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WAGNER, Roy. A invenção da cultura.

São Paulo,
Cosac Naify, 2010. 256 p.

Daniel Pícaro Carlos

A questão da melhoria global faz pensar nas atri- dutoras revoluções ali contidas são referências
bulações de um poeta chinês. Ele viveu naquele bem marcadas em obras como nas de Márcio
tempo grandioso e modorrento em que Confúcio Goldman, Eduardo Viveiros de Castro, e en-
e Tao tomavam conta das discórdias espirituais da tre tantos outros exemplos, na de Manuela
China e os mandarins tomavam conta de tudo o ­Carneiro da Cunha.
mais. Quando via uma grande nuvem de poeira Nesse caso, bem se poderá ponderar desne-
levantar-se no horizonte, ele ansiosamente imagi- cessária uma resenha de A invenção da cultu-
nava que era a ‘poeira de mil carruagens’. Nunca ra. É nesse sentido que o objetivo perseguido
era. Vivemos em tempos interessantes. (Wagner, pelas linhas que aqui se seguem mostrar-se-á
2010, p. 24) um pouco distinto; mais que apresentar o livro
de Roy Wagner, tais linhas pretenderão antes
destacar algumas ideias e conceitos centrais da
Se de fato vivemos em tempos interessantes, antropologia inventada pelo antropólogo es-
isso sem dúvida se deve a livros como Coyote tadunidense, observando, entrementes, como
Anthropology - que começa a ser lido pelo mun- essas ideias e conceitos ali se articulam.
do – e A invenção da Cultura – que começa a Para tanto, talvez seja estratégico que se
ser relido no Brasil, agora em português. parta daquilo que o próprio Wagner aponta
E tal qual a chegada de mil carruagens é a como propósito último de sua Antropologia,
publicação de cada novo livro do estadunidense qual seja, “analisar a motivação humana em um
Roy Wagner: exigem tempo até que a nebulosa nível radical” (Wagner, 2010, p. 13).
que os circunscreve decante e se possa discernir Pretensiosamente simples, tal propósito
com certa nitidez a grandeza e a potência de permite a Wagner fixar as bases de sua reflexão
inovação que trazem consigo. Sem embargo, a no ponto em que também se situa um dos mais
surpresa e a admiração com que a crítica antro- elementares problemas do pensamento socio-
pológica de hoje recebe um texto que nasce das lógico: a compreensão do modo pelo qual os
inflexões sugeridas por um coiote não é menor homens criam a realidade em que vivem, e do
que o assombro com o qual acolheu, ainda nos como a realidade ela mesma pode criar os ho-
anos 70, a tese de que a cultura seria antes de mens que através dela se fazem existir.
mais nada uma invenção ingênua dos bem in- Com efeito, em Wagner essa discussão não
tencionados antropólogos. se resolverá nos termos da precedência lógica
A despeito da tradução tardia, não é recente ou do condicionamento sociológico da socie-
a influência que A invenção da cultura desperta dade sobre o indivíduo, ou, contrariamen-
no pensamento antropológico brasileiro; as se- te, deste sobre aquela. O que A invenção da

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­cultura advoga é justamente um deslocamento s­ imbólico jamais poderia ser delimitado de


desse debate, um deslocamento cujo ponto de maneira exata e definitiva; de fato, é esperado
inflexão se situa na percepção dos processos que determinada configuração contextual de
sociológicos e simbólicos enquanto processos motivações altere-se significativamente de um
dialéticos. E nesse sentido, a determinação da momento para outro, seja pelas transformações
motivação humana como o objeto da análise observadas internamente, em meio às correla-
mostrar-se-á central. ções entre as diferentes motivações atualizadas
Mais que um impulso originado no inte- nas atitudes dos agentes, seja externamente,
rior do indivíduo, para Wagner a motivação se por conta das articulações que normalmente
impõe, se precipita a cada um desde o exterior. se estabeleceriam entre um e outros contextos
Imagens, objetos, e mesmo a ação e o compor- simbólicos.
tamento de cada um dos outros agentes: tudo E eis que, se esquemático num primeiro
pode se converter em motivação, e dessa ma- momento, o modelo de Wagner tornar-se-á
neira, influir nas formas de um ator pensar, abruptamente complexo, intrincado; poder-se-
agir, sentir e se posicionar no mundo. -ia mesmo dizer “rizomático”.
Contudo, na condição de ator, de alguém Considerando situações de encontro entre
que pensa, age, sente e se situa perante as mo- contextos simbólicos distintos, Wagner se pro-
tivações, cada indivíduo também trás em si a põe a entender o modo como as decorrentes
faculdade de criar motivação naqueles que operações de interlocução e entranhamento
com ele se relacionam. Desse modo, defenderá se dinamizariam. Sem considerar a existência
­Wagner, para uma real compreensão da moti- de um lócus contextual original, que significa-
vação humana, mais que sua transformação em ria determinado elemento de forma primeira,
categoria abstrata, em conceito, impõe-se mes- inaugural, Wagner fixará o epicentro desse pro-
mo observá-la fenomenologicamente, tal como cesso na extensão de significados que se daria
ela de fato aparece na realidade. Impõe-se ob- de um contexto para outro.
servá-la, por assim dizer, na relação que ela esta- Nesse sentido, dirá Wagner, “a definição e
belece junto a cada uma das outras motivações. a extensão de uma palavra ou outro elemento
Tomadas em conjunto, as relações exis- simbólico constituem fundamentalmente uma
tentes entre as diferentes motivações, e suas mesma operação” (Id., Ibidem, p. 80). Define-se
respectivas atuações no comportamento, no por extensão; conceitua-se por empréstimo. Sem
pensamento e na ação de todos sujeitos de uma embargo, uma realidade distinta daquela em que
realidade dada, revelariam aquilo que Wagner um sujeito “originalmente” se situa será sempre e
denomina contexto simbólico. necessariamente por ele decodificada em função
Algo conceitualmente próximo daquilo que de metáforas e analogias capazes de traduzir o di-
Lévi-Strauss chama de sistema simbólico, o con- ferente em termos que lhe são próprios.
texto simbólico de que fala Wagner apresentar- Bem sistematizada a dinâmica desse processo,
-se-á como uma espécie de ambiente virtual, cumpre-se a ela acrescentar duas ponderações.
no interior do qual palavras, gestos e imagens Em primeiro lugar, mister observar que se dois
ganhariam significação uns em função dos ou- são os contextos simbólicos que se encontram,
tros, a partir de sua associação mútua. então, o processo de interlocução e entranha-
Todavia, a despeito de uma suposta or- mento pelo qual uma dessas realidades assimila
ganicidade em sua aparência, um contexto a outra existirá necessária e simultaneamente em

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dois sentidos. E, sem embargo, é nessa condição racterizam e das tensões que ele sugere se pro-
que deverá ser analisado e compreendido. longarem à invenção. Apenas assim tornar-se-ia
Ademais, considerará Wagner, é preciso possível perceber como o contexto se utilizaria
entender que tais manobras não podem ser ele mesmo da invenção de modo a produzir sua
concebidas como operações absolutamente li- reprodução.
cenciosas, livres. A realidade à qual a extensão Com efeito, enquanto certas realidades as-
dos significados se dirige dá forma e preenche similariam e simbolizariam a invenção coleti-
as analogias criadas. Para aquém dela, o enten- vizando-a, utilizando-a de modo a neutralizar
dimento produzido condicionar-se-á também as tensões derivadas da manifestação de certos
pelo contexto simbólico que, inquieto com conjuntos de motivações, outros contextos
o novo e tentando assimilá-lo, a ele empresta valer-se-iam do novo para particularizar os ve-
seus significados e sua lógica significante. De tores dessas tensões, contrastando interesses,
um lado, não se deve vilipendiar o que se pre- atores, ações e formas de observar o mundo.
tende representar. De outro, não se pode vio- Em outros termos ter-se-ia, de um lado, con-
lar as imagens com as quais a representação se textos que engendrariam e significariam suas
fundamenta. E isso, desnecessário repetir, em invenções de modo a reforçar suas normas e
ambas as direções. consagrar suas tradições; de outro, realidades
Como síntese, ter-se-ia tanto um como ou- mais fluidas, nas quais as invenções se consa-
tro contexto apresentando-se como controle. grariam como as propulsoras do devir, agencia-
De fato, são os contextos simbólicos que doras da mudança, do movimento. “Cada um
apresentam àqueles que inventam os elementos desses modos corresponde[ria] a um tipo parti-
significados como problemas, como as tensões cular de continuidade cultural, a uma concep-
e os impasses a serem resolvidos; será a articu- ção particular do eu, da sociedade e do mundo”
lação das atitudes e pensamentos individuais, (Id., Ibidem, p. 181), e serão esses os elementos
mesmo das motivações tomadas como totalida- que inspirarão as análises e contrapontos pro-
de quem oferecerá aos indivíduos as questões e postos por A invenção da cultura.
polêmicas sujeitas a uma resolução necessária. Ali, a partir da discussão dos processos pe-
Depois, uma vez ponderadas soluções para los quais apaziguam-se as tensões simbólicas e
as contradições que coloca, é o próprio con- sociais, povos tribais, religiosos e camponeses,
texto simbólico quem acolherá as inovações, as povos descentralizados, não estratificados, são
invenções imaginadas por cada sujeito, assimi- percebidos como produtores de pessoas e de
lando-as de modo a reafirmar o que já preconi- encantamentos mágicos. Nesses povos, a alma
za a tradição, transformando o novo elemento é decantada, descobre-se xamã. De nossa par-
em convenção, ou, contrariamente, marcando te, inventamos as coisas. Aqui, é a propaganda
essas resoluções como uma maneira de alterar o que magicamente garante a funcionalidade de
curso daquilo que é tido como certa tendência, nossa tecnologia; decantamos o “eu” como per-
diferenciando-o do todo como um elemento sonalidade, descobrimo-nos esquizofrênicos.
efetivamente novo. Alhures, as motivações terminam por se
Segue-se que uma realidade só poderá ser acomodar dialeticamente, sendo a reprodução
lúcida e efetivamente mapeada quando a aná- das relações sociais e simbólicas asseguradas
lise sistemática da situação apresentada pelo pela precipitação de rituais em contraposição
contexto simbólico, das motivações que o ca- aos feitos seculares. Deste lado, conciliamos

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nossa dialética promovendo-a a nossa luta de a realização antropológica, e, ao mesmo tempo,


classes, celebrada como História. “Eles” criam anunciar a reinvenção da Antropologia.
o universo e intentam contra ele se impor. Semânticas, as ciências de Taylor, Boas,
“Nós” inventamos a cultura, e, num esforço de Kroeber, Goldenweiser, Lévi-Strauss e Sch-
a ela conformar todos os agrupamentos de seres neider observariam as relações dadas entre as
humanos, suas motivações, e suas respectivas coisas e seus significados em realidades outras.
invenções, inventamos também a Antropologia. Sintéticas, elas reificariam tais realidades, seus
Situado numa posição privilegiada, imiscuin- mundos e seus significados, por meio de metá-
do-se num contexto simbólico alheio sem deixar foras e analogias elaboradas a partir de nossos
de participar simultaneamente de seu próprio sis- próprios significados e de nosso próprio modo
tema de motivações e significados, a atividade do de significar. Inventamos cultura, e olhamos o
antropólogo não escapa das dinâmicas que carac- outro como se eles também a inventassem.
terizariam as situações de contato entre contextos A Antropologia de Wagner é aberta. Simé-
simbólicos distintos. O diferente, nesses termos, trica, ela se permite considerar nossos próprios
é pensado a partir e em função de categorias e sistemas de motivação, explicitando-os. E ad-
conceitos que nos são próprios, e o que quer que mite, justa: se somos criativos, então aqueles
aprendamos com nossos nativos assume a forma que estudamos “também têm de sê-lo” (Id., Ibi-
de “extensão ou superestrutura” (Id., Ibidem, p. dem, p. 46). Sintagmática, reversa, ela não nos
36), construída sobre e com aquilo que nosso vê apenas como “nativos”; somos antes, todos,
próprio contexto simbólico nos oferece. “nós” e “eles”, antropólogos.
Estendemos ao outronossos próprios signifi- E desse modo, pretende-se uma ciência ca-
cados; a partir de nossa forma própria de signifi- paz de perceber o outro diretamente, em fun-
car, inventamos novas possibilidades e aplicações ção dos significados e das motivações que lhes
para nossas categorias e conceitos, afim de com são próprios. Uma ciência capaz de observar o
elas explicar aquilo que experimentamos e vi- modo como eles nos assimilam, nos inventam,
venciamos durante nossa pesquisa de campo. utilizando-se de seus próprios significados e ana-
Inventamos analogias, e por meio delas, inven- logias, de sua própria forma de significar, de sua
tamos o outro para nossos próprios pares. própria “antropologia”. Uma ciência, enfim, ca-
Arrojado, A invenção da cultura aspira diag- paz de compreender a “eles”, e a “nós” mesmos,
nosticar um curto-circuito entre a concepção e menos como cultura e mais como Humanos.

autor Daniel Pícaro Carlos


Doutorando em Antropologia Social / UFSCar

Recebida em 15/03/2012
Aceita para publicação em 17/10/2012

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