Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
53937-Texto Do Artigo-67724-1-10-20130418 PDF
53937-Texto Do Artigo-67724-1-10-20130418 PDF
São Paulo,
Cosac Naify, 2010. 256 p.
A questão da melhoria global faz pensar nas atri- dutoras revoluções ali contidas são referências
bulações de um poeta chinês. Ele viveu naquele bem marcadas em obras como nas de Márcio
tempo grandioso e modorrento em que Confúcio Goldman, Eduardo Viveiros de Castro, e en-
e Tao tomavam conta das discórdias espirituais da tre tantos outros exemplos, na de Manuela
China e os mandarins tomavam conta de tudo o Carneiro da Cunha.
mais. Quando via uma grande nuvem de poeira Nesse caso, bem se poderá ponderar desne-
levantar-se no horizonte, ele ansiosamente imagi- cessária uma resenha de A invenção da cultu-
nava que era a ‘poeira de mil carruagens’. Nunca ra. É nesse sentido que o objetivo perseguido
era. Vivemos em tempos interessantes. (Wagner, pelas linhas que aqui se seguem mostrar-se-á
2010, p. 24) um pouco distinto; mais que apresentar o livro
de Roy Wagner, tais linhas pretenderão antes
destacar algumas ideias e conceitos centrais da
Se de fato vivemos em tempos interessantes, antropologia inventada pelo antropólogo es-
isso sem dúvida se deve a livros como Coyote tadunidense, observando, entrementes, como
Anthropology - que começa a ser lido pelo mun- essas ideias e conceitos ali se articulam.
do – e A invenção da Cultura – que começa a Para tanto, talvez seja estratégico que se
ser relido no Brasil, agora em português. parta daquilo que o próprio Wagner aponta
E tal qual a chegada de mil carruagens é a como propósito último de sua Antropologia,
publicação de cada novo livro do estadunidense qual seja, “analisar a motivação humana em um
Roy Wagner: exigem tempo até que a nebulosa nível radical” (Wagner, 2010, p. 13).
que os circunscreve decante e se possa discernir Pretensiosamente simples, tal propósito
com certa nitidez a grandeza e a potência de permite a Wagner fixar as bases de sua reflexão
inovação que trazem consigo. Sem embargo, a no ponto em que também se situa um dos mais
surpresa e a admiração com que a crítica antro- elementares problemas do pensamento socio-
pológica de hoje recebe um texto que nasce das lógico: a compreensão do modo pelo qual os
inflexões sugeridas por um coiote não é menor homens criam a realidade em que vivem, e do
que o assombro com o qual acolheu, ainda nos como a realidade ela mesma pode criar os ho-
anos 70, a tese de que a cultura seria antes de mens que através dela se fazem existir.
mais nada uma invenção ingênua dos bem in- Com efeito, em Wagner essa discussão não
tencionados antropólogos. se resolverá nos termos da precedência lógica
A despeito da tradução tardia, não é recente ou do condicionamento sociológico da socie-
a influência que A invenção da cultura desperta dade sobre o indivíduo, ou, contrariamen-
no pensamento antropológico brasileiro; as se- te, deste sobre aquela. O que A invenção da
dois sentidos. E, sem embargo, é nessa condição racterizam e das tensões que ele sugere se pro-
que deverá ser analisado e compreendido. longarem à invenção. Apenas assim tornar-se-ia
Ademais, considerará Wagner, é preciso possível perceber como o contexto se utilizaria
entender que tais manobras não podem ser ele mesmo da invenção de modo a produzir sua
concebidas como operações absolutamente li- reprodução.
cenciosas, livres. A realidade à qual a extensão Com efeito, enquanto certas realidades as-
dos significados se dirige dá forma e preenche similariam e simbolizariam a invenção coleti-
as analogias criadas. Para aquém dela, o enten- vizando-a, utilizando-a de modo a neutralizar
dimento produzido condicionar-se-á também as tensões derivadas da manifestação de certos
pelo contexto simbólico que, inquieto com conjuntos de motivações, outros contextos
o novo e tentando assimilá-lo, a ele empresta valer-se-iam do novo para particularizar os ve-
seus significados e sua lógica significante. De tores dessas tensões, contrastando interesses,
um lado, não se deve vilipendiar o que se pre- atores, ações e formas de observar o mundo.
tende representar. De outro, não se pode vio- Em outros termos ter-se-ia, de um lado, con-
lar as imagens com as quais a representação se textos que engendrariam e significariam suas
fundamenta. E isso, desnecessário repetir, em invenções de modo a reforçar suas normas e
ambas as direções. consagrar suas tradições; de outro, realidades
Como síntese, ter-se-ia tanto um como ou- mais fluidas, nas quais as invenções se consa-
tro contexto apresentando-se como controle. grariam como as propulsoras do devir, agencia-
De fato, são os contextos simbólicos que doras da mudança, do movimento. “Cada um
apresentam àqueles que inventam os elementos desses modos corresponde[ria] a um tipo parti-
significados como problemas, como as tensões cular de continuidade cultural, a uma concep-
e os impasses a serem resolvidos; será a articu- ção particular do eu, da sociedade e do mundo”
lação das atitudes e pensamentos individuais, (Id., Ibidem, p. 181), e serão esses os elementos
mesmo das motivações tomadas como totalida- que inspirarão as análises e contrapontos pro-
de quem oferecerá aos indivíduos as questões e postos por A invenção da cultura.
polêmicas sujeitas a uma resolução necessária. Ali, a partir da discussão dos processos pe-
Depois, uma vez ponderadas soluções para los quais apaziguam-se as tensões simbólicas e
as contradições que coloca, é o próprio con- sociais, povos tribais, religiosos e camponeses,
texto simbólico quem acolherá as inovações, as povos descentralizados, não estratificados, são
invenções imaginadas por cada sujeito, assimi- percebidos como produtores de pessoas e de
lando-as de modo a reafirmar o que já preconi- encantamentos mágicos. Nesses povos, a alma
za a tradição, transformando o novo elemento é decantada, descobre-se xamã. De nossa par-
em convenção, ou, contrariamente, marcando te, inventamos as coisas. Aqui, é a propaganda
essas resoluções como uma maneira de alterar o que magicamente garante a funcionalidade de
curso daquilo que é tido como certa tendência, nossa tecnologia; decantamos o “eu” como per-
diferenciando-o do todo como um elemento sonalidade, descobrimo-nos esquizofrênicos.
efetivamente novo. Alhures, as motivações terminam por se
Segue-se que uma realidade só poderá ser acomodar dialeticamente, sendo a reprodução
lúcida e efetivamente mapeada quando a aná- das relações sociais e simbólicas asseguradas
lise sistemática da situação apresentada pelo pela precipitação de rituais em contraposição
contexto simbólico, das motivações que o ca- aos feitos seculares. Deste lado, conciliamos
Recebida em 15/03/2012
Aceita para publicação em 17/10/2012