoria de religião é a fé
com determinados conceitos filosóficos.

Nesta segunda categoria, há interrogações em comum. Um amigo judeu


colocou-as de uma forma simpática: O que é o "eu"? De onde venho? Para
onde vou? Qual é o propósito da vida? Estas são as principais
interrogações. As respostas a elas apresentam-se em duas categorias:
teísta e não-teísta.

Na India, há três mil anos atrás, as pessoas tentaram encontrar uma


resposta a o que é o “eu”, o que é o self? De acordo com a experiência
comum, quando jovem, o corpo tem aparência e forma diferentes do que
quando velho. A mente também é diferente, dentro de minutos. Mas nós
temos um sentimento natural do "eu" – quando "eu" era novo, quando
"eu" era velho. Por conseguinte, deve haver um dono do corpo e da
mente. O dono dever ser algo independente e permanente, imutável,
enquanto o corpo e a mente mudam. Assim, na India, surge a ideia de um
self, uma alma, um " atman". Quando o corpo já não funcionar, uma alma
ali permanece. Essa é a resposta do que é o “eu”.

Depois, de onde vem a alma? Ela tem um princípio ou não? Não ter um
princípio é difícil de aceitar, por isso tem que haver um princípio, como
há o princípio deste corpo. E assim Deus cria a alma. E quanto ao fim,
entramos na presença de Deus ou eventualmente nos absorvemos dentro
de Deus. As religiões do Médio Oriente – antigo judaismo, cristianismo, e
talvez a egípcia – acreditam na vida após a morte. Mas, para os judeus,
cristãos e muçulmanos, a verdade última é Deus, o Criador. Essa é a fonte
de tudo. Esse Deus deve ter poder ilimitado, e compaixão e sabedoria
ilimitadas. Todas as religiões afirmam a compaixão infinita, como Alá. E
Deus, a verdade última, está para além da nossa experiência. Isto é a
religião teísta.

Depois temos, há cerca de três mil anos, a filosofia samkhya na Índia. E


dentro desta apareceram duas divisões: uma acreditando em Deus e
outra dizendo que não há Deus. Em vez disso, esta fala da matéria
primordial, prakrti e as vente e cinco classes de fenômenos conhecíveis.
Assim, para eles, a matéria primordial é permanente e é o criador. Por
isso, antes de Buda, já havia perspectivas não-teístas.

Então, há cerca de 2600 anos, apareceram Buda e Mahavira, o fundador


jaina. Nenhum deles menciona Deus, mas em vez disso deram ênfase
simplesmente a causa e efeito. Assim, uma categoria de samkhya, o
jainismo e o budismo são religiões não-teístas.

Dentro das religiões não-teístas, diz o budismo que tudo vem das suas
próprias causas e condições e, por causa disso, uma das naturezas
próprias da causa e efeito é a mudança. As coisas nunca estão paradas.
Por isso, como a base para o self ou "eu" é o corpo e a mente, que
obviamente estão sempre mudando, e como o "eu" depende deles, o "eu"
tem que ser da mesma natureza. Não pode ser imutável e permanente. Se
a base muda, o que é designado nela também tem que estar sujeito à
mudança. Por conseguinte, não há nenhuma alma permanente e imutável
– " anatma", sem-self. Este é o conceito unicamente budista – tudo é
interdependente e relacionado. Assim, dentro das três religiões não-
teístas, embora as outras duas aceitem a causalidade, afirmam contudo
um self permanente e imutável.

Assim, entre as religiões que têm fé com filosofia, há muitas tradições


diferentes. Todas elas têm dois aspectos – filosofia e conceitos, e também
a prática. Há uma grande diferença em termos de filosofia e conceitos,
mas a prática é a mesma – o amor, a compaixão, o perdão, a tolerância, a
auto-disciplina. As diferentes filosofias e conceitos são simplesmente
métodos para facultar às pessoas o desejo e a convicção para praticarem
o amor, a compaixão, o perdão e assim por diante. Assim, todas estas
filosofias têm o mesmo objetivo e propósito – trazer o amor, a compaixão
e assim por diante.

Isto é claro no budismo. Buda ensinou conceitos diferentes e


frequentemente contraditórios. Alguns sutras dizem que os agregados – o
corpo e a mente – são como uma carga, e o self é o que a carrega. Uma
carga e o que a carrega não podem ser o mesmo, por isso o self deve ser
separado e deve realmente existir. Outro sutra diz que o karma ou ações
existem, mas que não há nenhuma pessoa agindo, nenhum self
substancial. Outros sutras dizem que não há fenômenos externos. Há
apenas mente e os outros fenômenos são meros conteúdos da mente. E a
mente existe; existe verdadeiramente. No entanto, outros sutras dizem
que nem a mente nem os seus conteúdos existem verdadeiramente –
nada tem existência verdadeira, como por exemplo O Sutra Coração, dos
Sutras Prajnaparamita: "não [existem] olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo,
mente". Todos estes são contraditórios, mas todos vêm da mesma fonte,
do Buda Shakyamuni.

Buda não ensinou tudo isto devido à sua própria confusão. Nem os
ensinou para deliberadamente causar mais confusão aos discípulos. Por
que ensinou deste modo? Buda respeitava as diferenças entre os
indivíduos e ensinou tudo isto para lhes ajudar. Viu que tudo isto era
necessário.

Há três mil anos talvez houvesse de dez a cem milhões de pessoas. Agora
há mais de seis bilhões. Entre todas estas pessoas há certamente
temperamentos diversos. Nós podemos ver isto até entre filhos dos
mesmos pais. Até ao nível dos gêmeos, as suas mentes e emoções são
diferentes. Por conseguinte, entre a humanidade há temperamentos
diferentes, estilos de vida diferentes e maneiras diferentes de pensar.
Estas diferenças também são condicionadas pelo ambiente, geografia e
clima. Por exemplo, a Arábia é quente e seca. A India tem as chuvas da
monção, por isso é diferente e as pessoas dali têm um estilo de vida
diferente. Talvez em épocas primitivas as pessoas fossem mais
semelhantes em toda a parte. Mas agora, por causa destas diferenças, é
importante termos abordagens diferentes. Mas na verdade, as diferenças
de filosofias e conceitos não são importantes. O mais importante é a meta,
o objetivo de todas elas e esse é o mesmo: sermos pessoas gentis e
compassivas na nossa abordagem para com os outros.
Para algumas pessoas, então, o conceito de um Deus criador é muito útil.
Perguntei uma vez a um velho monge cristão por que razão o cristianismo
não acredita em vidas passadas. Disse ele: "porque esta própria vida é
criada por Deus". Pensar deste modo dá-nos um sentimento de
intimidade com Deus. Este corpo vem do útero da nossa mãe e por isso
temos um sentimento de ternura e conforto com a nossa mãe. Assim, dá-
se o mesmo com Deus. Nós vimos de Deus e isso dá-nos um sentido de
proximidade com Deus. Quanto mais próximos nos sentirmos, mais forte
será a intenção de seguir o conselho de Deus, que é o amor e a compaixão.
A abordagem teísta é portanto muito poderosa e muito mais útil para
muitas pessoas do que uma abordagem não-teísta.

O melhor é mantermos a nossa própria tradição religiosa. Na Mongólia, os


missionários pagam às pessoas $15 para se converterem ao cristianismo.
Assim algumas pessoas chegam a eles e convertem-se todos os anos,
várias vezes, apenas para receber $15 de cada vez! Eu aconselho esses
missionários a não interferirem e a deixarem as pessoas dali continuarem
com a sua tradição budista. Isto é semelhante a quando digo às pessoas
ocidentais para manterem as suas próprias religiões.

O melhor é obtermos mais informação. Isto ajuda-nos a desenvolver o


respeito. Por isso, se forem cristãos, mantenham a vossa tradição cristã,
mas obtenham conhecimento e compreensão das outras tradições.
Quanto a métodos, todos ensinam a mesma prática – o amor, a
compaixão, a tolerância. Como a prática é partilhada em comum, podem
adotar alguns métodos do budismo. Mas quanto ao conceito budista do
não-absoluto – isso é um assunto exclusivamente budista. Não é útil aos
outros aprenderem isso. Um padre cristão perguntou-me sobre a
vacuidade, o vazio, e eu disse-lhe que isso não era bom para ele. Se eu lhe
ensinasse a interdependência total, isso poderia prejudicar a sua forte fé
em Deus. Por isso é melhor que essas pessoas não escutem palestras
sobre o vazio.

Em resumo, como todas as principais tradições têm a mesma prática, com


apenas métodos e filosofias diferentes mas com a mesma finalidade, esse
é a base para o mútuo respeito. Por isso, mantenham a vossa própria
tradição. Mas, se acharem úteis alguns dos métodos budistas vindos dos
meus discursos, então usem-nos. Se não forem úteis, então deixem-nos.
O Que É o “Eu” nas Diferentes
Religiões?
O 14º Dalai Lama

Observações Introdutórias

Quando falamos sobre religião, ou espiritualidade em geral, é importante


respeitarmos todas as diferentes tradições. Para que isso aconteça,
precisamos conhecer e apreciar a essência de cada religião, para
reconhecermos seu valor. Esse é um dos motivos pelos quais é
importante promover-se a harmonia inter-religiosa.

No diálogo inter-religioso, três perguntas estão sempre presentes: “Quem


sou eu?” ou “O que é o “eu”?, “De onde veio esse “eu”?” e “Existe um
começo, ou não, e o que acontecerá no final, existe um fim?” Todas as
principais religiões tentam responder essas três perguntas.

O Que É o “Eu”?

Vamos à primeira pergunta, “O que é o “eu”? Alguns devotos de crenças


mais simples veneram espíritos locais, portanto não estão muito
preocupados com essas três perguntas. Quando uma tragédia acontece,
eles simplesmente rezam para a deidade local. Porém, dentre as
principais religiões, algumas investigam essas questões há pelo menos
três mil anos antes do budismo. Recentemente, conheci um acadêmico de
uma universidade do Egito que me disse que na antiga civilização egípcia,
há cinco mil anos atrás, eles desenvolveram a filosofia religiosa e os
conceitos relativos a vidas futuras. Portanto, essas questões vêm de muito
tempo.

Quanto à pergunta “O que é o “eu”?, tanto as religiões teístas quanto as


não teístas referem-se ao “eu” como uma entidade independente,
separada do corpo, que “possui” o corpo e é independente dos agregados
de corpo e mente. Ambas as tradições afirmam que existe um “eu” que
não é afetado por coisa alguma, que é sólido e independente.
Provavelmente, o conceito de alma, que encontramos em muitas religiões,
possui esses três aspectos.

O Budismo é a única religião que diz não haver um “eu” independente dos
agregados de corpo e mente. Em geral, o budismo fala em termos de
impermanência, sofrimento, vazio e ausência de “eu”. Essas são [em
parte] as quatro características do dharma, ou os quatro pontos
necessários para rotularmos uma visão como baseada nos discursos
iluminados do Buda, ao invés de como uma visão não-budista. [Vazio e
ausência de um “eu” — ou seja, a ausência de um “eu” impossível — é a
terceira das quatro características.] As quatro características são: os
fenômenos condicionados [passíveis de serem afetados] são
impermanentes [não-estáticos], os fenômenos maculados são sofrimento
ou implicam em sofrimento, todos os fenômenos são vazios [e não
possuem uma alma ou um “eu” impossível] e nirvana é paz [a pacificação
do sofrimento]

Portanto, existem duas respostas básicas para a pergunta “O que é o “eu”?


[1. existe um “eu” independente do corpo e da alma; 2. não existe um
“eu”].

O “Eu” Tem um Começo?

E então temos a pergunta “O “eu” tem um começo?” Alguns dizem que o


“eu” não se origina de uma causa baseada nos agregados, logo, seria
espontâneo. Mesmo no que diz respeito à origem do universo, eles dizem
que vem do nada, que não tem causa. Na verdade, esse é o ponto de vista
da ciência. Na Índia, existe o posicionamento materialista Charvaca que
[também] afirma isso. Entretanto, como dizer que alguma coisa “não tem
causa” é meio estranho, a maioria dos outros [grupos] afirmam que é
necessário, sim, haver causas e condições.

Quando a escola indiana de filosofia, os samkhyas, diz que o universo vem


da matéria permanente, ou fundamental — que eles chamam prakriti,
com seus três constituintes universais, os três gunas — seu
posicionamento é de que a causa é estática ou permanente. Entretanto,
existem outros grupos, como o dos seguidores do deus criador Ishvara,
por exemplo, que afirmam que o cosmos surge da vontade de um ser
transcendental. Todas as religiões teístas tem uma versão similar:
Judaísmo, Cristianismo e Islam. Todas dizem que Deus criou o “eu” [a
alma]. Portanto, o conceito de criação é sua resposta a “De onde vim?”

Agora, dentre as religiões teístas, existem dois pontos de vista. O primeiro


é que só existe uma vida, esta vida: esse é o ponto de vista cristão, por
exemplo. O segundo é que existem muitas vidas, reincarnação: esse é o
ponto de vista indiano. Do ponto de vista indiano, Ishvara ou Brahma
criaram a alma com muitas vidas e cada vida tem uma forma ligeiramente
diferente, por conta do karma. Portanto, o posicionamento indiano aceita
tanto a criação quanto a causalidade. Já o cristianismo fala apenas desta
vida, criada por Deus. Sinto que essa é uma ideia muito poderosa e útil;
acreditar nisso gera um forte sentimento de intimidade com Deus. Existe
uma possibilidade maior de seguir a vontade de Deus, amar a Deus e
ajudar os outros seres, nossos companheiros.

Certa vez, quando visitei uma comunidade muçulmana em Ladakh, perto


da fronteira do Paquistão, um dos meus amigos muçulmanos, um
sacerdote local, mencionou que um verdadeiro seguidor do Islã deve
amar todos os seres criados por Alá, assim como ama o próprio Alá. Isso
parece-se com a visão budista de amar todos os seres sencientes. Assim,
nas religiões teístas em que Deus cria a alma, existe um sentimento de
muita proximidade com Deus e, portanto, mais entusiasmo em praticar
seus ensinamentos.

Contudo, existe um outro grupo, outras religiões, que inclui os jainistas,


os budistas e parte dos samkhyas, que não aceita um criador. Eles dizem
que tudo surge [simplesmente] de causas e condições.

Portanto, no que diz respeito à origem do “eu”, temos uma visão teísta e
uma não-teísta e aqui a posição não-teísta é a dos jainistas, budistas e de
parte dos samkyas. Do ponto de vista deles, não existe começo: só existe a
lei da causalidade.

Agora, eu não sei precisamente a resposta dos samkyas. Se a matéria


fundamental tem perturbações contínuas, uma vez que tanto a matéria
fundamental quando o “eu” são verdades últimas, e os outros vinte e três
fenômenos de que falam são perturbações da matéria fundamental, e o
“eu” tem conhecimento da matéria fundamental, a questão é: “Será que o
“eu” surge a partir da matéria fundamental como algo que se manifesta a
partir dela ou será que são completamente separados?” Na verdade, acho
que eles dizem que são completamente separados, mas qual é a relação
exata?

O budismo, por outro lado, rejeita a ideia de um “eu” independente — um


“eu” que existe de forma independente, não só do universo mas também
dos agregados de corpo e mente. O que o budismo diz é que o “eu” [que
existe convencionalmente, o mero “eu”] é algo que depende dos
agregados: ele depende do corpo e da mente.

No que diz respeito à sua origem, uma vez que o “eu” só pode existir e ser
compreendido com relação aos, ou na dependência dos, agregados, a
questão sobre o início do “eu” nos leva à questão sobre o início do
continuum dos agregados. Quanto à isso, de maneira geral, todos temos
um corpo e uma mente. Considerando-se que a base para o rotulamento
do “eu” é principalmente o continuum de atividade mental [individual] e
consciência, a questão é: “Existe um começo para o continuum de
atividade mental [individual]?

Agora, no que diz respeito aos fenômenos externos, existem as causas


obtentoras (nyer-len-gyi rgyu) e as condições simultaneamente atuantes
(lhan-cig byed-pa’i rkyen). Uma causa obtentora é aquela da qual se obtém
o efeito que a sucede, e que cessa quando o efeito surge [como uma
semente que é a causa obtentora de uma planta], já a condição
simultaneamente atuante ajuda a causa obtentora a manifestar o efeito
[assim como o solo, a água e a luz do sol são as condições
simultaneamente atuantes no caso da planta].

No que diz respeito à cognição visual, ela requer um objeto externo


adicional [aos dois fatores causais] como condição focal (dmigs-rkyen)
para seu surgimento, enquanto os sensores visuais [as células sensoriais]
dos olhos são o que chamamos de condição dominante (bdag-rkyen). [Um
momento de] cognição também requer uma condição imediatamente
precedente (de-ma-thag rkyen) para dar continuidade à sua natureza
essencial (ngo-bo) como consciência; sendo assim, para um momento de
cognição visual, a condição imediatamente precedente é outro momento
de consciência, o imediatamente precedente. [A simples cognição
mental, que toma uma forma como objeto, tem como condição
imediatamente precedente o momento imediatamente precedente de
simples cognição visual da forma]. Agora, no que diz respeito à cognição
conceitual dessa forma [que sucede a simples cognição mental], ela
também precisa de um momento anterior em seu continuum de
consciência, como condição imediatamente precedente [que seria a
simples cognição mental dessa forma]. Seria essa condição precedente
imediata também a sua causa obtentora? Eu acho que sim, mais isso não
está claro.

Simples cognições sensoriais [e mentais] são cognições apenas da


natureza essencial (ngo-bo) de alguma coisa [a forma geral com que algo
se apresenta, como uma forma visual, por exemplo]. Elas não são
cognições da natureza funcional (rang-bzhin) [o que faz ou qual sua
função] de algo . Após essa [sequência de] simples cognições [visuais e
mentais de uma forma], existe uma cognição conceitual mental [dessa
forma] que a reconhece por meio de uma categoria de significados (don-
spyi). Essa [sequência] também gera uma cognição conceitual [dessa
forma] em termos de “eu” e “meu”. Portanto essas cognições conceituais
têm suas próprias causas obtentoras.
A cognição sensorial surge em resposta às condições imediatas à nossa
volta, mas no sono profundo sem sonho a cognição sensorial não se
manifesta. Todavia, a cognição mental está lá; ela permanece.

Agora, no [anuttarayoga] tantra, fala-se em diferentes níveis de sutileza


da consciência. Existe o claro nível da mente do sono e existem práticas
para reconhecê-lo. Isso significa que também temos atividade mental no
sono profundo. No texto Os Cinco Estágios (Rim-lnga), de Nagarjuna,
sobre o Guhyasamaja, e também nos comentários e textos de Nagabodhi
sobre o assunto, encontramos uma apresentação das três mentes sutis
criadoras de aparências (snang-gsum) [a solidificadora de aparências
(snang-ba; aparências, aparência branca), a difusora de luz (mched-pa,
aumento, aparência vermelha) e a limitadora (nyer-thob; quase-
conquista, aparência preta)] e dos quatro vácuos (stong-pa bzhi) [vácuo
(stong-pa), muito vácuo (shin-tu stong-pa), grande vácuo (stong-pa chen-
po), todo-vácuo (thams-cad stong-pa). Os primeiros três vácuos são níveis
de atividade mental que correspondem às três mentes sutis criadoras de
aparências; enquanto todo-vácuo corresponde ao nível mais sutil de
atividade mental, a mente de clara luz (‘od-gsal).]

O quarto estado vácuo, todo-vácuo, é [imediatamente] precedido pelos


três estados vácuos prévios. Esses três [mentes sutis que criam
aparências, os primeiros três vácuos] surgem [sequencialmente] com a
sequência progressiva (lugs-‘byung) [da dissolução dos níveis grosseiros
de consciência na mente de clara luz na hora do morte]. Eles são seguidos
[sequencialmente, depois de um período de mente de clara luz] pela
sequência reversa (lugs-ldog) [dos três]. Algo semelhante às sequências
progressiva e reversa ocorre no sono e é possível reconhecê-las. O mesmo
acontece com o período do bardo, entre a morte e o renascimento: uma
sequência progressiva [de dissolução] também ocorre [em seu término].
Quando o bardo da mente da clara luz cessa, [no momento seguinte, com
o início da sequência reversa] ocorre a consciência do nascimento [com o
momento da concepção].

O ponto é que cada um desses níveis diferentes de consciência, ou mente,


tem suas causas obtentoras [das quais surgem como consequência] e,
conforme é dito no Comentário [Compêndio] Sobre a Validade das Mentes
Cognocentes, [de Dharmakirti] (Tshad-ma rnam-‘grel,
sânsc. Pramanavarttika), “A causa obtentora de uma consciência deve ser
uma consciência”. Portanto, podemos entender muito bem essa afirmação
através da análise do Guhyasamaja. Assim, a consciência da existência do
nascimento [no momento da concepção] tem como sua causa obtentora a
mente de clara luz do bardo.
No que diz respeito às escolas não-budistas indianas de filosofia, que
afirmam a existência de vidas anteriores e atman, elas sustentam que é o
“eu” estático e imutável que obtém e se apropria de um novo nascimento,
e descarta o antigo. Elas partem da premissa da existência de vidas
passadas e futuras para estabelecer o atman como o agente e aquele que
se apropria [do renascimento]. Mas o budismo rejeita um “eu” ou um
atman que é estático e imutável. O budismo afirma a existência de vidas
passadas e futuras com base em um continuum [individual] de
consciência. [Isso vem do fato da causa obtentora da consciência, ou seja,
o momento anterior de consciência, cessar quando dá origem ao próximo
momento. Portanto, uma vez que um continuum individual de consciência
é não-estático e muda de momento a momento, o “eu” rotulado ou
imputado nele também há de ser não-estático]

O “Eu” Tem um Fim?

Agora, quanto à questão do “eu” ter, ou não, um fim. [Algumas religiões


teístas dizem que] depois da morte, esperamos o julgamento final e
depois vamos para o céu ou inferno. Se formos para o céu, tocaremos
música para Deus. Isso é muito bom. O budismo diz algo semelhante, e
também fala de infernos [mas afirma que ambos são ocorrências de
renascimentos e que são seguidos de novos renascimentos]. Agora, eu
não sei se nesse tipo de explicação [teísta] existe realmente um fim para o
“eu” [quando ele chega ao céu ou inferno]. Algumas tradições brâmanes
dizem que o “eu” individual se funde com o Grande Brahma, mas isso é
um fim ou não? Eu também não sei. Algumas religiões não teístas, como o
Jainismo, aceita moksha [liberação] e algumas de suas escrituras dizem
que moksha é um tipo de paraíso e você fica lá para sempre.

Eu não conheço o posicionamento exato dessas escolas jainistas, mas no


budismo existem duas assertivas. Uma é que quando você alcança
o nirvana [liberação], o corpo continua até o resto da vida [assim como a
mente e o “eu” imputado no continuum de ambos]. Isso é conhecido como
“nirvana com resíduo”. Mas, uma vez que os agregados [de corpo e
mente] dos quais nos apropriamos, que foram obtidos de um karma
anterior, cessam na hora da morte [com o fim do corpo], o continuum de
consciência e o “eu” também cessam. Isso é “nirvana sem resíduo”.
Portanto, nesse ponto realmente não existe mais “eu”. [O “eu” acabou]

Outra assertiva, especificamente do budismo Mahayana em geral, é que


não existe razão para um cessar da consciência principal. Pensamentos
baseados em uma cognição enganosa e distorcida chegam ao fim, já que
agora existe uma compreensão contrária, que aniquila a base que os
sustentava. [A compreensão correta e a cognição distorcida são
mutualmente excludentes e, portanto, não podem existir
simultaneamente em um mesmo momento da mente]. Mas não existe
nada similar que possa ser contrário à mente de clara luz. Por isso,
mentes de clara luz [individuais] não têm fim, assim como o “eu”
imputado com base na mente de clara luz. Mesmo que o hábitos de
cognição distorcida cessem, não existe razão para uma mente de clara luz
cessar. Portanto, o budismo tem duas posições: uma é que o “eu” tem um
fim, e outra é que o “eu” não tem um fim.

Conclusão

Nos últimos três mil anos ou mais, diferentes tradições religiosas


elaboraram e tentaram responder essas três perguntas. Todas essas
grandes religiões têm dois aspectos: um religioso e um filosófico — em
outras palavras, o aspecto que lida com ensinamentos práticos para
domar o coração e a filosofia que o suporta e fundamenta. Fé e razão
devem manter-se assim, juntas, em todas as tradições. O budismo diz que
os ensinamentos práticos são o “método” e os ensinamentos filosóficos,
que lhes dão sustentação, são a “sabedoria. O lado dos ensinamentos
práticos tem como principal método o desenvolvimento de uma aspiração
[como a aspiração de ser capaz de ajudar todos os seres a se livrarem do
sofrimento].

As vezes descrevo duas categorias de religiões: religiões com-Deus e


religiões sem-Deus. O budismo é sem-Deus. Do ponto de vista de um
religioso teísta, o budismo não é uma religião genuína: é uma forma de
ateísmo. Alguns amigos dizem que o budismo é “um meio de chegar-se a
Deus”, e portanto não é anti-Deus. Alguns amigos me corrigem assim.

Sinto que, nas religiões teístas, o conceito básico de religião é [a


existência de um] Deus. Alguns budistas dizem que o budismo vem do
Buda, mas o Buda Shakyamuni era um ser senciente limitado. Até Bodh
Gaya, conforme a visão geral, ele ainda era um ser limitado. A tradição
sânscrita fala dos quatro corpos do Buda, os quatro kayas, portanto é um
pouco diferente. Mas a antiga tradição Pali diz que a primeira parte da
vida do Buda Shakyamuni foi como um ser senciente limitado e depois ele
se tornou um Buda iluminado. Portanto, apesar dos ensinamentos do
Buda virem da época em que ele já era iluminado, o Buda iniciou sua vida
como um ser limitado. Portanto, o budismo vem de um ser humano e não
de um Deus. Se Deus é um ser totalmente iluminado, se afirmarmos isso,
então o Buda é como um Deus. Mas ainda assim ele foi um ser senciente.

O ponto de vista e a teoria budista estão baseados na realidade existente.


Tome por exemplo as quatro nobres verdades. O sofrimento e suas
causas: eles existem na realidade. A explicação sobre a ausência do “eu”
fala da natureza da realidade. O conceito de nirvana está baseado nisso.
Alguns textos budistas dizem, “Tome a natureza essencial da realidade
como base; desenvolva um método baseado nela como caminho; e, a
partir disso, você atingirá o resultado.”

Portanto, eu diferencio a ciência e filosofia budista da religião budista. No


nível científico do budismo, não há discussão sobre avaliação moral. Só
existe a investigação sobre o que é a realidade. Para conduzir-se esse tipo
de investigação, a forma precisa ser objetiva, não pode ser tendenciosa.
Precisamos de ceticismo: isso é muito importante. Dúvidas geram
questionamentos e questionamentos geram investigação, e isso nos leva a
respostas [objetivas]. Portanto, especialmente na tradição sânscrita da
Universidade de Nalanda, na Índia, [a qual o budismo tibetano segue]
existe uma ênfase muito grande na lógica. Porque questionar antes de
praticar? Porque precisamos conhecer a realidade; a prática precisa estar
baseada na realidade, portanto a investigação é importante.

Se a religião estiver baseada apenas citações de escrituras, ela realmente


não depende de lógica. Podemos citar, mas a validade da citação precisa
ser estabelecida pela lógica. No budismo, falamos de três tipos de
fenômenos: óbvios, obscuros e extremamente obscuros. A última
categoria não pode ser conhecida diretamente apenas com a cognição; e
também não pode ser conhecida por inferência lógica. Ela só pode ser
conhecida com base em uma fonte autêntica de informação ou em alguém
com conhecimento válido. [A validade da fonte de informação precisa ser
estabelecida através da lógica].

Portanto, a ciência budista investiga a natureza do que existe. O que


existe tem dois aspectos: o mundo físico e o mundo mental. A ciência
moderna é altamente avançada, comparada à compreensão budista, no
que diz respeito ao campo [de investigação] do mundo material. Assim, é
importante que os budistas aprendam com a ciência moderna. Mas, no
que diz respeito aos fenômenos mentais e à consciência, a ciência
moderna está no estágio inicial da chamada “soft science”. Através do
conhecimento da Índia antiga sobre a mente — budista, jainista e hindu
— podemos adquirir muita informação. Alguns cientistas mostram-se
ávidos para colaborar e isso é de muita ajuda.
Viver e Trabalhar em uma Sociedade
Multirreligiosa
Dr. Alexander Berzin

Me pediram para falar sobre viver e trabalhar em harmonia em uma sociedade


com diversidade religiosa e há muitos aspectos diferentes que esse assunto toca.
Como o nosso ilustre anfitrião disse, um aspecto é o que Sua Santidade o Dalai
Lama sempre enfatiza, que são os valores humanos e a ética secular. Que apesar
das diferentes crenças que possam existir entre nós que vivemos em uma certa
sociedade, a ética não precisa depender apenas de um conjunto específico de
crenças religiosas, pois há uma ética baseada em valores humanos básicos que são
aceitos por todas as religiões e por pessoas sem religião também. Esses valores se
baseiam no reconhecimento de que somos todos iguais: Todos querem ser felizes.
Ninguém quer ser infeliz. Nesse sentido, somos todos iguais. Todos nós temos
sentimentos. Todos querem ser amados e aceitados. Ninguém quer ser rejeitado ou
perseguido. Todos querem ser respeitados e ter a consideração dos outros. A base,
então, para essa abordagem geral da ética secular é, como Sua Santidade o Dalai
Lama sempre enfatiza, baseada em compaixão, a qual é definida como o desejo de
que os outros fiquem livres do sofrimento e de problemas e de suas causas.

Mas quais são as fontes de problemas e infelicidade? Há muitas. Nós vivemos num
tempo em que há problemas econômicos, problemas relacionados a vários tipos de
conflitos ao redor do mundo. E estamos todos ligados, então o que acontece numa
parte do mundo afeta todos. Não é mais possível viver de forma isolada.

Então quando olhamos para várias crenças religiosas é muito importante que as
diferenças entre elas não contribuam para criar ainda mais problemas. E a
pergunta então é: como podemos evitar disputas, conflitos e mal-entendidos que
podem surgir por causa de diferentes crenças? Não é suficiente dizer, “todas as
religiões são iguais. Todas as crenças, também as não-religiosas, são iguais. Todos
nós acreditamos em tentar fazer desse mundo um lugar melhor”. Isso não é
suficiente. Mesmo que talvez seja verdade que compartilhamos o mesmo valor,
desejo e objetivo, ainda assim há diferenças e não é justo dizer que não há
diferenças entre as diversas religiões.

Mas o que causa desarmonia é muitas vezes baseado na nossa ignorância sobre as
crenças um dos outros. Isso é agravado com frequência pela nossa falta de
conhecimento profundo sobre a nossa própria tradição. Então ao invés de se
basear em conhecimento e compreensão, nossas atitudes em relação às nossas
origens e às origens dos outros podem facilmente se transformar no que é
chamado de “mentalidade de time de futebol”. Essa mentalidade significa que “esse
é o meu time de futebol, ele é o melhor e nós temos que ganhar. Nós temos que
competir e derrotar todos os outros times de futebol.” Essa é a crença de que a
minha creligião é a melhor simplesmente porque é a minha e a da minha família.
Uma vez perguntaram para Sua Santidade o Dalai Lama, “qual é a melhor religião?”
e ele respondeu, “a melhor religião é aquela que ajuda você a se tornar uma pessoa
mais bondosa.” Por isso para cada pessoa uma religião ou a outra será mais útil
para torná-la uma pessoa mais bondosa. Eu acho que essa é uma forma muito útil
de lidar com diversidade religiosa. Nós precisamos reconhecer que cada religião
tenta ajudar os seus seguidores a se tornarem melhores pessoas, pessoas mais
bondosas. Para reconhecer isso, precisamos ter conhecimento. Precisamos
aprender sobre a nossa própria religião e as dos outros. Isso pode ser feito de
forma científica por meio da educação, sem tentar converter ninguém e sem
qualquer tipo de julgamento, apenas conhecimento geral. Isso é muito útil e
importante.

Com frequência há encontros entre diferentes líderes religiosos. Sua Santidade o


Dalai Lama gosta muito de participar desses encontros inter-religiosos. Ele os
considera muito úteis. Eu me lembro de vários encontros de que eu participei. Um
deles foi uma reunião com o Patriarca Bartolomeu, o Patriarca da Igreja Ortodoxa
de Constantinopla. Eu o encontrei pouco tempo depois que ele assumiu posse,
quando estava prestes a ir para o Japão, onde iria conhecer pela primeira vez um
líder budista. Ele me disse que estava muito agradecido pelos escritos de Sua
Santidade o Dalai Lama sobre budismo, porque antes ele não sabia muito sobre
budismo e esses livros o ajudaram muito a poder conhecer e dialogar de forma
construtiva com os líderes budistas no Japão. Assim nós vemos esse tipo de atitude
aberta que reconhece que a base para o entendimento e a cooperação entre as
religiões é a educação, o conhecimento. Nós encontramos isso nos líderes de várias
religiões.

Eu me envolvi especialmente com o diálogo entre budistas e muçulmanos.


Inicialmente, eu me interessei por isso nos anos 90, por causa da situação no
Tibete em que muitos muçulmanos chineses estavam se mudando para lá,
especialmente para a região nordeste.

Tradicionalmente havia muçulmanos que viviam na região central do Tibete. Eles


eram na maioria comerciantes muçulmanos de Ladakh e Kashmir. Isso foi na época
do 5o Dalai Lama, no século XVII. Ele estabeleceu várias leis que davam aos
muçulmanos todos os direitos que eles queriam em relação a construir mesquitas,
ter seus próprios cemitérios e não serem obrigados a participar dos diversos
rituais e procedimentos budistas que aconteciam em certos feriados ao longo do
ano. Por isso, tradicionalmente não havia um conflito entre essas religiões no
Tibete. Mas recentemente houve muita competição econômica com a chegada de
imigrantes chineses no Tibete e entre eles muitos muçulmanos.

Assim, pensando no contexto maior da Ásia Central e na história da interação entre


as sociedades budistas, muçulmanas e cristãs, eu achei que seria muito importante
construir um diálogo e maior entendimento entre esses grupos, especialmente
entre budistas e muçulmanos. Isso ajudaria o desenvolvimento de toda a região.
Uma das coisas que eu decidi fazer foi escrever uma história mais objetiva da
interação entre as duas culturas e isso me deu a oportunidade perfeita para viajar
para países islâmicos no Oriente Médio e conversar com estudiosos lá. Já que eu
estava buscando conhecimento houve uma enorme abertura entre os estudiosos
islâmicos para ajudar a desfazer os muitos mal-entendidos sobre a interação entre
as duas culturas. Muitos relatos descrevem a interação simplesmente como: “os
invasores muçulmanos vieram para a Índia e destruíram tudo que era budista.” E
embora certamente houve alguma destruição, essa não é uma representação justa
do que realmente aconteceu e da história completa. Mas enquanto os budistas
verem os muçulmanos como aqueles que destruíram os monastérios na Índia ou os
muçulmanos pensarem nos cristãos como aqueles que fizeram as Cruzadas contra
eles, enquanto isso for a memória principal da interação, isso só vai perpetuar mais
problemas entre eles, mais conflitos.

Assim, eu viajei para lugares como Egito e Jordânia, Turquia etc. e conheci
professores e líderes teológicos do Islã. Eu recebi um grande elogio do reitor da
Universidade Teológica do Cairo, a Universiade Al-Azhar. Ele disse que eu era um
verdadeiro guerreiro da verdade, o verdadeiro significado de mujahedin. Eu estava
tentando mostrar a verdade do que realmente aconteceu. Eu percebi que não só os
professores e líderes religiosos que eu conheci, mas também os estudantes,
estavam muito interessados. Trezentos alunos vieram para uma palestra opcional
que eu dei na Universidade do Cairo sobre budismo.

Uma vez, Sua Santidade o Dalai Lama me pediu para fazer uma coisa. De vez em
quando ele me dava o que eu chamava de missão impossível. Ele disse, “eu quero
que você encontre e traga para mim um líder negro africano sufista muçulmano.”
Como responder a um pedido como esse a não ser “muito obrigado”? Sua
Santidade tem uma habilidade incrível de saber as conexões kármicas que as
pessoas têm e sempre que ele me pediu para fazer essas tarefas aparentemente
impossíveis, foi extremamente fácil realizá-las – tudo simplesmente dá certo.
Pouco tempo depois, eu viajei para a Europa – eu costumava dar muitas palestras
ao redor do mundo – e conheci um alemão com quem comecei a conversar. Ele era
diplomata na África e então eu contei para ele o pedido do Dalai Lama e ele disse,
“Um grande amigo meu por coincidência é o líder religioso sufi de Guiné.” Guiné é
na África Ocidental e eu me esqueci de dizer que Sua Santidade também pediu que
o líder fosse da África Ocidental. Esse líder estava na Europa e estava indo para a
Índia para alguns tratamentos médicos ayurvédicos. Por coincidência ele ia estar
em Délhi exatamente quando eu voltaria para lá e por coincidência ele tinha alguns
dias livres antes de ir embora da Índia e estava muito disposto a se encontrar
comigo e que eu o acompanhasse a Dharamsala para conhecer o Dalai Lama. Assim
não foi necessário nenhum esforço para organizar isso.

Então eu conheci esse líder sufi. Ele tinha uma aparência imponente. Era grande
como um chefe tribal africano e extremamente digno. Nós fomos para Dharamsala
e eu o acompanhei em seu encontro com o Dalai Lama. Ele estava vestido com uma
dessas túnicas brancas muito elegantes. O encontro deles foi tão emocionante e
caloroso, como dois velhos amigos que se encontram, que o líder sufi chegou até a
chorar. O Dalai Lama se levantou e foi para a outra sala – fora da sala onde ele
recebe visitantes – e trouxe um lenço pessoalmente para que o líder sufi enxugasse
suas lágrimas, algo que eu nunca tinha visto ele fazer antes. Ele sempre tinha um
assistente para trazer coisas para ele ao invés de ir buscar ele mesmo. Os dois
tiveram uma calorosa discussão sobre a base para a compaixão no budismo e no
sufismo. Depois disso, por muitos anos eles tiveram outros encontros.
Assim, o próprio Dalai Lama tem muito interesse nesse diálogo, não só com os
muçulmanos, mas com líderes de outras religiões ao redor do mundo. Ele me
incentivou a traduzir muitas partes do meu site para línguas islâmicas para
disponibilizar ao mundo islâmico o conhecimento sobre budismo, sobre o Tibete,
sobre seus escritos e discursos sobre harmonia religiosa e ética secular. Outra
missão impossível. Mas surpreendentemente nós já conseguimos traduzir grandes
partes do site para o árabe e urdu. Urdu é a língua do Paquistão e dos muçulmanos
do norte da Índia. Recentemente, novamente sem ir atrás disso e sem procurar por
eles, uma equipe que está interessada em traduzir nosso site para o indonésio
apareceu. A Indonésia tem a maior população muçulmana do mundo.

Então, como costumo dizer, a base para a harmonia religiosa é a educação,


conhecimento sobre as crenças um dos outros. Assim vemos que não há nada a
temer. Nós reconhecemos nossas diferenças, mas enfatizamos o que
compartilhamos em harmonia.

Agora a questão é: como podemos viver e trabalhar numa sociedade


multirreligiosa como a que vocês têm aqui na Calmúquia? E já que essa é uma
faculdade de engenharia, eu estava pensando em o que seria relevante para vocês
como estudantes dessa universidade. Em outras palavras, quando estamos
construindo ou projetando algo, o que podemos levar em consideração para
acomodar essas diferentes crenças e práticas religiosas? Num contexto maior,
como organizamos uma sociedade, um governo, um governo local etc. se tivermos
a chance de ajudar?

A primeira coisa que me veio à memória foi que em certas religiões pede-se aos
adeptos para rezar em certos momentos do dia – como entre os muçulmanos, cinco
vezes ao dia. Assim, se você estiver supervisionando uma construção na qual
alguns dos trabalhadores são muçulmanos ou se você estiver construindo um
prédio público, uma escola, por exemplo, na qual haverá alunos ou professores
muçulmanos, pode ser útil criar uma atmosfera harmoniosa com a construção de
uma sala para orações, se for permitido que aqueles que querem rezar durante o
dia possam seguir suas crenças e costumes. Semelhantemente, se há costumes de
outras religiões que podem ser levados em consideração na construção de um
prédio, isso é muito positivo. Em outras palavras, leve em consideração as
características marcantes de uma crença para fazer as pessoas se sentirem bem-
vindas e confortáveis.

Sempre há uma questão relacionada à lealdade. A lealdade é um conceito muito


importante para o bem-estar emocional das pessoas. Nós queremos ser leais à
nossa família, ao nosso contexto étnico e à nossa religião. Também há lealdade ao
Estado e ao país. O que muitas vezes causa problemas é quando as pessoas não
podem demonstrar lealdade a tudo isso de forma harmoniosa, quando elas são
forçadas a serem desleais, digamos, ao seu contexto religioso para serem leais aos
costumes da sociedade em geral.

Há exemplos com vestimentas religiosas. Em sociedades muçulmanas, as mulheres


cobrem a cabeça e às vezes o rosto inteiro com um véu e recentemente houve
muita controvérsia por esse costume ter sido proibido na França. Os sikhs – uma
religião da Índia – nunca cortam seus cabelos. Os homens nunca cortam o cabelo e
sempre usam turbantes. Em alguns lugares de trabalho eles não podem fazer isso.
Ou no exército, se eles se alistam. Monges budistas são desencorajados de usar
suas túnicas se estão trabalhando num escritório ou numa escola. Em alguns
lugares mesmo usar uma cruz, se você é cristão, é visto como um pouco agressivo
demais.

Eu acho muito importante permitir que as pessoas sejam leais às suas tradições se
isso não causar grandes problemas à sociedade. Qual é o problema se você usa um
turbante e não corta seu cabelo se está numa escola ou no exército? Há algum
problema? Na verdade, não. Você ainda pode fazer seu trabalho muito bem. Qual o
problema se, como budista, você faz uma oração e uma oferenda antes de comer?
Qual é o problema? Se você usa um véu que cobre seu rosto completamente – isso
pode ser um problema para dirigir, por exemplo, porque sua visão é limitada.
Então você poderia dizer, “Você não pode usar um véu cobrindo o rosto inteiro se
estiver dirigindo.” Mas em outras situações, qual é o problema? Ou se você é uma
mulher, qual é o problema em insistir em ser tratada por médicas e enfermeiras
em um hospital? Há muitas mulheres, mesmo sem religião, que também
prefeririam isso.

Eu acho que na construção de um prédio, por exemplo, você pode levar em


consideração coisas como uma seção para homens e para mulheres, se estiver
numa socidade em que há um número considerável de pessoas que gostariam
disso como parte de seus costumes. E se você está trabalhando com uma
sociedade, considerar quais medidas nós podemos tomar que permitam que as
pessoas sejam leais às suas tradições em situações nas quais isso não causa
problemas para o funcionamento da sociedade.

Em resumo, como o Dalai Lama sempre diz, é muito bom que existam tantas
religiões diferentes no mundo e não só religiões, mas crenças seculares também.
Porque, como no exemplo da comida, se houvesse só um tipo de comida para todo
mundo, isso seria muito chato e não serviria para todos. É o mesmo para crenças: o
que funciona para uma pessoa pode não servir para outra. Há muitas crenças que
podem nos ajudar a ser pessoas mais bondosas, mais atenciosas, mais amorosas,
que podem nos ensinar métodos para viver em harmonia com os outros. E como
Sua Santidade diz, a melhor religião é aquela que funciona para você e te ajuda a
ser uma pessoa mais bondosa. Ou seja: “só porque eu gosto de sorvete de
chocolate, não significa que você tem que gostar de sorvete de chocolate também.”
Combinando o Yoga com a Prática
Budista
Yury Milyutin

Praticar os estilos modernos de hatha yoga, como Ashtanga


vinyasa, Iyengar yoga ou qualquer outro estilo que enfatize a prática
de asanas, pode trazer grandes benefícios à nossa prática budista

 A prática diária de asanas treina a disciplina e faz com que seja mais
fácil começarmos uma prática regular de meditação
 Nosso corpo fica mais forte e flexível, o que faz com que seja mais
fácil meditarmos sentados. Na prática de shamatha, cujo objetivo é um
estado mental tranquilo e estável, a postura é muito importante e a
prática de asanas nos ajuda a mantê-la.
 Se conseguirmos permanecer concentrados durante a prática de
asanas, estaremos desenvolvendo a introspecção, assim como
acontece com a prática de pranayama, que é focada na respiração.
 Shavasana, a postura do cadáver, nos ensina a relaxar - o que é uma
habilidade crucial para quem quer desenvolver shamatha.

Filosoficamente, no entanto, a situação fica um pouco mais complicada,


pois muitas das ideias chaves do yoga e do budismo são definidas de
forma bastante diferente. Se nossa intenção for praticar hatha yoga e
budismo juntos é importante não misturar as visões filosóficas dos dois
sistemas.

Semelhanças entre as Filosofias do Yoga e do Budismo

Existem também algumas semelhanças entre as visões filosóficas do yoga


e do budismo. Ambas as tradições aceitam:

 A existência do karma e do renascimento, e ambas consideram isso um


problema.

 Que nossa forma habitual de perceber a realidade é distorcida


por avidya — a falta de consciência a respeito de como as coisas
realmente são. Isso é o que move o karma e o renascimento.

 Que nossa visão distorcida da realidade faz com que surjam kleshas —
emoções destrutivas como raiva, apego e arrogância.
 Que o caminho para acabarmos com a visão distorcida é através
de prajna — a compreensão do que é a realidade.
 Que para conseguirmos firmar essa compreensão em nossa mente
precisamos de samadhi — concentração.
 Que para alcançarmos o samadhi precisamos antes seguir uma
disciplina ética. No yoga isso é chama de yama (ética universal)
e niyama (ética pessoal), enquanto no budismo é
chamado shila (autodisciplina ética)
 Que treinando a mente dessa maneira, atingimos moksha — liberação
do karma e do renascimento.

As ideias são similares mas generalizá-las e achar que são exatamente a


mesma coisa pode causar muitos mal-entendidos.

Diferenças entre a Filosofia do Yoga e do Budismo

Enquanto os passos descritos acima indicam uma similaridade entre as


duas práticas, os conceitos básicos que estão por trás diferem bastante:

 Os textos do yoga geralmente dizem que a realidade é maya — uma


ilusão que não existe. O budismo não afirma que a realidade
simplesmente não existe, mas sim que nossas projeções sobre a
realidade são irracionais, irrealistas e problemáticas.
 O yoga é um sistema teísta que acredita em um atman (uma alma) e
em Brahma (um Deus criador). Já o Budismo nega a existência de
ambos.
 O estado final de liberação é frequentemente descrito no yoga como a
união entre o atman e o criador Brahma. No budismo, compreender a
realidade e livrar-se de tendências negativas não tem nada a ver com a
alma ou com um ser superior, é simplesmente adquirirmos maestria
sobre nossa própria mente.
 Ahimsa, o princípio da não violência, é compartilhado pelos dois
sistemas. Mas outros aspectos do comportamento ético são entendidos
de maneiras distintas, como é o caso do ascetismo.
 O caminho do yoga é frequentemente descrito como um caminho de
ascetismo (tapas), já o Buda deu forte ênfase ao caminho do meio —
não cairmos nos extremos do hedonismo ou do ascetismo.

Praticar os estilos modernos de yoga certamente pode trazer benefícios a


nossa prática, contanto que estejamos cientes das diferenças entre as
visões filosóficas de cada sistema e não os misturemos, e também
pratiquemos os dois em sessões diferentes.
Palestra pela Paz em homenagem a
Anwar Sadat
O 14º Dalai Lama

Introdução

Quando falo em público, não há necessidade de formalidades. Na verdade,


somos todos seres humanos iguais. Sendo seres humanos, a forma como
nascemos e morremos é, por natureza, sem formalidade alguma. Nós
simplesmente chegamos aqui e depois vamos embora. Portanto, quando
começo minhas palestras, prefiro mencionar a vocês, meus considerados
irmãos e irmãs mais velhos, e considerados irmãos e irmãs mais novos,
que somos todos seres humanos iguais. Somos parte de uma família
humana que tem a força de sete bilhões de pessoas, e cada um de nós
quer uma vida feliz, o que tem muito a ver com uma vida em paz. Todos
não querem ter problemas, e todos têm o direito de alcançar este
objetivo. Eu penso que até mesmo aquelas pessoas que estão muito
envolvidas em criar problemas para o mundo, quando elas acordam no
início do dia, naturalmente há alguma espécie de esperança que “hoje
haverá menos problemas.” Eu acho que nenhuma das sete bilhões de
pessoas acorda pensando, “hoje eu quero ter mais problemas!”

O que importa é que nós somos seres humanos iguais. Como eu sempre
menciono: somos mental, emocional e fisicamente iguais. Especialmente
quando dou palestras, sempre olho para todos vocês, meus
companheiros, seres humanos, sem fazer diferenças. Se eu insistisse,
dizendo: “eu sou budista”, “eu sou tibetano”, ou talvez “eu sou o Dalai
Lama”, ou algum tipo de pessoa especial, isto não faria sentido. Esta
forma de pensar cria uma espécie de barreira. É claro que há algumas
diferenças, como a cor ou a forma do nariz. Mas em um nível mais
profundo, somos emocionalmente iguais e compartilhamos um potencial
igual para ter emoções construtivas e destrutivas. Mentalmente,
intelectualmente, todos têm o mesmo potencial. Então, é melhor que
falemos como seres humanos.

O que é felicidade?

Todos querem uma vida feliz, então, a pergunta é: o que é a felicidade? O


que é uma felicidade realmente duradoura e confiável? Temos que olhar
para isso de forma bem profunda. A felicidade ou a alegria que vem
principalmente através dos órgãos sensoriais – experiências como ver
algo bacana, ouvir algo legal, bons sabores ou cheiros – realmente traz
certo grau de satisfação. Mas o prazer que é baseado nessas experiências
sensoriais é muito superficial. Quando certas facilidades estão
disponíveis, você sente algum tipo de alegria ou felicidade ou prazer, mas
assim que acontece algum tipo de som forte e perturbador, o prazer
acaba. Ou então você vê pessoas buscando por algum tipo de prazer
quando assistem televisão, e sem televisão elas já ficam entediadas
depois de uma hora. Algumas pessoas adoram se divertir e viajar para
diferentes partes do mundo e constantemente fazer a experiência de
novos lugares, culturas, músicas e sabores. Eu acho que isso vem de uma
falta de habilidade de criar paz interior através do treinamento mental.

Entretanto, essas pessoas que realmente vivem um estilo de vida de


eremitas por anos e anos, elas de fato vivenciam a mais feliz das vidas.
Certa vez, em Barcelona, eu conheci um monge católico cujo inglês era
semelhante ao meu. Por isso, eu tive mais coragem de falar com ele! O
organizador me disse que o monge havia passado cinco anos nas
montanhas vivendo uma vida de eremita. Eu lhe perguntei o que ele havia
feito nas montanhas, e ele me disse que havia pensado ou meditado sobre
o amor. Ao mencionar isso, havia uma expressão realmente especial em
seus olhos, indicando que ele realmente desfrutava de paz em sua mente.
Então, isso é um exemplo de paz mental que não depende de experiências
sensoriais, mas através do cultivo de certos valores mais profundos.
Constantemente pensar no amor realmente criou uma tranquilidade
genuína para ele.

Então, agora, quando eu dou palestras, eu sempre enfatizo que o


desenvolvimento material é bem importante para o conforto físico, mas
que os valores materiais nunca realmente proporcionam conforto mental.
Às vezes, quando as pessoas ficam mais ricas, elas se tornam mais
gananciosas e mais estressadas. O resultado é uma pessoa infeliz. Por
isso, para obter uma vida feliz, não confie apenas nos valores materiais.
Os valores materiais são necessários, mas temos que olhar além disso e
com mais seriedade para nossos valores internos. Independente do fato
de termos uma crença religiosa ou não, enquanto formos seres humanos,
a paz interna será essencial.

Paz Mental e Boa Saúde

Alguns cientistas dizem que, de acordo com suas descobertas, demasiado


estresse cria problemas para a pressão sanguínea e muitas outras coisas.
E alguns cientistas da medicina dizem que medo, raiva e ódio constantes
podem realmente corroer nosso sistema imunológico. Então, um dos
fatores mais importantes da boa saúde é paz mental, porque um corpo
saudável e uma mente saudável são intimamente ligados. Falando de
minha própria experiência: dois anos atrás, eu estava em uma espécie de
encontro com a imprensa, e uma pessoa da mídia me perguntou sobre a
minha reencarnação. Eu olhei para ele de forma divertida, tirei meus
óculos e lhe perguntei: “Julgando pela minha cara, será que a minha
reencarnação é urgente ou não?” Ele disse que não havia pressa alguma!

Recentemente, eu estava na Europa e alguns amigos de longa data


compararam minhas fotos de vinte, trinta e até quarenta anos atrás, e
todos disseram que o meu rosto ainda parece jovem. Na minha vida, eu
acho que vocês podem ver que eu realmente passei por períodos difíceis
com muitos problemas, e havia fatores suficientes para criar ansiedade,
depressão e solidão. Mas eu penso que, ainda assim, de modo
comparativo, a minha mente é bastante tranquila. Algumas vezes, eu
perdi a paciência, mas geralmente o meu estado mental é bastante calmo.

Eu também gosto de caçoar dessas jovens mulheres que gastam muito


dinheiro com cosméticos. Primeiro, os maridos delas devem reclamar que
isso sai muito caro! De qualquer forma, a beleza externa é importante,
mas a beleza interna é mais importante. Você pode ter uma cara bonita,
mas uma cara feia é bacana até mesmo sem maquiagem se nela houver
um sorriso genuíno e afetividade. Esta é a real beleza; o valor real está
dentro de nós. As facilidades externas requerem muito dinheiro – lojas e
supermercados cada vez maiores. Mas a paz interna não custa nada!
Pensem sobre esses valores internos e familiarizem-se com eles, e
gradualmente as emoções destrutivas diminuirão. Isso traz paz interna.

Uma atitude mais compassiva ou um senso de cuidado para com o bem


estar dos outros cria a autoconfiança. Quando você tem autoconfiança,
você pode realizar todas as suas ações de forma transparente, verdadeira
e honesta. Isso cria confiança com os outros, e confiança é a base da
amizade. Nós, seres humanos, somos animais sociais que precisam de
amigos. Amigos não necessariamente vêm de poder ou dinheiro, nem
mesmo de educação e conhecimento, mas o fator essencial para a
amizade é confiança. Então, um senso de cuidado e respeito pelas vidas e
pelo bem estar de outras pessoas é a base do diálogo.

Palestra pela Paz em homenagem a Anwar Sadat

Eu tenho que mencionar que estou muito feliz e é uma grande honra dar a
Palestra pela Paz em homenagem a Anwar Sadat. Como presidente, ele
realmente fez passos decisivos e corajosos para criar paz nesta parte do
mundo, e eu era um admirador dele à distância. Hoje, eu encontrei a viúva
dele e eu fiquei tão feliz, foi uma honra tão grande, que eu lhe expressei a
minha admiração por seu falecido marido. Se ele tivesse mantido a
suspeita ou o ódio dentro dele, teria sido muito difícil ter tal coragem.
Uma forma de pensar mais vasta e mais holística que visa interesses a
longo prazo – quando você respeita, fala, aperta a mão de seu inimigo e
olha para as diferenças e semelhanças entre vocês – isso é o que há de
melhor.

Todos querem paz e ninguém quer problemas nem violência, que sempre
criam sofrimento. O pior aspecto da violência é que ela é sempre
imprevisível. Uma vez que ela foi cometida, mesmo se havia uma boa
motivação ou um bom objetivo em mente, o fato de que o método usado
foi violento trará consequências inesperadas. Isso sempre acontece.
Assim sendo, eu sinto que é uma grande honra falar no nome dele, e eu
gostaria de agradecer à universidade e as pessoas responsáveis pelo
evento que me deram esta oportunidade.

Promover a Harmonia Religiosa

Quando dou palestras, eu me considero em primeiro lugar um ser


humano. Independente do fato de sermos religiosos ou não, somos seres
humanos iguais. Baseado nisso, eu falo sobre a paz interna. Em um
segundo nível, eu sou budista, e um dos meus compromissos é promover
a harmonia religiosa. Há duas categorias entre as importantes tradições
religiosas do mundo: há aquelas que acreditam em um criador, e outra
categoria que não possui este conceito. Essas são diferenças
fundamentais. Entre as religiões teístas, há outras diferenças sobre
crenças relacionada a vidas prévias, a vida após a morte, e assim por
diante. Assim sendo, a tradição hindu fundamentalmente tem um criador,
mas também por causa da lei da causalidade, há uma vida após a vida. E
até mesmo entre a cristandade e o islã há algumas pequenas diferenças:
um Deus, o Deus único, a Santíssima Trindade, e assim por diante.

Na antiga tradição hindu, por pelo menos três mil anos houve uma
filosofia sem o conceito de um criador. O janaísmo e o budismo seguem
isto. E nessas tradições sem conceito de um criador, há diferenças no que
diz respeito à existência de uma alma ou um “eu” independente
permanente, ou a não existência de tal entidade permanente e
independente.

Qual o propósito dessas diferentes visões filosóficas? Trata-se de


diferentes abordagens para podermos nos tornar uma pessoa sensível e
compassiva. Por isso, todas as diferentes religiões e tradições trazem a
mesma mensagem de amor, compaixão, tolerância e perdão. Há
problemas e casos nos quais a pessoa desenvolve raiva e, então, há
ensinamentos de perdão e tolerância que podem ser praticados. A
tolerância combate diretamente a raiva e o perdão combate diretamente
o ódio.

Por isso, todas as maiores religiões trazem a mesma mensagem e têm o


mesmo potencial de gerar paz através da mensagem do amor. É óbvio e
lógico que, em última instância, a paz está relacionada com o ódio, a raiva
e a compaixão necessária para superá-los. A paz, até mesmo no nível
familiar ou individual, tem que vir através da paz interior. A fonte da paz
interior é a compaixão e o perdão. Todas as tradições religiosas têm o
mesmo potencial de criar um mundo pacífico, uma família pacífica e um
indivíduo pacífico.

Então, por que será que há filosofias tão diferentes? Há tantas disposições
mentais diferentes entre as pessoas. Para algumas delas, a tradições
religiosas teístas são mais efetivas. É como com diferentes remédios: eles
podem ter diferentes ingredientes, mas todos eles têm o objetivo de curar
doenças. Há diferentes doenças que vêm de diferentes idades e condições
físicas; assim sendo, precisamos de uma variedade de diferentes
remédios. Da mesma forma, os remédios para a paz mental também
precisam de variedade. Assim, todas as maiores tradições religiosas têm o
mesmo potencial e o mesmo objetivo. Por isso, elas são muito relevantes
para todos nós, sete bilhões de seres humanos.

Diferentes Abordagens para Diferentes Disposições Mentais

É bastante claro que dentro do budismo, temos plena fé em Gautama


Buda, mesmo que ele tenha ensinado visões filosóficas diferentes. Por
quê? Porque havia uma vasta lista de distintas disposições mentais e,
portanto, era necessário mostrar diferentes abordagens dentro da mesma
tradição. Há bilhões de pessoas vivendo em diferentes ambientes
geográficos, vivendo tipos de vida bem diferentes. Então, elas têm
diferentes disposições mentais que precisam de diferentes abordagens.
Entender que todas as maiores tradições religiosas trazem a mesma
mensagem de amor, compaixão e perdão, é a base para desenvolver o
respeito mútuo. A partir do momento que há respeito mútuo, é possível
começar a aprender uns dos outros, o que realmente enriquece a sua
própria tradição.

Em minha própria experiência, como resultado de ter encontrado


cristãos, muçulmanos, judeus e hindus, aprendi novas ideias deles que
enriquecem a minha própria prática. Portanto, é possível desenvolver
uma harmonia genuína entre diferentes tradições religiosas baseados na
admiração e no respeito mútuos. Então, o meu segundo compromisso é
promover a harmonia religiosa.

Implementar Valores Morais em Nossas Vidas Diárias

Como mencionei antes, realmente é uma grande honra estar aqui.


Enquanto estamos falando sobre a finado Anwar Sadat, não deveríamos
apenas nos lembrar de sua grandeza e deixar por isso mesmo, mas
deveríamos tentar implementar seus valores em nosso cotidianos. Em seu
espírito aberto ao diálogo, ele demonstrou que, não importa quão difícil a
situação, é muito importante solucionar problemas dialogando.
Geralmente, costumo dizer que o século vinte foi um século de
derramamento de sangue, e o século vinte e um deveria ser um século de
paz. Isso não quer dizer que não haverá mais problemas, porque sempre
haverá problemas. Isso significa que, para criar um século de paz,
precisamos desenvolver um método baseado em meios pacíficos e em
diálogo para poder solucionar nossos problemas.

Antes de chegar aqui eu encontrei com o filho do governador e lhe disse


que muitos dos irmãos e irmãs mais velhos, a minha geração do século
vinte, que já foi embora, nós estamos nos preparando para dizer “bye
bye”! Então, a geração do século vinte e um, as pessoas de quinze a trinta
anos, elas são realmente uma geração do século vinte e um. Nós temos
quase nove décadas que ainda estão por vir neste século e a nova geração
terá que passar o resto de sua vida vivendo nele. Então, vocês têm a
oportunidade e a responsabilidade de criar um mundo novo, melhor,
mais feliz. Isso pode ser feito se for baseado na firme convicção na
unidade da humanidade.

As diferentes fés ou nacionalidades são secundárias e não são muito


importantes. Quando colocamos tanta ênfase sobre essas diferenças de
segundo nível que esquecemos a unidade da humanidade, começam os
problemas. Precisamos inverter a ordem daquilo que pensamos. Primeiro
pensamos na unidade da humanidade. A realidade atual com a ameaça do
aquecimento global e a economia global nos mostra que as fronteiras
nacionais e as diferenças religiosas não são relevantes. Então, a nova
geração deveria pensar mais sobre a humanidade, a unidade de todos os
seres humanos a nível global. Alcançar benefícios a curto prazo por causa
de diferenças de nível secundário e, ao fazê-lo, sacrificar a unidade da
humanidade é um desastre. Crie uma visão na qual este século pode
eventualmente se tornar um século de paz, no qual o mundo inteiro foi
desmilitarizado. É possível, então, por favor, pensem mais seriamente
sobre isso!
Obrigado! Então, agora teremos algumas perguntas.

Pergunta: Sua Santidade, durante a sua turnê de 2011 para


Newark, o senhor recomendou que o sistema educacional
americano incorporasse ensinamentos morais. O senhor
recomendaria uma aula de ética formalizada? Há muitas aulas de
éticas mandatórias no mundo; que problemas o senhor vê em
sugerir um curso de ética formalizado no sistema educacional
americano?

Sua Santidade: Como resultado de minha observação da humanidade,


penso que a educação realmente trouxe um novo mundo maravilhoso. Eu
penso que em todas as partes do mundo, todas as pessoas consideram a
educação muito importante. Atualmente, muitos países e sociedades têm
um padrão muito alto da educação moderna, mas ainda temos problemas
e crises. E até mesmo aquelas pessoas que criam muitos problemas para a
sociedade, no que diz respeito à sua educação, ela é de um padrão muito
alto. No que diz respeito à paz mental, eu tenho amigos com alto nível de
educação, mas como pessoas, eles são muito infelizes. Isto
automaticamente gera uma atitude mental menos saudável, e, por
conseguinte, o matar, mentir, a hipocrisia, a exploração, a opressão e
assim por diante.

Portanto, geralmente, eu digo às pessoas que todas as maiores tradições


religiosas nos ensinam valores mais profundos. É claro que entre as
pessoas que ensinam tais valores, há aquelas que não os praticam com
sinceridade. E eu disse muitas vezes que, às vezes, aqueles que falam em
nome da religião na verdade vivem vidas hipócritas, nas quais eles dizem
coisas gentis, mas fazem algo diferente. Este é um claro sinal de não
terem uma convicção real nos valores internos. Na verdade, gerar uma
real convicção apenas através da fé é muito limitado. Mas como disse o
último papa, a fé e a razão têm que andar juntas.

Eu penso que isso é uma grande verdade. Precisamos obter a razão


através da educação e da consciência. Nossa única esperança é a
educação. Se educarmos as pessoas sobre o calor humano e um senso de
cuidado para com outros, elas chegarão a reconhecer tais qualidades
como a melhor fonte de seu próprio bem-estar e saúde. Problemas na
família e na comunidade acontecem por falta de princípios morais. Então,
precisamos incluir mais ensinamentos sobre princípios morais no campo
da educação, pois o que acontece atualmente não é adequado.

No que diz respeito à mente e às emoções, o pensamento indiano antigo


tem muitas explicações sobre como lidar com emoções destrutivas como
raiva, ódio e medo. Então, em minha própria experiência dos últimos
trinta anos de diálogo com cientistas modernos e educadores, muitos
deles realmente apreciam a quantidade de informação que há nas antigas
tradições indianas, inclusive no budismo. Esses cientistas não apenas
apreciam as informações que há; agora eles até mesmo estão fazendo
pesquisas através de experimentos que mostraram algumas boas
evidências que as confirmam. Então, nos últimos dois anos, nós
examinamos com seriedade como a ética moral, relacionada à mente,
pode ser introduzida no sistema educacional moderno. Precisamos de
uma matéria acadêmica sobre a mente ou aquilo que eu chamo de “mapa
da mente”. Então, os estudantes poderão ver através de suas próprias
experiências, como a raiva destrói a sua paz mental.

Os estudantes apreciam muito a afeição que lhes é oferecida por suas


mães e seus amigos. Desde uma tenra idade, o valor desta afeição está
muito vivo dentro deles. Quando as pessoas crescem, então, às vezes, elas
dizem que não precisam de afeição, que podem fazer tudo sozinhas. Mas
esses valores humanos básicos são um fator biológico e não vêm da
religião. A afeição de uma mãe por seus filhos, algo que também vemos
entre animais, é tremenda. Este é um fator biológico, não vem da religião.
Então, o que é necessário agora, enquanto as crianças ainda forem jovens,
com a experiência da afeição ainda viva dentro delas, precisamos ensinar
a elas que esses valores são muito importantes e que o serão até seus
últimos dias, até a morte. Esses valores são a fonte irrevogável de
felicidade e alegria.

Precisamos usar explicações ou o raciocínio que inclui descobertas


científicas ao invés de confiarmos na religião. Se confiarmos na religião,
então, a abordagem não será universal. Mas já que estamos falando sobre
problemas que enfrentamos universalmente, nosso método de encarar
esses problemas também deveria ser universal. Geralmente, chamo esta
abordagem de “ética secular”. Eu preciso explicar a palavra “secular”, pois
no ocidente parece que ela tem algum tipo de conotação negativa ou
desrespeitosa em relação à religião. Mas no entendimento indiano de
secularismo, isto significa respeito por todas as religiões e também por
não-crentes, sem preferências por esta ou aquela religião em particular.
Quando a Índia ganhou sua independência, esta foi a razão de sua
constituição ter sido baseada em conceitos seculares.

Como a Índia é uma nação de múltiplas fés, não se pode dizer que uma
religião é mais elevada que as outras. Em um nível global, o secularismo é
o único caminho que é aceito universalmente. Portanto, estamos agora
tentando criar um currículo que se adapte ao campo educacional secular.
Estamos trabalhando nisso e talvez daqui a um ano o trabalho esteja
pronto. Mas precisamos de mais estudos com cientistas, filósofos,
educadores e assim por diante, o que já estamos fazendo na Índia.

Uma vez que tivermos completado o currículo, talvez lugares como esta
universidade possam implementar um programa experimental. Uma
escola pode oferecer um programa e observar os resultados após alguns
anos. Se houver resultados positivos aparentes, podemos finalizar o
currículo e expandi-lo para dez escolas, cem escolas, e depois chegar ao
nível estatal. Depois do estado, como mais discussões sérias, talvez isso
possa chegar ao nível federal, e então ao nível das Nações Unidas, até que
o mundo inteiro seja encorajado a incluir algum tipo de educação de ética
moral não baseada na educação, mas no secularismo.

Pergunta: Você sente que todos os seus esforços relacionados ao


diálogo entre as diferentes fés se tornaram mais difíceis nesta
década que passou devido aos interesses do islã radical e à tensão
entre os EUA e o mundo muçulmano? Na década que começou no
dia 11 de setembro de 2001, será que o diálogo chegou a ficar
pelo menos um pouco mais fácil?

Sua Santidade: Não houve quaisquer mudanças significativas; estamos


dialogando há mais de trinta, quarenta anos. Sempre busco ter encontros
entre diferentes fés que são mais do que curtas cerimônias ou rituais nos
quais você troca algumas saudações com um sorriso. Ao invés disso,
prefiro ter algumas discussões mais sérias. Quais são nossas diferenças,
quais as semelhanças, e qual o propósito? E mais importante que isso é
quando praticantes se encontram com praticantes. Eu realmente admiro
os monges católicos. Depois de encontrar o finado Thomas Merton, um
monge trapista, eu aprendi muitas práticas e experiências com ele e
outros monges e freiras cristãos. Uma vez, em Sydney, na Austrália, eu fui
apresentado por um padre cristão, que me descreveu como um bom
cristão! Então, quando eu falei, eu o descrevi como um bom budista! Em
certo sentido, temos a mesma prática, o mesmo potencial. Quando nos
tornamos mais próximos e nos conhecemos de forma mais profunda, o
respeito mútuo e a admiração naturalmente surgiram.

Também fiz esforços especiais para encontrar irmãos e irmãs


muçulmanos. Conflitos como as lutas entre os muçulmanos xiitas e
sunitas, exatamente como entre protestantes e católicos no Norte da
Irlanda, não vêm da religião; na verdade, a causa real é a política. Até
mesmo no passado, os conflitos históricos em nome da religião
aconteceram por causa de interesses econômicos ou luta por poder, mas
eles usam o nome da religião. Então, temos que fazer uma distinção. As
questões políticas deveriam ser resolvidas através de meios políticos ao
invés de meios religiosos. No que diz respeito à religião, não há
justificativa para machucar os outros.

Essas tragédias nos lembram que precisamos fazer um esforço constante,


pois matar em nome da religião realmente é muito triste, é impensável.
Atualmente, até mesmo os budistas em Burma e Sri Lanka estão
envolvidos, com monges budistas destruindo mesquitas e lares
muçulmanos. Isto realmente é muito triste. Em uma ocasião, mencionei
aos meus irmãos e irmãs budistas que, quando eles desenvolvessem
sentimentos negativos em relação à comunidade muçulmana, eles
deveriam pensar na face do Buda. Sem dúvida, o Buda gostaria de
proteger nossos irmãos e irmãs muçulmanos. Então, há principalmente
razões econômicas por detrás desses conflitos, e quando a religião é
envolvida, isso acontece por causa de emoções humanas alteradas.
Quando há demasiada emoção, é fácil sermos manipulados. É muito triste,
mas não há razão para desanimar. Temos que continuar com um esforço
constante e resultados acabarão por vir. Às vezes, eu me sinto um
pouquinho orgulhoso que contribuí para a harmonia entre as religiões.

Quando as pessoas demonstram algum tipo de apreciação ou estão de


acordo com meus esforços ou pensamentos, isso me encoraja ainda mais.
Quando o Prêmio Nobel foi anunciado, eu imediatamente respondi que
sou um simples monge budista, não mais, não menos. Mas este foi um tipo
de reconhecimento por meus esforços para promover a paz mundial e
uma humanidade melhor.

Penso que há mais que quinze mil irmãos e irmãs aqui, e se vocês não
sentirem que é necessário olhar seriamente para essas questões, não há
problema. Mas se vocês tiverem algum interesse e quiserem se envolver
mais, então, pensem mais sobre seus próprios valores internos.
Pratiquem-nos primeiro em um nível de conhecimento, de ter uma
simples atenção em relação a esses valores. Depois, busquem
familiarizar-se com esses valores, então, eles se tornarão algo que está
vivo dentro de vocês. Depois, implementem os valores e eles se tornarão
parte de seus cotidianos, e vocês receberão reais benefícios. Portanto,
pensem mais! Obrigado!
Budismo e Islã

O Budismo do Ponto de Vista do Islã


Dr. Alexander Berzin

Buda Não É um Deus Onipotente

Shakyamuni, o fundador do budismo há dois mil e quinhentos anos, era


príncipe da pequena cidade-estado de Kapilavastu, na atual fronteira da
India Setentrional e Nepal. Depois de ver o sofrimento físico e mental dos
seus súbditos, Shakyamuni renunciou a sua vida real e passou muitos
anos em meditação, procurando a forma de todos os seres se tornarem
liberados dos seus problemas e alcançarem a felicidade duradoura. Como
resultado da sua intensa compaixão pelos outros e da sua profunda
compreensão, foi capaz de superar todas as suas falhas, limitações e
problemas, e de realizar todos os seus potenciais, transformando-se
assim num Buda. Um Buda não é um Deus onipotente mas é, literalmente,
alguém que está "totalmente desperto"; deste modo, pode ser da maior
ajuda aos outros. Assim, o Buda Shakyamuni passou o resto da sua vida
ensinando aos outros as técnicas que ele tinha realizado para o despertar,
por forma a que eles próprios também se pudessem tornar Budas
completamente iluminados.

Referências a Buda no Quran [Alcorão]

Hamid Abdul Qadir, erudito dos meados do século XX, no seu Buda, O
Grande: Sua Vida e Filosofia (Árabe: Budha al-Akbar Hayatoh wa
Falsaftoh), postula que o Profeta Dhu'l-Kifl, significando "o de Kifl",
mencionado duas vezes no Quran (Al-Anbiya 85 eSad 48) como tolerante
e bondoso, se refere a Buda Shakyamuni. Embora a maioria dos eruditos
identifiquem Dhu'l-Kifl como o Profeta Ezekiel, Qadir explica que "Kifl" é
a forma arabizada de Kapila, diminutivo de Kapilavastu. Ele propõe
também que a menção alcorânica da figueira (At-Tin 1-5) se refere
também a Buda, visto que alcançou a iluminação debaixo de uma. Alguns
eruditos aceitam esta teoria e, como suporte a esta posição, salientam que
al-Biruni, o historiador muçulmano persa do século XI da India, se referiu
a Buda como um Profeta. Outros ignoram esta última peça de prova e
explicam que al-Biruni estava apenas querendo dizer que as pessoas na
India consideravam Buda como um profeta.

Alguns eruditos associam o profetizado futuro Buda Maitreya, O Que Ama


ou O Bondoso, com o Profeta Maomé, enquanto servo do Bondoso.
Embora as verdades que Buda compreendeu debaixo da figueira não
sejam descritas como revelações, alguns grandes mestres budistas
posteriores receberam revelações de textos sagrados, tal como Asanga, na
India, no século IV, [recebeu] diretamente de Maitreya, em Tushita, O Céu
Cheio de Alegria.

Budistas como Povo do Livro

A aquisição de Buda e seus ensinamentos de técnicas para os outros


alcançarem o mesmo são conhecidos em sânscrito como "Dharma",
literalmente "medidas preventivas". São medidas a tomar e métodos a
seguir para evitarmos o sofrimento a nós próprios e aos outros.
Começando no século II a.C., os discursos de Buda sobre tal, que tinham
sido transmitidos oralmente até então, passaram a ser escritos sob a
forma de textos sagrados. No atual Uzbequistão e no norte do
Afeganistão, onde os árabes encontraram pela primeira vez os budistas,
as versões mais extensamente disponíveis destes textos estavam
traduzidas em turco antigo e sogdiano. Nestas línguas, a
palavra Dharma foi traduzida como nom, uma palavra extraída do grego
significando "lei".

O Quran [ Alcorão] ensinou a tolerância às religiões do "povo do Livro",


que se referia ao cristianismo e ao judaismo. Quando os árabes se
encontraram com o budismo, embora os seus seguidores não fossem
estritamente "povo do Livro", foram-lhes concedidos no entanto o mesmo
estatuto e direitos como os dos cristãos e judeus sob seu domínio. Tinham
a permissão de seguir sua religião, desde que entre eles os leigos
pagassem um imposto. Assim, o conceito legal de "povo do Livro" parece
ter sido alargado para incluir aqueles que seguiam um conjunto de
princípios éticos de autoridade mais elevada.

Os Básicos Ensinamentos Budistas


As Quatro Verdades Nobres
O mais básico ensinamento dhármico de Buda é conhecido como as
"quatro verdades nobres", os quatro fatos verificados como verdadeiros
pelos seres altamente realizados. Ele viu que todos enfrentam (1)
verdadeiros problemas. Embora haja muitas alegrias, não se pode negar
que vida é difícil. A doença, o envelhecimento e a morte, em nós e nos
nossos queridos, frustrações na vida, desapontamentos nos nossos
relacionamentos com os outros e assim por diante são bastante difíceis.
Mas as pessoas tornam estas situações ainda mais dolorosas por causa
das suas attitudes, baseadas na confusão.
(2) A verdadeira causa dos problemas é a falta de apercebimento ou a
ignorância da realidade. Por exemplo, todas as pessoas pensam que elas
são o centro do universo. Quando, enquanto pequenas crianças, elas
fecham seus olhos, parece que todos os outros deixam de existir. Por
causa desta aparência enganadora, sentem que são as únicas que são
importantes e que devem ter sempre as suas vontades satisfeitas. Como
resultado desta atitude tão auto-centrada, auto-importante, criam
argumentos, lutas e até guerras. Mas se fosse verdade que eram o centro
do universo, então todos deveriam concordar. Ninguém, porém,
concordaria, porque todos sentem que são o centro do universo. Não
podem estar todos certos.

Contudo, é possível conseguir um (3) verdadeiro acabar de todos os


problemas de modo a nunca mais experienciarmos a infelicidade. Isto
acontecerá se adotarmos (4) um verdadeiro interior caminho mental com
o qual possamos compreender a realidade. Ou seja, se obtivermos a
completa compreensão do fato de que somos todos interconectados e
interdependentes, e de que ninguém é o centro do universo, então será
possível que as pessoas encontrem soluções para os seus problemas de
modo a poderem viver juntas, em paz e harmonia. Assim, a abordagem
fundamental do budismo é científica e racional. Para eliminar problemas,
devemos identificar e remover as suas causas. Tudo segue as leis da causa
e efeito.

Vazio e Interdependência
Então, os pontos principais dos ensinamentos de Buda são a visão da
realidade, isto é, da interconectividade de tudo e de todos e
consequentemente o cultivo do amor e compaixão iguais para com todos
os seres. O princípio supremo que une tudo é conhecido como o "vazio",
que está para além de todos os nomes e conceitos. O vazio refere-se ao
fato de que nada existe de um modo impossível ou fantasiado, como
verdadeiramente independente de todas as outras coisas, pois que todos
os seres e coisas surgem interdependentes uns dos outros. Como todos os
seres vivos e o ambiente são interdependentes, devemos ter amor,
interesse e compaixão por todos os outros e ter a responsabilidade de
ajudar ativamente. Para permanecer focalizado nestes dois aspectos,
vazio e compaixão, conhecidos como sabedoria e método, precisamos de
uma concentração perfeita e de uma firme base em auto-disciplina ética.
Buda ensinou muitas técnicas para o treinamento de todas estas áreas.

Ética e Karma
Em especial, Buda enfatizou a conduta de uma vida ética com uma estrita
moral. Disse que tentássemos ajudar os outros e, se isso não fosse
possível, pelo menos que não lhes fizéssemos mal. Explicitou a base da
ética de acordo com os princípios científicos do karma, ou causa e efeito
comportamentais. "Karma" não significa destino, mas se refere aos
impulsos que motivam e acompanham as nossas ações físicas, verbais e
mentais. Os impulsos de agir positiva ou negativamente surgem devido ao
condicionamento que vem de trás e levam-nos a situações nas quais
iremos experienciar um certo nível de felicidade ou de sofrimento. Estas
situações ocorrerão nesta vida ou em vidas futuras.

Renascimento
Tal como em outras religiões indianas, o budismo afirma o renascimento
ou reencarnação. O continuum mental de um indivíduo, com seus
instintos, talentos e assim por diante, vem de vidas passadas e continua
em vidas futuras. Dependendo das nossas ações e das tendências por elas
acumuladas, um indivíduo pode renascer num céu ou num inferno, ou
como um animal, um ser humano, ou qualquer um de uma variedade de
fantasmas ou espíritos. Todos os seres experienciam o renascimento
incontrolável devido à força das suas atitudes perturbadoras, tais como o
apego, a raiva e a ingenuidade, e aos impulsos kármicos, por elas
despoletados, de agir compulsivamente. Se seguirmos os impulsos
negativos que surgem na nossa mente devido a hábitos comportamentais
passados, e se agirmos destrutivamente, experienciaremos sofrimento e
infelicidade como resultado. Se, por outro lado, praticarmos ações
construtivas, experienciaremos felicidade. Assim, a felicidade ou
infelicidade de cada um de nós não é uma recompensa ou uma punição,
mas são criadas pelas nossas anteriores ações de acordo com as leis de
causa e efeito comportamentais.

A base da ética budista é a abstenção das dez ações especialmente


destrutivas. Estas são os atos físicos de matar, roubar e impróprio
comportamento sexual; os atos verbais de mentir, falar para dividir, usar
linguagem áspera e cruel e falar por falar; e os atos mentais de
pensamento cobiçoso, com malícia ou distorcido e antagónico, com o qual
negamos o valor de tudo o que é positivo. Buda não ensinou um código
legal semelhante à Sharia, segundo o qual poderiamos determinar
punições para atos negativos. Quer os seres humanos recompensem ou
castiguem os que são destrutivos, aqueles que agem negativamente ainda
experienciarão os dolorosos resultados das suas ações.

Meditação e Práticas Devocionais


Buda viu que não só somos todos iguais na nossa capacidade de superar
todos os problemas e nos transformarmos em Budas, como também todas
as pessoas são indivíduos com preferências, interesses e talentos
diversos. Respeitando estas diversidades, ele ensinou muitos métodos
diferentes para trabalharmos em nós próprios tendo em vista a
superação das nossas limitações e a realização das nossas
potencialidades. Estes incluem o estudo, a prática devocional tal como a
prostração três vezes antes das preces, generosas oferendas aos pobres e
aos devotados à vida espiritual, a repetida recitação dos nomes de Buda e
de sílabas sagradas (mantras) contadas em “missangas” de rosários, a
peregrinação a lugares sagrados e a circumambulação de monumentos
sagrados, e especialmente a meditação. A meditação significa a
acumulação de um hábito benéfico e é realizada através da repetida
criação de atitudes positivas, como o amor, paciência, atenção,
concentração e visão da realidade, e depois a prática de vermos com elas
as situações da nossa vida pessoal.

Além disso, Buda aconselhava a não acreditarem nas suas palavras


apenas por terem fé nele, mas que testassem tudo por si próprios como se
estivessem comprando ouro. Só se verificassem, por experiência própria,
algo de benéfico nos seus ensinamentos é que deveriam adotar isso nas
suas vidas. Não há necessidade de mudar de cultura nem de religião, disse
Buda. Qualquer pessoa que visse algo de útil nos seus ensinamentos era
bem-vindo a aplicá-los.

No budismo não há horas fixas para as orações nem serviços religiosos


conduzidos por clérigos para pessoas leigas, e nem há Sabbath. As
pessoas podem rezar a qualquer hora e em qualquer lugar. No entanto, a
oração e a meditação são frequentemente feitas em templos budistas ou
em frente de altares nas nossas casas. Normalmente há estátuas e
pinturas de Budas e Bodhisattvas, aqueles que estão totalmente
focalizados na ajuda dos outros e em se tornarem Budas. As pessoas não
idolatram nem rezam a estas estátuas, mas usam-nas como ajuda no
enfoque da sua atenção nos grandes seres que elas representam. Como os
Budas e Bodhisattvas não são deuses onipotentes, o objetivo da oração é
o de pedir inspiração a estas figuras e a sua força orientadora para o
cumprimento dos nossos bons propósitos. Contudo, as pessoas simples
apenas pedem que os seus desejos lhes sejam concedidos. Como sinal de
respeito por aquilo que os Budas alcançaram, as pessoas oferecem
incenso, velas, tigelas de água e de comida, que colocam em frente às
estátuas e pinturas.

Dieta e o Evitar do Álcool


No budismo também não há leis dietéticas fixas. Os budistas são
encorajados a serem vegetarianos tanto quanto possível, mas mesmo
comendo apenas vegetais, em qualquer forma de agricultura os insetos
são inevitavelmente dizimados. Tentamos, então, minimizar o dano
causado aos animais e insetos pela nossa necessidade de comer. Às vezes,
por exemplo, pode haver necessidade de se ter de comer carne por
motivos de saúde, para não ofender o nosso anfitrião ou quando nada
mais houver disponível como fonte de alimento. Nestes casos, sentimos
gratitude pelo animal que perdeu a sua vida por nossa causa e oramos
para que tenham um renascimento melhor.

Buda também aconselhou seus seguidores a não beberem nem sequer


uma gota de álcool. O treino budista visa o desenvolvimento da atenção,
disciplina e auto-controlo. Tudo isso é perdido quando bebemos álcool.
Porém, nem todos os budistas seguem o conselho de Buda.

Tradição Monástica
O budismo tem uma tradição monástica e uma tradição leiga. Há monges
e monjas que mantêm centenas de votos, incluindo o celibato total.
Raspam as suas cabeças, vestem mantos especiais e vivem em
comunidades monásticas. Devotam as suas vidas ao estudo, meditação,
oração e a cerimónias para o benefício da comunidade leiga. As pessoas
leigas, por sua vez, suportam os monásticos oferecendo comida
diretamente aos mosteiros ou aos monges que vão coletar esmolas às
suas casas todas as manhãs .

Igualdade
Embora, na época de Buda, a sociedade indiana, hindu, estivesse
organizada em termos de castas, com alguns grupos de baixo estatuto
sendo até considerados intocáveis, Buda declarou que eram todos iguais
na sua comunidade monástica. Assim, Buda aboliu as diferenças de castas
para os que deixaram a sociedade para viverem em mosteiros e
conventos a fim de devotarem as suas vidas à prática espiritual. A
hierarquia nas instituições monásticas era baseada no respeito por
aqueles que tinham sido ordenados e mantido os votos há mais tempo.
Um jovem ordenado antes de alguém mais velho ficaria sentado à sua
frente nas assembleias de oração, e a comida e o chá ser-lhe-ia servido
primeiro. De acordo com o costume asiático, quando homens e mulheres
se reuniam em assembleias religiosas, sentavam-se separados, com os
homens à frente.
As Guerras Santas no Budismo e no
Islã
Dr. Alexander Berzin

Frequentemente, quando as pessoas pensam no conceito muçulmano da jihad


ou guerra santa, assocíam-no à conotação negativa de uma campanha
moralista de destruição vingativa em nome de Deus para outros converter
através da força. Podem admitir que o cristianismo teve um equivalente com as
cruzadas, mas geralmente não vêem o budismo como tendo qualquer coisa
semelhante. De fato, dizem que o budismo é uma religião de paz e não tem a
expressão técnica de guerra santa. Contudo, um exame cuidado dos textos
budistas, particularmente da literatura do Tantra de Kalachakra, revela níveis
externos e internos de batalhas que poderiam facilmente ser denominados de
“guerras santas”. Um estudo imparcial do islamismo revela o mesmo. Em
ambas as religiões, os líderes podem explorar as dimensões externas da
guerra santa para vantagens políticas, econômicas ou pessoais, usando-as
para inflamar as suas tropas para a batalha. Os exemplos históricos a respeito
do islamismo são bem conhecidos; mas não devemos ser ingénuos sobre o
budismo e pensar que esteve imune a este fenômeno. Não obstante, em ambas
as religiões, a ênfase principal está na batalha espiritual interna contra a nossa
própria ignorância e atitudes destrutivas.

Imageria Militar no Budismo

O Buda Shakyamuni nasceu numa guerreira casta indiana e frequentemente usou


imageria militar para descrever a viagem espiritual. Ele era O Triunfante que
derrotou as forças demoníacas (mara) do não-apercebimento, das visões
distorcidas, das emoções perturbadoras e do comportamento cármico impulsivo.
Shantideva, o mestre budista indiano do século VIII d.C. usou repetidamente a
metáfora da guerra em Engajando no Comportamento do Bodhisattva (Guia do
Estilo de Vida do Bodissatva): os verdadeiros inimigos a derrotar são as emoções e
as atitudes perturbadoras que se encontram escondidas na mente. Os tibetanos
traduzem o termo sânscrito arhat, um ser liberado, como o destruidor do inimigo,
alguém que destruiu os inimigos internos. Destes exemplos, pareceria que no
budismo a chamada para uma “guerra santa” seria simplesmente uma questão
espiritual interna. O Tantra de Kalachakra, contudo, revela uma dimensão externa
adicional.
A Lenda de Shambhala

De acordo com a tradição, em 880 a.C., em Andhra, no sul da India, Buda ensinou
o Tantra de Kalachakra a Suchandra, o visitante Rei de Shambhala e ao seu séquito.
O Rei Suchandra levou os ensinamentos para o seu reino nórdico, onde
floresceram a partir dessa altura. Shambhala é um reino humano e não uma pura
terra budista, onde todas as circunstâncias são conducentes à prática de
Kalachakra. Embora uma posição real na terra a possa representar, Sua Santidade
o XIV Dalai Lama explica que Shambhala existe simplesmente como um reino
espiritual. Apesar da literatura tradicional descrever a viagem física até lá, a única
forma no entanto de a alcançar é pela prática intensa da meditação de Kalachakra.

Em 176 a.C., sete gerações de reis após Suchandra, o Rei Manjushri Yashas reuniu
os líderes religiosos de Shambhala, especificamente os sábios brâmanes, a fim de
fazer uma profecia e de lhes prevenir: daqui a oitocentos anos, em 624 d.C., uma
religião não índica surgirá em Meca. Devido a uma falta de unidade entre os povos
dos brâmanes e à negligência do correto seguimento dos preceitos das suas
escrituras védicas, muitos irão aceitar essa religião, no futuro distante, quando os
seus líderes ameaçarem uma invasão. Para evitar esse perigo, Manjushri Yashas
uniu o povo de Shambhala em uma única “casta-vajra” conferindo-lhe o
empoderamento de Kalachakra. Pelo seu ato, o rei tornou-se o Primeiro Kalki – o
Primeiro Possessor da Casta. Ele compôs então O Tantra de Kalachakra Abreviado,
que é a versão presentemente existente do Tantra de Kalachakra.

Os Invasores Não-Índicos

Como a fundação do islamismo data de 622 d.C., dois anos antes da data predita em
Kalachakra, a maioria dos eruditos identifica a religião não-índica com essa fé. As
descrições dessa religião em outras partes dos textos de Kalachakra, como o abate
de gado ao recitar o nome do seu deus, a circuncisão, mulheres veladas e preces
[feitas com a orientação do crente] em direção à sua terra santa, cinco vezes por
dia, reforçam a sua conclusão.

Aqui, o termo sânscrito para não-índico é mleccha (Tib. lalo), significando alguém
que fala numa língua não-sânscrita incompreensível. Tanto os hindus como os
budistas aplicaram esse termo a todos os estrangeiros que invadiram o norte da
India, começando com os macedónios e os gregos na época de Alexandre, o Grande.
O outro termo sânscrito principal usado é tayi, que deriva do termo persa para os
árabes, usado, por exemplo, em referência aos árabes que invadiram o Irã em
meados do século VII d.C..

O Primeiro Kalki descreveu adicionalmente a religião não-índica do futuro como


tendo uma linha de oito grandes professores: Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus,
Mani, Maomé e Mahdi. Maomé virá a Bagdá na terra de Meca. Esta passagem ajuda
a identificar os invasores dentro da comunidade islâmica.

 Maomé viveu entre 570 e 632 d.C. na Arábia. Bagdá, contudo, foi construída somente
em 762 d.C. como a capital do Califado Abássida árabe (750 – 1258 d.C.).
 Mani foi um persa do século III que fundou uma religião eclética, maniqueísmo, que tal
como o zoroastrismo, a religião iraniana mais antiga, enfatizava uma batalha entre as
forças do bem e do mal. Dentro do islã, Mani teria sido aceite talvez como um profeta –
embora não seja claro que ele o tivesse alguma vez sido – somente pela herética seita
islâmica maniqueísta, que se encontrava entre alguns oficiais no início da corte
Abássida em Bagdá. Os califas abássidas perseguiram severamente os seus seguidores.
 Eruditos budistas do atual Afeganistão e do subcontinente indiano trabalharam em
Bagdá durante a última parte do século VIII d.C., traduzindo textos sânscritos para o
árabe.
 Mahdi será um futuro soberano (iman), descendente de Maomé, que irá conduzir os
fiéis a Jerusalem, restaurar a lei e a ordem alcorânica e unir os seguidores do islamismo
num único estado político antes do apocalípse do fim do mundo. Ele é o equivalente
islâmico de um messías. O conceito de Mahdi tornou-se proeminente somente durante
o período inicial Abássida, com três reivindicadores ao título: um califa, um rival em
Meca e um mártir, em cujo nome foi conduzida uma rebelião anti-Abássida. Contudo, o
conceito de Mahdi como um messias não apareceu até ao final do século IX d.C..
 A lista dos profetas dos xiítas ismaelitas é a mesma que se encontra em Kalachakra,
apenas menos Mani. Os ismaelitas são a única seita islâmica que considera Mahdi como
um profeta.
 A seita xiíta ismaelita era a seita oficial do islamismo seguido em Multan (atualmente
Sindh setentrional, no Paquistão), durante a segunda metade do século X. Multan era
um aliado do Império Fatímida Ismaelita centrado no Egito e que desafiava os
abássidas na supremacia do mundo islâmico.

Desta evidência, podemos postular que a descrição Kalachakra dos invasores não-
índicos foi baseada nos ismaelitas de Multan nos finais do século X d.C., misturada
com alguns aspectos dos muçulmanos maniqueítas dos finais do século VIII. Os
compiladores desta descrição teriam sido muito provavelmente mestres budistas
vivendo sob o regime Shahi hindu, no Afeganistão Oriental e Oddiyana (Swat
Valley, no atual noroeste do Paquistão). Os mosteiros budistas na região de Cabul,
do Afeganistão, tal como Subahar, tinham padrões arquiteturais semelhantes
àqueles da mandala de Kalachakra. Oddiyana foi uma das regiões principais em
que o tantra budista se desenvolveu. Além disso, Oddiyana tinha contato próximo
com Cachemira, onde floresceu o tantra budista e hindu Shaivite. Uma importante
rota de peregrinação budista ligava os dois. Assim, devemos examinar as relações
budisto-muçulmanas no Afeganistão Oriental, Oddiyana, e Cachemira, durante o
período Abássida, para compreendermos o contexto dos seus ensinamentos na
história e guerras santas.

A Profecia de uma Guerra Apocalíptica

O Primeiro Kalki predisse também que os seguidores da religião não-índica virão


algum dia governar a India. Da sua capital em Deli, o seu rei Krinmati irá tentar
conquistar Shambhala em 2424 d.C.. Os comentários sugerem que Krinmati será
reconhecido como o messias Mahdi. O vigésimo quinto Kalki, Raudrachakrin, irá
então invadir a India e derrotar os não-índicos numa grande guerra. A sua vitória
irá marcar o fim do kaliyuga – “a idade das disputas”, durante a qual a prática do
Dharma irá degenerar. Depois, uma nova era dourada seguirá, durante a qual os
ensinamentos irão florescer, especialmente os de Kalachakra.
A ideia de uma guerra entre as forças do bem e do mal, terminando com uma
batalha apocalíptica liderada por um messias, apareceu primeiro no zoroastrismo,
fundado no século VI a.C., várias décadas antes do Buda ter nascido. Incorporou-se
no judaismo, algures entre o século II a.C. e o século II d.C.. Subsequentemente,
entrou no cristianismo inicial e no maniqueísmo, e mais tarde no islã.

Uma variação do tema apocalíptico também apareceu no hinduismo, em Vishnu


Purana, datado aproximadamente do século IV d.C.. Relata que no fim do kaliyuga,
Vishnu irá aparecer na sua encarnação final como Kalki, nascendo na vila de
Shambhala como filho do brâmane Vishnu Yashas. Ele irá derrotar os não-índicos
da época, que seguem um caminho de destruição, e tornar a despertar as mentes
das pessoas. Depois, de acordo com o conceito indiano do tempo cíclico, uma nova
era dourada irá seguir-se, em vez de um julgamento do fim do mundo como nas
versões não-índicas do tema. É difícil estabelecer se a estória de Vishnu
Purana derivou de influências estrangeiras e foi adaptada à mentalidade indiana,
ou se surgiu independentemente.

De acordo com os meios hábeis de ensinar do Buda, usando termos e conceitos


familiares às suas audiências, o Tantra de Kalachakra também usa os nomes e
imagens de Vishnu Purana. Afinal, a sua audiência era principalmente brâmanes
educados. Os nomes não só incluem Shambhala, Kalki, o kaliyuga, e uma variante
de Vishnu Yashas, Manjushri Yashas, como também o mesmo termo mleccha para
os não-índicos obcecados na destruição. Na versão Kalachakra, contudo, a guerra
tem um significado simbólico.

O Significado Simbólico da Guerra

Em O Tantra de Kalachakra Abreviado, Manjushri Yashas explica que a luta com o


povo não-índico de Meca não é uma guerra real, visto que a batalha real é dentro
do corpo. Kedrub Je, o comentador Gelug do século XV d.C., pormenoriza que as
palavras de Manjushri Yashas não sugerem uma campanha real para matar os
seguidores da religião não-índica. A intenção do Primeiro Kalki ao descrever os
detalhes da guerra era dar uma metáfora para a batalha interna da profunda bem-
aventurada consciência da vacuidade contra o não-apercebimento e o
comportamento destrutivo.

Manjushri Yashas enumera claramente o simbolismo oculto. Raudrachakrin


representa a “mente-vajra”, ou seja, a mente mais sutil de luz clara. Shambhala
representa o estado de grande bem-aventurança no qual a mente-vajra habita. Ser-
se um Kalki significa que a mente-vajra tem o nível perfeito de apercebimento
profundo, nomeadamente, o surgimento simultâneo da vacuidade e da bem-
aventurança. Os dois generais de Raudrachakrin, Rudra e Hanuman, representam
os dois tipos de suporte do apercebimento profundo, o dos pratyekabuddhas e dos
shravakas. Os doze deuses hindus que ajudam a ganhar a guerra representam a
cessação dos doze elos do surgimento dependente e dos doze movimentos diários
das respirações cármicas. As ligações e os movimentos descrevem o mecanismo
que perpetua o samsara. As quatro divisões do exército de Raudrachakrin
representam os níveis mais puros das quatro atitudes imensuráveis do amor, da
compaixão, da alegria e da equalidade. As forças não-índicas, que Raudrachakrin e
as divisões do seu exército derrotam, representam as mentes de forças cármicas
negativas, apoiadas pelo ódio, pela malícia, pelo ressentimento e pelo preconceito.
A vitória sobre elas é a realização do caminho para a liberação e a iluminação.

O Método Didático Budista

Apesar das negações textuais da chamada para uma efetiva guerra santa, a
implicação aqui que o islã é uma religião cruel, caracterizada pelo ódio, pela
malícia e pelo comportamento destrutivo, pode facilmente ser usada como
evidência para suportar que o budismo é anti-muçulmano. Embora alguns budistas
do passado possam de fato ter tido este preconceito e alguns budistas de hoje
possam, do mesmo modo, manter perspectivas sectárias, podemos extrair uma
conclusão diferente se também refletirmos num dos métodos didáticos do
budismo Mahayana.

Por exemplo, os textos Mahayana apresentam certas perspectivas como sendo


características do budismo Hinayana, tal como egoisticamente trabalhar apenas
para a nossa liberação sem consideração na ajudar a outros. Afinal, o objetivo
explícito dos praticantes Hinayana é a auto-liberação e não a iluminação, que tem
por objetico beneficiar todos. Embora tal descrição Hinayana tenha conduzido a
preconceitos, um estudo objetivo erudito das escolas Hinayana, tais como
Theravada, revela um papel proeminente da meditação no amor e na compaixão.
Poderíamos concluir que Mahayana era simplesmente ignorante dos verdadeiros
ensinamentos Hinayana. Alternativamente, poderíamos reconhecer que Mahayana
está aqui a usar o método da lógica budista de levar argumentos às suas conclusões
absurdas a fim de ajudar as pessoas a evitarem posições extremistas. A intenção
deste método prasangika é aconselhar os praticantes a evitarem o extremo do
egoísmo.

A mesma análise aplica-se às apresentações Mahayana das seis escolas medievais


de filosofia jain e hindu. Aplica-se também a como cada uma das tradições de
budismo tibetano apresenta as perspectivas das outras e as de Bon, a tradição
tibetana nativa.Nenhuma destas apresentações dá uma imagem exata. Cada uma
exagera e distorce certas características das outras para ilustrar vários pontos. O
mesmo é verdade relativamente às afirmações de Kalachakra sobre a crueldade do
islamismo e sua possível ameaça. Embora professores budistas possam afirmar
que o uso do islamismo e deste método prasangika para ilustrar o perigo spiritual
é um meio hábil, poderíamos também argumentar que é brutalmente carente de
diplomacia, especialmente nos tempos modernos.

No entanto, o uso do islamismo, para representar forças ameaçadoras destrutivas,


é compreensível quando examinado dentro do contexto do início do período
abássida, na região Cabul do Afeganistão Oriental.

Relações Budisto-Islâmicas durante o Período Abássida

No início do período, os abássidas dominavam a Báctria (Afeganistão setentrional),


permitindo que os budistas, os hindus e os zoroastrianos locais mantivessem as
suas religiões mediante pagamento de um imposto. No entanto, muitos aceitaram
voluntariamente o islamismo, especialmente entre os latifundiários e as educadas
classes urbanas superiores. Sua elevada cultura era mais acessível do que a deles e
evitariam de pagar o pesado imposto. Os shahis turcomanos, aliados com os
tibetanos, governavam Cabul, onde o budismo e o hinduismo estavam florescendo.
Os regentes e os líderes espirituais budistas poderiam facilmente ter-se
preocupado com o mesmo fenômeno de conversão por conveniência, que fosse lá
acontecer.

Os shahis turcomanos dominaram a região até 870 d.C., perdendo o domínio dela
apenas entre 815 e 819. Durante esses quatro anos, o califa abássida al-Ma'mun
invadiu Cabul e forçou o shah regente a submeter-se a ele e a aceitar o islamismo.
Para manifestar a sua submissão, o shah de Cabul deu ao califa, como oferta, uma
estátua de ouro do Buda, do mosteiro de Subahar. Como um sinal do triunfo do
islão, o califa al-Ma'mun enviou para Meca a enorme estátua, com o seu trono de
prata e coroa engastada de jóias, expondo-a no Kaaba durante dois anos. Ao fazê-
lo, o califa estava demonstrando a sua autoridade para governar todo o mundo
islâmico, após ter vencido o seu irmão numa guerra civil. Contudo, ele não forçou
os budistas de Cabul a converterem-se, nem destruiu os mosteiros. Ele nem sequer
destruiu, como ídolo [que era], a estátua do Buda que o shah de Cabul lhe tinha
oferecido, mas em vez disso enviou-a para Meca como fruto do saque. Após a
retirada do exército abássida para lutar contra movimentos pró-autonomia
noutras partes do seu império, os mosteiros budistas rapidamente se recuperaram.

O período seguinte, em que a região de Cabul ficou sob o regime islâmico, foi
também curto, entre 870 e 879 d.C.. Foi conquistada pelos regentes safárides, de
um estado militar autônomo, recordados pela sua crueldade e destruição de
culturas locais. Os conquistadores enviaram ao califa abássida muitos “ídolos”
budistas como troféus de guerra. Quando os shahis hindus, sucessores dos shahis
turcomanos, retomaram a região, o budismo e os mosteiros recuperaram uma vez
mais o seu anterior esplendor.

Os ghaznávidas turcomanos conquistaram o Afeganistão oriental aos shahis


hindus, em 976 d.C., mas não destruiram os mosteiros budistas. Como vassalos dos
abássidas, os ghaznávidas também eram seguidores estritos do islão sunita.
Embora tolerassem o budismo e o hinduismo no Afeganistão oriental, o seu
segundo regente, Mahmud de Ghazni, lançou uma campanha contra os rivais
abássidas, o estado ismaelita de Multan. Mahmud conquistou Multan em 1008 d.C.,
afugentando os shahis hindus de Gandhara e Oddiyana pelo caminho. Os shahis
hindus tinham-se aliado com Multan. Onde quer que tenha conquistado, Mahmud
sacou a riqueza dos templos hindus e dos mosteiros budistas, e consolidou o seu
poder.

Depois desta vitória em Multan, e motivado indubitavelmente pela avidez por mais
território e riqueza, Mahmud impeliu a sua invasão mais para o oriente.
Conquistou o atual Punjab indiano, conhecido naquela época como “Deli”. No
entanto, quando as tropas ghaznávidas empurraram para o norte, de Deli para as
montanhas de Caxemira, perseguindo o remanescente dos shahis hindus, em 1015
ou em 1021, dependendo das fontes que usamos, foram derrotadas supostamente
pelo uso de mantras. Este foi o primeiro ataque em Caxemira tentado por um
exército muçulmano. A descrição Kalachakra das futuras invasões e derrotas das
forças não-índicas em Deli é muito provavelmente, então, uma mescla da ameaça
multanesa aos abássidas e ghaznávidas e da ameaça de Ghaznavid a Caxemira.

Correlação entre a Profecia e a História

As profecias históricas do Primeiro Kalki encaixam-se então, sem dúvida, na época


acima descrita, mas moldam os eventos por forma a ilustrar lições. No entanto, tal
como Buton, o comentador Sakya do século XIII d.C., menciona àcerca da
apresentação Kalachakra da história, “examinar eventos históricos do passado não
faz sentido”. Não obstante, Kedrub Je explica que a predita guerra entre Shambhala
e as forças não-índicas não é uma mera metáfora sem referência a uma futura
realidade histórica. Se esse fosse o caso, então quando o Tantra de
Kalachakra aplica analogias internas para os planetas e as constelações,
chegaríamos à conclusão absurda de que os corpos celestiais existem somente
como metáforas e que não têm nenhuma referência externa.

Todavia, Kedrub Je também acautela contra a interpretação literal da profecia


adicional de Kalachakra segundo a qual a religião não-índica irá no futuro
espalhar-se por todos os doze continentes e os ensinamentos de Raudrachakrin
também a irão lá superar. A profecia não diz especificamente respeito ao já
descrito povo não-índico, às suas crenças ou práticas religiosas. Aqui, o nome
mleccha refere-se meramente às forças e crenças não-dhármicas que contradizem
os ensinamentos do Buda.

Assim, a profecia prediz que as forças destrutivas hostís à prática espiritual – e não
especificamente um exército muçulmano – irão atacar no futuro, e uma “guerra
santa” externa contra elas será necessária. A mensagem implícita é que, se os
métodos pacíficos falharem e tivermos de combater numa guerra santa, a batalha
deve basear-se sempre nos princípios budistas de compaixão e do profundo
apercebimento da realidade. Isto é verdadeiro apesar de que na prática é
extremamente difícil seguir-se esta recomendação treinando-se soldados que não
são bodhisattvas. Contudo, se a guerra for motivada pelos princípios não-índicos
do ódio, da malícia, do ressentimento e do preconceito, as gerações futuras não
verão nenhuma diferença entre as atitudes dos seus antepassados e as das forças
não-índicas. Por conseguinte, adotarão facilmente atitudes não-índicas.

O Conceito Islâmico da Jihad

O conceito islâmico da jihad é uma das atitudes do invasor? Se assim for,


Kalachakra está descrevendo corretamente a jihad, ou está usando a invasão não-
índica de Shambhala apenas para representar um extremo a evitar? Para prevenir
mal entendidos inter-fé é importante investigarmos estas questões.

A palavra árabe jihad significa uma luta na qual precisamos tolerar sofrimentos e
dificuldades, tais como a fome e a sede durante o Ramadã, o mês santo do jejum.
Aqueles que se engajam nesta luta são mujahedin. Faz-nos lembrar os
ensinamentos budistas aos bodhisattvas, sobre a paciência, para tolerarem as
dificuldades que surgem durante o caminho à iluminação.

A divisão sunita do islão indica cinco tipos de jihad:

1. Uma jihad militar é uma campanha defensiva contra agressores que tentam prejudicar
o islão. Não é um ataque ofensivo para converter outros pela força ao islão.
2. Uma jihad por recursos envolve o apoio financeiro e material aos pobres e aos que
precisam de ajuda.
3. Uma jihad pelo trabalho é o sustento honesto a nós próprios e à nossa família.
4. Uma jihad pelo estudo é a obtenção do conhecimento.
5. Uma jihad contra nós próprios é a batalha interna para superar os desejos e os
pensamentos contrários aos ensinamentos muçulmanos.

As divisões xiitas do islão enfatizam o primeiro tipo de jihad, pondo em termos de


igualdade um ataque a um estado islâmico com um ataque à fé islâmica. Muitos
xiitas também aceitam o quinto tipo, a jihad espiritual interna.

As Similaridades entre o Budismo e o Islamismo

A apresentação Kalachakra da guerra mítica de Shambhala e a discussão islâmica


da jihad mostram notáveis similaridades. As guerras santas budistas e islâmicas
são táticas defensivas para travar ataques por forças hostis externas; nunca
campanhas ofensivas para ganhar convertidos. Ambas têm níveis de significados
espirituais internos, em que a batalha é contra os pensamentos negativos e as
emoções destrutivas. Ambas necessitam de ser empreendidas com base em
princípios éticos, e não com base em ódios e preconceitos. Assim, ao apresentar a
invasão não-índica de Shambhala como totalmente negativa, a literatura de
Kalachakra está de fato deturpando o conceito da jihad à moda prasangika,
levando-o ao seu extremo lógico para salientar uma posição a evitar.

Além disso, assim como muitos líderes distorceram e exploraram o conceito de


jihad para seu proveito e poder, o mesmo ocorreu com Shambhala e a sua
discussão da guerra contra forças estrangeiras destrutivas. Agvan Dorjiev, o
mongol russo de Buriate dos finais do século XIX d.C. e tutor assistente do XIII
Dalai Lama, proclamou que a Rússia era Shambhala e que o czar era um Kalki.
Desta forma, tentou convencer o XIII Dalai Lama a alinhar com a Rússia contra a
“mleccha” britânica, na batalha para o controlo da Ásia central.

Tradicionalmente, os mongóis identificaram o rei Suchandra de Shambhala e


Gengis Khan como encarnações de Vajrapani. Lutar por Shambhala era então lutar
pela glória de Gengis Khan e pela Mongólia. Assim, Sukhe Batur – líder da
Revolução Comunista Mongol de 1921, contra o regime extremamente brutal do
barão russo branco von Ungern-Sternberg, apoiado pelos japoneses – inspirou as
suas tropas com a narrativa Kalachakra da guerra para terminar o kaliyuga.
Prometeu-lhes renascimento como guerreiros do rei de Shambhala, apesar de não
haver nenhum fundamento textual para a sua asserção na literatura de Kalachakra.
Durante a ocupação japonesa da Mongólia, na década de 1930, as autoridades
japonesas, por sua vez, tentaram obter uma aliança com os mongóis e apoio militar
através de uma campanha de propaganda afirmando que o Japão era Shambhala.

Conclusão

Assim como os críticos do budismo poderiam concentrar-se nos abusos do nível


externo da batalha espiritual de Kalachakra e rejeitar o nível interno, e isto seria
injusto ao budismo como um todo, o mesmo é verdade relativamente aos críticos
anti-muçulmanos da jihad. Aqui, o conselho dos tantras budistas a respeito do
professor espiritual pode ser útil. Quase todos os professores espirituais têm uma
mistura de boas qualidades e defeitos. Embora um discípulo não deva negar as
qualidades negativas do professor, insistir nelas apenas irá causar raiva e
depressão. Se, em vez disso, o discípulo focalizar nas qualidades positivas do
professor, irá ganhar inspiração para seguir o caminho espiritual.

O mesmo pode ser dito sobre os ensinamentos budistas e islâmicos a respeito das
guerras santas. Ambas as religiões assistiram a abusos das suas chamadas para
uma batalha externa, quando forças destrutivas ameaçavam a prática religiosa.
Sem negar nem insistir nesses abusos, podemos obter inspiração focalizando nos
benefícios do empreendimento de uma guerra santa interna em qualquer dos
credos.
O Dalai Lama em Diálogo com
Estudiosos Sufis
O 14º Dalai Lama

Wallace Loh (Reitorda the Universidadede Maryland): Boa tarde, eu


sou Wallace Loh, reitor da Universidade de Maryland. Eu gostaria de dar
as boas vindas a todos vocês, nossos convidados, nesse dia mais que
extraordinário. Assim como as religiões do mundo, o oceano é a fonte de
vida que anima o espírito. Quando assolado por vento e maré, o oceano é
semelhante a paixões religiosas. Hoje nós oferecemos o suave encontro
de dois oceanos, budismo e sufismo. Essa é uma oportunidade rara e
promissora e nós estamos extremamente agradecidos a todos os nossos
convidados. Hoje Sua Santidade o Décimo-quarto Dalai Lama emocionou
profundamente o nosso campus. Ele está compartilhando sua presença,
irradiando simplicidade, bondade e bom humor e nós estamos
muitíssimos agradecidos a ele.

Nesta tarde nós compartilhamos com Sua Santidade as dádivas de


estudiosos de uma outra tradição. Os participantes do Instituto Roshan de
Estudos Persas da Universidade de Maryland são altamente qualificados e
respeitados. Eles nos trazem séculos de tradição, erudição e fé. Eu quero
agradecer à diretora da Faculdade de Artes e Humanidade, Bonnie
Thornton Dill, por nos dar essa oportunidade tão especial. A diretora Dill
é conhecida internacionalmente por suas pesquisas sobre raça, gênero,
trabalho, família e pobreza. Ela tem um compromisso profundo com uma
educação integral. Por favor, dêem as boas vindas à diretora Bonnie
Thornton Dill.

Bonnie Thornton Dill (Diretora da Faculdade de Artes e


Humanidades): Boa tarde. Eu gostaria de acrescentar minhas boas
vindas às do reitor Loh e agradecê-los por participar dessa apresentação
tão especial. Nós estamos tocados e profundamente gratos pela
oportunidade de receber Sua Santidade o Décimo-quarto Dalai Lama do
Tibete no programa dessa tarde, “Um encontro de dois oceanos: diálogo
sobre sufismo e budismo.”

O lema da Faculdade de Artes e Humanidades é “Aberta para o Mundo”,


uma denominação apropriada para o que nós veremos hoje. Estar “aberto
para o mundo” significa abraçar o mundo como um espaço transnacional,
se esforçar para entender o movimento e fluxo de pessoas e ideias e
abraçar a diferença e a diversidade em nosso país e no exterior. Adquirir
sabedoria nesse processo é o maior desafio, porque a sabedoria exige que
usemos o conhecimento que acumulamos para crescer, não apenas
intelectualmente, mas também emocional e espiritualmente e como Sua
Santidade salientou hoje em seu discurso, é entender que com toda essa
variedade há uma humanidade comum e quando ganhamos essa
sabedoria, aplicá-la como uma força pelo bem do mundo.

Como um homem de grande conhecimento e experiência que usa ambos


para promover a paz, a compreensão e a harmonia, Sua Santidade, você
personifica nosso ideal do que significa estar “aberto para o mundo”. Por
isso essa visita é muito especial para nós e esperamos aprender muito
com o diálogo de hoje. Além de Sua Santidade, nossos participantes desta
tarde incluem Elahé Omidyar Mir Djalali, fundadora e presidente do
Instituto de Patrimônio Cultural Roshan, Fatemeh Keshavarz, professora
responsável pela cadeira Roshan de Estudos Persas e diretora do
Instituto Roshan de Estudos Persas da Universidade de Maryland, o
músico Hossein Omoumi, mestre da flauta ney, a cantora Jessika Kenney
sentada ao seu lado, Ahmet T. Karamastaffa, professor de História na
Universidade de Maryland e encarregado de desenvolvimento acadêmico
no Instituto Roshan de Estudos Persas no campus e Carl W. Ernst, distinto
professor Kenan na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e
co-diretor do Centro Carolina de Estudos do Oriente Médio e Civilizações
Muçulmanas.

Antes de começarmos o programa de hoje, eu também gostaria de


reconhecer, o que me dá muita alegria, as muitas contribuições do
Venerável Lama Tenzin Dhonden. O Lama Tenzin é o Emissário Pessoal
de Paz de Sua Santidade, cujo sábio conselho e competência logística
guiou a nossa dedicada equipe em todos os aspectos do planejamento
deste dia. Nós não poderíamos ter feito tudo isso sem ele e muitas vezes
as pessoas dizem isso por dizer, mas eu digo com toda sinceridade.

É agora a minha grande honra apresentar a Dra. Elahé Omidyar Mir


Djalali que foi fundamental para organizar esse diálogo único sobre
sufismo e budismo. Fundadora e presidente do Instituto de Patrimônio
Cultural Roshan, a Dra. Mir Djalali tem sido uma defensora contínua e
inabalável da preservação e do progresso da cultura persa. Sob sua
liderança o Instituto de Patrimônio Cultural Roshan se tornou uma
instituição pioneira para a preservação, transmissão e instrução da
cultura e estudos persas em todo o mundo, apoiando iniciativas nos
Estados Unidos, Europa e Ásia. Em 2007 os instituto fez uma doação
única em apoio do Programa de Estudos Persas nessa universidade,
consolidando o programa acadêmico por meio do financiamento da
cadeira de Estudos Persas do Instituto Roshan assim como de bolsas de
graduação e pós-graduação e de uma verba para os programas de persa.
Em reconhecimento dessa generosidade, o Centro de Estudos Persas no
Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas agora é conhecido como
Instituto Roshan de Estudos Persas da Universidade de Maryland.

Nos últimos dois anos eu tive o privilégio de trabalhar em proximidade


com a Dra. Mir Djalali e descobri como ela é uma pessoa de grande
integridade. Ela é brilhante e gentil, humilde e determinada, palavras que
não uso para qualquer pessoa e tenho honra de chamá-la de minha amiga.
Como extensão de seu trabalho e de sua origem multicultural, a Dra. Mir
Djalali apóia constantemente esforços para melhorar a comunicação
intercultural. Nascida no Irã, ela estudou na França e nos Estados Unidos,
fez seu mestrado na Sorbonne e na Universidade de Georgetown e
doutorado com distinção em linguística na Sorbonne. Ela é uma bem-
sucedida autora e publicou obras, assim como é fluente, em francês,
inglês e persa. Além de suas próprias obras ela ofereceu incontável tempo
e energia traduzindo voluntariamente textos sufis para o francês e inglês.
Nesse contexto ela se tornou uma grande admiradora de Sua Santidade o
Décimo-quarto Dalai Lama e seu compromisso com valores humanos
comuns. É meu prazer apresentar a vocês a Dra. Elahé Omidyar Mir
Djalali.

Dra. Elahé Omidyar Mir Djalali: Obrigado, diretora Thornton Dill. Suas
palavras são tão desconcertantes que não tenho palavras para responder.
Sua Santidade, reitor Wallace Loh e distinto público, em nome do
Instituto de Patrimônio Cultural Roshan com sua missão “Esclarecimento
por meio da educação”, nos sentimos felizes e privilegiados de poder
contribuir para esse grande evento, “Um encontro de dois oceanos:
diálogo sobre sufismo e budismo”.

É uma imensa honra estar na presença de Sua Santidade o Décimo-quarto


Dalai Lama do Tibete e que ele inspire e guie nosso diálogo. Sua Santidade
é um modelo de paz. Ele tem ensinado as pessoas no mundo todo a
resolver problemas humanos por meio da transformação de atitudes
humanas, que a compaixão é a base para a paz mundial e a entender as
convergências em objetivos e éticas de todas a religiões principais.
Reconhecendo que o mundo se tornou menor e que todos os povos se
tornaram quase uma só comunidade, Sua Santidade tem sido incansável
em seus esforços para promover um sentido de responsabilidade
universal mais amplo para lidar com as ameaças comuns à segurança
global e ao meio ambiente. O trabalho de toda sua vida promovendo
valores de altruísmo, amor e compaixão e em particular sua campanha
não violenta para acabar com a dominação chinesa em sua terra natal
foram reconhecidos com a entrega do Prêmio Nobel da Paz a ele em 1989.
Pessoalmente, quando conheci Sua Santidade em Dharamsala, Índia, me
senti inspirada não só por sua mensagem de paz e união global, mas
também por sua presença acolhedora e serena. Mais tarde, li suas
inspiradoras obras e assisti suas palestras e ensinamentos por vários dias
em Toulouse, França e em diversas outras ocasiões. Os ensinamentos de
Sua Santidade têm sido um lembrete constante dos valores centrais,
elevados princípios morais e práticas em ensinamentos sufis da minha
juventude. Eu não sou uma especialista sufi e sim uma pessoa em busca,
uma aluna dessa escola, e devotei anos a traduzir anonimamente textos
sufis para o francês e inglês para compartilhá-los com outras culturas.

Como os mestres sufis nos ensinam, “Aleyka be qalbeka” (“você é aquilo


que seu coração é”). O sufismo é a voz do conhecimento espiritual interior
que nos desperta, abrangendo todos os preceitos éticos de todas as
religiões principais. A palavra “sufismo” é uma expressão ocidental. Ela
não captura o significado completo da palavra persa “erfan”, da raiz
arábica /ARF/, que inclui o significado “arafa”, que por sua vez significa
“conhecimento”, “cognição” e “iluminação”. Essa mensagem de
conhecimento interior e poder altruístico dentro de cada um de nós é o
que para mim ressoa tão fortemente com os ensinamentos de Sua
Santidade. Nesse espírito de valores comuns, é com imensa gratidão que
eu gostaria de agradecer à Sua Santidade por concordar em participar
desse diálogo sobre sufismo e budismo. É necessário agradecer a
Universidade de Maryland e todos aqueles que trabalharam tanto para
que esse evento acontecesse.

Também é um prazer especial apresentar a Dra. Fatemeh Keshavarz.


Desde o ano passado, ela é diretora do Instituto Roshan de Estudos
Persas da Universidade de Maryland e ocupa a cadeira do Instituto
Roshan de Língua e Literatura Persa. Antes disso, ela deu aulas por mais
de vinte anos na Universidade de Washington em St. Louis, onde presidiu
o Departamento de Línguas e Literaturas Asiáticas e do Oriente Próximo
de 2004 a 2011. Ela nasceu e cresceu em Shiraz, Irã, e estudos na
Universidade de Shiraz e na Universidade de Londres. Ela é a autora de
livros prêmiados, diversos artigos acadêmicos e de poesia inspiracional.

A Dra. Keshavarz apresentará algumas reflexões sobre a importância da


poesia e da música como expressões de espiritualidade em práticas sufi.
Ela participará em um “presente espiritual” de boas vindas para Sua
Santidade, combinando o ensinamento sufi com /dam/ (sopro humano) e
a palheta, o mais simples e antigo instrumento do mundo. Que essa
ocasião histórica seja uma abertura para a unicidade de todas as fés e
religiões baseadas em valores humanos comuns que unem todos nós,
independente de etnia, gênero e status social. Obrigado. Dra. Keshavarz.
Dra. Fatemeh Keshavarz: Obrigado, Dra. Mir Djalali por sua gentil
apresentação. Sua Santidade, é uma grande honra fazer parte desse
diálogo sobre sufismo e budismo com você. Nós chamamos o diálogo de
“um encontro de dois oceanos”, porque nós acreditamos que o budismo e
o sufismo são como dois imensos oceanos com tesouros em comum. Se
mergulharmos fundo, acreditamos que podemos encontrar pérolas
idênticas nesse oceano. Sua Santidade, muito antes de estudar
academicamente como especialista em poesia sufi, quando era criança
minha família me rodeava com poesia sufi que era ao mesmo tempo
brincadeira, educação, meditação e veneração. Eu falava, assim como você
mencionou essa manhã, sobre a importância da educação. Muito da
minha educação em poesia sufi veio da minha família e também de meu
amigo e colaborador aqui presente, Ustad Hossein Omoumi, que é um
praticante e teórico de música. Ele recebeu seu talento para música sufi
primeiro de sua família antes de de fato estudar música. Ustad Omoumi
dedicou sua vida a explorar os mistérios do instrumento ney, ou flauta de
palheta persa, sobre o qual falaremos em alguns momentos, mas ele
também tem a filosofia de que é necessário ter um relacionamento
educacional profundo com seu aluno, não é apenas uma prática técnica, é
necessário desenvolver esse relacionamento.

Nós também temos conosco, Jessika Kenney, cantora e compositora, que


estuda muitas tradições espirituais, incluindo o canto javanês gamelão.
Há nove anos Jessika assistiu a uma performance de Ustad Omouni, se
apaixonou pela música sufi persa e pediu para ser sua aluna. Ela tem se
dedicado a isso durante os últimos nove anos. Ela diz que esses nove anos
mudaram o significado dos sons para ela, que agora os sons são o que
expressam os pensamentos mais profundos dentro de seus sentimentos
em vez de ser apenas sons. Como os sufis dizem há séculos que a
combinação de palavras e melodias podem se tornar entre muitas coisas,
uma porta para oração. Como a abertura de um momento de oração para
nós, despertando os pensamentos interiores do que a Dra. Mir Djalali
chamou de “voz interior” que adormece mas pode ser despertada, a
música é usada para isso. E também para cultivar aquilo que você chamou
de “as qualidades do coração”.

Como a respiração humana e a pulsação é uma linguagem universal. Não


precisa ser traduzida, por isso os sufis a vêem como uma língua com a
qual eles podem falar com o mundo inteiro. Os falantes de persa vivem
com ela, eles fazem caligrafia com ela, como você verá em um presente
que lhe daremos. Eles a citam, cantam, ensinam, então é parte importante
de seu dia a dia. Imagens que vêm dessa poesia também se tornam parte
de suas vidas e uma imagem muito importante é a ney ou flauta de
palheta. [Interlúdio musical com flauta].
O grande poeta sufi do século XIII, Jalal ad-Din Rumi, descreveu a flauta
de palheta como um ser humano, um amante, um buscador que foi
separado ou separada de sua terra natal da mesma forma que a palheta é
separada do canavial para se tornar flauta. E da mesma forma como você
descreveu que na mitologia budista nós poderíamos ser seres de luz que
estão separados, que agora estão na esfera do desejo e por isso
esquecemos nossas origens celestiais ou de luz, Rumi também diz que nós
esquecemos de onde somos. Nós podemos estar tão distraídos que
esquecemos que pertencemos a uma origem superior e a forma de nos
lembrar é escutando, escutando essa voz interior, por isso ele começa sua
obra sufi mais importante com a palavra “escute”. [Interlúdio musical
com flauta combinado com poesia sufi persa].

Ele diz: “Escute a história da dor profunda da palheta, porque essa é a


história de toda separação. Desde que eles me arrancaram do canavial de
onde eu venho, as pessoas cantam sua tristeza através da minha canção.”

[Mais música e poesia.]

Ele diz: “Que a separação despedace o meu coração para que eu coloque a
dor da saudade em palavras, porque quem quer que se encontre longe de
seu lar, de sua origem, certamente buscaria o reencontro com os seus.”

Para os sufis, o motor dessa busca, essa busca pela origem, é o amor. “A
força, o fogo que dá calor à minha voz”, Rumi diz, “é o amor.” E o amor
para os sufis não é um conceito teórico. Sim, eles falam bastante sobre ele
em teoria, mas é a experiência que importa. Eles acreditam que nós temos
que nos permitir experimentar o amor. O conceito de experimentar é
muito importante e é só então que reconhecemos as qualidades
transformativas do amor, por isso Rumi diz que “o amor se mostra na
forma como o coração chora”, portanto ele se mostra ao invés de se
descrever ou de que nós o descrevamos. Esse anseio dá ao buscador a
força para ir em frente e no entanto o anseio em si não pode ser explicado
ou descrito, porque não tem forma.

Rumi diz, “eu falei muito para descrever e desmistificar o amor, mas
quando eu o encontrei, percebi que tinha feito um mal trabalho, porque
ele não pode ser descrito, mas quando experimentado o amor deixará sua
marca em seu coração”. Por isso a tarefa da poesia e música sufi é dar
uma mostra dessa não-forma ou dessa beleza sem forma para aquele que
busca.

[Mais música de flauta e poesia cantada.]


Sua Santidade, agora eu gostaria de apresentar a você o Professor Ahmet
Karamastaffa, distinto estudioso de sufismo e Professor de História na
Universidade Maryland. Ele vai falar um pouco sobre os conceitos
principais do sufismo.

Professor Ahmet Karamastaffa: Obrigado, Dra. Keshavarz. Sua


Santidade, estimados colegas e convidados, é um privilégio raro poder
apresentar alguns conceitos chaves do sufismo para Sua Santidade, para
sua consideração e isso me dá muita honra. O budismo e o sufismo são de
fato vastos oceanos e já que não será possível que eu toque em todos os
aspectos mais importantes do sufismo no tempo que me foi dado, eu
dirigirei a sua atenção às características do pensamento e prática sufis
que, acredito, ressoarão com os interesses do budismo. Vamos começar
com o enfoque sufi no eu. Não é um exagero dizer que no centro de todos
os esforços sufis está a tentativa de controlar e reformar o indivíduo. De
acordo com os sufis, toda e qualquer pessoa humana é dotada de uma
essência espiritual, mas essa essência espiritual normalmente está
coberta por preocupações fúteis e cotidianas da vida humana e
permanece inativa, adormecida. O indivíduo humano tende, portanto, a
ser egocêntrico e egoísta em sua vida social cotidiana, mas o coração
espiritual pode ser despertado por sinais divinos que estão dentro de nós
e ao nosso redor e, como vimos, os sufis acreditam que a poesia e a
música são especialmente ricas nesse sentido. Uma vez despertado, o
coração espiritual pode crescer e gradualmente substituir o eu
mesquinho e inferior que originalmente o suprimiu. Esse processo de
controle e eventual substituição do eu inferior pelo coração espiritual é
muitas vezes visto como um caminho longo e árduo durante o qual o
coração precisa ser cuidado com atenção e paciência.

Nesse caminho, o sufi tenta desmontar o eu social, cotidiano. Ele o


desconstrói camada por camada para revelar o coração e então se esforça
para cultivar o órgão espiritual, o coração, para se unir a ele. Esse
caminho do egoísmo ao altruísmo, do eu inferior a uma individualidade
espiritual reformada e superior é fundamental para todo o pensamento e
prática sufi. Curiosamente, ao progredir de um nível para o próximo
nesse caminho, o sufi ou a sufi começa a entrar em contato com todos os
seres com uma humildade existencial profunda e um sólido altruísmo. Ao
apagar todo e qualquer traço de egocentrismo por meio do cultivo do
coração espiritual, o sufi transforma o eu em um espelho que reflete
fielmente tudo que existe: tudo é um, tudo está interligado. Estamos todos
unidos nessa aventura que chamamos de “vida”. Ao reconhecer isso, o sufi
é transformado em um servo altruísta que trabalha incessantemente para
melhorar o destino dos outros. Ele ou ela tenta resgatar as pessoas dos
abismos do egoísmo e direcioná-las para as alturas da interligação. O sufi
se torna o ponto de ligação. Mais precisamente, ele ou ela se torna o
espelho que reflete a profunda interligação de tudo que existe. A
eliminação do egocentrismo revelou os tesouros escondidos no coração
espiritual que são o amor, a compaixão e o altruísmo e o sufi distribui as
riquezas desses tesouros livre e incondicionalmente com tudo e todos.

Como vínculo altruísta que liga todos os seres, o sufi vive em meio à vida
social. Não há fuga da sociedade em direção à natureza, nem
recolhimento em comunidades enclausuradas. Mesmo que períodos de
isolamento sejam necessários para que o sufi refine o coração espiritual,
ele ou ela raramente abandona a vida social por completo. Esse
compromisso com a sociedade e com a vida comunitária é a marca do
sufismo. Esse é o motivo pelo qual os sufis se organizam em comunidades
ao redor de mestres sufis renomados, mas se recusam a se separar da
sociedade como grupos distintos. Eles vivem como pessoas comuns
dentro de comunidades maiores, urbanas ou rurais. Suas associações
frequentemente se tornam centros comunitários que prestam vários
tipos de serviços à sociedade em geral ao seu redor em forma de comida,
abrigo, assistência espiritual e material, orientação religiosa, terapia,
socialização, educação e entretenimento verdadeiramente instrutivo.

Essa inserção dos sufis na sociedade, esse instinto comunitário, essa face
socialmente engajada marca a conclusão do caminho sufi. O sufi
conquistou e domou o eu inferior mesquinho, o substituiu por uma
individualidade espiritual e superior e utilizou a fonte de amor e
compaixão que nasce da pessoa espiritual para servir todos os seres com
altruísmo.

Eu acredito que muito do caminho sufi ressoará com os interesses


principais do budismo tão eloquente e fortemente articulados na obra de
vida de Sua Santidade e aguardo seus comentários ansiosamente. Mas
antes, eu gostaria de apresentar nosso próximo palestrante, meu distinto
colega e amigo, Carl Ernst. A nossa diretora já disse a vocês que ele é da
Universidade da Carolina do Norte, um especialista em estudos islâmicos
com foco no Oeste e Sul da Ásia. Sua pesquisa é dedicada a três áreas
principais: áreas gerais e críticas dos estudos islâmicos, sufismo e cultura
indo-muçulmana. É um privilégio ter Carl aqui conosco.

Carl Ernst: Muito obrigado, Ahmet. É de fato um privilégio especial e uma


honra ser chamado para apresentar à Sua Santidade o Dalai Lama
algumas observações sobre encontros passados e futuros entre
hinduístas, budistas e sufis e estou agradecido por essa oportunidade.
Sem dúvida algumas pessoas questionarão a possibilidade de um
envolvimento genuíno entre essas tradições espirituais, tendo em vista
especialmente as crenças rigorosas por vezes associadas com o ambiente
islâmico do qual o sufismo surgiu. Muitos podem até mesmo estar
chocados com os conflitos entre hindus e muçulmanos que marcaram a
História recente da Índia, Paquistão e Bangladesh. E eles podem estar
preocupados com as divisões que existem entre budistas e muçulmanos
na Tailândia, Sri Lanka e Burma. Além da memória de diferenças
religiosas há o simples fato do detalhe, isto é, que dentro das tradições
históricas do hinduísmo, budismo e sufismo há lealdades e filiações
profundas e especiais à linhagens especifícas de mestres e centros locais
de poder espiritual que juntos definem a perspectiva espiritual de
milhões de buscadores.

Embora os primeiros estudiosos europeus tenham especulado que o


sufismo surgiu do hinduísmo ou do budismo, é difícil negar que muito da
prática do sufismo está profundamente ligada ao profeta Maomé como
fonte do relacionamento entre mestre e discípulo e à revelação corânica,
que os sufis lêem e relêem como livro do coração. Entretanto, também é
verdade que não-muçulmanos têm se atraído fortemente pelos
ensinamentos do sufismo que falam sobre as aspirações e os anseios
universais do espírito humano. Por isso Ramon Llull, o pensador cristão
do século XIII, aprendeu árabe e escreveu sobre o amor no estilo dos
sufis. Da mesma forma, Abraão Maimônides, neto do famoso filósofo
judeu, escreveu extensivamente sobre o caminho interior ou tariqa do
sufismo, que ele considerava estar muito em harmonia com o judaísmo.

De forma mais ampla, durante vários séculos, gerações de estudiosos


hinduístas que falavam persa foram empregados como secretários no
Império Mugal e treinados no estudo de poesia persa clássica. Já que a
literatura persa está repleta de ensinamentos do sufismo, não é
surpreendente que muitos desses estudiosos hinduístas tenham sido
profundamente afetados pela percepção mística de Rumi, Hafez e outros.
A história desses notáveis encontros entre hinduístas e sufis, incluindo
muitas traduções de escritos sânscritos para o persa, foi ofuscada pelos
conflitos políticos que dominam a História moderna. Eu fico feliz em
dizer, no entanto, que os estudiosos têm se voltado cada vez mais para
esses fascinantes episódios como importantes exemplos da maneira como
envolvimentos culturais e espirituais complexos de fato aconteceram.

No caso do budismo é possível dizer que o encontro com o sufismo é uma


oportunidade esperando por acontecer. Houve momentos no passado em
que o diálogo entre sufis e budistas poderia ter acontecido, mas
permaneceu incrivelmente incompleto. O mestre sufi da Ásia Central, Ala
ud-Daula Simnani, foi forçado pelo soberano mongol Arghun a participar
de debates com monges budistas, algo que ele resistiu emocionalmente.
Mas é interessante notar que o sistema de meditação que ele
desenvolveu, que inclui visualizar representações de antigos profetas
como figuras de luz dentro do corpo, ecoa práticas espirituais importante
do budismo mahayana.

Há muito tempo os ensinamentos islâmicos oficiais rejeitaram a idolatria


que era conhecida em persa como adoração do bhut, palavra derivada de
Buda. Mas os comentários esotéricos em textos sufis enaltecem a
adoração de ídolos que consistem da adoração do “verdadeiro amado”,
seja Deus ou o mestre sufi. É difícil resumir em um momento as
aspirações que podem ligar as visões espirituais de hinduístas, budistas e
sufis, mas é possível especular que a ligação deveria incluir, como disse a
Dra. Mir-Djalali, e como você mesmo mencionou, Sua Santidade, um
conhecimento profundo do espírito interior e uma empatia e
reconhecimento da humanidade dos outros. Esse é um momento
histórico em que nós podemos tentar visualizar de que forma esses
encontros espirituais podem acontecer hoje. Eu espero ansiosamente
pelas observações de Sua Santidade sobre esse importante processo.
Obrigado.

Sua Santidade o Dalai Lama: Eu conheço um líder espiritual sufi. Não


tenho certeza de onde ele é, mas ele vive em Paris e eu o encontrei lá
algumas vezes durante encontros interreligiosos. Ele é um homem idoso,
barbudo, muito simpático. Algo interessante é que ele tinha um filho que
queria estudar e foi mandado para a Índia para estudar budismo por
alguns meses. Não é algo comum, e esse velho mestre parecia muito
interessado em aprender mais sobre o pensamento budista. Esse foi o
meu contato pessoal com os sufis.

Depois dos nossos encontros as pessoas disseram que há muitas


similaridades entre certas práticas sufis e budistas, mas eu não tinha
muito conhecimento ou experiência sobre o sufismo. Quando foi dito que
o próprio nome “sufi” significa conhecimento ou cognição em persa, isso
mostra uma ênfase em sabedoria e análise. Isso é semelhante a um
aspecto do budismo, especialmente na tradição sânscrita, na qual por
meio de análise e investigação as coisas se tornam cade vez mais claras.
Então essa ênfase em sabedoria e não apenas em fé é uma semelhança.
Logo, nas apresentações parece que há alguns níveis diferentes. Num
nível mais profundo há um tipo de natureza pura e altruísta e num nível
mais superficial há as emoções destrutivas.

Isso indica uma necessidade de investigação e então o processo de


eliminar essas emoções negativas. Se fossemos por natureza nossas
emoções negativas, não poderíamos nos separar delas. Isso seria muito
difícil. Então vocês fazem uma distinção entre o nível profundo e o
superficial e com um entendimento mais profundo desse “eu” profundo o
nível superficial das emoções destrutivas pode ser reduzido ou eliminado.
Isso também é semelhante ao pensamento budista. Vocês também
mencionaram o uso da imaginação e visualização que nós usamos no
budismo.

Quando fiquei sabendo sobre esse programa, fiquei muito interessado em


aprender mais. Meu conhecimento sobre sufismo é zero e hoje eu ganhei
algumas ideias novas. Mas obviamente meu conhecimento ainda é
limitado, então não tenho certeza sobre como comentar mais.
Basicamente, eu acredito que todas as principais tradições religiosas
usam métodos diferentes. A maioria das religiões teístas recomendam fé
e submissão total a Deus. Para reforçar esse elemento de fé surgiu o
conceito de Deus como criador no qual você não é nada mais que uma
parte da criação de Deus. Esse tipo de crença reduz automaticamente a
atitude egocêntrica. Nós budistas dizemos que não existe um eu
independente, para assim combater a atitude egocêntrica. São
perspectivas diferentes, mas têm mais ou menos o mesmo efeito de
reduzir a atitude egocêntrica que é a base da raiva, inveja, desconfiança e
todas as outras emoções negativas. Já que emoções extremamente
egoístas são uma fonte de problemas, todas as principais religiões
ensinam sobre amor, compaixão, tolerância, perdão e assim por diante.
Todas as religiões que acreditam em Deus descrevem Ele como amor
infinito e a firme convicção da grandeza desse amor ajuda a gerar
entusiasmo para praticar amor e compaixão.

Essa visita parece ter uma ênfase maior em sabedoria. Havia um líder de
um pequeno grupo em Ítaca, uma pessoa maravilhosa que acreditava que
todas as diferentes tradições, especialmente as diferentes tradições
indianas, eram iguais. Ele achava que todas as partes importantes eram
iguais e com essa crença ele tentava deixar claro a igualdade de todas
essas filosofias, mas ele me disse que achava muito difícil fazer isso. Já
que nós éramos bons amigos, uma vez quando ele reclamou da
dificuldade de reconciliar todas as diferenças e contradições entre as
diferentes filosofias, eu disse para ele que o que ele estava fazendo era
provavelmente um trabalho extra e desnecessário.

Todos os grandes mestres budistas levantaram muitas diferentes


questões e argumentos com as outras antigas tradições indianas. Um
mestre, Dharmakirti, queria muito aprender sobre as filosofias contra as
quais ele argumentava, mas era muito difícil, porque os conceitos mais
profundos eram dados oralmente pelo guru a um ou dois discípulos
dignos de confiança, nunca escritos ou dados publicamente. Embora por
um breve período ele tenha se tornado servo de um mestre hinduísta,
ainda era muito difícil receber esses ensinamentos secretos. Então ele
pediu para a esposa do guru, que disse a ele que o seu servo era muito
devoto e queria aprender mais, mas isso ainda não funcionou. Então a
esposa pensou em um truque que foi esconder Dharmakirti sob a cama
enquanto ela fazia perguntas ao guru e Dharmakirti escutava. Então,
esses grandes lógicos budistas primeiro estudaram minuciosamente e
então levantaram questões em debates religiosos. Mesmo no budismo,
eles levantam muitas questões e discussões, por isso nós temos agora
quatro principais escolas de pensamento que podem ser subdvididas. Por
meio do debate surgem diferentes perspectivas, simples assim. Por isso
eu disse ao meu amigo que é muito difícil, porque todos esses grandes
mestres budistas com conhecimento completo de diferentes tradições
aceitaram que há diferenças.

Se olharmos para os escritos clássicos indianos, muitos dos mestres que


eram experientes em debate com outras tradições tinham uma norma
estabelecida de que não se podia argumentar contra um argumento que
os outros na verdade não haviam levantado. Eles estudavam
profundamente aquilo contra o qual eles debatiam para fazer justiça à
posição do oponente como ponto de vista a ser criticado. O fato de que
esses mestres dedicavam tanta energia e esforço a refinar seu
entendimento das posições de seus oponentes sugere fortemente que eles
levavam as diferenças e distinções bastante a sério. Portanto há
diferenças e não é necessário fazer tudo ser igual.

Eu também mencionei anteriormente que no budismo há diferentes


posições filosóficas, muitas das quais foram ensinadas pelo próprio Buda.
Diferentes perspectivas vindas do mesmo professor, o Buda. Eu digo às
pessoas que essas filosofias contraditórias vieram do Buda não por ele
não ter certeza, um dia ensinando algo e no próximo algo diferente,
certamente não. Também não é o caso que o Buda estivesse confuso ou
tenha ensinado diferentes posições filosóficas para criar confusão entre
seus discípulos, de forma alguma! A resposta é que é necessário. Entre os
próprios discípulos do Buda havia muitas predisposições diferentes e
muitas abordagens diferentes foram necessárias. No campo espiritual,
diferentes abordagens significam diferentes posições filosóficas, todas
necessárias e todas aspirando ao mesmo maravilhoso objetivo: que toda a
humanidade seja feita de seres humanos sensatos e compassivos. Essa é a
minha abordagem e a minha forma de pensar, ao invés de tentar fazer
tudo se tornar igual e apenas um.

Portanto, como os especialistas em sufismo disseram, há semelhanças


entre os pontos de vista sufi e budista. Entretanto, o budismo, assim como
o jainismo e a antiga tradição filosófica indiana conhecida como filosofia
samkhya, não têm um conceito de um criador externo. Nós próprios
somos os criadores. As coisas acontecem devido às nossas ações e nossa
motivação. Mas ainda é necessário fazer uma distinção. Na tradição
budista, já que a causalidade e recorrer a princípios causais são tão
importantes para explicar a origem de tudo, é feita uma distinção entre a
origem causal dos seres sensíveis e não-sensíveis, os objetos inanimados.
Embora ambos ocorram devido a suas próprias causas, na lei da
causalidade a dor e o prazer só são sentidos por seres com habilidade
cognitiva.

Claro que com canto e música todas as tradições têm uma prática em
comum. Nós sabemos por experiência própria que embora as palavras
possam ser iguais ou semelhantes, a forma como as dizemos ou tocamos a
música pode ter diferentes efeitos naqueles que escutam. Essa é outra
similaridade, mas às vezes as pessoas ficam apegadas demais aos
instrumentos e à música e se esquecem do significado verdadeiro. Muitos
monastérios tibetanos adoram rituais, porque eles são uma oportunidade
para usar os instrumentos, mas eles nunca dão atenção suficiente aos
estudos. Nesses casos, é como um mestre tibetano disse uma vez, que “as
pessoas se agarram aos galhos e se esquecem de cuidar das raízes”.

Dra. Fatemeh Keshavarz: Sua Santidade, já que você muito sabiamente


se referiu ao fato de que há muitas semelhanças, mas também diferenças,
também é interessante observá-las, no caso da música, por exemplo, que
é vista como uma forma de chegar às raízes, não de se alienar. Em outras
palavras, é uma ferramenta que abre o coração para que se possa
meditar. Provavelmente a meditação é semelhante a isso, ao invés de
entretenimento, ao invés de mero passatempo, é um tipo de oração. Mas
eu também queria perguntar a você, como estudante da tradição sufi eu
cresci pensando que Deus é uma parte de nós, que na verdade não há uma
fronteira. Não é um criador que está separado de mim, é uma fonte de luz
dentro de mim que se eu cuidar, se eu a cultivar, então não haverá
fronteira entre eu e Deus. E eu acho que não seria um exagero dizer que
muitos sufis lhe dirão que nós vivemos nessa forma humana, mas nós
temos a habilidade de abrir a porta e então haveria aquela gota que cai no
oceano. Não é mais uma gota, é o oceano. Então eu acho...

Sua Santidade o Dalai Lama: Eu acho que você mencionou um nível


diferente de “eu”, um nível mais profundo que a literatura budista às
vezes chama de “natureza búdica” que é o nosso potencial de se tornar
um Buda ou, por assim dizer, “Deus”. Recentemente durante alguns
seminários na Índia com meus amigos cristãos, uma pessoa teve uma
interpretação um pouco diferente, que Deus está dentro de nós e as
nossas práticas despertam isso. Isso é novo para mim e parece que o
sufismo tem a mesma ideia que rezar para e acreditar em Deus na
verdade é um caminho para despertar isso, o que é muito semelhante à
prática budista.

Professor Ahmet Karamastaffa: Era exatamente aí que eu estava


tentando chegar, que essencialmente é uma tentativa de retirar as
camadas que nós escondemos de nós mesmos, o que você chama de “eu
profundo”, e o eu profundo essencialmente é a descoberta de que “tudo é
um”, que estamos todos interligados e é por isso que então o amor, a
compaixão e o altruísmo vêm à tona. Mas nós temos que nos esforçar por
isso e a oração, as canções, a música, sim, é apenas uma forma de retirar
as camadas.

Intéprete de Sua Santidade o Dalai Lama: A metáfora de retirar as


camadas é muito similar. Exatamente a mesma metáfora pode ser
encontrada nos textos budistas.

Professor Ahmet Karamastaffa: ... e no sufismo também, na verdade


[voz feminina: “uma cebola que se descasca”] às vezes são dados números
para ajudar as pessoas a perceberem como é difícil, “há setenta mil véus”
que cobrem, setenta mil véus que cobrem e você tem que retirá-los um
por um até finalmente revelar a verdade profunda oculta.

Intérprete de Sua Santidade o Dalai Lama: Nos textos clássicos


budistas se fala de 84.000 formas de sofrimento.

Professor Ahmet Karamastaffa: Vocês têm mais [risos].

Sua Santidade o Dalai Lama: Então até o número é semelhante. Para ser
sincero, embora os textos falem de 84.000 formas de sofrimento, quando
se chega aos pormenores as apresentações são muito mais gerais com
classificações de 21.000 que pertencem a essa categoria e 21.000 que
pertences àquela [risos].

Professor Ahmet Karamastaffa: É exatamente igual no caminho sufista


também que é então categorizado em etapas maiores e pontos e cada um
deles tem um número de obstáculos no caminho que precisam ser
trabalhados com a esperança de que no fim se chegará ao coração
espiritual. E uma vez lá, o eu, o ser egocêntrico, não está mais lá, não resta
nada dele: e essa é a gota, é aí que a gota chega ao oceano e se une a ele,
eu acho, essa é a ideia e isso é...
Sua Santidade o Dalai Lama: Falando novamente de paralelos, nos
textos budistas nós temos a metáfora não de “gotas”, mas de diferentes
correntes que convergem na unicidade do oceano.

Professor Ahmet Karamastaffa: Sim, sim, com certeza.

Dra. Fatemeh Keshavarz: Sua Santidade, você cita poesia e textos curtos
em seus livros. Eu me pergunto se vocês usam poesia para inspiração e
meditação, isso é parte da sua tradição?

Sua Santidade o Dalai Lama: Geralmente nós temos que memorizar


textos desde a nossa infância, vários textos e versos escritos pelos antigos
mestres indianos. Hoje em dia, ao meditar, eu recito alguns dos versos e
então reflito sobre o significado. Isso ajuda muito. Entre os budistas,
alguns praticantes de meditação usam música como parte dos cânticos
mais inspiradores, mas isso não é uma grande parte da minha
abordagem.

Há uma história de um praticante que vivia como um eremita, com alguns


outros eremitas ao seu redor. Eles permaneciam separados um do outro e
um deles cantava algumas orações e versos, mas o som foi ficando cada
vez mais fraco até parar. Um eremita pensou que talvez ele tivesse
adormecido, então foi dar uma olhada discreta e o encontrou em
meditação profunda. Isso indicou que esse praticante estava usando
cânticos e melodias como uma forma de chegar a um certo estado mental.
Ele alcançava esse estado e então o som diminuía, desaparecendo quando
ele permanecia no estado unifocado, que é algo que está “além da voz”.
Quando há uma melodia, a consciência do ouvido ainda está funcionando,
mas quando a meditação de verdade chega, os cinco órgãos sensoriais
não estão mais ativos.

Professor Ahmet Karamastaffa: Sua Santidade, a mesma coisa existe na


prática sufi, que é fazer o que chamamos de “zikr” que é o mantra,
fórmulas que repetimos musicalmente ou às vezes apenas recitando.
Muitos sufis acreditam que mesmo que você o possa cantar ou recitar em
voz alta, e portanto tomar forma sensorial, na verdade ele precisa ser
internalizado, então quanto mais ele é repetido aos poucos torna-se parte
da mente e do coração, para que mesmo quando você pare e pareça estar
em silêncio, o zikr, a recordação, o cântico continua em você. E é assim
que a ideia é expressa e às vezes está no seu sangue, no seu espírito, não é
mais sensorial, não é mais algo que possa ser escutado ou visto, mas a
pessoa se torna o cântico, essa é a ideia.
Sua Santidade o Dalai Lama: Na tradição indo-tibetana há muitas
formas diferentes de recitação, algumas feitas com a voz muito mais forte,
algumas feitas num estilo sussurrante e algumas apenas com repetição
mental, sem som.

Carl Ernst: Eu devo adicionar que há uma tradição entre alguns sufis que
estudaram yoga e perceberam que a repetição de alguns mantras em
sânscrito é muito similar aos nomes árabes do zikr e assim a recitação
dessas sílabas, que de alguma forma nos conecta com o ser interior, abre
novos níveis de percepção.

Dra. Elahé OmidyarMir Djalali: Sua Santidade, eu sei que o tempo é


curto, mas quando você falou do monge e da meditação e da repetição e
de se acalmar, isso me lembrou de um verso de Rumi que diz: “Palavras
podem ser contadas, mas o silêncio é imensurável”, no fim das contas se
chega a esse nível.

Sua Santidade o Dalai Lama: Recentemente eu conheci um praticante


hinduísta. Ele falava e entendia inglês, mas seu discípulo me disse que nos
últimos vinte e dois anos esse praticante havia permanecido em silêncio
absoluto. Vinte e dois anos! Difícil. Nós temos algumas práticas em que
ficamos em silêncio absoluto por um certo tempo. Eu também faço isso,
mas mesmo por uma semana é muito difícil ficar em silêncio. É necessário
ter presença mental, caso contrário sempre surgem palavras!

Dra. Elahé Omidyar Mir Djalali: Sua Santidade, é meu dever agora
encerrar esse encontro. Eles estão me dizendo que está na hora, embora
ainda estejamos sedentos por ouvir mais sobre esse estudo comparativo,
mas nós não queremos cansá-lo. Já que você fez uma longa viagem da
Índia por dezesseis horas, nós não queremos cansá-lo mais e é hora de
encerrar esse evento, se você me permite.

Sua Santidade o Dalai Lama: Esse tipo de debate é excelente. Nós


podemos discutir as semelhanças e quando encontramos diferenças é
importante tentar entender qual é o propósito verdadeiro das diferentes
abordagens. Nós encontraremos, como eu mencionei antes, o mesmo
objetivo. Nós precisamos de mais encontros como esse, primeiro em nível
acadêmico para discutir as semelhanças e diferenças e para ver quais são
os propósitos delas. Então é necessário ter encontros com praticantes
sérios, embora é claro que não é necessário que aquele mestre que ficou
em silêncio por vinte e dois anos venha aqui [risos]!

Tibetanos e chineses gostam de construir enormes estátuas, estátuas de


Buda ou outras figuras importantes. No ano passado um grupo tibetano
construiu uma enorme estátua e me convidou para a consagrar. Eu fui e
participei e dei uma palestra sobre budismo. Eu sou budista e respeito
aquela enorme estátua, mas ao mesmo tempo a estátua sólida pode
permanecer por mil anos, mas nesses mil anos a estátua nunca falará
[risos e aplausos]! Então é desnecessário que seres humanos que
praticam silêncio participem, a não ser que eles tenham alguma
habilidade de fazer milagres. De qualquer forma, praticantes autênticos e
sérios que praticam há muitos anos deveriam se reunir para trocar
diferentes experiências. Eu acredito que isso é muito importante para
mostrar que eles têm o mesmo potencial e uma espécie de efeito
semelhante.

Dra. Elahé Omidyar Mir Djalali: Sua Santidade, eles fazem isso em
particular, eles não abrem para o público pelos mesmos motivos que você
mencionou, que há tantos níveis de entendimento e interpretação do que
é dito que, devido ao medo de ser mal entendido pela maioria, esses
praticantes sérios permanecem em silêncio e só trocam reflexões e ideias
entre si. Rumi e Shams Tabrizi são bons exemplos juntamente com
muitos outros, muitos verdadeiros praticantes não abrem para o público.
Eles dão ensinamentos ao público usando uma linguagem contraditória,
da mesma forma que você mencionou que alguns ensinamentos do Buda
são contraditórios. Os mestres sufis fazem a mesma coisa porque eles
dizem que em um grande público cada um entenderá o que pode, o que
quer e/ou o que conseguem escutar do ensinamento. Então, para evitar
confusão sobre conceitos complexos e difíceis de entender, eles só
conversam entre si... porque chegaram a um ponto em que menos mal-
entendidos podem acontecer.

Sua Santidade o Dalai Lama: Mesmo assim, não é necessário que seja
em público, mas apenas uma seleção de dez ou vinte praticantes que
possam trocar suas experiências profundas e verdadeiras. Seria
imensamente proveitoso para entendermos o valor de diferentes
tradições, o que é muito importante. Agora é o momento em que
precisamos fazer um esforço para promover a harmonia religiosa a fim de
criarmos uma harmonia autêntica. Nós precisamos fazer todo esforço
para desenvolvermos respeito mútuo e compreensão, não vindos de
palavras acadêmicas ou belas apresentações, mas de experiências
espirituais verdadeiras.

Eu tentei conversar com alguns praticantes hinduístas recentemente. Há


dois meses foi o Kumbh Mela, um enorme encontro de quase setenta
milhões de peregrinos a cada doze anos e eu participei nas últimas três
vezes. Na última vez eu queria participar, mas o tempo não permitiu que
meu avião partisse de Dharamsala. Então Deus não quis [risos]! Eu
mandei uma mensagem para lá dizendo que eu queria conhecer os
praticantes que permanecem completamente nus. Eu ouvi falar que
algumas dessas pessoas ficam anos ou décadas nas montanhas nevadas
sem qualquer tipo de vestimenta, então eles devem ter algum tipo de
experiência. Nós temos um tipo de prática especial para cultivar e gerar
calor, sem o qual não é possível sobreviver na neve. Eu queria muito
conhecer aquelas pessoas, mas o tempo não permitiu!

Então eu agradeço muito o empenho de vocês em organizar isso e espero


participar de mais encontros como esse, não por publicidade, mas
simplesmente para tentar entender mais profundamente as diferentes
tradições, seus ensinamentos reais e assim por diante.

Dra. Elahé Omidyar Mir Djalali: O evento de hoje foi histórico, tomara
que seja o primeiro de muitos sob a orientação de Sua Santidade. Com a
esperança de que esse seja apenas o início de um diálogo sincero entre
todas as religiões, nós agradecemos à Sua Santidade por sua honrosa
participação e à Universidade de Maryland e a todos os participantes. Eu
também gostaria de agradecer ao público por estar aqui para se
beneficiar da orientação de Sua Santidade e desfrutar dessa troca
profunda.

O Instituto Roshan preparou um presente para Sua Santidade como


recordação desse primeiro encontro entre budismo e sufismo. É um
poema escrito a mão com caligrafia persa que diz... posso ler? [lê em
persa]:

/qeyre notq-oqeyre imâ-o sejel/

/sad hezaran tarjomân khazad ze del/

A tradução é: “Além das palavras, alusões e argumentos, o coração


conhece cem mil formas de falar”. Tudo se resume ao coração.
Relações entre Muçulmanos Hui,
Tibetanos e Uigures
Dr. Alexander Berzin

O Povo Uigur

As duas principais minorias islâmicas na República Popular da China são


o povo uigur e o povo hui. Ambos seguem a forma sunna do islã,
misturada com várias escolas do sufismo da Ásia central. Os uigures são
um povo turco oriundo da região montanhosa do Altai, no norte da
Mongólia Ocidental. Foi o povo soberano da Mongólia do início do século
8º até a metade do século 9º, quando eles migraram para O Turquestão
Oriental (Chin. Xinjiang). Eles foram o grupo étnico predominante
daquela região desde então e falam em sua própria língua turca. No
entanto, os uigures não são um povo unificado. Como no passado, eles se
identificam primariamente com suas cidades oasis. Na verdade, o termo
“uigur”, para referir-se a todos eles, apenas tem sido usado desde o fim do
século 19 para unificar a resistência deles à dinastia Manchu Qing.

Em geral, os uigures são um povo relaxado que, como os tibetanos, não


possuem uma ética de trabalho protestante. Eles não veem trabalho como
uma virtude por si só e também valorizam desfrutar a vida. Seu nível de
conhecimento e prática do islã é bastante baixo e o estilo de suas
mesquitas e costumes vem da Ásia Central. Aqueles que vivem nas partes
do centro e do norte de Xinjiang agora se tornaram fortemente siníticos.
Em sua maioria, apenas as pessoas idosas vão às mesquitas, que não são
mantidas em boas condições. O islã é mais forte entre os uigures do sul do
Xinjiang onde tem havido uma presença han relativamente pequena. Ele é
praticado ali de uma forma mais tradicional do que aquela praticada
pelos hui.

O Povo Hui

O povo hui é de diversas origens étnicas, primariamente árabes, persas,


da Ásia Central, e da Mongólia, e eles vivem em toda a China.
Originalmente, eles vieram como mercadores e soldados recrutados,
começando a chegar em meados do século 7º. Em meados do século 14,
eles foram forçados a se casar com chineses han. Por conseguinte, eles
falam chinês e seus costumes e suas mesquitas têm todas o estilo chinês.
As outras minorias muçulmanas da China tradicionalmente têm muitas
críticas em relação à adaptação do povo hui de suas práticas islâmicas ao
modo de viver do povo han.

Em geral, falta ao povo hui a atitude relaxada em relação à vida do


Oriente Médio/da Ásia Central e eles compartilham a ambição agressiva
dos chineses por comércio e dinheiro. Como os tibetanos, muitos
carregam facas e as usam facilmente. Estão divididos em dois grupos
maiores. Os hui ocidentais vivem em Ningxia, no sul do Gansu, e em
Qinghai oriental, fazendo fronteira com Amdo (no nordeste do Tibete);
enquanto o povo hui oriental está espalhado por todo o norte da China e
pelo leste da Mongólia Interior.

O Povo Hui Ocidental

Entre os hui ocidentais, o islã é relativamente forte como uma força


unificadora e continua a crescer. Tanto os jovens quanto velhos vão às
mesquitas, que funcionam como um local para encontros sociais e troca
de informações. Essas mesquitas são muito mais ricas e foram mantidas
muito mais limpas do que as uigures. Apesar da presença das escolas
islâmicas na capital cultural hui, Lingxia, que ensinam em sua maioria as
tradicionais seitas sufis, com até mesmo alguns mestres de meditação, a
vasta maioria dos povo hui ocidental não sabe quase nada de profundo
sobre o islã.

O povo hui ocidental parece sucumbir menos às presentes pressões para


se tornarem siníticos que os uigures, talvez porque eles já o são e falam
exclusivamente chinês. Por exemplo, apenas as mulheres uigures que
vivem em vilarejos remotos no sul de Xinjiang colocam panos na cabeça,
enquanto as mulheres hui ocidentais as vestem até mesmo em cidades
chinesas dominadas pelos han.

O Povo Hui Oriental

O povo hui oriental é menos tradicional que o ocidental. Embora


aproximadamente oitenta por cento, tanto jovens quanto velhos, professe
a fé islâmica, poucos vão fazer as orações. O povo hui oriental ainda abate
seus animais de acordo com os procedimentos “halal” e não comem carne
de porco. Muitos, no entanto, fumam e bebem álcool, o que é contra o
Alcorão. Alguns praticam o jejum Ramadan, mas bem poucos homens são
circuncisados e as mulheres não vestem panos sobre a cabeça.
A Posição Privilegiada do Povo Hui

O povo hui gozou de mais privilégios na República Popular da China do


que outras minorias não-han, primariamente porque eles têm sido
diplomáticos e cooperado muito. Por causa desta cooperação e da adesão
diplomática tanto do maoísmo quanto do islã, e da pressão dos países do
Oriente Médio sobre a China para que o islã seja respeitado em troca de
privilégios comerciais, houve uma grande proliferação das mesquitas.
Elas foram construídas primariamente pelo povo hui, não pelos uigures.

Migração Hui

Por séculos, o povo hui têm se espalhado e estabelecido em toda a China,


primariamente como mercadores. Até mesmo durante a dinastia Mongol
Yuan, os muçulmanos acompanharam as missões mongóis de tributo para
praticar o comércio. Os uigures e muçulmanos tibetanos, por contraste,
ficaram isolados em suas terras. Esta diferença talvez tenha a ver com o
fato do povo hui ser descendente de mercadores e soldados mercenários,
enquanto tanto os uigures quanto os muçulmanos tibetanos vieram para
onde se encontram atualmente como refugiados expulsos de suas terras,
na Mongólia e na Caxemira, respectivamente. Então, a presente migração
dos mercadores muçulmanos para o Tibete Central não é nada novo na
história hui. Eles não foram relocados à força para o Tibete pelas
autoridades han chinesas, mas estão se mudando por iniciativa própria
por razões de negócios.

O povo hui ocidental tem se mudado não apenas para o Tibete, mas
também em todas as partes de Gansu e Xinjiang como pioneiros da
colonização chinesa. Eles abrem restaurantes e lojas por todas as
estradas, e assim que há um pequeno número deles em qualquer
localidade, eles constroem uma mesquita – geralmente como um local
para encontros sociais e para manter a sua comunidade unida, e não tanto
por zelo religioso. Não apenas os tibetanos, mas também o povo uigur
ressente a imigração hui. Embora o exército chinês han e a sua burocracia
tenham se mudado primeiro, os comerciantes e homens de negócios han,
sem o espírito pioneiro do povo hui, apenas seguiram os passos destes.

Contraste entre os Tibetanos e as Mentalidades Hui

Muitos tibetanos ainda têm uma mentalidade nômade, com um forte


desejo de independência, especialmente independência de movimento.
Em geral, eles não gostam de trabalho rotineiro. Mesmo se tiverem lojas,
muitos deles as abrirão apenas sazonalmente, frequentemente fechando
as mesmas para fazer longas férias, peregrinações, piqueniques, e assim
por diante. Até mesmo na Índia, muitos tibetanos migram sazonalmente
para as cidades indianas para vender suéteres, fazer peregrinações,
assistir a palestras budistas, e trabalhar apenas uma parte do ano. Por
contraste, o povo hui, como também o han, está interessado apenas em
dinheiro e negócios, e eles ficam em suas lojas e barracas na rua das 6 da
manhã às 10 da noite o ano inteiro sem sair dali.

O povo hui, muito engenhoso e também industrioso, assumiu a fabricação


e venda de produtos tradicionais tibetanos, e os tibetanos não podem e
nem parecem querer competir. O povo hui está fazendo jóias, rosários, e
outra parafernália religiosa no estilo tibetano, equipamento para cavalos,
facas, lã, tapetes, instrumentos musicais, sapatos e macarrão, como
também possui os muitos restaurantes da área. Os mercadores han
apenas vêm mais tarde e vendem em sua maioria produtos modernos
chineses, bens fabricados, como escovas de dente e roupa chinesa barata.

Movimentos de Autonomia Tibetanos e Uigures

Os tibetanos e uigures veem os imigrantes hui, mais do que os han, como


uma ameaça maior para as suas culturas. Como o povo hui e o povo uigur
têm o islã em comum, é evidente que a tensão não surge por motivos
religiosos, mas vem da competição econômica. Os chineses han parecem
encorajar esta tensão, de modo a usá-la para justificar a ocupação militar
para manter a paz e evitar uma outra Bósnia.

Portanto, os movimentos tibetanos e uigures por verdadeira autonomia


ou até mesmo independência não têm nada a ver com o fundamentalismo
budista ou islâmico. Eles vêm do desejo compartilhado de preservar suas
culturas, religiões, e idiomas de serem oprimidos e marginalizados pelas
políticas da República Popular da China e pelas ondas de colonos han e
hui. Por outro lado, o povo hui não mantém aspirações semelhantes, já
que tem muito em comum com os chineses han e nunca teve um estado
independente.
Budismo e Islã: Avançado

A História dos Muçulmanos no


Tibete
Dr. Alexander Berzin

Análise sobre os Tibetanos Muçulmanos

Antes de 1959, cerca de 3.000 tibetanos muçulmanos viviam no Tibete Central.


Eram os descendentes dos mercadores muçulmanos que, principalmente entre os
séculos XIV e XVII, vieram de Caxemira, Ladakh, Nepal e da China para o Tibete.
Casaram com mulheres tibetanas e ali se estabeleceram. Falavam tibetano e
seguiam a maioria dos costumes tibetanos. Tinham quatro mesquitas em Lhasa,
duas em Shigatse e uma em Tsetang, construídas no estilo arquitetônico tibetano.
Para além disso, tinham duas escolas islâmicas em Lhasa e uma em Shigatse para o
estudo do Alcorão e do urdu. No exílio indiano, as comunidades tibetanas
muçulmanas e budistas também vivem em harmonia e com tolerância religiosa.

Originários de Caxemira e Ladakh

Há uma longa história de trocas comerciais entre Caxemira, Ladakh e Tibete, ao


longo da qual os comerciantes dessas regiões se estabeleceram no Tibete Central e
Ocidental. Após a introdução do islamismo em Caxemira e Ladakh, no final do
século XIV, por mestres sufistas, passou a haver muçulmanos entre os imigrantes.
Contudo, o fluxo principal para o Tibete desses imigrantes muçulmanos,
originários de Ladakh e Caxemira, ocorreu durante o período do V Dalai Lama, em
meados do século XVII. Eles foram para o Tibete principalmente por causa da fome
generalizada em Caxemira, estabelecendo-se em Lhasa.

Privilégios Especiais Concedidos pelo V Dalai Lama

Com base numa política de tolerância, relativamente a todas as facções religiosas, o


V Dalai Lama concedeu privilégios especiais aos membros da comunidade
muçulmana. Eles passaram a poder: eleger um comitê de cinco membros para
administrar suas questões internas; resolver suas próprias disputas de acordo com
as leis da Sharia; abrir lojas e praticar o comércio noutras cidades tibetanas; e
ficaram isentos de impostos. Além disso, passaram a poder comer carne durante o
sagrado mês budista do Sakadawa, e a não ter que tirar o chapéu perante os
monges oficiais durante Monlam, o festival de oração. O V Dalai Lama deu ainda
terreno em Lhasa à comunidade muçulmana para uma mesquita e um cemitério,
passando a convidar os seus líderes a todas as principais celebrações do governo.
Missões Comerciais com Ladakh

Como parte do Tratado de Paz Tibetano-Ladakhi, de 1684, o governo tibetano


permitiu que uma missão comercial de Ladakh fosse a Lhasa de três em três anos.
Isso continuou mesmo quando o Tibete esteve fechado a outros estrangeiros.
Numerosos comerciantes muçulmanos de Caxemira e Ladakh, que acompanhavam
essas missões, permaneceram no Tibete, juntando-se aos da sua comunidade que
já lá viviam.

Comerciantes muçulmanos de Caxemira também tinham emigrado para o Nepal,


onde praticavam o comércio entre esse país e os muçulmanos originários de
Caxemira que viviam no Tibete. Quando com sua conquista do Vale de Kathmandu
em 1769 Prithvi Narayan Shah os expulsou do Nepal, muitos emigraram para o
Tibete. Depois do Tratado Tibetano-Nepalês, de 1856, eles recomeçaram o
intercâmbio comercial com o Nepal e a Índia.

Em 1841, o exército Dogra de Caxemira invadiu o Tibete. Após sua derrota, muitos
soldados muçulmanos de Caxemira e de Ladakh que haviam sido aprisionados
decidiram ali ficar. Alguns dos prisioneiros hindús do exército Dogra também
decidiram ficar no Tibete e adotar o islamismo. Eles introduziram o cultivo de
maçãs e damascos no país.

Imigrantes Hui Muçulmanos

Desde o distante século XVII, comerciantes chineses Hui muçulmanos, de Ningxia,


se estabeleceram em Siling (Chin. Xining), em Amdo, nordeste do Tibete. Casaram
com tibetanas e praticavam o comércio entre a China e o Tibete Central. Mais tarde,
alguns deles se estabeleceram em Lhasa, formando uma comunidade muçulmana
separada, com a sua própria mesquita e cemitério.

Sob o domínio da República Popular da China, a situação alterou-se


significativamente. Os tibetanos muçulmanos têm enfrentado o mesmo tipo de
perseguição que é feita aos budistas. Em Amdo, a maioria das cidades é agora
habitada principalmente por chineses hui muçulmanos, e os tibetanos que ali
viviam foram marginalizados para as altas estepes de pasto. Além disso, um grande
número de comerciantes Hui tem estado a emigrar para o Tibete Central. Contudo,
ao contrário dos muçulmanos tibetanos que ali vivem, eles não se integram com a
população local, preferindo manter a sua língua e costumes chineses.
A História dos Muçulmanos Hui da
China
Dr. Alexander Berzin

As Minorias Muçulmanas Nacionais da China

Segundo o censo de 1990, a população muçulmana da República Popular da China


é de 17,6 milhões, dos quais 8,6 milhões são hui, 7,2 milhões uigures, 1,1 milhão
cazaquistães, 375.000 quirguistães, 33.500 tajiquistães e 14.500 usbequistães. Os
hui falam principalmente o chinês, os tajiquistães uma língua indo-europeia
relacionada com a persa, e todos os outros falam dialetos túrquicos. Entre as
cinquenta e seis nacionalidades da China oficialmente reconhecidas, os hui são os
únicos cuja religião (o Islão) é o único elemento unificador da sua identidade. Não
têm uma única língua nacional comum, muitos casaram com chineses han, e vivem
em quase todas as cidades e vilas da China. Têm uma região autônoma – Ningxia,
entre o sul de Gansu e a Mongólia Interior – duas prefeituras autónomas e nove
distritos autónomos. A palavra chinesa "hui" também é usada para se referir a
todos os muçulmanos, tanto dentro como fora da China.

A Origem dos Hui

Embora os hui sejam uma das minorias nacionais da China, eles não constituem um
grupo etnicamente homogêneo. São de origem árabe, persa, mongol e da Ásia
Central, e chegaram à China em várias ondas migratórias. A primeira delegação
árabe islâmica chegou, em 651 dC, à China da Dinastia Tang dezanove anos depois
da morte do profeta Maomé, e um ano após a conquista da Pérsia pelos árabes. A
partir desse momento, comerciantes principalmente árabes, como também um
número menor de persas, se estabeleceram ao longo da costa sudeste da China. Em
758, o imperador chinês Tang pediu ao califa abássida de Bagdá que lhe enviasse
um exército de 20.000 soldados para o ajudar a pôr fim à rebelião An Lushan.
Depois disso, os soldados árabes e persas permaneceram na China, fixando-se nas
áreas noroestes de Gansu e Ningxia. Além disso, em 801, os tibetanos reuniram 20
mil mercenários árabes e sogdianos para os ajudarem na guerra contra o reino
Nanzhao, em Yunnan, no sudoeste da China. Embora os tibetanos tenham sofrido
uma derrota, os soldados muçulmanos permaneceram na região. Em 1070 e 1080,
a pedido do imperador chinês Song, do norte, outros 15 mil soldados árabes foram
estabelecer uma zona defensiva no nordeste da China, entre o seu reduzido reino e
o Império de Khitan em expansão.

No entanto, a maior parte dos hui descende dos dois a três milhões de muçulmanos
da Ásia Central que o governante mongol Kubilai (Kublai) Khan levou para a China,
na década de 1270, como reserva militar. Eles ajudaram-no a conquistar o sul da
China em 1279, e em paz se fixaram por toda a China como comerciantes,
trabalhadores agrícolas e artesãos.
Ananda, um dos netos de Kubilai Khan, foi criado por pais adotivos muçulmanos
persas. Em 1285, ele se tornou o Príncipe de Anxi, uma região que abrangia o
conquistado reino Tangut em Gansu, Ningxia e Sichuan. Os tanguts seguiam uma
forma misturada de budismo tibetano e chinês. Juntamente com seu primo Ghazan
Khan, do Ilkhanato, na Pérsia, o Príncipe Ananda converteu-se ao islamismo em
1295. Por conseguinte, o forte exército mongol em Anxi de 150.000 homens e a
maioria dos tanguts também adotaram a fé islâmica. Assim, no final da dinastia
Yuan mongol, em 1368, os hui eram a maior minoria da China.

Protecção dos Hui durante a Dinastia Ming

Segundo muitos escolásticos, o fundador da dinastia Ming, a nativa Dinastia Han


chinesa que governou a China depois dos mongóis, era na verdade de origem hui,
embora este fato fosse ocultado muito bem. Depois de derrotar os mongóis, ele
facultou a liberdade religiosa, política e econômica aos hui. Porém, como forma de
os proteger de discriminação por parte dos chineses han, ele decretou que os hui
deveriam casar com chineses, falar chinês e vestir como os chineses. A partir desse
momento em diante, os hui perderam as suas diversas raízes culturais.

A Perseguição Manchu durante a Dinastia Qing

Como reação à protecção Ming aos hui, a dinastia seguinte que governou a China, a
dinastia Qing manchu (1644 – 1912), começou a perseguir os muçulmanos da
China. Essa perseguição também se estendeu aos muçulmanos uigures, no
Turquistão Oriental. Entre 1648 e 1878, mais de doze milhões de muçulmanos hui
e uigures foram mortos em dez revoltas fracassadas contra a opressão Qing.
Porém, os tibetanos, que também foram perseguidos pelas forças chinesas han e
manchu [da dinastia] Qing, mantiveram boas relações com os hui. O V Dalai Lama,
por exemplo, visitou em 1652 líderes islâmicos hui, em Yinchuan, capital da atual
Ningxia, quando ía a caminho do Tribunal Imperial Manchu, em Pequim, onde
debateram questões filosóficas e religiosas.

A Migração para o Quirguistão – Os Dungans

No final do século XIX, houve duas vagas migratórias de hui para o Turquistão
Ocidental sob o domínio russo. O primeiro grupo de Gansu e Shanxi chegou em
1878, depois de uma revolta fracassada contra o governo Manchu. A segunda vaga
migratória partiu em 1881 do vale do rio Ili, no extremo oeste do Turquistão
Oriental. Os russos haviam ocupado a região em 1871, mas depois do seu retorno
para a China com o Tratado de São Petersburgo, em 1881, foi dada à população
local a possibilidade de escolha da nacionalidade russa ou chinesa. Estas duas
vagas migratórias hui fixaram-se principalmente no vale do rio Chu, no
Quirguistão, próximo de Bishkek, chamando-se a si próprios de Dungans.
Os Hui Ocidentais e Orientais

Actualmente, os hui na China dividem-se em dois grupos principais. Os hui


ocidentais, centrados em Ningxia, vivem também em Gansu (tanto dentro como
fora das áreas Amdo), Qinghai, a metade ocidental da Mongólia Interior, e em
Shaanxi, Shanxi, Henan e Hebei, províncias do norte da China. Estes são os
muçulmanos que se estão deslocando em grande número para o Tibete Central e
que agora possuem um terço das lojas em Lhasa. O seu centro espiritual e cultural
é Lingxia, situado entre o Mosteiro Labrang e Lanzhou, em Gansu. Os hui orientais
vivem principalmente na metade leste da Mongólia Interior.
Medicina Tibetana

A Medicina Tibetana: Os Princípios


Básicos
Dr. Alexander Berzin

Introdução e História

Antes de mais devo mencionar que não sou um médico, assim por favour não me
façam perguntas sobre as vossas várias doenças. Eu estudei um pouco sobre a
medicina tibetana e há anos que tomo medicina tibetana, por isso só posso explicar
algo sobre a teoria.

A medicina tibetana tem uma longa história. Havia uma tradição nativa de
medicina no Tibete. Com a formação do Império Tibetano no século VII da era
moderna, os imperadores convidaram doutores da India e da China, assim como
tambem das áreas persas e romanas da Ásia Central. Mais tarde, lá para o fim do
século VIII, convidaram mais doutores destas regiões. Também naquela época, os
ensinamentos do Buda sobre medicina foram trazidos da India ao Tibete. Isto
coincidiu com a chegada de Padmasambhava e dos ensinamentos Nyingma.

Naquela altura, havia um grande debate sobre que tipo de budismo e que tipo de
medicina seria adotado no Tibete. Os sistemas budistas indianos venceram em
ambas as contagens por razões sobre as quais não vamos falar aqui. Havia naquele
tempo um grande médico tibetano que combinou aspectos da medicina chinesa e
grega, que tinham estado presentes na Ásia Central, nos ensinamentos budistas
indianos básicos sobre medicina. Assim como muitos textos budistas foram
escondidos naquela época devido a dificuldades, também foram escondidos estes
textos médicos. Foram redescobertos no século XII e então foram ligeiramente
revisados e modernizados. É desta revisão que deriva o atual sistema médico
tibetano.

A medicina tibetana difundiu-se do Tibete à Mongólia, China do norte, Sibéria e a


muitas áreas da Ásia Central, até ao mar Cáspio. A medicina tibetana, assim como
muitos outros aspectos da cultura tibetana, formou o que seria análogo à cultura
latina na Europa Medieval. Sua influência espalhou-se do mar Cáspio ao Pacífico, e
da Sibéria aos Himalaias. Era uma civilização importante. Vamos agora examinar o
sistema médico tibetano.

Classificações de doenças

Descobrimos que as doenças estão classificadas em três grupos. O primeiro é das


doenças completamente estabelecidas. Exemplos incluem disturbios genéticos,
defeitos de nascimento e assim por diante. Doenças e defeitos que estão
completamente estabelecidos surgem de vidas passadas. São muito difíceis de
tratar do ponto de vista da medicina tibetana. Só podemos tentar fazer a pessoa
sentir-se mais confortável. Por exemplo, se tivemos tido uma doença como a asma
desde que éramos bebês, será muito difícil de curar.

A segunda classe é das doenças que surgem de outras circunstâncias. Isto inclui os
desequilíbrios no corpo que surgem devido a várias circunstâncias: o ambiente,
poluição, germes e várias outras circunstâncias. São o tipo usual de doenças e,
assim, este é o foco principal da medicina tibetana. Um exemplo seria a asma que
surge mais tarde na vida devido a viver-se numa cidade poluida e a experienciar-se
muito stress.

A terceira categoria é literalmente chamada de doenças imaginárias. Isto refere-se


às doenças psicosomáticas e às doenças que os tibetanos vêem como sendo
geralmente causadas por forças nocivas. Esta categoria inclui o síndrome do stress
traumático e os esgotamentos nervosos que ocorrem durante uma guerra. Estas
doenças são tratadas principalmente com vários rituais. Isso pode parecer-nos um
pouco ridículo, mas se analisarmos um exemplo da África, talvez possamos
começar a entender. Se alguém estiver muito doente, a sua atitude tem um grande
efeito no sistema imunitário. Isto já foi descrito e pesquisado pela medicina
moderna. Se toda a nossa comunidade ficar acordada toda a noite, dançando e
fazendo rituais, isso dá-nos um sentimento que todos nos estão realmente a apoiar
e melhora muito muito o nosso espírito/ ânimo, que por sua vez pode afetar o
sistema imunitário. O mesmo poderia ocorrer quando temos um grupo de monges
ou monjas fazendo um ritual para nós. Fortalece o sistema imunitário de modo a
que possamos recuperar mais depressa.

Doenças que Surgem de Outras Circunstâncias: Os Cinco


Elementos e os Três Humores

Deixem-nos examinar a segunda classe de doenças. Primeiro, iremos examinar a


natureza das doenças. O corpo é examinado em termos de um equilibrio ou de
cinco elementos ou de três humors. Os cinco elementos são terra, água, fogo, vento,
e espaço. Estas não são coisas abstratas, estranhas, não-relacionadas ao corpo.
Terra refere ao aspecto sólido do corpo, a água ao líquido, o fogo ao calor
(incluindo o calor e acidez digestiva), e o vento refere-se não só aos gases dentro
do corpo mas também à energia no corpo, que inclui a energia elétrica do sistema
nervoso. O espaço refere-se aos aspectos espaciais dentro do corpo – a posição dos
vários órgãos, como também aos vários órgãos ocos como o estômago e assim por
diante. As doenças são vistas como sendo desequilíbrios destes. Há algo de errado
com o sistema destes cinco elementos.

A visão da doença, pela medicina tibetana, em termos de um desequilíbrio dos três


humores é tomada dos gregos mas, efetivamente, a palavra em sânscrito e em
tibetano significa literalmente “ as coisas que podem correr mal”. Os humores são
três sistemas no corpo, cada um tendo cinco partes. Não é óbvio, para mim, porque
é que cinco constituentes são agrupados em um só sistema. Os três sistemas
principais são chamados vento, bílis e fleuma. Vamos examinar o que está
envolvido com estes sistemas.

Vento diz respeito principalmente ao vento no corpo. Há ventos que lidam com a
parte superior do corpo: a energia que entra e sai da parte superior do corpo tal
como quando engolimos, falamos e assim por diante. E ventos que lidam com a
parte de baixo do corpo: a energia que entra e sai da parte de baixo do corpo, tal
como reter ou libertar as fezes, a menstruação e o orgasmo. Um aspecto da energia
lida com a circulação do corpo e a pressão arterial. Também temos energia física
relacionada ao movimento e vários tipos de energia associados com o coração.

Bílis lida com certos aspectos da digestão, como a bílis do fígado. Lida com os
aspectos diferentes da pigmentação, como quando ficamos queimados pelo sol,
com a hemoglobina, as células de sangue vermelhas, e com coisas relacionadas aos
olhos.

Fleuma lida com os sistemas mucoso e linfático no corpo. Relaciona-se aos


resfriados, aos problemas de sinusite e a estes tipos de coisas, assim como ao
aspecto líquido para o movimento das articulações – não estou certo aqui do termo
médico técnico usado no ocidente. Penso que o nome é líquido sinovial. Por
exemplo, o reumatismo e a artrite são disturbios do fleuma. A digestão é um
processo complexo em que certos aspectos do vento, bílis e fleuma estão
associados com estágios diferentes. Todos estes são sistemas muito complexos.
Como digo, não é fácil ver como as cinco categorias de cada um dos três humores
se encaixam num só humor.

As doenças são vistas como desequilíbrios destes três humores, que poderia
significar que um deles é demasiado forte ou que um deles é demasiado fraco.
Podem haver disturbios simples e podem haver disturbios de vários sistemas
simultaneamente. A medicina tibetana é um sistema holístico, tratando o corpo
inteiro, visto que todos os sistemas do corpo estão inter-relacionados.

Há várias maneiras de classificar doenças. Ás vezes o sangue é tomado como um


quarto sistema, que inclui os músculos no corpo. Dentro dessa divisão, podemos
dividir os sistemas de disturbios da bílis, do sangue e do calor como uma categoria
e disturbios do vento, fleuma e frio como outra. Os tibetanos geralmente analisam
as doenças em termos de serem doenças ou de calor ou de frio, mas não sei bem o
que querem exatamente dizer com calor ou frio. Mas indubitavelmente não se
relaciona à temperatura.

Causas das Doenças

Em geral, as doenças podiam ser causadas pela dieta: comer alimentos que
discordam conosco ou demasiado gordurosos. Podem surgir devido a problemas
com o nosso comportamento, como sair quando está frio sem roupa suficiente.
Sentarmo-nos lá fora no chão frio ou numa rocha molhada fria é causa certa para
problemas de rins. As doenças podem ser causadas por pequenos organismos,
bactérias ou micróbios. Aqui, é semelhante ao que a medicina ocidental diz. No
entanto, o que a medicina tibetana diz além disto é que podemos examinar as
causas das doenças a um nível mais profundo. Penso que provavelmente a maneira
mais interessante e mais útil de analisar a medicina tibetana em termos do nosso
modo de pensar é a idéia de que a causa subjacente básica do desequilíbrio físico é
o desequilíbrio emocional e mental.

Se quisermos superar completamente as doenças temos de nos tornar equilibrados


em todos os níveis, particularmente no nível emocional/mental. Existem três
emoções ou atitudes perturbadoras principais. A primeira é o desejo ansioso e
apego. É o desejo neurótico que sente “eu tenho de ter isto e se não conseguir vou
ficar maluco”. A segunda é a raiva. A terceira é a mente fechada e a teimosia
ingenua. Estes estão correlacionados aos disturbios dos três humores. Do desejo
vêm os disturbios do vento; da raiva, os disturbios da bílis; da mente-fechada, os
disturbios do fleuma. Isto é muito interessante. Vamos examinar isto um pouco
mais a miudo.

Frequentemente, os disturbios do vento são caracterizados por um grande


nervosismo. Estão relacionados com a pressão arterial alta. Também sentimos um
grande aperto no peito. Ficamos com o que descrevemos como um coração
destroçado; sentimo-nos incrivelmente deprimidos. Estes são disturbios do vento
muito comuns associados com o desejo ansioso. Por exemplo, se estivermos muito
apegados a ganhar muito dinheiro, nós trabalhamos e trabalhamos, ficamos com
pressão arterial alta e constantemente nervosos. Se estivermos muito apegados a
alguém e esta pessoa morrer ou nos deixar, ficamos com o síndrome do coração
destroçado. As pessoas que meditam incorretamente e se esforçam
demasiadamente, também desenvolvem disturbios do vento. Quando fazemos
demasiado esforço, seja por que razão for, isso comprime as energias no corpo e
causa o aperto no peito, nervosismo, paranoia e assim por diante. Intestinos
nervosos ou estômagos nervosos também são disturbios do vento. A causa
psicológica subjacente a estes problemas é demasiado apego ou desejo.

Os disturbios da bílis vêm da raiva. Uma úlcera, onde há demasiada bílis no


estômago, está associada ao estar muito irritado. Quando irritados, ficamos
vermelhos. A bílis afeta a pigmentação. Ficamos amarelos com icterícea e
vermelhos com raiva. Também há dores de cabeça devido à bílis, que vêm
frequentemente juntas com a raiva: os olhos ardem, a cabeça arde.

A fleuma está relacionada à ingenuidade e à mente fechada. Agarramo-nos a ideias


com muita teimosia e não queremos ouvir ninguém. Ou os nossos corações estão
fechados a certas pessoas porque não queremos lidar com elas. Assim como a
nossa mente e o nosso coração estão fechados, os nossos sinus fecham-se e temos
problemas com os sinus ou desenvolvemos problemas com o nosso peito, como a
pneumonia ou a asma, ou o corpo torna-se fechado e rígido com artrite ou
reumatismo. O corpo reflete a inflexibilidade da mente.

Embora não seja totalmente correto, também podemos aplicar isto em relação a
outras doenças. Frequentemente com o cancer, descobrimos que as pessoas têm
atitudes muito auto-destrutivas. Depois da minha tia ter morrido, o meu tio ficou
sem vontade nenhuma de continuar a viver. Seu estilo de vida começou a tornar-se
auto-destrutivo e muito depressa desenvolveu cancer em que o corpo se auto-
destruiu. Morreu dentro de um ano. Podemos pensar que o estado de mente está
refletido na auto-destruição do cancer. Isto obviamente não é verdade com cada
caso de cancer mas dá-nos algo interessante para pensar.

Com a SIDA, o corpo não tem nenhuma capacidade de lutar contra as coisas.
Algumas pessoas com SIDA não tinham capacidade de lutar contra o vício às
drogas ou ao sexo promíscuo. Tal como não conseguem se controlar com os seus
desejos, o corpo não consegue se defender. Este é o aspecto da medicina tibetana
que eu acho mais estimulante – além do uso prático da medicina.

Diagnóstico das Doenças

Vamos examinar o sistema médico em si. Para diagnosticar doenças, existem


perguntas, examinação visual e examinação do pulso. Os tibetanos não põem muita
muita ênfase em perguntar o que está errado. A maior ênfase está nos outros dois.
A examinação visual inclui examinar a língua, mas o mais importante é a
examinação visual da urina. O doutor olha para a primeira urina da manhã. Esta é
levada ao médico num recipiente branco ou transparente e depois ele ou ela mexe
a urina com uma vara. Os médicos procuram muitas variáveis. Primeiro, analisam a
cor. Depois verificam que tipo de bolhas se formam na urina quando mexida, o
tamanho e duração destas. Quando elas se dispersam, o modo como o fazem e se
há uma certa oleosidade. Verificam se a urina é fina ou densa e se há precipitantes.
Examinam também o odor. Se a obterem imediatamente de manhã, também
podem observar como a sua cor muda ao esfriar. Com todas estas variáveis, podem
fazer um diagnóstico muito preciso da doença.

Examinar a urina é realmente um sistema muito excelente para diagnóstico


porque, assim como ao examinar o pulso, o doutor tem que levar em consideração
a idade da pessoa, o seu sexo e a época do ano. Quando examinam a urina, também
levam em consideração quão velha já é. Isto permite ao doutor examinar urina que
já tem uma semana ou duas. Isto era útil no Tibete onde um membro da família
pode ter tido de carregar uma amostra de urina num iaque durante uma semana
ou duas para chegar ao doutor. Na época moderna, talvez tenhamos de a enviar
para a India via aérea.

O pulso também é examinado. Isto também é muito sofisticado. Geralmente o


doutor examina a pulsação no pulso, um pouco acima do polegar, usando três
dedos. Com cada dedo, ele ou ela pressiona o pulso usando quantidades diferentes
de força. O dedo indicador apenas sente a pulsação de superfície. O dedo médio
pressiona um pouco mais e depois o dedo anelar pressiona tão profundamente
quanto possível. Cada dedo rola ligeiramente de um lado e para outro. Isto é feito
em ambos pulsos. Deste modo, cada lado do dedo lê o diagnóstico para um órgão
diferente no corpo.

A velocidade da pulsação é medida comparando-a à respiração do doutor. Não


haviam relógios no Tibete antigo, por isso os doutores contavam o número de
pulsações durante por exemplo dez das suas respirações. Ademais, examina-se o
que acontece à pulsação quando se pressiona o pulso. Desaparece? Salta para trás
fortemente? Examina-se a maneira que a pulsação viaja na artéria sentindo como
flui pelos dos três dedos. A “forma” da pulsação é observada. Ela rola? Vem em
picos afiados? Torce dum lado ao outro? Há muitas possibilidades. Obviamente,
isto requer que o doutor tenha dedos muito sensíveis. Embora existam
examinações da pulsação no sistema ayurvédico indiano, que é de origem hindu,
assim como na medicina chinesa, são feitas de maneira diferente em cada sistema.
A examinação da urina parece ser original ao sistema tibetano.

Tratamento

Examinando estas várias coisas, o doutor pode chegar a um diagnóstico. Depois


precisamos de tratamento. O tratamento envolve regular a dieta, regular o
comportamento e tomar remédios, mas há outras maneiras de tratar várias
condições, incluindo a acupuntura e a moxabustão, que é queimar partes do corpo.

Dieta
Se tivermos um disturbio do vento, entao certos alimentos serão muito
prejudiciais. Por exemplo a cafeína, como no café, agrava os disturbios do vento.
Estamos muito nervosos e nossa pressão arterial é alta. Lentilhas, como feijões,
produzem vento – a flatulência é uma indicação disto. Para disturbios da bílis, ovos
e alimentos gordurosos ou fritos são muito ruins. Para disturbios da fleuma,
evitamos produtos lácteos e arroz, visto que produzem muito muco. Também
podemos ver isto no ocidente. Outros tipos de alimento podem ser muito úteis
para estes disturbios. Por exemplo, beber água quente é muito bom para a fleuma
porque elimina os mucos.

Modificação do Comportamento
No que diz respeito à modificação do comportamento, se tivermos um disturbio do
vento é importante mantermo-nos quentinhos e estar com amigos afetuosos. O riso
é ótimo para disturbios do vento. Se estivermos muito perturbados e nervosos, o
riso libera-o. Olhar para fora para uma vista de longa distância é muito útil. E
podemos evitar coisas como estarmos à frente de um ventilador ou na rua num
vento forte. Frequentemente as pessoas descobrem que máquinas muito
barulhentas, como máquinas elétricas de cortar a grama ou condicionadores de ar,
as farão ainda mais nervosas. Para disturbios da bílis, é muito útil mantermo-nos
frios/frescos e fora do sol. Para a fleuma, exercício e mantermo-nos quentinhos são
muito bons. Isso porá mais flexibilidade nas articulações e ajudará com a
eliminação dos mucos.

Medicinas
Tomar remédios é o tratamento principal na medicina tibetana. A medicina é feita
principalmente de ervas. Inclui também várias substâncias minerais etc. Cada
medicina pode ter cinquenta ou mais ingredientes misturados. Geralmente são
misturados e pulverizados em forma de pílula. Estas pílulas devem ser mastigadas
e tomadas com água quente. Se não as mastigarmos e apenas as engolirmos,
provavelmente apenas atravessarão por nós sem se dissolverem. São muito duras.
Os tibetanos têm dentes muito fortes. Se as acharmos difíceis de mastigar,
podemos sempre envolvê-las em algo como um lenço e esmagá-las com um
martelo.

Os remédios são tomadas meia-hora antes ou depois de uma refeição.


Ocasionalmente, uma quarta pílula será prescrita para ser tomada por volta das
quatro da tarde, visto que hora de almoço para os tibetanos significa o meio-dia.
Aqui no México e noutros países latinos, se lhes forem receitadas quatro medicinas
diferentes, devem tomar a que diz almoço ao meio-dia e a que diz quatro horas
depois da refeição da tarde.

Uma das grandes vantagens da medicina tibetana é que em quase todos os casos –
embora hajam exceções – não existem efeitos secundários. No entanto, é um pouco
como a medicina homeopática, não no sentido de ser micro-doses mas no sentido
que a medicina vai primeiro agregar a doença junto de modo que fique
concentrada. Depois destrui-la-á. Por causa disto, em muitos casos, embora não
sempre, a doença torna-se um pouco pior no início. Isso é simplesmente um sinal
que o remédio está extraindo a doença para poder livrar-se dela. Temos de ter
paciência e atravessar o estágio inicial.

Ao tomar a medicina, é importante mastigar não só para podermos digeri-la


corretamente, mas também para que a possamos provar. O gosto é geralmente
horrivel. Podem ter sabores que nunca imaginávamos existir. O gosto é importante
porque estimula várias secreções na boca e no trato digestivo. Parte de como a
medicina trabalha é ao estimular o corpo a desprender várias enzimas e assim por
diante. Temos de ter paciência com o gosto do remédio.

É interessante que os alimentos e os vários ingredientes da medicina tibetana são


classificados de acordo com o sabor, não a classificação chinesa dos cinco
elementos ou yin e yang, nem a classificação ayurvédica das três qualidades de
rajas, sattva e tamas. Os doutores tibetanos classificam-nos de acordo com os
sabores principais e os sabores que permanecem. Certos sabores são adequados a
tipos de disturbios diferentes.

Há também um sistema de cerca de dezoito qualidades de alimentos assim como


de ervas. O que aqui é interessante é que aonde o alimento ou as ervas crescem irá
afetar a sua qualidade. Uma coisa que cresce num lugar ventoso tomará uma certa
qualidade diferente de uma coisa que cresce num lugar seco. Isto torna-se num
grande problema em termos do cultivo de plantas medicinais, porque precisam
crescer no seu habitat natural.

Massagem e Acupuntura
Na medicina tibetana, não se dá muita ênfase à massagem. Existe algum tipo de
aplicação de óleos medicinais para determinadas doenças, mas é aplicado sem se
fazer um tipo manipulativo de massage. A medicina tibetana não manipula a aura,
como no sistema japonês de Reiki. Há uma forma de acupuntura, que é diferente da
acupuntura chinesa. Os pontos são diferentes e as descrições dos canais em que as
energias se movem através do corpo são diferentes. Os tipos de agulhas usadas
também são diferentes. Os tibetanos usam agulhas de várias substâncias. A agulha
de ouro é uma das mais comuns. É posta na parte macia do topo da cabeça para
estimular os vários nervos. Isto é usado para coisas como a epilepsia.

Queimar
Moxa é a aplicação de calor ou de queimaduras em partes diferentes do corpo.
Estas são feitas nos mesmos pontos nos quais se faria a acupuntura. Em lugares
frios de alta altitude moxa é mais eficaz; em lugares mais quentes de baixa altitude
as agulhas são mais eficazes nos mesmos pontos. Porém, para doenças específicas,
a moxabustão é recomendada.

A teoria disto é que há um bloqueio do fluxo da energia através dos canais


principais e, assim, queimando ou estimulando estes pontos com agulhas, o
bloqueio é removido. A queimadura pode ser feita com vários graus de calor. A
forma mais suave é com um certo tipo de pedra, que é montada num cabo de
madeira. É uma pedra branca com os listras pretas chamada pedra zi, uma pedra
muito especial encontrada no Tibete. É aquecida pela fricção numa placa de
madeira e aplicada depois em pontos específicos do corpo. Isto é muito eficaz. Eu
tive-o feito a mim provavelmente uma centena de vezes para diversos disturbios.
Deixe-me descrever.

Eu tive sinais iniciais de reumatismo artritico, e estava a ter protuberâncias


dolorosas nos ombros e nos quadris. O doutor deu-me medicina que atraiu o que
os tibetanos chamam “linfa” para dentro destes destes pontos dolorosos e depois
queimou-os. Fêz isto durante três ou quatro anos. A queimadura não é má, é mais
ou menos como uma queimadura de cigarro e não dói muito, embora pareça muito
medieval. Não sei como descrever do ponto de vista médico ocidental mas minha
própria interpretação do que se estava a passar era que havia uma espécie de
inchaço dentro dos nódulos linfáticos nas articulações ou talvez era um problema
com o líquido sinovial à volta das articulações. Em todo caso, quando o doutor
queimou nesses pontos, o líquido que estava dentro causando a pressão dolorosa
formou uma bolha, porque a dor acabou imediatamente quando ele queimou.
Outra coisa que pensei foi que se o corpo é queimado em certos pontos ele emite
um alarme; uma quantidade enorme de leucócitos [células brancas] vem a esse
lugar e elas ajudarão então a curar qualquer disturbio que estiver ocorrendo nesse
lugar além da queimadura. Achei este tratamento muito útil e curei-me.

Tive outra doença. Às vezes quando se anda muito nas montanhas, para cima e
para baixo, um tendão começa a friccionar contra o osso no joelho. É muito
doloroso. Fui a um doutor ocidental que disse, “Use uma bandagem elástica sempre
que você andar”. Muito obrigado. Tentei acupuncture chinesa e não ajudou nada.
Finalmente, regressei à India e fui ao meu doutor tibetano. Fêz uma queimadura
diretamente no joelho e noutro lugar na parte superior da perna e fiquei
completamente curado. Assim, pela minha experiência pessoal, acho a moxa
queimar um tipo de tratamento muito eficaz.

Um tipo mais forçoso de queimadura é feito com uma vara de ferro ou de prata
feita vermelha-quente nos carvões. Eu vi este método usado para problemas com a
coluna onde há algo de errado com um disco ou a coluna está fora de alinhamento.
Queimam-se em pontos específicos ao lado da coluna e isso causa um choque tão
incrível ao corpo que o corpo automaticamente se corrige a si próprio. Mais uma
vez, parece muito medieval, mas resulta.

Um tipo ainda mais severo de queimadura é queimar um pequeno cone de um


certo tipo de massa. Queima lentamente. Esse tipo de queimadura é usada para a
artrite e o reumatismo muito severos quando não se consegue mover as
articulações.

Outros Tipos de Tratamento


Há alguns tipos de lubrificantes, feitos de óleo ou manteiga misturado com várias
ervas usados para disturbios da pele. Até há clisteres de ervas, que são úteis para
disturbios do intestinos grosso. Há também certos tipos de pós que são inalados,
como o snuff para problemas dos seios perinasais. E os tibetanos também gostam
muito de usar fontes de águas minerais quentes.

Treino

O sistema tibetano de medicina requer um período muito longo de treino. Os


médicos geralmente treinam durante sete anos e aprendem não só como curar as
pessoas, como também tratar os animais; e não só medicina, mas também
farmacologia. Aprendem a identificar as plantas medicinais, como recolhê-las e
como fazer as medicinas.

Astrologia

O sistema tibetano envolve também alguns estudos de astrologia. Na astrologia


tibetana, um aspecto é o animal do ano em que a pessoa nasceu. Para cada animal,
dias específicos da semana são pró-vida ou pró-morte. Se os médicos forem fazer
alguma manipulação forte como uma queimadura, então, se houver tempo,
consultarão a astrologia para determinar o dia de semana mais adequado. Isso não
é sempre possível, como quando há uma emergência ou não há tempo suficiente.

Cirurgia

A medicina tibetana nas épocas antigas tinha uma forma de cirurgia. Temos
gravuras nos textos de instrumentos cirúrgicos. Mas uma vez um médico executou
uma cirurgia no coração de uma rainha sem sucesso. Depois disso, as operações e a
cirurgia foram proibidas. A medicina tibetana pode tratar muitas coisas com ervas
que no oeste requereriam uma operação, como a apendicite. Se tivermos um
acidente de carro a medicina tibetana pode ajudar a ajustar os ossos, há medicina
muito boa para choque e para acelerar o processo curativo, mas se precisarmos
realmente de qualquer tipo de operação é melhor irmos a médicos ocidentais.

O fato é que não devemos colocar todas as nossas esperanças apenas num sistema
médico. Vários sistemas médicos à volta do mundo são úteis para tipos de coisas
específicos. Há determinadas coisas que a medicina tibetana nunca conseguiu
tratar, como a varíola ou a tuberculose. Mas tem curas excelentes para outras
coisas que nós não temos tratamentos no oeste, como a artrite e a hepatite.
Determinados – não todos – tipos de cancer respondem muito bem à medicina
tibetana. Mesmo se não curar o cancer, pode fazer reduzir a dor e melhorar a
qualidade da vida de uma pessoa que está para morrer.

Adaptações Modernas

Também é muito interessante que os textos antigos predisseram o


desenvolvimento de doenças novas no futuro. Agora nós temos coisas como a SIDA
e doenças relacionadas com a poluição. As fórmulas para fazer estas medicinas
estão nos textos, mas são um bocado obscuras. O Dr. Tenzin Choedak, além de ser o
doutor sênior de Sua Santidade o Dalai Lama, foi quem conseguiu descodificar
estas fórmulas e fazer medicinas novas.

Muitas destas medicinas são feita de mercúrio detoxificado. É cozinhado com


outros ingredientes durante vários meses de cada vez num processo muito lento
de detoxificação. Este tipo de medicina tem sido muito útil para doenças
relacionadas à poluição – e muitas das nossas doenças modernas estão
relacionadas com a poluição. Este tipo de medicina teve muito sucesso no
tratamento das pessoas que foram contaminadas pelo desastre químico da Bhopal,
na India. Eu tive a honra de viajar com o Dr. Tenzin Choedak na Rússia há uns anos
atrás quando ele estava testando esta medicina para vítimas de radiação de
Chernobyl a convite do Ministério da Saúde Russo. Os resultados iniciais foram
muito encorajadores. Assim, embora o sistema médico tibetano seja antigo e
complexo, também se pode adaptar às doenças modernas e pode ser muito útil
para muitos tipos de disturbios.

Uma Atitude Realística relativamente ao Tratamento

Não devemos esperar milagres ao tomar medicina tibetana. Também temos que
levar o karma em consideração. Podemos ter duas pessoas exatamente com a
mesma doença tomando a mesma medicina e dará resultado com uma mas não
com a outra. Há muitos fatores envolvidos. Um é a ligação kármica, vinda de vidas
passadas, com um tipo específico de tratamento médico e um médico específico. Se
não tivermos acumulado as forças kármicas para sermos curados de uma doença,
não importa que tipo de medicina ou que tipo de médico temos, nada nos irá
ajudar. Temos de ser realísticos quando abordamos qualquer sistema médico,
incluindo o tibetano. Também precisamos tentar ter uma atitude positiva, visto
que isso afeta certamente o sistema imunitário. Mas não devemos esperar milagres
e depois levar o médico ao tribunal se a medicina não trabalhar como queriamos.
Shambhala

Mitos Errôneos sobre Shambhala


Dr. Alexander Berzin

Introdução

Muitos mitos estrangeiros cresceram em volta da legenda de Shambhala


encontrada na literatura de Kalachakra. Alguns foram espalhados para
ganhar apoio militar ou político, tal como a identificação da Rússia, da
Mongólia ou do Japão como Shambhala. Outros apareceram dentro de
movimentos ocultistas e misturaram idéias budistas com conceitos de
outros sistemas de crenças. Vários até organizaram expedições para
encontrar a terra legendária.

Dois círculos surgiram entre as versões ocultistas. Um deles considerava


Shambhala como um paraíso utópico cujo povo virá salvar o mundo. O
escritor britânico, James Hilton, encaixa-se neste círculo. O seu trabalho
de 1933 Lost Horizon [Horizonte Perdido], descreve Shangrila como um
paraíso espiritual situado num vale inacessível e secreto no Tibete.
Shangrila é indubitavelmente uma corrupção romântica de Shambhala. O
outro círculo descreveu Shambhala como uma terra de poderes
malévolos. Vários relatos do pós-guerra sobre a ligação entre o nazismo e
o ocultismo apresentam esta interpretação. É importante não se
confundir qualquer uma destas distorções com o próprio budismo.
Deixem-nos traçar o fenômeno.

Teosofia

A Madame Helena Blavatsky (1831-1891) nasceu na Ucrânia filha de


aristocracia Russa. Dotada com poderes extrasensoriais, viajou pelo
mundo em busca de ensinamentos ocultos e secretos, e passou muitos
anos no subcontinente indiano. De 1867 a 1870, ela estudou budismo
tibetano com mestres indianos, muito provavelmente das regiões
culturais tibetanas dos Himalaias indianos, durante a sua suposta estadia
no Mosteiro de Tashilhunpo no Tibete.

Blavatsky encontrou o budismo tibetano numa altura em que a erudição


europeia oriental estava ainda na sua infância e em que poucas traduções
ou narrativas estavam disponíveis. E mais, ela teve a oportunidade de
aprender somente fragmentos desconjuntados dos seus vastos
ensinamentos. Nas suas cartas privadas, escreveu que como o público
ocidental tinha naquela altura pouca familiaridade com o budismo
tibetano, ela decidiu traduzir e explicar os termos básicos com conceitos
mais popularmente conhecidos do hinduísmo e do ocultismo. Por
exemplo, ela traduziu três dos quatro mundos-ilhas (quatro continentes)
em volta de Monte Meru como as ilhas perdidas desaparecidas de
Hiperbórea, da Lemúria e da Atlântida. Do mesmo modo, apresentou as
quatro raças humanóides mencionadas no Abhidharma e nos
ensinamentos de Kalachakra (nascidos por meio de transformação,
umidade e calor, ovos, e úteros) como as raças destes mundos-ilhas. A sua
convicção de que os ensinamentos esotéricos de todas as religiões do
mundo formam um corpo de conhecimento oculto reforçou a sua decisão
de traduzir desse modo e ela tomou a iniciativa de demonstrar isso nas
suas escritas.

Juntamente com o coronel americano espiritualista Henry Steel Olcott,


Madame Blavatsky fundou a Sociedade Teosófica em 1875 em Nova
Iorque. As suas sedes internacionais mudaram para Madras, na Índia,
pouco depois. Quando o seu colega Alfred Percy Sinnett identificou a
teosofia com o budismo esotérico em Esoteric Buddhism [Budismo
Esotérico] (1883), Blavatsky refutou a sua alegação. De acordo com as
suas Letters of H. P. Blavatsky to A. P. Sinnett [Cartas de H. P. Blavatsky a A.
P. Sinnett], que foram publicadas postumamente, a posição de Blavatsky
era que a teosofia transmitia “os ensinamentos ocultos secretos de trans-
Himalaia”, e não os ensinamentos do budismo tibetano. Não obstante,
através de suas escritas, o oeste veio primeiro a associar Shambhala com
o ocultismo e muitos subsequentemente confundiram esta ligação com os
verdadeiros ensinamentos do budismo.

Em 1888, Blavatsky mencionou Shambhala na sua obra principal, The


Secret Doctrine [A Doutrina Secreta], os ensinamentos que ela disse ter
recebido telepaticamente dos seus professores no Tibete. Ela escreveu
numa carta que, embora os seus professores fossem “byang-tzyoobs” ou
“tchang-chubs” (Tib: byang-chub, Sânsc: bodhisattva) reencarnados, ela
tinha-os chamado “mahatmas” dado que esse termo era mais conhecido
pelos ingleses na Índia.

A origem tibetana dos ensinamentos em The Secret Doctrine [A Doutrina


Secreta], Blavatsky afirmou, é The Stanzas of Dzyan [As Estâncias de
Dzyan], o primeiro volume dos comentários aos sete fólios secretos
de Kiu-te. “Kiu-te” transcreve “rgyud-sde” tibetano, que significa “divisão
tantra” que é o título da primeira seção do Kangyur, as traduções
tibetanas das palavras de Buda. “Dzyan” transcreve o sânscrito “dhyana”
(Jap. zen), significando estabilidade mental. Blavatsky estava ciente
que The Kalachakra Tantra [O Tantra Kalachakra] era o primeiro artigo
na divisão tantra doKangyur, uma vez que ela mencionou esse fato num
dos seus apontamentos. No entanto, ela explicou que os sete fólios
secretos não faziam realmente parte do Kiu-te publicado, e assim nós não
encontramos qualquer coisa similar às Stanzas de Dzyan nessa coleção.

Não está claro até que ponto Blavatsky realmente estudou os textos de
Kalachakra diretamente. O primeiro material ocidental sobre o tópico foi
um artigo de 1833 entitulado “Note on the Origins of the Kalachakra and
Adi-Buddha Systems” [Observações sobre as Origens dos Sistemas de
Kalachakra e de Adi-Buddha] pelo pioneiro erudito húngaro Alexander
Csomo de Körös (Körösi Csoma Sandor). De Körös compilou o primeiro
dicionário e gramática tibetana numa língua ocidental, o inglês, em
1834.O Tibetan-Russian Dictionary and Grammar [Dicionário e Gramática
Tibetano-Russa], de Jakov Schmidt depressa seguiu em 1839. A maioria
do conhecimento de Blavatsky sobre o Kalachakra, contudo, veio do
capítulo intitulado “The Kalachakra System” [O Sistema de Kalachakra]
em Buddhism in Tibet [Budismo no Tibete] (1863), por Emil Schlagintweit,
como evidenciado pelo empréstimo de muitas passagens desse livro nas
suas obras. Seguindo o seu princípio de tradução, no entanto, ela rendeu
Shambhala em termos de conceitos semelhantes ao hinduísmo e
ocultismo.

A primeira tradução inglesa de The Vishnu Purana [O Vishnu Purana], por


Horace Hayman Wallace, tinha aparecido em 1864, três anos antes da
suposta visita de Blavatsky ao Tibete. De acordo com essa obra, ela
explicou Shambhala em termos da apresentação hindu neste texto: é a
vila onde o futuro messias, Avatar de Kalki, irá aparecer. Blavatsky
escreveu que o Kalki é "Vishnu, o Messias no Cavalo Branco dos
bramanes; o Buda Maitreya dos budistas; Sosiosh dos parsis; e Jesus dos
cristãos”. Ela também afirmou que Shankaracharya, o fundador de
Advaitya Vedanta do início do século IX, “ainda vive entre a Irmandade de
Shamballa, do outro lado dos Himalaias”.

Noutro lugar, ela escreveu que quando Lemúria se afundou, parte do seu
povo sobreviveu em Atlântida, enquanto que parte dos seus eleitos
migrou para a ilha sagrada de “Shamballah” no deserto de Gobi. No
entanto, nem a literatura de Kalachakra nem The Vishnu Purana,
mencionam Atlântida, Lemúria, Maitreya ou Sosiosh. Contudo, a
associação de Shambhala com eles continuou entre os seguidores de
Blavatsky.

A localização de Blavatsky de Shambhala no deserto de Gobi não é


surpreendente visto que os mongóis, incluindo a população buryat da
Sibéria e os kalmyks da região mais baixa do Volga, eram fortes
seguidores do budismo tibetano, particularmente dos seus ensinamentos
de Kalachakra. Durante séculos, os mongóis em toda parte acreditaram
que a Mongólia é o Reino Nórdico de Shambhala e Blavatsky tinha sem
dúvida conhecimento das crenças dos buryat e dos kalmyk na Rússia

Blavatsky também poderia ter recebido confirmação da sua localização


de Shambhala no deserto de Gobi [a partir] das escritas de Csoma de
Körös. Numa carta de 1825, ele escreveu que Shambhala é como uma
Jerusalém budista estendida entre 45 e 50 graus de longitude. Embora ele
achasse que Shambhala seria provavelmente encontrada no deserto de
Kizilkum no Cazaquistão, o deserto Gobi também caía dentro das duas
longitudes. Mais tarde, outros também o situariam dentro destes
parâmetros, porém ou no Turquistão Oriental (Xinjiang, Sinkiang) ou nas
montanhas de Altai.

Embora a própria Blavatsky nunca afirmasse que Shambhala era a fonte


de The Secret Doctrine [A Doutrina Secreta], mais tarde vários teosofistas
fizeram esta ligação. Proeminentemente entre eles estava a Alice Bailey
em Letters on Occult Meditation [Cartas sobre Medita ção Oculta] (1922).
Helena Roerich, nas suas Collected Letters (1935-1936) [Cartas Coletados
(1935-1936)], também escreveu que Blavatsky era uma mensageira da
Irmandade Branca de Shambhala. Além disso, ela relatou que em 1934 o
Regente de Shambhala tinha chamado de volta ao Tibete os mahatmas
que tinham transmitido os ensinamentos secretos a Blavatsky.

Asserção de Dorjiev da Rússia como Shambhala

A primeira principal exploração da legenda de Shambhala para


finalidades políticas também envolveu a Rússia. Agvan Dorjiev (1854-
1938) era um monge mongol de Buryat que estudou em Lhasa e tornou-
se Parceiro Mor de Debates (Tutor Assistente) do XIII Dalai Lama. Face às
maquinações britânicas e chinesas para controle do Tibete, ele convenceu
o Dalai Lama a virar-se para a Rússia para apoio militar. De acordo com a
Ekai Kawaguchi em Three Years in Tibet [Três Anos no Tibet], fê-lo
dizendo-lhe que a Rússia era Shambhala e que o Czar Nicholas II era a
reencarnação de Tsongkhapa, o fundador da tradição Gelug. Dorjiev foi
em diversas missões à Corte Imperial Russa, mas nunca conseguiu obter
qualquer ajuda. No entanto, conseguiu convencer o Czar a construir um
templo budista em São Petersburgo.

A primeira cerimônia pública no templo teve lugar em 1913. Foi um ritual


para a longa vida da Dinastia dos Romanov no aniversário do seu
tricentenário. De acordo com Albert Grünwedel, o explorador alemão da
Ásia central, em Der Weg nach Shambhala [O Caminho para Shambala]
(1915), Dorjiev falou da Dinastia dos Romanov como os descendentes dos
regentes de Shambhala.

Mongólia, Japão e Shambhala

A exploração política seguinte da legenda de Shambhala ocorreu na


Mongólia. O Barão von Ungern-Sternberg, um alemão que viveu na
Rússia, era um fervoroso anti-Bolchevique. Durante a Guerra Civil que se
seguiu à Revolução Russa de 1917, ele lutou na Sibéria com as forças
brancas (czaristas) Russas. Ele invadiu a Mongólia Exterior em 1920 com
sucesso para libertá-la dos chineses. Famoso pela sua crueldade, Ungern
massacrou milhares de chineses, mongóis colaboradores, bolcheviques
russos e judeus, ganhando o nome de “Barão Louco”. Ungern acreditava
que todos os judeus eram bolcheviques.

Sukhe Batur estabeleceu o Governo Comunista Mongol Provisório em


Buryatia e conduziu um exército mongol contra Ungern. Ele mobilizou as
suas tropas dizendo-lhes que, lutando para libertar a Mongólia de
opressão, eles iriam renascer no exército de Shambhala. Com a ajuda do
Exército Vermelho Soviético, Sukhe Batur invadiu Urga (Ulaan Baatar), a
capital Mongol, no fim de 1921. A República Popular da Mongólia foi
fundada em 1924.

Depois da invasão japonesa da Mongólia Interior em 1937, o Japão


também explorou a legenda de Shambhala para proveito político. Para
tentar obter a lealdade dos mongóis, espalhou a propaganda que o Japão
era Shambhala.

Ossendowski e Agharti

No livro de 1922 Beasts, Men and Gods [Bestas, Homens e


Deuses ] , Ferdinand Ossendowski (1876-1945), um cientista polonês que
passou a maior parte da sua vida na Rússia, escreveu sobre as suas
viagens recentes à Mongólia Exterior durante as campanhas do Barão von
Ungern-Sternberg. Ossendowski relatou que vários lamas mongóis lhe
tinham falado de Agharti, um reino subterrâneo debaixo da Mongólia,
governado pelo Rei do Mundo. No futuro, quando o materialismo arruinar
o mundo, irá haver uma guerra terrível. Nessa altura, o povo de Agharti
virá à superfície ajudar a terminar a violência. Ossendowski relatou que
ele convenceu Ungern da sua história e que, subsequentemente, Ungern
mandou missões em busca Agharti duas vezes, conduzidas pelo Príncipe
Poulzig. As missões falharam e o Príncipe nunca retornou da segunda
expedição.
Kamil Gizycky era um engenheiro do exército polonês que também lutou
contra os Bolcheviques na Sibéria e depois se juntou às forças de Ungern
na Mongólia. Não fez menção nenhuma de Agharti na sua narrativa dos
eventos da altura, Poprzez Urjanchej i Mongolie [Através de Urankhai e da
Mongólia] (1929). Interessantemente, relatou que Ossendowski ajudou o
Barão Louco oferecendo-lhe a fórmula para fazer gás venenoso.

Embora os textos de Kalachakra nunca descrevam Shambhala como um


reino subterrâneo, o relatório de Ossendowski paralela claramente a
narrativa de Kalachakra do regente Kalki de Shambhala vindo ajudar o
mundo terminar uma guerra apocalíptica. No entanto, o aparecimento de
Agharti aqui é digno de atenção. O nome não aparece na literatura de
Kalachakra nem nas obras da Madame Blavatsky.

O autor francês Joseph-Alexandre Saint-Yves d' Alveidre primeiro


popularizou a legenda de Agharti (Agharta, Asgartha, Agarthi, Agardhi)
no seu romance Mission de l’Inde en Europe [Missão da Índia na Europa ],
escrita em 1886. Ele descreveu-a como um reino subterrâneo com uma
universidade que é um repositório de conhecimento secreto. Localizado
originalmente em Ayodhya Índia, foi mudada para um lugar secreto
debaixo dos Himalaias 1800 anos antes de Cristo. O seu rei, um
“mahatma”, guarda os seus segredos e não os revelou, dado que eles iriam
permitir as forças do Anticristo de construir armas poderosas. Quando as
forças malignas tiverem sido destruídas, os mahatmas irão revelar seus
segredos para o benefício da humanidade.

Saint-Yves d' Alveidre pode ter, de fato, retirado vários elementos da sua
história da discussão de Kalachakra sobre Shambhala. O número 1800
aparece repetidamente como um motivo na literatura de Kalachakra e os
textos clássicos relatam que os líderes de Shambhala possuíam o
conhecimento para construir armas para derrotar as forças do invasor.
Não obstante, o autor francês claramente escreveu um trabalho de ficção.

Em Ossendowski und die Wahrheit [Ossendowski e a Verdade] (1925), Sven


Hedin, o explorador sueco do Tibete, rejeitou as asserções de
Ossendowski ter ouvido de Agharti através dos lamas mongóis. Ele
escreveu que o cientista polonês tinha tirado o mito de Agharti de Saint-
Yves d' Alveidre e o tinha moldado à sua história a fim de atrair a leitura
de um público alemão já familiarizado, a um certo nível, com o oculto.
Hedin admitiu, contudo, que o Tibete e o Dalai Lama eram os protetores
do conhecimento secreto.

Uma explanação adicional, no entanto, poderia ser que Ossendowski usou


o mito de Agharti para obter o favorecimento de Ungern. Ungern teria
sem dúvida identificado as forças materialísticas do Anticristo, que
Agharti iria ajudar a derrotar, como os bolcheviques, contra quem ele
estava lutando. Visto que Sukhe Batur estava a mobilizar as suas tropas
com a promessa de Shambhala, Ungern poderia igualmente usar a estória
de Agharti para seu próprio proveito. Se este fosse o caso, poderíamos de
aqui traçar a versão da legenda de Shambhala que descreveu Shambhala
desfavoravelmente.

Roerich, Shambhala e Agni Yoga

Nikolai Roerich (1874 – 1947), pintor russo e estudante fervoroso de


teosofia, tinha estado no comitê para a construção do templo budista em
São Petersburgo e tinha feito o plano para as suas janelas de vidro
colorido. A sua esposa, Helena, foi quem traduziu The Secret Doctrine [A
D outrina Secreta] de Blavatsky para o russo. Entre 1925 e 1928, ele
dirigiu uma expedição da Índia, através do Tibete, à Mongólia Exterior e à
região da montanha de Altai na Sibéria, a norte do Turquistão Oriental. O
suposto objetivo era estudar plantas, etnologia e línguas, e pintar.
Contudo, o seu objetivo principal era descobrir Shambhala.

De acordo com diversos relatos teosóficos, a missão de Roerich era


devolver a Shambhala uma chintamani (jóia que concede desejos),
confiada nele pela Liga das Nações. O seu grupo afirmou ter localizado
Shambhala na região de Altai. Mesmo hoje em dia, os seguidores de
Roerich continuam sua convicção que as montanhas de Altai são um
grande centro espiritual, associado de algum modo a Shambhala.

A busca de Roerich de Shambhala foi talvez parcialmente inspirada


por Der Weg nach Shambhala [O Caminho para o Shambhala] de
Grünwedel, que continha uma tradução de The Guidebook to
Shambhala [O Guia para Shambhala] (Tib. Sham-bha-la’i lam-yig), escrito
em meados do século XVIII pelo Sexto Panchen Lama (1738-1780). No
entanto, o Panchen Lama explicou que a viagem física a Shambhala
poderia levar-nos apenas até um certo ponto. Para alcançar o reino
legendário, teríamos de fazer uma quantidade enorme de práticas
espirituais. Ou seja, a viagem a Shambhala era na verdade uma viagem ao
interior. Esta explanação, entretanto, não pareceu deter aventureiros
intrépidos tal como os Roerichs de tentar alcançar Shambhala meramente
caminhando até lá.

Em 1929, os Roerichs criaram o Agni Yoga, incorporando os


ensinamentos teosóficos como sua base. Eles talvez tivessem também
seguido o modelo de Blavatsky de traduzir terminologia budista com as
imagens e expressões que eram mais familiares, vindas do hinduísmo e
do ocultismo. Os Roerichs, afinal, afirmavam que Shambhala era a fonte
de todos os ensinamentos indianos. Também chamaram os seus regentes
“os Senhores do Fogo que irão lutar contra os Senhores da Escuridão”.

Agni é a palavra sânscrita para fogo – especificamente, o fogo purificador


sagrado dos Vedas. De acordo com isto, Roerich explicou que os mestres
de Shambhala utilizam os seus poderes para a purificação. Os praticantes
de Agni Yoga escolhem Buda, Jesus, ou Maomé como guia para a prática
espiritual. Concentrando-se nos seus guias escolhidos, rezam para a paz
fazendo simultaneamente simples visualizações de purificação de
obstáculos.

Na prática tântrica budista, os meditadores concluem retiros intensivos


com os chamados “pujas de fogo”. Nestes rituais, eles oferecem vários
grãos e manteiga a um fogo para purificar e acalmar quaisquer obstáculos
que possam surgir dos erros feitos durante a sua meditação. Nas chamas,
eles visualizam a deidade-fogo Agni, uma figura claramente emprestada
do hinduísmo. Roerich pode ter testemunhado tais pujas no Templo
budista em São Petersburgo ou durante as suas viagens pelas regiões
mongóis e ter daí derivado a sua idéia de Agni Yoga.

Assim, a principal associação que Roerich fez com Shambhala era como
um lugar de paz. Em Shambhala: In Search of a New Era [Shambhala: Em
Busca de Uma Nova Era] (1930), Roerich descreveu Shambhala como uma
cidade sagrada a norte da Índia. O seu regente revela os ensinamentos do
Buda Maitreya para a paz universal. Cada tradição descreve Shambhala
de acordo com a sua própria compreensão e, assim, a lenda do Santo Gral,
por exemplo, é uma versão da estória de Shambhala. Constantino o
Grande, o Chinggis Khan (Genghis Khan) [Gêngis Khan], e Prester John
encontram-se entre aqueles que receberam mensagens dos ensinamentos
do “Misterioso Local Espiritual e Irmandade no coração da Ásia”.

Roerich até mesmo inventou a expressão “Guerreiros de Shambhala”,


adotada mais tarde na década de 1980 por Chogyam Trungpa Rinpoche,
um Lama Tibetano encarnado das linhagens Karma Kagyu e Nyingma que
adaptou e expressou idéias budistas num americano vernacular moderno.
Trungpa escreveu, no entanto, que a sua idéia do guerreiro de Shambhala
não estava relacionada com os ensinamentos de Kalachakra ou com a
própria Shambhala. Era uma metáfora para alguém se esforçando para o
automelhoramento para o benefício dos outros. Roerich, por outro lado,
usou a expressão para “os Irmãos da Humanidade” que, de Shambala,
virão trazer a paz ao mundo.
Depois de voltar da Ásia, Roerich viajou a Nova Iorque onde, em 1929, foi
instrumental na promulgação do Pacto de Roerich, um tratado
internacional para a proteção de monumentos culturais do mundo. A
bandeira da paz que Roerich propôs tinha três círculos, que, ele explicou,
são encontrados em todas as tradições espirituais, incluindo a dos
“Rigden Jyelpos”, os Reis de Shambhala. Nada como isto, entretanto, é
encontrado nos textos de Kalachakra. Numerosos países do mundo
assinaram o pacto, incluindo os Estados Unidos em 1935. O símbolo dos
três círculos foi mais tarde adotado como uma insígnia usada em numa
banda nos braços de algumas pessoas fisicamente inválidas indicando a
sua necessidade de tratamento delicado.

Em Shambhala: In Search of a New Era [Shambhala: Em Busca de uma


Nova Era], Roerich também deu a entender uma similaridade entre
Shambhala e Thule, o reino escondido no pólo norte, que, como veremos
mais adiante, inspirou os alemães na sua busca por um reino secreto. Ele
também mencionou a associação de Shambhala com a cidade subterrânea
de Agharti (Agarthi), alcançada através de túneis sob os Himalaias. Os
seus habitantes emergirão na “época da purificação”. Nas suas Collected
Letters (1935 – 1936) [Cartas Coletados (1935-1936)], Helena Roerich
observou que Saint-Yves d' Alveidre tinha identificado incorretamente
Shambhala com Agharti, mas que não são o mesmo lugar.

Jocelyn Godwin, em Arktos, The Polar Myth in Science, Symbolism and Nazi
Survival [Arktos, o Mito Polar na Ciência, no Simbolismo e na Sobrevivência
Nazista] (1993), identificou o poder de Agni com vril. Vril é o poder
psicocinético protegido pelos habitantes de Thule, que os nazistas
tentaram obter para ajudar a fortalecer a sua super-raça ariana. Roerich,
contudo, nunca fez esta associação.

Steiner, Antroposofia e Shambhala

Como um contrapeso às apresentações de Blavatsky e Roerich de


Shambhala como um reino benevolente que irá ajudar a estabelecer a paz
mundial, versões alternativas enfatizaram o aspecto apocalíptico da
lenda. Elas associaram Shambhala principalmente com as forças
destrutivas da regeneração que irão eliminar modos de pensar obsoletos
e antiquados e estabelecer uma nova ordem mundial pacífica. Assim, a
força destrutiva de Shambhala é, por fim, benevolente. Estas versões
tiveram também as suas raízes na teosofia.

Em 1884, o Dr. Wilhelm Hübbe-Schleiden fundou a Sociedade Teosófica


Alemã. Após um fiasco inicial, Annie Besant convidou Rudolf Steiner
(1861-1925), um espiritualista austríaco, para a restabelecer em 1902.
Steiner deixou a sociedade em 1909 principalmente porque não
concordava com a declaração de Besant e de C.W. Leadbetter de que
Krishnamurti, então com dezesseis anos de idade, era o messias. Numa
série de palestras dadas em Berlim e em Munique em 1910 e em 1911,
Steiner ensinou o que alguns chamaram “uma versão cristianizada da
teosofia”. Steiner, entretanto, afirmou que os seus ensinamentos vinham
da sua leitura clarividente “dos registros akáshicos”, não da teosofia.

Akasha é a palavra sânscrita para espaço, e estes registros ocultos contêm


supostamente toda a sabedoria da humanidade. Os textos de Kalachakra
referem-se ao nível mais sutil e completamente purificado de atividade
mental que é a base para a consciência onisciente de um Buda como “o
vajra espaço todo-abrangido com espaço” [“the space vajra pervasive
with space.”]. Não a apresentam, contudo, como um registro de todo o
conhecimento que possa ser explorado por meios psíquicos.

De acordo com Steiner, Cristo, o verdadeiro profeta, irá revelar o Reino de


Shamballa (Shambhala) com a sua Segunda Vinda. Shambhala, que
desapareceu há muito tempo, é o reino de Maitreya. Numa palestra
intitulada “Maitreya – Christ oder Antichrist (Maitreya – Christ or
Antichrist)” [Maitreya – Cristo ou Anticristo], Steiner explicou que “tudo
que virá dos lábios de Maitreya virá através do poder de Cristo”.

Steiner enfatizou o conflito entre o bem e o mal, como personificado por


Lúcifer e Ahriman. Blavatsky já tinha diferenciado Lúcifer de Satanás. De
acordo com The Secret Doctrine [A Doutrina Secreta ], Lúcifer é o
“Portador da Luz”, a “Luz Astral” dentro de cada uma das nossas mentes
que tanto é o nosso sedutor como o liberador do nosso animalismo puro.
Serve tanto para criar como para destruir, e manifesta-se na paixão
sexual. Embora Lúcifer possa elevar a humanidade a um plano mais
elevado, os eruditos latinos transformaram-no no completamente
malévolo Satanás.

Blavatsky também escreveu sobre o dualismo zoroastriano e a luta entre


Ahura Mazda e Ahriman, como as forças da luz e da escuridão. Steiner,
contudo, foi mais além que Blavatsky e transformou o dualismo num
antagonismo entre Lúcifer e Ahriman. Em Occult Science, An Outline [A
Ciência Oculta, Um Esboço], Steiner caracterizou Lúcifer como um ser de
luz, a ponte entre Homem e Deus, trazendo-nos para mais perto de Cristo.
As “crianças de Lúcifer”, então, são todos aqueles que buscam o
conhecimento e a sabedoria. Ahriman, por contraste, conduz a
humanidade para baixo, para a sua natureza inferior, material, carnal,
animalística.
Steiner chamou-se a si próprio um luciferiano e, pela sua lógica, Maitreya
é o Anticristo. Dado que as pessoas perverteram os verdadeiros
ensinamentos de Cristo, Maitreya, como o Anticristo, virá de Shambhala e
irá purificar o mundo de sua mácula e ensinar a verdadeira mensagem de
Cristo. Em 1913, os seguidores de Steiner fundaram a Sociedade
Antroposófica, embora o próprio Steiner não se tivesse juntado a ela
antes de tê-la restabelecido em 1923.

De acordo com o Tantra de Kalachakra, Raudrachakrin, o vigésimo quinto


regente Kalki de Shambhala, irá derrotar os invasores não-indicos que
irão tentar conquistar o mundo. Estes invasores irão seguir os
ensinamentos de uma linha de oito profetas: Adão, Abraão, Noé, Moisés,
Jesus, Mani, Maomé e Mahdi. A análise histórica sugere que o modelo para
estes invasores eram as forças ismaili shiite de Multan (o atual Paquistão)
dos finais do século X, um aliado do Império Fatímida no Egito. Os
Fatímidas, com o seu messias Mahdi, tentaram conquistar o mundo
islâmico antes do apocalipse predito e do fim do mundo quinhentos anos
depois de Maomé. As pessoas por toda a região viviam com enorme medo
de uma invasão, incluindo a região budista-hindu-muçulmana do
Afeganistão, onde os ensinamentos históricos de Kalachakra
provavelmente se desenvolveram. O predito conflito e derrota dos
invasores, entretanto, era uma metáfora espiritual para a batalha interior
contra o medo e a ignorância. Ofereceu um método eficaz para as pessoas
aterrorizadas naquele tempo para superar suas ansiedades fortemente
sentidas.

Steiner provavelmente não estava consciente do contexto histórico e do


significado metafórico da lenda de Shambhala. Assim, ele e vários outros
nas décadas seguintes consideraram Shambhala como sendo o reino do
poder espiritual do qual irá surgir a reforma da cristianidade. A ênfase de
Steiner em Maitreya e Shambhala como as verdadeiras fontes da reforma
cristã no futuro provavelmente também refletem o seu desânimo com a
promoção teosofista de Krishnamurti como o novo salvador.

Os textos de Kalachakra nem sequer mencionam os ensinamentos do


cristianismo. Contudo, indicam métodos para que os hindus e os
muçulmanos possam descobrir significados alternativos das doutrinas
das suas próprias religiões, que os permitiriam formar uma fronte
espiritual unida com budistas para enfrentarem os terrores de uma
invasão. Eles até salientam ensinamentos dados pelo Buda que
paralelizam algumas das asserções muçulmanas e hindus. Se os
seguidores daquelas religiões estivessem interessados, eles poderiam
usar as suas próprias crenças como passos para alcançar o caminho
budista. Todavia, os textos de Kalachakra não afirmam que os
ensinamentos budistas contêm o verdadeiro significado do hinduísmo ou
do islão. Nem afirmam de modo nenhum que Shambhala será a fonte da
reforma que irá trazer as pessoas de volta às verdadeiras doutrinas dos
fundadores dessas duas religiões, muito menos do retorno aos
ensinamentos puros de Cristo.

Alice Bailey e a “Força de Shambhala”

A teosofista britânica Alice Bailey (1880-1949) era uma médium que


afirmou que canalizava e recebia cartas ocultistas de um mestre tibetano.
Em 1920, depois de ter perdido a sua batalha contra Annie Besant para a
liderança do movimento teosófico, fundou a Lucifer Trust nos Estados
Unidos. Chamando originalmente a sua Trust de Tibetan Lodge, mudou o
seu nome uma vez mais em 1922 para Lucis Trust. A suas palestras e
escritas geraram o movimento Nova Era. Ela chamou a Nova Era tanto a
Era de Aquário como a Era de Maitreya.

Em Initiations, Human and Solar [Iniciação Humana e Solar]


(1922), Letters on Occult Meditation [Cartas sobre Meditação Oculta]
(1922), A Treatise on Cosmic Fire [Um Tratado sobre o Fogo Cósmico]
(1925), e A Treatise on White Magic [Um Tratado sobre Magia Branca]
(1934), Bailey escreveu extensivamente sobre a “Força de Shambhalla”.
Como Roerich, ela partiu do princípio que Shambhala era o “assento do
Fogo Cósmico”, que é uma força purificadora. Contudo, em vez de
conceber esta força como um agni benevolente, seguiu a direção de
Steiner e associou-a com Lúcifer. Assim, falou dele como uma fonte de
poder destrutivo para expulsar formas degeneradas dos ensinamentos e
estabelecer a pureza de uma Nova Era.

A força de Shambhala, Bailey explicou, é a energia extremamente volátil


da vontade do eu. Em si, é extremamente destrutiva e pode ser a origem
do “Mal”. No entanto, quando vista como a Vontade Divina, os iniciados
podem utilizá-la para o “Bem” último. Uma “Hierarquia” em Shambhala,
dirigida por Maitreya, protege a Força e, na altura certa, irá iniciar os que
estiverem prontos nos “Mistérios das Eras”, no “Plano”. Ficamos curiosos
de saber se as suas idéias inspiraram a visão da “Força” na Guerra nas
Estrelas, como um poder que pode ser utilizado para o bem ou para o mal,
e que é protegido por uma irmandade de Cavaleiros de Jedi.

Como Steiner, Bailey adaptou o conceito não só de Lúcifer, mas também


do Anticristo, e desta vez associou-o com a Força de Shambhala.
Apropriando conceitos teosóficos, disse que a Força de Shambhala tinha
tornado a sua presença conhecida duas vezes antes na história. A
primeira vez foi durante a Era lemuriana, anunciando a individualização
da humanidade. A Segunda foi “durante a época atlântica de conflito entre
os Senhores da Luz e os Senhores da Forma Material, as Forças da
Escuridão”. Hoje em dia, ela continuou, – referindo-se ao período entre as
duas guerras mundiais – , está-se a manifestar como a força para destruir
o que é indesejável e obstrutivo nas formas de governo, religião e
sociedade no mundo.

Doreal e a Irmandade do Templo Branco

Os ensinamentos de Bailey produziram vários movimentos ocultistas


adicionais que associaram Shambhala com idéias ainda mais esotéricas.
Um exemplo é o da Irmandade do Templo Branco, fundada em 1930 pelo
espiritualista americano Morris Doreal (1902-1963). Em Maitreya, Lord
of the World [Maitreya, Senhor do Mundo], Doreal escreveu que Shamballa
(Shambhala) é o Grande Templo Branco do Tibete, situado 75 milhas
debaixo dos Himalaias. A sua entrada é subterrânea, com espaço em
redor dela curvado em uma deformação que conduz a outro universo.
Descreveu Shambhala como tendo duas metades. A metade do sul é a
seção onde os aptos e os grandes gurus vivem. A metade do norte é o
reino onde Maitreya, o avatar ou o professor do mundo, vive. No futuro,
Maitreya virá com os guerreiros de Shambhala, que são os “portadores de
luz da Era de Aquário”, conquistar as forças escuras do mal no mundo.

O trabalho principal de Doreal foi The Emerald Tablets of Thoth the


Atlantean [Tábuas das Esmeraldas de Thoth, o Atlante], que afirmou ter
descoberto em baixo da Grande Pirâmide no Egito e ter traduzido da
língua Atlante. Afirmou também ter recebido iniciações secretas dos
monges tibetanos.

Haushofer, a Sociedade de Thule e a Alemanha Nazista

Após a Segunda Guerra Mundial, Bailey explicou a política nazista


afirmando que Hitler tinha apropriado a Força de Shambhala e, como um
“instrumento das forças da escuridão”, tinha abusado dela para combater
a “Energia da Luz”.

Semelhante às asserções de Bailey da ligação entre Hitler e a Força de


Shambhala, diversos estudos do pós-guerra sobre o nazismo e o
ocultismo asseveraram que os nazistas enviaram expedições ao Tibete
para procurar a ajuda das forças de Shambhala e de Agharti para executar
o seu Plano Mestre. Bailey, todavia, apenas mencionou Shambhala neste
contexto e não disse nada sobre Agharti. Estes relatos, por outro lado,
alegam que os mestres de Shambhala recusaram-se a ajudar as
expedições nazistas, mas que os seguidores de Agharti concordaram e
voltaram para a Alemanha com eles.

Além disso, atribuem a busca nazista de apoio ocultista no Tibete às


convicções de Karl Haushofer e da Sociedade de Thule. Haushofer foi o
fundador da Sociedade de Vril em associação com a Sociedade de Thule e
teve uma enorme influência nos pensamentos ocultistas de Hitler. As
sociedades de Thule e de Vril combinaram crenças de várias fontes.
Vamos traçar concisamente algumas destas crenças, em ordem
cronológica, antes de examinarmos estes estudos do pós-guerra.

Os gregos da antiguidade escreveram não só sobre as desaparecidas ilhas


Atlântidas, mas também de Hiperbórea, uma terra nórdica cujo povo
migrou para o sul antes do gelo a ter destruído. Olaf Rudbeck, o autor
sueco dos finais do século XVII situou-a no Pólo Norte e vários outros
relatos explicaram que antes da sua destruição, quebrou-se nas ilhas de
Thule e de Ultima Thule.

O astrôónomo britânico Sir Edmund Halley, também nos finais do século


XVII, promoveu a teoria de que a terra é oca. O escritor francês Júlio
Verne popularizou a idéia em Voyage to the Center of the Earth [Viagem
ao Centro da Terra ] (1864). Em 1871, o escritor britânico Edward
Bulwer-Lytton, em The Coming Race [A Raça Futura], descreveu uma raça
superior, os Vril-ya, que viveu debaixo da terra e planeou conquistar o
mundo com vril, uma energia psicocinética. Em Les Fils de Dieu [Os Filhos
de Deus] (1873), o autor francês Louis Jacolliot ligou o vril com o povo
subterrâneo de Thule. O defensor da liberdade indiano, Bal Gangadhar
Tilak, em The Arctic Home of the Vedas [O Lar Árctico dos Vedas] (1903),
identificou a migração ao sul do povo de Thule com a origem da raça
ariana. Em 1908, o autor americano Willis George Emerson publicou o
seu livro The Smokey God, or A Voyage to the Inner World [O Deus
Esfumaçado, Viagem ao Mundo Interior], que descreve a viagem de um
marinheiro norueguês através de uma abertura no Pólo Norte a um
mundo escondido dentro da Terra.

A Sociedade de Thule foi fundada em 1910 por Felix Niedner, o tradutor


alemão dos nórdicos Eddas. Identificou o povo germânico com a raça
ariana, os descendentes de Thule, e procurou a sua transformação em
uma super-raça através da utilização do poder do vril. Como parte do seu
emblema, tinha a suástica, um símbolo tradicional para Thor, o nórdico
Deus dos Relâmpagos. Ao fazê-lo, a sociedade de Thule seguiu o
precedente de Guido von List que, nos finais do século XIX, fez da suástica
um emblema para o movimento neo-pagão na Alemanha.
Juntamente com Jorg Lanz von Liebenfels e Phillip Stauff, von List tinha
sido proeminente na fundação do movimento ariosofista, popular antes e
durante a Primeira Guerra Mundial. A ariosofia combinou o conceito de
raças da teosofia com o nacionalismo alemão para asseverar a
superioridade da raça ariana como justificação para a Alemanha
conquistar os impérios coloniais globais dos ingleses e franceses como o
justo regente das raças inferiores. A Sociedade de Thule abraçou as
convicções da ariosofia. No entanto, deve-se notar que o movimento
teosófico nunca pretendeu que os seus ensinamentos sobre raças fossem
usados como uma justificação para afirmar a superioridade de uma raça
sobre outra, ou o direito destinado de uma raça para governar as outras.

Quando Rudolf Freiherr von Sebottendorf estabeleceu a filial da


Sociedade de Thule em Munique em 1918, adicionou o anti-semitismo e o
uso sancionado do assassinato aos credos da sociedade. Tinha aprendido
estes elementos durante os seus anos na Turquia através do seu contato
lá com a Ordem dos Assassinos. Esta ordem secreta pode ser traçada à
seita Nazari de Ismaili Islam [dos muçulmanos ismaili] contra quem as
Cruzadas tinham lutado.

Mais tarde em 1918, depois da Revolução Comunista bavariana, o anti-


comunismo juntou-se também ao conjunto de objetivos da Sociedade de
Thule. Em 1919, a Sociedade de Thule de Munique fundou o Partido
Alemão dos Trabalhadores. Hitler juntou-se a ele nesse mesmo ano e,
tornando-se seu líder em 1920, deu-lhe o novo nome de Partido Nazista e
adotou a suástica para a sua bandeira.

Karl Haushofer era um conselheiro militar alemão ao Japão após a Guerra


Russo-Japonesa de 1904-1905. Ficou extremamente impressionado pela
cultura japonesa, estudou a língua, e tornou-se mais tarde instrumental
no estabelecimento da aliança entre a Alemanha Nazista e o Japão
Imperial. Ele também aprendeu sânscrito e supostamente estudou no
Tibete durante um ano. Fundou a Sociedade de Vril em Berlim em 1918,
que além aos credos da Sociedade de Thule, também promovia a procura
do vril entre seres sobrenaturais debaixo da terra. O local mais provável
seria o Tibete, que ele via como a terra natal dos emigrantes arianos de
Thule.

Haushofer também desenvolveu a geopolítica, de acordo com a qual uma


raça obtém o poder expandindo seu espaço vital (Alemão: Lebensraum)
através da conquista das suas terras vizinhas. Nos finais da década de
1920, Haushofer dirigiu o Instituto de Geopolítica em Munique e a partir
de 1923 começou a ensinar as suas perspectivas a Hitler. Haushofer foi
instrumental em convencer Hitler a estabelecer o Ahnenerbe
(Departamento para o Estudo da Herança Ancestral) em 1935. A sua
tarefa principal era situar as origens da raça ariana, especialmente na
Ásia central. Em 1937, Himmler incorporou este departamento nos SS
(Alemão: Schutzstaffel, Equipe de Proteção).

Em 1938-1939, o Ahnenerbe patrocinou a terceira expedição de Ernst


Schäffer ao Tibete. Durante a sua breve estadia, o antropólogo Bruno
Beger mediu os crânios de numerosos tibetanos e concluiu que eram uma
raça intermediária entre os arianos e os mongóis e podiam servir como
um elo para a aliança Alemã-Japonêsa.

A Busca Nazista de Shambhala e Agharti de Acordo com Pauwels,


Bergier e Frére

Um número de eruditos questionou a exatidão dos estudos pós-guerra


sobre o nazismo e o ocultismo. Seja que representem exatamente ou não
o pensamento nazista durante o Terceiro Reich, ainda assim representam
mais uma distorção popularizada da lenda de Shambhala. Deixem-nos
examinar duas versões ligeiramente diferentes.

De acordo com a versão encontrada em Le Matin des Magiciens [A Manhã


dos Mágicos] (1962) pelos investigadores franceses Louis Pauwels e
Jacques Bergier e em Nazisme et Sociétiés Secretès [Nazismo e Sociedades
Secretas] (1974) por Jean-Claude Frére, Haushofer acreditava que dois
grupos de arianos migraram de Hiperbórea-Thule para o sul. Um foi para
Atlântida, onde se mesclaram com os lemurianos que tinham também
para lá migrado. Recordem que Blavatsky tinha associado os lemurianos
com Atlântida e Shambhala, e Bailey tinha associado os lemurianos e os
atlantes com a Força de Shambhala. Os descendentes destes arianos
impuros voltaram-se para a magia negra e conquista. O outro ramo dos
arianos migrou para o sul, passando através da America do Norte e
Eurásia setentrional, alcançando finalmente o Deserto de Gobi. Lá,
fundaram Agharti, cujo mito tinha-se tornado popular através das
escritas de Saint-Yves d' Alveidre.

De acordo com Frére, a Sociedade de Thule igualou/comparou Agharti


com seu cognado Asgaard, o domicílio dos deuses na mitologia nórdica.
Outros afirmam, menos convincentemente, que Agharti está relacionado
com Ariana, um antigo nome persa conhecido pelos gregos da
antiguidade para a região que se estende do Irão Oriental através do
Afeganistão a Uzbequistão – a terra natal dos arianos.

Depois de um cataclismo mundial, Agharti afundou-se debaixo da terra.


Isto concorda com o relato de Ossendowski. Os arianos dividiram-se
então em dois grupos. Um foi para o sul e fundou um centro secreto de
aprendizagem sob os Himalaias, também chamado Agharti. Lá, eles
preservaram os ensinamentos da virtude e do vril. O outro grupo ariano
tentou retornar a Hiperbórea-Thule, mas em vez disso fundou
Shambhala, uma cidade de violência, de maldade e de materialismo.
Agharti era possessor do Caminho da Direita e do vril positivo, enquanto
que Shambhala era custódio do pervertido Caminho da Esquerda e da
energia negativa.

A divisão entre os caminhos da direita e da esquerda já tinha aparecido


em A Doutrina Secreta de Blavatsky. Lá, ela escreveu que na época dos
atlantes, a humanidade ramificou em caminhos de conhecimento da
direita e da esquerda, que se tornaram as origens da magia branca e
negra. Contudo, não associou os dois caminhos a Agharti e Shambhala. De
fato, nunca mencionou Agharti nas suas escritas. As expressões caminhos
da direita e da esquerda derivam de uma divisão dentro do tantra hindu.
Os primeiros escritores ocidentais caracterizaram frequentemente o
tantra da esquerda como uma forma degenerada e identificaram-no
incorretamente com o budismo tibetano e seus ensinamentos do
anuttarayoga tantra.

De acordo com Pauwels e Bergier, a Sociedade de Thule procurou


contatar e fazer um pacto com Shambhala, mas somente Agharti
concordou oferecer ajuda. Por 1926, estes autores franceses explicaram,
já haviam colonias de hindus e de tibetanos em Munique e em Berlim,
chamadas a Sociedade de Homens Verdes, ligados astralmente com a
Sociedade do Dragão Verde no Japão. Pertencer a esta última requeria o
ritual de suicidio japonês (Jap: hara-kiri, seppuku) se a pessoa perdesse a
honra. Supostamente Haushofer tinha-se juntado à sociedade durante os
seus primeiros anos no Japão. O líder da Sociedade de Homens Verdes era
um monge tibetano, conhecido como “o homem com luvas verdes”, que
supostamente visitava Hitler frequentemente e possuía as chaves de
Agharti. Expedições ao Tibete seguiram-se anualmente, de 1926 a 1943.
Quando os russos entraram em Berlim no fim da guerra, encontraram
quase mil cadáveres de soldados da raça himalaia, vestidos em uniformes
nazistas mas sem papéis de identificação, que tinham cometido suicídio.
O próprio Haushofer cometeu hara-kiri antes que pudesse ser julgado em
Nürenberg em 1946.
A Busca Nazista de Shambhala e Agharti de Acordo com
Ravenscroft

Um relato ligeiramente diferente da busca nazista de Shambhala e


Agharti apareceu em The Spear of Destiny [A Lança do Destino] (1973)
pelo investigador britânico Trevor Ravenscroft. De acordo com esta
versão, a Sociedade de Thule acreditava que duas seções dos arianos
voltaram-se para a adoração de duas forças malévolas. A sua volta para o
mal causou o declínio de Atlântida e, subsequentemente, os dois grupos
estabeleceram comunidades em cavernas nas montanhas submersas
debaixo do Oceano Atlântico perto da Islândia. A lenda de Thule surgiu
deles. Um grupo de arianos seguiu o Oráculo Luciférico, chamado Agarthi
(Agharti), e praticou o caminho da esquerda. O outro grupo seguiu o
Oráculo Arimânico, chamado Schamballah (Shambhla), e praticou o
caminho da direita. Notem que Ravenscroft relatou o oposto das
asserções de Pauwels, Bergier e Frére que Agharti seguiu o caminho da
direita e Shambhala o da esquerda.

Ravenscroft também explicou que de acordo com a “doutrina secreta” –


fazendo alusão ao livro de Blavatsky pelo mesmo nome – que apareceu no
Tibete há dez mil anos, Lúcifer e Ahriman são as duas forças do Mal, os
dois grandes adversários da evolução humana. Lucifer leva as pessoas a
verem-se como deuses e está associado à fome pelo poder. Seguir Lúcifer
pode conduzir ao egoísmo, ao falso orgulho e ao abuso dos poderes
mágicos. Ahriman empenha-se em estabelecer um reino puramente
material na terra e usa o desejo sexual perverso das pessoas em ritos de
magia negra.

Recordem que embora Blavatsky tivesse escrito sobre Lúcifer e Ahriman,


ela não fez dos dois um par e não associou nenhum dos dois com
Shambhala ou Agharti. Além disso, Blavatsky explicou que embora a
erudição latina tenha transformado Lúcifer num Satanás puramente
maléfico, Lúcifer tinha o poder de destruir e de criar. Ele representava a
presença portadora de luz na mente de todos que podia elevar as pessoas
do animalismo e causar uma transformação positiva para um plano mais
elevado de existência.

Foi Steiner que tinha enfatizado Lúcifer e Ahriman como representando


os dois pólos do poder destrutivo. Todavia, Steiner descreveu Lúcifer
como a força destrutiva fundamentalmente benevolente para a
regeneração, e Ahriman como totalmente malévolo. Além disso, Steiner
associou Lúcifer com Shambhala e não com Agharti e, de fato, como
Blavatsky e Bailey, nunca mencionou Agharti. E mais, nenhum dos três
autores ocultistas descreveu Shambhala como situado no subterrâneo.
Somente os Roerichs tinham associado Shambhala com a cidade
subterrânea de Agharti, mas tinham esclarecido que os dois eram
diferentes e nunca afirmaram que Shambhala era subterrânea.

Ravenscroft, como Pauwels, Bergier e Frére, também afirmou que através


da iniciativa de Haushofer e de outros membros da Sociedade de Thule,
equipes exploratórias foram enviadas ao Tibete anualmente de 1926 a
1942 para estabelecer contato com comunidades das cavernas
subterrâneas. Deveriamconvencer os mestres de lá a alistar a ajuda dos
poderes luciféricos e arimânicos a promover a causa nazista,
especialmente para a criação de uma super-raça ariana. Os aptos de
Shambhala recusaram-se a ajudar. Como seguidores do Oráculo
Arimânico, estavam apenas interessados em promover o materialismo.
Além disso, Shambhala já se tinha afiliado a certos grupos na Grã
Bretanha e nos Estados Unidos. Isto era talvez uma referência a Doreal,
cuja Irmandade do Templo Branco na América tinha sido o primeiro
movimento ocultista de importância a afirmar que Shambhala era uma
cidade subterrânea. Além disso, este relato também se encaixa bem com o
desdém de Haushofer pela ciência materialística ocidental, à qual
chamava “Ciência Judaica-Marxista-Liberal” a favor da “Ciência Nórdica-
Nacionalística”.

Ravenscroft prosseguiu dizendo que os mestres de Agharti concordaram


ajudar a causa nazista e, a partir de 1929, grupos de tibetanos vieram à
Alemanha, onde se tornaram conhecidos como a Sociedade de Homens
Verdes. Juntamente com membros da Sociedade do Dragão Verde do
Japão, estabeleceram escolas ocultistas em Berlim e em outros lugares.
Notem que Pauwels e Bergier afirmaram que colonias não só de
tibetanos, mas também de hindus estavam presentes em Berlim e em
Munique desde 1926, e não só desde 1929.

Himmler foi atraído a estes grupos de mestres tibetanos-agharti e, de sua


influência, estabeleceu o Ahnenerbe em 1935. Recordem que Himmler
não estabeleceu o Ahnenerbe, mas que o incorporou nos SS em 1937.

Uma Teoria para Explicar o Sentimento Anti-Shambhala e a


Inclinação Pró-Agharti dos Movimentos Ocultistas Alemães

É difícil verificar se Haushofer e a Sociedade de Thule afirmaram


realmente quaisquer dos pontos acima , que misturam descrições
ocultistas de Shambhala com a descrição de Ossendowski a respeito de
Agharti e com as lendas de Thule e vril. É também difícil verificar se
Haushofer tentou e teve sucesso em influenciar Hitler e instituições
nazistas oficiais, tais como o Ahnenerbe, para enviar expedições ao Tibete
para obter ajuda das duas supostas terras subterrâneas – ou mesmo se a
própria Sociedade de Thule enviou tais expedições. A única missão ao
Tibete sancionada oficialmente pelo Ahnenerbe – a Terceira Expedição
Tibetana (1938-1939) de Ernst Schäffer – teve sem dúvida um propósito
diferente, embora igualmente ocultista. Seu objetivo principal era medir
os crânios dos tibetanos para determinar se eram a origem dos arianos, e
se eram uma raça intermediária entre os arianos e os japonêses.

Com exceção de certos erros e contradições factuais entre os dois relatos


de Haushofer acima e o credo da Sociedade de Thule, dois pontos de
consenso parecem significativos. Primeiro, Steiner e Bailey associaram
com Shambhala o poder regenerativo de destruir ordens obsoletas e de
estabelecer novas ordens reformadas. Eles representaram este poder
fundamentalmente benevolente com Lúcifer. Haushofer e a Sociedade de
Thule, por outro lado, supostamente associaram Lúcifer e este poder
benevolente com Agharti. Para eles, Shambhala tornou-se uma terra de
poder destrutivo completamente malévolo, representada por Ahriman e
pelo materialismo descontrolado. Segundo, embora a Sociedade de Thule
e os nazistas tivessem primeiro procurado a ajuda de Shambhala,
representando o caminho malévolo do materialismo, foram recusados.
Em vez disso, receberam o apoio de Agharti, representando o caminho
fundamentalmente positivo de destruição dos fracos e da criação da Raça
Mestra como o próximo passo em frente na evolução humana.

Vamos deixar de lado, por um momento, a pergunta se a Sociedade de


Thule e o Ahnenerbe realmente enviaram missões ao Tibete procurando
a ajuda de Shambhala e de Agharti. No entanto, deixem-nos supor,
também por um momento, que Haushofer tenha realmente misturado as
lendas de Shambhala e Agharti com as convicções da Sociedade de Thule
e que a mistura resultante representava a posição ocultista nazista. Se
esse fosse o caso, então a seguinte teoria para explicar a asserção que
Shambhala rejeitou a abordagem nazista, enquanto que Agharti a aceitou
faria sentido .

Com Dorjiev, Shambhala foi associada com a Rússia e mais tarde também
com o comunismo, enquanto que com Ossendowski, Agharti foi associada
com as forças anti-semíticas e anticomunistas do Barão alemão von
Ungern-Sternberg. Desde a Revolução Comunista bavariana de 1918, a
Sociedade de Thule e o Hitler eram fervorosamente anticomunistas.
Antes disto, ambos já eram antisemíticos. Assim, em seus olhos,
Shambhala era uma força escura e negativa que suportava a “ciência
Judaica-Marxista-Liberal” totalmente materialística. Com esta forte
atitude anticomunista, Hitler assinou o Pacto Anti-Commintern com o
Japão em Novembro de 1936, em que ambos os países declararam a sua
hostilidade mútua em relação à propagação internacional do comunismo.
Ambos concordaram que não iriam assinar quaisquer tratados políticos
com a União Soviética. Não obstante, para evitar uma guerra européia em
duas frontes, Hitler assinou o Pacto Nazi-Soviético com Stalin em Agosto
de 1939. Contudo, ele quebrou este pacto em Junho de 1941, quando as
forças nazistas invadiram a União Soviética.

Uma explanação e justificação ocultista da reviravolta de Hitler pode ser


feita através de uma alegoria. Shambhala (a União Soviética, o comunismo
e os judeus) era fundamentalmente malévola (reconhecido pelo Pacto
Anti-Commintern). Apesar disso, Hitler procurou primeiro uma aliança
com ele (o Pacto Soviético-Nazista). Shambhala recusou (Hitler culpou a
União Soviética por ter quebrado o pacto). Hitler virou-se então para
Agharti, de onde recebeu apoio. (Ungern, um alemão antisemítico e
antibolchevique, tinha também previamente procurado ajuda de Agharti,
mas não tinha conseguido situar o legendário reino. Assim, Ungern tinha
falhado na sua missão. Dado que as expedições de Hitler tinham
encontrado Agharti-Asgaard e tinham recebido sua ajuda, os nazistas
iriam certamente suceder).

Evidência Que Suporta a Teoria

Os fatos seguintes suportariam a teoria acima , que explica a descrição


ocultista alemã de Shambala como sendo uma terra de forças malévolas.
Em Der Weg nach Shambhala [O Caminho a Shambhala] (1915), o
explorador alemão da Ásia central, Albert Grünwedel, relatou que Dorjiev
tinha identificado a Dinastia dos Romanov como os descendentes dos
regentes de Shambhala.

Em Sturm über Asien [Tempestade sobre Ásia] (1924), o espião alemão


Wilhelm Filchner ligou a causa soviética da conquista da Ásia central com
o interesse dos Romanov pelo Tibete desde o começo do século. Em 1926,
os Roerichs entregaram terra, supostamente dos mahatmas do Tibete, a
Chicherin, o Ministro do Estrangeiro soviético, para colocar na sepultura
de Lenin. Helena Roerich referiu tanto a Marx como a Lenin como sendo
mahatmas e afirmou que os emissários dos mahatmas dos Himalaias se
tinham até encontrado com Marx na Inglaterra e Lenin na Suíça. Os
mahatmas suportavam os ideais comunistas de irmandade universal.

Em Aus den letzten Jahrzehnten des Lamaismus in Russland [A Respeito das


Últimas Décadas de Lamaísmo na Rússia] (1926), o erudito alemão
W.A.Unkrig citou o livro de Filchner e repetiu o relatório de Grünwedel a
respeito de Dorjiev, dos Romanovs e de Shambhala. Relatou também a
cerimónia no templo budista em São Petersburgo para comemorar o
aniversário do tricentenário do Império Romanov. Advertindo contra a
influência deste templo e contra uma aliança da União Soviética, Mongólia
e Tibete, Unkrig terminou o seu artigo com a citação em latim, “Domine,
libera nos a Tartaris (Deus, salva-nos dos Tártaros)”. Isto encaixa bem
com a geopolítica de Haushofer e a sua recomendação de quea Alemanha
conquiste espaço vital na Ásia central, a terra natal da raça ariana.

Já em 1910, Steiner estava ensinando em Berlim e em Munique acerca de


Shambhala como sendo o reinado de Maitreya, o Anticristo que virá livrar
o mundo de ensinamentos espirituais pervertidos. Tiere, Menschen und
Götter (Bestas, Homens e Deuses), a popular tradução alemã do livro de
Ossendowski, apareceu em 1923. Introduziu Agharti como uma fonte de
poder que o Barão von Ungern-Sternberg procurou para apoio na sua
batalha contra o líder comunista mongol Sukhe Batur, que estava
mobilizando as suas tropas com estórias de Shambhala. Recordem que a
Sociedade de Thule identificou Agharti com Asgaard, a casa dos deuses
nórdicos arianos.

Durante a primeira metade da década de 1920, uma suposta “guerra


ocultista” ocorreu entre as Sociedades Ocultistas e os Grupos Secretos na
Alemanha. Por exemplo, num artigo do jornal Völkischer
Beobachter [Observador Nacionalista] Hitler acusou Steiner de ser um
judeu; e outros da extrema direita exigiram uma “guerra contra Steiner”.
Muitos suspeitavam que a Sociedade Thule fosse responsável por estes
ataques. Anos depois, Hitler continuou a perseguição dos antroposofistas,
teosofistas, maçons livres e rosa cruzes. Vários eruditos atribuem esta
política ao desejo que Hitler tinha de eliminar quaisquer rivais ocultistas
ao seu governo. Steiner, por exemplo, tinha patrocinado a tradução alemã
do livro de Bulwer-Lytton sobre vril, The Coming Race [A Raça Futura],
sob o título alemão mais explícito Vril, oder einer Menschheit der
Zukunft [Vril, ou A Raça do Futuro]. Além disso, dado que Steiner e a
antroposofia falavam de Shambhala como a terra do futuro messias e de
benevolência, faz sentido que a Sociedade de Thule e Hitler o
descreveriam da maneira oposta, como uma terra de malevolência.

Entre 1929 e 1935, cinco livros pela aventureira francesa Alexandra


David-Neel apareceram em tradução alemã, tal como Heilige und
Hexe (Mystiques et Magiciens du Thibet) [Com Místicos e Magos no Tibete].
David-Neel tinha passado muitos anos estudando e viajando no Tibete, e
relatou que os mestres de lá tinham poderes extrafísicos que lhes
permitiam desafiar a gravidade e correr numa velocidade sobre-humana.
Consequentemente, a fantasia sobre o Tibete como a terra dos
misteriosos poderes mágicos cresceu descontroladamente.

Em 1936, Theodor Illion, um explorador alemão que viajou ao Tibete nos


inícios da década de 1930, publicou Rätselhaftes Tibet [No Tibete Secreto]
sob o pseudônimo Theodor Burang. Nele, descreveu também os poderes
sobrenaturais que os mestres tibetanos possuíam. No seu segundo
livro,Finsternis über Tibet [Escuridão sobre o Tibete] (1937), descreveu ter
sido conduzido a uma cidade subterrânea no “Vale do Mistério”, onde
“uma Fraternidade Oculta” canalizou energia espiritual para obter poder.
O seu regente era o Príncipe Mani Rimpotsche. Embora este “Príncipe da
Luz” fingisse ser um regente benevolente, era na verdade o líder de um
culto malévolo, um “Príncipe da Escuridão”. Illion nunca mencionou
Shambhala, mas as suas obras populares também teriam adicionado peso
à asserção ocultista nazista de Shambhala como uma terra de mágica
malévola.

Evidência contra a Asserção do Apoio Nazista Oficial dos Credos


Ocultistas Alemães acerca de Shambhala

Suponhamos que o movimento ocultista Nazi, como representado pela


Sociedade de Thule, usou a alegoria de Shambhala-Agharti para justificar
a mudança de política de Hitler em relação à União Soviética. Porém,
parece muitíssimo improvável que as instituições nazistas oficiais, tais
como o Ahnenerbe, tivessem Shambhala e Agharti nas suas agendas,
mesmo nas suas agendas secretas. Vamos examinar a evidência que
suportaria essa conclusão.

Hitler tornou-se Chanceler da Alemanha em 1933. No mesmo ano,


Sebottendorff, o fundador da filial de Munique da Sociedade de Thule,
publicou Bevor Hitler Kam [Antes da Vinda de Hitler], onde esboçou a
dívida de Hitler ao “Thulismo”. Hitler depressa proibiu o livro e forçou
Sebottendorff a aposentar-se. Embora Hitler promovesse claramente os
credos da Sociedade de Thule, ele negava qualquer conexão com
movimentos ocultistas. Não queria deixar em aberto a possibilidade do
surgimento de rivalidades de quaisquer partes.

Contudo, Haushofer e a Sociedade de Thule não eram as únicas


influências atrás-das-cenas no Ahnenerbe. Sven Hedin, o explorador do
Tibete sueco e favorito dos nazistas, também desempenhou um papel
significativo. Entre 1922 e 1944, escreveu vários livros populares em
alemão sobre as suas viagens ao Tibete, tal como Tsangpo Lamas
Wallfahrt [A Peregrinação dos Lamas Tsangpo] (1922). Diversos outros
foram traduzidos do inglês para o alemão, tal como My Life as an
Explorer (1926) (Alemão: Mein Leben als Entdecker, 1928) [Minha Vida
como um Explorador] e A Conquest of Tibet (1934)
(Alemão: Eroberungszüge in Tibet, 1941) [Uma Conquista do Tibete]. Além
disso, em Ossendowski und die Wahrheit [Ossendowski e a Verdade]
(1925), Hedin desacreditou a asserção de Ossendowski que os lamas
mongóis lhe tinham falado de Agharti. Nele, expôs Agharti como uma
fantasia extraída da novela de Saint-Yves d' Alveidre de 1886.

Frederick Hielscher, a quem Hitler deu autorização para estabelecer o


Ahnenerbe em 1935, era um amigo de Sven Hedin. Além disso, Hitler
convidou Hedin a fazer o discurso de abertura dos Jogos Olímpicos em
1936 em Berlim e, em 1937, Hedin publicou Germany and World
Peace [Alemanha e Paz Mundial]. De 1939 a 1943, Hedin fez várias
missões diplomáticas à Alemanha e continuou as suas atividades
publicitárias pró-nazistas. A evidência mais clara da sua influência no
Ahnenerbe é o fato que, em 1943, o seu Tibet Institut (Instituto do Tibete)
foi rebatizado com o nome de Sven Hedin Institut für Innerasien und
Expeditione [Instituto de Sven Hedin para Ásia Interior e Expedições].

Haushofer foi de fato instrumental no estabelecimento do Ahnenerbe, e


em sua agenda ser baseada em muitas das crenças da Sociedade de Thule.
Porém, por causa de Hedin, é improvável que o Ahnenerbe tivesse
procurado e recebido apoio de Agharti no Tibete. Hedin admitiu que o
Tibete fosse um repositório de conhecimento secreto antigo, mas não lhe
atribuiu significado ocultista. Nem associou esse conhecimento com
Shambhala ou Agharti.

Além disso, parece altamente improvável que grupos de tibetanos


estivessem presentes em Berlim e em Munique a partir de 1926 ou de
1929, sob o auspício da Sociedade de Thule. Se esse fosse o caso, então,
visto que o Ahnenerbe estava não-oficialmente associado com a
Sociedade de Thule, não teria havido necessidade para enviar uma
expedição ao Tibete para medir os crânios dos tibetanos. Poderiam ter
feito estas medições na Alemanha. Assim, a asserção que a Sociedade de
Thule patrocinava viagens anuais ao Tibete entre 1926 e 1942 também
parece altamente questionável.

A Conexão Calmuque

O relatório por Pauwels e Berger que no fim da guerra, os russos


encontraram em Berlim um grande número de cadáveres de soldados de
raça Himalaia, vestidos em uniformes nazistas, que tinham cometido
suicídio, também precisa ser posto à prova. A implicação não-falada é que
os russos encontraram os cadáveres dos adeptos Tibetanos-Agharti que
estavam ajudando a causa nazista e que, como Haushofer, cometeram o
suicídio ritual.

Primeiro, o hara-kiri era um costume japonês dos samurais, que muitos


soldados japoneses na Segunda Guerra Mundial seguiram para evitar a
captura. Os seguidores do budismo tibetano, contudo, consideram o
suicídio um ato extremamente negativo com consequências terríveis em
vidas futuras. Nunca é justificável. O relatório atribui incorretamente
costumes japoneses aos tibetanos. Segundo, quaisquer soldados de
origem Himalaia encontrados em uniforme nazista seriam muito
provavelmente mongóis da Cálmúquia, e não tibetanos. E mais, os
calmuques lutarem no exército alemão não prova que apoiavam a
ideologia nazista; e ademais também não prova que apoiava suas crenças
no budismo tibetano. Deixem-nos examinar os fatos históricos,
suplementando-os com informação obtida de entrevistas com calmuques
vivendo em Munique, Alemanha, que tinham participado em muitos dos
eventos descritos abaixo.

Os mongóis da Calmúquia são praticantes da forma tibetana de budismo e


têm uma longa história de associação com alemães. Um grande grupo
deles migrou para o oeste da região Dzungaria do Turquistão Oriental
entre 1609 e 1632. Estabeleceram-se na Rússia ao longo do Baixo Volga,
onde (este rio) desemboca no mar Cáspio. Lá, continuaram o seu modo de
vida nomade seguindo a gado.

Em 1763, a Czarina Catarina II a Grande convidou quase trinta mil


alemães a estabelecerem-se na região do Volga ao norte dos calmuques.
Queria que eles cultivassem a terra fértil e a protegessem dos “tártaros”.
Tentou forçar o cristianismo e a agricultura aos calmuques, fazendo com
que muitos fugissem de volta a Dzungaria em 1771. Por fim, porém,
aqueles que permaneceram na Rússia foram aceitos, especialmente
porque que eram soldados excelentes. Durante as Guerras napoleonicas
(1812-1815), por exemplo, o exército russo teve um regimento calmuque.
Durante o século seguinte, os soldados calmuques estiveram em destaque
em divisões por todo o Exército Czarista.

Embora os estilos de vida e os costumes dos alemães agrários do Volga e


dos calmuques nomades seguidores de gado fossem bastante diferentes,
estes vizinhos chegaram gradualmente a respeitar uns aos outros. Os
alemães, de fato, mostrarram interesse nos calmuques. Já em 1804,
Benjamin Bergmann publicou um trabalho de quatro volumes sobre a sua
língua e religião, intitulado Nomadische Streifereien unter der Kalmüken in
den Jahre 1802 und 1804 [Migrações Nómades entre os Calmuques no ano
1802 e 1804]. Sven Hedin passou pela Calmúquia numa das suas
primeiras expedições a Dzungaria e expressou grande admiração pelo seu
povo.

Depois da Revolução Comunista em 1917, muitos calmuques


permaneceram leais às forças Czaristas e continuaram a lutar no lado
Russo Branco, especialmente sob os generais Vrangel e Deniken. Antes de
o Exército Vermelho ter chegado à península da Criméia no final de 1920,
cerca de vinte famílias calmuques fugiram através do Mar Negro com
Vrangel e estabelecendo-se em Varsóvia na Polônia e em Praga, na
Tchecoslováquia. Um número muito maior saiu com o Deniken, com a
maioria estabelecendo-se em Belgrado, na Sérvia, e números menores em
Sofia na Bulgária e em Paris e Lyon na França. Os refugiados calmuques
em Belgrado construíram lá um templo budista em 1929. Os comunistas
puniram severamente os calmuques que ficaramatrás, decapitando dez
mil.

Em 1931, Stalin coletivizou os calmuques, fechou os mosteiros budistas e


queimou os textos religiosos. Deportou para a Sibéria todos os monges e
todos os seguidores de gado que possuíam mais de quinhentos carneiros.
Em parte devido à política de coletivização de Stalin, rompeu-se uma
grande fome de 1932 a 1933. Aproximadamente sessenta mil calmuques
morreram.

Depois de Hitler ter invadido a União Soviética em Setembro de 1941,


Goebbels convidou vários calmuques proeminentes de Belgrado, Paris e
Praga a Berlim para ajudarem com uma campanha de propaganda. Os
nazistas desejavam obter o apoio dos calmuques para o lado alemão
contra os Russos e nunca mandaram nenhuns dos que estavam sob o seu
domínio para os campos de concentração. Assim, Goebbels organizou este
núcleo em um comitê para livrar os calmuques do regime comunista.
Nesta conexão, ajudou-lhes a imprimir um jornal na língua calmuque e
usou-os para transmitir notícias no rádio em calmuque dirigidas a
Calmúquia.

Quando a 16a Divisão Panzer nazista sob Field Marshal Mannstein


conquistou a Calmúquia nos inícios de 1942, foram acompanhados por
três membros deste comitê. Varios calmuques de Belgrado também
participaram na invasão, tendo-se juntado ao exército alemão após a
ocupação nazista da Sérvia em Abril de 1941. O povo da Calmúquia
saudou o exército alemão com manteiga e leite, a oferta tradicional para
dar as boas-vindas a convidados, como libertadores do regime opressivo
de Stalin. Os alemães disseram que iriam desmontar as coletivas e que
iriam dividir e privatizar a terra. Permitiram que os calmuques
praticassem o budismo uma vez mais. Em resposta, os calmuques
exumaram os textos religiosos que tinham enterrado para sua
preservação e construíram um templo provisório. Em Novembro e em
Dezembro de 1942, contudo, o exército vermelho retomou a Calmúquia e
destruiu tudo que as pessoas tinham reconstruído.

As tropas alemãs convidaram os calmuques a recuarem e a continuarem a


luta com eles. Cerca de cinco mil juntaram-se às forças armadas nazistas,
formando o Corpo de Cavalaria Voluntário Cálmuco. Somente algumas
mulheres e crianças os acompanharam. As tropas calmuques lutaram com
o exército nazista atrás das linhas, especialmente em torno do mar de
Azov. A maioria da população calmuque, no entanto, permaneceu em
Calmúquia. Em Dezembro de 1943, Stalin declarou-os todos
colaboradores dos alemães e deportou a todos para a Sibéria. Só
regressaram durante a era de Khruschev, entre 1957 e 1960.

No início do outono de 1944, face à iminente invasão russa da Sérvia,


muitos calmuques de Belgrado fugiram para Munique, na Alemanha, para
evitar a perseguição comunista. Foram acompanhados por vários monges
e um professor budista erudito. No final de 1944, as tropas da cavalaria
calmuque que sobreviveram na Rússia, juntamente com as suas famílias,
retraíram com o exército alemão. Cerca de dois mil foram para Silésia, na
Polónia e quinhentos para Zagrebe, na Croácia, onde foram re-
organizados para lutar contra os adversários.

Assim, embora vários calmuques estivessem na Alemanha e nos


territórios conquistados pelos nazistas nos meses finais da guerra, apenas
alguns estavam na área de Berlim, ainda engajados em trabalho
propagandista. Os soldados calmuques em uniformes nazistas estavam na
Polônia e na Croácia, e não na Alemanha. Embora vários monges
calmuques fizessem rituais budistas nas barracas e casas calmuques no
território dominado pelos nazistas, eles rezavam pela paz e pelo bem-
estar de todos os seres. Não havia nenhun tibetano entre eles, e eles não
conduziram ceremonias “ocultas” para uma vitória nazista, como alguns
relatos ocultistas pós-guerra relatam.

Após a guerra, os calmuques que estavam em países da Europa Ocidental


foram enterrados em acampamentos para pessoas desalojadas na Áustria
e na Alemanha, especialmente na área de Munique. Liberados em 1951,
estabeleceram-se primeiro em Munique. Mais tarde nesse ano, a
Fundação de Anna Tolstoy realojou a maioria deles em New-Jersey, EUA.
Tito entregou os que estavam na Sérvia aos soviéticos, que prontamente
os deportaram para a Sibéria.
Asserções Pós-guerra sobre Shambhala e Discos Voadores

Interpretações ocultistas de outras atividades nazistas, associando-as


com Shambhala, também apareceram após a guerra. Por exemplo, uma
expedição alemã de 1939 a Antártica, conduzida pelo capitão Alfred
Ritscher, mapeou um quinto do continente, reivindicou-o para a
Alemanha e nomeou-o Neu-Schwabenland. Outras expedições nazistas a
Antártica e a atividade naval no Atlântico Sul continuaram até ao fim da
guerra.

Nos finais da década de 1950, separadamente, Henrique Jose de Souza, o


presidente da Sociedade Teosófica Brasileira naquela época, propôs uma
nova teoria da terra oca. Dentro da terra encontra-se Agharti, com a sua
capital Shambhala, que seria a origem dos discos voadores que
emergeriam à superfície através de túneis no pólo norte e no pólo sul.
Assim, a Sociedade Teosófica Brasileira construiu como sua sede, em São
Lourenço, Minas Gerais, um templo de estilo grego dedicado a Agharti.
O.C. Hugenin, um estudante de de Souza, popularizou a teoria do seu
mentor em From the Subterranean World to the Sky: Flying Saucers [Do
Mundo Subterrâneo ao Céu: Discos Voadores] (1957). R.W. Bernard, no seu
livro de 1964 The Hollow Earth [A Terra Oca], disse que os discos
voadores de Shambhala em Agharti estavam sob a terra, saindo através
de túneis secretos sob os Himalaias no Tibete.

Com base nas expedições nazistas à Antártica Nazi e nos relatos acima, o
ocultista alemão Ernst Zündel escreveu vários livros na década de 1970,
incluindo UFO’s: Nazi Secret Weapons? [OVNIs: Armas Secretas Nazistas?],
afirmando que os nazistas mantinham uma base secreta numa área de
lagos de água morna que haviam encontrado na Antártica. Lá, eles teriam
escondido a sua arma secreta, OVNIs. Zündel é também conhecido como o
proponente mais ardoroso sobre a teoria de que o holocausto na
realidade nunca teria acontecido.

A associação de discos voadores com Shambhala deriva do relato da


futura guerra apocalíptica alegórica encontrada no comentário The
Stainless Light [Luz Imaculada] ao The Abbreviated Kalachakra
Tantra [Tantra de Kalachakra Abreviado]. Neste relato, Raudrachakrin, o
25o regente Kalki de Shambhala, virá da sua terra montado num cavalo
de pedra com o poder do vento e irá derrotar Mahdi, líder das tropas não-
indicas. Embora Raudrachakrin represente a profunda percepção da
vacuidade com o nível mais sutil de atividade mental, e o cavalo de pedra
represente o nível mais sutil do vento-energia em que esta percepção
cavalga, algumas pessoas interpretaram a imagem como um disco voador
vindo de Shambhala.
Conclusão

A história de Kalachakra sobre Shambhala tem ativado as imaginações de


muitas figuras políticas estrangeiras e autores ocultistas. Distorcendo a
lenda original e interpolando idéias permeadas de fantasia, incorporaram
o mito nos artigos que escreveram para servir aos seus próprios
propósitos. Atribuir estas distorções à intenção original dos
ensinamentos de Kalachakra seria fazer uma injustiça ao budismo.
Futuras pesquisas poderão revelar mais sobre estes assuntos.
A Conexão Nazista com Shambhala
e o Tibete
Dr. Alexander Berzin

Introdução

Muitos membros superiores do regime nazi, incluindo Hitler, mantinham


crenças ocultas bizantinas. Entre 1938 e 1939, impelidos por essas
crenças, os alemães enviaram uma expedição oficial ao Tibete, a convite
do governo tibetano, para assistir às celebrações do Losar (Ano Novo).

O Tibete tinha sofrido uma longa história de tentativas de anexação pelos


chineses e de falhas britânicas de prevenir a agressão ou proteger o
Tibete. Sob Stalin, a União Soviética perseguiu severamente o budismo,
especificamente a forma tibetana praticada entre os mongóis dentro das
suas fronteiras e do seu satélite, a República Popular da Mongólia
(Mongólia Exterior). Pelo contrário, o Japão apoiava o budismo tibetano
na Mongólia Interior, que tinha anexado como parte de Manchukuo, o seu
estado-fantoche na Manchúria. Alegando que o Japão era Shambhala, o
governo imperial estava tentando ganhar o apoio dos mongóis, sob seu
domínio, para uma invasão da Mongólia Exterior da Sibéria com o
propósito de criar uma confederação pan-mongol, sob proteção japonesa.

O governo tibetano estava explorando a possibilidade de também obter a


proteção do Japão face à situação instável. O Japão e a Alemanha tinham
assinado um Pacto Anti-Commintern, em 1936, declarando a sua
hostilidade mútua em relação à propagação do comunismo internacional.
O convite para a visita de uma delegação oficial da Alemanha Nazi foi
prolongado neste contexto. Em Agosto de 1939, logo após a expedição
alemã ao Tibete, Hitler quebrou o seu pacto com o Japão e assinou o Pacto
Nazi-Soviético. Em Setembro, os soviéticos derrotaram os japoneses que
tinham invadido, em Maio, a Mongólia Exterior. Subsequentemente, dos
contatos japoneses e alemães com o governo tibetano nada se veio a
materializar.

Vários escritores sobre o oculto do pós-guerra afirmaram que o budismo


e a lenda de Shambhala desempenharam um papel no contato oficial
entre a Alemanha e o Tibete. Vamos examinar essa questão.
Os Mitos de Thule e Vril

O primeiro elemento das crenças ocultistas nazis era o reino mítico de


Hiperbórea-Thule. Assim como Platão citou a lenda egípcia da ilha
afundada de Atlântida, Heródoto mencionou a lenda egípcia do
continente Hiperbórea no norte distante. Quando o gelo destruiu esta
terra antiga, o seu povo emigrou para o sul. Escrevendo em 1679, o autor
sueco Olaf Rudbeck identificou o povo da Atlântida com os hiperboreanos
e situou este último no pólo norte. De acordo com várias narrativas, a
Hiperbórea dividiu-se nas ilhas de Thule e Ultima Thule, que algumas
pessoas identificaram com a Islândia e a Gronelândia.

O segundo ingrediente era a ideia de uma terra oca. No fim do século XVII,
o astrónomo britânico Sir Edmund Halley sugeriu pela primeira vez que a
terra era oca, consistindo em quatro esferas concêntricas. A teoria da
terra oca excitou as imaginações de muitas pessoas, especialmente com a
publicação, em 1864, da Viagem ao Centro da Terra do novelista francês
Júlio Verne.

Depressa o conceito de vril apareceu. Em 1871, o novelista britânico


Edward Bulwer-Lytton, em A Raça Futura, descreveu uma raça superior,
os Vril-ya, que viviam debaixo da terra e planeavam conquistar o mundo
com vril, uma energia psicocinética. O autor francês Louis Jacolliot
promoveu o mito em Os Filhos de Deus (1873) e em As Tradições Indo-
Europeias (1876). Nestes livros, ele ligou o vril com o povo subterrâneo
de Thule, que irá aproveitar o poder de vril para se transformar em
super-homens e dominar o mundo.

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) também enfatizou o


conceito de Übermensch (super-homem) e começou o seu trabalho, Der
Antichrist (O Anticristo) (1888) com a frase, “Olhemos-nos face a face.
Somos hiperbóreos. Sabemos bastante bem que estamos vivendo fora
dessa trilha”. Embora Nietzsche nunca mencionasse o vril, contudo, na
sua coleção de aforismos publicada postumamente, Der Wille zur
Macht (A Vontade de Poder), ele enfatizou o papel de uma força interior
no desenvolvimento super-humano. Ele escreveu que “o rebanho”,
significando as pessoas comuns, busca segurança dentro de si mediante a
criação da moral e de regras, enquanto que os super-homens têm uma
força vital interior que os leva além do rebanho. Essa força necessita e
leva-os a mentir ao rebanho por forma a permanecerem independentes e
livres da “mentalidade do rebanho”.

Em The Arctic Home of the Vedas (1903), um dos primeiros defensores da


liberdade indiana, Bal Gangadhar Tilak, deu mais um toque ao identificar
a emigração dos Thuleanos para o sul com a origem da raça ariana. Assim,
muitos alemães no início do século XX acreditavam que eram os
descendentes dos arianos que tinham emigrado da Hiperbórea-Thule
para o sul e que estavam destinados a se tornarem a raça mestra dos
super-homens através do poder de vril. Hitler era um deles.

A Sociedade de Thule e a Fundação do Partido Nazi

Felix Niedner, o tradutor alemão das Eddas em nórdico antigo, fundou a


Sociedade de Thule em 1910. Em 1918, Rudolf Freiherr von Sebottendorff
estabeleceu a sua filial em Munique. Sebottendorf tinha previamente
vivido durante vários anos em Istambul onde, em 1910, tinha formado
uma sociedade secreta que combinava o sufismo esotérico com a
Maçonaria Livre. Acreditavam no credo dos assassinos, derivado da seita
islâmica ismaelita Nazari, que tinha florescido durante as Cruzadas.
Durante a sua estadia em Istambul, Sebottendorf também esteve
indubitavelmente ligado ao movimento pan-Turaniano dos Jovens
Turcos, iniciado em 1908, que esteve por trás do genocídio armênio de
1915-1916. A Turquia e a Alemanha eram aliadas durante a Primeira
Guerra Mundial. De regresso à Alemanha, Sebottendorff também foi
membro da Ordem Germânica [Germanen] (Ordem dos Teutões), fundada
em 1912, como uma sociedade de direita, incluindo um secreto grupo
anti-semítico. Através destes canais, o assassinato, o genocídio e o anti-
semitismo tornaram-se partes do credo da Sociedade de Thule. O anti-
comunismo foi adicionado após a revolução comunista Bavariana, mais
tarde em 1918, quando a Sociedade Thule de Munique tornou-se o centro
do movimento contra-revolucionário.

Em 1919, a sociedade criou o Partido Alemão dos Trabalhadores.


Começando mais tarde, nesse ano, Dietrich Eckart, um membro do círculo
mais restrito da Sociedade de Thule, iniciou Hitler na sociedade e
começou a treiná-lo nos seus métodos para utilizar o poder de vril para a
criação de uma raça ariana de super-homens. Hitler teve uma inclinação
para o misticismo desde a sua juventude, quando estudou o Oculto e a
Teosofia em Viena. Mais tarde, Hilter dedicou o Mein Kampf a Eckart. Em
1920, Hitler tornou-se líder do Partido Alemão dos Trabalhadores,
renomeando-o então para Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães (Partido Nazista).

Haushofer, a Sociedade Vril e a Geopolítica

Outra influência principal no pensamento de Hitler foi Karl Haushofer


(1869-1946), um conselheiro militar alemão junto dos japoneses após a
Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905. Porque estava extremamente
impressionado com a cultura japonesa, muitos acreditam que ele foi
responsável pela posterior aliança Alemã-Japonesa. Ele também estava
muito interessado na cultura indiana e tibetana, aprendeu sânscrito, e
afirmava que tinha visitado o Tibete.

Após ter servido como general na Primeira Guerra Mundial, Haushofer


fundou a Sociedade Vril, em Berlim, em 1918. Partilhava as mesmas
crenças básicas que a Sociedade de Thule, e dizem que era o seu círculo
mais restrito. A Sociedade procurou contatar seres sobrenaturais debaixo
da terra para deles obter os poderes de vril. Afirmou também que a raça
ariana tinha tido origem na Ásia central. Haushofer desenvolveu a
doutrina da Geopolítica e, nos finais da década de 1920, tornou-se diretor
do Instituto de Geopolítica da Universidade Ludwig-Maximilians, em
Munique. A geopolítica advogava a conquista de territórios, para obter
mais espaço vital (Alemão: Lebensraum), como um instrumento de
obtenção de poder.

Rudolf Hess era um dos estudantes mais próximos de Haushofer e, em


1923, levou-o junto a Hitler quando este estava preso devido ao seu golpe
de estado falhado. Posteriormente, Haushofer visitou o futuro Führer com
frequência, ensinando-lhe geopolítica em associação com as idéias das
sociedades de Thule e Vril. Assim, quando Hitler se tornou chanceler em
1933, adotou a geopolítica como sua política a fim de a raça ariana
conquistar a Europa Oriental, a Rússia e a Ásia central. A chave para o
sucesso seria encontrar os antepassados da raça ariana na Ásia central, os
protetores dos segredos de vril.

A Suástica

A suástica é um antigo símbolo indiano de boa sorte imutável. “Suástica” é


um aportuguesamento da palavra sânscrita svastika, que significa o bem-
estar ou a boa sorte. Usada por hindus, budistas e jainistas durante
milhares de anos, também se tornou difundida no Tibete.

A suástica também apareceu na maioria das outras culturas antigas do


mundo. Por exemplo, a sua variação anti-horário [no sentido contrário à
direção em que os ponteiros do relógio se movem], adotada pelos nazis,
também é a letra “G” no sistema de escrita rúnico medieval, do norte da
Europa. Os Mações Livres tomaram a letra como um símbolo importante,
dado que “G” poderia representar God [Deus], o Grande arquiteto do
universo, ou a Geometria.
A suástica também é o símbolo tradicional de Thor, o Deus nórdico dos
Relâmpagos e do Poder (Thor em escandinavo, Donner em
alemão, Perkunas em Báltico). Por causa desta associação com o Deus dos
Relâmpagos, os letões e os finlandeses tomaram a suástica como insígnia
para suas forças aéreas, quando se tornaram independentes depois da
Primeira Guerra Mundial.

Nos finais do século XIX, Guido von List adotou a suástica como emblema
para o movimento Neo-Pagão da Alemanha. No entanto, os alemães não
usaram a palavra sânscrita suástica, mas em vez disso chamaram-na
“Hakenkreutz”, significando “cruz enganchada”. Derrotaria e substituiria
a cruz, assim como o neo-paganismo derrotaria e substituiria o
cristianismo.

Compartilhando o sentimento anti-cristão do movimento neo-pagão, a


Sociedade de Thule também adotou a cruz enganchada como parte do seu
emblema, colocando-o num círculo com um punhal alemão vertical nele
sobreposto. Em 1920, por sugestão do Dr. Friedrich Krohn, da Sociedade
de Thule, Hitler adotou a cruz enganchada num círculo branco como
símbolo central da bandeira do Partido Nazista. Hitler escolheu o
vermelho para cor de fundo a fim de competir contra a bandeira
vermelha do Partido Comunista rival.

Os investigadores franceses Louis Pauwels e Jacques Bergier, em Le Matin


des Magiciens (O Despertar dos Mágicos) (1962), escreveram que
Haushofer convenceu Hitler a usar a cruz enganchada como símbolo do
Partido Nazista. Eles postularam que isso foi devido ao interesse de
Haushofer pela cultura indiana e tibetana. Esta conclusão é muitíssimo
improvável, dado que Haushofer só conheceu Hitler em 1923, e uma vez
que a bandeira nazi apareceu pela primeira vez em 1920. É mais provável
que Haushofer tivesse usado a presença da suástica, difundida na India e
no Tibete, como evidência para convencer Hitler de que esta região era o
local dos antepassados da raça ariana.

Supressão dos Grupos Ocultistas Rivais pelos Nazis

Durante a primeira metade da década de 1920, uma rivalidade violenta


ocorreu, na Alemanha, entre as Sociedades Ocultas e as Lojas Secretas.
Anos mais tarde, Hitler continuou a perseguição aos Antroposofistas, aos
Teosofistas, aos Mações Livres e aos Rosacruzes. Vários eruditos
atribuem esta política ao desejo de Hitler eliminar quaiquer rivais
ocultistas ao seu poder.
Influenciado pela escrita de Nietszche e pela doutrina da Sociedade de
Thule, Hitler acreditava que o cristianismo era uma religião imperfeita e
pervertida nas suas raizes pelo pensamento judaico. Via os seus
ensinamentos sobre o perdão, o triunfo dos fracos, e a auto-abnegação
como anti-evolucionários e via-se a si próprio como um Messias,
substituindo Deus e Cristo. Steiner tinha usado a imagem do Anticristo e
de Lúcifer como futuros líderes espirituais que iriam regenerar o
cristianismo numa nova e pura forma. Hitler foi muito mais longe. Viu-se
a si próprio como livrando o mundo de um sistema degenerado e criando
uma nova etapa na evolução da raça mestra ariana. Não tolerava nenhum
Anticristo rival, nem agora nem no futuro. No entanto, era tolerante
quanto ao budismo.

O Budismo na Alemanha Nazi

Em 1924, em Frohnau, Berlim, Paul Dahlke fundou a Buddhistischen Haus


(Casa para Budistas). Estava aberta a membros de todas as tradições
budistas, mas apoiava principalmente as tradições Theravada e japonesa,
visto que eram naquela época as mais amplamente conhecidas no
ocidente. Em 1933, alí se realizou o primeiro Congresso Budista Europeu.
Os nazis permitiram que a Casa para Budistas permanecesse aberta
durante a guerra, mas controlavam-na firmemente. Como alguns
membros sabiam chinês e japonês, agiam como tradutores para o
governo em troca da tolerância ao budismo.

Embora o regime nazi tivesse fechado a Buddhistische Gemeinde


(Sociedade Budista) em Berlim, ativa desde 1936, e prendido por pouco
tempo, em 1941, o seu fundador Martin Steinke, por regra não
perseguiam os budistas. Depois de ser libertado, Steinke e outros
continuaram a ensinar o budismo em Berlim. Não há nenhuma prova, no
entanto, de qualquer presença de professores de budismo tibetano no
terceiro Reich.

A política nazi de tolerância ao budismo não prova qualquer influência de


ensinamentos budistas a Hitler ou à ideologia nazi. Uma explanação mais
provável seria a Alemanha não pretender prejudicar as relações com o
seu aliado budista, o Japão.

O Ahnenerbe

Sob a influência de Haushofer, Hitler autorizou Frederick Hielscher, em


1935, a estabelecer o Ahnenerbe (Departamento para o Estudo da
Herança Ancestral) com o coronel Wolfram von Sievers como diretor.
Entre outras funções, Hitler encarregou-o de pesquisar runas germânicas
e as origens da suástica, e situar a origem da raça ariana. Tibete era o
candidato mais prometedor.

Alexander Csoma de Körös (Körösi Csoma Sandor) (1784-1842) era um


erudito húngaro obcecado pela busca das origens do povo húngaro. Com
base nas afinidades linguísticas entre o húngaro e as línguas turcomanas
[ou túrquicas], achava que as origens do povo húngaro se encontravam
no “reino de Yugurs (Uighurs)”, noTurquistão Oriental (Xinjiang,
Sinkiang). Ele acreditava que se conseguisse chegar a Lhasa, lá iria
encontrar as chaves para localizar a sua terra de origem.

O húngaro, o finlandês, as línguas turcomanas [ou túrquicas], o mongol e


o manchu pertencem à família das línguas uralo-altaicas, também
conhecidas como a família turaniana, da palavra persa Turan para
Turquistão. A partir de 1909, os turcos tiveram um movimento pan-
turaniano liderado por uma sociedade conhecida como os Jovens Turcos.
Em 1910, a Sociedade Turaniana Húngara depressa a seguiu e, em 1920, o
mesmo aconteceu com a Aliança Turaniana da Hungria. Alguns eruditos
acreditam que as línguas japonesa e coreana também pertencem à família
turaniana. Assim, em 1921, a Aliança Nacional Turaniana foi fundada no
Japão e, nos finais da década de 1930, a Sociedade Turaniana Japonesa.
Haushofer estava sem dúvida ciente destes movimentos, que procuravam
as origens da raça turaniana na Ásia central. Encaixava bem com a
Sociedade de Thule que tambem lá procurava as origens da raça ariana. O
seu interesse pela cultura tibetana deu um peso adicional à candidatura
do Tibete como chave para a descoberta de uma origem comum para as
raças arianas e turanianas e para a obtenção do poder de vril que os seus
líderes espirituais possuíam.

Haushofer não era a única influência no interesse de Ahnenerbe pelo


Tibete. Hielscher era amigo de Sven Hedin, o explorador sueco que tinha
conduzido expedições ao Tibete em 1893, em 1899-1902 e em 1905-
1908, e uma expedição à Mongólia em 1927-1930. Favorito dos nazis,
Hitler convidou-o a pronunciar o discurso de abertura dos Jogos
Olímpicos de Berlim, em 1936. Hedin envolveu-se na Suécia em
atividades de propaganda pró-nazi e fez numerosas missões diplomáticas
à Alemanha entre 1939 e 1943.

Em 1937, Himmler transformou o Ahnenerbe numa organização oficial


associada às SS (Alemão: Schutzstaffel, Equipa de Proteção) e selecionou o
professor Walther Wüst, presidente do Departamento de Sânscrito da
Universidade de Ludwig-Maximilians, em Munique, como seu novo
diretor. O Ahnenerbe teve um Tibet Institut (Instituto do Tibete), que foi
renomeado de Sven Hedin Institut für Innerasien und Expeditionen
(Instituto de Sven Hedin para Ásia Interior e Expedições) em 1943.

A Expedição Nazi ao Tibete

Ernst Schäfer, um caçador e biólogo alemão, participou em duas


expedições ao Tibete, em 1931-1932 e 1934-1936, para esporte e
pesquisa zoológica. O Ahnenerbe patrocinou-o para liderar uma terceira
expedição (1938-1939) face ao convite oficial do governo tibetano. A
visita coincidiu com a renovação do contato tibetano com o Japão. Uma
possível explicação para o convite seria a de que o governo tibetano
desejaria manter relações cordiais com os japoneses e seus aliados
alemães, como contrapeso aos ingleses e os chineses. Assim, o governo
tibetano deu as boas-vindas à expedição alemã por ocasião da celebração
do ano novo (Losar), 1939, em Lhasa.

Em Fest der weissen Schleier: Eine Forscherfahrt durch Tibet nach Lhasa,
der heiligen Stadt des Gottkönigtums (Festival dos Cachecóis Brancos de
Gaze: Uma Expedição de Investigaçãoatravés do Tibete a Lhasa, a Cidade
Santa da Terro do Rei-Deus)(1950), Ernst Schäfer descreveu as suas
experiências sobre a expedição. Durante as festividades, relatou ele, o
Oráculo de Nechung avisou que, embora os alemães tivessem trazido
presentes e palavras doces, o Tibete deveria ter cuidado: o líder da
Alemanha é como um dragão. Tsarong, o anterior líder pró-japonês das
forças armadas tibetanas, tentou suavizar a predição. Disse que o Regente
tinha ouvido muito mais do Oráculo, mas que ele próprio não estava
autorizado a divulgar os detalhes. O Regente reza diariamente para que
não haja guerra entre os ingleses e os alemães, dado que isto também
viria a ter consequências terríveis para o Tibete. Ambos os países devem
compreender que todas as boas pessoas devem rezar o mesmo. Durante o
resto da sua estada em Lhasa, Schäfer reuniu-se frequentemente com o
Regente e teve com ele um bom relacionamento.

Os alemães estavam extremamente interessados em estabelecer relações


amigáveis com o Tibete. A sua agenda, no entanto, era ligeiramente
diferente da dos tibetanos. Um dos membros da expedição de Schäfer era
o antropólogo Bruno Beger, que era responsável pela pesquisa racial.
Tendo trabalhado com H.F.K. Günther em Die nordische Rasse bei den
Indogermanen Asiens (A Raça Nórdica entre os Indo-Alemães da Ásia),
Beger apoiou a teoria de Günther de uma “raça setentrional” na Ásia
central e no Tibete. Em 1937, ele tinha proposto um projeto de pesquisa
para o Tibete Oriental e, com a expedição de Schäfer, tinha planeado
investigar cientificamente as características raciais dos povos tibetanos.
Enquanto no Tibete e em Sikkim, no caminho, Beger mediu os crânios de
trezentos tibetanos e sikkimeses e examinou algumas das suas outras
características físicas e marcas corporais. Concluiu que os tibetanos
ocupavam uma posição intermediária entre as raças mongóis e europeias,
com o elemento racial europeu mais pronunciadamente marcado entre a
aristocracia.

De acordo com Richard Greve, “Tibetforschung in SS-Ahnenerbe


(Pesquisa Tibetana na SS-Ahnenerbe)” publicada em T. Hauschild
(ed.) “Lebenslust und Fremdenfurcht” – Ethnologie im Dritten
Reich (“Paixão pela Vida e Xenofobia” – Etnologia no Terceiro Reich)
(1995), Beger recomendou que os tibetanos poderiam desempenhar um
papel importante depois da vitória final do Terceiro Reich. Poderiam
servir como uma raça aliada numa confederação pan-mongol sob o
auspício da Alemanha e do Japão. Embora Beger tivesse também
recomendado estudos adicionais para medir todos os tibetanos, no
entanto não foram empreendidas quaisquer outras expedições ao Tibete.

Supostas Expedições Ocultistas ao Tibete

Diversos estudos do pós-guerra sobre o nazismo e o ocultismo, tal


como The Spear of Destiny (A Lança do Destino) (1973), por Trevor
Ravenscroft, afirmaram que, sob a influência de Haushofer e da Sociedade
de Thule, a Alemanha enviou expedições anuais ao Tibete, de 1926 a
1943. A sua missão era, em primeiro lugar, encontrar e depois manter
contato com os antepassados arianos em Shambhala e em Agharti,
cidades subterrâneas escondidas debaixo dos Himalaias. Lá, os mestres
eram os protetores de poderes ocultos secretos, especialmente de vril, e
as missões procuravam a sua ajuda na utilização desses poderes para a
criação de uma raça mestra ariana. De acordo com estes relatos,
Shambhala recusou dar qualquer ajuda, mas Agharti concordou.
Subsequentemente, a partir de 1929, grupos de tibetanos foram
supostamente à Alemanha e estabeleceram lojas conhecidas como
Sociedade de Homens Verdes. Em relação à Sociedade do Dragão Verde,
no Japão, por intermédio de Haushofer, ela supostamente ajudou a causa
nazi com os seus poderes ocultos. Himmler foi atraído a esses grupos de
mestres Tibetanos-Agharti e, supostamente pelas suas influências,
estabeleceu o Ahnenerbe em 1935.

Com exceção do fato de que Himmler não estabeleceu o Ahnenerbe, mas,


em vez disso, incorporou-o nas SS em 1937, o relato de Ravenscroft
contém outras afirmações dúbias. A principal é o suposto suporte de
Agharti pela causa nazi. Em 1922, o cientista polaco Ferdinand
Ossendowski publicou Bestas, Homens e Deuses, descrevendo as suas
viagens através da Mongólia. Nele, relatou ter ouvido falar do reino
subterrâneo de Agharti sob o deserto Gobi. No futuro, os seus poderosos
habitantes viriam à superfície salvar o mundo do desastre. A tradução
alemã do livro de Ossendowski Tiere, Menschen und Götter apareceu em
1923 e tornou-se muito popular. Sven Hedin contudo publicou, em
1925, Ossendowski und die Wahrheit (Ossendowski e a Verdade), através
do qual denunciou as afirmações do cientista polaco. Chamou a atenção
de Ossendowski ter recolhido a ideia sobre Agharti da novela de Saint-
Yves d’Alveidre, escrita em 1886, intitulada Mission de l’Inde en
Europe (Missião da India na Europa) para tornar a sua história mais
atraente para o público alemão. Dado que Hedin tinha uma forte
influência no Ahnenerbe, é improvável que este departamento tivesse
enviado uma expedição especificamente para encontrar Shambhala e
Agharti e, subsequentemente, tivesse recebido auxílio do último.
O Budismo nos Tempos Modernos

Budismo e Ciência
Dr. Alexander Berzin

Poderia falar mais sobre o relacionamento entre o budismo e a


ciência, e dar alguns exemplos específicos de pontos compartilhados
em comum?

Os diálogos entre os mestres budistas, como por exemplo Sua Santidade o


Dalai Lama e os cientistas, têm até agora focalizado principalmente três
áreas. Uma é a astrofísica, principalmente acerca de como o universo se
desenvolveu. Teve um começo? Foi criado ou é parte de um processo
eterno? Um outro tópico é a física de partículas, a respeito da estrutura
dos átomos e da matéria. O terceiro são as neurociências, sobre o
funcionamento do cérebro. Estas são as áreas principais.

Uma das conclusões a que chegam em comum, tanto a ciência como o


budismo, é que não há um criador. Na ciência, a teoria da conservação da
matéria e da energia afirma que a matéria e a energia não podem ser
criadas nem destruídas, apenas transformadas. Os budistas concordam
plenamente e aplicam o princípio também à mente. No budismo, "mente"
significa consciência de fenômenos – consciente ou não – e a consciência
de fenômenos não pode ser criada nem destruída, apenas transformada.
Assim, o renascimento é simplesmente uma transformação na
continuidade ininterrupta da consciência de fenômenos de um indivíduo,
mas agora com a base física de um outro corpo.

Os físicos de partículas salientam o papel do observador na definição das


coisas. Por exemplo, sob um certo ponto de vista, a luz é matéria; de outro
ponto de vista, é energia. O tipo de fenômeno que a luz parece ser,
depende de muitas variáveis; especialmente da estrutura conceitual que o
investigator está usando para a analisar. Assim, os fenômenos não
existem intrinsicamente como isto ou aquilo por si mesmos, não-
relacionados à consciência que os percepciona.

O budismo afirma a mesma coisa: o “como as coisas existem” depende do


observador e da estrutura conceitual com que a pessoa o considera. Por
exemplo, se uma certa situação existe como um problema horrível ou
como algo solúvel, isso depende do observador, da pessoa envolvida. Se
alguém tiver a estrutura conceitual "esta é uma situação impossível e
nada pode ser feito", então há realmente um problema difícil que não
pode ser resolvido. Contudo, com a atitude mental "isto é complexo e
complicado, mas se nós abordarmos isto de uma maneira diferente
haverá uma solução", então essa pessoa estará muito mais aberta para
tentar encontrar uma solução. O que é um problema enorme para uma
pessoa, não é nada de especial para outra. Depende do observador,
porque os nossos problemas não existem intrinsicamente como
problemas monstruosos. Assim, a ciência e o budismo chegam à mesma
conclusão: os fenômenos existem como isto ou aquilo dependendo do
observador.

De igual modo, tanto os neurologistas como os budistas mencionam o


surgimento dependente do relacionamento das coisas. Por exemplo,
quando os neurologistas examinam o cérebro, numa tentativa de
descobrir o que origina as nossas decisões, descobrem que não há,
distinto no cérebro, um "responsável por decisões". [Não há] nenhuma
pequena pessoa chamada "eu" sentada dentro da cabeça, recebendo
informações dos olhos, orelhas e assim por diante, como num monitor de
computador, tomando decisões e clicando nas teclas de modo a que o
braço faça isto e o pé faça aquilo. Em vez disso, as decisões são o
resultado das complexas interações de uma enorme rede de impulsos
nervosos e de processos químicos e elétricos. Juntos, produzem o
resultado, uma decisão. Isto acontece sem lá haver nenhuma entidade
distinta que é o fazedor da decisão. O budismo salienta a mesma coisa:
não há nenhum "eu" permanente e sólido sentado nas nossas cabeças,
tomando as nossas decisões. Convencionalmente, dizemos "eu estou
experienciando isto, eu estou fazendo aquilo" mas, na verdade, o que
acontece é o resultado de uma interação muito complexa de muitos
fatores diversos. A ciência e o budismo estão muito próximos sobre esta
matéria.

O que é o tempo? Como estudantes, precisamos de chegar às aulas


pontualmente e de ter tempo suficiente para prepararmos os nossos
estudos ou cumprirmos as nossas responsabilidades no trabalho.
Como podemos compreender o tempo de modo a tornar a vida mais
fácil?

O budismo define o tempo como "uma medida de mudança". Podemos


medir a mudança em termos do movimento dos planetas ou da posição
do sol no céu. Podemos medí-la em termos do número de palestras a que
comparecemos durante um semestre – já fomos a doze e faltam mais duas
- ou podemos medí-la em termos de ciclos físicos, corporais – o ciclo
menstrual, o número de respirações que tomamos e assim por diante.
Estas são maneiras diferentes de medir a mudança, e o tempo é
simplesmente uma medida de mudança.
O tempo existe, mas de acordo com o nosso modo de nele pensar, o tempo
afeta-nos de maneiras diversas. Por exemplo, nós pensamos: "só tenho
um dia antes do exame!" Como estamos pensando sobre o tempo com um
número pequeno, ficamos ansiosos porque não temos tempo suficiente.
Se nele pensarmos de uma maneira diferente, "ainda tenho vinte e quatro
horas", então parece haver tempo suficiente para alguma revisão.
Psicologicamente, depende de como o vemos. Se vemos o tempo como
algo sólido e opressivo, ficaremos oprimidos e não teremos tempo que
chegue. Contudo, se o vemos abertamente, como a quantidade de tempo
que temos, tentaremos usá-lo construtivamente em vez de ficarmos
estressados.

O budismo enfatiza a lógica e o raciocínio. Há um determinado ponto


em que é necessário um salto de fé, como nas outras religiões?

O budismo não requer isso. Podemos ver isso na definição budista de "o
que existe". O que existe é definido como "aquilo que pode ser
conhecido". Se não puder ser conhecido então não existe; por exemplo,
chifres de coelho, cabelos de tartaruga ou lábios de galinha. Podemos
imaginar lábios humanos numa galinha; podemos imaginar um desenho
de lábios numa galinha; mas nunca poderemos ver lábios de galinha
numa galinha porque tal coisa não existe. Não existe porque não pode ser
conhecida.

Isto implica que tudo o que existe pode ser conhecido. É possível, para as
nossas mentes – nomeadamente, a nossa atividade mental da consciência
de fenômenos -, tudo abranger. Há passagens nas escrituras que dizem
que o absoluto está para além da mente e para além das palavras. Em
primeiro lugar, não gosto de traduzir o termo como "absoluto", pois tem a
conotação de que está para além de nós, como se fosse algo que estivesse
lá em cima no céu. Em vez disso, prefiro traduzí-lo como "o fato mais
profundo sobre as coisas". O fato mais profundo sobre as coisas existe.
Está para além da mente e para além de conceitos e palavras no sentido
em que está para além da nossa maneira usual de perceber as coisas. A
linguagem e a ideia implicam que as coisas existam nas categorias de
preto e branco. Boa pessoa, má pessoa, idiota, gênio – a implicação de
usar linguagem é que as coisas realmente existem nestas categorias bem
definidas, independentes: "Esta pessoa é um idiota. Não consegue fazer
nada corretamente". "Esta é uma grande pessoa". Perceber a realidade é
ver que as coisas não existem nestas maneiras fantasiadas e impossíveis,
nas categorias de preto e branco. As coisas são mais abertas e dinâmicas.
Lá por alguém não ser capaz de fazer algo agora, isso não significa que
seja exclusivamente um idiota. A pessoa pode ser muitas outras coisas –
um amigo, um pai, e assim por diante.
Assim, quando dizemos que o fato mais profundo sobre as coisas é que
elas existem de uma maneira que está para além da mente e para além
das palavras, estamos referindo ao fato de que as coisas não existem nas
formas em que os conceitos e a linguagem implicam que elas existam. As
nossas mentes são capazes de abranger isso.

Não é que as nossas mentes não consigam abranger certas coisas e por
isso devemos dar um salto de fé para acreditar nelas. O budismo nunca
exige que tenhamos fé cega. Pelo contrário, Buda disse: "não acredite no
que eu digo apenas devido ao respeito por mim, mas teste-o você mesmo,
como comprando ouro". Isto é verdade a todos os níveis.

A lógica de uma questão em particular pode não ser imediatamente óbvia


para nós. Contudo, não rejeitamos algo apenas porque inicialmente não o
compreendemos. Com paciência, aprendendo e investigando, algo que
previamente não compreendíamos pode começar a fazer sentido.
Transmissão do Budismo no Ocidente

Desenvolvimento Sustentável das


Tradições Budistas Ocidentais
Dr. Alexander Berzin

Hoje, gostaria de partilhar as minhas observações relativamente à


proteção da herança cultural budista tibetana, que se encontra em perigo.
O aspecto principal desta herança é o Dharma. Para proteger a herança do
Dharma no oeste, necessitamos de examinar o modo como, em termos
históricos, o Dharma da India foi preservado no Tibete.

Muitos grandes mestres e tradutores, tanto indianos como tibetanos,


estiveram envolvidos na introdução do Dharma no Tibete. Traduziram e
transmitiram as linhagens dos textos do sutra e do tantra, assim como as
linhagens de iniciação de muitas deidades tântricas. Muitos destes
mestres também fundaram mosteiros no Tibete. Embora houvesse muitas
linhagens separadas e mosteiros individuais, alguns grandes praticantes e
eruditos tibetanos, ao fim de algum tempo, aglutinaram muitas linhagens
e as dominaram. Através dos seus ensinamentos e inspiração, os seus
seguidores juntaram-se em muitos mosteiros, daqui surgindo as várias
escolas tibetanas – Nyingma, Kadam, Sakya, Kagyu e por fim a Gelug.
Embora várias destas escolas tibetanas tivessem subdivisões, como
dentro da Kagyu, o número de escolas contudo permaneceu pequeno.

Muitas linhagens de textos e iniciações foram compartilhados em comum


por várias escolas tibetanas, tais como a linhagem de Guhyasamaja, de
Marpa. Outras linhagens foram transmitidas exclusivamente dentro de
uma tradição, tal como a linhagem de Lamdray, de Virupa. Aspectos da
cultura tibetana foram misturados com a tradição indiana, tal como o uso
de bandeiras de oração e de tormas. Muitos mestres tibetanos
escreveram extensos comentários aos textos, iluminando os significados
pretendidos. Embora não houvesse nenhumas escolas Nyingma, Sakya,
Kagyu ou Gelug, na India, foi deste modo que estas escolas tibetanas
preservaram a herança cultural do budismo indiano. Assim, uma das
razões principais da sobrevivência do Dharma foi a aglutinação das
numerosas linhagens indianas de transmissão e dos numerosos
mosteiros fundados no Tibete num pequeno número de tradições.

Hoje, enfrentamos uma situação semelhante com a transmissão do


Dharma do Tibete ao Ocidente. Muitos mestres e tradutores, tibetanos e
ocidentais, estão traduzindo e transmitindo ensinamentos e linhagens.
Muitos estão fundando organizações de Dharma que incluem centros de
Dharma, centros de retiros e mosteiros em várias cidades e países. Alguns
estão combinando estilos tibetanos tradicionais com elementos da
cultura ocidental. Contudo, existem atualmente tantas organizações
separadas de Dharma, de tantos Lamas, Geshes e professores ocidentais,
que os estudantes ocidentais ficam confusos. A que centro devem ir? Que
Lama devem seguir? O budismo tibetano tornou-se fragmentado de mais.
Se houver, por alto, uns trezentos ou mais tipos diferentes de budismo
tibetano no Ocidente, será muito difícil a sustentação de todos eles nos
séculos que se seguem.

Se examinarmos numa perspectiva histórica, essas organizações e


linhagens de Dharma terão de se unir e consolidar num número
razoavelmente pequeno de escolas ocidentais de budismo, a fim de
sobreviverem. Em vez de cada novo professor tibetano e ocidental fundar
novas organizações de Dharma, está na altura de tentarmos pensar como
reduzir e evitar o problema da fragmentação.

Parece haver pelo menos duas razões principais para o número crescente
de organizações de Dharma. A primeira está relacionada com a pressão
que os professores tibetanos têm no angariamento de dinheiro para a
reconstrução dos seus mosteiros e para a alimentação dos seus monges. A
outra razão é o mal-entendido sobre a devoção ao guru pelos estudantes
ocidentais. Pensam que devem considerar o seu professor literalmente
como um Buda e, assim, quando o seu professor morre, acham que devem
procurar o seu tulku, mesmo se o professor for apenas um Geshe. Se não o
fizerem, pensam que isso significa que não acreditaram que seu professor
era na verdade um Buda. Tendo um tulku novo, sentem então que devem
continuar a organização de Dharma do tulku anterior, por forma a que o
novo tulku a conduza um dia.

Para resolver estes problemas, precisamos de encontrar maneiras


diferentes de financiar os mosteiros na India, no Nepal e no Tibete, e
precisamos de esclarecer os ensinamentos sobre a devoção ao guru.
Precisamos então pensar sobre como consolidar os estilos e as linhagens
dos vários mestres que vieram para o Ocidente. Precisamos apenas de um
pequeno número de escolas ocidentais de budismo. Semelhante ao que foi
desenvolvido no Tibete, isto requererá, naturalmente, professores
ocidentais qualificados que dominem muitas linhagens e ensinamentos.
Por enquanto, talvez não haja ainda tais mestres entre os professores
ocidentais, mas alguns certamente surgirão no futuro.
Resumindo, precisamos de ter responsabilidades pelo futuro do budismo
e pensar com cuidado. Precisamos de fazer com que a herança cultural do
budismo tibetano não morra devido a uma fragmentação demasiada, mas
que sobreviva aos séculos para continuar a beneficiar todos os seres.

Você também pode gostar