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VIDA, PAIXÃO E GLORIFICAÇÃO DO CORDEIRO DE DEUS”

As Meditações de Anna Catharina Emmerich (1820-1823)

Aquele que deseja avançar de vir tude em vir tude, de graça em graça, deve
meditar continuamente na Paixão de Jesus...
Não há prática mais proveitosa para a inteira santificação da alma do que a
freqüente meditacão nos sofrimentos de Jesus Cristo.
São Boaventura

MIR EDITORA
São Paulo
2004

PREFÁCIO
As Emocionantes e admiráveis nar rativas da Paixão e Mor te de Jesus Cristo,
feitas pela Religiosa Agostiniana Anna Catharina Emmerich, resultantes de
suas profundas meditações quaresmais, no decurso de 1820 e 1823, sem que
conste discrepância alguma dos respectivos textos evangélicos, constituem
uma demonstração plausível da realidade dessas visões sobrenaturais.
Não se trata de fatos extraordinários submetidos às investigações
científicas, mas sinceramente apreciados pela razão calma, refletida, que se
conduz pelas leis do raciocínio às provas de sua veracidade. É verdade que a
doutrina católica ordena e o bom senso exige que não se devem aceitar as
visões ou revelações de ordem sobrenatural, sem primeiramente fazê-Ias
passar pelo crivo de uma análise sensata, escrupulosa, submetida ao juízo da
Igreja, evitando que se tomem suscetíveis de ser reduzidas às proporções de
fenômenos naturais.
Como é de esperar, deve ser esse o ponto de par tida das investigações sobre
a realidade das extraordinárias visões de Catharina Emmerich.
Ora, é critério fundamental desse estudo conhecer quais os sinais
característicos da origem das visões sobrenaturais. Primeiramente, se deve
notar que a alucinação se distingue da sensação. Se estes dois fenômenos
se confundem, como efeito imediato e íntimo de uma modificação material
dos órgãos dos sentidos, entretanto, profunda é a sua distinção, porquanto a
alucinação se passa na imaginação e, por tanto, é subjetiva, e a sensação se
dá no sentido e vem de um objeto exterior, é objetiva.
A sensação está intimamente ligada, em sua totalidade, à ação do objeto,
que é a causa. O objeto é a fonte essencial, é a medida. Suprimindo o objeto,
desaparece a sensação. A sensação e a ação do objeto for mam um conjunto
perfeitamente unido: o objeto é o sinete e a sensação a impressão. É com
sinais contrários que se reconhece a alucinação. Por não ter necessidade,
para agir, das vibrações que constituem a ação própria do objeto sobre o
sentido, conta apenas com a disposição puramente subjetiva dos tecidos
ner vosos do organismo vivo.
É cer to que os fenômenos do mundo sensível estão sujeitos às leis, de que
nenhum poder natural pode dispensá-Ios. Os fantasmas da alucinação, ao
contrário, estão sempre em oposição a estas leis e de um modo ridículo,
como se obser va constantemente. É a condição, o efeito próprio da
alucinação, de que não se conhece exceção entre todos os fatos
rigorosamente constatados.
Escritores notáveis, Dirheimen, Schmoeger, que se ocuparam de estudar,
com imparcialidade, as visões de Catharina Emmerich. Casales e Clemente
Brentano, que traduziram a nar ração da vida e das cenas dolorosas da
Paixão do Salvador, mostraram-se admirados e edificados da lealdade
escrupulosa de Emmerich, que não per mitiu acrescentar nem modificar o que
ela viu e contemplou na integra, em obediência às suas revelações.
Salientou-o ainda mais a abnegação de todo e qualquer elogio que se lhe
dirigia.
Na análise psicológica dos fatos visionários, os citados autores mostram que
as verdadeiras sensações do sobrenatural, em Catharina Emmerich, se
achavam inteiramente ligadas aos objetos que nelas imprimiam as suas
imagens, conser vando os órgãos de sensação uma cer ta independência, que
facilitava a ação da vontade na recusa da influência de qualquer agente
sensível com disposição anor mal. Somente via, entendia e tocava o que lhe
parecia ver, entender e tocar em plena objetividade.
Ora, as alucinações não dependem igualmente de quem as experimenta.
Penetram profundamente no íntimo dos órgãos sensórios apossam-se do
sistema ner voso e da imaginação, sendo incapaz todo o es forço da vítima de
poder dissipá-Ias. São verdadeiras obsessões.
A cultura do espírito e, principalmente, alguns dons superiores da
imaginação, podem manter cer tas regularidades nas concepções ou cenas
preparadas sob a for ma regularizada imaginativa. Tais fenômenos, porém,
não podem ter lugar nos espíritos acanhados e incultos.
Catharina Emmerich nasceu de pais pobres e camponeses. Aos vinte oito
anos de idade, foi admitida, paupér rima, na comunidade das Agostinianas, no
Convento de Duelmen.
Ao penetrar nos segredos da vida interior, foi assistida da graça das visões
celestiais. É de supor com que ardor espiritual, com que pureza e santidade
contemplou a Vida de Jesus e da SS. Virgem, expressas em vestes
maravilhosas! Como julgar que as cenas dolorosas da Paixão de Jesus Cristo,
que inspiradamente traçou no quadro prodigioso de suas visões, sejam a
criação ar tística de uma pobre e ignorante camponesa? O gênio não é a
mesma coisa que a simplicidade, a ignorância e a ausência dos dons da
imaginação. Ora, Catharina Emmerich, que se saiba, jamais procurou
manifestar, como natural expansão de sua imaginação sem cultura, as
sublimidades da Divina Redenção nos sofrimentos de Jesus sem uma
inter venção sobrenatural. Prefaciando, embora modestamente, quando
outros o poderiam fazer melhor, este livro, contendo as visões de Catharina
Emmerich sobre a Paixão e Mor te de Jesus, o nosso único intuito não é
apreciar o valor intrínseco desse trabalho, que contém o produto
sobrenatural de visões divinas, já reconhecidas pelo testemunho consciente
e pelo critério judicioso, com as devidas reservas da Igreja.
Apenas nos limitamos, por considerar opor tuno, à exposição de diversas
razões sobre o poder da imaginação, até onde será suscetível de chegar o
alcance do bom senso vulgar. Em todo o cor rer da leitura deste livro, vê-se
claramente que não pode ser uma obra de exclusiva imaginação ou uma
conseqüência de alucinação, pois que se trata de representações sensíveis,
que, anterior mente, não foram percebidas pelos sentidos. Ou melhor, não
pode ser sintomática de alucinação toda a representação sensível,
perfeitamente ordenada, cujos elementos, e não o tipo, foram percebidos
pelos sentidos. A imaginação entregue a si mesma é condenada à desordem;
não podia, precedentemente, combinar esses elementos na calma e sob a
direção da razão.
A representação sensível combinada dos fatos obser vados, as cenas
descritas até então ignoradas, é injustificável que sejam resultados de
alucinações.
Não temos a pretensão de aplicar todos esses casos à série das visões de
Catharina Emmerich, podendo, entretanto, dizer que não se teriam
desprezado essas regras na crítica de tais revelações sob o prisma do
sobrenatural, porque seria faltar a ciência, a mais elementar, não menos que
o bom senso, em face da doutrina católica.
Apesar deste livro não ter por objetivo doutrinar sobre um assunto que ainda
não conta com o assentimento pleno e definitivo da Igreja, entretanto, não
se lhe pode, negar que revela, com novos raios de luz, a verdade da mística
divina, que conduz a alma cristã à sua união com Deus, na contemplação
assídua do augusto mistério da Redenção. Pelo que se tor na recomendável o
piedoso livro à edificação dos fiéis.
Todo o exposto está subordinado ao juízo decisivo da suprema Autoridade
Eclesiástica.
M. N. CASTRO

INTRODUÇÃO
Quando os Apóstolos S. Pedro e S. João foram levados ao Grande Conselho,
por causa do milagre operado no paralítico de nascimento, disse S. Pedro:
"Este (Jesus) é a pedra que vós, construtores, rejeitastes; ei-Io tor nado a
pedra angular. Não há em nenhum outro salvação; pois nenhum outro nome
foi dado aos homens que os possa tor nar felizes". (Atos. 4, 11-12).
Destas palavras se deduz o lugar impor tante que deve ocupar o divino
Salvador, nos corações daqueles que por Ele querem chegar ao Pai celeste e
à eter na bem-aventurança. Ao seu santíssimo amor sejam, pois, dedicadas
estas páginas. Tratarão d’Ele, da sua vida santa, descrevendo-lhe
principalmente a sagrada Paixão e Mor te, que aceitou por amor de nós, para
fazer-nos justos e filhos do Pai celeste, nós que eramos pecadores.
Os impressionantes eventos pelos quais foi realizada esta dolorosa, mas
também grandiosa obra da nossa salvação, estão descritos em letras de ouro
no Livro dos livros, a Bíblia Sagrada, escrita por inspiração do Divino
Espírito Santo, o Espírito da verdade, que dirigiu o escritor, de modo que
tudo o que escreveu, com todo o direito é considerado e venerado como
palavra de Deus. Sentimo-nos obrigados a declará-Io, antes de apresentar ao
estimado leitor uma das obras póstumas de Clemente Brentamo, na qual nos
relata o que uma antiga religiosa, Anna Catharina Emmerich, lhe tinha
nar rado da vida e mor te de Nosso Senhor. A Escritura Sagrada vale mais do
que tudo e não há outro livro, ainda que pareça vir de inspiração divina, que
iguale o valor das palavras da Escritura Sagrada, cujo autor Deus preser vou
de todo e qualquer er ro, o que não podemos afir mar dos que contaram mais
tarde visões celestiais ou dos que as escreveram.
Contudo, não somos dos que, por este motivo, desprezam as visões das
almas privilegiadas. Deste modo, cada um seguirá a opinião que quiser. Pode
examinar com toda a liberdade os motivos para a credibilidade destas visões
e aproveitá-Ias nas suas meditações, ou pode deixar de dar-Ihes qualquer
atenção. No último caso não transgredirá nenhum mandamento de Deus e,
por tanto, não pecará, mas renunciará deste modo, ao proveito espiritual que
poderia delas tirar. Deus e a Igreja deixam-nos plena liberdade nestas
coisas, contanto que creiamos o que a santa Igreja nos manda crer e que é
para todos nós o único caminho da eter na bem-aventurança.
Grande número de homens doutíssimos examinaram as visões da piedosa
Anna Catharina Emmerich e reconheceram-lhe a credibilidade, com palavras
calorosas. Citamos apenas algumas sentenças da opinião de Frederico
Windischmann, professor tão piedoso como douto, mais tarde Vigário geral
do arcebispado de Muenchen Freising:
"A Providencia Divina escolheu em Anna Catharina um Instr umento que -
preparado com os poucos conhecimentos da instr ução rural, familiarizada,
como se achava, somente com livros de devoção ordinários, não versada na
Escritura Sagrada, privada até propriamente de uma direção espiritual, - não
podia apresentar ao divino assunto um vaso humanamente tão bem for mado
como S. Teresa, Maria de Agreda e outras; por isso mesmo era muito menos
capaz de fazer impostura, querendo imitar aqueles grandes exemplos. Pelo
contrário, para provar claramente a verdade do dom divino, deviam as visões
da jovem camponesa, despidas quase inteiramente da par te subjetiva e
mística, no sentido comum desta palavra, referir-se somente ao objetivo da
vida real de Jesus Cristo. Mas, justamente por isso lhe foi dado um assunto,
em que não há lugar para fantasia puramente humana e para os sonhos de
falsa contemplação, os quais, se quisessem imiscuir-se-Ihe, deveriam causar
er ros e enganos a cada passo; numa palavra: a inimitável objetividade da
visão, sem reflexões místicas da vidente, é uma prova evidente da
veracidade. Assim a descrição, às vezes quase fatigante, de pessoas, do
respectivo aspecto, vestuário, costumes de vida; a enumeração de cidades e
povoações, de caminhos e viagens, de regiões, montanhas, rios e lagos:
todos estes detalhes arqueológicos tem o fim providencial: primeiro, de
provar a impossibilidade de invenção, por par te da vidente ou do seu
secretário; segundo, de dar à pessoa de Jesus, aparecendo e agindo com
verdade histórica, um fundo histórico, do mesmo modo verdadeiro. Dissemos
antes que nenhuma reflexão mística e contemplação subjetiva da vidente
escurecia a objetividade das visões; mas isso não impede que, de vez em
quando, resplandeça, através das pessoas e dos acontecimentos, uma luz
maravilhosa de um mundo superior e que a vidente, como criança singela,
nos deixe contemplar os mistérios mais profundos da Escritura Sagrada e da
doutrina cristã.”
Na presente obra seguimos principalmente o livro "A Paixão de Jesus
Cristo", escrito por Clemente Brentano, segundo as suas anotações, e
editado pela primeira vez em 1832. (Cap. 2 - 10). Dividimos o texto em
capítulos, dando-lhe mais títulos. Algumas Infor mações de Anna Catharina
Emmerich, que somente per turbam a nar ração da Paixão de Jesus Cristo,
foram eliminadas; outras, de mais impor tância, encontrará o leitor no
apêndice. Por outro lado, parecia desejável dar primeiro algumas
infor mações sobre a família do Divino Salvador, a sua infância e vida pública,
até a instituição do SS. Sacramento, na noite de quinta feira da Semana
Santa. O 1º. capítulo dá um resumo de tudo que a Ser va de Deus viu, em
muitos meses, dessa par te da vida de Jesus.
Como, porém, o Divino Salvador mereceu com sua Paixão a glória
da Ressur reição e Ascensão, a vinda do Espírito Santo e a propagação
da Igreja, assim a história completa da Paixão exige também a nar ração
dos fatos gloriosos da vida glorificada de Cristo; pois o próprio
Salvador disse, no domingo da Páscoa, aos discípulos, no caminho de Emaús:
"Não era preciso que assim sofresse o Cristo, para depois entrar na sua
glória?" Nar ramos esses fatos gloriosos (Cap. 11 - 15), em geral, segundo as
visões de Anna Catharina Emmerich, citando-a às vezes textualmente.
Estranhamos que a ser va de Deus mencionasse apenas em poucas palavras
ou até calasse, muitas coisas que a Escritura Sagrada nar ra detalhadamente,
por exemplo, as belas Palavras que o Arcanjo S. Gabriel e a SS. Virgem
proferiram na Anunciação, como também a despedida de Jesus na noite da
Quinta-Feira Santa, o ser mão de S. Pedro no domingo de Pentecostes, a
conversão e as obras de S. Paulo, etc. Vemos nisso a direção da Sabedoria
Divina, que não faz coisa inútil. Mas para completar a nar ração,
intercalamos, onde nos parecia conveniente, par tes da Escritura Sagrada.
Deste modo, apresentamos ao leitor a história bastante completa, apesar de
cur ta, da Vida, Paixão e Glorificação de Jesus e desejamos ardentemente
que concor ra para acender e aumentar a chama de amor e gratidão ao nosso
Divino Salvador.
Tendo indicado o fim que visa este livro, queremos na primeira par te
infor mar ligeiramente o leitor sobre a vida de Anna Catharina Emmerich, afim
de que possa examinar e então resolver, se deve ou não dar fé às visões da
Ser va de Deus. Já Clemente Brentano, para não escandalizar os incrédulos,
editou "A Paixão de Cristo" sob o título de "Meditações". Cada um tem assim
a liberdade de tomar as nar rações dessa religiosa sob esse ponto de vista ou
de dar-Ihes fé mais ampla.
For malmente declaramos, por tanto, confor me o decreto de Urbano VIII, que
todos os fatos milagrosos contados neste livro, numa palavra, tudo que não
foi confir mado pela Escritura Sagrada ou a Santa Igreja, exige somente
credibilidade humana. Além disso, não queremos, de ne nhum modo,
antecipar a sentença da Igreja, dando a alguém o titulo de "santo" ou "bem-
aventurado", Damos a este livro o título de "Vida, Paixão e Glorificação do
Cordeiro de Deus". Aproveitaram-se as seguintes obras:

1. A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, Muenchen.


2. Vida da SS. Virgem Maria, Muenchen, 1862.
3. Vida de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. 3º. voI. Ratisbona, 1858 e
1860.
4. A cópia das notas originais de Clemente Brentano, feita pelo Revmo. Pe.
João Janssen, de saudosa memória, no convento dos Redentoristas de Gars.

Anna Catharina Emmerich


Resumo de sua vida

Anna Catharina Emmerich, filha de camponeses pobres, mas piedosos,


nasceu na aldeia de Flamske, per to de Coesfeld, na Westfália, no dia 8 de
Setembro de 1774 e foi batizada no mesmo dia. Desde a primeira infância,
não cessou de receber do céu uma direção superior. Via frequentemente o
Anjo da Guarda e brincava com o Menino Jesus, nos prados e no jardim. A
Mãe de Deus, a Rainha do Céu, apresentava-se-lhe muitas vezes e também os
Santos lhe eram bons e afetuosos amigos. Quando era criança, falava com
toda a simplicidade dessas visões e fatos íntimos, pensando que as outras
crianças vissem e experimentassem o mesmo; vendo, porém, que se
admiravam das suas nar rações, começou a guardar silêncio, pensando que
era contra a modéstia falar dessas coisas.
Anna Catharina tinha um gênio alegre e amável; andava, porém, quase
sempre calada e recolhida. Os pais, julgando que fosse por teimosia,
tratavam-na com bastante rigor. Ela conta mais tarde: "Meus pais muitas
vezes me censuravam, mas nunca me elogiavam; como, porém, eu ouvisse
outros pais louvarem os filhos, julgava-me a pior criança do mundo". Era,
contudo, de uma grande delicadeza de consciência; a menor transgressão
afligia-a tanto, que lhe per turbava a saúde. Quando fez a primeira confissão,
sentia tanta contrição, que chorou alto e foi preciso levá-Ia para fora do
confessionário. Na Primeira Comunhão, cheia de ardente amor, ofereceu-se
de novo, sem reser vas, ao seu Deus e Senhor.
No verdor da mocidade, dos 12 aos 15 anos, Catharina trabalhou, como
criada, em casa de um parente camponês, pastoreando rebanhos; depois
voltou à casa pater na. Cer ta vez, trabalhando no campo, ouviu ao longe o
toque lento e sonoro do sino do Convento das Anunciadas, em Coesfeld.
Contava então 16 anos apenas. Sentiu-se tão for temente enlevada com a voz
daqueles sinos, que lhe pareciam mensageiros do Céu, convidando-a para a
vida religiosa e tão grande lhe foi a comoção, que caiu desmaiada e foi
levada para casa, onde esteve, por muito tempo, adoentada.
Para conseguir mais facilmente admissão num convento, foi durante três
anos trabalhar em casa de uma costureira, em Coesfeld, economizando assim
20 thalers (cerca de 3 libras Inglesas). Depois se mudou para a casa do
piedoso organista Soentgen, esperando que, aprendendo a tocar órgão, se
lhe facilitasse a entrada para um Convento. Mas a pobreza da família de
Soentgen inspirou-lhe tanta compaixão, que, renunciando a tocar órgão,
trabalhava na casa como criada, dando até as suas economias para aliviar a
miséria do lar. "Deus deve ajudar agora", disse depois à mãe, "dei-lhe tudo,
Ele saberá socor rer-nos a todos.”
O bom Deus não deixou de ajudá-Ia, ainda que Anna Catharina só com 29
anos visse realizado o seu desejo de entrar para um convento. Quatro anos
antes recebeu da bondade de Deus uma graça especial. Estava de joelhos na
igreja dos padres Jesuítas, em Coesfeld, meditando e rezando diante de um
crucifixo. "Então vi, conta ela mesma, vindo do Taber náculo, onde se
guardava o SS. Sacramento, o meu Esposo celeste em for ma de um jovem
resplandecente. Na mão esquerda trazia uma grinalda de flores, na direita
uma coroa de espinhos; apresentou-mas, ambas, para eu escolher. Tomei a
coroa de espinhos, Ele a pôs na minha cabeça e eu a aper tei com ambas as
mãos; depois desapareceu e voltei a mim, sentindo uma dor veemente em
tor no da cabeça. No dia seguinte a minha testa e as fontes, até as faces
estavam muito inchadas e sofria hor rivelmente. Essas dores e a inflamação
voltaram muitas vezes. Não notei sangue em volta da cabeça, até que as
minhas companheiras me induziram a vestir outra touca, porque a minha já
estava cheia de manchas ver melhas, fer rugentas.
Como Anna Catharina não tinha mais dote, ficaram-lhe fechadas as por tas
dos Conventos, segundo o pensamento dos homens. Mas Deus ajudou-a, como
esperava. Clara Soentgen, a filha do organista, sendo também organista
perfeita, foi de boa vontade recebida no convento das Agostinhas, em
Duelmen. Soentgen, porém declarou então que deixava entrar a filha somente
sob a condição de que admitissem também Anna Catharina. Em conseqüência
disso, entraram as duas jovens para o Convento, em 18 de Setembro de 1802.
O tempo do noviciado foi para Anna Catharina uma verdadeira escola da cruz,
porque ninguém lhe compreendia o estado d'alma. Sofria, porém, tudo com
paciência e amor, obser vando conscienciosamente a regra da Ordem. No dia
13 de Novembro de 1803, um ano depois de começar o noviciado, fez os votos
solenes, tor nando-se esposa de Jesus. O Esposo divino cumulou-a de novas e
abundantes graças. "Apesar de todas as dores e sofrimentos", disse ela,
"nunca estive tão rica no coração; minh'alma transbordava de felicidade. Eu
vivia em paz, com Deus e com todas as criaturas. Quando trabalhava no
jardim, vinham as avezinhas pousar sobre minha cabeça e meus ombros e
cantávamos juntas os louvores de Deus. Via sempre o meu Anjo da Guarda ao
meu lado e, ainda que o mau espírito me assustasse e agredisse, não me
podia fazer mal. O meu desejo do SS. Sacramento era tão ir resistível, que
muitas vezes deixava de noite a minha cela, para ir rezar na igreja, quando
estava aber ta; se não, ficava ajoelhada diante da por ta ou per to do muro,
mesmo no inver no ou prostrada no chão, com os braços estendidos e em
êxtase. Assim me encontrava o capelão do convento, Abbé Lamber t
(sacerdote francês, exilado da pátria, por não prestar juramento exigido pela
constituição atéia), que tinha a caridade de vir mais cedo, para dar-me a
sagrada Comunhão. Mas, logo que se aproximava para abrir a igreja, eu
voltava a mim, indo depressa à mesa da Comunhão, onde achava o meu Deus
e Senhor.”
Como tantos Conventos, no princípio do século 19, também o Convento de
Agnetenberg foi fechado a 3 de Dezembro de 1811. As piedosas freiras foram
obrigadas a abandonar, uma após outra, o querido mosteiro. Anna Catharina,
doente e pobre, ficou até a primavera seguinte, quando se mudou para uma
pequena casa em Duelmen. No outono do mesmo ano (1812), lhe apareceu de
novo o Divino Salvador, como um jovem resplandecente e entregou-lhe um
crucifixo, que ela aper tou com fer vor de encontro ao coração. Desde então
lhe ficou gravado no peito um sinal da cruz, do tamanho de cerca de três
polegadas, o qual sangrava muito, a princípio todas as quar tas-feiras, depois
nas sextas-feiras, mais tarde menos freqüentemente. A estigmatização deu-
se-lhe poucos dias depois, a 29 de Dezembro. Nesse dia, às 3 horas da tarde,
estava deitada, com os braços estendidos, em êxtase, meditando na Sagrada
Paixão de Jesus. Viu então, numa luz brilhante, o Salvador crucificado e
sentiu um veemente desejo de sofrer com Ele. Satisfez-se-Ihe esse desejo,
pois saíram logo das mãos, dos pés e do lado do Senhor raios luzidos cor de
sangue, que penetraram nas mãos, nos pés e no lado da Ser va de Deus,
surgindo logo gotas de sangue nos lugares das chagas. Abbé Lamber t e o
confessor da vidente, Pe. Limberg, viram-nas sangrar dois dias depois, mas
com sábio propósito fingiram não dar impor tância ao fato, na presença da
Ser va de Deus. Ela mesma procurava esconder os sinais das chagas, o que
lhe era fácil, porque desde o dia 2 de Novembro de 1812 estava de cama,
adoentada. Desde então não pôde mais tomar alimento, a não ser água,
misturada com um pouco de vinho, mais tarde só água ou, raras vezes, o
suco de uma cereja ou ameixa. Assim vivia só da sagrada Comunhão. Esse
estado e a estigmatização tor naram-se públicos na cidade, em Março de
1813. O Vigário de Duelmen, Pe. Rensing, encar regou dois médicos, os Drs.
Wesener e Krauthausen, como também o confessor, de fazerem um exame
das chagas, que freqüentemente sangravam. Os autos foram mandados à
autoridade diocesana de Muenster, a qual enviou o Rev. Pe. Clemente
Augusto de Droste Vischering, mais tarde Arcebispo de Colônia, o deão
Overberg e o conselheiro medicinal Dr. von Drueffel a Duelmen, para fazerem
outra investigação, que durou três meses. O resultado foi a confir mação da
verdade das chagas, da vir tude e também o reconhecimento do caráter
sobrenatural do estado da jovem religiosa.
Também a autoridade secular, querendo examinar e "desmascarar a
embusteira”, mandou, em 1819, uma comissão de médicos e naturalistas;
isolaram-na por isso em outra casa, rigorosamente obser vada, do dia 7 a 29
de Agosto, o que lhe causou muita humilhação e sofrimento; também o
resultado desse exame lhe foi favorável.
No ano anterior, viera visitá-Ia pela primeira vez o poeta Clemente Brentano,
recomendado pelo deão Overberg; a 17 de Setembro ele a viu pela primeira
vez. Ela, porém, já o tinha visto muito antes, nas visões e recebido ordem do
Céu para comunicar-lhe tudo. "O Peregrino", como o chamava, ficou até
Janeiro de 1819, mas voltou de novo, para ficar com ela, no mês de maio. Foi
para Catharina um amigo fiel até a mor te, mas fê-Ia sofrer também às vezes,
com seu gênio veemente. Reconheceu a tarefa que lhe fora dada por Deus, de
escrever as visões desta már tir privilegiada e dedicou-se a isso com cuidado
consciencioso. "O Peregrino" escrevia durante as nar rações, em tiras de
papel, os pontos principais, que imediatamente depois copiava, completando-
os de memória. A cópia, a limpo, lia à Ser va de Deus, cor rigindo,
acrescentando, riscando sob a direção de Catharina, não deixando nada que
não tivesse recebido a confir mação expressa de fiel inter pretação. Pode-se
imaginar a grande facilidade que a prática diária, através de alguns anos,
trouxe ao "Peregrino" para esse trabalho, dada a sua extraordinária
inteligência e perseverança, como também o fato de ver nesse ser viço uma
obra santa, para a qual costumava preparar-se com orações e exercícios
piedosos; assim podemos confiar que não lhe tenha faltado aos esforços o
auxílio de Deus. O escrúpulo e a consciência com que procedia nesse
trabalho, nunca lhe per mitiram, durante tantos anos, resposta alguma aos
que atribuíam grande par te das visões à imaginação do poeta, o que equivale
a dizer que, homem sério que era, na tarde da vida se teria dado a esse
incrível trabalho, para enganar conscientemente a si mesmo e aos outros".
"Ela falava geralmente baixo-alemão, no êxtase, também o idioma mais puro;
a sua nar ração era, ora de grande singeleza, ora cheia de elevação e
entusiasmo. Tudo que ouvi e que, nas dadas condições, só raras vezes e
apenas em poucas palavras podia anotar, escrevia eu mais extensamente em
casa, imediatamente depois. O Doador de todos os bens deu-me a memória, a
aplicação e elevação da alma acima dos sofri mentos, que tomaram possível
a obra, como está. O escritor fez tudo que era possível e pede, nesta
convicção, ao benévolo leitor a esmola da oração". Anna Catharina deu
também a este trabalho plena aprovação. Quando estava num profundo
êxtase, a 18 de Dezembro de 1819 e Brentano lhe apresentou uma folha, com
as anotações, disse ela: "Estes são papéis de letras luminosas. O homem
(isto é, o Peregrino) não escreve de si mesmo; tem para isto a graça de Deus.
Nenhum outro pode fazê-lo; é como se ele mesmo visse".
Anna Catharina viu no êxtase toda a vida e paixão do Divino Salvador e de
sua Santíssima Mãe; viu os trabalhos dos Apóstolos e a propagação da Santa
Igreja, muitos fatos do Velho Testamento, como também eventos futuros.
Tocando em relíquias, geralmente via a vida, as obras e os sofrimentos dos
respectivos Santos. Com cer teza reconhecia e determinava as relíquias dos
Santos, distinguindo em geral facilmente objetos sagrados de profanos.
Adversários da Ser va de Deus querem negar-lhe o caráter sobrenatural das
infor mações recebidas durante os êxtases, alegando que Anna Catharina
tirava a maior par te dos conhecimentos de livros, que antes teria lido. Mas
isso não está de confor midade com o que Peregrino escreveu, em 8 de Maio
de 1819 Ela me disse que nunca fora capaz de aproveitar coisas de livros e
que sempre pensava: - Ora, tal livro não há de fazer pecar. Também não pôde
guardar na memória coisas da Escritura Sagrada; mas tem da vida do Senhor
a graça de tal intuição, que a consciência e cer teza, que disso tenho, às
vezes me fazem tremer, por manter um trato tão familiar e simples com uma
criatura de Deus tão maravilhosa e privilegiada, como talvez não haja outra".
Em outra ocasião ela disse ao Peregrino: "Nunca tive lembrança viva de
histórias do Antigo Testamento ou dos Evangelhos, pois vi tudo com os meus
próprios olhos, durante a minha vida inteira; o mesmo vejo cada ano de novo
e nas mesmas circunstâncias, ainda que às vezes em outras cenas. Umas
vezes estive naqueles lugares, no meio dos espectadores, assistindo aos
acontecimentos, acompanhando-os e mudando de lugar ; mas não estive
sempre no mesmo lugar, pois às vezes fui levada para cima da cena, olhando
deste modo para baixo. Outras coisas, principalmente os mistérios, vi-os
mais com a vista interior da alma, outras em figuras separadas da cena: em
todos os casos se me apresentava tudo transparente, de modo que nenhum
cor po cobria o outro, nem havia confusão".
Com todas estas grandes graças, Anna Catharina per manecia humilde,
simples e singela como uma criança. Mostrava-se sempre obediente aos pais
e às superioras religiosas, como também ao confessor e diretor espiritual. Se
lhe mandavam tomar remédio, consentia, apesar de prever-lhe o mau efeito.
Mesmo em êxtase, obedecia imediatamente à chamada do confessor.
Era à dolorosa Paixão de Nosso Senhor que tinha uma devoção especial e
rezava por isso muitas vezes, enquanto lhe era possível, a Via Sacra erigida
ao longo de um caminho de quase duas léguas, nos ar redores de Coesfeld.
Nos domingos fazia essa devoção em companhia de algumas jovens piedosas,
nos dias úteis a fazia muitas vezes de noite. Clara Soentgen, sua amiga,
conta: "Muitas vezes ela se levantava de noite, saindo fur tivamente de casa
e rezava descalça a Via Sacra. Se a por ta da cidade estava fechada, pulava
os altos muros, para poder ir à Via Sacra; às vezes caía dos muros abaixo,
mas nunca se machucava".
Além dos muitos padecimentos que sofria com paciência e perseverança,
exercitava-se constantemente nas mor tificações voluntárias. Já na infância
costumava privar-se de par te do sono e da comida. Muitas horas da noite
passava velando e rezando; comia e bebia o que os outros recusavam,
levando as comidas melhores aos doentes e pobres, dos quais tinha muita
compaixão. O amor ao próximo impelia-a a pedir a Deus que, por favor, lhe
desse a sofrer as doenças e dores dos outros ou que a deixasse cumprir os
castigos merecidos pelos pecadores. Já o fizera na infância e fazia-o depois
de um modo muito mais intenso. "A tarefa principal da sua vida, escreve
Clemente Brentano, era sofrer pela Igreja ou por alguns meP1bros da mesma,
cuja necessidade lhe era dada a conhecer em espírito ou que lhe pediam a
intercessão". Anna Catharina aceitava de boa vontade tais sofrimentos e
trabalhos. Muitas vezes, porém, Se tor navam estes tão grandes e pesados,
que parecia prestes a mor rer. Quando um dia, quase sucumbindo ao peso das
dores, pediu ao Senhor que não a deixasse sofrer mais do que podia supor tar,
apareceu-lhe o Esposo Celeste e disse: "Coloquei-te no meu leito nupcial das
dores, com as graças dos sofrimentos, ador nada com os tesouros da
reconciliação e com as jóias das boas ações. Deves sofrer. Não te abandono;
estás amar rada à videira, não perecerás".
Também as almas do purgatório se lhe dirigiam muitas vezes, pedindo-lhe
socor ro; e ela provava de boa vontade sua compaixão ativa. "Fiz um contrato
com meu doce Esposo do Céu", conta ela, que cada gota de sangue, cada
pulsar do coração, toda a minha vida e todos os meus atos devem sempre
clamar : "Almas queridas do purgatório, saúdo-vos pelo doce Coração de
Jesus". Isso faz bem a essas infelizes e alivia-as, pois são tão pacientes!”
Depois de muitos e indizíveis sofrimentos, chegou o dia da sua morte a 9 de
Fevereiro de 1824.
A 15 de Janeiro desse ano dissera a Ser va de Deus: "Na festa de Natal o
Menino Jesus me trouxe muitos sofrimentos, hoje me deu ainda maiores,
dizendo: "Tu me per tences, és minha esposa: sofre como eu sofri; não
perguntes porque, é para a vida e para a mor te".
Ela jaz com febre, com dores reumáticas e convulsões, escreve o Peregrino,
mas sempre em atividade espiritual, em prol da santa Igreja e dos
moribundos. O confessor pensa que ela em pouco ter minará, porque disse no
êxtase, com grande serenidade "Não posso aceitar outro trabalho, já estou
próxima do fim". Ela pronuncia, com voz de moribunda, só o nome de "Jesus".
A 27 de Janeiro recebeu a Extrema-Unção. Aumentaram-lhe as dores; mas
repetia de vez em quando: "Ai, meu Jesus, mil vezes vos agradeço toda a
minha vida; não a minha vontade, mas a Vossa seja feita". Na véspera da
mor te rezou: "Jesus, para Vós mor ro; Senhor, dou-Vos graças, não ouço nem
enxergo mais". Quiseram mudar-lhe a posição, para aliviá-Ia, mas Anna
Catharina disse: Estou deitada na cruz; deixem-me, em pouco acabarei".
Recebeu mais uma vez a sagrada Comunhão, a 9 de Fevereiro. Suspirando
pelo Divino Esposo, rezou diversas vezes:
"Oh! Senhor, socor rei-me; vinde, meu Jesus". O confessor assistiu à
moribunda, dando-lhe muitas vezes o crucifixo para beijar e rezando preces
pelos moribundos. Ela ainda lhe disse: "Agora estou tão sossegada; tenho
tanta confiança, como se nunca tivesse cometido pecado". Deram justamente
8 horas da noite, quando exclamou três vezes, gemendo: "Oh! Senhor,
socor rei-me, vinde, oh! meu Senhor!" E a alma pura voou-lhe ao encontro do
Esposo Celeste, para per manecer, como esperamos confiadamente,
eter namente unida com Ele, na infinita felicidade do Céu.
Com grande concor rência do povo foi sepultado o cor po da Ser va de Deus, no
cemitério de Duelmen, onde jaz ainda. Na noite de 21 a 22 de Março de 1824
foram aber tos o sepulcro e o caixão, em presença do prefeito da cidade e do
delegado de polícia. Viu-se que a decomposição ainda não tinha começado.
Uma segunda aber tura do sepulcro foi feita, no dia 6 de Outubro de 1858,
pela autoridade eclesiástica.
Anna Catharina achou muitos veneradores na Alemanha e longe, além das
fronteiras, que se alegraram pela aber tura do processo chamado de
infor mação, feito pela autoridade diocesana de Muenster, no ano de 1892.
Encer rou-se esse processo no ano de 1899, sendo os documentos enviados à
Santa Sé em Roma, para pedir a beatificação da piedosa sofredora. Oxalá
que essa honra seja dada pelo chefe da Igreja, para a glória de Deus, que é
"admirável nos seus Santos!”

1
Família, amigos, infância e mocidade de Jesus

1. Nosso Divino Salvador, como plenitude e consumação dos tempos.


2. Da família altamente privilegiada de Nosso Senhor
3. Os discípulos do Senhor e outras pessoas bíblicas
4. Infância de Nossa Senhora e seu desposório com São José
5. Anunciação e Visitação de Nossa Senhora
6. A viagem a Belém e o nascimento de Nosso Senhor
7. Os ascendentes dos três Reis Magos e a viagem destes a Belém
8. Apresentação de Jesus no Templo e fuga para o Egito
9. Da mocidade de Jesus. Sua per manência em Jerusalém onde ensina aos
doutores da lei e é encontrado pelos pais no Templo
10. A vida do Senhor, até o começo de suas viagens apostólicas
11. As viagens apostólicas de Jesus, antes do seu Batismo no Jordão .
12. Vida pública de João Batista
13. O Batismo de Jesus e o jejum de quarenta dias.
14. Eleição dos primeiros discípulos e o milagre de Caná
15. Resumo do primeiro ano da vida pública de Jesus.
16. Resumo do segundo ano da vida pública de Jesus
17. Resumo do terceiro ano da vida pública de Jesus
18. Notas gerais sobre a personalidade de Jesus e seu modo de ensinar
19. Os milagres de Jesus
20. Judas, o traidor e seu procedimento na última refeição, em Betânia
21. A Jer usalém antiga

Família, amigos, infância e mocidade de Jesus

1. Nosso Divino Salvador, como plenitude e consumação dos tempos

A Escritura Sagrada diz: "Quando veio a plenitude dos tempos, enviou Deus o
seu Filho, nascido de mulher, sujeito à lei, afim de remir os que estavam
debaixo da lei, para que recebêssemos a adoção de filhos." (Gal. 4, 4-5).
Essas palavras nos ensinam que, com a vinda do Redentor a este mundo,
começou uma era nova, a qual a Escritura Sagrada chama a plenitude e
consumação de todos os tempos.
A era de-Jesus Cristo foi a plenitude dos tempos, porque nele se cumpriram
todas as predições dos profetas. Foi-o também, porque em Jesus Cristo
começou a última e perfeita era.
Quantos períodos já tinham passado antes de começar esta última e mais
sublime era! Segundo o que nos ensinam as ciências, tanto as profanas como
as sagradas, já a haviam precedido muitos e, em par te, longos espaços de
tempo. Assim a era sideral, em que foram criados por Deus, os astros, com o
respectivo movimento e desenvolvimento; depois a era telúrica, em que a
ter ra, até então uma massa ígnea em fusão, começou a for mar em si uma
crista fir me, mais e mais espessa. Depois a era orgânica, em que Deus or nou
e encheu a ter ra de plantas e animais; afinal a era histórica, que teve
princípio com a criação dos primeiros homens. Mas esta última teve ainda
diversos períodos; pois no princípio ficaram os homens sob o império da lei
natural, que Deus lhes gravou em letras indeléveis na consciência; com ela
todos os homens conhecem o que devem fazer ou deixar de fazer e por isso
Deus exige a obser vação dessa lei de todos os homens, mesmo dos pagãos
que não o conhecem. Mas Deus não se contentou com isso; quis entrar em
relações com os homens, pela graça e conduzir aqueles que lhe obede-
cessem, a uma união mais íntima consigo.
Mas também nesse desígnio procedeu gradualmente. A primeira aliança foi a
que começou pela escolha de Abraão para ser pai do povo de Israel e acabou
com a promulgação da lei, no monte Sinai. Em conseqüência dessa aliança,
entrou o povo de Israel em relações mais estreitas com Deus. Recebeu d’Ele
um culto novo, novas leis e a promessa consoladora de que do seu seio
proviria o Salvador. Para esse fim, serviam todas as leis especiais,
cerimônias e preceitos do Velho Testamento; até dos pecados e das
desgraças do povo israelita sabia o Senhor, pela sua Divina Providência,
dirigir os efeitos, de modo que lhe ser viam aos divinos desígnios. Sob esse
ponto de vista encara a Ser va de Deus especialmente a for mação daquela
família, da qual devia nascer o divino Salvador.
Quando o Redentor apareceu neste mundo, ter minou a velha Aliança, porque
estava realizado o seu fim: os bons, entre os judeus e também entre os
gentios, reconheceram o seu estado pecaminoso e a necessidade da
salvação, anelando ansiosos pelo Messias.
Começou então uma segunda Aliança, abundante em graças, a qual foi
confir mada no monte Sião, em Jerusalém, pela vinda do Espírito Santo, no
dia de Pentecostes. Com essa Nova Aliança, que durará até o fim do mundo,
principiou a consumação dos tempos, na qual foi proporcionada aos homens
pecadores a salvação abundante em Jesus Cristo e pela qual somos elevados
do estado de ser vidão ao estado de liberdade e à dignidade de filhos de
Deus.

2. Da família altamente privilegiada de Nosso Senhor

O evangelista S. Mateus começa a genealogia do Divino Salvador, segundo a


sua humanidade, com as seguintes palavras "Livro da genealogia de Jesus
Cristo, filho de Davi, filho de Abraão.”
Reduz assim a linhagem do Salvador a Abraão, o pai do povo de Israel. Jesus
descendeu dele por Judá e Davi; era, por tanto, da tribo de Judá e da família
real de Davi.

Catharina Emmerich nar ra a seguinte visão:

"Vi a linhagem do messias dividir-se em Davi em dois ramos. A direita passou


a linha através de Salomão, acabando em Jacó, pai de José, esposo de Maria.
Essa linha cor ria em direção mais alta; par tia em geral da boca e era
inteiramente branca, sem cores. As pessoas ao lado da linha eram todas
mais altas do que as da linha oposta. Todas seguravam na mão uma haste de
flor, do tamanho de um braço, com folhas semelhantes às da palmeira, que se
dependuravam em volta do ramo. Na ponta da haste havia uma flor
campanada, branca, com 5 estames amarelos, que espalhavam um pó fino.
Três membros desta linha, antes do meio, contados de cima, estavam
eliminados, enegrecidos e ressequidos. As flores variavam em tamanho,
beleza e vigor ; a de José era de grande pureza, com as pétalas frescas e
brancas, era mais bela. Vi esta linha unir-se pelo fim com a linha oposta, por
um raio luzido; a significação sobrenatural e misteriosa desse raio me foi
revelada: referia-se mais à alma e menos à car ne; tinha algo da significação
de Salomão; não sei explicá-lo bem.
A linha da esquerda passou de Davi por Natan até Helí, que é o verdadeiro
nome de Joaquim, pois recebeu este nome só mais tarde, como Abrão o de
Abraão. Eu sabia o motivo desta troca e sabê-lo-ei talvez de novo. José foi
chamado muitas vezes nas minhas visões "filho de HeIí”. Toda essa linha vi
passar mais baixo; tinha diversas cores e manchas cá e lá, mas saia depois
mais clara. Era ver melha, amarela e branca; não havia azul. As pessoas ao
lado eram menos altas do que as do lado oposto; tinham ramos mais cur tos,
pendentes para o lado, com folhas verde-amarelas e dentadas, os quais
rematavam em um botão aver melhado, da cor da rosa silvestre; em par te
estavam vigorosos: em outra par te murchos; o botão não era tanto um botão
de flor, mas um ovário e sempre fechado.
Sant' Ana descendeu, pelo pai, da tribo de Leví, pela mãe, da de Benjamin. Vi
alguns de seus avós car regarem a Arca da Aliança, mui piedosos e devotos e
notei que receberam nessa ocasião raios do mistério, os quais se lhe
referiam à descendência: Ana e Maria. Vi sempre muitos sacerdotes
freqüentarem a casa pater na de Ana, como também a de Joaquim; dai o
parentesco com Isabel e Zacarias.
No ramo de Salomão havia diversas lacunas; os frutos, estavam mais
separados, mas as figuras eram maiores e mais espirituais. As duas linhas
tocaram-se várias vezes; três ou quatro membros, talvez, antes de Helí, se
cruzaram, acabando afinal em cima, com a SS. Virgem Maria. Creio que
nesses cruzamentos já vi principiar o sangue da SS. Virgem.”
Os membros eliminados significam provavelmente ascendentes pecaminosos
do Salvador. Se bem que Ele mesmo seja o "Santo dos Santos" e também
tenha por Mãe uma Virgem Imaculada e por pai nutrício S. José, houve,
todavia, pecadores e pecadoras entre os seus antepassados, por exemplo, o
rei Salomão, Asa, Joram, Achaz, Manasses, Tamar e Betsabé; até duas pagãs:
Racháb e Rut. Com cer teza Jesus assim o per mitiu, para manifestar a sua
misericórdia e o seu amor para com os pecadores e também a intenção que
tinha, de fazer par ticipar da Redenção os gentios e conduzí-Ios à eter na bem-
aventurança.
Segundo as nar rações de Anna Catharina Emmerich, eram os avós de Maria
Santíssima piedosos Israelitas, que estavam em íntimas relações com os
Essenos, os quais for mavam uma espécie de ordem religiosa.
"Vi os avós da SS.Virgem, conta Anna Catharina, gente extraordinariamente
piedosa e simples, que alimentava secretamente o vivo desejo da vinda do
Messias prometido. Vi-os levar uma vida mor tificada; os casados muitas
vezes fizeram a promessa de mútua continência durante cer to tempo. Eram
tão piedosos, tão cheios de amor a Deus, que os vi freqüentemente sozinhos
no campo deser to, de dia e também de noite, clamando por Deus com um
desejo tão veemente, que ar rancavam as vestes do peito, como para deixar
que Deus entrasse pelos raios do sol, ou como para saciar com o brilho da
lua e das estrelas a sede que os devorava, do cumprimento da promissão.”
Segundo Anna Catharina, chamava-se Emorun a avó de Sant'Ana e teve do
matrimônio com Stolanus três filhas, uma das quais Isméria, foi mais tarde a
mãe de Sant'Ana. Ana tinha uma ir mã mais velha, chamada Sobe e uma mais
moça, com o nome de Maharha e uma terceira, que era casada com um
pastor.
O pai de Ana, de nome Eliud, era da tribo de Leví, ao passo que a
mãe per tencia à tribo de Benjamin. Ana nasceu em Belém, mas os pais foram
depois viver em Seforis, per to de Nazaré. Após a mor te de Isméria, Eliud
morava no vale de Zabulon. Ali se encontraram Ana e Joaquim e travaram
conhecimento. O pai de Joaquim, Matthat, era o segundo ir mão de Jacó, pai
de S. José. Joaquim, cujo nome legitimo era Helí, e José eram descendentes,
pelo lado pater no, da estir pe real de Davi (1). Joaquim e Ana, depois de
casados, levaram uma vida piedosa e benfazeja, primeiro em casa do pai,
Eliud, depois em Nazaré.
A filha mais velha recebeu o nome de Maria Helí; conheceram, porém, que
esta não era a filha da promissão. Ana e Joaquim rezavam muitas vezes com
grande devoção e davam muitas esmolas. Assim viveram 19 anos depois do
nascimento da primeira filha, em contínuo desejo da filha prometida e em
crescente tristeza. Além disso ainda eram insultados pelo povo. Quando um
dia Joaquim quis oferecer um sacrifício no Templo, recusou-o o sacerdote,
repreendendo-o por sua esterilidade.
Joaquim, muito abatido, não voltou a Nazaré, mas viveu cinco semanas
escondido, com os rebanhos, ao pé do monte Her mon.
Com isso aumentou ainda a tristeza de Ana, que chorou e rezou muito. Um
dia, quando rezava com grande aflição, eis que lhe apareceu um Anjo,
anunciando-lhe que Deus lhe ouvira a oração. Mandou-a ir a Jerusalém, onde
se encontraria com Joaquim na Por ta Áurea.
Na noite seguinte lhe apareceu de novo um Anjo, dizendo que conceberia
uma filha santa; e escreveu o nome de Maria na parede.

(1) José e Joaquim tinham a mesma avó. Depois da mor te do primeiro marido.
Matan, pai de Jacó, ela se casou com Leví. Dessa união nasceu Matthat, pai
de Joaquim.

Joaquim teve também a aparição de um Anjo; foi por isso ao Templo,


ofereceu um sacrifício e recebeu nessa ocasião a bênção da promissão ou o
santo da Arca da Aliança. (2)
Ana e Joaquim encontraram-se na Por ta Áurea, transbordando de alegria e
felicidade. Ali, diz Catharina Emmerich, lhes veio aquela abundância da
divina graça, pela qual Maria recebeu a existência, somente pela santa
obediência e pelo puro amor de Deus, sem qualquer impureza dos pais.”
Desse modo, após muitos anos de oração fer vorosa, alcançou esse santo
casal, Joaquim e Ana, aquela pureza e santidade, que os tomou aptos para
receberem, sem o fomento da concupiscência, a santa filha, que foi
escolhida por Deus para ser a Mãe do Redentor.

3. Os discípulos do Senhor e outras pessoas bíblicas


Para facilitar a leitura e a compreensão do livro, damos algumas infor mações
sobre os discípulos de Jesus e outras pessoas mencionadas freqüentemente
durante a nar ração, infor mações colhidas das comunicações de Anna
Catharina Emmerich.

(2) Dessa bênção da promissão conta Anna Catharina o seguinte: Quando Eva
foi for mada. vi que Deus deu uma coisa a Adão: era como se tor rentes de luz
emanassem de Deus. aparecendo-lhe em for ma humana, da fronte, da boca,
do peito e das mãos e se unissem numa esfera de luz, que entrou no lado
direito de Adão, do qual Eva foi tirada. Somente Adão o recebeu. Era este o
ger me da bênção de Deus. Por ter comido do fruto proibido. foi tirada a Adão
essa bênção de geração pura e santa em Deus. Vi a segunda Pessoa divina
descer com algo em for ma de cutelo na mão e tirar a bênção a Adão. antes
deste consentir no pecado.
Abraão recebeu depois a bênção da promissão, quando o Anjo o abençoou;
após ele, também Moisés. do qual veio a Arca da Aliança. Vi este Mistério ou
a bênção numa espécie de invólucro, como um conteúdo, um ser ou uma
força. Era pão e vinho, car ne e sangue; era o ger me da bênção antes do
primeiro pecado; era a existência sacramental da geração antes do pecado,
conser vada aos homens pela religião, que lhes possibilitou, pela piedade,
uma estir pe mais e mais purificada, que finalmente ter minou em Maria, que
concebeu pelo Espírito Santo o Messias, há tanto tempo anelado.
Vi diversas vezes o Sumo Pontífice, estando no Santo dos Santos, empregar a
bênção da promissão, como uma ar ma ou uma força, movendo-a de um lado
para outro, para conseguir proteção ou bênção, concessão de uma graça
pedida. um benefício ou um castigo.
Não a tocava com as mãos nuas. Mergulhava-a também na água, para fins
santos, a qual se dava a beber, como bênção Isméria, mãe de Sant’Ana.
bebeu também dessa água e foi assim disposta para a conceição de Ana.
Esta não bebeu da água sagrada; pois a bênção já estava com ela".

Zacarias e Isabel, os santos pais de S. João Batista, moravam em Juta, per to


de Hebron. Por sua conhecida vir tude e descendência reta de Aarão,
gozavam ambos de alta estima do povo; Zacarias figurava como chefe de
todos os sacerdotes que moravam em Juta.
Isabel era filha de Emerenciana, ir mã de Isméria, que era a mãe de Sant'Ana.
Por isso chama a Escritura Sagrada a Isabel prima de Maria.
Maria, Mãe de Jesus, tinha uma ir mã mais velha, de nome Maria Helí, cujos
filhos eram Tiago, Sadah e Heliachim.
Uma filha de Maria Helí era chamada pelo nome do pai - Maria Cleophas, que
quer dizer Maria filha de Cleophas. Esta teve do primeiro marido, Alfeu, três
filhos: Judas Tadeu, Simão e Tiago o Menor e uma filha, Suzana. Alfeu, que
era viúvo, trouxe para esse matrimônio um filho, de nome Mateus, antes
chamado Leví, que mais tarde tinha uma aduana per to de Betsaida, no lago
Genezaré. Do segundo matrimônio, com Sabás, teve Maria Cleophas um filho,
de nome José Barsabas, chamado na Escritura Sagrada "Joseph". Depois da
ascensão de Jesus, foi ele, junto com Matias, escolhido para um deles
ocupar entre os Apóstolos o lugar de Judas; a sor te designou Matias. Do
terceiro matrimônio de Maria Cleophas, com Jonas, ir mão mais moço do
sogro de São Pedro, nasceu Simeão, que, depois do mar tírio de seu ir mão
Tiago o Menor, lhe sucedeu na cadeira de Bispo de Jerusalém.
Todos esses filhos de Maria Helí e Maria Cleophas se tor naram discípulos de
Jesus, alguns até Apóstolos (Judas, Simão, Tiago e Mateus). Quatro filhos de
Maria Cleophas são chamados no Evangelho "ir mãos (isto é, parentes) de
Jesus". (Mat. 13,55)
Pedro e André eram ir mãos ger manos; eram filhos de Jonas. Ambos viviam de
pescaria e moravam no lago Genezaré; Pedro em Cafar naum, André em
Betsaida. Pedro casou com a viúva de um pescador, a qual lhe trouxe do
primeiro matrimônio dois filhos e uma filha; esta será provavelmente a Santa
Petronila, muitas vezes mencionada como filha de S. Pedro. Pedro, porém,
não teve filhos; tinha quase a idade de Judas Tadeu, cinco anos mais que
Jesus. André tinha dois anos mais do que Pedro. Era pai de dois filhos e duas
filhas; depois da sua vocação ao apostolado, viveu em perfeita continência.
Tiago o Maior e S. João Evangelista eram também ir mãos, filhos de Zebedeu;
a mãe chamava-se Maria Salomé e era filha de Sobe, ir mã de Sant' Ana e,
por tanto, tia da Mãe de Deus. Foi ela que um dia apresentou os filhos ao
Salvador, pedindo-lhe que os colocasse um à sua direita e o outro à sua
esquerda, no reino do céu. S. Tiago tomou-se o Apóstolo da Espanha; seu
sepulcro, em Compostela, é um lugar célebre de romaria. São João pregou
em Éfeso, na Ásia Menor, onde mor reu, na idade de mais de 100 anos, sendo
o único dos Apóstolos que teve mor te natural. Era o discípulo predileto do
Salvador, não somente por sua fidelidade, singeleza e amor, mas também por
causa de sua vida casta e pura.
O Apóstolo S. Filipe morava em Betsaida e foi conduzido a Jesus por André.
Bar tolomeu era Esseno. O pai, Tolmai, era descendente do rei Tolmai de
Gessur, cuja filha era casada com o rei Davi. Como escrivão, Bar tolomeu era
conhecido de Tomé, que tinha a mesma profissão e vivia em Arimatéia.
De Judas Iscariotes falaremos por extenso no número 20 deste capítulo.
O santo Apóstolo Matias era natural de Belém e pregou o Evangelho na
Palestina.
O Apóstolo S. Paulo per tencia à tribo de Benjamin e era natural de Gischala,
a três léguas do monte Tabor. Os pais mudaram-se mais tarde para Tarso. Em
Jerusalém teve Paulo como mestre o célebre e douto Gamaliel. Antes da
conversão era par tidário zeloso da lei de Moisés e por isso adversário
encar niçado dos cristãos.
O santo evangelista Marcos era pescador per to de Betsaida e tor nou-se um
dos primeiros discípulos de Jesus.
S. Lucas Evangelista era natural de Antioquia; estudou pintura na Grécia e
depois medicina e astronomia numa cidade do Egito. Durante a vida de
Jesus, não se lhe associou, nem aos Apóstolos, ficando muito tempo
indeciso, até que foi confir mado na fé pelo próprio Senhor, no domingo da
Páscoa, em Emaús.
Cleophas, que junto com Lucas foi favorecido com a aparição de Jesus, era
neto do tio pater no de Maria Cleophae.
José de Arimatéia (assim chamado porque era natural de Arimatéia) e
Nicodemos eram escultores. Ambos moravam em Jer usalém e eram membros
do Conselho do Templo. Mais por menores veja no apêndice no. 10.
Menção especial merece-nos a família de Lázaro, que tinha íntimas relações
com Jesus e sua SS. Mãe. Vindo Jesus a Betânia, onde morava Lázaro, ou a
Jerusalém, hospedava-se geralmente em casa de Lázaro, um edifício em
for ma de castelo, rodeado de jardins e plantações. A ir mã de Lázaro, Mar ta,
tinha dois anos menos e Madalena nove anos menos do que ele. Uma terceira
ir mã, chamada Maria, a silenciosa, que era considerada como mentecapta,
não é mencionada nos Evangelhos. Depois da mor te dos pais coube a
Madalena por sor te o castelo de Magdala, na banda oriental do lago
Genezaré. Na idade de onze anos ali se instalou com grande pompa e
começou a levar uma vida suntuosa. Ainda muito moça, deixou-se ar rastar a
aventuras amorosas, tor nando-se assim um escândalo para os ir mãos, que
viviam muito simples e recolhidos em Betânia.
No começo do segundo ano da vida pública de Jesus, Madalena assistiu a um
dos ser mões do Divino Mestre e ficou inteiramente per tur bada e
ar rependida; pouco depois ungiu os pés do Salvador, em casa de Simão
Zabulon e recebeu nessa ocasião a consoladora cer teza de que os pecados
lhe foram perdoados. Mas pouco tempo depois recaiu nos mesmos vícios.
Pelos insistentes rogos de Mar ta, deixou-se levar a assistir mais uma vez à
pregação de Jesus. Enquanto o Salvador falava, saíram os maus espíritos de
Madalena que, muito contrita, se juntou às santas mulheres.
Lázaro recebeu uma prova especial do amor de Jesus na
milagrosa ressur reição, depois do cor po já lhe haver estado quatro dias no
sepul cro. Outros por menores sobre Lázaro, Mar ta e Madalena se encontram
nos números 14 e 15 deste capítulo.
O Evangelho e também a vidente mencionam muitas vezes as "santas
mulheres"; além das já conhecidas, Maria Helí, Maria Cleophae, Mar ta,
Madalena, Maria Salomé, mulher de Zebedeu e Suzana, filha de Alfeu,
per tenciam ao gr upo das santas mulheres ainda as seguintes:

1. Verônica, (propriamente: Seráfia) prima de São João Batista e cujo marido,


de nome Sirach, era membro do Conselho do Templo. Veja apêndice, no. 4.
2. Maria Marcos, mãe de João Marcos, que morava fora dos muros
de Jerusalém, defronte do monte das Oliveiras.
3. Joana Chusa, viúva sem filhos, natural de Jerusalém.
4. Salomé, também viúva; morava em casa de Mar ta, em Betânia; era
parenta da família por um ir mão de José.
5. Suzana, de Jerusalém, filha do ir mão mais velho de José, Cleophas e
deste modo parente da família, como Salomé.
6. Dina, a Samaritana, que falara com Jesus no poço de Jacó e que se
juntara às santas mulheres, depois da conversão.
7. Maroni, a viúva de Naim, cujo filho, Mar tialis, Jesus ressuscitara dos
mor tos.
8. Maria Sufanitis, Moabita, que Jesus livrara de um mau espírito.

4. Infância de Nossa Senhora e seu desposório com São José

Maria tinha três anos e três meses, quando fez o voto de associar-se às
virgens santas, que se dedicavam ao ser viço do Templo. Antes da par tida,
fizeram na casa pater na uma grande festa, à qual estiveram presentes cinco
sacerdotes, que sujeitaram Maria a uma espécie de exame, para ver se já
chegara à idade de juízo e madureza de espírito, para, ser admitida no
Templo. Disseram-lhe que os pais tinham feito por ela o voto, que não devia
beber vinho ou vinagre, nem comer uvas ou figos. Maria ainda acrescentou
que não comeria nem peixe, nem especiarias, nem frutas, senão uma espécie
de pequenas bagas amarelas, que não beberia leite, dor miria na ter ra e se
levantaria três vezes durante a noite para rezar.
Os pais de Maria ficaram muito comovidos com estas palavras. Joaquim
abraçou a filha, exclamando, entre lágrimas: "Oh, minha querida filha, isto é
duro demais; se assim queres viver, teu velho pai não te verá mais." - Foi um
momento de profunda comoção. Os sacerdotes, porém, disseram que se devia
levantar só uma vez para a oração, como as outras virgens, juntando ainda
outras circunstâncias atenuantes, como, por exemplo, que devia comer peixe
nas grandes festas.”
Maria ofereceu-se também para lavar as vestes dos sacerdotes e outras
roupas grossas.
"No fim da solenidade, vi que Maria foi abençoada pelos sacerdotes. Ela
estava em pé, num pequeno trono, entre dois sacerdotes; aquele que a
abençoou, estava-lhe em frente, os outros atrás. Os sacerdotes rezaram
alter nadamente, em rolos de pergaminho e o primeiro abençoou-a,
estendendo as mãos sobre ela. Tive nessa ocasião uma maravilhosa visão do
estado íntimo da santa Menina. Vi-a como que iluminada e transparente pela
bênção do sacerdote e sob seu Coração, em glória indizível, vi a mesma
imagem que na contemplação do santo Mistério na Arca da Aliança. Numa
for ma luminosa, igual à do cálice de Melquisedec, vi figuras brilhantes,
indescritíveis, da bênção da promissão. Era como trigo e vinho, car ne e
sangue, que tendiam a unir-se. Vi, ao mesmo tempo, que sobre essa aparição
o Coração da Virgem se abriu, como a por ta de um templo e o mistério da
promissão, cercado como de um dossel, guar necido de misteriosas pedras
preciosas, lhe entrou no Coração aberto; era como se a Arca da Aliança
entrasse no templo. Depois disso, encer rava o coração da Virgem o maior
bem que naquele tempo havia no mundo. Desaparecendo essa imagem, vi
apenas a santa Menina cheia de ardente devoção e amor. Vi-a como que
extasiada e elevada acima da ter ra".
Joaquim e Ana viajaram com Maria para Jer usalém. Em procissão solene foi
a Menina introduzida no Templo; depois de oferecido um sacrifício, erigiu-se
um altar por baixo de um por tal. Maria ajoelhou-se nos degraus, enquanto
Joaquim e Ana lhe puseram as mãos na cabeça, proferindo orações de
oferecimento. Um sacerdote cor tou-lhe então um anel do cabelo, queimou-o
num braseiro e vestiu-a de um véu pardo. Dois sacerdotes conduziram Maria
muitos degraus para cima, à parede divisória que separa o Santo do resto do
Templo e colocaram-na num nicho, do qual se via o Templo, em baixo. Depois
um sacerdote ofereceu incenso no altar próprio.
"Vi brilhar sob o Coração de Maria uma auréola de glória e soube que
continha a promissão, a bênção santíssima de Deus. Essa auréola aparecia
como que cercada pela arca de Noé, de modo que a cabeça da Santíssima
Virgem sobressaia acima da Arca. Depois vi a figura da arca de Noé
transfor mar-se na da Arca da Aliança, cercada pela aparição do Templo.
Então vi desaparecer essas for mas e sair da auréola brilhante a figura do
cálice da última ceia, diante do peito de Maria. aparecendo-lhe diante da
boca um pão assinalado com uma cruz. Dos lados lhe emanavam numerosos
raios de luz, em cujas extremidades apareciam muitos mistérios e símbolos
da SS. Virgem, como, por exemplo, os nomes da Ladainha de N. Senhora, em
figuras. Do ombro direito e do esquerdo cruzavam-se dois ramos de oliveira e
cipreste sobre uma palmeira pequena, que vi aparecer atrás de Maria. Entre
esses ramos vi as for mas de todos os instrumentos da paixão de Jesus. O
Espírito Santo, com asas luminosas, parecendo mais figura de homem do que
de pomba, pairou sobre a aparição. No alto vi o céu aber to, com a Jer usalém
celeste no centro, com todos os palácios, jardins e habitações dos futuros
Santos; tudo estava cheio de Anjos; também a auréola de glória que cercava
Maria, estava cheia de cabeças de Anjos.
Então desapareceu a visão gradualmente, como aparecera. Por fim vi
somente o esplendor sob o Coração de Maria e luzir nele a bênção da
promissão. Depois desapareceu também essa visão e vi apenas a Santa
Menina, consagrada ao Templo, guar neci da de seus ador nos, sozinha entre
os sacerdotes.”
Maria despediu-se dos pais e foi entregue às mestras: Noemi, Ir mã da mãe de
Lázaro e a profetisa Ana, outra matrona.
"Então vi uma festa das virgens do Templo. Maria tinha de perguntar às
mestras e às meninas, uma a uma, se queriam deixá-Ia ficar junto delas. Era
o costume adotado. Depois fizeram uma refeição e no fim houve uma dança;
estavam umas em frente às outras, duas a duas e
dançando for mavam figuras: cruzes, etc.
De noite Noemi conduziu Maria ao seu quar tinho, de onde se podia ver o
interior do Templo. O quar to não for mava um quadrângulo regular ; as paredes
estavam marchetadas de triângulos, que for mavam várias figuras. Havia no
quar to um banquinho, mezinha e estantes nos cantos, com diversos
repar timentos para guardar objetos. Diante desse quar tinho havia um quar to
de dor mir e um guarda-roupa, como também a cela de Noemi.
As virgens do Templo usavam vestido branco, comprido e largo, com cinta e
mangas muito largas, que ar regaçavam para o trabalho. Estavam sempre
veladas.
Maria, era, para sua idade, muito hábil; vi-a trabalhar, fazendo já pequenos
lenços brancos, para o ser viço do Templo.
Vi a Santa Virgem passar o tempo par te na morada das matronas (com as
outras meninas), par te na solidão do quar to, em estudo, oração e trabalho.
Trabalhava em ponto de malha e tecia, sobre varas compridas, panos
estreitos, para o ser viço do Templo. Lavava as toalhas e limpava os vasos do
Templo. Vi-a muitas vezes em oração e meditação.
Além das orações prescritas no Templo, Maria SS. tinha como devoção
especial o desejo contínuo da Redenção, que lhe constituía uma ininter r upta
oração da alma. Guardava esse desejo como um segredo e fazia as devoções
às escondidas. Quando todas dor miam, levantava-se do leito, para orar a
Deus. Vi-a muitas vezes se desfazer em lágrimas e rodeada de celestial
esplendor, durante a oração.
A alma da Virgem parecia não estar na ter ra e gozava muitas vezes de
consolações celestes. Tinha um desejo indizível da vinda do Messias e na
sua humildade, apenas se atrevia a desejar ser a ser va mais humilde da Mãe
do Salvador.
Tendo as virgens do Templo alcançado cer ta idade, casavam-se e deixavam o
ser viço do mesmo. Quando chegou, porém, o tempo de Maria, ela não quis
deixar o Templo; mas disseram-lhe que devia casar.”
"Eu vi, conta Catharina Emmerich, que um sacerdote muito idoso, que não
podia mais andar (provavelmente o Sumo Sacerdote), foi transpor tado por
alguns outros, numa cadeira, para diante do Santíssimo e rezou, lendo num
rolo de pergaminho que lhe estava em frente, sobre uma estante, enquanto
se queimava um sacrifício de incenso. Extasiado em espírito, teve uma
aparição, sendo-lhe a mão colocada sobre o rolo, onde o dedo indicador
mostrava a palavra do Profeta Isaías: E sairá uma vara do tronco de Jessé o
uma flor brotar-Ihe-á da raiz. (Is. 11, 1). Quando o ancião voltou a si, leu esse
verso e conheceu-lhe a significação ensinada na visão.
Enviaram, por tanto, mensageiros por todo o país, convocando todos os
homens solteiros da estir pe de Davi ao Templo. Reuniram-se muitos deles no
Templo, em vestes de gala, e foi-Ihes apresentada a Virgem Santíssima. Vi
ali um jovem muito piedoso da região de Belém; tinha também implorado
sempre, com ardente devoção, a vinda do Salvador prometido e vi-lhe no
coração o grande desejo de ser o esposo de Maria. Esta, porém, se recolheu
à cela, der ramando lágrimas abundantes e não podia confor mar-se com o
pensamento de ter de renunciar à virgindade. Então vi que o Sumo Sacerdote
(segundo a inspiração recebida do Céu) distribuiu ramos a todos os homens
presentes, com ordem de marcar cada um o seu ramo com o respectivo nome
e segurá-Io nas mãos, durante a oração e o sacrifício. Feito Isso, todos
entregaram os seus ramos, que foram colocados sobre um altar, diante do
Santíssimo; anunciou-Ihes o Sumo Sacerdote que aquele cujo ramo
florescesse, seria destinado por Deus a desposar a Virgem Maria de Nazaré.
Enquanto os ramos estavam diante do Santíssimo, continuaram os homens a
oferecer sacrifícios, a rezar ; vi que aquele jovem clamava instantemente a
Deus, com os braços estendidos, num dos átrios do Templo e rompeu em
lágrimas, quando todos receberam os seus ramos e foram infor mados que
nenhum florescera e, por tanto, nenhum dentre os presentes fora destinado a
ser o esposo dessa Virgem.
Vi depois que os sacerdotes do Templo procuraram de novo, nos registros
das gerações, se havia ainda um descendente de Davi, que antes tivessem
saltado. Como, porém, fossem marcados seis ir mãos de Belém, de um dos
quais já há muito tempo não havia notícias, procuraram o domicílio de José e
acharam-no, num lugar não muito longe de Samaria, situado num ribeiro,
onde morava sozinho, per to do ribeiro, trabalhando em ser viço de outros
mestres. Estaria talvez na Idade de 33 anos. (3)

(3) "José era o terceiro, entre seis ir mãos. Os pais, já falecidos, tinham
habitado um vasto edifício fora de Belém, o antigo solar de Davi, cujo pai,
Isai ou Jessé, já o possuíra. Restavam, porém, no tempo de José, apenas os
muros do edifício principal. Nos quar tos de cima moravam José e os innãos,
com o mestre, um velho judeu. Vi-os brincar nos quar tos, lá em cima. Vi
também o mestre Ihes dar muitas lições estranhas que não entendi bem. Os
pais não cuidavam muito dos filhos; pareciam ser nem bons nem maus. José
tinha um gênio muito diferente dos ir mãos. Era inteligente e aprendia com
facilidade; era, porém, simples, recolhido, piedoso e sem ambição. Os ir mãos
pregavam-lhe muitas peças, davam-lhe empur rões e causavam-lhe muitos
desgostos. Os pais também não estavam muito satisfeitos com José;
desejavam que, com os talentos de que era dotado, aspirasse a qualquer
posição elevada no mundo; mas o rapaz não tinha inclinações para isso.
Achavam-no muito simples e humilde demais; rezar e exercer pacatamente
uma profissão era a única aspiração do jovem. Para evitar as contínuas
provocações dos ir mãos, vi-o ir muitas vezes do outro lado de Belém, em
companhia de algumas mulheres piedosas e rezar com elas. Tinha então
cerca de 19 anos. Vi-o também passar algum tempo em gr utas, uma das
quais veio a ser depois o lugar do nascimento de Nosso Senhor. Ali rezava e
fazia pequenos trabalhos em madeira, pois per to havia a oficina de um velho
car pinteiro; José ajudava-o nos trabalhos e aprendeu assim, pouco a pouco,
a profissão.
A hostilidade dos imlãos aumentou a tal ponto, que lhe foi impossível ficar
mais tempo na casa pater na. Vi-o, numa noite, fugir disfarçado de casa, para
ganhar o sustento pelo trabalho de car pinteiro. Estava na idade de 18 a 20
anos. Primeiro o vi trabalhar na oficina de um car pinteiro em Libonah, onde
aprendeu a profissão completamente. José era piedoso, bom e singelo; todos
o estimavam. Vi como prestava humildemente muitos pequenos ser viços ao
mestre; vi-o apanhar as aparas, juntar lenha e conduzí-Ia às costas. Depois
trabalhou em Tanath, per to do Megiddo, mais tarde Tibérias; teria então
cerca de 33 anos. José pedia e anelava muito pela vinda do Messias.”

À ordem do Sumo Sacerdote, veio José com o seu melhor traje ao Templo de
Jerusalém. Teve também de segurar um ramo, durante o sacrifício e as
orações; quando quis pô-Io sobre o altar, diante do Santíssimo, brotou uma
flor branca, como uma açucena, na ponta do ramo e vi descer sobre ele uma
aparição luminosa, como o Espírito Santo. Então reconheceram José como
esposo de Maria, escolhido por Deus e apresentaram-no a Maria, em
presença de sua mãe e dos sacerdotes. Maria, confor mada com a vontade de
Deus, aceitou-o humildemente por noivo.
As núpcias foram celebradas em Jerusalém. Depois seguiu Maria com a mãe
para Nazaré; José, porém, foi primeiro a Belém, a negócios de família. À sua
chegada em Nazaré, fizeram uma festa. Na casa que Ana montara para eles,
tinha José um quar to separado, na frente. Ambos estavam muito acanhados.
Viviam em oração e muito recolhidos.”

5. Anunciação e Visitação de Nossa Senhora

Depois do casamento de Maria SS. com S. José, estavam preparadas pela


Divina Providência todas as condições, de modo que o santíssimo e
eter namente adorável mistério da Encar nação podia realizar-se. Deuse esse
fato numa noite santa, na silenciosa casa de Nazaré. Inspirada pelo Espírito
Santo, que queria operar nela o grandioso milagre, velou Maria toda a noite
em ardente oração. Então sucedeu que, pela meia noite, entrou na casa de
Nazaré um dos mais augustos Anjos do Céu, como mensageiro de Deus e,
pelo consentimento da SS. Virgem, revestiu-se nela o Filho Unigênito de Deus
da natureza humana. Assim se uniu a eter namente adorável Divindade, por
um misterioso matrimônio e amor santo, com a humanidade pecaminosa, a
qual o Pai de misericórdia quis elevar de novo pelo Homem-Deus, para
estabelecer a nova Aliança de graça e amor.
Ouçamos a singela descrição desse mistério pela vidente privilegiada de
Dülmen:
"Vi a Santíssima Virgem, pouco depois do casamento, em casa de José, em
Nazaré. José saíra da cidade, com dois jumentos, para buscar alguma coisa;
parecia estar voltando. Além da SS. Virgem e duas moças da mesma idade, vi
ainda Sant'Ana e aquela parenta viúva, que lhe ser via de criada. Pela noite
rezaram, comendo depois alguma hor taliça. Maria recolheu-se então ao
quar to de dor mir e preparou-se para a oração, pondo um vestido comprido,
de lã branca, com cinto largo e cobrindo a cabeça com um véu branco-
amarelo. Tirou uma mezinha baixa encostada na parede e colocou-a no meio
do quar to; tendo posto ainda uma almofada diante dessa mezinha, pôs-se de
joelhos e cruzou os braços. Assim a vi rezar muito tempo, em ardente
súplica, elevados os olhos ao céu, pedindo a redenção e a vinda do Rei
prometido.”
Então se der ramou do teto do quar to uma tor rente de luz sobre o lugar à
direita de Maria; nessa luz vi um jovem resplandecente descer para junto
dela: era o Arcanjo S. Gabriel, que lhe disse:
"Ave, cheia de graça. O Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres."
Ao ouvir estas palavras, a Virgem per turbou-se e cogitava das razões
daquela saudação. Mas o Anjo obser vou-lhe: "Não vos per turbeis, Maria,
porque merecestes graça diante de Deus; pois concebereis e dareis à luz um
filho, ao qual poreis o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-se-á o Filho
do Altíssimo; e Deus Nosso senhor dar-lhe-á o trono de Davi, seu pai, e
reinará eter namente sobre a casa de Jacó e o seu reino não terá fim." (Luc.
1,28-33).
Vi-lhe sair as palavras da boca como letras. Maria virou um pouco a cabeça
velada para o lado direito, mas, cheia de temor, não levantou os olhos. O
Anjo, porém, continuou a falar e Maria levantou um pouco o véu e respondeu:
"Como se fará isso, pois não conheço homem?" (Luc. 1,34)
E o Anjo disse: "O Espírito Santo virá sobre Vós e a vir tude do Altíssimo
cobrir-vos-á com sua sombra. E por isso o Santo que nascerá de Vós, será
chamado Filho de Deus. Já vossa prima Isabel concebeu um filho na velhice e
este é o sexto mês da que se diz estéril; pois nada para Deus é impossível".
Maria levantou o véu e, olhando para o Anjo, respondeu as santas palavras:
"Eis aqui a ser va do Senhor ; faça-se em mim segundo a vossa palavra." A
Santíssima Virgem estava em profundo êxtase. O quar to estava cheio de luz,
o Céu parecia aber to e um rasto luminoso per mitiame ver por cima do Anjo,
no fim da tor rente de luz, a Santíssima Trindade. Quando Maria disse: "Faça-
se em mim segundo a vossa palavra", vi a aparição do Espírito Santo; do
peito e das mãos der ramaram-se-Ihe três raios de luz para o lado direito da
Santíssima Virgem, unindo-se-Ihe. Maria estava nesse momento toda
luminosa e como transparente.
Vi depois o Anjo desaparecer e do rasto luminoso que se retirava para o Céu,
caíram sobre a Santíssima Virgem muitas rosas brancas fechadas, todas com
uma folhinha verde. Nesse momento vi também uma ser pente asquerosa
ar rastar-se pela casa e pelos degraus acima. O Anjo, ao sair do quar to da SS.
Virgem, pisou diante da por ta a cabeça desse monstro, que uivou tão
hor rivelmente, que tremi de medo. Apareceram, porém, três espíritos e
expulsaram o monstro a pontapés e pancadas, para fora de casa. A Virgem
Santíssima, toda absor ta em extática contemplação, reconheceu e viu em si
o Filho de Deus, feito homem, como uma pequena for ma humana luminosa,
com todos os membros já desenvolvidos, até os dedinhos e humildemente o
adorou. Foi pela meia noite, que vi esse mistério. Depois de algum tempo,
Maria se levantou, colocou-se diante do pequeno altar de oração e rezou em
pé. Foi pela manhãque se deitou para dor mir. Ana teve, por uma revelação de
Deus, conhecimento de tudo.”
Para a preparação completa da vida pública e das obras de Jesus era preciso
também a santificação e a ação pública do Precursor. Esta devia efetuar-se,
segundo a vontade de Deus, pela aproximação de Maria e de seu Filho
milagrosamente concebido, da mãe do precursor. Por isso inspirou o Espírito
Santo à Virgem Santíssima o desejo de visitar a prima Isabel. Esta morava
em Hebron, no sul do país, Maria em Nazaré, no nor te; mas essa distância
não desanimou Maria. Pôs-se a caminho, em contínua adoração e
contemplação do Filho de Deus, que trazia sob o Coração, acompanhada por
S. José, evitando, quanto era possível, as cidades e vilas tumultuosas. Anna
Catharina Emmerich nar ra:
"Isabel (a prima de Maria e esposa de Zacarias) soube, por uma visão, que
uma virgem da sua tribo se tor nara mãe, do Messias prometido. Tinha
pensado, durante essa visão, em Maria, com grande saudade e vira-a em
espírito, em caminho para sua casa. Mas Zacarias deu-lhe a entender ser
inverossímil que a recém-casada fizesse tal viagem. Isabel, porém, cheia de
saudade, foi-lhe ao encontro. Maria Santíssima, vendo Isabel de longe e
reconhecendo-a cor reu adiante de José, ao encontro dela. Cumprimentaram-
se afetuosamente com um aper to de mão. Nisto vi um esplendor em Maria e
um raio de luz passando dela para Isabel, que se sentiu milagrosamente
comovida. Abraçando-se, atravessaram, o pátio em direção à por ta da casa.
José entrou, por uma por ta lateral, no átrio da casa, onde humildemente
cumprimentou o velho sacerdote venerável; este o abraçou cordialmente e
expandiu-se com ele, escrevendo numa lousa, pois ficara mudo desde a
aparição do Anjo no Templo.
Maria e Isabel entraram pela por ta da casa no átrio. Ali se cumprimentaram
de novo muito afetuosamente, pondo as mãos nos braços uma da outra e
encostando face a face. Nisso vi de novo como que um esplendor em Maria,
radiando para Isabel, pelo que esta ficou toda luminosa, comovida por uma
alegria santa. Recuando com as mãos levantadas, exclamou, cheia de
humildade, alegria e entusiasmo: "Bendita sois entre as mulheres e bendito é
o fruto do vosso ventre! Donde me vem a felicidade de ser visitada pela Mãe
do meu Senhor? Porque assim que chegou a voz da saudação aos meus
ouvidos, logo o menino deu um salto de prazer no meu ventre.”
Então conduziu Maria ao quar tinho preparado para ela. Maria, porém, na
elevação da sua alma, proferiu o cântico do "Magnificat": Minha alma
engrandece o Senhor, etc.
Depois de alguns dias, voltou José a Nazaré, acompanhado, par te do
caminho, por Zacarias. Maria Santíssima, porém, ficou três meses com
Isabel, até o nascimento de João e já antes da circuncisão do menino voltou
para Nazaré. José veio-lhe ao encontro até meio caminho e foi então que
notou que estava grávida. Não tendo conhecimento da anunciação do Anjo à
SS. Virgem, foi acometido de dúvidas e desassossego. Maria guardara
consigo o mistério, por humildade e modéstia. José nada disse, mas lutou em
silêncio com as dúvidas que lhe tor turavam o coração. Em Nazaré lhe
cresceu o desassossego, a ponto de resolver abandoná-Ia e fugir
secretamente. Então lhe apareceu um Anjo em sonho e consolou-o".
Nas últimas linhas, que não fazem mais que repetir o que já consta da
Escritura Sagrada, se revela a profunda humildade de Maria Santíssima. Ela
compreendia que José devia saber o que se tinha passado. Sentiu
profundamente a dor do piedoso esposo, mas, por modéstia, não teve a
coragem de revelar-lhe o santo mistério e o extraordinário privilégio, que lhe
fora dado. Humildemente confiou que Deus a ajudasse e foi-lhe
recompensada essa confiança e ouvida a piedosa oração. Quanto tempo teve
de pedir, não sabemos; em todo caso, porém, vemos que Deus não atende
imediatamente às súplicas nem das pessoas mais santas, mas só quando
chega o tempo previamente deter minado pela divina sabedoria.
6. A viagem a Belém e o nascimento de Nosso Senhor (4)

"Vi a Santíssima Virgem, com sua mãe Sant'Ana, fazendo trabalhos de malha,
preparando tapetes, ligaduras e panos, conta Anna Catharina. José estava a
caminho, voltando de Jerusalém, para onde tinha levado animais para o
sacrifício. Passando pela meia noite pelo campo de Chir nki, a seis léguas de
Nazaré, apareceu-lhe um Anjo, com o aviso de par tir imediatamente com
Maria para Belém, pois era ali que ela devia dar à luz o filho. Ordenou-lhe
também que levasse, além do jumento, em que Maria devia viajar, uma
jumentinha de um ano; que deixasse esta cor rer livre e seguisse o caminho
que ela tomasse.
José comunicou a Maria e Ana o que lhe fora dito; então se prepararam para
a par tida imediata. Ana ficou muito aflita. A Virgem Santíssima, porém, já
sabia antes que devia dar à luz o filho em Belém, mas na sua humildade
calara-se.”
A vida dos filhos de Deus é uma mistura de alegria e de dor. Maria
Santíssima tinha-o experimentado já em Nazaré; verificou-o por toda a vida e
também então, na viagem ao lugar abençoado, onde o Filho de Deus ia descer
à ter ra. A piedosa Emmerich nar ra:
"Vi José e Maria par tirem, acompanhados por Ana, Maria Cleophae e alguns
criados, até o campo de Ginim, onde se separaram, despedindose comovidos.
Vi a Sagrada Família continuar a viagem, subindo a ser ra de Gilboa. Na noite
seguinte passaram por um vale muito frio, dirigindo-se a um monte. Caíra
geada. Maria, sentindo frio, disse: "Devemos descansar, não posso ir mais
adiante." José ar ranjou-lhe um assento, debaixo de um terebinto; ela, porém,
pediu instantemente a Deus que não a deixasse sofrer qualquer mal, por
causa do frio. Então a penetrou tanto calor, que ela deu as mãos a José, para
aquecer as dele. José falou-lhe muito carinhosamente; ele era tão bom e
sentia tanto que a viagem fosse tão penosa! Falou também da boa recepção
que esperava achar em Belém.
Celebraram o Sábado numa estalagem. Na manhã seguinte continuaram o
caminho, passando por Samaria. A Santíssima Virgem andava a pé; às vezes
paravam em lugares convenientes e descansavam.

(4) Jesus Cristo nasceu, segundo as visões de Anna Catharina, ainda no ano
de 3997, por conseguinte 8 anos antes da nossa cronologia, que se começa a
contar no ano de 4004.
A verdadeira data do nascimento também se lhe apresenta diferente: quatro
semanas antes, por tanto: a anunciação de Nossa Senhora nos fins de
Fevereiro e o Natal pelos fins de Novembro.

A jumenta ora ficava atrás, ora cor ria muito para a frente; mas onde os
caminhos divergiam, apresentava-se e tomava o caminho bom e onde deviam
descansar, parava.
A primeira coisa que S. José fazia, em cada lugar de descanso e em cada
estalagem, era ar ranjar um lugar cômodo para a Santíssima Virgem sentar-se
e descansar.
Quando a sagrada família chegou a dez léguas de Jerusalém, encontrou de
noite uma casa solitária. José bateu à por ta, pedindo agasalho para a noite;
mas o dono da casa tratou-os grosseiramente e negou-lhes o abrigo. Então
andaram um pouco adiante e, entrando num rancho, encontraram ali a
jumenta esperando.
Abandonaram esse abrigo já antes de amanhecer. Em outra casa foram
também tratados asperamente. José tomou pousada mais vezes pelo fim da
viagem, pois esta se tor nava cada vez mais penosa para a SS. Virgem.
Seguindo sempre a jumenta, fizeram deste modo uma volta de quase um dia e
meio, para leste de Jerusalém. Rodeando Belém, passaram pelo nor te da
cidade e aproximaram-se pelo lado oeste. Pararam e pousaram afastados do
caminho, sob uma ár vore. Maria apeou-se e concer tou o vestido. Depois José
a conduziu a um grande edifício, que estava a alguns minutos fora de Belém;
era a casa pater na de José, o antigo solar de Davi, mas naquele tempo ser via
de recebedoria do imposto romano. José entrou na casa; os amanuenses
perguntaram quem era e depois lhe leram a genealogia, como também a de
Maria. Aparentemente, ele não sabia que Maria descendia também por
Joaquim, em linha direta, de Davi. Maria foi também chamada perante os
escrivões.
José entrou então com ela em Belém, procurando em vão pousada logo nas
primeiras casas; pois havia muitos forasteiros na cidade. Continuaram assim,
indo de rua em rua. Chegando à entrada de uma rua, Maria esperava com os
jumentos, enquanto José ia de casa em casa, pedindo agasalho, mas em vão.
Maria tinha de esperá-lo às vezes muito e sempre com o mesmo resultado;
tudo já ocupado, não havia mais lugar para eles. Então disse José a Maria
que era melhor ir à outra par te de Belém; mas também lá procurou em vão.
Conduziu-a então e ao jumento, para debaixo de uma ár vore grande, afim de
descansar, enquanto ele ia à procura de hospedagem. Muita gente passou
pela ár vore, olhando para Maria. Julgo que alguns também se lhe dirigiram,
perguntando quem era. Maria era tão paciente, tão humilde e ainda tinha
esperança. Mas, depois de esperar muito, voltou José triste e abatido, pois
nada ar ranjara. Os amigos, dos quais tinha falado à SS. Virgem, não
quiseram reconhecê-lo. Lamentou-o com lágrimas nos olhos, mas Maria
consolou-o. Mais uma vez começou ele a procurar de casa em casa, voltando
finalmente tão abatido, que só se aproximou hesitante. Disse que conhecia
um lugar fora da cidade per tencente aos pastores; ali, com cer teza,
achariam abrigo.
Assim saíram de Belém, para uma colina situada no lado oriental da cidade,
na qual havia uma gr uta ou adega. A jumentinha, que já da casa pater na de
José tinha cor rido para lá, fazendo a volta da cidade, veio-lhes ao encontro,
pulando e brincando alegremente em roda. Então disse a SS. Virgem a José:
"Vê, de cer to é vontade de Deus que aqui fiquemos.”
José acendeu uma luz e, entrando na caver na, tirou algumas coisas de lá,
afim de ar ranjar um lugar de descanso para a SS.Virgem. Depois a levou para
dentro e ela se assentou no leito feito de mantas e fardéis de viagem. José
pediu-lhe humildemente desculpa pela pobre hospedagem; mas Maria, cheia
de piedosa esperança e amor, estava contente e feliz.
José buscou água num odre e da cidade trouxe pratinhos, algumas frutas e
feixes de lenha miúda; buscou também brasas, para acender fogo e preparar
a refeição. Depois de ter comido e feito as orações, deitou-se Maria no leito;
José, porém, ar ranjou o seu leito à entrada da gruta.
Maria Santíssima passou o dia seguinte, o Sábado, na gruta, rezando e
meditando com grande devoção. De tarde José a levou, através do vale, à
gruta que ser vira de sepulcro a Marabá, ama de Abraão. Depois, ter minado o
Sábado, veio reconduzí-la à primeira gruta. Maria disse a S. José que à meia
noite desse dia chegaria a hora do nascimento de seu Filho, pois teriam
passado nove meses desde a anunciação pelo Anjo: José ofereceu-se para
chamar algumas mulheres piedosas de Belém para assistí-la, mas Maria
recusou.
Desse modo chegaram os santos Pais de Jesus, guiados pela Divina
Providência, ao lugar deter minado pelo Pai Eter no, em união com o Filho
Unigênito e o Espírito Santo, para o nascimento daquele divino Menino, cheio
de graça, que havia de tirar da ter ra a maldição, abrir o Céu e criar um novo
Éden de Deus cá na ter ra. Lúcifer e os seus sequazes perderam o reino do
Céu pelo orgulho, querendo ser iguais a Deus e assim perderam os primeiros
homens também o paraíso, porque o mesmo sedutor os enganou com vãos
desejos de serem iguais a Deus. Por isso, a santa humildade havia de abrir
de novo o caminho do Céu. O Filho de Deus veio a este mundo ensinar, pelo
exemplo, essa e todas as outras vir tudes. Eis porque Ele, o Rei da
eter nidade, quis nascer homem num lugar onde os animais se abrigavam.
Para primeiro berço escolheu uma miserável manjedoura, na qual o gado
costumava comer. Assim não lhe faltou nada da pobreza humana, mas uniu-
se-lhe o esplendor da majestade divina. - A piedosa vidente continua:
"Quando Maria disse ao esposo que o tempo estava próximo e que a deixasse
e fosse orar, José saiu, recolhendo-se ao leito, para rezar. Ao sair, voltou-se
mais uma vez, para fitar a SS. Virgem e viu-a como rodeada de chamas; toda
a gruta estava iluminada como por uma luz sobrenatural. Então entrou com
santo respeito na sua cela e prostrou-se por ter ra, para orar.
Vi o esplendor em volta da SS. Virgem crescer mais e mais. Ela estava de
joelhos, cober ta de um vestido largo, estendido em redor, sem cinto. A meia
noite ficou extasiada e levantada acima do solo; tinha os braços cruzados
sobre o peito. Não vi mais o teto da gruta; uma estrada de luz abria-se-Ihe
por cima, até o mais alto Céu, com crescente esplendor.
Maria, porém, levantada da ter ra em êxtase, olhava para baixo, adorando o
seu Deus, cuja Mãe se tor nara e que jazia deitado por ter ra, diante dela, qual
criancinha nova e desamparada. Vi o nosso Salvador qual criancinha
pequenina, resplandecente, cujo brilho excedia a toda a luz na gruta, deitado
no tapete, diante dos joelhos de Maria. Parecia-me que era muito pequeno e
crescia cada vez mais, diante dos meus olhos.
Depois de algum tempo vi o Menino Jesus mover-se e ouvi-o chorar. Então foi
que Maria voltou a si. Tomou a criancinha e, cobrindo-a com um pano,
aper tou-a ao peito. Assim se sentou, envolvendo-se, com o Filhinho, no véu.
Então vi em redor Anjos em for ma humana, prostrados em adoração diante do
Menino.
Cerca de uma hora após o nascimento, Maria chamou S. José, que ainda
estava rezando. Chegando-se-Ihe per to, prostrou-se-Ihe o esposo em frente,
em adoração, cheio de humildade e alegria. Só depois que Maria lhe pediu
que aper tasse de encontro ao coração o santo dom de Deus, foi que se
levantou, recebendo o Menino Jesus nos braços e louvando a Deus, com
lágrimas de alegria.
A SS. Virgem envolveu então o Menino em panos e deitou-o na manjedoura,
cheio de junco e er vas finas e cober ta com uma manta. A manjedoura estava
ao lado direito, na entrada da gruta. Os santos Pais, tendo deitado o menino
no presepe, ficaram-lhe ao lado, cantando salmos.”
O tempo chegara à consumação: O Verbo fizera-se car ne, - o Verbo Eter no e
Divino do Pai Celestial Todo-Poderoso. A profecia de Isaías cumprira-se: A
Virgem concebera e dera à luz um filho, cujo nome é Emanuel, "Deus
Conosco". (Is. 7, 14). Apareceu entre nós o Messias, prometido já no paraíso
e por todos os povos tão ardentemente anelado. Está deitado numa
manjedoura, qual criança pobre e desamparada. Será reconhecido em tão
humildes condições? A quem se revelará pri meiro o Rei da glória? Não aos
grandes e soberbos da ter ra! Pastores, pobres e simples, são os primeiros
convidados por mensageiros celestiais à manjedoura, para adorar o Menino
divino. Conta Catharina Emmerich:
"Vi três pastores, que estavam juntos, diante do rancho, admirando a
maravilhosa noite; no céu vi uma nuvem luminosa, descendo para eles. Ouvi
um doce canto. A principio se assustaram os pastores, mas de repente Ihes
surgiu um Anjo, dizendo: "Não temais, anuncio-vos uma grande alegria, que é
dada a todo o povo, pois nasceu hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é
Cristo, nosso Senhor... Eis o sinal para conhecê-Io: achareis uma criança
envolta em panos e deitada num pre sépio." Enquanto o Anjo assim falava,
aumentava o esplendor em redor e vi então cinco ou sete Anjos, grandes,
luminosos e graciosos, diante dos pastores; seguravam nas mãos uma fita,
como de papel, na qual estava escrita uma coisa, em letras do tamanho de
um palmo: ouvi-os louvar a Deus e cantar : "Glória a Deus nas alturas e paz na
ter ra aos homens de boa vontade".
Os pastores na tor re de vigia tiveram a mesma aparição, apenas um pouco
depois. Do mesmo modo apareceram os Anjos a um terceiro grupo de
pastores, per to de uma fonte, a três léguas de Belém, a leste da tor re dos
pastores. Vi que os pastores não foram imediatamente à gr uta; para lá
chegar os três pastores tinham um caminho de uma hora e meia e os da tor re
o dobro. Vi também que deliberaram sobre o que deviam levar, como
presente, ao Messias recém-nascido; depois buscaram as dádivas o mais
depressa possível.
Ao crepúsculo da manhã chegaram os pastores, com os presentes, à gruta.
Contaram a S. José o que Ihes anunciara o Anjo e que vinham para adorar o
Messias. José aceitou os presentes, com humildes agradecimentos e
conduziu os pastores à SS. Virgem. que estava sentada ao pédo presépio,
com o Filho ao colo. Os recém-chegados prostraram-se de joelhos diante de
Jesus, segurando os cajados nos braços; choraram de alegria e
per maneceram assim muito tempo, sentindo grande felicidade e doçura.
Quando se despediram, deu-Ihes a SS. Virgem o Menino a abraçar. De tarde
vieram outros pastores, com mulheres e crianças, trazendo presentes.
Alguns dias depois do nascimento de Jesus, estando José e Maria ao lado do
presépio e olhando com grande e íntima felicidade para o divino Menino,
aproximou-se de súbito o jumento, e, caindo de joelhos, baixou a cabeça até
o chão. Maria e José der ramaram lágrimas à vista disso.
Depois do Sábado, José chamou três sacerdotes de Belém, para a
circuncisão do Menino. Estes trouxeram a cadeira da circuncisão e uma laje
de pedra octogonal, na qual se encontravam os instrumentos necessários. Ao
nascer do dia teve lugar a circuncisão. Oito dias depois do nascimento do
Senhor, vi que um anjo apareceu ao sacerdote, apresentando-lhe o nome de
Jesus, escrito numa lousa. O Menino Jesus chorou alto, depois da santa
cerimônia. José recebeu-o do sacerdote e depositou-o nos braços da SS.
Virgem.
Na tarde do dia seguinte, chegou Isabel, com um velho criado, à gruta. Houve
grande regozijo. Isabel aper tou o Menino ao coração. Veio também Ana, com
o segundo marido e Maria Helí. Maria pôs o Menino nos braços da velha mãe,
que estava muito comovida. Maria contou-lhe também, cheia de íntima
felicidade, todas as circunstâncias do nascimento. Ana chorou com Maria,
acariciando durante todo o tempo o Menino Jesus.”

7. Os ascendentes dos três Reis Magos e a viagem destes a Belém

Um dos fatos mais maravilhosos da vida do Divino Salvador é a vinda dos três
Reis Magos ao presépio. Surge a pergunta: Como foi possível que três
homens de alta posição, com numerosa comitiva, vindos de ter ras
longínquas, chegassem guiados por uma estrela ao presépio de Belém?
Para explicação cita-se geralmente o trecho do livro Números 24, 17; "Uma
estrela sai de Jacó, um cetro levanta-se de Israel, que esmagará os
príncipes de Moab." Cer tamente é este trecho de impor tância e sem dúvida o
conheceram os pontífices dos judeus, melhor do que os chefes das tribos
longínquas dos gentios. Contudo, não vieram aqueles ao presépio, mas estes
últimos. Logo, não bastava só a estrela, para levá-los lá, faziam-se precisas
outras previdências divinas, milagrosas. Quais foram estas, conta-nos a
pobre camponesa de Flamske:
"Os antepassados dos três Reis Magos descendiam de Jó, que outrora vivera
no Cáucaso. Um discípulo de Balaão anunciara ali a profecia deste, de que
apareceria uma estrela de Jató. Essa profecia achou larga aceitação.
Constr uiu-se uma tor re alta, numa montanha. Muitos sábios e astrônomos
viveram ali altemadamente; tudo que notavam nos astros, escreviam e
ensinavam a todos.
Os chefes de uma tribo da ter ra de Jó, numa viagem ao Egito, na região de
Heliopoli, receberam por um Anjo a revelação de que o Salvador nasceria de
uma Virgem e seria adorado pelos seus descendentes. Eles mesmos deviam
voltar e estudar os astros. Esses Médos começaram então a obser var as
estrelas. Diversas vezes, porém, caiu esse estudo em esquecimento, por
causa de vários acontecimentos. Depois começou o abominável abuso de
sacrificarem crianças, para que a criança prometida viesse mais depressa.
Cerca de 500 anos antes do nascimento de Jesus, estava esse estudo dos
astros também em decadência. Existia porém, a descendência daqueles
chefes, constituída por três ir mãos, que viviam separados, cada um com sua
tribo. Tiveram três filhas, às quais Deus deu o dom de profecia, de modo que
ao mesmo tempo percor reram o país e as três tribos, profetizando e
ensinando sobre a estrela de Jacó. Então se renovou nessas três tribos o
estudo das estrelas e renasceu o desejo da vinda do Menino prometido.
Desses três ir mãos descenderam os Reis Magos em linha direta, por 15
gerações, após 500 anos; mas, pela mistura com outras raças, eram de cores
diferentes. Desde o princípio desses 500 anos, ficavam sempre alguns dos
antepassados dos Reis num edifício comum, para estudarem os astros;
confor me as diversas revelações que recebiam, mudavam cer tas coisas nos
templos e no culto divino. Infelizmente continuou ainda entre eles, por muito
tempo, o sacrifício de homens e crianças. Todas as épocas que se referiam à
vinda do Messias, conheciam-nas em visões milagrosas, ao obser var as
estrelas. Desde a Conceição de Nossa Senhora, por tanto há 15 anos, essas
visões mostravam, cada vez mais distintamente, a vinda da criança. Por fim
viram até muitas coisas que se referiam à paixão de Jesus.
Podiam calcular bem o tempo da estrela de Jacó, que Balaão predissera.
(Núm. 24, 17); pois viram a escada de Jacó e, segundo o número dos degraus
e a sucessão das imagens que nestes apareciam, podiam calcular, como num
calendário, a proximidade da Salvação; pois o cume da escada deixava ver a
estrela ou a estrela era a última imagem dela. Viam a escada de Jacó como
um tronco, que tinha três séries de escalões cravados em roda; nestes
aparecia uma série de imagens, que viam também nas estrelas, no tempo da
sua realização. Dessa maneira sabiam exatamente que a imagem havia de
aparecer e conheciam, pelos inter valos, quanto tempo haviam de esperá-Ia.
Lembro-me de ter visto, na noite do nascimento de Jesus, dois dos Reis na
tor re. O terceiro, que vivia a leste do Mar Cáspio, não estava com eles; viu,
porém, a mesma visão, à mesma hora, na sua ter ra.
A imagem que reconheceram, apareceu em diversas variações; não foi numa
estrela que a viram, mas numa figura composta de um cer to número de
estrelas. Divisaram, porém, sobre a lua um arco-iris, sobre o qual estava
sentada uma virgem; à esquerda desta, aparecia no arco uma videira, à
direita um molho de espigas de trigo.
Vi aparecer diante da Virgem a figura de um cálice ou, melhor, subir ou sair-
lhe do esplendor ; saindo desse cálice, apareceu uma criancinha e, sobre
esta, um disco luminoso, como um ostensório vazio, do qual emanavam raios
semelhantes a espigas. Tive nisso a impressão do SS. Sacramento.
Do lado direito da criancinha, que subia do cálice, brotou um ramo, no qual
desabrochou, como uma flor, uma igreja octogonal, que tinha um por tão
grande e duas por tas laterais. A Virgem moveu com a mão o cálice, a criança
e a hóstia para cima, colocando-as dentro da Igreja e a tor re da Igreja
levantou-se-Ihe por cima e tomou-se por fim uma cidade brilhante, assim
como representamos a Jerusalém celeste. Vi nessa imagem muitas coisas,
como procedendo e desenvolvendo-se umas das outras.
Os Reis viram Belém como um belo palácio, como uma casa na qual se junta
e se distribui muita bênção. Lá viram a Virgem SS., com o Menino, rodeada
de muito esplendor e muitos reis se inclinarem diante dele, oferecendo-lhe
sacrifícios. Tomaram tudo como realidade, pensando que o rei tinha nascido
em tal esplendor e que todos os povos se lhe haviam submetido; por isso
foram também lhe oferecer os seus dons. Havia um grande número de
imagens naquela escada de Jacó. Vi-as todas aparecer nas estrelas, no
tempo do seu cumprimento. Naquelas três noites, os três Reis Magos viram
continuamente essas imagens. O mais nobre entre eles mandou então
mensageiros aos outros e, quando viram a imagem dos reis que ofereceram
presentes ao Rei recém-nascido, puseram-se também a caminho, com
riquíssimas dádivas, para não serem os últimos. Todas as tribos dos
astrônomos viram a estrela, mas s6 aqueles a seguiram.
Alguns dias depois da par tida dos reis, vi Theokenos, com o seu séquito,
juntar-se aos grupos de Mensor e Sair ; Theokenos não tinha estado antes
com estes últimos. Cada um dos Reis tinha no séquito quatro parentes
próximos da tribo, como companheiros. A tribo de Mensor era de cor
agradável, pardacenta; a de Sair parda e a de Theokenos de cor amarela,
brilhante.
Mensor era Caldeu; depois da mor te de Jesus, foi batizado por S. Tomé e
recebeu o nome de Leandro. Sair teve o batismo de desejo; não vivia mais,
quando Jesus foi à ter ra dos Reis Magos. Theokenos veio da Média e era o
mais rico; foi batizado e chamado Leão por S. Tomé. Deram-se aos Reis
Magos os nomes de Gaspar, Melchior e Baltasar, porque estes nomes lhes
designam o caráter : Gaspar - Vai com amor. Me1chior - Aproxima-se
humildemente. Baltasar - Age prontamente, confor mando a sua vontade com
a de Deus.
O caminho para Belém era de mais de 700 léguas: fizeram-no em 33 dias,
viajando muitas vezes dia e noite. A estrela que os guiava, era como um
globo brilhante. Um jor ro de luz emanava dela sobre a ter ra. Vi finalmente
chegarem os Reis à primeira vila judaica. Ficaram, porém, muito
acabrunhados, porque ninguém sabia coisa alguma do Rei recém-nascido.
Quanto mais se aproximavam de Jerusalém, tanto mais tristes ficavam, pois
a estrela se tor nava muito menos clara e brilhante e na Judéia a viram raras
vezes. Quando pararam, fora de Jer usalém, desaparecera totalmente.
Falaram da estrela e da criança recém-nascida, ninguém quis compreendê-
Ios; por isso, tomaram-se ainda mais tristes, pensando que se tinham
enganado".
Anna Catharina descreve ainda a admiração e sensação que a caravana dos
Reis Magos causou na cidade; como Herodes, alta noite, mandou chamar
Theokenos ao palácio e convidou os Reis a virem apre sentar-se na manhã
seguinte. Herodes enviou alguns criados a chama rem os sacerdotes e
escribas, que se esforçaram por sossegá-Io. Ao nascer do dia, se
apresentaram os Reis a Herodes e perguntaram-lhe onde estava o novo rei
dos judeus, cuja estrela tinham visto e ao qual tinham vindo adorar. Herodes
ficou muito inquieto, infor mou-se mais sobre a estrela e disse-Ihes que a
profecia se referia a Belém Ephrata; aconselhou-os a irem silenciosamente a
Belém e voltarem depois a informar-lhe, pois que também queria adorar o
Menino.
Vi sair de Jer usalém a caravana dos Reis. Vendo de novo a estrela, deram um
grito de alegria. Ao cair da noite, chegaram a Belém; então desapareceu a
estrela. Muito tempp ficaram diante das por tas, duvidando e hesitando, até
que viram uma luz brilhante, ao lado de Belém. Então tomaram o caminho
para o vale da gruta, onde acamparam. No entanto, apareceu a estrela por
cima do outeiro da gruta e uma tor rente de luz caiu ver ticalmente sobre
este. De repente se lhes encheram os corações de grande alegria, pois viram
na estrela a figura luminosa da criança. Os três Reis Magos aproximaram-se
da colina; abrindo a por ta da gruta, Mensor viu-a cheia de luz celeste e a
Virgem sentada lá dentro, com a criança, como a tinham visto nas visões.
Anunciou-o aos outros dois.
S. José saiu-Ihes ao encontro, cumprimentando-os e dando-Ihes as boas
vindas. Então se prepararam para o ato solene que queriam fazer e seguiram
S. José. Dois jovens estenderam primeiro um tapete de pano no chão, até a
manjedoura. Mensor e os companheiros entraram, caíram de joelhos e
Mensor colocou aos pés de Maria e José os presentes; com a cabeça
inclinada e os braços cruzados, proferiu palavras comoventes de adoração.
Depois tirou do bolso uma mão cheia de bar ras do tamanho de um dedo,
grossas e pesadas com um brilho de ouro e pô-Ias ao lado da criança, nas
vestes de Maria. Tendo se retirado, com os companheiros, entrou Sair com os
seus, prostrando-se, com profunda humildade, com os dois joelhos por ter ra.
Ofereceu com palavras tocantes os presentes, colocando diante do Menino
Jesus uma naveta de incenso, feita de ouro puro, cheia de pequenos grãos
esverdeados de incenso. Ficou muito tempo de joelhos, com grande devoção
e amor. Depois dele se aproximou Theokenos, o mais velho. Ficando em pé,
inclinou-se profundamente e apresentou um vaso de ouro cheio de uma er va
verde; ofereceu mir ra e ficou muito tempo diante do Menino Jesus, em
profunda comoção.
Os Reis Magos estavam encantados e repassados de amor e humilde
adoração. Lágrimas de alegria caiam-lhes dos olhos; também Maria e José
der ramaram lágrimas de felicidade. Aceitaram tudo, humildes e gratos;
finalmente dirigiu Maria a cada um algumas palavras afáveis.
Após os Reis, entraram também os criados, aproximando-se, cinco a cinco,
do presépio; ajoelharam-se em roda do Menino e adoraram-no em silêncio;
finalmente entraram também os pajens. Os Reis Magos voltaram mais uma
vez ao presépio, vestidos de amplos mantos, trazendo turíbulos nas mãos;
incensaram o Menino, Maria e José e toda a gruta, retirando-se depois, com
profunda inclinação. Era esta a cerimônia de adoração entre aqueles povos.
No outro dia visitaram os Reis mais uma vez o Menino e de noite vieram
despedir-se. Mensor entrou primeiro. Maria pôs-lhe o Menino nos braços; ele
chorou, radiante de alegria. Depois vieram também os outros. Maria deu-Ihes
o seu véu de presente.
Pela meia noite viram no sono a aparição de um Anjo, avisando-lhes que
par tissem imediatamente, não tomando o caminho de Jerusalém, mas o do
Mar Mor to. Com incrível rapidez desapareceram as tendas; e, enquanto os
Reis Magos se despediam de S. José, já o séquito estava caminhando a toda
a pressa, em três tur mas, para leste, com r umo ao deser to de Engadi, ao
longo do Mar Mor to. Vi o Anjo com eles na campina, mostrando-lhes a
direção do caminho; de súbito não se avistaram mais.
O Anjo tinha avisado os Reis bem a tempo; pois a autoridade de Belém, não
sei se por ordem de Herodes ou por próprio zelo, tinha a intenção de prender
os Reis, que dor miam na estalagem, fechá-los, sob a sinagoga, onde havia
adegas profundas e acusá-los perante o rei Herodes de desordens públicas.
Mas de manhã, quando se soube da par tida dos Magos, estes já estavam
per to de Engaddi, e o vale onde haviam acampado estava quieto e deser to
como dantes, nada restando do acampamento, fora algumas estacas de
tendas e os rastos do capim pisado" .
Em memória da visita dos três Reis Magos ao presépio é que se celebra,
todos os anos, a festa de Reis. A Escritura Sagrada chama-os apenas os
"Magos", mas o povo deu-lhes, desde os primeiros tempos, o título de "Reis",
talvez induzido pela profecia de Davi: "Os reis de Tharsis e das ilhas
oferecer-Lhe-ão dons; os reis da Arábia e de Sabá trar-Lhe-ão presentes". (S.
71, 10). A festa de Reis é uma das mais anti gas da Igreja cristã, mais antiga
do que a de Natal. É prova de que esse acontecimento fez grande impressão
aos amigos de Jesus. Em verdade era um fato maravilhosíssimo virem três
príncipes do Oriente, com nu meroso séquito, guiados por uma estrela,
prestar adoração ao Menino Jesus no presépio, ao passo que Israel não
conheceu o seu Senhor. Só Deus pode criar estrelas e sobretudo uma estrela
que guia homens e pára por cima do presépio: é um milagre grandioso, que
só Deus, o Senhor da natureza, pode operar. Foi, pois, esse acontecimento
uma prova de que tinha chegado verdadeiramente o cumprimento dos tempos
e de que Jesus era mais do que um homem comum.
A vinda dessa caravana numerosa e estranha devia dirigir os olhares de todo
o povo para Belém; tinha todo o cabimento a pergunta: Então chegou o tempo
em que deve vir o Messias? Desse modo foram preparadas todas as almas
que amavam a Deus, ao reconhecimento de Jesus como Messias; os infiéis,
porém, tomaram-se mais culpados.

8. Apresentação de Jesus no Templo e fuga para o Egito

A santa vontade de Deus exigia a apresentação de Jesus no Templo, tanto


mais necessária, quanto é cer to que o nosso Divino Salvador tinha a vocação
de oferecer-se ao Pai celeste como sacrifício de expia ção pelos pecados dos
homens. Sacrificou-se em espírito, desde o começo da vida, como lemos na
Escritura Sagrada. Mas esse oferecimento havia de fazer-se também
publicamente, tanto por seus santos pais, como por ele mesmo, ao ser
apresentado no Templo.
"Na madrugada do dia seguinte, conta a Ser va de Deus, vi a Sagrada Família
dirigir-se ao Templo. Entraram num pátio do Templo, que era cercado de
muros. Maria, com o Menino, foi recebida por uma matrona idosa, que a
conduziu por um cor redor ao Templo. Nesse cor redor veio o velho Simeão,
cheio de santa esperança, ao encontro da SS. Virgem. Ele vira, no dia
anterior, um Anjo que lhe aparecera e avisara de que prestasse atenção ao
Menino que no dia seguinte seria apresentado em primeiro lugar : era o
Messias. Simeão dirigiu algumas palavras a Maria, cheio de júbilo e, tomando
o Menino nos braços, aper tou-o ao coração. A SS. Virgem foi depois
conduzida aos átrios do Templo, onde a receberam Ana, que também tivera
uma visão e Noemi, sua antiga mestra.
Simeão levou Maria à mesa do Sacrifício, sobre a qual ela colocou o Menino
Jesus, num bercinho de vime. Nesse momento, vi que o Templo se encheu de
uma luz inefável. Vi que Deus estava nessa luz e, por cima do Menino, vi o
céu aber to, até ao trono da SS. Trindade. Simeão reconduziu então Maria ao
lugar das mulheres. Ele e três outros sacerdotes tomaram as vestes
sacerdotais. Um deles colocou-se atrás e outro diante da mesa do sacrifício;
os outros dois, nos lados estreitos da mesa, orando sobre o Menino. Maria,
conduzida de novo à mesa do sacrifício, ofereceu frutas, algumas moedas e
um par de rolas. O sacerdote, porém; de trás da mesa, tomando o Menino nos
braços, levantouo e moveu-o para diversos lados do Templo, orando por muito
tempo. Entregou depois o Infante a Simeão, que o depositou nos braços de
Maria, orando sobre esta e o Menino. A SS. Virgem retirou-se depois ao lugar
das mulheres, ao qual, entretanto, cerca de vinte mães já haviam chegado,
com os primogênitos para os apresentar. José ficou mais para trás, no lugar
dos homens.
Então começaram os sacerdotes diante do altar uma cerimônia com incenso
e orações. Tendo acabado esse ato, dirigiu-se Simeão a Nossa Senhora, e,
tendo recebido a criança nos braços, falou muito a respeito do Menino, com
entusiasmo, alegria e em alta voz. Louvando a Deus, por ter cumprido a sua
promessa, exclamou: "Agora, Senhor, deixai partir o vosso ser vo em paz,
confor me Vossa palavra. Pois meus olhos viram a Vossa salvação, que
preparastes diante dos olhos das nações: luz para aclarar os gentios e glória
de Israel, vosso povo.”
José aproximara-se depois do sacrifício, escutando respeitosamente,
juntamente com Maria, as palavras entusiasmadas de Simeão, que abençoou
a ambos, dizendo depois a Maria: "Este menino veio ao mundo para a ruína e
ressur reição de muitos em Israel e para ser um sinal de contradição. Vós
mesma tereis a alma varada por uma aguda espada e assim serão
patenteados os corações de muitos".
Tendo Simeão acabado de falar, começou também a profetisa Ana, inspirada
pelo Espírito Santo, a glorificar o Menino Jesus, felicitando à SS. Virgem.
Esta luzia, como uma rosa celeste. Oferecera o sacrifício mais pobre,
exterior mente; mas José deu secretamente a Simeão e a Ana muitas bar ras
pequenas amarelas, para serem empregadas em beneficio das Virgens pobres
do Templo. Depois do sacrifício, par tiu a Sagrada Família, seguindo logo,
através de Jerusalém, para Nazaré.
Maria, a Virgem Puríssima, Imaculada, sujeitou-se humildemente à lei da
purificação, escondendo deste modo também o seu alto privilégio. Apesar de
tão belo ato de humildade, devia o gládio da dor atravessarlhe a alma. Dor e
sofrimento, considerados à luz da fé, não são males, mas uma fonte de
bênção e graça. A profecia de Simeão atravessou dolorosamente o brando
Coração mater no de Maria, mas em pouco, esse Coração havia de sofrer uma
nova dor veemente, quando se viu forçada a fugir de Nazaré para o Egito,
afim de salvar o Menino Jesus das gar ras dos assassinos, enviados por
Herodes. Ouçamos o que Anna Catharina nos nar ra a respeito:
"Vi um jovem resplandecente aproximar-se da cama de José e falarlhe. José
acendeu uma luz e, batendo à por ta do quar to de Maria, pediu licença para
entrar. Vi-o entrar e falar-lhe. Depois, foi à estrebaria dos jumentos e a um
quar to. Aprontou tudo para a viagem. Maria vestiu-se imediatamente para a
fuga e foi à casa de sua mãe, Sant'Ana, anunciando-lhe a ordem de Deus. Ana
abraçou à SS. Virgem diversas vezes, chorando. Maria Helí prostrou-se no
chão, desfazendo-se em lágrimas. Ambas aper taram, mais uma vez, o Menino
Jesus de encontro ao cora ção. Ainda não era meia noite, quando
abandonaram a casa. Maria levava o Menino Jesus, em uma faixa, diante de
si; vestia um manto largo, que a envolvia e ao Menino.
Vi a Sagrada Família passar, ainda de noite, por alguns lugarejos e
descansar, pela manhã, em um rancho. Só três vezes acharam, durante a
fuga, uma estalagem para per noitar. Nos outros dias, com os freqüentes e
penosos desvios, dor miam sempre em bar rancos, caver nas e lugares
deser tos, longe da estrada. Viajavam sempre à distância de uma milha da
estrada real, sofrendo falta de tudo. Vi-os chegar cansados e abatidos a uma
gruta, per to de Efraim. Mas, para os refrescar, brotou uma fonte da ter ra e
aproximou-se-Ihes uma cabra selvagem, que deixou ordenhar-se por eles;
apareceu-Ihes também um Anjo, que os consolou.
Tendo passado o ter ritório de Herodes e entrado num vasto deser to arenoso,
não viram mais caminho, nem sabiam a direção; diante de si, viram ser ras
inviáveis. A Sagrada Família estava muito angustiada; ajoelharam-se,
pedindo a Deus socor ro. Então vieram algumas feras enormes, que olharam
para as ser ras, cor reram para a frente e voltaram para trás, como cães que
querem conduzir alguém a cer to caminho. A Família Sagrada seguiu
finalmente às feras, atravessou a montanha (Séir?) e entrou numa região
deser ta e inóspita. Vi-a cercada por uma quadrilha de salteadores: o chefe,
com cinco ou seis homens. A princípio estes se mostraram malévolos; mas à
vista do Menino Jesus, tocou um raio de graça o coração do chefe, que
proibiu à sua gente fazer mal aos viajantes. Conduziu a santa Família à sua
cabana, na qual a mulher Ihes ofereceu alimentos; trouxe também uma
gamela com água, para que Maria nela banhasse a Jesus. Nossa Senhora
aconselhou-lhe que banhasse na mesma água o filho morfético. Esse menino
estava cheio de lepra, mas, apenas mergulhado na água, caíram-lhe as
crostas da enfer midade e tor nou-se são e limpo. A mulher ficou fora de si, de
alegria. Tive uma visão, na qual conheci que o menino curado se tor nou,
mais tarde, o bom ladrão.
Pela madrugada, a Sagrada Família continuou a viagem pelo deser to e, tendo
perdido de novo o rumo, vieram animais rasteiros mostrar-lhe o caminho.
Mais tarde, viam sempre brotar uma rosa de Jericó, ao alcance da vista.
Havendo chegado já às ter ras do Egito, vi a Família Sagrada lânguida de
sede, passar por um mato, em cuja or la havia uma tamareira. As fr utas
pendiam do alto da ár vore. Maria aproximou-se com o Menino Jesus e,
levantando-o, rezou; então se inclinou a tamareira com a copa, de modo que
lhe puderam colher todos os frutos.
A Sagrada Família tomou o caminho de Heliópolis, cidade do Egito. Em frente
às por tas dessa cidade havia um grande ídolo, uma cabeça de touro sobre
uma coluna, como pedestal. Sentaram-se os viajantes não longe dela,
debaixo de uma ár vore, para descansar. Pouco tempo depois se deu um abalo
da ter ra; o ídolo vacilou e caiu do pedestal. Houve por isso na cidade grande
alvoroço entre o povo.
A Sagrada Família entrou pela cidade e foi morar sob um baixo alpen dre.
José construiu, diante dessa morada, uma sacada, de madeira. Vi-o trabalhar
muito em casa, como também fora e vi a Virgem Santíssima tecendo tapetes
ou fazendo outros trabalhos. Moraram per to de ano e meio em Heliópolis;
tiveram, porém, de sofrer muitas perseguições, depois de terem caído ainda
outros ídolos, num templo vizinho. Pouco antes de deixar a cidade, teve a
Santíssima Virgem, por um amigo, notícias da matança das crianças de
Belém, Maria e José ficaram muito tristes; o Menino Jesus, que já podia
andar, chorou durante todo o dia.
Por causa da perseguição e por falta de trabalho, saiu a Sagrada Família de
Heliópolis e, indo ao interior do país, em direção a Mênfis, veio para
Mataréia, onde José executou muitos trabalhos de construção. À chegada,
caiu também o ídolo de um pequeno templo e, mais tarde, todos os ídolos.
Vi como o Menino Jesus, pela primeira vez, buscou água da fonte para sua
Mãe. Maria estava rezando, quando o Menino Jesus, saindo fur tivamente, foi
ao poço com um odre, para buscar água. Maria ficou muito comovida quando
Jesus voltou e pediu-lhe de joelhos que não o fizesse mais, com medo de que
caísse no poço. Jesus, porém, disse-lhe que teria muito cuidado e queria
sempre ir buscar água, quando ela precisasse. Ainda pequenino, Nosso
Senhor prestava muitos ser viços aos pais, era muito atencioso e ajuizado:
notava tudo. Ía também comprar pão no próximo bair ro dos judeus, em troca
dos trabalhos de Maria. Quando o Menino Jesus foi lá pela primeira vez tinha
seis ou sete anos. Vestiu, também pela primeira vez, aquela túnica parda,
tecida pela Virgem Santíssima e bordada em baixo com florões amarelos. No
caminho, lhe apareceram dois anjos, que lhe anunciaram a mor te de
Herodes, o Grande.
Vi que S. José estava muito abatido uma noite; não lhe pagaram o salário e,
assim, não pôde trazer nada para casa, onde tanto precisavam. Cheio de
angústia, ajoelhou-se no campo deser to, queixando a Deus sua mágoa. Na
noite seguinte lhe apareceu um Anjo, que lhe trouxe a ordem de par tir do
Egito e voltar à sua ter ra, pela estrada real.
A viagem cor reu sem maior perigo para a Santa Família. Mas Maria
Santíssima muitas vezes ficou aflita por causa de Jesus, que sofreu muito
com a caminhada através da areia quente. José quis ir primeiro a Belém e
não para Nazaré; estava, porém, indeciso. Finalmente lhe apareceu um Anjo,
que lhe ordenou voltar para Nazaré, o que fez imediatamente. Ana ainda
estava viva. Jesus tinha oito anos, menos três semanas.”

9. Da mocidade de Jesus. Sua per manência em Jerusalém onde ensina aos


doutores da lei e é encontrado pelos pais no Templo (5)

Visto que a Escritura Sagrada pouco relata da infância de Jesus, deve ser de
grande interesse para nós o que Anna Catharina Emmerich nos conta dessa
época, descrevendo como o nosso Divino Salvador passou a infância e
mocidade.
"Vi a Sagrada Família, constituída pelas três pessoas Jesus, Maria e José,
desde o décimo até o vigésimo ano de Jesus, morar duas vezes em casa
alugada, com outras famílias; do vigésimo ao trigésimo ano de Cristo, vi-a
morar sozinha numa casa.
Havia na casa três quar tos separados: o da Mãe de Deus era o mais espaçoso
e agradável e nesse se reuniam também os três membros da Família para a
oração; fora disso, raramente os vi juntos. Durante a oração ficavam em pé,
as mãos cruzadas sobre o peito; pareciam rezar alto. Vi-os rezar muitas
vezes de noite, à luz do candeeiro. Todos dor miam separados nos respectivos
quar tos. Jesus passava a maior par te do tempo no seu quar to. José
car pintejava no seu; vi-o talhar varas e ripas, polir peças de madeira ou, de
vez em quando, trazer uma viga. Jesus ajudava-o no trabalho. Maria ocupava-
se muito com trabalhos de costura ou cer ta espécie de ponto de malha, com
varinhas. Vi Jesus cada vez mais recolhido, entregue à meditação, à
proporção que se lhe aproximava o tempo da vida pública.
Até os dez anos prestava aos pais todos os ser viços que podia; era também
amável, ser viçal e obsequiador para com todos na rua e onde quer que se lhe
ofereeesse ocasião. Como menino, era modelo para todas as crianças de
Nazaré. Amavam-no e receavam desagradar-lhe. Os pais dos companheiros,
censurando os maus costumes e as faltas dos filhos, costumavam dizer-Ihes:
"Que dirá o filho de José, se lhe contar isso? Como ficará triste!" Às vezes se
Lhe queixavam dos filhos, na presença destes, pedindo: "Dize-lhe que não
façam mais isso ou aquilo!" E Jesus aceitava-o de maneira infantil, como
brincadeira, ro gando aos amigos carinhosamente que procedessem de tal ou
tal modo; rezava também com eles pedindo ao Pai Celeste força para se
cor rigirem, persuadia-os a confessarem sem demora as faltas e a pedirem
perdão.
Jesus tinha figura esbelta e delicada, rosto oval e alegre, a tez sadia, mas
pálida. O cabelo liso, de um louro ar r uivado, repar tido no alto da cabeça,
pendia-lhe da testa, franca e alta, sobre os ombros. Vestia uma túnica
comprida, de cor parda acinzentada, inteiramente tecida, que lhe chegava
até os pés; as mangas eram um pouco mais largas nas mãos.
Aos oito anos foi Jesus pela primeira vez a Jerusalém, para a festa da
Páscoa e depois ia todos os anos.
Quando Ele veio a Jerusalém, na idade de doze anos, possuía já muitos
conhecidos na cidade. Os progenitores costumavam andar com os
conter râneos nessas viagens e, como fosse já a quinta romaria de Jesus,
sabiam que sempre andava em companhia dos jovens de Nazaré. Desta vez,
porém, na volta, se separara dos companheiros, per to do monte das
Oliveiras, pensando estes que fosse juntar-se aos pais. Mas, quando
chegaram a Gophna, notaram Maria e José a ausência de Jesus e tor naram-
se muito inquietos. Voltaram imediatamente, procurando-o pelo caminho e
em Jerusalém; mas não o acharam logo.
Nosso Senhor se havia dirigido, com alguns rapazes, a duas escolas da
cidade; no primeiro dia, a uma; no segundo, a outra. No terceiro dia, fora de
manhã a uma terceira escola, e de tarde ao Templo, onde o acharam os pais.
Jesus pôs os doutores e rabinos de todas as escolas, em tal estado de
admiração e de embaraço, pelas suas perguntas e respostas, que resolveram
humilhar o Menino, por inter médio dos rabinos mais doutos, na tarde do
terceiro dia, em auditório público, inter rogando-o sobre diversas matérias. Vi
Jesus sentado numa cadeira grande, rodeado de numerosos judeus velhos,
vestidos como sacerdotes. Escutavam atentamente e parecia estarem
furiosos. Como o Senhor houvesse alegado, nas escolas, muitos exemplos da
natureza, das ar tes e ciências, para demonstrar as suas respostas, reuniram-
se conhecedores de todas essas matérias. Começando estes, pois, a discutir
com Jesus, entrando em por menores, objetou-Ihes que tais coisas não se
deviam discutir no Templo; queria, porém, lhes responder por ser isso
vontade de Deus. Falou então sobre medicina, descrevendo todo o cor po
humano, como ainda não o conheciam os sábios; discor reu sobre astronomia,
arquitetura, agricultura, geometria, matemática, jurisprudência e sobre tudo
que lhe foi proposto. Deduziu tudo isso tão claramente da Lei e da promis-
são, das profecias do Templo, dos mistérios do culto e dos sacrifícios, que
uns não se far tavam de admirar e outros ficavam, ora envergonhados, ora
zangados e afinal todos se tor naram furiosos, porque lhes dissera Nosso
Senhor coisas de que nunca haviam tido conhecimento, nem tão clara
compreensão.
Já havia ensinado desse modo algumas horas, quando José e Maria chegaram
ao Templo, para se infor marem, com Levitas conhecidos, à respeito do Filho.

(5) Não se deve supor que Jesus acompanhasse os pais pela primeira vez a
Jerusalém, quando tinha 12 anos. O santo Evangelista Lucas diz apenas: E os
pais iam todos os anos a Jer usalém, no dia solene da Páscoa. E quando
Jesus tinha doze anos, subiram a Jer usalém, segundo o costume do dia de
festa. E, acabados os dias que esta durava, quando voltaram para casa, ficou
o Menino Jesus em Jerusalém, sem que os pais o advenissem. (Luc. 2,41-43).
S. Lucas não diz, por tanto, de nenhum modo, que era a primeira vez que
Jesus acompanhava os pais a Jerusalém. Não haveria ele cenamente
mencionado nem essa viagem, nem as dos outros anos, se não houvessem
acontecido coisas impor tantes, que era, desejável transmitir à posteridade.
Que o Menino Jesus fizesse essa viagem de Nazaré a Jerusalém a pé, com
oito anos, não se pode estranhar, pois que os meninos do Oriente, como, em
geral, os dos países cálidos, se desenvolvem mais cedo, cor poral e
espiritualmente, do que nos países frios. Jesus já fizera nessa idade a
viagem do Egito a Nazaré, viagem muito mais longa e penosa. Devia ser até
estranho e inexplicável que o Menino Jesus não houvesse tomado par te nas
romarias anuais a Jer usalém, dos oito aos doze anos. Pelo contrário, explica-
se fácil e satisfatoriamente a confiança de Maria e José para com o Menino
de doze anos, se este fazia aquela viagem, não pela primeira, mas
pela quinta vez.

Então souberam que se achava com os doutores da lei no auditório. Como


fosse um lugar em que não Ihes era per mitido entrar, mandaram um dos
levitas chamar Jesus. Este, porém, Ihes mandou dizer que primeiro queria
acabar o trabalho. Magoou muito a Maria o não vir Ele logo. Era a primeira
vez que fazia saber aos pais que as ordens destes não eram as únicas que
tinha a cumprir. Ensinou ainda uma boa hora e, só depois de todos estarem
refutados, envergonhados e em par te zangados, foi que saiu do auditório e se
dirigiu ao átrio de Israel e das mulheres, para se encontrar com os
progenitores. José, retraído e admirado, nada disse; Maria, porém,
encaminhou-se para Ele, dizendo: "Filho, porque nos fizeste isso? Olha que
teu pai e eu te andávamos procurando, cheios de aflição." Mas Jesus, ainda
muito sério, disse: Por que me procuráveis? Não sabeis que me devo ocupar
das coisas de meu Pai?" Eles, porém, não compreenderam essas palavras e
par tiram com Ele, sem demora, de volta a Nazaré.
A doutrina de Jesus produziu grande sensação entre os doutores da lei; mas
estes guardaram silêncio sobre o acontecimento, falando só de um menino
presunçoso, a quem haviam repreendido, que possuía bom talento, mas
precisava ainda ser educado e polido.”
Jesus, ficando em Jerusalém, não teve nenhuma intenção de afligir os pais;
teve em mira só a vontade do Pai Celeste, que lhe inspirou ficar, para revelar
a divina sabedoria. Por isso, mostrou nas escolas e no Templo um saber
maior que o natural. Como menino de doze anos, ainda não freqüentara
nenhuma escola, mas já se apresentava como mestre dos doutores. Oxalá
tivessem ouvido e recebido a doutrina com coração suscetível! Mas, vaidosos
de seu saber, não queriam ser ensinados; antes quiseram humilhá-Io,
propondo-Lhe perguntas difíceis, às quais, como supunham, não poderia
responder. Mas foram eles mesmos que ficaram humilhados pelas sábias
respostas de Jesus e por isso se enraiveceram contra Ele. Recusaram-se a
ver a luz que os iluminava.
Uma estrela milagrosa anunciara o nascimento do Messias; mas o povo
escolhido não se impor tara com tal fato, nem recebera o Salvador. O Menino
Jesus fez brilhar a sua luz no Templo; mas as autoridades do povo, os
sacerdotes e doutores fecharam propositadamente os olhos a essa luz. Por
isso Ihes será tirada: cada ano, voltará o Salvador ao Templo; mas não
ensinará mais publicamente, até que, chegado à idade madura, percor rerá
todas as regiões da Palestina, pregando sua doutrina divina a todo o povo.
Então se apresentará de novo no Templo, exclamando, em alta voz: "Eu sou a
luz do mundo." Jerusalém, se ao menos nesse dia o conhecesses!

10. A vida do Senhor, até o começo de suas viagens apostólicas

Depois de voltar de Jerusalém, viveu Jesus, até a idade de trinta anos, com
Maria e José, em paz e recolhimento, na pequena casa de Nazaré. Nem a
Escritura Sagrada, nem a tradição nos transmitem por menores dessa época;
o Evangelho diz apenas: "E era-Ihes (aos pais) submisso." (Luc. 2, 51).
Também Anna Catharina Emmerich conta pouco dessa fase da vida de Jesus.
Ouçamos os fatos principais:
"Depois de Jesus ter voltado a Nazaré, vi preparar-se uma festa, em casa de
Sant' Ana, onde todos os moços e moças, parentes, e amigos de Jesus, se
reuniram. Nosso Senhor era a pessoa principal dessa festa, à qual estiveram
presentes 33 meninos, todos futuros discípulos do Salvador. Ele os ensinou e
contou-Ihes uma belíssima parábola de núpcias nas quais a água seria
mudada em vinho e os convidados indiferentes em amigos fiéis; depois Ihes
falou de outras bodas, nas quais o vinho seria mudado em sangue e o pão em
car ne; e esta boda per maneceria. com os convidados, até o fim do mundo,
como consolação e confor to e como vínculo vivo de união. Disse também a
Natanael, jovem parente seu: "Estarei presente às tuas bodas.”
Desde esse tempo, Jesus sempre foi como que o mestre dos companheiros.
Sentava-se-Ihes no meio, contando ou ensinando, ou passeava com eles
pelos campos.
Aos 18 anos, começou a ajudar a S. José na profissão. Dos vinte aos trinta
anos, teve muito que sofrer, por secretas intrigas dos judeus. Estes não
podiam supor tá-Io, dizendo, com inveja, que o filho do car pinteiro queria
saber tudo melhor.
Na época em que começou a vida pública, tor nou-se cada vez mais solitário e
meditativo. Quando Jesus se aproximava dos trinta anos, tor nou-se José
cada vez mais fraco. Vi Jesus e Maria mais vezes em companhia dele. Maria
sentava-se-Ihe ao lado do leito, de quando em quando. Quando José mor reu,
estava Maria sentada à cabeceira da cama, segurando-o nos braços; Jesus
se achava em frente, junto ao peito do moribundo. Vi o quar to cheio de luz e
de Anjos. O cor po de José foi envolvido num largo pano branco, com as mãos
postas abaixo do peito, deitado num caixão estreito e depositado numa bela
gruta sepulcral, per to de Nazaré, gruta a qual recebera como doação de um
homem bom. Além de Jesus e Maria, foram poucos os que acompanharam o
caixão; vi-o, porém, acompanhado de Anjos e rodeado de luz. O cor po de
José foi levado mais tarde pelos cristãos para um sepulcro per to de Belém.
Julgo vê-Io jazer ali, ainda hoje, em estado Incor rupto.
José teve de mor rer antes de Jesus, pois, sendo muito fraco e amoroso, não
lhe teria sobrevivido à crucificação. Já sentira profundamente as
perseguições que o Salvador teve de sofrer, dos vinte aos trinta anos, pelas
repetidas maldades secretas dos judeus. Também Maria havia sofrido muito
com essas perseguições. É indizível com que amor o jovem Jesus supor tava
as tribulações e intrigas dos judeus.
Depois da mor te de José, Jesus e Maria se mudaram para uma aldeia situada
entre Cafamaum e Betsaida, em que um homem chamado Leví ofereceu uma
casa a Jesus. Maria Cleophae, que, com o terceiro marido, vivia na casa de
Sant'Ana, per to de Nazaré, mudou-se para a casa de Maria, em Nazaré. Vi
Jesus e Maria irem de Cafar naum para lá e creio que Maria ficou ali, pois
havia acompanhado Jesus a Cafar naum.
Entre os moços de Nazaré Jesus já tinha muitos adeptos; mas sempre o
abandonavam de novo. Andava com eles pelas regiões marginais do lago e
também em Jerusalém, pelas festas. A família de Lázaro, em Betânia, era
também já conhecida de Jesus.”

11. As viagens apostólicas de Jesus, antes do seu Batismo no Jordão


Segundo as nar rações de Anna Catharina Emmerich, o Divino Salvador já
fizera, antes do seu Batismo, diversas viagens longas através da Palestina
começando a pregar em público sua doutrina. Essas viagens tinham um fim
preparativo. Por toda par te exor tava os homens a que recebessem o Batismo
de João, em espírito de penitência e ensinava que o Messias devia aparecer
por aqueles dias. Que Ele mesmo era o Messias, não o dizia por enquanto.
Admiravam-no como homem sábio e por suas qualidades espirituais e
cor porais; ficavam sur preendidos pelos seus feitos milagrosos... mas não
chegavam a conhecer-lhe a divindade, pois os judeus tinham opinião muito
er rada, a respeito do Messias e do seu reino. Julgavam-no um rei vitorioso,
que fundaria um poderoso reino; Jesus, porém, aos seus olhos, era apenas o
"filho do car pinteiro.”
Anna Catharina viu Jesus primeiro indo de Cafar naum a Hebron, por Nazaré e
Betânia, onde se hospedou em casa de Lázaro.
Visitou o deser to, onde Isabel escondera o menino João e, voltando a
Hebron, começou a visitar os enfer mos, consolando-os e aliviando-os. Os
possessos tor navam-se sossegados per to dele.
De Hebron, foi Jesus à foz do Jordão, no Mar Mor to, atravessou-o, para a
outra banda, dirigindo-se à Galiléia. Passou por Dathaim, cerca de quatro
léguas distante de Samaria, onde, numa casa grande, vi viam muitos
possessos, que ficaram furiosos à aproximação de Nosso Senhor ; quando,
porém, Ihes falou, tor naram-se inteiramente calmos e voltaram para a sua
ter ra.
Em Nazaré, Jesus visitou os conhecidos de seus pais mas foi, em toda par te,
recebido com frieza e, querendo ensinar na sinagoga, não Lho per mitiram.
Falou, porém, na praça pública, diante de grande multidão de povo, sobre o
Messias e João Batista. Depois foi com Maria a Cafar naum e dali novamente,
de aldeia em aldeia, passando pelas sinagogas, para ensinar, consolando e
socor rendo os enfer mos. Esteve em Caná, depois à beira do Mar da Galiléia,
onde expulsou o demônio de um possesso. Pedro pescava ali, Jesus falou
com André e outros. Par tindo do lago, com seis a doze companheiros, tomou
o caminho de Sidônia, à beira-mar, passando pela montanha do Líbano; nessa
cidade deixou os companheiros e foi a Sarepta e ensinou as crianças e
muitas vezes se retirava a uma pequena floresta, per to da cidade, para rezar
sozinho. Depois de voltar a Nazaré, ensinou também na sinagoga: como,
porém, surgisse descontentamento e mur muração contra Ele, declarou aos
amigos que ia a Betsaida. Ali ensinou e, do mesmo modo, em Cafar naum,
percor rendo assim toda a Baixa-Galiléia. Em Séforis, curou cerca de
cinqüenta lunáticos e possessos; por causa disso se deu um tumulto na
cidade, de maneira que Jesus teve de fugir, escondendo-se numa casa para
abandonar a cidade de noite. Maria que com outras piedosas mulheres,
estava presente, afligiu-se muito vendo-O, pela primeira vez, perseguido à
viva força.
Em Betúlia, Jesus foi recebido e tratado amistosamente, como também em
Kedes e Kision. Celebrou o Sábado em Jezrael, com os Nazarenos, que
faziam votos e viviam uma vida de mor tificações e austeridades. Tendo
depois exor tado os publicanos de um lugar, na estrada real de Nazaré, a que
não exigissem mais do que os direitos justos, ensinou em Kisloth, ao pé do
monte Tabor, sobre o Batismo de João. Os fariseus deram-lhe um banquete,
para espiá-Io e examinar-lhe a doutrina. Havia, porém, na cidade um costume
e direito antigo, segundo o qual os pobres deviam ser convidados aos
banquetes que fossem oferecidos a forasteiros. Sentando-se, pois, à mesa,
Jesus perguntou logo aos fariseus onde estavam os pobres e mandou os
discípulos chamá-I os, pelo que ficaram os fariseus muito zangados. Ainda na
mesma noite par tiu de Kisloth e chegou, pela tarde do dia seguinte, a Kimki,
aldeia de pastores. Quando ensinou na sinagoga, levantaram-se contra Ele os
fariseus, provocando um tumulto, Jesus continuou seu caminho, de noite,
indo pela estrada real, até um lugarejo per to de Nazaré, habitado por
pastores. Ali curou dois leprosos, mandando-os lavar-se com a água na qual
Ele havia banhado os pés.
Cerca de um quar to de légua antes de chegar a Nazaré, entrou Jesus na casa
de um Esseno, chamado Eliud, com o qual rezou e conversou com grande
intimidade, sobre a sua missão e o mistério da Arca da Aliança. Explicou-lhe
como aceitara um cor po humano do ger me da bênção, que Deus tirara de
Adão, antes do primeiro pecado; que viera para salvar os homens, os quais
se lhe mostrariam muito ingratos.
A Virgem Santíssima veio com Maria Cleophae a Jesus, suplicandolhe que
não fosse a Nazaré, pois o povo estava ir ritado. Ele respondeu que esperaria
só os companheiros que com Ele queriam ir a João Batista e depois passaria
por Nazaré. Maria voltou a Cafar naum. Jesus, porém, encaminhou-se com
Eliud, pelo vale de Esdrelon, à cidade de Endor, pregando aí na praça pública
sobre o Batismo de João e sobre o Messias. Os habitantes de Endor não eram
propriamente judeus, mas antes escravos refugiados. Na tarde do terceiro
dia voltou com Eliud e foi a Nazaré, onde ensinou na escola e sinagoga,
falando de Moisés e explicando profecias sobre o Messias. Mas, como falasse
de tal modo que os fariseus puderam concluir que se referia a eles mesmos,
enraiveceram-se contra Ele, censurando-lhe as relações com publicanos e
pecadores, como também o fato de abençoar muitas crianças, a pedido das
mães. Na escola, lhe propuseram muitas perguntas intrincadas, mas Jesus
reduziu todos os doutores ao silêncio. Ao legisperito respondeu com a lei de
Moisés; ao médico, falou das doenças e do cor po humano, revelando
conhecimentos por aquele inteiramente ignorados; aos astrônomos, ensinou
o curso dos astros; discor reu também sobre comércio e indústria. Três
jovens ricos pediram para ser recebidos como discípulos, Ele, porém, os
recusou com tristeza, porque não pediram com intenção sincera.
O Senhor enviou os discípulos, que então eram nove, a João, a quem mandou
anunciar a sua vinda. Ele próprio, porém, acompanhado por Eliud, foi de
Nazaré primeiro a Chim, curou ai um morfético e continuou depois o caminho
pelo vale de Esdrelon. Nessa noite, no caminho, Jesus se mostrou a Eliud em
gloriosa transfiguração e na manhã seguinte, o Senhor o mandou voltar para
casa.
Jesus continuou o caminho; passando ao pé do monte Garizim, per to de
Samaria, chegou à cidade de Gofna, onde o receoeram com respeito.
Entrando na sinagoga, explicou o livro de um profeta e provou que o tempo
do Messias devia haver chegado. Depois veio a uma aldeia de pastores e lhe
falaram do matrimônio ilícito de Herodes; Jesus censurou severamente o
procedimento do rei, com o mesmo rigor condenou, em geral, os pecados da
vida matrimonial. Repreendeu, também alguns em par ticular, pela vida de
adultério que levavam; a muitos disse os pecados mais ocultos, de modo que
prometeram, com profunda contrição, fazer penitência.
De noite chegou Jesus a Betânia e hospedou-se em casa de Lázaro, onde
Nicodemos, João, Marcos, Verônica e outros estavam reunidos.
Durante a refeição, disse Jesus que lhe ia chegar um tempo muito sério; que
Ele estava para entrar em um caminho cheio de contrariedades e
perseguições; que lhe ficassem fiéis, se queriam ser-lhe verdadeiros amigos.
No dia seguinte, Mar ta apresentou Jesus à ir mã, chamada Maria Silenciosa.
Jesus falou-lhe; conversaram sobre coisas divinas, Mar ta falou-lhe também,
com grande tristeza, a respeito de Madalena; Jesus consolou-a.
A Mãe de Nosso Senhor veio também a Betânia, com algumas das santas
mulheres. O divino Mestre falou-lhe carinhoso e sério, dizendo lhe que ia
agora procurar João, para ser batizado e que depois teria de cumprir a sua
missão; havia de amá-Ia como sempre, mas, daquele tempo em diante, devia
viver e trabalhar para todos os homens.
Jesus seguiu então com Lázaro em direção a Jericó, para serem batizados;
andou descalço pelo caminho pedregoso; até o lugar do Batismo, contavam-
se cerca de nove léguas.

12. Vida pública de João Batista

Antes do Salvador começar a pregar publicamente a sua doutrina, enviou a


divina Providência um homem que, pelo aspecto extraordinário e pelas
exor tações à penitência e ao Batismo, devia atrair a atenção de todo o povo.
Era João, filho de Zacarias e Isabel, de Hebron. Para salvar o mesmo dos
sicários de Herodes, por ocasião da car nificina das inocentes crianças de
Belém, a mãe levara-o para o deser to, em que per maneceu até o princípio da
sua vida pública. A tarefa de João Batista, como o último e maior profeta do
Velho Testamento, era preparar o caminho do Salvador e, estando já no
limiar do Novo Testamento, apresentar Jesus, o Cordeiro de Deus que,
car regado dos pecados de todo o mundo, devia realizar a salvação do gênero
humano, por seu amor e Paixão. Como João cumpriu essa difícil tarefa,
conta-nos intuitivamente a religiosa de Dülmen:
"Pouco antes de deixar o deser to do Líbano, teve João uma revelação a
respeito do Batismo. Voltou depois do deser to para junto dos homens,
produzindo em todos uma impressão maravilhosa. Alto, ema grecido pelo
jejum e pelas mor tificações, mas for te, era uma figura extraordinariamente
nobre, pura, simples e dominante. Pelo meio do cor po, trazia cingido um
pano, que lhe caia até aos joelhos. Vestia um manto áspero, pardo; braços e
peito descober tos.
Vindo do deser to, começou a constr uir uma ponte sobre um ribeiro. Falava só
de penitência e da próxima vinda do Senhor. Tinha a voz aguda como uma
espada, for te e severa; mas sempre agradável. Passava, por toda a par te, em
caminho reto; vi-o cor rendo, através de matos e deser tos, tirando pedras e
ár vores do caminho, preparando lugares de descanso, reunindo os homens
que o admiravam, buscando-os até nas cabanas, para auxiliá-lo. Caminhou ao
longo do Mar de Galiléia e, seguindo o vale do rio Jordão, passou per to de
Jerusalém, para a qual olhou com tristeza; de lá foi à sua ter ra e a Betsaida.
Nos três meses antes de começar o batismo, percor reu duas vezes o país,
anunciando Aquele que havia de vir. Em lugares onde não havia nada que
fazer, vi-o cor rer de campo em campo. Entrava pelas casas e escolas; para
ensinar, reunia o povo em redor de si, nas r uas e praças públicas.
Muitas vezes o vi indicar a região onde Jesus naquele momento se achava.
João batizou em diversos lugares: primeiro, per to de Ainon, na região de
Salem; depois em On, à margem ocidental do Jordão, não muito longe de
Jericó; em seguida, a leste do Jordão, algumas léguas mais para o nor te do
segundo lugar ; por fim voltou a Ainon. A água de que João usava ali em
Ainon, para batizar, era de uma lagoazinha, separada de um braço do Jordão
por um pequeno dique. A pessoa que se batizava, ficava entre duas línguas
de ter ra, com a água até à cintura; punha-se São João numa dessas línguas,
tirando água com uma taça e der raman do~a spbre a cabeça do neófito; na
outra, se achava um homem já batizado, que colocava a mão sobre o ombro
do que estava sendo batizado; ao primeiro, João mesmo impusera a mão.
Tendo-se João tor nado afamado, no cor rer de algumas semanas, pela sua
doutrina e pelo batismo, Herodes enviou-lhe um mensageiro, com a ordem de
apresentar-se-Ihe. João, porém, respondeu que tinha muito que fazer e se
Herodes quisesse falar-lhe podia vir pessoalmente. Herodes veio, de fato, a
um lugar cerca de cinco léguas distante de Ainon. Chegando, lá, falou-lhe
João longamente, em tom muito sério e severo.
Vi que Simão, Tiago o Menor, Tadeu e também André, Filipe e Levi, chamado
depois Mateus, foram batizados por João.
De Nazaré, Jerusalém e Hebron mandaram grupos inteiros de fariseus e
chefes das sinagogas como mensageiros a João, para inter rogá-Io a respeito
de sua missão. Vieram também cerca de trinta soldados a João, que os
repreendeu severamente, por não terem a intenção de ar repender-se. A
multidão dos homens era enor me; centenas achavam-se sentados por ali e
outras centenas chegavam continuamente, para ouvir-lhe a doutrina e
receber o Batismo.
Em Jerusalém houve uma grande sessão do Sinédrio por causa de João. Por
três autoridades foram enviados nove homens, entre os quais José de
Arimatéia. Deviam perguntar a João quem era ele e mandá-Io vir e ordenar
que viesse a Jerusalém, pois se a sua missão fosse justa e legal, ter-se-ia
apresentado primeiro no Templo. João deu apenas uma resposta cur ta e
áspera. José de Arimatéia recebeu o Batismo.
Vi João atravessar o Jordão e batizar enfer mos; depois voltou à banda
oriental do rio, a Ainon. Ali apareceu um Anjo, que o mandou ir para o outro
lado do Jordão, a um lugar per to de Jericó, pois que se aproximava Aquele
que havia de vir. Então levantaram João e os discípulos as tendas e cabanas
do lugar de Batismo em Ainon e atravessaram o rio; o segundo lugar de
Batismo dista cerca de cinco léguas de Jer usalém. Vieram de novo, duas
vezes, emissários do Templo, fariseus, saduceus e sacerdotes a João. Disse-
Ihes que se levantaria entre eles um homem, o qual não conheciam, que
esperassem, pois em pouco viria Aquele que o mandara.
"Eu, na verdade, vos batizo em água, mas virá outro, mais for te do que eu, a
quem não sou digno de desatar a cor reia dos sapatos; Ele vos batizará na
vir tude do Espírito Santo e no fogo." (Luc. 3, 16).
O lugar onde João pregava, era situado à distância de menos de meia légua,
do lugar do Batismo. Ali estava ensinando, quando Herodes veio, pela
segunda vez; João não se incomodou. Herodes tinha o desejo ilícito de casar-
se com a mulher de seu ir mão. Propusera, em vão, ao Sinédrio declarar lícito
esse matrimônio; temendo também a voz pública, quis apaziguá-Ia por uma
sentença de João. Este ensinou, diante dos discípulos, com grande
franqueza, sobre o assunto a respeito do qual Herodes queria infor mar-se.
Este mandou entregar-lhe um rolo, que continha escrita a sua causa. O rolo
foi posto aos pés de João, pois este não quis contaminar-se, tocando-o com a
mão com que batizava. Então vi Herodes, indignado, deixar o lugar com o
séquito.
João ensinou sobre o próximo Batismo do Messias e disse que nunca o tinha
visto, mas acrescentou: "Para vos dar testemunho d’Ele mostrar-vos-ei o
lugar onde será batizado. Eis que as águas do Jordão se dividirão e surgirá
uma ilha." No mesmo instante vi que as ondas do rio se dividiram e avistou-
se uma iIhota branca. Era esse o lugar onde os filhos de Israel atravessaram
o Jordão, com a Arca da Aliança. João e os discípulos fizeram uma ponte, até
à ilhota. Ao lado esquerdo desta, havia uma fossa, da qual subia água clara.
Alguns degraus conduziam para baixo e, per to da superfície d'água, jazia
uma pedra sobre a qual Jesus devia per manecer durante o seu batismo.
Mais uma vez vi chegar uma comissão de cerca de vinte pessoas, enviadas
pelas autoridades de Jerusalém, para pedir contas a João. Respondeu-Ihes
como dantes, apelando para Aquele, que viria em pouco, para ser batizado.
Depois vi Herodes chegar até per to do lugar de Batismo; discutiu com João,
que o tinha excomungado.
Vieram então a João também os discípulos que Jesus despedira em Nazaré;
falaram-lhe de Jesus. Ao batizá-Ios, João teve a íntima cer teza de que Jesus
estava per to, pois o viu também numa visão. Desde então, ficou João cheio
de indescritível alegria e com saudade de Jesus.”

13. O Batismo de Jesus e o jejum de quarenta dias.

Os homens caíram pela soberba; pela humildade quis o Salvador levantá-Ios.


Por isso, já no começo de sua tarefa difícil de ganhar os homens para o reino
de Deus, pelo exemplo e pela Paixão, submeteu-se a uma profunda
humilhação, deixando-se batizar por João. Assim exortou o povo, pelo
exemplo, a imitá-Io, ensinando-nos também ao mesmo tempo a implorar, em
espírito de humildade e penitência, a bênção de Deus para nós e para os
nossos trabalhos. Pois a penitência e humildade nos tor nam dignos da
bênção e do agrado de Deus. Por isso, era tão meritória a humilhação
voluntária do Filho de Deus, recebendo o Batismo de João; mereceu a
santificação da água e os efeitos sacramentais do santo Batismo. Catharina
Emmerich nar ra assim o batismo de Jesus:
"Estava reunida uma extraordinária multidão de povo e João falou com
grande alento sobre a próxima vinda do Messias e sobre a penitência; disse
também que teria de desaparecer, para dar lugar Àquele. Jesus estava no
meio do apinhado auditório. João, que O viu bem, ficou extremamente
satisfeito e fer voroso. Já tinha batizado a muitos, quando Jesus, por sua vez,
desceu ao tanque do Batismo. Então disse João, inclinando-se diante d’Ele:
"Sou eu que devo ser batizado por Vós e vindes a mim!" Jesus respondeu-lhe:
"Deixa fazer por ora; convém que assim cumpramos toda a justiça, que me
batizes e que eu seja batizado por ti". Também lhe disse: "Receberás o
Batismo do Espírito Santo e de sangue.”
O Salvador dirigiu-se então por cima da ponte, à ilhota, acompanhado por
João o pelos discípulos André e Satur nino. Entrando numa tenda, despiu as
vestes e veio para fora, cober to de uma túnica de um tecido pardo; desceu à
margem do tanque, onde despiu também a túnica, tirando-a pela cabeça.
Cingiu os rins com uma faixa, que lhe envolvia as per nas, até abaixo dos
joelhos. Assim entrou na fonte. João estava de lado, ao sul do tanque; tinha
na mão uma taça com aba larga e três biqueiras. Abaixando-se, tirou água,
com a taça e der ramou-a, pelas três biqueiras, sobre a cabeça do Senhor,
dizendo mais ou menos as seguintes palavras: "Javé der rame a sua bênção
sobre ti, pelos Querubins e Serafins, com sabedoria, inteligência e
for taleza." Jesus subiu então e André e Satur nino cobriram-no com um pano,
com o qual se enxugou; vestindo-o depois de uma comprida túnica branca de
batismo, impuseram-Lhe as mãos aos ombros, enquanto João lhe pós a mão
na cabeça.
Ouviu-se então um grande bramido, vindo do céu, como um trovão e todos
que estavam presentes, olharam para cima, estremecendo. Desceu uma
nuvem branca e luminosa e vi uma figura lúcida, com asas, pairar por cima
de Jesus, der ramando sobre Ele uma tor rente de luz; vi também a aparição
do Pai Celestial e ouvi as palavras: "Eis meu Filho muito amado em quem
ponho minha afeição." (Mal. 3,17)
Jesus, porém, subiu os degraus, vestiu a túnica e dirigiu-se, cercado dos
discípulos, ao largo da ilha. João falou com grande alegria ao povo, dando
testemunho de que Jesus era o Messias prometido. Citou as promissões dos
patriarcas e profetas, que nesse momento foram cumpridas; contou o que
tinha visto e que era a voz de Deus, que todos tinham ouvido. Disse também
que, daí a pouco, se retiraria, logo que Jesus voltasse. Exor tou todos a
seguirem Jesus.
Jesus confir mou simplesmente o que João dissera. Disse também. que se
retiraria por algum tempo; mas depois viessem a Ele todos os enfer mos e
aflitos, pois que Ihes daria consolação e socor ro.
Depois de batizado, Jesus par tiu com os companheiros, primeiro para Belém,
seguindo daí para o sul do Mar mor to, pelo mesmo caminho que a Sagrada
Família tomara, na fuga para o Egito. De lá, voltando, foi conduzido pelo
Espírito Santo ao deser to, para jejuar quarenta dias. Começou o jejum na
montanha de Jericó, onde subiu ao monte deser to e íngreme de Quarantania
e rezou numa gruta. Descendo do monte, atravessou, numa embarcação, o rio
Jordão e veio a uma montanha muito íngreme, distante cerca de nove léguas
do Jordão. Jesus rezava numa gruta, ora prostrado por ter ra, ora de joelhos,
ora em pé. Não comia nem bebia, mas era confor tado pelos Anjos.
"Cada dia, conta Anna Catharina Emmerich, a obra da oração de Jesus é
diferente; cada dia nos alcança outras graças. Sem essa obra, não podia ser
meritória a nossa resistência às tentações.
Outro dia o vi prostrado com o rosto em ter ra, quando vieram numerosos
Anjos, que o adoraram e lhe perguntaram se podiam apresentar lhe a sua
missão e se ainda era a sua vontade sofrer como homem, para os homens.
Tendo Jesus de novo confir mado sua vontade de aceitar os sofrimentos,
erigiram-Ihe em frente uma Cruz alta.
Três Anjos trouxeram uma escada, outro uma cesta, com cordas e
fer ramentas; outros, a lança, a haste de hissopo, varas, chicotes, coroa de
espinhos, pregos, tudo o que depois se empregou na Sagrada Paixão. A Cruz,
porém, parecia oca; podia abrir-se, como um ar mário e estava cheia de
inúmeros e diversíssimos instrumentos de tor tura. Todas as par tes e lugares
da cruz eram de cores diferentes, pelas quais se podia conhecer que tor tura
teria de sofrer. Havia também na Cruz muitas fitas de diversas cores, como
que relatórios de muitas contrariedades e trabalhos que Jesus teria de
supor tar na sua vida e Paixão da par te dos discípulos e de outros homens.
Quando, desse modo, toda a Paixão estava posta diante dele, vi que Jesus e
os Anjos choravam.
Satanás não sabia que Jesus era Deus, tomou-o por um profeta. Uma vez o vi
à entrada da gruta, sob a figura de cer to jovem, a quem Jesus muito amava.
Fez barulho, pensando que Jesus se zangasse; mas este nem olhou para ele.
Depois, enviou o demônio sete ou nove aparições de discípulos à gruta;
disseram-lhe que o tinham procurado ansiosamente; não devia ar ruinar-se lá
em cima e abandoná-Ios. Jesus disse somente: "Afasta-te, Satanás, ainda
não é tempo". Então desapareceram todos. Num dos dias seguintes vi
Satanás querendo afigurar-se Anjo, trajando vestes resplandecentes. Chegou
voando à entrada da gruta e disse: "Fui enviado por vosso Pai, para vos
confor tar." O Senhor, porém, não olhou para ele.
Jesus sofreu fome e sede. Ao cair da noite, Satanás, sob a for ma de um
homem alto e for te, subiu ao monte. Levava duas pedras que tirara em baixo,
dando-Ihes a for ma de pães. Disse a Jesus: "Se sois o Filho de Deus, fazei
que estas pedras se mudem em pão." Ouvi Jesus apenas dizer : "O homem não
vive de pão." Satanás ficou furioso e desapareceu.
Ao cair da tarde do dia seguinte, vi Satanás aproximar-se de Jesus, em for ma
de um Anjo poderoso. Vangloriando-se, disse-lhe: "Mostrar-vos-ei quem sou e
o que posso. Eis aí Jer usalém e o Templo. Vou colocar-vos no mais alto
pináculo; mostrai então o vosso poder." Satanás segurou-o pelos ombros e,
levando-o pelos ares a Jer usalém, colocou-o no cimo de uma tor re. Depois
voou para baixo, à ter ra e disse: "Se sois o Filho de Deus, mostrai o vosso
poder e atirai-vos à ter ra; pois está escrito: Ele mandará os seus Anjos, que
vos sustentarão com as mãos, afim de que não machuqueis os pés de
encontro às pedras." Jesus respondeu: "Também está escrito: Não tentarás o
Senhor teu Deus.”
Então voltou Satanás, cheio de raiva e Jesus lhe disse: "Usa do teu poder, do
poder que te foi dado." Satanás, furioso, segurou-o de novo pelos ombros, e,
levando-o por cima do deser to, em direção a Jericó, colocou-o no mesmo
monte onde Jesus começara o jejum.
Era o ponto mais alto do monte, no qual o tinha posto; mostrou em redor de
si e viram-se os mais maravilhosos panoramas, em todas as direções do
mundo. Então disse Satanás a Jesus: "Sei que quereis propagar agora a
vossa doutrina. Eis ai todas essas ter ras magníficas, esses povos poderosos
e aqui a pequena Judéia. Ide lá! Dar-vos-ei todas essas ter ras, se, prostrado
a meus pés, me adorardes". Jesus disse: "Adorarás o Senhor teu Deus e a Ele
ser virás. Afasta-te, Satanás!" Então vi Satanás, numa for ma
indescritivelmente hedionda, lançar-se para baixo e desaparecer.
Logo depois, vi um grupo de Anjos aproximar-se de Jesus e levá-Io à gruta,
onde começara o jejum. Eram doze esses Anjos e numerosos outros, para o
ser virem. Celebrou-se, então, na gruta, uma festa em ação de graças e de
júbilo e depois houve um banquete.”
Jesus desceu do monte e veio ao Jordão, per to do lugar onde João estava
batizando. Este se voltou logo para o Mestre, exclamando: "Eis o Cordeiro de
Deus, que tira os pecados do mundo". Podia-se perguntar : Por que fez Jesus
um jejum tão rigoroso? Por que se sujeitou àquelas tentações?
Jesus está para começar sua vida pública; quer percor rer aber tamente o
país, repreender os pecadores, convidá-Ios a conver ter-se e fazer penitência;
na sua doutrina, terá de fazer frente, muitas vezes, a opiniões er rôneas a
respeito da fé e da moral; terá de apresentar-se ao povo como o Messias
prometido, como o Filho de Deus e de exigir humilde aceitação de sua
doutrina. É uma tarefa dificílima, que traz consigo muitos trabalhos penosos,
mor tificações, sofrimentos, inimizades e perseguições. Por isso se prepara o
Salvador para essa obra com jejum e meditação, na solidão do deser to.
Ali, no retiro absoluto, deixa tentar-se por Satanás, que parece não lhe
conhecer a divindade. Por causa da inseparável união de sua alma com o
Verbo Divino, não podia a tentação nascer-lhe da própria natureza, mas podia
só provir do exterior.
O homem tentado, pela tríplice concupiscência, é logo inclinado a ceder à
tentação e, desse modo, inúmeros homens caem na ruína temporal e eter na.
Jesus, porém, quer salvar os homens dessa maior desgraça; por isso, oferece
também o jejum e as tentações sofridas, como expiação dos pecados. Assim
nos mostra como devemos vencer a tentação; pela vitória sobre a mesma nos
merece a graça de vencê-Ia também. Em tudo se tomou igual a nós, com
exceção do pecado.

14. Eleição dos primeiros discípulos e o milagre de Caná

A figura majestosa de Jesus, o seu trato sério, mas sempre amável e


delicado, a força da sua palavra, juntamente com os prodígios extraordi-
nários que operava, deviam fazer profunda impressão em todos. Uns, cheios
de boa vontade, creram-lhe humildemente na doutrina e nos milagres; outros,
malignos, invejosos e de coração endurecido, encheramse de ódio contra Ele.
Quem não se lembra, à vista desses fatos, da profecia do velho Simeão: "Este
Menino está posto para a r uína e salvação de muitos, em Israel?”
Do número ainda pequeno dos aderentes só poucos se lhe tinham juntado,
acompanhando-o nas viagens apostólicas. Quando, porém, saiu do deser to,
depois do jejum de quarenta dias, aumentou o número dos discípulos; entre
estes era André um dos primeiros. Ouvira, com Satur nino, João indicar a
Jesus, dizendo: "Eis aí o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo."
Ambos se reuniram a Jesus. André conduziu o ir mão Simão ao Salvador, que
lhe disse: "Tu és Simão, filho de Jonas; no futuro serás chamado Kephas
(latim: Petrus)." Jesus encontrou-se depois com Filipe e convidou-o para
discípulo, dizendo-lhe: "Segue-me". Filipe falou a Natanael do Messias; mas
só o saber sobrenatural de Jesus o induziu a seguí-Io.
Com os discípulos e parentes, dirigiu-se Jesus a Caná, para assistir às bodas
a que Ele e sua Mãe tinham sido convidados. O noivo chamava-se Natanael e
tinha cer to parentesco com Jesus; pois era sobrinho da filha de Sobe, a qual
já conhecemos como ir mã de Sant' Ana. Conta-nos Anna Catharina Emmerich
o seguinte:
Estavam reunidos mais de cem convidados. Jesus dirigia a festa, presidia
aos diver timentos, temperando-os com palavras de sabedoria. Foi também
quem organizou todo o programa da festa.
Vi os convidados, homens e mulheres, diver tirem-se separados num jardim,
conversando ou brincando. Jesus também tomou par te num jogo de frutas,
com amável seriedade. Dizia, às vezes, sor rindo, algumas palavras sábias,
que todos admiravam ou escutavam comovidos. Nesses dias falou Jesus
muito em par ticular com aqueles discípulos que, mais tarde, se lhe tomaram
Apóstolos. Quis revelar-se, nessa festa a todos os parentes e amigos e
desejou que todos até então por Ele eleitos se conhecessem uns aos outros,
naquela reunião, em que havia maior franqueza.
No terceiro dia depois da chegada de Jesus, foi celebrada a cerimônia do
casamento. Noivo e noiva foram conduzidos da casa da festa à sinagoga. No
cor tejo havia seis meninos e seis meninas, que levavam grinaldas; depois
seguiam seis moços e moças, com flautas e outros instrumentos. Além
desses, doze donzelas acompanhavam a noiva, como paraninfas e o noivo,
doze mancebos.
A cerimônia do casamento foi feita pelos sacerdotes, diante da sinagoga. Os
anéis que trocaram, foram um presente de Maria Santíssima e tinham sido
bentos antes por Jesus.
Para o banquete nupcial reuniram-se todos de novo, no jardim. Vi um jogo
preparado por Jesus mesmo, para os homens: a sor te que caía a cada um dos
jogadores, indicava-lhe as, qualidades, os defeitos e vir tudes. Jesus
inter pretava a sor te de cada um, confor me a combinação das fr utas que
ganhavam. O noivo ganhou para si e a esposa duas frutas estranhas, num só
pé, como já vi antes, no paraíso. Todos se admiravam muito e Jesus falou do
matrimônio e do cêntuplo fruto da castidade. Depois dos noivos terem
comido a fruta, vi que uma sombra escura deles se afastava. A fruta tinha
relação com a castidade e a sombra que se apar tava, era a concupiscência
da car ne.
Ao jogo no jardim seguiu-se o banquete nupcial. A sala estava dividida em
três par tes; na do meio estava Jesus sentado à cabeceira da mesa. A mesma
mesa sentaram-se também Israel, o pai da noiva, os parentes masculinos de
Jesus e da noiva e também Lázaro. As outras mesas laterais sentaram-se os
outros convidados e os discípulos. O noivo ser viu as mesas dos homens e a
noiva as das mulheres.
Jesus encar regara-se das despesas do segundo prato do banquete. (Lazaro
pagou as despesas, mas só Jesus e Maria o sabiam). Tudo estava bem
ar ranjado pela Santíssima Virgem e Mar ta. Jesus lhes tinha dito que
for neceria o vinho para esse prato. Depois de ter sido ser vido às mesas
laterais o segundo prato, que constava de aves, peixe, iguarias de mel,
frutas e uma espécie de pastéis, que Seráfia (Verônica) trouxera, Jesus
aproximou-se e repar tiu todas as iguarias; depois se sentou de novo à mesa.
Ser viram-se as iguarias, mas faltou o vinho. Jesus, porém, estava ensinando.
Esta par te do banquete ficou aos cuidados da Santíssima Virgem e, como
notasse que faltava vinho, aproximou-se de Jesus, lembrando-lhe
ansiosamente essa falta, porque Ele tinha dito que o for neceria.
Jesus, que falava do Pai Celestial, disse-lhe então: "Mulher, não
vos apoquenteis. Deixai de inquietar-vos e a mim, minha hora ainda não
chegou." Assim falando, não manifestava falta de respeito a sua Mãe. Disse
mulher e não mãe, porque quis nesse momento, como Messias e Filho de
Deus, realizar uma ação misteriosa diante dos seus discípulos e parentes,
mostrando que ali estava, presente na sua missão divina. Maria não se
inquietou mais; disse aos criados: "Fazei tudo que Ele vos mandar.”
Depois de algum tempo, mandou Jesus aos criados trazerem as ânforas
vazias e virarem-nas. Trouxeram-nas; eram três ânforas de água e três de
vinho. Os criados mostraram que estavam vazias, virando-as por cima de uma
bacia. Jesus mandou que enchessem todas com água. As ânforas eram
grandes e pesadas; eram precisos dois homens para transpor tarem cada
uma. Depois de estarem cheias de água, e postas ao lado do aparador, Jesus
aproximou-se, benzeu as ânforas e, tendo-se sentado de novo à mesa. disse:
"Enchei os cálices e levai um ao despenseiro." Este, tendo provado o vinho,
aproximou-se do noivo e disse-lhe que sempre fora costume dar primeiro o
bom vinho e depois dos convidados terem bebido bastante oferecer o vinho
inferior, mas que ele tinha dado o melhor no fim. Então beberam também o
noivo e o pai da noiva, ficando ambos pasmos; os criados protestaram que
haviam enchido de água as ânforas e tirado delas para encher os cálices e
copos das mesas. Então beberam todos. Não houve, porém, nenhum barulho
por causa do milagre, mas reinava silêncio respeitoso em toda a reunião e
Jesus ensinou muito, a respeito do que se passara. Todos os discípulos,
parentes e convidados estavam agora convencidos do poder de Jesus e de
sua dignidade e missão. Desse modo esteve Jesus a primeira vez na sua
comunidade e foi o primeiro prodígio que nela e para ela operou, para
confir mar-lhe a fé. Por isso é relatado na história da sua vida como o
primeiro milagre e a última Ceia como o último milagre, quando já era fir me
a fé dos apóstolos.
Ao fim do banquete veio o noivo sozinho a Jesus e declarou-lhe, com muita
humildade, que sentia extinta em si toda a concupiscência da car ne e que
desejava viver em santidade com a esposa, se ela consentisse. Também a
noiva veio a Jesus, sozinha, dizendo-lhe o mesmo. Chamou-os então Jesus a
ambos e falou-Ihes do matrimônio, da castidade, tão agradável a Deus e do
fruto cêntuplo do espírito. Citou muitos profetas e santos, que viveram
castos, sacrificando a car ne, por amor do Pai Celestial, que tiveram como
filhos espirituais muitos homens perdidos, reconduzindo-os ao caminho da
vir tude e que assim tinham grande e santa descendência. Os noivos fizeram
então voto de continência e de viverem como ir mãos durante três anos.
Ajoelharam-se diante de Jesus, que os abençoou.

15. Resumo do primeiro ano da vida pública de Jesus.

O primeiro ano de pregação de Nosso Senhor compreende o tempo da


primeira viagem, antes do Batismo, até a primeira Páscoa em Jerusalém.
Nesse tempo, tiveram lugar o Batismo de Jesus por João Batista, sua estadia
por quarenta dias no deser to e seu primeiro milagre público, relatado pelas
Escrituras Sagradas, - o das bodas de Caná.
Pouco tempo depois de voltar do deser to, Jesus mandou André e Satumino
batizarem per to de Betabara. Quando Jesus, vindo de Caná e passando por
Cafar naum, ao longo do Lago Genezaré, foi a Jericó, ao lugar onde João
batizava, já este não batizava quase ninguém, mas mandava todos a Jesus.
Par tindo Jesus da região de Jericó, caminhou por um desvio para Nebo, onde
instruiu os neófitos, como também em outros lugares, mandando-os batizar
pelos discípulos. De lá, foi a Jezrael, ao sul da Galiléia, onde os discípulos
da Galiléia se lhe juntaram; Madalena deixara-se persuadir por Lázaro e
Mar ta a ir também lá. Viu Jesus passar pelas ruas e o Salvador olhou-a tão
sério, que ficou toda ar rependida e envergonhada da vida pecaminosa que
levava.
Jesus encaminhou-se depois para Cafar naum e, passando por Betúlia e
Kistoth, no monte Tabor, voltou a JezraeI. Em todo o país já se lhe tomara
conhecida a doutrina e os milagres; por isso concor ria o povo aos lugares
onde o Mestre pregava.
Tendo ido de novo a Cafar naum, visitou sua Mãe, ensinou na sinagoga e
curou enfer mos; saiu da Galiléia e viajou por Dothain, Seforis, através da
Samaria, até Betânia, na Judéia, onde se hospedou em casa de Lázaro. Todos
os dias ia a Jerusalém, para rezar no Templo e ensinar. Num desses dias
mandou, muito amável e delicadamente, aos numerosos negociantes que se
retirassem do átrio dos orantes para o átrio dos gentios. Encontrando-se ali
de novo, procedeu com maior severidade, avisando-Ihes de que duas vezes os
exor tava por bem e que da terceira vez empregaria violência.
Como a Páscoa estivesse per to, chegara já muita gente a Jer usalém. Jesus
comeu o Cordeiro pascal, em casa de Lázaro, no monte Sião, junto com os
discípulos e parentes. A maior par te da noite passou em oração. Ao
amanhecer, se dirigiu ao Templo, onde os negociantes se encontravam de
novo no átrio dos orantes. Quando, à ordem que lhes deu de se retirarem,
queriam resistir, pegou num cabo e, der rubando as mesas, empur rou os
renitentes para fora; os discípulos também empur raram e forçaram todos a
sair. Grande número de sacerdotes acor reram e perguntaram-lhe quem lhe
dera o direito de fazer isso, ao que Ele respondeu que o Templo era ainda um
lugar sagrado, apesar do Santo tê-lo abandonado e não devia tomar-se lugar
de usura e comércio. Em outro dia Jesus curou no átrio do Templo, cerca de
dez paralíticos e mudos, o que causou grande sensação.

16. Resumo do segundo ano da vida pública de Jesus

Três semanas depois da Páscoa, par tiu Jesus da Betânia e foi ao lugar de
Batismo, per to de Ono. Ali o procurou um mensageiro do Rei Abgar de
Edessa, que estava doente e pediu para ser curado. Enquanto Jesus
ensinava, pintou-lhe esse homem o rosto, num pequeno quadro branco,
esforçou-se por muito tempo, mas não conseguiu fixá-lo bem, pois cada vez
que olhava para Jesus, parecia estar admirado do seu rosto, julgando que
devia começar de novo. Acabada a pregação de Jesus, ajoelhou-se o
mensageiro diante d’Ele e entregou-lhe uma car ta do rei. Jesus leu-a e
escreveu nela algumas palavras. Depois aper tou a par te mole do invólucro de
encontro ao rosto e devolveu a car ta ao mensageiro; este a aper tou também
sobre o desenho que fizera, que depois mostrou perfeita semelhança com o
rosto de Jesus. Também no pano em que Jesus tocara, lhe ficou gravado o
retrato.
Por causa do grande concurso de povo, no lugar onde Jesus batizava,
mandaram os fariseus invejosos mensageiros, com car tas, a todas as
sinagogas do país, com a ordem de prendê-lo, entregá-lo e de prender e
repreender-lhe os discípulos. Jesus mandou por isso aos discípulos que se
dispersassem, enquanto Ele, com poucos companheiros, fez a longa viagem
para Tiro e Sidônia, onde pregou a doutrina e curou enfer mos. Entretanto,
foram chamados os discípulos a Jerusalém e Genabris, para responderem
acerca da doutrina de Jesus e das relações que tinham com Ele. Pedro,
André e João foram também citados e presos. Mas rasgaram os laços com um
leve esforço, como por milagre e foram soltos.
Jesus, porém, voltou fur tivamente a Cafar naum, onde consolou sua Mãe e os
discípulos, retirando-se depois novamente para Tiro. Ali foi a Sichor, Libnath
e Adama. Neste último lugar, contou a parábola do administrador infiel. Um
velho Judeu dessa cidade, que obstinadamente falou contra a doutrina de
Jesus e por um milagre ficou com o cor po cur vado, conver teu-se e foi curado
por outro milagre. De Adama, dirigiu-se Jesus ao monte do Ser mão, per to de
Berota, a seis léguas de Adama e lá pregou a alguns milhares de homens,
das dez horas da manhã até à noite. Quando chegou a Cafar naum, vieram os
discípulos de João dar-lhe a notícia da prisão do mestre. Jesus continuou a
viagem, encaminhando-se para Betãnia, onde per maneceu alguns dias. De
noite se retirou para a gruta do Monte das Oliveiras, para rezar na solidão e
também porque Adão e Eva, expulsos do Paraíso, pisaram pela primeira vez a
ter ra ali, no Monte das Oliveiras. Lázaro e as piedosas mulheres ofereceram-
se para edificar hospedarias para Jesus e os discípulos e assim resolveram
que se construíssem quinze hospedarias, distribuídas por todo o país. Jesus
contou a parábola da pedra preciosa, aplicando-a a Madalena, que, como tal,
se tinha perdido. Depois par tiu para Bethoron, Kibzaim, passando por Gabaa
e Najoth, falando em toda par te do último tempo da graça e da justiça que se
lhe seguiria. Contou também a parábola do dono da vinha, que afinal havia
enviado o filho e proferiu os "Ais" sobre Jerusalém. Continuando o caminho
pela Samaria, veio ao poço de Jacó, per to de Sichar, onde conversou com a
Samaritana Dina e se lhe deu a conhecer como o Messias prometido. Depois
tomou o caminho da Galiléia, por Atharot e Engannim, onde curou cerca de
quarenta coxos, cegos, mudos, etc., seguindo depois, por Naim e Caná, para
o Lago de Genezaré. Em Caná lhe veio ao encontro o mensageiro do tribuno
de Cafar naum, cujo filho moribundo curou. Dirigiu-se então a Cafar naum,
ensinou ali alguns dias, curando muitos enfer mos. Tendo visitado Betsaida,
veio também a Nazaré e, entrando na sinagoga, inter pretou como referente a
Ele mesmo o trecho do profeta Isaías: (61, 1). "O Espírito do Senhor repousou
sobre mim, porque o Senhor me encheu de sua unção; mandou-me evangelizar
os pobres, curar os contritos de coração, pregar remissão aos cativos e
liberdade aos encarcerados, etc.". Repreendeu também severamente a
injustiça dos fariseus, que por isso se enraiveceram e o levaram a um monte,
para lançá-lo de um rochedo ao abismo. Jesus, porém, passou despercebido
pela multidão apinhada e escapou.
Per to de Trariquéia, à margem austral do Lago Genezaré, curou Jesus cinco
leprosos; depois veio a Galaad, atravessando o lago e visitou a casa de
Pedro. Num dia curou cerca de cem enfer mos; no dia seguinte, outros tantos
em Cafar naum, entre estes a sogra de Pedro.
Então percor reu diversas povoações, entre Caná e o lago, como Betúlia,
Jotapata, Dothaim, Genabris e, algumas léguas para o sul, Abelmehola e
Bezech; atravessando o Jordão, ensinou em Ainon Ramoth-Galaad, Azo,
Ephron e Betharamphta-Julias, dirigindo-se depois mais para o nor te, a Abila
e Gadara, onde curou grande número de doentes e possessos; de lá voltou,
ao longo do Jordão, por Dion e Jogbeha, a Ainon, onde contou a parábola do
filho pródigo e celebrou a festa dos Tabemáculos. Atravessando de novo o
Jordão, foi a Acrabis, Siloé Coréia, na província de Samaria; depois ao nor te,
a Salem, AserMichmethath e, ao oeste, a Meroz, onde Judas Iscariotes se
juntou a Jesus; ali curou também as duas filhas possessas do demônio, de
uma viúva chamada Lais de Naim. Em Dothaim, curou um homem hidrópico,
de nome Issachar e recebeu Tomé no número dos discípulos. Em Endor, livrou
um rapaz pagão de um demônio mudo. Em Gischala curou o filho coxo e mudo
do tribuno daquele lugar.
Quando Jesus ensinou num monte, per to de Gabara, estava também presente
Madalena, obedecendo a um convite de Mar ta e das santas mulheres. Ficou
comovida com as palavras de Jesus e, seguindo-o à casa de Simão, onde Ele
se sentara à mesa, der ramou-lhe sobre a cabeça um frasco de óleo
aromático e recebeu o perdão dos pecados. Converteu-se, mas recaiu pouco
depois na antiga vida de pecados.
Jesus curou o ser vo do tribuno de Cafar naum e depois um
leproso, pronunciando apenas estas palavras: "Quero. Fica são.”
Enquanto ensinava na sinagoga, entrou por ela precipitadamente um
endemoninhado; Jesus livrou-o, dizendo ao demônio: "Cala-te! E sai deste
homem!”
Em Naim, ressuscitou Jesus o filho da viúva Maroni. Quando estava curando
em Megido, vieram discípulos de João, dizendo: "João manda perguntar-vos: -
Sois aquele que há de vir ou devemos esperar por outro?" Jesus respondeu:
"Ide, anunciai a João o que tendes ouvido e visto: cegos enxergam, coxos
andam, surdos ouvem, leprosos ficam sãos, mor tos ressuscitam. O que é
tor to, fica direito e feliz de quem não se escandalizar de mim." Depois falou
de João, chamando-o o maior dos profetas.
Em Cafar naum, ressuscitou a filha do chefe da sinagoga, Jairo.
Nesse tempo chamou Mateus; no dia seguinte, disse a Pedro e André:
"Segui-me; far-vos-ei pescadores de homens." Também Tiago e João, filhos
de Zebedeu, foram convidados a seguí-Io. Atravessando na mesma noite o
mar de Galiléia, na barca de Pedro, com os doze Apóstolos, apaziguou a
tempestade com sua palavra. Alguns dias depois se realizaram a pesca
milagrosa e o ser mão da montanha.
Em Cafar naum, Jesus curou um paralítico, que fizeram descer pelo teto e
colocaram diante do Senhor. A filha do chefe da sinagoga recaiu e faleceu de
novo. Jesus foi, a pedido de Jairo, à casa deste. No caminho se deu a cura da
mulher que padecia de fluxo de sangue, só pelo contacto com as vestes do
Salvador. A filha de Jairo ressuscitou segunda vez, pelo poder divino de
Jesus.
Os fariseus de Cafar naum, desde muito inimigos de Jesus, mur muraram
contra Ele e propuseram-lhe muitas perguntas ardilosas. Jesus operou
muitos milagres, à vista deles, curando aí também o homem que tinha uma
das mãos secas.
Depois foi à ter ra dos Gerasenos, onde encontrou dois possessos. Os
demônios pediram-lhe que os deixasse entrar numa manada de porcos, que
estavam per to. Jesus per mitiu-lhes. Então se lançou a manada num lago
vizinho. Os dois homens, porém, ficaram livres dos demônios.
Jesus mandou os discípulos atravessarem o lago antes d’Ele e seguiu-os
mais tarde, andando sobre a água. Salvou então Pedro, que ia afundar-se, por
falta de fé.
Jesus celebrou a festa da Dedicação do Templo em Cafar naum e depois
enviou os Apóstolos e discípulos a diversas regiões, para ensinarem,
batizarem e curarem. Com os restantes discípulos percor reu a região ao
nor te do lago Genesaré. Na vila de Azanoth, situada mais para o sul, pregou
um ser mão longo e severo, ao qual, às insistências de Mar ta, também
Madalena assistiu. Durante o ser mão, teve esta diversos ataques como
convulsões e o demônio saiu-lhe do cor po em for ma escura. Ela chorou e
recebeu do Senhor o perdão dos pecados, per manecendo depois no estado de
graça.
Jesus viajou então para Betânia e Hebron, onde visitou a casa pater na de
João Batista, dando aos parentes a notícia da decapitação do Precursor. Em
Jerusalém, curou o homem que por trinta e oito anos estivera doente,
ensinando em seguida no Templo. Chegando a Tirza, remiu um cer to número
de presos e dirigiu-se de novo a Cafarnaum, onde ensinou e explicou o "Pai
nosso''; ali escolheu os Apóstolos, subordinando-lhes os 72 discípulos.
Com cinco pães e dois peixes saciou cinco mil homens, que por isso queriam
fazê-lo rei. Atravessou, porém, o lago e deu em Cafarnaum a promessa da SS.
Eucaristia. Pouco depois far tou, com sete pães e sete peixes, a quatro mil
homens. Esse milagre, assim como a primeira multiplicação de pães, operou-
o Jesus numa montanha, entre Betsaida e Chorozaim, à margem setentrional
do lago Genezaré.
Dirigiu-se depois para o nor te, à região de Cesaréia Filipe. Foi ali que
inter rogou os doze Apóstolos: "Por quem toma o povo o Filho do homem?"
Pedro respondeu com entusiasmo: "Vós sois o Cristo, o Filho de Deus vivo."
Como recompensa, recebeu Pedro a promissão do poder das chaves: "Tu és
Pedro e sobre esta (pedra) edificarei minha Igreja e as por tas do infer no não
prevalecerão contra ela. Dar te-ei as chaves do reino dos céus: Tudo que
ligares na ter ra, será ligado no Céu; e tudo que desligares na ter ra, será
desligado, no Céu". Dali viajou Jesus para Betânia, para celebrar a Páscoa.

17. Resumo do terceiro ano da vida pública de Jesus

Jesus comeu o cordeiro pascal, em casa de Lázaro; diariamente ia ao


Templo, para ensinar ; contou também a parábola do homem rico e do pobre
Lázaro. Par tindo depois da festa, Jesus viajou para o monte Tabor e, subindo
ao monte com Pedro, João e Tiago o Maior, transfigurou-se diante deles.
Ouviram a voz do Pai Celestial: "Eis O meu Filho muito amado, em quem pus
toda minha afeição: ouvi-O.!" De volta, curou Jesus, ao pé do monte, um
rapaz lunático e endemoninhado; depois se dirigiu a Cafar naum e pregou dois
dias diante de uma grande multidão de povo, sobre um monte, per to de
Gabara, algumas léguas a oeste do lago; de lá tomou o caminho de Tiro, para
embarcar e navegar pelo Mar Mediter râneo, para a ilha de Chipre.
Jesus desembarcou na cidade de Salamis, onde foi bem recebido: pregou e
curou ali, assim como em outras vilas da ilha, na qual também celebrou a
festa de Pentecostes. Tendo ali conver tido ao todo 570 judeus e pagãos e
voltou à Palestina. Desembarcou, com os companheiros, na baía do Monte
Car melo, encaminhou-se para Cafamaum, onde visitou sua Mãe; os Apóstolos,
de volta da missão, relataram-lhe os trabalhos e receberam novas
instruções.
Depois tomou o caminho de além do Jordão a Betabara, per to da foz deste
rio, no Mar Mor to. Continuando a viagem, curou dez leprosos, mandando-Ihes
que se apresentassem aos sacerdotes; só um voltou, para agradecer-lhe.
Ao entrar em Jericó, viu Jesus a Zaqueu na figueira, foi à casa deste e
conver teu-o. Mar ta e Madalena enviaram mensagem, convidando-O a vir a
Betânia, porque Lázaro estava muito doente. Per to de Jericó, Jesus
ressuscitou uma menina, que estava mor ta, havia já quatro dias. Ao
aproximar-se de Samaria, trouxeram-lhe a notícia da mor te de Lázaro. Foi
logo a Betânia: ao chegar, havia já oito dias justos que Lázaro mor rera e
quatro dias que fora sepultado. Jesus fez-se conduzir ao sepulcro, mandou
tirar a pedra do túmulo e a tampa do caixão e exclamou: "Lázaro, vem para
fora, sai." No mesmo instante se levantou este, indo depois para casa, com o
Senhor e aqueles que estavam presentes.
A ressur reição de Lázaro excitou em Betânia, assim como em Jerusa lém, um
grande tumulto; por esse motivo fugiu Jesus, com Mateus e João, para além
do Jordão, fazendo dali uma viagem à ter ra dos Reis Magos, acompanhado
apenas por três jovens: o rei Sair já tinha falecido; Mensor, porém, e
Theokenos estavam ainda vivos, esperando que Jesus os visitasse. Nessa
viagem, Jesus pregou e curou muitos, na cidade de Kedar e ressuscitou
também um homem rico dos ar redores, de nome Nazor, proprietário de
grandes rebanhos.
Jesus foi recebido pelos Reis Magos, com grande alegria e solenidade.
Ensinou-Ihes e ao povo, exor tando-os a abandonarem a idolatria; o povo tirou
logo todos os ídolos dos templos. Jesus disse também que o rei Sair recebeu
o Batismo, de desejo. A despedida, Mensor chorou como uma criança.
Passando pela Caldéia, Jesus operou diversos milagres e ensinou em várias
vilas pagãs. Repreendeu severamente os habitantes por causa da idolatria,
lembrando-Ihes que se Ihes tinham quebrado todos os ídolos na noite em que
aparecera a estrela aos Reis Magos; assim, em verdade, acontecera. Jesus
continuou o caminho, em marcha forçada, até o Egito, para visitar ali os
lugares onde vivera a Sagrada Família. Ensinou também aos judeus dessas
ter ras, revelou-se-Ihes como o Messias e falou-Ihes da sua mor te próxima.
Depois de uma ausência de três meses, voltou à Judéia, tomando o caminho
de Sichar, Ephron e Jericó. Na primeira cidade lhe vieram Pedro e João ao
encontro, em Jericó o esperavam sua Mãe e as santas mulheres. Dirigiu-se
dali a Cafamaum e Nazaré, voltando depois a Betânia, de onde fez diversas
visitas aos ar redores.
Em seguida, ia diariamente com os Apóstolos ao Templo, para ensinar.
Anunciou à Virgem SS. que o tempo da Páscoa, se aproximava. Instruiu
também os Apóstolos a respeito e deu-Ihes instruções sobre os lugares para
onde deviam ir, depois da sua mor te. No fim de um grande ser mão, ao sair do
Templo, quiseram lapidá-Io os fariseus; mas Jesus escapou-se e deixou de ir
ao Templo por três dias. Quando ensinou a última vez, antes do domingo de
Ramos, estava o Templo cheio de povo. Disse que dentro em pouco seria
abandonado pelos seus; mas antes disso entraria triunfante no Templo e
ficaria ainda quinze dias com eles. Por causa dessas palavras reuniram-se os
fariseus e escribas num conselho, em casa de Caifás, proibindo depois
publicamente que se recebessem Jesus e os discípulos em casa.
No dia anterior ao domingo de Ramos, anunciou Jesus que na manhã seguinte
faria a sua entrada triunfante em Jerusalém e mandou convocar os discípulos
a Betânia. De manhã mandou dois Apóstolos trazerem a jumenta, com o
jumentinho. Dirigiu-se com os doze e os discípulos a caminho de Bethphagé.
Maria e as mulheres piedosas seguiram-no. Chegado a Bethphagé, montou na
jumenta. Os Apóstolos caminhavam à frente, dois a dois, levando nas mãos
ramos de palmeira; atrás de Jesus seguiam os discípulos, aos quais se
juntavam as santas mulheres.
À notícia da entrada triunfante de Jesus em Jerusalém, o povo começou a
enfeitar as r uas. Inumeráveis forasteiros, que estavam em Jerusalém, para
celebrarem a próxima festa, vieram com o povo ao encontro de Jesus. Muitos
ar rancaram ramos das ár vores, cobrindo com eles o caminho; outros
estenderam os mantos na estrada diante d’Ele, cantando e aclamando Jesus
jubilosamente. O Mestre, porém, chorou e choraram também os Apóstolos,
quando disse que muitos daqueles que então o aclamavam, cheios de alegria,
daí a poucos dias o escar neceriam; que um deles o trairia e que a cidade
seria destruída. No caminho curou alguns e, chegado ao Templo, ensinou até
à noite, quando estavam de novo aber tas as por ta; da cidade, que antes
tinham sido fechadas pelos inimigos de Jesus.
Nos três dias seguintes Jesus continuou a ensinar no Templo; entre outras
coisas, contou também a parábola do dono da vinha e da pedra angular
rejeitada. No quar to dia, ficou com os apóstolos e as piedosas mulheres, em
casa de Lázaro, ensinando-os e exor tando-os até alta noite. No quinto dia se
sentou em frente à caixa de esmolas do Templo, ensinando aos Apóstolos
sobre a esmola da viúva pobre, que dera mais do que os outros. De volta
disse Jesus que do Templo não ficaria pedra sobre pedra. No sexto dia
depois do domingo de Ramos, ensinou de novo no Templo e assim no sétimo
dia, falando claramente da sua próxima Paixão.
O oitavo dia passou na vizinhança de Betânia, consolando os discípulos. Nos
dois dias seguintes, ensinou novamente no Templo, sem ser incomodado,
despedindo-se enfim do santuário com lágrimas.

18. Notas gerais sobre a personalidade de Jesus e seu modo de ensinar

Prescindindo dos últimos grandes dias da Paixão, era a vida pública do


Senhor a par te mais impor tante e mais salutar da sua vida. Aproveitou-a do
melhor modo possível. Foi incansável em percor rer diversas vezes toda a
Palestina e em todas as direções, aquém e além do Jordão, passando além
das fronteiras do nor te e indo até o Líbano. Visitou os judeus na ilha de
Chipre e no Egito e mesmo os astrólogos pagãos, na ter ra dos Reis Magos.
Fazia as viagens penosas sempre a pé, às vezes até descalço. Em todos os
lugares a que chegava ou por que passava, ensinava ao povo e curava os
enfer mos. Nesses trabalhos nem ao gozo do descanso se entregava;
renunciava até, não raras vezes, à comida e bebida, porque tinha fome e
sede de almas, para cuja salvação viera.
A personalidade do Divino Salvador, que queremos descrever segundo as
infor mações da piedosa freira Agostiniana, tinha em si algo de majestoso,
para o que muito lhe contribuíam a figura e o olhar sério. Anna Catharina
conta o seguinte, sobre a personalidade de Jesus:
"Vi de súbito diante de mim o Senhor, como viveu na ter ra. Era uma figura
alta, esbelta e viril, tinha o rosto comprido, de uma alvura puríssima, a
fronte alta, de um branco sem mescla e o nariz bem for mado e oblongo. O
cabelo, repar tido no alto da cabeça, caia-lhe de ambos os lados do rosto, até
os ombros; vestia uma longa túnica, de cor cinzenta, semelhante a uma
camisa, ter minando em simples pregas e cingida debaixo do peito. As
mangas eram bem largas, as mãos cruzadas sobre o peito. O Senhor tinha
algo de imóvel, reto, comovedor, sério e amável. Era infinitamente nobre,
simples e bom.”
Em outra ocasião diz a piedosa vidente: "Jesus era mais alto do que os
apóstolos; onde iam ou estavam, sempre parecia sobressair-lhe a fronte
branca e séria. Tinha o andar sempre ereto e direito; não era magro nem
cor pulento, mas de aparência absolutamente sadia e nobre, com peito e
ombros largos. Tinha músculos bem exercitados pelas viagens e exercícios,
mas não mostravam sinais de trabalho pesado. As palavras, o som da voz do
Mestre eram como raios vivos, penetrantes. Falava sem defeito de pronúncia,
calmo e for te, nunca muito depressa, a não ser algumas vezes aos fariseus,
mas então as palavras eram como flechas agudas e o som da voz mais
severo. A voz era barítono agradável, puríssima, sem igual. Ouvia-se-Ihe a
voz entre todas as outras vozes, numa multidão, sem que Ele gritasse.
Era um aspecto comovedor o de Jesus indo pelas r uas de Cafar naum, ora
com as vestes compridas, ora ar regaçadas, sem muito movimento, mas
também sem rapidez, tão calmo, quase sem tocar a ter ra, mais simples e
mais poderoso do que os outros homens. Nada de excêntrico, nada de
vacilante ou de afetação; tudo n’Ele era natural no ardor, no olhar e no falar.
Os amigos de Lázaro, Nicodemos, o filho de Simeão, João Marcos, tinham
falado com Jesus e todos ficaram cheios de admiração pela atitude, pela
sabedoria, pelas qualidades humanas e até cor porais do Mestre e sempre que
Este estava ausente, diziam uns aos outros: "Que homem extraordinário! Tal
não houve nem haverá; tão sério, tão amável, tão sábio e perspicaz e ao
mesmo tempo tão simples. Não compreendo tudo que diz, mas vejo-me
obrigado a crer, de tal modo fala. A gente não o pode olhar de frente; Ele
parece ler todos os pensamentos e sentimentos do coração. Que figura, que
por te sublime! Que rapidez, sem lhe notar precipitação! Quem pode andar
com Ele? Caminha com tanta velocidade; chega, sem mostrar cansaço e,
após uma hora, já está novamente a caminho. Que homem excelente se
tor nou!" Mas ninguém imaginava que era do Filho de Deus que falavam.
Achavam-no o maior de todos, veneravam-no com cer to temor, mas sempre o
tomavam por homem, apesar de maravilhoso.”
"Onde quer que Jesus chegasse, relata a vidente, à respeito da sua estadia
em Kisloth, sempre havia grande movimento. Aclamavam-no, prostravam-se-
Lhe aos pés, apinhavam-se-Lhe ao redor para tocá-Lo e era para evitar a
multidão que Jesus ia e vinha inesperadamente. Muitas vezes se separava
dos discípulos pelo caminho, mandando-os a outros lugares e caminhando
"'sozinho. Nas vilas era às vezes preciso abrir-lhe caminho, através das
multidões. A muitos, porém, per mitia que se lhe aproximassem e o tocassem
e par te destes se sentiam por isso comovidos e conver tiam-se ou saravam.
Andava (em Jer usalém) sem medo, vestia, na maior par te das vezes, uma
longa túnica, de pano branco; era a túnica dos profetas. As vezes se
apresentava como qualquer indivíduo, sem chamar a atenção e passava
facilmente desapercebido, mas outras vezes fazia uma impressão
extraordinária: o rosto resplandecia-Lhe com um brilho sobrenatural. A
entrada de Jesus no Templo costumava causar uma singular comoção entre
os judeus. O que deve admirar, é que todos ocultassem os sentimentos e que
nenhum ousasse falar aos outros da impressão que lhe fazia o aspecto do
Mestre. Era uma providência divina, para prolongar a ação pública de Jesus,
pois, se falassem uns aos outros, crescer-Ihes-ia ainda mais o furor. Mas
assim lutava em muitos o ódio e o furor com uma santa comoção; em outros
nascia um fraco desejo de conhecê-lo e todos se esforçavam para entrar, por
inter médio de outros, em relação com Ele.
Como era incansável o Senhor! Como obrigava também os Apóstolos a
fazerem uso de todas as suas forças! A principio, muitas vezes, estavam
cansadíssimos. Durante a marcha, cumpria aos discípulos ir ao encontro do
povo, ensiná-Io e chamá-Io à doutrina de Jesus.
Os discípulos tinham muito que agüentar e às vezes lhes era
bem desagradável a missão. Aonde quer que fossem, anunciando o Senhor,
ouviam freqüentemente palavras de escár nio, como, por exemplo: "Então lá
vem o homem de novo? O que quer? Donde vem? Não lhe foi proibido?" Riam-
se deles, apupavam-nos, vaiavam-nos. É verdade que alguns se mostravam
satisfeitos de sua vinda; mas estes não eram numerosos.
A dirigir-se a Jesus mesmo, diretamente, aquela gente não se atrevia; mas
justamente onde Ele ensinava, estando os discípulos ao redor ou seguindo-o
pelas r uas, todos aqueles vozeadores se lhes dirigiam, fazendo-os parar,
inter rogando-os, alegando terem entendido mal as palavras de Jesus ou
pedindo. uma explicação. Às vezes eram inter rompidos por gritos de júbilo:
Jesus tinha de novo curado a alguém; isso os vexava e retiravam-se. Desse
modo continuava o trabalho até à noite, durante a marcha penosa e distante,
sem refrigério ou descanso.
"Vi o Senhor conversar com diversas famílias (em Seforis), tão indizivelmente
amável e afetuoso, que não posso descrevê-Io. Os modos caridosos do Mestre
comoveram-me até as lágrimas.”
Chegando Jesus a uma cidade, entrava quase sempre na sinagoga, subia ao
púlpito, mandava trazer os rolos da Escritura, dos quais lia um trecho aos
presentes e em conexão com o trecho, começava a ensinar. Geralmente o
ser mão tinha por assunto a necessidade de penitência e verdadeira
conversão de coração ou a prova de que o reino de Deus já tinha chegado e
que o Messias já devia ter vindo. Inter pretava tudo como se referindo à sua
pessoa, mas, na maioria das vezes, sem afir mar aber tamente que Ele era o
Messias ou Deus; contudo, falava distintamente do Pai do Céu, que o tinha
mandado, para que assim se apresentasse e curasse os enfer mos.
"Jesus ensinou novamente (em Cafar naum), com muito fer vor, sobre o profeta
Isaías, inter pretando tudo com referência ao seu tempo e à sua pessoa;
disse que o tempo tinha chegado e que estava próximo o reino de Deus; que
sempre tinham desejado o cumprimento das profecias e anelado pelo Profeta,
o Messias, que lhes tirasse o pesado fardo, mas que quando Ele chegasse,
não o aceitariam, porque não se lhes conformariam com as opiniões
er rôneas.
Enumerou então os sinais, pelos quais se conheceria o Profeta,
cujo aparecimento tanto desejavam, que aprendiam nas escolas, nos rolos da
Escritura e suplicantes imploravam a Deus que lhes per mitisse ver com os
próprios olhos; demonstrou-Ihes que de fato esses sinais já
tinham aparecido. Disse-Ihes: "Os coxos andarão, os cegos enxergarão, ouvi-
rão os surdos." Por acaso não é o que acontece? Por que assistem os pagãos
à exposição da doutrina? Por que gritam os possessos? Por que são expulsos
os demônios? Por que louvam a Deus os curados? Não o perseguem,
por ventura, os sanguinários inimigos? Não o rodeiam os espiões? Expulsarão
e matarão o filho do dono da vinha, mas que lhes sucederá? Se não quiserdes
aceitar a salvação, esta não se perderá por isso, nem podereis vedá-Ia aos
pobres, enfer mos, pecadores, publicanos, penitentes e até aos gentios, aos
quais se dirigirá, retirando-se de vós.” Tais eram os assuntos dos ser mões.
Dizia também: "Reconheceis João como profeta, a quem agora tendes preso.
Ide a ele, na cadeia e perguntai-lhe para quem preparou o caminho, de quem
dá testemunho?" - Enquanto assim ensinava, crescia mais e mais o furor dos
fariseus, que mur muravam e cochichavam uns com os outros.
Quando Jesus estava para ensinar em Adama, levantou primeiro os olhos ao
céu, rezou alto ao Pai, de quem tudo vem, pedindo que a doutrina
encontrasse corações contritos e sinceros e mandando ao povo que lhe
repetisse as palavras; e assim fizeram. O ser mão durou das nove horas da
manhã até às quatro da tarde; uma vez houve um inter valo e ofereceram-lhe
um cálice de bebida refrigerante e um pouco de alimento, para restaurar-se.
Os ouvintes iam e voltavam, confor me os negócios que tinham na cidade. Ele
ensinou sobre a penitência, sobre a purificação e sobre a lavagem com água;
falou também de Moisés, das tábuas da Lei quebradas, do bezer ro de ouro, do
trovão e dos relâmpagos no monte Sinai.”
O Redentor dava as explicações de suas palavras com extraordinária doçura,
amor e paciência, respondendo também às dúvidas e perguntas que
propunham. Aos fariseus hostis, que lhe faziam muitas perguntas ardilosas e
dificuldades maliciosas, respondia com calma, mas severamente; do mesmo
modo flagelava, com rigor e sem indulgência, a hipocrisia dos fariseus, que
impunham ao povo carga tão pesada, que eles mesmos não podiam supor tar ;
como também a dureza de coração, com que afligiam os pobres e humildes.
Em tais ocasiões falava tão severamente e sabia refutar todas as
dificuldades tão claramente, que os inimigos se retiravam envergonhados,
mas cheios de raiva e ódio contra ele. Não se deixava confundir nem por
ameaças, nem por perseguições, mas falava sempre com toda franqueza.
Muitas vezes a Virgem Santíssima lhe suplicava, com lágrimas, que
moderasse as palavras severas ou não fosse a um lugar, onde o ameaçava a
perseguição, por exemplo, a Nazaré e Cafar naum. Jesus consolava-a
carinhosamente, mas dizia-lhe decididamente que iria ou falaria de tal modo,
porque devia realizar a obra para a qual o Pai celeste o enviara e para cuja
realização ela se tomara sua Mãe.
De um ser mão impetuoso que pregou no monte de Gabara, relata Anna
Catharina o seguinte:
"Jesus chegou ao cimo, com os discípulos, per to das dez horas; os fariseus,
herodianos e saduceus seguiram-no também. O Senhor subiu ao lugar que
ser via de púlpito, os discípulos ficaram de um lado, os fariseus do outro,
for mando desse modo um círculo. Jesus fez alguns inter valos, em meio do
ser mão, durante os quais o povo se mudou, saindo uns, entrando outros;
diversos pontos da doutrina foram explicados de novo. Nas pausas tomava o
povo um refresco, dando também uma vez a Jesus um pouco de comer e de
beber.
O ser mão que o Mestre fez, foi um dos mais severos e veementes que jamais
proferiu. Logo ao princípio, antes de rezar, disse que não se deviam
escandalizar de chamar a Deus seu Pai; pois quem fizesse a vontade do Pai
do Céu, seria filho d’Este e então provou que Ele cumpria a vontade do Pai.
Depois rezou alto ao Pai celeste e começou uma exor tação severa à
penitência, a modo dos profetas. Resumiu tudo que acontecera, desde o
tempo da promissão, citou as ameaças dos profetas e o respectivo
cumprimento, símbolo desse tempo e do futuro próximo.
Provou a vinda do Messias, pelo cumprimento das profecias. Falou de João, o
precursor, que lhe preparou o caminho e como realizou tão
conscienciosamente a obra da preparação e que eles com tudo ficaram
endurecidos. Acusou-os dos vícios, da hipocrisia, idolatria, da car ne
pecaminosa. Descreveu, com franqueza e severidade, os fariseus, herodianos
e saduceus, falou com grande zelo da ira de Deus, do juízo futuro, da
destruição de Jerusalém, do Templo e da devastação do país. Citou muitos
trechos do profeta Malaquias, inter pretando-os e explicando-os, sobre o
precursor do Messias, a oblação pura, nova, pela qual entendi claramente o
sacrifício da Missa, - os judeus não o compreenderam, - o juízo sobre os
ímpios, a volta do Messias no novíssimo dia, a confiança e consolação dos
piedosos. Dirigiu-se aos discípulos, exortando-os à fidelidade e
perseverança: disse-Ihes que os enviaria a todos os homens, para pregarem a
salvação. Avisou-Ihes de que não se associassem aos fariseus, nem tão
pouco aos herodianos ou saduceus, dos quais deu uma pública descrição,
ilustrando-a com boas comparações, quase os indicando aber tamente. Isso
os abor receu tanto mais, quanto não queriam ser conhecidos como
herodianos, a cuja seita per tenciam só secretamente.
Jesus falou, nesse ser mão, quase só dos profetas. Numa ocasião disse que,
se não aceitassem a salvação, teriam sor te pior do que Sodoma e Gomor ra.
Os fariseus pensaram que com isso lhe podiam fazer uma dificuldade e numa
pausa perguntaram logo se aquela montanha, a cidade e todo o país, com
todos eles, deviam afundar-se? E como podia haver sor te ainda pior? Jesus
replicou: que em Sodoma e Gomor ra se afundaram as pedras, mas não as
almas, porque não conheciam a promissão, nem tinham a Lei, nem os
profetas; disse ainda algumas palavras, de que concluí que se referia à sua
ida ao Limbo e à salvação de muitos; os judeus não o entenderam; eu, porém,
me regozijei como criança, por saber que aqueles homens não estavam todos
perdidos. - Dos judeus do seu tempo, porém, disse Jesus que lhes foi dado
tudo: foram escolhidos para povo de Deus, receberam todas as exor tações e
repre ensões, a promessa e o respectivo cumprimento; se o recusassem,
persistindo na incredulidade, as almas e os corações, duros como
pedras, ser-Ihes-iam devorados pelo abismo, mas não as pedras e montanhas,
que obedeciam ao Senhor. Assim a sor te Ihes seria pior do que a de Sodoma
e Gomor ra.
Tendo Jesus chamado tão severamente os discípulos à penitência e tão
claramente delineado os castigos dos ímpios, tor nou-se novamente
carinhoso, convidando os pecadores a virem a Ele e der ramando até lágrimas
de amor. Rezando, suplicou ao Pai que movesse os corações, ainda que só um
grupo de alguns homens ou um só viesse a Ele car rega do de pecados, pois
se pudesse salvar uma só alma, repar tiria tudo, sacrificaria tudo por ela, até
pagaria com a vida para remí-Ia. Estendeu as mãos a todos, exclamando:
"Vinde a mim todos que estais cansados e car regados, vinde, ó pecadores,
fazei penitência, crede e par ticipai comigo do reino de Deus." Estendeu as
mãos também aos fariseus e aos inimigos, que pelo menos viesse um, que se,
por suas palavras, caísse apenas uma faísca de penitência, contrição, amor,
fé e esperança num coração perdido e este desse fr uto, ser-lhe-ia
recompensado, havia de viver e crescer, Ele próprio o nutriria, educaria e
reconduziria ao Pai.”
"No entanto, eram cerca de seis horas da tarde; o sol já tinha baixado atrás
da montanha; Jesus olhava, durante o ser mão, para o ocidente, pois do ponto
em que pregava, para lá se estendia o horizonte; atrás dele não havia
ninguém. Rezou, abençoou e dêspediu a multidão do povo.”
Cuidado especial dedicou Jesus à instrução dos Apóstolos e discípulos.
Assim conta Anna Catharina Emmerich que Ihes ensinou o "Pai Nosso" e os
instruiu sobre a eficácia da oração com vários exemplos:
"Ensinava a todos os discípulos o mesmo e repetia-o muitas vezes, com
paciência e assiduidade comovedora, para que pudessem ensiná-Io por toda
a par te. Procedeu como no ensino às crianças, inter rogando ora um ora outro
sobre as explicações dadas, cor rigindo-os e explicando de novo o que tinham
entendido mal.
Jesus ensinava aos discípulos durante todo o caminho. Ensinava só em
parábolas e comparações, tomadas de todas as classes e ofícios, de cada
arbusto, pedra, planta e lugar, que se lhe apresentava à vista, no caminho (a
Galaad).”
Jesus dedicava tanto tempo e esforço à instrução dos Apóstolos e
discípulos, porque queria encar regá-Ios da propagação da sua doutrina e
continuar por meio deles a obra da salvação. Preparava-os gradualmente
para essa impor tante tarefa, tirando-Ihes pouco a pouco a suposição de que
tivesse vindo ao mundo para fundar um reino ter restre; introduzia-os cada
vez mais profundamente no conhecimento dos mistérios da sua doutrina e
falava cada vez mais claro da sua Paixão e da necessidade desta, para a
redenção da humanidade pecadora.
Jesus ensinava muito e com profunda sabedoria, em parábolas e
comparações; falava às vezes tão intuitivamente, como se o fato se lhe
passasse diante dos olhos. As parábolas eram na maioria das vezes, bem
compreensíveis; freqüentemente explicava a todos, outras vezes só aos
Apóstolos; mas, quando as parábolas se Lhe referiam à própria pessoa e os
fariseus espiavam, para poder acusá-Io, não as explicava a ninguém. Os
fariseus fechavam propositalmente os olhos à luz e por isso não podiam ver.
Com tanto mais gosto falava Jesus à gente humilde e sempre simples, que
recebia e compreendia a doutrina de boa vontade e com fé humilde.
Muito gostava Jesus de ensinar às crianças e abençoava-as, sempre que as
mães lhas traziam ou se lhe aproximavam dele no caminho.
"Vi muitas mães, vindo com grupos de crianças, como em procissões: eram
crianças de todas as idades, até crianças de peito traziam ao colo. Vieram a
uma rua larga da vila, quando Jesus, dobrando uma esquina, entrou nessa
mesma r ua, os discípulos, que iam à frente, quiseram repelir um pouco
asperamente as mulheres e crianças; Jesus, porém, mandou que as
deixassem; colocaram-nas por isso, em cer ta ordem. Num lado da rua
for maram cinco fileiras compridas de crianças, de diferentes idades e sexos,
meninos separados de meninas; estas eram muito mais numerosas. As mães,
porém, com as crianças de peito, ficaram atrás da quinta fileira. No outro
lado da rua havia, em grande quantidade, outra gente, que alter nadamente
se adiantava. O Senhor passou devagar ao longo da primeira fileira, falou às
crianças e, impondo-Ihes as mãos sobre as cabeças, abençoou-as. A algumas
passou uma das mãos na cabeça, outra no peito; outras aper tou ao coração,
outras ainda apresentou a todos como modelos e assim passou, ensinando,
exor tando, animando e abençoando.
Chegado ao fim da fileira, voltou pelo outro lado da r ua, ao longo dos
adultos, exor tando-os, ensinando-os e apresentando-Ihes também uma ou
outra criança; depois passou por outra fileira de crianças, voltando de novo
pelo lado dos adultos, onde, entretanto, entraram outros no lugar da frente.
Assim continuou, até que finalmente fez esse ato de caridade também às
crianças de peito. Foi-me revelado que todas as crianças abençoadas por Ele
receberam uma graça especial e se tor naram mais tarde cristãs. Eram cerca
de mil as crianças apresentadas a Jesus, pois me parece que a afluência
continuou por vários dias.
Muito me comoveu ver, no jardim, Jesus ensinando aos filhos do dono da
casa: ora os tinha diante de si, ora ao colo, ora abraçando os dois menores
juntos. Ensinou-Ihes a obedecer aos pais e respeitar os mais velhos. O Pai do
Céu tinha-Ihesdado aquele pai e, como respeitassem os pais ter renos, assim
respeitariam o Pai Celestial. Falou dos filhos de Jacó e de Israel, os quais,
por terem mur murado, não entraram na ter ra prometida, que era tão linda.
Então Ihes mostrou as belas ár vores e frutos do jardim e falou do reino dos
céus, que também nos é prometido, se guardar mos os mandamentos de Deus
e que é um país muito mais belo que a ter ra, a qual, em comparação com ele,
é apenas um deser to. Por tanto, deviam obedecer a Deus e supor tar o que Ele
Ihes mandasse. Que se guardassem de mur murar, para alcançar o Céu e
nunca duvidassem da beleza deste, como os israelitas duvidaram no deser to;
deviam pensar que o Céu é muito melhor do que a ter ra, mais belo que tudo,
dessa verdade deviam lembrar-se sempre e pensar em merecer o Céu, por
todos os esforços e trabalhos,”
Num passeio que Jesus fez com os meninos da escola de Abelmehola,
ensinou-lhes, com belas comparações da natureza, que tomou de
diversíssimos objetos: de ár vores, frutas, flores, abelhas e aves, do sol, da
lua, da ter ra, da água, dos rebanhos e da lavoura. Assim ensinou aos
meninos, de uma maneira indizivelmente atraente.
Em Bezech, proferiu Jesus uma tocante exor tação aos meninos e às meninas.
Admoestou os meninos a serem pacientes uns com os outros; se alguém Ihes
batesse ou Ihes jogasse uma pedra, não se vingassem, mas sofressem com
paciência e se retirassem, perdoando aos inimigos. Não deviam responder
palavra alguma, mas amar ainda mais e praticar atos de caridade até para
com os inimigos. Não cobiçassem o bem alheio e, se outros meninos lhes
tirassem utensílios de escrever, os brinquedos e frutas, deviam dar-lhes
ainda mais do que cobiçavam e satisfazer-Ihes a avidez, se lhes fosse
per mitido dar essas coisas, pois só os pacientes, os que praticam a caridade
e liberalidade, podem receber um lugar no reino celeste. Descreveu esse
lugar de maneira infantil, como belíssimo trono.
Falou dos bens da ter ra, que se devem abandonar, para alcançar os bens do
céu. Dirigindo-se às meninas, exor tou-as, entre outras coisas, a que não se
invejassem umas às outras, por causa de preferências ou de belos vestidos,
mas que praticassem a obediência, amor filial, caridade e temor de Deus.
No fim dessa instrução pública, dirigiu-se aos discípulos, consolando-os com
infinito carinho e exor tando-os a sofrerem tudo com Ele e a não se deixarem
vencer pelos cuidados deste mundo.

19. Os milagres de Jesus

Nos santos Evangelhos se relatam três ressur reições e grande número de


outros milagres que o Salvador operou; mas mencionam-se na Escritura
Sagrada apenas os mais impor tantes. S.João Evangelista dá a entendê-lo na
frase final de seu Evangelho: "Muitas outras coisas, porém, fez Jesus, as
quais, se se escrevessem uma por uma, creio que no mundo todo não
poderiam caber os livros que delas se houvessem de escrever". (S. João 21,
25).
Em confor midade com essas palavras, nar ra a estigmatizada da Westfália, a
qual nas suas visões acompanhou o Divino Salvador nas viagens, ouviu-lhe os
ser mões, viu os milagres que Ele operou, milagres sem inter r upção,
principalmente depois do seu Batismo. Em grande número vinham os doentes
a Ele ou eram transpor tados por outros e Ele os curava a todos, a não ser
aqueles que eram endurecidos de coração. Muitas vezes até não esperava
que se Lhe aproximassem, mas procurava-os, para os curar. Não curava,
porém, a todos indistintamente.
Jesus pode curar todos, diz a ser va de Deus, mas cura só os que crêem e
fazem penitência; e muitas vezes Ihes avisa para não recaírem. Ele não veio
a este mundo para dar a saúde do cor po e deixá-Ios de novo pecar, mas quer
curar o cor po, para remir a alma e salvá-Ia.”
Jesus curou muitos homens acometidos de diversíssimas enfer midades:
cegos, surdos, mudos, coxos, paralíticos, hidrópicos, epiléticos, doentes de
febre, morféticos ou leprosos e muitos possessos de maus espíritos.
De grande interesse é o que a vidente nos conta do modo por que Jesus
operava as curas milagrosas.
"Jesus curava de vários modos: a uns de longe, com um olhar ou com uma
palavra, a outros tocando-Ihes, a outros impondo-Ihes as mãos, a outros
soprava ou benzia-os, a outros aplicava saliva nos olhos. Muitos o tocavam e
ficavam curados; a outros fez sarar, sem que se virasse para eles.
Curava cada um, confor me o mal, a fé ou à natureza, como ainda, agora de
modo diferente, cor rige e conver te os pecadores. Jesus não rompia a ordem
da natureza, mas apenas lhe anulava as leis; não cor tava os nós, mas
desatava-os e sabia desatar todos. Tinha todas as chaves e, sendo Homem-
Deus, operava de modos humanos, santificando-os.
Não cura sempre do mesmo modo: ora ordena, ora impõe as mãos; às vezes
se inclina sobre os doentes, outras vezes os manda lavar-se, amassa bar ro
com saliva e aplica-Ihes nos olhos. A alguns admoesta, a ou tros diz os
pecados, poucos são os que se recusa curar.
Cada modo de curar tinha uma misteriosa significação própria; todos se
referiam à causa oculta e significação da doença e à necessidade espiritual
do homem. Assim recebiam, por exemplo, os ungidos com óleo uma cer ta
força espiritual, de que era sinal o óleo. Nenhuma dessas ações de cer to era
sem significação e intenção.
Jesus não curava todos do mesmo modo. Também não curava de modo
diferente dos Apóstolos, Santos e sacerdotes até do nosso tempo. Impunha
as mãos e rezava com os enfer mos; mas fazia-o mais depressa do que os
Apóstolos. Fazia os milagres e as curas também como modelos, para os seus
sucessores e discípulos. Sempre procedia como convinha ao mal e à
necessidade: tocava os coxos e os músculos recobravam força e eles se
levantavam. Nos membros quebrados, tocava na fratura e as par tes reuniam-
se. Quanto aos leprosos, vi que, quando os tocava, as chagas se Ihes
fechavam, caindo-Ihes as crostas secas imediatamente; mas ficavam
manchas ver melhas, que desapareciam pouco a pouco, porém, mais depressa
do que de costume e segundo o grau de merecimento dos doentes. Nunca vi
que um corcunda se tivesse tor nado direito num instante, ou um osso tor to
em osso reto. Não porque Jesus não pudesse fazê-Io, mas porque não queria
que os seus milagres fossem espetáculos, mas, sim, obras de misericórdia;
eram símbolos da sua missão de desligar, reconciliar, ensinar, desenvolver,
educar e resgatar. E, como exige a cooperação dos homens, para
par ticiparem da salvação, assim haviam de manifestar-se nas curas: fé,
esperança, caridade, contrição e refor ma dos homens, como cooperação nas
mesmas. Cada estado do enfer mo tinha tratamento próprio e desse modo se
tor nava cada doente e o respectivo tratamento o símbolo duma doença
espiritual, perdão e cor reção. Só entre os gentios vi que alguns dos
milagres eram mais estranhos e notórios. Os milagres dos Apóstolos e dos
Santos, mais tarde, davam muito mais na vista e eram mais contrários
à ordem geral da natureza, pois os pagãos precisavam de um abalo
espiritual, de uma for te comoção; os judeus, porém, careciam apenas que
se Ihes desvendassem os olhos espirituais e assim por diante. Curava muitas
vezes pela oração, à distância, principalmente mulheres que sofriam de fluxo
de sangue, pois estas não ousavam aproximar-se, nem podiam, sendo
proibido pelas leis judaicas. Jesus obser vava geralmente as leis que tinham
uma significação sobrenatural e misteriosa, as outras não.
"Vi novamente, conta Catharina Emmerich na outra passagem, a grande
diferença nos modos de curar e que Jesus provavelmente curava de tão
diversos modos, para ensinar aos discípulos como eles mesmos, e depois a
Igreja, em todos os séculos, deviam proceder. Em todo o seu agir e sofrer,
revelava sempre modos e for mas humanas, nada se lhe revestia de um cunho
mágico ou se transfor mava instantaneamente. Vi em todas as curas uma
cer ta transição, confor me a espécie da doença ou do pecado. Vi que em
todos sobre os quais orava ou pousava as mãos, se efetuava uma
momentânea calma e recolhimento e os doentes levantavam-se curados,
como de um desmaio. Paralíticos levantavam-se vagarosamente e, sentindo-
se curados, prostravam-se-Ihe aos pés; mas a força interior e a agilidade dos
membros voltavam só depois de cer to tempo: em alguns depois de horas; em
outros após alguns dias, etc. Vi hidrópicos que puderam achegar-se-Ihe,
cambaleando de fraqueza, outros que era preciso serem transpor tados. Ele
pousava geralmente a mão sobre a cabeça e o estômago dos enfer mos; logo
após as palavras do Mestre, podiam levantar-se, sentiam-se leves e a água
saía-Ihes pelo suor. Os leprosos perdiam, logo depois da cura, as crostas das
chagas, mas ficavam-Ihes manchas ver melhas, onde antes houvera lepra.
Aqueles que recuperavam a vista ou o ouvido ou o uso da língua, sentiam
ainda a princípio a falta de desembaraço nesses sentidos. Vi paralíticos
curados, que não sentiam mais dores e podiam caminhar ; a inchação não
desaparecia imediatamente, mas em pouco tempo. Epiléticos ficavam
curados no mesmo instante; quanto ás febres, cessavam logo, mas os
doentes não ficavam for tes e sãos no mesmo momento, mas restabeleciam-
se como uma planta murcha, depois da chuva. Os possessos caiam
geralmente num cur to desmaio, levantando-se depois livres do demônio, e
sossegados, mas ainda fatigados. Tudo se fazia com calma e ordem, somente
para os infiéis e adversários, tinham os milagres de Jesus algo de ter rível.
Em Genabris rezou Jesus em silêncio sobre os doentes, que na maior par te
tinham braços aleijados; tocou-Ihes os braços, passando a mão levemente,
de cima para baixo; depois mandou que se retirassem e louvassem a Deus:
estavam curados.
Em frente da sinagoga de Bezech, estava reunido grande número de
enfer mos. Jesus, acompanhado pelos discípulos, passou de um a outro,
curando-os. Entre estes havia alguns endemoninhados, que, enraivecidos,
gritavam contra ele; o Mestre livrou-os e mandou que se calassem. Havia ali
paralíticos, tísicos, hidrópicos, com úlceras no pescoço, com glândulas
intumescidas, surdos e mudos; curou-os todos, impondo as mãos a cada um,
mas o modo de tocá-Ios era diferente; alguns dos doentes ficaram
imediatamente curados; outros sentiram-se aliviados e a cura completa
efetuou-se-Ihes em pouco tempo, confor me a espécie do mal e estado da
alma. Os curados afastaram-se, cantando um salmo de Davi. Havia, porém,
tantos doentes, que Jesus não pôde chegar a todos; os discípulos ajudaram-
no, levantando e livrando os enfer mos. Jesus passou as mãos na cabeça de
André, João e Judas Barabás, to mou-lhes depois as mãos nas suas,
mandando que fizessem a uma par te dos enfer mos o que Ele fazia aos outros.
Os Apóstolos cumpriram a ordem e curaram a muitos.
Em Hukok curou Jesus a um cego, que sofria de catarata; Jesus mandou-o
lavar o rosto na fonte; depois de feito isso, untou-lhe os olhos com óleo e,
quebrando um pequeno ramo de arbusto, mostrou lho, perguntando-lhe se
enxergava. O homem disse: "Sim, vejo uma ár vore grande." Então lhe untou
Jesus de novo os olhos, e ao pergun tar-lhe outra vez se via, o homem
lançou-se-lhe feliz aos pés, exclamando: "Oh! Senhor, vejo montanhas,
ár vores, homens, vejo tudo!" Então reinou grande alegria na multidão de povo
e conduziram o homem à cidade.
Só pela sua presença, Jesus expulsava dos possessos os demônios, que se
retiravam visivelmente, em for ma de vapor, que depois for mava uma sombra
de hor rível figura humana e fugia. O povo admirava-se e assustava-se; os
liber tos empalideciam e desmaiavam. Jesus, porém, lhes falava e, tomando-
Ihes as mãos, mandava-os levantar-se; então voltavam a si, como de um
sonho e caindo de joelhos, agradeciam-lhe; eram homens inteiramente
mudados. Jesus exor tava-os e dizia-lhes as faltas de que se deviam cor rigir.
Entre todos que foram curados por Jesus, nunca vi dementes, como os
chamam; foram todos curados como endemoninhados e possessos.”
Os milagres de Jesus não eram só curas de doentes. Ele operava também
muitos outros prodígios, como a multiplicação dos pães, a pesca milagrosa,
a bonança do mar, produzida por suas palavras, o cami nhar sobre as ondas
do mar. Outros milagres realizou, profetizando, tor nando-se invisível aos
perseguidores e mostrando conhecer os pensamentos ocultos.
Essas curas milagrosas e os prodígios, cujo caráter sobrenatural devia dar
na vista de todos os homens sinceros e amigos da verdade, davam
testemunho da divina missão de Jesus e, como operasse os milagres não em
outro nome, mas no seu próprio, ninguém podia negar-Lhe o poder divino; em
outras palavras: todos eram obrigados a crer-lhe na divindade. Com mais
força ainda nos levam a esta fé as ressur reições operadas por ele, pois só há
um Senhor da vida e da mor te - Deus.
Jesus manifestou-se desse modo o Taumaturgo prenunciado pelos profetas.
Expulsando os demônios, curando os enfer mos e ressuscitando os mor tos,
revelou-se como Redentor do pecado e das respectivas conseqüências:
doença e mor te. Ao mesmo tempo manifestou o Salvador, pelas curas, o amor
e a benignidade do seu coração misericordioso, que, com profunda
compaixão da miséria e dos muitos males humanos, os socor ria e ajudava em
toda par te, que, mor rendo na Cruz pelos pecados dos homens, quis salvar-
Ihes e santificar-Ihes cor po e alma. Daí a bela palavra da piedosa Catharina
Emmerich:
"Ele veio para curar os muitos e diferentes males de muitos e diferentes
modos, para expiar os pecados de todos os fiéis, pela mor te na Cruz, que
contém todos os tor mentos e sofrimentos, penitências e satisfações. Abriu
primeiro os grilhões e as algemas da miséria e do castigo temporal, com, as
chaves do amor ; ensinou, curou e socor reu os homens de todos os modos e
depois abriu a por ta do céu e do Limbo, que é a expiação, com a chave
principal: a mor te da Cruz.”
20. Judas, o traidor e seu procedimento na última refeição, em Betânia

Judas, com o apelido de lscariote, por terem os pais vivido algum tempo
naquele lugar (Cariot), foi recomendado por Bar tolomeu e Simão a Nosso
Senhor, quando este, no segundo ano de sua vida pública, veio a Meroz;
disseram-lhe que Judas era um homem instruído, distinto e obsequioso; que
muito desejava ser discípulo. Jesus suspirou e parecia triste, sem dizer o
motivo.
Judas, então na idade de 25 anos, linha cer ta erudição e dedicara-se também
ao comércio. Gostava de dar ares de impor tância e mostrava-se indiscreto e
intrometido, onde não o conheciam. Também era ambicioso e cobiçoso de
dinheiro e sempre tinha andado à procura da riqueza. A personalidade de
Jesus atraía-o muito e por isso tinha grande desejo de ser chamado seu
discípulo e par ticipar-lhe da glória.
Bar tolomeu e Simão, que o tinham recomendado, apresentaram-no a Jesus,
que o olhou muito amavelmente, mas com indizível tristeza. Judas pediu que
o deixasse tomar par te no ensino, ao que Jesus respondeu profeticamente
que podia, a não ser que quisesse deixá-Io a outrem.
"Judas era baixo e for te, muito ser viçal, ágil e loquaz; não era feio,
apresentava até um rosto amável e contudo repugnante e ignóbil. Os pais
não eram bons: o pai natural tinha ainda algumas boas qualidades e o que
havia de bom em Judas, fora herdado do pai. A mãe separara-se do marido;
quando Judas voltou mais tarde à casa mater na, esta teve, por causa dele,
um desentendimento com o marido e cheia de ira amaldiçoou o filho. A infeliz
vivia de impostura e fraude, pois ela e o marido eram prestidigitadores. Os
discípulos gostavam de Judas a princípio, pois era muito obsequioso, até
Ihes limpava as sandálias. Era um excelente andador e fez ao começo muitas
e longas caminhadas a ser viço da comunidade. Estava, porém, sempre cheio
de ciúme e inveja e pelo fim da vida de Jesus, se abor receu das viagens
apostólicas, da obediência e do mistério que envolvia a pessoa do Divino
Mestre e que não compreendia.”
Como um dos doze Apóstolos, Judas tor nou-se íntimo de Jesus. Ainda não
era mau e talvez não chegasse a sê-Io, se se tivesse vencido nas pequenas
coisas. A SS. Virgem exor tou-o muitas vezes. Como ele esperasse um reino
ter restre do Messias e essa esperança diminuísse, começou a ajuntar
dinheiro. Na última festa dos Taber náculos se deixou ar rastar inteiramente
ao mau caminho; já no domingo de Ramos andou com a traição no coração,
tendo já falado com os fariseus.
Quando Madalena, nas vésperas do domingo de Ramos, der ramou óleo
aromático sobre a cabeça de Jesus, o apóstolo infiel mur murou; onze dias
depois, teve outra ocasião de protestar contra igual "desperdício", como
dizia.
Foi quando por ordem de Jesus, se realizou em casa de Simão, na Betânia,
um banquete no qual ele tomou par te, em companhia dos doze Apóstolos e
das santas mulheres. Durante esse banquete, veio Madalena com ungüento,
que comprara na cidade, prostrou-se diante de Jesus, untando-lhe os pés e
enxugando-os com os sedosos cabelos. Depois der ramou também água
aromática sobre a cabeça do Mestre, de modo que o perfume encheu toda a
sala. Judas, indignado, falou então do desperdício, dizendo que o dinheiro se
podia ter dado aos pobres. Jesus, porém, afir mou que Madalena o ungira para
a mor te e onde fosse pregado o Evangelho, se anunciaria também essa ação.
Findo esse banquete, Judas cor reu, cheio de ira e avareza, a Jerusalém,
oferecendo-se aos fariseus para entregar-Ihes Jesus e perguntando quanto
lhe dariam por isso. Satisfeitíssimos, ofereceram-lhe trinta dinheiros.

21. A Jer usalém antiga

Aproximava-se a hora em que Cristo, nosso divino Salvador, havia de ir a


Jerusalém, para ser escar necido, açoitado e condenado à mor te. Para ter
uma compreensão melhor e mais clara dos acontecimentos em conexão com
as localidades, apresentamos ao leitor uma descrição mais detalhada da
antiga cidade de Jer usalém. Juntaremos a descrição da presente situação de
Jerusalém com as diversas infor mações de Anna Catharina Emmerich e os
resultados dos estudos arqueológicos.
A cidade de Jer usalém foi fundada e existe ainda hoje, assentada sobre três
montes principais: monte Sião, monte Moriá e monte Acra. Podemos
mencionar também o monte de Ophel, que, em verdade, é apenas o primeiro
degrau do monte das Oliveiras, sobre o qual passa o caminho de Jer usalém a
Betânia, mas não no ponto mais elevado. O monte das Oliveiras tem 60
metros mais de altura do que o monte Sião, que também de sua par te supera
os montes Moriá e Acra. Do monte das Oliveiras, que é separado da cidade
pelo vale do ribeiro Cedron, chama do vale de Josafá, se avista, além deste
vale, primeiro o monte Moriá, com os vastos edifícios do Templo. Como este
monte, no cume, não desse bastante lugar para o Templo, com todos os
respectivos átrios, o rei Salomão já o tinha feito cercar de um muro colossal,
que em par te era construído de imensas pedras, pelos lados de SO., S. e SE..
Os espaços for mados por essa muralha, mandou em par te encher de ter ra, a
outra par te mandou abobadar sobre uma rede de pilastras, até à altura do
monte do Templo. Dessa obra ficaram até em nossos dias alguns restos da
muralha, que for mam, nas par tes mais acessíveis, o "muro das lamentações",
ao qual os judeus costumam ir às sextas-feiras para chorar a destruição da
cidade e do Templo.
O vale de Josafá estende-se do N. ao S. do monte das Oliveiras se
vê, por tanto, além desse vale, o monte Moriá, com o Templo, ao fundo e mais
alto o Monte Sião, em cujo cume se achava o Cenáculo, casa da última ceia.
Naquele tempo estava ainda dentro da cidade, agora, porém, está fora dos
muros. De Sião para o S. se via o profundo vale de Hinom, que separa aquele
monte santo do monte do Mau Conselho. Do fundo desse vale se avistavam,
no alto, o monte Sião, o monte Moriá e o monte das Oliveiras. No vale de
Hinom se entregaram os Israelitas, sob vários reis maus, ao culto do falso
deus Moloch, o qual consistia em sacrifícios cruéis de crianças; ali se
achava a estátua de Moloch, feita de bronze e oca no interior ; para pôr-se
fogo havia uma aber tura no peito da estátua, dentro da qual deixavam cair as
criancinhas nas chamas do interior, para se queimarem, como sacrifícios ao
ídolo. Foi nesse vale que Judas se enforcou.
Entre os montes Sião e Moriá há um vale profundo, chamado agora vale de
Tiropeon, que ter mina ao S., no vale de Hinom; ao N., porém, subia
gradualmente até o monte Acra, que está situado ao N. do monte Moriá.
Nesse vale se achava, segundo as infor mações de Anna Catharina Emmerich,
a piscina de Betsaida, cujas águas de tempo em tempo efer vesciam; ali
curou Jesus o homem que estava paralítico havia 38 anos; depois da vinda do
Espírito Santo, se administrava ali o santo Batismo e mais tarde foi ali
constr uída uma Igreja que, não contando o Cenáculo, foi a primeira Igreja
cristã.
No vale de Tiropeon havia uma ponte, pela qual se podia ir do monte Moriá a
Sião, subindo o caminho suavemente até ao cume deste último.
Nosso divino Salvador, tendo sido preso no hor to de Getsemani, que se acha
na encosta ocidental do monte das Oliveiras, foi conduzido para baixo desse
monte, sobre a ponte do Cedron e pelo vale de Josafá. Subiu pelo Monte
Ophel, no lado ocidental do Templo, ao monte Sião, em cujo cume, não muito
longe do Cenáculo, se achava o tribunal de Anás e Caifás.
Depois de condenado, levaram Jesus ao tribunal de Pilatos, que ficava ao
nor te do monte do Templo, entre o Moriá e o Acra. Ali se achava também a
cidadela Antônia, construída pelos Romanos, para dali manterem o povo, no
Templo e nos outros bair ros da cidade, sob o jugo de Roma. Do tribunal de
Pilatos ao palácio de Herodes, no monte Acra, não havia grande distância.
Depois de escar necido por Herodes, Jesus foi reconduzido a Pilatos, onde O
açoitaram, O coroaram de espinhos e, finalmente, O condenaram à mor te. O
caminho do Gólgota dirigia-se do palácio de Pilatos para oeste, entre Sião e
Acra, até à por ta da cidade. Esta era uma das mais impor tantes de
Jerusalém; por ela saia não só quem viajava para Jope, por mar, mas também
quem queria ir a Belém, ao sul. Pois o vale de Hinom, ao sul da cidade,
impedia o caminho e era preciso por tanto, sair peia por ta ocidental; pouco
além da cidade, se dirigia o caminho para o sul, ao oeste para Belém e
Hebron. Próximo dessa por ta ocidental, ao sul, se achava também a colossal
tor re de Davi. Os ar redores do Gólgota per tencem ainda ao Monte Sião, e
assim se pode dizer que no monte Sião foi fundada a Nova Aliança.
Da por ta ocidental se estendia o muro da cidade para o nor te; cercando
grande par te do monte Acra, dirigia-se então para o leste e depois para o
sul, até chegar ao muro que encer ra o lado oriental do monte Moriá.
A Ser va de Deus descreve detalhadamente algumas par tes da Jer usalém
antiga, com as seguintes palavras:
"A primeira por ta de Jerusalém, ao lado oriental da cidade, contado da
esquina do Templo, de SE. em direção ao sul, era a que dava para o bair ro de
Ofel; a por ta, porém, que ficava mais per to da esquina do NE. do Templo e
dava para o nor te, era a por ta das "Ovelhas". Entre essas duas por tas fora
constr uída outra, não havia muito tempo, (antes da crucifixão), a qual
conduzia a duas ruas, que subiam uma acima da outra, do lado oriental do
monte do Templo e que na maior par te eram habitadas por pedreiros e outros
operários. As casas encostavam-se nos alicerces do Templo. Quase todas as
casas dessas duas r uas eram propriedade de Nicodemos, que as mandara
constr uir. Os pedreiros que nelas moravam, pagavam aluguel em dinheiro ou
em trabalho, pois estavam sempre em relações com Nicodemos e seu amigo
José de Arimatéia. Este possuía grandes pedreiras em suas ter ras e
negociava em pedras. Nicodemos constr uiu, pois, uma bela por ta nova para
essas ruas. Chamavam-na agora por ta Moriá. Depois de ter minada, Jesus foi
o primeiro a entrar por ela, no domingo de Ramos.
Entrou, por tanto, pela por ta nova de Nicodemos, pela qual ninguém entrara
ainda e foi sepultado no sepulcro novo de José de Arimatéia, no qual antes
ninguém fora sepultado. Aquela por ta foi mais tarde fechada com alvenaria e
for mou-se a lenda de que por ela os cristãos haviam de entrar de novo. Hoje
ainda há naquele lugar uma por ta fechada com um muro, à qual os turcos
chamam por ta Áurea, ou Por ta de Ouro.
O caminho reto da por ta das Ovelhas a oeste, se se pudesse passar por todos
os muros, seguiria entre o Gólgota e o extremo noroeste do monte Sião. Da
por ta até o Gólgota, em linha reta, havia um caminho de 3/4 de hora; do
palácio de Pilatos ao Gólgota, em linha reta, talvez 5/8 de uma hora. A
cidadela Antônia estava situada ao lado NO. do monte do Templo, sobre um
rochedo saliente; quem se dirigisse do palácio de Pilatos a oeste, pelas
arcadas da esquerda tinha a cidadela ao lado esquerdo. Sobre os muros
dessa cidadela havia um largo aber to, do qual se avistava par te do foro. Daí
fazia Pilatos muitas proclamações ao povo, como por exemplo, das novas
leis.
Na via sacra, dentro da cidade, teve Jesus o Calvário algumas vezes à
direita. (O caminho de Jesus deve ter se dirigido em par te a SO.). Jesus foi
conduzido pela por ta do muro interior da cidade, que dava para Sião, bair ro
que estava situado muito alto. Fora desse muro, para oeste, havia uma par te
da cidade que tinha mais hor tas e jardins do que casas; per to do muro
exterior da cidade, havia também belos sepulcros, com entradas de
alvenaria, ar tisticamente talhadas na rocha, e em cima, às vezes lindos
jardins. Nesse bair ro também se achava a casa que Lázaro possuía em
Jerusalém, com belos jardins, per to da por ta da esquina, onde o muro
exter no, a oeste da cidade, se dirigia para o S.. Parece-me que uma pequena
por ta própria conduzia, através desse muro, aos jardins, não longe da por ta
das Ovelhas, Jesus e os seus entravam e saiam por ali de vez em quando,
com licença de Lázaro. A por ta, na esquina de NO., dava para o caminho de
Betsur, situado mais para o N. do que Emaús e Jope. Ao nor te do muro
exterior da cidade se encontravam vários mausoléus reais. Essa par te
ocidental da cidade era a mais baixa: descia um pouco em direção ao muro,
mas per to deste subia um pouco e nessa encosta havia belas hor tas e
também vinhas. Atrás destas passava um caminho largo de alvenaria, ao
longo do muro, o qual, em algumas par tes, era transitável e tinha subidas
para cima do muro e para as tor res, as quais não tinham escadas no interior,
como as das for talezas de hoje. Além do muro, fora da cidade, havia uma
descida para o vale, de modo que o muro, nessa par te baixa da cidade,
ficava como sobre um elevado baluar te. Na encosta fora do muro, havia
também hor tas e vinhas. O caminho de Jesus para o Calvário não passou por
essas hor tas e vinhas, mas essa par te da cidade lhe ficou à direita, ao nor te,
pelo fim do caminho. Simão de Cirene, porém, veio desse bair ro, entrando no
caminho de Jesus. A por ta pela qual Jesus foi conduzido para fora, não dava
diretamente para oeste, mas na direção do sol às 4 horas da tarde (SO.). Ao
sair da por ta, se via que o muro, à esquerda, um pouco para o sul, fazia uma
cur va para oeste e ia depois de novo para o sul, rodeando o monte Sião.
Nesse mesmo lado esquerdo, ao sair da por ta, havia, na direção de Sião, uma
poderosa tor re, como uma cidadela. Per to da por ta, à esquerda, outra por ta;
eram essas as por tas da cidade que mais se aproximavam. Esta última dava
para oeste, no vale, onde o caminho se dirigia à esquerda, isto é, para o sul
e conduzia a Belém. O caminho de Jesus, pouco além da por ta, se dirigia à
direita, para o Monte Calvário, que, ao lado oriental, que dá para a cidade, é
íngreme, mas na par te ocidental for ma uma encosta branda. Além do monte,
a oeste, se vê uma par te do caminho de Emaús, ao lado do qual havia um
prado, onde vi S. Lucas colhendo er vas; foi depois da ressur reição, quando
ele, junto com Cleofas, iam a Emaús e se encontraram com Jesus.
Pendente da Cruz, Nosso Senhor olhava na direção do sol às dez horas da
noite, entre oeste e nor te; virando a cabeça um pouco à direita, podia ver
uma par te da cidadela Antônia. Ao longo do muro da cidade, a leste e ao
nor te do Cal vário, havia também hor tas, vinhas e sepulcros. A NE., ao pé do
Calvário, foi enter rada a Cruz. Do outro lado desse lugar, para NE., havia
belas vinhas na encosta do monte. Do lugar da crucificação o sul, caia a
vista sobre a casa de Caifás, ficando a tor re de Davi mais ao alto.

2
A última Ceia

1. Preparativos para a ceia pascal


2. O cenáculo ou casa da Ceia
3. Disposições para a refeição pascal
4. Jesus vai a Jer usalém
5. A ultima ceia pascal
6. O Lava-pés
7. Instituição da Sagrada Eucaristia
8. Instruções secretas e consagrações
9. Oração solene de despedida de Jesus

A última Ceia

1. Preparativos para a ceia pascal:


(Quinta-feira Santa, 13 de Nisan ou 29 de Março; Jesus na idade de 33 anos,
18 semanas menos 1 dia)

Foi ontem à noite que se efetuou em Betânia a última e grande refeição de


Nosso Senhor e dos seus amigos, em casa de Simão, curado da lepra por
Jesus e durante a qual Maria Madalena ungiu Jesus pela última vez. Judas,
indignado com isso, cor reu a Jer usalém, onde negociou ainda uma vez com
os príncipes dos sacerdotes, para entregar-lhes Jesus. Depois da refeição,
voltou Jesus à casa de Lázaro e uma par te dos discípulos dirigiram-se à
albergaria, situada fora de Betânia. Nicodemos veio ainda cre noite à casa
de Lázaro, onde teve longa conversa com o Senhor ; voltou a Jerusalém antes
do amanhecer, acompanhado numa par te do caminho por Lázaro.
Os discípulos já tinham perguntado a Jesus onde queria comer o cordeiro
pascal. Hoje, antes da madrugada, Nosso Senhor mandou vir Pedro e João e
falou-lhes muito de tudo que deviam comprar e preparar em Jerusalém;
disse-lhes que, subindo o monte Sião, encontrariam um homem com umjar ro
de água. (Eles já conheciam esse homem, pois fora quem já na última
Páscoa, em Betânia, preparara a ceia de Jesus; por isso diz S. Mateus: um
cer to homem). Deviam seguí-lo até à casa em que morava e dizer-lhe: "O
Mestre manda avisar-te que seu tempo está per to e que quer celebrar a
Páscoa em tua casa". Deviam pedir que lhes mostrasse o Cenáculo, que já
estaria preparado e fazer-lhe depois todos os preparativos necessários.
Vi os dois Apóstolos subirem a Jer usalém, seguindo um bar ranco ao Sul do
Templo e subirem ao monte Sião pelo lado setentrional. Ao lado Sul do monte
do Templo havia algumas fileiras de casas; seguiram um caminho que
passava em frente destas casas, ao longo de um ribeiro, que cor ria no fundo
do bar ranco e os separava das casas. Tendo chegado à altura de Sião, que é
mais alto do que o monte do Templo, dirigiramse a um largo um pouco em
declive, na vizinhança de um velho edifício, cercado de pátios; ali, no largo,
encontraram o homem que lhes fora indicado, seguiram-no e per to da casa
lhe disseram o que Jesus lhes ordenara. Ele se regozijou muito de os ver e,
ouvindo o recado, respondeu-lhes que a refeição já lhe tinha sido
encomendada (provavelmente por Nicodemos), sem que soubesse para quem
era, mas que muito lhe agradava saber que era para Jesus. Esse homem era
Elí, cunhado de Zacarias de Hebron, o mesmo em cuja casa Jesus anunciara,
no ano anterior, em Hebron, a mor te de S. João Batista. Tinha só um filho,
que era Levita e amigo de Lucas, antes deste se juntar a Jesus, e além
desse, também 5 filhas solteiras. Todos os anos ia com os criados à festa e,
alugando uma sala, preparava a Páscoa para as pessoas que não tinham casa
em Jerusalém. Nesse ano tinha alugado um cenáculo, per tencente a
Nicodemos e José de Arimatéia. Mostrou aos dois Apóstolos a sala e o
ar ranjo interior.

2. O cenáculo ou casa da Ceia

Ao lado sul do monte Sião, per to do castelo abandonado de Davi e do


mercado situado na subida, à leste desse castelo, se acha um velho e sólido
edifício, entre duas fileiras de ár vores copadas e no meio de um pátio
espaçoso, cercado de muros for tes. A direita e à esquerda da entrada há
ainda outras construções encostadas ao muro: à direita a habitação do
mordomo e, per to desta, outra, à qual Nossa Senhora e as santas mulheres
às vezes se retiravam, depois da mor te de Nosso Senhor. O Cenáculo,
antigamente mais espaçoso, ser vira de morada aos bravos capitães de Davi,
que ali se exercitavam no manejo das ar mas; também estivera ali por algum
tempo a Arca da Aliança antes da construção do Templo e ainda há indícios
da sua estada num subter râneo da casa. Vi também uma vez o profeta
Malaquias escondido nos mesmos subter râneos, onde escreveu as profecias
acerca da sagrada Eucaristia e do sacrifício do Novo Testamento. Salomão
tinha também esta casa em muito respeito, por cer ta relação simbólica, a
qual, porém, esqueci. Quando grande par te de Jerusalém foi destr uída pelos
Babilônios, ficou salva essa casa, a respeito da qual tenho visto muitas
outras coisas, mas lembro-me só do que acabo de contar.
O edifício estava meio ar ruinado, quando se tor nou propriedade de
Nicodemos e José de Arimatéia, que restauraram a casa principal e aco-
modaram-na bem, para a celebração da festa da Páscoa, fim para o qual
costumavam alugá-Ia a forasteiros, como fizeram também na última Páscoa
do Senhor. Além disso, ser viam-Ihes a casa e os pátios de ar mazém para
monumentos sepulcrais e pedras de construção, como também de oficina
para os operários, pois José de Arimatéia possuía excelentes pedreiras nas
suas ter ras e negociava em pedras sepulcrais e variadíssimas colunas e
capitéis, esculpidos sob sua direção. Nicodemos trabalhava muito como
constr utor e, nas horas vagas, gostava de ocupar-se também com a
escultura; fora da época das festas, esculpia estátuas e monumentos de
pedra, na sala ou no subter râneo debaixo desta. Essa ar te pusera-o em
contato com José de Arimatéia; tor naram-se amigos e muitas vezes se
associaram também nas empresas.
Nessa manhã, enquanto Pedro e João, enviados de Betânia por Jesus,
conversavam com o homem que tinha alugado o Cenáculo para aquele ano, vi
Nicodemos indo para além e para aquém das casas à esquerda do pátio, para
onde tinham sido transpor tadas muitas pedras, que impediam as entradas da
sala do Cenáculo. Havia uma semana, eu vira algumas pessoas ocupadas em
pôr as pedras ao lado, em limpar o pátio e preparar o Cenáculo para a
celebração da Páscoa; julgo até ter visto, entre outros, alguns discípulos de
Jesus, talvez Aram e Temeni, sobrinhos de José de Arimatéia.
A casa principal, o Cenáculo propriamente dito, está quase no meio do pátio,
um pouco para o fundo. É um quadrilátero comprido, cercado por uma arcada
menos alta de colunas, a qual, afastados os biombos entre os pilares, pode
ser unida à grande sala interior ; pois todo o edifí cio é aber to de lado a lado
e pousa sobre colunas e pilares; apenas estão as passagens fechadas
ordinariamente por biombos. A luz entra por aber turas existentes no alto das
paredes. Na par te estreita da frente, há um vestíbulo, ao qual conduzem três
entradas; depois se entra na grande sala interior, alta e com bom soalho
lajeado; do teto pendem diversas lâmpadas; as paredes estão or nadas para a
festa, até meia altura, com belas esteiras e tapetes e no teto há uma
aber tura cober ta com um tecido brilhante, transparente, semelhante à gaze
azul.
O fundo da sala está separado do resto por uma cor tina igual. Essa divisão
do Cenáculo em três par tes dá-lhe uma semelhança com o Templo; há
também um adro, o santo e o santo dos santos. Nesta última par te é que são
guardados, à direita e à esquerda, as vestimentas e vários utensílios. No
meio há uma espécie de altar. Sai da parede, um banco de .pedra com a
ponta cor tada no meio das duas faces laterais; deve ser a par te superior do
for no, no qual o cordeiro pascal é assado; pois hoje, durante a refeição,
estavam os degraus em roda muito quentes. Ao lado dessa par te do
Cenáculo, há uma por ta, que dá para o alpendre que fica atrás da pedra
saliente; de lá é que se desce ao lugar onde se acende o fogo no for no; há ali
ainda outros subter râneos e adegas, debaixo da grande sala. Naquela pedra
ou altar saliente da parede há várias divisões, semelhantes a caixas ou
gavetas, que se podem tirar ; em cima há também aber turas como de uma
grelha, uma aber tura também para fazer fogo e outra para apagá-Io. Não sei
mais descrever exatamente tudo que ali vi, parece ter sido um for no para
cozer o pão ázimo da Páscoa e outros bolos ou também para queimar incenso
ou cer tos restos das refeições da festa; é como uma cozinha pascaI. Por
cima desse for no ou altar há uma caixa de madeira, saliente, semelhante a
um nicho, que tem em cima uma aber tura, com uma válvula, provavelmente
para deixar sair a fumaça. Diante desse nicho ou pendente por cima dele, vi
a figura de um cordeiro pascal; tinha cravado na garganta uma faca e o
sangue parecia cair gota a gota sobre o altar ; não sei mais exatamente como
era feito. Dentro do nicho da parede há três ar mários de diversas cores, os
quais se fazem girar como os nossos taber náculos, para se abrirem e
fecharem. Neles vi todas as espécies de vasos para a Páscoa, taças e mais
tarde também o SS. Sacramento.
Nas salas laterais do Cenáculo há assentos ou leitos em plano inclinado,
feitos de alvenaria, sobre os quais se acham mantas grossas enroladas; são
leitos de dor mir. Debaixo de todo o edifício há belas adegas; antigamente
esteve ali no fundo a Arca da Aliança, onde, em seguida, foi construído o
for no pascaI. Debaixo da casa há cinco esgotos, que levam todas as águas e
imundícies monte abaixo, pois a casa está situada no alto. Já antes vi Jesus
curar e ensinar aqui; às vezes passavam alguns discípulos a noite nas salas
laterais.

3. Disposições para a refeição pascal

Tendo os Apóstolos falado com Helí de Hebron, voltou este pelo pátio à casa;
eles, porém, se dirigiram para a direita, a Sião, desceram pelo lado nor te,
passaram uma ponte e, seguindo por veredas ladeadas de sebes verdejantes,
foram pelo outro lado do bar ranco, até às fileiras de casas ao sul do Templo.
Ali era a casa do velho Simeão, que mor rera depois da apresentação de
Jesus no Templo. Moravam então lá os filhos do venerando ancião; alguns
eram secretamente discípulos de Jesus. Os Apóstolos falaram a um deles,
que era empregado no Templo; era homem alto e muito moreno. Ele desceu
com os Apóstolos, passando a leste do Templo, por aquela par te de Ophel
pela qual Jesus entrara triunfalmente em Jerusalém, no domingo de Ramos;
assim foram pela cidade, ao nor te do Templo, até o Mercado de gado. Vi na
par te meridional do mercado pequenos recintos, onde belos cordeiros
saltavam como em pequenos jardins.
Na entrada triunfal de Jesus pensei que isso fora feito para abrilhantar a
festa; mas eram cordeiros pascais, que se vendiam ali. Vi o filho de Simeão
entrar num desses recintos; os cordeiros seguiram-no, saltando, e
empur ravam-no com as cabeças, como se o conhecessem. Ele escolheu
quatro, que foram levados ao Cenáculo. Vi-o também de tarde no Cenáculo,
ajudando na preparação do cordeiro pascaI.
Vi como Pedro e João deram ainda vários recados na cidade, encomendando
muitas coisas. Vi-os também fora de uma por ta, ao nor te do monte Cal vário
e a NO da cidade; entraram numa estalagem, onde ficaram nesses dias
muitos discípulos. Era a estalagem construída em Jerusalém para os
discípulos, a qual estava sob a administração de Seráfia, (conhecida pelo
nome de Verônica). Pedro e João mandaram alguns discípulos de lá ao
Cenáculo, para dar alguns recados, dos quais me esqueci.
Foram também à casa de Seráfia, à qual tinham de pedir diversas coisas; o
marido desta, membro do conselho, estava a maior par te do tempo fora de
casa, em negócios e, mesmo quando estava em casa, ela o via pouco. Seráfia
era uma mulher quase da idade da SS. Virgem e há tempo estava em relações
com a Sagrada Família; pois quando o Menino Jesus, depois da festa, ficara
atrás, em Jerusalém, comera em casa dela.
Os dois Apóstolos receberam ali diversos objetos, em cestos cober tos, que
foram levados ao Cenáculo, em par te pelos discípulos. Foi também ali que
receberam o cálice de que Nosso Senhor se ser viu, na instituição da sagrada
Eucaristia.

4. Jesus vai a Jer usalém

Na manhã em que os dois Apóstolos andaram por Jerusalém, ocupados com


os preparativos da Páscoa, Jesus se despediu muito comovido das santas
mulheres, de Lázaro e de sua Mãe em Betânia, dando-Ihes ainda algumas
instruções e exor tações.
Vi o Senhor conversar com a Virgem SS. separadamente; disse-lhe, entre
outras coisas, que tinha mandado a Pedro, o representante da fé, e João, o
representante do amor, para prepararem a Páscoa em Jerusalém. De
Madalena, que estava desvairada de dor e tristeza, disse o Mestre que o seu
amor era indizível, mas ainda ar raigado na car ne e que por isso ficava
desatinada de dor. Falou também das intenções traiçoeiras de Judas e a
Santíssima Virgem pediu por este.
Judas tinha ido novamente de Betânia a Jerusalém, sob pretexto de fazer
várias compras e pagamentos. De manhã inter rogou Jesus os nove Apóstolos
a respeito, apesar de saber perfeitamente o que Judas estava fazendo. Este
cor reu todo o dia pelas casas dos fariseus, combinando tudo com estes;
mostraram-lhe até os soldados que deviam apoderar-se de Jesus. O traidor
premeditou todos os passos que carecia dar, para que pudesse sempre
explicar a sua ausência; não voltou para junto de Nosso Senhor, senão pouco
antes de comerem o cordeiro pascal. Vi-lhe todas as conspirações e os
pensamentos. Quando Jesus falou a Maria acerca de Judas, vi muitas coisas
em relação ao caráter deste; era ativo e atencioso, mas cheio de avareza,
ambição e inveja e não lutava contra as paixões. Fizera também milagres e
curara doentes na ausência de Jesus.
Quando Nosso Senhor comunicou à SS. Virgem o que havia de suceder, pediu
ela de modo tocante que a deixasse mor rer com Ele. Mas Jesus exor tou-a a
que mostrasse mais calma na dor do que as outras mulheres; disse-lhe
também que ressuscitaria e lhe indicou o lugar onde lhe, apareceria. A Mãe
SS. então não chorou muito, mas ficou tão profundamente triste e séria, que
impressionou a todos. Nosso Senhor, como Filho piedoso, agradeceu-lhe todo
o amor que lhe tinha mostrado; abraçou-a com o braço direito e aper tou-a ao
coração; disse-lhe também que faria a ceia com ela espiritualmente,
indicando-lhe a hora em que a receberia. Ainda se despediu de todos, muito
comovido, e instruiu-os sobre muitas coisas.
Cerca de meio dia par tiu Jesus de Betânia, com os nove Apóstolos, tomando
o caminho de Jerusalém; seguiram-no sete discípulos que, com exceção de
Natanael e Silas, eram naturais de Jer usalém e ar redores. Lembro-me que
entre estes estavam João Marcos e o filho da viúva pobre, que na quinta-
feira antecedente oferecera o denário no Templo, enquanto Jesus ensinava.
Havia poucos dias Jesus admitira o último como discípulo. As santas
mulheres seguiram mais tarde.
Jesus e a comitiva andaram por aqui e por ali, por diversos caminhos ao
redor do monte das Oliveiras, no vale de Josafá e até o monte Cal vário;
durante todo o caminho, continuou a ensinar-lhes. Disse aos Apóstolos, entre
outras coisas, que até agora lhes dera pão e vinho, mas hoje queria dar-lhes
seu cor po e sangue, que lhes daria e deixaria tudo que tinha. Nosso Senhor
disse-o de uma maneira tão tocante, que toda a alma parecia fundir-se-Lhe e
languir de amor, com o desejo de se lhes dar. Os discípulos não O
compreenderam, julgaram que falava do cordeiro pascal. Não se pode
exprimir quanto havia de amor e resignação nos últimos discursos que fez em
Betânia e aqui. As santas mulheres foram mais tarde à casa de Maria, mãe
de Marcos.
Os sete discípulos que seguiram Nosso Senhor a Jer usalém, não O
acompanharam no caminho, mas levaram as vestimentas da cerimônia da
Páscoa ao Cenáculo, puseram-nas no vestíbulo, voltando depois à casa de
Maria, mãe de Marcos. Quando Pedro e João vieram com o cálice da casa de
Seráfia ao Cenáculo, já encontraram todo o vestuário da cerimônia no
vestíbulo, onde os discípulos e alguns outros o tinham colocado; também
tinham cober to as paredes da sala com tapeçaria, desprendido as aber turas
do teto e aprontado três candeeiros de suspensão. Pedro e João foram então
ao vale de Josafá, para chamar a Jesus e aos nove Apóstolos. Os discípulos
e amigos que comeram com eles o cordeiro pascal, vieram mais tarde.

5. A última ceia pascal

Jesus e os seus comeram o cordeiro pascal no Cenáculo, divididos em três


grupos de doze, dos quais cada um era presidido por um chefe, que fazia às
vezes de pai de família. Jesus tomou a refeição com os doze Apóstolos, na
sala do Cenáculo. Natanael presidiu a outra mesa, numa das salas laterais e
outros doze tinham como pai de família Eliaquim, filho de Cleofas e Maria
Heli, ir mão de Maria Cleofas e que fora antes discípulo de João Batista.
Três cordeiros tinham sido imolados para eles no Templo, com as cerimônias
do costume. Mas havia lá um quar to cordeiro, que foi imolado no Cenáculo;
foi o que Jesus comeu com os doze Apóstolos. Judas ignorava essa
circunstância, pois estava ocupado com diversos negócios e com a traição e
ainda não estava de volta, por ocasião da imolação do cordeiro; veio alguns
instantes antes da refeição pascal. A imolação do cordeiro destinado a Jesus
e aos Apóstolos foi uma cerimônia singular mente tocante; realizou-se no
vestíbulo do Cenáculo; Simeão, que era levita, ajudou. Os Apóstolos e os
discípulos estavam também presentes, cantando o salmo 118. Jesus falou
então de uma nova época, que começava; (veja n. 1 do primeiro capítulo)
disse que então se devia cumprir o sacrifício de Moisés e a significação do
cordeiro pascal simbólico; o cordeiro devia por isso ser imolado do mesmo
modo que o do Egito, do qual só então o povo de Israel sairia
verdadeiramente liber to.
Os vasos e tudo o que era mais precioso, estavam prontos; trouxeram um
belo cordeirinho, or nado de uma grinalda, que foi tirada e enviada à SS.
Virgem, que ficara com as santas mulheres em outra sala. O cordeiro foi
amar rado pelo meio do cor po numa tábua, o que recordou Jesus preso à
coluna da flagelação. O filho de Simeão segurou a cabeça do cordeiro para
cima; Jesus cravou-lhe a faca no pescoço, entregando-a depois ao filho de
Simeão, que continuou a preparação do cordeiro. Jesus parecia sentir dor e
repugnância em ferí-lo. Fê-lo rapidamente, mas com muita gravidade. O
sangue foi colhido numa bacia; trouxeram um ramo de hissopo, que Jesus
molhou no sangue. Em seguida avançou para a por ta, tingiu com o sangue os
dois por tais e a fechadura, fixando depois em cima da por ta, o ramo tinto de
sangue. Durante esse ato, lhes ensinou solenemente e disse, entre outras
coisas, que o Anjo exter minador passaria ali; que fizessem, porém, a
adoração naquele lugar, sem medo e inquietação, depois dele, o verdadeiro
Cordeiro pascal, ter sido imolado; começaria um tempo e um sacrifício novo,
que duraria até o fim do mundo.
Dirigiram-se então ao fogão, no fundo da sala, onde outrora estivera a Arca
da Aliança; já estava aceso o fogo. Jesus aspergiu o for no com o sangue e
consagrou-o como altar ; o resto do sangue e a gordura vazaram-nos no fogo,
debaixo do altar. Todas as por tas estavam fechadas durante essa cerimônia.
Entretanto, o filho de Simeão acabara de preparar o cordeiro pascal. Pusera-
o numa estaca, as per nas dianteiras fixadas num pau transversal, as
traseiras na estaca. Ai! parecia tanto com Jesus pregado na Cruz! Em
seguida foi posto no for no, para ser assado, junto com os outros três,
trazidos do Templo.
Os cordeiros pascais dos judeus eram todos imolados no átrio do Templo, em
três lugares diversos: para as pessoas de distinção, para a gente pobre e
para os forasteiros. O cordeiro pascal de Jesus não foi imolado no Templo,
mas todo o resto da cerimônia foi feita rigorosamente confor me a lei. Jesus
falou mais tarde a esse respeito; disse que o cordeiro era simplesmente um
símbolo; que Ele mesmo, na manhã seguinte, devia ser o verdadeiro Cordeiro
pascal. Não sei mais tudo quanto ensinou nessa ocasião.
Desse modo instruiu Jesus os Apóstolos sobre o cordeiro pascal e sua
significação. Por fim veio também Judas. Tendo então chegado a hora,
prepararam-se as mesas. Os convivas vestiram as vestes da cerimônia, que
se achavam no vestíbulo; outro calçado, uma veste branca, à maneira de
túnica ou camisa e por cima um manto, cur to na frente e comprido atrás;
ar regaçaram as vestes com o cinto, sendo também as mangas largas
ar regaçadas. Era o traje de viagem, prescrito pela Lei mosaica. Assim se
dirigiu cada grupo à respectiva mesa; os dois grupos de discípulos para as
salas laterais, o Senhor e os Apóstolos à sala do Cenáculo. Tomando todos
um bastão na mão, caminharam, dois a ,dois, para a mesa, onde ficaram em
pé diante dos respectivos lugares, os bastões encostados nos braços e as
mãos levantadas. Jesus, que estava no meio da mesa, recebera do mordomo
dois pequenos bastões, um pouco recur vados em cima, semelhantes a
cajados cur tos de pastores. Tinham em cima uma forqueta, a maneira de
ramo cor tado. Jesus pô-Ios à altura da cintura, em for ma de cruz, diante do
peito e durante a oração colocou os braços estendidos sobre as forquetas.
Nessa atitude tinham os movimentos do Mestre algo de singular mente
tocante e parecia ser vir-lhe de apoio a cruz, que em pouco devia pesar-lhe
sobre os ombros. Nessa posição cantaram: "Bendito seja o Senhor, Deus de
Israel" e "Louvado seja o Senhor, etc.". Ter minada a oração, Jesus deu um
dos bastões a Pedro e o outro a João. Puseram-nos de lado ou fizeram-nos
passar de mão a mão, entre os outros discípulos; já não me lembro mais
exatamente.
A mesa era estreita e tão alta, que passava meio pé acima dos joelhos de um
homem; tinha a for ma de um segmento de círculo. Em frente de Jesus, na
par te interior do semicírculo, havia um lugar livre, para ser vir os pratos. Se
bem me lembro, estavam à direita de Jesus: João, Tiago o Maior e Tiago o
Menor ; no lado estreito, à direita, Bar tolomeu; em seguida, no semicírculo
interior, Tomé e Judas Iscariotes; à esquerda, Simeão e per to deste, no lado
interior, Mateus e Filipe.
No meio da mesa, numa travessa, estava o cordeiro pascal. A cabeça
repousava-lhe sobre os pés dianteiros, postos em for ma de cruz, as per nas
traseiras estavam estendidas; a margem da travessa, em roda do cordeiro,
estava cober ta de alho. Havia mais uma travessa com o assado da Páscoa, a
cada lado desta um prato com er vas verdes, dispostas umas contra as
outras, em pé e mais outro prato com tufos de er vas amargas, semelhantes a
er va de bálsamo. Diante de Jesus havia um prato com er vas de cor verde-
amarelada e outro com molho escuro. Pães redondos ser viam de pratos para
os convivas, que usavam facas de osso.
Depois da oração, o mordomo pôs na mesa, diante de Jesus, a faca para
trinchar o cordeiro. Pós também diante de Nosso Senhor um copo de vinho e
encheu de um jar ro seis copos, cada um para dois discípulos. Jesus benzeu o
vinho e bebeu, os Apóstolos beberam, dois a dois em cada copo. O Senhor
trinchou o cordeiro; os Apóstolos apresentaram cada um com o seu bolo
redondo, com uma espécie de gancho, recebendo cada um a sua par te.
Comeram-na apressadamente, separando a carne dos ossos com as facas de
osso. Os ossos descar nados foram depois queimados. Comeram também às
pressas do alho e da verdura, que ensoparam no molho. Comeram o cordeiro
pascal em pé, reclinados ape nas um pouco aos encostos dos assentos.
Jesus par tiu também um dos pães ázimos, recobrindo uma par te; o resto
distribuiu. Comeram todos então os respectivos bolos. Trouxeram ainda um
cálice de vinho, mas Jesus não bebeu mais. Disse: Tomai este vinho e
repar ti-o entre vós, pois não beberei mais vinho, até chegar o reino de Deus.
Tendo bebido dois a dois, cantaram e em seguida Jesus ainda rezou e
ensinou; finalmente todos lavaram as mãos. Só então se deitaram nos
assentos. Tudo que precedeu, foi feito muito depressa, ficando os convivas
em pé; somente ao fim se encostaram um pouco aos assentos.
O Senhor trinchara também outro cordeiro, que foi depois levado para as
santas mulheres, a um dos edifícios laterais do pátio, onde tomaram a ceia.
Comeram ainda er vas e alface com molho. Jesus estava extraordinariamente
amável e sereno; nunca o tinha visto assim. Disse também aos Apóstolos que
esquecessem tudo que os pudesse angustiar. A SS. Virgem, à mesa das
mulheres, estava também muito serena. Comoveu-me profundamente ver
como se virava com tanta simplicidade, quando as outras mulheres se lhe
aproximavam, puxando-a pelo véu, para lhe falarem.
A princípio Jesus conversou muito amavelmente com os Apóstolos, enquanto
ceavam; mas depois se tor nou mais sério e triste. "Um de vós me atraiçoará,
disse, cuja mão está comigo à mesma mesa." Jesus ser viu alface, de que
havia só um prato, àqueles que lhe estavam ao lado; encar regou a Judas, que
lhe ficava quase em frente, de distribuí-Ia pelo outro lado. Os Apóstolos
assustaram-se muito, quando Jesus falou do traidor, dizendo: "Um que está
comigo à mesma mesa", ou "que mete a mão no mesmo prato comigo", o que
quer dizer : "Um dos doze que comigo comem e bebem, um daqueles com os
quais par to o meu pão." Com essas palavras não indicou Judas aos outros;
pois - "meter a mão no mesmo prato" - era uma alocução geral, indicando
relações da maior intimidade. Contudo, quis também dar um aviso a Judas,
que no mesmo momento de fato meteu com o Salvador a mão no mesmo
prato, para distribuir alface. Jesus disse ainda: "O Filho do Homem vai
cer tamente para a mor te, como está escrito a respeito dele, mas ai do
homem por quem será traído! Melhor fora nunca haver nascido.”
Os Apóstolos ficaram muito per turbados e perguntaram um após outro:
"Senhor, sou eu?" pois todos bem sabiam que nenhum compreendera o
sentido daquelas palavras. Pedro inclinou-se para João, por detrás de Jesus
e fez-lhe um sinal, para perguntar ao Senhor quem era; pois tendo sido
censurado tantas vezes por Jesus, receava que se referisse a ele. Ora, João
estava deitado à direita do Senhor e, como todos comiam com a mão direita,
encostando-se sobre o braço esquerdo, estava ele com a cabeça per to do
peito de Jesus. Aproximou mais a cabeça do peito do Mestre e perguntou-lhe:
Senhor, quem é? Então lhe foi revelado que o Senhor se referia a Judas. Não
vi Jesus pronunciar as palavras: "É aquele a quem dou o bocado de pão
molhado"; não sei se o disse muito baixo a João; este, porém, o percebeu,
quando Jesus molhou o pão envolvido em alface e afetuosamente o ofereceu
a Judas, que justamente nesse momento perguntava também: "Senhor, sou
eu?" Jesus olhou-o com muito amor e deu-lhe uma resposta concebida em
ter mos gerais. Era entre os Judeus sinal de amizade e intimidade; Jesus fê-Io
muito afetuosamente, para exor tá-Io, sem o comprometer perante os outros.
Judas, porém, estava com o coração cheio de raiva. Vi, durante toda a ceia,
uma pequena figura hedionda sentada aos seus pés, a qual algumas vezes lhe
subiu até o coração. Não percebi se João repetiu a Pedro o que ouvira de
Jesus; mas vi que o sossegou com um olhar.

6. O Lava-pés

Levantaram-se da mesa e, enquanto mudavam e ar ranjavam as vestes, como


costumavam fazer antes da oração solene, entrou o mordomo, com dois
criados, para levar a mesa, tirá-Ia do meio dos assentos que a cercavam e
pô-Ia ao lado. Tendo feito isso, recebeu ordem de Jesus para trazer água ao
vestíbulo e saiu da sala, com os dois criados. Jesus, em pé no meio dos
Apóstolos, falou-Ihes muito tempo em tom solene. Mas tenho até agora visto
e ouvido tantas coisas, que não é possível relatar com exatidão a matéria de
todos os discursos. Lembro-me que falou do seu reino, de sua ida para o Pai,
prometendo deixar-Ihes tudo o que possuía, etc. Também pregou sobre a
penitência, exame e confissão das faltas, ar rependimento e purificação. Tive
a impressão de que essa instrução se relacionava com o lava-pés e vi
também que todos conheceram os seus pecados e se ar rependeram, com
exceção de Judas. Esse discurso foi longo e solene. Tendo ter minado, Jesus
mandou João e Tiago o Menor trazerem a água do vestíbulo, ordenando aos
Apóstolos que colocassem os assentos em semicírculo, Ele próprio foi ao
vestíbulo, despiu o manto e ar regaçando a túnica, cingiu-se com um pano de
linho, cuja extremidade mais longa pendia para baixo.
Durante esse tempo tiveram os Apóstolos uma discussão, sobre qual deles
devia ter o primeiro lugar ; como o Senhor lhes anunciara claramente que os
ia deixar e que o seu reino estava per to, surgiu de novo entre eles a opinião
de que Jesus tinha aspirações secretas, um triunfo ter restre, que se
realizaria no último momento.
Jesus, que estava no vestíbulo, deu ordem a João para tomar uma bacia e a
Tiago o Menor para trazer um odre cheio de água, transpor tando-o diante do
peito, de modo que o bocal pendesse sobre o braço. Depois de ter der ramado
água do odre na bacia, mandou que os dois O seguissem à sala, onde o
mordomo tinha posto no meio outra bacia maior, vazia.
Entrando pela por ta da sala, de for ma humilde, Jesus censurou os Apóstolos
em poucas palavras, por causa da discussão havida antes entre eles,
dizendo, entre outras coisas, que Ele mesmo queria ser virlhes de criado, que
tomassem os assentos, para que lhes lavasse os pés. Então se sentaram, na
mesma ordem em que foram colocados à mesa, tendo sido os assentos
dispostos em semicírculo. Jesus, indo de um a outro, der ramou-Ihes sobre os
pés água da bacia, que João sucessivamente colocava sob os pés de cada
um. Depois tomava o Mestre a extremidade da toalha de linho, com que
estava cingido e enxugava-lhes os pés com ambas as mãos. Em seguida se
aproximava, com Tiago, do Apóstolo seguinte. João esvaziava de cada vez a
água usada, na grande bacia que estava no meio da sala e Jesus enchia de
novo a bacia, com água do odre que Tiago segurava, der ramando-a sobre os
pés do Apóstolo e enxugando-lhos.
O Senhor, que durante toda a ceia pascal se mostrara singular mente
afetuoso, desempenhou-se também desta humilde função com o mais tocante
amor. Não o fazia como uma cerimônia, mas como ato santo de caridade,
exprimindo nele todo o seu amor.
Quando chegou a Pedro, este quis recusar, dizendo: "Senhor, Vós me quereis
lavar os pés?". Disse, porém, o Senhor : "Agora não entendes o que faço, mas
entendê-lo-ás no futuro." Pareceu-me que lhe disse em par ticular : "Simão,
tens merecido aprender de meu Pai quem sou eu, donde venho e para onde
vou; só tu o tens conhecido e confessado; por isso, construirei sobre ti a
minha Igreja, e as por tas do infer no não prevalecerão contra ela. O meu
poder há de ficar também com os teus sucessores, até o fim do mundo."
Jesus indicou-o aos outros, dizendolhes que Pedro devia substituí-Io na
administração e no gover no da Igreja, quando Ele tivesse saído deste mundo.
Pedro, porém, disse: "Vós não me lavareis jamais os pés." O Senhor
respondeu-lhe: "Se eu não tos lavar, não terás par te em mim." Então lhe
disse Pedro: "Senhor, não me lavareis somente os pés, mas também as mãos
e a cabeça." Jesus respondeu: "Quem foi lavado, é puro no mais; não é
preciso lavar senão os pés. Vós também estais limpos, mas não todos." Com
estas palavras referiu-se a Judas.
Jesus, ensinando sobre o lava-pés, disse que era uma purificação das faltas
quotidianas, porque os pés, caminhando descuidosamente na ter ra, se
sujavam continuamente.
Esse banho dos pés era espiritual e uma espécie de absolvição. Pedro,
porém, viu nele apenas uma humilhação muito grande para o Mestre; não
sabia que Jesus, para salvá-lo e aos outros homens, se humilharia na manhã
seguinte até à mor te ignominiosa da Cruz.
Quando Jesus lavou os pés de Judas, mostrou-lhe uma afeição comovedora;
aproximou o rosto dos pés do Apóstolo infiel, disse-lhe muito baixo que se
ar rependesse, pois que já por um ano pensava em tor nar-se infiel e traidor.
Judas, porém, parecia não querer perceber e falava com João. Pedro ir ritou-
se com isso e disse-lhe: "Judas, o Mestre fala-te." Então disse Judas
algumas palavras vagas e evasivas a Jesus, como: "Senhor, tal coisa nunca
farei.”
Os outros não perceberam as palavras que Jesus dissera a Judas, pois falara
baixo e eles não prestaram atenção; estavam ocupados em calçar as
sandálias. Nada, em toda a Paixão, afligiu tão profundamente o Senhor como
a traição de Judas. Jesus lavou depois ainda os pés de João e Tiago.
Primeiro, se sentou Tiago e Pedro segurou o odre de água, depois se sentou
João e Tiago segurou a bacia.
Jesus ensinou ainda sobre a humildade, dizendo que aquele que ser via aos
outros, era o maior de todos e que dali em diante deviam lavar humildemente
os pés uns aos outros; tocou ainda na discussão sobre qual deles havia de
ser o maior, dizendo muitas coisas que se encontram também no Evangelho.
"Sabeis o que vos fiz? Vós me chamais Mestre e Senhor e dizeis bem, porque
o sou. Se eu, sendo vosso Senhor'e Mestre, vos lavei os pés, logo deveis
também lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que,
como eu fiz, assim façais vós também. Em verdade, em verdade, vos digo:
não é o ser vo maior do que o seu Senhor, nem o enviado é maior do que
aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sereis se
também as praticardes. Não digo isto de todos vós; sei os que tenho
escolhido; mas é necessário que se cumpra o que diz a Escritura: "O que
come o pão comigo, levantará contra mim o calcanhar." Desde agora vos
digo, antes que suceda; para que, quando suceder, creiais que sou eu. Em
verdade, em verdade vos digo: O que recebe aquele que eu enviar, a mim me
recebe; e o que me recebe a mim, recebe Aquele que me enviou." (Jo. 13, 12 -
20).
Jesus vestiu de novo as vestes. Os Apóstolos desenrolaram também as
vestes, que antes tinham ar regaçado, para comer o cordeiro pascal.

7. Instituição da Sagrada Eucaristia

Por ordem do Senhor, o mordomo pusera novamente a mesa e colocara-a um


pouco mais alto e no meio, cober to de um tapete, sobre o qual estendera
uma toalha ver melha e em cima desta, outra branca, bordada a crivo. Por
baixo da mesa pôs um jar ro de água e outro de vinho.
Pedro e João, indo à par te da sala onde era o fomo do Cordeiro pascal,
buscaram o cálice que haviam trazido da casa de Seráfia. Transpor taram-no
solenemente, dentro do invólucro; eu tinha a impressão de que car regavam
um Taber náculo. Colocaram-no sobre a mesa, diante de Jesus. Havia também
um prato. oval, com três pães ázimos, brancos e delgados, marcados com
sulcos regulares; eram por estes divididos em três par tes, no sentido da
largura e no duplo de par tes da largura, no sentido do comprimento. Os pães
estavam cober tos. Jesus já Ihes fizera ligeiras incisões, durante a ceia
pascal, para par tí-Ios mais facilmente e pusera por baixo da toalha a metade
do pão par tido no banquete pascal. Estavam também sobre a mesa um
cântaro de água e outro de vinho, como também três vasos, um com óleo
grosso, outro com azeite, o terceiro vazio e mais uma espátula.
Desde os antigos tempos reinava o costume de par tir o pão e beber do
mesmo cálice no fim do banquete; era sinal de fratemidade e amor, usado por
ocasião de boa vinda e despedida. Creio que há alguma coisa a este respeito
também na Escritura Sagrada. Jesus, porém, elevou esse uso à dignidade do
Santíssimo Sacramento. Até então tinha sido somente um rito simbólico e
figurativo. Pela traição de Judas foi levado ao tribunal também a acusação
de ter Jesus juntado alguma coisa nova às cerimônias da Páscoa;
Nicodemos, porém, provou com trechos da Escritura Sagrada, que esse uso
de despedida era muito antigo.
O lugar de Jesus era entre Pedro e João. As por tas estavam fechadas; tudb
se fez com solenidade misteriosa. Depois de se haver tirado do cálice o
invólucro e levado à par te separada da sala, rezou Jesus, falando num tom
solene. Vi que Ihes explicava todas as santas cerimônias da última ceia; era
como se um sacerdote ensinasse aos outros a santa Missa.
Em seguida tirou da bandeja em que estavam os vasos, um tabuleiro
cor rediço, tomou o pano de linho que cobria o cálice e estendeu-o sobre o
tabuleiro. Depois o vi tirar do cálice uma patena redonda e pô-Ia sobre o
tabuleiro cober to. Tirou então os pães que estavam ao lado, num prato
cober to com um pano de linho e colocou-os na patena, diante de si. Os pães,
que tinham a for ma de um quadrilátero oblongo, excediam dos dois lados a
patena, cuja borda, porém, per manecia visível na largu ra. Em seguida puxou
para si o cálice, tirou dele um copinho, colocando também os seis copos
pequenos à direita e esquerda do cálice. Depois benzeu o pão ázimo e, creio,
também os óleos, que estavam ao lado, levantou a patena, em que estavam
os pães ázimos, com ambas as mãos, olhou para o céu, rezou e ofereceu-o a
Deus, pôs a patena no tabuleiro e cobriu-a. Depois tomou o cálice, mandou
Pedro der ramar vinho e João der ramar água, que antes benzera e juntou
ainda um pouco de água, que colheu com a colherzinha. Benzeu o cálice,
levantou-o, ofereceu-o, rezando e colocou-o no tabuleiro.
Mandou a Pedro e João der ramarem-Lhe água sobre as mãos, por cima do
prato em que anterior mente foram postos o pães ázimos e, tirando a
colherzinha do pé do cálice, apanhou um pouco da água que lhe cor rera
sobre as mãos e espargiu-a sobre as mãos dos dois Apóstolos. Depois passou
o prato em redor da mesa e todos lavaram nele as mãos. Não me lembro bem
se foi essa a ordem exata das cerimônias; mas tudo isso, que me lembrou
muito o santo Sacrifício da Missa, comoveu-me profundamente.
Durante esse santo ato tomou-se Jesus cada vez mais afetuoso; disse-Ihes
que agora queria dar-Ihes tudo que tinha: sua própria pessoa. Era como se
der ramasse sobre eles todo o seu amor e vi-O tomar-se transparente; parecia
uma sombra luminosa.
Orando com esse amor, par tiu o pão nas par tes marcadas, as quais amontoou
sobre a patena, em for ma de pirâmide. Do primeiro bocado quebrou um
pedacinho com a ponta dos dedos e deixou-o cair no cálice.
No momento em que o fez, tive a impressão de que a SS. Virgem recebeu o
Santo Sacramento espiritualmente, apesar de não estar ali presente. Não sei
agora como o vi; mas pensei vê-Ia entrar pela por ta, sem tocar no chão e
aproximar-se de Jesus, do lado desocupado da mesa e receber o santo
Sacramento em frente d'Ele; depois não a vi mais. Jesus dissera-lhe de
manhã, em Betânia, que celebraria a Páscoa junto com ela, marcando-lhe a
hora em que, recolhida em oração, devia recebê-Ia espiritualmente.
O Senhor rezou ainda e ensinou; todas as palavras lhe saíram da boca como
fogo e luz e entraram nos Apóstolos, com exceção de Judas. Depois tomou a
patena com os bocados de pão (não sei, mais se a tinha posto sobre o cálice)
e disse: "Tomai e comei, isto é o meu cor po, que será entregue por vós."
Nisso estendeu a mão direita como para benzer e, enquanto assim fazia, saiu
d’Ele um esplendor, suas palavras eram luminosas e também o era o pão que
se precipitou na boca dos Apóstolos, como um cor po resplandecente; era
como se Ele mesmo entrasse neles. Vi-os todos penetrados de luz; só Judas
vi escuro. O Senhor deu o Sacramento primeiro a Pedro, depois a João; em
seguida fez sinal a Judas para aproximar-se; foi o terceiro, a quem deu o SS.
Sacramento. Mas a palavra do Cristo parecia recuar da boca do traidor.
Fiquei tão hor rorizada, que não posso exprimir o que senti nesse momento.
Jesus, porém, disse-lhe: "Faze já o que queres fazer" e continuou a dar o
Santo Sacramento aos Apóstolos, que se aproximaram dois a dois, segurando
alter nadamente, em frente um do outro, um pequeno pano engomado,
bordado nos lados, o qual cobria o cálice.
Jesus levantou o cálice pelas duas argolas até a altura do rosto e pronunciou
as palavras da consagração sobre ele. Nesse ato ficou transfigurado e como
transparente, parecendo passar tudo o que Ihes deu. Fez Pedro e João
beberem do cálice, que segurava nas mãos, colocando-o depois na mesa;
João passou com a colherzinha o SS. Sangue do cálice para os copinhos, que
Pedro ofereceu aos Apóstolos, os quais beberam dois a dois de um copo.
Creio, mas não tenho absoluta cer teza, que Judas também par ticipou do
cálice; não voltou, porém, ao seu lugar mas saiu imediatamente do Cenáculo.
Como Jesus lhe tivesse feito um sinal, pensaram os outros que o tivesse
encar regado de algum negócio. Retirou-se sem ter rezado e feito a ação de
graças, por onde se vê como é mau retirar-se sem ação de graças, depois de
tomar o pão quotidiano ou o Pão Eter no. Durante toda a refeição, eu tinha
visto ao pé de Judas a figura de um pequeno monstro ver melho e hediondo,
cujo pé era como um osso descar nado e que às vezes lhe subia até o
coração. Quando saiu da casa, vi três demônios cercarem-no: um entrou-lhe
na boca, outro empur rou-o para a frente e o terceiro cor reu-lhe à frente. Era
noite e eles pareciam alumiá-lo; Judas cor ria como um louco.
O Senhor deitou o resto do Santíssimo Sangue, que ainda ficara no fundo do
cálice, no copinho que antes estivera dentro do cálice; pondo depois os
dedos por cima do cálice, mandou Pedro e João der ramarem água e vinho
sobre eles. Feito isso, fê-los beber ambos do cálice e o resto vazou-os nos
outros copinhos, distribuindo-os pelos outros Apóstolos. Em seguida Jesus
enxugou o cálice, meteu nele o pequeno copo, contendo o resto do
Santíssimo Sangue, colocou em cima a patena, com os restantes pães ázimos
consagrados pôs a tampa e cobriu o cálice de novo com o pano, colocando-o
depois sobre a bandeja, entre os seis copinhos. Vi os Apóstolos comungarem
dos restos do Santíssimo Sacramento, depois da ressur reição de Jesus.
Não me lembro de ter visto o Senhor comer as espécies consagradas, a não
ser que eu não reparasse. Dando o Santíssimo Sacramento, deu-se de modo
que parecia sair de si mesmo e der ramar-se nos Apóstolos, numa efusão de
amor misericordioso. Não sei como posso exprimí-lo.
Também não vi Melquisedec, quando ofereceu pão e vinho, comê-lo e bebê-lo.
Soube também porque os sacerdotes o consomem, apesar de Jesus não o ter
feito.
Dizendo isso, Catharina Emmerich virou de repente a cabeça, como para
escutar ; recebeu uma explicação sobre esse ponto, da qual pôde comunicar
somente o seguinte: "Se fosse administrado pelos Anjos, estes não o teriam
recebido; se, porém, os sacerdotes não o recebes sem, já se teria perdido há
muito; por isso é que se conser va.”
Todas as cerimônias, durante a instituição do SS. Sacramento, foram feitas
por Jesus com muita calma e solenidade, para ao mesmo tempo ensinar e
instruir os Apóstolos, os quais vi depois tomarem notas de cer tas coisas, nos
pequenos rolos que tinham consigo. Todos os movi mentos de Jesus, para a
direita e para a esquerda, eram solenes, como sempre que estava rezando.
Tudo mostrava em geral o santo Sacrifício da Missa. Durante a cerimônia e
em outras ocasiões, vi também os Apóstolos se inclinarem uns diante dos
outros ao aproximarem-se, como ainda fazem os sacerdotes de hoje.

8. Instruções secretas e consagrações

Jesus deu ainda instruções secretas. Disse aos Apóstolos que continuassem
a consagrar e administrar o SS. Sacramento, até o fim do mundo. Ensinou-
Ihes as for mas essenciais da administração e do uso do Sacramento e de que
modo deviam gradualmente ensinar e publicar esse mistério; explicou-Ihes
quando deviam receber o resto das espécies consagradas e dá-Io à SS.
Virgem e que deviam consagrar também o SS. Sacramento, depois de Ihes ter
enviado o Divino Consolador.
Instruiu-os em seguida sobre o sacerdócio, sobre a preparação do Crisma e
dos santos óleos e sobre a unção. Estavam ao lado do cálice três umas, duas
das quais continham misturas de bálsamo e diversos óleos e algodão; as
umas podiam ser postas uma em cima da outra. Jesus ensinou-lhes muitos
mistérios, como se devia preparar o santo Crisma, a que par tes do cor po se
devia aplicar e em que ocasiões. Lembro-me, entre outras coisas, que
mencionou um caso em que a sagrada Eucaristia não podia mais ser
recebida; talvez se tenha referido à Extrema-Unção: mas as minhas
lembranças a tal respeito não são muito cla ras. Falou ainda de diversas
unções, inclusive a dos reis e disse que os reis sagrados com o Crisma,
mesmo os injustos, possuíam uma força inter na misteriosa, que não era dada
aos outros. Der ramou, pois, ungüento e óleo na uma vazia e misturou-os; não
sei mais positivamente se foi nesse momento ou já por ocasião da
consagração dos pães, que benzeu o óleo.
Vi depois Jesus ungir a Pedro e João; já por ocasião da instituição do SS.
Sacramento lhes der ramara sobre as mãos a água que sobre as suas lhe
cor rera e os fizera também beber do cálice que Ele mesmo segurava.
Saindo do meio da mesa, um pouco para o lado, pousou as mãos primeiro
sobre os ombros e depois sobre a cabeça de Pedro e João. Em seguida
mandou que ficassem de mãos postas e colocassem os polegares em for ma
de cruz. Inclinaram-se os dois Apóstolos profundamente diante do Mestre
(não sei ai estavam de joelhos). O Senhor ungiu-Ihes os polegares e
indicadores com ungüento e fez-lhes com o mesmo também o sinal da cruz na
cabeça. Disse-Ihes também que essa unção devia per manecer com eles até o
fim do mundo. Tiago o Menor, André, Tiago o Maior e Bar tolomeu receberam
também ordens. Vi também o Senhor ajustar em for ma de cruz, sobre o peito
de Pedro, a faixa estreita de pano, que todos traziam ao pescoço; aos outros,
porém, do ombro direito para debaixo do braço esquerdo. Não sei mais com
cer teza se isso se fez já por ocasião da instituição do SS. Sacramento ou só
na hora da unção.
Vi, porém, que Jesus lhes comunicou com essa unção uma coisa real e
também sobrenatural, não sei como exprimí-Io em palavras. Disse-Ihes mais
que, depois de terem recebido o Espírito Santo, deviam também consagrar
pão e vinho e dar a unção aos outros Apóstolos. Nesse momento tive uma
visão sobre Pedro e João que, no dia de Pentecostes, antes do grande
batismo, impuseram as mãos aos outros Apóstolos, o que também fizeram,
uma semana depois, a alguns outros discípulos. Vi também João, depois da
ressur reição de Jesus, dar pela primeira vez o SS. Sacramento a Nossa
Senhora. Esse acontecimento foi celebrado pelos Apóstolos com grande
solenidade; a Igreja militante não tem mais essa festa, mas vejo-a celebrada
ainda na Igreja triunfante. Nos primeiros dias depois de Pentecostes vi só
Pedro e João consagrarem a santa Eucaristia, mais tarde a consagraram
também os outros.
O Senhor benzeu-Ihes também fogo, num vaso de bronze; esse fogo desde
então ardeu sempre, até depois de longas ausências era guardado junto ao
lugar onde se conser vava o SS. Sacramento, numa par te do antigo fogão
pascal; ali sempre o buscavam para as cerimônias religiosas.
Tudo que Jesus fez por ocasião da instituição da sagrada Eucaristia e da
unção dos Apóstolos, foi debaixo de grande segredo e era também ensinado
só secretamente e tem se conser vado, na sua essência, pela Igreja até os
nossos tempos, aumentado, porém, sob a inspiração do Espírito Santo,
confor me as necessidades.
Os Apóstolos ajudaram na preparação e bênção do santo Crisma; quando
Jesus os ungiu e lhes impôs as mãos, fez tudo com grande solenidade.
Ter minadas as santas cerimônias, o cálice, per to do qual estavam também os
santos óleos, foi cober to com a capa e Pedro e João levaram assim o SS.
Sacramento para o fundo da sala, separado do resto por uma cor tina e ali era
desde então o Santuário. O SS. Sacramento estava por cima do fogão pascal,
não muito alto. José de Arimatéia e Nicodemos cuidavam do Santuário e do
Cenáculo, na ausência dos Apóstolos.
Jesus ensinou ainda por muito tempo e disse algumas orações com grande
fer vor. Parecia às vezes conversar com o Pai celeste, cheio de entusiasmo e
amor. Os Apóstolos também ficaram penetrados de zelo e ardor e fizeram-lhe
várias perguntas, às quais respondeu. Creio que tudo isso está escrito em
grande par te na Escritura Sagrada. Durante esses discursos, disse Jesus
algumas coisas a Pedro e João separadamente, as quais estes depois deviam
comunicar aos outros Apóstolos, como complemento de instruções
anteriores e estes aos outros discípulos e às santas mulheres, quando
chegassem ao tempo de receberem tais conhecimentos. Pedro e João
estavam sentados per to de Jesus. O Senhor teve também uma conversa
par ticular com João, da qual me lembro agora apenas o prognóstico de que a
vida deste Apóstolo seria mais longa que a dos outros; falou-lhe também de
sete Igrejas, de coroas, Anjos e outras figuras simbólicas, com as quais
designava, como me parece, cer tas épocas. Os outros Apóstolos sentiram,
diante dessa confiança par ticular, um leve movimento de inveja.
O Mestre falou também diversas vezes do traidor, dizendo o que naquela hora
este estava fazendo; vi sempre Judas fazer o que o Senhor dizia. Como Pedro
lhe afir masse, com grande ardor, que havia de per manecer fiel, disse-lhe
Jesus: "Simão, Simão, eis que Satanás vos reclama com instância, para vos
joeirar como o trigo; mas eu roguei por ti, afim de que tua fé não desfaleça; e
tu enfim, depois de conver tido, confir ma na fé teus ir mãos." Como, porém,
Jesus dissesse que onde iria, não poderiam seguí-Io, exclamou Pedro que o
seguiria até a mor te. Replicou Jesus: "Em verdade, antes que o galo cante
duas vezes, tu me negarás três vezes," Quando lhes anunciou os tempos
duros que viriam, per guntou-Ihes: "Quando vos enviei sem alfor je, sem
sapatos, faltou-Ihes por ventura alguma coisa?" Responderam: "Não." Disse,
porém, que daquela hora em diante, quem tivesse bolsa, a tomasse e também
alfor je e o que nada tivesse, vendesse a túnica e comprasse espada, pois
que se devia cumprir a palavra: "E foi reputado por um dos iníquos". Tudo que
fora escrito sobre Ele, devia cumprir-se então.
Os Apóstolos entenderam-no no sentido natural e Pedro mostrou Lhe duas
espadas cur tas e largas, como cutelos.
Jesus disse: "Basta, vamo-nos daqui." Rezaram então um cântico; a mesa foi
posta ao lado e dirigiram-se todos ao vestíbulo.
Ali se aproximaram a mãe de Jesus, Maria de Cleofas e Madalena, que lhe
pediram instantemente que não fosse ao monte das Oliveiras; pois se
propagara o boato de que queriam apoderar-se dEle. Mas Jesus consolou-as
com poucas palavras, continuando apressadamente o caminho; eram cerca
de 9 horas da noite. Descendo a grandes passos pelo caminho pelo qual
Pedro e João tinham vindo ao Cenáculo, dirigiram-se ao monte das Oliveiras.

9. Oração solene de despedida de Jesus


Não podemos deixar de inserir aqui as últimas palavras e ensinamentos tão
profundos, que Jesus, no fim da ceia, dirigiu aos Apóstolos, com tanto amor
e carinho e que nos foram transmitidos por S. João no seu Evangelho, caps
14 a 17. Jesus disse:
"Não se per turbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim.
Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fora, eu vo-lo teria
dito: pois vou a aparelhar-vos o lugar. E depois que eu for e vos aparelhar o
lugar, virei outra vez, e tomar-vos-ei comigo, para que onde eu estiver,
estejais vós também, para onde eu vou, sabeis vós e sabeis também o
caminho." Disse-lhe Tomé: "Senhor, não sabemos para onde vais, e como
podemos saber o caminho?" Respondeu-lhe Jesus: "Eu sou o caminho, a
verdade e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis a
mim, também cer tamente havíeis de conhecer meu Pai; mas conhecê-Lo-eis
bem cedo e já o tendes visto." Disse-lhe Filipe: "Senhor, mostrai-nos o Pai e
isso nos basta." Respondeu-lhe Jesus: "Há tanto tempo que estou convosco e
ainda não me tendes conhecido? Filipe, quem vê a mim, vê também ao Pai.
Como dizes logo: "Mostra-nos o Pai?" Não credes que estou no Pai e que o
Pai está em mim? As palavras que vos digo, não as digo de mim mesmo, mas
o Pai, que está em mim, é que faz as obras. Não credes que estou no Pai e
que o Pai está em mim? Crede ao menos por causa das mesmas obras. Em
verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim, fará também as
obras que faço e fará outras ainda maiores; porque vou para o Pai. E tudo o
que pedirdes ao Pai em meu nome, eu vo-lo farei, para que o Pai seja
glorificado no Filho.
Se me amais, guardai os meus mandamentos. E rogai ao Pai e Ele vos dará
outro Consolador, para que fique eter namente convosco, o Espírito da
verdade, a quem o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece;
mas vós o conheceis, porque Ele ficará convosco e estará em vós. Não vos
deixarei órfãos; virei a vós. Resta ainda um pouco, depois já o mundo não me
verá; mas ver-me-eis vós, porque eu vivo e vós vivereis. Naquele dia
conhecereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós. Aquele que
tem os meus mandamentos e que os guarda, esse é o que me ama. E aquele
que me ama, será amado de meu Pai e eu o amarei também e me manifestarei
a ele.”
Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: "Senhor, donde procede que te hás de
manifestar a nós e não ao mundo?" Respondeu-lhe Jesus: "Se alguém me
ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará e viremos a ele e faremos
nele morada. O que não me ama, não guarda as minhas palavras. E a palavra
que tendes ouvido, não é minha, mas, sim, do Pai que me enviou. Eu vos
disse estas coisas, per manecendo convosco; mas o Consolador, que é o
Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as
coisas e vos fará lembrar tudo o que vos tenho dito. A paz vos deixo, a minha
paz vos dou; eu não vo-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso
coração, nem fique sobressaltado. Já tendes ouvido que eu vos disse: Eu vou
e venho a vós. Se me amardes, cer tamente haveis de alegrar-vos, que vou
para junto do Pai, porque o Pai é maior do que Eu. Eu vo-lo disse agora, antes
que suceda, para que, quando suceder, o creiais. Já não falarei muito
convosco, porque vem o príncipe deste mundo e ele não tem em mim coisa
alguma. Mas, para que o mundo conheça que amo o Pai e que faço como me
ordena. Levantai-vos, vamo-nos daqui.
Eu sou a verdadeira videira e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não der
fruto em mim, Ele o cor tará e todos os que derem fr uto, limpá-los-á, para que
o dêem mais abundante. Vós já estais puros, em vir tude da palavra que eu
vos disse. Per manecei em mim e eu per manecerei em vós. Como o ramo da
videira não pode de si mesmo dar fruto, se não per manecer na videira, assim
nem vós podereis dar, se não per manecerdes em mim. Eu sou a videira, vós
sois os ramos; o que per manece em mim e em quem eu per maneço, dá muito
fruto; porque vós sem mim não podeis fazer nada. Se alguém não per manecer
em mim, será lançado fora como o ramo e secará e enfeixá-Io-ão e lançá-Io-
ão ao fogo e ali arderá. Se per manecerdes em mim e as minhas palavras
per manecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e ser-vos-á feito. Nisso
é glorificado meu Pai, em que vós deis muito fruto e em que sejais meus
discípulos. Como meu Pai me amou, assim vos amei. Per manecei no meu
amor. Se guardardes os meus preceitos, per manecereis no meu amor, assim
como também eu guardei os preceitos de meu Pai e per maneço no seu amor.
Disse-vos estas coisas, para que o minha alegria esteja em vós e que a vossa
alegria seja completa. O meu preceito é este: que vos ameis uns aos outros,
como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este de dar a própria vida
pelos amigos. Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que vos mando. Já vos
não chamarei ser vos; porque o ser vo não sabe o que faz o seu senhor. Mas
chamei-vos amigos, porque vos revelei tudo quanto ouvi de meu Pai. Não
fostes vós que me escolhestes a mim, mas fui eu que vos escolhi a vós e vos
constitui, para que vades e deis fruto e para que o vosso fruto per maneça,
para que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, Ele vo-lo conceda. O
que eu vos mando, é que vos ameis uns aos outros. Se o mundo vos odeia,
sabei que primeiro do que a vós, me odiou a mim. Se fôsseis do mundo, o
mundo vos amaria como sendo seus; mas porque não sois do mundo, mas do
mundo que vos escolhi, por isso é que o mundo vos odeia.
Lembrai-vos da minha palavra que eu vos disse: Não é o ser vo maior do que o
seu senhor. Se me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós.
Se guardaram a minha palavra, também hão de guardar a vossa. Mas vos
farão tudo isto por causa de meu nome, porque não conhecem aquele que me
enviou. Se eu não viesse e não Ihes tivesse falado, não teriam pecado; mas
agora não há desculpa para o seu peca do. Aquele que me odeia, odeia
também a meu Pai. Se eu não tivesse feito entre eles tais obras, como
nenhum outro fez, não haveria da par te deles pecado; mas agora não
somente as viram, mas ainda me odiaram, tanto a mim como a meu Pai. Mas
é para se cumprir a palavra que está escrita na lei (Sal. 34,19; 68,5): "Eles
me odiaram sem motivo". Quando, porém, vier o Consolador, o Espírito da
verdade, que procede do Pai, que eu vos enviarei da par te do Pai, Ele dará
testemunho de mim; e também vós dareis testemunho, porque estais comigo
desde o princípio.
Eu vos disse estas coisas, para que não vos escandalizeis. Eles vos lançarão
fora das sinagogas e está a chegar o tempo em que todo o que vos matar,
julgará que nisso faz ser viço a Deus. E assim vos tratarão, porque não
conhecem o Pai, nem a mim. Ora, eu vos disse estas coisas, para que,
quando chegar esse tempo, vos lembreis de que eu vo-las disse. Não vo-las
disse, porém, desde o princípio, porque estava convosco. E agora vou para
aquele que me enviou; e nenhum de vós pergunta: Para onde vais? Antes,
porque eu vos disse estas coisas, se apoderou do vosso coração a tristeza.
Mas eu vos digo a verdade; a vós vos convém que eu vá porque, se eu não for,
não virá a vós o Consolador ; mas, se eu for, vo-Lo enviarei. E Ele, quando
vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo. Sim, do pecado,
porque não creram em mim. E dajustiça, porque vou para o Pai e não me
vereis mais. E do juízo, enfim, porque o príncipe deste mundo já está julgado
e condenado. Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não as podeis
supor tar agora. Quando vier, porém, o Espírito da verdade, Ele vos ensinará
todas as verdades, porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo que tiver
ouvido e anunciar-vos-á as coisas que estão para vir. Ele me glorificará,
porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar. Um pouco e já me
não vereis; e outra vez um pouco e ver me-eis; porque vou para o Pai".
Disseram então alguns discípulos uns para os outros. "Que vem a ser isto
que Ele nos diz: "Um pouco e já me não vereis e outra vez um pouco e ver-
me-eis, porque vou para o Pai?" E diziam: "Que vem a ser isto, que Ele nos
diz: um pouco... Não sabemos o que quer dizer." E entendeu Jesus que lho
queriam perguntar e disse-lhes: "Vós perguntais uns aos outros o que é que
vos quis significar, quando disse: Um pouco e já me não vereis e outra vez
um pouco e ver-me-eis. Em verdade, em verdade vos digo que haveis de
chorar e gemer e que o mundo se há de alegrar e que haveis de estar tristes,
mas que a vossa tristeza se há de conver ter em gozo. Quando uma mulher dá
à luz, está em tristeza, porque é chegada a sua hora; mas, depois que lhe
nasceu um filho, já se não lembra do aper to, pelo gozo que tem, de haver
nascido ao mundo um homem. Assim também vós outros sem dúvida estais
agora tristes, mas hei de ver-vos de novo e o vosso coração ficará cheio de
alegria e esta ninguém vo-la tirará.
E naquele dia nada mais me perguntareis. Em verdade, em verdade vos digo:
se pedirdes ao meu Pai alguma coisa em meu nome, Ele vo-la há de dar. Até
agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que a vossa
alegria seja completa. Tenho vos dito estas coisas debaixo de parábolas.
Está chegado o tempo, em que já não vos hei de falar por parábolas, mas
aber tamente vos falarei do Pai. Naquele dia pedireis em meu nome e não vos
digo que hei de rogar ao Pai por vós. Porque o mesmo Pai vos ama, porque
vós me amastes e, crestes que saí de Deus. Eu saí do Pai e vim ao mundo;
outra vez deixo o mundo e tor no para o Pai". Disseram-lhe os discípulos: "Eis
que agora nos falas aber tamente e não usas de parábola alguma; agora
conhecemos que sabeis tudo e que não é necessário fazer-te perguntas;
nisto, cremos que saíste de Deus." Respondeu-Ihes Jesus: "Credes agora? Eis
que aí vem e já é chegada a hora em que sejais espalhados, cada um para
seu lado e que me deixeis só; mas não estou só, porque o Pai está comigo.
Tenho vos dito estas coisas, para que tenhais paz em mim. Haveis de ter
aflições no mundo; mas tende confiança, eu venci o mundo.”
Assim falou Jesus e, levantando os olhos ao céu, disse: -"Pai, é chegada a
hora, glorifica a teu Filho, para que teu Filho te glorifique a ti; assim como tu
lhe deste poder sobre todos os homens, afim de que Ele dê a vida eter na a
todos que lhe deste. A vida eter na, porém, consiste em que conheçam por um
só verdadeiro Deus a ti e a Jesus Cristo, que enviaste. Glorifiquei-te sobre a
ter ra; acabei a obra de que me encar regaste. Tu, pois, agora, Pai, me
glorifica a mim em ti mesmo, com aquela glória que tive em ti, antes que
houvesse mundo. Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo.
Eles eram teus e mos deste e eles guardaram a tua palavra. Agora conhe-
ceram eles que todas as coisas que me deste, vêm de ti. Porque Ihes dei as
palavras que me deste; e eles as receberam e conheceram verdadeiramente
que saí de ti e creram que me enviaste. Por eles é que rogo; não rogo pelo
mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus e todas as minhas
coisas são tuas e todas as tuas coisas são minhas; e neles sou glorificado. E
não estou mais no mundo, mas eles estão no mundo e eu vou para junto de ti.
Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um,
assim como também nós. Quando eu estava com eles, guardava-os em teu
nome. Conser vei os que me deste e nenhum destes se perdeu, mas somente o
que era filho da perdição, para se cumprir a Escritura. Mas agora vou para
junto de ti e digo estas coisas, estando ainda no mundo, para que eles
tenham em si mesmos a plenitude da minha alegria. Dei-Ihes a tua palavra
mas o mundo os odeia, porque não são do mundo, como também eu não sou
do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas, sim, que os guardes do mal.
Eles não são do mundo, como eu também não sou do mundo. Santifica-os na
verdade. A tua palavra é a verdade. Assim como me enviaste ao mundo,
também eu os enviei ao mundo. E santifico-me a mim por eles, para que
também sejam santificados pela verdade. E não rogo somente por eles, mas
rogo também por aqueles que hão de crer em mim por meio das suas
palavras; para que sejam todos um, como tu, Pai, o és em mim e eu em ti,
para que também eles sejam um em nós e creia o mundo que me enviaste.
Dei-Ihes a glória que me havias dado, para que sejam um, como nós também
somos um. Eu estou neles e tu estás em mim, para que eles sejam
consumados na unidade e para que o mundo conheça que me enviaste e que
os amaste, como amaste também a mim. Pai, a minha vontade é que, onde eu
estiver, estejam também comigo aqueles que me deste, para verem a minha
glória, que me deste; porque me amaste antes da criação do mundo. Pai
justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci e estes conheceram que
me enviaste. E eu Ihes fiz conhecer o teu nome e lho farei ainda conhecer,
afim de que o mesmo amor com que me amaste; esteja neles e eu neles.”

3
Jesus no Monte das Oliveiras

1. Jesus, com os Apóstolos, a caminho do hor to de Getsêmani


2. Jesus atribulado pelos hor rores do pecado
3. Tentações da par te de Satanás
4. Jesus volta para junto dos três, Apóstolos
5. Anjos mostram a Jesus a enor midade dos seus sofrimentos e consolam-nO
6. Mais imagens de pecados que ator mentam o Senhor
7. Visões consoladoras; Anjos confor tam Jesus
8. Judas e sua tropa
9. A prisão do Senhor

Jesus no Monte das Oliveiras

1. Jesus, com os Apóstolos, a caminho do hor to de Getsêmani


Quando Jesus, depois da instituição do SS. Sacramento, saiu do Cenáculo
com os onze Apóstolos, já tinha a alma oprimida de aflição e crescente
tristeza. Conduziu os onze, por um desvio, ao vale de Josafá, dirigindo-se ao
monte das Oliveiras. Ao chegarem ao por tão, vi a lua, ainda não inteiramente
cheia, levantar-se por cima da montanha. Andando com os Apóstolos pelo
vale, disse-Ihes o Senhor que lá voltaria um dia, para julgar o mundo, mas
não pobre e sem poder como hoje, e que então muitos, com grande medo,
exclamariam: "Montes, cobri-nos." Os discípulos não O compreenderam,
pensando, como muitas vezes nessa noite, que a fraqueza e o esgotamento
os faziam delirar. Ora andavam, ora paravam, conversando com o Mestre.
Disse-lhes também Jesus: "Vós todos haveis de escandalizar-vos em mim
esta noite; pois está escrito: ''Tirarei o pastor, e as ovelhas serão dispersas.
- Mas, quando tiver ressuscitado, preceder-vos-ei na Galiléia".
Os Apóstolos estavam ainda cheios de entusiasmo e amor, pela recepção do
SS. Sacramento e pelas palavras solenes e afetuosas de Jesus. Comprimiam-
se-Lhe em tomo, exprimindo-Lhe de vários modos o seu amor e protestando
que não O abandonariam nunca. Mas, como Jesus continuasse a falar no
mesmo sentido, disse-lhe Pedro: "E, se todos se escandalizarem por vossa
causa, eu nunca me escandalizarei." Respondeu-lhe o Senhor : "Em verdade te
digo, tu mesmo três vezes me negarás esta noite, antes do galo cantar."
Pedro, porém, não quis confor mar-se de modo algum e disse: "Mesmo que
tivesse de mor rer convosco, não vos havia de negar." Assim falaram também
todos os outros. Continuavam andando e parando altemadamente e a tristeza
de Jesus aumentava cada vez mais. Queriam os Apóstolos consolá-Lo de
modo inteiramente humano, assegurando-lhe que não aconteceria tal. Nesses
vãos esforços se cansaram, começaram a duvidar e veio-Ihes a tentação.
Atravessaram a tor rente Cedron, não pela ponte, sobre a qual Jesus foi
depois conduzido preso, mas por outra, porque tinham tomado um desvio.
Getsêmani, situado no monte das Oliveiras, para onde se dirigiram, fica a
meia hora cer ta do Cenáculo, pois do Cenáculo à por ta que dápara o vale de
Josafá,-se leva um quar to de hora e dali a Getsêmani outro tanto. Este lugar,
no qual Jesus ensinou algumas vezes aos discípulos, passando ali a noite
com eles nos últimos dias, consta de algumas casas de pousada, aber tas e
desocupadas e de um largo jardim, cercado de sebe, no qual há somente
plantas or namentais e ár vores frutíferas. Os Apóstolos e diversas outras
pessoas tinham a chave desse jardim, que era um lugar de recreio e de
oração. Gente que não tinha jardim próprio, fazia às vezes festas e
banquetes ali. Havia também vários caramanchões de folhagem espessa, num
dos quais ficaram naquele dia oito Apóstolos e alguns outros discípulos, que
se lhes juntaram mais tarde. O hor to das Oliveiras é separado do Jardim de
Getsêmani por um caminho e estendese mais para o alto do monte. É aber to,
cercado apenas de um ater ro e menor do que Getsêmani, um canto cheio de
grutas e recantos, em que por toda a par te se vêem oliveiras. Um lado era
mais bem tratado; havia nele assentos, bancos de relva bem cuidados e
grutas espaçosas e sombrias. Quem quisesse, podia ali facilmente achar um
lugar próprio para a oração e meditação. Era à par te mais sem cuidados que
Jesus ia rezar.

2. Jesus atribulado pelos hor rores do pecado


Eram quase 9 horas da noite, quando Jesus chegou, com os discípulos, a
Getsêmani. Ainda reinava a escuridão na ter ra, mas no céu a lua jáespargia a
luz prateada. Jesus estava muito triste e anunciou-Ihes a aproximação do
perigo. Os discípulos assustaram-se e Ele disse a oito dos companheiros que
ficassem no Jardim de Getsêmani, num lugar onde havia um caramanchão.
"Ficai aqui, disse, enquanto vou ao meu lugar rezar". Tomando consigo Pedro,
João e Tiago o Maior, subiu mais para o alto e, cruzando um caminho,
avançara, numa distância de alguns minutos, do hor to das Oliveiras ao pé do
monte. Ele estava numa indizível tristeza; pressentia a tribulação e tentação,
que se aproximavam. João perguntou-lhe como podia agora estar tão abatido,
quando sempre os tinha consolado. Então Jesus disse: "Minha alma está
triste até a mor te" e, olhando em redor de si, viu de todos os lados se
aproximarem angústias e tentações, como nuvens cheias de figuras
assustadoras. Foi nessa ocasião que disse aos Apóstolos: "Ficai aqui e vigiai
comigo; orai, para não serdes sur preendidos pela tentação." Eles ficaram
então ali; Jesus, porém, adiantou-se ainda mais; mas as hor rorosas visões
assaltavam-no de tal modo, que, cheio de angústia, desceu um pouco à
esquerda dos três Apóstolos, escondendo-se debaixo de um grande rochedo,
numa gr uta de talvez 7 pés de profundidade; os Apóstolos ficaram em cima
desse rochedo, numa espécie de cavidade. O chão da gruta era suavemente
inclinado e as plantas pendentes do rochedo, que sobressaía em frente,
for mavam uma cor tina diante da entrada, de maneira que quem estivesse
dentro da gruta, não podia ser visto de fora.
Quando Jesus se afastou dos discípulos, vi em redor dele um largo circulo de
imagens hor ríveis, o qual se aper tava mais e mais. Cresceu-lhe a tristeza e a
tribulação e retirou-se tremendo para dentro da gruta, semelhante ao homem
que, fugindo de uma repentina tempestade, procura abrigo para rezar, vi,
porém, que as imagens assustadoras o perseguiram lá dentro da gruta,
tomando-se cada vez mais distintas. A estreita caver na parecia encer rar o
hor rível espetáculo de todos os pecados cometidos, desde a primeira queda
do homem, até ao fim dos séculos, como também todos os castigos. Foi ali,
no monte das Oliveiras, que Adão e Eva, expulsos do Paraíso, pisaram
primeiro a ter ra e foi nessa caver na que choraram e gemeram. Tive a clara
impressão de que Jesus, entregando-se às dores da Paixão, que ia começar e
sacrificando-se à justiça divina, em satisfação de todos os pecados do
mundo, de cer to modo retirou a sua divindade para o seio da SS. Trindade;
impelido por amor infinito, quis entregar-se à fúria de todos os sofrimentos e
angústias, na sua humanidade puríssima e inocente, verdadeira e
profundamente sensível, para expiação dos pecados do mundo, ar mado
somente do amor do seu coração humano. Querendo satisfazer pela raiz e por
todas as excrescências do pecado e da má concupiscência, tomou o
misericordiosíssimo Jesus no coração a raiz de toda a expiação purificadora
e de toda a dor santificante, por amor de nós, pecadores e, para satisfazer
pelos pecados inumeráveis, deixou esse sofrimento infinito estender-se,
como uma ár vore de dores e penetrar-lhe com mil ramos todos os membros
do cor po sagrado, todas as faculdades da alma santa. Entregue assim
inteiramente à sua humanidade, implorando a Deus com tristeza e angústia
indizíveis, prostrou-se por ter ra. Viu em inumeráveis imagens todos os
pecados do mundo, com toda a sua atrocidade, tomou todos sobre si e
ofereceu-se na sua oração, para dar satisfação à justiça do Pai Celestial,
pagando com os sofrimentos toda essa dívida da humanidade para com Deus.
Satanás, porém, que se movia no meio de todos os hor rores, em figura
ter rível e com um riso furioso, enraivecia-se cada vez mais contra Jesus e,
fazendo passar-lhe diante da alma visões sempre mais hor rorosas, gritou
diversas vezes à humanidade de Jesus: "Que? Tomarás também isto sobre ti?
Sofrerás também castigo por este crime? Como podes satisfazer por tudo
isto?”
Veio, porém, um estreito feixe de luz, da região onde o sol está entre as dez
e onze horas, descendo sobre Jesus e nela vi surgir uma fileira de Anjos, que
Lhe transmitiram força e ânimo. A outra par te da gruta estava cheia de
visões hor rorosas dos nossos pecados e de maus espíritos, que O insultavam
e agrediam; Jesus aceitou tudo; o seu Coração, O único que amava
perfeitamente a Deus e aos homens, nesse deser to cheio de hor rores, sentia
com dilacerante tristeza e ter ror a atrocidade e o peso de todos esses
pecados. Ai! vi tantas coisas ali! Nem um ano chegaria para contá-Ias!

3. Tentações da par te de Satanás

Quando essa multidão de culpas e pecados acabou de passar diante da alma


de Jesus, como um mar de hor rores e após se haver ele oferecido, como
sacrifício de expiação por tudo e chamado sobre si toda a onda de penas e
castigos, suscitou-lhe Satanás inumeráveis tentações, como outrora no
deser to; apresentou até numerosas acusações contra o puóssimo Salvador.
"Que!" disse ele, "Queres tomar tudo isto sobre ti e não és puro? Vê isto e
aquilo e mais isto!" E então desenrolou, diante dos olhos imaculados da
Divina Vítima, com imper tinência infer nal, uma multidão de acusações
inventadas. Acusou-O das faltas dos discípulos, dos escândalos que tinham
dado, das per turbações que Ele trouxe ao mundo, renunciando aos costumes
antigos. Satanás procedeu como o mais hábil e astuto fariseu. Acusou-O de
ter sido a causa da matança dos inocentes por Herodes, dos perigos e
sofrimentos de seus pais no Egito; acusou-O de não ter salvado da mor te a
João Batista, de ter desunido famílias, protegido pessoas de má fama, de não
ter curado cer tos doentes, de ter causado prejuízo aos habitantes de
Gergesa, porque per mitiu aos possessos que entor nassem a sua doma de
bebidas e porque causou a mor te da manada de porcos no lago. Imputou-Lhe
as faltas de Maria Madalena, por não lhe ter impedido a recaída no pecado;
acusou-O de ter abandonado a família e de ter dissipado o bem alheio; numa
palavra, tudo de que Satanás podia ter acusado, na hora da mor te, um
homem comum, que tivesse feito tais ações exter nas, sem motivos
sobrenaturais: tudo apresentou o tentador à alma abatida de Jesus, para
amedrontá-Ia e desanimá-Ia; pois ignorava que Jesus era o Filho de Deus e
tentou-O somente como ao mais justo dos homens. Nosso Salvador deixou
predominar a sua humanidade de tal modo, que quis sofrer também aquelas
tentações, que assaltam mesmo os homens que têm uma mor te santa, pondo
em dúvida o valor inter no das suas obras boas. Jesus per mitiu, para esvaziar
todo o cálice da agonia, que o tentador, ignorando-Lhe a divindade, Lhe
apresentasse todas as suas obras de caridade como outras tantas dívidas,
ainda não pagas, à graça divina. O tentador censurou-O de querer expiar as
culpas de outros, Ele, que não tinha méritos e que tinha ainda de satisfazer à
justiça divina, pelas graças de tantas obras que considerava boas. A
divindade de Jesus per mitiu que o inimigo lhe tentasse a humanidade, como
podia tentar um homem que quisesse atribuir às suas obras um valor próprio,
além daquele único que podem ter, da união com os méritos da mor te
redentora de nosso Senhor e Salvador. O tentador apresentou-Lhe assim
todas as suas obras de amor como atos privados de todo mérito, que antes O
constituíam devedor de Deus, porque, segundo o acusador, o seu valor
provinha antecipadamente, por assim dizer, dos méritos da Paixão, ainda não
consumada e cujo valor infinito Satanás ainda não conhecia; portanto, não
teria Jesus ainda satisfeito, na opinião do tentador, pelas graças recebidas
para essas obras. Apresentou-lhe títulos de dívida por todas essas boas
obras e disse, aludindo a estas: "Ainda deves por esta obra e por aquela".
Finalmente desenrolou mais um título de dívida diante de Jesus, afir mando
que tinha recebido e gasto o preço da venda da propriedade de Maria
Madalena em Magdalum; disse a Jesus: "Como ousaste desperdiçar o bem
alheio, prejudicando assim aquela família?" Vi a apresentação de tudo a cuja
expiação Jesus se oferecera e senti com Ele todo o peso das numerosas
acusações que o tentador levantou contra Ele; pois, entre os pecados do
mundo que o Salvador tomou sobre si, vi também os meus inumeráveis
pecados e do circulo das tentações veio também a mim, um como rio de
acusações, nas quais se me patentearam todos os meus pecados de atos e
omissões. Eu, porém, olhava sempre para o meu Esposo celeste, durante
essa apresentação dos pecados, gemendo e rezando com Ele e virava-me
também com Ele para os Anjos consoladores. Ai! O Senhor torcia-se como um
ver me, sob o peso da dor e das angústias!
Durante todas essas acusações de Satanás contra o puríssimo Salvador,
somente com grande esforço consegui conter-me; mas, quando levantou a
acusação da venda da propriedade de Madalena, não pude mais me conter e
gritei-lhe: "Como podes chamar dívida o preço da venda dessa propriedade?
Eu mesma vi o Senhor, com essa quantia, que lhe foi entregue por Lázaro,
para obras de misericórdia, remir 27 pobres desamparados dos cárceres de
Tirza (6).”

(6) Essas palavras referem-se a uma visão, na qual viu Jesus remir 27
devedores insolventes, detidos numa cadeia que tinha uma guar nição
romana.

A princípio estava Jesus de joelhos, rezando tranqüilamente; mais tarde,


porém, se lhe assustou a alma, à vista da atrocidade dos inumeráveis crimes
e da ingratidão dos homens para com Deus; assaltaram-no angústia e dor tão
veementes, que suplicou tremendo: "Meu Pai, se for possível, passe este
cálice longe de mim. Meu Pai, tudo vos é possível: afastai este cálice de
mim". Depois sossegou e disse: "Não se faça, porém, a minha vontade, mas a
vossa". A sua vontade e a do Pai eram uma só; mas entregue à fragilidade da
natureza humana, por amor, Jesus tremia à vista da mor te.

4. Jesus volta para junto dos três, Apóstolos

Vi a caver na rodeada de for mas assustadoras; todos os pecados, toda a


iniqüidade, todos os vícios, todos os tor mentos, toda a ingratidão, que o
angustiavam; vi os ter rores da mor te, o hor ror que sentia, como homem,
diante do imenso sofrimento expiatório, assaltando-O e oprimindo-O, sob as
for mas de espectros hediondos. Ele caiu por ter ra, torcendo as mãos; cobria-
O o suor da angústia; tremia e estremecia. Levantou-se, mas os joelhos
trementes quase não O supor tavam; estava inteiramente desfigurado e
ir reconhecível, os lábios pálidos, o cabelo eriçado. Eram cerca de dez horas
e meia, quando se levantou e se ar rastou para junto dos três Apóstolos,
cambaleando, caindo a cada passo, banhado num suor frio. Subiu à esquerda
da caver na, e, passando por cima desta, chegou a um ater ro, onde os
discípulos estavam ador mecidos, encostados um ao outro, abatidos pela
fadiga, tristeza, inquietação e tentação. Jesus aproximou-se-Ihes, como um
homem angustiado a quem o ter ror impele para junto dos amigos e como um
bom pastor que, transtor nado profundamente, vai para junto do rebanho, que
sabe, ameaçado de um perigo próximo; pois não ignorava que também eles se
achavam em angústia e tentação. Vi as hor rorosas visões cercarem-no
também nesse cur to caminho. Encontrando os Apóstolos a dor mir, torceu as
mãos e caiu por ter ra ao lado deles, cheio de tristeza e fraqueza, dizendo:
"Simão, dor mes?" Então acordaram e levantaram-se; e Ele dis se, no seu
desamparo: "Então não pudestes velar uma hora comigo?". Quando o viram
tão assustado e desfigurado, pálido, cambaleando, banhado em suor,
tremendo e estremecendo, quando O ouviram queixar-se com voz quase
extinta, não sabiam mais o que pensar ; se não Ihes tivesse aparecido
cercado de cer ta luz que bem conheciam, não o teriam reconhecido. Disse-
lhe João: "Mestre, que tendes? Quereis que chame os outros Apóstolos?
Devemos fugir?" Jesus, porém, respondeu: "Ainda que vivesse mais 33 anos,
ensinando e curando enfer mos, não chegaria ao que tenho de cumprir até
amanhã. Não chames os oito; deixaios ali, porque não poderiam ver-me nesta
aflição, sem escandalizar-se; cairiam em tentação, esquecer-se-iam de
muitas coisas e duvidariam de mim. - Vós, porém, que vistes o Filho do
homem transfigurado, podeis vê-Io também no seu desamparo; mas vigiai e
orai para não cairdes em tentação. O espírito é pronto, mas a car ne é fraca".
Disse-o, referindo-se a eles e a si mesmo. Quis induzí-Ios, com essas
palavras, à perseverança e dar-Ihes a saber a luta da sua natureza humana
contra a mor te e a causa daquela fraqueza. Falou-Ihes ainda sobre outras
coisas, sempre abismado naquela tristeza e ficou cerca de um quar to de hora
com eles. Em angústia mais e mais crescente voltou à gruta; eles, porém,
estenderam para Ele as mãos chorando e caíram uns nos braços dos outros,
perguntando: "Que é isto? Que lhe aconteceu? Está tão desolado'"
Começaram a rezar, com as cabeças cober tas, cheios de tristeza. Tudo que
acabo de contar, deu-se em mais ou menos uma hora e meia, depois que
entraram no hor to das Oliveiras. É verdade que Jesus disse, segundo o
Evangelho: "Não podeis velar uma hora comigo?" Mas não se o pode entender
ao pé da letra, segundo o nosso modo de falar, os três Apóstolos, que vieram
com Jesus, tinham rezado no começo; mas depois ador meceram;
conversando entre si com pouca confiança, caíram em tentação. Os oito
Apóstolos, porém, que ficaram na entrada do hor to, não dor miram. A
angústia que se mostrara nessa noite em todos os discursos de Jesus,
tor nou-os muito per turbados e inquietos; er ravam pelas vizinhanças do
monte das Oliveiras para procurar um lugar de refúgio, em caso de perigo.
Em Jerusalém houve nessa noite pouco movimento; os judeus estavam nas
suas casas, ocupados com os preparativos para a festa. Os acampamentos
dos forasteiros que tinham vindo para a festa, não estavam nas vizinhanças
do monte das Oliveiras. Enquanto eu ia e voltava nesses caminhos, vi
discípulos e amigos de Jesus, andando e conversando; pareciam inquietos, à
espera de qualquer desgraça. A Mãe do Senhor, com Madalena, Mar ta, Maria,
mulher de Cleofas, Maria Salomé e Salomé, assustadas por boatos, foram
com amigas para fora da cidade, afim de ter notícias de Jesus. Ali as
encontraram Lázaro, Nicodemos, José de Arimatéia e alguns parentes de
Hebron e procuraram sossegáIas; pois, tendo eles mesmos conhecimento,
pelos discípulos, dos tris tes discursos feitos por Jesus no Cenáculo, foram
pedir infor mações a alguns fariseus conhecidos e destes souberam que não
constava nada sobre tentativas imediatas contra o Senhor. Disseram por isso
às mulheres que o perigo não podia ser grande, que tão próximo da festa não
poriam as mãos em Jesus. É que não sabiam da traição de Judas. Maria,
porém, contou-Ihes o estado per turbado deste nos últimos dias ao sair do
Cenáculo e adver tiu-os de que com cer teza fora trair ao Senhor, apesar das
repreensões, pois era um filho da perdição. Depois voltaram as santas
mulheres à casa de Maria, mãe de Marcos.

5. Anjos mostram a Jesus a enor midade dos seus sofrimentos e consolam-nO

Voltando à gr uta, com toda a tristeza que o acabrunhava, Jesus prostrou-se


por ter ra, com os braços estendidos e rezou ao Pai Celeste. Mas passou-lhe
na alma nova luta, que durou três quar tos de hora. Anjos vieram apresentar-
Lhe em grande número de visões, tudo o que devia aceitar de sofrimentos,
para expiar o pecado. Mostraram-lhe a beleza do homem antes do primeiro
pecado, como imagem de Deus e quanto o pecado o tinha rebaixado e
desfigurado. Mostraram-lhe como o primeiro pecado fora a origem de todos
os pecados, a significação e essência da concupiscência e seus ter ríveis
efeitos sobre as faculdades da alma e do cor po do homem, como também a
essência e a significação de todas as penas contrárias à concupiscência.
Mostraram-lhe os seus sofrimentos expiatórios primeiramente como
sofrimentos de cor po e alma, suficientes para cumprir todas as penas
impostas pela justiça divina à humanidade inteira, por toda a má
concupiscência; e depois como sofrimento, que, para dar verdadeira
satisfação, castigou os pecados de todos os homens na única natureza
humana que era inocente: na humanidade do Filho de Deus, O qual, para
tomar sobre si, por amor, a culpa e o castigo da humanidade inteira, devia
também combater e vencer a repugnância humana contra o sofrimento e a
mor te. Tudo isto lhe mostraram os Anjos, ora em coros inteiros, com séries
de imagens, ora separados, com as imagens principais; vi as figuras dos
Anjos mostrando com o dedo elevado as imagens e percebi o que disseram,
mas sem lhes ouvir as vozes.
Não há língua que possa descrever o hor ror e a dor que invadiram a alma de
Jesus, ao ver esta ter rível expiação; pois não viu somente a significação das
penas expiatórias contrárias à concupiscência pecaminosa, mas também a
significação de todos os instrumentos do mar tírio, de modo que O hor rorizou,
não só a dor causada pelos instrumentos, mas também o furor pecaminoso
daqueles que os inventaram, a malícia dos que os usavam e a impaciência
daqueles que com eles tinham sido ator mentados, pois pesavam sobre Ele
todos os pecados do mundo. O hor ror desta visão foi tal, que lhe saiu do
cor po um suor de sangue.
Enquanto a humanidade de Jesus sofria e tremia, sob esta ter rível multidão
de sofrimentos, notei um movimento de compaixão nos Anjos; houve uma
pequena pausa: parecia-me que desejavam ardentemente consolá-Io e que
apresentavam as súplicas diante do trono de Deus. Era como se houvesse
uma luta instantânea entre a misericórdia e a justiça de Deus e o amor que
se estava sacrificando. Foi-me mostrada uma imagem de Deus, não como em
outras ocasiões, num trono, mas numa for ma luminosa menos deter minada;
vi a pessoa do Filho retirar-se na pessoa do Pai, como que lhe entrando no
peito; a pessoa do Espírito Santo saindo do Pai e do Filho e estando entre
Eles; e todos eram um só Deus. Quem poderá descrever exatamente uma tal
visão? Não tive tanto uma visão com figuras humanas, como uma percepção
inter na, na qual me foi mostrado, por imagem, que a vontade divina de Jesus
Cristo se retirava mais para o Pai, para deixar pesar sobre a sua humanidade
todos os sofrimentos, que esta pedia ao Pai que afastasse; de modo que a
vontade divina de Jesus, unida ao Pai, impunha à sua humanidade todos os
sofrimentos que a vontade humana, pelas súplicas, queria afastar. Vi-O no
momento da compaixão dos Anjos, quando estes desejavam consolar Jesus
que, com efeito, teve neste instante um cer to alívio. Depois desapareceu
tudo e os Anjos, com sua compaixão consoladora, abandonaram o Senhor,
cuja alma entrou em novas angústias.

6. Mais imagens de pecados que ator mentam o Senhor

Quando o Redentor, no monte das Oliveiras, se entregou, como homem


verdadeiro e real, ao hor ror humano, à dor e à mor te, quando se incumbiu de
vencer esta repugnância de sofrer, que faz par te de todo o sofrimento, foi
per mitido ao tentador que lhe fizesse tudo o que costuma fazer a todo
homem que quer sacrificar-se por uma causa santa. Na primeira agonia
Satanás mostrara a Nosso Senhor, com raivosa zombaria, a enor midade da
culpa do pecado, que quisera tomar a si e levou a audácia ao ponto de
afir mar que a vida do mesmo Redentor não era livre de pecados. Na segunda
agonia viu Jesus a imensidade da Paixão expiatória, em toda a sua realidade
e amargura. Esta apresentação, foi feita pelos Anjos; pois não compete a
Satanás mostrar a possibilidade da expiação, nem convém que o pai da
mentira e do desespero mostre as obras da misericórdia divina. Tendo,
porém, Jesus resistido a todas essas tentações, pelo abandono completo à
vontade do Pai Celeste, foi-Lhe apresentada à alma uma nova série ter rível
de visões assustadoras; a dúvida e inquietação que no coração do homem
precedem a todo o sacrifício, a pergunta amarga: Qual será o resultado, o
proveito deste sacrifício? A visão de um futuro assustador ator mentou-Lhe
então o Coração amoroso.
Deus mergulhou o primeiro homem, Adão, num profundo sono, abriulhe o
lado, tomou-lhe uma das costelas, for mou dela Eva, a mulher, a mãe de todos
os vivos e apresentou-a a Adão. Então disse este: "Este é o osso dos meus
ossos e a car ne da minha car ne; o homem deixará pai e mãe, para aderir à
sua mulher e serão dois numa só car ne." Do matrimônio foi escrito: "Este
sacramento é grande, digo, porém, em Jesus Cristo e na Igreja;" Pois Jesus
Cristo, o novo Adão, quis também se submeter a um sono, o sono da mor te na
Cruz; quis também deixar que lhe abrissem o lado, para que deste fosse feita
a nova Eva, sua esposa imaculada, a Igreja, mãe de todos os vivos; quis dar-
lhe o sangue da redenção, a água da purificação e o Espírito Santo: os três
que dão testemunho na ter ra; quis dar-lhe os santos Sacramentos, para que
fosse uma esposa pura, santa e imaculada; quis ser-lhe a cabeça e nós
devíamos ser-lhe os membros, sujeitos à cabeça, devíamos ser os ossos dos
seus ossos, car ne da sua car ne. Aceitando a natureza humana, para sofrer a
mor te por nós, tinha Jesus abandonado pai e mãe e unira-se a sua esposa, à
Igreja; tor nou-se uma car ne com ela, alimentando-a com o santíssimo
Sacramento do Altar, no qual se une a nós dia após dia; quis per manecer
presente na ter ra com sua esposa, a Igreja, até nos unir mos todos a Ele no
Céu e disse: "As por tas do infer no não prevalecerão contra ela." Para
praticar esse incomensurável amor para com os pecadores, tor narase homem
e ir mão dos pecadores, tomando sobre si a pena de toda a culpa. Tinha visto
com grande tristeza a imensidade desta culpa e da paixão expiatória e
contudo entregara-se voluntariamente à vontade do Pai celeste, como vítima
expiatória. Neste momento, porém, viu Jesus os sofrimentos, as
perseguições, as feridas da futura Igreja, sua esposa, que estava para remir
tão caro, com o seu próprio sangue: viu a ingratidãq dos homens.
Apresentaram-se-Lhe diante da alma todos os futuros sofrimentos dos
Apóstolos, discípulos e amigos, a Igreja primitiva, tão pouco numerosa,
depois também as heresias e cismas, que nasceram à medida que a Igreja
crescia, repetindo a primeira queda do homem pelo orgulho e desobediência,
pelas diversas for mas de vaidade e falsa justiça. Viu a tibieza, a cor rupção e
malícia de um número infinito de cristãos, as mentiras e a esper teza
enganadora dos mestres orgulhosos, os crimes sacrílegos de todos os
sacerdotes viciosos e todas as hor ríveis conseqüências: A abominação e
desolação do reino de Deus sobre a ter ra, neste santuário da humanidade
ingrata, o qual estava: para fundar e remir com indizíveis sofrimentos, pelo
preço de seu sangue e sua vida.
Vi passar diante da alma do nosso pobre Jesus, em séries imensas de visões,
os escândalos de todos os séculos, até o nosso tempo e mesmo até o fim do
mundo, em todas as for mas do er ro doentio, da intriga orgulhosa, do
fanatismo furioso, dos falsos profetas, da obstinação e malícia herética.
Todos os apóstatas, os heresiarcas, os refor madores de aparência santa, os
sedutores e os seduzidos insultavam e tor turavam-na, como se não tivesse
sofrido bastante, nem sido bem crucificado a seu ver e confor me o desejo
orgulhoso e presunção vaidosa de cada um; rasgavam e par tiam, disputando,
a túnica sem costuras da Igreja; cada um queria tê-Lo como Redentor de
modo diferente do que se tinha mostrado no seu amor. Muitos O maltratavam,
insultavam, negavam-nO. Viu inúmeros alçarem os ombros e sacudirem a
cabeça, afastando-se dos braços que Ihes estendia para salvá-Ios e
precipitar-se no abismo, que os tragou.
Viu um número infinito de outros, que não ousavam negá-Ia em alta voz, mas
que se afastavam, por desgosto das aflições da Igreja, como o levita que se
afastou do pobre viajante que caíra nas mãos dos salteadores. Viu-os
separar-se de sua esposa ferida, como filhos covardes e infiéis abandonam
as mães de noite, quando a casa é assaltada por ladrões e assassinos, aos
quais por descuido abriram a por ta. Viu-os seguirem os despojos levados ao
deser to, os vasos de ouro e os colares quebrados. Viu-os separados da
videira verdadeira, pousarem sob as videiras silvestres; viu-os como ovelhas
extraviadas, abandonadas aos lobos, conduzidas a mau pasto por
mercenários e não querendo entrar no aprisco do bom Pastor, que deu a vida
por suas ovelhas. Viu-os er rarem, sem pátria, no deser to, não querendo ver a
sua cidade, colocada sobre o monte e que não pode ficar escondida. Viu-os
em discórdia, agitados pelo vento para lá e para cá, nas areias do deser to,
mas sem querer ver a casa de sua esposa, a Igreja fundada sobre a pedra,
com a qual prometeu ficar até o fim do mundo e contra a qual as por tas do
infer no não prevalecerão. Não queriam entrar pela por ta estreita, para não
baixar a cabeça. Viu-os seguir a outros, que não entraram no aprisco pela
por ta verdadeira. Construíram, sobre a areia, cabanas mudáveis e diferentes
umas das outras, que não tinham nem altar nem sacrifício, porém cata-
ventos nos tetos e suas doutrinas mudavam-nas com os ventos; contradiziam-
se uns aos outros, não se entendiam, nem tinham estadia per manente. Viu-os
destruírem muitas vezes as cabanas, lançando os destroços contra a pedra
angular da Igreja, que ficou inabalável. Viu muitos que, apesar da escuridão
nas suas moradas, não queriam aproximar-se da luz, posta no candelabro, na
casa da esposa, mas er ravam, com os olhos cer rados, em redor do jardim
cercado da Igreja, de cujos perfumes ainda viviam. Estendiam as mãos a
imagens nebulosas e seguiam astros er rantes, que os conduziam a poços
sem água e mesmo na margem das fossas, não davam ouvido à voz do Esposo
que os chamava e esfomeados riam-se ainda, com orgulho ar rogante, dos ser-
vos e mensageiros, que os convidavam para o banquete nupcial. Não queriam
entrar no jardim, por temerem os espinhos da cerca-viva. Viu-os o Senhor,
inebriados de amor próprio, mor rer de fome, por não ter trigo e de sede, por
não ter vinho; cegos pela sua própria luz, chamavam de invisível a Igreja do
Verbo encar nado. Jesus viu-os todos com tristeza; quis sofrer por todos que
não queriam seguí-Io, car regando a cruz da Igreja, sua esposa, à, qual se deu
no SS. Sacramento, na sua cidade colocada no cimo do monte, que não pode
ficar escondida, na sua Igreja, fundada sobre a pedra e contra a qual as
por tas do infer no não prevalecerão.
Todas estas inumeráveis visões da ingratidão dos homens, do abuso feito da
mor te expiatória de meu Esposo Celeste, vi-as passar diante da alma
contristada do Senhor, ora variando, ora em dolorosa repetição; vi Satanás,
em diversas figuras assustadoras, ar rancando e estrangulando, diante dos
olhos de Jesus, os homens remidos pelo seu sangue e até mesmo homens
ungidos com o seu santo Sacramento. O Salvador viu com grande amargura
toda a ingratidão, toda a cor r upção, tanto dos primeiros cristãos, como dos
que se lhe seguiram, dos presentes e dos futuros. Entre estas aparições
dizia o tentador continuamente à humanidade do Cristo: "Eis aí, por tal
ingratidão queres sofrer?" Estas imagens passaram, em contínua repetição
diante do Senhor e com tanta impetuosidade, com tanto hor ror e escár nio
pesaram sobre Jesus, que angústia indizível lhe oprimia a natureza humana.
Jesus Cristo, o Filho do Homem, estendia e torcia as mãos, caindo como que
oprimido e pôs-se de novo de joelhos. A vontade humana do Redentor travava
uma luta tão ter rível contra a repugnância de sofrer tanto por uma raça tão
ingrata, que o sangue lhe saiu do cor po, em grossas gotas de suor e cor reu
em tor rentes sobre a ter ra. Naquela aflição olhou em redor de si como para
pedir socor ro e parecia chamar o céu, a ter ra e os astros do fir mamento por
testemunhas de seu sofrimento. Parecia-me ouví-Io exclamar : "É possível
supor tar tal ingratidão? Sois testemunhas do que sofro.”
Então foi como se a lua e as estrelas se aproximassem num instante; senti
nesse momento que se tor nava mais claro. Obser vei então a lua, o que antes
não fizera, e pareceu-me de todo diferente: ainda não era toda cheia e
parecia maior do que em nossa ter ra. No meio vi uma mancha escura,
semelhante a um disco posto diante dela e no meio havia uma aber tura, pela
qual brilhava a luz para o lado onde a lua ainda não estava cheia. A mancha
escura era como um monte e em redor da lua havia ainda um círculo
luminoso, como um arco-íris.
Jesus, na sua aflição, levantou a voz por alguns momentos, em alto pranto.
Vi os Apóstolos levantarem-se assustados, com as mãos postas erguidas,
escutarem e querendo cor rer para junto do Mestre. Mas Pedro reteve a João
e Tiago, dizendo: "Ficai, eu vou lá." Vi-o cor rer e entrar na gruta. "Mestre,
disse ele, que tendes?", e parou, tremendo, ao vê-Io todo ensangüentado e
angustiado. Jesus, porém, não lhe respondeu e pareceu não lhe notar a
presença. Então voltou Pedro para junto dos outros dois e suspirava. Por isso
Ihes aumentou ainda a tristeza; sentaram-se, velando as cabeças e rezaram
entre lágrimas.
Eu, porém, voltei a meu Esposo Celeste, em sua dolorosa agonia. As imagens
hediondas da ingratidão e dos abusos dos homens futuros, cuja culpa tomara
sobre si, a cuja pena se entregara, ar remessaram-se contra Ele, cada vez
mais ter ríveis e impetuosas. De novo lutou contra a repugnância da natureza
humana de sofrer ; diversas vezes o ouvi exclamar : "Meu Pai, é possível
sofrer por todos estes? Pai, se este cálice não pode ser afastado de mim,
seja feita a vossa vontade.”
No meio de todas estas visões de pecados contra a divina misericórdia, vi
Satanás em diversas for mas hediondas, confor me a espécie dos pecados. Ora
aparecia como homem alto e negro, ora sob a figura de tigre, ora como
raposa ou lobo, como dragão ou ser pente; não eram, porém, as figuras
naturais desses animais, mas apenas as feições salientes da respectiva
natureza, misturadas com outras for mas hor ríveis. Não havia nada ali que
representasse figura completa de uma criatura, eram somente símbolos de
decadência, de abominação, de hor ror, da contradição e do pecado: símbolos
do demônio. Essas figuras diabólicas empur ravam, ar rastavam,
despedaçavam e estrangulavam, à vista de Je sus, inumeráveis multidões de
homens, por cujo resgate, das gar ras de Satanás, o Salvador entrara no
doloroso caminho da Cruz. No princípio não vi tão freqüentemente a
ser pente, mas no fim a vi gigantesca, com uma coroa na cabeça, ar remessar-
se com força ter rível contra Jesus e com ela, de todos os lados, exércitos de
todas as gerações e classes. Ar mados de todos os meios de destruição,
instrumentos de mar tírio e ar mas, lutavam ora uns contra os outros, ora com
ter rível raiva contra Jesus. Era um espetáculo hor rível. Car regavam-nO de
insultos, maldições e imundícies, cuspiam-Lhe, batiam-Lhe, traspassavam-
nO. As suas ar mas, espadas e lanças, iam e vinham, como os manguais dos
debulhadores numa imensa eira; todos desencadeavam a sua fúria so bre o
grão de trigo celeste, caído na ter ra para nela mor rer e depois alimentar
eter namente todos os homens com o pão da vida, com fruto imensurável.
Vi Jesus no meio destas coor tes furiosas, entre as quais me parecia haver
muitos cegos; estava tão alterado, como se realmente sentisse os golpes dos
agressores. Vi-O cambalear de um lado para o outro; ora caia, ora de novo se
levantava. Vi a .ser pente no meio de todos esses exércitos, instigando-os
continuamente; batia ora aqui, ora ali, com a cauda, estrangulando,
despedaçando e devorando todos que com ela der rubava.
Tive a explicação de que a multidão dos exércitos que lutavam contra Nosso
Senhor, era o número imenso daqueles que maltrataram de muitíssimos
modos a Jesus Cristo, seu Redentor, real e substancialmente presente no
Santíssimo Sacramento, com divindade e humanidade, com cor po e alma,
com car ne e sangue, debaixo das espécies de pão e vinho. Avistei entre
esses inimigos de Jesus todas as espécies de profanadores do SS.
Sacramento, penhor vivo de sua contínua presença pessoal na Igreja
Católica. Vi com hor ror todos esses ultrajes, desde o descuido, ir reverência,
abandono, até o desprezo, abuso e sacrilégios os mais hor rorosos, o culto
dos ídolos deste mundo, orgulho e falsa ciência e por outro lado, heresia e
descrença, fanatismo, ódio e sangrenta perse guição. Vi entre esses inimigos
de Jesus todas as espécies de homens: até cegos e aleijados, surdos e
mudos e mesmo crianças; cegos, que não queriam ver a verdade; coxos, que
por preguiça não queriam seguí-IO; surdos, ,que não queriam ouvir-Lhe as
exor tações e adver tências; mu dos, que não queriam lutar por Ele nem com a
palavra; crianças, desviadas na companhia dos pais e mestres mundanos e
esquecidos de Deus, nutridos pela concupiscência, ébrias de ciência falsa,
sem gosto das coisas divinas ou já perdidas por falta delas, para sempre.
Entre as crianças, cujo aspecto me afligiu par ticular mente, porque Jesus
amava tanto as crianças, vi também muitos meninos ajudantes da Santa
Missa, pouco instruídos, mal educados e desrespeitosos, que nem
respeitavam a Jesus Cristo na mais santa cerimônia. Em par te eram culpados
os mestres e os reitores das Igrejas. Vi com espanto que também muitos
sacerdotes, de todas as hierarquias contribuíam para o desrespeito de Jesus
no SS. Sacramento, até alguns que se tinham por crentes e piedosos. Quero
mencionar, entre estes infelizes, apenas uma classe: vi ali muitos que
acreditavam, adoravam e ensinavam a presença de Deus vivo no SS.
Sacramento, mas na sua conduta não Lhe manifestavam fé e respeito: pois
descuidavam-se do palácio, do trono, da tenda, da residência, dos
or namentos do Rei do Céu e da Ter ra, isto é, não cuidavam da Igreja, do
altar, do taber náculo, do cálice, do ostensório de Deus vivo e dos vasos,
utensílios, or namentos, vestes para uso e enfeite da casa do Senhor. Tudo
estava abandonado e se desfazia em poeira, mofo e imundície de muitos
anos; o culto divino era celebrado com pressa e descuido e se não profanado
inter namente, pelo menos degradado exterior mente. Tudo isso, porém, não
era conseqüência de verdadeira pobreza, mas de indiferença, preguiça,
negligência, preocupação com interesses vãos deste mundo, muitas vezes
também de egoísmo e mor te espiritual, pois vi tal descuido também em
Igrejas ricas e abastadas; vi muitos até, nas quais o luxo mundano e
inconveniente e sem gosto substituíra os magníficos e veneráveis
monumentos de uma época mais piedosa, para esconder, sob aparências
mentirosas e cobrir com um disfarce brilhante o descuido, a imundície, a
desolação e o desperdício. O que faziam os ricos, por vaidosa ostentação,
logo imitaram estupidamente os pobres, por falta de simplicidade. Não pude
deixar de pensar nesta ocasião na Igreja do nosso pobre convento, cujo belo
altar antigo, esculpido ar tisticamente em pedra, tinham também cober to com
uma construção de madeira e pintura tosca, imitando már more, o que sempre
me fez muita pena.
Todas essas ofensas feitas a Jesus no SS. Sacramento, vi-as aumentadas por
numerosos reitores das Igrejas, que não tinham esse sentimento de justiça
de repar tir pelo menos o que possuíam com o Salvador, presente sobre o
Altar, que se entregou por eles à mor te e se Ihes deu todo inteiro no SS.
Sacramento. Em verdade, mesmo os mais pobres estavam muitas vezes
melhor instalados nas suas casas do que o Senhor nas Igrejas. Ai! Como esta
falta de hospitalidade entristecia Jesus, que se Ihes tinha dado como
alimento espiritual! Pois não é preciso ser rico para hospedar aquele que
recompensa ao cêntuplo o copo de água oferecido a quem tem sede. Oh!
Quanta sede tem ele de nós! Não terá acaso motivo de queixar-se de nós, se
o copo estiver sujo e a água também? Por tais negligências vi os fracos
escandalizados, o SS. Sacramento profanado, as Igrejas abandonadas, os
sacerdotes desprezados e em pouco tempo passou essa negligência também
às almas dos fiéis daquelas paróquias: não guardavam mais puro o
taber náculo do coração, para receber nele o Deus vivo, do que o taber náculo
dos altares. Para agradar e adular os príncipes e grandes deste mundo, para
satisfazer-Ihes os caprichos e desejos mundanos, vi tais administradores de
Igrejas fazer todos os esforços e sacrifícios; mas o Rei do Céu e da Ter ra
estava deitado, como o pobre Lázaro, diante da por ta, desejando em vão as
migalhas de caridade que ninguém lhe dava. Tinha apenas as chagas que nós
lhe fizemos e que lhe lambiam os cães, isto é, os pecadores reincidentes,
que, semelhantes a cães, vomitam e depois voltam para comer o vômito.
Se falasse um ano inteiro, não podia contar todas as afrontas feitas a Jesus
e que deste modo conheci. Vi os autores dessas afrontas agredirem a Nosso
Senhor com diferentes ar mas, confor me a espécie de seus pecados. Vi
clérigos ir reverentes, de todos os séculos, sacerdotes levianos, em pecado,
sacrílegos celebrando o Santo Sacrifício e distribuindo a sagrada Eucaristia;
vi multidões de comungantes tíbios e indignos. Vi homens numerosos para os
quais a fonte de toda a bênção, o mistério de Deus vivo, se tor nara uma
palavra de maldição, fór mula de maldição; guer reiros furiosos e ser vidores
do demônio, profanando os vasos sagrados e jogando fora as hóstias
sagradas ou maltratando-as hor rivelmente e até abusando do Sumo Bem, por
uma hedionda e diabólica idolatria. Ao lado destes brutais e violentos, vi
inúmeras outras impiedades, menos grosseiras, mas do mesmo modo
abomináveis. Vi muitas pessoas, seduzidas por mau exemplo e ensino
pérfido, perderem a fé na presença real de Jesus na Eucaristia e deixarem de
adorar nela humildemente seu Salvador. Vi nestas multidões grande número
de professores indignos, que se tor naram heresiarcas; lutavam a princípio
uns contra os outros e depois se uniam, para atacar furiosamente a Jesus no
SS. Sacramento, na sua Igreja. Vi um grupo numeroso destes heresiarcas
negar e insultar o sacerdócio da Igreja, contestar e negar a presença
de Jesus Cristo neste mistério do SS. Sacramento, negar também ter Ele
entregue este mistério à Igreja e havê-Io esta guardado fielmente;
pela sedução Lhe ar rancaram do coração um número imenso de homens,
pelos quais tinha der ramado o seu sangue. Ai! Era um aspecto hor rível: pois
vi a Igreja como éor po de Jesus, que reunira, pela dolorosa Paixão, os
membros separados e dispersos; vi todas aquelas comunidades e famílias e
todos os seus descendentes, separados da Igreja, serem arrancados, como
grandes pedaços de car ne, do cor po vivo de Jesus, ferindo e despedaçando-O
dolorosamente.
Ai! Ele os seguia com olhares tão tristes, lastimando-Ihes a perdição. Ele,
que no SS. Sacramento se nos tinha dado como alimento, para unir ao cor po
da Igreja, sua Esposa, os homens separados e dispersos, viuse despedaçado
e dividido nesse mesmo cor po de sua Esposa, pelos maus frutos da ár vore da
discórdia. A mesa da união no SS. Sacramento, sua mais sublime obra de
amor, na qual quis ficar eter namente com os homens, tor nara-se, pela
malícia dos falsos doutores, fonte de separação. No lugar mais conveniente e
salutar para união de muitos, na mesa sagrada, onde o próprio Deus vivo é o
alimento das almas, deviam os seus filhos separar-se dos infiéis e hereges,
para não se tor narem réus de pecado alheio. Vi que deste modo povos
inteiros se Lhe ar rancaram do coração, privando-se do tesouro de todas as
graças, que Ele deixara à Igreja. Era hor rível vê-Ios separarem-se, só poucos
no princípio, mas esses se voltaram como povos grandes, em hostilidade uns
contra os outros, por estarem separados no Santíssimo. Por fim vi todos que
estavam separados da Igreja, embrutecidos e enfurecidos, em descrença,
superstição, heresia, orgulho e falsa filosofia mundana, unidos em grandes
exércitos, atacando e devastando a Igreja e no meio deles, a ser pente,
instigando e estrangulando-os. Ai! Era como se Jesus se visse e sentisse
despedaçado em inúmeras fibras, das mais delicadas. O Senhor viu e sentiu
nessas angústias toda a ár vore venenosa do cisma, com todos os respectivos
ramos e frutos, que continuam a dividir-se até o fim do mundo, quando o trigo
será recolhido ao celeiro e a palha será lançada ao fogo.
Esta hor rorosa visão era tão ter rível e hedionda, que meu Esposo celeste me
apareceu e, colocando a mão misericordiosa sobre o meu peito, disse:
"Ninguém viu isto ainda e o teu coração se despedaçaria de dor, se eu não o
sustentasse.”
Vi então o sangue rolando, em largas e escuras gotas, sobre o
pálido semblante do Senhor ; o seu cabelo, em geral liso e repar tido no meio
da cabeça, estava conglutinado com o sangue, eriçado e desgrenhado, a
barba ensangüentada e em desordem. Foi depois da última visão, na qual os
exércitos inimigos O despedaçaram, que saiu da caver na, quase fugindo e
voltou para junto dos discípulos. Mas não tinha o andar fir me; andava como
um homem cober to de feridas e cur vado sob um fardo pesado, como quem
tropeça a cada passo. Chegando junto dos três Apóstolos, viu que não se
tinham deitado para dor mir, como da primeira vez; estavam sentados, as
cabeças veladas e apoiadas sobre os joelhos, posição em que vejo muitas
vezes o povo daquele país, quando estão de luto ou querem rezar.
Ador meceram vencidos pela tristeza, medo e fadiga. Quando Jesus se
aproximou, tremendo e gemendo, acordaram, mas ao vê-Io diante de si, na
claridade do luar, com o peito encolhido, o semblante pálido e
ensangüentado, o cabelo desgrenhado, fitando-os com olhar triste, não O
reconheceram por alguns momentos, com a vista fatigada, pois estava
indizivelmente desfigurado. Jesus, porém, estendeu os braços; então se
levantaram depressa e, segurando-O sob os braços, ampararam-nO
carinhosamente. Disse-Ihes que no dia seguinte os inimigos O matariam; dai
a uma hora O prenderiam, conduziriam ao tribunal, seria maltratado,
insultado, açoitado e finalmente entregue à mor te mais cruel. Com grande
tristeza lhes disse tudo o que teria de sofrer até a tarde do dia seguinte e
pediu-Ihes que consolassem sua Mãe e Madalena. Esteve assim diante deles
por alguns minutos, falando-lhes; mas não responderam, porque não sabiam o
que dizer, de tal modo as palavras e o aspecto do Mestre os tinha assustado;
pensavam até que estivesse em delírio. Quando, porém, quis voltar à gruta,
não tinha mais força para andar ; vi que João e Tiago O conduziram e, depois
de ter entrado na gruta, voltaram. Eram cerca de onze horas e um quar to.
Durante essas angústias de Jesus, vi a SS. Virgem também cheia de tristeza
e angústia, em casa de Maria, mãe de Marcos. Estava com Madalena e a mãe
de Marcos, num jardim ao lado da casa; prostrara-se de joelhos, sobre uma
pedra. Diversas vezes perdeu os sentidos exterior mente, pois viu grande
par te dos tor mentos de Jesus. Já enviara mensageiros a Jesus, para ter
notícias, mas não podendo, na sua ânsia, esperar-lhes a volta, saiu com
Madalena e Salomé para o vale de Josafá. Ela andava velada e estendia
muitas vezes as mãos para o monte das Oliveiras, porque via em espírito,
Jesus banhado em suor de sangue e ela parecia, com as mãos estendidas,
querer enxugar-lhe o rosto. Vi Jesus, comovido por esses caridosos impulsos
da alma de sua Mãe, olhar para a direção em que Maria se achava, como para
pedir socor ro. Vi esses movimentos de compaixão em for ma de raios
luminosos, que emanavam de um para o outro. O Senhor pensou também em
Madalena, percebeu-lhe comovido a dor e olhou também para ela; por isso
mandou também aos discípulos que a consolassem, pois sabia que, depois do
amor de sua Mãe, o de Madalena era o mais for te e tinha também visto o que
ela teria de sofrer por Ele e que nunca mais O ofenderia pelo pecado.
Neste momento, cerca de 11 horas e 15 minutos, voltaram os oito Apóstolos
à cabana de folhagem, no hor to de Getsêmani; ali conversaram ainda e
finalmente ador meceram. Estavam muito. assustados e desanimados, em
veementes tentações. Cada um tinha procurado um lugar para esconder-se e
perguntaram uns aos outros inquietamente: "Que faremos, se o matarem?
Abandonamos tudo quanto tínhamos e ficamos pobres e expostos ao escár nio
do mundo. Fiamo-nos inteiramente n’Ele e ei-Lo agora tão impotente e
abatido, que não podemos mais procurar n’Ele consolação." Os outros
discípulos, porém, er raram no princípio de um lado para outro e depois de
terem ouvido várias notícias das últimas palavras assustadoras de Jesus,
retiraram-se, pela maior par te, para Betfagé.

7. Visões consoladoras; Anjos confor tam Jesus

Vi Jesus rezando ainda na gruta e lutando contra a repugnância da natureza


humana ao sofrimento. Estava exausto de fadiga e abatido e disse: "Meu Pai,
se é a vossa vontade, afastai de mim este cálice. Mas faça-se a vossa
vontade e não a minha.”
Então se abriu o abismo diante d’Ele e apareceram-Lhe os primeiros degraus
do Limbo, como na extremidade de uma vista luminosa. Viu Adão e Eva, os
patriarcas, os profetas, os justos, os parentes de sua Mãe e João Batista,
esperando-Lhe a vinda, no mundo inferior, com um desejo tão violento, que
essa vista Lhe for tificou e reanimou o coração amoroso. Pela sua mor te
devia abrir o Céu a esses cativos; devia tirá-Ios da cadeia onde languesciam
à espera.
Tendo visto, com profunda emoção, esses Santos dos tempos antigos,
apresentaram-Lhe os Anjos, todas as multidões de bem-aventurados do futuro
que, juntando seus combates aos méritos da Paixão do Cristo, deviam unir-se
por Ele ao Pai Celeste. Era uma visão indizivelmente bela e consoladora.
Todos agrupados, segundo a época, classe e dignidade, passaram diante do
Senhor, vestidos dos seus sofrimentos e obras. Viu a salvação e santificação
sair, em ondas inesgotáveis, da fonte da Redenção, aber ta pela sua mor te.
Os Apóstolos, os discípulos, as virgens e santas mulheres, todos os már tires,
confessores e eremitas, papas e bispos, grupos numerosos de religiosos, em
uma palavra: um exército inteiro de bem-aventurados apresentou-se-Lhe à
vista. Todos traziam na cabeça coroas triunfais e as coroas variavam de
for ma, de cor, de perfume e de vir tude, confor me a diferença dos respectivos
sofrimentos, combates e vitórias que Ihes tinham proporcionado a glória
eter na. Toda a vida e todos os atos, todos os méritos e toda força, assim
como toda glória e todo o triunfo dos Santos provinham unicamente de sua
união aos méritos de Jesus Cristo.
A ação e influência recíproca que todos estes Santos exerciam uns sobre os
outros, a maneira por que hauriam a graça de uma única fonte, do santo
Sacramento e da Paixão do Senhor, apresentava um espetáculo
singular mente tocante e maravilhoso. Nada parecia casual neles; as obras, o
mar tírio, as vitórias, a aparência e os vestuários: tudo, apesar de bem
diferente, se fundia numa har monia e unidade infinitas; e essa unidade na
variedade era produzida pelos raios de um único sol, pela Paixão de Nosso
Senhor, do Verbo feito car ne, o qual era a vida, a luz dos homens, que
ilumina as trevas, as quais não a compreenderam.
Foi a comunidade dos futuros Santos que passou diante da alma do Salvador,
que se achava colocado entre o desejo dos patriarcas e o cor tejo triunfal dos
bem-aventurados futuros; esses dois grupos unindo-se e completando-se de
cer to modo, cercavam o coração do Redentor, cheio de amor, como uma
coroa de vitória. Essa visão, inexprimivelmente tocante, deu à alma de Jesus
um pouco de consolação e força. Ah! Ele amava tanto seus ir mãos e suas
criaturas, que teria aceito de boa vontade todos os sofrimentos, aos quais se
entregaria pela redenção até de uma só alma. Como essas visões se
referissem ao futuro, pairavam em cer ta altura.
Mas essas imagens consoladoras desapareceram e os Anjos mostraram-lhe a
Paixão, mais per to da ter ra, porque já estava próxima. Estes Anjos eram
muito numerosos. Vi todas as cenas apresentadas muito distintamente
diante dele, desde o beijo de Judas, até à última palavra na Cruz; vi lá tudo o
que vejo nas minhas meditações da Paixão, a traição de Judas, a fuga dos
discípulos, os insultos perante Anás e Caifás, a negação de Pedro, o tribunal
de Pilatos, a decisão diante de Herodes, a flagelação, a coroação de
espinhos, a condenação à mor te, o transpor te da cruz, o encontro com a
Virgem SS. no caminho do Calvário, o desmaio, os insultos de que os
car rascos O cobriram, o véu de Verônica, a crucifixão, o escár nio dos
fariseus, as dores de Maria, de Madalena e João, a lançada no lado, em uma
palavra, tudo passou diante da alma de Jesus, com as menores
circunstâncias. Vi como o Senhor, na sua angústia, percebia todos os gestos,
entendia todas as palavras, percebia tudo que se passava nas almas. Aceitou
tudo voluntariamente, sujeitou-se a tudo por amor dos homens. O que mais O
entristecia era ver-se pregado na Cruz num estado de nudez completa, para
expiar a impudicícia dos homens: implorava com instância a graça de livrar-
se daquele opróbrio e que pelo menos Lhe fosse concedido um pano para
cingir os rins; e vi ser atendido, não pelos car rascos, mas por um homem
compassivo. Jesus viu e sentiu profundamente a dor da Virgem SS., que pela
união interior aos sofrimentos do seu Divino Filho, caíra sem sentidos nos
braços das amigas, no Vale de Josafá.
No fim das visões da Paixão, Jesus caiu por ter ra, como um moribundo; os
Anjos e as visões da Paixão desapareceram; o suor de sangue brotava mais
abundante; vi-O escoar-se através da veste amarela encostado ao cor po. A
mais profunda escuridão reinava na caver na. Vi então um Anjo descendo para
junto de Jesus: era maior, mais distinto e mais semelhante ao homem do que
os que eu vira antes. Estava vestido como um sacerdote, de uma longa veste
flutuante, or nada de franjas e trazia na mão, diante de si, um pequeno vaso,
da for ma do cálice da última Ceia. Na aber tura deste cálice se via um
pequeno cor po oval, do tamanho de uma fava, que espargia uma luz
aver melhada. O Anjo estendeu-Lhe a mão direita e pairando diante de Jesus,
levantou-se; pôs-lhe na boca aquele alimento misterioso e fê-Lo beber do
pequeno cálice luminoso. Depois desapareceu.
Tendo aceitado o cálice dos sofrimentos e recebido nova força, Jesus ficou
ainda alguns minutos na gruta, mergulhado em meditação tranqüila e dando
graças ao Pai Celeste. Estava ainda aflito, mas confortado de modo
sobrenatural, a ponto de poder andar para junto dos discípulos sem
cambalear e sem se cur var sob o peso da dor. Estava ainda pálido e
desfigurado, mas o passo era fir me e decidido. Enxugara o rosto com um
sudário e pusera em ordem os cabelos, que lhe pendiam sobre os ombros,
úmidos de suor e conglutinados de sangue.
Quando saiu da gruta, vi a lua como dantes, com a mancha singular que
for mava o centro e a esfera que a cercava, mas a claridade dela e das
estrelas era diferente da que tinham dantes, por ocasião das grandes
angústias do Senhor. A luz era agora mais natural. Quando Jesus chegou
junto aos discípulos, estavam estes deitados, como na primeira vez,
encostados ao muro do ater ro, com a cabeça velada e dor miam. O Senhor
disse-lhes que não era tempo de dor mir, mas que deviam velar e orar. "Esta é
a hora em que o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores,
disse, levantai-vos e vamos: o traidor está per to; melhor lhe seria que não
tivesse nascido." Os Apóstolos levantaram-se assustados e olharam em roda
de si inquietos. Depois de um pouco tranqüilo, Pedro disse calorosamente:
"Mestre, vou chamar os outros, para vos defender mos." Mas Jesus mostrou-
Ihes a alguma distância, no vale, do outro lado da tor rente de Cedron, uma
tropa de homens ar mados que se aproximavam com archotes e disse-Ihes
que um deles O tinha traído. Os Apóstolos julgavam-no impossível. O Mestre
falou-lhes ainda com calma, recomendando-Ihes de novo que consolassem a
Virgem SS. e disse: "Vamos ao encontro deles. Vou entregar-me sem
resistência nas mãos dos meus inimigos." Então saiu do hor to das Oliveiras,
com os três Apóstolos e foi ao encontro dos soldados, no caminho que ficava
entre o jardim e o hor to de Getsêmani.
Quando a SS. Virgem voltou a si, nos braços de Madalena e Salomé, alguns
discípulos, que viram aproximar-se os soldados, vieram a ela e reconduziram-
na à casa de Maria, mãe de Marcos. Os soldados tomaram um caminho mais
cur to do que o que Jesus tinha seguido, vindo do Cenáculo.
A gruta onde Jesus tinha rezado nessa noite, não era aquela na qual estava
acostumado a rezar, no monte das Oliveiras. Ia geralmente a uma caver na
mais afastada, onde, depois de ter maldito a figueira infr utífera, rezara numa
grande aflição, com os braços estendido e apoiados sobre um rochedo.
Os traços do cor po e das mãos ficaram-Lhe impressos na pedra e foram mais
tarde venerados; mas não se sabia então em que ocasião o prodígio fora
feito. Vi diversas vezes semelhantes impressões feitas em pedras, seja por
profetas do Velho Testamento, seja por Jesus, Maria ou algum dos Apóstolos;
vi também as do cor po de Santa Catarina de Alexandria, no monte Sinai.
Essas impressões não parecem profundas, mas semelhantes às que ficam,
pondo-se a mão sobre uma massa consistente.

8. Judas e sua tropa


Judas não esperava que a traição tivesse as conseqüências que se lhe
seguiram. Queria ganhar a recompensa prometida e mostrar-se agradável aos
fariseus, entregando-Ihes Jesus, mas não pensara no resultado, na
condenação e crucifixão do Mestre; não ia tão longe em seus desígnios. Era
só o dinheiro que lhe preocupava o espírito e já havia muito tempo travara
relações com alguns fariseus e Saduceus astutos que, com lisonjas, o
incitavam à traição. Estava abor recido da vida fatigante, er rante e
perseguida, que levavam os Apóstolos. Nos últimos meses fur tara
continuamente as esmolas, de que era depositário e a cobiça, ir ritada pela
liberalidade de Madalena quando der ramou perfumes sobre Jesus, impeliu-o
finalmente ao crime. Tinha sempre esperado um reino temporal de Jesus e
uma posição brilhante e lucrativa nesse reino; como, porém, não o visse
aparecer, procurava amontoar for tuna. Via crescerem as fadigas e
perseguições e pretendia manter boas relações com os poderosos inimigos
de Jesus, antes de chegar o fim; pois via que Jesus não se tor naria rei,
enquanto que a dignidade do Sumo Sacerdote e a impor tância dos seus
confidentes lhe produziam viva impressão no espírito. Aproximava-se cada
vez mais dos agentes fariseus, que o lisonjeavam incessantemente, dizendo-
lhe, num tom de grande cer teza, que dentro de pouco tempo dariam cabo de
Jesus. Ainda recentemente tinham vindo procurá-Io diversas vezes em
Betânia. O infeliz entregava-se cada vez mais a esses pensamentos
criminosos e multiplicava nos últimos dias as diligências para que os
príncipes dos sacerdotes se decidissem a agir. Estes ainda não queriam
começar e tratavam-no com visível desprezo. Diziam que não havia tempo
suficiente antes da festa e que qualquer tentativa causaria apenas desordem
e tumulto durante a festa. Somente o sinédrio deu atenção às propostas do
traidor. Depois da recepção sacrílega do SS. Sacramento, Satanás apoderou-
se totalmente de Judas, que saiu decidido a praticar o crime. Primeiro
procurou os negociadores, que sempre o tinham lisonjeado até ali e que o
receberam ainda com amizade fingida. Foi ter com outros, entre os quais
Caifás e Anás; este último, porém, usou para com ele de um tom altivo e
sarcástico. Estavam hesitantes, não contavam com o êxito, porque não
tinham confiança em Judas.
Vi o império infer nal dividido: Satanás queria o crime dos Judeus, desejava a
mor te de Jesus, do santo Mestre que fizera tantas conver sões, do Justo a
quem tanto odiava; mas sentia também não sei que medo inter no da mor te
dessa inocente vítima, que não queria subtrair-se aos perseguidores;
invejava-O por sofrer inocentemente. Vi-O assim excitar de um lado o ódio e
furor dos inimigos de Jesus e de outro lado insinuar a alguns destes que
Judas era um patife, um miserável, que não se podia fazer o julgamento
antes da festa, nem reunir número suficiente de testemunhas contra Jesus.
No sinédrio houve longa discussão sobre o que se devia fazer e, entre outras
coisas, perguntaram a Judas: "Podemos prendê-Lo? Não terá homens
ar mados consigo?" E o traidor respondeu:, "Não, está só com os onze
discípulos; está desanimado e os onze são homens medrosos". Também Ihes
disse que era preciso apoderar-se de Jesus nessa ocasião ou nunca, que não
podia esperar mais tempo para entregá-Lo, porque não voltaria para junto do
Mestre, pois, alguns dias antes, os outros discípulos e Jesus mesmo haviam
evidentemente suspeitado dele; pareciam pressentir-lhe os ardis e sem
dúvida o matariam, se voltasse para o meio deles. Disse-Ihes ainda que, se
não O prendessem agora, escaparia, voltando com um exército de
par tidários, para fazer proclamar-se rei. Essas ameaças de Judas fizeram
efeito. Deram-lhe ouvido ao conselho maldoso e ele recebeu o preço da
traição, os trinta dinheiros. Essas moedas tinham a for ma de uma língua,
estavam furadas na par te ar redondada e enfiadas, por meio de argolas, numa
espécie tle cór rente; traziam cer tos cunhos.
Judas, ofendido pelo contínuo desprezo e a desconfiança que lhe
manifestavam, sentiu-se impelido pelo orgulho a restituir-Ihes esse dinheiro
ou oferecê-Io ao Templo, para que o tomassem por um homem justo e
desinteressado. Mas recusaram-no, porque era preço de sangue, que não se
podia oferecer ao Templo. Judas viu quanto o desprezavam e sentiu-o
profundamente. Não tinha esperado provar os frutos amargos da traição já
antes de a ter cometido; mas de tal modo que se havia comprometido com
aqueles homens, que estava nas suas mãos e não podia mais se livrar deles.
Obser vavam-no de muito per to e não o deixariam sair antes de ter explicado
o caminho a seguir, para apoderar-se de Jesus. Três fariseus acompanhavam-
no, quando desceu a uma sala, onde se achavam guardas do Templo, que não
eram todos judeus, mas gente de todas as nações. Quando tudo estava
combinado e reunido o número de soldados necessários, Judas cor reu
primeiro ao Cenáculo, acompanhado de um ser vo dos fariseus, para Ihes dar
noticia, se Jesus ainda estava ali, por causa da facilidade de prendê-Io lá,
ocupando as por tas; devia mandar avisar-lhe por um mensageiro.
Um pouco antes de Judas receber o prêmio da traição, um dos fariseus saíra,
para mandar sete escravos buscar madeira, para preparar a Cruz de Cristo,
no caso que fosse condenado, porque no dia seguinte não teriam mais tempo,
pois começava a festa da Páscoa. Andaram cerca de um quar to de hora, para
chegar ao lugar onde queriam buscar o madeiro da cruz; estava ali ao longo
de um muro alto e comprido, junto com muitas outras madeiras, destinadas a
constr uções do Templo; car regaram-no para um lugar atrás do tribunal de
Caifás, afim de prepará-Io. A ár vore da cruz crescera antigamente per to da
tor rente Cedron, no vale, de Josafá; mais tarde caíra através do ribeiro e
ser via de ponte. Quando Neemias escondeu o fogo santo e os vasos sagrados
na piscina Betesda, empregou também este tronco para cobri-Ios, junto com
outra madeira; tirando-o depois de novo, jogaram-no para o lado, com outra
madeira de constr ução. Em par te foi para zombar de Jesus, em par te
aparentemente por acaso, mas em verdade unicamente por disposição da
Divina Providência, que a Cruz foi construída de uma for ma especial. Sem
contar a tábua do título, a cruz foi feita de cinco diferentes espécies de
madeiras. Tenho visto muitas coisas a respeito da cruz, diversos
acontecimentos e significações, mas tenho esquecido tudo, fora o que acabo
de contar.
Judas, no entanto, voltou e disse que Jesus não estava mais no Cenáculo,
mas havia de estar cer tamente no monte das Oliveiras, num lugar onde
costumava rezar. Insistiu então que mandassem com eles somente uma
pequena tropa, para que os discípulos, que espiavam por toda a par te, não
suspeitassem e provocassem uma insur reição. Trezentos soldados deviam
ocupar as por tas e ruas de Ofel, bair ro ao sul do Templo e o vale Milo, até a
casa de Anás, no monte de Sião, para poder mandar reforço à tropa na volta,
caso o pedisse; pois em Ophel todo o povo baixo aderia a Jesus. O indigno
traidor disse-Ihes ainda que tomassem muito cuidado, para Jesus não Ihes
escapar, mencionando que este já muitas vezes se tinha tomado invisível, por
meio de ar tifícios misteriosos, fugindo assim aos companheiros na
montanha. Fez-Ihes também a proposta de amar rá-Io com uma cor rente e
ser vir-se de cer tas práticas mágicas, para que Jesus não rompesse as
cor rentes. Os Judeus, porém, recusaram desdenhosamente esse conselho,
dizendo: "Não nos podes impor nada; uma vez que esteja em nossas mãos,
está seguro.”
Judas combinou com a tropa entrar ele primeiro no hor to, para beijar e
saudar Jesus, como se voltasse do negócio, como amigo e discípulo; depois
deviam entrar os soldados, para prender o Mestre. Procederia como se os
soldados tivessem chegado na mesma hora, só por acaso; fugiria depois,
como os outros discípulos, fingindo não saber de nada. Talvez pensasse
também que houvesse um tumulto, no qual os Apóstolos se defenderiam e
Jesus fugiria, como fizerajá diversas vezes. Assim pensava nos momentos de
raiva, sentindo-se ofendido pelo desprezo e desconfiança dos inimigos de
Jesus, mas não porque se ar rependesse da negra ação ou por ter compaixão
de Jesus; pois tinha-se entregue inteiramente a Satanás. Também não queria
consentir que os soldados, entrando depois, trouxessem algemas e cordas,
nem que o acompanhassem, homens de má reputação. Satisfizeram-lhe
aparentemente os desejos, mas procederam como julgavam dever proceder
com um traidor em quem não se pode fiar e que se joga fora, depois de ter
feito o ser viço. Foram dadas ordens expressas aos soldados de vigiar bem
Judas e não o deixar afastar-se antes de ter prendido e amar rado Jesus;
pois, como já tivesse recebido a remuneração, era de recear-se que o patife
fugisse com o dinheiro e assim não poderiam prender Jesus de noite ou
prenderiam outro em seu lugar, de modo que resultariam desta empresa
apenas tumultos e desordens, no dia da Páscoa.
A tropa escolhida para prender Jesus compunha-se de vinte soldados, alguns
da guarda do Templo, os outros soldados de Anás e Caifás. Estavam vestidos
quase da mesma for ma que os soldados romanos; usavam capacetes e do
gibão lhes pendiam cor reias em redor da cintura, como tinham também os
soldados romanos. Distinguiam.se desses principalmente pela barba, pois os
romanos em Jerusalém usavam só suíças, os lábios e queixo tinham
imberbes. Todos os vinte soldados estavam ar mados de espadas, alguns
tinham apenas lanças. Levavam consigo tochas e braseiras que, fixas sobre
paus, ser viam de lanter nas; mas ao chegar, traziam acesa só uma das
lanter nas. Os judeus queriam mandar antes uma tropa mais numerosa com
Judas, mas abandonaram esse plano, concordando com ele, objeção do
traidor, de que do monte das Oliveiras se podia ver todo o vale e desse modo
uma tropa maior não poderia deixar de ser vista. Ficou, por tanto, a maior
par te em Ophel; mandaram também sentinelas a vários atalhos e diversos
lugares da cidade, para impedir tumultos ou tentativas de salvar Jesus.
Judas marchou à frente dos vinte soldados; mandaram, porém, seguí-lo a
cer ta distância quatro soldados de má reputação, gente ordinária, que
levavam cordas e algemas. Alguns passos atrás desses, seguiam aqueles
seis agentes, com os quais Judas travara relações há muito tempo. Havia
entre eles um sacerdote de alta posição e confidente de Anás, outro de
Caifás; além desses havia dois agentes fariseus e dois saduceus, que eram
também herodianos. Todos, porém, eram espiões, hipócritas, aduladores
interesseiros de Anás e Caifás e inimigos ocultos de Jesus, dos mais
maliciosos.
Os vinte soldados seguiram ao lado de Judas, até chegarem ao lugar onde o
caminho passa entre Getsêmani e o hor to das Oliveiras; aí não quiseram
deixá-Io avançar sozinho e começaram a discutir com ele, num tom grosseiro
e imper tinente.

9. A prisão do Senhor

Quando Jesus saiu do hor to, no caminho entre Getsêmani e o hor to das
Oliveiras, apareceu na entrada desse caminho, à distância de vinte passos,
Judas com os soldados, que ainda estavam discutindo. Pois Judas queria,
separado dos soldados, aproximar-se de Jesus, como amigo; eles deviam
depois entrar como por acaso, aparentemente sem Ele saber ; mas os
soldados seguraram-no, dizendo: "Assim não camarada, não nos fugirás antes
de ter mos preso o Galileu." Avistando depois os oito Apóstolos, que ao ouvir,
o bar ulho se aproximaram, chamaram os quatro soldados para reforçar-se.
Judas, porém, não consentiu que esses o acompanhassem e discutiu
veementemente com eles. Quando Jesus e os três Apóstolos viram, à luz da
lanter na, esse tropel r uidoso, com as ar mas nas mãos, Pedro quis atacá-Ios
à força e disse: "Senhor, os oito de Getsêmani estão também lá adiante:
Vamos atacar esses soldados". Jesus, porém, mandou-o ficar quieto e
retirou-se alguns passos para além do caminho, onde havia um lugar cober to
de relva. Judas, vendo o seu plano transtor nado, enraiveceu-se. Quatro dos
discípulos saíram do hor to Getsêmani, perguntando o que havia acontecido.
Judas começou a conversar, querendo sair do embaraço por meio de
mentiras, mas os soldados não o deixaram afastar-se. Aqueles quatro eram
Tiago, o Menor, Filipe, Tomé e Natanael; este e um dos filhos do velho
Simeão e alguns outros tinham vindo para junto dos oito Apóstolos, em
Getsêmani, uns enviados pelos amigos de Jesus, para ter notícias d’Ele,
outros impelidos pela inquietação e curiosidade. Além desses quatro,
andavam também os outros discípulos pelas vizinhanças, espiando de longe e
sempre prontos a fugir.
Jesus, porém, aproximou-se alguns passos da tropa e disse em voz alta e
clara: "A quem estais procurando?" Os chefes dos soldados responderam:
"Jesus de Nazaré." E Jesus disse: "Sou eu." Apenas tinha dito estas
palavras, caíram os soldados uns sobre os outros, como que atacados de
convulsões. Judas, que estava per to, ficou ainda mais desconcer tado no seu
plano; e pareceu querer aproximar-se de Jesus, mas o Senhor levantou a
mão, dizendo: "Amigo, para que vieste?" Judas disse, cheio de confusão,
alguma coisa sobre negócio realizado. Jesus, porém, disse-lhe mais ou
menos as seguintes palavras: "Oh! Melhor te fora não ter nascido." Mas não
me lembro mais das palavras exatas. No entretanto tinham-se levantado os
soldados e aproximaram-se de Jesus e dos seus, esperando o sinal do
traidor : que beijasse a Jesus. Pedro, porém, e os outros discípulos, cercaram
Judas com ameaças, chamandoo de ladrão e traidor. O infeliz quis livrar-se
deles por meio de mentiras, mas não conseguiu justificar-se, pois os
soldados defenderam-no contra os discípulos, dando assim testemunho
contra ele.
Jesus, porém, disse mais uma vez: "A quem procurais?" Virando se para Ele,
responderam de novo: "Jesus de Nazaré." Então disse: "Sou eu; já vos tenho
dito que sou eu; se, pois, procurais a mim, deixai aqueles." A palavra "sou
eu", caíram os soldados de novo com convulsões e contorções, como as têm
os epiléticos e Judas foi de novo cercado pelos Apóstolos, que estavam
extremamente furiosos contra ele. Jesus disse aos soldados: "Levantai-vos."
Levantaram-se assustados e como os Apóstolos ainda discutissem com Judas
e também se dirigissem contra os soldados, estes atacaram os Apóstolos,
livrando-Ihes Judas das mãos e impelindo-o com ameaças a dar o sinal
combinado, pois tinham ordem de prender só aquele a quem beijasse. Judas
aproximou-se então de Jesus, abraçou e beijou-O, dizendo, "Deus te salve,
Mestre." E Jesus disse: "Judas, écom um beijo que atraiçoas o Filho do
Homem?" Então os soldados cercaram Jesus e os soldados, avançando,
puseram mãos em Nosso Senhor. Judas quis fugir, mas os Apóstolos
detiveram-no e atacaram os soldados, gritando: "Mestre, feriremos com as
espadas?" Pedro, porém, mais excitado e zeloso, puxou da espada e golpeou
Malcho, criado do Sumo Sacerdote, que o quis repelir e cor tou-lhe um
pedaço da orelha, de modo que Malcho caiu por ter ra, aumentando
deste modo ainda a confusão. .
A situação nesse momento do veemente ataque de Pedro era a seguinte:
Jesus preso pelos soldados, que O queriam amar rar ; cercavam-na, num largo
círculo, os soldados, um dos quais, MaIcho, foi prostrado por Pedro. Outros
soldados estavam ocupados em repelir os discípulos, que se aproximaram ou
em perseguir outros que fugiram. Quatro dos discípulos andavam pelo lado
do monte e só se avistavam de vez em quando, a grande distância. Os
soldados estavam em par te um pouco desanimados pelas quedas, em par te
não ousavam perseguir seriamente os discípulos, para não enfraquecerem
demasiadamente a tropa que cercava Jesus. Judas, que quis fugir logo
depois do beijo traidor, foi detido a cer ta distância por alguns discípulos,
que o cobriram de injúrias. Mas os seis agentes, que só então se
aproximaram, livraram-no das mãos dos cristãos indignados. Os quatro
soldados, em roda de Jesus, estavam ocupados com as cordas e algemas,
seguravam-na e iam amar rá-Ia.
Tal era a situação, quando Pedro golpeou Malcho e Jesus ao mesmo tempo
disse: "Pedro! Embainha a tua espada, pois quem se ser ve da espada,
perecerá pela espada. Ou pensas que eu não podia pedir a meu Pai que me
mandasse mais de doze legiões de Anjos? Então não devo beber o cálice que
meu Pai me apresentou? Como se cumpririam as Escrituras, se assim não ,se
fizesse?" Disse aos soldados: "Deixai-me curar este homem". Aproximou-se
de MaIcho, tocou-lhe na orelha, rezando e ficou sã. Estavam, porém, em roda
os esbir ros, os soldados e os seis agentes, que O insultaram, dizendo aos
soldados: "Ele tem contrato com o demônio; a orelha por feitiço parecia
ferida e por feitiço sarou.”
Então Ihes disse Jesus: "Viestes a mim, ar mados de espadas e paus, a
prender-me como um assassino. Todos os dias tenho ensinado no Templo, no
meio de vós e não ousastes pôr a mão em mim; mas esta é a vossa hora, a
hora das trevas." Eles, porém, mandaram amar rá-Ia e insultaram-nO,
dizendo:. "A nós não nos pudeste jogar por ter ra com teu feitiço." Do mesmo
modo falaram os soldados: "Acabaremos com as tuas práticas de feiticeiro,
etc." Jesus respondeu ainda algumas palavras, mas não sei mais o que foi;
os discípulos, porém, fugiram para todos os lados. Os quatro soldados e os
seis fariseus não tinham caído e por tanto também não se tinham levantado, o
que sucedeu, como me foi revelado, porque estavam inteiramente nas redes
de Satanás, do mesmo modo que Judas, que também não caíra, apesar de
estar no meio dos soldados; todos os que caíram e se levantaram,
conver teram-se depois e tor naram-se cristãos. O cair e levantar era símbolo
da conver são. Esses soldados não puseram a mão em Jesus, mas apenas O
cercaram; MaIcho conver teu-se logo depois da cura, de modo que só por
causa da disciplina continuou o ser viço; já nas horas seguintes, durante a
Paixão de Jesus, fazia o papel de mensageiro entre Maria e os outros amigos
de Jesus, para dar notícias do que se passava.
Os soldados amar raram Jesus com grande barbaridade e com a brutalidade
de car rascos, por entre contínuos insultos e escár nios dos fariseus. Eram
pagãos da classe mais baixa e vil; tinham o peito, os braços e joelhos nus;
na cintura usavam uma faixa de pano e na par te superior do cor po, gibão
sem mangas, ligado nos lados com cor reias. Eram de estatura baixa, mas
for tes e muito ágeis, de cor parda-ruiva, como a dos escravos do Egito.
Amar raram Jesus de uma maneira cruel, com as mãos sobre o peito,
prendendo sem compaixão o pulso da mão direita por baixo do cotovelo do
braço esquerdo e o pulso da mão esquerda por baixo do cotovelo do braço
direito, com cordas novas e duras que lhe cor tavam a car ne. Passaram-lhe
em redor do cor po um cinturão largo, no qual havia pontas de fer ro e argolas
de fibra ou vime, nas quais amar raram-Lhe uma espécie de colar, no qual
havia pontas e outros cor pos pontiagudos, para ferir ; desse colar saiam,
como uma estola, duas cor reias cruzadas sobre o peito até o cinturão, ao
qual foram for temente aper tadas e ligadas. Fixaram ainda, em diversos
pontos do cinturão, quatro cordas compridas, pelas quais podiam ar rastar
Jesus para lá e para cá, confor me lhes ditava a maldade. Todas essas cordas
e cor reias eram novas e pareciam preparadas de propósito, desde que
começaram a pensar em prender Jesus.

4
Jesus conduzido a Anás e Caifás

1. Maus tratos que sofreu a caminho da cidade


2. Lamentações dos habitantes de Ofel
3. Preparativos dos inimigos de Jesus
4. Uma vista geral sobre a Situação em Jerusalém àquela hora
5. Jesus diante de Anás
6. Jesus é conduzido de Anás a Caifás
7. O Tribunal de Caifás
8. Jesus diante de Caifás
9. Jesus é escar necido e maltratado em casa de Caifás
10. A negação de Pedro
11. Maria no tribunal de Caifás
12. Jesus no cárcere
13. Judas aproxima-se da casa do tribunal
14. O julgamento de Jesus na madrugada
15. Desespero de Judas

Jesus conduzido a Anás e Caifás

1. Maus tratos que sofreu a caminho da cidade


Depois de acesas algumas lanter nas, o cor tejo se pôs em marcha. A frente
marchavam dez soldados; depois seguiam os esbir ros, ar rastando Jesus
pelas cordas, atrás vinham, insultando-O e escar necendo-O, os fariseus e no
fim os restantes 10 soldados, que for mavam a retaguarda. Os discípulos
andavam ainda pelas vizinhanças, como fora de si; João, porém, seguia a
pouca distância os últimos soldados e os fariseus mandaram prendê-lo.
Voltaram por isso alguns soldados, cor rendo, para segurá-Io, mas ele pôs-se
a fugir e, como o segurassem pelo sudário que tinha em volta do pescoço,
abandonou-o nas mãos dos soldados e escapou. Já tinha despido o manto
antes, vestindo só uma túnica ar regaçada e sem mangas, para poder fugir
mais ligeiramente. O pescoço, cabeça e braços tinha-os envolvido numa faixa
estreita de pano, como os Judeus costumam usar.
Os soldados ar rastavam e maltratavam Jesus da maneira mais cruel e
praticavam muitas maldades, só para agradar e adular desse modo baixo aos
seis agentes farisaicos, que eram cheios de ódio e maldade contra Jesus.
Conduziram-nO pelo caminho incômodo, por todos os sulcos, sobre as pedras
e pela lama. Puxavam as cordas compridas com força, escolhendo para si o
melhor caminho; assim Jesus tinha de seguir onde as cordas o ar rastavam.
Tinham nas mãos pedaços de cordas nodosas, com que batiam e impeliam
Nosso Senhor para frente, como costumam fazer os car niceiros, levando o
gado ao matadouro; tudo isso faziam entre escár nios e insultos tão
grosseiros, que seria contra a decência repetir-Ihes as palavras.
Jesus ia descalço; além da roupa do cor po, vestia uma túnica de lã, tecida
sem costura e um manto. Os discípulos, como os judeus em geral, usavam no
cor po, sobre as costas e o peito, um escapulário, constando de duas peças
de pano, unidas sobre os ombros por cor reias, deixando deste modo
descober tos os lados; cingiam-se com um cinto, do qual pendiam quatro
faixas de pano, as quais, enrolando as coxas, for mavam uma espécie de
calça. Devo acrescentar ainda que não vi os soldados apresentarem uma
ordem escrita ou documento de prisão; procederam como se Jesus estivesse
fora da lei e sem direitos.
O cor tejo marchou a passo rápido e tendo saído do caminho que passa entre
o hor to de Getsêmani e o das Oliveiras, caminhou algum tempo ao longo do
lado oriental de Getsêmani, dirigindo-se a uma ponte que ali atravessa a
tor rente Cedron. Jesus, indo com os Apóstolos ao monte das Oliveiras, não
passara por esta ponte, mas atravessara o Cedron por outra ponte, mais para
o sul, tomando um atalho pelo vale de Josafá. A ponte sobre a qual foi
conduzido pelos soldados, era muito comprida, porque não se estendia
somente sobre o leito do Cedron, que ali passa per to do monte, mas também
a alguma distância, sobre os ter renos desiguais do vale, for mando uma
estrada calçada, transitável.
Antes do cor tejo chegar à ponte, vi Jesus cair duas vezes por ter ra, pelos
ar rancos cruéis que os soldados davam nas cordas. Chegando, porém, no
meio da ponte, praticaram ainda maior crueldade. Empur raram o pobre Jesus
amar rado, a quem seguravam pelas cordas, da ponte, que ali tinha a altura
de um homem, ao leito do Cedron e insultaram-nO ainda, dizendo que aí
bebesse à vontade. Foi só por proteção divina que o Redentor não se feriu
mor talmente. Caiu sobre os joelhos e depois sobre o rosto, que se teria
machucado gravemente no leito, que tinha pouca água, se Ele não o tivesse
protegido, estendendo as mãos ligadas. Essas não estavam mais amar radas
no cinto; não sei se foi por assistência divina ou se os soldados mesmos lhas
desamar raram. As marcas dos joelhos, pés, cotovelos e dedos do Salvador
imprimiram-se, pela vontade de Deus, no lugar em que tocaram, no fundo
rochoso; mais tarde eram veneradas pelos cristãos. Hoje não se crê mais em
tais efeitos; mas vi muitas vezes, em visões históricas, tais impressões
feitas em rochas pelos pés, joelhos e mãos de patriarcas e profetas, de
Jesus, da SS. Virgem e de outros santos. As rochas eram menos duras e mais
crentes do que os corações dos homens e deram, em tais momentos,
testemunho da impressão que a verdade sobre elas fez.
Eu não tinha visto Jesus beber durante as graves angústias no monte das
Oliveiras, apesar da veemente sede; depois, porém, quando o empur raram no
Cedron, eu O vi beber penosamente e recitar a: passagem profética do salmo
que fala em "beber do ribeiro ao lado do caminho." (Sal. 109,7).
Os soldados que ficaram na ponte, seguravam Jesus sempre pelas cordas e
porque Ihes era demasiadamente dificultoso puxá-Lo para cima e como a
muralha na outra banda impedia que Jesus atravessasse o ribeiro, voltaram
para trás, para o começo da ponte, ar rastando Jesus através do Cedron; ali
desceram à margem e puxaram-nO de costas, pela ribanceira acima. Esses
miseráveis empur raram então ao pobre Jesus pela segunda vez, sobre a
longa ponte, ar rastando e ar rancando-O para frente, cobrindo-O de insultos e
maldições, empur rões e pancadas. A longa túnica de lã, ensopada de água,
caia-Lhe pesada sobre os ombros; movia-se com dificuldade e no outro lado
da ponte caiu ,de novo por ter ra. Levantaram-nO aos ar rancos, batendo-Lhe
com as cordas nodosas, ar regaçaram-Lhe no cinto o vestido molhado, entre
vis escárnios e insultos; falaram, por exemplo, de ar regaçar a veste, para
matar o cordeiro pascal e zombarias semelhantes.
Ainda não era meia noite, quando vi Jesus caminhar, empur rado de-
sumanamente pelos soldados, entre pragas e pancadas, sobre o pedregulho
cor tante e pedaços de rochas, através de cardos e espinheiros. O caminho
passava para o outro lado do Cedron; era estreito e já muito estragado e
havia atalhos paralelos a ele, ora mais acima, ora mais abaixo. Os seis
malvados fariseus ficavam onde o caminho o per mitia, sempre per to de
Jesus; cada um tinha na mão um instr umento de tor tura, uma vara cur ta,
com ponta aguda, com a qual Lhe batiam ou, empur rando-O, picavam. Nos
lugares por onde Jesus andava, com os pés descalços e sangrentos, sobre as
pedras cor tantes, por ur tigas e espinheiros, ar rastado pelos soldados, que
andavam nas veredas mais cômodas do lado, o coração ter no do pobre Jesus
ainda era ferido pelo malicioso escár nio dos seis fariseus, que diziam, por
exemplo: "Aqui o teu precursor, João Batista, não te preparou um bom
caminho." ou: Aqui não se cumpre a palavra do profeta Malaquias: "Eis aí
mando o meu Anjo e ele preparará o caminho diante de ti"; ou: "Porque não
ressuscita Ele a João Batista, para preparar-Lhe o caminho?" Tais palavras
escar necedoras daqueles miseráveis, acompanhadas de risadas
imper tinentes dos outros, instigavam também os soldados a afligirem Jesus
com novas crueldades.
Tendo ar rastado o Senhor por algum tempo, notaram que diversos homens se
avistavam ao longe, seguindo o cor tejo, pois, à notícia da prisão de Jesus,
vieram muitos discípulos de Betfagé e de outros esconderijos, para ver o que
sucedia ao Mestre. À vista disso, começaram os inimigos de Jesus a recear
que aqueles homens pudessem agredí-los e liber tar o preso; fizeram por isso
sinais na direção do ar rabalde de Ofel, gritando que Ihes mandassem reforço,
como antes tinham combinado.
O cor tejo tinha ainda um caminho de alguns minutos até a por ta que, mais ao
sul do Templo, conduzia, através de um ar rabalde pequeno, ao monte Sião,
onde moravam Anás e Caifás, quando vi sair dessa por ta um pelotão de 50
soldados, para reforçar a guarda de Jesus. Marchavam em três grupos: o
primeiro de dez, o último de quinze homens; esses contei, o do meio tinha,
por tanto, 25. Traziam diversas lanter nas e avançavam muito barulhentos e
imper tinentes, dando gritos altos, como para anunciar a sua vinda aos
soldados do cor tejo e dar-Ihes os parabéns pela vitória. Aproximaram-se com
grande vozeria. No momento em que o primeiro grupo se juntou ao cor tejo de
Jesus, vi Malcho e alguns outros da retaguarda aproveitarem a desordem,
para se afastarem fur tivamente, dirigindo-se de novo ao monte das Oliveiras.
Quando esse destacamento saiu ao encontro do outro cor tejo, à luz das
lanter nas e com grande gritaria, dispersaram-se os discípulos que tinham
aparecido nos ar redores. Vi, porém, a SS. Virgem e nove mulheres, impelidas
pelo medo, virem de novo ao vale de Josafá. Estavam com ela, Mar ta,
Madalena, Maria, filha de Cleofas, Maria Salomé, Maria Marcos, Suzana,
Joana Chusa, Verônica e Salomé. Estavam ao sul de Getsêmani, defronte
daquela par te do monte das Oliveiras, onde há outra gruta, na qual Jesus, em
outras ocasiões, costumava rezar. Vi com elas também Lázaro, João Marcos,
como também o filho de Verônica e de Simeão. Esse estivera também com os
oito Apóstolos em Getsêmani e passara no meio dos soldados em tumulto.
Trouxeram a notícia às santas mulheres. Nesse momento ouviram a gritaria e
avistaram as lanternas das duas tropas, que se encontravam. A SS. Virgem
perdeu então os sentidos, caindo nos braços das companheiras, que se
retiraram com ela a cer ta distância, para, depois de passado o cor tejo, levá-
Ia à casa de Maria Marcos.

2. Lamentações dos habitantes de Ofel

Os cinqüenta soldados faziam par te de uma tropa de 300 homens, que haviam
ocupado de improviso as por tas e r uas de Ofel e ar redores; pois Judas, o
traidor, prevenira o Sumo Sacerdote que os habitantes de Ofel, na maior
par te pobres operários, jor naleiros, car regadores de água e lenha, a ser viço
do Templo, eram os par tidários mais convictos de Jesus e que era para
recear que fizessem tentativas de livrá-Lo, ao ser conduzido por lá. O traidor
bem sabia que Jesus tinha ali muitas vezes ensinado, consolado, socor rido e
curado muitos dos pobres obreiros. Foi também ali que Jesus se demorou,
por ocasião da viagem de Betânia a Hebron, depois da mor te de S. João
Batista, para consolar os amigos deste; nessa estadia em Ofel, Jesus curara
muitos operários e jor naleiros, feridos no desabamento do aqueduto e da
grande tor re de Silo. A maior par te dessa pobre gente reuniu-se, depois da
vinda do Espírito Santo, à primeira comunidade cristã; quando depois os
cristãos se separaram dos judeus e fundaram várias colônias da comunidade,
erigiramse tendas e cabanas dali por todo o vale, até o monte das Oliveiras.
Naquele tempo era também ali o campo de ação de Estevão. Ofel é uma
colina cercada de muralhas, situada ao sul do Templo e habitada na maior
par te por jor naleiros pobres; parece-me que não é muito menor do que
Dülmen.
Os habitantes de Ofel foram acordados do sono pelo barulho da tropa, que
ocupou o bair ro. Saíram das casas a cor rer, apinharam-se nas r uas e diante
da por ta onde estavam os soldados e perguntaram o que sucedia; mas foram
repelidos para suas casas com zombarias e rudes insultos pelos soldados,
que eram na maior par te escravos de índole baixa e imper tinente. Quando,
porém, tiveram a infor mação dada por alguns soldados: "trazem preso o falso
profeta, Jesus, o malfeitor ; o Sumo Sacerdote quer acabar-Lhe com as
práticas; provavelmente morrerá na cruz", levantou-se alto pranto e
lamentação em toda a vila, acordada do sono notur no. Essa pobre gente,
homens e mulheres, cor reram pelas ruas, chorando ou caindo de joelhos,
com os braços estendidos, clamando ao céu ou lembrando em alta voz os
benefícios que Jesus Ihes havia feito. Mas os soldados fizeram-nos voltar
para as casas, empurrando-os e batendo-Ihes; insultaram também a Jesus,
dizendo: "Eis aqui uma prova evidente de que é um agitador do povo. Não
conseguiram, porém, sossegar inteiramente o povo, temendo também que,
com maio res violências, ficasse ainda mais excitado; contentaram-se, pois,
em retê-Io fora da rua pela qual Jesus devia ser conduzido.
Entretanto aproximava-se cada vez mais da por ta de Ofel o cor tejo
desumano, que trazia Jesus preso. Nosso Senhor já caíra diversas vezes e
parecia não poder sustentar-se mais em pé. Um soldado
compadecido aproveitou essa ocasião e disse: "Vós mesmos vedes que Ele
não pode mais andar : Se O quiserdes levar vivo à presença do Sumo
Pontífice, soltai-Lhe um pouco as cordas que Lhe prendem as mãos, para
que, caindo, possa apoiar-se. Enquanto o cor tejo parava e os soldados Lhe
desligavam um pouco as mãos, outro soldado misericordioso trouxe Lhe água
para beber, de um poço que se achava na vizinhança. Haurira a água com um
saquinho de cor tiça, que os soldados e viajantes nesse país costumam usar
para beber. Jesus disse-Lhe algumas palavras de agradecimento, citando um
trecho de um profeta, sobre "beber água viva" ou "fontes de água viva", não
sei mais exatamente; os fariseus zombaram e insultaram-nO por isso.
Acusaram-nO de vangloriar-se e de blasfemar, disseram-Lhr que deixasse tais
palavras vaidosas; que não daria mais a beber nem a um animal, muito menos
a um homem. Foi-me, porém, revelado que aqueles dois homens: um que fez
desligar as mãos de Jesus e o outro que lhe deu a beber, tiveram a graça de
uma iluminação inter na. Conver teram-se já antes da mor te de Jesus e
uniram-se, como discípulos, à comunidade cristã. Eu lhes sabia os nomes e
também os nomes que receberam como discípulos e todas as circunstâncias
da sua conversão; mas é impossível guardar tudo na memória: é uma
imensidade de coisas.
O cor tejo continuou então o caminho, maltratando o Senhor ; subindo por uma
encosta, entrou pela por ta de Ofel, onde foi recebido pelos lamentos
pungentes dos habitantes, que tinham por Jesus grande afeto e gratidão. Só
à força podiam os soldados reter a multidão de homens e mulheres, que se
acercaram de todos os lados. Vinham cor rendo, prostravam-se de joelhos,
estendendo os braços e exclamando, "Soltai este homem, soltai este homem.
Quem nos há de socor rer, quem nos há de curar e consolar? Entregai-nos
este homem." Era um espetáculo que dilacerava o coração: Jesus, pálido,
desfigurado, ferido, o cabelo em desordem, o vestido molhado, sujo, mal
ar regaçado, puxado pelas cordas, empur rado a pauladas, impelido pelos
soldados imper tinentes, meio nus, como se conduz um animal meio mor to ao
sacrifício; vê-Io ar rastado pela soldadesca ar rogante, através da multidão
dos habitantes de Ofel, cheios de gratidão e compaixão, que Lhe estendiam
os braços, que curara de paralisia, que o aclamavam com as línguas a que
restituíra a voz, que olhavam e choravam com os olhos a que dera a vista.
Já no vale do Cedron se juntara à tropa muita gente de classe baixa, agitada
pelos soldados e provocada pelos agentes de Anás e Caifás e outros inimigos
de Jesus; insultavam e injuriavam a Jesus e ajudavam também a ultrajar e
afrontar o bom povo de OfeI. Este lugar está situado numa colina; vi o ponto
mais alto, no meio da vila, um largo onde estava empilhada muita madeira de
constr ução, como no pátio de uma car pintaria. Descendo dali, o cor tejo
dirigiu-se a uma por ta do muro, pela qual saiu do ar rabalde.
Depois do cor tejo ter saído de Ofel, os soldados impediram o povo de seguí-
Io, O cor tejo desceu ainda um pouco no vale, deixando à direita um edifício
vasto, restos, se me lembro bem, de obras de Salomão e à esquerda, o
tanque de Betesda. Assim marcharam, descendo sempre o caminho do vale
chamado Milo, depois se dirigiram um pouco para o sul, subindo as altas
escadarias do monte Sião, para a casa de Anás. Em todo esse caminho
continuavam a insultar e maltratar Jesus e o povo baixo que vindo da cidade
se juntara ao cor tejo, instigava os infames soldados a repetirem as
crueldades. Do monte das Oliveiras até a casa de Anás caiu Jesus sete
vezes.
Os habitantes de Ofel ainda estavam cheios de susto e tristeza, quando outro
incidente lhes renovou a compaixão: a Mãe de Jesus, conduzida pelas santas
mulheres e pelos amigos de Jesus, vindo do vale de Cedron, passou por Ofel,
indo à casa de Maria Marcos, situada ao pé do monte Sião. Quando a boa
gente de Ofel a reconheceu, começou de novo a chorar compadecida;
apinhava-se de tal modo em roda de Maria e dos companheiros, que a Mãe de
Jesus foi quase transpor tada pela multidão.
Maria, muda de dor, não falava, nem depois de chegar à casa de Maria
Marcos, senão quando chegou mais tarde João; então começou a perguntar
com grande tristeza e João contou-lhe tudo o que vira, desde a saída do
Cenáculo, até aquela hora. Mais tarde levaram a SS. Virgem à casa de Mar ta,
a leste da cidade, ao pé do palácio de Lázaro. Conduziram-na novamente por
desvios, evitando os caminhos pelos quais Jesus fora conduzido, para não
lhe aumentar demais a tristeza e dor.
Pedro e João que, a cer ta distância, tinham seguido o cor tejo, quando este
entrou na cidade, recor reram depressa a alguns conhecidos que João tinha
entre os empregados do Sumo Pontífice, para acharem uma opor tunidade de
entrar na sala do tribunal, para onde o Mestre devia ser levado. Esses
conhecidos de João eram uma espécie de mensageiros do tribunal, que
naquela hora receberam ordem de percor rer a cidade, para acordar os
anciãos de várias classes e mais outras pessoas e convocálos para a sessão
do tribunal. Desejavam mostrar-se obsequiosos aos dois Apóstolos, mas não
acharam outro meio senão o de fazer João e Pedro vestirem-se dos mantos
de mensageiros e ajudá-Ios a convocar os anciãos e revestidos desses
mantos, entrarem depois no tribunal de Caifás; pois ali estava reunido
somente gente de classe baixa, todos subor nados, soldados e falsas
testemunhas; todos os outros eram expulsos. Como, porém, José de
Arimatéia e Nicodemos e outras pessoas bem intencionadas também fossem
membros do Sinédrio, aos quais os fariseus talvez deixassem de avisar de
propósito, foram Pedro e João convidar todos esses amigos de Jesus. Judas,
no entanto, como um criminoso desvairado, que a seu lado vê o demônio,
andava vagando pelas encostas íngremes ao sul de Jer usalém, para onde se
jogavam o lixo e todas as imundícies.
3. Preparativos dos inimigos de Jesus

Anás e Caifás tinham imediatamente recebido notícia da prisão de Jesus. Em


suas casas estava tudo em pleno movimento. As salas dos tribunais estavam
iluminadas e todas as respectivas entradas e passagens guardadas; os
mensageiros percor riam a cidade, para convocar os membros do Conselho,
os escribas e todos quantos tinham voto no tribunal. Muitos, porém, já
estavam reunidos com Caifás, desde a hora da traição de Judas, para
esperar o resultado. Foram também chamados os anciãos das três classes de
cidadãos. Como os fariseus, saduceus e herodianos de todas as par tes do
país, tinham chegado para a festa a Jer usalém, já havia alguns dias e tendo
sido combinado havia muito tempo, entre eles e o Sinédrio, a prisão de
Jesus, foram chamados também entre eles os mais ferozes inimigos do
Salvador (Caifás tinha uma lista com os nomes de todos); receberam a ordem
de juntar, cada um no seu meio, todas as provas e testemunhas contra o
Senhor e de trazê-Ias ao tribunal. Estavam, porém, reunidos em Jerusalém
todos os fariseus e saduceus e outra gente malvada de Nazaré, Cafamaum,
Tirza, Gabara, Jotapata, Silo e outros de lugares, aos quais Jesus tinha dito
tantas vezes a verdade crua, cobrindo-os de vergonha e confusão, diante de
todo o povo; estavam todos cheios de ódio e raiva e cada um foi então
procurar alguns patifes, entre os peregrinos conter râneos, que moravam em
acampamentos separados, confor me as várias regiões; subornaram-nos com
dinheiro, para agitarem contra Jesus e O acusarem. Mas, fora algumas
evidentes mentiras e calúnias, não sabiam proferir senão' aquelas
acusações, a respeito das quais Jesus os reduzira inumeráveis vezes ao
silêncio nas sinagogas.
Todos esses homens reuniram-se pouco a pouco no tribunal de Caifás e mais
toda a multidão de inimigos de Jesus, entre os orgulhosos fariseus e
escribas e toda a escória mentirosa de seus par tidários em Jer usalém.
Haviajá alguns dos mercadores, furiosos porque Jesus os expulsara do
Templo; muitos doutores vaidosos que Ele fizera emudecer no Templo, diante
do povo e talvez ainda houvesse alguns que não Lhe podiam perdoar tê-los
convencido de er ros quando, menino de doze anos, ensinara pela primeira
vez no Templo. Entre os inimigos de Jesus ali reunidos havia pecadores
impenitentes, que Ele não quisera curar da doença, pecadores reincidentes,
que depois da cura, de novo adoeceram; jovens vaidosos, que o Mestre não
aceitara como discípulos; caçadores de heranças, furiosos por Ele ter
dividido entre os pobres tantos bens que esperavam possuir ; criminosos,
cujos camaradas conver tera; libertinos e adúlteros, cujas amantes
reconduzira ao caminho da vir tude; homens que já se rejubilavam de herdar
riquezas, cujos proprietários foram por Ele curados da doença; e muitos vis
aduladores, capazes de toda a maldade, muitos instrumentos de Satanás,
cujos corações odiavam tudo quanto era santo e, por tanto, mais ainda, o
Santo dos santos. Essa escória de uma grande par te do povo judaico, reunida
para a festa, foi posta em movimento, excitada pelos inimigos principais de
Jesus e afluía de todos os lados ao palácio de Caifás, para acusar
falsamente de todos os crimes ao verdadeiro Cordeiro pascal de Deus, que
tomara sobre si os pecados do mundo; vinham manchá-Lo com os efeitos dos
pecados que tomara sobre si, supor tando e expiando-os.
Enquanto esse lodo do povo judaico se agitava, para enlamear o Salvador
Imaculado, aproximavam-se também muitas pessoas piedosas e amigos de
Jesus, acordados pelo tumulto e entristecidos pela ter rível notícia; não
estavam iniciados nas intenções secretas dos inimigos, e quando ouviam e
choravam, eram enxotados, quando se calavam, olhavam-nos de canto.
Outros, mais fracos, bem intencionados e outros meio convencidos, se
escandalizavam ou caiam em tentações, duvidando de Jesus. O número dos
que ficaram fir mes na fé, não era grande; aconteceu como ainda acontece
hoje, que muitos querem ser bons cristãos, enquanto lhes convém, mas que
se envergonham da cruz onde ela não é bem vista. Já no principio, porém,
muitos se retiraram abatidos e calados; pois estavam enojados do processo
injusto, da acusação infundada, dos insultos e ultrajes vis e revoltantes e
também comovidos pela paciência resignada do Salvador.

4. Uma vista geral sobre a Situação em Jerusalém àquela hora

Ter minadas as numerosas cerimônias e orações, tanto públicas como


par ticulares, acabados os preparativos para a festa, a vasta cidade populosa
e os extensos acampamentos dos peregrinos pascais, nos ar redores,
estavam mergulhados em profundo sono e descanso, quando veio a notícia da
prisão de Jesus, excitando tanto inimigos como amigos do Senhor. De todos
os pontos da cidade se põem em movimento os convocados pelos
mensageiros do Sumo Sacerdote. Cor rem, aqui ao claro luar, acolá à luz de
lanter nas, pelas ruas de Jer usalém, as quais de noite, pela maior par te,
estão escuras e deser tas; pois em geral se passa a vida das famílias nos
pátios interiores, para onde também dão as janelas. Todos aqueles homens
caminham para Sião, de cuja eminência brilha a luz das lanter nas e ressoa
grande vozeria. Ouve-se ainda, cá e lá, bater às por tas dos vestíbulos para
acordar os dor mentes. Em muitas par tes da cidade há tumulto, barulho e
gritaria; abrem-se as por tas aos que batem, pergunta-se o que há e obedece-
se à ordem de ir a Sião. Curiosos e criados seguem, para trazer depois
notícias dos acontecimentos aos que ficam em casa. Ouve-se o fechar de
por tas e o puxar bar ulhento de fer rolhos e trancas. O povo é medroso e
receia uma agitação. Cá e lá saem pessoas das casas, pedindo infor mações
a conhecidos que passam ou esses entram apressadamente em casa de
amigos; ouvem-se aí muitas conversas maliciosas, como em semelhantes
ocasiões, também hoje em dia, são bastante comuns, dizem, por exemplo:
"Agora Lázaro e a ir mã vão ver com quem travaram amizade. Joana Chusa,
Suzana, Maria, mãe de João Marcos e Salomé ar repender-se-ão do
procedimento que tiveram. Como deve agora Seráfia se humilhar diante do
marido, Sirach, que tantas vezes a tem censurado por causa das relações
com o Galileu! Todo o bando dos par tidários deste agitador fanático olhava
com compaixão para os que não os acompanhavam, mas agora muitos não
saberão onde se esconder. Agora não se apresenta ninguém que lhe estenda
mantos e véus ou ramos de palmeira sob os pés do jumento. Esses
hipócritas, que sempre querem ser melhores do que os outros, bem merecem
cair agora na suspeita, pois todos estão implicados na causa do Galileu. Isto
tem raízes mais longas do que se pensa. Eu queria saber como Nicodemos e
José de Arimatéia se hão de haver ; há muito que se desconfia deles, dão-se
muito com Lázaro, mas são uns esper tos. Agora há de esclarecer-se tudo,
etc. Desse modo se ouve falar muita gente, que tem ódio contra cer tas
famílias, especialmente contra aquelas mulheres que creram em Jesus e
desde então lhe manifestaram publicamente a fé.
Em outras par tes o povo recebe as notícias de maneira mais digna; alguns se
assustam e outros choram sozinhos ou procuram ocultamente um amigo que
pense como eles, para desafogar o coração. Poucos, porém, se atrevem a
manifestar compaixão franca e resolutamente.
Não é, porém, em toda a cidade que reina a excitação, mas apenas onde os
mensageiros levam a chamada para o tribunal, onde os fariseus procuram as
falsas testemunhas e especialmente no entroncamento das r uas que
conduzem a Sião. É como se em diferentes par tes de Jerusalém se
alumiassem faíscas de fúria e raiva que, cor rendo pelas ruas, se tinissem a
outras que encontrassem e, cada vez mais for tes e densas, se der ramassem
finalmente, como um rio lúgubre de fogo, no tribunal de Caifás sobre Sião.
Em algumas par tes da cidade reina ainda silêncio, mas também ali já começa
a pouco o alar me.
Os soldados romanos não tomam par te; mas os guardas estão reforçados e
as tropas reunidas; obser vam atentamente o que acontece. Nos dias da
Páscoa estão sempre muito quietos, por causa do grande concurso do povo,
mas ao mesmo tempo sempre prontos e de sobreaviso. O povo que percor re
as ruas, evita os pontos onde estão os guardas; pois contraria muito aos
judeus farisaicos ter de responder ao grito da sentinela. Os Sumos
Sacerdotes cer tamente infor maram antes a Pilatos o motivo porque
ocuparam Ofel e uma par te de Sião com os seus soldados; mas eles
desconfiam uns dos outros. Pilatos também não dor me; recebe infor mações e
dá ordens. A esposa está deitada no leito, dor mindo profundamente, mas
está inquieta, geme e chora, como opressa por pesadelos; dor me, mas
aprende muitas coisas, mais do que Pilatos.
Em nenhuma par te da cidade se manifesta tanta compaixão como em Ofel,
entre os pobres escravos do Templo e os jor naleiros que habitam essa
colina. A dolorosa nova sur preendeu-os tão repentinamente, no meio da noite
silenciosa; a crueldade desper tou-os do sono: aí passara o santo Mestre, o
benfeitor que os curara e consolara, passara como uma hor rível visão
notur na, ferido e maltratado; depois se Ihes concentrou novamente a
compaixão na Mãe dolorosa de Jesus, passando pelo meio deles, com as
companheiras. Ai! Que espetáculo triste, a Mãe dilacerada pela dor e as
amigas de Jesus, obrigadas a percor rer as ruas, inquietas e tímidas, à hora
insólita da meia noite, refugiando-se de uma casa amiga à outra! Diversas
vezes se vêm obrigadas a esconder-se num canto das casas, para deixar
passar um grupo de imper tinentes; outras vezes são insultadas como
mulheres notívagas; freqüentemente ouvem ditos maliciosos dos
transeuntes, raras vezes uma palavra de compaixão para com Jesus.
Chegadas afinal ao abrigo, caem abatidas por ter ra, chorando e torcendo as
mãos, todas igualmente desconsoladas e sem forças; sustentam ou abraçam
umas as outras, ou sentam-se, em dor silenciosa, apoiando sobre os joelhos
a cabeça velada. Batem à por ta, todas escutam em silêncio e medo; batem
devagar e timidamente: não é um inimigo; abrem com receio: é um amigo ou
um criado de um amigo de seu Senhor e Mestre; rodeiam-no, pedindo notícias
e ouvem falar de novos sofrimentos; a compaixão não as deixa ficar em casa,
saem de novo à rua, para se infor mar, mas voltam sempre com crescente
tristeza.
A maior par te dos Apóstolos e discípulos andam vagando medrosos pelos
vales em redor de Jer usalém e escondem-se nas caver nas do monte das
Oliveiras. Cada um se assusta à aproximação do outro; pedem notícias em
voz baixa e cada ruído de passos lhes inter rompem as tímidas conversas.
Mudam freqüentemente de paradeiro e separadamente se aproximam de novo
da cidade. Outros procuram, fur tivamente, conhecidos entre os conter râneos
peregrinos, nos acampamentos, para pedir infor mações ou mandam-nos à
cidade, para trazerem notícias. Outros sobem ao monte das Oliveiras,
espiando inquietos o movimento das lanter nas e escutando o barulho em
Sião, inter pretam tudo de mil diferentes modos e descem de novo ao vale,
para ter qualquer infor mação cer ta.
O silêncio da noite é cada vez mais inter rompido pelo barulho em tor no do
tribunal de Caifás. Essa região é iluminada pela luz das lanternas e dos
archotes. Nos ar redores da cidade ressoa o mugido dos numerosos animais
de carga ou de sacrifício, que tantos peregrinos de fora trouxeram para os
acampamentos; como ressoa inocente e comovedor o balir desamparado e
humilde dos inumeráveis cordeiros, que amanhã hão de ser imolados no
Templo! Mas um só é imolado, porque Ele mesmo quis e não abre a boca,
como a ovelha que é conduzi da ao matadouro; e como um cordeiro, que
emudece diante de quem o tosa, assim se cala o Cordeiro pascal, puro e sem
mancha, - Jesus Cristo.
Sobre todo esse quadro se estende um céu sinistro e singular mente
impressionante: a lua caminha ameaçadora, escurecida por estranhas
manchas; dir-se-ia estar alterada e hor rorizada, como se tivesse medo de
tomar-se cheia, pois nessa ocasião Jesus já estará mor to. Fora da cidade
porém, no íngreme vale de Hinon, anda vagando Judas Iscariotes, o traidor, -
incitado pelo demônio, chicoteado pela consciência, fugindo da própria
sombra, solitário, sem companheiro, em lugares malditos e sem caminhos,
em pântanos lúgubres, cheios de lixo e imundícies; milhares de espíritos
maus andam por toda a par te, desnor teando os homens e impelindo-os ao
pecado. O infer no está solto e incita todos ao pecado: o fardo pesado do
Cordeiro aumenta. A raiva de Satanás multiplica-se, semeando desordem e
confusão. O Cordeiro tem sobre si todo o fardo; Satanás, porém, quer o
pecado e pois que não cai em pecado esse justo, a quem em vão tentou
seduzir, quer pelo menos que os inimigos que O perseguem, pereçam no
pecado.
Os Anjos, porém, vacilam entre tristeza e alegria; desejariam suplicar diante
do trono de Deus a per missão de socor rer a Jesus, mas só podem admirar e
adorar o milagre da justiça e misericórdia divina, que já existia, desde a
eter nidade, no Santíssimo do céu e começa a realizar-se agora no tempo,
pois também os Anjos crêem em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do Céu e
da ter ra e em Jesus Cristo, um só seu Filho, Nosso Senhor, o qual foi
concebido do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem, que esta noite
começará a padecer, sob o poder de Pôncio Pilatos, que amanhã será
crucificado, mor to e sepultado; que descerá aos infer nos, ressurgirá dos
mor tos ao terceiro dia, que subirá ao céu, onde se sentará à mão direita de
Deus Pai Todo-Poderoso e de onde há de vir ajulgar os vivos e os mor tos pois
também eles crêem no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão
dos Santos, na remissão dos pecados, na ressur reição da car ne e na vida
eter na. Amém.
Tudo isto é apenas uma pequena par te das impressões que necessariamente
enchiam um pobre coração pecador de dilacerante angústia, contrição,
consolação e compaixão quando, em busca de alívio, se lhe desviava o olhar
da cruel prisão do Salvador e se dirigia sobre Jerusalém, nessa hora da meia
noite, a mais solene de todos os tempos, na qual a infinita justiça e a
misericórdia infinita de Deus, encontrando-se, abraçando-se e penetrando-se
uma a outra, iniciaram a santíssima obra do amor de Deus e dos homens:
castigar e expiar os pecados dos homens no Homem-Deus pelo Homem-Deus.
Tal era a situação geral, quando o nosso querido Salvador foi conduzido à
casa de Anás.

5. Jesus diante de Anás

Cerca de meia noite chegou Jesus ao palácio de Anás e foi conduzido, pelo
átrio iluminado, à grande sala que tinha o tamanho de uma pequena Igreja.
No fundo, em frente à entrada, estava sentado Anás, rodeado de 28
conselheiros, num ter raço, sob o qual podia passar, pelo lado. Em frente
havia uma escada, inter rompida por patamares, que conduzia a esse tribunal
de Anás, no qual se entrava por uma por ta própria, do fundo do edifício.
Jesus, cercado ainda por uma par te dos soldados que o prenderam, foi
puxado pelos soldados alguns degraus da escada para cima e seguro pelas
cordas. A outra par te da sala foi ocupada por soldados e gentalha, judeus
que insultavam Jesus, criados de Anás, e par te das testemunhas reunidas
por este que depois se apresentaram em casa de Caifás.
Anás estava esperando impacientemente a chegada de Jesus: tudo nele
revelava ódio, malícia e crueldade. Era então presidente de um cer to tribunal
e reunira ali a junta da comissão, que tinha a tarefa de velar pela pureza da
doutrina e de exercer o ofício de procurador geral no tribunal do Sumo
Sacerdote.
Jesus estava em pé diante de Anás, calado, de cabeça baixa, pálido,
cansado, com as vestes molhadas e enlameadas, as mãos amar radas, seguro
com cordas pelos soldados. Anás, velho malvado, magro, com pouca barba,
cheio de imper tinência e de orgulho farisaico, sor ria hipócritamente, como
se não soubesse de nada e se admirasse de ser Jesus o preso que lhe haviam
anunciado. O discurso enfadonho com que recebeu Jesus, não sei repetí-Io
com as mesmas palavras, mas era mais ou menos o seguinte: "Olá! Jesus de
Nazaré! És tu? Onde estão então os teus discípulos, os teus numerosos
aderentes? Onde está o teu reino? Parece que tudo saiu muito diferente do
que pensavas! Acabaram agora as injúrias; esperávamos pacientemente até
que estivesse cheia a medida das tuas blasfêmias, dos teus insultos aos
sacerdotes e violações do Sábado. Quem são os teus discípulos? Onde
estão? Agora te calas? Fala, agitador e sedutor do povo? Já comeste o
cordeiro pascal de modo insólito, à hora e em lugar fora de costume. Queres
introduzir uma nova doutrina? Quem te deu o direito de ensinar? Onde
estudaste? Qual é a tua doutrina, que excita a todos? Responde, fala! Qual é
a tua doutrina?”
Então levantou Jesus a cabeça fatigada e, fitando Anás, disse: "Tenho falado
em público, diante de todo o mundo, em lugares onde todos os judeus
costumam reunir-se. Não tenho dito nada em segredo. Porque me perguntas a
mim? Pergunta àqueles que me ouviam, eles sabem o que tenho falado.”
Como o rosto de Anás, a essas palavras de Jesus, manifestasse ódio e raiva,
um esbir ro infame, miserável e adulador, que estava ao lado de Jesus e que o
percebeu, bateu, com a mão de fer ro, na boca e face de Nosso Senhor,
dizendo: "Assim é que respondes ao Sumo Pontífice?" Jesus, abalado pela
veemência da pancada e ar rancado e empur rado pelos soldados, caiu sobre a
escada de lado e o sangue escor reu-lhe do rosto; a sala retumbou de
escár nio, mur múrio, insultos e risadas. Levantaram Jesus com brutalidade e
Ele disse calmamente: "Se falei mal, mostra-me em que; se eu disse a
verdade, porque me feres?”
Anás, enfurecido pela calma de Jesus, convidou todos os presentes a dizer,
como Ele próprio queria, o que d’Ele tinham ouvido, o que ensinava. Seguiu-
se então uma grande vozeria e gritaria daquele populacho: Ele disse que era
rei, que era Filho de Deus, que os fariseus eram adúlte ros; Ele agitava o
povo, curava no sábado, com auxílio do demônio; o povo de Ofel rodeava-O
como dementes, chamava-O seu Salvador e Profeta; Ele se deixava chamar
Filho de Deus; Ele mesmo se dizia enviado por Deus, chamava a maldição
sobre Jerusalém, falava da destruição da cidade, não guardava o jejum,
percor ria o país seguido de multidões de povo, comia com ímpios, pagãos,
publicanos e pecadores, levava em sua companhia mulheres de má vida,
havia pouco tinha dito em Ofel que daria a quem lhe deu água a beber, água
da vida eter na e ele não teria mais sede; seduzia o povo com palavras
equívocas, desperdiçava o bem alheio, pregava ao povo muitas mentiras
sobre seu reino e muitas outras coisas.
Todas essas acusações foram proferidas ao mesmo tempo, numa grande
confusão. Os acusantes avançavam para Jesus, lançando-Lhe em rosto essas
acusações, acompanhadas de insultos e os soldados empur ravam-nO para cá
e para lá, dizendo: "Fala! responde!" Anás e os conselheiros tomavam
também par te, gritando-lhe, com riso sarcástico: "Ora, agora ouvimos a tua
doutrina. É boa! Que respondes? É essa então a tua doutrina pública? O país
está cheio dela. Aqui não tens nada que dizer? porque não ordenas? oh, rei?
Oh, enviado de Deus, mostra a tua missão?”
A cada uma dessas exclamações dos superiores, seguiam-se ar rancos,
empur rões e insultos da par te dos soldados e de outros que estavam
próximo, que todos de boa vontade teriam imitado o que Lhe batera na face.
Jesus cambaleava de um lado para o outro e Anás disse-Ihe, com
imper tinência insultante: "Quem és? Que espécie de rei ou enviado? Eu
julgava que fosses o filho de um marceneiro obscuro. Ou és acaso Elias, que
foi levado ao Céu num car ro de fogo? Dizem que ele ainda vive. Sabes
também te tor nar invisível, assim escapaste muitas vezes. Ou és por acaso
Malaquias? Sempre tens feito gala com esse profeta, inter pretando-lhe as
palavras como se falasse de ti mesmo. Anda também a respeito dele um
boato, que não tinha pai, que era um Anjo e não mor reu; boa opor tunidade
para um embusteiro fazer-se passar por ele. Dize, que espécie de rei és? És
maior do que Salomão? Esta é também uma afir mação tua. Está bem, não te
quero privar mais tempo do título de teu reino.”
Anás mandou, pois, trazer uma tira de pergaminho, de 3/4 de côvado de
comprimento e da largura de três dedos, pô-Ia sobre uma tabuinha, que
seguravam diante dele e escreveu com uma pena de caniço uma série de
letras grandes, cada uma das quais continha uma acusação contra o Senhor.
Enrolou-a depois e pô-Ia numa pequena cabaça, fechando esta com uma rolha
e amar rando-a a um caniço, mandou entregar-Lhe esse cetro ir risório e
dirigiu-Lhe, com riso satírico, algumas palavras, como: "Eis aqui o cetro de
teu reino; contém todos os teus títulos, dignidades e direitos. Leva-os ao
Sumo Sacerdote, para que conheça a tua missão e o teu reino e te trate
como convém à tua posição. Amar rai-Lhe as mãos e levai este rei ao Sumo
Sacerdote." Então amar raram de novo as mãos de Jesus, que antes tinham
desligado, cruzando-lhas sobre o peito e pondo nelas o cetro afrontoso, que
continha as acusações de Anás. Assim conduziram o Senhor, entre risadas,
insultos e brutalidades, da grande sala de Anás para a casa de Caifás.

6. Jesus é conduzido de Anás a Caifás

Ao ser conduzido à casa de Anás, Jesus passara já pelo lado da casa de


Caifás; reconduziram-nO depois para lá, descrevendo um ângulo. Da casa de
Anás à de Caifás haveria talvez a distância de trezentos passos. O caminho,
que passa entre muros e pequenos edifícios per tencentes ao tribunal de
Caifás, era iluminado por braseiros, colocados em cima de paus e estava
cheio de uma multidão clamorosa de frenéticos judeus. Mal podiam os
soldados reter a multidão. Aqueles que tinham ultrajado a Jesus na casa de
Anás, repetiram então a seu modo as palavras afrontosas desse último
diante do povo e Jesus foi maltratado e injuriado em todo o percurso do
caminho. Vi criados ar mados do tribunal afastarem pequenos grupos de
pessoas que choravam, lastimando a Jesus, enquanto que deixavam entrar no
pátio da casa de Caifás e davam dinheiro a outros que se distinguiam
acusando e insultando o Divino Mestre.

7. O Tribunal de Cairás

Para chegar ao tribunal de Caifás, passa-se primeiro por um por tão a um


vasto pátio exterior, depois por outro por tão a outro pátio que, com os outros
muros, cerca toda a casa. (Nos trechos seguintes daremos a este pátio o
nome de "pátio interior"). A casa tem de comprimento mais de duas vezes a
largura; a par te dianteira consta de uma sala, chamada vestíbulo ou átrio,
lajeada, aber ta, no meio, sem teto, cercada por três lados de colunatas
cober tas, nas quais se acham também as entradas para o átrio. A entrada
principal do átrio é no lado comprido da casa. Entrando ali, vê-se, à
esquerda, uma fossa revestida de alvenaria, onde é mantida uma fogueira;
dirigindo-se à direita, avista-se, atrás de algumas colunas mais altas e num
plano alguns degraus mais acima uma sala cober ta, que for ma o quar to lado
do átrio e tem mais ou menos a metade do tamanho desse. Nessa sala, no
espaço alguns degraus mais alto, estão os assentos dos membros do
conselho, dispostos num semicírculo. O assento do Sumo Pontífice está no
meio da sala. O lugar do acusado, com os guardas, achasse no centro do
semicírculo; em ambos os lados e atrás dele, até o átrio, o lugar dos
acusadores e das testemunhas. A esse estrado semicircular dos juízes,
conduzem, no fundo, três entradas que dão para uma sala maior, de for ma
semicircular, ao longo de cujas paredes há também assentos. Ali têm lugar
as sessões secretas. A direita e à esquerda da entrada, vindo do tribunal, há
nessa sala por tas e escadas, que dão para fora, para o pátio interior, que,
seguindo a for ma da casa, também é de for ma semicircular. Saindo pela
por ta da sala, à direita e virando-se no pátio à esquerda do edifício, chega-se
à por ta de uma cadeia subter rânea, que se estende sob a sala posterior, que
está num plano mais alto do que o átrio e assim dá lugar para adegas subter-
râneas. Há diversos cárceres nesse pátio circular ; num deles vi S. Pedro e S.
João presos por uma noite, depois de Pentecostes, quando Pedra curou o
paralítico na Por ta Bela do Templo.
No edifício e em redor havia inúmeras lanter nas e fachos; estava claro como
dia. Além disso concor ria também para a iluminação a fossa da fogueira, no
centro do átrio; era como um fogão colocado dentro do chão, aber to em
cima, onde se lançava o combustível, que me pareceu ser car vão de pedra.
Nos lados sobressaiam, à altura de um homem, tubos parecidos com chifres,
para deixarem sair a fumaça; no meio, porém, se via o fogo. Soldados,
soldados, muita gente do populacho e falsas testemunhas subor nadas
apinhavam-se em roda do fogo. Também se achavam ali mulheres e raparigas
de má vida, que ofereciam aos soldados uma bebida ver melha e coziam-Ihes
bolos por dinheiro. Era um movimento como nos dias de car naval.
A maior par te dos conselheiros convocados já estavam reunidos em tomo do
Sumo Sacerdote, no semicírculo elevado do tribunal; de vez em quando
chegavam ainda alguns. Os acusadores e testemunhas falsas quase enchiam
o átrio. Muita gente quis entrar à força, mas era repeli da pelos soldados.
Pouco antes da chegada do cor tejo de Jesus, vieram também Pedro e João,
revestidos dos mantos dos mensageiros do tribunal e entraram no pátio
exterior. João, com auxilio do empregado, conhecido seu, pôde mesmo entrar
pela por ta do pátio interior, a qual, porém, foi fechada atrás dele, por causa
do povo impetuoso. Pedro, atrasado pela multidão, já encontrou fechada a
por ta do pátio interior e a por teira não quis deixá-lo entrar. João disse-lhe
que lhe abrisse; mas mesmo Pedra não poderia ter entrado, se não tivessem
chegado nesse momento Nicodemos e José de Arimatéia, fazendo-o entrar
com eles. No pátio interior entregaram os mantos aos tais criados e
colocaram-se silenciosos no meio da multidão, à direita, de onde se podiam
avistar os assentos dos Juízes.
Caifás já estava sentado no meio do semicírculo graduado; em roda se lhe
sentavam cerca de setenta membros do Conselho Supremo. Muitos deputados
comunais, anciãos e escribas estavam em pé ou senta dos aos dois lados e
em tomo deles, muitas testemunhas e patifes. Do pé do tribunal, sob as
colunatas, pelo átrio, até à por ta pela qual se esperava a entrada de Jesus,
foram dispostos soldados; aquela por ta não era a que ficava em frente às
cadeiras dos juízes, mas uma outra, à esquerda do átrio.
Caifás era um homem de aspecto sério, olhar colérico e ameaçador ; estava
vestido de um longo manto ver melho, or nado de florões e or las de ouro,
atado sobre os ombros, o peito e na frente, por muitas placas brilhantes. Na
cabeça trazia um bar rete, que na par te superior tinha semelhança com uma
mitra; entre as par tes anterior e posterior desse, havia aber turas, dos lados,
das quais pendiam pequenas faixas de pano, que caiam sobre os ombros.
Caifás já convocara havia muito tempo os par tidários, entre os membros do
Sinédrio; muitos estavam reunidos desde que Judas saíra com a tropa de
soldados. Cresceu a tal ponto a impaciência e raiva de Caifás, que desceu do
alto assento, cor rendo, com todo o seu aparatoso or nato, ao átrio e
perguntou furioso se Jesus ainda não estava chegando; nesse momento o
cor tejo vinha se aproximando e Caifás voltou para o assento.
8. Jesus diante de Caifás

Entre frenéticos gritos de insulto, com empur rões e ar rancos, foi Jesus
conduzido pelo átrio, onde a desenfreada fúria do populacho se moderou,
reduzindo-se a um sussur ro e mur múrio surdo de raiva contida. Da entrada
dirigiu-se o cor tejo à direita, para o tribunal. Passando por Pedro e João, o
querido Salvador, olhou-os, mas sem virar a cabeça para eles, para não os
trair. Mal Jesus tinha chegado, por entre as colunas, em frente do tribunal,
Caifás já lhe gritou: "Então chegaste" blasfemador de Deus, que nos tens
profanado esta santa noite.”
Tiraram então o cetro ir risório de Jesus, a cabaça, na qual se achavam as
acusações escritas por Anás; depois de ler as acusações, Caifás lançou uma
tor rente de insultos e acusações contra Jesus, enquanto os esbir ros e
soldados em roda puxavam e empur ravam Nosso Senhor ; tinham nas mãos
cur tos bastões de fer ro, em cuja extremidade havia um castão munido de
muitas pontas; com esses bastões empur ravam a Jesus, gritando: "Responde,
abre a boca. Não sabes falar?" Fizeram tudo isso enquanto Caifás, ainda
mais assanhado do que Anás, dirigiu um sem número de perguntas a Jesus,
que, silencioso e paciente, olhava para baixo sem levantar os olhos para
Caifás. Os soldados quiseram forçá-Loa falar, davam-Lhe mur ros na nuca e
nos lados, batiam-Lhe nas mãos e picavam-na com sovelas; houve até um vil
patife que lhe aper tou com o polegar o lábio inferior sobre os dentes,
dizendo: "Agora morde!”
Seguiu-se a audição das testemunhas. Mas em par te era só uma gritaria
confusa do populacho subor nado ou então depoimentos de vários grupos dos
mais assanhados inimigos de Jesus, entre os fariseus e saduceus de todo o
país, reunidos por ocasião da festa. Proferiram de novo tudo o que Ele mil
vezes tinha refutado; disseram: "Ele cura e expulsa os demônios pelo próprio
demônio; não guarda o sábado; quebra o jejum; os seus discípulos não lavam
as mãos; Ele seduz o povo; chama os fariseus de raça de víboras, de
adúlteros; prediz a destr uição de Jer usalém; tem relações com pagãos,
publicanos, pecadores e mulheres de má vida; percor re o país, seguido de
grande multidão de povo; faz-se chamar rei, profeta, até Filho de Deus, fala
sempre do seu reino; contesta o direito do divórcio; proferiu ameaças sobre
Jerusalém; chama-se pão da vida, ensina coisas inauditas, dizendo que quem
não Lhe comer a car ne e não Lhe beber o sangue, não poderá ser salvo.”
Desse modo eram torcidas e viradas ao contrário todas as palavras, doutrina
e parábolas de Jesus, para ser virem de acusações, sempre inter rompidas por
insultos e brutalidades. Mas todos contradiziam e se confundiam uns aos
outros. Um disse: "Ele se faz passar por rei"; outro: "Não, Ele se deixa
apenas chamar assim e quando O quiseram proclamar rei, fugiu." Então
gritou um: "Mas Ele diz que é Filho de Deus"; outro, porém, replicou: "Não,
Ele não disse isso, chama-se Filho só por fazer a vontade do Pai." Alguns
exclamaram que Ele os tinha curado, mas que depois recaíram; as curas
eram apenas feitiço." Quase todas as acusações consistiam essencialmente
em acusá-Io de feitiçaria. Algumas falsas testemunhas depuseram também
sobre a cura do homem na piscina de Betesda, mas mentiram e confundiram-
se. Os fariseus de Seforis, com os quais tinha discutido sobre o divórcio,
acusaram-na de falsa doutri na e até aquele jovem de Nazaré a quem Ele não
quisera aceitar como discípulo, teve a vileza de comparecer ali, para dar
testemunho contra Ele. Acusaram-na também de ter absolvido a adúltera no
Templo e ter acusado os fariseus.
Contudo não eram capazes de encontrar qualquer acusação solidamente
provada. Os grupos de testemunhas que entravam e saiam, começaram a
insultar Jesus, em lugar de depor contra Ele. Discutiam veemente uns com os
outros e nos inter valos Caifás e alguns dos conselheiros continuavam
incessantemente a insultar Jesus, gritando-Lhe, entre as várias acusações:
"Que rei és tu? Mostra teu poder. Manda vir as legiões de Anjos, das quais
falaste no hor to das Oliveiras. Que fizeste do dinheiro das viúvas e das
pessoas que se deixaram enganar? Tantas riquezas que desperdiçaste, que
foi feito delas? Responde, fala! Agora que devias falar, diante do juiz, ficas
calado; mas onde terias feito melhor em calar-te, diante do populacho e
mulherio, aí te abundavam as palavras, etc.”
Todas essas perguntas eram acompanhadas de incessantes crueldades dos
soldados, que, com pancadas e mur ros, queriam forçar Jesus a responder. Só
por milagre de Deus pôde Jesus agüentar tudo isso, para expiar os pecados
do mundo. Algumas testemunhas infames afir maram que Jesus era filho
ilegítimo, mas imediatamente replicaram outros: "É mentira; pois sua mãe
era uma moça piedosa do Templo e nós assistimos à cerimônia do seu
casamento com um homem muito religioso." Essas testemunhas começaram
a discutir.
Acusaram também Jesus e os discípulos de não oferecerem sacrifícios no
Templo. Eu também nunca vi Jesus ou os Apóstolos, desde que O seguiam,
levarem animais de sacrifício ao Templo, a não ser os cordeiros de Páscoa.
Essa acusação não era justa; pois também os Essenos não ofereciam
sacrifícios, sem por isso merecerem castigo. A acusação de feitiçaria
repetiu-se muitas vezes e o próprio Caifás afir mou diversas vezes que a
confusão das testemunhas era efeito da ar te mágica.
Alguns acusaram então Jesus de ter comido o cordeiro pascal já de véspera,
contrariamente ao costume e de ter alterado a ordem dessa cerimônia já no
ano anterior ; por isso começaram de novo a injuriar e insultar Jesus. Mas os
depoimentos das testemunhas eram tão confusos e contraditórios, que
Caifás e todo o Sinédrio ficaram envergonhados e furiosos, porque não
podiam encontrar nada que de qualquer modo pudessem provar. Nicodemos e
José de Arimatéia foram também convidados a se justificarem de ter Jesus
comido a Páscoa no Cenáculo deles, em Sião. Compareceram diante de
Caifás e provaram, com antigos documentos, que os galileus podiam comer o
cordeiro pascal um dia antes, confor me um direito imemorial; além disso,
acrescentaram, foram obser vadas as cerimônias prescritas, pois estiveram
presentes homens empregados do Templo. Com essa afir mação ficaram as
testemunhas muito embaraçadas e o que vexava os inimigos de Jesus, era
ter Nicodemos mandado trazer os rolos de lei e provado com estes o direito
dos galileus. Além de diversos motivos para esse direito dos galileus, os
quais esqueci, foi alegado que seria impossível, com a afluência do povo,
acabar as cerimônias no tempo prescrito pela lei do sábado; também haveria
inconveniências na volta, pela multidão do povo nos caminhos. Apesar dos
galileus nem sempre usarem desse direito, ficara, porém, perfeitamente
provado pelos documentos alegados por Nicodemos. A ira dos fariseus
cresceu ainda mais, quando Nicodemos ter minou o discurso pela obser vação
de que todo o Sinédrio se devia sentir ultrajado, diante do povo reunido, por
um processo feito com tal precipitação e preconceito, na noite de um dia tão
santo e com a confusão e contradição tão aber ta de todas as testemunhas,
com precipitação e impr udência ainda maior.
Depois de muitos depoimentos falsos, vis e mentirosos, se apresentaram
mais duas testemunhas, dizendo: Jesus disse que queria destruir o Templo
feito pelas mãos de homens e construir em três dias outro, que não seria
feito por mãos de homens. Mas também esses dois não estavam de acordo;
um disse que Jesus queria constr uir um templo novo; por isso teria celebrado
a Páscoa num outro edifício, porque queria destruir o antigo Templo; o outro,
porém, disse que aquele edifício também fora construído por mãos de
homens e que por tanto não se referia a ele.
Caifás chegou então ao auge da cólera; pois as crueldades praticadas para
com Jesus, as afir mações contraditórias das testemunhas, a inefável
paciência e o silêncio do Salvador, causaram impressão desfavorável a
muitos dos presentes. Algumas vezes foram as testemunhas até vaiadas.
Muitos ficaram inquietos no coração, vendo o silêncio de Jesus e cerca de
dez soldados afastaram-se, sob pretexto de se sentirem indispostos. Esses,
passando diante de Pedro e João, Ihes disseram: "Este silêncio do galileu,
num processo tão infame, dói no coração, é como se a ter ra se fosse abrir e
tragar-nos; dizei-nos aonde nos devemos dirigir.”
Caifás, furioso pelos depoimentos contraditórios e a confusão das duas
últimas testemunhas, levantou-se do assento, desceu alguns degraus, até
onde estava Jesus e disse: "Não respondes nada a esta acusação?" Indignou-
se, porém, de Jesus não o fitar ; os soldados puxaram então, pelos cabelos, a
cabeça de Nosso Senhor, para trás e bateram-lhe com os punhos por baixo do
queixo. Mas o Senhor não levantou os olhos. Caifás, porém, estendeu com
veemência as mãos e disse em tom furioso: "Conjuro-Te pelo Deus vivo, que
nos digas se és o Cristo, o Messias, o Filho de Deus Bendito!”
Acalmara-se a vozeria e seguiu-se um silêncio solene em todo o átrio; Jesus,
for talecido por Deus, disse, com uma voz cheia de inefável majestade, que
fazia estremecer a todos, com a voz do Verbo Eter no: "Eu o sou, disseste-o
bem. E eu vos digo que em breve vereis o Filho do homem assentado à mão
direita da majestade de Deus, vindo sobre as nuvens do céu.”
Durante essas palavras vi Jesus como que luminoso e sobre Ele, no céu
aber to, Deus Pai Todo-poderoso, numa visão inexprimível; vi os Anjos e as
orações dos justos, suplicando e orando em favor de Jesus. Vi, porém, como
se a divindade de Jesus falasse simultaneamente do Pai e do Filho: "Se eu
pudesse sofrer, queria sofrer ; mas porque sou misericordioso, aceitei a
natureza humana no Filho, para que nela sofresse o Filho do Homem; pois sou
justo e ei-Lo que toma sobre si os pecados de todos estes homens, os
pecados de todo o mundo.”
Por baixo de Caifás, porém, vi aber to todo o infer no, um círculo lúgubre de
fogo, cheio de figuras hediondas e ele por cima desse círculo, sustentado
apenas como por um crepe fino. Vi-o penetrado pela fúria do infer no. Toda a
casa me parecia um infer no agitado por baixo. Quando o Senhor declarou que
era o Filho de Deus, o Cristo, foi como se o infer no tremesse diante dEle e
fizesse subir a essa casa toda a sua fúria contra o Salvador.
Mas como tudo me é mostrado em imagens e figuras (cuja linguagem é para
mim também mais verdadeira, cur ta e clara do que outras explicações, pois
os homens também são for mas cor porais e sensíveis e não somente palavras
abstratas), vi o medo e o ódio do infer no manifestar-se sob inúmeras figuras
hor ríveis, que subiam em muitos lugares, como saindo da ter ra. Entre outras
me lembro ainda de bandos de pequenas figuras escuras, semelhantes a
cães, que andavam nas patas traseiras, cur tas e com gar ras compridas, mas
não me lembro mais que espécie de vicio representavam essas figuras;
sabia-o naquele tempo, mas agora só me lembro da for ma. Tais figuras
hor rendas vi entrar na maior par te dos assistentes, ou sentar-se nos ombros
ou sobre a cabeça deles. A assembléia estava cheia dessas figuras e a fúria
aumentava cada vez mais em todos os maus. Nesse momento vi também
muitas figuras hediondas, saindo dos sepulcros. além de Sião; creio que
eram espíritos maus. Vi também, per to do Templo, saírem da ter ra muitas
aparições e entre essas, diversas que pareciam ar rastar-se com cadeias,
como presos; não sei mais se essas últimas aparições eram espíritos maus
ou almas condenadas a habitarem cer tos lugares da ter ra e que talvez se
dirigissem ao limbo, que o Senhor abriu pela sua própria condenação à
mor te. - Não se podem exprimir exatamente essas coisas, nem quero
escandalizar aos que as ignoram, mas ao vê-Ias, sente-se um ar repio. Esse
momento tinha algo de hor rível. Creio que também João deve ter visto
alguma coisa, pois ouvi-o falar disso mais tarde; pelo menos todos os que
não eram ainda inteiramente maus, sentiram, com um medo profundo, o
hor ror desse momento; os maus, porém, sentiram-se numa violenta er upção
de ódio.
Caifás, como inspirado pelo infer no, apanhou a orla do manto oficial, cor tou-
a com uma faca e rasgou o manto, com um r uído sibilante, gritando: "Ele
blasfemou! Para que precisamos de testemunhas? Vós mesmos ouvistes a
blasfêmia; que julgais?" Então se levantaram todos quantos ainda estavam
presentes e gritaram, com voz ter rível: "É réu de mor te. É réu de mor te.”
A esse grito, a fúria do infer no tor nou-se naquela casa verdadeiramente
ter rível: os inimigos de Jesus estavam como embriagados por Satanás e do
mesmo modo os ser vos aduladores e abjetos (7). Era como se as trevas
proclamassem o seu triunfo sobre a luz. Causou tal hor ror aos que ainda
conser vavam um pouco de bom sentimento, que muitos destes saíram
fur tivamente, envolvidos nos mantos. Também as testemunhas mais notáveis,
como não Ihes fosse mais necessária a presença, saíram do tribunal,
sentindo remorsos da consciência. Outros, mais vis, vadiavam pelo átrio e
em redor da fogueira, onde, depois de recebido dinheiro, começaram a comer
e beber.

(7) Essa adulaçãó cínica (a modo de cães) é talvez a significação esquecida


das figuras demoníacas antes mencionadas.

O Sumo Sacerdote disse, porém, aos soldados: "Entrego-vos este rei; prestai
a este blasfemo a devida honra." Depois se retirou com os membros do
Conselho, à sala circular, situada atrás do tribunal, cujo interior não se podia
ver do átrio.
João, cheio de profunda tristeza, lembrou-se então da pobre Mãe de Jesus.
Receou que a ter rível notícia, comunicada por um inimigo, pudesse ferí-Ia
ainda mais e por isso, lançando mais um olhar ao Santo dos santos, disse no
seu coração: "Mestre, bem sabeis porque me vou em bora" e saiu
apressadamente do tribunal, indo à SS. Virgem, como se fosse enviado por
Jesus mesmo. Pedro, porém, todo abalado pela angústia e pela dor e
sentindo, devido à fadiga, ainda mais o frio penetrante da manhã, ocultava a
tristeza e o desespero o mais que podia e aproximou-se timidamente da
fogueira no átrio, rodeada pelo populacho, que ali se aquecia. Não sabia o
que estava fazendo, mas não podia separarse do Mestre.

9. Jesus é escar necido e maltratado em casa de Caifás

Quando Caifás saiu, com todo o conselho do tribunal, deixando Jesus


entregue aos soldados, lançou-se o bando de todos os malvados patifes aí
presentes, como um enxame de vespas ir ritadas, sobre Nosso Senhor, que
até então estava seguro com cordas por dois dos quatro primeiros soldados;
os outros tinham se afastado antes do inter rogatório, para se revezarem com
outros. Já durante a audição os soldados e outros malvados ar rancaram
tufos inteiros do cabelo e da barba do Senhor. Alguns homens bons
apanharam par te do cabelo do chão e afastaram-se fur tivamente com ele;
mas depois Ihes desapareceu. O bando vil dos soldados também já tinham
cuspido em Jesus, durante o inter rogatório que lhe tinham dado inúmeros
mur ros, batido com paus que ter minavam em bulbos munidos de pontas e
picado com alfinetes; mas depois descar regaram a raiva de um modo
insensato sobre o pobre Jesus. Punham-Lhe na cabeça várias coroas,
trançadas de palha e cor tiça, de for mas ridículas e tiravam-nas novamente,
com palavras maldosas de escár nio. Ora diziam: "Ei-Lo, o Filho de Davi, com
a coroa de seu Pai!" ora: "Eis aqui está quem é mais do que Salomão!" ou:
"Este é o rei que prepara as núpcias do filho" e assim escar neciam n’Ele
toda a verdade eter na que tinha proferido em ensinamentos e parábolas, para
a salvação dos homens... Batiam-Lhe com punhos e paus, empur ravam-na,
cuspindo n’Ele de um modo nojento.
Trançaram ainda uma coroa de palha grossa de trigo, que ali cultivavam,
puseram-Lhe na cabeça um boné alto, parecido com uma mitra de um bispo
de hoje e em cima a grinalda de palha; já antes O tinham despido da túnica
tecida. Lá estava o pobre Jesus, vestido apenas de tanga e escapulário sobre
peito e costas; mas também esse último, ainda lha ar rancaram e não Lhe foi
mais restituído. Jogaram-Lhe sobre os ombros um manto velho, esfar rapado,
cuja par te anterior nem Lhe cobria os joelhos e em redor do pescoço lhe
puseram uma cadeia de fer ro, que, como uma estola, lhe pendia sobre o
peito, até os joelhos; essa cadeia ter minava em duas argolas largas e
pesadas, munidas de pontas agudas, que lhe feriam dolorosamente os
joelhos, quando andava ou caia. Amar raram-Lhe de novo as mãos sobre o
peito, pondo nelas um caniço e cobriram-Lhe o rosto divino com o escar ro
nojento das suas bocas imundas. O cabelo de Jesus, a barba, o peito e a
par te superior do manto estavam cober tas de imundícies nauseabundas;
vendaram-Lhe com um far rapo sujo os olhos, batiam-Lhe com punhos e
bastões, gritando: "Grande profeta! Profetiza, quem te bateu." Ele, porém,
nada dizia: gemia e orava no íntimo do coração por eles, que continuavam a
bater-Lhe. Assim maltratado, disfarçado e sujo, ar rastaram-na pela cor rente
à sala atrás do tribunal. Empur raram-na diante de si, a pontapés e pauladas,
com risadas de escár nio, gritando: "Vamos com o rei de palha; ele
deve apresentar-se também ao Conselho, com as honras que Lhe temos
prestado." Entrando na sala, onde ainda se achavam Caifás e muitos
membros do Conselho, começaram de novo a escar necer do Divino Salvador,
com vis gracejos e alusões sacrílegas a santos usos e cerimônias. Assim
como no átrio, cuspiram-Lhe e sujaram-na, gritando: "Eis aqui tua unção de
profeta e rei! " Aludiram também à unção de Madalena e ao batismo: "Como,
gritaram, queres comparecer tão sujo diante do Supremo Conselho? Querias
sempre purificar os outros e não estás limpo; mas vamos limpar-Te agora."
Trouxeram então uma bacia com água suja e fétida, na qual havia um far rapo
grosso e nojento e entre mur ros, escár nio e insultos, inter rompidos apenas
por cumprimentos e inclinações der risórias, uns mostrando-Lhe a língua,
outros virando-lhes as costas em posições indecentes, passaram-Lhe o
far rapo sujo pelo rosto e os ombros, fingindo limpá-Lo, mas sujando-O ainda
mais; depois Lhe entor naram todo o conteúdo nojento da bacia sobre a
cabeça e o rosto, gritando: "Aí tens ungüento precioso, água de nardo a
trezentos dinheiros, aí tens o teu batismo da piscina de Betsaida.”
Com essa última palavra escar necedora compararam-na, sem premeditação,
ao cordeiro pascal; pois os cordeiros que nesse dia eram imolados, eram
antes lavados no tanque per to da Por ta das Ovelhas e depois levados à
piscina de Betsaida, onde recebiam uma aspersão cerimonial, antes de
serem imolados no Templo. Os soldados, porém, aludiam ao doente de 38
anos, que fora curado na piscina de Betsaida; pois vi-o ali batizar ou lavar ;
digo, batizar ou lavar" porque não tenho recordação clara disso neste
momento.
Depois ar rastaram e empur raram Jesus, com mur ros e pancadas, por toda a
sala, passando em frente dos membros do Conselho, ainda reunidos, que
todos O insultavam e escar neciam. Vi tudo cheio de figuras diabólicas; era
um movimento sinistro, confuso e hor rível. Mas em redor de Jesus maltratado
vi muitas vezes um esplendor luminoso, desde que dissera que era o Filho de
Deus. Muitos dos presentes pareciam sentí-Lo também mais ou menos, vendo
com certa inquietação que todos os insultos e maus tratos não Lhe podiam
tirar a majestade inexprimível. Os inimigos obcecados pareciam sentir esse
esplendor somente pela erupção mais for te de sua ira e de seu ódio; a mim,
porém, parecia esse esplendor tão manifesto, que não podia deixar de pensar
que velavam o rosto de Jesus, só porque o Sumo Sacerdote, desde que ouvira
a palavra: "Eu o sou", não podia mais supor tar o olhar do Salvador.

10. A negação de Pedro

Quando Jesus disse, em tom solene: "Eu o sou", quando Caifás rasgou o
próprio manto, quando o grito: "É réu de mor te!" inter rompeu os insultos e
ultraje da gentalha, quando se abriu sobre Jesus o céu da justiça e o infer no
desencadeou sua fúria e dos sepulcros saíram os espíritos presos, quando
tudo estava cheio de medo e hor ror ; então Pedro e João, que tinham sofrido
muito por serem obrigados a ver, em silêncio e inação, o cruel tratamento de
Jesus, sem poder manifestar compaixão, não agüentaram mais ficar ali. João
saiu, juntamente com muita gente e testemunhas e dirigiu-se
apressadamente a Maria, Mãe de Jesus, que se achava com as mulheres
piedosas em casa de Mar ta, per to da Por ta do Angulo, onde Lázaro possuía
um grande edifício. Pedro, porém, não podia afastar-se, amava
demasiadamente a Jesus. Não podia conter-se; chorava amargamente,
esforçando-se por esconder as lágri mas. Não quis ficar, pois sua
conster nação tê-Io-ia traído, nem podia ir a outra par te, sem causar
estranheza aos outros. Dirigiu-se por isso ao átrio, ao canto da fogueira,
onde se, apinhavam soldados e muitos homens do populacho, que iam e
voltavam, para ver escar necer de Jesus e faziam obser vações baixas e
maliciosas. Pedro conser vava-se calado, mas esse silêncio e o ar de tristeza
do rosto deviam tor ná-Io suspeito aos inimigos do Mestre. Aproximou-se
então também do fogo a por teira e, como todos falassem de Jesus e o
insultassem, também entrou na conversa, à maneira das mulheres
imper tinentes e, olhando para Pedro, disse: "Tu também és um dos discípulos
do Galileu!" Pedro tor nou-se embaraçado e inquieto e, receando que aquela
gente grosseira o maltratasse, disse: "Oh, mulher! Eu não O conheço; não sei
e nem compreendo o que queres dizer." Levantou-se e com a intenção de
livrar-se deles, saiu do átrio; foi à hora em que o galo, fora da cidade, cantou
pela primeira vez; não me lembro de tê-Io ouvido, mas senti que então can-
tou. Saindo Pedro do átrio, viu-o outra criada e disse a alguns que estavam
ali: "Este também tem estado com Jesus" e eles disseram: "Não eras também
um dos discípulos do Galileu?" Pedro, assustado e confu so, exclamou,
protestando: "Em verdade, não o era, nem conheço esse homem." Depois se
afastou depressa do primeiro pátio para o exterior, afim de prevenir do
perigo alguns conhecidos, que vira olharem por cima do muro. Chorou e
estava tão cheio de angústia e tristeza, por causa de Jesus, que quase não
se lembrava da sua negação. No pátio exterior estava muita gente e também
amigos de, Jesus, que não foram admitidos ao pátio interior ; mas a Pedro foi
per mitido sair. Aquela gente trepara no muro, para espiar o que se passava e
Pedro encontrou entre eles muitos dos discípulos de Jesus, os quais a busca
de notícias tinham cor rido das caver nas do vale Hinom para lá. Esses se
acercaram logo de Pedro, inter rogando-o entre lágrimas, a respeito de Jesus;
mas ele estava tão abatido e tinha tanto medo de trair-se, que Ihes
aconselhou retirar-se, por haver ali perigo para eles. Depois se separou
deles, indo tristemente pelos pátios enquanto os outros saíram com pressa
da cidade. Estiveram ali cerca de 16 dos primeiros discípulos, entre eles
Bar tolomeu, Natanael, Satur nino, Judas Barsabas, Simeão, mais tarde bispo
de Jer usalém, Zaqueu e Manaem, o profético jovem, cego de nascença e
curado por Jesus.
Pedro não achou sossego; o amor de Jesus impelia-o ao pátio interior, que
cercava a casa; deixaram-no entrar, de novo, porque Nicodemus e José de
Arimatéia o mandaram entrar, na primeira vez. Não voltou imediatamente à
sala do tribunal, mas dirigiu-se à direita, indo ao longo da casa, para a
entrada da sala atrás do tribunal, onde o bando de soldados já estavam
conduzindo Jesus em redor da sala, com vaias e insultos. Pedro aproximou-
se medroso; posto que se sentisse obser vado como suspeito, impelia-o a
ânsia por Jesus a enfiar-se pela por ta, ocupada por gente baixa, que estava
assistindo àquela cena de escár nio. Nesse momento estavam ar rastando
Jesus, coroado com a grinalda de palha, em redor da sala. O Senhor lançou a
Pedro um olhar sério de repreensão. Pedro ficou como que esmagado pela
dor. Mas, lutando com o medo e ouvindo alguns dos circunstantes dizerem:
"Quem é este sujeito?", saiu novamente para o pátio, tão abatido e tão
confuso pelo medo, que andava cambaleando a passos lentos. Vendo-se,
porém, obser vado, entrou de novo no átrio, aproximou-se da fogueira, ficando
ali bastante tempo sentado, até que diversas pessoas, que fora lhe tinham
notado a confusão, entraram, começando de novo a provocá-Io, falando mal
de Jesus e de suas obras. Um deles, chamado Cássio e mais tarde Longino,
disse então: "É verdade, também és daquela gente; és galileu, tua linguagem
prova-o". Como Pedro quisesse sair com um pretexto, impediu-o um ir mão de
Malcho, dizendo: "O que? Não te vi com eles no hor to das Oliveiras? Não
feriste a orelha de meu ir mão?" Tor nou-se Pedro então como insensato, pelo
pavor que o dominou e livrando-se deles, começou a praguejar (tinha um
gênio violento) e jurar que absolutamente não conhecia esse homem e cor reu
do átrio para o pátio interior. Foi à hora em que o galo cantou de novo; os
soldados conduziram Jesus, nesse mesmo momento, da sala circular, pelo
pátio para o cárcere que ficava sob a sala. Virou-se, porém, o Senhor e olhou
para Pedro com grande dor e tristeza; lembrou-se Pedro então da palavra de
Jesus: "Antes do galo cantar duas vezes, negar-me-ás três vezes", e essa
lembrança pesou-lhe com ter rível violência sobre o coração. Fatigado pelas
angústias e o medo, tinha-se esquecido da promessa presunçosa de querer
antes morrer, do que O negar e do aviso profético de Jesus; mas à vista do
Mestre, esmagou-o a lembrança do crime que acabava de cometer. Tinha
pecado; pecado contra o Salvador, tão cruelmente tratado, condenado, ino-
cente, sofrendo tão resignado toda a hor rível tor tura. Como desvairado de
contrição, saiu apressadamente pelo pátio exterior, a cabeça velada e
chorando amargamente; não temia mais ser inter rogado; teria então dito a
todos quem era e que pecado lhe pesava na consciência.
Quem se atreveria a dizer, que em tais perigos, angústias, em tal pavor e
confusão, numa tal luta entre amor e medo, cansado, insone, prestes a
perder a razão pela dor de tantos e tão tristes acontecimentos dessa noite
hor rível, com uma natureza tão simples como ardente, quem se atreveria a
dizer que, em iguais condições, teria sido mais for te do que Pedro? O Senhor
abandonou-o às próprias forças; tor nou-se então tão fraco como o são todos
os que esquecem as palavras: "Vigiai e orai, para não cairdes em tentação".

11. Maria no tribunal de Cairás

A SS. Virgem, em contínua e profunda compaixão para com Jesus, sabia e


sentia tudo que a Ele faziam. Sofria em contemplação espiritual e, como Ele,
continuava em oração pelos car rascos. Mas o coração de mãe também lhe
clamava a Deus que não per mitisse esses pecados e que afastasse essas
tor turas do santíssimo Filho; durante todo esse tempo tinha o desejo
ir resistível de estar com o pobre Filho, tão cruelmente tratado. Quando João,
depois do grito: "É réu de mor te!", saiu do átrio de Caifás, vindo a ela, em
casa de Lázaro, per to da por ta do Angulo e lhe confir mou com a triste
nar ração e entre lágrimas, todos os ter ríveis tormentos de Jesus, os quais,
em sua compaixão espiritual, já lhe, dilaceravam o coração, Maria pediu-lhe,
como também Madalena, quase desvairada de dor e algumas outras
mulheres, que as conduzisse ao lugar onde Jesus sofria. João, que deixara
Jesus só para consolar aquela que, depois de Jesus, lhe merecia mais amor,
saiu da casa com a SS. Virgem, conduzida pelas santas mulheres; Madalena
caminhava-Ihes ao lado, torcendo as mãos. As ruas estavam iluminadas pelo
claro luar e viam-se muitas pessoas, que voltavam para casa. Iam veladas as
santas mulheres; mas o andar apressado e as exclamações de dor atraíam
sobre elas a atenção de vários grupos de inimigos de Jesus que passavam e
muitas palavras insultuosas e cruéis, proferidas de propósito em alta voz
contra Jesus, renovavam-lhe a dor. A Mãe de Jesus, sempre unida a Ele, na
contemplação espiritual do seu suplício, caiu diversas vezes desmaiada, nos
braços das companheiras; conser vava tudo no coração, sofrendo em silêncio
com Ele e como Ele. Quando desse modo caiu nos braços das mulheres, sob
uma por ta ou arcada da cidade interior, vieram-Ihes ao encontro um grupo de
pessoas bem intencionadas, que voltavam do tribunal de Caifás, lamentando
a sor te do Mestre. Essas se aproximaram das santas mulheres e,
reconhecendo a Mãe de Jesus, demoraram-se algum tempo, cumprimentando-
a compadecidamente; "Oh! Mãe infeliz! Oh! Mãe, cheia de tristeza, Oh! Mãe
dolorosa do mais Santo de Israel!” Maria, voltando a si, agradeceu-Ihes e
continuaram o triste caminho a passo apressado.
Avizinhando-se do tribunal de Caifás, passaram para o caminho do lado
oposto da entrada, onde apenas um muro cerca a casa, enquanto que o lado
da entrada conduz por dois pátios. Ali sobreveio nova dor amarga à Mãe de
Jesus e às companheiras. Tinham de passar em frente a um lugar, um pouco
elevado, onde estavam homens, sob uma leve tenda, aparando a Cruz de
Jesus Cristo, à luz de lanter nas. Logo que Judas saíra para trair Jesus, os
inimigos haviam ordenado que se preparasse uma cruz, para que, se Jesus
fosse preso, Pilatos não tivesse motivo para atrasar a execução; pois já
tinham a intenção de entregar Nosso Senhor de manhã cedo a Pilatos e não
esperavam que levasse tanto tempo até a condenação. As cruzes para os
dois ladrões, os roma nos já as tinham preparado. Os operários
amaldiçoavam e insultavam a Jesus, por terem de trabalhar durante a noite
por causa d’Ele; todas as machadadas e todas essas palavras feriam e
traspassavam o coração da pobre Mãe; mas ainda assim rezava por esses
homens tão hor rivelmente cegos, que, com maldições, preparavam o
instrumento de sua redenção e do mar tírio de seu Filho.
Tendo passado em volta da casa e chegado ao pátio exterior, Maria entrou,
acompanhada das santas mulheres e de João, dirigindo-se à por ta do pátio
interior, que estava fechada. Tinha a alma cheia de intensa compaixão para
com Jesus. Desejava ardentemente que a por ta se abrisse e pudesse entrar,
por inter médio de João; pois sentia que apenas essa por ta a separava do
Filho querido, que, ao segundo canto do galo, estava sendo levado do
tribunal à cadeia subter rânea. De súbito se abriu a por ta e na frente de
algumas pessoas saiu Pedro, cor rendo para eles, cobrindo com as mãos o
rosto velado e chorando amargamente. À luz da lua e das lanter nas,
conheceu logo a João e a SS. Virgem; parecialhe que a voz da consciência
lhe vinha ao encontro, na pessoa da Mãe de Jesus, depois que o seu Divino
Filho a tinha desper tado. Ah! Como ressoava a voz de Maria na alma de
Pedro, quando ela disse: "Oh! Simão! Que fizeram de Jesus, meu Filho?" Ele
não podia enfrentar o olhar de Maria, desviou os olhos para o lado, torcendo
as mãos e não pôde proferir palavra. Mas Maria não o deixou, aproximou-se-
Ihe e perguntou com voz triste: "Simão, filho de Jonas, não me respondes?"
Então exclamou Pedro, na sua dor : "Oh, Mãe, não faleis comigo; vosso Filho
sofre coisas indizíveis; não me faleis a mim, pois condenaram-nO à mor te e
eu O neguei vergonhosamente por três vezes." E como João se aproximasse
para falar-lhe, fugiu Pedro, desvairado de tristeza e saindo do pátio e da
cidade, retirou-se àquela gruta do monte das Oliveiras, na qual as mãos de
Jesus se tinham imprimido na pedra. (v. cap. 3, 7 pelo fim). Creio que nessa
mesma gruta também nosso primeiro pai Adão fazia penitência, quando veio
para a ter ra amaldiçoada por Deus.
A SS. Virgem, sentindo com vaemente compaixão essa nova dor de Jesus, a
quem negara o mesmo discípulo que fora o primeiro a reconhecê-Lo como
Filho de Deus vivo, caiu, após as palavras de Pedro, sobre a pedra ao lado da
por ta, onde estava e imprimiram-se-Ihe as for mas das mãos e dos pés na
pedra, a qual ainda existe, mas não me lembro onde; tenho-a visto em
qualquer par te. As por tas dos pátios estavam aber tas, porque a maior par te
do povo se retirara, depois que Jesus fora fechado na cadeia. Maria
Santíssima, tendo voltado a si, desejava estar mais per to do Filho querido;
João levou-a e as santas mulheres até diante da prisão do Senhor. Ah! Bem
sentia Maria, a presença de Jesus e Jesus a de sua Mãe, mas a Mãe fiel quis
também ouvir com os sentidos exteriores os gemidos do Filho adorado e
ouvia-os e também às palavras insultuosas dos guardas. Não podiam
demorar-se ali muito sem ser notadas; Madalena, na veemência da dor,
manifestava a comoção e embora Maria conser vasse nessa extrema dor uma
santa calma, que impunha respeito, devia também ouvir nesse cur to caminho
as palavras amargas e maliciosas: "Não é esta a mãe do Galileu? O filho com
cer teza há de mor rer na cruz, mas naturalmente não antes da festa, a não
ser que fosse o homem mais criminoso." Então ela voltou e impeli da pelo
coração, foi ainda até à fogueira do átrio, onde havia ainda alguns populares;
as companheiras seguiram-na, em dor silenciosa. Nesse lugar de hor ror, onde
Jesus dissera que era Filho de Deus e a raça de Satanás gritara: "É réu de
mor te!", Maria perdeu de novo os sentidos. João e as santas mulheres
levaram-na dali, parecendo mais mor ta do que viva. A plebe nada disse,
calou-se admirada; foi como se um espírito puro tivesse passado pelo
infer no.
O caminho conduziu-as de novo ao longo do pátio posterior da casa;
passaram outra vez por aquele lugar triste, onde alguns homens estavam
ocupados em aprontar a Cruz; os operários achavam tanta dificuldade em
ter minar a cruz, quanto o tribunal em julgar Jesus; foram obrigados a
procurar várias vezes outros madeiros, porque os primeiros não ser viam ou
se fendiam, até que juntaram os diversos madeiros do modo por que Deus o
deter minara. Tenho tido várias visões a respeito; vi também Anjos impedirem
o trabalho, até que tudo foi feito segundo a vontade de Deus; mas como não
me lembro mais claramente disso, deixo de contá-Io.

12. Jesus no cárcere

A cadeia em que estava Jesus, era um lugar pequeno, abobadado, sob o


tribunal de Caifás. Vi que ainda existe par te desse lugar. Dos quatro só dois
soldados ficavam com Ele; revezavam-se com os outros várias vezes em
pouco tempo. Ainda não tinham restituído a roupa a Jesus, que estava
vestido apenas daquele manto rasgado, cober to de escar ro e com as mãos
novamente amar radas.
Ao entrar na prisão, Jesus pediu ao Pai Celeste que aceitasse toda a
crueldade e escár nio que sofreu e ainda ia sofrer, como sacrifício expiatório
por todos os homens que no futuro pecassem por impaciência e ira, em igual
sofrimento. Também nesse lugar os soldados não deixavam descansar o
Senhor. Amar raram-nO a uma coluna baixa, no meio do cárcere e não Lhe
per mitiam encostar-se, de modo que cambaleava com os pés feridos e
inchados pelas quedas e pelas pancadas das cadeias, que Lhe pendiam até
os joelhos. Não deixavam de insultar e maltratá-Lo e sempre que os dois
estavam cansados, eram revezados por outros, que entrando, começavam a
fazer-Lhe novas injúrias.
Não me é possível contar todas as baixezas que proferiram contra o mais
Puro e Santo de todos os Seres; fiquei doente demais e então quase mor ri de
compaixão. Ai! Que vergonha para nós, que por moleza e nojo nem podemos
contar ou escutar as crueldades inumeráveis que o Salvador sofreu por nós!
Sentimos um ter ror semelhante ao do assassino a quem mandam pôr a mão
nas feridas do assassinado. Jesus sofria tudo sem abrir a boca: Eram os
homens, que soltavam a fúria contra seu ir mão, seu Redentor, seu Deus.
Também sou pecadora, também por minha causa Ele teve de sofrer. No dia do
Juízo há de manifestar-se tudo.
Então veremos que par te nos maus tratos do Filho de Deus tivemos, pelos
nossos pecados, que continuamente cometemos e pelos quais consentimos e
nos unimos às crueldades per petradas por aquele bando de soldados
diabólicos. Ai! Se considerássemos isso, pronunciaríamos muito mais
seriamente aquelas palavras contidas nas fór mulas de contrição: "Senhor!
Faze-me antes mor rer do que vos ofender mais uma vez pelo pecado.”
Estando em pé no cárcere, Jesus rezava continuamente pelos car rascos.
Quando esses ficaram enfim cansados e mais calmos, vi Jesus encostado ao
pilar e rodeado de luz. Amanheceu o dia, o dia de sua imensa Paixão e
expiação; o dia da nossa redenção espiava timidamente por um orifício no
alto da parede, contemplando o nosso Cordeiro Pascal, tão santo e
maltratado, que tomara sobre si todos os pecados do mundo. Jesus levantou
as mãos amar radas ao novo dia, rezando alto e distinto uma oração tocante
ao Pai Celestial, na qual agradeceu a missão desse dia, que almejavam os
Patriarcas, pelo qual Ele tanto suspirara, desde a sua vinda ao mundo, como
disse: "Devo ser batizado com um batismo e quanto desejo que se realize!"
Com que fer vor agradeceu o Senhor esse dia, em que devia alcançar o alvo
de sua vida, nossa salvação, abrir o Céu, vencer o infer no, abrir para os
homens a fonte da graça e cumprir a vontade do Pai Celeste!
Rezei com Ele, mas não sei mais repetir a oração, pois eu estava extenuada
de compaixão e de chorar, vendo-Lhe os sofrimentos e ouvindo-O ainda
agradecer os hor ríveis tor mentos, que tomou sobre si também por minha
causa; eu suplicava sem cessar : "Ah! Dai me as vossas dores; per tencem-me
a mim, pois são a expiação das minhas culpas." Amanheceu o dia e Jesus
saudou-o com uma ação de graças tão comovente, que fiquei como
aniquilada de amor e compaixão e repeti-Lhe as palavras como uma criança.
Era um espetáculo indizivelmente triste, afetuoso, santo e imponente, ver
Jesus, depois desse tumulto da noite, amar rado à coluna, no meio do
estreito cárcere, rodeado de luz, saudando com palavras de agradecimento
os primeiros raios do grande dia de seu sacrifício. Ai! Parecia-me que esse
raio Lhe entrou no cárcere, como um juiz vem visitar um condenado à mor te,
para reconciliar-se com ele antes da execução. E Ele ainda Lhe agradeceu
tão docemente! - Os soldados, que de cansaço tinham ador mecido um pouco,
acordaram sur presos, olhando para Ele; mas não O incomodaram, pois
pareciam admirados e assustados. Jesus ficou nesse cárcere pouco mais de
uma hora.

13. Judas aproxima-se da casa do tribunal

Judas, tomado de desespero, impelido pelo demônio, vagueara pelo vale


Hinom, no lado íngreme, ao sul de Jerusalém, lugar onde se jogava o lixo,
ossos e cadáveres; enquanto Jesus estava no cárcere, ele veio aproximar-se
da casa do tribunal de Caifás. Rodeava-a, espreitando; ainda lhe pendia,
preso ao cinto, o prêmio da traição, as moedas de prata encadeadas num
molho. A noite já se tor nara silenciosa e o infeliz perguntou aos guardas, que
não o conheciam, o que seria feito do Nazareno. Responderam-lhe: "Foi
condenado à mor te e será crucificado". Ainda ouviu outros falarem entre si
que Jesus fora tratado tão cruelmente e sofrera tudo com paciência e
resignação; ao amanhecer seria levado outra vez perante o Supremo
Conselho, para ser condenado solenemente. Enquanto o traidor colhia cá e lá
essas notícias, para não ser reconhecido, amanheceu o dia e já se via muito
movimento dentro e em redor da casa. Então, para não ser visto, retirou-se
Judas para os fundos da casa; pois fugia dos homens como Caim e o
desespero tomava-lhe cada vez mais posse da alma. Mas eis o que se lhe
apresentou ante os olhos: - Achou-se no lugar onde tinham trabalhado
preparando a cruz; lá estavam as várias peças já ar r umadas e entre elas,
envolvidos nos cober tores, estavam os operários dor mindo. Por sobre o
monte das Oliveiras cintilava a pálida luz da manhã; parecia tremer de
hor ror, ao ver o instrumento da nossa salvação. Judas, ao deparar essa cena,
fugiu, preso de hor ror : vira o madeiro do suplício, para o qual vendera o
Senhor. Escondeu-se, porém, nos ar redores, esperando pelo fim do
julgamento da madrugada.

14. O julgamento de Jesus na madrugada

Ao romper do dia, quando já clareara, reuniram-se novamente Anás e Caifás,


os anciãos e os escribas, na grande sala do tribunal, para uma sessão
perfeitamente legal; pois o julgamento feito durante a noite não era válido e
era considerado apenas um depoimento preparatório das testemunhas,
porque urgia o tempo, por causa da festa iminente. A maior par te dos
membros do conselho passaram o resto da noite na casa de Caifás, seja em
aposentos contíguos, seja na própria sala do tribunal, onde foram colocados
leitos para esse fim. Muitos, entre eles Nicodemos e José de Arimatéia,
chegaram ao romper do dia. Foi uma assembléia numerosa e em cuja ação
houve muita precipitação.
Como os membros do conselho se incitassem uns aos outros a condenar
Jesus à mor te, levantaram-se Nicodemos, José de Arimatéia e alguns outros
contra os inimigos de Jesus, exigindo que a causa fosse adiada até depois da
festa, para não provocar tumultos; também porque não se podia basear um
julgamento justo sobre as acusações até então proferidas, por serem
contraditórios os depoimentos das testemunhas. Os sumos sacerdotes e seu
par tido for te ir ritaram-se com essa oposição e deixaram ver claramente aos
adversários que estes também eram suspeitos de favorecerem a doutrina do
galileu e que por isso naturalmente não Ihes agradava esse julgamento,
porque se dirigia também contra eles mesmos; assim decidiram eliminar do
Conselho todos que eram a favor de Jesus; esses, porém, protestaram contra
tal processo e, declarando-se alheios a tudo que o Conselho ainda decidisse,
retiraram-se da sala do tribunal e dirigiram-se ao Templo. Depois desse fato,
nunca mais tomaram par te nas sessões do conselho.
Caifás, porém, mandou tirar Jesus do cárcere e conduzi-Lo, fraco, maltratado
e amar rado, como estava, diante do Conselho e preparar tudo de modo que
depois do julgamento, pudessem levá-Io imediatamente a Pilatos. Os
soldados cor reram tumultuosamente ao cárcere, lançaram-se com insultos
sobre Jesus, desamar raram-nO da coluna e tiraram-Lhe o manto esfar rapado
dos ombros, obrigaram-nO, entre golpes, a vestir sua comprida túnica, ainda
cober ta de toda a imundície e amar rando-O de novo com as cordas pela
cintura, conduziram-nO para fora do cárcere. Isso foi feito, como tudo, com
grande pressa e hor rível brutalidade. Conduziram-nO como um pobre animal
de sacrifício, entre insultos e golpes, através das fileiras dos soldados, que
já estavam reunidos diante da casa, à sala do tribunal. Quando Ele,
hor rivelmente desfigurado pelos maus tratos, pela extenuação e imundície,
vestido apenas da túnica toda suja, apareceu diante do Conselho, o nojo
aumentou ainda o ódio desses homens. Nesses corações duros de judeus
não, havia lugar para a compaixão.
Caifás, porém, cheio de escár nio e raiva de Jesus, que estava em pé diante
dele, tão desfigurado, disse-Lhe: "Se és o Cristo do Senhor, o Messias, dize-
no-Io." Jesus levantou o rosto e disse, com santa paciência e solene
gravidade: "Se vo-lo disser, não acreditareis e se vos perguntar, não me
respondereis, nem me dareis a liberdade; de hoje em diante o Filho do
homem sentará à direita do poder de Deus." Entreolharam-se então e com um
riso de desprezo, disseram a Jesus: "És então o Filho de Deus?" Jesus
respondeu, com a voz da verdade eter na: "Sim, é como dissestes, eu o sou."
A essa palavra de Nosso Senhor gritaram todos: "Que provas precisamos
ainda? Ouvimo-Lo nós mesmos da sua própria boca".
Levantaram-se todos, cobrindo Jesus de escár nio e insultos, chamando-O de
vagabundo, miserável, de obscuro nascimento, que queria ser o Messias e
sentar-se à direita de Deus. Deram ordem aos soldados de amar rá-Lo de
novo, pôr-Lhe uma cadeia de fer ro em redor do pescoço, como aos
condenados à mor te, para levá-Lo assim ao tribunal de Pilatos. Já antes
tinham enviado um mensageiro ao Procurador, avisando-lhe que preparasse
tudo para julgar um criminoso, porque deviam apressar-se, por causa da
festa. Ainda mur muravam contra o gover nador romano, por serem obrigados a
levar Jesus ainda ao tribunal do mesmo; porque, quando se tratava de coisas
estranhas às leis da religião e do Templo, não podiam aplicar a pena de
mor te; querendo, pois, condenar Jesus com mais aparência de justiça,
acusaram-nO de crime contra o imperador, mas diante dis so competia o
julgamento ao gover nador romano. Os soldados jáestavam alinhados no adro
e até fora da casa e muitos inimigos de Jesus já se tinham reunido diante da
casa, com o populacho. Os sumos sacerdotes e par te do conselho abriam o
séquito, seguia-se depois o nosso pobre Salvador, entre os soldados e
cercado da soldadesca e por fim toda a cor ja do populacho. Assim desceram
do monte Sião à cidade baixa, onde ficava o palácio de Pilatos. Uma par te
dos sacerdotes que assistiram ao Conselho, dirigiram-se ao Templo, onde
nesse dia tinham muito ser viço a fazer.

15. Desespero de Judas

Judas, o traidor, que não se tinha afastado muito, ouviu então o barulho do
séquito, como também as palavras de algumas pessoas, que seguiam de mais
longe; entre outras coisas disseram: "Agora vão leváLo a Pilatos; o Conselho
supremo condenou-O à mor te; vai ser crucificado; também não pode mais
viver, nesse hor rível estado em que O deixaram os maus tratos. Tem uma
paciência incrível, não diz nada, apenas que é o Messias e se sentará à
direita de Deus; outra coisa não disse e por isso vai mor rer na cruz; se não o
tivesse dito, não O podiam condenar à mor te, mas assim deve mor rer. O
patife que O vendeu, foi seu discípulo e pouco antes ainda comeu com ele o
cordeiro pascal; eu não queria ter par te nesta ação; seja como for, o Galileu
pelo menos nunca entregou um amigo à mor te por dinheiro.
Deveras, esse patife de traidor merece também ser enforcado." Então o
ar rependimento tardio, a angústia e o desespero começaram a lutar na alma
de Judas. O demônio impeliu-o a cor rer. O molho das trinta moedas de prata,
no cinto, sob o manto, era-lhe como uma espora do infer no: segurou-o com a
mão, para que não fizesse tanto barulho, batendo-lhe na per na ao cor rer.
Cor reu a toda a pressa, não atrás do cor tejo, para lançar-se aos pés de
Jesus, pedindo perdão ao Salvador misericordioso, não para mor rer com Ele,
nem para confessar a culpa diante de Deus; mas para se limpar diante dos
homens da culpa e desfazer-se do prêmio da traição; cor reu como um
insensato ao Templo, aonde diversos membros do supremo conselho como
chefes dos sacerdotes em exercício e alguns dos anciãos se tinham dirigido,
depois do julgamento de Jesus. Olharam-se mutuamente, admirados e com
um sor riso desprezível, dirigiram olhares altivos a Judas que, impelido pelo
ar rependimento do desespero e fora de si, cor reu para eles; ar rancou o feixe
das moedas de prata do cinto e, estendendo-Ihes a mão direita com o
dinheiro, disse, em tom de violenta angústia: "Tomai aqui o vosso dinheiro,
com o qual me seduzistes a entregar-vos o Justo; retomai o vosso dinheiro e
soltai Jesus; eu rompo o nosso pacto; pequei gravemente, traindo sangue
inocente." Mas os sacerdotes mostraram-lhe então todo o seu desprezo;
retiraram as mãos do dinheiro que Ihes oferecia, como se não quisessem
manchar-se com o prêmio da traição, dizendo: "Que nos impor ta que
pecasses? Se julgas ter vendido sangue inocente, é lá contigo; sabemos o
que compramos de ti e julgamo-Lo réu de mor te; é teu dinheiro, não temos
nada com isso. etc," Disseram-lhe essas palavras no tom que usam os
homens que estão muito ocupados e querem livrar-se de um impor tuno e
viraram as costas a Judas. Esse, vendo-se assim tratado, foi tomado de tal
raiva e desespero, que ficou como louco; eriçaramse-lhe os cabelos e
rompendo com as duas mãos o molho das moedas de prata, espalhou-as com
veemência no templo e fugiu para fora da cidade.
Vi-o de novo, cor rendo como louco, no vale de Hinom e o demônio em figura
hor rível ao seu lado, segredando-lhe ao ouvido, para levá-Io ao desespero,
todas as maldições dos profetas sobre esse vale, onde antigamente os
judeus sacrificavam os próprios filhos aos deuses. Parecia lhe que todas
essas palavras o indicavam com o dedo, dizendo, por exemplo: "Eles sairão
para ver os cadáveres daqueles que contra mim pecaram, cujo ver me não
mor re, cujo fogo não se apaga," Depois lhe soou aos ouvidos.: "Caim, onde
está Abel, teu Ir mão? Que fizestes? O sangue de teu ir mão clama a mim;
agora, pois, serás maldito sobre a ter ra, vagabundo e fugitivo." Quando
chegou à tor rente doe Cedron e olhou na direção do monte das Oliveiras,
estremeceu e virou os olhos. Então ouviu de novo as palavras: "Amigo, para
que vieste? Judas, é com um beijo que entregas o Filho do homem?" Então
um imenso hor ror lhe penetrou no fundo da alma, confundiram-se-Ihe os
sentidos e o inimigo segredou-lhe ao ouvido: "Aqui sobre o Cedron, fugiu
também Davi diante de Absalão; Absalão mor reu pendurado numa ár vore;
Davi referia-se também a ti no salmo: "Retribuíram o bem com o mal, ele terá
um juiz severo; Satanás estará à sua direita, todo o tribunal o condenará; os
seus dias serão poucos; outro lhe receberá o episcopado; o Senhor recordar-
se-á sempre da maldade dos seus pais e dos pecados de sua mãe, porque
sem misericórdia perseguiu os pobres e matou os aflitos; ele amava a
maldição e esta virá sobre ele; revestia-se da maldição como de uma veste,
como água lhe entrou ela nos intestinos, como óleo nos ossos; como uma
veste o cobre a maldição, como um cinto que o cinge eter namente." Entre
esses ter ríveis remorsos da consciência, chegara Judas a um lugar deser to,
pantanoso, cheio de lixo e imundície, a sudeste de Jerusalém, ao pé do
monte dos Escândalos, onde ninguém o podia ver. Da cidade se ouvia ainda
mais for te o tumulto e o demônio disse-lhe: "Agora O conduzem à mor te;
vendeste-O; sabes o que está escrito na lei? "Quem vender uma alma entre
seus ir mãos, os filhos de Israel, mor rerá. Acaba com isto, miserável, acaba
com isto!" Então tomou Judas desesperado o cinto e enforcou-se numa
ár vore que crescia em vários troncos, numa cavidade daquele lugar. Quando
se enforcou, rebentou-se-Ihe o ventre e os intestinos caíram-lhe sobre a
ter ra.

5
Jesus perante Pilatos e Herodes

1. Jesus é conduzido a Pilatos


2. O palácio de Pilatos e os ar redores
3. Jesus perante Pilatos
4. Origem da Via Sacra
5. Pilatos e a Esposa
6. Jesus perante Herodes

Jesus perante Pilatos e Herodes

1. Jesus é conduzido a Pilatos

Conduziram Jesus, entre muitas crueldades, da casa de Caifás à de Pilatos,


através do trecho mais populoso da cidade, que nessa ocasião for migava de
peregrinos de toda a par te do país, além de uma multidão de estrangeiros. O
cor tejo dirigiu-se para o nor te, descendo do Monte Sião, atravessando uma
r ua estreita, no fundo do vale, depois pelo bairro de Acra, ao longo do lado
ocidental do Templo, até o palácio e o tribunal de Pilatos, que estava situado
na esquina noroeste do Templo, defronte do grande Fór um ou mercado.
Caifás e Anás e grande número de membros do Supremo Conselho iam em
vestes festivas, à frente do cor tejo; atrás deles, alguns ser vos traziam rolos
de escritura. Seguiam-se-Ihes muitos outros escribas e judeus, entre eles as
falsas testemunhas e os assanhados fariseus, que foram os que mais se
empenharam em acusar ao Senhor. A uma pequena distância, seguia nosso
bom Senhor Jesus, conduzido pelos soldados com as cordas, cercado de
soldados e dos seis agentes que estavam presentes no ato da prisão. De
todos os lados afluiu o populacho, unindo-se com gritos e zombarias ao
cor tejo; ao longo de todo o caminho esperavam numerosos grupos de gente
do povo.
Jesus estava vestido apenas de sua túnica, toda suja de escar ro e imundície.
Do pescoço pendia-Lhe até os joelhos a longa cor rente, de largos anéis, que,
ao andar, Lhe batia dolorosamente de encontro aos joelhos. Tinha as mãos
amar radas como na véspera e quatro soldados conduziam-na pelas cordas,
que Lhe saiam do cinturão. Estava todo desfigurado pelas crueldades, com
que O haviam tor turado durante a noite; andava cambaleando, cabelo e barba
em desalinho, o rosto pálido, inchado e cheio de manchas escuras, causadas
pelos socos. Impeliam-nO com pancadas e injúrias. Tinham instigado a
muitos do populacho para escar necê-Lo, imitando-Lhe a entrada triunfal no
Domingo de Ramos. Aclamavam-na com todos os títulos de rei, em tom de
mofa, jogavam-Lhe diante dos pés pedras, pedaços de madeira, paus, trapos
sujos e zombavam, em versos e motejos, de sua entrada festiva. Os soldados
conduziam-na aos ar rancos, sobre os obstáculos jogados no caminho; era
uma crueldade sem fim.
Não muito longe da casa de Caifás estava a dolorosa e santa Mãe de Jesus,
com Madalena e João, encostados ao canto de um edifício, esperando a
aproximação do cor tejo. A alma de Maria estava sempre com Jesus, mas
quando podia ficar também cor poralmente per to dEle, não lhe dava descanso
o amor, impelindo-a a seguir-Lhe o caminho e as pegadas. Depois da visita
notur na ao tribunal de Caifás, ficara só pouco tempo no Cenáculo, entregue à
muda dor ; pois, quando Jesus foi tirado do cárcere, de madrugada, para ser
apresentado ao tribunal, a Virgem SS. se levantou, cobriu-se com o manto e
véu e saindo, disse a João e Madalena: "Sigamos meu Filho à casa de Pilatos,
quero vê-Lo com meus olhos." Dando uma volta, chegaram assim em frente
do cor tejo; a SS. Virgem parara nesse lugar e os outros com ela. A santa Mãe
de Jesus sabia bem o que era feito do divino Filho, que Lhe estava sempre
ante os olhos da alma; mas com o olhar interior não O podia ver tão
desfigurado e maltratado como na realidade estava, pela maldade e
crueldade dos homens. De fato via-Lhe sempre os hor ríveis sofrimentos, mas
inteiramente penetrados pela luz da santidade, do amor e da paciência, da
vontade que se oferecia vítima pelos homens. Mas nesse momento se lhe
apresentou à vista a realidade ter rível e ignominiosa. Passaram diante dela
os orgulhosos e assanhados inimigos de Jesus, os sumos sacerdotes do
verdadeiro Deus, nas vestes santas de gala; passaram com a intenção
deicida, representantes da malícia, mentira e maldição. Os sacerdotes de
Deus haviam-se tor nado sacerdotes de Satanás. Que aspecto hor rível! Depois
o tumulto e a alegria dos judeus, todos os per juros inimigos e acusadores e
afinal Jesus, Filho de Deus e do Homem, seu filho, hor rivelmente desfigurado
e maltratado, amar rado, batido, empur rado, cambaleando mais do que
andando, ar rastado pelas cordas por cruéis car rascos, no meio de uma
nuvem de injúrias e maldições. Aí, se ele não fosse o mais pobrezinho, o mais
desamparado, o único que se conser vava calmo, a rezar no íntimo do
coração, cheio de amor, no meio dessa tempestade do infer no desencadeado,
a angustiada Mãe não O teria reconhecido, naquele estado, hor rivelmente
desfigurado. Quando se aproximou, vestido da túnica tão suja, a Virgem
Santíssima exclamou, soluçando: "Ai de mim! É esse meu filho? Ai! É mesmo
meu filho, oh! Jesus, meu Jesus!" O cor tejo passou-lhe em frente; o Senhor
volveu a cabeça para aquele lado, lançando um olhar comovente à sua Mãe e
ela perdeu os sentidos. João e Madalena levaram-na dali, mas logo que
voltou a si, fez-se conduzir por João ao palácio de Pilatos.
Jesus tinha de supor tar, também nesse caminho, que os amigos nos
abandonam na desgraça; pois os habitantes de Ofel estavam todos reunidos
num cer to lugar do caminho e quando viram Jesus tão humilhado e
desfigurado, entre os soldados, levado com injúrias e maus tratos, ficaram
também abalados na fé; não podiam imaginar o rei, o profeta, o Messias, o
Filho de Deus em tão miserável estado. Os fariseus, ao passar, ainda
zombaram deles, por causa da afeição que dedicavam a Jesus: "Eis o vosso
rei, saudai-O; agora deixais pender a cabeça, agora que Ele vai para a
coroação e dentro em pouco subirá ao trono! Acabaram-se-Lhe os milagres, o
sumo sacerdote deu-Lhe cabo do feitiço, etc." Aquela boa gente, que vira
tantas curas milagrosas e recebera tantas graças de Jesus, ficou abalada na
fé, pelo hor rível espetáculo que lhe apresentavam as pessoas mais santas do
país, o sumo sacerdote e o Sinédrio. Os melhores elementos retiraram-se
duvidosos, os piores juntaram-se ao cor tejo como podiam; pois a passagem
em várias ruas estava impedida por guardas dos fariseus, para evitar
qualquer tumulto.

2. O palácio de Pilatos e os ar redores

Ao pé do ângulo noroeste do monte do Templo (8) está situado o palácio do


gover nador romano, Pilatos, em lugar bastante alto; sobe-se uma escada de
már more de muitos degraus, de onde a vista domina uma vasta praça de
mercado, cercada de colunas, sob as quais há acomodações para
vendedores. Um posto de guarda de quatro entradas, ao oeste, nor te, leste e
sul, (onde está o palácio de Pilatos), inter rompem essas arcadas do
mercado, o qual também é chamado "fórum" e se estende para oeste, além
do ângulo noroeste do monte do Templo; desse ponto do fórum pode-se
avistar o Monte Sião. O fórum é um pouco mais elevado de que as r uas
circunvizinhas, que sobem um pouco, até chegar às por tas de entrada do
edifício; em várias par tes se encostam as casas das ruas vizinhas ao
extremo da coluna que cerca o fórum. O palácio de Pilatos não está contíguo
ao fórum, mas é separado desse por um espaçoso pátio. Esse pátio tem como
por ta, a leste, uma alta arcada, que abre diretamente para a rua que conduz
à por ta das Ovelhas, pela qual passa quem vai ao monte das Oliveiras; a
oeste, tem como por ta outra arcada, que abre para a par te oriental da cidade
e conduz a Sião, através do bair ro de Acra.

8) Provavelmente Junto ao for te Antônia, cuja situação nesse lugar a vidente


descreveu diversas vezes.

Da escada do palácio de Pilatos se avista, no nor te, através do pátio, o


fórum, em cuja entrada há um pór tico e alguns assentos de pedra, virados
para o palácio. Os sacerdotes judeus, dirigindo-se ao tribunal de Pilatos, não
iam além desses assentos, para não se contaminarem; o limite que não
deviam ultrapassar, estava marcado por uma linha traçada (sobre o
pavimento do pátio. Per to da arcada da por ta oriental do palácio, já dentro
do recinto do fórum, havia um grande posto de guarda, que, confinando ao
nor te com o fórum e ao sul com a arcada da por ta do pretório de Pilatos,
for mava uma espécie de vestíbulo ou adro entre o foro e o pretório.
Chamava-se pretório a par te do palácio de Pilatos onde ele pronunciava os
julgamentos. O posto de guarda era rodeado de colunatas e tinha no centro
um pátio sem teto, sob este se achavam os cárceres, nos quais também os
dois ladrões estavam presos. Em toda par te se viam lá soldados romanos.
Não longe do posto da guarda, per to das arcadas que o cercavam, estava no
fórum a coluna da flagelação; havia ainda outras colunas no recinto do
mercado: as que estavam mais per to, ser viam para infligir castigos
cor porais, as que estavam mais longe, para amar rar o gado à venda. Em
frente ao posto da guarda, mesmo no fórum, se subia por uma escadaria a um
estrado, construído de pedras e bem ladrilhado, em que havia assentos de
pedra; parecia-se com um tribunal público; desse lugar, que era chamado
Gabata, pronunciava Pilatos as sentenças. A escada de már more do palácio
de Pilatos conduzia a um ter raço aber to, do qual ele falava aos acusadores,
sentados nos bancos de pedra defronte, próximo à entrada do fór um. Falando
alto, podia-se fazer entender com facilidade.
Atrás do palácio há ainda outro ter raço mais elevado, com jardins e um
caramanchão. Esses jardins for mam a comunicação entre o palácio de
Pilatos e a casa da esposa, Cláudia Prócula. Por trás desses edifícios há
ainda um fosso, que os separa do monte do Templo; além deste há ainda
casas de empregados do Templo.
Contígua à par te oriental do palácio de Pilatos, está a casa do conselho do
tribunal do velho Herodes, em cujo pátio inter no foram mor tas muitas
crianças inocentes. Fizeram depois algumas mudanças; a entrada é agora
pelo lado oriental; há também uma entrada para Pilatos, no vestíbulo do
palácio.
Desse lado da cidade par tem quatro r uas em direção ao oeste: três
conduzem ao palácio de Pilatos e ao Fórum; a quar ta, porém, passa ao lado
nor te do fórum, em direção à por ta que conduz a Betsur. Nesta rua, per to da
por ta, se acha o belo edifício que Lázaro possui em Jerusalém e no qual
também Mar ta tem uma habitação própria.
Das quatro ruas, a que fica mais per to do Templo, vem da por ta das Ovelhas,
per to da qual, quando se entra, à direita, se acha a piscina das ovelhas; essa
fica tão per to do muro da cidade, que nesse se encostam arcadas, que
for mam uma abóbada sobre as águas. Ela tem um escoadouro, fora do muro,
para o vale de Josafá, o que faz com que o solo, por fora da por ta, fique
encharcado. Em redor dessa piscina há ainda outros edifícios; é nessa
piscina que se lavam os cordeiros pela primeira vez, antes de serem levados
ao sacrifício no Templo; mais tarde são lavados outra vez e solenemente, na
piscina de Betsaida, ao sul do Templo. Na segunda r ua há uma casa com
pátio, que per tencia a Sant'Ana, Mãe de Maria, onde ela e a família moravam
e guardavam os animais para os sacrifícios, quando vinham a Jer usalém. Se
me lembro bem, foi também nessa casa que foram celebradas as núpcias de
José e Maria.
O Fórum, como já dissemos, fica mais alto do que as ruas circunvizinhas e a
água cor re pelos regos das r uas, para a piscina das Ovelhas. Na encosta do
monte Sião há também um fórum semelhante, diante do antigo castelo de
Davi; ali per to, ao sudeste, se acha o Cenáculo e ao nor te, o tribunal de Anás
e Caifás. O Castelo de Davi é agora um for te abandonado e deser to, com
pátios, estábulos e salas vazias, que se alugam como albergaria a caravanas
e aos estrangeiros e seus animais de carga. Esse edifício já há muito que
está abandonado; já o vi nesse estado na época do nascimento de Cristo;
nessa ocasião o séquito dos Reis Magos, com numerosos animais de carga,
foi conduzido para lá, logo ao entrar na cidade.

3. Jesus perante Pilatos

Eram talvez seis horas da manhã, segundo o nosso modo de contar, quando a
comitiva dos sumos sacerdotes e dos fariseus, com o nosso Salvador,
hor rivelmente maltratado, chegou ao palácio de Pilatos. Entre o mercado e a
entrada do tribunal havia assentos em ambos os lados do caminho, onde se
diver tiam Anás e Caifás, e os conselheiros que os acompanhavam. Jesus foi
conduzido alguns passos adiante, até a escada de Pilatos, pelos soldados,
que o seguravam pelas cordas. Quando láchegaram, estava Pilatos deitado
sobre uma espécie de leito, na sacada do ter raço; tinha ao lado uma mezinha
de três pés, em que se viam algumas insígnias de sua dignidade e outros
objetos, dos quais não me lembro mais. Cercavam-no oficiais e soldados, que
também tinham colocado lá insígnias do poder romano. Os sumos sacerdotes
e judeus ficaram afastados do tribunal, porque, aproximando-se mais, se
teriam contaminado; segundo a lei havia um cer to limite, que não
transgrediam.
Quando Pilatos os viu chegar tão apressados, com tanto tumulto e gritaria,
conduzindo Jesus maltratado, levantou-se e falou em tom tão cheio de
desprezo, como talvez algum orgulhoso marechal francês falaria aos
deputados de uma cidadezinha: "O que vindes fazer tão cedo? Como pusestes
este homem em tão mísero estado? Começais cedo a esfolar e matar." Eles,
porém, gritaram aos soldados: "Adiante! Levai-O ao tribunal." Depois se
dirigiram a Pilatos: "Escutai as nossas acusações contra este criminoso; não
podemos entrar no tribunal, para não nos tor nar mos impuros.
Depois de exclamarem essas palavras, gritou um homem de estatura alta e
for te e figura venerável, no meio do povo apinhado atrás deles no fórum: "É
verdade, não podeis entrar neste tribunal, pois está santificado por sangue
inocente; só Ele pode entrar, só Ele entre os judeus épuro como os
inocentes." Assim dizendo, profundamente comovido, desapareceu na
multidão. Chamava-se Sadoc; era homem abastado, primo de Obed, que era o
marido de Seráfia, também chamada Verônica; dois dos seus filhinhos tinham
sido assassinados, com as crianças inocentes, no pátio do tribunal, por
ordem de Herodes. Desde então se tinha retirado do mundo e vivia como um
Esseno, em continência com a mulher. Tinha visto Jesus uma vez, em casa de
Lázaro e ouvira-O explicar a doutrina; quando viu Jesus tão cruelmente
ar rastado para a escada de Pilatos, reviveu-Ihe no coração a dolorosa
lembrança dos filhinhos assassinados naquele lugar e assim deu em alta voz
o testemunho da inocência do Senhor. Os acusadores de Jesus estavam com
muita pressa e ir ritados demais pelo modo desdenhoso de Pilatos e a posição
humilhante em que se achavam diante dele, para dar atenção à exclamação
de Sadoc.
Os soldados puxaram Jesus pelas cordas, escada acima, até o fundo do
ter raço, de onde Pilatos estava falando aos acusadores. O procurador
romano já ouvira falar muito de Jesus. Quando O viu tão hor rivelmente
maltratado e desfigurado e contudo conser vando uma dignidade inabalável,
sentiu cada vez mais nojo e desprezo dos sacerdotes e conselheiros
judaicos, que lhe tinham já antes prevenido que trariam Jesus de Nazaré, réu
de mor te, perante o tribunal, fazendo-Ihes sentir que não estava disposto a
condená-Lo sem culpa provada. Disse-Ihes, pois, em tom brusco e
desdenhoso: "De que crime acusais este homem?" A que responderam
ir ritados: "Se não O conhecêssemos como malfeitor, não vo-Lo teríamos
entregado." Disse-Ihes Pilatos: "Pois tomai e julgai-O segundo a vossa lei." -
"Sabeis, responderam os judeus, que não nos compete o direito absoluto de
executar uma sentença de mor te.”
Os inimigos de Jesus estavam cheios de escár nio e raiva; fizeram tudo com
precipitação e violência, para acabar com Jesus antes de co meçar o tempo
legal da festa, afim de poderem sacrificar o cordeiro pascal. Mas não sabiam
que Ele era o verdadeiro Cordeiro pascal, que eles mesmos conduziam ao
tribunal do juiz pagão, ser vidor de falsos deuses, em cujo limiar não queriam
contaminar-se, para poder nesse dia comer o cordeiro pascal.
Como o gover nador os intimasse a proferir as acusações, apresentaram três
acusações principais contra Jesus e por cada acusação depuseram 10
testemunhas. For mularam as acusações de modo que apresentavam Jesus
como réu de crime de lesa-majestade e assim Pilatos devia condená-Lo; pois
em causas que diziam respeito às leis da religião e do Templo, poderiam eles
mesmos decidir. Primeiro acusaram Jesus de ser sedutor do povo,
per turbador do sossego público e agitador ; e apresentaram algumas provas,
confir madas por testemunhas. Disseram mais que andava de um lugar para
outro, causando grandes ajuntamentos do povo; que violava o Sábado,
curando nesse dia. Nisso Pilatos inter rompeu-os, num tom sarcástico:
"Naturalmente não estais doentes, senão estas curas não vos causariam
tanta indignação." Eles, porém, continuaram a acusar Jesus, dizendo que
seduzia o povo com hor ríveis doutrinas, pois afir mava que teriam a vida
eter na os que Lhe comessem a car ne e bebessem o sangue. - Pilatos zangou-
se, ao ver a fúria precipitada com que proferiram essa acusação; olhou
sor rindo para os seus oficiais e dirigiu aos judeus palavras sarcásticas,
como, por exemplo: "Parece mesmo que quereis seguir-Lhe a doutrina e
possuir a vida eter na; tenho a impressão de que quereis comer-Lhe a car ne e
beber-Lhe o sangue.”
A segunda acusação era que Jesus instigava o povo a não pagar imposto ao
imperador. Pilatos inter rompeu-os indignado, como homem cujo cargo era
velar por essas coisas e disse, em tom convicto de suas próprias
infor mações: "Isto é mentira grossa; devo sabê-Io melhor do que vós." - Os
judeus, porém, gritaram, apresentando a terceira acusação: Que era mesmo
verdade, esse homem, de nascimento baixo, duvidoso e suspeito, tinha
for mado um par tido for te e proferido ameaças contra Jerusalém. Também
propagava entre o povo parábolas equivocas, sobre um rei que prepara as
núpcias do filho. Cer ta vez já uma grande multidão de povo, reunido em uma
montanha, tinha tentado proclamá-Lo rei, mas Ele, achando que era ainda
cedo, tinha-se escondido. Nos últimos dias tinha ousado mais: preparou uma
entrada tumultuosa em Jer usalém e fez o povo gritar : "Hosana ao filho de
Davi! Bendito seja o reino que vemos chegar, do nosso pai Davi. Também se
fazia prestar honras régias, pois que ensinava que era Cristo, o Unigênito do
Senhor, o Messias, o rei prometido dos judeus e assim se fazia chamar."
Também essa acusação foi confir mada pelos depoimentos de dez
testemunhas.
Quando Pilatos ouviu que Jesus se fazia chamar o Cristo, rei dos judeus,
tor nou-se pensativo. Saindo da sacada, entrou na sala contígua ao tribunal,
lançando, ao passar um olhar atento a Jesus e deu ordem à guarda de trazê-
Lo à sala do tribunal.
Pilatos era pagão supersticioso de espírito confuso e inconstante. Conhecia
as lendas obscuras de filhos dos deuses, que teriam vivido na ter ra; também
não ignorava que os profetas dos judeus, desde muito tempo, haviam predito
a vinda de um ungido de Deus, de um Redentor e um liber tador e que muitos
judeus o estavam esperando. Também sabia que uns reis do Oriente tinham
vindo ao velho Herodes, para pedir infor mações sobre um rei recém-nascido
dos judeus, a quem queriam prestar homenagens e que depois disso, muitas
crianças foram degoladas, por ordem de Herodes. Já ouvira falar da
promissão da vinda de um Messias, rei dos judeus, mas como pagão que era,
não o acreditava, nem podia compreender que espécie de rei seria; quando
muito, podia pensar, como os judeus instruídos e os herodianos daquele
tempo, num rei poderoso e conquistador. Tanto mais ridícula lhe parecia por
isso a acusação de que esse Jesus que estava diante dele, tão humilhado e
desfigurado, pudesse declarar ser aquele Messias, aquele rei. Como, porém,
os inimigos de Jesus apresentassem isso como crime contra os direitos do
imperador, mandou conduzir o Salvador à sua presença, para inter rogá-Lo.
Pilatos olhou para Jesus com assombro e disse-Lhe: "És então o rei dos
judeus?" - Jesus respondeu: "Dizes isto de ti mesmo ou foram outros que t'o
disseram de mim?" Pilatos, indignado de ver Jesus julgá-Io tão tolo, que
fosse espontaneamente perguntar a um homem tão pobre e miserável se era
rei, disse em tom desdenhoso: "Por acaso sou judeu, para me interessar por
tais misérias? Teu povo e seus sacerdotes entregaram-Te a mim, para
condenar-Te como réu de crime capital; dize-me, pois, o que fizeste?"
Respondeu-lhe Jesus, em tom solene: "O meu reino não é deste mundo; se o
meu reino fosse deste mundo, eu teria ser vidores, que combateriam por mim,
para não me deixar cair nas mãos dos judeus; mas o meu reino não é deste
mundo." Pilatos estremeceu, ao ouvir essa graves palavras de Jesus e disse
pensativo. "Então és mesmo rei?" - Jesus respondeu. "É como dizes, sou rei.
Nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade e todo que é da
verdade, atende à minha voz." - Então Pilatos fitou-O e levantando-se, disse:
"Verdade? O que é a verdade?" - Falaram-se ainda outras palavras, das quais
não me lembro bem.
Pilatos saiu outra vez para o ter raço; não podia compreender Jesus; mas
sabia que não era um rei que quisesse prejudicar ao imperador, nem era
pretendente a um reino deste mundo; o imperador, porém, não se impor tava
com um reino do outro mundo. Pilatos gritou, pois, da sacada aos sumos
sacerdotes: "Não acho nenhum crime neste homem." - os inimigos de Jesus
ir ritaram-se de novo e proferiram uma tor rente de acusações contra Ele. O
Senhor, porém, per manecia calado e rezava por esses pobres homens e
quando Pilatos se Lhe dirigiu, perguntandoLhe: "Não tens nada a responder a
todas essas acusações?" Jesus não, proferiu uma só palavra, de modo que
Pilatos, sur preso, Lhe disse: "Vejo bem que empregam mentiras contra ti" -
(em vez de mentiras usou outra expressão, que, porém, esqueci). Os
acusadores continuavam, cheios de raiva, a acusá-Lo, dizendo: "O que? Não
achais crime n’Ele? Não é então crime sublevar todo o povo, espalhar sua
doutrina em todo o país, da Galiléia até aqui?”
Quando Pilatos ouviu a palavra Galiléia, refletiu um momento e perguntou:
"Esse homem é da Galiléia, súdito de Herodes?" Os acusadores responderam:
"Sim, seus pais moravam em Nazaré e Ele tem domicílio atual em
Cafar naum." Então disse Pilatos: "Pois que é galileu e súdito de Herodes,
conduzi-O a este; ele está aqui na festa e pode julgá-Lo." Mandou conduzir
Jesus outra vez do tribunal para as mãos dos implacáveis inimigos, enviando
também com eles um dos oficiais, para entregar ao tribunal de Herodes o
súdito galileu Jesus de Nazaré. Ficou assim satisfeito'de poder livrar-se
desse modo da obrigação de julgar Jesus pois essa causa lhe era
desagradável. Ao mesmo tempo tinha nisso um fim político, queria dar uma
prova de atenção a Herodes, que sempre desejara muito ver Jesus; pois
estavam em desavença.
Os inimigos de Jesus, furiosos por lhes haver Pilatos negado a demanda e
terem de ir ao tribunal de Herodes, fizeram recair toda a raiva sobre Jesus.
Cercaram-na de novo de soldados e, ir ritadíssimos, amar raram-Lhe as mãos e
com empur rões e pancadas, conduziram-na a toda pressa, através da
multidão que se apinhava no fórum e depois por uma r ua, até o palácio de
Herodes, que não ficava muito longe. Acompanharam-nos soldados romanos.
Cláudia Prócula, esposa de Pilatos, mandara-lhe dizer por um criado, durante
as ultimas discussões, que desejava falar-lhe urgentemente. Quando Jesus
foi conduzido a Herodes, estava escondida numa galeria alta, olhando com
grande angústia e tristeza para o cor tejo que passava pelo fór um.

4. Origem da Via Sacra

Durante toda a acusação perante Pilatos, a Mãe de Jesus, Madalena e João


ficaram no meio do povo, num canto das arcadas do fórum ouvindo com
profunda dor a gritaria raivosa dos acusadores..Quando Jesus foi conduzido a
Herodes, João voltou com a SS. Virgem e Madalena por todo o caminho da
Paixão. Foram até à casa de Caifás e a de Anás, atravessando Ofel, até
chegarem a Getsêmani, no monte das Oliveiras e em todos os lugares onde
Ele caíra ou onde lhes tinham causado um sofrimento, paravam e em silêncio
choravam e sofriam com Ele. Muitas vezes a SS. Virgem se prostrava no
chão, beijando a ter ra onde Jesus caíra, Madalena torcia as mãos e João,
chorando, consolava-as, levantava-as e continuava com elas o caminho. Foi
esse o começo da Via Sacra e da contemplação e veneração da Paixão de
Jesus, antes mesmo que estivesse ter minada. Foi nessa ocasião que
começou, na mais santa flor da humanidade, na Santíssima Virgem Mãe de
Deus e do Filho do homem, a devoção da Igreja às dores do Redentor ; já
naquele momento, quando Jesus ainda trilhava o caminho doloroso da
Paixão, a Mãe cheia de graça venerava e regava com lágrimas as pegadas de
seu Filho e Deus. Oh! que compaixão! Com que violência lhe entrou a espada
no coração, ferindo-o sem cessar! Ela, cujo bem-aventurado seio O trouxera,
que concebera, acariciara e nutrira o Verbo, que era desde o princípio com
Deus e era mesmo Déus; ela, que em si Lhe tivera e sentira a vida, antes que,
os homens, seus ir mãos, Lhe recebessem a bênção, a doutrina e a salvação,
ela par ticipava de todos os sofrimentos de Jesus, inclusive a sua sede da
salvação dos homens, pela dolorosa Paixão e Mor te. Assim a Virgem
puríssima e Imaculada inaugurou para a Igreja a Via Sacra, para juntar em
todos esses lugares os infinitos merecimentos de Jesus Cristo, como se
juntam pedras preciosas ou colhê-los como se colhem flores à beira do
caminho e oferecê-Ios ao Pai Celeste, por aqueles que crêem. Tudo que tinha
havido e haverá de santo na humanidade, todos que têm almejado a salvação,
todos que já uma vez celebraram compadecidos o amor e os sofrimentos do
Senhor, fizeram esse caminho com Maria, choraram, rezaram e sacrificaram
no coração da Mãe de Jesus, que também é ter na Mãe de todos os seus
ir mãos, os fiéis da Igreja.
Madalena estava como que alucinada pela dor. Tinha um imenso e santo amor
a Jesus; mas quando queria ver ter a alma aos pés do Salvador, como Lhe
ver tera o óleo de nardo sobre a cabeça, abria-se um hor rível abismo entre
ela e o Bem-Amado. O ar rependimento dos pecados, como a gratidão pelo
perdão, lhe eram sem limites e quando o seu amor queria fazer subir a ação
de graças aos pés do Divino Mestre, como uma nuvem de incenso, eis que O
via maltratado e conduzido à mor te, por causa dos pecados dela, que Ele
tomara sobre si. Então se lhe hor rorizava a alma, diante de tão grande culpa,
pela qual Jesus tinha de sofrer tão hor rivelmente; precipitava-se-lhe no
abismo do ar rependimento, que não podia nem exaurir, nem encher ; e de
novo se elevava, cheia de amor e saudade, para seu Mestre e Senhor e via-O
sofrendo indizíveis crueldades. Assim tinha a alma cruelmente dilacerada,
vacilava entre o amor e o ar rependimento, entre a sua gratidão e a dolorosa
contemplação da ingratidão do povo para com o Redentor ; todos esses
sentimentos se lhe manifestavam no rosto, nas palavras e nos movimentos.
João sofria em seu amor ; conduzia a Mãe de seu Santo Mestre e Deus, que
também o amava e sofria por ele; conduzia-a, pela primeira vez, nas pegadas
da Via Sacra da Igreja e lia-lhe na alma o futuro.

5. Pilatos e a Esposa

Enquanto Jesus era conduzido a Herodes e lá o cobriam de insultos e


escár nio, vi Pilatos ir ao encontro da esposa, Cláudia Prócula. Encontraram-
se numa pequena casa, constr uída sobre um ter raço do jardim, atrás do
palácio de Pilatos. Cláudia estava muito incomodada e comovida. Era mulher
alta e esbelta, mas pálida; vestia um véu, que lhe pendia sobre as costas,
contudo viam-se-Ihe os cabelos, dispostos em redor da cabeça e alguns
ador nos; tinha também brincos, um colar e sobre o peito um broche, em
for ma de agrafe, que lhe prendia o longo vestido de pregas. Conversou muito,
tempo com Pilatos, conjurando-o por tudo que lhe era santo a não fazer mal a
Jesus, o Profeta, o mais Santo dos santos e contou-lhe par te das visões
maravilhosas que vira, a respeito de Jesus, durante a noite.
Enquanto ela falava, vi-lhe grande par te das visões que tivera; mas não me
lembro mais exatamente da ordem em que se seguiram. Recordome todavia,
que viu todos os momentos principais da vida de Jesus; viu a Anunciação de
N. Senhora, o Nascimento de Jesus, a adoração dos pastores e dos Reis
Magos, as profecias de Simeão e Ana, a fuga para o Egito, a matança dos
inocentes, a tentação no deser to, etc. Viu-Lhe quadros da vida pública,
vir tudes e milagres; viu-O sempre rodeado de luz e teve visões hor ríveis do
ódio e da maldade de seus inimigos; viuLhe os inúmeros sofrimentos, o amor
e a paciência sem limite, a santidade e as dores de sua santa Mãe. Para mais
fácil compreensão, eram esses quadros ilustrados com figuras simbólicas e
pela diferença de luz e sombra. Essas visões lhe causaram indizível angústia
e tristeza; pois todas essas coisas lhe eram novas, penetraram-lhe no
coração pela verdade intuitiva; par te das visões mostraram-lhe
acontecimentos que se deram na vizinhança de sua casa, como por exemplo
a matança das crianças inocentes e a profecia de Simeão no Templo. De
minha própria experiência sei bem quanto um coração compassivo sofre em
tais visões; pois compreende melhor os sentimentos de outrem quem já os
sentiu em si mesmo.
Ela tinha sofrido desse modo durante a noite e visto muitas coisas
maravilhosas e compreendido muitas verdades, umas mais, outras menos
claramente, quando foi acordada pelo bar ulho da multidão, que conduzia a
Jesus. Quando mais tarde olhou para fora, viu o Senhor, objeto de todas as
coisas maravilhosas que vira durante a noite, desfigurado e cruelmente
maltratado pelos inimigos, que o conduziam através do fórum, ao palácio de
Herodes. Esse espetáculo, após as visões da noite, encheu-lhe o coração de
angústia e ter ror. Mandou imediatamente chamar Pilatos, a quem contou,
com medo e pavor, muitas das coisas que vira, porque não tinha
compreendido tudo ou não o sabia exprimir em palavras; mas pedia e
suplicava e estreitava-se-Ihe de um modo tocante.
Pilatos ficou muito admirado e até sobressaltado pelo que a esposa lhe
contou, comparava-o com tudo que ouvia cá e lá sobre Jesus, com a raiva
dos,judeus, com o silêncio do Mestre e as fir mes e maravilhosas respostas
que lhe dera às perguntas; ficou per turbado e inquieto; deixou-se, porém, em
pouco vencer pelas insistências da mulher e disse-lhe: "Já declarei que não
acho crime nesse homem; não O condenarei, jápercebi toda a maldade dos
judeus." Ainda falou sobre as declarações que Jesus tinha feito contra si
mesmo e até tranqüilizou a mulher, dandolhe um penhor, como garantia da
promessa. Não sei mais se foi uma jóia ou um anelou sinete que lhe deu por
penhor. Assim se separaram.
Conheci Pilatos como homem confuso, ambicioso, indeciso, orgulhoso e vil
ao.mesmo tempo; sem verdadeiro temor de Deus, não recuava diante das
ações mais vergonhosas, se delas esperava qualquer lucro e ao mesmo
tempo era um vil covarde, que se entregava a toda espécie de ridículas
superstições, procurando a proteção dos deuses, quando se achava em
situação difícil. Vi-o também nessa ocasião muito per turbado; estava
continuamente diante dos deuses, aos quais oferecia incenso, numa sala
secreta da casa e dos quais pedia sinais. Também esperava outros sinais
supersticiosos, por exemplo, obser vava como comiam as galinhas; mas todas
essas coisas pareciam tão hor ríveis, tenebrosas e infer nais, que recuei
tremendo de hor ror e não as posso mais contar exatamente. Tinha ele as
idéias confusas e o demônio sugeria-lhe ora uma, ora outra coisa. Primeiro
opinou que devia soltar Jesus, por ser inocente; depois pensou que os
deuses se vingariam, se salvasse Jesus; pois havia estranhos sinais e
declarações, que provavam ser o Nazareno um semideus, e sendo assim,
podia fazer muito mal aos deuses. "Talvez", disse consigo, "seja uma espécie
de Deus dos judeus, que deve reinar sobre tudo; alguns reis dos adoradores
dos astros, vindos do oriente, já vieram uma vez a Jerusalém, procurar tal
rei; talvez Este pudesse elevar-Se acima dos deuses e do imperador e eu
teria uma grande responsabilidade, se Ele não mor resse. Talvez a sua mor te
seja o triunfo dos meus deuses." Mas depois se recordou dos sonhos maravi-
lhosos da mulher, que antes nunca vira Jesus e isso lançou um grande peso
na balança oscilante de Pilatos, em favor da liber tação do Mestre e decidiu-
se de fato nesse sentido. Queria ser justo; mas não o podia, porque tinha
perguntado: "O que é a verdade?" e não esperara a resposta: "Jesus
Nazareno, o rei dos judeus, é a verdade." Havia tanta confusão nos
pensamentos do Procurador romano, que eu não o podia compreender e ele
mesmo também não sabia o que queria; senão cer tamente não teria
consultado as galinhas.
Juntava-se no entanto cada vez mais povo no mercado e na vizinhança da rua
pela qual Jesus fora conduzido a Herodes. Havia, porém, uma cer ta ordem,
pois o povo reunia-se em cer tos grupos, segundo as cidades ou regiões
donde vieram à festa. Os fariseus mais encar niçados de todas as regiões
onde Jesus tinha ensinado, estavam com os patrícios, esforçando-se por
excitar contra Jesus o povo instável e per plexo. Os soldados romanos
estavam reunidos em grande número no posto de guarda, diante do palácio
de Pilatos, outros tinham ocupado todos os pontos impor tantes da cidade.

6. Jesus perante Herodes

O palácio do Tetrarca Herodes estava situado ao nor te do fórum, na cidade


nova, não muito longe do palácio de Pilatos. Um destacamento de soldados
romanos acompanhou o cor tejo, a maior par te oriunda da região entre a
Itália e a Suíça. Os inimigos de Jesus, furiosos por ter de fazer tantas
caminhadas, não cessavam de ultrajá-Lo e de fazê-Lo empur rar e ar rastar
pelos soldados. O mensageiro de Pilatos chegou antes do cor tejo ao palácio
de Herodes, que assim, já avisado, O esperava sentado numa espécie de
trono, sobre almofadas, numa vasta sala; rodeavam-no muitos cor tesãos e
soldados. Os Sumos Sacerdotes entraram pelo peristilo e colocaram-se de
ambos os lados; Jesus ficou na entrada. Herodes sentiu-se muito lisonjeado,
por Pilatos tê-Lo publicamente declarado competente, diante dos Sumos
Sacerdotes, de julgar um galileu. Mostrou-se muito impor tante e vaidoso;
também se regozijava de ver diante de si, em situação tão humilhante, o
famoso Mestre, que sempre tinha desdenhado apresentar-Se-Ihe. João falara
d’Ele com tanta solenidade e ouvira os Herodianos e outros espiões e
mexeriqueiros falarem de Jesus, que tinha muita curiosidade de vê-Lo;
compraziase em sujeitá-Lo, diante dos palacianos e dos Sumos Sacerdotes, a
um prolixo inter rogatório, pelo qual queria mostrar a ambas as par tes quanto
estava bem infor mado. Pilatos tinha-lhe também comunicado que não achara
crime em Jesus; e o hipócrita tomou-o como aviso, para tratar os acusadores
com cer ta frieza, o que ainda mais Ihes aumentou a raiva.
Proferiram acusações tumultuosamente, logo ao entrarem; Herodes, porém,
olhou com curiosidade para Jesus e quando O viu tão desfigurado e
maltratado, o cabelo desgrenhado, o rosto dilacerado e cober to de sangue e
imundícies, a túnica toda suja de lama, esse rei mole e liber tino sentiu dó e
nojo. Exclamou um nome de Deus que me soou como "Jeovah", virou o rosto,
com um gesto de nojo e disse aos sacerdotes: "Levai-O daqui, limpai-O. Como
podeis trazer à minha presença um homem tão sujo e maltratado?" Os
soldados levaram então Jesus ao átrio; trouxeram água numa bacia e um
esfregão e limparam-nO cruelmente; pois o rosto estava ferido e passavam o
esfregão com brutalidade.
Herodes repreendeu os sacerdotes, por causa dessa crueldade e no modo de
tratá-Ios parecia imitar Pilatos; pois também Ihes disse: "Vê-se bem que Ele
caiu nas mãos de car niceiros; começastes a imolação hoje antes da hora."
Os sumos sacerdotes, porém, insistiam tumultuosamente nas acusações e
incriminações. Quando reconduziram Jesus à sala, quis Herodes fingir
benevolência para com Ele e mandou trazer-Lhe um cálice de vinho, por estar
muito fraco; Jesus, porém, sacudiu a cabeça e não aceitou o vinho.
Herodes dirigiu-se então com muita verbosidade e afabilidade, proferindo
tudo que sabia dEle. A princípio Lhe fez várias perguntas e manifestou o
desejo de vê-Lo fazer um milagre; como, porém, Jesus não respondesse
palavra alguma e per manecesse com os olhos baixos, ficou Herodes ir ritado
e envergonhado diante dos presentes, mas não quis mostrá-Io e continuou a
fazer-Lhe uma tor rente de perguntas. Primeiro procurou lisonjeá-Lo: "Sinto
muito te ver tão gravemente acusado; te nho ouvido falar muito de ti; sabes
que me ofendeste em Tirza, resgatando sem minha licença, vários presos que
eu mandara prender lá? Mas fizeste-O talvez com boa intenção. Agora me
foste entregue pelo governador romano para te julgar ; o que respondes a
todas aquelas acusações? Ficas calado? - Têm-me falado muito de tua
sabedoria, dos teus discursos e da tua doutrina; eu desejaria ouvir-Te refutar
os teus acusadores. - Que dizes? -É verdade que és o rei dos judeus? - És o
Filho de Deus? - Quem, és? - Ouvi dizer que tens feito grandes milagres,
prova-o diante de mim, fazendo um milagre. Depende de mim liber tar-Te. - É
verdade que deste a vista a cegos de nascença? Ressuscitaste dos mor tos
Lázaro? Saciaste vários milhares de homens com poucos pães? Porque não
respondes? - Conjuro-te a operar um dos teus milagres. Seria muito em teu
favor." Como, porém, Jesus continuasse calado, Herodes falou com
volubilidade ainda maior : "Quem és? - Como chegaste a isto? - Quem Te deu o
poder? - Porque não tens mais poder agora? És acaso aquele de cujo
nascimento se contam coisas tão estranhas? No tempo de meu pai vieram
alguns reis do oriente e perguntaram-lhe por um recém-nascido rei dos
judeus, a quem queriam prestar homenagem; dizem que eras Tu aquele
menino; é verdade? - Escapaste da matança em que pereceram tantas
crianças? - Como foi isto? - Porque não se ouviu falar de Ti tanto tempo? - Ou
apenas dizem isto a teu respeito para fazer-Te rei? - Justifica-Te. - Que
espécie de rei és Tu? Em verdade, não vejo em Ti nada de real. - Como me
dizem, fizeram-Te uma entrada triunfal no Templo. Que significa isto? Fala!
Como é que tudo acabou assim?”
A toda essa tor rente de palavras não obteve resposta alguma de Jesus. Foi-
me explicado agora e, já há mais tempo, que Jesus não lhe respondeu,
porque Herodes foi excomungado, tanto pelas relações adúlteras com
Herodíades, como também pelo assassínio de João Batista.
Anás e Caifás aproveitaram a indignação que lhe causou o silêncio de Jesus,
para de novo proferir as acusações. Entre outras coisas afir maram que Jesus
tinha chamado Herodes de raposa e que, já desde muito tempo, tinha
trabalhado para a queda de toda a família de Herodes; que queria fundar uma
nova religião e comera o cordeiro pascal no dia anterior. Essa acusação já a
tinham produzido perante Caifás, por traição de Judas, mas fora refutado por
alguns amigos de Jesus, os quais para esse fim leram alguns trechos de
rolos da Escritura.
Herodes, ainda que ir ritado pelo silêncio de Jesus, não se esqueceu dos seus
interesses políticos. Não quis condenar Jesus; pois Este lhe inspirava um
ter ror secreto e já era tor turado de remorsos, por causa da mor te de João
Batista; também odiava os sumos sacerdotes, porque não tinham querido
desculpar-lhe o adultério e o haviam excluído dos sacrifícios pelo mesmo
motivo. Mas o motivo principal era que não queria condenar aquele a quem
Pilatos declarara inocente; convinha-lhe aos interesses políticos aplaudir a
opinião de Pilatos, diante dos príncipes dos sacerdotes. A Jesus, porém,
cobriu de desprezo e insultos; disse aos criados e guardas, dos quais
contava uns duzentos no palácio. "Levai para fora este tolo e prestai a este
rei ridículo as honras que se Lhe devem; pois é mais um doido do que um
criminoso.”
Conduziram então o Salvador a um vasto pátio, onde o cobriram de escár nio
e indizíveis crueldades. Esse pátio estendia-se por entre as alas do palácio e
Herodes, de pé num ter raço, assistiu por algum tempo a esse espetáculo
cruel. Anás e Caifás, porém, andavam sempre atrás dele e procuravam por
todos os meios movê-Io a condenar Jesus; mas Herodes disse-Ihes, de modo
que os romanos da escolta o ouvissem: "Seria um crime de minha par te, se O
condenasse." Queria cer tamente dizer : "Seria um crime contra a sentença de
Pilatos, que teve a gentileza de mandá-Lo a mim.”
Vendo que não conseguiam nada de Herodes, os sumos sacerdotes e os
inimigos de Jesus enviaram alguns dos seus, com dinheiro, a Acra, bair ro da
cidade onde se achavam nessa ocasião muitos fariseus, aos quais mandaram
dizer que fossem, com os respectivos par tidários, às vizinhanças do palácio
de Pilatos; fizeram também distribuir entre o povo muito dinheiro, para levá-
Ia a pedir tumultuosamente a mor te de Jesus. Outros emissários deviam
ameaçar o povo com castigos de Deus, se não conseguisse a mor te desse
blasfemador sacrílego; também mandaram espalhar entre o povo que se
Jesus não mor resse, se ligaria aos romanos e seria esse o reino de que
sempre falara; e então seriam aniquilados os judeus. Em outra par te
espalharam o boato de que Herodes condenara Jesus, mas esperava que o
povo manifestasse sua vontade; receava-se a resistência dos adeptos do
Nazareno e se esse fosse solto, seria per turbada toda a festa; pois então Ele,
com seus par tidários e os romanos, tirariam vingança. Desse modo fizeram
espalhar os boatos mais contraditórios e assustadores, para ir ritar e
sublevar o povo, enquanto outros emissários deram dinheiro aos soldados de
Herodes, afim de que maltratassem gravemente a Jesus, mesmo até O fazer
mor rer, pois antes desejavam que mor resse do que Pilatos O soltasse.
Enquanto os fariseus estavam ocupados nesses negócios e intrigas, sofreu
Nosso Senhor o escár nio e a brutalidade mais ignominiosa da soldadesca
ímpia e grosseira, à qual Herodes O tinha entregue, para ser maltratado,
como tolo que não lhe quisera responder. Empur raram-nO para o pátio e um
deles trouxe um comprido saco branco, que achara no quar to do por teiro e
em que, havia tempos, viera uma remessa de algodão. Cor taram com as
espadas um buraco no fundo do saco e meteramnO por entre grandes
gargalhadas, sobre a cabeça de Jesus; outro trouxe um far rapo ver melho e
pôs-Lhe em redor do pescoço, como um colar ; o saco caia-Lhe sobre os pés.
Então se inclinavam diante d’Ele, empur ravam-nO e entre ditos insultantes,
cuspiam e batiam-Lhe no rosto, porque não tinha respondido ao rei e
prestavam-Lhe outras mil homenagens escar necedoras; atiravam-Lhe lama,
davam-Lhe ar rancos, como para fazê-Lo dançar ; depois o fizeram cair com o
longo manto der risório e ar rastaram-nO por um esgoto que passava no pátio,
ao longo dos edifícios, de modo que a cabeça sagrada do Salvador batia de
encontro às colunas e pedras angulares; depois O levaram e começaram as
crueldades de novo. - Havia lá cerca de duzentos soldados e ser vidores do
palácio de Herodes, gente de todas as regiões e cada um dos mais per versos
queria fazer honra a seu país e distinguir-se diante de Herodes, inventando
um novo ultraje para Jesus. Faziam tudo precipitadamente, empur rando-se
uns aos outros, entre escár nios; os inimigos de Jesus tinham pago dinheiro a
alguns deles, que no tumulto Lhe deram diversas pauladas na santa cabeça.
Jesus fitavaos com os olhos suplicantes, suspirando e gemendo de dor ; mas
zombavam dele, imitando-Lhe os gemidos; a cada nova brutalidade rompiam
em gargalhadas e insultos, não havia nenhum que Lhe mostrasse piedade.
Tinha a cabeça toda banhada em sangue e vi-O cair três vezes, sob as
pauladas, mas vi também uma aparição como de Anjos, que, chorando,
desceram sobre Ele e lhe ungiram a cabeça. Foi-me revelado que sem esse
auxílio de Deus, as pauladas teriam sido mor tais. Os filisteus, que fizeram o
cego Sansão cor rer na Pista de Gaza, até cair mor to de cansaço, não foram
tão violentos e cruéis como esses per versos.
Urgia o tempo para os Sumos Sacerdotes, porque em pouco deviam ir ao
Templo e quando receberam aviso de que todas as suas ordens tinham sido
cumpridas, insistiram mais uma vez com Hero des, pedindo-lhe que
condenasse Jesus. Mas o tetrarca tinha em vista apenas suas relações com
Pilatos e mandou reconduzir-Ihe Jesus, vestido do manto der risório.

6
Jesus é açoitado, coroado de espinhos e condenado à mor te

1. Jesus reconduzido a Pilatos


2. Jesus é posposto a Bar rabás
3. A flagelação de Jesus
4. Maria Santíssima durante a flagelação
5. Jesus é coroado de espinhos e escar necido pelos soldados
6. Ecce Homo
7. Reflexão sobre estas visões
8. Jesus condenado à mor te na Cruz

Jesus é açoitado, coroado de espinhos e condenado à mor te

1. Jesus reconduzido a Pilatos

Cada vez mais enfurecidos, tor naram os príncipes dos sacerdotes e os


inimigos de Jesus a trazê-Lo de novo de Herodes a Pilatos. Estavam
envergonhados de não lhe ter conseguido a condenação e ter de voltar
novamente para aquele que já O tinha declarado inocente. Por isso tomaram
na volta outro caminho, cerca de duas vezes mais longo, para mostrá-Lo
naquela humilhação em outra par te da cidade, para poder maltratá-Lo tanto
mais pelo caminho e dar tempo aos agentes de concitarem o povo. a agir
confor me as maquinações tramadas.
O caminho pelo qual conduziram Jesus, era mais áspero e desigual;
acompanharam-nO, estimulando os soldados sem cessar a maltratá-Lo. A
veste der risória, o longo saco, impedia o Senhor de andar ; ar rastavase na
lama, várias vezes caiu, embaraçando-se nele e era levantado cada vez com
ar rancos nas cordas, pauladas na cabeça e pontapés. Sofreu nesse caminho
indizíveis insultos e crueldades, tanto daqueles que o conduziam, como
também do povo; mas Ele rezava, pedindo a Deus que não O deixasse mor rer,
para poder ter minar a sua Paixão e nossa Redenção.
Eram oito horas e um quar to da manhã, quando o sinistro cor tejo chegou,
vindo do outro lado, (provavelmente de leste) ao palácio de Pilatos,
atravessando o fórum. A multidão do povo era enor me; estavam reunidos em
grupos, confor me as regiões e cidades de procedência e os fariseus cor riam
entre o povo, excitando-o. Pilatos, lembrando-se ainda da revolta dos galileus
descontentes, na Páscoa do ano anterior, tinha concentrado cerca de mil
homens, que ocuparam o pretório ou posto de guarda, as entradas do fórum e
do palácio.
A SS. Virgem, sua ir mã mais velha, Maria Helí, a filha desta, Maria Cleofé,
Madalena e algumas outras mulheres piedosas (9), cerca de vinte, assistiram
aos acontecimentos que se seguiram; ficaram sob as arcadas, de onde
podiam ouvir tudo e aproximavam-se fur tivamente de vez em quando. João
estava a princípio também presente.

(9) A vidente esqueceu de mencionar onde todas essas mulheres se tinham


reunido e se Maria, voltando do monte das Oliveiras a Jer usalém, pela por ta
das Ovelhas, se encontrou com o cor tejo de Jesus. Mas o "Peregrino" lembra-
se de nar rativas anteriores, de que Mar ta, indo ao palácio de Herodes, se
encontrou com Jesus e seguiu-O até o tribunal de Pilatos.

Jesus, cober to com a veste der risória, foi conduzido através da multidão,
entre os escár nios do populacho; pois a escória e os mais per versos de entre
o povo foram colocados na frente pelos fariseus, que Ihes davam o exemplo,
ultrajando Jesus. Um palaciano de Herodes já tinha chegado antes, com a
mensagem para Pilatos, de que Herodes lhe ficava muito grato pela atenção,
que, porém, no afamado sábio galileu encontrara apenas um bobo mudo; que
O tinha tratado como tal e mandara reconduzí-Lo novamente a Pilatos. Este
ficou satisfeito de saber que Herodes estava de acordo e não condenara
Jesus; mandou levar-lhe de novo cumprimentos e assim se tor naram amigos,
de inimigos que eram, desde o desabamento do aqueduto. (Vide: Apêndice
no. 3).
Jesus foi novamente conduzido pela rua ao palácio de Pilatos; empur raram-
nO, para subir a escada que conduzia ao ter raço; mas pelos brutais ar rancos
dos soldados, pisou na longa veste e caiu com tal violência sobre os degraus
de már more, que os salpicou de sangue sagrado. Os inimigos do Mestre, que
tinham de novo ocupado os assentos, ao lado do fór um e o populacho
romperam na gargalhada por essa queda de Jesus e os soldados empur raram-
nO a pontapés pelos últimos degraus.
Pilatos estava recostado no seu assento, que se parecia com um pequeno
leito .de repouso; a pequena mesa estava ao lado; como dantes, estavam
também agora com ele alguns oficiais e outros homens, com rolos de
pergaminho. Ele se dirigiu ao ter raço, do qual falava ao povo e disse aos
acusadores de Jesus: "Vós me entregastes este homem cOmo agitador do
povo à revolta; inter roguei-O diante de vós e não O achei réu do crime de que
O acusais. Também Herodes não lhe achou crime algum; pois vos mandei a
Herodes e vejo que não foi condenado à mor te. Por tanto mandá-Lo-ei açoitar
e depois soltar." Levantou-se, porém, entre os fariseus violenta mur muração
e clamor e a agitação e distribuição de dinheiro entre o povo tomou mais
intensidade. Pilatos tratou-os com muito desprezo e expressões satíricas;
entre outras, disse essa: "Não vereis por acaso cor rer bastante sangue
inocente ainda hoje, na hora dos sacrifícios?”

2. Jesus é posposto a Bar rabás

Ora, era nesse tempo que o povo vinha, antes da festa da Páscoa, pedir,
segundo um antigo costume, a liber,dade de um preso. Os fariseus tinham
enviado, justamente por isso, alguns agentes ao bair ro de Acra, a oeste do
Templo, para dar dinheiro ao povo, instigando-o a que não pedisse a
liber tação, mas a crucificação de Jesus. Pilatos, porém, esperava que o povo
pedisse a liberdade de Jesus e resolveu dar-Ihes a escolher entre Jesus e um
ter rível facínora, que já fora condenado à mor te, para que quase não
tivessem que escolher. Esse celerado chamava-se Bar rabás e era
amaldiçoado por todo o povo; tinha cometido assassinatos durante uma
agitação; vi que também tinha feito muitos outros crimes.
Houve um movimento entre o povo no fór um; um grupo avançou, com os
oradores à frente; esses levantaram a voz e bradaram a Pilatos, que estava
no ter raço: "Pilatos, fazei-nos o que sempre fizestes, por ocasião da festa!
"Pilatos, que só estava esperando por isso, respondeu-lhes: "Tendes o
costume de receber de festas a liberdade de um preso. A quem quereis que
solte, Bar rabás ou Jesus, o rei dos judeus, que dizem ser o Ungido do
Senhor?”
Pilatos, todo indeciso, chamava-O "rei dos judeus", já como romano
orgulhoso, que os desprezava, por terem um rei tão miserável, que tivessem
de escolher entre Ele e um assassino; já com uma cer ta convicção de que
Jesus pudesse ser de fato esse rei maravilhoso dos judeus, o Messias
prometido; mas também esse pressentimento da verdade era em par te
fingimento e mencionou esse título do Senhor porque bem sentia que a inveja
era o motivo principal do ódio dos príncipes dos sacerdotes contra Jesus, a
quem considerava inocente.
Após a pergunta de Pilatos, houve uma cur ta hesitação e deliberação entre o
povo e só poucas vozes gritaram precipitadamente: "Bar rabás!" Pilatos,
porém, foi chamado por um criado da mulher ; retirou-se um instante do
ter raço e o criado mostrou-lhe o penhor que ele dera de manhã à esposa e
disse-lhe: "Cláudia Prócula manda lembrarvos vossa promessa." Os fariseus,
no entanto, e os príncipes dos sacerdotes estavam em grande agitação;
aproximaram-se do povo, ameaçando e instigando-o; mas não precisavam de
tanto esforço.
Maria, Madalena, João e as outras piedosas mulheres estavam no canto de
uma arcada, tremendo e chorando. Embora a Virgem Santíssima soubesse
que não havia salvação para os homens senão pela mor te de Jesus,
entretanto, como Mãe, estava cheia de angústia e desejo de salvar a vida do
Filho santíssimo; e assim como Jesus, embora escolhesse de livre vontade
tor nar-se homem e mor rer na cruz, todavia sofria, como qualquer homem,
todas as dores e os mar tírios de um inocente hor rivelmente maltratado e
conduzido à mor te, assim também Maria padecia todos os tor mentos e
angústias de uma mãe vendo o filho maltratado por um povo ingrato. Ela e as
companheiras tremiam, entregues, ora à angústia, ora à esperança. João
afastava-se de vez em quando, a pouca distância, para ver se podia colher
uma boa notícia. Maria implorava a Deus para que não se cometesse esse
imenso crime; rezava como Jesus no monte das Oliveiras: "Se é possível,
afaste este cálice." Assim esperava ainda a mãe no seu amor ; pois enquanto
as instigações e ameaças dos fariseus ao povo passavam de boca em boca,
chegara também a ela o boato de que Pilatos queria soltar Jesus. Viam-se,
não longe, grupos de gente de Cafar naum, entre os quais muitos que Jesus
curara e ensinara; fizeram como se não O conhecessem e olhavam
fur tivamente para João e as infelizes mulheres, envoltas nos véus; mas Maria
pensava, como todos, que esses, pelo menos, rejeitariam Bar rabás, para
salvar o Benfeitor e Salvador. Mas tal não se deu.
Pilatos, lembrando-se, à vista do penhor, da súplica da esposa, devolveu-lho,
como sinal de que cumpria a promessa. Voltou ao ter raço e sentou-se ao lado
da mezinha; os sumos sacerdotes também tor naram a ocupar os respectivos
assentos e Pilatos exclamou de novo: "Qual dos dois quereis que eu solte?" -
Então se levantou um grito geral por todo o fórum e de todos os lados: "Não
queremos Este; entregai-nos Bar rabás!" Pilatos gritou mais uma vez: "Que
farei então de Jesus, que é chamado o Cristo, o rei dos judeus?" - "Crucificai-
O, Crucificai-O!" Pilatos perguntou então pela terceira vez: "Mas que mal tem
feito? Eu pelo menos não Lhe acho crime de mor te. Mas vou mandá-Lo
açoitar e depois soltar." Mas o grito "Crucificai-O! Crucificai-O!" rugia pelo
fórum, como uma tempestade infer nal e os sumos sacerdotes e fariseus
agitavam-see gritavam como loucos de raiva. Então Pilatos lhes entregou
Bar rabás, o malfeitor e condenou Jesus à flagelação.

3. A flagelação de Jesus

Pilatos, juiz covarde e indeciso, pronunciara várias vezes a palavra: "Não lhe
acho crime algum; por isso vou mandá-Lo açoitar e depois soltar." A gritaria
dos judeus, porém, continuava; "Crucificai-O! Crucificai-O!" Contudo queria
Pilatos tentar ainda fazer sua vontade e deu ordem de açoitar Jesus à
maneira dos romanos. Então entraram os soldados e, batendo e empur rando
a Jesus brutalmente, com os cur tos bastões, conduziram nosso pobre
Salvador, já tão maltratado e ultrajado, através da multidão tumultuosa e
furiosa, para o fór um, até a coluna de flagelação, que ficava em frente de
uma das arcadas do mercado, ao nor te do palácio de Pilatos e não longe do
posto da guarda.
Os car rascos, jogando os açoites, varas e cordas no chão, ao pé da coluna,
vieram ao encontro de Jesus. Eram seis homens de cor parda, mais baixos do
que Jesus, de cabelo crespo e eriçado, barba muito rala e cur ta; vestiam
apenas um pano ao redor da cintura, sandálias rotas e uma peça de couro ou
outra fazenda ordinária, que lhes cobria peito e costas como um escapulário,
aber to dos lados; tinham os braços nus. Eram criminosos comuns, das
regiões do Egito, que trabalhavam como escravos ou degredados na
constr ução de canais e edifícios públicos; escolhiam-se os mais ignóbeis e
per versos, para tais ser viços de car rascos no pretório.
Amar rados à mesma coluna, alguns pobres condenados tinham sido
açoitados até à mor te, por esses homens hor ríveis, cujo aspecto tinha algo
de br uto e diabólico e pareciam meio embriagados. Bateram em Nosso
Senhor com os punhos e com cordas, apesar de não lhes opor resistência
alguma, ar rastaram-nO com brutalidade furiosa, até à coluna da flagelação. É
uma coluna isolada, que não ser ve para sustentar o edifício. É de tamanho
tal, que um homem alto, com o braço estendido, lhe pode tocar a
extremidade superior, ar redondada e munida de uma argola de fer ro; na par te
de traz, no meio da altura, há também argolas ou ganchos. É impossível
descrever a brutalidade bárbara com que esses cães danados maltrataram a
Jesus, nesse cur to caminho; tiraram-Lhe o manto der risório de Herodes e
quase jogaram nosso Salvador por ter ra.
Jesus trepidava e tremia diante da coluna. Ele mesmo se apressou a despir a
roupa, com as mãos inchadas e ensangüentadas pelas cordas, enquanto os
car rascos O empur ravam e puxavam. Orava de um modo comovente e volveu
a cabeça por um momento para a Mãe SS. que, dilacerada de dor, estava com
as mulheres piedosas num canto das arcadas do mercado, não longe do lugar
de flagelação e disse, voltandose para a coluna, porque O obrigaram a
despir-se também do pano que lhe cingia os rins: "Desvia os teus olhos de
mim." Não sei se pronunciou essas palavras ou as disse só interior mente,
mas percebi que Maria as entendeu; pois a vi nesse momento desviar o rosto
e cair sem sentidos nos braços das santas mulheres veladas, que a
rodeavam.
Então abraçou Jesus a coluna e os algozes ataram-Lhe as mãos levantadas à
argola de cima, dando-Lhe ar rancos brutais e praguejando hor rivelmente
todo o tempo; puxaram-Lhe assim todo o cor po para cima, de modo que os
pés, amar rados em baixo à coluna, quase não tocavam no chão. O Santo dos
Santos estava cruelmente estendido sobre a coluna dos malfeitores, em
ignominiosa nudez e indizível angústia e dois dos homens furiosos
começaram, com crueldade sanguinária, a flagelar-Lhe todo o santo cor po,
da cabeça aos pés. Os primeiros açoites ou varas que usaram, pareciam ser
de madeira branca e dura; talvez fossem também feixes de tendões secos de
boi ou tiras duras de couro branco.
Nosso Senhor e Salvador, o Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem, contraia-se e torcia-se, como um ver me, sob os açoites dos
criminosos; ouviam-se-Lhe os gemidos e lamentos, doces e claros, como uma
prece afetuosa no meio de dores dilacerantes, entre o sibilar e estalar dos
açoites dos car rascos. De vez em quando ressoava a gritaria do povo e dos
fariseus, como uma nuvem escura de tempestade, abafando essas queixas
dolorosas e santas, cheias de bênçãos. As turbas gritavam: "Deve mor rer!
Crucificai-O!", pois Pilatos estava ainda a discutir com o povo. Quando queria
fazer-se ouvir, no meio do tumulto da multidão, fazia soar primeiro um toque
de trombeta, para impor silêncio. Nesses momentos se ouviam novamente os
açoites, os gemidos de Jesus, o praguejar dos car rascos e os balidos dos
cordeiros pascais, que eram lavados na piscina das Ovelhas, ao lado da
por ta das Ovelhas, a leste do fórum. Depois de lavados, eram levados, com a
boca amar rada, até o caminho do Templo, para não se sujarem mais, depois
eram conduzidos para o lado de fora, a oeste, onde ainda eram submetidos a
uma ablução cerimonial. Esses balidos desamparados dos cordeiros tinham
algo de indescritivelmente comovente; eram as únicas vozes que se uniam
aos gemidos do Salvador.
A multidão dos judeus mantinha-se afastada do lugar da flagelação, numa
distância, talvez, da largura de uma r ua. Soldados romanos estavam pdstos
em diferentes lugares, especialmente pelo lado do posto de guarda; per to da
coluna de flagelação havia grupos de populacho, que iam e vinham
silenciosos ou zombando; vi alguns que se sentiram comovidos; era como se
os tocasse um raio de luz saindo de Jesus.
Vi também meninos indignos que, ao lado do pretório, preparavam novas
varas e outros que iam buscar ramos de espinheiro. Alguns soldados dos
Príncipes dos sacerdotes tinham travado relações com os car rascos e
deram-lhes dinheiro; trouxeram-Ihes também um grande cântaro, cheio de
uma bebida ver melha, grossa, da qual beberam até ficar embriagados e
enraivecidos. Ao cabo de um quar to de hora deixaram os dois car rascos de
açoitar Jesus; foram juntar-se a dois outros e beberam com eles. O cor po de
Jesus estava todo cober to de contusões ver melhas, pardas e roxas e o
sangue sagrado cor ria-Lhe por ter ra; agitava-se em movimentos convulsivos.
De todos os lados se ouviam insultos e motejos.
Durante a noite tinha feito muito frio. Desde a madrugada até essa hora, não
clareara o céu e, com grande espanto do povo, caíram algumas cur tas
chuvas de pedra. Pelo meio dia clareou e apareceu o sol.
O segundo par de car rascos caiu então com novo furor sobre Jesus; tinham
outra espécie de açoites; eram como varas de espinheiro, com nós e
esporões. Os violentos golpes rasgaram todas as pisaduras do santo cor po
de Jesus; o sangue regou o chão, em redor da coluna e salpicou os braços
dos car rascos. Jesus gemia, rezava, torcia-se de dor.
Passaram então pelo fórum muitos estrangeiros, montados em camelos;
olharam assustados e entristecidos, quando o povo lhes disse o que se
estava passando. Eram viajantes, dos quais uns tinham recebido o batismo e
outros ouviram o ser mão da montanha. O tumulto e os gritos continuavam no
entanto, diante da casa de Pilatos.
Os dois seguintes car rascos bateram em Jesus com flagelos: eram cur tas
cor rentes ou cor reias, fixas num cabo, cujas extremidades estavam munidas
de ganchos de fer ro, que ar rancavam, a cada golpe, pedaços de pele e car ne
das costas. Oh! Quem pode descrever o aspecto hor rível e doloroso deste
suplício?
Mas a crueldade dos car rascos ainda não estava satisfeita; desligaram Jesus
e amar raram-nO de novo, mas com as costas viradas para a coluna. Como,
porém, estivesse tão enfraquecido, que não podia manter-se em pé,
passaram-Lhe cordas finas sobre o peito e sob os braços e debaixo dos
joelhos, amar rando-O assim todo à coluna; também Lhe ataram as mãos atrás
da coluna, a meia altura. Todo o cor po sagrado contraia-se-Lhe
dolorosamente, as chagas e o sangue cobriam-Lhe a nudez. Como cães
raivosos, caíram-Lhe os car rascos em cima, com os açoites; um tinha uma
vara mais delgada na mão esquerda, com que Lhe batia no rosto. O cor po de
Nosso Senhor for mava uma só chaga, não havia mais lugar são. Ele olhava
para os car rascos, com os olhos cheios de sangue, que suplicavam
misericórdia, mas redobravam os golpes furiosos e Jesus gemia, cada vez
mais fracamente: "Ai!”
A hor rível flagelação durara cerca de três quar tos de hora, quando um
estrangeiro, homem do povo, parente do cego Ctesifon, curado por Jesus, se
aproximou precipitadamente da coluna, pelo lado de traz e, com uma faca em
for ma de foice na mão, gritou indignado: "Parai! Não flageleis este homem
inocente até mor rer!" Os car rascos, meio embria gados, pararam espantados
e o homem cor tou rapidamente, como de um único golpe, as cordas de Jesus,
que todas estavam seguras num prego de fer ro, atrás da coluna; depois o
estrangeiro fugiu e perdeu-se na multidão. Jesus, porém, caiu desfalecido, ao
pé da coluna, sobre a ter ra empapada de sangue. Os car rascos deixaram-nO
lá e foram beber, depois de chamar os auxiliares do car rasco, que estavam
no posto de guarda, ocupados em trançar a coroa de espinhos.
Jesus torcia-se ainda de dor, ao pé da coluna, as chagas a sangrar ; nesse
momento vi passar per to algumas raparigas liber tinas, com as vestes
impr udentemente ar regaçadas; estavam de mãos dadas e pararam diante de
Jesus, olhando-O com repugnância melindrosa; com isso sentiu Jesus ainda
mais as feridas e levantou para elas o rosto ensangüentado, com um olhar
suplicante; então se afastaram, continuando o caminho e os car rascos e
soldados dirigiram-Ihes, entre gargalhadas, palavras indecentes.
Vi várias vezes, durante a fIagelação, aparecerem Anjos tristes em redor de
Jesus; ouvi a oração que o Senhor dirigia ao Pai eter no, no meio dos
tor mentos e insultos, oferecendo-se para expiação dos pecados dos homens.
Mas nesse momento, quando jazia, banhado em sangue, ao pé da coluna, vi
um anjo, que lhe restituía as forças; parecia dar-Lhe um alimento luminoso.
Então se aproximaram novamente os car rascos e dando-Lhe pontapés,
mandaram-nO levantar-se, dizendo que ainda não tinham acabado com o rei;
querendo ainda bater-Lhe, ar rastou-se Jesus pelo chão, para alcançar a faixa
de pano e cobrir a nudez; mas os per versos celerados empur ravam-na com os
pés para lá e para cá, rindo-se de ver Jesus em sangrenta nudez ar rastar-se
penosamente, como um ver me esmagado, para alcançar o pano e cobrir o
cor po dilacerado. Depois O impeliram, a pontapés e pauladas, a levantar-se
sobre as per nas vacilantes; não Lhe deram tempo de vestir a túnica, mas
lançaram-lha sobre os ombros e Jesus enxugou nela o sangue do rosto,
enquanto O conduziram apressadamente ao cor po da guarda, dando uma
volta. Podiam tê-Lo levado por um caminho mais cur to, porque as arcadas e
edifícios em redor do fórum eram aber tos, de modo que se podia enxergar o
cor redor sob o qual jaziam presos os dois ladrões e Bar rabás; mas passaram
com Jesus diante dos sumos sacerdotes, que gritaram: "Levai-O à mor te!
Levai-O à mor te!" e viraram a cabeça com nojo. Conduziram-nO para o pátio
interior do cor po da guarda. Quando Jesus entrou, não havia lá soldados,
mas escravos, soldados e marotos, a escória do povo.
Vendo que o povo estava tão agitado, Pilatos mandara vir reforço da cidadela
Antônia. Essas forças cercavam em boa ordem o cor po da guarda; podiam
falar, rir e insultar a Jesus, mas não sair das fileiras. Pilatos queria com eles
manter o povo em respeito. Podia bem haver lá mil homens.

4. Maria Santíssima durante a flagelação

Vi a SS. Virgem, durante a fIagelação do Redentor, em contínuo êxtase; via e


sofria na alma e com indizível amor e tor mento, tudo quanto sofria o Divino
Filho. Muitas vezes lhe saíram fracos gemidos da boca; os olhos estavam
inflamados de tanto chorar. Jazia velada nos braços da ir mã mais velha,
Maria Helí, que já era muito idosa e se parecia muito com a mãe, Sant' Ana.
Maria, filha de Cleofas e de Maria Helí, estava também presente e segurava
sempre o braço de sua mãe. As santas amigas de Maria e Jesus, todas
veladas e envolvidas em mantos, rode avam a SS. Virgem, tremendo de medo
e dor, como se esperassem sua própria sentença de mor te. Maria vestia uma
longa veste azul e sobre essa, um comprido manto branco de lã e um véu
branco-amarelo. Mada lena estava desnor teada e desolada de dor e
lamentação; tinha o cabelo em desalinho, sob o véu.
Quando Jesus, depois da fIagelação, caíra ao pé da coluna, mandara Cláudia
Pr6cula, a mulher de Pilatos, um fardo de grandes panos à Mãe de Deus. Não
sei mais se julgava que Jesus ficaria livre e a Mãe do Senhor lhe devia tratar
as feridas com esses panos ou se a pagã compadecida mandou os panos para
o fim para o qual a SS. Virgem os empregou.
Maria, voltando a si, viu passar o Divino Filho dilacerado, conduzi do pelos
soldados; Ele enxugou o sangue dos olhos com a túnica, para fitar a SS.
Virgem, que Lhe estendeu as mãos, num transpor te de dor e Lhe seguiu com
a vista as pegadas sangrentas. Logo depois vi a SS. Virgem e Madalena,
quando o povo se dirigia mais para o outro lado, aproximarem-se do lugar da
fIagelação. Cercadas e ocultas pelas outras santas mulheres e outra gente
boa, que se aproximara, prostraram-se por ter ra, ao pé da coluna da
fIagelação e apanharam com os panos todo o sangue de Jesus, por toda a
par te onde encontraram algum vestígio.
Não vi nessa hora João, junto das santas mulheres, que eram cerca de vinte.
O filho de Simeão, o de Obed e o de Verônica, como também Aram e Temeni,
os sobrinhos de José de Arimatéia, estavam todos ocupados no Templo,
cheios de tristeza e angústia.
Foi pelas nove horas da manhã que acabou a fIagelação.
Vi hoje as faces da SS. Virgem(lO) pálidas e mor tiças, o nariz delgado e
comprido, os olhos quase cor de sangue, de tantas lágrimas que der ramou;
não é possível descrever a impressão que faz a figura de Maria, na sua
simplicidade e graça natural. Já desde ontem e durante toda a noite, tem ela
vagueado, cheia de angústia e amor, pelo vale de Josafá e pelas r uas de
Jerusalém e através do povo e contudo não se lhe vê nenhuma desordem nas
vestes; cada prega do vestido da SS. Virgem respira santidade; tudo nela é
simples e digno, puro e inocente. Os movimentos, ao olhar em redor de si,
são nobres e as pregas do véu, quando vira um pouco a cabeça, são de uma
singular beleza e simplicidade. Nos movimentos não se lhe nota agitação e
mesmo na mais dilacerante dor, todo o por te se lhe conser va simples e cal-
mo. Tem o manto umedecido pelo or valho da noite e por inúmeras lágrimas,
mas em tudo mais está limpo e bem ar r umado. É inefavelmente bela e de uma
beleza toda sobrenatural; pois toda sua beleza étambém pureza,
simplicidade, dignidade e santidade.
Madalena, porém, tem um aspecto inteiramente diferente. É mais alta e mais
gorda e chama mais a atenção pelas for mas e os movimentos; mas toda a
beleza lhe foi devastada pelas paixões, pelo ar rependimento e excessiva dor ;
quase causa hor ror vê-Ia, tanto se tor nou desfigurada, pela veemência sem
limite de sua dor. Tem as vestes molhadas e sujas de lama, em desar ranjo e
rasgadas; o longo cabelo cai-lhe solto e em desalinho, sob o véu molhado e
amar rotado. Está toda desfigurada e agitada; não pensa senão em sua dor, e
parece quase uma alienada. Há muita gente aqui de Magdala e ar redores,
que a viu dantes, na vida tão suntuosa e depois tão pecaminosa e em
seguida tanto tempo retirada do mundo e agora a apontam com o dedo e a
insultam, ao ver-lhe a estranha figura; há também gente baixa de Magdala
que, ao passar por ela, lhe atira lama, mas Madalena não o nota, tão absor ta
está na sua dor.

* Anna Catharina descreve uma vez Maria Santíssima do modo seguinte:


"Madalena é mais alta e mais bonita do que as outras mulheres. Dina, a
samaritana, é também bonita, mas muito mais ativa e ágil do que Madalena;
é muito viva, amável e ser viçal por toda a pane, como uma criada ligeira,
prudente e carinhosa e também muito humilde. A Santíssima Virgem, porém,
excede todas as outras em maravilhosa beleza. Posto que no por te tenha
igual em beleza, e seja superada pela figura de Madalena, com suas maneiras
estranhas, entretanto, Maria sempre se distingue entre as outras, pela
indescritível modéstia, singeleza, simplicidade, mansidão, dignidade
e calma; é tão pura e tão simples, que se tem a impressão de ver nela a
imagem de Deus no homem. Não há caráter que se lhe pareça, senão o de
seu Filho. O rosto da santfssima virgem, porém, excede em indizível encanto
o de todas as mulheres que a acompanham e das que jamais tenho visto.
Impressiona pelo pone digno e grave e contudo parece uma criança inocente
e singela. É muito séria, silenciosa, muitas vezes triste, mas nunca se
mostra desordenada na dor ; apenas as lágrimas lhe cor rem brandamente
pelo rosto calmo." Em outra ocasião Anna Catharina diz: "Maria era
imensamente simples. Jesus não a distinguia diante dos outros homens,
senão tratando-a sempre com muita dignidade. Ela também não procurava
contato com os homens, com exceção de doentes e ignorantes e
apresentava-se sempre muito humilde, recolhida, muito calma e simples.
Todos, até os inimigos de Jesus, a estima vam e contudo ela não procurava
ninguém, per manecia silenciosa e sozinha.

5. Jesus é coroado de espinhos e escar necido pelos soldados

Durante a flagelação falou Pilatos ainda várias vezes ao povo, que uma vez
até gritou: "Ele deve mor rer, ainda que todos nós também pereçamos."
Quando Jesus foi conduzido ao cor po da guarda, para ser coroado de
espinhos, ainda gritaram: "Mor ra! Mor ra!" pois chegavam cada vez novas
turbas de judeus, que pelos emissários dos sumos sacerdotes eram incitados
a gritar assim.
Houve depois uma cur ta pausa. Pilatos deu ordens aos soldados. Os sumos
sacerdotes e os conselheiros, que estavam sentados em bancos, de ambos
os lados da rua, à sombra das ár vores ou sob lonas estendidas, diante do
ter raço de Pilatos, mandarem os criados trazer alimentos e bebida. Vi
também Pilatos de novo per turbado pela superstição; retirou-se sozinho, para
oferecer incenso aos deuses e por cer tos sinais descobrir-Ihes a vontade.
Vi que depois da fIagelação a SS. Virgem e as amigas, tendo enxugado o
sangue de Jesus, se afastaram do fórum. Vi-as com os panos
ensangüentados, numa pequena casa encostada a um muro; não era longe do
fórum; não me lembro mais de quem era. Não me recordo de ter visto João
durante a flagelação.
Jesus foi coroado de espinhos e escar necido no pátio interior do cor po da
guarda, construído sobre os cárceres, ao lado do fórum. Esse pátio era
cercado de colunas e todas as entradas tinham sido aber tas. Havia ali cerca
de cinqüenta miseráveis patifes, sequazes dos soldados, ser vos dos
carcereiros, soldados e auxiliares dos carrascos, escravos e os criminosos
que flagelaram Nosso Senhor ; esses todos tomaram par te ativa nas
crueldades praticadas em Jesus. No começo o povo tentou entrar, mas pouco
depois cercaram mil soldados romanos o edifício. Per maneciam nas fileiras,
mas com as zombarias e risos provocavam ainda o cruel exibicionismo dos
car rascos para redobrarem as tor turas de Jesus, animando-os com as
risadas, como o aplauso anima os atores no palco.
Rolaram para o meio do pátio o pedestal de uma velha coluna, no qual havia
um buraco, que talvez tivesse ser vido para nele ajustar a coluna. Nesse
pedestal colocaram um escabelo redondo e baixo, que por detrás tinha uma
espécie de cabo, para o manejar ; por maldade cobriram o escabelo de
pedregulho agudo e cacos de louça.
Ar rancaram de novo toda a roupa do cor po ferido de Jesus e impuseram-Lhe
um manto de soldado, cur to, ver melho, velho e já roto, que nem lhe chegava
até os joelhos. Pendiam dele ainda alguns restos de bor las amarelas; jazia
num canto do quar to dos verdugos, que costumavam impô-lo aos que tinham
açoitado, seja para enxugar-lhes o sangue, seja para escar necê-los.
Ar rastaram a Jesus para a coluna e empur raram-na br utalmente, com o cor po
despido e ferido, sobre o escabelo cober to de pedras e cacos. Depois Lhe
puseram a coroa de espinhos na cabeça. Essa tinha dois palmos de altura,
era muito espessa e trançada com ar te; em cima tinha uma borda um pouco
saliente. Puseram-Lha em redor da fronte, como uma ligadura e ataram-na
atrás com muita força, de modo que for mavam uma coroa ou um chapéu. Era
ar tisticamente trançada de três varas de espinheiro, da grossura de um
dedo, que tinham crescido alto, através dos espessos arbustos. Os espinhos,
pela maior par te, foram propositalmente virados para dentro. Per tenciam a
três diferentes espécies de espinheiros, que tinham alguma semelhança com
a nossa cambroeira, o abrunheiro e espinheiro branco. Em cima tinham
acrescentado uma borda, trançada de um espinheiro semelhante à nossa
sarça silvestre e pela qual pegavam e puxavam brutalmente a coroa. Vi o
lugar onde os meninos foram buscar esses espinhos.
Puseram-Lhe também na mão um grosso caniço, com um tufo na ponta.
Fizeram tudo isso com solenidade der risória, como se O coroassem de fato
rei. Tiravam-Lhe o caniço da mão e batiam com tanta força a coroa, que os
olhos de Nosso Senhor se enchiam de sangue. Cur vavam os joelhos diante
dEle, mostravam-Lhe a língua, batiam e cuspiam-Lhe no rosto, gritando:
"Salve, rei dos judeus!" Depois, entre gargalhadas, fizeram-na cair no chão,
junto com o escabelo e tor naram a colocá-Lo sobre ele aos empur rões.
Não posso relatar todas as tor turas e ultrajes que os car rascos inventaram,
para escar necer o pobre Salvador. Ai! Jesus sofreu hor rível sede; pois em
conseqüência das feridas, causadas pela desumana flagelação, estava com
febre e tremia; a pele e os músculos dos lados estavam dilacerados o
deixavam entrever as costelas em vários lugares; a língua contraíra-se-Lhe
espasmodicamente; somente o sangue sagrado que lhe cor ria da fronte,
compadecia-se da boca ardente, que se abria ansiosa. Mas aqueles homens
hor ríveis tomaram-Lhe a boca divina por alvo de nojentos escar ros. Jesus foi
assim maltratado por cerca de meia hora e a tropa, cujas fileiras cercavam o
pretório, aplaudia com gritos e gargalhadas.

6. Ecce Homo

Reconduziram então Jesus ao palácio de Pilatos, a coroa de espinhos sobre a


cabeça, o caniço nas mãos amar radas, cober to do manto ver melho. Jesus
estava desfigurado, pelo sangue que Lhe enchia os olhos e Lhe escor ria na
boca e sobre a barba. O cor po, cober to de pisaduras e feridas, parecia-se-
Lhe com um pano ensopado de sangue. Andava cur vado e cambaleando; o
manto era tão cur to, que Jesus precisava cur var-se, para cobrir a nudez,
porque Lhe tinham ar rancado toda a roupa, no ato da coroação de espinhos.
Quando o pobre Jesus chegou ao primeiro degrau da escada, diante de
Pilatos, até esse homem cruel estremeceu de hor ror e compaixão. Apoiou-se
a um dos oficiais e como o povo e os sacerdotes ainda gritassem e
insultassem, exclamou: "Se o demônio dos judeus é tão cruel, então não deve
ser bom morar com ele no infer no." Quando Jesus foi puxado penosamente,
escada acima e conduzido ao fundo, Pilatos saiu para a sacada; foi dado um
toque de trombeta, para chamar a atenção do povo, a que Pilatos queria
falar. Disse, pois, aos príncipes dos sacerdotes e a todos os presentes:
"Escutai, vou mandá-Lo conduzir mais uma vez para diante de vós, para que
conheçais que não Lhe achei culpa alguma.”
Jesus foi então conduzido pelos soldados à sacada, ao lado de Pilatos, de
modo que todo o povo reunido no fórum podia vê-Lo. Era um aspecto ter rível,
pungente, que primeiro causou no povo hor ror e penoso silêncio. O Filho de
Deus ensangüentado dirigiu os olhos cheios de sangue, sob a coroa de
espinhos, para o povo e Pilatos, que, ao lado, indicando-O com a mão, gritou
aos judeus: "Eis aqui o Homem!”
Enquanto Jesus, com o cor po dilacerado, cober to do manto ver melho
der risório, abaixando a cabeça traspassada de espinhos e inundada de
sangue, segurando nas mãos atadas o cetro de caniço, cur vado para cobrir a
nudez com as mãos, aniquilado pela dor e tristeza, mas ainda respirando
infinito amor e mansidão, estava diante do palácio de Pilatos, como um
espectro sangrento, exposto aos gritos furiosos dos sacerdotes e do povo,
passaram pelo fórum grupos de forasteiros, homens e mulheres, com as
vestes ar regaçadas, em direção à piscina das Ovelhas, para ajudar a lavar os
cordeiros da Páscoa, cujos balidos tristes se misturavam com os clamores
sanguinários da multidão, como para dar testemunho em favor da Verdade,
que se calava. Somente o verdadeiro cordeiro pascal de Deus, o revelado,
mas não conhecido mistério desse santo dia, cumpriu a profecia e cur vou-se
em silêncio sobre o matadouro.
Os sumos sacerdotes e os membros do tribunal ficaram cheios de raiva pelo
aspecto de Jesus, espelho hor rível de sua consciência e gritaram: "Mor ra!
Crucificai-O!" Pilatos, porém, exclamou: "Ainda não vos basta? Ele foi tão
maltratado, que não terá mais desejo de ser rei." Eles, porém, se tor naram
ainda mais furiosos, gritando como dementes e todo o povo repetia: "Deve
mor rer. Crucificai-O!" Então mandou Pilatos dar outro toque de trombeta e
disse: "Pois tomai-O e crucificai-O vós, porque não Lhe acho culpa."
Responderam-lhe alguns dos príncipes dos sacerdotes: "Temos uma lei e
segundo essa lei Ele deve mor rer, porque declarou ser o Filho de Deus!"
Pilatos replicou: "Pois se tendes tais leis, segundo as quais este homem deve
mor rer, eu não queria ser judeu.”
Mas o dito dos judeus: "Ele se declarou Filho de Deus" inquietou Pilatos e
suscitou-lhe de novo o pavor supersticioso; mandou, pois, conduzir Jesus a
um lugar separado, onde Lhe perguntou: "Donde és?" Jesus, porém, não lhe
respondeu. Disse-lhe então Pilatos: "Não me respondes? Por ventura não
sabes que tenho o poder de crucificar-Te ou de soltar-Te?" E Jesus
respondeu: "Não terias poder sobre mim, se não te fosse dado do Céu; por
isso comete pecado mais grave aquele que me entregou em tuas mãos.”
Cláudia Prócula, que estava muito angustiada pela hesitação do marido,
mandou novamente um mensageiro a Pilatos mostrar-lhe o penhor e lembrar-
lhe a promessa; ele, porém, lhe mandou uma resposta muito confusa e
supersticiosa, da qual me lembro apenas que se referia aos deuses.
Quando os príncipes dos sacerdotes e os fariseus tiveram conhecimento da
inter venção da mulher de Pilatos em favor de Jesus, mandaram espalhar
entre o povo: "Os par tidários de Jesus subor naram a mulher de Pilatos; se
Ele ficar livre, unir-se-á aos romanos e nós todos pereceremos.”
Pilatos, na sua indecisão, estava como embriagado; a razão vacilavalhe de
um lado para outro. Disse uma vez aos inimigos de Jesus que não Lhe achava
culpa. Mas vendo que esses, com mais vigor ainda, exigiram a mor te de
Jesus e inquietado pelos seus próprios pensamentos confusos, como pelos
sonhos da mulher e as palavras significativas de Jesus, queria ouvir mais
uma resposta do Senhor, que o pudesse tirar dessa situação penosa. Voltou
por tanto à sala do tribunal, onde estava Jesus e ficou a sós com Ele. Com um
olhar perscrutador e quase medroso, fitou o Salvador desfigurado e
ensangüentado, para quem não se podia olhar sem hor ror e pensou consigo:
"Será possível que seja um Deus?" e de repente se Lhe dirigiu com energia,
conjurando-O a dizer-lhe se era um deus e não um homem, se era rei, até
onde se Lhe estendia o reino, de que espécie era a sua divindade. Se lho
dissesse, dar-Lhe-ia a liberdade. - O que Jesus respondeu, posso dizê-Ia só
pelo sentido, não com as mesmas palavras. O Senhor falou-lhe com ter rível
severidade. Fez-lhe ver em que sentido era rei e qual o seu reino; mostrou-lhe
o que era a verdade, pois disse-lhe a verdade. Nosso Senhor revelou-lhe, com
toda a franqueza, os abomináveis crimes que Pilatos ocultava na consciên-
cia; predisse-lhe o futuro, a miséria no exílio, o fim hor roroso e que Ele um
dia viriajulgá-Io com toda a justiça.
Pilatos, meio assustado, meio ir ritado pelas palavras de Jesus, saiu para a
sacada e exclamou mais uma vez que queria soltar Jesus. Então gritaram:
"Se o soltares, não és amigo de César ; pois quem se declara rei, é inimigo de
César." Outros gritaram que o acusariam perante o imperador por per turbar-
Ihes a festa; que devia ter minar a causa, porque eram obrigados, sob graves
penas, a estar no Templo às dez horas. - O grito: "Mor ra! Crucificai-O!"
levantou-se novamente de todos os lados; subiram até sobre os tetos planos
das casas em redor do fórum e gritavam dali.
Então viu Pilatos que contra essa fúria não conseguiria nada; os gritos e o
tumulto tinham algo de ter rível e toda a multidão diante do palácio estava
em tal estado de agitação, que era para recear uma rebe lião. Pilatos
mandou trazer água; o criado der ramou-lhe água da bacia sobre as mãos, à
vista de todo o povo e Pilatos gritou do pretório à multidão: "Sou inocente do
sangue deste justo; vós tendes que responder pela sua mor te." Então se
levantou um grito hor rível, unânime, do povo reunido, no meio do qual havia
gente de todos os lugares da' Palestina: "Que o seu sangue caia sobre nós e
nossos, filhos!”

7. Reflexão sobre estas visões

Todas as vezes que, nas meditações da dolorosa Paixão de Jesus Cristo,


ouço esse grito espantoso dos judeus: "Que o seu sangue caia sobre nós e
nossos filhos", o efeito dessa solene maldição me é revelado e tor nado
sensível, em quadros maravilhosos e ter ríveis. Vejo acima do povo, que grita,
um céu escuro, cober to de nuvens cor de sangue, das quais saem flagelos e
espadas de fogo. Vejo como se os raios dessa maldição atravessassem todos
até os ossos e neles também os filhos. Vejo o povo como envolvido em trevas
e o grito sair-Ihes das bocas como um fogo tenebroso e maligno, unir-se por
cima das cabeças e cair de novo sobre eles, entrando mais profundo em
alguns, pairando sobre outros. Esses últimos eram aqueles que depois da
mor te de Jesus se conver teram. O número destes não era, porém, pequeno;
pois vejo Jesus e Maria, durante todos esses ter ríveis sofrimentos rezarem
sempre pela salvação dos car rascos e todos esses hor ríveis tor mentos não
Ihes causaram nenhum ressentimento. Durante toda a Paixão, no meio das
mais cruéis tor turas dos insultos mais insolentes e ignominiosos, no meio da
fúria sanguinária dos inimigos e dos ser vos destes, à vista da ingratidão e do
abandono de muitos fiéis, que Lhe causaram o mais amargo sofrimento físico
e moral, vejo Jesus sempre rezando, amando os inimigos, orando pela sua
conversão, até o último suspiro; mas vejo que por essa paciência e esse
amor ainda mais se inflama a fúria e raiva dos cruéis inimigos; enfurecem-se
porque toda a sua brutalidade e crueldade não conseguem ar rancar-Lhe da
boca uma palavra de protesto ou de queixa, que possa desculpar-Ihes a
maldade. Hoje, que na festa da Páscoa matam o cordeiro pascal, não sabem
que matam o Cordeiro de Deus.
Quando, durante tais visões, dirijo os meus pensamentos para o coração do
povo e dos juízes e para as santas almas de Jesus e Maria, tudo que neles se
passa me é mostrado em figuras, que as pessoas naquele tempo não viram
mas sentiram o que representavam. Vejo então inúmeras figuras diabólicas,
cada uma diferente, confor me o vício que representa, em ter rível ação entre
a multidão; vejo-as cor rer, instigar a raiva, causar confusão dos espíritos,
entrar na boca das pessoas; vejoas sair da multidão, reunir-se em grande
número e atiçar a raiva do povo contra Jesus, mas à vista do amor e da
paciência do Mestre tremem e desaparecem de novo entre o povo. Toda essa
atividade tem algo de desesperado, confuso, contraditório; é um movimento
confuso e insensato. Acima e em redor de Jesus e Maria e do pequeno
número de santos vejo também se moverem muitos Anjos, cujas figuras e
vestimentas variam, confor me as respectivas funções e ação; representam
consolação, oração, unção, confor to por comida e bebida e outras obras de
misericórdia.
De modo semelhante vejo freqüentemente vozes consoladoras ou
ameaçadoras saírem, como palavras de diferentes cores e luzes, da boca de
tais aparições; e se são mensagens, vejo-lhas nas mãos, em for ma de tiras
escritas. Outras vezes, quando preciso ser instruída a esse respeito, vejo os
movimentos d'alma e as paixões dos corações, o sofrimento e o amor, enfim,
tudo que é sentimento; vejo-os passar através do peito e de todo o cor po dos
homens, em movimentos de diferentes cores, em variações de luz e sombra,
de diversas for mas, direções e mudanças de for ma e cor, de lentidão e
rapidez; assim compreendo tudo, mas é impossível exprimí-Io em palavras;
pois é um número infinito de coisas e ao mesmo tempo me sinto tão abatida
pela dor e tristeza por meus pecados e os de todo o mundo e tão dilacerada
pela dolorosa Paixão de Jesus, que até não compreendo como ainda possa
juntar o pouco que estou contando. Muitas coisas, especialmente aparições
e ações de demônios e Anjos, contadas por outras pessoas, que tiveram
visões da Paixão de Nosso Senhor, são fragmentos de tais intuições de
movimentos interiores, invisíveis no momento em que se realizaram outrora,
as quais variam, segundo o estado d'alma das pessoas videntes e são
entremeadas nas nar rações. Por isso há tantas contradições, porque
esquecem algumas coisas, saltam outras e só uma par te é que contam. Tudo
que há de mau no mundo, contribuiu para ator mentar Jesus. Tudo que é amor,
n’Ele sofreu. Como Cordeiro de Deus, tomou sobre si os pecados do mundo:
Que infinidade de coisas, tanto abomináveis como também santas, se podem
ver e contar. Se, por tanto, as visões e contemplações de muitas pessoas
piedosas não concordam em tudo, é porque não tiveram o mesmo grau de
graça para ver, contar e fazer-se compreender.

8. Jesus condenado à mor te na Cruz

Pilatos, que não procurava a verdade, mas apenas uma saída para a
dificuldade, estava mais indeciso que nunca. A consciência dizia-lhe: "Jesus
é inocente." A esposa mandara dizer-lhe: "Jesus é santo." A superstição
dizia-lhe: "É um inimigo de teus deuses." A covardia dizialhe: "É um deus e
vingar-se-á." Inter roga mais uma vez a Jesus, em tom inquieto e solene e
Jesus lhe fala dos seus mais ocultos crimes, prediz . lhe um futuro e uma
mor te miseráveis e que um dia virá, sentado sobre as nuvens do céu,
pronunciar sobre ele um juízo justo, o que deita na falsa balança da justiça
de Pilatos um novo peso contra a intenção de soltar Jesus. Ficou furioso por
se ver em toda a nudez de sua ignomínia interior diante de Jesus, a quem não
podia compreender ; sentiu-se indignado daquele que mandara açoitar e que
podia mandar crucificar, lhe predizer um fim miserável; dessa boca, que
nunca fora acusada de mentira, que não proferira uma só palavra em sua
própria defesa, ousar, em ocasião extremamente ar riscada, citá-Io perante
seu justo tribunal, naquele dia futuro. Tudo isso lhe ofendeu profundamente o
orgulho; mas como não havia sentimento dominante nesse homem miserável
e indeciso, ficou cheio de medo diante da ameaça do Senhor e fez a última
tentativa de liber tar Jesus. Ouvindo, porém, a ameaça dos judeus de acusá-
Io perante o imperador, se soltasse Jesus, foi dominado por outro pavor
covarde: o medo do imperador ter restre venceu o receio do rei cujo reino não
era deste inundo. O celerado covarde e ir resoluto pensava consigo: "Se Ele
mor rer, mor rerá também com Ele o que sabe de mim e o que me predisse." À
ameaça dos judeus de acusá-Io perante o imperador, decidiu-se Pilatos a
fazer-Ihes a vontade, contrariamente à promessa que fizera à esposa,
contrariamente à justiça e à própria convicção. Por medo do imperador,
entregou aos judeus o sangue de Jesus, mas para a própria consciência não
tinha senão água, que fez der ramar sobre as mãos, exclamando: "Sou
inocente do sangue deste Justo, respondereis por Ele." - Não, Pilatos, tu és
responsável, pois que O dizes Justo e Lhe der ramas o sangue; és o juiz
injusto, sem consciência. O mesmo sangue de que queria lavar as mãos e de
que não podia lavar a alma, os sanguinários judeus chamaram-na sobre si e
seus filhos, amaldiçoando-se a si mesmos. O sangue de Jesus, que atrai a
misericórdia de Deus sobre nós, fizeram-na chamar a vingança sobre eles,
gritando: "Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos.”
Ouvindo esses gritos sanguinários, Pilatos mandou preparar tudo para
pronunciar a sentença. Deu ordem para trazer outras vestes solenes e vestiu-
as; puseram-lhe na cabeça uma espécie de coroa ou diadema, no qual havia
uma pedra preciosa ou outra coisa brilhante; vestiram-no também de outro
manto e diante dele levavam um bastão. Foi acompanhado de muitos
soldados; oficiais do tribunal iam na frente, transportando uma coisa e
seguiam-se escreventes, com rolos de papel e tabuinhas, precedidos por um
homem que tocava trombeta. Assim saiu do palácio para o fórum, onde, em
frente ao lugar da flagelação, havia um belo assento elevado, construído de
pedras, para pronunciar as sentenças; só depois de pronunciadas desse lugar
tinham as sentenças vigor legal. Esse tribunal era chamado Gabata e era um
estrado circular, para o qual subiam escadas de vários lados; em cima havia
um assento para Pilatos e atrás dele um banco, para outros membros do
tribunal. Muitos soldados cercavam esse tribunal e em par te ficavam nos de-
graus das escadas. Muitos dos fariseus já tinham ido do palácio de Pilatos ao
Templo. Somente Anás e Caifás, com cerca de vinte e oito outros, se
dirigiram ao tribunal no fór um, logo que Pilatos começou a vestir as
vestimentas oficiais. Os dois ladrões já haviam sido conduzidos ao tribunal,
quando Pilatos apresentou Jesus ao povo, dizendo: Ecce homo! O assento de
Pilatos estava cober to de uma manta ver melha e sobre essa havia uma
almofada azul, com galões amarelos.
Jesus, ainda vestido do rubro manto der risório, com a coroa de espinhos na
cabeça, as mãos atadas, foi então conduzido pelos esbir ros e soldados que O
cercavam, entre as vaias do povo, para o tribunal, onde O colocaram entre os
dois ladrões. Pilatos, sentado no tribunal, disse mais uma vez, em voz alta,
aos inimigos de Jesus: "Eis aí o vosso rei!" Eles, porém, gritaram: "Fora!
Mor ra! Crucifica-O!" - Pilatos disse: "Devo então crucificar vosso rei?" -Mas
os príncipes dos sacerdotes gritaram: " Não temos outro rei senão o César."
Então Pilatos não disse mais palavra em favor de Jesus, nem mais Lhe falou,
mas começou a pronunciar a sentença. Os dois ladrões tinham sido
condenados, já havia mais tempo, à mor te na cruz, mas a execução fora
adiada para esse dia, a pedido dos Sumos Sacerdotes, porque queriam
ultrajar Jesus, crucificando-O entre assassinos ordinários. As cruzes dos
ladrões já estavam ao lado deles, no chão, trazidas pelos ajudantes dos
car rascos. A Cruz de Nosso Senhor ainda não estava lá, provavelmente
porque a sentença ainda não fora pronunciada.
A Santíssima Virgem, que se tinha afastado depois da apresentação de Jesus
por Pilatos e da gritaria sanguinária dos judeus, abriu caminho, em
companhia de algumas mulheres, por entre a multidão e aproximouse do
tribunal, para ouvir a sentença de mor te, proferida contra seu Filho e Deus;
Jesus estava nos degraus da escada, diante de Pilatos, rodeado de soldados
e os inimigos lançavam-Lhe olhares cheios de ódio e escár nio. Um toque de
trombeta ordenou silêncio e Pilatos pronunciou, com a raiva de um covarde,
a sentença de mor te contra o Salvador.
Senti-me sufocada de indignação, diante de tanta baixeza e duplicidade; o
aspecto desse celerado ar rogante, do triunfo e ódio sanguinário dos
príncipes dos sacerdotes, satisfeitos após tantos esforços fatigantes, o
estado lastimoso e os sofrimentos do pacientíssimo Salvador, a indizível
angústia e os tor mentos da Mãe Santíssima e das santas mulheres, a furiosa
ansiedade com que os judeus esperavam a mor te da presa, o frio orgulho dos
soldados e minha visão das hor rendas figuras diabólicas entre a multidão do
povo, tudo isso me tinha aniquilado completamente. Ai! Percebi que eu devia
estar no lugar de Jesus, meu querido esposo; então a sentença seria justa.
Eu estava tão dilacerada pela dor, que não me lembro mais da ordem exata
das coisas. Vou contar mais ou menos o que me lembro.
Pilatos começou por um longo preâmbulo, em que se referiu com os mais
pomposos títulos ao imperador Cláudio Tibério. Depois expôs a acusação
contra Jesus, que fora condenado à mor te pelos Sumos Sacerdotes e cuja
crucificação tinha sido unanimemente exigida pelo povo, por ser um rebelde,
per turbador da paz pública, violador da lei judaica, por se fazer chamar Filho
de Deus e rei dos judeus. Quando, porém, acrescentou ainda que achava essa
sentença justa, - ele que por várias horas continuara a declarar Jesus
inocente, quase não pude conter-me mais, à vista desse homem infame e
mentiroso. Ele disse ainda: "Por isso condeno Jesus Nazareno, rei dos
judeus, a ser pregado na Cruz." Depois deu ordem aos car rascos que fossem
buscar a cruz. Também me lembro, mas não tenho plena cer teza, que ele
quebrou uma vara comprida, cuja metade era visível e lançou os pedaços aos
pés de Jesus.
A essas palavras a Mãe de Jesus caiu por ter ra sem sentidos e como mor ta;
agora então estava decidida, era cer ta a mor te de seu santíssimo e
amantíssimo Filho e Salvador, mor te hor rível, dolorosa, ignominiosa. As
companheiras e João levaram-na para fora da multidão, para que aqueles
homens cegos de coração não pecassem, insultando a dolorosa Mãe do
Salvador ; mas Maria não podia deixar de seguir o caminho da Paixão de
Jesus; as companheiras viram-se obrigadas a levá-Ia outra vez de lugar em
lugar ; pois o culto misterioso de unir-se-Lhe nos sofrimentos impelia a
Santíssima Mãe à oferecer o sacrifício de suas lágrimas em todos os lugares
onde o Redentor, seu Filho, sofrera pelos pecados dos homens, seus ir mãos;
e assim a Mãe do Senhor consagrou com as lágrimas todos esses santos
lugares e tomou posse deles para a futura veneração pela Igreja, Mãe de
todos nós, como Jacó erigiu uma pedra e, ungindo-a com óleo, consagrou-a
em memória da promissão, que ali recebera.
A sentença foi escrita, mesmo no tribunal, por Pilatos e copiada mais de três
vezes, por aqueles que lhe estavam atrás. Enviaram vários mensageiros;
porque alguns dos documentos precisavam ser assinados por outras pessoas;
não me lembro se esses documentos faziam par te da sentença ou se eram
outras ordens. Contudo foram também alguns desses documentos levados a
lugares distantes. Havia, porém, ainda outra sentença, escrita por Pilatos
mesmo e que lhe provava claramente a duplicidade; pois tinha teor
totalmente diferente da sentença que pro nunciara; vi como a escreveu
contra a vontade, com o espírito ator mentado e um anjo irado a dirigir-lhe a
mão. Esse documento, de cujo conteú do tenho apenas uma lembrança vaga,
dizia mais ou menos o seguinte:
"Compelido pelos Sumos Sacerdotes e o Sinédrio e ameaçado por uma
iminente insur reição do povo, que acusavam Jesus de Nazaré de agitação
contra a autoridade, de blasfêmia e de desprezo da lei judaica, exigindo-Lhe
a mor te, entreguei-Ihes o mesmo Jesus, para ser crucificado, não tanto
movido pelas acusações, que em verdade não achei fundadas, mas para não
ser acusado perante o imperador, de favorecer a insur reição e negar justiça
aos judeus. Entreguei-O porque exigiram com violência a mor te, como
transgressor da lei; e com Ele dois ladrões, já antes condenados, cuja
execução fora adiada por maquinações dos judeus, porque queriam que
fossem executados junto com Jesus.”
Nesse documento, pois, escreveu o malvado um relatório totalmente
diferente. - Depois escreveu ainda a inscrição da cruz em três linhas, com
ver niz, sobre uma tabuinha de cor escura. O documento em que Pilatos
desculpava a sentença, foi copiado várias vezes e enviado a diversos
lugares. Os Sumos Sacerdotes discutiram ainda com Pilatos no tribunal; não
estavam contentes com a sentença, queixando-se sobretudo porque tinha
escrito que eles haviam exigido o adiamento da execução dos ladrões, para
que fossem executados com Jesus; contestaram também o título de Jesus:
queriam que escrevesse "que se declarou rei dos judeus" e não simplesmente
"rei dos judeus". Mas Pilatos perdeu a paciência, tratou-os com ar rogância,
gritando furioso: "O que escrevi, fica escrito." Ainda insistiram, dizendo que
a Cruz de Jesus não devia ficar mais alta que as dos ladrões; era preciso,
porém, fazê-Ia mais alta, porque, por um er ro dos operários, ficara mais
cur ta a par te acima da cabeça, não cabendo o título escrito por Pilatos; esse
protesto contra o alongamento da cruz era apenas um subterfúgio, para
evitar a inscrição, que Ihes parecia injuriosa. Mas Pilatos não cedeu e assim
foram obrigados a alongar a cruz, adaptando-lhe uma peça de madeira, à qual
se pudesse fixar o título. Assim concor reram várias circunstâncias para dar
à cruz aquela for ma significativa, que sempre lhe tenho visto, isto é, com os
braços um pouco elevados, como os galhos de uma ár vore, os quais, ao sair
do tronco, se estendem para cima; tinha a for ma da letra Y, com a linha do
centro alongada por entre os braços. Os dois braços eram mais finos do que
o tronco e estavam embutidos nesse, sendo os encaixes reforçados de ambos
os lados, por uma cunha fincada por baixo. Como, porém, o tronco acima da
cabeça, por um er ro, tivesse saído cur to de mais para se fixar bem visível a
inscrição de Pilatos, foi preciso ajustar mais uma peça ao tronco. No lugar
dos pés pregaram um pedaço de madeira, para os sustentar.
Enquanto Pilatos pronunciava a sentença injusta, vi Cláudia Prócula, sua
mulher, remeter-lhe o penhor e separar-se dele. Na mesma noite fugiu
ocultamente do palácio e foi para junto dos amigos de Jesus, que a levaram
a um esconderijo, num subter râneo da casa de Lázaro, em Jer usalém. Vi
também um amigo de Jesus gravar, numa pedra esverdeada atrás do tribunal
do Gábata, duas linhas, que diziam respeito à sentença injusta de Pilatos e à
separação da mulher do Procurador ; ainda me lembro das palavras "judex
injustus" e do nome "Cláudia Prócula".
Mas não me recordo se foi no mesmo dia ou alguns dias mais tarde; lembro-
me apenas que nesse lugar do fórum estava um numeroso grupo de homens
conversando, enquanto o outro homem, encober to por eles, gravou aquelas
linhas, sem ser visto. Vi que aquela pedra ainda está, desconhecida embora,
em Jerusalém, nos alicerces duma casa ou duma Igreja, situada onde
antigamente era o Gábata. Cláudia Prócula tor nouse cristã e depois de se ter
encontrado com S. Paulo, tor nou-se-Ihe amiga dedicada.
Pronunciada a sentença, enquanto Pilatos escrevia e discutia com os Sumos
Sacerdotes, era Jesus entregue aos car rascos; antes houvera ainda algum
respeito ao tribunal, mas depois estava o Divino Mestre inteiramente à
mercê desses homens abomináveis. Trouxeram-Lhe a roupa, que Lhe tinham
tirado para escar necê-Lo em casa de Caifás; fora guardada e parece-me que
também fora lavada por gente compassiva, pois estava limpa. Creio também
que era costume entre os romanos levar os condenados à execução, vestidos
de sua própria roupa. Despiram de novo Jesus: desataram-Lhe as mãos, para
poder revestí-Lo, ar rancaram-Lhe o manto ver melho do cor po chagado,
abrindo-Lhe assim muitas feridas. Ele mesmo vestiu, com mãos trêmulas, a
faixa em tor no da cintura e os car rascos lançaramLhe o escapulário sobre os
ombros. Como, porém, a coroa de espinhos fosse muito larga para deixar
passar-Lhe pela cabeça a túnica sem costura, que Lhe fizera a Virgem
Santíssima, ar rancaram-Lhe a coroa e todas as feridas começaram a sangrar,
com indizíveis dores. Depois de Lhe porem a túnica sobre as feridas do
cor po, vestiram-na da veste larga de Lã branca, que cingiram com a faixa
larga e puseram-Lhe finalmente o manto. Feito isso, amar raram-na
novamente com o cinturão, munido de pontas de fer ro, no qual estavam
presas as cordas para conduzí-Lo. Durante todo esse tempo batiam e em-
pur ravam-nO, tratando-O com atroz crueldade.
Os dois ladrões estavam um ao lado direito, outro ao lado esquerdo de Jesus;
tinham as mãos amar radas e pendia-Ihes, como a Jesus diante do tribunal,
uma cadeia de fer ro do pescoço. Vestiam apenas um pano na cintura e um
gibão semelhante a um escapulário, de fazenda ordinária, sem mangas e
aber to nos lados; na cabeça tinham bonés, tecidos de palha, que se
pareciam com bar retinhas estofadas de crianças. A pele dos ladrões era de
um pardo sujo, cober ta de cicatrizes, causadas pela flagelação passada.
Aquele que se conver teu depois, já estava calmo e pensativo; o outro, porém,
ir ritado e imper tinente, unindo-se aos car rascos para insultar e amaldiçoar
Jesus, que os olhava a ambos com olhos cheios de caridade e desejo de
salvá-Ios, oferecendo também por eles todos os seus sofrimentos.
Os car rascos estavam ocupados em juntar todas as fer ramentas;
preparavam-se para a triste e ter rível marcha, em que o nosso amado e
doloroso Salvador quis car regar o peso dos pecados de nós todos, homens
ingratos e para os expiar, ia der ramar o santíssimo Sangue do cálice de seu
Cor po, transpassado pelos homens mais abomináveis.
Anás e Caifás ter minaram afinal a discussão acalorada com Pilatos;
receberam algumas tiras compridas ou rolos de pergaminho, com cópias dos
documentos e dirigiram-se apressadamente ao Templo; e só por pouco não
chegaram tarde.
Então se separaram os Sumos Sacerdotes do verdadeiro Cordeiro pascal;
cor reram ao Templo de pedra, para imolar e comer o cordeiro simbólico e a
realização do símbolo, o verdadeiro Cordeiro de Deus, fizeram-na conduzir
por vis car rascos ao altar da cruz. Separaram-se ali os dois caminhos, dos
quais um conduzia ao símbolo e outro à realização do Sacrifício;
abandonaram o Cordeiro de Deus, a pura Vítima expiatória, que tentaram
macular exterior mente e insultar com todo o hor ror da per versidade,
entregaram-na a car rascos ímpios e desumanos e cor reram ao Templo de
pedra, para imolar cordeiros lavados, purificados e bentos. Haviam tomado
todo o cuidado para não se sujarem exte rior mente e tinham as almas todas
sujas, transbordantes de ódio, inveja e ultrajes. - "Que o seu sangue caia
sobre nós e nossos filhos", tinham exclamado e com essas palavras
cumpriram a cerimônia, impuseram a mão de sacrificador sobre a cabeça da
vítima. Separaram-se ali os dois caminhos, que conduziam ao altar da lei e
ao altar da graça.

7
Jesus leva, a Cruz ao Gólgota

1. Jesus toma a cruz aos ombros


2. A primeira queda de Jesus sob a cruz
3. O encontro de Jesus com a Santíssima Mãe. Segunda queda de Jesus
debaixo da cruz
4. Terceira queda de Jesus sob a cruz. Simão de Cirene
5. Verônica e o Sudário
6. A quar ta e quinta queda de Jesus sob a cruz. As compassivas filhas de
Jerusalém
7. Jesus no Monte Gólgota. Sexta e sétima queda de Jesus e
seu encarceramento
8. Maria e as amigas vão ao Calvário

Jesus leva, a Cruz ao Gólgota

1. Jesus toma a cruz aos ombros

Quando Pilatos desceu do tribunal do Gábata, seguiram-no uma par te dos


soldados e for maram diante do palácio, para acompanhar o séquito. Um
pequeno destacamento ficou com os condenados. Vinte e oito fariseus
ar mados, entre os quais os seis inimigos furiosos de Jesus que estavam
presentes quando foi preso no hor to das Oliveiras, vieram a cavalo ao fórum,
para acompanhar o séquito. Os car rascos conduziram Jesus ao meio do
fórum; alguns escravos entraram pela por ta ocidental, trazendo o pãtíbulo da
cruz e jogaram-no r uidosamente aos pés do Salvador. Os dois braços da cruz,
mais finos, estavam amar rados com cordas ao tronco largo e pesado; as
cunhas, o cepo para sustentar os pés e a peça ajustada ao tronco para a
inscrição, junto com outras fer ramentas, eram car regados por alguns
meninos a ser viço dos car rascos.
Quando jogaram a cruz no chão, aos pés de Jesus, Ele se ajoelhou junto à
mesma e, abraçando-a, beijou-a três vezes, dirigindo ao Pai celestial, em voz
baixa, uma oração comovente de ação de graças pela redenção do gênero
humano, a qual ia realizar. Como os sacerdotes, entre os pagãos, abraçam
um altar novo, assim abraçou Jesus a cruz, o eter no altar do sacrifício
cruento de expiação. Os car rascos, porém, com um ar ranco nas cordas,
fizeram Jesus ficar ereto, de joelhos, obrigandoO a car regar penosamente o
pesado madeiro ao ombro direito e com o braço direito segurá-Io, com pouco
e cruel auxílio dos car rascos. Vi anjos ajudando-O invisivelmente, pois
sozinho não teria conseguido suspendê-Io; ajoelhava-se, cur vado sob o
pesado fardo.
Enquanto Jesus estava rezando, outros car rascos puseram sobre os
pescoços dos ladrões os madeiros transversais das respectivas cruzes,
amar rando-Ihes os braços erguidos de ambos os lados. Essas travessas não
eram inteiramente retas, mas um pouco cur vas e na hora da crucifixão eram
ajustadas na extremidade superior dos troncos, que eram transpor tados
atrás deles por escravos, junto com outros utensílios. Ressoou um toque de
trombeta da cavalaria de Pilatos e um dos fariseus a cavalo aproximou-se de
Jesus, que estava de joelhos, sob o fardo e disse-Lhe: "Acabou agora o
tempo dos belos discursos"; e aos car rascos: "Apressai-vos, para que
fiquemos livres d’Ele. Vamos avante!" Fizeram-nO levantar-se então aos
ar rancos e caiu-Lhe assim sobre o ombro todo o peso da cruz, que nós
devemos também car regar para seguíLo, segundo as suas santas palavras,
que são a verdade eter na. Então começou a marcha triunfal do Rei dos reis,
tão ignominiosa na ter ra, tão gloriosa no Céu.
Tinham atado duas cordas à extremidade posterior da cruz e dois car rascos
levantaram-na por meio delas, de modo que ficava suspensa e não se
ar rastava pelo chão. Um pouco afastados de Jesus seguiam quatro
car rascos, segurando as quatro cordas que saiam do cinturão novo, com que
O tinham cingido. O manto, ar regaçado, fora-Lhe atado em redor do peito.
Jesus, car regando ao ombro os madeiros da cruz, ligados num feixe,
lembrava-me vivamente Isaac, levando a lenha para a sua própria imolação
ao monte Mória.
O trombeteiro de Pilatos deu então o sinal de par tir, porque Pilatos também
queria sair com um destacamento de soldados, para impedir qualquer
movimento revoltoso na cidade. Estava a cavalo, vestido da ar madura e
rodeado de oficiais e de um destacamento de cavalaria; seguia depois um
batalhão de infantaria, de cerca de 300 soldados, todos oriundos da fronteira
da Itália e Suíça.
Em frente do cor tejo em que ia Jesus, seguia um cor neteiro, que tocava nas
esquinas das r uas, proclamando a sentença e a execução. Alguns passos
atrás, marchava um gr upo de meninos e homens das camadas mais baixas do
povo, transpor tando bebidas, cordas, pregos, cunhas e cestos, com diversas
fer ramentas; escravos mais robustos car regavam as estacas, escadas e os
troncos das cruzes dos ladrões. As escadas constavam apenas de um pau
comprido, com buracos, nos quais fincavam cavilhas. Seguiam-se depois
alguns fariseus a cavalo e atrás deles um rapazinho, segurando sobre os
ombros, suspensa numa vara, a coroa de espinhos, que não puseram na
cabeça de Jesus, porque parecia impedí-Lo de car regar a cruz. Esse
rapazinho não era muito ruim.
Seguia então Nosso Senhor e Salvador, cur vado sob o pesado fardo da cruz,
cambaleando sobre os pés descalços e feridos, dilacerado e contundido pela
flagelação e as outras brutalidades, exausto de forças, por estar sem comer,
sem beber, nem dor mir desde a Ceia, na véspera, enfraquecido pela perda de
sangue, pela febre e sede, ator mentado por indizíveis angústias e
sofrimentos da alma. Com a mão segurava o pesado lenho sobre o ombro
direito; a esquerda procurava penosamente levantar a larga e longa veste,
para desembaraçar os passos, já pouco seguros. Tinha as mãos inchadas e
feridas pelas cordas, com que haviam estado antes for temente amar radas. O
rosto estava cober to de pisaduras e sangue; cabelo e barba em desalinho e
colados pelo sangue; o pesado fardo e o cinturão aper tavam-Lhe a roupa
pesada de lã de encontro ao cor po ferido e a lã pegava-se-Lhe às feridas
reaber tas. Em redor só havia ódio e insultos. Mas também nessa imensa
miséria e em todos esses mar tírios se manifestava o amor do Divino Már tir : a
boca movia-se-Lhe em oração e o olhar suplicante e humilde prometia
perdão. Os dois car rascos que suspendiam a cruz, pelas cordas fixadas na
extremidade posterior, aumentavam ainda o mar tírio de Jesus, deslocando o
pesado fardo, que alter nadamente levantavam e deixavam cair.
Em ambos os lados do cor tejo marchavam vários soldados, ar mados de
lanças. Depois de Jesus, vinham os dois ladrões, cada um conduzido por dois
car rascos, que Ihes seguravam as cordas, presas ao cinturão; transpor tavam
sobre a nuca os madeiros transversais das respectivas cruzes, separados do
tronco; tinham os braços amar rados às extremidades dos madeiros. Andavam
meio embriagados por uma bebida que Ihes tinham dado. Contudo o bom
ladrão estava muito calmo; o mau, porém, imper tinente, praguejava furioso.
Os car rascos eram homens baixos, mas robustos, de pele morena, cabelo
preto, crespo e eriçado; tinham a barba rala, aqui e acolá uns tufinhos de
pelos. Não tinham fisionomia judaica; per tenciam a uma tribo de escravos do
Egito, que trabalhavam na constr ução de canais; vestiam somente tanga e
um escapulário de couro, sem mangas. Eram verdadeiros brutos. Atrás dos
ladrões vinham a metade dos fariseus, fechando o cor tejo. Esses cavaleiros
cavalgavam durante todo o caminho, separados, ao longo do séquito,
apressando a marcha ou conser vando a ordem. Entre a gentalha que ia na
frente do cor tejo, transpor tando as fer ramentas e outros objetos, achavam-
se também alguns meninos per versos, filhos de judeus, que se lhe tinham
juntado voluntariamente.
Depois de um considerável espaço seguia o séquito de Pilatos; na frente um
trombeteiro a cavalo, atrás dele cavalgava Pilatos, vestido da ar madura de
guer ra, entre os oficiais e cercado de um grupo de cavaleiros; em seguida
marchavam os trezentos soldados de infantaria. O séquito atravessou o
fórum, mas entrou depois numa rua larga.
O cor tejo que conduzia Jesus, passou por uma rua muito estreita, pelos
fundos das casas, para deixar livre o caminho para o povo, que se dirigia ao
Templo, como também para não pôr obstáculos ao séquito de Pilatos.
A maior par te da multidão já se pusera a caminho, logo depois de
pronunciada a sentença; os demais judeus dirigiram-se às respectivas casas
ou ao Templo; pois haviam perdido muito tempo durante a manhã e
apressavam-se em continuar os preparativos para a imolação do cordeiro
pascal. Contudo era ainda muito numerosa a multidão, composta de gente de
todas as classes: forasteiros, escravos, operários, meninos, mulheres e a
ralé da cidade; cor riam pelas r uas laterais e por atalhos para a frente, para
ver mais uma ou outra vez o triste séquito. O destacamento de soldados
romanos que seguia, impedia o povo de juntar-se atrás do séquito, assim era
preciso cor rer sempre para a frente, pelas ruas laterais. A maior par te da
multidão dirigiu-se diretamente ao Gólgota.
A rua estreita pela qual Jesus foi conduzido primeiro, tinha apenas a largura
de alguns passos, e passava pelos fundos das casas, onde havia muita
imundície. Jesus teve que sofrer muito ali; os carrascos andavam mais per to
dEle; das janelas e dos buracos dos muros O vaiava a gentalha; escravos que
lá trabalhavam, atiravam-Lhe lama e restos imundos da cozinha; patifes
per versos der ramavam-Lhe em cima água suja e fétida dos esgotos; até
crianças, instigadas pelos velhos, juntavam pedras nas roupinhas e saindo
das casas e atravessando o séquito a cor rer, jogavam-nas no caminho, aos
pés de Jesus. Assim foi Jesus tratado pelas crianças, que tanto amava,
abençoava e chamava bem-aventuradas.
2. A primeira queda de Jesus sob a cruz

A rua estreita dirige-se no fim para a esquerda, tor na-se mais larga e começa
a subir. Passa ali um aqueduto subter râneo, que vem do Monte Sião; creio
que passa ao longo do fór um, onde há também, sob a ter ra, canais
abobadados e desemboca na piscina das ovelhas, per to da por ta das ovelhas.
Eu ouvia o mur múrio e o cor rer das águas nos canos. Naquele ponto, antes
de subir a rua, há um lugar mais fundo, onde, por ocasião das chuvas, se
junta água e lama e há lá uma pedra saliente, que facilita a passagem, como
em muitas outras ruas de Jer usalém, as quais, em grande par te, são
bastante toscas. Quando Jesus, car regado do pesado fardo, chegou a esse
lugar, não tinha mais força para ir adiante; os car rascos ar rastavam e
empur ravam-nO sem piedade; então Jesus, nosso Deus, tropeçando sobre a
pedra, caiu por ter ra e a cruz tombou-Lhe ao lado. Os car rascos
praguejaram, puxaram-nO pelas cordas, deram-Lhe pontapés; o séquito
parou, for mou-se um grupo tumultuoso em redor do Divino Mestre. Debalde
estendia a mão, para que alguém O ajudasse a levantar-se. "Ai!" exclamou,
"dentro em pouco estará tudo acabado", e os lábios moviam-se-Lhe em
oração. Os fariseus gritaram: "Vamos! Fazei-O levantar-se, senão nos mor re
nas mãos!" Aqui e acolá, dos lados da r ua, se viam mulheres a chorar, com
crianças, que também choramingavam assustadas. Com auxílio sobrenatural,
conseguiu Jesus afinal levantar a cabeça e esses homens abomináveis e
diabólicos, em vez de O ajudarem e aliviarem, ainda Lhe impuseram
novamente a coroa de espinhos. Levantaram-nO depois brutalmente e
puseram-Lhe a cruz de novo ao ombro. Com isso era obrigado a pender para o
outro lado a cabeça, tor turada pelos espinhos, para assim poder car regar o
pesado patíbulo. Com novo e maior mar tírio subiu então pela r ua, que dali em
diante se tor nava mais larga.

3. O encontro de Jesus com a Santíssima Mãe. Segunda queda de Jesus


debaixo da cruz

A Mãe de Jesus, transpassada de dor, tinha se retirado do fór um, com João e
algumas mulheres, depois de ouvir a sentença que lhe condenara
injustamente o Filho. Tinham visitado muitos dos lugares sagrados pela
Paixão de Jesus, mas quando o cor rer do povo e o toque dos clarins e o
séquito de Pilatos, com os soldados, anunciaram a par tida para o Calvário,
Maria não pôde conter-se mais: o amor impelia-a a ver o divino Filho, no seu
sofrimento e pediu a João que a conduzisse a um lugar onde Jesus tivesse de
passar.
Eles tinham vindo dos lados de Sião; passaram ao lado do tribunal donde
Jesus, havia pouco, fora levado por por tas e alamedas que noutros tempos
estavam fechadas, mas nessa ocasião aber tas, para dar passagem à
multidão. Passaram depois pela par te ocidental de um palácio, que do outro
lado dá, por um por tão, para a r ua larga, na qual o séquito entrou depois da
primeira queda de Jesus. Não sei mais com cer teza se esse palácio era uma
ala da casa de Pilatos, com a qual parece estar ligada por pátios e alamedas
ou se é, como me lembro agora, a própria habitação do Sumo Sacerdote
Caifás; pois a casa em Sião era apenas o tribunal. - João conseguiu de um
criado ou por teiro compassivo a licença de passar, com Maria e as
companheiras, para o outro lado e o mesmo empregado abriu-lhes o por tão
para a rua larga. - Estava com eles um sobrinho de José de Arimatéia;
Suzana, Joana Chusa e Salomé de Jerusalém seguira a Santíssima Virgem.
Quando vi a dolorosa Mãe de Deus, pálida, olhos ver melhos de chorar,
tremendo e gemendo, envolta da cabeça aos pés num manto azul-cinzento,
passando com as companheiras por aquela casa, sentime presa de dor e
susto. Já se ouviam por sobre as casas o tumulto e os gritos do séquito, que
se aproximava, o toque da trombeta e a voz do arauto, anunciando nas
esquinas das r uas a execução de um condenado à cruz. O criado abriu o
por tão; o r uido tor nou-se mais distinto e assus tador. Maria rezava e disse a
João: "Que devo fazer, ficar para vê-Lo ou fugir? Como poderei supor tar vê-Lo
neste estado?" João disse: "Se não ficardes, ar repender-vos-eis
amargamente toda a vida". Então saíram da casa, ficando à espera, sob a
arcada do por tão; olhavam para a direita, rua abaixo, que até lá subia, mas
continuava plana, do lugar onde estava Maria.
Ai! Como o som da trombeta lhe penetrou no coração! O séquito aproximava-
se, ainda estaria distante uns 80 passos, quando saíram do por tão. Ali o povo
não andava na frente, mas aos lados e atrás havia alguns grupos; grande
par te da gentalha, que saíra por último do tribunal, cor ria por atalhos para a
frente, para ocupar outros lugares, donde pudesse ver passar o séquito.
Quando os ser vos dos car rascos, que transpor tavam os instrumentos do
suplício, se aproximaram, imper tinentes e triunfantes, começou a Mãe de
Jesus a tremer e chorar e torcer as mãos de aflição. Um dos miseráveis
perguntou aos que iam ao lado: "Quem é essa mulher, que está ali
lamentando?" Um deles respondeu: "É a mãe do Galileu." Ouvindo isso os
per versos insultaram-na com palavras de zombaria, apontaram-na com os
dedos e um desses homens per versos tomou os cravos, com os quais Jesus
devia ser pregado na cruz e mostrou-o à Santíssima Virgem, com ar de
escár nio. Ela, porém, torcendo as mãos, olhava na direção de seu Filho e
esmagada pela dor, encostou-se ao pilar do por tão. Tinha a palidez de um
cadáver e os lábios roxos. Passaram os fariseus a cavalo; depois veio o
menino, com o título da cruz e, ai! alguns passos atrás, Jesus, o Filho de
Deus, seu próprio Filho querido, o Santo, o Redentor : lá ia cambaleando e
cur vado, afastando penosamente a cabeça, com a coroa de espinhos, do
pesado fardo da cruz. Os car rascos ar rastavam-na pelas cordas para a
frente; tinha o rosto pálido, cober to de sangue e pisaduras, a barba toda
junta e colada sob o queixo pelo sangue. Os olhos encovados e sangrentos
do Salvador, sob o hor rível enredo da coroa de espinhos, lançaram um olhar
grave e cheio de piedade à Mãe dolorosa e depois, tropeçando, Ele caiu pela
segunda vez, sob o peso da cruz, sobre os joelhos e as mãos. A Mãe, na
veemência da dor, não via mais nem soldados nem car rascos, via só o Filho
querido em estado tão lastimoso e tão maltratado. Estendendo os braços,
cor reu os poucos passos do por tão até Jesus, através dos car rascos e
abraçando-O, caiu-Lhe ao lado de joelhos. Ouvi as palavras: "Meu Filho!" -
"Minha Mãe!" - não sei se foram pronunciadas pelos lábios ou só no coração.
Houve um tumulto: João e as mulheres tentavam afastar Maria, os car rascos
praguejavam e insultavam-na; um deles gritou: "Mulher, que queres aqui? Se
O tivesses educado melhor, não estaria agora em nossas mãos." Vi que
alguns dos soldados estavam comovidos; eles afastaram a Santíssima
Virgem, nenhum, porém, a tocou. João e as mulheres levaram-na e ela caiu
de joelhos, como mor ta de dor, sobre a pedra angular do por tão, a qual
supor tava o muro; estavam de costas viradas para o séquito, apoiando-se
com as mãos na par te superior da pedra inclinada, sobre a qual caíra. Era
uma pedra com veias verdes; onde os joelhos de Nossa Senhora tocaram,
ficaram cavidades e onde as mãos se lhe apoiaram, deixaram marcas menos
profundas. Eram impressões chatas, com contor nos pouco claros,
semelhantes a impressões causadas por uma pancada sobre massa de
farinha. Era uma pedra muito dura. Vi que no tempo do bispo Tiago o Menor
essa pedra foi colocada na primeira Igreja católica, que foi construída ao
lado da piscina de Betesda.
Já o tenho dito várias vezes e digo-o mais uma vez, que vi em diversas
ocasiões tais impressões causadas pelo contato de pessoas santas em
acontecimentos de grande impor tância. Isso é tão cer to, que há até a
expressão: "Uma pedra sentir-se-ia comovida", ou a outra: "Isso faz
impressão". A eter na Sabedoria não tinha precisão da ar te da imprensa, para
transmitir à posteridade testemunhos dos santos.
Como os soldados, ar mados de lanças, que marchavam aos lados do séquito,
impeliam o povo para diante, os dois discípulos que estavam com a Mãe de
Jesus, reconduziram-na pelo por tão, que foi fechado atrás deles.
Os car rascos tinham, no entanto, levantado Jesus aos ar rancos e puseram-
Lhe a cruz de novo ao ombro, mas de outra maneira. Os braços da cruz,
amar rados ao tronco haviam ficado um pouco soltos e um deles descera um
pouco ao lado do tronco; foi esse que Jesus abraçou então, de modo que o
tronco da cruz pendia atrás, mais no chão.

4. Terceira queda de Jesus sob a cruz. Simão de Cirene

O séquito continuou nessa rua larga, até chegar à por ta de um antigo muro
da cidade interior. Diante dessa por ta há uma praça, em que desembocam
três ruas. Ali Jesus tinha de passar sobre outra pedra grande, mas tropeçou
e caiu. A cruz tombou para o lado e Jesus, apoiando-se sobre a pedra, caiu
por ter ra e tão enfraquecido estava, que não pôde levantar-se mais.
Passaram grupos de gente bem vestida, que iam ao Templo e vendo-O,
exclamaram: "Coitado, o pobre homem mor re!" Deuse um tumulto; não
conseguiram mais levantar Jesus e os fariseus que conduziam o cor tejo,
disseram aos soldados: "Não chegamos lá com Ele vivo; deveis procurar um
homem que Lhe ajude a levar a cruz." Vinha justamente descendo pela rua do
meio Simão de Cirene, um pagão, acompanhado pelos três filhinhos;
transpor tava um feixe de ramos secos debaixo do, braço. Era jardineiro e
vinha dos jardins situados per to do muro oriental da cidade, onde trabalhava.
Todos os anos vinha, com mulher e filhos, para a festa em Jerusalém, como
muitos outros da mesma profissão, para podar as sebes. Não pôde sair do
caminho, porque a multidão se apinhava na rua. Os soldados, que pela roupa
viam que era pagão e pobre jardineiro, apoderaram-se dele e, levando-o para
onde estava Jesus, mandaram-lhe que ajudasse o Galileu a transpor tar a
cruz. Simão resistiu e mostrou muita repugnância, mas obrigaram-no à força:
Os filhinhos choravam alto e algumas mulheres que conheciam o homem,
levaram-nos consigo. Simão sentiu muito nojo e repugnância, vendo Jesus
tão miserável e desfigurado e com a roupa tão suja e cheia de imundície.
Mas Jesus, com os olhos cheios de lágrimas, olhou para Simão com olhar tão
desamparado, que causava dó. Simão foi obrigado a ajudá-Lo a levantar-se;
os car rascos amar raram o braço da cruz mais para trás e penduraram-no,
com uma volta da corda, sobre o ombro de Simão, que andava muito per to,
atrás de Jesus, que deste modo não tinha mais de car regar tanto peso.
Finalmente o lúgubre séquito se pôs em movimento.
Simão era homem robusto, de 40 anos. Andava com a cabeça descober ta;
vestia uma túnica cur ta, aper tada e na cintura uma faixa de pano roto; as
sandálias, atadas aos pés e per nas com cor reias, ter minavam na frente em
bico agudo. Os filhos vestiam túnicas listadas de várias cores; dois já eram
quase moços, chamavam-se Rufo e Alexandre e juntaram-se . mais tarde aos
discípulos. O terceiro era ainda pequeno; vi-o ainda menino, em companhia
de Santo Estêvão. Simão ainda não tinha seguido muito tempo Jesus,
car regando o patíbulo e já se sentia profundamente comovido.

5. Verônica e o Sudário

A rua em que se movia nessa hora o séquito, era longa, com uma leve cur va
para a esquerda e nela desembocavam várias ruas laterais. De todos os
lados vinha gente bem vestida, que se dirigia ao Templo; ao ver o séquito,
uns se afastavam, com o receio farisaico de se contaminarem, outros
manifestavam cer ta compaixão. Havia cerca de duzentos passos que Simão
ajudava Jesus a car regar a cruz, quando uma mulher de figura alta e
imponente, segurando uma menina pela mão, saiu de uma casa bonita, ao
lado esquerdo da rua e que tinha um átrio cercado de muros e de um belo
gradil brilhante, onde se penetrava por um ter raço, com escadaria. Ela
cor reu, com a menina, ao encontro do cor tejo. Era Seráfia, mulher de Sirac,
membro do Conselho do Templo, a qual, pela boa ação praticada nesse dia,
recebeu o nome de Verônica (de "vera icon": verdadeira imagem).
Seráfia tinha preparado em casa um delicioso vinho aromático, com o
piedoso desejo de oferecê-Io como refresco a Jesus, no caminho doloroso
para o suplício. Já tinha ido uma vez ao encontro do séquito, em expectativa
dolorosa; vi-a velada, segurando pela mão uma mocinha que adotara, passar
ao lado do séquito, quando Jesus se encontrou com a Santíssima Virgem.
Mas, com o tumulto, não achou ocasião de aproximar-se e voltou às pressas
para casa, para lá esperar o Senhor.
Saiu, pois, velada de casa para a r ua; um pano pendia-lhe do ombro; a
menina, que podia ter nove anos, estava-lhe ao lado, ocultando sob o manto o
cântaro com o vinho, quando o séquito se aproximou. Os que o precediam,
tentaram em vão retê-Ia; ela estava fora de si de amor e compaixão. Com a
menina, que se lhe segurava, pegando-lhe o vestido, atravessou a gentalha,
que ia dos lados e por entre soldados e car rascos, avançou para a frente de
Jesus e, caindo de joelhos, levantou para Ele o pano, estendido de um lado,
suplicando: "Per miti-me enxugar o rosto de meu Senhor." Jesus tomou o pano
com a mão esquerda e apertou-o, com a palma da mão de encontro ao rosto
ensangüentado; movendo depois a mão esquerda, com o pano, para junto da
mão direita, que segurava a cruz, aper tou-o entre as duas mãos e restituiu-
lho, agradecendo; ela o beijou, escondendo-o sobre o coração, debaixo do
manto e levantou-se.
Então a menina ofereceu timidamente o cântaro com o vinho; mas os
soldados e car rascos, praguejando, impediram-na de confor tar Jesus. A
audácia e rapidez dessa ação provocou um ajuntamento curioso do povo e
causou assim uma pausa de dois minutos apenas na marcha, o que per mitiu a
Seráfia oferecer o sudário a Jesus. Os fariseus a cavalo e os car rascos
ir ritaram-se com essa demora e mais ainda com a veneração pública
manifestada ao Senhor e começaram a maltratá-Lo e empur rá-Lo. Verônica,
porém, fugiu com a menina para dentro de casa.
Apenas entrara no aposento, estendeu o sudário sobre a mesa e caiu por
ter ra desmaiada; a menina, com o cântaro de vinho, ajoelhou-se-lhe ao lado,
chorando. Assim as encontrou um amigo da casa, que entrara para a visitar e
a viu como mor ta, sem sentidos, ao lado do sudário estendido, no qual o
rosto ensangüentado do Senhor estava impresso de um modo
maravilhosamente distinto, mas também hor rível. Muito assustado, fê-Ia
voltar a si e mostrou-lhe o rosto do Senhor. Cheia de dor, mas também de
consolação, Seráfia ajoelhou-se diante do sudário, exclamando: "Agora vou
abandonar tudo, o Senhor deu-me uma lembrança".
Esse sudário era de lã fina, cerca de três vezes mais longo do que largo.
Costumava-se usar em volta do pescoço; às vezes usavam ainda outro em
tor no dos ombros. Era uso ir ao encontro de pessoas aflitas, cansadas,
tristes ou doentes e enxugar-lhes o rosto; era sinal de luto e compaixão; nas
regiões quentes também usavam dá-lo de presente. Verônica guardava esse
sudário sempre à cabeceira da cama. Depois de sua mor te veio ter, por
inter médio das santas mulheres, às mãos da Santíssima Mãe de Deus e dos
Apóstolos e depois à Igreja.
6. A quar ta e quinta queda de Jesus sob a cruz. As compassivas filhas de
Jerusalém

O séquito estava ainda a boa distância da por ta; a rua descia um pouco até
lá. A por ta era uma construção extensa e for tificada; passavase primeiro por
uma arcada abobadada, depois sobre uma ponte e finalmente por outra
arcada. A por ta ficava em direção sudoeste; ao sair dela, se via o muro da
cidade estender-se para o sul, a uma distância como, por exemplo, da minha
casa até a Matriz, (cerca de dois minutos de caminho); depois virava, a uma
boa distância, para oeste e voltava novamente à direção do sul, fazendo a
volta do Monte Sião. A direita se estendia o muro para o nor te, até à por ta do
Angulo, dirigindo-se depois ao longo da par te setentrional de Jer usalém,
para leste.
Quando o séquito se aproximou da por ta, impeliam-nO os car rascos com mais
violência. Justamente diante da por ta, havia no caminho desigual e
ar ruinado uma grande poça: os car rascos ar rastavam Jesus para frente,
aper tavam-se uns aos outros; Simão Cireneu procurou passar ao lado da
poça, pelo caminho mais cômodo; com isso deslocou-se a cruz e Jesus caiu
pela quar ta vez sob a cruz e tão duramente, no meio do lodaçal, que Simão
quase não pôde segurar a cruz, Jesus exclamou em voz fina, fraca e contudo
alto: "Ai de ti! Ai de ti! Jerusalém! Quanto te tenho amado! Como uma
galinha, que esconde os pintinhos sob as asas, assim queria reunir os teus
filhos e tu me ar rastas tão cruelmente para fora das tuas por tas." - O Senhor
disse essas palavras com profunda tristeza, mas os fariseus, virando-se para
Ele, insultaram-nO, dizendo: "Este per turbador do sossego público ainda não
acabou; ainda tem a língua solta?" e outras zombarias semelhantes.
Espancaram e empur raram Jesus, ar rastando-O para fora do lodaçal, para o
levantar. Simão Cireneu ficou tão indignado com as crueldades dos
car rascos, que gritou: "Se não acabardes com essa infâmia, jogarei a cruz no
chão e não a car regarei mais, mesmo que me mateis também.”
Logo depois de passar a por ta, separa-se da estrada, do lado direito, um
caminho estreito e áspero que, dirigindo-se para o nor te, conduz em poucos
minutos ao monte Cal vário. A estrada grande ramifica-se, a pouca distância
dali, em três direções: à esquerda, para sudoeste, pelo vale Gihon, em
direção à Belém; para oeste, em direção à Emaús e Jope e para noroeste,
rodeando o monte Calvário, em direção à por ta Angular, que conduz a Betur.
Olhando da por ta pela qual Jesus saiu, à esquerda, para sudoeste, pode-se
ver a por ta de Belém. Essas duas por tas são, entre as por tas de Jer usalém,
as menos distantes. No meio da estrada, fora da por ta, donde par te o
caminho para o monte Calvário, havia uma estaca, com uma tabuleta
pregada, na qual estavam escritas as sentenças de mor te proferidas contra
Jesus e os ladrões, escritas em letras brancas salientes, que pareciam
coladas sobre a tabuleta. Não longe dai, na esquina do caminho do Gólgota,
estava um numeroso grupo de mulheres, a chorar e lamentar. Em par te eram
moças e mulheres pobres, com crianças, vindas de Jerusalém, que se tinham
adiantado ao séquito; em par te mulheres vindas de Belém, Hebron e outros
lugares circunvizinhos, que tinham chegado para a festa e se juntaram
àquelas mulheres.
Jesus não caiu ali inteiramente por ter ra; ia caindo como quem desmaia, de
modo que Simão pôs a extremidade da cruz no chão e, aproximando-se de
Jesus, segurou-O. O Senhor encostou-se em Simão. Essa foi a quinta queda
do Salvador sob a cruz. As mulheres e moças, ao verem Jesus tão
desfigurado e ensangüentado, começaram a chorar e lamentar alto,
oferecendo-lhe os sudários, segundo o costume entre os judeus, para que
enxugasse o rosto. Jesus virou-se-Ihes e disse: "Filhas de Jerusalém, (isso
significa também: filhas de Jer usalém e cidades vizinhas), não choreis por
mim, mas chorai por vós e vossos filhos; porque sabei que virá tempo em que
se dirá: "Ditosas as que são estéreis e ditosos os ventres que não geraram e
ditosos os peitos que não deram de mamar." - Então começarão os homens a
dizer aos montes: "Caí sobre nós!" e aos outeiros: "Cobri-nos". Porque, se
isto se faz no lenho verde, que se fará no seco?" Ainda Ihes disse outras
belas palavras, as quais, porém, esqueci; entre outras disse que aquelas
lágrimas Ihes seriam recompensadas, que doravante deviam seguir outros
caminhos, etc.
Houve ali uma pausa, pois o séquito parou por algum tempo. Aqueles que
levavam os instrumentos do suplício, continuaram o caminho para o Calvário;
seguiam-se depois cem soldados do destacamento de Pilatos, o qual tinha
acompanhado o cor tejo até ali, mas chegado à por ta da cidade, voltara para
o palácio.

7. Jesus no Monte Gólgota. Sexta e sétima queda de Jesus e


seu encarceramento

O séquito pôs-se novamente em caminho. Jesus, cur vado sob a cruz, impelido
a empur rões e golpes, ar rastado pelas cordas, subiu penosamente o áspero
caminho que segue para o nor te, entre o monte Calvário e os muros da
cidade; depois, no alto, se volta o caminho tor tuoso outra vez para o sul. Lá
caiu Jesus, tão enfraquecido, pela sexta vez; foi uma queda dura e a cruz, ao
cair, ainda mais o feriu. Os car rascos, porém, espancaram e impeliram-na
com mais brutalidade do que antes, até que Jesus chegou ao cume, no
penedo do Gólgota e ali caiu novamente com a cruz por ter ra, pela sétima
vez.
Simão Cireneu, também maltratado e cansado, estava cheio de indignação e
compaixão; quis ajudar Jesus a levantar-se, mas os car rascos, aos
empur rões e insultos, fizeram-no voltar pelo caminho, mor ro abaixo; pouco
depois se associou aos discípulos do Mestre Divino. Também os outros que
trouxeram os instrumentos ou seguiram o cor tejo e de que os car rascos não
precisavam mais, foram enxotados do cume. Os fariseus a cavalo subiram o
monte Cal vário por outros caminhos, mais cômodos, do lado oeste. Do cume
se avistam justamente os muros da cidade.
A face superior, o lugar do suplício, tem a for ma circular e caberia bem no
largo diante da nossa Matriz; é do tamanho de um bom picadeiro e cercado
de um ater ro baixo, cor tado por cinco caminhos. Essa disposição de cinco
caminhos encontra-se em quase todos os lugares do país, em lugares de
banhos públicos ou de batismo, como na piscina Betesda; muitas cidades
também têm cinco por tas. Essa disposição acha-se em todas as constr uções
dos tempos antigos e também em mais moder nos e assim foram feitas em
atenção às antigas tradições. Como em todas as coisas da Ter ra Santa, há
também nisso um profundo sentido profético, cumprido nesse dia, em que se
abriram os cinco caminhos de toda a salvação, as cinco sagradas Chagas de
Jesus.
Os fariseus a cavalo pararam fora do círculo, no lado oriental do monte, onde
o declive é mais suave; o lado que dá para a cidade e por onde eram
conduzidos os condenados, é escar pado e íngreme. Estavam ali também cem
soldados romanos, nativos das fronteiras entre a Itália e a Suíça, que
estavam distribuídos em par te em vários lugares da execução. Alguns
ficaram com os dois ladrões, que, por falta de lugar no cume, não tinham
levado para cima, mas fizeram deitar de costas, com os braços amar rados
aos madeiros transversais das cruzes, na encosta do monte, um pouco
abaixo do cume, onde o caminho vira para o sul. Muita gente, na maior par te
das classes baixas, estrangeiros, ser vos, escravos, pagãos e muitas
mulheres, gente que não se impor tava de contaminar-se, juntavam-se em
redor do largo do cume ou for mavam grupos, cada vez mais numerosos, nas
alturas circunvizinhas, acrescidos de gente que se dirigia à cidade. Para
oeste, ao pé do monte Gihon, havia um grande acampamento de forasteiros,
vindos para a festa da Páscoa; mui'tos ficavam olhando de longe, outros se
aproximavam pouco a pouco.
Eram cerca de onze horas e três quar tos, quando Jesus, ar rastado com a
cruz para o lugar do suplício, caiu por ter ra e Simão foi expulso de lá. Os
car rascos levantaram o Salvador aos ar rancos das cordas e desligaram os
madeiros da cruz, jogando-os no chão, um em cima do outro. Ai! que aspecto
ter rível apresentava Jesus, em pé no lugar do suplício, abatido, triste,
cober to de feridas, ensangüentado, pálido. Os car rascos deitaram-na
brutalmente por ter ra, dizendo em tom de mofa: "á rei dos judeus, devemos
tomar medida de teu trono?" Mas Jesus deitou-se de livre vontade sobre a
cruz e se a fraqueza lha tivesse per mitido, os car rascos não teriam tido
necessidade de jogá-Lo por ter ra. Estenderam-na sobre a cruz e marcaram
nesta os lugares das mãos e dos pés, enquanto os fariseus em redor riam e
insultavam o Divino Salvador.
Levantando-O novamente, conduziram-nO amar rado uns setenta passos ao
nor te, descendo a encosta do monte Calvário, a uma fossa cava da na rocha,
que parecia uma cister na ou adega; levantando o alçapão, empur raram-nO
para dentro tão brutalmente, que se não fosse por auxí lio divino, teria
chegado ao fundo duro da rocha com os joelhos esmagados. Ouvi-Lhe os
gemidos altos e agudos. Fecharam o alçapão e deixaram uma guarda. Segui-
O nesses setenta passos; parece-me lem brar ainda de uma revelação
sobrenatural de que os Anjos o socor reram, para que não esmagasse os
joelhos; mas a pobre Vítima gemia e chorava de modo que cor tava o coração.
A rocha amoleceu, ao contato dos joelhos sagrados do Redentor.
Os Car rascos começaram então os preparativos. Havia no centro do largo do
suplício uma elevação circular, de talvez dois pés de altura, para a qual se
tinham de subir alguns degraus: era o ponto mais alto do penedo do Calvário.
Nesse cume estavam cavando a cinzel os buracos nos quais as três cruzes
deviam ser plantadas; já tinham tomado medida para isso na extremidade
inferior das cruzes. Colocaram os troncos das cruzes dos ladrões à direita e
à esquerda, sobre essa elevação; esses lenhos eram toscamente aparados e
mais baixos do que a cruz de Jesus; em cima haviam sido cor tados
obliquamente. Os madeiros transversais, aos quais os ladrões ainda estavam
amar rados, foram depois ajustados um pouco abaixo da extremidade superior
dos troncos.
Os car rascos colocaram então a cruz de Nosso Senhor no lugar onde O
queriam pregar, de modo que a pudessem comodamente levantar e fazer
entrar na escavação. Encaixaram os dois braços da cruz no tronco, pregaram
a peça de madeira para os pés, abriram com uma ver ruma os furos para os
cravos e para o prego do título, fincaram a mar telo as cunhas sob os braços
da cruz e fizeram cá e lá algumas cavidades no tronco da cruz, para dar
espaço para a coroa de espinhos e as costas, de modo que o cor po ficasse
mais supor tado pelos pés do que pendurado pelas mãos, que podiam rasgar-
se com o peso do cor po e para que Jesus sofresse maior mar tírio. Ainda
fincaram em cima por um madeiro transversal, para ser vir de apoio às
cordas, com as quais queriam puxar e elevar a cruz e fizeram ainda outros
preparativos semelhantes.

8. Maria e as amigas vão ao CaIvário

Depois do doloroso encontro da SS. Virgem com o Divino Filho, caITegando a


cruz, quando Maria caiu sem sentidos sobre a pedra angu lar, Joana Chusa,
Suzana e Salomé de Jerusalém, com auxílio de João e do sobrinho de José de
Arimatéia, conduziram-na para dentro da casa, impelidos pelos soldados e o
por tão foi fechado, separando-a do Filho bem-amado, car regado do peso da
cruz e cruelmente maltratado. O amor e o ardente desejo de estar com o
Filho, de sofrer tudo com Ele e de não O abandonar até o fim, davam-lhe uma
força sobrenatural. As companheiras foram com ela à casa de Lázaro, na
proximidade da por ta Angular, onde estavam reunidas as outras santas
mulheres, com Madalena e Mar ta, chorando e lamentando-se; com elas
estavam também algumas crianças. De lá saíram em número de 17, seguindo
o caminho doloroso de Jesus.
Vi-as todas, sérias e decididas; não se impor tavam com os insultos da
gentalha, mas impunham respeito pela sua tristeza; passaram pelo fórum, a
cabeça cober ta pelos véus; no ponto onde Jesus tomara ao ombro a cruz,
beijaram a ter ra; depois seguiram todo o caminho da Paixão de Jesus,
venerando todos os lugares onde Ele mais sofrera. Maria e as que eram mais
inspiradas, procuravam seguir as pegadas de Jesus e a SS. Virgem, sentindo
e vendo-lhes tudo na alma, guiava-as, onde deviam parar e quando deviam
prosseguir nessa via sacra. Todos esses lugares se lhe imprimiram
vivamente na alma; ela contava até os passos e mostrava às companheiras
os santos lugares.
Desse modo a primeira e mais tocante devoção da Igreja foi escrita no
coração amoroso de Maria, Mãe de Deus; escrita pela espada profetizada por
Simeão; os santos lábios da Virgem transmitiram-na aos companheiros do
sofrimento e por esses a nós. Esta é a santa tradição vinda de Deus ao
coração da Mãe Santíssima e do coração da Mãe aos corações dos filhos;
assim continua sempre a tradição na Igreja. Quando se vêm as coisas como
as vejo, parece este modo de transmissão mais vivo e mais santo. Os judeus
de todos os tempos sempre veneraram os lugares consagrados por uma ação
santa ou por um acontecimento de saudosa memória. Eles não esquecem um
lugar onde se deu uma coisa sobrenatural: marcam-no com monumento de
pedras e vão em peregrinação, para rezar. Assim também nasceu a devoção
da Via Sacra, não por uma intenção premeditada, mas da natureza dos
homens e das intenções de Deus para com seu povo, do fiel amor de uma
mãe, e, por assim dizer, sob os pés de Jesus, que foi o primeiro que a trilhou.
Chegou então esse piedoso grupo à casa de Verônica, onde entraram, porque
Pilatos com os cavaleiros e os duzentos soldados, voltando da por ta da
cidade, lhes vinham ao encontro. Ali Maria e os companheiros viram o
sudário, com a imagem do rosto de Jesus e entre lágrimas e suspiros,
exaltaram a misericórdia de Jesus para com sua fiel amiga.
Levaram o cântaro com o vinho aromático, com que Verônica não conseguira
confor tar Jesus e dirigiram-se todos, com Verônica, à por ta do Gólgota. No
caminho se Ihes juntaram ainda muitas pessoas bem intencionadas e outras
comovidas pelos acontecimentos, entre as quais também cer to número de
homens, for mando um cor tejo que, pela ordem e seriedade com que passou
pelas r uas, me fez uma singular impressão. Esse cor tejo era quase maior do
que aquele que conduziu a Jesus, não contando o povo que o acompanhou.
As angústias e dores aflitivas de Maria nesse caminho, ao ver o lugar do
suplício, com as cruzes no alto, não se podem exprimir em palavras; a alma
amantíssima da Virgem sentia os sofrimentos de Jesus e era ainda tor turada
pelo sentimento de não poder seguí-Lo na mor te. Madalena, toda
transtor nada e como embriagada de dor, andava cambaleando, como que
ar remessada de angústia em angústia; passava do silêncio às lamentações,
do estupor ao desespero, das lamentações às ameaças. Os companheiros
eram obrigados a sustê-Ia, a protegê-Ia, a exor tá-Ia e a escondê-Ia da vista
dos curiosos.
Subiram o monte Cal vário pelo lado mais suave, ao oeste e aproximaram-se
em três grupos do ater ro circular do cume, a cer ta distância, um atrás do
outro. A Mãe de Jesus, a sobrinha desta, Maria de Cleofas, Salomé e João
avançaram até o lugar do suplício; Mar ta, Maria Helí, Verônica, Joana Chusa,
Suzana e Maria, mãe de Marcos, ficaram um pouco afastadas, rodeando Maria
Madalena, que não podia conter a dor. (*) Um pouco mais atrás estavam
ainda sete pessoas e entre os três gr upos havia gente boa, que mantinha
uma cer ta comunicação entre eles. Os fariseus a cavalo estavam em
diversos lugares em redor do local do suplício, enquanto os soldados
romanos ocupavam as cinco entradas.

* Os santos Evangelistas Mateus (27, 56) e Marcos (15, 40) mencionam, além
da Mãe de Jesus, as seguintes mulheres piedosas: Maria Madalena, Maria,
filha de Cleofas e Salomé. - S. João fala das duas primeiras e de Helí. Pelo
menos podem as suas palavras ser tomadas nesse sentido: "Estavam ao pé
da cruz de Jesus sua Mãe, a innã de sua Mãe. Maria, filha de Cleofas e Maria
Madalena." Nem é preciso dizer que a palavra "ir mã" pode também significar
parenta.

Que espetáculo doloroso para Maria: o lugar do suplício, o cume com as


cruzes, a ter rível cruz do Filho adorado e diante dela, no chão, os mar telos,
as cordas, os hor rendos pregos e os repelentes car rascos, meio nus, quase
embriagados, fazendo o hor roroso trabalho entre imprecações. Os troncos
das cruzes dos ladrões já estavam ar vorados, munidos de paus encaixados
para subir. A ausência de Jesus ainda prolongava o mar tírio da Mãe
Santíssima; ela sabia que ainda estava vivo; desejava vê-Io, tremia ao pensar
em que estado O veria; ia vê-Lo em indizíveis tor mentos.
Desde a madrugada até às dez horas, quando foi pronunciada a sentença,
caíra várias vezes chuva de pedra; durante o caminho de Jesus ao Cal vário
clareou o céu e brilhava o sol; mas pelas doze horas começou uma neblina
aver melhada a velar o sol.

8
Crucificação e mor te de Jesus

1. Os car rascos despem Jesus para a crucificação e oferecem-Lhe vinagre


2. Jesus é pregado na cruz
3. Elevação da cruz
4. A crucificação dos ladrões
5. Os car rascos tiram à sor te as vestes de Jesus
6. Jesus crucificado e os ladrões
7. Primeira palavra de Jesus na cruz
8. Eclipse do sol. Segunda e terceira palavra de Jesus na cruz
9. Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol
10. Abandono de Jesus. A quar ta palavra de Jesus na cruz
11. Quinta, Sexta e Sétima palavras de Jesus na cruz. Mor te de Jesus.
12. O tremor de ter ra, aparição de mor tos em Jerusalém
13. Outras aparições depois da mor te de Jesus
14. José de Arimatéia pede a Pilatos o cor po de Jesus
15. O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento das per nas
e mor te dos ladrões
16. A descida de Jesus aos infer nos

Crucificação e mor te de Jesus

1. Os car rascos despem Jesus para a crucificação e oferecem-Lhe vinagre

Dirigiram-se então quatro car rascos à masmor ra subter rânea, situada a


setenta passos ao nor te; Jesus rezava todo o tempo a Deus, pedindo força e
paciência e oferecendo-se mais uma vez em sacrifício expiatório, pelos
pecados dos inimigos. Os car rascos ar rancaram-na para fora e, empur rando,
batendo e insultando-O, levaram-na para o suplício. O povo olhava e
insultava; os soldados, frios e altivos, mantinham a ordem, dando-se ares de
impor tância; os car rascos, cheios de raiva sanguinária, ar rastaram Jesus
brutalmente para o largo do suplício.
Quando as santas mulheres viram Jesus chegar, deram dinheiro a um homem,
que o devia levar, junto com vinho aromático, aos car rascos, para que esses
o dessem a Jesus a beber. Mas esses criminosos não Lho deram, mas
beberam-no depois. Tinham lá dois vasos de cor parda, dos quais um
continha vinagre misturado com fel e o outro uma espécie de vinagre, que
afir mavam ser vinho, com mir ra e absinto; dessa bebida ofereceram um copo
pardo, a Jesus, que apenas o provou, tocando-o com os lábios, mas não
bebeu. Estavam no lugar do suplício dezoito car rascos; os seis que O tinham
açoitado, quatro que O conduziram, dois que suspenderam a extremidade da
cruz pelas cordas e seis que O deviam crucificar. Par te deles estavam
ocupados com Jesus, outros com os ladrões, trabalhando e bebendo
altemadamente. Eram homens baixos, robustos, sujos e meio nus, de feições
estranhas, cabelo eriçado, barba rala: homens abomináveis e bestiais.
Ser viam a judeus e romanos por dinheiro.
O aspecto de tudo isso era mais ter rível ainda, porque eu via o mal, em
figuras visíveis para mim e invisíveis para os outros. Via grandes e
hediondas figuras de demônios, agindo entre todos esses homens cruéis; era
como se auxiliassem em tudo, aconselhando, passando as fer ramentas; havia
inúmeras aparições de figuras pequenas e medonhas, de sapos, ser pentes e
dragões de muitas gar ras, vi todas as espécies de insetos venenosos voarem
em redor e escurecerem o ar. Entravam na boca e no coração dos assistentes
ou pousavam-Ihes nos ombros; eram homens cujos corações estavam cheios
de pensamentos de ódio e maldade ou que proferiam palavras de maldição e
escár nio. Acima do Senhor, porém, vi várias vezes, durante a crucifixão,
aparecerem grandes figuras angélicas, que choravam e aparições luminosas,
nas quais distingui apenas pequenos rostos. Vi aparecer tais Anjos de
compaixão e consolo também sobre a Santíssima Virgem e todos os bons,
confor tando e animando-os.
Os car rascos tiraram então o manto do Senhor, que lhe tinham antes
enrolado em redor do peito; tiraram-Lhe o cinturão, com as cordas e o
próprio cinto. Despiram-na da longa veste de lã branca, passando-a pela
cabeça, pois estava aber ta no peito, ligada com cor reias. Depois lhe tiraram
a longa faixa estreita, que caia do pescoço sobre os ombros e como não Lhe
podiam tirar a túnica sem costuras, por causa da coroa de espinhos,
ar rancaram-Lhe a coroa da cabeça, reabrindo assim todas as feridas;
ar regaçando depois a túnica, puxaram-lha, com vis gracejos, pela cabeça
ferida e sangrenta.
Lá estava o Filho do Homem, cober to de sangue, de contusões, de feridas
fechadas ou outras ainda sangrentas, de pisaduras e manchas escuras.
Estava apenas vestido ainda do cur to escapulário de lã sobre o peito e
costas e da faixa que cingia os rins. O escapulário de lã aderira às feridas
secas e estava colado com sangue na nova ferida profunda, que o peso da
cruz Lhe fizera no ombro e que Lhe causava um sofrimento indizível. Os
car rascos ar rancaram-lhe o escapulário impiedosamente do peito e assim
ficou Jesus em sangrenta nudez, hor rivelmente dilacerado e inchado, cober to
de chagas. No ombro e nas costas se Lhe viam os ossos, através das feridas
e a lã branca do escapulário ainda estava colada em algumas feridas e no
sangue ressecado do peito.
Ar rancaram-Lhe então a última faixa de pano da cintura e eis que ficou de
todo nu e cur vou-se, cheio de confusão e vergonha; e como estava a ponto de
cair, sob as mãos dos car rascos, sentaram-na sobre uma pedra, pondo-Lhe
novamente a coroa de espinhos sobre a cabeça e ofereceram-Lhe a beber do
outro vaso, que continha vinagre com fel; mas Jesus desviou a cabeça em
silêncio.
Quando, porém, os car rascos O pegaram pelos braços, com que cobria a
nudez e O levantaram, para estendê-Lo sobre a cruz, ouviram-se gritos de
indignação e descontentamento e os lamentos dos amigos por essa vergonha
e ignomínia. A Mãe Santíssima suplicou a Deus com ardor ; já estava a ponto
de tirar o véu da cabeça e, abrindo caminho por entre os car rascos, oferecê-
Io ao Divino Filho. Mas Deus ouvira-lhe a oração; pois nesse momento um
homem, vindo da por ta e cor rendo todo o caminho com as vestes
ar regaçadas, atravessou o povo e precipitou-se ofegante entre os car rascos
e entregou um pano a Jesus que, agradecendo-lhe, o aceitou e cobriu a
nudez, cingindo-O à moda dos orientais, passando a par te mais comprida por
entre as per nas e ligando-a com a outra em redor da cintura.
Esse benfeitor do Divino Redentor, enviado para atender à súplica da SS.
Virgem, tinha na sua impetuosidade algo de imperioso; ameaçou os
car rascos com o punho e disse apenas: "Tomem cuidado de não impedir este
homem de cobrir-se." Não falou com ninguém mais e retirou-se tão
rapidamente como tinha vindo. Era Jonadab, sobrinho de São José, da região
de Belém, filho daquele ir mão a quem José, depois do nascimento de Jesus,
empenhara o jumento. Não era amigo declarado de Jesus; também nesse dia
se tinha mantido afastado e limitara-se a observar tudo de longe. Já quando
ouvira contar que Jesus fora despido na flagelação, ficara muito indignado;
depois, quando se aproximou a hora da crucifixão, estava no Templo e sentia
uma indizível angústia. Quando a Mãe de Jesus, no Gólgota, dirigiu o grito da
alma a Deus, sentiu Jonadab de repente um impulso ir resistível de cor rer do
Templo ao Calvário para cobrir a nudez do Senhor. Sentia na alma uma viva
indignação contra o ato ignominioso de Cam, que rira da nudez de Noé,
embriagado pelo vinho e sentiu-se impelido a cor rer, como um novo Sem,
para cobrir a nudez do lagareiro. Os crucificadores eram os Camitas e Jesus
pisava as uvas no lagar, para o vinho novo, quando Jonadab veio cobrí-Lo.
Essa ação foi o cumprimento de uma figura simbólica do Antigo Testamento e
foi mais tarde recompensada, como vi e hei de contar.

2. Jesus é pregado na cruz

Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos car rascos sobre a cruz; Ele
próprio se sentou sobre ela e eles brutalmente O deitaram de costas.
Colocaram-Lhe a mão direita sobre o orifício do prego, no braço direito da
cruz e aí lhe amar raram o braço. Um deles se ajoelhou sobre o santo peito,
enquanto outro lhe segurava a mão, que se estava contraindo e um terceiro
colocou o cravo grosso e comprido, com a ponta limada, sobre essa mão
cheia de bênção e cravou-o nela, com violentas pancadas de um mar telo de
fer ro. Doces, e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor ; o sangue
sagrado salpicou os braços dos car rascos; rasgaram-Lhe os tendões da mão,
os quais foram ar rastados, com o prego triangular, para dentro do estreito
orifício. Contei as mar teladas, mas esqueci, na minha dor, esse número. A
Santíssima Virgem gemia baixinho e parecia estar sem sentidos
exterior mente; Madalena estava desnor teada.
As ver r umas eram grandes peças de fer ro, da for ma de um T; não havia nelas
nada de madeira. Também os pesados mar telos eram, como os cabos, de
fer ro e todos de uma peça inteiriça; tinham quase a for ma dos mar telos de
pau que os marceneiros usam entre nós, trabalhando com for mão.
Os cravos, cujo aspecto fizera tremer Jesus, eram de tal tamanho que,
seguros pelo punho, excediam em baixp e em cima cerca de uma polegada.
Tinham cabeça chata, da largura de uma moeda de cobre, com uma elevação
cônica no meio. Tinham três gumes; na par te superior tinham a grossura de
um polegar e na par te inferior a de um dedo pequeno; a ponta fora aguçada
com uma lima; cravados na cruz, vi-Ihes a ponta sair um pouco do outro lado
dos braços da cruz.
Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os
crucificadores que a mão esquerda, que tinham também amar rado ao braço
da cruz, não chegava até o orifício do cravo, que tinham perfurado a duas
polegadas distante das pontas dos dedos. Por isso ataram uma corda ao
braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés sobre a cruz, puxaram a toda
força, até que a mão chegou ao orifício do cravo. Jesus dava gemidos
tocantes; pois deslocaram-Lhe inteiramente os braços das ar ticulações; os
ombros, violentamente distendidos, for mavam grandes cavidades axilares,
nos cotovelos se viam as junturas dos ossos. O peito levantou-se-Lhe e as
per nas encolheram-se sobre o cor po. Os car rascos ajoelharam-se sobre os
braços e o peito, amar raram-lhe for temente os braços e cravaram-Lhe então
cruelmente o segundo prego na mão esquerda; jor rou alto o sangue e
ouviram-se os agudos gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado
mar telo. Os braços do Senhor estavam tão distendidos, que for mavam uma
linha reta e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha
oblíqua; ficava um espaço livre entre esses e as axilas do Divino Már tir.
A SS. Virgem sentiu todas essas tor turas com Jesus; estava de uma palidez
cadavérica e fracos gemidos saiam-lhe da boca. Os fariseus dirigiram
insultos e zombarias para o lado onde ela estava; por isso os amigos
conduziram-na para junto das outras santas mulheres, que estavam um pouco
mais afastadas do lugar do suplício. Madalena estava como louca; feria o
rosto de modo que tinha as faces e os olhos cheios de sangue.
Havia na cruz, em baixo, talvez a um terço da respectiva altura, uma peça de
madeira, fixa por um prego muito grande, destinada a supor tar os pés de
Jesus, afim de que ficasse mais em pé do que suspenso; de outro modo as
mãos teriam sido rasgadas pelo peso do cor po e os pés não poderiam ser
pregados sem quebrá-Ios. Nessa peça de madeira tinham perfurado o orifício
para o cravo. Tinham também feito uma cavidade para os calcanhares, como
também havia outras, em vários pontos da cruz, para que o Már tir pudesse
ficar suspenso mais tempo e o peso do cor po não Lhe rasgasse as mãos,
fazendo-O cair.
Todo o cor po de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da cruz, pela
violenta extensão dos braços e os joelhos tinham-se-Lhe dobrado. Os
car rascos lançaram-se então sobre esses e, por meio de cordas, amar raram-
nos ao tronco da cruz; mas pela posição er rada dos orifícios dos cravos, os
pés ficavam longe da peça de madeira que os devia supor tar. Então
começaram os car rascos a praguejar e insultar. Alguns julgavam que se
deviam furar outros orifícios para os pregos das mãos; pois mudar o supor te
dos pés era difícil. Outros fizeram horrível troça de Jesus: "Ele não quer
estender-se, disseram, mas nós Lhe ajudaremos." Atando cordas à per na
direita, puxaram-na com hor rível violência, até o pé tocar no supor te e
amar raram-na à cruz. Foi uma deslocação tão hor rível, que se ouvia estalar o
peito de Jesus, que gemia alto: "Ó meu Deus! Meu Deus!" Tinham-Lhe
amar rado também o peito e os braços, para os pregos não rasgarem as mãos;
o ventre encolheu-se-Lhe inteiramente, as costelas pareciam a ponto de
destacar-se do ester no. Foi uma tor tura hor rorosa.
Amar raram depois o pé esquerdo com a mesma br utal violência, colocando-o
sobre o pé direito e como os pés não repousavam com bastante fir meza
sobre o supor te, para serem pregados juntos, perfuraram primeiro o peito do
pé esquerdo com um prego mais fino e de cabeça mais chata do que os
cravos, como se fura a sovela. Feito isso, tomaram o cravo mais comprido
que o das mãos, o mais hor rível de todos e, passando-o br utalmente pelo furo
feito no pé esquerdo, atravessaramlhe a mar teladas o direito, cujos ossos
estalavam, até o cravo entrar no orifício do supor te e, através desse, no
tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego atravessou os dois
pés.
Essa tor tura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão de todo o
cor po. Contei 36 golpes de mar telo, no meio dos gemidos claros e
penetrantes do pobre Salvador ; as vozes em redor, que proferiam insultos e
maldições, pareciam-me sombrias e sinistras.
A Santíssima Virgem tinha voltado ao lugar do suplício; a deslocação do
cor po do Filho adorado, o som das mar teladas e os gemidos de Jesus,
causaram-lhe tão veemente dor e compaixão, que caiu novamente nos braços
das companheiras, o que provocou um ajuntamento de povo. Então acor reram
alguns fariseus a cavalo, insultando-as e os amigos afastaram-na outra vez a
alguma distância. Durante a crucifixão e a elevação da cruz, que se lhe
seguiu, se ouviam, especialmente entre as mulheres, gritos de compaixão,
como: "Porque a ter ra não traga esses miseráveis? Porque não cai fogo do
céu, para os devorar?" - A essas manifes tações de amor respondiam os
car rascos com insultos e escár nio.
Os gemidos que a dor ar rancava de Jesus, misturavam-se com contínua
oração; recitava trechos dos salmos e dos profetas, cujas predições nessa
hora cumpria; em todo o caminho da cruz, até à mor te, não cessa va de rezar
assim e de cumprir as profecias. Ouvi e rezei com Ele todas essas passagens
e às vezes me lembro delas, quando rezo os salmos; mas fiquei tão
acabrunhada com o mar tírio de meu Esposo celeste, que não sei mais juntá-
Ias. - Durante esse hor rível suplício, vi Anjos a chorar aparecerem acima de
Jesus.
O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a tábua, como
titulo que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam indignados porque os
romanos se riam alto do título "Rei dos judeus." Por isso voltaram alguns
fariseus à cidade, depois de ter tomado medida para uma outra inscrição,
para pedir a Pilatos novamente outro título.
Enquanto Jesus era pregado à cruz, estavam ainda alguns homens a
trabalhar na escavação em que a cruz devia ser colocada; pois era estreita a
cova e a rocha muito dura. Alguns dos car rascos, em vez de dar a Jesus para
beber o vinho aromático trazido pelas santas mulheres, be beram-no eles
mesmos e ficaram embriagados; queimava-Ihes as entra nhas e causava-Ihes
tanta dor nos intestinos, que ficaram desvairados; insultavam a Jesus,
chamando-O de feiticeiro e enfureciam-se à vista da paciência do Divino
Mestre; desceram várias vezes o Calvário, a cor rer, para beber leite de
jumenta. Havia lá per to algumas mulheres, que per tenciam a um
acampamento de peregrinos, vindos para a festa da Páscoa, as quais tinham
jumentas, cujo leite vendiam.
Pela posição do sol era cerca de doze horas e um quar to, quando Jesus foi
crucificado. No momento em que elevaram a cruz, ouviu-se do Templo o soar
de muitas trombetas: Era a hora em que imolavam o cor deiro pascal.

3. Elevação da cruz

Depois de terem pregado Nosso Senhor à cruz, ataram cordas na par te


superior da mesma, por meio de argolas, lançaram as cordas sobre o
cavalete antes erigido no lado oposto e puxaram a cruz pelas cordas, de
modo que a par te superior se lhe ergueu; alguns dirigiram-se com paus
munidos de ganchos, que fincaram no tronco e fizeram o pé da cruz entrar na
cova. Quando o madeiro chegou à posição ver tical, entrou na escavação com
todo o peso e tocou no fundo com um ter rível choque. A cruz tremeu do abalo
e Jesus soltou um grito de dor ; pelo peso ver tical desceu-lhe o cor po, as
feridas alargaram-se-Lhe, o sangue cor ria mais abundantemente e os ossos
deslocados entrechocaram-se. Os car rascos ainda sacudiram a cruz, para a
por mais fir me e fincaram cinco cunhas na cova, em redor da cruz: uma na
frente, uma do lado direito, outra à esquerda e duas atrás, onde o madeiro
estava um pouco ar redondado.
Foi uma impressão ter rível e ao mesmo tempo comovedora, quando, sob os
gritos insultuosos dos car rascos e dos fariseus, como também de muitos
homens do povo, mais afastados, a cruz se elevou, balançando e entrou
estremecendo na escavação; ouviram-se também vozes piedosas de
compaixão, as vozes mais santas da ter ra: a da Mãe Santíssima, de João, das
amigas e de todos que tinham um coração puro, saudaram com expressão
dolorosa o Verbo eter no, feito car ne e elevado sobre a cruz. Estenderam as
mãos ansiosamente como para o segurar, quando o Santo dos santos, o
Esposo de todas as Almas, pregado vivo na cruz, foi elevado pelas mãos dos
pecadores enfurecidos. Quando, porém, o madeiro erguido com estrondo,
entrou na respectiva cova, houve um momento de silêncio solene; todo o
mundo parecia experimentar uma sensação nova, nunca até então sentida. O
próprio infer no sentiu assustado o choque do lenho sobre a rocha e levantou-
se contra ele, redobrando nos seus instrumentos humanos o seu furor e os
insultos. Nas almas do purgatório e do limbo, porém, causou alegria e
esperança: soava-Ihes como o bater do triunfador às por tas da Redenção. A
santa Cruz estava pela primeira vez plantada no meio da ter ra, como aquela
ár vore da vida no Paraíso e das chagas dilatadas do Cristo cor riam quatro
rios santos sobre a ter ra, para expiar a maldição, que pesava sobre ela e
para fer tilizar e a tomar um paraíso do novo Adão.
Quando nosso Salvador foi elevado na cruz e os gritos de insulto foram
inter rompidos por alguns minutos de silencioso espanto, ouviase do Templo o
som de muitas trombetas, que anunciavam o começo da imolação do cordeiro
pascal, do símbolo, inter rompendo de um modo solene e significativo os
gritos de furor e de dor, em redor do verdadeiro , Cordeiro de Deus, imolado
na cruz. Muitos corações endurecidos foram abalados e pensaram nas
palavras do precursor, João Batista: "Eis aí o Cordeiro de Deus, que tomou
sobre si os pecados do mundo.”
O lugar onde fora plantada a cruz, estava elevado cerca de dois pés acima do
ter reno em redor. Quando a cruz ainda se achava fora da cova, estavam os
pés de Jesus à altura de um homem, mas depois de introduzida na respectiva
escavação, podiam os amigos chegar aos pés do Mestre, para os abraçar e
beijar. Havia um caminho para essa elevação. O rosto de Jesus estava virado
para nordeste.

4. A crucificação dos ladrões

Durante a crucifixão do Senhor jaziam os ladrões, de costas, com as mãos


ainda amar radas aos madeiros transversais das cruzes, que tinham sobre a
nuca, ao lado do caminho, na encosta oriental do Calvário; estava com eles
uma guarda. Suspeitos de terem assassinado uma mulher judaica, com os
filhos, no caminho de Jer usalém a Jope, foram presos num castelo daquela
região, onde morava às vezes Pilatos, por ocasião das manobras do exército
e onde se apresentaram como ricos negociantes. Tinham estado muito tempo
no cárcere, antes do julgamento e da condenação. Esqueci os por menores. O
ladrão do lado esquerdo era o mais velho e grande criminoso, o sedutor e
mestre do outro. Geralmente são chamados Dimas e Gesmas; esqueci-Ihes os
nomes verdadeiros; vou chamar, por isso, ao bom Dimas e ao mau Gesmas.
Ambos per tenciam à quadrilha de salteadores que, nas fronteiras do Egito,
tinham dado agasalho à Sagrada Família, com o menino Jesus, na fuga para o
Egito. Dimas fora o menino morfético que, a conselho de Maria, fora lavado
pela mãe na água em que o menino Jesus se tinha banhado e que ficara
curado no mesmo instante. A caridade e a proteção que a mãe proporcionara
à Sagrada Família, fora recompensada naquela ocasião pela cura simbólica,
que se realizou na cruz, quando foi limpo pelo sangue de Jesus. Dimas caíra
em muitos crimes, mas não era per verso; não conhecia Jesus, a paciência do
Senhor comoveu-o. Enquanto jaziam por ter ra, falava sem cessar de Jesus
com o companheiro: "Maltratam hor rivelmente este Galileu, dizia, o que Ele
fez, pregando a nova doutrina, deve ser pior do que os nossos crimes; mas
Ele tem grande paciência e poder sobre todos os homens." - Gesmas respon-
deu: "Que poder tem? Se fosse tão poderoso, como dizem, podia salvarnos
todos." Desse modo continuavam a falar e quando a cruz do Senhor foi
elevada, vieram car rascos dizer-Ihes: "Agora é a vossa vez" e ar rastaram-nos
para o lugar do suplício. Desamar raram-nos dos madeiros transversais a toda
a pressa, pois o sol já se escurecia e havia um movimento na natureza: como
se uma tempestade se aproximasse.
Os car rascos encostaram escadas às ár vores das cruzes e ajustaram os
lenhos transversais em cima, com cavilhas. Foram então colocadas duas
escadas junto à cruz, para os car rascos. No entanto deram a beber aos
ladrões vinagre misturado com mir ra e vestiram-Ihes o gibão já roto, ataram-
Ihes cordas nos braços e lançando-as sobre os braços da cruz, puxaram-nos
para cima, obrigando-os, a pancadas e pauladas, a subir pelos paus que
estavam fincados no tronco das cruzes. Nos madeiros transversais e nos
troncos já estavam amar radas as cordas, que pareciam ser feitas de cor tiça
torcida. Os braços dos condenados foram amarrados aos madeiros
transversais; ataram-Ihes os pulsos e cotovelos, como também os joelhos e
os pés à cruz e aper taram-nos com tanta violência, torcendo as cordas por
meio de paus, que os ossos estalavam e o sangue Ihes esguichou dos
músculos. Os infelizes soltaram gritos hor ríveis e Dimas, o bom ladrão, disse:
"Se nos tivésseis tratado como a este Galileu, não teríeis mais o trabalho de
puxar-nos aqui para cima.”

5. Os car rascos tiram à sor te as vestes de Jesus

Os car rascos juntaram as vestes de Jesus no lugar onde tinham jazido os


ladrões e fizeram delas vários lotes, para tirar à sor te. O manto era mais
largo em baixo do que em cima e tinha várias pregas; sobre o peito estava
dobrado e for mava assim bolsos. Rasgaram-no em várias tiras, como também
a longa veste branca, aber ta no peito, onde havia cor reias para atá-Ia e
distribuíram-nas pelos lotes; assim fizeram também várias par tes da faixa de
pano que vestia em volta do pescoço, do cinto, do escapulário e do pano com
que cobria o cor po; todas essas vestes estavam ensopadas do sangue de
Nosso Senhor. Como, porém, não chegaram a um acordo a respeito da túnica
sem costuras, que, rasgada em par tes, não ser viria mais para nada, tomaram
uma tabuleta com algarismos e dados em for ma de favas, com marcas, que
trouxeram consigo e jogando esses dados, tiraram à sor te a túnica. Viu-lhes.
porém, um mensageiro de Nicodemos e José de Arimatéia, dizendo-lhe que ao
pé do Cal vário havia quem quisesse comprar as vestes de Jesus; juntaram
então depressa todas as vestes e, cor rendo para baixo, venderam-nas; assim
ficaram essas relíquias com os cristãos.

6. Jesus crucificado e os ladrões

Depois do violento choque da cruz, a cabeça de Jesus, coroada de espinhos,


foi for temente abalada e der ramou grande abundância de sangue; também
das chagas das mãos e dos pés cor reu o sangue em tor rentes. Os car rascos
subiram então pelas escadas e desataram as cordas com que tinham
amar rado o santo cor po, para que o abalo não o fizesse cair. O sangue, cuja
circulação fora quase impedida pela for te pressão das cordas e pela posição
horizontal, afluiu-Lhe então de novo por todo o cor po e as chagas, renovando
todas as dores e causando-Lhe um for te atordoamento. Jesus deixou cair a
cabeça sobre o peito e ficou suspenso como mor to, cerca de sete minutos.
Houve um momento de calma. Os car rascos estavam ocupados em repar tir as
vestes de Jesus; o som das trombetas perdia-se no ar, todos os assistentes
estavam exaustos de raiva ou de dor. Olhei, cheia de susto e compaixão,
para meu Jesus, meu Salvador, a Salvação do mundo; vi-O imóvel,
desfalecido de dor, como mor to e eu também estava àmor te; pensava antes
mor rer do que viver. Minha alma estava cheia de amargura, de amor e dor ;
minha cabeça, que eu sentia cercada de uma rede de espinhos, fazia-me
quase endoidecer de dor ; minhas mãos e meus pés eram como for nalhas
ardentes; dores indizíveis passavam-me, como milhares de raios, pelas veias
e ner vos, encontrando-se e lutando em todos os membros interiores e
exteriores de meu cor po, tor nando-se uma nova fonte de sofrimentos. E todos
esses ter ríveis tor mentos não eram senão amor e todo esse fogo penetrante
de dores era contudo uma noite, em que não via senão meu Esposo, o Esposo
de todas as almas, pregado à cruz e contemplava-O com muita tristeza e
muita consolação.
A cabeça de Jesus, com a hor rível coroa, com o sangue que Lhe enchia os
olhos, os cabelos, a barba e a boca ardente, meio entreaber ta, tinha caído
sobre o peito e também mais tarde só podia levantar-se com indizível tor tura,
por causa da larga coroa de espinhos. O peito do Divino Már tir estava
violentamente dilatado e alçado; os ombros, os cotovelos e os pulsos
distendidos até saírem fora das ar ticulações; o sangue cor ria-Lhe das largas
feridas das mãos sobre os braços; o peito levantado deixava em baixo uma
cavidade profunda; o ventre estava encolhido e diminuído; como os braços,
estavam também as coxas e per nas hor rivelmente deslocadas. Os membros
estavam tão hor rivelmente distendidos e os músculos e a pele a tal ponto
esticados, que se podiam contar os ossos. O sangue escor ria-Lhe em redor
do enor me prego que Lhe traspassava os pés sagrados, regando a ár vore da
cruz. O santo cor po estava todo cober to de chagas, pisaduras ver melhas,
manchas amarelas, pardas e roxas, inchaços e lugares escoriados. As feridas
reabriram-se, pela violenta distensão dos músculos e sangravam em vários
lugares; o sangue que cor ria, era a princípio ainda ver melho, mas pouco a
pouco se tomou pálido e aquoso e o santo cor po cada vez mais branco; por
fim. tomou a cor de car ne sem sangue. Mas, apesar de toda essa cruel
desfiguração, o cor po de Nosso Senhor na cruz tinha um aspecto
extremamente nobre e comovedor ; na verdade, o Filho de Deus, o Amor
Eter no, que se sacrificou no tempo, per maneceu belo, puro e santo nesse
cor po do Cordeiro pascal moribundo, esmagado pelo peso dos peca dos de
toda a humanidade.
A pele da Santíssima Virgem, como a de N. Senhor, tinha por natureza, uma
bela cor ligeiramente amarelada, mesclada de um ver melho trans parente. As
fadigas e as viagens do Mestre nos anos anteriores, lhe tinham tor nado as
faces, sob os olhos e a cana do nariz um pouco tostadas pelo sol. Jesus
tinha um peito largo e for te, branco e sem pêlo, enquanto o de João Batista
estava todo cober to de pelo ruivo. Tinha ombros largos e os músculos dos
braços bem desenvolvidos; as coxas eram ner vosas e musculosas, os joelhos
for tes e robustos, como os de um homem que tem andado muito e rezado
muito de joelhos. Tinha as per nas compridas e a bar riga das per nas for tes,
de muito viajar em ter ras montanhosas. Os pés eram belos e bem
desenvolvidos, a planta dos pés tinha-se tomado calosa, porque geralmente
andava descalço por caminhos r udes. As mãos eram de bela for ma, com os
dedos longos e delgados, não delicados demais, mas também não como as de
um homem que as emprega em trabalhos pesados. Não tinha o pescoço
cur to, mas for te e musculoso. A cabeça tinha boas proporções, não grande
demais; a testa era alta e larga e todo o rosto de um belo e puro oval. O
cabelo, de um castanho aver melhado, não muito grosso, singelamente
repar tido no alto da cabeça, caia-Lhe sobre os ombros; a barba não era
comprida, mas aparada em ponta e repar tida sob o queixo.
Agora, porém, o cabelo fora ar rancado em grande par te, o resto colado com
sangue; o cor po era uma só chaga, o peito estava como que despedaçado, o
ventre escavado e encolhido; em vários lugares se viam as costelas, através
da pele lacerada; todo o cor po estava de tal modo distendido e alongado, que
não cobria mais inteiramente o tronco da cruz.
O madeiro era um pouco ar redondado do lado posterior, na frente liso, com
várias escavações; a largura igualava-lhe mais ou menos a grossura. As
diversas par tes da cruz eram de madeira de diferentes cores, umas pardas,
outras amareladas; o tronco era mais escuro, como madeira que tem estado
muito tempo na água.
As cruzes dos ladrões, trabalhadas mais grosseiramente, foram instaladas do
lado direito e esquerdo do cume, a tal distância da cruz de Jesus, que um
homem podia passar a cavalo entre elas; estavam um pouco mais baixo e
colocadas de modo que olhavam um para o outro.
Um dos ladrões rezava, o outro insultava Jesus que, olhando para baixo,
disse uma coisa a Dimas. O aspecto dos ladrões na cruz era
hor rendo, especialmente o do que ficava à esquerda, criminoso enraivecido,
embriagado, de cuja boca só saiam insultos e maldições. Os cor pos, pen-
dentes da cruz, estavam hor rivelmente deslocados, inchados e cruelmente
amar rados. Os rostos tor naram-se-Ihes roxos e pardos, os lábios escuros,
tanto da bebida, como da pressão do sangue; os olhos inchados e ver melhos,
quase a sair das órbitas. Soltavam gritos e uivos de dor, que Ihes causavam
as cordas; Gesmas praguejava e blasfemava. Os pregos com que os madeiros
transversais foram ajustados ao tronco, forçavam-nos a cur var a cabeça.
Moviam-se e torciam-se convulsivamente na tor tura e apesar das per nas
estarem for temente amar radas, um deles conseguiu puxar um pé para cima,
de modo que o joelho dobrado se lhe ergueu um pouco.

7. Primeira palavra de Jesus na cruz

Depois de crucificar os ladrões e de repar tir as vestes do Senhor, juntaram


os car rascos todos os instrumentos e fer ramentas e, insultando e
escar necendo mais uma vez a Jesus, foram-se embora. Também os fariseus,
que ainda estavam, montaram nos cavalos e passando diante de Jesus,
dirigiram-lhe muitas palavras insultuosas e seguiram para a cidade. Os cem
soldados romanos, com os respectivos comandantes, puseram-se também em
marcha, pois veio outro destacamento, de cinqüenta soldados romanos,
ocupar-Ihes o lugar. Esse destacamento era comandado por Abenadar, árabe
de nascimento, que mais tarde, no batisr r lo, recebeu o nome de Ctesifon. O
oficial subalter no que estava com essa tropa, chamava-se Cassius; era
também muitas vezes encar regado por Pilatos de levar mensagens; recebeu
depois o nome de Longinus. Vieram também a cavalo doze escribas e alguns
anciãos do povo, entre os quais os que foram pedir mais uma vez outra
inscrição para o título da cruz; Pilatos nem os tinha deixado entrar. Cheios
de raiva, andaram a cavalo em redor do lugar do suplício e expulsaram dali a
Santíssima Virgem, chamando-a de mulher perdida. João levou-a para junto
das outras mulheres, que estavam mais afastadas; Madalena e Mar ta
ampararam-na nos braços.
Quando, fazendo a volta da cruz, chegaram diante de Jesus, balançaram a
cabeça, dizendo: "Ar re! Impostor! Como é que destróis o Templo e o
reedificas em três dias? Queria sempre socor rer os outros e agora não se
pode salvar a si mesmo. - Se és o Filho de Deus, desce da cruz. Se é o rei de
Israel, então desça da cruz e creremos nEle. Sempre confiava em Deus, que
Ele venha salvá-Lo agora." Os soldados também zombavam, dizendo: "Se és o
rei dos judeus, salva-te agora.”
Quando "Jesus ainda pendia desmaiado, disse Gesmas, o ladrão à esquerda:
"O demônio abandonou-O." Um soldado fincou então uma esponja embebida
em vinagre sobre a ponta de uma vara e chegou-a aos lábios de Jesus, que
pareceu chupar um pouco. As zombarias continuavam. O soldado disse: "Se
és o rei dos judeus, salva-te." Tudo isso se deu enquanto o destacamento
anterior era substituído pelo de Abenadar.
Jesus levantou um pouco a cabeça e disse: "Meu Pai, perdoai-lhes, porque
não sabem o que fazem"; depois continuou a rezar em silêncio. Então gritou
Gesmas: "Se és o Cristo, salva-te a ti e a nós." Escar neciam-nO sem cessar ;
mas Dimas, o ladrão da direita, ficou muito comovido, ouvindo Jesus rezar
pelos inimigos. Quando Maria ouviu a voz de seu Filho, ninguém mais pôde
retê-Ia: penetrou no círculo do suplício; João, Salomé e Maria, filha de
Cleofas, seguiramna. O centurião não as expulsou.
Dimas, o bom ladrão, obteve pela oração de Jesus uma Iluminação Interior,
no momento em que a Santíssima Virgem se aproximou. Reconheceu em
Jesus e em Maria as pessoas que o tinham curado, quando era criança e
exclamou em voz for te e distinta: "O que? É'possível que insulteis Àquele que
reza por vós? Ele se cala, sofre com paciência, reza por vós e vós o cobris de
escár nio? Ele é um profeta, é nosso rei, é o Filho de Deus." A essa
inesperada repreensão da boca de um miserável assassino, suspenso na
cruz, deu-se um tumulto entre os escar necedores; apanhando pedras,
quiseram apedrejá-Io ali mesmo. Mas o centurião Abenadar não o per mitiu;
mandou dispersá-Ios e restabeleceu a ordem.
Durante esse tempo a Santíssima Virgem se sentia confor tada pela oração
de Jesus. Dimas, porém, disse a Gesmas, que gritara a Jesus: "Se és o
Cristo, salva-te a ti e a nós" - "Também tu não temes a Deus, apesar de
sofreres o mesmo suplício que Ele? Quanto a nós, é muito justo, pois
recebemos o castigo de nossos crimes; este, porém, não fez mal algum.
Pensa nisto, nesta última hora e conver te-te de coração." Essas palavras e
outras mais disse a Gesmas, pois estava todo comovido e iluminado pela
graça; confessou suas faltas a Jesus e disse: "Senhor, se me condenardes,
será muito justo; mas tende misericórdia de mim." Respondeu Jesus:
"Experimentarás a minha misericórdia." Dimas recebeu, por um quar to de
hora, a graça de um profundo ar rependimento.
Tudo que acabo de contar agora, se deu pela maior par te ao mesmo tempo ou
sucessivamente, entre as doze horas e doze e meia, pelo sol, alguns minutos
depois da exaltação da cruz. Mas dai a pouco mudaram rapidamente os
sentimentos nos corações da maior par te dos assisten tes; pois enquanto o
bom ladrão ainda estava falando, eis que se deu na natureza um fenômeno
extraordinário, que encheu de pavor todos os corações.
8. Eclipse do sol. Segunda e terceira palavra de Jesus na cruz

Até pelas 10 horas, quando Pilatos pronunciou a sentença, caíra várias vezes
chuva de pedra; depois, até às 12 horas, o céu estava claro e havia sol; mas
depois do meio dia, apareceu uma neblina ver melha, sombria, diante do sol.
Pela sexta hora, porém, ou como vi pelo sol, mais ou menos às doze e meia,
(a maneira dos judeus de contar as horas é diferente da nossa) houve um
eclipse milagroso do sol. Vi como isso se deu, mas infelizmente não pude
guardá-Io na memória e não tenho palavras para o exprimir. A princípio fui
transpor tada como para fora da ter ra; vi muitas divisões no fir mamento e os
caminhos dos astros, que se cruzavam de modo maravilhoso. Vi a lua do
outro lado da ter ra; vi-a voar rapidamente ou dar um salto, como um globo de
fogo; depois me achei novamente em Jerusalém e vi a lua aparecer sobre o
monte das Oliveiras, cheia e pálida, - o sol estava velado pelo nevoeiro, - e
ela se moveu rapidamente do oriente, para se colocar diante do sol. No come-
ço vi, no lado oriental do sol, uma lista escura, que tomou em pouco tempo a
for ma de uma montanha, cobrindo-o depois inteiramente. O disco do sol
parecia cinzento escuro, rodeado de um círculo ver melho, como uma argola
de fer ro em brasa. O céu tomou-se escuro; as estrelas tinham um brilho
ver melho. Um pavor geral apoderou-se dos homens e dos animais, o gado
fugiu mugindo, as aves procuravam um esconderijo e caiam em bandos sobre
as colinas em redor do Cal vário; podiam-se apanhá-Ias com as mãos. Os
zombadores começaram a calar-se; os fariseus tentavam explicar tudo como
fenômeno natural, mas não conse~ guiram acalmar o povo e eles mesmos
ficaram interior mente apavorados. Todo o mundo olhava para o céu; muitos
batiam no peito e, torcendo as mãos, exclamavam: "Que o seu sangue caia
sobre os seus assassinos." Muitos, de per to e de longe, caíram de joelhos,
pedindo perdão a Jesus, que no meio das dores volvia os olhos para eles.
A escuridão aumentava, todos olhavam para o céu e o Cal vário estava
deser to; ali per maneciam apenas a Mãe de Jesus e os mais íntimos amigos;
Dimas, que estivera mergulhado em profundo ar rependimento, levantou com
humilde esperança o rosto para o Salvador e disse: "Senhor, fazei-me entrar
num lugar onde me possais salvar ; lembrai-vos de mim, quando estiverdes no
vosso reino." Jesus respondeu-lhe: "Em verdade te digo: Hoje estarás comigo
no Paraíso.”
A Mãe de Jesus, Madalena, Maria de Cléofas, Maria Helí e João estavam
entre as cruzes dos ladrões, em redor da cruz de Jesus, olhando para Nosso
Senhor. A Santíssima Virgem, em seu amor de mãe, suplicava interior mente a
Jesus que a deixasse mor rer com Ele. Então olhou o Senhor com inefável
ter nura para a Mãe querida e, volvendo os olhos para João, disse a Maria:
"Mulher, eis aí o teu filho; será mais teu filho do que se tivesse nascido de
ti." Elogiou ainda João, dizendo: "Ele teve sempre uma fé sincera e nunca se
escandalizou, a não ser quando a mãe quis que fosse elevado acima dos
outros." A João, porém, disse: "Eis aí tua Mãe!" João abraçou com muito
respeito, como um filho piedoso, a Mãe de Jesus, que se tinha tor nado
também sua Mãe, sob a cruz do Redentor moribundo. A SS. Virgem ficou tão
abalada de dor, após essas solenes disposições do Filho moribundo, que,
caindo nos braços das santas mulheres, perdeu os sentidos exterior mente;
levaram-na para o ater ro em frente à cruz, onde a sentaram por algum tempo
e depois a conduziram para fora do círculo, para junto das outras amigas.
Não sei se Jesus pronunciou alto todas essas palavras; percebi-as
interior mente, quando, antes de mor rer, entregou Maria Santíssima, como
Mãe, ao Apóstolo querido e este, como filho, a sua Mãe. Em tais con-
templações se percebem muitas coisas, que não foram escritas; é pouco
apenas o que pode exprimir a língua humana. O que lá é tão claro, que se
julga compreender por si mesmo, não se sabe explicar com palavras. Assim
não é de admirar que Jesus, dirigindo-se à Santíssima Virgem, não dissesse:
"Mãe", mas mulher"; pois que ela ali estava na sua digni dade de mulher que
devia esmagar a cabeça da ser pente, naquela hora em que aquela promessa
se realizava, pelo sacrifício do Filho do Homem, seu próprio filho. Não era de
admirar lá que Jesus desse João por filho àquela a quem o Anjo saudava:
"Ave Maria, cheia de graça", porque o nome de João significa "graça"; pois
todos são o que os respectivos nomes significam e João tor nara-se filho de
Deus e Jesus Cristo vivia nele. Percebia-se que Jesus, naquele momento,
dava com aquelas palavras uma mãe, Maria, a todos que, como João, O
recebem e, crendo nEle, se tor nam filhos de Deus, que não foram nascidos do
sangue, nem da vontade da car ne, nem da vontade do homem, mas do próprio
Deus. Sentia-se que a mais pura, a mais humilde, a mais obediente de todas
as mulheres, que se tomara a Mãe do Verbo feito car ne, respondendo ao
Anjo: "Eis aqui a ser va do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra!",
agora, ouvindo do Filho moribundo que se devia tor nar Mãe espiritual de
outro filho, dizia, obediente e humilde, as mesmas palavras, no íntimo do
coração, dilacerado das dores da separação: "Eis aqui a ser va do Senhor,
faça-se em mim segundo a vossa palavra", aceitando assim por filhos todos
os filhos de Deus, todos os ir mãos de Jesus. Tudo isso parece lá tão simples
e necessário, mas aqui é tão diferente, que é mais fácil sentí-Io, pela graça
de Deus, do que o exprimir em palavras.

9. Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol

Eram mais ou menos duas horas e meia, quando fui conduzida à cidade, para
ver o que lá se passava. Encontrei-a cheia de pavor e conster nação; as ruas
em trevas, cober tas de nevoeiro; os homens er ravam cá e lá, às apalpadelas;
muitos estavam prostrados por ter ra, nos cantos, com a cabeça cober ta,
batendo no peito; outros olhavam para o céu ou estavam sobre os telhados,
lamentando-se. Os animais mugiam e escondiam-se, os pássaros voavam
baixo e caiam. Vi que Pilatos fizera uma 'visita a Herodes e que estavam
conster nados, no mesmo ter raço do qual Herodes, de manhã, assistira ao
escár nio de que Jesus fora alvo. "Isto não é natural", disseram, "excederam-
se nos maus tratos infligidos ao Nazareno." Vi-os depois irem juntos ao
palácio de Pilatos, atravessando o fórum; ambos estavam muito assustados,
indo a passos apressados e cercados de soldados. Pilatos não ousou olhar
para o lado do Gábata, o tribunal donde tinha pronunciado a sentença contra
Jesus. O fór um estava deser to; aqui e acolá alguns homens voltavam
apressadamente para casa, outros passavam chorando.
Juntavam-se também alguns grupos de povo nas praças públicas. Pilatos
mandou chamar os anciãos do povo ao palácio e perguntou-Ihes o que
significavam aquelas trevas; disse-Ihes que as tomava por um sinal de
desgraça iminente; o Deus dos judeus parecia estar irado porque haviam
exigido à força a mor te do galileu, que cer tamente era profeta e rei dos
judeus; enquanto ele, Pilatos, não tinha culpa, lavara, as mãos, etc.
Os judeus, porém, ficaram endurecidos, queriam explicar tudo como
fenômeno comum e não se conver teram. Conver teu-se, contudo, muita gente,
entre outros também todos os soldados que, na véspera, tinham caído por
ter ra e se levantado, quando prenderam Jesus no monte das Oliveiras.
No entanto juntou-se uma multidão de povo diante do palácio de Pilatos e
onde de manhã tinham gritado: "Crucifica-o! crucifica-o!", gritavam agora:
"Fora o juiz injusto! Que o sangue do Crucificado caia
sobre os seus assassinos!" Pilatos viu-se obrigado a rodear-se de guardas.
Zodóc, que, de manhã, quando Jesus fora conduzido ao pretório, lhe
proclamara alto a inocência, agitou-se e falou com tal energia diante do
palácio, que Pilatos esteve a ponto de mandá-Io prender. Pilatos, o miserável
desalmado, atribuiu toda a culpa aos judeus: disse que não tinha nada com
isso, que Jesus era o rei, o profeta, o Santo dos judeus, a quem estes tinham
levado à mor te e nada tinha com Ele, nem lhe cabia culpa; os próprios judeus
é que lhe tinham exigido a mor te, etc.".
No Templo reinava extremo susto e ter ror. Estavam ocupados na imolação do
cordeiro pascal, quando veio de repente a escuridão. Tudo estava em
confusão e aqui e acolá se ouviam gritos angustiantes. Os príncipes dos
sacerdotes fizeram tudo para conser var a calma e a ordem: fizeram acender
todas as lâmpadas, apesar de ser meio dia, mas a confusão crescia cada vez
mais. Vi Anás preso de susto e ter ror ; cor ria de um canto a outro, para se
esconder. Quando tor nei a sair da cidade, ouvi as grades das janelas das
casas tremerem, sem haver tempestade. A escuridão crescia cada vez mais.
Na par te exterior da cidade, ao noroeste, per to do muro, onde havia muitos
jardins e sepulturas, desabaram algumas entradas de sepulcros, como se
houvesse um tremor de ter ra.

10. Abandono de Jesus. A quar ta palavra de Jesus na cruz

Sobre o Gólgota fizeram as trevas uma impressão ter rível. A hor rorosa fúria
dos car rascos, os gritos e maldições na elevação da cruz, os uivos dos
ladrões ao serem amar rados ao madeiro, os insultos dos fariseus a cavalo, o
revezar dos soldados, a barulhenta par tida dos carrascos embriagados, tudo
isso diminuíra a princípio um pouco o efeito das trevas. Seguiram-se depois
as repreensões do ladrão penitente, Dimas e a raiva dos fariseus contra ele.
Mas à medida que crescia a escuridão, tor navam-se mais pensativos os
espectadores, afastando-se da cruz. Foi então que Jesus recomendou sua
Mãe a João e que Maria foi conduzida a alguma distância do lugar do
suplício. Houve um momento de solene silêncio; o povo estava assustado
com as trevas; a maior par te olhava para o céu; em muitos corações se
levantou a voz da consciência; muitos se ar rependeram e, olhando para a
cruz, bateram no peito; pouco a pouco se for maram grupos de pessoas que
sentiam essas mesmas impressões. Os fariseus, ocultando o ter ror, ainda
procuravam explicar tudo pelas leis naturais, mas baixavam cada vez mais a
voz e afinal quase não ousavam mais falar ; de vez em quando ainda proferiam
uma palavra insolente, mas soava um tanto forçada. O disco do sol estava
meio escuro, como uma montanha ao luar ; estava rodeado de um anel
ver melho. As estrelas tinham um brilho r ubro; os pássaros caiam sobre o Cal
vário e nas vinhas vizinhas entre os homens e deixavam-se pegar com a mão;
os animais dos ar redores mugiam e tremiam; os cavalos e jumentos dos
fariseus aper tavam-se uns de encontro aos outros, baixando as cabeças. O
nevoeiro úmido envolvia tudo.
Em redor da cruz reinava silêncio; todos se tinham afastado, muitos fugiram
para a cidade. O Salvador, naquele infinito mar tírio, mergulhado no mais
profundo abandono, dirigindo-se ao Pai celestial, rezava pelos inimigos,
impelido pelo amor. Rezava, como durante toda a Paixão, recitando versos de
salmos que nEle se cumpriam. Vi figuras de Anjos em redor d’Ele. Quando,
porém, a escuridão cresceu e o ter ror pesava sobre todas as consciências e
todo o povo estava em sombrio silêncio, ficou Jesus abandonado de todos e
privado de toda a consolação. Sofria tudo quanto sofre um pobre homem,
aflito e esmagado pelo absoluto abandono, sem consolação divina ou
humana, quando a fé, a esperança e a caridade, privadas de iluminação e
consolo, de visível assistência, ficam sozinhas no deser to da provação,
vivendo de si mesmas, num infinito mar tírio. Tal sofrimento não se pode
exprimir. Nessa tor tura moral, Jesus nos alcançou a força de resistir mos na
extrema miséria do abandono, quando se rompem todos os laços e relações
com a existência e a vida ter rena com o mundo e a natureza em que vivemos,
quando se desfazem também as perspectivas que esta vida em si nos abre,
para outra existência; nessa provação venceremos, se unir mos nosso
abandono com os merecimentos do abandono de Jesus na cruz. O Salvador
conquistounos os méritos da perseverança, na extrema luta do absoluto
abandono e ofereceu por nós, pecadores, a miséria, a pobreza, o mar tírio, o
abandono, que sofreu na cruz, de modo que o homem, unido a Jesus no seio
da Igreja, não deve mais desesperar na hora extrema, quando tudo
se escurece e toda a luz e consolação acaba. Não temos mais de descer
nesse deser to da noite interior, sozinhos e sem proteção. Jesus lançou no
abismo desse mar de amargura, o abandono exterior e interior que padeceu
na cruz e assim não mais deixou os cristãos desamparados no abandono da
mor te, quando desaparece toda a consolação. Não há mais para o cristão
nem deser to, nem solidão, nem abandono, nem desespero, na hora da mor te,
no último combate; pois o Salvador, a luz, o caminho e a verdade, também
andou por esse caminho tenebroso, der ramando bênçãos e vencendo todos
os ter rores e erigiu sua cruz também nesse deser to.
Jesus, inteiramente desamparado e abandonado, ofereceu-se, como faz o
amor, a si mesmo por nós, fez até do abandono um riquíssimo tesouro; pois
se ofereceu, com toda sua vida, seus trabalhos, amor e sofrimento e a
dolorosa experiência de nossa ingratidão, ao Pai celestial, por nossa
fraqueza e pobreza. Fez testamento diante de Deus e ofereceu todos os seus
merecimentos à Igreja e aos pecadores. Pensou em todos; naquele abandono
estava com todos, até o fim dos séculos; e assim rezou também por aqueles
hereges que afir mam que sendo Deus, não sentiu as dores da Paixão e não
sofreu ou sofreu menos do que um homem comum em igual mar tírio. -
Par ticipando dessa oração e sentindo com Ele as angústias, parecia-me ouví-
Lo dizer, que: "se devia ensinar o contrário, isto é, que Ele sentiu esse
sofrimento do abandono com mais amargura do que um homem comum,
porque estava intimamente unido à Divindade, porque era verdadeiro Deus e
verdadeiro homem e no sentimento da humanidade abandonado por Deus,
bebeu, como Deus- Homem, até o fundo o cálice do abandono completo.”
E testemunhou por um grito a dor do abandono, dando assim a todos os
aflitos, que reconhecem a Deus por Pai, a liberdade de uma queixa cheia de
confiança filial. Pelas três horas, Jesus exclamou em alta voz: "Eli, Eli, lama
Sabachtani!", o que quer dizer : "Meu Deus, meu Deus, porque me
abandonastes?”
Quando esse grito de Nosso Senhor inter rompeu o angustiante silêncio que
reinava em redor da cruz, os escar necedores se voltaram novamente para Ele
e um deles disse: "Ele chama Elias", e outro: "Vamos ver, se Elias vem ajudá-
Lo a descer da cruz." Quando, porém, Maria ouviu a voz do Filho, nada mais
pôde retê-Ia; voltou para junto da cruz, seguida por João, Maria, filha de
Cleofas, Madalena e Salomé.
Enquanto o povo tremia e gemia, vinha passando per to um grupo de cerca de
trinta homens a cavalo, notáveis da Judéia e da região de Jope, que tinham
vindo para a festa; e quando viram Jesus tão hor rivelmente tratado e os
sinais ameaçadores que se mostravam na natureza, exprimiram em alta voz o
hor ror que sentiam, exclamando: "Ai! desta cidade abominável! Se nela não
estivesse o Templo, devia-se destruí-Ia a fogo, por se ter tomado culpada de
tanta iniqüidade.”
As palavras desses distintos estrangeiros foram como um ponto de apoio
para o povo, que rompeu em mur muração e altos lamentos; os que tinham os
mesmos sentimentos, juntaram-se em grupos. Todos os presentes for maram
dois par tidos: uns mur muravam e lamentavam-se, os outros proferiam
insultos e maldições. Os fariseus, porém, ficavam cada vez menos
ar rogantes; temendo um levantamento do povo, porque também o povo de
Jerusalém estava sobressaltado, aconselharam-se com o centurião
Abenadar ; deram-se ordens para fechar a por ta da cidade que dava para o
Calvário, cor tando assim toda a comunicação; mandaram também um
mensageiro a Pilatos, para pedir 500 soldados e de Herodes a guarda real,
para impedir uma insur reição. No entanto conseguiu o centurião Abenadar,
pela energia, restabelecer a ordem e calma, proibindo qualquer insulto a
Jesus, para não ir ritar o povo.
Logo depois das três horas, o céu começou a clarear-se; a lua afastou-se
gradualmente do sol, para o lado oposto àquele de que viera. O sol
reapareceu, sem brilho, ainda vedado pelo nevoeiro ver melho e a lua ia
descendo rapidamente para o outro lado, como se caísse. Pouco a pouco o
sol readquiriu mais claridade e as estrelas desapareceram; contudo o dia
ainda per manecia sombrio. A medida que reaparecia a luz, tor navam-se os
inimigos escar necedores mais ar rogantes; foi nessa ocasião que disseram:
"Ele chama Elias." Abenadar, porém, impôs-Ihes silêncio e manteve a ordem.

11. Quinta, Sexta e Sétima palavras de Jesus na cruz. Mor te de Jesus

Quando a luz voltou, surgiu o cor po de Nosso Senhor, pálido, extenuado,


como que inteiramente desfalecido, mais branco do que antes, por causa da
grande perda de sangue. Jesus disse ainda, não sei se o percebi só
interior mente ou se Ele o disse a meia voz: "Sou espremido como as uvas,
que foram pisadas aqui pela primeira vez; devo dar todo o meu sangue, até
sair água e o bagaço ficar branco; mas não se fará mais vinho neste lugar".
Mais tarde vi, numa visão a respeito dessas palavras, que foi nesse lugar que
Jafé pela primeira vez pisou as uvas, para fazer vinho, como hei de contar
mais tarde, (vide Apêndice no. 5).
Jesus consumia-se de sede e disse com a língua seca: "Tenho sede." E como
os amigos o olhassem com tristeza,disse-lhes:"Não me podíeis dar um gole
de água?" Queria dizer que durante a escuridão ninguém os teria impedido.
João, muito incomodado, respondeu: "Senhor, esquecemo-Io mesmo." Jesus
disse ainda algumas palavras, cujo sentido era: "Também os amigos mais
íntimos deviam esquecer-se e não me dar a beber, para que se cumprisse a
Escritura." Mas esse esquecimento Lhe doeu amargamente. Ofereceram
então dinheiro aos soldados, para Lhe dar um pouco de água; eles
recusaram, mas um deles tomou uma esponja em for ma de pera, embebeu-a
em vinagre, que havia lá num pequeno bar ril de casca de ár vore e ainda lhe
misturou fel. Mas o centurião Abenadar, compadecido de Jesus, tomou a
esponja do soldado, espremeu-a e embebeu-a de vinagre puro. Ajustou depois
um lado da esponja num pedaço cur to de uma haste de hissope, que ser via
de boquilha para chupar, fincou-o na ponta da lança e levantou-a à altura do
rosto de Jesus, aproximando-Lhe dos lábios a esponja.
Nosso Senhor ainda disse algumas palavras de exor tação ao povo; lembro-me
apenas que disse: "Quando minha voz não se fizer mais ouvir, falará a boca
dos mor tos"; ao que alguns gritaram: "Ainda continua blasfemando."
Abenadar, porém, os mandou calar.
Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte e um suor
frio cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e enxugou-Lhe os pés
com o sudário. Madalena, esmagada pela dor, encostava-se à cruz no lado de
trás. A Santíssima Virgem estava entre a cruz do bom ladrão e a de Jesus,
amparada pelos braços de Maria de Cleofas e Salomé, olhando para o Filho,
que lutava com a mor te. Então disse Jesus: "Tudo está consumado!" e,
levantando a cabeça, exclamou em alta voz: "Meu Pai, em vossas mãos
entrego o meu espírito." Foi um grito doce e for te, que penetrou o Céu e a
ter ra; depois inclinou a cabeça e expirou. Vi a alma de Jesus, em for ma
luminosa, entrar na ter ra, ao pé da cruz e descer ao Limbo. João e as santas
mulheres prostraram-se com a face na ter ra.
O centurião Abenadar, árabe de nascimento, depois, como discípulo, batizado
com o nome de Ctesifon, desde que oferecera o vinagre a Jesus, ficara a
cavalo junto à elevação onde estavam erigidas as cruzes, de modo que o
cavalo tinha as patas dianteiras mais no alto. Profundamente abalado,
entregue a sérias reflexões, contemplava incessantemente o semblante de
Nosso Senhor, coroado de espinhos. O cavalo baixara assustado a cabeça e
Abenadar, cujo orgulho estava domado, não puxava mais as rédeas. Nesse
momento pronunciou o Senhor as últimas palavras, em voz alta e for te e
mor reu dando um grito, que penetrou o Céu, a ter ra e o infer no. A ter ra
tremeu e o rochedo fendeu-se, deixando uma larga aber tura entre a cruz do
Senhor e a do ladrão à esquerda. O testemunho que Deus deu de seu Filho,
abalou com susto e ter ror a natureza enlutada. Estava consumado! A alma de
Nosso Se nhor separou-se do cor po e ao grito de mor te do Redentor
moribundo estremeceram todos que O ouviram, junto com a ter ra que,
tremendo, reconheceu o Salvador ; os corações amigos, porém, foram
transpassados pela espada da dor. Foi então que a graça desceu à alma de
Abenadar ; estremeceu emocionado, cederam-lhe as paixões e o coração
orgulhoso e duro, fendeu-se-Ihe como o rochedo do Cal vário. Lançou longe
de si a lança, bateu no peito com força e exclamou alto, com a voz de um
homem novo: "Louvado seja Deus, Todo-poderoso, o Deus de Abraão e Jacó!
Este era um homem justo; em verdade, Ele é o Filho de Deus'" E muitos dos
soldados, tocados pela palavra do centurião, fizeram o mesmo.
Abenadar, tor nado novo homem, salvo pela graça e tendo rendido
publicamente homenagem ao Filho de Deus, não quis ficar mais tempo a
ser viço dos inimigos de Cristo. Dirigiu-se a cavalo ao oficial subalter no,
Cássio, também chamado Longinus, apeou-se, apanhou a lança e entregou-
lha; disse algumas palavras aos soldados e a Cássio, que então montou a
cavalo e tomou o comando. Abenadar desceu do Cal vário e, atravessando o
vale de Gihon, dirigiu-se às caver nas do vale de Hinom, onde estavam
escondidos os discípulos; anunciou-Ihes a mor te do Senhor e voltou de lá à
cidade, ao palácio de Pilatos.
Grande espanto apoderou-se dos assistentes, ante o grito de mor te de Jesus,
quando a ter ra tremeu e o rochedo do Cal vário se fendeu. Esse ter ror fez-se
sentir em toda a natureza; pois rasgou-se o véu do Templo, muitos mor tos
saíram das sepulturas, desabaram algumas paredes do Templo, ruíram
muitos edifícios e desmoronaram montes em muitas regiões da ter ra.
Abenadar deu testemunho em alta voz, muitos soldados testemunharam com
ele, grande par te do povo presente e também alguns dos fariseus, chegados
no fim, se conver teram. Muitos bateram no peito e, descendo do monte,
voltaram chorando pelo vale para casa; outros rasgaram as vestes e
lançaram pó sobre a cabeça. Todo o mundo estava cheio de medo e ter ror.
João levantou-se e algumas das santas mulheres, que até então tinham
ficado afastadas, aproximaram-se da cruz; levantaram a Mãe de Jesus e as
amigas, conduziram-nas a alguma distância da cruz, para as confor tar.
Quando Jesus, cheio de amor, Senhor de toda a vida, pagou pelos pecadores
a dolorosa dívida da mor te; quando entregou, como homem, a alma a Deus
seu Pai e abandonou o cor po, tomou esse santo vaso esmagado a fria e
pálida cor da mor te; o cor po tremeu-Lhe convulsivamente nas últimas dores
e tomou-se lívido e os vestígios do sangue der ramado das chagas ficaram
mais escuros e distintos. O rosto alongou-se, as faces encolheram-se, o nariz
ficou mais delgado e pontiagudo, o queixo caiu, os olhos, cheios de sangue e
fechados, abriramse, meio envidraçados. O Senhor levantou pela última vez e
por poucos momentos a cabeça, coroada de espinhos e deixou-a depois cair
sobre o peito, sob o peso dos sofrimentos. Os lábios lívidos e contraídos
entreabriram-se, deixando ver a língua ensangüentada. As mãos, antes
fechadas sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os braços,
as costas entesaram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo cor po
desceu sobre os pés. Os joelhos cur varam-se, tomando para um lado e os pés
viraram-se um pouco em redor do prego que os trespassara.
Então se entesaram as mãos da Mãe Dolorosa, a vista escureceu-selhe,
palidez de mor te cobriu-lhe o rosto, os ouvidos deixaram de escutar, os pés
vacilaram e ela caiu por ter ra; também Madalena, João e os outros se
prostraram, com a cabeça velada, entregues à dor.
Quando ergueram a mais amorosa, a mais desolada das mães, dirigindo os
olhos à cruz, ela viu o cor po do Filho adorado, concebido na virgindade, por
obra e graça do Espírito Santo, car ne de sua car ne, osso de seus ossos,
coração de seu coração, vaso sagrado for mado no seu seio pela vir tude
divina, agora privado de toda a beleza e for mosura, separado da alma
santíssima, entregue às leis da natureza que Ele próprio criara e de que os
homens tinham abusado pelo pecado, desfigurando-a; viu o cor po do Filho
Unigênito esmagado, maltratado, desfigurado, mor to pelas mãos daqueles
que viera salvar e vivificar. Ai! O vaso de toda beleza e verdade, de todo
amor, pendia da cruz, entre dois assassinos, vazio, rejeitado, desprezado,
insultado, semelhante a um leproso. Quem pode compreender toda a dor da
Mãe de Jesus, rainha de todos os már tires?
A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de ter ra foi
acompanhado de calor sufocante; mas seguiu-se-Ihe depois um frio sensível.
O cor po de Nosso Senhor mor to, na cruz, causava um sentimento de respeito
e estranha comoção. Os ladrões pendiam em hor ríveis contorções, como
embriagados. Ambos estavam no fim calados; Dimas rezava.
Era pouco depois das três horas, quando Jesus expirou. Passado o primeiro
ter ror causado pelo tremor de ter ra, alguns dos fariseus recobraram a
anterior ar rogância. Aproximando-se da fenda no rochedo do Calvário,
jogaram-lhe pedras e atando várias cordas, amar raram uma pedra, fizeram-na
entrar na fenda, para medir-lhe a profundidade; quando, porém, não tocaram
no fundo, tomaram-se mais pensativos. Também se sentiam inquietos com os
lamentos do povo, que batia no peito; e por isso, montando a cavalo,
retiraram-se; alguns se sentiam mudados interior mente. O povo também se
retirou em pouco tempo, indo pelo vale para a cidade, cheio de medo e
ter ror. Muitos se tinham conver tido. Uma par te dos 50 soldados romanos foi
reforçar a guarda da por ta, até a chegada dos 500, requeridos por Pilatos. A
por ta tinha sido fechada; alguns soldados ocuparam outros pontos da
vizinhança, para impedir ajuntamento e tumulto. Cássio (Longino) e cerca de
cinco soldados ficaram no lugar do suplício. Os parentes de Jesus estavam
em redor da cruz ou sentados em frente, chorando. Algumas santas mulheres
tinham voltado à cidade. Silêncio e tristeza reinavam em volta do lenho
sagrado. De longe, no vale e nas alturas afastadas, se via de vez em quando
um ou outro dos discípulos, olhando com curiosidade e receio para a cruz,
mas retirando-se timidamente, ao aproximar-se alguém.

12. O tremor de ter ra, aparição de mor tos em Jerusalém

Quando Jesus, com um grito for te, entregou o espírito nas mãos do Pai
celestial, a alma do Salvador, qual for ma luminosa, acompanhada de
brilhante cor tejo de Anjos, entrou na ter ra, ao pé da cruz; entre os Anjos
estava também S. Gabriel. Vi esses Anjos expulsarem grande número de
espíritos maus da ter ra para o abismo. Jesus, porém, mandou muitas almas
do limbo para que, retomando os cor pos, assustassem os impenitentes, os
exor tassem a conver ter-se e dessem testemunho d’Ele.
O tremor de ter ra, na hora da mor te do Redentor, quando o rochedo do
Calvário se fendeu, causou muitos desmoronamentos e desabamentos em
todo o mundo, especialmente na Palestina e em Jer usalém. Maio povo na
cidade e no Templo sossegara um pouco, ao desaparecer a escuridão, eis
que os abalos do solo e o estrondo do desabamento dos edifícios, em muitos
lugares, espalharam um ter ror geral e ainda maior do que dantes. O pavor
chegou ao extremo, quando apareceram os mor tos ressuscitados, andando
pelas r uas e admoestando com voz rouca o povo, que fugia, chorando, em
todas as direções.
No Templo, os príncipes dos sacerdotes acabavam justamente de
restabelecer a ordem e recomeçar os sacrifícios, suspensos pelo ter ror das
trevas e triunfavam com a volta da luz, quando de repente tremeu o solo,
ouvindo-se um estrondo de muros a desabar, acompanhado de ruido sibilante
do véu do Templo, que se rasgou de alto a baixo, causando um momento de
mudo ter ror na imensa multidão, inter rompido em diversos lugares por gritos
e lamentos. Mas a multidão estava tão habituada à ordem do Templo, o
imenso edifício tão repleto de gente, a ida e vinda dos que ofereciam
sacrifícios estava tão bem regulada, as cerimônias da imolação dos
cordeiros e da aspersão do altar com o sangue se desenrolavam tão
regular mente, através das longas fileiras dos sacerdotes, acompanhadas de
canto e do alto som das trombetas, que o susto não produziu logo no
principio uma confusão e desordem geral. Assim, pois, continuavam os
sacrifícios em algumas par tes do imenso edifício do Templo, com as
inúmeras passagens e salas, quando em outra par te já reinava o espanto e
ter ror e em outros lugares os sacerdotes já conseguiam acalmar o povo; mas
ao aparecimento dos mor tos, em várias par tes do Templo, todo o povo se
dispersou e o sacrifício foi inter rompido, como se o Templo fosse profanado.
Contudo nem isso se deu repentinamente, de modo que a multidão se tivesse
precipitado pelos degraus abaixo, empur rando e esmagando-se uns aos
outros; mas dissolveu-se gradualmente, saindo em grupos, enquanto outros
eram ainda contidos pelos sacerdotes ou estavam em par tes separadas do
Templo. Todavia, manifestava-se o medo e o ter ror em toda par te, em
diversos graus, de um modo incrível.
Pode-se fazer uma idéia da desordem e confusão que reinava, imaginando um
grande for migueiro, de tranqüilo movimento, em que se jogam pedras ou se
remexe com um pau; enquanto reina confusão num ponto, em outro ainda
continua o movimento e a atividade toda regular e mesmo no lugar onde
houve desar ranjo, logo começa a restabelecer-se a ordem.
O sumo sacerdote Caifás e seu par tido, com audácia desesperada, não
perderam a cabeça. Como um hábil gover nador de uma cidade revoltada,
afastou a confusão, ameaçando aqui, exor tando ali, desunindo os par tidos,
atraindo outros com muitas promessas. Devido ao seu endureéimento
diabólico e aparente calma, conseguiu impedir uma perigosa per turbação
geral, fazendo com que a massa do povo não visse nesses acontecimentos
assustadores um testemunho da mor te inocente de Je sus. A guar nição do
for te Antônia também fez tudo para conser var a ordem; deste modo era o
ter ror e a confusão grande, é verdade, mas cessou a celebração da festa,
sem que houvesse tumulto. O povo dispersou-se, ficando ainda com um
oculto pavor, que também foi pouco a pouco abafado pela ação dos fariseus.
Essa era a situação geral da cidade; seguem-se agora alguns incidentes
par ticulares, de que ainda me lembro: As duas grandes colunas situadas à
entrada do Santuário do Templo e entre as quais estava suspensa a
magnífica cor tina, afastaram-se no alto, a da esquerda para o sul, a da
direita para o nor te; a verga que supor tavam, abaixou-se e a grande cor tina
par tiu-se em duas, de alto a baixo, com um som sibilante e, caindo as duas
par tes para os lados, abriu-se o santuário. Essa cor tina era ver melha, azul,
branca e amarela; trazia o desenho de muitas constelações dos astros e
também figuras, como, por exemplo, a da ser pente de bronze. O santuário
estava aber to a todos os olhares. Per to da cela onde Simeão costumava
rezar, no muro ao nor te, ao lado do santuário, tombou uma pedra grande e a
abóbada da cela desabou; em várias salas se afundou o solo, umbrais
deslocaram-se e colunas cederam para os lados.
No santuário apareceu, proferindo palavras de ameaça, o Sumo Sacerdote
Zacarias, que fora assassinado entre o Templo e o altar ; falou também da
mor te do outro Zacarias (*) e de João Batista, como em geral da mor te dos
profetas. Ele saiu pela aber tura que ficara, onde caiu a pedra na cela de
Simeão e falou aos sacerdotes que estavam no Santo. Dois filhos do piedoso
Sumo Sacerdote Simão o Justo, bisavô do velho sacerdote Simeão que
profetizara na apresentação de Jesus no Templo, apareceram como espíritos
grandes, per to da grande cátedra (cadeira dos doutores), proferindo palavras
severas sobre a mor te dos profetas e sobre o sacrifício que ia cessar ;
exor taram a todos a que seguissem a doutrina de Jesus crucificado. Per to do
altar apareceu o profeta Jeremias, proclamando em voz ameaçadora o fim do
sacrifício antigo e o começo do novo. Essas aparições e palavras, em lugares
onde só Caifás e os sacerdotes as ouviram, foram negadas ou ocultadas e foi
proibido falar nisso, sob pena de grande excomunhão. Mas ouviu-se ainda um
grande ruído; abriram-se as por tas do santo e uma voz gritou: "Saiamos
daqui!" Vi então Anjos, que se retiraram do Templo. O altar do incenso
tremeu e caiu um dos vasos de incenso; o ar mário que continha os rolos da
Escritura, tombou e os rolos caíram fora, em desordem; a confusão au-
mentou, não sabiam mais que hora do dia era.
(*) Em 1821 Anna Catharina contemplou o primeiro ano da vida pública de
Jesus e, em meados de Setembro, contou muitas coisas sobre as relações do
Senhor com um velho Esseno, Eliud, sobrinho de Zacarias pai de João
Batista. Eliud morava num lugar situado antes de chegar a Nazaré, onde
também Jesus ficou alguns dias antes de ser batizado. Das conversas de
Eliud e Jesus, Anna Catharina aprendeu muitos fatos, que se referem aos
primórdios da história da sagrada Família. Entre outros contou, a 18 de
Setembro, pelas visões que teve, de dez dias antes do batismo de Jesus:
"Hoje ouvi o seguinte: no sexto ano de João Batista foi Isabel, sua mãe, viver
com ele no deser to. Não podia mais ficar em casa, por causa da tristeza que
a acabrunhava: pois Herodes mandara prender o marido, Zacarias, que
estava em viagem de Hebron a Jerusalém, para fazer o ser viço no Templo:
depois de o ter sujeitado a cruéis tor turas mandara matá-Io, por não querer
revelar o esconderijo do filho. Amigos sepultaram o cor po per to do Templo.
Esse não é, porém, aquele Zacarias que fora mor to entre o Templo e o altar,
a quem vi aparecer depois da mor te de Jesus; saiu do muro, ao lado do
oratório do velho Simeão e andou pelo Templo; o túmulo em que estava, era
no muro e r uiu, como vários outros sepulcros no Templo, etc.

Nicodemos, José de Arimatéia e muitos outros abandonaram o Templo e


foram-se embora. Jaziam cor pos de mor tos, em vários lugares; outros mor tos
ressuscitados andavam no meio do povo, exortando-o com palavras severas;
à voz dos Anjos que se afastaram do Templo, também eles voltaram às
sepulturas. A grande cátedra, no átrio do Templo, caiu. Vários dos 32
fariseus que tinham ido ao Calvário, mais tarde voltaram, durante essa
confusão e, como se tinham conver tido ao pé da cruz, ficaram ainda mais
comovidos com esses sinais, de modo que censuraram com grande energia a
Anás e Caifás, retirando-se depois do Templo.
Anás, o verdadeiro chefe dos inimigos de Jesus, que desde muito tempo
dirigira todas as intrigas secretas contra o Salvador e os discípulos e que
também instruíra os acusadores, estava quase doido de ter ror ; fugia de um
canto para outro das salas secretas do Templo; vi-o gritando e torcendo-se
em convulsões; levaram-no a um quar to secreto, rodeado de alguns dos
par tidários. Caifás deu-lhe uma vez um for te abraço, para o reanimar ; mas
em vão; a aparição dos mor tos tinha-o levado ao desespero.
Caifás, apesar de estar também cheio de pavor, estava de tal modo possesso
do demônio do orgulho e da obstinação, que não deixava perceber nada do
susto que sentia. Cheio de raiva e orgulho, ocultava o medo e mostrava uma
testa de bronze aos sinais ameaçadores da cólera divina. Quando, porém,
apesar de todos os esforços, não pôde mais fazer as cerimônias da festa, deu
ordem de guardar silêncio sobre os prodígios e aparições de que o povo não
tinha conhecimento. Disse e mandou outros sacerdotes também dizerem que
esses sinais de cólera divina eram provocados pelos par tidários do galileu
crucificado, que entraram no Templo sem se terem purificado; que somente
os inimigos da santa lei, a qual Jesus também quisera der r ubar, tinham
causado esse ter ror. Muito se devia também à feitiçaria do galileu que, como
em vida, assim também na mor te, per turbava a paz do Templo." Desse modo
conseguiu acalmar muitos e intimidar outros com ameaças; muitos, porém,
estavam profundamente abalados e ocultavam os sentimentos. A festa foi
adiada, até a purificação do Templo. Muitos cordeiros foram imolados; o povo
dispersou-se pouco a pouco.
O túmulo de Zacarias, sob o muro do Templo, desabara, ar rastando consigo
as pedras do muro; Zacarias saiu do túmulo, mas não voltou mais para lá,
não sei onde depositou de novo os restos mor tais. Os filhos ressuscitados de
Simeão o Justo, depositaram os cor pos novamente, no túmulo, ao pé do
monte do Templo, na hora em que o cor po de Jesus foi preparado para a
sepultura.
Enquanto tudo isso se passava no Templo, reinava o mesmo espanto em
muitas par tes de Jerusalém. Logo depois das três horas, ruíram muitos
túmulos, par ticular mente na região dos jardins, ao noroeste, dentro da
cidade. Vi lá, nos túmulos, mor tos ainda envoltos em panos; em outros
jaziam esqueletos, com far rapos apodrecidos, de muitos saia um mau cheiro
insupor tável. No tribunal de Caifás desabaram as escadas em que Jesus fora
escar necido, também par te do fogão do átrio, onde Pedro começara a negar
Jesus. A destruição era tal, que era preciso procurar outra entrada. Ali
apareceu o cor po do Sumo Sacerdote Simão o Justo, a cuja descendência
per tencia Simeão, que proferiu a profecia, na apresentação do Menino Jesus
no Templo. Esse falou algumas palavras ameaçadoras, a respeito do
julgamento injusto que se fizera ali. Estavam reunidos alguns membros do
Sinédrio. Os criados que no dia anterior deixaram entrar Pedro e João,
conver teram-se e fugiram para as caver nas onde estavam escondidos os
discípulos. No palácio de Pilatos se fendeu a pedra e afundou-se o solo onde
Jesus fora apresentado ao povo por Pilatos. Todo o edifício tremeu e vacilou;
no pátio do tribunal vizinho se afundou todo o lugar onde estavam sepultados
os cor pos das inocentes crianças que Herodes mandara assassinar. Em
vários outros lugares da cidade se fenderam muros, caíram paredes; mas
nenhum edifício foi totalmente destruído.
Pilatos, supersticioso e confuso, estava preso de ter ror e incapaz de
desempenhar o cargo; o ter remoto abalou-lhe o palácio, o solo tremia-Ule
debaixo dos pés, fugia de uma sala para outra. Os mor tos mostravam-se-lhe
no átrio do palácio, lançando-lhe em rosto o julgamento iníquo e a sentença
contraditória. Julgando que fossem os deuses do profeta Jesus, encer rou-se
num quar to secreto do palácio, onde ofereceu incenso e sacrifícios aos
deuses pagãos, fazendo promessas, para que os ídolos impedissem os deuses
do Galileu de fazer-lhe mal. Herodes estava no palácio, desvairado de pavor e
mandara fechar todas as por tas.
Foram cerca de cem os mor tos, de todas as épocas, que em Jerusalém e
ar redores se levantaram dos sepulcros destruídos e na maior par te se
dirigiram, dois a dois, a diversos pontos da cidade, apresentando-se ao povo,
que fugia em todas as direções e dando, em algumas palavras, severo
testemunho de Jesus. A maior par te dos túmulos estavam situados na
solidão dos vales, fora da cidade; mas havia-os também nos novos bair ros da
cidade, especialmente na região dos jardins, ao noroeste, entre a por ta
angular e a do Cal vário; também em redor e debaixo do Templo havia muitos
túmulos ocultos ou esquecidos.
Nem todos os mor tos que pela destruição dos túmulos ficaram à vista,
ressuscitaram; havia muitos que se tomaram vivíveis só porque estavam
numa sepultura comum com os outros. Muitos, porém, cujas almas Jesus
mandara do Limbo à ter ra, se levantaram, descobriram o rosto e andavam,
como pairando, pelas r uas, iam às casas dos parentes, entravam nas casas
dos descendentes, censurando-os com palavras ameaçadoras, por terem
tomado par te na mor te de Jesus. Vi as aparições procurarem juntar-se,
confor me as antigas amizades e andar duas a duas pelas r uas da cidade. Não
vi o movimento dos pés sob as longas túnicas mor tuárias, pareciam pairar
sobre o solo, sem o tocar ; as mãos ou estavam envoltas em largas faixas de
linho, ou escondidas nas largas mangas pendentes e ligadas em redor dos
braços; os véus do rosto estavam levantados e postos sobre a cabeça; as
faces pálidas, amareladas e secas, destacavam-se das longas barbas; as
vozes tinham um som estranho e incomum. Essas vozes eram a única
manifestação dos cor pos, que passavam de lugar em lugar, sem parar e sem
se impor tar com o que encontravam no caminho; parecia que eram só vozes.
Estavam diversamente vestidos, confor me a época da mor te e segundo a
classe e a idade. Nas encruzilhadas, onde fora promulgada a sentença de
mor te contra Jesus, paravam, proclamando a glória de Jesus e a maldição
dos assassinos. Os homens ficavam longe, escutando-os a tremer e fugiam
quando eles continuavam o caminho. No fórum, diante do palácio de Pilatos,
ouvi-os proferir palavras ameaçadoras; lembro-me da palavra: "Juiz
sanguinário!" - Todo o povo se ocultou nos cantos mais escondidos das
casas; havia grande medo e susto na cidade. Pelas quatro horas da tarde
voltaram os mor tos para os túmulos. Mas depois da ressur reição de Jesus
Cristo ainda apareceram muitos espíritos, em vários lugares. O sacrifício foi
inter rompido; era uma confusão geral; só uma pequena par te do povo comeu
o cordeiro pascal à noite.

13. Outras aparições depois da mor te de Jesus

Entre os muitos mor tos ressuscitados, que dentro e em redor de Jerusalém


se contavam cerca de cem, não havia nenhum parente de Jesus. Os túmulos
ao noroeste estavam antigamente fora da cidade, mas pelo alargamento da
mesma, ficaram depois dentro dos muros. Tive também visões de diversos
mor tos, que em vários lugares da Ter ra Santa ressuscitaram, aparecendo aos
parentes e dando testemunho de Jesus e da missão que viera cumprir na
ter ra. Assim vi Zadoc, homem muito piedoso, que tinha dado todos os bens
aos pobres e ao Templo e fundado a comunidade dos Essenos, per to de
Hebron; foi um dos últimos profetas antes de Cristo e esperava e anelava
pela vinda do Messias, de quem tinha muitas revelações; tinha também
relações com os antepassados da Sagrada Família. Vi esse Zadoc, que viveu
uns cem anos antes de Jesus, ressuscitar e aparecer a diversas pessoas, na
região de Hebron. Numa visão anterior vi que foi dos que primeiro depo-
sitaram novamente o respectivo cor po e depois acompanharam a alma de
Jesus. Vi também vários mor tos aparecerem aos discípulos do Senhor,
escondidos nas caver nas, exor tando-os à fé.
Vi que as trevas e o ter remoto espalharam ter ror e destruição, não só em
Jerusalém e ar redores, mas também em outras par tes do país, mesmo em
lugares longínquos. Ainda me lembro dos seguintes casos: Em Tirza
desabaram as tor res da cadeia, da qual Jesus resgatara alguns presos e
vários outros edifícios. Na ter ra do Cabul houve desabamentos em muitos
lugares. Em toda a Galiléia, onde Jesus tinha vivido e pregado mais tempo, vi
desabar, em muitos lugares, edifícios, sobretudo muitas casas de fariseus
que tinham perseguido Jesus com mais ódio e que então estavam todos na
festa em Jer usalém e cujas mulheres e filhos mor reram soter rados sob os
destroços das casas.
As devastações em redor do lago de Genezaré (mar de Galiléia) eram
consideráveis. Em Cafar naum caíram muitíssimos edifícios; a povoação dos
escravos, situada entre Tibérias e os jardins de Zorobabel, Centurião de
Cafar naum, foi quase completamente destruída.
O rochedo que for mava uma pequena península no lago e fazia par te dos
belos jardins do Centurião, per to de Cafar naum, desmoronou-se todo; o lago
entrou pelo vale a dentro e chegou até per to de Cafar naum, que dantes
estava distante quase meia hora. A casa de Pedro e a morada da Santíssima
Virgem, entre Cafar naum e o lago, ficaram intactas. As águas do mar da
Galiléia estavam muito agitadas; as margens ruíram em algumas par tes e em
outras se levantaram. O lago mudou consideravelmente de for ma, ficando
mais ou menos como está hoje e a configuração das respectivas margens
quase não se conhece mais. De maior impor tância foram as mudanças na
extremidade sudoeste do lago, logo abaixo de Tariquéia, onde havia um dique
comprido e escuro, que separava o lago de um pântano e dava fir me direção
às águas do Jordão, ao saírem do lago; todo esse dique foi levado pelas
águas, causando vastas destruições.
No lado oriental do lago, onde os porcos dos Gerazenos se tinham lançado no
pântano, afundaram-se muitas ter ras, como também em Gergesa, Gerasa e
em todo o distrito de Corazim. Também o monte da segunda multiplicação
dos pães sofreu for te abalo e a pedra sobre a qual fora colocado o pão,
par tiu-se ao meio. Dentro e em redor de Panéas desabaram também muitas
casas. Na Decapolis desapareceram par tes inteiras de cidades; muitos
lugares na Ásia sofreram grandes prejuízos, como, por exemplo, Nicéa e
principalmente muitos lugares a leste e nordeste de Panéas. Também na
Galiléia superior vi grande destruição e os fariseus encontraram, ao voltar
da festa, muita desgraça em casa. Alguns receberam a notícia já em
Jerusalém; foi por isso que os inimigos de Jesus ficaram tão abatidos, até
depois de Pentecostes e não ousaram tomar medida alguma impor tante
contra a comunidade do Senhor.
No monte Garizim vi ruir grande par te do Templo. Havia lá um ídolo em cima
de um poço, num pequeno Templo, cujo telhado, junto com o ídolo, caiu na
água do poço. Em Nazaré desabou metade da sinagoga, da qual os judeus
expulsaram Jesus; também a par te do rochedo da qual quiseram lançá-Io no
abismo, desmoronou-se.
Muitas montanhas, vales e cidades sofreram for te destruição. O leito do
Jordão mudou-se em várias par tes; Pois pelos abalos do litoral do mar da
Galiléia e pelas mudanças das cor rentes dos riachos, for maramse obstáculos
e mudou-se a cor rente das águas, de modo que o leito do Jordão é hoje muito
diferente do que era antes. Em Machérus e em outras cidades de Herodes,
ficou tudo calmo e inalterado; essa região estava fora do círculo da
penitência e da ameaça, como aqueles homens no hor to das Oliveiras, que
não caíram e por isso também não se levantaram.
Em algumas regiões, aonde havia muitos espíritos maus, vi-os em grande
número afundar-se na ter ra, juntamente com os edifícios e montes
destruídos; os tremores de ter ra recordaram-me então as convulsões dos
possessos, quando o demônio sente que é obrigado a sair. No momento em
que, per to de Gergesa, se afundou no pântano par te do monte, de onde
outrora os demônios se lançaram no pântano, com a manada de porcos, vi
imensa multidão de maus espíritos cair, como uma nuvem sinistra e afundar-
se com o monte no abismo.
Creio que foi em Nicéa que vi um acontecimento, de cujos por menores me
lembro só imperfeitamente. Vi um por to, com muitos navios e numa casa,
com uma tor re alta, per to do por to, vi um homem; era pagão, o capitão do
por to. Tinha por obrigação subir muitas vezes à tor re e obser var o mar, a ver
se chegavam navios ou velar por qualquer acontecimento. Vi que, ouvindo
for te estrondo sobre os navios do por to e temendo a aproximação de um
inimigo, subiu apressadamente à tor re; olhando para os navios, viu-Ihes
pairar acima grande número de figuras escuras, que, com vozes lamentosas,
lhe gritaram: "Se queres conser var os navios, leva-os para fora do por to; pois
devemos voltar ao abismo; mor reu o grande Pan." É o que me lembro ainda
distintamente dessa visão; disseram-lhe outras coisas ainda e deram-lhe
muitas ordens, onde e como devia revelar, numa viagem marítima iminente, o
que lhe tinham dito; exor taram-no também a receber bem os mensageiros
que viriam, anunciando a doutrina e a mor te daquele que nesse momento
tinha falecido.
Os maus espíritos foram desse modo obrigados pelo poder de Deus a avisar
esse homem bom, tomando-se assim núncios de sua própria ignomínia. O
capitão do por to mandou, pois, pôr a seguro os navios, quando estava
iminente uma violenta tempestade; vi então os demôni os se lançarem
r ugindo no mar e a metade da cidade ficou destruída pelo ter remoto. A casa
com a tor re ficou intacta. O homem fez depois longas viagens em navio,
cumprindo todas as ordens que recebera e anunciando a mor te do grande
Pan, como os demônios tinham chamado ao Senhor ; mais tarde chegou
também a Roma, onde se admiraram muito daquela nar ração. Vi ainda muitas
outras coisas desse homem, mas esqueci-as; entre outras, vi que uma das
suas nar rativas de viagens, misturada com os acontecimentos que contei, se
propagou muito entre os povos, mas não me lembro mais da conexão, Creio
que tinha um nome semelhante a Tamus ou Tramus.

14. José de Arimatéia pede a Pilatos o cor po de Jesus

Mal se tinha restabelecido um pouco a calma em Jer usalém, depois de tantos


acontecimentos assustadores, quando Pilatos, tão conster nado, foi
impor tunado de todos os lados com nar rativas do que sucedera. Também o
Supremo Conselho lhe mandou, como já resolvera de manhã, um
requerimento, pedindo que mandasse esmagar as per nas dos sacrificados,
para que mor ressem mais depressa e tirá-Ios depois da cruz, para que não
ficassem pendurados durante o Sábado. Pilatos enviou, pois, os car rascos
para esse fim ao Calvário.
Pouco depois vi José de Arimatéia entrar no palácio de Pilatos. Já recebera
a notícia da mor te de Jesus e resolvera, com Nicodemos, sepultar o cor po do
Senhor no sepulcro novo que escavara na rocha do seu jardim, não longe do
monte Cal vário. Creio tê-Io visto já fora da por ta da cidade, onde obser vou
tudo que se passou e deliberou o que se devia fazer ; pelo menos vi lá homens
que, por ordem dele limpavam o jardim do sepulcro e ainda ter minavam
algumas obras no interior do mesmo. Nicodemos também foi a diversos
lugares, para comprar panos e especiarias para o embalsamamento do cor po;
depois esperou a volta de José.
Esse encontrou Pilatos muito assustado e incomodado; pediu-lhe
francamente e sem hesitação licença para tirar da cruz o cor po de Jesus, rei
dos judeus, porque queria sepultá-Lo no seu próprio sepulcro. O fato de um
homem tão distinto pedir, com tal insistência, licença para prestar a última
homenagem ao cor po de Jesus, a quem o juiz iníquo tão ignominiosamente
mandara crucificar, abalou-lhe ainda mais a consciência; aumentou-se-Ihe
ainda mais a convicção da inocência de Jesus e com ela, o remorso; mas,
fingindo calma, perguntou: "Então já está morto?", pois havia poucos minutos
apenas que mandara os car rascos matar os crucificados, quebrando-Ihes as
per nas. Mandou por isso chamar o centurião Abenadar, que voltara das
caver nas, onde falara com alguns dos discípulos; perguntou-lhe se o rei dos
judeus já tinha mor rido. Então relatou Abenadar a mor te do Senhor, às três
horas, as últimas palavras e o grito for te de Jesus, o tremor de ter ra e o
abalo que fendeu o rochedo. Exterior mente parecia Pilatos admirar-se
apenas que tivesse mor rido tão cedo, porque os crucificados em geral viviam
mais tempo; mas interior mente estava assustado e amedrontado, pela
coincidência desses sinais com a mor te de Jesus. Queria talvez disfarçar um
pouco a crueldade com que procedera; pois despachou imediatamente uma
ordem escrita, entregando a José de Arimatéia o cor po do rei dos judeus,
com a licença de tirá-Lo da cruz e sepultá-Lo. Estava satisfeito de poder
assim pregar uma peça aos príncipes dos sacerdotes, que teriam visto com
prazer Jesus ser enter rado ignominiosamente com os dois ladrões. Mandou
também alguém ao Cal vário, para fazer executar essa ordem. Creio que foi o
mesmo Abenadar ; pois que o vi tomar par te no descendimento de Jesus da
cruz.
Saindo do palácio de Pilatos, foi José de Arimatéia encontrar-se com
Nicodemos, que o estava esperando na casa de uma boa mulher, situada
numa rua larga, próxima do beco em que Jesus, logo no começo do doloroso
caminho da cruz, fora tão vilmente ultrajado. Nicodemos tinha comprado
muitas er vas e especiarias para o embalsamamento, em par te da mesma
mulher, que vendia er vas aromáticas, em par te em outros negócios, onde a
própria mulher fora comprar as especiarias que não tinha, como também
vários panos e faixas, necessárias para o embalsamamento. De todos esses
objetos fez-lhe um pacote que pudesse comodamente transpor tar. José de
Arimatéia também foi ainda a outro lugar, para comprar um pano grande de
algodão, muito bonito e fino, com seis côvados de comprimento e vários
côvados de largura. Os criados foram buscar no ar mazém, ao lado da casa de
Nicodemos, escadas, mar telos, ponteiros, odres, vasilhas, esponjas e outros
objetos necessários para aquele fim. Colocaram os objetos menores numa
padiola, semelhante àquela em que os discípulos levaram o cor po de João
Batista, que tinham raptado do castelo for te de Herodes.

15. O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento das per nas
e mor te dos ladrões

Durante todo esse tempo reinava silêncio e tristeza sobre o Gólgota. O povo
assustado dispersara-se, indo esconder-se em casa. A Mãe de Jesus e João,
Madalena, Maria, filha de Cleofas e Salomé estavam, em pé ou sentados, em
frente à cruz, com as cabeças veladas, chorando. Alguns soldados estavam
sentados no bar ranco, com as lanças fincadas no chão. Cássio, a cavalo, ia
de um lado para outro. Os soldados conversavam do alto do Cal vário com
outros que estavam mais em baixo. O céu estava nublado e toda a natureza
parecia abatida e de luto. Vieram então seis car rascos, subindo o monte Cal
vário; trouxeram escadas, pás e cordas, como também pesadas maças de
fer ro de três gumes, para esmagar as per nas dos executados.
Quando os car rascos entraram no círculo do suplício, os parentes de Jesus
retiraram-se um pouco. A Santíssima Virgem foi novamente presa de angústia
e receio de que os verdugos ainda maltratassem o Cor po de Jesus; pois
encostaram as escadas à cruz e subindo, sacudiram o santo Cor po
conferindo se apenas se fingia mor to. Como, porém, notassem que o cor po já
estava inteiramente frio e rígido e João, a pedido das mulheres piedosas, a
eles se dirigisse para impedir a crueldade, deixaram provisoriamente o cor po
do Senhor, mas não pareciam convencidos de que estivesse mor to. Subiram
então pelas escadas nas cruzes dos ladrões; dois esmagaram, com as maças
cor tantes, os ossos dos braços acima e abaixo do cotovelo, um terceiro fez o
mesmo acima e nas canelas, abaixo dos joelhos. Gesmas soltou gritos
hor ríveis. Esmagaram-lhe em três golpes o peito, para acabar de matá-Io.
Dimas gemeu com a tor tura e mor reu; foi o primeiro mor tal que tor nou a ver
o Redentor. Os car rascos desataram então as cordas, deixando cair os
cor pos no chão e ar rastando-os depois com cordas, para o vale entre o Cal
vário e o muro da cidade, onde os enter raram.
Os car rascos ainda pareciam duvidar da mor te do Senhor e os parentes de
Jesus estavam ainda mais assustados, pela br utalidade com que haviam
procedido e com medo de que pudessem voltar. Mas Cássio, oficial
subalter no, homem de 25 anos, ativo e um pouco precipitado, cuja vista
cur ta e cujos olhos tor tos, juntamente com os ares de importância que se
dava, provocavam freqüentemente a troça dos subordinados, recebeu de
repente uma inspiração sobrenatural. A crueldade e vil brutalidade dos
car rascos, o medo das santas mulheres e um impulso repentino, causado por
uma graça divina, fizeram-no cumprir uma profecia. Ajustando a lança, que
trazia em geral dobrada e encur tada, fir mou-lhe a ponta e virando o cavalo,
esporeou-o para subir o cume, onde estava a cruz e onde o cavalo quase não
podia virar ; vi como o afastou da fenda do rochedo. Parando assim entre a
cruz do bom ladrão e a de Jesus, ao lado direito do cor po de Nosso Salvador,
tomou a lança com ambas as mãos e introduziu-a com tal força no lado
direito do Santo Cor po, através das entranhas e do coração, que a ponta da
lança saiu um pouco do lado esquerdo, abrindo uma pequena ferida. Quando
tirou depois com força a santa lança, brotou da larga chaga do lado direito
do Redentor um rio de sangue e água que, caindo, banhou o rosto de Cássio,
como uma onda de salvação e graça. Ele saltou do cavalo e, prostrando-se de
joelhos, bateu no peito e confessou a fé em Jesus em alta voz, diante de
todos os presentes.
A Santíssima Virgem e os outros, cujos olhos estavam sempre fixos no
Salvador, viram a súbita ação do oficial com grande angústia e acom-
panharam o golpe da lança com um grito de dor, precipitando-se para a cruz.
Maria caiu nos braços das amigas, como se a lança lhe tivesse transpassado
o próprio coração e sentisse o fer ro cor tante atravessá-Io de lado a lado.
Cássio, caindo de joelhos, louvava a Deus, pois, iluminado pela graça, ficou
crendo e também os olhos do cor po se lhe curaram e desde então via tudo
cIaro e distinto. Mas ao mesmo tempo ficaram todos profundamente
comovidos à vista do sangue que, misturado com água, se juntara,
espumante, numa cavidade da rocha, ao pé da cruz; Cássio, Maria
Santíssima, as santas mulheres e João apanharam o sangue e a água em
tigelas, guardando-o depois em frascos e enxugando-o da rocha com panos.
Cássio estava como que transfor mado; tinha recobrado a vista perfeita e
profundamente comovido, cur vava-se diante de Deus, com coração humilde.
Os soldados presentes, tocados pelo milagre que se operara nele,
prostraram-se de joelhos, batiam no peito e louvavam a Jesus. O sangue e a
água cor riam abundantemente da larga chaga do lado direito do Salvador,
sobre a rocha limpa, onde se juntaram; apanharam-no, com indizível comoção
e as lágrimas de Maria e Madalena misturavam-selhe. Os car rascos, que
nesse ínterim tinham recebido a ordem de Pilatos de não tocar no cor po de
Jesus, que doara a José de Arimatéia, para o sepultar, não voltaram mais.
A lança de Cássio, constava de várias peças, que eram ajustadas uma sobre
a outra; quando dobrada, parecia apenas um bastão, de pouco comprimento.
A par te de fer ro que feria, tinha a for ma de pêra achatada; quando se queria
ser vir da lança, enfiava-se-Ihe a ponta e abriam-se em baixo duas lâminas de
fer ro, cur vas e movediças.
Tudo Isso se passou em redor da cruz de Jesus, logo depois das quatro
horas, quando José de Arimatéia e Nicodemos estavam ocupados em juntar
as coisas necessárias para o enter ro. Os criados de Joséde Arimatéia foram,
enviados para limpar o sepulcro e anunciaram aos amigos de Jesus no
Gólgota que José recebera de Pilatos licença para tirar da cruz o cor po do
Mestre e sepultá-Io no seu sepulcro; então voltou João, com as santas
mulheres, à cidade, dirigindo-se ao monte Sião, para que a Santíssima
Virgem pudesse tomar algum alimento e também para buscar alguns objetos
para o enter ro. Maria tinha uma pequena habitação nos edifícios laterais do
Cenáculo. Não entraram pela por ta mais próxima, mas, mais ao sul, pela
por ta que conduz a Belém; pois a por ta para o Cal vário estava fechada e
ocupada por dentro pelos sbldados que os fariseus tinham requisitado, com
medo de um levante do povo.

16. A descida de Jesus aos infer nos

Quando Jesus, com um grito for te, rendeu a santíssima alma, vi-a, qual figura
luminosa, acompanhada de muitos Anjos, entre os quais também Gabriel,
descer pela ter ra a dentro, ao pé da cruz. Vi, porém, que a divindade lhe
ficou unida tanto à alma, como também ao cor po, pregado à cruz. Não sei
explicar o modo porque se passou. Vi o lugar aonde se dirigiu a alma de
Jesus; era dividido em três par tes, parecendo três mundos e eu tinha a
sensação de que tinha a for ma redonda e que cada um estava separado do
outro por uma esfera.
Antes de chegar ao limbo, havia um lugar claro e, por assim dizer, mais
verdejante e alegre. Era o lugar em que vejo sempre entrarem as almas remi
das do purgatório, antes de serem levadas ao céu. O limbo, onde se achavam
os que esperavam a redenção, estava cercado de uma esfera cinzenta,
nebulosa e dividido em vários círculos. Nosso Salvador, conduzido pelos
Anjos como em triunfo, entrou por entre dois desses círculos, dos quais o
esquerdo encer rava os Patriarcas até Abraão e o direito as almas de Abraão
até João Batista. Jesus penetrou por entre os dois; eles, porém, ainda não O
conheciam, mas estavam todos cheios de alegria e desejo; foi como se
dilatassem esses páramos da saudade angustiosa, como se ali entrassem o
ar, a luz e o or valho da Redenção. Tudo se deu rapidamente, como o sopro do
vento. Jesus penetrou através dos dois círculos, até um lugar cercado de
neblina, onde se achavam Adão e Eva, nossos primeiros pais. Falou-Ihes e
adoraram-nO com indizível felicidade. O cor tejo do Senhor, ao qual se juntou
o primeiro casal humano, dirigiu-se então à esquerda, ao limbo dos
Patriarcas que tinham vivido antes de Abraão. Era uma espécie de
purgatório; pois entre eles se moviam, cá e lá, maus espíritos, que
ator mentavam e inquietavam algumas dessas almas de muitas maneiras. Os
Anjos bateram e mandaram que abrissem; pois havia lá uma entrada, uma
espécie de por ta, que estava fechada; os Anjos anunciaram a vinda do
Senhor, parecia-me ouví-Ios exclamar : "Abri as por tas!" Jesus entrou
triunfalmente; os espíritos maus, retirando-se, gritaram: "Que tens conosco?
Que queres fazer de nós? Queres crucificar-nos também?, etc." - Os Anjos,
porém, amar raram-nos e empur raram-nos para diante. Essas almas sabiam
pouco de Jesus, tinham só uma idéia obscura do Salvador ; Jesus anunciou-
Ihes a Redenção e eles lhe cantaram louvores. Dirigiu-se então a alma do
Senhor ao espaço à direita, ao verdadeiro limbo, em frente ao qual se
encontrou com a alma do bom ladrão, conduzida por Anjos ao seio de Abraão
e com a do mau ladrão que, cercado de espíritos maus, foi precipitada no
infer no. A alma de Jesus dirigiu-Ihes algumas palavras e entrou então no seio
de Abraão, acompanhada dos Anjos, das almas remidas e dos demônios
expulsos.
Esse lugar parecia-me situado um pouco mais alto; era como se se subisse
do subter râneo de uma igreja à igreja superior. Os demônios amar rados
quiseram resistir, não queriam passar ; mas foram levados à força pelos
Anjos. Neste lugar estavam todos os santos Israelitas, à esquerda os
Patriarcas, Moisés, os Juízes, os Reis; à direita os profetas e todos os
antepassados e parentes de Jesus, até Joaquim, Ana, José, Zacarias, Isabel
e João. Nesse lugar não havia nenhum mau espírito, nem tor mento algum, a
não ser o desejo ansioso da Redenção, que se realizara enfim. Indizível
delícia e felicidade enchia as almas todas, que saudavam e adoravam o
Salvador ; os demônios amar rados foram obrigados a confessar sua ignomínia
diante delas. Muitas dessas almas foram enviadas à ter ra, para entrar nos
respectivos cor pos e dar testemunho do Senhor. Foi nesse momento que
tantos mor tos saíram dos sepulcros em Jer usalém; apareciam como
cadáveres ambulantes, depositando depois novamente os cor pos, como um
mensageiro da justiça deposita o manto oficial, depois de ter cumprido as
ordens do superior.
Vi depois o cor tejo triunfal do Salvador entrar numa esfera mais baixa, uma
espécie de lugar de purificação, onde se achavam piedosos pagãos que
tinham tido um pressentimento da verdade e o desejo de conhecê-Ia. Havia
entre eles espíritos maus, porque tinham ídolos; vi os espíritos malignos
forçados a confessar o embuste e as almas adorarem o Senhor com alegria
tocante. Os demônios desse lugar foram também amar rados e levados no
cor tejo. Assim vi o Salvador passar triunfalmente, com grande velocidade,
por vários lugares onde estavam almas encer radas, liber tando-as e fazendo
ainda muitas outras coisas, mas no meu estado de miséria não posso contar
tudo.
Por fim o vi aproximar-se, com ar severo, do centro do abismo, do infer no,
que me apareceu sob a for ma de um imenso edifício hor rível, for mado de
negros rochedos, de brilho metálico, cuja entrada tinha enormes por tas,
ter ríveis, pretas, fechadas com fechaduras e fer rolhos que causavam medo.
Ouviam-se uivos de desespero e gritos de tor mento, abriram-se as por tas e
apareceu um mundo hediondo e tenebroso.
Assim como vi as moradas dos bem-aventurados sob a for ma de uma cidade,
a Jerusalém celeste, com muitos palácios e jardins, cheios de frutas e flores
maravilhosas, de várias espécies, confor me as inúmeras condições e graus
de santidade, assim vi também o infer no como um mundo separado, com
muitos edifícios, moradas e campos. Mas tudo destinado, ao contrário, à
tor tura e às penas dos condenados. Como na morada dos bem-aventurados
tudo é disposto segundo as causas e condições da eter na paz, har monia e
alegria, assim no infer no se manifesta em tudo a eter na ira, discórdia e
desespero. Como no céu há muitíssimos edifícios, indizivelmente belos,
transparentes, destinados à alegria e à adoração, assim há no infer no
inúmeros e variados cárceres e caver nas, cheios de tor tura, maldição e
desespero. No céu há maravilhosos jardins, cheios de frutos de gozo divino;
no infer no hor rendos deser tos e pântanos, cheios de tor mentos e angústias e
de tudo que pode causar hor ror, medo e nojo. Vi templos, altares, castelos,
tronos, jardins, lagos, rios de maldição, de ódio, de hor ror, de desespero, de
confusão, de pena e tor tura; como há no céu rios de bênção, de amor, de
concórdia, de alegria e felicidade; aqui a eter na, ter rível discórdia dos
condenados; lá a união bem-aventurada dos santos. Todas as raízes
da cor rupção e do er ro produzem aqui tor tura e suplício, em
inumeráveis manifestações e operações; há só um pensamento reto: a idéia
austera da justiça divina, segundo a qual cada condenado sofre a pena, o
suplí cio, que é o fruto necessário de seu crime; pois tudo que se passa e
se vê de hor rível nesse lugar, é a essência, a for ma e a per versidade
do pecado desmascarado, da ser pente que ator menta com o veneno maldo so
os que o alimentaram no seio. Vi lá uma colunata hor rorosa, em que tudo se
referia ao hor ror e à angústia, como no reino de Deus à paz e ao repouso.
Tudo se compreende facilmente, ao vê-Io, mas é quase impossível exprimir
tudo em palavras.
Quando os Anjos abriram as por tas, viu-se um caos de contradição, de
maldições, de injúrias, de uivos e gritos de dor. Vi Jesus falar à alma de
Judas. Alguns dos Anjos prostraram exércitos inteiros de demônios. Todos
foram obrigados a reconhecer e adorar Jesus, o que foi para eles o maior
suplício. Grande número deles foram amar rados a um círculo, que cercava
muitos outros, que deste modo tam bém ficaram presos. No centro havia um
abismo de trevas, Lúcifer foi amar rado e lançado nesse abismo, onde
vapores negros lhe fer viam em redor. Tudo se fez segundo os decretos
divinos. Ouvi dizer que Lúcifer, se não me engano, 50 ou 60 anos antes do
ano 2.000 de Cristo, seria novamente solto por cer to tempo. Muitas outras
datas e números foram indicados, dos quais não me lembro mais. Deviam
ser soltos ainda outros demônios antes desse tempo, para provação
e castigo dos homens. Creio que também em nossO tempo era a vez
de alguns deles e de outros pouco depois do nosso tempo.
É-me impossível contar tudo quanto me foi mostrado; são muitas coisas e
não as posso relatar em boa ordem; também me sinto tão doente e quando
falo dessas coisas, elas se me representam novamente diante dos olhos e só
o aspecto já é suficiente para nos fazer mor rer.
Ainda vi exércitos imensos de almas remidas saírem do purgatório e do
limbo, acompanhando o Senhor, para um lugar de delícias abaixo
da Jerusalém celeste. Foi lá que vi também, há algum tempo, um amigo
falecido. A alma do bom ladrão foi também conduzida para lá e viu assim o
Senhor no Paraíso, confor me a promessa. Vi que nesse lugar
foram preparados banquetes de alegria e confor to, como os tenho visto
já muitas vezes, em visões consoladoras.
Não posso indicar com exatidão o tempo e a duração de tudo que se passou,
como também não posso contar tudo quanto vi e ouvi lá porque eu mesma
não compreendo mais tudo, já porque podia ser mal compreendida pelos
ouvintes. Vi, porém, o Senhor em lugares muito diferentes, até no mar,
parecia santificar e liber tar todas as criaturas; em toda par te fugiam os
maus espíritos diante d’Ele e lançaram-se no abismo. Vi também a alma do
Senhor em muitos lugares da ter ra. Vi-Q aparecer no sepulcro de Adão e Eva,
sob o Gólgota. As almas de Adão e Eva juntaram-se-Ihe novamente; falou-Ihes
e com elas Q vi passar, como sob a ter ra, em muitas direções e visitar os
túmulos de muitos profetas, cujas almas se lhe juntaram, próximo das
respectivas ossadas e explicou-Ihes o Senhor muitas coisas. Vi-O depois,
com esse séquito escolhido, em que seguia também Davi, passar em muitos
lugares de sua vida e paixão, explicando-Ihes com indizível amor todos os
fatos simbólicos que se tinham dado ali e o cumprimento dessas figuras em
sua pessoa.
Vi-O especialmente explicar às almas tudo quanto se dera de fatos
figurativos no lugar em que foi batizado e contemplei muito comovida a
infinita misericórdia de Jesus, que as fez par ticipar da graça de seu santo
Batismo.
Causou-me inexprimível comoção ver a alma do Senhor, acompanhada por
esses espíritos bem-aventurados e consolados, passar, como um raio de luz,
através da ter ra escura e dos rochedos, pelas águas e pelo ar e pairar tão
sereno sobre a ter ra.
É o pouco de que me lembro ainda, de minha contemplação da descida do
Senhor aos infer nos e da redenção das almas dos Patriarcas, depois de sua
mor te; mas além dessa visão dos tempos passados, vi nesse dia uma imagem
eter na de sua misericórdia para com as pobres almas do purgatório. Vi que,
em cada aniversário desse dia, lança por meio da Igreja, um olhar de
salvação ao purgatório; vi que já no Sábado Santo remiu algumas almas do
purgatório, que tinham pecado contra Ele na hora da crucificação.
A primeira descida de Jesus ao limbo é o cumprimento de figuras anteriores
e, por sua vez, é a figura da redenção atual. A descida aos infer nos que vi,
referia-se ao tempo passado, mas a salvação de hoje é.uma verdade
per manente; pois a descida de Jesus aos infer nos é o plantio de uma ár vore
da graça, destinada a administrar os seus méritos divinos às almas do
purgatório e a redenção contínua e atual dessas almas é o fruto dessa ár vore
da graça no jardim espiritual do ano eclesiástico. A Igreja militante deve
cuidar dessa ár vore, colherlhe os frutos, para os outorgar à Igreja
padecente, porque essa nada pode fazer em seu próprio proveito. Eis o que
se dá em todos os merecimentos de Nosso Senhor ; é preciso cooperar, para
ter par te neles. Devemos comer o pão ganho com o suor de nosso rosto.
Tudo quanto Jesus fez por nós no tempo, dá frutos eter nos; mas
devemos cultivá-Ios e colhê-Ios no tempo, para poder gozá-Ios na eter nidade.
A Igreja é como um bom pai de família; o ano eclesiástico é o jardim mais
perfeito, com todos os frutos eter nos no tempo; em um ano tem bastante de
tudo para todos. Ai! dos jardineiros preguiçosos e infiéis, que deixam perder
uma graça, que poderia curar um enfer mo, for talecer um fraco, saciar um
faminto: no dia de juízo terão de dar conta até do menor pézinho de er va.

9
A sepultura de Jesus

1. O jardim e o sepulcro de José de Arimatéia


2. O descendimento da cruz
3. O cor po de Jesus é preparado para a sepultura
4. O enter ro
5. A volta para casa, depois do enter ro; o sábado; prisão de José de
Arimatéia
6. A guarda no túmulo de Jesus
7. Os amigos de Jesus no Sábado santo

A sepultura de Jesus

1. O jardim e o sepulcro de José de Arimatéia

Esse jardim (*) está situado a cerca de sete minutos do monte Calvário,
per to da por ta de Belém, na encosta que vai subindo até os muros da cidade;
é um belo jardim, com grandes ár vores e bancos, em lugares com sombra; de
um lado se estende até o muro da cidade, no alto da encosta. Quem vem da
por ta ao nor te do vale, entrando no jardim, tem à esquerda o ter reno do
jardim, que sobe até o muro da cidade; e vê no fundo do mesmo, à direita, um
rochedo isolado, onde é o sepulcro.
Essa por ta é de metal, que parece ser cobre e abre em dois batentes que,
aber tos, se encostam à parede em ambos os lados; não fica per pendicular,
mas um pouco inclinada para o nicho e quase tocando o solo, de modo que
uma pedra colocada em frente impede de abri-Ia. A pedra destinada a esse
fim ainda estava fora da gruta e foi colocada à por ta fechada só depois de
depositado o cor po de Nosso Senhor no sepulcro. É grande e um pouco
ar redondada para o lado da por ta, porque as paredes laterais também não
estão em ângulo reto. Para abrir os batentes da por ta não é necessário rolar
a pedra para fora da gruta, o que seria bastante difícil, por causa da falta de
espaço; mas passa-se uma cor rente, que pende da abobada, através de
algumas argolas, fixas para esse fim na pedra; puxando pela cor rente,
levanta-se a pedra, mas mesmo assim, só com esforço de vários homens se a
desloca, encostando-a à parede lateral.

* Parece-nos necessário mencionar aqui que a piedosa freira, nos quatro


anos em que as visões foram escritas, nar rou as muitas transfor mações
pelas quais passaram os Santos Lugares de Jerusalém, no cor rer dos
séculos, desde os primeiros tempos. Viu-os alteruadamente devastados e
restaurados, mas sempre venerados, seja oculta ou publicamente e ela
mesma os venerava nas visões. Viu também muitas pedras e fragmentos de
rochedos, testemunhas da Paixão e Ressur reição de Nosso Senhor, que
depois da descober ta dos Santos Lugares por Santa Helena, foram reunidos.
na Igreja do Santo Sepulcro, por ela construído, na proximidade e sob a
proteção da cidade. A nar radora venerava nessa Igreja o lugar onde estava a
cruz, o túmulo e várias par tes da gruta sepulcral, sobre as quais foram
edificadas várias capelas; algumas vezes, porém, quando venerava, não tanto
o túmulo, mas o lugar onde estivera o túmulo, parecia em espírito procurar
esse lugar na vizinhança, mas sempre um pouco mais distante do lugar da
cruz. Depois de entrar no jardim, se vira à direita, para chegar à gr uta
sepulcral que abre para leste e donde cai a vista sobre a encosta e o muro
da cidade. A sudoeste e noroeste do mesmo rochedo há ainda duas grutas
menores, com entradas baixas. Pelo lado oeste passa um estreito caminho
em redor do rochedo. O ter reno em frente da entrada da gruta sepulcral é um
pouco mais elevado do que a entrada e o solo da gr uta. e para chegar à
por ta, há alguns degraus, que descem como um fosso, nesse lado oriental do
rochedo. A entrada exterior está fechada por uma grade de vime. O interior
da caver na é tão espaçoso, que quatro homens podem ficar encostados à
parede, à direita. e quatro à esquerda, sem embaraçar os movimentos dos
que depositam o cor po do mor to. Esse espaço alarga-se no fundo da gr uta,
em frente à por ta, for mando no lado ocidental um nicho largo, mas pouco
alto, que se ar redonda em cima, for mando a abóbada do rochedo sobre o
sepulcro. Esse tem a altura de cerca de dois pés e há nele uma cavidade,
para receber o cor po envolto nas mor talhas. O sepulcro está junto da gruta.
como um altar ; do lado dos pés e da cabeça há ainda lugar para um homem
ficar em Pé e também em frente do sepulcro se pode ainda per manecer,
depois de fechada a por ta do nicho.

Em frente à entrada da gruta, há no jardim um banco de pedra. Podese subir


o rochedo do sepulcro e andar sobre a relva de que é cober to; de lá se avista
justamente o muro da cidade e também o ponto mais alto de Sião e algumas
tor res; vê-se também de lá a por ta de Belém, um aqueduto e a fonte de Gion.
A rocha no interior da gruta é branca, com veios ver melhos e pardos. Toda a
obra da gruta foi feita com muito capricho.

2. O descendimento da cruz

Enquanto a cruz ficou abandonada, cercada apenas de alguns guardas, vi


cerca de cinco homens, que, vindo de Betânia, desceram pelos vales,
aproximaram-se do lugar do suplício, olharam para a cruz e afastaram-se
fur tivamente; creio que eram discípulos. Havia, porém, dois homens, José de
Arimatéia e Nicodemos, que vi três vezes nos ar redores, examinando e
deliberando; uma vez, durante a crucificação, estavam per to, (talvez quando
mandaram comprar as vestes de Jesus da mão dos soldados). Mais tarde
estavam lá para ver se o povo já se tinha afastado, indo depois ao sepulcro,
para fazer alguns preparativos; do sepulcro voltaram à cruz, olhando para
cima e em redor, como se estudassem as condições. Fizeram o plano para o
descendimento e voltaram à cidade.
Começaram então ajuntar todas as coisas necessárias para o embal-
samamento do cor po. Fizeram os ser vos levar as fer ramentas para o
descendimento do santo cor po da cruz e além disso, duas escadas, que
tiraram de uma granja, per to da casa grande de Nicodemos; cada uma dessas
escadas constava apenas de uma estaca, atravessada, de distância em
distância, por paus, que ser viam de degraus; havia nessas escadas ganchos,
que se podiam fixar mais alto ou baixo, seja para prendê-Ias em qualquer
par te, seja para pendurar neles algum objeto necessário, durante o trabalho.
A boa mulher em cuja casa receberam as especiarias para o embalsa-
mamento, tinha-Ihes empacotado tudo muito bem, para poderem transpor tá-
Ias comodamente. Nicodemos comprara 100 ar ráteis de especiarias, que,
segundo o nosso peso, equivale aproximadamente a 16 kilos, como me foi
revelado várias vezes. Transpor tavam par te dessas especiarias em pequenos
bar ris de cor tiça, que Ihes pendiam do pescoço sobre o peito. Um desses
bar rizinhos continha um pó. Em bolsas de pergaminho ou de couro levaram
pequenos molhos de er vas. José levou também um vaso de ungüento, feito
não sei de que material; era ver melho e tinha ilm aro azul. Os ser vos, como
acima já mencionamos, tinham levado numa padiola: vasos, odres, esponjas
e fer ramentas. Levaram também fogo, numa lanter na fechada.
Esses ser vos saíram para o Cal vário antes dos senhores e por uma outra
por ta, creio que pela de Belém. No caminho pela cidade, passaram pela casa
à qual tinha ido a Santíssima Virgem, com outras mulheres e com João, afim
de buscar algumas coisas necessárias para o embalsamamento do cor po do
Senhor e donde saíram, seguindo os servos a pouca distância. Eram talvez
cinco mulheres, algumas das quais transpor tavam grandes fardos de panos
sob os mantos. Era costume das mulheres envolver-se cuidadosamente numa
longa faixa de pano, da largura de um bom côvado, quando saiam de noite ou
quando queriam fazer secretamente uma obra piedosa. Começavam a enrolar-
se por um braço e o pano envolvia-as tão estreitamente, que não podiam dar
passos largos; tenho-as visto enrolarem-se assim e o pano chega como-
damente para o cor po e o outro braço e ainda para velar a cabeça; nesse dia
tinha algo de estranho: era o traje de luto.
José de Arimatéia e Nicodemos também tinham se vestido de luto: as
mangas, estolas e cinta larga eram pretas; os mantos, que traziam puxados
sobre a cabeça, eram longos e largos e de cor cinzenta. Cobriram tudo que
transpor tavam com esses mantos. Ambos se dirigiram à por ta do Calvário.
As ruas estavam deser tas e silenciosas; no ter ror geral todo o povo se
conser vava em casa, com as por tas fechadas. Muitos estavam prostrados por
ter ra, fazendo penitência; só poucos celebraram as cerimônias prescritas
para a festa. Quando José e Nicodemos chegaram à por ta, encontraram-na
fechada e as ruas vizinhas, como os muros da cidade, ocupados por
numerosos soldados; eram aqueles que os fariseus tinham requerido, depois
de duas horas da tarde, porque temiam uma insur reição. Os soldados ainda
não tinham recebido ordem de retirar-se. José apresentou-Ihes uma ordem
escrita de Pilatos para os deixar pas sar ; os soldados mostraram-se prontos
a obedecer a essa ordem, mas disseram-Ihes que já haviam experimentado
em vão abrir a por ta, que provavelmente se deslocara em conseqüência do
ter remoto; por isso foram também os car rascos obrigados a entrar pela por ta
Angular, depois de quebrar as per nas dos crucificados. Mas, quando José e
Nicodemos puseram as mãos nos fer rolhos, abriu-se a por ta com toda a
facilidade, com assombro de todos.
O dia ainda estava sombrio, escuro e nebuloso, quando chegaram ao Cal
vário, onde encontraram os ser vos que tinham mandado adiante, como
também as santas mulheres, que estavam sentadas em frente à cruz,
chorando. Cássio e vários soldados que se tinham conver tido, .estavam como
transfor mados e mantinham-se a alguma distância, tímidos e respeitosos.
José e Nicodemos falaram com a Santíssima Virgem e João a respeito de
tudo que tinham feito, para salvar Jesus da mor te ignominiosa e souberam
que só com dificuldade se havia impedido que as per nas de Nosso Senhor
fossem quebradas e que assim se tinha cumprido a profecia. Falaram também
do golpe da lança, com a qual Cássio abrira o peito de Jesus. Depois de ter
chegado também o centurião Abenadar, começaram, com muita tristeza e
respeito, a obra piedosa do descendimento e embalsamamento do santo
cor po do Senhor, Mestre e Redentor.
A santíssima Virgem e Madalena estavam sentadas ao pé da cruz, à direita,
entre a cruz de Dimas e a de Jesus; as outras mulheres estavam ocupadas
em ar rumar as especiarias e os panos, a água, as esponjas e os vasos.
Cássio também se aproximou, quando viu Abenadar chegar e contou-lhe a
miraculosa cura de seus olhos. Todos estavam comovidos, cheios de tristeza
e amor, mas graves e silenciosos. Às vezes, quando a pressa e atenção à
obra santa o per mitiam, se ouvia cá e lá, um gemido abafado ou soluço.
Sobretudo Madalena, muito exaltada, abandonavase inteiramente à dor e não
se lembrava dos presentes, nem se moderava por qualquer consideração.
Nicodemos e José encostaram as escadas por detrás da cruz, levando, ao
subir, um pano largo, no qual estavam presas três largas cor reias, prenderam
o cor po de Jesus, sob os braços e joelhos, ao lenho e seguraram os braços
de Nosso Senhor, atando-os pelos pulsos aos madeiros transversais. Depois
tiraram os cravos, batendo-os por detrás com ponteiros colocados sobre as
pontas. As mãos do Senhor não foram muito abaladas pelos golpes do
mar telo e os cravos caíram facilmente das chagas, que estavam muito
alargadas pelo peso do cor po e esse, seguro por meio dos panos, não pendia
mais dos cravos. A par te Inferior do cor po que, com a mor te, tombara sobre
os joelhos, repousava então, em posição natural, sobre um pano, que estava
seguro no alto, aos b!aços da cruz. Enquanto José tirava o cravo e deixava
cair cuidadosamente o braço esquerdo sobre o cor po, atou Nicodemos o
braço direito do mesmo modo ao da cruz, segurando também a cabeça
coroada de espinhos em posição natural, pois caíra sobre o ombro direito;
tirou o cravo da mão direita e fez descer o braço, com as respetivas
ataduras, ao longo do cor po. Ao mesmo tempo o centurião Abenadar tirou,
com grande esforço, o longo cravo dos pés.
Cássio apanhou respeitosamente os cravos e depositou-os aos pés da
Santíssima Virgem. José e Nicodemos colocaram então as escadas no lado
da frente, próximo do santo cor po, desataram a cor reia superior do tronco da
cruz e sucessivamente as cor reias, pendurando-as nos ganchos da escada.
Descendo então devagar das escadas e passando as cor reias de gancho em
gancho, cada vez mais para baixo, vinha também o santo cor po descendo
gradualmente para os braços do centurião Abenadar, que de pé sobre um
escabelo, segurou o cor po sobre os joelhos e desceu depois com ele
enquanto Nicodemos e José, segurando a par te superior pelos braços,
desciam degrau por degrau das escadas, devagar e com todo cuidado, como
se transpor tassem um amigo querido, gravemente ferido. Assim desceu o
santo e desfigurado cor po do Salvador da cruz à ter ra.
O descendimento do cor po da cruz foi um espetáculo indizivelmente tocante.
Faziam todos os movimentos com tanto cuidado e carinho, como se
receassem causar sofrimento ao Senhor ; manifestavam ao san to cor po o
mesmo amor e respeito que tinham sentido para com o Santo dos santos,
durante a vida. Todos que estavam presentes, não desviavam os olhos do
cor po do Senhor e acompanhavam todos os movimentos e manifestavam
solicitude, estendendo os braços, der ramando lágrimas ou por outros gestos
de dor. Mas todos guardavam silêncio; os homens que trabalhavam,
penetrados de um respeito involuntário, como quem toma par te num ato
religioso, só falavam a meia voz, para chamar a atenção ou pedir qualquer
objeto. Quando ressoaram as mar teladas que fizeram sair os pregos, Maria
Santíssima, Madalena e todos que tinham assistido à crucificação, sentiram
de novo as dores dilacerantes daquela hora; pois esses golpes lhes
lembravam as dores cruéis de Jesus causadas pelas mar teladas e todos
estremeceram, pensando ouvir-Lhe novamente os gemidos penetrantes e
contudo se afligiam de que a santa boca Lhe houvesse emudecido, no
silêncio da mor te. Depois de descer o santo cor po, os homens o envolveram
dos joelhos até os quadris e depositaram-no sobre um pano, nos braços da
Mãe Santíssima, que lhos estendeu, cheia de dor e saudade.

3. O cor po de Jesus é preparado para a sepultura

A Santíssima Virgem estava sentada sobre uma cober ta, estendida sobre a
ter ra; o joelho direito, um pouco elevado, como também as costas, apoiavam-
se-Ihe sobre uma almofada, feita de mantos enrolados; fizeram esse ar ranjo
para facilitar à Mãe, exausta de dor e cansaço, a triste obra de caridade que
ia fazer, para com o santo cor po do Filho querido, cruelmente assassinado. A
santa cabeça de Jesus, um pouco cur vada, estava encostada ao joelho de
Maria; o cor po jazia estendido sobre o pano. Igualavam-se a dor e o amor da
Virgem Santíssima. Tinha de novo nos braços o cor po do Filho adorado, a
quem durante tão longo mar tírio não pudera testemunhar seu amor ; via
quanto estava desfigurado o santo cor po, pelas hor ríveis crueldades, via-lhe
de per to as feridas, beijava-lhe as faces sangrentas, enquanto Madalena
jazia prostrada por ter ra, com o rosto sobre os pés de Jesus.
Os homens retiraram-se então para um pequeno vale, situado a sudoeste, na
encosta do Cal vário, onde tencionavam ter minar o embalsamamento e
ar rumaram tudo quanto era necessário para esse fim. Cássio, com um grupo
de soldados que se tinham conver tido, mantinhase a respeitosa distância;
toda a gente inimiga do Mestre tinha já voltado para a cidade e os soldados
ainda presentes ficaram para ser vir de guarda' e impedir que alguém viesse
per turbar as últimas honras prestadas a Jesus. Alguns ajudavam, comovidos
e humildes, prestando pequenos ser viços, quando Ihes pediam.
Todas as santas mulheres ajudavam, onde era preciso, passando os vasos
com água, esponjas, panos, ungüentos e especiarias ou mantinham-se
atentas a cer ta distância. Entre elas se achavam Maria, filha de Cleofas,
Salomé e Verônica; Madalena estava sempre ocupada com o santo cor po;
Maria Helí, a ir mã mais velha da Santíssima Virgem, senhora já idosa, estava
sentada silenciosa, João estava sempre ao lado da Santíssima Virgem,
pronto a prestar-lhe qualquer auxílio; era o mensageiro entre as mulheres e
os homens; ajudava àquelas e depois prestou também muitos ser viços aos
homens, durante o embalsamamento. Estava tudo muito bem preparado; as
mulheres trouxeram odres de couro, que se podiam abrir e dobrar e um vaso
com água, que estava sobre uma fogueira de car vão. Trouxeram a Maria e a
Madalena tigelas com água e esponjas limpas, espremendo as usadas e
despejavam a água usada nos odres de couro. Creio, pelo menos, que os
chumaços redondos que as vi espremerem, eram esponjas.
A Santíssima Virgem conser vava um ânimo for te, em toda a sua indizível dor ;
(*) mesmo em sua tristeza não podia deixar o santo cor po no hor rendo
estado em que o pusera o ignominioso suplício e assim começou, com
atividade infatigável, a lavá-Io cuidadosamente. Abrindo a coroa de espinhos
pelo lado posterior, tirou-a cuidadosamente da cabeça de Jesus, com auxílio
dos outros. Para que os espinhos que entraram na cabeça, não alargassem
as feridas, foi preciso cor tá-Ios um a um da coroa. Colocaram depois a coroa
junto aos cravos, ao lado, e Maria tirou alguns espinhos compridos e
fragmentos que tinham ficado na cabeça do Salvador, com uma espécie de
pinças cur vas e elásticas, de cor amarela e mostrou-os tristemente aos
amigos compassivos. Puseram os espinhos junto à coroa; mas é possível que
alguns fossem guardados como lembrança.
Quase não se podia mais reconhecer o rosto do Senhor, tão desfigurado
estava pelas feridas e pelo sangue. O cabelo e a barba, em desalinho,
estavam completamente colados pelo sangue. Maria lavou-lhe o rosto e a
cabeça, passando esponjas molhadas sobre o cabelo, para tirar o sangue que
secara. A medida que lavava, tor navam-se mais visíveis os efeitos do cruel
suplício, causando cada vez novas manifestações de compaixão, novos
cuidados, de ferida em ferida. Maria limpou-lhe as feridas da cabeça, lavou o
sangue dos olhos, das narinas e dos ouvidos, com uma esponja e um pequeno
lenço, estendidos sobre os dedos da mão direita; com esse limpou também a
boca entreaber ta, a língua, os dentes e os lábios de Nosso Senhor. Dispôs o
pouco que restava da cabeleira de Jesus em três par tes, uma para cada lado
e uma para o lado posterior da cabeça e depois de alisar os cabelos de
ambos os lados, fê-los passar por trás das orelhas. Quando acabou de limpar
a cabeça, deu-Lhe um beijo na face e cobriu o santo rosto. Dirigiu então os
cuidados ao pescoço, aos ombros, ao peito e às costas do santo cor po, aos
braços e às mãos laceradas e sangrentas. Ai! Então se viu toda a hor renda
dilaceração do santo cor po. Todos os ossos do peito e todas as ar ticulações
estavam deslocadas e tor naram-se inflexíveis; o ombro sobre o qual Jesus
transpor tou a pesada cruz, era uma grande chaga; toda a par te superior do
cor po estava cober ta de feridas e pisaduras, causadas pela flagelação; no
lado esquerdo se via uma ferida pequenina, onde saíra a ponta da lança e no
lado direito se abria a larga chaga feita pela mesma lança, que também lhe
traspassou o coração de lado a lado. Maria Santíssima lavou e limpou todas
essas feridas. Madalena, prostrada de joelhos, ficava-lhe às vezes em frente,
para a ajudar, mas quase sempre estava aos pés de Jesus, os quais lavou
então pela última vez, mais com as lágrimas do que com água, enxugando-os
com o cabelo.

* Quando a nar radora, na Sexta-Peira Santa, a 30 de Março de 1820, no


começo da noite, contemplava o descendimento do Senhor da cruz, caiu de
repente num profundo desmaio, na presença de Clemente Brentano. Depois
de voltar a si, declarou, no meio de incessantes sofrimentos: "Quando
contemplei o cor po de Jesus estendidos sobre os joelhos da Santíssima
Virgem, pensei comigo: "Vede, como é for te! Ela nem desmaia." Meu guia
repreendeu-me imediatamente por esse pensamento, que era mais expressão
de espanto do que uma dor aguda como uma espada, a ponto de eu quase
mor rer e ainda continuo a senu-Ia. Picou muito tempo com essa dor, que foi
também a causa de uma doença grave, que a levou quase às por tas da mor te.

A cabeça, o peito e os pés do Senhor foram assim limpos do sangue e de toda


a imundície; o cor po, de um branco azulado, com o brilho de car ne exangue,
cober to de manchas pardas e de outros lugares ver me lhos, onde a pele fora
ar rancada, repousava sobre os joelhos de Maria, que lhe envolvia os
membros lavados e se pôs a embalsamar todas as feridas, começando
novamente pela cabeça. As santas mulheres ajoelhavam-se alter nadamente
diante dela, apresentando-lhe um vaso, do qual, com o indicador e o polegar
da mão direita, tirava um bálsamo ou ungüento precioso, com que ungia e
untava todas as feridas. Der ramou também ungüento sobre o cabelo; vi que,
segurando as mãos de Jesus com a mão esquerda, as beijou respeitosamente
e encheu as largas chagas dós cravos com o mesmo ungüento ou as mesmas
especiarias de que enchera os ouvidos as narinas e a chaga do lado.
Madalena estava quase todo o tempo ocupada com os pés de Jesus, ora
enxugando e untando-os, ora banhando-os novamente com as lágrimas;
muitas vezes apoiava neles o rosto.
Vi que não despejavam fora a água usada, mas guardavam-na nos odres de
couro, nos quais também espremiam as esponjas. Vi diversas vezes que
Cássio e outros soldados foram buscar água à fonte de Gion, em odres e
jar ros, que as mulheres tinham trazido; essa fonte de Gion estava tão per to,
que se podia enxergá-Ia do jardim do sepulcro.
Quando a Santíssima Virgem acabou de untar todas as feridas, envolveu a
santa cabeça em faixas; mas ainda não pôs o lenço que devia cobrir-lhe o
rosto. Fechou-lhe os olhos entreaber tos, pousando sobre eles a mão por
algum tempo; fechou também a boca do Senhor, abraçou o santo cor po do
Filho e, chorando, deixou cair o rosto sobre o de Jesus. Madalena, pelo
grande respeito que tinha ao Senhor, não lhe tocou no semblante, mas
apenas descansou o rosto sobre os pés do santo cor po.
José e Nicodemos já tinham estado por algum tempo per to, esperando,
quando João se aproximou da Santíssima Virgem, pedindo que se separasse
do cor po de Jesus, para que o pudessem preparar para a sepultura, porque o
sábado já estava per to. Maria abraçou mais uma vez, com o maior fer vor, o
cor po do Filho adorado, despedindo-se dele com palavras comoventes. Então
levantaram os homens o santo cor po no pano em que jazia, sobre os joelhos
da Mãe Santíssima e levaram-no para o lugar do embalsamamento. A Virgem
Santíssima, novamente entregue à dor, para a qual tinha achado alguma
consolação nos piedosos cuidados, caiu, com a cabeça velada, nos braços
das mulheres; Madalena, porém, seguiu os homens, cor rendo-Ihes alguns
passos atrás, com os braços estendidos, como se lhe quisessem raptar o
Amado, mas voltou depois para junto da SS. Virgem.
Levando o santo cor po, os homens desceram um pouco do alto do Gólgota,
para um lugar, numa dobra da encosta, onde havia uma pedra chata e lisa,
própria para esse fim. Ali já tinham feito todos os preparativos para o
embalsamamento. Vi primeiro, ali estendido, um pano trabalhado a crivo,
semelhante a uma rede, como que feita de rendas; pareciase com o grande
pano de fome (*), que se pendura em nossas igrejas.

* Pano de fome chama-se no bispado de Münster, na Alemanha, um pano


grande, de linho branco, que durante a quaresma é pendurado, por meio de
cordões do teto da Igreja ao solo, diante do altar-mor ou entre o coro e a
Igreja. Este pano costuma ter par tes bordadas a crivo, que representam as
cinco Chagas, os instrumentos da Paixão ou outras coisas semelhantes.
Sobre as almas sensíveis faz este pano uma impressão séria e sublime,
exor tando-as à mor tificação, sobriedade, piedade e meditação.

Quando criança, pensava eu sempre, ao ver esse pano, que era o mesmo que
vi no embalsamamento do Senhor. Provavelmente tinha o feitio de uma rede,
para deixar escor rer a água, ao lavar. Vi mais um pano grande, estendido
sobre a pedra. Deitaram o cor po do Senhor sobre o primeiro e alguns
seguravam o outro por cima. Nicodemos e José de Arimatéia ajoelharam-se e
desataram, sob essa cober ta, o lençol em que tinham envolvido o ventre do
Senhor, ao descê-Lo da cruz. Depois tiraram também do santo cor po a cinta
que Jonadab, sobrinho do pai nutrício do Salvador, lhe trouxera antes da
crucifixão. Lavaram então o ventre do Senhor com esponjas, sob o pano com
que o cobriam, com piedoso recato e que o tor nava invisível aos seus olhos.
Cober to ainda com o pano, levantaram-nO depois, por meio de outros panos,
passados sob os braços e joelhos e assim lhe lavaram também as costas,
sem virar o cor po. Continuavam a lavar, até que a água espremida das
esponjas escor ria clara e limpa. Depois o lavaram ainda com água de mir ra e
vi que depuseram o santo cor po sobre a pedra, estendendo-o
respeitosamente com as mãos, dandolhe uma posição reta, pois o meio do
cor po e as per nas estavam ainda um pouco cur vas, entesadas, na posição
em que se encolhera, mor rendo. Puseram-Lhe então sob os lombos um pano
da largura de um côvado e cerca de três côvados de comprimento, enchendo-
lhe o seio de molhos de er vas, - como vejo às vezes em banquetes celestes,
er vas verdes em pratos de couro, com borda azul, - e de fibras finas e
crespas de plantas parecidas com açafrão e sobre tudo isso espalharam um
pó fino, que Nicodemos trouxera num vaso. Envolveram depois o ventre, com
todas essas especiarias, no pano, puxaram uma par te deste, por entre as
per nas, para cima e fixaram-na sobre o ventre, fazendo entrar a extremidade
do pano por baixo do cinto. Depois de O ter deste modo envolvido, ungiram
todas as chagas das coxas, cobriram-nas de especiarias, puseram molhos de
er vas entre as per nas, até os pés e enrolaram as per nas junto com as er vas,
de baixo para cima.
Então foi João chamar a Santíssima Virgem e as outras santas mulheres.
Maria ajoelhou-se ao lado da cabeça, colocando sob essa um lenço fino, que
recebera de Cláudia Prócula, mulher de Pilatos e que trouxera ao pescoço,
sob o manto. Ela e as outras santas mulheres encheram então os espaços
entre a cabeça e os ombros, em redor do pescoço, até às faces de Jesus,
com molhos de er vas, com as fibras e o pó fino e feito isso, a Santíssima
Virgem atou tudo com aquele pano, envolvendo cabeça e ombros. Madalena
der ramou ainda um frasco inteiro de um líquido aromático na ferida do lado
de Jesus e as santas mulheres puseram-lhe ainda er vas e especiarias nas
mãos e em redor dos pés. Os homens puseram especiarias nas axilas, na
cova estomacal, enchendo todo o espaço em redor do cor po, cruzaram sobre
o seio os santos braços entor pecidos e envolveram finalmente todo o cor po,
junto com as especiarias, no grande pano branco, até o peito, como se
enfaixa uma criança; depois fizeram entrar sob um dos braços já enfaixados
a extremidade de uma faixa, com a qual enrolaram todo o cor po, levantando-
o e começando pela cabeça. Feito isto, puseram-no sobre o pano grande, de
seis côvados de comprimento, o qual José de Arimatéia comprara e nele
o envolveram. O cor po jazia obliquamente sobre o pano, do qual dobraram
uma extremidade dos pés até o peito, a outra, de cima, sobre a cabeça e
ombros; com as par tes salientes dos lados envolveram o meio do cor po.
Todos se ajoelharam então em redor do cor po, para se despedirem, chorando
e eis que um milagre comovente se lhes deparou ante os olhos: Toda a figura
do santo cor po, com todas as feridas, apareceu na superfície do pano que o
cobria, desenhado em cor ver melhoescura, como se Jesus quisesse
recompensar-Ihes os cuidados carinhosos e a tristeza, deixando-Ihes o
retrato, através de todo o invólucro. Chorando alto, abraçaram o santo cor po,
beijando e venerando a milagrosa imagem. A admiração de que estavam
possuídos, era tão grande, que de novo abriram o pano e tor nou-se ainda
maior, quando acharam todas as faixas e ataduras do cor po brancas como
dantes; só o pano exterior trazia a imagem da figura do Senhor.
A par te do pano sobre a qual jazia o cor po, mostrava o desenho do dorso do
Senhor e os lados do pano que o cobriam, sobrepostos, apresentavam a
imagem da frente, porque na frente estava o pano dobrado sobre Ele, com
vários cantos. A imagem não dava a impres são de feridas sangrentas, pois
todo o cor po estava envolto espessamente em especiarias, com muitas
ataduras; era, porém, uma ima gem milagrosa, testemunho da divindade
criadora, que per manecera unida ao cor po de Jesus.
Vi também muitos fatos da história posterior dessa santa mor talha, os quais,
porém, não sei mais contar na devida ordem. Ela estava, junto com outros
panos, na posse dos amigos de Jesus, depois da ressur reição. Uma vez vi
que foi ar rancada a uma pessoa, que a levava sob o braço. Vi-a duas vezes
nas mãos de judeus, mas também muito tempo em diversos lugares, venerada
pelos cristãos. Uma vez houve uma questão por causa dela e para a ter minar,
jogaram a mortalha no fogo, mas foi milagrosamente levada pelos ares e caiu
nas mãos de um cristão.
Foram feitas três cópias da santa imagem, por santos homens, que puseram
outros panos em cima, com fer vorosa oração, reproduzindo assim tanto a
figura do dorso, como também a imagem composta da frente. Essas cópias
foram consagradas pelo contato na intenção solene da Igreja e em todos os
tempos têm sido instrumento de muitos milagres. O original vi uma vez, um
pouco estragado, com alguns rasgões, na Ásia, venerado por cristãos não
católicos. Esqueci o nome da cidade, que fica situada num vasto país,
vizinho da ter ra dos Reis Magos. Vi nessas visões também cer tas coisas de
Turim e da França, do Papa Clemente I e do imperador Tibério, que mor reu
cinco anos depois da mor te de Cristo; mas esqueci-as.

4. O enter ro

Os homens colocaram o santo cor po sobre a padiola de couro, cobriram-no


com uma cober ta parda e enfiaram em cada lado um varal, o qual me causou
uma viva recordação da Arca da Aliança. Nicodemos e José car regavam as
extremidades anteriores dos varais sobre os ombros; atrás seguravam
Abenadar e João. Depois se seguiam a Santíssima Virgem, sua ir mã mais
velha, Maria Helí, Madalena e Maria de Cleofas e após elas, o grupo das
mulheres que dantes estavam um pouco mais afastadas: Verônica, Joana
Cuza, Maria Marcos (mãe de Marcos), Salomé Zebedaei, Maria Salomé,
Salomé de Jerusalém, Susana e Ana, sobrinha de S. José, educada em
Jerusalém. Encer ravam o séquito Cássio e os soldados. As outras mulheres,
por exemplo Maroni, de Naim, Dina, a Samaritana e Mara, a Sufamita,
estavam então em Betânia, em casa de Mar ta e Lázaro.
Dois soldados, com fachos torcidos, iam na frente, pois precisavam de luz na
gruta do sepulcro. Cantando salmos, em tom triste e baixo, caminharam
cerca de sete minutos, através do vale, em direção ao jardim do sepulcro. Vi
na encosta, além do vale, Tiago o Maior, ir mão de João, olhar o cor tejo e
voltar depois, para o anunciar aos outros discípulos, refugiados nas
caver nas.
O jardim ir regular, cober to de relva, que ficava diante do rochedo da gruta,
na extremidade do jardim, era cercado de uma sebe e além desta tinha na
entrada uma cancela, cujas trancas, com gonzos de fer ro, estavam fixas em
estacas. Defronte da entrada do jardim, diante do rochedo do sepulcro, à
direita, há várias palmeiras. A maior par te das outras plantas são arbustos,
flores e er vas aromáticas.
Vi o cor tejo parar na entrada do jardim e abrir a cancela, tirando algumas
trancas, das quais se ser viram depois, como alavancas, para fazer rolar para
dentro da gruta a grande pedra que devia fechar o sepulcro. Chegando ao pé
do rochedo, abriram a padiola e tiraram o santo cor po, deitando-o sobre uma
tábua estreita, cober ta de um largo pano. Nicodemos e José car regaram as
duas extremidades da tábua, enquanto os outros dois seguravam o pano. A
nova gruta sepulcral fora limpa e perfumada pelos criados de Nicodemos; era
bem graciosa e no alto das paredes interiores tinha um friso esculpido. A
cova mor tuária era, no lugar da cabeça, um pouco mais larga do que no lugar
dos pés e havia sido escavada na for ma côncava de um cadáver amor talhado,
com pequenas elevações no lugar da cabeça e dos pés.
As santas mulheres assentaram-se em frente à entrada da gruta. Os quatro
homens desceram com o santo cor po do Senhor à gruta, onde o depuseram
no chão; encheram ainda par te do leito sepulcral de especi arias,
estenderam sobre ele um pano, colocando sobre este o santo cor po. O pano
pendia ainda dos lados do sepulcro. Manifestando ao santo cor po o seu amor
com lágrimas e abraços, saíram da gr uta. Entrou então a Santíssima Virgem.
Sentou-se à cabeceira de Jesus, à beira do sepulcro, que tinha cerca de dois
pés de altura e inclinou-se, chorando, sobre o cadáver do Filho. Depois de
Maria Santíssima sair, entrou Madalena, com ramos e flores, que colhera no
jardim e que espalhou sobre o santo cor po. Torcendo as mãos e chorando
alto, abraçou os pés de Jesus. Como, porém, os homens lá fora insistissem
em fechar o sepulcro, voltou para junto das mulheres. Os homens dobraram
sobre o santo cor po a par te pendente do pano, cobriram tudo com uma
cober ta parda e fecharam as por tas. Puseram uma bar ra transversal e uma
per pendicular ; parecia uma cruz.
A grande pedra destinada a fechar as por tas do sepulcro e que ainda estava
fora da gruta, tinha uma for ma semelhante a uma arca * ou um monumento
sepulcral; um homem podia deitar-se sobre ela. Era muito pesada e os
homens rolaram-na para dentro da gruta, com auxílio das trancas tiradas da
cancela do jardim e encostaram-na às por tas fechadas do sepulcro. A
entrada exterior da gruta foi fechada com uma por ta de ramos entrelaçados.

* Provavelmente a nar radora se refere às antigas caixas ou arcas, nas quais


os camponeses de sua ter ra guardam a roupa. O fundo é menor do que a
tampa e deste modo tomam a for ma de uma tumba; por isso ela os Compara a
um monumento sepulcral. Ela mesma possuía uma tal arca, que chamava o
seu baú. Desse modo descreve várias vezes aquela pedra, mas, mesmo
assim, não temos ainda uma idéia clara da respectiva for ma.

Todos os trabalhos dentro da gruta foram feitos à luz de fachos, porque


dentro estava muito escuro. Durante o enter ro do Senhor, vi vários homens
na proximidade do jardim e do Monte Calvário, que, tímidos e tristes,
andavam de um lado para outro; creio que eram discípulos, que receberam de
Abenadar notícias e, saindo das caver nas, aproximaram-se através do vale e
àquela hora estavam voltando.

5. A volta para casa, depois do enter ro; o sábado; prisão de José


de Arimatéia

Já era a hora em que começava o sábado. Nicodemos e José voltaram à


cidade, passando por uma pequena por ta que havia no muro da cida de, per to
do jardim e que, se bem me lembro, Ihes era concedida por favor par ticular.
Disseram à Santíssima Virgem, a João, Madalena e algumas mulheres que
ainda queriam ir ao Monte Cal vário, para rezar e bus car algumas coisas ali
deixadas, que essa por ta, como também o por tão para o Cenáculo, Ihes
seriam aber tos, se batessem. Maria Helí, a ir mã já idosa da Santíssima
Virgem, foi conduzi da à cidade por Maria Marcos e outras mulheres. Os
criados de Nicodemos e José voltaram ao Monte Calvário, para buscar os
utensílios que lá tinham deixado.
Os soldados reuniram-se àqueles que ocupavam a por ta que dava para o
Monte Cal vário; Cássio seguiu para o palácio de Pilatos, levando a lança e
relatou-lhe tudo que acontecera, prometendo também lhe dar notícias exatas
de tudo quanto ainda sucedesse, se o mandasse acompanhar a guarda do
sepulcro, a qual os judeus, segundo fora infor mado, viriam requerer-lhe.
Pilatos escutou todas as infor mações com um ocul to ter ror, tratou-o, porém,
como fanático e com nojo e medo supersticio so da lança que Cássio
trouxera consigo, mandou-lhe que a levasse para fora da sala.
Quando a Santíssima Virgem e os amigos voltavam com os utensílios do
Monte Cal vário, onde ainda tinham rezado e chorado, viram um des-
tacamento de soldados que Ihes vinha ao encontro; retiraram-se então para
os dois lados do caminho, para deixar passar a tropa. Esta se dirigiu ao
Monte Cal vário, provavelmente para tirar, ainda antes do sábado, as cruzes
e enter rá-Ias. Depois de terem passado, as santas mulheres con tinuaram o
caminho em direção à pequena por ta da cidade.
José e Nicodemos encontraram-se na cidade com Pedro, Tiago o Maior e
Tiago o Menor. Todos estavam chorando. Pedro especialmente estava muito
triste, preso de violenta dor ; abraçou-os soluçando, acu sou-se a si mesmo,
lastimando não ter estado presente à mor te do Se nhor e agradeceu-Ihes
terem dado sepultura ao cor po sagrado. Todos estavam desvairados de dor.
Pediram ainda para serem recebidos no Cenáculo, quando batessem e
despediram-se, para procurar ainda ou tros discípulos dispersos.
Vi mais tarde a Santíssima Virgem e as amigas baterem à por ta do Cenáculo
e serem recebidas, como também Abenadar e, pouco a pouco, os demais
Apóstolos e vários discípulos. As santas mulheres retiraram-se para a par te
onde habitava a Santíssima Virgem; tomaram um pouco de alimento e
passaram ainda alguns minutos, recordando com tristeza e dor tudo o que se
tinha passado. Os homens revestiram-se de outras vestes e vi-os começarem
o sábado de pé, sob um candeeiro. Depois comeram ainda car ne de
cordeiros, em diversas mesas, no Cenáculo, mas sem cerimônias; pois não
era o cordeiro pascal, que já tinham comido na véspera. Reinava tristeza e
desânimo geral. Também as santas mulheres rezavam com Maria, à luz de um
candeeiro. Mais tarde, quando já escurecera totalmente, foram ainda
recebidos Lázaro, Mar ta, Maroni, a viúva de Naim, Dina Sumarites e Maria
Sufanites, que depois de começar o sábado, vieram da Betânia e a dor
renovou-se pela nar ração de tudo que se passara.
Mais tarde saíram José de Arimatéia e alguns discípulos e diversas mulheres
do Cenáculo, voltando para casa; iam tímidos e tristes pelas ruas de Sião,
quando de repente um grupo de homens ar mados saiu de uma emboscada,
ar remessando-se sobre eles e prendendo José de Arimatéia, enquanto os
outros fugiram com gritos de ter ror. Vi encarcerarem o bom José numa tor re
do muro da cidade, não muito longe do tribunal. Caifás mandara soldados
pagãos executarem essa prisão, porque não eram obrigados a guardar o
sábado. Os inimigos tinham a intenção de deixar José mor rer de fome e não
falar nesse desaparecimento.

6. A guarda no túmulo de Jesus

Na noite de sexta-feira para sábado vi Caifás e os príncipes dos judeus


reunirem-se em conselho, para decidir o que deviam fazer, diante dos
acontecimentos milagrosos e da excitação do povo. Depois foram ainda
durante a noite, procurar Pilatos e disseram-lhe que se tinham lembrado de
que aquele impostor tinha dito, quando ainda vivia, que no terceiro dia após
a mor te ressuscitaria; pediam-lhe que por isso mandasse guardar o sepulcro
até o terceiro dia, para que os discípulos de Jesus não lhe roubassem o
cor po, divulgando em seguida que tinha ressuscitado dos mor tos, pois dessa
for ma seria a segunda impostura pior do que a primeira.
Pilatos, porém, não quis intrometer-se mais nessa questão e disseIhes:
"Tendes uma guarda; ide guardar o túmulo como entenderdes." Mandou,
porém, Cássio acompanhar a guarda e obser var e relatar-lhe depois tudo. Vi
os doze fariseus saírem da cidade, antes do pôr do sol. Os doze soldados que
os acompanhavam, não estavam vestidos à forma romana: eram soldados do
Templo e pareciam-me uma espécie de guarda de cor po. Levaram braseiros,
fixos sobre hastes, para poder ver tudo durante a noite e para ter luz na
escuridão do sepulcro.
Ao chegar, cer tificaram-se da presença do cor po, amar raram uma corda à
por ta do túmulo, dessa corda fizeram passar uma segunda à pedra, selando
essas cordas com um selo semilunar. Depois voltaram à cidade e os guardas
sentaram-se defronte da por ta exterior do sepulcro. Ficavam alter nadamente
cinco ou seis homens, indo de vez em quando alguns à cidade, para buscar
víveres. Cássio, porém, não deixou o posto; per manecia em pé ou sentado, no
fosso em frente à entrada da gruta, de modo que podia ver o lado do túmulo
fechado, onde repousavam os pés do Senhor. Recebeu grandes graças
interiores e a inteligência intuitiva de muitos mistérios; como não estivesse
acostumado a tais estados sobrenaturais, ficava, a maior par te do tempo
dessa iluminação espiritual, como que embriagado, inconsciente das coisas
exteriores. Foi nesse tempo que se conver teu inteiramente, tor nando-se novo
homem; passou o dia em atos de ar rependimento, ação de graças e adoração.
7. Os amigos de Jesus no Sábado santo

Vi à noite, como já mencionei, os homens reunidos no Cenáculo, cerca de


vinte, de vestes longas e brancas e cingidos, celebrando o sábado, à luz de
um candeeiro e depois de comer, separaram-se para dor mir. Diversos foram
para casa. Também hoje os vi reunidos no Cenáculo, na maior par te do tempo
em silêncio, rezando e lendo altemadamente e de vez em quando deixando
entrar alguns que chegavam.
No local onde ficava a Santíssima Virgem, havia uma grande sala e nessa
alguns recantos separados por biombos ou tapetes, para ser virem de quar tos
de dor mir. Depois que as santas mulheres, voltando do sepulcro, tinham
posto todos os utensílios nos respectivos lugares, acendeu uma delas um
candeeiro, que pendia no centro da sala. Reuniram-se sob este candeeiro, em
roda da Santíssima Virgem, rezando alter nadamente, com grande devoção e
tristeza. Depois tomaram algum alimento. Entraram na sala Mar ta, Maroni,
Dina e Mara, que depois de começar o sábado, tinham vindo de Betânia, com
Lázaro, que se juntou aos homens reunidos no Cenáculo. Contaram chorando
aos recém-chegados a mor te e a sepultura do Senhor e como já era tarde,
alguns dos homens, entre os quais José de Arimatéia, mandaram chamar as
mulheres que queriam voltar para suas casas na cidade e despediram-se. Ao
voltar este grupo para casa, José foi preso, per to do tribunal de Caifás, como
já contei e encarcerado numa tor re.
As mulheres que ficaram no Cenáculo, separaram-se então, indo para as
mencionadas celas de dor mir ; puseram panos compridos sobre a cabeça e
por algum tempo ali per maneceram sentadas no chão, em triste silêncio,
encostadas às cober tas, que estavam enroladas ao pé da parede. Depois se
levantaram, desenrolaram as cober tas, tiraram as san dálias, cintas e par te
do vestuário, velaram-se da cabeça aos pés, como costumam fazer para
dor mir e deitaram-se para um cur to descanso, sobre as cober tas estendidas;
pois logo depois de meia noite se levantaram de novo, ar rumaram a roupa,
enrolaram os leitos e reuniram-se sob o candeeiro, em roda da Santíssima
Virgem, para rezarem alter nadamente.
Tenho visto muitas vezes filhos fiéis de Deus e homens santos, desde que se
reza neste mundo, obser varem esse costume de orações notur nas, seja
inspirados por uma graça pessoal, seja incitados por preceitos divinos e
eclesiásticos.
Depois da Mãe de Jesus e as amigas terem cumprido esse dever de oração
notur na, apesar dos grandes sofrimentos e depois de terem tam bém os
homens rezado no Cenáculo, à luz do candeeiro, bateu João, com alguns
outros discípulos, à por ta da sala das mulheres, que se envolveram
imediatamente nos mantos e os seguiram, junto com a Santíssima Virgem, ao
Templo.
Vi a Santíssima Virgem, as santas mulheres, João e outros
discípulos chegarem ao Templo, quase ao mesmo tempo em que o sepulcro
era selado: cerca de três horas da manhã. Era costume de muitos judeus,
de madrugada, depois de ter comido o cordeiro pascal, irem ao Templo,
que nessa ocasião já era aber to à meia noite, porque começavam os
sacrifícios de manhã muito cedo. Naquele dia, porém, estava tudo em
desordem, pela inter r upção da festa e pela profanação do Templo. Parecia-
me que a Santíssima Virgem, com as amigas, queria somente se despedir do
Tem plo, no qual tinha sido educada, adorando o Santíssimo, até trazer
no seio o próprio Santíssimo, que agora fora tão cruelmente imolado,
como verdadeiro Cordeiro pascal. O Templo estava aber to, segundo o hábito
desse dia e iluminado por lampiões e até o átrio dos sacerdotes era
acessível ao povo, fora os guardas e empregados, como de costume nessa
manhã. Mas, lá não havia nenhum fiel. Tudo estava ainda em desordem e
devastado pelas ter ríveis destruições do dia precedente. O Templo estava
profanado pela aparição de mor tos e eu não podia deixar de perguntar a mim
mesma: "Como poderão reparar tudo isto?”
Os filhos de Simeão e os sobrinhos de José de Arimatéia, que estavam muito
tristes com a notícia da prisão do tio, encontraram-se com a Santíssima
Virgem e os companheiros e conduziram-nos por todas as par tes do Templo,
do qual eram guardas. Viram silenciosos e assustados toda a destruição,
adorando o testemunho divino; só de vez em quando os guias descreviam
acontecimentos do dia anterior.
Vi em muitos lugares prejuízos causados pelo ter remoto da véspera, que
ainda não haviam sido conser tados. No ponto onde se juntam o átrio e o
Santo do Templo, havia tão larga fenda no muro, que um homem podia passar
através e havia perigo dos muros caírem. A verga por cima da cor tina, diante
do Santo, abaixara, as colunas que a supor tavam, cederam para os lados e a
cor tina pendia de ambos os lados, rasgada de cima a baixo, em duas par tes.
Pela grossa pedra caída do muro nor te do Templo, per to da cela de oração de
Simeão, também destruída, for marase tão grande aber tura, no lugar onde
aparecera Zacarias, que as santas mulheres puderam passar sem dificuldade
e do outro lado, per to da cátedra em que o Menino Jesus ensinara, ver,
através da cor tina rasgada, o Santo, o que em outros tempos era proibido.
Também se fenderam aqui e acolá os muros, afundaram-se par tes do solo,
umbrais e colunas saíram do lugar.
A SS. Virgem visitou, com os amigos, todos os lugares que lhe eram
sagrados, pela lembrança de Jesus. Prostrando-se por ter ra, beijava os
santos lugares, chorando e contava as suas reminiscências, em poucas
palavras comovedoras. Também as companheiras faziam o mesmo.
Os judeus têm grande veneração por todos os lugares onde aconteceu
alguma coisa que Ihes parece sobrenatural; tocam e beijam esses lugares e
deitam-se por ter ra, tocando-a com o rosto. Nunca achei nisso coi~a de
admirar. Se sabemos, cremos e sentimos que o Deus de Abraão, Isaac e Jacó
é Deus vivo e mora no meio do seu povo, no Templo, na sua casa em
Jerusalém, devíamos admirar-nos antes, se não o fizessem. Quem crê em
Deus vivo, Pai e Redentor e Santificador dos homens, seus filhos, não se
admira que Ele esteja com amor vivo entre os vivos e que estes lhe prestem
amor, honra e adoração, bem como a tudo quanto se lhe refere, mais do que
aos pais ter restres, amigos, mestres, superiores e príncipes. Os judeus
sentiam no Templo e nos lugares sagrados o que sentimos diante do SS.
Sacramento. Mas também entre os judeus havia cegos e "iluminados", como
há também entre nós, que não adoram o Deus vivo e realmente presente, mas
se entregam ao culto supersticioso dos ídolos deste mundo. Não se lembram
das palavras de Jesus: "Quem me negar diante dos homens, também o
negarei diante de meu Pai Celestia!." Tais homens, que ser vem ao espírito e
à mentira do mundo, em pensamentos, palavras e obras, sem inter rupção,
mas rejeitam todo o culto exter no de Deus, dizem às vezes, se por ventura
ainda não rejeita ram o próprio Deus, como demasiadamente exterior :
"Adoramos a Deus em espírito e verdade"; mas não sabem o que isso
significa: no Espírito Santo e no Filho, que nasceu de Maria Virgem, que deu
testemunho da verdade e viveu entre nós, que mor reu por nós neste mundo e
quer ficar presente na sua Igreja, no SS. Sacramento, até o fim dos séculos.
A SS. Virgem visitou assim muitos lugares do Templo, venerando-
os religiosamente. Mostrou-Ihes onde entrara a primeira vez no
Templo, quando menina e onde fora educada, na par te sul do edifício, até
o casamento. Mostrou-Ihes onde desposara São José, onde apresentara
Jesus, onde Simeão e Ana proferiram a profecia; nesse lugar
chorou amargamente, pois a profecia estava cumprida; a espada
transpassara-lhe o coração. Mostrou-Ihes onde achara o Menino Jesus
ensinando no Templo e beijou respeitosamente a cátedra. Visitaram também
a caixa de esmolas, onde a viúva depositara a esmola e o lugar onde o
Senhor perdoara à adúltera. Depois de ter deste modo venerado todos os
luga res santificados pela presença de Jesus, com recordações, beijos, lágri-
mas e orações, voltaram a Sião.
De volta, ao amanhecer, no Cenáculo de Sião, Maria e as compa nheiras se
dirigiram à sua habitação separada, situada à direita do pátio da casa. Na
entrada se separaram delas João e outros discípu los e foram juntar-se aos
homens que, em número de cerca de vinte, per maneciam reunidos, de luto,
no Cenáculo, durante todo o sábado, rezando alter nadamente, sob a luz do
candeeiro. Vi-os também de vez em quando receberem timidamente alguns
recém-chegados, conversando com eles e chorando. Todos mostravam íntimo
respeito e cer ta vergonha diante de João, que ficara com Jesus até à mor te.
João, porém, era benévolo e afetuoso para com todos e simples como
uma criança, tratava a todos com humildade. Vi-os também uma vez
tomar uma refeição. Fora disso estavam silenciosos e a casa
per manecia fechada. Também não podiam ser inquietados ali, pois a casa
per tencia a Nicodemos e haviam-na alugado para a refeição pascal.
Vi depois as santas mulheres reunidas na sala escura, iluminada apenas pela
luz do candeeiro, pois as por tas e janelas estavam fecha das. Ora se
juntavam em roda da SS. Virgem, para a oração, ora se retiravam para suas
celas separadas, cobrindo a cabeça com o véu de luto e sentavam-se sobre
caixas chatas, cober tas de cinza, em sinal de luto, ou rezavam, com o rosto
voltado para a parede. Sempre que se reuniam para rezar, deixavam o véu de
luto nas respectivas celas. Vi também as mais fracas tomarem algum
alimento, as outras, porém, jejuavam.
Contemplei-as diversas vezes e sempre as vi rezando ou de luto, do modo por
que descrevi. Unindo minha contemplação aos pensamentos da SS. Virgem,
que estava mergulhada na recordação de Nosso Salvador, vi várias vezes o
santo sepulcro e cerca de sete guardas, que per maneciam em frente à
entrada, em pé ou sentados. Per to da por ta da gruta, no fosso que ali havia,
estava Cássio em silêncio e profunda meditação. Vi as por tas do sepulcro
fechadas e a pedra encostada. Através das por tas, porém, vi o cor po do
Senhor, jazendo ainda como fora depositado, cercado de luz, entre dois Anjos
em adoração.

10
A Gloriosa Ressur reição de Jesus
1. As vésperas da ressur reição
2. José de Arimatéia é posto em liberdade
3. A noite antes da ressur reição de Jesus
4. A Ressur reição do Senhor
5. As santas mulheres no sepulcro. Aparições de Jesus
6. Relatório da guarda do sepulcro
7. Ameaças dos inimigos
8. Ágape após a ressur reição de Jesus

A Gloriosa Ressur reição de Jesus

1. As vésperas da ressur reição

Depois de ter minado o sábado, entrou João na sala das piedosas mulheres,
chorou com elas e consolou-as. Quando, após algum tempo saiu, entraram
Pedro e Tiago o Maior para o mesmo fim, demorando-se também pouco tempo
apenas. Retiraram-se então as santas mulheres mais uma vez para a cela,
chorando ainda por algum tempo, sentadas sobre a cinza e cober tas do véu
de luto.
Enquanto a Santíssima Virgem estava sentada, em ardente oração, cheia de
saudade de Jesus, vi acercar-se-lhe um Anjo, que lhe disse que saísse pela
por tinha de Nicodemos, pois o Senhor se aproximava. Encheu-se então o
coração de Maria de profunda alegria; envolvendo-se no manto, ela deixou as
santas mulheres, sem dizer onde ia. Vi-a dirigirse apressada àquela por tinha
do muro da cidade pela qual tinham entrado, ao voltar do Sepulcro.
Podiam ser cerca de 9 horas da noite, quando vi a Santíssima Virgem parar
de repente o passo apressado, num lugar deser to, per to dessa por tinha;
olhou com radiante amor para o muro da cidade. A alma de Jesus veio
voando, resplandecente, sem sinais das chagas, ao encontro de Maria,
seguida de um grande número de almas dos patriarcas. Virando-se para os
patriarcas e indicando Maria, disse estas palavras: "Maria, minha Mãe" e foi
como se a abraçasse; depois desapareceu. Maria, porém, caiu de joelhos e
beijou a ter ra onde Ele pisara; os sinais dos joelhos e pés da Virgem ficaram
impressos na pedra. Voltou então, cheia de indizível consolação, para junto
das santas mulheres, que encontrou reunidas em redor de uma mesa,
preparando ungüentos e especiarias. Não lhes disse o que lhe sucedera; mas
estava confor tada e consolou a todos e confir mou-as na fé.
Quando Maria voltou, vi as santas mulheres em redor de uma longa mesa, de
pés cruzados, como um aparador e cuja toalha pendia até o chão. Vi algumas
escolherem, misturarem e ar r umarem variadíssimos molhos de er vas; tinham
também alguns frascos com ungüento e outros com água de nardo, como
também várias flores vivas, entre as quais me lembro de ter visto uma íris
listrada ou um lírio; embrulharam tudo em panos. Durante a ausência de
Maria, tinham ido à cidade Madalena, Maria Cleofa, Salomé, Joana Cuza e
Maria Salomé, para comprar tudo. Queriam ir na madrugada do dia seguinte
ao sepulcro, para der ramar e espalhar tudo sobre o cor po amor talhado do
Senhor. Vi os discípulos buscarem uma par te das especiarias em casa
daquela merceeira e entregarem-nas à por ta da casa das santas mulheres,
sem entrar lá.

2. José de Arimatéia é posto em liberdade

Pouco tempo depois do encontro da Santíssima Virgem com a alma do Senhor


e da sua volta para junto das mulheres santas, vi José de Arimatéia rezando
no cárcere. De súbito vi o cárcere cheio de luz e ouvi chamar-lhe o nome; vi
o teto em par te como que levantado do muro e uma figura resplandecente,
que desceu um pano, que me fez lembrar do pano em que José envolvera o
cor po de Jesus e a figura mandou-o subir pelo pano. José segurou então o
pano e apoiando os pés em algumas pedras salientes do muro, subiu até duas
vezes a altura de um homem, à aber tura que, depois de o ter deixado passar,
tomou a fechar-se. Quando José chegou em cima, desapareceu a figura. Eu
mesmo não sei se foi o Senhor ou um Anjo que o liber tou.
Vi-o depois cor rer sobre o muro da cidade, sem ser notado, até per to do
Cenáculo, que está situado per to do muro sul de Sião. Ali desceu e bateu na
por ta do Cenáculo. Os discípulos ali reunidos tinham fechado as por tas e já
se entristeciam muito pelo desaparecimento de José; ao receberem a
notícia, pensaram primeiro tivesse sido lançado numa fossa. Quando, porém,
abriram e o viram entrar, reinou a mesma alegria que mais tarde, quando
Pedro, liber tado do cárcere, reapareceu entre eles. José contou a aparição
que tivera; alegraram-se muito e ficaram consolados; deram-lhe de comer e
agradeceram a Deus. José porém, fugiu na mesma noite de Jer usalém, para a
cidade natal, Arimatéia; mas recebendo depois notícia de que não havia mais
perigo, voltou para Jerusalém.
Pelo fim do Sábado vi também Caifás e outros sacerdotes em casa de
Nicodemos, conversando com este e inter rogando-o hipócritamente a
respeito de muitas coisas; não sei mais do que se tratava. Ele, porém, ficou
decidido e fiel na defesa do Senhor e os inimigos saíram então.

3. A noite antes da ressur reição de Jesus

Pouco depois vi o sepulcro do Senhor. Tudo ali estava quieto e sossegado;


cerca de sete guardas estavam sentados ou em pé, defronte e em redor do
rochedo. Cássio raras vezes se afastara, durante todo o dia e por poucos
instantes; lá estava de novo mergulhado em meditação sobre muitas coisas e
em expectativa; pois recebera muitas graças e iluminações e estava
interior mente esclarecido e comovido.
Era noite e os braseiros diante da gruta sepulcral projetavam uma viva luz
em redor ; então me aproximei, na minha contemplação, do cor po sagrado,
para o adorar : jazia ainda inalterado, envolto nos panos, rode ado de luz,
entre dois Anjos, que vi continuamente, desde que foi levado à sepultura, do
lado da cabeça e dos pés, em silenciosa adoração. Esses Anjos eram como
figuras sacerdotais e lembravam-me vivamente os Querubins da Arca da
Aliança, pela posição, com os braços cruzados sobre o peito; somente não
lhes vi asas. Em geral a sepultura e o túmulo do Senhor me lembravam por
diversas vezes extraordinariamente a Arca da Aliança, em várias épocas da
história. Talvez que a luz e a prece dos Anjos se tenham tomado até cer to
ponto visíveis a Cássio e por isso ficasse em contínua contemplação diante
do sepulcro fechado, como alguém que adora o SS. Sacramento.
Durante a minha adoração, tive a impressão de que a alma do Senhor, com as
almas remidas dos patriarcas, entrava pelo rochedo na gruta, fazendo-os
conhecer todo o mar tírio do seu santo cor po. Nesse mesmo momento me
parecia que todos os invólucros eram tirados; vi o cor po sagrado cheio de
feridas e era como se a divindade, que lhe per manecia unida, o mostrasse às
almas de maneira misteriosa, em todos os maus tratos e cruel mar tírio que
padecera. Parecia-me inteiramente transparente e visível todo o seu interior.
Podiam-se-Ihe conhecer as feridas, dores e sofrimentos, nas par tes mais
íntimas. As almas estavam cheias de indizível respeito e pareciam
estremecer e chorar de compaixão.
Entrei depois numa contemplação, cujo mistério, em toda a extensão, não
posso contar claramente. Vi a alma de Jesus entrar-lhe no cor po sagrado,
sem lhe restituir a vida pela perfeita união e com ele sair do sepulcro;
pareceu-me que os dois Anjos, que adoravam nas duas extremidades do
túmulo, levaram o santo cor po mar tirizado para cima, nu, desfigurado e cheio
de feridas, ereto, mas com os membros na posição em que estavam no
túmulo. Vi-os subir ao céu, passando pelo rochedo que tremeu; tive uma
visão de Jesus, apresentando o cor po mar tirizado ao trono do Pai Celestial,
no meio de inúmeros coros de Anjos em adoração, do mesmo modo que as
almas de muitos profetas tomaram os respectivos cor pos, depois da mor te de
Jesus, conduzindo-os ao Templo, sem que eles vivessem verdadeiramente e
tivessem de mor rer de novo; pois foram depois depostos pelas almas sem
separação violenta. Nessa contemplação não vi as almas dos patriarcas
acompanharem o cor po do Senhor. Também agora não me lembro mais onde
ficaram, até que as vi novamente reunidas à alma do Senhor.
Notei nessa contemplação um tremor do rochedo do sepulcro; quatro dos
guardas tinham ido à cidade buscar qualquer coisa, os três que estavam
presentes, caíram como que desmaiados. Atribuíram-no a um ter remoto, não
percebendo a verdadeira causa. Cássio, porém, estava muito comovido e
abalado; pois viu algo do que se passou, sem ter entretanto uma clara
compreensão. Mas per maneceu no posto, esperando com profundo respeito o
que ia acontecer. No entanto voltaram os soldados ausentes.
Minha contemplação tomou a dirigir-se depois às santas mulheres. Depois de
terem ter minado a preparação das especiarias, que foram envolvidas em
panos e ar r umadas para se levarem comodamente, retiraram-se novamente
para as celas; não se deitaram, porém, para dor mir, encostaram-se apenas
nos leitos enrolados, para descansar, porque queriam ir ao sepulcro de Jesus
antes de amanhecer. Tinham manifestado várias vezes receios a respeito
dessa intenção; pois tinham medo de que os inimigos de Jesus Ihes
pudessem fazer mal, se saíssem. Mas a Santíssima Virgem, reanimada desde
a aparição de Jesus, consolou-as e disse-Ihes que descansassem um pouco e
depois fossem sossegadamente ao sepulcro, que não Ihes sucederia mal
algum. Assim foram descansar um pouco.
Eram, porém, cerca de onze horas quando a Santíssima Virgem, impelida pelo
amor e pela saudade, não achou mais sossego; levantouse, envolveu-se
inteiramente no manto cinzento e saiu sozinha de casa. Pensei ainda: "Ah!
Como podem deixar sair sozinha nestas condições a santa Mãe, tão
angustiada e abatida?" Vi-a, porém, ir cheia de tristeza até à casa de Caifás
e dali até ao palácio de Pilatos, o que significava uma longa volta para
dentro da cidade. Assim percor reu sozinha toda a via sacra de Jesus, pelas
r uas deser tas, demorando-se nos lugares onde o Senhor sofrera qualquer dor
ou mau trato. Era como se procurasse algo que tivesse perdido. Muitas vezes
se lançava por ter ra, apalpava com as mãos as pedras em redor, tocando
depois com a mão a boca, como se tivesse tocado numa coisa sagrada, o
sangue do Senhor e o beijasse respeitosamente. Estava, porém, num estado
sobrenatural; pelo amor via tudo em redor de si luminoso e claro, estava toda
absor ta em amor e adoração. Acompanhei-a pelo caminho e senti e fiz, na
medida de minhas poucas forças, tudo quanto ela sentiu e fez.
Ela seguiu o caminho da cruz até o Monte Calvário. Quando se aproximou
deste, parou de repente e vi Jesus, com o santo cor po tor turado, aparecer
diante da Santíssima Virgem; um Anjo ia à frente, os dois Anjos que o
adoravam no sepulcro, iam ao lado, seguindo-se um grande número de almas
remidas. O cor po não se movia, era como um cadáver
ambulante, rodeado de luz; mas ouvi sair dele uma voz, que anunciou à Mãe
Santíssima o que Ele tinha feito no limbo e que em breve ressuscitaria, com
cor po vivo e glorificado e viria ao seu encontro; que o esperasse per to da
pedra em que caíra, no Monte Calvário. Vi depois essa aparição se dirigir à
cidade e a Santíssima Virgem, envolta no manto, prostrando-se de joelhos,
rezar no local onde o Senhor a mandara esperar. Já devia ser mais de meia
noite, pois Maria gastara muito tempo em seguir a via sacra.
Vi, porém, o cor tejo do Senhor percor rer também todo o caminho da cruz.
Todo o suplício e os padecimentos de Jesus foram mostrados às almas e os
Anjos colheram, de maneira misteriosa, toda a substância sagrada que lhe
fora ar rancada, durante a Paixão. Vi que lhes foi mostrado também a
crucifixão, a elevação da cruz, o golpe da lança no lado, a descida da cruz e
a preparação para a sepultura; a Santíssima Virgem contemplou tudo em
espírito e adorou-O com amor.
Vi então, na contemplação, o cor po do Senhor jazendo novamente no túmulo
e que os Anjos lhe tinham restituído, de maneira misteriosa, tudo quanto lhe
fora tirado, durante o suplício. Vi-O de novo envolto na mor talha, rodeado de
esplendor e os dois Anjos em adoração, nas extremidades do túmulo, do lado
da cabeça e dos pés. Não posso explicar como O vi; são tantas e tão
variadas coisas, tão inefáveis, que a nossa inteligência não as pode
compreender segundo as leis comuns da natureza. Quando as vejo, é tudo tão
claro e compreensível, mas depois se me tur va a mente, de modo que não o
posso claramente descrever.
Quando o céu clareou-se a leste de um alvo rasto luminoso, vi Madalena,
Maria Cleofas, Joana Cuza e Salomé, envoltas nos mantos, saírem da
habitação, no Cenáculo. Levavam sob os mantos as especiarias, embrulhadas
nos panos e uma delas levava também uma lanterna acesa. As especiarias
constavam de flores vivas, para serem espalha das sobre o cor po e de suco
extraído de plantas, essências e óleos, que queriam der ramar sobre ele. Vi
as santas mulheres encaminharem-se, com muito receio, em direção à
por tinha de Nicodemos.

4. A Ressur reição do Senhor


Vi a alma de Jesus aparecer, com grande esplendor, entre dois Anjos de
figura guer reira, (os Anjos que eu via dantes tinham figura sacerdotal),
rodeado de muitas outras figuras luminosas; passando por cima através do
rochedo do sepulcro, desceu sobre o santo cor po, como se se inclinasse para
ele e com ele se fundisse. Então vi os membros se lhe moverem nos
invólucros e o cor po vivo, e resplandecente do Senhor, unido à alma e à
divindade, sair, ao lado das mor talhas, como se saísse da chaga do lado.
Esta visão me recordou Eva, que saiu do lado de Adão. Tudo estava cheio de
luz e esplendor.
Nesse momento vi, na minha contemplação, a aparição de uma for ma
monstruosa, que dos infer nos subiu, por baixo do túmulo. Levantou
raivosamente a cauda de ser pente e a cabeça de dragão contra o Senhor.
Além disso, como ainda me recordo, tinha uma cabeça humana. Vi, porém, na
mão do Redentor ressuscitado um belo bastão branco e sobre este uma
bandeira desfraldada. O Senhor pisou a cabeça do dragão e bateu três vezes
com o bastão na cauda da ser pente; vi-a encolher-se cada vez mais e afinal
desaparecer ; a cabeça do dragão foi pisada e esmagada na ter ra e só a
cabeça humana lhe ficou ainda. Tenho tido essa visão já por diversas vezes
na contemplação da ressur reição e vi também uma ser pente semelhante,
espreitando à hora da conceição de Nosso Senhor.
A for ma dessa ser pente lembra-me sempre a ser pente do paraíso, mas, era
ainda mais hedionda. Penso que essa visão se referia à promissão: "A
semente da mulher esmagará a cabeça da ser pente." Parecia-me um símbolo
da vitória sobre a mor te; pois enquanto Jesus esmagou a cabeça do dragão,
não vi mais o sepulcro, mas vi o Senhor passar resplandecente através do
rochedo. Tremeu a ter ra, um Anjo em figura de guer reiro desceu do céu ao
sepulcro, como um relâmpago, levantou a pedra para o lado direito e sentou-
se-Ihe em cima. Foi talo tremor de ter ra, que as lanter nas oscilavam e as
chamas saiam por todos os lados. A vista disso, caíram por ter ra os guardas,
como que atordoados e jaziam como mor tos, com os membros tor tos. Cássio
viu tudo cheio de luz e esplendor ; mas recobrando ânimo, aproximou-se
resolutamente do túmulo, abriu um pouco as por tas, examinou as mor talhas
vazias e afastou-se, para ir relatar a Pilatos o que acontecera. Mas ainda se
demorou um pouco na proximidade, esperando que sucedesse mais alguma
coisa; pois vira só o ter remoto, o Anjo que num instante levantara a pedra e
se lhe sentara em cima, o túmulo vazio, mas não vira Jesus. Como também
os guardas, foi Cássio um dos primeiros que deram notícia do sucedido aos
Apóstolos.
No mesmo momento em que o Anjo desceu ao sepulcro e a ter ra tremeu, vi o
Senhor aparecendo à Mãe SS., per to do Monte Calvário. Estava
maravilhosamente belo, sério e luminoso. A veste, que lhe envolvia o cor po
como um largo manto, flutuava no ar atrás dEle quando caminhava e tinha
reflexos de cor branca azulada, como fu maça vista através da luz do sol. As
chagas estavam largas e brilhavam; nas chagas das mãos se podia introduzir
bem um dedo. Os lábios das chagas tinham a for ma de três triângulos
eqüiláteros, co incidindo no centro de um circulo. Do meio das mãos saiam
raios luminosos para os dedos. As almas dos patriarcas inclinaram-se di ante
da Mãe de Jesus, à qual o Senhor disse, em poucas palavras, que me fugiram
da memória, que tomaria a vê-Lo. Mostrou-lhe as chagas e quando ela se
prostrou por ter ra, para beijar-lhe os pés, tomou-a pela mão e levantando-a,
desapareceu.
Vi ao longe o brilhar das lanter nas ao lado do sepulcro e a leste
de Jerusalém uma luz branca no horizonte - o amanhecer do dia.

5. As santas mulheres no sepulcro. Aparições de Jesus

As santas mulheres estavam per to da pequena por ta de Nicodemos, quando o


Senhor ressuscitou. Nada notaram dos prodígios que nesse momento se
deram, nem sabiam que fora posta uma guarda à por ta do túmulo; pois na
véspera, como era sábado, ninguém fora ao sepulcro e elas tinham ficado de
luto, com as por tas fechadas. Inquietas, diziam umas às outras: "Quem nos
tirará a pedra da por ta?" Pois no desejo de prestar homenagem ao cor po do
Senhor, tinham se esquecido inteiramente da pedra. Tinham a intenção de
der ramar água de nardo e ungüentos sobre o cor po do Senhor e cobrí-Io de
flores e er vas aromáticas, pois não tinham contribuído para as especiarias
usadas no embal samamento, de cujas despesas se encar regara Nicodemos e
por isso queriam agora oferecer ao cor po do Senhor e Mestre o que de
mais precioso podiam encontrar. Salomé comprara a maior par te; não era
a mãe de João, mas outra Salomé, uma senhora rica de Jerusalém, aparen-
tada com S. José. Resolveram que iriam pôr as especiarias sobre a pedra,
diante do túmulo e esperar até que por ventura viesse um dos discípulos, que
Ihes abrisse as por tas, no entanto continuavam caminhando para o jardim do
sepulcro.
Vi os guardas deitados em redor, como mor tos e com os membros tor tos. A
pedra fora colocada do lado direito da gruta, de modo que se podia abrir a
por ta que, porém, ainda estava encostada. Vi através da por ta, no leito
sepulcral, os panos em que o cor po de Jesus tinha sido envolto. O pano
largo, que cobria todo o cor po, estava inalterado, ape nas vazio e encolhido,
continha somente as er vas aromáticas. A faixa com que fora enrolado,
estava ao longo do lado anterior do leito Sepulcral mas não fora desenrolada.
O pano com que Maria lhe cobrira a cabeça, encontrava-se na cabeceira, à
direita, na mesma posição em que lhe envolvera a cabeça, apenas o véu do
rosto fora aber to.
Vi então as mulheres se aproximarem do jardim. Vendo as lanter nas da
guarda e os soldados deitados em redor, assustaram-se e deixando de lado o
jardim, seguiram alguns passos em direção ao Gólgota. Madalena, porém,
esqueceu-se de todo o perigo e entrou apressada no jardim; Salomé seguiu-a
a alguma distância. Eram as duas principalmen te que tinham comprado os
ungüentos. As duas outras mulheres eram mais tímidas e ficaram fora do
jardim.
Vi Madalena, deparando com os guardas, cor rer assustada para trás, ao lado
de Salomé; depois avançaram juntas e passando timidamente por entre os
soldados, que ainda estavam atordoados, entraram na gru ta. Viram a pedra
já afastada; as por tas estavam encostadas, como provavelmente Cássio as
deixara. Então abriu Madalena, com grande ânsia, uma das por tas, olhou
assustada para o leito sepulcral e viu todos os panos vazios e separados.
Tudo estava cheio de esplendor e um Anjo sentado à direita, sobre o túmulo.
Madalena ficou espantada; não sei se ouviu qualquer palavra do Anjo. Cor reu
precipitadamente para fora do jardim, pela pequena por ta de Nicodemos, ao
encontro dos Apóstolos, reunidos na cidade. Também não sei se Maria
Salomé, que não entrara na gr uta, ouviu alguma palavra do Anjo; vi-a fugir do
sepulcro e do jardim, muito assustada, logo depois de Madalena e juntar-se
às mulheres que ficaram fora do jardim, às quais anunciou o que sucedera.
Tudo isso foi feito com grande pressa e com o espanto de quem viu espíritos.
As outras mulheres, ouvindo as notícias de Maria Salomé, assustadas e ao
mesmo tempo satisfeitas, não ousaram por algum tempo entrar no jardim.
Cássio, porém, depois de sair do sepulcro, demora ra-se algum tempo nos
ar redores, esperando ver Jesus ou que este apa recesse talvez às mulheres,
que se aproximavam; dirigiu-se depois apressadamente à por ta da cidade,
para levar notícias a Pilatos e passando per to das santas mulheres, contou-
Ihes em poucas palavras o que vira, exor tando-as a que fossem verificá-Io
com os próprios olhos. Então recobraram ânimo e entraram juntas no jardim
e tendo entrado com muito medo na gruta, viram diante delas os dois Anjos
do sepulcro, em vestes sacerdotais, brancas e resplandecentes. As
mulheres, extremamente assustadas, estreitando-se uma à outra e cobrindo
o rosto com as mãos, inclinaram-se até à ter ra. Um dos Anjos, porém, falou-
Ihes, dizendo que não se assustassem; não procurassem ali o Crucificado,
pois estava vivo, tinha ressuscitado e não se achava mais entre os mor tos.
Mostrou-Ihes também o leito vazio do sepulcro e mandou-Ihes que anun-
ciassem aos discípulos o que tinham ouvido e visto, avisando-Ihes que Jesus
os precederia na Galiléia; deviam lembrar-se do que Ihes dissera na Galiléia:
"O Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores e crucificado e no
terceiro dia ressuscitará dos mor tos." Então desapareceram os Anjos e as
santas mulheres, com temor e tremendo, olharam para o leito sepulcral e os
panos, chorando e ao mesmo tempo cheias de alegria; depois saíram,
dirigindo-se à por ta da cidade pela qual Jesus saíra para o suplício. Estavam
ainda espantadas, não se apressavam, mas paravam de vez em quando,
olhando em redor, na esperança de ver Jesus ou que Madalena voltasse.
No entanto vi Madalena chegar ao Cenáculo; estava como que desvairada e
bateu com veemência à por ta. Alguns dos discípulos estavam ainda deitados,
dor mindo ao longo das paredes; outros já se haviam levantado e estavam
conversando; Pedro e João foram abrir. Madalena disse apenas: "Tiraram o
Senhor do sepulcro, não sabemos para onde o levaram". Tendo dito isto,
voltou ao jardim do sepulcro, cor rendo com grande pressa. Pedro e João
entraram de novo em casa, disseram algumas palavras aos outros discípulos
e seguiram-na depois apressadamente, mas João mais ligeiro do que Pedro.
Vi Maria Madalena entrar novamente no jardim e cor rer ao sepulcro,
per turbada pela cor rida forçada e a tristeza. Estava toda molhada de
or valho, o manto caíra-lhe da cabeça aos ombros e os cabelos tinham se-lhe
soltado. Como estava só, teve medo de entrar na gruta, mas ficou no fosso,
diante da gruta; ali se inclinou, para olhar para dentro do túmulo, através da
por ta baixa da gruta. Segurando o longo cabelo com as mãos, viu dois Anjos
de vestes brancas, sacerdotais, sentados à cabeceira e aos pés do túmulo e
ouviu ao mesmo tempo a voz de um deles: "Mulher, por quê choras?" E
Madalena exclamou, cheia de tristeza, (pois não pensava senão no cor po de
Jesus, que não estava mais ali): "Levaram o meu Senhor e não sei onde o
puseram!" Dizendo isso e vendo só os panos, virou-se logo, como quem
procura alguém; pensava que devia encontrá-Lo em qualquer par te e tinha um
vago sentimento de sua presença e nem a aparição dos Anjos podia dissuadí-
la. Parecia não se lembrar que eram Anjos; pensava só em Jesus, perguntava
somente a si mesma: "Jesus não está aqui; onde estará Ele?”
Vi-a alguns passos diante da gruta, vagando de um lado para o outro, como
quem, com grande per turbação, está procurando alguém. O longo cabelo
caía-lhe de ambos os lados sobre os ombros; uma vez o segurou no ombro
direito, com ambas as mãos; depois o pegou de ambos os lados e jogou-o
para trás, olhando sempre em redor. De súbito viu, a dez passos de distância,
a leste do rochedo sepulcral, onde o jardim sobe para o muro da cidade,
atrás de uma palmeira, nas moitas, uma figura alta, vestida de branco, à luz
do crepúsculo e cor rendo para lá, ouviu de novo as palavras: "Mulher, por
quê choras? A quem procuras?" Julgou que fosse o jardineiro e eu também
lhe vi na mão uma enxada e na cabeça um grande chapéu, que se parecia
com um pedaço de casca de ár vore, para proteger do sol, como vi também o
jardineiro na parábola que Jesus contou às mulheres, em Betânia, pouco
antes da Paixão. A aparição não era luminosa, mas de um homem vestido de
uma longa veste branca, à luz do crepúsculo. Às palavras: "Quem procuras?"
Madalena respondeu imediatamente: "Senhor, se O levaste, dize-me onde
está e irei buscá-Lo." E ao mesmo tempo olhou em redor, para ver se o
achava ali per to. Então lhe disse Jesus, com a voz habitual: "Maria!"
Reconhecendo-Lhe a voz e esquecendo a crucificação, mor te e sepultura,
Madalena virou-se imediatamente e disse-Lhe, como se Ele ainda estivesse
vivo: "Raboni (Mestre)!" E caiu de joelhos, estendendo as mãos para lhe
abraçar os pés. Jesus, porém, ergueu a mão para a afastar, dizendo: "Não me
toques: pois ainda não subi ao meu Pai. Mas vai a meus ir mãos e dize-Ihes:
"Ascenderei a meu Pai e a vosso Pai, a meu Deus e a vosso Deus." E o Senhor
desapareceu.
Recebi também a explicação do motivo pelo qual Jesus disse: "Não me
toques"; mas não me lembro mais muito bem. Parece-me que o disse, porque
Madalena era muito impetuosa e estava dominada inteiramente pela
convicção de que Ele vivia como dantes e que tudo era como outrora. Das
palavras de Jesus: "Ainda não subi a meu Pai", recebi a explicação de que
Ele não se apresentara ainda ao Pai depois da Ressur reição e não lhe
agradecera ainda a vitória sobre a mor te e a Redenção. Parecia dizer com
isso que as primícias da alegria per tenciam a Deus; antes de tudo devia
lembrar-se de dar graças a Deus, pelo mistério consumado da Redenção e da
vitória sobre a mor te; pois Madalena queria abraçar-Lhe os pés, como dantes
e não pensava senão no Mestre querido e esquecera, no enlevo do amor, o
grande milagre da ressur reição.
Depois do desaparecimento do Senhor se levantou Madalena e cor reu mais
uma vez ao sepulcro, como para se convencer de que não tinha sonhado.
Então viu os dois Anjos sentados à cabeceira e aos pés do túmulo, ouviu o
que tinham dito também às outras mulheres, a respeito da ressur reição, viu
os panos; convencida do milagre e da visão, saiu cor rendo, para procurar as
companheiras no caminho do Gólgota; pois andavam ainda pelos ar redores,
indecisas, esperando a volta de Madalena e nutrindo o desejo de ver o
Senhor em qualquer par te.
Tudo o que se deu com Madalena, durou apenas alguns minutos; podiam ser
cerca de duas horas e meia, quando lhe apareceu o Senhor. Ela cor rera
justamente para fora do jardim, quando entrou João e logo após este, Pedro.
João ficou na entrada e cur vando-se, olhou pela por ta meio aber ta do
sepulcro e viu lá dentro os panos. Então chegou Pedro e entrou na gruta; lá
viu as mor talhas dobradas, nas quais estavam em brulhadas as especiarias:
tudo enlaçado com faixa de pano, como as mulheres costumam enrolar tais
panos para guardar ; o véu do rosto, porém, estava dobrado per to da parede,
do lado direito. João entrou então também na gr uta, aproximando-se do leito
sepulcral, viu-o e creu na ressur reição; pois nesse momento se lhes tor nou
claro o que Jesus tinha dito e o que está escrito na Escritura e a que dantes
tinham presta do pouca atenção. Pedro levou os panos sob o manto. Depois
saíram, cor rendo, pela pequena por ta de Nicodemos; João, porém, tomou
novamente a dianteira.
Vi com eles e também com Madalena, o sepulcro. Ambas as vezes vi os dois
Anjos sentados à cabeceira e aos pés, como sempre e durante todo o tempo
em que o santo cor po de Jesus esteve no sepulcro. Pareceu-me, porém, que
Pedro não os viu. Quanto a João, ouvi-o dizer mais tarde aos discípulos de
Emaús que, olhando de fora para dentro, vira um Anjo. Talvez fosse por isso
que, assustado, deixou primeiro entrar Pe dro e não o escreveu no Evangelho
por humildade, para não ter visto mais do que Pedro.
Depois vi os guardas, estendidos por ali, recobrarem os sentidos
e levantarem-se. Tomaram as lanças e os braseiros, que ardiam na
entrada, em cima de hastes e lançavam luz na gruta, saíram assustados e
per tur bados do jardim e voltaram à cidade, pela por ta pela qual Jesus
fora conduzido à mor te.
No entanto encontrara Madalena as santas mulheres e contara-Ihes que
comunicara a Pedro ter visto o Senhor e os Anjos; as mulheres responderam-
lhe que também tinham visto os Anjos. Madalena voltou apressadamente à
cidade, pela por ta do Calvário; as mulheres, porém, foram novamente na
direção do Jardim, esperando talvez encontrar ainda lá os dois Apóstolos. Os
guardas passaram-Ihes per to e disseram Ihes algumas palavras.
Quando as santas mulheres chegaram próximo ao jardim do sepulcro, veio-
Ihes ao encontro Jesus, com uma veste larga e branca, que lhe cobria até as
mãos e disse: "Deus vos salve!" Elas estremeceram e caíram-Lhe aos pés, os
quais pareciam querer abraçar ; mas não me lembro mais claramente de o ter
visto. O Senhor disse-Ihes algumas palavras, apontou com a mão em uma
direção e desapareceu. As santas mulheres foram depressa pela Por ta de
Belém a Sião, para anunciar aos discípulos que tinham visto o Senhor e o que
Ele Ihes dissera. Estes, porém, não queriam a princípio Ihes dar fé às
afir mações, nem às de Madalena, tomando tudo, até à volta de Pedro e João,
por imaginação das mulheres.
João e Pedro, que se tor nara muito pensativo com o que tinha visto,
encontraram-se, ao voltar, com Tiago o Menor e Tadeu, que os tinham
querido seguir ao sepulcro. Também esses dois estavam muito comovidos,
pois o Senhor Ihes aparecera per to do Cenáculo. Vi, porém, que Jesus tinha
passado per to de Pedro e João; pareceu-me que Pedro O viu, pois vi-o de
súbito extremamente comovido. Não sei se João também O reconheceu.
Nas visões que se referem a esse tempo, vejo muitas vezes, em Jerusalém e
em outros lugares, o Senhor e outras aparições no meio de homens, mas não
noto que estes o avistem. Às vezes vejo alguns estremecerem de repente
espantar-se, enquanto que outros ficam indiferentes. Parece-me que vejo o
Senhor sempre, mas percebo ao mesmo tempo que naqueles dias os homens
o viam só de vez em quando.
Do mesmo modo tenho visto sempre os dois Anjos sacerdotais na gruta do
sepulcro, desde a sepultura do Senhor, mas vi também que as santas
mulheres às vezes os viam, outras vezes viam só um e ainda em outras
ocasiões viam ambos. Os Anjos que falaram às mulheres, eram os Anjos de
aparência sacerdotal. Falou apenas um deles e só um foi visto, porque a
por ta não estava aber ta. O Anjo que desceu do céu como um relâmpago,
rolou a pedra para o lado o sentou-se-Ihe em cima, apareceu na figura de um
guer reiro. Cássio e os guardas viram-no a princípio sentado na pedra. Os
Anjos que falaram ainda depois, eram um ou os dois Anjos do sepulcro. Do
motivo porque tudo assim sucedeu, não me lembro mais; quando o vi, não
fiquei sur presa; pois lá vemos muito simples e direito e nada parece
estranho.

6. Relatório da guarda do sepulcro

No entretanto chegara Cássio ao palácio de Pilatos, cerca de uma hora


depois da ressur reição. Vi o gover nador deitado no leito e Cássio apresentar-
se-Ihe e relatar-lhe, muito comovido, como o rochedo tremera e um Anjo
descera do céu, removendo a pedra e as mor talhas ficaram vazias. Jesus era
com cer teza o Messias e o Filho de Deus; ressuscitara e não estava.mais no
sepulcro. Ainda contou outras coisas que vira.
Pilatos ouviu tudo com um oculto ter ror, mas não deixou perceber nada e
disse a Cássio: "És um sonhador ; fizeste muito mal em colocar-te junto do
sepulcro do Galileu; pois os deuses dEle conquistaram poder sobre ti e
fizeram-te ver todas essas visões fantásticas. Dou-te o conselho de não falar
dessas coisas ao sumo Sacerdote, senão te meterás em maus lençóis."
Fingiu também crer que o cor po de Jesus fosse roubado pelos discípulos e
que a guarda descrevesse o sucedido de modo diferente apenas para se
desculpar, porque havia per mitido o roubo ou porque não cumprira com o
dever ou talvez porque tivesse sido enfeitiçada. Tendo Pilatos falado ainda
mais tempo dessa maneira indecisa, despediu-se Cássio e o gover nador
mandou novamente oferecer sacrifícios aos ídolos.
Vieram ainda quatro dos soldados da guarda, dando a mesma infor mação a
Pilatos, que os mandou a Caifás, sem Ihes manifestar opinião. Vi uma par te
dos soldados da guarda dirigir-se imediatamente a um vasto pátio per to do
Templo, onde estavam muitos anciãos do povo. Vi estes se reunirem em
conselho e depois tomarem os soldados de par te e os induzirem, com
dinheiro e ameaças, a dizerem que os discípulos tinham roubado o cor po de
Jesus, enquanto os guardas dor miam. Como, porém, os soldados replicassem
que os camaradas contariam o contrário a Pilatos, prometeram os fariseus
ar ranjar tudo com Pilatos. No entanto chegaram os quatro guardas enviados
por Pilatos e persistiam em des crever o sucedido como o tinham contado ao
gover nador. Mas já se espalhara também a notícia da fuga inexplicável de
José de Arimatéia do cárcere bem fechado e como os fariseus quisessem
lançar suspeitas sobre os guardas, que persistiam em proclamar a verdade,
acusando-os de terem combinado com os discípulos o roubo do cor po de
Jesus e ameaçando-os violentamente, se não o trouxessem de novo,
responderam os guardas que não o podiam fazer, assim como os guardas do
cárcere não podiam trazer o fugitivo José de Arimatéia. Responderam
valentemente às acusações e não se deixaram induzir por nenhum subor no a
guardar silêncio, a respeito dos acontecimentos; até falaram com muita
franqueza do falso e odioso julgamento de sexta-feira e da inter rupção das
cerimônias da Páscoa; então foram presos e lançados no cárcere os outros,
porém, espalharam o boato de que os discípulos tinham roubado o cor po de
Jesus e os fariseus mandaram propagar esta mentira em todos os lugares e
sinagogas do mundo, junto com outros insultos a Jesus.
Mas esta mentira lhes foi de pouco proveito; pois após a ressur reição de
Jesus, apareceram muitas almas de santos judeus defuntos e comoveram os
corações dos descendentes, levando a conver terem-se os que ainda eram
acessíveis à graça e ao ar rependimento. Vi também tais aparições
apresentarem-se a muitos discípulos que, abalados na fé e desanimados, se
tinham dispersado pelo país; consolaram e fir maram nos na fé.
A ressur reição dos cor pos mor tos dos sepulcros, depois da mor te de Jesus,
não tinha semelhança com a ressur reição do Salvador ; pois o Senhor
ressuscitou com o cor po glorificado e revivificado, andou na ter ra vivo e em
pleno dia e subiu ao céu com esse mesmo cor po, diante dos olhos dos
amigos; esse cor po não era mais sujeito à mor te e ao sepulcro. Mas os
outros cor pos ressuscitados eram apenas cadáveres ambulantes e sem
movimento, dados como invólucro às almas, que de novo os depuseram no
seio da ter ra, onde esperam a ressur reição final, como todos nós. Em
verdade ressuscitaram menos do que Lázaro, que viveu verdadeiramente e
mais tarde mor reu segunda vez; pois aqueles foram depostos nos sepulcros,
como vestimentas das almas, quando o cor po de Jesus foi sepultado.

7. Ameaças dos inimigos

No domingo seguinte, se não me engano, vi os judeus começarem a limpar, a


lavar e purificar o Templo. Encheram o chão de flores e cinza de ossos de
mor tos e ofereceram sacrifícios de expiação; tiraram os escombros,
fecharam as aber turas com tábuas e tapetes e fizeram depois as cerimônias
da Páscoa, as quais na própria festa não tinham podido completar.
Proibiram, porém, todos os boatos e mur múrios, explicando a inter r upção da
festa e as destr uições no Templo como conseqüência do ter remoto e da
presença de pessoas impuras durante o sacrifício; citaram um trecho de uma
visão do profeta Ezequiel, sobre a ressur reição dos mor tos, não sei mais
como a aplicaram a esse fato. Demais ameaçaram com penas e excomunhão.
Assim reduziram todos ao silêncio, pois muitos se sentiam culpados, como
cúmplices do crime. Contudo conseguiram acalmar realmente apenas a
grande multidão, endurecida no pecado e já perdida; a par te melhor do povo
conver teu-se silenciosamente nessa ocasião e aber tamente na festa de
Pentecostes e mais tarde na sua ter ra, ao ouvir a pregação dos Apóstolos.
Os Sumos Sacerdotes tomaram-se por isso cada dia menos ar rogantes e o
número dos fiéis aumentou, de modo que já nos dias do Diácono Estevão,
todo o bair ro de Ofel e a par te oriental de Sião não podia mais conter a
multidão da comunidade de Jesus Cristo e os cristãos construíram as
cabanas e tendas além da cidade, através do vale de Cedron, até Betânia.
Vi naqueles dias o sumo Sacerdote Anás como que possesso do demônio;
puseram-no em reclusão e não apareceu mais. Caifás estava desvairado de
secreto furor.
Na quinta-feira depois da Páscoa, vi Pilatos procurar a esposa, mas em vão.
Estava escondida em casa de Lázaro, em Jer usalém. Ninguém imaginava que
estivesse ali, pois naquela ocasião não se encontravam mulheres no edifício,
só Estêvão, o discípulo que ainda não era conhecido como tal, entrava e saia
de vez em quando da casa, levando-lhe comida e dando-lhe notícias e
preparava-a para a conversão. Estêvão era primo de Paulo. Simão de Cirene
procurou depois do sábado os Apóstolos, pedindo admissão e o batismo.

8. Ágape após a ressur reição de Jesus

Nicodemos, preparou uma refeição para os Apóstolos, as mulheres e uma


par te dos discípulos, sob as colunatas aber tas, no vestíbulo do Cenáculo.
Depois de meio-dia ali se reuniram dez dos Apóstolos; Tomé retraíra-se
arbitrariamente, afastando-se um pouco dos outros. Tudo quanto se fez ali,
foi para cumprir a vontade de Jesus que na ceia pascal se sentara entre
Pedro o João, revelando-Ihes diversos mistérios do SS. Sacramento e
fazendo-os depois sacerdotes; ordenou-Ihes também que ensinassem essas
verdades aos outros, juntamente com as doutrinas anteriores a esse
respeito.
Vi primeiro Pedro e João, no meio dos outros oito Apóstolos, comunicando-
lhes os mistérios que Jesus Ihes confiara; explicaramlhes também a doutrina
do Senhor a respeito do modo de administrar este Sacramento e de ensiná-Io
aos discípulos. Vi que, de uma maneira sobrenatural, tudo quanto Pedro
ensinou, foi dito também por João. Todos os Apóstolos estavam revestidos
das vestes brancas de cerimônia, sobre as quais Pedro e João haviam
colocado nos ombros uma estola, cruzada no peito e segura com um gancho;
os outros Apóstolos traziam uma estola sobre um ombro, a qual, passando
pelo peito e as costas, cruzava debaixo do outro braço e era segura por um
gancho. Pedro e João eram sacerdotes, ordenados por Jesus, os outros eram
ainda diáconos.
Ter minada esta explicação, entraram na sala também as santas mulheres,
em número de nove; Pedro falou-Ihes e ensinou-Ihes. João, Porém, foi receber
na casa do despenseiro, per to do por tão, dezessete dos mais provados
discípulos, que estiveram mais tempo com Jesus. Entre esses estavam:
Zaqueu, Natanael, Matias, Barsabás e outros. João ser viu-os no lava-pés e na
vestição; vestiram longas vestes brancas c cintas. Depois da explicação da
doutrina, Mateus foi enviado por Pedro à Betânia, para ensinar a muitos
outros discípulos, durante uma refeição semelhante, em casa de Lázaro e
fazer tudo o que os Apóstolos tinham feito no Cenáculo.
A refeição foi realmente um banquete. Rezaram em pé e comeram deitados
sobre os leitos e durante a refeição Pedro e João ensinaram. No fim do
banquete foi colocado em frente a Pedro um pão delgado e estriado, que ele
par tiu nas par tes marcadas e subdividiu cada par te mais uma vez. Depois
mandou passar esses bocados, em dois pra tos, por ambos os lados da mesa.
Passou também de mão em mão um grande cálice, do qual todos beberam. Se
bem que Pedro benzesse o pão, não era contudo o SS. Sacramento, mas
apenas um ágape; Pedro disse ainda que ficassem unidos, como era um só o
pão que os alimentara e o vinho que beberam. Depois se levantaram todos e
cantaram salmos.
Tiradas as mesas, as santas mulheres for maram um semicírculo, na
extremidade da sala; os discípulos colocaram-se de ambos os lados e todos
os Apóstolos andavam de Uln lado para outro, ensinando e revelando a esses
discípulos mais provados o que Ihes podiam comunicar sobre o SS.
Sacramento. Pareceu-me ser a primeira explicação do catecismo depois da
mor te de Jesus. Vi também que depois aper taram as mãos uns aos outros,
declarando ardentemente que queriam ter tudo em comum, dar tudo uns aos
outros e ficar todos unidos.
Então vi em todos uma grande comoção. Talvez tivessem sentido só
interior mente o que vi exterior mente: pois vi-os, no meio de uma luz
brilhante, fundirem-se uns nos outros e tudo for mou afinal um templo de luz,
em que apareceu a SS. Virgem como cume e centro de todos. Até mesmo vi
que toda a luz emanava dela para os Apóstolos e destes voltava, pela SS.
Virgem, ao Senhor. Era uma imagem das relações recíprocas entre os
presentes.

11
Outras aparições de Jesus até a ascensão

1. Jesus aparece aos dois discípulos no caminho de Emaús


2. Jesus aparece aos Apóstolos na sala do Cenáculo
3. Jesus aparece novamente e conver te o Apóstolo S. Tomé da descrença
4. A pesca milagrosa. Jesus proclama Pedro supremo Pastor
5. Jesus revela-se a quinhentos discípulos numa montanha
6. As relações de Maria Santíssima com os Apóstolos e com a Igreja. Jesus
aparece à sua Santíssima Mãe
7. Outras aparições de Jesus

Outras aparições de Jesus até a ascensão

1. Jesus aparece aos dois discípulos no caminho de Emaús

Na segunda-feira depois da Páscoa, os dois discípulos Lucas e Cléofas, que


era neto do tio de Maria Cleofé, se dirigiram a Emaús. Saíram de Jerusalém
por caminhos diferentes e encontraram-se novamente fora da cidade. Ambos
duvidavam ainda da ressur reição de Jesus e queriam falar mais a miúdo
sobre tudo quanto ouviram. O tratamento ignominioso e a crucificação do
Mestre lhes eram par ticular mente uma pedra de escândalo.
Pelo meio do caminho se aproximou o Senhor, vindo de um atalho. Por algum
tempo os seguiu, depois se lhes juntou e perguntou-Ihes de que estavam
falando.
"Mas os olhos de ambos estavam como que vendados e não o conheceram",
conta S. Lucas no capo 24 do seu Evangelho e o Mestre disse-lhes: "De que
estais falando pelo caminho, e porque estais tristes?" E respondendo um
deles, chamado Cléofas, disse-Lhe: "És talvez o único forasteiro em
Jerusalém, que não sabes o que se tem passado ali nestes últimos dias?"
Disse-Ihes Jesus: "O que foi?" E responderam os dois: "O que aconteceu a
Jesus Nazareno, que foi um varão profeta, poderoso em obras e em palavras
diante de Deus e todo o povo; e como os sumos sacerdotes e os nossos
magistrados o fizeram condenar à mor te e o crucificaram. Ora, nós
esperávamos que Ele fosse aquele que devia salvar Israel e agora, além de
tudo, já é hoje o terceiro dia depois que sucederam estas coisas. É verdade
que cer tas mulheres que conosco estavam, nos espantaram, pois na alvorada
foram ao sepulcro e, não Lhe tendo achado o cor po, voltaram dizendo que
também tinham tido uma v.isão de Anjos, os quais disseram que Ele está
vivo. E alguns dos nossos foram ao sepulcro e acharam que era assim como
tinham dito as mulheres, mas a Ele não O acharam." Então lhes disse Jesus:
"á gente sem inteligência! e tardos de coração para crer tudo o que
anunciaram os profetas! Por ventura não era preciso que o Cristo sofresse
estas coisas e que assim entrasse na sua glória?" E começando por Moisés e
discor rendo por todos os outros profetas, explicou-Ihes o que d’Ele estava
dito em toda a Escritura.”
Chegando per to de Emaús, o Senhor quis separar-se dos dois discípulos.
"Eles, porém, conta a piedosa Emmerich, obrigaram-nO a entrar numa casa,
que estava situada na segunda fileira das casas de Emaús. Não havia
mulheres na casa, que me parecia ser uma casa aber ta para celebração de
festas; pois se via que fora nela celebrada uma festa; ainda havia restos de
or namentação. O aposento era quadrangular e limpo, a mesa estava posta e
os assentos dispostos do mesmo modo que no banquete do dia da Páscoa.
Um homem trouxe um favo de mel num vaso trançado, semelhante a um
cestinho, um bolo grande quadrado e um pequeno pão ázimo, delgado e
transparente, que foi colocado diante do Senhor, como hóspede. O homem
que trouxe o bolo, parecia bem intencionado; vestia algo de semelhante a um
avental e parecia ser cozinheiro ou despenseiro. Tinha cabelos pretos.
Durante o ato solene não estava presente. O bolo tinha a grossura de
papelão e era marcado com linhas sulcadas, que o dividiam em par tes da
largura de dois dedos.
Depois de terem rezado, Jesus, recostado nos assentos, comeu primeiro com
eles do bolo e do mel. Depois tomou o pãozinho estriado, cor tou-o com uma
cur ta faca branca de osso e tirou-lhe três par tes ainda unidas. Este pedaço
colocou sobre um pequeno prato, benzeu-o e levantando-se, elevou-o com
ambas as mãos e rezou, olhando para o céu. Os dois discípulos estavam em
frente, muito comovidos e como fora de si. Quando Jesus par tiu o bocado,
aproximaram a boca por cima da mesa e receberam da mão do Senhor o
pedaço. Vi, porém, que ao levar com a mão o terceiro bocado à boca, o
Senhor desapareceu. Não posso afir mar que comesse realmente o bocado. Os
bocados resplandeciam, depois de Jesus os ter benzido. Vi os dois discípulos
ficarem ainda algum tempo como que atordoados e depois se abraçarem um
ao outro, chorando.”

2. Jesus àparece aos Apóstolos na sala do Cenáculo

Os dois discípulos voltaram imediatamente a Jerusalém. No entretanto


achavam-se os Apóstolos, com exceção de Tomé, na sala do Cenáculo, junto
com muitos discípulos, entre os quais também Nicodemos e José de
Arimatéia. As por tas da casa e da sala estavam bem fechadas. Três vezes se
reuniram para a oração, for mando sob o candeeiro um círculo, aber to para o
lado do Santíssimo. Todos vestiam longas vestes brancas e cintos; três dos
Apóstolos, porém, estavam com vestimentas mais vistosas e entre estes
três, era Pedro o primeiro. Num vestíbulo que dava para a sala, assistiram à
oração a Santíssima Virgem, Maria Cleofé e Madalena.
Apesar de Jesus já ter aparecido a vários Apóstolos, não havia ainda uma fé
fir me na sua ressur reição. Chegaram então os dois discípulos, anunciando
com muito alegria que tinham visto o Senhor e que o reconheceram ao par tir
o pão.
''Tendo-se reunido de novo para a oração, conta Anna Catharina, viIhes os
rostos tomarem-se luminosos, pensativos e felizes e vi o Senhor aparecer na
por ta, que estava fechada. Vestia também uma longa veste branca, com uma
simples cinta. Pareciam ter um sentimento indefinido de sua presença, até
que, passando pelo meio deles, parou sob o candeeiro; ao vê-Lo, ficaram
todos espantados e comovidos. O Senhor mostrou-Ihes os pés e as mãos e
abrindo a túnica, mostrou-Ihes a chaga do lado. Falou-Ihes e, como estavam
muito assustados, pediu alguma coisa para comer. Vi que da boca se lhe
der ramava luz sobre os Apóstolos, que estavam como encantados.
Então foi Pedro atrás de um biombo ou tapete, a uma par te separada da sala,
onde era guardado o SS. Sacramento, sobre o for no pascal; havia ali também
um aposento lateral, onde guardavam a mesa baixa (tinha cerca de um pé de
altura), depois de ter minada a refeição. Sobre essa mesa se encontrava um
prato fundo, oval, cober to com uma toalha branca, o qual Pedro trouxe ao
Senhor. Havia nele um pedaço de peixe e um pouco de mel; Jesus agradeceu,
benzeu a comida e comeu; deu também alguns bocados aos outros, mas não
a todos. Ofereceu também à Virgem Santíssima e às outras mulheres, que
estavam no vestíbulo.
Depois o vi ainda ensinar e distribuir os poderes. Os discípulos for mavam-lhe
em roda um tríplice círculo, no meio do qual ficaram os dez Apóstolos; Tomé
não estava presente. Pareceu-me maravilhoso que par te das palavras e
instruções do Mestre só os Apóstolos percebes sem, digo percebessem, pois
não O vi mover os lábios. Estava resplandecente, ir radiava-se-Lhe luz das
mãos, dos pés, do lado e da cabeça, sobre os Apóstolos, como se soprasse
sobre eles e essa luz os penetrava; perceberam que podiam perdoar os
pecados, que deviam batizar e curar os enfer mos, impor as mãos e que
podiam beber veneno, sem que lhes fizesse mal. Jesus explicou-Ihes vários
trechos da Escritura Sagrada, que se Lhe referem e ao Santíssimo
Sacramento e mandou fazer uma adoração ao Santíssimo Sacramento, depois
do culto do sábado. Falou também dos ossos e das relíquias dos
antepassados e do respectivo culto, para lhes alcançar a intercessão.
Também Abraão tinha em seu poder os ossos de Adão e colocava-os no altar,
quando oferecia sacrifícios. Além disso, falou Jesus também do mistério da
Arca da Aliança e que esse mistério seria, daí em diante, o seu Cor po e
Sangue, que lhes tinha dado para sempre, esse Sacramento. Discor reu
também sobre a Sagrada Paixão e ainda algumas coisas maravilhosas de
Davi, as quais os discípulos ainda não sabiam. Depois lhes mandou que
fossem à região de Sicar, para aí dar testemunho da ressur reição.”

3. Jesus aparece novamente e conver te o Apóstolo S. Tomé da descrença

Durante a viagem a Sicar, procurou Tomé os Apóstolos, que lhe contaram a


aparição do Salvador ressuscitado. Ele, porém, não quis acreditar, antes de
Lhe ter tocado nas chagas. Mesmo quando Pedro falou publicamente, na
escola de Thaenath-Silo, sobre a ressur reição de Jesus e a seu convite, mais
de cem das pessoas presentes levantaram a mão, como testemunhas, pois
tinham visto Jesus ressuscitado, Tomé ainda não chegou a crer fir memente.
Os Apóstolos e discípulos tor naram a celebrar o sábado na sala do Cenáculo,
em Jerusalém. Ter minado o sábado, fizeram um grande ágape e reuniram-se
depois para a oração. Tomé estava também presente nessa ocasião. Depois
que a SS. Virgem e Madalena entraram, fecharam-se as por tas.
Os Apóstolos oraram primeiro, ajoelhados diante do Santíssimo e cantaram
salmos, em coros alter nados, depois começaram a conversar.
"Mas pouco depois, nar ra a piedosa freira, se Ihes tomaram os rostos
maravilhosamente felizes e comovidos, pela aproximação do Senhor. Vi Jesus
no pátio, resplandecente e vestido de branquíssima veste e cinta. Dirigiu-se
à por ta do vestíbulo, a qual se abriu diante d’Ele e fechou-se-Lhe após. Os
discípulos, que estavam no vestíbulo, viram a por ta abrir-se e retiraram-se
para o lado, para dar caminho. O Senhor atraves~ou depressa o vestíbulo e
entrando na sala, passou entre Pedro e João, que, como todos os Apóstolos,
também se afastaram para o lado, enquanto o Senhor ficava no lugar de
Pedro. Nesse instante parecia a sala vasta e clara, pois vi o Senhor rodeado
de luz. Os Apóstolos retiraram-se apenas desse círculo de luz; parecia-me
que do contrário não o teriam visto.
Jesus disse primeiro: "A paz seja convosco." Depois conversou algum tempo
com Pedro e João e colocou-se sob o candeeiro, acercando-se um pouco mais
da roda.
Vi que Tomé, ao ver Jesus, ficou muito comovido, recuando timidamente um
pouco. Jesus, porém, tomou com a mão direita a mão direita de Tomé e
segurando-a pelo dedo indicador, colocou a ponta desse dedo na chaga da
mão esquerda. Depois tomou com a esquerda a outra mão de Tomé e pôs-lhe
os dedos na chaga da mão direita; levou a mão direita de Tomé ao peito, sob
a roupa, sem descobrir o peito, pondo-lhe o indicador e o médio na chaga do
lado. Disse então algumas palavras, que não me recordo mais. Tomé, porém,
exclamou:
"Meu Senhor e meu Deus!" e caiu desmaiado por ter ra, enquanto Jesus ainda
o segurava pela mão. Os que estavam per to, socor reramno e Jesus levantou-
o pela mão.
A princípio não vi as chagas de Jesus, mas quando tomou a mão de Tomé, vi-
as, não como chagas sangrentas, mas como pequenos sóis ofuscantes. Os
outros discípulos ficaram muito comovidos por esta cena e estendiam as
cabeças para a frente, porém, sem avançar muito, para ver o que o Senhor
fazia Tomé apalpar. Só Maria vi, durante toda a presença do Senhor, sem
movimento exterior, em profunda e silenciosa adoração interior ; estava como
extasiada. Madalena parecia um pouco mais comovida, mas não tanto
exterior mente como os discípulos.
Jesus não desapareceu imediatamente; conversou ainda um pouco e pediu
também algo de comer. Vi que lhe trouxeram novamente um prato, que
continha algo de semelhante a peixe, de que comeu, benzendo-o, dando um
bocado primeiro a Tomé e depois o resto a alguns outros.
Depois da conversão de Tomé, explicou Jesus ainda porque estava no meio
deles, apesar de O terem abandonado e porque não ficava ao lado de alguns
que lhe tinham per manecido mais fiéis. Recordou-Ihes também que tinha dito
a Pedro que confor tasse os ir mãos e o motivo por que lhe dissera. Dirigindo-
se a todos, disse-Ihes porque quis dar-Ihes Pedro como chefe, embora este O
tivesse negado, pois o rebanho precisava de um pastor. Falou também do
zelo de Pedro.
Vi que João entrou no Santuário e ao voltar, trouxe sobre o braço um manto
largo, bordado a várias cores e na mão um bordão alto, fino e oco, que em
cima era cur vo como um cajado de pastor. Pedro ajoelhou-se diante de
Jesus, que lhe deu um bocado a comer, como um pequeno bolo luminoso, com
o qual Pedro recebeu um poder par ticular. Jesus aproximou também a boca
da boca e depois dos ouvidos de Pedro e infundiuIhes uma força ou um poder.
Vi, porém, que não era ainda o Espírito Santo, mas algo que o Espírito Santo,
no dia de Pentecostes, devia vivificar plenamente. Impôs-lhe também as
mãos e deu-lhe poder e jurisdição sobre os outros. Depois o vestiu com o
manto que João, ao lado de Pedro, tinha sobre o braço e pôs-lhe o báculo na
mão. Disse-lhe também que esse manto era como para guardar e recolher
nele toda a força e todo o poder que lhe tinha dado, indicando-lhe também
que devia usar esse manto sempre que quisesse fazer uso do seu poder.
Jesus falou também de um grande batismo, depois da vinda do Espírito
Santo; disse que Pedro desse o poder que recebera, também aos outros, após
oito dias. Ordenou ainda que alguns depusessem a veste branca e vestissem
a outra, com um peitoral; outros no entanto deviam vestir as vestes brancas.
Era a instituição de graus elevados da hierarquia e das ordens, em que
deviam entrar.
Depois se agruparam os discípulos, por ordem de Jesus, em sete grupos
separados, dos quais cada um recebeu como chefe um Apóstolo. Tiago o
Menor e Tomé ficaram ao lado de Pedro. Foi por ordem de Jesus que se
agruparam. Pareciam representar sete comunidades ou sete Igrejas; o que
representavam os três Apóstolos restantes não sei bem.
Pedro, com o novo poder e dignidade, fez uma alocução a todos; parecia um
novo homem, cheio de energia. Escutaram-lhe as palavras, chorando e com
grande emoção; consolou-os o Apóstolo e falou de muitas coisas, que Jesus
sempre predissera e que agora se tinham realizado. Lembrou-Ihes também
que Jesus sofrera por dezoito horas o escár nio e a ignomínia do mundo
inteiro.
Durante o discurso de Pedro desapareceu Jesus. Nenhum susto nem
admiração inter rompeu a atenção prestada ao discurso de Pedro, que parecia
dotado de nova força. Depois cantaram um salmo em ação de graças. Jesus
não falara nem com a Virgem Santíssima, nem com Madalena.

4. A pesca milagrosa. Jesus proclama Pedro supremo Pastor

Quando o Senhor apareceu na sala do Cenáculo, deu também ordem a Pedro


de ir, com os Apóstolos, a Tibérias pescar. Encaminharam-se, por tanto, em
vários grupos e por caminhos diversos, para o mar da Galiléia.
Entraram numa casa de pesca fora de Tibérias, a qual Pedro antigamente
tivera ar rendado, mas já havia três anos que não pescava mais ali. Pedro
entrou, com Natanael e Tomé, numa embarcação maior e João, com Tiago,
João Marcos e Silas, numa barca menor. Pedro mesmo quis remar ; era
extraordinariamente humilde e modesto, apesar de Jesus o haver distinguido
tanto, diante de todos. Cruzaram durante toda a noite o lago, à luz de
archotes, lançando muitas vezes a rede, mas retiravamna sempre vazia.
Durante esse trabalho cantavam e rezavam em voz alta.
Enquanto os Apóstolos se ocupavam desse modo com a pesca, veio o
Salvador, pairando, do vale de Josafá para o lago, acompanhado de muitas
almas de Patriarcas, que livrara do Limbo e de outras almas remidas. Na
margem do lago havia um lugar, onde se costumava fazer uma fogueira. No
momento em que Jesus pensou que aí se devia preparar um peixe, apareceu
imediatamente, diante das almas dos Patriarcas, um peixe, fogueira e tudo
quanto era necessário.
"As almas dos Patriarcas, explica a piedosa freira, tiveram par te na
preparação do peixe e no próprio peixe, que significava a Igreja padecente:
as almas do purgatório. Por essa refeição foram unidas exterior mente com a
Igreja. Jesus deu aos Apóstolos, com essa refeição de peixe, a compreensão
nítida da Igreja padecente e militante. Jonas no ventre do peixe simboliza
também a estadia de Jesus nos Infer nos.”
Já estava amanhecendo, quando os Apóstolos, fatigados pelo trabalho,
queriam lançar âncora per to da praia. Estavam já vestindo as túnicas,
quando viram a figura de um homem, atrás do caniçal da praia.
Era Jesus, que exclamou: "Meus filhos, não tendes alguma coisa para
comer?" Responderam: "Não". Então disse Jesus que lançasse a rede para o
lado oeste da barca de Pedro. Assim fizeram e João tinha de dirigir o seu
barco para outro lado da embarcação de Pedro. Mas como sentissem o peso
da rede cheia, João reconheceu Jesus e gritou para Pedro, no meio do lago
silencioso: "É o Senhor." Então vestiu Pedro imediatamente a túnica, saltou
na água e nadou em direção à praia e através do caniçal. ao encontro de
Jesus. Quando Já estava com o Mestre, chegou também João. Jesus disse a
Pedro que trouxesse os peixes. Puxaram por tanto as redes para a praia e vi
que Pedro atirou os peixes da rede para. a praia. Eram, porém, 153 peixes,
de várias espécies, os quais significavam 153 novos fiéis, que se
conver teram em Tebes. Achavam-se na embarcação diversos homens, ser vos
do pescador de Tibérias, que ficaram com as barcas e os peixes; os
Apóstolos, porém, seguiram Jesus à cabana. Disse-Ihes o Mestre que
viessem comer. Ao chegarem, vi que as almas dos Patriarcas tinham
desaparecido; os Apóstolos, porém, ficaram muito admirados, ao verem a
fogueira e o peixe, que não era dos que haviam pescado e pão e bolos
cozidos de mel e farinha. Recostaram-se ao lado de um madeiro grosso, que
estava diante da cabana e ser via de mesa. Jesus deu a cada um, sobre um
pão chato, uma porção de peixe da assadeira; não vi. porém, que o peixe
diminuísse. Deu-Ihes também do bolo de mel e depois se deitou à mesa e
comeu. Tudo se fez em silêncio solene.

* Nestes quarenta dias, conta Catharina Emmerich, eu via o Senhor, quando


não estava com os discípulos, percor rer os lugares memoráveis de sua vida,
acompanha do pelas almas que com Ele tinham mais relações, desde Adão e
Eva, até Noé e Abraão e os outros Patriarcas e toda a respectiva tribo;
mostrava-Ihes o que por elas tinha feito e padecido, pelo que ficaram todas
muito consoladas e purificadas pela gratidão. Ensinou-Ihes nessa ocasião de
cer to modo todos os mistérios do Novo Testamento, pelos quais foram
liber tadas das cadeias. Vi-O com elas em Nazaré diante do presépio, em
Belém, em todos os lugares onde houve em sua vida um acontecimento
notável.
Tomé tinha sido o terceiro dos que pressentiram na barca a presença de
Jesus. Todos estavam tímidos e acanhados, pois o Mestre estava mais
espiritual do que em outras ocasiões e toda a refeição e a hora tinham algo
de misterioso. Ninguém se atreveu a fazer pergunta alguma; reinava santo e
solene silêncio, que causou assombro a todos. Jesus parecia mais recolhido,
não se lhe percebiam as chagas.
Após a refeição, vi Jesus levantar-se, como também os discípu los, dirigindo-
se à praia, onde passearam; no fim de algum tempo, parou o Divino Mestre e
disse, em tom solene, a Pedro: "Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que
estes?" Pedro respondeu timidamente: "Sim, Senhor, sabeis que vos amo."
Jesus disse-lhe: "Apascenta meus cordeiros". No mesmo instante vi uma
imagem da Igreja e do Bispo supremo, ensinando e guiando os primeiros
cristãos, que ain da eram fracos e vi também batizar e lavar muitos recém-
conver tidos, como tenros cordeiros.
Depois continuaram passeando, às vezes parava Jesus, virando-se para os
discípulos, que por seu lado também se volviam todos para Ele.
Depois de algum tempo, o Mestre disse novamente a Pedro: "Simão, filho de
Jonas, amas-me?" Pedro, muito tímido e humilde, lembrando-se de sua
negação, respondeu novamente: "Sim, Senhor, sabeis que vos amo." E Jesus
disse mais uma vez, em tom solene: "Apascenta minhas ovelhas." Nesse
momento tive a visão da Igreja crescente e da perseguição e vi como o
supremo Bispo reunia os cristãos dispersos, cujo número sempre aumentava,
como os protegia e Ihes enviava pastores e os gover nava.
Depois de ter andado novamente por algum tempo, disse Jesus, pela terceira
vez: "Simão, filho de Jonas, amas-me? Então vi Pedro contristado, pensando
que Jesus perguntava tantas vezes por duvidar de seu amor ; lembrando-se de
havê-Io negado três vezes, disse: "Senhor, sabeis tudo; sabeis que vos amo."
Vi João pensar consigo: "Oh! que amor deve ter Jesus e quanto amor carece
ter um pastor, que três vezes lhe pergun ta pelo amor, àquele a quem quer
entregar o rebanho." Jesus disse de novo: "Apascenta minhas ovelhas! Em
verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-te a ti próprio
e ias onde querias; mas quando ficares velho, estenderás as mãos e outro te
cingirá e levar-te-á aonde não quererás ir. Segue-me.”
Virou-se Jesus então para continuar o caminho e João foi com Ele; Jesus
disse-lhe uma coisa que só ele ouviu. Vi, porém, que Pedro, ao vê10, apontou
para João e perguntou ao Senhor : "Senhor, que se dará com este?" E Jesus,
castigando-lhe a curiosidade, disse-lhe: "Se quero que ele fique até que eu
venha, que tens com isso? Segue-me tu!" Virou-se, pois e continuou o
caminho.
Quando Jesus disse pela terceira vez: "Apascenta minhas ovelhas" e que
haviam de cingí-Io e conduzi-Io, tive uma visão da Igreja já muito
desenvolvida, vi Pedro em Roma, amar rado e crucificado e os tor mentos dos
Santos em diversos lugares.
Vi também que Pedro teve a graça de contemplar tudo isso em espírito e
conhecer o seu fim e que, olhando para João, viu que este também seguia
Jesus em vários sofrimentos; pensou no mesmo momento: "Então este, a
quem Jesus tanto ama, por ventura não será também crucificado, como ele?"
Perguntou, pois, a Jesus, que por isso o repreendeu.
Por algum tempo acompanharam ainda Jesus, que Ihes disse o que haviam de
fazer, desaparecendo depois diante deles. Dirigiu-se a Gergesa, a leste do
lago; os Apóstolos, porém, voltaram a Tibérias".
A piedosa vidente viu depois ainda o Salvador e as almas no Paraíso, que
descreve como ainda existente e ligado à ter ra, porém, inacessível. Jesus
visitou ainda, em companhia delas, os campos de grandes batalhas e todas
as ter ras onde os Apóstolos primeiro anunciariam o Evangelho, para as
abençoar com sua presença.

5. Jesus revela-se a quinhentos discípulos numa montanha

De Tibérias foram os Apóstolos, por um caminho de várias horas, a um lugar


onde Pedro ensinou e curou enfer mos. Falou com muito entusiasmo e grande
mansidão da Paixão e Ressur reição de Jesus e da pesca milagrosa. Quando
os Apóstolos par tiram do lugar, seguiu-os grande multidão de povo a uma
montanha, da qual se podia ver todo o mar de Galiléia. Muitos discípulos e
também as santas mulheres já se tinham aí reunido. A Mãe de Deus, porém,
ficara em Jer usalém, percor rendo três vezes por dia a Via Sacra.
No cume do monte havia uma escavação, em cujo centro se achava uma
coluna, que ser via de púlpito. Eram cinco os caminhos que conduziam ao
cume da montanha; para cada atalho mandou Pedro um dos Apóstolos, para
ensinar ao povo, que por causa da grande multidão que afluía, não podia
ouví-Io. Pedro, estando ao pé da coluna e rodeado dos restantes Apóstolos e
discípulos e de muito povo, anunciou a Paixão, a Ressur reição e as aparições
do Cristo.
"Vi, porém, nar ra a piedosa freira, Jesus vindo da mesma região da qual
viera Pedro. Subiu o monte e as santas mulheres que estavam nesse
caminho, prostraram-se diante d’Ele. Passando-Ihes per to, dirigiu-lhes
algumas palavras. Quando, porém, resplandecente e luminoso, ia passando
pelo meio do povo, estremeceram muitos com medo e todos esses não
perseveraram na fé. O Senhor avançou para o centro, até à coluna, onde
antes estivera Pedro, que então se lhe colocou em frente. Jesus falou da
necessidade de abandonar tudo e de imitá-Lo e da perseguição que teriam de
sofrer. Afastaram-se, porém, cerca de duzentas pessoas presentes, ao
ouvirem essas palavras.
Depois de se terem ido embora, disse o Senhor que tinha falado ainda
benignamente, para não escandalizar os fracos. Mas então falou muito
claramente aos Apóstolos e discípulos dos sofrimentos e das perseguições
que teriam de supor tar no mundo aqueles que O seguissem e da recompensa
eter na. Disse-Ihes também que ficassem em Jerusalém e que só depois de
Ihes ter enviado o Espírito Santo, batizassem em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo; antes deviam fundar uma comunidade de fiéis. Jesus dispôs
ainda como se deviam distribuir pela ter ra e fundar comunidades mais
longínquas; depois deviam reunir-se de novo e par tir outra vez para ter ras
distantes, que receberiam o batismo de sangue.
Enquanto Jesus estava no meio deles falando, ficavam as almas dos
Patriarcas em roda da assembléia, mas invisíveis para todos. Jesus, porém,
desapareceu, como uma luz que se apaga e muitos se prostraram por ter ra,
tocando com o rosto o chão. Pedro ensinou ainda em seguida e rezou.
Foi essa a mais impor tante aparição de Jesus na Galiléia, onde ensinou e
demonstrou a todos a sua ressur reição; as outras aparições eram menos
públicas.”

6. As relações de Maria Santíssima com os Apóstolos e com a Igreja. Jesus


aparece à sua Santíssima Mãe
Os Apóstolos e vinte discípulos estavam novamente reunidos na sala do
Cenáculo, em oração. Então falou João aos Apóstolos e Pedro aos discípulos,
sobre as relações para com a Mãe do Senhor.
"Vi durante essa explicação, que me parecia basear-se numa comunicação de
Jesus, a aparição da Santíssima Virgem, pairando sobre eles, vestida de um
manto luminoso desdobrado, que, por assim dizer, encerrava todos. Por cima
de Maria vi o céu aber to e a Santíssima Trindade, que lhe pôs uma coroa
sobre a cabeça. Tive a impressão de que Maria era a cabeça verdadeira de
todos aqueles fiéis, o Templo que os abrigava. Durante essa visão não vi
mais a Santíssima Virgem fora, onde estava rezando. Creio que era uma
imagem do que sucedeu à Igreja, por vontade de Deus, durante essa
explicação dos Apóstolos; ou era a imagem de um êxtase de Maria, durante a
pregação dos Apóstolos.”
Seguiu-se uma refeição, na qual a Santíssima Virgem estava sentada entre
Pedro e João, à mesa dos Apóstolos. Depois rezou Maria, cober ta com o véu,
junto com os Apóstolos, na sala do Cenáculo. Abriu-se também o Santíssimo,
diante do qual rezaram de joelhos.
"Meia noite já podia ter passado, quando a Santíssima Virgem recebeu de
joelhos o Santíssimo Sacramento da mão de Pedro, que trouxe os bocados
sobre o pratinho do cálice e lhe pós na boca o pedaço que ainda fora par tido
pelo próprio Jesus. Vi no mesmo momento o Senhor aparecer a Maria e
desaparecer de novo, mas invisível para os outros. A Virgem Santíssima
estava penetrada de luz e esplendor. Rezaram ainda e depois se separaram.
Os Apóstolos manifestaram durante essa cerimô nia ainda mais respeito para
com Maria; outrora eram sempre familiares, embora respeitosos.”
Depois de ter recebido o Santíssimo Sacramento, retirou-se Maria, com as
outras mulheres, para a sua morada, em casa de João Marcos, onde ainda
per maneceu mais tempo em oração. Ao amanhecer, entrou Jesus, através
das por tas fechadas, no quar to da Mãe Santíssima, conversando muito tempo
com ela.
"Disse-lhe que devia ajudar os Apóstolos e tudo o que Ihes devia ser. Era
tudo espiritual e misterioso. Deu-lhe, porém, poder sobre a Igreja, a força, a
qualidade de protetora e vi que a luz do Filho de Deus se der ramou na Virgem
Santíssima, como se Ele mesmo a penetrasse. Não posso descrevê-Io bem.
Desapareceu de novo pela por ta. Ela, porém, rezou ainda e deitou-se depois,
para dor mir.
Vejo a Santíssima Virgem, desde que comungou, mais vezes com
os Apóstolos; são outras agora as relações que tem com eles; Pedem-
lhe conselho, é como a Mãe de todos e até como um Apóstolo.”

7. Outras aparições de Jesus

O número dos fiéis crescia visivelmente. Muitos, vindos de fora, eram


alojados num vasto edifício em ruína, per to do Cenáculo (o castelo de Davi?);
outros, mais tarde, numa casa per to da piscina de Betesda na qual
ensinavam os Apóstolos. Assombrados pelos numerosos prodígi os e
milagres, os judeus ainda não ousavam empregar meios violentos contra a
comunidade. Esforçavam-se, porém, por dissimular tudo e ne gar os fatos;
fecharam com alvenaria a por ta que ligava o monte do Templo ao bair ro
adjacente, de modo que a comunidade ficava isolada; mas, mesmo antes
disto, nem os Apóstolos e discípulos, nem os novos aderentes iam ao Templo,
pois o Santíssimo achava-se no Cenáculo.
Catharina Emmerich viu ali diversas vezes solenes reuniões, com oração e
canto de salmos diante do Santíssimo Sacramento; Jesus mesmo instruíra os
Apóstolos a respeito. Numa dessas piedosas reuniões, na qual Maria tomava
par te, apareceu Jesus de repente no meio deles, anunciando-Ihes que viria
no segundo dia depois do sábado seguinte. Antes que se refizessem da
sur presa, já tinha desaparecido de novo.
Quando depois os Apóstolos foram a Betânia, Jesus caminhou de súbito
diante deles, mas desapareceu logo depois.
Uma outra vez, quando Pedro, João, Tiago o Menor, Tomé e alguns outros
Apóstolos iam, pelo meio-dia, de Betânia aJer usalém, per to do monte das
Oliveiras, apareceu-Ihes Jesus de repente e conversou com eles. Mas depois
continuaram o caminho, foi como se ficasse atrás, assim desaparecendo.
Mais tarde esteve Jesus mais uma vez com eles, durante um ágape no
Cenáculo. Comeu só com os Apóstolos, benzeu o pão, par tiu-o e ensinou. As
mulheres tomaram a refeição na ante-sala, os discípulos nos cor redores
laterais.
Quanto mais se aproximava o dia da separação e ascensão de Jesus ao céu,
tanto mais vezes parece ter-se mostrado aos discípulos. Assim nar ra a
piedosa Emmerich:
"O Senhor andava com os Apóstolos em muitos caminhos, na vizinhança de
Jerusalém, de maneira que muitos judeus viram as aparições. Quando,
porém, aparecia, fechavam as casas e escondiam-se. Os Apóstolos e
discípulos tratavam-nO com cer ta timidez, pois manifestava-seIhes muito
espiritual. Jesus ensinava muito e censurava também algumas faltas dos
Apóstolos. Durante a noite vi o Senhor aparecer e espa lhar a bênção
também em outros lugares, como por exemplo, em Belém. Em Nazaré, onde
tinha muitos inimigos, apareceu a vários descrentes e principalmente à
gente com que Ele e a Virgem Santíssima tiveram antes relações. Ainda em
muitos outros lugares O vi aparecer. Os homens que O viram, tomaram-se
muito crentes e reuniram-se, no dia de Pentecostes, aos Apóstolos e
discípulos.
Nos últimos dias se mostrava Jesus continuamente e muito natural para com
os Apóstolos. Comia e rezava com eles e ensinava-Ihes. Fazia com eles
longos passeios, repetindo-lhes toda a doutrina. Somente durante a noite
per manecia em outros lugares, sem que soubessem.

12
A Ascensão e a vinda do Espírito Santo

1. O Senhor despede-se dos seus


2. Jesus sobe ao céu
3. Preparação dos Apóstolos e discípulos para a vinda do Espírito Santo
4. A vinda do Espírito Santo
5. Ser mão e batismo na piscina de Betesda

A Ascensão e a vinda do Espírito Santo


1. O Senhor despede-se dos seus

Na véspera da ascensão veio Jesus, com cinco discípulos à casa de Lázaro,


em Betânia, onde se encontraram com Maria e as outras santas mulheres.
Muito povo se reuniu em redor da casa, para ver mais uma vez Jesus e
despedir-se d’Ele. O Divino Mestre apareceu à gente de fora, benzeu e
distribuiu-Ihes muitos pãezinhos; depois se afastaram.
Na casa tomou Jesus, em pé, um refresco com os discípulos, que choravam
amargamente, porque ia deixá-Ios. Ele, porém, disse: "Por quê chorais,
queridos ir mãos? Vede esta mulher, que não chora." Dizendo-o, apontou para
a Mãe Santíssima.
Jesus despediu-se mais intimamente de Lázaro. Deu-lhe do pão bento a
comer, abençoou-o e aper tou-lhe a mão.
Depois se encaminharam todos, com exceção de Lázaro, que morava
escondido em casa, para Jerusalém, onde Nicodemos e José de Arimatéia
prepararam uma refeição.
"Vi Jesus, com os Apóstolos, -andando por vários caminhos, em redor do
Monte das Oliveiras; os outros grupos O seguiam. Às vezes parava Jesus,
para Ihes explicar alguma coisa. Todos estavam em grande angústia, alguns
choravam; outros estavam muito abatidos. Vi um deles pensando: "Quando
Ele for embora, quem será o mestre? E como se cumprirá tudo o que foi
prometido a respeito do Messias?" Pedro e João pareciam-me mais calmos e
compreendendo tudo melhor. Muitas vezes faziam perguntas ao Senhor e Ele
parava, explicando-lhes muitas coisas. Assim andaram até à noite. O Senhor
parava freqüentemente, estava muito sério, ao ensinar-Ihes, às vezes
desaparecia repentinamente. Então ficavam muito assustados, mas de
repente Ihes voltava de novo. Era como se quisesse prepará-los para a
próxima separação. Vi-os andando por belas campinas, por caminhos
agradáveis e debaixo de ár vores. O sol brilhava lindamente à tarde.
Quando Jesus e os Apóstolos se aproximaram da casa do banquete, já o sol
se tinha posto. Maria, Nicodemos e José de Arimatéia vieramLhe ao encontro
em frente à casa. Jesus entrou ao lado de sua Mãe. As outras mulheres
vieram mais tarde. Depois de Ihes haver dito algumas palavras e de terem
chegado os outros discípulos, Jesus entrou na grande sala do banquete.
Benzeu o peixe, o pão e as verduras e ofereceu a todos; cada um recebeu um
bocado.
Durante o banquete, Jesus não deixou de ensinar-Ihes, com palavras muito
sérias. Vi as palavras saírem-lhe da boca como raios de luz e entrarem na
boca dos Apóstolos, num mais depressa, noutro mais vagarosamente,
confor me o grau de desejo ou sede da doutrina de Jesus.
No fim da refeição Jesus benzeu também um cálice de vinho, bebeu e
ofereceu-o aos outros e todos beberam. Mas não foi o Santíssimo Sa-
cramento.
Depois dos discípulos se terem levantado do ágape, reuniram-se os outros,
que comeram nas salas laterais, debaixo das ár vores, em frente à grande
sala; vi Jesus aproximar-se-Ihes, ensinar-Ihes por muito tempo e abençoá-
Ios; depois se afastaram.
Vi então as outras mulheres, que nesse meio tempo tinham chegado,
entrarem no jardim, debaixo das ár vores. A Santíssima Virgem estava com
elas. Jesus aproximou-se-Ihes e deu a mão a sua Mãe. Falou-Ihes muito sério.
Todas estavam muito comovidas e senti que Madalena desejava veemente
abraçar os pés do Senhor. Tendo-Ihes falado assim por algum tempo e depois
de as haver abençoado, deixou-as Jesus. Choraram muito, mas
silenciosamente, abafando a dor ; a Santíssima Virgem, porém, não a vi
chorar, nessa ocasião.
Ao aproximar-se a meia noite, saiu Jesus com os Apóstolos, tomando o
caminho pelo qual viera à cidade no domingo de Ramos. Maria seguiu depois
dos Apóstolos e após ela, um grupo de discípulos. Muita gente se Ihes
aproximou no caminho e o Senhor falou-Ihes.
"Em companhia dos onze Apóstolos, cerca de trinta discípulos, a Santíssima
Virgem e algumas mulheres, dirigiram-se ao Cenáculo.
Só Jesus, os onze e Maria penetraram na sala interior ; os discípulos
entraram nas salas laterais, onde havia bancos de dor mir, não sei se
dor miram ou rezaram. As companheiras de Maria ficaram no vestíbulo. Foi
preparada a mesa da última Ceia e aceso o candeeiro. Havia na mesa apenas
um pão ázimo e um pequeno cálice. Os Apóstolos revestiram-se das vestes
de cerimônia e Pedro pôs a veste própria de sua dignidade. A Santíssima
Virgem sentou-se em frente ao Senhor. Vi Jesus fazer o mesmo que fizera na
última ceia: marcar o pão, oferecê-Io a Deus, par tir, benzer e dá-Io aos
discípulos; depois beberam também do cálice, sem que o enchessem de novo.
Vi o Santíssimo Sacramento brilhando, ao pronunciar Jesus as palavras, pe-
netrar como um pequeno cor po luminoso na boca dos Apóstolos. Na
consagração do cálice, se lhe der ramou a palavra sacramental no cálice
como um rubro fulgor de sangue. Madalena, Mar ta e Maria Cleofé já tinham
recebido o SS. Sacramento nos últimos dias.
No começo da noite fizeram a oração e cantaram com mais solenidade do
que comumente, à luz do candeeiro. Jesus deu mais uma vez a Pedro poder
sobre os outros. Impôs-lhe mais uma vez o manto, repetindo o que dissera,
ao aparecer-Ihes na praia do lago Tibérias e no cume da montanha. Ensinou
ainda sobre o batismo e a bênção da água. Durante a oração e a doutrina, já
pela manhã, vi ainda cerca de dezessete discípulos, dos mais íntimos de
Jesus, atrás da SS. Virgem, na sala do Cenáculo.
Antes de saírem de casa, o Senhor apresentou-Ihes a Santíssima Virgem
como centro e intercessora dos fiéis. Pedro e os outros inclinaram-se diante
dela; Maria, porém, abençoou-os.
No momento em que isso se deu, vi Maria revestida, de um modo
sobrenatural, de um grande manto, de cor azul celeste, colocada sobre um
trono, tendo na cabeça uma coroa. Era um símbolo de sua dignidade.”

2. Jesus sobe ao céu

Ao amanhecer do dia, saiu o Senhor do Cenáculo, conduzindo os onze


Apóstolos pelas ruas de Jer usalém, por todo o caminho da Paixão. Seguiram-
nos Maria e um grupo de discípulos. Onde se dera uma cena da Paixão,
demorava-se alguns momentos, explicando-Ihes a significação do lugar ou um
trecho dos profetas referente a isso. Onde, porém, os judeus tinham
obstruído o lugar, para impedir a veneração dos fiéis, mandou Jesus tirar
esses obstáculos.
Assim saíram da cidade e vieram a um jardim ou lugar de oração, onde se
sentaram à sombra das ár vores e Jesus ensinou e consolou-os. Como no
entanto começava a amanhecer, tomaram-se-Ihes os corações um pouco mais
alegres, na esperança de que Jesus ainda ficasse com eles.
Aproximaram-se então muitas turbas de povo. Jesus continuou o caminho
para o monte Calvário e dali para o Monte das Oliveiras, onde se sentou
novamente num jardim, falando ainda muito tempo com os discípulos, como
para ter minar a sua obra.
Já estava reunida numerosa multidão em redor de Jesus e por toda a
redondeza; em Jerusalém cor reu o boato do grande concurso de povo no
Monte das Oliveiras, ao qual se juntaram novos grupos da cidade.
Então se dirigiu o divino Salvador ao Hor to de Getsêmani e subiu o Monte das
Oliveiras.
"A multidão caminhava como em procissão, subindo o monte pelos diversos
caminhos, de todos os lados e muitos grupos passavam pelas moitas, pelas
sebes e cercas.
O Senhor, porém, tor nava-se cada vez mais resplandecente e ligeiro. Os
discípulos seguiam-no, mas não mais podiam alcançá-Lo. Tendo o Senhor
chegado ao cume do monte, brilhava como a luz branca do sol. Do céu,
porém, desceu sobre Ele um círculo luminoso, que brilhava com todas as
cores do arco-íris. Todos os que O seguiam, ficaram parados, em vasto
círculo, como que ofuscados. O Senhor brilhava ainda mais do que o
esplendor que o cercava. Pousando a mão esquerda sobre o peito, abençoou
com a direita elevada todo o mundo, virando-se para todos os lados. A
multidão ficou imóvel, vi que todos foram abençoados. Jesus não abençoava
como os rabinos, com a mão aber ta para a frente, mas como os bispos
cristãos. Senti com grande felicidade essa bênção sobre todo o mundo.
Então se lhe uniu o próprio esplendor à luz do alto e notei que se tor nava
invisível, a par tir da cabeça, dissolvendo-se-Ihe a figura na luz celeste e
desaparecia como que subindo. Era como se um sol entrasse no outro ou
como uma chama entrando numa luz ou uma centelha numa chama. Era como
se se fitasse o sol radioso do meio-dia e ainda mais branco e claro; o pleno
dia parecia escuro, em comparação com aquela luz. Quando já não se Lhe via
mais a cabeça, ainda se podia distinguir-Lhe os pés resplandecentes, até que
desapareceu inteiramente, no esplendor do céu. Inúmeras almas vieram de
todos os lados, entrando nessa luz e desapareceram no céu com o Senhor.
Não posso dizer que O vi tomar-se cada vez mais pequeno, como algo que voa
no ar ; mas vi-O desaparecer numa nuvem de luz.
Ao aparecer a nuvem luminosa, caiu, por assim dizer, um or valho de luz sobre
todos e não podendo mais supor tar essa luz, ficaram todos cheios de espanto
e admiração. Os Apóstolos e discípulos achavam-se mais per to de Jesus;
estavam em par te deslumbrados e olhavam para baixo; muitos se prostraram
por ter ra. A Santíssima Virgem estava logo atrás dos Apóstolos, olhando
tranqüilamente para a frente.
Após alguns momentos, quando o esplendor diminuiu um pouco, toda a
assembléia, no maior silêncio e nas mais intensas emoções da alma, olhou
para a luz do alto, que ainda ficou por algum tempo. Nessa luz vi descer duas
figuras, no começo pequenas, crescendo cada vez mais e aparecer, com
vestes longas e brancas e um bastão na mão, como profetas, falando à
multidão; as vozes soavam alto e for te, como a de trombetas e parecia-me
que as deviam ouvir em Jer usalém. Não se moviam, mas estavam
inteiramente imóveis, ao dizer as poucas palavras: "Homens da Galiléia, que
estais aí olhando para o céu? Esse Jesus que acaba de vos ser ar rebatado,
para subir ao céu, voltará como o vistes subir ao céu." Tendo dito essas
palavras, desapareceram.
O esplendor, porém, ficou ainda por algum tempo, até que afinal se desfez,
como do dia se passa à noite. Os discípulos estavam fora de si, sabiam agora
o que lhes tinha sucedido: O Senhor tinha ido embora para o Pai Celestial.
Muitos caíram por ter ra, de dor e atordoamento. Enquanto desaparecia o
esplendor, recobraram ânimo e ergueram-se, cercados pelos outros. Muitos
for maram grupos, as mulheres aproximaram-se também e assim se
demoraram ainda, olhando para o céu, pensando e falando sobre o sucedido;
depois voltaram os discípulos a Jer usalém, seguidos pelas mulheres. Alguns
dos mais simples choravam como crianças, outros se conser vavam
recolhidos e pensativos. A Santíssima Virgem, Pedro e João estavam muito
tranqüilos e consolados. Vi, porém, também muitos outros que não estavam
comovidos, mas descrentes e duvidosos e que se apar taram dos outros e se
afastaram; pouco a pouco se dispersou toda a multidão.
No lugar onde Jesus subiu ao céu, havia uma grande laje, sobre a qual o
Divino Mestre estava ensinando ainda, antes de dar a bênção e desaparecer
na nuvem luminosa. As pegadas do Senhor ficaram impressas na pedra e
numa outra se imprimiu uma das mãos da Santíssima Virgem.
Meio dia já tinha passado, quando toda a multidão acabou de dispersar-se.
Os discípulos e a Santíssima Virgem dirigiram-se ao Cenáculo. Sentindo a
princípio a separação de Jesus, estavam inquietos e julgavam-se
abandonados. Quando, porém, se acharam reunidos no Cenáculo, encheram-
se todos de consolação, principalmente pela presença cal ma da Santíssima
Virgem no meio deles e, confiando inteiramente na palavra de Jesus, de que
Maria lhes seria o centro, a Mãe e intercessora, recuperaram a paz de
coração.

3. Preparação dos Apóstolos e discípulos para a vinda do Espírito Santo

Os dez dias entre a ascensão do Senhor e a vinda do Espírito Santo


passaram-nos os Apóstolos reunidos com a Santíssima Virgem, no Cenáculo.
Reuniam-se freqüentemente para a oração, na sala da última Ceia, em que
obser vavam uma ordem mais rigorosa do que o grande número de discípulos
e fiéis, também presentes. Demais viviam muito recolhidos, temendo também
a perseguição dos Judeus.
Um dia Pedro, estando no meio dos Apóstolos, vestido da
vestidura episcopal, propôs a eleição de um Apóstolo em lugar de Judas,
indicando a José Bársabas e Matias para esse fim. Ambos nunca tinham
pensado nisso, nem desejado tal dignidade, enquanto muitos dos discípulos
que assistiram à eleição, desejavam ser Apóstolos.
Matias, apesar de mais delicado e fraco, por possuir maior for taleza da alma
foi preferido por Deus a Bársabas, que era jovem, na flor da idade. Como a
piedosa Emmerich relata em poucas palavras apenas esse acontecimento
impor tante, damos a seguir aqui a bela nar ração dos Atos dos Apóstolos de
S. Lucas (1, 15-26):
Naqueles dias, levantando-se Pedro no meio dos Ir mãos (e montava a
multidão dos que ali se achavam juntos, a quase cento e vinte pessoas),
disse: "Ir mãos, é necessário que se cumpra a Escritura, em que o Espírito
Santo predisse, pela boca de Davi, acerca de Judas, que foi o condutor
daqueles que prenderam Jesus; e o qual estava entre nós alistado no mesmo
número e a quem coube par te deste ministério. E este possuiu de fato um
campo do preço da iniqüidade; e depois de se enforcar, ar rebentou pelo meio
e todas as entranhas se lhe der ramaram na ter ra. E tão notório se fez a
todos os habitantes de Jerusalém este fato, que se ficou chamando aquele
campo, na língua deles, Hacéldama, isto é, campo de sangue. Porque escrito
está no livro dos Salmos: Fique deser ta a habitação dele e não haja quem
nela habite e receba-lhe outro o seu cargo. Convém, pois, que destes
homens, que têm estado juntos na nossa companhia, todo o tempo em que
viveu entre nós o Senhor Jesus, começando desde o batismo de João, até o
dia em que foi ar rebatado ao céu, que um dos tais seja testemunha conosco
da ressur reição.
E propuseram dois: José, que era chamado Bársabas, o qual tinha por
sobrenome o Justo e Matias. E orando, disseram: Tu, Senhor, que conheces
os corações de todos, mostra-nos destes dois a quem escolheste, para que
tome o lugar deste ministério e aposto lado, do qual pela prevaricação
decaiu Judas, para ir ocupar-lhe o lugar. E a respeito lançaram sor tes e caiu
a sor te sobre Matias, que foi contado no número dos Apóstolos.

4. A vinda do Espírito Santo

Para a santa festa de Pentecostes enfeitaram a sala da última Ceia


festivamente, com ár vores, grinaldas e flores. Nas vésperas da festa, Pedro
benzeu dois pães ázimos, par tiu e distribuiu-os aos Apóstolos e à Santíssima
Virgem. À cidade, porém, chegaram muitos peregrinos para a festa de
Pentecostes, estrangeiros de variadíssimos trajes e costumes estranhos.
Os Apóstolos e discípulos passaram a noite antes de Pentecostes, junto com
Maria e as santas mulheres, na sala da última ceia, em oração e silenciosa
meditação, preparando-se para a vinda do Espírito Santo. Estavam reunidas
ao todo mais de cento e vinte pessoas. Todos desejavam ardentemente a
vinda do Consolador prometido, que os encheria, segundo a promessa de
Jesus, de força celeste. A piedosa ser va de Deus descreve esse impor tante
acontecimento com palavras intuitivas:
"Percebi, depois de meia-noite, uma maravilhosa intensidade e um
movimento misterioso e benfazejo na natureza inteira, que se comunicava a
todos os presentes. Pareceu-me também que, pela aber tura no teto da sala,
se podia ver o céu tor nar-se mais claro. Os Apóstolos tinham-se retirado em
silêncio do meio da sala para junto das paredes, ficando per to das colunas;
por entre eles vi os discípulos nos pór ticos laterais, olhando pelas paredes
aber tas para dentro da sala. Pedro estava diante da cor tina atrás da qual se
guardava o Santíssimo Sacramento; a Santís sima Virgem, porém, estava na
sala, diante da por ta do vestíbulo, no qual se achavam as santas mulheres.
Estando assim todos silenciosos, cheios de veemente desejo, com os braços
cruzados sobre o peito, olhos baixos, propagou-se-lhe a calma e o silêncio
por toda a casa. Os discípulos, nos átrios laterais, se dirigiram todos aos
respectivos lugares e após alguns momentos, reina va o maior silêncio em
todo o redor da casa.
Pela manhã vi sobre o Monte das Oliveiras, onde Nosso Senhor subira ao céu,
se aproximar uma nuvem luminosa, resplandecente, prateada, vindo do céu,
em direção à casa dos Apóstolos, em Sião. Vi-a primeiro, a grande distância,
como um globo, cujo movimento acompanhava uma doce e ardente brisa. Ao
aproximar-se, aparecia cada vez maior a nuvem luminosa, passando como um
nevoeiro brilhante sobre a cidade, até que parou sobre Sião e a casa da
última Ceia, concentrando-se cada vez mais e tor nando-se cada vez mais
clara e transparente como um sol brilhante; finalmente desceu, com
crescente sussur ro, como uma nuvem de trovoada muito baixa. Muitos
judeus, que ouviram o bramido e viram a nuvem, cor reram assustados ao
Templo. Toda essa cena tinha alguma semelhança com uma trovoada que se
aproxima rapidamente, mas em vez de trovão, ouvia-se o zunido, que se
sentia, porém, como uma brisa cálida e profundamente reconfor tante.
Quando a nuvem luminosa pairava muito baixo sobre o Cenáculo e, a par do
crescente ruído, se tomava cada vez mais brilhante, vi também a casa e os
ar redores banhados numa luz intensa, mas os Apóstolos, discípulos e
mulheres, cada vez mais silenciosos e ardentes.
Eram cerca de três horas da manhã, antes do nascer do sol, quando vi de
repente saírem da nuvem, sussur rante, tor rentes de luz branca, que se
cruzavam sete vezes e ao cruzarem, se dissolviam em raios e gotas ígneas,
que caíram sobre a casa e ar redores. O ponto em que as sete tor rentes de
luz se cruzavam, era cercado como de um arco-íris, onde vi for mar-se uma
figura luminosa e pairar sobre a casa; parecia-me que essa figura tinha asas
estendidas sob os ombros; mas não posso dizer com cer teza se eram asas,
pois tudo parecia emanação de luz. Nesse momento, porém, toda a casa
estava cheia de luz em redor. Não vi mais a luz do candelabro de cinco
braços. As pessoas reunidas estavam todas como pasmas e extasiadas;
levantaram inconscientemente os rostos, com desejo ardente e vi der ramar-
se na boca de todos uma tor rente de luz, como pequenas línguas de fogo em
chamas. Era como se respirassem e recebessem ardentemente esse fogo e
como se algo de sua boca, em ardente desejo, fosse ao encontro dessas
chamas. O santo fogo der ramou-se também sobre os discípulos e as
mulheres, no vestíbulo e desta for ma se dissolveu a nuvem luminosa
gradualmente, como uma nuvem que der rama chuva de luz. As línguas de
fogo vieram sobre todos, mas com intensidade e cores diferentes.

O estrondo semelhante a uma trovoada acordou muitos homens. O Espírito


comoveu muitos fiéis e discípulos que moravam nos ar redores.
Depois de acabada a efusão do Espírito, nasceu alegre coragem em toda a
assembléia. Todos estavam comovidos e como embriagados de alegria e
confiança. Rodeavam a Santíssima Virgem, única que per mane cia toda
tranqüila e calma, em seu habitual recolhimento e santo silêncio, apesar de
feliz e confor tada. Os Apóstolos, porém, abraçavam-se uns aos outros,
penetrados de uma jubilosa audácia de falar. Era como se clamassem uns aos
outros: Em que estado estávamos? Que foi feito de nós? - Também as santas
mulheres abraçavam umas as outras; todos os discípulos, nos cor redores,
estavam do mesmo modo comovidos. Os Apóstolos cor reram para eles e em
todos havia, por assim dizer, nova vida, cheia de alegria, confiança e
coragem.
Esse transpor te de Iluminação do coração e de confor to ter minou em uma
ação de graças. Reuniram-se em oração, dando graças a Deus, com profunda
comoção. No entanto desapareceu gradualmente a luz. Pedro fez então um
discurso aos discípulos e enviou alguns para os acampamentos de peregrinos
bem-intencionados, vindos para a festa de Pentecostes.
Havia, porém, entre o Cenáculo e a piscina de Betesda diversos bar racões e
dor mitórios aber tos, onde os forasteiros que vinham para a festa, dor miam e
guardavam os animais. Estavam ali muitos dor mindo; outros estavam
acordados e receberam também a graça do Espírito Santo; pois passara uma
emoção geral pela natureza. Muitos homens bons receberam iluminação e a
graça da conversão; os maus, porém, ficaram tímidos, medrosos e ainda mais
endurecidos. - A maior par te dessa gente, que estava acampada naqueles
ar redores, onde se reunira a nascente comunidade, estava já ali desde a
Páscoa, porque, pela distância de sua ter ra, não valia a pena fazer a viagem
de ida e volta entre a Páscoa e Pentecostes. Esses, pois, por tudo que
ouviram e viram, se tor naram mais familiares e amigos dos discípulos do que
os outros. Quando os discípulos enviados por Pedro os procuraram e lhes
anunciaram o cumprimento da promissão do Espírito Santo, tor naram-se de
diversos modos conscientes de sua própria conversão e, obedecendo à
palavra dos discípulos, reuniram-se todos em redor da piscina de Betesda,
que ficava próxima.
No entanto Pedro no Cenáculo impôs as mãos a cinco Apóstolos, que deviam
ajudar a ensinar e batizar na piscina de Betesda. Se me lembro bem, foram
esses Tiago o Menor, Bar tolomeu, Matias, Tomé e Judas Tadeu. Vi nessa
ordenação, que o último tinha uma visão: foi como se o visse abraçar o cor po
de Nosso Senhor.
Antes de Irem à piscina de Betesda, para benzer a água e batizar, vios ainda
receber a bênção da SS. Virgem, ajoelhados diante dela; antes da ascensão
de Jesus a recebiam em pé. Vi os Apóstolos receberem essa bênção sempre,
nos dias seguintes, antes de saírem e depois de voltarem. Nesses atos de
bênção e sempre quando comparecia entre os Apóstolos, em sua dignidade, a
SS. Virgem vestia um longo manto branco, um véu amarelo sobre o rosto e na
cabeça, caindo de ambos os lados até quase ao chão, uma larga faixa de
pano azul celeste, dobrada sobre a testa um pouco para trás, enfeitada de
bordado e segura na cabeça por uma pequena coroa de seda branca.

5. Ser mão e batismo na piscina de Betesda

Convidada pelos discípulos, reuniu-se uma grande multidão de povo em redor


da piscina de Betesda. Os discípulos contaram com grande alegria o que
sucedera. Pedro enviou os cinco Apóstolos antes mencionados, que se
colocaram nas cinco entradas da piscina e falaram com entusiasmo ao povo.
Esse, porém, se assustou, porque cada um os ouvia falar em sua própria
língua.
Estavam, pois, todos atônitos e admiravam-se, dizendo: "Por ventura não se
está vendo que todos estes que falam são galileus? E como os ouvimos falar
cada um na língua de nosso país natal? Par tos e Medos e Elamitas e os que
habitam a Mesopotâmia, a Judéia e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, a Frigia e
o Egito, várias par tes da Líbia, que fica próximo de Cirene e os que vieram
de Roma; também Judeus e prosélitos, Cretenses e Árabes, todos nós os
ouvimos nar rar nas nossas línguas as maravilhas de Deus." Estavam, pois,
atônitos e maravilhavam-se, dizendo uns aos outros: "Que quer isto dizer?"
Outros, porém, escar necendo, diziam: "É porque estão embriagados de vinho
doce." (Atos 2, 7-13).
Pedro, porém, subiu a um púlpito, levantou a voz e disse: "Homens da Judéia
e todos os que habitais em Jer usalém, sabei e com ouvidos atentos escutar
as minhas palavras. Estes homens não estão tomados de vinho, como
pensais, pois é ainda a hora terceira do dia; mas é o que foi dito pelo profeta
Joel: E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que der ramarei meu
Espírito sobre toda a car ne e profetizarão vossos filhos e vossas filhas e
vossos jovens terão visões e os vossos anciãos sonharão. Sim, naqueles dias
der ramarei meu Espírito sobre os meus ser vos e sobre as minhas ser vas e
profetizarão; e farei ver prodígios em cima no céu e sinais em baixo na ter ra,
sangue e fogo e vapor de fumo. O sol conver ter-se-á em trevas e a lua em
sangue, antes que venha o grande e ilustre dia do Senhor. E isto acontecerá:
Todo aquele que invocar o nome do Senhor, será salvo. Israelitas, ouvi estas
palavras: Jesus Nazareno, homem aprovado por Deus entre vós, com vir tudes
e prodígios e sinais, que Deus operou por Ele no meio de vós, como bem o
sabeis, depois de vos ser entregue pela decretada vontade e presciência de
Deus, vós, crucificando-O por mãos de iníquos, lhe tirastes a própria vida;
Deus, porém, o ressuscitou, dissipadas as dores do reino da mor te,
porquanto era impossível que por este fosse retido. Pois Davi diz dEle: Eu via
sempre o Senhor diante de mim, porque está à minha direita, para que eu não
seja abalado; por isso se alegrou o meu coração e se regozijou a minha
língua e além disto, também a minha car ne repousará na esperança, porque
não deixarás a minha alma no reino dos mortos, nem per mitirás que o teu
Santo experimente cor rupção. Fizeste-me conhecer os caminhos da vida e
encher-me-ás de alegria, mostrando-me a tua face. Ir mãos, seja-me per mitido
dizer-vos ousadamente do patriarca Davi que ele mor reu, foi sepultado e o
seu sepulcro se vê entre nós, até o dia de hoje. Sendo, pois, um profeta e
sabendo que com juramento lhe havia Deus prometido que do fruto de seu
sangue se assentaria alguém sobre o seu trono, antevendo-o, falou da
ressur reição de Cristo, que nem seria deixado no reino dos mor tos, nem a
sua car ne veria a cor rupção.
Deus o ressuscitou, e todos nós somos testemunhas. Assim é que, depois que
subiu à direita de Deus e havendo recebido do Pai a promessa do Espírito
Santo, O der ramou sobre nós, como vedes e ouvis. Pois Davi não subiu ao
céu, mas ele mesmo disse: O Senhor disse ao meu Senhor : Assenta-te à
minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés.
Saiba por tanto toda a casa de Israel, com a maior cer teza, que Deus o fez
não só Senhor, mas também Cristo, a este Jesus que crucificastes.”
Tendo ouvido estas coisas, ficaram compungidos no coração e disseram a
Pedro e aos mais Apóstolos: "Que devemos fazer, ir mãos?”
Pedro então Ihes respondeu: "Fazei penitência e cada um de vós seja
batizado em nome de Jesus Cristo, para remissão de vossos pecados e
recebereis o dom do Espírito Santo; porque para vós é a promessa e para
vossos filhos e para todos os que estão longe e quantos chamar a si o Senhor
nosso Deus." Com outras muitíssimas razões o testificou ainda e exor tava-
os, dizendo: "Salvai-vos dessa geração depravada". (Atos 2, 14-40).
Batizaram então durante todo o dia. No entanto ensinavam os Apóstolos,
para preparar o povo à recepção dos santos Sacramentos. Cerca de três mil
homens receberam no dia de Pentecostes o santo Batismo, inclusive as
santas mulheres. Auxiliada por elas, distribuía Maria as vestes brancas aos
batizandos.
A Mãe de Deus foi batizada depois de Pentecostes, sozinha, na piscina de
Betesda, por João, que celebrou antes a Santa Missa, como era celebrada
naqueles tempos: consagravam-se a hóstia e o vinho com algumas orações.
13
A expansão da Igreja cristã na Judéia

1. A cura do paralítico de nascença. Ser mão de Pedro no Templo


2. Ensino no Templo. A primeira santa Missa e ordenação de sacerdotes
3. Curas milagrosas pela sombra de Pedro. Encarceramento dos ApóstoIos
4. Comunhão de bens. Crescimento da comunidade
5. Eleição dos sete diáconos. Queixas por causa da distribuição das esmolas
6. As obras do diácono S. Felipe
7. Perseguições
8. Estêvão é inter rogado e apedrejado
9. A conversão de Saulo
10. Herodes manda decapitar Tiago o Maior e lançar Pedro no cárcere
11. Outras provações da Igreja de Jer usalém

A expansão da Igreja cristã na Judéia

1. A cura do paralítico de nascença. Ser mão de Pedro no Templo

A pequena comunidade dos fiéis recebera um for te incremento no dia de


Pentecostes. Com toda a razão se dá a este dia o nome de data de fundação
da santa Igreja. Na sala do Cenáculo cabia só um número relativamente
pequeno de fiéis; já tinham começado a instalar uma Igreja na velha
sinagoga, situada na vizinhança da piscina de Betesda. Esses trabalhos
estavam então ter minados e Pedro, seguido dos Apóstolos, dos discípulos, de
Maria e das santas mulheres, levou o Santíssimo Sacramento, em solene
procissão, do Cenáculo para essa primeira Igreja cristã e colocou-O no
tabemáculo, sobre o altar.
Não muito tempo depois foram Pedro e João, com alguns discípulos, ao
Templo.
"Estavam, porém, alguns homens levando um paralítico numa padiola, para a
por ta do Templo. Pedro e João, ao subirem a escada, lhe disseram algumas
palavras. Depois falou Pedro por algum tempo com grande ardor ao povo, no
átrio do Templo. Durante esse ser mão foram as saídas do Templo ocupadas
por soldados e os sacerdotes conferenciavam de vez em quando uns com os
outros.
Então vi Pedro e João, ao dirigirem-se ao Templo, passarem per to do
paralítico, que lhes pediu uma esmola. Estava deitado diante da por ta, todo
encolhido, apoiando-se sobre o cotovelo esquerdo e segurando com a direita
uma muleta, com a qual debalde procurava levantar-se um pouco. Pedro
disse-lhe: "Olha para nós!" E como ele o fizesse, disse Pedro: "Ouro e prata
não tenho, mas o que tenho, dou-te: Em nome de Jesus Cristo de Nazaré,
levanta-te e anda." E tomando-lhe a mão direita, levantou-o e João segurou-o
sob o braço. Então ficou o homem em pé, alegre e for te e vi-o curado,
saltando, com gritos de alegria e cor rendo pelo Templo.
Pedro e João, porém, foram ao átrio e num lugar onde o Menino Jesus
ensinara na idade de doze anos, subiu Pedro à cátedra. Muito povo da cidade
e numerosos forasteiros o rodearam; também o paralítico curado estava
neste círculo.
Pedro, porém, falou da cátedra ao povo:
"Homens israelitas! porque vos admirais disto ou porque pondes os olhos em
nós, como se por nossa vir tude ou poder tivéssemos feito andar este homem?
O Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus de nossos pais
glorificou seu Filho Jesus, a quem entregastes e negastes perante Pilatos,
julgando este que se Lhe devia dar a liberdade. Mas vós renegastes o Santo,
o Justo e pedistes que se vos desse um assassino. E assim matastes o autor
da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mor tos, do que somos testemu-
nhas. E pela fé em seu Nome foi que seu Nome curou a este, que vedes e
conheceis; e a fé que Ele nos comunicou, foi que lhe deu inteira saúde, à
vista de todos vós. Entretanto, ir mãos, sei que o fizestes por ignorância,
como também os vossos magistrados. Mas Deus cumpriu assim o que já
dantes anunciara, por boca de todos os profetas: que o Cristo padeceria.
Por tanto, ar rependei-vos e conver tei-vos, para que os vossos pecados vos
sejam perdoados; para que venham os tempos do refrigério diante do Senhor,
quando enviar o mesmo Jesus Cristo, sobre o qual vos foi pregado. Por ora
cer tamente é necessário que o céu O receba, até aos tempos da restauração
de todas as coisas, de que Deus falou, por boca dos santos profetas, desde o
princípio do mundo. Moisés, de fato, disse: "Porquanto o Senhor, vosso Deus,
vos suscitará um profeta dentre vossos ir mãos, semelhante a mim; a este
ouvireis em tudo o que vos disser. E isto acontecerá: Toda a alma que não
ouvir aquele profeta, será exter minada do meio do povo. E todos os profetas,
desde Samuel e quantos depois falaram, anunciaram estes dias. Vós sois os
filhos dos profetas e da aliança que Deus estabeleceu com nossos pais,
dizendo a Abraão: E na tua descendência serão abençoadas todas as
gerações da ter ra. Deus, ressuscitando seu Filho, vo-Lo enviou pri-
meiramente a vós, para que vos abençoasse; afim de que cada um se apar te
da maldade." (Atos 3,12 - 26).
"Então muitos daqueles que tinham ouvido a pregação, creram nela e chegou
o número destes a cinco mil pessoas." (Atos 4, 4.)
Tendo Pedro ensinado com grande entusiasmo até a meia noite, foi preso,
junto com João e o paralítico curado, pelos soldados do Templo e metido
num cárcere, no tribunal de Caifás.
No outro dia foram levados, com mur ros e pancadas, à sala do tribunal, onde
se tinham reunido Caifás e o Conselho Supremo.
E mandando-os apresentar, perguntavam-Ihes: "Com que poder e em nome de
quem fizestes isto?" Então Pedro, cheio do Espírito Santo, lhes respondeu:
"Príncipes do povo e vós, ánciãos, ouvi-me. Se hoje se nos pede razão do
benefício feito a um homem enfer mo, com que vir tude este foi curado, seja
notório a todos vós e a todo o povo de Israel, que em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo Nazareno, a quem crucificastes e a quem Deus ressuscitou dos
mor tos, é que este se acha curado, em pé diante de vós. Jesus Cristo é a
pedra que foi reprovada por vós, arquitetos e que se tor nou a pedra
fundamental; e não há salvação em nenhum outro, porque abaixo do Céu
nenhum outro nome foi dado aos homens, que possa salvar-nos.”
Ora, vendo a fir meza de Pedro e João e sabendo que eram homens ignorantes
e simples, admiravam-se e conheciam que eram aqueles que tinham estado
com Jesus. Vendo também em pé, ao lado deles, o homem que havia sido
curado, não podiam dizer nada em contrário. MandaramIhes, pois, que
saíssem para fora da sala do conselho e conferenciavam entre si, dizendo:
"Que faremos a estes homens? Porquanto fizeram, na verdade, um milagre,
notório a todos os habitantes de Jerusalém; é manifesto e não o podemos
negar. Todavia, para que não se divulgue mais entre o povo, ameacemo-los,
para que no futuro não falem mais a ninguém neste nome". E chamando-os.
Intimaram-nos a que absolutamente não falassem mai~, nem ensinassem no
nome de Jesus. Mas Pedro e João, respondendo-lhes, disseram: "Se é justo
diante de Deus ouvir antes a vós do que a Deus, julgai-o vós mesmos; porque
não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido." Então,
ameaçandoos, os deixaram ir livres, não achando pretexto para os castigar,
por medo do povo, porque todos celebravam o milagre que se fizera, no fato
que tinha acontecido". (Atos 4, 7-21).

2. Ensino no Templo. A primeira santa Missa e ordenação de sacerdotes

Pedro ensinou novamente, com grande poder, no Templo, onde também se


reuniram os outros Apóstolos e discípulos, confir mando as explicações de.
Pedro. Então se dirigiram, com os batizados e recém-conver tidos, em
procissão, dois a dois, ao Cenáculo, em Sião. Chegados aí, Pedro e João
conduziram a SS. Mãe de Jesus, que vestira as vestes festivas e rezara
ajoelhada diante do SS. Sacramento, à por ta do vestíbulo. Pedro fez uma
alocução aos recém-conver tidos, entregando-os à proteção de Maria, a Mãe
comum. Apresentou-lhos em grupos de vinte; a Virgem Santíssima, porém,
abençoou cada grupo, dirigindo-lhes algumas palavras.
Pedro celebrou então a santa missa no cenáculo. Vi fazer-se tudo como
Jesus fizera na instituição do SS. Sacramento: oferecer, depositar vinho no
cálice, lavar as mãos e consagrar. O vinho e a água foram depositados de
lados diferentes. Num lado do altar havia rolos da Escritura. Pedro, após ter
comungado, deu também o SS. Sacramento e cálice aos dois que ajudavam.
João deu a sagrada Comunhão também aos outros; Maria foi a primeira que a
recebeu, depois os Apóstolos e mais seis discípulos, que em seguida
receberam ordens e ainda muitos outros. Aqueles que comungavam, tinham
diante de si uma toalha, uma faixa comprida de pano, que dois seguravam
dos lados. Não vi, porém, que todos recebessem o cálice.
Os seis discípulos que então receberam as santas ordens, avançaram do
lugar dos discípulos para o dos Apóstolos, mais para o coro. Maria trouxe-
lhes as vestes, pondo-as sobre o altar. Eram: Zaqueu, Natanael, José
Bársabas, Bar nabas, João Marcos e Eliú, filho do velho Simeão. Ajoelhavam-
se dois a dois diante de Pedro, que lhes dirigia a palavra e rezava, lendo num
pequeno rolo da Escritura. João e Tiago tinham velas na mão; pousavam-lhes
a mão sobre os ombros e Pedro sobre a cabeça. Pedro cor tou-lhes o cabelo,
pondo-o sobre um prato no altar, ungiu-lhes a cabeça e as mãos com óleo de
um vaso que João segurava. Depois lhes puseram também as vestes e
estolas, que cruzavam em par te debaixo do braço, em par te sobre o peito.
No fim da solenidade Pedro abençoou a comunidade com o grande cálice da
última Ceia, no qual era conser vado o SS. Sacramento.”
Acabada a cerimônia, dirigiram-se todos à piscina de Betesda, onde os
recém-conver tidos, homens e mulheres, foram batizados.
Catharina Emmerich descreve em outro lugar a cerimônia da Missa:
"Pedra rezava diante do altar e dois Apóstolos ao lado lhe acompanhavam a
oração e os atos. Vi que levantou o pão e o vinho no cálice, oferecendo-os,
depois par tiu o pão em bocados, benzeu-os e pronunciou as palavras da
consagração sobre o pão e o vinho, depois do que começaram a luzir.
Quando elevou o pão e o cálice, oferecendo-os, vi aparecer uma mão
resplandecente por cima do altar, como saindo de uma nuvem; quando
benzeu e disse as palavras da consagração, moveu-se também essa mão,
benzendo; só desapareceu quando todos se afastaram. Não vi que Pedro o
notasse também.
Depois da consagração, Pedro tomou primeiro um bocado e encheu então o
vaso, que era tão largo, que muitos dos bocados ali cabiam, uns sobre os
outros. Então se aproximaram os Apóstolos que estavam presentes e
receberam na boca o SS. Sacramento, da mão de Pedro; depois vieram
também os outros assistentes, recebendo o SS. Sacramento, como da
primeira vez. Acabando os bocados no vaso, Pedro voltou ao altar, para
encher de novo com os que restavam no prato e continuou distribuindo a
Santa Comunhão.
Como na sala não cabiam todos e muitos ficavam fora, saíram os primeiros,
depois de terem recebido o Sacramento e os outros entraram. Os que
comungavam, não se ajoelhavam, mas inclinavam-se respeitosamente, ao
receber o SS. Sacramento. Tendo saído os últimos, entraram de novo os
primeiros. Quando Pedro consagrou o vinho, não rezou tanto tempo como da
primeira vez; vi-o falar sobre ele palavras que luziam. Depois bebeu e deu
também aos Apóstolos para beberem. Os Apóstolos ofereceram o cálice
ainda aos outros.”

3. Curas milagrosas pela sombra de Pedro. Encarceramento dos Apóstolos

Pedro foi ao Templo, com João e os outros sete Apóstolos que ficaram em
Jerusalém. "Já no caminho fora da cidade, no vale de Josafá, havia muitos
enfer mos, deitados em redor do Templo, no átrio dos gentios e até na
escadaria do Templo. Vi que era principalmente Pedro que curava; os outros
curavam também, é verdade, mas era mais para auxiliar a Pedro. Este curava
só aqueles que acreditavam em Jesus e se queriam unir à comunidade dos
cristãos. Onde havia uma dupla fila de doentes, vi a sombra de Pedro cair
sobre a segunda fila, enquanto curava e os enfer mos saravam pela vontade
dele. A muitos se negou a curar. Ensinou também no Templo, defronte do
altar dos holocaustos, à direita e também num lugar elevado, com degraus,
na sala lateral, à esquerda de quem entrava no Templo. Ninguém os
estor vava; o povo era-lhes muito dedicado.”
Os Atos dos Apóstolos, cap. 5, continuam a nar ração:
Assim, pois, concor riam multidões de homens das cidades vizinhas de
Jerusalém, trazendo os enfer mos e os cativos de espíritos imundos, os quais
eram todos curados. Mas, levantando-se o príncipe dos sacerdotes e todos os
que com ele estavam (a seita dos saduceus), encheram-se de inveja e de
ciúme e fizeram prender os Apóstolos e metê-los na cadeia pública. Mas o
Anjo do Senhor, abrindo de noite as por tas do cárcere e tirando-os para fora,
disselhes: "Ide e apresentai-vos no Templo, pregai ao povo todas as palavras
de vida." Tendo ouvido isto, entraram ao amanhecer no Templo e se puseram
a ensinar. Mas, chegando o príncipe dos sacerdotes e os que com ele
estavam, convocaram o conselho e todos os anciãos dos filhos de Israel e
mandaram buscar os Apóstolos no cárcere. Mas tendo lá ido os agentes e
como, aber to o cárcere, não os achassem, voltaram e deram a notícia:
"Achamos o cárcere fechado com toda a diligência e os guardas diante das
por tas; mas, abrindo-as, não achamos ninguém dentro." Quando, porém,
ouviram esta novidade, o magistrado do Templo e os príncipes dos
sacerdotes ficaram per plexos sobre o que teria sido feito deles. Mas ao
mesmo tempo chegou alguém, que Ihes deu esta notícia: "Olhai que aqueles
homens que metestes no cárcere, estão no Templo, ensinando o povo." Então
foi o magistrado com os agentes e trouxe-os sem violência, porque temia ser
apedrejado pelo povo. E logo que os trouxeram, apresentaram-nos ao
conselho e o príncipe dos sacerdotes fez-Ihes a seguinte pergunta: "Não vos
ordenamos, com expresso preceito, que não ensinásseis neste nome? E não
obstante, tendes enchido Jer usalém da vossa doutrina; e quereis lançar
sobre nós o sangue desse homem." Mas Pedro e os Apóstolos, respondendo,
disseram: "Impor ta mais obedecer a Deus do que aos homens. O Deus dos
nossos pais ressuscitou Jesus, a quem destes a mor te, pendurando-O num
madeiro. A Este elevou Deus com sua destra, como príncipe e como Salvador,
para dar a contrição a Israel e a remissão dos pecados. E somos
testemunhas destas palavras e também o Espírito Santo, que Deus deu a
todos os que lhe obedecem." Quando isto ouviram, enraiveceram-se e
planejaram matá-Ios. Mas, levantando-se no conselho um fariseu, por nome
Gamaliel, doutor da lei, homem de respeito em todo o povo, mandou que
saíssem para fora aqueles homens, por um breve espaço de tempo. E disse:
"Homens israelitas, refleti bem no que haveis de fazer acerca destes
homens. Porque, em tempos passados, se levantou um cer to Teodas, que
dizia ser um grande homem, a quem aderiu o número de quatrocentos
homens; o qual foi mor to e todos que nele acreditavam foram desfeitos e
reduzidos a nada. Depois deste se levantou Judas Galileu, nos dias em que
se fazia o ar rolamento do povo e levou-o após si, mas pereceu e foram
dispersos todos quantos se lhe acostaram. Agora, pois, vos digo: não vos
metais com estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra
vem dos homens, há de desvanecer-se; se, porém, vem de Deus, não podereis
desfazê-Ia, para que não pareça que resistis até a Deus." Seguiram-lhe o
conselho e, tendo chamado os Apóstolos, depois de os haverem feito açoitar,
mandaram-Ihes que não falassem mais no nome de Jesus e soltaram-nos. Os
Apóstolos, porém, saíram da presença do conselho verdadeiramente
contentes, por terem sido achado dignos de sofrer afrontas pelo nome de
Jesus. E todos os dias não cessavam de ensinar e de pregar Jesus Cristo, no
Templo e pelas casas." (Atos 5)

4. Comunhão de bens. Crescimento da comunidade

Dos primeiros cristãos diz a Escritura Sagrada a bela palavra: "da multidão
dos que criam, o coração era um e a alma uma; e nenhum dizia per tencer-lhe
coisa alguma das que possuía, mas tudo entre eles era comum." (Atos 4,32.)
Já depois do ágape, no domingo da Páscoa, os Apóstolos e discípulos
propuseram esta resolução. Os recém-conver tidos concordaram com a
proposta.
"Pedro ensinava que nenhum devia possuir mais do que o outro, que deviam
repar tir tudo e cuidar dos pobres que se reuniam à comunidade. Vi que no
pátio do Cenáculo matavam rezes, trinchavam ovelhas e cabras, distribuindo
tudo aos necessitados. As peles eram entregues a um homem, para as
preparar. Os pobres recebiam também cober tores, pano de lã para roupa e
pão. Tudo era distribuído. Reinava sempre boa ordem na distribuição; as
mulheres recebiam sua par te da mão de mulheres e os homens da mão de
homens.”
Aos recém-conver tidos foram destinadas também as casas de Mar ta e
Madalena; Lázaro distribuiu toda a for tuna pela comunidade. Do mesmo modo
entregou Bar nabas todo o dinheiro recebido pela venda de seus bens, na ilha
de Chipre.
Juntou-se-Ihes também um judeu rico, de nome Ananias, com a mulher,
Safira, moradores da Betânia. Ananias trouxe panos, ovelhas e jumentos,
donativos para a comunidade e pediu o batismo. Antes de ser admitido,
trouxe ainda o produto da venda de um campo; mas, com o consentimento da
mulher, guardara par te do dinheiro para si. Quando, porém, veio pôr o
dinheiro aos pés de Pedro, na presença dos Apóstolos e de todos os recém-
conver tidos, repreendeu-o este por causa da mentira e logo caiu Ananias
mor to. A mesma sor te teve também Safira.
Esse acontecimento é nar rado mais extensamente nos Atos dos Apóstolos,
cap. 5:
"Um varão, pois, por nome Ananias, com a mulher, Safira, vendeu um campo e
com fraude usur pou cer ta porção do preço do campo, com consentimento da
mulher ; e levando uma par te, depositou aos pés dos Apóstolos. E disse
Pedro: "Ananias, porque tentou Satanás o teu coração para que mentisses ao
Espírito Santo e reser vasses par te do preço do campo? Por ventura não te
era livre ficar com ele e ainda depois de vendido, não era teu o preço? Como
assentaste, pois, em teu coração fazer tal? Sabe que não mentiste aos
homens, mas a Deus." Ananias, porém, ouvindo estas palavras, caiu e
expirou. E infundiu-se um grande temor em todos os que o ouviram.
Levantando-se então uns mancebos, car regaram-no e levando-o dali para
fora, enter raram-no.
E passado que foi o espaço de três horas, entrou também a mulher, não
sabendo o que tinha acontecido. E Pedro disse-lhe: "Dize-me, mulher, se
vendeste por tanto a herdade?" e ela disse: "Sim, por tanto." Pedro então lhe
disse: "Porque assim combinastes, para tentar o Espírito do Senhor? Eis aí
estão à por ta os pés daqueles que enter raram teu marido e te levarão a ti."
No mesmo instante lhe caiu Safira aos pés e expirou e os moços, entrando,
acharam-na mor ta e levando-a, enter raram-na junto do marido. E difundiu-se
um grande temor por toda a Igreja e entre todos os que ouviram nar rar este
acontecimento.
Os cômodos da casa per to da piscina da Betesda, daí há pouco, não
bastavam mais para a multidão dos recém-conver tidos. Os Apóstolos
entraram, pois, em negociações com os magistrados judeus, para conseguir
outros ter renos para habitações. Foram-Ihes indicados três ter renos
apropriados, per to de Betânia. O povo mudou para lá e puseram tendas leves
em redor de uma tenda maior, na qual morava um discípulo e se guardavam
as provisões comuns. Assim se for maram três comunidades novas de fiéis.
Os Apóstolos, porém, procuravam também os velhos amigos, que moravam
em lugares mais afastados, para lhes infor mar sobre os acontecimentos após
a última Páscoa, para lhes ensinar e os batizar. Assim mandou Pedro a Tomé,
Filipe e Matias, cada um com mais um discípulo, a Samaria, Tebez e Tibérias.
Mas também Pedro e os outros Apóstolos se espalharam por toda a Judéia;
apenas Tiago o Menor, com alguns discípulos, ficou em Jerusalém e na Igreja
de Betesda.

5. Eleição dos sete diáconos. Queixas por causa da distribuição das esmolas

Nesse tempo se ouviram queixas das viúvas e dos órfãos sobre a distribuição
das esmolas. Reuniram-se por isso novamente todos os Apóstolos no
CenáciIlo, em volta de Pedro, a quem todos se submetiam e que lhes deu a
santa Comunhão. Depois o conduziram, vestido do or nato episcopal, ao
vestíbulo da casa, onde dirigiu a palavra aos numerosos discípulos e recém-
conver tidos, para promulgar ordens a respeito da distribuição das esmolas.
"Entre outras coisas, ouvi dizer que não era conveniente abandonar a
pregação da palavra de Deus, para cuidar de alimentos e roupa. Assim, por
exemplo, não convinha mais que Lázaro, Nicodemos e José de Arimatéia
administrassem, como até então, os bens ter restres da comunidade, por se
terem tor nado sacerdotes. Depois falou ainda sobre a ordem na distribuição
das esmolas, sobre a administração das casas, dos órfãos e das viúvas.
Então se apresentou Estêvão, um belo moço, esbelto, oferecendo-se para
esse ser viço. Entre os outros reconheci também a Par menas, que era um dos
mais velhos. Mas havia entre eles também mouros, que eram ainda muito
moços e não tinham recebido o Espírito Santo. Pedro impôs as mãos a todos,
cruzando-Ihes a estola do lado, sob o braço; sobre aqueles que ainda não
tinham recebido o Espírito Santo, se der ramou então uma luz.”
A esses sete diáconos foram então entregues os bens e as provisões da
comunidade. José de Arimatéia, porém, cedeu-lhes a sua casa. Faziam
distribuir as esmolas em três lugares: diante do Cenáculo, em Betânia e na
praça da estalagem, no caminho de Belém. Nesse último lugar se levantaram
de novo queixas, mas os queixosos não tinham tanta razão. Por isso enviaram
Estêvão e os outros diáconos mensageiros aos Apóstolos que, depois de
nomear os diáconos, se tinham espalhado por todo o país.
Pedro voltou, com André, da região de Jope a Jerusalém, Tomé, com Felipe,
da Samaria; compareceram também outros Apóstolos, para terminar essa
questão. Mas antes de chegarem, os descontentes já se tinham dirigido, com
a queixa, ao conselho dos sacerdotes em Jerusalém, por inter médio de Saulo
e Gamaliel e Estêvão foi citado perante o conselho. Mas este, acusado e
inter rogado por muitos fariseus e judeus excitados, se defendeu tão bem e
com tanta seriedade, que foi absolvido.)
Tendo, porém, Pedro se reunido no Cenáculo com os outros Apóstolos,
mandou chamar os queixosos à sua presença e resolveu tudo, fazendo
separar muitos da comunidade e acomodar em outras casas.

6. As obras do diácono S. Felipe

Apesar dos Samaritanos não terem comunhão com os judeus, não deviam
ficar privados do Evangelho, como também os gentios, pois já o Salvador
ensinara muitas vezes nas regiões de Samaria, depois de ter tido aquela
piedosa conversação com a mulher samaritana, no poço de Jacó.
Entre os sete primeiros diáconos se achava também Felipe que, depois de
Estêvão, era o mais respeitado. Felipe dirigiu-se à Samaria e pregou ali o
Evangelho do Cristo.
"E o povo estava atento ao que Felipe lhe dizia, escutando-o com o mesmo
ardor e vendo os prodígios que fazia, porque os espíritos imundos saiam de
muitas pessoas, dando grandes gritos e muitos paralíticos e coxos eram
curados; pelo que se originou uma grande alegria naquela cidade. Havia lá,
porém, um homem, por nome Simão, o qual antes tinha ali exercido a magia,
enganando o povo Samaritano, dizendo que era um grande homem, a quem
todos davam ouvidos, desde o maior até o menor, dizendo: Este é a vir tude
magna de Deus. E obedeciam-lhe, porque, com as ar tes mágicas, por muito
tempo Ihes havia per turbado o espírito. Mas depois que creram o que Felipe
Ihes anunciava do reino de Deus, foram-se batizando homens e mulheres, em
nome de Jesus. Então creu também o mesmo Simão e depois que foi
batizado, ligou-se a Felipe. Vendo os prodígios e grandíssimos milagres que
se faziam, todo cheio de pasmo se admirava. Os Apóstolos, porém, que se
achavam em Jer usalém, tendo ouvido que Samaria recebera a palavra de
Deus, mandaram lá Pedro e João, os quais, quando chegaram, fizeram oração
pelos Samaritanos, afim de receberem o Espírito Santo, que ainda não tinha
descido sobre nenhum dos recém-conver tidos, mas tinham sido apenas
batizados em nome do Senhor Jesus. Então Ihes impunham as mãos e
recebiam o Espírito Santo. E quando Simão viu que se dava o Espírito Santo
por meio da imposição da mão dos Apóstolos, ofereceu-Ihes dinheiro,
dizendo: "Dai-me também este poder, de que qualquer a quem eu impuser as
mãos, receba o Espírito Santo." Mas Pedro disse-lhe: "O teu dinheiro pereça
contigo; uma vez que te persuadiste de que o dom de Deus se pode adquirir
com dinheiro, não tens par te nem herança alguma neste ministério; porque o
teu coração não é reto diante de Deus. Faze, pois, penitência desta tua
maldade e roga a Deus que, se é possível, te seja perdoado este pensamento
do teu coração; porque vejo que estás num fel de amargura e preso nos laços
da iniqüidade". E respondendo Simão, disse: "Roga por mim ao Senhor, para
que não me suceda nada do que disseste". Depois de terem dado este
testemunho e anunciado a palavra do Senhor, voltaram para Jerusalém e
pregaram em muitos lugares da Samaria. E o Anjo do Senhor disse a Felipe:
"Levanta-te e dirige-te para o sul, ao caminho que vai de Jerusalém a Gaza, o
qual se acha deser to." E, levantando-se, par tiu. E eis que um homem etíope,
eunuco, ser vo de Candace, rainha da Etiópia, de cujos tesouros era
superintendente, tinha vindo a Jerusalém para fazer oração e voltava,
sentado na sua car ruagem, lendo o profeta Isaías. Então disse o Espírito a
Felipe: "Vai e aproxima-te deste car ro". E cor rendo logo Felipe, ouviu que o
eunuco lia o profeta Isaías e disse-lhe: "Compreendes por ventura o que estás
lendo?" o etíope respondeu-lhe: "Como o poderei entender, se não houver
alguém que mo explique?" E rogou a Felipe que subisse e se lhe sentasse ao
lado. Ora a passagem da Escritura que lia, era esta: "Como ovelha foi levado
ao matadouro e como cordeiro mudo diante de quem o tosquia, assim ele não
abriu a boca. Na sua humilhação foi abolido o Julgamento. Quem poderá
contar-lhe a geração, pois que sua vida será tirada da ter ra?" E respondendo
o eunuco a Felipe, disse: "Rogo-te que me digas de quem disse isto o profeta:
de si mesmo ou de algum outro?" E abrindo Felipe a boca e principiando por
esse trecho da Escritura, anunciou-lhe Jesus. E continuando o caminho,
chegaram a um lugar onde havia água e disse o eunuco: "Eis aqui água; o que
impede que eu seja batizado?" E respondeu-lhe Felipe: "Se crês de todo o
coração, podes". E respondendo, disse o etíope: "Creio que Jesus Cristo é o
Filho de Deus". E mandou parar o car ro e descerem os dois para a margem do
rio, onde Felipe o batizou. E tanto que saíram da água, ar rebatou o Espírito
do Senhor a Felipe e o eunuco não mais o viu; continuou, porém, o caminho,
cheio de prazer. Mas Felipe achou-se em Azot e passando além, pregava o
Evangelho em todas as cidades, até que veio a Cesaréia". (Atos 8, 6 - 40).

7. Perseguições

Era inevitável que os fiéis fossem cada vez mais perseguidos pelo ódio dos
judeus. Pedro dissera-lhes aber tamente que assim se devia mostrar quem
possuía o Espírito Santo enviado por Jesus; começara o tempo de agir e
sofrer perseguição.
Mas para que não se levantasse logo uma perseguição violenta contra os
recém-conver tidos, os Apóstolos julgavam prudente afastaremse de vez em
quando das vizinhanças de Jerusalém. A primeira vez foram todos para a
respectiva ter ra natal. A segunda vez, depois da eleição dos diáconos,
mudaram de lugar. Desta vez se encaminhou Tomé para a Samaria, Zaqueu
para Bedar, João para Éfeso, na Ásia Menor, Pedro, porém, com Silvano, para
a região de Jope.
"Pedro fazia mais milagres do que todos os outros, diz Catharina Emmerich.
Expulsava demônios e ressuscitava mor tos; vi até que um Anjo o precedia,
mandando o povo fazer penitência e pedir socor ro a Pedro. O centurião
Comélio também já ouvira falar nele, mas naquele tempo não se conver tera
ainda. Antes de Estêvão ser apedrejado, todos os Apóstolos mais uma vez se
reuniram em Jerusalém e depois de se dispersarem de novo, Pedro voltou a
Jope e então se efetuou a conversão de Cor nélio.
Maria e todas as santas mulheres, inclusive Verônica, estavam em Betânia.
Também vi Saulo em Jerusalém, já muito ativo. Dirigia todo o ódio dos
judeus. Vi-o percor rer a cidade e agitar o povo, com incrível ódio, convencido
de ter o direito ao seu lado. Conhecia muitos discípulos, procurava-os de
propósito e discutia com eles. Também se esforçava por per turbar e destruir
a nova colônia dos cristãos. Incitava também o ódio dos saduceus e ficou
furioso ao ouvir nar rar que Simão Mago, em Samaria, se conver tera. Este,
porém, apostatou e juntou-se em Jer usalém a Saulo, cujo ódio crescia cada
vez mais. Saulo pediu aos sacerdotes judeus car tas, com poderes especiais e
ia a muitos lugares, para perseguir os cristãos".
Depois de Pedro e os Apóstolos haverem resolvido a questão havida em
Jerusalém, todos se retiraram novamente para regiões onde os judeus não
lhes podiam fazer mal. Pedro dirigiu-se novamente a Jope e ar redores.
Durante a estadia em Lídia, mor reu em Jope uma piedosa mulher cristã, de
nome Tabita. Então enviaram os discípulos alguns mensageiros a Jope, para
chamar Pedro. Quando este chegou à casa da mor ta, aproximou-se do
cadáver e disse: "Tabita, levanta-te." Então abriu a mor ta os olhos e
levantou-se do féretro, com espanto de todos que estavam presentes.
"Simão Mago está na cidade, juntamente com Saulo, incitando todos contra a
comunidade cristã. Os fiéis estão em grande aflição. Muitos dos Apóstolos
estão longe, mas os fiéis mandaram chamálos. Os judeus destroem as casas
dos cristãos, até nos lugares que eles mesmos lhes tinham destinado. Os
cristãos que moram na estrada de Belém, estão saindo para Salém, onde
João batizava. Ali estão construindo cabanas e uma capela; têm consigo um
sacerdote e também o SS. Sacramento, numa cápsula.
Ser viu de pretexto à perseguição o fato de Pedro, viajando de Samaria a
Jope, batizar no caminho muita gente, inclusive cer to homem, cuja
conversão provocou grande discussão em Jerusalém. Estêvão defendeu essa
causa com tanta fir meza, que o prenderam. A comunidade aflita mandou
chamar Pedro e os outros Apóstolos.

8. Estêvão é inter rogado e apedrejado

A perseguição mencionada não se dirigia tanto contra os Apóstolos, mas


contra os recém-conver tidos, que fOflnavam comunidade em redor de
Jerusalém. Estêvão era um dos que gover navam essas comunidades. Era,
como diz a Escritura, cheio de graça e for taleza e fazia grandes prodígios e
milagres entre o povo.
Alguns da sinagoga se levantaram a disputar com Estêvão, mas não podiam
resistir à sabedoria e ao Espírito que nele falava. Então subor naram alguns
homens, que agitaram o povo. Levaram-no ao conselho e apresentaram falsas
testemunhas, que disseram: "Este homem não cessa de proferir palavras
contra o lugar santo e contra a lei." (Atos 6, 8-13). Ele, porém, disse:
"Ir mãos e pais, escutai. O Altíssimo não habita em edifícios construídos por
mãos de homens, como diz o profeta: "O céu é o meu trono e a ter ra o
escabelo dos meus pés. Que casa me edificareis?" diz o Senhor, "ou qual é o
lugar do meu repouso? Não fez por ventura a minha mão todas estas coisas?"
Homens de dura cer viz e de corações e ouvidos incircuncisos, vós sempre
resistis ao Espírito Santo; assim como agiram vossos pais, assim o fazeis
também! A qual dos profetas não perseguiram vossos pais? E mataram até os
que anunciavam a vinda do Justo, do qual agora fostes traidores e
homicidas, vós que recebestes a lei por ministério dos Anjos e não a
guardastes." Ao ouvir, porém, tais palavras, enraiveceu-se-lhes o coração e
rangiam os dentes contra Estêvão. Mas como estava cheio do Espírito Santo,
olhando para o céu, viu a glória de Deus e Jesus à destra de Deus. E disse:
"Eis que estou vendo os céus aber tos e o Filho do Homem à direita de Deus."
Então, levantando uma grande gritaria, taparam os ouvidos e, todos
juntos, ar remeteram com fúria contra o santo diácono e, tendo-o lançado
para fora da cidade, apedrejaram-no; e as testemunhas depuseram os mantos
aos pés de um moço, que se chamava Saulo. E apedrejaram Estêvão, que
invocava Jesus e dizia: "Senhor Jesus, recebei o meu espírito." E pondo-se
de joelhos, clamou em alta voz, dizendo: "Senhor, não lhes imputeis este
pecado." E tendo dito isto, ador meceu no Senhor. E Saulo consentiu no
homicídio de Estêvão." (Atos 7, 48-60)
Estêvão sofreu o mar tírio mais ou menos um ano depois da crucificação de
Cristo. A piedosa Emmerich nar ra o seguinte:
"Vi Estêvão, sem se lembrar do apedrejamento, rezando apenas pelos
car rascos e olhando para o céu aber to. O mar tírio deu-se fora da por ta, ao
nor te, ao lado de uma estrada. Era um lugar aber to, circular, em cujo centro
se achava uma pedra, sobre a qual se ajoelhou o santo moço, rezando, com
as mãos ergui das. Vestia uma longa veste branca, ar regaçada, sobre a qual
pendia, no peito e nas costas, uma espécie de escapulário, com duas fitas
transversais; creio que era uma par te das vestes sacerdotais. Procederam no
apedrejamento em cer ta ordem; em volta do lugar haviam juntado pedras, ao
pé de cada um dos apedrejadores. Vi também Saulo, homem
extraordinariamente sério e zeloso, que ar ranjara tudo o que era necessário
para a lapidação e os lapidantes depositaram os mantos aos seus pés.
Estêvão levantara as mãos, rezando e não se movia, sob as pedradas; era
como se não as sentisse. Também não fazia movimentos espontâneos para se
proteger ; parecia extasiado, olhava para o alto e o céu estava aber to acima
dele; via Jesus e com Ele, Maria, sua Mãe. Finalmente uma pedra lhe bateu
na cabeça, prostrando-o mor to. Era um moço alto e belo, de cabelo castanho
e liso.
Saulo não causava uma impressão repugnante, pelo grande zelo com que
preparara a lapidação, como acontecia com os outros, que eram cheios de
inveja e hipocrisia; pois o fazia impelido por um falso zelo, mas que julgava
justo, pela lei judaica; foi por isso também que Deus o iluminou.”
Os ossos do santo már tir Estêvão foram mais tarde milagrosamente
encontrados, em conseqüência de uma Visão, junto com os cor pos de
Nicodemos, Gamaliel e seu filho Abidon.
"O cor po de Estêvão, que jazia numa posição natural, foi levado a Jerusalém,
a uma Igreja situada no monte em que estivera o Cenáculo. Esses ossos
foram depois várias vezes distribuídos e levados a vários lugares e muitos
milagres se deram com eles. Lembro-me que uma cega tocou o caixão das
relíquias com flores, por meio das quais recobrou de novo a vista. Em outro
lugar se conver teram muitos judeus. Em cer ta região o demônio, assumindo a
for ma de um homem muito respeitável, pediu uma par te das relíquias de S.
Estêvão, mas quando o bispo pediu a luz de Deus, para saber se o suplicante
o merecia, fugiu o demônio, r ugindo e tomando um aspecto hor rível. De tais
milagres vi muitos e também que par te das relíquias foram levadas para
Roma e depositadas junto ao cor po de S. Lourenço. Deu-se então um fato
milagroso: O cor po de S. Lourenço mudou de posição, cedendo lugar às
relíquias de Santo Estêvão.”
Com a mor te de Estêvão a perseguição não ter minou absolutamente, pois S.
Lucas acrescenta à nar ração do apedrejamento de S. Estêvão estas
palavras:
"Saulo, porém, assolava a Igreja, entrando pelas casas e tirando com
violência homens e mulheres, fazia com que os metessem no cárcere.
Entretanto os que se tinham dispersado, iam de um lugar para outro,
anunciando a palavra de Deus." (Atos 8, 3-4).
Assim ser via essa perseguição ao plano de Deus, não só para provar e
purificar os eleitos, mas também para propagar a doutrina de Jesus em
outras regiões e aumentar o número de fiéis.

9. A conversão de SauIo

Um acontecimento sumamente impor tante para ajovem Igreja cristã foi a


conversão de um homem, que até então tinha sido aber tamente inimigo e se
propusera a destruí-Ia, mas que mais tarde se tor nou um dos seus mais
árduos defensores e com a pregação e o seu sangue confirmou a fé no Filho
de Deus crucificado.
Depois de ter visto Estêvão expirar. sob as pedradas dos judeus,
encaminhou-se para Damasco, com o fim de trazer presos para Jer usalém
todos os par tidários de Jesus que encontrasse.
"Seguia pelo caminho, conta a Escritura Sagrada, aproximando-se de
Damasco, quando subitamente o cercou uma luz vinda do céu e caindo por
ter ra, ouviu uma voz que lhe dizia: "Saulo, Saulo, porque me persegues?" Ele
replicou: "Senhor, quem és?" E respondeu-lhe a voz: "Eu sou Jesus, a quem
persegues. Duro te é recaIcitrar contra o aguilhão." Então, tremendo e
atônito, disse: "Senhor, que queres que eu faça?" O Senhor respondeu-lhe:
"Levanta-te e entra na cidade e aí se te dirá o que te "cumpre fazer." Os
homens que o acompanhavam, estavam espantados, !ouvindo a voz, mas sem
ver ninguém. Levantou-se, pois, Saulo do solo e tendo os olhos aber tos, nada
via. Os companheiros, porém, conduzin do-o pela mão, levaram-no a
Damasco, onde esteve três dias sem ver e não comeu nem bebeu. Ora, em
Damasco havia um discípulo, de nome Ananias e o Senhor, numa visão, lhe
disse: "Ananias." E ele acudiu, dizendo: "Eis-me aqui, Senhor!" E o Senhor
tor nou-lhe: "Levanta-te e vai à rua que se chama Direita e procura em casa
de Judas um homem chamado Saulo de Tarso, porque eis que está rezando."
E Saulo viu também um homem, por nome Ananias, que entrou e lhe impôs as
mãos, para que recebesse a vista.
Respondeu, pois, Ananias: "Senhor, tenho ouvido muitos falarem a respeito
deste homem, quanto mal fez aos teus santos em Jer usalém; e ele tem poder
dos príncipes dos sacerdotes para prender todos que invocam teu nome."
Mas o Senhor disse-lhe: "Vai porque este é para mim um vaso escolhido, para
levar meu nome perante os gentios e os reis e os filhos de Israel. Porque eu
lhe mostrarei quanto lhe cumpre sofrer pelo meu nome." E Ananias foi e
entrou na casa e impondo-lhe as mãos, disse: "Saulo, ir mão, o Senhor Jesus,
que te apareceu no caminho por onde vinhas, enviou-me, para que recobres a
vista e fiques cheio do Espírito Santo." E no mesmo instante lhe caíram dos
olhos umas escamas, e assim recuperou a vista; e levantando-se, foi
batizado. E depois que tomou alimento, recobrou as forças. Alguns dias
esteve então com os discípulos que se achavam em Damasco e logo começou
a pregar nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. E pasmavam todos que o
ouviam e diziam: "Pois não era este quem perseguia em Jerusalém os que
invocavam este nome e que veio prendê-Ios, para os levar aos príncipes dos
sacerdotes?" Saulo, porém, esforçava-se cada vez mais e confundia os
judeus que habitavam em Damasco, afir mando que Jesus é o Cristo.
E passados muitos dias, os Judeus se reuniram em conselho, resolvendo
matá-lo. Saulo, porém, foi adver tido das ciladas. Guardavam-lhe as por tas dia
e noite, para o eliminar. Os discípulos, porém, tomando-o de noite, desceram-
no pela muralha, metido numa cesta. Tendo chegado a Jerusalém, procurava
Saulo reunir-se aos discípulos, mas todos o temiam, não crendo que fosse
discípulo. Então Bar nabé, levando-o consigo, o apresentou aos Apóstolos e
contou-Ihes como tinha visto o Senhor no caminho e lhe tinha falado e como
depois em Damasco agira com toda franqueza em nome de Jesus. E Saulo
estava com eles em Jerusalém, entrando e saindo e falando corajoso em
nome do Senhor. Falava também com os gentios e disputava com os gregos,
mas tratavam de matá-lo. Sabendo disto, os ir mãos acompanharam-no até
Cesaréia e enviaram-no a Tarso. Estava então em paz a Igreja por toda a
Judéia, Galiléia e Samaria e se estabelecia, caminhando no temor de Deus e
estava cheia do Espírito Santo." (Atos 9, 3-31).
Anna Catharina dá do santo Apóstolo Paulo esta descrição:
"Paulo não era alto, mas baixo e robusto. Tinha uma alma for te, procurando a
justiça, mas sem obstinação nem orgulho. Depois da conversão era humilde e
amável, mas era dotado de muita seriedade, perseverança e fir meza.”

10. Herodes manda decapitar Tiago o Maior e lançar Pedro no cárcere

No quinto ano depois da mor te de Jesus Cristo se levantou nova perseguição


contra a comunidade; por isso levou João a SS. Virgem para a região do
Éfeso, onde já se for mara nova comunidade de cristãos. Em Éfeso a visitou
Tiago o Maior, ao voltar da Espanha para Jer usalém. Chegando ali, trabalhou
e pregou ainda algum tempo, depois foi preso e condenado à mor te por
Herodes.
"Tiago foi conduzido para fora da cidade, em direção ao Monte Calvário,
conta a ser va de Deus, e no caminho continuava pregando e ensinando,
conver tendo ainda muitos. Quando lhe ataram as mãos, disse: Podeis
amar rar-me as mãos, mas não a bênção e a língua." Um paralítico estava
sentado à beira do caminho e dirigindo-se a Tiago, pediu que lhe desse a mão
e o curasse. Tiago respondeu: "Vem a mim e dá-me a mão." O paralítico
levantou-se, tomou as mãos amar radas do Santo Apóstolo e foi curado. Vi
também o homem que o atraiçoou, chamado Josias, cor rendo para ele,
ar rependido, pedindo-lhe perdão. Confessou a fé em Cristo e foi também
executado. Tiago perguntou-lhe se queria receber o batismo e como
afir masse que sim, abraçou-o o Apóstolo e, beijando-o, disse: "Serás
batizado no teu sangue." Vi ainda uma mulher, que cor reu com o filho cego
para junto de Tiago, no lugar do suplício, pedindo e alcançando-lhe a vista.
Tiago e Josias foram primeiro colocados juntos num lugar elevado, sendo-
Ihes proclamado em alta voz o "crime" e a sentença de mor te. Depois se
sentou Tiago numa pedra, à qual lhe foram atadas as mãos; vendaram-lhe os
olhos e assim o decapitaram. No entanto tinham também encer rado Tiago o
Menor na própria casa; além dele, estavam em Jerusalém Mateus, Natanael,
Cased e Natanael, o noivo de Caná. Mateus morava em Betânia. A casa de
Lázaro e todas as suas propriedades na Judéia estavam, havia muito tempo,
na posse da comunidade cristã; o palácio na cidade, porém, tomaram-lhe os
Judeus. Durante o suplício de Tiago o Maior, se levantou um grande tumulto
e muitos se conver teram.”
Para agradar aos judeus, Herodes fez também prender Pedro e lançá-lo no
cárcere, com intenção de apresentá-Io ao povo depois da Páscoa. Entretanto
a Igreja orava a Deus por ele sem cessar. Mas quando Herodes estava para o
apresentar, nessa mesma noite, Pedro foi posto em liberdade por um Anjo.
"Vi Pedro dor mindo, num cárcere bastante vasto, entre dois soldados, que
estavam deitados a uma cer ta distância e também dor mindo. Jazia num lado
per to da parede; tinha os pés encer rados num cepo, ambos os braços, porém,
estavam amar rados aos guardas, que dor miam à direita e à esquerda. Vi
aparecer do alto um esplendor e nele um Anjo, que tocou em Pedro, que
acordou; as cadeias soltaram-se-Ihe, à direita e à esquerda, das mãos;
caíram sem barulho e sem movimento de sua par te e estavam ainda da
mesma for ma que tinham dantes, quando lhe atavam as mãos. O Anjo disse-
lhe uma coisa, então tirou Pedro os pés do cepo, sem abrí-Io, pós as
sandálias, que ainda estavam ligadas às per nas, e levantando-se, cingiu a
túnica larga, vestiu o manto com que se tinha cober to e seguiu o Anjo, que
passou diante dele pela por ta, sem que essa se abrisse; era como se lhe
passassem através. Por fim chegaram a um grande por tão de fer ro, o qual se
abriu. Vi em tudo isso que havia luz só no espaço onde passavam. Entraram
então numa rua; lá desapareceu o Anjo e vi que Pedro estava muito
espantado. Até então tinha pensado que sonhava; só agora notara que estava
em liberdade. Passou por uma por ta e atravessando um riacho, veio a um
lugar que parecia fora da cidade; mas não posso dizê-Io com cer teza, pois
Jerusalém era muito dividida por colinas; afinal vi que a casa da mãe de
João Marcos não estava na própria cidade, mas isolada e fora de uma por ta.
Vi, porém, nessa casa muitos discípulos e fiéis, reunidos numa sala, rezando,
à luz de um candeeiro. Conser vavam-se muito quietos e silenciosos, cobrindo
as janelas com panos, para que a luz não fosse vista. Vi que Pedro batia na
por ta do átrio e que uma criada estava escutando por dentro. Quando Pedro
pediu que abrisse a por ta, cor reu ela apressadamente à sala, anunciando-o
alegremente aos outros, mas esses não queriam acreditar ; vi, porém, que
Pedro continuava batendo e que alguns saíram para abrir ; Pedro entrou e
eles o abraçaram, felizes e contentes. Mas não se demorou muito; fez-Ihes
um sinal para ficarem quietos, contou umas coisas e saiu da casa.
O castigo de Deus caiu pouco depois sobre Herodes. Numa festa se lhe
ar rebentou o ventre, num teatro, diante de todo o povo. Levaram-no a uma
grande sala, onde estava o trono e onde cabiam cerca de 500 pessoas.
Estava como doido de raiva e dor e tão asqueroso, que não o posso
descrever. Ocultaram sua mor te por algum tempo.”

11. Outras provações da Igreja de Jer usalém

Tiago o Menor gover nava como bispo a Igreja de Jerusalém, para a qual,
segundo uma velha tradição, fora eleito pelo próprio Salvador. Foi o único
que ficou na cidade, pois os outros par tiram para ter ras longínquas a fim de
pregar o reino de Deus. Nasireu por causa de suas vir tudes e piedade era
muito estimado, não só entre os Apóstolos e discípulos, mas também entre
os judeus, de modo que lhe deram o apelido de "justo." Apesar disso, devia
também mor rer már tir, alguns anos depois de Tiago o Maior.
"Vi quando o levaram, durante sete dias, de um tribunal ao outro e cada dia o
maltratavam durante uma hora. Depois de o terem lançado do pináculo do
Templo abaixo, apedrejaram-no ainda e afinal o mataram a pauladas.”
Como os par tidários de Tiago resistissem, levantou-se um tumulto, no qual
foram mor tos três discípulos, entre os quais também um filho do velho
profeta Simeão.
Depois da mor te de Tiago o Menor, a Igreja de Jerusalém ficou 5 anos sem
bispo. Mais tarde foi nomeado bispo Simeão, que era filho de Maria, filha de
Cléofas. No entanto era a Igreja administrada por Joas, parente de Pedro.
Antes da destruição de Jerusalém, pelo general romano Tito, no ano 70,
Simeão saiu com os cristãos da cidade e só voltou doze anos mais tarde. No
ano 87 foi crucificado, na idade de 120 anos.
É provável que já antes de Simeão, tivesse sido mar tirizado em Jerusalém o
santo Apóstolo Matias. A piedosa Emmerich viu-o, é verdade, duas vezes no
país dos Reis Magos (Ar mênia), pregando a fé, mas diz depois que foi mor to a
pauladas na cabeça, com um longo pau, depois da mor te de Tiago o Menor.
A história eclesiástica, nar ra mais extensamente: O Apóstolo pregou o santo
Evangelho, com zelo incansável, na Judéia e Galiléia, durante 33 anos. Como
o número dos cristãos aumentasse dia a dia, foi levado perante o Conselho
supremo e ameaçado de mor te pelo Sumo Sacerdote Ananias, se não
deixasse de pregar o Crucificado. Matias, porém, demonstrou que Jesus é o
Filho unigênito de Deus, o Messias prometido, que ressuscitou dos mor tos.
Por esta corajosa profissão de fé, foi con "de nado pelo Sumo Sacerdote à
mor te por lapidação. O cor po do santo Apóstolo foi sepultado em Jerusalém.
Santa Helena, porém, levou-o para Roma e deu-o a santo Agrítio, que o levou
a Treves, para onde fora nomeado Bispo.
A piedosa Emmerich teve também uma visão, em que viu os judeus, sob o
reinado do imperador Juliano o Apóstata, quando S. Cirilo era Bispo de
Jerusalém, no ano 362, tentarem reedificar o Templo, para desse modo
provar a falsidade da profecia de Jesus Cristo.
"Vi que uma tempestade levou grande quantidade de cal e materiais de
constr ução, cobrindo e obstruindo estradas inteiras. Da ter ra saiu fogo,
destruindo as fer ramentas; grandes abóbadas caíram, matando muitos
homens e na roupa dos operários apareceram nódoas pretas, em for ma de
cruzes. Vi também alguns operários caírem numa adega, cuja abóbada ruíra e
aí acharem uma grande pia de pedra, que continha mui tos rolos escritos;
uma voz mandou-lhes que levassem alguns destes. Esses operários foram
depois socor ridos e salvos, a maior par te. Aqueles rolos continham muitos
documentos sobre o bom ladrão e sobre a infância de Jesus, verdade e
ficção.
Vi também, naquele tempo, uma grande cruz luminosa aparecer do Monte das
Oliveiras até o Monte Calvário e muitos se conver teram.”

14
Os últimos anos e a mor te gloriosa de Maria Santíssima

1. Maria em Éfeso
2. Viagens de Maria a Jerusalém
3. Reunião dos Apóstolos, por ocasião da mor te de Maria, em Éfeso
4. Os últimos dias de vida de Maria
5. A mor te gloriosa da Santíssima Virgem
6. Embalsamamento e enter ro de Maria
7. A Assunção de Maria
8. Aber tura do sepulcro de Maria

Os últimos anos e a mor te gloriosa de Maria Santíssima

Antes de passar mos a descrever a propagação do reino de Deus entre os


gentios, pelos Apóstolos, juntamos aqui a nar ração da piedosa Emmerich
sobre a maravilhosa e gloriosa mor te da Mãe de Jesus. Assim seguimos
também a cronologia, pois a Santíssima Virgem mor reu antes dos Apóstolos
e estes estiveram presentes por ocasião da sua mor te.

1. Maria em Éfeso
Depois da ascensão do Filho querido, viveu Maria, segundo a nar ração de
Catharina Emmerich, três anos em Jerusalém e depois outros três anos em
Betânia, em casa de Lázaro. São João, que sempre a acompanhava, levou-a
para Éfeso. afim de a salvar da perseguição e ali viveu ainda nove anos.
"Maria não morava propriamente em Éfeso, mas numa região onde já se
tinham refugiado algumas das santas mulheres, suas amigas. A habitação de
Maria achava-se numa colina, à esquerda do caminho de Jer usalém a Éfeso,
cerca de três horas e meia de viagem, antes de chegar a Éfeso; a colina
tinha uma subida suave, para o lado da cidade. Era uma região deser ta, com
muitas colinas fér teis e belas, com grutas limpas, entre pequenas planícies
arenosas; era deser ta, mas não inabitável; havia muitas ár vores isoladas, de
troncos lisos e copas sombrias, em for ma de pirâmide.
Quando João trouxe a Santíssima Virgem para uma casa que lá mandara
constr uir, já ali moravam várias famílias cristãs e algumas das santas
mulheres, seja em grutas dos montes ou em subter râneos, tor nados
habitáveis com alguma construção de madeira, seja em frágeis tendas; só a
casa de Maria era de pedra.
A Santíssima Virgem morava ali com uma jovem empregada. Viviam
recolhidas em paz e sossego.
João não morava na mesma casa; passava a maior par te do tempo em Éfeso
ou ar redores; fez também várias viagens à Palestina. Dava-lhe sempre a
Santa Comunhão, rezava com ela a Via Sacra, dava-lhe a bênção e recebia-
lhe também a bênção mater na.
No último tempo da estadia ali, vi Maria tor nar-se cada vez mais recolhida no
amor de Deus; quase não tomava mais alimento. Era como se só
exterior mente estivesse na ter ra e com o espírito no outro mundo. Parecia
não notar o que lhe acontecia em redor. Vi-a, nas últimas semanas antes da
mor te, já muito idosa e fraca e a criada a guiá-Ia às vezes pela casa.
Uma vez vi João entrar lá. Tirou o cinto e vestiu outro, que tirou sob o manto
e que era or nado de letras. No braço pôs uma espécie de manípulo e no peito
uma estola. A Santíssima Virgem veio saindo do quar to de dor mir, revestida
toda de uma veste branca, apoiando-se sobre o braço da criada. Tinha o
rosto branco como a neve e como que transparente. A saudade parecia trazê-
Ia como que suspensa entre o céu e a ter ra. Desde a ascensão de Jesus,
todo o seu ser tinha a expressão de uma saudade infinita e sempre
crescente, que parecia consumi-Ia. Dirigiu-se, com João, ao lugar de oração.
Puxou uma fita ou cor reia; então se virou o taber náculo na parede e a cruz
que lá estava, apareceu. Depois de terem ambos rezado, ajoelhados, por
algum tempo, levantou-se João e tirou do peito um vaso de metal; abriu-o de
um lado, tirou de lá um invólucro de lã fina e deste, um lenço dobrado, de
estofo branco, do qual retirou o Santíssimo Sacramento, em for ma de um
pedacinho de pão branco. Depois disse algumas palavras solenes e sérias e
deu à Santíssima Virgem a Sagrada Comunhão.
Por trás da casa, até cer ta distância, na encosta da montanha, Maria
Santíssima fizera para si uma Via Sacra. Enquanto morava em Jer usalém
nunca deixara, desde a mor te do Senhor, de percor rer-lhe o caminho
da Paixão, chorando de saudade e compaixão. De todos os lugares do cami-
nho onde Jesus sofrera, ela tinha medido a distância a passos; o amor
imenso de Mãe extremosa não lhe podia viver sem a contínua contemplação
desse caminho doloroso.
Pouco tempo depois de chegar àquela região, eu a via diariamente caminhar
até cer ta distância, subindo a colina atrás da casa, nessa meditação da
Paixão e mor te do Filho amado. A princípio ia sozinha, medindo pelo número
de passos que tantas vezes contara, as distâncias dos lugares onde Jesus
sofrera cer tos tor mentos. Em todos esses lugares erigia uma pedra ou, se
havia ali uma ár vore, marcava-a. O caminho conduzia a um bosque onde,
numa elevação, marcou o Monte cal vário e numa gruta de outra colina, o
sepulcro de Jesus Cristo.
Depois de ter medido desse modo as doze estações da Via Sacra, percor ria-
a, em silenciosa meditação, acompanhada da criada; em cada estação da
Paixão se sentavam, recordando no coração o mistério do respectivo
sofrimento e louvando ao Senhor por seu Infinito amor, com lágrimas de
compaixão. Depois ar ranjaram as estações ainda melhor e vi que a
Santíssima Virgem escrevia com um buril, na pedra assinalada,
a significação do lugar, o número dos passos, etc. Vi também, depois
da mor te da Santíssima Virgem, os cristãos percor rerem esse caminho, pros-
trando-se por ter ra e beijando o chão.”

2. Viagens de Maria a Jerusalém

"Depois do terceiro ano da estadia em Éfeso, Maria sentiu profundo e


veemente desejo de ir a Jerusalém. João e Pedro levaram-na, pois. Se bem
me lembro, estavam ali reunidos vários Apóstolos; vi Tomé; creio que era
um ,Concílio e Maria assistiu-Ihes com os conselhos mater nais.
No dia da chegada, ao cair da noite, antes de entrar na cidade, eu a vi visitar
o Monte das Oliveiras, o Calvário, o santo Sepulcro e outros lugares
sagrados, em redor de Jer usalém. A Mãe de Deus estava tão triste e tão
comovida pela paixão, que só com extremo esforço podia ficar em pé e Pedro
e João levaram-na dali, segurandoa pelos braços.
Ela viajou mais uma vez de Éfeso a Jer usalém, ano e meio antes da mor te.
Vi-a então visitar também de noite os santos lugares, acompanhada pelos
Apóstolos. Estava indizivelmente triste e gemia apenas, exclamando "Ó, meu
Filho, meu Filho! Quando chegou à por ta posterior, daquele palácio, onde se
encontrara com Jesus caindo sob a cruz, tombou por ter ra, desmaiada,
comovida pela lembrança; os companheiros julgavam que mor resse.
Levaram-na ao Cenáculo, em Sião, onde morava. Ali esteve a Santíssima
Virgem, durante alguns dias, tão fraca e doente e teve tantos desmaios, que
várias vezes lhe esperaram a mor te e já pensavam em preparar-lhe o
sepulcro. Ela mesma escolheu para este fim uma gruta no Monte das
Oliveiras e os Apóstolos mandaram um escultor cristão fazer ali um belo
sepulcro.
Entretanto o povo espalhava várias vezes falsas notícias da morte de Maria
SS. e esse boato de ter mor rido e sido sepultada em Jer usalém propagou-se
também em outros lugares. Mas quando o sepulcro ficou pronto, ela já se
restabelecera e tinha força bastante para voltar para casa em Éfeso, onde,
após ano e meio, faleceu realmente. O sepulcro preparado no Monte das
Oliveiras foi sempre venerado e guardado, construindo-se depois sobre ele
uma Igreja e João Damasceno escreveu também, baseado nesse boato, que
Maria mor reu em Jerusalém e ali foi sepultada.
Deus per mitiu que as notícias da mor te, sepultura e assunção ao céu da
Virgem SS. se conser vassem apenas numa incer ta tradição, para não
alimentar no cristianismo o sentimento pagão daqueles tempos; pois muitos
talvez a tivessem adorado como deusa.”

3. Reunião dos Apóstolos, por ocasião da mor te de Maria, em Éfeso

Algum tempo antes da mor te, rezou a SS. Virgem, para que nela se cumprisse
o que Jesus lhe prometera no dia antes da ascensão, em casa de Lázaro, em
Betânia. Foi-me mostrado em espírito, que quando ela lhe suplicou que
depois da ascensão não a deixasse muito tempo neste vale de lágrimas,
Jesus lhe disse vagamente quais as obras espirituais que ela devia ainda
fazer na ter ra até a mor te e, atendendo-lhe à súplica, prometeu-lhe que os
Apóstolos e vários discípulos lhe assistiriam a mor te; recomendou-lhe o que
Ihes devia então dizer e como os devia abençoar.
Quando a SS. Virgem implorou que os Apóstolos se reunissem em tor no dela,
vi, em regiões muito diferentes e opostas, chegar o chamado aos Apóstolos;
neste momento só me lembro do seguinte:
Os Apóstolos já tinham construído pequenas Igrejas, em vários lugares, onde
tinham pregado; embora algumas dessas Igrejas não fossem construídas de
pedra, mas apenas de vime trançado e rebocadas de bar ro, todavia tinham
sempre, todas que tenho visto, na par te posterior, a for ma circular ou
triangular, como a casa de Maria em Éfeso. Nessas Igrejas tinham altares e
celebravam o santo sacrifício da Missa.
Vi que todos foram chamados, Inclusive os que estavam nas ter ras mais
longínquas, recebendo por aparições a ordem de ir ver a SS. Virgem. Em
geral não foi sem milagroso auxílio que os Apóstolos fizeram as longuíssimas
viagens. Creio que freqüentemente faziam as viagens de uma maneira
sobrenatural, sem eles mesmos saberem; pois muitas vezes os tenho visto
passar no meio de grandes multidões de homens, sem serem vistos.
Quando o chamado do Senhor se, fez ouvir aos Apóstolos, para irem a Éfeso,
Pedro e se bem me lembro, também Matias, se achavam na região de
Antioquia. André, que vinha de Jerusalém, onde fora perseguido, não se
achava longe. Judas Tadeu e Simão estavam na Pérsia. Tomé encontrava-se
na Índia, quando recebeu a ordem de par tir ; mas já resolvera ir à Tar tária,
mais para o nor te e não pode decidir-se a abandonar esse projeto. Assim
continuou o caminho para o nor te, atravessando par te da China, até chegar à
região onde agora é a Rússia; ali foi chamado pela segunda vez e par tiu
então às pressas para Éfeso. João estava mesmo na vizinhança de Éfeso;
Bar tolomeu a leste do Mar Vermelho, na Ásia. Paulo foi chamado. Foram
chamados apenas os que eram parentes ou amigos da Sagrada Família.

4. Os últimos dias de vida de Maria

"Eu tinha muita convivência com a Mãe de Deus em Éfeso, conta Catharina
Emmerich, a 7 de Agosto de 1821. Fui com ela e cerca de cinco outras santas
mulheres, percor rer a Via Sacra. Estava lá também a sobrinha da profetiza
Ana e a viúva Mara, sobrinha de Santa Isabel. A SS. Virgem ia à frente de
todas. Vi-a já muito idosa, mas não tinha outro sinal de velhice na aparência,
senão o da intensa saudade, que a levava à união com o Filho, à glorificação.
Maria era indizivelmente séria; nunca a vi rir, mas apenas sor rir de modo
tocante. Estava emagrecida, mas não lhe vi rugas, nem sinal algum de
velhice. Estava como que espiritualizada. Parecia ser a última vez que fazia a
Via Sacra. Enquanto assim caminhava, parecia-me que João, Pedro e Tadeu
já tinham chegado.
Vi (a 9 de Agosto) Maria deitada num leito estreito e baixo cober to por um
dossel, em for ma de tenda, do qual pendiam brancas cor tinas, à direita do
quar to, atrás do fogão. A cabeça repousava-lhe sobre uma almofada redonda.
Estava muito fraca e pálida e como abrasada de saudade. A cabeça e todo o
cor po lhe estava envolto num longo pano. Um cober tor de lã parda cobria-a.
Vi umas cinco mulheres, uma depois da outra, entrarem e saírem do quar to;
pareciam despedir-se da moribunda. As que saiam, faziam com as mãos
gestos de comovedora tristeza ou de oração. Vi novamente entre elas a
sobrinha de Isabel, que tinha visto durante a Via Sacra.
Maria disse uma vez a Maria de Agreda: "Se eu tivesse querido afastar de
mim a mor te, o Altíssimo ter-me-ia concedido esta graça: pois como o
pecado não tinha par te em mim, também a mor te, castigo do pecado, não
podia ter par te em mim. Como, porém, meu Santíssimo Filho, que muito
menos ainda podia merecer a mor te, quis voluntariamente sofrer e mor rer,
para dar satisfação à justiça divina pelas culpas do mundo, assim também
escolhi para mim a mor te, para ficar por minha vontade unida a meu Filho, na
mor te como na vida.
Como recompensa desta minha escolha, Deus Nosso Senhor me concedeu,
em favor dos filhos da Igreja, o privilégio, para mim tão caro, de dar minha
proteção especial na hora da mor te, contra os assaltos do inimigo das
almas, como também meu auxílio e minha intercessão perante o tribunal da
divina misericórdia, a todos que me veneram, se me invocarem na hora da
mor te, para os socor rer, pelos méritos de minha mor te voluntária. O Senhor
concedeu-me para isso poder par ticular e a promessa expressa de que dará
aos meus devotos abundantes auxílios da graça, para uma boa mor te e
verdadeira refor ma da vida, se me invocarem, em memória do mistério da
minha mor te.”
Com toda razão acrescentou por tanto a Igreja à saudação do Anjo e de Santa
Isabel, que tantas vezes rezamos no rosário, as outras palavras: "Santa
Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa
mor te. Amém.”
Depois vi seis Apóstolos já reunidos na sua casa, Pedro, André, João, Tadeu,
Bar tolomeu e Matias, como também um dos sete diáconos, Nicanor, que era
sempre tão ser viçal e amável. Os Apóstolos estavam reunidos em oração na
par te anterior da casa, à direita, onde tinham preparado um oratório.
Hoje (a 10 de Agosto) vi entrar ainda dois Apóstolos, com as vestes
ar regaçadas, como viajantes, Tiago o Menor e Mateus.
Os Apóstolos celebraram ontem, à noite e hoje de manhã o ofício divino, na
par te anterior da casa. Diante do altar havia uma estante cober ta, da qual
pendia um rolo da Escritura. Sobre o altar havia candeeiros acesos e na
mesa um vaso em for ma de cruz, feito de uma substância que brilhava como
madrepérola. Tinha apenas um palmo de altura e outro tanto de largura e
continha cinco vasos fechados, com tampa de prata. No do meio se achava o
SS. Sacramento. Nos outros, porém, crisma, óleo, sal e fibras (talvez
algodão) e outras coisas santas. Os vasos foram feitos e estavam fechados
de tal maneira, que não se podia der ramar nada. Os Apóstolos costumavam
transpor tar essa cruz nas viagens, pendente sobre o peito, debaixo do
manto. Assim eram mais do que o Sumo Sacerdote, quando trazia sobre o
peito o Santo do Antigo Testamento.
Pedro, revestido do or nato sacerdotal, estava diante do altar, os outros
atrás, em coro. As mulheres assistiam em pé, no fundo da casa.
Vi chegar um novo Apóstolo (a II de Agosto) foi Simão. Ainda faltavam Felipe
e Tomé.
Houve novamente ofício divino. Depois deu Pedro à SS. Virgem a Sagrada
Comunhão. Levou-lha naquele vaso em for ma de cruz. Os Apóstolos for maram
duas fileiras, do altar até ao leito, inclinando-se profun damente, quando
Pedro passou por entre eles com o SS. Sacramento. As cor tinas do leito da
SS. Virgem foram aber tas de todos os lados.
Diante do leito de Maria havia um banquinho baixo, triangular e sobre este,
um pratinho, com uma colherzinha parda e transparente.
Vi novamente (a 12 de Agosto) o divino ofício; foi celebrada a Missa. O
quar tinho de Maria estava todo aber to. Uma mulher estava ajoelhada ao lado
do leito, levantando e amparando de vez em quando a Santíssima Virgem. Vi
fazê-Io também durante o dia e oferecer-lhe uma colher de suco de fruta do
pratinho. Maria tinha um crucifixo sobre o leito, em for ma de Y, tendo quase
meio braço de comprimento; ela recebeu o SS. Sacramento.
Vi hoje (a 13 de Agosto) o ofício divino, como de costume e a Santíssima
Virgem, durante o dia, sentada no leito, tomando várias vezes al
gum alimento, com a colherzinha.
Vi os Apóstolos chegarem na maior par te muito fatigados. Ao entrar,
abraçavam os que já estavam presentes, muito comovidos; alguns choraram
de alegria e também de tristeza, pelo motivo tão doloroso daquele encontro.
Aproximavam-se do leito de Maria, saudando-a respeitosamente; ela, porém,
só poucas palavras lhes podia dizer.
Vi também cinco discípulos e lembro-me mais vivamente de Simão, o Justo e
de Bar nabé.

5. A mor te gloriosa da Santíssima Virgem

O ano 48 depois do nascimento do Cristo é o ano da mor te de Maria; mor reu


13 anos e dois meses depois da ascensão de Jesus. A mor te da SS. Virgem
foi um acontecimento cheio de tristeza, mas também de consolação. Já na
véspera, pelo meio-dia, reinava grande tristeza e angústia em casa de Maria;
a criada estava completamente desolada.
A Santíssima Virgem descansava, silenciosa e como próximo da mor te, sobre
o leito. Estava toda envolta, até os próprios braços, num lençol branco. O véu
do rosto estava dobrado sobre a testa; falando aos homens, puxava-o sobre o
rosto. As próprias mãos só estavam descobertas quando ficava sozinha. Nos
últimos dias não a vi tomar outro alimento, senão, de vez em quando, uma
colherzinha de suco de uns frutinhos amarelos, semelhantes à uva, que a
criada lhe espremia no pratinho, ao pé do leito.
Quando a Santíssima Virgem, ao cair da tarde, sentiu aproximar-selhe o fim,
quis despedir-se dos Apóstolos, discípulos e mulheres presentes e dar-lhes a
bênção, confor me a vontade de Jesus. As cor tinas do leito foram aber tas
para todos os lados. Maria estava sentada no leito, como que transparente,
de uma alvura resplandecente, Rezou e abençoou um por um, com as mãos
postas em for ma de cruz, tocando a testa de cada um. Depois falou ainda
com todos e fez tudo quanto Jesus lhe recomendara em Betânia.
A João disse como devia sepultar-lhe o cor po e distribuir-lhe a roupa entre a
criada e uma outra moça pobre da vizinhança, que às vezes viera lhe prestar
ser viços.
Depois dos Apóstolos, se acercarem do leito da Santíssima Virgem os
discípulos presentes e receberam-lhe também a bênção do mesmo modo. Os
homens retiraram-se então para o quar to anterior da casa e prepararam-se
para o ofício divino, enquanto as mulheres presentes se aproximavam do
leito da Santíssima Virgem, se ajoelhavam e recebiam a bênção. Vi que uma
delas, inclinando-se sobre Maria, recebeu dela um abraço.
Nesse ínterim foi preparado o altar e os Apóstolos vestiram-se para o ofício
divino, com as longas vestes brancas, cingindo-se com as cintas or nadas de
letras. Cinco deles, que funcionavam no ato solene do sacrifício, como o vi
celebrar por Pedro, após a ascensão de Jesus, primeiro na Igreja nova, per to
do tanque de Betesda, revestiram-se das grandes e belas vestes sacerdotais.
O ofício divino já estava adiantado, quando chegaram Felipe e um
companheiro do Egito. Dirigiu-se imediatamente à Mãe do Senhor recebeu-lhe
a bênção, chorando copiosamente.
No entanto Pedro acabara o santo sacrifício; tinha consagrado e recebido o
Cor po do Senhor, dando-o também aos Apóstolos e discípulos presentes. A
Santíssima Virgem não podia avistar o altar ; mas estava sentada no leito,
durante a santa cerimônia, sempre em profundo recolhimento. Depois de
Pedro ter comungado deu a Santa Comunhão também aos outros Apóstolos e
levou-a então à SS. Virgem.
Todos os Apóstolos o acompanharam, em procissão solene. Tadeu ia à frente,
com um incensório, Pedro levava o Santíssimo Sacramento no vaso
crucifor me, sobre o peito. Seguia-se-Ihe João, que trazia um pequeno prato,
sobre o qual estavam o cálice, com o preciosíssimo Sangue e alguns vasos. A
Santíssima Virgem estava deitada de costas, tranqüila e pálida, com olhar
fixo para cima; não falava com ninguém e estava como em contínuo êxtase;
resplandecia de saudade.
Pedrb aproximou-se e administrou-lhe o santo Sacramento da Extrema Unção,
quase do mesmo modo como se faz hoje. Depois lhe deu o Santíssimo
Sacramento. Sem se recostar, a Virgem sentou-se para o receber e caiu
depois de novo sobre o leito. Os Apóstolos rezaram durante algum tempo e
depois ela recebeu o cálice da mão de João, levantando-se um pouco menos.
Vi como um fulgor penetrar em Maria, quando recebeu a Sagrada Comunhão e
depois caiu em êxtase sobre o leito e não mais falou.
Mais tarde se reuniram os Apóstolos novamente em roda do leito, rezando. O
rosto de Maria estava risonho e fresco como na juventude. Dirigia os olhos
com santa alegria ao céu. Vi então uma visão maravilhosa e comovedora. O
teto por cima do quar to de Maria desaparecera; o candeeiro estava suspenso
no ar ; vi, pelo céu aber to, a Jer usalém celeste. Desciam dois planos
brilhantes, como nuvens luminosas, nas quais apareciam muitos rostos de
Anjos. Entre essas nuvens se der ramava uma tor rente de luz sobre Maria,
acima da qual vi uma encosta resplandecente, que subia até a Jer usalém
celeste. A Virgem estendia os braços, com infinita saudade e vi-lhe o cor po
sagrado, com tudo o que o envolvia, erguer-se-Ihe acima do leito, enquanto a
alma, como uma puríssima for ma luminosa, lhe saia do cor po, com os braços
estendidos, erguendo-se na tor rente de luz que, qual montanha
resplandecente, se elevava céus acima. Os dois coros de Anjos, nas nuvens,
se lhe uniram atrás da alma, separando-a do santo cor po, que no momento da
separação recaiu sobre o leito, cruzando os braços sobre o peito. Seguindo a
alma com o olhar, vi-a entrar, pela estrada de luz, na Jerusalém celeste e
chegar ao trono da Santíssima Trindade. Vi muitas almas, entre as quais
reconheci muitos patriarcas: Joaquim, Ana, José. Isabel, Zacarias e João
Batista, lhe vieram ao encontro, com respeito e alegria. Ela passou, porém,
no meio de todos, dirigindo-se ao trono de Deus e de seu Filho que,
excedendo ainda com o esplendor das chagas a luz de toda a aparição, a
recebeu com amor divino e lhe entregou algo como um cetro, mostrando-lhe
o globo ter restre, como para lhe confiar um poder.
Assim a vi entrar na glória do céu, esquecendo-me totalmente dos que lhe
rodeavam o cor po na ter ra. Alguns dos Apóstolos, por exemplo, Pedro e João,
devem tê-Io visto também, pois tinham o olhar dirigido para o céu. Os demais
estavam de joelhos e inclinados profundamente. Tudo estava cheio de luz e
esplendor, como na ascensão do Senhor.
Vi com grande alegria, numerosas almas remidas do purgatório seguirem a
alma de Maria, quando entrou no céu e também hoje, na festa da Assunção,
vi entrar muitas almas no céu, entre as quais algumas que conheci. Foi-me
dada a consoladora infor mação de que anualmente, no aniversário da mor te
da Santíssima Virgem, muitas almas que lhe tiveram devoção, par ticipariam
dessa graça.
Quando tor nei a olhar para a ter ra, vi o cor po de Maria resplandecente, com
o rosto fresco, os olhos fechados, os braços cruzados sobre o peito, deitado
sobre o leito. Os Apóstolos, os discípulos e as mulheres estavam de joelhos
em roda do leito e rezavam. Enquanto eu via tudo isso, era como se soasse
uma música deliciosa na natureza, que parecia comovida, como o tinha
percebido na noite de Natal. Expirara, como obser vei, depois da nona, à hora
em que mor rera também o Senhor.
As mulheres estenderam uma cober ta sobre o cor po sagrado; depois
cobriram a cabeça e velaram o rosto, sentando-se juntas no chão, no quar to
do vestíbulo, onde fizeram a lamentação fúnebre, ajoelhandose e sentando-se
alter nadamente. Os Apóstolos, porém, e os discípulos retiraram-se para a
par te anterior da casa, cobriram a cabeça e celebraram um ofício fúnebre.
Revezavam-se dois a dois, de joelhos, aos pés e à cabeceira do santo cor po.
Mateus e André percor reram a Via Sacra da Santíssima Virgem, até à última
estação, a gruta que representava o sepulcro de Jesus. Levaram consigo
fer ramentas, para escavar um pouco mais o leito sepulcral; pois ali devia ser
depositado o cor po de Maria. Havia cerca de meia hora de caminho, da casa
até a gruta.

6. Embalsamamento e enter ro de Maria

Quatro vezes vi os Apóstolos se revezarem, fazendo guarda de honra ao


cor po sagrado e rezando. Hoje vi chegar algumas mulheres, entre as quais
me lembro ainda da filha de Verônica e da mãe de João Marcos, que vieram
preparar o cor po para a sepultura. Trouxeram lençóis e especiarias, para o
embalsamar à moda judaica. Cor taram os caracóis mais belos da Santíssima
Virgem, como lembrança e enrolaram o cor po, dos tor nozelos até o peito, em
lençóis e faixas de pano, bem aper tados.
Os Apóstolos assistiam, nesse ínterim, ao sacrifício solene celebrado por
Pedro, recebendo com ele a sagrada Comunhão; depois vi Pedro e João,
ainda revestidos dos grandes mantos episcopais, entrar pelo vestíbulo e
aproximar-se do santo cor po. João levava um vaso com ungüentos e Pedro,
imergindo o dedo da mão direita no vaso, ungiu a testa, o meio do peito, as
mãos e os pés da Santíssima Virgem, orando. Não era a Extrema Unção, que
já recebera ainda viva. Pedro passou o ungüento sobre os pés e as mãos; a
fronte e o peito, porém, assinalouos com o sinal da cruz. Creio que foi para
prestar homenagem ao cor po sagrado, como o fizeram também ao sepultar o
cor po do Senhor.
Depois dos Apóstolos terem saído, continuaram as mulheres o
embalsamamento. Puseram tufos de mir ra sob os braços, nas axilas e no
epigástrio;encheram também com a mesma os espaços entre os ombros, ao
redor do pescoço e do queixo e as faces. Os pés estavam também cober tos
de tais tufos de er vas aromáticas. Depois lhe cruzaram os braços sobre o
peito, envolveram o cor po na grande mor talha e enrolaramno com a faixa sob
o braço, como uma grande boneca. Sobre o rosto lhe estenderam um sudário
transparente, através do qual se lhe podiam ver as faces alvas e
resplandecentes, por entre os tufos de er vas. Depois deitaram o cor po
sagrado num caixão, semelhante a uma cesta comprida e sobre o peito de
Maria uma grinalda de flores de cor branca, encar nada e azul celeste, como
sinal de virgindade.
Então entraram todos os Apóstolos, discípulos e outros presentes, para ver
mais uma vez o santo e querido semblante, antes de ser cober to. Ajoelharam-
se, por entre muitas lágrimas e em silêncio, em roda da SS. Virgem, tocaram-
lhe as mãos já enfaixadas sobre o peito, despedindo-se e depois saíram. As
santas mulheres despediram-se então também, cobriram-lhe depois a santa
face e colocaram a tampa sobre o caixão, que fecharam, atando-o nas duas
extremidades e no meio com faixas cinzentas. Depois vi que puseram o
caixão sobre uma padiola e Pedro e João transpor taram-no sobre os ombros
para fora da casa. Devem ter-se revezado, pois mais tarde vi que seis
Apóstolos o transpor tavam.
Par te dos Apóstolos e discípulos precediam, outros e as mulheres seguiam o
caixão. Já estava anoitecendo: levavam quatro lanter nas sobre paus.
Assim seguiu o cor tejo pelo caminho da Via Sacra de Maria, até a última
estação e, passando em frente à pedra que a assinalava, sobre a colina,
chegaram ao lado direito da gruta sepulcral. Ali depuseram o santo cor po;
quatro levaram-no para dentro da gruta e puseram-no no leito escavado na
pedra. Todos os presentes entraram ainda um por um, espalhando flores e
er vas aromáticas e ajoelharam-se, oferecendo com lágrimas as suas
orações; a tristeza e o amor fê-Ios demorar ainda. Já era noite, quando os
Apóstolos fecharam a por ta do sepulcro. Cavaram um fosso diante da entrada
estreita da gruta e plantaram uma sebe de vários arbustos verdes, dos quais
par te estava florescente e par te já tinha brotos e que haviam sido
transplantados de outro lugar, junto com as raízes, de maneira que não se
podia ver sinal da entrada, tanto mais quanto fizeram passar um pequeno
cór rego em frente dessa sebe. Não se podia mais entrar na gruta senão
passando pelo lado, por trás dos arbustos. “

7. A Assunção de Maria
Os Apóstolos, discípulos e mulheres voltaram separados, demorando-se
ainda aqui e acolá, rezando nas estações da Via Sacra; alguns ficaram
também velando em oração per to do sepulcro. Ao voltar, viram de longe, por
cima do sepulcro de Maria, uma luz maravilhosa e ficaram muito comovidos,
sem saber o que era.
Vi ainda vários Apóstolos e algumas santas mulheres rezar e cantar no
pequeno jardim, diante do sepulcro. Descia, porém, uma larga faixa de luz do
céu até o rochedo do sepulcro e nela vi um esplendor de três círculos, de
Anjos e almas, que rodeavam a aparição de Nosso Senhor e da alma gloriosa
de Maria. A aparição de Jesus Cristo, com os sinais resplandecentes das
chagas, pairava diante dela. Em redor da alma de Maria vi, no círculo interior
de luz, figuras de crianças, no segundo círculo pareciam meninos de seis
anos e no círculo exterior jovens adultos. Vi-Ihes distintamente os rostos; o
resto vi apenas como for mas luminosas. Quando esta aparição chegou até o
rochedo, tor nando-se cada vez mais clara, vi dali até Jerusalém celeste uma
estrada de luz. Depois vi a alma da SS. Virgem, que seguia a aparição de
Jesus, passar para a frente e entrar através da rocha no sepulcro, do qual
pouco depois saiu unida ao cor po glorificado de Maria, muito mais clara e
resplandecente e voltou com o Senhor e todo o glorioso séquito, para a
Jerusalém celeste. Depois desapareceu todo o esplendor e se via de novo a
luz pálida do céu estrelado, que se estendia sobre a região.
Se os Apóstolos e as santas mulheres, que rezavam diante do sepulcro,
também o viram, não o sei; mas vi que todos olhavam para cima, orando
cheios de admiração; outros, porém, atônitos se prostraram, tocando com o
rosto a ter ra. Vi também alguns que voltavam para casa, levando consigo a
padiola, entoando cânticos e orações no caminho da Via Sacra e demorando-
se diante das estações, olharem com grande emoção e fer vor para a luz que
surgira acima do sepulcro.
Assim não vi a SS. Virgem mor rer e subir ao céu de modo comum; mas
primeiramente se lhe tirou da ter ra a alma e depois também o cor po.
Mais tarde, regressando à casa, os Apóstolos e discípulos tomaram algum
alimento e depois se deitaram para dor mir.

8. Aber tura do sepulcro de Maria

Hoje, à noite (15 de Agosto), per maneciam ainda os Apóstolos em oração e


pranto, na sala. As mulheres já se tinham deitado. Então vi chegarem o
Apóstolo Tomé e dois companheiros. Um desses tinha o nome de Jonatan e
era parente da Sagrada Família. Oh! como ficaram aflitos, ao ver que tinham
chegado tarde! Tomé chorou como uma criança, quando ouviu nar rar a mor te
de Maria. Os discípulos lavaram-lhes os pés e deram-lhes de comer. Nesse
ínterim acordaram as mulheres e se levantaram e depois de terem saído do
quar to, conduziram Tomé e Jonatan ao aposento onde a SS. Virgem mor rera.
Ali se ajoelharam os recém-chegados, regando o lugar com as lágrimas.
Tomé ficou ainda muito tempo de joelhos, rezando diante do pequeno altar de
Maria. Comoveu-me indizivelmente a sua tristeza.
Os Apóstolos, que não tinham inter rompido a oração, depois de acabarem,
saíram todos, para dar as boas vindas aos recém-chegados. Tomando nos
braços Tomé e Jonatan, levantaram-nos, dois ainda estavam de joelhos e
abraçando-os, levaram-nos à sala anterior da casa, onde Ihes ofereceram
pãezinhos e mel; beberam também de pequenos jar ros e cálices. Rezaram
mais uma vez juntos e abraçaram-se.
Depois manifestaram Tomé e Jonatan desejos de ver o sepulcro da SS.
Virgem. Os Apóstolos acenderam lanter nas, fir madas sobre paus e todos
foram pelo caminho da Via Sacra de Maria, em direção ao sepulcro. Falavam
pouco; demoravam-se algum tempo diante das estações, recordando-se do
caminho da cruz do Senhor e do amor compassivo da Mãe SS., que ali pusera
as pedras comemorativas e tantas vezes as regara com lágrimas. Chegados
ao rochedo do sepulcro, ajoelharam-selhe todos em volta. Tomé e Jonatan,
porém, cor reram à entrada; João seguiu-os. Dois dos discípulos afastaram
um pouco os arbustos diante da entrada e eles entraram e ajoelharam-se
respeitosamente diante do túmulo da Santíssima Virgem. João, porém,
aproximou-se do leve caixão em for ma de cesta, que sobressaia um pouco do
leito sepulcral, desatou as três faixas, que lhes fechavam a tampa e colocou
esta ao lado. Então fizeram convergir a luz para dentro e viram, com grande
espanto e comoção, os lençóis mor tuários vazios, ainda na mesma posição
em que lhe tinham envolvido o cor po. Sobre o rosto e o peito estavam
aber tos. Os envoltórios dos braços estavam um pouco soltos, mas ainda com
as dobras; o cor po glorificado de Maria, porém, não estava mais na ter ra.
Admirados, de mãos erguidas, olhavam para o alto, como se o santo cor po
nesse momento houvesse aparecido e João bradou para fora da gruta: "Vinde
e admirai, ela não está mais aqui!". Então entraram todos, dois a dois, na
estreita gruta, viram os lençóis vazios no caixão e, saindo, ajoelharam-se
todos e, olhando, com os braços estendido, para o céu, choravam e rezavam,
louvando o Senhor e sua querida Mãe glorificada, que Ihes era também uma
boa e fiel Mãe. Louvavam-na como filhos piedosos, exaltando-a com doces
palavras de amor, como o Espírito Ihes inspirava. Então se lembraram bem
daquela nuvem luminosa, que viram de longe, ao voltar do enter ro e que
descera sobre o rochedo do sepulcro e depois subira ao céu.
João, porém, tirou respeitosamente do caixão as mor talhas da Santíssima
Virgem, dobrou e enrolou-as, para as levar consigo; depois colocou
novamente a tampa sobre o caixão, atando-a com as faixas, como dantes.
Saíram da gruta, fechando de novo a entrada com os arbustos. Rezando e
cantando salmos, voltaram pelo caminho da Via Sacra, para a casa de Maria.
Fecharam completamente a entrada do sepulcro da Virgem Santíssima,
chegando mais os arbustos e fir mando-os com ter ra; alargaram tam bém o
fosso. Limparam o pequeno jardim diante do sepulcro e omaramno; cavaram
também uma passagem para a parede posterior do sepulcro e ali abriram
com cinzel uma janelasinha no rochedo, pela qual se podia ver o túmulo,
onde tinha jazido o cor po da Mãe Santíssima, à qual o Salvador, mor rendo na
cruz, os entregara todos e sua Igreja, na pessoa de João. Oh! eram filhos
fiéis, obedientes ao quar to mandamento e muito tempo viveriam na ter ra,
guardando o seu amor.
A maior par te dos discípulos presentes já se haviam despedido. Também os
Apóstolos se separaram. Bar tolomeu, Simão, Judas Tadeu, Felipe e Mateus
foram os primeiros que, após uma despedida comovedora, voltaram ao campo
de ação. Os restantes, fora João, que ainda ficou mais tempo, dirigiram-se
juntos à Palestina, onde depois também se separaram. Estavam lá muitos
discípulos; também várias mulheres viajaram com eles de Éfeso para
Jerusalém.
Parece-me que o sepulcro de Maria ainda existe debaixo da ter ra; há de
descobrir-se um dia."
Guiados pelas infor mações da piedosa ser va de Deus, foram feitas várias
vezes, desde 1891, pesquisas para achar a casa de Maria, per to de Éfeso. Foi
encontrada sobre o monte "dos rouxinóis" Uma Velha ruína, chamada:
Panágia-Kapuli, isto é, "Por ta da SS. Virgem". Os restos mais antigos dos
muros per tencem, segundo a afir mação de peritos, aos primeiros séculos da
era cristã. A for ma e divisão da casa concorda com a descrição feita por
Catharina Emmerich. Foram também feitas escavações, pelas quais se achou
igualmente a Via Sacra feita por Maria e várias pedras das estações,
mostrando ainda inscrições. O próprio sepulcro de Maria ainda não fora
encontrado, até 1906.
É ainda digno de nota que se conser vou a tradição, entre os habitantes da
povoação próxima: Kir kinsche, que Maria viveu no monte "dos rouxinóis" e
ali também mor reu. Desde tempos imemoráveis se fazem, duas ou três vezes
por ano, especialmente na festa da Assunção de Maria, romarias à ruína de
Panágia-Kapuli, onde um sacerdote oferece o santo sacrifício da Missa.
Vide: "Panágia-Kapuli", a casa per to de Éfeso, recentemente descober ta,
onde viveu e mor reu a SS. Virgem Maria; por João Niessen. Laumansche
Buchhandlung, Duelmen, 1906.

15
Ação dos Apóstolos e discípulos de Jesus entre os gentios

1. Vocação dos gentios. Conversão do Centurião Comélio


2. O Concílio dos Apóstolos em Jerusalém
3. Fundação da Igreja de Roma por S. Pedro
4. Viagens e trabalhos apostólicos de S. Paulo
5. Santo André, Apóstolo da Grécia
6. S. Tiago o Maior, Apóstolo da Espanha
7. São João Evangelista em Roma e na Ásia Menor
8. Viagens apostólicas e trabalhos de São Tomé, principalmente na Índia
9. Trabalhos apostólicos de S. Bar tolomeu na Ásia e especialmente na
Abissínia, (África)
10. Os santos Apóstolos Simão e Judas Tadeu na Pérsia
11. Trabalhos apostólicos e tribulações dos santos Apóstolos Felipe, na
Frigia e Mateus, na Etiópia
12. Os santos Evangelistas Marcos, em Roma e no Egito e Lucas, na Grécia
13. S. Bar nabé, S. Timóteo e S. Satumino
14. S. Lázaro, Mar ta e Madalena no sul da França

Ação dos Apóstolos e discípulos de Jesus entre os gentios


1. Vocação dos gentios. Conversão do Centurião Cor nélio (Atos 10)

É verdade que o divino Salvador chamou primeiro o povo escolhido, os


judeus, para entrar no seu reino; mas nem por isso pretendia excluir os povos
gentios. É que já se deduz da vocação dos Reis Magos e de seu séquito,
vindo dos países pagãos do Oriente ao presépio de Belém e também da
viagem de Jesus àqueles países e ao Egito. Os judeus, na verdade,
entregavam-se ao sonho ilusório de que só eles, com exclusão de todos os
outros povos, eram destinados ao reino de Deus. Também os Apóstolos por
muito tempo nao conseguiram desfazer-se desta opinião er rônea. Por isso o
próprio Deus ensinou esta verdade a Pedro, Vigário de Jesus Cristo e Chefe
da Igreja.
Pedro estava ainda em Jope, quando um pagão piedoso, de nome Comélio, em
Cesaréia, teve a visão de um Anjo de Deus, que lhe assegurou que as suas
orações e esmolas eram aceitas por Deus, e que devia mandar chamar Pedro,
em Jope. Comélio enviou dois ser vos e um soldado a Jope. Quando chegaram
próximo da cidade, subiu Pedro ao ter raço da casa, para rezar. Como, porém,
sentisse fome, viu descer do céu aberto uma grande toalha, onde se achavam
toda a espécie de animais quadrúpedes e répteis da ter ra e aves. Uma voz
alta intimou-o: "Levanta-te, Pedro, mata e come". Pedro respondeu: "Oh! não,
Senhor ; nunca comi coisa alguma vil e impura". A voz disse-lhe: "Não chames
de impuro o que Deus purificou". Três vezes se deu o mesmo. Logo depois
desapareceu a visão. Enquanto Pedro ainda meditava a respeito, já per-
guntavam os três mensageiros, à por ta da casa, se ali morava um cer to
Pedro. Este recebeu do Espírito de Deus a ordem: "Aí estão três homens à
tua procura. Levanta-te e vai com eles sem medo; pois fui eu que os mandei".
Pedro fez como lhe fora mandado, e pôs-se, com alguns discípulos, a caminho
de Cesaréia. Cor nélio os estava esperando e tinha já reunido os parentes e
amigos. Pedro disse-Ihes:
"Sabeis que é abominável para um Judeu juntar-se ou unir-se a um
estrangeiro: mas Deus mostrou-me que a nenhum homem chamasse vil ou
imundo. Por isso vim, sem vacilar, logo que fui chamado. Pergunto, pois:
Porque me chamastes?" E disse Cor nélio: "Hoje fazem quatro dias que eu
estava orando em minha casa, à hora nona e eis que surgiu diante de mim um
homem vestido de branco e disse-me: Cor nélio, a tua oração foi atendida e as
tuas esmolas foram lembradas na presença de Deus. Manda, pois, alguém a
Jope e faze vir um cer to Simão, que tem por sobrenome Pedro e está
hospedado em casa de Simão, cur tidor de peles, à beira-mar." Em
conseqüência disto mandei logo te buscar e fizeste bem em vir. Agora,
porém, estamos todos em tua presença, para ouvir o que o Senhor ordenou
que nos dissesses.”
Então Pedro, abrindo a boca, disse: "Tenho na verdade aprendido que Deus
não faz acepção de pessoas; mas que em toda a nação aquele que o teme e
obra o que é justo, esse lhe é aceito. Deus enviou o seu Verbo aos filhos de
Israel, anunciando-Ihes a paz, por meio de Jesus Cristo. (O Senhor de todos).
Sabeis o que se passou por toda a Judéia, começando desde a Galiléia,
depois do batismo que João pregou; como Deus ungiu com o Espírito Santo e
a vir tude a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem e sarando todos os
oprimidos do demônio, porque Deus estava com Ele. E nós somos
testemunhas de tudo quanto fez na ter ra dos judeus e em Jerusalém; eles,
porém, O mataram, pregando-O num madeiro. Mas Deus O ressuscitou ao
terceiro dia e quis que se manifestasse, não a todo o povo, mas às
testemunhas que havia previamente predestinado; a nós, que comemos e
bebemos com Ele, depois que ressuscitou dentre os mor tos. E mandou-nos
pregar ao povo e dar testemunho de que é Ele quem por Deus foi constituído
juiz dos vivos e dos mor tos. DEle dão testemunho todos os profetas e todos
os que nEle crêem, recebem perdão dos pecados por meio do seu Nome."
Estava Pedro ainda proferindo estas palavras, quando desceu o Espírito
Santo sobre todos os que o ouviam. E espantaram-se os fiéis que eram da
circuncisão e que tinham vindo com Pedro, de ver que a graça do Espírito
Santo fora também der ramada sobre os gentios; pois ouviam-nos falar
diversas línguas e engrandecer a Deus.
Então disse Pedro: "Por ventura pode alguém recusar a água, para que sejam
batizados estes que receberam o Espírito Santo, do mesmo modo que nós?" E
mandou que fossem batizados em nome do Senhor Jesus Cristo. Então lhe
rogaram que ficasse com eles por alguns dias.

2. O Concílio dos Apóstolos em Jerusalém

Alguns dos discípulos tinham vindo a Antioquia, falando ali também aos
gentios e recebendo-os no seio da Igreja. Como se conver tessem muitos, foi
enviado lá Bar nabé, da Igreja de Jerusalém. Este procurou Paulo e com ele
trabalhou com tanto sucesso em Antioquia que os par tidários de Jesus foram
ali chamados, pela primeira vez, cristãos.
Surgiu, porém, ali uma disputa, quando alguns, vindo da Judéia, ensinavam
que a circuncisão, e com esta também a obser vação de toda a lei mosaica,
era necessária para a salvação. Paulo e Bar nabé eram contrários a essa
doutrina e foram, com alguns outros, enviados pela comunidade de Antioquia
a Jerusalém, para propor esta questão, de tamanha impor tância, aos
Apóstolos e anciãos, para a decidirem. Esta foi a causa do primeiro Concílio
da Igreja. Catharina Emmerich apenas nos infor ma que a Mãe de Jesus veio
de Éfeso para assistir a este concílio e dar seus conselhos aos Apóstolos.
Tiramos a nar ração do Concílio dos Atos dos Apóstolos, (15,4-32).
Tendo (Paulo e Bar nabé, com os companheiros) chegado a Jerusalém, foram
recebidos pela Igreja e pelos Apóstolos e presbíteros, aos quais referiram
quão grandes coisas Deus tinha operado neles. Mas levantaram-se alguns da
seita dos fariseus que haviam abraçado a fé, dizendo: "É necessário, pois,
que os gentios sejam circuncidados e também que obser vem a lei de
Moisés." Congregaram-se, pois, os Apóstolos e presbíteros, para examinarem
este ponto. E depois de fazer a respeito um grande estudo, levantando-se
Pedro, lhes disse: "Ir mãos, sabeis que desde os primeiros dias ordenou Deus
que da minha boca ouvissem os gentios a palavra do Evangelho e que a
cressem. E Deus, que conhece os corações, declarou-se por eles, dando-Ihes
o Espírito Santo, como também a nós; e não fez diferença alg~ma entre nós e
eles, purificandolhes pela fé os corações. Logo, porque tentais agora a Deus,
impondo um jugo aos discípulos, que nem nossos pais nem nós podemos
suportar? Mas cremos que pela graça do Senhor Jesus Cristo somos salvos,
assim como eles também o foram.”
Então toda a assembléia se calou e escutavam a Bar nabé e Paulo, que lhes
contava quão grandes milagres e prodígios fizera Deus, por inter venção
deles, entre os gentios. E depois que se calaram, entrou a falar Tiago,
dizendo: "Ir mãos, ouvi-me. Simão tem contado como Deus primeiro visitou os
gentios, para fazer deles um povo para o seu nome. E com isto concordam as
palavras dos profetas, como está escrito: Depois disto voltarei e edificarei
de novo o taber náculo de Davi, que caiu, e reparar-lhe-ei as r uínas e levantá-
Io-ei, para que o resto dos homens e todas as gentes sobre as quais tem sido
invocado o meu nome, busquem a Deus, diz o Senhor, que faz estas coisas. -
Pelo Senhor é conhecida a sua obra desde a eter nidade. Pelo que julgo que
não se devem inquietar os que dentre os gentios se conver tem a Deus, mas
que se lhes deve somente prescrever que se abstenham das contaminações
dos ídolos e da for nicação e das car nes sufocadas e do sangue. Porque
Moisés, desde tempos antigos, tem em cada cidade homens que o pregam,
nas sinagogas, onde é lido todos os sábados.”
Então pareceu bem aos Apóstolos e presbíteros e a toda a Igreja eleger
dentre eles varões e enviá-Ios a Antioquia, com Paulo e Bar nabé; enviaram
Judas, que tinha o sobrenome de Barsabas e Silas, muito conceituados entre
os ir mãos e pelos quais enviaram a seguinte epístola: "Os Apóstolos e
presbíteros ir mãos, aos ir mãos conver tidos dos gentios que se acham na
Antioquia e na Síria e na Cilícia, saúde. Tendo ouvido nar rar que alguns que
têm saído de nós, transtor nando os vossos corações, vos têm per turbado
com palavras, sem Ihes ter mos mandado tal: Aprouve-nos a nós, congregados
em Concílio, escolher homens e enviá-Ios a vós, com os nossos mui amados
Bar nabé e Paulo, que têm exposto a vida pelo nome de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Enviamos, por tanto, Judas e Silas, que até verbalmente vos exporão
as mes mas coisas. Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não
vos impôr mais encargos do que os necessários, que são os seguintes:
que vos abstenhais do que tiver sido sacrificado aos ídolos e do sangue e
das car nes sufocadas e da for nicação, do que fareis bem de vos guardar.
Deus seja convosco.”
Assim enviados, foram a Antioquia e tendo congregado a multidão dos fiéis,
entregaram a car ta. Depois de a ter lido, se encheram de contentamento,
pela consolação que Ihes causou. E também Judas e Silas, como profetas
que eram, consolaram com muitas palavras os ir mãos e os confir maram na
fé.

3. Fundação da Igreja de Roma por S. Pedro

S. Pedro parece ter se dirigido, logo depois de ser liber tado do cárcere de
Jerusalém, para Antioquia, onde teve par te essencial na fundação daquela
Igreja, que gover nou durante sete anos.
A 18 de Janeiro, porém, do ano 44, como nar ra a piedosa Emmerich, chegou
Pedro a Roma, com os dois discípulos Mar tialis e Apolinaris e o criado
Marcion. De Antioquia veio primeiro a Jer usalém, depois a Roma, passando
por Nápoles e várias outras cidades. Foi recebido mui carinhosamente, com
os companheiros, por Léntulo, um dos mais distintos romanos, a quem fora
anunciada a sua chegada.
Muitos romanos que haviam ido ao batismo de João, também tinham ouvido
falar do Messias e dos milagres que fazia. Léntulo procurou essa gente e
escutou-Ihes avidamente as nar rações. Cresceu-lhe tanto a saudade e o amor
a Jesus, que mandou um sudário fino para tocar no Divino Mestre, no aper to
da multidão e guardou-o depois com grande reverência.
Léntulo tinha também grande desejo de pintar a figura de Jesus e por isso
pedia continuamente a Pedro que lhe contasse muitas coisas sobre o
Salvador. Muitas vezes tentava pintar o retrato de Jesus, mas Pedro sempre
lhe dizia que ainda não lhe era semelhante. Um dia ador meceu Léntulo
durante a oração e ao acordar, encontrou o retrato verdadeiro ter minado
milagrosamente.
Léntulo tor nou-se um dos primeiros cristãos de Roma. Pedro morava, porém,
em casa de Pudens, a qual consagrou como primeira Igreja de Roma e para a
qual Léntulo contribuiu com muitos donativos.
De Roma veio Pedro a Éfeso, por ocasião da mor te de Maria e na volta visitou
Jerusalém. Pedro ocupou a cadeira episcopal de Roma durante 25 anos. Foi
crucificado no ano 69, na idade de 99 anos.

4. Viagens e trabalhos apostólicos de S. Paulo

Quando Paulo e Bar nabé trabalhavam em Antioquia, foram escolhidos pelo


Espírito Santo para o aposto lado entre os gentios. Sendo ordenados bispos,
cumpriram depois fielmente a tarefa que Ihes fora dada.
São Paulo empreendeu três grandes viagens missionárias. A primeira fê-Ia
com Bar nabé. De Antioquia se dirigiram primeiro à ilha de Chipre, onde se
conver teu o gover nador da ilha de Pafos: Sérgio Paulo. Depois continuaram a
viagem até Antioquia, na Pisídia. Mas como ali os judeus contradiziam ao que
Paulo ensinava, disseram Paulo e Bar nabé:
"Éreis os primeiros a quem se devia anunciar a palavra de Deus; mas porque
a rejeitais e vos julgais indignos da vida eter na, desde já nos vamos daqui,
para os gentios." (Cap. 13, 46).
Alegraram-se os gentios, dos quais muitos aceitaram a palavra de Deus. Em
Icônio o povo quis maltratar e prejudicar os dois missionários, que por isso
fugiram para Listra. Paulo curou nessa cidade um homem que nascera coxo e
o povo quis por isso os adorar como deuses; eles, porém, o impediram; mas
pouco depois vieram os judeus, agitando o povo; Paulo foi apedrejado e
deixaram-no como mor to. No dia seguinte pôde par tir com Bar nabé para
Derbe, donde voltaram para Listra, Icônio e Antioquia, na Pisídia.
"Confir maram os corações dos discípulos, exor tando-os a perseverar na fé, e
ensinando-Ihes que por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino
de Deus. Por fim, tendo-Ihes ordenado em cada Igreja
presbíteros e feito orações com jejum, os deixaram encomendados ao
Senhor, no qual tinham crido." (Cap. ]4,21-22).
Passando por Perge e Átila, voltaram para Antioquia, onde tinham começado
a viagem e pouco depois se encaminharam para Jerusalém, afim de tomar
par te no Concílio dos Apóstolos (no ano 50), cuja decisão levaram depois à
comunidade de Antioquia.
São Paulo fez a segunda viagem acompanhado pelo discípulo Silas. Visitaram
primeiro as Igrejas da Síria e Cilícia, que ficavam no caminho de Listra, onde
Timóteo se lhes juntou. Dali viajaram pela Frigia, Galícia e Mísia, para Troas.
"E à noite teve Paulo esta visão: Achava-se ali em pé um homem macedônio,
que lhe rogava e dizia: "Par te para a Macedônia e ajudanos!" (Cap. 16, 6.)
Embarcaram, pois, sem demora, depois de Lucas se lhes ter juntado, em
Troas. Em Filipos se conver teu uma mulher, por nome Lídia, que comerciava
em púr pura. Paulo livrou também uma escrava do demônio, pelo que foi
acusado e, juntamente com Silas, açoitado e lançado no cárcere.
"Mas à meia-noite, postos em oração, Paulo e Silas louvavam a Deus e os que
estavam na prisão, os ouviam. E subitamente se sentiu um ter remoto tão
grande, que se moveram os fundamentos do cárcere. E abriram-se logo todas
as por tas e foram soltas as prisões de todos. Tendo, pois, desper tado o
carcereiro e vendo aber tas as por tas do cárcere, tirando da espada, queria
matar-se, achando que tinham fugido os presos. Mas Paulo bradou-lhe em voz
for te: "Não te faças mal algum, porque todos nós aqui estamos". Então,
tendo pedido luz, entrou lá dentro o carcereiro e, todo tremendo, se lançou
aos pés de Paulo e Silas e tirando-os para fora, disse-lhes: "Senhores, que é
necessário que eu faça para me salvar?" E eles disseram: "Crê no Senhor
Jesus e serás salvo, tu e a tua família." E pregavam-lhe a palavra do Senhor
e a todos de casa. E tomando-os naquela mesma hora da noite, o carcereiro
lavoulhes as chagas e imediatamente foi batizado, com toda a família. (Cap.
16, 25-33).
Posto em liberdade, dirigiu-se Paulo à Tessalônica, anunciando Jesus,
ressuscitado dos mor tos; mas, prevendo uma perseguição, logo que chegou a
noite continuaram a viagem e foram a Beréa. Como também ali os judeus
agitassem contra eles o povo, Paulo deixou nessa cidade Silas e Timóteo,
encaminhando-se para Atenas. Ali, em pé no meio do areópago, anunciou aos
filósofos gentios o Deus desconhecido:
"Homens atenienses, em tudo e por tudo vos vejo um pouco excessivos no
culto da vossa religião. Pois passando e vendo os vossos ídolos, achei
também um altar, em que estava.escrito: Ao Deus desconhecido. Pois esse
Deus que adorais sem o conhecer, é de fato O que vos anuncio. Deus que fez
o mundo e tudo o que nele há, sendo o Senhor do céu e da ter ra, não habita
em templos feitos pelos homens, nem é ser vido por mãos de homens, como
se necessitasse de alguma criatura, quando Ele mesmo é o que dá a todos a
vida e a respiração e todas as coisas. Ele fez de um só casal todo o gênero
humano, para que se espalhasse por toda a face da ter ra e regulou e
deter minou a ordem dos tempos e os limites da existência humana, para que
os homens buscassem a Deus, se por ventura o pudessem tocar ou achar,
ainda que não esteja longe de cada um de nós. Pois n’Ele vivemos e nos
movemos e existimos, como ainda disseram alguns dos vossos poetas:
porque somos também de sua linhagem. Sendo, pois, linhagem de Deus, não
devemos pensar que a Divindade seja semelhante ao ouro ou à prata ou à
pedra lavrada por ar te e indústria do homem. Deus, dissimulando por cer to
os tempos desta ignorância, comunica agora aos homens que todos, em todo
o lugar, façam penitência. Pois deter minou um dia em que há de julgar o
mundo, confor me a justiça, por aquele Homem que destinou para juiz, do que
dá cer teza a todos, ressuscitando-O dentre os mor tos.”
Ouvindo-o, porém, falar da ressur reição dos mor tos, uns faziam zombaria e
outros disseram: "Outra vez te ouviremos sobre este assunto." Assim se
retirou Paulo. Todavia, alguns homens, agregando-se-lhe, abraçaram a fé;
entre estes não foi só Dionísio, areopagita, mas também uma mulher por
nome Dámaris e com eles, outros. (Cap. 17, 22-34.)
Paulo par tiu de Atenas e chegou a Corinto, onde procurou primeiro conver ter
os judeus e depois os gregos à fé de Jesus Cristo. Conver teuse aí Crispo, que
era o príncipe da sinagoga. Depois de uma estadia de um ano e meio em
Corinto, voltou a Antioquia, passando por Éfeso, Cesaréa e Jerusalém.
Ali pouco tempo apenas se demorou o Apóstolo, par tindo depois para a
terceira viagem apostólica. Atravessando primeiro a Galácia e Frigia, chegou
a Éfeso, de onde foi à Acaia, na Grécia e passando por Corinto, voltou a
Éfeso, onde passou mais de dois anos, pregando e fazendo muitos milagres.
"E muitos dos que tinham crido, vinham confessando e anunciando as suas
obras. Muitos também dos que tinham seguido as ar tes vãs, trouxeram os
livros e ajuntando-os, queimaram-nos diante de todos; e ca1culando-lhes o
valor, acharam que montava a cinqüenta mil dinheiros. Deste modo a palavra
de Deus crescia muito e tomava novas forças." (Cap. 19, 18-20).
Como, porém, o culto da deusa Diana cada vez mais diminuísse, o ourives de
prata, Demétrio, amotinou o povo contra o Apóstolo, que por isso par tiu para
a Macedônia e Grécia, voltando dali a Trôade, onde ressuscitou dos mor tos o
mancebo Euticho. Chegado a Mileto, fez diante dos bispos da Ásia Menor um
belo ser mão de despedida, no qual disse:
"E agora, eis que, levado pelo Espírito, vou para Jer usalém, não sabendo o
que ali me há de acontecer, senão o que o Espírito Santo me assegura por
todas as cidades, dizendo que me esperam em Jer usalém prisões e
tribulações. Nada disto, porém, temo nem considero a minha própria vida
mais preciosa do que eu mesmo, contanto que acabe a minha car reira e o
ministério da palavra, que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do
Evangelho da graça de Deus... Tende cuidado convosco e com todo o rebanho
de que o Espírito vos constituiu bispos, para gover nardes a Igreja de Deus,
que Ele adquiriu com seu próprio sangue. Porque sei que depois da minha
par tida hão de penetrar entre vós lobos ar rebatadores, que não pouparão o
rebanho." (Cap. 20, 22-29.)
Par tindo de Mileto, viajou Paulo, por Chipre e Tiro, para Jer usalém. Mas
quando estava no templo, alguns amotinaram o povo. Lançaramlhe as mãos e,
ar rastando o para fora, tê-Io-iam matado, se não fosse o comandante romano,
Lísias, que o ar rebatou das mãos do povo. O Apóstolo defendeu-se em
seguida diante do Conselho Supremo e foi depois retirado de novo do tumulto
pelos soldados e levado à Tor re Antônia. Mais de quarenta judeus fizeram,
porém, o juramento que não haviam de comer nem beber, enquanto não
matassem Paulo. Mas Lísias, tendo-o sabido, mandou levá-I o, com uma
escolta militar, para Cesaréia e entregá-lo ao gover nador Félix, que o
guardou dois anos preso. Paulo defendeu-se também diante de Festo,
sucessor de Félix, como também diante do rei Agripa. Mas, sendo cidadão
romano, apelou para o imperador e foi assim enviado a Roma. Viajando no
alto mar, desencadeou-se um furioso temporal, pondo-Ihes o navio e a vida
em perigo, durante 13 dias, como Paulo mesmo predissera. Próximo da ilha
de Malta se despedaçou o navio de encontro a um rochedo, mas todos os
passageiros chegaram sãos e salvos à praia. O Apóstolo curou o homem mais
eminente da ilha, de nome Públio; e, tendo-o mordido uma víbora, nada
sofreu. No fim de três meses, se puseram de novo em viagem. Em Roma a
prisão de Paulo era pouco rigorosa e ele pôde até conver ter algumas pessoas
da cor te de César. É provável que ainda fizesse uma viagem apostólica à
Espanha e depois à Ásia Menor e à Grécia.
Depois de ter estado nove meses no cárcere Mamer tino, o incansável
Apóstolo foi degolado, fora da cidade de Roma, na estrada de Óstia, a 29 de
Junho de 67 (segundo Catharina Emmerich). Nar ra-nos a tradição que a santa
cabeça, depois de cor tada pelo car rasco, ainda saltou três vezes e onde
tocou no chão, nasceu uma fonte. Hoje ainda existem essas três fontes, na
Igreja de Tre Fontane.
S. Paulo mereceu, com toda a justiça, o nome de Apóstolo dos gentios, pelos
seus trabalhos apostólicos em tantos países pagãos. As quatorze Epístolas
que escreveu, reconhecidas pela Igreja, cheias de sublimes doutrinas da fé,
continuam-lhe o apostolado até o fim dos séculos. O zelo pela glória do nome
de Jesus, na salvação das almas, manifesta-se-Ihe nas palavras: "Fiz-me tudo
para todos, para salvar todos." (1Cor.9, 22) E chega ao apogeu nesta
exclamação: "Desejara atéser anátema por Cristo, por amor de meus ir mãos."
(Rom. 9, 3) Toda a chama de amor se lhe patenteia, porém, na mesma car ta
aos romanos (8, 35): "Quem nos separará, pois, do amor de Cristo? será a
tribulação? ou a angústia? ou a fome? ou a nudez? ou o perigo? ou a
perseguição? ou a espada? Porque estou cer to de que nem a mor te, nem a
vida, nem as coisas presentes, nem as futuras... nem criatura alguma nos
poderá apar tar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo, Senhor nosso." O
Apóstolo mostrou esse amor a Jesus também pela ação, sofrendo pelo nome
de Jesus muitíssimas dores e tribulações, de que ele mesmo escreve:
"Dos Judeus recebi cinco quarentenas de açoites, menos um; três vezes fui
açoitado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes naufraguei, uma
noite e um dia estive no fundo do mar ; em jor nadas, muitas vezes me vi em
perigo de rios, em perigo de ladrões, em perigo dos da minha nação, em
perigo dos gentios, em perigo da cidade, em perigo do deser to, em perigo no
mar, em perigo entre falsos ir mãos; em trabalho e fadiga, em muitas vigílias,
com tome e sede, em muitos jejuns, em frio e desnudez; fora estes males,
que são exteriores, me combatem as minhas ocor rências de cada dia, o
cuidado que tenho de todas as Igrejas." (2Cor. 11,24 - 28).
Em todas as tribulações S. Paulo não carecia de consolações celestiais, de
modo que podia dizer : "Nado em alegria em toda a minha tribulação." (2Cor.
7,4). Depois de tantos trabalhos e lutas, cheios de sacrifícios, pôde, com
todo o direito, escrever : "Combati o bom combate, acabei a minha car reira,
guardei a fé. Quanto ao mais, me está reser vada a coroa da justiça, que o
Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia.” (2Tim. 4, 7 - 8).

5. Santo André, Apóstolo da Grécia

Depois da divisão dos Apóstolos, S. André trabalhou primeiro na Scítia,


depois no Epiro e na Trácia e finalmente na região da Acáia, na Grécia. Dali
foi chamado por uma visão para junto do Apóstolo Mateus, que estava preso,
com outros discípulos e sessenta cristãos, numa cidade da Etiópia. Os
pagãos tinham-lhe der ramado veneno nos olhos, o que lhe causava dores
hor ríveis. André apressou-se a chegar junto de Mateus e curou-o, livrando-o,
com os companheiros, da prisão. Pregou também o Evangelho nessa cidade,
até que foi preso por gente amotina da e ar rastado pela cidade, com os pés
amar rados. André, porém, rezava pelos car rascos, que por isso ficaram tão
comovidos, que lhe pediram perdão e se conver teram.
Depois voltou para a Acaia, onde curou um possesso cego e ressuscitou um
menino. Viajou também para Nicéa, ordenando um bispo nessa cidade. Na
Nicomédia ressuscitou outro rapaz e aplacou uma tempesta de no
Helesponto. Uma vez em que foi ameaçado pelos Trácios selvagens, ficaram
estes assustados com uma luz resplandecente do céu e prostraram-se por
ter ra. Outra vez foi atirado às feras, mas ficou ileso.
Foi em Patras, cidade da Acaia, que o Apóstolo sofreu o mar tírio; por ter
confessado com grande franqueza a fé diante do procônsul Egéas, mandou
este que o lançassem no cárcere. O povo, que lhe era muito afeiçoado,
queria liber tá-Io; ele, porém, pediu que lhe não impedissem de alcançar à tão
almejada coroa do mar tírio. O juiz condenou-o à mor te na cruz. Ao ver de
longe a cruz, André exclamou: "ó boa cruz, há tanto tempo almejada, tão
ardentemente amada e sem cessar procurada! Tira-me de junto dos homens e
restitui-me ao meu Mestre, para que por ti me receba, quem por ti me remiu,"
Por dois dias esteve suspenso vivo, na cruz, pregando ao povo a fé de Jesus
Cristo. A piedosa Emmerich viu-o mor rer, rodeado de Anjos, sendo o cor po
embalsamado por Maxila, tia de Satur nino. Segundo a ser va de Deus, teve
lugar a mor te de Santo André no ano 93.

6. S. Tiago o Maior, Apóstolo da Espanha

Par tindo de Jerusalém, Tiago o Maior dirigiu-se, pelas ilhas gregas e pela
Sicília, à Espanha, onde desembarcou em Gades. Como ali não fosse bem
recebido, mudou-se para outra cidade. Mas também lá não foi tratado melhor ;
prenderam-no e teria sido mor to, se um Anjo não o tivesse livrado
milagrosamente. Deixou na Espanha cerca de sete discípulos e,
acompanhado de dois outros, voltou por Massília, no sul da França, a Roma.
Mas voltou depois à Espanha, dirigindo-se de Guedes, por Toledo, a
Saragoça.
"Ali, diz Catharina Emmerich, se conver teu muita gente, ruas inteiras creram
no Senhor, com exceção apenas dos que ainda aderiam ao paganismo. Vi
Tiago cor rer também muitos perigos. Soltavam contra ele víboras, as quais
tomava tranqüilamente nas mãos e não lhe faziam mal, mas viravam-se
contra os idólatras que o cercavam e estes, vendo o milagre, começavam a
temê-Io. Vi também que em Granada, onde apenas começara a pregar, foi
preso com todos os discípulos e cristãos. Tiago invocou no coração o
socor ro e a proteção da Santíssima Virgem, que nesse tempo ainda vivia em
Jerusalém e Maria salvou-o, com todos os seus discípulos, por inter médio de
Anjos. A Virgem Santíssima mandou-lhe por um Anjo a ordem de ir à Galícia,
pregar ali a fé e depois voltar.
Vi Tiago, após a volta, em grandes tribulações, por causa de uma iminente
perseguição e provação da comunidade cristã de Saragoça. Rezava numa
noite à beira do rio, fora dos muros da cidade, junto com alguns discípulos,
pedindo a Deus conselho, se devia ficar ou fugir. Lembrou-se também da
Santíssima Virgem e suplicou-lhe que o ajudasse a pedir luzes e auxílio do
Filho, que cer tamente não lhe negaria. Então vi subitamente aparecer por
cima do Apóstolo um esplendor no céu e Anjos que entoavam um magnífico
canto e transpor tavam uma coluna resplandecente, que da base projetava um
raio fino de luz sobre um lugar, alguns passos distante de Tiago, como para
indicar esse ponto. A coluna tinha um brilho ver melho, era atravessada por
muitas veias, muito alta e delgada, ter minando em cima como um lírio, que
se abre em línguas de luz, das quais uma raiava longe, em direção a
Compostela, a oeste, as outras, porém, para as regiões próximas. Nessa flor
de luz, vi a figura da Santíssima Virgem em pé, como sempre ficava em vida
na ter ra, durante a oração, toda branca e transparente, com um brilho mais
belo e suave que o da seda branca. Estava de mãos postas, uma par te do
longo véu cobria-lhe a cabeça, a outra par te, porém, envolvia-a até os pés,
de modo que com os pés delicados e pequenos estava sobre as cinco pétalas
da flor de luz. Era um quadro indizivelmente doce e belo. Vi que Tiago,
orando de joelhos, levantou os olhos e recebeu interior mente de Maria a
ordem de, sem demora, construir nesse lugar um templo, em que a
intercessão de Maria se fir masse como uma coluna. Ao mesmo tempo lhe
anunciou a Virgem Santíssima que, depois de acabar a construção da Igreja,
devia ir a Jer usalém, Tiago levantou-se, chamou os discípulos, que já tinham
visto a luz e cor reram para junto dele e comunicou-Ihes a aparição milagrosa
e todos seguiam com os olhos o esplendor que ia desaparecendo.
Tendo executado em Saragoça a ordem de Maria, Tiago constituiu uma
comissão de doze discípulos, entre os quais também homens doutos, que
deviam continuar a obra, que começara com tantas dificuldades e
tribulações.
Em seguida par tiu de Espanha para Jerusalém, como lhe ordenara a Virgem.
Nessa viagem visitou em Éfeso Maria, que lhe predisse a mor te próxima, em
Jerusalém, consolando e confor tando-o. Tiago despediu-se de Maria e do
ir mão e continuou a viagem para Jer usalém, onde foi decapitado. (Veja cap.
13, no. 10).
O cor po do Apóstolo esteve algum tempo num sepulcro per to de Jerusalém.
Quando, porém, se levantou uma nova perseguição, levaram-no alguns
discípulos, entre os quais José de Arimatéia e Satur nino, para a Espanha.
Mas a per versa rainha Lupa, que já antes perseguira S. Tiago, não quis
per mitir que o sepultassem ali.
"Os discípulos tinham posto o santo cor po sobre uma pedra, que sob ele
for mou então uma cavidade, como um sepulcro. Sucedeu também que outros
cadáveres, sepultados ao lado, foram lançados fora da ter ra. Lupa acusou os
discípulos perante o rei, que os mandou prender ; mas escaparam
milagrosamente e o rei que os perseguia com cavalaria, passou sobre uma
ponte, que desabou, mor rendo ele com todos os companheiros. Lupa
assustou-se tanto com esse fato, que mandou dizer aos discípulos que
prendessem e atrelassem touros bravos num car ro; onde estes levassem o
cor po, ali poderiam construir uma Igreja. Esperava que os touros bravos
destruíssem tudo. Um dragão opôs-se na região deser ta aos discípulos, mas
mor reu fulminado, quando fizeram o sinal da cruz; os touros bravos, porém,
tor naram-se mansos, deixaramse atrelar ao car ro e levaram o santo cor po ao
castelo de Lupa. Ali então foi sepultado e o castelo transfor mado em Igreja,
pois Lupa conver teuse, confessando a fé cristã, com todo o povo".
No sepulcro do santo Apóstolo aconteceram muitos milagres. Mais tarde lhe
foram transferidos os ossos para Compostela, que se tor nou um dos mais
afamados lugares de peregrinação. S. Tiago pregou cerca de quatro anos na
Espanha.

7. São João Evangelista em Roma e na Ásia Menor

Os cristãos podiam viver em Éfeso, sem ser incomodados; todavia era João
guardado por algum tempo como preso. Podia, porém, sair, acompanhado por
dois soldados; e visitava muitas vezes gente boa. Uma vez se encontrou, num
tal passeio, com um grupo de estudantes, cujo professor falara contra João.
Como o Apóstolo tinha pregado o desprezo das riquezas ter restres,
compraram ouro e pedras preciosas, que quebraram em pedaços,
espalhando-os por escár nio no caminho de João; queriam mostrar-lhe que os
pagãos podiam também desprezar a riqueza, sem por isso serem
necessariamente cristãos. João, porém, disse-Ihes que isso era desperdício,
mas não a vir tude do desapego. Um dos rapazes desafiou-o então a apanhar
os pedaços das pedras e restaurar-Ihes a for ma anterior, que creriam no seu
Deus. João disse-Ihes que as apanhassem e lhas trouxessem. Assim fizeram;
João rezou e restituiu-Ihes então tudo em estado perfeito. Prostraram-se
então os jovens diante dele, deram as jóias aos pobres e tor naram-se
cristãos.
"Dois dos que tinham dado os bens aos pobres e seguido a João, conta
Catharina Emmerich, vendo os escravos bem vestidos, ar rependeram-se de
ter seguido a Cristo. Vi João apanhar ramos do mato e pedras na praia do
mar, conver tendo-os pela oração em varas de ouro e pedras preciosas e;
dando-Ihes, disse que comprassem de novo as riquezas.
Estava ainda a repreendê-Ios por causa da queda, quando passou diante
deles o cadáver de um jovem e muita gente que o transpor tava; imploraram,
chorando, ao Apóstolo que lhe restituísse a vida. Orando, ressuscitou-o e
mandou-lhe dizer aos discípulos ir resolutos o que sabia do estado de suas
almas. O ressuscitado falou-Ihes do outro mundo, exor tando-os a fazer
penitência. Ar rependeram-se então os jovens e o Apóstolo mandou-os jejuar,
recebendo-os depois novamente na Igreja; o ouro, porém, tor nou-se de novo
em ramos e as pedras preciosas conver teram-se novamente nas pedras
anteriores e foram lançadas ao mar.
Vi que muitos se conver teram e que João foi preso. Um sacerdote dos ídolos
disse que creria em Jesus e o liber taria, se João bebesse um cálice de
veneno, sem mor rer. Fizeram-no conduzir a um largo, perante o juiz e grande
multidão de homens. Vi também que dois condenados à mor te foram forçados
a beber o veneno e caíram mor tos em pouco tempo. João rezou e pronunciou
algumas palavras sobre o cálice. Então saiu deste um negro vapor e uma luz
desceu sobre ele. João bebeu tranqüilamente e o veneno não lhe fez mal
algum. O sacerdote pagão exigiu ainda que João ressuscitasse os dois
mor tos. O Apóstolo deu-lhe o manto para o estender sobre os mor tos e disse-
lhe o que devia dizer então. Feito isso, levantaram-se os dois mor tas; à vista
deste milagre, quase toda a cidade se conver teu e deram liberdade a João.
Vi também desabar um templo em Éfeso, quando queriam obrigar João a
sacrificar aos ídolos. Era como se uma tempestade caísse sobre o templo;
r uiu o teto, poeira e vapor saiam de todas as aber turas e os ídolos fundiram-
se.
Um judeu conver tido, que ainda era catecúmeno, caiu, na ausência de João,
em grande pobreza e dívidas e era por isso muito perseguido. Então lhe disse
um judeu maldoso que tomasse veneno, pois teria de ficar até à mor te no
cárcere dos devedores insolventes. Vi então o pobre homem, cheio de
angústia, beber três vezes uma taça de bronze, cheia de veneno, mas como
S. João lhe tivesse ensinado a fazer o sinal da cruz sobre tudo quanto
comesse ou bebesse, o veneno não lhe fez mal, apesar de querer envenenar-
se. Nesse ínterim voltou João àquele lugar. O homem confessou-lhe o ato que
praticara e, repreendido, reconheceu o crime, manifestando grande
ar rependimento. João fez o sinal da cruz sobre a taça de veneno, a qual se
conver teu em ouro e mandou-lhe pagar com isso as dividas. Esse homem
tor nou-se discípulo de João e bispo daquela cidade onde João achou o
menino que mais tarde encontrou como membro de um bando de bandidos.
João achou-o apascentando um rebanho fora da cidade. Conversando com o
menino, conheceu-lhe os bons talentos, apesar de grande falta de educação.
Mandou que chamasse os pais, dos quais João pediu e recebeu o menino,
para o educar. Tinha este 10 anos de Idade. João levou-o ao bispo de Beréa,
para o educar e disse a este que mais tarde viria pédí-Io. No princípio tudo ia
bem; depois se descuidaram do menino, que afinal se juntou a uma quadrilha
de salteadores. Quando João, na volta, perguntou pelo menino, soube que se
achava nas montanhas, entre os salteadores. Então montou numjumento e
seguiu para lá. Erajá idoso e o caminho da montanha muito íngreme. Tendo
achado o moço, suplicou-lhe de joelhos que se conver tesse. O jovem tinha
então cerca de vinte anos. João levou-o consigo, depôs o bispo e impôs uma
penitência ao moço, que se tor nou mais tarde também bispo.
O bispo demitido era, aliás, um homem bom, mas faltara ao dever para com o
moço. Ficara apenas seis anos bispo; era mais o vigário geral de João.
Chama-se Áquila e mor reu de mor te natural. Oh! como chorou, ajoelhando-se
diante de João, quando este o repreendeu pelo descuido! Quando João foi
atirado no óleo fer vente, tinha ensinado na Itália, onde fora também preso.
De Patmos, onde era muito benquisto e tinha conver tido muitos, viajava às
vezes, com os guardas, mesmo até Éfeso. As revelações do Apocalipse, não
as recebeu de uma só vez, nem as escreveu ao mesmo tempo, mas com
inter valos; somente três anos antes da mor te foi que escreveu o Evangelho,
no Interior da Ásia. - Tive várias visões do mar tírio deste Apóstolo, em Roma.
Vi-o num pátio circular, cercado de um muro simples, onde o despiram e
açoitaram; estava já muito velho, mas ainda tinha um aspecto delicado e
juvenil. Vi-o também conduzido por uma por ta para fora da cidade a um largo
vasto e circular, onde havia uma caldeira alta e um pouco estreita,
colocada sobre um fogão circular de pedra, o qual tinha aber turas embaixo,
para entrar o ar. João vestia um manto largo, abotoado no peito, quase como
o Senhor, quando foi escar necido depois da coroação de espinhos. Havia em
roda muita gente a olhá-lo. Tiraram-lhe o manto e vi o cor po sangrento pela
flagelação. Dois homens levantaram João, que subia também. O óleo estava
fer vendo; embaixo faziam fogo com lenha cur ta, de cor escura, que traziam
em feixes. Tendo João estado dentro da caldeira por algum tempo, sem sinal
de dor ou queimaduras, tiraram-no; todo o cor po conser vava-se ileso e
renovado, pois todas as feridas feitas pelos açoites, tinham-se curado. Muita
gente que o viu, precipitou-se para a caldeira, sem medo, enchendo
pequenos jar ros com o óleo e eu ficava admirada de que não se queimassem.
João, porém, foi reconduzido à cidade.
De Roma veio João de novo a Éfeso vivendo ali alguns dias escondido. Só de
noite visitava as moradas dos cristãos e também celebrou o santo sacrifício
em casa de Maria. Depois mudou, com alguns discípulos, para Kedar, onde
três anos antes da mor te escreveu o Evangelho, na solidão. Os discípulos
não estavam presentes quando escrevia; moravam um pouco afastados e só
de vez em quando iam levar-lhe alimen to. Vi que escrevia deitado sob uma
ár vore e que, quando chovia, em cima do Apóstolo per manecia o céu claro e
não o molhava. Viveu ali mais tempo, ensinando também e conver tendo muita
gente nas cidades. De lá voltou novamente a Éfeso.
Os par tidários principais dos reis Magos, depois de recebido o ba tismo das
mãos de São Tomé, dirigiram-se à Ilha de Creta; o resto espalhara-se por
outras regiões. São Tomé instituíra na Arábia vários bispos, per tencentes às
tribos dos Reis Magos. Estes bispos não conseguiram mais gover nar os fiéis
da região, os quais sempre recaiam na idolatria. Por isso escreveram a São
João, que Ihes mandasse dois discípulos, ambos ir mãos de Fidélis, os quais
receberam no batismo os nomes de Macário e Caio e já eram homens. Esses,
porém, tanto tempo lho pediram, que afinal, embora em idade avançada, fez
essa viagem. Moravam ainda mais longe do que o acampamento de Mensor.
Vi João num lugar onde habitavam os cal deus, que possuíam no seu templo o
jardim fechado de Maria. O templo não existia mais; tinham uma Igreja
pequena, em for ma da casa de Maria em Éfeso, com ter raço, como tenho
visto todas as Igrejas nos primeiros tempos do cristianismo. Ali se reuniram
também os bispos, pedindo a João que escrevesse a vida de Jesus, pois que
lhe contariam tudo quanto sabiam. Disse-lhes, porém, o Apóstolo que já tinha
escrito a vida de Jesus e tudo quanto podia escrever de sua Divindade neste
mundo; que, enquanto escrevera, quase sempre havia estado no céu, não
podia escrever mais outra coisa. Disse-Ihes que um dos discípulos que
acompanhara Jesus, de nome Eremenzear, mais tarde chamado Her mes, tinha
escrito a respeito; Macário e Caio deviam completá-lo. Vi também que estes
assim fizeram e que a obra de Macário se perdeu, mas a de Caio ainda
existe. João par tiu dali para Jer usalém, depois para Roma, donde voltou para
Éfeso.
Tive também uma bela visão da mor te de São João. Estava já muito velho,
mas tinha o rosto ainda belo, delicado e juvenil. Vi-o par tir e distribuir o pão
divino, creio que por três dias em seguida, numa Igreja de Éfeso. Lembro-me
que Jesus lhe tinha aparecido, anunciando-lhe a mor te; recordo-me só
obscuramente, mas vi muitas vezes Jesus lhe aparecer. Depois o vi ensinar
ao ar livre, sob uma ár vore, fora da cidade, rodeado pelos discípulos; dirigiu-
se em seguida, acompanhado apenas por dois discípulos, a um belo lugar
num bosque, atrás de uma pequena colina. Havia ali uma linda relva e podia-
se ver o mar azul no horizonte. Mostrou-Ihes uma coisa no chão; era que
deviam cavar ou acabar-lhe a cova. Creio que era para acabar, pois pouco
depois tudo estava tão bem preparado, que o trabalho principal devia ter sido
feito já anterior mente. As pás ainda estavam lá. Vi-o voltar para junto dos
outros, ensinandoIhes com amor, rezando e exor tando-os a se amarem uns
aos outros. Os dois voltaram também e um deles disse: "Ai! meu Pai, cremos
que nos quereis abandonar." Comprimiam-se-Ihe todos em roda e prostravam-
se por ter ra, chorando; João exor tou-os, rezou e abençoou-os. Depois man-
dou que ficassem ali; e acompanhado por cinco dentre os discípulos, foi ao
lugar do sepulcro, que não era muito profundo, mas bem revestido de relva;
tinha uma tampa de vime e sobre esta puseram depois, se bem me lembro,
relva e uma pedra.
João, em pé à beira da cova, rezou com os braços estendidos; depois colocou
dentro o manto, entrou e, sentando-se, ainda rezava. E veio-lhe um grande
esplendor, enquanto ainda falava; os discípulos estavam prostrados por
ter ra, chorando e rezando. Vi depois uma coisa maravilhosa: Quando João
caiu vagarosamente deitado e expirou, vi no esplendor que o encimava, uma
figura resplandecente, semelhante a ele, sair-lhe do cor po, como de um
invólucro grosseiro e desaparecer com a luz. Depois vi também os outros
discípulos, que se aproximavam e se prostravam em roda do sepulcro, sobre
o cor po sagrado, que foi cober to em seguida.
Vi também que o cor po do Apóstolo não está mais na ter ra, mas entre nor te
e leste, num lugar resplandecente como o sol; vi que lá era como um
inter mediário, recebendo alguma coisa de cima e levando-a para baixo. Vi
esse lugar como ainda per tencente à ter ra, mas elevado acima dela e
inacessível.”

8. Viagens apostólicas e trabalhos de São Tomé, principalmente na Índia


Havia cerca de três anos depois da mor te de Jesus, quando Tomé, com o
Apóstolo Tadeu e quatro discípulos, par tiu para o país dos Reis Magos.
Batizou os dois reis, já muito idosos, Mensor e Teokeno e pouco a pouco
foram batizados todos os habitantes do país.
Tomé enviou Tadeu, com uma car ta, ao rei Abgar, para o curar ; soubera, por
uma revelação divina, da enfer midade do rei.
"Por todo o caminho, conta a piedosa Emmerich fazia Tomé grandes milagres,
instituía catequistas e deixava também um discípulo. Continuou a viagem até
a Báctria. Foi também ao extremo nor te, além da China, onde começa o
ter ritório da Rússia, entre tribos muito selvagens. Na Báctria e entre os
povos que seguem a doutrina de Zoroastro, teve muito bom êxito. Chegou
também ao Tibet.
Mais tarde vi São Tomé, não só na Índia, mas também numa ilha, entre gente
de cor e também no Japão; ouvi-lhe também profecias sobre a sor te futura da
religião nesse último país.
Tomé tinha pouca vontade de ir para a Índia. Antes de par tir para lá, teve
muitos sonhos, nos quais construía belos e grandes palácios na Índia. Não o
compreendia a princípio, não dando impor tância a esses sonhos, porque nada
sabia de arquitetura. Mas continuavam a repetirse tais avisos interiores, de
ir à Índia para conver ter muitos homens e ganhar muitas almas, porque isso
significaria a construção dos grandes palácios. Aconselhou-se com Pedro,
que o exor tou a par tir para a Índia. Então seguiu ao longo do Mar Ver melho e
passou também pela Ilha de Socotora, onde ensinou, mas não por muito
tempo.
Foi a segunda cidade da Índia onde Tomé chegou, encontrando o povo a
preparar-se para uma grande festa. Ensinou e curou enfer mos; o rei e muito
povo o escutavam. Foram tantos os que lhe aderiram, que um jovem
sacerdote dos falsos deuses lhe criou um profundo ódio e uma vez, durante o
ser mão, lhe bateu no rosto. Tomé, porém, per maneceu calmo e humilde e,
agradecendo-lhe, ofereceu também a outra face. Vendo-o, o rei e todo o povo
ticaram muito comovidos, estimando depois Tomé como um homem muito
santo; o sacerdote idólatra conver teu-se.
A mão tinha-se-Ihe cober to inteiramente de lepra. Tomé, porém, curou-a e o
jovem conver tido se tor nou o mais fiel dos discípulos. Tomé conver teu
também a filha do rei e o marido, que era possesso de um demônio; depois
saiu da região, continuando a viagem mais para leste. Tendo a filha do rei
dado à luz um filho, ela e o marido tizeram voto de castidade, dando todos os
bens aos pobres. O pai indignou-se muito e afir mou que Tomé era feiticeiro;
mas a filha e o genro perseveraram no seu propósito e propagavam por toda
a par te a doutrina singela de Jesus Cristo, como a tinham recebido,
conver tendo muitos. o próprio pai atinal ticou como vido e mandou um
mensageiro a Tomé, pedindo-lhe para voltar. O Apóstolo voltou, pois, na
despedida Ihes dissera: "Em pouco tempo nos tor naremos a ver." O rei e uma
grande multidão de povo pediram o batismo e o próprio rei tor nou-se mais
tarde diácono e foi juntar-se aos seis Magos. Tenho ainda a lembrança vaga
de que se tor nou sacerdote e o filho construiu uma igreja.
Vi Tomé numa outra cidade, à beira do mar e notei que tencionava deixar a
Índia; creio que não era longe da região, onde mais tarde pregou São
Francisco Xavier. Apareceu-lhe, porém, Jesus, que o mandou viajar para o
interior da Índia. Tomé não queria, por habitar ali um povo muito selvagem;
então lhe apareceu Jesus, pela segunda vez, dizendo-lhe que lhe estava
fugindo diante dos olhos, como Jonas; que fosse para lá, pois não o
abandonaria; grandes prodígios se fariam por suas mãos. No dia do juízo
Tomé havia de estar a seu lado, como testemunha de quanto Ele fizera pelos
homens.
Vi São Tomé, caminhando com muito povo, curando enfer mos, expulsando
demônios e batizando numa fonte. Veio vê-Io também um homem muito
distinto, douto e piedoso, que sempre estava estudando nos livros e se
tor nou zeloso discípulo do Apóstolo. Esse homem tinha uma sobrinha, casada
com um parente do rei. Era extremamente bela e riquíssima. Tendo ouvido
falar dos milagres de Tomé, sentia grande desejo de ouvir-lhe a doutrina.
Passando através do povo, até chegar junto dele, prostrou-se-Ihe aos pés e
pediu-lhe que lhe ensinasse. Tomé ensinou-lhe e abençoou-a; a moça ficou
muito comovida, chorava, rezava e jejuava dia e noite. O marido, que a amava
muito, tor nou-se muito triste e procurava distraí-Ia. Ela, porém, lhe pediu que
a deixasse ainda algum tempo recolhida. Ia diariamente à doutrina de Tomé e
tor nou-se zelosa cristã. O marido, zangado, apresentou-se em vestes de luto
ao rei, acusando Tomé. Tendo levado o Apóstolo amar rado ao rei, este o man-
dou açoitar e encarcerar. Foi o primeiro mar tírio de São Tomé, em todas as
suas viagens; ele, porém, louvava a Deus.
A mulher conver tida cor tou o cabelo, chorava e rezava, deu tudo aos pobres
e não usava mais enfeites. De noite, na ausência do marido, subor nava os
guardas e ia com outros ao cárcere, para ouvir a doutrina de Tomé. Levava
consigo a ama de leite e pediram o batismo. Tomé mandou preparar tudo em
casa para o batismo, e saindo do cárcere, foi à casa das recém-conver tidas e
batizou-as, com muitos outros. Os guardas dor miam, por efeito da
Providência Divina e Tomé voltou ao cárcere.
Como, porém, até da família real alguns mudassem de vida e seguissem a
doutrina do Apóstolo, mandou o rei trazê-Io à sua presença e como Tomé lhe
explicasse a doutrina, sem que o rei quisesse crer, propôs-lhe o Apóstolo
pedir a Deus um sinal de que ele dizia a verdade. Então mandou o rei colocar-
lhe em frente lanças em brasas e Tomé andou sobre as mesmas sem se
queimar ; no lugar onde foram colocadas, nasceu uma fonte. Tomé nar rou
também ao rei o que anunciava em toda a par te; que tinha visto, durante três
anos, os milagres feitos por Jesus e contudo tinha duvidado muitas vezes;
que agora cria e era obrigado a propagar a verdade entre os infiéis. Acusava-
se sempre de seu pecado. O rei mandou ainda aquecer uma sala de banho,
para o fechar lá dentro e fazê-Io mor rer pelo vapor quente; mas era
impossível aquecê-Ia e havia dentro só ar. Depois quis forçá-Io a sacrificar
aos ídolos e Tomé disse: "Se Jesus não quebrar os teus ídolos, então
sacrificarei." Então prepararam uma grande festa e dirigiram-se com pompa
ao templo. O ídolo, colocado num car ro, era todo de ouro. Mas, à oração de
Tomé, caiu como fogo do céu, fundiu o ídolo e muitos outros ídolos caíram.
Levantou-se um grande tumulto entre o povo e os sacerdotes dos ídolos e
Tomé foi novamente lançado no cárcere.
Deste cárcere foi liber tado como Pedro, dirigindo-se a uma ilha, onde ficou
longo tempo. Deixou catequistas nesse país e par tiu para o Japão, onde se
demorou meio ano. Depois que voltou, conver teram-se ainda muitas pessoas
da família real. Os sacerdotes idólatras guardavam-lhe veemente ódio. Um
deles tinha um filho enfer mo e pediu a Tomé que o curasse; depois, porém,
estrangulou o filho, acusando Tomé do assassínio. Este, entretanto, mandou
trazer o cadáver e ordenou-lhe, em nome de Jesus, que dissesse quem o
matara. O cadáver levantou-se e disse: "Foi meu pai." Em conseqüência deste
milagre se conver teram ainda muitos.
Vi que Tomé costumava rezar fora da cidade, à grande distância do mar,
ajoelhado sobre uma pedra, a qual conser vava as impressões dos joelhos.
Um dia predisse que, se o mar, que estava muito distante, chegasse até
aquela pedra, viria um homem de uma ter ra longínqua, para pregar a doutrina
de Jesus. Então eu não podia imaginar como o mar pudesse chegar até ali.
Mas nesse lugar foi erigida uma cruz de pedras por Francisco Xavier, quando
desembarcou.
Vi S. Tomé, de joelhos sobre essa pedra, rezando em êxtase; aproximaram-se
traiçoeiramente sacerdotes idólatras, que o atravessaram com uma lança. O
cor po do Apóstolo foi transpor tado para Odessa, onde ainda tenho visto
celebrarem-lhe a festa. No lugar em que mor reu, ficoulhe, porém, uma
costela e a lança que o transpassou. Ao lado da pedra havia uma oliveira,
que foi salpicada com o sangue de Tomé e que exsudava óleo todos os anos,
no dia do mar tírio do Santo e quando isso não acontecia, esperavam os
habitantes da região um ano mau. Vi que os idólatras em vão tentavam
desar raigar esse arbusto, que sempre de novo crescia; vi também ali uma
Igreja e quando, na festa do Apóstolo, se rezava a Missa, o arbusto exsudava
ainda óleo. A cidade tem o nome de Meliapur ; agora a situação não é
favorável, mas a fé cristã há de fir mar-se ali de novo.
Foi-me dito que Tomé chegou à idade de noventa e três anos. Estava
queimado pelo sol e muito magro; tinha o cabelo ruivo. Ao mor rer, apareceu-
lhe o Senhor, dizendo-lhe que ia sentar-se-Ihe ao lado, no dia do juízo.
Se não me engano, na ordem de suas freqüentes viagens, depois da divisão
dos Apóstolos, foi primeiro ao Egito, depois à Arábia e, chegando ao deser to,
mandou um discípulo ao Apóstolo Tadeu, para que visitasse o rei Abgar.
Depois batizou os reis Magos e percor reu a Báctria, a China, o Tibet, e ao
nor te, o ter ritório russo, voltando dali a Éfeso, para assistir à mor te de
Maria; da Palestina par tiu para a Itália, atravessando depois uma par te da
Alemanha, Suíça e França, embarcou para a África e passando pela ter ra de
Judit, pela Abissínia e Etiópia, foi à Socotora; dali foi à Índia e Meliapur, de
onde, liber tado do cárcere pelo Anjo, se dirigiu, por uma par te da China, ao
extremo nor te, que agora per tence à Rússia. Dali veio à ilha ao nor te do
Japão.”

9. Trabalhos apostólicos de S. Bar tolomeu na Ásia e especialmente na


Abissínia, (África)

O Santo Apóstolo Bar tolomeu pregou primeiro na longínqua Índia, onde


deixou muitos discípulos e conver tidos. Dali par tiu para o Japão e voltando,
seguiu através da Arábia e do Mar Ver melho, para a Abissínia.
Ali conver teu o rei Polímio e ressuscitou um mor to.
Na capital desse país muitos enfer mos tinham sido curados por um ídolo;
mas desde que Bar tolomeu chegara, emudecera o ídolo. Havia na mesma
cidade uma casa, em que habitavam muitas mulheres possessas do demônio.
Bar tolomeu curou-as todas, ensinou e batizou-as, depois de terem
publicamente renunciado a idolatria.
"O Apóstolo conversava muitas vezes com o rei Polímio, que lhe fazia
perguntas muito profundas e o deixava freqüentemente, para consultar
grandes rolos escritos. O Apóstolo tinha consigo um rolo escrito, o
Evangelho de S. Mateus e dele lia as respostas. Disse-lhe também que o ídolo
fazia os homens adoecerem e depois os curava, para os confir mar na
idolatria. Mas agora o demônio fora amar rado pelo nome de Jesus e não
podia mais agir por meio do ídolo. Prová-Io-ia, se o rei deixasse consagrar o
templo ao verdadeiro Deus e recebesse o batismo, com todo o povo. O rei
convocoU todo o povo ao templo e quando os sacerdotes pagãos quiseram
sacrificar, gritou-Ihes o demônio do ídolo que não o fizessem, porque estava
amar rado pelo Filho de Deus.
Bar tolomeu ordenou-lhe que manifestasse todas as falsas curas que fizera e
o demônio confessou tudo pelo ídolo. Depois pregou Bar tolomeu diante do
templo e mandou a Satanás que se mostrasse na sua verdadei ra for ma, para
que o povo visse qual deus tinha adorado. Então este apareceu como
hor rendo monstro preto, desaparecendo diante deles na ter ra. O rei mandou
destruir todos os ídolos. Bar tolomeu, porém, consa grou o templo para ser vir
de Igreja e batizou o rei e a família e pouco a pouco todo o exército.
Ensinava, curava os enfer mos e era benquisto por todo o povo.
Depois recebeu Bar tolomeu do céu a ordem de ir visitar a SS. Virgem.
No entanto dirigiram-se os sacerdotes idólatras a Astíages, ir mão de Polímio,
acusando Bar tolomeu de feiticeiro. Quando este, pois, voltou da reunião dos
Apóstolos àquela ter ra, não chegou até lá, mas foi preso por emissários de
Astíages e levado à presença deste, que lhe disse:
"Seduziste meu ir mão a adorar o teu Deus; eu te ensinarei agora a sacri ficar
ao meu." Bar tolomeu replicou: "Deus, que me deu o poder de mos trar a teu
ir mão, Satanás e expulsá-Io diante dele para o Infer no, há de dar-me também
a força de esmagar os teus ídolos e de forçar-te a aceitar a fé." Logo depois
veio um mensageiro, anunciando que o ídolo do rei caíra despedaçado. Então
rasgou o rei a roupa com raiva e mandou açoitar Bar tolomeu, que foi
amar rado a uma ár vore e esfolado vivo, mas neste mar tírio não deixou de
pregar em alta voz, até que lhe atravessaram o pescoço com uma espada.
Esfolaram-no, começando pelos pés e entregaram-lhe a pele nas mãos.
Depois da mor te lançaram o santo cor po às feras, mas alguns conver tidos
pobres tiraram-no de noite. Vi que Polímio o buscou, com muito povo e
sepultou. Construíram-lhe uma capela sobre o sepulcro. O rei pagão, porém,
e os sacerdotes idólatras que tinham acusado Bar tolomeu, endoideceram,
após treze dias e fugi ram para o sepulcro do Apóstolo, pedindo socor ro em
alta voz; o rei conver teu-se; os sacerdotes, porém, mor reram de uma mor te
hor rível.”
10. Os santos Apóstolos Simão e Judas Tadeu na Pérsia

Os dois ir mãos Simão e Tadeu, depois da separação dos Apóstolos, viajaram


algum tempo juntos; depois se dirigiu Simão ao Mar Negro e à Scítia; Tadeu,
porém, ao Oriente, onde provavelmente se encontrou com S. Tomé, ficando
com este. Depois foi incumbido por Tomé de levar uma car ta ao rei Abgar.
Quando Tadeu chegou ao palácio do rei, este viu ao lado do Apóstolo a figura
resplandecente de Jesus, diante da qual se inclinou profundamente. O
Apóstolo curou o rei da lepra, pela imposição das mãos.
Tendo curado em Edessa muitos enfer mos e conver tido muitos infiéis,
percor reu, com o companheiro Silas, os países que Jesus já visitara e veio
pela Arábia até o Egito. Nessa viagem conseguiu batizar muita gente;
povoações inteiras aceitaram a fé cristã.
Simão dirigiu-se, depois da mor te de Maria, ao país dos Persas. Tinha por
companheiros o discípulo Abdias e alguns outros. Guiados pela Providência
Divina, os dois ir mãos encontraram-se novamente num acampamento militar
e chegaram depois a uma grande cidade (Babilônia).
"Ali foram bem sucedidos; vi acontecerem muitas coisas, das quais não me
lembro mais. Somente me recordo de que, numa assembléia, em presença do
rei, sacerdotes pagãos se levantaram contra os Apóstolos; alguns tinham em
ambas as mãos feixes de cobras, do comprimento de um braço, outros tinham
em cada mão duas ou três. Essas cobras eram mais redondas e mais
delgadas do que enguias; tinham cabeças redon das e pequenas, com a boca
sempre aber ta, vibrando as línguas como flechas. Os sacerdotes idólatras
soltaram as víboras contra os Apóstolos; mas vi-as lançarem-se, voando
como setas, contra aqueles que as trouxeram, enrolando-se-Ihes e mordendo-
os, de modo que fugiram, com gritos estridentes, até que os Apóstolos
ordenaram às víboras que os deixassem. Vi que muitos habitantes da cidade
e o próprio rei se tor naram cristãos.
Par tiram depois para outra cidade, onde moravam em casa de um homem que
era cristão. Amotinou-se o povo da cidade, e vi que os dois Apóstolos foram
levados, junto com o cristão que os hospedava, a um templo, no qual havia
ídolos de ouro e prata, colocados sobre car ros. Estava reunida, dentro e fora
do templo, uma imensa multidão de povo. Lembro-me que os ídolos se
quebraram e várias par tes do templo desabaram e que os dois Apóstolos
foram ar rastados no aper to da multidão, sem se defenderem e foram mor tos,
com toda a espécie de ar mas, pelos sacerdotes e o povo. Vi que a um deles,
creio que a Tadeu, foi fendida a cabeça, cor tada pelo meio do rosto, com o
machado que o povo trazia à cintura. Vi sobre eles celestes aparições.”
Os cor pos dos dois santos Apóstolos jazem na catedral de São Pedro em
Roma.

11. Trabalhos apostólicos e tribulações dos santos Apóstolos Felipe, na


Frigia e Mateus, na Etiópia.

Sobre os trabalhos do santo Apóstolo Filipe, relata Catharina Emmerich


apenas o seguinte:
"Depois de Pentecostes, foram Felipe e Bar tolomeu a Gessur, nas fronteiras
da Síria. Felipe curou logo uma mulher da cidade; era muito benquisto pelo
povo, mais tarde, porém, foi perseguido.”
A história eclesiástica conta que Felipe chegou também à Frigia,
conver tendo numerosos pagãos à fé cristã. Em Hierápoli, cidade desta
província, foi ar rastado pelos pagãos perante um ídolo do deus Mar te, para
lhe sacrificar. Dizem que saiu por debaixo do altar uma cobra enorme, que
matou dois tribunos e o filho de um sacerdote idólatra. O santo Apóstolo
ressuscitou todos os três, mas foi açoitado e crucificado. Quiseram tirá-Io da
cruz ainda vivo, mas pediu que o deixassem mor rer na cruz, como o divino
Mestre e Senhor. Foi atendido este pedido, pois o apedrejaram pendendo da
cruz. O mar tírio deste Apóstolo teve lugar no ano 81.
Do santo Apóstolo Mateus conta a piedosa Catharina Emmerich que estava
preso numa cidade da Etiópia e que S. André o curou do veneno que os
pagãos lhe tinham der ramado nos olhos.
Segundo a tradição, S. Mateus pregou durante 23 anos na Etiópia,
conver tendo grande multidão de povo à fé cristã, entre outros também o rei
Egipo e toda a família. A filha do rei, Efigênia, fez o voto de guardar a
virgindade e neste propósito foi confir mada pelo santo Apóstolo. Sabendo
disto o tio, que depois da mor te do pai usur para o trono e queria desposá-Ia,
mandou matar o santo Apóstolo. São Mateus foi atravessado por uma lança,
no altar, durante a celebração do Santo Sacrifício.

12. Os santos Evangelistas Marcos, em Roma e no Egito e Lucas, na Grécia

São Marcos veio a Roma, com o príncipe dos Apóstolos, S. Pedro. No seu
Evangelho escreveu o que lhe ditou S. Pedro.
Quando ir rompeu em Roma uma epidemia de peste, erigiu-se, por ordem de
Marcos, uma Via Sacra. Cristãos e pagãos que rezavam, percor rendo esta Via
Sacra, ficavam livres ou curados da peste. Muitos pagãos, vendo esse
milagre, se conver teram.
De Roma se dirigiu São Marcos para o Egito, para pregar ali o Evangelho.
"Vi-o primeiro em Alexandria; não foi com muito gosto que par tiu para lá. Na
viagem cor tou tão desastrosamente o dedo da mão direita, que o teria
perdido, se não fosse curado por uma aparição celeste, com a qual muito se
assustou, como S. Paulo. Em volta do dedo lhe ficou toda a vida uma marca
ver melha.
Ao entrar em Alexandria, rasgou-se-Ihe a sandália e deu-a a um sapateiro, de
nome Aniano, para a remendar. Este se feriu na mão, durante o trabalho;
Marcos, porém, curou-a com um ungüento preparado de pó e saliva. Vendo-o,
conver teu-se Aniano e Marcos foi morar-lhe em casa. Aniano possuía uma
casa vasta, muitos escravos, mulher e dez filhos. Numa sala, per tencente à
casa entregue a Marcos, se celebravam as primeiras reuniões dos
conver tidos. Os Apóstolos não celebravam o santo Sacrifício numa nova
comunidade, antes desta ter sido bem instruída e confir mada. Seguiamjá um
rito cer to na distribuição da sagrada Comunhão, durante o Santo Sacrifício.
Três dos dez filhos de Aniano tomaram-se mais tarde sacerdotes. O pai foi
sucessor de S. Marcos.
O Apóstolo esteve também em Heliópoli. Havia ali um oratório, instituído
quando morava ali a sagrada Família; desse oratório foi constr uída uma
igreja e ao lado, mais tarde um pequeno convento. Os que Marcos ali batizou,
eram na maior par te judeus.
São Marcos foi preso e lançado num cárcere em Alexandria e mor reu
estrangulado com uma corda. Quando estava no cárcere, vi Jesus aparecer-
lhe, tendo na mão uma patena e dando-lhe um pequeno pão redondo. Vi
também que o cor po do már tir foi levado mais tarde para Veneza.”
Como nos conta a piedosa Emmerich, esteve S. Lucas primeiro com São João,
em Éfeso, depois com Santo André. Na ter ra pátria travou conhecimento com
Paulo, a quem depois acompanhou nas viagens.
"Escreveu o Evangelho, a conselho de Paulo e porque circulavam livros
apócrifos da vida do Senhor. Escreveu-o 25 anos depois da Ascensão de
Jesus, redigindo-o na maior par te com as infor mações de testemunhas
oculares, que procurava por toda a par te. Já no tempo da ressur reição de
Lázaro o vi visitar os I,ugares onde O Senhor operava milagres e infor mar-se
de tudo. Tinha também amizade com Barsabas. Foi-me também revelado que
Marcos escreveu o Evangelho só com infor mações de testemunhas oculares e
que nenhum dos Evangelistas conhecia nem aproveitou na sua obra a dos
outros. Também me foi dito que teriam inspirado menos fé se tivessem
escrito tudo e que não escreveram os milagres, muitas vezes repetidos, por
motivo da extensão do livro.
Vi que Lucas pintou vários retratos da Santíssima Virgem, alguns de modo
milagroso. O busto de Maria, que não conseguia acabar, encon trou
ter minado, ao voltar a si de um êxtase, em que caíra durante a oração. Esse
retrato é ainda conser vado em Roma, na Basílica de Santa Maria Maior, por
cima de um altar, na capela do Presépio, à direita do altar-mor. Não é, porém,
o original, mas apenas uma cópia. O original foi antigamente encer rado num
muro junto com muitas outras coisas sagradas, por ocasião de uma
perseguição; nesse muro, que foi conver tido em um pilar, há também
relíquias de santos e documentos de muita antiguidade. A Igreja tem seis
pilares; é o do meio, à direita, de modo que o sacerdote, dizendo a Missa no
altar da imagem de Maria, ao dizer : Dominus vobiscum, indica com a mão
direita esse pilar.
Lucas pintou também o retrato inteiro de Maria, vestida de noiva; mas não
sei onde se acha agora esse quadro. Outro, em vestes de luto, cor po inteiro,
creio tê-Io visto numa Igreja, onde se guarda o anel nupciaI de Maria.
(Peruzia, na Itália)
Lucas pintou também Maria, como indo ao descendimento de Cristo da cruz;
deu-se isto de um modo milagroso: Depois que todos os Apóstolos e
discípulos tinham fugido, vi Maria, ao crepúsculo a caminho do Calvário,
creio que acompanhada de Maria, filha de Cléofas e Salomé. Vi que Lucas
estava ao lado do caminho e comovido diante daquela inconsolável dor,
estendeu-lhe um lenço, com o desejo de que nele lhe ficasse impressa a
imagem. Achou realmente o retrato no lenço, como uma sombra a passar e
confor me essa imagem, pintou o quadro, contendo duas figuras: ele, com o
lenço e Maria, passando-lhe em frente. Não sei se Lucas estendeu o lenço só
com o desejo de receber o retrato ou seguindo o costume de estender um
lenço aos tristes ou porque dese jasse praticar para com Maria o ato de
caridade que Verônica fizera para com Jesus.
Creio ter visto esse quadro de S. Lucas guardado por um povo estranho, que
vive entre a Síria e a Ar mênia. Não são verdadeiros cristãos, crêem em João
Batista, têm um batismo de penitência, que recebem todas as vezes que se
querem purificar dos pecados. Lucas pregava o Evangelho nessa região,
operando muitos milagres por meio desse quadro. Perseguiram-no e faltou
pouco para o lapidarem; o quadro, porém, ficou lá. Lucas levou consigo doze
homens desse povo, os quais tinha conver tido. Aquela tribo morava numa
montanha, cerca de doze horas de caminho a leste do Líbano. No tempo de S.
Lucas contava apenas algumas centenas de almas. A Igreja local era como
uma gruta na montanha; para entrar nela, era preciso descer ; olhando para
cima, viam-se cúpulas, nas quais havia janelas, como se vêem nas abóbadas
das nossas Igrejas.
Tenho visto esse quadro de S. Lucas naquela região, em tempos mais
recentes; não sei se foi em nosso tempo, mas é possível; pois no tempo de S.
Lucas tudo era muito simples. Mas agora a Igreja parecia maior ; o povo
parecia ter também muitas cerimônias diferentes; o sacerdote estava
sentado diante do altar, debaixo de um arco, o quadro pendurado no alto da
abóbada e diante dele ardiam muitas lâmpadas; já estava enegrecido e
indistinto. Recebem muitas graças por meio do quadro e veneram-no, porque
têm visto milagres feitos por ele.
Lucas foi supliciado como bispo, em Tebas, se não me engano. Vi o amar rado
com uma corda a uma ár vore e mor rer a golpes de dardos. Um desses lhe
transpassou o peito e o cor po caiu-lhe para a frente; então o amar raram de
novo, lançando-lhe depois mais dardos. De noite foi sepultado secretamente.
O remédio, de que S. Lucas se ser viu, no seu tempo de médico, era resedá,
misturado com óleo de palma benta. Ungia com esta mistura a testa e os
lábios em for ma de cruz; usava também, às vezes, resedá seco, com infusão
de água.

13. S. Bar nabé, S. Timóteo e S. Satur nino

Como já mencionamos, foi Bar nabé enviado pela Igreja de Jerusalém a


Antioquia, onde, junto com S. Paulo, pregou durante um ano o santo
Evangelho, com grande êxito, até que o Espírito Santo deu, pela boca dos
profetas dessa Igreja, a ordem: "Separai-me Paulo e Bamabé para a obra,
para a qual os destinei." Depois de terem recebido a consagração episcopal,
S. Bamabé acompanhou S. Paulo por algum tempo. Tendo-se separado dele,
fez ainda algumas viagens apostólicas. Diz a tradição que chegou até Milão,
sendo o primeiro que nessa cidade anunciou a fé cristã. Foi lapidado pelos
judeus, na ilha de Chipre, sua ter ra natal, sendo-lhe o cor po lançado numa
fogueira, que, porém, não o queimou; os discípulos sepultaram-no. Quando o
acharam, no tempo do imperador Zeno, encontraram-lhe sob o peito uma
par te do Evangelho de S. Mateus. Bar nabé também escreveu alguma coisa.
Timóteo, discípulo de S. Paulo, estava preso na ilha de Quios, ao mesmo
tempo que S. João se achava no cativeiro, na ilha de Patmos.
"Vi-o: era um homem alto, com cabelo e barba preta, magro e pálido.
Nas viagens vestia um manto cinzento, preso ao meio do cor po pela cinta;
como bispo, usava um longo manto, de cor parda-escura, bordado
grosseiramente de grandes florões de ouro, com fio grosso como barbante,
mas produzindo belo efeito; revestia-se também de uma estola no peito, uma
cinta, sobre a cabeça uma mitra baixa.
Todos o amavam; tinha em Quios uma comunidade de conver tidos; até os
soldados da guarda aderiram à fé.
Havia ali uma mulher cristã rica, que caíra numa vida pecaminosa. Um dia,
quando Timóteo estava para dizer a santa Missa numa capelinha e já se
achava diante do altar, viu em espírito aquela infeliz, que se aproximava da
Igreja. Então lhe foi ao encontro na por ta, repreendeu-a pela vida
pecaminosa e excomungou-a. Em conseqüência disso se levantou uma
perseguição contra Timóteo, que foi dester rado para a Ar mênia, mas posto
em liberdade antes de S. João voltar de Patmos. Paulo mandou-o, como
bispo, a Éfeso, onde foi assassinado pelos pagãos, por ocasião de uma festa,
em que percor riam a cidade com máscaras, car regando ídolos em triunfo. S.
Timóteo tinha pregado veementemente contra esses costumes pagãos.”
Satur nino, que era como André um dos primeiros que seguiram a Jesus,
depois do Batismo, pregou em Tarso, depois da mor te de Jesus. Ali teria sido
mor to a pancadas e pedradas, mas um vento for te lançou tanta poeira e
areia nos olhos dos perseguidores, que pôde fugir. Esteve também em Roma,
com S. Pedro e foi enviado por esse à Gália. Esteve em Arelat, Nimes e
muitos outros lugares desse país. Em Toulouse ficou mais tempo,
conver tendo muita gente, entre outros também uma mulher, que curara da
lepra. Ali também mor reu már tir. Num monte, em cujo cume havia um templo
pagão, Satur nino foi amar rado a um touro. Aguilhoando o touro, fizeram-no
cor rer na ladeira íngreme para baixo; o touro, enraivecido, caiu e pisando,
esmagou a cabeça do Santo. Celebra-se-Ihe a festa a 29 de Novembro.

14. S. Lázaro, Mar ta e Madalena no sul da França

Três ou quatro anos depois da mor te de Jesus os judeus prenderam Lázaro,


Mar ta e Madalena e abandonaram-nos numa pequena embarcação, que já
fazia água e sem remos nem velas, no alto mar ; puseram na mesma barca o
discípulo Maximino, um cego de nascença curado por Jesus, de nome
Cheliônio e duas meninas. Com o auxílio de Deus escaparam da mor te; pois a
barquinha foi impelida sobre o mar com velocidade sobrenatural e apor tou à
costa meridional da França, per to da cidade que hoje se chama Marselha.
Quando chegaram a esta cidade, estava o povo justamente a celebrar uma
festa idólatra.
"Os sete estrangeiros - conta Catharina Emmerich - sentaram-se sob as
arcadas de uma praça pública, diante de um templo. Ficaram assim sentados
por muito tempo; tendo-se reconfor tado um pouco, com alimento tirado de
pequenas vasilhas que trouxeram consigo. Começou Mar ta a falar ao povo,
que se lhe juntava em roda e disse-Ihes como tinham chegado ali. Falou
também de Jesus em tom muito vivo e comovido. Mais tarde vi que alguns
Ihes jogavam pedras, para os afastar dali; mas as pedras não os feriam e
eles ficaram tranqüilamente sentados, até a manhã seguinte. No entanto
começaram os outros também a falar e já Ihes aderiam várias pessoas. Na
manhã seguinte vieram uns homens de uma casa grande, que eu tomei pela
câmara municipal; inter rogaram-nos acerca de muitas coisas. Ainda ficaram
um dia inteiro sob a arcada, falan do com os transeuntes, que se Ihes
juntavam em roda. Ao terceiro dia foram todos conduzidos àquela casa e
apresentados ao prefeito da cidade e depois separados. Os homens ficaram
com o prefeito, na câmara; as mulheres foram conduzidas a outra casa da
cidade; tratavam-nos bem e davam-Ihes de comer. Vi que ensinavam em
qualquer par te que chegavam e que o prefeito mandou proclamar por toda a
cidade que ninguém fizesse mal a essa gente. Dentro em pouco muitos
pediram o santo batismo; Lázaro batizava numa grande pia que havia na
praça pública, diante do templo, o qual em pouco tempo estava quase
abandonado. Creio que o prefeito da cidade também se deixou batizar. Vi
também que não ficaram muito tempo juntos; Lázaro, como bispo, continuou
a pregar a doutrina.”
Mar ta, com as duas meninas, suas criadas, dirigiu-se a uma região deser ta,
montanhosa, per to da cidade moder na de Aix, onde habitavam algumas
escravas pagãs, que se conver teram e onde construíram mais tarde um
convento e uma Igreja.
Havia, porém, no rio daquela região um monstro, que dava grandes prejuízos.
Mar ta encontrou-o à ribeira, devorando justamente um homem. Ela venceu o
monstro, lançando-lhe o cinto em roda do pescoço, em nome de Jesus e
estrangulou-o e o povo, acor rendo, acabou de matá-Io.
"Mar ta pregava o Evangelho muitas vezes diante de grande multidão de povo,
na campina e à margem do rio. Costumava para isso construir um púlpito de
pedras, com auxílio das companheiras; colocavam as pedras em for ma de
escada; por dentro era como uma abóbada. Em cima colocavam uma pedra
larga, sobre a qual ela pregava. Ela sabia fazer essa constr ução melhor do
que um pedreiro, pois era muito ativa e empreendedora.
Uma vez estava ensinando sobre o tal montão de pedras, à margem do rio,
quando um jovem tentou atravessar o rio a nado, para a ouvir ; a cor rente,
porém, levou-o e ele mor reu afogado. Injuriaram-na por isso os habitantes da
região, acusando-a também de ter convertido aquelas escravas. Tendo o pai
do rapaz afogado encontrado o cadáver do filho, trouxe-o na presença de
muito povo e, colocandoo aos pés de Mar ta, disse que creria no seu Deus, se
ela desse novamente vida ao filho. Vi que Mar ta ordenou ao cadáver, em
nome de Jesus, que voltasse à vida e que se levantou vivo. O ressuscitado, o
pai e muito povo tor naram-se cristãos. Outros, porém, perseguiram Mar ta
como feiticeira. Um dos companheiros, que com ela viera da Palestina, vinha
visitá-Ia e dava a ela a sagrada Comunhão. Mar ta trabalhava e ensinava,
conver tendo muitos.”
Quando Madalena se separou de Mar ta, retirou-se sozinha para uma região
deser ta, bem longínqua, onde vivia numa gruta. Maximino ia às vezes lá,
encontrando-a em meio caminho, para dar-lhe a sagrada Comunhão. Mor reu
pouco antes de Mar ta e foi também sepultada no convento de Santa Mar ta.
Sobre a gruta construiu Maximino uma Igreja.

16
Glorificação de Jesus pelos Santos

1. O santo Papa Clemente. Mor to em 101 D.C.


2. Santo Inácio de Antioquia. 107 D.C.
3. S. Dionísio Areopagita
4. Santa Inês. (21 de Janeiro)
5. Santa Ágata. (5 de Fevereiro)
6. Santa Dorotéa (6 de Fevereiro)
7. Santa Apolônia (9 de Fevereiro)
8. Santa Cecília (22 de Novembro)
9. Santa Catarina de Alexandria. (25 de Novembro)

Glorificação de Jesus pelos Santos

Em honra de Nosso Salvador crucificado seguem aqui algumas infor mações


da piedosa Ser va de Deus, sobre alguns discípulos dos Apóstolos e algumas
Virgens már tires da primeira era cristã, que por amor ao esposo celestial
sacrificaram alegremente os bens da vida. Segundo o dito afamado de
Ter tuliano: "O sangue dos már tires é a semente de que brotam novos
cristãos", colaboraram os már tires de modo especial na propaganda do reino
de Cristo. Por isso podemos considerar os santos cuja vida e mar tírio
contamos nas páginas seguintes, como cooperadores na instituição da santa
Igreja e que seguirão logo após os Apóstolos, no séquito triunfal do divino
Por tador da cruz. O leitor poderá reconhecer, ao mesmo tempo, que as visões
da religiosa privilegiada de Dülmen confir mam a maior par te das legendas
desses santos.
1. O santo Papa Clemente. Mor to em 101 D.C..

É altamente como vente o que a piedosa freira conta do santo Papa


Clemente, cuja festa a Igreja celebra a 23 de Novembro.
"Não vi São Clemente junto com São Paulo, mas sim freqüentemente c6m
Bar nabé, também com Timóteo, Lucas e Pedro. Era romano; os avós, porém,
eram judeus, oriundos da região fronteira do Egito. Era casado, mas recebeu
uma iluminação do céu para viver em continência; a mulher que, se bem me
lembro, mor reu também már tir, consentiu em fazer o mesmo. Foi o terceiro
Papa, depois de Pedro.
Vi São Clemente como Papa, pouco antes da perseguição. Estava
indizivelmente magro e pálido; tinha quase um aspecto tão lastimoso como
Nosso Senhor na cruz: as faces abatidas, a boca contraída pela tristeza por
causa da cegueira e falsidade do mundo. Vi-o ensinar numa sala, sentado
numa cadeira. Os ouvintes estavam muito diferentemente dispostos: alguns
tristes e comovidos, outros apenas se fingiam tristes, escondiam a alegria
de saber dos sofrimentos iminentes do Pontífice; outros ainda vacilavam nos
sentimentos. Vi então entrar soldados romanos, prendendo São Clemente.
Ar rastando-o para fora, puseram-no num car ro. Na par te posterior desse
car ro havia um assento cober to, onde se sentava Clemente; na par te anterior
havia mais lugares, mas sem coberta. Seis soldados seguiram no car ro com
ele; outros acompanhavam o car ro, dos dois lados. Os cavalos eram menores
que os de hoje e estavam também atrelados de modo diverso; não havia
tantas cor reias. Vi o santo viajando no car ro dia e noite. Estava muito
paciente e triste. Quando chegaram ao mar, foi embarcado no navio e o car ro
voltou.
Depois tive uma visão do país para onde foi levado. Era uma região pobre,
deser ta e estéril, onde havia muitas minas profundas. Tudo era de um
aspecto triste e sinistro. Clemente foi conduzido a uma casa, com duas
salas, das quais uma se encostava no centro da outra; cada ala era cercada
de arcadas; por uma dessas entrou Clemente e foi conduzido à par te da casa
onde moravam os diretores; depois foi levado à outra, onde se achavam os
presos.
Vi São Clemente num deser to, pedindo água em oração. Então veio um raio
de luz do céu, que se estendeu como um por ta-voz e deste raio saiu um
cordeirinho que, com um dos pés, entregou uma vara afiada embaixo como
uma flecha. Na ter ra, embaixo, estava deitado outro cordeiro. Clemente
tomou a vara e fincou-a na ter ra e imediatamente brotou água do orifício. Os
dois cordeiros desapareceram no mesmo instante. Clemente tinha rezado ao
Santíssimo Sacramento do Altar. Todos quantos bebiam dessa água, sentiam
vivo desejo do Santíssimo Sacramento. Clemente conver teu e batizou muitos.
Vi que foi lançado numa fossa cheia de víboras, per to do mar ; depois fizeram
enchê-Ia de água. Mas Clemente saiu por meio de uma escada. Vi que o
levaram ao mar alto, num barco e com uma âncora presa ao pescoço e o
lançaram ao mar. No lugar onde o cor po tocou no fundo, for mou-se na rocha
um sepulcro que, ao reflexo do mar, se tomava visível. Os cristãos for maram
do rochedo uma capela em redor do sepulcro, a qual muitas vezes ficava
cober ta pelo mar.”
2. Santo Inácio de Antioquia. 107 D.C.

De Santo Inácio, bispo de Antioquia, conta-nos Anna Catharina Emmerich, o


seguinte:
"Vi Jesus, com os discípulos, diante de uma casa de uma pequena cidade,
mandando um dos discípulos à casa em frente, para chamar uma mulher com
o filhinho, a qual, vindo, lhe trouxe o filho, que podia ter três ou quatro anos.
Tendo o menino chegado diante do Senhor, fechou-se o círculo dos
Apóstolos, que se abrira para deixar o menino entrar. Jesus falou a respeito
deste, impôs-lhe as mãos, abençoou-o e aper tou-o ao coração. Depois o
reconduziram à mãe, que se tinha retirado. Esse menino não era outro senão
o futuro Santo Inácio.
Era um menino muito bom e ficou inteiramente mudado pela bênção de
Jesus. Vi-o freqüentemente no lugar onde Jesus o abençoara e beijando o
chão, dizia: "Aqui estava o varão santo." Vi-o, brincando com outros meninos,
escolher apóstolos e discípulos e passear com eles, ensinando-Ihes à moda
infantil, imitando assim em tudo o Senhor. Vi-o também reunir os outros
meninos no lugar da bênção, contando-Ihes o que lhe acontecera e mandando
que beijassem também o chão. Os pais viviam ainda, vi-os muito comovidos
pelos modos do menino; converteram-se depois e tor naram-se cristãos.
Mais tarde, já moço, juntou-se aos discípulos do Senhor, par ticular mente a
João, a quem era afeiçoado e que o ordenou sacerdote. Quando João esteve
pela primeira vez no exílio, acompanhou-o lnácio, que não o quis abandonar.
Mor to Evódio, que era sucessor de Pedro em Antioquia, foi lnácio sagrado
bispo dessa cidade, creio que por João ou por Pedro. Vi passar pela cidade
um Imperador, a quem Inácio foi apresentado. O Imperador perguntou-lhe se
era ele que, como um mau espírito, causava tantas discórdias. Inácio
respondeu, perguntando-lhe como podia chamar de mau espírito ao por tador
de Deus, que trazia Jesus no coração? O Imperador perguntou-lhe então se
sabia quem ele era e o santo replicou: que era o primeiro enviado hoje pelo
demônio. O Imperador condenou-o então à mor te em Roma e Inácio
agradeceu-lhe alegremente. Vi o preso conduzido a uma outra cidade, onde
embarcou. Acompanhavam-no sol dados, que o tratavam muito mal. Depois o
vi desembarcar novamente e por onde passava lhe vinham ao encontro
muitos bispos e cristãos, que o saudavam e lhe pediam a bênção. Em Smir na
morava em casa do bispo Policar po, que dantes tinha sido seu condiscípulo;
estavam todos reu nidos com alegria e Inácio exor tava e consolava a todos.
Escreveu também car tas ali. Ouvi que disse e também escreveu que
rezassem por ele, para que as feras o mastigassem e os dentes das mesmas
fossem como mós de moinho, que o triturassem, para ficar qual farinha de
trigo, afim de se tor nar um pão puro de Jesus Cristo, para o sacrifício.
Também os cristãos de Roma lhe vieram ao encontro, ajoelharam-
se, chorando, diante dele e pediram-lhe a bênção. Inácio repetiu que queria
ser triturado para o sacrifício do Senhor. A multidão dos cristãos for mava
como um cor tejo triunfal. Vi que foi logo conduzido ao lugar do suplício, onde
rogou a Deus que os leões o deixassem rezar ainda um pouco e depois o
devorassem inteiramente; apenas o coração e alguns ossos deixassem, para
que aumentassem ainda mais a glória de Cristo na ter ra. Por ocasião desta
súplica, me foi feita uma exor tação, a respeito da impor tância e do valor das
relíquias. Como pedira, assim sucedeu: os leões lançaram-se-Ihe com grande
fúria; mataram-no num instante, devorando-o rapidamente e lambendo-lhe o
sangue; em breve não restava mais que alguns ossos grandes e o coração. Vi
que os leões foram retirados da arena, os espectadores também se
retiraram; os cristãos, porém, cor reram ao lugar, esforçando-se para obter
algo das relíquias. Todos olhavam para o coração, no qual se tinham for mado
as letras do nome de Jesus, como tinha sido escrito no título da cruz, em cor
azul, pela dilatação de ner vos e veias." A festa de Santo Inácio celebra-se a
1º. de Fevereiro.

3. S. Dionísio Areopagita

Dionísio, apelidado o Areopagita, era filho de pais gentios, mas estudava


muito, recomendando-se a um Deus mais perfeito. Avisado de noite por uma
aparição, fugiu da casa pater na, atravessando a Palestina, onde ouviu muitas
coisas sobre Jesus e depois estudou no Egito a astronomia. Ali, obser vando
o eclipse do sol por ocasião da mor t~ de Jesus, disse: "Isso não é fenômeno
natural; ou está mor rendo um Deus ou o mundo perece.”
"Por muito tempo não podia compreender a idéia de um Deus crucificado.
Depois da conversão, viajou muito tempo com Paulo e esteve também com
ele em Éfeso, para ver Maria. O Papa S. Clemente enviou-o a Paris. Vi que
consolava os companheiros no cárcere e que Jesus lhe apareceu, dizendo-
lhe: "Segue magnanimamente o teu caminho do martírio, que te leva a mim;
olha que eu também percor ro o meu caminho de dores em ti." Vi-lhe também
o mar tírio. Tomou a cabeça cor tada, segurando-a com os braços cruzados
sobre o peito e andou em volta do monte. Todos os car rascos fugiram;
ir radiava-se dele uma luz clara. Uma mulher sepultou-o. Era muito idoso,
tinha muitas visões celestes e também Paulo lhe contou o que tinha visto em
êxtase. Escreveu muitos e belos livros, dos quais ainda existe grande par te.
O livro dos Sacramentos não acabou de escrever ; fê-Io outro, em seu lugar."
Em outra ocasião, conta Catharina Emmerich: "Vi o livro de Dionísio com
muitas letras de ouro, mas tão estragado e maltratado, que me entristeceu
na verdade." A sua festa é celebrada a 9 de Outubro.

4. Santa Inês. (21 de Janeiro)

"Vi uma virgem jovem e graciosa, ar rastada no meio de soldados. Vestia uma
longa veste de lã, de cor parda; um véu cobria-lhe a cabeça, que o cabelo
envolvia em tranças. Os soldados ar rastavam-na, segurando-a pelos lados do
manto, de modo que a veste ficava muito distendida. Seguia muito povo,
entre o qual também algumas mulheres. Levaram-na pela por ta de um muro
alto, através de um pátio quadrado, a um quar to. Empur rando a virgem para
dentro, puxaram-na para todos os lados, arrancando-lhe o manto e o véu.
Com sua mansidão e inocência era como um cordeiro nas mãos dos
car rascos. Tomando o manto, abandonaramna. Inês ficou em pé, num canto,
no fundo do quar to, olhando para cima e com as mãos postas, rezando
tranqüilamente.
Entraram primeiro dois ou três jovens. Avançando furiosos para ela,
ar rancaram-lhe o vestido do cor po. Nesse momento lhe caíram os longos
cabelos e vi aparecer-lhe por cima, voando, um jovem resplandecente (um
Anjo) e der ramar-lhe em redor uma onda de luz, como uma veste. Os homens
assustados deitaram a fugir. Então entrou cor rendo, um jovem imper tinente,
que a tinha perseguido com seu amor, rindo-se da covardia dos outros. Quis
tocá-Ia, mas Inês segurou-lhe as mãos e empur rou-o para trás. Ele caiu, mas
levantou-se no mesmo momento e ar remessou-se furioso contra a virgem.
Esta, porém, o atirou novamente para trás, até a por ta do quar to, onde caiu
por ter ra, imóvel. Inês, porém, tranqüila como dantes, rezava,
resplandecente, na flor da mocidade; o rosto era-lhe como uma rosa
luminosa. Aos gritos dos outros, acor reram alguns homens, entre os quais
também um que parecia ser o pai do moço que jazia por ter ra. Estava
indignado e furioso, falando em feitiçaria; ouvindo-a, porém, dizer que
conseguiria restituir-lhe a vida, se a pedisse em nome de Jesus, acalmou-se
e pediu-lhe que o fizesse. Então falou Inês ao mor to e este se levantou e foi
conduzido pelos outros para fora, ainda cambaleando.
Passando algum tempo, vi de novo soldados, que entraram no quar to,
trazendo-lhe um vestido de cor parda, aber to nos lados e atado com um
cordão e um véu ordinário, como os recebiam sempre os már tires. Vestiu-os,
enrolou o cabelo em volta da cabeça e foi assim conduzi da ao lugar do
suplício. Era um pátio, cercado de muralhas grossas, nas quais havia
cárceres e quar tos. Podia-se subir por este muro e olhar para o largo; havia
gente lá em cima. Foram levadas também outras pessoas ao suplício, vindas
de uma cadeia situada não muito longe do lugar onde Inês fora maltratada;
creio que eram um avô, os dois genros e os filhos destes; estavam amar rados
uns aos outros com cordas. Quando chegaram diante do Juiz, que estava
sentado num assento alto, de pedra, no pátio quadrado, foi Inês conduzida
perante o magistrado, que a inter ro gou e exor tou amavelmente; depois
inter rogou e exor tou também os outros. Estes tinham sido trazidos para
serem inter rogados e para assistirem ao mar tírio de Inês. As mulheres
desses homens ainda eram pagãs. Depois de inter rogados vários presos, um
após outro, foi Inês conduzida novamente ao juiz e assim por três vezes.
Depois foi conduzida a um posto, subindo três degraus e onde a quiseram
amar rar ; ela, porém, não o per mitiu. Em roda havia um montão de lenha, que
foi acesa. Vi, porém, de novo, pairando sobre Inês uma figura, que der ramou
sobre ela uma tor rente de luz, for mando um escudo, pelo que as chamas da
fogueira, desviando-se, se lançaram contra os car rascos, ferindo vários
deles. Ela, porém, ficou ilesa. Os car rascos tiraram-na e levaram-na
novamente ao juiz. Foi colocada sobre um cepo ou uma pedra; quiseram atar-
lhe as mãos, mas não o quis; pousou-as no regaço. Vi uma figura resplande-
cente diante dela, segurando-lhe os braços. Então lhe pegou um dos
car rascos no cabelo e decepou-lhe a cabeça, como tinham feito a Cecília; a
cabeça pendia-lhe ainda num dos ombros. Lançaram-lhe o cor po, assim
mesmo vestido, à fogueira. Vi durante o julgamento amigos da már tir, de
longe e chorando. Parecia-me muitas vezes um milagre que tais amigos
compassivos, que socor riam e consolavam os már tires, não fossem
maltratados. O cor po e, creio, até o vestido, não se queimaram. Eu lhe tinha
visto a alma sair do cor po, branca como a lua e subir ao céu.
A execução teve lugar, se bem me lembro, antes do meio-dia e ainda durante
o dia lhe tiraram os amigos o cor po da fogueira e sepultaram-no
honrosamente. Muitas pessoas assistiram ao enter ro; estavam todas veladas,
talvez para não serem conhecidas. Creio que vi o jovem curado por ela, no
lugar do suplício; ainda não se conver tera. Vi, fora da visão, ao meu lado, a
aparição de Santa Inês, luminosa e resplandecente, com a palma na mão. O
esplendor que a cercava, era de cor ver melha no centro e por fora se tor nava
azul. Consolou-me alegremente nas minhas, veementes dores, dizendo:
"Sofrer com Jesus, sofrer em Jesus é doce".

5. Santa Ágata. (5 de Fevereiro)

"Os pais de Ágata moravam em Paler mo; a mãe era ocultamente cristã, o pai
era pagão. Vi que a mãe lhe ensinava às escondidas a doutrina cristã. Tinha
duas alas. Desde os primeiros anos da infância, alimentava grande
intimidade com Jesus. Vi-a muitas vezes sentada no jardim e junto dela um
menino belíssimo e resplandecente, com quem falava e brincava. Preparava-
lhe um assento cômodo na relva e de mãos postas o ouvia pensativa.
Brincavam com flores e pauzinhos. O menino parecia crescer junto com ela.
Vinha vê-Ia também mais tarde, quando mais crescido, à proporção que ela
crescia, mas quando estava sozinha.
Vi como Ágata se tor nou maravilhosamente pura e for te de coração;
cooperava sempre com a graça, negando consentimento mesmo às me nores
impurezas e imperfeições e castigava-se a si mesma pelas últimas.
Ao deitar-se, à noite, estava o Anjo da guarda muitas vezes ao lado,
lembrando-lhe o que tinha esquecido e ela con-ia a fazê-Io. Era uma oração
ou esmola ou qualquer coisa referente ao amor, pureza, humilda de,
obediência, misericórdia, vigilância contra o pecado. Desde criança, se
esgueirava muitas vezes fur tivamente, com esmolas e alimentos para os
pobres. Era uma alma belíssima e muito querida de Jesus, mas em contínua
luta. Vi-a açoitar-se e beliscar-se, para punir a concupiscência e as menores
faltas. Com todas essas severidades, per manecia entretanto sempre franca,
corajosa e desembaraçada.
Quando tinha cerca de oito ou nove anos, vi-a levada com algumas outras
meninas, num car ro, a Catânea. Ia por vontade do pai, que queria que
recebesse uma educação livre pagã. Foi entregue a uma
mulher imper tinente, que tinha ainda cinco filhas em casa. Estas faziam todo
o esforço possível para desviar Ágata da vir tude. Vi-as passearem com ela
em belos jardins, mostrando-lhe lindos vestidos e jóias; mas a menina
conser vava-se sempre a mesma, sem manifestar nenhum interesse por tais
coisas. Vi o menino celeste ainda muitas vezes junto dela e a menina
tor nava-se cada vez mais séria e fir me. Era muito bonita, não muito alta, mas
de for mas perfeitas. Tinha o cabelo preto, grandes olhos escuros, o nariz de
for ma bonita, o rosto de um belo oval; tinha um gênio suave, mas fir me,
manifestando em todo o seu ser uma admirável for taleza da alma. Vi que a
mãe mor reu de tristeza e saudade, durante a ausência da filha.
Em casa da mulher vi como Ágata combatia com coragem e fiel perse-
verança a sua natureza, resistindo a todas as tentações. Quintiano, que a
condenou mais tarde ao mar tírio, vinha freqüentemente a esta casa.
Não gostava da esposa, era um homem repugnante, de um gênio baixo
e orgulhoso, andava a espreitar em toda a cidade, para depois ator mentar ou
intrigar as pessoas. Vi-o com aquela mulher e olhando às vezes para Ágata,
como se olha uma menina bonita; não a tratava, porém, de
modo inconveniente. Vi então ao lado de Ágata o Esposo celeste, visível
só para ela. Mostrava-lhe os instrumentos do mar tírio, creio mesmo
que brincavam com estes.
Mais tarde a vi novamente na cidade natal após a mor te do pai. Tinha cerca
de treze anos. Confessava em público a fé cristã e vivia com gente boa. Vi
que foi tirada de casa por homens enviados por Quintiano; veio de novo para
a casa daquela mulher, onde tinha novamente aparições do Esposo celeste.
Vi também como a mulher tentava de todos os modos seduzir Ágata, com
lisonjas, prazeres e diver timentos; ouvi como Ágata uma vez lhe respondeu
confor me a doutrina do Esposo divino; quando a mulher quis seduzí-Ia com
palavras para uma licenciosidade, respondeu-lhe: "O teu cor po e sangue são
criaturas de Deus, como a ser pente também o é; mas o que fala em ti é o
demônio." Vi as freqüentes visitas de Quintiano à casa dessa mulher e
conheci-lhe muito também dois amigos.
Depois vi Ágata ser lançada no cárcere, inter rogada e açoitada. Cor taram-lhe
os seios. Vi muitas vezes nos mar tírios o instrumento com que o fizeram e
com o qual ar rancavam grandes pedaços de car ne dos corpos dos santos.
Mas estes sentiam um auxílio milagroso de Jesus, que muitas vezes vejo
refrigerá-Ios. Assim não desfaleciam, quando outros teriam caído
desmaiados.
Vi Ágata depois no cárcere, onde lhe apareceu um ancião, dizendo que viera
curar-lhe os seios. A donzela respondeu, agradecendo, que nunca usara
remédios ter renos e que tinha o seu Senhor Jesus Cristo, que a poderia
curar, se quisesse. Disse-lhe o ancião: "Sou cristão e já muito velho, não
tenhas medo de mim." Ágata, porém, respondeu-lhe: "As minhas feridas não
têm nada que ofenda a castidade. Jesus curarme-á, se for sua vontade; Ele
criou o mundo e pode também criar os meus seios." Então vi o ancião sor rir,
dizendo: "Pois sou o ser vo d’Ele, eis que os teus seios já estão curados" - e
então desapareceu.
Ágata foi conduzida mais uma vez ao mar tírio. Num quar to abobadado havia
fogões, sob os quais faziam fogo; tinham o feitio de caixotes profundos e nos
lados interiores havia muitas pontas agudas e cor tantes. Estavam ali muitos
desses caixões, um ao lado do outro. As vezes eram diversos homens que
neles eram tor turados. Podia-se passar por entre os caixões, sob os quais
ardia o fogo e assim eram assados vivos os que neles estavam deitados
sobre cacos cor tantes. Quando Santa Ágata foi lançada "num tal caixão,
tremeu a ter ra, um muro desabou, matando os dois amigos de Quintiano. O
povo amotinou-se, ameaçando Quintiano, que fugiu. A santa Virgem foi levada
novamente ao cárcere, onde mor reu. Quanto a Quintiano, mor reu afogado
num rio, quando estava fazendo uma viagem para confiscar os bens de Ágata.
Vi também, numa época posterior, que um monte vomitava fogo e que o povo
fugia diante da massa ardente, para o sepulcro de Ágata, opondo a tampa do
sepulcro ao fogo, que se extinguiu.”
Santa Ágata, Santa Petronila e Santa Tecla foram as três virgens már tires
mais heróicas, segundo diz a piedosa vidente. Santa Petronila, que era
enteada de São Pedro, contribuiu muito para a propagação do reino de
Cristo; comemora-se-Ihe a festa no dia 31 de Maio. Santa Tecla era discípula
de S. Paulo; celebra-se-Ihe a festa a 23 de Setembro.

6. Santa Dorotéa (6 de Fevereiro)

"Vi uma cidade impor tante, situada numa região montanhosa, (Cesaréia, na
Capadócia) e no jardim de uma casa de estilo romano, vi brincando três
meninas, de 5 a 8 anos. Seguravam-se umas às outras pelas mãos, ora
dançando em roda, ora parando, cantavam e colhiam flores. Depois de ter
brincado por algum tempo, vi as duas meninas mais velhas separarem-se da
mais nova, afastando-se com as flores, que depois desfolharam. A pequena
parecia afligir-se muito, vendo as outras se afastarem para o outro lado do
jardim. Vi que a menina abandonada ficou com uma profunda dor no coração,
da qual eu compar tilhava. O rosto empalideceu-lhe e ao mesmo tempo o
vestidinho se lhe tor nou branco como a neve e ela caiu como mor ta no chão.
Então ouvi uma voz no coração: "Esta é Dorotéa." Vi no mesmo instante se
lhe aproximar a aparição de um menino resplandecente, que tinha na mão um
ramalhete de flores, levantou-a e conduzindo-a ao outro lado do jardim,
entregou-lhe o ramalhete e desapareceu. A menina ficou muito contente e
cor rendo para as duas outras, mostrou-Ihes as flores, contando quem lhas
tinha dado. Estas se admiraram muito, abraçaram a pequena, parecendo
ar repender-se da ofensa, de modo que a paz se restabeleceu entre elas.
A vista disso, nasceu no meu coração o desejo de receber também mais uma
vez tais flores, para me confor tar. Apareceu-me então de repente Dorotéa,
como virgem, exor tando-me com belas palavras a fazer uma boa preparação
para a Santa Comunhão e disse-me: "Como é que desejas tanto as flores,
recebendo tantas vezes a flor das flores?" Explicou-me também a
significação daquela visão das meninas, que se referia àapostasia e
conversão das duas meninas mais velhas.
Depois tive uma visão da mor te da már tir. Vi-a, com as duas ir mãs, num
cárcere e vi que tinham uma questão. As duas ir mãs negavam-se a mor rer
por Cristo e foram postas em liberdade. Depois vi Dorotéa diante do juiz, que
a mandou levar às duas apóstatas, na esperança de fazê-Ia seguir-lhe o
exemplo e ser seduzida pelas palavras das pecadoras. Mas ao contrário,
Dorotéa fê-Ias voltar à fé cristã. Foi então amar rada a um poste. Rasgaram-
lhe a car ne com ganchos, queimaram-lhe os lados com fachos e afinal foi
degolada. A vista disto, vi conver ter-se um jovem (Teófilo), que a tinha
escar necido no caminho do suplício e a quem ela respondera algumas
palavras. Vi diante dele a aparição de um menino resplandecente, trazendo
flores e frutas. O moço ar rependeu-se e con fessou aber tamente a fé cristã;
sofreu também o mar tírio e foi decapitado. Junto com Dorotéa, foram muitos
outros tor turados e queimados.”

7. Santa Apolônia (9 de Fevereiro)

"A cidade em que Apolônia sofreu o mar tírio, estava situada sobre uma ponta
de ter ra. Os numerosos ramos pelos quais o Nilo se der rama no mar, não
ficam mui longe dali. É uma cidade vasta e bela (Alexandria), na qual se
achava a casa pater na de Apolônia, cercada de pátios e jardins, num largo
elevado.
Presenciou-lhe o mar tírio uma viúva idosa, de estatura alta. Os pais eram
pagãos; ela, porém, já fora instruída desde criança na doutrina cristã e
batizada pela ama, que era uma cristã oculta. Depois de crescida, foi casada
pelos pais com um pagão, com quem vivia na casa pater na. Tinha muito que
sofrer e a vida matrimonial era-lhe uma penitência penosa. Via se prostrada
por ter ra, banhada em lágrimas, rezando e cobrindo a cabeça de cinza. O
marido era um homem alto e magro e muito pálido; mor reu muito antes dela.
Apolônia viveu ainda cerca de trinta anos após a mor te do esposo, como
viúva sem filhos. Fazia muitas obras de misericórdia aos pobres cristãos e
era a consolação e esperança de todos os necessi tados. A ama sofreu
também o mar tírio, um pouco antes dela. Foi por ocasião de um tumulto, em
que foram saqueadas as casas dos cristãos e destruídas pelo fogo, sendo
mor tos também muitos cristãos. Vi Apolônia mais tarde, presa em casa, por
ordem do Juiz, conduzi da ao tribunal e depois lançada no cárcere. Vi que foi
conduzida repetidas vezes para diante do juiz, sendo cruelmente maltratada,
por causa das palavras severas e decididas com que confessava a fé cristã.
Era um espetáculo que feria o coração e eu não podia deixar de chorar
amargamente, ao passo que podia ver outros mar tírios, muito maiores, com
grande calma. Talvez fosse a idade e o aspecto venerável da már tir o que me
comovia. Davam lhe pancadas com maças, batiam-lhe no rosto e na cabeça
com pedras.
Esmagaram-lhe o nariz, o sangue cor ria-lhe da cabeça, as faces e a
boca estavam rasgadas, os dentes tinham-lhe saltado fora, com as pancadas.
Vestia a veste branca, com os lados aber tos, com a qual tantas vezes tenho
visto os már tires. Por baixo tinha uma camisa de lã.
Estava sentada num assento de pedra sem encosto, as mãos amar radas atrás
na pedra e também os pés atados. Tinham-lhe ar rancado o véu, o longo
cabelo pendia-lhe solto em redor da cabeça. O rosto estava todo desfigurado
e cober to de sangue. Um dos car rascos segurava-a por detrás, puxando-lhe a
cabeça, outro lhe abria a boca ferida, introduzindo-lhe à força na mésma um
pedaço de chumbo. Depois lhe ar rancou o car rasco um dente após outro com
um grosso tenaz, quebrando-lhe ainda pedaços da mandíbula. Durante essa
tor tura, em que Apolônia sofreu até cair desmaiada, vi que Anjos, almas de
santos már tires e também a aparição de Jesus a consolavam e confor tavam
e que implorou e recebeu a graça de tor nar-se protetora contra dores de
dentes, de cabeça e do rosto. Como não deixava de louvar a Jesus e
desprezar os sacrifícios dos ídolos, mandou o juiz que fosse conduzida à
fogueira e se não mudasse de convicção, lançada ao fogo. Vi que não podia
mais andar sozinha; estava já semi-mor ta. Dois car rascos levantaram-na pe-
los braços e ar rastaram-na a um lugar elevado e plano, onde ardia uma
fogueira, numa fossa. Diante da fogueira, parecia pedir uma coisa. Não podia
mais levantar a cabeça. Os pagãos julgaram que quisesse negar Jesus ou
que vacilasse na fé e soltaram-na. Ela, porém, caiu por ter ra moribunda.
Rezou, mas de repente se levantou e deitou-se nas chamas. Durante todas as
tor turas vi muita gente pobre, à qual Apolônia socorrera, durante tantos
anos: torciam as mãos, choravam e lamentavam. Por si mesma não teria
podido lançar-se no fogo, recebeu a força e inspiração de Deus. Vi que não
foi consumida pelo fogo, mas assada. Depois que mor reu, os pagãos
abandonaram o lugar. Os cristãos aproximaramse ocultamente, tiraram o
cor po sagrado e sepultaram-no num lugar abobadado.”

8. Santa Cecília (22 de Novembro)

"A casa pater na de Cecília estava situada num lado de Roma. Tinha o mesmo
feito da casa de Santa Inês, com pátios, arcadas e um chafariz. Os pais não
os vi muitas vezes. Vi Cecília, muito bonita, meiga e viva, de faces ver melhas
e rosto delicado, quase como Maria. Vi-a brincar com outras crianças nos
pátios. Quase sempre estava com ela um Anjo, na figura de um menino
gracioso; falava-lhe e o via, mas as outras crianças não o viam. Proibira-lhe
de falar dele. Muitas vezes eu via junto dela crianças, à cuja aproximação o
Anjo se afastava. Tinha cerca de sete anos. Vi-a também sozinha no quar to e
o Anjo ao lado, ensinando-a a tocar um instrumento de música, colocando-lhe
os dedos nas cordas ou segurando uma folha de papel. Ora tinha uma caixa
encordoada sobre os joelhos e o Anjo pairava-lhe em frente, segurando um
rolo de pergaminho, para o qual ela olhava; ora tinha um instrumento
parecido com o violino, encostado ao ombro e ao pescoço; com a mão direita
tangia as cordas e cantava para dentro do instrumento, que tinha uma
aber tura cober ta como de uma pele. Produzia um som suavíssimo. Vi também
muitas vezes com ela um menino, de nome Valériano e o ir mão mais velho,
como também um homem vestido de um longo manto branco, que morava
per to e julgo ser aio do menino que brincava com Cecília e parecia ser
educado com ela e destinado a ela.
Vi, porém, uma ama de Cecília, que era cristã e por inter médio da qual travou
conhecimento com o Papa Urbano. Vi Cecília e as companheiras encherem
muitas vezes de víveres e frutas as dobras das vestes, que ar regaçavam
depois do lado e cobriam com os mantos. Assim car regadas, saiam juntas
fur tivamente pela por ta, para que ninguém notasse coisa alguma. Vi o Anjo
de Cecília acompanhá-Ia sempre, o que era um quadro muito gracioso. Vi as
crianças irem a um edifício, cercado de grandes tor res, muros e diques.
Dentro desses muros e em subter râneos abobadados, viviam cristãos
encarcerados. Não me lembro com cer teza se estavam encarcerados ou
apenas escondidos; parecia-me, porém, que os pobres que moravam nas
estradas, eram guardas ou cuidavam do esconderijo. Lá vi as crianças
repar tindo entre os pobres o que tinham trazido; faziam-no fur tivamente. Vi
que Cecília prendia as saias às per nas por meio de uma fita e assim
deslizava pelo íngreme ater ro abaixo. Ali a deixavam entrar nos subter râneos
e uma vez a fizeram penetrar, por uma aber tura redonda, num subter râneo,
onde um homem a levou a Santo Urbano. Vi que este lhe ensinava, lendo
rolos e que ela levava e também trazia tais rolos de escritura, sob o manto.
Tenho também uma lembrança vaga de que foi batizada lá embaixo. Vi uma
vez Valériano, já moço, com o preceptor, entre as moças que brincavam; quis
abraçar Cecília durante o brinquedo, mas esta o repeliu. O jovem queixou-se
ao preceptor, que o contou aos pais da donzela. Não sei o que estes lhe
disseram, mas castigaram Cecília, proibindo-lhe de sair do quar to. Lá vi
sempre o Anjo com ela, ensinando-a a tocar o instrumento e cantar.
Finalmente tive também uma visão dos esponsais de Cecília. Vi os pais de
ambos e muitos outros homens, mulheres, meninos e meninas numa sala,
onde se viam belas estátuas. Cecília e Valériano estavam ador nados de
grinaldas e vestes festivas, de cor. Havia também uma mesa baixa,
car regada de iguarias. O Anjo ficava sempre entre Cecília e o noivo. Depois
os vi a sós num quar to. Cecília disse que era sempre acompanhada por um
Anjo e como Valériano quisesse vê-Io, respondeu que não o podia sem ser
batizado. Quando o mandou procurar Santo Urbano, já seguira com o esposo
para outra casa.”
Em outra ocasião conta Catharina Emmerich: "Vi a Santa sentada num quar to
muito s\~ples, quadrangular. Tinha sobre os joelhos uma caixa triangular, da
(altura de algumas polegadas, encordoada, na qual tocava com ambas as
mãos; erguia os olhos e sobre ela se via um esplendor e pairavam entes
luminosos, como Anjos ou crianças bem-aven turadas, cuja presença Cecília
parecia sentir. Vi-lhe também ao lado um Jovem, sumamente puro e delicado;
era mais alto do que ela, mas sujeitava-se-Ihe humilde, obedecendo-lhe às
ordens. Creio que era Valériano, pois mais tarde o vi amar rado com outro
(Tibúrcio) a um poste, flagelado com açoites e decapitado. Não se realizou
este mar tírio na praça grande do suplício, mas num lugar mais deser to. Vi
também o mar tírio de Santa Cecília, num pátio circular, diante da casa. A
casa era quadrangular, com ter raço, sobre o qual se podia passear ; nos
quatro cantos havia quatro esferas de alvenaria e no centro, creio que uma
estátua. No pátio tinham colocado uma caldeira grande, aquecida por uma
for te fogueira e na qual vi sentada a virgem, com os braços estendidos,
vestida de branco, resplandecente e alegre. Um Anjo, ir radiando uma luz
ver melha, estendia-lhe a mão, outro segurava-lhe uma coroa de flores sobre
a cabeça. Tendo uma lembrança obscura de ter visto um animal cor nudo, que
parecia uma vaca brava, mas não como as vacas de nosso tempo; foi
conduzido pela por ta do pátio e através deste a um buraco escuro. Cecília foi
depois tirada da caldeira e três vezes golpeada no pescoço, com uma espada
cur ta e larga. Mas não vi senão a espada. Vi-a também viva ainda, apesar de
ferida e falar com um sacerdote velho, que eu já tinha visto antes, em casa
da már tir. Mais tarde vi a casa transfor mada em Igreja; vi lá conser vadas
muitas relíquias, inclusive o cor po da Santa, do qual, porém, de um lado,
tinham sido tiradas muitas par tes. Havia Missa nessa Igreja.”
Santa Cecília apareceu na sua festa de 1819 à piedosa ser va de Deus, para a
consolar na perseguição que contra ela se levantara.
"Pedi a Santa Cecília que me consolasse e no mesmo momento tive a
aparição. Era comovente. A cabeça, separada por uma larga ferida do
pescoço, estava inclinada sobre o ombro esquerdo. Não era alta, tinha
cabelos e olhos pretos, cútis branca, era bela e delicada. Vestia uma veste
branca, mas não branqueada, com grandes e grossos florões dourados, com a
qual provavelmente foi mar tirizada. Disse-me mais ou menos o seguinte:
"Tem paciência. As tuas faltas Deus as perdoará, se te ar rependeres. Não
fiques tão abatida por ter dito a verdade aos teus perseguidores. Quem é
inocente, pode falar com toda a franqueza aos inimigos. Também falei com
severidade aos meus inimigos e quando me falaram da flor da mocidade e das
flores de ouro do meu vestido, respondi-Ihes que as estimava tão pouco como
o pó de que eram feitos os seus ídolos e que queria ouro em troca desse
lodo. Vê, com esta ferida ainda vivi três dias e gozei do consolo do ser vo de
Jesus Cristo. Trouxe-te a paciência, a menina de verde roupagem; ama-a, que
ela te auxiliará.”

9. Santa Catarina de Alexandria. (25 de Novembro)

"O pai de Santa Catarina chamava-se Costa. Era descendente de estir pe real;
pois um dos seus antepassados era Hazael, que fora ungido rei da Síria por
Elias, por ordem de Deus. Do lado mater no descendia Catarina da família de
Mercúria, sacerdotisa pagã, conver tida por Jesus na ilha de Salamina.
Catarina era filha única de Costa. Tinha, como a mãe, cabelo loiroclaro, era
muito viva e corajosa, tendo sempre alguma coisa que sofrer ou disputar.
Tinha uma ama e desde muito cedo recebeu mestres masculinos. Via-a fazer
brinquedos de cor tiça para crianças pobres. Já mais crescida, escrevia
muito sobre lousas e rolos, dando-os depois a outras meninas, para as
copiar. Vi também que se dava muito com a ama de Santa Bárbara, que era
cristã ocultamente. Catarina possuía em alto grau o dom de profecia dos
antepassados de sua mãe e aquela profecia a respeito do grande profeta foi-
lhe mostrada também numa visão, quando tinha apenas seis anos. Contou-a
durante o jantar aos pais, que não ignoravam a história de Mercúria. O pai,
homem muito severo e reser vado, encer rou-a por castigo num subter râneo.
Vi que ali os ratinhos e outros animais se lhe mostravam muito familiares,
brincando diante dela. Havia uma luz em redor de Catarina. Desejava de toda
a sua alma o Salvador dos homens, pedindo que a tocasse também e tinha
muitas visões e iluminações. Desde aquele tempo nutria um ódio invencível
contra todos os ídolos; escondia, enter rava ou quebrava todas as pequenas
estátuas de falsos deuses, que podia apanhar e por isso e por motivo dos
discursos estranhos e profundos que proferia contra a idolatria, era muitas
vezes encer rada no cárcere do pai. Contudo era também instruída em todas
as ciências; vi que andando, escrevia na areia e nas . paredes do palácio e
que as companheiras a imitavam.
Quando tinha cerca de oito anos, par tiu com o pai para Alexandria, onde o
futuro noivo a conheceu. O pai voltou com ela a Chipre. Ali não havia mais
judeus, mas de vez em quando se encontravam um escravo judeu e poucos
cristãos ocultos. Catarina foi instr uída interior mente por Deus e rezava com
ardente desejo do Batismo, que recebeu aos dez anos. Foi quando o bispo de
Dióspoli mandou, às ocultas, três sacerdotes a Chipre, para consolar os
cristãos. Recebeu uma ordem inter na de mandar batizar também Catarina,
que estava então novamente no cárcere, onde tinha por guarda um cristão
disfarçado. Este a levou de noite àreunião secreta dos cristãos, num
subter râneo fora da cidade, onde ela foi repetidas vezes e lá, junto com
outros, foi instruída na fé e batizada pelos sacerdotes. Vi que o batizante lhe
der ramou sobre a cabeça água de uma taça. Catarina recebeu, com o
batismo, uma inefável sabedoria. Falava de coisas maravilhosas, mas ainda
ocultava a fé cristã, como todos os cristãos faziam. Como, porém, o pai não
lhe supor tasse mais a aversão pela idolatria, as palavras e profecias, levou-a
a Pafos, mandando encer rá-Ia num cárcere, julgando que ali não poderia
travar relações com pessoas da mesma convicção religiosa. Contudo
Catarina era tão bela e inteligente, que o pai a amava ter namente. As
criadas e guardas eram mudadas freqüentemente, porque havia entre elas
muitas vezes ocultas cristãs. Já dantes gozara da aparição de Jesus, o
Esposo celeste, no qual sempre pensava e de outro esposo não queria saber.
De Pafos voltou novamente para casa e o pai quis dá-Ia em matrimônio a um
jovem de nome Maximiliano, descendente de uma antiga família real e
sobrinho do gover nador de Alexandria, que não tinha filhos e o fizera seu
herdeiro. Mas Catarina não o queria absolutamente. Antes deste noivado,
quando tinha doze anos, lhe mor rera a mãe nos braços. Catarina confessou à
mãe que era cristã e instruiu-a, induzindo-a a receber o batismo. Vi que
Catarina der ramou água de uma taça de ouro, com um ramo, sobre a cabeça,
testa, boca e peito da mãe.
Havia sempre muito tráfego entre Alexandria e Chipre e o pai mandou
Catarina à casa de parentes, esperando que afinal se afeiçoasse ao noivo.
Tinha naquele tempo treze anos. Em Alexandria morava com o pai do noivo,
numa vasta casa, com várias salas. O noivo morava também lá, mas separado
dela; estava como desvairado de amor e mágoa. Ela, porém, falava sempre do
outro noivo, a quem amava; por isso pensaram em mudar-lhe os sentimentos
pela sedução. Mandavam também homens sábios e doutos, para a desviar da
fé cristã, mas Catarina confundia a todos.
Naquele tempo era Teonas Patriarca de Alexandria, o qual conseguiu, com
grande brandura, que os cristãos não fossem perseguidos pelos pagãos. Mas
eram sempre muito oprimidos e tinham de supor tar tudo calados e de evitar
qualquer campanha contra a idolatria. Nessas circunstâncias se for mou uma
per niciosa convivência tolerante com os gentios, causando grande
indiferença entre os cristãos e por isso dispôs Deus que Catarina
desper tasse muitos da frouxidão, pelas suas luzes e seu ardente zelo. Vi
Catarina em casa de Teonas. Este lhe deu o Santíssimo Sacramento, que ela
levou para casa, transpor tando-o numa cápsula de ouro sobre o peito. Não
recebeu o Preciosíssimo Sangue. Vi naquele tempo em Alexandria muitos
pobres homens presos, com a aparência de eremitas, que eram hor rivelmente
tor turados nos trabalhos pesados de constr uções, transpor tando ou
car regando pedras. Creio que eram judeus conver tidos à fé cristã, que
tinham for mado uma colonia ao pé do monte Sinai, sendo depois presos e
levados a Alexandria. Vestiam vestes de cor parda, tecidas de cordas da
grossura de um dedo e um pano pardo na cabeça, que pendia sobre os
ombros. Vi que também receberam o Santíssimo Sacramento às escondidas.
Catarina voltou também uma vez a Chipre, quando o noivo fez uma viagem de
Alexandria à Pérsia e ela esperava ficar livre dele. O pai estava muito
enfadado de a ver ainda solteira. Teve de voltar para Alexandria e lá
insistiram ainda mais para que se casasse. Mais tarde a levou o pai ainda
uma vez à Salamina, onde foi solenemente recebida por moças pagãs e
levada a muitos diver timentos e festas; mas não conseguiram mudar-lhe a
decisão.
De volta a Alexandria, insistiam ainda mais em lhe tirar a fé. Vi uma grande
festa pagã. Catarina foi obrigada pelos parentes pagãos a ir ao templo
pagão; mas não se deixou induzir a sacrificar aos ídolos. Ao contrário,
quando estavam os pagãos no meio das esplêndidas cerimônias do sacrifício,
avançou Catarina, inspirada de zelo sobrenatural, para os que sacrificavam e
der rubando os altares de incenso e os vasos, começou a pregar em alta voz
contra o pecado abominável da idolatria. Levantou-se grande tumulto,
apoderaram-se dela, declarando-a louca; repreenderam-na no átrio do
templo, mas ajovem começou a falar ainda com mais veemência. Então a
prenderam, mas a caminho do cárcere, chamou todos os cristãos para se
reunirem a ela e darem o sangue por Aquele que os salvara com seu Sangue
divino. Foi encarcerada, açoitada com escor piões e lançada às feras. Eu
pensava comigo que não era per mitido procurar assim à força o mar tírio. Mas
há exceções desta regra e instrumentos da vocação de Deus. Catarina tinha
sido sempre impelida à idolatria e ao odioso matrimônio; logo depois da
mor te da mãe, o pai a levara muitas vezes às indecentes festas de Vênus; lá,
porém, nunca abrira os olhos. Em Alexandria afrouxara o zelo dos cristãos.
Agradava muito aos gentios que o patriarca Teonas consolasse os
maltratados escravos cristãos e os exor tasse a ser virem fielmente aos
cruéis senhores; mostravam-se tão amigos de Teonas, que muitos cristãos
fracos na fé pensavam que a idolatria não fosse condenável. Por isso Deus
mandou esta virgem de espírito for te, corajosa e inspirada, para conver ter
pelas palavras, pelo exemplo e o mar tírio muitos que, sem isto, teriam
perecido. Cuidara sempre tão pouco de ocultar a fé, que visitava os escravos
e operários cristãos, nas praças públicas, consolando-os e exrór tando-os à
perseverança na fé; pois sabia quantos se tor navam indiferentes, pela
tolerância e apostatavam da fé. Vira também tais apostatas no templo,
tomando par te nos sacrifícios; por isso lhe era tão veemente a dor e
indignação. As feras, às quais foi lançada depois da flagelação, lambiam-lhe
as feridas, que saravam de repente, por milagre, quando foi novamente
levada ao cárcere. Chegou o pai de Salamina e, tirando-a do cárcere, levou-a
de novo para a casa do noivo. Ali empregaram todos os meios de tentação,
para a induzir à apostas ia. Mas as moças pagãs, que a deviam persuadir à
idolatria, eram conver tidas por ela para Cristo e também os filósofos que
vieram disputar com ela, aderiram-lhe. O pai ficou furioso, atribuiu tudo à
feitiçaria e mandou açoitar Catarina de novo e lançá-Ia no cárcere. A mulher
do tirano (Maximino) visitou-a no cárcere e conver teu-se, junto com um
oficial (Porfírio). Quando entraram no cárcere, um Anjo pôs-lhe uma coroa
sobre a cabeça e outro lhe ofereceu uma palma. Não sei se a mulher o viu.
Catarina foi então levada ao circo e colocada sobre um estrado, entre duas
rodas largas, munidas de pontas de fer ros cor tantes, como relhas de arado.
Quando quiseram fazer girar as rodas, foram quebradas pelos raios lançados
no meio dos pagãos, dos quais cerca de trinta ficaram feridos ou mor tos.
Desencadeou-se uma violenta tempestade, com saraivada; ela, porém, ficou
sentada tranqüilamente, com os braços estendidos, entre os destroços das
rodas. Conduziram-na novamente ao cár cere e por vários dias tentaram
persuadí-la à idolatria. Alguns homens quiseram violá-Ia, mas Catarina
repeliu-os com a mão e eles ficaram rígidos como estátuas e sem força para
se mover. Outros se atiraram sobre ela, mas a donzela afastou-os,
mostrando-Ihes os que se tinham tor nado como petrificados. Tomavam tudo
por feitiçaria e Catarina foi de novo conduzida ao lugar do suplício. Ajoelhou-
se diante de um cepo, volvendo a cabeça um pouco para o lado e assim foi
degolada, com um fer ro das rodas destruídas. Cor reu tanta quantidade de
sangue, que todos se admiraram; esguichava com força e tor nou-se
finalmente claro como água. A cabeça caiu por ter ra. Atiraram o cor po sobre
uma fogueira, mas as chamas ar remessaram-se contra os car rascos; o cor po
ficou envolto numa nuvem de fumaça. Tiraram-no então e lançaram-no a
algumas feras esfomeadas, para que o despedaçassem. Mas estas não o
tocaram e no dia seguinte os car rascos atiraram o cor po da santa virgem
numa fossa cheia de excrementos, debaixo de sabugueiros. Na noite seguinte
vi nesse lugar dois Anjos, em vestes sacerdotais, que envolveram o cor po
resplandecente numa cober ta de entrecasca e o levaram, voando.
Os dois Anjos transpor taram o cor po da virgem para o cume inacessível do
monte Sinai. Vi a superfície do cimo, era pouco extensa, de tamanho de uma
pequena casa; constava de uma rocha de diversas cores, na qual se achavam
impressas for mas de plantas. Colocaram cabeça e cor po de br uços sobre a
rocha, que parecia mole como cera, pois o cor po se lhe imprimiu inteiro,
como numa for ma. Vi que os lados superiores das mãos estavam
perfeitamente desenhados na pedra. Os Anjos colocaram sobre a pedra, que
se elevava um pouco acima do solo, uma cober ta brilhante. O santo cor po
ficou nesse lugar, durante vários séculos, inteiramente oculto, até que foi
mostrado por Deus, numa visão, a um eremita, per to do monte Horeb.
Ali viviam vários eremitas, sob a direção de um abade. O eremita revelou ao
abade a visão, que várias vezes tivera e verificou-se que ainda outro dos
confrades tinha tido a mesma visão. O abade ordenouIhes, sob obediência,
que trouxessem o santo cor po, o que de modo natural era impossível; pois o
cume era inteiramente inacessível, inclinado e fendjdo. Vi-os abrirem numa
noite caminho, para o qual precisavam de vários dias; estavam num estado
sobrenatural. Era noite escura, mas em redor Ihes brilhava uma luz. Vi que
ambos foram levados por Anjos ao cume escar pado; vi os Anjos abrirem o
sepulcro, entregando a um a cabeça, ao outro o cor po envolto, que já se
tomara pequeno e leve e car regando as relíquias assim nos braços, foram
levados novamente para baixo pelos Anjos, que os seguravam pelos braços.
Vi ao pé do Sinai a capela onde descansa o cor po sagrado: é construída
sobre doze colunas. Os monges pareciam ser gregos. Vestiam hábito de uma
fazenda grossa, que ali mesmo fabricavam. Vi as relíquias de Santa Catarina
num pequeno caixão. Mas restava apenas o alvíssimo crânio e um braço
inteiro; mais não vi. Tudo está em ruína.
Vi também no monte, ao lado da sacristia, um pequeno subter râneo cujas
paredes contém, em cavidades, santas relíquias, que na maior par te estão
envoltas em pano de lã ou seda e bem conser vadas. Há entre elas também
restos de profetas, que antigamente viveram ao pé do mon te e que já eram
venerados nas grutas do monte pelos Essenos. Vi ali também ossos de Jacó,
de José e da família, que os israelitas trouxeram consigo, quando saíram do
Egito. Essas santas relíquias pareciam ser desconhecidas; mas são às vezes
veneradas por piedosos monges. A Igreja encosta-se ao lado do monte que dá
para Arábia. Mas de tal modo, que se lhe pode ainda passar por detrás.
Catarina tinha dezesseis anos, quando mor reu már tir, no ano 299. Das
numerosas virgens que a acompanharam chorando, ao lugar do suplício,
apostataram algumas mais tarde; a mulher do tirano, porém, e o oficial
sofreram com fir meza a mor te e o mar tírio".

17
Glorificação da Santa Cruz

1. Vitória e conversão de Constantino


2. Descober ta da Cruz
3. O Triunfo da santa Cruz

Glorificação da Santa Cruz

1. Vitória e conversão de Constantino

Entre perseguições e sofrimentos, propagavam os Apóstolos e discípulos de


Jesus a doutrina do Filho de Deus crucificado, a qual era "um escândalo para
os judeus e uma tolice para os gentios"; propagavam-na pelos países
longínquos, provavam-na por milagres e confir mavam-na pelo sangrento
mar tírio. E como eles, muitos outros fiéis pastores e nobres filhos da Igreja,
de ambos os sexos e todas as idades e classes, sofreram pela santa fé as
mais atrozes tor turas e a mor te mais cruel, perseguidos sem trégua por
pagãos e judeus, durante três séculos. Imenso era o número dos már tires no
vasto império romano, onde os imperadores pagãos faziam todos os esforços
para exter minar inteiramente a doutrina cristã. Mas não conseguiram este
fim de modo algum; ao contrário, a Igreja tor nava-se cada vez mais for te nas
prisões em que a tinham metido e a honra e glória do Filho de Deus, mor to no
madeiro da ignomínia, propagava-se cada dia mais.
Afinal chegou o tempo em que a Igreja devia achar a paz tão almejada. O
imperador romano Constantino alcançou, com o exército, uma brilhante
vitória sobre o rival Maxêncio, no ano 312. O exército de Constantino
combatia sob a bandeira da Cruz, que lhe aparecera nas nuvens do céu, com
a inscrição: "In hoc signo vinces" isto é, - Por este sinal vencerás. No ano
seguinte proclamou o célebre edito de Milão, que concedeu aos cristãos
plena liberdade de religião e aos pagãos liberdade de abraçarem a fé cristã.
É verdade que o imperador não se tor nou logo cristão fer voroso e a liberdade
da Igreja deixava de ser perfeita.
"Constantino tinha sem dúvida grande confiança no sinal da santa cruz, em
conseqüência de várias aparições, diz a ser va de Deus, e mandou, com
grande veneração, levar a santa insígnia como uma bandeira, na frente do
exército, mas fazia-o mais por simples superstição, como hoje muitos andam
com amuletos, sem por isso serem piedosos. Acreditava que o sinal da cruz o
auxiliava e considerava Cristo como um deus, entre os outros deuses
pagãos. Deste modo fazia muito mal, apesar da boa vontade; também
perseguia em muitas coisas os cristãos, porque se deixava enganar e
venerar a Cruz apenas como sinal de vitória e de boa sor te. Também o Papa
Silvestre e muitos sacerdotes eram obrigados a esconder-se-lhe; procuraram
um esconderijo na caver na de um monte. Assim continuou, até que Deus o
castigou; tomou-se morfético e os sacerdotes pagãos aconselhavam-lhe
banhar-se em sangue de crianças. Hor rorizado, mandou chamar à sua
presença o Papa Silvestre, para instruí-Io na sua doutrina cristã. Aceitou
uma penitência de sete dias e depois vi que o Papa Silvestre o batizou.
Desceu com o cor po inteiro na água e saiu perfeitamente curado da lepra.
Conhecendo assim bem a doutrina cristã e o respectivo valor, mandou um
mensageiro, com uma car ta, à mãe, anunciando-lhe que se tor nara cristão e
fora curado da lepra; que viesse, para se tor nar também cristã.
A mãe, Helena, pouco sabia da fé cristã. Tendo ouvido que o Filho de Deus
descera à ter ra para a salvação dos judeus, tinha grande veneração e desejo
do Messias; por isso tinha o povo judeu por um povo escolhido e travou
relações com judeus sábios. Quando Ihes anunciou que o imperador se
tor nara cristão, muito assustados, começaram a lamentar alto. Respondeu
por isso ao filho que se estava resolvido a abandonar o paganismo, teria sido
melhor abraçar a religião dos judeus. O imperador disse-o ao Papa, que o
aconselhou a mandar vir a mãe, com sábios judeus, a Roma, para disputar
com ele. Constantino escreveu-lhe e ela, percor rendo o país, procurou os
mais sábios judeus e embarcou, com dois dos mais sábios, para Roma. Além
destes, assistiram muitos judeus a essa disputa e dois filósofos pagãos como
juízes. Vi, porém, que Silvestre Ihes refutou todas as objeções e que Helena
e os dois judeus se tor naram cristãos e voltaram a Jerusalém, para procurar
a santa Cruz.”

2. Descober ta da Cruz

Já antes da Ascensão do Senhor os judeus procuraram maliciosamente


destruir todos os lugares que os cristãos consideravam sagrados pela Paixão
de Jesus.
"Nos lugares do caminho da cruz onde Jesus caíra, abriram fossos através do
caminho. Os jardins e as relvas amenas, onde Jesus ensinara ou estivera
mais vezes, tor naram inacessíveis, fechando-os com cercas. Em alguns
lugares fizeram até buracos ocultos, para que aqueles que ali fossem venerar
a memória do Senhor, neles caíssem. Mas vi que alguns judeus malignos ali
caíram.
Também mandaram obstruir com fossos e estacadas os caminhos do Cal
vário e do Santo Sepulcro, porque muitos para lá peregrinavam e se davam
vários prodígios e milagres.
Vi-os também aplanarem o cimo do Cal vário e espalharem a ter ra, como se
espalha estrume, sobre os caminhos e as relvas cordifor mes, for madas por
esses caminhos, no lugar, do suplício. Depois de terem tirado a ter ra, ficou
no cimo uma pedra branca descober ta, tendo ,no meio um buraco
quadrangular, de cerca de um côvado de profundidade, no qual estivera a
Cruz. Vi que trabalhavam penosamente com alavancas, para tirar a pedra;
mas não o conseguiram, a pedra entrava cada vez mais na ter ra. Então
cobriram o lugar com ter ra. O Santo Sepulcro, como propriedade de
Nicodemos, ficou intacto.
Mais tarde esses santos lugares foram profanados ainda mais
injuriosamente.
"O jardim do Santo Sepulcro descia suavemente da altura da gr uta. Vi,
porém, que aplanaram a eminência, enchendo com a ter ra o jardim, cobrindo
e obstr uindo tudo. Hoje de noite vi, na visão, toda a região do Calvário e do
Sepulcro transfor mada e tor nada quase ir reconhecível. Muitos caminhos
estavam cober tos e cruzados por outros. O Calvário, em redor do qual havia
dantes outras colinas e entre estas, lugares bonitos e agradáveis, era agora
mais baixo e o cimo mais largo.
Os dois judeus que se tor naram cristãos e vieram com Helena a Jerusalém,
tinham de fingir-se judeus, para indagar a situação dos santos lugares; tendo
sabido pelos judeus vizinhos a situação do Calvário e do sepulcro de Jesus,
encontrou a imperatriz um templo de Vênus, com ídolos pagãos, construído
sobre o Santo Sepulcro. No ,cimo do Calvário estava a estátua de Adônis. Os
judeus não quiseram, porém, mostrar onde estava a Cruz de Cristo, indicando
como conhecedor dessas coisas um velho judeu.
Vi uma mulher alta, majestosa, apesar da idade avançada, ainda muito ligeira
(Sta. Helena), que tinha na cabeça uma pequena coroa e trazia um véu; vi-a
entrando e saindo de míseras cabanas e sinistras espeluncas, situadas per to
do muro da cidade, fazendo pesquisas. Notei que também um velho judeu,
pequeno e magro, de barba comprida, fugindo de uma dessas casas para
outra, para escapar à inter rogação dessa mulher. Outra vez vi que mandou
chamar muitos judeus a uma reunião. Depois vi que a matrona foi com o
velho judeu e dois outros judeus, que levavam um longo furador, ao lugar
onde jazia a santa Cruz. O templo pagão já tinha sido demolido; o velho judeu
também não sabia muito exatamente o lugar ; furaram primeiro em redor,
estreitando cada vez mais o círculo, até que acharam com o furador um
sinal, que não sei qual foi. Ali começaram a cavar. Vi a imperatriz entrar
nesse lugar, depor a coroa e soltar o cabelo; tirou também uma coisa do
pescoço e do peito, descalçou os sapatos, colocando tudo numa pedra
branca, que estava per to. Foi preciso cavar uma fossa profunda, até acharem
alguma coisa. Primeiro encontraram a cruz de um dos ladrões, depois, não
muito longe, a de Jesus e finalmente a terceira. A cruz do Senhor fora
desmontada, mas as par tes estavam juntas. A tabuinha, com uma inscrição
em pergaminho, estava um pouco afastada; sob um dos braços da cruz
estavam juntos os três cravos, dos quais o dos pés tinha um palmo e meio de
comprimento, os outros dois um palmo apenas. Santa Helena enviou o cravo
comprido ao filho.
Nunca pude compreender a afir mação de que não podiam distinguir a santa
Cruz das outras; pois eu a tenho visto sempre diferente. As cruzes dos
ladrões vi feitas de madeiros redondos, sobre os quais eram fixos os
madeiros transversais por uma cunha, que sobressaia da cruz. A cruz do
Senhor, porém, fora feita de madeiros quadrangulares, mais targos que
grossos e bem aparados; os braços estavam encaixados. Tinha também uma
tábua, para pôr os pés, pregado com um prego grande, que eu julgava
ar rebitado pelo lado posterior. Vi esta tábua virada, quando acharam a cruz.
Vi como levantaram a santa cruz e como Helena a abraçou. Separaram as
outras cruzes e deixaram-nas como madeira comum; eu, na minha
simplicidade, sempre pensei que se podia ter conser vado pelo menos a cruz
do bom ladrão.
Juntou-se grande multidão de povo; era preciso os soldados manterem a
ordem no caminho.”

3. O Triunfo da santa Cruz

"Vi que levaram a santa Cruz numa grande procissão e que traziam coxos e
enfer mos, conduzindo-os pelos braços ou transpor tando-os em padiolas e que
foram todos curados, ao passar a santa Cruz. Creio que o povo não tomava
esses milagres como sinais para distinguir a cruz das outras, mas apenas
como confir mação de que era realmente a Cruz do Senhor.
O velho judeu tomou-se também cristão e grande venerador da santa Cruz;
trazia sempre o sinal da cruz sobre o lado direito do manto; mais tarde se
tor nou bispo de Jerusalém.
Vi que Helena pediu e recebeu o santo Batismo e mandou demolir o templo
pagão sobre o Santo Sepulcro. No princípio recusavam os judeus começar o
trabalho; mas desencadeou-se uma tremenda tempestade, que levou todo o
entulho e virou muitas das casas dos judeus construídas em redor. Os
judeus, porém, tomados de veemente ter ror, começaram todos a trabalhar
com todo o esforço. A primitiva entrada do Sepulcro não foi mais aber ta, mas
outra ao lado. Vi depois Santa Helena, que naquele tempo contava cinqüenta
anos, ocupada em dirigir a construção de uma grande Igreja (a Igreja do
Santo Sepulcro); a Igreja cristã fora até então a de Sião, onde havia sido
instituído o Santíssimo Sacramento.”
Helena mandou pôr uma par te da santa Cruz num relicário precioso
e entregou-a a Macário, então bispo de Jerusalém. Quando, no ano 614, o rei
da Pérsia, Cosroes II, conquistou Jer usalém, levaram os vencedores essa
par te da Cruz, como espólio, para a Pérsia. Só após uma guer ra de doze
anos, em que o imperador Heráclito venceu os persas, voltou a santa Cruz à
Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém. - Outra par te da Santa Cruz foi
levada pela Santa para Roma, onde foi entregue à Igreja da Santa Cruz,
edificada por Santa Helena, na qual esta santa relíquia ainda hoje é
conser vada e venerada.
A Cruz, outrora sinal de ignomínia e de desprezo, tomara-se sinal glorioso do
triunfo e da vitória que o cristianismo alcançara sobre o paganismo e que
depois se estendeu aos países do sul da Europa e do nor te da África e mais
tarde também ao nor te e leste da Europa. Ar mados com a Cruz venturosa,
par tiam nos séculos seguintes, até o nosso tem po, inúmeros missionários,
cheios de amor de Deus e zelo pelas almas, indo a toda a par te da ter ra, até
aos povos mais longínquos da África, Ásia, América e Austrália, para Ihes
levar o Evangelho da fé e granjear para o Salvador do mundo novos ser vos,
que O adorassem, amassem e glorificassem. Assim contribuíam e contribuem
para o cumprimento da palavra de São Paulo: "Ele (o Salvador) humilhou-se a
si mesmo, feito obediente até a mor te e mor te de cruz; pelo que Deus
também o exaltou e lhe deu um nome que é sobre todos os nomes, para que
ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, na ter ra e
nos infer nos; e toda a língua confesse que o Senhor Jesus Cristo está
na glória de Deus Pai." (Fil. 2, 8-11).
Nesta glória viu São João ao Salvador : "o Cordeiro de Deus imolado", como
ele nar ra no livro do Apocalipse, 5, 11 - 17:
"E olhei e ouvi a voz de muitos Anjos ao redor do trono e dos animais e dos
anciãos; e era o número deles milhares e milhares, que diziam em alta voz:
"Digno é o Cordeiro, que foi mor to, de receber a vir tude e a divindade e a
sabedoria e a for taleza e a honra e a glória e a bênção. E toda a criatura que
há no céu e sobre a ter ra e debaixo da ter ra e as que há sobre o mar e
quantas há nele, ouvi dizer a todas: "Ao que está sentado no trono e ao
Cordeiro, bênção e honra e glória e poder por todos os séculos.”

APÊNDICE

No capítulo seguinte damos, com as próprias palavras de Anna Catharina


Emmerich, alguns suplementos da história da Paixão de Nosso Senhor. Como
estes devem ser considerados menos essenciais, não quisemos dá-Ios antes,
para não inter romper o fio da nar ração; não os queremos, porém, eliminar
inteiramente, por causa das infor mações interessantes neles contidas.

1. O cálice da última Ceia

O cálice que os Apóstolos receberam em casa de Verônica, era um vaso


maravilhoso e misterioso. Muito tempo fora guardado no Templo, entre outros
objetos preciosos, de grande antiguidade, cuja origem e emprego tinham sido
esquecidos, como acontece também na Igreja cristã, na qual muitos objetos
preciosos pela beleza e antiguidade, caíram em esquecimento no cor rer do
tempo. Muitas vezes escolhiam no Templo os vasos antiquados, de uso
desconhecido ou jóias antigas, vendiam-nos e mandavam-nos restaurar ou
remodelar. Assim aconteceu também, por per missão de Deus, a esse santo
vaso; foi encontrado por sacerdotes daquele tempo no tesouro do Templo,
numa caixa, junto com outros objetos antigos e esquecidos e como, por ser
de matéria desconhecida, nunca se pôde fundir, venderam-no a amadores de
antiguidades. O cálice, com todos os acessórios, fora comprado por Seráfia e
já fora usado algumas vezes por Jesus, em festividades; desde então se
tor nou propriedade per manente da santa comunidade de Jesus Cristo. Nem
sempre estivera no estado atual; não me lembro mais quando foi feita a
adaptação das diversas par tes de que constava e se o foi por ordem do
Senhor ; pois que se juntou ao cálice um aparelho por tátil, para ser vir na
instituição do Santíssimo Sacramento.
Sobre uma bandeja, da qual se podia tirar ainda uma tabuinha, estava o
grande cálice e em roda dele, seis copinhos; não me lembro mais, se a
tabuinha continha coisa sagrada. Dentro do grande cálice havia outro vaso
pequeno, sobre o qual se achava um pratinho ou patena e sobre este, uma
tampa convexa. No pé do cálice era guardada uma colher, que se podia
facilmente tirar. Todos estes vasos, cober tos de linho fino, estavam debaixo
de uma capa de couro, se não me engano, que em cima tinha um botão. O
cálice grande constava da taça e do pé, que deve ter sido acrescentado mais
tarde, pois estas duas par tes eram de material diferente: A taça era de um
metal pardacento e bem polido, em for ma de pêra; mas estava revestida de
ouro e tinha duas argolinhas, pelas quais se podia segurar o cálice, pois era
bastante pesado. O pé era de ouro escuro, ar tisticamente trabalhado, or nado
na par te inferior de uma serpente e de um pequeno cacho de uvas. Também
era ricamente ador nado de pedras preciosas. No pé se achava a colherzinha.
O cálice grande ficou na Igreja de Jer usalém, com S. Tiago o Menor ; agora o
vejo ainda guardado em outro lugar.
Há de reaparecer, como reapareceu dessa vez. Outras Igrejas dividiram entre
si os copinhos que cercavam o cálice; um desses está em Antioquia, outro
foi para Éfeso; cada uma das sete Igrejas tinha o seu. Esses copinhos
per tenciam aos Patriarcas, que deles bebiam a bebida misteriosa, quando
recebiam e davam a bênção, como tenho visto e nar rado várias vezes.
O cálice grande já tinha estado com Abraão; Melquisedec trouxera-o da ter ra
de Semíramis, onde já se tinha perdido e levara-o para a ter ra de Canaã,
quando fora fundar vários edifícios, no lugar da futura Jerusalém. Empregou-
o no sacrifício, em que ofereceu pão e vinho na presença de Abraão e depois
o cedeu a esse Patriarca. Já tinha sido propriedade de Noé, que o guardara
no alto da arca.
"Eis que vêm homens, gente distinta de uma bela cidade, construída em
estilo antigo; adora-se ali tudo que se encontra, até peixes também. O velho
Noé, com uma estaca ao ombro, está ao lado da arca; a madeira de
constr ução está amontoada em redor, tudo no lugar. Não, não são criaturas
humanas, deve ser algo de mais nobre, pois são tão belos e claros. Entregam
a Noé o cálice, que deve ter caído, em algum lugar, em esquecimento; não
sei mais o nome desse lugar. Há dentro do cálice um grão semelhante ao
trigo, maior, porém, do que o nosso; é como um grão de girassol; há nele
também um raminho de videira. Dizem a Noé que ele é um homem tão
afamado, que lhe trazem uma coisa misteriosa, que deve levar consigo. Eis
que ele introduz o grão de trigo e o raminho de videira numa maçã amarela e
põe tudo no cálice. Este não tem tampa, porque o conteúdo deve crescer
para fora. O cálice foi feito segundo um modelo que, como creio, saiu da
ter ra em qualquer par te, de maneira miraculosa. Há nisto um mistério, mas
foi modelado segundo aquela for ma. É também o cálice que vi no lugar da
sarça ardente, naquela grande parábola.
Os homens que trouxeram a Noé o cálice e os tesouros nele contidos,
usavam longas vestes brancas e pareciam-se com os três homens que
procuraram Abraão e lhe prometeram um filho. Pareceu-me que trouxeram da
cidade uma coisa santa, que não devia ser destruída; a cidade, porém,
pereceu no dilúvio, com tudo que continha. O cálice esteve também com uma
tribo fiel a Deus, per to de Babilônia, eram descendentes de Noé, detidos na
escravidão por Semíramis. Melquisedec conduziuos à ter ra de Canaã, levando
consigo também o cálice. Vi que tinha uma tenda per to de Babilônia, na qual
benzia e repar tia entre eles o pão, sem o qual não teriam tido força para o
seguirem. Esse povo tinha um nome que soava como "Samanéos"; ser viu-se
dele e de alguns Cananeus, que viviam em caravanas, quando começou a
constr uir edifícios, nas colinas deser tas dáftItura Jerusalém. Fez alicerces
muito profundos, onde depois estava o Cenáculo e o Templo, como também
para o lado do Calvário. Plantou também trigo e vinhas. Depois do sacrifício
de Melquisedec, ficou o cálice com Abraão; foi levado ao Egito e também
Moisés o possuiu. O material da taça do cálice era compacto como o de um
sino; era como um produto da natureza e não trabalhado como metal. Vi atra-
vés dele; só Jesus sabia de que material era feito.
Quando Nosso Senhor, por ocasião da instituição do SS. Sacramento, tomou o
cálice, tive subitamente outra visão do Velho Testamento.
Vi Abraão de joelhos diante de um altar ; à distância vi muito povo guer reiro
caminhar, com animais de carga e camelos. Vi avançar para Abraão um
homem majestoso, que colocou sobre o altar o mesmo cálice que Jesus
naquela ocasião tinha nas mãos. Esse homem tinha algo de semelhante a
asas nos ombros; não as tinha realmente, mas era só para fazer saber que
era um Anjo. Foi a primeira vez que vi asas num Anjo. Aquele homem, porém,
era Melquisedec. Atrás do altar de Abraão se levantaram no ar três colunas
de fumaça; a do meio era reta e alta, as outras duas mais baixas. Depois vi
duas séries de figuras, que acabavam em Jesus. Davi e Salomão achavam-se
entre elas. Era a estir pe de Jesus (esqueceu de dizer se era a linha dos
possuidores do cálice ou a dos sacrificadores ou dos ascendentes de Jesus).
Vi nomes acima de Melquisedec, de Abraão e de alguns reis e deste modo
voltei à visão de Jesus e do cálice.
O sacrifício de Melquisedec teve lugar sobre uma colina, no vale de Josafá;
agora não acho mais esse lugar. O cálice estava já com Melquisedec. Abraão
deve ter sabido daquele sacrifício, porque já tinha construído um belo altar,
mais belo e for te do que os que vi em outras ocasiões. Por cima do altar
havia como uma tenda de folhagem e dentro se achava uma espécie de
taber náculo, no qual Melquisedec colocou o cálice. Os copos de que deu a
beber, pareciam pedras preciosas. Havia um orifício sobre o altar,
provavelmente para o sacrifício. Abraão trouxera consigo um soberbo
rebanho.
Já muito antes, quando Abraão recebera o mistério da promissão, lhe fora
revelado que o sacerdote do Altíssimo celebraria diante dele o sacrifício,
que devia ser instituído pelo Messias e durar por todos os séculos.
Quando, por tanto, Melquisedec anunciou a sua chegada por dois cor reios,
dos quais se ser v.ia muitas vezes, Abraão esperou-o cheio de respeito e
esperança e construiu o altar e a tenda de folhagem com muito cuidado.
Vi também Abraão colocar sobre o Altar alguns ossos de Adão, como sempre
fazia nos sacrifícios; Noé já os guardara na Arca. Diante deles pe'diram a
Deus o cumprimento da promessa do Messias, a qual fora feita a Adão.
Abraão desejava vivamente a bênção de Melquisedec.
A campina em redor estava cober ta de homens e animais, de cargas e
bagagens; o rei de Sodoma estava com Abraão debaixo da tenda. Tudo estava
silencioso e em expectativa. Melquisedec veio do lugar onde depois se
constr uiu Jerusalém; tinha ali cor tado o mato e lançado os fundamentos de
vários edifícios; uma construção semicircular estava meio ter minada e um
palácio ainda no começo. Trouxe um animal de carga cinzento; não era
camelo, nem como o nosso jumento: tinha o pescoço cur to e grosso e era
bom cor redor. Estava car regado pesadamente; num lado trazia uma vasilha
grande de vinho, achatada para o lado do animal; do outro lado vinha um
caixote, em que se achavam uma fileira de pães chatos e diversos vasos. Os
copos, que tinham a for ma de pequenos bar ris, eram transparentes como
pedras preciosas, não como ouro ou prata. Abraão foi ao encontro de
Melquisedec. Vi este entrar na tenda por trás do altar e, elevando nas mãos
pão e vinho, oferecer, benzer e distribuir o mesmo. A cerimônia tinha
semelhança com a santa Missa. Abraão recebeu pão mais branco do que os
outros e bebeu do cálice de que Jesus se ser viu na Instituição da S.
Eucaristia (ainda não se lhe tinha acrescentado o pé). Entre os mais
distintos assistentes distribuíram depois vinho, em pequenos copos e
bocados de pão.
Este não era consagrado, - Anjos não podem consagrar - mas era bento e vi-o
brilhar ; todos os que o receberam, sentiram-se for tificados e elevados a
Deus. Abraão foi também abençoado por Melquisedec: vi que era um símbolo
da ordenação dos sacerdotes, como para o consagrar sacerdote; pois Abraão
já recebera a promissão de que o Messias nasceria dele, em car ne e sangue.
Tive diversas vezes a explicação de que Melquisedec fez saber a Abraão,
nesta bênção, que no futuro seriam ditas a respeito do Messias e de seu
sacrifício as palavras proféticas: "O Senhor disse ao meu Senhor : Sentai-vos
à minha direita, até que eu reduza os vossos inimigos a ser vir-vos de
escabelo. O Senhor jurouo e não se ar rependerá: Sois sacerdote
eter namente, segundo a ordem de Melquisedec." Vi que também Davi, ao
escrever estas palavras do salmo, teve uma visão da bênção dada por
Melquisedec e Abraão.
Vi, porém, que Abraão profetizou, depois de ter tomado o pão e o vinho,
dizendo mais ou menos o seguinte: "Então acabará o que Moisés dá aos
Levitas." Entendi que falava profeticamente de Moisés e dos Levitas.
Agora não sei mais se o próprio Abraão ofereceu também esse sacrifício. Deu
depois os dízimos dos rebanhos e dos seus bens. Creio que Melquisedec
distribuiu tudo de novo. .
Melquisedec não parecia velho; era esbelto e alto, cheio de suave seriedade.
Trazia uma longa veste, tão branca, como jamais vi na ter ra; parecia mesmo
resplandecer e ao lado dela, a vestimenta branca de Abraão parecia escura.
Por ocasião do sacrifício se cingiu de uma cinta, na qual estavam bordadas
algumas letras e pôs uma mitra branca dobra da, como depois a usavam os
sacerdotes. O cabelo era longo, de um louro claro, sedoso; tinha barba em
ponta, branca, cur ta, repar tida na ponta; o rosto resplandecia-lhe. Todos o
tratavam com muito respeito; em sua presença todos se tomavam sérios e
silenciosos. Foi-me dito que era um Anjo sacerdotal e mensageiro de Deus.
Foi enviado para estabelecer várias Instituições santas; conduzia povos,
transferia tribos, fundava cidades. Vi-o em diversos lugares, antes do tempo
de Abraão; depois não o vi mais.

3. A inimizade de Pilatos e Herodes.

A causa da inimizade entre Pilatos e Herodes foi, segundo as meditações da


nar radora, a seguinte:
Pilatos empreendera a constr ução de um grande esgoto das águas do templo,
passando do lado Leste do monte do Templo, sobre o bar ranco, no qual
desemboca o tanque de Betesda; por inter médio de um astuto herodiano,
membro do Sinédrio, cedeu-lhe Herodes materiais de construção e 18
arquitetos, que também eram herodianos. Herodes tinha a intenção de
malquistar Pilatos com os judeus, pelo malogro dessa obra. Os arquitetos
tinham o propósito de fazer ruir a construção e quando a obra grandiosa
estava quase ter minada, trabalhando ainda muitos operários de Ofel em tirar
os andaimes sob os arcos, estavam os 18 arquitetos reunidos sobre uma
tor re, na região de Síloa, que ficava próxima, esperando o efeito final. O
edifício desabou, mas também a par te onde eles estavam. 93 operários
mor reram e também os 18 mestres de obra. O desabamento deu-se antes-de
8 de Janeiro (20 de Tebet), do segundo ano da pregação de Jesus, no dia em
que João Batista foi degolado no castelo de Macheronte e começou a festa
do aniversário de Herodes; por causa do desastre não foi nenhum oficial do
exército romano a essa festa, embora o próprio Pilatos fosse convidado,
hipócritamente. A nar radora viu que a notícia do desastre foi levada no
mesmo dia, 8 de Janeiro (20 de Tebet), por um discípulo, a Timat-Será, na
Samaria, onde Jesus pregava. Quando Jesus foi dali a Hebron, para consolar
os parentes de João Batista, Anna Catharina o viu, a 13 de Janeiro (25
Tebet), em Ofel, fora de Jerusalém, curando muitos dos ope rários, feridos no
desastre, cuja gratidão é mencionada no cap. 4, no. 2. A inimizade entre
Herodes e Pilatos cresceu ainda, pela vingança que este tomou dos
par tidários de Herodes, em par te por causa desta pérfida constr ução.
Algumas notas tomadas das meditações da Ser va de Deus podem esclarecer-
nos a respeito. A 25 de Março, (7 Nisan) do segundo ano da vida pública de
Jesus, preveniu Lázaro ao Senhor e aos seus, que estavam na margem da
lagoa de Betúlia, que havia perigo na festa de Páscoa, pois que estava
iminente uma insur reição de Judas Gaulor nita contra Pilatos. A 28 de Março
(10 Nisan) decretou Pilatos um imposto do Templo em Jerusalém, para pagar
as despesas com a reconstrução do muro destruído do Templo; e levantou-se
um tumulto entre os galileus, par tidários de uma luta pela liberdade,
propagada por Judas de Gaulon, que com todo o seu par tido era, sem o
saber, um instr umento dos herodianos. Os herodianos eram uma sociedade,
como hoje a maçonaria, "vejo-as muitas vezes como sendo a mesma coisa". A
30 de Março (12 Nisan), estava Jesus com 30 discípulos no Templo de
Jerusalém; ensinava pelas 10 horas da manhã, vestido do manto pardo, que
os galileus usam. Nesse dia se deu a insur reição de Judas Gaulomita contra
Pilatos; os amotinados liber taram os 50 camaradas, presos dois dias antes;
vários romanos foram mor tos. A 6 de Abril (19 Nisan) mandou Pilatos
soldados romanos disfarçados ao Templo, que caíram sobre os galileus,
durante o sacrifício e os mataram. Judas mor reu também nessa ocasião.
Desse modo se vingou Pilatos de Herodes, matando-lhe os súditos e
par tidários, por causa do desabamento do aqueduto. Essa inimizade acabou
na Sexta-Feira Santa hipócritamente; Pilatos mandou Jesus, o galileu, a
Herodes, para que o julgasse, como seu súdito, para assim lhe dar uma
satisfação por lhe haver mandado assassinar no Templo tantos súditos, no
ano anterior.

4. Seráfia (Verônica) e o sudário.

Seráfia era prima de João Batista; pois o pai era filho do ir mão do pai de
Zacarias. Era natural de Jerusalém.
Quando Maria foi levada à comunidade das virgens do Templo, ainda menina
de 4 anos apenas, vi Joaquim e Ana entrarem na casa pater na de Zacarias,
não longe do mercado de peixe. Morava ali um velho parente de Zacarias;
talvez fosse o tio do mesmo e avô de Seráfia, a qual vi nesse tempo já muito
mais velha do que Maria; podia ter cinco anos mais. Também na festa dos
esponsais de Maria e José, a vi mais velha do que a SS. Virgem. Era também
parente do velho Simeão, que profetizou no Templo, por ocasião da
Apresentação de Jesus e desde a infância era amigo dos filhos do venerando
ancião, os quais tinham, já há muito tempo, como o pai, ardente desejo da
vinda do Messias, como também Seráfia. Esta esperança de salvação
conser vava-se entre muitos homens bons daquele tempo, como um secreto
amor ; os contemporâneos não o pressentiam absolutamente. Quando Jesus,
então menino de doze anos, ficou em Jer usalém, para ensinar no Templo, vi
Seráfia mais velha do que a Mãe de Jesus e ainda solteira. Mandava comida
para Jesus, a um albergue fora de Jerusalém, onde Ele se hospedava, nas
horas em que não estava no Templo. Essa hospedaria, situada a quinze
minutos de caminho na direção de Belém, era a mesma em que Maria e José
ficaram um dia e duas noites, com um casal de velhos, quando, depois do
nascimento de Jesus, foram de Belém ao Templo, para apresentar o Menino
Jesus. Aquele casal de velhos eram Essênios, a mulher era parente de Joana
Cuza. Conheciam a Sagrada Família e Jesus. Essa albergaria era um
estabelecimento destinado aos pobres; Jesus e os discípulos alojavam-se
muitas vezes ali e vi que nos últimos tempos da vida ter rena do Salvador,
quando estava ensinando no Templo, Seráfia mandava várias vezes comida
para lá. Mas naquele tempo eram outros os proprietários do albergue.
Seráfia casou-se tarde; o marido, Sirach, descendente da casta Suzana, era
membro do Conselho do Templo. Como, a princípio, tinha prevenção contra
Jesus, Seráfia tinha muito que sofrer por causa das íntimas relações que
mantinha com Jesus e as santas mulheres. Até foi várias vezes presa pelo
marido num subter râneo, durante bastante tempo. Conver tido por Nicodemos
e José de Arimatéia, diminuiu essa aversão e per mitiu à mulher que seguisse
a doutrina de Jesus. Diante do tribunal de Caifás, deu com Nicodemos, José
de Arimatéia e outros bem intencionados, o voto a favor de Nosso Senhor e
abandonou com eles o Sinédrio.
Seráfia era ainda uma bela e for te mulher, mas já devia ter mais de 50 anos.
Na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, que celebramos no Domingo de
Ramos, eu a vi com uma criança ao colo, entre outras mulheres, tirando o
véu da cabeça e estendendo-o com respeito e alegria no caminho. Era o
mesmo pano que apresentou ao Senhor, num outro cor tejo mais triste, mas
também mais vitorioso, para lhe aliviar os padecimentos; o mesmo véu que
deu à compassiva dona o nome novo e triunfal de Verônica e que é agora
objeto de veneração pública na Igreja.
No terceiro ano depois da ascensão de Jesus, mandou o imperador romano
um dos seus homens a Jerusalém, para juntar todos os testemunhos e boatos
sobre a mor te e a ressur reição de Jesus. Esse homem trouxe consigo a Roma
Nicodemos, Seráfia e um parente do Joana Cuza, o discípulo Epafras. Este
último era um criado muito singelo dos discípulos, que antes tinha sido
empregado e moço de recados dos sacerdotes no Templo. Vira Jesus, logo
depois da ressur reição, junto com os Apóstolos, no Cenáculo, nos primeiros
dias e também muitas vezes, em outras ocasiões.
Vi Verônica no palácio do imperador, que estava doente. O leito imperial era
elevado alguns degraus acima do assoalho, tinha uma grande cor tina. O
quar to era quadrangular, mas não muito espaçoso; não vi janelas, mas a luz
entrava no quar to pelo teto, do qual pendiam cordões, pelos quais se podiam
abrir e fechar válvulas e ventiladores. O imperador estava só; os criados
estavam na antecâmara. Vi que Verônica tinha consigo, além do sudário,
ainda uma mor talha de Jesus e que estendeu o sudário diante do imperador.
Era uma faixa longa e estreita, que antigamente usava como mantilha na
cabeça e no pescoço. O retrato do rosto de Jesus achava-se na extremidade
do véu. Quando o apresentou ao imperador, segurou com a mão a par te mais
longa, que pendia para baixo. O rosto de Jesus não era como uma simples
pintura, mas impresso no pano com sangue; também era mais largo que num
retrato comum, porque o pano cobria todo o rosto. Na mor talha que Verônica
trouxera consigo, vi a impressão do cor po flagelado de Jesus; creio que era
um dos panos sobre os quais fora colocado, antes de ser sepultado.
Não vi que o imperador tocasse ou fosse tocado com esses panos. Mas
recebeu a saúde só de os ver. Queria que Verônica ficasse em Roma; queria
dar-lhe como recompensa uma casa, campos e bons empregados; mas a
piedosa cristã só desejava voltar para Jerusalém e mor rer onde Jesus
mor rera. Vi também que voltou, com os companheiros, para Jerusalém e que
na perseguição dos cristãos, quando Lázaro e as ir mãs foram expulsos para
o exílio, fugiu com algumas outras mulheres, mas foi presa e lançada num
cárcere. Aí mor reu de fome, como már tir da verdade, por Jesus Cristo, a
quem tantas vezes alimentara com pão ter restre e que a alimentara com sua
Car ne e seu Sangue para a vida eter na.
Lembro-me mais em geral de ter visto uma vez, já há algum tempo, que o
sudário de Verônica ficou com as santas mulheres, após a mor te dela e que o
discípulo Tadeu o levou consigo para Edessa e lá, como também em outros
lugares, fazia milagres por meio dele, que também veio para Constantinopla
e depois, por inter médio dos Apóstolos, se tor nou propriedade da Igreja.
Creio ter visto uma vez que está em Turim, onde também está a mor talha de
Jesus; mas naquele tempo vi a história de todos os panos santos, que se me
confundiu na memória. Também hoje vi ainda muita coisa de Verônica ou
Seráfia, o que, porém, não conto, porque não tenho uma recordação clara.”
Outra vez nar ra Catharina Emmerich: "A respeito do sudário, vi que era um
pano como naquele tempo costumavam usar no pescoço e às vezes um
segundo sobre os ombros. Verônica tinha um igual sobre os ombros, no
caminho da cruz. Oferecer um tal pano, era sinal de compaixão e de tomar
par te na tristeza ou no luto. Verônica, vendo o Senhor tão machucado e
sangrento, cor reu para lhe enxugar o rosto, que se lhe imprimiu num lado do
pano, com o sangue das feridas da testa e de todo o rosto. Verônica nunca
esteve pessoalmente em Roma. O sudário ficou com as santas mulheres;
quando Mar ta e Madalena foram exiladas para Massília, recebeu-o a Mãe de
Deus, da qual veio, por meio dos Apóstolos, para Roma. - Nessa perseguição
de Lázaro e das ir mãs, também Verônica, que era uma bela e esbelta mulher,
junto com outras mulheres, foi muito perseguida. Fugiram, mas foram
alcançadas e presas e Verônica mor reu de fome no cárcere.

5. Cruz e lagar

Considerando aquelas palavras ou a meditação de Jesus na cruz: "Sou pisado


como as uvas que aqui pela primeira vez no mundo foram lagaradas; tenho de
dar todo o meu sangue, até que venha a água e o bagaço se tome branco;
mas aqui não haverá mais lagar", foi-me mostrada como explicação outra
visão do Calvário.
Vi, lopgo tempo depois do dilúvio, que a região montanhosa não era mais tão
deser ta e inculta; havia em redor vinhas e pastos. Ali e em direção a leste,
acampava o patriarca Jafé, homem idoso, alto, trigueiro, com os
descendentes e muitos rebanhos, morando em cabanas escavadas na ter ra e
cujo teto era cober to de relva, na qual cresciam er vas e flores. Nos
ar redores se encontravam muitas videiras; o lagar ficava no cimo do
Calvário, onde espremiam o suco das uvas de uma maneira nova e Jafé
assistia-o também.
Vi também como bebiam antigamente o vinho e preparavam e em geral
muitas coisas a respeito do vinho, das quais me lembro ainda do seguinte:
Nos primeiros tempos comiam apenas as uvas; depois espremiam as uvas em
domas de pedra, por meio de cepos; mais tarde em grandes gamelas de pau,
por meio de pilões. Mas depois vi que inventaram um novo lagar, que se
parecia muito com a cruz de Jesus. Havia plantado ali um tronco grosso,
oco; na aber tura de cima penduravam um saco cheio de uvas, fixado com
pregos. Comprimia-o um pilão, aumentado pelo peso de um cepo. Em ambos
os lados do tronco havia um orifício, nos quais se introduziam paus grossos
que, movidos para cima e para baixo, pisavam as uvas no saco. O suco
espremido saia por cinco aber turas no pé do tronco, cor rendo para uma
doma escavada na rocha, e desta por um cano, feito de duas metades de
casca de ár vore, cober tas de pauzinhos delgados e unidos com emplastos de
resina, para o mesmo subter râneo rochoso no qual Jesus foi lançado antes
da crucifixão e que naquele tempo era uma cister na limpa. Vi aquele cano
inteiramente cober to de relva e pedras, para não se estragar. Diante da
embocadura do cano, ao pé do lagar e da doma, havia cober tores, feitos de
pêlo, para reter o bagaço, que era sempre posto de lado. Depois de terem
aprontado o lagar, enchiam o saco de uvas, que estavam amontoadas na
cister na, penduravam-no e pregavam-no no tronco oco, punham o pilão, com
o pesado cepo, na aber tura do saco e começavam' a puxar e trabalhar com
as duas alavancas de pau nos lados do tronco, que aper tavam o saco contra
o pilão, até que todo o suco era espremido. Vi também um homem sobre o
cepo, no alto, impedindo que o conteúdo do saco saísse por cima. Tudo me
lembrava, pela semelhança do lagar com a cruz, a cena da crucifixão.
Tinham também um longo caniço, com 'cabeça espinhosa, como um ouriço;
talvez fosse a cabeça de um grande cardo; passavam este caniço pelo tronco
e o cano, quando estavam entupidos, o que me recordava a lança e a
esponja. Vi em redor do lagar odres e vasos de cor tiça, calafetados com
resina.
Muitos meninos e rapazes trabalhavam ali, vestidos apenas de uma tanga,
como Jesus na cruz. Jafé já estava muito velho, de longa barba, cober to de
peles. Olhava com alegria para o novo modo de lagares. Era uma festa!
Imolaram sobre um altar de pedras animais que pastavam na vinha:
jumentinhos, cabras e ovelhas.
Não foi nesse lugar que vi Abraão a imolar Isaac; talvez fosse sobre o Moriá.
Infelizmente esqueci muitos ensinamentos que dizem respeito ao vinho, por
exemplo, sobre o vinagre, os bagaços, cer tas separações para o lado direito
e esquerdo; pois também a menor circunstância tinha uma significação
profunda e misteriosa. Se Deus quiser que eu diga essas coisas, mostrar-
mas-á de novo.

6. A compaixão de Jonadá com Nosso Senhor é recompensada.


Jonadá que, impelido por íntima angústia, cor reu do Templo ao Calvário, para
oferecer a Jesus o sudário, para lhe cobrir a nudez, era da região de Belém e
sobrinho de S. José, pai nutrício do Salvador. Do Gólgota voltou cor rendo ao
Templo. Vendo, porém, a imolação do cordeiro pascal per turbada pela
escuridão, o ter remoto e o aparecimento dos mor tos, voltou apressadamente
para sua ter ra; pois a mãe e a mulher estavam doentes e tinha filhos ainda
pequenos. Vi esse bom homem voltar para casa inteiramente mudado de
coração; antes não mostrava nenhum interesse pela vida e doutrina de
Jesus, porque também o pai creio que era apenas ir mão consangüíneo de S.
José e não tinha muita afeição a Jesus. Foi o ir mão a quem José, quando o
visitou alta noite na gruta do nascimento, empenhou o jumento supérfluo por
dinheiro, afim de comprar algumas coisas necessárias para receber os Reis
Magos, cuja vinda a SS. Virgem lhe predissera.
Vi, porém, que, com grande admiração de Jonadá, a mãe, a mulher e os filhos
lhe vieram ao encontro até o meio do caminho, sãos e for tes. Não acreditava
no que via, pois deixara-as muito doentes em casa. Abraçaram-no, contando-
lhe que haviam recobrado a saúde de um modo milagroso. Pouco depois de
meio-dia lhes entrara em casa uma mulher majestosa que, aproximando-se-
Ihes da cama, disse: "Levantai-vos e ide ao encontro de Jonadá; ele cobriu a
nudez de um desnudado." Então tinham sentido um bem estar em todo o
cor po e levantando-se, queriam homenagear e agradecer à mulher
maravilhosa. Mas, querendo oferecerlhe de comer e beber, não a viram mais;
desaparecera, deixando-as far tas e restabeleci das e toda a casa cheia de
agradável perfume. Então tinham se encaminhado para lhe ir ao encontro e
pediram-lhe que nar rasse quem era o desnudado, que tinha vestido.
Jonadá contou-lhes, entre lágrimas, a crucificação de Jesus e que esse filho
de José e Maria era o profeta, o Cristo, o Santo de Israel. Então se encheram
todos de luto, rasgaram as vestes, chorando; contudo louvavam a Deus pelo
grande benefício feito por um tão pequeno ato de caridade: falavam dos
ter ríveis prodígios vistos no céu e na ter ra nesses dias e voltaram comovidos
para casa.
Quando a mulher contava o sucedido ao marido, vi a aparição da mulher em
casa de Jonadá, como num quadro. Quem foi a aparição, não posso mais
dizer com cer teza; parece-me que foi a SS. Virgem. Vi também que Jonadá,
depois de ordenar as coisas em casa, se juntou à comunidade do Senhor.
Quando a SS. Virgem, cheia de angústia, dirigiu uma ardente súplica a Deus,
para que afastasse o escândalo da nudez de Jesus na cruz, vi que essa
oração foi atendida, pois meu olhar se dirigiu para Jonadá, no Templo, e vi-o,
impelido pela mesma angústia, cor rer do Templo ao Gólgota, através da
cidade e levar o sudário a Jesus. Enquanto a SS. Virgem, com profunda
gratidão, pedia a bênção de Deus para Jonadá e a família, por esse ato de
caridade, foi-me mostrado o cumprimento dessa súplica, vendo Jonadá
inspirado pela fé do Senhor e a família doente socor rida milagrosamente pela
aparição.
Muitas graças semelhantes recebemos por meio de nossa oração ou de
outros; mas como não vemos claramente a relação entre a oração e a graça,
não nos parecem tão milagrosas. As vezes se vê que tais graças e efeitos da
oração são realizados por inter médio de Anjos e é por isso que almas
contemplativas, que meditam sobre a vida de Jesus e Maria, dizem: "A SS.
Virgem tinha a seu ser viço e para proteção, tantos e tantos Anjos; mandou
Anjos ali e acolá, etc., para esse ou aquele ser viço." Tais expressões só
estranham os que não são conduzidos neste caminho da contemplação; às
almas contemplativas, porém, parece muito natural ver a rainha do céu
rodeada de Anjos ser vidores, como os gran des da ter ra vivem cercados de
criados e guardas. Quem crê que Deus éPai, não se admira de ver os
mensageiros do Pai celestial e tem também a coragem de dar-lhes recados,
que ser vem para a maior glória de Deus. Acontece-me freqüentemente que,
rezando por outros, suplico a meu Anjo da guarda que procure, por amor de
Jesus Cristo, o Anjo de outra pessoa, para lhe dizer isso ou aquilo. Faço-o do
mesmo modo como se enviasse um amigo ou criado íntimo a realizar um
negócio impor tante; vejo-o também ir cumprir o recado. Na minha infância
pensava que assim faziam todos os cristãos; mas quando soube que a maior
par te não os via assim, nem por isso supus que essas visões fossem uma
superioridade minha, pois bem sabia: "Bem-aventurados os que não vêem e
crêem.”
Segundo as intenções secretas de Deus e confor me o estado da alma,
chegam as inspirações da oração de diversos modos àqueles, aos quais
foram enviadas. Jonadá foi impelido ao Cal vário por uma angústia d'alma e
uma repentina compaixão para com Jesus; outros, tocados pela graça de
Deus, se vêm exor tados por um Anjo a fazerem uma cer ta ação. Se conviesse
às intenções de Deus e ao estado d'alma de Jonadá, uma aparição da SS.
Virgem, ter-lhe-ia suplicado: "Cor re e cobre a nudez de meu Filho", assim
como a família viu a aparição de Maria, em atenção à gratidão pela caridade
de Jonadá.
Do mesmo modo vi uma vez a SS. Virgem aparecer, sobre uma coluna, ao
Apóstolo Tiago o Maior, quando este, numa perseguição, lhe pediu auxílio;
enquanto a vi ao mesmo tempo, no quar to em Éfeso, em êxtase na oração,
rezando por Tiago e cor rendo-lhe espiritualmente em socorro. Apareceu-lhe
sobre uma coluna, porque ele lhe implorou a intercessão como amparo ou
coluna da Igreja na ter ra e assim lhe foi apresentada ao olhar espiritual; pois
uma coluna também se apresenta como tal.

7. Fragmento sobre Longino. (Veja Cap. 8, no. 11)

Hoje de noite (a 15 de Março de 1821), vi muitas coisas acerca de Longino;


mas devido à minha fraqueza, só de pouco me poderei lembrar. Longino nem
era só soldado, nem só cor tesão; ocupava ambas as posições no palácio de
Pilatos. Entrava e saia, fazendo variadíssimos ser viços, obser vava tudo,
trazia infor mações de tudo, andando sempre a indagar as coisas. Era homem
ativo e sempre afável e ser viçal, mas antes da conversão, lhe faltava a
verdadeira seriedade e caráter fir me. Fazia tudo com precipitação e, como
era míope, tor nava-se muitas vezes objeto de mofa dos outros. Hoje de noite
o vi muitas vezes e por ele, toda a Paixão de Cristo: de manhã eu não sabia
como tinha chegado a vê-Ia, até que me lembrei que foi por causa de
Longino.
Como soldado, era oficial inferior, mas como ajudante de ordens de Pilatos,
estava em toda a par te onde acontecia alguma coisa, dando depois
infor mações ao gover nador. Na noite em que Jesus foi conduzido ao tribunal
de Caifás, andava Longino pelo átrio, no meio dos soldados e do populacho,
ora num, ora noutro lugar. Uma vez o vi na escada, per to do Senhor, quando
este compareceu diante dos juízes e vi que Jesus lhe tocou o coração pela
graça. Desceu depois e voltou de novo para o meio do povo. Quando Pedro
estava junto à fogueira, aper tado pelas palavras da criada, foi Longino que
lhe disse igualmente: "Tu também és par tidário dele, etc." Quando Jesus foi
conduzido à mor te no Gólgota, Longino acompanhou o cor tejo, como
emissário de Pilatos e foi comovido por um olhar do Salvador. Vi-o também
depois no Gólgota, no meio dos soldados; ali estava a cavalo e ar mado de
uma lança. Depois da mor te de Jesus, esteve também com Pilatos, falando-
lhe muito comovido e pedindo que não fossem quebradas as per nas de Jesus.
Vi-o depois, cavalgando depressa, de volta ao Gólgota.
Aqui parece que Cássio (Longino) foi uma vez, depois da mor te de Jesus, ao
palácio de Pilatos, o que a nar radora ou esqueceu, ao contar a história da
Paixão ou não o disse bem claro com as palavras; "Cássio ia e vinha a
cavalo.”
A lança encur tava-se, metendo-se-Ihe uma par te na outra; puxando as
par tes, podia-se alongá-Ia três vezes. Tinha botões nas juntas, a ponta era
ajustada em cima, quando se queria usar a lança. Vi que o oficial a preparou
assim, antes de trespassar repentinamente o lado do Senhor. Esteve também
presente no enter ro de Nosso Senhor, pois queria infor mar-se de tudo.
Conver teu-se já no Gólgota, confessando a féno Senhor. Quando o vi depois,
no palácio de Pilatos, a quem tudo relatou, exter nou também em presença do
juiz a convicção de que Jesus era o Filho de Deus. Pilatos tratou-o como um
fanático e tendo o oficial colocado a lança na sala, deu-lhe o gover nador a
ordem de levá-Ia para fora do quar to, por nojo e superstição. Pouco depois
falou Longino com Nicodemos, que pediu a Pilatos a lança, que lhe foi
cedida. Vi que Nicodemos desmontou a lança, para poder guardá-Ia mais
facilmente. A princípio a guardava numa bainha de couro; mais tarde a vi
escondida numa pia de pedra. Vi muitas coisas acerca da história da
santificada lança.
Depois de ter obser vado, ao guardar o sepulcro, os milagres do Senhor e de
ter relatado tudo a Pilatos, entregou-lhe as ar mas e abandonou o ser viço
militar. Viu também o Senhor depois da ressur reição. Tornou-se par tidário
dos discípulos e com dois outros soldados, conver tidos também ao pé da
cruz, foi um dos primeiros que foram batizados, depois da festa de
Pentecostes.
Vi Longino e soldados, vestidos de longas vestes brancas, viajarem para sua
ter ra, onde depois viviam no campo, numa região estéril. Havia ali ter ritórios
pantanosos e outros pedregosos, na proximidade de uma pequena cidade
daquele país, onde mor reram os quarenta santos Már tires. Vi que não era
sacerdote, mas percor ria o país como diácono, pre gando a doutrina de
Cristo e nar rando-lhe a Paixão e Ressur reição, de que fora testemunha.
Conver teu muitos à fé curava muitos enfer mos, pelo contato com uma par te
da santa lança, que sempre levava consigo, colocada dentro de um bastão
cur to. Tinha também consigo par te do precioso sangue, colhido ao pé da
cruz. Os judeus estavam enfurecidos contra ele e os companheiros, porque
propagavam por toda a par te a verdade da ressur reição do Senhor,
publicando a crueldade dos judeus e as mentiras e a cor rupção das
testemunhas. Por instigação deles, par tiram soldados romanos para a ter ra
de Longino, com a ordem de prender e executá-Io como deser tor e agitador.
Vi-o trabalhando no campo, quando os soldados passaram. Convidou-os a
entrar e regalou-os. Não o conheceram e quando lhe explicaram as ordens
que tinham, mandou chamar os companheiros, que viviam com ele numa
espécie de comunidade de eremitas, não na mesma casa, mas na vizinhança.
Depois que chegaram, revelou aos soldados que ele e dois companheiros
eram os cristãos que estavam procurando. Era a mesma situação que a do
santo jardineiro, Focas. Esta revelação entristeceu muito os soldados, pois
já lhe haviam tomado afeição. Vi então que foram conduzidos à pequena
cidade vizinha, onde foram inter rogados; não ficaram no cárcere. Andaram
alguns dias livres pela cidade, como presos por livre vontade, apenas
marcados no ombro como prisioneiros. Vi-os depois sobre uma colina, entre a
cidade e a casa de Longino; ali foram degolados e também enter rados. Creio
que essa colina era propriedade dele e que pediu ser ali executado e
sepultado. Os soldados levaram a cabeça de Longino, sobre uma lança, a
Jerusalém, como prova da ordem cumprida. Tenho uma lembrança incer ta de
que esse fato se deu poucos anos depois da mor te de N. Senhor.
Tive ainda uma visão de um tempo posterior, de uma mulher cega, que fez
com o filho uma peregrinação da ter ra de S. Longino a Jerusalém, na
esperança de obter a cura da vista na cidade santa, onde Longino também
fora curado da doença dos olhos. Fazia-se guiar pelo menino; mas este
mor reu e a pobre cega ficou inteiramente desamparada e desconsolada. Vi
depois que teve uma aparição de S. Longino, que lhe disse que recobraria a
vista, se lhe tirasse a cabeça da fossa, na qual os judeus a tinham lançado.
Era uma fossa de alvenaria, na qual muitos canais descar regavam
imundícies. Alguns homens conduziram a mulher ao lugar. Entrou até ao
pescoço no hor rível lodaçal e tirou a cabeça do santo. Vi que recobrou a
vista e que os companheiros guardaram a santa cabeça, fazendo conduzir a
mulher para sua ter ra. É tudo de que me lembro.

8. Fragmento sobre o centurião Abenadar.

Abenadar, que depois recebeu o nome de Ctesifon, era oriundo de uma ter ra
situada entre a Babilônia e o Egito, a ditosa Arábia, à direita da última
residência de Jó. Numa montanha ondulosa há casas quadrangulares,
encostadas umas às outras; ali é que nasceu. Os homens andam sobre os
telhados, que são planos. Há muitas ár vores pequenas ali: estava brumoso o
tempo, quando ali estive. A gente dessa região colhe incenso dessas ár vores
e também cultivava er vas de bálsamo em latadas. Estive na casa de
Abenadar : era um edifício esquisito, semelhante a um conjunto de caixas
quadrangulares, planas em cima; era vasto e espaçoso, como as casas dos
homens abastados dessa região, mas de pouca altura. Abenadar alistara-se
como voluntário, na tropa que estava aquar telada no for te Antônia, em
Jerusalém. Entrara a ser viço dos romanos, para se exercitar nas belas ar tes,
pois era homem douto. Era de cor trigueira, de estatura baixa, mas for te,
homem fir me e resoluto.
Foi por um dos primeiros ser mões de Jesus e por um milagre, não me lembro
mais qual, que se sentiu comovido. Convencido de que a salvação provinha
dos judeus, aceitou a lei mosaica, mas ainda não se tor nou discípulo de
Jesus; nunca, porém, se mostrou maldoso ou cheio de ódio contra Jesus; ao
contrário, tinha-lhe compaixão e um oculto respeito. Era homem muito sério
e revezando com o destacamento a guarda no Gólgota, conser vou a ordem e
calma ao redor da cruz, até que a verdade o venceu e publicamente, diante
de todo o povo, deu testemunho de Jesus, ao vê-Io mor rer. Sendo rico e
voluntário, podia abandonar imediatamente o posto, o que fez realmente.
Mostrou-se logo tão fiel e ser viçal no descendimento da cruz e na sepultura
do Senhor, que se mostrou íntimo amigo dos discípulos de Jesus e foi
batizado entre os primeiros, depois de Pentecostes, no tanque de Betesda,
recebendo o nome de Ctesifon. Tinha ainda um ir mão da Arábia. Ctesifon
nar rou-lhe todos os prodígios que vira e exor tou-o a abraçar a salvação. O
ir mão dirigiu-se, pois, em seguida a Jerusalém, com todos os seus bens, foi
batizado, sob o nome de Cecílio, tor nando-se, com Ctesifon, o auxiliar dos
diáconos na nova comunidade do Senhor.
Ctesifon acompanhou, com alguns outros discípulos, o Apóstolo Tiago o
maior à Espanha e com ele voltou a Jerusalém. Mais tarde foi enviado mais
uma vez pelos Apóstolos à Espanha, levando para lá o cor po de Tiago o
Maior, que mor rera már tir em Jer usalém. Tor nou-se bispo e residia numa
espécie de ilha ou península, não longe da França, onde também esteve e
tinha muitos discípulos e era benquisto pelo povo. O nome da cidade soa
como Vergi. Essa região desapareceu depois, destruída e levada pela água.
Creio que não sofreu o mar tírio; senão eu não o teria esquecido. Escreveu
alguns livros, nos quais se refere também à Paixão de Jesus Cristo. Mas
foram também editados livros de autores sob o nome de Ctesifon e alguns
livros deste sob outros nomes; assim foram alguns escritos de sua autoria
condenados pela Igreja, junto com os outros não escritos por ele.
Um dos guardas do sepulcro de Cristo que não se deixara subor nar, era
conter râneo de Ctesifon, a quem dedicava especial afeição. O nome soava-
lhe como Sulei ou Suleji. Este foi preso e depois de recuperar a liberdade,
viveu sete anos escondido numa caver na do monte Sinai, continuamente
socor rido pelos amigos de Ctesifon. Este homem recebeu grandes graças e
escreveu um livro, com profundas meditações, semelhantes aos escritos de
Dionísio Areopagita. Um escritor dos tempos posteriores aproveitou par tes
desse livro, as quais assim chegaram ao nosso tempo. Eu mesma li uma vez
cer tas coisas no convento, que agora sei que provinham deste escritor. Eu o
sabia muito claramente, como também o título do livro; mas pelas
contrariedades e pela falta de sossego, esqueci-o. Esse conter râneo de
Ctesifon veio visitá-Io mais tarde, na Espanha. Entre os companheiros de
Ctesifon na Espanha, estavam seu ir mão Cecílio, também um Intalécio,
Hesício e Eufrásio. Conver teu-se também, nos primeiros tempos, um Árabe de
nome Sulima. Não me lembro mais das circunstâncias; mais tarde, no tempo
dos diáconos, se tor nou cristão outro conter râneo de Ctesifon, cujo nome
soava como Sulensis.
Clemente Brentano junta a esta infor mação de Catharina Emmerich as
seguintes anotações:
No verão de 1832, nove anos depois da mor te da nar radora, leu o autor no 3º.
tomo da "Viage literário e Ias Iglesias de Espana" de D. J. L. Villanueva. (10
tomos, Madrid, 1805-23) a notícia que damos aqui em resUlpo. Pelo ano de
1595 foram feitas escavações em Granada e descober tos documentos,
relíquias e chapas de chumbo, que continham os nomes de Ctesifon e
Hiscius, discípulos de Tiago o Maior, etc. Este achado foi declarado por
várias pessoas, especialmente pelo D. J. B. Perez, bispo de Savoia, uma
impostura premeditada para provar assim que o sepulcro daqueles dois
discípulos, como o de Cecílio, estavam em Granada. Perez diz que o impostor
teve essa idéia pela crônica falsa, afamada naquele tempo, sob o nome de FI.
L. Dexter ; pois esta menciona como discípulos de Tiago o Maior : Ctesifon,
Hiscius e Cecílio. Um velho pergaminho gótico citava os seguintes
propagadores do cristianismo, que desembarcaram em Cadix e dali
percor reram o país: Torquato teria ficado em Acci (Cadix), Hesichius
(Hiscius) fora para Carcesa (Garzorla), Intalesion para Ursi (Almeria ou Orco,
per to de Galera), Secundo, para Abula (Avilla), Cecílio para Eliber ri (Sierar
Elvira, per to de Granada), Eufrásio para Iliturgi (Andujar), Ctesifon para
Berge, que alguns tomavam por Ver ja, na Aragonia, outros por Verga, per to
de Granada e outros ainda por Vera, situada à beira-mar, entre Car tagena e
Capo di Gata. Nesses lugares teriam pregado e também mor rido e ali lhes
seriam veneradas as relíquias. Mas, diziam, esses discípulos eram enviados
pelos Apóstolos de Roma e apenas um documento, sabidamente falso, sob o
nome de Papa Calixto lI, falando da transladação do cor po do santo Apóstolo
Tiago o Maior para a Espanha, os chamava discípulos deste. Mas os
discípulos deste Apóstolo eram, segundo a história da Espanha, escrita por
Pelágio, bispo de Oviedo: Calosero, Basílio, Crisógno, Teodoro, Arcanásio e
Máximo.
Como prova principal da impostura, alega Perez que essas chapas de chumbo
mencionam que Ctesifon, antes do Batismo, era chamado Abenadar, mas os
outros sete tinham nomes gregos ou latinos; como podia se lhes juntar um
nome árabe? Naquele tempo não havia ainda Árabes; e depois, porque
abandonou o nome árabe? etc. Também afirmam esses documentos falsos
que Ctesifon tinha escrito um livro em língua árabe, com letras salomônicas.
Por quê? se não havia naquele tempo Árabes na Espanha, etc? Depois critica
ainda o bispo Perez as tais chamadas letras salomônicas e pergunta: Por quê
escreveu árabe em letras salomônicas?
Em Maio de 1833 achou o autor em "Mariana de rebus Hispanicis", que a
lenda conta, entre os discípulos acima mencionados, ainda um Atanásio e um
Teodoro, que teriam sido guardas do sepulcro de Jesus; e no dia seguinte
achou nos "Actis Sanctorum", tomo lI, para o dia 1º. de Fevereiro, um
comentário sobre S. Cecílio e os companheiros na Espanha, que contém,
além de muitas coisas sobre aquele achado falso, também o documento da
rigorosa condenação do Papa Urbano VIII dos escritos e chapas de chumbo
descober tos em Granada e falsamente atribuídos a Cecílio e aos
companheiros, como também uma lista desses documentos condenados,
tirada do "Aparatus sacer" de Possevino e outra diferente, do comentário de
Bivário sobre a crônica atribuída a Dexter. Nestas listas se encontram, entre
outros, esses capítulos: do reino e da morada do infer no, da infinita
providência, da misericórdia, da justiça, de tudo quanto Deus criou e da
criação dos anjos, da glória e dos milagres de Cristo, N. Senhor e de sua
Mãe, desde a encar nação do Verbo, até a Ascensão, etc., títulos que bem
podiam lembrar as meditações, acima mencionadas, de Sulei, amigo de
Ctesifon, o qual viveu no monte Sinai e escritas à maneira de Dionísio
Areopagita. Em geral têm esses documentos tanta analogia com o fragmento
da nar radora, que lemos acima, que deixamos o leitor verificar se par ticipa
da nossa sur presa.
Teriam existido obras daqueles discípulos árabes, que foram depois
falsificadas, com intenções sectárias, como aconteceu à história dos
Apóstolos de Abdais e às obras de Dionísio Areopagita? A nar radora falou
diversas vezes da falsificação das obras do último e mencionou também que
foram cometidas falsificações nas obras de Ctesifon e assim algumas tinham
sido condenadas. Infelizmente a nar ração ficou neste ponto tão incompleta,
que mal podemos adivinhar.
9. O nome de CaIvário.

Pensando no nome do rochedo da crucifixão, Gólgota, Calvário, que significa


lugar da caveira, entrei numa contemplação muito completa sobre esse
lugar, desde Adão até Jesus Cristo.
Vi Adão na gruta do monte das Oliveiras, onde Jesus suou sangue; foi depois
da expulsão do Paraíso; vi que Set foi prometido a Eva na gr uta de Belém,
onde também nasceu; Eva viveu também nas grutas per to de Hebron, onde
depois havia o convento Masfa dos Essenos.
Após o dilúvio, vi a região de Jerusalém muito mudada. Tor nara-se rochosa,
sinuosa e sinistra; sob o rochedo do Calvário, muito profundamente (no
dilúvio lhe caiu um rochedo em cima), me foi mostrado o sepulcro de Adão e
Eva. Faltava uma caveira e o lado de um esqueleto. A outra caveira jazia
muito profundamente, dentro do esqueleto ao qual não per tencia.
Já tenho visto muitas vezes que as ossadas de Adão e Eva não ficaram todas
no sepulcro. Noé guardou alguns ossos na arca e esses passavam de uma
geração de patriarcas à outra. Noé e Abraão colocavam sempre alguns ossos
no altar, ao oferecerem um sacrifício, recordando deste modo a Deus a
promissão. Quando Jacó deu a José a túnica de diversas cores, vi que
também lhe deu, como coisa sagrada, uns ossos de Adão. José trazia-os
sempre sobre o peito; com os seus próprios. ossos, foram também colocados
na Arca Santa, que os israelitas levaram consigo do Egito. Vi muitas dessas
coisas, mas em par te as esqueci, em par te não tenho tempo de contá-Ias
agora.
A respeito do nome de Cal vário ou lugar da caveira, vi o seguinte: Vi o
monte Cal vário nos tempos do profeta Eliseu. Não tinha a mesma for ma que
no tempo de Jesus. Era uma colina cheia de muros e sepulcros semelhantes
a grutas. Vi o profeta Eliseu descer ao fundo, não sei se foi cor poral ou
espiritualmente, e tirar uma caveira de uma tina de pedra, na qual havia
muitos ossos. Vi ao lado uma pessoa, creio que era a aparição de um Anjo,
que lhe disse: "Esta é a caveira de Adão". O profeta quis levá-Ia consigo, mas
a pessoa não lho per mitiu. Nessa caveira havia em diversas par tes ainda,
cabelos finos, amarelos. Soube também que, pela nar ração do profeta, o
lugar recebeu o nome de Cal vário, lugar da caveira. Vi que a Cruz de Jesus
estava per pendicular mente sobre a caveira de Adão e foi-me revelado que
esse ponto era o centro da ter ra e como explicação me foram dadas medidas
e números em todas as direções do mundo, os quais, porém, esqueci, como
muitas singularidades e também a conexão de tudo. Vi, porém, esse centro,
olhando de cima; vê-se assim muito mais claro do que num mapa; vêem-se
países, montanhas, desertos, mares, rios, cidades e lugarejos, estejam per to
ou longe, com a mesma clareza.

10. Fragmento sobre José de Arimatéia.

José era natural de um lugar situado a cerca de seis milhas romanas ou a


algumas horas de distância, ao oeste de Jer usalém, no caminho de Nazaré.
Se bem me lembro, havia per to dali uma espécie de fosso ou leito seco de um
rio. Tinha montanhas íngremes, donde tiravam pedras brancas. Essa pedreira
per tencia a José. Este se separara dos dois ir mãos, que ali moravam e
mudara-se para Jerusalém, no princípio da vida pública do Senhor. Era
homem calmo e prudente e contudo simples, que fazia tudo silenciosamente;
hoje o chamaríamos melancólico. Era solteiro e morava não longe de João
Marcos, numa pequena casa. Na vizinhança havia ar mazéns abobadados e
pátios cercados de muros, nos quais estavam amontoadas muitas pedras
brancas da pedreira. Negociava nessas pedras, esculpia ou fazia esculpir por
canteiros, por exemplo: pias grandes, tinas, vasos em for ma de navios e
também grandes chapas, nas quais havia figuras de homem deitado, do
tamanho natural, em baixo relevo. Eram provavelmente leitos sepulcrais. Era
amigo íntimo de Nicodemos, que também esculpia em pedra. Faziam várias
empresas de sociedade. Um destes dias vi que Nicodemos estava
trabalhando numa pedra, à luz de um candeeiro, num subter râneo, quando
vieram vê-Io alguns discípulos. Vi-o esculpir na pedra a figura de uma
criancinha enfaixada, de rosto oval, como se representa o sol; talvez fosse o
leito sepulcral de uma criança. Vi-os também Juntos, trabalhando no
sepulcro no qual depois o cor po do Senhor foi depositado. Nicodemos era
viúvo e tinha dois filhos. José não tinha família; comia alter nadamente em
casa dos amigos, mais vezes com Nicodemos, muitas vezes também com o
marido de Verônica, etc. Eis tudo quanto me lembro hoje, das muitas coisas
que vi, a respeito de José.

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