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Ano XVII, n° 24, Junho/2005 41

Motrivivência Ano XVII, Nº 24, P. 41-57 Jun./2005

PRÁTICA DO FISICULTURISMO: significados


Adriana Estevão1

Resumo Abstract
O presente ensaio aborda questões The current essay intends to relate some
relacionadas aos adeptos do aspects about followers of the
fisiculturismo, cujo objetivo é desenvol- bodybuilding, which main objective is to
ver um enorme volume muscular. Os develop an great muscular volume. The
fisiculturistas buscam alcançar determi- bodybuilders goal is to reach certain
nado padrão estético, peculiar a essa esthetic standard, peculiar to this
modalidade e é aceitável entre eles, para modality, being acceptable among them,
conseguí-lo, que se ultrapassem os in order to get it, to overcome the human
limites fisiológicos humanos. A questão physiologic boundaries. The question
é: o que faz com que esses praticantes raised above all is: what is the reason
desejem ter corpos muito hipertrofiados, which stimulate them to aim a body
já que tal fato implica em riscos à saúde? incredibly hipertrophical, taking into
Palavras-chave: Fisiculturismo; Corpo; consideration, indeed, that such bodies
Risco e Saúde. are extremely closed to the risk of health?
Keywords: Bodybuilding; Body; Risk and
Health.

1
Doutoranda em Ciências Sociais (PUC-SP). Professora do Deptº Educação Física da FURB/SC
42

Introdução a metodologia a observação com a


participação no cotidiano, baseado na
Pode-se dizer que os/as fisi- observação participante como suge-
culturistas (ou bodybuilders), formam re Malinovsky (1976).
um grupo à parte no espaço da Durante alguns meses fo-
corpolatria contemporânea. O cuida- ram acompanhadas algumas fisicul-
do com a forma física é uma de suas turistas que treinavam em academi-
principais (senão a maior) preocupa- as de musculação em Campinas e
ções na vida. Dedicam substancial Joinville. Também foi entrevistada
tempo diário para as rotinas de pre- uma fisiculturista do Rio de Janeiro
paração para o fisiculturismo: este Algumas informações complementa-
termo é reconhecido por seus adep- res, acerca dos efeitos e conseqüên-
tos, como uma modalidade compe- cias do emprego freqüente e conti-
titiva da musculação que promove nuado dos esteróides anabolizantes
campeonatos para demonstração/ foram fornecidas por um médico
confrontação individual (através de endocrinologista e professor da
poses) de silhuetas corporais Unicamp.
hiperbólicas, forjadas à ferro. Há Na pesquisa, busquei apre-
uma busca frenética pelo corpo sentar os significados apreendidos
milimetricamente exercitado, escul- através dos encontros e do convívio
pido, com o intuito maior de aumen- com fisiculturistas, baseados na des-
tar músculos e diminuir adipo - crição empírica/densa (GEERTZ,
sidades corporais. Neste contexto, 1978), abordagem esta que buscou
os esteróides anabolizantes são uti- um detalhamento, minucioso, pro-
lizados em dosagens muito altas. veniente do envolvimento com as
Esta torna-se uma prática axiomática fisiculturistas e seu entorno, a par-
na relação que se estabelece com o tir da qual também foram enuncia-
cultivo de uma estética particular. das questões acerca de risco e saú-
O instrumental metodo- de. As interpretações presentes no
lógico utilizado constituiu-se de artigo, são registros com significa-
entrevistas não-estruturadas (aber- dos singulares, menores. As análi-
tas). Havia uma pergunta inicial para ses e considerações desse trabalho
cada tema a ser abordado e os/as en- partiram das particularidades mape-
trevistados/as falavam livremente. As adas, por isso não foi objetivo des-
entrevistas ocorreram entre novembro te trabalho entrevistar grande núme-
de 2002 e março de 2005, nas cida- ro de fisiculturistas.
des de Campinas, Rio de Janeiro e Com o intuito de preservar
Joinville. Também foi empregada para o anonimato das fisiculturistas in-
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tegrantes da pesquisa, foram troca- sim, ter qualidade de vida também


dos seus nomes: Valentina, Rebeca, significa chegar aos sessenta anos
Kika, Lorenza e Gilda. Complemen- com aparência de trinta. Mas no caso
tarmente, foram utilizados alguns específico dessas mulheres, isso é
relatos, obtidos no site da FEPAM - bastante improvável, devido ao uso
Federação Paulista de Musculação intenso e continuado de fármacos,
(<www.culturismo.com.br>). principalmente os esteróides ana-
bolizantes. Para Neves,
Fortes até... morrer?
em certas ideologias médicas, pen-
sa-se em uma prevenção do enve-
Tenho consciência de que posso me
lhecimento – ou, para não ser mui-
dar mal, mas quero ficar com um
to rigoroso ou redutor, - em um
corpo musculoso e isso é o que impor-
retardamento do envelhecimento.
ta. Se morrer, vou morrer grande. [...]
Ou seja, começa-se a antecipar a
Sei me cuidar e vou continuar com os
velhice por uma série de métodos
anabolizantes até que algo me aconte-
que se afirmam ‘retardadores’ da
ça [relato de um fisiculturista]
velhice. ‘Quanto mais cedo puder-
(LINDNER, 2000:1-2).
mos tomar providências, melhor’.
Aqui também trata-se de ‘projetos
O fisiculturismo é repleto
racionais’, não de sonhos, desejos
de significados. É em nome da con-
ou delírios de descontinuidade ou
servação do corpo que seus adeptos imortalidade. Tudo se dá em um
reforçam suas aspirações diárias: eles contínuo discurso do eterno des-
têm medo de envelhecer. Desejam dobramento até que se encontre a
corpos esculpidos. Valentina diz que terra que, anteriormente, era pro-
vai “(...) treinar por uma qualidade de metida e que, agora, é conhecida
vida boa (...) até eu ser vovó e ainda (1999:46).
estarei lá na academia treinando”. Para
as fisiculturistas entrevistadas, o ter- Algumas fisiculturistas têm
mo qualidade de vida está direta- sua rotina de treinos e competições
mente relacionado com ter boa saú- alteradas devido a sérios problemas
de, ou seja, ficar doente com menos de saúde. Lorenza encerrou sua car-
freqüência do que antes de iniciarem reira competitiva quando descobriu
as atividades físicas. Nas conversas, que estava com hipertensão. Ela
boa aparência e saúde eram expres- conta que “(...) sentia umas dores de
sões utilizadas com o mesmo signi- cabeça (...). Fui no hospital me consul-
ficado. Também corpo atlético era tar com uma médica (...) fiz o
sinônimo de aparência saudável. As- eletrocardiograma e outras coisas mais,
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me monitoraram toda e ela percebeu uma boa experiência: “Eu consigo me


isso. (...) fiquei chateada no dia...”. dar bem com isso sim. Melhora a auto-
Desde então, faz uso de remédio es- estima porque você treina e vê o efei-
pecífico para controlar a pressão ar- to”. Ela justifica o uso que faz da
terial e terá que fazê-lo por tempo substância como sendo um aliado
indeterminado. Para confirmar, con- da malhação, um antídoto contra as
sultou um outro médico: “(...) ele imperfeições. Diz que para ‘assegu-
mediu minha pressão e viu que estava rar’ seu uso: “(...) eu freqüento uma
aumentada. Eu me surpreendi, pois nunca ginecologista, fisioterapeuta, mas é a
tive pressão aumentada”. A recomen- endocrinologista que receita os
dação médica, segundo ela, foi que anabolizantes. (...) faço pesquisa com
“(...) se você quiser continuar nesse tipo ela e compro sem receita”.
de trabalho acho melhor que você faça Martínez define os este-
não mais para competição e não use mais róides anabolizantes como “(...) um
esteróides anabólicos”. Além de hiper- conjunto de compostos relacionados
tensão ela ainda apresentou “um pro- com a testosterona tanto do ponto de
blema no joelho esquerdo, condromalácia vista estrutural [químico] como da ati-
(...) e (...) uma lesão no colateral fibular vidade biológica [fisiológica]. A testos
(...)”. Apesar dessas seqüelas, não testosterona, que é o principal este-
pensa em parar de malhar intensa- róide anabolizante natural, é o hor-
mente: “(...) a musculação já está ar- mônio sexual mais ativo, e portan-
raigada em mim. Ela é necessária pra to, o principal responsável pela (...)
manter o tamanho de meus membros maturação sexual do homem” (1990:
inferiores como eu quero”. Lorenza 375). Estas substâncias surgiram a
relembra: “na minha época tinha as- partir de pesquisas farmacêuticas re-
sim uns esteróides injetáveis e tal, mas alizadas no final do século XIX e pri-
no mercado o mais usado era um com- meira metade do século XX.
primido que é o mais perigoso, o Inicialmente, o emprego
hemogenin (...)”. No início, usou sem dos esteróides anabolizantes, foi pre-
saber. O treinador misturava na vita- conizado com fins terapêuticos sen-
mina que preparava para ela ingerir. do “(...) indicado para casos de perda
Mas, quando descobriu continuou a excessiva de nitrogênio e síntese
fazer uso até ela ter que parar de com- protéica reduzida, impotência, insufi-
petir, porém, não deixou de treinar ciência no crescimento, osteoporose,
com a intensidade de antes, mesmo fraturas, distrofia muscular, anemia (...)
sentindo fortes dores. e miotrofismo” (MOURA, 1984:101).
Para Rebeca, a adaptação Começou a ser utilizado na década de
com os esteróides anabólicos foi 1950 (ARAÚJO, 2003). A afirmação do
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registro da utilização desses produtos usam uma quantidade de esteróides que


nos esportes baseia-se em vários do- é de arrepiar. Eles dizem: não tenho
cumentos secretos resgatados após a medo, eu quero subir no palco ‘grande’
queda da República Democrática Ale- e ‘seco’. (...) Mas e depois? Não tem
mã. Neles consta que o Governo Ale- depois, eu não penso no depois (...)”.
mão da época promovia o uso de dro- Ao apresentar esses depoimentos,
gas, em especial dos esteróides Lorenza imprimiu um certo tom de
anabólicos androgênicos em esportes denúncia. No entanto, quando se
de alta performance. “Teses acadêmi- referiu a sua própria experiência com
cas altamente secretas, relatos cientí- as mesmas substâncias químicas,
ficos, relatórios de verbas de médicos afirmou que “tudo é válido, pois o gos-
e cientistas que serviram como cola- to da vitória é muito bom!”.
boradores do Ministério para a Segu- No início do mês de setem-
rança do Estado revelam que, de 1966 bro de 2004, Kika participou como
em diante, centenas de médicos e ci- árbitra de um campeonato em San-
entistas, incluindo professores (...), ta Catarina. Segundo o relato dela,
realizaram pesquisas sobre doping e o competidor premiado como “o
administraram drogas lícitas e ilícitas melhor daquela noite” (foi ganhador
aos atletas” (ARAÚJO, 2003:7). O au- do 1º lugar na sua categoria e no
tor salienta que milhares deles eram geral), morreu algumas horas depois
tratados com andrógenos todos os da competição, vítima de uma para-
anos, incluindo mulheres e crianças da respiratória. “Antes do campeona-
de ambos os sexos. Mulheres e ado- to ele havia se sentido indisposto”, dis-
lescentes eram o alvo preferencial des- se Kika, “mas não quis deixar de com-
ses produtos devido a aplicação se petir argumentando que havia se pre-
mostrar efetiva na melhora do desem- parado muito para estar ali”.
penho esportivo. (ARAÚJO, 2003).
Lorenza declarou acerca de Ele, com certeza deve ter usado
uma amiga sua: “a Lúcia Helena, mor- muita droga, porque alguma coisa
reu de tanto tomar ‘bomba’!”. Além o levou a isso. Eles fazem um mon-
dessa, que era uma competidora te de coquetéis, eliminam o sal,
conhecida da modalidade, revelou cortam os líquidos, zeram tudo. É
ter informação sobre outras pesso- uma coisa que eu também já fiz e
as que faleceram no palco, durante se eu voltar a competir, vou ter que
a apresentação em campeonatos. fazer de novo. Quem compete pen-
Ainda ao se referir a colegas que fi- sa em ganhar ou ganhar e isso não
zeram utilização de anabolizantes, tem preço. E pra isso acabamos
teceu o seguinte comentário: “eles tomando coisas que fazem mal...
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Em setembro de 2004, foi realizado em 1993 demonstra nos


noticiado que em Brasília (DF), seis ra- Estados Unidos mais de um milhão
pazes injetaram na veia um esteróide de pessoas fazem uso de anabo-
anabolizante de uso veterinário deno- lizantes.
minado ‘estigor’, utilizado para en-
gordar gado. Ao serem inquiridos so- Em relatório recente, o National
bre o ocorrido eles disseram que o Institute on Drug Abuse (NIDA,
motivo por terem feito uso da droga 2001) informa que a porcentagem
foi porque “queriam ficar musculosos”2. de estudantes do curso secundá-
Courtine investigou o universo dos rio (high school) que utilizou estas
substâncias cresceu 50% nos últi-
bodybuilders e revelou sua impressão
mos quatro anos, passando de 1,8%
quanto a lógica pela qual são condu-
para 2,8%. O consumo do consu-
zidos: “você pode se tornar a pessoa
mo de suplementos alimentares e
que sonha ser, dizem os body-builders. anabolizantes nessa população (...)
Você pode desafiar ao mesmo tempo levou o governo norte-americano
o inato e o adquirido e fazer de você a lançar, no ano passado, uma
um outro” (1995:89). campanha nacional para alertar os
Salienta Martinez que “(...) jovens dos perigos associados à sua
mesmo que não se possa definir com utilização (...) (2002:1380).
exatidão, já são perceptíveis os gra-
ves problemas que (...) têm sua ori- Também no Brasil, segun-
gem no uso prolongado de esteróides do os pesquisadores, está crescendo
anabolizantes. A morte ocasionada entre os jovens, mais especificamen-
por câncer no fígado de um atleta com te nas academias de musculação, o
vinte e seis anos, em decorrência de número de usuários de esteróides
quatro anos de ingestão de anabolizantes. Apesar de investiga-
esteróides anabólicos-androgênicos, ções dessa natureza (que desvelam
exemplifica conseqüência de um o uso dos referidos produtos também
desequilíbrio duradouro no sistema por indivíduos iniciantes) precisarem
hormonal” (1990:383). ser mais exploradas em nosso país,
O emprego desses fárma- tal fato pode ser confirmado através
cos, também tem se tornado, uma de certos indícios in loco, sendo o
opção disseminada entre outros principal deles a rapidez com que os
freqüentadores das academias. Se- músculos de praticantes novatos na
gundo pesquisa realizada por Iriart musculação aumentam de volume.
e Andrade, um estudo populacional Um fisiculturista de 22 anos, entre-

2
Segundo reportagem do Jornal Nacional (Rede Globo), levada ao ar dia 09/09/2004.
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vistado por Iriart e Andrade fala do nais, hipertensão, taquicardias,


efeito positivo dos esteróides: “(...) arritmias e pode até levar à morte’,
eu tava com mais ou menos 37, 38 adverte o endocrinologista Elias de
de braço (...). Aí foi pra 40, 42 centí- Oliveira Filho (2000:9).
metros. Aí fica todo mundo surpre-
so, aquele negócio, você nem acre- Outro fisiculturista, de 22
dita quando (...) se olha no espelho e anos, entrevistado pelos pesquisa-
você se vê forte” (2002:1383). dores Iriat e Andrade, disse que “teve
Lorenza declarou que de- um colega que perdeu a perna to-
pois que experimentou não pensou mando injeção localizada na região.
mais em parar: “(...) eu estava cres- Esses riscos todos a gente sabe que
cendo [hipertrofiando a musculatu- pode acontecer (...). É aquele tipo
ra] ‘seca’ [sem aumentar a gordura] de aventura. Você pensa: ‘Ah, vou
com a maior facilidade (...). É porque aventurar. Comigo não acontece.’ Aí
meu metabolismo ‘acelerou’ com o uso você vê que todo mundo pensa as-
do esteróide e a musculação”.
sim” (2002:1384). Um outro de 29
Em um relato é revelado o
anos respondeu que “eu to toman-
sonho de um adolescente, que era
do, mas sei que eu posso morrer
ser campeão de fisiculturismo. Para
isso ele treinava musculação e fazia naquela hora ali” (2002:1385).
uso de esteróides anabolizantes. Se- Esses relatos possibilitam
gundo seu próprio depoimento, em mapear significados: para quem faz
um ano aumentou 20kg (de massa essa escolha, o risco é compensado
muscular); sem o uso do fármaco, por não passar pela vida sem serem
admite que levariam mais de três notados ou ‘em branco’, como di-
anos. (LINDNER, 2000). zem. Cabe ressaltar que esse suces-
Um distúrbio denominado so que dizem alcançar ocorre ou é
‘dismorfia muscular’ ou vigorexia é reconhecido apenas entre o grupo.
comum em praticantes de muscu- Silvia Finocchi relata, orgulhosa de
lação. Segundo Klinger, si mesma, sobre um momento es-
pecial: “Lá, incrédula com o que se
(...) estudo americano aponta um as- passava comigo, fui chamada ao
pecto ainda mais sério da questão, o podium assumindo a segunda colo-
uso de drogas. Os casos de desor- cação no Miss Universo, aos 40 anos
dens da imagem corporal regis- e com dois filhos adultos”
trados envolviam consumo de (www.culturismo.com.br/ entre-
anabolizantes e anfetaminas. Além de vista11.asp). Lorenza revela sua im-
causar dependência, trazem graves pressão e acredita que “(...) são moti-
danos à saúde, como ‘problemas re- vos grandes o suficiente pra levarem es-
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sas pessoas a fazerem isso até morrer ou pra mim, mas eu não reagia”. Em meio
então para ficarem durante mais tempo a essa situação delicada pela qual
até alguma coisa fazer com que elas pa- estava passando, ela negava ingerir
rem, algo pelo qual elas estão no limiar alimentos. A filha e seu marido ten-
entre a vida e a morte, tipo uma doença. taram lhe dar carboidrato, mas ela
Isso pode fazer com que parem...”. A pro- insistia em não comer nada para não
babilidade de pararem é pequena. Os ‘estragar a dieta’ enquanto seu es-
depoimentos explicitam a falta de pre- tado de saúde se agravava: “(...) eu
ocupação com as possíveis conseqü- comecei a ter diarréia e fazia xixi sem
ências e a vontade de irem até o limi- parar. Eles me davam água aí meu
te extremo. marido me pegou no colo, levou pra
Gilda teve uma experiência casa, colocou na cama. Minha filha
marcante. Aconteceu na véspera de quando viu, começou a chorar, ficou
um campeonato para o qual ela jul- desesperada. E dá-lhe coisas na minha
gava estar ‘super preparada’, com boca, mas eu não podia comer, eu não
seu físico ‘em dia’ para competir. Mas engolia pra não estragar a dieta”. A
alguém lhe aconselhou experimen- estratégia das dietas restritivas, uti-
tar, uma semana antes, um novo lizada como forma de preparação
diurético que faria com que ela ‘se- corporal, principalmente durante o
casse’ ainda mais: “eu, que já estava período pré-competitivo “(...) pode
seca, desidratada ao máximo e já ti- acarretar deficiências nutricionais
nha tomado outro tipo de diurético, (...), particularmente de minerais
fiquei meio na dúvida (...)”. Mas ela como o cálcio e o zinco (...) aumen-
aceitou a sugestão e fez uso do pro- tando, assim, o potencial de risco
duto. Explicou que o medicamento para o desenvolvimento de osteo-
não reage imediatamente, somente porose” (CYRINO et al, 2002:27).
algumas horas depois. Gilda iria vi- Quando Gilda conseguiu
ajar na 5ª feira, mas na 4ª feira à tar- pronunciar algumas palavras, a pri-
de na academia ela quase teve que meira coisa que disse foi que queria
desistir. O que ocorreu foi o seguin- ir ao campeonato, o qual seria reali-
te: “eu passei mal. Fiquei tonta, mi- zado no dia seguinte em uma cidade
nha boca começou a formigar, a mi- há 800km de sua casa. “Eu quase mor-
nha mão também. Metade eu era bran- ri. E a gente morre mesmo, morre por
ca e a outra metade roxa e não conse- um objetivo”, declarou. Horas depois,
guia mais ficar em pé. Desmaiei. Quan- quando estava sentindo melhoras,
do acordei chamei meu marido, mas a arrumou a mala e na manhã seguin-
minha voz parece que tinha sumido. Aí te seguiu viagem. O marido a levou
ele veio, pegou mel e deu um pouquinho de carro, ela foi deitada no banco de
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trás bebendo um repositor hidro- socialmente, privando-os de todos


eletrolítico (bebida que contém sais os pontos de referência afetivos,
minerais – similar as proporções e ‘desintegrando-os de tal forma que
elementos que existem no suor hu- num determinado ponto a morte
mano – sendo os principais deles o passa a ser um simples detalhe bio-
sódio, potássio e cálcio). lógico’ (...) (2002:31).
Em sua pesquisa, Sabino
(2004) mostrou situações similares. Segundo os praticantes, o
Constatou que alguns dias antes dos que parece justificar a sujeição aos
campeonatos, os fisiculturistas dei- notórios e eminentes riscos à saúde,
xam de comer sal e tomam laxantes incluindo até a possibilidade de mor-
e diuréticos com o objetivo de re- te, é o desejo incessante de ficarem
duzir a quantidade de água no teci- cada vez mais fortes, suportado pela
do subcutâneo para que a muscula- crença de um suposto reconhecimen-
tura seja ainda mais ressaltada. Não to social que lhes proporcionaria a
raro, sofrem vertigens e desmaiam ostentação de sua musculatura. A
devido a falta de água e de sais mi- respeito do seu ciclo menstrual, Gil-
nerais que produz quedas na pres- da revelou: “eu fico só três meses sem
são arterial e arritmia cardíaca. Para menstruação, logo depois dos campeo-
reforçar o cardápio, utilizam vários
natos começo a menstruar. Tem meni-
produtos para suplementação como
nas que não menstruam nunca mais. A
farelos e comprimidos, derivados de
Valentina é uma delas”.
alimentos que em geral são batidos
A alteração do timbre da
com leite desnatado ou adicionados
à água. Tal tipo de dieta reduz a voz é uma característica comum en-
porcentagem de gordura corporal. tre as fisiculturistas que mantive
As taxas chegam a estabilizar entre contato. O tom era grave como uma
2% e 5%, contra 18% de um indiví- voz masculina. Mas elas justificavam
duo comum do sexo masculino. dizendo que “sempre foi assim” ou
Para Goldenberg e Ramos, então “minha voz já era grave antes,
apenas ficou mais rouca”. Também
(...) as sociedades são capazes de sem dar muita ênfase, Gilda revelou
levar os seus membros, por meios que pêlos grossos apareceram em seu
puramente simbólicos, à morte: in- rosto, principalmente no queixo. Ela
cutindo-lhes a perda da vontade de resolve isso se depilando ou então
viver, fazendo-os deprimidos, aba- fazendo a barba como os homens.
lando-lhes de tal forma o sistema Apesar de evidente, esses e outros efei-
nervoso, consumindo-lhes as suas tos são absorvidos por elas como
energias físicas, marginalizando-os muita naturalidade, algo a ser contor-
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nado e não evitado. Elas acreditam de sempre foi ‘por debaixo dos panos’
que nada vai acontecer com sua saú- a venda dos anabolizantes. A gente
de (mesmo com alterações já mani- toma muito mais coisas: são remédios
festadas) por ingerirem muita droga: pra emagrecer, pra vascularizar, pra
“cada mês eu tomo apenas oito ampolas cortar o açúcar. Então sempre se dá um
de winstrol, o VHEA que é pré-liberador jeito pra comprar. Eu não conheço nin-
de hormônio e o GH. Isso é pouco, muito guém que não tenha conseguido com-
pouco”, declarou uma delas. O cuida- prar por causa da proibição. Então,
do, na opinião dela, deve ser com a deviam liberar...”.
qualidade do anabolizante ingerido: Em uma academia visita-
“(...) não dá pra comprar qualquer coisa da, a venda de suplementos era na
na esquina que um ‘Zé mané’ está ven- lojinha ao lado, dividida apenas por
dendo, porque aí tu vais colocar a tua uma parede. Também eram ofereci-
saúde em risco (...)”. das roupas e acessórios apropriados
Sendo esses produtos proi- às práticas corporais em academia.
bidos para a venda sem prescrição O local era pequeno, mas a organi-
médica, foi questionado a uma de- zação dos produtos chamava a aten-
las como tinha acesso. “Bem, nas far- ção de qualquer pessoa, parecia uma
mácias você tem que ter alguém co- boutique. As embalagens dos suple-
nhecido lá dentro ou alguém que use e mentos alimentares eram coloridas,
te apresente ao dono ou ao balconista. quase sempre com fotos de
No meu caso já faz tanto tempo que marombeiros no rótulo ou de algu-
eles já me conhecem e sabem que é se- ma mulher muito forte, sem nenhu-
guro vender pra mim. Eles têm medo ma imperfeição aos olhos dos adep-
porque agora está proibido e ficou pior tos da cultura da malhação. Os po-
pra gente conseguir. Antes, há uns 8, tes eram de diversos tamanhos, mas
10 anos atrás, era bem mais fácil”. os que se sobressaiam eram aque-
Também podem ser adquiridos nas les cuja embalagem era enorme. O
academias através do proprietário, tamanho grande do recipiente é um
alunos veteranos ou instrutores que atrativo a mais para os consumido-
muitas vezes sobrevivem das aulas res. O conteúdo varia em sua apre-
de personal trainer e do comércio sentação. Alguns são em pó, como
desses fármacos. Comprados na aca- por exemplo, albumina – que é a
demia, geralmente, são mais caros. clara do ovo desidratada -, outros
Alguns produtos são importados, e são em cápsulas gigantescas, como
a proibição não impede a comer- os aminoácidos. Engolir tais bagas
cialização nem o uso. “Olha, desde deve ser mais uma provação para os
que proibiram nada mudou. Na verda- fisiculturistas.
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De acordo com José Gil não para eles próprios, fechando-se


(1993), os corpos tatuados são dife- e fechando-se em grupos, compra-
rentes dos corpos perfurados ou zendo-se apenas na imagem de si”
lacerados, ou queimados e eu acres- (GIL, 1993:273). É que em vez de
centaria dos bodybuilders, mas todos um rito planetário de transformação
eles visam uma modificação do cor- e construção de um novo corpo,
po individual comum. Poder-se-ia, complementa o autor, teríamos ape-
aparentemente, dizer melhor: “to- nas um espetáculo global.
dos eles visam a modificação da Pierre Clastres (2003) faz
imagem individual do corpo stan- uma abordagem sobre os ‘rituais de
dart. Mas trata-se, aqui, de qualquer pertencimento’ em algumas tribos e
coisa de mais profundo ainda do que regiões. Como trata o autor, os mei-
a imagem do corpo: pretende-se os, técnicas e objetivos de se afirmar
modificar o corpo real, e não só a a crueldade, varia de uma tribo ou
sua imagem” (GIL, 1993:268). Refe- de uma região a outra. O que elas
rido-se ao piercing o autor adverte apresentam em comum é a meta: pro-
sobre o que considera um perigo vocar sofrimento. Clastres revela so-
que espreita todas as práticas de bre a iniciação dos jovens guayaki.
transformação corporal: é fazer do Seus dorsos são escavados e revolvi-
corpo um território, um fim em si dos por toda a superfície. A dor insu-
mesmo, um novo organismo, uma portável faz com que o torturado
estrutura rígida, para ser captado e desmaie. Também os jovens Mbayá-
exibido pelas mídias, pelo espetá- Guaykuru do Chaco Paraguaio, ao al-
culo ou simplesmente “pelo olhar cançarem a idade de admissão na clas-
mais secreto da subjetividade” se dos guerreiros, deviam passar pela
(1993:272). Nas sociedades primiti- prova do sofrimento. O pênis e ou-
vas, esclarece Gil, a perfuração do tras partes do corpo eram perfurados
corpo, a tatuagem, a escarificação, com osso de jaguar. O preço da inici-
enfim, as mudanças corporais, acom- ação também era o silêncio. Este era
panhavam rituais (de passagem, exigido, pois, calados consentem em
terapêuticos ou outros): ajudavam aceitar-se no papel de membros in-
a criação de um novo corpo, que se tegrais de comunidade.
abria e irradiava para a sociedade, a O momento da tortura é
natureza, os homens e os deuses. para marcar o corpo. É considerada
Gil manifesta preocupação uma comprovação da coragem pes-
em relação ao body-piercing: “O pe- soal que se exprime no silêncio
rigo, agora, é que os corpos do body- oposto ao sofrimento. As cicatrizes
piercing moderno não irradiem se- permanecerão no corpo mesmo
52

após o término da iniciação. “Inscri- primitivas são sociedades da marca-


tos na profundidade da pele, ates- ção. Elas se colocam contra a lei do
tarão para sempre que, se por um Estado: “(...) procuravam, ao preço de
lado a dor não pode ser mais do que uma terrível crueldade, impedir o
uma recordação desagradável, ela foi surgimento de uma crueldade ainda
sentida num contexto de medo e mais terrível: a lei escrita sobre o cor-
terror. A marca é um obstáculo ao po é uma lembrança inesquecível”
esquecimento, o próprio corpo traz (CLASTRES, 2003:204).
impressos em si os sulcos da lem- Para tornar-se um fisicul-
brança – o corpo é uma memória” turista, diferentemente do que ocor-
(CLASTRES, 2003:201). A marca pro- re nas sociedades primitivas, é preci-
clama o pertencimento do iniciado so seguir leis e normas: ser discipli-
ao grupo que significa ser semelhan- nado e desenvolver autocontrole.
te aos outros, ocupar o mesmo es- Nos ambientes das academias, há hi-
paço: ninguém é inferior, nem supe- erarquia. Os que malham mais con-
rior. A lei que eles aprendem a co- duzem os que malham menos. Os
nhecer na dor é a da sociedade pri- iniciantes são seguidores dos mais
mitiva: ninguém é mais importante experientes, são discípulos que ‘al-
que ninguém. mejam chegar lá’: ter um corpo simi-
Na sociedade primitiva, so- lar. Os veteranos não admitem inter-
ciedade essencialmente igualitária, ferência em seu conhecimento, con-
os homens são senhores de sua ati- sideram-se superiores e é a eles que
vidade, senhores da circulação dos os outros devem obediência. Se os
produtos dessa atividade: eles só seguidores não forem fiéis, ficarão
agem para si próprios, mesmo se a mais tempo no estado de iniciantes.
lei de troca dos bens mediatiza a re- Estes serão considerados preguiço-
lação direta do homem com o seu sos e indisciplinados. Os corpos
produto. Nada existe no funcionamen- fisiculturistas são indiscutivelmente
to econômico, dessas sociedades, marcados, transformados, com o ob-
que permita a introdução da diferen- jetivo de pertencimento a um gru-
ça entre os mais ricos e mais pobres, po. Esse é um processo. Não é so-
pois aí ninguém tem o estranho de- mente com o corpo musculoso que
sejo de fazer, possuir, parecer mais os fisiculturistas demarcam perten-
que seu vizinho (CLASTRES, 2003). cimento ao grupo, mas também, uti-
As cicatrizes desenhadas lizando um linguajar próprio, que só
sobre o corpo são o texto inscrito da é decodificado por eles. Dessa forma
lei primitiva, é nesse sentido, uma asseguram seu espaço. O corpo do
escrita sobre o corpo. As sociedades fisiculturismo é um corpo impregna-
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do de Estado: quer regras, leis, deve- como atesta o discurso de Valentina,


res, direito, segurança/proteção, uti- que reforça a idéia dessa modalida-
lidade, obediência, rotina, autori- de como promotora de uma vida
tarismo. É um corpo que basta a si saudável: “As pessoas se renovam, vejo
mesmo, que precisa do outro apenas pessoas rejuvenescerem e passam a ver
para afirmar sua superioridade. a vida de outra forma. Isto me causa
Os fisiculturistas, muito um imenso prazer, e cada vez mais me
mais do que cultuar músculos so- animo para continuar ensinando e
bre-humanos cultivam uma ética aprendendo, pois sempre se está apren-
representativa de nossa era que se- dendo algo neste magnífico mundo que
ria um indivíduo disposto a vários é o nosso corpo. Eu sou a prova viva
desafios, como pagar o máximo para disto”. Isso também está presente na
atingir seus objetivos; ser livre para declaração de Kika quando faz men-
se projetar e construir seu destino; ção ao falecido colega, que partici-
possuir autonomia para construir pou do campeonato do qual foi
seu corpo, subjugando-o a sua men- árbitra: “às vezes uma coisinha incor-
te; se submeter e enquadrar a maté- reta pode levar a pessoa à morte. Vári-
ria aos ditames da razão instrumen- os fisiculturistas já morreram, inclusi-
tal. Talvez outros aspectos, além ve em cima do palco. Gente com saúde
daqueles relacionados aos preceitos mesmo, que você via que tinha saúde”.
subjetivos e objetivos da ambiência Para ela, os riscos se intensificam
das academias de musculação e devido ao uso incorreto das drogas:
fisiculturismo, sejam fatores sociais “(...) se você fizer tudo certo, usar as
que contribuam para o crescente drogas corretamente, certamente não
consumo de fármacos entre os vai morrer que nem ele. Só que real-
freqüentadores dessas instituições. mente tem que fazer certinho, aí vale à
Um deles pode ser o hábito comum pena”. Após uma pausa ela continua:
de nossas sociedades de ingerir “Eu tenho mais medo de envelhecer do
substâncias farmacológicas como que de morrer”. Não só no caso dos
meio de resolver, ou minimizar, as fisiculturistas, mas também das práti-
dificuldades da vida. cas ou ritos de lacerações na língua,
O fisiculturista deseja se escarificações, piercings, tatuagens,
tornar um vencedor dentro dos escoriações, queimaduras, suspen-
parâmetros estabelecidos pela or- sões, por ganchos cravados na pele,
dem entendida por ele como natu- esportes chamados de ‘radicais’, etc.,
ral. Suas representações de saúde e são práticas que carregam a dor, ou
harmonia naturalizam a construção ao menos o medo, em seu bojo. No
social que ele faz do seu corpo, caso dos fisiculturistas, em que a ima-
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gem de uma couraça musculosa é o mo vídeos, produzidos aos montes


sentido de vida, as rotinas constantes e encontrados no mercado. Tratan-
são necessárias e sempre renovadas. do-se de amadores o tempo diminui
Assim, esses corpos hipermusculosos, para 3 ou 4 anos para a musculatura
que se autocontrolam, apesar de apresentar-se desenvolvida. Isso só
inflacionados de vaidades, são convi- é possível com a combinação dos
dados a nunca atingir a total perfei- esteróides anabolizantes, treinos in-
ção que almejam. Em vista disso, em- tensos (com carga elevada e a utili-
barcam nesse infindável processo: vi- zação de algumas horas diárias – de
gias de si. 2 a 5) e alimentação à base de prote-
Não são apenas drogas ínas. Além disso, a suplementação
como esteróides anabolizantes que sintética acompanha a rotina.
são consumidos pelos praticantes do Nesse processo para tor-
fisiculturismo. Uma entrevistada de- nar-se um fisiculturista, além dos
clarou ter conhecimento de pratican- efeitos dos anabolizantes, surgem
tes que também utilizam cocaína: “A vários tipos de lesões: por esforço
pessoa fica dependente dos esteróides, repetitivo principalmente nos joe-
mas também usa de vez em quando lhos e ombros, que resultam em ci-
cocaína, pra ficar ‘ligado’ e ter mais rurgias; além de bursites, tendinites,
energia pra treinar. Eu já usei e real- artrites, hepatite medicamentosa,
mente o treino rende bem mais, você hipertensão, ginecomastia, dores de
tem mais ‘pique’ e isso acaba te benefi- cabeça e outros problemas acarre-
ciando”. Sabino (2004) constatou tados ao uso continuado das dro-
que muitos bodybuilders fazem uso gas. Nas academias, ao adquirir o
de cocaína e maconha não apenas corpo musculoso (vencendo as eta-
para inverter as estruturas, em um pas), o aspirante a fisiculturista con-
ritual esporádico de contestação es- sagrado, pelo menos em seu grupo
trutural, mas pelo fato de descobri- delimitado, vai sendo alçado a um
rem que tais drogas, apesar de suas novo papel. Sua identidade, mesmo
características entorpecentes, po- sendo volátil, visto depender da bre-
dem, em alguns casos ter efeitos vidade da forma, vai se construindo
como emagrecimento ou a disposi- continuamente, e a dor e o risco de
ção para suportar o período de trei- vida inscrevem-se como emblemas
namento pesado. em seu corpo, moldando em sua
O fisiculturista leva entre 8 carne o perfil musculoso do status
e 10 anos para tornar-se um ‘gigan- diretamente radicado na fugacidade,
te’ e isso não ocorre através da con- que acaba tornando-se tragédia da-
sulta a manuais, livros ou até mes- queles que da forma extraem quase
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todo o seu poder (Sabino, 2004). Por cimento abrem uma possível via de
outro lado, atenta o autor, quanto atuação dos empreendimentos
mais difíceis são as etapas que um consumistas reproduzidos pela publi-
indivíduo atravessa para pertencer cidade que exerce papel efetivo, não
a uma instituição, e desfrutar de seu apenas na construção da identidade
reconhecimento, mais valor o mes- dos freqüentadores assíduos da aca-
mo confere a esta. demia de ginástica e musculação, mas
Sendo conhecedores ou não no cotidiano de milhões de pessoas
das conseqüências dos anabolizantes, que são levadas pelos discursos
isso parece não ter importância na especializados a procurarem um pro-
hora da decisão de usá-los. No início, duto que lhes garanta a saúde, enten-
muitos duvidam dos efeitos nocivos dida, não raro como boa forma e ju-
e nem imaginam que poderão ser ví- ventude. Muscularidade e magreza
timas de algo grave. Kika declarou que acabam significando, em nossa cultu-
“muitas vezes as mulheres tem até que ra, sinais de positividade, levando nú-
usar mais anabolizantes do que os ho- mero significativo de homens e mu-
mens, pois eles até já têm uma muscula- lheres adultos e adolescentes ao con-
tura e é mais fácil pra desenvolver. Pra sumo de esteróides anabolizantes,
gente fica mais difícil pele fato de sermos outros hormônios e produtos em bus-
mulheres, então temos que abusar...”. O ca da forma física ideal, concebida
conhecimento dos riscos é um fator como a chave para a aceitação e as-
que reitera o uso “posto que o risco censão social, enfim, para o sucesso.
surge, entre o grupo, como algo posi- A referência das fisicultu-
tivo que reforça a coragem individual ristas é o modelo americano. Isso
e as estruturas hierárquicas do próprio porque a modalidade, nos Estados
grupo, já que usar esteróides é parte Unidos, tecnicamente apresenta
de um ritual contínuo de construção melhores condições para seu desen-
identitária na qual arriscar a vida é volvimento e continuidade: os pra-
fator de valorização da experiência e ticantes podem ser profissionais re-
reconhecimento social (...) ligado ao cebendo apoio financeiro e tec-
status” (SABINO, 2004:99). nológico. Nos EUA as mulheres são
Como revelou Kika, a aver- maiores, apresentam os músculos
são que ela sente em relação ao enve- mais desenvolvidos do que as bra-
lhecimento toma um vulto muito sileiras. O objetivo das mulheres que
maior do que o medo de morrer. entrevistei é ser como as estadu-
Sabino (2004), interpreta que a fragi- nidenses. Elas reclamam da falta de
lidade e a condição mortal refletida, apoio financeiro que há no Brasil,
de imediato, no processo de envelhe- para poderem ‘treinar como as ou-
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tras, tomar o que elas tomam e cres- brasileiras de elite. Revista


cer como elas’. Porém, elas demons- Paulista de Educação Física, v.16,
tram uma dedicação tão intensa à n.1, 2002. p.27-34.
modalidade que a ânsia de continu- GEERTZ, C. A interpretação das
ar nesse meio está acima das difi- culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
culdades vividas diariamente. Não GIL, José. “No pain, no gain”.
houve, nos contatos estabelecidos Cadernos de Subjetividade/
por mim, ex-fisiculturista que não Núcleos de Estudos e Pesquisas
apresentasse vontade de voltar a da Subjetividade em Psicologia
competir. O fisiculturismo é uma es- Clínica da PUC-SP, v. 1, n.1 (1993).
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