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Índice

Secretaria da Educação do Estado de São Paulo

Professor
de Ensino Fundamental II e Médio
História
Apostila de acordo com a Resolução SE 52, de 14 de agosto de 2013 e
Instruções Especiais SE 2, de 26/09/2013

BIBLIOGRAFIA-LIVROS E ARTIGOS

1. AZEVEDO, Cecília e RAMINELLI, Ronaldo. História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2011....................................................................................................................................................................01
2. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2005.......20
3. BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006...............................25
4. CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Editora Campus,
2012...............................................................................................................................................................................................39
5. CERRI, Luis Fernando. Ensino da História e consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
2011................................................................................................................................................................................................41
6. FONSECA, Selva G. Didática e Prática de Ensino de História. Campinas: Editora Papirus, 2005.........................45
7. FREITAS, Marcos Cezar de. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2001..........58
8. FUNARI, Pedro Paulo e PIÑON, Ana. A temática indígena na escola. São Paulo: Editora Contexto, 2011............58
9. FUNARI, Pedro Paulo; FILHO, Glaydson José da e MARTINS, Adilton Luís. História Antiga: contribuições
brasileiras. São Paulo: AnnaBlume, 2009..................................................................................................................................61
10. HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de Aula: visita à História contemporânea. São Paulo: Editora Selo
Negro, 2010...................................................................................................................................................................................64
11. HOURANI, Albert. Uma história dos povos Árabes. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2005...............71
12. JUNIOR, Hilário Franco. A idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988..........72
13. MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO Arlete Medeiros e MAGALHÃES (Orgs.). Ensino de História: sujeitos,
saberes e práticas. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2009....................................................................................................88
14. PINSKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2009...............................................................................................................................................................................................95
15. REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
2002.............................................................................................................................................................................................105
16. RUSEN, Jorn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel e MARTINS, Estevão de
Rezende. Jorn Rusen. O ensino da História. Curitiba: Editora UFPR, 2011.......................................................................108
17. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Editora Companhia das
Letras, 1996................................................................................................................................................................................109
18. SILVIA, Janice Theodoro da. Descobrimentos e coloniza-ção. São Paulo: Editora Ática,1998............................ 113
19. SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista e GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (Orgs.). Culturas
políticas. Rio de Janeiro: EDITORA Mauad/FAPERJ, 2005................................................................................................ 115

Didatismo e Conhecimento
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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS

1. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história. Brasília: MEC/SEF,
1998. .............................................................................................................................................................................................01
2. BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. História e geografia, ciências
humanas e suas tecnologias: livro do professor – ensino fundamental e médio. Brasília: MEC/INEP, 2002.....................34
3. BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: ciências humanas e suas
tecnologias; história. Brasília, MEC/SEB, 2006. ......................................................................................................................79
4. BRASIL. Secretaria de Educação Continuada. Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais:
educação ético-racial. Brasília. MEC/SECAD, 2006. ............................................................................................................125
5. SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Currículo do Estado de São Paulo: história. In: ___________________.
Currículo do Estado de São Paulo: ciências humanas e suas tecnologias. São Paulo: SE, 2012. p. 25-27, 28-73. ...........197

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BIBLIOGRAFIA - LIVROS E
ARTIGOS (História)
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Sinópse
1. AZEVEDO, CECÍLIA E RAMINELLI,
RONALDO. HISTÓRIA DAS AMÉRICAS: Os textos deste livro refletem a experiência docente e de pes-
NOVAS PERSPECTIVAS. RIO DE JANEIRO: quisa de professores de História da América da UFF. Cada capítulo
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2011. explora debates historiográficos em torno de temas fundamentais
da área, apresentando-se como uma excelente ferramenta para o
ensino na graduação. Os trabalhos estimulam o espírito crítico, na
medida em que explicitam conflitos entre distintas correntes ex-
Sumário plicativas, questionam paradigmas e lançam questões polêmicas.
Mostram, enfim, que a História está sempre em movimento.
Introdução
História da América na Universidade Federal Fluminense Resumo
(UFF) em retrospectiva
Rachel Soihet
Baseado na obra, organizamos o seguinte conteúdo:
Capítulo 1
A monarquia católica e os poderes locais do Novo Mundo Monarquia
Ronald Raminelli
Monarquia é um sistema de governo em que o monarca (rei)
Capítulo 2 governa um país como chefe de Estado. A transmissão de poder
Os índios e as reformas bourbônicas: entre o “despotismo” e ocorre de forma hereditária (de pai para filho), portanto não há
o consenso eleições para a escolha de um monarca. Este governa de forma
Elisa Fruhauf Garcia vitalícia, ou seja, até morrer ou abdicar.
Capítulo 3
Revolução e independências: notas sobre o conceito e os pro- Monarquia no Brasil
cessos revolucionários na América espanhola
Maria de Fátima Silva Gouvêa Primeiro Reinado (1822-1831)

Capítulo 4 Proclamada a independência, o Brasil assumiu a form­a monár-


Populações indígenas e Estados nacionais latino-americanos: quica de governo. Uma monarquia imperial que teria no príncipe
novas abordagens historiográficas D. Pedro de Alcântara, herdeiro da Casa de Bragança, seu primeiro
Maria Regina Celestino de Almeida imperador. O governo de D. Pedro I, entre 1822 e 1831, denomi-
nou-se Primeiro Reinado, momento em que se inicia a instalação
Capítulo 5 do Estado Nacional brasileiro, em meio a dificuldades econômico-
Soltando-se das mãos: liberdades dos escravos na América
financeiras e aos primeiros conflitos internos, típicos de uma fase
espanhola
María Verónica Secreto em que se acomodam os múltiplos interesses que marcaram a luta
pela independência.
Capítulo 6 As propostas liberais da nova elite dirigente, agora dividida ao
Lutas políticas, relações raciais e afirmações culturais no pós sabor de antigas divergências, entrou em choque com o absolutis-
-abolição: os Estados Unidos em foco mo do Imperador, provocando o rom­pimento da aliança que asse-
Martha Abreu gurou a ruptura com Portugal. Opondo-se aos liberais brasileiros,
Larissa Viana que novamente se uniram para resistir ao autoritarismo imperial,
o grupo português (comerciantes, militares e burocratas) aproxi­
Capítulo 7 mou-se de D. Pedro I, manobrando para garantir suas van­tagens e,
Imprensa liberal no pós-abolição (1865-1877) no limite, inviabilizar a independência.
Marco Antonio Pamplona

Capítulo 8 O reconhecimento internacional da independência


A sociedade de massas: os populismos
Norberto Ferreras Uma vez vencida a resistência interna, o Império buscou o
reconhecimento externo, francamente apoiado pela Inglaterra no
Capítulo 9 âmbito europeu, onde Portugal recu­sava-se a aceitar a nova situa-
Ditadura, violência política e direitos humanos na Argentina, ção da ex-colônia. Contudo foram os Estados Unidos (26/5/1824)
no Brasil e no Chile o primeiro país a reconhecer oficialmente a nação brasileira. O
Samantha Viz Quadrat reconhecimento norte-americano baseava-se na Doutrina Monroe,
que defendia o princípio “A América para os americanos”, reagin-
Capítulo 10 do à ameaça de intervenção da Santa Aliança na América. Além
Relações interamericanas no século XX: percursos e debates disso, era parte de uma política de resguardo dos promissores mer-
acadêmicos cados da América Latina. A partir daí, o México e a Argentina tam-
Cecília Azevedo
bém deram o seu reconhecimento.

Didatismo e Conhecimento 1
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
O reconhecimento português, sob pressão inglesa, deu-se em - Inglaterra interfere (por motivos econômicos) e cria o Uru-
agosto de 1825, através do Tratado Luso-Brasi­leiro. Por esse trata- guai. (Ver: Guerra da Cisplatina)
do, Portugal concordava com a emanci­pação brasileira, mediante o
pagamento, pelo Império, de uma indenização de dois milhões de A questão da sucessão portuguesa
libras esterlinas, além da concessão a D. João VI do título de Im-
perador Hono­rário do Brasil. Em outubro do mesmo ano, a França Com a morte de D. João VI, em 1826, D. Pedro foi aclamado
também reconhecia o Império, em troca de vantagens comerciais. rei de Portugal. A aceitação do título pelo Impe­rador provocou um
A Inglaterra reconheceu o Brasil independente apenas em ja- profundo mal-estar entre todos os brasileiros, que se viam agora
neiro de 1826. Para tanto, exigiu a renovação dos tratados de 1810 ameaçados pela reunifica­ção das duas coroas, o que colocava em
por mais 15 anos, garantindo aos produtos ingleses baixas taxas risco a indepen­dência do Brasil.
alfandegárias, além de do governo imperial o compromisso de Diante das sucessivas manifestações no Rio de Janeiro, D. Pe-
extinguir o tráfico negreiro, provocando assim, reações das elites dro renunciou ao trono português em favor de D. Maria da Glória,
agrárias. sua filha, que ainda era criança.
Para governar como regente, D. Pedro indicou seu irmão, D.
A primeira constituição - 1823 Miguel, de tendência absolutista e que acabou se apos­sando ilegi-
timamente do trono português.
Firme oposição aos portugueses (militares e comerciantes) Sempre sob suspeita dos brasileiros e apoiado pelos consti-
que ameaçavam a independência e queriam a recolonização. tucionalistas lusos, D. Pedro começou uma longa luta contra o
A constituição proibia os estrangeiros de ocupar cargos públi- irmão, sustentada por recursos nacionais e pelos empréstimos in-
cos de representação nacional e tinha a preocupação de limitar e gleses. A questão do trono português foi solucionada em 1830; um
diminuir os poderes do imperador e aumentar o poder legislativo. ano depois, abdicando ao trono brasileiro, D. Pedra se tomaria rei
Também tinha a intenção de manter o poder político nas mãos de Portugal. Com título de Pedro IV.
dos grandes proprietários rurais. O projeto estabelecia que o eleitor
precisava ter uma renda anual equivalente a, no mínimo, 150 alquei- O problema dos tratados com a Inglaterra
res de mandioca. Por isso o projeto ficou conhecido como Constitui-
ção da Mandioca. (Ver: Assembleia Constituinte de 1823). O Brasil independente herdou os tratados de 1810, celebrados
por D. João com a Inglaterra. Foram esses tratados, especialmente
A constituição outorgada de 1824 o de Comércio e Navegação e o de Aliança e Amizade, que ga-
rantiram a continuidade da preponderância britânica no Império
Em seguida à dissolução da Constituinte de 1823, D. Pedro brasileiro.
I, já governando de forma autoritária, nomeou um Conselho de Em 1826, para garantir o reconhecimento da independência,
Estado com a tarefa de redigir o novo projeto de Cons­tituição, que D. Pedro I cedeu aos interesses ingleses, renovando a taxa prefe-
ficou pronto em janeiro de 1824. Depois de enviado a todas as Câ- rencial de 15% sobre os produtos ingleses por mais quinze anos,
maras Municipais do país e não ter recebido emendas ou críticas com dois de carência, além da promessa de acabar com o tráfico
significativas, o projeto foi assinado por D. Pedro I, tornando-se a negreiro. Em 1827, sob pressão da diplomacia inglesa, ocorreu a
Constituição do Império do Brasil, na prática, uma carta outorgada ratificação do acordado no ano anterior com um novo adendo: o
pelo Imperador em 25 de março de 1824. Brasil assumia o compromisso de extinguir o tráfico de escravos
Essa carta, defendida pelo Imperador como uma cons­tituição em três anos.
“duplicadamente liberal” era, na realidade, uma simplificação da Com isso, D. Pedro I mostrava sua fraqueza diante dos inte-
Constituição da Mandioca, uma vez que se mantinha fiel aos prin- resses britânicos e, especialmente com relação ao tráfico negreiro,
cípios e às aspirações políticas da aristocracia rural. (Ver: Caracte- feria diretamente os interesses da aristocracia rural escravista. Em
rísticas da constituição de 1824). vista disso, a Assembleia Geral procurou facilitar a concessão de
privilégios semelhantes a outras nações, como a França, Áustria e
Confederação do Equador Estados Unidos, entre outros.
Em 1828, para melhorar a imagem desgastada, D. Pedro pas-
O nordeste atravessava uma grave crise econômica devido à sou a adotar uma postura nacionalista e decretou a unificação das
queda das exportações de açúcar. Tomados por um sentimento an- tarifas alfandegárias, ou seja, toda e qualquer mercadoria, proce-
ti-lusitano, diferentes setores da sociedade uniram-se em torno de dente de qualquer país do mundo, pagaria apenas 15% de taxa al-
ideias contrárias à monarquia e a centralização do poder. Diziam fandegária quando entrasse no Brasil.
que o sistema de governo no Brasil deveria ser republicano, com a A redução das tarifas aduaneiras, na prática, a instauração do
descentralização do poder e autonomia para as províncias. Os es- livre-cambismo no Brasil, reduziu drasticamente a arrecadação do
tados que participaram do movimento foram: Pernambuco, Ceará, governo e contribui, ainda mais, para o desequilíbrio na balança
Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas. Os líderes mais democrá- comercial brasileira.
ticos da confederação defendiam a extinção do tráfico negreiro e
a igualdade social para o povo. (Ver: Confederação do Equador) Economia e finanças do primeiro reinado

A guerra Cisplatina O início do Primeiro Reinado coincide com o início do perío-


do, que se prolongou até 1860, em que o comércio exterior brasi-
- Conflito armado entre Brasil e Argentina, disputando o atual leiro foi quase o tempo todo deficitário. Isto é, importávamos mais
Uruguai. do que exportávamos: estávamos sempre devendo.

Didatismo e Conhecimento 2
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Para pagar as dívidas, o país fazia empréstimos externos, solu- e da violenta repressão à Con­federação do Equador. A isso, soma-
ção que ia transferindo o problema para o futuro. Novos pagamen- ram-se o envolvi­mento de D. Pedro na questão sucessória portu-
tos eram acrescidos a títulos de juros e amortizações. O resultado guesa e a desastrosa Guerra da Cisplatina, abertamente condenada
era contínuo aumento do desequilíbrio em nossas contas com o pela opinião pública. Todas essas ocorrências foram permeadas
exterior. pela crise econômico-financeira que se agravava durante o perío-
Em nossas exportações, destacavam-se: do: a falência do Banco do Brasil, em 1828, espelha a situação do
- Açúcar, principal produto durante o primeiro reinado, era Brasil na época.
vendido a preços baixos, por causa concorrência das Antilhas e do Nesse quadro, cresceu e se fortaleceu a oposição ao imperia-
açúcar de beterraba; o café transformou-se em principal produto lismo imperial, com a multiplicação dos jornais de liberal - “Au-
de exportação; rora Fluminense”, “O Republico” e “A Malagueta”, entre outros -,
- Algodão, que enfrentava a concorrência americana; e com os veementes pronunciamentos na Câmara dos Deputados,
- Fumo, cacau, arroz e couro, não tinham tanta expressão e nos momen­to’” de curta convocação do Parlamento brasileiro.
enfrentavam a concorrência americana (arroz) e platina (couro).
As importações incluíam manufaturados da Inglaterra, benefi- Abdicação de D. Pedro I
ciada ainda pelas tarifas privilegiadas em 1810; trigo dos Estados
Após oito anos pontuados por sucessivas crises, D. Pedro I
Unidos e da Europa; produtos alimentícios da Europa; escravos
acabou cedendo às pressões da aristocracia rural brasileira e ab-
da África.
dicou ao trono brasileiro em favor de seu fi­lho, também chamado
O Brasil enfrentava também escassez de dinheiro, resultante
Pedro de Alcântara, dando início ao Segundo Reinado.
dos seguintes fatores:
- Esvaziamento dos cofres da família real, quando voltou a Período Regencial
Portugal em 1821.
- Indenização paga a Portugal para que reconhecesse nossa O período regencial começa em 1831, com a abdicação de
Independência dom Pedro I, e estende-se até 1840, quando dom Pedro II é aceito
- Gastos com a guerra da Cisplatina e revoltas internas como maior de idade. É uma das fases mais conturbadas da histó-
Por falta de recursos e máquinas, as indústrias não puderam ria brasileira e de grande violência social. A menoridade do prín-
desenvolver-se. A Inglaterra tinha substituído Portugal tanto no cipe herdeiro acirra as disputas pelo poder entre as diferentes fac-
comércio como na criação de dificuldades para o desenvolvimento ções das elites. Pela primeira vez no país, os chefes de governo são
da indústria brasileira. O caso da indústria têxtil foi um exemplo eleitos por seus pares. Os brasileiros pobres continuam alijados da
típico. A Inglaterra, favorecida pelas baixas taxas alfandegárias, vida política da nação. As revoltas regionais, os motins militares e
sufocou-a colocando aqui seus tecidos em melhores condições que os levantes populares são violentamente reprimidos.
os nossos e criando dificuldades para a importação de máquinas
por brasileiros. Em 1840, mais da metade de nossos gastos com A composição das forças políticas
importações de manufaturados referia-se ao pagamento de produ-
tos de vestuário. Na esfera política das Regências digladiaram-se as forças dis-
A indústria de mineração só alcançou alguns progressos, no postas na estrutura da sociedade imperial, basi­camente a mesma
entanto, com ajuda de capitais ingleses. da época colonial. Ao iniciar-se o perío­do, eram três as facções
Nas exportações, o café, que tomou a dianteira na Regência, políticas entrechocando-se na luta pelo poder: os restauradores, os
lideraria por muito tempo, seguido de longe por outros produtos liberais moderados e os liberais exaltados.
tropicais, como açúcar, algodão, couro e pele, tabaco, cacau, mate Os restauradores, também denominados caramurus, repre-
e borracha. sentavam uma parcela da classe dominante que ha­via apoiado o
As dificuldades econômicas durante meio reinado e a Regên- Imperador, quando este tendeu ao absolu­tismo. Mesmo depois
cia atingiriam mais as cidades que as grandes propriedades rurais, da abdicação, passaram a lutar pela sua volta ao trono brasileiro,
agitando os primeiros anos da Menoridade. Para eles, a monar-
pois estas eram quase autossuficientes. As crises se deviam aos
quia não significava apenas a preservação da antiga estrutura de
empréstimos, à má administração e aos excessivos privilégios con-
dominação, nem dos privilégios. Estavam convictos, também, de
cedidos à Inglaterra, a potência capitalista da época. As dificulda-
que só o regime monárquico autoritário permitiria a continui­dade
des e a dependência aos ingleses não cessariam durante o segundo da tranquilidade e disputada preponderância. Dentre eles, muitos
Reinado. Pelo Contrário, cresceriam. eram restauradores por interesse pessoal, como é o caso de José
Bonifácio, agora tutor de D. Pedro de Alcântara. O seu reduto era
O fim do primeiro reinado o Senado e a associação política que os representava era o Clube
Militar.
Desde 1823, D. Pedro I trilhava o caminho do abso­lutismo, Com a morte de D. Pedro I, em 1834, os caramurus passaram
aliando-se ao Partido Português e chocando-se com o liberalismo a compor, com os direitos liberais ou moderados, o “regresso con-
dos brasileiros. Estes, aliados dentro do Partido ­Brasileiro, deixa- servador”. Tornaram-se parte dos maioristas em 1840 e da facção
ram de lado as antigas divergências e passaram a fazer cerrada áulica do início do segundo Reinado.
oposição ao Imperador. A resposta foi a crescente violência de D. Os liberais moderados, entendidos como a direita li­beral, cor-
Pedro e de seus partidários. respondiam à outra parcela da aristocracia rural. Eram monarquis-
O rompimento da aliança D. Pedro/elites agrárias, que levou tas, evidentemente, pois viam nela a pro­teção dos seus privilégios.
à independência, iniciou-se em 1823, quando da dissolução da Porém, desejavam-na constitu­cional, uma vez que a Constituição
Constituinte pelo Imperador, seguida da outorga da Carta de 1824 de 1824 assegurava a sua continuidade na posição de mando. De-

Didatismo e Conhecimento 3
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
fendiam a manutenção da ordem em primeiro lugar e não preten- de 35 anos e em condições de assumir o poder. Ela é provisória
diam nenhuma reforma econômica ou social. Como opositores das porque não há quórum suficiente no dia da abdicação para a elei-
reformas políticas, batiam-se pela centralização político-adminis- ção de uma regência permanente. A primeira tarefa do novo gover-
trativa. O liberalismo que rotulava essa facção era apenas de facha- no é atenuar os impasses que levaram à abdicação de dom Pedro
da, adequado às suas neces­sidades de classe dominante. Preponde- I, quase todos resultantes dos excessos de um poder extremamen-
rou durante os primeiros anos das Regências, dividindo-se a partir te centralizado. O último ministério deposto por dom Pedro I, de
de 1835. Eram denominados chimangos e uniam-se sob a égide maioria liberal, é reintegrado e os presos políticos são anistiados.
da Sociedade Defensora da Liberdade e Indepen­dência Nacional, O poder dos regentes é limitado. Não podem, por exemplo, dissol-
fundada por Evaristo da Veiga. Empe­nharam-se no combate aos ver a Câmara, que, na prática, torna-se o centro do poder do país.
restauradores e exaltados fede­ralistas, na defesa da ordem e da Composição política da regência – A composição do primeiro
centralização, fornecen­do subsídios para a orientação governista. trio de governantes é fruto de uma negociação entre os restaura-
Os liberais exaltados, fazendo às vezes da esquerda liberal, dores e liberais moderados. É composto pelos senadores José Joa-
eram representados não só por algumas parcelas da aristocracia quim Carneiro Campos, marquês de Caravelas, representante dos
rural, como também por outros segmento sociais. Apresentavam- restauradores; Nicolau de Campos Vergueiro, representante dos li-
se divididos em camadas sobre­postas, constituindo-se inicialmente berais moderados; e, no papel de mediador, o brigadeiro Francisco
por uma camada de homens livres, destituídos de propriedades, ou de Lima e Silva, representante da oficialidade mais conservadora
pequenos proprietários. Variando de região para região, desenvol­ do Exército. Os liberais radicais não participam do governo, mas
viam atividades nos centros urbanos ou nos campos, osci­lando obtêm vitórias importantes no Legislativo.
numa relação de dependência, entre a classe domi­nante e a classe
que fornecia o trabalho. Seguia-se o aglo­merado urbano e rural - Regência Trina Permanente
marginalizado de recursos: agre­gados, lavradores e citadinos, de-
dicados a pequenos expe­dientes e biscates. A regência trina permanente é eleita pela Assembleia Geral
Enquanto os moderados batiam-se pela preservação da ordem em 17 de junho de 1831. Sua composição inclui as facções políti-
e instituições, opondo-se a qualquer alteração no status quo, os cas que se expressam na capital e também os interesses regionais
exaltados eram os reformistas. Defen­diam o direito de manifes- da elite agrária. É integrada pelos deputados moderados José da
tação, reformas políticas, desde o estabelecimento de uma mo-
Costa Carvalho, marquês de Montalvão, representante do sul, e
narquia descentralizada até a proclamação de uma República, a
João Bráulio Muniz, representante do norte, além do brigadeiro
reforma na Constitui­ção de 1824, ampliando principalmente a au-
Francisco de Lima e Silva, que já integrara a regência trina provi-
tonomia pro­vincial, batendo-se pelo federalismo. Sem muita cla-
sória. O padre Diogo Antônio Feijó é nomeado ministro da Justiça.
reza, exigiam reformas na estrutura econômica e social. Apela­vam
Guarda Nacional – A formação da Guarda Nacional é pro-
para a violência, arrastando as forças de composição variada, sob a
posta pelo padre Diogo Antônio Feijó e aprovada pela Câmara em
bandeira do federalismo. Eram também chamados de jurujubas ou
18 de agosto de 1831. Sua criação desorganiza o Exército. Com
farroupilhas, e se organiza­vam em tomo da Sociedade Federal e de
a Guarda Nacional, começa a se constituir no país uma força ar-
clubes federa­listas espalhados pelas províncias.
mada vinculada diretamente à aristocracia rural, com organização
O avanço liberal descentralizada, composta por membros da elite agrária e seus
agregados. Os oficiais de alta patente são eleitos nas regiões e,
As tendências e evolução destes grupamentos políti­cos e da para muitos historiadores, é um dos componentes fundamentais do
própria vida política do período regencial devem ser entendidas coronelismo político – instituição não-oficial determinante na po-
em dois momentos que o caracterizam: o avanço liberal e o regres- lítica brasileira e que chega ao apogeu durante a República Velha.
so conservador. Reformas liberais – As bases jurídicas e institucionais do
O primeiro momento decorreu entre 1831 e 1834, quando as país são alteradas por várias reformas constitucionais que, em sua
forças liberais uniram-se para combater os restauradores. Juntos, maioria, favorecem a descentralização do poder e o fortalecimento
também estabeleceram reformas insti­tucionais, entendidas tradi- das Províncias. Em 29 de novembro de 1832 é aprovado o Código
cionalmente como liberais ou descentralizadoras, com o objetivo do Processo Criminal, que altera a organização do Poder Judiciá-
de acalmar as tensões regionais latentes. Na realidade, as refor- rio. Os juízes de paz, eleitos diretamente sob o controle dos senho-
mas propaladas não passaram de concessões dos moderados, então res locais, passam a acumular amplos poderes nas localidades sob
pre­ponderantes, no sentido de deter a vaga revolucionária, esva- sua jurisdição.
ziando-a. É evidente que a união entre moderados e exaltados era Ato Adicional de 1834 – A tendência à descentralização do
precária e circunstancial, não se apoiando em bases sólidas. Daí, poder é reforçada pelo Ato Adicional assinado pela regência trina
sua efemeridade. permanente em 12 de agosto de 1834. Considerado uma vitória
É neste primeiro momento que se desenrolam as duas primei- dos liberais no plano institucional, o Ato extingue o Conselho de
ras regências trinas, assinaladas pelo precário equi­líbrio político. Estado, transfere para as Províncias os poderes policial e militar,
até então exclusivos do poder central, e permite-lhes eleger suas
- Regência Trina Provisória assembleias legislativas. O poder Executivo provincial continua
indicado pelo governo central e o caráter vitalício do Senado tam-
Instalada no mesmo dia da abdicação de dom Pedro I, em 7 bém é mantido. A regência trina é substituída pela regência una
de abril de 1831, a regência trina é uma exigência da Constituição eletiva e temporária, com um mandato de quatro anos para o re-
para o caso de não haver parentes próximos do soberano com mais gente.

Didatismo e Conhecimento 4
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
- Primeira Regência Una Segundo Reinado (1831-1889)

O processo de escolha do primeiro regente único do país co- Golpe da Maioridade (1840): Início do Segundo Reinado.
meça em junho de 1835. Os principais concorrentes são o padre Partidos liberal e conservador. As disputas políticas entre
Diogo Antônio Feijó, de tendência liberal, e o deputado pernam- progressistas (Feijó) e regressistas (Araújo Lima), durante as re-
bucano conservador Antônio Francisco de Paula e Holanda Caval- gências, resultaram posteriormente no Partido Liberal e no Partido
canti. Feijó defende o fortalecimento do poder Executivo e vence Conservador, que se alternaram no governo ao longo do Segundo
o pleito por uma pequena margem de votos. Reinado.
Governo Feijó – Empossado dia 12 de outubro de 1835 para Enquanto o Partido Liberal se aglutinou em torno do Ato Adi-
um mandato de quatro anos, padre Feijó não completa dois anos no cional, o Partido Conservador foi se organizando em torno da tese
cargo. Seu governo é marcado por intensa oposição parlamentar e da necessidade de limitar o alcance liberal do Ato Adicional, atra-
rebeliões provinciais, como a Cabanagem, no Pará, e o início da vés de uma lei interpretativa.
Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul. Com poucos recursos O período regencial começou liberal e terminou conservador.
para governar e isolado politicamente, renuncia em 19 de setembro E há uma explicação para esse fato: a ascensão da economia ca-
de 1837. feeira.
Diogo Antônio Feijó (1784-1843) nasce em São Paulo numa Por volta de 1830, o café havia deixado de ser uma cultura ex-
família de “barões do café”. Ordena-se sacerdote católico em 25 perimental e marginal para se tornar o principal produto de expor-
de outubro de 1805. Em 1821 é eleito deputado às Cortes Consti- tação, suplantando o açúcar. Os principais lideres conservadores
tucionais, em Lisboa. Defensor de ideias separatistas é perseguido eram representantes dos interesses cafeeiros.
pela Coroa portuguesa, refugiando-se na Inglaterra. Volta ao Brasil Com a formação desses dois partidos e a ascensão da econo-
após a independência. Deputado nas legislaturas de 1826 a 1829 e mia cafeeira, a vida política brasileira parecia ganhar finalmente a
de 1830 a 1833, combina ideias de um liberal radical com propos- necessária estabilidade. Porém, as regras do jogo foram quebradas
tas e práticas políticas conservadoras. Luta contra o absolutismo, pelos liberais, com o Golpe da Maioridade. Para compreendê-lo,
a escravidão e o celibato clerical. Chama os liberais de “clube de retomemos o fio da meada.
assassinos e anarquistas” e também se afasta dos restauradores. A aclamação de D. Pedro II. No Brasil, as agitações políticas e
Ocupa o Ministério da Justiça entre 5 de julho de 1831 e 3 de agos- sociais tomaram conta do país logo depois da abdicação de D. Pe-
to de 1832. Em 1833 é eleito senador e, em 1835, regente único dro I em 7 de abril de 1831. Diante das crises vividas pelo regime
do reino. Autoritário na condução do Estado e sem bases de apoio regencial, ficou parecendo a todos que elas haviam sido facilitadas
próprias, é obrigado a renunciar em 1837. Participa da Revolução pelo caráter transitório do governo, que atuava apenas como subs-
Liberal em 1842. Derrotado, foge para Vitória. Volta ao Rio de tituto do poder legítimo do imperador, constitucionalmente impe-
Janeiro em 1843 e, nesse mesmo ano, morre em São Paulo. dido de exercer a autoridade devido à menoridade.
A fim de conter as agitações e o perigo da fragmentação terri-
- Segunda regência Una torial, a antecipação da maioridade de D. Pedro de Alcântara pas-
sou a ser cogitada. Levada à apreciação da Câmara, a questão foi
Com a renúncia de Feijó e o desgaste dos liberais, os conser- aprovada em junho de 1840. Assim, com 15 anos incompletos, D.
vadores obtêm maioria na Câmara dos Deputados e elegem Pedro Pedro de Alcântara jurou a Constituição e foi aclamado imperador,
de Araújo Lima como novo regente único do Império, em 19 de com o título de D. Pedro II.
setembro de 1837. A antecipação da maioridade, entretanto, foi maquinada e pos-
Governo Araújo Lima – A segunda regência una é marcada ta em prática, com êxito, pelos liberais, que, desde a renúncia de
por uma reação conservadora. Várias conquistas liberais são abo- Feijó em 1837, haviam sido alijados do poder pelos regressistas.
lidas. A Lei de Interpretação do Ato Adicional, aprovada em 12 de Tratou-se, portanto de um golpe - o Golpe da Maioridade.
maio de 1840, restringe o poder provincial e fortalece o poder cen- Essa manobra política que possibilitou o retorno dos liberais
tral do Império. Acuados, os liberais aproximam-se dos partidários ao poder teve como consequência a afirmação da aristocracia rural
de dom Pedro. Juntos, articulam o chamado golpe da maioridade, e o estabelecimento de sua dominação sobre todo o país. Como
em 23 de julho de 1840. a burguesia, que na Europa abandonara definitivamente o ideal
revolucionário, os grandes proprietários de terras e escravos que
Golpe da Maioridade haviam lutado contra o domínio colonial adotaram finalmente uma
política conservadora e antirrevolucionária.
A política centralista dos conservadores durante o governo O gabinete da maioridade ou o Ministério dos Irmãos. Ime-
de Araújo Lima estimula revoltas e rebeliões por todo o país. As diatamente após o golpe, organizou-se o ministério, o primeiro da
dissidências entre liberais e conservadores fazem crescer a instabi- maioridade, dominado pelos “maioristas”, todos eles ligados ao
lidade política. Sentindo-se ameaçadas, as elites agrárias apostam Partido Liberal. Do novo gabinete participavam os irmãos Andra-
na restauração da monarquia e na efetiva centralização do poder. da (Antônio Carlos e Martim Francisco) e os irmãos Cavalcanti
Pela Constituição, no entanto, o imperador é considerado menor de (futuros viscondes de Albuquerque e de Suassuna), donde decor-
idade até completar 18 anos. reu o nome de Ministério dos Irmãos.
Clube da maioridade – Os liberais lançam a campanha pró As disputas políticas, contudo, tornaram-se sangrentas a partir
-maioridade de dom Pedro no Senado e articulam a popularização da ascensão liberal, e governar havia se tornado sinônimo de exer-
do movimento no Clube da Maioridade, presidido por Antônio cício do poder discricionário*. Assim, para controlar o país, o par-
Carlos de Andrade. A campanha vai às ruas e obtém o respaldo tido que se encontrava no governo estabelecia a rotina de nomear
da opinião pública. A Constituição é atropelada e Dom Pedro é presidentes de províncias de seu agrado e de substituir autoridades
declarado maior em 1840, com apenas 14 anos. judiciais e policiais de fidelidade duvidosa.

Didatismo e Conhecimento 5
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Nas eleições, os chefes políticos colocavam nas ruas bandos Nascia desse modo, o parlamentarismo* brasileiro. Mas esse
armados; o governo coagia eleitores e fraudava os resultados das era um parlamentarismo muito diferente daquele praticado na Eu-
urnas. A eleição de 13 de outubro de 1840, que deu início a esse ropa, que seguia o modelo inglês.
estilo novo (e violento) de fazer política, ficou conhecida como No parlamentarismo europeu, o primeiro-ministro (que equi-
“eleição do cacete”, e deu vitória aos liberais. Todas as outras elei- vale ao nosso presidente do Conselho de Ministros) era escolhido
ções realizadas depois disso não escaparam à regra: continuaram pelo Parlamento, que também tinha força para depô-lo. Além dis-
igualmente violentas. so, o ministério era responsável perante o Parlamento, ao qual era
obrigado a prestar contas. Em suma, o Legislativo contra lava o
Medidas Antiliberais Executivo.
No Brasil era o contrário. O ministério era responsável peran-
A unidade da aristocracia rural. Apesar das disputas políticas te o poder Moderador (imperador). O Parlamento (poder Legisla-
violentas, os partidos Conservador e Liberal eram diferentes ape- tivo) nada podia contra os ministros, que governavam ignorando-o
nas no nome. Um e outro eram integrados pelos grandes proprietá- e prestando contas apenas ao imperador. Por esse motivo, esse
parlamentarismo brasileiro ganhou o nome de “parlamentarismo
rios escravistas e defendiam os mesmos interesses: estavam unidos
às avessas”.
contra a participação do povo nas decisões políticas. Liberal ou
Conservador - não importava -, a aristocracia rural era a favor de Política Protecionista
uma política antidemocrática e antipopular.
Essa evolução no sentido da maior unidade de interesse e na Tarifa Alves Branco (1844). Da cobrança de taxas alfande-
defesa de uma política conservadora foi, em grande parte, moti- gárias o governo brasileiro obtinha a maior parte de sua receita.
vada pelo fortalecimento econômico da aristocracia rural. Desde Contudo, desde os tratados de 1810, que reduziram os direitos al-
a década de 1830, a cafeicultura havia se deslocado para o vale fandegários das mercadorias inglesas para 15% ad valorem, essa
do Paraíba, onde rapidamente se tornaria a principal atividade fonte de receita encontrava-se incomodamente restringida. A situa-
agroexportadora brasileira, beneficiando particularmente as três ção havia se agravado mais ainda com as concessões comerciais
províncias do sudeste: Rio de janeiro, São Paulo e Minas Gerais. feitas aos Estados Unidos e a outros países europeus, por ocasião
A projeção política dessas três províncias, as mais ricas e podero- do reconhecimento da emancipação do Brasil.
sas do Brasil, já se fazia sentir desde a transferência da Corte, em O débil desempenho da economia brasileira até por volta de
1808. Representadas agora pelos “barões do café”, elas fortalece- 1840 foi tornando cada dia mais precária a situação do Tesouro. A
ram ainda mais as suas posições relativas, tornando-se capazes, inexistência de uma produção nacional que suprisse as necessida-
efetivamente, de impor nacionalmente a sua política. des internas de consumo fez do Brasil uma economia inteiramente
Como segmento mais rico e próximo do poder central, os ba- dependente do fornecimento externo. Os gêneros alimentícios e os
rões do café estavam em condições de submeter à sua liderança produtos de uso corriqueiro, como sabão, velas, tecidos, etc., eram
a aristocracia rural das demais províncias. Formando então um trazidos de fora, e a sua importação, naturalmente, tinha um custo
bloco cada vez mais poderoso, imprimiram uma direção precisa monetário que deveria ser saldado com as exportações de produtos
à política nacional: o centralismo e a marginalização dos setores nacionais.
radicais e democráticos. A dependência em que o Brasil se encontrava em relação à In-
A reforma do Código de Processo Criminal. Assim, a partir de glaterra e em menor escala em relação aos Estados Unidos e outros
1840 firmou-se uma tendência política centralista e autoritária. O países europeus apenas havia transferido par muitos os benefícios
primeiro passo nesse sentido foi a instituição da Lei Interpretativa que antes só cabiam Portugal. O país continuava, no plano econô-
do Ato Adicional. Em dezembro de 1841, foi a vez da reforma do mico, essencialmente colonial.
Essa distorção, que dificultava a acumulação interna de capi-
Código de Processo Criminal, que, como já vimos, havia conferido
tal, foi parcialmente corrigida em 1844, com a substituição do li-
às autoridades locais uma enorme soma de poderes. Com a refor-
vre cambismo por medidas protecionistas, através da Tarifa Alves
ma, o antigo código foi descaracterizado no seu conteúdo liberal, Branco, como ficou conhecido o decreto do ministro da Fazenda
pois toda autoridade judiciária e policial foi submetida a uma rígi- Manuel Alves Branco.
da hierarquia e diretamente subordinada ao Ministério da Justiça. Segundo a nova legislação aduaneira, os direitos duplicaram
O poder central tinha agora nas mãos instrumentos eficientes para (passaram para 30%) para mercadorias sem similares nacionais e
assegurar a ordem pública. 60% em caso contrário. Evidentemente, as pressões internacionais
A restauração do Conselho de Estado. Durante o Primeiro contra a medida foram muitas, sobretudo por parte dos britânicos,
Reinado, o Conselho de Estado era um órgão consultivo do im- que perdiam boa parte dos privilégios que tinham no mercado bra-
perador D. Pedro I, para o qual ele havia nomeado membros do sileiro.
“partido português”. Na Regência, esse órgão foi extinto pelo Ato Embora a nova política protecionista não formasse uma bar-
Adicional (1834). Em 1841 foi restaurado e se tornou o principal reira intransponível, nem estimulasse decisivamente o desenvolvi-
órgão de assessoria direta do imperador, através do qual a aristo- mento do mercado interno, foi, todavia, um importante passo nesse
cracia rural garantia a sua presença no centro do poder. sentido.
A presidência do Conselho de Ministros e o parlamentarismo
às avessas. No Primeiro Reinado foi constante o conflito entre o A Abolição do Tráfico Negreiro
poder Moderador (D. Pedro I) e a Câmara dos Deputados. Para di-
minuir os atritos entre os poderes, foi criado, em 1847, a Presidên- A pressão britânica na abolição do tráfico. Em meados do sé-
cia do Conselho de Ministros. Ficou convencionado que o impera culo XIX foi extinto no Brasil o tráfico negreiro. A iniciativa não
dor nomearia apenas o presidente do Conselho, que, por sua vez, foi por vontade e decisão do governo brasileiro, mas resultou da
escolheria os demais ministros. eficiente pressão britânica nesse sentido. Várias razões explicam

Didatismo e Conhecimento 6
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essa atitude do governo britânico. Em primeiro lugar, a Revolução A repressão ao tráfico foi assim intensificada, e os navios bri-
Industrial do século XVIII, na Inglaterra, que generalizou o empre- tânicos chegaram a apreender navios em águas territoriais brasilei-
go do trabalho assalariado, pondo fim a toda forma compulsória de ras, até mesmo entrando em seus portos.
exploração do trabalhador, tornou a sociedade sensível ao apelo A lei Eusébio de Queirós (1850). Em março de 1850, o todo
abolicionista. -poderoso primeiro-ministro Gladstone obrigou o Brasil ao cum-
De fato, para as sociedades europeias do século XIX, que primento dos tratados, ameaçando-o com uma guerra de extermí-
acompanhando o exemplo britânico evoluíam no sentido do em- nio. O governo brasileiro finalmente se curvou ante as exigências
prego generalizado do trabalho livre assalariado, a escravidão, em britânicas e em 4 de setembro de 1850 promulgou a lei de extinção
contraste, começou a ser vista em toda a sua desumanidade, crian- do tráfico pelo ministro Eusébio de Queirós. A tabela abaixo mos-
do bases para uma opinião abolicionista. Evidentemente, os bons tra os efeitos imediatos da medida.
sentimentos por si sós eram insuficientes para qualquer ação con- Consequências da extinção do tráfico. A lei Eusébio de Quei-
creta contra a escravidão. Na verdade, o capitalismo industrial é rós, que pôs fim ao tráfico negreiro de forma súbita, como se verifi-
um sistema baseado no crescimento permanente, com abertura de ca na tabela, liberou uma soma considerável de capital, que passou
novos mercados. Ora, os escravos, por definição, não são consumi- a ser aplicado em outros setores da economia. As atividades co-
dores e, portanto, as sociedades escravistas representavam sérios merciais, financeiras e industriais receberam um grande estímulo.
bloqueios àquela expansão. Em 1854 começou a funcionar a primeira estrada de ferro
Os acordos para a extinção do tráfico. Tendo abolido o tráfico brasileira, de Mauá a Fragoso (futura Leopoldina Rafways); em
em suas colônias em 1807 e a escravatura em 1833, a Inglaterra 1855, iniciou-se a construção da estrada de ferro D. Pedro II (fu-
passou a exigir o mesmo do Brasil, a partir dos tratados de 1810. tura Central do Brasil); o telégrafo apareceu em 1852. Enfim, um
Pelo tratado de 23 de janeiro de 1815, assinado em Viena, esta- novo horizonte se descortinou.
beleceu-se a proibição do tráfico acima da linha equatorial, o que Com a abolição do tráfico, os dias da escravidão no Brasil
atingiu importantes centros fornecedores de escravos, como São estavam contados e, portanto, os dias de existência do Império,
Jorge da Mina. Em 18 de julho de 1817, os governos luso-brasilei- cuja riqueza baseava-se fundamentalmente no fruto do trabalho
ro e inglês decidiram atuar conjuntamente na repressão ao tráfico escravo, também estaria no fim. Basta que nos lembremos de que
ilícito, inspecionando navios em alto mar. Para efeitos práticos, a escravidão foi abolida em 1888 e o Império caiu já no ano se-
contudo, apenas a Inglaterra possuía recursos para isso. guinte, em 1889.
Após 1822, a Inglaterra estabeleceu o fim do tráfico negreiro
O Iluminismo e o “Despotismo Esclarecido”
como uma das exigências para o reconhecimento da emancipação
 
do Brasil. Assim, o tratado de 3 de novembro de 1826 fixou o pra-
Os escritores franceses do século XVIII provocaram uma
zo de três anos para a sua completa extinção. O tráfico passou a ser
revolução intelectual na história do pensamento moderno. Suas
considerado, a partir de então, ato de pirataria, sujeito às punições
ideias caracterizavam-se pela importância dada à razão: rejeita-
previstas no tratado. Finalmente, a 7 de novembro de 1831 - com
vam as tradições e procuravam uma explicação racional para tudo.
atraso de dois anos em relação ao estipulado pelo tratado de 1826
Filósofos e economistas procuravam novos meios para dar felici-
-, uma lei formalizou esse compromisso.
dade aos homens. Atacavam a injustiça, a intolerância religiosa,
As resistências do Brasil. Apesar das crescentes pressões bri- os privilégios. Suas opiniões abriram caminho para a Revolução
tânicas, o tráfico continuou impune no Brasil. E a razão era sim- Francesa, pois denunciaram erros e vícios do Antigo Regime.
ples: toda a economia brasileira, desde a época colonial, estava As novas ideias conquistaram numerosos adeptos, a quem
assentada no trabalho escravo. Em tal circunstância, a abolição do pareciam trazer luz e conhecimento. Por isto, os filósofos que as
tráfico criaria enormes dificuldades à economia, comprometendo divulgaram foram chamados iluministas; sua maneira de pensar,
as suas bases produtivas. Iluminismo; e o movimento, Ilustração.
Ademais, desde a abdicação de D. Pedro I em 1831, os senho-  
res rurais haviam se apropriado do poder político, o que fortalecera A Ideologia Burguesa
consideravelmente a sua posição na sociedade. Por isso, nenhum  
dos acordos assinados com a Inglaterra foi cumprido, de modo que O Iluminismo expressou a ascensão da burguesia e de sua
o tráfico continuou com o consentimento tácito das autoridades. ideologia. Foi a culminância de um processo que começou no Re-
A Inglaterra, por sua vez, esforçou-se para fazer cumprir os nascimento, quando se usou a razão para descobrir o mundo, e que
termos dos tratados, de modo unilateral. E o fez em meio a difi- ganhou aspecto essencialmente crítico no século XVIII, quando
culdades, pois os traficantes, cercados em alto mar, atiravam os os homens passaram a usar a razão para entenderem a si mesmos
negros ao oceano, atados a uma pedra que os impedia de vir à tona. no contexto da sociedade. Tal espírito generalizou-se nos clubes,
Além disso, o tráfico, ao invés de se extinguir, continuou a crescer cafés e salões literários.
incessantemente. A filosofia considerava a razão indispensável ao estudo de fe-
Bill Aberdeen. A passividade do governo brasileiro ante o trá- nômenos naturais e sociais. Até a crença devia ser racionalizada:
fico e, portanto, o não cumprimento dos compromissos assumidos Os iluministas eram deístas, isto é, acreditavam que Deus está pre-
através de vários tratados fez a Inglaterra tomar uma atitude ex- sente na natureza, portanto no próprio homem, que pode descobri
trema. Em 8 de agosto de 1845, o Parlamento britânico aprovou -lo através da razão.
uma lei, chamada Bill Aberdeen, conferindo à Marinha o direito Para encontrar Deus, bastaria levar vida piedosa e virtuosa;
de aprisionar qualquer navio negreiro e fazer os traficantes res- a Igreja tornava-se dispensável. Os iluministas criticavam-na por
ponderem diante do almirantado ou de qualquer tribunal do vice sua intolerância, ambição política e inutilidade das ordens monás-
almirantado dos domínios britânicos. ticas.

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Os iluministas diziam que leis naturais regulam as relações O escocês Adam Smith, seu discípulo, escreveu A Riqueza
entre os homens, tal como regulam os fenômenos da natureza. das Nações (1765), em que defendeu: nem a agricultura, como
Consideravam os homens todos bons e iguais; e que as desigual- queriam os fisiocratas; nem o comércio, como defendiam os mer-
dades seriam provocadas pelos próprios homens, isto é, pela so- cantilistas; o trabalho era a fonte da riqueza. O trabalho livre, sem
ciedade. Para corrigi-las, achavam necessário mudar a sociedade, intervenções, guiado espontaneamente pela natureza.
dando a todos liberdade de expressão e culto, e proteção contra a
escravidão, a injustiça, a opressão e as guerras. Os novos déspotas
O princípio organizador da sociedade deveria ser a busca da  
felicidade; ao governo caberia garantir direitos naturais: a liberda- Muitos príncipes puseram em prática as novas ideias. Sem
de individual e a livre posse de bens; tolerância para a expressão abandonar o poder absoluto, procuraram governar conforme a ra-
de ideias; igualdade perante a lei; justiça com base na punição dos zão e os interesses do povo. Esta aliança de princípios filosóficos
delitos; conforme defendia o jurista milanês Beccaria. A forma po- e poder monárquico deu origem ao regime de governo típico do
lítica ideal variava: seria a monarquia inglesa, segundo Montes- século XVIII, o despotismo esclarecido. Seus representantes mais
destacados foram Frederico II da Prússia; Catarina II da Rússia;
quieu e Voltaire; ou uma república fundada sobre a moralidade e a
José II da Áustria; Pombal, ministro português; e Aranda, ministro
virtude cívica, segundo Rousseau.
da Espanha.
Frederico II (1740-1786), discípulo de Voltaire e indiferente
Principais Filósofos Iluministas à religião, deu liberdade de culto ao povo prussiano. Tornou obri-
  gatório o ensino básico e atraiu os jesuítas, por suas qualidades de
Podemos dividir os pensadores iluministas em dois grupos: educadores, embora quase todos os países estivessem expulsando
os filósofos, que se preocupavam com problemas políticos; e os -os, por suas ligações com o papado. A tortura foi abolida e orga-
economistas, que procuravam uma maneira de aumentar a riqueza nizado novo código de justiça. O rei exigia obediência mas dava
das nações. Os principais filósofos franceses foram Montesquieu, total liberdade de expressão. Estimulou a economia, adotando
Voltaire, Rousseau e Diderot. medidas protecionistas, apesar de contrárias às ideias iluministas.
Montesquieu publicou em 1721 as Cartas Persas, em que ridi- Preservou a ordem: a Prússia permaneceu um Estado feudal, com
cularizava costumes e instituições. Em 1748, publicou O Espírito servos sujeitos à classe dominante, dos proprietários.
das Leis, estudo sobre formas de governo em que destacava a mo- O Estado que mais fez propaganda e menos praticou as no-
narquia inglesa e recomendava, como única maneira de garantir a vas ideias foi a Rússia. Catarina II (1762-1796) atraiu filósofos,
liberdade, a independência dos três poderes: Executivo; Legislati- manteve correspondência com eles, muito prometeu e pouco fez.
vo, Judiciário. A czarina deu liberdade religiosa ao povo e educou as altas classes
Voltaire foi o mais importante. Exilado na Inglaterra, publi- sociais, que se afrancesaram. A situação dos servos se agravou. Os
cou Cartas Inglesas, com ataques ao absolutismo e à intolerância proprietários chegaram a ter direito de condená-los à morte.
e elogios à liberdade existente naquele país. Fixando-se em Fer- José II (1780-1790) foi o déspota esclarecido típico. Aboliu a
ney, França, exerceu grande influência por mais de vinte anos, até servidão na Áustria, deu igualdade a todos perante a lei e os im-
morrer. Discípulos se espalharam pela Europa e divulgaram suas postos, uniformizou a administração do Império, deu liberdade de
ideias, especialmente o anticlericalismo. culto e direito de emprego aos não-católicos.
Rousseau teve origem modesta e vida aventureira. Nascido O Marquês de Pombal, ministro de Dom José I de Portugal,
em Genebra, era contrário ao luxo e à vida mundana. Em Dis- fez importantes reformas. A indústria cresceu, o comércio passou
curso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens (1755), ao controle de companhias que detinham o monopólio nas colô-
defendeu a tese da bondade natural dos homens, pervertidos pela nias, a agricultura foi estimulada; nobreza e clero foram persegui-
civilização. Consagrou toda a sua obra à tese da reforma necessá- dos para fortalecer o poder real.
Aranda também fez reformas na Espanha: liberou o comércio,
ria da sociedade corrompida. Propunha uma vida familiar simples;
estimulou a indústria de luxo e de tecidos, dinamizou a adminis-
no plano político, uma sociedade baseada na justiça, igualdade
tração com a criação dos intendentes, que fortaleceram o poder do
e soberania do povo, como mostra em seu texto mais famoso, O
Rei Carlos III.
Contrato Social. Sua teoria da vontade geral, referida ao povo, foi
fundamental na Revolução Francesa e inspirou Robespierre e ou- Independência
tros líderes.
Diderot organizou a Enciclopédia, publicada entre 1751 e A Independência do Brasil é um dos fatos históricos mais im-
1772, com ajuda do matemático d’ Alembert e da maioria dos pen- portantes de nosso país, pois marca o fim do domínio português
sadores e escritores. Proibida pelo governo por divulgar as novas e a conquista da autonomia política. Muitas tentativas anteriores
ideias, a obra passou a circular clandestinamente. Os economistas ocorreram e muitas pessoas morreram na luta por este ideal. Pode-
pregaram essencialmente a liberdade econômica e se opunham a mos citar o caso mais conhecido: Tiradentes. Foi executado pela
toda e qualquer regulamentação. A natureza deveria dirigir a eco- coroa portuguesa por defender a liberdade de nosso país, durante o
nomia; o Estado só interviria para garantir o livre curso da natu- processo da Inconfidência Mineira.
reza. Eram os fisiocratas, ou partidários da fisiocracia (governo
da natureza). Quesnay afirmava que a atividade verdadeiramente A Família Real no Brasil
produtiva era a agricultura.
Gournay propunha total liberdade para as atividades comer- No início do século XIX, a Europa estava agitada pelas guer-
ciais e industriais, consagrando a frase: ras. Inglaterra e França disputavam a liderança no continente euro-
“Laissez faire, laissez passar”.(Deixe fazer, deixe passar.). peu. Em 1806, Napoleão Bonaparte, imperador da França, decre-

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tou o Bloqueio Continental, proibindo que qualquer país aliado ou As mudanças provocaram o aumento da população na cidade
ocupado pelas forças francesas comercializasse com a Inglaterra. do Rio de Janeiro, que por volta de 1820, somava mais de 100 mil
O objetivo do bloqueio era arruinar a economia inglesa. Quem não habitantes, entre os quais muitos eram estrangeiros – portugueses
obedecesse, seria invadido pelo exército francês. comerciantes ingleses corpos diplomáticos – ou mesmo resultado
Portugal viu-se numa situação delicada. Nessa época, Portu- do deslocamento da população interna que procurava novas opor-
gal era governado pelo príncipe regente D. João, pois sua mãe, a tunidades na capital.
rainha D. Maria I, enlouquecera. D. João não podia cumprir as As construções passaram a seguir os padrões europeus. Novos
ordens de Napoleão e aderir ao Bloqueio Continental, pois tinha elementos foram incorporados ao mobiliário; espelhos, bibelôs,
longa relação comercial com a Inglaterra, por outro lado o governo biombos, papéis de parede, quadros, instrumentos musicais, reló-
português temia o exército francês. gios de parede.
Sem alternativa, Portugal aceitou o Bloqueio, mas, continuou
Com a Abertura dos Portos (1808) e os Tratados de Comércio
comercializando com a Inglaterra. Ao descobrir a trama, Napo-
e Navegação e de Aliança e Amizade (1810) estabelecendo tarifas
leão determinou a invasão de Portugal em novembro de 1807. Sem
condições de resistir à invasão francesa, D. João e toda a corte preferenciais aos produtos ingleses, o comércio cresceu. O porto
portuguesa fugiram para o Brasil, sob a proteção naval da marinha do Rio de Janeiro aumentou seu movimento que passou de 500
inglesa. A Inglaterra ofereceu escolta na travessia do Atlântico, para 1200 embarcações anuais.
mas em troca exigiu a abertura dos portos brasileiros aos navios A oferta de mercadorias e serviços diversificou-se. A Rua do
ingleses. Ouvidor, no centro do Rio, recebeu o cabeleireiro da Corte, costu-
A corte portuguesa partiu às pressas de Lisboa sob as vaias do reiras francesas, lojas elegantes, joalherias e tabacarias. A novida-
povo, em 29 de novembro de 1807. Na comitiva vinha D. João, de mais requintada era os chapéus, luvas, leques, flores artificiais,
sua mãe D. Maria I, a princesa Carlota Joaquina; as crianças D. perfumes e sabonetes.
Miguel, D. Maria Teresa, D. Maria Isabel, D. Maria Assunção, D. Para a elite, a presença da Corte e o número crescente de
Ana de Jesus Maria e D. Pedro, o futuro imperador do Brasil e comerciantes estrangeiros trouxeram familiaridade com novos
mais cerca de 15 mil pessoas entre nobres, militares, religiosos e produtos e padrões de comportamento em moldes europeus.  As
funcionários da Coroa. Trazendo tudo o que era possível carregar; mulheres seguindo o estilo francês; usavam vestidos leves e sem
móveis, objetos de arte, jóias, louças, livros, arquivos e todo o te- armações, com decotes abertos, cintura alta, deixando aparecer
souro real imperial. os sapatos de saltos baixos. Enquanto os homens usavam casa-
Após 54 dias de viagem a esquadra portuguesa chegou ao cas com golas altas enfeitadas por lenços coloridos e gravatas de
porto de Salvador na Bahia, em 22 de janeiro de 1808. Lá foram renda, calções até o joelho e meias. Embora apenas uma pequena
recebidos com festas, onde permaneceram por mais de um mês.
parte da população usufruísse desses luxos. Sem dúvida, a vinda
Seis dias após a chegada D. João cumpriu o seu acordo com os
de D. João deu um grande impulso à cultura no Brasil.
ingleses, abrindo os portos brasileiros às nações amigas, isto é, a
Inglaterra. Eliminando em parte o monopólio comercial português, Em abril de 1808, foi criado o Arquivo Central, que reunia
que obrigava o Brasil a fazer comércio apenas com Portugal. mapas e cartas geográficas do Brasil e projetos de obras públicas.
Mas o destino da Coroa portuguesa era a capital da colônia, o Em maio, D. João criou a Imprensa Régia e, em setembro, surgiu
Rio de Janeiro, onde D. João e sua comitiva desembarcaram em 8 a Gazeta do Rio de Janeiro. Logo vieram livros didáticos, técnicos
de março de 1808 e onde foi instalada a sede do governo. e de poesia. Em janeiro de 1810, foi aberta a Biblioteca Real, com
Na chegada ao Rio de Janeiro, a Corte portuguesa foi rece- 60 mil volumes trazidos de Lisboa.
bida com uma grande festa: o povo aglomerou-se no porto e nas Criaram-se as Escolas de Cirurgia e Academia de Marinha
principais ruas para acompanhar a Família Real em procissão até a (1808), a Aula de Comércio e Academia Militar (1810) e a Aca-
Catedral, onde, após uma missa em ação de graças, o rei concedeu demia Médico-cirúrgica (1813). A ciência também ganhou com a
o primeiro “beija-mão”. criação do Observatório Astronômico (1808), do Jardim Botânico
A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro (1810) e do Laboratório de Química (1818).
provocou uma grande transformação na cidade.  D. João teve que Em 1813, foi inaugurado o Teatro São João (atual João Caeta-
organizar a estrutura administrativa do governo. Nomeou minis- no). Em 1816, a Missão Francesa, composta de pintores, esculto-
tros de Estado, colocaram em funcionamento diversas secretarias res, arquitetos e artesãos, chegaram ao Rio de Janeiro para criar a
públicas, instalou tribunais de justiça e criou o Banco do Brasil Imperial Academia e Escola de Belas-Artes. Em 1820, foi a vez da
(1808). Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura-civil.
Era preciso acomodar os novos habitantes e tornar a cidade
A presença de artistas estrangeiros, botânicos, zoólogos, mé-
digna de ser a nova sede do Império português. O vice-rei do Bra-
dicos, etnólogos, geógrafos e muitos outros que fizeram viagens
sil, D. Marcos de Noronha e Brito cedeu sua residência, O Palácio
dos Governadores, no Lago do Paço, que passou a ser chamado e expedições regulares ao Brasil, trouxeram informações sobre o
Paço Real, para o rei e sua família e exigiu que os moradores das que acontecia pelo mundo e também tornou este país conhecido,
melhores casas da cidade fizessem o mesmo. Duas mil residên- por meio dos livros e artigos em jornais e revistas que aqueles
cias foram requisitadas, pregando-se nas portas o “P.R.”, que sig- profissionais publicavam. Foi uma mudança profunda, mas que
nificava “Príncipe Regente”, mas que o povo logo traduziu como não alterou os costumes da grande maioria da população carioca,
“Ponha-se na Rua”. Prédios públicos, quartéis, igrejas e conventos composta de escravos e trabalhadores assalariados.
também foram ocupados. A cidade passou por uma reforma geral: Com a vitória das nações europeias contra Napoleão em 1815,
limpeza de ruas, pinturas nas fachadas dos prédios e apreensão de ficou decidido que os reis de países invadidos, pela França deve-
animais. riam voltar a ocupar seus tronos.

Didatismo e Conhecimento 9
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D. João e sua corte não queriam retornar ao empobrecido Os líderes do movimento foram presos e enviados para o Rio
Portugal. Então o Brasil foi elevado à categoria de Reino Unido de Janeiro responderam pelo crime de inconfidência (falta de fi-
de Portugal e Algarves (uma região ao sul de Portugal). O Brasil delidade ao rei), pelo qual foram condenados. Todos negaram sua
deixava de ser Colônia de Portugal, adquiria autonomia adminis- participação no movimento, menos Joaquim José da Silva Xavier,
trativa. o alferes conhecido como Tiradentes, que assumiu a responsabili-
Em 1820, houve em Portugal a Revolução Liberal do Porto, dade de liderar o movimento. Após decreto de D. Maria I é revo-
terminando com o Absolutismo e iniciando a Monarquia Constitu- gada a pena de morte dos inconfidentes, exceto a de Tiradentes.
cional. D. João deixava de ser monarca absoluto e passava a seguir Algum tem a pena transformada em prisão temporária, outros em
a Constituição do Reino. Dessa forma, a Assembleia Portuguesa prisão perpétua. Cláudio Manuel da Costa morreu na prisão, onde
exigia o retorno do monarca. O novo governo português desejava provavelmente foi assassinado.
recolonizar o Brasil, retirando sua autonomia econômica. O exemplo parece que não assustou a todos, já que nove anos
Em 26 de abril de 1821, D. João VI cedendo às pressões, volta mais tarde iniciava-se na Bahia a Revolta dos Alfaiates, também
a Portugal, deixando seu filho D.Pedro como príncipe regente do chamada de Conjuração Baiana. A influência da loja maçônica Ca-
Brasil. valeiros da Luz deu um sentido mais intelectual ao movimento
Se o que define a condição de colônia é o monopólio impos- que contou também com uma ativa participação de camadas po-
to pela metrópole, em 1808 com a abertura dos portos, o Brasil pulares como os alfaiates João de Deus e Manuel dos Santos Lira.
deixava de ser colônia. O monopólio não mais existia. Rompia-se Eram pretos, mestiços, índios, pobres em geral, além de soldados
o pacto colonial e atendia-se assim, os interesses da elite agrária e religiosos. Justamente por possuir uma composição social mais
brasileira, acentuando as relações com a Inglaterra, em detrimento abrangente com participação popular, a revolta pretendia uma re-
das tradicionais relações com Portugal. pública acompanhada da abolição da escravatura. Controlado pelo
Esse episódio, que inaugura a política de D. João VI no Brasil, governo, as lideranças populares do movimento foram executadas
é considerado a primeira medida formal em direção ao “sete de por enforcamento, enquanto que os intelectuais foram absolvidos.
setembro”. Outros movimentos de emancipação também foram controla-
Há muito Portugal dependia economicamente da Inglaterra. dos, como a Conjuração do Rio de Janeiro em 1794, a Conspiração
Essa dependência acentua-se com a vinda de D. João VI ao Brasil, dos Suaçunas em Pernambuco (1801) e a Revolução Pernambu-
que gradualmente deixava de ser colônia de Portugal, para entrar cana de 1817. Esta última, já na época que D. João VI havia se
na esfera do domínio britânico. Para Inglaterra industrializada, a estabelecido no Brasil. Apesar de contidas todas essas rebeliões
independência da América Latina era uma promissora oportunida- foram determinantes para o agravamento da crise do colonialismo
de de mercados, tanto fornecedores, como consumidores. no Brasil, já que trouxeram pela primeira vez os ideais iluministas
Com a assinatura dos Tratados de 1810 (Comércio e Nave- e os objetivos republicanos.
gação e Aliança e Amizade), Portugal perdeu definitivamente o
monopólio do comércio brasileiro e o Brasil caiu diretamente na
O Processo de Independência do Brasil
dependência do capitalismo inglês.
Em 1820, a burguesia mercantil portuguesa colocou fim ao
Em primeiro lugar, entender que 07 de setembro de 1822 não
absolutismo em Portugal com a Revolução do Porto. Implantou-
foi um ato isolado do príncipe D. Pedro, e sim um acontecimento
se uma monarquia constitucional, o que deu um caráter liberal ao
movimento. Mas, ao mesmo tempo, por tratar-se de uma burguesia que integra o processo de crise do Antigo Sistema Colonial, inicia-
mercantil que tomava o poder, essa revolução assume uma postura da com as revoltas de emancipação no final do século XVIII. Ain-
recolonizadora sobre o Brasil. D. João VI retorna para Portugal e da é muito comum a memória do estudante associar a independên-
seu filho aproxima-se ainda mais da aristocracia rural brasileira, cia do Brasil ao quadro de Pedro Américo, “O Grito do Ipiranga”,
que se sentia duplamente ameaçada em seus interesses: a intenção que personifica o acontecimento na figura de D. Pedro.
recolonizadora de Portugal e as guerras de independência na Amé- Em segundo lugar, perceber que a independência do Brasil,
rica Espanhola, responsáveis pela divisão da região em repúblicas. restringiu-se à esfera política, não alterando em nada a realidade
sócio-econômica, que se manteve com as mesmas características
Os Movimentos de Emancipação do período colonial.
Desde as últimas décadas do século XVIII assinala-se na
A Inconfidência Mineira destacou-se por ter sido o primeiro América Latina a crise do Antigo Sistema Colonial. No Brasil,
movimento social republicano-emancipacionista de nossa história. essa crise foi marcada pelas rebeliões de emancipação, destacan-
Eis aí sua importância maior, já que em outros aspectos ficou mui- do-se a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana. Foram os
to a desejar. Sua composição social por exemplo, marginalizava as primeiros movimentos sociais da história do Brasil a questionar o
camadas mais populares, configurando-se num movimento elitista pacto colonial e assumir um caráter republicano. Era apenas o iní-
estendendo-se no máximo às camadas médias da sociedade, como cio do processo de independência política do Brasil, que se estende
intelectuais, militares, e religiosos. Outros pontos que contribuíram até 1822 com o “sete de setembro”. Esta situação de crise do anti-
para debilitar o movimento foram a precária articulação militar e a go sistema colonial era na verdade, parte integrante da decadência
postura regionalista, ou seja, reivindicavam a emancipação e a re- do Antigo Regime europeu, debilitado pela Revolução Industrial
pública para o Brasil e na prática preocupavam-se com problemas na Inglaterra e principalmente pela difusão do liberalismo econô-
locais de Minas Gerais. O mais grave contudo foi a ausência de mico e dos princípios iluministas, que juntos formarão a base ideo-
uma postura clara que defendesse a abolição da escravatura. O des- lógica para a Independência dos Estados Unidos (1776) e para a
fecho do movimento foi assinalado quando o governador Visconde Revolução Francesa (1789). Trata-se de um dos mais importantes
de Barbacena suspendeu a derrama, seria o pretexto para deflagar a movimentos de transição na História, assinalado pela passagem da
revolta, e esvaziou a conspiração, iniciando prisões acompanhadas idade moderna para a contemporânea, representada pela transição
de uma verdadeira devassa. do capitalismo comercial para o industrial.

Didatismo e Conhecimento 10
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A aristocracia rural brasileira encaminhou a independência do Os que morrem achavam que valia a pena sacrificar-se para
Brasil com o cuidado de não afetar seus privilégios, representados melhorar a situação do povo brasileiro. Queriam uma vida melhor,
pelo latifúndio e escravismo. Dessa forma, a independência foi im- não só para eles, mas para todos os brasileiros.
posta verticalmente, com a preocupação em manter a unidade na- Mas a Independência do Brasil só aconteceu em 1822. E não
cional e conciliar as divergências existentes dentro da própria elite foi uma separação total, como aconteceu em outros países da Amé-
rural, afastando os setores mais baixos da sociedade representados rica que, ao ficarem independentes, tornaram-se repúblicas gover-
por escravos e trabalhadores pobres em geral. nadas por pessoas nascidas no país libertado. O Brasil independen-
Com a volta de D. João VI para Portugal e as exigências para te continuou sendo um reino, e seu primeiro imperador foi Dom
que também o príncipe regente voltasse, a aristocracia rural passa Pedro I, que era filho do rei de Portugal.
a viver sob um difícil dilema: conter a recolonização e ao mesmo Historicamente, o processo da Independência do Brasil ocu-
tempo evitar que a ruptura com Portugal assumisse o caráter revo- pou as três primeiras décadas do século XIX e foi marcado pela
lucionário-republicano que marcava a independência da América vinda da família real ao Brasil em 1808 e pelas medidas tomadas
Espanhola, o que evidentemente ameaçaria seus privilégios. no período de Dom João. A vinda da família real fez a autonomia
A maçonaria (reaberta no Rio de Janeiro com a loja maçônica brasileira ter mais o aspecto de transição.
Comércio e Artes) e a imprensa uniram suas forças contra a postu- O processo da independência foi bastante acelerado pelo que
ra recolonizadora das Cortes. ocorreu em Portugal em 1820. A Revolução do Porto comandada
D. Pedro é sondado para ficar no Brasil, pois sua partida po- pela burguesia comercial da cidade do Porto, que foi um movi-
deria representar o esfacelamento do país. Era preciso ganhar o mento que tinha características liberais para Portugal, mas para o
apoio de D. Pedro, em torno do qual se concretizariam os inte- Brasil, significava uma recolonização.
resses da aristocracia rural brasileira. Um abaixo assinado de oito
mil assinaturas foi levado por José Clemente Pereira (presidente As mudanças econômicas no Brasil: Depois da chegada da
do Senado) a D. Pedro em 9 de janeiro de 1822, solicitando sua família real duas medidas de Dom João deram rápido impulso à
permanência no Brasil. Cedendo às pressões, D. Pedro decidiu-se: economia brasileira: a abertura dos portos e a permissão de montar
“Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou indústrias que haviam sido proibidas por Portugal anteriormente.
pronto. Diga ao povo que fico”. Abriram-se fábricas, manufaturas de tecidos começaram a
É claro que D. Pedro decidiu ficar bem menos pelo povo e bem surgir, mas não progrediram por causa da concorrência dos tecidos
mais pela aristocracia, que o apoiaria como imperador em troca da ingleses. Bom resultado teve, porém, a produção de ferro com a
futura independência não alterar a realidade sócio-econômica co- criação da Usina de Ipanema nas províncias de São Paulo e Minas
lonial. Contudo, o Dia do fico era mais um passo para o rompimen- Gerais.
to definitivo com Portugal. Graças a homens como José Bonifácio Outras medidas de Dom João estimularam as atividades eco-
de Andrada e Silva (patriarca da independência), Gonçalves Ledo, nômicas do Brasil como: Construção de estradas; Os portos foram
José Clemente Pereira e outros, o movimento de independência
melhorados. Foram introduzidas no país novas espécies vegetais,
adquiriu um ritmo surpreendente com o cumpra-se, onde as leis
como o chá; Promoveu a vinda de colonos europeus; A produção
portuguesas seriam obedecidas somente com o aval de D. Pedro,
agrícola voltou a crescer. O açúcar e o algodão passaram a ser pri-
que acabou aceitando o título de Defensor Perpétuo do Brasil (13
meiro e segundo lugar nas exportações, no início do século XIX.
de maio de 1822), oferecido pela maçonaria e pelo Senado. Em 3
Neste período surgiu o café, novo produto, que logo passou do
de junho foi convocada uma Assembleia Geral Constituinte e Le-
gislativa e em primeiro de agosto considerou-se inimigas as tropas terceiro lugar para o primeiro lugar nas exportações brasileiras.
portuguesas que tentassem desembarcar no Brasil.
São Paulo vivia um clima de instabilidade para os irmãos An- Medidas de incentivo à Cultura: Além das mudanças co-
dradas, pois Martim Francisco (vice-presidente da Junta Gover- merciais, a chegada da família real ao Brasil também causou um
nativa de São Paulo) foi forçado a demitir-se, sendo expulso da reboliço cultural e educacional. Nessa época, foram criadas es-
província. Em Portugal, a reação tornava-se radical, com ameaça colas como a Academia Real Militar, a Academia da Marinha, a
de envio de tropas, caso o príncipe não retornasse imediatamente. Escola de Comércio, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios,
José Bonifácio transmitiu a decisão portuguesa ao príncipe, a Academia de Belas-Artes e dois Colégios de Medicina e Cirur-
juntamente com carta sua e de D. Maria Leopoldina, que ficara no gia, um no Rio de Janeiro e outro em Salvador. Foram fundados o
Rio de Janeiro como regente. No dia sete de setembro de 1822 D. Museu Nacional, o Observatório Astronômico e a Biblioteca Real,
Pedro que se encontrava às margens do riacho Ipiranga, em São cujo acervo era composto por muitos livros e documentos trazidos
Paulo, após a leitura das cartas que chegaram a suas mãos, bra- de Portugal. Também foi inaugurado o Real Teatro de São João e o
dou: “É tempo... Independência ou morte... Estamos separados de Jardim Botânico. Uma atitude muito importante de dom João foi a
Portugal”. Chegando ao Rio de Janeiro (14 de setembro de 1822), criação da Imprensa Régia. Ela editou obras de vários escritores e
D. Pedro foi aclamado Imperador Constitucional do Brasil. Era traduções de obras científicas. Foi um período de grande progresso
o início do Império, embora a coroação apenas se realizasse em e desenvolvimento.
primeiro de dezembro de 1822.
A independência não marcou nenhuma ruptura com o proces- As Guerras pela Independência
so de nossa história colonial. As bases sócio-econômicas (trabalho
escravo, monocultura e latifúndio), que representavam a manu- A Independência havia sido proclamada, mas nem todas as
tenção dos privilégios aristocráticos, permaneceram inalteradas. províncias do Brasil puderam reconhecer o governo do Rio de Ja-
O “sete de setembro” foi apenas a consolidação de uma ruptura neiro e unir-se ao Império sem pegar em armas. As Províncias da
política, que já começara 14 anos atrás, com a abertura dos por- Bahia, do Maranhão, do Piauí, do Grão-Pará e, por último, Cis-
tos. Ocorreram muitas revoltas pela libertação do Brasil, nas quais platina, dominadas ainda por tropas de Portugal, tiveram que lutar
muitos brasileiros perderam a vida. pela sua liberdade, até fins de 1823.

Didatismo e Conhecimento 11
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Na Bahia, a expulsão dos portugueses só foi possível quando ramente pelos jesuítas. Política e ideologicamente foi uma aliança
Dom Pedro I enviou para lá uma forte esquadra comandada pelo entre o Absolutismo ibérico e a Contra-Reforma religiosa, preo-
almirante Cochrane, para bloquear Salvador. Sitiados por terra e cupada com a posse do território recém-descoberto e com a con-
por mar, as tropas portuguesas tiveram finalmente que se render versão dos nativos ao cristianismo. Naturalmente que transcorrido
em 02 de julho de 1823. mais de 450 anos do lançamento dos seus fundamentos, o Estado
Após a vitória na Bahia, a esquadra de Cochrane, seguindo brasileiro assumiu formas diversas, sendo gradativamente nacio-
para o norte, bloqueou a cidade de São Luís. Esse bloqueio apres- nalizado e colocado a serviço do desenvolvimento econômico e
sou a derrota dos portugueses não só no Maranhão, mas também social. A transformação seguinte será a do Estado Imperial bra-
no Piauí. sileiro, legalizada depois da proclamação da independência, em
Do Maranhão um dos navios de Cochrane continuou até o ex- 1822, pela Constituição outorgada de 1824. D.Pedro I dedica-se
tremo norte, e, ameaçando a cidade de Belém, facilitou a rendição a obter a legitimidade, contestada por oficiais lusitanos (general
dos portugueses no Grão-Pará.
Madeira) e por líderes populares do Nordeste (Frei Caneca). A
No extremo Sul, a cidade de Montevidéu, sitiada por terra e
Carta determinou, além dos poderes tradicionais, executivo-le-
bloqueada por uma esquadra brasileira no rio da Prata teve de se
entregar. gislativo-judiciário, a implantação de um poder moderador (que
Com o reconhecimento da Independência pela Cisplatina de fato tornou-se uma sobreposição da autoridade do imperador).
completou-se a união de todas as províncias, sob o governo de Os objetivos gerais do Estado Imperial, que se estendeu até 1889,
Dom Pedro I, firmando assim o Império Brasileiro. podem ser determinados pela: a) consolidação da autoridade im-
perial sobre todo o território brasileiro; b) manutenção do regime
O Reconhecimento da Independência escravista; c) preservação da paz interna e do reconhecimento in-
ternacional.
Unidas todas as províncias e firmado dentro do território bra-
sileiro o Império, era necessário obter o reconhecimento da Inde- Constituição da Mandioca (1824): figurando um passo
pendência por parte das nações estrangeiras. fundamental para a consolidação da independência nacional, a
A primeira nação estrangeira a reconhecer a Independência do formulação de uma carta constituinte tornou-se uma das grandes
Brasil foram os Estados Unidos em maio de 1824. Não houve difi- questões do Primeiro Reinado. Mesmo antes de dar fim aos laços
culdades, pois os norte-americanos eram a favor da independência coloniais, Dom Pedro I já havia articulado, em 1822, a formação
de todas as colônias da América. (Independência dos EUA) de uma Assembleia Constituinte imbuída da missão de discutir as
O reconhecimento por parte das nações europeia foi mais di- leis máximas da nação. Essa primeira assembleia convocou oitenta
fícil porque os principais países da Europa, entre eles Portugal, deputados de catorze províncias. Uma das mais delicadas questões
haviam-se comprometido, no Congresso de Viena em 1815, a de-
que envolvia as leis elaboradas pela Assembleia, fazia referência
fender o absolutismo, o colonialismo e a combater as ideias de
à definição dos poderes de Dom Pedro I. Em pouco tempo, os
liberdade.
Entre as primeiras nações europeias apenas uma foi favorável constituintes formaram dois grupos políticos visíveis: um liberal,
ao reconhecimento do Brasil independente: a Inglaterra, que não defendendo a limitação dos poderes imperiais e dando maior au-
queria nem romper com seu antigo aliado, Portugal, nem prejudi- tonomia às províncias; e um conservador que apoiava um regime
car seu comércio com o Brasil. Foi graças à sua intervenção e às político centralizado nas mãos de Dom Pedro. A partir de então, a
demoradas conversações mantida junto aos governos de Lisboa e relação entre o rei e os constituintes não seria nada tranquila.
do Rio de Janeiro que Dom João VI acabou aceitando a Indepen- O primeiro anteprojeto da Constituição tendia a estabelecer
dência do Brasil, fixando-se as bases do reconhecimento. limites ao poder de ação política do imperador. No entanto, essa
A 29 de agosto de 1825 Portugal, através do embaixador in- medida liberal, convivia com uma orientação elitista que defendia
glês que o representava, assinou o Tratado luso-brasileiro de reco- a criação de um sistema eleitoral fundado no voto censitário. Ou-
nhecimento. O Brasil, entretanto, teve que pagar a Portugal uma tro artigo desse primeiro ensaio da Constituição estabelecia que
indenização de dois milhões de libra esterlinas, e Dom João VI os deputados não pudessem ser punidos pelo imperador. Mediante
obteve ainda o direito de usar o título de Imperador do Brasil, que tantas restrições, Dom Pedro I resolveu dissolver a primeira As-
não lhe dava, porém qualquer direito sobre a antiga colônia. sembleia Constituinte do Brasil.
A seguir as demais nações europeias, uma a uma, reconhece- Logo em seguida, o imperador resolveu nomear um Conselho
ram oficialmente a Independência e o Império do Brasil. de Estado composto por dez membros portugueses. Essa ação po-
Em 1826 estava firmada a posição do Brasil no cenário in-
lítica sinalizava o predomínio da orientação absolutista e a aproxi-
ternacional. Enquanto o Brasil era colônia de Portugal, o Brasil
mação do nosso governante junto os portugueses. Dessa maneira,
enfrentou com bravura e venceu os piratas, os franceses e os ho-
landeses. Ocorreram muitas lutas internas e muitos perderam a sua no dia 25 de março de 1824, Dom Pedro I, sem consultar nenhum
vida para tentar tornar seu país livre e independente de Portugal. outro poder, outorgou a primeira constituição brasileira. Contradi-
Essa luta durou mais de trezentos anos. O processo da Indepen- toriamente, o texto constitucional abrigava características de orien-
dência foi muito longo e por ironia do destino foi um português tação liberal e autoritária. O governo foi dividido em três poderes:
que a proclamou. Legislativo, Executivo e Judiciário. Através do Poder Moderador,
exclusivamente exercido por Dom Pedro I, o rei poderia anular
O Estado Brasileiro: o Estado no Brasil resultou de uma qualquer decisão tomada pelos outros poderes. As províncias não
enorme operação de conquista e ocupação de parte do Novo Mun- possuíam nenhum tipo de autonomia política, sendo o imperador
do, empreendimento no qual se associaram a Coroa portuguesa, responsável por nomear o presidente e o Conselho Geral de cada
através dos seus agentes, e a Igreja Católica, representada primei- uma das províncias.

Didatismo e Conhecimento 12
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O Poder Legislativo era dividido em duas câmaras onde se clamores por justiça social que ganhavam espaço no continente
agrupavam o Senado e a Câmara de Deputados. O sistema eleitoral foram brutalmente abafados nessa nova conjuntura. Ainda hoje, as
era organizado de forma indireta. Somente a população masculina, desigualdades sociais, o atraso econômico e a corrupção política
maior de 25 anos e portadora de uma renda mínima de 100 mil integram a realidade de muitos desses países que sofreram com a
-réis anuais teriam direito ao voto. Esses primeiros votavam em ditadura.
um corpo eleitoral incumbido de votar nos candidatos a senador e
deputado. O cargo senatorial era vitalício e só poderia ser pleiteado Ditadura na Argentina
por indivíduos com renda superior a 800 mil-réis.
A Igreja Católica foi apontada como religião oficial do Esta- A Ditadura na Argentina começou com um golpe de Esta-
do. Em contrapartida, as demais confissões religiosas poderiam ser do dado por militares que assumiram o poder do país. Durante
praticadas em território nacional. Os membros do clero católico sua vigência, foi um dos governos mais autoritários da América
estavam diretamente subordinados ao Estado, sendo esse incumbi- Latina no século XX.
do de nomear os membros da Igreja e fornecer a devida remunera- Na segunda metade do século XX surgiram vários governos
ção aos integrantes dela. ditatoriais na América Latina. Essas formas de governo normal-
Dessa maneira, a constituição de 1824 perfilou a criação de mente eram comandadas por militares que assumiam o controle
um Estado de natureza autoritária em meio a instituições de apa- do país, geralmente através de golpes de Estado. A conjuntura da
rência liberal. A contradição do período acabou excluindo a grande época no mundo era de Guerra Fria, então esses defensores da ex-
maioria da população ao direito de participação política e, logo em trema direita governavam com o discurso de combater os males do
seguida, motivando rebeliões de natureza separatista. Com isso, comunismo em seus respectivos países.
a primeira constituição apoiou um governo centralizado que, por A Argentina passou por situação semelhante a do Brasil em
vezes, ameaçou a unidade territorial e política do Brasil. relação a existência de um governo militar ditatorial. ADitadura
na Argentina teve início com um golpe militar no ano de 1966. O
Ditaduras políticas na América Latina presidente Arturo Illia, que exercia o cargo legalmente dentro da
constituição, foi deposto no dia 28 de junho daquele ano e a partir
O processo de independência das nações latino-americanas, ao de então se sucedeu uma série de governos de militares até 1973.
Embora o tempo de vigência da Ditadura na Argentina tenha
longo do século XIX, deu origem a uma série de Estados indepen-
sido de apenas sete anos, bem menos do que os 21 anos de ditadura
dentes em sua maioria influenciados pelo ideário iluminista. No en-
militar no Brasil, foi tempo suficiente para as várias atrocidades
tanto, a obtenção dessa soberania política não foi capaz de dar fim à
cometidas pelos governantes autoritários.
dependência econômica que submetia tais países aos interesses das
Os promovedores da Ditadura na Argentina, em semelhança
grandes potências econômicas da época. Ao mesmo tempo, a conso-
ao Brasil, a determinavam como Revolução Argentina. Logo após
lidação da democracia ainda era prejudicada pela ação de governos
a tomada de poder, entrou em vigor no país o Estatuto da Revolu-
tomados por uma elite conservadora e entreguista.
ção Argentina que legalizou as atividades dos militares. O intuito
No século XX, a desigualdade social e a exclusão econômica dos golpistas era de permanecerem no poder por tempo indeter-
ainda eram questões que permaneciam pendentes nas várias na- minado, enquanto fosse necessário para sanar todos os problemas
ções latino-americanas. Contudo, a ascensão de forças reformistas argentinos. A nova ‘constituição’ proibia a atividade dos partidos
e nacionalistas passou a se contrapor à arcaica hegemonia caudi- políticos e cancelava quase todos os direitos civis, sociais e políti-
lhista das elites. A insistência em manter as classes populares ex- cos por conta de um quase constante Estado de Sítio. Era a derro-
cluídas do jogo político e, ao mesmo tempo, preservar a economia cada da cidadania.
nacional atrelada aos interesses dos grandes centros capitalistas Ao longo do período de governo militar, três indivíduos ocu-
começou a sofrer seus primeiros abalos. param o poder: o general Juan Carlos Onganía, o generalRoberto
Após a Segunda Guerra Mundial, a instalação da ordem bipo- Marcelo Levingston e o general Alejandro Agustín Lanusse.
lar e o sucesso do processo revolucionário cubano inspiraram di- Juan Carlos Onganía governou de 1966 a 1970 e entregou o
versos movimentos de transformação política no continente ame- poder debilitado por conta de protestos. Em seu lugar, a Junta de
ricano. Em contrapartida, os Estados Unidos – nação que tomava Comandantes em Chefe das forças armadas assumiram o governo
a dianteira do bloco capitalista – preocupava-se com a deflagração do país e decidiram pela indicação do general Roberto Marcelo
de novas agitações políticas que viessem a abalar a hegemonia po- Levingston para a presidência. Levingston era um desconheci-
lítica, econômica e ideológica historicamente reforçada nos com- do militar e governou a Argentina até 1971 pela incapacidade de
balidos Estados latino-americanos. controlar a situação política, econômica e social do país. Em seu
Nesse contexto, ao longo das décadas de 1960 e 1970, os lugar entrou o homem forte da ditadura, o general Alejandro Au-
diversos movimentos de transformação que surgiram em nações gustín Lanusse. Este governou entre 1971 e 1973, sua gestão que
americanas foram atacados pelo interesse das elites nacionais. Para foi empenhada em obras de infra-estrutura nacional era vista com
tanto, buscavam o respaldo norte-americano para que pudessem desgosto da população.
dar fim aos movimentos revolucionários que ameaçavam os inte- As crescentes manifestações populares causaram as eleições
resses da burguesia industrial responsável por liderar essas ações para novo presidente na Argentina em 1973. A população que-
golpistas. Com isso, a ingerência política dos EUA se tornou agen- ria Perón no governo do país, mas o candidato do povo foi barrado
te fundamental nesse terrível capítulo da história americana. pelo então presidente militar que alterou as leis eleitorais da cons-
A perseguição política, a tortura e a censura às liberdades in- tituição de forma que barrasse sua candidatura. Impossibilitado
dividuais foram integralmente incorporadas a esses governos au- de ser eleito, Perón e o povo passaram a defender a candidatura
toritários que se estabeleceram pelo uso da força. Dessa forma, os de Hector José Cámpora, que saiu vitorioso no pleito.

Didatismo e Conhecimento 13
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O período da Ditadura Militar na Argentina foi cruel e san- quando liderou o golpe militar que terminou com o suicídio do
grento, a estimativa é de que aproximadamente 30 mil argentinos presidente socialista, Salvador Allende, no Palácio de La Moneda.
foram sequestrados pelos militares. Os opositores que conseguiam Assim iniciou-se um terrível regime de repressão contra o povo
se salvar fugiam do país, o que representa aproximadamente 2,5 chileno, que durou mais de uma década.
milhões de argentinos. Os militares alegam que mataram “apenas” A justificativa desse, que foi um dos golpes de Estado mais
oito mil civis, sendo que métodos tenebrosos de torturas e assas- sangrentos da América Latina, foi a de impedir a nacionalização
sinatos foram utilizados pelos representantes do poder. O governo dos bancos e das minas de cobre.
autoritário deixou marcas na Argentina mesmo após a ditadura, O Chile deixava de ser a sociedade liberal que era desde 1930.
com a democracia poucos presidentes conseguiram concluir seus Tornou-se palco de uma repressão criminosa, torturas e assassi-
mandatos por causa da grande instabilidade econômica e social.
natos. Cerca de trinta mil chilenos foram mortos e mais de cem
Ditadura Militar na Bolívia mil foram presos sem julgamento. Foi o reinado do terror. Quem
se opôs à junta de Pinochet foi perseguido e eliminado. O Estádio
Na Guerra do Pacífico (1879/1884), a Bolívia perde para o Nacional de Santiago era a última parada para milhares de vítimas.
Chile seu acesso ao oceano Pacífico. Em 1903 encerra o conflito Mais de vinte e dois mil estudantes foram expulsos das uni-
com seringueiros brasileiros ao vender ao Brasil o atual estado do versidades. Mais de cento e cinquenta mil chilenos foram para o
Acre. A descoberta de petróleo no sudeste provoca a Guerra do exílio.
Chaco (1932-1935), e a Bolívia perde o território para o Paraguai. A meta de Pinochet era juntar uma economia de livre iniciati-
Em 1951, Víctor Paz Estenssoro é eleito presidente. Os militares va com um Estado autoritário. A partir disso, nem as ideias podiam
impedem sua posse, mas ele estabelece o poder civil em 1952, circular livremente.
apoiado em uma rebelião popular. A reforma agrária e a nacio- Com outros ditadores do Cone Sul, em novembro de 1975,
nalização das minas provocam boicote internacional ao estanho organizou a “Operação Condor” para eliminar os opositores além
boliviano. Um golpe militar em 1964 leva à Presidência o general das fronteiras de seus respectivos países.
René Barrientos.
“No Chile não há uma folha que se mova sem que eu saiba”,
 Após a morte de Barrientos, em 1969, o país mergulha na
instabilidade. Em 1971, o general Hugo Bánzer Suárez assume o foi uma de suas declarações mais famosas, quando se confirmou
governo, suspende as eleições e bane os sindicatos e os partidos na chefia da ditadura mais prolongada que o Chile enfrentou em
políticos. Sua renúncia, em 1978, abre novo período de golpes. sua história republicana.
Em 1980, Hernán Siles Zuazo, de centro-esquerda, elege-se presi- Na época, ele não poderia imaginar os problemas que o es-
dente, mas um golpe instala no poder o general Luis García Meza. peravam a partir de 16 de outubro de 1998, quando foi detido em
Acusado de ligações com o narcotráfico, Meza é deposto em 1981. Londres para ficar exposto, durante 503 dias, perante a comuni-
Em 1982, os generais entregam o poder a Siles Zuazo. dade internacional como a encarnação das piores violações dos
direitos humanos.
Ditaduta no Chile Os chilenos perderam não só seus direitos, mas também os
direitos adquiridos com as reformas de Allende: liberdade política;
Nos anos 60, duas correntes políticas dividiam o Chile:  liberdade de expressão; liberdade de imprensa; programas sociais
para a infância; direito à educação universitária; reforma agrária;
1. a frente popular, socialista e democrata, e 
sindicatos; organizações de serviço social; e fábricas e minas, que
2. as forças imperialistas internas e externas. 
foram devolvidas aos monopólios chilenos e estrangeiros.
A batalha de ideias atingiu seu auge no final daquela década E Pinochet, que justificou o golpe contra Allende apontando
e, em 1970, o socialista Salvador Allende chegou à presidência. a nacionalização das minas de cobre, empreendeu essa própria na-
cionalização quando sobiu ao poder.
Allende foi o primeiro presidente de orientação marxista elei- Durante seu governo Pinochet fechou o Parlamento, aboliu os
to no Chile. Seu governo bateu de frente com os interesses dos partidos políticos e a Central Unitária de Trabalhadores (CUT) e
Estados Unidos e das oligarquias de seu país. Essa insatisfação instaurou a censura de imprensa.
instigou as forças armadas chilenas a prepararem um golpe de es-
tado em agosto de 1973, liderados pelo vice-almirante José Merino As Torturas
e o general Gustavo Leigh.
Ainda em agosto, o comandante geral das forças armadas, Reclusão e tortura constituíram uma prática institucional do
Carlos Prats, renunciou ao seu posto após manifestações de repú-
Estado”, afirmou, às lágrimas, o presidente do Chile, Ricardo La-
dio das esposas dos generais. Para o seu lugar, indicou o general
Augusto Pinochet, por considerá-lo um militar leal e apolítico. gos, ao receber, no dia 10 de novembro de 2004, o Relatório da Co-
Mas, com o desenrolar do golpe (iniciado pela marinha), o general missão Nacional sobre prisão política e tortura, por ele nomeada,
que deveria reprimi-lo passou a tomar parte ativa, aderindo aos um ano antes, para investigar as violações dos direitos humanos
comandantes rebelados. Pinochet chefiou a junta militar que depôs durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990). Pre-
Allende e anunciou-se novo presidente. sidida pelo bispo Sergio Valech, a Comissão trabalhou com afinco
e, em um ano apenas, recolheu depoimentos de 35.000 vítimas da
Pinochet Liderou Uma Ditadura Violenta Por 17 Anos No repressão do regime militar entre as mais de 100.000. Organismos
Chile pela defesa dos direitos humanos falam do dobro.
O Relatório divide o período estudado em três fases: na pri-
A figura de Augusto Pinochet era desconhecida para os 15 mi- meira, durante os meses que se seguiram imediatamente ao golpe
lhões de chilenos até a manhã daquele 11 de setembro de 1973, (1973), a repressão foi muito pesada e golpeou sobretudo jovens

Didatismo e Conhecimento 14
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ligados ao partido de Salvador Allende, Unidad Popular, e às orga- Desde 27 de novembro, o ex-ditador cumpria prisão domici-
nizações sociais; na segunda (1974-78), enquanto a oposição po- liar no âmbito de um processo por dois dos desaparecidos deixados
lítica se reorganizava, a violência tornou-se mais seletiva e esteve pela “Caravana da Morte”, uma comitiva militar que percorreu o
sobretudo nas mãos dos serviços secretos, a Dirección de Inteli- Chile no início da ditadura.
gencia Nacional (DINA), de triste memória; na terceira (1978-90) A nova detenção ocorreu um ano depois da primeira, que du-
foi investigada sobretudo a ação da Central Nacional de Informa- rante seis meses também cumpriu em sua residência, quando foi
ciones (CNI), que substituiu a DINA. A tortura era a forma mais submetido a dois julgamentos que ainda estão em andamento.
generalizada de violação dos direitos humanos e era aplicada em Em um deles, foi acusado dos desaparecimentos durante a
todas as prisões. “Operação Colombo”, um plano repressivo executado por agentes
O poder político acobertava a ação e garantia a impunidade a do regime militar para eliminar opositores.
seus executores. Estes consideravam normal o seu trabalho, justi- No outro, o juiz Carlos Cerda estabeleceu a responsabilida-
ficado pela acusação de subversão, de comunismo, contra as víti- de de Pinochet em fraude tributária, falsificação de documentos e
mas. A finalidade principal da tortura era destruir a dignidade dos outros crimes vinculados com as contas secretas que manteve em
vitimados. As formas mais frequentes eram açoites prolongados, bancos dos Estados Unidos e de outros países, descobertas pelo
ameaças de morte (por fuzilamento ou asfixia), choques elétricos Senado americano em meados de 2005.
nas partes mais sensíveis do corpo, fome e frio, interrupção do O general enfrentou há seis anos um primeiro julgamento no
sono, exibição da própria nudez e humilhações corporais, estupros Chile por 75 assassinatos e sequestros executados pela “Caravana
de homens e mulheres, presenciar sessões de tortura e de estupros, da Morte”, mas a Suprema Corte encerrou o processo sem sanções
inclusive de familiares, forçar a comer os próprios escrementos e em julho de 2002, ao considerar que o ex-ditador sofria de uma
a beber a própria urina. “demência moderada” que o impedia de se defender perante os
juízes.
Fim Da Era Pinochet
Ditadura em Cuba – Revolução Cubana
Nos primeiros anos da ditadura, o governo Pinochet conse-
guiu reverter o quadro de crise econômica provocado pelo fracasso Cuba estava sobre o poder dos Estados Unidos, era um lugar
da política socializante de Salvador Allende. Algumas das medidas com cassinos e bordéis frequentados pela máfia e pelos fuzileiros
tomadas foram a autorização da entrada de capitais estrangeiros e a dos EUA. Há mais de duzentos anos que Cuba tenta a independên-
liberalização da economia, o que ajudou o Chile a crescer bastante cia ou anexação aos EUA. Antes da revolução cubana, a popula-
na década de 70. ção vivia em extrema pobreza, pessoa morriam de doenças que já
Mas o sucesso econômico foi manchado com sangue. A opo- existia cura, milhares eram analfabetos e estavam desempregados. 
sição dos EUA e as crises econômicas internacionais do começo Em 1952 sob a ditadura de Fulgêncio Batista que chegou ao
da década de 80 criaram um quadro de grandes complicações in- poder por um golpe militar. Em 26 de julho de 1953, formou-se
ternas, aumentando o desemprego e o déficit na balança comercial. uma oposição contra Batista e Fidel Castro se destacou atacando
Cresceram, assim, a insatisfação geral e as contestações à ditadura um quartel de Moncada com um grupo de companheiros. Seu ata-
de Pinochet. que fracassou e todos seus companheiros foram encarcerados. Fi-
Os protestos populares e a crise econômica forçaram o gover- del procurou exílio no México. Em 1956 retornou a Cuba para um
no a colocar em discussão a continuidade do regime e do general novo confronto com Batista e novamente fracassou. Refugiou-se
na presidência do país. Em um plebiscito realizado em 1988, o na Serra Maestra, lugar que começaram a planejar um novo ataque. 
povo chileno disse não à reeleição e forçou uma abertura negocia- O ataque de Fidel manteve distante do capitalismo e do co-
da que resultou no fim da ditadura, em 1990, com a posse de um munismo e manteve simpatia por todos os cubanos. É durante esse
presidente eleito. ataque que Che Guevara, médico da guerrilha decide entrar em
Pinochet foi detido e julgado em seu próprio país, em 31 de combate com toda coragem e crueldade com os inimigos. Rapida-
janeiro de 2001 por ordem do juiz Juan Guzmán Tapia, que conse- mente se tornou homem de confiança de Fidel Castro e em pouco
guiu despojá-lo de sua imunidade para submetê-lo a um primeiro tempo torna-se um líder com bastante liderados. 
julgamento por violações dos direitos humanos e enfrentar um pe- Os revolucionários em 1959 ganharam uma batalha e Batista
dido de extradição para a Espanha que não se concretizou. se exilou em São Domingos. A partir deste exílio, Cuba se torna
Liberado por “razões humanitárias”, Pinochet voltou ao Chile um país comunista comandado por Fidel Castro. Em 1962, Kenedy
em 3 de março de 2000, doente, humilhado e sem suas antigas fez uma denúncia contra Cuba, dizia que havia mísseis soviéticos
posições de poder. e então foi ordenado o bloqueio naval de Cuba. A partir de então,
Esta surpreendente detenção em Londres foi o início de seu Fidel Castro passou a trabalhar pela inclusão na América Latina
ocaso, que nos últimos anos o obrigou a se retirar em sua residên- para acabar com o isolamento. 
cia situada ao leste de Santiago ou no sítio de Los Boldos, na costa Por causa do bloqueio econômico, Cuba se encontrava em
central chilena. situação crítica. Em 1965 os revolucionários decidiram: ou ape-
Ali, ao lado da esposa, recebe as visitas periódicas de seus lavam para soluções políticas e econômicas ou pregariam a revo-
cinco filhos, de seus netos e dos poucos partidários que ainda lhe lução novamente. Che Guevara optou pela segunda opção, mas
restam. como a América Latina era seu único apoio e não havendo total
“No dia em que tocarem algum de meus homens se acaba o decisão dos revolucionários, decidiu-se que era suicídio abrandar
Estado de Direito”, advertiu Pinochet pouco antes de deixar o po- a revolução em Cuba. 
der, em 11 de março de 1990, mas no ano 2000, a Suprema Corte Em 1968, os dirigentes cubanos sem outras alternativas diante
o despojou de sua imunidade parlamentar para enfrentar mais de aos revolucionários, se retraíram, mas as guerrilhas não ultrapas-
100 processos por crimes contra a humanidade. sou o ano de 1975.

Didatismo e Conhecimento 15
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Ditadura no Equador por meio de referendum uma nova constituição prevendo eleições
gerais, mas tumulto de rua, com estudantes protestando contra o
O primeiro presidente foi o general Juan José Flores. Em aumento das tarifas de transporte urbanos levaram as Forças Ar-
1833, foi desencadeada uma guerra civil entre os conservadores madas a declararem o estado de sítio. Em 1979, foram realiza-
e os liberais, a primeira de uma extensa série de confrontos, que das eleições presidenciais. Desde então têm se sucedido diversos
tiveram como consequência a subida ao poder de três ditadores: governos constitucionais. Em 1981 reativaram-se os conflitos de
Juan José Flores, Gabriel García Moreno e Eloy Alfaro. No meio fronteira com o Peru (questões de limites, existentes desde 1942).
destas lutas, situa-se o período presidencial do general José María
Urbina. Ditadura no Haiti
Na vida política equatoriana sempre opuseram-se liberais e
conservadores, os primeiro dos litoral e os segundos da zona mon- Um dos períodos mais conturbados da história do Haiti teve
tanhosa. O governo de Gabriel García Moreno (1861-1865 e 1869- início em 1957. Naquele ano, o médico François “Papa Doc” Du-
1875), conservador, salientou-se pelo progresso material ao lado da valier foi eleito presidente da nação, instalando um regime dita-
férrea ditadura clerical, estabelecendo exclusividade de cidadania torial baseado na repressão militar que perseguiu muitos oposito-
aos católicos praticantes e suprimindo a oposição parlamentar. Os res – inclusive a Igreja Católica –, sua guarda pessoal, os tontons
liberais, liderados pelo escritor Juan Montalvo, agitaram o país até macoutes (bichos papões) eram os responsáveis pelos massacres. 
a morte de Moreno, assinado em 1875. Em 1895 subira os liberais, O Papa Doc foi assassinado em 1971, no entanto, seu filho
com a presidência de Eloy Alfaro, nas gestões de 1895-1901 e de Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, assumiu a presidência do Hai-
1905-1911, tendo construído a ferrovia de Quito a Guayaquil, sa- ti, dando continuidade às perseguições. Os protestos populares
neado a fazenda pública, apoiado a educação primária e universitá- contra o regime ditatorial se intensificaram, e Baby Doc fugiu para
ria, criado serviços de saúde, bem como nacionalizado os bens da a França em 1986, deixando no poder uma junta chefiada pelo ge-
Igreja, amealhados pelo confisco de propriedades dos espanhóis, neral Henri Namphy. 
durante a Independência. O general Leónidas Plaza, presidente de Sob nova Constituição, realizaram eleições presidenciais li-
1901-1905 e 1912-1916 governou sob a paz constitucional, ga- vres em 1990, a maioria dos eleitores (67%) optou pelo padre es-
rantindo a liberdade de imprensa e desenvolveu a comunicação querdista Jean-Bertrand Aristide. Porém, no mesmo ano, Aristides
ferroviária, bem como livrou Guayaquil da febre amarela. foi deposto por um novo golpe militar e a ditadura foi novamente
Até 1944, os liberais radicais governaram o país, sendo depos- imposta no país. A Organização das Nações Unidas (ONU) impôs
tos por uma coligação esquerdista, Alianza Democrática Equato-
sanções econômicas ao Haiti para forçar a volta de Aristides. So-
riana, que colocou no poder José Maria Velasco Ibarra. De 1948 a
mente em 1994, Aristide retornou ao cargo de presidente do Haiti. 
1952 sucedeu-lhe o filho Leónidas Plaza. Galo Plaza Lasso, assu-
Entretanto, os problemas no Haiti persistiram, fazendo com
mido para a gestão 1952-1956 novamente Velasco Ibarra, seguido
que Aristides fugisse para a África em fevereiro de 2004 e, atual-
por Ponce Enriquez (1956-1960). Velasco Ibarra foi reeleito para
mente, o país sofre intervenção internacional pela ONU. 
o mandato de 1960-1964, deixando o governo em 1961 pra o vice
Carlos Julio Arosemena Monroy, devido às pressões do Congres-
Ditadura na Nicarágua
so, que o acusou de desejar fechamento do Legislativo e insta-
lar uma ditadura. Arosemena tentou uma política de aproximação
com os países socialistas e em consequência de divergência com Em 1928 e 1932, os EUA supervisionaram as eleições que
os Estados Unidos, pronunciou em julho de 1963 violento discurso elegeram dois presidentes liberais: Moncada(1928-1933) e Saca-
atacando aquele país, numa festividade à qual comparecera o em- sa (1933-1936). As tropas norte-americanas abandonaram o país
baixador norte-americano. em 1933, depois de terem treinado a Guarda Nacional Nicaragua-
Nesta ocasião, o Exército tomando o poder e prendendo todos na, criada pelos americanos na gestão de Díaz com o objetivo de
os esquerdistas do país, suspendeu as eleições. Em 1967, foi pro- manter a ordem interna. Com a retirada dos fuzileiros, Sandino
mulgada uma nova constituição. A assembléia nomeou um presi- depôs as armas e reconciliou-se com Sacasa. No ano seguinte, o
dente provisório Otto Arosemena Gómez, sucedido, em 1968 por comandante da Guarda Nacional, o general Anastasio (Tacho) So-
Velasco Ibarra, que eme 1970 dirigiu um golpe de Estado, encami- moza García, sobrinho de Sacasa, instigou o assassinato do líder
nhando o Equador numa linha política bastante independente, no- rebelde liberal, Augusto César Sandino.
tadamente no relativo ao controvertido mar territorial superior a 3 Em 1936, Anastasio Somoza ganhou as eleições presidenciais
milhas, que originou vários atributos diplomáticos com os Estados e, durante vinte anos, governou o país, diretamente ou por interpos-
Unidos, pelo apresamento de embarcações de pesca daquele país tas pessoas, com pulso de ferro até ser assassinado em 1956 pelo
que não respeitou o limite fixado pelo Equador. poeta Rigoberto López Pérez. Foi sucedido pelo filho, Luís Somoza
Velasco Ibarra ,em 1972, foi novamente derrubado por um Debayle (1957-1963). René Schick Gutiérrez (1963-1966), morto
golpe militar, cujo principal dirigente, o general Guillermo Ro- no exercício da presidência, foi sucedido por Lorenzo Guerrero
dríguez Lara, tomou o poder como presidente, sendo substituído Gutiérrez(1966-1967), a que se seguiu Anastasio (Tachito) Somo-
alguns anos depois. Segundo exportador de petróleo da América za Debayle (1967-1972, 1974-1979), irmão mais novo de Luís e o
Latina (em 1973 tornou-se membro da OP), mas nem por isso se último membro da família Somoza a assumir a presidência.
acentuou o seu desenvolvimento econômico, prejudicado pela ins- As aparências democráticas desapareceram em 1971, quando
tabilidade política social: em 1974 as atividades políticas e social; Somoza revogou a constituição e dissolveu a Assembleia Nacio-
em 1975 houve uma fracassada tentativa de golpe de Estado; em nal. Aproveitando-se do terremoto que em 1972 arrasou Manágua,
1976 assumiu o poder uma Junta Militar; em 1978, foi aprovada Somoza obteve do Congresso poderes ilimitados.

Didatismo e Conhecimento 16
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Ditadura no Paraguai Stroessner, o então chefe das Forças Armadas. Foi nomeado como
presidente Tomam Romero e, em 11 de julho do mesmo ano, em
A crise democrática atual do Paraguai suscitou uma série de eleições sem concorrência, Stroessner articulou para ser candidato
discussões sobre a política paraguaia e, principalmente, latino-a- único do Partido Colorado e ganhou as eleições com 99% dos vo-
mericana. Muitas vezes deixada de lado nos estudos brasileiros, a tos e em 15 de agosto assumia a presidência da República.
história paraguaia mostra-se imprescindível para a compreensão O general teve o apoio da base política colorada, da oligarquia
da política latino-americana. O Paraguai, que vivia um processo agropecuária e dos Estados Unidos, que transformou o Paraguai
democrático desde a última Ditadura Militar (1954-1989), enfren- em um laboratório da Doutrina de Segurança Nacional. De acordo
com Miguel López em A construção Social dos Regimes Autoritá-
ta uma das mais severas crises políticas de sua história do século
rios, pouco depois que assumiu a presidência, Stroessner se reuniu
XXI. com membros do Comando Sul dos Estados Unidos e ali assinou
O ex-presidente Fernando Lugo, eleito em 20 de abril de 2008 um pacto com os altos oficiais americanos e brasileiros em que se
com 41% dos votos, rompeu com uma hegemonia de mais de seis comprometia a barrar qualquer crescimento ou avanço dos comu-
décadas do Partido Colorado (partido tradicional e de direita) na nistas.
presidência paraguaia, incluindo os 35 anos de Ditadura Militar. Por chegar ao poder em um momento de instabilidade, Stroes-
Ex-bispo católico ligado aos movimentos sociais de esquerda, sner apresentou um discurso pacificador e teve sua imagem asso-
Lugo tem um histórico de atuação com os sem-terra paraguaios. ciada ao propósito modernizante. Sua política não diferiu subs-
Os conflitos agrários vêm crescendo no país e culminou no conflito tancialmente das demais ditaduras militares da América Latina,
de Curuguaty, estopim para o processo de impeachment que desti- perseguiu e torturou seus opositores; recebeu investimentos finan-
tuiu Lugo da presidência. ceiros dos EUA; atuou contra o comunismo; criou redes de apoio e
Em 15 de junho de 2012, um confronto violento entre poli- defesa; desestabilizou as instituições democráticas, etc.
 A ditadura impôs a filiação partidária ao Partido Colorado
ciais e sem-terra deixou 17 mortos (11 trabalhadores rurais sem-
como condição primária para ter acesso a cargos públicos, para
terra e 6 policiais) na reintegração de posse de uma fazenda perto ingressar na Universidade, e muitas vezes a exigência da filiação
da fronteira com o Brasil. Este conflito foi uma das razões citadas acontecia também no setor privado, nas empresas cujos proprie-
pelos congressistas para destituir o presidente; com um Parlamen- tários eram aliados do regime. Sendo assim, o Partido Colorado
to cuja maioria era de direita e formava a oposição, o impeachment se constituiu como a base social da Ditadura Militar paraguaia;
foi votado e o resultado foi 39 dos votos a favor e apenas 4 contra. os sindicatos de trabalhadores, o movimento estudantil e outros
No lugar de Fernando Lugo, assume o vice-presidente Frederico setores que poderiam atuar como opositores do regime eram am-
Franco, do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), que rompeu plamente formados por colorados, deixando assim a oposição cada
com a coligação de Lugo há um ano atrás. vez mais débil.
O processo relâmpago de impeachment chamou atenção dos Outro fator importante para a manutenção desse regime mi-
líderes políticos do mundo todo, principalmente dos países latino litar foi a criação da rede de delação no país. Funcionando como
-americanos; considerado por muitos desses como um golpe po- órgão de controle social, o governo criou a cultura da traição e
lítico, remete a uma inevitável associação com o ultimo período da denúncia. Os chamados pyrague (em Guarani, delator, espião),
formaram um verdadeiro exército que levou milhares de homens e
ditatorial do país que teve início em 1954 e terminou apenas em
mulheres ao cárcere, tortura e desaparecimento. A sociedade vivia
1989, com outro golpe político. com medo, pois qualquer um poderia ser um espião em potencial.
Ditadura Militar Paraguaia (1954 – 1989) Existiam aqueles que eram agentes permanentes e que recebiam
A história paraguaia é marcadamente militar, pois as mu- até salários do governo, como também cidadãos que denunciavam
danças políticas sempre foram acompanhadas de grandes even- simplesmente para não serem acusados de omissão.
tos militares. As Forças Armadas atuaram como agente político No campo econômico o Paraguai assistiu durante a ditadura
e ator importante no controle do Estado dada a vitória paraguaia Militar de Stroessner um intenso crescimento. Os agropecuários se
na Guerra do Charco (1932-1935) – guerra contra a Bolívia, cuja fortaleceram com o aumento de fluxo de capitais estrangeiros, com
reivindicação boliviana era a saída para o mar. Esta guerra e sua a isenção de impostos e créditos a juros baixos. Da mesma maneira
consequente vitória permitiram aos militares definirem sua identi- que o setor industrial também tirou suas vantagens, principalmente
dade e desfrutarem de alta simpatia da população. com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, que teve um
Entre os anos de 1936 e 1954 o Paraguai enfrentou uma série investimento de 18 bilhões de dólares e fez surgir uma nova classe
de golpes e contragolpes,  sempre com a atuação determinante das de ricos, chamados barões de Itaipu. Esse crescimento certamente
não alcançou a maioria da população, dados apontam que 1% da
Forças Armadas e dos partidos políticos mais influentes da cena
população detinha 80% de toda a riqueza nacional.
política, o Partido Liberal, Partido Corolado e Partido Febreris- A partir dos anos de 1980, a ditadura militar de Stroessner
ta. A partir de 1948 houve um domínio governamental colorado, começou a perder força, motivada pela desaceleração econômica
neste período os partidos opositores foram duramente perseguidos, e um novo golpe de Estado foi planejado por alguns setores do
e seus militantes, em sua maioria, foram exilados. O domínio go- Partido Colorado, nos dias 2 e 3 de fevereiro de 1989 um novo gol-
vernamental colorado (1948 a 1954) garantiu a filiação partidária pe destituiu o ditador da presidência paraguaia. A longa sucessão
dos membros das Forças Armadas e da Polícia. de governos autoritários e militaristas salienta uma característica
Foi nesse cenário político de sucessivos golpes, violentas per- política autoritária na história paraguaia. Uma das maiores preo-
seguições, hegemonia e fortalecimento do Partido Colorado e da cupações de Stroessner era travestir seu governo autoritário com
imagem das Forças Armadas, caracterizado pelo terror político, um manto de legitimidade, ou seja, buscou manter uma fachada
que se desenhou a ascensão política do general Alberto Stroess- democrática e institucional. A convocação rotineira de eleições,
ner. Com a queda do presidente Frederico Chávez, por um gol- sistematicamente fraudulentas confirmaram sempre expressivos
pe em maio de 1954 arquitetado por Méndez Fleitas, aliado de resultados eleitorais favoráveis ao Partido Colorado.

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Durante a Ditadura Militar e personalista do general Alfredo A candidatura de Toledo aglutinou principalmente as cama-
Stroessner, dezenas de milhares de paraguaios e paraguaias foram das populares do campo, setores intelectualizados de classe média
detidos, torturados e levados ao exílio – aproximadamente um e estudantes, em parte por sua origem mestiça e pobre, uma vez
terço da população segundo organizações de direitos humanos. que ainda hoje o mestiço é maioria na população do país. Isso não
Os números são imprecisos, mas indicam que alguns milhares de significa, porém que o candidato oposicionista seja um legítimo re-
cidadãos podem ter sido assassinados pelo regime. Assim como presentante dos camponeses, pois na verdade possui um programa
as demais ditaduras latino-americanas, não cabe medir o grau de político reformista.
brutalidade e intensidade pelo número de mortos e vítimas por elas
geradas, a ditadura paraguaia deixou marcas profundas em sua so- O militarismo no Peru
ciedade, gerou traumas e ressentimentos presentes até hoje; como
toda ditadura, esta cerceou liberdades e foi cruel. No Peru o militarismo teve características bastante peculiares:
Assim como ocorreu outrora, a tentativa de travestir golpes e Assumindo o poder em 1968, o general Juan Velasco Alvarado deu
regimes autoritários com uma fachada de legalidade é recorrente início a uma política caracterizada por um discurso nacionalista e
na política paraguaia e latino-americana. E, por isso, temos que anti-imperialista e colocou e marcha a reforma agrária, garantin-
observar com cuidado o fato ocorrido em junho de 2012 no Para- do a uma parcela dos camponeses o acesso a terra, reivindicação
guai. A destituição de Fernando Lugo é considerada pelo Partido secular da sociedade rural, reformou a legislação social criando
Colorado como fato jurídico estritamente legal e democrático. As- condições para a elevação do nível de consumo do país, fato que
sim como salienta o jurista Luis Regules, “quase todos os golpes interessou tanto a burguesia internacional como à incipiente bur-
de Estado na América Latina se deram com apoio parlamentar. É guesia nacional.
uma história de tristes resultados que insiste em se repetir cada vez O governo militar ( 1968-75) foi responsável por importantes
mais como farsa. Ação foi vista por muitos países latinos como um mudanças, eliminando o poder das oligarquias, transferiu a hege-
golpe de Estado e pela União das Nações Sul-Americanas (Una- monia econômica para a burguesia; a sindicalização aumentou,
sul) como uma “violação da ordem democrática”. assim como a participação do Estado na economia.
No entanto a repressão interna e a crise internacional determi-
Ditadura no Peru naram o fim do Peruanismo e o regresso de uma política conser-
vadora, pautada pelos interesses internacionais ditados pelo FMI,
As recentes eleições no Peru demonstram mais uma vez ao fato que foi responsável por violenta crise, caracterizada pelo de-
mundo uma das principais características históricas da América
semprego e miséria. É nesse novo quadro que surgiram os movi-
Latina: o autoritarismo.
mentos guerrilheiros do Sendero Luminoso (1980) de tendência
No entanto o autoritarismo não é uma característica do povo
Maoísta e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (1984).
ou do caráter latino americano, mas fruto de condições históricas
que se desenvolveram desde o século anterior, em grande parte
Ditadura na República Dominicana - o regime de Trujillo
determinada pela política das grandes potências internacionais, a
partir da divisão internacional do trabalho, imposta com a Segunda
Sua história política é marcada por ditaduras e intervenções
Revolução Industrial.
militares dos Estados Unidos. Entre os anos de 1930 a 1961, a Re-
O Peru Atual pública Dominicana foi governada pelo ditador Rafael Leónidas
Trujillo. Esse período foi caracterizado por perseguições a oposi-
As eleições peruanas foram responsáveis por atrair a atenção tores, corrupção e concentração das riquezas nacionais (estima-se
internacional a partir do momento em que a justiça autorizou o que o ditador possuía 70% das áreas cultiváveis do país e 90% das
presidente-ditador Alberto Fujimori a concorrer, possibilitando- indústrias). A ditadura só teve fim com o assassinato de Trujillo,
lhe o terceiro mandato consecutivo. em maio de 1961. Alguns historiadores afirmam que a Agência
A legislação casuística e a subordinação do Poder Judiciário Central de Inteligência (CIA) estadunidense foi responsável por
ao Executivo são os elementos que mais evidenciam o caráter au- esse assassinato.
toritário do governo; no entanto, a utilização do aparelho repressi- Após esse período, o país sofreu uma intervenção militar es-
vo das Forças Armadas desde que assumiu o poder, com o pretexto tadunidense até que, em 1966, Joaquín Balaguer assumiu a presi-
de combater a guerrilha, foi responsável pela eliminação de vários dência.
grupos de oposição e intervenção na imprensa, possibilitando ao Todo esse contexto de políticas ditatoriais e corrupção contri-
governo desenvolver uma política subordinada aos interesses do buíram para o baixo padrão de vida dos habitantes. A subnutrição
FMI. atinge 21% da população; o índice de analfabetismo é de 11% e
Desta maneira os trabalhadores rurais, de origem indígena, fo- a taxa de mortalidade infantil é de 28 óbitos a cada mil nascidos
ram os mais afetados pela política recessiva, que tem seus efeitos vivos.
surgindo neste momento com cerca de 8 milhões de desemprega-
dos no país, acabando com a ilusão dos primeiros anos de governo, Ditadura Militar no Uruguai
quando o apoio norte americano, criou a expectativa de prosperi-
dade. Eliminados os principais focos de resistência, os EUA con- Na América do Sul, assim como nos países do Cone Sul, o
sideram que chegou a hora de o Peru cumprir seus compromissos Uruguai também enfrentou um processo de ditadura militar nos
internacionais. Foi neste quadro que surgiu a candidatura de Ale- anos 70. Até a década de 60, o país era uma espécie de “Suíça da
jandro Toledo. América”, fato decadente durante a década de 60.

Didatismo e Conhecimento 18
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
O país caiu numa crise econômica e social que gerou movi- Na noite de 31 de março para 1 de abril de 1964 começa en-
mento guerrilheiro articulado pelos Tupamaros. A guerrilha urbana tão um período de exceção, arbitrariedade, desrespeito aos poderes
dos Tupamaros foi base para a implantação da ditadura militar em estabelecidos, aos direitos dos cidadãos, à sua integridade física,
1973. bem como sua liberdade de expressão. Certos de que realizavam
O Uruguai, principalmente naquela época, sempre foi um país um gesto de “purificação” do poder, o projeto de aparência edifi-
dependente das potências capitalistas centrais, das quais provinha cante dos militares descamba para a repressão de toda uma nação.
o preço, as armas, os carros e o pensamento. A militarização do A Constituição seria rasgada, o judiciário perderia sua indepen-
Uruguai não correspondeu a nenhum projeto expansionista, assim dência, e pior, os membros do legislativo seriam depostos de seus
como ocorrera no fascismo e no comunismo soviético. cargos como representantes legítimos do povo.
O Uruguai chegou a ter cerca de cinco mil presos políticos, A ideia era de que quando o Marechal Humberto Castelo
abrangendo sindicalistas, intelectuais e políticos. A falência da di- Branco assumisse o poder, logo o devolveria a um representante
tadura ocorreu nos anos 80, em virtude do agravamento dos pro- civil, garantindo mesmo as eleições previstas para 1965. Caste-
blemas estruturais do país. lo Branco pertencia ao grupo moderado do movimento, chamado
Mediante intensos protestos, o Estado Militar se viu obrigado de “Grupo de Sorbonne”. Logo, porém, os radicais assumiriam o
a ceder às pressões civis. Realizaram uma transição política com
controle do movimento, forçando a permanência dos militares no
grupos civis. Realizaram uma transição política com grupos civis
poder, em plena crença de que os entes responsáveis pelos males
dos partidos Blanco e Colorado.
políticos do país ainda poderiam voltar a comandar o país.
Ditadura Militar no Brasil É por obra dos radicais que ocorre a posse de Costa e Silva
como segundo presidente militar, e onde se inicia o período mais
É conhecido no Brasil como “Regime Militar” o período que pesado da repressão. Das perseguições a parlamentares da gestão
vai de 1964 a 1985, onde o país esteve sob controle das Forças anterior, os militares decidiram fechar o Congresso Nacional em
Armadas Nacionais (Exército, Marinha e Aeronáutica). Neste pe- 1968, através do infame Ato Institucional número 5. Costa e Silva
ríodo, os chefes de Estado, ministros e indivíduos instalados nas morre em pleno mandato, e mais uma vez o grupo radical conspira
principais posições do aparelho estatal pertenciam à hierarquia para que o vice presidente, Pedro Aleixo, um civil, não assuma;
militar, sendo que todos os presidentes do período eram generais no lugar, o poder seria entregue a uma Junta formada por três mi-
do exército. Era denominada ”Revolução” em sua época, sendo litares, um de cada força. A repressão chegaria ao seu auge com o
que os principais mentores do movimento viam o cenário político presidente seguinte, Emílio Médici, que acaba com qualquer mo-
do início dos anos 60 como corrupto, viciado e alheio às verdadei- vimento armado da oposição, dando a ideia da completa predomi-
ras necessidades do país naquele momento. Assim, o seu gesto era nância e popularidade do regime, sob pleno “Milagre Econômico“,
interpretado como saneador da vida social, econômica e política em meio à conquista definitiva da Taça Jules Rimet na Copa do
do país, livrando a nação da ameaça comunista e alinhando-a in- México de 1970.
ternacionalmente com os interesses norte-americanos, trazendo de Ao aproximar-se a Primeira Crise do Petróleo, sobe ao po-
volta a paz e ordem sociais. der justamente o presidente da Petrobrás, General Ernesto Geisel,
Os antecedentes do Regime Militar podem ser encontrados confrontado com o disparo da inflação e fim do milagre. Modera-
no período Vargas, entre os responsáveis pela sua derrubada em do, ele é incumbido de preparar a volta à normalidade, fazendo a
1945, pondo fim ao Estado Novo. Este contingente de oposição distensão “lenta, gradual e segura”. Apesar de casos infames como
se agruparia logo depois na UDN, União Democrática Nacional, a morte do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel
partido de orientação liberal-conservadora. Com a volta de Getúlio Filho, Geisel parece conseguir seu objetivo, entregando o poder
por meio de eleições diretas em 1951, tal grupo continuaria fazen- ao último general da era militar, João Batista Figueiredo. Apesar
do oposição à sua política, considerada “populista”. Tal pressão da crise econômica, que começava a atingir níveis insuportáveis,
acabaria por provocar o suicídio do presidente. Este gesto, apesar da concreta “quebra” do Brasil no plano econômico, e da impuni-
de frear o movimento das forças conservadoras, não impediu algu-
dade de vários personagens da época da repressão, Figueiredo irá,
mas tentativas, em especial a manobra para que o presidente eleito
depois de 21 anos de ditadura, transferir o poder a um civil, ainda
Juscelino Kubitschek não tomasse posse. Uma intervenção de um
indiretamente eleito: Tancredo Neves, que morre antes de subir ao
grupo militar não-ortodoxo garantiria a posse de Kubitschek.
Eleito Jânio, parecia finalmente que as forças que dariam res- poder. Seu vice, José Sarney, proveniente dos quadros políticos da
paldo aos militares subiria ao poder, mas, o temperamento ímpar ditadura, acabaria incumbido de guiar o país até as tão esperadas
do novo presidente, e sua surpreendente renúncia implodiriam o eleições diretas em mais de 25 anos, previstas para 1989.
projeto conservador. Outra vez as ideias de Vargas estariam repre-
sentadas por um de seus mais aplicados discípulos, João Goulart, Estado Novo – Era Vargas
que tinha o talento de atrair a repulsa de todos os movimentos um
pouco mais à direita do espectro político. O medo de que Goulart Dado como um governo estabelecido por vias golpistas, o Es-
implantasse no Brasil uma república sindicalista com o apoio dis- tado Novo foi implantado por Getúlio Vargas sob a justificativa de
creto do Partido Comunista Brasileiro acabou lançando a classe conter uma nova ameaça de golpe comunista no Brasil. Para dar
média contra o presidente, entendendo que o Brasil caminhava ao novo regime uma aparência legal, Francisco Campos, aliado
para o caos do socialismo operário e campesino. político de Getúlio, redigiu uma nova constituição inspirada por
Do mesmo modo que acreditavam estarem mantendo a lega- itens das constituições fascistas italiana e polonesa.
lidade ao garantir a posse de Juscelino, quase dez anos antes, os Conhecida como Constituição Polaca, a nova constituição
militares decidiram entrar em cena novamente. Agora, a deposição ampliou os poderes presidenciais, dando a Getúlio Vargas o direito
do presidente asseguraria a ordem e a legalidade. de intervir nos poderes Legislativo e Judiciário. Além disso, os

Didatismo e Conhecimento 19
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
governadores estaduais passaram a ser indicados pelo presidente. as seguintes representações partidárias: o Partido Trabalhista Bra-
Mesmo tendo algumas diretrizes políticas semelhantes aos gover- sileiro (PTB) e o Partido Social Democrata (PSD), ambos redutos
nos fascista e nazista, não é possível entender o Estado Novo como de apoio a Getúlio Vargas; a União Democrática Nacional (UDN),
uma mera imitação dos mesmos. agremiação de direita opositora de Vargas; e o Partido Comunista
A inexistência de um partido que intermediasse a relação entre Brasileiro (PCB), que saiu da ilegalidade decretada por Getúlio.
o povo e o Estado, a ausência de uma política eugênica e a falta Em 1945, as medidas tomadas pelo governo faziam da saída
de um discurso ultranacionalista são alguns dos pontos que distan- de Vargas um fato inevitável. Os que eram contrários a essa pos-
ciam o Estado Novo do fascismo italiano ou do nazismo alemão. sibilidade, organizaram-se no chamado Movimento Queremista.
No que se refere às suas principais medidas, o Estado Novo adotou Empunhados pelo lema “Queremos Getúlio!”, seus participantes
o chamado “Estado de Compromisso”, onde se criaram mecanis- defendiam a continuidade do governo de Vargas. Mesmo contan-
mos de controle e vias de negociação política responsáveis pelo do com vários setores favoráveis à sua permanência, inclusive de
surgimento de uma ampla frente de apoio a Getúlio Vargas. esquerda, Getúlio aceitou passivamente a deposição, liderada por
Entre os novos órgãos criados pelo governo, o Departamento militares, em setembro daquele ano.
de Imprensa e Propaganda (DIP) era responsável por controlar os Dessa maneira, Getúlio Vargas pretendeu conservar uma ima-
meios de comunicação da época e propagandear uma imagem po- gem política positiva. Aceitando o golpe, ele passou a ideia de que
sitiva do governo. Já o Departamento Administrativo do Serviço era um líder político favorável ao regime democrático. Essa estra-
Público, remodelou a estrutura do funcionalismo público prejudi- tégia e o amplo apoio popular, ainda renderam a ele um mandato
cando o tráfico de influências, as práticas nepotistas e outras rega- como senador, entre 1945 e 1951, e o retorno democrático ao posto
lias dos funcionários. presidencial, em 1951.
Outro ponto importante da política varguista pode ser notado
na relação entre o governo e as classes trabalhadoras. Tomado por Bibliografia
uma orientação populista, o governo preocupava-se em obter o fa- Livro: História das Américas: novas perspectivas;
vor dos trabalhadores por meio de concessões e leis de amparo ao Autores: Cecília Azevero e Ronaldo Raminelli;
trabalhador. Tais medidas viriam a desmobilizar os movimentos Referências:
sindicais da época. Suas ações eram controladas por leis que regu-
lamentavam o seu campo de ação legal. Nessa época, os sindicatos
transformaram-se em um espaço de divulgação da propaganda go-
vernista e seus líderes, representantes da ideologia varguista.
2. BITTENCOURT, CIRCE MARIA
As ações paternalistas de Vargas, dirigidas às classes trabalha-
FERNANDES. ENSINO DE HISTÓRIA:
doras, foram de fundamental importância para o crescimento da
FUNDAMENTOS E MÉTODOS. SÃO PAULO:
burguesia industrial da época. Ao conter o conflito de interesses
CORTEZ, 2005.
dessas duas classes, Vargas dava condições para o amplo desenvol-
vimento do setor industrial brasileiro. Além disso, o governo agia
diretamente na economia realizando uma política de industrializa-
ção por substituição de importações. Autor
Nessa política de substituições, o Estado seria responsável por
apoiar o crescimento da indústria a partir da criação das indústrias Circe Maria Fernandes Bittencourt: possui graduação em His-
de base. Tais indústrias dariam suporte para que os demais setores tória pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP
industriais se desenvolvessem, fornecendo importantes matérias (1967), pós-graduação em Metodologia e Teoria de História pela
-primas. Várias indústrias estatais e institutos de pesquisa foram faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP (1969),
criados no período. Entre as empresas estatais criadas por Vargas, mestrado em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e
podemos citar a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Com- Ciências Humanas - USP (1988) e doutorado em História Social
panhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores pela Universidade de São Paulo (1993). Atualmente é professor
(1943) e a Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945). pós-graduação da Faculdade de Educação USP e da Pontificia Uni-
Em 1939, com o início da Segunda Guerra Mundial, uma im- versidade Católica- SP. Tem experiência na área de história das
portante questão política orientou os últimos anos do Estado Novo. disciplinas e currículos escolares e educação indígena. Desenvolve
No início do conflito, Vargas adotou uma postura contraditória: pesquisas atualmente sobre a história dos livros didáticos, manten-
ora apoiando os países do Eixo, ora se aproximando dos aliados. do a organização do banco de dados LIVRES referente aos livros
Com a concessão de um empréstimo de 20 milhões de dólares, os didáticos brasileiros de 1810 a 2007, sobre ensino de historia e
Estados Unidos conquistaram o apoio do Brasil contra os países do história da educação, em especial história da educação indígena.
Eixo. A luta do Brasil contra os regimes totalitários de Adolf Hitler
e Benito Mussolini gerou uma tensão política que desestabilizou a Sinópse
legitimidade da ditadura varguista.
Durante o ano de 1943, um documento intitulado Manifesto O que é disciplina Escolar?
dos Mineiros, assinado por intelectuais e influentes figuras polí-
ticas, exigiu o fim do Estado Novo e a retomada da democracia. Quando se analisa a trajetória da disciplina História, constata-
Acenando favoravelmente a essa reivindicação, Vargas criou uma se que esta faz parte dos “planos de estudos” de 1837 da primeira
emenda constitucional que permitia a criação de partidos políticos escola pública brasileira. Entretanto, acompanhando a trajetória da
e anunciava novas eleições para 1945. Nesse meio tempo surgiram história no nível superior, constata-se que o primeiro curso de his-

Didatismo e Conhecimento 20
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
tória surgiu apenas na década de 30 do séc. XX. Tal situação pro- Segundo esse ponto de vista, a escola é o lugar de recepção
voca algumas indagações: O que é uma disciplina escolar e quais e de reprodução do conhecimento externo. E a figura do profes-
são suas especificidades? Quais as relações entre disciplina escolar sor aparece como um intermediário desse processo de reprodução,
e disciplina acadêmica? Como os estudos históricos se constituí- cujo grau de eficiência é medido pela capacidade de adaptação do
ram, para os níveis secundário e primário, ao longo da educação conhecimento cientifico ao meio escolar.
escolar? Qual tem sido a participação dos professores na constru-
ção da disciplina de história nas salas de aula? (...) 1.2. Disciplina escolar como entidade específica.
A história e outras tantas disciplinas escolares tem feito parte
do cotidiano de milhares de alunos e professores de tal forma que Para pesquisadores como, o inglês Ivor Goodson e o francês
acabamos por achar natural essa organização curricular e essa ma- André Chervel, a disciplina escolar não se constitui pela simples
neira de “ser da escola”. “transposição didática” do saber erudito, mas, antes, por intermé-
Existem as “matérias” e os respectivos professores encarre- dio de uma teia de outros conhecimentos.
gados de ministrá-las, obedecendo à determinada carga horária no Para os autores que se opõem à concepção de “transposição
decorrer de um tempo específico chamado “ano letivo”. Os pro- didática”, um ponto inicial é o fato de que aquela abordagem acen-
fessores são classificados por grupos: disciplinas cientificas, hu- tua a hierarquização de saberes como base para a constituição de
conhecimentos para a sociedade.
manas, exatas, etc. Além de outra divisão entre os docentes: os
Além disso, afirmam que essa hierarquização do conhecimen-
especialistas das disciplinas e os polivalentes das séries iniciais
to tem conotações sociais, como instrumento de poder de determi-
do ensino fundamental. Diante desse quadro, este capítulo procura
nados setores da sociedade.
entender o que é disciplina escolar e os saberes por ela produzido. André Chervel, ao defender a disciplina escolar como entida-
A história e os demais escolares fazem parte de um sistema de relativamente autônoma, considera as relações de poder pró-
educacional que mantém especificidades no processo de constitui- prias da escola.
ção de saberes ou de determinado conhecimento- o conhecimento É preciso deslocar o acento das influências exteriores a escola,
escolar. inserindo o conhecimento por ela produzido no interior de uma
cultura escolar.
1. Polêmicas sobre a concepção de disciplina escolar. Chervel concebe a escola como uma instituição que, embora
obedeça a uma lógica, deve ser considerada como lugar de pro-
Responder à pergunta “o que é disciplina escolar?” não é sim- dução de um saber próprio. As disciplinas escolares devem ser
ples. Os debates mais significativos em torno dessa concepção tem analisadas como parte integrante da cultura escolar. Conteúdos e
sido realizado por pesquisadores franceses e ingleses, com diver- métodos, não podem ser entendidos separadamente, e os conteú-
gências importantes e significativas entre eles. dos escolares não são vulgarizações ou mera adaptações de um
Existem os defensores da ideia de disciplina como “transpo- conhecimento produzido em “outro lugar”.
sição didática” e os que concebem disciplina como um campo de A seleção dos conteúdos escolares, por conseguinte, depende
“conhecimento autônomo”. de um complexo sistema de valores e de interesses próprios da
escola e do papel por ela desempenhado na sociedade letrada e
1.1. Uma Transposição Didática. moderna.

Para determinados educadores, franceses e ingleses, as dis- 1.3 Constituintes das disciplinas escolares.
ciplina escolares decorrem das ciências eruditas de referência,
dependentes da produção das universidades, e servem como ins- Para entender as disciplinas escolares, é preciso situá-las em
trumento de “vulgarização” do conhecimento produzido por um um processo dinâmico de produção. Segundo Chervel, as disci-
grupo de cientistas. plinas escolares constituíram-se efetivamente a partir de 1910. A
O pesquisador francês Yves Chevellard, passou a designar tal constituição das disciplinas foi resultado de disputas entre os co-
nhecimentos que deveriam fazer parte do currículo escolar.
concepção como “transposição didática”. Ele entende ser a escola
Desde o fim do séc. XIX se discutia sobre a necessidade de
parte de um sistema no qual o conhecimento por ela reproduzi-
manter um currículo humanístico organizado pelo estudo das lín-
do se organiza pela mediação da “noosfera ”, que corresponde ao
guas e da oratória. Que eram entendidas como fundamentais para
conjunto de agentes sociais externos a sala de aula – Inspetores, a formação das elites.
autores de livros didáticos, técnicos educacionais, famílias. Esses Com o desenvolvimento da industrialização, os conhecimen-
agentes garantem à escola o fluxo e as adaptações dos saberes pro- tos das áreas denominadas exatas, passaram a ser consideradas
venientes das ciências produzidas pela academia. importantes e disputavam espaço com as áreas das “humanidades
Essa abordagem considera a disciplina escolar dependente clássicas”. Foi importante nesse momento, estabelecer as finalida-
do conhecimento erudito ou cientifico. Também se consolida, por des de cada uma das disciplinas, explicitar os conteúdos selecio-
essa concepção uma hierarquia de conhecimentos, encontrando-se nados para serem ensinados e definir os métodos que garantissem
a disciplina escolar em uma escala inferior, como saber de segunda tanto a apreensão de tais conteúdos como a avaliação da aprendi-
classe. zagem.
No que refere aos conteúdos e métodos de ensino e aprendiza- As finalidades de uma disciplina escolar, cujo estabelecimento
gem, entende-se que os conteúdos escolares provem direta e exclu- é essencial para garantir sua permanência no currículo, caracteri-
sivamente da produção cientifica e os métodos decorrem apenas de zam-se pela articulação entre os objetivos instrucionais mais espe-
técnicas pedagógicas, que transforma-se em didáticas. cíficos e os objetivos educacionais mais gerais.

Didatismo e Conhecimento 21
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
As finalidades de uma disciplina tendem sempre a mudanças, A articulação entre as disciplinas escolares e as disciplinas
de modo que atendam diferentes públicos escolares e respondam acadêmicas é, portanto, complexa e não pode ser entendida como
às suas necessidades sociais e culturais inseridas no conjunto da um processo mecânico e linear, pelo qual o que se produz enquanto
sociedade. conhecimento histórico acadêmico seja necessariamente transmiti-
Outro constituinte fundamental da disciplina escolar é o con- do e incorporado pela escola.
teúdo explicito. Os conteúdos explícitos são geralmente organiza-
dos por temas específicos e apresentados em planos sucessivos, 2.3. Professores e disciplina escolares.
conforme os níveis de escolarização e devem estar em sintonia
com os objetivos educacionais e instrucionais. O professor é quem transforma o saber a ser ensinado em sa-
Os conteúdos explícitos articulam-se intimamente com os mé- ber aprendido, ação fundamental no processo de produção do co-
todos de ensino e de aprendizagem. Tais conteúdos são apresenta- nhecimento. Conteúdos, métodos e avaliações constroem-se nesse
dos ao público por intermédio de diferentes métodos, indo da aula cotidiano e nas relações entre professores e alunos.
expositiva até o uso dos livros didáticos ou da informática. O mé- “Dar aula” é uma ação complexa que exige o domínio de
todo é importante por ser um dos elementos que estão diretamente
vários saberes característicos e heterogêneos. De acordo com o
vinculados ao conteúdo explícito e aos objetivos das disciplinas.
canadense Maurice Tardif, e a brasileira Ana Maria Monteiro, os
E por fim, temos a avaliação, essencial para se ter controle so-
professores mobilizam em seu oficio os saberes das disciplinas,
bre o que é ensinado ou aprendido pelo aluno. Na avaliação reside
os saberes curriculares, os saberes da formação profissional e os
o maior poder do professor.
saberes da experiência. A pluralidade desses saberes corresponde
2. Disciplina escolar e produção do conhecimento. a um trabalho profissional que se define como “saber docente”.

2.1 Disciplina escolar ou matéria escolar. Comentário

Ivor Goodson entende a disciplina como uma forma de co- A obra aborda aspectos do ensino e aprendizagem de História
nhecimento oriunda e característica da tradição acadêmica e para o do ponto de vista dos problemas teóricos que fundamentam o co-
caso das escolas primárias e secundárias utiliza-se o termo matéria nhecimento escolar. Propiciará aos docentes de diferentes níveis
escolar. base para refletir sobre as finalidades do ensino de História e seu
Goodson explica que muitas matérias escolares não apresen- papel na formação.
tam as mesmas estruturas das disciplinas acadêmicas e não se uti-
lizam de conceitos e metodologias semelhantes. Ademais, argu- Resumo
mentando que muito do que se trabalha na escola nem tem uma
disciplina base ou ciência referência, pois, constituindo-se numa Suas contribuições na área de ensino de história e participação
comunidade autônoma recebe múltiplas interferências de profes- em diversas obras fazem de Circe Maria Fernandes Bittencourt
sores, administradores da escola ou da sociedade. uma referência no tocante ao ensino no Brasil, seus métodos e
Podem-se identificar diferenças entre as disciplinas acadêmi- fundamento ao longo da história da educação brasileira. Recente-
cas e as escolares, embora elas tenham relações entre si. Uma das mente vem trabalhando com a formação de professores e tem se
diferenças importantes diz respeito a seus objetivos, que evidente- dedicando à educação indígena.
mente não são os mesmos. A disciplina acadêmica visa formar um Suas orientações de cursos de pós-graduação trazem para
profissional. Já a matéria escolar visa formar um cidadão comum suas obras novas abordagens e questionamentos sobre o ensino
que necessita de ferramentas intelectuais variadas para compreen- de história em todo país. Há, inclusive, no presente tralhado, re-
der o mundo físico e social em que vive. ferências feitas a grupos de pesquisas, os quais considera de suma
importância para mostrar as dados sobre o ensino e contribuir com
2.2. Disciplina escolar e conhecimento histórico.
apontamentos recentes pois o ensino é algo dinâmico e requer um
acompanhamento rigoroso por parte do pesquisador.
O historiador francês Henri Moniot, ao estudar a história en-
É justamente a preocupação de Circe Bittencourt com ques-
quanto disciplina escolar conclui que seu ensino, no fim do séc.
tões inerentes ao ensino de história que insticou um trabalho sobre
XIX, assegurou a existência da história universitária.
A divisão da história em grandes períodos (Antiguidade, mé- seus fundamentos e métodos. Os questionamentos e polêmicas que
dia, moderna e contemporânea), criada para organizar os estudos circundam a área educacional e as polêmicas sobre o método de
escolares acabou por definir as divisões das disciplinas históricas ensino ideal para as novas gerações são lançadas no intuito de aju-
universitárias. dar o público docente, chamando a atenção para os novos desafios
Essa organização das disciplinas é uma das evidencias que da profissão.
permitem refletir sobre as relações entre o conhecimento acadê- A partir do ano de 1967, quando obtem o nível superior, Circe
mico e o escolar se envolver a história das disciplinas escolares e Currículos além
Modificar o currículo do ensino fundamental e médio, como de estudos sobre a história do livro didático. Não só suas pesqui-
quer as recentes propostas do ensino temático, implica mudanças sas, mas também os trabalhos de tantos outros pesquisadores bra-
no currículo de nível superior. sileiros e estrangeiros ajudaram a compor a presente obra, cuja
A história escolar tem um perfil próprio, mas há um intercâm- intenção central é abrir caminhos para uma prática de ensino pra-
bio de legitimações entre as duas entidades específicas zerosa e ao mesmo tempo difícil e desafiante.

Didatismo e Conhecimento 22
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
A autora trás uma vasta linha de discussões a cerca da história Isolado do conhecimento científico na época do Brasil impé-
do ensino de história dividido sistematicamente em três unidades. rio, a História, dentro do ensino tinha funções determinadas pelos
Como abordagem essencial para a importância da prática escolar, agentes políticos, como para desenvolver na criança um sentimen-
trás uma reflexão sobre o conceito de disciplina escolar, fazendo to de identidade nacional com o intuito de homogeneizar. Em 1827
apontamento de alguns autores ingleses e franceses sobre como no Brasil, o básico considerado para se aprender no ensino primá-
eles vêem a disciplina escolar e sua relação com o conhecimento rio era leitura, escrita e aritmética. Qualquer tema histórico abor-
produzido na academia. dado tinha o caráter exemplar de dever patriótico e respeito aos
Segundo o pesquisador francês Yves Chevallard, que rotula a governantes. Os vertentes históricas abordadas nas escolas tinha
disciplina escolar como apenas sendo uma “transposição didática a finalildade específica de modelar comportamento e a forma de
do conhecimento acadêmico, a disciplina escolar depende do co- pensar do indivíduo vista pela História Sagrada (aplicada muitas
nhecimento erudito e que essa didática vulgariza o conhecimento vezes sob sabatina e castigos físicos, História Patriótica, cívica e
científico. Alguns estudiosos, sobretudo franceses e ingleses não moralista, A história Heróica e a História Biográfica. Caucando-se,
legitimam o conhecimento produzido em sala de aula, outros vão sobretudo no modelo educacional francês, o Brasil acabou adotan-
mais além, acreditam numa hierarquização entre os dois níveis, do estereótipos preconceituosos europeus que levaram ao enalte-
em que o conhecimento escolar e totalmente dependente do co- cimento de uma história elitizada, voltada para contar apenas as
nhecimento acadêmico, o papel do professor é de um adaptador do glórias que os “descobridores” tiveram ao levar a “civilização” ao
conhecimento científico ao meio escolar, fazendo uso da didática Brasil.
para transformar esse conhecimento acessível aos alunos. Em seguida a autora fala de da memorização do processo de
Cice Bittencourt também expõe as versões antagônicas, citan- aprendizagem que perdura até hoje no sistema de ensino brasileiro,
do o inglês Ivor Goodson e o francês André Chervel que defendem como datas nomes e frases repetidas em toda parte.
a disciplina escolar como entidade específica e com um conheci- Já no ensino secundário no primeiro império, prevalece uma
mento próprio e distinto do acadêmico. Seus argumentos se ba- história humanística de estudos clássicos e do latin, esse tipo de
seiam no caráter prático que o conhecimento escolar possui, o qual conhecimento diferenciava a elite do povo iletrado e sem acesso
à educação. Esse mesmo humanismo é bastante criticado pelos
dispõe de uma nova conotação, ou seja, a ação dos agentes sociais
cientistas posittistas que se voltavam para para a influência do ca-
e políticos, os quais necessitam de mudanças constantemente, fa-
pitalismo industrial, a ahistória e usada essencialmente para jus-
zendo-os abandonar, muitas vezes, referências científicas.
tificar ações e louvar os constritores do estado-nação, um herói
Segunda André Chervel, as disciplinas escolares se constituí-
branco, europeu, sobretudo português. Seja nas escolas ou nos
ram de acordo com as necessidades sociais que variam no tempo
discussos públicos eram contada uma história fantasiosa e mani-
e no espaço, ou seja, o desenvolvimento industrial, a tentativa de
pulada pelos agentes do poder. Tansmitia-se ao povo a ideia de
criar um sentimento patriótico na sociedade etc, criam necessida-
uma Europa boa e bela, berço da nação brasileira. Isso explica, por
des no meio escolar, ou numa cultura escolar e estabelecem finali- exemplo, a organização dos períodos históricos em quais o Brasil
dades conteúdos, métodos e forma de avaliação das disciplinas que “nasce” depois do medievo, vem sempre depois como algo “atra-
compõem, não aleatoriamente, o currículo escolar. sado”. A História Geral é tida como algo maior, mais importante.
Em seguida, Ivor Goodson é novamente mencionado quando Ainda dentro do histórico da disciplina, temas na obra da Cir-
a autora fala que o conhecimento escolar produz seu próprio co- ce Maria Fernandes Bittencourt tópicos dedicados às renovações
nhecimento, atendendo as necessidades sociais e políticas, toman- curriculares e a atuação dos novos métodos e tecnologias o qual
do como exemplo, a Educação Ambiental. elenca uma necessidade de os novos métodos de ensino entrarem
Para o historiador francês Henri Moniot, a divisão dos pe- na órbita do mundo globalizado. A autora lança alguns questiona-
ríodos históricos surgiu de uma necessidade escolar que forneceu mentos sobre como a escola se prepara para receber as novas gera-
modelos para a academia criando áreas de pesquisa em História ções na “cultura das mídias”. Além disso, ressalva o cuidado com
Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Os cursos superio- as informações das novas mídias como a televisão e o computador.
res, mencionado o caso específico de História se apóiam no con- O acesso a essas novas tecnologias não pode servir de instrumento
teúdo do livro didático ou de programas de vestibulares. Com tom de exclusão social e cultural, tendo em vista e realidade precária da
de conclusão, Bittencourt encerra com a afirmativa que a História escola pública brasileira.
escolar tem um perfil próprio, assim como a academia e que não se Diante de tantos desafios que as novas gerações fornecem para
pode separar os dois níveis de conhecimento. as propostas curriculares, podem ser destacados alguns avanços:
Ao destacar o papel do professor neste processo, Circe inicia - Maior autonomia do professor;
o parágrafo “Professores e Disciplina Escolares” afirmando ser o - Fundamentação pedagógica construtivista;
professor um peça fundamental do processo de ensino e que é ele - O aluno é visto como sujeito do processo, interferindo no
quem transforma o saber a ser ensinado em saber a ser apreendido. andamento com seu “conhecimento prévio”.
O professor não é um mero “reprodutor do saber, sua atividade Desde a década de 1930 que formuladores de propostas cur-
exige saber complexo, desenvoltura, domínio. riculares já vinham
Para os estudiosos do saber docente, o canadense Maurice Pensando em substituir as História e Geografia por Estudos
Tardif e a brasileira Ana Monteiro, os professores dominam os sa- Sociais tendo como influência pedagógica as teorias do suíço Jean
beres das disciplinas, os currículos, o saber da formação profissio- Piaget (1896 – 1980), segundo a qual as crianças desenvolvem por
nal e os saberes da experiência, dessa forma, o saber docente deve estágios determinados pela maturação biológica que delimitam
ser reconhecido como saber original. sua capacidade de aprendizagem, ou seja, nas séries iniciais do
Como componente da primeira unidade o capítulo II faz um primário as crianças não teriam condições de aprender conceitos
breve histórico do ensino de história. históricos, lhe bastando um conteúdo bem mais simples como a

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realidade de sua família ou do seu bairro e a sociedade que a re- Ao dialogar com o leitor a respeito de como o professor de
deiam, cabendo às séries posteriores (atual 5ª ano) o estudo da his- história deve falar dos conceitos em sua disciplina, Circe Bitten-
tória mundial e dos conceitos. Esse modelo foi implantado a partir court descreve três procedimentos fundamentais de como dever
da década de 1960 pelos governos militares. A partir de 1985, sob ser passados conceitos como: capitalismo, escravidão, aristocra-
propostas e reivindicações de professores e defensores do retorno cia, liberalismo e cidadania:
da história e Geografia não só no ensino primário (substituindo - Situá-los no tempo e no espaço;
Estudos Sociais), mas também secundário (substituindo os estudos - Explicar que são produtos de uma classe, numa determinada
de Organização Social e Política Brasileira), termina a ditadura e época, criados ou substituídos;
com ela alguns aspectos de seu modelo de ensino. - O contato entre sociedades provocam mutações de conceitos
A partir de 1985 se tornou cada vez mais presente nas propos- e agregação de outros.
tas de modelos de ensino no Brasil e se consolidou com a Lei de Em seguida, a autora lança um panorama sobre o método de
Diretrizes e Bases da educação (LDB/96) e os novos PCNs (Planos ensino tradicional e o inovador considerando suas características
Curriculares Nacionais) o ensino de História e Geografia para to- ao longo do tempo.
dos os níveis de ensino. O método tradicional começou a ser criticado no Brasil na
Baseados na perspectiva teórica de um dos grandes críticos da década de 1980 quando surgem em sua oposição muitas propostas
teoria de Piaget, o desenvolvimentalista Levy Vygotsky que consi- inovadoras, porém não deve ser banido do ensino tendo em vista
derava as crianças exploradoras independentes de suas condições que já foram muito importantes e fazem parte de uma cultura es-
biológicas, os PCNs prevêem o estudo dos conceitos históricos, colar e que qualquer mudança que venha a ocorrer dever ser cons-
noção de tempo e espaço históricos já na alfabetização, partindo de truída e não imposta.
uma premissa que o conteúdo pode ser introduzindo de um modo Dentre os métodos inovadores há o dialético o qual permite
adequado a cada fase da criança. o confronte de ideias e a formação crítica do aluno. Em história
Ao falar dos PCNs a autora pontua algumas de suas caracterís- tem que haver espaço para o contrário, a dúvida, tal perspectiva se
ticas e objetivos do ensino de história imprícitos como a intenção torna viável para a educação construtivista prevista nos próprios
de criar cidadãos políticos com um sentimento de identidade. PCNs. Essa proposta, tão difundida pelo educador Paulo Freire,
Bittencourt aborda, embora de maneira sucinta, alguns mé- não abandona o crédito que é dado ao conhecimento prévio do
todos inovadores no ensino de história que não vingaram, mais aluno, cabendo ao professor o papel diagnosticar e reorientar.
causaram polêmica e representaram uma tentativa de ruptura ao Ao elencar a importância da interdisciplinaridade em história
sistema de ensino tradicional como a história temática que valoriza para o ensino, Circe Bittencourt cita as aproximações necessárias
as ações sociais ao invés das políticas. Paulo Freire (1921 – 1997) entre história e meio ambiente ou a História Ambiental, iniciada
foi um dos maiores representantes de um ensino inovador, total- pelos estudos dos annalistas franceses na segunda metade do sé-
mente desvinculado de interesses políticos. culo XX, como March Bloch, Fernand Braudel e Le Roy Ladurie,
Na unidade II, Circe Bittencourt dispõe de diretrizes de como além de destacar os estudos dos brasileiros Sérgio Buarque de Ho-
selecionar os conteúdos históricos e alerta o profissional educador landa e Josimar de Almeida e do americano Warren Dian que se
para o “conteúdo significativo”, insistindo que o professor deve dedicou aos estudos da devastação da Mata Atlântica e a cultura
ter condições de atender a um público diverso que exige o uso de dos povos indígenas.
diferentes estratégias: o alunato. Além disso, deve estar sempre Outra aproximação citada é o estudo do patrimônio e da me-
atualizador e atento às produções historiográficas. mória coletiva que são de suma importância por serem capazes de,
Sobre o conteúdo a ser ensinado, deve-se observar as diversas através do estudo do meio, introduzirem os alunos no método de
maneiras de transmiti-lo, por exemplo, uma história narrativa, eco- investigação histórica.
nômica ou social. A história das mentalidades assim como a his- Na terceira e última unidade é dado atenção especial ao livro
tória coletiva ou a micro-história, surgidas com o Annales. Novas didático e a inserção do documento histórico no ensino de história.
abordagens possibilitam o aparecimento de novos sujeitos, o que O livro didático não é tudo, além de a autora entender que é
significa uma visão mais social e cultural da história. exercício de política em sala de aula feito pelo agente do poder,
Ao falar sobre conteúdos históricos, surge a crítica da autora sugere que com a ajuda do professor o material didático pode ser
sobre o trato atual da história nacional, que vem sendo deixada produzido pelo próprio aluno, ao escrever sobre um documento
para segundo plano, dando lugar a uma história geral ou global. O histórico, além de poderem produzir jogos, mapas, maquetes etc.
sistema econômico, atrelado ao estágio de uma mundialização da O conteúdo do livro didático é visto com preocupação por
economia, relega a abordagem do nacional a algo menos impor- Bittencourt não só por ser um instrumento ideológico, mas ser tra-
tante, embora ajam muitas correntes historiográficas que rompem tado como lucro dentro do sistema capitalista. Além disso, trás a
com o modelo de ensino vinculado a padrões político-econômicos. consagração de fatos considerados eixos centrais da história como
O mesmo tipo de crítica é feito à história regional subordinada revoluções, guerras, descobrimentos e independências. Outros es-
à história nacional, que no caso brasileiro, acaba sendo história da tudiosos tecem preocupações parecidas sobre as imagens e suas
região hegemônica, geralmente São Paulo. A historiadora Maria de legendas, pois constroem o imaginário do aluno. O livro didático
Lourdes Janotti enfatiza que as transformações sociais e econômi- tem uma difícil, por ser categórico, dificulta a correção de este-
cas não determinam o destino de um país imenso como o Brasil, reótipos preconceituosos formados com o seu mal uso. A autora
as outras regiões também tiveram sua parcela de importância no também trata algumas características com a mistura de instrumen-
processo histórico. Bittencourt sublinha essa questão com o exem- tos tradicionais e inovadores como a cronologia, a presença do
plo do livro didático que privilegia a história do local em que foi estruturalismo, indicações de atividades lúdicas para determinada
produzido. faixa etária.

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Apesar de muitas vezes ser tratado como fonte única do co- 3. História como memória social
nhecimento, a autora não descarta a importância do seu uso, defen- 4. A linguagem do gesto no início da Itália moderna
de um uso adequado, ou seja, o livro é uma possibilidade auxiliar 5. Fronteiras do cômico no início da Itália moderna
no conhecimento, pode ser usado como um guia e ser lido de for- 6. O discreto charme de Milão: viajantes ingleses no século
ma espontânea pelo aluno. XVII
O uso didático dos documentos escritos e não escritos em sala 7. Esferas pública e privada na Gênova de fins do Renasci-
de aula encerra as discussões propostas por Circe Bittencourt. Fer- mento
ramenta que possibilitam a dinamização do conhecimento histó- 8. Cultura erudita e cultura popular na Itália renascentista
rico, o uso de documentos históricos em sala de aula possibilita à 9. A cavalaria no Novo Mundo
livre interpretação do aluno em contato com métodos de pesquisa 10. A tradução da cultura: o Carnaval em dois ou três mundos
11. Unidade e variedade na história cultural
histórica, embora alguns historiadores sejam contra por acharem
BIBLIOGRAFIA
que há nesse método a tentativa de criar “pequenos historiadores”.
Índice
Bittencourt salienta que a atividade da pesquisa histórica re-
quer cuidados ao trabalhar com esse documentos de maneira didá- Autor
tica, esse método apenas deve incitar a criatividade do aluno que
deve ter apenas um primeiro contato e não ser obrigado a fazer Peter Burke (Stanmore, 1937) é um historiador inglês. Dou-
uma análise complexa. torado na Universidade de Oxford (1957 a 1962) foi professor de
Os documentos que devem se inseridos em sala de aula men- História das ideias na School of European Studies da Universi-
cionados são: jornais, poemas, textos literários, romances, docu- dade de Essex, por dezesseis anos professor na Universidade de
mentos pessoas dos alunos, obras de arte, peças de museus, icono- Princeton (1967); atualmente é professor emérito da Universidade
grafias diversas, filmes e músicas. de Cambridge (1979). Foi professor visitante do Instituto de Pes-
Diante das abordagens feitas por Circe Bittencourt, podemos quisas Avançadas da USP (IPEA – USP) de Setembro de 1994 a
concluir que a atividade pedagógica em História é bastante com- setembro de 1995, período em que desenvolveu o projeto de pes-
plexa, levando em consideração as várias metodologias que podem quisa chamado “Duas Crises de Consciência Histórica”.
ser adotadas pelo professor, tais discussões servem como solucio- Vive em Cambridge juntamente com sua esposa, a historiado-
nadoras de muitos problemas que acompanham a história da disci- ra brasileira Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, da Faculdade de
plina. A subjugação do modelo educacional brasileiro à economia Educação da Universidade de São Paulo.
neoliberal representa o novo obstáculo à realização de um ensino Foi o historiador equatoriano Juan Maiguashca (professor de
história Econômica da América Latina da Universidade de Toron-
voltado parta atender a realidade brasileira, ou seja, o ensino fei-
to, discípulo de Chaunú, quem introduziu Peter Burke no mundo
to para elevar o padrão de vida da sociedade. Questionamentos, dos Annales). É também um dos maiores especialistas mundiais na
críticas construtivas e discussões são meios para se chegar a uma obra de Gilberto Freire.
conclusão, essa conclusão pode gerar reivindicações da sociedade
ou de seus representantes o que interfere de alguma forma nas po- Sinopse
líticas públicas voltadas para um ensino de qualidade. Hoje temos
um ensino e um profissional educador mais aberto a mudanças, O objetivo desta coletânea de ensaios é discutir e exemplifi-
uma história disposta a ser vista de diversas maneiras, um ensi- car algumas das principais variedades de história cultural surgidas
no que pelo menos em propostas é instigante e enriquecedor da desde o questionamento do que se poderia chamar de sua forma
consciência, embora ainda não despreze a prática tradicional da “clássica”, exemplificada na obra de Jacob Burckhardt e Johan
memorização. Huizinga. Esse modelo clássico não foi substituído por nenhuma
ortodoxia nova, apesar da importância das visões inspiradas pela
Bibliografia antropologia social e cultural.
Livro: Ensino de história: fundamentos e métodos; A coletânea começa com um capítulo sobre as origens da his-
Autores: Circe Maria Fernandes Bittencourt; tória cultural, que suscita questões gerais sobre a identidade do
Referências: RODRIGUES, W. C. T.; SANTOS, R. B. dos. tema. Os capítulos sobre sonhos e memória são substantivos, mas
também comparativos, além de tentar abordar problemas gerais na
prática da história cultural.
Seguem-se cinco estudos de caso detalhados do início da Itá-
3. BURKE, PETER. VARIEDADES DE
lia moderna, de meados da década de 1960 a meados da de 1980.
HISTÓRIA CULTURAL. RIO DE JANEIRO: Todos esses estudos se situam nas fronteiras da história cultural
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2006. (no sentido de constituírem áreas só recentemente examinadas) e
também nas fronteiras culturais - entre a cultura erudita e a cultura
popular, as esferas pública e privada, o sério e o cômico.
Seguem-se dois ensaios sobre o Novo Mundo, em especial
Sumário o Brasil (um mundo novo, que descobri há apenas uma década).
Esses se concentram nos romances de cavalaria e no Carnaval, mas
Esta obra está dividida em 11 capítulos: sua preocupação essencial é com a “tradução” cultural nos senti-
dos etimológico, literal e metafórico do termo. Deu-se particular
AGRADECIMENTOS ênfase às consequências de encontros culturais, nas circunstâncias
1. Origens da história cultural em que se podem descrevê-los em termos de mistura, sincretismo
2. A história cultural dos sonhos ou síntese.

Didatismo e Conhecimento 25
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O volume termina com um artigo teórico que discute as va- Para o autor, o significado de cultura, diante das mais pos-
riedades de história cultural comparando e contrastando o estilo síveis traduções e empregos, só pode ser definida em termos de
clássico com o “novo”, ou “antropológico” e tentando responder à nossa própria história, diferenciando-se conforme as regiões, cos-
questão de saber se a chamada “nova” história cultural está conde- tumes e épocas. Porém, mesmo sabendo que toda cultura tem uma
nada à fragmentação. história, o termo história cultural remonta a fins do século XVIII,
As ideias aqui apresentadas se desenvolveram a partir de uma na Alemanha.
espécie de diálogo entre fontes dos séculos XVI e XVII, historia- Para o segundo capítulo, Burke explicita as possíveis subjeti-
dores mais recentes (Jacob Burckhardt, Aby Warburg, Marc Blo- vidades abarcadas pela história cultural, principalmente o reconhe-
ch, Johan Huizinga) e teóricos culturais modernos, de Sigmund cimento dos territórios oníricos, reivindicados pelos historiadores
Freud, Norbert Elias e Mikhail Bakhtin a Michel Foucault, Michel das últimas gerações, como Michel Foucault. O ensaio apresen-
de Certeau e Pierre Bourdieu. Nos ensaios a seguir, tentarei evitar tado neste capítulo defende a possibilidade de “uma história dos
os perigos opostos do “construtivismo” (a ideia da construção cul- próprios sonhos” (BURKE, 2006: 41) e suas implicações meto-
tural ou discursiva da realidade) e do “positivismo” obsoleto (no dológicas e investigativas. O fato é que o autor concluiu que os
sentido de empirismo confiante em que “os documentos” revelarão sonhos são uma fonte em potencial para analisar a história cultural.
“os fatos”). Com cautela, este universo onírico de símbolos pode ser tratado
em conjunto, como indícios para os historiadores, categorizando
Resumo e comparando-os a fim de uma possível interpretação cultural dos
sonhos.
1. Origens da história cultural O ensaio seguinte trata do delicado embate entre história e
memória. Burke intitula tal capítulo como “História e memória
Não há concordância sobre o que constitui história cultural, social”, apontando desta forma um resumo dos complexos meios
menos ainda sobre o que constitui cultura. Há mais de quarenta pelos quais se recorda e se registra o passado. Um dos problemas
anos, dois estudiosos americanos começaram a mapear as varia- levantados é o da memória individual e coletiva, onde uma influen-
ções do emprego do termo em inglês, e reuniram mais de duzentas cia a outra formando as estruturas sociais e culturais. Além disso,
definições concorrentes. Levando-se em conta outras línguas e as cinco variedades de meios de comunicação nas organizações das
últimas quatro décadas, seria fácil reunir muito mais. Portanto, na memórias são analisadas: as tradições orais; a ação do historiador;
busca de nosso tema talvez fosse adequado adaptar a definição de as imagens; os rituais e os espaços. E para finalizar o capítulo, o
homem dos existencialistas e dizer que a história cultural não tem autor demonstra os usos da amnésia social como uma obliteração
essência. Só pode ser definida em termos de nossa própria história de memórias em conflito, onde o historiador, em alguns casos, de-
(p.13) sempenha o papel de lembrar às pessoas o que muitas delas gosta-
Nesse caso, as perguntas motivadas pelo presente são as se- riam de ter esquecido.
Para o terceiro ensaio, é suscitada uma interessante aborda-
guintes: qual a idade da história cultural, e como mudaram os con-
gem sobre o estudo da linguagem gestual, como um subsistema in-
ceitos de história cultural ao longo do tempo? O obstáculo a se
serido em uma estrutura maior de comunicação: a própria cultura.
evitar é dar a essas perguntas respostas igualmente motivadas pelo
Embora o autor tenha feito tal abordagem culturalista com
presente. O problema é escorregadio. Não somos o primeiro povo
foco na Itália, este caminho que tem os gestos e o controle do cor-
no mundo a compreender que a cultura, como hoje a chamamos,
po como objetos são indícios de comportamento e conivência com
tem uma história. O termo “história cultural” remonta a fins do
a cultura social, isto é, relativizam a própria cultura e sua história
século XVIII, pelo menos na Alemanha. (já que os gestos também se modificam em relação ao tempo).
A ideia de que a literatura, a filosofia e as artes têm histórias é Assim como os gestos, o riso também tem sua importância na
muito mais antiga. Essa tradição merece ser lembrada. A dificulda- história sociocultural. Tão aplicável quanto os modos à mesa, o
de é fazer isso sem incorrer no erro de imaginar que o que defini- chiste tem muito a dizer de cada cultura e de cada geração. O riso,
mos (e na verdade, em alguns lugares, institucionalizamos) como portanto, é tratado pelo autor como uma medida social, revelando
“tema” ou “subdisciplina” existia nessa forma no passado (p.14). determinadas tensões em culturas diferentes. A ideia do cômico
Nesta obra, Burke faz uma coletânea de ensaios, dispostos como cultura material parte do pressuposto de que é impossível
em onze capítulos, discutindo algumas das muitas variedades de reprimir de todo o riso, bem como as mudanças nas convenções
história cultural, com o objetivo de demonstrar que o questiona- sociais. Isto é, o riso é reflexo dos objetos de seu tempo, seja ironi-
mento da forma clássica de tal modo de fazer história resultou em zando, subvertendo ou comicizando, com significados que mudam
uma multiplicidade de abordagens e objetos, bem como suscitou com o decorrer do tempo.
a importância da interdisciplinaridade para embasar a emergência No ensaio seguinte, Burke apresenta os diários e correspon-
destes novos dimensionamentos. dências de viagens como fontes para a história cultural. A possi-
O primeiro capítulo trata das origens da história cultural e as bilidade de se colocar tanto o leitor quanto o historiador no lugar
possíveis identidades do tema. do viajante - e ver através dos olhos deste, experimentando como
No conjunto em que a história cultural aborda, as histórias se fosse o próprio – é tentadora, mas deve ser levada com pre-
da literatura, das artes e das línguas emergiram como efeitos do caução. Isto porque os limites entre estranhamento e preconceitos
Renascimento, interligando cultura e sociedade. O fato é que as são muito tênues e podem se emaranhar, levando às enganosas in-
diferenças entre costumes – rudes ou requintados – estavam asso- terpretações. Contudo, o autor tenta evitar os perigos opostos do
ciadas também aos diferentes modos de pensamento, onde as civi- construtivismo e do positivismo, abordando estas narrativas como
lidades estavam ligadas ao intelecto. Assim, enquanto os alemães documentos preciosos para a história, percebendo que as distan-
centravam-se em cultura, os franceses usavam a expressão como cias culturais também são percepções importantes, desde que cor-
“o progresso do espírito humano”. retamente tratadas.

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A importância do urbano e das cidades em geral como mate- Por fim, e também por falta de uma definição exata para cultu-
rial para a história é debatida no sétimo ensaio. O valor atribuído ra, tanto Burke quanto os interessados nestas questões galgam uma
à vida privada tem como espaço referencial também os lugares concepção de bricolagem cultural, onde o processo de assimilação
públicos, onde um encontra-se imbricado no outro. Logo, os es- e apropriação deslocam-se como essências para suas abordagens.
paços urbanos – sejam no concerne do público ou privado – são Silvia Sasaki
lugares de cultura, onde os sujeitos atuam e agem na construção e Mestranda em História pela Universidade do Estado de
manutenção da história, através das estruturas sociais e políticas. Santa Catarina (UDESC)
Tal temática tem certa continuidade no oitavo capítulo, pois Burke,
dentro dos espaços das cidades italianas, analisa as diferenciações Sempre que se começa uma história, pode-se dizer que teria
e aproximações entre cultura popular e erudita. O fato é que ele- sido melhor começar antes. Este capítulo começa com os humanis-
mentos eruditos e populares transitam nas estruturas sociais, ca- tas da Itália renascentista, de Petrarca em diante, cujas tentativas
de desfazer a obra do que eles foram os primeiros a chamar de
bendo aos historiadores e estudiosos em geral reconhecerem os
“Idade Média” e reviver a literatura e o saber da Antiguidade clás-
poliformismos destes processos.
sica envolviam uma visão de três eras de cultura: antiga, medieval
Extrapolando fronteiras, o autor evidencia a América Latina e moderna. De fato, como bem sabiam os humanistas, alguns gre-
como inserção do Novo Mundo, no nono ensaio. Interessantemen- gos e romanos antigos já haviam afirmado que a linguagem tem
te, Burke inicia sua análise com os romances de cavalaria, de fins uma história, a filosofia tem uma história, os gêneros literários têm
do século XIX, e como estes estão presentes no Brasil em forma de uma história e a vida humana vinha sendo mudada por uma suces-
literatura de cordel, desde o mesmo período. A maior importância são de invenções. É possível encontrar essas ideias na Poética de
desta abordagem está na persistência dos temas, geralmente estru- Aristóteles, por exemplo, no tratado de Varro sobre a linguagem,
turados em termos de tradições culturais e condições sociais que na discussão de Cícero sobre a ascensão e queda da oratória e na
favorecem a manutenção dessas tradições. versão da primeira história do homem apresentada no poema de
Continuando seus ensaios sobre o Brasil, no penúltimo capí- Lucrécio sobre a natureza das coisas (tão importante para Vico, e
tulo é feita uma abordagem do Carnaval brasileiro como objeto outros, nos séculos XVII e XVIII) (p.15).
legitimo e recorrente da própria cultura do país. A partir de uma
visão estrangeira, Burke discute a interação cultural entre diferen- História da língua e da literatura
tes grupos, afirmando que, no caso do Brasil, um processo de re-
descoberta da cultura popular esteja evidenciando novas estruturas Os humanistas tinham uma história mais dramática para con-
de valorizações, principalmente a afro – americana por parte das tar sobre a língua e a literatura do que seus antigos modelos. Uma
história de invasões bárbaras e do consequente declínio e destrui-
elites, como uma “re-africanização do Carnaval” (BURKE, 2006:
ção do latim clássico, seguida por uma história de renascimento,
230).
obra (claro) dos próprios humanistas. Em outras palavras, uma era
Em sua conclusão, o autor afirma que estes novos estudos cul- de luz foi seguida de uma “Idade das Trevas” por sua vez seguida
turais – como uma “virada cultural” (BURKE, 2006: 233) – flores- de outra era de luz. Essa é a história que emerge de alguns textos
cem no âmbito das humanidades, onde os estudiosos se definem italianos do início do século XV, por exemplo, as vidas de Dante e
como pesquisadores das mais diversas possibilidades de “culturas” Petrarca, de Leonardo Bruni, a história da literatura latina escrita
(cultura visual, cultura da ciência, cultura política e outras). Tantas por Sicco Polenton, ou a introdução histórica à gramática latina,
variedades praticadas desde o fim do século XVIII, para Burke, de Lorenzo Valla, as Elegantiae. Essa interpretação da história da
ainda não estão estabelecidas de maneira tão sólida, mas evocam literatura fazia parte da justificação do movimento humanista.
sua importância. Diante de tantos questionamentos, em uma era de Nos séculos XV e XVI, debates em torno dos méritos relativos
fragmentações e relativismos, a história cultural se demonstra es- do latim e do italiano como língua literária e qual a melhor forma
sencialmente necessária não somente para dar respaldo aos novos do italiano a usar geraram pesquisas sobre a história da língua,
interesses por parte dos historiadores e estudiosos, promovendo de Leonardo Bruni, Flávio Biondo e outros. Eles discutiam, por
respostas às fraquezas de paradigmas anteriores, mas também para exemplo, que línguas os antigos romanos falavam na verdade, se
dar vozes àqueles antes vistos como uma grande unidade massifi- latim ou italiano. No início do século XVI, o cardeal humanista
cada, como se não houvesse diferenciações entre os grupos e in- Adriano Castellesi apresentou uma história do latim, De sermone
divíduos. latino (1516), dividida em quatro períodos - “muito antigo”, “anti-
A história cultural se demonstra como uma possibilidade de go”, “perfeito” (a era de Cícero) e “imperfeito” (desde então). Ou-
tro humanista e crítico, Pietro Bembo, que fez mais para imobilizar
tradução do passado, tornando esta inteligível ao presente, pois
o italiano em determinado ponto de seu desenvolvimento do que
ao invés de uma opção somente pela alteridade, onde a oposição
todos os demais, permitiu a uma das personagens em seu famoso
é a forma redutível de percepção, esta se demonstra como uma diálogo sobre o vernáculo, a Prose dela volgar lingua (1525), ob-
abordagem dos distanciamentos culturais – ao invés dos “choques servar que a língua muda “como as modas das roupas, os modos
culturais” - minimizando as diferenças. O que antes era marginal é da guerra e todas as outras maneiras e costumes” (Livro 1, capítulo
deslocado para o centro dos olhares, redefinindo as fronteiras entre 17)(p.16)
cultural e social. Não se trata de homogeneizações, mas sim de Os humanistas do norte, logo imitadores e adversários de seus
encontros culturais nos quais as diferenças são perceptíveis e não antecessores italianos, ampliaram a história chamando a atenção
anuladas, onde as fronteiras são atravessadas por repetidas vezes, para as evoluções linguísticas em seus próprios países. Na Fran-
em um processo de interação entre diferentes subculturas - embora ça, por exemplo, dois advogados humanistas, Étienne Pasquier em
o termo empregado pelo autor pareça, neste contexto, tão pejora- Rechercbes de la France (1566) e Claude Fauchet: em Origine de
tivo. la langue et poésie françoises (1581), narraram e festejaram as rea-

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lizações de escritores franceses desde o século XIII à era de Fran- O livro de Vasari inclui uma história da ascensão da arte na
cisco I e a Plêiade. Na Inglaterra, pode-se encontrar uma discussão Antiguidade, seu declínio na Idade Média e seu reflorescimento,
sobre a poesia inglesa a partir de Chaucer num tratado intitulado na Itália em três estágios, culminando no mestre de Vasari, Mi-
The Arte of English Poesie, publicado em 1589 e atribuído a Geor- chelangelo.
ge Puttenham. Também foi publicada em 1606 uma história do es- O livro de Vasari foi tratado como um desafio. Artistas e eru-
panhol, Del origen y principio de la lengua castellana, de Bernardo ditos de outras partes da Itália compilaram vidas de artistas locais
Aldrete, no mesmo ano que um estudo semelhante do português, para mostrar que Roma, Veneza, Gênova e Bolonha eram concor-
Origem da língua portuguesa, do bacharel Duarte Nunes de Leão. rentes dignas de Florença. Contudo, prestaram muito menos aten-
Os alemães tiveram de esperar até o século XVII por uma história ção ao que Vasari fizera para as tendências gerais na arte.
equivalente, assim como tiveram de esperar até o século XVII por O surgimento, do que convém chamar-se, em retrospecto, de
um equivalente dos poetas da Plêiade, mas a história, quando che- história da arte, em oposição às biografias de artistas, ocorrera an-
gou, era mais elaborada e comparativa. O polímata Daniel Morhof tes em estudos da Antiguidade clássica por uma razão bastante ób-
pôs a história da língua e da poesia alemãs numa estrutura europeia via. Apesar das famosas historietas de artistas gregos contadas por
comparativa em Unterricht von der Teutscben Sprache und Poesie Plinio (e adaptadas por Vasari), pouco se sabia de Apeles, Fídias e
(1682) (p.17) o resto, o que dificultou a organização de um estudo da arte anti-
Com base nesses fundamentos, muitos eruditos do século ga como uma série de biografias. O erudito florentino Gianbattista
XVIII apresentaram histórias em múltiplos volumes de literaturas Adriani, que escreveu uma breve história da arte antiga em forma de
nacionais, sobretudo as da França (de uma equipe de pesquisa de carta a Vasari (1567), para ajudá-lo em sua segunda edição de Vidas,
monges beneditinos liderados por Rivet de ta Grange) e da Itália preferiu organizá-la em torno da ideia de progresso artístico.
(compiladas por Girolamo Tiraboschi sozinho, sem ajuda). A am- O ensaio de Félibien sobre a origem da pintura e o de Huet
plidão da noção de “literatura” de Tiraboschi é digna de nota.9 sobre a origem dos romances foram escritos na França na mes-
Na Grã-Bretanha, surgiram movimentos semelhantes. Alexander ma década, de 1660, como se expressassem uma mudança mais
Pope publicou um “esquema da história da poesia inglesa”; Tho- geral na preferência historiográfica. De acordo com a tradição de
mas Gray aprimorou-a. Enquanto isso, a história era assegurada Félibien era a obra do pintor da corte, Monier, Histoire des arts
por Thomas Warton, que jamais foi além do início do século XVII,
(1698), escrita a princípio como palestras para alunos da Real Aca-
embora sua inacabada History of Englisb Poetry (4 vols., 1774-8)
demia de Pintura. A interpretação cíclica de Monier começou com
continue sendo impressionante(p.17)
a ascensão da arte na Antiguidade e prosseguiu até seu declínio na
Também se escreveram monografias sobre a história de deter-
Idade Média e seu renascimento entre 1000 e 1600. A data relati-
minados gêneros literários. O erudito protestante francês Isaac Ca-
vamente antecipada do reflorescimento permitiu a Monier dar um
saubon publicou um estudo da sátira grega em 1605, e John Dryde,
importante papel a franceses como Pasquier e Fauchet: no domínio
seguindo-lhe o exemplo, escreveu um Discourse Concerning the
da literatura.
Original and Progress of Satire (1693), que discutia seu desenvol-
Deve-se considerar a destacada realização nessa área, History
vimento desde o que chamou de sátira extemporânea “tosca, não
trabalhada” da Roma antiga até as criações aperfeiçoadas de um of the Ancient Art (1764), de johan joachim Wincklemann, não
período em que os romanos “Começavam a ficar um tanto mais como uma nova partida radical, mas o apogeu de uma tendência,
bem-educados, e a entrar, com a permissão da palavra, nos rudi- uma tendência que era estimulada não apenas pelo exemplo de
mentos da conversa polida”. Mais uma vez, o surgimento do ro- histórias da literatura, mas também por várias novas práticas, entre
mance nos séculos XVII e XVIII veio acompanhado de pesquisas elas o surgimento do colecionador de arte, do mercado da arte e do
sobre suas origens orientais e medievais, feitas pelo bispo polímata conhecimento especializado em arte(p.21)
Pierre-Daniei Huet, em sua Lettre sur Porigine des romans (1669), A história da música foi praticamente uma invenção do século
logo seguido por Thomas Warton, que inseriu em sua história da XVIII. No século XVIII, houve uma explosão de interesse pela
poesia uma digressão “Sobre a origem da ficção romântica na Eu- história da música. Na França, a família Bonnet-Bourdelot publi-
ropa”(p.18) cou em 1715 um importante estudo, Histoire de la musique.

História de artistas, arte e música A história da doutrina

Não chega a ser uma surpresa o fato de se encontrarem ho- As histórias da língua, da literatura e das artes parecem ter
mens de letras que dedicavam atenção à história da literatura. A começado como efeitos colaterais do Renascimento. A Reforma
arte era um objeto menos óbvio para a atenção do historiador, mes- também teve seus subprodutos. Assim como os humanistas defi-
mo no Renascimento. Os eruditos nem sempre levaram os pintores niram seu lugar na história ao dividir o passado em antigo, medie-
a sério, ao mesmo tempo que faltava aos pintores aquela prepara- val e moderno, também o fizeram os reformadores, ao remontar
ção necessária à pesquisa histórica. Quando, na Florença do século a antes da Idade Média e reviver a Antiguidade cristã, ou “igreja
XV, o escultor Lorenzo Ghiberti apresentou um esboço literário da primitiva” como a chamavam. As histórias da Reforma começam
história da arte, no autobiográfico Comentários, fazia uma coisa com a própria Reforma. Entre as mais famosas, estão os Commen-
meio incomum (p.18) taries, de Johann Steidan (1555), e os Acts and Monuments, de
Também não podemos dar por certo o caso de Vasari. Ele foi John Foxe (1563). Tendiam a ser histórias dos fatos ou histórias
notável em sua época porque tinha uma formação cultural dupla, das instituições, mas algumas delas - como a História eclesiástica,
não apenas o aprendizado no ateliê de um pintor, mas também uma do cristão antigo Eusébio de Cesaréia - encontraram um espaço
educação humanista subvencionada pelo cardeal Passerini. para a história das doutrinas(p.22)

Didatismo e Conhecimento 28
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Pode-se ver com clareza ainda maior a preocupação com as Montiriort pretendia escrever uma história da geometria segundo
mudanças nas doutrinas no século XVII. Do lado protestante, a o modelo das histórias existentes da pintura, música e assim por
Theologia historica (1664), de Heinrich Alting, defendia uma diante, mas morreu em 1719, antes de realizar seus planos.
“teologia histórica” com base em que a história da Igreja não era
apenas a dos fatos, mas também a dos dogmas (dogmatum narra- A história dos modos de pensamento
tio), da sua corrupção (depravatio) e reforma (reparatio, restitutío,
reformatio). Do lado católico, a aceitação da ideia de mudança nas Outro desenvolvimento decorrente da história das disciplinas
doutrinas foi mais difícil, apesar do exemplo do jesuíta espanhol foi à história dos modos de pensamento. Esse desenvolvimento
Rodriguez de Arriaga (m. em 1667), que elaborou o que se chamou tem uma impressionante semelhança, e não de todo ilusória, com
de “uma das mais extremas teorias de desenvolvimento já apresen- algumas das “novas direções” pregadas e praticadas hoje.
tadas por um conceituado pensador católico”. Professor em Praga, John Locke tinha aguda consciência das diferenças entre os
Arriaga ensinava que a proclamação da doutrina pela Igreja “é tor- modos de pensamento nas diferentes partes do mundo.
nar explícito o que não era explícito, e que também não precisava Este argumento relativista, alimentado por relatos recentes da
ter sido implícito” (p.22). África, dá óbvio apoio à polêmica de Locke contra ideias inatas.
Em relação à história da doutrina religiosa, os equivalentes Não há uma distância tão grande assim entre o interesse pelas
seculares parecem não ter dado nenhum grande passo. Contudo, variações de pensamento em diferentes lugares e o interesse por
nessa área (ao contrário da história da arte ou da história da litera- diferentes períodos. É bem possível que tenha sido a revolução
tura e da língua), parece ter havido poucos desmembramentos an- do pensamento, associada ao surgimento da “filosofia mecânica”,
tes do ano de 1600. Talvez a necessidade de avaliar as realizações que tornou alguns europeus conscientes do “mundo intelectual que
do passado fosse um subproduto da revolução científica do século haviam perdido”.
XVII, em que a “nova” filosofia mecânica, como muitas vezes a O ensaio de Fontenelle, a origem “dos mitos”), publicado em
chamaram, se tornou um tema de debate. 1724, afirmava que os sistemas de filosofia eram necessariamente
O exemplo clássico da história da filosofia foi Vidas dos fi- antropomórficos e mágicos. Vico chegou de modo independente
lósofos, escrita no século III por Diógenes Laércio, modelo que a conclusões semelhantes, expressas com um tanto mais de afini-
Eusébio adaptou no século seguinte para sua história das primeiras dade pelo que chamou de “lógica poética” do homem primitivo.
seitas cristãs, e que Vasari remodelou com radicalismo ainda maior O mesmo tipo de preocupação com a mentalidade exótica
para suas Vidas dos pintores, escultores e arquitetos. Esse modelo encontra-se subjacente ao interesse cada vez maior pela história da
biográfico continuou sendo tentador. Contudo, também se fizeram cavalaria, estudada pelo erudito francês Jean-Baptiste de La Curne
tentativas para contar uma história que fosse além da reunião de de Sainte-Palaye, com base em romances medievais e outras fon-
biografias, praticar o que Thomas Burnet (quase três séculos antes tes. Robertson afirmou que a “cavalaria (...) embora considerada
de Foucault) chamou de “arqueologia filosófica” e escrever a his- em geral uma instituição primitiva, efeito de capricho, e origem
tória intelectual não apenas dos gregos e romanos, mas também da extravagância, surgiu naturalmente do estado da sociedade na-
dos “bárbaros”. quele período, e exerceu uma influência muito séria sobre o refina-
Acredita-se, de maneira generalizada, que a expressão “histó- mento dos costumes das nações europeias”.
ria das ideias” foi lançada pelo filósofo americano Arthur Lovejov, Ao ler as obras de um autor que viveu em uma era remota, é
quando fundou o Clube da História das Ideias, na Universidade necessário que (...) nos coloquemos em sua situação e circunstan-
Johns Hopkins, na década de 1920. cias; que possamos ficar mais capacitados para julgar e discernir
como foram influenciados seu pensamento e sua maneira de escre-
A história das disciplinas ver, e como foram impregnados por aparências muito familiares e
reinantes, mas inteiramente diferentes das que nos circundam no
Da tradição história-da-filosofia, ramificaram-se vários estu- presente.
dos de disciplinas específicas. A história das crenças não expressas e das representações con-
No lado das artes, a história da retórica e a história da própria tinua sendo fundamental para o empreendimento da história cultu-
história merecem menção. Um jesuíta francês, Louis de Cresolle, ral, como argumentará o capítulo seguinte.
apresentou uma história notável da retórica dos antigos sofistas. Alguns homens de letras se dedicaram ao estudo da história
A primeira história da literatura histórica foi apresentada do que J. C. Adelung e J. G. Herder, os dois escrevendo em fins do
pelo senhor feudal de La Popelinière, em L’Histoire des histoires século XVIII, parecem ter sido os primeiros a chamar de “cultura
(1599), afirmando que a historiografia atravessou quatro estágios popular”.
- poesia, mito, anais e, por fim, uma “história perfeita” (histoire Em 1800, era tão grande o interesse por canções, lendas e
accomplie), que era filosófica, além de exata(p.25) contos folclóricos que parece razoável falar em “descoberta” da
No caso da medicina, alguns médicos do século XVI (em par- cultura popular pelos intelectuais europeus (p.31).
ticular Vesálio e Fernel) dedicaram suficiente atenção à história Dado o crescente número de histórias sobre artes e ciências no
para pôr sua própria obra no contexto do reflorescimento, ou Re- início do período moderno, não é nenhuma surpresa descobrir que
nascimento no qual viviam. A primeira obra substancial da história algumas pessoas tentaram colocá-las juntas.
médica, contudo, foi publicada muito mais tarde, em fins do século Contudo, o principal modelo de história cultural geral no iní-
XVII. cio do período moderno poderia ser descrito como o dos translatio
Na história da matemática, aos estudos das vidas de matemáti- studá, em outras palavras, o sucessivo domínio ou de diferentes
cos segundo o modelo de Diógenes Laércio se seguiram, no século regiões do mundo ou de diferentes disciplinas. Em seu admirável
XVIII, empreendimentos mais ambiciosos. Pierre Rémond de?- ensaio sobre história comparativa, Vicissitudes (1575), o humanis-

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BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
ta francês Louis Le Roy afirmou que “todas as artes liberais e me- A defesa da atribuição de significados sociais ou culturais aos
cânicas floresceram juntas, e depois decaíram” (“tous arts liberaux sonhos foi feita pela primeira vez por antropólogos, em particular
et mécaniques ont fleuri ensemble, puis decbeu»), de modo que por antropólogos psicólogos, formados nas duas disciplinas, além
diferentes civilizações, grega, árabe, chinesa e assim por diante, de trabalhar em duas culturas. Em um estudo pioneiro, Jackson Lin-
têm seus diferentes picos e quedas(p.31). coln sugeriu que se podiam encontrar dois tipos de sonho em cultu-
Um humanista menor, Rainer Reineck, em seu Method for ras primitivas, ambos com significados sociais. O primeiro tipo era
Reading History (1583), inspirado no famoso estudo de mesmo o sonho espontâneo ou “individual”, cujo conteúdo manifesto refle-
nome de Jean Bodin, discutiu o que chamou de bistoria scholasti- tia a cultura, enquanto o conteúdo latente era universal. O segundo
ca, em outras palavras, a história da literatura, das artes e discipli- tipo, Lincoln chamou-o de sonho “padrão da cultura”, que em cada
nas intelectuais (p.32). tribo correspondia a um estereótipo estabelecido por aquela cultura.
Francis Bacon tinha conhecimento da obra de Le Roy, assim Nesses casos, mesmo o conteúdo latente do sonho era influenciado
como do tratado de Vives, mas foi além, pelo menos em inten- por sua cultura. Em suma, em uma determinada cultura, as pessoas
ção, em seu famoso apelo no segundo volume de Advancement tendem a ter determinados tipos de sonho (p.43).
of Learning (1605) a “uma história justa do saber, contendo as A hipótese de que os sonhos têm um significado cultural foi
antiguidades e origens do conhecimento e suas seitas, invenções, confirmada por dois estudos sobre os zulus, dos aldeões de Raias-
tradições, diversas administrações e gerenciamentos, florescimen- tan, de negros em São Paulo e de estudantes em Tóquio e Ken-
tucky. 8 Examinados juntos, esses estudos sugerem, como faz a
tos, oposições, decadências, quedas, esquecimentos e afastamen-
obra de J. S. Lincoln, que os sonhos são moldados de duas manei-
tos, com as causas e ocasiões de tudo isso”. A referência, incomum
ras pela cultura daquele que sonha (p.45).
para a época, às “administrações e gerenciamentos” do conheci-
Em primeiro lugar, os símbolos oníricos podem ter determi-
mento sem dúvida denuncia o homem de negócios. Esses negócios nados significados em determinada cultura, como no exemplo da
impediram Bacon de apresentar essa história proposta, mas seu cobra d’água entre os Hopi. Quando uma pessoa sonha com um
programa inspirou alguns escritores no século seguinte (p. 32). mito, não devemos tomar por certo, como parecem fazer Jung
O Ensaio sobre os costumes (1751) e A era de Luís XIV e seguidores, que isso é uma recriação espontânea do mito, um
(1756), de Voltaire, foram manifestos em favor de um novo tipo “arquétipo do inconsciente coletivo”. Devemos começar por per-
de história, que desse menos espaço à guerra e à política, e mais guntar se ela está ou não consciente do mito. Uma das objeções
ao “progresso da mente humana”. Na prática, Voltaire deu mais possíveis é que as variações no conteúdo manifesto dos sonhos não
espaço às guerras de Luís XIV que ao patrocínio do rei às artes e são importantes; a sociologia dos sonhos fica superficial se levar
ciências, mas suas histórias têm de fato muito a dizer sobre o re- apenas à conclusão de que os mesmos temas ou problemas básicos
nascimento das letras e o refinamento dos costumes. D’Alembert são simbolizados de diferentes modos em diferentes sociedades.
fez um relato semelhante do progresso intelectual, em seu discurso Essa questão da importância relativa do conteúdo manifesto dos
preliminar à Encyclopédie (1751), redigindo algumas das histórias sonhos é uma das questões polêmicas entre psicólogos, e na qual
das disciplinas (como fez Montucla na matemática), e afirmando os historiadores não devem se intrometer. Contudo, permite obser-
que a história deveria se interessar tanto pela cultura como pela var que, se pessoas de uma determinada cultura sonham os mitos
política, pelos “grandes gênios” como pelas “grandes nações”, pe- dessa cultura, seus sonhos por isso autenticam os mitos, sobretu-
los homens de letras como pelos reis, pelos filósofos como pelos do em culturas em que o sonhar é interpretado como “ver” outro
conquistadores (p.32). mundo. Os mitos modelam os sonhos, mas os sonhos, por sua vez,
autenticam os mitos, em um círculo que facilita a reprodução ou
2. A história cultural dos sonhos continuidade cultural (p.46).
Em segundo lugar, pode-se argumentar que o conteúdo laten-
Teorias dos sonhos te também é modelado em parte pela cultura do sonhador. Uma
breve justificação para essa hipótese, ao mesmo tempo mais fun-
Segundo Freud e Jung, os sonhos têm dois níveis de significa- damental e controvertida que a anterior, pode ser apresentada da
do, o individual e o universal. No nível individual, Freud conside- seguinte forma: os sonhos se relacionam com tensões, ansiedades
e conflitos do sonhador. As tensões típicas ou recorrentes, as ansie-
rava os sonhos como manifestações dos desejos inconscientes do
dades e os conflitos variam de uma cultura para outra. Um estudo
sonhador (uma visão que ele mais tarde modificou para explicar os
comparativo de “sonhos típicos” que atravessam culturas mostrou
sonhos traumáticos das vítimas de choques causados por bombar-
que a relativa frequência de diferentes sonhos de ansiedade va-
deios). jung, por sua vez, afirmava que os sonhos desempenhavam riava consideravelmente. Os americanos, por exemplo, sonhavam
várias funções, como a de avisar ao que sonha dos perigos de sua mais vezes que chegavam atrasados a encontros, compromissos
maneira de viver ou compensá-lo por suas atitudes conscientes. e eram surpreendidos nus, enquanto os japoneses sonhavam que
Os dois teóricos chamaram a atenção para a analogia entre estavam sendo atacados. O contraste sugere o que outro indício
sonho e mito, mas Freud tendia a interpretar os mitos em termos de confirma: os americanos são mais preocupados com pontualidade
sonho, e jung em geral interpretava os sonhos em termos de mito. e com “vergonha do corpo”, e os japoneses mais ansiosos com a
Nem Freud nem jung trataram os símbolos oníricos como fixos, agressão (p.46).
embora tenham muitas vezes sido criticados por não o fazer. Esta-
vam preocupados demais com o nível individual para imobilizar os Os sonhos na história
significados dessa maneira.
É na negligência da teoria clássica com um terceiro nível de O fato de pessoas terem sonhado no passado e às vezes regis-
significado dos sonhos, intermediário entre o individual e o univer- trado seus sonhos é uma condição necessária, mas não suficiente
sal - o nível cultural ou social-, que ela é mais criticada. para que os historiadores se interessem por eles. Se os sonhos não

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têm significado, os historiadores não teriam por que se interessar Os historiadores se interessam, ou de qualquer modo preci-
por eles. Se o significado universal dos sonhos fosse o único, eles sam se interessar, pela memória a partir de dois pontos de vista.
se limitariam a anotar a recorrência em sua época de sonhos com Em primeiro lugar, tem de estudar a memória como uma fonte
voos, perseguições ou perdas de dentes, e passar logo para outros histórica, elaborar uma crítica da confiabilidade da reminiscência
tópicos. no teor da crítica tradicional de documentos históricos. Esse em-
Se, contudo, os sonhos nos dizem alguma coisa sobre o sonha- preendimento já se acha de fato em movimento desde a década de
dor individual, os historiadores têm de dedicar-lhes mais atenção. 1960, quando historiadores do século XX passaram a compreender
Tornam-se uma fonte potencial a ser tratada, como outras, com a importância da “história oral”.
cautela, como observou o próprio Freud. Os historiadores devem Em segundo lugar, os historiadores se interessam pela memó-
ria como um fenômeno histórico, pelo que se poderia chamar de
procurar ter em mente o tempo todo o fato de que não têm acesso
história social do lembrar. Considerando-se o fato de que a memó-
ao sonho em si, mas na melhor das hipóteses a um registro escrito ria social, como a individual, é seletiva, precisamos identificar os
modificado pela mente pré-consciente ou consciente no decorrer princípios de seleção e observar como eles variam de lugar para
da recordação e escrita (sobre o problema da “memória”). É pro- lugar, ou de um grupo para outro, e como mudam com o passar do
vável, contudo, que essa «elaboração secundária» revele a perso- tempo. As memórias são maleáveis, e é necessário compreender
nalidade e os problemas do sonhador com tanta clareza quanto o como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa
próprio sonho (p.47) maleabilidade (p.73).
Os historiadores também precisam lembrar que, ao contrário Trata-se de tópicos que por algum motivo só atraíram a aten-
dos psicanalistas, eles não têm acesso às associações que o so- ção de historiadores em fins da década de 1970. Desde então, mul-
nhador faz com os incidentes do sonho, associações que permitem tiplicaram-se os livros, artigos e conferências sobre eles, incluindo
aos analistas evitar uma decodificação mecânica e os ajudam a o levantamento, em múltiplos volumes, dos “domínios da memó-
descobrir o que significam os símbolos do sonho para os próprios ria” editados por Pierre Nora, desenvolvendo as percepções de
sonhadores. Para o historiador, o melhor a fazer é trabalhar com Halbwachs na relação entre a memória e sua estrutura espacial, e
oferecendo uma pesquisa da história francesa desse ponto de vista
uma serie de sonhos do mesmo indivíduo e interpretar cada um em
(p.73).
termos dos outros.
Para que sirva para os historiadores é preciso analisar os so- Transmissão da memória social
nhos individuais e em determinadas culturas e tentar categorizá
-los para conseguir obter uma linearidade na pesquisa. As memórias são influenciadas pela organização social de
transmissão e os diferentes meios de comunicação empregados.
3. História como memória social 1) As tradições orais, discutidas do ponto de vista do historia-
dor, em um famoso estudo de Jan Vansina.
A visão tradicional da relação entre a história e a memória é 2) A tradicional esfera de ação do historiador, as memórias e
relativamente simples. A função do historiador é ser o guardião da outros “relatos” escritos (outro termo relacionado a lembrar, ricor-
memória dos acontecimentos públicos quando escritos para pro- dare em italiano).
veito dos atores, para proporcionar-lhes fama, e também em pro- 3)As imagens, sejam pictóricas ou fotográficas, paradas ou
veito da posteridade, para aprender com o exemplo deles. A histó- em movimento. Os praticantes da chamada “arte da memória”, da
Antiguidade clássica ao Renascimento, enfatizavam o valor de as-
ria, como escreveu Cícero em um trecho que se tem citado desde
sociar o que se quisesse a imagens imponentes.
então (De oratore, ii. 36), é a “vida da memória” (vita memóriae).
4) As ações transmitem memórias ao transmitir aptidões, do
Historiadores tão diversos quanto Heródoto, Froissart e Lorde Cla- mestre ao aprendiz, por exemplo.
rendon afirmaram que escreviam para manter viva a memória de 5) Uma das mais interessantes observações no estudo de Hal-
grandes feitos e grandes fatos (p.69). bwachs sobre a estrutura social da memória se referia à importân-
O primeiro pesquisador sério da “estrutura social da memó- cia de um quinto meio de comunicação na transmissão de memó-
ria”, como a chamou, foi, é claro, o sociólogo ou antropólogo fran- rias: o espaço. Ele tornou explícito um ponto implícito na arte da
cês Maurice Halbwachs, na década de 1920.1 Halbwachs afirmou memória clássica e renascentista, o valor de “pôr” imagens que
que as memórias são construídas por grupos sociais. São os indiví- desejamos lembrar em locais imaginários impressionantes, como
duos que lembram, no sentido literal, físico, mas são os grupos so- palácios ou teatros memoráveis, explorando assim a associação de
ciais que determinam o que é “memorável”, e também como será ideias.
lembrado. Os indivíduos se identificam com os acontecimentos
públicos de importância para seu grupo. “Lembram” muito o que Usos da memória social
não viveram diretamente. Um artigo de noticiário, por exemplo, às
Quais as funções da memória social? É difícil chegar a ar-
vezes se torna parte da vida de uma pessoa. Daí pode-se descrever
rematar uma questão tão ampla como essa. Um advogado bem
a memória como uma reconstrução do passado (p.70). poderia discutir a importância do costume e precedente, a justifi-
Como fiel discípulo de Émile Durkheim, Halbwachs assentou cação sobre a legitimação de ações no presente com referência ao
seus argumentos sobre a sociologia da memória de uma forma só- passado, o lugar das memórias de testemunhos em julgamentos,
lida, embora não extrema. o conceito de “tempo imemórial”, em outras palavras, tempo “de
Halbwachs fez uma incisiva distinção entre a memória cole- que a memória do homem (...) não corra para o sentido inverso”,
tiva, que era uma construção social, e a história escrita, por ele e a mudança de atitude para o indício da memória resultante na
considerada - à maneira tradicional - objetiva. disseminação dos registros literários e escritos.

Didatismo e Conhecimento 31
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Os exemplos de governantes como heróis populares ilustram Um novo interesse pelos gestos
os usos das memórias coletivas. Nas histórias, os desastres acom-
panham a morte ou desaparecimento do herói. Contudo, há uma O historiador francês Jean-Claude Schmitt observou um inte-
circunstância para inverter isso e afirmar que um governante cujo resse cada vez maior pelos gestos no século XX. Um comentário
reino é seguido de desastres - da invasão estrangeira ao exorbi- semelhante poderia ser feito sobre a Europa Ocidental no início
tante aumento de impostos - é um candidato com boas chances de do período moderno, em particular no século XVII, como admite
transformar-se em herói, pois as pessoas lembrarão o passado com o próprio Schmitt. No caso da Inglaterra, por exemplo, também se
nostalgia dos bons tempos sob seu governo (p.81). pode ver esse interesse nos textos de Francis Bacon; no guia dos
Os irlandeses e os poloneses oferecem, em particular, exem- gestos de mão de John Bulwer, a Chirologia (1644), que afirma
plos claros do uso do passado, da memória social e dos mitos
que tais gestos “revelam o atual humor, estado de espírito e dispo-
para definir a identidade. A finalidade e de lembrar 1690 (de uma
sição”; e nas observações de viajantes ao exterior, entre eles John
maneira especial), reencenar o 12 de julho, explodir a Coluna de
Nelson em Dublin como fez o IRA em 1966 - ou reconstruir o an- Evelyn, Thomas Coryate e Philip Skippon. No caso da França, en-
tigo centro de Varsóvia, depois de destruída por bombardeios dos contram-se análises perspicazes do gesto nos textos de Montaigne,
alemães - como fizeram os poloneses após 1945 -, a finalidade de Pascal, La Bruyère, La Rochefoucauld e Saint-Simon, assim como
tudo isso é, sem dúvida, dizer quem somos “nós”, e diferenciar o na teoria da arte de Charies Lebrun. A história do gesto e postura
“nós” do eles. Poderíamos multiplicar esses exemplos. No caso da atraiu a atenção de estudiosos e pintores como Nicolas Poussin,
Europa, é particularmente fácil encontrá-los no século XIX (p.83). cuja última ceia revela sua consciência do costume da Roma antiga
de recostar-se para comer. Antoine Courtin, em Nouveau traité de
Os usos da amnésia social la civilité (1671), ofereceu um conselho mais prático, dizendo aos
leitores que não cruzassem as pernas nem fizessem “grandes ges-
É sempre esclarecedor abordar problemas por trás, virá-los tos com as mãos” ao falar. A postura de pernas cruzadas, a propó-
pelo avesso. Para entender os mecanismos da memória social, tal- sito, tinha vários sentidos. Em alguns contextos, significava poder,
vez valha a pena examinar a organização social do esquecer, as re- mas em outros falta de dignidade. Proibia-se a postura as mulhe-
gras de exclusão, supressão ou repressão e a questão de quem quer res, mas também nem sempre era permitida aos homens (p.98).
que quem esqueça o quê e por quê. Em suma, a amnésia social. A multiplicação de textos italianos que discutem o gesto do
Amnésia se relaciona a «anistia», com o que se chamava de «atos Renascimento em diante (mais ou menos um século antes que em
de esquecimento» a obliteração oficial de memórias em conflito no outros países) confirma a impressão de crescente interesse pelo
interesse da coesão social (p.86).
assunto. A literatura da moral e costumes contém muitas observa-
ções pertinentes sobre os gestos adequados para mulheres e para
4 - a linguagem do gesto no início da italia moderna
homens. Por exemplo, o anônimo Decor puellarum (1471), um
Este capítulo discutirá, com referência especial à Itália, os texto vernáculo apesar do título em latim, ensina meninas a man-
problemas em se escrever a história do gesto, ou melhor, integrar ter os olhos baixos, comer e falar com circunspeção, andar e ficar
o gesto à história. Tratará do problema da conceituação, distin- com a mão direita sobre a esquerda e manter os pés juntos, para
guindo os gestos conscientes e inconscientes, ritualizados e espon- não se parecerem com as prostitutas de Veneza. O gesto de uma
tâneos, das origens (tanto visuais como literárias), das variações mão apertando a outra era uma “fórmula de submissão” que se
regionais e sociais, e acima de tudo das mudanças com o passar encontra, por exemplo, em algumas figuras femininas de Giotto. O
do tempo, em particular a ênfase cada vez maior na disciplina e Courtier (1528) de Castiglione também comenta a postura (lo sta-
autocontrole do corpo, recomendados em tratados de autores tão re) e os gestos (i movimenti) mais adequados para mulheres e ho-
diferentes quanto Baldassare Castiglione e Carlo Borromeo. mens, enfatizando a necessidade de “suprema graça” nas mulheres
A tarefa de reconstruir o repertório completo dos gestos ita- e também uma espécie de timidez que revele sua modéstia (p.100).
lianos é evidentemente ambiciosa demais para um capítulo curto. Às suas diferentes maneiras, os textos acima citados reve-
Tudo o que posso fazer de maneira razoável é discutir o que pa- lam considerável interesse não apenas pela psicologia dos gestos,
recem ser as principais mudanças no sistema entre 1500 e 1800. como os sinais externos de emoções ocultas, mas também - e nisso
Ao contrário de obras anteriores sobre o assunto, este capítulo se reside à inovação - pelo que poderíamos chamar de «sociologia».
concentrará mais na vida cotidiana que nos gestos ritualizados de
Já se afirmou com frequência que os gestos formavam uma lin-
beijar os pés do papa, caminhar em procissão e assim por diante.
guagem universal, mas a essa posição «universalista» se opunha
Seguindo a parcialidade das fontes, será difícil deixar de dedicar
uma atenção desproporcional as classes mais altas e também aos uma «culturalista». Muitos autores se preocupavam com a maneira
homens, pois uma das regras da cultura era que as mulheres respei- como variavam, ou deviam variar os gestos segundo o que se po-
táveis não gesticulavam, ou pelo menos não muito (p.97). deriam chamar os vários «domínios» dos gestos (a família, a corte,
Podemos resumir as mudanças a serem aqui enfatizadas em a igreja e assim por diante) e também dos atores - jovens ou velhos
três hipóteses. A primeira é a de um crescente interesse pelos masculinos ou femininos, respeitáveis ou despudorados, nobres ou
gestos neste período, não apenas na Itália, mas de maneira mais comuns, leigos ou clericais. Portanto, poder-se-ia dizer que os tex-
generalizada na Europa. A segunda hipótese é de que essa auto- tos modernos oferecem testemunho de um interesse crescente não
consciência foi estimulada por um movimento pela “reforma” dos apenas pelo vocabulário dos gestos, exemplificado no dicionário
gestos que ocorreu tanto na Europa católica quanto na protestante de Bonifácio, mas também por sua «gramática», no sentido das
no período das Reformas. A terceira e última hipótese tenta vincu- regras de expressão correta, e por fim por seus vários «dialetos»
lar essa reforma ao surgimento do estereótipo nortista do italiano (para usar o termo de Jorio) ou «socioletos», como diriam os lin-
gesticulador (p.97). guistas modernos (p.101, 102).

Didatismo e Conhecimento 32
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A reforma dos gestos como a Grã-Bretanha, a Holanda e as áreas de língua alemã - do
que nas católicas do sul. O resultado foi a dilatação da lacuna entre
Vinculou-se a consciência cada vez maior dos gestos às tenta- os comportamentos do norte e do sul, e, em particular, os nortistas
tivas de algumas pessoas para mudar os gestos de outras. Os pro- se tornaram mais críticos em relação aos italianos. O estereótipo
testantes se preocupavam com o comportamento, do mesmo modo do italiano gesticulador parece ter nascido no início do período
que com a crença, enquanto nos países católicos uma reforma moderno, refletindo o contraste entre duas culturas gestuais, asso-
dos gestos fazia parte da disciplina moral da Contrarreforma. Por ciadas a dois estilos de retórica (laconic versus copious), além de
exemplo, nas Constituições que emitiu para sua diocese de Verona, outras diferenças (p.109).
por volta de 1527, Gianmatteo Giberti, que veio a ser considerado
um bispo modelo, ordenou a seu clero que mostrasse circunspeção 5 fronteiras do cômico no início da itália moderna
“nos gestos, no andar e no estilo do corpo” (“in gestu, incessu et
habitu corporis”). O termo “babitus” era, é claro, famoso nesse O chiste (ou o riso) tem seu lugar entre os objetos da história
período graças às traduções latinas de Aristóteles, muito antes de sociocultural. Na década de 1960, Mikhail Bakthin fez do assunto
Marcel Mauss e Pierre Bourdieu fazerem as suas. tema central de seu estudo sobre Rabelais, enfatizando o que des-
Não se deve vincular de forma tão estreita a reforma dos ges- creveu como função liberadora do riso.
tos italianos à Contra-Reforma. Cícero já desestimulava o que Os chistes são difíceis de traduzir de um período para o outro,
chamou de movimentos “teatrais”, ou andar depressa demais (ou assim como de uma cultura para outra. Daí a existência de um
devagar demais), e do Renascimento em diante sua autoridade era lugar para a história do riso.
levada muito a sério tanto no domínio dos gestos quanto no da fala. Na língua italiana haviam muitas palavras para o próprio chis-
Se os reformadores de gestos tinham um ideal em mente, te: baia, beffa, burla, facezia e outras.
qual era? Podia ser (e às vezes era, como vimos) descrito como
um modelo espanhol, influente na Europa Central, assim como na A beffa
Itália, e incluía língua, roupas e também gestos. Se se tivesse de
resumir esse ideal em uma única palavra, talvez fosse “gravidade”. Beffa era uma brincadeira de mau gosto ou truque e muitas
O humanista alemão Heinrich Agrippa afirmou em 1530 que os vezes descritas em livros de anedotas, historias e outras fontes.
italianos “andam um tanto devagar, são dignos nos gestos”. Outro Esse tipo de humor era prevalente na Itália, sobretudo em Flo-
alemão, Hieronymus Turler, insistiu na mesma afirmação (seja a rença, “la capitale de la beffa”.
partir de observação ou copiando Agrippa), na década de 1570; Decameron, de Boccaccio é um ponto de partida para o estudo
“o italiano tem um modo de andar meio lento, gestos graves” do gênero. Os truques ocorrem em 27 histórias e usam-se os ter-
(“incessum tardiusculum, gestum gravem”).43 Joseph Addison, mos beffa, beffare e beffatore oitenta vezes.
chegando a Milão (ainda parte do Império Espanhol) oriundo da Na novela do século XVI, encontramo-las em toda parte.
França, achou os italianos “hirtos, cerimoniosos e reservados”, em
contraste com os franceses(p.107). 6. O discreto charme de milão: viajantes ingleses no século
A atração do modelo espanhol nos séculos XVI e XVII sem xvii
dúvida se deu porque encontrou uma demanda já existente de con-
trole mais rigoroso do corpo, a reforma dos gestos discutida nesta Desde que se aprenda a usá-los, os diários ou correspondên-
seção. cias de viagens, travelogues, estão entre as mais eloquentes fontes
A história dessa demanda foi escrita pelo sociólogo Norbert para a história cultural.
Elias em seu famoso estudo do “processo civilizador” (com o que, A tentação, tanto para os historiadores quanto para outros
em geral, quer dizer autocontrole, particularmente os modos à leitores, é imaginar-se olhando através dos olhos dos escritores,
mesa), concentrando-se no norte da Europa, mas incluindo algu- ouvindo através de seus ouvidos e percebendo uma hoje remota
mas observações sobre os italianos, que foram, afinal, pioneiros no cultura como realmente era.
uso do garfo. Mais recentemente, Michel Foucault ofereceu uma
história alternativa do corpo, examinando os aspectos negativos Como viajar
em Vigiar e punir, os mais positivos em História da sexualidade e
enfatizando o controle sobre o corpo dos outros assim como sobre Também se revela que muitos desses diários e cartas de via-
o eu. Elias e Foucault se dedicaram ao estudo da prática, assim gem seguem as receitas dadas em livros sobre a “arte de viajar”.
como da teoria, dos gestos e do controle do corpo. É hora de per- Instruções sobre “como viajar” eram um gênero literário estabele-
guntar se os reformadores italianos dos gestos tiveram êxito em cido por volta do século XVII. Contribuições ao que às vezes se
suas metas (p.109). chamou de “arte apodêmica”, em outras palavras, viagem metódi-
ca, incluem De peregrinatione (1574), de Hieronymus Turler, De
O italiano gesticulador arte apodêmica (1577), de Hilarius Pyrckmair, Methodus apodê-
mica (1577), de Theodor Zwinger, De ratione peregrinandi (1578),
A reforma discutida na seção anterior não foi peculiarmente de Justus Lipsius, Methodus (1587), de Albert Meier, De peregri-
italiana, mas parte de um “processo civilizador” ocidental (há pa- natione (1605), de Saiomon Neugebauer e Metbodus peregrinandi
ralelos em outras partes do mundo, como a China e o Japão, mas (1608), de Henrik Rantzau. o ingresso em uma cultura estranha
sua história carece de ser escrita). A hipótese a ser aqui apresentada ou semiestranha transforma o viajante em espectador, observador
é que a reforma dos gestos, se não mais rigorosa, foi pelo menos se não em voyeur. Como diz Henry James em suas Italian Hours
mais bem-sucedida nas regiões protestantes do norte da Europa - (1877): “Viajar é, por assim dizer, ir ao teatro assistir a uma peça.”.

Didatismo e Conhecimento 33
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Visões da Itália Historiadores, sobretudo Roberto Lopez, ele próprio genovês
de nascença, ofereceram várias explicações para a falta de parti-
Dois importantes reformadores, Erasmo e Lutero, visitaram cipação genovesa no Renascimento. Para tratar de uma das mais
a Itália e relataram seu desagrado por alguns costumes italianos, convincentes, a falta de patrocínio cívico. Segundo Baron, o surgi-
como o Carnaval em Siena, testemunhado por Erasmo em 1509. mento do patriotismo cívico parece ter sido uma reação não apenas
Contudo, a rejeição pela Reforma de imagens, rituais, santos e as- à ameaça política, mas também a uma econômica: a ascensão do
sim por diante só pode ter aumentado a distância da cultura italiana luxo.
sentida por viajantes protestantes do norte da Europa. Os anos após 1528 (“28”, como chamavam os genoveses)
Apesar de seu desprezo, ou medo, do catolicismo (ou “pa- foram assinalados por mudanças culturais além de econômicas e
pismo”, como dizem), um considerável número de britânicos das políticas. Descreve-se às vezes o Renascimento veneziano como
classes mais altas sentia um vívido interesse pela cultura italiana. “tardio”, porém os genoveses entraram no campo ainda mais tarde.
O italiano era provavelmente a língua estrangeira mais conhe- O gasto impressionante em arte e arquitetura começou na era da
cida dos ingleses nessa época, ultrapassada pelo francês apenas no conexão espanhola.
decorrer do século XVIII. Admirava-se muito a literatura italiana, Contudo, o verdadeiro ponto crucial chegou na década de
sobretudo a poesia de Petrarca, Ariosto e Tasso. 1550, com a construção da Strada Nuova, uma rua de palácios que
Portanto, não surpreende a existência de um substancial nú- pertenciam às grandes dinastias financeiras.
mero de viajantes ingleses à Itália no início do período moderno. Houve o surgimento da literatura política (impressa e manus-
As diferenças de religião, língua, clima e costumes proporcio- crita), de 1559 quando o advogado humanista Oberto Foglietta
navam aos viajantes um agudo senso de distância cultural. publicou seu Republica di Gênova - ao início da década de 1620.
A princípio, vira-se a Itália como o centro da civilização, mas O que se publica é o mais importante, mas pode-se dizer que
no século XVIII ela já se transformava em uma Arcádia. Nos dois na Gênova de fins do Renascimento as coisas funcionavam de ou-
casos, encontramos um mito de lugar não muito diferente dos mi- tro modo. O que se publicava era geralmente (embora nem sem-
tos de tempo. pre) anódino. Por outro lado, as críticas ao governo circulavam em
O mito da Itália não impediu que alguns visitantes observas- manuscrito, às vezes em múltiplas cópias, uma espécie de samiz-
sem cuidadosamente os costumes locais, como os guias de viagem dat. A maioria das obras era anônima. Algumas adotavam a forma
recomendavam.
de diálogos humanistas à maneira de Luciano, com títulos como
“O sonho” ou os “Diálogos de Caronte”.
Visões de Milão
A linguagem de mais de um texto é uma reminiscência de
Maquiavel, aplicando suas ideias à análise de Gênova e suas fac-
Para uma análise intensiva mais precisa da interação entre
ções, e um diálogo o menciona pelo nome. Um dos poucos textos
estereótipo cultural e observação pessoal, podemos recorrer às vi-
impressos é em verso, uma série de sonetos em dialeto, descre-
sões de Milão registradas por viajantes britânicos no decorrer de
um longo século XVII, da década de 1950 ao inicio da década de vendo a República Romana, “Quell antiga República Romanna”,
1700. Nessa época, os britânicos tinham uma impressão razoavel- mas obviamente pensando no presente. Alguns desses textos fo-
mente clara de pelo menos quatro cidades italianas. Associava-se ram impressos nos séculos XIX e XX, mas outros permanecem
Roma, é claro, às ruínas da Antiguidade e ao papado. Veneza era em manuscrito nos arquivos e bibliotecas genoveses, merecendo
famosa pelo Carnaval além de sua “constituição mista”. Floren- uma análise mais detalhada do ponto de vista dos historiadores do
ça era célebre pelas obras de arte, e Nápoles pela beleza natural pensamento político formam a base deste capítulo.
(p.148). Os genoveses, ou alguns deles, temiam o domínio político dos
espanhóis.
7. Esferas pública e privada na Gênova de fins do renasci-
mento 8. Cultura erudita e cultura popular na Itália renascen-
tista
Historiadores e sociólogos urbanos concentravam a atenção
na economia das cidades, sua estrutura social e política, mas na O estudo da Itália renascentista continua a prosperar. A histó-
última geração passaram cada vez mais a preocupar-se com o que ria da cultura popular continua a se expandir. Estudos recentes da
se denominou de “a cidade como artefato”, incluindo a história do cultura popular afirmaram, de maneira muito razoável, que é mais
espaço urbano. O que chama de “queda do homem público” e seu proveitoso estudar as interações entre a cultura erudita e a cultura
oposto complementar, o valor cada vez maior atribuído à vida pri- popular do que tentar definir o que as separa. Apesar disso, os estu-
vada, foram estudados pelo sociólogo americano Richard Sennett dos do Renascimento italiano pouco têm a dizer sobre a cultura po-
em termos espaciais. Sennett descreve o “teatro” social e político pular, e os estudos da cultura popular italiana ainda menos a dizer
de Paris e Londres e seu cenário, as praças públicas, das quais se sobre o Renascimento. Examinar se a lacuna deve ser preenchida é
baniram o comércio e a diversão popular do final do século XVII o propósito deste capítulo (p.179)
ao início do XVIII, e outros lugares, de teatros a parques, onde Os historiadores da cultura italiana desse período têm de lidar
estranhos podiam se encontrar (p.161). com um processo de mão dupla. De um lado, a propagação das
Gênova é a Cinderela dos estudos do Renascimento Italiano, formas e ideias do Renascimento das elites para o povo, sua difu-
em geral negligenciada. Até certo ponto, essa negligência é quase são social, assim como geográfica. Por conveniência - usando uma
justificada, no sentido de que no início do Renascimento, e mesmo simples metáfora espacial - podemos chamar isto de movimento
no Alto Renascimento, os genoveses não deram a contribuição que “de cima para baixo”. Do outro, há um movimento “de baixo para
se poderia esperar de uma cidade do norte da Itália de suas dimen- cima”, em que os pintores e escritores italianos recorreram à he-
sões (cerca de 90 mil habitantes). rança cultural popular (p.180).

Didatismo e Conhecimento 34
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Um exemplo relativamente bem delineado de baixo para cima A Comedia delatar-te também merece estudo do ponto de vis-
é o da popularização de Orlando, furioso, de Ariosto. O poema foi, ta deste ensaio, com especial referência ao fascinante e confuso
é claro, escrito por um nobre para nobres, e em sua forma publica- problema da relação entre as personagens e as máscaras dessa for-
da era muito expressivo. Contudo, os anientos” de personagens do ma de arte de aparência popular- o soldado fanfarrão, o velho tolo,
poema, como Bradamante, Isabella, Rodomonte, Ruggiero e ou- o criado astuto - e as do antigo drama grego e romano.
tros, além de outras paráfrases em verso, suplementos e resumos, O aumento da complexidade ao longo do tempo talvez não
circulavam em livrinhos de contos e baladas populares no século seja acidental, mas resultado de um processo que se pode descre-
XVI. Alguns desses textos eram anônimos, mas um - uma tentativa ver como a “retirada” das elites da participação na cultura popular.
de comprimir as -belezas” do poema em dezesseis páginas - foi O lugar óbvio para começar é o Decameron, de Boccaccio.
obra do poeta bolonhês Giulio Cesare Croce, um famoso mediador Como no caso de Rabelais, Boccaccio é hoje lembrado pela sua
entre cultura erudita e popular(p.181). “vulgaridade”, portanto é necessário enfatizar que também ele
No caso das artes visuais, a relação entre erudito e popular é era um homem erudito, um professor universitário que escreveu
consideravelmente mais complicada, porque a arte “superior” do tratados em latim e fazia palestras sobre Dante. Seu toscano foi
Renascimento italiano era em geral produzida por homens com “canonizado” no século XVI (junto com o de Dante e Petrarca)
formação e status de artífices. Eles produziam pinturas religiosas como modelo de italiano puro. Apesar disso, fica claro que muitas
sem a oportunidade de estudar teologia e cenas da mitologia clás- das histórias no Decameron foram extraídas da tradição oral popu-
sica sem ter condições de ter em latim, para não falar de grego. lar, do que os estudiosos do século XIX chamavam de “Contos e
A obra de arte já ingressara na era da reprodução mecânica. lendas populares” e também exemplificam alguns dos temas pre-
Como a pintura, a gravura era um grande popularizador, pelo me- feridos de Bakhtin (p.188).
nos no sentido de que permitia que muito mais pessoas vissem as O lugar do carnavalesco na obra de Boccaccio é bastante cla-
imagens, e talvez também mais tipos de pessoas. ro, Várias histórias incluem episódios do que Bakhtin chama de
A cerâmica oferecia outro meio de difundir imagens de ma- “realismo grotesco” ou “degradação”. Logros e intrigas se repetem
neira mais generalizada, pois a matéria-prima era barata. várias vezes nas novelle de Boccaccio, como também nas outras
Evidentemente, a questão é descobrir como as pessoas que histórias do Renascimento (como as de Sacchetti, Masuccio Saler-
não eram membros de uma elite cultural percebiam esses objetos, nitario, Bandello e Grazzini), O monge beneditíno Teofilo Folengo
e em especial se se interessavam ou não por estilos, assim como que descreve uma viagem no mar com o dono de um rebanho de
ovelhas, O tema do poema de Folengo é híbrido, ao mesmo tempo
pelas histórias.
bucólico e cavalheiresco, e o estilo, de maneira bastante adequada,
também é híbrido. A linguagem é uma forma de latim que muitas
Inspiração popular no renascimento
vezes se comporta como se fosse italiano ou dialeto - uma mistura
de dois ou três códigos, ou melhor, um produto de sua interação.
É hora de deixarmos a popularização do Renascimento e pas-
O primeiro exemplo, o de Boccaccio, mostra um homem eru-
sar para a importância dos elementos «baixos» na cultura «alta». O
dito que recorre a uma tradição popular da qual participava. O se-
gênio que preside esta seção do capítulo é, evidentemente, Mikhail
gundo, o de Folengo, é mais complexo, pois mostra um homem
Bakhtin, cujo Mundo de Rabelais (escrito na década de 1930, mas erudito que faz uma síntese autoconsciente das tradições eruditas e
só publicado em 1965) afirmou que o autor de Gargântua e Panta- populares, ou pelo menos joga com as tensões entre elas.
gruel se inspirou maciçamente na «cultura de humor popular», em Ariosto é ainda mais complexo. Orlando furioso é um roman-
particular o grotesco e o carnavalesco. 15 Tomaram-se essas obras, ce de cavalaria ou um romance de cavalaria zombeteiro - Um ro-
que são tours de force da imaginação histórica, como modelo para mance do escritor brasileiro Jorge Amado, Tereza Batista cansada
estudos recentes de Breughel, Shakespeare e outros artistas e escri- de guerra (1972), por exemplo, recorre a um livrinho de cordel de
tores do Renascimento (p.185). Rodolfo Coelho Cavalcanti (esses livrinhos populares circulavam
O mundo de Rabelais também foi criticado por especialis- e talvez ainda circulem no Nordeste do Brasil, pelo menos nas
tas do Renascimento. Na suposição de que Bakhtin afirma que áreas mais remotas das cidades e da televisão).
Gargântua e Pantagruel pertence por completo à cultura popular, Pietro Aretino, que fez reputação em. A pasuinata era um gê-
os críticos salientaram que Rabelais era um homem erudito e sua nero fronteiriço entre cultura erudita e popular.
obra não teria sido completamente compreensível para as pessoas Contudo, o melhor exemplo da mistura ou interação de ele-
comuns. mentos eruditos e populares na obra de Aretino é, sem dúvida, seus
Outra distinção importante que permanece obscura na obra Ragionamenti, diálogos em que uma velha prostituta instrui uma
de Bakhtin é a entre a apropriação (e transformação) de elementos nova sobre as aptidões da profissão.
da cultura popular (que Rabelais sem dúvida faz) e a participação Aretino explora as semelhanças entre os termos cortegiano,
total daquela cultura. As elites europeias do século XVI eram “bi “cortesão”, e cortegiana, “cortesã”. Aretino era filho de um arte-
culturais”. Tinham uma cultura erudita da qual as pessoas comuns são, foi criado no mundo da cultura popular e até o fim da vida
eram excluídas, mas também participavam do que hoje chamamos apreciou os cantadores de rua.
de cultura “popular”. Os exemplos citados neste capítulo não esgotam o âmbito de
No caso da arte, pode-se começar pelo estudo da interação possibilidades, mas talvez sejam pelo menos suficientes para su-
entre alta e baixa com algumas esculturas grotescas ou cômicas. gerir a notável variedade das relações possíveis entre alta e baixa
Talvez seja insensato supor que tudo que é cômico é neces- culturas, os usos da cultura popular por escritores renascentistas,
sariamente popular, mas vale lembrar que Aristóteles - como era os usos do Renascimento pelas pessoas comuns e, por fim, a im-
interpretado pelos humanistas italianos afirmou que a comédia es- portância da “viagem circular” de imagens e temas, uma viagem
tava ligada a pessoas “inferiores”. circular em que o que retorna jamais é o mesmo que partiu.

Didatismo e Conhecimento 35
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A cavalaria no Novo Mundo Os mitos ou estereótipos tradicionais das chamadas “raças
monstruosas” eram assim revitalizados e projetados no Novo
Pode-se resumir a mensagem deste capítulo em uma frase, Mundo.
quase um título. Carlos Magno não morreu; vive na América Lati- Os emigrantes da Espanha para o México e o Peru levaram
na, ou vivia até relativamente pouco tempo atrás. O Novo Mundo consigo esses romances de cavalaria, ou conseguiam que vende-
chegou atrasado à cavalaria, pois era obviamente impossível para dores de livros os fornecessem.
seus habitantes conhecerem esse sistema de valores europeus e os No caso do Brasil, parece não haver quaisquer referências aos
romances que o expressaram até 1492. E talvez se possa julgar que romances de cavalaria. Na verdade, uma história da imprensa no
o comportamento de Cortês e Pízarro no México e no Peru nada país comenta a ausência de livros de qualquer tipo, segundo os
fez para tornar o sistema de valores mais inteligível para os astecas inventários, já no século XVII, em impressionante contraste com
e os incas. Por outro lado, assim que se transplantou a tradição, foi os vice-reinados do México e do Peru. Podiam-se importar livros,
no Novo Mundo, ou em partes dele, que os romances de cavalaria mas não se tinha permissão para imprimi-los no Brasil até o início
conservaram seu apelo por mais tempo, sobretudo no Nordeste do do século XIX. Apesar disso, é no Brasil que encontramos a mais
Brasil (p.197). rica documentação sobre cavalaria no Novo Mundo em fins do
Na Espanha da Idade Média, os romances de cavalaria eram século XIX e início do XX. Carlos Magno e seus paladinos ocupa-
um gênero popular oral e literário. Os muçulmanos, assim como vam um importante lugar na imaginação popular brasileira.
os cristãos, os compunham, recitavam e liam, e um número con- No próprio Brasil, os livrinhos, que eram chamados de fo-
siderável dessas histórias, incluindo os gigantes habituais, os cas- lhetos e agora são mais conhecidos por “literatura de cordel”, só
telos encantados, as espadas com nomes e as mulheres guerreiras, começaram a ser impressos em fins do século XIX. Esses textos
sobrevivem no espanhol escrito em caracteres árabes. 1 Como em continuam hoje sendo produzidos em números consideráveis.
outras partes da Europa renascentista, muitos espanhóis humanis- Como no caso dos livrinhos vendidos por mascates do início da
tas rejeitaram os romances de cavalaria como livros “tolos” ou Europa moderna, os de cordel eram e são bem adaptados a uma
“idiotas”. situação de alfabetização limitada. Em geral são em verso, quase
Dom Quixote era considerado o melhor livro do seu tipo no sempre no que se conhece por sextilhas (estrofes de seis versos
mundo. Ainda mais bem-sucedidos no século XVI foram dois de sete sílabas). Eram (e são) na maioria das vezes impressos em
ciclos de romances em castelhano: Palmerín de Oliva, cuja pu- gráficas pequenas e distribuídos em primeira instância pelos pró-
blicação começou em 1511, e Amadís de Gaula, publicado pela prios compositores ou cantadores, que fazem apresentações orais,
acompanhados de música nos mercados em dias de feira, e de-
primeira vez por volta de 1508. Amadis foi não apenas reeditado
pois os vendem aos ouvintes. Pode-se considerar o texto como a
muitas vezes, mas também seguido por uma série de continuações
espécie de lembrança da apresentação, ou a apresentação como
de cerca de meia dúzia de autores, girando sobre as aventuras do
uma espécie de comercial para o texto. Não importa muito se pois
filho de Amadís, o neto de Amadís e assim por diante, heróis com
geralmente é possível encontrar outra pessoa que leia ou cante o
nomes como Espladián, Lisuarte e Amadís da Grécia. Em 1546,
texto para eles(p.204, 205).
o ciclo já se estendera a doze livros. Essas histórias de aventuras
Também se pode interpretar o grande clássico da literatu-
tiveram um amplo apelo na Itália do Renascimento, na França, na ra brasileira moderna, Grande sertão (1956), de João Guimarães
Inglaterra e em outros lugares. Rosa, como uma transformação dos romances de cavalaria do
O humanista João de Barros não apenas foi um famoso histo- Novo Mundo feita por um autor conhecedor desde a infância da
riador das façanhas dos portugueses na Ásia, mas também autor de História de Carlos Magno. Grande sertão trata das aventuras de
um romance, Clarimundo (1520), que desfrutou considerável su- Riobaldo e Diadorim, um par de jagunços, isto é, homens de vio-
cesso. Escritores portugueses, como Francisco de Moraes e Diogo lência, honrados, que vivem no sertão.
Fernández, deram continuidade ao ciclo Palmerín. Quando o poeta A relação de Guimarães Rosa com a cultura popular não era
Luís de Camões introduziu o épico Os lusíadas (1572), contras- diferente da de Ariosto. Diplomata, polímata e poliglota, grande
tando sua narrativa com os feitos “fantásticos” ou “fabulosos” de conhecedor da literatura europeia, trabalhara antes como médi-
Rolando e Roger, talvez imaginasse que os leitores já conheciam co clínico no sertão de Minas Gerais. Dizia-se que, quando seus
esses romances. Um dos editores dos ciclos Amadís e Palmerín foi pacientes não podiam lhe pagar, ele lhes pedia em vez disso que
Marcos Borges, nomeado gráfico real em 1566. contassem uma história. Foi sem dúvida um estudioso assíduo do
Em vista do continuado interesse pelo gênero na Espanha e folclore local, que aparece em suas próprias histórias, coexistindo
em Portugal, quase não surpreende encontrar referências aos ro- e interagindo, como no caso de Diadorim, com temas da alta cul-
mances de cavalaria no início da história da conquista e coloniza- tura europeia.
ção do Novo Mundo. Esse contraste entre Oriente e Ocidente corrobora explicações
Uma das mais interessantes peças de comprovação vem da da persistência de temas que são estruturados em termos de tradi-
história da conquista do México, escrita por Bernal Díaz del Cas- ções culturais e de condições sociais que favorecem a persistência
tillo. dessas tradições.
Outra interessante peça antiga indicadora dos romances de ca-
valaria no Novo Mundo é um nome: Califórnia. 10. A tradução da cultura: o carnaval em dois ou três mun-
No romance Esplandián, uma continuação da história de dos
Amadís, publicada pela primeira vez em 1510, viemos a saber de
um grupo de mulheres guerreiras governadas por uma certa rainha O Carnaval não é apenas um tema de romances e filmes sobre
Catafia, “amante da grande ilha da o Brasil, como Orfeu negro (1958), de Marcel Carné, mas tam-
Califórnia, célebre por sua esplêndida abundância de ouro e bém um tema recorrente na própria cultura brasileira. O roteiro
joias”. de Orfeu negro foi obra do poeta Vinicius de Moraes, que adaptou

Didatismo e Conhecimento 36
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sua peça Orfeu da Conceição, e a música do filme composta por O exemplo clássico de dança mista é o do Brasil, na era da
Luís Bonfá e Antônio Carlos Jobim, mais conhecido como “Tom”. polca, predominante dos anos 1850 a 1900, a era do maxixe, da dé-
Outros exemplos literários incluem Carnaval (1919), de Manuel cada de 1870 à de 1910, a era do samba, predominante de cerca de
Bandeira, Carnaval carioca (1923), de Mário de Andrade, e o pri- 1916 até hoje. No Rio, a dança era e é a parte mais importante do
meiro romance de Jorge Amado, O país do Carnaval (1932). Al- desfile, o cortejo carnavalesco que, em si, se tornou a parte essen-
gumas das melhores músicas de Chico Buarque, Gilberto Gil e cial das festividades de meados do século XIX em diante. (p.221).
outros importantes compositores foram originalmente compostas A dança é o lugar ocupado pelos elementos africanos no Car-
para determinados carnavais. Sobre representações do Carnaval naval e em outras festividades latino-americanas. A comemoração
na cultura popular, basta assistir a séries como Carnaval Duchen da festa de Corpus Christi no Brasil colonial, na província de Mi-
(Rádio e TV Record), Meu Carnaval não era assim (TV Tupi) ou nas Gerais, por exemplo, incluía carros alegóricos e danças de ne-
Carnaval do passado (TV Rio) (p.215). gros com bandeiras, instrumentos de percussão e músicas - todos
Qualquer pessoa familiarizada com os carnavais europeus se elementos a serem encontrados mais tarde nos carnavais brasilei-
sentirá em casa ao observar ou, na verdade, participar de carnavais ros. A tradição do maracatu, cucumbi, congada ou “reis do Con-
no Novo Mundo. Os paralelos são impressionantes. O lançamento go”, a entronização de reis e rainhas negras vestidas com fantasias
de cascas de ovo ou bisnagas de cera cheias de água, muito prati- deslumbrantes na festa de Nossa Senhora do Rosário, mais uma
cado no Rio do século XIX, por exemplo, derivou da tradição do vez em Minas Gerais, também foram transferidos para o Carnaval.
entrudo português, uma tradição com muitos paralelos na França, (p.221)
Espanha e Itália, embora os misseis fossem ovos ou laranjas. Fan- A dança, religiosa ou secular, era e talvez continue a ser uma
tasiar-se e usar máscaras eram um costume tradicional europeu, e forma de arte mais importante na África do que em qualquer outro
mesmo alguns dos costumes preferidos dos americanos, como os lugar. Na África oriental, por exemplo, havia a tradição da ngoma,
hussardos, os arlequins do Rio e os pierrôs e polichinelos de Trini- dança que muitas vezes adota a forma de parada militar ou “re-
dad, copiavam modelos europeus. O desfile das escolas de samba vista de tropas” por membros de diferentes associações de dança,
do Rio hoje lembra as paradas e carros alegóricos que já se viam em que as mulheres desempenhavam um papel predominante. Em
em Florença e Nuremberg no século XV. Mombasa de fins do século XIX, essas paradas incluíam carros
Mais uma vez, as escolas de samba e seus antecessores da alegóricos reminiscentes “dos carnavais em Nice e em Nova Or-
classe média, como os “Democráticos”, “Tenentes do Diabo” e leans”, segundo um oficial britânico. Na África ocidental, mais
“Fenianos” no Rio do século XIX, são reminiscências dos Abades relacionada às Américas, pois a maioria dos escravos é oriunda
da juventude e outras sociedades festivas europeias. (p.218). daquela região, a dança muitas vezes se associava intimamente as
No caso da relação do Brasil com a Europa, precisamos levar práticas religiosas. A associação entre dança e religião era mais
em conta não apenas a tradição inconsciente, mas também a imi- estreita do que na Europa, onde havia uma longa tradição de hosti-
tação consciente. Os brasileiros, em particular das classes médias, lidade oficial a danças na igreja ou mesmo por ocasião de festivais
eram e na verdade ainda são muito atraídos por modelos culturais religiosos. (p.223).
estrangeiros. Em particular, os carnavais de Veneza, Roma e Nice Os instrumentos e os movimentos da religião africana (can-
são exemplares no Brasil do século XIX. (p.218). domblé) foram mesclados ao carnaval brasileiro.
Esse Carnaval do Novo Mundo é muito mais que uma im- As danças do candomblé são às vezes comparadas ao samba
portação europeia. Como muitos aspectos da cultura europeia, foi do Carnaval não apenas por observadores, mas também por parti-
transformado ao longo de sua permanência nas Américas, trans- cipantes. No Brasil, incorporaram-se outras práticas religiosas ao
portado ou “traduzido” no sentido de ser adaptado às condições Carnaval, por meio do afoxé, palavra que significa não apenas um
locais. instrumento musical (a maraca) um cortejo carnavalesco de adep-
Essas transformações são mais importantes ou pelo menos tos do candomblé. O compositor e cantor brasileiro Gilberto Gil
observáveis com mais facilidade em três domínios - o lugar das conta que, quando desfilava no Carnaval de Salvador com o resto
mulheres, da dança e da cultura africana. (p.219). de seu grupo de afoxé, certa vez viu uma mulher de meia-idade
Por outro lado, no Novo Mundo, apesar da transplantação do benzer-se, na certa pensando que o que estava vendo era uma pro-
patriarcalismo - descrito por escritores latino-americanos, de Gil- cissão religiosa. (p.225).
berto Freyre a Gabriel García Márquez -, as mulheres há muito Os elementos mencionados talvez sejam suficientes para lan-
têm sido mais visíveis e ativas no Carnaval. Assim, em 1826, um çar a hipótese de que os carnavais do Novo Mundo são “super-
oficial inglês em Trinidad observou que “um grupo de mulheres, determinados”, no sentido de que surgiram do encontro de duas
tendo se transformado em um grupo de bandoleiros, atacou-me tradições festivas, a europeia e a africana. Há “sincretismo”, no
nos meus alojamentos”. No Brasil, a participação feminina no sentido preciso de coexistência e interação temporárias de elemen-
entrudo foi considerada digna de nota por visitantes estrangeiros, tos de diferentes culturas, assim como há “anti-sincretismo” no
como Thomas Lindley (1805), Henry Koster (1816), John Mawe sentido de tentativas de purificar o Carnaval, primeiro de seus ele-
(1822), Robert Walsh (1830) e Ferdínand Denis (1837). (p.220). mentos africanos (em fins do século XIX), e mais recentemente de
Ligada ao papel mais ativo de mulheres, a importância da dan- seus elementos europeus.36 Também pode ter havido elementos
ça torna os carnavais do Novo Mundo característicos. A dança não ameríndios nesse composto, mas, se assim for, é muito difícil iden-
era de todo ausente na Europa. tificá-los hoje (o uso de fantasias de índios por negros e brancos é
Em particular as de espada ocorriam nos tradicionais carna- outra questão).
vais europeus. Apesar disso, não tinha ali a mesma importância de As festas exemplificam, assim, o que o sociólogo e folcloris-
que no Brasil (digamos) ou em Trinidad, onde a cafinda ou dança ta cubano Fernando Ortiz, ele mesmo um entusiasta de Carnaval,
do pau é parte essencial das festividades desde, pelo menos, o iní- chamou de “transculturação” (p. 262), em outras palavras, a inte-
cio do século XIX, ou em Nova Orleans, que impressionou um ração recíproca entre duas culturas, em oposição à “aculturação”,
visitante francês porque “eles dançam em toda parte”. (p.220). em que se supõe que a influência se dê em um só sentido. (p.227).

Didatismo e Conhecimento 37
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
11. Unidade e variedade na história cultural Os Problemas

Atravessamos hoje um período da chamada “virada cultural” O problema essencial para os historiadores culturais hoje, é
no estudo da humanidade e sociedade. “Estudos culturais” flo- de que modo resistir à fragmentação sem retornar à suposição en-
rescem agora em muitas instituições educacionais, sobretudo no ganadora da homogeneidade de determinada sociedade ou perío-
mundo de língua inglesa. Muitos estudiosos que há mais ou menos do. Em outras palavras, revelar uma unidade subjacente (ou pelo
uma década se descreviam como críticos literários, historiadores menos ligações subjacentes) sem negar a diversidade do passado.
Por isso talvez seja útil chamar a atenção para um corpo de obras
da arte ou historiadores da ciência hoje preferem definir-se como
recentes e destacadas sobre a história de encontros culturais.
historiadores culturais, trabalhando em “cultura visual”, “a cultura
da ciência” e assim por diante. “Cientistas” políticos e historiado- O modelo de encontro
res políticos pesquisam “cultura política”, enquanto economistas
e historiadores econômicos desviaram a atenção da produção para Nos últimos anos, os historiadores culturais têm se interessa-
o consumo, e assim para desejos e necessidades moldados em ter- do cada vez mais por encontros, e também por “choques”, “con-
mos culturais. flitos”, “competições” e “invasões” culturais, sem esquecer ou
Apesar disso, a história cultural ainda não está estabelecida minimizar os aspectos destrutivos desses contatos. De sua parte,
de maneira muito sólida, pelo menos no sentido institucional. Pen- os historiadores da descoberta ou colonialismo começaram a exa-
sando bem, não é fácil responder à pergunta: que é cultura? Parece minar as consequências culturais, além das sociais e políticas, da
ser tão difícil definir o termo quanto prescindir dele. Como vimos expansão europeia. (p.255)
no Capítulo 1, muitas variedades de “história cultural” vêm sen- Seria, é claro, insensato tratar esses encontros como se ocor-
do praticadas em diferentes partes do mundo desde fins do século ressem entre duas culturas, recuando a uma linguagem de homo-
geneidade cultural e tratando as culturas como entidades objetiva-
XVIII, quando se cunhou originalmente o termo na Alemanha (p.
mente ligadas (os indivíduos às vezes têm um forte senso de limi-
14). Nos últimos anos, a história cultural se fragmentou ainda mais
tes, mas na prática as fronteiras são atravessadas repetidas vezes).
que antes. A disciplina da história está se dividindo em cada vez A questão a ser aqui enfatizada é o interesse relativamente
mais subdisciplinas, e a maioria dos estudiosos prefere contribuir novo pela maneira como as partes envolvidas percebiam, enten-
para a história de “setores” como ciência, arte, literatura, educação diam ou, na verdade, não entendiam umas às outras.
ou a própria historiografia, em vez de escrever sobre culturas to- Se nenhuma cultura é uma ilha, nem mesmo o Haiti ou a Grã
tais. De qualquer modo, a natureza, ou pelo menos a definição de -Bretanha, deve ser possível empregar o modelo de encontro para
história cultural, é cada vez mais questionada. (p.234). estudar a história de nossa própria cultura, ou culturas, que deve-
Em meados do século XIX, quando Matthew Arnold fazia mos considerar variadas em vez de homogêneas, múltiplas em vez
suas palestras sobre “Cultura e anarquia”, e Jacob Burckhardt de singulares. Portanto, os encontros e interações precisam juntar-
escrevia sua Kultur der Renaissance in Italien, a ideia de cultura se às práticas e representações que Chartier descreveu como os
parecia praticamente prescindir de explicações. A situação não era principais objetos da nova história cultural.
muito diferente em 1926, quando Johan Huizinga fez sua famosa
As consequências
palestra, em Utrecht, sobre “A tarefa da história cultural”.
Para os três historiadores, “cultura” significava arte, literatura
As consequências dos encontros entre culturas foram estu-
e ideias “suaves e leves”, como a descreveu Arnold, ou, na for- dadas pela primeira vez de maneira sistemática por estudiosos
mulação mais precisa, embora mais prosaica, de Huizinga, “figu- de sociedades do Novo Mundo, onde os encontros haviam sido
ras, motivos, temas, símbolos e sentimentos”. A literatura, ideias, particularmente drásticos. No início do século XX, antropólogos
símbolos, sentimentos, e assim por diante, eram em essência os norte-americanos, entre eles o imigrante Franz Boas, descreveram
encontrados na tradição ocidental, dos gregos em diante, entre as as mudanças nas culturas indígenas americanas como resultantes
elites com acesso à educação formal. Em suma, cultura era algo do contato com a cultura branca em termos do que denominaram
que as sociedades tinham (ou, mais exatamente, que alguns grupos “aculturação”, a adoção de elementos da cultura dominante.
em algumas sociedades tinham), embora faltasse a outros (p.235). Um discípulo de Boas, Melville Herskovits, definiu a acul-
Em alguns países, associa-se esse apelo cada vez maior ao turação como um fenômeno mais abrangente do que a difusão,
surgimento de cursos multidisciplinares sob a égide de “estudos e tentou explicar por que alguns traços, mais que outros, foram
Culturais”. incorporados à cultura receptora. À fase de apropriação segue-se
a da “cristalização” os estudiosos da cultura, a começar por espe-
cialistas em história da religião no antigo mundo mediterrâneo,
História antropológica
muitas vezes falaram em “sincretismo”.
Herskovits se interessava, sobretudo pelo sincretismo reli-
Os leitores talvez estejam se perguntando se a moral das crí- gioso, como por exemplo, a identificação entre deuses africanos
ticas relacionadas acima é o abandono total de toda a história cul- tradicionais e santos católicos no Haiti, Cuba, Brasil e em outros
tural. lugares. Outro discípulo de Boas, Gilberto Freyre, interpretou a
Os chamados “teóricos da recepção”, entre os quais incluo o história do Brasil colonial em termos do que chamou de “socie-
jesuíta antropólogo-historiador Michel de Certeau, substituíram a dade híbrida”, ou “fusão” de diferentes tradições culturais. Pelo
tradicional suposição de recepção passiva pela nova de adaptação menos um historiador do Renascimento, Edgar Wind, empregou o
criativa. Afirmam que “a característica essencial da transmissão termo “hibridização” para descrever a interação de culturas pagãs
cultural é que tudo o que se transmite muda”. e cristãs.

Didatismo e Conhecimento 38
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
O sociólogo cubano Fernando Ortiz afirmou que se devia Portanto, deduz-se que uma história cultural centrada em en-
substituir o termo “aculturação” por “transculturação”, baseando- contros não deve ser escrita segundo um ponto de vista apenas.
se em que duas culturas eram modificadas em consequência de Nas palavras de Mikhail Bakhtin, essa história tem de ser “poli-
seus encontros, e não apenas a chamada “doadora”. fônica”. Em outras palavras, tem de conter em si mesma várias
Um bom exemplo desse tipo de aculturação, em que os con- línguas e pontos de vista, incluindo os dos vitoriosos e vencidos,
quistadores são conquistados, é o dos “creoles”, homens e mu- homens e mulheres, os de dentro e os de fora, de contemporâneos
lheres de origem europeia, mas que nasceram nas Américas e se e historiadores. (p.267).
tornaram, com o passar do tempo, cada vez mais americanos em
cultura e consciência. Bibliografia
Emprega-se uma grande variedade de termos em diferentes
lugares e diferentes disciplinas para descrever os processos cul- Livro: Variedades de história cultural;
turais de empréstimo, apropriação, troca, recepção, transferência, Autores: Peter Burke;
transposição, resistência, sincretismo, aculturação, enculturação, Referências: SASAKI, S.
inculturação, interculturação, transculturação, hibridização (mes-
tizaje), creolização e interação e interpenetração de culturas. Em
seguimento ao redespertar de interesse pela arte mudéjar mencio- 4. CARDOSO, CIRO FLAMARION E
nada acima (ela própria relacionada a uma consciência cada vez VAINFAS, RONALDO. NOVOS DOMÍNIOS
maior hoje do mundo muçulmano), alguns espanhóis agora se re- DA HISTÓRIA. RIO DE JANEIRO: EDITORA
ferem a um processo de “mudejarismo” em sua história cultural. CAMPUS, 2012.
Alguns desses novos termos talvez soem exóticos, e mesmo bár-
baros. Sua variedade presta eloquente testemunho à fragmentação
do mundo acadêmico atual. Também revela uma nova concepção
de cultura como bricolagem, em que o processo de apropriação e Sumário
assimilação não é secundário, mas essencial.
Os linguistas oferecem outro meio de abordar as consequên- Esta obra está dividida em 16 capítulos:
cias dos encontros culturais. O encontro de culturas, como de lin-
guagens, poderia ser descrito em termos do surgimento primeiro Introdução - História e conhecimento - uma abordagem epis-
do pidgin, uma forma de língua reduzida ao essencial para fins temológica
de comunicação intercultural, e depois do creoles. A “creolização”
descreve a situação em que um pidgin desenvolve uma estrutura Capítulo 1 - História, memória e tempo presente
mais complexa no momento em que as pessoas começam a usá-lo
como sua primeira língua e para propósitos gerais. Capítulo 2 - História e poder - uma nova história política?
Os linguistas afirmam que o que antes era considerado ape-
nas erro, como inglês “malfalado” ou latim “de cozinha”, devia Capítulo 3 - História e teoria política
ser visto como uma variedade de língua com suas próprias regras.
Também se pode fazer uma afirmação semelhante sobre (digamos) Capítulo 4 - História das relações internacionais
a linguagem da arquitetura na fronteira entre culturas. (p.266)
Alguns observadores ficam impressionados com a homo- Capítulo 5 - História e movimentos sociais
geneização da cultura mundial, o “efeito Coca-Cola”, embora
muitas vezes não levem em conta a criatividade da recepção e a Capítulo 6 - Nova história militar
transposição dos sentidos discutidas antes neste capítulo. Outros
Capítulo 7 - História e cultura material
veem mixagem ou ouvem pidgin em toda parte. Alguns acreditam
poder discernir uma nova ordem, a “creolização do mundo”. Um
Capítulo 8- História e antropologia
dos grandes estudantes da cultura em nosso século, o erudito russo
Mikhail Bakhtin, costumava enfatizar o que chamava de “hete-
Capítulo 9 - História oral - velhas questões, novos desafios
roglossia”, em outras palavras, a variedade e conflito de línguas
e pontos de vista dos quais, segundo sugeriu, se desenvolveram Capítulo 10 - História e Biografia
novas formas de linguagem e novas formas de literatura (em par-
ticular o romance). Capítulo 11 - Micro-história
Retornamos ao problema fundamental de unidade e varieda-
de, não apenas na história cultural, mas na própria cultura. É ne- Capítulo 12 - História e textualidade
cessário evitar duas supersimplificações opostas: a visão de cultura
homogênea, cega às diferenças e conflitos, e a visão de cultura es- Capítulo 13 - História e imagem - iconografia/iconologia e
sencialmente fragmentada, o que deixa de levar em conta os meios além
pelos quais todos criamos nossas misturas, sincretismos e sínteses
individuais ou de grupo. A interação de subculturas às vezes pro- Capítulo 14 - História e Fotografia
duz uma unidade de opostos aparentes.

Didatismo e Conhecimento 39
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Capítulo 15 - História e cinema Assim como a “História do Tempo Presente”, a “Nova Histó-
ria Militar”, apresentada por Luiz Carlos Soares e Ronaldo Vain-
Capítulo 16 - História e Informática fas; e a “Micro-história”, tema de Henrique Espada Lima, também
são abordadas nesta obra. Tais autores analisaram as proposições
Conclusão - Avanços em xeque, retornos úteis. dessas novas áreas de conhecimento e apontaram os principais de-
safios que a elas se impõem.
Autor Além dos novos territórios explorados, o livro também apre-
senta algumas exposições sobre domínios da história bastante
Ciro Flamarion Cardoso: professor titular de história antiga e tradicionais que, nas últimas décadas, passaram por um processo
medieval da UFF. Doutor pela Universidade de Paris X. Autor de de renovação. São os casos da “Nova História Política”, tema de
vastíssima obra, entre livros e artigos, destacando-se Os métodos Sônia Mendonça, Virginia Fontes e Ciro F. Cardoso; da “Biografia
da história, em parceria com Héctor Pérez Brignoli (Graal, 1979), Histórica”, tema de Benito Shmidt; e da “História das Relações
e Ensaios racionalistas (Campus, 1988). Internacionais”, abordada por Estevão R. Martins. Nestes capítu-
los, foram avaliados os avanços que cada um desses campos pôde
Ronaldo Vainfas: professor titular de história moderna da alcançar ao longo dos últimos anos.
Algumas temáticas apresentadas no livro anterior foram atua-
UFF. Mestre pela UFF, doutor pela USP. Autor de numerosos arti-
lizadas, passando a compor, também, o presente volume. Dentre as
gos e livros, entre os quais Trópico dos pecados (Campus, 1989) e
quais, podemos citar as relações entre “História e Antropologia”,
A heresia dos índios (Companhia da Letras, 1995).
tema de Maria Regina C. de Almeida; e a “História dos Movi-
mentos Sociais”, campo que vem despertando nos últimos anos
Sinópse um crescente interesse entre os pesquisadores, e que foi abordado
no livro por Hebe Matos. Uma outra temática também foi reto-
Novos domínios da história é obra dedicada, antes de tudo, a mada nesta obra: os usos da informática no ofício do historiador.
complementar Domínios da história, publicado em 1997, livro que No capítulo “História e Informática”, Célia Tavares reflete sobre
firmou-se como obra de referência para os profissionais da área. o impacto das novas tecnologias para a produção e divulgação do
Para isso, novos territórios são explorados como, por exemplo, a conhecimento científico.
“nova história militar”, a “história do tempo presente” e a própria Diferindo da edição de 1997, Novos Domínios da História
“micro-história”. apresenta abordagens mais profundas sobre certos campos da his-
A par dos novos territórios, foram incluídos no presente volu- tória, como “História e Cultura Material”, tema da contribuição
me alguns domínios muito tradicionais, quase canônicos, que têm de Marcelo Rede; “História e Imagem”, temática de Ulpiano de
sido objeto de renovação nas últimas décadas, como a chamada Menezes; “História e Fotografia”, abordada por Ana Mauad e Mar-
“nova história política”, a “biografia histórica” e a “história das cos Brum Lopes; “História e Cinema”, tema de Alexandre Valim;
relações internacionais”. e “História e Textualidade”, tema de Ciro F. Cardoso. De acordo
com os organizadores, esses domínios ganharam uma maior no-
Comentário toriedade no livro devido aos avanços e à especialização que vêm
alcançando nas últimas décadas.
Visa a complementar a obra “Domínios da História”, publica- A “História Oral”, tema que não esteve presente no livro an-
do em 1997, uma vez que mesmo trazendo a abordagem de nume- terior, também ganhou espaço neste novo volume. Em seu ensaio,
rosos autores, nos ambientes de História e Ciências Sociais, muitos Marieta de Moraes Ferreira evidencia que a história oral, apesar
temas e aspectos da disciplina histórica ficaram de fora. Reúne, de ter sido alvo de críticas de muitos historiadores nos anos 1960
portanto, novas abordagens e abarca inúmeros autores, mapeando e 1970, tornou-se no século XXI uma metodologia fundamental
e explorando areas do pensamento e da pesquisa praticadas pelos nas pesquisas realizadas no Brasil, sobretudo, nas relacionadas a
historiadores contemporâneos. temáticas contemporâneas.
Em Novos Domínios da História a introdução e a conclusão
desempenham a função de equilibrar as discussões apresentadas
Resumo
ao longo dos capítulos. A introdução, escrita por Ciro F. Cardoso,
apresenta os problemas específicos da epistemologia das ciências
Neste novo livro, que também contou com a participação de sociais e humanas, e discorre sobre as três modalidades básicas do
diversos autores, novos campos da História foram explorados a conhecimento histórico: o reconstrucionismo, o construcionismo e
exemplo da “História do Tempo Presente”, tema de Márcia Me- o desconstrucionismo. A conclusão, elaborada por Ronaldo Vain-
nendes Motta. Em seu texto, Motta discute as relações entre His- fas, dialoga com a introdução, analisando os “novos domínios” da
tória, memória e tempo presente; e comenta sobre o surgimento e história apresentados no livro a partir da tipologia epistemológica
consolidação da História do Tempo Presente. Entretanto, ao men- desenvolvida por Ciro F. Cardoso na parte inicial da obra.
cionar os trabalhos desenvolvidos no Brasil inseridos neste novo Como bem indicam os organizadores no prefácio do livro, nos
campo disciplinar, a autora restringe as produções do Laborató- dias atuais a história apresenta uma grande diversidade de abor-
rio do Tempo Presente (UFRJ) à temáticas relacionadas apenas à dagens, temas e conceitos. Sendo assim, Novos Domínios da His-
América do Sul. Além disso, sua exposição exclui a possibilidade tória, ao oferecer um panorama amplo e atualizado dos domínios
de pesquisas sobre a HTP desenvolvidas em outras regiões do país, da história – novos e antigos –, torna-se extremamente útil aos
que não o Sudeste. Nesse sentido, Motta não menciona, por exem- estudiosos e profissionais da história, podendo interessar também
plo, os trabalhos do Grupo de Estudos do Tempo presente (UFS). aos que atuam nas demais ciências humanas e sociais.

Didatismo e Conhecimento 40
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Bibliografia Sinópse
Livro: Novos domínios da História;
Autores: Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas; Além da introdução e das considerações finais, “Ensino de
Referências: MOURA, L. M. História e Consciência Histórica” encontra-se dividido em três ca-
pítulos. No primeiro, intitulado “O que é a consciência histórica”,
o objetivo, segundo o próprio autor é “recompor e procurar alinha-
var a contribuição de diferentes autores, originários de diferentes
5. CERRI, LUIS FERNANDO. ENSINO lugares, tanto físicos quanto epistemológicos, visando uma maior
DA HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA. sistematização sobre a “consciência histórica” e suas implicações
RIO DE JANEIRO: FUNDAÇÃO GETÚLIO sobre o fazer atual da história nos múltiplos espaços que ela ocu-
VARGAS, 2011. pa”. Pra isso, Cerri aprofunda-se no conceito de “consciência” de
Karl Marx e, sem seguida, o leva para o contexto da história, atra-
vés da leitura de filósofos/historiadores de peso como Raymond
Aron, Hans-Georg Gadamer, Agnes Heller e, principalmente, Jörn
Sumário Rusen, sua principal referência ao longo do livro. Deste último,
Cerri toma emprestada a definição de “consciência história”: “a
Esta obra está dividida em três capítulos: suma das operações mentais com as quais os homens interpretam
sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mes-
Introdução mos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida
prática no tempo”. Assim, a consciência histórica seria algo que
Capítulo 1 existe independente da vontade dos homens, com um bem univer-
O que é a consciência histórica salmente humano.
Consciência histórica, fenômeno humano Já no capítulo 2, “Conscientização histórica?”, Cerri desen-
Capturando a consciência histórica volve o “pensar historicamente” como uma competência inerente
Didática da história, uma disciplina de investigação do uso ao trabalho do professor, relacionada a construção da cidadania.
social da história Tal relação seria, no olhar do autor, uma das principais contribui-
ções da história para a formação do aluno. E mais: esta perspectiva
Capítulo 2 - que também pode ser tomada como uma reflexão - está associado
Consciência histórica? com o conceito de “conscientização” do educador Paulo Freire.
Pensar historicamente Freire afirmava que conscientização é o oposto de doutrinação.
A consciência histórica é histórica... e múltipla Está na base da construção de indivíduos autônomos, algo que
pode ser mais ou menos desenvolvido. Ao conectar esses dois con-
Capítulo 3 ceitos, Cerri politiza o trabalho do professor de história.
Consequências para a prática do profissional de história Por fim, o terceiro capítulo, chamado de “Consequenciais para
Ensinar história para quê, afinal? a prática do profissional de história”. Neste capítulo, o autor fala
Consciência histórica e o problema dos conteúdos sobre o porque do ensinar história. Para responder a pergunta, são
discutidas questões como política de identidades, racionalidade
Palavras finais da história científica e experiências narrativas. No fechamento do
livro, Cerri explica como o conceito de consciência histórica ofe-
Referências rece para o ensino da história:
“Em primeiro lugar, afasta-se uma visão voluntarista e mes-
Autor siânica que, sob diferentes formas, proponha a ‘conscientização
histórica” dos “sem consciência” porque, como argumentamos,
Luis Fernando Cerri possui graduação em História pela Uni- isso não existe: como todo navegam por suas vidas conduzidos
versidade Estadual de Campinas (1992), mestrado em Educação pela correnteza do tempo, todos tem que definir instrumentos e
pela Universidade Estadual de Campinas (1996) e doutorado em projetos para navegá-lo, e esse procedimento básico de viver é a
Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Atual- consciência histórica em ação. (…) Ensinar história considerando
mente é professor associado da Universidade Estadual de Ponta a consciência histórica é desenvolver atividades que permitam que
Grossa, consultor das revistas Tempos Históricos (UNIOESTE) , o educando conheça a história - de preferência a história que, de
Educere et Educare (Unioeste), Cultura Histórica & Patrimônio forma mais aproximada, seja sua história - ao mesmo tempo que
(UNIFAL), Clio & Asociados - La Historia Enseñada (Santa Fe/ conhece diferentes formas pelas quais se lhe atribuiu sentido”.
La Plata) e TEL - Tempo, Espaço e Linguagem (UEPG). Tem ex- “Ensino de história e consciência histórica” é um livro que
periência na área de História, com ênfase em ensino de História, interessa basicamente dois grupos: professores escolares e alunos
atuando principalmente nos seguintes temas: didática da história, que estão começando a graduação em história. Oferece um pano-
consciência histórica, identidade social, ensino de história, forma- rama elaborado sobre o ensino de história, embora quase sempre a
ção de professores de história e nacionalismo. É líder do Grupo ótica marxista predomine, o que acaba reduzindo algumas discus-
de Pesquisa em Didática da História (GEDHI), da UEPG. É tutor sões importantes. No mais, Cerri consegue realizar uma conexão
no Programa de Educação Tutorial do Ministério da Educação, do entre os campos da teoria da história e do ensino da história, algo
grupo PET História UEPG. que é bastante comum em países com tradição na filosofia da his-

Didatismo e Conhecimento 41
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
tória, como a Alemanha. Essa articulação demonstra que o passado Como exemplo dessas agitações periódicas no lago calmo
é móvel, fluido, frágil. E que é justamente essa fluidez que provoca da representação nacional sobre seu próprio tempo, em agosto de
deslizamentos também na aprendizagem e no ensino. Está ainda 2007 foi lançado mais um livro-relatório da Comissão Especial de
no cerne de nossas projeções e de nossa identidades, individuais Mortos e Desaparecidos sobre a repressão realizada pela ditadura
ou coletivas. Como o próprio autor coloca, “quem acreditamos militar brasileira, que governou o país entre 1964 e 1985. Seu lan-
que somos depende de quem acreditamos que fomos”. O passado, çamento ganhou espaço na imprensa, e o comando do Exército,
neste sentido, é a pedra basilar que norteia nossa aço no mundo. em nota, mostrou que continua e continuará disposto a manter viva
e atuante a sua leitura dos acontecimentos do período. A nota da
Comentário corporação reafirmou a Lei da Anistia e afirmou que “fatos histó-
ricos têm diferentes interpretações, dependendo da ótica de seus
A noção de consciência histórica tem se constituído em uma protagonistas”. Se por um lado aponta a força da permanência das
importante ferramenta para pensar as relações entre o conhecimen- razões militares em sua recente intervenção na vida pública e nos
to científico, produzido pelos acadêmicos, e a vida prática. Nesse poderes constituídos, por outro essa curiosa peça de relativismo
sentido, a noção de consciência histórica nos permite rever ques- histórico, assinada pelo comandante do Exército, indica o reconhe-
tões fundamentais para professores e demais interessados nos usos
cimento de outras versões e, ainda, que a versão militar encontra-
sociais do conhecimento histórico. Os leitores terão acesso às prin-
se na defensiva.
cipais contribuições que envolvem o tema, refletindo sobre o papel
A nota foi apresentada ao ministro da Defesa, Nelson Jobim,
da História dentro e fora da escola.
antes de ser entregue à imprensa. Jobim propôs – e foram acata-
Este título da Série História integra a Coleção FGV de Bolso,
voltada para a produção de obras de síntese sobre os mais diver- das – algumas mudanças no documento e avalizou a publicação
sos temas das ciências humanas e sociais. Destina-se a estudantes, do comunicado. Assim, o governo do presidente Lula referendava
professores e profissionais interessados em conhecer de maneira uma nota com o seguinte teor: “A Lei da Anistia, por ser parâmetro
rápida e eficaz, por meio de textos claros e acessíveis, os assuntos de conciliação, produziu a indispensável concórdia de toda a so-
tratados em cada volume. ciedade [...]. Colocá-la em questão importa em retrocesso à paz e
à harmonia nacionais, já alcançadas”. Logo a seguir, o ministro da
Resumo Defesa compareceu à cerimônia de lançamento do livro-relatório
e deu um recado aos militares, alertando que eventuais reações
Parece obvio que o passado e o futuro participam ativamente contrárias ao lançamento, por parte deles, também seriam respon-
d presente de nossas sociedades. Esse é o ponto de partida das re- didas. Um delicado equilíbrio.
flexões que o tema deste livro quer proporcionar. Alguns exemplos O equilíbrio do governo Lula para, por um lado, preservar
sobre o passado que constitui o presente nas sociedades do Cone suas origens políticas na oposição à ditadura e, por outro, não des-
Sul servirão para iniciarmos as argumentações referentes ao tema contentar demais os militares, é similar a outro equilíbrio delicado.
da consciência histórica. É na história recente que podemos colher O comandante do Exército também se equilibra entre afirmar que
esses exemplos, uma vez que suas conexões com o nosso cotidiano os fatos históricos são relativos ao ponto de vista do sujeito, ao
são mais frequentes e significativas. Mas também os exemplos em mesmo tempo em que utilizar os mitos fundadores da instituição
nossas vidas pessoais podem ser muito interessantes para pensar para afirmar que uma unidade que parece ser questionada quando
essa articulação entre passado presente e futuro. se afirma que o mesmo Exército, hoje comprometido com a demo-
O último ciclo ditatorial latino-americano, embalado pela cracia e com a inviolabilidade dos direitos civis, torturou e matou
Guerra Fria e pela mudança do papel da região no concerto da eco- poucos anos atrás. A nota indicava também que o Exército, voltado
nomia e da política mundial, estendeu-se dos anos 1960 aos anos para suas missões constitucionais, conquistou os mais elevados ín-
1980 e teve um componente adicional: a fratura na sociedade foi dices de confiança e de credibilidade junto ao povo brasileiro [...]
tão profunda que suas feridas permanecem abertas até a atualida- não há Exércitos distintos. Ao longo da história, temos sido sempre
de. No caso particular do Brasil, a ditadura encontrou uma classe
o mesmo Exército de Caxias, referência em termos de ética e de
média em ascensão econômica e política, que começava a superar
moral, alinhado com os legítimos anseios da sociedade brasileira.
com passos mais largos as marcas de uma sociedade que teve 200
A própria existência de uma nota do Exército em tensão com o
anos de escravidão. No bojo dessa sociedade, o proletariado dos
Ministério da Defesa mostra que, além de uma passado com senti-
setores mais dinâmicos da economia desequilibrou a balança do
controle social em favor da oposição democrática e precipitou o do em disputa, temos um passado que condiciona o presente.
fim da ditadura. A tradição brasileira de conciliação política e tran- Pouco mais de dois anos depois, nos primeiros meses de 2010,
sições “pelo alto”, sem mudanças expressivas no cotidiano, fez o tema volta ao noticiário e ao debate nacional com a promulgação
com que ditadura e ditadores saíssem de cena quase despercebi- do Plano Nacional de Direitos Humanos, que previu um amplo
dos, sem movimentos populares por ajustes de contas, como foi o conjunto de ações visando ampliar a democratização da socieda-
“ponto final”. Mesmo com uma transição tão “anestesiada” como de brasileira, reduzir desigualdades e retomar questões do passado
a brasileira, diferente em tantos pontos da transição argentina e ainda não resolvidas, como a responsabilidade penal dos agentes
semelhante em tantos outros à transição uruguaia, os esqueletos no do governo envolvidos nas violações da integridade física e da
armário da ditadura não se calaram totalmente. De tempos em tem- vida dos opositores da ditadura. Desagradando aos conglomera-
pos, algum protesto, alguma manifestação ou concessão de pensão dos de mídia por propor a revisão da Lei da Anistia e a criação
a ex-presos políticos ou às famílias de desaparecidos por ação das de uma Comissão da Verdade, o plano foi reescrito para suavizar
forças repressivas recoloca no centro da cena aquelas feridas co- suas posições dado o potencial de desgastar o governo em um ano
bertas que ainda doem. eleitoral, como efetivamente ocorreu.

Didatismo e Conhecimento 42
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Os pontos do passado coletivo que implicam situações de atendidas por políticas de reserva de vagas para alunos negros ou
ruptura e violência acabam por gerar memórias ou esquecimentos afrodescendentes em universidades e cargos públicos preenchidos
traumáticos. Isso é ainda mais intenso quando os grupos contendo- através de concursos. A efetivação de cotas raciais é demonstração
res são patrícios, e sua luta implica também a definição do sentido de um debate nacional sobre o passado: para que fossem aceitas,
da história nacional. Começamos, então, a nos aproximar do tema foi preciso que pessoas em pontos-chave da administração de mui-
desse livro a partir de um olhar sobre o uso que é feito da história, tas instituições estivessem convencidas de que a condição de negro
passado e persente, para significar o tempo vivido coletivamente e está associada a desvantagens pessoais comprovadas estatistica-
vincular projetos contemporâneos da sociedade, cultura e política mente; de que essas desvantagens se ligam a um tratamento his-
ao futuro nacional projetado em função da leitura do passado. toricamente desfavorável, devido a instituições e práticas racistas;
Para os personagens envolvidos nesses exemplos, o passado de que políticas universais (o tratamento igual aos desiguais) não
deve ser deixado em paz, porque tem o potencial de atrapalhar, e superaram as diferenças e, por fim, de que o projeto nacional brasi-
mesmo de comprometer, o presente e o futuro. Por outro lado, es- leiro não comporta que essas situações permaneçam. A negação ou
ses críticos dos mandatários presidenciais que se originaram poli- a indiferença a todas essas teses ainda marca parcelas expressivas
ticamente no combate às ditaduras militares não pretendem renun- da sociedade brasileira, mas a criação e a manutenção de políticas
ciar ao passado, mas buscam referências para identidade nacional afirmativas mostram um deslocamento das opiniões sobre a iden-
num passado mais distante e (aparentemente) menos controverso. tidade, o passado e o futuro da nação, que, por sua vez, conduzem
Podemos, ainda, citar outros exemplos. A conciliação, na re- a determinadas decisões e investimentos no presente. E esse mo-
memoração história de personagens que representaram grupos e vimento não decorre de outra coisa senão de deslocamentos na
projetos adversários na história, como Tiradentes, o revolucioná- aprendizagem e no ensino da história, em parte dentro da escola, e
rio de origem militar metido em uma conspiração sediciosa contra em parte no debate proporcionado pelos movimentos sociais, pelas
a coroa portuguesa, e o imperador d. Pedro I, aproximados pela ações de parlamentares e administradores ou junto a eles, e pelo
máquina de propaganda da ditadura sob o general Médici, que os debate público em geral.
representou como heróis de um processo único, como se passas- Tais questões, de fundo identitário, estão na base do conceito
sem o “bastão” da corrida pela independência um para o outro. OU de consciência histórica que, em poucas palavras, podemos definir
entre Rosas, na Argentina, tido com caudilho autoritário e nacio- como uma das estruturas do pensamento humano, o qual coloca
nalista, e Sarmiento, presidente liberal e cosmopolita, contrários em movimento a definição da identidade coletiva e pessoal, a me-
aproximados pela ritualística cívica no governo de Carlos Menem, mória e a imperiosidade de agir no mundo em que se está inserido.
quando promoveu a repatriação do restos mortais de Rosas como Para evocar a imagem poética judaico-cristá, depois que Deus so-
estratégia legitimadora da conciliação nacional e do indulto a mili- pra as narinas de barro de Adão e lhe impulsiona para a vida, esse
tares condenados por crimes contra os direitos humanos (Amézola, impulso continua para sempre, até a morte de cada homem e de
2002:133-154). cada mulher: mesmo que decida não agir, o indivíduo terá optado
Lembrar ou esquecer os dilaceramentos da nação realizados por uma forma de ação, ainda que passiva e indireta. Mas não basta
sob as ditaduras militares não é, ao contrário do que poderia pare- esse impulso irrecorrível de agir; é preciso saber para onde agir, e
cer, escolher entre passado e futuro, mas sim escolher entre distin- essa é a busca por sentido inerente a todo ser humano e à sua his-
tas articulações de passado, presente e futuro. O passado não está tória, que se liga à história da coletividade. Temos a necessidade
a salvo das intenções do presente de dar tal ou qual significado constante de atribuir sentido ao tempo, às origens do mundo, do
ao tempo, aos personagens históricos, à nação. O presente – bem nosso grupo e da humanidade.
como o futuro – depende de um passado relativamente móvel, No que se refere à experiência pessoal, podemos ainda exem-
que possa ser relido. Mas antes de cairmos em discussões sobre a plificar de outra forma a consciência história. Suponhamos uma
viabilidade ou não da objetividade no estudo da história, que não situação totalmente banal e cotidiana: acordar pela manhã. Se está
é intenção desse pequeno estudo, pensemos sobre o significado frio, minha primeira reação biológica é permanecer na cama mais
desses exemplos. Haveria outra maneira de abordar esses assuntos 10 minutos. Se lembro que da outra vez que fiz isso, acabei pegan-
sem esgrimir argumentos históricos, ou seja, referentes ao signifi- do ônibus lotado ou trânsito pesado no meu caminho para o traba-
cado de passado, presente e futuro? Decerto que sim: poder-se-ia, lho, tenho que escolher qual é o conforto que prefiro: mais 10 mi-
por exemplo, discutir o assunto com base em termos jurídicos, nutos de cama quente ou ruas mais livres/ônibus vazio. Se decido
somente, apelando para conceitos internacionais referentes aos levantar-me, posso escolher usar os chinelos para ir até o banheiro
direitos humanos e à democracia, por ambos os lados, não que ou não. Se decido não usar, alguma coisa me incomoda, além de
tal discussão não ganharia o mesmo espaço na mídia e na atenção sentir o chão frio: as insistentes vezes em que minha mãe me disse
popular sem os ingredientes históricos, pois não passaria por um para sempre andar calçado, para não me resfriar. Talvez por esses
conjunto de questões subjacentes: “quem somos nós, coletividade motivos, de sensibilidade e de memória, eu decida sair da cama e
nacional”, “de onde viemos e como nossa origem nos define hoje”, ir calçado ao banheiro. Novamente, ao tomar o café da manhã vou
“para onde vamos, qual é nosso destino comum” e, ainda, “quem alimentar-me do resultado de escolhas baseadas em interpretações
sou eu, e de que lado me posiciono”. do passado e na cultura de meu país e de minha família: no Brasil
Discussão semelhante vem das reivindicações dos movimen- talvez eu tome um café com leite e um pão francês com margina;
tos negros organizados, no sentido de obter reparações para os na Argentina pode ser que eu tome uma medialuna com chá; no
cidadãos prejudicados pela escravidão e pelo racismo, de modo pampa argentino, no Uruguai ou no sul do Brasil é provável que
que seus descendentes possam recuperar o patamar educacional, eu comece o dia com uma cuia de mate. Nos Estados Unidos será
econômico e social que poderia ter tido se não existissem aque- comum se eu recorrer a uma tigela com cereais industrializados de
las restrições. Essas reivindicações começaram a ser em parte milho e leite.

Didatismo e Conhecimento 43
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Por outro lado, se concebo a história como uma mera aparên- Quando nos acercamos de um recorte mais específico de nos-
cia, e acredito que a essência da realidade está num outro mundo, sas sociedades, os nossos sistemas escolares, a discussão sobre
regido por uma divindade, pode ser que eu não saia da cama sem o conceito de consciência história vêm abrir uma nova frente de
antes fazer uma prece. Essa consciência pode fazer a diferença reflexão quanto ao antigo problema: o que é e o que significa ensi-
na hora de decidir entre um abaixo-assinado ou uma corrente de nar história? Que consequências essa reflexão tem para o ensino?
orações, ambos visando a paz no mundo. Essa vinculação fará a Como os saberes sobre o tempo (nesse sentido, históricos) adquiri-
diferença no meu dia, que pode ser pontuado por diversos momen- dos antes, durante e apesar da escolarização afetam o aprendizado,
tos de oração, ou apenas um momento específico, ou a minha ida suas características e sua qualidade.
diária a um templo de minha fé. O estudioso alemão Jörn Rusen (2006) afirma que professores
Não se passou nem meia hora desde o momento em que des- e alunos podem estar trabalhando em sala de aula com quadros
pertamos, e já estamos sofrendo a influência de nosso passado, e matrizes de significação que nem sempre são conscientes. Po-
nossa memória e nossa cultura. A consciência história, entretanto, demos exemplificar esses quadros e matrizes com as noções de
não se resume ao passado e a à memória, mas às projeções que progresso, decadência e futuro. Considerando isso, pode ser que
fazemos para o nosso futuro. Escovarei os dentes para adiar ao muitos dos problemas dos alunos no aprendizado da história, dos
máximo a próxima ida ao temido dentista, ou porque quero estar quais nos queixamos há décadas, venham tendo suas causas in-
com bom hálito ao encontrar uma namorada daqui a pouco – por corretamente identificadas, pelo menos em parte. A perspectiva
mais que minha biologia tenda ao menor esforço e me dê preguiça da consciência história nos impõe, também, outro ponto de vista
(ou pressa) de voltar ao banheiro e escovar os dentes, pentear o sobre a nossa disciplina: o de que ela é resultado de necessidades
cabelo, fazer a barba. Projeto o futuro, imediato, de médio prazo sociais e políticas na formação da identidade de novas gerações
ou distante, e com isso tomo as decisões que me permitem agir, e, portanto, o seu problema não é somente de ordem cognitiva
porque nunca ajo apenas para que hoje seja igual a ontem , mas ou educacional, mas também sociológica e cultural. A rejeição
trabalho a partir da possibilidade de que no amanhã se realizem de muitos alunos em estudar história pode não ser somente uma
minhas expectativas, mesmo que de um cotidiano pacato e seguro. displicência com os estudos ou uma falta de habilidade com essa
Nessa dinâmica, a minha identidade (constituída em grande parte matéria, mas um confronto de concepções muito distintas sobre o
pela minha história) e a identidade coletiva (constituída em grande tempo, que não encontram nenhum ponto de contato com o tempo
parte pela história nacional) são fundamentais. E aqui está a liga- histórico tal como aparece na narrativa de caráter quase biográfico
ção entre a consciência histórica e o ensino de história, bem como das nações ou da humanidade. Talvez, ainda, o “código genético”
com os vários usos sociais que o conhecimento histórico assume. da disciplina escolar história, nascido no século XIX sob o influxo
do nacionalismo, do iluminismo ou do romantismo, do racionalis-
Quem acreditamos que somos depende de quem acreditamos
mo, da perspectiva do progresso (ainda que em última instância),
que fomos, e não é à toa que o ensino de história – escolar ou
imponha a nós, professores, uma concepção de tempo, de identida-
extraescolar, formal ou informal – é uma arena de combate em
de e de humanidade que não se encaixa nas visões das novas gera-
que lutam os diversos agentes sociais da atualidade. Definir quem
ções, marcadas por perspectivas de futuro (e, portanto, de tempo,
somos e quem são os outros é parte do condicionamento da nossa
de identidade e de humanidade) distintas. Pode ser que venha daí
ação e paixão, e da ação e paixão dos outros. Se eu conseguir con-
a dificuldade de dialogar com a vivência dos indivíduos jovens em
vencer meu adversário de que ele é um absoluto incompetente, não
convivência com suas comunidades concretas.
precisarei seque me bater com ele para alcançar a vitória, o que é a O conceito de consciência história é ligado, ainda segundo
mais perfeita definição de sucesso militar, por exemplo. O milenar Russen, à mudança de paradigma da didática da história nos anos
Sun Tzu já pontificava que a vitória completa se dá quando suas 1960, de acordo com a qual o foco da disciplina passa do ensino
forças não lutam: o cúmulo da habilidade é atingir seus objetivos para a aprendizagem histórica, e propõe outra mudança no nos-
sem luta. Assim, por exemplo, se minha diplomacia e minha in- so modo de ver o “fazer” da disciplina na escola. Se o ensino da
fluência na cultura e no pensamento econômico são valores em si história implica o gerenciamento dos objetivos curriculares e das
que, assumidos, levam o país a algum objetivo que parece radiante concepções de tempo e de história que os alunos já trazem consigo
como “progresso” ou “modernidade”, posso lograr desmontar par- desde fora da escola, então o professor de história definitivamente
ques industriais inteiros sem ter que bombardeá-los e subjugar ou- não é um tradutor de conhecimento erudito para o conhecimento
tro país economicamente, enquanto sigo protegendo normalmente escolar, um simplificador de conteúdos. É, sim, um intelectual ca-
a minha própria economia da concorrência estrangeira. paz de identificar os quadros de consciência história subjacentes
Esta reflexão é apenas aparentemente restrita à teoria da his- aos sujeitos do processo educativo – inclusive o seu próprio – e
tória e à sociologia/antropologia do conhecimento histórico. O es- de assessorar a comunidade na compreensão crítica do tempo, da
tudo das formas e conteúdos pelos quais o conhecimento sobre o identidade e da ação na história.
passado é mobilizado e manipulado publicamente para produzir Por fim, com este pequeno livro temos por objetivo contribuir
tais ou quais efeitos públicos e privados, coletivos ou individuais, para a visão de novos quadros de análise da realidade escolar por
envolve por completo o estudo do ensino da história e seu aperfei- parte do professor, e entendendo-o política e teoricamente como
çoamento, pois desde suas origens europeias no século XIX, nossa um intelectual, academicamente procurando promover uma maior
disciplina científica e escolar participa intensamente desses jogos aproximação entre a teoria da história em processo de reflexão di-
de saber-poder. Logo, os professores de história somos também dática e a prática cotidiana do ensino.
protagonistas desse jogo, voluntária ou involuntariamente, cons-
ciente ou inconscientemente. Produzimos, com nosso trabalho, Bibliografia
parte de nossas identidades pessoais, políticas e profissionais, e Livro: Ensino de história e consciência histórica;
participamos da constituição das identidades dos outros. Autores: Luis Fernando Cerri;

Didatismo e Conhecimento 44
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Sinopse
6. FONSECA, SELVA G. DIDÁTICA E
PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA. Esse livro apresenta reflexões sobre Didática e Práticas de En-
CAMPINAS: EDITORA PAPIRUS, 2005. sino de História desenvolvidas, no ensino fundamental e médio,
pela autora e por diversos professores, formadores, pesquisadores
e alunos, em diferentes espaços e épocas. O texto está dividido
em duas partes. A primeira contém uma análise das principais di-
Sumário mensões do ensino de História, que são temas centrais nos cursos
de formação docente; a história da disciplina e seus objetivos, o
INTRODUÇÃO currículo, as diretrizes legais, as abordagens historiográficas recor-
rentes, a questão dos livros didáticos e a formação da cidadania.
Parte I A segunda parte apresenta questões didáticas, práticas de ensino,
DIMENSÕES DO ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL sugestões de metodologia, relatos, técnicas de ensino e comentá-
rios críticos, visando à troca de experiências entre os profissionais
1. Revisitando a história da disciplina nas últimas décadas do que, cotidianamente, (re)constroem as práticas educativas em sala
século XX de aula. Ao final, encontram-se reflexões e sugestões para o de-
2. A nova LDB, os PCNs e o ensino de História senvolvimento da prática pedagógica nos processos de formação
3. Abordagens historiográficas e recorrentes no ensino funda- profissional, a fim de questionar e redimensionar as relações entre
mental e médio teoria e prática, saberes disciplinares, pedagógicos e experienciais,
4. Livros didáticos e paradidáticos de História nos campos da Didática, da Metodologia e da Prática de Ensino.
5. Como nos tornamos professores de história: A formação
inicial e continuada Resumo
6. O ensino de História e a construção da cidadania
Nas últimas décadas do século XX a produção historiográfi-
Parte II ca e educacional acadêmica aumentou sua presença na indústria
EXPERIÊNCIAS, SABERES E PRÁTICAS DE ENSINO DE cultural. Assim, além do Estado, do mercado editorial, a mídia
HISTÓRIA também se fez presente na discussão sobre o que ensinar em his-
tória aos milhões de jovens que frequentam as escolas brasileiras.
1. Interdisciplinaridade, transversalidade e ensino de História Assim, discutir o ensino de história hoje, é pensar os processos for-
2. Projetos de trabalho, teoria e prática mativos que se desenvolvem nos diversos espaços, é pensar fontes
3. A pesquisa e a produção de conhecimento em sala de aula e formas de educar cidadãos, numa sociedade complexa marcada
4. Temas de análise política no ensino de História do Brasil por diferenças e desigualdades (FONSECA, P.15, 2003)
5. O estudo da História local e a construção de identidades Isso nos convida à revisitação da história da disciplina no
6. A incorporação de diferentes fontes e linguagens no ensino contexto das mudanças sócio-históricas ocorridas no Brasil pós-
de História 1964. O papel da educação – assim como as metas para o setor,
estabelecidas pelo Estado brasileiro, nesse período- esteve estri-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tamente vinculado ao ideário de segurança nacional e desenvol-
A prática pedagógica na formação do professor de História: vimento econômico. O projeto delineado nos planos e programas
Reflexões e sugestões de desenvolvimento, na legislação e nas diretrizes governamentais
representa o ideário educacional dos setores políticos dominantes
BIBLIOGRAFIA (p.15, 16).
A principal característica da política de ensino de 64 foi a de-
Autor sobrigação do investimento no ensino, especialmente no ensino
médio e superior, a constituição de 1967 não estipulou nenhum
Selva Guimarães Fonseca possui Graduação em Estudos So- critério para o investimento no ensino, por conta disso o Estado re-
ciais pela Universidade Federal de Uberlândia (1982), Graduação duziu o investimento que era de 10,6% em 1965, e foi decrescendo
em História pela Universidade Federal de Uberlândia (1985), até chegar em 4,3% em 1975,que se manteve em 5,5% até 1983,
Mestrado em História pela Universidade de São Paulo (1991), neste período o ensino privado ou particular cresceu consideravel-
Doutorado em História pela Universidade de São Paulo (1996), mente principalmente o ensino superior.
Pós-Doutorado em Educação pela UNICAMP (2007). Atualmente No final da década de oitenta, o senador João Calmon, apre-
é Pesquisadora de Produtividade do CNPq, Professora Associada sentou um projeto de lei no qual o governo fica obrigado a investir
do Programa de Pós-Graduação(Mestrado e Doutorado em Edu- 12% da receita de impostos no ensino; estados e municípios 25%.
cação) e da Faculdade de Educação da Universidade Federal de A aprovação desta emenda se fez pela pressão dos trabalhadores da
Uberlândia, Membro da ISHD( International Society for History educação. Na constituição de 1988 no qual o artigo 212 estabelece
Didactics). Possui experiência na área de Educação com ênfase e o aumento deste percentual de verbas para o ensino, o governo
publicações nos seguintes temas: ensino e aprendizagem de Histó- passou a investir 18% dos impostos, estados e municípios 25%, no
ria, formação docente, metodologias e práticas de ensino. artigo 213 fica firmado que este investimento será aplicado, não só
nas escolas públicas estendendo-se a todas instituições de ensino
sem fins lucrativos.

Didatismo e Conhecimento 45
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
A reforma universitária de 1968 O controle técnico e burocrático no interior das escolas.

A reforma atacou duramente a organização do movimento es- Com a intervenção do governo nas escolas subordinando pro-
tudantil, retirando a autonomia universitária e o direito de contes- fessores aos supervisores e orientadores nomeados pelo estado, foi
tar ou criticar a política do governo dentro das instituições de ensi- reformulado e imposto todo material didático, como forma de con-
no. Medidas como: departamentização, matriculas por disciplinas, trolar o que era ensinado nas salas de aula.
unificação do vestibular, fragmentação dos cursos, e os controles Após 1969 o ataque aos professores com o AI 5 (ato institu-
de toda a didática que os professores lecionavam, foram imple- cional nº5) com o decreto 547/69 que autorizava o ensino profis-
mentadas para controlar o espírito critico e analítico dos alunos. sionalizante e praticamente proibia o ensino de ciências humanas,
Os estudantes não podiam pensar, isso era chamado pelo governo utilizando a desculpa de atender a carência do mercado, o ensino
como medida de ajustamento previsto na lei 5.540/68. profissionalizante alastrou-se rapidamente, criando muitas institui-
ções de ensino profissionalizante privado.
A lei 5692 de 1971- a reforma do ensino de 1º e 2º graus. O curso de licenciatura rápida tirava muito da autonomia do
professor, pois restringia muito seu conhecimento, assim a licen-
O governo de Médici completou em 1971, a implantação da
ciatura rápida é a melhor forma de legitimar o controle do Estado
reforma educacional de 1º e 2º graus, que vinha sendo implemen-
no interior das escolas. Os cursos superiores de estudos sociais
tada desde 1964, com a lei 5.692 de 11 de agosto de 1971. Com
são implantados em todo pais, e só saem da grade curricular entre
esta lei ficou estabelecido que alunos de 7 a 14 anos cursassem
o 1º grau, ou seja, 1º a 8ª série, e o 2º grau ficaria voltado para o os anos 80 e 90. Como pátria, integração nacional, tradição lei, e
ensino profissionalizante. As escolas ficavam desobrigadas de ter heróis brasileiros, autorizados pelos militares, o estudo da história
formação geral, principalmente em ciências humanas. Os jovens citado no decreto lei 68065/71, foi vinculada ao estudo moral e
não podiam acesso ao ensino do pensamento político, para que cívica. As escolas foram obrigadas a reduzir a carga horária de
desta forma, facilitasse o controle das massas pelo governo mili- historia, geografia, e estudos sociais para colocar as disciplinas
tar, esta lei foi combatida por dez anos, até que o conselho federal EMC, OSPB com altas cargas horárias. Os atos cívicos passaram a
ficou a favor da mudança, que ocorreu em 1982, quando o MEC serem cada vez mais presentes no dia a dia dos jovens, os símbolos
sancionou a lei 7.044, alterando alguns artigos da lei 5.692/71, cívicos e heróis passaram a ser implantados fortemente na cabeça
principalmente a parte que se referia ao 2º grau que tanto preocu- dos jovens.
pou a comunidade acadêmica nos anos 70.
•As novas disciplinas criadas.
A lei 7044 de 1982.
Com o decreto lei 869/69, amparado pelo AI 5, foi implantado
Muitos destes projetos de lei estão presentes nas nossas esco- o estudo moral e cívica para graduação e pós-graduação com a
las até hoje, como a formação do pensamento e cidadania. Embora desculpa do estudo ser direcionado ao estudo dos problemas bra-
o acesso a escola tenha sido ampliado, ainda vemos muita evasão, sileiros.
repetência e o aumento da distorção idade/serie. O elitismo que O Estado cria uma comissão para implantar e fiscalizar o en-
foi arduamente combatido permaneceu e a exclusão social ainda sino de moral e cívica tanto nas escolas quanto em outras esferas.
é muito visível. O conteúdo era basicamente formado por conceitos de historia co-
Após 1982 houve muitas mudanças, embora ainda haja muita meçou a se confundir com moral e cívica. Além dos atos cívicos
coisa para mudar, o ensino de ciências humanas ainda não é tão o Estado tirou toda a autonomia dos centros acadêmicos, e com o
bem aplicada como deveria. Em sua formação, os jovens estão per- decreto lei 477/69 proibiu qualquer forma de manifestação política
dendo os valores, como pensamento, consciência política, cons- ou subversiva não autorizada. A ordem era homogeneizar o poder
ciência social; não estão sendo estimulados a aprender e pensar, dos grupos dominantes que representavam os militares e moldar o
que é o fundamento do ensino.
conceito de moral, liberdade, e democracia aos de civismo, com
repressão de pensamento, de livre debate de ideias e cultos de he-
As mudanças do ensino de historia
róis e datas nacionais.
•A formação do profissional de história Em 1971 com a lei 5700 que continha 45 artigos foi definidas
penalidades a quem desrespeitasse qualquer símbolo cívico.
Após 1968 houve muitas mudanças no ensino de história, A implantação da moral e cívica gerou muita oposição pele
com a tentativa do governo autoritário em acabar com o estudo despreparo de professores e diretores que eram indicados pelo Es-
da história. Podemos observar a participação das forças sociais no tado, à transmissão do conhecimento se deu por professores de
processo de democratização, intervindo diretamente no ensino e na ciências humanas como filosofia, pedagogia, historia geografia, e
produção histórica. ciências sociais, professores que eram fieis opositores ao regime
A configuração construtiva deste processo começa na for- militar.
mação destes profissionais, que para a realização de um projeto
educacional é de profunda importância o professor, o qual domina •O conteúdo comum exigido nos programas de história.
o conhecimento que através de um planejamento, e do desenvol-
vimento no ensino, transmite seu conhecimento para seus alunos, Com a renovação do ensino que consolidou o EMC e outras
utilizando de sua autoridade acadêmica e institucional que foi res- disciplinas obrigatórias no artigo 7º da lei 5692/71 ficou descarac-
tabelecido pelo MEC em 82, após a tentativa da ditadura militar de terizado o ensino de historia e de geografia transformando-se em
64 em exterminar as ciências sociais da grade de ensino no Brasil. estudos sociais.

Didatismo e Conhecimento 46
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Os conteúdos mínimos abrangidos pelos estudos sociais não O ensino antes era voltado para uma classe privilegiada, mas
contemplavam a história constituída pelo homem e sim interpreta- com a sua universalização o acesso escolar passou a ser um direito
vam fatos das ciências sociais. de todos, e como isso a escola se tornou uma instituição de massa,
O foco era sempre o estudo EMC e o OSPB. Analisando este mostrando assim as diferenças sociais existentes.
aspecto fica claro a intenção de dissolver as disciplinas com ên- Com essa ampliação do ensino para todos, surge uma preocu-
fase na criação do espírito critico assim o governo militar pós 68 pação de alguns estudiosos: como trabalhar os elementos culturais
utilizava a história de forma estratégica manipulando a memória nessa nova classe? Para responder a essa pergunta, a autora se di-
coletiva para submeter o povo à lógica da política do governo. reciona aos pcns, que defende a inclusão das diferentes culturas
Em 1969 o presidente Médici através do decreto lei 65814/69 e etnias, a exemplo da indígena, africana e europeia. Ela defende
condicionou o ensino de historia, que sem seu artigo 1º determina os textos curriculares como “elementos de políticas educacionais
a revisão dos textos para o ensino com o intuito de retirar tudo vinculadores de ideologias, de propostas culturais e pedagógicas
àquilo que possa causar aos jovens aversões aos americanos. com grande poder de penetração na realidade escolar”. Com isso,
Analisando o decreto temos a real ideia do motivo do decreto. é preciso estudar a nova LDB e os Parâmetros Curriculares para
Ele tem por finalidade retirar toda parte da historia que poderia compreender o papel da escola em relação aos saberes transmiti-
causar aversão aos povos americanos, que ficou evidenciado no dos. Outro autor citado na obra é André Chervel, que vem colocar
fato ocorrido quando o presidente americano Trumam convocou o a escola como um lugar de formar indivíduos e a cultura; de dinâ-
congresso historical association solicitando uma elaboração de um mica própria, “saberes, hábitos, valores, modos de pensar, estraté-
programa histórico federal de luta contra o comunismo, firmando gias de dominação e resistências”.
a presença americana em toda América latina. No Brasil democrático, consolidou-se, na primeira década do
A presença americana fica clara na política brasileira após o século XXI, uma rica diversidade de modos de pensar e ensinar
golpe de 1964, pode ser constatado na educação e na intensa pro- História. A realidade escolar brasileira é complexa, plural e desi-
paganda anticomunista e no conceito da presença e da bondade gual. Não há um ensino único, nem um conhecimento histórico ex-
americana no mundo, através de estudos de temas e conceitos de clusivo. A produção historiográfica e educacional, as publicações
interesse central do governo. sobre ensino e aprendizagem de História evidenciam uma diversi-
Entre os anos de 70 e 80 vivemos uma realidade contraditória dade de temas, problemas, abordagens e fontes relevantes para o
e rica com a queda da ditadura, houve uma troca de experiências Ensino de História, produzidos por diferentes agentes (professo-
e um intenso debate sobre o ensino, quando houve uma grande res, historiadores, educadores, produtores de materiais) em vários
mudança no currículo escolar em varias partes do país no processo espaços educativos. Em diálogo com experiências internacionais,
de redemocratização nos anos 80, tivemos greves de professores e o movimento de debates no campo do ensino de História no Bra-
lutas por eleições diretas que contribuíram muito para o ensino de sil demonstra avanços da área na busca de respostas às questões
história nos últimos anos. emergentes na sociedade.
A partir dos anos 90 o contexto neoliberal conservador deu Este texto tem por objetivo refletir sobre as mudanças ocor-
espaço para nova política educacional, a extinção das disciplinas ridas nos últimos anos, discutir os avanços da área em termos de
EMC, OSPB, EPB com a lei de diretrizes e bases da educação definição de conteúdos básicos para a formação do cidadão, ana-
propiciou que a historia retomasse seu espaço voltando a ter sua lisar as abordagens mais recorrentes no ensino de História, bem
cadeira na comunidade acadêmica como formadora de espíritos como identificar e explicitar algumas das propostas metodológicas
críticos nos jovens estudantes. e estratégias de ensino que vêm produzindo resultados exitosos na
aprendizagem de História por crianças e jovens. Isso requer discu-
A nova LDB, os PCNs e o Ensino de História tir sobre o lugar, o papel, os objetivos e a importância da História
na educação básica, mais especificamente, no ensino fundamental.
O presente texto vem tratar da crise educacional que vem Neste espaço, discutiremos a diversificação de abordagens
acontecendo na atualidade. A autora coloca três aspectos que estão teóricas e políticas, bem como perspectivas do ensino de História.
relacionados com a educação, e que de certa forma também são Os conflitos entre as diversas interpretações serão tratados como
influenciados por esta crise: a cultura, a memória e o ensino de his- uma riqueza do debate, própria ao espaço público. Trataremos de
tória. Para enfrentar o território da crise, o historiador propõe uma novos e velhos temas, tendo como referência documentos, suges-
temática: “a relação orgânica entre a educação, cultura, memória tões curriculares, textos, produtos de políticas públicas, movimen-
e ensino de história”. Na sociedade atual, a educação se tornou tos sociais e experiências de ensino e pesquisa. Portanto, abordare-
indispensável e passa a ser de direito universal dos homens. Ela é a mos algumas dimensões do ensino de História no Brasil no início
transmissão e preservação da experiência humana entendida como do século XXI, focalizando “novas necessidades e possibilidades
cultura. Assim, de acordo com a autora, a educação, a memória e a de conhecimento, sem perder de vista o que se conquistou na área
cultura complementam-se, uma depende da outra. ao longo das últimas décadas do século XX” (Silva e Fonseca,
Segundo Hanna Arendt, citada por Selma Fonseca, define a 2007, p.7).
educação como uma das atividades mais elementares e necessá- Os saberes históricos e a formação do cidadão em diferentes
rias da sociedade. Os pais têm a responsabilidade para com seus contextos sociais e políticos da nossa história, é possível identi-
filhos desde o nascimento. A vida dada a esta criança é a primeira ficar intencionalidades educativas (Araújo, 2000) explícitas nos
responsabilidade, vindo o cuidado com o seu desenvolvimento e a documentos das políticas públicas.
continuidade pela sua vida. A autora defende o conservadorismo, Após catorze anos da implantação LDB-Lei de Diretrizes
no sentido de preservação e proteção, e coloca a educação como o e Bases da Educação ― Lei n.9394/96 ―, é possível fazer um
ato de formar e socializar o indivíduo para que ele não destrua a si balanço crítico das imbricações da política educacional dos anos
mesmo nem ao mundo, assim, essa educação deve ter comunica- 1990 no contexto de políticas neoliberais, em tempos de globaliza-
ção, reprodução e transmissão. ção da economia e desenvolvimento de novas tecnologias.

Didatismo e Conhecimento 47
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
O lugar e o papel ocupados pela História na educação básica sinados, apreendidos e avaliados. Como define Sacristán, o currí-
brasileira, na atualidade, derivam, pois, de transformações na po- culo é uma construção social, “um projeto seletivo de cultura, cul-
lítica educacional e no ensino de História, conquistadas a partir de tural, social, política e administrativamente condicionado” (1998,
lutas pela democracia nos anos 1980, da promulgação da Consti- p.34); portanto, uma opção cultural. Para Goodson, inspirado em
tuição Federal de 1988 e da implantação da nova LDB. Dentre as Hobsbawn, o currículo “(...) é sempre parte de uma tradição sele-
transformações que se tornaram realidade nos anos 1990, destaca- tiva, um perfeito exemplo de invenção da tradição”. (1995, p 27).
mos aquelas que consideramos avanços significativos para a área: A História ocupa um lugar estratégico na “partitura” do currí-
o fim das disciplinas EMC (Educação Moral e Cívica), OSPB (Or- culo da Educação básica, pois como conhecimento e prática social,
pressupõe movimento, contradição, um processo de permanente
ganização Social e Política) e EPB (Estudos dos Problemas Brasi-
re/construção, um campo de lutas. Um currículo de História é
leiros) nos diferentes níveis de ensino; as mudanças na formação sempre processo e produto de concepções, visões, interpretações,
de professores com o fim dos cursos superiores de Licenciatura escolhas de alguém ou de algum grupo em determinados lugares,
Curta em Estudos Sociais, que também foram, paulatinamente, tempos, circunstâncias. Assim, os conteúdos, os temas e os pro-
extintos. Em contrapartida, houve um fortalecimento dos cursos blemas de ensino de História — sejam aqueles selecionados por
superiores de História, sobretudo nas instituições públicas, e ainda formuladores das políticas públicas, pesquisadores, autores de li-
mudanças na política pública de livros didáticos. Além disso, res- vros e materiais da indústria editorial, sejam os construídos pelos
saltamos as experiências significativas e impactantes de reformas professores na experiência cotidiana da sala de aula — expressam
curriculares no âmbito dos governos municipais e estaduais demo- opções, revelam tensões, conflitos, acordos, consensos, aproxima-
cráticos ― em São Paulo e Minas Gerais nos anos 1980 e 1990, ções e distanciamentos; enfim, relações de poder.
por exemplo, ―, bem como o desenvolvimento de programas e Os conteúdos (o que ensinar), os saberes históricos seleciona-
projetos de formação docente nas diversas regiões do território dos e sugeridos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
nacional. implantados a partir de 1997, apontam uma organização curricu-
lar por eixos temáticos, desdobrados em subtemas. Para os quatro
As reformas curriculares, expressas nos debates e documen-
anos iniciais do Ensino fundamental, foi proposto o estudo de dois
tos produzidos nos governos democráticos nos níveis federal, es- eixos temáticos: I) História local e do cotidiano, subdividida em
taduais e municipais, são reveladoras de objetivos, posições polí- dois subitens: ‘localidade’ e ‘comunidades indígenas’; II) História
ticas e teóricas que configuram não apenas o papel formativo da das organizações populacionais, subdividida em ‘deslocamentos
História como disciplina escolar estratégica para a formação do populacionais’, ‘organizações e lutas de grupos sociais e étnicos’,
cidadão, mas também modos pensar, construir e manipular o co- e ‘organização histórica e temporal’. Para os anos finais do Ensi-
nhecimento histórico escolar. no fundamental, os PCNs propõem outros dois eixos temáticos: I)
Isso nos remete a algumas perguntas: Se tudo é história, por ‘História das relações sociais, da cultura e do trabalho’, subdividi-
que às escolas de educação básica são endereçados determinados da em ‘as relações sociais, a natureza e a terra’, e ‘as relações de
conteúdos específicos, selecionados, elaborados em diferentes lu- trabalho’; II) ‘História das representações e das relações de poder’,
gares de produção? Por que, nas diferentes realidades escolares, desdobrada também em dois subitens: ‘nações, povos, lutas, guer-
na construção curricular cotidiana, outros conhecimentos são sele- ras e revoluções’; ‘cidadania e cultura no mundo contemporâneo’.
cionados e ensinados? Como os currículos de História operam no Além disso, o documento curricular estabelece como temas trans-
versais Ética, Saúde, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Plurali-
sentido de selecionar para quê, o quê e como ensinar em História?
dade Cultural, Trabalho e Consumo, demandas sociais emergentes.
As respostas a essas questões podem parecer simples e até A organização dos currículos de História por temas e proble-
óbvias. Sabemos que estão intimamente ligadas às nossas posi- mas é fruto do intenso debate curricular ocorrido no Brasil, nos
ções políticas, nossas escolhas teóricas e metodológicas. Isso nos anos 1980, em diálogo com experiências europeias. É exemplar,
remete a outras questões: O que fazem os professores de História nesse movimento, o debate ocorrido, no estado de São Paulo, em
quando ensinam História? Por que ensinam como ensinam? Quais torno da Proposta Curricular da SEE/CENP (Secretaria de Estado
os temas, as fontes, as metodologias, os materiais, os problemas da Educação/Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas)
que escolhem para fazer as mediações entre o passado e o pre- (Fonseca, 1993). Tal proposição constituía uma busca, uma res-
sente vivido por nós? Como nos relacionamos com o passado posta às criticas a estrutura curricular tradicional, que privilegia-
quando ensinamos História às crianças e aos jovens brasileiros? va a organização cronológica linear, baseada em fatos/ marcos da
Relembrando Jenkins, “(...) nenhum historiador consegue abarcar história europeia, integrados, quando possível, aos fatos/marcos
e assim recuperar a totalidade dos acontecimentos passados, por- da história da nação brasileira. Era, assim, uma resposta crítica
que o conteúdo desses acontecimentos é praticamente ilimitado”. ao “quadripartismo francês”, ao eurocentrismo tão bem analisado
pelo historiador Chesneaux (1995) e radicalmente incorporado no
“(...) nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual era.”
Brasil, formatando (e engessando) currículos e livros didáticos. A
A História, para o autor, “está sempre fadada a ser um construc- opção por eixos temáticos representava uma insubordinação “ao
to pessoal, uma manifestação da perspectiva do historiador como império do fato”, “ponto de localização de significações e lugar
narrador... O passado que conhecemos é sempre condicionado por onde é entrevista a realização da História”, como bem analisou
nossas próprias visões, nosso próprio presente” (2005 p. 31-33). Carlos Vesentini em “A teia do fato”, (1997). Na referida obra,
Logo, a história ensinada é sempre fruto de uma seleção, ou como o autor nos alerta: “alguns fatos são difundidos, impondo-se no
atualmente se diz de um “recorte” temporal, histórico. As histórias conjunto do social antes da possibilidade de qualquer reflexão es-
são frutos de múltiplas leituras, interpretações de sujeitos históri- pecífica voltar-se para o seu exame” (p.19). Assim, a organização
cos situados socialmente. dos conteúdos por eixos temáticos, intensamente discutida a partir
Ao refletirmos sobre a definição de conteúdos escolares, não dos anos 1980, passou a ser um desafio teórico e metodológico,
podemos esquecer que o currículo, assim como a História, não é uma postura crítica ante as tramas da produção e difusão do co-
um mero conjunto neutro de conhecimentos escolares a serem en- nhecimento histórico.

Didatismo e Conhecimento 48
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
O texto curricular dos PCNs (1997), ao propor um tema amplo aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação as “Diretrizes
para os dois últimos anos da primeira fase do ensino fundamental, Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Ra-
possibilitou a professores e alunos problematizar e compreender ciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
temas/dimensões da História do Brasil. Isso significou enfrentar cana”, bem como a Resolução nº 1 do CNE, de 7 de junho de 2004,
um velho problema em algumas realidades escolares, uma respos- que instituiu as Diretrizes. Essas proposições provocaram altera-
ta a uma questão que muito incomodava os educadores: o fato de ções na Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 ― Lei de
o aluno concluir essa fase da escolaridade sem ter contato com Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) –, com o acrés-
a história do Brasil. Os antigos programas de ensino de Estudos cimo de dois artigos referentes ao ensino de História: o “26-A”
Sociais, em geral, encerravam o ciclo dos quatro anos do então trata da obrigatoriedade do ensino da História e Cultura da África
ensino de 1º grau (hoje ensino fundamental) com o estudo da his- e Afro-Brasileira, e define “o que ensinar”, “o conteúdo programá-
tória regional, do município e/ou do estado (unidade da federação tico”, “resgatando” a importância do estudo da luta dos africanos e
em que vive o aluno), de forma estanque e fragmentada. Assim, no afro-brasileiros, da História e da cultura destes povos. O parágrafo
estado de Minas Gerais, por exemplo, as crianças que estudavam 2º estabelece que os conteúdos devem ser objeto de todas as disci-
seguindo o Programa de Estudos Sociais da Secretaria de Estado plinas, em especial, das disciplinas Educação Artística, Literatura
da Educação (1975) e os livros didáticos elaborados à semelhança Brasileira e História Brasileira. O artigo 79-B inclui no calendário
do Programa chegavam ao final da 4ª série, hoje 5º ano, sem ter o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
noções mínimas, básicas de história do Brasil. O mesmo ocorria Como a história é dinâmica, campo de lutas e práticas sociais, no-
com os estudos de Geografia. Ora, levando em conta que grande vas alterações foram feitas na legislação em decorrência das lutas
parte dos alunos brasileiros não ultrapassava, naquele período, os políticas, articuladas ao movimento acadêmico multicultural crí-
limites da 4ª ou 5ª série, devido aos elevados índices de evasão tico. Em 2008, a Lei Federal nº 11.645 alterou a Lei no 9.394, de
e repetência, muitos encerravam ou interrompiam a escolaridade 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de
sem conhecer aspectos significativos da História e da Geografia do janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
Brasil. Aqueles que prosseguiam os estudos chegavam, em regra, nacional, para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obri-
a então 5ª série (6º ano) sem uma base conceitual e temática das gatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indí-
disciplinas, sem conhecimentos mínimos de História e Geografia gena”. Foram feitas alterações e modificações no artigo “26-A” e
do Brasil. respectivos parágrafos, acrescentando a obrigatoriedade dos estu-
O estudo de temas e problemas da História do Brasil nos anos dos referentes à questão indígena, passando o texto a ter a seguinte
iniciais do ensino fundamental foi uma mudança curricular rele- redação: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e
vante no seio de conquistas maiores: o fim das disciplinas “Estu- de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo
dos Sociais” e correlatas, tais como “Formação Social e Política, da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela
Integração Social”; a separação das disciplinas História e Geogra- Lei nº 11.645, de 2008).
fia e, como decorrência, a produção e adoção de livros didáticos § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo in-
específicos para cada uma das disciplinas nesta etapa de formação. cluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
Essas medidas em âmbito nacional, que em muitos estados e mu- formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étni-
nicípios já estavam sendo realizadas desde o fim da ditadura, con- cos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta
tribuíram para o debate acerca do objeto de estudo e do papel da dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indí-
História para a formação das identidades e da cidadania desde os gena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacio-
primeiros anos de escolaridade. Nesse sentido, potencializaram-se nal, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e
as investigações no âmbito acadêmico, o repensar da formação de política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº
professores e os investimentos em produção de livros e materiais 11.645, de 2008). Esse complemento refere-se ao conteúdo, uma
didáticos e paradidáticos voltados para a aprendizagem da Histó- vez que vários outros aspectos relativos à educação escolar indíge-
ria no âmbito da educação das crianças. Em relação ao papel dos na eram regulamentados. Pesquisas em desenvolvimento na rede
currículos de História na formação de cidadãos, outro movimento escolar de ensino público e privado (Paula, 2009; Simonini, 2010)
merece ser registrado: as demandas de grupos sociais e étnicos. têm evidenciado contradições e dificuldades dos professores em
Como é amplamente conhecido da sociedade brasileira, desde ministrar tais conteúdos. As razões teóricas, políticas e pedagógi-
os anos 1970, intensificaram-se entre nós, de modo particular, a cas narradas pelos professores são múltiplas e diversas. No entan-
mobilização de mulheres, negros e indígenas contra o racismo, os to, há pontos em comum. Primeiro, a lacuna existente na formação
preconceitos, a marginalização e as diversas práticas e formas de inicial. Grande parte dos cursos de Licenciatura em Pedagogia e
dominação e exclusão. Esses movimentos foram interpenetrando História, em 2008, ainda não preparava os professores para o es-
espaços por meio de lutas específicas no campo da cultura, da edu- tudo das temáticas no ensino fundamental. Somam-se a isso difi-
cação e da cidadania. Alcançaram vitórias expressivas no processo culdades para obtenção de materiais didáticos pertinentes. Logo,
constituinte na década de 1980 e, em decorrência da Nova Consti- mais um consenso foi produzido: a necessidade de ampliação de
tuição Federal de 1988, vários projetos de políticas públicas foram projetos de formação continuada para suprir lacunas teóricas e me-
disseminados, alguns específicos na área da cultura e da educação todológicas, além de revisão dos currículos das Licenciaturas e o
de afrodescendentes e indígenas. Em 2003, foi sancionada pelo incremento de livros e materiais didáticos no que concerne a essa
Presidente da República a Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro problemática. Outras questões curriculares, novas necessidades e
de 2003, tornando obrigatória a inclusão da “História e Cultura também possibilidades educativas emergiram com a reorganização
Afro-Brasileira e Africana” nos conteúdos das disciplinas Artes, da estrutura e duração do ensino fundamental brasileiro. Em 2006,
História e Língua Portuguesa do ensino básico. Em 2004, foram o Governo Federal, por meio da Lei n.11.274/2006, alterou a re-

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BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
dação dos artigos 29, 30, 32 e 87 da LDB, ampliando para nove dos significados dos currículos. No entanto, o professor não está
anos a duração do ensino fundamental, com matrícula obrigatória sozinho frente aos alunos e aos saberes. Nas interações, no entre-
a partir de 6 anos. O artigo 5º da Lei supracitada estabelece que cruzamento das relações dos sujeitos, saberes e práticas em que se
municípios, estados e o distrito federal terão prazo até 2010 para configuram determinadas culturas, os professores leem, interpre-
implantar o ensino fundamental de 9 anos. Desde então, passaram tam, traduzem, re/constroem propostas curriculares que lhes são
a serem discutidas novas diretrizes curriculares nacionais no âmbi- apresentadas, seja pelas instituições e prescrições administrativas,
to do Conselho Nacional de Educação (CNE), sendo que, em 9 de seja pelos livros didáticos, materiais e fontes, seja pelas demandas
julho de 2010, foi publicado o texto do Parecer e o Projeto de Re- da mídia, do mercado, da comunidade, das famílias e dos próprios
solução (Parecer CNE 7/2010) aprovado pelo CNE e homologa- alunos. Trata-se, pois, de um exercício complexo, um ato político,
do pelo Ministro de Estado da Educação. As Diretrizes reiteram a cultural e pedagógico. No Brasil, os debates sobre ensino de His-
configuração da educação básica em três etapas: educação infantil; tória, desde os anos de luta contra a ditadura e mesmo de inquie-
o ensino fundamental obrigatório e gratuito, com duração de nove tações e movimentos anteriores, contribuíram para um alargamen-
anos, organizado e tratado em duas fases: a dos 5 anos iniciais e a to das concepções sobre esse campo de pensamento e trabalho.
dos quatro anos finais; e o ensino médio, com duração mínima de A despeito da força e do poder diretivo dos currículos prescritos,
3 anos. Na estrutura curricular que deve integrar a base comum na- precisamos atentar para o fato de que as disciplinas não são meros
cional, os ensinos de História e Geografia estão contemplados no espaços de vulgarização de saberes, nem tampouco de adaptação,
Item C do artigo 14, que estabelece como componente curricular: transposição das ciências de referência, mas produtos dos espa-
“o conhecimento do mundo físico, natural, da realidade social e ços, das culturas escolares. Os professores têm autonomia ante as
política, especialmente do Brasil, incluindo-se o estudo da História demandas do Estado, da sociedade e dos meios de comunicação;
e das Culturas Afro-brasileira e Indígena (Parecer CNE 7/2010, assim, questionam, criticam, subvertem os saberes e as práticas
p.66.). Essa configuração reafirma diretrizes anteriores recorrentes no cotidiano escolar. Entre os currículos prescritos e os vividos
na produção curricular e historiográfica escolar. Dentre os vários nas aulas de História, há diversas mediações entre os sujeitos (alu-
aspectos e ângulos, objetos das Diretrizes e merecedores de cuida- nos e professores), saberes de diferentes fontes (livros didáticos,
dosa reflexão da área de ensino de História, destacamos: o “foco fontes históricas, imprensa, textos, filmes, literatura, documentos
central na alfabetização, ao longo dos três primeiros anos”, como e outros), práticas institucionais, burocráticas e comunitárias em
um dos objetivos da formação básica da criança, definido no Item contextos muito diferenciados. Nessa trama relacional, é impres-
II, artigo 24 (2010, p.69). Esse “privilégio” da alfabetização não cindível a valorização do papel do professor, de sua formação, au-
quer dizer que não se deva ensinar História, Geografia e Ciências, tonomia e das condições do trabalho docente. A diversificação das
mas que, além da própria alfabetização nessas áreas, o trabalho abordagens: a História nos livros didáticos.
nelas desenvolvidos pode também, ao mesmo tempo em que se Com o objetivo de refletir sobre as abordagens recorrentes na
volta para o ensino de História, ser uma atividade fundamental no história ensinada, optamos pela análise, ainda que sintética, do
processo de desenvolvimento da linguagem oral e escrita. Exem- principal veículo de difusão da história na sociedade brasileira
plo: podemos realizar uma aula de leitura e interpretação de texto contemporânea: o livro didático destinado ao ensino fundamental.
partindo de um texto histórico, assim como trabalhar com a pro- Certamente, uma das políticas públicas mais antigas e exitosas do
dução de textos a partir de um tema da história. A leitura propicia Estado brasileiro é o Programa Nacional do Livro Didático
a aprendizagem em História, é inerente à atividade de construção (PNLD), que prevê a aquisição e a distribuição gratuita de livros
de saberes históricos. para os alunos da rede pública de ensino. Desde o início dos anos
O “foco na alfabetização” não pode perder de vista as diversas 2000, em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais
dimensões que o processo envolve, pois, como nos ensinou Paulo de 1997, o PNLD passou a exigir, nos Editais de Livros Didáticos
Freire, ler é ler o mundo (Freire, 2001); logo, não podemos apren- para os anos iniciais, a inscrição, avaliação e aquisição de livros
der a ler as palavras sem a busca da compreensão do mundo, da didáticos distintos para as duas disciplinas: História e Geografia.
história, da geografia, das experiências humanas construídas nos Isso impactou de forma positiva o ensino de História. Bastante co-
diversos tempos e lugares. Isto requer de nós outra concepção de nhecidos no meio educacional, os currículos prescritos pelas secre-
aprendizagem da Língua Portuguesa e da História. À pergunta de tarias estaduais e municipais de diversas regiões do Brasil, a partir
muitos professores ― “é possível ensinar História sem antes al- dos anos 1970, pós-Lei 5.692/71, contribuíram para a diluição dos
fabetizar?” ―, respondemos com outra questão e uma assertiva: objetos de ensino de História e Geografia, adicionadas com forte
“é possível alfabetizar sem a História”? (Fonseca, 2009). É possí- “tempero” de moral e civismo na fusão “Estudos Sociais”, apre-
vel, sim, alfabetizar as crianças, ensinando e aprendendo História. sentada nos livros didáticos. O perfil e o baixo padrão de qualidade
Aprender história é ler e compreender o mundo em que vivemos. dos livros didáticos de Estudos Sociais, adotados e distribuídos
Portanto, se ao ensino de História cabe um papel educativo, forma- pelo PNLD para os alunos das séries iniciais das escolas públicas
tivo, cultural e político e sua relação com a construção da cidada- brasileiras nesse período histórico, foram registrados num impor-
nia perpassa diferentes espaços de produção de saberes históricos, tante trabalho realizado pelo MEC/FAE (Fundação de Assistência
é essencial localizarmos no campo da História questões/temas/pro- ao Educando) em 1993. Em meio a denúncias de deficiências do
blemas considerados relevantes para a formação da consciência PNLD (execução, distribuição) e de problemas de qualidade das
histórica dos alunos. Isso requer um diálogo crítico com diferentes publicações ― identificados por educadores e pesquisadores bra-
sujeitos, lugares, saberes e práticas; entre a multiplicidade de cul- sileiros e estrangeiros ―, o MEC criou, em 1993, um grupo de
turas, etnias, sociedades. Ressalto aqui, concordando com Sacris- trabalho formado por especialistas das diversas áreas, indicados
tán (1998), o papel do professor, no caso de História, como um por diferentes entidades, com o objetivo de “definir parâmetros
agente ativo, decisivo na seleção e concretização dos conteúdos e para avaliar a qualidade e adequação dos conteúdos programáticos

Didatismo e Conhecimento 50
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
e os aspectos pedagógico-metodológicos dos livros destinados às ria revelam que, nos anos iniciais, há uma diversificação das abor-
séries iniciais do 1º grau, usualmente adotados no ensino de Portu- dagens com a presença mais forte da história temática; nos anos
guês, Matemática, Ciências, Estudos Sociais” (Brasil, 1994). Den- finais do ensino fundamental, também estão presentes várias ten-
tão, as avaliações periódicas da produção didática pelo MEC têm dências, mas a perspectiva curricular dominante legitima a con-
evidenciado melhoria do padrão qualitativo dos livros didáticos cepção didática da História chamada “integrada”, pelo critério
(não apenas de História), conforme demonstrado não só pelos temporal, linear, com base na cronologia da História europeia, ar-
Guias do Livro Didático publicados pelo MEC com os resultados ticulada, quando possível, à História do Brasil, América e África.
das avaliações, mas também por estudos e pesquisas acadêmicas Evidencia, desse modo, a força dessa concepção de História e de
(Oliveira e Stamatto, 2007). Nas Fichas de Avaliação do PNLD organização curricular em nossas escolas, no contexto de revisão e
2010 ― História, há um conjunto de critérios avaliativos que per- críticas historiográficas e pedagógicas. O conjunto dos autores/
mitem diagnosticar as abordagens e a linguagem da obra, as poten- editores/ obras que elege a história temática é minoritário, a des-
cialidades de desenvolvimento de capacidades e competências de peito de sugestões e diretrizes dos PCNs e de propostas curricula-
leitura, vocabulário, compreensão de gêneros textuais e produção res institucionais de vários estados e municípios. Logo, esses da-
de textos. Enfim, são avaliadas as possibilidades propiciadas pelos dos demonstram também que a opção/concepção dominante entre
livros de História (anos iniciais) de aprendizagem histórica rela- os professores de História que atuam neste nível de ensino não se
cionada ao domínio da leitura e escrita da língua portuguesa (2009, orienta pelo critério “temático”, mas pelo “cronológico”, seja na
p. 327). Portanto, os PCNs e as Avaliações dos Livros Didáticos versão “integrada”, seja na versão “intercalada” da História Geral
contribuíram decisivamente para a construção de um novo perfil das civilizações, articulada à História do Brasil, da América e da
de livros didáticos de História. Nos livros de História para os anos/ África. Para não sermos reducionistas nessa análise, lembramos
séries iniciais do ensino fundamental avaliados pelo PNLD – 2010, que a produção didática é fruto de um diálogo permanente entre
a comissão identificou quatro tendências, abordagens e/ou modos distintos espaços e modos de construção do conhecimento históri-
de organização dos conteúdos históricos: espacial (família, escola, co: a Universidade, que produz a historiografia e também forma os
bairro, campo/cidade, município, estado, país); temporal (unida- professores; os pesquisadores e os autores de livros; as escolas,
des em ordem cronológica); temática (temas ou eixos temáticos) e que também produzem saberes, culturas e práticas educativas; os
especial (por meio do elemento ficcional: histórias e personagens diferentes níveis e instâncias do Estado que, por meio de especia-
ficcionais). A maior parte das coleções e livros regionais opta pela listas, formulam currículos e implementam políticas públicas re-
História temática, seguida dos critérios de organização “tempo- guladoras e indutoras; os diversos espaços e movimentos sociais
ral”, “espacial” e, em menor escala, “ficcional”. Nos livros de His- abordados anteriormente; a indústria cultural, que compreende as
tória destinados aos anos finais do ensino fundamental, a avaliação editoras e os variados e poderosos meios de comunicação de mas-
publicada no Guia 2008 evidenciou uma tendência/abordagem sa. Certamente esse processo exige algumas reflexões: Por que os
histórica que se consolida na atualidade, nesse segmento. Segundo autores de obras para os anos iniciais elegem com mais frequência
o Guia 2008, foi possível agrupar um conjunto de 19 coleções “em a história temática? Por que a abordagem cronológica é a mais
quatro blocos, de acordo com a organização de conteúdos: história adotada nos anos finais? Que dificuldades enfrentam os professo-
temática (4 coleções); história integrada (7); história intercalada res ao lidar com as distintas abordagens? Como são formados os
(7) e história convencional (1 coleção)”. Os avaliadores concluí- professores nos cursos superiores de Pedagogia para ensinar His-
ram “que a maior parte das coleções inscritas neste PNLD-2008 tória nos anos iniciais? E nos cursos superiores de História, para
foi elaborada seguindo a organização curricular dos conteúdos que atuar nos anos finais do ensino fundamental e médio? Quais as
aborda, concomitantemente, as Histórias da América, do Brasil e relações entre as escolhas curriculares e as condições de trabalho
História Geral, sendo que metade, por meio da abordagem deno- nas escolas? Novas necessidades? Novas possibilidades de conhe-
minada “História Integrada” e a outra metade pela “História Inter- cimento? No debate, na busca de respostas, de novas possibilida-
calada”, o que permite a conclusão de que essa é a tendência atual des de conhecimento, nesse universo de ampliação de temas, pro-
da área “(2007, p.13)”. Sobre a avaliação realizada em 2009/2010, blemas e abordagens, livros e materiais didáticos, devemos estar
o Guia de Livros Didáticos PNLD 2011 ― História nos anos finais atentos para o fato de que ninguém poderá aprender, nem ensinar
do ensino fundamental ― informa que foram avaliadas 25 (vinte e tudo de tudo. O trabalho de selecionar, eleger é uma exigência per-
cinco) coleções, sendo 16 (dezesseis) aprovadas e 9 (nove) repro- manente. Um currículo de História é sempre fruto de uma seleção
vadas. Quanto às abordagens norteadoras ou à perspectiva curricu- cultural. Metodologias e práticas de ensino: desafios permanentes.
lar dominante no universo de coleções analisadas, a Comissão No final da primeira década do século XXI, pesquisadores,
concluiu que podem ser agrupadas em dois blocos: 94% das cole- formadores, gestores e professores têm uma clara compreensão de
ções aprovadas priorizam a chamada “História Integrada” e 6% a que a escola constitui um espaço complexo de debates, fontes his-
“História Temática”. Segundo o Guia, “por História Integrada tóricas e diferentes propostas de saber. A escola constitui um espa-
identificamos as coleções cujo agrupamento pauta-se pela evoca- ço democrático, onde diversas possibilidades de ensinar e aprender
ção da cronologia de base europeia, integrando-a, quando possível, estão presentes. Nesse sentido, a concepção de História como dis-
à abordagem de temas relativos à História brasileira, africana e ciplina formativa aponta para a construção de novas práticas e pos-
americana [...]. A organização em torno de uma proposta de Histó- sibilidades metodológicas que potencializam, indicam outras rela-
ria temática ocorre quando os volumes são apresentados não em ções educativas no ensino de História desde o processo de alfabe-
função de uma cronologia linear, mas por eixos temáticos que pro- tização da criança nos primeiros anos de escolaridade. A História,
blematizam as permanências e transformações temporais, sem, como componente curricular, não é mais uma instância burocrática
contudo, ignorar a orientação temporal assentada na cronologia” e repetitiva de soluções prévias elaboradas por especialistas. As
(2010, p.17). Portanto, as avaliações dos livros didáticos de Histó- respostas para as necessidades são formuladas de muitas maneiras,

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a partir das concepções de História, escola, ensino e mundo de - O trabalho pedagógico de construção de conceitos nas au-
cada professor, autor, debatedor, pesquisador. Nesse repensar, duas las de História. Para Schmidt e Cainelli, esse trabalho no ensino
questões são indissociáveis: o que ensinar e como ensinar, como de História requer respeito pelo conhecimento e pelo conjunto de
se depreende, por exemplo, da leitura de textos curriculares, obras representações que o aluno traz para a sala de aula. Tendo como
didáticas e didático-acadêmicas de ampla circulação na área, tais referência suas representações, “o aluno tem a possibilidade de
como Fonseca, 2003; Silva e Fonseca, 2007; Bittencourt, 2003, efetivar suas próprias ideias sobre os fenômenos do mundo social”
2004; Schmidt e Cainelli, 2004, entre outros. Vejamos, então, al- (2004 p.61-62). Com base em Moniot (1993), as autoras denomi-
gumas das propostas metodológicas e estratégias de ensino que nam os conceitos de possibilidades cognitivas. Alguns conceitos
vêm se consolidando entre nós e produzindo resultados exitosos são considerados chaves para o processo de compreensão da His-
na aprendizagem de História por crianças e jovens. tória, tais como tempo histórico e espaço, sociedade e relações so-
- O alargamento do campo da história ensinada. Nas várias ciais, trabalho e cultura. Como possibilidades cognitivas, devem
formas de organização curricular, é possível identificar a amplia- ser desenvolvidos desde os primeiros anos de escolarização. Ex-
ção do universo de temas, problemas estudados e de materiais/fon- periências significativas têm sido realizadas no cotidiano escolar
tes utilizadas no ensino de História. envolvendo a história de vida da criança, a história local, a história
- A pluralidade de leituras acessíveis às crianças e jovens. Ver- oral, documentos e objetos biográficos da criança, da família e da
sões da história que eram recorrentes na historiografia debatida e comunidade.
ensinada na Universidade têm sido, cada vez mais, incorporadas - A educação patrimonial. O trabalho pedagógico com os di-
à história ensinada na educação básica, por meio de textos didáti- ferentes lugares de memória (museus, arquivos, bibliotecas, mo-
cos e paradidáticos, de revistas, jornais de História destinados ao numentos, objetos, sítios históricos ou arqueológicos, paisagens,
grande público, filmes e outros materiais de ampla divulgação. A parques ou áreas de proteção ambiental, centros históricos urbanos
história única, verdade absoluta que privilegia alguns heróis, mitos ou comunidades rurais) e com as manifestações populares (as can-
e fatos da memória oficial, é combatida e contraposta por meio tigas, o folclore, as religiões, os hábitos e costumes, os modos de
de outras leituras, fontes e versões que enfatizam a história como falar, de vestir) pode contribuir para o desenvolvimento do respei-
uma construção. Logo, múltiplas leituras podem ser mobilizadas e to à diversidade, à multiplicidade de manifestações culturais. Fo-
confrontadas nas aulas de História. calizar, desde os primeiros anos de escolaridade, os elementos que
- As práticas interdisciplinares. O trabalho pedagógico por compõem a riqueza e a diversidade cultural dos diferentes grupos
meio de projetos de ensino que articulem temas históricos aos étnicos que formaram, fizeram a história do nosso país certamente
demais componentes curriculares têm se configurado, na prática, propicia o desenvolvimento da tolerância, da valorização das dife-
como possibilidades exitosas de aprendizagem e construção de sa- rentes culturas, sem distinguir, hierarquizar ou discriminar umas
beres, valores, habilidades, de modo especial nos primeiros anos como melhores do que outras. Assim, consideramos a educação
de escolaridade. Bittencourt reconhece a importância da interdis- patrimonial e histórica como parte do processo de alfabetização,
ciplinaridade, da compreensão do mundo em sua complexidade, pois possibilita leituras e a compreensão do mundo, bem como de
com as articulações inerentes entre a vida social e a natureza física trajetórias temporais e históricas.
e biológica... No entanto, nos alerta para a necessidade de “garantir - A incorporação e diversificação de diferentes fontes, lingua-
a preservação de um conhecimento escolar sem superficialidade, gens e artefatos da cultura contemporânea no processo de ensi-
que aborde temas interdisciplinares em profundidade. Cada disci- no e aprendizagem. Conforme já foi explicitado anteriormente, o
plina tem uma contribuição específica [...], o que exige do docente professor, ao ensinar História, incorpora as noções transmitidas
um aprofundamento do seu campo de conhecimento específico e no processo de socialização da criança, no mundo vivido fora da
ao mesmo tempo desencadeia um trabalho metodológico conjun- escola, na família, no trabalho, nos espaços de lazer, nos diversos
to” (2004, p.256). Tarefa complexa, que requer envolvimento indi- ambientes sociais e educativos, etc. A formação do aluno/cidadão
vidual e coletivo dos diferentes agentes educativos. se processa ao longo da vida, nos diversos espaços, entre eles a es-
- A produção de saberes históricos na sala de aula por meio cola. Logo, devemos considerar como fontes do ensino de História
de projetos. Publicações e apresentações expõem experiências di- todos os veículos, materiais, vozes, indícios que contribuem para a
dáticas bem sucedidas, em escolas de diferentes lugares do Brasil, produção e difusão do conhecimento, responsáveis pela formação
que articulam a pesquisa ao ensino, ou que têm como pressuposto do pensamento crítico: os meios de comunicação de massa (rádio,
do ensino a pesquisa. O desafio, em muitas realidades, permanece TV, imprensa em geral), a internet e os espaços virtuais, a literatu-
o mesmo apontado por nós no final dos anos 1980 e início dos ra, o cinema, fontes orais, monumentos, museus, arquivos, objetos,
anos 1990: não banalizar o conceito de “pesquisa”, confundido poesias e canções, além de documentos impressos e textuais e das
muitas vezes com “cópia” de textos produzidos por outros, antes fontes iconográficas.
(nos anos 1980, por exemplo) capturados em enciclopédias e li- Os livros didáticos e paradidáticos como fontes, suportes de
vros e, na atualidade, em sites que disponibilizam “trabalhos es- trabalho, também propiciam o acesso de alunos e professores à
colares” prontos sobre diversos assuntos. Mudaram-se as fontes, compreensão desse universo de linguagens. Incorporando diferen-
os recursos tecnológicos. Mas o procedimento permanece. Sem tes linguagens ao processo de ensino de História, reconhecemos
incorrer em generalizações, às vezes, o único trabalho do aluno não só a estreita ligação entre os saberes escolares e a vida social,
(da educação básica à universidade) é imprimir o texto e entregar mas também a necessidade de (re) construirmos o nosso conceito
ao professor. O exercício de produção, os projetos de trabalho que de ensino e aprendizagem. As metodologias propostas para o ensi-
envolvem pesquisa requerem orientação, acompanhamento, dis- no de História, na atualidade, exigem uma permanente atualização,
cussão e avaliação em todas as fases, desde a problematização até investigação e incorporação de diferentes fontes, e respeito às es-
a publicização dos resultados. pecificidades de cada uma delas.

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Assim, reiteramos posições anteriormente assumidas. Em pri- A formação superior para o trabalho em sala de aula.
meiro lugar: pensar os currículos prescritos de História implica
auscultar os currículos vividos, as culturas escolares, os saberes, Para situarmos o tempo e o espaço dos quais estamos falando,
as concepções, as narrativas de professores, crianças e jovens, os recorremos às análises de Reis (2002) sobre a globalização “como
livros e materiais. metáfora da perplexidade” e os processos geoeconômicos. Segun-
A sala de aula é por excelência, um espaço plural, coletivo, o do ele, estamos perante tendências e contra tendências e tempora-
palco no qual professores e alunos/atores/sujeitos vivem, apren- lidades diversas.
dem, ensinam, relacionam-se uns com os outros, com o mundo, Assim, espaço (lugares = identidade, relações sociais e histó-
com os saberes. Ali eles se expressam, se expõem, se revelam, se ria) e tempo (temporalidades) se cruzam.
colocam por inteiro, na totalidade. Objetividade e subjetividade, Nesse contexto, declara o autor, insistimos na convicção de
corpo e mente, razão e sensibilidade, o bio/psico/social em ação. que a análise das tensões entre mobilidades e localizações não
Na sala de aula, o professor re/constrói sua bio/grafia, sua história, pode ser remetida para a busca das duas faces de uma mesma
sua trajetória, sua experiência pessoal e profissional. Espaço de moeda, o que nos conduz a uma visão apenas dialética. O mais
aprender e ensinar, logo, um espaço, um campo de relações. importante, reitera, é a procura das singularidades. A globalização
Nesse cenário de construção de experiências, de construção e a localização são processos conflituais e, até, potencialmente in-
de identidades, capturamos, em lugares diferentes, vozes de duas dependentes. Ambos, mas especialmente a localização, são consti-
professoras que nos falam muito: “Eu sei o conteúdo, mas não sei tutivos de trajetórias inesperadas (Reis, 2002, p. 106).
dar aulas!”, Para ampliar a compreensão do cenário, recorremos à leitura
“Eu gosto de ensinar, mas me falta conteúdo!”. A primeira é de Bhabha (2005, p. 19) sobre o nosso tempo e lugar:
graduada em História, professora dos anos finais do ensino funda- (...) nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensa-
mental em escolas públicas e privadas; a segunda é professora dos ção de sobrevivência, de viver nas fronteiras do “presente”... En-
anos iniciais do ensino fundamental em uma escola pública. contramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se
Essas lastimáveis incoerências podem suscitar diversas inda- cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade,
gações acerca das condições de formação e dos seus impactos no passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.
trabalho do (a) professor (a), muitas das quais amplamente investi- Concordamos com esses autores: vivemos (e sentimos isso no
gadas e conhecidas no meio escolar e acadêmico. Mas, sobretudo, cotidiano) a emergência dos interstícios, sobreposições, desloca-
as duas frases nos incitam a pensar, não apenas no que “falta”,
mentos, mobilidades, tendências e contratendências. Preocupados
no “não saber”, mas sobre “quem são elas (es)”, as(os) professo-
com a formação e prática do professor, servimo-nos de uma das
ras(es), o que “sabem”, o que “fazem” e “como fazem”, como e o
perguntas de Bhabha (2005, p. 20): “Como se formam sujeitos nos
que aprenderam em seus percursos formativos. Como se relacio-
‘entre lugares’, nos excedentes das partes da diferença?”.
nam essas dimensões constitutivas do oficio do professor?
Ao defendermos, no ensino de História – reconhecidamente
Não sendo possível, neste espaço textual, abordar todos es-
um lugar de fronteira –, as relações entre sujeitos, saberes e práti-
ses problemas, apresentamos algumas reflexões, em diálogo com
cas, não estamos pensando apenas na pesquisa sobre a formação
outras investigações, a respeito de resultados de estudos desenvol-
vidos em grupo de pesquisa colaborativo que reúne professores docente, mas, sobretudo, nas relações entre a formação, a pes-
formadores em cursos de licenciatura, graduandos, pós-graduan- quisa, os saberes e as práticas em sala de aula. Estamos ousando
dos e professores da educação básica. O objeto central do grupo pensar nas relações que se estabelecem na sala de aula. A nossa
é a investigação “Formação docente, saberes e práticas de ensino opção é caminhar na intersecção, dialogando com os dois campos:
de História”. Educação e História. A formação e a prática docente serão discu-
No que concerne às relações entre sujeitos, saberes e práticas tidas aqui intimamente relacionadas ao conceito de profissionali-
nos processos formativos e na dinâmica do processo de ensino e zação, que, por sua vez, envolve, entre outros aspectos, condições
aprendizagem. Buscamos compreender os processos pelos quais de trabalho, carreira regulamentada e formação. Logo, inspirados
os sujeitos (formadores e formandos, professores/alunos) se apro- em Bhabha, ousaremos pensar a formação, os saberes e as práticas
priam dos saberes (docentes, escolares, acadêmicos) e práticas e nos “entre lugares”, articulando passado e presente, nas fronteiras
os reconstroem e como a formação (diferentes modalidades, ní- da experiência do ensino e da pesquisa.
veis; diferentes tempos e espaços) repercute nas ações educativas, Partilhamos as concepções de formação docente, amplamente
na constituição dos saberes e nas (re) configurações curriculares defendidas nos cenários nacional e internacional, como processo
em diversos níveis de ensino. Questionamos: Como se dão essas educativo que se desenvolve ao longo da vida dos sujeitos e trans-
relações? cende os limites da escolaridade formal – logo, não se inicia nem
Como essas relações entre sujeitos, saberes e práticas se confi- termina na educação superior (nos cursos de graduação, pós-gra-
guram e impactam o trabalho do professor na sala de aula? duação e aprimoramento). Processual, permanente, como o pro-
Somos sujeitos enredados em um trabalho coletivo de ensi- cesso de aprender e ensinar, desenvolve-se na experiência cotidia-
no e pesquisa em territórios de formação de professores. Concor- na, em diferentes tempos e espaços educativos, como nos espaços
damos com Burke (2003, p. 18), para quem, quando produzimos de lazer, teatros, cinemas e meios de comunicação, em diferentes
conhecimento e o situamos socialmente, devemos reconhecer que lugares de memória, museus, e bibliotecas, em igrejas e sindicatos
“alguns dos [nossos] vieses, resultados de classe, gênero, nação e nos espaços e atividades formais e informais.
e geração, sem dúvida ficarão logo aparentes”. Logo, esta narra- No exercício da profissão, na prática, na experiência da sala
tiva contém as marcas de uma experiência pessoal, profissional de aula, o professor também aprende e se forma. A formação é per-
e acadêmica tecida em um determinado lugar social de produção manente e complexa. A identidade profissional docente é definida
individual e coletiva. social e historicamente. Como é bastante óbvio, não se nasce pro-

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fessor; torna-se professor. É um processo inacabado. O “ser pro- truído socialmente pela desvalorização do trabalho e da profissão
fessor” é construído na história de vida, no terreno da experiência do professor, no cotidiano das famílias, no mercado de trabalho,
pessoal e coletiva em determinados espaços e tempos históricos em diferentes espaços de vivência e na própria universidade. Os
(Fonseca, 1997; Fonseca, Silva, 2007; Fonseca, Rocha, 2009; Vas- formadores dessas áreas não são valorizados nem são considera-
concelos, 2000). dos pesquisadores por muitos. Quantos alunos da universidade es-
Os cursos superiores de licenciatura são espaços de formação tranham o fato de nós, da área do ensino, desenvolvermos projetos
profissional, de aprendizagem da profissão, que possibilitam a arti- de pesquisas aprovados em agências externas à instituição! São
culação das atividades de ensino, pesquisa e extensão e as práticas também comuns relatos de colegas sobre a dificuldade de alguns
pedagógicas. cursos para alocarem, entre os professores (que compõem o qua-
Como formadores de professores e pesquisadores da área do dro docente), as disciplinas de Estágio e Prática de Ensino. Isto
ensino e aprendizagem de História e professores de Metodologia e geralmente ocorre em instituições onde não há contratações de
Prática de Ensino de História, compartilhamos uma situação para professores específicos e qualificados na área e expressa, a nosso
uns dual, interdependente, para outros ambígua, paradoxal, para ver, mais uma faceta do desprestígio da formação do professor no
muitos complexa, pois, como ponderamos anteriormente, situamo- interior dos próprios cursos superiores que têm, na universidade, a
nos em uma região de fronteira, território de disputa de poder no missão de formar professores.
interior da(s) instituição(ões), do(s) curso(s) superior(es) e do pró- Pesquisas sobre os currículos das licenciaturas que formam
prio meio acadêmico, nos espaços onde se discute a formação do- docentes do ensino fundamental evidenciam esses problemas, re-
cente. Em geral, somos originários de áreas específicas de bacha- correntes nas diversas áreas e não apenas em História, como mos-
relado/licenciatura, especializamo-nos em pós-graduação em edu- tram os resultados da pesquisa, realizada pelo Departamento de
cação, ensino, e nossas pesquisas têm como objeto/foco problemas Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, com apoio
do ensino e da aprendizagem. Na estrutura universitária brasileira, da Fundação Victor Civita, Formação de professores para o ensino
sobretudo nas universidades públicas, estamos localizados ou so- fundamental: instituições formadoras e seus currículos, coorde-
mos alocados (a palavra é esta) em departamentos e/ou faculdades/ nada por Bernadete Gatti e Marina Muniz R. Nunes (2008). Nos
institutos de educação, programas de pós-graduação e, também, currículos das licenciaturas analisadas.
em menor número, em áreas específicas. Essa não é uma situação - Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas –,
simples e “natural”, como alguns acreditam; em alguns casos é
destacam-se, entre outras, as seguintes características:
fonte permanente de conflitos e disputas (nem sempre amigáveis).
Predomina nos currículos a formação disciplinar específica,
Pesquisas indicam que a maior parte da produção científica e
em detrimento da formação de professores para essas áreas do co-
da pesquisa acadêmica sobre ensino e aprendizagem das áreas es-
nhecimento.
pecíficas desenvolvida nas universidades se realiza nos programas
[...]
de pós-graduação em educação. Em Minas Gerais, por exemplo,
– Na maior parte dos ementários analisados, não foi obser-
de um total de 43 dissertações e teses que tratam do ensino de
vada uma articulação entre as disciplinas de formação específica
História defendidas no período de 1993-2008 nas instituições de
(conteúdos da área disciplinar) e as de formação pedagógica (con-
ensino superior (IES) localizadas no Estado apenas duas foram
produzidas em programas de pós-graduação específicos (Fonse- teúdos da docência).
ca, Rocha, Silva Junior, 2009). Nos espaços acadêmicos, como as – Saberes relacionados às tecnologias no ensino estão prati-
associações científicas, esses profissionais convivem e se movi- camente ausentes.
mentam (alguns em terrenos movediços) entre dois lugares institu- [...]
cionalizados (associações e/ou sociedades da área de Educação e – As disciplinas da categoria conhecimentos relativos aos sis-
demais áreas básicas, como, Biologia, História, Matemática, etc.). temas educacionais registram percentuais inexpressivos de presen-
Há um terceiro lugar, espaço de afirmação das identidades das ça em todas as licenciaturas analisadas. [...]. (Gatti, Barreto, 2009,
áreas, ou seja, as associações e sociedades específicas das áreas p. 153-154).
do ensino de História, Matemática, Biologia, e assim por diante. Esses problemas impactam de forma significativa o processo
Os lugares, ou como nos sugere Bhabha, os entre lugares de construção dos saberes e das práticas docentes. Pesquisas indi-
que os formadores de professores ocupam nas estruturas institu- cam que a realidade dos cursos superiores de Licenciatura em His-
cionais são evidências dos modos de produção de determinadas tória é similar às das demais licenciaturas (Mesquita, 1999; Couto,
concepções, crenças, culturas e práticas de formação de profes- 2004; Moura, 2005; Rassi, 2006; Silva Júnior, 2007). A predomi-
sores formadores e de futuros professores. É recorrente, nos cur- nância dos saberes específicos, a desarticulação, a inexpressiva
sos de licenciatura específicos – em História, por exemplo –, a presença dos chamados conteúdos pedagógicos, de estudos rela-
crença de que, para ser (bom) professor de História, basta saber tivos ao conhecimento da escola e dos sistemas educacionais são
História, ou seja, o importante é o domínio do conteúdo da disci- visíveis nas estruturas “grades curriculares”, no quadro de horários
plina. Os saberes pedagógicos são considerados complementares, e na carga horária das disciplinas disponíveis nos sites dos cur-
de segunda ordem, de menor importância na hierarquia disciplinar sos das maiores universidades do País. A pesquisa de Rodrigues
do currículo acadêmico. Muitos professores da chamada “área pe- (2010) sobre os saberes e as práticas de professores iniciantes de
dagógica” ou de “ensino” sentem o peso do descaso dos alunos História apresenta dados e narrativas que confirmam essa realida-
em relação à obrigatoriedade de cursar as disciplinas pedagógicas. de, e, mais do que isso, suscitam-nos indagações sobre o trabalho
Para exemplificar, relembramos vários registros de professores realizado em sala de aula, como exemplificado pela frase angus-
que ouviram seus graduandos/futuros professores denominarem tiada de uma professora iniciante de História (um a cinco anos de
essas disciplinas como “perfumarias”. Esse menosprezo é cons- magistério): “Eu sei o conteúdo, mas não sei dar aulas!”.

Didatismo e Conhecimento 54
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Nos cursos de licenciatura em Pedagogia, o outro lado do sas é o caráter abstrato, genérico, da formação. A escola e a sala de
“entre”, nós, formadores de professores para a educação infantil aula são elementos “quase ausentes” ou são apresentados de forma
e anos iniciais do ensino fundamental, vivenciamos (nós, forma- descolada da realidade educacional brasileira. Sentimos que paira
dores da área do ensino de História) uma cultura acadêmica que no ambiente do curso um discurso generalista, vago, desprovido
valoriza e propaga a crença de que, para ser professor desses ní- de evidências, muitas vezes estereotipado e até deslegitimador da
veis de ensino, o importante é o domínio dos saberes pedagógicos, “escola”.
dos fundamentos gerais da educação, das teorias que embasam o As cargas horárias registradas nas “grades” (o nome é esse
ensino, a aprendizagem e, por sua vez, desvalorizam os conteúdos mesmo) curriculares de cursos de Pedagogia, disponíveis nos sites
das áreas básicas do currículo escolar: Língua Portuguesa, Ma- de importantes universidades do Brasil, confirmam nossa preocu-
temática, Ciências, História, Geografia, Artes e Educação Física. pação com o reduzidíssimo espaço formativo atribuído aos saberes
O exame dos currículos dos cursos de Pedagogia no Brasil são disciplinares, específicos do ensino fundamental.
reveladores dessa concepção. Qual o lugar dos profissionais das A “grade das disciplinas do curso de Pedagogia, a partir de
áreas do ensino nesses cursos? Qual o espaço para o estudo de 2009”, da Universidade de São Paulo (USP), apresenta as seguin-
conteúdos e das metodologias de ensino das áreas básicas, acima tes disciplinas correlacionadas: Metodologia do Ensino de Mate-
mencionadas, nos currículos dos cursos de Pedagogia? Como se dá mática – 5º semestre, 4 créditos; Metodologia do Ensino de Por-
a formação do professor no campo do ensino e da aprendizagem tuguês: A alfabetização – 6º semestre, 4 créditos; Metodologia do
de conhecimentos das disciplinas da área básica do ensino fun- Ensino de Arte – 7º semestre, 4 créditos; Metodologia do Ensino
damental? Como se processam o estágio e a prática de ensino na de Ciências – 7º semestre, 4 créditos; Metodologia do Ensino de
formação dos cursos de Pedagogia? Educação Física – 8º semestre, 4 créditos; Metodologia do Ensino
Gatti e Barreto (2009) apresentam conclusões preocupantes de História – 8º semestre, 4 créditos; Metodologia do Ensino de
sobre os cursos de Pedagogia – responsáveis pela formação de pro- Geografia – 9º semestre, 4 créditos (USP, 2009).
fessores –, algumas delas velhas conhecidas do meio acadêmico, A “grade curricular do curso de Pedagogia” da Universidade
mas enraizadas na cultura acadêmica e institucional. Destacamos: Estadual de Campinas (Unicamp) é similar em relação ao espa-
– O currículo proposto tem uma característica fragmentária, ço curricular destinado aos conteúdos dos anos iniciais do ensino
apresentando um conjunto disciplinar bastante disperso. fundamental, no entanto, as disciplinas são descritas com outras
– A proporção de horas dedicadas às disciplinas referentes à nomenclaturas e com espaço de carga horária para aulas práticas:
formação profissional específica é de 30%, ficando 70% para outro Escola, Alfabetização e Culturas da Escrita – 5º semestre, 4 horas
tipo de matérias oferecidas nas instituições formadoras. teóricas, 2 práticas; Escola e Conhecimento de História e Geogra-
– Na análise das ementas das disciplinas de formação profis- fia – 5º semestre, 4 horas teóricas, 2 práticas; Escola e Cultura
sional predominam os referenciais teóricos, seja de natureza socio- Matemática – 6º semestre, 4 horas teóricas, 2 práticas; Escola e
lógica, psicológica ou outras com associação em poucos casos às Conhecimento em Ciências Naturais – 6º semestre, 4 horas teó-
práticas profissionais. ricas, 2 práticas; e Educação, Corpo e Arte – 6º semestre, 4 horas
– Pode-se inferir que a parte curricular que propicia o desen- teóricas, 2 práticas (Unicamp, 2007).
volvimento de habilidades profissionais específicas para a atuação No curso de Pedagogia da Universidade Federal de Uberlân-
nas escolas e nas salas de aula é bastante reduzida. dia (UFU), a nomenclatura das disciplinas é a mesma da USP. A
– Os conteúdos das disciplinas a serem ensinadas na educação carga horária das disciplinas é relativamente maior, porém não há
básica (Alfabetização, Língua Portuguesa, Matemática, Geografia, espaço para as aulas práticas, como na estrutura da Unicamp, e os
Ciências, Educação Física) comparecem apenas esporadicamente; conteúdos de Arte e Educação Física não são contemplados como
na grande maioria dos cursos analisados, eles são abordados de nas outras duas instituições. A grade curricular relaciona as seguin-
forma genérica ou superficial no interior das disciplinas de Meto- tes disciplinas, responsáveis pelos conteúdos e metodologias do
dologias e Práticas de Ensino, sugerindo frágil associação com as ensino: Metodologia do Ensino de Matemática – 1º ano: 1º e 2º
práticas docentes. semestres, 4 horas teóricas; Metodologia do Ensino de Língua Por-
– Os estágios, obrigatórios, são registrados de modo vago, tuguesa – 1º ano: 1º e 2º semestres, 4 horas teóricas; Alfabetização
com pouquíssimas exceções. Não há propriamente projeto ou pla- – 2º ano: 3º e 4º semestres, 3 horas 4 horas teóricas; Metodologia
no de estágio nem sinalizações sobre o campo de prática ou a ati- do Ensino de Ciências – 3º ano: 5º e 6º semestres, 4 horas teóricas
vidade e a supervisão dos mesmos. (UFU, 2009, p. 45-47).
– A escola, enquanto instituição social e de ensino, é elemento Podemos inferir, com base nas pesquisas e nas descrições an-
quase ausente das ementas, o que leva a pensar numa formação teriores, que a carga horária das disciplinas específicas não varia
de caráter mais abstrato e pouco integrado ao contexto concre- muito – e é, como evidenciaram Gatti e Barreto (2009) em uma
to onde o profissional-professor vai atuar. (Gatti, Barreto, 2009, amostra de 71 cursos de Pedagogia, muito inferior à parte do cur-
p. 152-153). Gatti e Barreto (2009) apresentam uma cartografia rículo dedicada à formação geral. Assim, nossa percepção é que
e possíveis respostas para muitas das questões acima delineadas. os docentes polivalentes, nos cursos superiores de Pedagogia, re-
Os currículos dos cursos de Pedagogia são fragmentários; muitos cebem uma formação muito frágil na parte de conteúdos (o que
deles (a maioria) não fornecem uma preparação adequada em rela- ensinar) e na de metodologias de ensino (como ensinar). Os sabe-
ção aos conteúdos das áreas básicas do ensino, como evidenciam res disciplinares específicos do ensino fundamental são claramente
outras pesquisas, por exemplo, a de Michele Cristina de Moura menosprezados em relação à parte de formação geral.
(2005). Outro aspecto que chama a atenção de muitos formadores Isto nos leva a entender a angústia de uma professora do 3º
das áreas específicas – com experiência na prática de ensino de ano do ensino fundamental, com sete anos de magistério, que nos
educação básica – no cotidiano do curso e é retratado nas pesqui- afirmou:

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“Eu gosto de ensinar, mas me falta conteúdo!” (Fonseca, aqueles de menor prestígio acadêmico no interior das instituições,
2003, p. 58) e corrobora, também, resultados de investigação com territórios em permanente disputa, espaços conflituais não agluti-
professoras dos anos iniciais que declaram ensinar História (os nadores. Ao contrário, são interdependentes, relacionais, marcados
conteúdos e as metodologias) do modo como aprenderam quando por singularidades e diferenças constitutivas dos processos educa-
cursaram o ensino fundamental (Alves, 2008). tivos, potencialmente construtivos.
Assim, vivenciamos cotidianamente, no interior das institui-
ções, uma situação de relativa desvalorização nos dois campos: na A sala de aula como espaço de relações
licenciatura em Pedagogia, que oferece um espaço restrito para a
atuação dos profissionais “não pedagogos”, e, também, nas licen- Como declaramos na introdução, concebemos a sala de aula
ciaturas específicas, em que as disciplinas da área de ensino e a como o espaço de aprender e ensinar, logo um espaço, um campo
pesquisa sobre o ensino e a aprendizagem são desvalorizadas. de relações. A nosso ver, os processos e as relações estabelecidas
A experiência na docência nos diversos níveis de ensino e na no interior da universidade, como analisados anteriormente, se ex-
pesquisa sobre o ensino autoriza-nos a preconizar a valorização do pressam, de algum modo, no interior da sala de aula, no trabalho
diálogo entre as áreas, entre lugares, sujeitos e saberes. Conside- do professor, formado em nível superior, em determinados contex-
ramos fundamental uma preparação sólida do professor dos anos tos e condições. Em nossas pesquisas, temos buscado investigar as
iniciais e finais do ensino fundamental, e, para isto, a nosso ver, é relações entre a formação e as práticas, os sujeitos e os saberes. A
imprescindível repensar o lugar dos conteúdos e das metodologias formação acadêmica, “longe da escola”, faz-se presente “na esco-
de ensino específicas nesses cursos. la”, assim como a mídia, os currículos oficiais, as políticas públi-
Do mesmo modo, avaliamos imprescindível repensar o lugar cas do Estado. Neste sentido, compartilhamos com Charlot (2000,
dos conhecimentos pedagógicos, das metodologias de ensino es- p.78) o seguinte pressuposto: “A relação com o saber (o aprender)
pecíficas nos cursos de licenciatura. A nossa proposta, reiterada em é a relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os
outros espaços, é articular ensino, pesquisa e prática pedagógica outros. É relação com o mundo como conjunto de significados,
na graduação, tornando o ensino objeto de investigação nos diver- mas também, como espaço de atividades, e se inscreve no tempo.”
sos cursos de licenciatura em parceria com as escolas, campos de Esse exercício relacional nos instiga a pensar além das apa-
estágios e práticas. A este respeito citamos dois importantes edu- rentes imbricações entre a formação, o currículo, os saberes e as
cadores que, em contextos e propósitos singulares, defenderam a culturas escolares. Segundo a fértil literatura da área de formação
importância do conhecimento dos professores. Paulo Freire (2001, e trabalho docente (Zeichner, 1993, 2002; Ávalos, Nordenflycht,
p. 2), em carta aos professores brasileiros, em 1993, pouco tempo 1999; Tedesco, 1999; Nóvoa, 1992, 2010; Tardif, 2002; Tardif,
depois de sua experiência na condução da Secretaria de Educação Lessard, 2005; Contreras, 2002; Gauthier, 1998; Gauthier, Marti-
de São Paulo (Seed), afirmou: neau, 2001; Pereira, Zeichner, 2002; Pimenta, Ghedin, 2002; Gat-
O fato, porém, de que ensinar, ensina o ensinante a ensinar ti, Barreto, 2009) e, no caso, de História (Lautier, 1997; Fonseca,
um certo conteúdo não deve significar, de modo algum, que o en- 1997; Fonseca, Silva, 2007; Fonseca, Zamboni, 2008), não pode-
sinante se aventure a ensinar sem competência para fazê-lo. Não o mos deixar de reconhecer a heterogeneidade, as singularidades, as
autoriza a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética, polí- histórias de vida, a diversificação, as identidades e as diferenças
tica e profissional do ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de professores e alunos no mundo globalizado e multicultural. Na
de se capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade atualidade, não é mais possível mascarar as desigualdades das con-
docente. Esta atividade exige que sua preparação, sua capacitação, dições de oferta da educação escolar, no Brasil sobretudo, nem as
sua formação se tornem processos permanentes. Sua experiência distinções, por exemplo, de formação escolar e acadêmica; grau
docente, se bem percebida e bem ivida, vai deixando claro que ela de autonomia, de envolvimento institucional; produtividade dos
requer uma formação permanente do ensinante. Formação que se professores; as diferenciações em termos de salários, geração, for-
funda na análise crítica de sua prática. (grifos nossos) mação cultural, gênero, religião, etnia e condições de trabalho.
António Nóvoa (2010, p. 4), educador português com reco- No exercício da prática docente, sabemos que aquilo que o
nhecida produção na área de formação de professores, atualmente professor ensina ou deixa de ensinar, bem como aquilo que o alu-
reitor da Universidade de Lisboa, destaca em recente entrevista no aprende ou deixa de aprender, vai muito além do proposto nos
que a análise do trabalho docente nas sociedades contemporâneas currículos e livros, materiais didáticos e outros. Sabemos também
deve considerar os seguintes apontamentos: conhecimento, cultura que não é mera transposição daquilo que foi ensinado nos proces-
profissional, tato pedagógico, trabalho em equipe e compromis- sos formativos – o que não diminui a responsabilidade dos cursos
so social; sobre o conhecimento, vale-se das palavras do filósofo superiores com a qualidade do trabalho realizado pelo professor
francês Alain: “Dizem-me que, para instruir, é necessário conhecer na sala de aula – e, certamente, ultrapassa os limites das refra-
aqueles que se instruem. Talvez. Mas bem mais importante é, sem tárias culturas escolares. Por isto, defendemos, numa perspectiva
dúvida, conhecer bem aquilo que se ensina.”. sociohistórica cultural, um diálogo crítico, permanente, entre os
Como nos alertam os mestres, se conhecer é fundamental para sujeitos (formadores e formandos) que re/constroem saberes e prá-
o exercício do oficio de professor, o curso superior de licenciatura ticas escolares nos diversos espaços educativos e culturais, como a
– ainda que seja considerado o “início” da formação profissional escola de educação básica e as universidades.
– constitui um espaço e um tempo privilegiado para a problemati- O professor não opera no vazio – é óbvio. Mas o que isto
zação, produção e aprendizagem de conhecimentos básicos para a significa?
constituição do saber docente, da identidade profissional. Portanto, A sala de aula é um espaço pleno de experiências. Os saberes,
os espaços, os sujeitos formadores e os saberes das áreas espe- os valores culturais e políticos e os hábitos são transmitidos e re-
cíficas e pedagógicas não podem ser tratados e encarados como construídos na escola por sujeitos históricos, que trazem consigo

Didatismo e Conhecimento 56
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
um conjunto de crenças, significados, valores, atitudes e comporta- O trabalho do professor na sala de aula pressupõe um conjunto
mentos construídos nos vários espaços de vivência, antes e durante de relações entre sujeitos, saberes e práticas. No jogo relacional
o processo de escolarização. Isso tem várias implicações. No cam- entre os sujeitos professores e alunos, as pesquisas da área têm
po curricular, como nos ensina Goodson (1995, p. 27) inspirado focalizado: as relações interpessoais; o respeito, a aceitação e a
no historiador inglês Hobsbawn, há necessidade de auscultar, ler o valorização das diferenças entre os alunos; o trabalho em parceria
currículo em suas dimensões “prescrito e vivido”, como o perfeito em oposição às relações verticais; a construção da autonomia; a
exemplo de invenção da tradição. O trabalho do professor produz sempre destacada motivação para o estudo, a aprendizagem e o
e reproduz configurações curriculares no jogo de interações que desenvolvimento do prazer de aprender e também de ensinar – ve-
envolvem tensões, conflitos, concessões, vinculações e exclusões. mos aí que as dimensões afetivas e éticas são ressaltadas. No jogo
Pesquisas desenvolvidas no nosso grupo (Aguiar, 2006) acerca das relacional entre sujeitos, saberes e práticas, salientamos a relação
relações entre o currículo oficial prescrito (de História) e o vivido teoria-prática, o ensino-pesquisa, a organização do trabalho coleti-
por professores e professoras em escolas públicas no Estado da vo, as formas de avaliação e a sempre recomendada postura inter/
Bahia evidenciaram, no fazer histórico da sala de aula, múltiplas multi/transdisciplinar.
tensões, aproximações e distanciamentos entre as duas dimensões O professor, como um dos protagonistas, imbuído do princí-
curriculares. pio de responsabilidade social inerente ao trabalho coletivo institu-
De igual maneira, é importante atentarmos para o papel da cional, enfrenta inúmeros desafios no cotidiano escolar. E, no tra-
cultura escolar no trabalho do professor. Se entendermos cultura balho coletivo, constrói uma cultura profissional, uma identidade,
escolar, como conceitua Juliá (2001, p. 10-11), um “conjunto de uma história pessoal, singular e, ao mesmo tempo, coletiva, pois
normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a incul- partilhada por muitos docentes em diferentes realidades escolares
car, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses do Brasil. Para Larrosa (1996, p. 464), o modo como nos com-
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”, não po- preendemos é análogo ao modo como construímos textos sobre
demos analisá-la, como complementa o autor, “sem se levar em nós mesmos, e como são esses textos depende da relação com os
conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obede- outros textos e dos dispositivos sociais nos quais se realizam a
cer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos produção e a interpretação.
encarregados de sua aplicação”, ou seja, os professores. Assim, na atualidade, os desafios da formação, da profissiona-
Complementamos lembrando Morelo Pintado (2000, p. 226): lização e da ação docente constituem problemas complexos e, nes-
“as convicções culturais produzidas pela cultura escolar projetam te sentido, demandam políticas sistêmicas capazes de enfrentar as
influências sobre os aspectos mais íntimos da sala de aula”. O tra- múltiplas dimensões, pois “ser professor”, “tornar-se professor”,
balho do professor na sala de aula é permeado, atravessado por “constituir-se professor” e exercer o ofício é viver a ambiguida-
múltiplos “fios” explícitos e implícitos – numa urdidura visível e de, é exercitar a luta, enfrentar a heterogeneidade, as diferenças
invisível – que repercutem nas ações de ensino e aprendizagem. sociais e culturais no cotidiano dos diferentes espaços educativos.
Do mesmo modo que as culturas escolares não são unifor-
mes, a ação dos professores na sala de aula é também multiforme, Considerações finais
complexa. Antes de recorrer aos nossos referenciais, lembro-me
de quando preparava a mesma aula de História (o mesmo tema, a As fronteiras, os entre lugares, as mediações entre formação
mesma metodologia) para ministrar em quatro turmas de 8ª série e prática e entre sujeitos, saberes e práticas merecem, a nosso ver,
em uma escola pública em uma mesma tarde. Ao final do dia, saía ser pensados em movimento, no qual os problemas e as experiên-
da escola com a certeza de que foram ministradas quatro aulas cias do mundo acadêmico e do cotidiano escolar não se desvin-
diferentes em diversos aspectos. Gauthier e Martineau (2001, p. culam não se descolam do contexto histórico, social, econômico
62-64) sustentam e nos ajudam a entender o argumento da comple- e cultural em que se situam. Precisamos questionar os riscos que
xidade, com o qual concordamos, recorrendo às seis características podem representar o privilégio, as ênfases ou, em alguns casos, a
identificadas por Doyle e por eles citadas, a saber: multidimen- mitificação da prática escolar como o locus ou a dimensão prefe-
sionalidade, simultaneidade, imediatez, imprevisibilidade, visi- rencial da formação do professor, da construção de sua identida-
bilidade e historicidade. Lembram-nos, também, os oito tipos de de profissional. É necessário compreendermos o caráter singular,
ação, identificados por Tardif (apud Gauthier, Martineau, 2001), complementar/dialógico e dialético dessas relações em cada mo-
“por meio das quais é possível identificar a prática docente: o agir mento/etapa do processo de formação, de modo que o campo da
tradicional, o agir afetivo, o agir instrumental, o agir estratégico, prática e da crítica não esvazie o científico, o político, o ético e o
o agir normativo, o agir dramático, o agir expressivo e o agir co- estético. São dimensões do fazer-se, do processo de construção da
municacional”. Destacamos o caráter multi ou pluridimensional e identidade profissional. Em outras palavras, não é possível sim-
a historicidade do trabalho do professor no espaço da sala de aula. plesmente substituirmos uma forma de racionalidade por outra.
O professor não está sozinho, o ensino não é uma tábula rasa, mas, Portanto, a formação e a atuação do professor em sala de aula
como afirmamos, uma atividade complexa: expressa um conjunto são resultantes de múltiplas determinações e relações, de vontades/
variado, emaranhado e diverso de significados, símbolos, represen- responsabilidades individuais e coletivas, da obrigação institucio-
tações e relações, inseridas num espaço social e tempo histórico. nal do Estado e da sociedade; logo, devem integrar, de forma ativa
Concordando com Gauthier e Martineau (2001, p. 64), todas essas e dinâmica, os conhecimentos/as dimensões da experiência, das
dimensões identificadas pelos autores citados “estão no cerne da situações práticas, do mundo acadêmico e da realidade sociohistó-
prática docente”; logo, no âmbito da instituição educativa, o ensi- rico e cultural que estamos vivendo. Essas relações são complexas
no é uma atividade coletiva, pluridimensional e contextualizada. e abertas a uma variedade de interpretações.

Didatismo e Conhecimento 57
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Bibliografia O livro é um ótimo curso de historiografia brasileira. Óbvio
Livro: Didática e prática de ensino de história; que para estudar historiografia nos remetemos ao fato, logo o livro
Autores: Selva G. Fonseca; nos remete a diálogos convergentes e divergentes de diversos inte-
Referências: http://rbep.inep.gov.br/index.php/RBEP/article/ lectuais do período colonial, onde nem se tinha a ideia de Brasil até
viewFile/1619/1344; a contemporaneidade. Há um claro debate em relação a Gilberto
http://duvidasdahistoria.blogspot.com.br/2010/05/historia- Freyre e a contraposição Sergio Buarque de Holanda; as visões
da-disciplina-nas-ultimas.html posteriores de Emília Viotti, FHC, Florestan Fernandes, Jacob Go-
reder no que diz respeito a escravidão, enfim o livro percorre o real
caminho da história: “debates, diálogos e indagações.

7. FREITAS, MARCOS CEZAR DE. Resumo


HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA EM
PERSPECTIVA. SÃO PAULO: EDITORA Bibliografia
CONTEXTO, 2001. Livro: Historiografia brasileira em perspectiva;
Autores: Marcos Cezar de Freitas;
Referências: CARVALHO, V. de O.

Autor
8. FUNARI, PEDRO PAULO E PIÑON, ANA.
O campo de Marcos Cezar de Freitas é de atuação é interdisci- A TEMÁTICA INDÍGENA NA ESCOLA. SÃO
plinar abrangendo Educação e Saúde. Nesse sentido, trabalha com PAULO: EDITORA CONTEXTO, 2011.
os temas Pedagogia e Infância usando as contribuições das Ciên-
cias Sociais, particularmente a Antropologia, para estudar crianças
urbanas e suas vulnerabilidades. As vulnerabilidades abordadas
mais frequentemente são aquelas que, no presente e no passado,
se referem aos processos de convívio com severas limitações do Sumário
corpo, adoecimento grave, internação e preterição social. Conside-
rando a singularidade desses processos investiga os temas inclusão Esta obra está dividida da seguinte forma:
e ensino nas situações que dão origem à identificação de crianças
como alunos-problema. Tem Mestrado em Educação pela PUC-SP Os professores e a temática indígena
(1993), Doutorado em Educação pela PUC-SP (1996), Pós-douto-
rado na Faculdade de Educação da USP (2000), Livre-Docência no As identidades
Departamento de Educação da Universidade Federal de São Paulo Europeus e indígenas
- UNIFESP (2008). É Coordenador do Programa de Pós-Gradua- Ser índio
ção Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Unifesp, Diversidade e transculturação
onde dirige o LEVI: Laboratório de Estudos de Vulnerabilidades
Infantis. No ensino de graduação oferece cursos sobre infância e Os índios
ensino. No âmbito da pós-graduação coordena projetos e orienta Como estudar os índios?
dissertações, teses e estágios de pós-doutoramento que abordam: A trajetória dos índios no continente americano
1) O ensino da criança gravemente enferma e a apropriação infan- A colonização do Brasil no contexto sul-americano
til de paliativos; 2) O ensino e as formas sociais da inteligência e A distribuição dos índios
do corpo da criança, 3) Criança, ensino e alteridades. O estatuto jurídico dos indígenas

Sinópse A escola
A educação entre os índios
Reúne 19 dos intelectuais mais prestigiosos do país e permite A escola ocidental chega à América
uma visão do conjunto dos caminhos já percorridos pela História Índios idealizados e índios combatidos
do Brasil, dos “explicadores” aos cultivadores de monografias, dos
positivistas aos marxistas, dos “braudelianos” aos seguidores de A República
Foucault, dos que buscam o “sentido” da História aos que afirmam Mudanças no tratamento da questão indígena
não ter ela sentido algum. Também reflete sobre o estado da arte A figura do índio na escola moderna
dos estudos de vários dos temas mais caros à nossa historiogra- A virada
fia (como sociedade colonial, escravidão, República, operariado) O ensino para as populações indígenas
além de outros que mais recentemente têm ocupado os historiado- Como os alunos de hoje percebem os índios
res brasileiros (mulheres, intelectuais, mitos fundadores da nacio-
nalidade, mentalidades e representações). Conclusão

Comentário Referências e fontes

Didatismo e Conhecimento 58
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Leituras recomendadas tória e Arqueologia, com ênfase em História Antiga e Arqueologia
Histórica, além de Latim, Grego, Cultura Judaica, Cristianismo,
Agradecimentos Religiosidades, Ambiente e Sociedade, Estudos Estratégicos, Tu-
rismo, Patrimônio, Relações de Gênero, Estudos Avançados. Foto
Os autores de Isaias Teixeira, Unicamp, 28/05/2012.

Autor Sinópse

Pedro Paulo Abreu Funari: bacharel em História (1981), A escola, ao longo da história do Brasil, tem cristalizado de-
mestre em Antropologia Social (1986) e doutor em Arqueologia terminadas representações sobre os índios no imaginário das pes-
(1990), sempre pela Universidade de S. Paulo, livre-docente em soas. Mais do que seres reais, indígenas acabam sendo percebidos,
História (1996) e Professor Titular (2004) da Unicamp. Professor equivocadamente, como figuras romantizadas ou mesmo lendá-
de programas de pós da UNICAMP e USP, Distiguished Lecturer
rias. Sua imagem real, a de seres humanos vivos, detentores de
University of Stanford, Research Associate - Illinois State Uni-
cultura própria, acaba sendo excluída, ou pelo menos esmaecida,
versity e Universidad de Barcelona, atual líder de grupo de pes-
na sociedade e na cultura brasileiras. Contudo, os índios e sua cul-
quisa do CNPq, assessor científico da FAPESP, foi colaborador
tura permeiam completamente o cotidiano de todos nós. Voltada
da UFPR, UFPel, docente da UNESP (1986-1992) e professor de
pós-graduação das Universidades do Algarve (Portugal), Nacio- para professores das escolas não indígenas - que muitas vezes não
nal de Catamarca e del Centro de la Provincia de Buenos Aires e têm informações suficientes ou bem balizadas sobre os índios -,
UFRJ. Supervisionou 13 pós-doutoramentos, 28 doutoramentos, esta obra procura mostrar os motivos para essa contradição: o tanto
34 mestrados, hoje destacados pesquisadores e líderes em insti- que temos a ver com os índios e nossa ausência de percepção dessa
tuições de prestígio (Université de Mulhouse, UNICAMP, USP, realidade. Acreditando no papel da escola como importante polo
UNESP, UFF, UFMG, UFPR, UFRJ, MASJ, UEL, UFPel, UCS, de difusão cultural, este livro traz informações, análises e refle-
UEMG, UEM, UMESP, Uniplac, PUCPR, FESB, UNIFAP, UFS, xões sobre inquietações recorrentes dos professores a respeito da
UNIP, Unifesp, U. Einstein de Limeira, UFG, UFBA, UNIFAL, temática indígena.
UFMA, UFPA, UFV, Museu Nacional da UFRJ, UEG, UFPE,
Museu da Bacia do Paraná, Unip). Na Unicamp, Coordenador do Comentário
Núcleo de Estudos Estratégicos (2007-2009), representante do
IFCH na CADI (2005-2009), membro da CAI/Consu (2009), As- De acordo com o autor, o livro surgiu da necessidade, tanto
sessor do Gabinete do Reitor e Coordenador do Centro de Estudos dos professores como dos alunos, de informações mais aprofunda-
Avançados da Unicamp (2009-2013), apresentador do programa das sobre os índios.
da RTV Unicamp “Diálogo sem fronteira”, desde 2011. Participa “Muitos jovens mencionam que têm parentes e/ou antepas-
do conselho editorial de mais de 50 revistas científicas estrangei- sados indígenas. Mas, ao mesmo tempo, ainda localizam o índio
ras e brasileiras. Publicou e organizou mais de 80 livros e reedi- longe: no passado e no mato. Os índios, às vezes, aparecem como
ções e de 215 capítulos nos Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, um indivíduo, ao lado de uma oca, sem seu contexto social e co-
Áustria, França, Holanda, Itália, Espanha, Argentina, Colômbia, letivo”, pontuou.
Brasil, entre outros, assim como mais de 545 artigos em mais de Ao longo de 128 páginas, os autores discorrem sobre a ques-
130 revistas científicas estrangeiras e brasileiras arbitradas, como tão indígena e suas representações nas escolas brasileiras. No
Current Anthropology, Antiquity, Revue Archéologique, Journal primeiro capítulo, Funari e Piñón abordam como se formam e se
of Social Archaeology, American Antiquity, American Journal of transformam as identidades sociais e a relação com os índios.
Archaeology, Dialogues d’ Histoire Ancienne. Foram publicadas Em seguida, observam os modos de se estudar os índios, na
mais de 70 resenhas de seus livros, mais de 30 delas em revistas
chamada experiência etnográfica – para os autores, a melhor forma
estrangeiras de ponta e participou de mais de 300 bancas. Projetos
de se conhecer um grupo humano, em particular uma comunida-
conjuntos com pesquisadores estrangeiros resultaram na visita de
de indígena, é imergir em seu mundo, no seu cotidiano. Depois,
numerosos estudiosos, das principais instituições de pesquisa do
seguem pela trajetória histórica desses habitantes no continente
mundo (Universidades de Londres, Paris, Saint Andrews, Boston,
Southampton, Durham, Illinois, Barcelona, Havana, Buenos Aires, americano e a situação atual dos índios no país.
Londres, CNRS). Co-editou enciclopédias como Encyclopaedia of Nos demais capítulos, o livro trata da temática indígena utili-
Historical Archaeology, Oxford Encyclopaedia of Archaeology e zada pela escola desde os tempos dos jesuítas até a escola republi-
Encyclopaedia of Archaeology (Academic Press). Participou de cana como projeto político, passando pela idealização dos índios
mais de 400 eventos e organizou mais de 115 reuniões científi- no século 19, no âmbito da corte imperial do Rio de Janeiro.
cas. Foi Secretary, World Archaeological Congress (2002-2003), Os autores examinam a influência da administração indígena
membro permanente do conselho da Union Internationale des pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – criado em 1910, ope-
Sciences Préhistoriques e Protohistoriques (UISPP) e sócio da rou em diferentes formatos até 1967, quando foi substituído pela
ANPUH, ABA, SAB, SBPH, SHA, SAA, WAC, ABIB, AAA, Ro- Fundação Nacional do Índio (Funai) – e finalizam com as trans-
man Society. Líder de Grupo de Pesquisa do CNPq, sediado na formações nas formas de inclusão da temática nas salas de aula.
Unicamp e vice-líder de dois outros grupos. Editor de coleção de Funari considera que, além de estereotipado, o ensino sobre o
livros com 33 volumes, a maioria com apoio da FAPESP, CNPq, tema nas salas de aula está defasado, com o indígena retratado de
CAPES, FAPEMIG e UNICAMP. Tem experiência na área de His- forma distante, tanto no espaço como no tempo.

Didatismo e Conhecimento 59
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
“Isso transparece na sua presença na maior parte das vezes enfrentá-las estaremos prontos para avançar, incluindo os índios
referente à pré-história do Brasil. A legislação brasileira reconhece como atores históricos até o ponto em que possamos conhecê-los
direitos aos indígenas, do uso da língua até suas terras. Na cons- melhor e, consequentemente, a nós mesmos.
tituição e na legislação há uma ênfase grande na valorização da Nenhuma narrativa pode ser neutra nem pretendemos apre-
diversidade, contudo, tais avanços chegam à escola ainda de forma sentar aqui nossas interpretações como verdades certas e eviden-
parcial”, ressaltou. tes. Porém, como diria o escritor português Eça de Queirós: “sobre
a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”.
Formação mais ampla Se a maneira como concebemos a sociedade e as relações so-
ciais constitui as lentes que nos permitem enxergar o nosso tema, é
“A temática indígena ainda é tratada de maneira incipiente e bom deixar claro quais são nossas premissas.
marginal em cursos de licenciatura em história, geografia e portu- Assim, para começar, quando se trata de pessoas, só existe
guês; as que mais tratam do tema. Faltam nesses cursos disciplinas uma raça: a raça humana. A contraposição entre “índios” e “bran-
que tratem da pré-história do Brasil e da América, história indíge- cos” como categorias de tipo racial, além de ser um erro do ponto
na, da etnologia indígena e línguas indígenas, e que façam parte do de vista científico, dificulta que o ensino nas escolas abarque a di
currículo obrigatório”, disse Funari. versidade existente e, no limite, favorece o racismo. Como adverte
o historiador brasileiro Jaime Pinsky, “somos, na visão reprodu-
“Dessa forma, os futuros professores terão condições de apro-
zida em muitas escolas, brancos de cultura branca”. Ou seja, as
fundar seus conhecimentos sobre os índios, aproveitar melhor a
escolas comuns, do ensino fundamental e médio, quando falam
informação dos livros didáticos e ensinar de forma mais adequada
dos índios, costumam apresentá-los aos alunos em contraste com o
aos alunos”, destacou. que seriam os brancos, tomados como o termo referente, como se
O antropólogo ressalta que o livro poderá contribuir para uma branco caracterizasse a “sociedade nacional”, na qual o indígena
formação mais ampla e variada dos atuais e futuros professores, seria apenas “o outro”. Já está na hora de abandonarmos esse pen-
pois apresenta aspectos históricos e culturais não só dos indígenas, samento em função daquele que vê a nossa sociedade, em geral,
mas do Brasil de forma geral. “A obra fornece, também, indicações composta por uma infinidade de grupos étnicos em sua mescla.
de leituras que permitem ao leitor se aprofundar nos diversos te- Também não é mais possível sustentar o mito de que os colo-
mas tratados”, completou. nizadores eram da raça branca porque, como foi dito, não existem
raças que diferenciem os humanos, como também porque os colo-
Resumo nizadores europeus não eram “puros”. Eles sempre se mesclaram,
tanto na península ibérica, como no Brasil.
Este livro trata do índio tal qual é estudado na escola brasi- Apresentamos outras de nossas perspectivas interpretativas no
leira de fora das aldeias indígenas. Os professores das escolas não capítulo inicial do livro. Com isso, o leitor saberá de onde falamos
indígenas – a quem este livro se destina – muitas vezes não têm e poderá ter suas próprias e independentes opiniões. Em segui-
informações suficientes ou bem balizadas sobre os índios, embora da, observamos como podemos estudar os índios, sua trajetória
a cultura indígena faça parte do nosso cotidiano. Nomes de lugares histórica e sua situação atual. Depois, analisamos como a escola
conhecidos são indígenas – Itacoatiara, Ibirapuera, Pará, Paraná abordou a temática indígena, do tempo dos jesuítas até a escola
etc.; de alimentos prosaicos também: angu e pipoca; costumes pra- republicana como projeto político, passando pela idealização dos
zerosos – do espreguiçar-se na rede ao banho de rio – e sensações indígenas no século XIX, no âmbito da corte imperial no Rio de
profundas – jururu e urucubaca. Tudo isso provém de nossas li- Janeiro. Examinamos a influência da administração indígena le-
gações com os índios, mas nem sempre nos damos conta disso. vada a cabo pelo Serviço de Proteção ao Índio nas representações
Por vezes, nem mesmo reconhecemos que, em certa medida, entre sobre os indígenas. E terminamos com as transformações – pri-
outras coisas, somos também índios. Este livro procura mostrar os meiramente acarretadas pelo nacionalismo e, no último quarto do
motivos para uma aparente contradição: temos tanto a ver com os século XX, pela democratização – nas formas de incluir a temática
índios e nem sempre vemos isso claramente. indígena nas salas de aula. Concluímos com um balanço dos avan-
ços e desafios da escola, no que se refere ao assunto.
A escola, ao longo da história do Brasil, tem cristalizado de-
Este livro foi escrito sem notas, mas as referências e fontes
terminadas imagens sobre os índios que “fazem a cabeça” dos ci-
utilizadas estão apresentadas ao final. Evitamos, também, uma lin-
dadãos presentes e futuros. Com isso, muitas vezes, acabam favo-
guagem demasiado técnica e marcada por jargões, de modo que
recendo a exclusão ou, pelo menos, o esmaecimento da presença os conceitos são sempre explicados e exemplificados. Diversos
indígena na sociedade e na cultura brasileiras, como veremos neste excertos, de poemas a documentos oficiais, enriquecem a leitura.
livro. Entretanto, se houver vontade política para tanto, é inegável Alguns dados estatísticos são apresentados, mas de forma esparsa,
o papel que a escola pode ter no sentido de atuar para uma maior de modo a não dificultar o aproveitamento da narrativa. O objeti-
compreensão do quanto o Brasil deve aos índios e como se enri- vo maior é convidar o leitor, em particular o professor do ensino
quece, em termos culturais, com essa experiência. fundamental e médio, a uma viagem pela questão indígena e suas
No sentido de contribuir para esse reconhecimento, esta obra representações na escola brasileira. E, também, fazer um apelo à
traz informações e análises voltadas para as inquietações dos pro- reflexão autônoma e independente – meta maior e mais ambiciosa,
fessores sobre temas como: os índios são uma raça? São diferentes mas não menos importante – sobre os índios e a escola.
dos “brancos”? Existem mesmo “brancos” ou somos todos mis-
turados? Os índios pararam no tempo? Por que estranhamos os Bibliografia
índios, mesmo quando descendemos deles? Essas e tantas outras Livro: Temática indígena nas escolas;
questões parecem banais e mesmo torpes, em alguns casos, mas Autores: Pedro Paulo Funari;
refletem inquietações, dúvidas e preocupações comuns. Só ao Referências: PILEGGI, M.

Didatismo e Conhecimento 60
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
XIII – A mulher na Palestina e o “background” no ministério
9. FUNARI, PEDRO PAULO; de Jesus
FILHO, GLAYDSON JOSÉ DA E Roberta Alexandrina da Silva
MARTINS, ADILTON LUÍS. HISTÓRIA ANTI-
GA: CONTRIBUIÇÕES BRASILEIRAS. SÃO XIV – Economia e Patronato: as doações de Plínio, o jovem
PAULO: ANNABLUME, 2009. Renata Lopes Biazotto Venturini

Sobre os autores

Sumário Autor

Esta obra está dividida em: Pedro Paulo Abreu Funari: bacharel em História (1981),
mestre em Antropologia Social (1986) e doutor em Arqueologia
Apresentação (1990), sempre pela Universidade de S. Paulo, livre-docente em
História (1996) e Professor Titular (2004) da Unicamp. Professor
Introdução de programas de pós da UNICAMP e USP, Distiguished Lecturer
University of Stanford, Research Associate - Illinois State Uni-
I – Visões modernas do mundo antigo: a egiptomia versity e Universidad de Barcelona, atual líder de grupo de pes-
Margaret Marchiori Bakos quisa do CNPq, assessor científico da FAPESP, foi colaborador
da UFPR, UFPel, docente da UNESP (1986-1992) e professor de
II – Poder e imagens em Roma: Diocleciano, Constantino e a pós-graduação das Universidades do Algarve (Portugal), Nacio-
Nova/Velha Ordem nal de Catamarca e del Centro de la Provincia de Buenos Aires e
Cláudio Umpierre Carlam UFRJ. Supervisionou 13 pós-doutoramentos, 28 doutoramentos,
34 mestrados, hoje destacados pesquisadores e líderes em insti-
III – Sexualidade, política e identidade: as escavações de tuições de prestígio (Université de Mulhouse, UNICAMP, USP,
Pompeia e a coleção erótica UNESP, UFF, UFMG, UFPR, UFRJ, MASJ, UEL, UFPel, UCS,
UEMG, UEM, UMESP, Uniplac, PUCPR, FESB, UNIFAP, UFS,
IV – Evangelho de Judas: uma luz no fim de uma antiga his- UNIP, Unifesp, U. Einstein de Limeira, UFG, UFBA, UNIFAL,
tória sombria? UFMA, UFPA, UFV, Museu Nacional da UFRJ, UEG, UFPE,
André Leonardo Chevitaresi Museu da Bacia do Paraná, Unip). Na Unicamp, Coordenador do
Núcleo de Estudos Estratégicos (2007-2009), representante do
V – Paixão e desejo na sociedade Romana: interpretações his- IFCH na CADI (2005-2009), membro da CAI/Consu (2009), As-
toriográficas sessor do Gabinete do Reitor e Coordenador do Centro de Estudos
Lourdes Conde Feitosa Avançados da Unicamp (2009-2013), apresentador do programa
da RTV Unicamp “Diálogo sem fronteira”, desde 2011. Participa
VI – O interesse pelo Egipto faraônico: uma aproximação ini- do conselho editorial de mais de 50 revistas científicas estrangei-
cial ras e brasileiras. Publicou e organizou mais de 80 livros e reedi-
Raquel dos Santos Funari ções e de 215 capítulos nos Estados Unidos, Inglaterra, Austrália,
Áustria, França, Holanda, Itália, Espanha, Argentina, Colômbia,
VII – Bretanha Romana: repensando os discursos arqueoló- Brasil, entre outros, assim como mais de 545 artigos em mais de
gicos 130 revistas científicas estrangeiras e brasileiras arbitradas, como
Renata Senna Garraffoni Current Anthropology, Antiquity, Revue Archéologique, Journal
of Social Archaeology, American Antiquity, American Journal of
VIII – Uma análise da Damnatio Memoriae de Geta Archaeology, Dialogues d’ Histoire Ancienne. Foram publicadas
Ana Teresa Marques Gonçalves mais de 70 resenhas de seus livros, mais de 30 delas em revistas
estrangeiras de ponta e participou de mais de 300 bancas. Projetos
IX – Liberdade e escravidão na Roma Antiga conjuntos com pesquisadores estrangeiros resultaram na visita de
Fábio Duarte Joly numerosos estudiosos, das principais instituições de pesquisa do
mundo (Universidades de Londres, Paris, Saint Andrews, Boston,
X – Problemas de interpretação e verdade na escrita da histó- Southampton, Durham, Illinois, Barcelona, Havana, Buenos Aires,
ria antiga Londres, CNRS). Co-editou enciclopédias como Encyclopaedia of
Maria Aparecida de Oliveira Silva e Taíse Figueira Motta Historical Archaeology, Oxford Encyclopaedia of Archaeology e
Encyclopaedia of Archaeology (Academic Press). Participou de
XI – A utopia da fronteira segundo Platão e Aristóteles mais de 400 eventos e organizou mais de 115 reuniões científi-
Airton Pollini cas. Foi Secretary, World Archaeological Congress (2002-2003),
membro permanente do conselho da Union Internationale des
XII – A magia na Mesopotâmia Sciences Préhistoriques e Protohistoriques (UISPP) e sócio da
Katia Maria Paim Pozzer ANPUH, ABA, SAB, SBPH, SHA, SAA, WAC, ABIB, AAA, Ro-
man Society. Líder de Grupo de Pesquisa do CNPq, sediado na

Didatismo e Conhecimento 61
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Unicamp e vice-líder de dois outros grupos. Editor de coleção de tribuições brasileiras (2009-Annablume/Fapesp), em co-autoria ao
livros com 33 volumes, a maioria com apoio da FAPESP, CNPq, professor Pedro Paulo Funari (Unicamp) e Glaydson José da Sil-
CAPES, FAPEMIG e UNICAMP. Tem experiência na área de His- va (Unifesp). Diretor executivo da Revista Aulas (www.unicamp.
tória e Arqueologia, com ênfase em História Antiga e Arqueologia br/~aulas) desde 2006.
Histórica, além de Latim, Grego, Cultura Judaica, Cristianismo,
Religiosidades, Ambiente e Sociedade, Estudos Estratégicos, Tu- Sinópse
rismo, Patrimônio, Relações de Gênero, Estudos Avançados. Foto
de Isaias Teixeira, Unicamp, 28/05/2012. Este livro oferece ao leitor um painel rico e atualizado da pro-
dução nacional sobre a chamada História Antiga. Embora relati-
Glaydson José da Silva: Bolsista Produtividade em Pesquisa vamente recente no panorama historiográfico brasileiro, o estudo
do Fundo de Apoio à Universidade Federal de São Paulo/FADA. da Antiguidade fincou sólidas raízes em nosso meio acadêmico,
Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulis- produzindo pesquisas originais e inovadoras que, não apenas se
ta Júlio de Mesquita Filho (1996) e mestrado (2001) e doutora- mostram em sintonia com a vasta produção internacional, mas
do (2005), também em História, pela Universidade Estadual de conferem à produção em solo brasileiro em caráter específico e
Campinas, tendo desenvolvido estágio doutoral em História e único. A presente obra apresenta uma significativa amostragem da
Arqueologia (Sanduíche - 2003-2004) junto à Université de Pa- riqueza e variedade de nossa produção, bem como de sua intensa
ris I - Sorbonne e ao Musée des Antiquités Nationales de Saint preocupação em relacionar o passado mais remoto com o mundo
Germain-en-Laye, na França. Realizou pós-doutoramento Junto à contemporâneo e, em particular, com a realidade brasileira. Abor-
Universidade Estadual de Campinas, entre janeiro de 2006 e de- dagens inovadoras e críticas aliam-se a temas pouco explorados
zembro de 2010, com apoio financeiro da FAPESP até fevereiro de pela historiografia tradicional: sexualidade, mundo do trabalho,
2008. Realizou, também, pós-doutoramento junto à Université de magia, reapropriação moderna da Antiguidade, propaganda e con-
Strasbourg, entre novembro de 2011 e março de 2012, com apoio tra-propaganda, estudos de gênero, relações de dominação e ex-
financeiro da FAPESP. Foi professor Adjunto-A da Universidade ploração e muitos outros. Neste livro, o leitor encontrará outras
Estadual de Londrina (UEL) - Paraná, entre abril e junho de 2008. maneiras de se olhar para a História Antiga: visões produzidas por
Atualmente é professor Adjunto Nível II da Universidade Federal historiadores brasileiros com diferentes qualificações acadêmicas,
de São Paulo (Unifesp), campus Guarulhos. É pesquisador colabo- o que lhe confere um caráter inusitadamente democrático, num
rador do Departamento de História da Universidade Estadual de meio em geral rigidamente hierarquizado, propiciando uma sín-
Campinas. Na Unicamp, ministrou disciplinas de Teoria da Histó- tese altamente enriquecedora do que melhor se produz atualmente
ria e exerceu, de março de 2007 a abril de 2009, função de Diretor sobre História Antiga no Brasil. De leitura obrigatória para histo-
Associado do Centro de Estudos e Documentação do Pensamen- riadores, especialistas no tema, o livro é também uma saborosa
to Antigo Clássico, Helenístico e de sua Posteridade Histórica. introdução ao mundo antigo para o público em geral, a partir de
Foi Diretor deste mesmo Centro entre abril de 2009 e outubro de uma perspectiva genuinamente brasileira e plenamente atual.
2011. Tem experiência na área de História, com ênfase em Histó-
ria Antiga, atuando, principalmente, nos seguintes temas: tradições Comentário
interpretativas em História Antiga, relações entre Antiguidade e
modernidade/leituras contemporâneas do mundo antigo, História O livro oferece ao leitor um painel rico e atualizado da pro-
das extremas direitas na França. É coordenador nacional do Gru- dução nacional sobre a chamada História Antiga. Embora relati-
po de Trabalho de História Antiga, da ANPUH. É avaliador do vamente recente no panorama historiográfico brasileiro, o estudo
Ministério da Educação para fins de autorização, reconhecimen- da Antiguidade fincou sólidas raízes em nosso meio acadêmico,
to e credenciamento de cursos de História. É membro da equipe produzindo pesquisas originais e inovadoras que, não apenas se
responsável pela implantação da Proposta Curricular de História mostram em sintonia com a vasta produção internacional, mas
para o Ensino fundamental e Médio do Estado de São Paulo (2007- conferem à produção em solo brasileiro em caráter específico e
2008). É assessor ad hoc da FAPESP. único. O leitor encontrará outras maneiras de olhar para a Histó-
ria Antiga - visões produzidas por historiadores brasileiros com
Adilton Luis Martins: Possui graduação em Filosofia pela diferentes qualificações acadêmicas, propiciando uma síntese al-
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2002), mestrado tamente enriquecedora do que melhor se produz atualmente sobre
em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita História Antiga no Brasil.
Filho (2007) e doutorado, também em História, pela Universidade
Estadual de Campinas (2012). Tem experiência na área de Filoso- Resumo
fia e de História, com ênfase em Ensino de Filosofia e Epistemo-
logia da História, atuando, principalmente ,nos seguintes temas: A presente obra, de caráter conjunto, dirigida por Pedro Pau-
Ensino de Filosofia, História Antiga, História Moderna, Subjetivi- lo Abreu Funari, Glaydson José da Silva e Adilton Luis Martins,
dade, Usos do Passado. Foi pesquisador na Bibliothèque Naciona- constitui um bom exemplo para conhecer o que se está fazendo
le de France (BNF-2003-2004). É membro da equipe responsável hoje em dia no Brasil na área de História Antiga, disciplina que
pela implantação da Proposta Curricular de História para o Ensino conta a cada dia com um número cada vez mais importante de
fundamental e Médio do Estado de São Paulo (2007-2008). Pu- estudiosos e seguidores.
blicou vários livros, material em multimídia e sites acadêmicos Este livro pode considerar-se válido poque supõe um intento,
e educacionais sobre estas áreas, em especial, o livro Arestas do sempre difícil, de aproximar-se de um público mais amplo, su-
Poder (2010 - Annablume/Fapesp); «HISTÓRIA ANTIGA: con- perando assim o exíguo e fechado círculo de especialistas. Este

Didatismo e Conhecimento 62
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
propósito se faz sentir praticamente em todas as contribuições con- crítica à obra de Finley a este respeito. M. I. Finley, como todos
tidas no texto, sempre atentas à hora de utilizar nas exposições e os clássicos, é sempre um autor interpretável, e, inclusive, reinter-
proposições uma linguagem acessível ao grande público, sem per- pretável, e o autor do presente trabalho indaga-se em alternativas a
der de vista o rigor científico próprio de investigadores especialis- partir da obra de Tácito. Trata-se de uma prática salutar, na medida
tas em diversos campos, muitos deles formados em universidades em que toda discussão de conceitos pode aportar sempre proposi-
europeias. Optou-se no livro por um ordem alfabética, segundo o ções renovadas.
sobrenome dos autores, ainda que façamos aqui um comentário Do mesmo modo podemos entender o trabalho da professora
atendendo a critérios de cariz temático. R. L. B. Venturini, “Economia e patronato: as doações de Plínio, o
Trata-se de um total de 14 contribuições, nas quais se abordam Jovem”, que supõe um aprofundamento nas noções de fides e libe-
praticamente toda a temática própria do mundo antigo. Compreen- ralitas dentro do emaranhado social e político do mundo romando.
de-se o mundo do Oriente antigo com estudos relativos ao Egito e Os conceitos de poder político e das imagens que estas represen-
Mesopotâmia, de igual modo que se propõem problemas próprios tam são estudos a partir de diferentes óticas por C. U. Carlan e A.
do estudo da Grécia. Mas, sobretudo, esta obra investiga o mundo T. M. Gonçalves  O primeiro, em “Poder e imagens em Roma:
romano ao longo de praticamente toda sua história, em temas de Diocleciano, Constantino e a nova/velha ordem” estabelece uma
diverso conteúdo, tanto político como ideológico, historiográfico, relação entre a emissão de moeda e a propaganda que esta implica,
econômico, social, ou relativo a estudos de gênero e sexualidade, incidindo na comparação entre as moedas cunhadas sob o Império
valorando, também, como faz a professora Garrafoni, evidência de de Constantino e sua repercussão nas emissões efetuadas no Brasil
caráter arqueológico e sua interpretação. até o ano de 1929 pela Velha Oligarquia, amparada em respeitáveis
K. M. P. Poser, em “A magia na Mesopotâmia antiga”, desen- formas republicanas.
volve a dependência existente entre as divindades dos mundos su- As histórias de gênero e sexualidade constituem o tema de
perior e inferior e os acontecimentos relativos aos humanos, que se M. R. Caviccioli, em “Sexualidade, política e identidade: as esca-
concretizam em uma falta de arbítrio que é combatida por meio da vações de Pompeia e a coleção erótica”, de L. M. G. C. Feitosa,
literatura mágica, a qual busca para o homem uma vida sem pade- em “Paixão e desejo na sociedade romana”, e R. A. da Silva, em
cimentos, mediante a prática de encantamentos e rituais mágicos. “A mulher na Palestina e o “background” no ministério de Jesus”.
M. M. Bakos e R. dos Santos Funari analisam, em “Visões Esses trabalhos se inscrevem no interesse suscitado entre os estu-
modernas do mundo antigo: a egiptomania” e “O interesse pelo diosos do mundo antigo por aspectos até recentemente não muito
Egipto faraônico: uma aproximação inicial”, respectivamente, o tratados, ou tratados de maneira marginal. Aqui se aborda a se-
mundo do antigo Egito e sua repercussão na época atual, aprofun- xualidade como um conceito cultural, e, portanto, sujeito a idas e
dando conceitos tais como egiptomania, egiptofilia e egiptologia, vindas em função da moralidade e valores reinantes. É interessante
e evidenciando o caráter icônico que um conjunto de objetos ma- o caráter dos documentos, que estabelecem na maioria dos casos
teriais como pirâmides, esfinges e obeliscos têm no mundo con- uma diferença atendendo à diferenciação social, e propugnando,
temporâneo, incidindo, especialmente, no caso do Brasil. É muito portanto, a ideia de uma “boa” ou de uma “má” prática sexual,
interessante a relação estabelecida entre a história egípcia e seu atendendo a ideias tais como a de virtude, vício, etc. O amor ideal
ensinamento escolar, que se explica em grande medida ela fasci- seria próprio da classe aristocrática, e a imoralidade sempre impu-
nação, já desde o século XIX, com Pedro I, que esta civilização tável a grupos populares.
exerce neste país. Por último, a professora, R. S. Garraffoni, em seu texto “Bre-
A. Pollini, em “A utopia da fronteira segundo Platão e Aris- tanha romana: repensando os discursos arqueológicos”, reflete,
tóteles”, medianda análise de textos de Platão e Aristóteles, ob- com a utilização de um importante aparato crítico e com grande
serva duas concepções do que seria uma cidade ideal, intentando rigor, sobre a cultura material romana na Bretanha, estabelecendo
observar que a ideia de fronteira era um aspecto indissociável da relações entre determinado tipo de investigação e sua incidência na
organização de uma cidade grega na época clássica. O texto de A. criação de uma determinada idiossincrasia de povo ou nação. Des-
Chevitarese, “Evangelho de Judas: uma luz no fim de uma antiga ta maneira, a arqueologia, apesar de certas afirmações, seria obje-
história sombria?”, por sua vez, trata de tema atual e interessante, tiva só presumidamente, na medida em que os arqueólogos são, às
a descoberta do codex contendo o evangelho de Judas e suas im- vezes, propensos a visões demasiado mecânicas e deterministas.
plicações na analítica do tema. Para terminar, em boa hora esse tipo de iniciativa, como a aus-
A historiografia, mas objetivamente os conceitos de subjetivi- piciada pelos organizadores, desenvolve uma importante função e
dade-objetividade, é objeto de reflexão no trabalho conjunto de M. constitui um decisivo impulso aos estudos realizados sobre a Anti-
A. de Oliveira e T. F. Motta, em seus “Problemas de interpretação guidade, com importantes resultados nas universidades do Brasil.
e verdade na escrita de História Antiga”, analisando a questão da
“verdade histórica” por meio da utilização de diversas metodo- Bibliografia
logias, muitas vezes criadas pela própria tradição historiográfica, Livro: História antiga: contribuições brasileiras;
que chega a criar, inclusive, um mundo próprio. Autores: Pedro Paulo Abreu Funari, Glaydson José da Silva
No que concerne à história romana, contamos com a contri- e Adilton Luis Martins;
buição de F. D. Joly, “Liverdade e escravidão na Roma antiga”, um Referências: PÉREZ-SANCHÉZ, D.
esforço para oferecer uma alternativa à sempre complexa proble-
mática da escravidão e de sua ideologia intrínseca, mediante uma

Didatismo e Conhecimento 63
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
9. AS VÁRIAS NEGOCIAÇÕES DO IDEAL DE INDE-
PENDÊNCIA:
10. HERNANDEZ, LEILA LEITE. A ÁFRICA
DO PRAGMATISMO À INTOLERÃNCIA E AOS RACIS-
NA SALA DE AULA: VISITA À HISTÓRIA
MOS
CONTEMPORÂNEA. SÃO PAULO: EDITORA
A predominância da transformação pacífica: Gana, Nigéria,
SELO NEGRO, 2010.
Gãmbia e Serra Leoa
Nacionalismo expansionista e religiosidade nacionalista liber-
tária: Sudão Central e Egito
Sumário Identidade e nacionalidade: Somália e Djibuti
A “siasa” e a busca da independência: Tanzânia, Uganda,
Prefácio Ruanda e Burundi
Introdução A intolerância e os racismos: Zanzibar, Namíbia e África do
Sul
1. O OLHAR IMPERIAL E A INVENÇÃO DA ÁFRICA Independência às avessas – discriminação racial e dependên-
A África inventada cia econômica: Maláui, Zâmbia e Zimbábue
Repensando o continente africano A teia de segregações: África do Sul, Suazilândia, Lesoto e
África: um continente em movimento Botsuana

2. O PROCESSO DE “ROEDURA” DO CONTINENTE E 10. AS ESPECIFIDADES DOS CAMINHOS PARA A


A CONFERÊNCIA DE BERLIM INDEPENDÊNCIA EM DIFERENTES ESFERAS IMPE-
O impulso de “roedura RIAIS
Os missionários e os exploradores O impulso revolucionário na África setentrional: Argélia,
A conferência de Berlim e a partilha Marrocos, Tunísia e Líbia
A apropriação europeia do indico e os destinos de Madagás-
3. O “NOVO IMPERIALISMO” E A PERSPECTIVA car,
AFRICANA DA PARTILHA Comores, Maurício, Reunião e Seychelles
Os significados de imperialismo Libéria, Etiópia e Eritréia; qual independência
O “novo” imperialismo
A partilha e a conquista na perspectiva africana 11. O GRADUALISMO COMO ESTRATÉGIA DOMI-
NANTE PARA
4. “CIVILIZADOS” E “PRIMITIVOS” NA CONSTITUI- A INDEPENDÊNCIA NACIONAL
ÇÃO DO SISTEMA COLONIAL AFRICANO
Notas sobre o “imperialismo colonial A desagregação do império francês e o ambiente histórico:
Acerca dos sistemas coloniais Guiné, Mali, Senegal, Costa do Marfim, alto Volta, Benin, Níger,
As estruturas de poder Mauritânia,
As políticas de assimilação de diferenciação Chade, República Centro-Africana, república Popular do
Congo e gabão
5. OS MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA NA ÁFRICA Os territórios sob tutela: Togo, Ruanda e Burundi
O desafio à autoridade: a concretização das resistências Possessões espanholas – da autonomia à revolução: Canárias,
A resistência cotidiana e o banditismo social Saara Ocidental e Guiné Equatorial
Alguns desafios para a historiografia
12. RUMO À REVOLUÇÃO POSSÍVEL
6. O PAN-AFRICANISMO A falsa reciprocidade e a opção pela guerra de guerrilhas: Re-
A noção de raça: dominação e resistência pública Democrática do Congo, Camarões, Argélia e Quênia
A África para os africanos! (Kuame Nkrumah)
O pan-africanismo como questão política 13. AS ROTAS PARA A INDEPENDÊNCIA E O FIM DO
Os congressos pan-africanos “ULTRACOLONIALISMO”
14. O império português e a questão colonial na África
7. ENTRE A CONCEPÇÃO E A AÇÃO O sistema colonial em questão: cabo Verde, Guiné-Bissau,
Os pensares sobre o direito ao autogoverno São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique
Articulação de interesses e organização de solidariedades
Epílogo
8. A NOVA ORDEM POLÍTICA E A QUESTÃO COLO-
NIAL Bibliografia
O período entre guerras: algumas questões econômico-sociais
O impulso revolucionário Apêndice 1: Quadro geopolítico do continente africano do im-
Contestação e resistência perialismo
Os novos atores políticos Colonial de fins do século XIX até as independências

Didatismo e Conhecimento 64
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Apêndice 2: Mapa geopolítico do continente africano história original foi passada apenas oralmente de geração em ge-
ração por trovadores. Mesmo assim, essa foi uma das principais
Crédito das ilustrações, dos mapas e das vinhetas e legendas fontes de estudo da história dos povos africanos.
das vinhetas Esses escritos permitiram identificar as principais organiza-
ções sociais e políticas de 1500 a 1800 e ter ideia da complexidade
Fontes das ilustrações das relações culturais. O tema da escravidão se internalizou, visto
que escravos eram transportados para Europa permanentemente
Autor até o século XVI. Dois dos maiores fatores que causaram esse ín-
dice de exportação de escravos foram as guerras civis internas e
Leila leite Hernandez possui graduação em Ciências Sociais a fome. Isso sem contar a pífia desculpa da igreja no século XVII
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento da de conter os pagãos. Sendo assim, foi observado que a África é
PUC/SP (1971), Mestrado em Ciência Política pela Universidade marcada pela incompetência de se conduzir.
de São Paulo (1980), com a monografia "Movimentos polí- O processo de roedura da África, já começava anteriormente
tico-ideológicos no Brasil de 1930 a 1937". Doutorado em à conferência de Berlim, com os portugueses. Portugal precisava
Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de de manutenções, em primeiro momento a busca de cereais para
São Bento da PUC/SP (1993), com a tese "Os filhos da terra abastecer a economia de subsistência. Em segundo, a intenção de
do sol: formação do estado-nação em Cabo Verde", publica- chegada às índias, que pelo caminho, favoreceu a um comércio de
do em 2002. É Livre-Docente e pesquisadora do Departamento de especiarias e metais preciosos. Tudo financiado pela coroa Portu-
História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da guesa. Em 1530 a região ocidental tornou-se um centro de criação
Universidade de São Paulo desde o ano de 2005. É especialista em e circulação de negros.
História da África Contemporânea e trabalha, em especial, com Além da exportação das riquezas da terra africana, a desmo-
os seguintes temas: colonialismo, movimentos de independência e ralização do negro altera as relações, sendo o homem ocidental o
nacionalismos. É autora dos livros: Os filhos da terra do sol: for- predador e se colocando como juiz que determina. Chegou ao pon-
mação do estado-nação em Cabo Verde (1ª ed., 2002) e A África na to de um cavalo valer mais que a vida de um homem negro. A jus-
sala de aula: visita à história contemporânea (1ª ed., 2005; 2ª ed., tificativa europeia era dominar e explorar povos “sem civilização”.
2008 e 3ª ed. 2010). Com o fim do tráfico negreiro em 1850 começam a aparecer
às regiões que se destacam no comércio, onde fundam cidades com
Linhas de Pesquisa
escravos libertos, como: Gabão, Angola, Moçambique, Zanzibar e
História dos Movimentos e das Relações Sociais, História
Madagascar, com poder e controle político ainda muito reduzido.
Política, África Contemporânea, Resistência e movimentos de in-
Medidas tomadas na Conferência de Berlim, e também após
dependência dos territórios colonizados por Portugal em África -
ela, demonstram as intenções de cada país em relação aos terri-
séculos XIX e XX
tórios africanos: ora de cunho político, ora de cunho econômico.
Tratados foram firmados entre as nações europeias e os líderes
Orientação dada
africanos que procuravam vantagens políticas em relação a seus
Mestrado e Doutorado. vizinhos, por exemplo, ajuda militar; manutenção da relação entre
soberanos e súditos; e preservação da soberania quando ameaçada
Artigos por nações europeias. Esses tratados, assim como os da Conferên-
Movimentos de resistência na África. cia de Berlim, muitas vezes não eram aceitos por uma ou outra
Anotações Preliminares sobre a sociedade caboverdiana. nação que reagiam com medidas diplomáticas ou guerrilhas.
Movimentos político-ideológicos nos Países Africanos de Os movimentos de resistência surgiram em todo o continente.
Língua Oficial Portuguesa. A reação religiosa também foi um forte componente nesses movi-
Graduação Pós-Graduação em História Social. mentos. As crenças ajudaram a manifestar um grau de consciência
essencial para que se organizassem os protestos. “De todo modo, o
Sinopse processo de colonização foi sempre marcado pela violência, pelo
desproposito, e, não raro, pela irracionalidade da dominação. O
Quando se fala da África, uma pergunta precisa ser formu- confisco de terras, as formas compulsórias de trabalho, a cobrança
lada; existe uma África única, uma identidade comum a todo o abusiva de impostos e a violência do racismo feriram o dinamismo
continente? É a essa pergunta que Leila Leite Hernandez responde histórico dos africanos.” (Hernandez, 2005, p.109). Tudo isto co-
neste livro. Ela nos convida a abandonar nossos pressupostos e labora para um quadro de difícil pesquisa, mostrando que a cultura
estereótipos, propondo um tipo de estudo; aprendermos a enxergar local é um vasto mosaico.
a África como um entrelaçamento de diversas culturas e processos As manifestações incluem também as escrituras de intelec-
históricos, de identidades complexas e, muitas vezes, contraditó- tuais negros, conferências, congressos e associações que inicia-
rias. () ram o movimento pan-africano; cujo lema era: A África para os
africanos. Os temas eram suposições, sentimentos, esperanças,
Resumo necessidades e interesses do negro em reação ao preconceito e à
discriminação.
Apenas a partir de 1960, foi reconhecida a necessidade de Nesse primeiro processo de colonização há três erros básicos:
identificar as diferentes formas de cultura e as diferentes raças * os europeus acreditavam na suposta aceitação tranquila pe-
existentes no continente africano. Para isso, buscaram algumas los povos africanos diante da colonização. O tema da resistência
escrituras da civilização islâmica medieval, pois a maior parte da não tinha muita importância;

Didatismo e Conhecimento 65
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
* consideravam os movimentos de resistência sem força, por entender porque Portugal sempre se viu como o povo único e es-
isso, insignificantes. Eram classificados como pequenos, desorga- colhido por Deus. Desse ego exagerado nasceram características
nizados e estimulados por ideologias irracionais; como racismo intrínseco e desigualdade. Em 1850 foi apresentado
* classificava as sociedades africanas em duas partes: o projeto “mapa cor-de-rosa” que propunha a unificação da An-
a. aquelas que possuem organização social com hierarquia e gola, Moçambique, o baixo do Congo, Zâmbia e Zimbábue para
poder político – consideradas potenciais resistências, pois tinham formar a Colônia angolo-moçambicana, para reeditar a África. A
seu sistema social similar ao europeu; pressão inglesa impediu o projeto e Portugal entrou em crise. Com
b. aquelas com hierarquia difusa e com poder político descen- o fim da crise, eles decidem invadir e ocupar militarmente Angola,
tralizado – consideradas submissas. Moçambique e Guiné. O tema da ocupação era domesticar e ca-
Essas classificações ignoram que em vários momentos os afri- lar os povos africanos para fazê-los submissos. Portugal instaurou
canos negociavam com os europeus, tentavam colaborar com eles, uma doutrina que considerava as colônias parte da nação, eram
e quando não conseguiam, havia conflitos para que seus interesses patrimônio sagrado da Mãe-pátria. Essa doutrina dava direito a
fossem defendidos. Assim, é possível identificar que as revoltas Portugal de possuir e civilizar as populações indígenas. O estado
entre 1880 e 1914 – as maiores da época - contribuíram para a tinha o dever de obrigá-los a trabalhar em obras públicas. E os
formação dos movimentos de independência. costumes indígenas poderiam ser respeitados se fossem compatí-
Nesse momento, houve um sentimento mutuo de transforma- veis com a moral imposta. Fica claro que o respeito não fazia parte
ção pacífica. Após várias políticas diferentes, quando cada uma novo imperialismo.
delas trouxe uma consequência, a situação evoluiu, principalmente Mais tarde, a elite africana reivindicou liberdade de expressão
durante a segunda guerra mundial. Mesmo que essa tranquilidade política e religiosa. Os estudantes começaram a se organizar e pe-
fosse um tanto artificial, serviu para unir diferentes frentes nacio- dir a emancipação dos africanos e a igualdade racial. Esse conjunto
nalistas – Gana, Nigéria, Gâmbia e Serra Leoa, principalmente - de ideias se somou a Declaração de Direitos do Homem e ganhou
em uma única frente nacional. força.
A população estava em busca da independência. Mas, o má- Com a povoação de Cabo Verde – importante ponto onde eram
ximo que conseguiram, foi uma independência às avessas, com a cobrados pagamentos de tributos e dízimos – as outras ilhas foram
discriminação racial ainda mais aflorada e uma total dependência facilmente dominadas para melhorar o tráfico negreiro e a escravi-
econômica. A estrutura social não se alterou e nem afetou os cha- dão. Alguns homens brancos defendiam o escambo e se juntavam
mados “direitos relativos aos minérios”, mais conhecidos como para resgatar escravos, o que criou algumas lutas. Aos poucos a
exploração da supremacia branca. Após quase 15 anos de avanços escravidão foi se tornando muito cara por causa das fugas e da
e recuos, a independência foi se tornando uma realidade. Os go- rebeldia. A abolição foi em 1876, mas o trabalho sem remuneração
vernadores e altos funcionários reuniram-se para discutir o futuro continuou em muitos pontos de Cabo Verde incentivado por amea-
de vários territórios nesse pós-guerra reafirmando a expectativa de ças e burocracias inventadas pelos proprietários. Após a segunda
independência e libertação da miséria e discriminação. guerra mundial, as elites de cabo verde começaram a debater sobre
Desde 1945 houve uma difícil relação entre as colônias e a os problemas sociais e políticos. E a reivindicação dos Direitos dos
oposição. As colônias dividiam-se em colônia de povoamento Homens se tornou mais forte. O movimento de independência de
ou colônia de exploração. A diferença é que na de exploração, o Guiné e Cabo Verde estabeleceu fronteiras entre eles e os portu-
número de colonos brancos era muito maior. Assim, os invasores gueses alegando diferenças raciais e sociais. Pouco a pouco, Por-
faziam da população seres humanos dominados pelo medo. Nas tugal foi sendo afastado. Por conta de carências e precariedades.
colônias de povoamento, alguns escolheram defender sua liberda- Eles reivindicavam a ruptura política com Portugal a fim de acabar
de por meio de guerrilhas. Esse quadro fez a população passar por com o analfabetismo, colocar em prática a liberdade e promover
um longo período de sangue e violência. a justiça e o desenvolvimento. Entre avanços e recuos deram ao
A África, logo após, passou por um período de transição de povo o direito a ilha de Cabo Verde e a independência em 1974.
uma idade em que o mito bastava para manter a ordem e a confor- Guiné, em 1890, junto a Cabo Verde se tornou uma provín-
midade com a tradição, a uma em que a ideologia moderna motiva- cia e também foi domesticada. E até 1930 os povos se rebelaram.
va as mobilizações. Todos esses acontecimentos evidenciaram que Com extrema violência foi instaurada a ideologia da pacificação.
as elites políticas estavam comprometidas em mudar as condições Em 1953 foi fundado o Clube Desportivo e Cultural para estimu-
econômicas sociais e políticas. O clima de liberdade permitiu a lar os moradores contra a injustiça imposta. É claro que o clube
concepção de novos argumentos, alimentados pela vitória da Argé- não durou muito tempo, mas o desejo coletivo de mudança ficou
lia. Apesar de toda a região africana desejar a independência, cada na cabeça daquelas pessoas. Pouco a pouco foram se dando con-
território fez sua livre escolha. ta que era possível organizar manifestações de protesto como a
Como já foi citado, o império português desejava se instaurar de 1959. Infelizmente ela foi recebida com violência extrema e
e colonizar o território africano justificado por uma nobre missão muitas mortes. Com o apoio internacional e popular, outras mani-
religiosa. Para tanto, o desenvolvimento da vida comercial e das festações aconteceram ao longo dos anos. Em 1961 foi declarada a
crenças religiosas se deram sempre juntos. Nesse ponto, Portugal política de insurreição. Em 66 e 67 o movimento de independência
se considerava “um país com vocação para a missão civilizatória, avançou e chegou a Bissau. Depois de várias lutas, em 1971 ela foi
a ponto de dispersar seu corpo e alma pelo mundo inteiro. Essa emancipada e mudou para o nome de Guiné-Bissau.
mitologia está, até os dias atuais, inscrita na bandeira portuguesa.” São Tomé foi invadida por sua posição estratégica próxima ao
(HERNANDEZ, 2005, P. 505). Sempre presentes na história, os reino do Congo. A maior batalha da província foi em 1595, onde
mitos são marcados por escritores como Camões em Os Lusíadas 4.000 negros reivindicavam o fim da escravidão. A derrota sofrida
e Fernando Pessoa em seus poemas. Ao ler esses textos, é fácil nessa fase foi decisiva para o restante do processo. As revoltas

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continuaram sempre entre os escravos que fugiam para as mon- Para além do truísmo da pergunta retórica, a dinâmica histórica
tanhas. Após um período de prosperidade, as ilhas se estagnaram mostra que o primeiro passo para quebrar estes paradigmas é atra-
devido à grande competição com a quantidade enorme de açúcar vés do diálogo. Em face disso, é justamente nessa discussão que a
fabricada no Brasil. Em 1860 passou por um período de recolo- autora se insere.
nização e retomou o crescimento. Atingiu o auge em 1860 com a A obra é prefaciada pelo escritor moçambicano Mia Couto,
produção de cacau e café. Com a necessidade de grande mão-de personalidade de destaque no cenário literário, cultural e, sobre-
-obra, alguns trabalhadores foram contratados por baixos salários. tudo, político, além de ser um dos escritores africanos de maior
Com o aumento desses contratados, começaram a surgir pessoas relevância. O autor aceita de bom grado a obra de Leila Leite Her-
de todas as raças e a miscigenação foi cada vez maior. Após nego- nandez, enfatizando o seu grau de relevância para contestar o olhar
ciações, passaram por uma transição pacífica até a independência. enviesado em relação à África, via de regra, concebida como um
A colônia de Angola surgiu quando 400 soldados e 100 fa- território homogêneo. Mia Couto contesta, igualmente, a assimila-
mílias de colonos se mudaram para aquela região para cultivar ção da identidade dos africanos por meio da questão da raça, que
açúcar. Mas, depois de uns anos, o número de colonos era muito acaba ofuscando os processos históricos e sociais do continente.
maior que o de portugueses. O período de guerras durou até 1896 Na esteira do autor, “a visão europeia do ser africano” provém da
quando Henrique Augusto Dias firmou tratados com vários chefes genética e não das condições históricas. Daí o sentido da metáfora
africanos e portugueses. Depois o território ainda passou por vá- trabalhada pelo autor, “África: um retrato sem moldura”, ou seja,
rias “guerras de pacificação” e muitas pessoas foram escravizadas de um lado há uma forma dos africanos se auto-reconhecerem (re-
para servir de mão-de-obra. As péssimas condições de vida e os trato) e por outro lado, há a tentativa de enquadramento da Europa
maus tratos levaram os escravos a reagir e fugir para quilombos. em relação à África (moldura). Com essa observação arguta o es-
Em 1878 a escravidão foi abolida, mas os escravos eram obriga- critor Moçambicano, que inclusive tem fomentado esses debates
dos a trabalhar para seus ex-donos em troca de pouquíssima coi- por meio de suas obras de ficção, questiona a visão de uma África
sa. O sentimento da resistência foi ainda maior quando, em 1890, pré-formatada.
Portugal divulgou sua intenção de avançar pelas terras angolanas. Como não poderia ser diferente, Leila Hernandez parte de
Juntaram os povos que ali moravam, os imigrantes e os colonos uma preocupação contemporânea, no sentido de compreender a
que buscaram refugio ali para formar um exercito. Depois de 14 África integrando o conjunto de temas de fins do século XIX e
anos de luta, em 1975, Agostinho Neto proclamou a independên- meados do XX, desnecessário dizer que esse é um método predo-
cia. Mas a divisão interna do território gerou uma segunda guerra
minantemente histórico – recorre-se ao passado para melhor com-
que durou mais alguns anos. A Angola deu início a um processo de
preender o presente.
reconstrução que está sendo seguido até os dias atuais.
A despeito do caráter extenso da obra (13 capítulos distribuí-
Em 1507 os Portugueses invadiram a costa de Moçambique
dos em 678 páginas), é possível dividi-la em quatro partes. Na pri-
e construíram uma feitoria-fortaleza para controlar o comércio de
meira delas (cap. I, II e III), Hernandez traz à baila alguns precon-
exportação de Marfim e ouro e se apossar das especiarias asiáticas
ceitos e pré-noções acerca da África, questionando, igualmente, a
como canela e pimenta. Em pouco tempo, as relações comerciais
aistoricidade (a-historicidade) em relação ao continente, importan-
foram ampliadas com a venda de escravos capturados nas guer-
te mencionar aqui o olhar enviesado do filósofo alemão Friedrich
ras. Isso atiçou a cobiça por essas terras. No século XIX houve
uma grande seca causando fome, epidemias e muitas mortes, o Hegel (1770-1831), que declarou em suas lições sobre a Filosofia
que provocou consequências sociais e políticas graves. Moçam- da História Universal, que a África não possuía “interesse históri-
bique tinha um pedaço de cada canto da África representado em co próprio, senão o de que os homens vivem ali na barbárie e no
sua população. Havia várias línguas, tradições religiosas, noções e selvagismo, sem aportar nenhum ingrediente à civilização”. Desta
valores distintos. Como o solo era muito produtivo e se localizava forma, a autora põe em suspenso conceitos oriundos de uma linha
em um ponto estratégico, Moçambique passou por muitos confli- de pensamento ocidental, que perpassa a antropologia funcionalis-
tos e guerras até assinar o tratado de paz em busca de reconciliação ta de Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Radcliff-Brown (1881-
nacional que pôs fim numa guerra que já durava 16 anos. 1955), teoria que consiste em pensar as instituições a partir das
Quando se ouve falar em África, há uma opinião quase pre- suas funções sociais, no mais das vezes, sem levar em contas os
dominante na historiografia que consiste em afirmar que a grande aspectos das culturas locais. Reside aí o legado do “fato social” de
contribuição dos africanos para a História Universal foi a partir do Émile Durkheim, na sua configuração mais teórica e cientificista,
tráfico negreiro, muitas vezes, desconsiderando sua filosofia, seus aos trabalhos de Brown. Desnecessário dizer que tais teorias não
valores, crenças e cosmogonias. Entretanto, como a aceitação do são nem um pouco condizentes para a análise das inúmeras etnias
outro implica, sobretudo, na aceitação da sua estética, tem-se os presentes em África. Enfim, o conhecimento apronta das suas, vis-
ventos da História ao nosso favor para lembrar que a África não to que a universalidade acabar por esconder as particularidades
tem recebido o merecido tratamento em grande parte dos estudos locais. Conforme diria Léon Tolstoi, “Quer ser universal, cante
acadêmicos e científicos. com a aldeia”.
O maior exemplo disso é o desconhecimento para com nossas A autora também alerta-nos acerca do aspecto extremamente
raízes culturais e os preconceitos e pré-noções criadas em relação colonialista da Conferência de Berlim, em fins do século XIX e
à cultura africana, equivalendo dizer que as generalidades acerca início do XX, que partilhou a África entre as potências européias,
do continente acabam por esconder particularidades de espaços e sem ter em conta as peculiaridades locais, fruto do empreendimen-
vicissitudes de tempos. Basta se perguntar se as etnias koishan, to imperialista e neocolonialista que, tempos depois, desencadeou
que habitam o deserto do Kalahari, na Botswana, são iguais aos nas duas grandes guerras mundiais. Leila Leite também enfatiza a
wolofs ou diolas, que vivem nos limites da jurisdição senegalesa? importância das tradições orais para o estudo da África.

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Na segunda parte da obra, é problematizada a questão do co- das nações africanas no cenário internacional, tendo em conta a
lonialismo, tendo em vista os instrumentos de luta de dominação: recomposição política da África pós-Conferência de Berlim. No
expansionismo, burocracia colonial e racismo. Aqui as “diferentes bojo desse processo surge, igualmente, nos anos 1930, um mo-
cabeças” do empreendimento colonial ganham maiores contornos, vimento encabeçado pelos pensadores Aimé Césaire (Martinica),
considerando-se os distintos tentáculos do colonizador, a partir dos Leopold Sedar Senghor (Senegal) e Léon Damás (Guiana France-
quais a África foi reduzida à fornecedora de matérias primas aos sa), que consistiu em pensar a identidade negra a partir de valores
países do centro numa dinâmica extremamente aviltante para com comuns fazendo frente ao racismo das instituições francesas do
os valores humanos, o que levou Hannah Arendt a classificar o período. Interessante notar que, muito embora, a negritude tenha
imperialismo colonial como uma pré-figuração dos fenômenos to- sido idealizada por intelectuais da diáspora e da África francófo-
talitários do século XX, a exemplo do nazismo e stalinismo. A meu na, ela se irradiou para outras paragens. Também é mencionada
ver, se Hernandez se apoiasse em Aimé Césaire (Discurso sobre o a Conferência de Bandung (1955) (Conferência Governamental
Colonialismo), cuja obra está presente na bibliografia do livro que Afro-Asiática), que consistiu no encontro entre nações africanas
se quer resenhado, teria elementos mais consistentes para estabele- e asiáticas, onde esses países optaram pelo não-alinhamento, bus-
cer o paralelo entre aquilo que Arendt chamou de “pré-figuração” cando não se inserir na arena bipolar ideológica dominada pelos
do totalitarismo na sua configuração nazista e stalinista e o totalita- EUA (1º mundo) e URSS (2º mundo). Advém daí a disseminação
rismo propriamente dito, visto que Césaire faz uma crítica ferrenha do termo terceiro mundo, elaborado anos antes (1952) pelo demó-
à relevância que é dada às atrocidades cometidas no entreguerras grafo francês, Alfred Sauvy, em artigo intitulado Trois monde, une
em detrimento ao empreendimento neocolonialista em África e nas planète, em alusão ao Terceiro Estado (povo) da Revolução fran-
chamadas periferias do capitalismo, que foi tão violento quanto, cesa. Em Bandung, os países signatários, a partir de laços assimé-
isso sem mencionar o grande contingente de africanos que lutaram tricos e interesses comuns, buscaram regulamentar conflitos por
na linha de frente dos exércitos coloniais, defendendo uma pátria meios pacíficos, pensando na representatividade das respectivas
que lhes eram alheia. Lembrando Césaire, “É permitido matar na nações no cenário internacional. Haja vista que dez anos depois,
Indochina, torturar em Madagáscar, aprisionar na África Negra, e à conferência se somaram as nações latino-americanas. Esse era o
reprimir nas Antilhas”. Essa crítica foi escrita em 1955. preço a ser pago pelas potências, tendo em vista a forma arbitrária
Entretanto, Hernandez traz um interessante contraponto, re- que estas conduziam os conflitos nas chamadas periferias do capi-
ferindo-se aos distintos movimentos de resistência existentes em talismo. Na década de 1960, já amadurecido esses diálogos, obser-
todo o continente contra as investidas do colonizador, a exemplo va-se o efeito em escala das independências das nações africanas,
da luta dos sudaneses, egípcios e somalis contra o imperialismo conforme exposto pela autora na última parte da obra.
britânico.
A parte terceira, que abarca o sexto, sétimo e oitavo capítulo, *Professor de História da Uniban/Anhaguera da unidade
centra-se no papel desenvolvido pelas elites culturais diante da po- Campo Limpo- Vila Mariana e pesquisador do Cecafro-PUC-SP
lítica e da questão da identidade, processo esse que dá ensejo à for- e da Cinemateca Brasileira.
mação da consciência nacional, pautando-se em ideias elaboradas
por diferentes correntes de pensamentos que foram de encontro Os primeiros seres humanos surgiram na África, os mais an-
aos preceitos engessadas made in Europa. Em diálogo com outros tigos fósseis de hominídeos foram encontrados no continente afri-
autores, Hernandez mostra como a categoria genérica “raça” foi cano e tem cerca de cinco milhões de anos.
moldada através de um saber europeu de fins do século XVIII e O Egito foi provavelmente o primeiro estado a se formar no
reforçado no XIX, na esteira evolucionista e do darwinismo social continente há cerca de5000 anos, além disso, os africanos foram
levado a cabo por Herbert Spencer (1820-1903), que aplicou à so- procurados desde a antiguidade por povos de outros continentes
ciologia ideias provenientes das ciências naturais. A esse respeito, que buscavam as suas riquezas como sal e ouro. Sua divisão ter-
assinala Hernandez: ritorial é muito recente. Realizou-se em meados do século XX, e
O significado desse ‘binômio’ composto pelas raças branca e resultou na descolonização européia.
negra não se encerra, é óbvio, nos limites de uma simples antítese. Apesar de se registrarem atualmente na África muitos confli-
Antes, tem o efeito de inspirar a seguinte dúvida: teriam o branco e tos de caráter político, a grande maioria dos países possui gover-
o negro a mesma origem? É bom lembrar que essa questão integra nos democraticamente eleitos. No entanto, as eleições são frequen-
o narcisismo europeu e sua busca de fronteiras entre ele e o outro, temente consideradas “sujas” devido ás fraudes tanto internamente
colocando, portanto, o tema da alteridade” (p.132). como pela comunidade internacional, já que existem países em
Nesse processo de formação de desenvolvimento de uma que o presidente ou o partido governamental se encontra no poder
consciência nacional, conforme observado pela autora, destaca- a vários anos.
se o papel de intelectuais e membros da elite africana, bem como No período da Expansão Marítima Européia, muitas áreas da
o ganense Kuame Nkrumah (1909-1972), que enxergou na união costa africana foram conquistadas e o comércio europeu foi esten-
africana uma possibilidade de superação dos limites impostos pela dido para essas regiões. No continente existiam muitas tribos pri-
violência neocolonialista. Daí ser Nkrumah um dos principais ar- mitivas, havia guerras entre tribos diferentes e aquelas que saíam
ticuladores do chamado Pan-africanismo – no seu dizer - “A Áfri- derrotadas se tornavam escravas das vencedoras.
ca para os africanos”. Resumo da ópera: o “pan-africanismo parte No período da colonização da América ocorria o tráfico ne-
da preocupação de constituir uma identidade de destino de um greiro. Eram buscados negros na África para trabalhar como es-
conjunto de povos frente à burocracia colonial e às experiências cravos nas colônias, esses eram conseguidos pelos europeus por
colonialistas. Face a isto, a partir do ideário pan-africanista, criou- negociação com as tribos vencedoras e os escravos eram trocados
se um série de conferências e congressos para discutir a inserção por mercadoria de pouco valor na Europa como o tabaco. Após

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a revolução industrial e a independência das colônias americanas Revolução Industrial. A Europa estava devastada, e as nações do
as potências européias começaram o imperialismo ou neocolonia- Velho Mundo se empenharam na reconstrução de suas economias
lismo em que áreas da África eram dominadas para expandir o arrasadas pela guerra.
comércio, buscar matéria primas e mercado consumidor. Logo a descolonização foi tão rápida quanto a ocupação im-
Devido ao neocolonialismo a África foi dividida em frontei- perialista e teve como uma das causas principais as pressões an-
ras artificiais de acordo com os interesses europeus, tribos aliadas ti-colonialistas exercidas por movimentos políticos nas principais
foram separadas e tribos inimigas foram unidas. nações européias apontando a contradição em manter os laços co-
Essa divisão ocorreu em 1884-1885 na Conferência de Berlin loniais após o combate ao nazi-fascismo.
que institui normas para a ocupação, onde as potências coloniais Com a Guerra Fria, desenvolveu-se na África um forte nacio-
nalismo caracterizado pelo antiimperialismo e pela noção de busca
negociaram a divisão da África, propondo a não invadir áreas ocu-
da soberania política e econômica. Entre 1950 e 1980 surgiram 45
padas por outras potências. No início da I Guerra Mundial, 90%
novas nações no continente africano, entretanto não trouxe paci-
das terras já estavam sob domínio da Europa. A partilha foi feita ficação, pois as fronteiras impostas pelos europeus contribuíram
de maneira arbitrária, não respeitando as características étnicas e para a eclosão de lutas internas de origem étnica, religiosa, terri-
culturais de cada povo, o que contribui para muitos dos confli- torial e econômica.
tos atuais no continente africano.Os principais países foram: Grã No final da Bipolaridade com a derrota da União Soviética,
-Bretanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, eles tinham um armamento bélico tão gigantesco, que ficaram sem
Suécia, Portugal. Após a II Guerra Mundial as colônias da África saber como administrá-lo, anos de investimento militar para uma
começaram a conquistar independência formando os atuais países. guerra que nunca aconteceu, foi o ápice do tráfico de armas, que
A África Subsaariana ou África negra corresponde à região eram vendidas principalmente para os tiranos e guerrilheiros da
sul do deserto do Saara. África, devido às guerras civis espalhadas por todo o continente.
Ao norte encontramos uma organização sócio-econômica Estados Unidos, Federação Russa, Reino Unido, França e China,
muito semelhante à do Oriente Médio formando um mundo isla- são os paises que mais tem armas no mundo e nem sempre estão
mizado, ao sul temos a chamada África negra, assim denominada em guerra, logo possuem uma reserva imensa. Portanto, surge a
pela predominância de povos de pele escura, nesta região encon- dúvida se seus PIBs seriam tão elevados, devido a venda de armas.
tra-se os piores indicadores sociais. Os principais problemas são:
Fome, Guerras civis, Epidemias e Questões ambientais. III - Questões Problemáticas: Aids, Fome e Água

Quando se fala em África logo pensamos na fome e na grande


Contextos geopolíticos
epidemia da AIDS, que juntas são pioradas pela falta de água. Es-
ses problemas em conjunto assolam o continente africano, provo-
No início do período das Grandes Navegações, portugueses e cando mais pobreza e desprezo de grandes governantes do mundo,
espanhóis estabeleceram na costa ocidental africana feitorias para que fecham III. 1 AIDS A situação provocada pela Aids é catastró-
o comércio de mercadorias, mais tarde, já no século XIX, outros fica, combinada com a pobreza e a falta de informações tem pro-
países como Reino Unido, França, Alemanha, Bélgica e Itália se vocado uma tragédia de números inacreditáveis. A própria agência
interessaram pelo colonialismo no continente, devido seu enorme das Nações Unidas para a Aids, Unaids, já considera inevitável nos
potencial de recursos minerais e energéticos, por causa da dispu- próximos dez anos a morte de todas as pessoas hoje portadoras do
ta imperialista entre esses países europeus, em 1884, realizouse a vírus no continente africano. O número de infectados com HIV na
Conferência de Berlin, nela foram delimitadas as áreas coloniais África Subsaariana é maior que 28 milhões.
já conquistadas e definidas as suas fronteiras. Alguns anos depois A África do Sul, mesmo sendo o país mais rico do continente,
dessa reunião o domínio europeu chegou a 90% do território afri- não ficou fora da epidemia da Aids. Em pouco mais de uma déca-
cano. da, a África do Sul constatou 2,9 milhões de casos, deixando um
A riqueza do subsolo africano foi um dos principais motivos rastro de 360 mil mortos. Atingindo principalmente a população
para o conflito de interesses entre os europeus, dando início a Pri- negra e pobre, essa doença prejudica a economia dos países afri-
meira Guerra Mundial. Em um continente que tem 30% das reser- canos. O Produto Interno Bruto (PIB) da África do Sul, por exem-
vas mundiais de recursos minerais, seria inevitável uma disputa plo, será 17% menor em dez anos por causa da Aids. Empresas de
vários países calculam perder entre 6% e 8% dos lucros em gastos
acirrada pelos territórios. Dentre as riquezas merecem destaque o
com funcionários contaminados.
ouro – maior produção mundial se encontra na África do Sul, o
Segundo especialistas a razão pela qual o HIV se alastre de
diamante – a República Democrática do Congo tem a maior reser- uma forma tão rápida, é a falta de vontade política dos governantes
va, a platina – mais de 90% das reservas mundiais estão na África, de lidar com a doença e de tocar em assuntos tidos como tabu para
entre outras. a maioria das culturas africanas, como o sexo, homossexualismo
O nacionalismo foi uma das ferramentas que impulsionou a e camisinha.
Segunda Guerra Mundial. Muitos africanos ignoram o que seja a Aids. Eles acham que
Os alemães ao perderam a Primeira Grande Guerra e também a doença é causada apenas pela pobreza, por bruxaria, inveja ou
muitos de seus territórios, a acreditavam fielmente no Fuhrer que por maldição de espíritos antepassados. Esses mitos aumentam o
poderiam conquistar não só a África, mas o mundo, a preocupação estigma em torno da Aids, mantida em segredo por doentes e fami-
da segurança foi substituída pelo desejo de conseguir prestígio e liares devido ao preconceito e ao isolamento a que são submetidos
poder. na comunidade. Além disso, relataram-se diversos casos nos quais
Acaba a Segunda Guerra Mundial e após quase quinhentos africanos homossexuais tiveram tratamentos negados ou foram
anos de expansão, o colonialismo europeu entrou em colapso ridicularizados, mostrando a dupla discriminação, por serem ho-
graças às crises que atingiram os países dominantes da ordem da mossexuais e soropositivos.

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Um grande contraste é que as causas da pandemia também es- tos do povo africano. São milhares de quilômetros - numa exten-
tão na política. Mesmo com um PIB per capita de U$ 10,7 mil, na são que vai da região dos Grandes Laos ao Mar Vermelho - que
África do Sul quase 22% da população adulta é portadora do HIV. compõem a faixa da seca. Essa seca foi provocada pela escassez e
Em Uganda, com PIB per capita de U$ 1,8 mil, a prevalência do pelo atraso das grandes chuvas características da região central da
vírus entre adultos reduziu-se de 12% para 4% na ultima década. A África, mas também pelas inúmeras guerras que fizeram mi-
diferença entre esses países e que a Uganda forneceu coquetéis as lhares de pessoas abandonarem os campos, fugindo dos exércitos
gestantes e investiu em saneamento básico, garantindo a segurança beligerantes. Nessa faixa de terra, existem cerca de 16 milhões de
da mistura do leite em pó e água aos bebes de mães portadoras do pessoas, entre homens, mulheres e crianças, ameaçados pela fome
vírus. porque não houve colheitas e os rebanhos começam a definhar.
A epidemia de Aids na África tem efeitos similares aos de uma A falta de chuva e o esvaziamento dos lagos artificiais já obri-
guerra, vitimando principalmente adultos. Mas, diferente da guer- gam, há mais de dez meses, o racionamento de eletricidade. No
ra, a Aids atinge homens e mulheres em proporção semelhante. Sudão, devido à guerra do sul contra o norte e no chamado Chifre
Do ponto de vista demográfico, ela tende a produzir sociedades de da África (Eritréia, Somália e Etiópia), a situação é caótica graças
adolescentes órfãos. aos deslocamentos de massas humanas para fugir das guerras e da
escravidão, pelo abandono dos campos e pela escassez de chuvas.
III. Fome Numericamente, o caso mais grave é o da Etiópia, país de clima
semi-árido e montanhoso, onde a subnutrição atinge 10 milhões de
Segundo as Nações Unidas, mais de trinta milhões de pessoas
moradores, conferindo-lhe o antepenúltimo lugar na escala mun-
em 24 países da África Subsaariana estão passando fome devido
dial da pobreza.
a problemas que vão desde guerras, clima seco a crises econômi-
cas. Doze milhões de pessoas na região sul da África necessitam Dentro de alguns anos, um entre dois africanos terá a sua por-
imediatamente de ajuda, depois de uma pobre colheita de cereais. ção de água necessária para sobreviver reduzida pela metade ou
O período entre dezembro a março é conhecido como “Estação da até menos. Tudo indica que mais de 12 países africanos terão que
fome”. Esse é o tempo que precede a colheita, devido à ausência enfrentar o problema da falta de água para suas populações, talvez
de alimentos nos armazéns, as famílias passam a fazer uma refei- até através de conflitos onde existem as grandes reservas de água,
ção por dia. Os efeitos da “Estação da fome” não são novos, mas como as regiões dos grandes lagos e dos grandes rios. Exemplo
recentemente têm se agravado com o aumento de conflitos étni- disso é o rio Nilo, sobre o qual a Etiópia reclama justos direitos de
cos, HIV/AIDS e a pobreza crônica que amplia fatores ambientais reservas, visto que em seu território nasce o Nilo Azul, responsável
como a seca. pelo fornecimento de 85% das águas de todo o rio.
Muitas comunidades não têm recursos para sobreviver a esses Se os problemas da África estão se agravando pelas guerras
fatores. civis, pelo abandono dos campos e pela falta de aplicações de re-
A fome é um das piores problemas da África, se não o pior. cursos para melhoramento da conservação do solo, outro fator ne-
A seca e outros desastres naturais em muitas partes do continente gativo é a substancial diminuição da ajuda estrangeira.
intensificaram a falta de comida, mas pobreza é a causa real desse Até o início do século XIX, os únicos redutos europeus exis-
empasse. Para piorar as melhores terras agrícolas foram tomadas tentes na África resumiam-se às regiões litorâneas de Angola, Mo-
para crescer café, cana de açúcar, chocolate, e outras colheitas çambique e Guiné, ocupadas por Portugal desde o século XVI. A
de exportação que foram vistas como o meio de desenvolvimen- nova conquista da África ocorreu entre os anos de 1830 e 1880,
to econômico de acordo com a teoria neoclássica de vantagem e de modo muito mais violento e traumático do que no período
comparativa. Fundos privados de governo foram investidos para anterior, uma vez que a partilha entre as potências não respeitou a
desenvolver estas colheitas de dinheiro, enquanto produção de ali- unidade linguística e cultural preexistente.
mento para a maioria pobre foi negligenciada. Usar a melhor terra Ao fim da 2ª Guerra Mundial, cerca de 800 etnias, falando
para agricultura de exportação degradou o ambiente e empobreceu mais de mil idiomas, conviviam no continente africano, que estava
a população agrícola rural, forçando muitos trabalhar em planta- dividido em áreas de exploração colonial ente França, Itália, Por-
ções . tugal, Alemanha, Espanha, Bélgica e Grã-Bretanha. E como essas
Um grande mito em relação à fome africana é falar que a
divisões eram por etnias, as rivalidades tribais eram muitas e aca-
mesma é causada pela população excedentária. Se fosse por esse
baram beneficiando os europeus, que as estimularam para melhor
motivo esperaríamos achar fome em países densamente povoados
dominá-las.
como Japão e os Países Baixos e nenhuma fome em países espar-
samente povoados com Senegal e Zaire, onde alias, deficiência de Na verdade, os colonizadores haviam dividido os territórios
nutrição é muito comum. segundo seus interesses políticos e econômicos, estabelecendo
Em relação à ajuda estrangeira, os EUA doam grandes quan- fronteiras artificiais, que era muitas vezes a reunião em um mesmo
tias de alimento para a África. Mas enquanto é essencial ajudar território de grupos étnicos inimigos, não respeitando as tradições
as pessoas em necessidade, devemos lembrar que essa ajuda de nem a história desses povos.
alimento, no melhor dos casos, só trata os sintomas de fome e po- Na época da Guerra Fria começou a surgir um grande movi-
breza, não suas causas. mento de libertação nacional na África. Como as antigas potências
colonialistas já estavam desgastadas com a 2ª Guerra Mundial,
III. Água elas já não tinham alternativas a oferecer aos movimentos que lu-
tavam pela independência desde a primeira metade do século XX.
Além das guerras étnicas, a África corre outro grande risco: Os EUA e a Ex-União Soviéticos, interessados em ampliarem suas
a disputa pela água para assegurar o suficiente para o povo e seus influências no contexto da Guerra Fria, também se posicionaram
animais. Uma catástrofe que pode agravar ainda mais os sofrimen- favoráveis aos projetos de descolonização. Mas os movimentos

Didatismo e Conhecimento 70
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
de independência tiveram que conviver com essas divisões arbi-
trárias. As fronteiras fixadas pelos colonizadores se mantiveram 11. HOURANI, ALBERT. UMA HISTÓRIA DOS
preservadas, adiando a tarefa de redesenhar politicamente o conti- POVOS ÁRABES. SÃO PAULO: EDITORA
nente de acordo com suas tradições. COMPANHIA DAS LETRAS, 2005.
V - Apartheid

Ao fazer uma análise sobre o Apartheid, percebe-se que tal Sumário


sistema de segregação racial é, no mínimo, preconceituoso, uma
vez que coloca o negro em uma condição de rebaixamento, ao A obra está dividida em cinco partes:
considerá-lo inferior ao branco. O negro era considerado e tratado
como um objeto; era impedido de manter uma vida social digna; Sumário
não podia frequentar os mesmos lugares que os brancos; não podia Prefácio Agradecimentos Sobre a grafia e as datas
se servir das mesmas regalias, das mesmas formas de lazer, dos Prólogo
mesmos serviços, enfim, os negros não tinham direitos, mas, sim,
deveres a serem cumpridos. Parte I — a criação de um mundo (séculos VII-X)
Pode não parecer, mas foi uma realidade vivida na África do 1. Um novo poder num velho mundo
Sul durante muitos anos. Esse quadro lamentável só veio a se mo- 2. A formação de um Império
dificar com o surgimento de uma figura heróica, a qual foi capaz 3. A formação de uma sociedade
de se submeter a vários desafios para alcançar seu grande objetivo: 4. A articulação do Islã
o fim do Apartheid.
Tal figura, da qual possuo grande admiração, pela sua garra e Parte II — sociedades muçulmanas árabes(séculos XI-XV)
coragem, é Nelson Mandela,advogado, principal representante do 5. O mundo muçulmano árabe
movimento anti-apartheid, como ativista, sabotador e guerrilheiro. 6. O campo
Considerado pela maioria das pessoas um guerreiro da luta pela 7. A vida das cidades
liberdade; considerado pelo governo sul-africano um terrorista. 8. Cidades e seus governantes
Após o fim do regime de segregação, em 1994, Mandela foi 9. Os caminhos do Islã
eleito presidente da África do sul. Encerrou seu mandato em 1999 10. A cultura dos ulemás
e, a partir desse ano, passou a defender causas humanitárias pelo 11. Caminhos divergentes de pensamento
mundo. 12. A cultura das cortes e do povo
Nós, como cidadãos, deveríamos seguir o exemplo de Nelson
Mandela – o de lutar pelos nossos interesses, o de tentar construir Parte III — a era otomana (séculos XVI-XVIII)
um mundo melhor. Mas, o que acontece, infelizmente, é que nós 13. O Império Otomano
nos acomodamos ao pensar que sozinhos não chegaremos a lugar 14. Sociedades otomanas
algum. 15. A mudança no equilíbrio de poder no século XVIII
É fato que, se continuarmos possuindo essa mente tão pe-
quena, nem um grão de areia será movido do lugar. É importante, Parte IV — a era dos impérios europeus (1800-1939)
portanto, que cada um faça sua parte; é importante dar o primeiro 16. Poder europeu e governos reformadores (1800-1860)
passo, para que, consequentemente, os próximos sejam dados. E 17. Impérios europeus e elites dominantes (1860-1914)
assim como Nelson Mandela conseguiu podemos, também nós, 18. A cultura do imperialismo e da reforma
contribuir para a construção de um mundo melhor, sem desigual- 19. O auge do poder europeu (1914-1939)
dades, sem preconceitos, em prol da paz. 20. Mudança de estilos de vida e de pensamento (1914-1939)

Bibliografia Parte V — a era das nações-estado (depois de 1939)


Livro: A África na sala de aula: vista à história comtempo- 21. O fim dos impérios (1939-1962)
rânea ; 22. Sociedades em transformação (décadas de 1940 e 1950)
Autores: Leila Leite Hernandez. 23. Cultura nacional (décadas de 1940 e 1950)
Referências: REIS, A.; MARTINS, V. 24. O auge do arabismo (décadas de 1950 e 1960)
ÁFRICA DE ONTEM, ÁFRICA DE HOJE, RESQUÍCIOS 25. União e desunião árabe (depois de 1967)
DE PERMANÊNCIA? Disponível em: http://www.revistacontem- 26. Uma perturbação de espíritos (depois de 1967)
poraneos.com.br/n2/pdf/africa3.pdf. Acessado em 11/09/2013.
Posfácio, Malise Ruthven
O profeta e seus descendentes, os califas e as dinastias
Notas
Bibliografia
Mapas
Sobre o autor

Didatismo e Conhecimento 71
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Autor O livro destina-se a estudantes que começam a explorar o
tema e aos leitores em geral que desejam aprender alguma coisa
Morreu em janeiro de 1993. Até então fora Membro Eméri- sobre ele. Ficará claro para os especialistas que, num livro de am-
to de St. Antony’s College, Oxford. As suas publicações incluem plitude tão grande, muito do que digo se baseia em pesquisas de
Uma História dos Povos Árabes (1990) e Islam in European outros. Procurei apresentar os fatos essenciais e interpretá-los à luz
thought (1991). Difundiu seus conceitos, em forma de conferên- do que outros escreveram. Parte de minhas dívidas com as obras
cias, na Universidade Americana de Beirute, na Faculdade das deles está indicada na bibliografia.
Artes e Ciências em Bagdá, em Oxford, e no Institut des Hautes Escrevendo um livro que cobre um período tão longo, tive
Études de Túnis. de tomar decisões sobre nomes. Usei nomes de países modernos
para indicar regiões geográficas, mesmo quando esses nomes não
Sinópse eram usados no passado; pareceu mais simples usar os mesmos no-
mes no livro todo, em vez de mudá-los de um período para outro.
A explosiva situação do Oriente Médio, com os intermináveis Assim, “Argélia” é usado para uma determinada região do norte
conflitos entre israelenses, palestinos e seus vizinhos, a guerra Irã da África, mesmo que o nome só tenha entrado em uso nos sé-
-Iraque, a guerra do Golfo, o fortalecimento do fundamentalismo culos modernos. Em geral, usei nomes que serão familiares aos
islâmico - desde a Segunda Guerra, os árabes estão no centro das que leem, sobretudo em inglês; a palavra“Magreb” provavelmente
questões mais turbulentas de nossa época. No entanto, deles e de é bastante conhecida para ser usada em vez de“Noroeste Africa-
sua história sabemos muito pouco. É esta lacuna grave e lamentá- no”, mas “Mashriq” não é, e por isso usei “Oriente Médio” em
vel que Uma história dos povos árabes vem sanar. seu lugar. Chamei as regiões muçulmanas da península Ibérica de
Com erudição, sensibilidade histórica e um estilo de exemplar Andalus, pois é mais fácil usar uma palavra que uma expressão.
clareza, Albert Hourani, durante décadas professor em Oxford, es- Quando uso um nome que hoje pertence a um Estado soberano, ao
creveu um livro obrigatório não apenas para os interessados nas tratar de um período anterior à existência desse Estado, estou me
raízes da atual crise internacional, mas para todos aqueles que têm referindo a determinada região mais ou menos definida; só quando
curiosidade por uma cultura de extraordinária riqueza, cuja impor- escrevo sobre o período moderno é que me refiro à área definida
tância em termos mundiais só tende a aumentar. pelas fronteiras do Estado. Por exemplo, em grande parte do livro
“Síria” refere-se a uma certa região de características comuns, tan-
Comentário to físicas quanto sociais, e que no todo teve uma única experiência
histórica, mas uso-o apenas em relação ao Estado da Síria assim
que este passa a existir, após a Primeira Guerra Mundial.Quase não
Desde a Segunda Guerra mundial, os povos árabes estão no
preciso dizer que tais usos não implicam qualquer julgamento po-
centro das questões mais turbulentas de nossa época. No entanto,
lítico sobre que Estados devem existir e onde estão suas fronteiras.
sabemos muito pouco deles e de sua história. É esta lacuna que
Albert Hourani, durante décadas professor em Oxford, vem sanar,
Bibliografia
apresentando de forma clara e suscinta um enorme volume de in-
Livro: Uma história dos povos Árabes;
formações. Partindo do aparecimento do Islã, no século VII, até
Autores: Albert Hourani.
a recente reafirmação da identidade islâmica e disseminação dos
grupos fundamentalistas, Hourani proporciona uma rara e equili-
brada visão de todos os aspectos da história das sociedades árabes.
Tudo isso sem deixar de fazer um exame completo das institui- 12. JUNIOR, HILÁRIO FRANCO. A IDADE
ções sociais, da literatura e outras formas artísticas, da situação da MÉDIA: NASCIMENTO DO OCIDENTE. SÃO
mulher, dos deslocamentos demográficos e da multiplicidade de PAULO: EDITORA BRASILIENSE, 1988.
movimentos religiosos e intelectuais.

Resumo
Sumário
O tema deste livro é a história das regiões de língua árabe do
mundo islâmico, desde o início do Islã até os dias atuais. Duran- Prefácio
te alguns períodos, porém, tive de ir além do tema: por exemplo, Introdução
quando examino a história inicial do Califado, o Império Otomano As estruturas demográficas As estruturas econômicas As es-
e a expansão comercial e imperial da Europa. Seria possível argu- truturas políticas
mentar que o tema é demasiado grande ou demasiado pequeno: As estruturas eclesiásticas
que a história do Magreb é diferente da do Oriente Médio, ou que As estruturas sociais
a história dos países onde o árabe é a língua principal não pode ser As estruturas culturais As estruturas cotidianas As estruturas
vista isoladamente da de outros países muçulmanos. Mas temos de mentais
traçar algum limite, e foi aí que decidi traçá-lo, em parte devido O significado da Idade Média
aos limites de meu próprio conhecimento. Espero que o livro de- Conclusão
monstre que há unidade de experiência histórica suficiente, entre Orientação para pesquisa
as diferentes regiões estudadas, para que seja possível pensar e Apêndices
escrever sobre elas dentro de um quadro único. 1. Glossário

Didatismo e Conhecimento 72
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
2. A formação das estruturas medievais A Idade Média Para Os Renascentistas E Iluminista
3. Quadro comparativo: Românico e Gótico
4. São Francisco: uma nova espiritualidade O italiano Francesco Petrarca (1304-1374) já se referira ao
5. Cronologia essencial período anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico
6. Sinopse da civilização medieval da Idade das Trevas.
Sobre o autor A arte medieval, por fugir aos padrões clássicos, também era
vista como grosseira daí o grande pintor Rafael Sanzio (1483-
Autor 1520) chamá-la de “gótico”, termo então sinônimo de “bárbara”.
O sentido básico mantinha-se renascentista: a “Idade Média”
Professor de História Medieval na USP, fez seu doutorado teria sido uma interrupção no progresso humano, inaugurado pelos
gregos e romanos e retomado pelos homens do século XVI. Ou
nessa universidade e o pós-doutorado na École des Hautes Études
seja, também para o século XVII os tempos “medievais” teriam
en Sciences Sociales, com Jacques Le Goff. Atualmente prossegue
sido de barbárie, ignorância e superstição.
suas pesquisas nessa instituição com o apoio de Jean-Claude Sch- O século XVIII, antiaristocrático e anticlerical, acentuaram o
mitt. Além de vários artigos publicados em revistas especializadas menosprezo à Idade Média, vista como momento áureo da nobreza
nacionais e estrangeiras, é autor de diversos livros sobre a Idade e do clero. A filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar
Média. Os mais recentes: As utopias medievais, São Paulo, Brasi- pela luz da Razão, censurava, sobretudo a forte religiosidade me-
liense, 1992; A Eva barbada. Ensaios de mitologia medieval, São dieval, o pouco apego da Idade Média a um estrito racionalismo e
Paulo, Edusp, 1996 (Prêmio jabuti); Cocanha. A história de um o peso político de que a Igreja então desfrutara.
país imaginário, São Paulo, Cia. das Letras, 1998 (Prêmio Jabuti);
Ano 1000: tempo de medo ou de esperança?, São Paulo, Cia. das A Idade Média Para Os Românticos
Letras, 1999.
O Romantismo da primeira metade do século XIX inverteu,
Sinópse contudo, o preconceito em relação à Idade Média. O ponto de par-
tida foi à questão da identidade nacional, que ganhara forte signifi-
O período entre os séculos IV e XVI é tradicionalmente co- cado com a Revolução Francesa. A nostalgia romântica pela Idade
nhecido por Idade das Trevas, Idade da Fé ou, com mais frequên- Média fazia com que ela fosse considerada o momento de origem
cia, Idade Média. Todos eles rótulos pejorativos, que escondem a das nacionalidades, satisfazendo assim os novos sentimentos do
importância daquela época na qual surgiram os traços essenciais século XIX.
Vista como época de fé, autoridade e tradição, a Idade Média
da civilização ocidental. Nesta, mesmo países surgidos depois da-
oferecia um remédio à insegurança e aos problemas decorrentes de
quela fase histórica - caso do Brasil - têm muito mais de medieval
um culto exagerado ao cientificismo.
do que à primeira vista possa parecer. Olhar para a Idade Média é Essa Idade Média dos escritores e músicos românticos era tão
estabelecer contato com coisas que nos são ao mesmo tempo fami- preconceituosa quanto à dos renascentistas e dos iluministas. Para
liares e estranhas, é resgatar uma infância longínqua que tendemos estes dois, ela teria sido uma época negra, a ser relegada da memó-
a negar mas da qual somos produto. De fato, para o homem do ria histórica. Para aqueles, um período esplêndido, um dos grandes
Ocidente atual compreender em profundidade a Idade Média é um momentos da trajetória humana, algo a ser imitado, prolongado.
exercício imprescindível de autoconhecimento.
A Idade Média Para O Século XX
Comentário
Passou-se a tentar ver a Idade Média como os olhos dela pró-
“... a civilização medieval, apesar de limitada materialmente pria, não com os daqueles que viveram ou vivem noutro momento.
segundo os padrões atuais, dava ao homem um sentido de vida. Entendeu-se que a função do historiador é compreender, não a de
Ele se via desempenhando um papel, por menor que fosse de al- julgar o passado. Logo, o único referencial possível para se ver a
cance amplo, importante para o equilíbrio do universo. Não sofria, Idade Média é a própria Idade Média.
portanto, com o sentimento de substituibilidade que atormenta o Ao examinar qualquer período do passado, o estudioso neces-
homem contemporâneo.“ (Hilário Franco Junior). sariamente trabalha com restos, com fragmentos — as fontes pri-
márias, no jargão dos historiadores — desse passado, que portanto
jamais poderá ser integralmente reconstituído. Ademais, o olhar
Resumo
que o historiador lança sobre o passado não pode deixar de ser um
olhar influenciado pelo seu presente.
Introdução O período que se estendeu de princípios do século IV a mea-
dos do século VIII sem dúvida apresenta uma feição própria, não
O (Pré) Conceito De Idade Média mais “antiga” e ainda não claramente “medieval”. Apesar disso,
talvez seja melhor chamá-la de Primeira Idade Média do que usar
Falarmos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação o velho rótulo de Antiguidade Tardia, pois nela teve início a convi-
a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nome aos mo- vência e a lenta interpenetração dos três elementos históricos que
mentos passados, foi o século XVI que elaborou tal conceito, um comporiam todo o período medieval. Elementos que, por isso, cha-
desprezo não disfarçado em relação aos séculos localizados entre a mamos de Fundamentos da Idade Média: herança romana clássica,
Antiguidade Clássica e o próprio século XVI. herança germânica, cristianismo.

Didatismo e Conhecimento 73
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Nesse mundo em transformação, a penetração germânica in- Pelo menos até o século XII os medievos não sentiam neces-
tensificou as tendências estrutural anteriores, mas sem alterá-las. sidade de maior precisão no cômputo do tempo, o que expressava
Foi o caso da pluralidade política substituindo a unidade romana, e acentuava a falta de um conceito claro sobre sua própria época.
da concepção de obrigações recíprocas entre chefe e guerreiros, do De maneira geral, prevalecia o sentimento de viverem em “tem-
deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que pos modernos”, devido à consciência que tinham do passado, dos
perdia seu caráter mediterrânico. O cristianismo, por sua vez, foi o “tempos antigos”, pré-cristãos. Estava também presente a ideia de
elemento que possibilitou a articulação entre romanos e germanos, que se caminhava para o Fim dos Tempos, não muito distante.
o elemento que ao fazer a síntese daquelas duas sociedades forjou
a unidade espiritual, essencial para a civilização medieval. Capitulo I – As Estruturas Demográficas
Europa católica entrou em outra fase, a Alta Idade Média
(meados do século VIII - fins do X). Foi então que se atingiu, ilu- O surgimento da Demografia Histórica, há menos de cinco
soriamente, uma nova unidade política com Carlos Magno, mas décadas, enriqueceu consideravelmente o arsenal do historiador na
sem interromper as fortes e profundas tendências centrífugas que sua tarefa de compreensão do passado.
levariam posteriormente à fragmentação feudal. A Idade Média estava na etapa que os especialistas chamam
Graças a esse temporário encontro de interesses entre a Igreja de Antigo Regime Demográfico, típico das sociedades agrárias,
pré-industriais: alta taxa de natalidade e alta taxa de mortalidade.
e o Império, ocorreu certa recuperação econômica e o início de
Em razão disso, a conjugação de certos fatores (estiagens, enchen-
uma retomada demográfica. Iniciou-se então a expansão territorial
tes, epidemias etc.) por poucos anos seguidos alterava o quadro de-
cristã sobre regiões pagãs — que se estenderia pelos séculos se-
mográfico ao elevar ainda mais a mortalidade. Ou, pelo contrário,
guintes — reformulando o mapa civilizacional da Europa. a ausência de eventos daquele tipo rapidamente produzia um saldo
A Idade Média Central (séculos XI-XIII) que então começou populacional positivo.
foi, grosso modo, a época do feudalismo, cuja montagem repre-
sentou uma resposta à crise geral do século X. A sociedade cristã Retratação Da Primeira Idade Media
ocidental conheceu uma forte expansão populacional c uma con-
sequente expansão territorial, da qual as Cruzadas são a faces mais Do ponto de vista demográfico, a primeira fase medieval foi
conhecida. Graças à maior procura de mercadorias e à maior dis- um prolongamento da situação do Império Romano, cuja popu-
ponibilidade de mão-de-obra, a economia ocidental foi revigorada lação conhecera um claro recuo desde o século II. Com a cres-
e diversificada. A produção cultural acompanhou essa tendência cente desorganização do aparelho estatal romano, foram rareando
nas artes, na literatura, no ensino, na filosofia, nas ciências. Aquela as importações de gêneros alimentícios que tinham por séculos
foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Mé- permitidos a existência de uma grande população urbana. As cida-
dia, daí ter merecido em todos os capítulos deste livro uma maior des começaram a se esvaziar, cada região tentou passar a produzir
atenção. tudo àquilo de que necessitasse, Tal fenômeno paradoxalmente
A Baixa Idade Média (século XIV - meados do século XVI) aumentou a insegurança, pois bastava uma má colheita para que a
com suas crises e seus rearranjos representou exatamente o parto mortalidade naquele local rapidamente se elevasse, devido às difi-
daqueles novos tempos, a Modernidade. A crise do século XIV, or- culdades em obter alimentos em outras regiões.
gânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da contínua ex-
pansão (demográfica, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, A Relativa Ocupação Da Alta Idade Média
o que levara o sistema aos limites possíveis de seu funcionamento.
Em suma, o ritmo histórico da Idade Média foi se acelerando, Por meio de indícios esparsos na documentação — de inter-
e com ele nossos conhecimentos sobre o período. Sua infância e pretação problemática — indica certa retomada demográfica na
adolescência cobriram boas parte de sua vida (séculos IV-X), no segunda metade do século VIII. Esse fato talvez esteja ligado à
entanto as fontes que temos sobre elas são comparativamente pou- reorganização promovida pelos Carolíngios, e talvez ajude mes-
cas. mo a explicar a expansão territorial realizada por Carlos Magno.
Contudo, essa recuperação foi desigual no tempo e no espaço. Em
Sua maturidade (séculos XI-XIII) e senilidade (século XIV-
muitos locais, em muitos momentos, a fome e a mortalidade con-
-XVI) deixaram, pelo contrário, uma abundante documentação.
tinuavam acentuadas.
A Idade Media Para Os Medievais A Expansão Da Idade Media Central
As primeiras sociedades só registravam o tempo biologica- Apesar da inexistência de uma documentação quantitativa, é
mente, sem transformá-lo em História, portanto sem consciência inquestionável aquele crescimento na Idade Média Central, como
de sua irreversibilidade. Isso porque, para elas, viver no real era se percebe por cinco claros indícios: um acentuado movimento mi-
viver segundo modelos extra-humanos, arquetípicos. Assim, tanto gratório; o movimento de arroteamentos, que fazia recuar as flo-
o tempo sagrado (dos rituais) quanto o profano (do cotidiano) só restas, os terrenos baldios, as zonas pantanosas; aumento do preço
existiam por reproduzir atos ocorridos na origem dos tempos. da terra e do trigo; acentuado crescimento da população urbana na-
Tal concepção sofreu sua primeira rejeição com o judaísmo, quele período; transformações sofridas pela arquitetura religiosa.
que vê em Iavé não uma divindade criadora de gestos arquetípicos, Todos esses testemunhos apontam, portanto, para um forte
mas uma personalidade que intervém na História. O cristianismo crescimento demográfico entre os séculos XI e XIII, mas é extre-
retornou e desenvolveu essa ideia, enfatizando o caráter linear da mamente difícil quantificá-lo. De maneira geral, a documentação
História, com seu ponto de partida (Gênese), de inflexão (Nativi- medieval fornece poucos dados populacionais que permitem um
dade) e de chegada (Juízo Final). tratamento estatístico.

Didatismo e Conhecimento 74
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Portanto, mesmo sem se poder quantificar com maior rigor Em Antuérpia, importante centro distribuidor de cereais, o tri-
e precisão a expansão demográfica da Idade Média Central, ela é go subiu 320% em sete meses. A fome fazia grande quantidade
inegável. Naquele período dois fatores que anteriormente eleva- de vítimas. O canibalismo tornou-se comum. Diferentes epidemias
vam a mortalidade tiveram seu alcance reduzido. O primeiro deles agravavam a situação. Impulsionada pela fome, muita gente va-
foi à ausência de epidemias, com o recuo da peste e da malária, gava em busca do que comer, levando consigo as epidemias e a
continuando apenas a lepra a ter certa intensidade. desordem.
O segundo fator a considerar é o tipo de guerra, que não en- A crise demográfica da Baixa Idade Média, que teve seu pon-
volvia grandes tropas de combatentes anônimos, como nas legiões to crucial no ressurgimento da peste, então conhecida por peste
romanas ou nos exércitos nacionais modernos: a guerra feudal era negra. Ela apresentava-se de duas formas. A bubônica (assim cha-
feita por pequenos bandos de guerreiros de elite, os cavaleiros. mada por provocar um bubão, um inchaço) tinha uma letalidade
Guerra feudal não objetivava a morte do adversário, apenas (relação entre os atingidos pela doença e os que morrem dela) de
sua captura. Como uma das obrigações vassálicas era pagar o res- 60% a 80%, com a maioria falecendo após três ou quatro semanas.
gate do senhor aprisionado, c como na pirâmide hierárquica feudal A peste pneumônica, transmitida de homem a homem, tinha uma
quase todo nobre, além de ser vassalo de outros, tinha seus pró- letalidade de 100%, fazendo suas vítimas depois de apenas dois ou
prios vassalos, capturar um inimigo na guerra era obter um rendi- três dias de contraída a doença.
mento proporcional à importância do prisioneiro. Democrática e igualitária, a peste atingia indiferentemente a
Outro fator que contribuiu para a expansão demográfica me- todos. Até 1670, a Europa foi atingida todo ano. No período críti-
dieval foi à suavização do clima. Na Europa ocidental o clima tor- co, o da chamada peste negra, em 1348-1350, as perdas humanas
nou-se mais seco e temperado do que atualmente, sobretudo entre variaram, conforme a região, de dois terços a um oitavo da popu-
750 e 1215. A viticultura pôde então expandir-se em regiões ante- lação.
riormente impróprias, como a Inglaterra. A paisagem de alguns lo-
cais foi alterada e humanizada, como a Groenlândia, que fazia jus Capitulo II – As Estruturas Econômicas
a seu nome (literalmente, “terra verde”) e apenas no século XIII,
em virtude de novas mudanças climáticas, passou a ter icebergs em O prestígio ímpar que a História Econômica desfrutou por
longo tempo deixou profundas marcas na produção medievalísti-
sua direção, tornando-se inóspita.
ca. Sobretudo porque a impossibilidade de realizar estudos quan-
O período mais quente e seco não apenas transformou deter-
titativos como os que eram feitos para períodos históricos mais
minadas áreas em cultiváveis e habitáveis como contribuiu para
recentes, levou ao desenvolvimento de metodologias próprias. A
dificultar a difusão da peste.
historiografia especializada desenvolveu então trabalhos baseados
Por último, ajuda a explicar o crescimento populacional dos
no qualitativo (indícios, tendências, características), que elucidam
séculos X-XIII o surgimento ou difusão de uma série de inovações melhor a economia medieval do ponto de vista da própria época.
nas técnicas agrícolas. Dentre os aperfeiçoamentos técnicos da
época, três exerceram uma ação direta sobre a elevação da produ- Retração e Estagnação até o Século X
tividade agrícola: a nova atrelagem dos animais, a charrua pesada
e o sistema trienal. Do ângulo econômico, os séculos IV-X caracterizou por uma
As inovações tecnológicas não apenas produziram uma maior pequena produtividade agrícola e artesanal, consequentemente
quantidade de alimentos como, sobretudo, uma melhor qualida- uma baixa disponibilidade de bens de consumo e a correspondente
de. Até aquela época a dieta era mal balanceada, porque, baseada retração do comércio e portanto da economia monetária. Parale-
em cereais, fornecia muitas calorias e hidrato de carbono e poucas lamente, existiam pequenas e médias propriedades, ainda que aos
proteínas e vitaminas. A alteração então ocorrida na dieta talvez poucos elas fossem absorvidas pelas villae. De qualquer forma,
explique a mudança na proporção entre população masculina e estas são mais bem conhecidas e predominavam naquele território
feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e à segunda que era o centro de gravidade de então, daí porque seja justificável
posteriormente. falar em economia agrária dominial.
Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença Esta girava em torno da divisão da área em duas partes. A
mais assídua de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade femi- primeira, chamada na época de terra indominicata (ou de reser-
nina diminuiu. Tal fato teve ampla repercussão, contribuindo até va senhorial pelos historiadores), era explorada diretamente pelo
mesmo para a valorização social da mulher. senhor. Ali estava sua casa, celeiros, estábulos, moinhos, oficinas
artesanais, pastos, bosques e terra cultivável. A segunda parte era
O Ressurgimento Da Peste Na Baixa Idade Media a terra mansionaria, ou seja, o conjunto de pequenas explorações
camponesas, cada uma delas designada pelos textos a partir do sé-
O crescimento populacional acabou por se revelar excessiva- culo VII por mansus. Cada manso era a menor unidade produtiva
mente elevado para as condições europeias de então. Durante o e fiscal do domínio. Dele uma família camponesa tirava sua sub-
auge daquele fenômeno tinham sido ocupadas terras marginais, de sistência, e por ter recebido tal concessão devia certas prestações
menor fertilidade, que se esgotavam em poucos anos, baixando a ao senhor. Os mansi serviles, ocupados por escravos, deviam en-
produtividade média e desestabilizando o frágil equilíbrio produ- cargos mais pesados que os mansi ingenuiles, possuídos por cam-
ção-consumo. poneses livres.
O aumento populacional tinha implicado a derrubada de gran- Apesar de o fundamento da economia dominial estar na pres-
des extensões florestais, já que a madeira era o principal com- tação de serviço na reserva senhorial por parte de camponeses li-
bustível e material de construção. Isso ajuda a explicar as chuvas vres mas dependentes, não se pode esquecer da mão-de-obra es-
torrenciais que em 1315-1317 atingiram a maior parte da Europa crava. Tudo indica que a escravidão ainda era praticada em boa
ao norte dos Alpes, exatamente nos locais de grande devastação parte do Ocidente cristão, especialmente na Inglaterra, Alemanha,
florestal. Itália e Catalunha. Mas é inegável que se generalizava então à fi-

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gura dos servi casati, escravos estabelecidos e fixados num pedaço com menos terra. Terceiro, os rendimentos senhoriais vinham en-
de terra. Dessa forma a própria palavra servus (escravo) passou a tão bem mais do exercício dos direitos de bando que da explora-
designar outra realidade jurídica, expressando aquela transforma- ção direta do solo (daí as baixas exigências feitas aos camponeses
ção socioeconômica — a do servo. em troca de suas tenências). Quarto, na nova ordem social que se
A produção dos domínios não apresentava grandes novida- implantava desde fins do século X — o feudalismo — para esta-
des em relação à agricultura da Antiguidade. A terra era trabalhada belecer relações de vassalagem o senhor cedia terras sob forma de
quase sempre no sistema bienal ou trienal. feudo.
O setor secundário ressentia-se da fraqueza demográfica e da Não se deve, portanto, confundir senhorio e feudo. O primeiro
medíocre produção agrícola. O primeiro fator roubava-lhe mão- era a base econômica do segundo, este a manifestação político-
-de-obra e especialmente consumidores. O segundo limitava o -militar daquele. O senhorio era um território que dava a seu de-
fornecimento de matérias-primas. O artesanato dos séculos IV-X tentor poderes econômicos (senhorio fundiário) ou jurídico-fiscais
estava concentrado nos domínios, que com sua tendência à autos- (senhorio banal), muitas vezes ambos ao mesmo tempo. O feudo
suficiência procurava produzir ali mesmo tudo que fosse possível. era uma cessão de direitos, geralmente mas não necessariamente
A mão-de-obra era predominantemente escrava, vivendo na terra sobre um senhorio. Havia regiões senhorializadas e não feudaliza-
indominicata daquilo que o senhor lhe entregava, trabalhando nas das (como a Sardenha), mas não existiam regiões feudalizadas sem
oficinas com ferramentas e matérias-primas fornecidas por ele. A ser senhorializadas.
Em razão disso, o regime de mão-de-obra também se modifi-
partir do século VIII havia também um pequeno grupo de artesãos
cou em relação ao da agricultura dominial. A escravidão pratica-
assalariados, que se deslocavam de domínio em domínio. O arte-
mente desapareceu no norte europeu, sobrevivendo apenas em al-
sanato urbano, por sua vez, estava limitado pelas condições das
gumas regiões mediterrânicas. O segmento de trabalho assalariado
cidades da época. expandiu-se, em especial no século XII, graças ao barateamento da
O setor terciário limitava-se praticamente ao comércio. O co- mão-de-obra resultante do aumento populacional. O servo tornou-
mércio interno também se viu limitado, mas não paralisado. Se as -se o principal tipo de trabalhador, complementando um processo
dificuldades de produção, de um lado, restringiam as trocas por bem anterior.
gerar poucos excedentes, de outro lado tornavam necessário que Em muitas regiões difundiu-se a prática de transformar a obri-
uma região com problemas temporários procurasse determinados gação de serviços em pagamento monetário, com o qual o senhor
produtos básicos em outras. Quando um domínio tinha certo ex- contratava assalariados, cujo trabalho rendia o dobro do servil.
cedente, ele era comercializado, diante da impossibilidade de se A produção cresceu em virtude de uma maior quantidade de
estocar. mão-de-obra (incremento demográfico) trabalhando sobre uma
Das três funções atribuídas à moeda, apenas uma foi impor- área mais extensa (desbravamento de florestas e terrenos baldios).
tante naquele período. Primeiramente, ela é instrumento de medida Mas também graças à difusão de diferentes técnicas: sistema trie-
de valor, ou seja, um padrão para medir o valor de bens e serviços nal, charrua, força motriz animal, adubo mineral, moinho de água,
adquiríveis, simplificando a relação pela qual determinada mer- moinho de vento.
cadoria pode ser trocado por outra. Em segundo lugar, a moeda é Uma segunda transformação importante ocorrida nos séculos
instrumento de troca, porque, não sendo ela própria consumível, XI-XIII foi possibilitada pela existência de um excedente agríco-
pode, graças à sua aceitabilidade geral, servir de intermediária en- la, o revigoramento do comércio. Este passou a desempenhar um
tre bens que se quer trocar. Por fim, ela é instrumento de reserva de papel central na vida do Ocidente, com repercussão muito além da
valor, já que sem perder as funções anteriores pode ser guardada esfera econômica.
para a qualquer momento satisfazer certas necessidades. Este pa- Uma terceira transformação econômica da Idade Média Cen-
pel da moeda foi acentuado nos séculos IV-X devido à pequena tral, podemos chamar de Revolução Industrial medieval. Seu pon-
disponibilidade de bens. to de partida foi o crescimento demográfico e comercial, fomen-
tador do desenvolvimento urbano. Estimuladas pela chegada de
O Crescimento Dos Séculos XI-XIII camponeses que conseguiam romper os laços servis, as cidades
localizadas próximas a rios ou estradas frequentadas por comer-
ciantes logo começaram a crescer.
A Idade Média Central conheceu importantes mudanças, a
Com presença mais ou menos generalizada, sem dúvida as
passagem da agricultura dominial para a senhorial. Havia dois ti-
duas maiores indústrias medievais foram a da construção e a têxtil.
pos básicos delas, ambas de concessão pouco onerosa para o cam-
A primeira delas beneficiou-se não só do crescimento populacio-
ponês, a censive e a champart. Na primeira, mais comum e difun- nal, mas também da prática social ostentatória que levava o clero
dida, em troca do usufruto da terra o camponês devia uma pequena e a aristocracia laica a construir cada vez mais e maiores igrejas,
renda fixa, o censo, pago em dinheiro ou em espécie. Na tenência mosteiros, castelos. Buscando superar sua origem humilde, tam-
champart (de campi pars, “parte da colheita”), a renda devida pelo bém a burguesia frequentemente erguia construções imponentes.
camponês ao senhor não era fixa, mas proporcional ao resultado A produção industrial nas cidades estava organizada em asso-
da colheita. De maneira geral, a taxa era de 10% na triticultura, de ciações profissionais que chamamos de corporações de ofício, co-
16% a 33% na viticultura e na criação. nhecidas na Idade Média apenas por “ofícios” (métiers na França,
Não só os lotes camponeses viram sua área diminuir na Idade ghilds na Inglaterra, Innungen na Alemanha, arti na Itália). Suas
Média Central. A reserva senhorial também se viu reduzida em origens são controvertidas, mas as razões para o agrupamento são
razão de vários fatores. Primeiro, a necessidade de criação de no- claras: religiosa, daí muitas vezes ter derivado de confrarias, isto é,
vas tenências camponesas, o que apenas o desmembramento dos de associações que desde o século X existiam para cultuar o santo
mansos não fazia na quantidade desejada. Segundo, o progresso patrono de uma determinada categoria profissional e para praticar
das técnicas agrícolas permitia ao senhor obter maior produção caridade recíproca entre seus membros; econômica, procurando

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garantir para eles o monopólio de determinada atividade; político- No setor primário, a produção era relativamente estática (li-
-social, com a plebe de artesãos tentando se organizar diante do mites técnicos da agricultura medieval) e o consumo dinâmico
patriciado mercador que detinha o poder na cidade. (crescimento populacional). No setor secundário, cada indivíduo
Em cada oficina o mestre trabalhava com alguns outros arte- gastava mais com alimentação e menos no consumo de bens in-
sãos. Os jornaleiros (ou companheiros) eram assalariados que ga- dustriais. O setor terciário ressentiu-se disso tudo, ocorrendo uma
nhavam em dinheiro e em espécie, pois viviam na casa do mestre. redução da margem de lucro tanto das atividades comerciais quan-
Os aprendizes, apenas um ou dois por oficina, eram adolescentes to das financeiras.
que procuravam iniciar-se nos segredos da profissão, vivendo para Uma das maiores fragilidades e fonte de graves problemas
isso ao lado do mestre e pagando a ele pelo aprendizado, pelo alo- econômicos eram as constantes mutações monetárias empreendi-
das pelos soberanos. Sempre necessitados de dinheiro, os monar-
jamento e pela alimentação.
cas diminuíam a proporção de metal precioso das moedas e man-
Outra importante transformação ocorrida na Idade Média
tinham seu valor nominal, cunhando assim um maior número de
Central foi uma acentuada monetarização da economia. Um pri- peças com a mesma quantidade de metal nobre.
meiro problema era a grande diversidade, de moedas senhoriais, As causas dessa política monetária eram várias. Uma, as ne-
cada uma delas circulando numa área restrita. Um segundo pro- cessidades geradas pela guerra, pela própria retração comercial, a
blema era o baixo valor das espécies, resultado da reforma mone- escassez metálica, a lentidão da circulação monetária, da procura,
tária carolíngia do século VIII, que implantara o monometalismo por fim, o entesouramento.
de prata: o denarius, moeda de pequeno valor, adequava-se melhor
àquela economia pouco produtiva e de lenta circulação. Capítulo III - As estruturas políticas
De um lado, a solução veio do fortalecimento do poder mo-
nárquico que então começava a ocorrer. De outro, os metais pre- Por muito tempo a História Política teve seus estudos voltados
ciosos que tinham sido entesourados foram aos poucos reentrando apenas para a camada dirigente. O primeiro passo na direção des-
em circulação. Graças à expansão mercantil, entre início do século sa Nova História Política foi dado em 1924 por Marc Bloch com
XII e meada do século XIII um afluxo de ouro muçulmano con- uma obra tão pioneira, Os reis taumaturgos. Desde então, nessa sua
tribuiu para alargar o estoque metálico ocidental. Graças às novas nova roupagem, a História Política não se preocupa mais em des-
técnicas de mineração, cresceu bastante a produção de prata da crever dinastias, reinados e batalhas. Ela coloca a ênfase em dois
Europa central. principais campos de estudo, o papel do imaginário na política e as
relações entre nação e Estado.
O Pré-Capitalismo Medieval
Política e imaginário
Em suma, a Idade Média Central foi uma época de mudan- Seguindo os antropólogos, sociólogos e politicólogos, os his-
ças, de expansão econômica, o que levou parte da historiografia toriadores passaram a ver a política como à forma básica de orga-
por muito tempo a falar num “capitalismo medieval”. Contudo, nização de qualquer grupo humano, como o instrumento minimi-
adotando-se uma definição ampla de capitalismo sistema econô- zador dos conflitos inerentes a toda sociedade.
mico centrado na posse privada de capital (mercadorias, máquinas, De fato, nas sociedades arcaicas, com visão monista do uni-
terras, dinheiro, conhecimento técnico) empregado de maneira a verso, sem fazer distinção entre natural e sobrenatural, indivíduo e
se reproduzir continuamente, ficando os desprovidos dele obriga- sociedade, a realeza desempenhava um papel harmonizador, inte-
dos a vender sua força de trabalho — poderíamos talvez aceitar grador do homem no cosmos. Na Idade Média o monarca, sem ser
sua existência nos últimos séculos da Idade Média. Ele coexistia deus ou sequer sacerdote, como nas civilizações da Antiguidade,
com o sistema doméstico, representado por pequenos artesãos in- tinha inquestionável caráter sagrado.
dependentes, e com o sistema senhorial, baseado em mão-de-obra Todo rei para ser visto como tal precisava ser submetido ao
dependente. rito da unção com óleo, sacralizava o monarca, tornava-o um eleito
de Deus.
A Depressão De Fins Da Idade Média Outros interessantes exemplos das relações entre política e
imaginário têm nos reis, históricos ou míticos, que teriam desa-
parecido sem morrer e que retornariam quando seus povos deles
A Baixa Idade Média, por fim, inaugurou um período de crise
precisassem. A crença nesses monarcas messiânicos e milenaristas
generalizada, facilmente perceptível no aspecto econômico. Sem
tanto podia legitimar seus sucessores quanto servir de contestação
dúvida, podemos afirmar que após uma fase A de crescimento ao governante do momento.
econômico (1200-1316) a Europa ocidental entrou numa fase B
depressiva, que se estenderia até fins do século XV no sul e princí- Nação e Estado
pios do XVI no centro e no norte.
De qualquer forma, a crise resultou dos próprios princípios da Pelo menos até o século X, “nação” tinha conotação apenas
economia extensiva e predatória da fase A. ela fundamentava-se étnica: natione vem de “nascimento”. Na Primeira e na Alta Idade
em N (recursos naturais) e T (força de trabalho) abundantes, e um Média, prevaleceu o princípio jurídico germânico da personalidade
K (capital) proporcionalmente pequeno. Ou seja, enquanto ainda das leis, quer dizer, cada pessoa era regida pelos costumes de seu
havia terras férteis disponíveis e mão-de-obra em quantidade para povo independentemente do lugar em que estivesse. O princípio
trabalhá-las, o sistema funcionou bem. Mas a riqueza social global jurídico romano da territorialidade das leis, ou seja, a submissão
pouco crescia por falta de reinvestimento. Logo, como N e T não aos costumes locais, qualquer que fosse a origem da pessoa, rega-
poderiam crescer indefinidamente, mais cedo ou mais tarde viria nharia força aos poucos, sobretudo a partir do século XII. Somente
à crise. então “nação” passou a ter caráter também geográfico e político.

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No Império Carolíngio alguns fatores permitiram o desenvol- so. Em segundo lugar, as relações do Ocidente com Bizâncio esta-
vimento de consciências étnicas: a pretensão a certo centralismo vam bastante abaladas naquele momento, de forma que não havia
administrativo, a conquista de novos territórios, o progresso dos a preocupação dos três séculos anteriores em respeitar os direitos
falares locais diante do recuo do latim. A fragmentação do império bizantinos.
em 843 expressava e reforçava aquela situação, estimulando a for- O território estava dividido em centenas de condados, de ex-
mação dos nacionalismos nos séculos seguintes. tensão variável, cada um deles dirigido por um conde, nomeado
A evolução do Estado medieval não é menos problemática. pelo imperador. O conde representava o poder central em tudo,
Apesar de a palavra existir desde o latim clássico (no qual status publicando as leis e zelando pela sua execução, estabelecendo im-
significa “modo de ser”, “estado”), apenas a partir de meados do postos, dirigindo trabalhos públicos, distribuindo justiça, alistando
século XIII ela começou a ganhar o sentido atual de corpo político e comandando os contingentes militares, recebendo os juramentos
submetido a um governo e a leis comuns, e somente em fins do sé- de fidelidade dirigidos ao imperador. Em troca recebia uma por-
culo XV essa acepção tornou-se usual. O Estado-nação progrediria centagem das taxas de justiça e, sobretudo terras entreguem pelo
na Baixa Idade Média, tanto no plano prático (exércitos nacionais, soberano.
protecionismo econômico) quanto no simbólico (surgimento das Essa prática revelou-se insuficiente para superar a fraqueza
bandeiras, do conceito de fronteira).
estrutural do Império Carolíngio, o que levou, em 843, à sua frag-
No século IX, restabeleceu-se uma relativa unidade com o
mentação por meio do Tratado de Verdun, assinado entre três netos
Império de Carlos Magno, que absorveu, mas não eliminou ou-
de Carlos Magno. Nele aparecia o primeiro esboço do futuro mapa
tros reinos formados no período anterior. Nos séculos X-XIII, o
Império tornou-se apenas uma ficção, uma idealização, pois na político europeu. O tratado estabeleceu dois grandes blocos territo-
prática ocorria uma profunda fragmentação política substantivada riais, étnicos e linguísticos (dos quais surgiriam às futuras França e
nos feudos, porém limitada pelos laços de vassalagem, que per- Alemanha) e uma longa faixa pluralista, composta de uma zona de
mitiriam às monarquias recuperar aos poucos seus direitos. Nos personalidade definida (Itália do norte), zonas multilinguistas que
séculos XIV-XVI, o processo de revigoramento das monarquias sofreriam o poder de atração daqueles primeiros blocos (futuras
acelerou-se, estimulado pela crise global que fazia a sociedade de- Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Suíça), zonas intermediárias
positar suas esperanças de recuperação no Estado. que seriam objeto de longas disputas (Alsácia, Lorena, Trieste, Ti-
rol).
A fragmentação da Primeira Idade Média O fato de o Império não ter unidade orgânica, assentando-se
sobre dois princípios contraditórios: o universalismo das tradições
A crise do século III já mostrara a fraqueza das instituições romana e cristã e o particularismo tribal germânico. A diversidade
políticas romanas. As lutas pelo trono eram frequentes; -, as inter- étnica era insuficientemente soldada pela autoridade real, muito
venções militares também. Cada exército provincial pretendia dar sujeita a flutuações conforme a personalidade do soberano. Um
o título imperial ao seu comandante para obter maiores vantagens: segundo fator foi à difusão da vassalagem, por meio da qual Car-
naquele período de “anarquia militar”. los Magno pretendeu unir a si todos os súditos importantes, num
As reformas políticas de Diocleciano e Constantino repuse- vínculo que manteria o predomínio imperial. A relação vassálica
ram em mãos imperiais um grande poder, porém suas reformas implicava, porém, a entrega por parte do soberano de terras e privi-
sociais e econômicas indiretamente e em longo prazo anularam légios políticos que na verdade o enfraqueciam. Naquela economia
aquela recuperação. Os latifundiários não só se tornavam mais ri- essencialmente agrária, ao ceder terras para os nobres o imperador
cos como passavam aos poucos a ter atribuições estatais dentro precisava conquistar novas áreas, mas para tanto dependia do ser-
de suas propriedades. A cada vez mais constante penetração de viço militar daqueles mesmos elementos. Surgia um círculo vicio-
germânicos em território romano gerava uma insegurança que re- so difícil de ser rompido.
forçava aquela tendência. O Estado ia perdendo as possibilidades Em terceiro lugar, revelou-se problemática a fusão do poder
de uma atuação efetiva. Ocorria um claro processo de desagrega- temporal e do poder espiritual na figura do imperador. No seu papel
ção política.
militar, pela tradição germânica, ele deveria ser um chefe guerreiro
Os germanos não tinham nem Estado nem cidades, sendo a
e obtentor de pilhagens; no seu papel religioso, pela tradição cristã,
tribo e a família as células básicas de sua organização política. As
ele deveria ser o mantenedor da paz e da justiça. Frágil equilíbrio.
relações sociais entre eles não se regiam pelo conceito de cidada-
nia, mas de parentesco. Assim, ao se sedentarizarem, ocupando O imperador fez com que a expansão cristã fosse realizada por
cada tribo uma parcela do Império Romano, eles vieram a substi- intermédio de missões religiosas, e não mais de conquistas milita-
tuir um Estado organizado e relativamente urbanizado. Não tendo res. O soberano ficou assim privado dos proventos da pilhagem,
instituições próprias para desempenhar tal tarefa, adotaram as que de forma que precisava remunerar os vassalos com suas próprias
estavam à mão, e que bem ou mal tinham funcionado por longo terras, esgotando a fortuna fundiária carolíngia, base inicial de seu
tempo. O rei ostrogodo Teodorico (474-526) pensou numa espécie poder.
de confederação germânica sob o domínio de seu reino. A ideia Por fim, as novas invasões dos séculos IX-X contribuíram
de uma confederação germânica não era absurda, mas precoce, na para mostrar a debilidade do sistema imperial. A rapidez dos vi-
época de Teodorico. kings, que descendo da Escandinávia penetravam pelos rios com
seus barcos leves e ágeis, não permitia a defesa por parte daquele
A renovação imperial carolíngia exército difícil de ser convocado e pesado nas manobras militares.
Ficava patente a impotência dos soberanos, e cada região organi-
As condições para tanto estariam reunidas apenas no reino zava sua própria defesa, em torno da nobreza local. Era a região,
franco do século VIII, na figura de Carlos Magno. Em primeiro portanto, que passava a definir seu próprio destino. A Europa co-
lugar, pelo fato de ele ter a anuência da Igreja para dar aquele pas- bria-se de castelos. O poder se fragmentava.

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A partir de então, estavam presentes os personagens políticos Esse aspecto contratual vinha dos bárbaros germanos, para
que se manteriam em cena até o fim da Idade Média: o Império, a quem o rei, eleito, estava de certa forma subordinado ao direito
Igreja, as monarquias, o feudalismo e — um pouco mais tarde — costumeiro da tribo. Este determinava os poderes e atribuições do
as comunas. rei, e naturalmente não podia ser alterado por ele sem o consenti-
mento da comunidade por intermédio da assembleia dos guerrei-
Os poderes universalistas ros. Com o mesmo espírito, no feudalismo o vassalo que não cum-
pria suas obrigações podia perder seu feudo, depois de julgado por
Por causa de problemas dinásticos, tal título deixou de ser uti- seus pares no tribunal do senhor. Correspondentemente, o senhor
lizado de 924 a 962, quando se deu a chamada “segunda renova- que desrespeitava suas obrigações via o vassalo romper o contra-
ção do Império”, com Oto. Depois de ter consolidado seu poder to feudo-vassálico (diffidatio). Assim, o rei feudal como suserano
no reino alemão, ele derrotou os magiares e eslavos, pacificando mantinha relações contratuais apenas com seus vassalos diretos.
aquela região e ganhando um prestígio muito grande em toda a Por outro lado, a partir da própria fragmentação política feu-
Cristandade*. Intervindo na política italiana, ele casou-se com a dal desenvolvia-se um elemento que acabaria por ter um papel
herdeira do trono daquele território e proclamou-se rei também reaglutinador. Os bárbaros tinham possuído certa solidariedade de
ali. O papa, precisando de ajuda para superar problemas na Itália
tribo ou de povo, que, contudo não se associara a um território por
central, buscou seu apoio. Enfim, Oto I conseguiu reunir todas as
causa de seu nomadismo. Com a penetração e fixação em terras
condições para ser coroado imperador pelo pontífice. Renascia o
do antigo Império Romano, aos poucos surgiram vínculos entre os
Império Franco, que em 1157 passou a se chamar Santo Império e
a partir de 1254, Santo Império Romano Germânico. habitantes, seus costumes, suas tradições e o território ocupado. O
O Império resultava da reunião de três coroas, da Alemanha, primeiro resultado disso é constatável séculos depois, quando em
da Itália e da Borgonha. E o monarca era fraco em todas. Na Ale- 813 o concilio de Tours recomendava ao clero traduzir os sermões
manha, feudalizada tardiamente no século XII, a prática feudal não em língua vulgar para que fossem mais bem compreendidos.
trabalhava a favor do Estado, como ocorria na França: o rei não
podia manter os feudos confiscados, sendo obrigado a reenfeudá- Os poderes particularistas
-los após um ano e um dia. Na Itália, o território era descontínuo,
compreendendo o norte peninsular e algumas regiões meridionais, O feudalismo, do ponto de vista político, representava uma
pois o centro era papal e o extremo sul bizantino. Na Borgonha, pulverização do poder que respondia melhor às necessidades de
o poder da nobreza local já era bastante forte quando o reino se uma sociedade saída do fracasso de uma tentativa unitária (Impé-
tornou em 1033 um Estado autônomo no seio do Império. rio Carolíngio) e pressionada por inimigos externos (vikings, ma-
Sem poder efetivo nesses reinos, o soberano sempre buscou giares etc). Na verdade, as tendências centrífugas vinham desde o
o título imperial na esperança de com ele reforçar sua atuação na- século IV, quando manifestaram e aceleraram o debilitamento do
queles locais. Apenas o papa poderia coroar um imperador, mas Império Romano. Naquele momento, com a busca da autossufi-
não estava interessado na existência de um que fosse forte, pois ele ciência por parte dos latifúndios, com a insegurança gerada pela
próprio tinha pretensões universalistas, considerando-se o legítimo penetração dos bárbaros e com as dificuldades nas comunicações,
herdeiro do Império Romano. Daí os sérios conflitos entre Império acentuou-se a ruralização da economia e da sociedade, levando os
e Igreja, que se arrastariam por longo tempo. representantes do imperador a se verem limitados nas suas pos-
A Igreja, por sua vez, tornou-se claramente uma personalidade sibilidades de atuação. Os grandes proprietários rurais puderam,
política desde que se corporificou com a Doação de Pepino. Isto assim, usurpar atribuições do Estado.
é, ao receber do chefe franco em 754-756 os territórios que ele A formação dos reinos germânicos em nada alterou a essência
conquistara aos lombardos, nascia o Estado Pontifício. Contudo, daquele processo. Naquela economia fundamentalmente agrária,
tal fato trazia em si uma submissão implícita da Igreja ao poder os monarcas remuneravam seus servidores e guerreiros com ter-
monárquico, de quem recebia aquelas terras. Contra isso é que se ras, às quais se concediam muitas vezes imunidades. O detentor
forjou o documento conhecido por Doação de Constantino. Por
da terra desempenhava ali o papel de Estado, taxando, julgando,
este texto apócrifo, o imperador romano Constantino teria supos-
convocando.
tamente transferido para o papado, no século IV, o poder imperial
A concessão e recepção de feudos e sua contrapartida (o servi-
sobre todo o Ocidente. A questão ficava, dessa forma, invertida:
Pepino nada estaria doando à Igreja, mas apenas restituindo a ela ço militar) representavam uma forma de divisão da riqueza (terra
uma parte do que lhe pertencia. A Igreja, depositária do título im- e trabalhadores) sempre dentro da mesma elite. O poder político
perial, entregara-o ao rei franco por serviços prestados, podendo, estava fracionado para que pudesse ser mantido.
portanto, retoma-lo e atribuí-lo a quem quisesse. O surgimento das comunas representou um papel interessante
e importante. De um lado, aquele processo negava os princípios
Os poderes nacionalistas feudo-clericais. O tipo mais difundido era a comuna citadina, a
comunidade burguesa que se organizava para defender seus inte-
Ao promover a unção de Pepino, em 751, a Igreja justificara resses comerciais diante dos abusos feudais, como confiscos ou ta-
o poder monárquico. Em parte isso ocorrera por circunstâncias, já xações excessivas. No começo do século XI, ela pretendia apenas
que o papa necessitava do apoio franco contra os lombardos. escapar à arbitrariedade senhorial. Cerca de 100 anos depois, ela
Apesar de aceitar a sacralidade monárquica, a Igreja velava passou a buscar autonomia, que se comprava ou arrancava à força,
para que tal poder não se tornasse excessivo, daí a farta literatura dependendo de cada caso.
conhecida por “espelho dos príncipes”. Literatura de exortação aos Nascia então a verdadeira comuna, ou cidade-estado. Seu mo-
monarcas, de quem se exigiam qualidades cristãs e a quem se esta- delo acabado estava na Itália, região mais urbanizada do Ocidente,
beleciam limites de atuação. onde as longas lutas entre Império e Igreja tinham criado um vácuo

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de poder preenchido pelas associações burguesas. As comunas re- eclesiástico separou-se completamente da sociedade laica e procu-
presentaram uma novidade política não apenas na sua relação com rou dirigi-la, buscando desde fins do século XI erigir uma teocracia
os poderes tradicionais, mas também na sua organização interna. que esteve em via de se concretizar em princípios do século XIII.
No primeiro momento seu regime político foi o consulado, com Contudo, por fim, as transformações que a Cristandade conhe-
um grupo de funcionários (cônsules) eleitos defendo poderes exe- cera ao longo desse tempo inviabilizaram o projeto papal e prepa-
cutivos e judiciais. Para controlá-lo, havia uma assembleia inicial- rou sua maior crise, a Reforma Protestante do século XVI.
mente formada por todos os cidadãos e depois por certo número
deles escolhido por eleição ou sorteio. Num segundo momento, A formação da hierarquia eclesiástica na Primeira Idade Mé-
diante das crescentes disputas internas da camada dirigente, pas- dia
sou-se a entregar o poder a uma só pessoa, de fora da cidade e,
portanto neutra nos seus conflitos, o podestà (“regedor”). Nos seus primeiros tempos, a Igreja parecia envolvida numa
O grau de autonomia conseguido pelas comunas foi muito va- contradição, que, no entanto se revelaria a base de seu poder na
riável conforme o tempo, o local e o tipo de associação. E impor- Idade Média. Ao negar diversos aspectos da civilização romana,
tante lembrar que nem todas as comunas eram urbanas. As rurais, ela criava condições de aproximação com os germanos. Ao preser-
quase sempre muito modestas, nasciam da associação de aldeias var vários outros elementos da romanidade, consolidava seu papel
contra o seu senhor. O espírito era o mesmo das comunas urba- no seio da massa populacional do Império.
nas, mudavam os objetivos (acesso a áreas fechadas pelo senhor, Nascida nos quadros do Império Romano, a Igreja ia aos pou-
reação ao desrespeito por costumes locais etc.) e as condições de cos preenchendo os vazios deixados por ele até, em fins do século
alcançá-los (mais pobre que a cidade, o campo dificilmente podia IV, identificar-se com o Estado, quando o cristianismo foi reconhe-
comprar sua liberdade). cido como religião oficial. A Igreja passava a ser a herdeira natural
do Império Romano.
O jogo político medieval Para tanto, ela precisava ter sua própria hierarquia, realizando
e supervisionando os ofícios religiosos, orientando quanto às ques-
Os poderes universalistas (Igreja e Império) estavam em cho- tões de dogma, executando obras sociais, combatendo o paganis-
que constante, porque pela própria natureza do que reivindicavam mo. A concentração de todas essas atividades nas mãos de apenas
— a herança do Império Romano — somente um deles poderia alguns cristãos era aceita com naturalidade pelo conjunto dos fiéis,
já que tal poder lhes fora atribuído pela própria Divindade: segun-
ter sucesso. Assim, ambos fracassaram, permitindo a emergência
do o texto bíblico.
de poderes particularistas (feudos e comunas) e nacionalistas (mo-
Apenas no século IV determinou-se que somente homens li-
narquias). Mais do que isso, quando ficou patente em fins da Idade
vres poderiam ingressar no clero, e proibiu-se a passagem direta
Média, que o futuro pertencia a estas últimas, duas nacionalidade
do laicato para o episcopado, tornando-se necessário exercer antes
já tinham perdido sua oportunidade histórica de organizar Esta-
uma função inferior. O sustento do clero advinha das esmolas da-
dos centralizados. A luta entre os universalistas debilitara as bases
das pelos fiéis, de acordo com o princípio de “quem serve ao altar
territoriais e nacionais da Itália (centro nevrálgico da Igreja) e da
vive do altar”. O celibato não era obrigatório, apenas recomen-
Alemanha (base do Sacro Império). dado, tendo surgido à primeira legislação a respeito na Espanha,
Dessa forma, por muito tempo elas permaneceram apenas onde o sínodo de Elvira em 306 proibiu o casamento aos clérigos
realidades geográficas, não políticas. Perdidas as chances de obter sob pena de destituição.
colônias no Novo Mundo dos séculos XVI-XVII, atrasadas na in- Para a formação e organização da hierarquia eclesiástica aca-
dustrialização dos séculos XVIII-XIX, secundarizadas na partilha bou contribuindo bastante, paradoxalmente, um elemento que pu-
da África e da Ásia do século XIX, aquelas nacionalidades sentiam nha em risco a própria existência da Igreja: as heresias. Estas eram
cada vez mais a necessidade de se corporificar politicamente. produto do sincretismo que fazia a força, mas também a fraqueza
Apesar das transformações políticas dos séculos XI-XIII, na do cristianismo. Ao reunir e harmonizar componentes de várias
Baixa Idade Média os vínculos feudais continuavam a tencionar crenças da época, a religião cristã tornava-se mais facilmente assi-
as relações entre vários Estados: o rei da Inglaterra era vassalo milável, porém passível de interpretações discordantes do pensa-
francês, o reino português surgira de uma secessão de Castela, a mento oficial do clero cristão. Do ponto de vista deste, heresia era,
Escócia estava ligada à Inglaterra, e Flandres à França. Todas es- portanto, um desvio dogmático que colocava em perigo a unidade
sas questões pendentes, ou mal resolvidas, vieram à tona com o de fé.
grande conflito nacionalista da Idade Média, a Guerra dos Cem Qualquer ideia que parecesse herética era, então, submetida
Anos (1337-1453). Mas esta também envolveu questões feudais à apreciação do bispo local. Este geralmente colocava a questão
internas, pois cada vez mais se restringia o papel social da nobreza, perante seus pares nas assembleias episcopais, ou sínodos, que se
que era cumprido através de guerras locais, proibidas pelas monar- reuniam desde meados do século II para tratar de tudo que interes-
quias, daí a necessidade de guerras mais amplas, entre os Estados. sasse à Igreja local. Mas as questões de doutrina eram debatidas,
sobretudo nos concílios ecumênicos, que congregavam bispos de
Capítulo IV - As estruturas eclesiásticas todas as regiões, expressando a universalidade da Igreja.
Paralelamente a esse clero voltado para atividades em socie-
A linha tendencial da Igreja na Idade Média revela-se com dade — ministrar sacramentos, orientar espiritualmente, ajudar os
clareza. Num primeiro momento, a organização da hierarquia ecle- necessitados — e por isso chamado de clero secular, surgia um de
siástica visava à consolidação da recente vitória do cristianismo. A características diversas. Era constituído por indivíduos que busca-
seguir, a aproximação com os poderes políticos garantiu à Igreja vam servir a Deus vivendo em solidão, ascese e contemplação: os
maiores possibilidades de atuação. Em uma terceira fase, o corpo monges, do grego monakbos, “solitário”.

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A tradicional trilogia monástica — castidade, pobreza e obe- ou mosteiro em suas terras, mantinha esse bem como plena pro-
diência — estava presente de forma concreta e equilibrada no co- priedade, podendo vendê-lo, doá-lo ou transmiti-lo em herança.
tidiano dos beneditinos. O abade eleito pelos monges recebe deles Podia apropriar-se das esmolas e dízimos recebidos pela igreja ou
total obediência, que representa ao mesmo tempo uma manifesta- mosteiro. Podia, sobretudo, nomear quem quisesse como sacerdo-
ção de pobreza, pois não se pode dispor sequer da própria vontade. te, função que desde o século VIII era atribuída como beneficiam
A pobreza, por sua vez, não é entendida como falta ou miséria, ou feudo.
mas posse do estritamente necessário, daí o monge não poder ter
nada de seu, apesar de o mosteiro possuir propriedades recebidas A tentativa de teocracia papal na Idade Média Central
em doação. A castidade, sendo negação da posse do próprio corpo,
também é uma forma de pobreza. Sendo negação do usufruto do Numa reação contra aquele estado de coisas, na Idade Média
próprio corpo, é uma forma de obediência. A obediência, sendo Central a Igreja teve como objetivo alcançar a autonomia e, sobre-
uma renúncia, é ainda uma forma de castidade. tudo — concretizando o agostinianismo político e impedindo que
Desde fins do século III ocorria forte expansão do cristianis- prosseguisse a sujeição aos leigos — passar a dirigir a sociedade.
O primeiro passo em direção àquela dupla meta tinha sido dado
mo nas cidades, onde a crise do Império Romano era mais sentida
em princípios do século X, com a fundação do mosteiro de Cluny,
e, portanto, as condições para a cristianização mais favoráveis. O
na Borgonha. Adotando a regra beneditina, mas interpretando-a de
campo, sempre mais conservador, mantinha-se preso às suas anti-
forma própria, Cluny valorizava os trabalhos litúrgicos, que absor-
gas crenças, mesmo pré-romanas, daí paganus (“camponês”) ter viam a quase totalidade do tempo dos monges. O trabalho manual
sido identificado ao não-cristão. Com a decadência urbana e o con- foi abandonado aos camponeses de seus senhorios, o trabalho in-
sequente êxodo, o cristianismo penetrou no campo. telectual relegado a segundo plano. Vivendo sob rígida disciplina,
cm ascetismo, silêncio e isolamento, os monges cluniacenses recu-
A submissão ao Estado na Alta Idade Média peraram o prestígio da vida religiosa.
Buscando restabelecer a paz social (não a igualdade, concep-
Estreitavam-se, portanto, as relações Estado-Igreja, com pre- ção estranha à época) e tornar-se sua guardiã, a Igreja promoveu
domínio do primeiro na época de Carlos Magno. Os clérigos par- em fins do século X o movimento conhecido por Paz de Deus.
ticipavam então do conselho real, os bispos tinham poderes civis, Ameaçados de excomunhão e de suas decorrentes punições sobre-
os cânones ganhavam força de lei. O monarca presidia os sínodos, naturais, os guerreiros foram pressionados a jurar sobre relíquias
punia os bispos, regulamentava com eles a disciplina eclesiástica que respeitariam as igrejas, os membros do clero e os bens dos
e a liturgia, intervinha mesmo em questões doutrinais. Os bispos humildes.
eram nomeados pelo soberano, contrariamente à tradição canôni- Tal movimento estendeu-se até por volta de 1040, sem conse-
ca, mas o fato não era considerado uma usurpação, e sim um servi- guir pacificar completamente a sociedade cristã ocidental. O clima
ço prestado pelo monarca à Igreja, quase um dever do cargo. Suas de violência expressava as necessidades da aristocracia laica, mais
conquistas territoriais abriram caminho para a cristianização dos numerosa devido ao crescimento demográfico, e a consequente
saxões, frísios, vendes, avaros, morávios e boêmios. Em virtude disputa entre ela e a aristocracia eclesiástica pela posse das rique-
da crescente extensão do Império, ele instituiu muitas paróquias, zas geradas pelos camponeses. Diante disso, seguindo o mesmo
criou novas dioceses e arquidioceses. espírito da Paz de Deus, mas buscando criar novos mecanismos de
Graças a isso, a Igreja enriqueceu ainda mais. No começo do controle sobre o comportamento da elite laica, a Igreja estabeleceu
século V ela tinha sido a segunda maior proprietária imobiliária em princípios do século XI a Trégua de Deus.
do Ocidente, depois do Estado Romano, e tornou-se a maior desde Como a ideia básica da Paz e da Trégua de Deus era a pre-
fins daquele século, com o desaparecimento do Império. De fato, servação da ordem religiosa, social e política desejada por Deus,
a chegada dos bárbaros não a prejudicou, pelo contrário, muitos entende-se que a partir de fins do século XI ela tenha derivado para
a ideia de Guerra Santa, que procurava impor aquela ordem dentro
indivíduos, diante da insegurança geral de então, entregaram suas
(Cruzada contra hereges) e fora (Cruzada contra muçulmanos) da
terras ao patrocinium da Igreja.
Cristandade.
Na terceira fase das relações Carolíngios-papado, completou-
As Cruzadas deveriam funcionar não só como elemento de
-se a reforma monástica sob o governo de Luís, o Pio, que encarre- pacificação interna da Europa católica, levando para fora dela à
gou Bento de Aniane de realizá-la. Este, em 817, procurou inicial- irrequieta nobreza feudal, mas especialmente como um fenômeno
mente combater o relaxamento que tomara conta da vida monásti- aglutinador da Cristandade sob o comando da Igreja, acenava-se
ca, impondo certa uniformização na aplicação da regra beneditina. para seus participantes com a remissão dos pecados, a proteção
Desde então, os monges entregaram-se especialmente ao culto. O eclesiástica sobre suas famílias e bens, a suspensão do pagamento
clero secular retomava a direção do movimento de cristianização e de juros. Lutando sob a égide da Igreja, os cruzados deveriam agir
o episcopado aumentava seu poder político. como guerreiros imbuídos de seus ideais.
A partir de inícios do século IX, inspirada no Direito Canô- No século XIII estavam reunidas todas as condições para o
nico e em Santo Agostinho, ganhou terreno à teoria do agostinia- exercício do poder papal sobre a comunidade cristã. Em relação
nismo político, que afirmava a superioridade espiritual sobre a aos clérigos, o papado legisla e julga, tributa, cria ou fiscaliza uni-
temporal, dos bispos sobre os reis. O movimento cultural chamado versidades, institui dioceses, nomeia para todas as funções, reco-
de Renascimento Carolíngio elevara o nível dos bispos. Tal teoria nhece novas ordens religiosas. Em relação aos leigos, julga em
contribuiu para aumentar a autonomia da nobreza, o que teve re- vários assuntos, cobra o dízimo, determina a vida sexual (casa-
flexos negativos sobre a Igreja, com a generalização do sistema de mento, abstinências), regulamenta a atividade profissional (traba-
“igreja própria”, já existente no século VII e que se estenderia até o lhos lícitos e ilícitos), estabelece o comportamento social (roupas,
século XII. Por ele, quando um latifundiário levantava uma igreja palavras, atitudes), estipula os valores culturais.

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Um claro sinal do alargamento das atribuições papais estava e tributos. Contudo, o escravismo e o imperialismo marginaliza-
numa importante novidade, à exclusividade de canonização dos vam grande parte da população, que precisava ser sustentada pelo
santos. Desde princípios do cristianismo, os mártires vitimados Estado.
pelas perseguições romanas tornaram-se objeto de culto, sendo O segundo fator que enfraquecia as camadas médias urbanas
vistos como cristãos ideais, que tinham sacrificado suas vidas por era um pesado conjunto de impostos que o Estado cobrava para
fidelidade ao Deus único. tentar manter a própria vida citadina. Obrigados a contribuir na
promoção de jogos circenses, na distribuição de trigo à população
A crise da Baixa Idade Média marginalizada e na realização de obras públicas, os curiales (espé-
cie de aristocratas urbanos) procuravam fugir aos seus encargos. O
A grande questão da Igreja na Baixa Idade Média foi, porém, Estado precisou proibir sua migração para o campo e mesmo sua
um prolongamento da antiga disputa entre poder espiritual e poder entrada para a camada senatorial ou para o clero.
temporal. Em fins do século XIII, o papa Bonifácio VIII, defen- Na base da sociedade, os trabalhadores livres urbanos tiveram
sor da monarquia universal pontifícia, proibiu que os eclesiásticos decretado a vitaliciedade e hereditariedade de suas funções, sendo
fizessem doações sem autorização da Santa Sé e que os poderes reunidos em collegiae (corporações) de acordo com a especializa-
laicos cobrassem taxas sobre bens da Igreja. Na França, em ple- ção, para facilitar o controle estatal. Os trabalhadores livres rurais
no processo de afirmação da monarquia nacional, o rei Filipe IV, tendiam a se tornar dependentes dos latifundiários por meio do
em resposta, proibiu a saída de metais preciosos do país e baniu patrocinium e, sobretudo, do colonato. A criação dessa instituição
os coletores de impostos papais. Pouco depois, o monarca fran- era uma tentativa de responder a problemas colocados pela crise:
cês prendeu um bispo, levantando fortes protestos do papa. Filipe atendia ao interesse dos proprietários em ter mais mão-de-obra, ao
acusou Bonifácio de ter sido eleito papa ilegitimamente e em 1303 interesse do Estado em garantir suas rendas fiscais, ao interesse
conseguiu prendê-lo na cidade de Anagni. Apesar de solto logo dos humildes e despossuídos por segurança e estabilidade.
depois, o papa estava claramente desmoralizado, e o sonho da teo- Já no século III, precisando de soldados diante do retroces-
cracia pontifícia falido. so populacional, o Estado romano contratara muitos germanos, às
A crise do pontificado e o desenvolvimento do nacionalis- vezes tribos inteiras. O pagamento por esse serviço militar era a
mo, fenômenos, aliás, interligados, desenvolviam o sentimento entrega de lotes fronteiriços (hospitalitas), prática que se estendeu
de autonomia eclesiástica em diversos locais. Mesmo depois de a todo o território romano com as invasões do século V.
reunificada pelo Concilio de Constança, havendo um só papa re-
sidindo na tradicional sede de Roma, a Igreja continuava abalada. A aristocratização da Alta Idade Média
Grandes problemas permaneciam, opondo concilio e papa, Igreja
e monarquias, Estado Pontifício e Estados italianos, cultura cristã Como a terra era quase a única forma de riqueza da época,
tradicional e nova cultura humanista. Assim, em 1517, exatamente não existia uma camada urbana de comerciantes e artesãos que
100 anos depois da volta do papado a Roma, começava o Protes- exercessem por conta própria e regularmente seu ofício, mas ape-
tantismo. nas uns poucos indivíduos dedicando-se àquelas atividades. A
sociedade estava polarizada entre os proprietários fundiários, de
Capítulo V - As estruturas sociais um lado, e os camponeses despossuídos, de outro.
Dentre os primeiros, havia pequenos e médios proprietários,
A História Social total deve ser o objetivo último dos estudos camponeses livres (pagenses) que trabalhavam sua terra com a aju-
históricos, não uma etapa da reconstituição do passado, um campo da de familiares e uns poucos escravos. Como todo homem livre,
específico do saber. eles deviam (além do juramento de fidelidade ao soberano) serviço
militar e judicial, encargos muito pesados para seus recursos.
A redefinição da Primeira Idade Média A seguir vinham os colonos, que, apesar de serem juridica-
mente livres, cada vez mais sentiam a fraqueza da autoridade pú-
Os primeiros séculos medievais conheceram uma cristaliza- blica que deixava amplos poderes nas mãos dos grandes detento-
ção da hierarquia social, fenômeno que na verdade já se desen- res de terras. Sua situação oscilava, conforme os momentos e os
volvia anteriormente, mas que se completou apenas no século IV. locais, entre a dos pagenses e a dos escravos. Por fim, havia uma
De fato, a crise geral que sacudiu a civilização romana no século mão-de-obra escrava.
III levara a uma limitação dos espaços de atuação individual e ao
correspondente alargamento das funções do Estado. A feudo-clericalização dos séculos XI-XII
As tentativas reformistas criaram uma enorme distância social
entre as várias camadas. No topo da pirâmide estava a aristocracia O que se deve chamar de feudalismo ou termo correlato
senatorial, cinco vezes mais rica que a do século I. As camadas (modo de produção feudal, sociedade feudal, sistema feudal etc.)
médias, rurais e urbanas, encolhiam. As primeiras, devido à gene- é o conjunto da formação social dominante no Ocidente da Idade
ralização do patrocinium, laço de dependência que se criava entre Média Central, com suas facetas política, econômica, ideológica,
um camponês livre e um grande proprietário. As camadas médias institucional, social, cultural, religiosa. Em suma, uma totalidade
urbanas viam-se esmagadas por dois fatores. O primeiro deles — o histórica, da qual o feudo foi apenas um elemento. No entanto — e
processo de ruralização da sociedade romana — resultava de sua procurando não perder essa globalidade de vista —, como exami-
contradição básica: sendo escravista e imperialista, ela só poderia namos cada uma daquelas facetas nos capítulos correspondentes,
manter-se graças a novas conquistas que renovassem o estoque vamos aqui nos prender apenas à análise das relações sociais do
de mão-de-obra e trouxessem mais riquezas por meio de saques feudalismo.

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Ou melhor, do feudo-clericalismo. Realmente, este rótulo A instabilidade dos séculos XIV-XVI
parece-nos mais conveniente, na medida em que explicita o papel
central da Igreja naquela sociedade. Fato fundamental e geralmen- Na Baixa Idade Média, a passagem da sociedade de ordens
te pouco considerado. para uma sociedade estamental, produto da própria dinâmica feu-
Foi por intermédio dela que se deu a conexão entre os vários dal, acelerou-se naquele contexto de crise generalizada. Com a
elementos (já anteriormente presentes) que comporiam aquela for- quebra da rígida estratificação anterior, baseada num ordenamento
mação social. Foi ela a maior detentora de terras naquela socie- divino da sociedade, o organismo social tornou-se determinável
dade essencialmente agrária, destacando-se, portanto, no jogo de pelos próprios indivíduos.
concessão e recepção de feudos. Foi ela a controlar as manifesta- A aristocracia, naturalmente, foi a mais atingida pelas trans-
ções mais íntimas da vida dos indivíduos: a consciência através formações da época. As dificuldades da economia senhorial arrui-
da confissão; a vida sexual através do casamento; o tempo através navam muitas famílias nobres, que perdiam suas terras e se deslo-
do calendário litúrgico; o conhecimento através do controle sobre cavam para as cidades ou para as cortes principescas ou monárqui-
cas. Dessa forma, a nobreza sofria certa descaracterização ou ao
as artes, as festas, o pensamento; a própria vida e a própria mor-
menos perdia alguns dos traços que tinham feito parte de seu poder
te através dos sacramentos (só se nascia verdadeiramente com o
e prestígio até então.
batismo, só se tinha o descanso eterno no solo sagrado do cemité-
A burguesia, cujo aparecimento na Idade Média Central tinha
rio). Foi ela a legitimadora das relações horizontais sacralizando expressado as transformações sociais então em gestação, consoli-
o contrato feudo vassálico, e das relações verticais justificando a dou-se com a crise aristocrática. Foi assim que se deu a penetra-
dependência servil. ção burguesa no campo, com a compra de terras, que ocorria pelo
Aliás, como produtora de ideologia, traçava a imagem que a menos desde o século XIII acelerando-se na Baixa Idade Média.
sociedade deveria ter de si mesma. Quanto à mão-de-obra urbana, a situação era mais homogê-
Tínhamos, portanto, naquela sociedade de ordens, de um lado, nea e mais difícil. A crise não criou uma elite trabalhadora, como
duas camadas identificadas quanto às origens e aos interesses, de- fizera no campo, apenas reforçou o poder da alta burguesia. A rela-
tentoras de terra e, assim, de poder econômico, político e judicial tiva alta de preços industriais, enquanto os preços agrícolas caíam,
(clérigos e guerreiros), de outro lado, uma massa formada princi- atraía muitos camponeses para as cidades. Dessa forma, aumen-
palmente por despossuídos e dependentes, os trabalhadores. As- tava a oferta de mão-de-obra urbana, o que permitia ao patriciado
sim, davam-se três formas de relações sociais, uma horizontal na burguês pressionar os salários para baixo, rompendo a tendência
camada dominante, outra horizontal na camada dominada e outra altista gerada pela peste negra.
vertical entre os dois grandes grupos. As revoltas urbanas, por sua vez, eram pelo controle do Es-
A primeira forma ocorria pelo contrato feudo-vassálico. A se- tado, em processo de afirmação, fosse ele comunal, senhorial ou
gunda, por acordos para empreendimentos comuns, diante das di- nacional.
ficuldades de um trabalhador realizar sozinho certas tarefas, como
arar um campo ou arrotear uma área. A terceira, fundamental, es- Capítulo VI - As estruturas culturais
tava na base da primeira (forma de a aristocracia dividir as terras e
o produto do trabalho camponês) e da segunda (forma de os labor Cultura era entendida como uma criação intelectual realizada
atores poderem concretizar seu papel social, de produtores). por “grandes homens”, mais ou menos desvinculados do contexto
histórico. E também como uma criação letrada, pois mesmo as ar-
O feudo-aburguesamento dos séculos XII-XIII tes, essencialmente visuais, pressuporiam certo conhecimento para
ser “compreendidas”. No entanto, as transformações do último
O crescimento demográfico e econômico, as cidades da Idade meio século nos veículos de divulgação cultural (rádio, televisão,
cinema, jornais, revistas), e mais recentemente o diálogo da Histó-
Média Central revigorou, pois para aqueles que fugiam dos laços
ria com a Antropologia, romperam aquela visão estreita.
compulsórios da servidão a vida urbana oferecia muitos atrativos.
Para tanto, entenderemos cultura como tudo aquilo que o ho-
Mais do que isso, tornava-se burguês (habitante do burgo, ou
mem encontra fora da natureza ao nascer. Tudo que foi criado,
seja, da cidade), o que significava uma situação jurídica própria, consciente e inconscientemente, para se relacionar com outros
bem definida, com obrigações limitadas e direitos de participação homens (idiomas, instituições, normas), com o meio físico (ves-
política, administrativa e econômica na vida da cidade. E verdade tes, moradias, ferramentas), com o mundo extra-humano (orações,
que desde fins do século XII os imigrantes não encontravam nas rituais, símbolos). Esse relacionamento tem caráter variado, po-
cidades as oportunidades com que sonhavam, formando um prole- dendo ser de expressão de sentimentos (literatura, arte), de domí-
tariado que frequentemente acabou por se chocar com a burguesia nio social (ideologias), de controle sobre a natureza (técnicas), de
dona das lojas e oficinas. Mas, utopicamente, os centros urbanos busca de compreensão do universo (filosofia, teologia).
continuaram a seduzir os homens do campo.
A grande síntese disso tudo talvez tenha sido o desenvolvi- As áreas culturais
mento do individualismo, com a consequente passagem da família
patriarcal para a família conjugal e a correspondente valorização De um lado, a cultura erudita, de elite, cultura letrada que pelo
da mulher e da criança. Foi nas cidades que despontaram novos menos até o século XIII foi eclesiástica do ponto de vista social
valores sociais, opostos aos coletivistas (interdependência das or- e latina do ponto de vista linguístico. Conscientemente elaborada
dens) e machistas (predominância do clero celibatário e dos guer- (mas sem deixar, é claro, de ser tributária da mentalidade), era for-
reiros). Na realidade, esse fenômeno social era reflexo c origem de malmente transmitida (escolas monásticas, escolas catedralícias,
um conjunto mais amplo de transformações, de uma revalorização universidades). Por isso, tendia a ser conservadora, a se fundamen-
do ser humano. tar em autoridades.

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De outro lado, estava a cultura que já foi chamada de popular, A clericalização da Alta Idade Média
laica ou folclórica, e que preferimos denominar “vulgar”, pois para
os medievais esta palavra rotulava sem ambiguidade tudo que não Entre as últimas décadas do século VIII e as primeiras do sé-
fosse clerical. A cultura vulgar era oral, transmitida informalmente culo IX, com a estreita relação entre Estado e Igreja que levou à
(nas casas, ruas, praças, tavernas etc.) por meio de idiomas e diale- constituição do Império Carolíngio, as manifestações da cultura
tos vernáculos. Espontaneamente elaborada, ela expressava a men- vulgar foram de forma geral abafadas. A cultura clerical, mais do
talidade de forma mais direta, com menos intermediações, com que nunca tornada oficial, foi produzida no âmbito do movimento
menos regras preestabelecidas. Ideologicamente, ela se inclinava a que se convencionou chamar de Renascimento Carolíngio. Segun-
recusar os valores e práticas oficiais. Ainda que muito presa às suas do o próprio Carlos Magno, seu objetivo era fazer com que “a sa-
próprias tradições — que a Igreja tendia a tachar de superstições bedoria necessária à compreensão das Sagradas Escrituras não seja
—, a cultura vulgar não estava fechada a outras influências. muito inferior à que deveria ser”. Melhorar o nível dos clérigos
A cultura erudita procurou apossar-se dos relatos míticos, pro- significava para a Igreja oferecer serviços religiosos mais elevados
movendo e legitimando o registro escrito de alguns deles e contro- e para o Império servidores administrativos mais eficientes. Daí o
lando sua interpretação. alcance daquele movimento ter-se limitado a algumas centenas de
A cultura vulgar, por sua vez, pressionou ao longo da Idade pessoas, concentradas nas escolas monásticas e, novidade, numa
Média para que certos ritos fossem criados ou modificados. escola criada no próprio palácio imperial. Diante de seus objeti-
vos, a tônica não era criar, mas redescobrir, adaptar, copiar, por
A bipolarização da Primeira Idade Média isso já se disse que “a Renascença Carolíngia, ao invés de semear,
entesoura”.
Na Primeira Idade Média, as dificuldades da época estabe- Para acelerar essa atividade copista e minimizar os erros de
leceram caracteres culturais que se manteriam, com variações de transcrição, buscava-se já havia algum tempo desenvolver uma
intensidade, nos séculos seguintes. Primeiro, alargamento do fosso caligrafia menos desenhada, que apresentasse maior regularidade.
entre a elite culta e a massa inculta. Segundo, este corte cultural Uma caligrafia mais prática, cursiva, que implicasse menor núme-
não coincidia com a estratificação social: a linha de separação era ro de movimentos com a mão.
entre clérigos e leigos, realidade sociocultural que ficou registrada
no francês moderno clerc (“letrado”), no inglês clerk (“escreven- O reequilíbrio da Idade Média Central
te”) e no português “leigo” (ignorante). Terceiro, a cultura clerical
era uma sistematização e simplificação da herança greco-romana, Com as acentuadas transformações sociais, políticas e econô-
adaptada à situação de uma época convulsionada politicamente, micas ocorridas a partir do século XI, foi quebrada a clara predo-
enrijecida socialmente, empobrecida economicamente e, síntese minância desfrutada pela cultura clerical na fase anterior. A cultura
disso tudo, limitada pelo seu “absolutismo religioso”. Quarto, a vulgar ressurgia com força. Em consequência, a cultura interme-
cultura vulgar regredira com as dificuldades materiais, a insegu- diária passou a marcar presença em quase todos os campos. A cul-
rança espiritual e a fusão com elementos bárbaros, daí a ressurgên- tura erudita viu, assim, reduzidas suas áreas de exclusividade, mas
cia de técnicas, crenças e mentalidades tradicionais, pré-romanas. com isso pôde concentrar forças e em certos setores atingir seu
Em virtude desse clima cultural e da finalidade que se atribuía apogeu. O movimento conhecido por Renascimento do século XII
ao conhecimento, às ciências viam-se limitadas no seu desenvolvi- ilustra bem esse fenômeno.
mento. Predominava a concepção de que a meta do homem era o
Reino de Deus e de que a Revelação estava contida nas Sagradas A Reação Folclórica
Escrituras.
A Literatura também foi influenciada por aquela tendência Com efeito, assistiu-se no século XI a um reequilíbrio de for-
a preservar e cristianizar obras antigas, mais do que a criar. Não ças entre os dois polos culturais. Assim como na Alta Idade Média
havia preocupação com originalidade, apenas com a conservação ocorrera a clericalização de muitos elementos folclóricos, agora se
da literatura clássica por meio de cópias realizadas nos scriptoria dava a folclorização de elementos cristãos. O cristianismo, ao des-
monásticos. sacralizar a natureza (que não se identificava mais com as divinda-
A arte ocidental dos séculos IV-VIII realizou uma síntese de des pagãs), tinha marcado nova etapa no pensamento racionalista,
elementos de origens diversas. Da arte romana clássica conservou- e nesse sentido a oposição folclórica representou a resistência de
-se algo das técnicas e das características arquitetônicas. Da arte outro sistema mental, de outra lógica, a do “pensamento selva-
oriental, com a qual se manteve contato mesmo após as invasões gem”.
germânicas, através de mercadores e missionários, veio certa esti-
lização e hieratismo das formas. Da arte germânica, típica de po- A cultura intermediária e a arte
vos nômades, aproveitou-se o caráter não figurativo e o geometris-
mo estilizado. Da arte céltica, através das iluminuras dos monges Mas a emissão e a recepção da mensagem iconográfica não
irlandeses, absorveu-se o uso de linhas abstratas, apenas ornamen- era, obviamente, sempre a mesma. As iluminuras de textos bíbli-
tais. Da arte cristã primitiva veio o essencial, isto é, a temática e o cos e teológicos, consumidas apenas por clérigos, recebiam tra-
simbolismo. No todo, elementos que se completavam mais do que tamento mais erudito. As esculturas, as pinturas murais, os mo-
se negavam, tendo cada um deles peso variável conforme o gênero saicos, os vitrais, colocados em igrejas, mosteiros e catedrais em
artístico (arquitetura, escultura, pintura, miniatura, mosaico etc.) e locais visíveis a todos, transmitiam mensagens ao alcance desse
as condições locais (composição étnica, meio físico, época). público mais amplo.

Didatismo e Conhecimento 84
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A cultura intermediária e a literatura Capítulo VII - As estruturas cotidianas

Na literatura latina, ao lado de uma produção nitidamente cle- O caráter factual e descritivo que marcou de forma geral a
rical (crônicas, poesias de cunho clássico), havia uma de espírito historiografia até princípios deste século levava à desconsideração
popular (hagiografia) e outra erudita mas antieclesiástica (goliár- dos “pequenos fatos”, dos eventos do dia-a-dia, repetitivos, sem
dica). Na literatura vernácula, havia gêneros com forte coloração uma influência clara e direta sobre os “grandes fatos” (batalhas, sa-
clerical (canção de gesta, ciclo do Graal) e outros acentuadamente gração de reis, criação de instituições, surgimento de importantes
laicos (lais, fabliaux). Em termos culturais, portanto, e não apenas obras literárias e artísticas etc). No entanto, a crescente compreen-
linguísticos, boa parte da literatura da Idade Média Central estava são de que o tecido da História é formado por fios dos mais varia-
na zona da cultura intermediária. dos tamanhos e cores permitiu o aparecimento de estudos sobre a
vida cotidiana e privada das populações do passado. Ou seja, dos
A cultura clerical e o ensino aspectos mais duradouros e presentes no desenrolar da História.

Um setor cultural que a Igreja monopolizava desde princípios O tempo


da Idade Média continuou nos séculos XI-XIII sob seu controle,
apresentando, todavia, características novas, que tendiam a esca- A Idade Média não se interessava por uma clara e uniforme
par de sua alçada — o ensino. De qualquer forma, mesmo com quantificação do tempo. Como na Antiguidade, o dia estava dividi-
certa laicização o ensino não deixava de estar na área da cultura do em 12 horas e a noite também, independentemente da época do
clerical, entendida cada vez mais, como já dissemos, como cultura ano. Os intervalos muito pequenos (segundos) eram simplesmente
de letrados, e não apenas cultura de eclesiásticos. ignorados, os pequenos (minutos) pouco considerados, os médios
Nesse processo, surgiram no século XI as escolas urbanas, que (horas) contabilizados grosseiramente por velas, ampulhetas, reló-
se transformariam em universidades no século XIII. Ambas eram gios d’água, observação do Sol.
produto do crescimento demográfico-econômico-urbano, que tor- Apenas o clero, por necessidades litúrgicas, estabeleceu um
nava a sociedade mais complexa e mais necessitada de atividades controle maior sobre as horas, contando-as precariamente de três
intelectuais. De fato, eram necessários sacerdotes em maior núme- em três a partir da meia-noite (matinas, laudes, primas, terça, sex-
ro e mais bem preparados para guiar fiéis mais numerosos e com ta, nona, vésperas, completas).
novos problemas; juristas para uma maior quantidade de tribunais
e às voltas com questões novas c mais difíceis; burocratas para Sexo
os reis e grandes senhores feudais, cujos rendimentos, despesas e
interesses se ampliavam; mercadores para atender à crescente pro- O surgimento do cristianismo respondia a essa demanda psi-
cura de bens e que precisavam elaborar contratos, escrever cartas, cológica e comportamental da sociedade romana, daí seu sucesso.
controlar lucros e estoques. Tornado religião oficial em 392 e cada vez mais institucionalizado
pela Igreja, já na Primeira Idade Média o cristianismo pôde impor
A cultura clerical e a teologia/filosofia seus valores.
A vida sexual ideal passou a ser a inexistente. A virgindade
O curso universitário que gozava de maior prestígio, apesar de tornou-se um grande valor, seguindo os modelos de Cristo e sua
toda a laicização da sociedade e da cultura que ocorria no século mãe. Vinha depois a castidade: quem já havia pecado podia em
XIII, era sem dúvida o de Teologia, especialmente o de Paris. O parte compensar essa falta abstendo-se de sexo pelo restante da
conhecimento nessa área mantinha-se virtualmente o mesmo dos vida. Os relatos hagiográficos de toda a Idade Média, sobretudo
séculos anteriores, com o termo então utilizado (sacra doctrina) de suas duas primeiras fases, abundam em exemplos de santas que
indicando que ela abarcava apenas o que tinha sido revelado direta morreram para defender sua virgindade e de santos e santas que ao
ou indiretamente por Deus: Bíblia, decisões de concílios, comentá- se converter ao cristianismo abandonaram a vida conjugal.
rios há muito aceitos pela Igreja. Na expressão de Santo Anselmo, Contudo essa interferência eclesiástica na vida íntima dos fiéis
era “a fé em busca da inteligência”. não foi aceita com facilidade. Quanto mais recuados no tempo e
mais afastados dos grandes centros clericais (sedes de bispado,
O redirecionamento da Baixa Idade Média mosteiros), mais os medievos puderam viver de forma “pagã”, no
dizer da Igreja.
O frágil equilíbrio entre cultura clerical e cultura vulgar rom- O matrimônio é uma relação monogâmica. Por um lado, isso
peu-se com a crise do século XIV. A razão disso está ligada ao fato atendia a um dado da mentalidade medieval, fascinada pela Unida-
de que na Baixa Idade Média “existia uma falta geral de equilíbrio de cosmológica, talvez como forma compensatória à grande diver-
no temperamento religioso, o que tornava tanto as massas como sidade da realidade concreta do Ocidente, dividido em vários rei-
os indivíduos suscetíveis de violentas contradições e de mudanças nos, milhares de feudos, dezenas de línguas e dialetos, diferentes
súbitas” (62: 163). As manifestações culturais oscilavam então do liturgias (apenas com a Reforma Gregoriana tentou-se impor o rito
mais estrito racionalismo ao mais fervoroso misticismo. A cultura galicano-romano a todas as regiões, o que demoraria a se concreti-
clerical não tinha mais a coerência da Alta Idade Média e a cultura zar). Assim, idealmente, ao Deus único deveria corresponder uma
vulgar não possuía o mesmo vigor que na Idade Média Central. só Igreja, uma só fé, um só governante secular. Por outro lado, a
Buscava-se uma nova composição, da qual sairia à cultura renas- monogamia respondia a uma lenta mas inegável transformação na
centista dos séculos XV-XVI. sensibilidade coletiva — que a Igreja soube reconhecer e tornar
lei — pela qual se passava a ver a essência do casamento no con-

Didatismo e Conhecimento 85
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
sentimento mútuo dos noivos. Isto é, a união deveria ser construída seu contexto geográfico, as cidades não eram iguais entre si. Uma
a partir do afeto recíproco, e não apenas de interesses políticos ou grande sede feudal (como Troyes), a capital de um reino (caso de
patrimoniais. Londres), uma importante sé episcopal (Burgos, por exemplo),
uma cidade dedicada ao comércio internacional (como Veneza ou
Alimentação Lübeck), uma cidade artesanal (como Ypres), um pequeno burgo
rural (os mais comuns) não poderiam, por razões geográficas e
Apesar das variações regionais de solo e clima, a Europa me- profissionais, construir habitações e edifícios públicos da mesma
dieval consumia por toda parte praticamente os mesmos alimentos forma.
e bebidas, preparados quase que da mesma maneira.
Diferenças houve, acima de tudo, entre as categorias sociais. Vestuário
O aristocrata, eclesiástico ou leigo, recebia de seus camponeses,
pelo uso da terra, prestações em serviço e produtos agrícolas. Po- Por toda Idade Média a base do vestuário foi à túnica de man-
dia, assim, consumir de tudo. Detentor de vários senhorios, um gas. Seu comprimento mudou várias vezes, mas geralmente ia até
aristocrata não se fixava numa certa terra, morando cada parte do os tornozelos para as mulheres e até os joelhos para os homens.
ano numa região, onde consumia a parcela da produção local que Debaixo dessa túnica usava-se uma camisa, longa no caso femi-
lhe cabia. Podia, então, ter alimentos todo o ano, independente- nino, curta no masculino, pois os homens portavam ainda calções,
mente das vicissitudes agrícolas de cada senhorio. Apesar disso, uma espécie de ceroula que ia até os tornozelos. No inverno, quem
por razões culturais, o cardápio não era muito variado. Os legumes tinha condições colocava diretamente no corpo, sob a camisa, uma
e verduras não estavam muito presentes, porque, sendo conside- peliça, espécie de colete de pele, sem mangas Por cima de tudo
rados produtos pouco nobres e de digestão difícil, ficavam reser- vinha uma capa, às vezes com capuz, de pele no caso dos mais
vados para dias de jejum. Os queijos, com exceção das regiões ricos, de lã no dos mais simples. O calçado podia ser bota de couro
montanhosas, também eram desprezados pelas camadas dirigen- de cano alto para os ricos ou simples sapatilha de tecido para os
tes, que viam neles aumentos de camponeses, pela literatura, que mais pobres. O uso de luvas era difundido em todas as categorias
os associava aos loucos, e pela medicina, que até o século XVI os sociais.
considerava pouco saudáveis.
A base da alimentação aristocrática era, portanto, carnívora. Lazer
Carne de animais domésticos, vaca, vitela, carneiro e sobretudo
porco. Carne de caça, especialmente cervo, javali e lebre. Carne Os medievais levavam uma vida material dura, os clérigos
de aves, galinha, pato, ganso, cisne, pombo. Carne de peixe de passando muitas horas por dia em orações, estudo e tarefas cotidia-
água doce onde possível, pescados em rios e lagos ou criados em nas de sua diocese ou mosteiro, os senhores laicos em exercícios
tanques (carpa, sável, esturjão). Carne de peixe de mar, consumi- militares e administração de seu senhorio, os burgueses em difíceis
do fresco nas regiões litorâneas (salmão, linguado, pescado) ou negociações e perigosas viagens, os camponeses num trabalho pe-
seco nas regiões continentais (arenque, bacalhau). A bebida para sado e de retorno nem sempre compensador.
acompanhar essas refeições era o vinho. A sobremesa nas mesas
aristocráticas podia ser alguma fruta fresca (geralmente consumi- Morte
da no início das refeições ou nos intervalos entre elas) ou, mais
comumente, frutas secas (figos, passas, amêndoas, nozes etc.) ou, Vivendo num mundo agrícola, em que se percebe cotidiana-
preferencialmente, uma torta ou bolo doce. mente como alguns seres precisam morrer para que outros possam
A dieta burguesa procurava em linhas gerais imitar a aristocrá- viver, convivendo com a constante ameaça da fome, das epide-
tica, sobretudo no seu fundamento carnívoro. mias e das guerras, os medievais sentiam a onipresença da morte,
A alimentação camponesa estava baseada nos cereais, que mas isso não os incomodava. Eles tinham dela uma visão natural,
forneciam as calorias necessárias para o esforço físico nas tarefas tranquila, diferente da de seus descendentes dos séculos seguintes.
rurais. Cereais preparados sob a forma de papas e mingaus e es- Como o cristianismo ensina que a morte é o começo da vida eter-
pecialmente de pão. Na verdade, o pão era essencial desde a An- na, e não o fim definitivo, chegado o momento as pessoas procu-
tiguidade. ravam se preparar. A grande tragédia não era morrer, mas morrer
inesperadamente, sem ter confessado, recebido os sacramentos,
Moradia feito doações e esmolas, estabelecido o testamento. Tinha-se cons-
ciência e resignação pelo fato de que o destino das espécies vivas
A moradia apresentava grandes variedades regionais, resul- é morrer. A morte nivela os homens e mostra o despropósito de seu
tantes das necessidades impostas pelo clima e das possibilidades orgulho e suas riquezas.
permitidas pelos materiais de construção de cada local.
O norte úmido, frio e florestal definiu um estilo obviamente Capítulo VIII - As estruturas mentais
diferente do sul mediterrâneo seco, quente e pedregoso. As regiões
montanhosas do norte ibérico, da zona pirenaica, do centro fran- Apenas há pouco tempo foi tornado objeto de estudo o fato
cês e da região alpina buscaram soluções próprias, diferenciadas óbvio de que o homem, e portanto a História, é formado tanto por
das áreas planas. As cidades apresentavam, naturalmente, condi- seus sonhos, fantasias, angústias e esperanças quanto por seu tra-
ções específicas, com uma grande população concentrada numa balho, leis e guerras. Desta forma, é fundamental a compreensão
superfície pequena, enquanto o campo tinha uma densidade demo- do primeiro conjunto de elementos para que o segundo ganhe sen-
gráfica baixa. Mas, assim como os campos se diferenciavam pelo tido. Bem entendido, não se trata de adotar uma postura determi-

Didatismo e Conhecimento 86
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
nista, atribuindo tudo à mentalidade (ou à economia, ou à política Paraíso”, para recuperar aquela carta, pois “isto foi o pior”, e sem
etc.)- Mas é preciso considerar o pano de fundo mental, “o nível reavê-la não poderia romper seu trato com Satanás. A Virgem o
mais estável, mais imóvel das sociedades” (LE GOFF: 69). ajudou, o contrato demoníaco foi queimado e ele pôde ter sua alma
salva.
A visão hierofânica de mundo
Capítulo IX - O significado da Idade Média
Para o homem medieval, o referencial de todas as coisas era
sagrado, fenômeno psicossocial típico de sociedades agrárias, Após os exageros denegridores dos séculos XVI-XVII e os
muito dependentes da natureza e, portanto, à mercê de forças des- exaltadores do século XIX, hoje temos uma visão mais equilibrada
conhecidas e não controláveis. sobre a Idade Média. E verdade que a divulgação que ela conhe-
ceu em fins do século XX fora dos meios acadêmicos — inúme-
O simbolismo ras publicações científicas e ficcionais, filmes, discos, exposições,
turismo etc. — nem sempre implicou uma melhor compreensão
“A função do símbolo é religar o alto e o baixo, criar entre o daquele período. Mas reflete um dado essencial: a percepção que
divino e o humano uma comunicação tal que eles se unam um ao se tem da Idade Média como matriz da civilização ocidental cristã.
outro” (39: 98). E encontro de duas realidades numa só, ou melhor, Diante da crise atual dessa civilização, cresce a necessidade de se
expressão da única realidade sob outra forma. O símbolo é inferior voltar às origens, de refazer o caminho, de identificar os proble-
à realidade simbolizada, mas por intermédio daquele o homem se mas. Enfim, de conhecer a Idade Média para conhecer melhor os
aproxima desta, restabelecendo a unidade primordial. Por isso ele séculos XX-XXI.
está presente em todas as religiões, cujo sentido é exatamente esse
de religar mundo humano e mundo divino. Entende-se, dessa for- A longa Idade Média
ma, que a relação do símbolo com a coisa simbolizada seja profun-
da, de essencialidade. Os quatro movimentos que se convencionou considerar inau-
Todos os elementos da natureza, animais, plantas, pedras, guradores da Modernidade — Renascimento, Protestantismo,
são símbolos, respondendo à necessidade de exprimir o invisível Descobrimentos, Centralização — são em grande parte medievais.
e o imaterial por meio do visível e do material. Por essa razão, O primeiro deles, o Renascimento dos séculos XV-XVI, recorreu a
o templo cristão não poderia deixar de ter forte carga simbólica, modelos culturais clássicos, que a Idade Média também conhecera
especialmente no período românico. A planta em cruz terminando e amara. Aliás, foi em grande parte por meio dela que os renas-
numa cabeceira com várias capelas expressava a concepção de que centistas tomaram contato com a Antiguidade. As características
a igreja era o próprio corpo de Cristo, daí o portal ser um arco do básicas do movimento (individualismo, racionalismo, empirismo,
triunfo para se entrar no Reino de Deus. neoplatonismo, humanismo) estavam presentes na cultura ociden-
tal pelo menos desde princípios do século XII.
O belicismo
A herança medieval no século XX
Esta característica da mentalidade medieval decorria da pre-
sença constante daquelas manifestações sagradas nas suas duas O patrimônio linguístico ocidental é quase todo medieval,
modalidades, vistas do ponto de vista humano, benéficas e maléfi- já que, com exceção do basco, idioma cujas origens continuam
cas. Elas prolongavam no palco terreno a luta que envolvia tempo- desconhecidas para os especialistas, às demais línguas formaram-
rariamente todo o universo. Os poderes negativos constituíam-se -se na Idade Média. Uma terça parte da população mundial atual,
numa realidade palpável para aquela sociedade de tempo rigida- isto é, 2 bilhões de pessoas, pensa e se exprime com instrumentos
mente dividido entre dia e noite, sem luz artificial eficiente, na linguísticos forjados na Idade Média. De fato, ao lado do latim
qual as trevas eram fortemente sentidas. Sua presença cotidiana legado pela Antiguidade — e durante a Idade Média empregado
era indisfarçável e esmagadora. As atividades humanas ficavam li- nos ofícios religiosos, nas atividades intelectuais e na administra-
mitadas às horas diurnas. A noite era o momento do desconhecido, ção, mas língua morta no sentido de não ser mais língua materna
portanto do assustador. Significativamente, ela era circunstância de ninguém —, no século VIII nasceram os idiomas chamados de
agravante para a justiça medieval vulgares, falados cotidianamente por todos, mesmo pelos clérigos.
Correndo o risco de simplificar em demasia um processo longo
O contratualismo e complexo, podemos dizer que aqueles idiomas se formaram da
interpenetração — em proporção diferente a cada caso — do celta,
Por fim, do belicismo derivava o contratualismo, estrutura do latim e do germânico.
mental que via o homem ligado, com os correspondentes direitos
e deveres, a uma ou outra daquelas forças universais em luta. A A herança medieval no Brasil
opção pelo Mal dava origem ao chamado pacto demoníaco, como
na conhecida história de Teófilo. Querendo ser nomeado vigário, Mesmo no Brasil, que vivia na Pré-História enquanto a Euro-
ele recorreu aos serviços de um judeu que o levou até a presença pa estava na chamada Idade Média, muitos elementos medievais
do Diabo, de quem se tornou “bom vassalo” após renegar Cris- continuam presentes. A colonização portuguesa introduziu práticas
to e Maria. Numa carta entregue ao “rei coroado” do Inferno, ele que, apesar de já então superadas na metrópole, foram aqui aplica-
formalizava o acordo, e obteve então as glórias e vantagens que das com vigor, inaugurando o clima de arcaísmo que marca muitos
desejava. Depois, arrependido, pediu ajuda à Virgem, “porta do séculos e muitos aspectos da história brasileira. Luís Weckmann

Didatismo e Conhecimento 87
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
detectou com pertinência a existência de uma herança medieval PARTE II – ENSINO DE HISTÓRIA E HISTÓRIA DA EDU-
no Brasil, porém limitou sua presença apenas até o século XVII. CAÇÃO
E, na realidade, ela continua viva ainda hoje nos nossos traços es-
senciais. Uma proposta de mapa do tempo para artesãos de mapas do
tempo: história do ensino de historia e didática da história
Conclusão - O nascimento do Ocidente Luis Fernando Cerri

Homem atual se reconhece mais nas coisas superficiais, de Encontro de saberes: as disciplinas escolares, o historiador da
origem recente, do que nas essenciais, que vêm daquela época. educação e o professor
Este é um grave problema do mundo atual, no qual os meios de Arlette Medeiros Gasparello
comunicação de massa uniformizam, apagam e constroem fatos
incessantemente. Desta forma, há um afastamento da cultura, ba- História da história não ensinada na escola: a história da edu-
seada no indivíduo, na inquietação, na interrogação, não em res- cação
postas prontas e rápidas. Libânia Xavier
A fraqueza do homem medieval era sua força, pois gerava de-
sejos, motivações. A força do homem atual é sua fraqueza, pois PARTE III – PROFESSORES E A HISTORIA ENSINADA:
gera desilusões. Na verdade, foi conseguindo ao longo dos séculos DIFERENTES APROPRIAÇÕES
satisfazer aqueles desejos que o homem chegou à situação atual.
Satisfação de desejos que se deu mais no plano material do que no A história nossa de cada dia: saber escolar e saber acadêmico
espiritual, daí certa sensação de vazio, de falta de sentido das coi- na sala de aula
sas, que a arte e a literatura contemporâneas expressam fartamente. Katia Maria Abud
De certa forma, a crise da civilização ocidental deve se ao descom-
passo entre o externo (contemporâneo) e o interno (medieval). E Narrativa e narradores no ensino de história
uma excessiva valorização do primeiro em detrimento do segundo. Ana Maria Monteiro
E uma espécie de esquizofrenia coletiva e social. Em razão disso,
O livro didático e o professor: entre a ortodoxia e a apropria-
os crescentes prestígio e popularidade dos estudos sobre a Idade
ção
Média têm algo, inconscientemente, de busca de reintegração dos
Kasumi Munakata
dois planos.
A constituição de saberes pedagógicos na formação inicial do
Bibliografia
professor para o ensino de história na educação básica
Livro: A Idade média: nascimento do ocidente;
Selva Guimarães Fonseca
Autores: Hilário Franco Junior;
Referências: http://gisele-finatti-baraglio.blogspot.com.br. Do formar-se ao fazer-se professor
Elison Antonio Paim

13. MONTEIRO, ANA MARIA; PARTE IV – HISTÓRIA LOCAL: MEMÓRIA E IDENTI-


GASPARELLO ARLETE MEDEIROS E MA- DADE
GALHÃES (ORGS.). ENSINO DE HISTÓRIA:
SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. RIO DE História local: o reconhecimento da identidade pelo caminho
JANEIRO: EDITORA MAUAD X, 2009 da insignificância
Márcia de Almeida Gonçalves

O ensino de história local e os desafios da formação da cons-


ciência histórica
Sumário Maria Auxiliadora Schimidt

Apresentação Os desafios da história local


Helenice Ciampi
PARTE 1- HISTÓRIA, MEMÓRIA E ESCOLA
Ensinando História nas séries iniciais: alfabetizando olhar
História e ensino de história: memória e identidades sociais Leila Medeiros de Menezes e Maria de Fátima de Souza Silva
Ismênia de lima Martins
PARTE V – DOCUMENTO E ENSINO
Elza Nadai e o ensino de qualidade
Joana neves Repensando o documento histórico e sua utilização no ensino
Vera Cabana Andrade
Quando a casa vira escola\; a modernidade pedagógica no
Brasil Uma imagem vale mais que mil palavras!
Clarice Nunes Regina Maria da Cunha Bustamante

Didatismo e Conhecimento 88
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
PARTE VI – DESAFIOS ATUAIS: INCLUSÃO E INFOR- escolar e sua contribuição para a formação de alunos provenien-
MAÇÃO tes de diversas condições econômicas e culturais. Este livro busca
contribuir para o estabelecimento de um diálogo estimulante com
Ensino de história e educação inclusiva: suas dimensões for- os professores envolvidos com o ensino da História na educação
mativas básica e também com aqueles interessados pelos problemas de for-
Valdelúcia Alves da Costa mação da cidadania na atualidade. Este livro representa o esforço
para a promoção desses diálogos, fruto de debates do V Perspec-
Sociedade da informação no ensino de história: roteiro de uma tivas do Ensino de História, realizado no Rio de Janeiro, um dos
abordagem crítica principais encontros que especialistas da área, provenientes de
Lídia Silva de Freitas diversas instituições brasileiras, vêm realizando ao longo das úl-
timas décadas. Os temas abordados nesse V Encontro em torno do
Reflexões acerca de informação, conhecimento, história e en- eixo “sujeitos, saberes e práticas” marcam o aprofundamento das
sino relações entre a produção acadêmica e a da história escolar, uma
Raquel Goulart Barreto disciplina presente na formação de jovens e crianças desde o sé-
culo XIX e participante de uma formação política e de identidades
sociais cujas dimensões precisam ser constantemente redefinidas e
Organizadores situadas no processo educativo, para que possa desempenhar um
papel significativo na cultura escolar do mundo contemporâneo.)
Ana Maria Monteiro é doutora em educação pela PUC-Rio.
Graduada em História pela UFRJ e mestre em História pela UFF, Resumo
lecionou História na rede pública do Rio de Janeiro. Professora
do Departamento de Didática e do Programa de Pós-graduação ENSINO DE HISTÓRIA: entre história e memória
da faculdade de Educação da UFRJ, é pesquisadora do Núcleo de
Estudos de Currículo, da UFRJ, e do grupo Oficinas de História , A ambiguidade ou polissemia do termo história tem sido bas-
da Uerj. É autora do livro: Professores de História: entre saberes e tante discutida. Em muitos idiomas, como o português e o francês,
práticas e de artigos em livros, revistas e anais. diferentemente do alemão, a mesma palavra história é utilizada
para expressar a história vivida e a operação intelectual que a tor-
Arlete Medeiros Gasparello é doutora em História da Edu-
na inteligível. Esta “enfermidade da linguagem”, como diz Nora ,
cação pela PUC-SP. Graduada em História (UFF) e Pedagogia
expressa a não consciência de uma diferença ou a compreensão de
(Suam), mestre em Educação pela UFF, lecionou História na rede
que o movimento que nos transporta é da mesma natureza daquele
pública do Rio de janeiro e Niterói. Professora no departamento
que o representa para nós?
Sociedade, Educação e Conhecimento e no Programa de Pós-gra-
Questão semântica, que suscitou inúmeros debates, foi e é
duação da Faculdade de Educação da UFF, coordena o Grupo de
enfrentada por aqueles que investigam a teoria da história na bus-
pesquisa História da Educação e Ensino de História: Saberes e Prá-
ca da identificação e compreensão das diferentes concepções que
ticas. È autora do livro Construtores de identidades: a pedagogia
orientam as abordagens realizadas para a análise e escrita da histó-
da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira e de
artigos em livros, revistas e anais. ria, na produção da história enquanto conhecimento, e sua relação
com a história vivida.
Marcelo de Souza Magalhães é doutor em História pela Neste movimento, a relação entre história e memória tem sido
UFF. Professor no departamento de Ciências Humanas e no Pro- objeto de reflexões, na busca do estabelecimento de suas diferen-
grama de pós-graduação em História Social da Uerj, e do Núcleo ças e de suas relações.
de pesquisas e Estudos em História Cultural, da UFF. Desenvolve Nesse sentido, os textos de Halbwacs,Le Goff, Pierre Nora,
pesquisas sobre a história política carioca na Primeira República e Rousso, Pollack entre outros, contribuem para a melhor com-
o ensino de História. É autor de capítulos de livros e artigos, dentre preensão desses conceitos, e para a análise da complexa relação
os quais “História e cidadania: por que ensinar história hoje?” in entre o vivido, o conhecimento produzido em bases científicas, e
Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologias. as percepções e representações sobre o passado, a memória. Essas
questões têm sido, prioritariamente, objeto de estudos e reflexões
Sinópse relacionados à produção historiográfica, à escrita da história. Com
relação ao ensino, no entanto, notamos que esta é uma relação ain-
O ensino de História se insere, no momento atual, em diversas da pouco problematizada. Parece que ainda nos encontramos no
problemáticas educacionais e historiográficas em meio ao proces- tempo em que história vivida e história conhecimento não eram
so de inclusão social que tem exigido redefinições de conteúdos percebidas como processos diferentes, embora relacionados. Em
históricos e de métodos possíveis de se articularem aos novos decorrência disso, é comum vermos e ouvirmos considerações, por
meios de comunicação com os quais as atuais gerações têm sido exemplo, que expressam a concepção de que a história ensinada é
formadas e informadas. As universidades encarregadas da produ- a história vivida, como se não houvesse distinção entre o vivido e
ção historiográfica e da formação docente, as decisões do poder o conhecido.
estatal e do setor privado, o mercado da indústria cultural, assim Esta confusão se aprofunda quando se afirma, de forma bas-
como professores, têm obrigatoriamente de ser objeto de reflexão tante genérica, que “basta saber história para ensinar história”.
e de estudos articulados para a maior compreensão sobre a história Mas que “história” é essa que se “sabe” ao ensinar?

Didatismo e Conhecimento 89
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Defendo que esta afirmação pode e precisa ser problematiza- Ensinar história refere-se a processo simples, contínuo, que
da. Ensinar história é mero desdobramento de atividades inerentes tem por objetivo divulgar conhecimentos produzidos pela ciência
ao ofício do historiador, que implicam o “domínio de conteúdos na sociedade? Ou é processo complexo que se insere no âmbito da
que são objeto de ensino e técnicas de transmissão destes conhe- educação e da cultura escolar, em lugares e tempos específicos?
cimentos para os diferentes níveis de ensino”, como consta nas Estudos contemporâneos do campo do currículo, dentro da
diretrizes curriculares para o curso de História? Os textos produzi- tradição crítica, têm demonstrado que “o currículo é terreno de
dos para o ensino de história ocupam um lugar na historiografia? criação e produção simbólica, cultural. A educação e o currículo
Em caso negativo, deveriam ocupar? Qual é, então, o significado não atuam, nessa visão, apenas como correias transmissoras de
da resposta negativa a esta questão, muito frequentemente ouvida? uma cultura produzida em outro local, por outros agentes, mas são
Não ocupa um lugar por que é escolar e, portanto, diferente? En- partes integrantes e ativas de um processo de produção e criação
tão, não caberia a investigação desta produção? de sentidos, de significações, de sujeitos”, nos ensinam Moreira e
Esta questão nos remete ao questionamento sobre o saber Silva.12 Assim, embora tenhamos currículos movidos por inten-
ensinado: no caso da disciplina História, este é o conhecimento ções oficiais, que prescrevem conteúdos a serem ensinados, o que
histórico trazido para a escola para ser transmitido aos alunos com efetivamente é aprendido nunca é literalmente o intencionado por-
que a transmissão se dá num contexto cultural de significação ativa
base em técnicas de ensino aplicáveis em qualquer situação? Ou é
dos materiais recebidos.
resultado de elaboração com epistemologia própria, que incorpora
Esta significação ativa se dá, não apenas pelos alunos, mas
a história dos grupos envolvidos e do lugar onde é realizado, que
também pelos professores que, ao preparar e desenvolver suas au-
incorpora contribuições dos diferentes saberes que circulam na so- las, elaboram e reelaboram os conteúdos prescritos em novas cons-
ciedade numa construção híbrida e que apresenta características truções para tornar aqueles saberes possíveis de serem ensinados e
decorrentes da dimensão educativa que o constitui? aprendidos. Este processo, denominado transposição didática por
Neste processo de problematização do saber ensinado, e no Chevallard , permite a criação de configurações novas, com episte-
caso, da história ensinada, a relação entre ensino de história e me- mologia própria e diferenciada em relação ao
mória, relação ainda pouco discutida no Brasil, me parece de ex- “saber acadêmico” o saber ensinado.
trema relevância se desejamos melhor compreender os processos e Para melhor compreender este processo, é bastante esclare-
significados deste fazer. Cabe indagar: ao ensinar história, de que cedora a distinção feita por Forquin, outro estudioso do currículo,
história estamos falando: da história vivida ou da história conhe- da didática e do saber escolar, sobre a diferença substancial entre
cimento? Ou das duas articuladas? Ou falamos da história saber a exposição teórica e a exposição didática. “A primeira deve levar
escolar? em conta o estado do conhecimento,
Ao questionarmos a epistemologia e sentido da história ensi- a segunda, o estado de quem conhece, os estados de quem
nada, qual o lugar da memória neste ensino? aprende e de quem ensina, sua posição respectiva com relação ao
Esse artigo tem por objetivo discutir o ensino de história saber e a forma institucionalizada da relação que existe entre um
enquanto “lugar”. Lugar teórico, de produção e transmissão de e outro, (grifo adicionado) em tal ou qual contexto social. Não se
saberes; “lugar de fronteira”: entre História e Educação, de con- trata apenas de fazer compreender, mas de fazer aprender, de fazer
fluência de e com outros múltiplos saberes, o que nos desafia per- incorporar ao habitus.”
manentemente ao dever de vigilância ética, política e epistemoló- Acredito, assim, que os conceitos de “saber escolar”, “trans-
gica ao atuar entre a necessidade de ensinar saberes referentes ao posição didática”, “saber ensinado”, oriundos do campo da didáti-
passado, ao mesmo tempo em que se contribui para desenvolver ca e do currículo, ajudam a questionar a ideia de que ensinar é ape-
o pensamento e a reflexão crítica dos alunos, cidadãos atuantes nas transmitir conhecimentos produzidos na instância científica,
na sociedade em que vivem; “lugar de memória”, na perspectiva ideia que se baseia numa perspectiva que naturaliza um processo
que possibilita relacionar o vivido (memórias espontâneas) com o de grande complexidade. Ensinar, como o próprio termo indica, é
ensinado/aprendido (saberes curricularizados, saberes ensinados, “fazer conhecer pelos sinais”, é produzir significados. E estes
significados são atribuídos pelos professores desde o momen-
saberes aprendidos), rever saberes e compreensões que os tornam
to em que se apropriam de um conceito e definem a proposta de
próprios e particulares, plenos de um saber do mundo na cons-
atividade a ser realizada para a sua aprendizagem, por aqueles
trução de conhecimentos de uso cotidiano, de memórias. Relação
alunos que têm em sua turma. São situações muito particulares à
estrutural que gera conflitos, resistências, negações. educação escolar e que atendem a objetivos amplos que têm, na
Relação que põe em confronto diferentes culturas, visões de dimensão educativa, um parâmetro diferenciador marcante, res-
mundo. Cabe indagar: É possível ensinar história? ponsável pela criação de saberes com epistemologia própria – o
saber escolar que articula os saberes disciplinares, os saberes dos
O ensino de história como “lugar de fronteira” alunos e professores e a cultura de forma ampla. São, também,
significados atribuídos pelos alunos aos saberes ensinados e que
Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de expressam as diferentes apropriações decorrentes de saberes pré-
produção sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio vios, vivências e experiências.
de elaboração que é circunscrito por determinações próprias: uma A análise das questões relacionadas ao saber ensinado em His-
profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma cate- tória, realizada por Monteiro e Gabriel, tem revelado, no Brasil,
goria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposições, liga- o potencial destes conceitos para a melhor compreensão dos pro-
da a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função cessos envolvidos no ensino desta disciplina escolar que se man-
deste que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia tém como um dos maiores desafios para professores que, ao bus-
de interesses, que os documentos e questões que lhe serão propos- car possibilidades para aprendizagens significativas pelos alunos,
tas se organizam.” muitas vezes encontram dificuldades que não conseguem superar.

Didatismo e Conhecimento 90
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
A origem desses problemas tem sido buscada por vários pes- Estudos e pesquisas, bem como a formação de professores,
quisadores que, frequentemente, responsabilizam os professores têm sido realizados, preferencialmente, no campo da educação que
que estariam despreparados ou mal formados. Para sanar estes oferece instrumental teórico próprio e essencial, mas insuficien-
problemas, cursos de extensão e especialização são oferecidos te quando tratamos do ensino em perspectiva disciplinar, e tendo
para atualização dos conhecimentos em história, o que acontece como pressuposto a mobilização de saberes pelos professores, e
também em outras disciplinas. não apenas técnicas de transmissão. Produzidos neste campo, res-
Os resultados têm se mostrado pífios face aos problemas en- sentem-se, também, de desprestígio e da desautorização daqueles
frentados. que exercem o ofício de historiador, que desconfiam de conheci-
Avaliações realizadas ao final revelam a satisfação dos docen- mentos produzidos “fora da oficina”.
tes com os cursos, que oferecem contribuições significativas para Por outro lado, trabalhos sobre o ensino, realizados no âmbito
a sua formação. Mas as repercussões na sala de aula têm mostrado da história, ressentem-se da falta de subsídios de autores que anali-
pouco alcance. sam aspectos próprios aos processos educativos, com instrumental
Quais as razões deste problema? É por que os adolescentes, que considera as especificidades da ‘razão pedagógica’.
com seus múltiplos interesses, vivem cada vez mais o presente Face ao exposto, podemos concluir, que o ensino de história
contínuo, desqualificando o passado como o velho, o obsoleto, o ocupa um lugar marcado por forte ambiguidade.
descartável ao incorporarem, mesmo inconscientemente, o senti- O que é permitido?
mento da modernidade difundido pela publicidade nas diferentes “Dominar conteúdos básicos que são objeto de ensino-apren-
mídias, de forma ampla na sociedade? Ou é incompetência dos dizagem no ensino fundamental e médio. Dominar métodos e téc-
professores? nicas pedagógicos para a transmissão destes conteúdos em dife-
Defendo que a origem desta dificuldade é outra. A pesquisa rentes níveis de ensino.”
científica avança com inovações e revisões. Mas será que é ne- Percebe-se, nesta proposição, uma forte dicotomia entre pes-
cessário (ou possível)levar todas as inovações para a escola e suas quisa e ensino, que é entendido em perspectiva meramente instru-
turmas de crianças, adolescentes e jovens? Será que todas as ino- mental. As competências para a atuação do pesquisador não reve-
vações e revisões precisam ir imediatamente para a sala de aula? lam articulação com o que é esperado do professor.
Será que é este processo que melhora e qualifica o ensino? O que é proibido?
Identifico aí questões relacionadas à transposição didática, Aqui encontramos indícios mais do que evidências concretas.
ou mediação didática como defende Lopes22, referencial teórico No campo da história, dificuldades para a realização de pesqui-
que envolve questões de ordem epistemológica, de elaboração de sas, o pouco ou nenhum interesse pela educação, o preconceito em
um novo saber que tem, e não pode perdê-las, referências no co- relação às produções e realizações de professores voltados para
nhecimento científico, no caso, na historiografia, tanto do ponto este fim. Interdições aparecem aqui mais pelo ‘não-dito’, seja ele
de vista dos conhecimentos sobre os processos, como também do impeditivo ou depreciativo. No campo da educação, o tecnicismo,
ponto de vista das questões teórico-metodológicas pertinentes à as abordagens sócio-políticas e/ou psicologizantes relegaram as
escrita da história e de sua atualização. Estar atento às inovações questões do ensino para um limbo do qual tem sido difícil se li-
e revisões é importante, mas não resolve o problema por si só. É bertar. Apenas recentemente temos verificado esforços mais siste-
preciso considerar as questões do ensino, da didática, da educação, máticos voltados para seu estudo, com base em outros paradigmas
referentes a como tornar este saber possível de ser aprendido por que têm a epistemologia do conhecimento escolar e dos saberes
“estes” alunos. docentes como fundamentação teórica renovadora, conforme já
Retomando as palavras de Certeau, “toda pesquisa historio- discutido anteriormente.
gráfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, Buscando avançar em relação a esse posicionamento, e ba-
político e cultural. Implica um meio de elaboração que é circuns- seando-me em trabalhos e iniciativas de muitos professores /his-
crito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto toriadores/professores que militam pela afirmação do campo do
de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela ensino, confiantes que estão da importância social desta atividade,
está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada defendo que o ensino de história ocupa um “lugar de fronteira”
em uma particularidade.” entre esses dois campos.
A afirmativa de Certeau refere-se à pesquisa historiográfica Fronteira não no sentido norte-americano de “frontier”, terra
stricto sensu mas, pode-se indagar, novamente, com base em sua além da qual se estende um vazio, uma terra de ninguém... Fron-
proposição, qual o lugar do ensino de história nesse campo? teira no sentido de “border”, lugar de marcação de diferenças, mas
Retomando as questões iniciais, indagamos: Os textos pro- que também permite o encontro, as trocas; zona híbrida onde os
duzidos para o ensino de história (textos didatizados, propostas contatos se pulverizam e se ordenam segundo micro-hierarquias,
curriculares, entre outros) ocupam um lugar na historiografia? A zona de imensas possibilidades de criação cultural.
pesquisa sobre o ensino de história é pesquisa historiográfica? A “A articulação da história com um lugar é a condição de aná-
história do ensino da história, a história da educação, são objetos lise da sociedade.”
de pesquisa historiográfica? Os livros didáticosproduzem uma his- Como afirma Certeau, a condição para a pesquisa e o desen-
toriografia? Ou constituem uma historiografia com epistemologia volvimento do ensino de história é a articulação com um lugar, em
própria? construção, que tenha o reconhecimento de seus pares e do público
As respostas a essas questões, quando feitas a historiadores, a que se destina, lugar de trocas, diálogos entre atores e saberes
no mínimo suscitam dúvidas... ou negações. distintos que se encontram e se recriam.

Didatismo e Conhecimento 91
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
O ensino de história: “lugar de memória”?“a destruição do contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação
passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no
experiência pessoal às das gerações passadas – é um dos fenôme- gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades
nos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um
todos os jovens de hoje crescem uma espécie de presente contínuo, absoluto e a história só conhece o relativo.”
sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em Nora nos lembra que a memória é viva, “carregada por gru-
que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os pos vivos... aberta à dialética da lembrança e do esquecimento...”
outros esquecem, tornam-se mais importantes do que nunca no fim Nossos alunos, ao chegarem à escola são portadores de saberes,
do segundo milênio.” Eric Hobsbawm. referências construídas nos grupos familiares que cultivam suas
Complementando Hobsbawm, lembraria que os professores memórias: sejam memórias de trabalhadores, migrantes nordesti-
de História são mais importantes do que nunca neste fim de século, nos, desempregados, de lutas e combates diários pela sobrevivên-
cada vez mais necessários. cia, de referências étnicas, religiosas que oferecem explicações do
Para ensinar história, como qualquer disciplina, realizamos mundo e de seu devir.
dois processos fundamentais: uma seleção cultural, ou seja, defi- Constituem, na área da educação, os chamados saberes pré-
vios que muitos de nós descartamos a priori, como expressões de
nimos entre os vários saberes disponíveis na sociedade, incluindo,
ideologias que precisam ser superadas porque portadoras de pre-
atualmente, aqueles produzidos pela ciência, os saberes a serem
conceitos e fomentadoras de atitudes e comportamentos discrimi-
ensinados às novas gerações.
natórios. Ou, às vezes, porque resultado de ensinamentos errôneos,
Esta seleção implica opções culturais, políticas, éticas possi- ultrapassados, equivocados, a serem superados por nossas aulas
bilitando ênfases, destaques, omissões e negações. Esta seleção é nas quais a “verdadeira história vai ser ensinada”...
sempre enraizada socialmente e é histórica, revelando interesses, Mas, muitas vezes, esquecemos que são referências culturais
projetos identitários e de legitimação de poderes instituídos ou a fortemente ancoradas em figuras familiares que sustentam cons-
instituir, suscetível a mudanças e redefinições. Esta seleção se rea- truções identitárias. “Dificuldades de aprendizagem”? Ou resistên-
liza e expressa nas propostas e nas práticas curriculares, processo cias a conteúdos e posturas mais críticas, apresentadas, frequen-
de constituição do conhecimento escolar para a escola e pela es- temente, como verdades absolutas pelos professores, mas que se
cola. A didatização é o outro processo que possibilita que os sa- chocam abertamente com a cultura de referência dos alunos?
beres selecionados sejam possíveis de ser ensinados, sejam trans- Exemplo conhecido por muitos de nós é o caso das reações
formados em objetos de ensino através da mediação didática. A ao trabalho com o evolucionismo junto a comunidades de forte
articulação dos dois processos, que se faz em função da finalidade adesão a religiões evangélicas que defendem o criacionismo. Os
educativa que orienta o ensino escolar, possibilita a formação de professores precisam estar atentos às representações sociais de que
representações e de valores pelos alunos, a produção de sentidos e seus alunos são portadores e procurar dialogar, lidar com elas no
atribuição de significados a partir das situações de aprendizagem seu trabalho, principalmente no ensino de história, no qual estará
vivenciadas. trazendo revisões e críticas a saberes consolidados, e que servem
O que desejo destacar é que, nesse processo, o ensino de histó- para a comunicação entre os grupos aos quais seus alunos perten-
ria contribui de forma importante para a construção e reconstrução cem.
do conhecimento cotidiano, utilizado por todos nós para a vida As representações sociais são dinâmicas, estão em processo
comum, e no qual operamos com a “memória” – construção indi- de constante transformação. Como diz Nora, a memória “está em
vidual realizada a partir de referências culturais coletivas, embora permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esque-
não possamos dizer que exista uma memória coletiva. cimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável
Nesse processo, professores enfrentamos uma contradição a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências
que muitos de nós não consideramos quando ensinamos, e que e de repentinas revitalizações.” Estas podem ser induzidas pelas
atua de forma ativa nos processos de aprendizagem podendo gerar aprendizagens da História que, também como nos ensina Nora,
“é operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso
interferências, dificuldades de compreensão, bloqueios.
crítico”, nos leva ao estranhamento, nos desestabiliza, nos descon-
Para melhor explicar esta contradição, trago para discussão
certa.
a proposição de Nora sobre a relação entre história e memória,
Essas representações compõem um repertório constituinte de
que dialogam, se alimentam e se contrapõem. “A memória é vida, memórias individuais, coletivamente referenciadas. Oriundos de
sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em campos teóricos distintos, os conceitos de representação social e
permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esque- memória contribuem para compreender dimensões de um mesmo
cimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável processo.
a todos os usos e manipulações, suceptível de longas latências e Nesse sentido, defendo ser fundamental considerar a relação
de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre entre história e memória para pensar o lugar do ensino de história.
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é E questiono: o ensino de História é (ou pode) tornar-se um “lugar
um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno o presente; de memória”, “lugar onde a memória se refugia, se cristaliza” 38
a história, uma representação do passado. ...... A história, porque ao mesmo tempo objeto de grande interesse e de resistências, ne-
operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso críti- gações, perdas?
co. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, Nora, em seu artigo já citado, explica que os lugares de me-
e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que mória nascem e vivem de um sentimento de que não há mais me-
ela une, o que quer dizer como Halbwachs o fez, que há tantas mória espontânea nas sociedades atuais, que é preciso “organizar
memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múlti- os arquivos, manter os aniversários, organizar as celebrações....”
pla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao pois a aceleração do tempo, o presentismo nos fazem esquecer ou

Didatismo e Conhecimento 92
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
desconsiderar o passado. Além disso, em sociedades históricas - No contexto da aula e das atividades, cabe ao professor tra-
nas quais a história conhecimento se desenvolve - a memória é balhar o “pensamento histórico” para o questionamento de ver-
sempre objeto de suspeita pela história. De alguma forma, a his- dades estabelecidas e busca da compreensão da historicidade da
tória opera com a deslegitimação do passado vivido por meio da vida social. Novos saberes são construídos pelos alunos, saberes
análise crítica e da investigação. estes que, ao se constituírem como conhecimento cotidiano, e ao
Ainda, de acordo com Nora, um lugar de memória precisa incorporar a dimensão problematizadora e crítica, podem tornar-se
contemplar os três sentidos da palavra: material, simbólico e fun- instrumento de libertação, resistência. Mas pode também se man-
cional. Assim, é possível perguntar: estes sentidos estão presentes ter como lugar para a legitimação de poderes instituídos, em pers-
no ensino de história? Acredito que podem estar. É material por pectiva conservadora.
seus aspectos administrativos e técnicos de organização institu- As definições e opções dos professores no seu fazer são funda-
cional de espaços e tempos39; funcional, pois permite ao mesmo mentais para marcar e orientar diferentes abordagens e encaminha-
tempo a cristalização da lembrança e sua transmissão; simbólico, mentos. Discutir no ensino de história como lugar entre história e
porque permite a atribuição de sentidos e ressignificação de práti- memória nos remete também para a questão do direito à memória
cas e representações. O ensino de história é, potencialmente, um como direito de cidadania na perspectiva cultural. O tema da me-
lugar onde memórias se intrecruzam, dialogam, entram em confli- mória está em voga, hoje mais do que nunca. “Fala-se da memória
to; lugar no qual, também, se busca a afirmação e registro de - ou da mulher, do negro, do oprimido, das greves do ABC, memória
onde se desenvolvem embates entre -determinadas versões e ex- da Constituinte e do partido, memória da cidade, do bairro, da fa-
plicações sobre as sociedades, a política, o mundo, prescritas pela mília. Talvez apenas a memória nacional, tantas vezes acuada (e
instituição em que se localiza; “lugar de fronteira”, que possibilita tantas vezes acuadora) esteja retraída. Multiplicam-se as casas de
o diálogo entre memórias e “história conhecimento escolar”, com memória, centros, arquivos, bibliotecas, museus, coleções, publi-
o aprofundamento, ampliação, crítica e reelaboração para uso no cações especializadas (até mesmo periódicos). Os movimentos de
cotidiano. preservação do patrimônio cultural e de outras memórias específi-
Lugar do contraditório portanto, de embates.... cas já contam com força política e têm reconhecimento público. Se
Nesse sentido, defendo que o ensino de história, embora seja o antiquariato, a moda retrô, os revivals mergulham na sociedade
de consumo, a memória também tem fornecido munição para con-
um lugar onde e por meio do qual as memórias se entrecruzam e
frontos e reivindicações de toda espécie.”
se constituem, não é um lugar de memória no sentido atribuído
A afirmação de Meneses nos remete, novamente, a Nora ao
por Nora – lugar onde memórias se cristalizam - se trabalhamos
nos lembrar que esta tendência é decorrente da crescente acelera-
em perspectiva crítica, através da qual as memórias espontâneas
ção das sociedades industriais capitalistas e, por conseguinte, da
de nossos alunos são mobilizadas, tornam-se objeto de estudo e de
crise das sociedades organizadas sob a égide da tradição. O ques-
possibilidades de recriação.
tionamento do mito da nação, que atribuía a todos, e nos fazia acre-
Laville nos ajuda a compreender a contradição entre memória
ditar, numa origem comum, gera, de alguma forma, a necessidade
e história que, de acordo com ele, se expressa, no que se refere
da busca das histórias dos grupos, das memórias individuais. “O
ao ensino, na contraposição entre aquilo que ele denomina “o en-
dever de memória faz de cada um o historiador de si mesmo.”
tendimento do ensino de história como lugar para o trabalho com A ruptura com o passado nos leva a demandar representações
o “pensamento histórico” ou com a “compreensão histórica”... do passado como forma de restabelecer a coesão social e cultural.
Enquanto o pensamento histórico é um conjunto de operações in- Como esta questão se expressa no ensino de História no Bra-
telectuais e de atitudes do tipo daquelas exercidas para produzir sil?
os saberes históricos, a compreensão histórica é definida como a Durante o século XIX e grande parte do XX, o ensino de his-
atividade que leva ao entendimento de uma narrativa construída, tória serviu para divulgar a história do Brasil, uma nação homo-
procurando nela o sentido que o autor quis lhe dar e sensibilizan- gênea e sem contradições, herdeira e representante da civilização
do-se, ocasionalmente, com as suas intenções e pressupostos.” ocidental européia na América do Sul.
Essas duas abordagens são excludentes?Ou, de alguma forma, Heróis nacionais foram inventados como agentes da formação
podemos operar com as duas no ensino de história? Como temos nacional e dos grupos dominantes, em detrimento de sujeitos his-
desenvolvido este ensino? tóricos representantes de outros segmentos étnicos da sociedade
Defendo, então, que o ensino de história é, também, “lugar brasileira. Exemplo disso é o pequeno número de monumentos de-
de fronteira” entre história e memória porque lugar de reflexão dicados aos “heróis” de movimentos das classes subalternas.
crítica, de revisão de usos do passado, no qual a história é o co- Esta versão, a chamada história oficial, divulgada como fa-
nhecimento deflagrador de abordagens, análises, reflexões, novas tor de coesão, foi bem sucedida, do ponto de vista da educação
compreensões. escolar, enquanto a maioria dos membros das classes populares
Nas aulas, os professores trabalham com a história conheci- estiveram fora das escolas.
mento escolar, de constituição híbrida, que incorpora subsídios Com o processo de ampliação da oferta de escolas e vagas a
oriundos da historiografia - tanto do ponto de vista teórico como partir dos anos 1970, ocorreu a ampliação do acesso de crianças
dos novos conhecimentos produzidos - reelaborados para a media- e jovens das camadas populares às escolas. As dificuldades são
ção didática, os saberes (representações, referências, memórias) identificadas, inicialmente, como provenientes de um déficit cul-
dos alunos, saberes, experiências referências e valores dos profes- tural. Este diagnóstico, já muito criticado, transformava a questão
sores, da cultura escolar e outros saberes que circulam na socieda- da diferença em déficit, como se houvesse um padrão único cul-
de de forma ampla. tural ao qual todos teriam acesso. Hoje podemos indagar se estas

Didatismo e Conhecimento 93
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
dificuldades, no caso da história, não eram decorrentes, também Por último, uma outra questão que gostaria de destacar, refere-
do não reconhecimento e identificação, por parte deles, com uma se à abordagem utilizada para o ensino de determinados conteúdos
versão da história ensinada, na qual seus grupos eram ignorados e sua relação com a construção de memórias e identidades sociais.
ou apresentados em apenas alguns momentos da história, como su- A seleção de conteúdos tem relação direta com a memória que
balternos ou inimigos, excluídos de forma drástica do processo de ajudamos a constituir. Por exemplo, podemos citar os temas refe-
formação da nação. Este processo coincidiu com o movimento de rentes à história da América. É frequente ouvirmos críticas sobre
reação dos professores a tentativas governamentais de substituição nosso isolamento ou dificuldades no diálogo com os demais países
da disciplina pelos Estudos Sociais. da América Latina. Razões históricas ajudam a explicar este pro-
A história oficial foi então denunciada e combatida, devendo blema. Mas o que temos feito no ensino de história para contribuir
ser substituída por uma história crítica, designação atribuída por para a superação deste impasse? Como dialogar com quem não
alguns à perspectiva marxista então proposta. conhecemos? O que é ensinado de História da América nos cur-
Nesse contexto, “patrimônio histórico e cultural” passou a ser rículos? O “descobrimento”, a colonização espanhola, de forma
visto como expressão e representação da história dos dominantes bem geral, os movimentos de independência – quando há tempo, e
e, consequentemente, objeto de críticas e questionamentos. Me- muito pouco ou nada mais. Movimentos de resistência à domina-
mória foi associada à história oficial. ção espanhola? Raramente.
A partir da década de 1980, com a abertura política, as novas E assim também acontece com a história da África que so-
propostas curriculares implantadas no país anunciavam a formação mente entra em cena em muitos livros e aulas após o contato com
do cidadão crítico, sujeito da história, como o principal objetivo do os europeus. Foi preciso uma lei para nos “obrigar” a buscar in-
ensino desta disciplina. A contribuição do ensino para a formação serir estes conteúdos nos currículos. Que representação destes
da memória social foi, deliberadamente ou não, esquecida. continentes, sociedades, nações e povos ajudamos a construir? O
Movimentos sociais de diferentes grupos mobilizaram o país que sabemos deles? Essa situação somente tem contribuído para
nas últimas décadas na luta pela afirmação de seus direitos na so- fortalecer preconceitos.
ciedade brasileira. A lei 10639, por exemplo, é resultado patente Outra questão se relaciona com a história da escravidão. De
destes movimentos. Estes grupos definem lugares de memória para um tempo em que os escravos não eram mencionados, ou eram
o registro de suas lutas e vitórias. de forma muito parcimoniosa, com comentários sobre o possível
O conceito de patrimônio histórico e artístico foi substituído branqueamento por meio da miscigenação, passamos a ter, nos li-
pelo de patrimônio cultural, constituído por unidades designadas vros didáticos e no ensino, a preocupação, absolutamente justa e
como bens culturais. necessária com a denúncia da escravidão.
A mudança conceitual efetivada por esta política nos desafia, A história crítica e de abordagem econômica e/ou marxista,
no ensino de história, a rever conteúdos e atividades de ensino que fez prevalecer, a partir de final da década de 1970, textos que mos-
incorporem a identificação e reconhecimento destes bens como tram que o escravo como mercadoria, peça, coisa e que constituiu
patrimônio de todos, para que percebam, na fisionomia das cida- força de trabalho fundamental na economia colonial. Imagens dos
des, sua própria história de vida, suas experiências sociais e lutas escravos no trabalho e sendo castigados, ocupam as páginas volta-
cotidianas. das para o estudo da escravidão.
E para que, frente aos monumentos de representantes dos do- A presença africana na sociedade é assim ressaltada por um
minantes, os reconheçam enquanto tal e saibam explicar porque único ângulo, eliminando aspectos da subjetividade presente nas
estão ali. formas de resistência. A vitimização acaba por reforçar uma visão
Para isso contribui o ensino da História que traz subsídios do de submissão a esta condição.
conhecimento histórico para auxiliar a construção e reconstrução Pesquisas têm revelado o impacto dessa abordagem na cons-
da memória que possibilita aos indivíduos estabelecer relações trução da memória e das identidades de afro-descendentes no Bra-
afetivas com a cidade e o país onde vivem, compreendendo como sil. Crianças e jovens têm dificuldades em se identificar com an-
a sociedade em que vive foi construída através do tempo, tendo tepassados que castigados, eram chicoteados, eram considerados
uma história com continuidades e descontinuidades, mudanças, peças, coisas, mercadoria.
transformações. Além do mais, incorporam contribuições e infor- A presença e participação dos africanos e afro-descendentes
mações que fortalecem lutas e demandas sociais. na formação da sociedade brasileira precisa ser revista nos livros
A desnaturalização do social é, sem dúvida, uma das grandes e aulas de história. Os estudos e projetos deslanchados por meio
contribuições que o ensino de história pode oferecer para a forma- da Lei 10639 certamente terão muitas contribuições a oferecer. O
ção da cidadania. Acredito que, mais do que destruir monumentos, mesmo precisa ser feito com a história indígena ainda muito pouco
é importante entender porque estão ali, a quem servem, o que re- estudada na história escolar. De tal forma que, muitas vezes, não
presentam. reconhecemos como tal a nomenclatura indígena presente nos no-
Identificar quais monumentos consideramos importante pre- mes de ruas e bairros de muitas cidades brasileiras.
servar hoje: estátuas de figuras de projeção e lideranças políticas, Por exemplo, Araribóia, cuja estátua nos recebe ao chegarmos
objetos de uso cotidiano, máquinas que expressam o desenvolvi- de barca à cidade de Niterói, está ali como representante dos povos
mento tecnológico, formas de expressão de diferentes grupos so- indígenas ou como representante de um índio que foi batizado e
ciais, sítios e conjuntos urbanos ? O que desejamos lembrar? Que colaborou com os portugueses na luta contra os franceses?
representações do passado desejamos construir? Certamente, a Vimos assim alguns exemplos que nos desafiam a refletir so-
consideração destas questões implica rever a seleção de conteúdos. bre a importância da relação entre ensino de história e memória.
É a história em perspectiva europocêntrica que nos possibilita Em relação ao conceito de nação, por exemplo, denunciado por
estas análises? representar uma concepção que enfatiza a homogeneização e a do-

Didatismo e Conhecimento 94
BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
minação de classe. O que devemos fazer: negá-lo ou discuti-lo, Referências: MONTEIRO, A. M :ENSINO DE HISTÓRIA:
considerando sua potencialidade ou não para a compreensão das entre história e memória. Disponível em http://www.ufrrj.br/gra-
possibilidades de convívio e expressão da diversidade cultural e duacao/prodocencia/publicacoes/pesquisa-pratica-educacional/
racial presente em nossa sociedade? Afinal o conceito ainda é utili- artigos/artigo1.pdf
zado na política e nas relações internacionais. Ignorá-lo é a melhor
forma de criticá-lo? Ou é questionando e explicando como surgiu
e a que interesse contemplou?
14. PINSKY, CARLA BASSANEZI E LUCA,
4. Ensino de História: lugar de fronteira entre história e
TANIA REGINA DE (ORGS.). O
memória
HISTORIADOR E SUAS FONTES. SÃO
PAULO: CONTEXTO, 2009.
Professores de História mostram-se angustiados com a difi-
culdade em abordar os conteúdos definidos para serem ensinados.
Uma frustração toma conta de nós quando percebemos que o tem-
po disponível será insuficiente para abordarmos tudo que é impor- Sumário
tante. Mas o que é importante? Muitas aulas são desenvolvidas
com pressa, docentes explicando e alunos ouvindo, mais ou menos Esta obra se divide em treze partes:
quietos e calados. O que é aprendido? Que representações são re-
construídas? Que apropriações são realizadas? Que memórias são Apresentação
constituídas? Carla Bassanezi Pinsky e Tânia Regina de Luca
Frequentemente temos a sensação de que pouco foi assimi-
lado. DOCUMENTO E HISTÓRIA
Saberes que se chocam com crenças e representações, que A memória evanescente
muitas vezes são ignoradas, são apenas objeto de estudo porque Leandro Karnal
cai na prova, sendo logo esquecidos depois. Havia Galli Tatsch
Se desejamos que o nosso trabalho resulte em aprendizagens
significativas, que nossas aulas se constituam em espaço para re- FOTOGRAFIAS
flexão crítica e mudança, precisamos de tempo para ouvir nossos Usos sociais e historiográficos
alunos. E, também, que através do diálogo, com subsídios do co- Solange Ferraz de Lima
nhecimento histórico, possamos contribuir para revisões e supera- Vânia Carneiro de Carvalho
ção de preconceitos. Assim, é preciso selecionar entre os inúmeros
conteúdos possíveis de serem objeto de ensino, aqueles que podem LITERATURA
oferecer contribuições fundamentais para os estes alunos. A fonte fecunda
A história conhecimento produzida pelos historiadores em António Celso Ferreira
suas pesquisas é operação que demanda análise e discurso, é nosso
instrumento para a ação e trabalho crítico. A história liberta, mas TESTAMENTOS E INVENTÁRIOS
pode oprimir também. A memória pode aprisionar mas, às vezes, A morte como testemunho da vida
torna-se o lugar das possibilidades de resistências e transgressões. Júnia Ferreira Furtado
É preciso que estejamos atentos a esta relação que pode ge-
rar, através do ensino, novos conhecimentos que, apropriados, se PROCESSOS CRIMINAIS
incorporam nas memórias individuais na forma de consciência A história nos porões dos arquivos judiciários
histórica. Keila Grinberg
Para isso, acredito, precisamos ter claro as múltiplas dimen-
sões deste lugar. “Lugar de fronteira”, que articula história e edu- REGISTROS PAROQUIAIS E CMS
cação para podermos ter instrumental para desenvolver o nosso Os eventos vitais na reconstituição da história
trabalho articulando contribuições teóricas das duas áreas; “lugar Maria Silvia Bassanezi
de fronteira” entre história e memória, por que ali revemos, am-
pliamos, ressignificamos e referendamos representações sobre o ARQUIVOS DE REGIMES REPRESSIVOS
passado no presente e contribuímos para a construção de identi- Fontes sensíveis da história recente
dades sociais; “lugar de reflexão crítica” porque ali podemos por Caroline Silveira Bauer
em questão verdades estabelecidas e abrir perspectivas e novos René E. Gertz
horizontes, superando naturalizações que nos subjugam à nossa
circunstância. CARTAS
Como nos ensina Octavio Paz, “A pluralidade de passados tor- Narrador, registro e arquivo
na plausível a pluralidade de futuros...” Teresa Malatian

Bibliografia DISCURSOS E PRONUNCIAMENTOS


Livro: Ensinos de história: sujeitos, saberes e práticas; A dimensão retórica da historiografia
Autores: Ana Maria Monteiro Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Didatismo e Conhecimento 95
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DIÁRIOS PESSOAIS ficos, ao sabor das tendências modernas e pós-modernas alteram
Territórios abertos para a História o uso das fontes históricas e afetam o ofício do historiador. O his-
Maria Teresa Cunha toriador e suas fontes é, portanto, uma instigante discussão sobre
teoria e prática da História.
FONTES PARA O PATRIMÓNIO CULTURAL
Uma construção permanente Resumo
Ana Luiza Martins
A presente reflexão visa demonstrar como e grande e diversa
PEQUENA HISTÓRIA DO DOCUMENTO as fontes históricas que o historiador dispõe para reconstruir a tra-
Aventuras modernas e desventuras pós-modernas ma histórica dos indivíduos sociais no tempo e espaço.
Elias Thomé Saliba Alguém pode perguntar: como historiador estabelece o conta-
to, dialogo com o passado? Como chegar ate lá, se ele não existe
Autor mais? Como o conhecimento do passado e possível?
Tendo em vista que todo conhecimento do passado é “indi-
Carla Silvia Beozzo Bassanezi Pinsky: historiadora e edito- reto” e, logo, o historiador, por definição, está na impossibilidade
ra. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de de ele próprio constatar os fatos que estuda “. Assim, como afirma
Campinas (Unicamp) na Área de Família e Gênero (1999); mestre François Simiand, o conhecimento histórico é “um conhecimento
em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) (1992); através de vestígios “ de marcas perceptíveis aos sentidos deixadas
bacharel e licenciada em História pela Unicamp (1989). Autora “por um fenômeno em si mesmo impossível de captar”.
das obras PÁSSAROS DA LIBERDADE e VIRANDO AS PÁ- Diante disso, resta ao historiador à tarefa de tentar reconstituir
GINAS, REVENDO AS MULHERES. Coautora de HISTÓRIA possíveis existências para as pessoas do passado e os contextos em
DAS MULHERES NO BRASIL; HISTÓRIA DA CIDADANIA; que estavam mergulhadas, em que elas atuaram produzindo suas
HISTÓRIA NA SALA DE AULA; NOVOS TEMAS NAS AU- formas de vivência que relegaram ao presente.
LAS DE HISTÓRIA e NOVA HISTÓRIA DAS MULHERES NO Assim, temos que pesquisar a os seres humanos tanto do pon-
BRASIL entre outros livros publicados. Organizadora das obras to de vista de seu tempo-espaço como os processos que produzem
FACES DO FANATISMO; HISTÓRIA DA CIDADANIA; NO- os fatos dentro de um determinado período de tempo. Dessa forma,
VOS TEMAS NAS AULAS DE HISTÓRIA; FONTES HISTÓ- podemos dizer que a História relaciona-se com o Tempo. E, mais
RICAS; O HISTORIADOR E SUAS FONTES. Autora de artigos especificamente, ela relaciona-se com o passado visto a partir do
acadêmicos nas áreas de História Social, Historiografia, História presente. Ou, ainda, é o presente, procurando dar um sentido e uma
das Mulheres e Estudos de Gênero. Foi pesquisadora do Núcleo explicação para o passado.
de estudos de gênero Pagu - Unicamp (1992-1999). É membro do A “pegada humana” ao longo dos tempos, dentro do processo
Conselho editorial da Editora Contexto. histórico, é, ao mesmo tempo, processo de produção da cultura e
uma necessidade de cristalização que se realiza pelo registro. Essa
Tania Regina de Luca: possui graduação em História pela Uni- cristalização se dá mediante as fontes, os vestígios e as marcas que
versidade de São Paulo (1981), mestrado em História Social pela compõem o patrimônio histórico e é o resultado da ação concreta
Universidade de São Paulo (1989) e doutorado em História Social dos seres humana em um determinado tempo e espaço. Portanto,
pela Universidade de São Paulo (1996). É professora Livre Do- em sua temporalidade os seres humanos produzem suas marcas
cente em História do Brasil Republicano (2009) pela Universidade culturais e patrimoniais voluntariamente e involuntariamente (tra-
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área ços deixados pelos homens sem a mínima intenção de legar um
de História, com ênfase em História do Brasil República, atuando testemunho à posteridade). Essas pegadas - marcas servem não só
principalmente nos seguintes temas: Historiografia, História So- para registrar a atuação humana, mas como também para crista-
cial da Cultura, História da Imprensa, História dos Intelectuais, lizar o a sua ação, os fatos ou os processos que produziram esses
construção dos discursos em torno da nação e do nacionalismo. acontecimentos. Neste sentido, Marc Bloch revela que “é quase
Atualmente desenvolve pesquisa sobre a impensa, entre as décadas infinita a diversidade dos testemunhos históricos. Tudo quanto o
finais do XIX e os primeiros decênios da centúria seguinte. homem diz ou escreve, tudo quanto fabrica, tudo em que toca,
pode e deve informar a seu respeito.” Portanto, Bloch nos diz que
Sinópse e grande a diversidade de fontes históricas de que o historiador
pode trabalhar na reconstrução das sociedades passadas. Portanto,
Como o pesquisador, na prática do seu oficio, pode trabalhar tudo que o homem produziu e deixou na história e o objeto do
com fotografias, obras literárias, cartas, diários, discursos e pro- historiador.
nunciamentos, testamentos, inventários, registros paroquiais e Neste ponto de vista, podemos dizer que pesquisar a história é
civis, processos criminais, materiais produzidos por órgãos de re- buscar a compreensão dos processos que produziram os fatos que
pressão ou mesmo com as inúmeras fontes do patrimônio cultural? marcaram o tempo e espaço. Isso é possível por que todas as coisas
Em O historiador e suas fontes, um grupo de historiadores expe- têm história e podemos estudar a história de tudo. Tudo que acon-
rientes responde a essa questão, expondo um repertório variado de tece e que aconteceu é história. A história, portanto, trabalha com
fontes interessantes e suas formas de utilização. o passado, com aquilo que os seres humanos produziram no pas-
A obra mostra também por que certos documentos adquirem sado. Assim, o pesquisador, reconstrói a história, mas faz isso no
maior ou menor relevância ao longo do tempo e em que isso afeta seu presente, pois ele é um estudioso que está em uma sociedade
a História e a memória. Fala ainda de como os debates historiográ- diferente daquela que ele volta seus olhos para pesquisar e apreen-

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der suas especificidades. Ademais, tudo tem sua historicidade, e a ideia de “grandes homens” na história, de uma história “vista de
logo o homem sendo protagonista da história, atuando-produzindo cima, do conceito de acontecimento e da ideia de narrativa, típicas
e deixando “pegadas”, ou utilizando outro termo, suas marcas ao da historiografia “metódica” do século XIX. Para ele, o resultado
longo de sua trajetória, ai está a gama de fontes que dispusemos desses questionamentos foi um significativo aumento no núme-
para escrever a respeito. ro de possíveis fontes a serem investigadas pelo historiador. De
Ao determos que a História é o estudo do homem no tempo, modo que se passou a observar a diversidade de fontes passíveis
rompe-se com a ideia de que a História deve examinar apenas e de serem inquiridas pelo historiador. Houve o reconhecimento da
necessariamente as ações do homem já transcorridas: o passado. O subjetividade inerente à escrita da história, de que existe também
que ela estuda na verdade são as ações e transformações humanas a história das “massas”, “vista de baixo”, e se constatou a impor-
(ou permanências) que se desenvolvem ou se estabelecem em um tância da “longa duração” e da ideia de “estrutura” para a história.
determinado período de tempo, mais longo ou mais curto. Assim, Por outro lado: tempo, percebe-se que as mais recentes conservam
desta maneira, a História é o estudo do Homem no Tempo e no diversos conteúdos das anteriores, alguns são vitalizados por re-
Espaço. leituras, outros permanecem cristalizados na produção de grupos
Existem documentos que são dominados fontes primarias e resistentes às novas ideias (JANOTTI In: PINSKY, 2005, p. 16).
outros, fontes secúndarias. As fontes primárias são testemunhas É o que constata uma das autoras do livro Fontes históricas
do passado que se caracteriza por ser contemporânea dos fatos sobre essa questão, e que foi organizado pela professora Carla Bas-
sanezi Pinsky. O livro reúne oito ensaios, dos quais o primeiro,
históricos a que se referem. Grosso modo estabelecemos aqui, a
escrito por Maria de Lourdes Janotti, é uma apresentação historio-
tipologia de fontes primarias que são as “pegadas” deixadas na
gráfica da obra, e o último, escrito por Jorge Grespan, que também
história pela ação dos homens, que o historiador utiliza para re-
serve de conclusão, oferece uma discussão teórica sobre o método
construir o passado o mais próximo possível do que aconteceu: na pesquisa histórica. O que quer dizer que os seis textos restantes
fontes escritas: documentos jurídicos (constituições, leis, decre- do livro empreendem um debate a respeito das fontes documentais
tos), sentenças, testamentos, inventários, discursos escritos, cartas, (dos arquivos); arqueológicas; impressas; orais; biográficas e au-
livros de contabilidade, livros de história, autobiografia, diários diovisuais.
biográficos, crônicas, poemas, novelas, romances, lendas, mitos, O livro oferece, assim, uma análise “das fontes propriamente
textos de imprensa (jornais e revistas), censos, estatísticas, mapas, ditas e, consequentemente, dos métodos e das técnicas utilizadas
gráficos e registros paroquiais ect. Fontes orais: entrevistas, grava- pelos pesquisadores em seu contato com os documentos, os ves-
ções (de entrevistas, por exemplo), lendas contadas ou registradas tígios e os testemunhos do passado humano”, esclarece Bassane-
de relato de viva voz, programas de radio e fitas cassete etc. Fontes zi na apresentação da obra. Todos os textos, nesse sentido, foram
materiais: utensílios, mobiliários, roupas, ornamentos (pessoais e pensados para servir tanto para o iniciante, pouco habituado com
coletivos), armas, símbolos, instrumentos de trabalho, construções o contato com as fontes, quanto para o especialista. Todos foram
(templo, casas, sepulturas), esculturas, moedas, restos (de pessoas escritos com os mesmos objetivos didáticos, muito bem definidos,
ou animais mortos), ruínas e nomes de lugar (toponímia) e outras trazendo, ao final de cada um, roteiros de leitura, dicas de pes-
mais. Fontes visuais: pinturas, caricaturas, fotografias, gravuras, quisa e questionamentos mais comuns àquela fonte. Para atingir a
filmes, vídeos e programas de televisão, entre outros. No que tange melhor execução das pesquisas à fonte discutida, todos os pesqui-
as fontes secundárias, estas são registros que contêm informações sadores formados pela academia “têm como referência o rigor na
sobre os conteúdos históricos resultantes de uma ou mais elabo- análise, as críticas propostas pela Nova História ao cientificismo,
rações realizadas por diferentes pesquisadores. Essas fontes nos a necessidade da interdisciplinaridade para ampliar as interpreta-
chegam por pesquisadores que realizam reconstruções do passado, ções, posturas não-dogmáticas, atenção às condições materiais da
cujas referencias são de diferentes fontes primarias. Ou seja, são as produção das fontes, quase ausência do viés sociológico na lin-
diversas interpretações que os pesquisadores realizam das fontes guagem, bibliografia atualizada, preocupação com a clareza da
primarias. E, o caso dos trabalhos acadêmicos. (Teses, Disserta- exposição” JANOTTI In: PINSKY, 2005, p. 17-8), diz Janotti ao
ções). avaliar o conjunto dos ensaios do livro.
A história se utiliza de documentos, transformados em fonte Com o objetivo de evidenciar as características e a importân-
cia da documentação armazenada nos arquivo públicos (e também
pelo olhar do pesquisador.
privados) do país, Carlos Bacellar, no seu ingresso, principalmen-
Fontes tão variadas quanto as chamadas “escritas de si”
te, aos arquivos cartoriais e paroquiais, apresenta-os aos iniciantes
(cartas, diários) assim como as produções destinadas a públicos
e aos familiarizados com esse tipo de fonte. Faz referência aos
amplos e diversificados (a literatura e os pronunciamentos e os diferentes tipos de documentos que podem ser armazenados nes-
discursos) estão presentes nesta obra. Documentos oficiais, testa- se tipo de arquivo e destaca os provenientes da administração do
mentos e inventários ou registros paroquiais e civis, bem como Estado. Daí seu questionamento: Como surgiram os primeiros “ar-
materiais produzidos pelo Poder Judiciário e pelos órgãos de re- quivos brasileiros”? Quando da expansão ultramarina, a instalação
pressão são apresentados e analisados. portuguesa no- cujo trâmite já havia se encerrado (BACELLAR
No século XX houve uma verdadeira revolução sobre o que In: PINSKY, 2005, p. 43).
se entende por documento, permitindo a ampliação e a diversi- O desenvolvimento dos estudos das fontes arqueológicas tam-
ficação da definição de fonte na pesquisa histórica. Peter Burke bém foi lento, e como demonstra Pedro Paulo Funari, têm sido,
já havia constatado isso na apresentação da obra A escrita da his- desde então, fundamentais para a pesquisa de sociedades do passa-
tória: novas perspectivas, em que ressaltava que a historiografia do e do presente. Segundo Funari: coleta e publicação de artefatos,
no século XX (a começar pela francesa) questionou o caráter e a edifícios e outros aspectos cultura material, que deve ser entendi-
limitação das fontes oficiais, a imputação de uma objetividade que da como tudo que é feito ou utilizado pelo homem (FUNARI In:
lhe era creditada pelo simples fato de se contatar sua autenticidade, PINSKY, 2005, p. 84-5).

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Das fontes documentais de arquivos e das arqueológicas, pas- Expectativas, achados e surpresas: o que se encontra nos
sa-se para a análise das fontes impressas, com as quais Tânia de arquivos
Luca dedicou um interpretação cuidadosa, historiando como surgi-
ram e como passaram a ser estudadas, quais suas principais carac- “No mundo moderno e contemporâneo, o crescimento da má-
terísticas e qual a importância de se estudar jornais e revistas para quina do Estado e da burocracia resultaram na gigantesca multi-
a compreensão do passado. plicação dos volumes de papéis públicos acumulados nas reparti-
Mesmo com a crítica iniciada pelas Ciências Sociais, no fina- ções públicas. [...] após a proliferação da informática, arautos da
do século XIX, a esse tipo de tratamento e interpretação das fon-l modernidade vendiam a ideia de que a novas máquinas pensantes
tes, que foram levadas avante pelo movimento criado pela revista. iram dar fim á produção de papéis, principalmente quando do ad-
vento da internet e das redes de computadores. A documentação se
A hora da “mão na massa”: a prática da pesquisa. tornaria virtual, sem suporte em papel.” (p. 47).
“A informática e a cópia xerográfica contribuíram para a am-
Conhecer o nascedouro dos documentos pliação em escala inimaginável da produção de documentos, e em
especial para o acúmulo de duplicatas, triplicatas, atulhando os de-
“Como surgiram os primeiros “arquivos brasileiros”? [...] pela pósitos de arquivos correntes com enormes massas documentais.”
(p. 47).
concessão das capitanias hereditárias. [...] Podemos considerar
“Uma das grandes preocupações da arquivística contempo-
que, desde então, duas linhas básicas de acumulação documental
rânea reside justamente na eliminação desse excesso de papéis,
se estabeleceram: uma, privada, em mãos dos capitães-donatários,
característica da produção documental desde a segunda metade do
em sua maioria estabelecidos em Portugal, e outra pública, na sede século XX.” (p. 47).
do Governo local e metropolitano.” (p. 43). “Desinformados, tendem a julgar que o descarte implicará
“Para a pesquisa em arquivo, todo e qualquer historiadores perdas irreparáveis de informação histórica. Pelo contrário, a ar-
deveria, a princípio, estar ciente do evoluir histórico de toda a es- quivística atual está plenamente preparada e equipada para discer-
trutura da administração pública ao longo do tempo.” (p. 43). nir qual documentação é insubstituível, e qual é dispensável, seja
“Qual seria, no entanto, a importância de se conhecer a es- pela informação ali contida estar presente em outras fontes, seja
trutura da administração para a pesquisa empírica? [...] Conhecer por não ter valor em si.” (p. 48).
aquilo que podemos denominar como o organograma das instân- “Sem entrar no mérito da questão, é preciso saber que a do-
cias governamentais, com seus desdobramentos no espaço e no cumentação pública só será passível de livre e imediata consulta
tempo, permite entender, em grandes linhas, quais os cargos e as quando ultrapassar os respectivos prazos estabelecidos.” (p. 48).
funções que foram sendo estabelecidos ao longo dos séculos.” (p.
44). Condições de trabalho
“A elaboração de um documento não necessariamente signi-
fica que seguiram as normas de conteúdo informacional original- “Aventurar-se pelos arquivos, portanto, é sempre um desafio
mente previstas.” (p. 44). de trabalhar em instalações precárias, com documentos mal acon-
“... o historiador [...] deveria ter preocupações em conhecer dicionados e preservados, e mal organizados.” (p. 49).
o funcionamento da máquina administrativa para o período que “Em todo esse universo documental, o historiador encontra,
pretende pesquisar.” (p. 44). quase sempre, um relativo descaso pelo património arquivístico.
“... é fundamental que se tenha claro que um mínimo de refe- Documentos mal acomodados em instalações que chegam a ser
rência será necessário, já que deve haver correspondência entre a precárias sofrem rápida deterioração e podem se perder em defini-
estrutura dos órgãos produtores de documentação e sua posterior tivo. Infestados por brocas, cupins e traças, sofrendo incêndios ou
organização no arquivo público. [...] Caso contrário, é preciso ga- alagamentos, expostos a condições ambientais desfavoráveis, difi-
rimpar os documentos nas condições mais ou menos precárias em cilmente sobrevivem. O arquivista e o historiador têm, portanto, a
importante tarefa de, ao entrar em contato com acervos submetidos
que se encontram (p.45).
a tal risco, buscar a conscientização dos responsáveis e alertar a
comunidade, antes que seja tarde.” (p. 50).
Escarafunchar arquivos brasileiros
Os instrumentos de pesquisa
“Desde o momento em que o europeu desembarcou no conti-
nente americano, teve início, embora de maneira bastante desorga- “De modo geral, é preciso verificar, ao se propor um tema
nizada, a produção de documentos de caráter público, seja para o qualquer, quais conjuntos documentais poderiam ser investigados
registro da correspondência, seja para o registro de atos.” (p. 45). em busca de dados.” (p. 51).
“Mas o que importa é que tais depósitos ou arquivos aten- “Quanto maior o acervo, maior o conhecimento que o encar-
diam tão-somente às consultas do próprio corpo administrativo, regado da recepção deve acumular, tornando mais complexa a sua
que recorria aos documentos comprobatórios de suas atividades: formação profissional para essa função.” (p. 51).
concessões de títulos e terras, registros fiscais, correspondências. “De qualquer maneira, a instituição visitada deve, necessaria-
Não havia o caráter de arquivos públicos, mas apenas de arquivos mente, possuir alguns instrumentos de pesquisa, que o historiador
de serviço, internos à crescente burocracia estatal.” (p. 46). em geral chama, erroneamente, de catálogos.” (p. 51).
“Cabe ao historiador desvendar onde se encontraram os pa- “...as salas de consulta deveriam contar, necessariamente, com
péis que podem lhe servir, muitas vezes ultrapassando obstáculos um funcionário altamente qualificado, com amplo conhecimento
burocráticos e a falta de informação organizada, mesmo em se tra- do acervo e dos instrumentos de pesquisa, capaz de auxiliar e re-
tando de arquivos públicos.” (p. 46). solver dúvidas quando preciso.” (p. 52).

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Consulta e coleta de material “... uma folha de papel sulfite colocada sob o documento per-
mite não só maior segurança no virar das páginas, mas também
“A surpresa de solicitar uma caixa e depois descobrir que o impede que se leia algo da página de baixo através das aberturas...”
conteúdo não condiz com a identificação do rótulo e do instrumen- (p. 56)
to de pesquisa não costuma ser incomum.” (p. 53).
“A paciência é arma básica do pesquisador em arquivos: pa- O manuseio dos documentos
ciência para descobrir os documentos que deseja, e paciência para
passar semanas, quando não meses ou anos, trabalhando na tarefa “... a grande maioria dos acervos não passa por procedimentos
de cuidadosa leitura e transcrição das informações encontradas. técnicos indispensáveis, ou os têm aplicado apenas parcialmente.”
(p. 57).
Pesquisar em fontes, principalmente as manuscritas, requer, ainda,
“Tirados da caixa ou desembalados dos maços, [...] os docu-
o empenho de aprender as técnicas de leitura paleográfica, que per- mentos devem ser tratados com extremo cuidado.” (p. 57).
mitem o “decifrar” dos escritos.” (p. 53). “O roubo de documentos também não é raro, merece atenção
especial dos funcionários e uma crítica ferrenha por parte dos his-
Primeiros cuidados toriadores.” (p. 57).
“Quem consulta deve levar em conta, sempre, que documen-
“O trabalho com documentos de arquivo exige precauções. tos de arquivo, ao contrário das bibliotecas, são únicos, insubsti-
[...] O uso de luvas, máscaras e aventais, exigidos em alguns pou- tuíveis. [...] cópias em microfilmes, em mídia digital ou on-line de-
cos arquivos, deveria ser naturalmente obrigatório, como preven- veriam estar bem mais presentes, poupando os preciosos originais
ção da saúde do consulente e como forma de favorecer a preserva- e retirando-os por consequência do acesso público.” (p. 57-58).
ção do papel. Sabe-se, hoje, que o simples suor de uma mão pode “Na maioria esmagadora dos casos, portanto, a consulta se
ser bastante prejudicial às fibras do papel, e convém evitá-lo.” (p. faz nos originais, por isso os pesquisadores devem redobrar seus
54). cuidados e contribuir para a preservação do material.” (p. 58).
“Todas essas dificuldades, no entanto, não são suficientes para
A leitura paleográfica
desencorajar o pesquisador.” (p. 54).
“... o manuseio dos papéis de arquivo requer boa dose de cui- “... tema que assusta alunos e mesmo certos professores. [...]
dado. São frágeis [...] é fundamental manter o documento sobre Há evidente temor de que eles percam tempo n leitura paleográfica
superfície plana, sem nada de relevo por baixo, como cadernos, e não consigam cumprir os prazos que lhe são impostos.” (p. 58).
lápis, ou mesmo o próprio bloco de documentos consultados. Não “... seria interessante que os cu cursos de História contassem
se deve nunca desdobrar as inevitáveis dobras, nunca intervir fisi- com uma disciplina que oferecesse os primeiros rudimentos, de
camente no documento, retirando o que quer se seja encontrado, modo a quebrar a barreira do medo que os papéis manuscritos es-
como grampos ou clipes. Em caso de dúvida, profissionais da casa tabelecem nos iniciantes.” (p. 58).
devem ser chamados.” (p. 55). “... e possível alcançar boa qualidade de leitura com um pouco
“...os documentos devem ser mantidos na ordem em que se de esforço pessoal.” (p. 58).
encontram, [...] Tirá-los de ordem significa destruir trabalho de “... o leitor precisa se acostumar com a caligrafia, que varia de
anos, e dificultar enormemente sua posterior recuperação. [...]alte- indivíduo para indivíduo.” (p. 59).
“O aprender também exige o desdobrar das abreviaturas, sem-
rar sua ordem: isso cabe aos profissionais especializados.” (p. 55).
pre tão comuns, e que podem, em grande parte, ser solucionadas
com o recurso ao importante Dicionário de abreviaturas.” (p. 59).
A rotina da leitura documental
A transcrição paleográfica e a edição de fontes
“... o pesquisador precisa se “moldar” a uma ortografia e a
uma gramática diferenciadas. Mesmo documentos datilografados “A manutenção da grafia original, transcrita para caracteres
ou jornais têm escritura distinta, e com tais características deve- modernos, é sempre mais interessante do que as tentativas de mo-
mos fazer a transcrição. Contudo, para o documento manuscrito dernização. Esta sempre traz embutido o risco de má interpretação,
é preciso, antes de tudo, acostumar-se com a caligrafia. [...] não alterando-se o sentido original do texto. A versão corretamente pa-
devemos escolher fontes pela sua maior ou menor facilidade de leografada pode melhor servir para ser usada por outros autores
leitura.” (p. 55). que a consultem na obra em que está publicada;” (p. 59).
“Ler velhos papéis é um desafio em muitas das precárias salas “... a não observação das regras estabelecidas para a transcri-
de consulta que encontramos por aí. [...] Alguns tipos de tintas de ção paleográfica, ou o uso de critérios não explicitados, dificultam
a percepção dos porquês das lacunas no texto, tornando complexa
escrever do passado se apagavam com certa facilidade, restando
sua utilização, e exigindo uma série de cuidados no momento da
hoje como leves traços coloridos, [...] para enfrentar as dificulda- interpretação.” (p. 60).
des nessa leitura é uma lupa de aumento. A ampliação da imagem
permite diminuir o esforço dos olhos, mas permite, também, que A reprodução dos documentos
se busque identificar o traçado de escrita de um único caractere, na
tentativa de identificá-lo e dar sentido a uma palavra não decifra- “A cópia por xerox encontra-se disponível em alguns locais,
da.”. (p. 56) embora haja, nos arquivos públicos, tendência a rejeitar tal prática.
“Outro instrumento útil para a leitura é uma régua leve, que Alega-se, de maneira geral, que as luzes da copiadora teriam efei-
possa servir para o acompanhamento de linhas. Seu uso deve ser tos destrutivos sobre as fibras da folha de papel, mas nada há de
cuidadoso para não interferir na integridade do papel...” (p. 56). comprovado em termos técnicos.” (p. 60).

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“Opção crescente tem sido a fotografia digital, sem o uso do “... precisam ser cuidadosamente convertidas para padrões
flash, proibido por ser danoso ao papel.” (p. 60). atuais” (p. 65).
“Escanners portáteis, de mão, também têm sido adotados pe- “Resta, ao pesquisador, trabalhar com as metragens em termos
los consulentes, mas devem ter seu uso controlado, pois emprega- de ordem de grandeza, de modo a identificar dimensões da proprie-
do de forma errada pode danificar, e muito, a integridade física do dades tal como eram consideradas à época.” (p. 66).
documento.” (p. 61).
Os critérios
A amostragem na pesquisa
“E fundamental, ao se trabalhar com qualquer fonte, discutir
“... o historiador deve tomar muitos cuidados para não cair os critérios possivelmente adotados por quem a produziu, de modo
na tentação de transformar um caso isolado em caso corriqueiro.” a melhor decifrar a informação que ela nos fornece.” (p. 66).
(p. 62). “... temos a obrigação de ser cuidadosos.” (p. 68).
“O cruzamento de fontes permite vislumbrar outra realidade:
Os fichamentos a de artesãos que também vivem da lavoura.” (p. 68).

“Deve-se observar regras básicas de paleografia, principal- Os vieses


mente no que diz respeito a lacunas no texto, provocadas por
buracos, rasuras, borrões ou impossibilidade de entendimento da “Uma questão importante ao se avaliar as possibilidades de
caligrafia.” (p. 62). uma fonte documental é buscar perceber a qualidade das infor-
“É fundamental, também, anotar a referência do documento mações que ela pode ou não nos fornecer, de acordo com a pro-
transcrito, [...] não se pode esquecer, jamais, de indicar todos os blemática de cada pesquisa. Documentos do passado não foram
dados que permitam identificar o documento, como remetente, elaborados para o historiador, mas sim para atender a necessidades
destinatário, órgão produtor, local e data, para que, posteriormente, específicas do momento.” (p. 68-69).
se possa contextualizar seu conteúdo quando de seu uso.” (p. 62).
“A boa referenciação é essencial.” (p. 62). A identificação de indivíduos
A análise dos documentos
“A análise nominativa de fontes documentais é tendência cada
vez mais crescente.” (p. 70).
É importante para o pesquisador fazer algumas perguntas:
“... o acompanhamento nominativo de indivíduos apresenta
“Ao iniciar a pesquisa documental, [...] Sob quais condições aque-
problemas metodológicos consistentes. O mais complexo é, evi-
le documento foi redigido? Com que propósito? Por quem? Essas
dentemente, a falta de regras na transmissão de sobrenomes que
perguntas são básicas e primárias na pesquisa documental, mas
imperou nos diversos segmentos de população livre durante todo o
surpreende que muitos ainda deixem de lado tais preocupações.
período colonial e mesmo mais adiante.” (p. 70).
Contextualizar o documento que se coleta é fundamental para o
ofício do historiador!” (p. 63).
“Documento algum é neutro, e sempre carrega consigo a opi- Olhar de historiador
nião da pessoa e/ou do órgão que escreveu.” (p. 63)
“Um dos pontos cruciais do uso de fontes reside na necessi- “Já pode cotejar informações, justapor documentos, relacio-
dade imperiosa de se entender o texto no contexto de sua época, nar texto e contexto, estabelecer constantes, identificar mudanças e
e isso diz respeito, também, ao significado das palavras e das ex- permanências e produzir um trabalho de História.” (p. 71).
pressões. Sabemos que os significados mudam com o tempo, mas
não temos, de início, obrigação de conhecer tais mudanças. No A MEMÓRIA EVANESCENTE
entanto, boa dose de desconfiança é o princípio básico a nos orien-
tar nesses momentos, além de uma leitura muito atenta dos autores A categoria documento constitui uma parte importante do
que já trabalham na mesma linha de pesquisa.” (p. 63). campo de atuação do pesquisador e a amplitude de sua busca.
“As palavras podem trair o pesquisador descuidado.” (p. 64). A Carta de Caminha, por exemplo constitui um documento
“Acima de tudo, o historiador precisa entender as fontes em importante do nascimento do Brasil e o foco sobre o documento
seus contextos, perceber que algumas imprecisões demonstram pode variar em função do recorte.
os interesses de quem as escreveu. [...] O historiador não pode se Se chegarmos à conclusão de que não existe um fato histórico
submeter à sua fonte, julgar que o documento é a verdade, [...] eterno, pois depende do foco, mas existe um fato que hoje conside-
ser historiador exige que se desconfie das fontes, das intenções de ramos histórico, é fácil deduzir que o conceito de documento siga
quem a produziu.” (p. 64). a mesma lógica. Fato e documento histórico demonstram nossa
visão atual do passado, num dialogo entre a visão contemporânea
As medidas e as fontes pretéritas.
Apenas no século XIX triunfou a ideia de Documento como
“As medidas, em geral, variavam de região para região e ao prova histórica. Desde então esse conceito vem sendo ampliado.
longo do tempo. Portanto, é preciso situar, antes de tudo, a fonte A escola dos Annales, no século XX, colaborou ainda mais para a
documental para essas informações, para, então sim, buscar-se al- alargamento da noção de fonte.
gum parâmetro para conversão.” (p. 65).

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Porém, devemos questionar sobre o que garante a autencti- o inspetor responsável pelo sistema prisional francês idealizou um
cidade das fontes. A falsificação atinge todo objeto de valor, com projeto de fotografar os mais perigosos criminosos de diversas pe-
objetivos variados. Nazistas falsificavam objetos arqueológicos nitenciárias, procedimento que vai realmente acontecer anos de-
para demonstrerem falsa teses sobre a ocupação ariana da planície pois.
germano-polonesa. Farós ordenavam que se raspasse o nome de A trajetória da fotografia no Brasil também seguiu caminho
antecessores de monumentos e mandaveam aplicar o seu por cima por esse caminho. No caso de São Paulo, em meados do século
do verdadeiro construtor. Stalin ficou famoso pela prática de mu- XIX, a produção que melhor exemplifica essa vertente documen-
dança em fotografias que registravam a história soviética, apagan- tarista é a de Militão Augusto de Azevedo. Ao longo do século x, o
do adversários como Trotsky das imagens oficiais. O Cristianismo mercado fotográfico ampliou-se especializou-se. A prática fotográ-
era uma religião nova e já pulululava evangelhos apócrifos por fica de caráter documentarista tornou-se a marca da produção fo-
todo o Mediterrâneo. tográfica destinada aos meio de comunicação impressa, especial-
A química e a física podem ajudar bastante na determinação mente as revistas ilustradas. Fotógrafos como Jean Manzon, Pierre
da autenticidade do documento. Verger, Marcel Gautherot, Eduardo Medeiros, Walter Firmo, Tho-
O humanista Lorenzo Valla (1406-57), dedicou-se a estudar maz Farkas, Alice Brill, Hans Gunther Flieg, Hildegard Rosenthal
um consagrado documento hist´orico: a Doação de Constantino . e muitos outros passaram a construir uma história do fotojornalis-
O texto tinha uma importância extraordinária, pois justificaria uma mo e da fotografia autoral, eternizando certas imagens em ícones
doação do imperador romano Constantino ao papa sobre territó- da cultura brasileira e paulistana. A revista O Cruzeiro, fundada
rios da Itália.Lorenzo não dispunha da possibilidade da datação em 1928, pode ser considerada um marco no uso da fotografia na
química, logo, só poderia trabalhar com opróprio texto. O huma- imprensa. O perfil editorial da revista privilegiava a imagem como
nista destruiu a autenticidade por meio da filologia, demonstrando discurso e o Brasil como tema em matérias fartamente ilustradas.
que o latim utilizado pelo documento era um latim medieval “ba- A partir dos anos 1990, o interesse de historiadores, antropó-
rabarizado” diferente do latim romano. logos e sociólogos pela fotografia alargou-se. Confluiram os usos
O entusiasmo pela manutenção, autenticidade, coleta e con- sociais e científicos que a fotografia vinha recebendo com os novos
servação dos documentos parece ter sido muito incrementado pela paradigmas das ciências humanas. Tais paradigmas colocavam a
Revolução Francesa e pelo nacionalismo crescente do século XIX. dimensão visual e material da sociedade de consumo ocidental no
No Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico nasce com a centro das reflexões epistemológicas. Nessa década a produção de
Regência, verdadeiro momento de afirmação nacional. Coerente- dissertações e teses acadêmicas abordando aspectos da produção
fotográfica é intensa. Pesquisadores da fotografia cujos trabalhos
mente, o Estado, grande produtor de documentos, torna-se o orga-
são referencias na atualidade como Helouise Costa, Maria Inês Tu-
nizador de arquivos e publicações para preservar documentos his-
razzi, Nadja Peregrino, Ricardo Mendes e Antônio Oliveira Junior
tóricos. Conservar e preservar documentos passa a ser uma função
expandiram o campo de investigação sobre as práticas fotográficas
muito ligada ao Estado.
para o século xx abordando temas como fotoclubismo, as exposi-
ções universais, o fotojornalismo.
Fotografias
A análise semiológica oferece à fotografia um arcabouço teó-
rico sólido que fortalece a relação entre a imagem e a realidade que
Usos sociais e historiográficos um dia esteve em frente à câmera fotográfica.
A abordagem semiológica coloca em outros termos aquilo que
Para compreender a fotografia como fonte histórica é impor- a própria sociedade identificava como prova, verdade ou testemu-
tante levar em consideração os usos sociais que agenciaram o in- nho. A fotografia passa a ser compreendida não como verdade,
vento fotográfico ao longo dos séculos XIX e XXconsolidaram mas como marca, isto é, índice. O índice é um tipo de signo que
acervos importantes para a pesquisa (p.29). define como vestígio do objeto que lá esteve o referente.
O crescimento dos seguimentos médios e suas expectativas Outra contribuição da semiologia para as reflexões a respeito
de ascensão incentivaram novas formas de representação de iden- da natureza da fotografia foi a ideia de que a imagem constitui um
tidade e distinção que estavam em sintonia com os esforços de discurso. Se a imagem é um discurso podemos pressupor que a li-
um diversificado grupo de homena das ciências, artistas e comer- teralidade da fotografia não é algo natural, mas cultural. Seu códi-
ciantes que transformaram a afotografia em um grande negócio. A go precisa, portanto, ser aprendido. O discurso visa à comunicação
fotografia foi substituindo a pedra litográfica. e para que isso ocorra outro pressuposto è que a fotografia possui
Invenção burguesa, a fotografia popularizou o retrato e levou uma linguagem que deve ser compartilhada para que ocorra a troca
aos recantos mais distantes do mundo essa “caixa de pandora”, de informação. A terceira decorrência da noção de discurso é a
contendo paisagens de lugares exóticos, de monumentos, de tipos assimetria social da troca. Toda troca de informação é interessada
humanos, retratos com apelos eróticos , paisagens urbanas, ima- e acontece numa arena de poder.
gens chocantes de guerras e de conquistas científicas. Desse ponto de vista, já se vê que também é possível analidar
As grandes celebridades podiam ser colecionadas em casa, a fotografia como parte atuante na reprodução do sistema, ou seja,
colocadas no álbum para promover a conversação em encontros como ideologia. O foco na fotografia como um meio ideologica-
sociais. mente eficaz está relacionado ao surgimento, nos anos 1960, de
Para as Instituições do Estado, a fotografia foi instrumento efi- estudos voltados para o meios de comunicação de massa e para a
caz no aprimoramento do controle da população por instituições, indústria cultural. As abordagens se bifurcam, mas procuram to-
especialmente a polícia. Em 1851 sugeriu-se o uso da fotografia mar distância da noção simplista de ideologia como simples mani-
nas licenças de habilitação para a direção de veículos a tração pulação ou deliberação da verdadeira realidade, capaz de anular o
animal; em 1853 pensou-se na fotografia de passaporte; em 1854 sujeito ao aliená-lo da realidade.

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John Tagg, baseado na ideia de aparelhos do Estado de Athus- A história das famílias também pode ser conhecida, bem como
ser, mas também recorrendo a Michel Foucault e Umberto Eco, servirem de testemunho de vida material.
procura entender a fotografia e o estatuto de veracidade que ela é Inventários também podem ser usados para se estudar a escra-
atribuído como resultado de práticas de significação que ocorrem vidão sob os mais variados aspectos.
dentro de estruturas institucionais responsáveis pela produção de Os processos crime e cíveis são fontes igualmente abundantes
consensos que têm como eixo interesses dominantes associados e dão voz a todos os segmentos sociais, do escravo ao senhor. São
ao Estado. fontes preciosas para o entendimento das atividades mercantis, já
A preocupação com a construção de sentidos, ou nos termos que são recorrentes os autos de cobranças judiciais de dívidas e os
de John Tagg, de práticas de significações, colocou a fotografia em papéis de contabilidade de negócios de grande e pequeno porte.
um novo patamar documental, reconhecendo nela uma capacidade
constitutiva das categorias, estruturas e práticas sociais. Processos criminais

Literatura Os livros de registros de entradas de presos em cadeias e pe-


nitenciárias permitem que se trace um perfil social do prisioneiro,
Afirmar que a literatura integra o repertório das fontes histó- relacionando a qualidade de contravenção com cor, idade e outros
ricas não provoca hoje qualquer polêmica, mas nem sempre foi dados de identificação. É possível analisar a evolução do sistema
assim. Mais do que isso, nas ultimas décadas os textos literários policial e prisional.
passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais propícios Os processos criminais contêm dados precioso a propósito de
a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados acusados vítimas e testemunhas, o que possibilita análises quali-
para o entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das tativas e quantitativas sobre o perfil das pessoas; contêm nomes e
experiências subjetivas dos homens e mulheres do tempo. Dessa atribuições de advogados, juízes, escrivão e outros agentes da lei
perspectiva resultaram numerosos trabalhos que abrangem tanto de diversas instâncias, o que nos permite avaliar suas atuações em
os estudos aplicados quanto as análises teórico-metodológicas so- diversos casos, as interpretações recorrentes, legislação citada, o
bre a exploração desse tipo de fonte. funcionamento da justiça em várias épocas(p.129).
No entanto, o estabelecimento dos juízos estéticos não cabe
numa pesquisa histórica. È facultado ao historiador, procurar Registros paroquiais e civis
compreender como os escritos literários formam e disseminam
Registros dos eventos vitais – nascimento, batismo, casamen-
os gostos, como repercutem no coletivo e permanecem ou não
to e óbito - elaborados e conservados pela igreja ou Registro Civil
historicamente. Devem interessar á pesquisa histórica todos os ti-
de Pessoas Naturais, são fontes onde a população pode ser recupe-
pos de textos literários, na medida em que sejam vis de acesso à
rada através desses registros, Por isso os livros que os contêm são
compreensão dos contextos sociais e culturais: literatura maior ou
considerados fontes democráticas. Mesmo que para determinados
literatura menor, escritos clássicos ou não, eruditos ou populares,
momentos e locais, uma parcela dos nascimentos, das uniões con-
bem-sucedidos no mercado ou ignorados, incensados ou amaldi-
jugais e dos óbitos, por algum motivo, não tenha sido anotada,
çoados.
esses livros incluem de fato os setores da sociedade. Homens e
mulheres, ricos e pobres, brancos, negros e índios, nacionais e es-
Testamentos e inventários trangeiros, filhos legítimos e ilegítimos/naturais, crianças expostas
ou rejeitadas e também escravos e libertos (antes de 1888) tiveram
Testamentos e inventários são produzidos no contexto da e têm os seus eventos vitais registrados(p.142).
morte da pessoa, mas ao contrário do que possa parecer, esses Os livros de notas dos tabeliães são preciosos para a análise
documentos contêm ricas e variadas informações sobre múltiplos da sociedade e da economia do passado.
aspectos da vida do morto, bem como da sociedade em que ele vi- A multiplicidade de atos é notável, a riqueza de informação
veu. Por isso, nas mãos do historiador, eles podem se transformar também.
em testemunhos sobre a morte, mas acima de tudo, sobre a vida, Os cartórios exigem, quase sempre, autorização para a pesqui-
em suas dimensões material e espiritual. Ambos os documentos sa, dede que justificada a natureza desta. Nem sempre contam com
guardam algumas similaridades, mas são distintos, cada qual com acomodações para isso, havendo que se improvisar um espaço para
sua própria especificidade. Como ponto de partida para compará acolher o pesquisador. O acolhimento varia desde a extrema sim-
-los, pode-se dizer que o testamento é produzido nos momentos patia até a enorme má vontade, e o historiador deve estar, sempre,
que antecedem a morte e nele fica registrada a última vontade do preparado para as duas eventualidades. Mas o retorno intelectual
testador relativa ao que ele deseja que seja feito com seus bens. Já sempre compensa, e muito, as eventuais dificuldades.
o inventário é feito após a morte, também chamado de inventário
post-mortem, e por ele os bens do morto são distribuídos conforme Arquivos eclesiásticos
as disposições legais e sua última vontade, no caso de haver tes-
tamento. O ponto em comum é que ambos versam sobre os bens Os arquivos de natureza religiosa no Brasil são detentores de
da pessoa e são regidos por leis especificas. Portanto, ao utilizar grandes conjuntos documentais, nem sempre facilmente acessí-
esses dois tipos de documentos como fontes, o historiador deve veis. Os mais notórios são os da Igreja Católica, cujos acervos es-
conhecer as leis vigentes no período e no espaço estudado(p.93). tão reunidos nas cúrias diocesanas, sob os cuidados de serviços de
Através de testamentos e inventários é possível conhecer a arquivos em geral bastante precários e desconfortáveis, que costu-
religiosidade das pessoas e qual a condição, por exemplo, dos es- mam improvisar o atendimento quando do surgimento inesperado
cravos no Brasil. de um pesquisador.

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Alguns interpõem dificuldades quase intransponíveis, en- Discursos e pronunciamentos
quanto outros são bastante liberais e abrem até mesmo documentos
mais sensíveis, como os processos relativos aos próprios religio- Discurso e pronunciamentos não são meras palavras, são con-
sos. ceitos e, portanto, podem ser entendidos de variadas maneiras, são
Os arquivos católicos preservam escassa documentação para ditas palavras ou conceitos polissêmicos.
os séculos XVI e XVI, começando a ser mais expressivos a partir Pronunciamento será entendido como ato ou efeito de publi-
do século XVIII. Seria de se esperar que essas fontes, fossem de camente expressar uma opinião, manifestar-se em defesa de dadas
livre acesso ao público, já que a igreja, por intermédio do Padroa- teses ou posições políticas, morais, religiosas, filosóficas, éticas,
do Régio, atuava como um autêntico serviço público. Deveriam econômicas, jurídicas, estéticas, etc.. Os pronunciamentos servem
estar abertos à livre consulta, sem maiores restrições, amparados ao historiador, tanto quanto os discursos, por implicarem uma in-
em legislação específica regulamentando essa questão. tervenção pública de alguém.
Existem também os trabalhos realizados pelos mórmons que, Durante muitos séculos, o saber histórico se notabilizou por
visando microfilmar toda a documentação nominativa que possi- se dedicar a abordar aqueles eventos e aqueles personagens que
bilitasse a reconstrução de árvores genealógicas e a conversão re- faziam parte da vida pública, cujos discursos, ao serem pronuncia-
troativa dos antepassados, levou-os a desenvolver intenso trabalho dos, ganhavam destaque, eram vistos e ditos como tendo a capaci-
de coleta e pesquisa em todo o mundo. consistiu em copiar acer- dade de mudar o curso da história(p.226).
vos da Igreja Católica, até que foram descobertos ao realizarem a
microfilmagem, os técnicos mórmons deixaram, como contrapar- Arquivos do Poder Executivo
tida, uma cópia gratuita dos respectivos rolos para cada instituição
visitada. Além disso, essa ação dos mórmons contribuiu de modo Correspondência: ofícios e requerimentos
negativo para a pesquisa histórica, pois criou um medo e a des-
confiança, ainda hoje bastante presentes nas cúrias, de que todo e Numerosas questões relacionadas à administração pública são
qualquer pesquisador sistemático das fontes documentais católicas tratadas na correspondência que autoridades do Executivo manti-
seja um potencial mórmon ‘disfarçado’. Tal desconfiança tem sido nham com autoridades das mais diversas esferas: requerimentos ao
o fundamento de muitos dos entraves à pesquisa mantidos pelas Presidente da Província, nos ajudam a entender o funcionamento
cúrias, mal informadas do genuíno interesse acadêmico sobre seus do Estado Imperial.
preciosos papéis históricos.
Listas nominativas de habitantes
Arquivos de regimes repressivos
O uso das listas nominativas como fonte documental vem
Historiadores recorrem á essa fonte para conhecer os fatos que crescendo desde a década de 1970, informam a composição de
marcaram a repressão social e política resultante de um regime cada domicílio, indicando nome, idade, cor, estado civil, condição,
centralizador e autoritário iniciado em 1930 que culminou numa naturalidade e ocupação econômica, permitem análises bastante
reorientação do aparelho estatal. ricas e diversificadas das condições de vida cotidiana.
Autores que se dedicam à História da polícia e a órgão corre- O potencial dessa fonte é justamente permitir que se acom-
latos depois de 1930 destacam que, neste momento, foi feito, por panham domicílios ao longo dos anos, sejam eles dos mais ricos
assim dizer, um upgrade em relação a períodos anteriores, com ou dos mais pobres, de modo a perceber as flutuações na condição
maior profissionalização e melhor aparelhamento material incluin- material, o evoluir do ciclo de vida, a variação do uso da mão-
do uma ampliação dos contatos com e da influência de instâncias de-obra escrava com o passar dos anos e a saída dos filhos do lar
equivalentes em outros países(p.174). paterno.
As listas nominativas, permitem análises especialmente ricas
Cartas sobre a estrutura da família e do domicílio.

O crescimento do gênero autobiográfico remonta ao século Matrículas de classificação de escravos


XIX, quando preenchia funções definidas como educação do eu,
ou interiorização de normas e convivência em determinados meios Essas listagens permitem que se conheça a organização da
sociais, além de satisfazer à busca de intimidade e privacidade que força de trabalho escrava para os anos finais do Império, em um
acompanhou a implantação da ordem burguesa no Ocidente. momento em que tráfico internacional não mais existia há décadas.
A partir do século XVIII, as cartas adquiriram papel cada vez
mais relevante para a expressão dos sentimentos, emoções e expe- Listas de qualificação de votantes
riências. O hábito da correspondência tornou-se mais difundido,
alcançou diversas camadas sociais e constituiu-se em prática cul- São importantes para se identificar não somente os indivíduos
tural bastante apreciada tanto na Europa como na América. de mais alta renda em dada comunidade, mas, também, para se
Cabe ao historiador decidir o que irá buscar nesses documen- tentar perceber a divisão dos votos entre os diversos grupos rivais
tos, fazendo deles fontes ou objeto de História da Literatura, da locais.
Educação, da Cultura (estudo de prática de leituras e escrita, ques-
tões de gênero, preocupações intelectuais). Fonte ou objeto, as car- Documentos sobre imigração e núcleos coloniais
tas devem ser confrontadas com outros documentos. Conhecer o
contexto e, sobretudo, unir as duas pontas da correspondência - a O Encaminhamento dos imigrantes para o trabalho agrícola
passiva e a ativa – entre dois indivíduos permitem a construção de pode ser acompanhado de perto quando se dispõe dos papéis rela-
um quadro analítico rico. tivos aos núcleos coloniais.

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O encaminhamento dos imigrantes para o trabalho agrícola Arquivos do Poder Judiciário
pode ser acompanhado de perto quando se dispõe dos papéis rela-
tivos aos núcleos coloniais. A variedade de documentos é grande. É possível encontrar partes da documentação judiciária em
arquivos públicos, principalmente no que diz respeito ao período
Matrícula e frequência de alunos colonial. Estão disponíveis grandes séries de inventários e testa-
mentos, autos cíveis e auso crimes.
Chamam a atenção pela irregularidade da frequência dos fi- O conjunto de processos crimes e cíveis, bem como testamen-
lhos de uma população majoritariamente rural, onde os ciclos do tos e inventários forma recolhidos, em péssimo estado de conser-
trabalho agrícola tinham maior importância do que os bancos es- vação, ao Arquivo do Estado de São Paulo, e abrangem o período
colares na atração da presença infantil. entre finais do século XVI e início do XIX. Estavam, há até bem
pouco tempo, armazenados, de forma bastante precária, no conhe-
Diários pessoais cido arquivo-depósito existente n o bairro da vila Leopoldina, na
capital.
Gilberto Freyre, na década de 1930, reconhecia a importância
dessa fonte para o estudo da história. Arquivos institucionais
Pesquisas feitas com diários pessoais trouxeram como resulta-
do, visões do sujeito comum e ordinário que adquirem importância A exemplo de acervos dos Departamentos de Obras Públicas,
uma vez que as ações cotidianas são cada vez mais valorizadas. que guardam toda a sorte de plantas, mapas e projetos arquitetôni-
Outros textos tradicionalmente associados a escrituras pes- cos do governo do Estado ou do Município, inclusive dos antigos
soais são os relatos de viagem, comumente chamados de diários acervos das Secretarias de Viação e Obras Públicas.
de viajante e que proliferaram nos séculos XVIII e na primeira
metade do século XIX.. Arquivos privados
A produção de diários pessoais coincide com a ascensão polí-
tica e social da burguesia e com o consequente desenvolvimento Reúnem documentos particulares de indivíduos e famílias,
da vida nas cidades, aliado aos progressos da alfabetização femini- por vezes alocados em Memoriais ou Fundações, e que facilitam
enormemente o conhecimento de um personagem, de políticas de
na a partir dos finais do século XIX.
seu tempo e mesmo de uma época.
Pensando os diários como registros de vida produzidos indi-
vidualmente, mas que guardam traços culturais de um capital de
Museus
vivências da época de quem o escreve. O historiador pode investir
na interpretação de seus conteúdos.
Reúne documentos pertinentes às suas temáticas, permitindo a
visão contextualizada e abrangente de determinados temas, assun-
Fontes para o patrimônio cultural
tos e/ou objetos de estudo de interesse patrimonial.
O estudo do patrimônio é um campo que se serve de tudo o Pequena história do documento
que está disponível – das cartas aos prédios, da literatura a um
bairro inteiro e tudo o que for capaz de representar a dinâmica da A obsessão pelo registro sempre atendeu a uma compulsão ou
história(p.281). necessidade social mais moderna e quase que predominantemente
Os acervos contêm, grande volume de documentos referentes nas culturas chamadas ocidentais.
aos trabalhos de construção de benfeitorias durante o Império, ain- Conta-se que em tribos africanas do suaíles, as pessoas mortas
da muito pouco explorada em termos de pesquisa histórica. que permanecem vivas na memória dos outro são chamadas de
Essa documentação permite acompanhar todo o investimento “mortos-vivos”, pois eles acreditam que elas só estarão comple-
feito pelo Estado, desde o Império, para modernizar a economia, tamente mortas quando a última pessoa que as conheceu morrer.
em um esforço que certamente teve padrões diferentes em cada Registros escritos e documentos relacionam-se com todas as
província. Também, é a possibilidade de se examinar a participa- atividades humanas, mas apenas uma delas, a História , eles apa-
ção das elites agrárias locais nesse processo. recem como elementos centrais. O famoso breviário de Langlois e
Seignobos começava com uma definição simples, concisa e dire-
Documentos sobre terras ta: “Documentos são os traços que deixaram os pensamentos e os
atos dos homens do passado”, mas terminava com uma afirmação
Contêm informações que podem ser utilizadas em disputas restritiva: “A História não é mais do que uma aplicação dos docu-
judiciais contemporâneas. mentos”(p.312).
Catalisador de tudo aquilo que foi designado pelo nome de
Arquivos do Poder Legislativo História positivista, metódica, cientificista, factual e tradicional,
o referido breviário – além de ter exercido uma influência enor-
Pode ser procurado para se consultar os originais da legisla- me nas concepções a respeito do documento e das tarefas a ele
ção, publicadas em diários oficiais e coleções legislativas. O mais associadas – parece ter sido excessivamente demonizado pelos
interessante, nesse sentido, é consultar as atas das sessões, em que historiadores da École des Annales nos anos de 1930, especial-
se podem acompanhar as discussões dos mais variados projetos le- mente por Lucien Febvre. Contudo, uma simples – e mais paciente
gislativos, com os vereadores, deputados e senadores defendendo releitura de Langlois e Seignobos conduz a duas anotações impor-
sues pontos de vista. tantes.(p.313).

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A primeira é que o tom predominante, apressadamente Anos 1960/70: Fernando Henrique Cardoso
acoimado de “positivista”, não é absolutamente generalizado. Limites e possibilidades históricas de emancipação e auto-
A segunda tem a ver com aquele conjunto de preceptivas co- nomia nacional no interior da estrutura capitalista internacional:
mumente chamado de “crítica documental”. Partindo de uma divi- dependência & desenvolvimento.
são – hoje equivocada – entre heurística , metódica e sistemática,
certamente o breviário exagerou no detalhamento das operações Autor
críticas – externas e internas – ao documento, demasiado impa-
ciente para estabelecer a autenticidade e a verdade(p.315). José Carlos Reis é historiador e filósofo, possui graduação
Buscar a autenticidade dos documentos ou testemunhos, em si em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1981),
próprios , não é algo que podemos desprezar. mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais
A busca da verdade e da autenticidade pelos traços que sub- (1987), mestrado em Filosofia pela Université Catholique de Lou-
sistiram do passado deve continuar, porque faz parte de nós e de vain (1989) e doutorado em Filosofia pela Université Catholique
nossa cultura. de Louvain (1992). É pós-doutor pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales (Paris, 1996/97) e pela Université Catholique
Bibliografia de Louvain (Bélgica, 2007/08). Atualmente é professor associado
Livro: O historiador e suas fontes; 4 da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na
Autores: Carla Bassanezi Pinsky e Tania Regina De Luca; área de História, com ênfase em Teoria da História e História da
BLOCH, Marc. Introdução à História. Publicações Europa Historiografia, atuando principalmente nos seguintes temas: epis-
-América, (s/d). temologia, temporalidade, historiografia brasileira, historiografia
------------------. Apologia da História ou O Ofício de Histo- francesa, pensamento histórico alemão. Concluiu 11 orientações
riador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002 de mestrado e 5 de doutorado. É autor de 11 livros.

Sinópse
15. REIS, JOSÉ CARLOS. AS O autor, José Carlos Reis retoma e analisa algumas das mais
IDENTIDADES DO BRASIL: DE VARNHAGEN importantes interpretações do Brasil, aquelas que ultrapassaram a
A FHC. RIO DE JANEIRO: FUNDAÇÃO GE- condição de simples referências intelectuais, de meros modelos
TÚLIO VARGAS, 2002. discursivos, para se tornar as ‘inventoras’ das identidades do Brasil
vivido e real, orientando os brasileiros em suas opções políticas,
em sua auto-identificação e auto-representação. O autor sobrevoa
120 anos do pensamento histórico brasileiro - de Varnhagen, nos
Sumário anos 1850, a Florestan Fernandes e FHC, nos anos 1970.

Esta obra está dividida em duas partes: Comentário

Parte I – O “Descobrimento do Brasil” Quem somos nós, os brasileiros? Ser brasileiro será bom ou
Anos 1850: Varnhagen ruim, motivo de orgulho ou de vergonha? Você gosta sinceramente
O elogio da colonização portuguesa de se sentir brasileiro? Em busca de nossa identidade, José Car-
Anos 1930: Gilberto Freyre los Reis analisa criticamente as narrativas e teorias de autores que
O reelogio da colonização portuguesa interpretaram a ‘civilização brasileira’, desde a ótica da extrema
direita até a da rebeldia mais radical, construíram uma intriga de
Parte I I – O “Redescobrimento do Brasil” nossa história e fizeram um retrato de corpo inteiro do Brasil.
Anos 1900: Capriano de Abreu
O surgimento de um povo novo: o brasileiro Resumo

Anos 1930: Sergio Buarque de Holanda Os historiadores reescrevem continuamente a história. E o fa-
A superação das raízes ibéricas zem talvez por duas razões principais:
Em primeiro lugar, pela especificidade mesmo do objeto do
Anos 1950: Nelson Werneck Sodre conhecimento histótico: os homens e as sociedades humanas no
O sonho da emancipação e da autonomia nacionais tempo. O sentido dos processos e eventos humanos, que são tem-
porais, não é conhecível imediatamente. Os homens e as socie-
Anos 1960: Caio Prado Jr. dades humanas, por serem temporais, não permitem um conheci-
A reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia mento imediato, total, absoluto e definitivo. A história só se torna
nacional visível e apreensível com a sucessão temporal. A reescrita contínua
da história torna-se, então, uma necessidade. Os contemporâneos
Anos 1960/70: Florestan Fernandes estão imersos no tempo vivido e têm dificuldade para ascender a
Os limites reais, históricos, à emancipação e à autonomia na- um tempo pensado, à reflexão sobre seu próprio vivido. A histó-
cionais: a dependência sempre renovada e revigorada ria não é transparente e não se deixa interpretar imediatamente,
enquanto é vivida, embora o contemporâneo se deixa iludir pelo

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brilho e barulho de personalidades, gestos, ações e discursos. É ções da história. Toda interpretação, que é uma atribuição de sen-
somente com algum distanciamento, apenas no final do dia vivido, tido ao vivido, se assenta sobre um “mirante temporal”, um ponto
que o seu sentido pode ser interpretado. O passado é o dia/vivi- de vista, em um presente – vê-se a partir de um lugar social e um
do; o presente a noite/reflexão. O presente é ambíguo: em relação tempo específicos. O desdobramento do tempo pode mudar a qua-
a si próprio é sonhador, noturno; em relação ao passado, assume lidade da história, interpretações inovadoras emergem com a sua
uma posição reflexíva, interrogadora, procurando alcançar indire- passagem. Não há um passado fixo, idêntico, a ser esgotado pela
tamente luzes sobre ele próprio. O passado é uma referência de história. As esperar futuras e vivências presentes alteram a com-
realidade, sem a qual o presente é pura irreflexão. preensão do passado. Cada geração, em seu presente específico,
Assim, o historiador é também um “pássaro de minerva”: pas- une passado e presente de maneira original, elaborando uma visão
sa a noite reexaminando o dia. Por outro lado, não tem certeza de particular do processo histórico. O presente exige a reinterpretação
que pode conhecer o passado-dia, pois a noite-presente em que ele do passado para se apresentar, se localizar e projetar o seu futuro.
está é o lugar do sonho. Ao tematizar o dia, ele o conhece ou o ima- Cada presente seleciona um passado que deseja e que lhe interessa
gina? Sempre estará dominado por essa dúvida. Talvez seja exage- conhecer. A história é necessariamente escrita e reescrita a par-
rado afirmar com a tradição que, quanto mais afastado no tempo o tir das posições do presente, lugar da problemática da pesquisa e
historiador se encontra, mais vasta e profunda é sua percepção do do sujeito que a realiza. Febvre considera que a função social da
passado. Mas, esta não é uma tese sem peso teórico. É do alto da história é “organizar o passado em função do presente” (Febvre,
montanha, é dos ombros do gigante-tempo, que se contempla um 1992). Um novo presente sobre o passado e o futuro se elabora
horizonte mais amplo. Na verdade, é de madrugada, tarde da noite, sob as pressões do presente vivido. A partir do presente, a visão do
que o dia anterior é melhor pensado e organizado e também ima- passado se altera e age sobre a visão e a produção do futuro.
ginado! Algumas possibilidades objetivas são consideradas para Em segundo lugar, a história é reescrita porque o conhecimen-
uma melhor compreensão do que de fato se passou. E se... tivesse to histórico muda, acompanhando as mudanças da história. Novas
sido diferente? O tempo não se revela de uma só vez, portanto. fontes, novas técnicas, novos conceitos e teorias, novos pontos
Os sentidos dos eventos não é conhecível enquanto eles ocor- de vista levam à reavaliação do passado e das suas interpretações
rem. A história é sucessão processual: os acontecimentos emer- estabelecidas. Há uma transposição para essa nova linguagem do
gem, submergem, explodem, adormecem, dependendo do seu rit- patrimônio do passado. O passado é, então, repensado e ressigni-
mo próprio. O evento pode ser anódino no presente e ser decisivo ficado de forma renovada e fecundada. Além disso, dessas razões
no futuro: o que era secundário e nem percebido pelo contempo- teóricas e técnicas, aparecem novos historiadores, indivíduos ta-
râneo emerge no futuro com grande importância; o que era visível lentosos, formados na leitura dos clássicos e na história presente,
e importantíssimo vai perdendo eficácia histórica com o passar do que formulam novas questões ou reformulam questões clássicas,
tempo. As obras históricas são também históricas, temporais, e têm oferecendo-lhes respostas surpreendentes, que influenciarão a re-
uma duração determinada, que às vezes, é bem curta. Elas enve- presentação que a sociedade em que vivem tem dela própria seu
lhecem e exigem uma revisão, uma reelaboração, uma reescritura passado. Novos historiadores, ligados organicamente a novos su-
(Schaff, 1978). jeitos históricos, reinterpretam a história segundo as suas necessi-
Para Koselleck, conhecer um mundo histórico é responder a dades e a sua forma particular de relacionar o passado e o futuro
esta questão maior: como, em cada presente, as dimensões tempo- (Schaff, 1978).
rais do passado e do futuro foram postas em relação? Para ele, se As novas questões, apoiadas em uma teoria e metodologia
se determina, em um presente, a diferença entre passado e futuro, renovadas e em grupos sociais e intelectuais inovadores, alteram
entre campo da experiência e horizonte de espera, torna-se possí- as relações das dimensões temporais entre elas. Uns historiadores
vel apreender alguma coisa que seria chamada de tempo histórico. articulam as dimensões temporais enfatizando o passado; outros,
Quem realiza esta operação cognitiva é a história, que torna visí- o futuro; outros, ainda, o presente. Criam-se visões da história re-
vel e dizível a experiência temporal. A história é a reconstrução gressivas, conservadoras e modernizadoras. A renovação teórico-
narrativa, conceitual e documental, em um presente, da assimetria metodológica não abole o condicionamento da produção histórica
entre passado e futuro. Passado e futuro reenviam-se um ao outro em um presente e lugar social. Não cria um efeito de neutralidade,
e são assimétricos, diferentes, e esta sua relação é que dá sentido à imparcialidade, que aboliria a condição temporal do projeto e da
ideia de temporalização. O presente muda e, nesta sua mudança, o pesquisa – é uma tentativa de salvar a objetividade ao não se pre-
passado e o futuro são constantemente rearticulados, obrigando à tender um impossível ponto de vista supra-histórico (Koselleck,
reescrita da história. Na experiência individual, por exemplo, o en- 1990).
velhecimento modifica a relação entre espera e experiência. Quan- Entretanto, o conceito filosófico de “verdade” é complexo, e
do se é mais jovem ou mais velho, o passado e o futuro significam suas relações com a história/tempo o são ainda mais (Domingues,
diferentemente, e sua relação se altera. Assim, também terminada, 1996; Ricoeur, 1968). Não poderemos nos estender em sua teo-
e ao historiador interessa conhecer a sua “idade interna”, ou seja, rização, embora seja o núcleo que conecta as diversas visões do
a relação que em seu presente, que muda sempre, cada sociedade Brasil aqui apresentadas. Pensamos a verdade histórica com os
estabelece com o seu passado e o seu futuro (Koselleck, 1990). conceitos de “interpretação” e de “compreensão”, que implicam
Dominada pela temporização, portanto, a imagem da história reconstruções temporais parciais, múltiplas, relativas, não-defini-
vivida muda constantemente como em um holograma. Os acon- tivas e ao mesmo tempo raciais, não-subjetivas e não-relativistas.
tecimentos históricos exigem sucessão, precisam do tempo, para Interpretar é atribuir sentido a um mundo histórico determinado
revelar o seu sentido. A sensibilidade historiadora se ancora no em uma época determinada; compreender é, a partir dessa atribui-
tempo, na interrelação sempre mutante entre passado, presente e ção de sentido, autolocalizar-se no tempo, retendo, articulando e
futuro. As mudanças no processo histórico alteram as interpreta- integrando suas próprias dimensões temporais. Cada mundo his-

Didatismo e Conhecimento 106


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
tórico é dominado pelo tempo e muda. As suas interpretações e No período de independência política o imperador precisa-
autocompreensões também mudam, sem deixar de se referir a ele va muito da história e dos historiadores e assim criou o Instituto
em um de seus momentos. Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB em 1838/39, que até
Portanto, por essas duas razões, o objetivo temporal e a reno- 1931/33 foi o único centro de estudos históricos do Brasil. Essa
vação teórico-metodológica e de quadros humanos, entre outras, o necessidade era advinda da necessidade de legitimar o poder. Era
conhecimento histórico se faz sob o signo da mudança. Todo his- preciso ‘dar’ um passado a nação independente no qual era pu-
toriador quer escrever uma nova história, quer oferecer um ponto desse orgulhar-se e ter confiança para avançar no futuro. Nesse
de vista mais abrangente e mais seguro. As escolas históricas, no processo tornou preciso encontrar referências luso-brasileiras para
entanto, se iludem ao pensar que o seu novo ponto de vista é único tornar-se modelos para as futuras gerações. (Reis, 2001:25).
e definitivo, que descobriram a “verdade da história”, que estabe- Desse modo o IHGB teria a tarefa de, segundo Reis, situar
as cidades, relevos, hidrografias, fauna e flora, riquezas minerais,
leceram o conhecimento histórico em bases objetivas, científicas.
céu, clima, além dos limites do território, na área geográfica e na
Em defesa da sua nova interpretação definitiva, cada uma delas
área histórica, eternizar fatos memoráveis da pátria e salvar do
desvaloriza os historiadores e as interpretações anteriores, em ge- esquecimento os nomes dos seus melhores filhos, através de pu-
ral com os mesmos adjetivos empregados pelos “novos” anteriores blicações, estudos e relacionamento com outras instituições con-
para desautorizar os seus predecessores – ultrapassado, equivoca- gêneres. (Reis, 2001:26).
dos, positivistas, ideológicos, reacionários... –, ignorando a condi- Em seu livro As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC,
ção temporal de toda elaboração histórica. A verdade histórica, ela Reis afirma que a proposta de síntese da história do Brasil não
é fundamentalmente histórica. Não há métodos e histórias defini- foi realizada, contudo, por Karl Philipp von Martius, botânico e
tivas que levem (ou tragam) à “verdade absoluta no tempo”. Em viajante alemão, vencedor do prêmio estabelecido em 1840, pelo
cada presente, o que se tem é uma visão parcial, uma articulação IHGB, para quem elaborasse o melhor plano para a escrita da his-
original do passado e do futuro. A história é visada segundo pers- tória do Brasil, com a monografia Como se deve escrever a história
pectivas diversas , e, com o avanço do tempo, as proposições his- do Brasil, publicada na Revista do IHGB, em 1845. Em linhas
tóricas mudam. Todo historiador é marcado por seu lugar social, gerais von Martius escreveu que a identidade brasileira deveria ser
por sua “data” e por sua pessoa. Veem-se sempre aparecer obras buscada na mescla de raças, onde o português foi o conquistador
novas sobre o mesmo assunto. Á medida que o tempo passa, novas e senhor, o inventor e motor e aventureiro; os indígenas também
experiências são acrescentadas às precedentes, e novas esperas são foi dado ênfase; ao negro, foi breve, deixada a dúvida se o Brasil
desenhadas. O passado é assaltado por interrogações novas, que “teria tido um desenvolvimento diferente sem a introdução dos
negros escravos?”. Após von Martius todas as respostas foram ne-
oferecem respostas diferentes das anteriores. Em cada presente há
gativas até a publicação de Casa grande & Senzala, de Gilberto
um esforço de compreensão: de autolocalização pela rearticulação
Freyre em 1933 (Reis, 2001:27).
de passado e futuro. São essas autolocalização e organização que Voltando em Von Martius e em Como se deve escrever a
temporais, originais em cada presente, que possibilitam as estraté- história do Brasil, onde ele considera que o historiador do Brasil
gias de ação que cada presente oferece. deveria fazer uma história da unidade brasileira, centralizada no
Imperador, enfatizando a unidade em todos os aspectos – usos e
Reis ressalta a importância e a contribuição de cada historia- costumes, climas, atividades econômicas entre outras. Ele também
dor e pensador social na descoberta e na formação das identidades propõe que se faça histórias regionais centralizadas. E para auxi-
do Brasil, analisadas dentro do tempo em que suas ideias foram liar nesse processo era primordial viajar pelo Brasil, conhecer as
concebidas, contribuindo para apertar os laços com uma tradição províncias assim “seu texto deverá ser patriótico, despertando o
rica porém relegada em favor da cultura up to date. São esses his- amor ao Brasil”. Mas diante da enormidade do trabalho Von Mar-
toriadores que traçaram, ou melhor seria dizer que inventaram, as tius não levou seu projeto adiante, essa tarefa coube a Francisco
identidades do Brasil e consequentemente orientaram os brasilei- Adolfo de Varnhagen (Reis, 2001:28).
ros em suas opções de auto identificação e auto representação. Varnhagen é Filho de engenheiro alemão e mãe portuguesa,
O tempo, de aula, não nos foi suficiente para refazer os 120 Varnhagen (1816 - 1878) foi para Portugal ainda criança. Ao re-
anos abordados por Reis em As Identidades do Brasil, a viagem gressar para o Brasil, e com a coroação de Dom Pedro II, adotou a
teve que ser um pouco mais curta e a apreciação ficou por conta nacionalidade brasileira. Segundo Reis, Varnhagen é considerado
dos: Anos 1850: Varnhagen: O elogio da colonização portuguesa; o “Heródoto brasileiro” e nessa condição o fundador da história do
Brasil, com o livro História geral do Brasil de 1850, onde refletia
Anos 1930: Gilberto Freyre: O relógio da colonização portuguesa;
uma preocupação com a documentação sobre o passado brasileiro
Anos 1900: Capistrano de Abreu: O surgimento de um povo novo:
(Reis, 2001:23).
o brasileiro; e, Anos 1930: Sérgio Buarque de Holanda: A supera- Varnhagen por frequentar os arquivos dos lugares que passava
ção das raízes ibéricas. foi o iniciador da pesquisa metódica e nos arquivos estrangeiros
Varnhagen e Gilberto Freyre trabalham na identificação das encontrou e elaborou inúmeros documentos relativos ao Brasil.
forças que reproduziram e renovaram a dependência com os des- Por viver muito tempo no exterior se empenhou com obstinação
cobridores (portugueses), já Capistrano de Abreu e Sérgio Buar- na escrita da história do Brasil, mas quanto à sua formação histo-
que de Holanda trabalharam as forças que produziram a autonomia riográfica, teria sido mais um autodidata. (Reis, 2001:24).
e a emancipação brasileira. Duas correntes de pensamento, uma
positivista e outra marxista, nos permite ressaltar a complexidade Bibliografia
historiográfica brasileira ao mesmo tempo que nos ajudam a ver Livro: As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC;
uma sociedade colonial numa perspectiva ampla através de obje- Autores: José Carlos Reis.
tos, fatos e fontes. Referências:

Didatismo e Conhecimento 107


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E agora? Como minimizar essa quebra de expectativas? Aqui
16. RUSEN, JORN. O LIVRO DIDÁTICO vai a minha alternativa. Em Jörn Rusen e o ensino de história, no
IDEAL. IN: SCHMIDT, MARIA AUXILIADO- texto que prescreve o livro de história didaticamente correto – um
RA; BARCA, ISABEL E MARTINS, ESTEVÃO instrumento que tem a função de potencializar as competências da
DE REZENDE. JORN RUSEN. O ENSINO DA percepção, interpretação e orientação históricas –, nosso filósofo
HISTÓRIA. CURITIBA: EDITORA UFPR, 2011. tece considerações gerais acerca da “utilidade [do livro didático]
para o ensino prático”. E é, exatamente, nessa exposição despre-
tensiosa – sobre as funções que o livro didático deve cumprir (para
além da sua contribuição como “canal” dos resultados da pesquisa
histórica ou do “impulso” à aprendizagem histórica) – que pode-
Autor mos encontrar de forma clara algumas respostas relacionadas aos
problemas-chave de uma didática da história à brasileira (ou da
Os seus textos e investigações abrangem, sobretudo, os cam- teoria do currículo à americana).
pos da teoria e metodologia da história, da história da historiogra- Dito de outra forma, aí, nesse fragmento produzido a partir da
fia e da metodologia do ensino de história. vulgada sobre a didática da história na Alemanha, podemos colher
Rusen estudou história, filosofia, literatura e pedagogia na as ideias de finalidades, seleção e progressão de conteúdos, apren-
Universidade de Colônia, onde se doutorou em 1966, com um tra- dizagem, estratégias de ensino e avaliação.
balho sobre a teoria da história do intelectual oitocentista Johann
Gustav Droysen. Didática Ruseniana à brasileira
De 1974 a 1989, foi professor na Universidade de Bochum. Comecemos com as finalidades. Já sabemos que a história
Em 1989, transferiu-se para a Universidade de Bielefeld, um im- como disciplina escolar tem a função de desenvolver as compe-
portante pólo de pesquisas históricas na Alemanha da segunda tências de percepção, interpretação e orientação – contribui para a
metade do século XX, ao qual também estiveram ligados histo- formação da consciência histórica. Mas, no fragmento em questão,
riadores como Jurgen Kocka, Reinhart Koselleck, e Hans-Ulrich Rusen indica a necessidade de os alunos terem acesso aos objeti-
Wehler. Em 1997, Rusen transferiu-se para a Universidade de Wit- vos, às “intenções didáticas”, ao “conteúdo” e aos “conceitos me-
ten, à qual se encontra vinculado até o presente. Em Bielefeld, Ru- todológicos de ensino” de forma clara.
sen foi o diretor do Centro de Pesquisas Interdisciplinares (ZIF). Sobre a escolha desses conteúdos, Rusen afirma: tem que
De 1997 a 2007, foi também o presidente do Instituto de Altos “guardar uma relação com as experiências e expectativas dos alu-
Estudos em Ciências Humanas (Kulturwissenschaftlichen Institut/ nos”. Em outras palavras, os materiais apresentados aos alunos
KWI) de Essen. (documentação, narrativas) e as atividades a ele destinados têm
que ser significativos. É o interesse presente e futuro do aluno
Resumo quem comanda a seleção do material. Ele, no entanto, ressalva:
há que contar também com alguma matéria que contemple “as ne-
A obra encontra-se em caráter abstrato da discussão, ausência cessidades de orientação no conjunto da sociedade”. Embora tais
de comentadores dedicados à propedêutica, o sutil distanciamento matérias sejam dispostas de forma fragmentada nos conteúdos, a
entre os conceitos, a exemplo de cultura, cultura histórica, forma- seleção destes, repetimos, deve resumir-se aos interesses indivi-
ção, aprendizado e consciência histórica etc. Uma delas, entretan- duais-pessoais dos alunos.
to, não está na própria obra, mas na expectativa que criamos sobre Sobre a aprendizagem Rusen se esparrama por todos os volu-
o que ela poderia oferecer. mes da sua teoria. Mas, nesse trecho ele desce ao chão da escola
Claro que há vários trechos da sua teoria da história dedicados quando defende a necessidade de traduzir a matéria às peculiarida-
à definição, estrutura, forma e função de uma didática da histó- des cognitivas dos alunos. É preciso distribuí-la “de acordo com a
ria. O problema é que a didática da historia, criticada e prescrita capacidade de compreensão” (Rusen, 2010, p. 116).
por Rusen é um campo de investigação, obviamente, alemão. Ele
até esboça algumas definições bastante familiares aos brasileiros, Jörn Rusen
como neste exemplo: a didática histórica é uma disciplina respon- Além de por o aluno no centro do ensino-aprendizado, nosso
sável pela formulação da “competência específica para a sala de teórico também se preocupa em tornar o processo mais prazeroso.
aula” (Rusen, 2007, p. 90). Aí alerta aos profissionais: não há que fazer malabarismos. “A ex-
Mas, quando se debruça objetivamente sobre o tema, informa periência histórica tem um potencial próprio de encantamento que
que o objeto da didática da história é a “consciência histórica”. E, se pode aproveitar com oportunidade de aprendizagem” (Rusen,
ainda, que “a didática da história se volta para aqueles processos 2010, p. 117). Dizendo de outra forma, a matéria veiculada nas
mentais ou atividades da consciência [...] que geralmente encon- aulas de história é, em si mesma, um reforçador natural. Não é
tram-se por trás dos conteúdos e que habitualmente ficam velados necessário muito esforço para fazer com que os alunos estudem
ao aprendiz” (Schörken, 1972, p 84 apud. Rusen, 2010, p. 42, gri- história confortavelmente.
fos de Schörken). Dizendo de um modo bem brasileiro: a didática Por fim, a estratégia de ensino. É fundamental “estabelecer
da história de Rusen ganha o sentido de uma espécie de “psicolo- uma boa relação com o aluno”. A ação é simples. Deve o mestre
gia do desenvolvimento”, que se preocupa primordialmente com a “dirigir-se a ele explicitamente”. Não esqueçamos que Rusen está
natureza mental dos humanos e não, como esperávamos no início a tratar de livro didático. Mas, pensem na sala de aula e verão que
da leitura, com o anúncio de estratégias para ensinar e aprender o conselho se encaixa (apesar da indiferença de muitos mestres
história em sala de aula. com os seus pupilos). A honestidade e a clareza na exposição dos

Didatismo e Conhecimento 108


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temas, no anúncio da perspectiva teórica de interpretação e a re- um dos mais importantes críticos literários e culturais dos Estados
ferência direta (estou falando com você) são valores e estratégias Unidos, Said escreveu dezenas de artigos e livros sobre a questão
que podem convencer o aluno de que ele é realmente o sujeito da palestina. Morreu em 2003. Dele, a Companhia das Letras já
aprendizagem, que o professor não está fingindo e, ainda, de que publicou Orientalismo (em edição convencional, 1990), Cultura
o processo de didatização significa idiotização. Em termos bem e imperialismo (1995), Paralelos e paradoxos (2003), Reflexões
brasileiros, Rusen propõe uma relação dialógica com o aluno. sobre auxílio (2003), Fora do lugar (2004), Representações do
intelectual (2005) e Humanismo e crítica democrática (2007).
Bibliografia
Livro: O livro didático ideal; Sinópse
Autores: Jörn Rusen;
Referências: FREITAS, I. O Oriente como invenção do Ocidente constitui trabalho
crítico de Said em que a representação que o Ocidente faz do
Oriente comporta as formas de negação que o Ocidente faz desse
outro ente que é o oriental e seus valores. Para melhor entendimento
17. SAID, EDWARD W. ORIENTALISMO: dessa obra se estabelecerá uma relação comparativa com o trabalho
O ORIENTE COMO INVENÇÃO DO de Jean Delumeau que sob o título história do medo no ocidente
OCIDENTE. SÃO PAULO: EDITORA também apresenta a visão perspectiva que o Ocidente faz do
COMPANHIA DAS LETRAS, 1996. oriente, inclusive, com sua consequente demonização. A trajetória
de Said inclui noções geográficas do imaginativo ocidental e
conclui a obra com uma proposição sobre o orientalismo hoje
que, de modo especial na política norte americana, ainda relega ao
Oriente, todo o fundamentalismo irracional que o mundo civilizado
Sumário nega e procura exorcizar à custa de novas “guerras santas”.

A estrutura da obra textual está dividida da seguinte maneira: Comentários

Agradecimentos Venho lendo sobre o orientalismo por alguns anos, mas a maior
Introdução parte deste livro foi escrita em 1975-6, período que passei como
bolsista no Center for Advanced Study in the Behavioral Sciences
1. O alcance do orientalismo (Centro de Estudos Avançados nas Ciências do Comportamento),
Conhecendo o oriental em Stanford, Califórnia. Nesta instituição singular e generosa tive
A geografia imaginativa e suas representações: orientalizando a sorte de me ter agradavelmente beneficiado não só da companhia
o oriental de vários colegas como também da ajuda de Joan Warmbrunn,
Projetos Chris Hoth, Jane Kiels­meier, Preston Cutler e do diretor do centro,
Crise Gardner Lindzey. A lista de amigos, colegas e estudantes que
leram ou escutaram partes deste manuscrito ou todo ele é tão longa
2. Estruturas e reestruturas orientalistas que me deixa embaraçado, e, agora que ele finalmente apareceu
Fronteiras retraçadas, questões redefinidas, religião na forma de livro, é capaz de embaraçar a eles também. Mesmo
secularizada assim, tenho de mencionar com gratidão o sempre prestimoso
Silvestre de Sacy e Ernest Renan: antropologia racional e encorajamento de Janet e Jbrahim Abu-Lughod, Noam Chomsky e
laboratório filológico Roger Owen, que acompanharam este projeto do início até o final.
Tenho de reconhecer o interesse prestativo e crítico dos colegas,
Residência e erudição oriental: os requisitos da lexicografia
amigos e estudantes de vários lugares, cujas questões e discussão
e da imaginação
esclareceram consideravelmente o texto. André Schiffrin e Jeanne
Peregrinos e peregrinações, britânicos e franceses
Morton, da Pantheon Books, foram o editor e a revisora ideais,
e tornaram a experiência penosa (pelo menos para o autor) de
3. O orientalismo hoje preparar o manuscrito um processo instrutivo e genuinamente
Orientalismo latente e manifesto inteligente. Mariam Said ajudou-me enormemente com a sua
Estilo, perícia, visão: a mundanidade do orientalismo pesquisa sobre os primórdios da história moderna das instituições
O orientalismo anglo-francês moderno em seu apogeu orientalistas. Além disso, porém, o apoio amoroso dela foi o que
A fase mais recente tornou grande parte do trabalho neste livro não apenas agradável,
mas possível. (E. W.S.).
Notas
índice remissivo Resumo
Sobre o autor
O alcance do orientalismo
Autor
A obra tem por objeto o estudo do orientalismo, entendido
Edward W. Said nasceu em Jerusalém em 1935. Filho de como um conjunto de diversas realidades interdependentes, nas
árabes cristãos, foi educado no Cairo e, mais tarde, em Nova York, quais se destaca a construção acadêmica e doutrinária desenvolvida
onde lecionou literatura na Universidade Columbia. Considerado pelos povos ocidentais, em relação ao Oriente. No primeiro

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capítulo, denominado “O âmbito do Orientalismo”, o autor disserta ótica diversa daquela exclusivamente europeia. Como exemplo,
sobre o alcance do Orientalismo, trazendo a visão ocidental acerca o trabalho desenvolvido pelo estudioso Abraham-Hyacinthe
do Oriente. Inicia seu relato voltando-se ao pensamento europeu Anquetil-Duperron, e também por William Jones, que igualmente
durante o século XIX (e também nos primórdios do século XX). interferiram na forma com que se via o “mundo oriental”. Graças
Primeiramente, através da exposição do discurso proferido a eles, o sânscrito, a religião e a história indiana passaram a ser
por Arthur James Balfour à Câmara dos Comuns, no ano de admitidos como fontes de conhecimento científico.
1910, denota a condição de superioridade autoproclamada pela Todavia, explicita o autor que “o conhecimento apropriado do
comunidade europeia (essencialmente os ingleses) em detrimento Oriente começava por um completo estudo dos textos clássicos e só
às civilizações orientais – no caso descrito, os egípcios. Isto porque depois passava a aplicação desses textos ao Oriente moderno. Em
o Egito, conquanto colônia da Inglaterra, havia sido, durante os face da óbvia decrepitude e impotência política do oriental moderno,
anos anteriores, administrativamente subordinado aos britânicos. o orientalista europeu considerava como dever dele resgatar urna
As ideias de dominação intelectual advinham de uma linha de parte de urna perdida grandeza c1ássica do passado oriental, de
pensamento desenvolvida pelos próprios colonizadores, baseados maneira a “facilitar os melhoramentos” no Oriente do presente. O
em sua visão pessoal, e no convívio com os colonizados. Ao que o europeu tomava do passado clássico oriental era urna visão
empreender contato com sua raça, cultura, tradições, história e (e milhares de fatos e artefatos) que apenas ele podia empregar com
caráter, e lançar juízos de valor, estabelecendo comparação com maior vantagem; para o oriental moderno ele dava facilitações e
sua própria realidade, terminavam por conceituar o oriental sob melhoramentos - e, também, o benefício do seu julgamento sobre o
títulos por vezes degradante. Para o estudioso, o homem oriental que era melhor para o Oriente moderno”. (p. 88)
era sempre contido e representado por estruturas dominantes. As incursões de Napoleão ao Egito, embora visassem a
Destas estruturas, nasceram os juízos que compõem o conceito dominação do local, também foram de grande valia aos projetos
de orientalismo. Embora o autor saliente que se trata de conceito orientalistas. O imperador, fascinado pelo Oriente, solicitou
extremamente vago, é dele que derivam as noções do Oriente trabalhos de muitos sábios, destacando-se aqueles desenvolvidos
grafadas pelos manuais, livros e demais produções do Ocidente. pelo conde de Volney, para desenvolver seu conhecimento sobre
Defende o autor, assim, que a acepção pela qual se divide o mundo o local.
em “oriente” e “ocidente”, embora resguardada sob inocente Assim, ao iniciar seus projetos de conquista, intentou
desígnio de mera distinção, serve, na realidade, para intensificar a dominação pela conquista da confiança dos habitantes,
as diferenças e obstar quaisquer tentativas de aproximação entre as inclusive misturando-se a eles em suas manifestações culturais
culturas. A tradição orientalista, ao apontar a existência de tantas e desenvolvendo relações próximas com muçulmanos. Napoleão
diferenças, constitui-se num convite à subjugação oriental. tinha, entretanto, muitos outros objetivos: pretendia “instruir” o
Explica que um conceito mais restritivo de “orientalismo” Oriente, dentro das maneiras do Ocidente, subordinar seu poderio
conceituaria o termo como um campo de estudos eruditos, fundados militar e reformular a cultura, identidade e definição do Oriente,
na unidade geográfica, cultural, linguística e étnica do Oriente. alocando-o dentro da história de “glórias” do próprio imperador.
Geograficamente, é como se houvesse uma linha imaginária a Todavia, o fracasso das pretensões napoleônicas não foi
dividir o continente europeu do asiático com linhas muito mais capaz de destituir a importância de suas notáveis contribuições de
profundas. Culturalmente, a própria literatura e arte produzida cunho artístico, textual e cientifico. Ademais, seguiram-se novas
no Ocidente tende a corroborar este pensamento. O autor cita, missões ao Oriente, em busca de um período de “novos projetos,
como exemplo, passagens da Divina Comédia, do italiano Dante novas visões, novas empreendimentos que combinassem partes
Alighieri, em que o profeta Maomé é visto como “morador do adicionais do velho Oriente com o espírito conquistador europeu”
inferno”, dentre outras obras. Desta forma, o estudioso explicita (p. 96). O século XIX trouxe, assim, novas possibilidades e
que não pode ser adotado deforma plena, filosoficamente, o perspectivas, inda mais depois da histórica conquista de De
pensamento e visão orientalista, sob risco de tomar por realidade o Lesseps, ao atravessar o Canal de Suez. Surgiram novos estudiosos
que constitui, tão somente, uma visão distorcida. Para ele, do ponto e farta produção acadêmica.
de vista psicológico, o orientalismo é uma “paranoia”, resultado de Neste sentido, salienta que para o Ocidente, a Ásia representara
conceitos e ideias traçados desde o século XIX. A grande verdade outrora a distância silenciosa e a alienação: o Islã era a hostilidade
é que o desenvolvimento das ideias sobre o mundo oriental sempre militante ao cristianismo europeu. Para superar essas temíveis
foi processo eivado de preconceitos. O autor cita, como exemplo, constantes, o Oriente precisava primeiro ser conhecido, depois
a biografia do profeta Maomé, escrita por Humphrey Prideaux, que invadido e possuído, e então recriado por estudiosos, soldados
tinha como subtítulo “A verdadeira natureza de uma impostura”. e juízes que desenterraram línguas, histórias, raças e culturas
Não se tratava de um “ataque” verbal ao profeta, mas ao próprio esquecidas, de maneira a situá-las - além do alcance do oriental
berço cultural que o gerou. moderno - como o verdadeiro Oriente clássico que poderia ser
Outra situação apontada pelo autor, quanto à visão trazida usado para julgar e governar o Oriente moderno. (p. 103)
pelo Orientalismo, diz respeito, essencialmente, ao Islã. A O autor, no entanto, critica estes trabalhos porque, em sua
referência de Oriente que temos, quando não incutida de exotismo maioria, baseavam-se tão-somente em perspectivas não-empíricas,
ou distância, volta-se para o islamismo em suas manifestações como aquelas a embasar a proposta Napoleônica. Identifica, no
culturais e de religiosidade. Anteriormente ao século XVIII, aliás, orientalismo ao longo do século XIX, dois traços principais: a
toda a conceituação de Oriente vinha impregnada de referências ao autoconsciência científica, baseada na importância linguística do
“ameaçadores” árabes, islâmicos e otomanos. Tal ideia só passou Oriente para a Europa, e a inclinação a interferir no tema sem, no
a ser modificada quando do surgimento de trabalhos científicos entanto, mudar de opinião sobre o Oriente como algo imutável,
que se voltavam à cultura e aos costumes ali perpetrados sob uniforme, embora peculiar (p. 107).

Didatismo e Conhecimento 110


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O Oriente era apenas “olhado”, observado, como salientara associando o Oriente às modernas disciplinas comparativas,
Flaubert. O orientalista moderno, assim, disfarçava sua antipatia como a filologia, conferindo maior visibilidade às estruturas do
de conhecimento profissional, e rigorosíssimo científico. O Orientalismo. Utilizava-se, assim, ao se referir ao Oriente, de uma
Oriente era visto apenas dentro de uma concepção técnica, que, linguagem extremamente enraizada em linhas filológicas, que
após a Primeira Guerra, perderia parte de seu encanto. Assim O era empolgada e romântica. Entretanto, por motivações pessoais,
campo de ação do orientalismo correspondia exatamente ao campo Renan havia substituído sua fé cristã pelo estudo do semítico e,
de ação do império, e foi essa absoluta unanimidade entre os dois ao fazer afirmações sobre povos judeus ou muçulmanos, o fazia
que provocou a única crise na história do pensamento ocidental sempre com severas restrições.
sobre o Oriente e nas suas tratativas com este. E a crise continua Assim, “todo o esforço de Renan foi para negar a cultura
até hoje (p. 113). oriental o direito de ser gerada, a não ser. artificialmente no
No século seguinte, a crise agigantar-se-ia, a ponto de laboratório filológico” (p. 156). Mas Renan não era o único.
estudiosos de renome passarem a referir-se ao Islã como mera “tenda Os orientalistas, como muitos pensadores do início do século
e tribo” (p. 114). Outras atitudes orientalistas contemporâneas XIX, concebem a humanidade como grandes termos coletivos
passaram a existir, evidenciando a nova ordem. Surgem as figuras ou como generalidades abstratas. Os orientalistas nem estão
dos chineses pérfidos, indianos seminus e muçulmanos passivos, interessados nem são capazes de discutir indivíduos; em vez
considerados mesmo como “abutres” à generosidade ocidental. disso, o que predomina são as entidades artificiais, talvez com
O homem ocidental passou a analisar, esmiuçar e julgar todo o raízes no populismo herderiano. Há orientais, semitas, asiáticos,
comportamento oriental. Conforme ressaltado pelo autor, os muçulmanos, árabes, judeus, raças, mentalidades, nações e coisas
textos orientalistas não poderiam, mesmo com tanta riqueza de do gênero, algumas delas o produto de operações eruditas do tipo
“detalhes”, preparar seus leitores ao grandes conflitos que se encontrado na obra de Renan. Do mesmo modo a distinção, velha
principiaram na região após o final da Segunda Guerra Mundial. de séculos, entre a “Europa” e a “Ásia”, ou “Ocidente” e “Oriente”
O mundo passaria a questionar, chocar-se e aumentar a carrega, sob rótulos muito abrangentes, todas as variações
distância, mais que física, entre os extremos. Como solução para possíveis da pluralidade humana, reduzindo-a no processo a urna
isto, aponta a necessidade de trabalhos despidos dos velhos e ou duas abstrações coletivas terminais. (p. 163).
novos preconceitos. Para o estudioso, “Investigar o orientalismo O autor cita, como embasamento, obras e pensamento de
é também propor modos intelectuais de tratar os problemas Marx que trouxeram considerações de grande importância sobre
metodológicos a que a história deu origem, por assim dizer, em o tema. Destaca, então, o trabalho de Lane, estudioso inglês
que reprogramava e re-situava essencialmente o Oriente quando
seu tema de estudos, o Oriente” (p. 119).
escrevia sobre ele. Utilizava-se da prosa normativa europeia para
descrever, de maneira acessível ao Ocidental, as excentricidades
Estruturas e reestruturas orientalistas
do oriental, com seus calendários diversificados, as diferenças
linguísticas e até mesmo a ausência do decoro moralista típico do
Deste modo, no segundo capítulo, intitulado “Estruturas
povo europeu. Salienta ainda que, ao longo do século XIX, houve
e estruturas orientalistas” o autor busca destrinchar,
um enriquecimento destas ideias por ser o Oriente um grande
cronologicamente, as principais obras e produções sobre o
núcleo de roteiros turísticos.
Oriente, indicando os mecanismos utilizados em sua produção e, A população estava ávida pelo Oriente, embora buscasse mais
ao mesmo tempo, trazendo uma farta explanação sobre como se um aspecto externo que interno. O orientalista, neste cenário, se via
deu o desenvolvimento, e também as transformações, das visões como um observador, escritor. Absorvia e exalava conhecimento,
acerca do Oriente. dentro da poesia, da atmosfera e das possibilidades que tanto
Neste capítulo, inicia evocando a necessidade de se retraçar encantavam o mero observador, viajante em busca de exotismo.
as fronteiras e redefinir as questões de estudo. Indica que, no Chateaubriand, francês, em suas expedições, também participou
orientalismo moderno, permanecem ainda os elementos de deste momento, retransmitindo suas experiências e impressões.
correntes de pensamento inerentes ao século XVIII – a expansão, Inúmeros estudiosos seguiram-se, buscando recolher notas e
o confronto histórico, a solidariedade e a classificação. Sem a construções acadêmicas pessoais acerca do Oriente. Destacam-
presença de tais elementos, aponta que, muito provavelmente, se, para o autor, os esforços de Burton, que, desenvolvendo
a concepção moderna do orientalismo não teria existido, mas se um trabalho intermediário entre o intenso subjetivismo e a
constituiria de ideais libertadores, amplos e realmente “modernos”. imparcialidade extrema, que eram características marcantes
O orientalista se autodenominava como um herói, um em seus antecessores, trouxe documentação farta e gerou uma
desbravador, mas, na opinião do autor, não o era. Isto porque não produção bem fundamentada e rica em detalhes.
deixava o Oriente “falar por si” (p. 131).Dois estudiosos, neste
aspecto, foram de fundamental importância, ainda no século XIX: O orientalismo hoje
Silvestre de Sacy e Ernest Renan. Sacy, em suas obras, tomava um
tom pessoal, isolando o Oriente e, de maneira didática, passava a O terceiro capítulo, cognomizado “O orientalismo hoje”,
exibi-lo, em suas partes mais representativas. inicia-se com um retorno às explanações iniciais, tendo por
Deste modo, trazia à tona seu poder, como autoridade no objeto reiterar o desígnio indicado pelos capítulos anteriores. O
assunto, de significar o Oriente, buscando decifrá-lo e, a seguir, autor explica que, pela utilização de obras dos grandes escritores,
disponibilizando seu conhecimento. É, por isto, considerado o filósofos e poetas que usaram o Oriente como referencial,
“pai” do Orientalismo – embora aqueles que o seguiram, ao interpor construiu uma caricata figura, que representa o Orientalismo em
suas próprias visões pessoais, não puderam desenvolver com suas vertentes, conquanto direcionamento científico. E, sobre a
tanta maestria. Renan, noutro sentido, desenvolveu seu trabalho forma com que foi concebido, aduz:

Didatismo e Conhecimento 111


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
O Oriente que aparece no orientalismo, portanto, é um sistema maior influencia econômica e política na região. Pior, mal existem
de representações enquadrado por todo um conjunto de forças quaisquer instituições, até mesmo de estatura modesta, no Oriente,
que introduziram o Oriente na cultura ocidental, na consciência devotadas ao estudo do Oriente. (p. 328)
ocidental e, mais tarde, no império ocidenta1. Se esta definição do O autor aponta, assim, soluções a serem consideradas para
orientalismo parece mais política que outra coisa, isso acontece a compensação, e a transmutação, destes fenômenos. Indica
apenas porque acredito que o próprio orientalismo foi um produto a possibilidade de uma “descolonização”, lançando-se mão,
de certas forcas e atividades políticas. O orientalismo é urna igualmente, da individualização das culturas, postura passível de
escola de interpretação cujo material, por acaso, o Oriente, suas trazer, como consequência, o fim do “narcisismo” e das hostilidades
civilizações, seus povos e suas localidades. (p. 209) em relação ao outro. Embora acredite que a erudição nos discursos,
Por tal expediente, o autor traz que o orientalismo não é apenas e a maneira sempre intelectual, ideológica, fantasiosa e política
doutrina positiva, mas uma realidade de caráter multifacetário, com que o orientalismo se propaga, não possam ser de todo
servindo-se conquanto orientação acadêmica e área de interesse sanadas, Said acredita que, amoldando-se às vivências e sendo
para curiosos e interessados dos mais diversos campos de atuação. estas iluminadas pelo estudo, será possível atingir patamares mais
Conclui que, no século XIX, o europeu tinha visão puramente elevados de consciência.
racista do Oriente, por enxergar o mundo de forma etnocêntrica. E, por conseguinte, lançar mão de todas as construções
Foram precisos esforços e pressões de cultura geral para que, equivocas que até então se fizeram, a fim de produzir uma nova
diferenciando-se corretamente Leste e Oeste, se pudesse construir realidade. Encerra, sob tal interesse, indicando que, se porventura
uma ciência despida dos preconceitos anteriormente vigentes. “(...) o conhecimento do orientalismo tem qualquer sentido, é como
O autor distingue o orientalismo latente, formado por um lembrete da sedutora degradação do conhecimento, qualquer
concepções inconscientes e intangíveis do Oriente, do orientalismo conhecimento, em qualquer lugar, a qualquer momento. Hoje em
manifesto, que é este conjunto de visões e ideias que se encontram dia talvez mais que antes”. (p. 332)Fato é que são evidentes os
declaradas, impressas, transmitidas. Explica que o interesse esforços do autor no sentido de decompor o orientalismo sob todas
europeu, e depois o americano, pelo Ocidente, principiou-se por as figuras que se impõe a título de conceito, e analisar, de maneira
motivação de ordem histórica (pelas lutas e conquistas territoriais, pormenorizada, os erros e acertos que o construíram, ao longo do
por exemplo), mas que a cultura foi quem, de fato, intensificou o tempo, até adquirir a forma que possuía quando da produção de
interesse, ainda que agindo em conjunto com as fundamentações sua obra.
políticas, econômicas e militares. Assim, misturando-se no cenário Embora de forma repetitiva e, por vezes, até confusa,
aquilo que é manifesto àquilo que é puramente insinuado, o autor no tocante à (des)construção histórica que antecede suas
indica que o orientalismo foi se descortinando em todas as suas considerações críticas, o autor denota franca insatisfação com a
ramificações, erros e acertos. realidade intelectual e doutrinária propagada à sua época, mas
E, no entanto, apesar dos seus fracassos, da sua lamentável esperanças de transformação, ainda que vagarosa. No introito da
linguagem especializada, do seu mal ocultado racismo e da obra, o autor salienta sua vontade de realizar um “desaprendido”,
fragilidade do seu aparato intelectual, o orientalismo floresce hoje ou seja, um trabalho inverso, visando limpar do “sendo comum”
nas formas que tentei descrever. De fato, há urna razão para alarme tudo oque se divulgou, ensinou e propagou acerca do Oriente
no fato de a sua influência ter se estendido ao próprio Oriente; quando fundado em proposições que não possuíam o necessário
as páginas dos livros e jornais em língua árabe (e sem dúvida embasamento fático. É visível que, quando propaga seus maiores
em japonês, em diversos dialetos indianos e em outras línguas temores voltados às imprecisões e distorções, o autor quer reforçar
orientais) estão cheias de análises de segunda categoria feitas por este desejo de encontrar caminhos para corrigir as falhas, ou ao
árabes sobre “a mente árabe”, “o islã” e outros mitos. (p. 326) menos sanar seus efeitos.
Ao final, aludindo ao deslocamento da hegemonia dos países O problema é encontrar um ponto de equilíbrio. Ou, mais
europeus à América, e mais intensamente aos Estados Unidos, corretamente, uma fórmula suficiente para, correndo contra
conquanto potência altamente influenciadora, volta-se para as o tempo ao apagar todas as impressões errôneas até então
realidades intelectuais e sociais do orientalismo predominantes construída, não se omitissem as novas concepções, sendo possível,
no “Novo Mundo”. Ressurgem, ainda que de forma disfarçada, igualmente, corrigi-las antes mesmo de se propagarem. A verdade
o dirigismo intelectual, a supremacia autoproclamada e muitos é que, num mundo globalizado, o conhecimento é transmitido
preconceitos velados. O autor explicita que os americanos mantém em proporções inimagináveis, e velocidade vertiginosa. Não é
sob constante vigilância, e até mesmo sob sua dominação, a apenas o ambiente que sofre alterações, mas a visão que dele se
economia do Oriente – e cita, além da questão do petróleo, o têm. A “moda” surge como termo e sentido para explicar tamanha
crescente consumismo dos povos orientais, que digerem os maleabilidade nos pensamentos e vontades humanas; porém,
produtos da nova cultura de forma ávida. Há uma desvalorização, não é capaz de descrever por qual motivo surgem e somem tão
pouco percebida, da própria cultura. E tais considerações são rapidamente ídolos, arquétipos e, também, opiniões.
explicitadas quando o autor diz que Em seu prefácio à edição de 2003, o autor declara que
Há todo tipo de outras indicações de como é mantida a permanecem surgindo mudanças, conflitos e controvérsias no
dominação cultural, tanto por consentimento oriental quanto por Oriente. E de fato, estas é que tornam sua obra, ainda que pautada
pressões econômicas diretas e grosseiras por parte dos Estados muito mais em fenômenos históricos que num “futurismo”
Unidos. Faz-nos mais moderados descobrir, por exemplo, que, ficcional, sempre atualizada e utilizável. Por certo que, ao encerrar
ao passo que existem dúzias de organizações nos Estados Unidos o estudo já prenunciando uma visão oriental burlesca - que
para estudar o árabe e o Oriente islâmico, não existe nenhuma padeceria dos vícios da teatralidade e da comicidade com que
no próprio Oriente para estudar os Estados Unidos, de longe a os americanos desenham as outras sociedades - o autor sequer

Didatismo e Conhecimento 112


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
vislumbrava realidade tão difusa e completamente distante das grandes produções literárias universais: a impossibilidade de
propostas que trouxera, em que o modo de vida do “outro” seria atingir, fundamentalmente, o público a que se destina. Seu discurso,
analisado por óticas pessoais e a cultura alheia termina como por vezes recaindo em preciosismos e circunlóquios filosóficos,
objeto de depreciação. embora recheado de boas intenções, por vezes chega muito
Os muitos conflitos no Oriente Médio; o surgimento de líderes próximo à erudição que tanto condena ao longo da obra. Claro que,
religiosos e políticos que, de certa forma, ameaçaram a “invasão alterar-lhe a forma ou o conteúdo, inda mais sem a presença física
cultural” americana; as ações de grupos terroristas radicais e, com do autor e, portanto, sem o seu expresso consentimento, poderia
muito maior propriedade, o ataque às Torres Gêmeas, no fatídico implicar em empobrecê-la. A solução seria, talvez, acrescer-lhe
11 de setembro, inegavelmente fizeram ressurgir, com maior novos exemplos práticos, dentro das sociedades para onde o livro é
intensidade, os preconceitos ocidentais atribuídos ao século XVIII. traduzido, possibilitando sua utilização até mesmo fora dos meios
O oriental deixou de ser um factoide e tornou-se uma ameaça. acadêmicos, fazendo com que se tornasse representação viva
Do dia para noite, indivíduos de origem islâmica se daquilo que apregoa.
viram alvos de perseguições das mais diversas searas. Prisões E se, a título de ideação, optamos por tal proposição, é
infundadas, agressões, tudo era meio para externar a intolerância, justamente por acreditar, sinceramente, que obra de tão grande
que, sob a justificativa do medo, talvez escondesse pretensões valor merece lugar de destaque não apenas nas bibliotecas, mas
muito mais densas. Transcorridos tantos anos, e já com o anúncio também nas livrarias. Se a cultura de massa orienta que todos
adquiram, leiam e apliquem em sua vivência produções voltadas ao
do novo presidente americano da saída progressiva de suas tropas
enriquecimento subjetivo, sob o tema da “autoajuda”, porque não
do território oriental, poderia um perfeito otimista imaginar que
seria possível propagar obras de interesse continental, mundial?
o pensamento “dominante” ocidental estaria prestes a dar uma
Deste modo, poderia a leitura trazer perspectivas ponderadas sobre
trégua ao oriental. o Oriente mesmo ao indivíduo desprovido de recursos, que não
A verdade é que, ainda que não hajam mais perseguições, o poderia jamais se deslocar às suas expensas e, partindo rumo ao
preconceito continua, sempre velado, subentendido, maquiado. Oriente como estudioso e não como breve turista, “ver para crer”.
Talvez, ao analisar com maior acuidade todas as progressivas Este individuo é quem, hoje, vem sendo o grande alvo da
edificações históricas da obra de Edward W. Said, e transportá-las contracultura, e seu maior divulgador. Fornecendo-lhe novas
à nossa realidade, o leitor fique com a impressão de que, no fundo, visões poderia abandonar aqueles conceitos errôneos, e, quem
não houve uma “evolução”, mas apenas o surgimento de novos sabe, substituir os juízos de valor até então construídos. Seria
pontos de vista que não excluíram, em momento algum, aqueles lícito, deste modo, não apenas ao erudito, mas a qualquer pessoa,
crendices dos colonizadores. Não foi o colonialismo quem criou, construir concepções modernas e seguras sobre as fronteiras
sozinho, a ideia imperativa de Oriente. geográficas a separar tão díspares, e tão idênticas, porções da
Antes mesmo de ir ao seu encontro, o Ocidente já havia se Humanidade. E, permitindo que o conhecimento fosse semeado,
apropriado, intelectualmente, do Oriente, por suas produções o Oriente não seria mais objeto de temores, nem de confabulações
ideológicas e míticas. E a própria sociedade moderna, mesmo infundadas, mas, ao menos, de respeito.
possuindo meios para obter conhecimento adequado, limita-se No fundo, cremos ser esta a pretensão de Said, em suas
a aceitar e fazer reviver estes ideais, tão imprecisos quanto os inúmeras tentativas de chamar a atenção do leitor, ao longo de
vigentes no século XVIII. Mesmo pertencendo a um país dito toda a discussão, para a injustiça que se perfazia não tanto dos
“terceiro mundo”, somos convidados, diariamente, pela TV, pelos comportamentos ocidentais, mas com maior gravidade de seus
filmes, pela internet, e por todos os demais meios de comunicação, pensamentos. Considerando-se as recentes produções artísticas
a desbravar um Oriente que ainda é visto como fonte de exotismo, voltadas ao Oriente, e divulgada nos meios de massa, temos que
imoralidade e primitivismo. este escopo, embora implícito, não poderia ser mais apropriado.
Sua cultura, seus costumes, suas vestimentas, sua religião,
não nos são mostrados de maneira respeitosa, parcial, equânime. Bibliografia
Somos convidados a não apenas julgar, como também a condenar, Livro: Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente;
arbitrariamente, os povos ali instalados. E estes cedem, cada vez Autores: Edward W. Said.
mais, espaço aos “ocidentalismos”.
A degradação do conhecimento, qualquer conhecimento, em
qualquer lugar, a qualquer momento. Hoje em dia talvez mais que 18. SILVIA, JANICE THEODORO DA.
antes”. (p. 332)Fato é que são evidentes os esforços do autor no DESCOBRIMENTOS E COLONIZAÇÃO.
sentido de decompor o orientalismo sob todas as figuras que se SÃO PAULO: EDITORA ÁTICA,1998.
impõe a título de conceito, e analisar, de maneira pormenorizada,
os erros e acertos que o construíram, ao longo do tempo, até
adquirir a forma que possuía quando da produção de sua obra.
Sumário
Embora de forma repetitiva e, por vezes, até confusa, no tocante
à (des)construção histórica que antecede suas considerações
Esta obra se divide em 9 capítulos:
críticas, o autor denota franca insatisfação com a realidade
intelectual e doutrinária propagada à sua época, mas esperanças de
1. Introdução
transformação, ainda que vagarosa.
2. Empresa
O que falta à obra de Said quiçá seja a presença de discurso
As caravelas da cultura
mais acessível – embora não lhe falte atualidade. Porque, embora
Prazer e medo. Destruição e colonização
tão divulgada, traduzida e propagada, sofre do mesmo mal que

Didatismo e Conhecimento 113


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
A fartura dos “adereços cênicos” Resumo
Os tesouros do mercantilismo
3. Marco Polo e seus mansar inverdades O objetivo de Janice é através desta obra esclarecer ao leitor
Vida, lembranças e histórias as formas como se deram algumas descobertas, além disso per-
O exótico como medida mitir o conhecimento de nossa América através do transplante do
Geografia da intenção divina projeto cultural ibérico, fornecendo um texto com um linguajar
Das fábulas à verdade simples e de fácil compreensão.
4. O tempo do tesouro e o tempo do mistério Ela menciona várias passagens com riquezas de detalhes que
Os relógios: o tempo europeu permite nosso imaginário visualizar, por exemplo, as grandes na-
O tempo do tesouro vegações, o homem medieval se divertindo com o medo e o prazer
O confronto que o imaginário dele lhe proporcionava, nos permite inclusive
O tempo do mistério ver o primeiro relógio introduzido num edifício publico nos anos
A conversão 1344.
5. A “geografia do imaginário” Processos históricos e sua evolução natural é a principal fonte
A “dimensão mítica do espaço” -base para Janice, tendo em vista que a obra é construída em con-
O poder dos mapas tinuidade, ou seja, não há um rompimento entre um fato e outro.
A perspectiva De forma bastante simples e complexa, a autora aborda aspec-
Perfeição e destruição tos importantes para explicar cada transição dos fatos, sem deixar
6. A alegoria da conquista de mencionar a posição da igreja ela explica como o pensamento
Origens do pensamento moderno cristão adaptou-se à política expansionista, onde através da tea-
Identificação, aceitação e repetição tralidade e agilidade do cristianismo permitia-se uma rápida pe-
Hernán Cortés: o perfil do heroi descobridor netração da doutrina entre os povos, conclui-se, portanto que as
Frei Bartolomé de Las Casas: o fragmento domo memória igrejas foram o suporte básico em que se assentou todo o projeto
7. Conclusão colonizador, não deixando de mencionar que Portugal e Espanha
8. Vocabulário crítico também impunham sua representação à sociedade; com isso foram
9. Bibliografia comentada grandes as transformações corridas na economia européia.
Janice também menciona Marco Pólo, um integrante do
Autor
“Grande Conselho de Veneza” que ao morrer em 1.324, deixa
vários relatos de suas viagens, onde ele reinterpreta a geografia,
Janice Theodoro da Silva atualmente é professora aposentada
procurando através dela impor sua narração como verdade plena.
da Universidade de São Paulo. Possui graduação (1972), mestrado
Ela descreve como a população passou a lidar com o tempo
(1975), doutorado (1981) e livre-docência (1991) pela Universida-
após a implantação do relógio, que passou a fazer parte daquela
de de S. Paulo. Tornou-se professora titular em (1997) pela Uni-
sociedade apartir de 1.344 e até 1.370 somavam 33.
versidade de São Paulo. Realizou pós-doutorado junto a École des
É importante ressaltar, como ela mesma coloca que na idade
hautes études em sciences sociales (Paris) em 1992 e também na
Universidade de Macau (China) em 1995. Parecerista da Fundação média ninguém se preocupava em medir matematicamente o tem-
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e do Conselho Na- po porque a Deus cabia o controle do destino de todo ser humano;
cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq. Pre- portanto ninguém precisava ter pressa, pois não faria nada além do
sidiu a comissão responsável pela avaliação de Faculdades, MEC, que Deus havia determinado.
na área de História e fez parte da comissão responsável pela sele- Através desta perspectiva, podemos compreender o signifi-
ção de livros para a formação de Bibliotecas Públicas em todo o cado do tempo na história das Américas coloniais portuguesas e
Brasil. Participou do grupo que auxiliou a montagem das matrizes espanholas, pois enquanto a Europa enfrentava um processo de
do ENEM na área de História. Tem experiência na área de Histó- racionalização do tempo a América o percebia numa dimensão una
ria, com ênfase em História da América, atuando especialmente como postulava o pensamento cristão.
em pesquisas voltadas pata História da América, Historiografia da Segundo o terceiro parágrafo da pagina 29, o massacre do
América, História e Literatura e Teoria da História. Templo Maior em Tenochtilán, nos mostra o tempo do gesto des-
truidor, e nele, a forma da conquista, entretanto, para manter a su-
Sinópse premacia de Deus, era necessário destruir a dignidade do indígena
rapidamente e de forma teatral.
O leitor poderá fruir, neste livro, a história dos descobrimen- Tanto a igreja quanto os europeus emigrados podiam utilizar
tos e da colonização recompondo alguns resíduos do imaginário indiscriminadamente a mão de obra indígena, porém, esta concep-
medieval. Marco Polo nos introduz no mundo das maravilhas. ção de tempo forjada pela igreja vai definir a natureza das relações
Uma arqueologia do universo ficcional caracteriza concepções di- de trabalho do Novo Mundo, pois para a igreja, não se pode dis-
ferentes, de tempo e de espaço, nas Américas portuguesa e espa- sociar o tempo de trabalho do homem que o produz, esta unidade
nhola. Os séculos XIV, XV e XVI emergem através das narrativas é indivisível.
dos indígenas e dos europeus. O confronto com as culturas pré- A autora relata que o espaço envolvia uma dimensão mítica,
colombianas assusta pela violência. O fragmento do que restou de onde ele era representado por uma figura capaz de exprimir e hie-
um povo e do “outro” cria uma nova identidade. Este é o início da rarquizar o pensamento religioso e a riqueza de cada um dos con-
história latino-americana. tinentes através de uma imagem.

Didatismo e Conhecimento 114


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Em sua obra ela também nos conta que as navegações no Parte II – Cultura Política do Antigo Regime à Ideia de Nação
atlântico partiram do pressuposto de que a terra era redonda, e
nesse sentido o mapeamento do mundo é uma prova de força, de “As mercês são cadeias que se não rompem”: liberalidade e
domínio absoluto da Europa sobre os “outros” habitantes do globo. caridade nas relações de poder do Antigo Regime Português
A invenção da perspectiva na pintura é contemporânea às Luciana Mendes Gandelman (UNICAMP)
grandes navegações e corresponde também à representação de
uma imagem a partir de um único ponto, este efeito é tão surpreen- Recortes de memória: reis e príncipes na coleção Barbosa Ma-
dente quanto imaginar que a terra flutua no espaço. chado
A reprodução das três dimensões do espaço, permite também Rodrigo Bentes Monteiro (UFF)
a reconstrução do mesmo espaço cênico europeu na América, pois
nela o colonizador representa o que sonhou, desejou, viu ou viveu, Historiografia e tradição crítica: novela exemplar dos ‘jornais
porém tais valores precisavam ser reconstruídos hierarquicamente manuscritos’ do século XVIII
para manter a estrutura de dominação. Tiago C. P. dos Reis Miranda (Universidade de Lisboa)
Até para a autora é difícil explicar a enorme violência que re- Ordem e civilização: a ideia de nação nos textos do Visconde
sultou dos primeiros anos de contato entre Europa e Novo Mundo, de Uruguai
pois colonizadores destruíram sem cessar e com enorme precisão Maria Elisa Mäder (PUC-RJ)
e perfeição cênica, por outro lado, os indígenas haviam se conver-
tido à essência do pensamento cristão, e as culturas pré-colombia- Parte III – Cultura Política e Sociabilidades
nos, por si mesmas questionavam a universalidade dos conceitos
europeus ameaçando o eurocentrismo. O ‘galego atrevido’ e ‘malcriado’, a ‘mulher honesta’ e o seu
marido, ou política provincial, violência doméstica e justiça no
Bibliografia Brasil escravista
Livro: Descobrimentos e colonização; Marcus Joaquim M. de Carvalho (UFPE)
Autores: Janice Theodoro da Silva;
Referências: D. Índios, Missionários e Políticos: discursos e atuações político-
culturais no Rio de Janeiro oitocentista
Maria Regina Celestino de Almeida (UFF)
História, cultura, política e sociabilidade intelectual
19. SOIHET, RACHEL; BICALHO, MARIA Rebeca Gontijo (UFF)
FERNANDA BAPTISTA E GOUVÊA, MARIA
DE FÁTIMA SILVA (ORGS.). CULTURAS Repensando política e cultura no início da República: existe
POLÍTICAS. RIO DE JANEIRO: EDITORA uma cultura política carioca?
MAUAD/FAPERJ, 2005. Marcelo de Souza Magalhães (UERJ)

Parte IV – Culturas Políticas e Relações de Poder


Feminismo X Antifeminismo de Libertários: a luta das mulhe-
res pela cidadania durante o regime autoritário
Sumário Rachel Soihet (UFF)

Apresentação (as organizadoras) Imagens e representações da mulher na literatura de cordel


Maria Ângela de Faria Grillo (UFRPE)
Parte I – Cultura Política: História e Historiografia
A Cultura Política entre Zeferinos, Fradins e Graúnas
História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas Maria da Conceição Francisca Pires (UFF)
reflexões Sob fogo cruzado: a política externa e o confronto de culturas
Ângela de Castro Gomes (CPDOC – FGV; UFF) políticas nos EUA
Cecília da Silva Azevedo (UFF)
República (na segunda metade do século XVIII – história) e
republicanismo (na segunda metade do século XX – historiografia) Parte V – Cultura Política e Ensino de História
Modesto Florenzano (FFLCH – USP)
Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: al-
Diálogos historiográficos e cultura política na formação da gumas questões para a pesquisa e o ensino de História
América Ibérica Martha Abreu (UFF)
Maria de Fátima S. Gouvêa (UFF)
Ensino de História e História Cultural: diálogos possíveis
Pacto colonial, autoridades negociadas e o império ultrama- Ana Maria Monteiro (UFRJ)
rino português O ensino de História no Rio de Janeiro sob a ótica da história
Maria Fernanda B. Bicalho (UFF) política
Américo Freire (CPDOC – FGV)

Didatismo e Conhecimento 115


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Autor Regime e a colonização em questão; identidades em construção:
indígenas, negros e mestiços; representações do povo, do intelec-
Rachel Soihet, nasceu Salvador, Bahia, em 27/05/1938. Foi tual e da nação; e participação política.
para o Rio de Janeiro no início da década de 1950. Tentou formar Seus capítulos refletem sobre os possíveis diálogos entre His-
em 1977, em Niterói, um Centro da Mulher. Envolveu-se com a tória Cultural, História Política e Ensino da História, identificando
pesquisa sobre a Mulher. Hoje é professora aposentada da Univer- campos específicos de atualização do poder e do político, analisan-
sidade Federal Fluminense e atua em Núcleos e Grupos de Pesqui- do culturas que lhes são próprias. Daí a opção pela discussão de
sa ligados ao Gênero. Mora em Niterói. Rachel Soihet é professora culturas políticas, enfocando-as na produção historiográfica, nas
titular, atuando no programa de Pós-Graduação em História da representações do Antigo Regime ibérico, nas sociabilidades de
Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do CNPq diferentes grupos étnicos no Brasil, nas relações de poder entre
e coordenadora atual do GT de Gênero da ANPUH. É autora do gêneros e atores sociais distintos, na pesquisa e no ensino de His-
livro Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres tória.
e ordem urbana (1890-1920) – 1989 – co-organizadora do livro Com distintos recortes temáticos e espaço-temporais, os tra-
O corpo feminino em debate – 2003 -, além de ter escrito vários balhos contribuem de diferentes formas para ampliar os horizontes
artigos e capítulos de livro. da história cultural, pensada enquanto história social da cultura,
enfatizando a dimensão política do cultural e a dimensão cultural
Martha Abreu possui graduação em História pela Universi- da política.
dade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em História pela
Universidade Federal Fluminense (1987) e doutorado em História Comentário
pela Universidade Estadual de Campinas (1996). É professora as-
sociada da Universidade Federal Fluminense. Atua nas seguintes Surgido em 1992, o Núcleo de Pesquisas e Estudos em His-
áreas: cultura popular, música negra, patrimônio cultural, identida- tória Cultural reúne professores e alunos na Universidade Federal
de nacional e relações raciais. Atualmente é consultora do Museu Fluminense, em torno do debate e do desenvolvimento de pes-
de Arte Popular Casa do Pontal e do Pontão de Cultura do Jongo. quisas no campo da História Cultural. Este livro é uma pequena
amostra da diversidade de temas trabalhados no NUPEHC. Seus
Rebeca Gontijo é professora Adjunta (nível 2) do Departa- capítulos refletem sobre os possíveis diálogos entre História Cul-
mento de História e do Programa de Pós-Graduação em História tural, História Política e Ensino da História, identificando campos
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Sou bacharel específicos de atualização do poder e do político, analisando cul-
e licenciada em História (1996) pela Universidade Federal Flu- turas que lhes são próprias. Daí a opção pela discussão de culturas
minense, com mestrado (2001) e doutorado (2006) em História políticas, enfocando-as na produção historiográfica, nas represen-
pela mesma instituição. Fui professora substituta no Departamen- tações do Antigo Regime ibérico, nas sociabilidades de diferentes
to de Ciências Humanas da UERJ-FFP (2002) e exerci atividades grupos étnicos no Brasil, nas relações de poder entre gêneros e
de pesquisa e docência junto ao Departamento de História e ao atores sociais distintos, na pesquisa e no ensino de História.
Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ, entre Fruto de diversos encontros e seminários, este livro reúne di-
maio de 2007 e junho de 2008, com apoio da bolsa de fixação de ferentes gerações de historiadores e indica novos rumos de pes-
pesquisador da FAPERJ. Posteriormente, desenvolvi atividades de quisa histórica. Recomendados para professores, estudantes de
pesquisa e docência no Departamento de História e no PPGH da graduação e pós-graduação, além de pesquisadores das áreas de
UFF, com apoio da bolsa PRODOC da CAPES. Participo dos se- ciências humanas.
guintes grupos de pesquisa: Núcleo de Pesquisas em História Cul-
tural (NUPEHC), da UFF (1999); Oficinas de História, da UERJ, Resumo
(2004); Laboratório de Teoria da História e História da Historio-
grafia (LABTEO), da USP (2009); Histor - Núcleo de Pesquisas Cada vez mais, percebe-se com maior sensibilidade e aten-
sobre Teoria da História e História da Historiografia (2010); e do ção que as mudanças na política, na sociedade e na educação es-
Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade tão intimamente relacionadas. Assim como os projetos de escrita
(NEHM), da UFOP (2011). Sou uma das fundadoras da Sociedade da história se alteram para compreender mais adequadamente as
Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) e co-e- transformações da sociedade, o ensino de história também teria
ditora da revista História da Historiografia. Minhas áreas de inte- uma predisposição a mudar quando ocorrem novas tomadas de po-
resse são: história intelectual; história da Historiografia; teoria da sição nas políticas públicas do país. Essa hipótese indica que ao
história; história social da memória; história do ensino de história; se acompanhar a organização da “cultura histórica” e da “cultura
história da educação e história do livro e da leitura. política” de uma sociedade, pode-se visualizar mais precisamente
os contornos que ganham simultaneamente a “cultura historio-
Sinópse gráfica” e o “ensino de história” Diante do exposto, é oportuno o
questionamento sobre quais leituras a respeito do passado estariam
Trata-se da terceira coletânea organizada pelo NUPEHC, com sendo produzidas, em função das atuais revisões dos últimos go-
a participação de dois pesquisadores convidados: Manoel Salgado vernos, quanto à necessidade de agrupar aos currículos escolares
Guimarães e Mary Anne Junqueira. O livro reúne um conjunto de de ensino fundamental (e médio) do país, o ensino da história e da
estudos sobre dois fenômenos complexos que se entrecruzam: a cultura africana e afro-brasileira e o ensino da história indígena.
cultura política e a cultura histórica. Os textos estão distribuídos Cabe destacar, desde já, que isso se deve, fundamentalmente, ao
por cinco partes, a saber: política, história e memória; o Antigo impacto e à relevância que alcançaram os movimentos sociais, os

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quais, desde a década de 1980, se têm organizado com o intuito de Esses novos estudos de historia do Brasil, estão articulados a
destacar as desigualdades históricas que foram sendo produzidas uma transformação teórica e metodológica da historiografia nem
no país ao longo do tempo. O que quer dizer que, na medida em nível internacional que pode ser identificado como a da chamada
que as sociedades e os indivíduos se interrogam sobre sua condi- renovação da historia politica e sua articulação com a sua historia
ção, se abre a possibilidade para uma significativa alteração, quan- cultural que floresceu e chegou ao Brasil com mais intensidade a
to à maneira de entender e de interpretar o presente e, por extensão, partir da década de 1970.
também o passado (e o futuro). A proposta dos novos estudos foi a de afastar a possibilida-
Foi justamente percebendo a importância de estudar o mo- de de generalizações e formalizações dos processos sociais, que
vimento complexo e dialético entre a política, a sociedade e a seriam sempre históricos isto é, datados e localizados no tempo e
educação que o grupo de pesquisadores reunidos, desde 1992, no espaço, não podendo ser bem compreendidos a não ser pela inclu-
Núcleo de Pesquisas em História Cultural (NUPEHC), vinculado são de uma dimensão interna. Vale dizer, pela inclusão das ideias
ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e ações daqueles diretamente envolvidos o que não permitiriam
(UFF), sob a liderança de Rachel Soihet, se tem reunido periodi- esquemas ou verdades pré estabelecidas. Com isso, a analíse dos
camente e organizado congressos e livros, discorrendo tais ques- processos sociais se abre a intervenção dos atores neles presentes,
tões. O primeiro projeto do grupo, “História, cultura e educação: sendo ai crucial uma segunda recusa teórica. Ela diz respeito ao
relações entre pesquisa e ensino na área de história cultural”, foi abandono de modelos que trabalham com a relação de dominação
desenvolvido durante o biênio de 2001-2002, resultando no livro – no mundo econômico, político ou cultural - , a partir da premissa
Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia (Rio de Ja- de que o dominante é capaz de controlar e anular o dominado,
neiro: Casa da Palavra, 2003), organizado pelas professoras Ra- tornando uma expressão ou reflexo de si mesmo. Tal recusa tem
chel Soihet e Martha Abreu. O segundo projeto, “História e educa- imensa densidade. Ela significa defender teoricamente, entre se-
ção: relações de poder e cultura política”, foi executado durante os res humanos, não a controle absolutos e coisificação de pessoas,
anos de 2003 e 2004, com a mesma preocupação com a pesquisa e em que, nas relações de dominações, os dominates não anulam
o ensino de história, e um de seus principais resultados foi o livro os dominados, ainda que haja extremo desilquilibro de forças dos
Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e dois lados.Do ponto de vista empírico, a assertiva traz para a cena
ensino de história (Rio de Janeiro: Mauad, 2005), organizado por histórica além de um sem – numero de ideias e ações dos domi-
Rachel Soihet, Maria Fernanda Baptista Bicalho e Maria de Fáti- nantes, outro sem – numero de ideias e ações dos dominados, até
ma Silva Gouvêa. então se quer imaginadas como possíveis. Tudo isso se articulando
A noção de cultura política tem se revelado útil para a com- em campos de analise que guardam independência relatica entre si,
preensão das operações sociais que constroem sentidos de tempo bem como profundas conexões e influencias mutuas.
e de história, por meio de dispositivos variados, entre os quais se A possibilade metodoligica de se trabalhar com a dimensão
destacam, nas sociedades contemporâneas, o ensino, a historiogra- social do pensamento e das ideias dos atores, explorando-se fontes
fia e a memória. que indicam pistas e indícios de um mundo considerando margi-
Por sua vez, a noção de cultura histórica engloba as lingua- nal e insuspeito, foi eficientemente percebida e alcançada por essa
gens, os ritos, os mitos, os ideais, os projetos, as identidades, as historiografia. O que se tornou conhecido como o paradigma indi-
práticas políticas de indivíduos, “famílias”, grupos de dimensão ciário aproximou os historiadores da antropologia.
variável que compõem uma sociedade. Cultura política e cultu-
ra histórica se articulam, na medida em que as representações do Culturas Politicas: Mitos, ideologias, e traduções politicas
passado são essenciais na construção de imaginários e de projetos
que orientam as ações coletivas. Atores coletivos e individuais re- Mitos são complexos e duradouros sistemas de crenças são
correm e estabelecem usos mais ou menos conscientes da história por definição, ficção e realidade, não estando sujeitos a confronta-
e do tempo passado, presente e futuro, conforme as demandas de ções que sigam uma logica racional demonstrativa. Justamente por
sua própria época (p. 13-14). isso,são formulações que resistem ao tempo e a chamadas provas
Daí decorrem algumas das escolhas teóricas e metodológicas empíricas. Mitos são formulações com alto grau de coerência e, ao
da composição dos textos e das obras, cujas temáticas abordadas mesmo tempo, com forte tensões intrínsecas.
estão intimamente relacionadas com o campo interpretativo for- Seguindo Girardet, de forma muito simplificada vemos que os
necido pelo uso coerente das categorias de cultura política e de mitos podem ser tratados: como uma narrativa que explica as ori-
cultura histórica, ao visualizarem as relações entre memória, his- gens e, por isso as características de um grupo social. Como uma
toriografia, práticas e projetos políticos, os quais dariam ensejo à ideia – força capaz de mobilizar e estimular os membros de um
análise de mitos, símbolos e ritos, assim como de identidade, et- grupo para a ação, e como uma mistificação uma ilusão produzida
nicidade, gênero e papel exercido pelos intelectuais na construção para lidar com a realidade sem subordinação a um raciocínio de
desses discursos. tipo logico.
As pesquisas de História, especialmente as teses e dissertações Marilena Chauí trata do populismo como um mito da politica
desenvolvidas no brasil, sobretudo a partir dos anos 1980, produ- brasileria, em que aborda esse fenômeno a partir do que chama
ziram uma inflexão nos modelos interpretativos que tratavam do de uma matriz teológico- politico, existente no brasil. O popu-
tema da questão social, nos campos das ciências sociais em geral. lismo nos falaria de características das primícias, das origens das
Essa revisão historiográfica alterou de forma susbantcial uma certa sociedades brasileiras: uma sociedade fragmentada verticalizada,
matriz de pensar as relações de dominação na sociedade brasileira, hierarquizada, violenta, autoritária, enfim.Tais características exis-
propondo uma nova interpretação que sofistica a dinâmica politica tiram em todas nossas mais importantes instituições e relações so-
existente no interior das relações entre dominantes e dominados. cias: na família, na escola, no trabalho, e nas instituições politicas.

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Haveriam assim uma retroalimentação trágica na dinâmica histó- ótimo para a implementação no país de uma democracia social,
rica do pais que sustentaria a mística populista, gerando limites para a valorização do trabalho e para o reencontro do Estado com
demagógicas, egoístas e voltadas para a manipulação do povo que, a nação, a través da liderança pessoal do presidente.
por sua vez seria sempre presa fácil em apelos messiânicos. Elites A pregação estadonovista fundará, como sua ideologia, o tra-
e povo, bem como suas relações politicas, estariam assim identifi- balhismo e criará um movimento de opinião pública favorável,
cados e explicados. até mítico, à figura de Getúlio Vargas: o getulismo. Trabalhismo
A partir da republica que se instaurou em 1945 após a quebra e getulismo são termos que se complementam durante a ditadura,
do estado novo a categoria trabalhismo passa a ser utilizadas em à medida que a defesa e as conquistas do trabalho são diretamente
textos da academia e no vocabulário politico comum. O trabalhis- associadas a imagem do chefe do governo .
mo passou a ser propagado e fortemente vinculado a figura pessoal Findo o Estado Novo e restabelecida várias prerrogativas de-
do então chefe de estado Getulio Vargas. mocráticas, o getulismo será, sem dúvida, um marco divisor na
Liderando o movimento revolucionário de 1930 Vargas a as- política brasileira. Vargas havia se convertido de fato na liderança
cende ao poder , para nele permanecer por 15 anos consecutivos . mais expressiva da política nacional, não obstante a oposição que
No decorrer desse período foi chefe do Governo Provisório ( se acentuava contra a sua permanência no poder o processo de
1930-1 934 ); presidente constitucional e leito por via indireta ( 1 redemocratização de 1945 será expressivo de sua influência. Basta
934-1937 ) e a inda ditador de uma ordem autoritária conhecida lembrar que o sistema partidário surgido nessa época, foi conce-
como Estado Novo ( 1 937- 1 945 ). Após um interregno de quatro bido dentro do l imitado circuito dos arredores do presidente. Se
anos retornará ao poder em janeiro de 1 951, a través do voto po- tomarmos os três principais partidos então criados UDN, PSD e
pular direto, para nele permanecer até agosto de 1954 quando , a PTB fica claro que uma de suas diferenças mais marcantes se refe-
exemplo de 1 945, recebe o veto militar e opta então pelo suicídio. ria ao julgamento que faziam a respeito da influência do getulismo
Desde o início de sua carreira Vargas se mostrou um líder in na política nacional. Resguardando-se as divergências internas, a
conteste e hábil. Sua imagem popular , entretanto , será firmada UDN representaria a oposição mais cabal a corrente que trazia em
gradativamente , só vindo a se consolidar em definitivo a partir do si o vício de origem do ditatorialismo -- a negação de uma ordem
Estado Novo . Ou seja , o poder não foi decorrência de sua popular democrática, liberalepluralista. O PSD e o PTB se caracterizariam
idade e carisma mas , ao contrário , e no exercício do poder que como agremiações de desenho getulista . Seus adeptos viam Var-
esses atributos são construídos através de uma eficiente campanha gas sob uma dupla ótica. Quer como o grande estadista e moderno
política e ideológica . administrador, que soube apreender as reais necessidades do país,
quer como o “pai dos Pobres” e criador da legislação social. Posto
A ascensão de Vargas ao poder em 1930 será acompanhada
isto, e importante salientar que o personalismo político oriundo da
pela preocupação em definir um novo pacto político , que sanasse
figura de Vargas foi fundamental na configuração da nova ordem
as mazelas da República Velha . Inovar politicamente era o grande
democrática . Enquanto o PSD reunia interventores estaduais que
desafio para a facção vitoriosa dos revolucionários . Para tanto era
controlavam importantes aparatos administrativos e clientelísti-
necessário a busca de apoios diversificados que incluiam forças
cos, o PTB tinha uma proposta mais diretamente dirigida às esses
militares , setores da burguesia e também antigas oligarquias re-
trabalhadoras. O primeiro, de cunho eminentemente conservador,
gionais . As dificuldades para tais composições marcarão exata-
teria por missão precípua garantir uma transição política controla-
mente o clima de tensão política que o país enfrentará no pós-30 , da , que evitasse mudanças abruptas nos rumos políticos do país;
particularmente até 1937 , período no qual se detecta perfeitamen- o segundo , estava encarregado de veicular a proposta trabalhista
te o acirrado embate entre correntes centralizadoras e autoritárias e de Vargas em termos partidários . Ambos traziam a marca da he-
outras proponentes de uma redefinição do federalismo e da liberal- rança getulista, e isto os contrapunha à UDN . Não obstante estas
democracia , sem que isso implicasse a negação desses princípios. transformações ao fim do Estado Novo, e importante registrar que
Com o golpe de 1937 que instaura o Estado Novo consagra- a tradição política nacional de pouca legitimação do sistema parti-
se a proposta autoritária e elimina-se politicamente os defensores dário não é substancialmente alterada . Vargas será nesse processo
remanescentes do l ibera lismo -- a exemplo do que já se fizera o exemplo maior de apartidarismo e de um estilo político que con-
com os comunistas , que desde 1935 foram submetidos aos rigores tinuava uma relação sem mediações entre líder e massas.
da Lei de Segurança Nacional e do Tribunal de Segurança Na- Embora tivesse enviado esforços para o fortalecimento do
cional. Margina liza-se e persegue-se também a extrema-direita PTB e do PSD, o que se pode perceber é que acaba apelando com
organizada na Ação Integralista Brasileira que , apesar de apoiar muito mais ênfase para seu próprio carisma pessoal. Esse estilo de
ideologicamente a nova ordem , constituía uma organização autô- lidar com a política inaugurado por Vargas, ficará profundamente
noma e disciplinada que poderia transformar-se em força política assentado, fará escola e se transformará no que veio a ser uma das
paralela com forte poder desestabilizador . Com o Estado Novo principais características do populismo brasileiro .
estará também firmada uma sólida aliança de Vargas com a corpo- Se o getulismo tem a marca indelével da personalização, o
raçao militar e estabelecido o compromisso por parte do governo trabalhismo acabou por ganhar novas lideranças e, por vezes, per-
de promover o desenvolvimento econômico do país , o que lhe fis mais independentes em relação ao seu marco de origem sem se
garantirá o crescente apoio de setores da burguesia . apresentar como um corpo doutrinário suficientemente estruturado
A estabilidade do Estado Novo estava fundamentada nesses , o trabalhismo foi sendo apropriado de diversas formas e influen-
compromissos e, principalmente, no uso intensivo da repressiva e ciou a criação de vários partidos , como , por exemplo, o Partido
da propaganda ideológica. Mas seu sucesso força dependeria tam- Social Trabalhista ( PST ); o Partido Trabalhista Nacional ( PTN)
bém de uma ampla base de legitimação que foi buscada eficiente- ; o Partido Republicano Trabalhista ( PRT) ; o Partido Orientador
mente j unto à classe trabalhadora. O grande trunfo de Vargas foi Trabalhista ( POT ); o Movimento Trabalhista Renovador ( MTR
a insistente defesa de que o Estado Novo representava o momento ) , além do PTB , sem dúvida o mais significativo de todos eles .

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Há que reconhecer que as dificuldades para a estruturação do Azaña e de Maquiavel, ela designa, implicitamente, uma ideologia
PTB foram grandes, principalmente porque representava a agre- e, explicitamente, uma forma de governo. Comecemos, pois, pelo
miação que , em princípio , deveria herdar o carisma do ex-presi- exame dos vários sentidos da palavra, o que nos leva à antiguida-
dente , o que estimulava intermináveis disputas internas . Por todas de clássica quando foi cunhada e utilizada pela primeira vez. Em
essas razões o PTB , até o fim da década de 1950, não obstante latim, res publica é a tradução do termo grego politéia, lembrando
seu crescimento eleitoral, não conseguia se transformar numa or- assim, de passagem, que a República de Platão é a tradução latina
ganização partidária forte , proporcionalmente ao prestígio de seu de Politéia.
chefe . Esse fato , por sua vez , dava a Vargas um grande espaço Nas duas línguas ela designa originariamente, e ao mesmo
de manobra que , se foi por ele habilmente explorado , também lhe tempo, uma constituição política qualquer que esta seja, portanto,
trouxe o incômodo de não proporcionar uma força suficientemente um governo e, nesse sentido, o próprio Estado, daí porque Aristó-
institucionalizada para garantir o apoio necessário ao seu segundo teles intitula de A constituição de Atenas (Atenaion Politéia)seu
governo ( 1951-1954 ) . livro sobre a história política desta cidade; bem como intitula de
De 1942 a 2004, quando Brizola morre, são vários os traba- politéia (em seu outro livro, a Política) uma das três formas de
lhismo: Os que existiram e os que ainda exitem no Brasil. Por isso, governo, o da maioria, em oposição ao governo dos poucos, a aris-
é interessante enfatizar o trabalhismo como uma das tradições que tocracia, e ao de um, a monarquia. Dado que, sempre em Aristó-
integram uma cultura politica brasileira do pós 1945. teles, essas são as três formas boas, ou ideais de governo (porque
exercidas em vista do bem comum), em oposição às três formas
REPUBLICA (NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO más, ou degeneradas, que ele tirania (porque exercidas em vista
XVIII – HISTÓRIA) E REPUBLICANISMO (NA SEGUNDA do bem dos governantes), e dado que, ainda, entre as três formas
METADE DO SÉCULO XX – HISTORIOGRAFIA) boas, a politéia é a única que permite o governo da moderação ou
do equilíbrio, uma vez que, é exercido conjuntamente pelos pou-
Modesto Florenzano (Out/2004) cos ricos, pelos muitos pobres e pelos que estão no meio, – então a
politéia expressa também um ideal. Como se vê, o governo misto
“Todos os Estados, todos os domínios que tem havido e que realiza, na política, o preceito aristotélico segundo o qual a virtude
há sobre os homens, foram e são repúblicas ou principados”, lê- está no meio, in media virtus.
se no primeiro parágrafo do primeiro capítulo de O Príncipe, de
Por causa dessa duplicidade de sentido, na Idade Média, fa-
Maquiavel, que é de 1513. Perguntado se acreditava mesmo que a
la-se em Respublica Christiana e, no século XVI continua a se
liberdade torna os homens mais felizes, Manuel Azaña (presiden-
usar republica como sinônimo de constituição política e Estado,
te da Segunda República espanhola,1936-1939), respondeu: “não
No século XVI, Jean Bodin, intitula de Os Seis Livros da Repúbli-
sei; só tenho certeza de que os torna mais homens”.
ca (1576), sua teorização e defesa da soberania, ou do absolutis-
A primeira vista, não há nada em comum entre as duas frases,
mo monárquico, e Thomas More de De Optimo reipublicae statu
ocupando-se a primeira das formas de governo e a segunda da li-
deque nova insula Utopia, essa sua obra desconcertante, original-
berdade humana. Contudo, em ambas lateja um mesmo pressupos-
mente publicada em latim, em 1516. Isso, apesar de Maquiavel ter
to: o de que somente se pode ser livre, somente existe liberdade,
sob uma República. Como se Azaña, saltando por sobre os cinco proposto pouco antes, como vimos, uma classificação binária e,
séculos, e por sobre o liberalismo e o socialismo, que o separam de portanto, nova, das formas de governo, passando a aristocracia a
Maquiavel, a este viesse se juntar na mesma convicção, ou visão de ser uma das modalidades de republica, sendo a outra a republica
mundo (que hoje certos historiadores denominam de republicanis- democrática, tal como fará depois, em 1748, também Montesquieu
mo clássico e/ou humanismo cívico) de que o homem realiza sua em Do Espírito das Leis.
humanidade na e pela política, e não –atenção- na e pela religião, No início do século XVII, mais precisamente, em 1627, ve-
como pregava, na Idade Média, o cristianismo, e Apud Savater mos o franciscano Frei Vicente do Salvador fazer a seguinte afir-
(1996: 188). Sobre Maquiavel, cabe advertir que, como assinalou mação em sua História do Brasil: “nenhum homem nesta terra é
um de seus mais lúcidos interpretes, ele “não era um conselheiro republico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do
de tiranos, mas um bom cidadão e um patriota”, com “contribui- particular” (apud Souza 2001: 75). Para dar o máximo de ênfase ao
ções extraordinariamente originais à teoria republicana” (Pocock comportamento nada cívico dos colonos da América portuguesa, o
1975). Quanto ao Príncipe, bem como aos livros dos demais au- franciscano adjetivou o termo, aplicando-o também aos governa-
tores clássicos que serão mencionados a seguir, apenas indicare- dos. Cabe perguntar, no entanto, se, tivesse Vicente do Salvador,
mos o título e o ano da obra; as referencias bibliográficas serão escrito o livro trinta anos mais tarde, isto é, em 1657, teria utiliza-
dadas apenas quando se faz menção a historiadores, ou a autores do o termo republico. A resposta, quase certamente, é não.
de onde as citações foram retiradas. na e pela economia e/ou traba- Porque depois da experiência republicana inglesa de 1649-
lho, como propõem, na modernidade, o liberalismo e o socialismo. 1660, o adjetivo tornouse sinônimo de rebelde, como o prova a
Sobre os dois últimos, o historiador Pierre Rosanvallon (1999: vii) afirmação, em 1693, do governador- geral Antonio Luis Gonçal-
lembra que “A utopia econômica liberal do século XVIII e a utopia ves da Câmara Coutinho, da capitania de São Paulo: “a Vila de
política socialista do século XIX participam paradoxalmente de São Paulo há muitos anos que é Republica de per si, sem obser-
uma mesma representação da sociedade fundada sobre um ideal de vância de lei nenhuma, assim divina, como humana” (apud Blaj
abolição da política”. Como já se pode ver pelas duas citações aci- 2000: 254); e, na França, o Dictionnaire de l’Académie, na edição
ma, republica é uma palavra polissêmica, um “mot voyageur”, que de 1694 e seguintes, onde se lê: “[republicano também] significa
comporta “todas as cores do arco-íris ou quase”, na feliz formula- amotinado, sedicioso, que tem sentimentos opostos ao estado mo-
ção de Claude Nicolet (1982: 16 e 29). Com efeito, nas citações de nárquico, no qual se vive” (apud Goulemot 1993: 34).

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Ora, se, por um lado, como iremos ver, as Revoluções da Como A. de Tocqueville que, nas Lembranças de 1848: As
América do Norte, de 1776, e da França, de 1792, reabilitam e jornadas revolucionárias em Paris - (escritas em 1850-51, mas só
reinventam, a um só tempo, a republica enquanto forma de gover- publicadas postumamente em 1893) nota: “Os franceses sobretudo
no, por outro lado, a variedade e confusão de sentidos, no plano em Paris misturam facilmente as lembranças da literatura e do tea-
semântico, ao invés de diminuir parecem aumentar. Daí o seguinte tro com as manifestações mais sérias, o que nos faz pensar que são
desabafo do ex-presidente John Adams, em 1807, já velho e apo- falsos os sentimentos que mostram... Aqui a imitação foi tão visí-
sentado: “nunca entendi” o que é uma república, e “nenhum outro vel que a terrível originalidade dos fatos permaneceu escondida...
homem entendeu ou iria entender”, [pois uma república] “pode Os homens da primeira revolução estavam vivos em todos os espí-
significar tudo, qualquer coisa ou nada”; e, subsequentemente, de- ritos, seus atos e suas palavras presentes em todas as memórias...
clarar: “para falar tecnicamente, ou cientificamente, há repúblicas sempre tive a impressão de que houve mais esforços para repre-
monárquicas, aristocráticas e democráticas” (apud Bailyn 2003: sentar a Revolução Francesa que para continuá-la... procurava-se
257). Note-se que John Adams, antes de ser o segundo presidente o mesmo calor das paixões de nossos pais sem o conseguir, não
dos Estados Unidos, tinha sido um dos líderes da independência podendo imitar seu entusiasmo ou sentir seu furor, imitavam-se
(um dos pais fundadores da Republica) e um dos maiores especia- seus gestos e suas poses, tal como haviam sido vistos no teatro...
listas em ciência política e constitucional de seu tempo. Na mesma Embora percebesse que o desenlace da peça seria terrível, nunca
época desses comentários de Adams, um outro grande pensador da pude levar os atores muito a sério; tudo me parecia uma desprezí-
política, o liberal Benjamin Constant, então exilado da França por vel tragédia representada por histriões de província”.
causa de Napoleão Bonaparte, dando-se conta de que a questão da E como K. Marx, do qual não vou citar o parágrafo que abre
forma de governo podia ser dissociada da questão dos princípios O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (escrito entre dezembro
da liberdade política, pois estes eram “compatíveis com a realeza e março de 1852 e publicado no mesmo ano) e que todos conhe-
tanto quanto com a republica”, deixava de ser republicano e se tor- cem, mas outras passagens mais adiante em que sentencia: “...
nava defensor da monarquia constitucional. Como dirá mais tarde, uma República que nada mais é do que a infâmia combinada de
em 1819, “Entre a monarquia constitucional e a república a dife- duas monarquias... paixões sem verdade, verdade sem paixões...
rença é de forma. Entre a monarquia constitucional e a monarquia história sem acontecimentos... Se existe na história do mundo um
absoluta, a diferença é de fundo” (apud Raynaud 1988: 183). período sem relevância, é este” Passando da Segunda para a Ter-
Enquanto isso na França napoleônica, o Senado na sessão de ceira República francesa, um dos políticos que mais encarnou seu
28 floréal do ano XII, ou seja, em 1804, declarava (titulo I, artigo espírito, o jornalista, ministro e presidente, o republicano radical
1): “O governo da República é confiado a um imperador que toma G. Clemenceau, em carta de 1898, declara: “Tenho necessidade de
o título de Imperador dos franceses”. Em 14 de janeiro de 1852, viver velho. Gostaria de ver a verdadeira República” e “Haveria
a constituição encomendada pelo outro Napoleão, o III, declara- um meio de surpreender o universo. Seria o de fazer alguma coisa
va: “O governo da República francesa é confiado por dez anos a de muito nova: a República, por exemplo!” (apud, Nicolet 1982:
Louis-Napoleão Bonaparte, atual presidente da Republica” (apud, 30). Tão ou mais surpreendente do que esta última frase só a de ou-
Nicolet 1982: 26). Como se vê a farsa histórica, iniciada em 1848, tro republicano, igualmente radical, Thomas Paine, de 1785, e com
foi encenada até o fim... a qual voltamos ao século XVIII, século chave para o conceito e a
Entre o Napoleão Primeiro e o Terceiro, no Brasil, o período prática republicana; diz Paine: “Um governo que é formado apenas
regencial foi rotulado, em consagrado estudo do historiador Paulo para governar, não é um governo republicano”.
Pereira de Castro, de “A ‘experiência republicana’, 1831-1840”. Um século depois de Locke, pai do liberalismo, e um século
Isso porque: “A eleição periódica do Regente por votação nacional antes de Marx, fundador do socialismo cientifico, para os quais era
surgiu para a imaginação da época como meio de realização de indiferente a questão da republica, quer como forma de governo
uma experiência republicana. O próprio Feijó o repetiu, dizendo quer como ideologia, deparamo-nos, primeiro com a monarquia
que o prazo de oito a nove anos de tal experiência ‘convenceria inglesa (que, segundo Montesquieu e muitos outros, não passava
os brasileiros da necessidade da monarquia’” (Castro 1967:39). de uma republica disfarçada) e, a seguir, com a fundação da Repu-
Voltando à França, já que falamos em 1848, merece ser assinalado blica nos Estados Unidos da América e da Primeira Republica na
que todas as grandes Revoluções precedentes, isto é, a inglesa do França. Pelo fato de ser uma monarquia parlamentar (com eleições
XVII e a norte-americana e a francesa do XVIII, têm em comum o e sistema de representação) e constitucional (com os poderes limi-
fato de terem chegado a instaurar regimes republicanos, sem que a tados e em equilíbrio), a Inglaterra era objeto de admiração quase
Republica fosse sua razão de ser nem o objetivo das primeiras fa- universal, em termos de Ocidente, naturalmente.
ses desses movimentos revolucionários. No entanto, quando, final- Vejamos três exemplos. Voltaire, nas Cartas filosóficas (a de
mente, na França, em1848, há um movimento revolucionário que número 8), de 1733, afirma:
desde a véspera, digamos assim, tem como objetivo e razão de ser “A nação inglesa é a única do mundo que conseguiu regu-
a Republica, eis que do início ao fim é denunciado como farsa por lamentar o poder dos reis e a ele resistir... estabelecendo enfim
pensadores de gênio. Como J. Proudhon, que, em Les Confessions esse governo sábio em que o príncipe, todo poderoso para fazer o
d’un Révolutionnaire Pour servir a L’histoire de la Révolution de bem, tem as mãos atadas para fazer o mal, em que os senhores são
Février (escritas e publicadas em junho-outubro de 1849) afirma: grandes sem insolência e sem vassalos, e em que o povo partilha
“...nossa história, desde fevereiro, assemelha-se a um conto de fa- do governo sem confusão”.
das. Quando terminaremos de brincar de trono e de revolução? Montesquieu, em Do Espírito das Leis, de 1748, sentencia:
Quando seremos verdadeiramente homens e cidadãos”. “Os de- “os ingleses foram os que mais progrediram de todos os povos
mocratas, seduzidos pelas lembranças de nossa gloriosa revolução do mundo em três coisas importantes: na religião, no comércio
quiseram recomeçar em 1848 o drama de 1789: enquanto eles re- e na liberdade”. John Adams, por sua vez, antes de se tornar um
presentam a comédia, tratemos de fazer a história... E de um banco defensor da Independência da América do Norte, assim exaltou a
de espectador, precipitei-me, novo ator, no teatro”. constituição inglesa: “a mais perfeita combinação de poderes hu-

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manos dentro da sociedade já arquitetada e levada à prática pela Rousseau, Voltaire e Montesquieu e, de resto, todo mundo na-
limitada sabedoria dos homens para a preservação da liberdade e a quela altura do século XVIII, estava convencido de que o tempo
produção da felicidade” (apud Bailyn, 2003: 79). das republicas já passara, como demonstravam tanto o fracasso da
Mas, no século das Luzes, também nos deparamos com Rous- experiência republicana inglesa do século XVII, quanto, desde o
seau, o qual em Do Contrato Social, de 1757, vai contra a corrente século anterior, a decadência e o definhamento das cidades-livres
e critica o sistema político na Inglaterra, nos seguintes termos: “O na Itália e na Alemanha (constituindo os cantões montanhosos da
povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é duran- Suíça, e a Holanda dotada de um príncipe hereditário, casos mui-
te a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, to particulares, ou excêntricos, para serem levados em conta). O
ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua século XVIII era um tempo de prosperidade econômica e de gran-
liberdade, o uso, que dela faz, mostra que merece perde-la”. Essa des Estados e as repúblicas, como demonstravam a Antiguidade
posição divergente de Rousseau, que o torna, em seu tempo, um clássica e a Idade Média tardia, tinham que ser pobres e pequenas;
francoatirador, dado o consenso que existe, dos dois lados do canal pobres, porque a riqueza e o luxo corrompiam a virtude cívica, e
da Mancha e do Atlântico, sobre a efetiva e inigualável liberdade pequenas, porque essa era a única maneira de permitir e garantir
política existente entre os ingleses, não nos deve fazer perder de que todos os cidadãos, concebidos como proprietários e guerrei-
vista que a sua concepção de república, está, a um só tempo, pró- ros, participassem da vida política.
xima e afastada, da de Maquiavel e da de Azaña. Como ideologia, contudo, nesse século que também é de auge
Rousseau está próximo de um e de outro porque também es- das monarquias, a republica continuava a viver, como bem notou o
tava convencido de que o homem se faz, ou melhor deve se fazer, historiador F. Venturi (2003: 140-1):
na e pela política, e deles está afastado porque separa e distingue “Haveria toda uma investigação a fazer sobre o significado da
entre republica como forma de governo e republica como ideal palavra república, por volta de 1750, entre livros e jornais, entre
de governo, apresentando, em Do Contrato Social, a seguinte de- evocações do passado e germes de renascentes utopias. Admiração
finição: “Chamo pois de república todo o Estado regido por leis, e caricatura se alternavam nas imagens do republicano diligente
sob qualquer forma de administração que possa conhecer, pois só e altivo, solene e livre. Existia, certamente, a moral republicana
nesse caso governa o interesse público e a coisa pública passa a quando as formas estatais que a haviam acompanhado pareciam
ser alguma coisa. Todo o governo legítimo é republicano”. Isto antigas e decadentes ruínas. Sobrevive uma amizade republicana,
equivale a dizer que, se, numa comunidade política, mesmo se sob um sentido republicano do dever, um orgulho republicano mes-
forma monárquica, ninguém está acima da lei, então o poder é re- mo em um mundo agora mudado, até mesmo no próprio coração
publicano e, ao contrário, não se deveria falar mais em republica de um Estado monárquico, na corte, no mais profundo do ânimo
quando uma comunidade política que adota essa forma de governo de homens que poderiam parecer completamente integrados ao
cai sob a ditadura de uma ou mais pessoas que se colocam acima
mundo do absolutismo. E é justamente sob o aspecto ético que
das leis e, consequentemente, acima do bem comum.
essa tradição republicana faz apelo aos escritores do Iluminismo,
Se, na disputa política havida na Inglaterra, no século XVII,
a Voltaire, a Diderot, a d’Alembert e, naturalmente, a Rousseau.”.
entre Parlamento e Monarquia, tivesse sido a dinastia Stuart a ven-
Não surpreende, pois, que Voltaire, em 1766, fizesse a seguinte
cedora, ou seja, o absolutismo, será que Rousseau, bem como os
declaração:
republicanos ingleses de fins do século XVII e início do XVIII,
“nunca existiram governos perfeitos, pois os homens têm pai-
poderiam ter sustentado a tese de que todo Estado regido por leis
constitui uma república? xões; e se não as tivessem, não haveria necessidade de governo. O
Em outros termos, pode-se sugerir que foi a experiência repu- mais suportável de todos é, sem nenhuma dúvida, o governo re-
blicana da Inglaterra do século XVII, que embora efêmera e afinal publicano, porque é o que mais aproxima os homens da igualdade
derrotada, impediu a monarquia Stuart de consolidar o absolutis- natural” (apud Guerci 1988: 297).
mo no país, obrigando-a a ser constitucional e parlamentar. Voltando ao caráter republicano da monarquia inglesa, por-
Pois, como observou um conservador, o tory Thomas Went- que, então, Rousseau considera não haver verdadeira liberdade
worth, em 1710: “Rei, Lordes e Comuns, cada um formando con- política na Inglaterra, se neste país, desde 1689, ninguém está aci-
trapeso aos outros e tendo como resultado o bem do todo, podem ma da lei, nem mesmo o rei? A resposta, como é sabido de todos,
com mais propriedade ser chamados uma republica do que uma é simples: Rousseau não aceitava o sistema representativo. E se,
monarquia” (apud Venturi 2003: 127). A essa altura da história da no que se refere a Rousseau, cabe apenas a suspeita de que sem
Inglaterra, todos quantos nas fileiras da oposição representavam a existência da monarquia constitucional inglesa, ele não poderia
a tradição republicana, isto é, os chamados commonwealthmen e ter formulado a sua já citada definição de república: “Chamo pois
ou neo-harringtonianos, haviam acabado por se conformar com a de república todo o Estado regido por leis, sob qualquer forma de
ideia de que na Inglaterra a monarquia, por ser republicana, era administração que possa conhecer, pois só nesse caso governa o
irremovível. Como sucedeu, para dar um exemplo, com John To- interesse público e a coisa pública passa a ser alguma coisa. Todo
land, responsável pela reedição, em 1700, de The Commonwealth o governo legítimo é republicano”; no que se refere a Paine, não há
of Oceana (1656) e demais escritos de James Harrington, ao sus- dúvida de que foi o aparecimento, logo coroado de êxito, da Repu-
tentar: blica norte-americana, em 1776, que lhe permitiu negar que uma
“Quem pode ser tão notoriamente estúpido como para se monarquia, mesmo quando constitucional e parlamentar como a
maravilhar de que num governo livre, e sob um rei que é tanto o inglesa, pudesse ser compatível com o bem comum. Daí sua afir-
restaurador quanto o defensor da liberdade da Europa [Guilherme mação em Os Direitos do omem (1791-2): “O que é chamado de
III], eu faça justiça a um autor [Harrington] que sobrepujou de uma república, não é qualquer forma particular de governo”, pois,
longe todos os seus antecessores com seu raro conhecimento da “A palavra republica significa o bem público, ou o bem do todo,
política?” Para Toland, o livro de Harrington era “a mais perfeita em contraposição ao despotismo o qual faz do bem do soberano,
forma de governo popular que jamais existiu” (Id.: 121-2). ou de um homem o único objeto do governo”.

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Em outras palavras, para Paine o governo do bem comum, jovem doméstica da Alemanha que afirma ser de uma verdadeira
no qual todos são iguais e submetidos às mesmas leis, somente é boa família’. Agora, perguntava o autor da carta, o que são suas
possível na republica. Paine, contudo, ao contrário de Rousseau, boas famílias e suas boas maneiras para os republicanos da Améri-
por aceitar e defender o sistema representativo, reconhecia que os ca? Nós fizemos a Revolução sem sermos Bem Nascidos (ou seja,
ingleses eram, de longe, o povo mais livre da Europa, mas não somos descendentes apenas de simples antepassados laboriosos),
tão livres quanto os norteamericanos, tendo em vista que viviam temos discernimento suficiente para tornarmo-nos legisladores,
subordinados a um rei e a uma aristocracia os quais, graças aos mercadores, lavradores e manufatureiros sem sermos Bem Nasci-
privilégios hereditários de que gozavam, estavam acima das leis dos; e porque, jovens gentlemen e ladies não podem vocês manu-
e impediam o sear nossos livros de contas, ou cuidar de nossas lojas e crianças
bem comum. “Embora tenhamos sido suficientemente sábios sem serem bem nascidos?”.
para fechar -e trancar- a porta contra a monarquia absoluta, fomos Passemos à França revolucionária, onde, antes da tentativa de
ao mesmo tempo idiotas o bastante para deixar a Coroa de posse da fuga de Luís XVI, em junho de 1791, praticamente ninguém, pelo
chave...”, escreve Paine em O Senso Comum; e “quer a olhemos menos na Assembléia nacional constituinte, pensava no estabele-
de frente ou de trás, de lado ou de qualquer outro ponto de vista, cimento do regime republicano no país. Com efeito, um dos depu-
seja público, seja privado, a aristocracia continua sendo um mons- tados, Dumont, afirma: “A ideia de uma república, não ocorrera
tro”, escreve em Os Direitos do Homem. diretamente a ninguém e aquele primeiro sinal semeou o pavor
Paine foi não só o primeiro a propor, com o seu panfleto in- entre os deputados da direita e os da esquerda moderada”. O sinal
cendiário O Senso Comum, de janeiro de 1776, explicitamente ao qual se refere do Dumont é o aparecimento de um Manifesto,
a independência das colônias inglesas da América do Norte, e a logo depois da fuga do rei, exigindo a republica, manifesto idea-
adoção do regime republicano (“Está em nosso poder começar o lizado, e muito provavelmente escrito, por ninguém menos que
mundo de novo”); foi, igualmente, o primeiro a identificar republi- Paine! Se na Assembléia a republica estava ausente, fora, nas ruas,
ca com democracia e esta com o sistema representativo, como se acontecia o mesmo, pelo menos antes de 1791, a julgar pelo radi-
lê na seguinte passagem de Os Direitos do Homem (segunda parte, cal Marat, o qual tendo se encontrado com Paine lhe teria pergun-
1792): “Mantendo, então, a democracia como a base, e rejeitando tado: “E realmente possível que você acredita em republicanismo?
os sistemas corruptos de monarquia e aristocracia, o sistema repre- Você é muito esclarecido para se deixar enganar por um sonho tão
sentativo [ou seja, a republica] se apresenta naturalmente, reme- fantástico” Algo semelhante acontece com a palavra democracia,
diando de uma vez os defeitos da democracia simples no tocante à pois, em 1789, o Abade Siéyès afirma que “a França não é, nem
forma... Enxertando representação na democracia, chegamos a um pode ser uma democracia”. Foi somente com o famoso discurso de
sistema de governo capaz de abranger e confederar todos os vários Robespierre, de fevereiro de 1794, que, pela primeira vez, demo-
interesses e qualquer extensão de território e população”. cracia é conceituada de maneira positiva e identificada a republica:
Essa visão de Paine estava longe de ser majoritária ou hege- “O governo democrático ou republicano: estas duas palavras são
mônica no interior do pensamento republicano norte-americano. sinônimas, malgrado os abusos da língua vulgar... A democracia
James Madison, por exemplo, em O Federalista(n. 10, de 1787), não é um Estado onde o povo continuamente reunido, organiza por
procura, ao contrário de Paine, separar republica de democracia si mesmo todos os assuntos públicos... a democracia é um Estado
“[as] democracias têm sido sempre palco de distúrbios e contro- onde o povo soberano, guiado por leis que são obra sua, faz por
vérsias, têm-se revelado incapazes de garantir a segurança pessoal si mesmo tudo o que pode fazer bem e por delegados tudo o que
ou os direitos de propriedade e, em geral, têm sido tão breves em ele próprio não pode fazer... Só há democracia onde o Estado é
suas vidas quanto violentas em suas mortes... Uma republica – que verdadeiramente a pátria de todos os indivíduos que o compõem...
defino como um governo no qual se aplica o esquema de repre- os franceses são o primeiro povo do mundo que estabeleceu a ver-
sentação – abre uma perspectiva iferente e promete a cura do que dadeira democracia, chamando todos os homens à igualdade e à
estamos buscando. Examinemos os pontos nos quais ela difere da plenitude dos direitos do cidadão’”.
democracia pura... Os dois, grandes, pontos de diferença entre uma Se o espírito republicano e democrático, acompanhado do re-
democracia e uma republica são: primeiro, o exercício do gover- púdio ao seu contrário, o espírito monárquico e aristocrático, até
no, nesta última é delegado a um pequeno número de cidadãos então dominante, foi uma força irresistível nas duas revoluções,
eleitos pelos demais; segundo, são bem maiores o número de seus suas tradições e trajetórias, suas dinâmicas e seus timings foram,
cidadãos e a área que ela pode abranger”. Trinta anos depois, em obviamente, muito diferentes. Registro aqui apenas que, ao contrá-
1807, John Adams confessava: “Fui sempre a favor de uma repu- rio do que ocorreu na França, onde a ideologia republicana só se
blica livre, não uma democracia, que é um governo tão arbitrário, configurou depois de bem iniciada a Revolução de 1789, nas co-
tirânico, sangrento, cruel e intolerável...” (apud Bailyn 2003: 257). lônias inglesas da América do Norte o republicanismo constituía,
Mas, de fato, não eram poucos os que praticavam e exigiam sem que os colonos o soubessem, uma prática e uma ideologia do-
a democracia, como se pode ver pelo seguinte exemplo: em 1787, minante. Graças a uma experiência de mais de um século de self-
em Baltimore, um leitor escreve uma carta a um dos periódicos da government – com suas assembléias provinciais e municipais, seus
cidade, o Freeman’s Journal protestando contra os anúncios vei- town meetings – os colonos tinham, de acordo com a historiadora
culados pelo órgão, que traziam pequenas frases, como o uso de Pauline Maier, se “constituído pouco a pouco e sem sabe-lo em um
“bem nascidos”, que, segundo esse leitor, revelavam intoleráveis Estado republicano de fato” (apud Vincent 1993:104). Mas, antes
preconceitos aristocráticos. E ele então dava os seguintes exem- que os historiadores do século XX chamassem a atenção para esse
plos: “‘Um gentlemen tendo dois ou três meses de férias ficaria essencial e decisivo traço da história colonial norte-americana, já
satisfeito em empregar esse tempo para transcrever etc.’ ‘Rapaz Tocqueville, em uma nota de seu O Antigo Regime e a Revolu-
de boa família procura vaga em loja’. ‘Vende-se o tempo de uma ção, que é de 1856, havia lucidamente captado esse fenômeno.”E

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nas colônias que melhor se pode julgar a fisionomia do governo da ideologia dominante no mundo anglo-norte-americano a partir
da metrópole, porque é lá que todos os traços que a caracteriza de fins do século XVII, e o marxista, que fazia do pensamento de
aumentam e tornam-se visíveis... Nos Estados Unidos, o sistema Marx o responsável pelo início da crítica e oposição ao liberalis-
de descentralização dos ingleses intensifica-se... as comunas tor- mo, a partir de meados do século XIX. Assim, esses dois gran-
nam-se municípios quase independentes, espécies de republicas des paradigmas acabaram por tornar os historiadores indiferentes
democráticas. O elemento republicano que forma como o fundo da ao papel histórico crucial exercido pela ideologia republicana na
constituição e dos costumes ingleses mostra-se sem obstáculos e constituição da modernidade, considerando-a, e ao republicanismo
desenvolve-se. A administração propriamente dita faz pouca coisa clássico e/ou humanismo cívico, não mais do que um resíduo irre-
na Inglaterra, e os particulares fazem muito. Na América do Norte, levante. Com efeito, no mesmo ano de 1955, em que nos Estados
a administração não se mete mais em nada, por assim dizer, e os Unidos, um scholarenfatizava o consenso historiográfico existente
indivíduos, ao unirem-se, fazem tudo”. ao afirmar que “Locke, domina o pensamento político norte-ame-
Como quer que seja, antes que Paine, em decorrência direta ricano como nenhum pensador domina em qualquer lugar o pen-
das práticas políticas desencadeadas pelas Revoluções norte-ame- samento político de uma nação” (apud Kramnick 1982: 629), eis
ricana e francesa, iniciasse, em Os Direitos do Homem, a fusão, no que vinha à luz o livro que iria dar origem ao paradigma do hu-
plano teórico, entre democracia e representação (e a sua difusão manismo cívico ou republicanismo clássico: Crisis of the Early
em larga escala), as duas apareciam como incompatíveis. A de- Italian Renaissance: Civic Humanism and Republican Liberty in
mocracia era concebida por todos à maneira grega, daí a palavra an Age of Classicism and Tiranny. Seu autor, o historiador alemão
vir acompanhada do adjetivo direta, ou pura ou, ainda, simples; Hans Baron, fora um defensor ao mesmo tempo silencioso e ardo-
e a representação, por sua vez, era – corretamente - considerada roso da efêmera Republica de Weimar (a qual embora trágica, não
por todos como proveniente das práticas políticas feudais e/ou do foi heróica e não suscitou entusiasmo e impacto seja dentro seja
Antigo Regime. Em outros termos, foi com as Revoluções norte-a- fora da Alemanha) e quando esta sucumbiu ao nazismo, emigrara,
mericana e francesa que – malgré os liberais (como, por exemplo, como centenas de outros intelectuais, para os Estados Unidos, no
Madison e Adams, nos Estados Unidos, e Siéyès e Barnave, na começo dos anos 1930.
França), mas graças aos radicais (como Paine, entre os que ficaram Já na década anterior, Baron havia começado a publicar sobre
famosos, e os milhares de homens e mulheres dos dois lados do aquele que viria a ser o tema de toda a sua vida - o pensamento po-
Atlântico que nunca saíram do anonimato) – república e democra- lítico humanista florentino - e, em 1928, na introdução que fez aos
cia foram fundidas, reabilitadas e reinventadas. escritos de Leonardo Bruni, utilizou pela primeira vez a expressão
Sobre essa fusão, não poderia haver exemplo mais perfeito, “humanismo cívico”. Com ela, Baron, goste-se ou não, criou um
por seu simbolismo, do que o narrado (e trazido à luz) pelo histo- conceito e depois uma obra seminal, mostrando, como ninguém
riador Robert Palmer (1953: 213). Em 1793, quando da execução havia feito até então que o humanismo florentino no século XV,
de Luis XVI e da multidão gritando “Vive la République”, um jo- mais precisamente a partir da passagem do trecento para o qua-
vem grego, que ali se encontrava ao escrever para um conterrâneo trocento, tornara-se intensa e apaixonadamente envolvido com a
na Grécia sobre o acontecimento, traduziu aquele grito por “Viva vida e a história política da cidade. Muitos historiadores não gos-
a Democracia”, e não - o que faz toda a diferença - por “Viva a taram e questionaram a validade e pertinência de sua tese, original
Politéia”, como acontecia desde Aristóteles. Assim, pela primeira e pioneira, mas muitos gostaram e nela se inspiraram para suas
vez, depois de dois mil anos, a democracia deixava de expressar próprias pesquisas mesmo quando voltadas para outros espaços
a forma degenerada de governo e passava a designar a forma boa, e tempos.8Em 1967, doze anos depois do aparecimento do livro
portanto, ideal. de Baron, o historiador norteamericano Bernard Bailyn publicava
Penso que se pode perfeitamente sustentar que com a Repú- As Origens Ideológicas da Revolução Americana, que, como re-
blica espanhola, proclamada em 1931 e esmagada em 1939, fe- conhecem todos os historiadores norte-americanos voltados para
cha-se o ciclo das experiências republicanas na Europa Ocidental, o período da Independência do país, mesmo os que não adotam
daquelas, obviamente, que foram grandes e trágicas, geradoras de sua abordagem e interpretação, representa um turning-point his-
energia, entusiasmo, heroísmo e impacto, sem precedentes, como a toriográfico. Como disse a historiadora Joyce Appleby “com a pu-
inglesa de 1649, a francesa de 1792, e a espanhola de 1936 (malgré blicação de As Origens Ideológicas da Revolução Americana de
Proudhon, Tocqueville e Marx, a Revolução francesa de 1848 tam- Bernard Bailyn o estudo da Revolução Norte-americana foi ele
bém foi heróica e trágica, entusiástica e cheia de impacto; como, próprio revolucionado” (1992: 280). Agora, e antes de indicar no
espirituosamente, observou o historiador inglês A J P Taylor, em que consistiu essa revolução, precisamos saber se existe uma cone-
1848 foi a última vez que Paris espirrou e a Europa ficou resfria- xão entre Bailyn e Baron. Ao que tudo indica existe, pelo fato, por
da). Claro que depois da guerra civil espanhola, em que o fascismo exemplo, mas é o único de que disponho no momento, de Bailyn
à direita, e o anarquismo e comunismo, à esquerda, cada um à sua ser um dos organizadores (juntamente com Donald Fleming) do
maneira, sufocaram o republicanismo da Republica, tal como en- livro publicado em 1969: The intellectual migration: Europe and
carnado por uma minoria, como o presidente Manuel Azaña; claro América1930-1960 Como quer que seja, e apenas mencionando
que continuaram a surgir novos regimes republicanos, como o da aqui que há duas historiadoras que contribuíram para a forma-
Itália, em 1945, mas em nenhum deles houve todos aqueles com- ção do paradigma do republicanismo, Caroline Robbins e Cecília
ponentes. Kenyon (sobretudo a primeira com o livro The Eighteenth-Cen-
Mal se fechou o ciclo histórico e eis que começa o ciclo his- tury Commonwealthman, de 1959), o fato é que com o livro de
toriográfico da experiência republicana. E começa, na década de Bailyn (que é uma obra-prima, e por isso ganhou dois dos princi-
1950, no momento em que estavam no auge os dois paradigmas pais prêmios do país, o Pulitzer e o Brancroft, e em 1992 recebeu
interpretativos: o liberal, que fazia do pensamento de Locke o pai uma nova edição, ampliada) e dois anos depois, em 1969, com o

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trabalho de Gordon Wood The Creation of the American Repu- Se, nos Estados Unidos o paradigma republicano já estava
blic, 1776-1787 (um historiador que fora orientando de Bailyn) o formado antes do aparecimento do livro de Pocock, como prova
paradigma cresceu e se cristalizou. Como o prova, em 1972, o va- o artigo acima mencionado de Shalhope, de 1972, ele ainda não
lioso artigo de R. Shalhope “Toward a Republican Synthesis: The havia se tornado nem hegemônico nem internacional, como iria
Emergence of an Understanding of Republicanism in American acontecer na década de 1980, em grande parte, sem dúvida, graças
Historiography” (The William and Mary Quarterly). ao Momento Maquiaveliano e a Virtue, Commerce, and History,
No que consiste, então, a novidade e a contribuição desse publicado em 1985, e que desenvolve e completa teses iniciadas
paradigma? dez anos antes. Com esses dois livros, toda a história do pensa-
Resumidamente, ele revelou que Locke e o seu pensamento mento político inglês do final do século XVII e do século XVIII,
não constituíram, como até então se afirmava, a ideologia domi- foi revolucionada, pois Locke e o liberalismo, até então conside-
nante no processo de independência da América do Norte, que a rados dominantes, dão lugar à corrente ou tradição intelectual que
corrente principal e dominante era constituída por uma tradição Pocock chama de “humanismo comercial” a qual abarca todo um
ideológica, republicana transmitida por autores ingleses da primei- conjunto de autores, sobretudo escoceses, incluindo David Hume
ra metade do século XVIII, e a seguir caídos no esquecimento, e Adam Smith.
cuja relação com o liberalismo não é fácil de estabelecer (estava O fato desse “humanismo comercial” (elaborado sobretudo
em tensão, competição, contradição, ou em articulação e comple- pelo chamado iluminismo escocês) procurar superar o ideal clássi-
mentação com ele?), pois, nessa tradição, o discurso não recaia co do homem como animal político, como cidadão-guerreiro-pro-
sobre os direitos naturais e individuais, a razão, o contrato e o mer- prietário, considerando que a civilização moderna está assentada
cado, mas sobre a virtude e a corrupção da politéia, o poder e a na economia mercantil, no comércio e no crédito, pouco tem a ver
liberdade dos cidadãos e o perigo dos exércitos permanentes. Para com Locke e o discurso do liberalismo, os quais não constituíam,
que o paradigma do republicanismo clássico ou humanismo cívico ao contrário do que afirma o sensocomum, o discurso dominante
se tornasse completo, e irresistível por sua amplitude e sofistica- na Inglaterra do século XVIII. Em suma, Pocock procurou des-
ção, faltava a publicação, em 1975, do livro magistral de John G.A mentir e superar os dois grandes paradigmas interpretativos, he-
Pocock The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought gemônicos desde o século XIX, o whig (liberal) e o marxista, os
and the Republican Tradition, obra tão seminal quanto os livros quais embora opostos, se encontram presentes e levados as últimas
mencionados de Baron e de Bailyn. Com efeito, inspirado, entre consequências, na consagrada formulação do livro do historiador
outros, por esses dois historiadores (a quem faz o seguinte reco- marxista C.B. Macpherson A Teoria Política do Individualismo
nhecimento, no prefácio que escreveu em 1987, à edição italiana Possessivo, de 1962.
do seu livro: “se olho retrospectivamente para o terreno sobre o Por outro lado, se já na década de 1980 tem início no mun-
qual o meu Momento machavelliano veio se estabelecer, obser- do anglo-norte-americano a reação a esse revisionismo que tem
vo que tem nexos particulares com a obra de três historiadores de em Pocock seu expoente mais importante, assiste-se a partir dos
grande prestigio e ao mesmo tempo, por suas ideias, suscitado- anos 1990, ao mesmo tempo, à hegemonia, verdadeira moda desse
res de discussões. Os três são Hans Baron, J.H Plumb e Bernard paradigma, e a uma revolta contra ele, pois não são poucos os his-
Bailyn”), Pocock articula, e é o primeiro a fazê-lo três momentos, toriadores que dizem já estar nauseados de tanto se falar em repu-
e lugares, históricos distintos, em que floresce e domina o discurso blicanismo (Gibson 2000: 261). Isso, dentro dos Estados Unidos,
e ação de inspiração republicana clássica: o florentino, nos sécu- porque fora é nessa década que esse entra na moda. Como se pode
los XV e início do XVI, o inglês, no XVII e o norte-americano, ver pelos seguintes dados: na França, em 1993 aparece Le siècle de
na segunda metade do XVIII. Praticando o que ele chamou, nes- l’avènement républicain, obra coletiva, organizada por F. Furet e
se mesmo prefácio à edição italiana, de “história túnel”, Pocock M. Ozouf; em 1997 aparece em francês o livro de Pocock Le Mo-
demonstra como os humanistas cívicos florentinos, retomam e ment Machiavélien; ainda na França aparece, neste ano de 2004, a
desenvolvem o pensamento republicano da antiguidade clássica, tradução do livro do irlandês, radicado nos Estados Unidos, Philip
especialmente o de Aristóteles e Polibio, e que tem em Maquiavel Pettit, Républicanisme. Une théorie de la liberté et du gouverne-
seu principal expoente, daí o nome do livro; como essa tradição, ment, publicado originalmente em inglês em 1997 e reeditado em
depois de submersa com a restauração e criação do Grão Ducado versão ampliada, em 1999. O livro de Pettit, com base no para-
da Toscana, a partir de 1520, reaparece na Inglaterra do século digma do republicanismo ou humanismo cívico, procura sustentar
XVII, durante a guerra civil, e que tem em James Harrington, o que existe no Ocidente moderno uma concepção de liberdade, a
autor de The Commonwealth of Oceana, de 1656, seu principal ex- liberdade republicana, que não é nem a concepção de liberdade
poente; como depois de submergir com a Restauração dos Stuart, negativa do liberalismo, individualista e inimiga do bem comum,
esse republicanismo, na passagem do século XVII para o XVIII, nem a de liberdade positiva da democracia participativa que, por
volta à tona com os neo-harringtonianos, ou, commonwealthmen, exigir a intervenção estatal, interfere e infringe a liberdade dos ou-
que funcionando como uma espécie de aqueduto, melhor seria di- tros; essa liberdade republicana é segundo Pettit, a liberdade como
zer –ideiaduto - mais ou menos subterrâneo, permitem que ele, o não-dominação, alternativa às duas outras. Seja ou não sustentável
republicanismo, chegue à América do Norte, onde encontra sua a tese de Pettit, não é sintomático que o seu livro, além do francês,
última floração, no último quartel do século XVIII, na época da já tenha sido traduzido para o italiano, espanhol, turco, hebraico,
Independência. Como bem resumiu a historiadora J. Appleby, com persa e chinês?
o Momento Maquiaveliano de Pocock, o nascimento dos Estados Passemos ao Brasil: em 2001, aparece o livro de Newton Big-
Unidos aparece agora, “menos como o primeiro ato político do notto Origens do republicanismo moderno, pela UFMG, em 2002
Iluminismo revolucionário e mais como o ‘último grande ato do e 2004, na mesma editora, aparecem Pensar a Republica e Retorno
Renascimento’” (1992: 323). ao Republicanismo, o primeiro organizado por Bignotto e o segun-

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BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
do por Sérgio Cardoso; em 2003, a Edusc, de Bauru, traduz o livro e da onipresença. Para franceses e norteamericanos, que tiveram
de Bailyn, e também o livro de F. Venturi (o qual, embora mar- um passado republicano estupendo, é um belo consolo este, mas
ginalmente, também tem a ver com o republicanismo); ainda em para nós brasileiros, cujo país no passado nunca foi republicano...
2003, a Edusp publica Linguagens do Ideário Político, de Pocock,
que é uma versão ao mesmo tempo reduzida e ampliada de Virtue, RECORTES DE MEMÓRIA: REIS E PRÍNCIPES NA
Commerce and History (enquanto o Momento Maquiaveliano, que COLEÇÃO BARBOSA MACHADO
está sendo traduzido, não aparece, tratase, até agora, do único livro
de Pocock, publicado entre nós). Rodrigo Bentes Monteiro
Sobre a atual hegemonia – e moda – do paradigma republi-
cano, trago aqui dois comentários, ambos muito lúcidos, de dois “- Apareçam! – diz a primeira bruxa.
historiadores, e com os quais termino este artigo. O comentário da - Apareçam! – repete a segunda.
historiadora norte-americana Joyce Appleby, extraído de seu livro - Apareçam! – a terceira.
de 1992, já mencionado: “Neste final de século XX, o paradigma - Apareçam diante dos olhos dele – dizem todas -,
Façam o coração dele ficar apavorado ...
do republicanismo clássico aparece à homens e mulheres como
Venham das sombras ... Depois desapareçam ...
uma alternativa atrativa ao liberalismo e ao socialismo. Seja subs-
Aos poucos surgem oito reis. O último deles tem um espelho
tantivamente, na recuperação do discurso político do Renascimen-
...
to, seja teoricamente, na confiança em uma compreensão antropo- - Bruxas malditas, por que querem me mostrar isso?”
lógica de como as sociedades estruturam sua consciência, o revi- Shakespeare, Macbeth
sionismo republicano inspirou toda uma geração de estudiosos em
história, ciência política, literatura e direito. Porque ele demons- Há tantos aspectos a serem explorados, tratando-se da livraria
trou o suporte colonial para a ordem política que enfatiza virtude, organizada pelo abade de Santo Adrião de Sever, Diogo Barbosa
participação e deliberação, o revisionismo mudou nossa percepção Machado (1682-1772), que cogitamos primeiramente algumas al-
sobre o que era possível no século XVIII e, por inferência, o que ternativas de análise. Um tópico inevitável seria a abordagem dos
pode ser possível hoje. Permanecendo fora da imaginação do cam- vínculos deste bibliófilo com a Academia Real de História, da qual
po liberal, tornou-se um ponto vantajoso para aceder a tal campo. foi membro fundador em 1720, detalhando sua vida até a doação
Como uma agulha magnética, o republicanismo atraiu para si as da grande coleção de livros, estampas, mapas e folhetos (aproxi-
limalhas do descontentamento contemporâneo face à política e à madamente 4.300 obras em 5.700 volumes) à Real Biblioteca entre
cultura norte-americanas. Diferentemente do marxismo, fez isso 1770 e1772, como parte do esforço de reerguimento da instituição
ao estabelecer suas origens antes da Independência e consequente- após o terremoto de 1755 que avassalou Lisboa. Sabe-se que frei
mente estabelecendo autenticas raízes norte-americanas”. Manuel do Cenáculo Villas Boas, personagem erudita e conhece-
E o comentário do historiador francês, F. Furet, no prefácio dora de várias bibliotecas européias à época, capitaneou a aventura
ao livro, há pouco citado, de 1993: “Dizer-se republicano [hoje]... livresca. Ele assegurou a Barbosa Machado, como gratidão régia,
é, num mundo hedonista, individualista, ameaçado de entorpeci- uma pensão vitalícia de 600.000 réis anuais. Cenáculo também era
mento cívico e de platitude, manifestar sua ligação à esse modelo preceptor do príncipe da Beira D. José, neto de D. José I
de participação política e de integridade moral... e depositar con- (1750-1777), educado como sucessor do trono português ante
fiança novamente numa pedagogia deliberadamente normativa. É a possibilidade de renúncia de D. Maria, então princesa do Brasil,
celebrar a comunhão social e prosseguir na critica ao liberalismo, à sucessão. Ao menos, assim o desejava D. Sebastião José de Car-
tão central na política francesa. É, no momento em que se extin- valho e Melo, conde de Oeiras e depois marquês de Pombal.
gue a cultura revolucionária, tentar novamente reacender as bra- Igualmente procedente seria aprofundar o estudo das coleções
sas. Pois, a ideia republicana, outrora considerada como perfeita e bibliotecas no Setecentos - como o fez o próprio Cenáculo -,
parte fundamental do universo cultural doabade de Sever. Esque-
para assentar e camuflar a dominação burguesa, símbolo mesmo
mas classificatórios, a ordem dos livros, dos leitores, dos folhetos
do passado a ser ultrapassado pela ideia socialista, parece figurar
perseguidos pelo clérigo Barbosa Machado, seguindo cânones da
hoje seu futuro”.
Ilustração e uma perspectiva mais secular. Mas também fixando
Como se vê, agora que o republicanismo está praticamente valores e conquistas das sociedades do Antigo Regime, em espe-
morto como prática política e realidade histórica, ele está no auge cial a portuguesa .
como interpretação e prática historiográfica. Com efeito, a coleção Barbosa Machado oferece um rico
Dir-se-ia que com os atuais historiadores do republicanismo testemunho de inclusão e exclusão social no Portugal do século
acontece algo semelhante ao que aconteceu com os humanistas XVIII, pois são muitas, mas não todas, as casas e personagens que
do Renascimento. O Renascimento, na belíssima metáfora do integram os verbetes da conhecida Bibliotheca Lusitana Hiftorica,
historiador da arte E. Panofsky, tornou-se consciente de que o Critica e Chronologica... Nesta obra, Bibliotheca não designava
mundo da antiga Grécia e da antiga Roma estava, como o paraíso um espaço arquitetônico para a organização dos livros, mas um
de Milton, perdido. Mas, assim como o paraíso de Milton, que catálogo sobre outros livros. Em ordem alfabética por seus pre-
poderia ser regainded, também o espírito da antiguidade clássica nomes, mais de 5.000 figuras são apresentadas ao leitor mediante
poderia ser ressuscitado. E assim como o Renascimento foi bem suas biografias e obras manuscritas ou impressas, desde o nasci-
sucedido na empreitada, também o paradigma do republicanismo mento de Cristo até o tempo de Barbosa Machado.
parece ter conseguido ressuscitar a alma republicana, recuperan- Os líderes, intelectuais, nobres e religiosos, muito elogiados,
do sua permanência e importância histórica para a modernidade encontram-se dispostos em quatro volumes, constituindo valioso
política. Pois, na mesma metáfora, Panofsky lembra que as almas instrumento de consulta para pesquisadores, espécie de dicionário
ressuscitadas são intangíveis mas têm o privilégio da imortalidade dos conhecimentos em Portugal e de seus grandes vultos.

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BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Por sua vez os opúsculos – ou folhetos – agrupados em 134 to- merece ser estudado de forma mais desprendida das convenções
mos, identificam príncipes, nobres, prelados, cidades e conquistas acadêmicas que separaram o estudo da política, mormente a ciên-
ultramarinas de Portugal, personagens expoentes, organizados por cia política, de outros campos do conhecimento, como a psicologia
temas que reproduzem tópicos de uma sociedade do Antigo Regi- e a antropologia. Em outras palavras, entendemos que o descon-
me e seus gêneros literários: Genethliacos... ; Aplausos dos anos... forto manifestopor Bouza Álvarez não seria exatamente contra a
, oratórios... e poéticos... ; Entradas... ; Epithalamios... ; Elogios contribuição de outras áreas, mas expressa o clamor pelo estudo
fúnebres... , oratórios... , históricos... e poéticos... ; Últimas ações da vida política e do poder como algo mais abrangente que teorias,
e exéquias... ; Notícias militares... ; História dos cercos... ; Mani- instituições e facções. Isso não tem sido feito pela ciência política
festos... ; Tratados de pazes... ; Autos de cortes e levantamento... contemporânea, mas pode ser encaminhado, pelos historiadores
; Notícias genealógicas... , das missões... , procissões e triunfos dedicados a universos passados como a Época Moderna.
sagrados... ; Sermões vários... , na aclamação... , de nascimento... , Para Annie e Laurent Chabry, estudiosos da política e antro-
de desposórios... , gratulatórios pela vida e saúde... , de exéquias... pólogos de formação, a ciência política, ao reservar para si um
e pregados nos autos de fé... ; e Vilancicos de santos ... e festivi- saber específico e estanque aos demais, limitou-se a descrever o
dades ... funcionamento da política e suas disputas, multiplicando ao in-
Na classificação dos opúsculos, a cronologia é o segundo finito as definições do conceito de poder. Esqueceu-se assim de
critério utilizado por Barbosa Machado. Há folhetos do início do compreendê-lo em sua mais profunda dimensão, relacionada, por
século XVI, até o reinado de D. José, caracterizando uma civili- exemplo, aos fenômenos de dominação e submissão, e às motiva-
zação da escrita, no entender de Fernando Bouza Álvarez. Para o ções pessoais no seio de cada sociedade.
historiador espanhol, o mundo após a invenção da imprensa teria No entanto, será preciso entender o poder na Época Moder-
a escrita como aspecto fundamental para a difusão da informação na de modo menos ingênuo que a historiografia do século XIX.
e do poder. As fontes em questão – folhetos diversos e alguns ma- Como se sabe, no caso português, trabalhos coordenados por An-
nuscritos que integram a coleção – seriam diretamente ligadas ao tónio Manuel Hespanha têm valorizado a compreensão daque-
complexo burocrático e administrativo das monarquias, em espe- la sociedade segundo um paradigma que alude a vários poderes
cial as ibéricas nos séculos XV, XVI e XVII, analisadas pelo histo- interdependentes, criando redes de relações clientelares baseadas
riador. Em suma, elas configurariam o próprio poder monárquico numa economia de dar e receber favores, e delegando ao monarca
na Época Moderna, e podem ser estudadas pelos historiadores sem o papel de árbitro nos conflitos existentes. Embora outro paradig-
a utilização de arcabouços conceituais emprestados da antropolo- ma seja proposto para o século XVIII, com o reforço do poder
do Estado, permanece a consideração do mundo das mercês e das
gia e da sociologia. Persuasivos, bem como as cerimônias, muitas
graças, definindo o lugar de cada agente social em relação ao rei,
vezes relatadas nos opúsculos colecionados por Barbosa Machado.
doravante mais legislador.
Contudo, escritos e cerimônias comporiam o próprio poder de mo-
Essa abordagem historiográfica corrobora a importância da
narcas e grandes nesse tempo, sua natureza, não apenas configu-
percepção de cada personagem e sua inserção particular nos jogos
rando aspectos externos.
de poder das elites, na configuração de uma 9 Os autores trabalham
Essa perspectiva difere do entendimento comum de trabalhos
com uma abordagem multidisciplinar do poder, integrando estudos
consagrados como os de Marc Bloch, Norbert Elias e Roger Char-
das ciências políticas, humanas e naturais. Destacam-se as contri-
tier. Embora tenham destacado aspectos importantes das monar- buições da psicanálise definindo as estratégias do inconsciente e a
quias e cortes na Época Moderna, um certo “senso comum” histo- fuga do real como importantes elementos para a compreensão de
riográfico estabeleceu que esses autores lidaram apenas com suas personagens poderosas, e a necessidade de consideração dos indi-
representações e símbolos, como o poder “dava-se a ver”, e não víduos nos respectivos contextos sociais (é estranha, no entanto,
com suas definições mais essenciais. Estas tendem a se confundir a ausência de menção aos trabalhos de Norbert Elias). Também
com a documentação jurídica – trabalhada, por exemplo, por Er- o estudo do comportamento animal parece bastante elucidativo,
nst Kantorowicz – ou com a prática política e institucional. Não é ao se descrever, por exemplo, as ações dos babuínos líderes, suas
possível particularizar neste breve estudo análises dessas obras na demonstrações de força (o olhar intimidador, o andar) e o aspecto
nova historiografia política e suas repercussões em trabalhos de protetor na relação com o grupo, o que evidencia a expressão cor-
outros historiadores. Tencionamos apenas levantar questões per- poral e o problema da distinção entre natureza e representação do
tinentes. Em uma sociedade do Antigo Regime, como distinguir poder. Annie & Laurent Chabry. Le Pouvoir dans tous ses États.
representação e natureza, discursos cerimoniais e outros jurídicos Paris: Imago, 2003. António Manuel Hespanha (org.), José Matto-
- ou “oficiais” -, folhetos impressos para divulgação rápida e trata- so (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Estampa,
dos teóricos, festas e instituições, em suma, aparência e essência? 1992, v. 4; Pedro Cardim. Cortes e Cultura Política no Portugal
Por um lado, a impossibilidade do estabelecimento de dis- do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998; Mafalda Soares da
tinções hierárquicas ou de natureza entre esses aspectos indica a Cunha. A Casa de Bragança, 1560-1640. Lisboa: Estampa, 2000;
especificidade da cultura política na Época Moderna, e a impro- e Gonçalo Monteiro, op. cit.6 sociedade de corte. Desse modo,
cedência de analisá-la segundo critérios da vida política atual. não se pode considerar os trabalhos organizados por Diogo Bar-
Mas por outro, a problemática entre os domínios da nova história bosa Machado como mero fruto dos desígnios régios em relação à
política, da antropologia, da sociologia, foiexpressa por Fernando Academia Real de História. Uma análise muito superficial de seus
Bouza em relação ao seu entendimento do uso da escrita, da fala métodos já o caracteriza substancial autor de sua coleção, ao clas-
e das imagens, diretamente identificadas por ele ao poder. Esse sificar folhetos e destacar retratos de modo peculiar. Pois Barbosa
incômodo do historiador espanhol com os conceitos adaptados de Machado recortava também molduras, decompunha estampas de
outras áreas também sinaliza que o fenômeno do poder, existente árvores genealógicas, fazia arranjos originais, sobretudo selecio-
nas sociedades humanas de todas as épocas e até entre os animais, nava quem merecia entrar em seus álbuns.

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Os retratos explicitam mais os critérios de inclusão social do No Vocabulário Portuguez e Latino..., do padre Raphael Blu-
autor. A equipe desta pesquisa estudou 1.897 imagens, refazendo o teau, a memória é descrita como uma faculdade da alma na qual se
catálogo feito originalmente por José Zepherino Brum. Quatro dos conservam coisas passadas, por meio da qual lembra-se do que viu
seis grandes álbuns organizados por Barbosa Machado são dedi- e ouviu, podendo ser relacionada ao ... que os nof os mayores dei-
cados aos Varões portugueses insignes: em virtudes e dignidades xàrão para eternizarem na pofteridade fua magnificencia, piedade,
(tomo I), em artes e ciências (tomo II), e em campanha e gabinete & outras virtudes. Para Jacques Le Goff, a memória reenvia-nos
(tomos III e IV). Em desacordo com os títulos, as mulheres – em para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem
especial as santas – não estão de fora, e sim os plebeus iletrados, atualiza impressões pretéritas, representadas como passadas. O
sem santidade ou grandes feitos, desde as origens do reino até ato mnemônico fundamental seria narrativo, caracterizado por sua
1770. Por vezes, a vontade de figurar entre os insignes ultrapassou função social, ao comunicar a outrem uma informação na ausência
a própria autoria de Barbosa Machado. As imagens de alguns va- do acontecimento ou objeto em questão.
rões posteriores ao momento de doação da coleção aparecem nos Torna-se procedente assim associar as principais personagens
versos das folhas ou abaixo de alguma outra gravura, sinalizando de Barbosa Machado à história da própria coleção, e às histórias
que também eles – provavelmente por meio de seus admiradores – das monarquias portuguesa e brasileira. Os Retratos de Reys, Ra-
queriam aparecer naquela sociedade de elites historicizada. Entre inhas e Príncipes de Portugal constituem os dois primeiros tomos
os retratos acrescentados, encontra-se o de frei Cenáculo, artífice compilados pelo abade em 1746, com 690 estampas. Outros dois
da doação à Real Biblioteca. tomos da coleção de retratos também incluem reis e príncipes
A memória é sempre viva, atual, revivificada. Como sabemos, europeus. Portanto, não resta dúvida acerca da pertinência desse
a Real Biblioteca veio em caixotes para o Rio de Janeiro em 1810, tema para a investigação da trajetória e do significado desta cole-
após a corte portuguesa. Posteriormente foi comprada por D. Pe- ção. Nos folhetos ou retratos, os reis aparecem em primeiro lugar,
dro I nos acordos que se sucederam à independência. A coleção ordenando uma sociedade e fixando seus valores. Não por acaso,
Barbosa Machado passou a integrar desde então o acervo da Bi- Norbert Elias escolheu o subtítulo uma sociologia da realeza para
blioteca Imperial, a partir de 1878, Biblioteca Nacional. seu livro sobre a sociedade de corte Memória régia.
Os aspectos mnemônico e diacrônico da coleção de retratos Alain Boureau disserta sobre o rei como memória na coletâ-
- as gravuras dos seis volumes são dispostas cronologicamente - nea de estudos de Pierre.
fazem com que ela não possa ser considerada uma “revista da alta Certo, a história da realeza francesa como lugar de memória
sociedade” portuguesa, voltada para o século XVIII. O comentá- é diferente daquela que une Portugal e Brasil, pela continuidade
rio, espontâneo, feito por uma bibliotecária da seção de iconografia de monarquias entre o Antigo Regime e o século XIX, para além
da Biblioteca Nacional, apresenta indubitável anacronismo. Mas das mudanças institucionais. A historiografia francesa, em meio
os álbuns de fato lembram essa analogia, por seu caráter elitista,
ao processo revolucionário durante esse mesmo século, construiu
pelo capricho do organizador, pelos ornamentos de molduras adap-
uma imagem antitética da realeza no Antigo Regime, e cunhou
tados aos retratos recortados, e os textos – espécies de epigramas
assim o termo absolutismo - não há república sem absolutismo.
– também afixados para descrever figuras. Mais uma vez segundo
Na França, a ideia de uma monarquia forte no passado servia para
Fernando Bouza, a imagem visual gozou na Época Moderna – bem
melhor definir as liberdades republicanas segundo os propósitos
como a palavra e a escrita - de um status especial que a tornava efi-
jacobinos e depois socialistas, ou para caracterizar o processo cen-
caz no momento de representar um ethos estamental, distinguindo
tralizador do Estado, na linha de Tocqueville - para quem a história
e sancionando práticas aristocráticas mediante vestimentas, postu-
era a mestra da vida.
ras e expressões corporais. Os retratos também funcionavam como
um bom presente para ser anexado às notícias, satisfazendo curio- Em meio aos sete regimes políticos que vigoraram no país no
sidades distantes. Oitocentos - do consulado ao Primeiro Império no período napo-
Por sua vez Diogo Ramada Curto observa que, entre os cinco leônico, a Restauração da monarquia constitucional, o justo meio
sentidos, a vista ocupava lugar de destaque. Os olhos eram consi- de Luís Filipe, a Segunda República, o Segundo Império de Luís
derados superiores às outras partes do corpo, e as imagens visuais Napoleão, a Comuna de Paris e a Terceira República - os histo-
investiam o vocabulário político. A presença visual do rei não era riadores franceses construíram uma memória da realeza com um
dissociada das práticas rituais em que o poder se formava pelo poder maior que de fato teria,confundindo projetos e práticas po-
gesto e pela imagem, nem das ações de divulgação da figura real líticas. No entanto, a memória dos reis, como vilões ou exemplos,
inscritas nas gravuras. Essa percepção visual do corpo do rei con- continuou a ser forte para contar a história do país. Os reis perso-
figurava hábitos mentais, o recurso à imagem impregnando o co- nificavam o Estado.
tidiano. Os retratos revelavam assim outra forma de utilização da Mas o que comentar, sobre retratos de reis, rainhas e prínci-
imagem, com sua difusão promovida pelas elites, através da gravu- pes de Portugal, que viajaram com uma monarquia e presenciaram
ra ou da pintura, em variados formatos. Com imagens dos reis, dos a construção de uma outra, sua herdeira? A história do Brasil no
santos ou das elites, o corpo estava no centro da representação, o século XIX também é marcada pelas vicissitudes monárquicas: a
que facilitava a utilização de metáforas corporais para as relações Corte joanina, o Reino Unido, o Primeiro Reinado, o período re-
entre poder e sociedade. Desse modo, os livros de emblemas e os gencial ao início do longo Segundo Reinado, a República. Por que
hábitos visuais sistematizados pela memória seriam chaves para foi importante adquirir a coleção, trazê-la para o Brasil, comprar a
compreender os usos analógicos das imagens. Na coleção Barbo- sua permanência e posteriormente cuidar da sua conservação? Tra-
sa Machado, as estampas provêm em maioria dos séculos XVII e balhosrecentes na historiografia brasileira têm concedido atenção
XVIII, no entanto muitas delas referem-se a personagens bastante ao tema da imagem do soberano e ao simbolismo monárquico em
anteriores, idealizando figuras e revitalizando memórias. variados períodos e contextos sociais.

Didatismo e Conhecimento 127


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Sob esse prisma, é indicado conhecer a memória desses A noção de majestade herdada do Império Romano, depois
reis portugueses, relacionando-a à história do Brasil. Para Alain da Igreja, concebia o soberano em condição de significante puro
Boureau, a imagem do rei não é inerte; o material histórico que no sistema político. Ela nunca foi definida em termos institucio-
compõe essas imagens adquire sentido por quem lembra as par- nais, somente provada negativamente pela transgressão no crime
ticularidades de cada rei ou reinado: qual seja um erudito, ou um de lesamajestade, em Portugal mais bem delimitado pelo sistema
estudante escolar. judiciário no período pombalino, tempo de Barbosa Machado.
É preciso compreender assim o papel da imagem régia em Para Alain Boureau o rei não funda, mas representa a ma-
meio a uma história simbólica, além das instituições ou ideolo- jestade. Ele não goza de nenhuma sacralidade pessoal, mas sua
gias. O rei será, portanto, considerado uma persona. Personagem função de representação reserva-lhe uma zona neutra ou sagrada.
mnemônica, ele favorece a expressão de uma continuidade cro- Na monarquia portuguesa, percebe-se claramente a representação
nológica, e estrutura o curso do tempo segundo o princípio suces- na tentativa de associação entre os poderes régio e eclesiástico
sório: estampas de reis germanos antes de Portugal, dinastias de durante o reinado de D. João V, em busca de maior sacralidade
Borgonha, Avis, Habsburgo e Bragança, nessa ordem na coleção institucional.
Barbosa Machado. Os próprios soberanos estabelecem a força da O segundo mecanismo que lembra a imagem régia segundo
cronologia. Ao utilizarem nomes recorrentes - Afonsos, Joãos, Fi- Boureau seria a projeção. O rei, no cume da hierarquia política,
lipes, Pedros -, desdobram o tempo. projeta imagens que lhe fortalecem, como D. João V ao tentar ca-
Constata-se assim que o rei contribui para uma identidade na- nonizar D. Afonso Henriques. O gênero do emblema, pródigo na
cional, não propriamente por construir um consenso de opiniões, coleção Barbosa Machado e florescente na cultura européia desde
mas por seu caráter tópico. Carregada de lembranças e afetos po- o século XVI, ilustra bem esse mecanismo, pois cada virtude, cada
derosos, a figura real provoca e elabora temas coletivos. Por sua figura, cada detalhe das imagens propostas projeta em direção ao
vez a ambivalência da função régia - laica ou clerical, visível ou rei uma visão idílica.
secreta, estática ou dinástica – também contribui para que ela seja Essa percepção da função régia não deve mascarar um as-
um tema comum, pois o rei pode formar pares com a Igreja, com o pecto oposto da projeção, pois o rei pode ser também alvo de um
povo ou com a aristocracia. investimento negativo – como ocorreu com D. Afonso VI (1656-
No referente às etapas da construção do Estado, em princípio 1683) – ou fonte de valores novos, mediante o exemplo de D. An-
elas parecem seguir uma lógica independente aos monarcas. Mas tonio Prior do Crato, ou de D. Sebastião. D. Sebastião por sua vez
cada um desses eventos relaciona-se a uma personalidade régia lembra que a força fantasmagórica da projeção pode até ressus-
específica. No caso português, a fundação do reino com D. Afonso
citar, por meio de impostores ou iluminados, reis defuntos, por-
Henriques (1143-1185), a cobrança regular das sisas com D. João
tadores de todas as esperanças de renovação ou justiça, evidente
I (1385-1433), asubjugação da nobreza e o projeto expansionista
no ciclo de reis escondidos por Yves Bercé, e no sebastianismo
com D. João II (1481-1495). O rei dramatiza o processo de cons-
estudado por Jacqueline Hermann.
trução do Estado.
A projeção também supõe que o rei encontre a medida certa
Ao rei-Estado associa-se a figura do rei-lei. Ernst Kantoro-
da distância em relação aos súditos. Se próximo demais, muito
wicz notou que a primeira tentativa de afirmação de uma soberania
semelhante ou distante, ou por demais inacessível, bloqueia-se
emancipada da limitação crística consistiu na elaboração da teoria
do monarca como lei animada, filho e pai da justiça, ideia desen- o mecanismo. Mede-se bastante a popularidade dos reis por essa
volvida pelos juristas de Frederico II Hohenstaufen no século XIII. adequação.
No Portugal restaurado, a ambivalência desse aspecto judiciá- Mais uma vez, o exemplo paradoxal é o de Afonso VI. Men-
rio da realeza permitiu a valorização de um contrato que preserva- tecapto e preso, distante, sua situação provocou piedade entre os
va a soberania “popular” em contraposição ao exercício livre do súditos. Ao mesmo tempo, sua alienação deu a sua soberania de rei
poder régio, sempre suspeito de tirania. ausente qualquer coisa de eminente e distinta, pondo em perigo a
No entanto, o rei constitui a figura concreta, marca do con- regência do irmão usurpador D. Pedro em 1673, depois Pedro II
junto do laço social. Graças aos historiógrafos e suas obras, digni- (1683-1706). Esse aspecto psicológico da piedade com o rei sub-
ficaram-se como heróis nacionais, conquistadores, descobridores, linha que a projeção não pode ser compreendida em separado da
ou defensores. identificação.
Segundo Boureau, os mecanismos de representação, projeção Nas crônicas e romances, o rei associa sua existência coti-
e identificação animam a lembrança da figura real. Há uma velha diana às vidas dos homens mais simples, como um ser que nasce,
ideia de que o rei é encarregado de produzir uma imagem pública casa, gera herdeiros e morre, comportando-se como membro de
da cerimônia, da etiqueta, da tradição. O rei assim seria o ponto de uma família, seu chefe, o pai de família. Dessa forma, o princípio
encaixe de uma série de símbolos que designam um certo fausto, dinástico se constrói como hipérbole da sucessão e da ordem patri-
uma despesa admitida pelo povo sem grandes consequências polí- monial, embora o caso português apresente variações do processo
ticas ou sociais. Ao representar o passado, posiciona-se como lu- sucessório, evidenciando uma monarquia regulada pela heredita-
gar dos afetos políticos, transformando-se em puro símbolo, traço riedade do cargo, mas também pelas conveniências políticas. O
mnemônico de associações antigas e fortes. Esse aspecto simbóli- próprio rei acentua sua natureza metafórica de pai de família. Pen-
co da personagem real assegura sua sobrevivência. O rei do Anti- semos nas celebrações dos casamentos régios, dos nascimentos de
go Regime permite representar empiricamente o laço social, antes príncipes, nas entradas. Casamentos também, do rei com seu reino,
de qualquer teorização política, de modo análogo como, segundo com sua corte. Ninguém em Portugal mais que D. João V aprovei-
Freud, a memória (ou representação) de um acontecimento arcaico tou as vantagens deste tipo de identificação acerca do varão pro-
ordena os múltiplos afetos que formam a personalidade. Em suma, criador, independente de confissão religiosa, propagando sua aura
o rei “é”, pois “já estava lá”. de amante vigoroso e freirático, gerador de vários filhos bastardos.

Didatismo e Conhecimento 128


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Entretanto, também era pai de família e católico fervoroso. A O barão de Ramiz era ainda preceptor dos filhos do conde
história anedótica dos reis frequentemente alterna momentos desa- d’Eu e da princesa Isabel, netos do imperador, cargo de expressivo
vergonhados com aspectos de ordem moral. símbolo. Como frei Cenáculo em relação ao príncipe da Beira, Ra-
Memória imperial Pode-se supor que a memória dos reis de miz Galvão educava os herdeiros do trono, agora brasileiro.
Portugal organizada em retratos por Diogo Barbosa Machado te- Embora a frequência de leitores à seção de estampas fosse
nha permanecido morta a partir de 1810, quando a coleção chegou muito pequena e irregular, segundo os relatórios, nesse tempo
ao Rio de Janeiro. Mas a simples inclusão de alguns retratos pos- membros da família imperial visitavam a seção, trocando gravuras
teriores nos álbuns desautoriza essa interpretação. Personagens da repetidas por outras. Com a proclamação da República em 1889,as
corte joanina também queriam estar entre os varões insignes, ao formas de tratamento entre os bibliotecários mudavam: o imperial
lado dos reis, rainhas e príncipes de Portugal. Todavia, é razoável Deus guarde vossa Senhoria cedia lugar ao cidadão bibliotecário.
Em 1895, o cidadão Ramiz Galvão foi convidado a organizar o
pensar que a coleção tenha ficado por um tempo esquecida, depo-
catálogo do Real Gabinete Português de Leitura.
sitada precariamente no convento da Ordem do Carmo (na atual
Os vínculos estreitos de Ramiz Galvão com a monarquia bra-
Praça XV de Novembro), depois no Largo da Lapa (hoje Rua do sileira nos últimos anos do Império ainda são merecedores de estu-
Passeio). Somente a partir de 1870 a bela adormecida – como era dos mais cuidadosos. Entretanto, importa caracterizar sua atuação
chamada a coleção - encontraria seu príncipe encantado. como um momento forte de memória do reis de Portugal no Brasil,
O gaúcho Benjamin Franklin Ramiz Galvão (1846-1938) já mediante a restauração e a divulgação da coleção Barbosa Macha-
havia atuado como médico na Guerra do Paraguai, e era professor do, incluindo-se sua inevitável intervenção - juntamente a Brum
do Colégio Pedro II - tendo sido também seu aluno -, quando foi - em todo esse processo, o que os fez também co-autores da cole-
nomeado aos 24 anos diretor da Biblioteca Imperial. Após viajar ção. Parece significativo que esse momento tenha acontecido em
por 13 meses estudando a organização de bibliotecas européias – meio à batalha de símbolos ocorrida no período, referida por José
frei Manuel do Cenáculo Villas Boas fez o mesmo no tempo de Murilo de Carvalho: construção do mito do Tiradentes republicano
reconstrução da Real Biblioteca -, Ramiz Galvão traçou um amplo e rivalidades com o heroísmo nacional de D. Pedro I; bandeiras,
programa de reformas, ampliando o horário de consultas na Bi- alegorias e hinos idealizados por jacobinos, liberais e positivistas;
blioteca Imperial (das 9 h às 15 h e das 18 h às 21 h) e investindo os projetos vencedores que apresentavam alguma continuidade ao
nos processos de classificação e catalogação. A reforma teve seu passado monárquico; além da popularidade de membros da família
ponto alto em 1876, com a criação de seçõesespecializadas, en- imperial entre grupos populares e negros, principalmente após a
tre elas a de estampas, hoje de iconografia. Nesta seção podemos abolição da escravatura.
ler os relatórios trimestrais de seu primeiro chefe, José Zepherino Sem enveredarmos por uma análise que discuta a força ou a
ausência de participação popular e das elites no processo de ins-
Brum, quando se iniciaram os trabalhos de restauração da coleção
tauração da república no Brasil e, épossível considerar a restaura-
de retratos Barbosa Machado em 1883, afã que duraria mais de
ção dos retratos de reis, rainhas e príncipes de Portugal, e toda a
dez anos. divulgação e organização feitas sobre a coleção Barbosa Machado,
Nos afazeres cotidianos do restauro evidenciam-se as difi- como atos reveladores de intenções políticas e culturais. Embora a
culdades de classificação das estampas, devido aos métodos pe- repercussão desses atos em seu tempo possa ter sido restrita a um
culiares do colecionador, que mutilava frequentemente retratos público letrado e curioso, ela se desdobrou no tempo. Mais uma
para encaixá-los em molduras, omitindo desenhistas, gravadores vez lembrando Le Goff, a memória ora retrai-se, ora transborda,
e datas. Mastambém são descritas as habilidades artísticas de um mas sempre desempenha alguma função social.
funcionário, senhor Montenegro, quefazia as folhas de rosto dos Outro momento forte de memória da coleção Barbosa Ma-
tomos VII e VIII, ...imitando com tanta exatidão os caracteres ti- chado, não necessariamente tipificada - como aqui o foi - pelos
pográficos dos títulos dos outros volumes da coleção que dificil- reis portugueses, ocorreu na gestão da bibliotecária Lygia Cunha,
mente se poderá descobrir diferenças entre os dos impressos e os ex-chefe da seção de iconografia da Biblioteca Nacional, ao orga-
dos manuscritos. nizar uma exposição sobre a coleção em 1967, durante a ditadura
Segundo Brum, os senhores Montenegro e Peixoto, em meio a militar. Mas esta já é uma outra história, mais recente no tempo,
doenças que os impossibilitavam para o trabalho, e ao relaxamento outro recorte de memória. Fiquemos com a monarquia portuguesa,
de suas atividades para a entrega aos prazeres da leitura, foram os o Império do Brasil, e o advento da República, da Real Bibliote-
responsáveispelo desmonte dos álbuns originais, descolamento e ca a Biblioteca Nacional. Assim, talvez a epígrafe que abriu este
lavagem de todas as estampas, e pela montagem de tudo em novos artigo possa fazer mais sentido ao leitor. Acompanhando as três
bruxas de Shakespeare, que fizeram surgir ao usurpador Macbeth
suportes encadernados. Processos de restauração do século XIX,
o desfile dos reis legítimos da Escócia medieval, deixemos que os
hoje considerados falsificação.
reis, rainhas e príncipes apareçam, e depois desapareçam em nossa
O primeiro artigo do primeiro volume dos Anais da Bibliote- história.
ca Nacional, datado de 1876 e assinado pelo bibliotecário Ramiz
Galvão, o barão de Ramiz, é dedicado à vida e à obra de Barbosa Império ultramarino e sociedade colonial
Machado.
Até hoje este estudo é fonte de valiosa referência, devido à Uma das intenções deste trabalho é analisar a história colonial,
exiguidade de fontes sobre o bibliófilo português no Brasil. O ca- tendo como pano de fundo o Império luso. Nas últimas décadas,
tálogo dos retratos de Barbosa Machado foi publicado em vários as pesquisas sobre as sociedades coloniais ibéricas e os Impérios
volumes nos Anais da Biblioteca Nacional, outra iniciativa de Ra- Ultramarinos passaram por diversas mudanças. Hoje, sabe-se que
miz Galvão, com introdução de Zepherino Brum, a partir de junho elas não eram meros apêndices da Europa e, portanto, sua dinâ-
de 1893. mica social ultrapassava o mercantilismo. Mais recentemente, as

Didatismo e Conhecimento 129


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
leituras críticas da noção de Absolutismo abriram caminho para rio e, como tal, precisa de um arcabouço teórico mais refinado para
uma revisão das relações entre Metrópole e Colônia. Nesta esteira, explicar sua lógica. O que importa é analisar a “natureza” daqueles
autores como J. Greener sublinharam a ideia de autoridades nego- liames — internos e externos — e, com isto,deslindar a dinâmica
ciadas como meio para se entender melhor aquelas relações. imperial. Uma pista parece ser o Antigo Regime.
Ao invés de metrópoles onipotentes e colônias submissas, te-
ríamos contínuas negociações entre ambas. Mais do que isto, os Hierarquia e exclusão social e o Antigo Regime nos tró-
impérios, como o português, deixaram de ser vistos como uma picos
simples colcha de retalhos, cuja unidade seria dada pela obediên-
cia à mesma coroa. Apesar de todas as diferenças entre as socie- Estas novas visões sobre Império, inevitavelmente, trariam
dades que compunham o Império luso, começou-se a perceber a consequências no entendimento da sociedade colonial. Sob esta
existência de fenômenos que aproximavam tais paragens. É certo ótica, outro tema investigado é o das hierarquias sociais na Amé-
que Portugal, com suas estruturas aristocráticas e camponesas, era rica lusa, em particular, da exclusão social. Considera-se que tal
diferente da sociedade escravista da América lusa e, igualmente, sociedade fora construída sob a égide do Antigo Regime e, mais
esta não se confundia com o Reino de Angola e, muito menos, que ela, entre o século XVI e XIX, vivera uma série de mudan-
com o Estado da Índia. Contudo, para além destas distinções ób- ças sociais e nas suas formas de acumulação de riqueza. Um bom
exemplo disso foram as transformações do Centro-Sul, na passa-
vias, não há como negar o papel fundamental exercido pelos co-
gem do século XVII para o seguinte. No primeiro, nas cercanias
mércios ultramarinos na reprodução das sociedades apreendidas.
da Guanabara, prevaleciam a produção de açúcar e o domínio de
Basta lembrar que o tráfico atlântico de cativos para a América
uma nobreza da terra. Ao longo dos setecentos, ocorreram o de-
tinha como uma de suas moedas de troca, em Angola, os panos da finhamento do açúcar carioca e a consolidação de uma poderosa
Índia. Este negócio viabilizava a escravidão brasileira, a reiteração comunidade de negociantes residentes, com afazeres transatlân-
de sociedades africanas e parte da economia do Estado da Índia, ticos e nas rotas internas coloniais, sendo tais mudanças acompa-
além de gerar ganhos para o Reino. Assim, tais ligações imperiais nhadas pela multiplicação de vilas, de novas produções em São
permitiam a manutenção daquelas sociedades com suas respecti- Paulo e nas Minas, além da interiorização de rotas comerciais no
vas diferenças estruturais. Entretanto, estes laços não terminavam Centro-Oeste. O Rio Grande de São Pedro setecentista, por exem-
no simples comércio. Na verdade, cabe investigar a “natureza” de plo, presenciou a migração de açorianos e de paulistas (inclusive
tais trocas, que ocorriam num mercado pré-industrial. Ou, se pre- de frações de suas elites) e o apresamento de gados cedeu lugar às
ferirem, marcado pelas práticas do Antigo Regime, onde a política estâncias, ligadas ao abastecimento das Gerais e do Rio.
tinha um papel decisivo. Portanto, aquele comércio estava longe Em todas estas áreas, a estratificação social tornou-se mais
de ser regulado pela livre concorrência. As alianças entre nego- complexa com a chegada massiva de reinóis e de escravos afri-
ciantes/oficiais e as mercês concedidas pelo rei consistiam, entre canos, a multiplicação de forros e uma maior divisão social do
outras, em móveis do mercado imperial. trabalho, a exemplo do aumento dos ofícios artesanais.
Do mesmo modo, o mar de Camões podia aparecer, aos olhos Entretanto, apesar destas transformações, a exclusão social do
dos integrantes da antiga sociedade portuguesa, como um espaço seiscentos permaneceu, porém com novos matizes. Na verdade,
de oportunidades. Daí a figura do “fidalgo errante”, criatura da ex- mais do que derivar a exclusão do trabalho escravo ou de uma
pansão ultramarina. Em geral, vinham do braço popular e/ou da concentração de rendas, é fundamental entender os mecanismos
pequena nobreza lusa e seus feitos no ultramar os alçaram a outra que permitiram a sua recriação temporal. Para tanto, parte-se de
qualidade. Porém, com raras ex-ceções, não eram reconhecidos alguns pressupostos.
pela velha hierarquia reinol, ou seja, suas chances no reino con- Antes de tudo, a hierarquia social colonial deriva daquilo que
tinuavam reduzidas — mas o mesmo não ocorria nas conquistas. denomino de Antigo Regime nos trópicos. Portanto, além de seus
Vários se transformaram em conquistadores do Nordeste, do Rio aspectos econômicos, seria forjada por vetores políticos e cultu-
de Janeiro e do Rio Grande de São Pedro, formando as “melhores rais, onde os grupos sociais se percebiam e eram percebidos por
famílias da terra” dos trópicos. Antes disso, tinham passado pelos suas qualidades.
Como se sabe, na antiga sociedade lusa cabia ao governo cui-
Açores,lutado na Índia ou servido na África. Indo mais adiante, a
dar do bem comum da República: dirigir a organização social e
presença do Antigo Regime não só era percebida nas rotas maríti-
política das regiões, sendo isto feito pelas pessoas de melhor qua-
mas ou nos negócios cotidianos internos de Angola ou de Portugal,
lidade da localidade — reunidas na Câmara — e pelos ministros
mas também tal presença deixou suas marcas em instituições como do Rei, ambos subordinados à Coroa. No caso do Rio de Janeiro
a Câmara Municipal e a Santa Casa de Misericórdia. De origem seiscentista, os camaristas fiscalizavam o abastecimento, controla-
reinol, elasse espalharam por diferentes espaços ultramarinos: de vam o açougue público e o trapiche do açúcar; entre outros afaze-
Recife a Macau. Mais do que isto, as Câmaras serviam, à seme- res. Um ministro, como o Provedor da Fazenda Real e Ouvidor do
lhança das lusas, como locus de negociação entre a “nobreza da Porto, respondia pelo erário da Coroa e pelas questões portuárias.
terra” local e os poderes do centro. A partir do governo da República, a hierarquia social colonial co-
Portanto, em meio àqueles vários vínculos ultramarinos, não meçava a adquirir suas feições. Seguindo um velho costume luso,
há por que se espantar com a existência de redes políticas que, os postos camaristas e os ofícios régios — se concedidos como
partindo de Goa ou do Rio de Janeiro, chegavam ao paço lisboeta, propriedade — podiam ser hereditários. O acesso à Câmara pres-
sendo base de conflitos e negociações nos rumos do Império. supunha pertencer à governança da terra, ou seja, descender de
Por conseguinte, não se trata apenas de averiguar a presença antigos camaristas. O cargo de Juiz de Órfãos podia passar de pai
de laços entre as diversas partes do Império. Que este ultrapassava para filho. A soma destes aspectos do “governo” contribuiu para a
a simples condição de um emaranhado de conquistas submetidas a formação de uma nobreza da terra e, consequentemente, de uma
uma Metrópole é fácil de ser visto. O mare lusitanum era um Impé- hierarquia social estamental e excludente. Em outras palavras, al-

Didatismo e Conhecimento 130


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gumas famílias detinham parte do mando local, por terem melhor elimina, em tese, as tensões sociais entre os que possuíam riqueza,
qualidade que as demais mortais. Como tais, as primeiras famílias mas não poder, com a elite. Seja como for, os traços da elite permi-
interferiam na vida da República e nos seus negócios, em particu- tem uma visão menos esquemática da estratificação colonial, o que
lar no mercado. Neste ambiente, o cabedal (riqueza material) era pode ajudar a entendê-la melhor. Neste sentido, frequentemente
visto como meio para sustentar a qualidade. se escreve sobre a adoção de valores culturais da elite senhorial
O processo de montagem da sociedade colonial fluminense por parte dos lavradores, dos forros e dos índios, esquecendo-se
e de sua elite ilustra bem estes cenários. Coubera à Coroa a ocu- do oposto. Parte da nobreza da terra fluminense, deSão Paulo e do
pação da região, porém com a decisiva participação de segmen- Rio Grande de São Pedro casou com lideranças indígenas, portan-
tos das elites vindas de outras áreas americanas. Estes últimos, no to, seus descendentes eram mestiços, pelo menos nos primeiros
melhor estilo da época, colocaram suas fazendas, suas parentelas, tempos coloniais. As cartas jesuíticas quinhentistas estão rechea-
seus escravos e flecheiros ao serviço do rei. Em troca, receberam das de exemplos de colonos “brancos” adotando costumes indíge-
mercês, como de sesmarias e ofícios régios. Da mesma forma, a nas, como a poliga-mia e a antropofagia. Bartolomeu Bueno, no
tais conquistadores caberiam os postos da Câmara da “cidade”, seiscentos, devia ter seusmotivos para querer ser conhecido como
transformando suas famílias nos homens bons da região. Portanto, Anhanguera.
a organização da nova sociedade não fora dirigida apenas pelas Ainda no início do século XVIII, tal nobreza mestiça — al-
autoridades vindas do Reino ou do Governo Geral do Brasil, mas guns com sangue judeu — continuava a incorporar genros mili-
também pelos conquistadores. Neste sentido, a constituição do Rio tares e comerciantes, vindos de escalões abaixo dos Grandes de
colonial seria, simultaneamente, de uma hierarquia social de mati- Portugal. Portanto, o fato de a hierarquia social colonial ser marca-
zes do Antigo Regime, sendo o seu topo dominado pelos conquis- da pela exclusão não implicava que a elite estivesse numa redoma,
tadores, agora transformados na nobreza da terra. A princípio, isto afastada dos demais grupos. Em realidade, ao que parece, aquela
significa que o pertencer à elite não derivava da riqueza material: origem social e cultural teria um papel decisivo na estratificação
engenhos de açúcar ou imensos ativos comerciais. Só isto não ha- considerada, ou melhor, na sua repetição temporal. Estas questões
bilitava à direção da “República” e aos altos escalões da hierarquia obrigam a ter mais cuidado com o estudo das diferenças sociais
social. Disto deriva, ao menos, um fenômeno: além dos escravos e na Colônia, pois elas não eram mantidas a ferro e fogo. O poder
dos pobres livres, os donos de grandes fortunas podiam estar afas- de mando da nobreza não decorria de um dom divino, dado para
tados daqueles postos e direitos. Estes últimos, em seus negócios, sempre. Portanto, a sociedade colonial continha seus mecanismos
estavam subordinados a famílias da governança da terra e estas de reprodução e de elasticidade, entre os quais as práticas de ne-
podiam ter fortunas menores. gociação. Desnecessário dizer que tais negociações possuíam seus
Assim, parece-me que a noção de exclusão social adquire fei- limites. Um deles era próprio da hierarquia estamental. Cabia ao
ções mais refinadas e complicadas. Isto fica patente quando lida- grupo de melhor qualidade a ingerência no governo da sociedade,
mos com a relação qualidade e cabedal. Relação central no Antigo inclusive nos rumos da economia. Daí a importância da ideia de
Regime europeu e ainda mais importante nos trópicos, pois, nes- estratégias e, com ela, a de conflitos, como instrumento de análi-
tes, prevalecia uma economia mercantil escravista. Diante desta se para o entendimento do Antigo Regime nos trópicos. Antes de
última informação, o perfil da elite e os contornos da hierarquia tudo, aquelas estratégias deviam traduzir-se em redes sociais que
colonial tornam-se mais interessantes. Parte da direção da socie- garantissem à nobreza o exercício do mando. Em outras palavras, a
dade colonial estava nas mãos de uma nobreza bem diferente da sociedade tinha de “consentir” em tal hegemonia. A contínua rein-
européia. Aquela descendia, em geral, do braço popular e não das venção da hierarquia estamental pressupunha da nobreza atitudes
melhores casas da aristocracia portuguesa. como práticas parentais entre suas famílias; constituição de redes
Da mesma forma, não vivia de rendas, dadas por um cam- de alianças com fraçõesdas elites regionais da América lusa e com
pesinato ou pelo Rei. Muito menos, seus afazeres se resumiam à autoridades metropolitanas —inclusive com as de Lisboa; casa-
guerra ou à administração da coisa pública, como no Velho Mun- mentos com negociantes etc.
do. Portanto, não surpreende que as melhores famílias da terra dos Entretanto, talvez mais vitais fossem os dons e os contra dons
seiscentos apareçam como apresadoras de índios e traficantes de com os chamados grupos subalternos. Por exemplo, a nobreza
escravos. Para elas, tais atividades não diminuíam a sua qualidade, — em ofícios régios — concedia serventias e postos militares a
pelo contrário, serviam para mantê-la. Para a nobreza — e a socie- integrantes daqueles grupos; estabelecia com eles relações de pa-
dade — algo a distinguia dos demais comerciantes: a sua qualida- rentesco fictício e os “auxiliava” diante da justiça etc. As melhores
de, proveniente da conquista e, consequentemente, de pertencerem famílias da terra compravam engenhos desfabricados para garan-
à governança da “República”. Segundo sua concepção, o cabedal tira sua ascendência nas populações dos arredores das capelas das
e as maneiras de consegui-lo estavam subordinados àquela “qua- “fábricas”.
lidade primeira”, sendo isto válido nos seiscentos, mas também Sublinhar a presença da negociação não implica eliminar as
no século seguinte. Na verdade, os nobres se aproveitavam de sua tensões sociais: quilombos e rebeliões em geral. Contudo, con-
condição política para realizar acumulações comerciais “como vis vém ter cautela com imagens apressadas. A sociedade colonial não
mercadores” e/ou por meio de alianças com negociantes. Por sua pode ser encarada como um campo de concentração para escra-
vez, tal traço dos “fidalgos tropicais” deve ter criado uma visão vos e índios. Ou, o que é o mesmo, como um asilo de paranóicos
mais flexível sobre as fortunas provenientes do comércio e do tra- para a elite, portadora do medo crônico de revoltas das “massas”.
balho. Assim como não seria surpresa que o enriquecimento mer- É imprescindível uma visão mais requintada sobre os modos de
cantil influísse nos contornos da hierarquia social. Porém, há que reiteração da estratificação colonial e de sua exclusão social .Vale
se ter cuidado com a magia da moeda, enquanto agente corrosivo relembrar que, quando falo de estratégias, não me estou referin-
de uma sociedade estamental. De igual modo, o que foi dito não do somente à nobreza ou aos grandes negociantes. Na verdade, as

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BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
negociações entre os diferentes segmentos da sociedade pressupu- A devassa de tal crime não foi levada adiante, “em razão de
nham que eles tinham as suas próprias estratégias de vida. Assim, [José Barcelos e Martim Vasques] serem régulos e temerem as
as relações de compadrio entre nobres e pequenos lavradores ou testemunhas de jurarem a verdade pelo dano que disso lhe podia
com escravos, por exemplo, não podem ser reduzidas a uma sim- sobrevir”.
ples artimanha senhorial. Os lavradores possuíam também seus Em 1745, em um requerimento para Lisboa, (...) os pardos
motivos para tal opção. Da mesma forma, os casamentos mistos forros da cidade do Rio de Janeiro e seu recôncavo, no Brasil,
entre livres e forros devem ser entendidos a partir das suas visões que eles zelozos do real serviço desejam fazer um regimento de
de mundo e estratégias de vida. três tropas auxiliares de cavalo e estarem prontos para todas as
Os escravos e outros grupos subalternos eram portadores de ocasiões do real serviço com cavalos, armas e fardas, dignando-
formas de pertencimento culturais, práticas familiares e maneiras se V.M. criar o dito regimento e nomear para coronel dele a João
de solidariedades que não se reduziam às chamadas relações de Freire Alemão de Cisneiros.
produção. José Barcelos, Martim Correia Vasques e João Freire Alemão
Sendo mais incisivo e sem menosprezar a chamada circulari- pertenciam à nobreza da terra ou, como afirma a primeira carta,
dade cultural: os cativos e os pequenos lavradores possuíam mais
eram “régulos”: “pessoas muito poderosas naquelas partes”. A
de dois neurônios. Deste modo, não eram criaturas das elites. Se,
correspondência de 1691narra, a princípio, uma situação que se
para estas, suas estratégias sociais significavam a manutenção do
enquadra na visão corrente de uma sociedade estamental: a hie-
poder, para os grupos subalternos, tê-las podia representar a pró-
pria sobrevivência física. Cabe aqui relembrar, mais uma vez, que rarquia era mantida pela força, os grupos subalternos apareciam
estamos diante de uma hierarquia estamental. como oprimidos e sem massa encefálica. Afinal, em meias dispu-
Isto nos leva a pensar a questão da ascensão social sob um tas dos poderosos, as testemunhas preferem ficar mudas e os es-
novo ângulo. Pois, se os grupos subalternos tinham uma cultura cravos foram usados como “bucha de canhão”. Porém, se olhamos
própria, que não se esgotava no modus vivendi senhorial, deve-se mais atentamente para estes fatos, algumas coisas mudam. Barce-
perguntar o que eles compreendiam por “ascensão” na dita socie- los e Vasques atacaram seus desafetos não com mercenários suíços
dade. Sem querer aprofundar este tema, para os grupos considera- e, sim, com seus escravos armados, ou seja, os que personificavam
dos, a combinação entre práticas parentais com as de vizinhança a exclusão social.
e os entendimentos com frações das elites auxiliavam, em tese, a Considerando que estes cativos não eram simples robôs pro-
melhoria de suas vidas. De igual maneira, agiam numa economia gramados para matar, mas pessoas, a relação senhorial adquire um
também mercantil, onde a própria nobreza sustentava sua qualida- novo significado. A possibilidade de portarem armas implicava,
de através do tráfico. Portanto, o trabalho e o comércio, a princípio, ao menos, em “acordos” com seus donos. Ao que parece, aqueles
não tinham o mesmo estigma social do Velho Mundo. Certos es- senhores não temiam que os cativos armados se voltassem contra
cravos compravam alforrias e seus descendentes podiam adquirir eles. Quanto ao comportamento das testemunhas, homens livres,
cativos e terras. Contudo, o que esta melhoria de vida e, inclusive, vale relembrar que o conflito era entre frações da elite. Desneces-
de qualidade significava — em temos de referências culturais — sário dizer que os jesuítas não eram pobres servidores de Deus,
para aqueles novos lavradores escravistas, comerciantes, artesãos seu poder político e militar já tinha sido medido em outras opor-
livres ou mesmo donos de moendas? Responder a esta pergunta é tunidades do seiscentos fluminense. Portanto, as testemunhas, ao
vital para compreender uma sociedade onde a alforria não era algo não deporem, na verdade, tomaram o partido de um segmento da
episódico, mas, sim, tinha densidade demográfica. Para complicar elite contra outro. O segundo relato é, talvez, mais interessante.
ainda mais este quadro: apenas o enriquecimento não garantia a O fato de forros pretenderem organizar um regimento de cavala-
ascensão social, que dependia de outras relações, que não as mer- ria insinua a possibilidade de mobilidade nos estratos mais subal-
cantis. Afinal, como a sociedade entendia tais movimentos? ternos da sociedade. Afinal, eram pardos forros em condições de
Entretanto, voltemos à questão inicial: a exclusão social não custear armas e cavalos, o que pressupunha recursos para tanto.
era sinônimo de tensão social crônica. Até porque muitos dos con-
Portanto, tinham saído da escravidão e possuíam certo cabedal.
flitos sociais não se resumiam às lutas entre livres e escravos. Para
Por seu turno, a escolha de João Freire para comandá-los impli-
começar, bandos em disputas pelo poder tinham uma composição
ca na existência de entendimentos entre aqueles forros e uma fa-
social parecida: nobreza, negociantes, ministros do Rei, lavrado-
res, cativos etc. mília da nobreza. Curiosamente, neste ambiente de mobilidade e
Foram, ainda, frequentes os relatos de senhores que iam a con- de negociações, quer eferendava a hierarquia social excludente, a
frontos bélicos — contra os inimigos da Coroa, desafetos pessoais resposta de Lisboa fora negativa. Segundo a sua decisão, a exis-
ou quilombolas — acompanhados de seus escravos africanos e tência de “corpos de infantaria da ordenança separados de pardos
flecheiros indígenas. Isto informa sobre práticas de dons e con- e bastardos (...) pode ser em grande prejuízo desse Estado, e muito
tra dons entre estes segmentos, ou melhor, de negociações. Neste contra a quietação e sossego desses povos, que se faz digno de
sentido, são ilustrativas duas passagens do Rio colonial. O Reitor todo cuidado e atenção”.
da Companhia de Jesus e o Ouvidor do Rio de Janeiro, em1691, Parece que Lisboa tinha mais receio das “inquietações” dos
mandaram cartas a Lisboa, denunciando agressões contra a Com- “pardos e bastardos” do que a própria nobreza da terra: os primei-
panhia em Campos: ros que seriam atingidos por ameaças à hierarquia social. Ambas as
Os negros de José de Barcelos e outros mais de Martim Cor- citações indicam a presença, nos meandros da sociedade escravis-
reia Vasques (...)armados com flechas, dardos e armas de fogo fo- ta, de mecanismos que permitiam a reiteração de uma hierarquia
ram a um dos currais dos ditos padres e investindo aos tiros aos social excludente. Em outras palavras, os dois casos informam que
negros que assistiram nele (...) deixando muitos feridos (...) amea- tais mecanismos garantiam — na falta de uma melhor palavra — o
çando os que [retornassem] aquele sítio os haviam de matar e ain- poder social da nobreza da terra. Poder este que, em certas circuns-
da não satisfeitos queimaram as casas e derrubaram o dito curral. tâncias, inibia a ação da administração colonial. A impotência do

Didatismo e Conhecimento 132


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Ouvidor nos acontecimentos de 1691 ilustra bem isto. Na verda- conquistas, de vicissitudes (...), e que eles subentendem um julga-
de, a nobreza, para participar do governo da República ou, ainda, mento de valor. O outro sentido da palavra é muito mais preciso e
manter sua qualidade estamental numa economia mercantil, tinha positivo. Eu o chamarei de sentido etnográfico. (...) É o conjunto
de ter redes de poder social. das características que a vida coletiva de um grupo apresenta aos
olhos de um observador imparcial e objetivo.
Bibliografia (Febvre, Lucien. A Europa. Gênese de uma civilização. Trad.
Livro: Culturas políticas; Bauru: EDUSC, 2004, p. 66)
Autores: Martha Abreu, Rachel Soihet, Rebeca Gontijo,
(Orgs); O conceito ao qual o autor faz referência, que na escala de
Referências: ROIZ, D. da S.. compreensão, segundo as Orientações Curriculares para o Ensino
Entre a cultura histórica e a cultura política, os ingredien- Médio − História, recebe a denominação de “categoria”, é
tes necessários para a renovação da historiografia e do ensino
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bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/6595/785. história é o tempo; portanto, não é de hoje que a cronologia de-
pdf?sequence=1 sempenha um papel essencial como fio condutor e ciência auxiliar
da história. O instrumento principal da cronologia é o calendário,
QUESTÕES que vai muito além do âmbito do histórico, sendo mais que nada
o quadro temporal do funcionamento da sociedade. O calendário
01. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) No ano de revela o esforço realizado pelas sociedades humanas para domes-
1983 foram publicadas na Inglaterra duas obras que transforma- ticar o tempo natural (...). Porém, suas articulações mais eficazes
ram fortemente o pensamento historiográfico em todo o mundo. (...) estão ligadas à cultura e não à natureza.
Trata-se de Imagined Communities (Comunidades Imaginadas), (Le Goff, Jacques. História e Memória. Trad. 3.Ed. Campi-
de Benedict Anderson e The Invention of Tradition nas: Ed. da UNICAMP, 1994, pp.12-13)

(A Invenção das Tradições), organizada por Eric Hobsbawn De acordo com esse autor, é correto afirmar que
e Terence Ranger. Segundo o historiador Peter Burke, essas obras
tiveram grande repercussão porque (A) o historiador, que possui o compromisso com a verdade
(A) as tradições de outros continentes foram abordadas pela do passado, deve assumir a tarefa de elaborar os calendários e cro-
primeira vez por autores europeus, que adotaram a visão relativista nologias utilizados em sua sociedade, já que os riscos de manipu-
e construtivista sobre a história dos povos e culturas diferentes das lação dos fatos por outras pessoas é muito grande.
suas. (B) os historiadores deixaram de se preocupar com calen-
(B) os autores revelaram que grande parte das tradições e dários e cronologias desde o surgimento da Escola dos Annales
práticas coletivas consideradas antigas e até milenares eram, na francesa, à qual pertence Jacques Le Goff, passando a valorizar as
verdade, construções socioculturais recentes, nascidas no contexto diversas abordagens dos fatos e processos do passado.
das nações do século XIX. (C) a constatação de que cada cultura possui seu próprio sis-
(C) os historiadores ingleses, enfim, adotaram uma postura de tema de contagem de tempo levou os historiadores a adotarem um
reconhecimento da historiografia francesa, sua grande rival, e pas- padrão mundial único de calendário e cronologia, atualmente se-
saram a trabalhar na perspectiva da Nouvelle Histoire. guido por todas as sociedades e culturas.
(D) os historiadores, a partir delas, passaram a adotar as no- (D) o calendário e as cronologias, por estarem vinculados à
ções foucaultianas de comunidade e imaginário no lugar dos ultra- ideologia dominante, representam uma falsa ideia do passado, e
passados conceitos “marxistas” de classe social e luta de classes. não devem ser levados em conta pelos historiadores, que buscam
(E) os autores foram favorecidos pelo momento histórico, desvincular seus conhecimentos das contagens artificiais do tem-
sobretudo pelo governo da primeira ministra Margareth Thatcher, po.
que ampliou o aporte de recursos às pesquisas de historiadores in- (E) o calendário e as cronologias tornaram-se, também, ob-
gleses sobre as culturas africanas. jetos de estudo e análise por parte dos historiadores, já que ex-
pressam as vinculações míticas, religiosas, tecnológicas, políticas,
02. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Essa palavra econômicas, sociais e mesmo ideológicas a partir do estudo do
recente tem dois sentidos, eu não a encontrei antes de 1766; en- passado.
contrei-a nessa data pela primeira vez, no L’Antiquité dévoilée
de Boulanger, obra póstuma publicada pelo barão de Holbach. Instruções: Com base nas ideias do texto abaixo, um pro-
Um termo bastante vago, que empregam vulgarmente os jornais, fessor propôs as atividades apresentadas nas questões de nú-
as revistas, os livros, quando falam de progresso, de derrotas, de meros 04 e 05.

Didatismo e Conhecimento 133


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Faz parte da construção do conhecimento histórico, no âm- (E) as inúmeras oportunidades de sonegação e desvio de re-
bito dos procedimentos que lhes são próprios, a ampliação do cursos na Capitania de São Miguel contribuíram para que a maior
conceito de fontes históricas que podem ser trabalhadas pelos parte dos colonos não prestasse contribuição ao rei.
alunos: documentos oficiais, textos de épocas e atuais, mapas
(...), literatura... 05. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Em discurso
(Orientações Curriculares para o Ensino Médio − História) proferido em 1o de maio de 1942, Getúlio Vargas afirmou, exalta-
do: Soldados, afinal somos todos, a serviço do Brasil.
04. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) A tabela refere- A proposta foi discutir se a frase constitui um documento.
se às contribuições feitas ao rei de Portugal por colonos estabeleci- Com base no conhecimento de História, os alunos concluíram que
dos nos bairros que se localizavam em torno da vila de São Paulo. essa frase pode ser considerada um documento na medida em que
ela revela

(A) uma explícita manifestação de interesse do presidente do


Brasil em se alinhar com as forças militares alemãs, buscando con-
vencer os cidadãos brasileiros da importância do seu engajamento
na luta contra os aliados.
(B) um apelo desesperado aos cidadãos brasileiros, que se
recusavam a se alistar nas forças militares contra as ameaças nor-
te-americanas de invasão do País, caso o presidente insistisse em
manter a posição de neutralidade na guerra.
(C) uma estratégia política de militarização psicológica para
converter em soldados da pátria toda a classe trabalhadora, num
contexto de determinações sobre a produção em regime de econo-
mia de guerra.
(D) um ponto de partida para a criação do serviço militar obri-
gatório para os homens com idade superior a 18 anos, que passa-
riam a defender as fronteiras do Brasil, dado o contexto de guerra
mundial que se acirrava.
(E) uma metáfora irônica do presidente da República, que, por
ser um pacifista e defensor das forças de paz internacionais, queria
mostrar aos brasileiros que cada um pode ser um soldado no âmbi-
to de sua própria existência.

06. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Na visão de Ja-


cques Le Goff, os estudos comparativos realizados pelas ciências
humanas entre sociedades com e sem escrita acerca da memória
coletiva revelam que

(A) a memorização literal, palavra por palavra, de narrativas


e conteúdos foi fundamental no estabelecimento de contatos entre
as culturas ágrafas e as culturas com escrita.
(B) os mecanismos de memorização de narrativas míticas e
A atividade proposta pelo professor (leitura e interpretação da
heróicas nas culturas sem escrita prescindem da memorização li-
tabela) contribui para a ampliação do conceito a que o texto faz
teral e se baseiam em uma reconstrução generativa pelos próprios
referência, pois a análise dos dados da tabela permite concluir que
narradores.
(A) a pobreza na região da vila de São Paulo era generalizada, (C) a dificuldade em memorizar longos conteúdos de narra-
pois as doações se concentravam, predominantemente, em valores tivas míticas e heróicas a serem transmitidos coletivamente fez
de até 400 réis, que eram baixos. com que muitas culturas sem escrita apagassem suas lembranças
(B) a concentração de riqueza dos colonos era maior na região e tradições.
central, enquanto nos bairros mais distantes a riqueza estava mais (D) a invenção da escrita levou ao completo desaparecimento,
bem distribuída. nas culturas ocidentais, dos indivíduos responsáveis pela memo-
(C) os bairros com maior concentração de colonos pobres rização e transmissão de narrativas míticas e heróicas entre gera-
eram Caaguaçu e Santo Amaro, enquanto os mais ricos estavam ções.
localizados em Atibaia e Juqueri. (E) as narrativas míticas e heróicas, por apresentarem inúme-
(D) os bairros de Antonio Bueno e Cotia eram os que apresen- ras imprecisões, não podem ser consideradas por historiadores,
tavam maior igualdade socioeconômica entre seus colonos, o que antropólogos, sociólogos e etnólogos como elementos de análise
é demonstrado por suas contribuições. do passado das culturas sem escrita.

Didatismo e Conhecimento 134


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Instruções: Considere o texto abaixo para responder às ques- (A) o abandono imediato das atividades da WIC em Pernam-
tões de números 07 e 08. buco devido à dificuldade da população holandesa com o clima e
O princípio pedagógico da “interdisciplinaridade” é aqui a terra.
entendido especificamente como a prática docente que visa ao de- (B) o combate à utilização da escravidão indígena pelos co-
senvolvimento de competências e de habilidades, à necessária e lonos holandeses que desobedeciam sistematicamente às normas
efetiva associação entre ensino e pesquisa, ao trabalho com dife- da WIC.
rentes fontes e diferentes linguagens, à suposição de que são pos- (C) a justificativa para o despreparo dos colonos holandeses,
síveis diferentes interpretações sobre temas/assuntos. pouco adaptados ao ambiente inóspito da região tropical onde a
(Orientações Curriculares para o Ensino Médio − Ciências WIC se estabeleceu.
Humanas e Suas Tecnologias − História. Brasília, MEC-SEB, (D) a necessidade de colonos holandeses possuírem capital
2006. p. 68) reservado para a compra de africanos e o estabelecimento de mer-
cados negreiros pela WIC.
07. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Todos os paí- (E) a investigação das causas da perda de Pernambuco para os
ses decentes demonstram o mais entranhado amor à cultura do portugueses escravistas após a guerra que expulsou os holandeses
povo; e seus governos tudo fazem para desenvolver a indústria e a WIC do Brasil.
do instrumento fundamental da cultura, que é o livro. E os que a
têm incipiente chegam a conceder ao livro favores excepcionais. 09. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Na primeira
Entre nós, o contrário. País onde se protegem de maneira escan- metade do século XX o historiador da arte Erwin Panofsky (1892-
dalosa todos os artigos industriais (...) o Brasil abre exceção para 1968), autor de Idea: a evolução do conceito de belo (1924), foi
a indústria básica da cultura. Para todas as outras, protecionismo o responsável por uma importante transformação nos estudos da
escandaloso. Para a do livro, protecionismo ainda, sim, porém às história da cultura, a partir da construção de um método baseado
avessas a favor da de fora, contra a de dentro... na interpretação das imagens artísticas que levou à criação de uma
(Lobato, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema vital) nova hermenêutica visual. Segundo Peter Burke, por meio dessa
nova interpretação tornou-se possível inferir a cosmovisão de uma
De acordo com as Orientações Curriculares, o fragmento da
cultura, ou de um grupo social, a partir da análise de uma só obra
obra de Monteiro Lobato pode ser utilizado nas aulas de História
de arte. Panofsky, contudo, não desenvolveu tais ideias sozinho,
e revela a posição de um escritor em sua época, que se manifesta
tendo pertencido a um importante e revolucionário grupo de inte-
lectuais conhecido como
(A) favorável à importação de livros para ampliar a atividade
de leitura da população brasileira, pobre, inculta e carente de infor-
mações, como medida compensatória das necessidades internas. (A) Escola de Warburg.
(B) contrário à escandalosa ampliação do mercado livreiro (B) Escola dos Annales.
nacional, já que o aumento do consumo de livros prejudicaria as (C) Nova História.
necessidades básicas da população. (D) Escola de Chicago.
(C) preocupado com o baixo consumo de livros, pois Lobato (E) Escola Bauhaus.
era um autor extremamente produtivo e buscava ampliar suas rela-
ções com a indústria editorial. 10. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Entre os anos
(D) crítico acerca da falta de incentivo governamental à indús- de 1894 e 1906 ocorreu na França o Caso Dreyfus, episódio polí-
tria editorial no Brasil e defesa de uma política protecionista que tico-militar que se tornou mundialmente conhecido. Acerca desse
colocasse o livro no mesmo patamar de outros produtos nacionais. processo é correto afirmar que
(E) indiferente aos problemas da indústria editorial do país,
preferindo a ampliação da leitura de livros estrangeiros, em diver- (A) a descoberta de fraudes nas acusações de traição contra
sas línguas, considerados melhores que os nacionais. Alfred Dreyfus aumentaram em toda a França um movimento
popular de apoio às famílias semitas expulsas da Alemanha pelas
08. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Sem negros guerras de unificação.
nada se pode cultivar aqui, e nenhum branco – por mais disposto (B) Alfred Dreyfus sofreu uma falsa acusação de traição e foi
ao trabalho que tenha sido na pátria – se pode dedicar no Brasil julgado como culpado, fato que dividiu a elite intelectual francesa
a trabalhos tais, nem mesmo consegue suportá-los; parece que o e deflagrou o forte antissemitismo que marcou o país na passagem
corpo, em conseqüência da mudança tão extrema de clima, perde do século XIX para o XX.
muito de seu vigor; isto não sucede somente com o homem, mas (C) após ser acusado de traição e perseguido, Alfred Dreyfus
com tudo o que venha da Europa para o Brasil, inclusive o ferro, fugiu para a Alemanha, onde se uniu a grupos de intelectuais dis-
o aço, o cobre, etc., e não me refiro às coisas mais sujeitas a de- postos a apoiá-lo contra as atitudes discriminatórias das elites fran-
terioração. cesas antissemitas.
(Alencastro, Luis Filipe. O trato dos viventes. Formação do (D) durante os anos em que esteve preso, até ser julgado por
Brasil no Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das traição, Alfred Dreyfus elaborou uma série de artigos polêmicos
Letras, 2000, p.211) contra os franceses e sofreu duras críticas do escritor Émile Zola,
seu principal opositor.
Neste caso, trata-se de um ponto de vista elaborado por Van (E) a repercussão das acusações fraudulentas a Alfred Dreyfus
der Dussen, no ano de 1640, acerca das condições das atividades levaram a França a uma grave crise política, que só seria superada
da WIC (Companhia das Índias Ocidentais) em Pernambuco, cujas com a criação de um tribunal especializado em crimes de traição,
intenções estavam voltadas para no início do século XX.

Didatismo e Conhecimento 135


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Instruções: Para responder às questões 11 e 12, considere o (B) ameaçavam boicotar frequentemente a produção de cana,
trecho das Orientações Curriculares para o Ensino Médio − His- de farinha, de pesca, de roças de arroz e de corte de lenha.
tória. (C) recusavam-se a trabalhar na pesca de mariscos, pois esta-
vam buscando uma oportunidade de se transferirem para a região
O poder pode ser entendido como o complexo de relações das Minas.
entre os sujeitos históricos nas diversas formações sociais e nas (D) organizaram-se contra a presença de feitores no engenho,
relações entre as sociedades. As relações de poder permeiam o que os impediam de trabalhar em suas próprias lavouras.
processo de construção do conhecimento histórico e são um dos (E) propunham uma negociação de paz, desde que o senhor
fatores de significação que delimitam o que seria a consciência atendesse as suas reivindicações e garantisse melhores condições
histórica, que marca os diversos modos de apreensão e da cons- de trabalho no engenho.
trução do mundo historicamente constituído e suas respectivas
interpretações. 12. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Foi também
proposta a leitura de uma Consulta da Câmara de Lisboa a El-Rei,
11. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Com base no em 1767:
texto, o professor, em uma atividade de leitura e discussão reali- Senhor, Propôs neste tribunal o juiz do povo desta cidade a re-
zada em sala de aula com o documento abaixo, pretendeu levar os presentação inclusa, em que ponderam o dano que experimentam
alunos a refletir sobre as relações de poder na História. os oficiais e mestres dos ofícios e artes fabris, em se proceder nas
Meu Senhor, nos queremos pás e não queremos guerra; Se execuções que se lhes fazem, a apreensão e penhora na ferramenta
meu Senhor também quizer a nossa pás ha de ser nesta conformi- e mais petrechos com que exercitam os seus ofícios, nascendo da
dade (...). falta deles o sujeitarem-se a empregos e exercícios abjetos, sendo
Em cada semana nos há de dar os dias de sesta feira e de Sá- aliás de tão pouco valor, que apenas pode chegar o seu produto
bado para trabalharmos pa nós não tirando hum destes dias por para as despesas das arrematações das mesmas ferramentas, pelo
causa de dia Santo. que seria útil que nas execuções se lhes não penhorassem aqueles
Para podermos viver nos hade dar Rede tarrafa e canoas. (...) bens.
Para o seu sustento tenha lanxa de pescaria ou canoas do Pondera mais que esta isenção seria ociosa, a não ser segui-
alto, e quando quizer comer mariscos mande os seus pretos Minas. da de outra que era a liberdade ou privilégio de não ser preso ofi-
Faça uma barca grande para quando for para a Bahia nós cial ou mestre algum por dívida meramente cível e de boa fé, por
metermos as nossas cargas para não pagarmos fretes. ser este procedimento que se pratica na falta de bens, inútil aos
Na planta de mandioca, os homens queremos que o tenhão credores e sumamente nocivo aos devedores que, impossibilitados
tarefa de duas mãos e meia e as mulheres de duas mãos.(...) por este meio de conseguirem não só os da satisfação da sua dívi-
A tarefa de cana hade ser de cinco mãos e não de seis, e a dez da, mas as do seu próprio sustento e das suas famílias, vêem estas
canas em cada freixe. (...) a recair, igualmente que os presos, na última ruína.
A madeira que se serrar com serra de mão em baixo hão de
serrar três, e um em cima. Acerca dessa consulta, entende-se que
A medida de lenha hade ser como aqui se praticava, para
cada medida um cortador, e huma mulher para carregadeira. (A) o povo da cidade pedia ao rei que fosse mais rigoroso nas
Os actuais Feitores não os queremos, faça eleição de outros punições aos crimes dos mestres de ofícios, sobretudo quando tais
com nossa aprovação. (...) crimes tivessem sido cometidos com as ferramentas de trabalho.
O canavial de Jabirú o hiremos aproveitar por esta vez, e de- (B) uma legislação régia, que determinava a punição dos arte-
pois hade ficar para pasto por que não podemos andar tirando sãos e mestres de ofícios com a apreensão de suas ferramentas de
canas entre mangues. trabalho em caso de prisão por dívidas, estava em vigor na cidade.
Poderemos plantar nosso arroz onde quizermos, e em qual- (C) os artesãos que não possuíssem suas próprias ferramentas
quer brejo, sem que para isso peçamos licença, e poderemos cada deveriam se apresentar à Câmara para que as recebessem e assim
hum tirar jacarandás ou outro qualquer pau sem darmos parte se livrassem da acusação de ociosidade que lhes era impingida.
por isso. (D) muitos artesãos e mestres de ofício da cidade, por terem
A estar por todos os artigos acima, a concedemos estar sem- tido confiscadas suas ferramentas, acabaram sendo presos por dívi-
pre de posse de ferramentas, estamos prontos pa o servirmos como das, já que não tinham como realizar o trabalho sem elas.
dantes, por que não queremos seguir os maos costumes dos mais (E) o confisco geral das ferramentas de trabalho que se seguiu
Engenhos. à execução de alguns artesãos na cidade colocava em risco o ganho
Poderemos brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que e a sobrevivência de muitos oficiais.
quisermos sem que nos empeça e nem seja preciso licença.
(Schwartz, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Bau- 13. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) A visita a Mu-
ru: EDUSC, 2001, pp.113-15) seus é uma atividade prevista nos programas curriculares de Ensi-
Após a discussão, pode-se afirmar que os alunos chegaram à no de História. Os Museus podem ser voltados para vários temas,
conclusão de que os escravos rebeldes períodos, objetos e conteúdos que devem ser trabalhados e conhe-
cidos nas suas especificidades. Segundo
(A) reivindicavam a liberdade e o pagamento pelas atividades Adriana M. Almeida e Camilo de M. Vasconcelos, em Por
realizadas no Engenho, tais como pesca, plantação de cana e trans- que visitar museus (p. 105. In: O saber histórico na sala de aula),
porte dos produtos. em um Museu

Didatismo e Conhecimento 136


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
(A) a ordem dos acontecimentos representados nos documen- (E) adota uma perspectiva apocalíptica e providencialista, que
tos materiais, para que sejam compreendidos pelos alunos, deve espera no futuro o retorno ao passado por meio das realizações
ser cronológica. do presente por intermédio da intervenção divina, que se daria na
(B) as imagens e objetos devem estar vinculadas à concepção ocasião da festa religiosa.
teórico-metodológica adotada pelos órgãos educativos que preten-
dem utilizar o Museu como espaço de aprendizagem. 15. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Temos a gló-
(C) os objetos devem estar reunidos para produzirem um dis- ria de nos correspondermos já com algumas sábias Academias
curso museográfico inteligível para os leigos através dos docu- e Sociedades da Europa. Além do Instituto Histórico de França,
mentos materiais ali apresentados. a quem saudamos desde nosso princípio, e que nos felicitou com
(D) os documentos, textos e imagens constituem um conjunto entusiasmo pela nossa instalação, (...) recebemos igual e honrosa
coeso de símbolos que preservam e valorizam a memória dos he- felicitação da Academia Real de Ciências de Lisboa, que anuindo
róis nacionais. ao nosso convite de literária correspondência, aceitou para seu
(E) as imagens do passado e as obras de arte servem para ex- Vice-Presidente e Secretário Perpétuo os diplomas de membros
plicar o presente, contribuindo assim para a compreensão da rea- honorários do nosso Instituto, e em troca da Revista Trimestral
lidade nacional. que lhe enviamos, nos ofereceu 12 volumes in-fólio das suas Me-
mórias Históricas e trabalhos acadêmicos.
14. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) (...) Parecerá Essa confraternização, Senhores, nos deve ser mui vantajosa,
incrível nas futuras idades, o como se pode obrar tanto nos edi- porque (...) poderemos ser coadjuvados com interessantes manus-
fícios, que repentinamente se levantarão nas duas praças que se critos sobre História do Brasil, que enriquecem o seu preciosos
tem em Lisboa, que são o Terreiro do Paço, e o Rocio; mas estes arquivo; nem o Instituto cessa de lembrar-se que poderá (...) con-
milagres da arte, e diligência, soube conseguir o Senado para obe- correr com esse respeitável Corpo Acadêmico para publicação de
decer às ordens de um Soberano, que por influxo de suas palavras obras que honrarão duas nações que por três séculos foram uni-
conseguiu o vencer-se as demoras do tempo, e os embaraços do das em uma só família.
terreno, não havendo obstáculo, que não fosse superado, para ad- (Discurso proferido na segunda sessão pública do aniversá-
ministrarmos naquele fausto e sacratíssimo dia a mais sagrada e rio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 27/12/1840.
lustrosa Procissão para o Triunfo do Senhor Sacramentado. De- Relatório do Secretário Perpétuo, Revista do IHGB: 2(1858) 2a
vemos crer e persuadirmos, que se os romanos vissem a Lisboa,
edição, pp.576-7)
e vissem só uma parte daquele plausível dia, perderiam soberba,
com que ainda se lembram o triunfo dos Emilios. E da pompa com
Segundo Kátia Abud, cabia à instituição a que o texto se refere
que se celebram os Cesares, as solenidades que dedicavam as suas
falsas Divindades, das festivas entradas dos Titos, e Vespasianos,
(A) questionar e contestar a versão da História do Brasil es-
de que as Histórias daquele prostrado Império fazem agradecida
crita pelos Acadêmicos Portugueses durante os três séculos do pe-
memória; porque na cabeça do mundo gastarão largos anos para
ríodo colonial.
levantar arcos e pirâmides. Mas em Lisboa Ocidental se fabrica-
rão máquinas em quatro semanas, que servindo em poucas horas (B) concorrer com as Academias portuguesa e francesa na es-
merecerão o aplauso de muitos séculos. crita da História do Brasil, através do sistema de correspondência
(Inácio Barbosa Machado, na História Crítico-Chronológica internacional.
da Instituiçam da Festa, Prossiçam, e Officio do Corpo Santís- (C) contestar a escrita oficial da História do Brasil, concebida
simo de Christo no Venerável Sacramento da Eucharistia, foi segundo os valores positivistas adotados por D. Pedro II e seus
publicado no ano de 1759) ministros imperiais.
(D) resgatar aspectos da memória das pessoas comuns, dos
A noção de memória encontrada nessa fonte histórica é con- escravos e dos camponeses livres, confrontando-a com os manus-
trária à concebida por Le Goff, pois: critos portugueses.
(E) construir a genealogia nacional e formar através do ensino
(A) expressa a ideia de passado que vigorou no ocidente euro- da História uma ciência social geral que ensinasse a diversidade do
peu durante a Época Moderna, segundo a qual os acontecimentos passado e o sentido de sua evolução.
do presente deveriam ser uma imitação dos grandes feitos das ci-
vilizações do passado. Instruções: Para responder às questões de números 16 a 18,
(B) busca, por meio de um acontecimento religioso, apagar as leia o texto abaixo e observe as ilustrações.
lembranças negativas que pairavam sobre a memória do rei D.João Segundo as Orientações Curriculares para o Ensino Médio −
V e, para isso, coloca-o no mesmo patamar de grandes imperado- História, são fontes do conhecimento histórico: textos de época e
res da Antiguidade. atuais, mapas, gravuras, imagens, ...
(C) revela a grande contradição presente em todas as cele-
brações do Antigo Regime, quando os poderes da monarquia e da
Igreja travavam uma verdadeira disputa pelo espaço e admiração
do público.
(D) coloca os acontecimentos do tempo presente acima da-
queles grandes eventos do tempo passado utilizando um recurso
de retórica para exaltar por meio dessa comparação a fé católica e
a monarquia.

Didatismo e Conhecimento 137


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
16. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Com base nesta afirmação observe a gravura a seguir.

Fígure des Brifilians.

Trata-se de uma representação de cenas da vida dos ameríndios do território brasileiro que foram levados à cidade de Ruen no ano de
1550, na ocasião da Entrada dos Reis Henrique II e Catarina de Médicis naquela cidade. Essa imagem

(A) demonstra o total desconhecimento dos franceses sobre a vida dos nativos da América, pois inventa gestos e atitudes que eles não
faziam.
(B) apresenta os nativos de forma carnavalizada, exaltando sobretudo os aspectos exóticos e eróticos dos costumes e cotidiano.
(C) demoniza a população nativa, mostrando situações de pecado e ofensa aos preceitos da sociedade ocidental e da religião cristã.
(D) descreve artificialmente cenas da vida coletiva a partir de uma visão eurocêntrica acerca da cultura dos nativos.
(E) valoriza elementos da cultura ameríndia ressaltando suas diferenças em relação à cultura europeia.

17. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Leia os versos e responda a questão.

Foi bonita a festa, pá


Fiquei contente.
Ainda guardo renitente
um velho cravo para mim.
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente,
esqueceram uma semente
n’algum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
algum cheirinho de alecrim.

Didatismo e Conhecimento 138


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
Os versos acima fazem parte de uma canção composta por um importante artista brasileiro em homenagem ao movimento revolucioná-
rio que pôs fim a uma das ditaduras mais longas da história ocidental. Assinale a alternativa que apresenta corretamente o nome do compo-
sitor e como ficou conhecida essa revolução.

(A) Caetano Veloso e a Primavera de Praga na Tchecoslováquia.


(B) Geraldo Vandré e o Desembarque na Baía dos Porcos em Cuba.
(C) Chico Buarque de Holanda e a Revolução dos Cravos em Portugal.
(D) Raul Seixas e a Revolução de Outubro na Rússia.
(E) Gilberto Gil e a Revolta Zapatista no México.

18. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Considere o mapa a seguir.

A observação permite afirmar que se trata

(A) de regiões da Península Ibérica e do norte da África, durante o auge da presença árabe islâmica, entre os séculos VIII e XI.
(B) da grande pluralidade de grupos étnico-culturais que habitavam a orla do Mar Mediterrâneo antes da ocupação árabe.
(C) de circuitos e rotas de comércio praticadas pelos povos de origem médio-oriental, passando pelo norte da África e atingindo a
Europa.
(D) de conflitos bélicos de disputa de territórios entre cristãos e muçulmanos, tendo como data mais antiga o ano de 776.
(E) da dominação dos Omíadas estabelecidos na Península Ibérica sobre todos os demais grupos muçulmanos do Norte da África.

19. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Segundo a visão de Peter Burke, a “Nova História Cultural” (NHC) pode ser entendida
como um novo paradigma da historiografia. Esse novo paradigma constituiu-se a partir da incorporação de abordagens e métodos de outras
áreas do conhecimento, dentre elas a

(A) estatística.
(B) informática.
(C) pedagogia.
(D) geografia.
(E) antropologia.

Didatismo e Conhecimento 139


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
20. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) No município IV. aborda de modo crítico temas tabu para a época em que
brasileiro de São Raimundo Nonato, Piauí, no Parque Nacional da a obra foi escrita, tais como incesto e consangüinidade entre os
Serra da Capivara, estão localizados alguns dos mais antigos vestí- nativos.
gios da presença humana no continente americano. Esses vestígios
estão distribuídos em mais de 900 sítios arqueológicos, dos quais Está correto APENAS o que se afirma em
cerca de 650 possuem representações em pinturas rupestres. (A) I e II.
(B) I e IV.
Segundo a arqueologia e a paleontologia, essas pinturas (C) II e III.
(D) II e IV.
(A) eram registros gráficos realizados por xamãs, que tinham (E) III e IV.
função exclusivamente mágica, no intuito de atrair a proteção de
forças sobrenaturais para a vida humana. 22. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) No mês de
(B) foram manifestações gráficas de grupos étnicos com di- janeiro de 2010, a cidade de São Luiz do Paraitinga sofreu uma
versas funções feitas em diferentes épocas cujos conteúdos dificil- catástrofe, tendo sido invadida pelas águas do rio Paraitinga, que
mente podem ser entendidos segundo os padrões culturais atuais. destruíram um importante patrimônio histórico do estado e do País
(C) tinham um caráter de comunicação entre as diversas po- e causaram também enormes danos à saúde da população local.
pulações nômades da região, deixadas como avisos sobre perigos Sua história foi construída ao longo de quatro séculos, desde a
e ameaças de animais ferozes pelos indivíduos que passavam pelos concessão da sesmaria (1688), passando por povoado e freguesia
abrigos. de Taubaté (1769) e vila (1773) até finalmente chegar a cidade, em
(D) foram utilizadas como códigos dos grupos que usavam os 1857. Sobre a história e o conjunto do patrimônio cultural dessa
abrigos para que outros grupos não se aproximassem ou tomassem localidade, assinale a alternativa correta.
posse dos locais já habitados durante a ausência dos moradores.
(E) eram relatos de acontecimentos vividos pelos grupos, (A) O desenvolvimento da freguesia está relacionado ao pro-
pois, devido às condições precárias de sobrevivência, tinham a cesso de expansão das plantações de cana de açúcar praticadas por
preocupação de deixar para a posteridade as memórias de suas comunidades locais na segunda metade do século XVIII, sem o
conquistas. uso de escravidão.
(B) A região, surgida em tempos de expedições bandeirantes,
21. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Segundo Anto-
caracterizou-se por fornecer mão de obra indígena para as áreas
nio Terra, no artigo “História e Dialogismo”, em O Saber Histó-
produtoras de cana de açúcar e tabaco desde o final do século XVII.
rico na Sala de Aula, cabe às Ciências Humanas estudar as obras
(C) A cidade está situada em uma área que viveu profunda-
dos homens; cabe a elas, então, estudar os reflexos dos reflexos,
mente o impacto da produção cafeeira em meados do século XIX,
isto é, através do reflexo do outro chegamos ao objeto refletido.
marcada pela presença da escravidão africana e pelo fausto das
Com base nesta afirmação, analise o texto e os itens abaixo. famílias da elite do Império.
(D) O nome da cidade originou-se da descoberta, por um pes-
Fora da noção, embora vaga, do incesto, e da unilateral, da cador, de uma imagem de São Luís, fazendo com que o local se
consangüinidade, havia mais entre os indígenas do Brasil como transformasse em meta de peregrinação de romeiros e fiéis.
restrição ao intercurso sexual, o totemismo segundo o qual o in- (E) A cidade foi abandonada pelos seus moradores, no século
divíduo do grupo que se supusesse descendente ou protegido de XX, com a transferência da produção cafeeira para o oeste paulis-
determinado animal ou planta não se podia unir a mulheres de ta, tendo sido considerada por isso uma cidade morta.
grupo da mesma descendência ou sob idêntica proteção. Sabese
que a exogamia por efeito do totemismo estende-se a grupos os 23. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Há atualmente
mais distantes uns dos outros em relações de sangue. no Brasil uma grande quantidade de áreas remanescentes de qui-
Esses grupos formam, entretanto, alianças místicas corres- lombos, que, segundo o livro do ENCCEJA, História e geografia,
pondentes à do parentesco, os supostos descendentes do javali ou ciências humanas e suas tecnologias: vol. Ensino Fundamental −
da onça ou do jacaré evitando-se tanto quanto irmão e irmã ou tio livro do professor – ensino fundamental e médio, são formadas por
e sobrinha para o casamento ou a união sexual.
(A) grupos de descendentes de quilombolas que pedem hoje o
(FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Formação da reconhecimento da terra como suas propriedades.
família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 21.ed. Rio (B) áreas de antigas fazendas escravistas que após a Abolição
de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 103) foram transferidas para os ex-escravos como pagamento dos servi-
ços prestados aos senhores.
Sobre a posição de Gilberto Freyre pode-se afirmar que (C) terras ociosas há mais de um século que costumam ser
utilizadas por grupos de camponeses sem terra, que reivindicam os
I. está repleta de preconceito e anacronismos, abordando o direitos de posse no intuito de nelas se estabelecerem.
tema de maneira exótica e discriminatória. (D) lugares que possuem forte representação simbólica da
II. destaca o papel da magia e da tradição na organização so- memória da escravidão e que, após serem tombados pelo IPHAN,
cial e de parentesco das populações nativas americanas. foram abertos à visitação pública e turística.
III. adota uma abordagem racional e científica, criticando a (E) populações isoladas de descendentes de escravos que,
existência de relações profundas entre o homem e a natureza ame- após se distanciarem dos seus lugares de origem, perderam com-
ricanos. pletamente o contato com a cultura dos seus senhores.

Didatismo e Conhecimento 140


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
24. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Abordagens (B) a participação discente era fundamental no processo de
diversas sobre temáticas comuns favorecem, ao se utilizarem de avaliação do ensino e essencial para a aprovação ou reprovação
ferramentas próprias do seu campo específico, o domínio mais do aluno.
aprofundado sobre a sociedade em seus múltiplos aspectos, do (C) a memorização era a tônica do processo de aprendizagem
cotidiano às sociedades nacionais, dos problemas mais próximos e a principal capacidade exigida dos alunos para o sucesso escolar.
aos mais distantes, da vida pública à privada, das diferentes tem- (D) o domínio de temas históricos era a base de sustentação
poralidades, das continuidades e das rupturas, das revoluções e qualitativa do ensino e essencial para o desenvolvimento intelec-
dos ritmos lentos das “longas durações”. tual do aluno.
(História e geografia, ciências humanas e suas tecnologias: (E) os conteúdos baseavam-se no conhecimento neutro e ob-
Livro do Professor – ensino fundamental e médio, Brasília: MEC/ jetivo da produção científica e promoviam o processo de aprendi-
INEP, 2002, p. 57) zagem escolar.

A definição acima, segundo o programa do ENCCEJA, refere- 27. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Segundo Circe
se à M. F. Bittencourt, em Ensino de História: fundamentos e méto-
dos, a partir do fim da década de 1980 do século XX criaram-se
(A) abordagem comparativa na elaboração de análises do pas- várias propostas curriculares de História para o ensino fundamen-
sado. tal e médio, as quais circulam pelos estados e municípios, além dos
(B) verificação de conteúdos de aprendizagem por meio de PCNs, que são resultado da incorporação de parte dessa produção.
exames. Tais propostas têm em comum algumas características, a saber:
(C) elaboração de material didático durável e transferível.
(D) alternativa interdisciplinar no ensino de jovens e adultos. I. alteração nas formulações técnicas dos textos curriculares,
(E) integração de alunos de idades diferentes. que passaram a apresentar fundamentações sobre o conhecimento
histórico e sobre os demais tópicos da disciplina.
25. De acordo com Lendro Karnal no material do ENCCEJA, II. preocupação com a implementação dos currículos, buscan-
o significado do termo cidadania e sua historicidade devem ser do sua legitimidade junto aos professores, justificando sua pro-
trabalhados com os alunos por meio de dução e procurando diluir formas de resistência aos documentos
oficiais.
III. redefinição do papel do professor, fornecendo-lhe maior
(A) memorização de conteúdos específicos ministrados pelo
autonomia no trabalho pedagógico, concepção esta expressa na au-
professor.
sência de um rol de conteúdos estabelecidos de forma obrigatória
(B) pesquisa com entrevistas a familiares e amigos relatadas
para cada série ou ciclo.
em sala.
IV. fundamentação pedagógica baseada no construtivismo,
(C) análise da legislação vigente, enfocando direitos e deveres
expresso de maneira diversa, mas tendo como princípio que o alu-
dos cidadãos.
no é sujeito ativo no processo de aprendizagem.
(D) estímulo à compreensão das especificidades de cada época.
V. aceitação de que o aluno possui um conhecimento prévio
(E) crítica do senso comum e elaboração das regras do grupo. sobre os objetos de estudos históricos, obtidos pela história de vida
e pelos meios de comunicação, o qual deve ser integrado ao pro-
26. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Governadores cesso de aprendizagem.
gerais, holandeses e franceses começaram a importunar-me. Es-
quartejavam-se períodos, subdividiam-se e rotulavam-se as peças Está correto o que se afirma em
em medonha algazarra. Os meus novos amigos guardavam maqui-
nalmente façanhas portuguesas, francesas e holandesas, regras (A) I e III, apenas.
de síntese – e brilhavam nas sabatinas. Segunda-feira estavam (B) I e IV, apenas.
esquecidos, e no fim da semana precisavam repetir o exercício, (C) II, III e V, apenas.
decorar provisoriamente a matéria. À medida que avançavam, a (D) II, IV e V, apenas.
tarefa ia se tornando mais penosa: ficavam apenas, algum tempo, (E) I, II, III, IV e V.
as últimas lições.
Eu achava estupidez pretenderem obrigar-me a papaguear de 28. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Considere o
oitiva. Desonestidade falar de semelhante maneira, fingindo sabe- texto.
doria. Ainda que tivesse de cor um texto incompreensível, calava-
me diante do professor – e a minha reputação era lastimosa. Organizar os estudos de História por períodos é importante,
(Ramos, Graciliano. Infância. In: Circe M. F. Bittencourt. mas depende das marcas de referência. Podem-se estabelecer no-
Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, vos critérios quando se criam novos temas e se pretende escapar
2004, p. 93) do domínio da lógica eurocêntrica.
Ao pensar em uma história mais ampla da humanidade, po-
As lembranças do aluno sobre sua história escolar indicam dem-se considerar períodos mais extensos, tendo como critério,
que, na época, predominava um método de ensino em que por exemplo, o conceito de revolução. Assim, de uma tradicional
(A) a erudição histórica desenvolvia nos alunos noções de idade antiga pode-se chegar ao período dos tempos antigos, cor-
autonomia intelectual, necessárias para a formação de cidadãos respondente à época em que a sociedade humana não possuía o
políticos. conhecimento de todo o planeta ou dos continentes, da dimensão e

Didatismo e Conhecimento 141


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
formato da Terra ou do globo terrestre. No interior desse longo pe- É possível estabelecer uma relação entre o acontecimento des-
ríodo ocorreram mudanças significativas e momentos de rupturas crito no texto e a afirmação de Marc Ferro de que
que afetaram as relações sociais e as do homem com a natureza
(...) A mudança seguinte, que pode ser considerada revolucionária (A) o confronto entre Estados e Nações, entre culturas e et-
por afetar toda a sociedade, mesmo que em ritmos e tempos dife- nias, sempre foi alvo de estudo dos colonizadores europeus.
rentes, e, portanto, ter se tornado irreversível, é a das Revoluções (B) controlar o passado ajuda a dominar o presente e a legiti-
Industriais ou tecnológicas iniciadas no fim do século XVIII, cor- mar tanto as dominações como as rebeldias.
respondentes ao tempo da fábrica. (C) estudar o passado dos povos é fazer uma viagem no espa-
Essa é uma possibilidade, entre tantas, de pensar novas pe- ço e no tempo e revela também a função da História.
riodizações e indicar novas marcas para estabelecer e organizar (D) a imagem que fazemos de outros povos muda à medida
a noção de tempo cronológico, sistematizando acontecimentos de que se transforma em um saber do passado desses povos.
acordo com critérios que indiquem temporalidades de diferentes (E) o saber e as ideologias se transformam à medida que mu-
populações. Trata-se de possibilidades fundamentais para situar dam, no ensino escolar, os objetivos da História.
também a problemática do tempo presente.
(Bittencourt, Circe M. F. Ensino de História: fundamentos e 30. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Um professor,
métodos. São Paulo: Cortez, 2004, p. 213-214) para introduzir o estudo da Idade Média, projetou para seus alunos
o filme Excalibur, do diretor John Boorman, produção anglo/nor-
Para a autora, uma importante intenção didática, para desen- te-americana de 1981.
volver a noção de tempo cronológico, é a de possibilitar ao estu-
dante O interesse do professor pelo filme está nos elementos da rea-
lidade política e cultural medieval que ele apresenta.
(A) a análise sobre os acontecimentos históricos do passado, Durante a projeção do filme foram levantados e discutidos os
localizando-os no tempo para promover a articulação do passado seguintes aspectos:
aos problemas do mundo atual. − Excalibur é o nome de uma espada mágica, ligada ao len-
(B) a reflexão sobre o presente pelo estudo do passado, para dário rei Artur.
− O filme não trata de episódios históricos reais, mas de nar-
que possa desenvolver o esforço de dimensionar a vida hodierna
rativas lendárias, nas quais se misturam elementos de origem
em extensões de tempo.
pagã, provavelmente celta, e cristã.
(C) a aprendizagem das medidas usadas para localizar os
− Os personagens principais do filme são o próprio rei Artur,
acontecimentos históricos no tempo de acordo com critérios esta-
sua mulher Guinevere, o cavaleiro campeão, Lancelot, o mago
belecidos pelos historiadores.
Merlim e Morgana, também dotada de poderes mágicos para o
(D) o desenvolvimento de habilidade de localização dos acon-
mal.
tecimentos antes de Cristo e depois de Cristo e as datações decor-
− A questão da descentralização política, uma característica
rentes dessa divisão temporal. fundamental da Alta Idade Média, está presente, além de outros
(E) a identificação dos acontecimentos históricos que servi- aspectos da sociedade medieval.
ram de marco divisório entre os diferentes períodos que caracteri- − A lenda mostra a tentativa de unir os senhores da Bretanha
zaram a história da humanidade. sob a autoridade do rei de Gales e, como toda história de origem
lendária, esta mistura elementos, personagens e características de
29. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Os colonos, épocas diferentes.
não compreendendo os termos da troca, surpreendiam-se em se- − A guerra medieval apresenta a figura do cavaleiro, a ques-
guida, depois de uma que envolvia centenas de animais, ao vê-los tão de honra etc.
desaparecerem quando já os julgavam definitivamente trocados.
Assim, Credo Mutwa critica autores de livros didáticos, como A partir das informações sobre a projeção do filme conclui-se
J.C. Johns, que não se dão ao trabalho de analisar a diferença en- que a estratégia utilizada pelo professor confirma as idéias de José
tre o Direito dos holandeses e o dos xhosas, e tratarem esses últi- Rivair Macedo (In: História na sala de aula: conceitos, práticas
mos de “supersticiosos que não conhecem o valor de um tratado.” e propostas. São Paulo: Contexto, 2003. Org. Leandro Karnal), de
É bem verdade que conhecer as tradições e costumes dos xhosas que
nem sempre reverteu em benefício deles. Georges Grey dedicou-se
a isso no século XIX. Tendo tomado conhecimento de suas crenças I. a projeção de um filme tem o papel de fixar determinada
a respeito do “descanso” entre duas guerras, sabia que eles não imagem de uma época, quando coloca em evidência símbolos e
atacariam os núcleos europeus durante os sete anos seguintes à signos desenvolvidos por uma sociedade que caracteriza uma era
sua derrota, a menos que fossem chamados por uma Revelação histórica.
especial. E conseguiu mistificá-los a ponto de os fazer acreditar II. o bom aproveitamento da projeção de um filme depende
que a Revelação se manifestara e que os Deuses os convidavam a do quanto seu conteúdo for colocado em discussão, e de quanto se
uma espécie de suicídio coletivo. Foi assim que, sem risco de uma pode esclarecer a respeito da distinção entre o real e o imaginário
nova guerra, desapareceu por suicídio uma parte da comunidade da época enfocada.
xhosa. III. uma boa projeção de filmes de épocas pode se constituir
em um importante suporte da informação escrita sobre determina-
(Ferro, Marc. A manipulação da História no ensino e nos da época histórica, como o filme sobre elementos do mundo me-
meios de comunicação. (Trad.) São Paulo: IBRASA, 1983, p.34) dieval.

Didatismo e Conhecimento 142


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
IV. a eficácia da linguagem cinematográfica parece ser maior 32. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Considere os
quando se trata do emprego de filmes com o fim de sugerir ao itens abaixo.
estudante a possibilidade de pensar em diferentes temporalidades. I. Participação de africanos na Primeira Guerra Mundial, que
se repetiu na Segunda Guerra, quando perto de mil homens es-
É correto o que se afirma APENAS em tiveram em frentes de batalha em países da Europa, no Oriente
(A) I e II. Médio etc., colocando os povos negros em contato com o caráter
(B) I e III. instrumental da técnica multiplicada pela violência exercida pelos
(C) I e IV. povos brancos entre si.
(D) II e IV. II. Perdas materiais e humanas sofridas por uma Europa que,
(E) III e IV. para se reerguer, precisou aceitar a desconfortável situação de de-
pender do Plano Marshall e que, em razão das guerras, em parti-
31. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Leila Leite cular da Segunda, teve de ceder sua hegemonia para os Estados
Hernandez, traçando as principais fontes de estudo da história do Unidos e a URSS, o que deu início a um mundo caracterizado pela
povo africano (a escrita, a arqueologia e a tradição), afirma que: bipolaridade.
III. A experiência de uma revolução (Revolução Soviética de
Devem ainda ser tomadas em conta pequenas observações 1917) em um país de muito baixo desenvolvimento econômico que
concernentes ao corpo auxiliar de conhecimentos fornecidos pela implementava o monopólio estatal nas relações de produção socia-
antropologia contemporânea, como área de conhecimento com lista, tornou-se um modelo para os países do Terceiro Mundo, em
história própria. A formação de seu campo de saber revela um particular no continente africano.
interesse pela diversidade de tipos físicos, línguas, e sociedades, IV. A importância do ideário liberal composto por direitos
respondendo a objetivos práticos de acordo com diretrizes políti- conquistados ao longo da história, abrangendo as liberdades fun-
co-ideológicas dos colonialismos de fins do século XIX (...) Por damentais contidas na Declaração dos Direitos dos Estados Norte
seu turno, certa antropologia considerava a mudança social das -Americanos e da Revolução Francesa, entre outros.
chamadas “sociedades tribais”, restringindo-se à descrição de
intervenções pontuais na economia ou na realidade cultural e à Assinale a alternativa que reúne corretamente os elementos
enumeração de problemas daí decorrentes. que, segundo Leila Leite Hernandez, configuram a grande revi-
ravolta que se iniciou na África, a partir 1914, e cujo caráter ex-
(A África na sala de aula. São Paulo: Selo Negro, 2005, p.
plosivo convergiu para os movimentos de independência naquele
31-32)
continente.
Para a autora, o resultado desses estudos, na sua maioria, foi
(A) I e II, apenas.
determinante para que se
(B) I e IV, apenas.
(C) II e III, apenas.
(A) acentuasse a questão do dinamismo histórico do continen-
(D) II, III e IV, apenas.
te africano, ao questionar a idéia de um ponto fixo no real consi- (E) I, II, III e IV.
derado idêntico a um fato empírico – a escravidão atlântica e o co-
lonialismo do século XV –, a partir do qual a África e os africanos Instruções: Para responder às questões de números 63 e 64
entraram como objeto da história da civilização ocidental. considere os versos abaixo.
(B) consolidasse a imagem da África como um continente
pulverizado em inúmeras “tribos” e grupos etnoculturais e se re- Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
forçasse o colonialismo e o racismo, reiterando o mito da missão Deus quis que a terra fosse toda uma.
civilizadora dos países europeus em relação às regiões do globo Que o mar unisse, já não separasse.
caracterizadas pela “barbárie” e “selvageria” de povos identifica- Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
dos como “primitivos”. E a orla branca foi de ilha em continente,
(C) reformulasse tanto a visão eurocêntrica dos compêndios Clareou, correndo, até o fim do mundo,
que apresentavam a idéia de uma história da civilização ocidental, E viu-se a terra inteira, de repente,
quanto o equívoco no tratamento do referencial que diz respeito ao Surgir, redonda, do azul profundo.
continente africano e às suas gentes, em que estas se apresentavam Quem te sagrou creou-te portuguez.
ligadas à construção de um conhecimento cuja gênese remonta ao Do Mar e nós em ti nos deu signal.
século XVI. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
(D) fizesse uma ruptura definitiva com o eurocentrismo até Senhor, falta cumprir-se Portugal!
então hegemônico, o qual, fazendo-se passar por universalismo, (Pessoa Fernando. O Infante, segunda parte do poema Mensa-
obscurecia os estudos sobre as autênticas diferenças locais, pró- gem. In: Leila Leite Hernandez.
prias do continente negro e que descartavam a existência de uma
África subsaariana definida como um todo homogêneo. A África na sala de aula. São Paulo: Selo Negro, p. 506)
(E) construísse uma pesquisa da história dos povos africanos
preocupada em identificar mitos fundadores, datas próprias e pro- 33. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Os mitos do
cessos de transformação das sociedades do continente, baseada na “Eldorado” e da “herança sagrada”, segundo Leila Leite Hernan-
capacidade constante dessas sociedades de criarem-se e recriarem- dez, estão presentes nos versos de Fernando Pessoa, na medida em
se internamente. que, nesses versos, fica evidente, entre outras,

Didatismo e Conhecimento 143


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
(A) a imagem de um povo que via a si próprio como “único”,
“escolhido” por Deus, e que concebia o “outro”, diferente, no caso
o africano, como bárbaro, desprovido de religião e de civilização.
(B) a visão de que as sociedades africanas só começam a inte-
grar-se nas estruturas religiosas e culturais mundiais por meio de
um povo escolhido por Deus e pela ação dos navegantes cristãos.
(C) o pensamento anticlerical iluminista, que condenava a
ação das ordens religiosas portuguesas nos diferentes povos do
continente africano, sob a justificativa de convertê-los ao cristia-
nismo.
(D) o retrato de um povo valente e corajoso, protegido pela
ação divina, que se lançou aos perigos da navegação atlântica
para se apropriar dos elementos culturais, materiais e religiosos
do “além mar”.
(E) uma crítica à versão da literatura religiosa portuguesa que
considerava a conquista uma ação humanitária que salvaria os ha-
bitantes de um continente tenebroso, pelo contato da civilização
ocidental.

34. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) A utilização


da Literatura nas aulas de História, como a análise dos versos de A comparação do que o texto descreve com a figura permite
Fernando Pessoa, permite estabelecer uma relação entre essa es- inferir que
tratégia com o que propõe Rafael Ruiz, no texto “Novas formas de
abordar o ensino de História” (In: Leandro Karnal (org.). Histó- (A) o comércio era a forma de os reinos se relacionarem com
ria em sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: a civilização européia.
Contexto, 2005, p. 91). (B) as relações comerciais eram pautadas pela independência
entre os dois reinos.
Assinale a alternativa que completa a proposta desse autor. (C) a imagem, do século XVII, foi construída a partir da noção
Um dos modelos que devemos procurar, perante os desafios européia de realeza.
colocados neste começo do século XXI, é (D) a figura revela o controle, pelos europeus, dos reinos afri-
canos, no século XVI.
(A) uma metodologia que carrega consigo a descoberta da (E) os chefes africanos procuraram manter relações amistosas
História como processo, um processo ao mesmo tempo: progressi- com os europeus.
vo e teleológico e que tem objetivo.
(B) uma prática em que o aluno esteja imerso no próprio tem- 36. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) (...) não só al-
po estudado e, à medida que escreve, tenta escrever sobre o passa- deias vizinhas, mas também as mais distantes trocavam seus pro-
do, procurando vislumbrar o futuro. dutos. De mão em mão, esses produtos podiam percorrer grandes
(C) um método experimental que contemple as duas condi- distâncias, cujo exemplo extremo é o caso das contas indianas e
ções prévias apontadas por Hartog: a história voltada para o pas- cacos de porcelana chinesa encontrados em escavações na região
sado e a história voltada para o futuro. de Zimbabués.
(D) o modelo clássico que entende a História como uma velha Se nem todos os povos africanos estavam envolvidos com co-
amiga que, educando com os seus exemplos do passado, prepara mércio à longa distância, como o que estava presente no Sael, nas
o caminho futuro. cidades da costa oriental e na costa atlântica a partir do século
(E) um modelo narrativo que contemple as duas premissas XV, quase todos mantinham algum tipo de troca com seus vizinhos
necessárias apontadas por Hartog: o ponto de vista do narrador e mais ou menos próximos. Rotas fluviais e terrestres existiam nas
uma abordagem comparativa. bacias dos rios mais importantes e nas regiões entre eles.

35. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Leia o texto e (Marina de Mello e Souza. África e Brasil Africano. São
observe a figura. Paulo: Ática, 2006, p. 43)
De uma sociedade com uma capital, na qual morava um chefe
maior, com autoridade sobre todos os outros chefes, dizemos que A partir do texto é possível afirmar que a vitalidade do comércio
era um reino. Nele, aldeias e grupos de várias aldeias formavam dentro do continente africano, de curta, média e longa distância,
parte de um conjunto maior. As formas de administrar a justiça, o
comércio, o excedente produzido pela sociedade, a defesa, a força (A) reforça a idéia de existência de uma África subsaariana
militar, a expansão territorial, a distribuição do poder eram mais definida como um todo homogêneo, indiviso e estático, marcado
complexas do que nas aldeias e confederações de aldeias. (...) pelo primitivismo nas relações com o outro.
(B) apresenta a África como um continente marcado pela luta
(Marina de Mello e Souza. África e Brasil Africano. São para promover a unificação política dos vários povos e culturas por
Paulo: Ática, 2006, p. 32) meio dos intercâmbios comerciais.

Didatismo e Conhecimento 144


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
(C) permite identificar as principais organizações sociais e po- (B) esclarecer os temas trabalhados em sala de aula, inclusive
líticas na África pré-colonial, genericamente denominadas reinos e considerando que, mais que ensinar História, sua função é levar o
impérios e os sistemas de governo local. aluno a aprender História.
(D) afasta a idéia de um continente cindido em duas partes (C) reconhecer que ensinar História é, antes de mais nada, fa-
incomunicáveis, ao mesmo tempo que supera a idéia de homoge- bricar artesanalmente os saberes, inseri-los na sociedade e num
neização da África subsaariana. sistema de comunicação e trabalho.
(E) derruba a tese que define a África como um continente (D) dar condições para que o aluno possa participar do proces-
que é um verdadeiro mosaico de heterogeneidades, uma totalidade so de construção e do fazer política na comunidade em que vive
caracterizada pela complexa diversidade cultural. por meio do ensino de História.
(E) ser, nas aulas de História, o produtor do saber, partícipe da
37. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Segundo Ma- produção do conhecimento histórico do passado que possa expli-
rina Mello e Souza (África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, car e fazer entender o presente.
2006), um conjunto importante de práticas e crenças mágico-re-
ligiosas de matrizes africanas que germinou no Brasil foram os 39. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) A Proposta
candomblés, sendo do século XIX as primeiras referências a eles. Curricular do Estado São Paulo para o Ensino de História, ao tratar
Apesar de o termo pertencer à língua banto, no Brasil se refere a das competências como referência, afirma que um currículo
cultos religiosos de origem ioruba e daomeana. Nelas, as princi-
pais entidades sobrenaturais são os orixás e voduns. Estas entida- I. que promove uma educação referenciada no ensino exige
des são a que o plano de trabalho da escola indique o que será ensinado ao
aluno para desenvolver suas competências e habilidades.
(A) origem da organização social e política e também aquelas II. que promove competências tem o compromisso de articu-
que orientam toda ação dos homens em sua vida terrena, à seme- lar as disciplinas e atividades escolares com aquilo que se espera
lhança do que ocorre entre os povos bantos. que os alunos aprendam ao longo do ano.
(B) fonte da leitura de indícios do além, feita por sacerdotes III. referido a competências supõe que se aceite o desafio de
por meio de rituais e que permite que as forças do sobrenatural promover os conhecimentos próprios de cada disciplina articula-
hajam para solucionar problemas do cotidiano, como no caso dos
damente às competências e habilidades do aluno.
povos bantos.
IV. orientado para o desenvolvimento de competências deve
(C) fonte das práticas mágico-religiosas mais mestiças do Bra-
entender que as atividades extraclasse são extracurriculares quan-
sil colonial, segundo alguns autores, e que também agregam mais
do se deseja articular a cultura ao conhecimento.
elementos cristãos, islâmicos, ameríndios e africanos tradicionais.
(D) origem de formas de consulta aos oráculos, como o do Ifá,
Está correto APENAS o que se afirma em
quando se jogam nozes-de-cola sobre a tábua esculpida, e também
de rituais que permitem reconstruir os costumes africanos.
(A) I e II.
(E) origem de rituais banto associados ao termo kimbundo e
também meios de punição pela falta de respeito a um ancestral. (B) I e III.
(C) I e IV.
38. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) (...) Não se (D) II e III.
pode esquecer que a produção do conhecimento exige compro- (E) III e IV.
misso de ordem cultural, social e política, o que impede qualquer
chance de neutralidade, complicando um pouco mais as coisas 40. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Segundo a
para o professor de História. Assim, mesmo que as opções po- Proposta Curricular do Estado de São Paulo, a tecnologia, ao com-
líticas dos professores de Matemática, por exemplo, não impli- parecer no currículo de educação básica como
quem práticas diferentes de ensinar equações, ensinar História
significa, também, comprometer-se com valores que desenham a (A) relação entre teoria e prática que envolve algo observável,
sociedade. Entretanto, nada disso significa que as aulas de Histó- mensurável, faz a transposição didática de reproduzir a indagação
ria devam transformar-se em espaço para a militância partidária de origem, a necessidade que levou à da construção de um deter-
ou de raciocínio limitado à oposição estreita e maniqueísta entre minado conhecimento científico.
bons e maus. (B) instrumento cognitivo para ajudar a entender questão res-
trita a especialistas e a cientistas, torna-se o espaço para o discer-
(Proposta Curricular do Estado de São Paulo para o En- nimento e conhecimentos científicos pertinentes para a tomada de
sino de História para o Ensino Fundamental Ciclo II e Ensino decisão em diversos momento.
Médio. São Paulo: SE, 2008. p. 42). (C) compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos
da produção, torna-se a chave para relacionar o currículo aos pro-
Com base no texto, é correto afirmar que cabe ao professor a cessos pelos quais a humanidade produz os bens e serviços de que
delicada tarefa de necessita para sobreviver.
(D) valor que imprime importância ao trabalho e cultiva o
(A) entender que o ensino de História deve permitir a elabora- respeito que lhe é devido na sociedade, torna-se o elemento que
ção de conceitos e métodos de análise, de interpretação e de com- perpassa os conteúdos curriculares, atribuindo sentido aos conhe-
paração dos fatos históricos. cimentos específicos das disciplinas.

Didatismo e Conhecimento 145


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
(E) conteúdo disciplinar constituinte de competências básicas (B) demonstra que a Praieira foi um movimento das classes
para a formação profissional, faz a articulação para relaciona os populares apoiado nos ideais socialistas, diferentemente da revo-
conteúdos curriculares de nível técnico e o tratamento pedagógico lução francesa de 1848, que teve por base os princípios marxistas
adequado à área de educação profissional. de luta do proletariado.
(C) defende que, embora a Praieira não tenha sido uma re-
41. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Contrapondo- volução socialista, foi fortemente influenciada por essa doutrina,
se à historiografia do início do século XX, Boris Fausto, no livro diferentemente da revolução de 1848, que foi sobretudo um movi-
História do Brasil (São Paulo: EDUSP, 2009), faz uma análise mento anarquista.
diferente dos bandeirantes e de suas ações pelo sertão e de sua (D) revela que a Praieira, ao propor a união política dos diver-
autonomia em relação à metrópole e afirma que sos setores, apoiava-se na doutrina socialista, enquanto a revolu-
ção francesa de 1848 defendia os ideais econômicos e políticos da
(A) os bandeirantes, influenciados pela cultura indígena, doutrina marxista.
construíram no sertão uma sociedade mais igualitária. (E) discorda da visão de que a Praieira tenha sido um movi-
(B) as façanhas dos bandeirantes mostram que eles não ti- mento socialista ou influenciado pelo socialismo, ao contrário da
nham nada a ver com a imagem de heróis civilizadores. revolução francesa de 1848, que ganhou força sobretudo graças à
(C) a ação civilizadora e um modo de vida democrático mar- atuação dos socialistas.
caram o trabalho dos bandeirantes no sertão brasileiro.
(D) a trajetória histórica dos bandeirantes, responsáveis pelo 43. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Com base no
desbravamento da terra, mostra que eles foram heróis. conhecimento histórico, é possível afirmar que, ao contrário de
(E) a união dos indígenas e dos bandeirantes revela a inexis- Proudhon, Fourier e Owen, citados no texto, para Marx e Engels,
tência de diferença entre brancos e mestiços.
(A) o desaparecimento do capitalismo e sua substituição pelo
Instruções: Para responder às questões de números 72 e 73 socialismo seriam resultado da ação de determinadas “leis do de-
considere o texto abaixo. senvolvimento da história” e não da vontade de alguns reforma-
dores.
(...) em 1848, surgiu em Pernambuco a Revolução Praieira (B) o Estado e a propriedade privada seriam a fonte de todos
(...) em Olinda e Recife, respirava-se o que o autor anônimo, ad- os males sociais, devendo, portanto, ser substituídos por uma “so-
versário das revoluções, chamava anos antes de “maligno vapor ciedade de homens livremente associados” e sem leis codificadas.
de Pernambuco”. O vapor se compunha agora também de crítica (C) os movimentos operários de massa, marcados inteira-
social e idéias socialistas (...). mente pela ligação às reivindicações econômicas, seriam a “força
Ideias socialistas foram veiculadas por gente como Louis
motriz” para arrancar a burguesia do poder político e alcançar o
Vauthier, contratado pelo presidente da província para embele-
socialismo.
zar Recife, e o general Abreu Lima, autor, anos mais tarde, de um
(D) a necessidade de o Estado criar corporações de trabalhado-
pequeno livro intitulado O Socialismo. Não era o socialismo de
res, regulamentar o trabalho e as jornadas de trabalho, garantindo
Marx, pouco conhecido naquela altura, mesmo na Europa, mas
melhores condição de vida, levaria à humanização do capitalismo.
o de autores franceses como Proudhon, Fourier e o inglês Owen.
(E) o movimento de massa voltado para a democratização do
Não imaginemos, porém, que a Praieira tenha sido uma revo-
Estado e para a conquista de igualdade de direitos para todos os
lução socialista. Precedida por manifestações contra os portugue-
ses, com várias mortes no Recife, ela teve como base, no campo, cidadãos seria o elemento dinâmico que levaria à sociedade so-
os senhores de engenho ligados ao Partido Liberal. Sua razão de cialista.
queixa era a perda do controle da província para os conserva-
dores. Cerca de 2.500 rebeldes atacaram Recife, sendo, porém, 44. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) (...) Pombal
derrotados (...). criou duas companhias privilegiadas de comércio – a Compa-
O núcleo urbano dos praieiros (...) sustentou um programa fa- nhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755) e a
vorável ao federalismo, à abolição do Poder Moderador, à expul- Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1759). A primeira
são dos portugueses e à nacionalização do comércio a varejo, con- tinha por objetivo desenvolver a região Norte, oferecendo preços
trolado em grande parte pelos lusitanos. Como novidade, aparece atraentes para mercadorias aí produzidas e consumidas na Eu-
a defesa do sufrágio universal, ou seja, do direito de voto para ropa (...) transportadas com exclusividade nos navios da compa-
todos os brasileiros (...), sem a exigência de um mínimo de renda. nhia. A segunda companhia buscou reativar o Nordeste dentro da
(Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2009, mesma linha.
p. 178-9) (Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2009,
p. 110)
42. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) O conheci-
mento histórico e o texto permitem inferir que Boris Fausto, assim O texto refere-se a uma das séries de medidas que, segundo
como muitos historiadores, o autor, revela que a reforma de Pombal constituiu uma peculiar
mistura do velho e do novo, explicável pelas características de
(A) apoia a visão de que a intensa participação popular e de Portugal, pois ela combinava
liberais revela a influência do anarquismo, na Revolução Praiei-
ra, ao contrário da revolução de 1848, que foi influenciada pelos (A) a racionalização administrativa com a tentativa de uma
ideais defendidos pelos socialistas. aplicação consciente dos princípios do liberalismo.

Didatismo e Conhecimento 146


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
(B) o absolutismo ilustrado com a tentativa de uma aplicação (D) as práticas democráticas próprias das políticas instituídas
consequente das doutrinas mercantilistas. pelos governos nas esferas federal, estaduais e municipais impe-
(C) o despotismo esclarecido com a tentativa de uma aplica- dem a existência de elementos definidores do clientelismo e do
ção limitada das leis do mercado na economia. coronelismo no Brasil atual.
(D) as teorias iluministas com a tentativa de uma aplicação (E) alguns políticos que se beneficiaram das práticas políticas
moderada das práticas absolutistas no governo. do clientelismo e do coronelismo no passado contribuíram para
(E) a intervenção econômica estatal com a tentativa de uma que grande parte da população desacreditasse de parlamentares e
aplicação racional da lei de livre concorrência. de governantes brasileiros.

Instruções: Para responder às questões de números 45 a 47 46. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Pode-se afir-
considere o texto abaixo. mar que o professor, ao propor essa atividade, pretendeu levar os
alunos a
A denominação “República dos coronéis” refere-se aos
coronéis da antiga Guarda Nacional que eram em sua maioria (A) relacionar um fenômeno sociopolítico do passado com o
proprietários rurais com base local de poder. A expressão pode contexto brasileiro atual.
prestar-se a equívocos porque se, de um lado, o fenômeno do co- (B) demonstrar a inexistência de práticas clientelistas no cená-
ronelismo se associa à Primeira República, de outro “pertenceu” rio político brasileiro atual.
aos “coronéis”. (C) perceber a ruptura entre o passado político e o presente no
Expliquemos melhor essa distinção. O coronelismo repre- ensino de História.
sentou uma variante de uma relação sociopolítica mais geral – o (D) descobrir as semelhanças entre o regime democrático do
clientelismo –, existente tanto no campo como nas cidades. Essa presente e um regime do passado.
relação resultava da desigualdade social, da impossibilidade de (E) participar do processo de desenvolvimento dos fatos histó-
os cidadãos efetivarem seus direitos, da precariedade ou inexis- ricos do passado e do presente.
tência de serviços assistenciais do Estado, da inexistência de ser-
viços públicos. (...) 47. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) A antiga ins-
Do ponto de vista eleitoral, o “coronel” controlava os votan- tituição a que o texto faz referência, milícia armada dirigida por
brasileiros abastados, foi criada no Brasil em 1831, durante a Re-
tes em sua área de influência. Trocava votos em candidatos por ele
gência Trina Permanente, e
indicados por favores tão variados como um par de sapatos, uma
vaga no hospital ou um emprego de professora. (...)
(A) tinha um caráter local, restringindo-se a preparar os cida-
dãos para servir o exército.
(Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2009,
(B) foi responsável pela organização de um exército responsá-
p. 263)
vel pela defesa do território.
(C) dava plena autonomia às autoridades judiciárias e poli-
45. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Um professor
ciais no nível local e provincial.
forneceu o texto acima e solicitou que os alunos: (D) revelava a influência da ordem jurídica norte-americana e
inglesa na política nacional.
− procurassem mais informações sobre os fenômenos do (E) passou a ser o principal instrumento do governo para re-
clientelismo e do coronelismo na Primeira República e primir os levantes populares.
− pesquisassem sobre as práticas políticas atuais no Brasil e
debatessem a questão: o clientelismo e o coronelismo existem, ain- 48. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Os problemas
da hoje, no Brasil? do regime resultaram mais da inserção do Brasil no quadro das
relações internacionais do que as condições políticas internas do
Com base no texto e no conhecimento da realidade política país. Essa inserção impulsionou as oposições e abriu caminho a
brasileira, é possível afirmar que, partindo do resultado das ativi- divergências no interior do governo.
dades, os alunos, durante o debate, fizeram o seguinte comentário: (Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2009,
p. 383)
(A) a existência de partidos políticos e as disputas entre eles
no regime republicano contribuem para que os governos não pos- Pode-se associar a afirmação de Boris Fausto
sam estabelecer meios de controle sobre práticas como o corone-
lismo e a corrupção no País. (A) à participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial, que
(B) a passagem de uma sociedade predominantemente agrá- fortaleceu a classe média urbana no cenário político e apoiou mo-
ria, no passado, para uma majoritariamente urbana, no presente, vimentos que desencadearam a Revolução de 1930.
eliminou todos os mecanismos que levam às práticas coronelistas (B) à influência da Revolução de Outubro de 1917 no Brasil,
e clientelistas no Brasil atual. que desencadeou uma série de movimentos sociais e criou o am-
(C) alguns componentes do clientelismo e do coronelismo es- biente para a instituição de um regime ditatorial em 1937.
tão presentes ainda hoje na vida política do Brasil, como a barga- (C) à entrada do País na Segunda Guerra Mundial, o que de-
nha de favores entre os diferentes níveis de poder, como o federal, sencadeou uma série de manifestações oposicionistas à ditadura de
o estadual e o municipal. Vargas, na década de 1940, e levaram à falência do Estado Novo.

Didatismo e Conhecimento 147


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)
(D) aos efeitos da Crise Econômica de 1929 no País, que le- (A) os segmentos sociais mais pobres, que são os que mais
varam à unificação das várias correntes oposicionistas em movi- dependem do Estado, continuam desassistidos e quase nunca têm
mentos contra a oligarquia cafeeira e provocaram a falência da seus direitos garantidos, embora a lei afirme o contrário.
Primeira República. (B) a prática de movimentos como o dos Sem-Terra revela que
(E) aos resultados do alinhamento do Brasil aos Estados Uni- as leis constitucionais são necessariamente abstratas, feitas estrate-
dos, na década de 1970, que fez ressurgir organizações de luta gicamente para não serem cumpridas.
contra os abusos políticos e sociais e levariam à queda do regime (C) os conflitos interétnicos que têm caracterizado historica-
militar. mente a luta pela posse e distribuição das reservas indígenas no
País, embora condenados pela lei, não foram eliminados.
49. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) A partir de (D) o abandono das funções para as quais o Estado foi criado
1960, a tendência a fabricar automóveis cresceu a ponto de repre- favoreceu a formação de um vazio de poder que, em muitos luga-
sentar quase 58% da produção de veículos. Entre 1957 e 1968, a res, foi ocupado por criminosos, apesar da lei.
frota de automóveis aumentou cerca de 360% e a de ônibus e ca- (E) a desigualdade socioeconômica, configurada na existência
minhões, respectivamente, cerca de 194% e 167%. Por outro lado, de uma minoria de ricos e uma maioria de pobres e miseráveis,
como as ferrovias foram abandonadas, o Brasil se tornou cada vez gera a violência urbana e impede as autoridade de aplicar as leis.
mais dependente da extensão e conservação das rodovias e do uso
dos derivados de petróleo na área de transporte. Gabarito

(Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2009, 01 B


p. 429)
02 A
Os dados do texto confirmam a ideia do autor de que a instala- 03 E
ção da indústria automobilística no Brasil se enquadrou no 04 C
(A) projeto político de desenvolvimento econômico autôno- 05 C
mo do País, por meio de incentivos fiscais para a criação de indús- 06 B
trias de transporte terrestre. 07 D
(B) desejo de promover o desenvolvimento do País, por meio
do controle pelo setor privado da infraestrutura: transporte, comu- 08 D
nicações e energia. 09 A
(C) plano de estabilização econômica do País, via investimen- 10 B
tos de capitais estrangeiros no mercado para restringir o consumo
de automóveis. 11 E
(D) propósito de se criar uma “civilização do automóvel”, em 12 B
detrimento da ampliação de meios de transporte coletivo para a 13 C
grande massa.
(E) processo de substituição de importações associado a uma 14 D
postura nacionalista que incentivou a produção de transporte co- 15 E
letivo. 16 D
17 C
50. (FCC- SEE-SP Professor História- 2010) Com todos os
seus defeitos, a Constituição de 1988 refletiu o avanço ocorrido 18 A
no país especialmente na área da extensão de direitos sociais e 19 E
políticos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias. Entre
20 B
outros avanços, reconheceu-se a existência de direitos e deveres
coletivos, além de individuais. (...) No que diz respeito às mino- 21 D
rias, um capítulo da Constituição reconheceu aos índios sua orga- 22 C
nização social, costumes, língua, crenças e tradições, e os direitos
23 A
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. O texto
constitucional é bastante abrangente, mas, mais do que em qual- 24 D
quer outro campo, há aqui uma enorme distância entre o que diz a 25 D
lei e o que acontece na prática. O massacre de índios, a invasão de
26 C
suas terras não deixam dúvidas a respeito dessa distância.
(Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2009, 27 E
p. 525) 28 B
29 B
O texto permite inferir que, apesar dos esforços dos consti-
tuintes de fazer do Brasil um país mais justo, 30 D

Didatismo e Conhecimento 148


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)

31 B
32 E ANOTAÇÕES
33 A
34 E
35 C —————————————————————————
36 D —————————————————————————
37 A
—————————————————————————
38 B
39 D —————————————————————————
40 C —————————————————————————
41 B
—————————————————————————
42 E
—————————————————————————
43 A
44 B —————————————————————————
45 C —————————————————————————
46 A
—————————————————————————
47 E
48 C —————————————————————————
49 D —————————————————————————
50 A —————————————————————————
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ANOTAÇÕES
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Didatismo e Conhecimento 149


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)

ANOTAÇÕES

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Didatismo e Conhecimento 150


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)

ANOTAÇÕES

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Didatismo e Conhecimento 151


BIBLIOGRAFIA - LIVROS E ARTIGOS (História)

ANOTAÇÕES

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Didatismo e Conhecimento 152


Orientações e Ações para a Educação
das Relações Étnico-Raciais
Orientações e Ações para a Educação
das Relações Étnico-Raciais

Brasilia, 2006
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Luiz Inácio Lula da Silva

MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO


Fernando Haddad

SECRETÁRIO-EXECUTIVO
Jairo Jorge
Copyright 2005. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (MEC/SECAD) É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde
que citada a fonte.
Tiragem: 50.000 exemplares

EQUIPE TÉCNICA ILUSTRAÇÕES GENTILMENTE CEDIDAS POR


Ana Flavia Magalhães Pinto Nelson Olokofá Inocencio
Denise Botelho
Edileuza Penha de Souza COORDENAÇÃO EDITORIAL
Maria Carolina da Costa Braga Edileuza Penha de Souza
Maria Carolina da Costa Braga
Maria Lucia de Santana Braga
Maria Lucia de Santana Braga
SISTEMATIZAÇÃO E REVISÃO DE CONTEÚDOS
Alecsandro J.P. Ratts PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Edileuza Penha de Souza Carlos Emmanuel Rodrigues Fernandes
Kênia Gonçalves Costa
REVISÃO
Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx
CAPA
Nelson Olokofá Inocencio

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


)LFKDFDWDORJUiÀFD

Ministério da Educação / Secretaria da Educação Continuada,


Alfabetização e Diversidade.
82-296 Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais
Brasília: SECAD, 2006.

262 pg.; il.

1. Educação – Educação Étnico-Racial 2. Segregação Racial na


Educação – Ensino Infantil, Fundamental, Médio e Superior I. Título

CDU 370.19
CDD 371.3
ISBN: 85-88507-XX-X
SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SGAS Quadra 607, Lote 50, sala 205
Cep. 70.200-670 Brasília – DF
(61) 2104-6183 / 2104-6146
Sumário

Apresentação...................................................................................................................................... x

Introdução.......................................................................................................................................... x

EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................................................................... xx


Introdução........................................................................................................................................ xx
1. Alguns processos da Educação Infantil no Brasil ................................................................. xx
2. Construindo referenciais para abordagem da temática étnico-racial
na Educação Infantil .................................................................................................................. xx

ENSINO FUNDAMENTAL....................................................................................................... xx
Introdução........................................................................................................................................ xx
1. A Escola – Contextualização Teórica e Metodológica.......................................................... xx
2. Os(as) estudantes do Ensino Fundamental ............................................................................ xx
3. O trato pedagógico da questão racial no cotidiano escolar.................................................. xx

ENSINO MÉDIO ......................................................................................................................... xx


Introdução........................................................................................................................................ xx
(QVLQR0pGLRRULHQWDo}HVDYDQoRVGHVDÀRV ...................................................................... xx
2. Propostas em diálogo com os projetos político-pedagógicos ............................................ xx
3. Propostas e projetos................................................................................................................... xx

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS............................................................................... xx


Introdução........................................................................................................................................ xx
(-$&RQFHSo}HVDYDQoRVHGHVDÀRV...................................................................................... xx
2. Sujeitos Presentes na Educação de Jovens e Adultos ........................................................... xx
3. O Projeto Político Pedagógico e o currículo .......................................................................... xx

LICENCIATURAS ........................................................................................................................ xx
Introdução........................................................................................................................................ xx
1. O campo das licenciaturas......................................................................................................... xx
2. Pesquisas e ações sobre relações étnico-raciais na formação de
SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR......................................................................................................... xx
3. Inserção das Diretrizes nas Instituições de Ensino Superior (IES).................................... xx
EDUCAÇÃO QUILOMBOLA................................................................................................. xxx
Introdução...................................................................................................................................... xxx
(GXFDomRTXLORPERODHUHODo}HVpWQLFRUDFLDLVUHÁH[}HVHSUiWLFDV ................................ xxx
2FDPSRGDVUHÁH[}HV............................................................................................................. xxx
3. O campo das ações................................................................................................................... xxx

SUGESTÕES DE ATIVIDADES............................................................................................ xxx


Educação Infantil.......................................................................................................................... xxx
Ensino Fundamental .................................................................................................................... xxx
Ensino Médio ................................................................................................................................ xxx
Educação de Jovens e Adultos.................................................................................................... xxx
Licenciaturas .................................................................................................................................. xxx
Educação Quilombola.................................................................................................................. xxx

GLOSSÁRIO DE TERMOS E EXPRESSÕES ANTI-RACISTAS ................................. xxx


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana ........................................ xxx
PARECER CNE/CP 003/2004................................................................................................. xxx

RESOLUÇÃO CNE/CP Nº. 001/2004................................................................................... xxx

LEI 10.639/03............................................................................................................................... xxx


Linha de Frente (Iansã & Ogum)
Coleção Particular - Maria das Graças Santos

Apresentação
Linha de Frente (Iansã & Ogum)
Coleção Particular – Maria das Graças Santos

APRESENTAÇÃO

O Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Continu-


ada, Alfabetização e Diversidade (Secad), tem o prazer de apresentar
Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais.
O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em uma de suas pri-
meiras ações, promulgou a Lei n° 10.639, em 9 de janeiro de 2003, instituindo
a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura Afro-brasilei-
ra. No ano de 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou o parecer
que propõe as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africanas e Afro-Brasileiras.
Como um desdobramento coerente e adequado dessas ações institucio-
nais, trazemos a público este documento, resultado de grupos de trabalho
constituídos por vasta coletividade de estudiosos(as), especialmente, educa-
dores/as, contando com cerca de 150 envolvidos(as). O trabalho foi cons-
truído em jornadas (Salvador, Belo Horizonte, Florianópolis e Brasília), nas
quais se formaram grupos de trabalho, e em reuniões das coordenadoras dos
referidos GTs, entre dezembro de 2004 e junho de 2005. O processo incor-
porou, ainda, a redação de várias versões dos textos e passou por uma equipe
de revisão e sistematização do conteúdo.
O texto de cada grupo de trabalho se dirige a diversos agentes do cotidia-
no escolar, particularmente, os(as) professores/as, trazendo, para cada nível
ou modalidade de ensino, um histórico da educação brasileira e a conjunção
com a temática étnico-racial, adentrando na abordagem desses temas no cam-
po educacional e concluindo com perspectivas de ação.
Todo o material aqui apresentado busca cumprir o detalhamento de uma
política educacional que reconhece a diversidade étnico-racial, em correlação
FRPIDL[DHWiULDHFRPVLWXDo}HVHVSHFtÀFDVGHFDGDQtYHOGHHQVLQR(VSHUDPRV
que a publicação seja recebida pelas escolas, por gestores/as e educadores/as,
como um importante subsídio para o tratamento da diversidade na educação.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A educação é um ato permanente, dizia Paulo Freire, e neste sentido o


Ministério da Educação, por intermédio da Secad, entende que esta publica-
ção é um instrumento para a construção de uma sociedade anti-racista, que
privilegia o ambiente escolar como um espaço fundamental no combate ao
racismo e à discriminação racial.
Ricardo Henriques
Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

14
E o kora encantou o samba
Coleção Particular - Lydia Garcia

INTRODUÇÃO
Eliane Cavalleiro1

As feridas da discriminação racial se exibem


DRPDLVVXSHUÀFLDOROKDUVREUHDUHDOLGDGHGRSDtV
Abdias Nascimento

Valores civilizatórios
dimensões históricas para uma educação anti-racista

E m linhas gerais, além de um direito social, a educação tem sido entendida


como um processo de desenvolvimento humano. Como expresso nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), a educação escolar corresponde
a um espaço sociocultural e institucional responsável pelo trato pedagógico
do conhecimento e da cultura. A princípio, estaríamos, então, trabalhando em
VRORSDFtÀFRSRUTXHXQLYHUVDOLVWD
No entanto, como pondera Nilma Lino Gomes, em certos momentos, “as
práticas educativas que se pretendem iguais para todos acabam sendo as mais
GLVFULPLQDWyULDV(VVDDÀUPDomRSRGHSDUHFHUSDUDGR[DOPDVGHSHQGHQGR
do discurso e da prática desenvolvida, pode-se incorrer no erro da homoge-
neização em detrimento do reconhecimento das diferenças” (GOMES, 2001,
p. 86). Ao localizarmos o conceito e o processo da educação no contexto das
coletividades e pessoas negras e da relação dessas com os espaços sociais, tor-
na-se imperativo o debate da educação a serviço da diversidade, tendo como
JUDQGHGHVDÀRDDÀUPDomRHDUHYLWDOL]DomRGDDXWRLPDJHPGRSRYRQHJUR
1
Coordenadora-Geral de Diversidade e Inclusão Educacional.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Como linha mestra da maioria das coletividades negras, o processo de


educação ocorre a todo o tempo e se aplica nos mais diversos espaços. Afora
isso, em resposta à experiência histórica do período escravista, a educação
apresentou-se como um caminho fértil para a reprodução dos valores sociais
e/ou civilizatórios das várias nações africanas raptadas para o Brasil e de seus
descendentes.1
A partir do século XVI, as populações negras desembarcadas no Brasil
foram distribuídas em grande quantidade nas regiões litorâneas, com maior
concentração no que atualmente se denomina regiões Nordeste e Sudeste,
cujo crescimento econômico no decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX
foi assegurado pela expansão das lavouras de cana-de-açúcar.. Esse proces-
so garantiu aos senhores de engenho e latifundiários um grande patrimô-
nio, enquanto, em precárias condições de vida, coube ao povo negro, em
sua diversidade, criar estratégias para reverenciar seus ancestrais, proteger
seus valores, manter e recriar vínculos com seu lastro histórico, a “Áfri-
ca Genitora” (LUZ, 1997) – assim como reconstruí-la sob o espectro da
resistência.
Até 1888, ano da abolição formal da escravidão no Brasil, por meio da
chamada Lei Áurea, a população negra escravizada vivenciou a experiência
GHWHUVHXVSRXFRVGLUHLWRVDVVLQDODGRVHPYiULRVGRFXPHQWRVRÀFLDLVVRE
a tutela dos senhores de terra e do Estado (CHALHOUB, 1990; MATTOS,
1997). No entanto, a série de barreiras forjada nesse contexto não impediu
as populações negras de promover a continuidade de suas histórias e suas
culturas, bem como o ensinamento de suas visões de mundo.
Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, ir-
mandades, a identidade do povo negro foi assegurada como patrimônio da
educação dos afro-brasileiros. Apesar das precárias condições de sobrevivên-
cia que a população negra enfrentou e ainda enfrenta, a relação com a an-
cestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados,
assim como a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possi-
bilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das diversas
comunidades afro-brasileiras.
2VDQRVTXHQRVVHSDUDPGD/HLÉXUHDQmRIRUDPVXÀFLHQWHVSDUD
resolver uma série de problemas decorrentes das dinâmicas discriminatórias
forjadas ao longo dos quatro séculos de regime escravocrata. Ainda hoje, per-
manece na ordem do dia a luta pela participação eqüitativa de negros e negras
1
Uma interessante abordagem acerca da importância da educação na experiência histórica da popu-
lação negra brasileira é apresentada em SILVA (2004).

16
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

nos espaços da sociedade brasileira e pelo respeito à humanidade dessas mu-


OKHUHVHKRPHQVUHSURGXWRUHVHSURGXWRUHVGHFXOWXUD&RPHVVDÀQDOLGDGH
setores da sociedade civil têm atuado intensamente contra o racismo e as dis-
criminações raciais, tomando a linguagem africano-brasileira como ancoragem
e lapidando as relações sociais emergentes no entrecruzar dessa cultura com a
cultura eurocêntrica da sociedade (LUZ, 1997).

Um país de muitas leis e direitos limitados

DH²TXDQGR3RUWXJDOFRQFRUGDHPUHVWULQJLURWUiÀFRDRVXOGR
Equador – a 1888 – com a Lei Áurea, a população escravizada recorreu a
uma gama de formas de resistência para que seus limitados direitos fossem
reconhecidos e assegurados. O processo de transformação da mão-de-obra
dos trabalhadores escravizados em trabalhadores livres foi paulatino, e leis
como a do Ventre Livre (1871), Saraiva - Cotegipe ou Lei dos Sexagenários
(1885), que a rigor deveriam favorecer a população negra, caracterizaram-se
como mais um instrumento de controle em prol da ordem escravocrata. As-
sim também, impediu-se a integração da população negra liberada, mediante
várias outras leis que, ao serem incorporadas ao trato cotidiano, acabaram por
tornar-se meios de promoção dos grupos hegemônicos (SILVA JUNIOR,
1998)2HPGHWULPHQWRGDSRSXODomRQHJUDTXHGHODVGHYHULDEHQHÀFLDUVH
Durante quase todo o século XX, quando se operou a expansão do ca-
pitalismo brasileiro, nada de realmente relevante foi feito em termos de uma
legislação para a promoção da cidadania plena da população negra. Mesmo
após as experiências das I e II Guerras Mundiais, apenas em 1951, pela Lei
Afonso Arinos, a discriminação racial caracterizou-se como contravenção pe-
nal. Foi também apenas na segunda metade do século XX que, na perspecti-
va acadêmica, os trabalhos de Abdias Nascimento, Clóvis Moura, Florestan
Fernandes, Lélia Gonzalez, Otavio Ianni, Roger Bastide, entre outros, sobre
DVFRQGLo}HVGHYLGDGDSRSXODomRQHJUDQR%UDVLOÀ]HUDPFRQWUDSRQWRjV
teorias de Sílvio Romero, Oliveira Viana, José Veríssimo, Nina Rodrigues e
Gilberto Freyre3.
Numa perspectiva global, a década de 40 foi marcada pela criação da
Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e pela proclamação, em
1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos – da qual o Estado
2
Para uma abordagem jurídica conferir SILVA JR. (1998).
3
Para um panorama da produção intelectual desses últimos, conferir MUNANGA (2004).

17
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

brasileiro foi signatário –, cujo texto se propunha como “ideal comum a ser
atingido por todos os povos e todas as nações” e dizia que “todos os povos
têm direitos à livre determinação”. Mesmo assim, permanecia aqui o não-
constrangimento diante do fato da reduzidíssima presença ou da não-presen-
ça de pessoas negras em locais de prestígio social.
Diante da série de reivindicações apresentadas por entidades do Movimen-
to Negro Brasileiro, o reconhecimento da Convenção nº 111 da Organização
Internacional do Trabalho (1958); do Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos (1966); do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (1966); da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial (1968); a promulgação da Constituição Federal
GHFRQVLGHUDQGRDSUiWLFDGRUDFLVPRFRPRFULPHLQDÀDQoiYHOHLPSUHV-
critível, e as manifestações culturais como um bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;
HDSXEOLFDomRGD/HLQžD/HL&DyTXHGHÀQHRVFULPHVUHVXOWDQWHV
de discriminação por raça ou cor; no campo educacional, a publicação da Lei
10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da educação para incluir no
FXUUtFXORRÀFLDODREULJDWRULHGDGHGDWHPiWLFD´+LVWyULDH&XOWXUD$IUREUDVLOHL-
ra”, assinalam o quadro de intenções da parte do Estado brasileiro em eliminar
o racismo e a discriminação racial. A partir da III Conferência Mundial contra
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de In-
tolerância, realizada em Durban, África do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro
de 2001, esse procedimento é mantido, sendo o Estado brasileiro signatário da
Declaração e do Plano de Ação resultantes desta conferência.

Movimento Negro e Educação


Além de “muitos estudos dos livros”, a pessoa educada é capaz de
produzir conhecimento e necessariamente, respeita os idosos, as outras
pessoas, o meio ambiente. Empenha-se em fortalecer a comunidade,
na medida em que vai adquirindo conhecimentos escolares, acadêmi-
cos, bem como outros necessários para a comunidade sentir-se inserida
na vida do país (SILVA, 2000, p. 78-79).
A educação formal sempre se constituiu em marco no panorama das
reivindicações do Movimento Negro na luta por uma sociedade mais justa
e igualitária. Ao longo do século XX, a imprensa foi intensamente utiliza-
da como instrumento de suas campanhas, com destaque para os periódi-
cos O Baluarte (1903) O Menelik (1915), A Rua (1916), 2$OÀQHWH (1918), A
Liberdade (1919), A Sentinela (1920), O Getulino (1923) e o Clarim d’Alvorada

18
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

(1924). Essas empreitadas desembocaram na criação da Frente Negra Brasi-


leira (FNB), que, segundo Florestan Fernandes, foi o primeiro movimento de
massa no período pós-abolicionista que teve o objetivo de inserir o negro na
política.(FERNANDES, 1978).
Não limitando seus esforços a seus próprios membros, setores da Frente
Negra Brasileira (FNB) criaram salas de aula de alfabetização para os tra-
balhadores e trabalhadoras negras em diversas localidades (GONÇALVES,
2000). Outra experiência importante na luta pela educação foi empreendida
pelo Teatro Experimental do Negro (TEN). De acordo com Abdias Nasci-
mento, o TEN:
(...) iniciou sua tarefa histórica e revolucionária convocando para seus
quadros pessoas originárias das classes mais sofridas pela discriminação:
RVIDYHODGRVDVHPSUHJDGDVGRPpVWLFDVRVRSHUiULRVGHVTXDOLÀFDGRV
os freqüentadores de terreiros. Com essa riqueza humana, o TEN edu-
cou, formou e apresentou os primeiros intérpretes dramáticos da raça
negra – atores e atrizes – do teatro brasileiro (NASCIMENTO, 2002).
Como expresso no jornal Quilombo – vida, problemas e aspirações do
negro, “o TEN manteve, em salas de aulas cedidas pela União Nacional
GRV(VWXGDQWHVYiULDVDXODVGHDOIDEHWL]DomRVREDFKHÀDGRSURIHVVRU
Ironides Rodrigues. Cerca de seiscentos alunos freqüentavam esse cur-
so, interrompido, infelizmente, por falta de local para funcionar (...)”
(TEN, 1948, p. 7).
Nessa trajetória, destacam-se ainda as experiências do Movimento Negro
8QLÀFDGR 018 DSDUWLUGRÀPGDGpFDGDGH²HVHXVGHVGREUDPHQ-
tos com a política anti-racista, nas décadas de 1980 e 1990, com conquistas
singulares nos espaços públicos e privados – das frentes abertas pelo Movi-
mento de Mulheres Negras e do embate político impulsionado pelas Comu-
nidades Negras Quilombolas. Ou seja, no percurso trilhado pelo Movimento
Negro Brasileiro, a educação sempre foi tratada como instrumento de grande
valia para a promoção das demandas da população negra e o combate às de-
sigualdades sociais e raciais.

Educação e Direitos Humanos – Lei nº 10.639/2003

A III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial,


a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância catalisou no Brasil um
acalorado debate público, envolvendo tanto organizações governamentais
quanto não-governamentais e expressões de movimentos sociais interessadas

19
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

em analisar as dinâmicas das relações raciais no Brasil, bem como elabo-


rar propostas de superação dos entraves postos em relevo pela realização da
conferência. A entrada do novo milênio contou mais uma vez com o reco-
QKHFLPHQWRHDUDWLÀFDomRGDQHFHVVLGDGHGRVSRYRVGRPXQGRHPGHEDWHUH
elaborar estratégias de enfrentamento de um problema equacionado no trans-
correr da Modernidade. Ademais, a conferência marca o reconhecimento,
por parte da ONU, da escravização de seres humanos negros e suas conse-
qüências como crime contra a humanidade, o que fortalece a luta desses po-
vos por reparação humanitária.
1R'RFXPHQWR2ÀFLDO%UDVLOHLURSDUDD,,,&RQIHUrQFLD4, é reconheci-
da a responsabilidade histórica do Estado brasileiro “pelo escravismo e pela
marginalização econômica, social e política dos descendentes de africanos”,
uma vez que:
O racismo e as práticas discriminatórias disseminadas no cotidiano
brasileiro não representam simplesmente uma herança do passado. O
racismo vem sendo recriado e realimentado ao longo de toda a nos-
sa história. Seria impraticável desvincular as desigualdades observadas
atualmente dos quase quatro séculos de escravismo que a geração atual
herdou (BRASIL, 2001).5
Admitidas essas responsabilidades históricas, o horizonte que se abriu foi
o da construção e da implementação do plano de ação do Estado brasileiro
para operacionalizar as resoluções de Durban, em especial as voltadas para a
educação, quais sejam:
• Igual acesso à educação para todos e todas na lei e na prática.
• Adoção e implementação de leis que proíbam a discriminação baseada
em raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica em todos os ní-
veis de educação, tanto formal quanto informal.
• Medidas necessárias para eliminar os obstáculos que limitam o acesso
de crianças à educação.
4
'RFXPHQWRRÀFLDOOHYDGRj,,,&RQIHUrQFLD0XQGLDOFRQWUDR5DFLVPRD'LVFULPLQDomR5DFLDOD
Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância, que serve para orientar as políticas de governo.
Foi elaborado por um comitê preparatório, nomeado pelo presidente da República. O Comitê reuniu
representantes do governo e da sociedade civil e foi presidido pelo secretário de Estado de Direitos
Humanos, o embaixador Gilberto Sabóia.
5
O governo federal estabeleceu um Comitê Nacional, composto prioritariamente por representantes
de órgãos do governo e da sociedade civil organizada. Também, entidades dos movimentos negro,
indígena, de mulheres, de homossexuais, de defesa da liberdade religiosa mobilizaram-se intensa-
mente nesse diálogo. Com o término da Conferência, diante da Declaração e do Programa de Ação,
estabelecidos em Durban, exige-se da sociedade civil o monitoramento para que os resultados sejam
respeitados e as medidas reparatórias sejam implementadas (BRASIL, 2001).

20
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• Recursos para eliminar, onde existam, desigualdades nos rendimentos


educacionais para jovens e crianças.
• Apoio aos esforços que assegurem ambiente escolar seguro, livre da
violência e de assédio motivados por racismo, discriminação racial, xe-
nofobia e intolerância correlata.
• (VWDEHOHFLPHQWR GH SURJUDPDV GH DVVLVWrQFLD ÀQDQFHLUD GHVHQKDGRV
para capacitar todos os estudantes, independentemente de raça, cor,
descendência, origem étnica ou nacional a freqüentarem instituições
educacionais de ensino superior.
Coerentemente com suas reivindicações e propostas históricas, as fortes
campanhas empreendidas pelo Movimento Negro tem possibilitado ao Esta-
do brasileiro formular projetos no sentido de promover políticas e programas
para população afro-brasileira e valorizar a história e a cultura do povo negro.
Entre os resultados, a Lei nº 9.394/96 foi alterada por meio da inserção dos
artigos 26-A e 79-B, referidos na Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o
HQVLQRGH+LVWyULDH&XOWXUD$IUR%UDVLOHLUDVH$IULFDQDVQRFXUUtFXORRÀFLDO
da Educação Básica e inclui no calendário escolar o dia 20 de novembro
como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
Tendo em vista os desdobramentos na educação brasileira, observam-se
os esforços de várias frentes do Movimento Negro, em especial os de Mulhe-
res Negras, e o empenho dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs)
e grupos correlatos criados em universidades, que buscam a estruturação de
uma política nacional de educação calcada em práticas antidiscriminatórias e
antiracistas.
Várias pesquisas, nesse sentido, têm demonstrado que o racismo em nossa
sociedade constitui também ingrediente para o fracasso escolar de alunos(as)
negros(as). A sanção da Lei nº 10.639/2003 e da Resolução CNE/CP 1/2004
é um passo inicial rumo à reparação humanitária do povo negro brasileiro,
pois abre caminho para a nação brasileira adotar medidas para corrigir os
danos materiais, físicos e psicológicos resultantes do racismo e de formas
conexas de discriminação.
Diante da publicação da Lei nº 10.639/2003, o Conselho Nacional de
Educação aprovou o Parecer CNE/CP 3/2004, que institui as Diretrizes
Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas a serem executadas pelos
estabelecimentos de ensino de diferentes níveis e modalidades, cabendo
aos sistemas de ensino, no âmbito de sua jurisdição, orientar e promover a

21
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

formação de professores e professoras e supervisionar o cumprimento das


Diretrizes.

A diversidade étnico-racial na educação

A sociedade civil segue desenvolvendo importante papel na luta contra


o racismo e seus derivados. Compreender os mecanismos de resistência da
população negra ao longo da história exige também estudar a formação dos
quilombos rurais e urbanos e das irmandades negras6, entre tantas outras for-
mas de organizações coletivas negras. A população negra que para cá foi tra-
zida tinha uma história da vida passada no continente africano, a qual somada
às marcas impressas pelo processo de transmutação de continente serviu de
base para a criação de estratégias de sobrevivência.
A fuga dos/das trabalhadores/as escravizados(as), a compra e a conquista
de territórios para a formação de quilombos materializam as formas mais
reconhecidas de luta da população negra escravizada. Nesses espaços, as po-
pulações negras abrigaram-se e construíram novas maneiras de organização
social, bastante distintas da organização nas lavouras.
A religião, aspecto fundamental da cultura humana, é emblemática no
caso dos(as) negros(as) africanos(as) em terras brasileiras. Por meio desse
ímpeto criativo de sobrevivência, pode-se dizer que a população negra pro-
moveu um processo de africanização de religiões cristãs (LUZ, 2000) e de
recriação das religiões de matriz africana.
Cabe, portanto, ligar essas experiências ao cotidiano escolar. Torná-las
reconhecidas por todos os atores envolvidos com o processo de educação
no Brasil, em especial professores/as e alunos(as). De outro modo, trabalhar
para que as escolas brasileiras se tornem um espaço público em que haja
igualdade de tratamento e oportunidades.
Diversos estudos comprovam que, no ambiente escolar, tanto em esco-
las públicas quanto em particulares, a temática racial tende a aparecer como
XPHOHPHQWRSDUDDLQIHULRUL]DomRGDTXHOHDDOXQRDLGHQWLÀFDGRDFRPR
negro/a. Codinomes pejorativos, algumas vezes escamoteados de carinhosos
RXMRFRVRVTXHLGHQWLÀFDPDOXQRV DV QHJURV DV VLQDOL]DPTXHWDPEpPQD
vida escolar, as crianças negras estão ainda sob o jugo de práticas racistas e
discriminatórias.7
6
Para saber mais sobre o assunto, pode-se visitar os trabalhos sobre irmandades negras de QUIN-
TÃO (2002 a & b).
7
Para um debate mais abrangente sobre a relação racismo e educação, conferir: OLIVEIRA (1999);
CAVALLEIRO (2001) e SOUZA (2001).

22
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

O subdimensionamento dos efeitos das desigualdades étnico-raciais em-


bota o fomento de ações de combate ao racismo na sociedade brasileira, visto
que difunde a explicação da existência de igualdade de condições sociais para
todas as pessoas. Sistematicamente, a sociedade brasileira tende a fazer, ainda
hoje, vistas grossas aos muitos casos que tomam o espaço da mídia nacional,
mostrando o quanto ainda é preciso lutar para que todos e todas recebam uma
educação igualitária, que possibilite desenvolvimento intelectual e emocional,
independentemente do pertencimento étnico-racial do/a aluno/a. Com isso,
RV DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRSHUPDQHFHPQDQmRSHUFHSomRGRHQWUDYH
promovido por eles/as, ao não compreenderem em quais momentos suas
atitudes diárias acabam por cometer práticas favorecedoras de apenas parte
de seus grupos de alunos e alunas.
8PROKDUDWHQWRSDUDDHVFRODFDSWDVLWXDo}HVTXHFRQÀJXUDPGHPRGR
expressivo atitudes racistas. Nesse espectro, de forma objetiva ou subjetiva, a
educação apresenta preocupações que vão do material didático-pedagógico à
formação de professores.
O silêncio da escola sobre as dinâmicas das relações raciais tem permitido
que seja transmitida aos(as) alunos(as) uma pretensa superioridade branca,
VHP TXH KDMD TXHVWLRQDPHQWR GHVVH SUREOHPD SRU SDUWH GRV DV  SURÀVVLR-
nais da educação e envolvendo o cotidiano escolar em práticas prejudiciais
ao grupo negro. Silenciar-se diante do problema não apaga magicamente as
diferenças, e ao contrário, permite que cada um construa, a seu modo, um
entendimento muitas vezes estereotipado do outro que lhe é diferente. Esse
entendimento acaba sendo pautado pelas vivências sociais de modo acrítico,
conformando a divisão e a hierarquização raciais.
É imprescindível, portanto, reconhecer esse problema e combatê-lo no
espaço escolar. É necessária a promoção do respeito mútuo, o respeito ao ou-
tro, o reconhecimento das diferenças, a possibilidade de se falar sobre as di-
ferenças sem medo, receio ou preconceito. Nesse ponto, deparamo-nos com
a obrigação do Ministério da Educação de implementar medidas que visem
o combate ao racismo e à estruturação de projeto pedagógico que valorize o
pertencimento racial dos(as) alunos(as) negros(as).
Diante do panorama das ferramentas de que já dispomos, a Constituição
)HGHUDOGHÀQHFRPRFRPSHWrQFLDGD8QLmRGRV(VWDGRVGR'LVWULWR)HGHUDO
e dos Municípios a promoção do acesso à cultura, à educação e à ciência. A
Educação Básica, de competência do Estado, é compreendida pelos níveis
infantil, fundamental e médio, sendo o Ensino Fundamental de caráter obri-
JDWyULRHJUDWXLWR5HFHQWHPHQWHHVWUXWXUDPVHSURSRVWDVGHPRGLÀFDo}HV

23
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

para os livros didáticos e revisões nos Parâmetros Curriculares Nacionais.


Contudo, é preciso dar continuidade a políticas públicas amplas e consolida-
das que trabalhem detalhadamente no combate a esse processo de exclusão
social.
Vale lembrar que o processo de formação de professores/as deve estar
GLUHFLRQDGR SDUD WRGRV DV  RV DV  SURÀVVLRQDLV GH HGXFDomR JDUDQWLQGRVH
que aqueles/as vinculados(as) às ciências exatas e da natureza não se afastem
de tal processo.
Ao criar o Grupo de Trabalho para a discussão e a inserção das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira, a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), por intermédio
da Coordenação-Geral de Diversidade e Inclusão Educacional (CGDIE), re-
DÀUPDVHXREMHWLYRGHYDORUL]DUHDVVHJXUDUDGLYHUVLGDGHpWQLFRUDFLDOWHQGR
a educação como instrumento decisivo para a promoção da cidadania e do
apoio às populações que vivem em situações de vulnerabilidade social. Ade-
mais, os trabalhos desenvolvidos durante as jornadas tiveram como horizonte
a construção do Plano de Ação para a Inserção das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, tomando como base os seguintes
princípios:

• Socialização e visibilidade da cultura negro-africana.


• Formação de professores com vistas à sensibilização e à construção
de estratégias para melhor equacionar questões ligadas ao combate às
discriminações racial e de gênero e à homofobia.
• Construção de material didático-pedagógico que contemple a diversi-
dade étnico-racial na escola.
• Valorização dos diversos saberes.
• Valorização das identidades presentes nas escolas, sem deixar de lado
esse esforço nos momentos de festas e comemorações.

O Plano de Ação: Ensino de História e Cultura Africana e Afro-


brasileira

Os textos a seguir, por nível/modalidade de ensino, giram em torno da


construção de Orientações e Ações para o Ensino de História e Cultura Afri-

24
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

FDQDH$IUREUDVLOHLUDEXVFDQGRRULHQWDURV DV SURÀVVLRQDLVTXHWUDEDOKDP
com a educação, na implementação da Lei nº 10.639/2003 em todas as esco-
las deste país.
O texto do GT Educação Infantil, coordenado por Patrícia Maria de Sou-
]D6DQWDQDSDUWHGRSHUtRGRHWiULRHGDVHVSHFLÀFLGDGHVGDHGXFDomRLQIDQ-
til, para questionar a imagem das educadoras que trabalham nas instituições
infantis. Em seguida constrói as perspectivas históricas da educação infantil,
dentro das relações étnico-raciais, chegando aos dias atuais como uma pri-
meira etapa da Educação Básica, sendo dever do Estado, direito da criança e
opção da família. Nesse contexto o cuidar e o educar constituem as relações
DIHWLYDVHSDVVDPQHFHVVDULDPHQWHSHODVDÀQLGDGHVFRPDVIDPtOLDVHSRUWR-
dos os grupos em que a criança está inserida.
O texto do GT Ensino Fundamental, coordenado por Rosa Margarida de
Carvalho Rocha e Azoilda Loretto da Trindade, traz considerações comuns
aos dois ciclos, chamando a atenção para a escola e alguns contextos relativos
a uma educação anti-racista neste nível do ensino, a exemplo do currículo,
da interdisciplinaridade, das relações entre humanidade e alteridade, cultura
negra e corporeidade e entre memória, história e saber. Logo adiante, o texto
VHYROWDSDUDDVGLIHUHQFLDo}HVHQWUHRV DV HVWXGDQWHVHSRUÀPDGHQWUDHP
ações para o Ensino Fundamental, envolvendo uma série de recomendações
para a abordagem da temática étnico-racial no cotidiano escolar, desde a sele-
ção de temas até a preocupação com recursos didáticos.
O Grupo de Trabalho do Ensino Médio, coordenado por Ana Lúcia Silva
Souza, formulou um texto que discute as questões étnico-raciais no Ensino
Médio e trata da juventude como sujeito ativo e criador do seu universo plural.
Discutindo as diversidades que envolvem essa etapa da vida escolar, o texto
propõe uma linguagem em que os códigos das relações culturais, sociais e po-
líticas relativos à escola e à juventude estejam construídos numa expectativa
de relação entre presente e futuro, apresenta a escola de Ensino Médio como
ambiente de construção e desenvolvimento das identidades de negros(as) e
QmRQHJURV DV 3RVWHULRUPHQWHUHDÀUPDRFRWLGLDQRHVFRODUFRPRXPHVSD-
oRGHID]HUFROHWLYRQRTXDOSURIHVVRUHVDVHVWXGDQWHVHGHPDLVSURÀVVLRQDLV
da educação se reconheçam como sujeitos co-responsáveis pelo processo de
construção do conhecimento e do currículo, que deve ser concebido para
atender à diversidade e à pluralidade das culturas africana e afro-brasileira.
O texto do GT Educação de Jovens e Adultos (EJA), coordenado por
Rosane de Almeida Pires, foi dividido em três partes. Primeiramente, tece um
histórico da trajetória da educação de jovens e adultos nos sistemas de ensino

25
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

IRUPDLVHQmRIRUPDLVWUDWDQGRGRVDYDQoRVHGHVDÀRVGD(-$HDSUR[LPDQ-
do a questão étnico-racial das ações do Movimento Negro no Projeto Político
Pedagógico e Currículo. Em seguida, entrelaçando a EJA numa perspectiva
de educação anti-racista e democrática, o texto enfatiza as linguagens dos(as)
jovens e adultos(as) com o ensino de história e cultura africanas e afro-brasi-
leiras, estabelecendo os vínculos no que se refere aos lugares de constituição
GHLGHQWLGDGHVGDSRSXODomRQHJUD3RUÀPHQXQFLDYiULDVSRVVLELOLGDGHVGH
colocar o/a jovem e o/a adulto/a no centro de todos os movimentos da edu-
cação para que, de fato, ele/a se torne sujeito de seu processo educativo.
No que se refere às Licenciaturas, o texto do GT coordenado por Rosa-
na Batista Monteiro, inicialmente nos situa no contexto da implementação
da temática étnico-racial entre os conteúdos e as metodologias nesse campo.
Temos em seguida, um quadro das pesquisas e ações acerca da questão em
IRFRHVXDUHODomRFRPDIRUPDomRGHSURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR3RU~OWL-
mo, aborda-se a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-raciais nas Instituições de Ensino Supe-
rior, no que diz respeito aos projetos pedagógicos, à matriz curricular e às
disciplinas.
O texto que resultou do GT Educação Quilombola, com a coordenação
de Georgina Helena Lima Nunes, dirige-se tanto às escolas situadas em áreas
de remanescentes de quilombos, quanto àquelas que recebem quilombolas.
Passa de uma introdução histórica ao tema e ao termo quilombo, para o vín-
culo entre educação quilombola e relações étnico-raciais, chegando a descor-
tinar um campo de ações.
Após os textos dos GTs, essa publicação traz um glossário de termos e
expressões. Trata-se de notas indicativas e explicativas a temas e subtemas
que surgem na abordagem da temática étnico-racial na educação.
Após a sistematização e revisão dos Conteúdos, especialistas de cada nível
de ensino, bem como professores e professoras que estão atuando em sala de
aula elaboraram pareceres e sugestões, colaborando para que os textos apre-
sentassem uma linguagem acessível a todos os(as) educadores/as.
3RUÀPSXEOLFDPRVR3DUHFHUGR&RQVHOKR1DFLRQDOGH(GXFDomRTXH
trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Ét-
nico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(BRASIL, 2004), a Resolução CNE/CP 1/2004 e a Lei 10.639/2003, que
constituem os principais conteúdos norteadores de todo este trabalho.
Certamente este trabalho é um primeiro passo para as Orientações e
Ações para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Es-

26
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

SHUDPRV TXH HOH VHMD XP LPSXOVLRQDGRU GH UHÁH[}HV H Do}HV QR FRWLGLDQR
escolar, indo além do silêncio acerca da questão étnico-racial e das situações
que eventualmente ocorrem, e possibilitando um cenário de reelaboração das
relações que se estabelecem dentro e fora do campo educacional.

E o kora encantou o samba


Coleção Particular - Lydia Garcia

Referências

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27
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

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de dezembro de 1948, p. 7.

28
Maternidade (Oxum)
Acervo do artista

Educação Infantil
Maternidade (Oxum)
Acervo do artista

EDUCAÇÃO INFANTIL
Coordenação: Patrícia Maria de Souza Santana1

Introdução
7odas as meninas e todos os meninos nascem livres e
WrPDPHVPDGLJQLGDGHHRVPHVPRVGLUHLWRV
1HQKXPDYLGDYDOHPDLVGRTXHDRXWUDGLDQWHGRIDWR
GHTXHWRGDVDVFULDQoDVHWRGRVRVDGROHVFHQWHVGR
planeta são iguais.2

DGDIDVHGDYLGDDSUHVHQWDVXDVHVSHFLÀFLGDGHVUHTXHUHQGRGHTXHP
C lida com o ser humano uma atenção especial às necessidades que ca-
racterizam cada momento. No período em que consideramos a educação
LQIDQWLOLVWRpHPTXHDFULDQoDWHPGH]HURDVHLVDQRVpIXQGDPHQWDOÀFDU
DWHQWRDRWLSRGHDIHWRTXHUHFHEHHDRVPRGRVFRPRHODVLJQLÀFDDVUHOD-
ções estabelecidas com e por ela. Desde o nascimento, as condições mate-
riais e afetivas de cuidados são marcantes para o desenvolvimento saudável
da criança.
É com o outro, pelos gestos, pelas palavras, pelos toques e olhares que
a criança construirá sua identidade e será capaz de reapresentar o mundo
DWULEXLQGRVLJQLÀFDGRVDWXGRTXHDFHUFD6HXVFRQFHLWRVHYDORUHVVREUHD
vida, o belo, o bom, o mal, o feio, entre outras coisas, começam a se constituir
nesse período.
1
Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG, graduada em História (FAFICH-
UFMG), professora da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, coordenadora do Núcleo de
Relações Étnico-Raciais e de Gênero da Secretaria Municipal de Educação de BH e autora do livro
3URIHVVRUDV1HJUDV7UDMHWyULDVH7UDYHVVLDV pela Editora Mazza,2004.
2
O Relatório da 27ª Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, maio de 2002, intitu-
lado 8PPXQGRSDUDDVFULDQoDV
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Faz-se necessário questionar a imagem que a educadora3 traz de criança


e de infância, pois tais imagens traduzem a relação adulto – criança, e se
UHÁHWHPQDRUJDQL]DomRGDVDWLYLGDGHVQDVLQVWLWXLo}HVHHVSHFLDOPHQWHQDV
variadas formas de avaliação utilizadas. 3URPRYHU D UHÁH[mR VREUH D LPD-
gem de criança que dá suporte às práticas dos(as) educadores/as possibilita a
compreensão das singularidades e potencialidades de cada criança, podendo
contribuir para promover condições de igualdade.
Tal igualdade pressupõe o reconhecimento das diferenças que sabemos
existir. Para tanto é necessário ter informação sobre os direitos que necessi-
tam ser assegurados a todas as crianças. Isso exigirá um olhar mais atento e
maior sensibilidade, pois as diferenças se manifestam no cotidiano e carecem
GH ´OHLWXUDµ GHFRGLÀFDomR GHVVDV PDQLIHVWDo}HV 4 pela educadora, seja na
relação criança – criança, adulto – criança, criança – família, criança – grupo
social.
A educadora, por sua vez, é um ser humano possuidor de singularidades e
está imersa em determinada cultura que se apresenta na relação com o outro
(igual ou diferente). Manifestar-se contra as formas de discriminação é uma
tarefa da educadora, que não deve se omitir diante das violações de direitos
das crianças. Mobilizar-se para o cumprimento desses direitos é outra ação
necessária. Essas atitudes são primordiais às educadoras que buscam realizar
a tarefa de ensinar com responsabilidade e compromisso com suas crianças.
É importante destacar que a garantia legal dos direitos não promove sua
concretização. São as atitudes efetivas e intencionais que irão demonstrar o
compromisso com tais direitos. Reconhecer as diferenças é um passo funda-
mental para a promoção da igualdade, sem a qual a diferença poderá vir a se
transformar em desigualdade.

1. PROCESSOS DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL

A Educação Infantil no Brasil caracteriza-se como primeira etapa da Edu-


cação Básica, dever do Estado, direito da criança e opção da família5, não
sendo, portanto, obrigatória.
3
Utilizaremos a partir daqui o termo educadora, por considerar que as mulheres são maioria na
educação infantil.
4
No sentido que Paulo Freire dá a essa palavra, ou seja, a capacidade de ler o mundo.
5
Ao utilizarmos o termo família, estamos nos referindo ao texto da LDB 9394/96. Faz-se necessário
considerar que muitas crianças não possuem família (crianças que vivem em instituições como orfa-
natos, abrigos etc.); nesse caso, o mais apropriado em substituição ao termo família é grupo social.

32
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Vários fatores contribuíram para isso: em primeiro lugar observa-se um


DYDQoR GR FRQKHFLPHQWR FLHQWtÀFR VREUH R GHVHQYROYLPHQWR LQIDQWLO DOLD-
do ao reconhecimento da sociedade acerca do direito da criança à educação
nos primeiros anos de vida. Em segundo lugar, a participação crescente da
mulher na força de trabalho, notadamente por meio do movimento sindical
e de mulheres, passou a exigir que instituições de Educação Infantil fossem
ampliadas para dar conta dessa nova condição social feminina. Em terceiro
lugar, e como conseqüência dos itens anteriores, o processo de democrati-
zação da sociedade e da educação no Brasil tornou possíveis o acesso e a
permanência de considerável número de crianças de zero a seis anos de idade
em diversas instituições educativas, das públicas às privadas, sendo contem-
SODGDVQHVVDV~OWLPDVDVLQVWLWXLo}HVÀODQWUySLFRDVVLVWHQFLDLVFRPXQLWiULDVH
totalmente privadas.
Longe estamos de garantir cobertura de atendimento em Educação In-
fantil para a grande maioria da população brasileira. De acordo com dados
do Unicef, a população indígena e negra são os segmentos mais excluídos do
acesso à educação na faixa etária dos zero aos seis anos.
Creches e pré-escolas buscam integrar educação e cuidados, necessários
a um período etário vulnerável como o da criança pequena, traduzindo dessa
forma a perspectiva de que tais crianças são portadoras de direitos desde que
nascem.
É importante considerar que os direitos a que nos referimos são resul-
tantes de longo processo histórico e social de mais de quatro séculos. No
período colonial, a educação das crianças se dava principalmente em âmbito
privado nas casas e em instituições religiosas. As crianças abandonadas eram
encaminhadas para a roda dos expostos6 e acolhidas por instituições de ca-
ridade. Essas crianças eram, em sua maioria, pobres, bastardas. A roda foi
utilizada pelas mulheres escravizadas como meio de livrar suas crianças do
cativeiro ou então pelos senhores que pretendiam se isentar das responsabi-
OLGDGHVHHQFDUJRVGDFULDomRGRVÀOKRV DV GHVXDVHVFUDYDV'HDFRUGRFRP
Mott:
A roda recebia crianças de qualquer cor e preservava o anonimato dos
pais. A partir do alvará de 31 de janeiro de 1775, as crianças escravas,
colocadas na roda, eram consideradas livres. Este alvará, no entanto
foi letra morta e as crianças escravas eram devolvidas aos seus donos,
quando solicitadas, mediante o pagamento das despesas feitas com a
criação. Em 1823, saiu um decreto que considerava as crianças da roda
6
Em algumas localidades do Brasil utiliza-se o termo enjeitados como sinônimo de expostos.

33
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

FRPRyUImVHDVVLPÀOKRVGRVHVFUDYRVVHULDPFULDGRVFRPRFLGDGmRV
gozando dos privilégios dos homens livres (1979:57).
Com relação às crianças negras no Brasil escravista, observamos crianças
pequenas antecipando-se às exigências e responsabilidades dos adultos, en-
cerrando-se a fase de criança aos cinco ou seis anos, inserindo-se no mundo
DGXOWR SRU PHLR GR WUDEDOKR HVFUDYR 1RV PRPHQWRV ÀQDLV GD HVFUDYLGmR
com a Lei do Ventre Livre 2.040/1871, as crianças nascidas após 28 de se-
tembro de 1871 seriam consideradas livres, no entanto deveriam permanecer
até os oito anos sob a posse dos senhores. Ao completar oito anos poderiam
ÀFDUVREDJXDUGDGRVHQKRUDWpRVDQRVRXSRGHULDPVHUHQWUHJXHVDR
Estado e encaminhadas para instituições como asilos agrícolas e orfanatos
(FONSECA, 2001). Vemos que a situação das crianças negras no período da
escravidão era muito difícil, e na maioria das vezes não tinham acesso à instru-
ção. A educação estava restrita ao aprendizado das tarefas demandadas pelos
senhores. Desde que nasciam eram carregadas pelas mães para o trabalho. A
despreocupação com a criança escravizada pode ser demonstrada pelos altos
índices de mortalidade infantil nesse segmento. Existe uma naturalização da
falta de investimento e atenção nesse período.
No contexto mundial, a partir dos séculos XVII e XVIII, com o surgi-
PHQWR GRV UHI~JLRV DVLORV DEULJRV GH FULDQoDV H ÀOKDV GH PmHV RSHUiULDV
podemos demarcar o contexto em que a infância no mundo passa a ser con-
siderada como uma etapa da vida que merece atenção. No início do século
XX, as instituições que atendiam à criança pequena o faziam como medida
de saúde pública, como resposta aos altos índices de mortalidade infantil,
ÀFDQGRSRUYiULDVGpFDGDVSXOYHUL]DGDVQDViUHDVGDVD~GHDVVLVWrQFLDVRFLDO
e educação as verbas destinadas à criança pequena.
O debate à época evocava a necessidade de educar, moralizar, domesticar
HLQWHJUDURVÀOKRVGHWUDEDOKDGRUHV7DLVLGpLDVWUDGX]LDPXPDFRQFHSomRGH
infância como um período de ingenuidade, inocência, da facilidade de mode-
lação do caráter. As famílias eram “ensinadas” a adquirir posturas adequadas
com relação às crianças, calcadas em valores rígidos embasados no cristianis-
mo e nos valores morais burgueses7. Também a escola e as instituições de ca-
ridade eram consideradas como um espaço de controle social, procurando-se
evitar a vadiagem e a delinqüência infantil, com a preocupação voltada para
sua integridade física e moral. Esta concepção baseada apenas no cuidado
7
1RSHUtRGRGR5HQDVFLPHQWRHXURSHXHVVDLGpLDVHVROLGLÀFRXHDLQIkQFLDIRLUHSHQVDGDVHQGR
associada a elementos como a pureza, a simplicidade, a necessidade de amor, a ingenuidade, a male-
abilidade e a fragilidade, passando as crianças a serem valorizadas e amadas.

34
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

está vinculada à prática assistencialista que marcou as creches neste período


e ainda se encontra presente em muitas instituições de Educação Infantil. Tal
visão compromete a perspectiva dos direitos das crianças, pois ao se restringir
DDVSHFWRVOLJDGRVDRVFXLGDGRVÀFDPGHVYLDGDVDVGLPHQV}HVGDVRFLDOL]D-
ção, da aprendizagem, da vivência cultural, privilegiadamente fundamentada
na diversidade.
7DPEpP HUD SHQVDPHQWR FRUUHQWH TXH DV FULDQoDV GHYHULDP ÀFDU FRP
suas mães. Nessa perspectiva, as instituições que “guardavam” as crianças
eram encaradas como um mal necessário: na ausência da mãe (trabalhadora,
inexistente, incompetente, moral e/ou economicamente), as creches cum-
priam o papel de cuidar das crianças, desconsiderando as variadas formas
GHDVIDPtOLDVFULDUHPVHXVÀOKRV$VSUHRFXSDo}HVGHFDUiWHUSHGDJyJLFRH
cognitivo estavam distantes dos objetivos dessas instituições que abrigavam
crianças pequenas. Prevalecia igualmente a quase exclusiva preocupação com
os cuidados: higiene, alimentação, sono, com rotinas rígidas.
No período correspondente às décadas de 1940 a 1960 do século XX
foram criados programas compensatórios, de prevenção à saúde e de garantia
ao trabalho feminino, assim como órgãos governamentais de implementação
de políticas para essa área.
O período de 1970 a 1990 do mesmo século representou avanços na pers-
pectiva dos direitos das crianças. É na década de 1970, em meio à efervescên-
cia dos movimentos sociais e o clamor pela liberdade e garantia de direitos,
que manifestações por esses direitos tomam força. Não sem razão, diversos
movimentos de mulheres surgem neste período, em uma conjuntura na qual a
dinâmica dos movimentos sociais trazem à cena novos personagens (SADER,
1988) reivindicando não só mudanças nas relações de trabalho, mas melhores
condições de vida (saneamento básico, transporte coletivo, habitação, educa-
ção), entre eles, os movimentos populares de luta por creches, exigindo do
Estado a criação de redes públicas de Educação Infantil8. Destaca-se nesse
período, para além do movimento de mulheres por creches e pré-escolas, o
movimento negro criticando o modelo de escola que desconsiderava o pa-
trimônio histórico cultural da população negra, além de denunciar o racismo
existente nas escolas, o que contribuía para a evasão e o fracasso escolar das
crianças negras (MELO & COELHO, 1988).
8
Ressalta-se que o modelo de pré-escola brasileira que estimulou a criação das redes públicas, im-
plementada pelos governos, a partir da década de 1970, teve como referência o modelo americano
de prevenção do fracasso escolar (educação compensatória) motivado pelos altos índices de evasão e
UHSHWrQFLDQDHVFRODHOHPHQWDUGDVFULDQoDVQHJUDVHÀOKDVGHSRSXODo}HVPLJUDQWHV

35
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Os governos municipais em muitos casos, em regime de colaboração


com outras esferas governamentais, implementam programas pré-escolares,
FULDQGRUHGHVSUySULDVGHLQVWLWXLo}HVSDUDHVVHÀP(PFRQWUDSDUWLGDHP
diversas regiões do país, diante da pouca receptividade dos governantes, sur-
gem novas modalidades de Educação Infantil organizadas por moradores,
clubes de mães, associações de bairros e/ou grupos ligados às instituições
religiosas. Nesse mesmo período, os movimentos populares que demandam
escola pública despontam em todo o país e as suas principais reivindicações
dizem respeito à ampliação de vagas nas escolas e à melhoria da qualidade
educacional.
Na segunda metade da década de 1980, com as movimentações em torno
do debate pela Assembléia Nacional Constituinte, os movimentos sociais al-
cançaram maior êxito. A partir desse período, em decorrência de longo pro-
cesso de lutas e conquistas, a infância é colocada na agenda pública, enten-
dendo a criança como sujeito de direitos, reforçando a concepção da criança
cidadã, da infância como tempo de vivência plena de direitos. Falar em di-
reitos supõe considerar condições básicas de exercícios de uma educação de
qualidade para todos em nível dos sistemas educativos, como das instituições
de Educação Infantil, em diálogo e parceria permanente com outras áreas
de apoio: saúde, educação, bem-estar social, Ministério Público, Conselhos
Tutelares e de Defesa dos Direitos da Criança.
Na perspectiva de que o Estado garanta esses direitos, a Constituição
Federal de 1988 (BRASIL, 1988) traz pela primeira vez a expressão educação
infantil para designar o atendimento em creche e pré-escola, e traz a garantia
constitucional do dever do Estado com esse atendimento etário, não apenas
como política de favorecimento ou benefício das mães, mas antes um direito
das crianças (artigo 208, inciso IV). A lei reconhece o caráter educativo das
creches, antes pertencentes à área da assistência social passando a se incor-
porar à área da educação. No início da década de 90, o Estatuto da Criança e
do Adolescente (BRASIL, 1990), considerada uma das leis mais avançadas do
mundo no que se refere à proteção das crianças, aponta direitos que devem
ser garantidos e respeitados por toda a sociedade, reforçando os preceitos
com relação à educação infantil assinalados na Constituição Federal (BRA-
SIL, 1988).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) amplia
ainda mais a esfera dos direitos, ao assumir que a Educação Infantil oferecida
em creches e pré-escolas é parte integrante da educação básica, compreendida
como a primeira etapa.

36
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

1.1 A Educação Infantil e a educação para as relações étnico-raciais

Em que pesem os esforços para que conquistas fossem garantidas no


âmbito legal, a realidade não se mostra tão promissora para as crianças brasi-
leiras, em especial para as crianças negras. De acordo com dados do Unicef, a
média nacional de 38,6% fora da escola esconde iniqüidades: entre as crianças
brancas, o dado é mais favorável (36,1%); entre as crianças negras, porém,
41% não freqüentam a pré-escola. Essa disparidade demonstra a desigualda-
de entre brancos e negros desde o início da escolaridade.
Independentemente do grupo social e/ou étnico-racial a que atendem, é
importante que as instituições de Educação Infantil reconheçam o seu papel
e função social de atender às necessidades das crianças constituindo-se em
espaço de socialização, de convivência entre iguais e diferentes e suas formas
de pertencimento, como espaços de cuidar e educar, que permita às crianças
explorar o mundo, novas vivências e experiências, ter acesso a diversos ma-
teriais como livros, brinquedos, jogos, assim como momentos para o lúdico,
permitindo uma inserção e uma interação com o mundo e com as pessoas
presentes nessa socialização de forma ampla e formadora.
A ampliação da oferta de vagas na Educação Infantil em todas as regiões
GRSDtVWUD]DLQGDDXUJrQFLDGDUHÁH[mRHPWRUQRGDGLYHUVLGDGHGRS~EOLFR
atendido nessas instituições. Considerando a diversidade étnico-racial, sabe-
mos que existe uma concentração maior de crianças negras em instituições
FRPRFUHFKHVFRPXQLWiULDVHÀODQWUySLFDV3RUWDQWRQmRSRGHPRVGHVFRQ-
siderar que a desigualdade racial no sistema educacional apontada em várias
pesquisas9 está presente na Educação Infantil, considerando-se o acesso a
essas ofertas de atendimentos, a qualidade do trabalho realizado, as condi-
o}HVGHWUDEDOKRGRV DV SURÀVVLRQDLVTXHDOLDWXDPHSULQFLSDOPHQWHDVXD
formação. Rosemberg nos chama a atenção para as diferentes formas de aten-
GLPHQWRQD(GXFDomR,QIDQWLOTXHWHPGHVGREUDPHQWRVQRSHUÀOGDFOLHQWHOD
atendida e nas trajetórias educacionais de crianças brancas e negras.
(...) a expansão caótica e a baixo custo da Educação Infantil no Brasil
durante os anos 80 cristalizou a tendência histórica da convivência de
trajetórias duplas para o atendimento de crianças pequenas: uma mais
freqüentemente denominada creche, geralmente vinculada às instân-
cias da assistência, localizadas nas regiões mais pobres da cidade, ofe-
recendo um atendimento de pior qualidade, sendo freqüentada princi-
9
Hasenbalg & Silva (1990, 1999); Hasenbalg & Silva (1999), Rosemberg (1999); Barcelos (1992);
Henriques (2001), para citar alguns.

37
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

palmente por crianças pobres e negras; a outra, mais freqüentemente


denominada pré-escola ou escolas de Educação Infantil, vinculada às
instâncias da educação e que, mesmo apresentando por vezes padrão
GHTXDOLGDGHLQVDWLVIDWyULRSRUVXDORFDOL]DomRJHRJUiÀFDWHQGHDFR-
lher uma população infantil mais heterogênea no plano econômico e
racial (1991:28).
As desigualdades nas trajetórias educacionais das crianças são demons-
tradas não só pelo tipo de atendimento, como também na forma como são
DYDOLDGDV QHVVDV LQVWLWXLo}HV $ /'%  QR DUWLJR  DÀUPD TXH D
avaliação na Educação Infantil deve ser realizada na forma de acompanha-
mento e registro do desenvolvimento da criança, sem objetivo de promo-
ção, uma avaliação processual10. No entanto, Rosemberg (1999) nos chama
a atenção para questão alarmante elucidada por suas pesquisas com relação
à retenção de crianças na Educação Infantil: crianças na faixa etária de sete
a nove anos permanecem na pré-escola, quando deveriam cursar o Ensino
Fundamental.
(P VXD PDLRULD HVVDV FULDQoDV VmR QHJUDV UHÁHWLQGR D KLVWyULFD GHVL-
gualdade racial no Brasil, de modo geral, e na educação, em especial. No
interior das instituições de Educação Infantil, são inúmeras as situações nas
quais as crianças negras desde pequenas são alvo de atitudes preconceituosas
H UDFLVWDV SRU SDUWH WDQWR GRV SURÀVVLRQDLV GD HGXFDomR TXDQWR GRV SUy-
prios colegas e seus familiares. A discriminação vivenciada cotidianamente
compromete a socialização e interação tanto das crianças negras quanto das
brancas, mas produze desigualdades para as crianças negras, à medida que
interfere nos seus processos de constituição de identidade, de socialização e
de aprendizagem.

2. CONSTRUINDO REFERENCIAIS PARA ABORDAGEM DA


TEMÁTICA ÉTNICO-RACIAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL
2.1 Cuidar e Educar

$HGXFDomRGHFULDQoDVGH]HURDVHLVDQRVFRPSRUWDHVSHFLÀFLGDGHVTXH
SUHFLVDPVHUFRQVLGHUDGDV(VVDVHVSHFLÀFLGDGHVGHDFRUGRFRPR5HIHUHQFLDO
Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI ), são afetivas, emocio-
nais, sociais e cognitivas.
10
Avaliar é um processo em andamento que propõe novas posturas a cada etapa trabalhada, sem
ÀQDOL]Do}HVVXJHULGDVSRUQRWDVRXSRUFRQFHLWRV

38
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Em todas as etapas da Educação Básica, esses dois elementos que com-


põem a prática educativa se interconectam e ao mesmo tempo possuem ca-
racterísticas bem particulares. O Referencial Curricular Nacional para a Edu-
cação Infantil considera que educar é:
(...) propiciar situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens
orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desen-
volvimento das capacidades infantis de relação interpessoal, de ser e
estar com os outros em uma atitude básica de aceitação, respeito e
FRQÀDQoDHRDFHVVRSHODVFULDQoDVDRVFRQKHFLPHQWRVPDLVDPSORV
da realidade social e cultural (1998a: 23).
Falar em cuidado na Educação Infantil diz respeito ao apoio que a criança
necessita para se desenvolver em sua plenitude. Cuidar diz respeito ao zelo, à
atenção e se desdobra em atividades ligadas à segurança e proteção necessá-
rias ao cotidiano de qualquer criança, tais como alimentação, banho, troca de
fralda e outros em relação à higiene, proteção, consolo. Esses cuidados não
podem ser compreendidos como algo dissociado do ato de educar, pois todas
essas atividades e relações fazem parte do processo educativo e são traduzidas
em contatos e interações presentes no ambiente educativo.
Em todas as dimensões do cuidar e educar é necessário considerar a
singularidade de cada criança com suas necessidades, desejos, queixas, bem
como as dimensões culturais, familiares e sociais. O ato de cuidar e educar faz
com que ocorra uma estreita relação entre as crianças e os adultos. As crian-
ças precisam de educadores afetivos que possibilitem interações da criança
com o mundo. Um mundo que transita permanentemente entre o passado
(as tradições, os hábitos e os costumes) e o novo (as inovações do presente e
as perspectivas para o futuro).
O acolhimento da criança implica o respeito à sua cultura, corporeida-
de, estética e presença no mundo. Contudo, em muitas situações as crianças
negras não recebem os mesmos cuidados e atenção dispensados às crianças
brancas (CAVALLEIRO, 2001). Precisamos questionar as escolhas pautadas
em padrões dominantes que reforçam os preconceitos e os estereótipos. Nes-
sa perspectiva, a dimensão do cuidar e educar deve ser ampliada e incorpo-
UDGDQRVSURFHVVRVGHIRUPDomRGRVSURÀVVLRQDLVTXHDWXDPQD(GXFDomR
,QIDQWLORTXHVLJQLÀFDUHFXSHUDURXFRQVWUXLUSULQFtSLRVSDUDRVFXLGDGRV
embasados em valores éticos, nos quais atitudes racistas e preconceituosas
não podem ser admitidas. Nessa direção, a observação atenciosa de suas pró-
prias práticas e atitudes podem permitir às educadoras rever suas posturas e
readequá-las em dimensões não-racistas. É importante evitar as preferências

39
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

HHVFROKDVUHDOL]DGDVSRUSURIHVVRUHVDVHRXWURVSURÀVVLRQDLVSULQFLSDOPHQ-
te quando os critérios que permeiam tais preferências se pautam por posições
preconceituosas (DIAS, 1997; GODOY, 1996; CAVALLEIRO, 2001). Não
silenciar diante de atitudes discriminatórias eventualmente observadas é um
outro fator importante na construção de práticas democráticas e de cidadania
para todos e não só para as crianças. Tais condutas favorecem a consolidação
do coletivo de educadores na instituição.
Os Referenciais Curriculares para a Educação Infantil nos apresentam a
dimensão acolhedora do cuidar
No ato de alimentar ou trocar uma criança pequena não é só o cuidado
com a alimentação e higiene que estão em jogo, mas a interação afetiva que
envolve a situação. Na relação estabelecida, por exemplo, no momento de to-
mar a mamadeira, seja com a mãe ou com a professora da Educação Infantil,
o binômio dar e receber possibilita às crianças aprenderem sobre si mesmas
HHVWDEHOHFHUHPXPDFRQÀDQoDEiVLFDQRRXWURHHPVXDVSUySULDVFRPSH-
tências. Elas começam a perceber que sabem lidar com a realidade, que con-
seguem respostas positivas, fato que lhes dá segurança e que contribui para a
construção de sua identidade (1998b:16).
As dimensões do cuidar e educar nos permitem compreender a impor-
tância das interações positivas entre educadoras e crianças. Relações pautadas
em tratamentos desiguais podem gerar danos irreparáveis à constituição da
identidade das crianças, bem como comprometer a trajetória educacional das
mesmas.

2.2 O Afeto

8PVRUULVRQHJUR
8PDEUDoRQHJUR
7UD]IHOLFLGDGH
Adilson Barbosa, Jorge Portela e Jair Carvalho

Já destacamos a dimensão afetiva do ato de educar e cuidar na Educação


Infantil. A dimensão do afeto, para ser praticada também nos processos edu-
FDWLYRVSUHFLVDHVWDUFRQWHPSODGDQDIRUPDomRGRVSURÀVVLRQDLVGDHGXFD-
omRPXLWDVHGXFDGRUDVWrPGLÀFXOGDGHVHPH[SUHVVDUHVVHDIHWR
Faz-se necessário que as demonstrações de afeto sejam manifestadas para
todas as crianças indistintamente. Colocar no colo, afagar o rosto, os cabelos,
atender ao choro, consolar nos momentos de angústia e medo faz parte dos

40
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

cuidados a serem dispensados a todas as crianças. A educadora é a mediadora


entre a criança e o mundo, e é por meio das interações que ela constrói uma
auto-imagem em relação à beleza, à construção do gênero e aos comporta-
mentos sociais.
Na perspectiva de muitas culturas, e também da africana, o processo de
aprendizagem se dá por toda a vida, sendo importante considerar aqui a va-
lorização da pessoa desde o seu nascimento até a sua velhice. O respeito aos
mais velhos é um valor que precisa ser transmitido às crianças, sendo também
um valor de destaque na cultura afro-brasileira e africana. A ancestralidade
é um princípio que norteia a visão de mundo das populações africanas e
afro-brasileiras. Os que vieram primeiro, os mais antigos, os mais velhos são
referências importantes para as famílias, comunidades e indivíduo. Portanto,
o processo de aprender não é possível fora da dimensão da relação, da inter-
relação entre os mais novos e os mais velhos. Os adultos são fundamentais
nesse processo de caminhada para a compreensão da vida e das relações com
o mundo que as crianças iniciam desde que nascem. De acordo com Gonçal-
ves e Silva, “para aprender é necessário que alguém mais experiente, em geral
mais velho, se disponha a demonstrar, a acompanhar a realização de tarefas,
sem interferir, a aprovar o resultado ou a exigir que seja refeita” (2003:186).
A dimensão de educação em muitas culturas e também na africana tem
um sentido de constituição da pessoa e, enquanto tal, é um processo que per-
mite aos seres humanos tornar-se pessoas que saibam atuar em sua sociedade
e que possam conduzir a própria vida. Compreendendo que esse “tornar-se
pessoa” não tem sentido dissociado da compreensão do que somos, porque
não vivemos sozinhos, porque estamos em sociedade.
O princípio da solidariedade que esteve presente na história de resistência
e sobrevivência do povo negro no Brasil também precisa ser considerado.
Não existe aprendizagem sem solidariedade, sem troca, sem afeto, sem cui-
dado, sem implicação consciente e responsável dos adultos que estão à frente
desse processo. Romão (2003) nos chama a atenção para a importância da
pesquisa e do estudo por parte dos(as) educadores/as no processo de cons-
trução de uma educação anti-racista:
Ao olhar para alunos que descendem de africanos, o professor com-
prometido com o combate ao racismo deverá buscar conhecimentos
sobre a história e cultura deste aluno e de seus antecedentes. E ao fazê-
lo, buscar compreender os preconceitos embutidos em sua postura,
linguagem e prática escolar; reestruturar seu envolvimento e se com-
prometer com a perspectiva multicultural da educação (2001: 20).

41
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Nas instituições educacionais, o papel das educadoras está relacionado


também à busca de formas que possibilitem atuar para romper com os pre-
conceitos, por meio de pesquisas, levantamentos, assim como do contato
com os familiares das crianças, para permitir maior conhecimento da história
de vida das mesmas.

2.3 A relação com as famílias

Um modo pelo qual é possível ensinar e aprender sobre as demonstrações


de cuidados é por meio da leitura de contos, histórias e mitos africanos (ver
sugestão de atividades).
Existe uma história que guarda profundos ensinamentos a respeito da
IDPtOLDGDUHODomRGDVPmHVFRPVHXVÀOKRVGRVHQWLPHQWRGDUHVSRQVDEL-
lidade pelo conforto e segurança dos mesmos. É a história de Euá11, aquela
TXHVHWRUQRXIRQWHGHiJXDSDUDVDFLDUDVHGHGHVHXVÀOKRV(XipXPDPmH
SURYHGRUDSURWHWRUDTXHWHPRVÀOKRVHPVXDFRPSDQKLD0mHTXHID]H
SURPHWHFRPLGDJRVWRVDDRVÀOKRVPmHTXHWUDEDOKDHPDQWpPDJXDUGDGH
VXDVFULDQoDVTXHUH]DSDUDTXHVHXVÀOKRVVHMDPSURWHJLGRVHVDOYRV0mH
TXHVHWUDQVIRUPDHPIRQWHGHYLGDTXHVDOYDRVÀOKRVGDPRUWH$IDPtOLDGH
(XipXPDIDPtOLDDOHJUHIHOL]PmHHÀOKRVEULQFDPHVRQKDP6RIUHPMXQWRV
e buscam/esperam por soluções juntos.
É necessário que a relação das instituições de Educação Infantil com as
famílias seja pautada primeiramente pela compreensão da diversidade de or-
ganização das famílias brasileiras. Organizações essas que, em sua maioria,
nas populações pobres e negras são dirigidas por mulheres; mulheres como
(XiTXHPXLWDVYH]HVQmRWrPFRPTXHPGHL[DURVÀOKRVSDUDSRGHUWUDED-
lhar; mulheres que às vezes se desesperam por não ter como dar comida aos
ÀOKRVPXOKHUHVIRUWHVHDRPHVPRWHPSRIUDJLOL]DGDVSRUUHODo}HVTXHDV
colocam em lugar de inferioridade.
A exemplo de outros grupos étnico-raciais, entre a população negra, o
sentimento de pertencer a uma família é muito valorizado. A família é um
HVWHLRSRUWRVHJXURTXHGiVHJXUDQoDSDUDHQIUHQWDUDVGLÀFXOGDGHVSUySULDV
do país em que vivemos. Vidas muitas vezes marcadas por uma luta incansá-

11
Euá ou Ewá é uma divindade africana das águas, celebrada entre os Yorubá junto com as Iyabás
RUL[iVIHPLQLQRV (ZipPXOKHUJXHUUHLUDGHÀQLGDJRVWDGHFXOWLYDUDQDWXUH]DOXWDSRUVHXVLGHDLV
de bem e progresso comunitários. Enfrenta qualquer obstáculo, jamais abandona uma luta. Sabe
enfrentar os homens sem medo (SIQUEIRA, 1995:41).

42
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

vel pela sobrevivência, pelo medo da violência, pelo medo da fome, da falta
de moradia e de trabalho.
Foi e é na família constituída por laços de sangue ou por laços de iden-
tidade que a população negra12 viveu e resistiu à escravidão, ao racismo, a
exploração, à perseguição. As famílias desfeitas no período escravista deram
lugar a outras famílias que uniam povos de regiões diferentes da África, com
línguas e crenças diferentes, numa união pela saudade da terra, da casa, da
família, como reunir-se para sobreviver, resistir e lutar com laços familiares
UHFRQVWUXtGRVHUHVVLJQLÀFDGRV13.

2.4 A família brasileira hoje

0DPDÉIULFD DPLQKDPmH
É mãe solteira
(WHPTXHID]HUPDPDGHLUDWRGRGLD
$OpPGHWUDEDOKDU
&RPRHPSDFRWDGHLUDQDV&DVDV%DKLD
Chico César

$SDUWLUGDOHWUDGH0DPDÉIULFDSRGHPRVUHÁHWLUVREUHDVLWXDomRGH
muitas famílias brasileiras que não podem ser enquadradas em modelos uni-
versais, “perfeitos” e “corretos”. São várias as possibilidades de se constituir
famílias, e a diversidade que permeia a existência dos seres humanos também
HVWDUiUHÁHWLGDQDVRUJDQL]Do}HVIDPLOLDUHV
0XLWDVIDPtOLDVEUDVLOHLUDVVmRFKHÀDGDVSRUPXOKHUHVTXHFRPRVSUy-
SULRVPHLRVJHUDOPHQWHDFXPXODQGRMRUQDGDVGHWUDEDOKRFULDPVHXVÀOKRV
VR]LQKDVjVYH]HVFRQÀDQGRDVDLQVWLWXLo}HVGH(GXFDomR,QIDQWLOHVSHUDQ-
do um atendimento que promova educação, cuidados, segurança e conforto.
Tanto as instituições de Educação Infantil quanto as famílias podem pro-
SRUFLRQDUPRPHQWRVGHUHÁH[mRVREUHDVPXGDQoDVTXHRFRUUHPQDVIRUPDV
GHRUJDQL]DomRIDPLOLDUSHUPLWLQGRPDLRUFRQIRUWRHFRQÀDELOLGDGHSDUDDV
crianças, evitando-se comparações negativas e preconceituosas.
A creche não pode ser considerada como um espaço que irá substituir a
família, mas uma ação complementar à família e à comunidade. Nesta pers-
pectiva, estabelecer uma relação estreita com as famílias das crianças possi-
bilita o diálogo e a construção de caminhos para que a criança se desenvolva
em sua plenitude.
12
Sobre famílias negras ver: Giacomini, 1988; Barbosa, 1983; Amaral, 2001; Mott, 1979; Leite, 1996.
13
A esse respeito ver texto de quilombos.

43
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A relação entre instituição de Educação Infantil e família não existe sem


FRQÁLWRVPDVSUHFLVDVHUHQFDUDGDHUHGLPHQVLRQDGDQDSHUVSHFWLYDGRGLi-
logo permanente, por meio da escuta sensível e acolhedora que busca com-
preender a história de vida das crianças no atendimento de suas necessida-
GHV 4XDQGR DV SURÀVVLRnais da Educação Infantil se dispõem a conhecer
as crianças com as quais trabalham, inevitavelmente terão de conhecer suas
famílias, respeitando suas formas de organização.
Na relação com as famílias, alguns equívocos precisam ser superados. Um
deles diz respeito à idéia de que as famílias pobres e negras não têm conhe-
FLPHQWRTXHQmRVDEHPHQVLQDUVHXVÀOKRVTXHQmRVHSUHRFXSDPFRPD
educação dos mesmos, que não têm noções de higiene, que não sabem como
alimentá-los, que são supersticiosos e que necessitam de alguém de fora da
IDPtOLDTXHRVHQVLQHDHGXFDUVHXVÀOKRV
Se o aprender ocorre por toda a vida, sempre se aprende sobre várias coi-
sas, em vários tempos, espaços e ambientes. Nas comunidades tradicionais,
principalmente, os ensinamentos são transmitidos de geração a geração pelos
familiares, pela comunidade, pela escola, sobretudo por meio da oralidade,
da arte de contar histórias que trazem diferenciadas visões de mundo, lições
para a vida, lembranças para a memória coletiva. Nessas culturas valoriza-se
aquele que consegue armazenar histórias e fatos em sua memória. Em muitas
culturas, especialmente as tradicionais africanas, os guardiões da história em
diversas regiões da África desenvolvem grande capacidade de memorizar o
maior número de informações a respeito da linhagem de uma família, da or-
ganização política de um grupo, das funções de determinadas ervas utilizadas
para a cura de doenças, da preservação das tradições: são os griots, contadores
de história, guardiões da memória.
6RPRVKHUDQoDGDPHPyULD
7HPRVDFRUGDQRLWH
)LOKRVGHWRGRRDoRLWH
)DWRUHDOGHQRVVDKLVWyULD
Jorge Aragão

Muito do que é tido como supersticioso carrega conhecimentos mile-


QDUHVHLYDGRVGHFLHQWLÀFLGDGH$VVLPWUDWDUDOJXPDVGRHQoDVFRPHUYDVH
benzeduras faz parte da cultura de muitos povos no Brasil, principalmente os
descendentes de indígenas e africanos e aqueles que vivem no meio rural. A
sabedoria dos mais velhos é recriada nos lares, nas irmandades, nos terreiros,
nas igrejas, nas aldeias. Sempre reivindicamos o respeito aos mais velhos, e
a tradição africana nos ensina esse princípio há muito tempo. Se essas ex-

44
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

periências, vivências, conhecimentos adentrarem as rodas de conversas com


as crianças, os momentos de confraternização família/escola, as pesquisas
escolares, entre outros, poderão contribuir para o alargamento, não só dos
conhecimentos adquiridos, mas para uma convivência ancorada no respeito à
diversidade. A sabedoria popular é fonte inesgotável de conhecimento.

2.5 Religiosidade e Educação Infantil

$/HLGH'LUHWUL]HVH%DVHVGD(GXFDomR1DFLRQDO/'%  DÀUPDTXH


a educação escolar é laica, sendo da responsabilidade da família (entendendo
família exatamente como o texto aborda) a formação religiosa da criança. No
entanto, muitas vezes a religião se apresenta na escola como um elemento
doutrinário ou inibidor de diferentes experiências no contexto escolar. Fato
pTXHHPPXLWDVHVFRODVGHHGXFDomRLQIDQWLOH[LVWHPVpULRVFRQÁLWRVRULJLQD-
dos por esta questão, como as festas juninas, para citar um exemplo. Muitos
alunos e alunas são impedidos pela família de participar destas festividades,
em função da conotação religiosa que o evento traz (homenagem a santos
católicos). Em conseqüência, limitam seu aprendizado, considerando a varie-
dade de possibilidades de aprendizagem que o festejo proporciona.
Percebemos que esta e outras festividades cristãs, apesar das contradições,
possuem certa respeitabilidade (ou tolerância) por parte de quase todos(as),
independentemente das religiões que professem. No entanto, o mesmo não
se aplica às manifestações religiosas de matriz africana. As crianças descen-
GHQWHVGHIDPtOLDVTXHSURIHVVDPHVVDVUHOLJL}HVGLÀFLOPHQWHVHPDQLIHVWDP
neste aspecto, e muito menos são respeitadas quando da discussão do respei-
to à diversidade religiosa.
Considerando que o próprio sentido da religião é o de promover a paz,
entendemos que as atividades pedagógicas também devem se voltar para
esta perspectiva e favorecer a possibilidade do diálogo, do respeito e da va-
lorização das diferentes culturas que compõem a formação da sociedade
brasileira.

2.6 A Socialização da Criança na Educação Infantil


Segundo os dados do Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil (RCNEI) (BRASIL, 1998), a auto-estima que a criança vai desenvol-
vendo é, em grande parte, interiorização da estima que se tem por ela e da
FRQÀDQoDGDTXDOpDOYR'LVWRUHVXOWDDQHFHVVLGDGHGHRDGXOWRFRQÀDUDFUH-

45
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ditar e manifestar essa crença na capacidade de todas as crianças com as quais


trabalha. A postura corporal, somada a outras linguagens do adulto, transmite
LQIRUPDo}HVjVFULDQoDVSRVVLELOLWDQGRIRUPDVSDUWLFXODUHVHVLJQLÀFDWLYDVGH
estabelecer vínculos.
)DODUHPDXWRHVWLPDGDVFULDQoDVVLJQLÀFDFRPSUHHQGHUDVLQJXODULGDGH
de cada uma em seus aspectos corporais, culturais, étnico-raciais. As crianças
possuem uma natureza singular que as caracteriza como seres que sentem e
pensam o mundo de um jeito muito próprio. Dependendo da forma como é
entendida e tratada a questão da diversidade étnico-racial, as instituições po-
dem auxiliar as crianças a valorizar sua cultura, seu corpo, seu jeito de ser ou,
pelo contrário, favorecer a discriminação quando silenciam diante da diver-
sidade e da necessidade de realizar abordagens de forma positiva ou quando
silenciam diante da realidade social que desvaloriza as características físicas
das crianças negras.
Algumas atitudes invasivas por parte das educadoras (e até presente em
normas institucionais), sob argumentações da higiene, impõem formas esté-
ticas padronizadas de apresentar o cabelo das crianças (para não pegar pio-
lho, por exemplo). Aos meninos são sugeridos cabelos bem aparados, senão
raspados. Muitas vezes, não é permitido o uso de bonés. Sabemos que vários
povos, inclusive os africanos, utilizam diversos ornamentos como turbantes,
ÀOiV14, chapéus, cotidianamente, sem restrições. Também no meio rural as
mulheres usam lenços, homens usam chapéus.
Para meninas, os cabelos lisos são positivamente referenciados nos pa-
GU}HVHXURSHXVHPXLWDVIDPtOLDVQHJUDVLQÁXHQFLDGDVSRUHVVHSDGUmRH[-
põem suas crianças pequenas a variadas formas de alisamentos como os quí-
micos que podem, inclusive, prejudicar a sua saúde e sua auto-imagem, e
DLQGDGDQLÀFDUVHXVFDEHORV
Como a criança gostará de si mesma se traz em seu corpo características
desvalorizadas socialmente? De acordo com Gomes:
1R%UDVLOIRLFRQVWUXtGRDRORQJRGDKLVWyULDXPVLVWHPDFODVVLÀFD-
tório relacionado com as cores das pessoas. O cabelo, transformado
pela cultura como sinal mais evidente da diferença racial (...) nesse
processo, as cores “branca” e “preta” são tomadas como representan-
tes de uma divisão fundamental do valor humano – “superioridade”/
“inferioridade” (2003:148).

14
Espécie de gorro africano, feito geralmente de tecido ornamentado com pinturas e/ou bordados.

46
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Nessa perspectiva, inferioridade associa-se a feiúra e superioridade à be-


leza, reforçando-se os estereótipos negativos com relação àqueles que fogem
aos padrões considerados ideais.
A criança que vivencia situação semelhante de discriminação com relação
ao seu corpo pode não construir uma imagem positiva de si mesma. Os refe-
renciais da criança negra a respeito de seu corpo, cor da pele, tipo de cabelo
GHYHPVHUPRGLÀFDGRVSDUDTXHVHMDDFHLWDSRUFROHJDVHHGXFDGRUDVGHVFRQ-
siderando-se assim a sua história, sua cultura. De acordo com Romão, muitas
crianças, para se tornarem alunos(as) ideais, negam constantemente seus re-
ferenciais de identidade, de diferença, que em muitas situações recebem uma
conotação de desigualdade. Essas diferenças são tratadas no ambiente escolar
como se fossem feiúra e/ou desleixo. As crianças que lidam com situações de
QHJDomRGHVXDLGHQWLGDGHSRGHUmRSDVVDUSRUPXLWRVFRQÁLWRVTXHSRGHP
comprometer sua socialização e aprendizagem.
Não podemos desconsiderar o papel da mídia de forma geral e da te-
levisão como formadora de identidade. A rara presença de pessoas negras
como protagonistas de programas infantis é um exemplo de como através
da invisibilidade a mídia demarca seus preconceitos, contribuindo para que
tanto crianças negras como brancas não elaborem referenciais de beleza, de
humanidade e de competência que considerem a diversidade. Existe destaque
de pessoas brancas na mídia, que normalmente apresenta pessoas com ca-
belos loiros e olhos claros (azuis ou verdes). Esse tipo de beleza chega a ser
reverenciado como padrão ideal a ser alcançado e/ou desejado.
Crespo cabelo trançado com a mais pura graça
&ULDQGRPDLVEHORVFDPLQKRVQDFDUDSLQKD
Márcio Barbosa

Faz-se necessário que tanto as educadoras quanto as crianças e seus fa-


miliares tenham acesso aos conhecimentos que explicam a existência das di-
ferentes características físicas das pessoas, os diferentes tons de cor da pele,
as diferentes texturas dos cabelos e formato do nariz, buscando valorizar tais
diversidades.
Outra forma de possibilitar uma visão positiva a respeito dos traços físi-
cos das pessoas é trazer informações e histórias sobre os penteados em diver-
sas culturas. Por exemplo, fazer tranças nos cabelos faz parte da tradição da
população negra desde tempos antigos no continente africano, assim como
em diversas regiões do Brasil. A maioria das famílias negras adota esses pen-
WHDGRVFULDQoDVMRYHQVDGXOWRVKRPHQVHPXOKHUHV([LVWHXPDLQÀQLGDGH

47
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

de tipos de tranças. Esses penteados mais recentemente têm se estendido


para outros grupos não-negros, principalmente jovens. Valorizar esse aspec-
to da cultura trazido pelas crianças negras, supõe observação cuidadosa por
parte das educadoras.
O mesmo cuidado deve ser dispensado às questões relativas à cor da pele;
daí informações sobre a melanina, que dá coloração à pele, devem ser estuda-
das pelas crianças e compartilhadas com os adultos.

Maternidade (Oxum)
acervo do artista

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51
Brincar, interagir
Coleção Particular

Ensino Fundamental
Brincar, interagir
Coleção Particular

ENSINO FUNDAMENTAL
Coordenação: Rosa Margarida de Carvalho Rocha e Azoilda Loretto da Trindade1

Vá em busca de seu povo.


Ame-o
Aprenda com ele
&RPHFHFRPDTXLORTXHHOHVDEH
&RQVWUXDVREUHDTXLORTXHHOHWHP
Kwame N´Krumah

Introdução

A intenção deste documento é a de subsidiar o trabalho dos(as) agentes


pedagógicos(as) escolares na construção de uma pedagogia anti-racista.
Para tal, desejamos apresentar orientações didático-pedagógicas em relação à
inserção do tema no Ensino Fundamental. Torna-se, pois, importante, expli-
citar os compromissos que este nível de ensino poderá assumir, articulando
seus objetivos com o atual referencial teórico sobre a diversidade, respeito
jV GLIHUHQoDV H HVSHFLÀFDPHQWH j HGXFDomR GDV UHODo}HV pWQLFRUDFLDLV H GH
gênero.
&RQVLGHUDPRVUHOHYDQWHDSUHVHQWDUSULQFtSLRVVLJQLÀFDWLYRVHIXQGDPHQ-
WDLVTXHSRVVDPRULHQWDURV DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRTXDQWRDRWUDWRSR-
sitivo do tema, bem como variadas sugestões para se construir um referencial
curricular no qual alguns elementos constitutivos da cosmovisão africana,
em grande parte desconhecida no campo educacional brasileiro, compareçam
como base, a exemplo da ancestralidade, circularidade, solidariedade, orali-
dade, integração, coletividade, etc.. Em outras palavras, desejamos inspirar
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

as educadoras e os educadores à efetivação de uma cultura escolar cotidiana


de reconhecimento dos valores civilizatórios africanos como possibilidade
pedagógica na construção dos conhecimentos.
Estamos conscientes dos limites impostos pela natureza do trabalho apre-
sentado, diante do propósito de instaurar na escola, ambiente propício ao res-
peito às diferenças e à valorização da diversidade, a história e a cultura negras
com a dignidade que lhes é devida. É uma proposta que se apresenta desejosa
de diminuir a distância entre o discurso bem intencionado e o que efetiva-
mente se deve e se pode fazer, isto é, entre o discurso e a prática cotidiana.
3RUPHLRGDVUHÁH[}HVDSUHVHQWDGDVDVHJXLUDFUHGLWDPRVSRGHUFRQWUL-
buir para a construção de uma educação que seja geradora de cidadania; que
atenda e respeite as diversidades e peculiaridades da população brasileira em
questão, que respeite e observe o repertório cultural da população negra e o
relacione com as práticas educativas inclusivas existentes.
Visualizar as diferenças e articular as práticas pedagógicas a elas não somen-
te é uma forma de respeito humano, mas uma forma de promover a igualda-
GH&DEHQHVWHPRPHQWRFRQVWUXWLYRGHUHÁH[mRHGHEDWHTXHVWLRQDUPRV
• Em que ponto a escola se encontra no itinerário de construir uma edu-
cação que valorize e respeite as diferenças?
• Que tipo de diálogo a escola tem estabelecido com as diferentes cultu-
ras, em especial a cultura negra, presentes no universo escolar?
• Qual tem sido o posicionamento da escola diante das relações étnico-
UDFLDLVHVWDEHOHFLGDVHPVHXLQWHULRUTXHWrPGLÀFXOWDGRDFRQVWUXomR
positiva da identidade racial e o sucesso escolar do aluno negro?
• Qual a importância que a escola trm dado às recentes estatísticas que
GHPRQVWUDPDVGLÀFXOGDGHVHQFRQWUDGDVSHORVHJPHQWRQHJURHVSHFLDO-
mente no campo da educação?
• As instituições escolares têm se ser vido destas estatísticas em seus mo-
mentos de avaliação para promover reformulações em suas práticas
pedagógicas?

1. A ESCOLA — CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA

Precisamos compartilhar uma visão de escola como ambiente que pode


ser de felicidade, de satisfação, de diálogo, onde possamos de fato desejar
HVWDU8POXJDUGHFRQÁLWRVVLPPDVWUDWDGRVFRPRFRQWUDGLo}HVÁX[RVH

56
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

UHÁX[RV/XJDUGHPRYLPHQWRDSUHQGL]DJHPWURFDVGHYLGDGHD[p HQHU-
gia vital). Lugar potencializador da existência, de circulação de saberes, de
constituição de conhecimentos. Lugar onde, a exemplo das culturas africanas
Yorubá, Bantu e outras, reverencia-se a existência, a vida das pessoas, que
independentemente de faixa etária, de comportamento, de saúde, etc., pode
ser vista como divina.

1.1 A escola e o currículo

No que se refere à idéia de currículo, é importante entender que exis-


tem diferentes visões para sua construção e encaminhamento. Em nossa vi-
são o entendemos como mola-mestra para o processo de sensibilização de
alunos(as) para o conhecimento e exercício de seus direitos e deveres como
cidadãs/ãos. O trabalho docente pode, então, orientar-se para além das disci-
plinas constantes do currículo do curso, mas também na exposição e discus-
são de questões éticas, políticas, econômicas e sociais.
Entendemos que, para dar visibilidade a esta proposta educativa, é funda-
mental a participação de professores/as na escolha, seleção e organização dos
temas que podem integrar um planejamento curricular, bem como, e aqui está
RXWURGHVDÀRWRGDDFRPXQLGDGHHVFRODU
Sabemos que existe um currículo manifesto que está presente nos planos
de ensino, curso e aula, mas visceralmente articulado está o currículo oculto
que representa um “corpus ideológico” de práticas que não estão explícitas
no currículo manifesto, formalizado. Nesta relação manifesto/oculto, podem
circular idéias que reforçam comportamentos e atitudes que implícita ou ex-
SOLFLWDPHQWHSRGHPLQWHUIHULUDIHWDULQÁXHQFLDUHRXSUHMXGLFDUDDSUHQGL]D-
gem escolar dos/das discentes. Estas podem remeter a preconceitos, intole-
râncias e discriminações enraizadas e que estão ligados às relações de classe,
gênero, orientação sexual, raça, religião e cultura.
Vivemos num país com grande diversidade racial e podemos observar
que existem muitas lacunas nos conteúdos escolares, no que se refere às re-
IHUrQFLDVKLVWyULFDVFXOWXUDLVJHRJUiÀFDVOLQJtVWLFDVHFLHQWtÀFDVTXHGrHP
embasamento e explicações que possam favorecer não só a construção do
conhecimento, mas também a elaboração de conceitos mais complexos e am-
plos, contribuindo para a formação, fortalecimento e positivação da auto-es-
tima de nossas crianças e jovens.
Segundo Silva (1995), no que se refere aos currículos escolares, chamou-
se a atenção para a falta de conteúdos ligados à cultura afro-brasileira que

57
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

estejam apontando para a importância desta população na construção da


identidade brasileira, não apenas no registro folclórico ou de datas comemo-
rativas, mas principalmente buscando uma revolução de mentalidades para a
compreensão do respeito às diferenças.
Há todo um debate sobre multiculturalismo (Gonçalves e Silva 1998) e
pluralidade cultural (PCNs, 1997) em que se discute o papel de diferentes
povos no contexto cultural e educacional. Nesta direção, indagamos: como a
comunidade escolar pode se organizar e estruturar para fomentar esta discus-
são e alinhavar estratégias educativas?

1.2 O ensino e o anti-racismo

A questão do racismo deve ser apresentada à comunidade escolar de for-


ma que sejam permanentemente repensados os paradigmas, em especial os
eurocêntricos, com que fomos educados. Não nascemos racistas, mas nos
tornamos racistas devido a um histórico processo de negação da identidade
HGH´FRLVLÀFDomRµGRVSRYRVDIULFDQRV(DOXWDFRQWUDRUDFLVPRHPQRVVR
SDtVYHPSRVVLELOLWDQGRTXHVHMDPGLVFXWLGRVWHPDVVLJQLÀFDWLYRVSDUDDFRP-
preensão de todo esse processo, mostrando a resistência dos africanos e seus
descendentes, que não se submeteram à escravidão, que se rebelaram e que
conseguiram manter vivas as suas tradições culturais.
Estabelecer um diálogo com este passado por meio de pesquisas, de en-
contros com a ancestralidade, preservada ou reinventada, é fundamental no
sentido de não hierarquizarmos, idealizarmos ou subestimarmos as diversas
PRWLYDo}HVPDQLIHVWDo}HVVyFLRSROtWLFDVHFXOWXUDLVTXHGHOHÀ]HUDPSDUWH
Entendermos que não existe uma única forma de se estar no mundo,
PDVP~OWLSODVIRUPDVTXHYmRVHWHFHQGRFRQIRUPHRVGHVDÀRVSURSRVWRV
por nós, pelos outros e pela nossa interação com e sobre a natureza. Neste
sentido, podemos nos apropriar, de fato e de direito, dos instrumentos que
nos permitam perceber estas múltiplas formas e mais, que esta apropriação
QmRVLJQLÀTXHH[SURSULDomRPDVVLPUHFULDomRUHLQYHQomRUHGHVFREHUWDH
que nos leve a equacionar o nosso ser e estar no mundo em suas múltiplas
dimensões.
Cabe estudar as lutas de resistência a estes processos históricos, de for-
ma a que não continuemos reproduzindo os esquemas criados pelo modo
capitalista de pensar e que vislumbremos outras forças capazes de nos
mobilizar.

58
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

1.3 O saber escolar e a interdisciplinaridade

O saber escolar é produto de múltiplas determinações, diálogos, atritos,


FRQIURQWRVGLVFLSOLQDUHVRXVHMDFRQÁLWRVWHQV}HVHFRQWUDGLo}HV1R(QVL-
no Fundamental tem-se que trabalhar todas as áreas de conhecimento. É exi-
JLGRDRDSURIHVVRUDTXHWHQKDUHÁH[mRWHyULFDTXHUHVSDOGHVXDVHVFROKDV
metodológicas, conteúdo disciplinar socialmente válido, práticas pedagógi-
cas criativas e qualitativas. No cotidiano escolar estamos sempre às voltas
FRPGLiULRVKRUiULRVGLVFLSOLQDHPHWRGRORJLDV2WHPSRQmRpVXÀFLHQWH
para planejarmos e avaliarmos nossas estratégias. A troca de experiências,
fundamental à proposta interdisciplinar esbarra-se nesta visão ocidental do
tempo. Este elemento disciplinador, mecanizado e construído socialmente
TXHGLÀFXOWDQRVVDVDo}HVTXHHPJHUDOVHPSUHIDOWDQDKRUDGHVLVWHPDWL-
zarmos nossos sonhos e projetos, deve ser levado em conta ao construirmos
alternativas.
Pensar propostas de implementação da Lei nº. 10.639/2003 é focalizar
e reagir a estruturas escolares que nos enquadram em modelos por demais
rígidos. Atentarmos para a interdisciplinaridade nesta proposta é estarmos
abertos ao diálogo, à escuta, à integração de saberes, à ruptura de barreiras, às
segmentações disciplinares estanques.
A educação brasileira poderá lançar mão de alguns princípios fundantes,
FRQFHSo}HVÀORVyÀFDVGHPDWUL]DIULFDQDUHFULDGDVQDVWHUUDVEUDVLOHLUDVLQFRU-
porando-os como constituintes do processo educativo, permanecendo todo o
currículo da prática escolar. Desta forma, construir e constituir uma pedagogia
que possa, realmente, contemplar os valores civilizatórios brasileiros.

1.4 Humanidade e alteridade

GRVWRGHVHUJHQWHSRUTXHLQDFDEDGRVHLTXHVRXXP
VHUFRQGLFLRQDGRPDVFRQVFLHQWHGRLQDFDEDPHQWRVHL
TXHSRVVRLUPDLVDOpPGHOH
Paulo Freire
É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os
sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no
respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres
que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éti-
cos. (...) Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é dever por
mais que reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar (FREI-
RE, 1999, p. 67).

59
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A sociedade democrática brasileira ainda tende de forma bastante siste-


mática a colocar/situar negros e negras num lugar desigual ante os demais
grupos étnico-raciais e culturais construtores da nossa brasilidade. Quando o
tema enfocado em discussão é a produção de bens culturais, por que a espe-
FLÀFLGDGHpWQLFRUDFLDOHFXOWXUDOQHJUDDGTXLUHROXJDUGHVXEDOWHUQLGDGHRX
mesmo do exótico no outro extremo?
A hierarquização das raças, etnias e culturas legou para negros e negras
RHVSDoRGDVXEDOWHUQLGDGHOHYDQGRDVVLPHPWHUPRVGHVLJQLÀFDomRSDUD
uma interpretação negativa construída em meio a imagens que estigmatiza-
ram o/a africano/a, tratando-o/a como sinônimo de escravizado/a, pois ao
pensarmos em africanos(as), somente os(as) incorporamos ao processo his-
tórico de construção da sociedade brasileira na perspectiva da escravidão. É
fato que não podemos esquecer que os povos africanos foram, por mais de
três séculos, escravizados no Brasil. Contudo, não podemos esquecer tam-
bém que, apesar das condições adversas, as expressões culturais africanas
QmRVXFXPELUDPHODVVHÀ]HUDPHVHID]HPSUHVHQWHQDIRUPDomRGDQRVVD
brasilidade.

1.5 Cultura negra e corpo

Na cultura negra o corpo é fundamental. Sobre o corpo se assenta toda


XPDUHGHGHVHQWLGRVHVLJQLÀFDo}HV(VVHQmRpDSDUWDGRGRWRGRSHUWHQFH
ao cosmos, faz parte do ecossistema: o corpo integra-se ao simbolismo cole-
tivo na forma de gestos, posturas, direções do olhar, mas também de signos e
LQÁH[}HVPLFURFRUSRUDLVTXHDSRQWDPSDUDRXWUDVIRUPDVSHUFHSWLYDV 62-
DRÉ, 1996, p. 31).
Para este autor, o corpo humano deve ser entendido em relação a outros
corpos, de animais, pedras, árvores, e “é ao mesmo tempo sujeito e objeto”
(LGHP p. 31). Assim sendo, partilha do cosmos como uma interseção entre o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos e da divindade. O corpo é a repre-
sentação concreta do território em movimento. Ao contrário de uma percep-
ção de mundo na qual a alma é onde reside a força e a possibilidade de conti-
nuidade, para uma cultura negra a força está no corpo, não existe essa idéia de
uma força interior alavancada pela ação da fé. Toda possibilidade encontra-se
no corpo potente que procura suas mediações nas relações que constitui no
cosmos, daí o compartilhamento como práxis ser uma questão fundamental
para se entender a dinâmica de uma cultura negra no Ocidente.

60
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Todos trocam algo entre si, homens, mulheres, árvores, pedras, conchas.
Sem a partilha, não há existência possível1. Faz-se necessário pensar que a
cultura negra não está marcada por uma necessidade de conversão. Existe um
sentido de agregação que não gira em torno de uma verdade única. Aqueles
que crêem em outras possibilidades de verdade ou fé são aceitos em rituais
públicos. Nesse sentido pode se apontar o fato de que, nas festas havidas em
comunidades de matriz africana, as pessoas que chegam não são imaginadas
como necessariamente adeptas da religião, mas sim pessoas que o fazem por
diversos motivos, e por isso são aceitas independentemente de suas convic-
ções. Uma visão de mundo negra implica a possibilidade de abertura para
o mundo, para a vida e principalmente para o outro. Por exemplo, em uma
“roda de capoeira”, todos que compartilham os códigos são aceitos, desde
que se coloquem como parceiros(as) e respeitem a hierarquia. Os quilombos,
que para além da restrita visão de refúgios de escravizados(as), tornaram-se
conhecidos por abrigar vários segmentos subalternos que desejassem romper
com as malhas da sociedade escravista, propiciando a vivência de outra orga-
nização social.

1.6 Memória, história e saber

2FtUFXORpFLUDQGDGHFULDomR 
eRVtPERORGDKRUL]RQWDOLGDGHQDVUHODo}HVKXPDQDV
Eduardo Oliveira

Pensar o ser humano, a humanidade, é prioritariamente, na nossa concep-


ção, discutir sua memória e como ela se articula no real-histórico. Entretanto,
parte-se aqui, de um pressuposto de que a memória é sempre o resultado de
uma ação do sujeito histórico sobre seu próprio passado, uma ação especu-
lativa, haja vista que não existe uma memória que se coloque como uma es-
sencialidade, como uma relação imutável e congelada no tempo. A memória
implica sempre uma escolha, uma seleção que se processa a partir de nossas
referências individuais e coletivas; muitas das escolhas que são feitas não tra-
zem em seu bojo uma explicação, simplesmente escolhemos, simplesmente
selecionamos.
1
Decorre dessa visão de mundo a importância dada ao orixá Exu no interior do sistema africano
Yorubá e afrodescendente, pois é ele o responsável pelo movimento. Sem Exu o mundo seria estático,
QmRKDYHULDYLGD$TXLYDOHXPDSHTXHQDH[SOLFDomRTXDQWRDRVLJQLÀFDGRGH([XHQTXDQWRFRQFHLWR
TXHQRVGLUHFLRQDDRFRWLGLDQRVXDVFRQWUDGLo}HVVHXVÁX[RVHUHÁX[RVDFRPXQLFDomRHQmRQH-
cessariamente uma entidade religiosa, mas um princípio dinâmico de diálogo e encontro entre seres
humanos e a natureza como um todo.

61
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Ao professor/a educador/a, tendo a memória e a história como pers-


pectiva, cabe o ofício de selecionar, sistematizar, analisar e contextualizar,
em parceria com seus/suas alunos(as) e quiçá, toda a comunidade escolar,
o que pode ser considerado como um fato histórico, o que é relevante para
um entendimento do processo histórico de reconstrução da memória que se
registra nos livros e orienta uma agenda educacional.
Cabe pensar, por exemplo, uma outra agenda que não aponte somente na
direção de uma história do Ocidente. Importante destacar, igualmente, que
RFRQFHLWRGH2FLGHQWHVHIXQGDPHQRVHPXPOLPLWHJHRJUiÀFRGRTXHHP
padrões civilizatórios. Em outras palavras, a noção de Ocidente que se pensa
não é aquela que se situa a oeste do meridiano de Greenwich, mas uma per-
cepção que excede esses limites e ocupa todo o globo.
Busca-se então um repertório educacional que caminhe em direção a um
conceito de ser humano que produz história não a partir de grandes sagas
e heróis, mas a partir de relações comunitárias vividas e vivenciadas pelos
grupamentos humanos. Neste sentido, para uma ação desta envergadura se
faz necessário um primeiro passo, que é o de promover o reconhecimento
da igualdade sem limite e profundamente radical entre uma cultura africana e
afrodescendente e uma branca, eurocêntrica, ocidental.
$ KLVWyULD D JHRJUDÀD DV DUWHV H D OLWHUDWXUD DIULFDQDV H DIUREUDVLOHLUD
deverão ser incluídas e valorizadas, juntamente com a participação de outros
grupos raciais, étnicos e culturais, adaptadas aos ciclos e às séries do Ensino
Fundamental. Além disso, a escola pode se relacionar com a sociedade em
TXHHVWiVLWXDGDTXHPXLWDVYH]HVWHPXPDSDUWLFLSDomRQHJUDVLJQLÀFDWLYD
ou até mesmo majoritária.
Enfatizar as relações entre negros, brancos e outros grupos étnico-raciais
QR(QVLQR)XQGDPHQWDOQmRQRVOHYDQHFHVVDULDPHQWHDFRQÁLWRVRXLPSDVVHV
Há a possibilidade de mediações, de acertos, que permitam uma aproximação
de interesses ao mesmo tempo comuns e não-comuns, mas que se fundem
na negociação. Portanto, não se pretende pensar uma sociedade como idílica,
KDUP{QLFDHVHPFRQÁLWRXPDVRFLHGDGHTXHQHJXHDVGHVLJXDOGDGHVVRFLDLV
raciais e regionais. Além disso, o que se busca não é simplesmente a troca de
uns heróis e divindades por outros, mas uma diretriz educacional que possi-
bilite uma pluralidade de visões de mundo. Um retorno à metáfora do círculo,
ou seja, uma forma de conciliação possível e humana em que a voz, o escutar
e ser escutado, a presença de todos e todas é condição fundamental.
E aqui vale uma pequena abordagem relativa à circularidade. Para a cultura
negra (no singular e no plural), o círculo, a roda, a circularidade é fundamento,

62
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

a exemplo das rodas de capoeira, de samba e de outras manifestações cultu-


rais afro-brasileiras. Em roda, pressupõe-se que os saberes circulam, que a
KLHUDUTXLDWUDQVLWDHTXHDYLVLELOLGDGHQmRVHFULVWDOL]D2ÁX[RRPRYLPHQWR
é invocado e assim saberes compartilhados podem constituir novos sentidos
HVLJQLÀFDGRVHSHUWHQFHPDWRGRVHWRGDV

2. OS ATORES DO ENSINO FUNDAMENTAL

Quando pensamos em quem é a/o estudante do Ensino Fundamental,


pensamos em crianças e adolescentes de 7 a 14 anos de idade, estendendo
esta faixa etária até aproximadamente 17 anos, em função da realidade edu-
cacional do nosso país.
([LVWHYDVWDELEOLRJUDÀDVREUHRTXHVHULDDLQIkQFLDHDDGROHVFrQFLD$
psicologia nos traz uma grande contribuição. A própria educação voltada
para as crianças das classes populares nos enriquece com a vasta produção
sobre educação brasileira. A antropologia, a sociologia, a história, e inclusive
DVFLrQFLDVELROyJLFDVQRVDMXGDPDUHÁHWLUVREUHTXHPpHVVHDDOXQRD
Contudo, gostaríamos de pensar esta criança, este/a adolescente, este/a jo-
vem, cidadão/ã do Ensino Fundamental na sua complexidade, na sua sin-
gularidade, sem, contudo, deixar de levar em conta que está imerso/a em
variados processos biológicos, psicológicos e existenciais. A criança apren-
dendo a ler e a compreender o mundo, suas regras, seus conhecimentos so-
cialmente valorizados, sua identidade, seu lugar no mundo; o/a adolescente
mudando a voz, mudando o corpo, vivendo transformações comportamen-
tais, mudanças que trazem inquietações. Precisamos observá–los(as) na sua
complexidade humana, como seres que pensam, criam, produzem, amam,
odeiam, têm sonhos, sorriem, sofrem e fazem sofrer, que têm aparência e
compleições físicas, pertencimento étnico-racial, posturas, que têm histó-
ULD PHPyULD FRQÁLWRV DIHWRV H VDEHUHV LQVFULWRV QR VHX FRUSR H HP VXD
personalidade.
É esse olhar que almejamos, acrescido às abordagens que tradicionalmen-
te estudamos (Piaget, Vigotsky e outros), que são importantes e fundamen-
tais, para se ter em mente adolescentes e jovens como sujeitos singulares e
complexos e na concretude do cotidiano com o qual nos deparamos.
Destacamos tudo isto porque pensamos que, pelo menos teoricamente,
uma vez que a realidade é mais complexa que sua representação por palavras,
as marcas que constituem a identidade dessas crianças e adolescentes, isto é,

63
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

suas características pessoais, etárias, socioculturais e étnico-raciais, vão susci-


tar a escola a estabelecer diálogo com várias áreas do conhecimento, como,
SRUH[HPSORDDQWURSRORJLDDVRFLRORJLDDKLVWyULDDJHRJUDÀDDSVLFRORJLD
a lingüística e as artes. Estas possibilitarão melhor entendimento do/a aluno/
a do Ensino Fundamental, bem como a percepção de como são estabelecidas
as relações entre aprendizado, desenvolvimento e educação.
$OJXQVDVSHFWRVVREUHHVWDDUWLFXODomRSRGHUmRID]HUSDUWHGDVUHÁH[}HVD
serem incorporadas aos estudos de educadores/as contemporâneos(as). Esta
SRVWXUDSRGHUiVLJQLÀFDUDYDQoRVFRQVLGHUiYHLVQRDSULPRUDPHQWRGDSUiWLFD
pedagógica diária, integrar saberes, incluir a dimensão da diversidade étnico-
cultural criticamente no cotidiano escolar, dentre outras ações, pode criar
possibilidades onde felicidades individuais e coletivas sejam construídas.
Há algumas décadas, estes aspectos têm sido incorporados aos projetos
educacionais (nos discursos e nos planejamentos pedagógicos). No entanto,
a articulação entre educação – desenvolvimento humano – qualidade de en-
VLQR²FLGDGDQLDpXPGHVDÀRDVHUYHQFLGRSDUDRDSULPRUDPHQWRGDSUiWLFD
pedagógica escolar cotidiana.
Quem é esse/essa estudante em diálogo com as teorias sobre crianças,
adolescentes e jovens? Quem é, principalmente, essa pessoa que nos toca de
perto, que é singular, um aparente mistério com o qual nos defrontamos coti-
dianamente, que dá uma dinâmica própria à escola? Pensá-la sem rótulos, sem
SUHGHÀQLo}HVSUHFRQFHLWRVPDVFRPRSHVVRDHFRPRWDOGHWHQWRUDGHXPD
gama de possibilidades, que precisa ser aceita e acolhida pela escola.
O que se espera, contudo, é a efetiva implantação no cotidiano escolar,
de uma pedagogia da diversidade e do respeito às diferenças. Esta reconhe-
cerá a importância de visualizar os propósitos a alcançar com os(as) estu-
dantes do Ensino Fundamental, relacionando-os às características de seu
GHVHQYROYLPHQWRHDUWLFXODUHVWHVGRLVDVSHFWRVjVQHFHVVLGDGHVHVSHFtÀFDV
do/a educando/a, considerando-se as particularidades de sua socialização e
vivências adversas em função do racismo e das discriminações.
Neste processo, que se pretende dialógico com quem faz o cotidiano es-
colar, ao se pensar quem é o/a discente do Ensino Fundamental brasileiro,
sentimos como necessário levantar as questões a seguir, que se interligam no
VHQWLGRGHUHVVLJQLÀFDUGHIDWRTXHPVmRQRVVRV DV HVWXGDQWHVVREUHWXGR
levando-se em consideração as diferenças regionais e a diversidade étnico-
cultural do Brasil:
• Qual a importância que a escola tem dado às interações do sujeito ne-
gro com o meio social?

64
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• Qual o peso que a escola tem dado ao afetivo na construção de conhe-


cimento de crianças e jovens negros(as)?
• A escola tem contribuído para que a criança negra possa construir
uma identidade social positiva em relação à sua pertença a um grupo
afrodescendente?
• A escola tem possibilitado o conhecimento respeitoso das diferen-
ças étnico-raciais, valorizando a igualdade e relações sociais mais
harmônicas?
• A escola tem oferecido referenciais positivos aos(as) alunos(as)
negros(as) na construção de sua identidade racial?
• As produções étnico-culturais dos diversos grupos formadores da na-
ção brasileira têm sido incorporadas aos conhecimentos escolares, para
TXHDVRFLHGDGHUHVSHLWHRSRYRQHJURHOKHFRQÀUDGLJQLGDGH"
• As emoções, a sensibilidade e a afetividade têm se tornado elemen-
tos da prática escolar visualizando, principalmente, os(as) estudantes
QHJURV DV TXHWrPGLÀFXOGDGHVHPVXDVRFLDOL]DomR"
• A escola tem propiciado aos(as) educandos(as) negros(as) oportuni-
GDGHVGHUHÁHWLUFULWLFDPHQWHVREUHRFRQWH[WRVRFLDOHQWHQGHQGRRH
propondo transformações?
• O conteúdo escolar tem sido para o/a aluno/a negro/a um instru-
mento para lidar positivamente com sua realidade social, ou tem sido
estranho à sua história ou cultura?
• $ YLGD FRWLGLDQD RV FRVWXPHV DV WUDGLo}HV HQÀP D FXOWXUD GRV DV 
educandos(as) têm sido usados como suporte para seu aprendizado?
• Os conhecimentos adquiridos pelas crianças negras em seu grupo his-
tórico/sóciocultural estão sendo valorizados no ambiente escolar?
• Que atitude a escola pública tem tomado em relação aos falares popu-
lares que são características da maioria dos(as) alunos(as)?
Em síntese, a abordagem do sujeito real e concreto com o qual nos de-
SDUDPRVFRWLGLDQDPHQWHFRPRTXDOVRPRVGHVDÀDGRV DV FRQYLGDGRV DV 
a pensar nossa prática, a dialogar: o que essa criança, adolescente ou jovem,
pensa, sonha? Como concebe a escola, o racismo, as questões sociais do seu
tempo?
É esse aluno e essa aluna que entram em relação com a nossa dimensão
humana nos estimulando, nos acomodando, nos convidando a mudar; que
não se repetem, que nos descortinam e nos provocam a agir, a pensar quem
somos nós, professores e professoras. Levando-nos a pensar sobre nós mes-
mos, nossos corpos, os saberes que acumulamos com nossa prática, nossa

65
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

KLVWyULDQRVVDPHPyULDSURÀVVLRQDOHSHVVRDODSDUWLUGDVOHLWXUDVGHPXQGR
HGHWH[WRVTXHÀ]HPRV
eHQWmRFRPDGLPHQVmRGHSURIHVVRUHVHSURIHVVRUDVGHSURÀVVLRQDLV
de educação, malungos2 companheiros e companheiras que olham e acolhem
crítica e afetuosamente o cotidiano escolar que queremos potencializar para
atender mais uma demanda da escola: inserir a história da África e a cultura
afro-brasileira no cotidiano escolar.
Neste sentido, estaremos contribuindo para a melhoria da dimensão hu-
mana de todos os alunos e alunas, ainda que especialmente daqueles e daquelas
que tiveram sua história e cultura subalternizadas, a história e cultura de sua
ascendência negadas e invisibilizadas pela escola. É necessário reconhecer que
o legado da história e cultura africana e afro-brasileira é um patrimônio da
humanidade.

2.1 Ensino Fundamental - Plano de ação


Este material não se propõe a dizer o que o professor e a professora
deverão fazer, mas sim, convidá-los(as) a assumir sua dimensão de produto-
UHVDVGHVWHFRQKHFLPHQWRDSURYHLWDQGRFRQWXGRWRGDXPDUHÁH[mRDomR
acumulada que existe em relação ao racismo no Brasil. Se o/a educador/a
se constituir como produtor/a consciente de conhecimento, pesquisador/a
de sua própria prática, sua própria ação educativa, de saberes a este respeito,
isto pode se tornar altamente transformador. É de suma importância que o/a
professor/a se veja como produtor/a de história, de conhecimento de ações
que podem transformar vidas, ou seja, que é potencialmente um indivíduo
transformador, criativo.
Alterações fundamentais podem ser empreendidas no sentido de contri-
buir para a melhoria do sistema educacional brasileiro. Vive-se na contempo-
raneidade um intenso repensar sobre paradigmas educacionais a construir. A
garantia de acesso e permanência, com qualidade e inclusão de todos(as), é
XPGRVDVSHFWRVPDLVLPSRUWDQWHVQHVVDVUHÁH[}HV$OPHMDVHTXHWDLVWUDQV-
formações tenham um caráter universal e incidam positivamente sobre todo
o âmbito da educação formal e seus sujeitos, como também contemplem a
dimensão singular, incluindo aí a perspectiva étnico-racial.
Inaugurar um tempo novo, pautado por uma lógica de valorização da di-
versidade e repúdio à intolerância, é assumir compromisso efetivo com uma
2
Termo utilizado por africanos(as) que viajaram no mesmo navio negreiro e/ou eram companheiros
de situações de escravidão.

66
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

educação multirracial e interétnica. Contemplar o povo negro, neste propó-


sito, impõe mudar a realidade escolar atual por meio de uma intervenção
competente e séria. Inovações temáticas e teórico-metodológicas poderão ser
implementadas no cotidiano escolar de forma coletiva, gradativa e teorica-
mente fundamentada.
A concretização dessas mudanças, reorientando ações, lançando sobre
elas um novo olhar, poderá ser efetivada através da inserção da questão étni-
co-racial no Projeto Político Pedagógico da escola. Espera-se que este conte-
nha diretrizes operacionais, articulando ações coletivas.
Tendo em vista a Lei n° 10.639/2003, acreditamos que os(as) agentes do
Projeto Político-Pedagógico podem atentar para os seguintes aspectos:
$OHLWXUDHDQiOLVHGDUHDOLGDGHHVFRODUHRUHVXOWDGRGDVUHÁH[}HVHDQi-
lises da realidade precisam ser registrados para converter-se em propostas
HIHWLYDV IDYRUiYHLVDDo}HVSHGDJyJLFDVHÀFLHQWHV$RSHUDFLRQDOL]DomR GDV
propostas das ações pedagógicas tem sintonizado o pensar, o planejar e o
fazer. É importante lembrar que as ações não poderão ser assumidas por ape-
nas um grupo, mas devem envolver toda a comunidade escolar;
$OPHMDVHTXHRSURFHVVRGHDomRUHÁH[mRGXUDQWHHVWDIDVHVHMDHPEDVD-
do conceitualmente, orientando, de forma adequada, as tomadas de decisões,
as novas proposições que a escola desejar assumir;
A avaliação sistemática e constante será útil para retroalimentar a tomada
de decisões, mostrando possibilidades e limites do projeto. Todos podem par-
ticipar da avaliação, avaliando e sendo avaliados: comunidade escolar, mães e
pais de alunos(as) e grupos da comunidade, bem como as próprias crianças e
adolescentes, alunos(as) da escola.
3RGHPRVLGHQWLÀFDUQRVFRPSRQHQWHVGDSUiWLFDHGXFDWLYDYROWDGDSDUD
uma educação anti-racista, algumas características que são fundamentais e
poderão orientar a atuação no cotidiano escolar. Com o objetivo de contri-
EXLUSDUDHVWDUHÁH[mRSURFXUDPRVDSUHVHQWiORVGHIRUPDHVTXHPiWLFDQR
quadro a seguir. Além das características acima listadas, solicitamos atenção
para alguns aspectos que poderão fortalecer o propósito de construir uma
metodologia positiva de tratamento pedagógico da diversidade racial, levando
em conta a dignidade do povo negro e conseqüentemente de toda a popula-
ção brasileira:
• A construção de ambiente escolar que favoreça a formação sistemática
da comunidade sobre a diversidade étnico-racial, a partir da própria co-

67
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

munidade, considerando a contribuição que esta pode dar ao currículo


escolar;
• O estabelecimento de canais de comunicação com troca de experiên-
cias com os movimentos negros, com os grupos sociais e culturais da
comunidade, possibilitando diálogos efetivos.
Outro aspecto a ser observado diz respeito aos rituais pedagógicos esco-
lares. Estes poderão ser procedimentos que realmente objetivem o desenvol-
vimento de relações respeitosas entre os sujeitos do processo educativo, con-
tribuindo para a desconstrução de estereótipos e preconceitos; para desfazer
equívocos históricos e culturais sobre negros e indígenas e para valorizar a
presença destes em diferentes cenários da vida brasileira.
(QÀPDHVFRODTXHGHVHMDVHFRQVWLWXLUGHPRFUiWLFDUHVSHLWDQGRDWRGRV
os segmentos da sociedade, pode ter como meta a aquisição de recursos ade-
quados para o trato das questões étnico-raciais, como, por exemplo, munindo
a biblioteca de acervo compatível, folhetos, gravuras e outros materiais que
FRQWHPSOHPDGLPHQVmRpWQLFRUDFLDOYLGHRWHFDFRPÀOPHVTXHDERUGHPD
temática e brinquedoteca com bonecos(as) negros(as), jogos que valorizem a
cultura negra e decoração multiétnica (Quadro 01).
Quadro 01. Ensino Fundamental e Diversidade Étnico-Racial
PAPEL DA ESCOLA Espaço privilegiado de inclusão, reconheci-
mento e combate às relações preconceituosas e
discriminatórias.
Apropriação de saberes e desconstrução das hier-
arquias entre as culturas.
$ÀUPDomRGRFDUiWHUPXOWLUUDFLDOHSOXULpWQLFR
da sociedade brasileira.
Reconhecimento e resgate da história e cultura
afro-brasileira e africana como condição para a
construção da identidade étnico-racial brasileira.
PAPEL DO/A PROFESSOR/A Sujeito do processo educacional ao mesmo tem-
po aprendiz da temática e mediador entre o/a
aluno/a e o objeto da aprendizagem, no caso,
os conteúdos da história e cultura afro-brasileira
e africana, bem como a educação das relações
étnico-raciais.
ESTUDANTE Sujeito do processo educacional que vive e con-
vive em situação de igualdade com pessoas de
todas as etnias, vendo a história do seu povo
resgatada e respeitada. (continua).

68
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Quadro 1. (Continuação).
RELAÇÃO DOCENTE-DISCENTE Que respeita o/a estudante como sujeito socio-
cultural.
Que tenha o diálogo como um dos instrumen-
tos de inclusão/interação.
Que o/a professor/a esteja hierarquicamente a
serviço dos(as) estudantes numa relação ética e
respeitosa.
CURRÍCULO Que contemple a efetivação de uma pedagogia
que respeite as diferenças.
Tratar a questão racial como conteúdo inter e
multidisciplinar durante todo o ano letivo, esta-
belecendo um diálogo permanente entre o tema
étnico-racial e os demais conteúdos trabalhados
na escola.
PROCESSOS PEDAGÓGICOS Que reverenciem o princípio da integração,
reconhecendo a importância de se conviver e
aprender com as diferenças, promovendo ativi-
dades em que as trocas sejam privilegiadas e es-
timuladas.
Que reconheçam a interdependência entre cor-
po, emoção e cognição no ato de aprender.
Que privilegiem a ação em grupo, com propos-
tas de trabalho vivenciadas coletivamente (do-
centes e discentes), levando em conta a singu-
laridade individual.
Que rompam com a visão compartimentada
dos conteúdos escolares.

Para compreender esse quadro, temos as seguintes premissas:


• Reconhecimento de que historicamente o racismo e as desigualdades
sociais contribuíram e contribuem para a exclusão de grande parcela da
população afro-descendente dos bens construídos socialmente.
• Compreensão que a cosmovisão africana, reinventada em territórios
brasileiros, contribui para o enriquecimento do debate acerca de ques-
tões ambientais, tecnológicas, históricas, culturais e éticas em nossa co-
munidade escolar e social, e cabe ser incluída em qualquer proposta que
se pense democrática.
• 5HÁH[mRFUtWLFDDFHUFDGDSRVWXUDSURSRVLWLYDHTXHVWLRQDGRUDTXHWR-
dos devemos ter em relação ao enfrentamento do racismo e das desi-
gualdades sociais como um todo.
• 9DORUL]DomRGRFRQKHFLPHQWRGHQRVVRV DV SURÀVVLRQDLVGHHGXFDomRHD
necessidade de articularmos este saber com as demandas que a lei nos apre-
senta, promovendo a interdisciplinaridade e quiçá a transdisciplinaridade.

69
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• Percepção que os projetos anti-racistas e antidiscriminatórios serão


frutos de embates e diálogos.
• Compromisso relacionado à sensibilização de nossos(as) educandos(as)
quanto à questão da historicidade das relações raciais no Brasil, da im-
portância do estudo sobre a África e da necessidade de reconhecer
a Cultura Negra e suas diversas manifestações como um patrimônio
histórico, ambiental, econômico, político e cultural, levando-os(as) a
perceber que são cidadãos/ãs ativos(as) e que sua postura política in-
terfere na sociedade.
• Busca da promoção e aprofundamento do conhecimento dos/das estu-
dantes do Ensino Fundamental a respeito das africanidades brasileiras
em suas múltiplas abordagens.
• Participar da implementação da Lei n° 10.639/2003.
Para implementar esse quadro, manifestamos os seguintes intentos:
• Sensibilização da comunidade escolar quanto à mudança de compor-
WDPHQWRV D ÀP GH PLQLPL]DU DV DWLWXGHV GH GHVFDVR H GHVUHVSHLWR j
diversidade étnica e cultural da sociedade brasileira.
• Participação efetiva da comunidade escolar nas lutas anti-racistas.
• Efetivação de um currículo escolar anti-racista.
Encontramos igualmente algumas facilidades já conquistadas:
• Consciência cada vez mais crescente da existência do racismo na socie-
dade brasileira.
• Iniciativas pedagógicas de projetos anti-racistas em diversos Estados
brasileiros.
• Histórica mobilização dos movimentos negros.
• Produção de teses e materiais didáticos sobre a África e as africanida-
des brasileiras.
• Aumento da visibilidade negra.
• 3ROtWLFDVGHDomRDÀUPDWLYDV
• A Lei n° 10.639/2003.
3RUÀPWHQGRHPYLVWDHVVHTXDGURSHQVDPRVQXPGHVDÀRSDUDWRGRVH
todas: como abranger a dimensão nacional de uma cultura negra que é plural
e de um denso cotidiano escolar?
Quando pensamos nas atividades escolares, temos alguns parâmetros:
XPDFRQFHSomRGHHGXFDGRUDDXW{QRPRDLQWHOHFWXDOPHQWHHPERUDÀQFD-

70
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

do/a no coletivo; alguém que dialoga, gosta de aprender e é pesquisador/a da


VXDSUySULDSUiWLFDGLDQWHGRVGHVDÀRVFRQÁLWRVHVLWXDo}HVTXHRFRWLGLDQR
lhe oferece; um/uma professor/a que busca alternativas e saídas. Uma con-
FHSomRPDUFDGDSRUHVVDGLPHQVmRGHHGXFDGRUHVDVTXHVmRSURÀVVLRQDLV
que se apropriam do saber historicamente construído e produzido em relação
à educação, que é vasto no Brasil, e que traduzam este saber no seu cotidiano.
Que queiram produzir outro cotidiano, onde as diferenças e a diversidade
se façam ver, não para serem excluídas ou hierarquizadas, mas para serem
incluídas no cotidiano e no processo pedagógico de modo potente, rico e
respeitoso.
Embora saibamos das várias dimensões de professor/a que carregamos,
faremos vínculo com a nossa dimensão aprendiz, ativa, comprometida, in-
quieta, e sobretudo que reconheça sua fundamental importância no processo
de construção de ações pedagógicas cotidianas anti-racistas e inclusivas, que
UHFRQKHoDTXHVXDDomRSHGDJyJLFDVXDDomRSURÀVVLRQDOSRGHID]HUGLIHUHQ-
ça na vida dos(as) estudantes com os(as) quais entre em contato.

3. O TRATO PEDAGÓGICO DA QUESTÃO RACIAL NO


COTIDIANO ESCOLAR

2DSULPRUDPHQWRGRSURFHVVRGHUHÁH[mRVREUHDFRQVWUXomRGHQRYRV
paradigmas educacionais as questões relativas ao currículo e suas estruturas
a construção do conhecimento os processos de aprendizagem e seus sujei-
tos ocuparam nas últimas décadas do século XX e ocupam, na atualidade, o
centro dos debates e atenção especial de estudiosos(as) pesquisadores/as e
movimentos sociais brasileiros.
Novas propostas e estratégias estão sendo concebidas. Paralelamente,
convivemos com o avanço da escola brasileira no que se refere às possibili-
dades de acesso da criança e jovens à instituição escolar. No entanto, no que
tange à permanência e ao sucesso para todos os(as) estudantes, existe um
JUDQGHGHVDÀRDVHUYHQFLGR
Crianças, adolescentes e jovens, negros e negras, têm vivenciado um am-
biente escolar inibidor e desfavorável ao seu sucesso, ao desenvolvimento
pleno de suas potencialidades. Lançar um novo olhar de contemporaneidade,
para que se instalem na escola posicionamentos mais democráticos, garantin-
do o respeito às diferenças, é condição básica para a construção do sucesso
escolar para os(as) estudantes.
Fundamentar a prática escolar diária direcionando-a para uma educação
anti-racista é um caminho que se tem a percorrer. Nesse caminhar, pode-

71
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

PRVLGHQWLÀFDUDOJXQVSRQWRVEiVLFRVTXHSRGHUmRID]HUSDUWHGDVUHÁH[}HV
ações no cotidiano escolar, no sentido de tratar pedagogicamente a diver-
sidade racial, visualizando com dignidade o povo negro e toda a sociedade
brasileira.
a) A questão racial como conteúdo multidisciplinar durante o ano letivo
É fundamental fazer com que o assunto não seja reduzido a estudos
esporádicos ou unidades didáticas isoladas. Quando se dedica, apenas,
WHPSRHVSHFtÀFRSDUDWUDWDUDTXHVWmRRXGLUHFLRQiODSDUDXPDGLVFLSOLQD
corre-se o risco de considerá-la uma questão exótica a ser estudada, sem
relação com a realidade vivida. A questão racial pode ser um tema tratado
em todas as propostas de trabalho, projetos e unidades de estudo ao longo
do ano letivo.
b) Reconhecer e valorizar as contribuições do povo negro
Ao estudar a cultura afro-brasileira, atentar para visualizá-la com cons-
ciência e dignidade. Recomenda-se enfatizar suas contribuições sociais, eco-
nômicas, culturais, políticas, intelectuais, experiências, estratégias e valores.
Banalizar a cultura negra, estudando tão somente aspectos relativos a seus
costumes, alimentação, vestimenta ou rituais festivos sem contextualizá-la, é
um procedimento a ser evitado.
c) Abordar as situações de diversidade étnico-racial e a vida cotidiana
nas salas de aula
7UDWDUDVTXHVW}HVUDFLDLVQRDPELHQWHHVFRODUGHIRUPDVLPSOLÀFDGDHP
algumas áreas, ou em uma disciplina, etapa determinada ou dia escolhido, não
é a melhor estratégia para levar os alunos e alunas aos posicionamentos de
DomRUHÁH[LYDHFUtWLFDGDUHDOLGDGHHPTXHHVWmRLQVHULGRV1DFRQWH[WXDOL-
zação das situações, eles aprenderão conceitos, analisarão fatos e poderão se
capacitar para intervir na sua realidade para transformá-la:
Os objetos de conhecimento histórico se deslocaram dos grandes fa-
tos nacionais e mundiais para a investigação das relações cotidianas,
dos grupos excluídos e dos sujeitos sociais construtores da história
(SEE/MG, 2005a).

As atividades propostas na área de história, por exemplo, podem sempre


considerar alguns princípios que demandem uma determinada visão de mun-
do, que assim sendo, valorizem o coletivo e não somente o individual, que
apontem na direção da problematização de uma memória local, nacional e ao
mesmo tempo ancestral.

72
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

d) Combater às posturas etnocêntricas para a desconstrução de estere-


ótipos e preconceitos atribuídos ao grupo negro
Os conteúdos da área de ciências poderão ser fortes aliados na efetivação
dessa metodologia.
A aprendizagem de conceitos constitui elemento fundamental de apren-
dizagem das ciências. Por meio deles interpretamos e interagimos com as
realidades que nos cercam.
Essa ação sobre as realidades a serem interpretadas e transformadas nos
leva a rever constantemente nossos conceitos, ou seja, a acomodá-los às no-
vas circunstâncias que se nos apresentam (SEE/MG, 2005b).
1HVVDSHUVSHFWLYDRVDEHUFLHQWtÀFRDOLDGRDRID]HUSHGDJyJLFRSRGHYD-
lorizar bastante a fomentação de uma problematização das práticas sociais
para a sensibilização de um olhar mais crítico diante da realidade, apontando
SDUDXPDSURSRVWDTXHUHGHÀQDSULRULGDGHVHXWLOL]HDFRQWULEXLomRGHWRGRV
os povos no desenvolvimento curricular.
e) Incorporar como conteúdo do currículo escolar a história e cultura do
povo negro
Esta história, bem como a dos outros grupos sociais oprimidos e toda
a trajetória de luta, opressão e marginalização sofrida por eles, deverá cons-
tar como conteúdo escolar. Os(as) estudantes compreenderão melhor os
porquês das condições de vida dessas populações e a correlação entre estas
e o racismo presente em nossa sociedade. As situações de desigualdades
GHYHUmRVHUSRQWRGHUHÁH[mRSDUDWRGRVHQmRVRPHQWHSDUDRJUXSRGLV-
criminado, condição básica para o estabelecimento de relações humanas
mais fraternas e solidárias.
f) Recusar o uso de material pedagógico contendo imagens estereoti-
padas do negro, como postura pedagógica voltada à desconstrução de
atitudes preconceituosas e discriminatórias
A escola que deseja pautar sua prática escolar no reconhecimento, acei-
tação e respeito à diversidade racial articula estratégias para o fortalecimento
da auto-estima e do orgulho ao pertencimento racial de seus alunos e alunas.
banir de seu ambiente qualquer texto, referência, descrição, decoração, dese-
QKRTXDOLÀFDWLYRRXYLVmRTXHFRQVWUXLURXIRUWDOHFHULPDJHQVHVWHUHRWLSDGDV
de negros e negras, ou de qualquer outro segmento étnico-racial diferenciado,
É imprescindível.

73
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

3DUDWDQWRDLQVWLWXLomRHVFRODUWHUiFRPRPHWDSURPRYHURQtYHOGHUHÁH-
xão de seus educadores e educadoras, instrumentalizando-os(as) no sentido
de fazer uma leitura crítica do material didático, paradidático ou qualquer
produção escolar.
g) Construir coletivamente alternativas pedagógicas com suporte de recursos
didáticos adequados
É uma empreitada para a comunidade escolar: direção, supervisão, pro-
fessores/as, bibliotecários(as), pessoal de apoio, grupos sociais e instituições
educacionais.
Algumas ações são essenciais nessa construção: a disponibilização de re-
FXUVRVGLGiWLFRVDGHTXDGRVDFRQVWUXomRGHPDWHULDLVSHGDJyJLFRVHÀFLHQWHV
o aumento do acervo de livros da biblioteca sobre o assunto, a oferta de va-
riedade de brinquedos contemplando as dimensões multiculturais.

Brincar, interagir
Coleção Particular
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77
A identidade continua
Coleção Particular - Nilma L. Gomes

Ensino Médio
A identidade continua
Coleção Particular - Nilma L. Gomes

ENSINO MÉDIO
Coordenação: Ana Lúcia Silva Souza1

(GXFDomR  UHIHUHVHDRSURFHVVRGH´FRQVWUXLUD


SUySULDYLGDµTXHVHGHVHQYROYHHPUHODo}HVHQWUH
JHUDo}HVJrQHURVJUXSRVUDFLDLVHVRFLDLVFRP
LQWHQomRGHWUDQVPLWLUYLVmRGHPXQGRUHSDVVDU
FRQKHFLPHQWRFRPXQLFDUH[SHULrQFLDV
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva

Introdução

O presente trabalho implica mudanças de posturas na direção de uma


educação anti-racista e promotora de igualdade das relações sociais e
étnico-raciais. Mais que pensar a reorganização das disciplinas há que se pen-
sar como o cotidiano escolar – em seus tempos, espaços e relações – pode ser
visto como um espaço coletivo de aprender a conhecer, respeitar e valorizar
as diferenças, o que é fundamental para a construção da identidade dos en-
volvidos no processo educacional.
Nessa perspectiva, este plano aponta a necessidade de partir do projeto
político-pedagógico das escolas, articulando os objetivos estabelecidos para
o Ensino Médio, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB 9.394 de 1996. Os artigos 26A e 79B privilegiam a continui-
1
Socióloga e doutoranda em Lingüística Aplicada - Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
Desenvolve pesquisa que focaliza as práticas de letramento de jovens participantes do movimento KLS
KRS, em São Paulo. Na ONG Ação Educativa, coordena o Concurso Negro e Educação, e compõe a
equipe de formação do Programa de Educação de Jovens e Adultos. Integra a Associação Brasileira
de Pesquisadores Negros - ABPN - SP.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

dade de estudos, o exercício para a cidadania e as orientações para a inserção


no mundo do trabalho, garantindo os princípios que respaldam a Resolução
CNE/CP 01/04 e o Parecer 003/04, a saber:
• Consciência política e histórica da diversidade, ou seja, ter a compreen-
são de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos
étnico-raciais distintos, com cultura e história próprias.
• Fortalecimento de identidades e de direitos, rompendo com imagens
negativas contra negros(as) e índios e ampliando o acesso a informações
sobre a diversidade do país.
• Ações educativas de combate ao racismo e às discriminações, como
cuidar para que se dê sentido construtivo à participação dos diferentes
grupos sociais e étnico-raciais na construção da nação brasileira.
Para tanto, o texto inicialmente aponta de maneira breve os principais
elementos que caracterizam a reforma do Ensino Médio, bem como avanços
HGHVDÀRVGDVDo}HVSROtWLFDVSHUWLQHQWHVjGLYHUVLGDGH(PVHJXLGDORFDOL]D
aspectos fundamentais acerca do tratamento das relações raciais nessa mo-
dalidade de ensino. Finalmente, enfatizando a importância e a necessidade
de repensar o projeto político-pedagógico das unidades escolares, apresen-
ta possibilidades e sugestões para que a organização curricular seja tomada
também do ponto de vista afro-brasileiro, no qual o processo de construção
e as abordagens em torno dos conhecimentos sejam fortalecedores de uma
perspectiva de educação anti-racista.
(PVHXFRQMXQWRUHDÀUPDRFRWLGLDQRHVFRODUGR(QVLQR0pGLRFRPR
um espaço de fazer coletivo, no qual todos os agentes escolares que integram
e fazem o cotidiano escolar se reconheçam e ajam como sujeitos co-respon-
sáveis pela sustentação de uma escola para todas as pessoas, voltada para a
igualdade das relações étnico-raciais e o exercício da cidadania plena.
Pretende-se que este documento seja entendido como ponto de partida
SDUDUHÁH[}HVH[SHULPHQWDo}HVHDGHTXDo}HVFRQVLGHUDQGRDUHDOLGDGHVR-
cial e cultural em que está inserida cada unidade escolar.

1. ENSINO MÉDIO – ORIENTAÇÕES, AVANÇOS, DESAFIOS


A década de 1990 no Brasil foi marcada por intenso debate em torno das
políticas e ações voltadas para a garantia de acesso, a permanência e qualidade
de atendimento na educação. Entre outros eventos, ressalta-se a Conferência
0XQGLDOGH(GXFDomRSDUD7RGRVQD7DLOkQGLDTXHLQÁXHQFLRXDHODERUDomR
do Plano Decenal de Educação, mediante o qual se estabeleceu o compro-
misso de garantir o direito à educação a todas as crianças, os jovens e adultos.

82
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Ainda em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB


foi aprovada e, em decorrência, elaboraram-se as Diretrizes Curriculares Na-
cionais para o Ensino Médio e, posteriormente, os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio. Dessa maneira, o Ensino Médio passou a
ser compreendido como espaço-tempo de formação geral indissociável da
formação básica para o trabalho e para o aprimoramento do educando como
pessoa/cidadão.
Estabelecidas essas bases legais, o projeto de reforma curricular do Ensi-
QR0pGLRSULPDSRU UH FRQVWUXLUVXDLGHQWLGDGHHWHPFRPRÀPSURPRYHU
alternativas interdisciplinares, nas quais o conhecimento seja tomado como
EDVHSDUDXPIXWXURKXPDQLVWDHVROLGiULR&RPRHWDSDÀQDOGD(GXFDomR%i-
sica, fornece meios para que os(as) estudantes, como produtores desse conhe-
cimento, possam continuar os estudos e ingressar no mundo do trabalho.
Para tal modalidade, as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares estabele-
cem que os currículos sejam organizados em três áreas: Ciências da Natureza,
Matemática e suas Tecnologias; Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; e
Ciências Humanas e suas Tecnologias. Pretendendo romper com os mode-
los tradicionais de educação, a modalidade quer um ensino voltado para o
desempenho social dos(as) alunos(as). Portanto, esse conjunto de conheci-
mentos deve ser trabalhado a partir de princípios pedagógicos estruturadores:
identidade, diversidade e autonomia, interdisciplinaridade e contextualização.
Partindo dessa perspectiva, a operacionalização de tais princípios requer con-
siderar a situação de desigualdade social e étnico-racial vivida historicamente
pelo segmento negro da população brasileira. Do discurso para a prática ain-
da se mostra tarefa em andamento.
Vale frisar que, embora tais reformulações venham sendo esboçadas há
mais de duas décadas, somente nos últimos anos a escola secundária tem sido
objeto de ação mais contundente e abrangente por parte do poder público,
com vistas a cumprir os compromissos assumidos. A realidade dessa moda-
lidade de ensino ainda é caracterizada por necessidades que envolvem desde
a adequação dos espaços físicos das escolas até a ampliação do número de
vagas e garantia de permanência, a elevação da qualidade docente dos pro-
cessos formativos e o estabelecimento de estratégias de acompanhamento e
avaliação discente.
No que se refere ao aspecto quantitativo, de acordo com números do
Censo Escolar do Ministério da Educação, em 2001 havia cerca de 8,4 mi-
lhões de estudantes matriculados(as), pelo menos o dobro do número regis-
trado no início da década de 1990. Esses números expressivos podem, em
parte, ser explicados pelas recentes políticas de promoção, que diminuíram o

83
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

número de retenção no Ensino Fundamental, e pelas novas características de


um mercado de trabalho que acompanha o incremento tecnológico e exige
maior tempo de escolaridade. Paradoxalmente também porque, diante de um
TXDGUR UDUHIHLWR GH RIHUWD GH WUDEDOKR RV DV  MRYHQV ÀOKRV DV  GDV FODVVHV
populares continuam estudando porque o número de postos de trabalho é
LQVXÀFLHQWH $V RIHUWDV GH YDJDV QD HVFROD DXPHQWDUDP PDV DLQGD QmR VH
pode considerar essa etapa como universalizada.
Além disso, a escola tem sido mais procurada, elevando a quantidade de
atendimento, embora sem que isso se traduza em qualidade do ensino ofe-
recido. Há a urgência de conhecer e acolher as novas feições dessa modali-
dade, em especial no período noturno, freqüentado por jovens, mães e pais
que trabalham ou que procuram de maneira mais sistemática conhecimentos
QHFHVViULRVSDUDDREWHQomRGHFHUWLÀFDGRVHGHXPHVSDoRWDPEpPGHVRFLD-
bilidade, de poder conversar e interagir.
2V DVSHFWRV OHYDQWDGRV FRQÀJXUDP DOJXPDV FDUDFWHUtVWLFDV GR (QVLQR
Médio no Brasil, com a presença de evasões e reprovações, a inadequação do
currículo e outras questões que se materializam nos resultados desfavoráveis
GDV DYDOLDo}HV RÀFLDLV H QR DXPHQWR GH MRYHQV TXH IUHTHQWDP DV VDODV GH
Educação de Jovens e Adultos. Atualmente registra-se a presença de pessoas
cada vez mais jovens na Educação de Jovens e Adultos, conforme apontam
Carrano (2000) e Brunel (2004).

1.1. Jovens no espaço escolar: quem são?

$RGLVFRUUHUVREUHDFRQÀJXUDomRGRHVSDoRGDHVFRODPpGLD.UDZF]\N
(2004) destaca, entre outros elementos, que a maioria do conjunto de pro-
fessores/as conhece pouco da vida dos(as) alunos(as): onde e com quem
moram? Quais atividades realizam além de freqüentar a escola? Como ocu-
SDPVHXVÀQVGHVHPDQD"4XDOpDUHDOLGDGHVRFLRHFRQ{PLFDGHVHXVQ~FOHRV
familiares?
Ainda segundo ela, no geral, os comentários de professores/as a respeito
dos(as) estudantes são ambíguos e tendem a se limitar às diferenciações, “às
vezes estereotipadas, entre os alunos(as) que assistem ao curso diurno e ao
curso noturno, ainda assim é de forma mais geral e não exatamente da ins-
tituição em foco” (2004, p. 147). Fala-se de um estudante sem que se saiba
quem ele é, sem que se conheçam os diversos contextos e as necessidades de
respostas diferentes à existência de cada um dentro da escola.
Alguns desses aspectos estão presentes no estudo de Abramovay e Castro
(2003), que aponta os problemas de infra-estrutura, espaços físicos, recursos

84
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

pedagógicos, evasão, repetência e as truncadas relações vividas na comunidade


escolar. Entre outros pontos, destacam-se:
• boa parte do conjunto de professores/as admite não ter domínio sobre
os conceitos e os objetivos principais da reforma, e precisam de prepa-
ro e formação para aplicação e adaptação às suas realidades;
• no geral, os principais problemas da escola são o desinteresse e a
indisciplina dos(as) estudantes, bem como a falta de espaços físicos
adequados;
• principalmente nas escolas públicas, a proporção de abandono dos es-
tudos, ao menos uma vez com posterior retorno, é de 35,2% no curso
noturno e 8,9% no diurno;
• existem altos índices de reprovação na trajetória escolar e em algumas
capitais cerca de metade ou mais se declara repetente;
• cerca de 20% dos(as) alunos(as), em especial os que estudam em escola
pública, indicam não ter acesso ao ensino que envolva artes e questões
culturais.
Diante desse quadro, o estudo lista uma série de recomendações a se-
rem seguidas pelas políticas públicas, como: a) melhorar as condições de vida
dos(as) estudantes, com a garantia de que possam permanecer na escola,
sugerindo neste sentido a ampliação da bolsa-escola para quem cursa o Ensi-
no Médio; b) melhores condições de vida e da qualidade do trabalho dos(as)
SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRUHFRPHQGDQGRPHOKRULDVDODULDOHIRUPDomRFRQ-
tinuada; c) adequar as condições físicas e as práticas de relações, devendo-se
cuidar tanto do espaço como do clima de interação escolar; d) medidas para
melhorar a qualidade do ensino e o cultivo do hábito e gosto de estudar,
LQFOXLQGR D GLYHUVLÀFDomR GDV DWLYLGDGHV HVFRODUHV FRP rQIDVH DR DFHVVR j
informática e às atividades desportivas, artísticas e culturais.
Em relação à crise de identidade do Ensino Médio, a pesquisa de Abramo-
vay e Castro (2003) destaca que é dada pouca atenção aos aspectos que favore-
cem o exercício da cidadania, e enfatiza que entre professores/as e estudantes
é comum a referência a vários tipos de discriminação, entre elas a racial.
A análise também aponta que a escola deve ser vista como um vetor de
oportunidades, o que somente é possível se for capaz de traçar uma política
de intervenção que contemple uma pedagogia antidiscriminatória e multipli-
cadora da vivência inclusiva em outras esferas da ação social. Diante de dados
e estatísticas que mostram a desvantagem da população pobre e negra na

85
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

HVFRODHVVDPRGDOLGDGHGHHQVLQRWDPEpPSUHFLVDFRQWDUFRPSURÀVVLRQDLV
preparados e recursos para uma formação consistente para os(as) estudantes
como sujeitos autônomos, sabedores das questões de seu tempo e de sua his-
tória, participativos e ainda comprometidos com as transformações sociais,
culturais, políticas e econômicas das quais o país necessita.
Para dar conta de um número maior de histórias singulares, é preciso se
pensar em uma educação que seja capaz de discutir em suas propostas curri-
culares as situações e os contextos da vida, para enfrentar o que é próprio e
constituinte das vivências, instigar a participação de uma escola que deve aco-
lher e respeitar as diversidades de classe, raça, gênero, geração e sexualidade,
mas que ainda não existe para todos.
A materialização desse modelo obriga a repensar o Projeto Político-Pe-
dagógico, a organização curricular e as formas de organizar e de conviver nas
escolas de Ensino Médio. É fundamental conceber um projeto para e com
os jovens homens e as jovens mulheres que têm direito à escola, reinventan-
do modos e maneiras de gestão escolar e buscando formas de estabelecer
DOLDQoDV HQWUH SURÀVVLRQDLV GD HGXFDomR H FRPXQLGDGH HVFRODU FRP ROKRV
voltados também para fora da escola.

1.2 Um olhar para as questões étnico-raciais no Ensino Médio

eSRVVtYHODÀUPDUTXHDKLVWyULDHDFXOWXUDQHJUDVHVWmRQDHVFRODSHOD
presença dos(as) negros(as) que lá se encontram, mas não devidamente
valorizados(as) dentro dos projetos pedagógicos, currículos ou materiais di-
dáticos, de forma contextualizada, explícita e intencional.
5HJLVWUDVH VLJQLÀFDWLYR Q~PHUR GH SURIHVVRUHVDV HP VXD PDLRULD
negros(as), que tomam iniciativas sustentando experiências que procuram
reverter a lógica quase naturalizada que diferencia, inferioriza e hierarquiza
a população negra e pobre na escola. Elaboram projetos e atividades educa-
cionais que pretendem mudanças, organizam grupos de estudo que apóiam
debates e alimentam a busca e o fortalecimento de ações de valorização
da diversidade cultural e étnico-racial. Existem em grande número, porém,
no geral, são iniciativas isoladas que nem sempre têm continuidade ou se
WRUQDPYLVLYHOPHQWHVLJQLÀFDWLYDV6HSRUXPODGRRWUDEDOKRpLPSRUWDQWH
por outro, na maioria das vezes, não chega a alterar os silêncios e as práti-
cas racistas e preconceituosas que encontramos na rotina da organização
escolar.

86
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Contudo, inegavelmente, ao longo dos últimos anos, várias iniciativas se


consolidam em decorrência da insistência dos envolvidos, da maior articu-
lação entre os grupos do movimento negro e as organizações não-governa-
mentais que levaram o debate para junto de algumas administrações demo-
cráticas. Os impactos e efeitos dessas ações e alianças ganham mais densidade
neste momento histórico, quando um conjunto de documentos legais, fruto
GHOXWDVKLVWyULFDVVLVWHPDWL]DSURSRVWDVHVSHFtÀFDVTXHEXVFDPDVVHJXUDUH
garantir igual direito de acesso às histórias e culturas que compõem a nação
brasileira.
O presente texto aponta que por meio do Projeto Político-Pedagógico das
escolas é possível garantir condições para que alunos(as), negros(as) e não-
negros(as) possam conhecer a escola como um espaço de socialização. Um
espaço em que as relações interpessoais, os conteúdos e materiais constituam
o diálogo entre culturas, que tragam não apenas as histórias e contribuições
do ponto de vista europeu, mas também as histórias e contribuições africanas
e afro-brasileiras.
Vale considerar a vasta produção escrita sobre educação e desigualdade
racial, de autores como Valente (2002), Bento (2000) e Oliveira (1997) entre
outros, segundo os quais a organização escolar, a estrutura curricular e as for-
mas de gestão, a despeito de algumas alterações, ainda mantêm praticamente
inalterados os mecanismos de exclusão da população negra na escola.
Atuais indicadores sociais sobre a educação demonstram a existência
de uma estreita relação entre a realidade sócio-histórica e a exclusão esco-
lar dos(as) alunos(as) negros(as), agravada à medida que aumentam os anos
de escolarização. Esse é o retrato detectado por vários estudos, entre eles o
realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
²,1(3EDVHDGRHPSHVTXLVDGHGR,QVWLWXWR%UDVLOHLURGH*HRJUDÀDH
Estatística (IBGE).
O estudo divulga que a população negra possui em média 5,3 anos de
estudo, enquanto a branca tem 7,1 anos. Quanto à freqüência escolar, a popu-
lação negra na faixa de 15 a 17 anos registra índice de 78,6%, abaixo da média
do país, de 81,5%. Na realidade, a maioria das escolas ainda não reconhece e
acolhe a cultura, a história e os valores da população negra em sua dinâmica
cotidiana – currículos, princípios e práticas pedagógicas.
Quais ações já existem na escola? Quem são e o que pensam os profes-
VRUHVDVHGHPDLVSURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRVREUHHVVDTXHVWmR"4XHPVmR
RV DV HVWXGDQWHVTXHSDUDDOpPGRSHUÀOVRFLRHFRQ{PLFRWrPVRQKRVGH-
sejos e necessidades? Esse levantamento torna-se urgente, considerando que

87
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

a maior parte dos(as) estudantes apresenta menos de 20 anos e pode ter na


HVFRODXPVLJQLÀFDGRTXHH[FHGHDEXVFDGHXPDDOWHUQDWLYDSDUDDVXVWHQWD-
ção de projetos de vida, muitos ainda nem descobertos.
Com baixa expectativa em relação ao presente e ao futuro, contudo, a
escola na vida dessa juventude aparece como um divisor de águas: ainda é
uma das alternativas para manter-se longe de problemas – drogas, violência,
desmotivação –, é espaço de lazer e de sociabilidade, de encontros com as
turmas e dos primeiros namoros.

1.3 Juventude – uma só condição em diferentes situações sociais

Para compreender os(as) estudantes do Ensino Médio e suas diversida-


des, é necessário pensar o processo de construção do conhecimento desses
sujeitos, sob o pressuposto do respeito à singularidade dessa etapa de vida,
sua inter-relação com a construção de identidade, a autonomia, a interação
cultural com a comunidade em que mora ou atua, produzindo saberes social
HVXEMHWLYDPHQWHVLJQLÀFDWLYRV
Do enfoque das diversidades e das diferenças é possível entender os jo-
vens como sujeitos de direitos que vivem e se formam em complexos contex-
tos educativos, construídos histórica e culturalmente, e mediados por signi-
ÀFDo}HVVRFLDLVGHVHXPXQGR$EDG  FRQWULEXLFRPHVVDGLVFXVVmRDR
assinalar a diferença entre a condição e a situação juvenil: a primeira, o modo
SHORTXDOXPDVRFLHGDGHFRQVWLWXLHVLJQLÀFDRPRPHQWRGRFLFORGHYLGDHD
segunda, a situação que traduz o que esses/as jovens experimentam de acor-
do com os determinantes das categorias classe, gênero e etnia/raça.
A categoria de classe estabelece-se entre as camadas mais e menos fa-
vorecidas economicamente da população, o gênero caracterizado pelas rela-
ções de poder construídas e estabelecidas entre o masculino e o feminino, e
etnia/raça se traduz nas vivências de oportunidade e nas desigualdades en-
tre negros(as) e não-negros(as). Também de acordo com Durand e Sousa
(2002), para compreender a condição social do jovem é fundamental articular
as questões geracionais e biológicas com outras variáveis. Ser jovem depende
também das condições de viver essa juventude.
A mesma discussão é referendada por Dayrell (2002:3), segundo o qual a
MXYHQWXGH SRGH VHU SHUFHELGD VRPHQWH VH FRQVLGHUDUPRV DV HVSHFLÀFLGDGHV
que marcam a vida de cada um. Assim, segundo ele, “a juventude constitui um
momento determinado, mas que não se reduz a uma passagem, assumindo

88
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

XPDLPSRUWkQFLDHPVLPHVPD7RGRHVVHSURFHVVRpLQÁXHQFLDGRSHORPHLR
social concreto no qual se desenvolve e pela qualidade das trocas que este
proporciona”. Portanto, torna-se necessário entender a categoria social da ju-
ventude como construção cultural em sua pluralidade e diversidade.
Nesse contexto de construção da identidade do ser jovem é que se instau-
ra a relação do eu com o outro, pois, como aponta Todorov (1983), é a ação
do olhar sobre o eu que possibilita a existência como somos. O processo de
construção de identidade abarca esse movimento, e os(as) jovens no cotidia-
no da escola tecem, muitas vezes por meio de uma trama nem sempre visível,
a rede da qual devem fazer parte os educadores/as e a comunidade que os
circunda.
3DUDTXHDWHVVLWXUDGHVVDUHGHRFRUUDGHIDWRFRPÀRVGHGLYHUVRVQRYH-
los, torna-se fundamental o conhecimento do todo, e nele o ensino fragmen-
WDGRGiOXJDUDXPFRQKHFLPHQWRPDLVJOREDOHVLJQLÀFDWLYR2DHVWXGDQWH
é então encarada como possuidora de uma identidade singular que o/a apre-
senta como um ser biológico, cultural e social, inserido numa coletividade
HVSHFtÀFDHDRPHVPRWHPSRSRVVXLGRUGHXPDLGHQWLGDGHFROHWLYDTXHH[L-
ge e deve permitir o reconhecimento de características comuns a esse grupo
denominado juventude.
$WDUHIDSRVWDDWRGRV DV RV DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRHPHVSHFLDO
aos educadores/as, é saber reconhecer, respeitar e valorizar as diferenças ins-
tauradas por essa diversidade de estudantes-sujeitos. Conforme assinalam
vários estudos, entre os quais Corti e Souza (2005), o que torna o trabalho
GRFHQWHPDLVHÀFD]pH[DWDPHQWHRFRQKHFLPHQWRTXHVHWHPGDWUDMHWyULD
que os(as) jovens apresentam. Conhecê-los(as) é abrir a escola para consi-
derar suas necessidades de sobrevivência digna, suas buscas e escolhas, suas
vivências diárias e seus saberes muitas vezes ignorados.

1.4 Cultura juvenil em foco

1HVVDHWDSDGDYLGDFRPRDÀUPD0HOXFFL  ´DMXYHQWXGHQmRp


PDLVVRPHQWHXPDFRQGLomRELROyJLFDPDVXPDGHÀQLomRFXOWXUDOµRTXH
implica considerar as experiências singulares de cada grupo, dentro de seus
contextos de existência, exigindo considerar além da idade suas relações com
o espaço e com a cultura. Assim, para conhecer mais e melhor os estudantes,
as escolas devem atentar para as culturas juvenis que aglutinam uma gama de
atitudes e atividades desenvolvidas e valorizadas por essa faixa etária. Em seu

89
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

interior transitam a literatura, as linguagens – os quadrinhos, os textos poéti-


cos, os movimentos culturais populares –, os blocos carnavalescos, os grupos
de congadas, os grupos teatrais e musicais e as bandas de música (SRSURFN
UHJJDHmúsica afro), posses de rappers, movimento hip hop, funk e outros.
O movimento KLSKRS além de musical é social, pois ao trazer o ritmo e
a poesia e outras linguagens aborda as injustiças e opressões raciais e sociais,
utiliza essa produção artística e poética para anunciar e denunciar o lugar
histórico, político e social que ocupam e como vivem negros(as) e pobres.
Também por meio desses espaços de convivência, a dimensão cultural tem se
mostrado altamente mobilizadora para os jovens que buscam se conhecer e
DÀUPDUHPHVSDoRVGLYHUVRV
'HVWDFDVHTXHSDUWHGDMXYHQWXGHQHJUDYHPUHVVLJQLÀFDQGRHVSDoRVGH
tradição e de cultura afro-brasileiras em suas diversas formas de preservação
e manifestação. Ao enfatizar o ensino de história e cultura africanas e afro-
brasileiras, os princípios norteadores de uma educação anti-racista têm nas
comunidades de terreiros os batuques, folias de reis, maracatus, tambor de
crioula, entre outras manifestações folclóricas, aspectos fundamentais para
estabelecer os vínculos com a ancestralidade no que se refere a lugares de
constituição de identidades.
Aprender a ouvir esses jovens faz da escola espaço de diálogo com a con-
cretude de diferentes cotidianos, como nos indica Gomes (2005:1):
(...) um dos caminhos para a construção de práticas formadoras que
eduquem para a diversidade e contemplem a questão do negro poderá
ser o da construção de um olhar mais atento aos caminhos e percursos
dos educandos e educandas negros(as), ou seja, descobrir como tem
sido o processo de construção da sua identidade negra, os símbolos
étnicos que criam e recriam através da estética, do corpo, da musicali-
dade, da arte. Não poderíamos mapear, conhecer e analisar tais práticas
de maneira mais coletiva, junto com os alunos? O que eles/elas podem
QRV HQVLQDU VREUH D VXD YLYrQFLD FRPR QHJURV DV " 4XH UHÁH[}HV DV
experiências oriundas de um universo cultural marcado pela condição
racial, de classe e de gênero poderão nos trazer?
Nessa perspectiva, escola seria então lugar de experiências e trocas en-
tre negros(as) e não-negros(as), de valorização da diversidade e da igualdade,
mudando o rumo de uma história de exclusão e discriminações que expulsa a
população negra da escola regular.
Aqui se coloca o olhar de reconhecimento em relação ao outro. Compre-
ender que aquele que é alvo de discriminação sofre de fato, e de maneira pro-

90
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

funda, é condição para que o educador, em sala de aula, possa escutar mesmo
o que não foi dito com todas as palavras, e ler o que não foi escrito com todas
as letras. Posicionando-se e desconstruindo o mito da democracia racial – que sus-
tenta a idéia de harmonia na relação entre negros(as) e brancos(as) no país –, o/a
HGXFDGRUDFRPSURPHWHVHDMXQWDUWRGRVHVVHVÀRVWHFHQGRDUHGHSUHWHQGLGD
com as experiências culturais, os valores, desejos, não-desejos, os conhecimentos e
as culturas que se constituem parte importante dos ambientes de aprendizagens.
Para realizá-la será preciso compreender que a construção da eqüidade ét-
nico-racial é um processo também sócio-histórico e cultural e não algo natu-
ral. Essa, sem dúvida, é uma tarefa complexa. Pensar a diversidade no sentido
de promover a equalização das relações étnico-raciais exige disposição para
mergulhar em um processo de estudo e de formação capaz de fazer compre-
ender como e por que, ao longo do processo histórico, as diferenças foram
produzidas e muitas vezes usadas como critérios de seleção, de exclusão de
alguns e de inclusão de outros.
A escola de Ensino Médio deve desenvolver ações para que todos(as),
negros(as) e não-negros(as), construam suas identidades individuais e coleti-
vas, garantindo o direito de aprender e de ampliar seus conhecimentos, sem
serem obrigados a negar a si próprios ou ao grupo étnico-racial a que perten-
cem. É na perspectiva da valorização da diversidade que se localiza o trabalho
com a questão racial, tendo como referência a participação efetiva de sujeitos
negros(as) e não-negros(as).

2. PROPOSTAS EM DIÁLOGO COM OS PROJETOS POLÍTICO-


PEDAGÓGICOS

,QWHUYLUSRUPHLRGR3URMHWR3ROtWLFR3HGDJyJLFRUHVVLJQLÀFDGRHFRQV-
truído coletivamente com base na realidade de cada escola, é o que esse Plano
GH$omRSURS}HDRDÀUPDUDPXGDQoDHPSUiWLFDVHPWRUQRGDV'LUHWUL]HV
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Defende-se serem esses os caminhos possíveis para elaborar uma pro-
posta de matriz curricular que redirecione a organização e a dinâmica da uni-
dade escolar, de modo que o fazer pedagógico seja um fazer político que se
disponha a detectar e enfrentar as diversas formas de racismo e a valorização
da diversidade étnico-racial na escola, particularmente nas de Ensino Médio.
Isso não se faz em completa harmonia, tampouco apenas no discurso.

91
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Nas palavras de Ilma Passos (2003):


A instituição educativa não é apenas uma instituição que reproduz re-
lações sociais e valores dominantes, mas é também uma instituição de
confronto, de resistência e proposição de inovações. A inovação edu-
cativa deve produzir rupturas e, sob essa ótica, ela procura romper com
a clássica cisão entre concepção e execução, uma divisão própria da
organização do trabalho fragmentado.
Dessa perspectiva, a idéia de harmonia que ainda vigora na cultura escolar
é posta em questão. Conforme Souza, Vóvio e Oliveira (2004), em contextos
de reivindicação de direitos, entre eles o direito de agrupamentos étnicos, é
que o Projeto Político-Pedagógico de cada escola ganha sentido. Os sujeitos
UHDÀUPDPDLQWHQFLRQDOLGDGHHDHVSHFLÀFLGDGHGDDomRHGXFDWLYDQDHODER-
ração do projeto, entendido como espaço e processo de formação. É nesse
GRFXPHQWR GD HVFROD TXH R FRPSURPLVVR GD HGLÀFDomR GH XPD HGXFDomR
pública de qualidade se concretiza: na articulação dos aspectos políticos e
pedagógicos; e na proposição de um currículo comprometido com a valori-
zação da diversidade.
É imprescindível que a discussão, a análise e a reestruturação do Projeto
Político-Pedagógico (PPP) sejam entendidas como um processo construído
coletivamente entre todos os envolvidos.
O fundamento aqui adotado em relação ao projeto político-pedagógico
assume a perspectiva emancipatória e anti-racista e foge da idéia de que seja
um instrumento meramente burocrático. Aposta, sim, em uma idéia de docu-
mento que coloca em pauta e procura olhar cotidianamente as questões macro
e micro, tais como o atendimento da secretaria escolar, os alimentos servidos,
DHVFROKDHSUHSDUDomRDVPDQHLUDVGHUHVROYHURVFRQÁLWRVEHPFRPRSUR-
mover atitudes e valores que favoreçam a convivência.
Os sujeitos que constroem e movimentam o projeto político-pedagó-
gico são protagonistas, atuantes, e procuram eles mesmos formas de res-
ponder pelo engendramento e fortalecimento de ações de transformação.
A comunidade escolar – gestor educacional, coordenadores, orientadores,
SURIHVVRUHVHGHPDLVSURÀVVLRQDLVTXHWUDEDOKDPQDHVFRODHVWXGDQWHVSDLV
mães e parentes responsáveis – deve assumir a responsabilidade coletiva e
individualmente.
Considera-se a inserção das Diretrizes no Projeto Pedagógico da escola
como a assunção de um conjunto de valores, e elas devem interferir na gestão
da escola e não apenas da sala de aula ou na disposição dos conteúdos curri-
culares, ainda que se dê também por meio dos saberes disciplinares.

92
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Dessa forma, uma possibilidade de trabalho recai sobre a movimentação


dos conteúdos, de acordo com as áreas de conhecimento apontadas nos Pa-
râmetros Curriculares do Ensino Médio, de maneira que o currículo seja or-
ganizado ao longo do curso, segundo descreve Tomaz Tadeu da Silva (1999,
p. 150), como lugar, espaço, território no qual são incentivadas as discussões,
o entendimento e as negociações das relações de poder. De acordo com o
DXWRU´RFXUUtFXORpWUDMHWyULDYLDJHPSHUFXUVR2FXUUtFXORpDXWRELRJUDÀD
nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currí-
culo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade”.
Sobre essa questão, pesquisadores/as sobre relações raciais, entre os quais
Gonçalves e Silva (2001), Gomes (2004) e Passos (2002), ao abordar a situa-
omRGRFXUUtFXORGRSRQWRGHYLVWDDQWLUDFLVWDDÀUPDPTXHDHVFRODHPVXDV
práticas cotidianas, ainda não possui referenciais voltados para a promoção
da igualdade étnico-racial. Observa Passos que:
 VHDHVFRODUHÁHWHRPRGHORVRFLDOQDTXDOHVWiLQVHULGDLVVRVLJ-
QLÀFDTXHQHODWDPEpPHVWmRSUHVHQWHVDVSUiWLFDVGDVGHVLJXDOGDGHV
sociais, raciais, culturais econômicas e que determinados grupos sociais
ainda estão submetidos na sociedade brasileira. Do mesmo modo, te-
mos nela as possibilidades para a superação das formas mais variadas
de preconceito e desigualdade (2002: 21).
Isso implica considerar que a escola, ao mesmo tempo em que discrimina,
ao pensar a superação desse estado e na perspectiva anti-racista, contempla
um projeto e um currículo que:
• adotam metodologias que propiciem ao educando a gestão do ensinar e
do aprender, consoante sua identidade e objetivos da modalidade;
• contemplam o saber escolar e o extra-escolar para além das áreas de
conhecimento obrigatório da Base Nacional Comum;
• GLYHUVLÀFDP DV H[SHULrQFLDV GH DSUHQGL]DJHP SDXWDGDV HP VLWXDo}HV
cotidianas que desmascaram mitos e preconceitos em relação à popu-
lação negra;
• enfatizam o respeito pela dignidade da pessoa humana, a diversidade
cultural, a igualdade de direitos e a co-responsabilidade pela vida social,
como elementos que orientam a seleção de conteúdos e a organização
de situações de aprendizagem;
• promovem não apenas o reconhecimento, mas a incorporação de ati-
tudes que ressaltem as diferenças de forma que sejam tomadas como
constituintes de identidade dos sujeitos, na perspectiva da transforma-
ção das relações sociais;

93
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• DPSOLDPHFULDPHVSDoRVSDUDUHÁH[mRHWURFDHQWUHDHVFRODHDFR-
munidade por meio de alianças com organizações e instituições públi-
cas e privadas da sociedade civil, comprometidas com a promoção da
eqüidade social e racial, bem como organizações do movimento social
negro.
Ao ter contemplado tais aspectos, o currículo, como um dos elementos
de um projeto político-pedagógico, é reconstruído na direção da diversidade,
respeitando os princípios que têm sido entendidos como norteadores para
uma educação anti-racista: pedagogia multicultural, coletiva, cooperativa e
comunitária, multidimensional e polifônica, que preserva a circularidade, a
territorialidade e a ancestralidade africanas.

2.2 Organização Curricular do Ensino Médio

&RPRFUHVFHQWHGHEDWHHPWRUQRGDVFRQFHSo}HVHÀQDOLGDGHVGR(QVL-
no Médio, alguns temas são recorrentes: importância da cultura juvenil, for-
talecimento de identidade, inserções no mundo do trabalho, uso social das
linguagens e outros. O presente trabalho os entende como pertinentes às três
iUHDVGHFRQKHFLPHQWRTXHÀJXUDPQR3&1(06mRLPSRUWDQWHVHHPJUDQ-
de medida dialogam com as orientações voltadas para as diretrizes de uma
pedagogia de qualidade (BRASIL, 1999, p. 80-106). Ainda que não detalha-
dos, são entendidos como presentes em qualquer ambiente educativo no qual
os(as) jovens sejam o centro de atenção. Serão suas trajetórias de vida que
LUmRDWULEXLUVLJQLÀFDGRVDRDPELHQWHPDUFDQGRRTXHPHUHFHVHUGLVFXWLGR
durante a estada na escola. Tratar desses temas é fundamental para tomar o
processo de construção do conhecimento como espaço de questionamentos,
GHUHÁH[mRHGHFRPSUHHQVmRGHVLHGRRXWURFRPRHVSDoRGHH[SHULPHQ-
tações e de transformações.

3. PROPOSTAS E PROJETOS

As temáticas e atividades sugeridas devem afetar o cotidiano escolar, pro-


vocando alterações que serão mais ou menos visíveis em curto e médio pra-
zos. A sala de aula passa a ser mais um dos espaços que, de acordo com o
projeto político-pedagógico da escola, movimentam e dão corpo às propos-
tas em curso.
Recomenda-se o trabalho por projetos, conforme Hernández & Ventura
(1998), Torres (1998) e Carneiro (2001), relacionados com a vivência, experi-

94
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ência e valores da comunidade escolar, propiciando tanto a ruptura com uma


visão limitada das relações étnico-raciais, como também a crítica ao etnocen-
trismo. Tal processo de desenvolvimento envolve desde a organização física
da escola, a maneira como é atendida a comunidade que procura a unidade
escolar, a aparência das paredes, dos murais e dos cartazes que informam
como e com quem a escola estabelece alianças e a concepção de mundo e de
homem presente no espaço.
Ressalta-se que o trabalho por projetos é uma das dimensões fundamen-
tais deste processo, pois necessariamente coloca as pessoas em contato e exi-
ge negociação de posturas e princípios na escolha das perguntas a serem res-
pondidas, do que se quer conhecer, de quais estratégias investigativas eleger e
também da visualização do potencial de transformação do cotidiano presente
nos projetos que estabelecem relações mais próximas com o cotidiano, com a
realidade. Educar para a diversidade implica precisamente conceber a escola
como um espaço coletivo de aprendizagens.
As mínimas atitudes merecem atenção, observação e escuta, bem como
informam, dizem quem são os alunos e as alunas, o que querem, o que fa-
zem e que papel pode ter a escola em suas vidas. É esse olhar atento, de-
senvolvido coletivamente, que descortina os temas importantes para a vida
da comunidade escolar. Tal movimento de aprender e de ensinar, como já
assinalado requer estabelecer parâmetros de interação nos quais negros(as)
e não-negros(as) sintam e experienciem a escola como espaço de acolhida.
Assim, além de dialogar e problematizar, é necessário pensar soluções que, no
FRWLGLDQRLQWHUÀUDPHDOWHUHPDUHDOLGDGH
Ao trabalhar por projetos visando a apresentar e valorizar a participação
da população negra na história e cultura brasileiras, também podem ser fo-
calizados os recursos e materiais didáticos, a ambientação da sala de aula, os
espaços de troca e de solidariedade entre docentes e discentes, o tratamento
interpessoal, bem como o tratamento das informações que circulam dentro e
fora da comunidade, além das diversas formas de registro, acompanhamento
e avaliação de atividades.
As possibilidades de inserção das Diretrizes para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africa-
na nos currículos escolares e no cotidiano avançam à medida que o aprender
esteja relacionado com a vivência, experiência e os valores da comunidade
envolvida.
Nesse ponto de vista, torna-se imprescindível considerar o conhecimen-
to e as perspectivas de vida do público jovem que freqüenta as salas do Ensi-

95
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

no Médio como motor de toda e qualquer proposta. É preciso atentar para o


fato de que juventude não é somente um tempo da vida de preparação para
a fase adulta, e sim um tempo social, cultural e de construção de sua iden-
tidade. Esses/as jovens têm já uma história e precisam se reconhecer como
protagonistas e sujeitos de sua trajetória, e a escola necessita respeitar e ouvir
o que eles/as desejam, chamá-los(as) e entendê-los(as) como parceiros(as) na
construção das práticas pedagógicas.

A identidade continua
Coleção Particular - Nilma L. Gomes

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98
O pensador
Coleção particular

Educação de Jovens e Adultos


O pensador
Coleção particular

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS


Coordenação: Rosane de Almeida Pires1

O resgate da memória coletiva e da história da


comunidade negra não interessa apenas aos alunos de
ascendência negra. (...) Além disso, essa memória não
pertence somente aos negros. Ela pertence a todos,
tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos
cotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos
que, apesar das condições desiguais nas quais se
desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na
formação da riqueza econômica e social
e da identidade nacional.
Kabengele Munanga

Introdução

E ste texto compartilha idéias e possibilidades no sentido de fortalecer práti-


cas políticas e pedagógicas na modalidade de Educação de Jovens e Adultos
(-$ TXHUHDÀUPHPRFRPSURPLVVRFRPXPDDERUGDJHPDQWLUDFLVWDGHHGX-
cação, explicitado no texto de Contextualização deste documento.
Na primeira parte, o texto traz um breve histórico da educação de jovens
e adultos, demonstrando que em sua trajetória de constituição, nos sistemas
de ensino formais e não formais, ainda não contempla práticas educativas que
1
Graduada em Letras e mestra em Teoria da Literatura/UFMG. Integrante do Grupo de Educa-
doras Negras da Fundação Centro de Referência da Cultura Negra/BH. Professora de Educação
de Jovens e Adultos da Rede Pública da Prefeitura de Belo Horizonte/MG.É proprietária da SOBÁ
– Livraria Especializada em Livros Étnicos.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

abarquem as relações raciais da escola. Na segunda parte, procura discorrer


sobre os sujeitos presentes na educação de jovens e adultos: negros e jovens
cada vez mais jovens, suas buscas, suas atuação na sociedade, sua relação com
a escola e, ainda, busca apresentar uma faceta do movimento social negro, que
por meio de mecanismos diferentes e fases distintas, mostra que constante-
mente se preocupou com a educação dos jovens e adultos negros. Na terceira
parte do texto há uma tentativa de cotizar o projeto político pedagógico da
escola com o projeto de implementação de uma educação anti-racista, apre-
sentando aos educadores possibilidades de atuação para a inserção de práticas
educacionais, e também políticas, para a educação das relações étnico-raciais.

1. EJA: CONCEPÇÕES, AVANÇOS E DESAFIOS

Nos últimos anos, dentro de um cenário de grandes e rápidas transfor-


mações econômicas, políticas e sociais, as concepções de educação sofrem
LPSDFWRVVLJQLÀFDWLYRV'LDQWHGDQHFHVVLGDGHGHUHVSRQGHUjVGHPDQGDVSRU
condições de exercício da cidadania, a sociedade e o Estado, sensibilizados,
vão reconhecendo a urgência de elaborar e implementar políticas públicas
da juventude dirigidas à garantia da pluralidade de seus direitos, dentre eles,
a educação. A educação de jovens e adultos ganha destaque na agenda das
políticas públicas brasileiras. A Lei nº 9.394/96 estabelece, no art. 4, inciso
VI, “oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando”;
e no inciso VII, “oferta de educação escolar para jovens e adultos, com ca-
racterísticas e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades,
garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e perma-
nência na escola”.
Ao mesmo tempo em que se consolidam as políticas para a educação de
jovens e adultos na realidade brasileira, tem sido cada vez mais crescente a
GLVFXVVmRHPWRUQRGDVHVSHFLÀFLGDGHVGRS~EOLFRTXHIUHTHQWDRVHVSDoRV
em que essa educação ocorre, sujeitos homens e mulheres, negros, brancos,
indígenas, jovens, idosos.
Na perspectiva de considerar essa modalidade de ensino não como com-
pensatória, supletiva, de aceleração dos estudos para sujeitos de direito e não
de favores, sua atuação não pode desconsiderar a questão étnico-racial com
FHQWUDOLGDGHGDGRRSHUÀOGRS~EOLFRDTXHDWHQGHPDMRULWDULDPHQWHQHJUR
Repensar a EJA numa perspectiva da educação anti-racista requer criar
formas mais democráticas de se implementarem as ações e projetos para esse

102
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

público, pautando a multiplicidade do tripé espaço-tempo-concepção na sua


organização e desenvolvimento.
'HQWUHRVGHVDÀRVFRORFDGRVSDUDD(-$HVWiRGHSRVVLELOLWDUDLQFOXVmR
da discussão sobre a questão racial não apenas como tema transversal ou dis-
ciplina do currículo, mas como discussão, problematização e vivências.
1HVWH WH[WR HVWDPRV DWHQWRV DRV PROGHV GD HGXFDomR SRSXODU ÀHO DRV
princípios freireanos, que apostava numa relação dialogal da prática pedagó-
gica. Faz-se necessário considerar a articulação entre os princípios de edu-
cação propostos aqui e as diversas práticas sociais de oralidade, de leitura,
bem como desvendar o funcionamento da escrita para o jovem e adulto de
forma a possibilitar sua inserção no mundo letrado. Enfatiza-se que a alfa-
betização ganha sentido na vida dos estudantes, conforme Vóvio (2003:03)
quando eles puderem entender e usar os conhecimentos no cotidiano e para
isso precisam “desenvolver novas habilidades e criar novas motivações para
transformarem-se a si mesmos, interessar-se por questões que afetam a todos
e intervir na realidade da qual fazem parte, simultaneamente ao aprendizado
da escrita”.
Desta maneira, da etapa de alfabetização ao equivalente Ensino Médio,
é fundamental propiciar condições para que os estudantes sejam usuários
da escrita de forma efetiva. Ou seja, que vivenciem atividades e eventos nos
TXDLVUHODFLRQHPRVXVRVGDHVFULWDDRVSUREOHPDVHGHVDÀRVGRFRWLGLDQR
buscando soluções, produzindo novos saberes e avaliando a importância des-
WHVQRFRQWH[WRHPTXHYLYHP4XHDDSUHQGL]DJHPVHMDSRUWDQWRVLJQLÀFD-
tiva para o jovem e adulto ser e estar no mundo local, regional e global.
A Educação de Jovens e Adultos é aqui reconhecida conforme expresso
na Declaração de Hamburgo (1997) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais
desta modalidade, de acordo com a Resolução CNE/CEB nº. 1 / 2000, como
direito de todos os cidadãos que não iniciaram ou não completaram sua esco-
laridade básica por diferentes motivos.
Trata-se também de considerar a educação continuada e permanente, no
sentido em que aparece na Declaração de Hamburgo:
um conjunto de processos de aprendizagem formal ou não, graças ao
qual as pessoas são consideradas adultas pela sociedade a que perten-
cem, desenvolvem as suas capacidades, enriquecem os seus conheci-
PHQWRVHPHOKRUDPDVVXDVTXDOLÀFDo}HVWpFQLFDVHSURÀVVLRQDLVRXDV
orientam de modo a satisfazerem as suas próprias necessidades e as da
sociedade (...) compreende a educação formal e a educação permanen-
te, a educação não formal e toda gama de oportunidades de educação

103
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

informal e ocasional existentes em uma sociedade educativa, multicul-


tural em que são reconhecidas as abordagens teóricas e baseadas na
prática. (Art.3º da Declaração de Hamburgo)
A EJA na atual Constituição Brasileira também garante o direito ao En-
sino Fundamental obrigatório, inclusive para jovens e adultos, institucionali-
zando a educação como direito, compreendida como “o pleno desenvolvi-
PHQWRGDSHVVRDVHXSUHSDURSDUDRH[HUFtFLRGDFLGDGDQLDHVXDTXDOLÀFDomR
para o trabalho” (Constituição Federal 1988, art.205).
(VVDDWLWXGHSROtWLFDGRJRYHUQRIHGHUDOUHÁHWHXPDPXGDQoDUDGLFDOQD
UHFRQÀJXUDomRGDHGXFDomRGHMRYHQVHDGXOWRVR(VWDGRDVVXPHSXEOLFD-
mente responsabilizar-se por EJA, e criam-se estruturas gerenciais para EJA
QDVVHFUHWDULDVPXQLFLSDLVHHVWDGXDLVGH(GXFDomRFRQÀJXUDVHQR0(&XP
espaço institucional para essa modalidade de ensino, além de as universidades
abrigarem novos cursos de formação de educadores de jovens e adultos.
$ UHDOL]DomR GD 9 &RQÀQWHD ² &RQIHUrQFLD ,QWHUQDFLRQDO GH (GXFDomR
de Adultos – Alemanha/1997 produziu forte impacto para o campo da EJA
no Brasil, pois a partir daí iniciou-se um processo de articulação dos fóruns
estaduais e em âmbito nacional – Encontro Nacional de Jovens e Adultos
(Eneja).
2VIyUXQVYrPGHVHPSHQKDQGRXPDDUWLFXODomRH[WUHPDPHQWHVLJQLÀ-
cativa entre as instituições envolvidas com EJA, além de apresentar-se como
um espaço político-pedagógico de formação e trocas de experiências de gran-
de importância.
&RQWXGRRVUHVXOWDGRVWrPVHPRVWUDGRLQVXÀFLHQWHVQRTXHVHUHIHUHj
JDUDQWLDGHTXDOLGDGHGRHQVLQRRTXHSUHVVXS}HFRQVLGHUDURSHUÀOGRVHV-
tudantes, reorganizar currículos de maneira que a realidade seja sempre ponto
de partida para as ações, repensar currículo e metodologia adequada, além de
formação de professores capazes de dar conta de um contingente cada vez
maior de jovens e adultos que busca a continuidade dos estudos.
De acordo com o Censo Escolar de 2003, 3,7 milhões de estudantes com
25 anos ou mais estavam matriculados nos ensinos fundamental e médio re-
gulares e na educação de jovens e adultos (INEP, 2004),
Os dados do Censo Escolar, realizado anualmente pelo Instituto Na-
cional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/
MEC), comprovam a volta à escola da população adulta. Há cinco
anos 2,6 milhões dos alunos da Educação Básica tinham idade de 25
anos ou mais. Em 1999, eles representavam 5,5% das 46,9 milhões de
matrículas do Ensino Fundamental e médio e da educação de jovens
e adultos. O maior contingente de estudantes de 25 anos de idade ou

104
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

PDLVIRLYHULÀFDGRQD5HJLmR1RUGHVWHRQGHHVWXGDPLOKmR(Q-
tre os estados, São Paulo e Bahia têm mais alunos: 531 mil e 465 mil,
respectivamente. No Pará e no Acre foram registrados os mais ele-
vados índices (14,9% e 13,2%, respectivamente) de matrículas nessa
faixa etária. Por outro lado, o menor percentual está em Minas Gerais:
3,5%. (INEP, 2004: 01).
6mRQ~PHURVVLJQLÀFDWLYRVSDUDXPDPRGDOLGDGHGHHQVLQRTXHDLQGDQmR
conta com recursos próprios para sua permanência, que muitas vezes é pen-
sada e adaptada aos modelos de sistema escolar, como o Ensino Fundamental
e médio, como as únicas formas de garantir direito à educação.
É cada vez mais urgente que iniciativas governamentais (especialmente
de municípios) e não-governamentais garantam por meio da elaboração do
Projeto Político Pedagógico, da organização curricular e das práticas edu-
cacionais, o acesso, a permanência e a qualidade da educação nesta moda-
lidade de ensino, o que não pode ser realidade sem considerar as questões
étnico-raciais.
7RUQDVHLPSUHVFLQGtYHOUHDÀUPDUSULQFtSLRVH[SUHVVRVWDLVFRPRQD'H-
claração de Hamburgo, que aponta aspectos importantes para a EJA relativos
ao direito à diversidade e igualdade e que estão associados aos princípios de
uma educação anti-racista.
$HGXFDomRGHMRYHQVHDGXOWRVHQIUHQWDXPJUDQGHGHVDÀRTXHFRQVLVWH
em preservar e documentar o conhecimento oral e cultural dos diferentes
grupos. A educação intercultural deve promover o aprendizado e o inter-
câmbio de conhecimento entre e sobre diferentes culturas, em favor da paz,
dos direitos humanos, das liberdades fundamentais, da democracia, da justiça,
FRH[LVWrQFLDSDFtÀFDHGDGLYHUVLGDGHFXOWXUDO &21),17($ 

2. SUJEITOS PRESENTES NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E


ADULTOS

A educação de jovens e adultos, embora pontuada por várias iniciativas


da sociedade civil ligadas a diversas organizações e movimentos sociais - sin-
dicatos, igrejas, associações, ONGs —, e que todo este conjunto de iniciati-
vas ocorrendo, em grande parte, fora do sistema formal de educação, tenha
concebido e sustentado uma série de iniciativas comprometidas, em maior
ou menor intensidade com os setores inferiorizados da população, ainda não
tem priorizado temáticas que coloquem a educação da população negra como
foco.

105
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

6HJXQGRR,QVWLWXWR%UDVLOHLURGH*HRJUDÀDH(VWDWtVWLFD ,%*( RVQH-


gros – pretos e pardos – representam 45% da população brasileira. O pesqui-
sador Marcelo Paixão nos chama a atenção para o seguinte fato:
é evidente que, ao contrário do que pregam alguns estudos acadêmicos
e o senso comum, a questão racial está longe de ser um problema menor
ou típico de minorias (...) assim, simplesmente não há como superar as
injustiças sociais e a exclusão em nosso país sem que o negro, e o seu
movimento organizado, seja o ponto de partida e o ponto de chegada
das análises e das políticas (2003:131-132).
Para citar apenas dois momentos históricos na luta por igualdade de edu-
cação para negros e brancos, ponderamos sobre o movimento social negro,
que já na década de 30, com a Frente Negra Brasileira, propunha um proces-
so de educação popular voltado para a população negra. Segundo GOMES
(2005), essas organizações negras, além de denunciar o racismo, construíam
estratégias com o objetivo de preencher as lacunas deixadas pelo Estado bra-
sileiro em relação aos processos educativos escolares voltados para o segmen-
to negro da população.
Também o Teatro Experimental do Negro (TEN), na década de 50 de-
senvolveu projeto que articulou a discussão da educação da população negra
em torno de suas várias estratégias de atuação: teatro, estudos e ações polí-
ticas, entre elas a experiência educacional. Como apontam Lima & Romão
(1999, p.43), o TEN empreende pioneiramente um grande movimento em
que articula arte e educação, tendo como cenário o teatro, implementando
uma proposta pedagógica para os negros e todos os interessados em seu
projeto. No curso de alfabetização de pessoas adultas, uma das atividades
chegou a reunir centenas de pessoas - empregadas domésticas, trabalhadores
da construção civil e outros.
A exemplo destes, existe um sem-número de iniciativas realizadas de
maneira mais ou menos sistemática junto ao movimento social negro e
entidades de diversos movimentos sociais. Para citar os contemporâneos,
elencamos os trabalhos desenvolvidos na área de educação da população
negra pelo CEAO – Centro de Estudos Afro-Orientais e o CEAFRO de
Salvador/Bahia, e o NEN - Núcleo de Estudos Negros de Florianópolis/
SC. Essas instituições do movimento social negro encontram-se envolvidas
com prestação de serviço, assessoria e organização de propostas de educa-
ção para negros e negras, ora em parceria com as secretarias municipais e
estaduais de Educação, ora sozinhos nessa empreitada, sem nenhuma con-
tribuição do Estado.

106
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Se no passado a luta era para possibilitar o acesso, na atualidade ela focali-


za a permanência na escola. Quanto mais próximo das estatísticas que apon-
tam situações de exclusão social os(as) jovens estiverem, mais marcados são
como um problema. No que se refere à educação do jovem negro a questão
JDQKDDLQGDPDLVGHQVLGDGHSRLVVmRHOHVTXHÀJXUDPFRPRGHWHQWRUHVGRV
mais baixos índices nas avaliações escolares sendo expulsos da escola.
É exatamente nesse novo momento que vive a sociedade brasileira em
TXHVHGLVFXWHPDo}HVDÀUPDWLYDVSDUDHFRPDSRSXODomRDIURGHVFHQGHQ-
te, que a Educação de Jovens e Adultos também é ponto de pauta. Todo o
conjunto de ações políticas, públicas e privadas, de caráter compulsório, que
têm como objetivo corrigir desigualdades sociais e étnico-raciais necessita ser
abarcado pela EJA, por seu caráter de transformação da sociedade por meio
de ações de inclusão social e garantia de igualdade de oportunidades para to-
dos, possibilitando que os(as) historicamente excluídos(as) estejam presentes
neste espaço-tempo de educação a que têm direito.
Quando chegam à EJA, em sua maioria, jovens e adultos estão desmoti-
vados, vêm de anos de afastamento da escola e, ainda, de muitos processos
de exclusão vivenciados em diferentes momentos da vida e por motivos dis-
tintos: social, educacional, racial, geracional e de gênero.
Considerar tais aspectos aponta a necessidade de tomar o adulto, mas
especialmente a juventude, como um grupo heterogêneo, caracterizado para
além da faixa etária, considerando-se outras variáveis relativas às condições de
vida e ao pertencimento étnico-racial dos sujeitos.
Se a presença da juventude negra encontra-se em crescimento na EJA, o
fato por si só obriga o/a professor/a a ponderar sobre sua atuação e confe-
rir um lugar a esses jovens, de maneira que possam conceber-se sujeitos no
processo educativo. Conhecer essa juventude e realizar com ela movimentos
GHGHVYHODPHQWRGDUHDOLGDGHFRPRSULQFtSLRGHDSUHQGL]DJHPVLJQLÀFDWLYD
reconhecendo os saberes dos diferentes jovens, é de fato o que deve mover a
construção do conhecimento dessa modalidade de ensino. Vários estudos re-
alizados acerca da juventude têm constatado que no geral o/a jovem não tem
sido entendido como sujeito de direitos (SPÓSITO, 1996; DAYRELL 1996;
CORTI & SOUZA, 2005; SOUZA, 2005; ABAD, 2003; ARROYO, 2001.) e,
conseqüentemente não exerce protagonismo nos espaços educativos.
Se as expectativas em relação ao processo de aprendizagem estão relacio-
nadas não apenas às condições socioeconômicas, mas também aos hábitos
culturais e geracionais e, ainda, aos conhecimentos, habilidades e procedi-
mentos, crenças e valores que possuem os diferentes sujeitos que freqüentam

107
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

a escola (RAAB, 1999), é preciso apreender a bagagem cultural diversa dos(as)


estudantes, especialmente quando diferentes faixas etárias se circunscrevem
nesse espaço.
Também o conhecimento do universo afro-brasileiro no qual está inseri-
do esse público majoritário de EJA necessita vir à tona, ocupar espaço, tor-
nar-se integrante dos projetos desenvolvidos na escola.

3. O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E O CURRÍCULO

Além de considerar o conhecimento que os(as) estudantes de EJA trazem


consigo, é necessário construir propostas pedagógicas a partir da vivência
FRWLGLDQDGRVGDVHVWXGDQWHVGHVXDVSUiWLFDVVRFLDLVHSURÀVVLRQDLVUHOLJLR-
sidade, opções de lazer e suas vivências sócioculturais.
Cada um com seu retalho, de cor, de textura e tamanho diferentes bus-
ca costurar e contribuir com o gestar do que acontece no espaço educativo
marcado pelo muito que se aprende e que se ensina com as histórias de vida
de todos os envolvidos. Abarcar os diferentes e suas diferenças requer dispo-
sição para uma tomada de postura política.
Acolhendo as palavras de Gomes, uma proposta pedagógica que con-
temple a diversidade étnica e racial dos sujeitos de EJA carrega em si uma
contradição:
(...)ao mesmo tempo em que se faz necessária a luta pela inclusão da
questão racial nos currículos e práticas de EJA, é necessário reconhe-
cer que ela já está presente na EJA por meio dos estudantes pobres e
negros que majoritariamente freqüentam essa modalidade de ensino
(2005:94).
Por que não há inclusão da temática negra nas práticas político-pedagógi-
cas de EJA? Ou quando ela se dá é quase sempre de modo transversal e não
como eixo norteador dos trabalhos e propostas desenvolvidas?
Não há aqui a intenção de responsabilizar os(as) educadores/as de EJA
por não incluírem em seus projetos pedagógicos a temática étnico-racial, mas
VLPUHVVDOWDUDDXVrQFLDGHXPDSROtWLFDGHIRUPDomRHVSHFtÀFDSDUDHVVDDWX-
ação nos cursos de licenciatura.
Os saberes em torno dos sujeitos da EJA devem constituir-se como a
matéria-prima da construção dos projetos e atividades propostas. São esses
VXMHLWRVTXHLUmRWHFHUFRPRVÀRVGHVXDVYLGDVDFROFKDGDHGXFDomRGHMR-
vens e adultos.

108
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

De onde vêm? Para que vieram? Com quem e onde vivem? O que bus-
cam? O que gostam de fazer em seu tempo livre? Todas essas questões devem
sempre perpassar uma proposta pedagógica de EJA.
A proposta de EJA articulada a uma pedagogia anti-racista cria estratégias
para garantir a permanência na escola de quem a ela retorna; necessita, ainda,
construir condições de acompanhamento coletivo do processo de envolvi-
mento e aprendizagem dos estudantes, o que pode ocorrer com reuniões
pedagógicas constantes, nas quais o projeto pedagógico é discutido e re-orga-
nizado com o olhar de todos. O trabalho realizado a partir dessa concepção
se fundamenta inteiramente nos sujeitos envolvidos nesse processo de ensino
e aprendizagem coletivo, tanto estudantes quanto educadores/as aprendem e
ensinam, respeitam e são respeitados em suas diferenças.

3.1 Os primeiros contatos

Atitudes plenas de recepção e inclusão na chegada dos alunos e alunas


na procura pela vaga ou no momento da matrícula podem tornar-se um mo-
mento privilegiado para o conhecimento dos sujeitos parceiros nesse cami-
QKR D VHU SHUFRUULGR 5HFHErORV EHP GL]HU TXH À]HUDP XPD ERD RSomR
que tomaram a decisão certa ao voltar a estudar, ouvi-los, apresentar a escola
novamente para esses estudantes, estando ao seu lado, são atitudes plenas de
acolhida e inclusão voltadas para uma educação anti-racista.
As conversas individuais ou coletivas no momento da chegada à escola,
quando são dadas as boas-vindas e há um breve relato do fazer pedagógico,
são momentos preciosos para essa escuta, o que implica uma aproximação
grande entre os sujeitos envolvidos, pois tanto quem recebe quanto quem é
recebido precisa sentir-se acolhido e acolhendo.
Nestes primeiros contatos, informações relevantes que podem compor
um roteiro de entrevista ou questionário voltado à avaliação diagnóstica, con-
tendo itens como: vida pessoal e familiar, escolaridade e trabalho, coleta e or-
ganização, sistematização e análise e o uso constante das informações como
um dos principais referenciais para o planejamento coletivo podem ser cons-
truídas e desenvolvidas por todos, como parte das atividades do cotidiano da
EJA, aliadas aos conteúdos tradicionais do currículo regular. A construção de
uma pedagogia anti-racista pressupõe que a fala do sujeito receba tratamento
privilegiado e se constitua como um dos aspectos centrais para o desenvolvi-
mento das atividades e construção de projetos para a EJA.

109
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

3.2 Diagnóstico e organização curricular

O/a jovem ou o/a adulto/a que busca novamente a escolarização formal


não pode ser pensado/a como um/a mero/a portador/a de “conhecimentos
prévios” que precisam ser resgatados pelo/a educador/a, mas sim um sujeito
que já construiu sua história de vida, uma identidade própria e que, cotidia-
namente, produz cultura.
A observação e a escuta atenta dos movimentos coletivos constituem es-
paço para o reconhecimento da discriminação e do preconceito, bem como
para a construção de alternativas e outras posturas às atitudes e tratamentos
racistas e discriminatórios - desde o apelido não consentido até criar espaço
GHUHFRQKHFLPHQWRGHGLÀFXOGDGHVHSRWHQFLDOLGDGHVQDSURGXomRGHQRYRV
conhecimentos dos(as) estudantes negros(as). Essas são ações primordiais
e simples de se adotar quando concordamos que as diferenças não podem
ser tomadas por desigualdades. É essencial desnaturalizar as desigualdades e
FRPSUHHQGHURVLJQLÀFDGRGDVGLIHUHQoDV
Respeitando e incorporando a diversidade que compõe a escola, bem
como permitindo uma construção, de fato, coletiva, em que a voz de cada
sujeito envolvido possa ser ouvida, estamos desenvolvendo uma pedagogia
transformadora.

3.3 Projetos e Planejamento das aulas

&RQVLGHUDUDVELRJUDÀDVDVKLVWyULDVGHYLGDGRV DV HVWXGDQWHVFRPRHOH-
PHQWRIXQGDPHQWDOSDUDDFRQVWUXomRFROHWLYDGHXPSHUÀOGD(-$4XDQWRV
somos? Mais homens ou mais mulheres? Que ocupação diária vem sendo
mais desenvolvida pela maioria? O que fazemos para nos divertir? Qual a
IDL[DVDODULDOGRVTXHWUDEDOKDP"4XDQWRV DV WrPÀOKRVHPTXDOUHJLmRPRUD
a maioria? Qual a faixa geracional que mais apresenta alunos(as)? Quais e
quantos(as) são negros(as)? A organização desses dados precisa, necessaria-
mente, ser preparada por todos(as), desde a elaboração das questões até as
respostas, com resultantes desse trabalho.
Na busca por uma proposta metodológica, pode-se optar coletivamente
por temas considerados importantes para a maioria: histórias de vida, rela-
o}HVIDPLOLDUHVKLVWyULDORFDOHRVSUREOHPDVGDUHJLmRWUDEDOKRSURÀVV}HV
GLÀFXOGDGHV GH LQVHUomR QR PHUFDGR VDOiULR GLUHLWRV WUDEDOKLVWDV VHUYLoRV
de saúde, alimentação e higiene; mídia e comunicação; direitos sociais e or-
ganização política; religião, que evidenciarão a predominância de estudantes
negros(as) na EJA.

110
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Tal proposta requer sensibilidade, pesquisa/estudo e planejamento do


educador, posto que é preciso cuidar para que não-negros(as) não se sintam
culpabilizados e que os(as) negros(as) possam reconhecer sua presença e va-
lor na construção da história e da cultura brasileira.
1D HGXFDomR GH MRYHQV H DGXOWRV WRUQDVH EDVWDQWH VLJQLÀFDWLYD D SUH-
sença de qualidade, ou seja, é preciso repensar as faltas e ausências dos(as)
estudantes, pois os mesmos são trabalhadores e seus deslocamentos geográ-
ÀFRV VmR FRQVWDQWHV HPSUHVDV GH FRQVWUXomR FLYLO YLJLDV HPSUHJDGRV DV 
domésticos(as) com seus patrões são alguns exemplos dessas idas e vindas
dos(as) educandos(as) de EJA.
A utilização de recursos e dinâmicas variadas também precisa ser pensada
de forma a incluir a temática aqui em questão. Ao solicitar pesquisas ou ao
XWLOL]DUUHFXUVRVHGLQkPLFDVSHGDJyJLFDVLQFRUSRUDUÀOPHVGRFXPHQWiULRV
YtGHRVIRWRJUDÀDVHQDUUDWLYDVTXHGHVWDTXHPRXWUDEDOKHPWDPEpPFRPD
questão racial ou que trazem referências positivas para os estudantes afro-
descendentes. Esse trabalho deverá ser feito coletivamente, numa articulação
entre grupos de alunos(as) e educadores/as.

3.4 Interação em sala de aula

As propostas pedagógicas necessitam, ainda, levar a cabo os princípios da


dialogicidade da educação, as abordagens sociointeracionistas da linguagem e
a alfabetização pautada numa perspectiva de letramento (KLEIMAM, 1985).
Considerar que nosso pensamento emerge e transforma-se na interação
com o outro é essencial para perceber que a língua não pode ser concebida
como um simples código lingüístico; ela é um instrumento poderoso para
persuadir, interagir, emocionar-se, explorar e se comunicar. A interação social
é, portanto, a concretude da linguagem, é preciso que o ensino da língua em
VXDYDULDQWHGHSUHVWtJLRVHWRUQHVLJQLÀFDWLYREDVHDGRHPIDWRVFRWLGLDQRV
dos sujeitos envolvidos. Reconhecer e legitimar estratégias e instrumentos
culturais e não-formais que permitem sua inserção e interação em diferentes
espaços sociais – a oralidade, a leitura de rótulos, painéis, placas, números e
códigos visuais – constituem recursos apropriados.
Todo/a jovem e/ou adulto/a que se dispõe a retomar os estudos necessi-
ta ser pensado/a como um ser produtor de cultura e de saberes, um vencedor
em sua luta cotidiana pela sobrevivência, por isso suas estratégias de leitura
do mundo jamais devem ser deixadas de lado, antes necessitam ser conside-
radas como pressupostos para a leitura escolar.

111
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

&RPRDÀUPDYD3DXOR)UHLUH2 o problema principal não é o analfabetis-


mo, mas as condições de vida da população analfabeta. Devemos acrescentar
ainda, as condições de tratamento a que a população negra analfabeta está
submetida.

3.5 Oralidade e Linguagem

Potencializar a oralidade presente nos ambientes de EJA e, mais, nas ati-


vidades desenvolvidas por jovens e adultos(as) negros(as) em suas comuni-
dades, bem como valorizar sua atuação em torno da fala representam ação
político-pedagógico da educação anti-racista. Ao agregar a comunidade em
torno da fala – preservação das tradições e mitos de matriz africana – os(as)
estudantes negros(as) estão dizendo de seu pertencimento étnico e explicitan-
GRXPDHVWUDWpJLDHÀFD]GHOHLWXUDGHPXQGRSRUHVVHYLpV
Esta percepção e a reconstrução de seu olhar para a presença dos estu-
dantes negros e negras deve estar para o/a educador/a de EJA, como para
a população negra, voltado para a arte da oralidade, para a ancestralidade,
fazendo-se um exercício permanente da sabedoria.
A língua é um aspecto importante a ser considerado, pois como nos assi-
nala Martins (1996) o uso do signo lingüístico constitui uma das formas mais
perversas de segregação e controle. Se paramos para pensar na semântica,
percebemos o quão opressora esta tem sido – buscando no dicionário va-
mos encontrar quarenta derivações do substantivo negro, contra dezesseis do
substantivo branco. O substantivo negro funciona dez vezes como adjetivo
e o branco nove. A diferença ideológica é que para o adjetivo negro corres-
SRQGHPVLJQLÀFDGRVSHMRUDWLYRVHPQ~PHURGHRQ]HHSDUDREUDQFRDSHQDV
meio (0,5). Não podemos acreditar que é só uma questão lingüística, é preciso
UHVVHPDQWL]DUQRVVDOLQJXDJHPGLiULDHPWRUQRGDUHÁH[mRTXHSURPRYDD
igualdade das relações étnico-raciais.
Não há como ignorar o papel que a linguagem irá ocupar na educação
de jovens e adultos numa perspectiva de educação anti-racista. Ao retomar a
importância da oralidade e atentar para a naturalização no uso de termos pre-
conceituosos presentes na língua brasileira, o/a educador/a de EJA necessita
ter em mãos textos de literatura afro-brasileira que contenham as seguintes
características::
2
II Congresso Nacional de Educação de Jovens e Adultos – Recife, década de 1950.

112
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• que apresentem ilustrações positivas de personagens negras;


• cujos conteúdos remetam ao universo cultural africano e afro-brasileiro;
• que possibilitem aos leitores o acesso a obras nas quais habitem reis e rai-
nhas negros(as), deuses africanos, bem como os mitos afro-brasileiros;
• em que as tessituras realizadas durante a leitura possam contribuir para
elevação da auto-estima dos/das jovens e adultos;
• que representem sem estereótipos a população negra brasileira;
• que analisem também a contribuição das obras estrangeiras em que
aparecem essas personagens. Muitas delas, praticamente desconhecida,
rompem com a tradição de representação estereotipada das narrativas e
ilustrações em relação à população negra.

3.6 Alfabetização, Língua Portuguesa, História, Artes e Literatura

As atividades de leitura e de produção de textos precisam ser planejadas


com o intuito de problematizar a vivência cotidiana dos educandos e agir
sobre ela, transformando-a.
É preciso explicitar em que medida o uso da linguagem entendida como
prática social ocorre em determinados contextos e em determinadas situa-
ções. A linguagem serve para marcar o lugar de onde falamos; assim devemos
levar para os alunos e alunas textos que circulam em diferentes esferas sociais:
imprensa escrita, mídia, literatura e escola, para serem discutidos a partir dos
prévios conhecimentos dos educandos, construindo, desse modo, diferentes
estratégias de leitura, como antecipação de sentidos, inferências, localização
de informações, interpretação de pressupostos, entrelinhas, dentre outras.
Porém, se a exclusão social se dá de forma material e simbólica ao negar-
mos as contribuições e presença do negro na história e cultura brasileira, as-
sim como dos povos dos quais descende, da sua herança africana produzimos
uma exclusão simbólica.
Ao enfatizar o ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras,
deve-se buscar conhecer os espaços de tradição e de cultura afro-brasileira em
suas diversas formas de preservação e manifestação: os tradicionais espaços
religiosos como os terreiros, os congados, os batuques, folias de reis, maraca-
tus, tambor de crioula, entre outros, que devem ser tomados como aspectos
fundamentais para estabelecer vínculos com a ancestralidade, no que se refere
a lugares de constituição de identidades da população negra. Sugere-se:

113
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• partir da genealogia da família dos/das estudantes para contar e recon-


tar a história de África e de africanos, bem como de seus descendentes
escravizados no Brasil;
• retomar conhecimentos que a vida ensinou: medidas construídas de
maneira alternativa, curas populares, jogos e brincadeiras infantis que
remontam aos séculos passados, de origem africana;
• realizar leitura de textos que se referem aos processos de resistência da
diáspora africana no Brasil;
• pensar na contribuição cultural, popular e “clássica”, incluindo os(as)
artistas negros(as) na música, artes plásticas, dramaturgia e literatura.

3.7 O cotidiano em sala de aula

A rotina na sala de aula – espaços de troca e diálogo, o compromisso, a


ambientação da sala –, tudo deve favorecer a convivência e o diálogo entre
os estudantes e os educadores, todos são de responsabilidade de todos, o tra-
balho deve ser sempre coletivo. Nesse sentido, uma cadeira vazia não é uma
cadeira vazia, é alguém que faltou por alguma razão, qual será? Vamos buscar
o motivo e tentar ajudar para que a ausência não seja transformada em evasão
e exclusão?
É preciso sempre colocar o jovem e o adulto no centro de todos os mo-
vimentos. Eles devem ser protagonistas e, para que isso ocorra, é importante
abrir espaço para a sua participação. Ao valorizar o saber dos estudantes, eles
se sentem respeitados e à vontade para participar dos processos coletivos de
construção de conhecimentos. Neste sentido podemos:
• Abordar as manifestações culturais tradicionais presentes na comunida-
de e dialogar a memória desses sujeitos enquanto trabalhadores rurais,
ÀOKRVHRXQHWRVGHIHVWHLURV,VVRDEUDQJHDRUJDQL]DomRSROtWLFDGHV-
ses grupos, a herança musical das famílias dos(as) jovens; as visões de
mundo que os fortalecem para o enfrentamento diário contra o racismo
existente na sociedade em que se inserem; a posição que os(as) jovens
RFXSDPQDPDQXWHQomRGHVVDKHUDQoDDQFHVWUDOHRVFRQÁLWRVTXHLVVR
gera em confronto com a modernidade; e, ainda, utilizar esse manancial
cultural para as aulas: letras das músicas, os cantos, os ritmos etc.
• Buscar, organizar e sistematizar mecanismos que possam utilizar os
movimentos culturais de rua dos(as) jovens – suas realizações com o
corpo, com a música, com as artes plásticas, com a comunidade. Este

114
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

cotidiano das culturas juvenis pode fazer parte das propostas pedagó-
gicas da escola.

3.8 Tratamento das informações

As informações que circulam ao redor da comunidade são o motor para a


elaboração do planejamento, das atividades e dos projetos a serem desenvol-
vidos em conjunto - as atividades, os conteúdos, as estratégias metodológicas,
o registro, o acompanhamento, a avaliação e a circulação destes aprendizados,
a relação com a comunidade externa e a relação com os conhecimentos ad-
quiridos anteriormente –, isto é aprender ao longo da vida.
A superação do paradigma compensatório cede lugar à educação enten-
dida como um direito de todos os sujeitos, com garantia de educação de
TXDOLGDGH H TXH SRVVLELOLWH R IRUWDOHFLPHQWR GRV VXMHLWRV QD UHÁH[mR VREUH
sua realidade e sobre as questões que afetam a todos, e na busca coletiva de
soluções para enfrentá-las.
Sugere-se garantir a participação ativa dos estudantes em processos edu-
FDWLYRVTXHVHMDPVLJQLÀFDWLYRVSDUDDVSUiWLFDVVRFLDLVQDVTXDLVHVWHMDPHQ-
volvidos, desde as mais imediatas até as mais difusas, próprias das demandas
da atual sociedade.
Alguns movimentos simples são necessários e possibilitam que as ativida-
des desenvolvidas se tornem parte da construção de uma escola que, de fato,
respeite os sujeitos desse espaço –, estudantes e educadores.

3.9 Registro e Avaliação

0DQWHURVSULQFtSLRVGHXPDHGXFDomRDQWLUDFLVWDVLJQLÀFDWDPEpPSHQ-
sar outras maneiras para avaliar o processo educativo.
A avaliação, entendida como um processo, assume não apenas informar
VREUHRGHVHPSHQKRHDVDSUHQGL]DJHQVÀQDLVFODVVLÀFDUHPHGLURTXHp
pertinente com uma concepção de educação excludente, mas sim, como uma
das maneiras de acompanhar, dar suporte, conhecer, acolher percursos in-
dividuais dos estudantes, bem como os modos de aprender e de usar estes
conhecimentos nas práticas que desenvolvem as necessidades de formação.
Nessa etapa o registro mostra-se fundamental: anotações individuais des-
de a avaliação diagnóstica, bem como os registros coletivos em cadernos de

115
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

memória, nos quais a cada dia um dos estudantes se torna responsável, ou


ainda as pastas com materiais diversos: textos, fotos etc...
Para além dos objetivos gerais a que se propõem os programas, outros
devem ser estabelecidos em conjunto e de acordo com as necessidades e
realidade dos estudantes, das comunidades em que vivem, das atividades que
UHDOL]DPGRVVHXVVRQKRVGHVHXVSURMHWRVHGHVHXVGHVDÀRV
Nesse processo de avaliar, é preciso incluir os espaços fora da sala de
aula para abranger as atividades externas junto à comunidade – os espaços
de manifestações culturais, as festas nas casas das pessoas, os festivais e jogos
coletivos.
Os projetos pensados necessitam promover a circulação pelos espaços cul-
turais da cidade com o objetivo de ampliar o acesso aos lugares políticos e cul-
turalmente valorizados, de maneira que a circulação possa ser entendida como
direito e exercício de cidadania. A ocupação dos espaços culturais privilegiados
deve ser pensada como uma das estratégias de tornar a cultura e as opções de
lazer das cidades em intervenções pedagógicas.
A concepção e os princípios são vividos e praticados ao longo de todo o
processo educativo e não apenas em momentos pontuais ou projetos espo-
rádicos, como geralmente acontece. O processo de formação de educadores
precisa ocorrer constantemente. Para isto as secretarias de Educação preci-
sam sempre oferecer cursos de atualização e especialização3 . Repensar a EJA
numa perspectiva de educação anti-racista requer criar formas mais democrá-
ticas de se implementarem as atividades, projetos e avaliação, e essas são tare-
fas que exigem coerência com princípios assumidos por este documento.

O pensador
Coleção particular
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3
Ver texto do GT Licenciaturas.

116
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

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ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

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119
Sankofa
Coleção particular - Wilson Veleci

Licenciaturas
Sankofa
Coleção particular - Wilson Veleci

LICENCIATURAS
Coordenação: Rosana Batista Monteiro1

Acredito na pedagogia que liberta a tecnologia de sua


atual tendência de escravizar o ser humano. A tecnologia
deve existir como um sustentáculo para a consagração
do Homem e da Mulher em sua condição de ser.
$XWRVXÀFLrQFLDQDFULDomRHQDDGRomRGHWHFQRORJLD
DVVLPFRPRQRGHVHQYROYLPHQWRFLHQWtÀFR
precisa ocorrer simultaneamente ao desenvolvimento
das nações, obedecendo a seu ajustamento funcional
ao respectivo ambiente e realidade humana.
Abdias do Nascimento

Introdução

O presente texto dirige-se à comunidade acadêmica das instituições de


educação superior (IES), especialmente às dedicadas à formação de
SURÀVVLRQDLV GD HGXFDomR H D WRGRV DV  RV DV  HQYROYLGRV DV  GLUHWDPHQWH
com o fenômeno educativo.
2ULHQWDUDV,(6SDUDTXHSRVVDPUHVSRQGHUDRVGHVDÀRVTXHVHDSUHVHQ-
tam a partir da legislação em vigor, abordada na Introdução desse Documen-
to, atuando no combate a todas as formas de racismo. Fortalecer a nação bra-
sileira em torno de premissas da democracia, da diversidade e da cidadania,
papel inquestionável dos órgãos gestores da educação que em parte aqui se
realiza.
1
Mestre em Educação pela Unicamp e graduada em Pedagogia pela Unesp/Araraquara (SP). Atua
como docente da Educação Superior desde 1993 em cursos de Pedagogia e Licenciaturas. Professo-
ra na Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenadora do programa de Educação de Jovens e
Adultos, da mesma universidade, também tem atuado, junto com os professores, na implementação
da Lei 10.639/03.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

O texto apresenta-se em três partes: a descrição do campo das licencia-


turas e sua articulação com a legislação a ser implementada; um breve diag-
nóstico sobre a produção de pesquisas e ações relativas à formação dos(as)
SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRHUHODo}HVpWQLFRUDFLDLVHSRUÀPDLQVHUomRGDV
diretrizes nas instituições de ensino superior.

1. O CAMPO DAS LICENCIATURAS

0XLWRVVmRRVFXUVRVTXHIRUPDPSURIHVVRUHVDVHRXWURVSURÀVVLRQDLV
que atuam na escola de Educação Básica, desde a creche até Ensino Médio,
incluídas as modalidades previstas na legislação: educação especial, educação
SURÀVVLRQDORXHGXFDomRGHMRYHQVHDGXOWRV2FXUUtFXORGHIRUPDomRSDUD
cada uma das etapas e/ou modalidades difere-se também de acordo com os
lugares, espaços e territórios onde se desenvolvem.
Decorrem desta diversidade de cursos e seus mais variados currículos as
formas de desenvolvê-los, ou seja, presencialmente, à distância, semi-presen-
cial, de formação inicial ou continuada. Dentre estes certamente há aqueles
em que é óbvia a relação com a Resolução CNE/CP 1/2004, mas em outros,
esta relação não se mostra com a mesma facilidade.
É preciso, portanto, evidenciar que todos os educadores têm a tarefa,
juntos e apoiados pelos gestores – da escola e do sistema – de implementar a
Resolução CNE/CP 1/2004 em seus espaços de atuação; e, se isto depende
de obterem formação para tanto, este texto procura contribuir com esta ta-
refa formativa.
Evidenciada a diversidade de cursos existentes e suas respectivas especi-
ÀFLGDGHVRSWRXVHDTXLSRUVHID]HUXPUHFRUWHHWUDWDUGDIRUPDomRLQLFLDO
posto que a diversidade assinalada acima ante o tempo-espaço de construção
deste texto nos impediria de tratar de todo o conjunto de possibilidades/
modalidades de espaços de formação adequadamente. Trataremos dos ele-
PHQWRVFRPXQVH[LVWHQWHVQDPDLRULDGRVFXUVRVGHIRUPDomRGRVSURÀVVLR-
nais da educação e, sempre que possível, indicaremos caminhos para o que
SRVVXHPGHHVSHFtÀFR&HUWDPHQWHHVWHQmRVHUiR~QLFRGRFXPHQWRSDUDD
inserção da Resolução CNE/CP 1/2004.
Neste texto nos referiremos aos cursos como sendo de formação dos(as)
SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRSRVWRTXHGHVVHPRGRLQFRUSRUDPRVWDQWRSURIHV-
sores/as dos diferentes níveis/etapas/modalidades da educação como tam-
bém os(as) pedagogos(as) em suas áreas de atuação, seja no interior do siste-

124
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ma escolar e das escolas, ou em outros espaços educativos, de acordo com o


que estabelece a Lei n° 9.394/1996.
A Resolução CNE/CP 1/2004 deve ser referendada nos cursos de for-
PDomRGRVSURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR 3HGDJRJLD/LFHQFLDWXUDVHP+LVWyULD
*HRJUDÀD)LORVRÀD/HWUDV4XtPLFD)tVLFD0DWHPiWLFD%LRORJLD3VLFROR-
gia, Sociologia/Ciências Sociais, Artes e as correlacionadas, assim como Cur-
so normal superior), tanto nas atividades acadêmicas (disciplinas, módulos,
VHPLQiULRVHVWiJLRV FRPXQVDWRGRVHOHVTXDQWRQDVHVSHFtÀFDVSRVVLELOL-
WDQGRDSURIXQGDPHQWRVHRWUDWDPHQWRGHWHPiWLFDVYROWDGDVjHVSHFLÀFLGDGH
de cada área de conhecimento (Figura 1).

Figura 1: Relação entre a Resolução CNE/CP 1/2004 e cursos de formação inicial.


As instituições de educação superior podem ainda se debruçar, por ini-
ciativa própria, na revisão das matrizes curriculares de cursos que não serão
contemplados neste texto. Cursos como Direito, Medicina, Odontologia, Co-
municação e tantos outros, embora não abordados aqui, podem ser revis-
WRV D SDUWLU GDV GHWHUPLQDo}HV GDV SROtWLFDV GH DomR DÀUPDWLYD $R LQGLFDU
a necessidade de reorganização/revisão do Projeto-Político Pedagógico da
instituição e dos cursos e sua articulação com os diferentes espaços das IES,
pretende-se indicar caminhos para a revisão de outros cursos.
A educação, em todos os níveis e modalidades, é estratégica na transfor-
mação da atual situação em que se encontra a maioria dos negros e negras em
nosso país, vítimas de preconceito e discriminação. Porém, não são apenas
os(as) negros(as) que sofrem com as conseqüências deste quadro: “o racismo
imprime marcas negativas na subjetividade dos negros e também na dos que
os discriminam” (Parecer CNE/CP 3/2004).
Este trabalho se refere, portanto, à construção de estratégias educacionais
que visem a uma pedagogia anti-racista e à diversidade – promotora da igual-
dade racial - como tarefa de todos(as) os(as) educadores/as, independente-
mente do seu pertencimento étnico-racial.

125
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Para que a educação anti-racista se concretize, é preciso considerar que o


H[HUFtFLRSURÀVVLRQDOGHSHQGHGHDo}HVLQGLYLGXDLVFROHWLYDVGRVPRYLPHQ-
tos organizados e também das políticas públicas; assim como das ações das
IES enquanto responsáveis pela inserção da Resolução CNE/CP 1/2004,
criando as condições necessárias em seu interior para que avancemos ante o
GHVDÀRTXHRFHQiULRDWXDOQRVFRORFD
2DUWLJRžGD5HVROXomRDÀUPDTXHDV'LUHWUL]HV&XUULFXODUHV1DFLRQDLV
para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana devem ser observadas, em especial, por
instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada
de professores. O mesmo dispositivo prevê, ainda, que as IES, respeitado o
princípio da autonomia, incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades
curriculares dos cursos que ministram a Educação das Relações Étnico-ra-
ciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos
afrodescendentes, de acordo com o Parecer CNE/CP 3/2004.
Desse modo, as instituições de educação superior devem:
• Elaborar uma pedagogia anti-racista e antidiscriminatória e construir
estratégias educacionais orientadas pelo princípio de igualdade básica
da pessoa humana como sujeito de direitos, bem como posicionar-se
formalmente contra toda e qualquer forma de discriminação;
• Responsabilizar-se pela elaboração, execução e avaliação dos cursos e
programas que oferece, assim como de seu projeto institucional, pro-
jetos pedagógicos dos cursos e planos de ensino articulados à temática
étnico-racial;
• &DSDFLWDURV DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRSDUDHPVHXID]HUSHGDJyJL-
co, construir novas relações étnico-raciais; reconhecer e alterar atitudes
racistas em qualquer veículo didático-pedagógico; lidar positivamente
com a diversidade étnico-racial;
• &DSDFLWDURV DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRDLQFOXtUHPD+LVWyULDH&XO-
tura Afro-Brasileira e Africana nos currículos escolares, assim como
novos conteúdos, procedimentos, condições de aprendizagem e objeti-
vos que repensem as relações étnico-raciais;
• &RQVWUXLULGHQWLÀFDUSXEOLFDUHGLVWULEXLUPDWHULDOGLGiWLFRHELEOLRJUi-
ÀFRVREUHDVTXHVW}HVUHODWLYDVDRVREMHWLYRVDQWHULRUHV
• Incluir as competências anteriormente apontadas nos instrumentos de
avaliação institucional, docente e discente, e articular cada uma delas à
pesquisa e à extensão,de acordo com as características das IES.

126
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

2. PESQUISAS E AÇÕES SOBRE RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


NA FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO

Nós professoras, não somos preparadas para lidar com estas diferenças
... não conseguimos ainda pensar um modelo de sociedade diferente,
apesar de concordarmos que este modelo não serve 1.
(PYiULDVUHIHUrQFLDVELEOLRJUiÀFDVYHULÀFDPVHDOXWDHDUHVLVWrQFLDGD
população negra no Brasil para transformar a realidade em que vive e de-
nunciar a sua invisibilidade na história do país, assim como o preconceito e
GLVFULPLQDomRHPUHODomRDHVWHJUXSRVRFLDO$PDLRULDGRV DV SURÀVVLRQDLV
que atuam ou atuaram nas IES, especialmente em licenciaturas e cursos de
Pedagogia, obteve sua formação em meio a este contexto histórico e ideoló-
gico do qual decorre a forma excludente de se viver e pensar a sociedade bra-
VLOHLUDHTXHGHVFRQVLGHURXWDQWRRVFRQÁLWRVpWQLFRUDFLDLVTXDQWRDVFRQ-
tribuições do grupo social em questão (assim como de outros, a exemplo do
LQGtJHQD $HVFRODTXHIRUPRXRV DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRTXHDWXDP
hoje se baseou numa perspectiva curricular eurocêntrica, excludente e, por
vezes preconceituosa.
&RQVWLWXtPRVQRVVDLGHQWLGDGHSURÀVVLRQDOHPPHLRDRPLWRGD´GHPR-
cracia racial”, como nos indica Kabengele Munanga:
A partir de um povo misturado desde os primórdios, foi elaborado,
lenta e progressivamente, o mito de democracia racial. Somos um povo
misturado, portanto, miscigenado; e, acima de tudo, é a diversidade bio-
OyJLFDHFXOWXUDOTXHGLÀFXOWDDQRVVDXQLmRHRQRVVRSURMHWRHQTXDQWR
povo e nação. Somos uma democracia racial porque a mistura gerou
um povo que está acima de tudo, acima das suspeitas raciais e étnicas,
um povo sem barreiras e sem preconceitos. Trata-se de um mito, pois
a mistura não produziu a declarada democracia racial, como demons-
trado pelas inúmeras desigualdades sociais e raciais que o próprio mito
DMXGDDGLVVLPXODUGLÀFXOWDQGRDOLiVDWpDIRUPDomRGDFRQVFLrQFLDHGD
identidade política dos membros dos grupos oprimidos. (1996: 216).

O caminho percorrido até o momento, em direção à educação anti-racista


e para a diversidade, resulta do debate ocorrido nas últimas décadas em torno
da inclusão, do direito de todos à educação e do respeito ao pluralismo cul-
tural em que vivemos no Brasil e no mundo. Também decorre das políticas
GHDo}HVDÀUPDWLYDVGHVHQYROYLGDVSULQFLSDOPHQWHDSDUWLUGRÀQDOGRVpFXOR
XX, por demanda constante do Movimento Negro, dos compromissos assu-
1
Relato de uma professora citado por Lima (2005: 24).

127
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

midos em conferências internacionais por parte do Estado brasileiro, dentre


outras instâncias.
Algumas escolas em ambos os níveis da educação (básico e superior) de-
senvolvem hoje práticas que alteram a realidade exposta anteriormente. No
entanto, estas ainda são experiências raras, muitas das quais isoladas e sem
desdobramentos no plano institucional, ou seja, ações solitárias de alguns/
umas educadores/as, na maioria negros(as) (Santana, 1991). A organização
consecutiva do Prêmio “Educar para a Igualdade Racial” do Centro de Es-
tudas das relações de Trabalho (Ceert) tem ilustrado a quase totalidade das
ações desenvolvidas nas escolas sobre educação para as Relações étnico-ra-
ciais e ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que não são
institucionais; são ações individuais baseadas num esforço pessoal do/a edu-
cador/a em lidar com as questões raciais em sua sala de aula.
A abordagem das questões étnico-raciais na Educação Básica depende mui-
WRGDIRUPDomRLQLFLDOGHSURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR(OHVDLQGDSUHFLVDPDYDQoDU
para além dos discursos, ou seja, se por um lado, as pesquisas acadêmicas em tor-
no da questão racial e educação são necessárias, por outro lado precisam chegar
à escola e sala de aula, alterando antes os espaços de formação docente.
Nos anos 1990, Regina Pahim Pinto realizou uma pesquisa em cursos de
nível médio, denominados após a Lei 9.394/96 (BRASIL, 1996) Curso Nor-
PDO FRQVWDWDQGR YiULDV GLÀFXOGDGHV HQWUH RV DV  SURIHVVRUHVDV²IRUPDGR-
res/as em lidar com a temática étnico-racial na educação. Considerando que
estes/as obtiveram sua formação nos cursos de licenciatura e/ou Pedagogia,
pode-se inferir que não tiveram contato com as questões étnico-raciais nesse
processo. Segundo Pinto (2002), os(as) professores/as formadores/as não
percebem o vínculo entre a temática “relações étnico-raciais” e suas discipli-
nas; quando tratam da temática o fazem à medida que situações contingen-
ciais aparecem (o que nos leva a pensar que se as situações não se apresentam,
esta não é abordada); em alguns casos, tratam da temática de acordo com as
GDWDV FRPHPRUDWLYDV RX VHMD DSHQDV HP PRPHQWRV HVSHFtÀFRV FRPR RV
dias 13 de maio ou 20 de novembro.
A pesquisadora alerta ainda para a “concepção abstrata de aluno que os
cursos (...) tendem a transmitir aos futuros professores. Não se discutem as
condições enfrentadas pelos diferentes grupos de alunos, parte-se do pressu-
posto de que nossa sociedade é homogênea” (op. cit., p. 108/9).
Regina Pahim Pinto segue indicando que
  'LÀFLOPHQWH FHUWRV WHPDVFRQWH~GRV TXH RV SURIHVVRUHV DÀU-
maram utilizar, ou que, na sua opinião, seriam viáveis para abordar o

128
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

WHPDSRGHULDPSUHVWDUVHDHVVDÀQDOLGDGHGHYLGRjUHPRWDUHODomR
ou ausência de qualquer relação com o mesmo. Este fato é preocu-
pante, pois denota uma formação precária do professor neste campo.
Além disso, os depoimentos de alguns professores, principalmente os
de Sociologia da Educação, sugerem que a abordagem do tema não
pHVWLPXODGDSHODVTXHVW}HVFRORFDGDVSHODGLVFLSOLQDHQÀPTXHQmR
KiGHVXDSDUWHXPDUHÁH[mRDUHVSHLWRQRFRQWH[WRGDVXDGLVFLSOLQD
(op. cit.: 113).
eSUHFLVRUHÁHWLUDFHUFDGRHVSDoRGHIRUPDomRGHVWHVDVSURIHVVRUHVDV
ou seja, avaliar se as IES vêm se organizando para a inclusão das temáticas
relativas às relações étnico-raciais, assim como o ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica.
De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais (Inep) sobre Formação de Professores no Brasil
(2002), no período entre 1990 e 1998, dos 834 trabalhos de dissertação e teses
defendidas, 60 (7,1%) tratavam de formação de professores/as. Dentre estas,
apenas uma dissertação, de 1993, relaciona-se à formação inicial e questões
étnico-raciais. Esta apontava para a necessidade de repensar o curso de for-
mação de professores/as, incluindo o debate das relações étnico-raciais com
o objetivo de romper com o fracasso escolar.
No diretório de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento
GH3HVVRDOGH1tYHO6XSHULRU &DSHV pSRVVtYHOLGHQWLÀFDUGLVVHUWDo}HV
de mestrado sobre negro e educação e 54 que tratam de educação e raça de-
fendidas em diferentes áreas do conhecimento. Os primeiros trabalhos datam
do início dos anos 1980, e a maior parte das produções data de meados de
1990. No entanto, os trabalhos não estão diretamente relacionados à forma-
omRGRV DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR
Dos 19.470 grupos de estudos e pesquisas inscritos na Plataforma Lattes
GR&RQVHOKR1DFLRQDOGH'HVHQYROYLPHQWR&LHQWtÀFRH7HFQROyJLFR &13T 
em 2005, em torno de 14 abordam temas relativos a “negro e educação” e/ou
a “educação e raça”. No entanto, o fato de abordarem as temáticas apontadas
QmRLQGLFDTXHWUDWDPHVSHFLÀFDPHQWHGHIRUPDomRGHSURÀVVLRQDLVGDHGX-
FDomRQDUHODomRFRPRVWHPDV2XWURVJUXSRVLGHQWLÀFDPVHFRPRGHHV-
tudos afro-brasileiros, ou seja, podem ser relacionados a núcleos de estudos e
pesquisas afro-brasileiros ou similares, denominados Neab ou Neafro. Estes
estão presentes majoritariamente em universidades federais e Estaduais, mas
também em algumas privadas. Estes núcleos são os principais responsáveis
pela inserção de atividades acadêmicas (disciplinas, seminários e outros) no

129
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

interior das IES e em seus cursos de graduação, além de dialogarem de forma


próxima com a comunidade externa às IES, em particular com o Movimento
Negro. São, portanto, espaços importantes de formação de alunos e alunas
negros e negras, de apoio, permanência e resistência nas IES; porém, nem
sempre a criação dos núcleos é reconhecida pelas IES, fato que coloca muitas
GLÀFXOGDGHVSDUDRGHVHQYROYLPHQWRGHVXDVDWLYLGDGHV2V1HDEVVmRMXVWD-
mente o tipo de espaço acadêmico que mais poderá ajudar a gerar um clima
de diversidade nas universidades (BRASIL, MEC/SEMT, 2003: 164).
Esse breve mapeamento das pesquisas desenvolvidas em cursos de pós-
graduação aponta para número crescente de pesquisas sobre negro e edu-
cação, relações étnico-raciais e educação, além de outras linhas de pesquisa
relativas a esta temática; porém estas ainda se detêm pouco sobre a formação
GHSURIHVVRUHVDV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR HVSHFLÀFDPHQWH
Gomes (2004), Aguiar e Di Pierro (2004) ressaltam que a despeito do
crescente aumento da produção sobre o negro e a educação, no Brasil, nas
duas últimas décadas, a produção de teses e dissertações ainda é pequena. A
maior parte dessa produção se apresenta em forma de artigos publicados em
periódicos especializados.
Também associações e organizações não-governamentais destacam-se na
produção de pesquisas, mas principalmente de cursos de formação conti-
nuada de professores/as. Temos como exemplos a Associação Nacional de
Pós-graduação em Educação (Anped), que organiza o “Concurso Negro e
Educação” (com a Ação Educativa e o apoio da Fundação Ford), e insti-
tuiu recentemente o Grupo de Trabalho “Afro-Brasileiros e educação”; a
(Anpocs), Associação Nacional de Pesquisadores em Ciências Sociais, assim
como, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ce-
ert/SP) e o Núcleo de Estudos Negros/SC (Nen/SC). Os dois últimos se
destacam no oferecimento de cursos de formação para professores/as em
serviço, especialmente da rede pública.
Ana Lúcia Valente (2003), tomando como referência uma análise do tema
transversal pluralidade cultural contido nos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais, e observando aspectos positivos e negativos de como este é apresentado,
considera necessário formar o/a professor/a para o tratamento desse tema, a
partir de elaborações teóricas mais consistentes:
Quando se pretende abordar uma temática tão complexa e tão atraves-
sada por contradições como a pluralidade cultural, como reclamar pela
formação dos professores sem um esforço de tornar acessível o conhe-
cimento sobre o assunto? (...)Impedir que se considere a dinâmica do

130
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

processo cultural, implicando transformação e reinterpretações, e evi-


WDURVGHVOL]HVTXHHQIDWL]DPRVDVSHFWRVPDLVVXSHUÀFLDLVHIROFOyULFRV
da cultura dos diferentes são aspectos importantes a serem ressaltados
na formação dos professores que se pretende oferecer” (op.cit., 32-33,
grifo do original).
9DOHQWHDLQGDLGHQWLÀFDRVSUREOHPDVQRWH[WRGRWHPDWUDQVYHUVDORTXDO
GHYHULDFRQWULEXLUSDUDDIRUPDomRGRV DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR2WH[WR
ameniza a relação de poder que implica a diversidade cultural e não promove
o enfrentamento de manifestações discriminatórias, relativizando-as:
O texto admite as relações existentes entre desigualdade social e a si-
tuação de certos grupos portadores de características culturais diferen-
ciadas (...) limita-se a considerar que as produções culturais, contidas
e marcadas por essas relações de poder, envolvem o processo de re-
formulação e resistência. Desse modo são suavizados os processos de
dominação, de repressão, de homogeneização, sem os quais a reação
não poderia ser compreendida. (op.cit., 2003: 28-29).
3RUÀPGHYHVHFRQVLGHUDUTXHDVSROtWLFDVFXUULFXODUHVLPSODQWDGDVSULQ-
cipalmente nos anos 1990 - Diretrizes Curriculares do Ensino Fundamental
e Médio, Parâmetros Curriculares Nacionais (Pcn), Referenciais para a Edu-
cação Infantil - embora sejam abordadas nos cursos de formação dos pro-
ÀVVLRQDLVGDHGXFDomRSDUHFHPQmRWHUSURYRFDGRPXGDQoDVVLJQLÀFDWLYDV
QRTXHVHUHIHUHjVTXHVW}HVpWQLFRUDFLDLV5DFKHO2OLYHLUDDÀUPDTXH´Ki
PXLWDVHPHOKDQoDHQWUHRVREMHWLYRVFXUULFXODUHVGRÀQDOGRVpFXORSDVVDGR
[séc. XIX] vinculados ao término da escravidão e à expansão industrial e os
HODERUDGRVDWXDOPHQWHQRÀQDOGHVWHVpFXOR>VpF;;@µ  
A autora aponta ainda que, apesar de nos anos 1980 e 1990 novas refor-
mas educacionais e mudanças curriculares acontecerem, decorrendo inclusive
da criação de programas de formação dos docentes – da Pedagogia Crítico-
Social dos Conteúdos à Qualidade Total –, nenhuma destas mudanças trouxe
UHVXOWDGRVVLJQLÀFDWLYRVSDUDDHGXFDomRS~EOLFDHSDUWLFXODUPHQWHSDUDR
alunado negro:
 QmRDSUHVHQWDUDPSURSRVWDVGHÀQLGDVGHFRPEDWHDRSUHFRQFHL-
to e não fazem referências à contribuição do negro no processo de
construção da nação. A insistência no ocultamento destas questões no
currículo escolar traz sérios transtornos à formação da identidade da
criança negra que não vê a si e nem a seus ascendentes de forma pro-
dutiva” (op. cit.:79-80).

131
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

O que procuramos demonstrar é que, apesar das reformas educacionais


RFRUULGDVQRÀQDOGRVDQRVHSULQFLSDOPHQWHHPPHDGRVGRVDQRV
após a Lei n° 9394/1996, ainda há muito a ser feito em relação às questões
pWQLFRUDFLDLVHjIRUPDomRGHSURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR

3. INSERÇÃO DAS DIRETRIZES NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO


SUPERIOR (IES)
3.1 Aspectos relativos à gestão das IES

$LQVHUomRGDV'LUHWUL]HVQDV,(6SUHFLVDUHÁHWLUVHQRVGLIHUHQWHVHVSDoRV
institucionais e não apenas na matriz curricular de alguns cursos. A inserção
coerente e comprometida verdadeiramente com o combate a todas as formas
de preconceito e discriminação dá-se nos diferentes espaços por onde circula
toda a comunidade acadêmica ou não, negra e não-negra.
O projeto pedagógico institucional (PPI) e os projetos pedagógicos dos
cursos são componentes centrais para a inserção das Diretrizes nas IES. A
construção do PPI e dos projetos pedagógicos dos cursos depende do diag-
nóstico, da participação de representantes de toda a comunidade acadêmica
e administrativa, de previsão de recursos. Do PPI depende a revisão do regi-
mento da IES, no sentido de que este indique, formalmente, como atuará, por
exemplo, em situações de denúncia de discriminação, em especial, a racial.
Os esforços para inserção das Diretrizes devem articular-se a políticas
educacionais outras, referentes à educação superior, principalmente as Dire-
trizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores para Educação
%iVLFDVH'LUHWUL]HV(VSHFtÀFDVGRV&XUVRVGH/LFHQFLDWXUDV
$ ÀJXUD  SURFXUD GHPRQVWUDU DOJXPDV SRVVtYHLV DUWLFXODo}HV LQWHUQDV
à instituição de educação superior a serem consideradas na inserção da Re-
VROXomR &1(&3  %5$6,/   $ ÀJXUD DSUHVHQWDVH GH IRUPD
FLUFXODULQWHQFLRQDOPHQWHWDOFRPRXPDFLUDQGDSDUDDÀUPDUDQHFHVVLGDGH
e as possibilidades da inserção das Diretrizes étnico-raciais nas instituições
de ensino superior”, respaldada nos valores de africanidade (ver glossário).
O ponto de partida para a inserção é o projeto político-pedagógico ins-
titucional e dos cursos, e a estes estão articulados outros espaços-tempos
das IES, considerados todos eles igualmente importantes. Não há hierarqui-
zação, há dependências e interdependências, inter-relação, concomitâncias,
articulações. Tudo deve circular em torno do centro, articulando-se a ele,

132
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Figura 2. Processo de circularidade de inserção das Diretrizes nas IES

LQWHUDJLQGRFRPHOHPRGLÀFDQGRRWUDQVIRUPDQGRRFRORFDQGRR33,HP
movimento.
Os esforços para inserção das Diretrizes devem ainda articular-se com
outras políticas educacionais referentes à educação superior, principalmen-
te as Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores para
(GXFDomR%iVLFDVH'LUHWUL]HV(VSHFtÀFDVGRV&XUVRVGH/LFHQFLDWXUDV WDP-
bém às da pedagogia, ainda em tramitação).

3.2 Aspectos relativos à matriz curricular

)D]VH QHFHVViULR DLQGD GLDORJDUPRV FRP DV 'LUHWUL]HV HVSHFtÀFDV SDUD


formação do/da professor/a, a saber, o Parecer CNE/CP 9/2001 e a Reso-

133
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

OXomR&1(&3SULQFLSDOPHQWHHPVHXDUWLJRžRTXDOGHÀQHRV
SULQFtSLRVQRUWHDGRUHVSDUDRH[HUFtFLRSURÀVVLRQDOGDGRFrQFLD2 assim como
as competências e os eixos articuladores da formação. As indicações serão
UHDOL]DGDV QD IRUPD GH WHPiULR FRPHQWDGR H ELEOLRJUDÀD HVSHFtÀFDSURSL-
ciando às IES inseri-las nos diferentes espaços curriculares e disciplinares
GLYHUVLÀFDGRVGHVHXVFXUVRV
Os princípios a partir dos quais apontaremos o temário respaldam-se, an-
tes de tudo, nos princípios contidos no Parecer CNE/CP 3/2004 (BRASIL,
2004), que objetivam uma educação anti-racista:
• A Consciência Política e Histórica da Diversidade;
• O Fortalecimento de Identidades e Direitos;
• Ações Educativas de Combate ao Racismo e as Discriminações.

3.3 Experiências de abordagem das relações étnico-raciais na formação


dos profissionais da educação
3.3.1 Proposta de criação de disciplina específica

+iLQVWLWXLo}HVHFXUVRVHPTXHVHRSWDSRUFULDUGLVFLSOLQDVHVSHFtÀFDV
SDUDRWHPDHPSDXWD2SULQFLSDOREMHWLYRGDGLVFLSOLQDHVSHFtÀFDQRFDVR
da formação inicial, deve ser o de complementar a abordagem da CNE/CP
Resolução 1/2004 nas atividades acadêmicas que constituem os cursos. A
GLVFLSOLQDSRGHWDPEpPVHUGHVHQYROYLGDGHDFRUGRFRPDVHVSHFLÀFLGDGHV
dos cursos de Licenciatura, a exemplo, nos cursos de Letras, a criação da dis-
ciplina “Literatura Africana de Língua Portuguesa”; nos cursos de História,
*HRJUDÀDH0DWHPiWLFDSRGHVHID]HURPHVPRH[HUFtFLRGHUHÁH[mRVREUH
D UHODomR GHVWHV FXUVRV VXDV HVSHFLÀFLGDGHV H D WHPiWLFD GD OHL 6XJHUHVH
2
Art. 3º A formação de professores que atuarão nas diferentes etapas e modalidades da Educação
%iVLFDREVHUYDUiSULQFtSLRVQRUWHDGRUHVGHVVHSUHSDURSDUDRH[HUFtFLRSURÀVVLRQDOHVSHFtÀFRTXH
considerem: I - a competência como concepção nuclear na orientação do curso; II - a coerência entre
a formação oferecida e a prática esperada do futuro professor, tendo em vista: a) a simetria inver-
tida, onde o preparo do professor, por ocorrer em lugar similar àquele em que vai atuar, demanda
consistência entre o que faz na formação e o que dele se espera; b) a aprendizagem como processo
de construção de conhecimentos, habilidades e valores em interação com a realidade e com os de-
mais indivíduos, no qual são colocadas em uso capacidades pessoais; c) os conteúdos, como meio e
suporte para a constituição das competências; d) a avaliação como parte integrante do processo de
formação, que possibilita o diagnóstico de lacunas e a aferição dos resultados alcançados, considera-
GDVDVFRPSHWrQFLDVDVHUHPFRQVWLWXtGDVHDLGHQWLÀFDomRGDVPXGDQoDVGHSHUFXUVRHYHQWXDOPHQWH
necessárias. III - a pesquisa, com foco no processo de ensino e de aprendizagem, uma vez que ensi-
nar requer, tanto dispor de conhecimentos e mobilizá-los para a ação, como compreender o processo
de construção do conhecimento.

134
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

que a criação de disciplina que aborde relações étnico-raciais e/ou História e


Cultura afro-brasileira e africana seja oferecida também à distância, de modo
a possibilitar que tanto os futuros educadores como os atuantes, além de de-
mais interessados na temática, possam a ela ter acesso.
'HYHVH QR HQWDQWR FXLGDU SDUD TXH D FULDomR GH GLVFLSOLQD HVSHFtÀFD
sobre a temática não exclua a responsabilidade das Instituições de Ensino
Superior.

3.3.2. Criação de cursos: algumas experiências

IES públicas e privadas vêm desenvolvendo cursos e atividades acadê-


micas para atender às demandas em torno das relações étnico-raciais, mes-
mo antes da Lei n° 10639/2003 (BRASIL, 2003) e da Resolução CNE/CP
 %5$6,/ SRUpPSRXFDVVHYROWDPHVSHFLÀFDPHQWHjIRUPD-
omRGHSURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR$SUHVHQWDPRVDVHJXLUWUrVH[SHULrQFLDVGH
universidades, dentre outras possíveis, que desenvolvem esta formação.

A experiência do (Penesb) – Programa de Educação sobre o Negro


na Sociedade Brasileira

A experiência do PENESB apresenta-se como um exemplo de educação


continuada, mas coopera também para a inserção das Diretrizes nos cursos
de formação inicial. O curso se caracteriza como de lato sensu, mas segundo
Oliveira, o propósito é que gradativamente tais conhecimentos sejam incor-
porados nas diferentes disciplinas dos cursos de licenciatura, o que provocará
uma revisão do curso de especialização (2003, p.116).
2FXUVRHVWiGLYLGLGRHPGXDVGLPHQV}HV&RQWH~GRV(VSHFtÀFRVH'L-
mensão Pedagógica. A primeira inclui as seguintes disciplinas: História da
África; História do negro na sociedade brasileira, Teoria social e relações ra-
ciais; e Religião afro-brasileira. A segunda inclui as disciplinas: Raça, currículo
e práxis pedagógica, Relações raciais no ensino de Literatura, Educação e
identidade racial individual e coletiva, Pesquisa educacional e relações raciais.
A formação docente é decisiva para a educação anti-racista. O curso
contribui para que os docentes possam enfrentar e desestabilizar o racismo
em educação, incorporando majoritariamente a questão racial sistemática e
intencionalmente em suas práticas, superando situações constatadas em pes-

135
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

TXLVDVDQWHULRUHVHPTXHWDLVSURÀVVLRQDLVDÀUPDYDPRVHXGHVSUHSDUR op.
cit., p. 135).

A experiência do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Relações Raciais


e Educação (Nepre/UFMT).
Este núcleo atua principalmente com atividades de formação continuada
de professores; realizou o curso de extensão “Trabalhando as Diferenças no
Ensino Fundamental”, com o objetivo de preparação de professores da rede
pública de ensino para implantação da Lei n° 10.639/2003 de três municípios
no Estado de Mato Grosso (dez.2003 – jul. 2004). Os cursos de extensão
abordam aspectos teóricos e práticos, estimulando os professores à realização
de pesquisas e à publicação nos Cadernos Nepre.
Possui ainda o curso de extensão “Trabalhando as Diferenças na Educa-
ção Básica – Lei n° 10.639/2003”, em parceria com a Secretaria Municipal
de Desporto e Lazer do Município de Cuiabá-MT (em andamento), curso de
Especialização lato sensu: Relações Raciais e Educação na Sociedade Brasileira
(em andamento).

A experiência do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade


Federal da Bahia (Ceaco/Ceafro/UFBA) e Programa de educação e
profissionalização para igualdade racial e de gênero
O Ceao é um órgão de extensão universitária da UFBa que vem desenvol-
vendo ações várias em torno da história e cultura afro-brasileira, africana dentre
outras, e tem o Ceafro como programa especialmente voltado para a educação.
Entre vários cursos sobre a temática, o centro oferece a especialização
“Educação e Diversidade”, voltada para a formação de professores do Ensi-
no Fundamental e médio. Outra iniciativa desenvolvida a partir do Ceafro é
o Projeto Escola Plural: a Diversidade está na sala de aula (Lima, 2005) que
objetiva instrumentalizar os educadores/as da rede municipal de Salvador do
Ensino Fundamental para o desenvolvimento de práticas pedagógicas que
contemplem a diversidade cultural. O diferencial deste projeto deve-se à for-
ma como é desenvolvido, incluindo formação básica, formação em serviço e
acompanhamento em sala de aula.

Sankofa
Coleção particular - Wilson Veleci

136
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

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ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

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Biruta, 2003. p. 17-46.

138
Djembe encontra os tambores da ilha
coleção particular - Cristina Guimarães

Educação Quilombola
Djembe encontra os tambores da ilha
coleção particular - Cristina Guimarães

EDUCAÇÃO QUILOMBOLA
Coordenação: Georgina Helena Lima Nunesa

O quilombo representa um instrumento vigoroso no


processo de reconhecimento da identidade negra
EUDVLOHLUDSDUDXPDPDLRUDXWRDÀUPDomRpWQLFDH
nacional. O fato de ter existido como brecha no sistema
em que negros estavam moralmente submetidos
projeta uma esperança de que instituições semelhantes
possam atuar no presente ao lado de várias outras
manifestações de reforço à identidade cultural.
Beatriz Nascimento

Introdução

O vínculo entre educação com as relações étnico-raciais, sendo um processo


que implica trocas, nos faz crer que a feitura de uma escrita só tem sentido
se ela também se constituir desta forma: troca entre pessoas, entre fatos, ou seja,
entre o escrito e o vivido. É na lógica de relação, de coletivo, de concepção de
escrita para além de uma formação letrada, porque se fala de um lugar – o qui-
ORPER²SDUDDOpPGHXPHVSDoRItVLFRTXHDTXLQRVVXEVFUHYHPRVSDUDUHÁHWLU
sobre a educação e as relações raciais, tendo em vista crianças, adolescentes e
jovens pertencentes às comunidades de Quilombos.
Todos(as) sabemos que o ensinar está relacionado a demandas que nós
nos fazemos ou que a sociedade nos faz; esse procedimento, em um primeiro
momento, dá vazão a uma idéia de exigência, e de uma certa forma o é, mas
1
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bolsista Prodoc na Uni-
versidade Federal de Pelotas/Faculdade de Educação e coordenadora do grupo de pesquisa em Edu-
cação e Relações Raciais do curso de Pós-Graduação em Educação/UFPel.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

não é qualquer exigência. Trata-se de um olhar mais focalizado para um ho-


rizonte relativamente esquecido nas produções acadêmicas, especialmente as
educacionais: um espaço rural e negro.
'RÀQDOGRVpFXOR;,;DWpTXDVHRÀQDOGDVHJXQGDPHWDGHGRVpFXOR
;;RVTXLORPERVIRUDPWUDWDGRVQDKLVWRULRJUDÀDHQDHGXFDomREUDVLOHLUDV
como se restringindo a “redutos de escravos fugitivos” e a experiências do
período escravista. No entanto, por todo o país, agrupamentos negros rurais,
suburbanos e urbanos, se constituíram não somente como fuga ou resistência
direta ao sistema vigente, mas como uma “busca espacial” (NASCIMENTO,
1989), em uma perspectiva dinâmica, na construção de um território que é
social e histórico, através da manutenção e reprodução de um modo de vida
culturalmente próprio.
Após mobilizações regionais em que estiveram envolvidos militantes e
parlamentares negros e entidades de apoio, a abordagem do tema assumiu
outra direção com a publicação na Constituição Federal de um item e um
artigo que se referem diretamente aos quilombos:
Art. 216. Inciso V. § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os
sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.
Disposições Transitórias – Art. 68 - Aos remanescentes das comuni-
dades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
SURSULHGDGHGHÀQLWLYDGHYHQGRR(VWDGRHPLWLUOKHRVWtWXORVUHVSHF-
tivos (BRASIL, 1988).
&RQIRUPH SHVTXLVD UHDOL]DGD SHOR &HQWUR GH *HRJUDÀD H &DUWRJUDÀD
Aplicada (Ciga) da Universidade de Brasília (UnB), coordenado pelo geógra-
fo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, o país tem 2.228 comunidades remanes-
centes de quilombos, em quase todos os estados da Federação (NAVARRO,
2005). No que se refere à relação entre educação e quilombos, cabe ressaltar
que há extensos territórios quilombolas que possuem escolas em seu interior
e áreas em que jovens e adultos dessas localidades migram temporária ou
efetivamente para estudar nas cidades de suas regiões.
Inaugurar caminhos para se pensar um fazer pedagógico em comunidades
TXLORPERODVSDVVDSHORPRPHQWRGDUHÁH[mRHGDDomRQmRGLFRWRPL]DGRV
formadores da unidade que se chama práxis. Práxis, no sentido conferido por
Freire (1987), é uma teoria do fazer e, nesse momento, precisamos exatamen-
te isto: ousar fazer um caminho, na forma de diretriz, sem querer, de forma
alguma, que este seja o caminho absoluto.
O cotidiano quilombola, a exemplo de outros grupos étnico-raciais e so-
FLDLVpDHPHUJrQFLDGDSUi[LVSRUTXHRSHQVDUHRID]HUVHFRUSRULÀFDP

142
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• no forma de visões (pensamentos, idéias) que orientam um portar-se


diante do mundo;
• QRPRGRGHYLGDHPDLVHVSHFLÀFDPHQWHQDIRUPDGHWUDEDOKRFRPR
atividade prática que não isola o pensar do fazer, resultando em um
manter-se no mundo;
• HQÀPFRPRSURFHVVRHGXFDWLYRTXHFRQIHUHDRVVXMHLWRVXPORFDOL]DU
VHQRPXQGRREVHUYDQGRDVVXDVHVSHFLÀFLGDGHVGHUDoDJrQHURIDL[D
etária e classe social.
Esta tríade, didaticamente separada – portar-se, manter-se e situar-se no
PXQGR ²VLJQLÀFDXPDFRQVFLrQFLDHPHUJHQWHXPDXWRFRQKHFLPHQWRWDO-
vez, um autoconhecimento das suas necessidades que se constitui no passo
elementar para sonhar um mundo de menos necessidade e, conseqüentemen-
te, de mais liberdade.
O que se vislumbra, então, é que o processo educativo formal con-
temple a perspectiva de dar sentido aos conteúdos, à aprendizagem, ao
conhecimento. Espera-se desse modo que crianças, adolescentes e jovens,
na relação com a sua natureza histórica e cultural consigam portarem-se,
manter-se e situarem-se dentro da sua comunidade, nos diversos níveis de
ensino e, principalmente, na disputa por um projeto de sociedade mais jus-
ta, fraterna e plural.
Torna-se difícil traçar diretrizes que contemplem todas as comunidades
quilombolas do Brasil. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2004), o país tem 49.722 es-
tudantes matriculados em 364 escolas localizadas em áreas remanescentes
de quilombo, distribuindo-se da seguinte forma mas regiões do país: Norte
(9728), Nordeste (30.789), Sudeste (3.747), Sul (536), Centro-Oeste (4.922).
Em frente deste quadro estatístico, populacional e educacional, cabe
UHDÀUPDUDQHFHVVLGDGHGHSHQVDUDVGLUHWUL]HVSDUDDHGXFDomRHPFRPX-
nidades quilombolas em termos de concepções gerais, que abranjam a di-
versidade étnico-racial e regional do país. Faz-se necessário dizer, também,
TXH SHQVDU HP HGXFDomR TXLORPEROD QmR VLJQLÀFD R DIDVWDPHQWR GH XP
debate mais amplo sobre a educação da população negra de todo o país,
que apresenta índices de escolaridade e alfabetização inferiores à popula-
ção branca.
A proposta uma Educação Quilombola passa por analisarmos qual con-
FHSomRGHHGXFDomRVHIDODHSDUDWDQWRpQHFHVViULRTXHVHUHÁLWDVREUHROX-
gar onde o conhecimento vai ser concebido, sobre quais conceitos sustentam

143
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

uma proposta de educação das relações raciais, em que base didático-peda-


gógica práticas educativas emancipatórias serão possíveis, além das estruturas
reais e necessárias para que este processo se desencadeie. Anunciamos, por
ÀPXPSODQRGHDomRTXHFRQWHPSODDFRQFHSomRGHHGXFDomRTXHFROHWL-
vamente, foi construída.
Construir esta proposta é um exercício da práxis, um fazer cuja essência
e aparência não se desvinculam do ato de criar as condições necessárias para
que educadores/as e educandos(as) na relação entre si e com o espaço onde
se efetiva a prática pedagógica construam um conhecimento agregador de
VDEHUHVVRFLDLVHVDEHUHVFLHQWtÀFRV$VtQWHVHGHVWDVGXDVIRUPDVGHVDEHUpD
formação de sujeitos que não se desenraizarão da sua cultura, da sua história,
mas que, ao mesmo tempo, forjarão as condições necessárias para um diálogo
consigo mesmo e com o mundo que lhes é exterior.
Pensar em diretrizes para educar as relações étnico-raciais em comuni-
dades quilombolas sugere que nós pensemos a partir das próprias comuni-
dades. Este documento, então, é o convite a um diálogo. É um diálogo feito
aos/às educadores/as para que tentem, igualmente, disseminar esta prática.
eSRUÀPXPGLiORJRGHVSURYLGRGDKLHUDUTXLDHQWUHTXHPSHQVDHGXFDomR
e quem realiza; é um diálogo exigente entre quem educa sempre se educando,
revigorando-se na visão de que ensinar exige a convicção de que a mudança
é possível (Freire, 2001).
Para todo o segmento negro e para os quilombolas em especial, os víncu-
los entre educar e formar são ancestrais, não são atributos exclusivos da esco-
la; ancestralidade é tudo o que antecede ao que somos, por isso ela nos forma.
Existe um passado e um presente de populações negras que vêm se educando
secularmente através de uma resistência que não é passiva, que apenas reage
às diversidades, mas que é, igualmente, provocadora de reações. Assim, o que
antecedeu aos antigos quilombolas foi a história da colonização, do escravizar
TXHQmRREVWDQWHRFRQWH[WRGHSHUYHUVLGDGHHVWHVDVUHDÀUPDYDPRGHVH-
jo/direito à liberdade; se havia escravização, havia resistência, havia reação;
os capitães-do-mato não surgiram da imobilidade: foram reações do outro
campo, do campo da opressão.
Todavia, da ancestral história da resistência, acionamos o campo também
da emancipação que, perseverantemente, as comunidades negras continuam a
almejar. Esta é a grande reação a ser despertada no campo da educação: pro-
duzir uma formação humana na qual não caibam estereótipos, discriminação
e preconceitos que elegem e determinam os que estão “dentro” e os que es-
WmR´IRUDµ1HVVHFDPSRRGHVDÀRGDHGXFDomRpFRQWULEXLUSDUDHPDQFLSDU

144
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

radicalmente, as pessoas de relações que retardam uma convivência humana


mais respeitosa e, por isso, mais plena.

1. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:


REFLEXÕES E PRÁTICAS

Seguindo o pressuposto da práxis, não se acredita que a prática anteceda a


teoria ou vice-versa. Dentro de uma organização didática da escrita, no entanto,
faz necessário estabelecer algumas seqüências para que o pensamento de quem
escreve não alce os seus rumos individuais e perca-se na proposta deste texto:
estabelecer um diálogo que tem origem no coletivo que o estruturou e continui-
dade em cada educador que o reformulará em conformidade com o seu olhar.
2FDPSRGDVUHÁH[}HVRULHQWDVHQRVHQWLGRGHGLVFXWLUWHUULWyULRVTXL-
ORPERODV FRQFHLWRVHVHQWLGRV RVLJQLÀFDGRGHFRQKHFLPHQWRHRVSULQFt-
pios para uma proposta político-pedagógica de uma escola comprometida
com a questão étnico- racial.
2FDPSRGDVDo}HVFRUSRULÀFDVHDSDUWLUGDVUHÁH[}HVWHyULFDVDQWHULRU-
mente citadas, por meio da seleção de temáticas emergentes e das didáticas
SRVVtYHLV&RQWHPSODPRVQRSODQRGHDomRDHVSHFLÀFLGDGHUXUDODLQGDTXHD
particularidade – comunidades quilombolas – comporte populações do meio
urbano2

2. O campo das reflexões

Os quilombos nos remetem a vários tempos e espaços históricos: em pri-


meiro lugar, à África do século XVII. A palavra kilombo é originária da língua
banto umbundo, que diz respeito a um tipo de instituição sociopolítica militar
FRQKHFLGDQDÉIULFD&HQWUDOPDLVHVSHFLÀFDPHQWHQDiUHDIRUPDGDSHODDWX-
al República Democrática do Congo (Zaire) e Angola (MUNANGA, 1996:
p.58). Apesar de ser um termo umbundo, constituía-se em um agrupamento
militar de jovens guerreiros, composto pelos jaga ou imbangala (de Angola) e
os lunda (do Zaire) (MUNANGA, 1996: p.59).
2VTXLORPERVQRVOHYDPWDPEpPDR%UDVLOGRÀQDOGRVpFXOR;9,HDRV
séculos seguintes; enquanto durou a escravidão institucionalizada, existiram
2
Entendemos que as demais diretrizes que contemplam os níveis e modalidades de ensino (Edu-
cação Infantil, Ensino Fundamental, Médio, EJA e Licenciaturas), anunciam perspectivas de como
WUDEDOKDUDTXHVWmRpWQLFRUDFLDOVHPGHWHUVHQDHVSHFLÀFLGDGHUXUDO

145
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

quilombos (ou mocambos) no litoral do Norte ao Sul do país, especialmente


nas áreas de plantações de cana-de-açúcar, arroz, cacau e nas armações ba-
leeiras. No caso do litoral nordestino, destaca-se o Quilombo dos Palmares,
que durou mais de 70 anos e se estendia por parte das províncias de Alagoas
e Pernambuco. Palmares foi liderado por mulheres e homens que ora são tra-
tados como mitos, ora como personagens históricos, a exemplo de Aqualtune,
Acotirene, Ganga Zumba e Zumbi, sendo este o último líder, assassinado após
um ano da destruição do grande quilombo, em 20 de novembro de 1695. Nos
sertões brasileiros surgiram quilombos em todas as regiões de mineração e
pecuária, liderados também por Chico Rei em Diamantina, Minas Gerais, e Te-
resa do Quariterê, no oeste do Mato Grosso (VOLPATO, 2003, p. 222-226).
Desde os anos 1950, intelectuais negros(as) como Edison Carneiro, Cló-
vis Moura, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Joel Ru-
ÀQRGRV6DQWRVHQWUHRXWURV DV DSUHVHQWDYDPVXDVLGpLDVDFHUFDGRWHPD
HPVHPLQiULRVDUWLJRVOLYURVHÀOPHV3RUPHLRGHVVDVYR]HVRTXLORPERVH
constituía como uma referência ideológica, cultural e política (NASCIMEN-
TO, 1985). Revisitando os escritos dos(as) autores/as citados(as), encontra-
mos vasta e variada produção acerca do quilombo que estava posto, em geral,
como um fenômeno do passado. No entanto, vivia-se um contexto de “des-
coberta” de comunidades negras rurais em várias regiões do país (RATTS,
2003b).
As comunidades quilombolas contemporâneas (MOURA, 1996) recebem
várias denominações, tais como terras de pretos, mocambos e comunidades
negras rurais. Num processo de mobilização, todas estas nomenclaturas con-
vergiram para o termo quilombo ou comunidade quilombola. Como decor-
rência desse processo de ressemantização, para o Estado brasileiro, o antigo
quilombo foi metaforizado para a categoria “remanescente de quilombo”
que, de uma certa forma, fortaleceu a idéia de grupo e não de indivíduo, idéia
esta que é fundamental para ganhar funções políticas no presente, por meio
de uma construção jurídica que permite pensar o futuro (ARRUTI, 2003).

2.1 O lugar da educação e a educação no lugar: uma leitura sobre os


quilombos

1XPDPHVPDiUHDDLQGDTXHDVSURGXo}HVSUHGRPLQDQWHVVHDVVHPHOKHPDKHWHURJH-
QHLGDGHpGHUHJUD+iQDYHUGDGHKHWHURJHQHLGDGHHFRPSOHPHQWDULGDGH'HVVHPRGR
SRGHVHIDODUQDH[LVWrQFLDVLPXOWkQHDGHFRQWLQXLGDGHVHGHVFRQWLQXLGDGHV
Milton Santos

146
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

3HQVDUDHVSHFLÀFLGDGHGROXJDUHSHQVDUDHGXFDomRDSDUWLUGHOHUHTXHU
TXHVHHQWUHQDFRPSOH[LGDGHGRTXHVLJQLÀFDGHÀQLORHSRULVVRVXUJHP
dúvidas: a partir do quê? A partir de quem? A partir de qual concepção? Se o
lugar, tal qual Santos (2001) anuncia, constitui-se nessa trama de continuida-
des/descontinuidades, semelhanças/heterogeneidades, a partir de qual pres-
suposto se pode partir para falar dos sentidos da educação quilombola?
Poder-se-ia continuar a tratar dos quilombos partindo da premissa de que
construíram uma história que não é apenas da fuga da escravidão, mas do
desejo pela liberdade; é uma história de vários capítulos, ocorrida em vários
lugares e de diferentes modos. Todavia, onde quer que tenha existido aqui-
lombamento, esta prática se impunha pela marca prevalecente da resistência
que se dava de diferentes maneiras. Para Reis e Gomes (2000, p.23) a história
dos quilombos é “uma história cheia de ciladas e surpresas, de avanços e
UHFXRVGHFRQÁLWRHFRPSURPLVVRVHPXPVHQWLGROLQHDUXPDKLVWyULDTXH
amplia e torna mais complexa a perspectiva que temos de nosso passado”.
A idéia de território quilombola, para alguns, traz subjacente a imagem
de segregação e isolamento. Todavia, em comunidades quilombolas a terra
DYDQoDHVWHFDUiWHUQmRVHFRQVWLWXLQGRDSHQDVFRQGLomRGHÀ[DomRVHQGR
sobretudo, condição para existência do grupo e de continuidade das referên-
cias simbólicas. O território quilombola se constitui enquanto um agrupa-
mento de pessoas que se reconhecem com a mesma ascendência étnica, que
passam por inúmeros processos de transformações culturais como formas de
adaptação resultantes do caminhar da história, mas se mantêm, se fortalecem
e redimensionam as suas redes de solidariedade (RATTS, 2003a; 2004)
Falar a respeito de comunidades quilombolas é um assunto inesgotável
visto que delas emerge a possibilidade de se recriar quotidianamente para
SRGHUIRUMDUVXDVREUHYLYrQFLD6LJQLÀFDXPHWHUQRLUHYLUXPGHVORFDPHQWR
constante em diferentes espaços e tempos. Todavia, este movimento é o que
sustenta a importância da Lei n° 10.639/2003.
A implementação da lei em municípios onde há quilombos e em escolas
quilombolas não vai ao encontro de um passado estático, que poderia cre-
denciar o ato educativo com o “estatuto” de um ensino para “cultura geral”.
Se a interpretação da lei estiver presa a esta forma de pensar, as intervenções
serão limitadas em um cenário ilusório, de uma suposta democracia racial,
que mantém o povo negro em situações econômicas e sociais discrepantes
em relação à população branca.
Sabe-se que as comunidades quilombolas, contrariando o senso comum
de isolamento, também são afetadas pelas lógicas da modernidade e do sonho

147
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

de se transpor de uma condição aparentemente “arcaica” para uma “condi-


ção” moderna. É neste “entre-lugar” (BHABHA, 2001) que a educação das
relações étnico-raciais se faz fundamental.
Não há como recuar, nem mesmo privar-se de todos os fetiches que o
mercado consumidor tem fabricado. Pode-se questionar, no entanto, a sua
lógica e também, as conseqüências em termos de relação social e preservação
GRPXQGRTXHpWHUUDDUiJXDÁRUDIDXQDJHQWHFRUSRHJHQWHDOPD7mR
importante quanto ingressar na modernidade é saber questioná-la:
$PRGHUQLGDGHDQXQFLDRSRVVtYHOHPERUDQmRRUHDOL]H>@0LVWLÀFD
GHVPLVWLÀFDQGRSRUTXHDQXQFLDTXHVmRFRLVDVSRVVtYHLVGHXPPXQ-
do possível, mas não contém nenhum item no seu mercado imenso
que diga como conseguir tais recursos, que faça o milagre simples de
transformar o possível em real. Isso cada um tem de descobrir; isso
a coletividade das vítimas, dos incluídos de modo excludente, tem de
descobrir (MARTINS, 2000, p.20).
Ao preocupar-se com questões sociais, deixa-se, por vezes, de lado, a
questão do desejo de cada um e se reduzem as necessidades básicas do ser
humano aos itens materiais que compõem a “cesta básica” necessária à so-
brevivência. No entanto, “as pessoas precisam muito mais do que ‘comida
e bebida’, precisam se sentir vivas, sentir que a vida vale a pena ser vivida.
E isto tem a ver com as dimensões simbólicas da vida. Neste sentido, al-
guns desejos e símbolos fazem partes das necessidades que compõem a ‘cesta
básica’”(ASSMANN, 2003, p.94).
A partir da citação de Assmann, colocam-se as seguintes questões:
• De que forma valores e práticas culturais podem fazer a mediação com
uma lógica de consumo, para além da “cesta básica”, fruto de desejos
e dimensões simbólicas construídas sem, necessariamente, se deixar
FRQVXPLUSHODEDQDOLGDGHGRVXSpUÁXRTXHSRGHVHUDQWDJ{QLFRDXP
modo de vida que opera na lógica da preservação em todas as suas ins-
tâncias e não do descartável?
• De que maneira as solidariedades concretas, persistentes e historica-
mente forjadas em comunidades quilombolas podem construir, verda-
deiramente, um elemento pedagógico a ser fortalecido entre a própria
comunidade e disseminado enquanto conteúdo legítimo de uma docên-
cia comprometida com a formação humana e também com uma for-
mação instrumental de seus educandos(as) para o mundo do trabalho?
• Como o território quilombola, o chão vivido, que não pressupõe cercas
nem fronteiras, mas que demarca o grupo e a coletividade, pode disse-

148
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

minar um olhar menos violento e predatório para a relação estabelecida


entre o ser humano e o ambiente?
O contato com a terra, com o ambiente, com a natureza nas comunidades
quilombolas que dispõem de seu espaço próprio, de seu território, sugere
uma idéia de que homens, mulheres e ambiente se constituem tanto como di-
ferenciações, como extensões e complementaridades. Este perceber-se evoca
uma relação menos estilhaçada com a natureza, com a vida; esta relação de
interdependência, de reciprocidade, de diálogo é a perspectiva que se pode
denominar “interdisciplinar”, pressuposto didático-pedagógico que abarca a
totalidade. Por isso, o conhecimento a ser produzido jamais criará sentidos e,
conseqüentemente, compromissos, se os sujeitos neles não se encontrarem,
também, como complementaridades.
3RUÀPHVWDVUHÁH[}HVWHyULFDVVREUHEDVHVFRQFHLWXDLVGHFRPXQLGDGHV
remanescentes de quilombos não nos distanciam da ação porque o ensinar
em comunidades negras rurais tem como premissa entender o lugar como
componente pedagógico, onde o conteúdo não está nos livros que trazem,
por vezes, o registro da história dos quilombos em versões mal contadas,
imprimindo no papel uma ordem de palavras que se tornam visíveis apenas
através da tinta. A história dos quilombos tem de estar impressa - visível- não
apenas nos livros, mas em todos os lugares da escola de forma a marcar o
coração de quem está a se educar com ternura e comprometimento e, desta
vez, não mais com marcas de dor.
Um outro componente pedagógico está na oralidade e nos diversos tons
de vozes quem interpretam o que está sendo contado, está na corporeidade
anunciante de saberes e, por vezes, denunciadora dos dissabores da vida. O
SHGDJyJLFRHQÀPHVWiQDQRVVDFDSDFLGDGHGHH[LJLUGHQyVPHVPRVXPDGR-
cência com um olhar mais atento às diversidades étnico-raciais de modo que
a diferença e igualdade sejam possíveis à medida que “temos o direito de ser
iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes
sempre que a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, s/d, p. 56).

2.2 Conhecimentos e sentidos da aprendizagem

/HQGRÀFDVHDVDEHUTXDVHWXGR(XWDPEpPOHLR$OJRSRUWDQWRVDEHUiV$JRUDMi
QmRHVWRXWmRFHUWD7HUiVHQWmRGHOHUGRXWUDPDQHLUD&RPR1mRVHUYHDPHVPDSDUD
WRGRVFDGDXPLQYHQWDDVXDDTXHOKHIRUSUySULDKiTXHPOHYHDYLGDLQWHLUDDOHU
VHPQXQFDWHUFRQVHJXLGRLUPDLVDOpPGDOHLWXUDÀFDPSHJDGRVjSiJLQDQmRSHUFHEHP
TXHDVSDODYUDVVmRDSHQDVSHGUDVSRVWDVDDWUDYHVVDUDFRUUHQWHGHXPULRVHHVWmRDOL
pSDUDTXHRVVDPRVFKHJDUjRXWUDPDUJHPDRXWUDPDUJHPpTXHLPSRUWD
José Saramago

149
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Educar para as relações étnico-raciais é um apelo que emerge de segmen-


tos contestatórios da sociedade, entre eles, o movimento social negro que
tem sua gênese organizativa no agrupamento de pessoas que já se aproxi-
mavam, desde os porões, durante a travessia do atlântico – tempo e lugar de
genocídio e dor - centenas de anos depois, continuam pressionando a socie-
dade, educando na informalidade e desordenando os sentidos das leis.
A citação de Saramago, em epígrafe, faz um chamamento para uma pers-
pectiva de educação em que cada um seja capaz de ir além da leitura das pá-
ginas do caderno ou do livro didático, entendendo que as pedras /palavras ali
postas/escritas servem para atravessar as margens do rio - violentas margens
- que ainda inundam a sociedade brasileira de preconceitos e discriminação
étnico-racial.
A emergência dos quilombolas entre os movimentos sociais aponta a atu-
ação de pessoas em um contínuo movimento de idéias e práticas que trans-
formam transformando-se por meio de um embate diário contra as seqüelas
da escravização e da omissão/rejeição de um legado africano repleto de in-
tenção estética e saber.
Os movimentos sociais se constituem espaços essencialmente educativos,
educam nas e para as contradições sociais, resultando em uma construção
e disseminação de conhecimentos que tem como horizonte uma educação
voltada para uma formação humana na qual “a boniteza de ser gente se acha,
entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar” (FREIRE,
2001, p.67).
2DUWLJRžGD/'%GHUHDÀUPDDH[LVWrQFLDGHGLYHUVRVHVSDoRV
educativos e, conseqüentemente, de educadores para além da escola e dos(as)
professores/as: “A educação abrange os processos formativos que se desen-
volvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições
de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organização da sociedade
civil e nas manifestações culturais”.
A concepção de educação presente na LDB 9.394/96 amplia os espaços
para a sua ocorrência e, também, o leque de educadores/as, deixando a olho
nu, que a escola não é um espaço hegemônico de educação. Neste sentido,
poderia-se perguntar qual o tipo de conhecimento a ser (re)produzido na
escola de modo a articular-se com outros espaços e tempos que contribuem
para a formação humana? Seria a escola um espaço onde o conhecimento se
destina a outra perspectiva de formação que não prioriza a humana? Ainda
TXHXPDSHUVSHFWLYDPDLVKXPDQLVWDGHIRUPDomRÀTXHSRUIRUoDPDLRUHP
segundo plano, homens, mulheres e crianças, ao sentar nos bancos escolares,

150
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

trazem consigo as marcas de outras vivências, restando questionar qual é o


trato pedagógico dado a esse conteúdo que pode até ser silenciado, mas que
não pode ser arrancado do âmago de cada ser?
Uma concepção de educação e aquisição de conhecimentos que vá ao en-
contro dos interesses emancipatórios que as comunidades quilombolas vêm
construindo desde o período escravista requer a promoção de uma leitura de
mundo que dê ênfase a sua trajetória histórica, como lembrança viva de que
o tempo não esvaece a disposição para transformar. Ser quilombola é estar
sempre com as armas da perseverança, sabedoria e solidariedade coletiva.
Pensar em educação que contemple as relações étnico-raciais no interior
GHXPDFRPXQLGDGHQHJUDVLJQLÀFDGDUFRUSRDRXWURVVDEHUHVVDEHUHVPDLV
“abertos”, que dêem dinamicidade e consistência aos saberes “fechados”
(ARROYO, 2001), que se constituem, em complementaridade, o conheci-
mento a ser produzido na escola.
O tempo de escola pode tornar o tempo de infância e o tempo de docên-
cia em tempos de produção de sentidos, através das suas funções mais ele-
mentares: aprender e ensinar. Sentidos que são buscados como decorrência
das perguntas que inevitavelmente são feitas para o outro e, também, para si
mesmo. As perguntas e, portanto, os diálogos travados não devem acomodar
as inquietações; isto seria a manipulação dos afetos, porque “o diálogo faz
parte da própria natureza histórica dos seres humanos. É parte de nosso pro-
gresso histórico, do caminho para nos tornarmos seres humanos” (FREIRE,
1987, p.122).
Um diálogo sobre os sentidos da docência, sobre o que ensinar, para que
HFRPRHQVLQDUpXPDUHÁH[mRWUD]LGDSRU$UUR\R S TXDQGRR
autor tenta “aliviar” esta tensão existente, principalmente, sobre quais são os
conteúdos da docência:
Percebo que o reencontro com o sentido da docência se dá na medida
em que vamos descobrindo que esses saberes escolares e conteúdos fe-
chados se são imprescindíveis ao aprendizado humano, não o esgotam.
Há capacidades “abertas”, que são o componente da nossa docência
e do direito à Educação Básica. Aprender por exemplo o convívio so-
cial, a ética, a cultura, as identidades,[...] os papéis sociais, os conceitos
e preconceitos, o destino humano, as relações entre homens e seres
humanos, entre os iguais e os diversos, o universo simbólico, a inte-
ração simbólica com os outros, nossa condição espacial e temporal,
nossa memória coletiva e herança cultural, o cultivo do raciocínio, o
aprender a aprender, aprender a sentir, a ser... Esses conteúdos sempre

151
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

À]HUDPSDUWHGDKXPDQDGRFrQFLDGDSHVTXLVDGDFXULRVLGDGHGDSUR-
blematização. Nunca foram fechados em grades, nem se prestam a ser
disciplinados em disciplinas.

2VVDEHUHV´DEHUWRVµHVWmRRÀFLDOPHQWHLQFRUSRUDGRVjUHDOLGDGHHGXFD-
cional brasileira na proposta de Parâmetros Curriculares Nacionais, que os
apresenta como Temas Transversais; encontram-se incorporados, também,
na lógica do mercado de ponta, onde são exigidos trabalhadores “polivalen-
tes”, com uma bagagem intelectual que não se reduz a letras e números, mas
que se formem com outras habilidades e sensibilidades, porque o mercado
GR FRQVXPR GHYH YDOHUVH GH WRGRV RV JRVWRV H FXOWXUDV D ÀP GH VHPHDU
globalmente, a sua ética: a ética indiscriminada do lucro. Diria, então, que os
saberes abertos já não constituem uma novidade entre aqueles setores que
podem transformar – a educação - e aqueles setores que desejam manter – o
mercado capitalista – um modelo de sociedade excludente.
O conhecimento produzido no seio das comunidades negras é um saber
que, articulado às contribuições dos que estão de “fora”, pode produzir de-
VHQYROYLPHQWRVXVWHQWiYHOJHUDomRGHUHQGDSUHVHUYDomRGDFXOWXUDHQÀP
uma perspectiva do etnodesenvolvimento.
A práxis emerge, com muita intensidade, enquanto atitude pedagógica
quando se pensa a educação em comunidades quilombolas; a práxis pressu-
põe uma avaliação e uma crítica severa aos modos como a preservação do
passado e uma antevisão de futuro se conjugam. O desejo de alavancar o
progresso exige muito cuidado – vigilância – para que estas propostas não
WUDJDPFRQVLJRXPROKDUVLPSOLÀFDGRUTXHSRGHEDQDOL]DUIROFORUL]DUGHIRU-
ma pejorativa a cultura local, obedecendo apenas a um espírito mercadológi-
co (LEITE, 2003).
'LVFXWLU XPD FRQFHSomR GH FRQKHFLPHQWR SDUD TXLORPERODV VLJQLÀFD
pensar em uma formação curricular onde o saber instituído e o saber vivido
estejam contemplados, provocando uma ruptura em um fazer pedagógico em
que o currículo é visto enquanto grade, hierarquicamente organizado com
conteúdos que perpetuam o poder para que determinados grupos continuem
a outorgar:
(...) qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de
conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o
que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo
e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são (SILVA,
1996, p.166).

152
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Juntamente com a emergência de um currículo que se construa “a partir


das formas mais variadas de construção e reconstrução do espaço físico e
simbólico, do território, dos sujeitos, do meio ambiente” (Referências para
uma Política Nacional de Educação do Campo, 2004, p.37), tem-se que esta-
belecer alguns princípios que possibilitem, efetivamente, uma educação das
relações étnico-raciais em comunidades quilombolas.

2.3 Projeto pedagógico como princípio de equidade: elementos


constituintes

(VWDPRVGLVSHUVRVSHORVTXDWURFDQWRVGRPXQGRVHJXQGRRVGLWDPHVGDKHJHPRQLDRFLGHQ-
WDO  2HIHLWRGHXPDSUHVHQoDDIULFDQDQRPXQGRVHUiRGHDXPHQWDUDULTXH]DGD
FRQVFLrQFLDKXPDQDH  DOLPHQWDUDVHQVLELOLGDGHGRKRPHPFRPYDORUHVULWPRVHWHPDV
PDLVULFRVHPDLVKXPDQRV
Cheik Anta Diop
Aprendizados e ensinamentos sempre interferem na forma de ser e es-
tar em um mundo cuja complexidade de estrutura-ação demanda um olhar
SHGDJyJLFRTXHQmRVLPSOLÀTXHRSURFHVVRHGXFDWLYRDXPPRPHQWRGHV-
colado da realidade que o envolve. Envolver-se com o mundo circundante
pressupõe um “fazer parte” deste mundo e, neste sentido, problematizar esta
relação que se constitui uma forma primária de sentimento de pertença -
ser e estar no mundo - é perguntar-se: De que forma estou? Por que estou?
Quem sou?
A tarefa de questionar, todavia, não é um ato espontâneo, principal-
mente falando em uma tradição de escola cujo “silenciar” tem sido a regra,
não exceção. Como questionar o inquestionável? Não é assim que se apre-
sentam os saberes da escola? Construídos por “entes” tão iluminados que
a forma “gente” de estar no mundo se cala ante a “forma” conteúdo de
HVWDUQDHVFROD(VWHFRQKHFLPHQWRFLHQWtÀFRLQTXHVWLRQiYHOQmRSURYRFD
perguntas, provoca um sentimento que é o seu reverso: o sentimento de
emudecer-se.
Tratar a questão da educação para as relações étnico-raciais em reação às
comunidades quilombolas nos faz atentar para uma questão fundamental: o
buscar da fala. A oralidade, secularmente, constitui a forma de estar no mun-
do para um grupo étnico que tão pouco acesso teve às chamadas “letras”, à
educação formal, e que, nem por isso, deixa de escrever, na alma, no corpo,
no espaço construído, a sua história, memória viva, força que propulsiona a
assunção de sua negritude, que para D’Adesky “vai além da simples identi-

153
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ÀFDomRUDFLDO(ODQmRVRPHQWHpXPDEXVFDGHLGHQWLGDGHHQTXDQWRIRUPD
SRVLWLYDGHDÀUPDomRGDSHUVRQDOLGDGHQHJUDPDVWDPEpPXPDUJXPHQWR
político diante de uma relação de dominação” (2001, p.140).
A negritude tal qual foi colocada anteriormente é um ato de estar no
mundo e foi nesta perspectiva que se começou trazendo os sentidos para o
HQVLQDUHRDSUHQGHUUHFRQKHFHUVHFRPRVXMHLWRGHDomRUHÁH[mRVXMHLWR
da práxis que é “uma ação imanente pela qual o sujeito se transforma” (SO-
DRÉ, 2000, p.142).
Propor diretrizes para se viabilizar a implementação da Lei n° 10.639/2003
na educação quilombola é um exercício de buscar os conceitos, não apenas na
VXDIRUPDWHyULFDPDVQDH[SHFWDWLYDGHTXHHOHVVROLGLÀTXHPXPDSURSRVWD
político-pedagógica que possibilite a educação das relações étnico-raciais.
A história e cultura africana e afro-brasileira constituem um conhecimen-
to fundamental que contribuirá, segundo D’Adesky, para remodelar o rosto
e a alma do povo negro, constituindo “uma arma poderosa contra o racismo
visceral da sociedade brasileira que pressupõe ser o negro o contrário do
branco, nada mais, nada menos” (2001, p.141).
Atentando-se para os conceitos principais na Lei n° 10.639/2003, de his-
tória e cultura, faz-se necessário vê-los como princípios, como elementos
fundantes de uma proposta pedagógica em que, ambos, injetam a dinamici-
dade necessária para que a tarefa de ensinar possa se atrelar à complexidade
da realidade em que os educandos (as) estão inseridos (as).
Problematizar o envolvimento do sujeito aprendiz com uma realidade
educativa requer, em um primeiro momento, que toda a problematização des-
ta relação - ser/estar no mundo – decorra
(...) exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por
isto mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como
seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade, que sendo his-
tórica também, é igualmente inacabada. (...) Daí que seja a educação
um que fazer permanente. Permanente na razão da inconclusão dos
homens e do devenir da realidade (FREIRE, 1983, p.83).
(VWHGHYLUDUHDOLGDGHLQFRQFOXVDDVVLPFRPRDVVLWXDo}HVVHFRQÀUPDP
em uma concepção de cultura em que homens e mulheres apropriam-se de
VHXVVLJQLÀFDGRVHVtPERORVHRVUHFULDPRVWUDGX]HPHRVOrHPGHRXWUR
modo (Bhabha, 2001), como força ordenadora de suas questões humanas
(GEERTZ, 2001).
Dentro das necessidades urgentes das comunidades quilombolas, a Lei
10.639/03 deve se constituir como um instrumento para muito além da obri-

154
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

gatoriedade de mais um conteúdo dentro de uma matriz curricular; implantar


História e Cultura Africana e Afro- Brasileira é tencionar o presente porque
no dizer de Fanon: “Todo o problema humano exige ser considerado a partir
do tempo. Sendo o ideal que sempre o presente sirva para construir o futuro.
E esse futuro não é o do cosmos, mas o do meu século, do meu país, da mi-
nha existência” (1974, p. 43).
O tempo presente – o quilombo contemporâneo – é um momento histó-
rico com um olhar no passado - o aquilombamento de escravizados(as) – e é
neste trânsito temporal (passado, presente, futuro) que a cultura africana ao
VHUUHWRPDGDVHUHVVLJQLÀFDVHUHGLPHQVLRQDQDFRQIRUPLGDGHGHXPWHPSR
que não é do “cosmos”, é da existência de crianças e jovens alijadas de um
saber que os projete, segundo os seus desejos, a um futuro idealizado.
A diferença histórica e cultural é outro princípio pedagógico. Nesse qua-
GURDGLIHUHQoDUDFLDORXpWQLFDVHPDQWpPDRVHUHGHÀQLUHPYDULDGRVFRQ-
WH[WRVKLVWyULFRVHJHRJUiÀFRV$GLYHUVLGDGHFXOWXUDOFRQWHPSODDVFXOWXUDV
no seu sentido empírico, reconhecido; a diferença é o processo de enunciação
GDFXOWXUDTXHUHVXOWDHPXPDFODVVLÀFDomRGHFXOWXUDVFRPROHJtWLPDVHGH
outras como subalternas (BHABHA, 2001).
Resgatar a diferença cultural como pressuposto de uma educação anti-
UDFLVWDVLJQLÀFDH[SOLFLWDUDPDQHLUDFRPRDVGHVLJXDOGDGHVVmRFRQVWUXtGDVH
a partir disto, perseguir a equidade enquanto possibilidade de considerar “o
respeito à pessoa humana na apreciação do que lhe é devido” (D’ADESKY,
2001, p.232), tendo em mente a noção de eqüidade, que
(...) aplicada à sociedade, ela tem por vocação estabelecer um equilíbrio
entre os indivíduos pertencentes às diversas coletividades e grupos cul-
turais. (...) Equidade é a busca de critérios mais exigentes de igualdade
(D’ADESKY, 2001, p.232-233).
A construção identitária de cada um/a está sempre sendo formada, em
processo; identidades e subjetividades são processos intercambiáveis, resul-
tando em uma imensidão de sentimentos envolvidos através da forma como
DVSHVVRDVQRVID]HPSHUFHEHU0DORXI  S UHIHUHQGDHVWDUHÁH[mR
ao dizer que:
(...) os outros fazem-nos sentir, pelas palavras, pelos olhares, que somos
pobres ou aleijados, demasiado baixos ou demasiado altos, escuros ou
demasiado louros, circuncidados, não circuncidados ou órfãos- estas
LQXPHUiYHLVGLIHUHQoDVPtQLPDVRXVLJQLÀFDWLYDVTXHWUDoDPRVFRQ-
tornos de cada personalidade, forjam os comportamentos, as opiniões,

155
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

os receios, as ambições, que se revelam muitas vezes eminentemente


formativas, mas que freqüentemente nos ferem para sempre.
Marcar as subjetividades envolvidas durante um processo de construção
LGHQWLWiULDQmRVLJQLÀFDPDUFDURFRUSRFRPRRXWURUDFRPLQWHQo}HVGHGRU
0DUFDURFRUSRFXMDEHOH]DHVWiHPVHUWDOTXDOIRLFRQFHELGRVLJQLÀFDQmR
FRQVWUXLUQmRLUjEXVFDGHPHLRVSDUDTXHRFRUUDDDÀUPDomRGHXPDHVWpWL-
ca que está na alma, na negritude.
O poeta Aimée Césaire, citado por Sartre, resgata a negritude como um
VHQWLPHQWRWHQVmRGDDOPDGHÀQLGRUSDUDDIRUPDGHVHUQRPXQGRGR
povo negro:
Minha negritude não é uma pedra, surdez que é lançada contra o clamor
do dia,
Minha negritude não é uma catarata de água morta sobre o olho morto
da terra
minha negritude não é nem torre nem catedral
ela mergulha na carne rubra da terra
ela mergulha na ardente carne do céu
ela perfura o opaco desânimo com sua precisa paciência
(Césaire apud Sartre, 1960, p.131).
Construir algumas diretrizes que contemplem a educação para as relações
raciais tendo em vista as comunidades quilombolas é um esforço inicial para
que educadores e educadoras não desanimem, que se alimentem de uma pa-
ciência que sempre se faz crescente e, simultaneamente, ponderada, quando
é nutrida pelo sonho e pela esperança. Historicamente, os quilombos foram
lugares educativos da arte de sonhar, de esperançar, de tornar possível um
mundo cuja referência maior seja a vivência da liberdade, ainda que ela, por
muitas vezes, tenha sido vivida ao nível de desejo.

3. O CAMPO DAS AÇÕES

2XoDPDLVDVFRLVDVTXHRVVHUHV
$YR]GRIRJRVHRXYH
2XoDDYR]GDiJXDHVFXWHQRYHQWR
O arbusto soluçar
É o sopro dos ancestrais
Birago Diop - O sopro dos ancestrais

156
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A implementação da Lei n° 10.639/2003 no contexto escolar é um de-


VDÀRSDUDTXHWRGDDVDEHGRULDUHODFLRQDGDj+LVWyULDHj&XOWXUD$IULFDQDH
Afro-Brasileira se torne um conhecimento presente, efetiva e positivamente,
na sala de aula. Este conhecimento pretende se constituir hegemônico, no
sentido de agregar um novo “centro”, uma vez que a lei contesta a universa-
lidade de um eurocentrismo. Trata-se, sim, de uma concepção diferenciada
de “centro”, que “postula a necessidade de explicitar a localização do sujeito
no sentido de desenvolver uma postura teórica própria a cada grupo so-
cial fundamentada na sua experiência histórica e cultural” (NASCIMENTO,
2003, p.96).
O poema africano que dá abertura a este momento de escrita nos remete
a outras possibilidades de aquisição de conhecimento, dando vazão às falas
que, em um primeiro momento, parecem inusitadas. Na verdade, voltando-
se para uma comunidade quilombola, “o sopro dos ancestrais” atribui sig-
QLÀFDGRVDWXGRTXHpWDQWRPDWHULDOTXDQWRLPDWHULDOVmRVHQWLGRVTXHVH
transformam em mitos, que, por sua vez, não sinônimos de mentira, mas da
FDSDFLGDGHGHUHFULDUVLJQLÀFDGRVSDUDDVFRLVDVVDLQGRGHVVDIRUPDGHXP
SURFHVVRFRLVLÀFDQWHTXHPXWLODDLOLPLWDGDFDSDFLGDGHGHKRPHQVHPXOKHUHV
de criar e perceber a natureza e a sociedade em seu entorno, por meio da me-
mória e da história e da vivência sensível. Podemos dizer que cada quilombo,
com suas experiências, mesmo em meio às adversidades, constitui um espaço
repleto de história e cultura afro-brasileira.
Neste sentido, um plano de ação consiste em um ato de “criação”: criar
voz quando predomina um silêncio sobre o que é importante abordar, criar
atitude quando se apresenta o conformismo, criar esperança naquilo que está
desesperançado. Na cosmovisão africana, tudo está em tudo, tudo se comple-
menta, não existe separação entre os elementos que compõem um sistema.
O objetivo das ações se constituem a partir de uma proposta político-
pedagógica que considera o histórico da vida social, as trajetórias comuns, as
características econômicas e culturais, a preservação da identidade quilombo-
la na sua relação com o ambiente, concomitante à busca de melhor qualidade
de vida presente e futura, mediante uma tomada de consciência crítica que é
sempre emergente ao sentir-se parte da construção do saber.
Acredita-se que algumas temáticas possam orientar um trabalho que se
organizará conforme o modo de fazer - didática - oportuno à tarefa e seus
objetivos; elas não são ditadas, são extraídas do contexto onde se efetua a
prática educativa. Os temas a seguir podem ser o ponto de partida para uma
práxis transformadora na educação quilombolas, na certeza de que os mes-

157
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

mos devem ser alterados conforme a demanda pedagógica local. Eles: iden-
tidade, espaço/território, cultura, corporeidade, religiosidade, estética, arte,
musicalidade, linguagem, culinária, agroecologia, entre outros.
O “como fazer” pode ser pensado na sua concepção e realização como
possibilidade de descentramentos. O diálogo, o círculo para a narração de
histórias, tão comum nas tradições afro-brasileiras, poderia ser o ponto de
partida para a realização de um fazer que não é individual, mas coletivo. É
importante indagar: De que forma vocês querem aprender? Em quais lugares
poderíamos realizar as nossas aulas? Ora, a exploração didático-pedagógica
do espaço é o encontro com as pessoas do lugar, com as suas casas, com
uma realidade concreta que pode estar sendo revista com um olhar que não
é normatizador, mas problematizador. A exploração de outros espaços para
aprender, no entanto, não é a negação do espaço da sala de aula; é o reconhe-
cimento de seus limites e, também, das suas precariedades. As características
físicas das escolas rurais são bastante difíceis. Segundo os dados presentes no
caderno de subsídios das Referências Para Uma Política Nacional de Educa-
ção do Campo (2004), das escolas de Ensino Fundamental, 21% não pos-
suem energia elétrica, 5,2% dispõem de biblioteca e menos de 1% oferecem
laboratório de ciências, de informática e acesso à internet.
0XQDQJDH*RPHV S DÀUPDPTXHpQHFHVViULRSURPRYHUDSUHQ-
dizagens gerais que possibilitem o “acesso a conhecimentos, informações e
valores que permitam aos estudantes continuarem aprendendo”. Os autores
apontam que estas aprendizagens devem facilitar que os(as) alunos(as) transitem
em três grandes domínios da cultura escrita: comunicação, acesso a informa-
ções em diversas fontes e investigação e compreensão da realidade. As escolhas
GLGiWLFDVDVHUHPXWLOL]DGDVSDUDWDLVÀQVDRVHUHPDGHTXDGDVjVFDUDFWHUtVWLFDV
do grupo, se priorizarem metodologias envolventes, grupais e exploratórias,
irão despertar a curiosidade e o desejo de aprender porque se instaurou o senti-
mento de pertença, o sentir-se, também, sujeito do processo de aprendizagem.

3.1 Práticas a serem pensadas


(VWDUQRPXQGRVHPID]HUKLVWyULDVHPSRUHODVHU
IHLWRVHPID]HUFXOWXUDVHP¶WUDWDU·VXDSUHVHQoDQR
PXQGRVHPVRQKDUVHPFDQWDUVHPPXVLFDUVHP
SLQWDUVHPFXLGDUGDWHUUDGDViJXDVVHPXVDUDV
PmRVVHPHVFXOSLUVHPÀORVRIDUVHPSRQWRVGHYLVWD
VREUHRPXQGR>@VHPDSUHQGHUVHPHQVLQDUVHP
LGpLDVGHIRUPDomRVHPSROLWL]DUQmRpSRVVtYHO
Paulo Freire

158
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A história começa a ser feita desde que se nasce e, logo ali, entra-se no
processo educativo. Por isso, propiciarmos ações que se valham de inúmeras
possibilidades para o aprender. É o que tentamos construir nas sugestões
abaixo.
Em se tratando de quilombos, devemos considerar o território enquanto
um dos temas condutores para a ação:
[O território é] um repertório de lugares de importância simbólica,
envolvendo agrupamentos não mais existentes onde residiram ante-
passados, porções de terras perdidas, localidades para onde migraram
vários parentes e que se deseja conhecer: lugares acessados através de
viagens, notícias, lembranças, saudades (RATTS, 2004, p.07).
Pensar em território na perspectiva de Ratts (2004), em epígrafe, é buscar
DOHPEUDQoDTXHVHPSUHpSUHFHGLGDGHUD]}HVTXHDMXVWLÀFDP3HQVDUHP
um plano de ação para trabalhar com educação quilombola é buscar a noção
GHWHUULWyULRDPSODPHQWHPHQFLRQDGDQRFDPSRGDVUHÁH[}HVHWDPEpPQD
realidade concreta das salas multisseriadas, como característica prevalecente
QRPHLRUXUDOHHVSHFLÀFDPHQWHQDViUHDVTXLORPERODV(VWDVHVFROKDVQmR
propõem uma prática acomodada a uma determinada realidade, mas uma
captura de processos reais, que nem sempre são ideais, mas que podem fo-
mentar uma crítica a partir do vivido1.
Todas essas idéias colocadas anteriormente surgem de um dado concreto
da comunidade que entende o tempo da docência como o tempo de criação
de formas mais contextualizadas de conduzir uma prática pedagógica que vá
ao encontro de um outro pressuposto anunciado por uma mulher quilombola
que, anuncia, a seu ver, a escola quilombola “ideal”:
[...] eu acho que ao ponto de uma escola ideal para uma comunidade
quilombola é aquela que, lógico, quer resgatar o passado, pensando
na tecnologia do futuro. No instante em que você não se deixa a sua
história [se] perder mas, já dizendo assim [de] que forma a gente podia
pensar num mercado de trabalho, ou senão, ali mesmo um projeto da
realidade da cultura e dessa cultura ser explorada a auto-sustentabilida-
de do quilombo, sem ele perder o resgate da história. Ela ali voltada pra
esse tipo assim, ela resgata vários pontos da história que não se pode se
deixar perder, que nem o óleo da mamona que pra nós ali era a sobrevi-
vência dos quilombolas. Ali, se industrializando do óleo da mamona, se
resgatava a história, ao ponto que, a tecnologia como anda avançando
agora, a gente não tem uma idéia formada, mas se entrasse na realidade
deles, de cada comunidade seria bem fácil de alguém decifrar e fazer

rodapé 1 159
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

um trabalho em conjunto. Mas o essencial, uma escola que resgatasse a


cultura dos negros, não só dentro dos quilombos, mas até fora, tiraria
PXLWDVSHVVRDVGDUXDSRUTXHVHYRFrÀ]HUXPDDQiOLVHGDIDL[DPDLV
pobre do mundo ela tem cor, ela é negra (Juraciara, quilombo de Ma-
noel Barbosa Gravataí, março de 2005).
Podemos citar igualmente outras experiências de educação quilombola:
1ª) a comunidade de Conceição das Crioulas, situada no município de Salguei-
ro, Pernambuco, em que os(as) quilombolas buscam dar prioridade à contra-
tação de professores/as da própria comunidade e com uma “formação con-
tinuada voltada para a aquisição de habilidades na elaboração e efetivação de
um projeto político pedagógico que correspondesse aos anseios do grupo e
contemplasse o princípio da interculturalidade” (LEAL, 2005). Neste sentido
têm o apoio do Centro Cultural Luiz Freire; 2ª) O Projeto Vida de Negro do
Centro de Cultura Negra do Maranhão, que desenvolve um projeto de educa-
ção em áreas quilombolas (CCN-MA, 2003); 3ª) O Núcleo de Educação Es-
colar Indígena e Quilombola da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe
que iniciou um processo de reuniões pedagógicas com os professores/as e
coordenadores/as que atuam diretamente junto às comunidades quilombolas
do estado (SEED/SE, 2005).
9LPRVTXHRDJLUHVWiLQWULQVHFDPHQWHYROWDGRDRUHÁHWLUDRHVFXWDUDR
transformar. Ao buscar as lembranças de um território quilombola, percebe-
se o limite para se propor diretrizes, porque ao remeter-se ao empírico, as
UHÁH[}HVHDo}HVQmRÀFDPFRQWLGDVQRHVSDoRGHXPWH[WR$LPHQVLGmR
de práticas que um território quilombola pode suscitar só pode ser criada a
partir da vivência única de cada educador/a na relação cotidiana com a sua
comunidade de atuação.
Resta, também, fazer de cada momento, uma singularidade. Este momento é
RGH´IHFKDPHQWRµWH[WXDOPDVQmRGHHQFHUUDPHQWRGDUHÁH[mR'LUHWUL]HVVmR
WUDoDGDVHPXPLQFDQViYHOLUHYLUQRSDVVDGRHSUHVHQWHQRFDPSRGDUHÁH[mR
e no campo da ação, entre um parágrafo e outro, onde as idéias são expressas
em palavras que nem sempre traduzem os seus sentidos. Às palavras, por vezes,
faltam às emoções experimentadas no ato da docência. Birago Diop, na epígrafe
que anunciava o campo das ações dizia: “Ouça mais as coisas que os seres”.
Complementamos: poder-se-ia buscar nas coisas a maneira como os seres nelas
VHLQVFUHYHP)RLDVVLPTXHRÀ]HPRVQDWHQWDWLYDGHFRQVWUXLUFROHWLYDPHQWH
um ensaio de práxis educativa tendo em vista os quilombos brasileiros.
Na perspectiva aqui enunciada, os quilombos não constituem uma expe-
riência restrita ao passado brasileiro e da população negra em especial. São

160
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

um fenômeno contemporâneo que marca inúmeros municípios do país e,


no campo educacional, tendo em vista a Lei n° 10.639/2003, apresentam-se
como campo propício para uma transformação da educação rural e urbana,
da realidade dos(as) alunos(as) migrantes e da inovação de projetos político-
pedagógicos que contem com a participação de quilombolas professores/as,
gestores/as, pais, mães e lideranças locais.

Djembe encontra os tambores da ilha


coleção particular - Cristina Guimarães

Referências

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163
Tocar para descer
Acervo da Casa Thomas Jefferson

Sugestões de Atividades
Tocar para descer
Acervo da Casa Thomas Jefferson

SUGESTÕES DE ATIVIDADES
Este texto apresenta uma série de sugestões de atividades, de indicação
GHÀOPHVYtGHRVHELEOLRJUDÀDVTXHSURFXUDPVHDGHTXDUDRVQtYHLVHPRGD-
lidades de ensino aqui tratados em sua relação com a História e Cultura afri-
canas e afro-brasileiras e com a temática étnico-racial. Sendo proposto pelas
coordenadoras do GTs, com a colaboração de outros(as) educadores/as, não
se trata de um manual com indicações prontas para o uso. Sempre cabe a
sensibilidade para se perceber e agir no momento certo, no lugar apropriado,
e com a forma de abordagem mais adequada.

EDUCAÇÃO INFANTIL
Os meninos em volta da fogueira
9mRDSUHQGHUFRLVDVGHVRQKRHGHYHUGDGH
9mRDSUHQGHUFRPRVHJDQKDXPDEDQGHLUD
(YmRVDEHURTXHFXVWRXDOLEHUGDGH 
Mas os meninos desse continente novo
+mRGHVDEHUID]HUKLVWyULDHHQVLQDU
Martinho da Vila

Aqui serão apresentadas algumas sugestões de atividades que não devem


ser tomadas como receitas, mas como possibilidades a serem construídas,
reconstruídas, ampliadas, enriquecidas com a costumeira criatividade dos
educadores e educadoras do Brasil. É fundamental que as/os educadoras/es
VHUH~QDPSDUDFRPSDUWLOKDUVDEHUHVGLVFXWLUVREUHVXDVGLÀFXOGDGHVFRPD
temática, realizar pesquisas, trocar experiências, construir materiais; organizar
EDQFRVGHLPDJHQVGHVHQKRVHÀJXUDV8PDLQGLFDomRLPSRUWDQWHpSHVTXLVDU
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

as organizações negras de cada localidade, pois muitas dessas organizações


possuem experiências educativas que são referência para todo o país.
Chamamos a atenção para a importância de não realizar atividades isola-
das ou descontextualizadas. É importante que a temática das relações étnico-
raciais esteja contida nos projetos pedagógicos das instituições, evitando-se
práticas localizadas em determinadas fases do ano como maio, abril, agosto,
QRYHPEUR(VWDULQVHULGRQDSURSRVWDSHGDJyJLFDGDHVFRODVLJQLÀFDTXHR
tema será trabalhado permanentemente e nessa perspectiva é possível criar
condições para que não mais ocorram intervenções meramente pontuais,
para resolver problemas que surgem no dia-a-dia relacionados ao racismo.
Aos poucos, o respeito à diversidade será um princípio das instituições e de
todas as pessoas que nela atuam.
As sugestões de atividades são subsídios que estão associados à prática
educativa, e esta precisa estar de acordo com a concepção de criança e de edu-
cação enunciadas aqui e no RCNEI. Destacamos alguns pontos importantes
contidos no Referencial que auxiliam no processo de elaboração de atividades
como a organização do tempo, do espaço e dos materiais; observação, regis-
tro e avaliação.
Com relação às atividades aqui propostas, não se pode perder de vista
a rotina de cada instituição com elementos que são permanentes e funda-
mentais para o desenvolvimento dos trabalhos e projetos na Educação In-
fantil. “A rotina deve envolver os cuidados, as brincadeiras e as situações de
aprendizagens orientadas” (BRASIL, 1998a, p.54), assim como as atividades
permanentes que respondem às necessidades básicas do cuidado e da apren-
dizagem não podem ser esquecidas, tais como: brincadeira no espaço interno
HH[WHUQRURGDGHKLVWyULDURGDGHFRQYHUVDVRÀFLQDVGHGHVHQKRSLQWXUD
PRGHODJHPHP~VLFDDWLYLGDGHVGLYHUVLÀFDGDVRXDPELHQWHVRUJDQL]DGRVSRU
temas ou materiais à escolha da criança, incluindo momentos para que as
FULDQoDVSRVVDPÀFDUVR]LQKDVVHDVVLPRGHVHMDUHPFXLGDGRFRPRFRUSR$
perspectiva da diversidade deve ser contemplada escolhendo-se para o acervo
das instituições, por exemplo, bonecas negras, brancas, indígenas, orientais.
Pode-se confeccioná-las inclusive com as próprias crianças e seus familiares,
e os jogos podem também ser construídos considerando-se as diferenças re-
gionais, não se perdendo de vista os brinquedos populares e artesanais.
A roda ou rodinha, tão utilizada nas instituições de educação infantil e
LQVHULGDQDURWLQDGDVPHVPDVSRVVXLXPVLJQLÀFDGRLPSRUWDQWHSDUDGLYHU-
sas culturas e também para a indígena e africana. Na roda, é possível romper
com as hierarquias, existe espaço para a fala, todos se vêem. É na roda que se

168
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

conta história, novas músicas e brincadeiras são aprendidas, que são feitos os
“combinados”. Retomar a roda como princípio de organização, como manei-
ra de aprender coletivamente já é um exercício cotidiano de busca de respeito
à diversidade.
Finalmente, a observação, o registro e a avaliação processual são funda-
mentais no acompanhamento da aprendizagem das crianças, podendo fornecer
uma visão integral das crianças, ao mesmo tempo em que revelam a necessida-
de de intervenções mais incisivas em alguns aspectos do processo educacional.

1 CONSTRUINDO UM CALENDÁRIO DA DIVERSIDADE


ÉTNICO-RACIAL
O planejamento de atividades na Educação Infantil tendo como referên-
cia datas comemorativas que são reproduzidas ano a ano, sem análise crítica
GDSDUWHGRV DV HGXFDGRUHVDVQmRFRQWULEXLSDUDDUHÁH[mRGRSRUTXHFH-
lebrar tais heróis, grupos e costumes, seguindo padrões que correspondem a
uma visão das origens do povo brasileiro, que não é a única.
A maioria das instituições educacionais já incorporou em suas práticas a
FRPHPRUDomRGHGDWDVVLJQLÀFDWLYDVSDUDR%UDVLO6mRGDWDVHVSHFtÀFDVTXH
rememoram momentos da nossa história (Dia da Independência), símbolos
(como o Dia da Bandeira) ou heróis (como Tiradentes). Na maioria das vezes
essas datas são lembradas nas escolas sem grandes inovações, tanto nas ati-
vidades propostas, quanto na escolha das mesmas e/ou das personalidades a
serem homenageadas.
2V DV SURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRPDQWrPDWUDGLomRGHGHVWDFDUDOJXPDV
datas, como o Dia do Índio, por exemplo. No dia 19 de abril vestem/fantasiam
as crianças com ornamentos e pintam os seus rostos, desenvolvendo uma série
de estereótipos sobre os indígenas, que são diversos, pois são muitas as etnias
que compõem a população indígena no Brasil. Cada grupo tem uma língua
diferente, e alguns já perderam sua língua original; usam vários tipos de vesti-
mentas, inclusive as que os não-índios utilizam; vivem em moradias também
diversas. As pinturas corporais são caracterizadas de formas diferentes em cada
JUXSR$VPDUFDVRXGHVHQKRVHVWmRFDUUHJDGRVGHVLJQLÀFDGRVRVLQGtJHQDV
se pintam por motivos variados: festas, guerras, comemorações, casamentos.
2H[HPSORGR'LDGRÌQGLRQRVDMXGDDUHÁHWLUVREUHRXWUDVGDWDV
• 3RUTXHGHVWDFDPRVDÀJXUDGH7LUDGHQWHVHHVTXHFHPRVGHRXWURV DV 
personagens importantes para a nossa história de resistência à coloni-
zação, escravidão, a exploração do trabalho etc.?

169
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• 3RUTXHQRVHVTXHFHPRVGHÀJXUDVKLVWyULFDVGHQRVVDVFLGDGHVEDLUURV
e vilas, muitas delas negras, mulheres, trabalhadores/as?
• Como estamos trabalhando o dia da Abolição? Damos destaque ape-
nas à princesa Isabel e alguns abolicionistas mais conhecidos ou fala-
mos das lutas de muitos homens e mulheres escravizados que lutaram
contra a escravidão, mas que se tornaram anônimos na História?
Vale a pena realizar uma pesquisa para descobrir outros(as) personagens
que não os costumeiramente lembrados/das no calendário escolar. Cons-
truir/reconstruir a história da cidade ou do bairro, a partir de depoimentos
de pessoas mais velhas, dando destaques para homens e mulheres comuns
que construíram ou constroem a história de uma comunidade ou país.

1.1 O 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra

A partir da Lei n° 10.639/2003, o Dia Nacional da Consciência Negra é


incorporado no calendário escolar como dia a ser lembrado, comemorado e
desenvolvido em todas as instituições de Educação Básica.
Em 20 de novembro de 1695, foi morto Zumbi, grande liderança negra
GR4XLORPERGRV3DOPDUHV(VVDGDWDpUHVVLJQLÀFDGDSHORVPRYLPHQWRVQH-
gros brasileiros. De acordo com Oliveira Silveira, para o Grupo Palmares
de Porto Alegre no Rio Grande do Sul essa data surge como contestação à
comemoração ao dia 13 de maio:
A homenagem a Palmares ocorreu no dia 20 de novembro de 1971, um
sábado à noite, no Clube Náutico Marcílio Dias, sociedade negra (...) os
participantes do grupo se espalharam no círculo e contaram a história
de Palmares e seus quilombos com base nos estudos feitos defendendo
DRSomRSHORGHQRYHPEURPDLVVLJQLÀFDWLYRHDÀUPDWLYRQDFRQ-
frontação com o treze de maio (2003, p.2).
A data toma o cenário nacional principalmente a partir de 1978, quando
VXUJH R 0RYLPHQWR 1HJUR 8QLÀFDGR &RQWUD D 'LVFULPLQDomR 5DFLDO FRP
UDPLÀFDo}HVHPGLYHUVRVHVWDGRVGRSDtV &$5'262 2VXUJLPHQWR
GR0RYLPHQWR1HJUR8QLÀFDGRRFRUUHXHPMXOKRGHFRPXPJUDQGH
protesto contra as discriminações sofridas por quatro atletas negros do time
de voleibol do Clube Regatas Tietê, proibidos de entrar no clube e o assas-
sinato do operário negro Robson Silveira da Luz, torturado até a morte por
policiais de Guaianazes/SP.
Para celebrar a qualquer época do ano a Consciência Negra, poderão ser
organizadas mostras de trabalhos com a temática, apresentações musicais com

170
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

utilização de instrumentos confeccionados pelas próprias crianças, concurso


de bonecas negras (MATOS, 2003), leitura de pequenas histórias, declamação
de poesia, entre outras atividades. Importante destacar as manifestações cul-
turais locais e regionais, tais como a congada, congo, jongo, maracatu, samba
de roda, tambor de crioula, entre outras tantas. É importante rememorar o
SRUTXrGDGDWDHVHXVLJQLÀFDGRSDUDDSRSXODomREUDVLOHLUDHPJHUDOHSDUDD
população negra em especial.

2 EXPRESSÃO ORAL E LITERATURA

Escritores/as como Carolina de Jesus, Solano Trindade, Eliza Lucinda,


Cuti, Esmeralda Ribeiro, Conceição Evaristo, Heloísa Pires, Geni Guimarães
e tantos(as) outros(as) podem entrar em nossos saraus de poesia, juntamente
com Cecília Meireles, Vinícius de Morais, Carlos Drumond de Andrade, Ma-
noel Bandeira, entre tantos poetas e escritores brasileiros. Nesse sentido é ne-
cessário estarmos atentos(as) para textos que podem reforçar o preconceito,
VHQGRG~ELRVHPVHXVLJQLÀFDGR9HMDPRVDSRHVLDDEDL[R
As borboletas
%UDQFDVD]XLVDPDUHODVHSUHWDV
Brincam na luz as belas borboletas
Borboletas brancas são alegres e francas
Borboletas azuis gostam de muita luz
$VDPDUHOLQKDVVmRWmRERQLWLQKDV
(DVSUHWDVHQWmRRKTXHHVFXULGmR
Vinícius de Morais

A associação da borboleta com a escuridão pode tanto remeter a algo


ruim como pode ter um sentido de surpresa, de susto, como nas brincadeiras
de “pute” (quando encobrimos o rosto para surpreender ou assustar uma
criança pequena). A partir dessa poesia tão conhecida de muitas crianças, po-
demos trabalhar com cores variadas, pintando borboletas de papel, destacan-
do a beleza de todas as cores, inclusive da cor preta. Pode-se utilizar histórias
nas quais a cor preta tem destaque positivo, como Menina Bonita do Laço de
)LWDR0HQLQR0DUURP%LRJUDÀDGDVFRUHV&ULDUKLVWyULDVFRPDVFULDQoDV
e refazer poesias, como a de Vinícius de Morais, substituindo escuridão por
outros adjetivos.
O texto de Pedro Bandeira “A Redação de Maria Cláudia” apresenta mui-
to bem o contraste entre as cores:

171
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A redação de Maria Cláudia


Os brancos são muito diferentes dos negros. Mas depende do branco e
depende do negro. Na minha caixa de lápis de cor o branco não serve
para nada. Só o preto é que serve para desenhar. Por isso, os dois são
muito diferentes. Tem o giz e tem o carvão. Eles são iguais. Os dois
servem para desenhar. Com o giz, a gente desenha na lousa. Com o
carvão, a gente desenha um bigode na cara do Paulino para a festa de
São João. (...). O papel é branco e é igualzinho ao papel preto chamado
carbono que escreve em baixo tudo o que a gente escreve em cima. A
noite é preta, mas o dia não é branco. O dia é azul. Então o preto da
noite é só da noite. Não é igual nem é diferente de nada.
Nessa metodologia são trabalhadas as diferenças entre as cores utilizando
GLYHUVRVPDWHULDLVFRPRÁRUHVGHFRUHVGLIHUHQWHVFRHOKLQKRVSLQWLQKRVSRU
meio de colagens, desenhos, pinturas. De forma lúdica, as crianças vão cons-
truindo referenciais sobre a identidade étnico-racial sem preconceitos.

3 CONTOS, BRINCADEIRAS E DIVERSIDADE

A brincadeira constitui-se como uma possibilidade educativa fundamental


SDUDDFULDQoD%ULQFDUpLPDJLQDUHFRPXQLFDUGHXPDIRUPDHVSHFtÀFDTXH
uma coisa pode ser outra, que uma pessoa pode ser um/uma personagem.
De acordo com Abramowicz (1995:56), “a brincadeira é uma atividade social.
Depende de regras de convivência e de regras imaginárias que são discutidas
e negociadas incessantemente pelas crianças que brincam. É uma atividade
imaginativa e interpretativa”. RCNEI fornece-nos uma boa indicação do ca-
ráter educativo das brincadeiras.
O principal indicador da brincadeira, entre as crianças, é o papel que
assumem enquanto brincam. Ao adotar outros papéis na brincadeira,
as crianças agem frente à realidade de maneira não liberal, transferindo
e substituindo suas ações cotidianas pelas ações e características do
papel assumido, utilizando-se de objetos substitutos (1998a, p.27).
A fantasia e a imaginação são elementos fundamentais para que a criança
aprenda mais sobre a relação entre as pessoas, sobre o eu e sobre o outro.
No faz-de-conta, as crianças aprendem a agir em função da imagem de uma
pessoa, de uma personagem, de um objeto e de uma situação que não estão
imediatamente presentes e perceptíveis para ela no momento e que evocam
HPRo}HVVHQWLPHQWRVHVLJQLÀFDGRVYLYHQFLDGRVHPRXWUDVFLUFXQVWkQFLDV

172
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Os contos e as histórias povoam o universo infantil. Principalmente com


relação aos contos, sempre se enfatizam aqueles da tradição européia, como
Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel e outros. Não trazemos
para a cultura escolar e para a cultura infantil os contos africanos, indígenas,
latino-americanos, orientais. Para uma educação que respeite a diversidade,
é fundamental contemplar a riqueza cultural de outros povos, e nesse senti-
do vale a pena pesquisar e trabalhar com outras possibilidades. Muitas vezes
vamos nos surpreender ao encontrar semelhanças entre alguns contos e his-
tórias, tais como Cinderela1, assim como Rapunzel e muitas outras que pre-
cisamos descobrir. As Pérolas de Cadja é um bom exemplo das semelhanças
com a história de Cinderela.
A história relatada no desenho animado Kiriku e a Feiticeira é um conto
ULFRHPIDQWDVLDVDYHQWXUDVHOLo}HVGHYLGD2ÀOPHSHUPLWHDGLVFXVVmRQmR
só da cultura africana, como a de valores como a amizade, o respeito, a per-
VLVWrQFLDRVFRQÁLWRVHQWUHDVSHVVRDVGHXPDPHVPDFRPXQLGDGHDLQYHMD
a dor etc.
Outras histórias da nossa literatura, como Histórias da Preta, O Menino
Nito, Ana e Ana, Tranças de Bintou, Bruna e a Galinha de Angola permitem
o contato com as culturas afro-brasileira e africana, com personagens negras
representadas com qualidade e beleza.

4 MÚSICAS

São diversas as canções populares trabalhadas na Educação Infantil. Mui-


tas delas tradicionais e com fortes representações negativas e/ou violentas,
reforçadoras da dominação, que depreciam a imagem do negro e outros. São
exemplos disso, “Os Escravos de Jô”, “Boi da Cara Preta” e outras com ver-
sos depreciativos para com a pessoa negra. O cantor e compositor Rubinho
do Vale (MG) fez uma releitura dessas cantigas e as apresenta numa perspec-
tiva positiva. A professora e escritora Inaldete Pinheiro (PE) também produz
livros que fazem recontos de algumas histórias populares preconceituosas.
Uma delas refere-se ao “Boi da Cara Preta”, e na qual é possível fazer subs-
tituições cantando a música utilizando outras cores para o boi, como verde,
vermelho, amarelão. A criatividade pode ser explorada ao máximo, buscando
substituições que façam sentido cultural para as crianças, cantando essas can-
ções, utilizando-se de outras expressões não preconceituosas.
1
Existe uma versão européia, uma chilena e uma africana em vídeo da Enciclopédia Britânica.

173
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A música popular brasileira, as canções populares regionais também tra-


]HP XPD LQÀQLGDGH GH H[HPSORV TXH GHVWDFDP D FXOWXUD QHJUD LQGtJHQD
UHJLRQDOHQWUHRXWUDV&DQWDUP~VLFDVHODERUDUFRUHRJUDÀDVID]HUSDUWHGH
pequenas encenações são ações intencionais no trato com a diversidade. Se-
ria interessante resgatar canções que falam de momentos da história (muitos
sambas enredo de escolas de samba tratam da história de resistência e luta
do povo brasileiro). Um exemplo é Kizomba, que destaca o quilombo de
Palmares e Zumbi:
.L]RPEDDIHVWDGDUDoD
9DOHX=XPEL2JULWRIRUWHGRV3DOPDUHV
4XHFRUUHXWHUUDFpXVHPDUHVLQÁXHQFLDQGRDDEROLomR
=XPELYDOHX  (VVD.L]RPEDpQRVVD&RQVWLWXLomR
Martinho da Vila

Essa música foi samba enredo da escola de samba Unidos de Vila Iza-
bel, vitoriosa no carnaval carioca de 1988, ano do centenário da abolição
da escravidão e ano da nossa atual Constituição Federal que contou com a
participação de amplos setores da sociedade brasileira, destacando os mo-
vimentos sociais de mulheres, negros(as), moradia, campo, terra, indígena,
educação dentre outros. Kizomba quer dizer festa, confraternização. Retrata
a luta contra a escravidão, que remonta a todas as formas de resistência en-
contrado pelos escravizados no Brasil, enfatizando o quilombo de Palmares
e Zumbi um de seus maiores líderes. Mistura festa, alegria e as manifestações
da cultura popular e afro-brasileira, além de expressar a esperança em um
mundo melhor, fazer referência a Constituição Federal, escrita naquele ano e
chamada de a “Constituição Cidadã”.
Contar a história de Zumbi, levar para a sala livros com sua história, com
ÀJXUDVHIRWRVGHTXLORPERVSURSRQGRSURMHWRVSHVTXLVDVVREUHRVTXLORP-
bos existentes em sua região2 são atividades importantes nas áreas de nature-
za e sociedade e linguagem oral e escrita.
O importante é valorizar as possibilidades regionais. Em cada estado e/
ou cidade existem grupos que cantam canções que falam da cultura popular
de forma positiva e enriquecedora. São vários os estilos e os mesmos devem
ser selecionados de acordo com as preferências das crianças e/ou dos(as)
próprios educadores. São canções populares, reggae, jazz, funk, rap, samba,
pagode, chorinho, dentre outras, devendo-se estar atentos(as) ao conteúdo
das letras.
2
Ver Fundação Palmares/SEPPIR, e texto Educação Quilombola neste documento.

174
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

5 DECORANDO E INFORMANDO (MURAIS, CARTAZES,


MOBÍLIES)

De maneira geral, nas instituições de Educação Infantil existem muitos e


diversos tipos de decorações, como móbiles em berçário, fotos ou desenhos
nas portas das instalações sanitárias, cartazes que trazem orientações a respeito
GHKLJLHQHFRUSRUDOHEXFDOPXUDLVWHPiWLFRVÀJXUDVRXGHVHQKRVTXHLGHQWL-
ÀFDPDVWXUPDVRXFODVVHVSRLVVHDFUHGLWDTXHRDPELHQWHGHVWLQDGRjFULDQoD
SHTXHQDQHFHVVLWDVHUFRORULGRHFRPIRUPDGHÀQLGD5DUDPHQWHHVVHVHVSDoRV
FRQWDPFRPSURGXo}HVIHLWDVSHODVSUySULDVFULDQoDV3URSRPRVXPDUHÁH[mR
acerca desse cenário feito por adultos/educadores em que subjaz uma imagem
de criança. Necessário se faz contemplar a diversidade existente entre crianças
e adultos, confeccionando móbiles nos berçários com rostinhos de crianças de
diversos grupos: indígenas, brancos, negros, orientais. Esses móbiles funcionam
como estímulos para a criança pequena que, ao olhar e observar a diversidade à
sua volta, construirá essas referências futuramente.
Nos momentos de confecção dos murais temáticos é importante envolver
as crianças no processo de criação. As instituições poderão requisitar das famí-
lias, por exemplo, que enviem revistas usadas que poderão ser utilizadas na con-
fecção de murais para o Dia das Mães, Crianças, Família e outras datas. Cabe
DRDHGXFDGRUDHVWLPXODUDVFULDQoDVDHQFRQWUDUHPÀJXUDVGHSHVVRDVYDULD-
das e sempre que possível fazer breves interferências e comentários a respeito
das escolhas que fazem problematizar as alternativas. Se sempre recaem sobre
um mesmo tipo físico, é interessante conversar com as crianças sobre isso;
caso seja observado algum tipo de preconceito ou representação negativa de
um determinado grupo étnico-racial, é fundamental que se amplie a discussão
em outros momentos e espaços articulando as diversas áreas de conhecimento,
utilizando-se de diversos recursos como livros, brinquedos, músicas etc.

6 CORPO HUMANO

Trabalhar com o corpo humano também pode ser um momento de re-


ÁH[mRSRUSDUWHGDVGRVHGXFDGRUDVHVDUHVSHLWRGDVGRHQoDVJHQpWLFDVTXH
acometem as crianças e que muitas vezes causam problemas sérios quando
diagnosticadas tardiamente. São doenças como aquelas que podem trazer da-
nos à visão, audição, locomoção e outras como anemia falciforme, que atingem
pessoas negras3. Essas doenças, se percebidas precocemente por aqueles/as
3
A anemia falciforme pode ser diagnosticada no teste do pezinho.

175
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

TXHDFRPSDQKDPDVFULDQoDV IDPLOLDUHVHGXFDGRUDVHVSURÀVVLRQDLVGDVD~GH
e outros) podem ter seus efeitos minimizados, impedindo o aumento do núme-
ro de crianças que chegam à idade de sete e oito anos com danos irreversíveis.
Também no trabalho com o corpo é preciso dar destaque para as dife-
renças físicas entre as pessoas e as razões da cor da pele, textura do cabelo,
formato de nariz e boca. Todos nós temos muitas curiosidades a esse respeito
e na maioria das vezes as explicações que nos oferecem são insatisfatórias.
Informações sobre a melanina-pigmento que dá coloração à pele, podem ser
trabalhadas de forma lúdica comparando-se a outras formas de pigmentação
SUHVHQWHVQDQDWXUH]DFRPRFRUGDVÁRUHVÁRUHVHIUXWRVFRUGRVDQLPDLV
Além das cores dos rios e mares, o arco-íris.
Propor atividades com o livro “Crianças como Você”; atividades de ob-
servação no espelho, utilização de pinturas. O trabalho com o corpo pode
remeter a elementos da cultura de diversos povos, com roupas, alimentação,
penteados, hábitos de higiene etc.
Com relação ao cabelo, a história “As tranças de Bintou” mostra uma
possibilidade de abordar o tema de forma positiva e construtiva, favorecendo
o conhecimento de culturas de povos da África. O destaque é para as tranças
de Bintou, num percurso de vida das pessoas que habitam a região, na visão
da menina que queria ter tranças:
Meu nome é Bintou e meu sonho é ter tranças..Meu cabelo é curto e
crespo. Meu cabelo é bobo e sem graça. Tudo que tenho são quatro
birotes na cabeça. Às vezes, sonho que passarinhos estão fazendo ni-
QKRVQDPLQKDFDEHoD6HULDXPyWLPROXJDUSDUDGHL[DUHPVHXVÀOKR-
tes. Aí eles dormiriam sossegados e cantariam felizes. Mas na maioria
das vezes eu sonho mesmo é com tranças. Longas tranças, enfeitadas
com pedras coloridas e conchinhas.Minha irmã, Fatou, usa tranças, e
é muito bonita. Quando ela me abraça, as miçangas das tranças roçam
nas minhas bochechas. Ela me pergunta: “Bintou, pro que está choran-
do?” Eu digo: “Eu queria ser bonita como você.” Meninas não usam
tranças. Amanhã eu faço novos birotes no seu cabelo”. Eu sempre
acabo em birotes.
Essa história permite abordar componentes da identidade das crianças
desde as diferentes fases da vida: infância, juventude, fase adulta, velhice e
as características de cada uma, as possibilidades e limites das mesmas, além
de comparações entre culturas e povos: as meninas brasileiras podem usar
tranças, mas nas terras onde Bintou mora, ela precisa ter uma certa idade para
fazer o penteado que tanto sonha.

176
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

No continente africano também existem muitos rituais que têm o cabelo


como referência. No caso da história na cerimônia de batismo, o cabelo da
FULDQFLQKDpUDVSDGR$ÀJXUDGDVSHVVRDVPDLVYHOKDVFRPRSRUWDGRUDVGH
sabedoria também é destacada. É a avó de Bintou que decide sobre o seu
penteado e ainda não chegou o momento de ela usar tranças. E mesmo tendo
sido prometido, sua avó lhe dá de presente o sonho que sonhou de enfeites
coloridos.
Vários nomes desconhecidos dos brasileiros são listados na história. É
XPERPPRPHQWRSDUDVHWUDEDOKDUFRPRVQRPHVGDVFULDQoDVHRVVLJQLÀ-
FDGRVGRVPHVPRVeSUHFLVRUHÁHWLUVREUHRVPRWLYRVSHORVTXDLVDRFKHJD-
rem ao Brasil para serem escravizados, muitos africanos foram batizados com
nomes europeus, perdendo assim um pouco de sua própria identidade, pois
RVQRPHVQDÉIULFDJXDUGDPVHQWLGRHVLJQLÀFDGRSDUDRVJUXSRVIDPLOLDUHV
de origem das crianças. É comum observarmos crianças cujos nomes têm
RULJHPHPKRPHQDJHPGRVSDLVDtGRORVHÀJXUDVLOXVWUHVGRPHLRDUWtVWLFRH
cultural, que não expressam a herança cultural dos povos de origem de suas
famílias e grupos sociais.

7. BIBLIOGRAFIA COMENTADA

7.1 Literatura Infantil

ALMEIDA, Gergilga de. %UXQDHDJDOLQKDG·$QJROD. Rio de Janeiro: Pallas.


Bruna era uma menina que vivia perguntando com quem iria brincar, pois
era muito sozinha. Sua avó, com dó da netinha, manda trazer de um país
da África uma conquém, que no Brasil é mais conhecida como galinha
d’Angola, cocá ou capote. Depois de ganhar o presente, Bruna passa a ter
várias amigas e a conhecer as belezas de ter uma conquém.

BARBOSA, Rogério Andrade. +LVWyULDV DIULFDQDV SDUD FRQWDU H UHFRQWDU. Editora do


Brasil
Por que o porco vive no chiqueiro? Por que a coruja tem o olho grande? Es-
sas e outras perguntas sobre os animais têm respostas nas histórias africanas
para contar e recontar, que o autor recolheu dos contos tradicionais africa-
nos e traz de maneira divertida para o público infanto-juvenil brasileiro.

DIOUF, Sylviane A. As tranças de Bintou. Tradução: Charles Cosac


O livro conta a história de uma menina em uma localidade da África. A
menina Bintou queria ter tranças, mas em sua comunidade só as moças

177
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

podiam usar tranças. Bintou acha seu penteado sem graça e pede a sua
avó que faça tranças em seu cabelo. Esta, no lugar de tranças coloca vários
HQIHLWHVFRORULGRVHPVHXVFDEHORVHÀFDPXLWRIHOL]DRYHURUHVXOWDGR

GODOY, Célia. Ana e Ana. Editora: DCL


Ana Carolina e Ana Beatriz são duas irmãs gêmeas completamente diferen-
tes uma da outra. Enquanto uma gosta de massas, a outra é vegetariana; uma
adora o rosa, a outra gosta de azul; uma adora música, a outra é apaixonada
por animais. A história das Anas nos faz perceber que as pessoas são únicas
no gostar, no ser e no estar no mundo, mesmo que se revelem iguais na
aparência.

KINDERSLEY, Anabel. &ULDQoDVFRPRYRFr. Unesco: Ática


Fotógrafos e escritores percorrem 31 países pesquisando e fotografando
crianças. O resultado desta viagem é um livro emocionante, com fotos belís-
simas de crianças de todo o mundo, de suas famílias, sua cultura, seus brin-
quedos e comidas favoritas. O livro é uma celebração da infância no mundo e
também uma viagem fantástica pelas diferenças e semelhanças deste mosaico
chamado humanidade.

MACHADO, Ana Maira. Menina bonita do Laço de Fita. São Paulo: Ática.
Conta a história de um coelhinho que se apaixona por uma menina negra e
quer saber o segredo de sua beleza. A menina inventa mil histórias, até que
sua mãe esclarece ao coelhinho que a cor da pele da menina é uma herança
de seus antepassados, que também eram negros.
PATERNO, Semiramis. A Cor da Vida. Editora: Lê.
Com esse livro a autora possibilita a discussão da temática das relações ra-
ciais pelo olhar das crianças. Por meio de um jogo poético com as cores,
GXDVFULDQoDVPRVWUDPSDUDVXDVPmHVTXHDOXWDSHODLJXDOGDGHQmRVLJQLÀFD
apagar as diferenças.
PIRES, Heloisa. +LVWyULDVGD3UHWD. São Paulo, Cia das Letrinhas.
A autora reúne neste livro várias histórias contadas por seus avós, que nos
permitem conhecer um pouco sobre a cultura afro-brasileira, a religião dos
orixás, a culinária e tudo o que nos remete à cultura africana, que compõe a
cultura brasileira.

PRANDI, Reginaldo. ;DQJ{ R WURYmR. São Paulo: Companhia das Letrinhas,


2003.
Conto de tradição Yorubá (língua falada no Benin, Nigéria e região) repassa
história que compõe o universo da mitologia africana

178
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ROSA, Sônia. 2PHQLQR1LWRDÀQDOKRPHPFKRUD" Rio de Janeiro, Pallas.


A história de Nito é muito comum à de tantos meninos que são educados
para não chorar. Para obedecer ao pai, que o proíbe de chorar, Nito se trans-
IRUPDHPXPDFULDQoDWULVWHHÀFDGRHQWHGHWDQWR´HQJROLUµFKRUR2PpGL-
co da família é chamado e aconselha o menino a “desachorar”. O sofrimento
da criança é tanto, que o médico, a mãe, o irmão e até o pai de Nito choram
ao ouvir o quanto de choro ele havia guardado.

RUFINO, Joel. *RVWRGHÉIULFDHVWyULDVGHOiHGDTXL. Editora: Global


Histórias daqui e da África, contando mitos e histórias das tradições negras.
Com um olhar crítico e afetuoso, o livro fala também de personagens da
história do Brasil e de um tempo de escravidão, luta e liberdade, ajudando a
compreender a diversidade de nossa cultura.

179
Tranças e prosas
Coleção particular - Elmodad Azevedo

ENSINO FUNDAMENTAL
Sugestões de atividades, recursos didáticos e bibliografia específica

As sugestões que se seguem, também, poderão ser utilizadas nos dois


níveis do Ensino Fundamental, desde que sejam enriquecidas, relacionadas,
ampliadas e adaptadas à complexidade que caracteriza cada nível.

1. Atividades

1.1. Abordagem da questão racial como conteúdo multidisciplinar durante o ano


letivo

Tema: Identidade (autoconhecimento, relações sociais individuais e


diversidade).
Objetivos: Perceber, valorizar semelhanças e diferenças, respeitar as
diversidades.
Subtema: Eu, minha família, o lugar onde moro.
Diálogo com a questão racial:
• Identidade racial em relação à origem étnica da família do/a aluno/a.
• Termo afro-brasileiro buscando a ancestralidade africana da família.
• ,GHQWLÀFDUWUDGLo}HVIDPLOLDUHVHVHPHOKDQWHVjTXHODVTXHVHUHODFLRQDP
às tradições africanas reinventadas no Brasil, valorizando-as.
Subtema: semelhanças (organização familiar, lazer, cultura, religiosidade,
hábitos alimentares, moradia, alimentação, papéis sociais familiares, gênero,
cuidados com a saúde).
Diálogo com a questão racial:
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• $XWRHVWLPDGRV DV DOXQRV DV DÀUPDQGR D SRVLWLYLGDGHGDV GLIHUHQ-


ças individuais e de grupos a partir da valorização da história familiar
dos(as) alunos(as), das pessoas de sua escola, bairro, comunidade e suas
diferenças culturais.
• As famílias pelo mundo através dos tempos e espaços.
• Relações e cuidados com o corpo em diferentes famílias e culturas.
• Resgate de jogos e brincadeiras em tempos e espaços diferenciados.
• Formas de comunicação de diferentes culturas ao longo dos tempos.

1.1.1 Atividades correlatas

$V HVWUDWpJLDV H[HPSOLÀFDGDV DEDL[R SRGHUmR VHU XVDGDV QR VHQWLGR GH
oferecer oportunidades a todos(as) os(as) alunos(as) para desenvolverem de
modo satisfatório suas identidades, desde que não se reforce a hierarquia das
diferenças étnico-raciais, de gênero, faixa etária e condição social. É necessá-
rio que professores/as e coordenadores/as avaliem e realizem uma adequa-
ção dessas atividades da sala ao contexto social das crianças, adolescentes e
jovens, para não lhes provocar constrangimentos, e ter cuidado com o senso
comum a respeito desses temas.
• Painéis com fotos das crianças da classe usando títulos a exemplo de “So-
mos todos diferentes, cada um é cada um”, “Quem sou eu, como sou”.
• Confecção de álbuns familiares com fotos ou desenhos, livros de família,
exposição de fotos, entrevistas com as pessoas mais velhas, sessão de nar-
ração de histórias com os(as) familiares dos(as) alunos(as).
• Feira de cultura da turma com as contribuições culturais que cada família
poderá apresentar (exposição de objetos de suas casas, narração de “cau-
sos” e de histórias)
• &RQVWUXomRGHJUiÀFRVHHVWLPDWLYDVUHODWLYDVjVGLIHUHQoDVHVHPHOKDQoDV
encontradas nas famílias e na comunidade.
• &RQIHFomRGHXPOLYURGDWXUPDFRPQRPHVHVHXVVLJQLÀFDGRV

1.2 Reconhecimento e valorização das contribuições do povo negro

1.2.1 Influência africana na língua portuguesa

Ainda na perspectiva de reconhecer e valorizar a participação do povo ne-


gro na construção da cultura nacional, uma interessante sugestão de atividade,

182
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

seria, por exemplo, o estudo de palavras de origem africana que são comuns
em nosso idioma, confeccionando um dicionário contendo esses termos. Este
poderá ser um elemento propiciador de um projeto de trabalho com a cultura
negra, em que a interdisciplinaridade será a tônica. Por meio delas, poderá se
ID]HUXPDUHÁH[mRDFHUFDGDSDUWLFLSDomRDIULFDQDQDIRUPDomRFXOWXUDOEUDVL-
leira, alcançando a contribuição artística, política e intelectual negra.

1.2.2 Música, literatura e diversidade étnico-racial

a) Trabalho literário fazendo contraposição de formas, textos musicais com


o objetivo sobre a dinâmica das relações raciais. Ex.: “Aquarela do Brasil”,
de Ari Barroso, apresentando a idéia de um Brasil “lindo e trigueiro”, em
contrapartida ao “Canto das três raças” (Mauro Duarte/Paulo César Pinhei-
ro/1996) que nos apresenta “os cantos de revolta pelos ares”; “Missa Afro-
brasileira”, de Carlos Alberto Pinto Fonseca.
b) O recontar de mitos africanos, dando outra visão à criação do mundo, é
fundamental para que os(as) alunos(as) possam valorizar o outro em nós,
posto que estes mitos fazem parte de nosso comportamento social e indivi-
dual e, por vezes, não percebemos isso. Esse trabalho literário possibilitará
momentos de envolvimento da imaginação e da emoção.

1.2.3 Trajetórias do povo negro no espaço

2 HQWUHODoDPHQWR GLVFLSOLQDU GD KLVWyULD H GD JHRJUDÀD p VHPSUH XPD


estratégia positiva. Neste sentido, poderíamos sugerir:
• Fazer, quando possível, uma incursão por territórios negros e locais
de memória que tenham sido produzidos a partir de uma participação
histórica negra (centro da cidade, igrejas, terreiros de religião de matriz
africana, bairros da cidade, comunidades, favelas, museus). É necessá-
rio planejar e organizar um roteiro, juntamente com os(as) estudantes,
de uma trilha urbana, observando os elementos da paisagem; registrar
RVDVSHFWRVREVHUYDGRVTXHH[HPSOLÀTXHPRDVVXQWRHVWXGDGRXWLOL]DU
o mapa da cidade para representar a localização dos lugares planejados
para a trilha.
• As atividades de sistematização poderiam ser: construção de maquetes,
desenhos do percurso observado, montagem de murais, álbum de fo-
tos com anotações, produção de textos, tratamento dos dados coleta-

183
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Figura 1 - Símbolos da arte yorubá4


GRVJUiÀFRVWDEHODV6HKRXYHUFRQGLo}HVSRGHVHXVDUGDOLQJXDJHP
multimídia para a montagem de um “clipe” associando imagens e as
anotações/observações/descrições/conclusões relacionadas à trilha
realizada.

1.2.4 Arte e matemática

A matemática e a arte poderão atuar juntas em alguns momentos da in-


corporação da história e da cultura negra no universo escolar, em que os sím-
bolos poderão ser os desencadeadores de um projeto de trabalho no qual a
arte africana remeterá aos estudos dos grandes reinos africanos pré-coloniais,
FRPRSRVVXLGRUHVHFRQVWUXWRUHVGHFXOWXUDVVDEHUHVHWUDGLo}HV$JHRJUDÀD
contemplará a localização do continente africano e seus países no mapa-mún-
di, bem como dos povos ligados a esta cultura. A matemática poderá explorar
WRGDDJHRPHWULDFRPVXDVÀJXUDVUHSUHVHQWDGDVSRUPHLRGRVVtPERORVGD
cultura Adinkra e de outras culturas africanas. Os provérbios africanos con-
tidos em cada um dos símbolos são um rico material de trabalho para a área
de português. Portanto, a construção de conhecimentos pode se dar por meio
da arte e da cultura africana.
4
Grupo etno-linguístico que reside em grande parte na atual Nigéria e que veio para o Brasil no período
escravista.

184
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Os antigos símbolos da arte yorubá poderão ajudar no entendimento e


uso de alguns conceitos geométricos, como também para entender o uso
GDVFRRUGHQDGDVJHRJUiÀFDVTXDQGRIRUHPXVDGDVSDUDPXOWLSOLFDomRHDP-
SOLDomRGRVGHVHQKRV(QÀPDMXGDUQRGHVHQYROYLPHQWRGHFRQFHLWRVWRSR-
lógicos fundamentais, trabalhando medidas, geometria, etc. Portanto, além
de promover maior conhecimento sobre a cultura negra, poderemos usá-la
como instrumento na construção de conhecimentos.
• Pesquisar em materiais impressos e na internet os símbolos e culturas
africanos.
• Reprodução dos desenhos usando escala.
• Confecção de estamparia em tecidos (ou papel) usando moldes
vazados.

1.3 Abordagem das situações de diversidade racial e da vida cotidiana


na sala de aula

• Usar charges para analisar criticamente fatos de discriminações e racis-


mos, com os quais os(as) alunos(as) poderão fazer analogia com a sua
realidade
• 3URPRYHUUHÁH[}HVVREUHDLPDJHPGDSRSXODomRQHJUDUHSUHVHQWDGD
nas novelas das redes de televisão; incentivar debates acerca da legisla-
omRDWXDOVREUHUDFLVPRHDVDo}HVDÀUPDWLYDVGDDWXDOLGDGHXVDUFRPR
estratégia de debates o júri simulado a partir de esquetes, expressando
situações de racismo, representadas pelos(as) alunos(as).
• Fomentar a formação de grupos de teatro com a proposta de interpre-
WDUHQFHQDUWH[WRVTXHUHÁLWDPDTXHVWmRUDFLDOVHJXLGRVGHGLVFXVVmR
sobre o assunto retratado.

1.3.1 Histórico da comunidade

• Confeccionar álbuns, livros de contos, ABCs, cordel, privilegiando a his-


tória da comunidade, sendo assim um instrumento de valorização dos
grupos étnico-raciais e sociais que a compõem. Esta atividade promove-
rá o fortalecimento de inserção na escrita, ao mesmo tempo em que se
valorizará uma dimensão de oralidade, aqui pensada como transmissão
de saberes necessários e fundamentais à memória coletiva dos grupos.

185
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

1.3.2 A realidade sócio-racial da população negra

• O elemento motivador para estimular o projeto de trabalho poderia


ser a música (rap, samba ou outras que abordem o tema5); um artigo
de jornal; análise de anúncios publicitários. Por meio desses elementos,
SURSLFLDUUHÁH[}HVVREUHRGLItFLOSURFHVVRGHRFXSDomRGRHVSDoRXU-
bano vivenciado pela população negra no período pós-abolição e na
atualidade, contextualizando as causas e conseqüências dessa ocupação
como também as relações estabelecidas.

1.3.3 Arte e cultura negras

• Fazer o levantamento, e análise de obras de artistas negros(as) ou que


trabalham com a temática étnico-racial, estudando suas obras e suas
ELRJUDÀDV
• Criar um folder sobre artistas negros(as) e suas obras.
• Promover uma pequena exposição de trabalhos dos(as) alunos(as) inspi-
rados nestes artistas.
• Pesquisar alguns dos instrumentos musicais de origem africana, pla-
nejar e selecionar materiais alternativos para a confecção deles. Fazer
exposição dos instrumentos confeccionados com explicação e história
de cada instrumento.
• Promover o trabalho de pesquisa histórica sobre festas e danças regio-
nais, sobretudo aquelas ligadas à cultura negra. Apresentar estas pes-
quisas para a comunidade.
• Pesquisar sobre a capoeira é um excelente mote para desencadear um
estudo sobre a cultura negra. Na pesquisa a respeito da capoeira pode-
mos apreciar e valorizar os momentos em que ela se inscreve no tempo
e na história. Fazer um paralelo entre a capoeira e a resistência do povo
negro é uma estratégia positiva para incorporar este tema como conte-
údo do currículo escolar.
• Trabalhar com mitos africanos, montando representações teatrais e peças
com fantoches criados pelos(as) alunos(as).

5
Veja sugestões adiante.

186
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

1.4 Crítica às atitudes e aos materiais etnocêntricos, desconstrução de


estereótipos e preconceitos atribuídos ao grupo negro

3DUDSRVVLELOLWDUDGHVFRQVWUXomRHUHVVLJQLÀFDomRGHQRo}HVSUHFRQFHL-
WXRVDVSRUPHLRGRFRQKHFLPHQWRGHQRo}HVFLHQWtÀFDVSRGHUHPRVODQoDU
mão de variados gêneros musicais com estratégias de sensibilização. De forma
O~GLFDHSUD]HURVDRV DV HVWXGDQWHVVHUmRVHQVLELOL]DGRV DV SDUDDUHÁH[mR
Exemplo para o fundamental II:
• Fazer levantamentos e ouvir, interpretar e debater acerca de músicas
que tratem de maneira positiva a pessoa negra, seja criança, adolescen-
te, jovem ou adulta, seja feminina ou masculina.
• Promover debates entre grupos da classe sobre as questões levantadas.
• Trabalhar conceitos sobre a identidade individual e aspectos que a in-
ÁXHQFLDPFRPRVH[RLGDGHJUXSRVRFLDOUDoDHWQLD

1.4.1 Construir coletivamente alternativas pedagógicas com suporte de


recursos didáticos adequados

É uma empreitada para a comunidade escolar: direção, supervisão, pro-


fessores/as, bibliotecários(as), pessoal de apoio, grupos sociais e instituições
educacionais.
Algumas ferramentas são essenciais nessa construção: a disponibilização
GHUHFXUVRVGLGiWLFRVDGHTXDGRVDFRQVWUXomRGHPDWHULDLVSHGDJyJLFRVHÀ-
cientes, o aumento do acervo de livros da biblioteca sobre a temática étni-
co-racial, a oferta de variedade de brinquedos contemplando as dimensões
pluriétnicas e multiculturais.
Veja alguns exemplos de como você poderá viabilizar o trato pedagógico
das questões raciais no ambiente de sua escola:
• Promover momentos de trocas de experiência entre professores/as
para efetivação de projetos de trabalhos, atividades e procedimentos de
inserção da questão racial.
• Dar voz aos grupos culturais e representativos dos/das estudantes e da
comunidade por meio de assembléias periódicas.
• Possibilitar a criação de uma “rádio” pelos estudantes, como também
um jornal (periódico e/ou mural) onde esta discussão esteja presente.

187
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

2. INDICAÇÃO DE VÍDEOS, FILMES, MÚSICA, JOGOS, OBRAS


DE ARTE E HISTÓRIA
2.1 Vídeos, filmes

Poderão ser usados de variadas formas: ilustrando um tema que está sen-
do estudado; para despertar emoção e/ou sensibilizar, criando motivação
para algum assunto; abrindo possibilidades de novas interpretações sobre um
mesmo tema e analisando situações. Inúmeras possibilidades de trabalho po-
derão ser criadas por professores/as e alunos(as), segundo seus interesses e
contextos6.
CobaiasPLQ$OIUH:RRGDUG 7HRULDVFLHQWtÀFDVGHVXSHULRULGDGH
racial).
Kiriku. 1998. 71 min. Michel Ocelot (Visão de uma aldeia africana – Inspira-
do em contos africanos)
Narciso, Rap. 2003. 15 min. Jéferson De (São Paulo - Conta a história de
dois meninos que encontraram uma lâmpada mágica: o menino negro quer
ser branco e rico ,e o menino branco quer cantar rap como os negros).
O Contador de Histórias, 2000. 50 min. Roberto Carlos. Ed. Leitura (Suge-
rimos para trabalho “A oportunidade”).
Sonho americano. 1996. 118 min. David Knoller (Várias histórias - Sugeri-
mos para trabalhar com os alunos do Fundamental a história do menino que
desenhou o Cristo negro).
Tudo aos Domingos. 1998. 05 min. George Tillman (Tradições a Africanas
na vida das pessoas).
Um grito de liberdade. 1987. 157 min. Richard Attenborough (Visão do
Apartheid na África do Sul. Luta contra o racismo).
Uma Onda no ar. 2002. 92 min. Helvécio Ratton (Conta a história de Jorge,
o idealizador de uma rádio na favela, e a luta, resistência cultural e política
contra o racismo e a exclusão social em que a população da favela encontra
uma importante arma: a comunicação.
Vista minha pele. 2003. 50 min. Joelzito Araújo. Ceert (Discriminação racial
na vida cotidiana de adolescentes).
6
Onde encontrar os vídeos: Funarte/Decine - http://www.decine.gov.br; Instituto Itaú Cultural
KWWSZZZLWDXFXOWXUDORUJEU5LRÀOPHKWWSZZZULRUMJRYEU79&XOWXUD²9tGHR&XOWXUD
- http://www.videocultura.com.

188
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

2.2 Músicas7

Canta BRASIL - Alcyr Pires Vermelho


Canto das três raças – Clara Nunes
Dia de graça - Candeia
Haiti - Caetano Veloso e Gilberto Gil
Kizomba, Festa da Raça - Luiz Carlos da Vila
Lavagem Cerebral – Gabriel, o Pensador
Mão de Limpeza - Gilberto Gil
Milagres do Povo – Caetano Veloso e Gilberto Gil
Pelo Telefone - Ernesto dos Santos (Donga)
Retrato em Claro e Escuro - Racionais – MC’s
Sorriso Negro – Dona Ivone Lara

2.3 Poemas

Ashell, Ashell, pra todo mundo, Ashell - Elisa Lucinda.


Identidade - Pedro Bandeira
Mahin Amanhã - Miriam Alves. &DGHUQRV1HJURV0HOKRUHV3RHPDV,1998.
Quem sou eu? - Luiz Gama
Salve Mulher Negra, Oliveira Silveira. Cadernos Negros Vol. 03. Org. Quilom-
bhoje, São Paulo: Editora dos Autores, 1980.
Serra da Barriga - Jorge de Lima
Tem gente com fome – Solano Trindade

2.4. Literatura Infanto-Juvenil - Fundamental I e II8

AIBÊ, Bernardo. $RYHOKDQHJUD. São Paulo: Mercuryo, 2003.


ALMEIDA, Gercilga de. %UXQDHD*DOLQKDG·$QJROD. Rio de Janeiro: Editora didática
H&LHQWtÀFDH3$//$6(GLWRUD
ARAÚJO, Leosino Miranda. 2OKRV &RU GD 1RLWH %HOR +RUL]RQWH 2ÀFLQD GR
Pensamento, 2004
BAGNO, Marcos. 8PFpXD]XOSDUD&OHPHQWLQD. Rio de Janeiro: LÊ, 1991.
BARBOSA, Rogério Andrade. Contos Africanos para crianças brasileiras. São Paulo:
Paulinas, 2004.

7
Indicamos também CDs de Nei Lopes, Jorge Aragão e Antônio Nóbrega.
8
Todos os livros poderão ser lidos e/ou trabalhados por qualquer nível ou série, dependendo do
trabalho a ser desenvolvido.

189
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

_________. &RPRDVKLVWyULDVVHHVSDOKDUDPSHORPXQGR. São Paulo: DCL, 2002.


_________. +LVWyULDV$IULFDQDVSDUDFRQWDUHUHFRQWDU. São Paulo: Editora do Brasil, 2001.
_________. 2ÀOKRGRYHQWR. São Paulo: DCL, 2001.
_________. 'XXODDPXOKHUFDQLEDO - um conto africano. São Paulo: DCL, 1999.
_________. %LFKRVGDÉIULFD. São Paulo: Melhoramentos, 1987.
BORGES, Geruza Helena & MARQUES, Francisco. Criação. Belo Horizonte-Terra
Editoria 1999.
BOULOS JUNIOR, Alfredo. GHPDLRDEROLomR: por que comemorar? São Paulo:
FTD, 1996.
BRAZ, Júlio Emílio. 3UHWLQKDHX" São Paulo: Ática.
CASTANHA, Marilda. Agbalá: um lugar continente. Belo Horizonte: Formato,
2001.
COELHO, Raquel. Berimbau. São Paulo: Ática, 2001.
COOKE, Trish. 7DQWRWDQWR. São Paulo: Ática, 1994.
CRUZ, Nelson. &KLFDH-RmR. Belo Horizonte: Formato, 2000.
DIOUF, Sylviane. As tranças de Bintou. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.
EISNER, Will. Sundiata: uma lenda africana - o Leão de Mali. São Paulo: Cia das Letras,
2004.
GODOY, Célia. Ana e Ana. São Paulo: DCL, 2003.
KRISNAS; ALEX, Allan. =XPEL ² $ 6DJD GH 3DOPDUHV. Rio de Janeiro: Marques
Saraiva, 2003.
LAMBLIN, Christian. 6DPLUDQmRTXHULUjHVFROD. São Paulo: Ática, 2004.
LIMA, Heloísa Pires. (VSHOKR'RXUDGR. São Paulo: Peiropólis, 2003.
____. +LVWyULDVGD3UHWD. São Paulo: Cia das Letrinhas, 1998/2000.
MACEDO, Aroldo & FAUSTINO, Oswaldo. Luana: a menina que viu o Brasil
neném. São Paulo; FTD, 2000.
MARTINS, Georgina da Costa. Fica comigo. São Paulo: DCL, 2001.
MIGUEZ, Fátima. %RFD)HFKDGDQmRHQWUD0RVFD. São Paulo: DCL, 2001.
OTERO, Regina & RENNÓ, Regina. Ninguém é igual a ninguém: o lúdico no
conhecimento do ser. São Paulo: Editora do Brasil, 1994.
PATERNO, Semiramis. A cor da vida. Belo Horizonte: Lê, 1997.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. 2V5HL]LQKRVGR&RQJR. São Paulo: Paulinas, 2004.
PEREIRA, Edimilson de Almeida & ROCHA, Rosa M. de Carvalho. Os Comedores
GH3DODYUDV. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2004.
PRANDI, Reginaldo. Ifá – o adivinho. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2003.
______. 2VSUtQFLSHVGRGHVWLQR: histórias da mitologia afro-brasileira. São Paulo: Cosac
& Naif, 2001.

190
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

RAMOS, Rossana. 1DPLQKDHVFRODWRGRPXQGRpLJXDO. São Paulo: Cortez, 2004.


ROCHA, Rosa M. de Carvalho & AGOSTINHO, Cristina. Alfabeto Negro. Ilustrado
por Ana Raquel. Belo Horizonte: MAZZA Edições, 2001.
ROCHA, Ruth. TXHHXYRXSDUD$QJROD. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
6$1726-RHO5XÀQR*RVWRGHÉIULFD+LVWyULDVGHOiHGDTXL6mR3DXOR*OREDO
2001.
______. Dudu Calunga. São Paulo: Ática, 1996.
UNICEF. &ULDQoDV FRPR YRFr: uma emocionante celebração da infância. São Paulo:
Ática, 2004.
ZATZ, Lia. Jogo Duro: era uma vez uma história de negros que passou em branco.
Belo Horizonte: Dimensão, 1996.
ZONATTO, Celso. 7RLQ]LQKRHD$QHPLD)DOFLIRUPH. São Paulo: Lake. 2002.

191
Tranças e prosas
Coleção particular - Elmodad Azevedo

ENSINO MÉDIO

Sugestões de atividades

1. RECOMENDAÇÕES POR ÁREAS DO CONHECIMENTO


1.1 Linguagens, códigos e suas tecnologias

1.1.1 A dinâmica dos códigos em relação às questões culturais, sociais e políticas

Importa ressaltar o entendimento de que as linguagens e os códigos


são dinâmicos e situados no espaço e no tempo, com as implicações
de caráter histórico, sociológico e antropológico que isso representa.
(...) Relevante também considerar as relações com as práticas sociais e
produtivas e a inserção do aluno como cidadão em um mundo letrado
e simbólico (BRASIL, 1999, p. 33).
Na área de linguagens, códigos e suas tecnologias, todas as disciplinas
dão lugar para construção de valores, apropriação de gestos e expressões que
remetem ao universo cultural afro-brasileiro.
Nessa perspectiva, vale ressaltar que a linguagem é um instrumento pode-
roso e que dominar seus usos orienta práticas sociais nas quais se envolvem
os sujeitos em suas trajetórias de vida. Sobretudo quanto às possibilidades de
problematizar, vivenciar e entender o domínio da linguagem como um dos
canais para mudanças que possam tornar as relações mais igualitárias e demo-
cráticas, do ponto de vista econômico, político e cultural.
A quase totalidade de nossos estudantes sabe que ler não é apenas saber
UHSHWLURTXHGL]RWH[WROLGRpWDPEpPUHÁHWLUVREUHHOHSHQVDUQDVXDUH-
lação com outros textos, o contexto de sua produção e, ainda, colocar-se no
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

texto inserindo-o em seu cotidiano. Sabem, também, que a realidade e a lin-


guagem não são elementos distintos, pois, ao se utilizarem da linguagem para
expressar sua visão da realidade, incorporam nessa escrita as marcas e o lugar
de onde falam. É por isso que as produções juvenis causam tanta empatia a
qualquer jovem de outra parte do mundo.
Torna-se necessário apresentar, em sala de aula, outros tipos de textos que
circulam fora dos espaços escolares e que são próprios da sociedade – os tex-
tos de circulação social, como fanzines, letras de música, cartuns, quadrinhos,
vídeos e revistas produzidas para o público jovem –; analisar mais detidamen-
te a obra de autores clássicos que abordam a questão racial; ter olhar crítico
sobre a produção literária de autores negros brasileiros contemporâneos e
vislumbrar uma outra estética – que busca ir da percepção à manifestação da
GLIHUHQoDRXGDPDQLIHVWDomRjDÀUPDomRHjUHLYLQGLFDomRGHVVDGLIHUHQoD
'HVVDPDQHLUDSRGHPVHGLVFXWLUÀJXUDVGHOLQJXDJHPFRPEDVHHPWH[WRV
sobre mitologia africana e outros. Pensando em projetos de trabalho, pode-se
articular História, Língua Portuguesa e Literatura discutindo o hibridismo do
SRUWXJXrVIDODGRQR%UDVLOHVXDGLVWLQomRGRGH3RUWXJDO'HVWDFDUDLQÁX-
ência africana em nossa língua, o que há de palavras, termos e expressões de
origem africana, indígena e portuguesa? Como os estudos dos movimentos
SRULQGHSHQGrQFLDQDÉIULFDHQR%UDVLOWUD]HPUHÁH[RVQDOLWHUDWXUDSDUWL-
cularmente em poesias, contos e na música. Em que medida tais aspectos se
mantêm na atualidade.
Potencializar a prática corporal também é um modo de expressão do co-
WLGLDQRHGRDXWRFRQKHFLPHQWR6LJQLÀFDUHYLVLWDUDQRomRGHFRUSRHDSDUWLU
daí, procurar inseri-lo no mundo de maneira crítica e consciente. É através de
nosso corpo que nos comunicamos, nos reorganizamos para buscar diálogo
com o outro e mostramos nossa forma de estar no mundo.
O corpo humano, particularmente o corpo negro, tem sido um sustentá-
culo de estereótipos (Inocêncio, 2001) construídos a partir do olhar lançado
por outras pessoas. Essa relação dual de construção de identidade vale para
todos nós, brancos e negros; entretanto. a construção da identidade da popu-
lação negra tem sido marcada pelo preconceito racial.
As aulas de educação física, ao focar os corpos em movimento e em in-
teração, podem se transformar em momentos privilegiados para ricas dis-
cussões, vivências e elaboração de propostas que tragam à baila a história e
a cultura da população africana e afro-brasileira e de outras culturas. Há, por
exemplo, uma estética, uma expressividade dos corpos negros a ser reco-
nhecida, que é plural e que pode se expressar na realização de intervenções

194
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

coerentes com as diferenças colocadas, e vislumbrar projetos que incluam na


discussão a cultura, as danças, a musicalidade, o ritmo, os adereços e as diver-
sas manifestações de matriz africana.
Abarcando também outras disciplinas, e não somente desta área, os pro-
fessores mostram-se dispostos a ouvir e ler o que ainda não foi lido ou ouvi-
do nas escolas. Seja por meio da língua, do corpo ou das artes.

1.1.2 Referências

BENTO, Maria Aparecida Silva. &LGDGDQLD H SUHWR H EUDQFR: discutindo as relações
raciais. São Paulo: Ática, 1998.
BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Rio Grande do Sul: Ed. UFRGS, 1992.
CASTRO, Yeda Pessoa. O Ensino de Línguas Africanas no Brasil. Revista do NEN
- Negros e Currículo. Nº. 3, Florianópolis – SC, junho de 1998.
INOCÊNCIO, Nelson. Representação visual do corpo afro-descendente. In:
PANTOJA, Selma (Org.) Entre Áfricas e Brasis. Brasília: Paralelo 15, São Paulo: Marco
Zero, 2001, p. 191-208.
LOPES, Nei. %DQWRV PDOrV H LGHQWLGDGH QHJUD. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 1998.
MOYSÉS, Sarita Maria Affonso. Literatura e história: imagens de leitura e de leitores
no Brasil no século XIX. Revista Brasileira de Educação. São Paulo: ANPED. 1995.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letraROXJDUGDDQFHVWUDOLGDGHQDÀFomR
angolana do século XX. Rio de Janeiro: EDUFF, 1995.
PIRES, Rosane de Almeida. Narrativas Quilombolas: Negros em Contos, de Cuti e
Mayombe, de Pepetela. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 1998.
SOUZA, Ana Lucia Silva. Negritude, letramento e uso social da oralidade. In:
CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa
escola. São Paulo: Summus, 2001. p. 179-194.

a) Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias

A educação anti-racista vivida no cotidiano da escola


 LQGLFDDFRPSUHHQVmRHDXWLOL]DomRGRVFRQKHFLPHQWRVFLHQWtÀFRV
para explicar o funcionamento do mundo, bem como para planejar,
executar e avaliar as ações de intervenção na realidade (Brasil, 1999,
p. 34).
Os avanços tecnológicos e as mudanças sociais têm nos obrigado a as-
sumir postura crítica e com autonomia para tomar decisões, seja diante de
uma simples compra de supermercado, passando pela escolha de um medi-

195
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

camento, seja um planejamento mais de longo prazo. A transmissão apenas


de conceitos, regras e práticas de soluções prontas não contribui para o de-
senvolvimento do sujeito, tornando-o passivo, conformista e desprovido de
senso crítico. Nesse contexto de globalização perversa, que exige tomada de
decisões, espírito explorador, criticidade, criatividade e independência, o do-
mínio da ciência matemática pode se constituir como mais uma ferramenta
em busca de melhores condições e vida.
A biologia, a matemática, a física e a química destacam-se como disciplinas
TXHLQWHJUDGDVVmRFDSD]HVGHGHVFRQVWUXLUFRQKHFLPHQWRVTXHDÀUPDPDV
diferenças como inferioridade e que marcam a condição natural de indivíduos
e grupos interétnicos. O trabalho por projetos pode incluir diferentes discipli-
QDVItVLFDTXtPLFDPDWHPiWLFDHPHVPRKLVWyULDVRFLRORJLDÀORVRÀD
A matemática faz parte da cultura e portanto deve ser um aprendizado
em contexto situado do particular ao universal. Para a população negra, em
especial, é necessário tornar o ensino da matemática vivo, respeitando a cul-
tura local com base na história e na cultura dos povos, quando e como vivem,
como comem, como se vestem, como rezam, como resolvem as questões
cotidianas que envolvem os conhecimentos matemáticos.
Sem discorrer sobre cada uma das disciplinas, é possível destacar que no
campo da biologia o olhar do educador poderia recair sobre os estudos de
HSLGHUPHJHQHVFRQVWLWXLomRFDSLODUTXHVW}HVHVSHFtÀFDVGDVD~GHGDSRSX-
lação afrodescendente, tais como pressão arterial elevada e os males que cau-
sa, além da anemia falciforme. Parte das doenças que acometem a população
negra de nosso país decorre de problemas sociais, entre eles o racial, ou seja,
são decorrentes de discriminação racial, de racismo institucional. Pesquisar
as origens dessas doenças e a maneira de evitá-las é construir conhecimentos
VLJQLÀFDWLYRV3RGHVHWUDEDOKDUHPPDWHPiWLFDFRPDVHVWDWtVWLFDVGHPRUEL-
PRUWDOLGDGHGDSRSXODomREUDVLOHLUDGHVWDFDQGRDVHVSHFLÀFLGDGHVGDSRSX-
lação negra, utilizando-se de dados estatísticos.
,VVRSHUPLWHYHULÀFDUTXHPXLWDVPRUWHVVmRFRQVHTrQFLDGHDXVrQFLDGH
atendimento médico adequado e de políticas de saúde preventiva. Tal abor-
dagem permite estabelecer relações com as questões sociais e raciais, e possi-
bilita um trabalho articulado entre a matemática e a sociologia, por exemplo.
3RGHVHLQFOXLUDTXLDLQGDDJHRJUDÀDPDSHDQGRRVORFDLVQDVJUDQGHVFLGD-
des onde se tem maior índice de mortalidade por arma de fogo e as condições
de vida. Atualmente, os jornais impressos são fontes interessantes para se
pesquisar tais questões, que posteriormente podem ser aprofundadas.

196
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Novamente, o corpo é o suporte de história, de relações com o entorno, é


portador de sinais do cotidiano, é uma boca que fala e uma mão que escreve
gestos e expressões. É preciso lembrar que no Ensino Médio o corpo jovem
está em plena transformação e no início das relações afetivas e sexuais. É
importante discutir o corpo tratado pela educação física, a biologia, química,
física. Como cuidar desse corpo? Como dizer ao mundo por meio do corpo?
Seja nas relações familiares, seja no grupo de amigos, seja no ambiente do
mundo do trabalho.
Entender o corpo como suporte de linguagem e saberes pode ajudar a
desfazer equ,ívocos, tais como o que diz que a população negra é mais ha-
bilidosa para as atividades esportivas. Desenvolver pesquisas sobre ativida-
des físicas trazidas pelos africanos, entre outras culturas, e (re)construídas no
Brasil, originando expressões tais como a capoeira, pode ser o início de uma
ERDVHTrQFLDGHDWLYLGDGHVVLJQLÀFDWLYDVHQYROYHQGRDVWUrVJUDQGHViUHDVGR
conhecimento.

Referências

ANDRADE, Rosa Maria e outros. $SURYDGRV&XUVLQKRSUpYHVWLEXODUHSRSXODomRQHJUD,


São Paulo: Selo Negro, 2002.
CARRAHER, T. et all. 1DYLGDGH]QDHVFROD]HUR. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2004
D’AMBRÓSIO, Ubiratam. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
RIBEIRO, J.P.M., DOMETE, M. do C. S. & FERREIRA, R. (org). Etnomatemática:
SDSHOYDORUHVLJQLÀFDGR6mR3DXOR=RXN
SILVA. Antonio Benedito. Contrato Didático. In: MACHADO, SILVIA Dias
Alcântara et. all. Educação Matemática: uma introdução. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2002.
(Série Trilhas)

b) Ciências humanas e suas tecnologias

Humanidades - as revelações das faces do Brasil


(...) deve desenvolver competências e habilidades para que o aluno (...)
construa a si próprio como um agente social que intervém na socie-
dade; para que avalie o sentido dos processos sociais que orientam o
FRQVWDQWHÁX[RVRFLDOEHPFRPRRVHQWLGRGHVXDLQWHUYHQomRQHVVH
processo (BRASIL, 1999, p. 35).

197
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

+LVWyULDJHRJUDÀDÀORVRÀDHVRFLRORJLDVmRGLVFLSOLQDVSULYLOHJLDGDVSDUD
os estudos sócio-históricos que fazem parte da formação de nossa sociedade.
Por meio delas são abordados temas tão instigantes quanto variados: a histó-
ria dos grandes impérios e reinos africanos e sua organização político-econô-
mica antes do processo de invasão perpetrado por diversos países europeus;
DIRUPDomRGDQDomREUDVLOHLUDHFRQVWLWXLomRGDSRSXODomRLQÁXHQFLDGDSHOD
relação com a África; o período escravagista e os variados processos de resis-
tência da população negra, a formação dos quilombos e a situação das comu-
nidades quilombolas, a produção econômica e artística da população negra.
Além desses temas, torna-se imprescindível que essas disciplinas abordem,
interdisciplinarmente, questões e conceitos sobre o preconceito, o racismo, a
discriminação racial e de gênero.
Destaca-se também que a aproximação com o ensino de história e cultura
africanas e afro-brasileiras não pode prescindir do conhecimento dos espaços
de tradição e de cultura afro-brasileira, estabelecendo vínculos com a ances-
tralidade, com a história de vida dos alunos e as histórias de resistência de
ontem e de hoje.
2UHGLPHQVLRQDPHQWRGRFRQFHLWRGHUDoDpIXQGDPHQWDOSRLVRVVLJQLÀ-
cados sociais e culturais atribuídos às características fenotípicas entre os gru-
pos étnicos são parte importante do universo juvenil – cor da pele, textura do
cabelo, formato do rosto, nariz e lábios. A abordagem pode se dar através de
resultados das pesquisas governamentais que se encontram disponibilizadas
HPGLYHUVRVVLWHVRÀFLDLVPHGLDQWHYDVWDELEOLRJUDÀDH[LVWHQWHHGHTXDOLGDGH
no mercado editorial, bem como o contato direto com os textos, pessoas e
organizações do movimento social negro.
Ao destacarmos o projeto político e o currículo para além dos conteúdos,
vale ressaltar que a articulação das disciplinas é fundamental para a transfor-
mação das relações, desde as mais próximas do universo escolar como, por
exemplo, a organização do regimento da escola. Um bom ponto de partida é
construir coletiva e explicitamente formas de combate ao racismo, estabele-
cendo como serão tratados os casos pela direção da escola, pelo conjunto da
comunidade escolar.

Referências

BENTO, Maria Aparecida Silva. &LGDGDQLD HP 3UHWR H %UDQFR ² GLVFXWLQGR DV 5HODo}HV
raciais. São Paulo: Ática, 1998.
BERND, Zilá. Racismo e anti-racismo. São Paulo: Moderna, 1997.

198
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

CASHMOORE, Ellis. Dicionário de Relações Étnicas e Raciais. São Paulo: Selo Negro,
2000.
GOMES, Nilma Lino. $PXOKHUQHJUDTXHYLGHSHUWR. Belo Horizonte: Mazza Edições,
1998.
LOPES, Nei. %DQWRV PDOrV H LGHQWLGDGH QHJUD. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1988.
MAESTRI, Mário. +LVWyULD GD ÉIULFD SUpFRORQLDO. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1998.
MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. 3DUD HQWHQGHU R QHJUR QR %UDVLO:
Histórias, Realidades, Problemas e Caminhos. São Paulo: Global Editora e Ação
Educativa, 2004.
OLIVER, Roland. $H[SHULrQFLDDIULFDQD: da pré–história aos dias atuais. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1994.
SANTOS, Gevanilda Gomes dos. A História em Questão. Revista do NEN - Negros
e Currículo. Número 3 - junho de 1998 - Florianópolis - SC.Educação de Jovens e
Adultos

1. Bibliografia comentada

BENTO. Maria Aparecida. Cidadania em preto e branco: discutindo as relações


raciais. São Paulo: Ática, 3ª Ed.. 2000.
De forma didática e de fácil compreensão, discute e amplia a conscienti-
]DomRVREUHDSUREOHPiWLFDGRUDFLVPRQR%UDVLO$SUHVHQWDUHÁH[}HVHP
torno do cotidiano e sobre os fatos históricos ligados às teorias racistas.

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos (Org.). Racismo e anti-racismo na educação:


repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2002.
A obra é uma coletânea de artigos sobre a diversidade racial no âmbito
do espaço escolar e das propostas pedagógicas. São artigos que envolvem
as formas de discriminação racial e querem dar visibilidade ao problema
na perspectiva de contestar, de maneira profunda, a inexistência de uma
democracia racial partindo de acontecimentos recorrentes.

LIMA, Ivan Costa & ROMÃO, Jeruse. Os negros e a escola brasileira. Florianó-
polis: Núcleo de Estudos Negros, 1999.
eXPDUHÁH[mRVREUHDHVFRODS~EOLFDEUDVLOHLUDHDVUHODo}HVUDFLDLVFRP
enfoque para os afro-brasileiros. Faz uma retrospectiva histórica sobre a
preocupação do Movimento Negro e a educação e aponta os temas de
maior concentração nas pesquisas sobre africanidades e relações raciais e

199
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

educação. Aponta, ainda, os estereótipos racistas e sexistas existentes no


cotidiano das relações educativas.

MACEDO, Lino de. (QVDLRV3HGDJyJLFRV: como construir uma escola para to-
dos. Porto Alegre: Ed. Artmed, 2004.
O livro escrito por Lino de Macedo aborda diferentes temas relacionados à
SUiWLFDSHGDJyJLFDFRQYLGDQGRROHLWRUDUHÁHWLUDUHVSHLWRGDVIXQo}HVGD
avaliação escolar na atualidade e também sobre outras questões, tais como
aprendizagem, planejamento, educação inclusiva, diversidades. Todos os
textos apresentam idéias e propostas que permitem compreender e agir
diante de diferentes situações cotidianas de uma sala de aula.

9,(,5$ 6RÀD /HUFKH RUJ  Gestão da escola GHVDÀRV D HQIUHQWDU 5LR GH
Janeiro: DP&A, 2002.
Este livro está organizado em quatro capítulos: a função social da escola;
o projeto pedagógico; o sucesso escolar e a avaliação institucional. Todos
são temas ligados à agenda educacional contemporânea, fundamentais
para o processo de construção de uma escola na qual a educação seja
considerada como direito.

2. Vídeos
Vista minha pele. 2003. 15min. Joel Zito Araújo (Inversão de papéis entre
crianças negras e brancas para abordar os impactos da discriminação racial)
Quando o crioulo dança.PLQ'LOPD/RHV (QWUHYLVWDVHÀFomR
mostram situações vividas pelo negro no cotidiano).
Duro aprendizado. 1994. 128 min. John Singleton (Alunos novatos em
rota de colisão com a diversidade, identidade e sexualidade numa escola
contemporânea).
Febre da selva. 1991. 132 min. Spike Lee (Arquiteto negro inicia romance
FRPPXOKHUEUDQFDGHIDPtOLDLWDOLDQD2ÀOPHDERUGDGHPDQHLUDFUtWLFDRV
FRQÁLWRVGHVWHUHODFLRQDPHQWRLQWHUUDFLDO 
6DUDÀQD 2 VRP GD OLEHUGDGH 1992. 98 min. Darrell James Roodt. (Na
África do Sul, professora ensina seus alunos negros a lutarem por seus direi-
tos. Para uma aluna em especial, essas lições serão um rito de iniciação na vida
adulta na forma de tomada de consciência da realidade que a cerca).
Madame Satã. 2002. 105 min. Karim Aïnouz (Lapa, anos 30: o cotidiano
de João Francisco - malandro, artista, presidiário, pai adotivo, preto, pobre,

200
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

homossexual - antes de se transformar no mito Madame Satã, lendário per-


sonagem da boemia carioca).
Cidade de Deus. 2002. 130 min. Fernando Meirelles (Buscapé é um jovem
pobre, negro e muito sensível, vive na favela carioca Cidade de Deus e cresce
em um universo de muita violência).
Uma Onda no ar. 2002. 92 min. Helvécio Ratton (Conta a história de Jorge,
o idealizador de uma rádio na favela, e a luta, resistência cultural e política
contra o racismo e a exclusão social em que a população encontra uma im-
portante arma:a comunicação)
Carandiru.PLQ+HFWRU%DEHQFR 2ÀOPHQDUUDDWUDYpVGRROKDU
de um médico que freqüentou a Casa de Detenção de São Paulo , histórias
de crime, vingança, amor e amizade, culminando com o massacre ocorrido
em 1992).
Os narradores de Javé. 2003. 100 min. Eliane Caffé. (Após saberem que a
cidade onde vivem será inundada para a construção de uma usina hidrelétrica,
os moradores decidem preparar um documento que conte os fatos históricos
do local, como tentativa de salvar a cidade da destruição)

201
Tranças e prosas
Coleção particular - Elmodad Azevedo

LICENCIATURAS

1. BIBLIOGRAFIA COMENTADA

'HVWDFDPRVDTXLFRQKHFLPHQWRVQHFHVViULRVjIRUPDomRGRSURÀVVLRQDO
da educação comprometido com os valores da sociedade democrática, pluri-
étnica e racial, e à compreensão do papel social da escola.
Os conteúdos abaixo relacionados devem integrar os projetos peda-
JyJLFRV H SODQRV GH HQVLQR GRV FXUVRV GH DFRUGR FRP VXDV HVSHFLÀFLGD-
des, contextos regionais e autonomia da IE. O estudo de temas relativos
às relações étnico-raciais deve inserir-se em todos os cursos de formação
GHSURÀVVLRQDLVGDHGXFDomR$ERUGDUHPRVQHVWHLWHPRVVHJXLQWHVWHPDV
Projeto Político Pedagógico, Currículo, Política Educacional, Identidade e
Linguagens.

1.1 Projeto político - pedagógico

DAYRELL, Juarez T. 0~OWLSORV ROKDUHV VREUH D HGXFDomR H D FXOWXUD. Belo Horizonte:


UFMG, 1996.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: instrumentos para uma teoria. Porto
Alegre: Artmed, 2000.
GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da
aprendizagem. Porto Alegre: Atmed, 1997.
MUÑOZ, C. 3HGDJRJLDGDYLGDFRWLGLDQDHSDUWLFLSDomRFLGDGm. São Paulo: Cortez: IPF,
2004.
VEIGA, Ilma Passos A. 3URMHWRSROtWLFRSHGDJyJLFRGDHVFROD: Uma construção possível.
Campinas, São Paulo: Papirus, 1995.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

1.2. Currículo

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando


nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.
FIGUEIRA, Vera Moreira. O preconceito racial na escola. Estudos Afro-Asiáticos, Rio
de Janeiro, n. 18, mai, p. 63-71. 1990.
GOMES, Nilma Lino; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e (Orgs.). ([SHULrQFLDV
étnico-culturais para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa. Currículo, diferença cultural e diálogo. Educação
& Sociedade. Ano XXIII, nº. 79, agosto de 2002. p. 15-38.
SÉRIE PENSAMENTO NEGRO EM EDUCAÇÃO. Florianópolis/Santa
Catarina: Núcleo de Estudos Negros, v. 2, dez. 2002 (2ª ed.) (negros e currículo)
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade. Minas Gerais: Autêntica, 1999.

1.3 Políticas educacionais

APPLE, Michael W. A presença ausente da raça nas reformas educacionais. In:


CANEN, Ana MOREIRA & BARBOSA, Antonio Flávio (Orgs.). Ênfases e omissões
QRFXUUtFXOR. São Paulo: Papirus, 2001. p. 147-161.
CANDAU, Vera Maria. (Coord.) 6RPRVWRG#VLJXDLV"(VFRODGLVFULPLQDomRHHGXFDomRHP
GLUHLWRVKXPDQRV. Rio de janeiro: DP&A, 2003.
HENRIQUES, Ricardo. 5DoD H JrQHUR QRV VLVWHPDV GH HQVLQR: os limites das políticas
universalistas na educação. Brasília: UNESCO, 2002.
MEDEIROS, C. A. Na lei e na raça: Legislação e relações raciais, Brasil-Estados
Unidos.
PASSOS, Joana Célia dos. Discutindo as relações raciais na estrutura escolar
e construindo uma pedagogia multirracial e popular. In: Revista do NEN -
Multiculturalismo e a pedagogia multirracial e popular. Florianópolis: Ed. Atilènde:
NEN, Vol.8, dez/2002.
6,/9$ -U + $omR DÀUPDWLYD SDUD QHJURV QDV XQLYHUVLGDGHV D FRQFUHWL]DomR
do princípio constitucional da igualdade. In: SILVA. Petronilha Beatriz G. e. &
SILVÉRIO, Valter Roberto. (GXFDomRHDo}HVDÀUPDWLYDV: entre a injustiça simbólica e a
injustiça econômica. Brasília: INEP, 2003. p. 99-114.
TORRES, C. A. (org.). 7HRULDFUtWLFDHVRFLRORJLDSROtWLFDGDHGXFDomR. São Paulo: Cortez:
IPF, 2003.

204
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

1.4 Identidade e identidade racial

CARONE, Iray & BENTO, Maria Aparecida Silva. (Orgs.). 3VLFRORJLDVRFLDOGRUDFLVPR:


estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro, Petrópolis:
Vozes, 2002.
CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. 'R VLOrQFLR GR ODU DR VLOrQFLR HVFRODU: racismo,
preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2000.
GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um
olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. (GXFDomRH3HVTXLVD, Campinas, v. 29, nº. 1,
jan/jun, 2003. p. 167-182.
GOMES, Nilma Lino. Práticas pedagógicas e questão racial: o tratamento é igual
para todos(as)? In: DINIZ, Margareth & VASCONCELOS, Renata Nunes (Orgs.).
3OXUDOLGDGHFXOWXUDOHLQFOXVmRQDIRUPDomRGHSURIHVVRUDVHSURIHVVRUHV: gênero,sexualidade,
raça, educação especial, educação indígena,educação de jovens e adultos. Belo
Horizonte: Formato Editorial, 2004a. p. 80-106.
OLIVEIRA, Ivone Martins de. 3UHFRQFHLWRH$XWRFRQFHLWR: identidade e interação na
sala de aula. Campinas: Papirus, 1994.
PIZA, E. Branco no Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu... In: HUNTLEY, Lynn &
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. 7LUDQGRDPiVFDUD: ensaios sobre o racismo
no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 97-125.
6&+:$5&=/LOLD.0RULW]5DoDFRPRQHJRFLDomRVREUHWHRULDVUDFLDLVHPÀQDLV
do século XIX no Brasil. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Brasil afro-
brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 12-40.
SOUZA, Neusa Santos. 7RUQDUVHQHJUR. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1983.
STOLKE, Verena. Sexo está para gênero assim como raça para etnicidade? Estudos
Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, nº. 20, jun. 1991. p. 101-119.

1.5 Alfabetização e letramento

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. ,GHQWLGDGHV)UDJPHQWDGDV: a construção discursiva de


raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
RIBEIRO, Vera Masagão (org.). Educação de Jovens e Adultos: novos leitores, novas
leituras. São Paulo: Ação Educativa: Mercado das Letras: ALB, 2001.
RIBEIRO, Vera Masagão, VÓVIO, Claudia Lemos, MOURA, Mayra Patricia.
Letramento no Brasil: alguns resultados do indicador nacional de alfabetismo funcional.
Campinas: Educ. Soc. v.23 n.81 dez. 2002.

205
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da discriminação no livro didático. In


MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: MEC/SEF,
2001.
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Negritude, letramento e uso social da oralidade. In:
CAVALLEIRO, E. Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São
Paulo: Summus, 2001. p. 179-194.

2. HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA

As disciplinas História, Literatura e Artes, no Ensino Fundamental e Mé-


dio, principalmente deverão inserir conteúdos relativos à História e Cultura
Afro-brasileira e Africana nos currículos escolas. Tal determinação pode ser
lida na Lei 9.394/96, art. 26A.
A priorização não exclui as demais disciplinas/áreas de conhecimento,
mas focaliza naquelas o lugar de destaque e visibilidade maior. Sugerimos que
o leitor consulte os textos relativos à Educação Infantil, Ensino Fundamental
I, II e Ensino Médio sobre o tratamento destes conteúdos. Restringiremos-
QRVDTXLDDSRQWDUWHPDVSRQWXDLVHELEOLRJUDÀDGHDSRLR

2.1. Literatura

2.1.1. Literatura Africana

ABDALA JUNIOR, Benjamin. 'H9{RVH,OKDV: literatura e comunitarismos. Cotia:


Ateliê Editorial, 2003.
DOSSIÊ DE LITERATURAS AFRICANAS. Revista Scripta. Programa de Pós-
graduação da PUC Minas/CESPUC. (vários números).
DOSSIÊ de LITERATURAS AFRICANAS. 5HYLVWD 9LD $WOkQWLFD. Programa de
Pós-graduação em Estudos comparados da FFLCH da USP/São Paulo (Vários
números)
HAMPÂTÉ BA, Amadou. Amkoullel: o menino fula. São Paulo: Palas Athena/Casa
das Áfricas, 2003.
MACEDO, Tania. Angola e Brasil: estudos comparados. São Paulo: Via Atlântica.
MADRUGA, Elisalva. 1DV WULOKDV GD GHVFREHUWD: a repercussão do modernismo
brasileiro na literatura angolana. João Pessoa: Editora Universitária, 1998.
MOUTINHO, Viale (org.). &RQWRV3RSXODUHVGH$QJROD: folclore quimbundo. 3. ed. São
Paulo: Landy, 2000.

206
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

SANTILLI, Maria Aparecida. 3DUDOHODV H 7DQJHQWHV: entre literaturas de língua


portuguesa. São Paulo: Arte & Ciência.

2.1.2. Literatura Afro-brasileira

CUTI. Luiz Silva. Negros em Contos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1996.
FONSECA, Maria Nazareth. (org). Brasil Afro-Brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica,
2000.
Lisboa, Andréia. Nas tramas das imagens: um olhar sobre o imaginário na literatura
infantil e juvenil. Dissertação de mestrado, São Paulo, FE/USP
MARTINS, Leda Maria. $IURJUDÀDVGD0HPyULD, o reinado do rosário do Jatobá. São Paulo:
Ed. Perspectiva, Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
________. A Oralitura da Memória. In: FONSECA, Maria Nazareth. (org). Brasil
Afro-Brasileiro. Autêntica, 2001.
EVARISTO, Conceição. 3RQFLi9HQkQFLR. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.
SEPÚLVEDA, Maria do Carmo & SALGADO, Maria Teresa (Org.). África & Brasil: letras
em laços. Rio de Janeiro: Editora Atlântica.

2.2 História

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea.


São Paulo: Selo Negro, 2005.
MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. 3DUD HQWHQGHU R QHJUR QR %UDVLO:
Histórias, Realidades, Problemas e Caminhos. São Paulo: Global Editora e Ação
Educativa, 2004.
RIBEIRO, Ronilda Yakemi. A alma africana no Brasil. São Paulo: Editora Oduduwa.,
2001.
SALLES, R. H. & SOARES, M.de C. (SLVyGLRVGHKLVWyULDDIUREUDVLOHLUD. Rio de Janeiro:
DP&A: Fase, 2005.
SANTOS, Rafael S. dos. Mas que história é essa? In: TRINDADE. Azoilda L. da &
SANTOS Rafael S. dos. Multiculturalismo: mil faces da escola. Rio de Janeiro: DP&A,
2002. p. 63-90.
SILVA, Alberto Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Editora
Nova Fronteira, 1998.
SKIDMORE, Thomas E. 3UHWR QR EUDQFR: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro. Tradução Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
THORTON, John. $ÉIULFDHRVDIULFDQRVQDIRUPDomRGRPXQGRDWOkQWLFR: de 1400 a 1800.
Rio de Janeiro: Editora Campus, 2003.

207
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

2.3 Artes
AMARAL, Aracy. Artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1976.
ARAÚJO, Emanoel. A Mão Afro-Brasileira6LJQLÀFDGRGD&RQWULEXLomR$UWtVWLFDH
Histórica. São Paulo: Tenenge, 1988.
GOMBRICH, Ernest. +LVWyULDGD$UWH. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1993.
JUNGE, Peter (org.). A arte da África: Obras primas do Museu etnológico de Berlim.
Centro Cultural do Banco do Brasil, 2004.
LEITE, José Roberto Teixeira. 'LFLRQiULR FUtWLFRGDSLQWXUD QR%UDVLO. Rio de Janeiro:
Artlivre, 1988.
PAREYSON, Luigi. (VWpWLFD7HRULDGDIRUPDWLYLGDGH. Petrópolis: Vozes, 1993.
SASSOUNS, S. (coord.). Mostra do Redescobrimento - Arte Afro-brasileira; São
Paulo: Fundação Bienal: Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000.
SILVA, M.J.L.da. As artes e a diversidade étnico-racial na escola básica. In:
MUNANGA. Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da
Educação: Secretaria de Educação Básica, 2001. p. 119-137.

208
Tranças e prosas
Coleção particular - Elmodad Azevedo

EDUCAÇÃO QUILOMBOLA
Sugestões

Poder-se-ia pensar a concepção de um plano de ação enquanto “ato de


criação”, voltando-se para as histórias transmitidas oralmente nas comunida-
des quilombolas que se constituem redutos onde a ancestralidade “sopra”,
através das mais diversas narrativas, os caminhos por onde buscar os meios
de manter-se, portar-se e situar-se diante do mundo.
Pensar-se-ia esta atividade, em conformidade com uma narrativa captura-
da em uma comunidade de quilombo de Gravataí, no Rio Grande do Sul, que,
meio ao processo de titulação de terra, traz, através da voz de uma mulher,
o encontro com o modo de ser e fazer do escravizado que se tornou dono
das terras do quilombo, a riqueza de um conteúdo pedagógico que articula os
VDEHUHVDEHUWRVHIHFKDGRVEDVHFRQFHLWXDOMiUHÁHWLGDQDVHomRDQWHULRU$
citação abaixo, dessa senhora quilombola, remete-se ao século XIX, atravessa
tempos, é fato presente que remonta vários elementos a serem pensados en-
quanto ação educativa e criativa na escola:
[...] eles já tentavam ver uma organização, o registro das terras. Tia
Luiza e os mais velhos diziam... A mãe dizia que a vó dizia que o pes-
soal vendia mamona para legalizar as terras deles e tudo mais. Eles já
vinham nessa busca porque aquelas terras foram herdadas, porque ele
era escravo e tudo mais né... (Juraciara, quilombo de Manoel Barbosa,
Gravataí, março de 2005).
A partir dessa breve narrativa podemos extrair elementos para ações
educativas:
1. O reconhecimento da organização social do grupo como “fonte” de recur-
sos para um processo secular de conquista de um espaço social negro.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

2. Atividades sugeridas a partir dos elementos-chave (organização para regis-


tro de terras a partir da comercialização da mamona):
2.1. O conceito de “organização”: Para que serviu? Para que serve? Quais as
formas? Como organizar a nossa aula/atividade? O que é uma organização
em quilombo no sentido histórico e contemporâneo? Somos diversas séries,
diversas idades, então... Somos múltiplas possibilidades de organização para
a construção do saber, construção inclusive da forma de buscá-lo. Organiza-
ção, metodologia, didática, modo de fazer como? Através de pesquisa? Atra-
vés de projetos? O que é projetar? Projetor pode ser sonhar? Sonhar com
RTXr"$ÀQDOGHFRQWDVRTXHDVFULDQoDVDGROHVFHQWHVMRYHQVTXLORPERODV
sonham? Qual a transformação ocorrida nos sonhos das pessoas adultas e
idosas, vendedores/as de óleo de mamona, e as crianças que se conhecem e
H[SORUDPDVVXDVSRWHQFLDOLGDGHVKLVWyULFDVHFLHQWtÀFDV"

Utilização da mamona:

• A busca nos saberes abertos e fechados


• O que a ciência1 diz?
Origem: “No Brasil a mamona é conhecida desde a era colonial, quando dela
VHH[WUDtDRyOHRSDUDOXEULÀFDUDVHQJUHQDJHQVHRVPDQFDLVGRVLQ~PHURV
engenhos de cana”.
&ODVVLÀFDomRERWkQLFD´1R%UDVLOFRQKHFHVHDPDPRQDVREDVGHQRPLQD-
ções de mamoneira, rícino, carrapateira e palma-criste [...]”.
Importância econômica: “Na obra Histórium Mundi, de Plínio, conhecida
há 1900 anos, encontra-se o seguinte trecho no qual são descritas as qualida-
des do óleo de mamona: ‘o óleo de mamona bebe-se com igual quantidade
de água morna para purgar o corpo. Diz-se particularmente que purga o
intestino”.
• O que diz a imprensa, a mídia?
Combustível alternativo: 1. Miguel Rosseto e Dilma Rousseff2LGHQWLÀFDP
no biodiesel uma alternativa econômica para as regiões do país que não dis-
põem de clima e solo para outras culturas e podem produzir mamona, giras-
1
Fonte: UOV: Universidade on line de Viçosa / Disponível: www.criareplantar.com.br. Acesso em:
22/06/2005
2
Ministros do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ministério das Minas e Energia, respec-
tivamente, à época da publicação do artigo.

210
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

sol e nabo forrageiro” (Fonte: -RUQDO=HUR+RUD, 25/03/2005, Porto Alegre).


2. “Dezessete comunidades (quilombolas) do Piauí se uniram em um projeto
de produção e uso do biodiesel, a partir do óleo de mamona” (Fonte: www.
radiobras.gov.br/matéria).
• O que os mais velhos dizem sobre a propriedade da mamona?
Quais as utilidades e visões advindas do saber local?
Quais as disciplinas envolvidas?
Todas as disciplinas em um processo de troca, interdisciplinar.
Quais as práticas possíveis?
Exploração de todas as potencialidades naturais, cognitivas, lúdicas, espa-
ciais, corporais e outros.
a) Exploração do tempo de infância situado no tempo da escola para além
das quatro paredes: sair à cata dos frutos da mamona e apropriação deles
como material pedagógico.
b) O estabelecimento dos “contratos” pedagógicos: frutos secos? Frutos ver-
des? Ambos?
c) Vamos buscar onde? Na busca, quais as relações que se estabelecem? Qual
o cenário (re) criado? Ainda que cotidianamente trilhado, o percurso se trans-
muta quando feito em grupo, com objetivos. Portanto, quais as relações esta-
belecidas entre educador/educandos, educandos/educandos no momento de
ir para além do espaço escolar?
d) Na escola, fazer o quê? Quais os cuidados no manuseio dos frutos?
Matemática: a necessidade do “concreto” nas séries iniciais, auxiliares no pro-
cesso de ensino-aprendizagem. Ex: Vamos fazer operações matemáticas com
as frutinhas?
A formação de problemas que podem envolver não o produto em si, mas as
dimensões espaço-temporais para a sua aquisição. Ex: Saímos da escola às ...
voltamos às... quanto tempo estivemos fora?
Artes: a criação, interpretação de histórias e fantasias e subseqüente utilização
dos frutos na feitura de acessórios, na ornamentação de produções feitas com
diversos materiais (barro, argila...);
Recreação: a “cultura da infância” permeando o contexto escolar: brincar de
fugir dos “grudentos” carrapichos, “guerra” com os frutos, criação de regras
necessárias para a consolidação da atividade lúdico-recreativa como um espa-
ço de alegria, prazer e respeito.

211
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

&LrQFLDV D H[SORUDomR GRV VDEHUHV FLHQWtÀFRV H FRPXQLWiULRV D UHVSHLWR


GD SODQWD 3UiWLFDV ÀWRWHUiSLFDV XWLOL]DomR HP SUiWLFDV UHOLJLRVDV GH PDWUL]
afro-brasileira.
+LVWyULDDKLVWyULDORFDOHDKLVWyULDJOREDORSHUtRGRFRORQLDO XVROXEULÀFDQ-
te) até o período moderno (uso como biodiesel).
*HRJUDÀDH[SOLFLWDUDVFRQGLo}HVItVLFDV VRORUHOHYRUHFXUVRVKtGULFRV
temperatura, etc.) para a existência e conservação da planta e, acima de tudo,
a territorialidade que não é física, mas que é base da complexidade do viver,
do saber, do fazer e do sentir de um grupo étnico-racial.
Comunicação e expressão: as variações locais e regionais dos termos ma-
moneira, rícino, carrapateira.
(QÀPDWLYLGDGHVTXHSRGHPVHUIHLWDVHPRXWUDViUHDVQDVTXDLVH[LVWHP
diversas plantas de largo conhecimento e uso local.

212
Isso que toca chama-se balafon
Coleção particular - Conceição de Maria C. Machado

Glossário de Termos e
Expressões Anti-Racistas
Isso que toca chama-se balafon
Coleção particular - Conceição de Maria C. Machado

Glossário de Termos e Expressões Anti-Racistas

N a prática educacional e, em especial, no cotidiano escolar a linguagem


que utilizamos está marcada por expressões que, às vezes, inconscien-
temente, contribuem para reforçar situações de preconceito, discriminação
e racismo. Por outro lado, vários termos e expressões vêm sendo utilizados
como parte das idéias e das ações anti-racistas. Alguns termos ainda não são
de circulação ampla. Portanto, apresentamos esse glossário composto por
muitas palavras e expressões citadas ao longo deste Plano de Ação e outras
que compreendemos como de veiculação necessária.
AFRICANIDADE: Em sentido geral, pensar em africanidade nos remete
ao sentido de reconhecimento tanto do lugar histórico, sociopolítico e lúdico-
cultural, onde tudo se liga a tudo. Na prevalência da africanidade o universo
é gerado na existência coletiva, prevalecendo o Ser Humano e o Espaço en-
quanto expressão da chamada força vital, imprescindível para evidenciar a
construção de uma identidade negra postulada na construção de um mundo
democrático. A africanidade reconstruída no Brasil está calcada nos valores
das tradições coletivas do amplo continente africano presente e recriada no
cotidiano dos grupos negros brasileiros.
AFRODESCENDENTE: O termo afrodescendente se refere aos/às
descendentes de africanos(as) na diáspora, em contextos de aproximação
política e cultural, e é utilizado como correlato de negros(as) (ou, às vezes
“pretos”) nos países de língua portuguesa, como o Brasil, de african american,
na língua inglesa, em países como Estados Unidos (onde se usa também o
termo black).
ANCESTRALIDADE: Para os povos africanos e seus descendentes, a an-
cestralidade ocupa um lugar especial, tendo posição de destaque no conjunto
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

de valores de mundo. Vincula-se à categoria de memória, ao contínuo civiliza-


tório africano que chegou aos dias atuais irradiando energia mítica e sagrada.
Integrantes do mundo invisível, os ancestrais orientam e sustentam os avan-
oRVFROHWLYRVGDFRPXQLGDGH$DQFHVWUDOLGDGHUHGHÀQHDDOHJULDGHSDUWLOKDU
um espaço rodeado de práticas civilizatórias e o viver de nossos antepassados,
conduzindo para um processo de mudanças e enriquecimento individual e
coletivo em que o sentimento e a paixão estão sintonizados com o ser e o
comportamento das pessoas (SOUZA, 2003). A ancestralidade remete aos
mortos veneráveis, sejam os da família extensa, da aldeia, do quilombo, da
cidade, do reino ou império, e à reverência às forças cósmicas que governam
o universo, a natureza.
AUTO-ESTIMA: Sentimento e opinião que cada pessoa tem de si mesma.
É na infância, no contato com o outro, que construímos ou não a nossa
DXWRFRQÀDQoD$VH[SHULrQFLDVGRUDFLVPRHGDGLVFULPLQDomRUDFLDOGHWHUPL-
QDPVLJQLÀFDWLYDPHQWHDDXWRHVWLPDGRV DV DGXOWRV DV QHJUDVHVRPHQWHD
reelaboração de uma nova consciência é capaz de mudar o processo cruel de
uma sociedade desigual que não os(as) estimula e nem respeita. O processo
psicológico é um dos aspectos mais importante da auto-estima, pois conduz
as relações interpessoais. As formas como nos relacionamos com o outro em
muitas situações geram falsos valores. Então o caminho para construção da
auto-estima está calcado em uma sociedade mais justa e igualitária, no reco-
nhecimento e valores de cada indivíduo como um ser essencial.
COMPLEXIDADE: Contemporaneamente o termo refere-se ao pensa-
PHQWRÀORVyÀFRHFLHQWtÀFRTXHEXVFDFRPSUHHQGHURPXGRFRPRXPWRGR
recusando o reducionismo das interpretações e explicações. Edgar Morin as-
sim concebe o pensamento complexo: “É a viagem em busca de um modo de
pensamento capaz de respeitar a multidimensionalidade, a riqueza, o mistério
do real; e de saber que as determinações – cerebral, cultural, social, histórica
– que impõem a todo o pensamento, co-determinam sempre o objecto de
conhecimento” (1980, p. 14).
CIRCULARIDADE: Um dos percursos do pensamento complexo que bus-
ca a circularidade entre a análise (a disjunção) e a síntese (a religação), que
ultrapassa o reducionismo e o “holismo” e reconhece a circularidade entre as
partes e o todo (ARANHA, 2005). A circularidade diz respeito, igualmente,
ao caráter do pensamento cíclico, mítico, muitas vezes relacionado às socieda-
des tradicionais em que os tempos passados, presentes e futuros se processam
em círculo: elementos do passado podem voltar no presente, especialmente
através da memória; anúncios do futuro podem ocorrer no aqui e agora.

216
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

CORPO: O corpo humano pode ser concebido como uma porção de es-
paço, com suas fronteiras, centros vitais, defesas e fraquezas. O corpo tam-
bém pode ser pensado como um território. Na visão de mundo de vários
povos africanos, o corpo é o primeiro território sagrado do qual somos
responsáveis. Para Azoilda Trindade, “é importante ressaltar, também, que
diversos povos e grupos étnicos e culturais concebem e interagem com
o corpo diferentemente: uns amam o corpo do outro; uns escravizam e
vampirizam o corpo do outro, usando o corpo alheio; outros destroem o
próprio corpo se autonegando, se mutilando... Uns sacralizam os corpos,
RXWURVRUHLÀFDP$OJXQVFRUSRVOXWDPSHODVXDYLVLELOLGDGHHSRUGLUHLWRV
humanos, sociais e políticos; outros reduzem e negam o corpo do outro;
outros, ainda, escondem os seus próprios corpos como se deles se envergo-
nhassem” (2002, p. 71).
CORPORALIDADE: Corporalidade e espiritualidade compõem a estrutura
que os seres humanos portam nos diversos aspectos da alma, no investimento
cultural dos sentidos da vida. Corporalidade é o viver cotidiano de cada pes-
soa, individual e coletivo. É modulada de diferentes maneiras segundo o es-
paço psíquico ou espiritual somático. Na corporalidade se expressa também a
sexualidade, reinterpretada e reproduzida graças à celebração do corpo, como
lugar de representação cultural e histórico, como geradora de percepções e
concepções de valores. Está relacionada à existência, ao trabalho, ao lazer e
ao tempo que dedicamos a cada uma dessas funções.
CULTURA/CULTURA NEGRA: Conceito central das humanidades e
das ciências sociais e que corresponde a um terreno explícito de lutas políti-
cas. Para Muniz Sodré, a demonstração de cultura está comprometida com
a demonstração da singularidade do indivíduo ou do grupo no mundo: “A
noção de cultura é indissociável da idéia de um campo normativo. Enquanto
ela emergia, no Ocidente, surgiam também as regras do campo cultural, com
suas sanções – positivas e negativas” (SODRÉ, 1988b). Podemos conceituar
R WHUPR FXOWXUD FRPR HVWUDWpJLD FHQWUDO SDUD D GHÀQLomR GH LGHQWLGDGHV H
GH DOWHULGDGHV QR PXQGR FRQWHPSRUkQHR XP UHFXUVR SDUD D DÀUPDomR GD
diferença e da exigência do seu reconhecimento e um campo de lutas e de
contradições.
DISCRIMINAÇÃO RACIAL: Ação, atitude, ou manifestação contra uma
pessoa ou grupo de pessoas em razão de sua raça ou “cor”. A discriminação
acontece quando o racista externaliza seu racismo ou preconceito e age de
alguma forma que prejudica uma pessoa ou grupo (MULLER, 2005). De
DFRUGRFRPD&RQYHQomRGD218GHGLVFULPLQDomRUDFLDO´VLJQLÀFD

217
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferências baseadas em raça, cor,


descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha como objeto ou efeito
anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou exercícios, em condições
de igualdade, dos direitos humanos e liberdades fundamentais do domínio
político, social ou cultural, ou em qualquer outro domínio da vida pública”
(ONU apud SANT’ANA, 2004).
DIVERSIDADE: As educadoras Gomes & Silva nos indicam que “o trato
GDGLYHUVLGDGHQmRSRGHÀFDUDFULWpULRGDERDYRQWDGHRXGDLPSODQWDomRGH
cada um. Ele deve ser uma competência político-pedagógica a ser adquirida
SHORVSURÀVVLRQDLVGDHGXFDomRQRVVHXVSURFHVVRVIRUPDGRUHVLQÁXHQFLDQ-
do de maneira positiva a relação desses sujeitos com os outros, tanto na es-
cola quanto na vida cotidiana” (2002, p.29-30). Nas palavras de Sodré, “A di-
versidade étnico-cultural nos mostra que os sujeitos sociais, sendo históricos,
são também, culturais. Essa constatação indica que é necessário repensar a
nossa escola e os processos de formação docente, rompendo com as práticas
seletivas, fragmentadas, corporativistas, sexistas e racistas ainda existentes”
  1HVVH VHQWLGR DÀUPD 1LOPD /LQR *RPHV ´$VVXPLU D GLYHUVLGDGH
FXOWXUDOVLJQLÀFDPXLWRPDLVGRTXHXPHORJLRjVGLIHUHQoDV5HSUHVHQWDQmR
VRPHQWH ID]HU XPD UHÁH[mR PDLV GHQVD VREUH DV SDUWLFXODULGDGHV GRV JUX-
pos sociais, mas, também, implementar políticas públicas, alterar relações de
SRGHUUHGHÀQLUHVFROKDVWRPDUQRYRVUXPRVHTXHVWLRQDUDQRVVDYLVmRGH
democracia” (2003).
ESTEREÓTIPO: Opinião preconcebida, difundida entre os elementos de
XPDFROHWLYLGDGHFRQFHLWRPXLWRSUy[LPRGHSUHFRQFHLWR6DQW·$QDGHÀQH
estereótipo como: “uma tendência à padronização, com a eliminação das qua-
lidades individuais e das diferenças, com a ausência total do espírito crítico
nas opiniões sustentadas” (2004, p.57).
ETNIA/GRUPO ÉTNICO: Para as ciências sociais, em especial a Antro-
pologia, a noção de etnia emerge após a Segunda Guerra Mundial, em contra-
posição à noção biológica de raça que as ciências da natureza consideravam
inadequada para tratar das diferenças entre grupos humanos. Etnia ou grupo
étnico é um grupo social cujos membros consideram ter uma origem e uma
cultura comuns, e, portanto, uma identidade marcada por traços distintivos.
8PDHWQLDRXXPJUXSRpWQLFRVHDXWRGHÀQHHpUHFRQKHFLGDSRUHWQLDVRX
grupos distintos da sociedade envolvente. O mesmo acontece com os indi-
víduos: pertence a uma etnia ou um grupo étnico quem dele se considera
integrante e quem é reconhecido como a ele pertencente pelo grupo e pela
sociedade.

218
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ETNOCENTRISMO: Tendência dos grupos ou sociedades de privilegiar a


si mesmo e à suas concepções como superiores, num contexto de interações
com coletividades de mesmo tipo: “como o nome indica, é uma idéia que
coloca determinado grupo étnico como pólo básico – ele é o centro. Os de-
mais, por serem diferentes, não têm relevância. Há nesse caso um confronto
FRPDPRGHUQLGDGHTXHQmRSUHVFLQGHGDLGpLDGHGLYHUVLGDGHµDÀUPD+pOLR
Santos (2001. p. 83).
GRIÔ: Segundo o historiador africano Hampaté Bâ, há várias categorias de
griots (palavra francesa, para aqueles chamados de dieli, em bambara, língua
da África Ocidental): narradores orais, músicos e/ou cantores. Os griots não
são os únicos tradicionalistas, mas podem tornar-se, se for a sua vocação: “É
fácil ver como os griots genealogistas, especializados em histórias de famílias,
geralmente dotados de memória prodigiosa, tornaram-se naturalmente, por
assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente, grandes
historiadores, mas é importante lembrarmos que eles não são os únicos a pos-
suir tal conhecimento. Os griots historiadores, a rigor, podem ser chamados de
“tradicionalistas”, mas com a ressalva de que se trata de um ramo puramente
histórico da tradição a qual possui muitos outros ramos” (1980, p. 206).
HISTÓRIA: A história pode ser realizada e compreendida de várias formas:
escrita, oral, quantitativa, econômica, cultural, social. A concepção de história
vem sendo ampliada e relativizada com a história dos grupos socialmente
subalternos e discriminados que já foram considerados “povos sem história”.
&RPRiUHDGRFRQKHFLPHQWRWHPWHRULDVHPpWRGRVSUySULRV3URÀVVLRQDLV
desse campo têm se voltado para a história da África e da população negra
na diáspora.
HISTÓRIA DA ÁFRICA: História das sociedades africanas, escrita e/ou
narrada por africanos(as), afrodescendentes e pesquisadores/as de outros
grupos étnico-raciais que apresentam a África em suas diversas conexões es-
paço-temporais, sem se limitar ao período do capitalismo mundial mercanti-
lista e à escravidão moderna (séculos XVI a XIX). A história da África pode
ser igualmente relacionada ao pan-africanismo, à negritude, ao movimento de
descolonização e independência dos países africanos, ao racismo em escala
mundial e às sociedades africanas contemporâneas.
IDENTIDADE: A noção de identidade é abordada por diversas áreas do
conhecimento. Portanto, podemos tratar de vários tipos de identidade. No
tocante à identidade racial ou étnica, o importante é perceber os seus proces-
sos de construção, que podem ser lentos ou rápidos e tendem a ser duradou-
ros. É necessário estar atento aos elementos negativos, como os estereótipos

219
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

e as situações de discriminação. Além disso, é necessário ater-se à vontade de


reconhecimento das identidades étnicas, raciais e de gênero dos indivíduos e
dos grupos. Também é preciso compreender que, no mundo contemporâneo,
os indivíduos constroem e portam várias identidades (sociais, étnicas e raciais,
de faixa etária, gênero e orientação sexual e outros).
MEMÓRIA: A memória individual ou coletiva é sempre uma memória social
e, por isso, é seletiva, composta de rememorações e esquecimentos (POLLA-
CK, 1989) e se apóia em elemento da vida de uma pessoa ou do(s) grupo(s)
a que ela pertence. Os grupos discriminados ou subalternos são portadores
de memórias “subterrâneas” que devem ser registradas com procedimentos
adequados. No caso da trajetória da população negra, marcada pela oralidade
e por poucos registros escritos, a memória coletiva é fundamental para a con-
tinuidade das coletividades tanto rurais quanto urbanas.
MITO: Segundo Marilena Chauí, “mito deve ser compreendido no seu aspecto
etimológico da palavra grega P\WKRV, isto é, uma narração pública de feitos len-
dários, mas também no sentido antropológico, no qual essa narrativa é a solução
LPDJLQiULDSDUDWHQV}HVFRQÁLWRVHFRQWUDGLo}HVTXHQmRHQFRQWUDPFDPLQKRV
para serem resolvidos no nível da realidade” (2004, p.09). No universo da afri-
canidade, a mitologia está fundamentada nos fatos e acontecimentos narrados
pelos humanos e/ou pelos deuses. A necessidade de fortalecer os povos, seus
deuses ou heróis possibilitou a construção e a narrativa de diferentes histórias,
inseridas no contexto sociopolítico, trazendo sempre uma lição de ética e/ou
PRUDOHPTXHFDGDQDomRUHVVLJQLÀFDVXDVUHODo}HVVRFLDLVHQWUHRFRVPRDV
pessoas e as razões dos acontecimentos naturais e/ou sobrenaturais.
MULTICULTURALISMO: Coexistência de várias culturas no mesmo es-
paço, no mesmo país, na mesma cidade, na mesma escola. Para Gonçalves
e Silva; “embora o multiculturalismo tenha se transformado, com apoio da
mídia e das redes informais, em um fenômeno globalizado, ele teve início
em países nos quais a diversidade cultural é vista como um problema para
a construção da unidade nacional. (...) Em suma, o multiculturalismo, desde
sua origem, aparece como princípio ético que tem orientado a ação de gru-
pos culturalmente dominados, aos quais foi negado o direito de preservar
suas características culturais” (2001, p. 19-20). Ainda que da perspectiva do
multiculturalismo seja apresentada uma visão relativista dos valores, Capelo
pondera que “o multiculturalismo não pode abrir mão da igualdade de direi-
to e das necessidades compensatórias, caso contrário terá contribuído para
excluir, para separar, para fragmentar, permitindo que a dominação sobre a
PLQRULDVHMDDLQGDPDLVHÀFLHQWHµ S 

220
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ORALIDADE: Plano de transmissão dos saberes em várias sociedades, apa-


rentemente posto em segundo plano na modernidade. Além disso, conside-
ra-se que a oralidade é o meio de transmissão de conhecimento de grupos
e coletividades tradicionais, em particular, aquelas que não registram seus
fenômenos através da escrita. No entanto, a expressão oral pode ocorrer
vinculada a expressões visuais e corporais, artísticas e musicais, e, inclusive,
escritas. A palavra, a fala, são primordiais na expressão oral como portadoras
do conhecimento do grupo social em questão: “O ouvir, juntamente com o
olhar e sentir, é necessário para apreender, distinguir, entender fatos de que
se é testemunha, palavras que se ouvem, situações nas quais se é envolvido
ou nas quais a pessoa se envolve. (...) O falar é a síntese do que se ouviu,
presenciou, concluiu, e expressa tanto por palavras, como por gestos, muitas
vezes apenas por gestos, decisão, encaminhamentos, formas de agir” (SILVA,
2003, p. 188).
PLURALISMO: Esse termo se refere às relações sociais em que grupos
distintos em vários aspectos compartilham outros tantos aspectos de uma
cultura e um conjunto de instituições comuns. Cada grupo preserva as suas
SUySULDVRULJHQVpWQLFDVDRSHUSHWXDUFXOWXUDVHVSHFtÀFDV RX´VXEFXOWXUDVµ 
na forma de igrejas, negócios, clubes e mídia. Existem dois tipos básicos de
pluralismo: o cultural e o estrutural. O pluralismo cultural ocorre quando
os grupos têm reconhecidos e respeitados sua própria religião, suas visões
de mundo, seus costumes, suas atitudes e seus estilos de vida em geral, e
compartilham outros com grupos diferentes. O pluralismo estrutural ocorre
quando os grupos têm as suas próprias estruturas e instituições sociais en-
quanto compartilham outras. O pluralismo, como ferramenta analítica, pre-
tende explicar como grupos diferentes, com diferentes “bagagens culturais”,
e talvez interesses distintos, podem viver juntos sem que a sua diversidade se
WRUQHPRWLYRGHFRQÁLWR
PRECONCEITO: O preconceito é, primeiramente, uma opinião que se
emite antecipadamente, a partir de informações acerca de pessoas, grupos e
sociedades, em geral infundadas ou baseadas em estereótipos, que se transfor-
mam em julgamento prévio, negativo. “Os preconceitos são opiniões levianas
e arbitrárias, mas que não surgem do nada. Nem, ao contrário do que se possa
SHQVDUVmRRSLQL}HVLQGLYLGXDLV(PJHUDOQDVFHPGDUHSHWLomRLUUHÁHWLGDGH
prejulgamentos que já ouvimos antes mais de uma vez. Finalmente, à força de
tanta repetição, terminamos por aceitá-los como verdadeiros. E os repetimos
VHPVHTXHUQRVSUHRFXSDUPRVHPYHULÀFDUTXmRFHUWRVVmRµ ,167,7872
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS, 1995, p. 17).

221
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

RAÇA:$QRomRGHUDoDVHFRQÀJXURXQRSHQVDPHQWRRFLGHQWDODSDUWLUGDV
REUDVGHÀOyVRIRVHFLHQWLVWDVGRVVpFXORV;9,,,H;,;TXHHPJHUDOFDUDF-
terizavam os povos apoiando-se nas diferenças aparentes e os hierarquizavam
a seu modo, tratando, sobretudo, as raças brancas como superiores às raças
amarelas e mais ainda às negras, dentre outras. As ciências naturais contem-
porâneas apontam para a inexistência de raças biológicas, preferindo falar em
uma única espécie humana. No entanto, as ciências sociais, reconhecendo as
desigualdades que se estabeleceram e se reproduzem com base no fenótipo
das pessoas, especialmente em países que escravizaram africanos(as), con-
cordam com a manutenção do termo raça como uma construção social que
DEUDQJHHVVDVGLIHUHQoDVHRVVLJQLÀFDGRVDHODVDWULEXtGRVTXHHVWmRQDEDVH
do racismo. A noção de “raça” para o Movimento Negro não está pautada na
ELRORJLD2TXHVHGHQRPLQDUDoDFRGLÀFDXPROKDUSROtWLFRSDUDDKLVWyULDGR
negro no mundo.
RACISMO: Remete a um conjunto de teorias, crenças e práticas que estabe-
lece uma hierarquia entre as raças, consideradas como fenômenos biológicos
(MUNANGA, 2004). Doutrina ou sistema político fundado sobre o direito
de uma raça (considerada pura ou superior) de dominar outras; preconceito
extremado contra indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente, ge-
ralmente considerada inferior; atitude de hostilidade em relação à determina-
da categoria de pessoas.
RECONHECIMENTO: Os caminhos para o pluralismo centram-se nas
lutas pelo reconhecimento e pelo direito à diferença dos povos negros, indí-
genas, dos movimentos feministas, dos movimentos da diversidade sexual,
dos movimentos dos direitos humanos, em geral. A busca pelo reconheci-
mento é individual e social e o reconhecimento deve ser praticado pelos indi-
víduos e pelas instituições.
SEGREGAÇÃO RACIAL: Separação forçada e explícita, com base na lei
ou no comportamento social de grupos étnicos e raciais considerados como
minoritários ou inferiores. Como nos indica Hélio Santos: “A segregação ins-
titucional, tipo apartheid, felizmente, nos dias atuais está em desuso. Há seto-
res da sociedade brasileira tão fechados para algumas pessoas que poderíamos
GL]HUTXHKiXPDVHJUHJDomRQmRRÀFLDOPDVTXHIXQFLRQDµ S 
SEXISMO: É a discriminação ou tratamento desigual a um determinado
JrQHURRXDLQGDDGHWHUPLQDGDLGHQWLGDGHVH[XDO([LVWHPGRLVVLJQLÀFDGRV
distintos sobre os quais se assenta o sexismo: um sexo é superior ao outro;
mulher e homem são profundamente diferentes (mesmo além de diferenças

222
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ELROyJLFDV HGHVLJXDLV$PRELOL]DomRFRQWUDRVH[LVPRGHYHVHUHÁHWLUHP
aspectos sociais como o direito e a linguagem. Em relação ao preconcei-
to contra mulheres, diferencia-se do machismo por ser mais consciente e
pretensamente racionalizado, ao passo que o machismo é muitas vezes um
comportamento de imitação social. Nesse caso, o sexismo muitas vezes está
ligado à misoginia (aversão ou ódio às mulheres).
TERRITÓRIO/TERRITORIALIDADE: Para entendermos o concei-
WR GH WHUULWRULDOLGDGH HP ÉIULFD p QHFHVViULR YHULÀFDUPRV D FRPSOH[LGDGH
do imaginário africano tradicional. Antes, é preciso entender que tradicional,
nesse caso, não é igual a velho, estático e sem evolução. A territorialidade se
dá através da força vital, da energia concentrada em tal espaço, sem fronteiras
rígidas. A territorialidade pode ser percebida como espaço de práticas cultu-
rais nas quais se criam mecanismos identitários de representação a partir da
memória coletiva, das suas singularidades culturais e paisagens. A territoria-
lidade seria assim resultante de uma unidade construída, em detrimento das
diferenças internas, porém evocando sempre a distinção em relação às outras
WHUULWRULDOLGDGHV6RGUpDÀUPDTXH´RWHUULWyULRFRPRSDWULP{QLRVLPEyOLFR
não dá lugar à abstração fetichista da mercadoria nem à imposição poderosa
de um valor humano universal, porque aponta o tempo inteiro para a abolição
ecológica da separação (sofística) entre natureza e cultura, para a simplicidade
das condutas e dos estilos de vida e para a alegria concreta do tempo presen-
te” (1988a, p. 165).
XENOFOBIA:$YHUVmRPHGRLQMXVWLÀFDGRDSHVVRDHFRLVDVHVWUDQJHLUDV
ódio ao estrangeiro. O termo xenofobia também é considerado a condição
psicológica para descrever pessoas que temem ou abominam grupos tidos
como estrangeiros. Historicamente, o Brasil viu com reservas a presença de
DOJXQVLPLJUDQWHVLQWHUQDFLRQDLV1RÀQDOGRSHUtRGRLPSHULDOQmRVHDGPL-
tia a presença de imigrantes africanos e asiáticos. Na época do nacionalismo
do Estado Novo praticou-se o racismo e a xenofobia aberta ante a diversas
QDFLRQDOLGDGHVFRPDMXVWLÀFDWLYDGHTXHFHUWDVQDFLRQDOLGDGHVSRGHULDPVHU
mais bem “assimiladas” pela sociedade brasileira e outras não, por meio de
uma legislação excludente, revestindo-se também de roupagem tipicamente
autoritária das circulares e ordens secretas e acompanhada de um clima xenó-
fobo (MILESI, BONASSI & SHIMANO, 2000, p. 57).

223
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

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Fome de tudo (Oxossi)
Coleção Particular - Maria Lúcia da Silva

Diretrizes Curriculares Nacionais para a


Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira
Fome de tudo (Oxossi)
Coleção Particular - Maria Lúcia da Silva

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO/CONSELHO PLENO/DF


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana

PARECER CNE/CP 003/2004


APROVADO EM: 10/3/2004
PROCESSO N.º: 23001.000215/2002-96

I – Relatório

E ste Parecer visa a atender os propósitos expressos na Indicação CNE/


CP 06/2002, bem como regulamentar a alteração trazida à Lei 9.394/96
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10.639/2003 que es-
tabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana na Educação Básica. Desta forma, busca cumprir o estabelecido na
Constituição Federal nos seus Art. 5, I, Art. 210, Art. 206,I, § 1° do Art. 242,
Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79B na Lei 9.394/96 de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade
de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual direito às
histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso
às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros.
Junta-se a preceitos analógicos aos Art. 26 e 26A da LDB, como os das
Constituições Estaduais da Bahia (Art. 175, IV e 288), do Rio de Janeiro
(Art. 303), de Alagoas (Art. 253), assim como de Leis Orgânicas tais como
a de Recife (Art. 138), de Belo Horizonte (Art. 182, VI), a do Rio de Janeiro
(Art. 321, VIII), além de leis ordinárias, como lei Municipal nº. 7685, de 17
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

de janeiro de 1994, de Belém, a Lei Municipal nº. 2.251, de 30 de novembro


de 1994, de Aracaju e Lei Municipal nº. 11.973, de 4 de janeiro de 1996, de
São Paulo.1
Junta-se também ao disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei 8.096, de 13 de junho de 1990), bem como no Plano Nacional de Edu-
cação (Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001).
Todos estes dispositivos legais, bem como reivindicações e propostas do
Movimento Negro ao longo do século XX, apontam para a necessidade de
diretrizes que orientem a formulação de projetos empenhados na valorização
da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos, assim como com-
prometidos com a de educação de relações étnico-raciais positivas, a que tais
conteúdos devem conduzir.
Destina-se o parecer aos administradores dos sistemas de ensino, de man-
tenedoras de estabelecimentos de ensino, aos estabelecimentos de ensino,
seus professores e a todos implicados na elaboração, execução, avaliação de
programas de interesse educacional, de planos institucionais, pedagógicos e
de ensino. Destina-se também às famílias dos estudantes, a eles próprios e
a todos os cidadãos comprometidos com a educação dos brasileiros, para
nele buscarem orientações, quando pretenderem dialogar com os sistemas de
ensino, escolas e educadores, no que diz respeito às relações étnico-raciais,
ao reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à
diversidade da nação brasileira, ao igual direito à educação de qualidade, isto
é, não apenas direito ao estudo, mas também à formação para a cidadania
responsável pela construção de uma sociedade justa e democrática.
Em vista disso, foi feita consulta sobre as questões objeto deste parecer,
por meio de questionário encaminhado a grupos do Movimento Negro, a
militantes individualmente, aos Conselhos Estaduais e Municipais de Educa-
ção, a professores que vêm desenvolvendo trabalhos que abordam a questão
UDFLDODSDLVGHDOXQRVHQÀPDFLGDGmRVHPSHQKDGRVFRPDFRQVWUXomRGH
uma sociedade justa, independentemente de seu pertencimento racial. Enca-
minharam-se em torno de 1000 questionários, e o responderam individual-
mente ou em grupo 250 mulheres e homens, entre crianças e adultos, com
diferentes níveis de escolarização. Suas respostas mostraram a importância de
VHWUDWDUHPSUREOHPDVGLÀFXOGDGHVG~YLGDVDQWHVPHVPRGHRSDUHFHUWUDoDU
orientações, indicações, normas.
1
Belém – Lei Municipal nº. 76.985, de 17 de janeiro de 1994, que “Dispõe sobre a inclusão, no currí-
culo escolar da Rede Municipal de Ensino, na disciplina História, de conteúdo relativo ao estudo da
Raça Negra na formação sócio-cultural brasileira e dá outras providências”

230
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Questões introdutórias

O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da edu-


cação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de
Do}HVDÀUPDWLYDVLVWRpGHSROtWLFDVGHUHSDUDo}HVHGHUHFRQKHFLPHQWRH
valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele, de política curri-
cular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da
realidade brasileira, e busca combater o racismo e discriminações que atin-
gem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe a divulgação e
produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que
eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial - descen-
dentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos
– para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos
igualmente tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada.
É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos ne-
gros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo pró-
prias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos.
É necessário sublinhar que tais políticas têm também como meta o direito
dos negros, assim como de todos cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos
níveis de ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientados
SRUSURIHVVRUHVTXDOLÀFDGRVSDUDRHQVLQRGDVGLIHUHQWHViUHDVGHFRQKHFL-
mentos; com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo
racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das
relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de
africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas. Estas condições ma-
teriais das escolas e de formação de professores são indispensáveis para uma
educação de qualidade para todos, assim como o são o reconhecimento e a
valorização da história, cultura e identidade dos descendentes de africanos.

Políticas de Reparações, de Reconhecimento e Valorização, de Ações


Afirmativas

A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem


medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros dos danos psi-
cológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime
escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de bran-
queamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para gru-

231
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

SRVFRPSRGHUGHJRYHUQDUHGHLQÁXLUQDIRUPXODomRGHSROtWLFDVQRSyV
abolição. Visa também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de
combate ao racismo e a toda sorte de discriminações.
Cabe ao Estado promover e incentivar políticas de reparações, no que
cumpre ao disposto na Constituição Federal, Art. 205, que assinala o dever
do Estado de garantir indistintamente, por meio da educação, iguais direitos
para o pleno desenvolvimento de todos e de cada um, enquanto pessoa, cida-
GmRRXSURÀVVLRQDO6HPDLQWHUYHQomRGR(VWDGRRVSRVWRVjPDUJHPHQWUH
HOHVRVDIUREUDVLOHLURVGLÀFLOPHQWHHDVHVWDWtVWLFDVRPRVWUDPVHPGHL[DU
dúvidas, romperão o sistema meritocrático que agrava desigualdades e gera
injustiça, ao reger-se por critérios de exclusão, fundados em preconceitos e
manutenção de privilégios para os sempre privilegiados.
Políticas de reparações voltadas para a educação dos negros devem ofere-
cer garantias, a essa população, de ingresso, permanência e sucesso na educa-
ção escolar, de valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de
aquisição das competências e dos conhecimentos tidos como indispensáveis
para continuidade nos estudos, de condições para alcançar todos os requisitos
tendo em vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino, bem como para
atuar como cidadãos responsáveis e participantes, além de desempenharem
FRPTXDOLÀFDomRXPDSURÀVVmR
A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valori-
]DomRHDÀUPDomRGHGLUHLWRVQRTXHGL]UHVSHLWRjHGXFDomRSDVVRXDVHU
particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou
a Lei 9.394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e
cultura afro-brasileiras e africanas.
Reconhecimento implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e
econômicos, bem como valorização da diversidade daquilo que distingue os
negros dos outros grupos que compõem a população brasileira. E isto requer
mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar
as pessoas negras. Requer também que se conheçam a sua história e cultura
DSUHVHQWDGDV H[SOLFDGDV EXVFDQGRVH HVSHFLÀFDPHQWH GHVFRQVWUXLU R PLWR
da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que difunde a crença
de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não-negros,
é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualda-
des seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os
negros.
Reconhecimento requer a adoção de políticas educacionais e de estraté-
JLDVSHGDJyJLFDVGHYDORUL]DomRGDGLYHUVLGDGHDÀPGHVXSHUDUDGHVLJXDOGD-

232
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

de étnico-racial presente na educação escolar brasileira, nos diferentes níveis


de ensino.
Reconhecer exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em
SUHFRQFHLWRVTXHGHVTXDOLÀFDPRVQHJURVHVDOLHQWDPHVWHUHyWLSRVGHSUHFLD-
tivos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam
sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma socie-
dade hierárquica e desigual.
Reconhecer é também valorizar, divulgar e respeitar os processos históri-
cos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil
e por seus descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais
até as coletivas.
Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, a sua des-
FHQGrQFLDDIULFDQDVXDFXOWXUDHKLVWyULD6LJQLÀFDEXVFDUFRPSUHHQGHUVHXV
valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de des-
TXDOLÀFDomR DSHOLGRV GHSUHFLDWLYRV EULQFDGHLUDV SLDGDV GH PDX JRVWR VX-
gerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus
cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições
para que os estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua
pele, menosprezados em virtude de antepassados seus terem sido explorados
como escravos, não sejam desencorajados de prosseguir estudos, de estudar
questões que dizem respeito à comunidade negra.
Reconhecer exige que os estabelecimentos de ensino, freqüentados em
sua maioria por população negra, contem com instalações e equipamen-
tos sólidos, atualizados, com professores competentes no domínio dos
conteúdos de ensino, comprometidos com a educação de negros e bran-
cos, no sentido de que venham a relacionar-se com respeito, sendo capa-
zes de corrigir posturas, atitudes e palavras que impliquem desrespeito e
discriminação.
Políticas de reparações e de reconhecimento formarão programas de
Do}HVDÀUPDWLYDVLVWRpFRQMXQWRVGHDo}HVSROtWLFDVGLULJLGDVjFRUUHomRGH
desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento diferen-
ciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas
SRUHVWUXWXUDVRFLDOH[FOXGHQWHHGLVFULPLQDWyULD$o}HVDÀUPDWLYDVDWHQGHP
ao determinado pelo Programa Nacional de Direitos Humanos2, bem como a
compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, com o objetivo de com-
bate ao racismo e a discriminações, tais como: a Convenção da Unesco de
1960, direcionada ao combate ao racismo em todas as formas de ensino, bem
2
Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 1996.

233
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

como a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial,


Xenofobia e Discriminações Correlatas de 2001.
Assim sendo, sistemas de ensino e estabelecimentos de diferentes níveis
converterão as demandas dos afro-brasileiros em políticas públicas de Estado
ou institucionais, ao tomarem decisões e iniciativas com vistas a reparações,
reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à cons-
WLWXLomRGHSURJUDPDVGHDo}HVDÀUPDWLYDVPHGLGDVHVWDVFRHUHQWHVFRPXP
projeto de escola, de educação, de formação de cidadãos que explicitamente
se esbocem nas relações pedagógicas cotidianas. Medidas que, convêm, sejam
compartilhadas pelos sistemas de ensino, estabelecimentos, processos de for-
mação de professores, comunidade, professores, alunos e seus pais.
Medidas que repudiam, como prevê a Constituição Federal em seu Art.3º,
IV, o “preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação” e reconhecem que todos são portadores de singularidade
irredutível e que a formação escolar tem de estar atenta para o desenvolvi-
mento de suas personalidades (Art.208, IV).

Educação das relações étnico-raciais


O sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais e pedagógicas
visando a reparações, reconhecimento e valorização da identidade, da cultura
e da história dos negros brasileiros depende necessariamente de condições
físicas, materiais, intelectuais, afetivas favoráveis para o ensino e para aprendi-
zagens; em outras palavras, todos os alunos negros e não-negros, bem como
seus professores precisam sentir-se valorizados e apoiados. Depende tam-
bém, de maneira decisiva, da reeducação das relações entre negros e brancos,
o que aqui estamos designando como relações étnico-raciais. Depende, ainda,
de trabalho conjunto, de articulação entre processos educativos escolares,
políticas públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas, culturais,
pedagógicas e políticas nas relações étnico-raciais não se limitam à escola.
É importante destacar que se entende por raça a construção social forja-
da nas tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como
harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado
no século XVIII e hoje sobejamente superado. Cabe esclarecer que o termo
raça é utilizado com freqüência nas relações sociais brasileiras, para informar
como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo,
HQWUHRXWUDVLQÁXHQFLDPLQWHUIHUHPHDWpPHVPRGHWHUPLQDPRGHVWLQRHR
lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.

234
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

&RQWXGRRWHUPRIRLUHVVLJQLÀFDGRSHOR0RYLPHQWR1HJURTXHHPYi-
rias situações, utiliza-o com um sentido político e de valorização do legado
deixado pelos africanos. É importante também explicar que o emprego do
termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações
WHQVDVGHYLGDVDGLIHUHQoDVQDFRUGDSHOHHWUDoRVÀVLRQ{PLFRVRVmRWDPEpP
devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão
de mundo, valores e princípios das de origem indígena, européia e asiática.
Convivem, no Brasil, de maneira tensa, a cultura e o padrão estético negro
e africano e um padrão estético e cultural branco europeu. Porém, a presen-
ça da cultura negra e o fato de 45% da população brasileira ser composta
GHQHJURV GHDFRUGRFRPRFHQVRGR,%*( QmRWrPVLGRVXÀFLHQWHVSDUD
eliminar ideologias, desigualdades e estereótipos racistas. Ainda persiste em
nosso país um imaginário étnico-racial que privilegia a brancura e valoriza
principalmente as raízes européias da sua cultura, ignorando ou pouco valo-
rizando as outras, que são a indígena, a africana, a asiática.
Os diferentes grupos, em sua diversidade, que constituem o Movimento
Negro brasileiro, têm comprovado o quanto é dura a experiência dos negros
de ter julgados negativamente seu comportamento, idéias e intenções, antes
mesmo de abrirem a boca ou tomarem qualquer iniciativa. Têm, eles, insistido
QRTXDQWRpDOLHQDQWHDH[SHULrQFLDGHÀQJLUVHURTXHQmRpSDUDVHUUHFRQKH-
cido, de quão dolorosa pode ser a experiência de deixar-se assimilar por uma
visão de mundo, que pretende impor-se como superior e por isso universal, e
que os obriga a negarem a da tradição do seu povo.
Se não é fácil ser descendente de seres humanos escravizados e forçados à
condição de objetos utilitários ou a semoventes, também é difícil descobrir-se
descendente dos escravizadores, temer, embora veladamente, revanche dos
que, por cinco séculos, têm sido desprezados e massacrados.
Para reeducar as relações étnico-raciais no Brasil, é necessário fazer emer-
girem as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o
sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a
outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente.
Como bem salientou Frantz Fanon3, os descendentes dos mercadores de
escravos, dos senhores de ontem, não têm, hoje, de assumir culpa pelas de-
sumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a res-
ponsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações, e,
juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros, construir
3
FRANTZ, Fanon. Os Condenados da Terra. 2.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.

235
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto


seres humanos e cidadãos. Não fossem por estas razões, eles a teriam de as-
sumir, pelo fato de usufruírem do muito que o trabalho escravo possibilitou
ao país.
Assim sendo, a educação das relações étnico-raciais impõe aprendizagens
HQWUHEUDQFRVHQHJURVWURFDVGHFRQKHFLPHQWRVTXHEUDGHGHVFRQÀDQoDV
projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual, equânime.
&RPEDWHURUDFLVPRWUDEDOKDU SHORÀPGDGHVLJXDOGDGHVRFLDOHUDFLDO
empreender reeducação das relações étnico-raciais não são tarefas exclusivas
da escola. As formas de discriminação de qualquer natureza não têm o seu
nascedouro na escola; porém o racismo, as desigualdades e discriminações
correntes na sociedade perpassam por ali. Para que as instituições de ensino
desempenhem a contento o papel de educar, é necessário que se constituam
em espaço democrático de produção e divulgação de conhecimentos e de
posturas que visam a uma sociedade justa. A escola tem papel preponderante
para eliminação das discriminações e para emancipação dos grupos discri-
PLQDGRVDRSURSRUFLRQDUDFHVVRDRVFRQKHFLPHQWRVFLHQWtÀFRVDUHJLVWURV
culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações so-
ciais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para consolidação
e concerto das nações como espaços democráticos e igualitários.
Para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm
de desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etno-
centrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalie-
QDQGR SURFHVVRV SHGDJyJLFRV ,VWR QmR SRGH ÀFDU UHGX]LGR D SDODYUDV H D
raciocínios desvinculados da experiência de ser inferiorizados vivida pelos
QHJURVWDPSRXFRGDVEDL[DVFODVVLÀFDo}HVTXHOKHVVmRDWULEXtGDVQDVHVFDODV
de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas.
Diálogo com estudos que analisam e criticam estas realidades e fazem
propostas, bem como com grupos do Movimento Negro, presentes nas di-
ferentes regiões e estados, assim como inúmeras cidades, são imprescindíveis
para que se vençam discrepâncias entre o que se sabe e a realidade, se com-
preendam concepções e ações, uns dos outros, para que se elabore projeto
comum de combate ao racismo e a discriminações.
Temos, pois, pedagogias de combate ao racismo e a discriminações por
criar. É claro que há experiências de professores e de algumas escolas, ainda
isoladas, que muito vão ajudar.
Para empreender a construção dessas pedagogias, é fundamental que se
desfaçam alguns equívocos. Um deles diz respeito à preocupação de pro-

236
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

fessores no sentido de designar ou não seus alunos negros como negros ou


como pretos, sem ofensas.
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que ser negro no Brasil não
se limita às características físicas. Trata-se, também, de uma escolha política.
3RULVVRRpTXHPDVVLPVHGHÀQH(PVHJXQGROXJDUFDEHOHPEUDUTXHSUHWR
pXPGRVTXHVLWRVXWLOL]DGRVSHOR,%*(SDUDFODVVLÀFDUDRODGRGRVRXWURV
– branco, pardo, indígena - a cor da população brasileira. Pesquisadores de
GLIHUHQWHV iUHDV LQFOXVLYH GD HGXFDomR SDUD ÀQV GH VHXV HVWXGRV DJUHJDP
dados relativos a pretos e pardos sob a categoria negros, já que ambos re-
únem, conforme alerta o Movimento Negro, aqueles que reconhecem sua
ascendência africana.
É importante tomar conhecimento da complexidade que envolve o pro-
cesso de construção da identidade negra em nosso país. Processo esse, mar-
cado por uma sociedade que, para discriminar os negros, utiliza-se tanto da
desvalorização da cultura de matriz africana quanto dos aspectos físicos her-
dados pelos descendentes de africanos. Nesse processo complexo, é possível,
no Brasil, que algumas pessoas de tez clara e traços físicos europeus, em vir-
tude de o pai ou a mãe serem negros(as), designarem-se negros; que outros,
com traços físicos africanos, digam-se brancos. É preciso lembrar que o ter-
mo negro começou a ser usado pelos senhores para designar pejorativamente
os escravizados, e este sentido negativo da palavra se estende até hoje. Con-
WXGR R 0RYLPHQWR 1HJUR UHVVLJQLÀFRX HVVH WHUPR GDQGROKH XP VHQWLGR
SROtWLFRHSRVLWLYR/HPEUHPRVRVPRWHVPXLWRXWLOL]DGRVQRÀQDOGRVDQRV
1970 e no decorrer dos anos 1980, 1990: Negro é lindo! Negra, cor da raça
brasileira! Negro que te quero negro! 100% Negro! Não deixe sua cor passar
em branco, este último utilizado na campanha do censo de 1990.
2XWURHTXtYRFRDHQIUHQWDUpDDÀUPDomRGHTXHRVQHJURVVHGLVFUL-
minam entre si e que são racistas também. Esta constatação tem de ser
analisada no quadro da ideologia do branqueamento que divulga a idéia
e o sentimento de que as pessoas brancas seriam mais humanas, teriam
inteligência superior e por isso teriam o direito de comandar e de dizer o
que é bom para todos. Cabe lembrar que no pós-abolição foram formula-
das políticas que visavam ao branqueamento da população, pela eliminação
simbólica e material da presença dos negros. Nesse sentido, é possível que
SHVVRDVQHJUDVVHMDPLQÁXHQFLDGDVSHODLGHRORJLDGREUDQTXHDPHQWRHDV-
sim, tendam a reproduzir o preconceito do qual são vítimas. O racismo
imprime marcas negativas na subjetividade dos negros e também na dos
que os discriminam.

237
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Mais um equívoco a superar é a crença de que a discussão sobre a questão


racial se limita ao Movimento Negro e a estudiosos do tema e não à escola. A
escola, enquanto instituição social responsável por assegurar o direito da edu-
cação a todo e qualquer cidadão, deverá se posicionar politicamente, como já
vimos, contra toda e qualquer forma de discriminação. A luta pela superação
do racismo e da discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer educa-
dor, independentemente do seu pertencimento étnico-racial, crença religiosa
ou posição política. O racismo, segundo o Artigo 5º da Constituição Brasi-
OHLUDpFULPHLQDÀDQoiYHOHLVVRVHDSOLFDDWRGRVRVFLGDGmRVHLQVWLWXLo}HV
inclusive, a escola.
Outro equívoco a esclarecer é de que o racismo, o mito da democracia
racial e a ideologia do branqueamento só atingem os negros. Enquanto pro-
cessos estruturantes e constituintes da formação histórica e social brasileira,
estes estão arraigados no imaginário social e atingem negros, brancos e ou-
tros grupos étnico-raciais. As formas, os níveis e os resultados desses pro-
cessos incidem de maneira diferente sobre os diversos sujeitos e interpõem
GLIHUHQWHVGLÀFXOGDGHVQDVVXDVWUDMHWyULDVGHYLGDHVFRODUHVHVRFLDLV3RULVVR
a construção de estratégias educacionais que visem o combate ao racismo é
uma tarefa de todos os educadores, independentemente do seu pertencimen-
to étnico-racial.
Pedagogias de combate ao racismo e a discriminações elaboradas com o
objetivo de educação das relações étnico/raciais positivas têm como objetivo
fortalecer entre os negros e despertar entre os brancos a consciência negra.
Entre os negros poderão oferecer conhecimentos e segurança para orgulha-
UHPVHGDVXDRULJHPDIULFDQDSDUDRVEUDQFRVSRGHUmRSHUPLWLUTXHLGHQWLÀ-
TXHPDVLQÁXrQFLDVDFRQWULEXLomRDSDUWLFLSDomRHDLPSRUWkQFLDGDKLVWyULD
e da cultura dos negros no seu jeito de ser, viver, de se relacionar com as
outras pessoas, notadamente as negras. Também farão parte de um processo
de reconhecimento, por parte do Estado, da sociedade e da escola, da dívida
social que têm em relação ao segmento negro da população, possibilitando
uma tomada de posição explícita contra o racismo e a discriminação racial e a
FRQVWUXomRGHDo}HVDÀUPDWLYDVQRVGLIHUHQWHVQtYHLVGHHQVLQRGDHGXFDomR
brasileira.
Tais pedagogias precisam estar atentas para que todos, negros e não ne-
gros, além de ter acesso a conhecimentos básicos tidos como fundamentais
SDUDDYLGDLQWHJUDGDjVRFLHGDGHH[HUFtFLRSURÀVVLRQDOFRPSHWHQWHUHFHEDP
formação que os capacite a forjar novas relações étnico-raciais. Para tanto, há
QHFHVVLGDGHFRPRMiYLPRVGHSURIHVVRUHVTXDOLÀFDGRVSDUDRHQVLQRGDV

238
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

diferentes áreas de conhecimentos e além disso sensíveis e capazes de dire-


cionar positivamente as relações entre pessoas de diferentes pertencimentos
étnico-raciais, no sentido do respeito e da correção de posturas, atitudes, pa-
lavras preconceituosas. Daí a necessidade de se insistir e investir para que os
SURIHVVRUHVDOpPGHVyOLGDIRUPDomRQDiUHDHVSHFtÀFDGHDWXDomRUHFHEDP
formação que os capacite não só a compreender a importância das questões
relacionadas à diversidade étnico-racial, mas a lidar positivamente com elas e
sobretudo criar estratégias pedagógicas que possam auxiliar a reeducá-las.
$WpDTXLIRUDPDSUHVHQWDGDVRULHQWDo}HVTXHMXVWLÀFDPHIXQGDPHQWDP
as determinações de caráter normativo que seguem.

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – Determinações

A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e


Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com
fortes repercussões pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com
esta medida, reconhece-se que, além de garantir vagas para negros nos ban-
cos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo,
buscando reparar danos que se repetem há cinco séculos, a sua identidade e
a direitos seus. A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cul-
tura afro-brasileira e africana não se restringe à população negra, ao contrário
diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto
cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, tor-
nando-se capazes de construir uma nação democrática.
É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico
marcadamente de raiz européia por um africano, mas de ampliar o foco dos
currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica bra-
sileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e
atividades que proporcionam diariamente, também as contribuições históri-
co-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de
raiz africana e européia. É preciso ter clareza que o Art. 26A acrescido à Lei
9.394/1996 provoca bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige
que se repensem relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos
de ensino, condições oferecidas para aprendizagem, objetivos tácitos e explí-
citos da educação oferecida pelas escolas.
A autonomia dos estabelecimentos de ensino para compor os projetos
pedagógicos, no cumprimento do exigido pelo Art. 26A da Lei 9.394/1996,

239
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

permite que se valham da colaboração das comunidades a que a escola


serve, do apoio direto ou indireto de estudiosos e do Movimento Negro,
com os quais estabelecerão canais de comunicação, encontrarão formas
próprias de incluir nas vivências promovidas pela escola, inclusive em con-
teúdos de disciplinas, as temáticas em questão. Caberá aos sistemas de
ensino, às mantenedoras, à coordenação pedagógica dos estabelecimentos
de ensino e aos professores, com base neste parecer, estabelecer conte-
údos de ensino, unidades de estudos, projetos e programas, abrangendo
os diferentes componentes curriculares. Caberá, aos administradores dos
sistemas de ensino e das mantenedoras prover as escolas, seus professores
HDOXQRVGHPDWHULDOELEOLRJUiÀFRHGHRXWURVPDWHULDLVGLGiWLFRVDOpPGH
DFRPSDQKDURVWUDEDOKRVGHVHQYROYLGRVDÀPGHHYLWDUTXHTXHVW}HVWmR
complexas, muito pouco tratadas, tanto na formação inicial como conti-
nuada de professores, sejam abordadas de maneira resumida, incompleta,
com erros.
Em outras palavras, aos estabelecimentos de ensino está sendo atribuída
responsabilidade de acabar com o modo falso e reduzido de tratar a contri-
buição dos africanos escravizados e de seus descendentes para a construção
GDQDomREUDVLOHLUDGHÀVFDOL]DUSDUDTXHQRVHXLQWHULRURVDOXQRVQHJURV
deixem de sofrer os primeiros e continuados atos de racismo de que são
vítimas. Sem dúvidas, assumir estas responsabilidades implica compromisso
com o entorno sociocultural da escola, da comunidade onde esta se encontra
e a que serve, compromisso com a formação de cidadãos atuantes e demo-
cráticos, capazes de compreender as relações sociais e étnico-raciais de que
SDUWLFLSDPHDMXGDPDPDQWHUHRXDUHHODERUDUFDSD]HVGHGHFRGLÀFDUSD-
lavras, fatos, situações a partir de diferentes perspectivas, de desempenhar-se
em áreas de competências que lhes permitam continuar e aprofundar estudos
em diferentes níveis de formação.
Precisa o Brasil, país multiétnico e pluricultural, de organizações esco-
lares em que todos se vejam incluídos, em que lhes seja garantido o direi-
to de aprender e de ampliar conhecimentos, sem ser obrigados a negar a si
mesmos, ao grupo étnico/racial a que pertencem, a adotar costumes, idéias,
comportamentos que lhes são adversos. E estes certamente serão indicadores
da qualidade da educação que estará sendo oferecida pelos estabelecimentos
de ensino de diferentes níveis.
Para conduzir suas ações, os sistemas de ensino, os estabelecimentos, os
SURIHVVRUHVWHUmRFRPRUHIHUrQFLDHQWUHRXWURVSHUWLQHQWHVjVEDVHVÀORVyÀ-
cas e pedagógicas que assumem, os princípios a seguir explicitados.

240
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Consciência Política e Histórica da Diversidade

Este princípio deve conduzir:


• à igualdade básica de pessoa humana como sujeito de direitos;
• à compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que perten-
cem a grupos étnico-raciais distintos, que possuem cultura e história
próprias, igualmente valiosas e que em conjunto constroem, na nação
brasileira, sua história;
• ao conhecimento e à valorização da história dos povos africanos e da
cultura afro-brasileira na construção histórica e cultural brasileira;
• jVXSHUDomRGDLQGLIHUHQoDLQMXVWLoDHGHVTXDOLÀFDomRFRPTXHRVQH-
gros, os povos indígenas e também as classes populares às quais os
negros, no geral, pertencem, são comumente tratados;
• à desconstrução, por meio de questionamentos e análises críticas, ob-
jetivando eliminar conceitos, idéias, comportamentos veiculados pela
ideologia do branqueamento, pelo mito da democracia racial, que tanto
mal fazem a negros e brancos;
• à busca, da parte de pessoas, em particular de professores não familia-
rizados com a análise das relações étnico-raciais e sociais com o estudo
de história e cultura afro-brasileira e africana, de informações e subsí-
dios que lhes permitam formular concepções não baseadas em precon-
ceitos e construir ações respeitosas;
• ao diálogo, via fundamental para entendimento entre diferentes, com a
ÀQDOLGDGHGHQHJRFLDo}HVWHQGRHPYLVWDREMHWLYRVFRPXQVYLVDQGRD
uma sociedade justa.

Fortalecimento de Identidades e de Direitos

O princípio deve orientar para:


• RGHVHQFDGHDPHQWRGHSURFHVVRGHDÀUPDomRGHLGHQWLGDGHVGHKLVWRULFL-
dade negada ou distorcida;
• o rompimento com imagens negativas forjadas por diferentes meios de
comunicação, contra os negros e os povos indígenas;
• o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana
universal;
• o combate à privação e violação de direitos;

241
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• a ampliação do acesso a informações sobre a diversidade da nação brasileira


e sobre a recriação das identidades, provocada por relações étnico-raciais.
• as excelentes condições de formação e de instrução que precisam ser ofe-
recidas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, em todos os esta-
belecimentos, inclusive os localizados nas chamadas periferias urbanas e
nas zonas rurais.

Ações Educativas de Combate ao Racismo e a Discriminações

O princípio encaminha para:


• a conexão dos objetivos, estratégias de ensino e atividades com a ex-
periência de vida dos alunos e professores, valorizando aprendizagens
vinculadas às suas relações com pessoas negras, brancas, mestiças, as-
sim como as vinculadas às relações entre negros, indígenas e brancos
no conjunto da sociedade;
• a crítica pelos coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais,
professores, das representações dos negros e de outras minorias nos
textos, materiais didáticos, bem como providências para corrigi-las;
• condições para professores, alunos pensarem, decidirem, agirem, assu-
mindo responsabilidade por relações étnico-raciais positivas, enfren-
WDQGRHVXSHUDQGRGLVFRUGkQFLDVFRQÁLWRVFRQWHVWDo}HVYDORUL]DQGR
os contrastes das diferenças;
• valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo a dan-
ça, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura;
• educação patrimonial, aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-
brasileiro, visando preservá-lo e a difundi-lo;
• o cuidado para que se dê um sentido construtivo à participação dos di-
ferentes grupos sociais, étnico-raciais na construção da nação brasilei-
ra, aos elos culturais e históricos entre diferentes grupos étnico-raciais,
às alianças sociais;
• participação de grupos do Movimento Negro e de grupos culturais
negros, bem como da comunidade em que se insere a escola, sob a
coordenação dos professores, na elaboração de projetos político-peda-
gógicos que contemplem a diversidade étnico-racial.
Estes princípios e seus desdobramentos mostram exigências de mudança
de mentalidade, de maneiras de pensar e agir dos indivíduos em particular,

242
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

assim como das instituições e de suas tradições culturais. É neste sentido que
se fazem as seguintes determinações:
• O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, evitando-se dis-
torções, envolverá articulação entre passado, presente e futuro no âmbito
de experiências, construções e pensamentos produzidos em diferentes
circunstâncias e realidades do povo negro. É meio privilegiado para a edu-
cação das relações étnico-raciais e tem por objetivos o reconhecimento e
valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, garantia
de seus direitos de cidadãos, reconhecimento e igual valorização das raízes
africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, européias, asiáticas.
• O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana se fará por di-
ferentes meios, em atividades curriculares ou não, em que: - se explicite,
busquem compreender e interpretar, na perspectiva de quem o formulem,
diferentes formas de expressão e de organização de raciocínios e pen-
samentos de raiz da cultura africana; - promovam-se oportunidades de
diálogo em que se conheçam, se ponham em comunicação diferentes sis-
temas simbólicos e estruturas conceituais, bem como se busquem formas
de convivência respeitosa, além da construção de projeto de sociedade
HPTXHWRGRVVHVLQWDPHQFRUDMDGRVDH[SRUGHIHQGHUVXDHVSHFLÀFLGDGH
étnico-racial e a buscar garantias para que todos o façam; - sejam incen-
tivadas atividades em que pessoas – estudantes, professores, servidores,
integrantes da comunidade externa aos estabelecimentos de ensino – de
diferentes culturas interatuem e se interpretem reciprocamente, respeitan-
do os valores, visões de mundo, raciocínios e pensamentos de cada um.
• O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educa-
ção das relações étnico-raciais, tal como explicita o presente parecer,
se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e mo-
dalidades de ensino, como conteúdo de disciplinas4 particularmente
Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem prejuízo das
demais5, em atividades curriculares ou não, trabalhos em salas de aula,
4
§ 2°, Art. 26A, Lei 9.394/1996: Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras.
5
Neste sentido, ver obra que pode ser solicitada ao MEC: MUNANGA, Kabengele, org. Superando
o Racismo na Escola. Brasília, Ministério da Educação, 2001.
Aracajú – Lei Municipal nº. 2.251, de 30 de novembro de 1994, que “Dispõe sobre a inclusão, no
currículo escolar da rede municipal de ensino de 1º e 2º graus, conteúdos programáticos relativos ao
estudo da Raça Negra na formação sócio-cultural brasileira, e dá outras providências
São Paulo – Lei Municipal nº. 11.973, de 4 de janeiro de 1996, que “Dispõe sobre a introdução nos
currículos das escolas municipais de 1º e 2º graus de estudos contra a discriminação”.

243
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala de


leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de espor-
tes e outros ambientes escolares.
• O ensino de História Afro-Brasileira abrangerá, entre outros conteú-
dos, iniciativas e organizações negras, incluindo a história de quilom-
bos, a começar pelo de Palmares, e de remanescentes de quilombos,
que têm contribuído para o desenvolvimento de comunidades, bairros,
localidades, municípios, regiões (exemplos: associações negras recrea-
tivas, culturais, educativas, artísticas, de assistência, de pesquisa, irman-
dades religiosas, grupos do Movimento Negro). Será dado destaque a
acontecimentos, realizações próprios de cada região, localidade.
• 'DWDV VLJQLÀFDWLYDV SDUD FDGD UHJLmR H ORFDOLGDGH VHUmR GHYLGDPHQWH
assinaladas. O 13 de maio, Dia Nacional de Luta contra o Racismo,
será tratado como o dia de denúncia das repercussões das políticas
de eliminação física e simbólica da população afro-brasileira no pós-
DEROLomRHGHGLYXOJDomRGRVVLJQLÀFDGRVGD/HLÉXUHDSDUDRVQHJURV
No 20 de novembro será celebrado o Dia Nacional da Consciência
Negra, entendendo-se consciência negra nos termos explicitados ante-
ULRUPHQWHQHVWHSDUHFHU(QWUHRXWUDVGDWDVGHVLJQLÀFDGRKLVWyULFRH
político deverá ser assinalado o 21 de março, Dia Internacional de Luta
pela Eliminação da Discriminação Racial.
• Em História da África, tratada em perspectiva positiva, não só de de-
núncia da miséria e discriminações que atingem o continente, nos tó-
picos pertinentes se fará articuladamente com a história dos afrodes-
cendentes no Brasil e serão abordados temas relativos: - ao papel dos
anciãos e dos griots como guardiões da memória histórica; - à história
da ancestralidade e religiosidade africanas; - aos núbios e aos egípcios,
como civilizações que contribuíram decisivamente para o desenvolvi-
mento da humanidade; - às civilizações e organizações políticas pré-
coloniais, como os reinos do Mali, do Congo e do Zimbabwe; - ao
WUiÀFRHjHVFUDYLGmRGRSRQWRGHYLVWDGRVHVFUDYL]DGRVDRSDSHOGRV
HXURSHXVGRVDVLiWLFRVHWDPEpPGHDIULFDQRVQRWUiÀFRjRFXSD-
ção colonial na perspectiva dos africanos; - às lutas pela independência
política dos países africanos; - às ações em prol da união africana em
nossos dias, bem como o papel da União Africana, para tanto; - às rela-
ções entre as culturas e as histórias dos povos do continente africano e
os da diáspora; - à formação compulsória da diáspora, vida e existência
cultural e histórica dos africanos e seus descendentes fora da África; - à

244
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

diversidade da diáspora, hoje, nas Américas, Caribe, Europa, Ásia; - aos


acordos políticos, econômicos, educacionais e culturais entre África,
Brasil e outros países da diáspora.
• O ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito próprio de ser,
viver e pensar manifestado tanto no dia-a-dia, quanto em celebrações
como congadas, moçambiques, ensaios, maracatus, rodas de samba, en-
tre outras.
• O ensino de Cultura Africana abrangerá: - as contribuições do Egito
SDUDDFLrQFLDHÀORVRÀDRFLGHQWDLVDVXQLYHUVLGDGHVDIULFDQDV7DP-
ENRWX*DR'MHQHTXHÁRUHVFLDPQRVpFXOR;9,DVWHFQRORJLDVGH
DJULFXOWXUD GH EHQHÀFLDPHQWR GH FXOWLYRV GH PLQHUDomR H GH HGLÀ-
FDo}HV WUD]LGDV SHORV HVFUDYL]DGRV EHP FRPR D SURGXomR FLHQWtÀFD
artística (artes plásticas, literatura, música, dança, teatro) política, na
atualidade .
• O ensino de História e de Cultura Afro-Brasileira far-se-á por diferen-
tes meios, inclusive a realização de projetos de diferente natureza, no
decorrer do ano letivo, com vistas à divulgação e estudo da participação
dos africanos e de seus descendentes em episódios da história do Bra-
sil, na construção econômica, social e cultural da nação, destacando-se
a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação
SURÀVVLRQDOGHFULDomRWHFQROyJLFDHDUWtVWLFDGHOXWDVRFLDO WDLVFRPR
Zumbi, Luiza Mahim, Aleijadinho, Padre Maurício, Luiz Gama, Cruz e
Souza, João Cândido, André Rebouças, Teodoro Sampaio, José Correia
Leite, Solano Trindade, Antonieta de Barros, Edison Carneiro, Lélia
Gonzáles, Beatriz Nascimento, Milton Santos, Guerreiro Ramos, Cló-
vis Moura, Abdias do Nascimento, Henrique Antunes Cunha, Tere-
]D6DQWRV(PPDQXHO$UD~MR&XWL$O]LUD5XÀQR,QDLF\UD)DOFmRGRV
Santos, entre outros).
• O ensino de História e Cultura Africana se fará por diferentes meios,
inclusive a realização de projetos de diferente natureza, no decorrer
do ano letivo, com vistas à divulgação e estudo da participação dos
africanos e de seus descendentes na diáspora, em episódios da his-
tória mundial, na construção econômica, social e cultural das nações
do continente africano e da diáspora, destacando-se a atuação de ne-
JURV HP GLIHUHQWHV iUHDV GR FRQKHFLPHQWR GH DWXDomR SURÀVVLRQDO
de criação tecnológica e artística, de luta social (entre outros: rainha
Nzinga, Toussaint-Louverture, Martin Luther King, Malcom X, Mar-
cus Garvey, Aimée Cesaire, Léopold Senghor, Mariama Bâ, Amílcar

245
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Cabral, Cheik Anta Diop, Steve Biko, Nelson Mandela, Aminata Tra-
oré, Christiane Taubira).
Para tanto, os sistemas de ensino e os estabelecimentos de Educação Bási-
ca, nos níveis de Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação Média,
Educação de Jovens e Adultos, Educação Superior, precisarão providenciar:
• Registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como em
remanescentes de quilombos, comunidades e territórios negros urba-
nos e rurais.
• Apoio sistemático aos professores, para elaboração de planos, proje-
tos, seleção de conteúdos e métodos de ensino, cujo foco seja His-
tória e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a Educação das Relações
Étnico-Raciais.
• Mapeamento e divulgação de experiências pedagógicas de escolas, esta-
belecimentos de ensino superior, secretarias de educação, assim como
OHYDQWDPHQWRGDVSULQFLSDLVG~YLGDVHGLÀFXOGDGHVGRVSURIHVVRUHVHP
relação ao trabalho com a questão racial na escola, e encaminhamento
de medidas para resolvê-las, feitos pela administração dos sistemas de
ensino e por núcleos de estudos afro-brasileiros.
• Articulação entre os sistemas de ensino, estabelecimentos de ensino su-
perior, centros de pesquisa, núcleos de estudos afro-brasileiros, escolas,
comunidade e movimentos sociais, visando à formação de professores
para a diversidade étnico/racial.
• Instalação, nos diferentes sistemas de ensino, de grupo de trabalho para
discutir e coordenar planejamento e execução da formação de profes-
sores para atender ao disposto neste parecer quanto à Educação das
Relações Étnico-Raciais e ao determinado nos Art. 26 e 26A da Lei
9394/1996, com o apoio do Sistema Nacional de Formação Continua-
GDH&HUWLÀFDomRGH3URIHVVRUHVGR0(&
• ,QWURGXomRQRVFXUVRVGHIRUPDomRGHSURIHVVRUHVHGHRXWURVSURÀV-
sionais da educação, de análises das relações sociais e raciais, no Brasil;
de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racismo, discrimina-
ções, intolerância, preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe
social, diversidade, diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógi-
cas, de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das
relações étnico-raciais e do ensino e aprendizagem da História e cultura
dos Afro-Brasileiros e dos Africanos.

246
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• Inclusão de discussão da questão racial como parte integrante da ma-


triz curricular, tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil,
RVDQRVLQLFLDLVHÀQDLVGR(GXFDomR)XQGDPHQWDO(GXFDomR0pGLD
Educação de Jovens e Adultos, como de processos de formação conti-
nuada de professores, inclusive de docentes no ensino superior.
• Inclusão, respeitada a autonomia dos estabelecimentos do Ensino Su-
perior, nos conteúdos de disciplinas e em atividades curriculares dos
cursos que ministra, de Educação das Relações Étnico-Raciais, de co-
nhecimentos de matriz africana e/ou que dizem respeito à população
negra. Por exemplo: - em Medicina , entre outras questões estudo da
anemia falciforme, da problemática da pressão alta; - em Matemática,
FRQWULEXLo}HVGHUDL]DIULFDQDLGHQWLÀFDGDVHGHVFULWDVSHOD(WQRPDWH-
PiWLFDHP)LORVRÀDHVWXGRGDÀORVRÀDWUDGLFLRQDODIULFDQDHGHFRQWUL-
EXLo}HVGHÀOyVRIRVDIULFDQRVHDIURGHVFHQGHQWHVGDDWXDOLGDGH
• ,QFOXVmR GH ELEOLRJUDÀD UHODWLYD j KLVWyULD H FXOWXUD DIUREUDVLOHLUD H
africana às relações étnico-raciais, aos problemas desencadeados pelo
racismo e por outras discriminações, à pedagogia anti-racista nos pro-
gramas de concursos públicos para admissão de professores.
• Inclusão, em documentos normativos e de planejamento dos estabele-
cimentos de ensino de todos os níveis - estatutos, regimentos, planos
pedagógicos, planos de ensino - de objetivos explícitos, assim como de
procedimentos para sua consecução, visando ao combate ao racismo, a
discriminações, ao reconhecimento, valorização e respeito das histórias
e culturas afro-brasileira e africana.
• 3UHYLVmRQRVÀQVUHVSRQVDELOLGDGHVHWDUHIDVGRVFRQVHOKRVHVFRODUHV
e de outros órgão colegiados, do exame e encaminhamento de solu-
ção para situações de racismo e de discriminações, buscando-se criar
situações educativas em que as vítimas recebam apoio requerido para
superar o sofrimento, os agressores, orientação para que compreendam
a dimensão do que praticaram e ambos, educação para o reconheci-
mento, valorização e respeito mútuos.
• Inclusão de personagens negros, assim como de outros grupos étnico-
raciais, em cartazes e outras ilustrações sobre qualquer tema abordado
na escola, a não ser quando se tratar de manifestações culturais pró-
prias de determinado grupo étnico-racial.
• Organização de centros de documentação, bibliotecas, midiotecas, mu-
seus, exposições em que se divulguem valores, pensamentos, jeitos de

247
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

ser e viver dos diferentes grupos étnico-raciais brasileiros, particular-


mente dos afrodescendentes.
• ,GHQWLÀFDomRFRPRDSRLRGRV1~FOHRVGH(VWXGRV$IUR%UDVLOHLURV
GHIRQWHVGHFRQKHFLPHQWRVGHRULJHPDIULFDQDDÀPGHVHOHFLRQDUHP
se conteúdos e procedimentos de ensino e de aprendizagens.
• Incentivo, pelos sistemas de ensino, a pesquisas sobre processos edu-
cativos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-
brasileiros e indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento
de bases teóricas para a educação brasileira.
• ,GHQWLÀFDomR FROHWD FRPSLODomR GH LQIRUPDo}HV VREUH D SRSXODomR
negra, com vistas à formulação de políticas públicas de Estado, comu-
nitárias e institucionais.
• Edição de livros e de materiais didáticos, para diferentes níveis e moda-
lidades de ensino, que atendam ao disposto neste parecer, em cumpri-
mento ao disposto no Art. 26A da LDB, e para tanto abordem a plura-
lidade cultural e a diversidade étnico-racial da nação brasileira, corrijam
distorções e equívocos em obras já publicadas sobre a história, a cultura,
a identidade dos afrodescendentes, sob o incentivo e supervisão dos
programas de difusão de livros educacionais do MEC - Programa Na-
cional do Livro Didático e Programa Nacional de Bibliotecas Escolares
( PNBE).
• Divulgação, pelos sistemas de ensino e mantenedoras, com o apoio dos
1~FOHRVGH(VWXGRV$IUR%UDVLOHLURVGHXPDELEOLRJUDÀDDIUREUDVLOHL-
ra e de outros materiais, como mapas da diáspora, de África, de qui-
ORPERVEUDVLOHLURVIRWRJUDÀDVGHWHUULWyULRVQHJURVXUEDQRVHUXUDLV
reprodução de obras de arte afro-brasileira e africana a serem distribu-
ídos nas escolas de sua rede, com vistas à formação de professores e
alunos para o combate à discriminação e ao racismo.
• Oferta de Educação Fundamental em áreas de remanescentes de qui-
lombos, contando as escolas com professores e pessoal administrativo
que se disponham a conhecer física e culturalmente a comunidade e a
IRUPDUVHSDUDWUDEDOKDUFRPVXDVHVSHFLÀFLGDGHV
• Garantia, pelos sistemas de ensino e entidades mantenedoras, de condi-
o}HVKXPDQDVPDWHULDLVHÀQDQFHLUDVSDUDH[HFXomRGHSURMHWRVFRPR
objetivo de Educação das Relações Étnico-raciais e estudo de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana, assim como organização de ser-
viços e atividades que controlem, avaliem e redimensionem sua conse-

248
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

FXomRTXHH[HUoDPÀVFDOL]DomRGDVSROtWLFDVDGRWDGDVHSURYLGHQFLHP
correção de distorções.
• Realização, pelos sistemas de ensino federal, estadual e municipal, de
atividades periódicas, com a participação das redes das escolas públicas
HSULYDGDVGHH[SRVLomRDYDOLDomRHGLYXOJDomRGRVr[LWRVHGLÀFXOGD-
des do ensino e aprendizagens de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana e da Educação das Relações Étnico-Raciais; assim como
comunicação detalhada dos resultados obtidos ao Ministério da Edu-
cação, à Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, ao Con-
selho Nacional de Educação, e aos respectivos conselhos Estaduais e
Municipais de Educação, para que encaminhem providências, quando
for o caso.
• Inclusão, nos instrumentos de avaliação das condições de funciona-
mento de estabelecimentos de ensino de todos os níveis, nos aspectos
relativos ao currículo, atendimento aos alunos, de quesitos que avaliem
a implantação e execução do estabelecido neste parecer.
• Disponibilização deste parecer na sua íntegra para os professores de
todos os níveis de ensino, responsáveis pelo ensino de diferentes disci-
SOLQDVHDWLYLGDGHVHGXFDFLRQDLVDVVLPFRPRSDUDRXWURVSURÀVVLRQDLV
LQWHUHVVDGRVDÀPGHTXHSRVVDPHVWXGDULQWHUSUHWDUDVRULHQWDo}HV
enriquecer, executar as determinações aqui feitas e avaliar seu próprio
trabalho e resultados obtidos por seus alunos, considerando princípios
e critérios apontados.

Obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras,


Educação das Relações Étnico-Raciais e os Conselhos de Educação

Diretrizes são dimensões normativas, reguladoras de caminhos, embora


não fechadas a que historicamente possam, a partir das determinações ini-
ciais, tomar novos rumos. Diretrizes não visam a desencadear ações unifor-
mes; todavia, objetivam oferecer referências e critérios para que se implantem
ações, as avaliem e reformulem no que e quando necessário.
Estas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Ét-
nico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
à medida que procedem de ditames constitucionais e de marcos legais nacio-
nais, a medida que se referem ao resgate de uma comunidade que povoou
e construiu a nação brasileira, atingem o âmago do pacto federativo. Nesse

249
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

sentido, cabe aos conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e


dos Municípios aclimatar tais diretrizes, dentro do regime de colaboração e
da autonomia de entes federativos, a seus respectivos sistemas, dando ênfase
à importância de os planejamentos valorizarem, sem omitir outras regiões, a
participação dos afrodescendentes, do período escravista a nossos dias, na
VRFLHGDGH HFRQRPLD SROtWLFD FXOWXUD GD UHJLmR H GD ORFDOLGDGH GHÀQLQGR
medidas urgentes para formação de professores; incentivando o desenvolvi-
mento de pesquisas bem como envolvimento comunitário.
A esses órgãos normativos cabe, pois, a tarefa de adequar o proposto
neste parecer à realidade de cada sistema de ensino. E, a partir daí, deverá ser
competência dos órgãos executores - administrações de cada sistema de ensi-
QRGDVHVFRODVGHÀQLUHVWUDWpJLDVTXHTXDQGRSRVWDVHPDomRYLDELOL]DUmRR
cumprimento efetivo da Lei de Diretrizes e Bases, que estabelece a formação
básica comum, o respeito aos valores culturais, como princípios constitucio-
nais da educação tanto quanto da dignidade da pessoa humana (inciso III do
art. 1), garantindo-se a promoção do bem de todos, sem preconceitos (inciso
IV do Art. 3) a prevalência dos direitos humanos (inciso II do Art. 4) e repú-
dio ao racismo (inciso VIII do Art. 4).
Cumprir a lei é, pois, responsabilidade de todos e não apenas do professor
em sala de aula. Exige-se, assim, um comprometimento solidário dos vários
elos do sistema de ensino brasileiro, tendo-se como ponto de partida o pre-
sente parecer que, junto com outras diretrizes e pareceres e resoluções, têm o
papel articulador e coordenador da organização da educação nacional.

II – Voto da Relatora
Em face do exposto e diante de direitos desrespeitados, tais como:
• o de não sofrer discriminações por ser descendente de africanos;
• o de ter reconhecida a decisiva participação de seus antepassados e da
sua própria na construção da nação brasileira;
• o de ter reconhecida sua cultura nas diferentes matrizes de raiz
africana;
• diante da exclusão secular da população negra dos bancos escolares,
notadamente em nossos dias, no ensino superior;
• diante da necessidade de crianças, jovens e adultos estudantes senti-
rem-se contemplados e respeitados em suas peculiaridades, inclusive as
étnico-raciais, nos programas e projetos educacionais;

250
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• diante da importância de reeducação das relações étnico/raciais no


Brasil;
• diante da ignorância que diferentes grupos étnico-raciais têm uns dos
outros, bem como da necessidade de superar esta ignorância para que
se construa uma sociedade democrática;
• diante, também, da violência explícita ou simbólica, gerada por toda
sorte de racismos e discriminações que sofrem os negros descendentes
de africanos;
• diante de humilhações e ultrajes sofridos por estudantes negros, em
todos os níveis de ensino, em conseqüência de posturas, atitudes, textos
e materiais de ensino com conteúdos racistas;
• diante de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em con-
venções, entre outros os da Convenção da Unesco, de 1960, relativo ao
combate ao racismo em todas as formas de ensino, bem como os da
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Discriminações Correlatas, 2001;
• diante da Constituição Federal de 1988, em seu Art. 3º, inciso IV, que
garante a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; do
inciso 42 do Artigo 5º que trata da prática do racismo como crime ina-
ÀDQoiYHOHLPSUHVFULWtYHOGR†žGR$UWTXHWUDWDGDSURWHomRGDV
manifestações culturais;
• diante do Decreto 1.904/1996, relativo ao Programa Nacional de Di-
reitos Humanas, que assegura a presença histórica das lutas dos negros
na constituição do país;
• diante do Decreto 4.228, de 13 de maio de 2002, que institui, no âm-
bito da administração pública federal, o Programa Nacional de Ações
$ÀUPDWLYDV
• diante das Leis 7.716/1999, 8.081/1990 e 9.459/1997, que regulam os
crimes resultantes de preconceito de raça e de cor e estabelecem as
penas aplicáveis aos atos discriminatórios e preconceituosos, entre ou-
tros, de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional;
• diante do inciso I da Lei 9.394/1996, relativo ao respeito à igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola; diante dos Arts. 26,
26A e 79B da Lei 9.394/1996, estes últimos introduzidos por força da
Lei 10.639/2003, Proponho, ao Conselho Pleno:

251
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

• a) instituir as Diretrizes explicitadas neste parecer e no projeto de Re-


solução em anexo, para serem executadas pelos estabelecimentos de
ensino de diferentes níveis e modalidades, cabendo aos sistemas de
ensino no âmbito de sua jurisdição orientá-los, promover a formação
dos professores para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, e para Educação das Relações Ético-Raciais, assim como su-
pervisionar o cumprimento das diretrizes;
E UHFRPHQGDUTXHHVWH3DUHFHUVHMDDPSODPHQWHGLYXOJDGRÀFDQGRGLV-
ponível no site do Conselho Nacional de Educação, para consulta dos pro-
fessores e de outros interessados.

Brasília-DF, 10 de março de 2004.


Conselheira Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – Relatora

III – Decisão do Conselho Pleno

O Conselho Pleno aprova por unanimidade o voto do Relator


Sala das Sessões, 10 em março de 2003.
Conselheiro José Carlos Almeida da Silva – Presidente

Fome de tudo (Oxossi)


Coleção Particular - Maria Lúcia da Silva

252
Afro 2
Coleção Particular - Renato Vasconcelos

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO/ CONSELHO PLENO/DF


RESOLUÇÃO Nº1, de 17 de junho 2004*
Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana.
O Presidente do Conselho Nacional de Educação, tendo em vista o dis-
posto no Art. 9º, do § 2º, alínea “C”, da Lei nº. 9.131, de 25 de novembro de
1995, e com fundamento no Parecer CNE/CP 003/2004, de 10 de março de
2004, homologado pelo Ministro da Educação em 19 de maio de 2004, e que
a este se integra, resolve:
Art. 1° - A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas instituições
de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da educação brasileira e em
especial por instituições que desenvolvem programas de formação inicial e
continuada de professores.
§ 1° As instituições de ensino superior incluirão nos conteúdos de disci-
plinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das
Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas
que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Pa-
recer CNE/CP 3/2004.
§ 2° O cumprimento das referidas Diretrizes Curriculares, por parte das
instituições de ensino, será considerado na avaliação das condições de fun-
cionamento do estabelecimento.
*
CNE/CP Resolução 1/2004. 'LiULR2ÀFLDOGD8QLmR, Brasília, 22 de junho de 2004, Seção 1,p.11.
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Art. 2° As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-


ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africanas constituem-se de orientações, princípios e fundamentos para o
planejamento, execução e avaliação da Educação, e têm por meta promover a
educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultu-
ral e pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas, rumo à
construção de nação democrática.
§ 1° A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação
e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que
eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes
de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito
aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da
democracia brasileira.

§ 2º O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por ob-


jetivo o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos
afro-brasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e igualdade de va-
lorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, euro-
péias, asiáticas.

§ 3º Caberá aos conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e


dos Municípios desenvolver as Diretrizes Curriculares Nacionais instituídas
por esta Resolução, dentro do regime de colaboração e da autonomia de entes
federativos e seus respectivos sistemas.
Art. 3° A Educação das Relações Étnico-Raciais e o estudo de História e
Cultura Afro-Brasileira, e História e Cultura Africana será desenvolvida por
meio de conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem estabelecidos
pelas instituições de ensino e seus professores, com o apoio e supervisão
dos sistemas de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas,
atendidas as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer
CNE/CP 3/2004.
§ 1° Os sistemas de ensino e as entidades mantenedoras incentivarão e criarão
FRQGLo}HVPDWHULDLVHÀQDQFHLUDVDVVLPFRPRSURYHUmRDVHVFRODVSURIHVVR-
UHVHDOXQRVGHPDWHULDOELEOLRJUiÀFRHGHRXWURVPDWHULDLVGLGiWLFRVQHFHVVi-
rios para a educação tratada no caput deste artigo.

§ 2° As coordenações pedagógicas promoverão o aprofundamento de estu-


dos, para que os professores concebam e desenvolvam unidades de estudos,
projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes curriculares.

254
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

§ 3° O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana


na Educação Básica, nos termos da Lei 10639/2003, refere-se, em especial,
aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do
Brasil.
§ 4° Os sistemas de ensino incentivarão pesquisas sobre processos educati-
vos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasilei-
ros, ao lado de pesquisas de mesma natureza junto aos povos indígenas, com
o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação
brasileira.
Art. 4° Os sistemas e os estabelecimentos de ensino poderão estabelecer
canais de comunicação com grupos do Movimento Negro, grupos culturais
negros, instituições formadoras de professores, núcleos de estudos e pesqui-
VDVFRPRRV1~FOHRVGH(VWXGRV$IUR%UDVLOHLURVFRPDÀQDOLGDGHGHEXVFDU
subsídios e trocar experiências para planos institucionais, planos pedagógicos
e projetos de ensino.
Art. 5º Os sistemas de ensino tomarão providências no sentido de garan-
tir o direito de alunos afrodescendentes de freqüentarem estabelecimentos
de ensino de qualidade, que contenham instalações e equipamentos sólidos e
atualizados, em cursos ministrados por professores competentes no domínio
de conteúdos de ensino e comprometidos com a educação de negros e não
negros, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes, palavras que impliquem
desrespeito e discriminação.
Art. 6° Os órgãos colegiados dos estabelecimentos de ensino, em suas
ÀQDOLGDGHV UHVSRQVDELOLGDGHV H WDUHIDV LQFOXLUmR R SUHYLVWR R H[DPH H HQ-
caminhamento de solução para situações de discriminação, buscando-se
criar situações educativas para o reconhecimento, valorização e respeito da
diversidade.
§ Único: Os casos que caracterizem racismo serão tratados como crimes
LPSUHVFULWtYHLVHLQDÀDQoiYHLVFRQIRUPHSUHYrR$UWž;/,,GD&RQVWL-
tuição Federal de 1988.
Art. 7º Os sistemas de ensino orientarão e supervisionarão a elaboração e
edição de livros e outros materiais didáticos, em atendimento ao disposto no
Parecer CNE/CP 3/2004.
Art. 8º Os sistemas de ensino promoverão ampla divulgação do Parecer
CNE/CP 3/2004 e desta Resolução, em atividades periódicas, com a partici-
pação das redes das escolas públicas e privadas, de exposição, avaliação e divul-
JDomRGRVr[LWRVHGLÀFXOGDGHVGRHQVLQRHDSUHQGL]DJHQVGH+LVWyULDH&XO-
tura Afro-Brasileira e Africana e da Educação das Relações Étnico-Raciais.

255
ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

§ 1° Os resultados obtidos com as atividades mencionadas no caput deste


artigo serão comunicados de forma detalhada ao Ministério da Educação, à
Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, ao Conselho Nacional
de Educação e aos respectivos Conselhos Estaduais e Municipais de Educa-
ção, para que encaminhem providências que forem requeridas.
Art. 9º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revoga-
das as disposições em contrário.

Roberto Cláudio Frota Bezerra


Presidente do Conselho Nacional de Educação

256
Pente que nos penteia
Coleção particular - Jurema Innocencio

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
Lei Nº. 10.639, de 09 de janeiro de 2003
Mensagem de veto
Altera a Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
HGXFDomRQDFLRQDOSDUDLQFOXLUQRFXUUtFXORRÀFLDOGD5HGHGH(QVLQRDREULJDWRULHGDGHGD
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e
eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1° A Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguin-
tes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
´$UW$1RVHVWDEHOHFLPHQWRVGH(QVLQR)XQGDPHQWDOH0pGLRRÀFLDLVHSDUWLFXOD-
res, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1° O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e
o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2° Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura
e História Brasileiras.
§ 3° (VETADO)”
“Art. 79-A. (VETADO)”
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’.”
Art. 2° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182° da Independência


e 115° da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Akua’ba
Coleção Particular - Jurema Innocencio
SECRETÁRIO DE EDUCACAO CONTINUADA, ALFABETIZACAO E DIVERSIDADE
Ricardo Henrique
Eduardo Oliveira - Ensino Médio
Rachel de Oliveira – Quilombolas
Vanda Machado – Ensino Fundamental II

DIRETOR DE EDUCAÇÃO PARA DIVERSIDADE E CIDADANIA


Armênio Bello Schmidt

COORDENADORA-GERAL DE DIVERSIDADE E INCLUSÃO EDUCACIONAL


Eliane Cavalleiro

COORDENADORAS-GERAIS DO GRUPO DE TRABALHO PARA A INSERÇÃO DAS DIRETRIZES


CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE
HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA
Denise Botelho
Maria Lucia de Santana Braga

Coordenadoras dos Grupos de Trabalho por Níveis e Modalidade de Ensino


Patrícia Santana - Coordenadora do GT Educação Infantil
Rosa Margarida de Carvalho Rocha - Coordenadora do GT Ensino Fundamental I
Azoilda Loretto da Trindade - Coordenadora do GT Ensino Fundamental II
Ana Lucia Silva Souza - Coordenadora do GT Ensino Médio
Rosane Pires de Almeida - Coordenadora do GT Educação de Jovens e Adultos
Rosana Batista Monteiro - Coordenadora do GT Licenciaturas
Georgina Helena Lima Nunes - Coordenadora do GT Quilombolas

Participantes dos Grupos de Trabalho


Adiles Lima, Adriana Farias Perdomo, Alecsandro JP Ratts, Ana Flávia Magalhães
Pinto, Ana José Marques, Ana Lucia da Rocha Conceição, Ana Maria da Rosa Pra-
tes, Anália José Lima de Oliveira, Ângela Martins, Ariane Celestino Meireles, Azoil-
da Loretto da Trindade, Cândida Soares da Costa, Catarina de Grava Kempinas
Romão, Claudia Franco, Cristina dos Santos Ferreira, Denise Antonia de Paulo
Pacheco, Denise Botelho, Denise Conceição das Graças Zivianni, Denise Guerra,
Dircenara dos Santos Sanger, Éder Coutinho, Edileuza Penha de Souza, Edleuza
Ferreira da Silva, Eduardo Davi de Oliveira, Elenita Torres, Elenita Torresto, Elia-
ne Cavalleiro, Erisvaldo P. dos Santos, Erisvaldo Pereira dos Santos, Eurico José
Ngunga, Fabio Alexandre Belloli Zampoli, Francisca Rosineide Furtado do Monte,
Georgina Helena Lima Nunes, Gisele F. Baiense, Grace das Graças Freitas Camie-
lo, Gustavo Henrique Araújo Forde, Heloisa Pires Lima, Hungria Mora dos Reis
Pinto, Íris Maria da Costa Amâncio, Ivete Maria Barbosa Madeira Campos, Jacira
Reis da Silva, Janete Santos Ribeiro, Jeruse Romão, José Antonio dos Santos, José
Nilton de Almeida, Josenira Oliveira da Silva Ferreira, Luci Fátima Pereira Lobato
da Silva, Lúcia Regina Brito Pereira, Luciano José Santana, Lucimar Rosa Dias, Lu-
cinéia Aparecida Moraes de Souza, Luis Roberto Costa, Lusinete Barbosa dos San-
tos, Márcia Regina da Silva, Maria Alice Rezende, Maria Claudia Cardoso Ferreira,
Maria Cristina Rodrigues Gomes, Maria Edite Martins Rodrigues, Maria Lucia da
Silva, Maria Lucia de Santana Braga, Maria Madalena Torres, Maria Nilza da Silva,
Marineide de Oliveira Gomes, Marinez Cunha Botelho, Marly Braga de Oliveira,
Martha Rosa Queiroz, Mathias González Souza, Mayrce Terezinha da Silva Freitas,
Neli Góes Ribeiro, Nelma Gomes Monteiro, Olga Celestina da Silva, Patrícia San-
tana, Paulino de Jesus Cardoso, Pedro Paulo Bernaldo, Pedro Tomaz de Oliveira,
Rachel de Oliveira, Raquel de Souza, Regina Marques Parente, Rosa Margarida de
C. Rocha, Rosana Batista Monteiro, Rosane Pires de Almeida, Sandra Mara de Oli-
veira, Tânia Elizabete da Silva, Valdenir Andrelino, Vanda Machado, Vanda Pinedo,
Vânia Barbosa, Vânia Beatriz Monteiro da Silva, Vera Lúcia Domingos dos Santos,
Vera Lucia Valmerate, Vera Neusa Lopes, Vera Regina Rodrigues da Silva e Wilma
de Nazaré Baia Coelho.
PARECERISTAS:
Alexandre Fernandez Vaz, Anete Abramowicz, Elba Siqueira de Sá Baretto, Elcio
Antônio Portes, Elisete M. Tomazetti, Fabiana de Oliveira Reis, Filomena Maria de
Arruda Monteiro, Jane Paiva, Jorcelina Elisabeth Fernandes, Regina Pahim, Marcia
Maria Clara Di Pierro, Secchin MalacarneMônica Ribeiro da Silva; Muleka Mwewa,
Rafael dos Santos e Antonio Liberac C. Simões Filho.
COLABORADORES(AS):
Ariane Celestino Meireles, Augusta Maria Rodrigues Thompsom, Daniel Augusto
Pinto Duarte, Iracema da Silva Araújo, Katiuscia Soares Viana, Luzia Maria Bada,
Marcelo Lima, Marcia Secchin Malacarne, Maria Angélica Ferreira Alomba Pinto,
Maria Auxiliadora Lopes, Maria Carolina da Costa Braga, Maria Margarida Macha-
do, Neuza Soares Carneiro, Penha Mara Fernandes Nader, Rosângela da Conceição
Loyola, Viviane Souza da Hora e Yasmim Poltronieri Neves.
Coordenadores de dezembro de 2004 a março de 2005
Eduardo Oliveira - Ensino Médio
Rachel de Oliveira – Quilombolas
Vanda Machado – Ensino Fundamental II
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS
(História)
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como objeti-
1. BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO vos do ensino fundamental que os alunos sejam capazes de:
FUNDAMENTAL. PARÂMETROS CURRICU-
LARES NACIONAIS: HISTÓRIA. BRASÍLIA: - Compreender a cidadania como participação social e polí-
MEC/SEF, 1998. tica, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e
sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, coopera-
ção e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si
o mesmo respeito;
AO PROFESSOR - Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva
nasdiferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma
O papel fundamental da educação no desenvolvimento das de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas;
pessoas e das sociedades amplia-se ainda mais no despertar do - Conhecer características fundamentais do Brasil nas dimen-
novo milênio e aponta para a necessidade de se construir uma sões sociais, materiais e culturais como meio para construir pro-
escola voltada para a formação de cidadãos. Vivemos numa era gressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o senti-
marcada pela competição e pela excelência, onde progressos cien- mento de pertinência ao país;
tíficos e avanços tecnológicos definem exigências novas para os - Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocul-
jovens que ingressarão no mundo do trabalho. Tal demanda im- tural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos
põe uma revisão dos currículos, que orientam o trabalho cotidia- e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada
namente realizado pelos professores e especialistas em educação em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de
do nosso país. etnia ou outras características individuais e sociais;
Assim, é com imensa satisfação que entregamos aos professo- - Perceber-se integrante, dependente e agente transformador
res das séries finais doensino fundamental, os Parâmetros Curricu- do ambiente, identificando seus elementos e as interações entre
lares Nacionais, com a intenção de ampliar e aprofundar um debate eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio ambiente;
educacional que envolva escolas, pais, governos e sociedade e dê - Desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o senti-
origem a uma transformação positiva no sistema educativo brasi- mento de confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva,
leiro. ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social, para
Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram elaborados pro- agir com perseverança na busca de conhecimento e no exercício
curando, de um lado, respeitar diversidades regionais, culturais, da cidadania;
políticas existentes no país e, de outro, considerar a necessidade de - Conhecer o próprio corpo e dele cuidar, valorizando e ado-
construir referências nacionais comuns ao processo educativo em tando hábitos saudáveis como um dos aspectos básicos da qualida-
todas as regiões brasileiras. Com isso, pretende-se criar condições, de de vida e agindo com responsabilidade em relação à sua saúde
nas escolas, que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjun- e à saúde coletiva;
to de conhecimentos socialmente elaborados e reconhecidos como - Utilizar as diferentes linguagens verbal, musical, matemáti-
necessários ao exercício da cidadania. ca, gráfica, plástica e corporal como meio para produzir, expressar
Os documentos apresentados são o resultado de um longo tra- e comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das produções cul-
balho que contou com a participação de muitos educadores brasi- turais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes
leiros e têm a marca de suas experiências e de seus estudos, permi- intenções e situações de comunicação;
tindo assim que fossem produzidos no contexto das discussões pe- - Saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tec-
dagógicas atuais. Inicialmente foram elaborados documentos, em nológicos para adquirir e construir conhecimentos;
versões preliminares, para serem analisados e debatidos por pro- - Questionar a realidade formulando-se problemas e tratando
fessores que atuam em diferentes graus de ensino,por especialistas de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criati-
da educação e de outras áreas, além de instituições governamentais vidade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando
e não governamentais. As críticas e sugestões apresentadas contri- procedimentos e verificando sua adequação.
buíram para a elaboração da atual versão, que deverá ser revista
periodicamente, com base no acompanhamento e naavaliação de
sua implementação.
Esperamos que os Parâmetros sirvam de apoio às discussões e
ao desenvolvimento do projeto educativo de sua escola, à reflexão
sobre a prática pedagógica, ao planejamento de suas aulas, à análi-
se e seleção de materiais didáticos e de recursos tecnológicos e, em
especial, que possam contribuir para sua formação e atualização
profissional.

Paulo Renato Souza


Ministro da Educação e do Desporto

Objetivos do ensino fundamental

Didatismo e Conhecimento 1
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)

1ª Parte Ensino Fundamental ↑

2ª Especificação por ciclos ↓

Didatismo e Conhecimento 2
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
HISTÓRIA Na intenção de auxiliar o professor na reflexão sobre os pres-
supostos históricos e pedagógicos de concepções de ensino e sobre
APRESENTAÇÃO as abordagens e conteúdos selecionados para os estudos escola-
res, apresenta-se na seqüência um histórico da área no Brasil sem
A proposta de História para o ensino fundamental apresenta pretender esgotar o seu elenco de problemáticas. Esse histórico
reflexões amplas para estimular o debate da área. Objetiva levar os pretende contribuir para que o professor se posicione diante do
educadores a refletirem sobre a presença da História no currículo ensino de História, especialmente quanto às suas finalidades e pos-
e a debaterem a contribuição do estudo da História na formação sibilidades de transformações. De modo geral, o ensino de His-
dos estudantes. tória pode ser caracterizado a partir de dois grandes momentos.
Por ser um documento de âmbito nacional, esta proposta con- O primeiro teve início na primeira metade do século XIX, com
templa a pluralidade de posturas teórico-epistemológicas do cam- a introdução da área no currículo escolar. Após a Independência,
po do conhecimento histórico. Ao valorizar professor e aluno com com a preocupação de criar uma “genealogia da nação”, elaborou-
suas respectivas inserções históricas, como sujeitos críticos da re- -se uma “história nacional”, baseada em uma matriz européia e a
alidade social e como sujeitos ativos no processo de ensino e de partir de pressupostos eurocêntricos. O segundo momento ocorreu
aprendizagem, ela assume a objetividade metodológica de como a partir das décadas de 30 e 40 deste século, orientado por uma po-
ensinar História. lítica nacionalista e desenvolvimentista. O Estado também passou
Este documento está organizado em duas partes. Na primeira a realizar uma intervenção mais normativa na educação e foram
parte estão algumas das concepções curriculares elaboradas para criadas as faculdades de filosofia no Brasil, formando pesquisado-
o ensino de História no Brasil; características, importância, prin- res e professores, consolidando-se uma produção de conhecimento
cípios e conceitos pertinentes ao saber histórico escolar; objeti- científico e cultural mais autônoma no país.
vos gerais de História para o ensino fundamental; critérios para as A História como área escolar obrigatória surgiu com a criação
escolhas conceituais, métodos, conteúdos e articulações com os do Colégio Pedro II, em 1837, dentro de um programa inspirado
Temas Transversais. no modelo francês. Predominavam os estudos literários voltados
Na segunda parte são apresentadas propostas de ensino e para um ensino clássico e humanístico e destinados à formação de
aprendizagem para as últimas quatro séries do ensino fundamental, cidadãos proprietários e escravistas.
os objetivos para os ciclos, os conteúdos e os critérios de avalia- A História foi incluída no currículo ao lado das línguas mo-
ção. Traz também orientações didáticas nas quais se destacam al- dernas, das ciências naturais e físicas e das matemáticas, dividindo
guns pontos importantes da prática de ensino, sem esgotá-los. São espaço com a História Sagrada, a qual tinha o mesmo estatuto de
sugeridos métodos e recursos à reflexão de professores e alunos, historicidade da História Universal ou Civil, pois ambas estavam
sobre o conhecimento histórico e suas relações com a realidade voltadas para a formação moral do aluno. Esta dava exemplos dos
social. A bibliografia apenas referencia autores utilizados para a grandes homens da História, com prevalência para o estudo do es-
redação deste documento e que fundamentam os conceitos históri- paço do Oriente Médio, berço do monoteísmo, e da Antiguidade
cos e os procedimentos de ensino e de aprendizagem apresentados. clássica — grega e romana. Já aquela concebia os acontecimentos
Os Parâmetros Curriculares Nacionais reconhecem a realida- como providência divina e fornecia as bases de uma formação cris-
de brasileira como diversa, e as problemáticas educacionais das tã. Nas salas de aula, existiam porém divergências nas abordagens
escolas, das localidades e das regiões como múltiplas. e na importância atribuída à Igreja na História, dependendo da for-
É no dia-a-dia das escolas e das salas de aula, a partir das mação dos professores (laicos ou religiosos) e do fato de as escolas
condições, contradições e recursos inerentes à realidade local e serem públicas ou de ordens católicas.
educacional, que são construídos os currículos reais. A este programa acrescentou-se a História do Brasil seguindo
São grupos de professores e alunos, de pais e educadores, em o modelo da História
contextos sociais e educacionais concretos e peculiares, que for- Sagrada. As narrativas morais sobre a vida dos santos foram
mulam e colocam em prática as propostas de ensino. Estes parâ- substituídas por ações realizadas por heróis considerados constru-
metros oferecem mais um instrumento de trabalho para o cotidiano tores da nação, especialmente governantes e clérigos.
escolar. No quadro da época, cabia à História Universal dimensionar a
nação brasileira no mundo ocidental cristão.
Secretaria de Educação Fundamental Os objetivos da inserção da História do Brasil no currículo
estavam voltados para a constituição da ideia de Estado Nacional
1ª PARTE laicos, mas articulado à Igreja Católica. O Estado brasileiro orga-
nizava-se politicamente e necessitava de um passado que legiti-
CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE HISTÓRIA masse a sua constituição. Os acontecimentos históricos ensinados
A História no ensino fundamental iniciavam com a história portuguesa a sucessão de reis em Portu-
gal e seus respectivos governos — e, na sequência, introduzia-se a
Nem sempre está claro para os educadores por que a História história brasileira as capitanias hereditárias, os governos gerais, as
faz parte do currículo escolar e qual a importância da sua apren- invasões estrangeiras ameaçando a integridade nacional. Os con-
dizagem na formação do jovem. Mas essas questões são funda- teúdos culminavam com os “grandes eventos” da Independência e
mentais quando se pretende refletir, repensar ou posicionar-se em da Constituição do Estado Nacional, responsáveis pela condução
relação ao ensino de História praticado. do Brasil ao destino de ser uma “grande nação.

Didatismo e Conhecimento 3
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado A História Nacional identificava-se com a História Pátria, cuja
no mesmo ano do Colégio Pedro II, produziu uma série de traba- missão, juntamente com a História da Civilização, era integrar o
lhos que gerou conseqüências para o ensino da História nacional. povo brasileiro à moderna civilização ocidental, reforçando a visão
Seus membros lecionavam no colégio e foram responsáveis pela linear, determinista e eurocêntrica da História. Na sua especificida-
formulação dos programas, elaboração de manuais e orientação do de, a História Pátria era entendida como o alicerce da “pedagogia
conteúdo a ser ensinado nas escolas públicas. Nas escolas confes- do cidadão” e seus conteúdos deveriam enfatizar as tradições do
sionais, mantinha-se o ensino da História Universal e da História passado homogêneo de lutas pela defesa do território e da unidade
Sagrada. nacional e os feitos gloriosos de personagens identificados com
A primeira proposta de História do Brasil elaborada pelo Ins- ideais republicanos.
tituto e que repercutiu no ensino de História destacava a contribui- É no contexto do final do século XIX que são construídos
ção do branco, do negro e do índio na constituição da população alguns mitos da História brasileira, presentes até hoje no ensino
brasileira. Apesar de valorizar a idéia de miscigenação racial, ela (bandeirantes como Raposo Tavares e Borba Gato, militares como
defendia a hierarquização que resultava na idéia da superioridade Duque de Caxias, mártires como Tiradentes etc.).
A moral religiosa foi absorvida pelo civismo, orientando a
da raça branca. Privilegiava o Estado como o principal agente da
ideia de que os conteúdos da História Pátria não deveriam ficar
história brasileira, enfatizando alguns fatos essenciais na consti-
restritos ao âmbito específico da sala de aula. Práticas e rituais cí-
tuição do processo histórico nacional — as façanhas marítimas,
vicos, como festas, desfiles, eventos comemorativos e celebrações
comerciais e guerreiras dos portugueses, a transferência e o de-
de culto aos símbolos da Pátria, foram desenvolvidos para envol-
senvolvimento das instituições municipais portuguesas no Brasil, ver o conjunto da escola e estabelecer o ritmo do cotidiano escolar.
o papel dos jesuítas na catequese e as relações entre a Igreja e o Esperava-se que o estudante recebesse uma formação moral cristã
Estado. A História era relatada sem transparecer a intervenção do atrelada a uma consciência patriótica, sustentada na ideologia da
narrador, apresentada como uma verdade indiscutível e estruturada ciência, do progresso e da ordem.
como um processo contínuo e linear que determinava a vida social Apesar dos discursos e das sucessivas reformas, os governos
no presente. republicanos das primeiras décadas do século XX pouco fizeram
Na educação brasileira, o final do século XIX foi marcado para alterar a situação da escola pública, mantendo-se a já precá-
por embates envolvendo reformulações curriculares. Projetos ria formação de professores, geralmente autodidatas. Mesmo as-
continuavam a defender o currículo humanístico, com ênfase nas sim ou por isso mesmo, o período constituiu-se em momento de
disciplinas literárias, tidas como formadoras do espírito. Outros fortalecimento do debate dos problemas educacionais. Surgiram
desejavam introduzir um currículo mais científico, mais técnico propostas alternativas ao modelo oficial de ensino, logo reprimidas
e prático, adequado à modernização a que se propunha ao país. pelo governo republicano, como as escolas anarquistas, com currí-
Tanto no currículo humanístico como no científico a História, en- culo e métodos de ensino próprios, nos quais a História deixava de
tendida como disciplina escolar, mantinha sua importância para a enfocar a hierarquia entre povos e raças, para identificar-se com os
formação da nacionalidade. principais momentos das lutas sociais, como a Revolução France-
Nas últimas décadas do século XIX, mesmo antes do advento sa, a Comuna de Paris, a Abolição etc.
da República, começaram a surgir críticas à redução da História a A partir de 1930, com a criação do Ministério da Educação e
uma classificação cronológica de dinastias ou a um catálogo de fa- Saúde Pública e a Reforma Francisco Campos, acentuou-se o for-
tos notáveis dos dois Reinados. No discurso republicano, inspirado talecimento do poder central do Estado e o controle sobre o ensino.
em ideias positivistas, a escola e o ensino deveriam denunciar os Com a criação das universidades inicia-se a formação do professor
atrasos impostos pela monarquia e assumir o papel de regenerar os secundário. Ao mesmo tempo amplia-se e consolida-se, ainda que
indivíduos e a própria nação, colocando o país na rota do progresso com dificuldades, um campo cultural autônomo com a expansão
e da civilização. Como conseqüência, o ensino de História passou do cinema e do rádio.
a ocupar no currículo um duplo papel: o civilizatório e o patriótico. Nesse contexto, a História Geral e do Brasil foram integradas
em uma única área, História da Civilização. A História brasileira
Ao lado da Geografia e da Língua Pátria, ela deveria fundamentar
era unicamente uma continuidade da História da Europa ociden-
a nova nacionalidade projetada pela República e modelar um novo
tal. Permanecia a identidade do Brasil com a civilização europeia
tipo de trabalhador, o cidadão patriótico.
e enfatizava-se, contraditoriamente, a população brasileira como
Nesse contexto, a História Universal foi substituída pela His-
mestiça.
tória da Civilização, completando o afastamento entre o laico e o No caso da História do Brasil, mantinha-se a ênfase na forma-
sagrado e deslocando o estudo dos acontecimentos da religião para ção do Estado Nacional brasileiro. As mudanças históricas eram
o processo civilizatório. O Estado, sem a intervenção da Igreja, conseqüência de ações de governantes e de heróis moldados pela
permaneceu como o principal agente histórico, visto agora como República para legitimá-la. A periodização obedecia a uma crono-
o condutor da sociedade ao estágio de civilização. Abandonou-se logia política marcada por tempos uniformes, sucessivos e regula-
a identificação dos Tempos Antigos com o tempo bíblico da cria- res, sem rupturas ou descontinuidades.
ção e o predomínio do sagrado na História. A periodização, ainda O ensino de História era um instrumento de desenvolvimen-
construída com base no currículo francês, continuou a privilegiar to do patriotismo e da unidade étnica, administrativa, territorial e
o estudo da Antiguidade do Egito e da Mesopotâmia, momento cultural da nação. Com o processo de industrialização e urbaniza-
histórico relacionado, no novo contexto, à gênese da Civilização ção, repensou-se sobre o papel da população brasileira na História.
e associado ao aparecimento do Estado forte e centralizado e à Enquanto alguns estudos continuavam a identificar as razões do
invenção da escrita. atraso do país no predomínio de um povo mestiço, outros apon-

Didatismo e Conhecimento 4
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
tavam a necessidade de se buscar conhecer a identidade nacional, ditados pela tradição foram reforçados ainda pela produção di-
sua especificidade cultural em relação a outros países, como meio dática e pela preocupação de garantir um bom desempenho dos
de assegurar condições de igualdade na integração da sociedade estudantes nos exames finais de admissão ao ginásio ou ao ensino
brasileira à civilização ocidental. superior. A leitura que o Estado Novo fez dos métodos escolano-
No debate educacional na década de 30, tornou-se vitoriosa a vistas acabou por enfatizar a comemoração de heróis em grandes
tese da “democracia racial” expressa em programas e livros didá- festividades cívicas.
ticos de ensino de História. Por esta tese, na constituição do povo Nos anos imediatos ao pós-guerra e no contexto da democra-
brasileiro predominavam a miscigenação e a total ausência de pre- tização do país com o fim da ditadura Vargas, a História passou
conceitos raciais e étnicos. O povo brasileiro era estudado como a ser novamente objeto de debates quanto às suas finalidades e
descendente de brancos portugueses, índios e negros, e, a partir relevância na formação política dos alunos.
dessa tríade, de mestiços. Nessa perspectiva, todos conviviam har- Tornou-se uma disciplina significativa na formação de uma ci-
monicamente em uma sociedade multirracial e caracterizada pela dadania para a paz. A Unesco Organização das Nações Unidas para
ausência de conflitos. a Educação, Ciência e Cultura passou a interferir na elaboração de
Cada etnia colaborava, com seu heroísmo ou com seu traba- livros escolares e nas propostas curriculares, indicando possíveis
lho, para a grandeza e riqueza do país. perigos na ênfase dada às histórias de guerras, no modo de apre-
Legitimando o discurso da “democracia racial”, o ensino de sentar a história nacional e nas questões raciais, em especial na
História representava o africano como pacífico diante do trabalho disseminação de ideias racistas, etnocêntricas e preconceituosas.
escravo e como elemento peculiar para a formação de uma cultura A História deveria revestirse de um conteúdo mais humanísti-
brasileira; estudava os povos indígenas de modo simplificado, na co e pacifista, voltando-se ao estudo dos processos de desenvolvi-
visão romântica do “bom selvagem, sem diferenças entre as cul- mento econômico das sociedades, bem como dos avanços tecnoló-
turas desses povos, mencionando a escravização apenas antes da gicos, científicos e culturais.
chegada dos africanos e não informando acerca de suas resistên- Sob inspiração do nacional-desenvolvimentismo, nas décadas
cias à dominação europeia. E projetava os portugueses como aque- de 50 e 60 o ensino de História voltou-se especialmente para as
les que descobriram e ocuparam um território vazio, silenciando temáticas econômicas. O reconhecimento do subdesenvolvimento
sobre as ações de extermínio dos povos que aqui viviam. brasileiro levou ao questionamento da predominância da produção
agrícola-exportadora e à valorização do processo de industrializa-
Em meados dos anos 30, por inspiração da pedagogia norte-
ção. Enfatizou-se o estudo dos ciclos econômicos, sua sucessão
-americana, a educação brasileira começou a adotar propostas do
linear no tempo — cana-de-açúcar, mineração, café e industriali-
movimento escolanovista, entre as quais a que propunha a intro-
zação — e, exclusivamente, a História de cada centro econômico
dução dos chamados Estudos Sociais no currículo escolar, em
regional que era hegemônico em cada época. A ordenação sucessi-
substituição a História e Geografia, especialmente para o ensino
va e linear indicava a determinação histórica de que o desenvolvi-
elementar. A intenção era, com Estudos Sociais, superar o conteú-
mento só seria alcançado com a industrialização.
do livresco e decorativo que caracterizava o ensino das duas áreas.
Ao mesmo tempo, a presença norte-americana na vida econô-
Apesar do movimento escolanovista propor abordagens e ati- mica nacional fortaleceu o lugar da História da América no currí-
vidades diferenciadas, que foram adotadas por professores e por culo, com a predominância da História dos Estados Unidos, inse-
escolas que inovaram métodos e conteúdos, de modo geral per- rindose na meta da política da boa vizinhança norte-americana.
maneceram os procedimentos de ensino até então vigentes. Nas A formação de professores em cursos superiores afetou o ensi-
salas de aula ainda era prática comum os alunos recitarem as lições no de História gradativamente. A formação intelectual e científica
de cor, com datas e nomes dos personagens considerados os mais dos alunos de graduação passou a integrar os objetivos das pro-
significativos da História. postas curriculares, como no caso da produção didática chamada
A partir de 1942, o ensino secundário passou por novas re- História
formas conduzidas pelo ministro Gustavo Capanema. A Lei Or- Nova, do início dos anos 60, com estudos baseados nos mo-
gânica do Ensino Secundário estabeleceu três cursos: inicialmente dos de produção, sob a influência da historiografia marxista, que
o primário, com quatro anos de escolaridade; depois o ginasial, enfatizava transformações econômicas e conflitos entre as classes
com quatro anos também; e o clássico ou científico, com três anos. sociais, contrariamente à História que valorizava o político e a tra-
Equivalentes a eles foram criados os ginásios e os colégios pro- jetória vitoriosa da classe burguesa na consolidação harmoniosa
fissionais. A formação docente foi sendo igualmente estruturada. do mundo moderno. Nessa tendência, apesar da ênfase atribuída às
As Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, criadas nos classes sociais como agentes das transformações históricas, predo-
primeiros anos da década de 30, encarregaram-se neste momen- minou no ensino uma abordagem estruturalista na qual a História
to, além da formação de pesquisadores, da profissionalização do era estudada como consequência de estágios sucessivos e evolu-
magistério. tivos.
Em meio a debates e ampliação da produção acadêmica, a po- Nesta época, além da constatação da importância do ensino de
lítica educacional da época limitou o currículo. No contexto do História na formação do cidadão político, ele passou a ser conside-
Estado Novo, a História tinha como tarefa enfatizar o ensino patri- rado também fundamental para a formação intelectual do estudan-
ótico, capaz de criar nas “gerações novas a consciência da respon- te. Incorporou objetivos para promover o seu pensamento crítico.
sabilidade diante dos valores maiores da pátria, a sua independên- O período que vai da Segunda Guerra Mundial até o final da
cia, a sua ordem e o seu destino. década de 70 caracterizou-se por dois momentos significativos na
A carga horária de História no ginásio aumentou considera- implantação dos Estudos Sociais. O primeiro ocorreu no contexto
velmente e História Geral e História do Brasil passaram a ser áreas da democratização do país com o fim da ditadura Vargas e o segun-
distintas, saindo privilegiada a História brasileira. Os conteúdos do durante o governo militar depois de 1964.

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A política educacional brasileira após 1945 foi marcada por foram valorizados conteúdos e abordagens de um nacionalismo de
um prolongado debate sobre a educação nacional, que resultou, em caráter ufanista, agora destinados a justificar o projeto nacional do
1961, na Lei 4.024, de Diretrizes e Bases. Por essa lei, o sistema governo militar após 1964.
continuou a ser organizado segundo a legislação anterior, sendo Os Estudos Sociais contemplavam os chamados pré-requi-
suprimida a prescrição do currículo fixo e rígido para todo o ter- sitos de aprendizagem, apresentando a necessidade da aquisição
ritório brasileiro. Prevaleceu, inclusive, a abertura para estados e de noções e de conceitos relacionados às Ciências Humanas. Para
estabelecimentos de ensino anexarem áreas optativas ao currículo compreender a realidade social, o aluno deveria dominar, em prin-
mínimo prescrito pelo Conselho Federal de Educação. cípio, entre outras noções, a de tempo histórico. Mas, o desenvol-
Essa flexibilidade vinha de encontro à emergência do regio- vimento dessa noção limitava-se a atividades de organização do
nalismo, das propostas desenvolvimentistas e das políticas que tempo cronológico e de sucessão: datações, calendário, ordenação
incorporavam noções de centro e periferia. Tal abertura no currí- temporal, seqüência passado-presente-futuro. A linha do tempo,
culo possibilitou, por exemplo, o desenvolvimento de experiências amarrada a uma visão linear, foi sistematicamente utilizada como
educacionais alternativas, como foi o caso das escolas vocacionais referência para organizar progressivamente os acontecimentos e os
e das escolas de aplicação em algumas regiões do Brasil. períodos históricos.
Sob influência norte-americana e de uma difusa concepção A ênfase no estudo de noções e conceitos gerais das Ciências
tecnocrática, em pleno contexto de Guerra Fria, desvalorizaram-se Humanas levou ao esvaziamento da dimensão histórica no ensino.
as áreas de Humanas, em favor de um ensino técnico para a for- Conceitos como o de trabalho e de sociedade foram tratados como
mação da mão-de-obra da indústria crescente. História e Geogra- categorias abstratas e universalizantes, perdendo suas dimensões
fia acabaram, nesse período, tendo suas cargas horárias reduzidas, temporais e espaciais. O agente histórico das mudanças continuou
perdendo espaços significativos nas grades curriculares. A partir a ser o Estado, estando ele agora corporificado abstratamente na
de então, intensificou-se o embate sobre a permanência da História “humanidade” e sendo ele responsável pela transformação da na-
e da Geografia no currículo e o avanço dos Estudos Sociais elabo- tureza, pelo bem-estar de todos e pela construção dos caminhos do
rados como área de integração e articulação dos diferentes saberes progresso, sinônimo da época de conquistas tecnológicas.
das Ciências Humanas. As transformações ocorridas durante o governo militar não se
Contudo, esse debate foi interrompido com o golpe de 1964. limitaram aos currículos e métodos de ensino. O fim do exame de
Em 1971, os conteúdos escolares foram reunidos em núcleos admissão e o ensino obrigatório de oito anos da escola de primei-
comuns concebidos de modo diferente para cada série, a partir do ro grau afetaram significativamente o aproveitamento do público
tratamento metodológico que deveriam receber. O núcleo de Es- escolar.
tudos Sociais visava, segundo resolução da época, ao ajustamento À medida que eram ampliadas as oportunidades de acesso à
crescente do educando ao meio cada vez mais amplo e complexo, escola para a maioria da população, ocorria paradoxal deterioração
em que deve não apenas viver, como conviver, dando-se ênfase na qualidade do ensino público.
ao conhecimento do Brasil na perspectiva atual do seu desenvol- O ensino de História conviveu com contradições. Uma parce-
vimento. la significativa de professores continuou a ter formação universi-
Nas primeiras cinco séries do primeiro grau, o núcleo de Es- tária específica em História com habilitação para lecionar também
tudos Sociais assumia a forma de atividades de integração social, Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica e Organização Social
isto é, estudos das experiências vividas. Nas séries seguintes, e Política Brasileira. Professores com licenciatura plena, apesar
passou a ser tratado como área de estudo, integrando conteúdos de assumirem as cargas horárias das disciplinas cívicas, na sala
das Ciências Humanas. No segundo grau, subdividia-se nas áreas de aula ensinavam na realidade conteúdos de seu domínio, isto é,
de História, Geografia e Organização Social e Política Brasileira História.
(OSPB). No decorrer dos anos 70 e 80, as lutas de profissionais, desde
Os governos militares, referendando uma série de medidas a sala de aula até a universidade, ganharam maior expressão com
tomadas após 1964, permitiram a proliferação dos cursos de Li- o crescimento das associações de historiadores e geógrafos, que se
cenciatura Curta. Contribuíram, assim, para o avanço das entida- abriram aos docentes de primeiro e segundo graus e ampliaram a
des privadas no ensino superior e para uma desqualificação pro- batalha pela volta de História e Geografia aos currículos escolares
fissional do docente. Principalmente na década de 1970, algumas e a extinção dos cursos de Licenciatura de Estudos Sociais.
faculdades passaram a formar professores licenciados em Estudos No processo de democratização dos anos 80, os conhecimen-
Sociais, com programas de formação para o desempenho de ativi- tos escolares passaram a ser questionados e redefinidos por refor-
dades puramente escolares, desconsiderando preocupações e te- mas curriculares dos estados e municípios.
mas de conhecimentos específicos. Simultaneamente, as transformações da clientela composta
A Licenciatura Curta em Estudos Sociais contribuiu, em parte, por vários grupos sociais que viviam um intenso processo de mi-
para um afastamento entre universidades e escolas de primeiro e gração, do campo para as cidades, e entre os estados, com acentu-
segundo graus e prejudicou o diálogo entre pesquisa acadêmica ada diferenciação econômica, social e cultural, também forçaram
e o saber escolar, dificultando a introdução de reformulações do mudanças na educação.
conhecimento histórico e das ciências pedagógicas no âmbito da As novas gerações de alunos habituaram-se à presença de
escola. novas tecnologias de comunicação, especialmente o rádio e a te-
Principalmente a partir da Lei no 5.692/71, ao lado da Edu- levisão, que se expandiam como importantes canais de informa-
cação Moral e Cívica (EMC) e da Organização Social e Política ção e de formação cultural. Entrava pelas portas das escolas uma
Brasileira (OSPB), os Estudos Sociais esvaziaram, diluíram e des- nova realidade que não poderia ser mais ignorada. O currículo real
politizaram os conteúdos de História e de Geografia e, novamente, forçava mudanças no currículo formal. Diversos agentes educa-

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
cionais passaram a discutir e desenvolver novas possibilidades de Nessa linha, na defesa da ideia de que os acontecimentos não
ensino. Neste contexto, os professores tiveram papel importante na podem ser estudados isoladamente e que é preciso ensinar o es-
constituição do saber escolar, diminuindo o poder dos chamados tudante a pensar/refletir historicamente, alguns professores passa-
técnicos educacionais. ram a ensinar métodos de pesquisa histórica, retomando parte do
Na época foi reforçado o diálogo entre pesquisadores e do- debate das décadas de 50 e 60. Compreendendo a História como
centes do ensino médio, ao mesmo tempo em que se assistia à movimento social e memória difundida socialmente, cujo discur-
expansão dos cursos de pós-graduação em História, com presença so é construído sobre o passado e o presente, outros docentes in-
expressiva de professores de primeiro e segundo graus. Essa nova corporaram aos métodos de ensino a confrontação de diferentes
produção acadêmica foi absorvida parcialmente pela expansão versões históricas, de memórias diferenciadas de grupos sociais
editorial na área do ensino de História e de historiografia. e a valorização do saber, das vivências e das interpretações dos
As propostas curriculares passaram a ser influenciadas, tam- alunos. Alguns passaram a usar diferentes fontes de informação,
bém, pelo debate entre as diversas tendências historiográficas. Os principalmente como recurso didático para fazer aflorar tradições
historiadores voltaram-se para novas problemáticas e temáticas de e discursos variados sobre um mesmo tema.
estudo, sensibilizados por questões ligadas à história social, cul- Os métodos tradicionais de ensino memorização e reprodução
tural e do cotidiano, sugerindo possibilidades de rever, no ensino passaram a ser questionados com maior ênfase. Os livros didáticos
fundamental, o formalismo das abordagens históricas sustentadas difundidos amplamente e enraizados nas práticas escolares foram
nos eventos políticos e administrativos dos estados ou exclusiva- criticados nos conteúdos e nos exercícios propostos. A simplifica-
mente nas análises econômicas estruturais. A apresentação do pro- ção dos textos, os conteúdos carregados de ideologias, os testes ou
cesso histórico num eixo espaço-temporal eurocêntrico, seguindo exercícios sem exigência de nenhum raciocínio foram apontados
um processo evolutivo, sequencial e homogêneo, foi denunciada como comprometedores de qualquer avanço no campo curricular
como produto pronto e acabado, redutor da capacidade de o aluno formal.
se sentir na condição de sujeito comum, parte integrante e agen- Por isso, o ensino está em processo de mudanças substantivas
te da História, e restritivo ao discernimento da diferença entre o nos objetivos, conteúdos e métodos. Parte dessas mudanças é de-
conhecimento histórico produzido por estudiosos e as ações dos corrente da ansiedade em diminuir distâncias entre o que é ensina-
homens realizadas no passado. Introduziu-se, na mesma época, a do na escola fundamental e a produção universitária, isto é, entre
preocupação em desenvolver nos estudantes domínios procedi- o saber histórico escolar e as pesquisas e reflexões que acontecem
mentais de pesquisa histórica no espaço escolar e atitudes intelec- no plano do conhecimento acadêmico. A tentativa de aproximação
tuais de desmistificação das ideologias, da sociedade de consumo entre estas duas realidades, nas quais o saber histórico está presen-
e dos meios de comunicação de massa.
te, faz com que a escola se envolva a seu modo no debate historio-
O debate gerou a reavaliação no ensino de História ilustrado
gráfico atual, incorporando parte de suas tensões e contradições.
pelas múltiplas abordagens históricas possíveis. Nas décadas de 80
Paralelamente, nas últimas décadas, passaram a ser difundidas
e 90, alguns professores começaram a denunciar a impossibilidade
percepções diferentes do processo de aprendizagem, do papel que
de transmitir o conhecimento de toda a história da humanidade em
os materiais didáticos desempenham, dos instrumentos e signifi-
todos os tempos. Outros questionaram se deveriam iniciar o ensi-
cados das avaliações e das funções sociais e culturais atribuídas à
no pela História do Brasil ou pela Geral, optando alguns por uma
escola e ao professor. Essas novas percepções, hoje desenvolvidas
ordenação seqüencial e processual, que intercalasse os conteúdos
num processo contínuo da Antiguidade até nossos dias. por docentes e pesquisadores, têm levado a reflexões profundas
Partindo da crítica à abordagem eurocêntrica, alguns inicia- quanto à interação entre teoria e prática no espaço escolar e às
ram estudos pela ótica dos povos da América. Outros introduziram relações estabelecidas entre o currículo formal elaborado por es-
conteúdos relacionados à história local e regional. pecialistas e instituições — e o currículo real que, efetivamente, se
Uma outra parcela optou por trabalhar com temas e, nessa concretiza na escola e na sala de aula.
perspectiva, desenvolveram-se as primeiras propostas curricula- A escola vive hoje contradições fundamentais. Seus agen-
res por eixos temáticos. Para os que optaram por esta última via, tes lutam simultaneamente por mudanças e pela manutenção de
iniciou-se um debate ainda em curso, sobre questões relacionadas tradições escolares. Mantêm articulações com esferas políticas e
ao tempo histórico, revendoconcepções de linearidade e progressi- institucionais, incorporam expectativas provocadas por avaliações
vidade, noções de decadência e de evolução. de desempenho do sistema educacional brasileiro, orientam-se
Paralelamente, ocorreram novos estudos no âmbito das ciên- por avaliações para ingresso no ensino médio ou superior, buscam
cias pedagógicas, especialmente no campo da psicologia cogniti- contribuições de pesquisas e experiências acadêmicas e procuram
va e social. Difundiram-se reflexões sobre o processo de ensino e atender parte das expectativas sociais e econômicas das famílias,
aprendizagem, nos quais os alunos passaram a ser considerados dos alunos e dos diferentes setores da sociedade.
como participantes ativos do processo de construção do conheci- A constatação dessas contradições fortalece, cada vez mais,
mento — uma perspectiva que interfere nas terminologias utiliza- a convicção de que o saber escolar está relacionado a uma diver-
das para definir os objetivos de ensino de História. Verbos como sidade de tradições próprias da história da educação brasileira e
identificar, descrever, caracterizar, ordenar foram sendo comple- mantém relações com poderes e valores diversificados da realida-
mentados com outros, que explicitam a preocupação em valori- de social. Impõe a necessidade de valorizar o professor como um
zar atitudes intelectuais nos estudantes, como comparar, analisar trabalhador intelectual ativo no espaço escolar, responsável junto
e relacionar. Em consonância com a visão de alguns educadores com seus iguais pela clareza e definição dos objetivos e dos con-
sobre propostas pedagógicas construtivistas, valorizaram-se tam- teúdos para a disciplina que leciona. Aponta para o fato de que a
bém as atitudes ativas dos alunos como sujeitos construtores de transformação da prática do docente só acontece quando, no exer-
sua história. cício de seu trabalho, ele coloca em discussão suas ações, explici-

Didatismo e Conhecimento 7
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
ta seus pressupostos, problematiza a prática, busca e experimenta social, em benefício do fortalecimento do papel da História na
alternativas de abordagens e de conteúdos, desenvolve atividades formação social e intelectual de indivíduos para que, de modo
interdisciplinares, faz escolhas diversificadas de recursos didáti- consciente e reflexivo, desenvolvam a compreensão de si mesmos,
cos, analisa dificuldades e conquistas, compartilha experiências e dos outros, da sua inserção em uma sociedade histórica e da res-
relaciona a prática com a teoria. ponsabilidade de todos atuarem na construção de sociedades mais
A História tem permanecido no currículo das escolas, consti- igualitárias e democráticas.
tuindo o que se chama de saber histórico escolar. No diálogo e no
confronto com a realidade social e educacional, no contato com O conhecimento histórico: características e importância
valores e anseios das novas gerações, na interlocução com o co- social
nhecimento histórico e pedagógico, o saber histórico escolar tem
mantido tradições, tem reformulado e inovado conteúdos, aborda- Desde que foi incorporada ao currículo escolar, a História en-
gens, métodos, materiais didáticos e algumas de suas finalidades sinada tem mantido uma interlocução com o conhecimento histó-
educacionais e sociais. Nesse diálogo tem permanecido, principal- rico. De longa data, muitos dos profissionais que atuam no ensino
mente, o papel da História em difundir e consolidar identidades e/ou produzem material didático são pesquisadores e produtores
no tempo, sejam étnicas, culturais, religiosas, de classes e grupos, de conhecimento historiográfico. Apesar de em certos momentos
de Estado ou Nação. Nele, fundamentalmente, têm sido recriadas da história da educação brasileira algumas políticas públicas rom-
as relações professor, aluno, conhecimento histórico e realidade perem com os vínculos diretos entre o que se ensina na escola e a
social, em benefício do fortalecimento do papel da História na produção histórica específica ou, ainda, estimularem a formação
formação social e intelectual de indivíduos para que, de modo de docentes para reproduzirem um saber puramente escolar, per-
consciente e reflexivo, desenvolvam a compreensão de si mesmos, manecem as lutas de professores/historiadores para aproximarem
dos outros, da sua inserção em uma sociedade histórica e da res- o ensino de História das questões, das abordagens e dos temas de-
ponsabilidade de todos atuarem na construção de sociedades mais senvolvidos pela pesquisa teórica e científica.
igualitárias e democráticas. Nas últimas décadas, por diferentes razões, nota-se uma cres-
A escola vive hoje contradições fundamentais. Seus agen- cente preocupação dos professores do ensino fundamental em
tes lutam simultaneamente por mudanças e pela manutenção de acompanhar e participar do debate historiográfico, criando aproxi-
tradições escolares. Mantêm articulações com esferas políticas e mações entre o conhecimento histórico e o saber histórico escolar.
institucionais, incorporam expectativas provocadas por avaliações Reconhece-se que o conhecimento científico tem seus objetivos
de desempenho do sistema educacional brasileiro, orientam-se sociais e é reelaborado, de diversas maneiras, para o conjunto da
por avaliações para ingresso no ensino médio ou superior, buscam sociedade. Na escola, ele adquire, ainda, uma relevância específica
contribuições de pesquisas e experiências acadêmicas e procuram quando é recriado para fins didáticos.
atender parte das expectativas sociais e econômicas das famílias, O saber histórico tem, desse modo, possibilitado e fundamen-
dos alunos e dos diferentes setores da sociedade. tado alternativas para métodos de ensino e recursos didáticos, prin-
A constatação dessas contradições fortalece, cada vez mais, cipalmente para valorizar o aluno como sujeito ativo no processo
a convicção de que o saber escolar está relacionado a uma diver- de aprendizagem. Por outro lado, ao constatarem que as abor-
sidade de tradições próprias da história da educação brasileira e dagens e os conteúdos escolares não explicam as problemáticas
mantém relações com poderes e valores diversificados da realida- sociais contemporâneas nem as transformações históricas a elas
de social. Impõe a necessidade de valorizar o professor como um relacionadas, professores e educadores buscam outros modos de
trabalhador intelectual ativo no espaço escolar, responsável junto compreender a relação presente/passado e de historicizar as ques-
com seus iguais pela clareza e definição dos objetivos e dos con- tões do cotidiano.
teúdos para a disciplina que leciona. Aponta para o fato de que a Além disso, os profissionais da escola têm procurado man-
transformação da prática do docente só acontece quando, no exer- ter relações e compromissos mais estreitos com a realidade social,
cício de seu trabalho, ele coloca em discussão suas ações, explici- propondo uma melhor compreensão dessa realidade e encarando-a
ta seus pressupostos, problematiza a prática, busca e experimenta como diversificada, múltipla, conflituosa, complexa e descontínua.
alternativas de abordagens e de conteúdos, desenvolve atividades Considerando as indagações e as problemáticas atuais do co-
interdisciplinares, faz escolhas diversificadas de recursos didáti- nhecimento e do ensino de História são apresentadas, na sequên-
cos, analisa dificuldades e conquistas, compartilha experiências e cia, linhas gerais de algumas tendências e reflexões de pesquisado-
relaciona a prática com a teoria. res e estudiosos da História.
A História tem permanecido no currículo das escolas, consti- Como em muitas outras áreas de conhecimento, a História é
tuindo o que se chama de saber histórico escolar. No diálogo e no um campo de pesquisa e produção de saber em permanente debate
confronto com a realidade social e educacional, no contato com que está longe de apontar para um consenso.
valores e anseios das novas gerações, na interlocução com o co- Novas abordagens iluminam as análises políticas de insti-
nhecimento histórico e pedagógico, o saber histórico escolar tem tuições, de líderes governamentais, de partidos, de lutas sociais
mantido tradições, tem reformulado e inovado conteúdos, aborda- e de políticas públicas. Ao mesmo tempo, novos temas sociais e
gens, métodos, materiais didáticos e algumas de suas finalidades culturais ganham relevância. É o caso de pesquisas destinadas a
educacionais e sociais. Nesse diálogo tem permanecido, principal- aprofundar e revelar as dimensões da vida cotidiana de trabalha-
mente, o papel da História em difundir e consolidar identidades dores, mulheres, crianças, grupos étnicos, velhos e jovens e das
no tempo, sejam étnicas, culturais, religiosas, de classes e grupos, pesquisas que estudam práticas e valores relacionados às festas,
de Estado ou Nação. Nele, fundamentalmente, têm sido recriadas à saúde, à doença, ao corpo, à sexualidade, à prisão, à educação,
as relações professor, aluno, conhecimento histórico e realidade à cidade, ao campo, à natureza e à arte. Nesse propósito, continua

Didatismo e Conhecimento 8
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
sendo utilizada como fonte de pesquisa a documentação escrita e não significa que o conhecimento histórico abandonou o domínio
institucional, enquanto são considerados também documentos de da racionalidade, mas que, assim como outras disciplinas, busca
diferentes linguagens — textos, imagens, relatos orais, objetos e uma nova racionalidade.
registros sonoros. Tais reflexões têm fortalecido a consciência do historiador de
Na pesquisa histórica podem ser encontradas diferentes abor- que exerce um papel ativo na elaboração do conhecimento e de
dagens teóricas metodológicas. Entre elas, tendem a se esgotar as que as formas de estudar o passado são plurais.
que procuram explicar a vida social e a dinâmica de seu movi- Reconhece que o produto final de seu trabalho decorre da sua
mento no tempo por meio de teorias globalizantes, fazendo uso abordagem teórica, da escolha da metodologia de pesquisa, de suas
de categorias teóricas abstratas e de métodos hipotético-dedutivos. hipóteses iniciais, da sua escolha do tema, da sua sensibilidade
Têm sido fortalecidas, por outro lado, diferentes abordagens que para estabelecer relações entre problemáticas de sua época e pro-
enfatizam a problematização do social, procurando ora nos gran- blemáticas históricas, das fontes de pesquisa que escolhe analisar,
des movimentos coletivos, ora nas particularidades individuais, de de suas interpretações e do estilo de texto que opta para organizar
grupos e nas suas inter-relações, o modo de viver, sentir, pensar e o seu trabalho.
agir de homens, mulheres, trabalhadores, que produzem, no dia-a- Essa diluição das distâncias e a interpenetração entre o sujei-
-dia e ao longo do tempo, as práticas culturais e o mundo social. to e o objeto de estudo instigou alguns historiadores a assumirem
Nesta última tendência, que não deixa de abrigar diferentes plenamente uma subjetividade interpretativa, questionando a di-
modelos analíticos e conceituais, as obras de arte, as articulações mensão do real e o comprometimento do conhecimento histórico
de poderes religiosos, os rituais, os costumes, as tradições, os com a verdade” em termos de vínculos com a realidade social.
desvios de comportamento, as resistências cotidianas, os valores Nessas dimensões, a especificidade e a cientificidade do conheci-
presentes em imagens e textos, as relações e papéis interpessoais mento histórico foram redimensionadas. A referência passou a ser
e intergrupais, são abordados em suas particularidades, em suas o diálogo que o historiador estabelece com seus iguais, a coerência
inter-relações ou na perspectiva de suas permanências e transfor- de sua abordagem teórico-metodológica e a organização do conhe-
mações no tempo. Tais estudos têm contribuído para revelar di- cimento por meio de uma formalização da linguagem científica da
mensões da história cultural, mentalidades e práticas de construção História.
de identidades socioculturais. Têm solicitado, por sua vez, outras Essa diversidade de temas e abordagens tem sido alimenta-
metodologias e teorias capazes de iluminar os significados simbó- da e fundamentada pelo diálogo da História com outras áreas de
licos das representações sociais e as relações que as práticas coti- conhecimento das Ciências Humanas a Filosofia, a Economia, a
dianas mantêm com os processos históricos. Demandam, ainda, Política, a Geografia, a Sociologia, a Psicologia, a Antropologia,
abordagens capazes de lidar com a ideia de permanência na Histó- a Arqueologia, a Crítica Literária, a Lingüística e a Arte. Em di-
ria, estimulando debates sobre o tempo e suas durações. ferentes momentos do século XX é possível identificar a conver-
A ampliação de temas de estudo e de possibilidades teórico- gência de abordagens e temáticas entre as diferentes humanidades,
-metodológicas tem auxiliado o pesquisador a refletir cada vez ora predominando estudos histórico-sociais, histórico-geográficos,
mais sobre os fatores que interferem na construção do conheci- histórico-culturais, histórico-políticos, histórico-econômicos, his-
mento histórico. tórico-literários, ora existindo a procura de uma “história total.
Os estudos da cultura e das representações alertam, por exem- Nesse diálogo, diferentes campos das Ciências Humanas in-
plo, para o fato de que, assim como as obras de arte, os artefatos, troduziram, também, preocupações próprias da História, como no
os textos e as imagens estão repletos de significações complemen- caso da valorização do estudo das transformações das culturas, das
tares e contraditórias, as obras historiográficas, do mesmo modo, significações e dos valores no tempo.
possuem seu tempo, seu lugar, seus valores e suas ideologias. O A aproximação da História com as demais Ciências Humanas
tema de estudo, as fontes, as análises, as interpretações, como tam- conduziu aos estudos de povos de todos os continentes, redimen-
bém o estilo e a estrutura textual, expressam a historicidade do sionando o papel histórico das populações não europeias. Orien-
conhecimento, a sua legitimidade científica e a sua inserção em tou estudos sobre a diversidade de vivências culturais, estimulou a
um contexto histórico mais amplo. Assim, alguns historiadores preocupação com as diferentes linguagens. A investigação históri-
preocupam-se com a explicitação de que também as suas escolhas ca passou a considerar a importância da utilização de outras fontes
fazem parte de momentos históricos específicos, de processos con- documentais e da distinção entre a realidade e a representação da
tínuos e descontínuos e de diálogos com outros estudiosos e com realidade expressa nas gravuras, desenhos, gráficos, mapas, pin-
as realidades vividas e estudadas. turas, esculturas, fotografias, filmes e discursos orais e escritos.
O historiador tem igualmente refletido sobre as relações que Aperfeiçoou, então, métodos para extrair informações de diferen-
estabelece com o seu objeto de estudo. tes naturezas dos vários registros humanos já produzidos, reconhe-
Fica-se clara a distinção entre o sujeito e o objeto de investi- cendo que a comunicação entre os homens, além de escrita, é oral,
gação nas abordagens teórico-metodológicas de caráter científico gestual, figurada, musical e rítmica.
e racionalista, que enfatizam a objetividade como meio de apro- O aprofundamento de estudos culturais, principalmente no di-
ximação da realidade histórica, essa distinção se dilui quando são álogo da História com a Antropologia, tem contribuído, ainda, para
interpretados os indícios de valores e mentalidades das represen- um debate sobre os conceitos de cultura e de civilização. Alguns
tações construídas historicamente. No segundo caso, cabe efeti- historiadores rejeitam o conceito de civilização por considerá-lo
vamente ao pesquisador, a partir de sua formação e de seus do- impregnado de uma perspectiva evolucionista e otimista face aos
mínios cognitivos, identificar, relacionar e interpretar tais indícios avanços e domínios tecnológicos, isto é, com uma culminância de
simbólicos como expressões de vivências e de modos de pensar etapas sucessivas em direção a uma cultura superior antecedida
contraditórios de uma realidade social e cultural representada. Isso por períodos de selvageria e barbárie.

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Nessa linha, valorizam a ideia de diversidade cultural e multi- Os diálogos entre o ensino de História e o conhecimento cien-
plicam as concepções de tempo. A ideia de um tempo apenas con- tífico redimensionam, assim, a importância social da área na for-
tínuo e evolutivo, igual e único para toda a humanidade, também mação dos estudantes. Sinalizam e fundamentam possibilidades
é confrontada com o esforço de perceber e iluminar a descontinui- de estudos e atividades que valorizam as atitudes intelectuais dos
dade das mudanças, evidenciando, por exemplo, a convivência, na alunos, o seu envolvimento nos trabalhos e o desenvolvimento de
mesma época, de povos que utilizam diferentes tecnologias, como sua autonomia para aprender. Instigam, também, a reflexão crítica
no caso de sociedades coletoras que são contemporâneas de nações na escola e na sala de aula sobre suas práticas, seus valores e seus
que dominam recursos tecnológicos capazes de explorar o planeta conhecimentos, aprofundando as relações do seu cotidiano com
Marte. contextos sociais específicos e com processos históricos contínuos
Muitas reflexões inerentes à pesquisa histórica são significa- e/ou descontínuos.
tivas para o ensino na escola fundamental. As abordagens teóricas Ao longo da história da educação brasileira, também os currí-
que problematizam a realidade social e identificam a participação culos escolares apontavam para a importância social do ensino de
ativa de pessoas comuns na construção da História nas suas resis- História. Uma das tradições da área tem sido a de contribuir para
tências, divergência de valores e práticas, reelaboração da cultura a construção da identidade, sendo esta entendida como a formação
instigam, por exemplo, propostas e métodos de ensino que valori- do “cidadão patriótico, do homem civilizado ou da pessoa ajustada
zam os alunos como protagonistas da realidade social e da História ao seu meio.
e sujeitos ativos no processo de aprendizagem. Isto é, caberia à História desenvolver no aluno a sua iden-
O diálogo da História com as demais Ciências Humanas tem tidade com a pátria, com o mundo civilizado ou com o país do
favorecido, por outro lado, estudos de diferentes problemáticas trabalho e do desenvolvimento. Atualmente é preciso considerar
contemporâneas em suas dimensões temporais. essa tradição no ensino de História, mas é necessário, simultanea-
Por meio de trabalhos interdisciplinares, novos conteúdos po- mente, repensar sobre o que se entende por identidade e qual a sua
dem ser considerados em perspectiva histórica, como no caso da relevância para a sociedade brasileira contemporânea.
apropriação, atuação, transformação e representação da natureza Nas últimas décadas, a sociedade brasileira vive internamente
pelas culturas, da relação entre trabalho e tecnologia e das políticas um intenso processo migratório e, nas suas relações com o mun-
públicas de saúde com as práticas sociais, além da especificidade do, a assimilação e o intercâmbio de comportamentos, valores e
cultural de povos e das inter-relações, diversidade e pluralidade de tecnologias que desarticulam formas tradicionais de trabalho e de
valores, práticas sociais, memórias e histórias de grupos étnicos, relações socioculturais.
de sexo e de idade. Os deslocamentos populacionais e a expansão da economia e
A consciência de que o conhecimento histórico é sempre fruto da cultura mundial criam situações dramáticas para a identidade
de seu tempo sugere, também, outros trabalhos didáticos. local, regional e nacional, na medida em que desestruturam rela-
As obras de cunho histórico textos historiográficos, artigos ções historicamente estabelecidas e desagregam valores, situações
de jornais e revistas, livros didáticos são estudadas como versões cujo alcance ainda não se pode avaliar.
históricas que não podem ser ensinadas como prontas e acabadas Nesse contexto, os estudos históricos desempenham um papel
nem confundidas com a realidade vivida pelos homens no passa- importante, na medida em que contemplam pesquisas e reflexões
do. Considera-se, por exemplo, a importância da identificação e das representações construídas socialmente e das relações estabe-
da análise de valores, intencionalidades e contextos dos autores; lecidas entre os indivíduos, os grupos, os povos e o mundo social,
a seleção dos eventos e a relevância histórica atribuída a eles; a em uma época. Nesse sentido, o ensino de História pode fazer es-
escolha dos personagens que são valorizados como protagonistas colhas pedagógicas capazes de possibilitar ao aluno refletir sobre
da história narrada; e a estrutura temporal que organiza os eventos seus valores e suas práticas cotidianas e relacioná-los com proble-
e que revela o tempo da problemática inicial e dos contextos his- máticas históricas inerentes ao seu grupo de convívio, à sua locali-
tóricos estudados. dade, à sua região e à sociedade nacional e mundial.
Trabalhos nessa linha possibilitam para o docente, entre outras Uma das escolhas pedagógicas possíveis, nessa linha, é o tra-
coisas, reconhecer sua atuação na construção do saber histórico es- balho favorecendo a construção, pelo aluno, de noções de diferen-
colar, na medida em que é ele que seleciona, avalia e insere a obra ça, semelhança, transformação e permanência.
em uma situação didática e tal obra adquire novos significados ao Essas são noções que auxiliam na identificação e na distinção
ser submetido aos novos interlocutores (ele e alunos). do eu, do outro e do nós no tempo; das práticas e valores particu-
As pesquisas históricas desenvolvidas a partir de diversidade lares de indivíduos ou grupos e dos valores que são coletivos em
de documentos e da multiplicidade de linguagens têm aberto por- uma época; dos consensos e/ou conflitos entre indivíduos e entre
tas para o educador explorar diferentes fontes de informação como grupos em sua cultura e em outras culturas; dos elementos próprios
material didático e desenvolver métodos de ensino que, no tocante deste tempo e dos específicos de outros tempos históricos; das con-
ao aluno, favorecem a aprendizagem de procedimentos de pesqui- tinuidades e descontinuidades das práticas e das relações humanas
sa, análise, confrontação, interpretação e organização de conhe- no tempo; e da diversidade ou aproximação entre essas práticas e
cimentos históricos escolares. Essas são experiências e vivências relações em um mesmo espaço ou nos espaços.
importantes para os estudantes distinguirem o que é realidade e o A construção de noções interfere nas estruturas cognitivas do
que é representação, refletirem sobre a especificidade das formas aluno, modificando a maneira como ele compreende os elementos
de representação e comunicação utilizadas hoje e em outros tem- do mundo e as relações que esses elementos estabelecem entre si.
pos e aprenderem a extrair informações de documentos (das suas Isso significa dizer que quando o estudante apreende uma noção,
formas e conteúdos) para o estudo, a reflexão e a compreensão de grande parte do que ele sabe e pensa é reorganizado a partir dela.
realidades sociais e culturais. Na medida em que o ensino de História lhe possibilita construir

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noções, ocorrem mudanças no seu modo de entender a si mesmo, O domínio das noções de diferença, semelhança, transforma-
os outros, as relações sociais e a História. Os novos domínios cog- ção e permanência possibilita ao aluno estabelecer relações e, no
nitivos do aluno podem interferir, de certo modo, nas suas relações processo de distinção e análise, adquirir novos domínios cogniti-
pessoais e sociais e nos seus compromissos e afetividades com as vos e aumentar o seu conhecimento sobre si mesmo, seu grupo,
classes, os grupos sociais, as culturas, os valores e as gerações do sua região, seu país, o mundo e outras formas de viver e outras
passado e do futuro. práticas sociais, culturais, políticas e econômicas construídas por
A percepção do “outro” (diferente) e do “nós” (semelhante) é diferentes povos.
diversa em cada cultura e no tempo. Ela depende de informações As atividades escolares com essas noções também evidenciam
e de valores sociais historicamente construídos. É sempre mediada para o aluno as dimensões da História entendida como conheci-
por comportamentos e por experiências pessoais e da sociedade mento, experiência e prática social. Contribui, assim, para desen-
em que se vive. Em diferentes momentos da História, indivíduos, volver sua formação intelectual, para fortalecer seus laços de iden-
grupos e povos conheceram as desigualdades, as igualdades, as tidade com o presente e com gerações passadas e para orientar suas
identidades, as diferenças, os consensos e os conflitos, seja na con- atitudes como cidadão no mundo de hoje.
vivência social, espacial, política, econômica, cultural e religiosa, A seu modo, o ensino de História pode favorecer a formação
seja na convivência entre etnias, sexos e idades. Esses convívios do estudante como cidadão, para que assuma formas de partici-
mantiveram relações com valores, padrões de comportamentos e pação social, política e atitudes críticas diante da realidade atual,
atitudes de identificação, distinção, equiparação, segregação, sub- aprendendo a discernir os limites e as possibilidades de sua atua-
missão, dominação, luta ou resignação, entre aqueles que se con- ção, na permanência ou na transformação da realidade histórica na
sideravam iguais, inferiores ou superiores, próximos ou distantes, qual se insere. Essa intencionalidade não é, contudo, esclarecedora
conhecidos ou desconhecidos, compatriotas ou estrangeiros. nela mesma. É necessário que a escola e seus educadores definam
Hoje em dia, a percepção do “outro” e do “nós” está relacio- e explicitem para si e junto com as gerações brasileiras atuais o
nada à possibilidade de identificação das diferenças e, simultanea- significado de cidadania e reflitam sobre suas dimensões históri-
mente, das semelhanças. A sociedade atual solicita que se enfrente cas.
a heterogeneidade e que se distinga as particularidades dos grupos A ideia de cidadania foi inicialmente construída em uma épo-
e das culturas, seus valores, interesses e identidades. Ao mesmo ca e em uma sociedade, mas foi reconstruída por outras épocas
tempo, ela demanda que o reconhecimento das diferenças não e culturas. A cidadania não é compreendida de modo semelhante
fundamente relações de dominação, submissão, preconceito ou por todos os indivíduos e grupos hoje no Brasil, como não era em
desigualdade. Todavia, esse não é um exercício fácil. Ao contrário, outras épocas.
É diferente ainda do sentido atribuído pelos atenienses da épo-
requer o esforço e o desejo de reconhecer o papel que é exercido
ca de Péricles ou pelos revolucionários franceses de 1789, nem é
pelas mediações construídas por experiências sociais e culturais
idêntica às práticas e crenças da população norte-americana atual.
na organização de valores, que sugerem, mas não impõem, o que é
Os sentidos que a palavra assume para os brasileiros incluem os
bom, mau, belo, feio, superior, inferior, igual, perfeito ou imperfei-
demais sentidos historicamente construídos, mas ultrapassam os
to, puro ou impuro; que orientam, mas não restringem, as ações de
seus contornos, incorporando problemáticas e debates especifica-
aproximação, distanciamento, isolamento, assimilação, rejeição,
mente nacionais, que são e que foram moldados, no presente e no
submissão ou indiferença; e que possibilitam o conhecimento ou
passado, por indivíduos, grupos, classes, instituições, governos e
o desconhecimento da presença ou da existência da diversidade
Estado e, também, nas suas inter-relações.
individual, de grupo, de classe ou de culturas. Para se formar cidadãos conscientes e críticos da realidade em
A percepção da alteridade está relacionada à distinção, de que estão inseridos, é necessário fazer escolhas pedagógicas pelas
modo consciente, das diferenças, das lutas e dos conflitos internos quais o estudante possa conhecer as problemáticas e os anseios
aos grupos sociais ou presentes entre aqueles que vivem ou vive- individuais, de classes e de grupos local, regional, nacional e inter-
ram em outro local, tempo ou sociedade. E está relacionada à cons- nacional que projetam a cidadania como prática e ideal; distinguir
trução de uma sensibilidade ou à consolidação de uma vontade de as diferenças do significado de cidadania para vários povos; e co-
acolher a produção interna das diferenças e de moldar valores de nhecer conceituações históricas delineadas por estudiosos do tema
respeito por elas. em diferentes épocas.
A percepção do nós, por sua vez, está ligada ao desejo de Do ponto de vista da historiografia e do ensino de História, a
reconhecimento de semelhanças entre o eu e outros, na busca de questão da cidadania tem sido debatida como um problema funda-
identificação de elementos comuns no grupo local, na população mental das sociedades deste final de milênio.
nacional ou nos outros grupos e povos próximos ou distantes no Se em outras épocas a sua abrangência estava relacionada
tempo e no espaço. principalmente à questão da participação política no Estado, alian-
O trabalho com noções de transformação e de permanência, do-se à questão dos direitos sociais, hoje sua dimensão tem sido
envolvendo especificamente a dimensão temporal, está relaciona- sistematicamente ampliada para incluir novos direitos conforme
do, por outro lado, à percepção de que o eu e o nós do tempo as condições de vida do mundo contemporâneo. Têm sido reava-
presente são distintos de outros de outros tempos, que viviam, liadas as contradições e as tensões manifestas na realidade ligadas
compreendiam o mundo, trabalhavam, vestiam-se e se relaciona- ao distanciamento entre os direitos constitucionais e as práticas
vam de outra maneira. E está relacionado, simultaneamente, com cotidianas. Assim, a questão da cidadania envolve hoje novos te-
a compreensão de que o outro é, também, o antepassado, aquele mas e problemas tais como, dentre outros: o desemprego; a se-
que legou uma história e um mundo específico para ser vivido e gregação étnica e religiosa; o reconhecimento da especificidade
transformado. cultural indígena; os novos movimentos sociais; o desrespeito pela

Didatismo e Conhecimento 11
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vida e pela saúde; a preservação do patrimônio histórico-cultural; É, muitas vezes, a escola que cria estímulos ou significados
a preservação do meio ambiente; a ausência de ética nos meios de para lembrar ou silenciar sobre este ou aquele evento, esta ou
comunicação de massa; o crescimento da violência e da crimina- aquela imagem, este ou aquele processo.
lidade. Algumas das informações e questões históricas, adquiridas
As questões envolvendo a cidadania só podem ser entendidas de modo organizado ou fragmentado, são incorporadas significa-
em dimensão histórica. A luta pela terra, por exemplo, tem envol- tivamente pelo adolescente, que as associa, relaciona, confronta e
vido gerações. Os territórios indígenas, reduzidos pela expansão generaliza. O que se torna significativo e relevante consolida seu
da colonização européia e pelo avanço das fronteiras agrícolas aprendizado.
e minerais, até hoje pedem políticas públicas efetivas. As terras O que ele aprende fundamenta a construção e a reconstrução
dos antigos quilombos estão em pleno debate. Do mesmo modo, de seus valores e práticas cotidianas e as suas experiências sociais
é possível falar da longevidade e profundidade da questão étnica e culturais. O que o sensibiliza molda a sua identidade nas rela-
construída por quatrocentos anos de escravidão e perpetuada pela
ções mantidas com a família, os amigos, os grupos mais próximos
desigualdade social e pelo preconceito racial. Assim, tanto a exclu-
e mais distantes e com a sua geração. O que provoca conflitos e
são como a luta em prol de direitos e igualdades marcam a questão
da cidadania no Brasil. dúvidas estimula-o a distinguir, explicar e dar sentido para o pre-
Todas essas considerações são importantes para explicitar ob- sente, o passado e o futuro, percebendo a vida como suscetível de
jetivos, conteúdos e metodologias do ensino de História propostos transformação.
para os dois primeiros ciclos do ensino fundamental e, neste do- É preciso diferenciar, entretanto, o saber que os alunos adqui-
cumento, também para o terceiro e o quarto ciclos. Existe, nesse rem de modo informal daquele que aprendem na escola. No espaço
sentido, a preocupação de manter coerência e continuidade na for- escolar, o conhecimento é uma reelaboração de muitos saberes,
mação do estudante ao longo do curso a ele oferecido. constituindo o que se chama de saber histórico escolar. Esse saber
Aprender e ensinar História no ensino fundamental Como se é proveniente do diálogo entre muitos interlocutores e muitas fon-
aprende História? Como se ensina História? Não se aprende His- tes e é permanentemente reconstruído a partir de objetivos sociais,
tória apenas no espaço escolar. As crianças e jovens têm acesso a didáticos e pedagógicos. Dele fazem parte as tradições de ensino
inúmeras informações, imagens e explicações no convívio social e da área; as vivências sociais de professores e alunos; as represen-
familiar, nos festejos de caráter local, regional, nacional e mundial. tações do que e como estudar; as produções escolares de docentes
São atentos às transformações e aos ciclos da natureza, envolvem- e discentes; o conhecimento fruto das pesquisas dos historiadores,
-se com os ritmos acelerados da vida urbana, da televisão e dos educadores e especialistas das Ciências Humanas; as formas e con-
videoclipes, são seduzidos pelos apelos de consumo da sociedade teúdos provenientes dos mais diferentes materiais utilizados; as in-
contemporânea e preenchem a imaginação com ícones recriados a formações organizadas nos manuais e as informações difundidas
partir de fontes e épocas diversas. Nas convivências entre as gera-
pelos meios de comunicação.
ções, nas fotos e lembranças dos antepassados e de outros tempos,
Nas suas relações com o conhecimento histórico, o ensino e a
crianças e jovens socializam-se, aprendem regras sociais e costu-
mes, agregam valores, projetam o futuro e questionam o tempo. aprendizagem da História envolvem seleção criteriosa de conteú-
Rádio, livros, enciclopédias, jornais, revistas, televisão, cine- dos e métodos que contemplem o fato, o sujeito e o tempo.
ma, vídeo e computadores também difundem personagens, fatos, Os eventos históricos eram tradicionalmente apresentados
datas, cenários e costumes que instigam meninos e meninas a pen- por autores de modo isolado, deslocados de contextos mais am-
sarem sobre diferentes contextos e vivências humanas. plos, como muitas vezes ocorria com a história política, em que
Nos Jogos Olímpicos, no centenário do cinema, nos cinqüen- se destacavam apenas ações de governantes e heróis. Hoje preva-
ta anos da bomba de Hiroshima, nos quinhentos anos da chegada lece a ênfase nas relações de complementariedade, continuidade,
dos europeus à América, nos cem anos de República e da abolição descontinuidade, circularidade, contradição e tensão com outros
da escravidão, os meios de comunicação reconstituíram com gra- fatos de uma época e de outras épocas. Destacam-se eventos que
vuras, textos, comentários, fotografias e filmes, glórias, vitórias, pertencem à vida política, econômica, social e cultural e também
invenções, conflitos que marcaram tais acontecimentos. aqueles relacionados à dimensão artística, religiosa, familiar, ar-
Os jovens sempre participam, a seu modo, desse trabalho quitetônica, científica, tecnológica.
da memória, que sempre recria e interpreta o tempo e a História. Valorizam-se eventos do passado mais próximo e/ou mais dis-
Apreendem impressões dos contrastes das técnicas, dos detalhes tante no tempo. Há a preocupação com as mudanças e/ou com as
das construções, dos traçados das ruas, dos contornos das paisa- permanências na vida das sociedades.
gens, dos desenhos moldados pelas plantações, do abandono das De modo geral, pode-se dizer que os fatos históricos remetem
ruínas, da desordem dos entulhos, das intenções dos monumentos,
para as ações realizadas por indivíduos e pelas coletividades, en-
que remetem ora para o antigo, ora para o novo, ora para a sobre-
volvendo eventos políticos, sociais, econômicos e culturais.
posição dos tempos, instigando-os a intuir, a distinguir e a olhar
o presente e o passado com os olhos da História. Aprendem que No caso dos sujeitos históricos, há trabalhos que valorizam
há lugares para guarda e preservação da memória, como museus, atores individuais, quer sejam lideranças políticas, militares, di-
bibliotecas, arquivos, sítios arqueológicos. plomáticas, intelectuais ou religiosas, quer sejam homens anôni-
Entre os muitos momentos, meios e lugares que sugerem a mos tomados como exemplos para permitir o entendimento de
existência da História, estão, também, os eventos e os conteúdos uma coletividade. Outros trabalhos preocupam-se com sujeitos
escolares. Os jovens, as crianças e suas famílias agregam às suas históricos coletivos, destacando a identidade e/ou a discordância
vivências, informações, explicações e valores oferecidos nas salas entre grupos sociais. Em ambos os casos, há uma preocupação em
de aula. relacionar tais atores com valores, modos de viver, pensar e agir.

Didatismo e Conhecimento 12
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
De modo geral, pode-se dizer que os sujeitos históricos são in- como intervir e quais as situações de ensino-aprendizagem mais
divíduos, grupos ou classes sociais participantes de acontecimen- significativas ao longo do ciclo. Para atender à diversidade de si-
tos de repercussão coletiva e/ou imersos em situações cotidianas tuações que encontra quando se coloca diante dos alunos, deve
na luta por transformações ou permanências. conhecer uma variedade de atividades didáticas. Nessa linha, deve
No caso do tempo histórico, de uma tradição marcada por da- aprender a registrar as situações significativas vividas no processo
tas alusivas a sujeitos e fatos, passa-se a enfatizar diferentes níveis de ensino, procurar conhecer experiências de outros docentes e so-
e ritmos de durações temporais. As durações estão relacionadas à cializar as suas com outros educadores.
percepção dos intervalos das mudanças ou das permanências nas Um importante instrumento do professor para avaliar a coe-
vivências humanas. O ritmo relaciona-se com a percepção da ve- rência de seu trabalho, identificar as pistas para recriá-lo, construir
locidade das mudanças históricas. um acervo de experiências didáticas e socializar suas vivências de
O tempo histórico baseia-se em parte no tempo instituciona- sala de aula, é a produção de relatórios escritos.
lizado tempo cronológico e o transforma à sua maneira. O tempo Com isso, ele estimula o exercício de explicitar em uma co-
cronológico calendários e datas possibilita referenciar o lugar dos municação com as outras pessoas às intenções, as reflexões e as
momentos históricos na sucessão do tempo, mas pode remeter à fundamentações, as hipóteses dos alunos e as intervenções peda-
compreensão de acontecimentos datados relacionados a um deter- gógicas, recuperando, entre inúmeros aspectos, aqueles que pode-
minado ponto de uma longa e infinita linha numérica. Os aconteci- riam ser modificados ou recriados em outra oportunidade.
mentos identificados dessa forma podem assumir uma concepção
de uniformidade, de regularidade e, ao mesmo tempo, de sucessão OBJETIVOS GERAIS DE HISTÓRIA
crescente e cumulativa. A sequência cronológica dos acontecimen-
tos pode sugerir que toda a humanidade seguiu ou deveria seguir o Espera-se que ao longo do ensino fundamental os alunos
mesmo percurso, criando a idéia de povos atrasados e civilizados. gradativamente possam ampliar a compreensão de sua realidade,
Na prática dos historiadores, o tempo não é concebido como especialmente confrontando-a e relacionando-a com outras reali-
um fluxo uniforme, em que os fenômenos são mergulhados tais dades históricas, e, assim, possam fazer suas escolhas e estabelecer
como os corpos num rio cujas correntezas levam sempre para mais critérios para orientar suas ações. Nesse sentido, os alunos deverão
longe. O tempo da História é o tempo intrínseco aos processos e ser capazes de:
eventos estudados. São ritmados não por fenômenos astronômicos
ou físicos, mas por singularidades dos processos, nos pontos onde - Identificar relações sociais no seu próprio grupo de convívio,
eles mudam de direção ou de natureza. As várias temporalidades na localidade, na região e no país, e outras manifestações estabele-
e ritmos da História são categorias produzidas por aquele que es- cidas em outros tempos e espaços;
tudam os acontecimentos no tempo. Mas, na perspectiva da reali- - Situar acontecimentos históricos e localizá-los em uma mul-
dade social e histórica, os indivíduos e os grupos vivem os ritmos tiplicidade de tempos; reconhecer que o conhecimento histórico é
das mudanças, das resistências e das permanências. Imersos no parte de um conhecimento interdisciplinar; compreender que as
tempo, apreendendo e sentindo os sinais de sua existência vivem, histórias individuais são partes integrantes de histórias coletivas
simultaneamente, as diferentes temporalidades. - Conhecer e respeitar o modo de vida de diferentes grupos,
A apropriação de noções, métodos e temas próprios do conhe- em diversos tempos e espaços, em suas manifestações culturais,
cimento histórico, pelo saber histórico escolar, não significa que econômicas, políticas e sociais, reconhecendo semelhanças e di-
se pretende fazer do aluno um “pequeno historiador” e nem que ferenças entre eles, continuidades e descontinuidades, conflitos e
ele deve ser capaz de escrever monografias. A intenção é que ele contradições sociais;
desenvolva a capacidade de observar, de extrair informações e de - Questionar sua realidade, identificando problemas e possí-
interpretar algumas características da realidade do seu entorno, de veis soluções, conhecendo formas político-institucionais e orga-
estabelecer algumas relações e confrontações entre informações nizações da sociedade civil que possibilitem modos de atuação;
atuais e históricas, de datar e localizar as suas ações e as de outras - Dominar procedimentos de pesquisa escolar e de produção
pessoas no tempo e no espaço e, em certa medida, poder relativizar de texto, aprendendo a observar e colher informações de diferentes
questões específicas de sua época. paisagens e registros escritos, iconográficos, sonoros e materiais;
No processo de aprendizagem, o professor é o principal res- - Valorizar o patrimônio sociocultural e respeitar a diversidade
ponsável pela criação das situações de trocas, de estímulo na cons- social, considerando critérios éticos;
trução de relações entre o estudado e o vivido, de integração com - Valorizar o direito de cidadania dos indivíduos, dos grupos e
outras áreas de conhecimento, de possibilidade de acesso dos alu- dos povos como condição de efetivo fortalecimento da democra-
nos a novas informações, de confrontos de opiniões, de apoio ao cia, mantendo-se o respeito às diferenças e a luta contra as desi-
estudante na recriação de suas explicações e de transformação de gualdades.
suas concepções históricas. Nesse sentido, a avaliação não deve
acontecer apenas em determinados momentos do calendário esco- CONTEÚDOS DE HISTÓRIA:
lar. A avaliação faz parte do trabalho do professor para diagnosti- CRITÉRIOS DE SELEÇÃO E ORGANIZAÇÃO
car quando cabe a ele problematizar, confrontar, informar, instigar
questionamentos, enfim criar novas situações para que o aprendi- É consensual a impossibilidade de estudar a História de todos
zado aconteça. os tempos e sociedades.
Assim, a avaliação não revela simplesmente as conquistas Torna-se necessário fazer seleções baseadas em determinados
pessoais dos jovens ou do grupo de estudantes. Ela possibilita critérios para estabelecer os conteúdos a serem ensinados. A sele-
ao professor problematizar o seu trabalho, discernindo quando e ção de conteúdos na história do ensino da área tem sido variada,

Didatismo e Conhecimento 13
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
sendo feita geralmente segundo uma tradição já consolidada mas Tais problemáticas e relações orientam o estudo de aconteci-
permanentemente rearticulada de acordo com temas relevantes a mentos históricos sem a prescrição de uma ordem de graduação
cada momento histórico. espacial e sem a ordenação temporal, como se encontra no que se
Na escolha dos conteúdos, a preocupação central desta pro- denomina História Integrada.
posta é propiciar aos alunos o dimensionamento de si mesmos e de Na escolha dos conteúdos, os docentes devem considerar para
outros indivíduos e grupos em temporalidades históricas. Assim, a formação social e intelectual do aluno:
estes conteúdos procuram sensibilizar e fundamentar a compreen- - A importância da construção de relações de transformação,
são de que os problemas atuais e cotidianos não podem ser expli- permanência, semelhança e diferença entre o presente, o passado e
cados unicamente a partir de acontecimentos restritos ao presente. os espaços local, regional, nacional e mundial;
Requerem questionamentos ao passado, análises e identificação de - A construção de articulações históricas como decorrência
relações entre vivências sociais no tempo. das problemáticas selecionadas;
Isto significa que os conteúdos a serem trabalhados com os - O estudo de contextos específicos e de processos, sejam eles
alunos não se restringem unicamente ao estudo de acontecimen- contínuos ou descontínuos.
tos e conceituações históricas. É preciso ensinar procedimentos
e incentivar atitudes nos estudantes que sejam coerentes com os
A partir de problemáticas amplas optou-se por organizar os
objetivos da História.
conteúdos em eixos temáticos e desdobrá-los em subtemas, orien-
Entre os procedimentos é importante que aprendam a coletar
tando estudos interdisciplinares e a construção de relações entre
informações em bibliografias e fontes documentais diversas; se-
lecionar eventos e sujeitos históricos e estabelecer relações entre acontecimentos e contextos históricos no tempo.
eles no tempo; observar e perceber transformações, permanências, O trabalho com eixos temáticos não esgota verticalmente os
semelhanças e diferenças; identificar ritmos e durações temporais; subtemas. Por sua vez, os conteúdos contemplados nos subtemas
reconhecer autorias nas obras e distinguir diferentes versões his- não esgotam as virtualidades dos eixos temáticos e dos subtemas
tóricas; diferenciar conceitos históricos e suas relações com con- propostos. A apresentação de um amplo leque de conteúdos nos
textos; e elaborar trabalhos individuais e coletivos (textos, murais, quais se pode identificar acontecimentos, conceitos, procedimen-
desenhos, quadros cronológicos e maquetes) que organizem estu- tos e atitudes é uma sugestão para o professor fazer escolhas de
dos, pesquisas e reflexões. acordo com:
É importante que adquiram, progressivamente, atitudes de ini- - O diagnóstico que realiza dos domínios conquistados pelos
ciativa para realizar estudos, pesquisas e trabalhos; desenvolvam o alunos para estudarem e refletirem sobre questões históricas;
interesse pelo estudo da História; valorizem a diversidade cultural, - Aquilo que avalia como sendo importante para ser ensinado
formando critérios éticos fundados no respeito ao outro; demons- e que irá repercutir na formação histórica, social e intelectual do
trem suas reflexões sobre temas históricos e questões do presente; estudante;
valorizem a preservação do patrimônio sociocultural; acreditem - As problemáticas contemporâneas pertinentes à realidade
no debate e na discussão como forma de crescimento intelectu- social, econômica, política e cultural da localidade onde leciona,
al, amadurecimento psicológico e prática de estudo; demonstrem de sua própria região, do seu país e do mundo.
interesse na pesquisa em diferentes fontes — impressas, orais,
iconográficas, eletrônicas etc.; tenham uma postura colaborativa Esta é uma opção de ensino de História que privilegia a au-
no seu grupo-classe e na relação com o professor; demonstrem a tonomia e a reflexão do professor na escolha dos conteúdos e mé-
compreensão que constroem para as relações sociais e para os va- todos de ensino. É igualmente uma concepção metodológica de
lores e interesses dos grupos nelas envolvidos; expressem e testem ensino de História que incentiva o docente a criar intervenções pe-
explicações para os acontecimentos históricos; dagógicas significativas para a aprendizagem dos estudantes e que
Construam hipóteses para as relações entre os acontecimentos valoriza reflexões sobre as relações que a História, principalmente
e os sujeitos históricos; e troquem e criem ideias e informações a História do Brasil, estabelece com a realidade social vivida pelo
coletivamente.
aluno.
Para o terceiro ciclo está sendo proposto o eixo temático “His-
Os conteúdos expressam três grandes intenções:
tória das relações sociais, da cultura e do trabalho”. Para o quarto
- Contribuir para a formação intelectual e cultural dos estu- ciclo, “História das representações e das relações de poder.
dantes; Estes são recortes históricos e didáticos que procuram propi-
- Favorecer o conhecimento de diversas sociedades historica- ciar a compreensão e a interpretação de realidades históricas em
mente constituídas, por meio de estudos que considerem múltiplas suas múltiplas inter-relações, respeitando-se as características e
temporalidades; domínios dos alunos em cada ciclo.
- Propiciar a compreensão de que as histórias individuais e Os eixos temáticos e subtemas que deles derivam procuram
coletivas se integram e fazem parte da História. dar conta de duas grandes questões históricas tão clássicas quanto
atuais. A primeira refere-se aos contatos culturais, inter-relações
A proposta sugere que o professor problematize o mundo so- e confrontos entre grupos, classes, povos, culturas e nações. As
cial em que ele e o estudante estão imersos e construa relações lutas sociais de grupos e de classes, que reivindicam respeito às
entre as problemáticas identificadas e questões sociais, políticas, diferenças e igualdades, e as lutas de culturas e de etnias na defesa
econômicas e culturais de outros tempos e de outros espaços a elas de seus territórios e de suas identidades são problemas cruciais do
pertinentes, prevalecendo a História do Brasil e suas relações com mundo de hoje. São importantes temas de estudo, na medida em
a História da América e com diferentes sociedades e culturas do que buscam a compreensão da diversidade de modos de vida, de
mundo. culturas e de representações internas das sociedades e das organi-

Didatismo e Conhecimento 14
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
zações sociais. São historicamente relevantes por possibilitarem 2ª PARTE
estudos sobre trocas, intercâmbios e confrontos que contribuem
para as transformações e as permanências históricas. Favorecem TERCEIRO CICLO
a percepção dos conflitos geradores de situações de dominação, Ensino e aprendizagem
discriminação, luta igualdade e desigualdade.
A segunda questão refere-se às grandes transformações po- No terceiro ciclo, os alunos já adquiriram tanto na escolarida-
líticas e tecnológicas atuais, que têm modificado as relações de de anterior quanto no convívio social um conjunto de informações
trabalho, as relações internacionais e marcado profundamente o e reflexões de caráter histórico. Assim, no processo de ensino e de
modo de vida das populações. Os computadores estão nos bancos, aprendizagem, os professores devem considerar a importância de
nas farmácias, nos supermercados, nas escolas e nas residências. O investigar o que é de domínio dos alunos e quais são as suas hipó-
cartão magnético, o código de barras, a leitura óptica, o fac-símile teses explicativas para os temas estudados.
aceleraram as atividades cotidianas, transformando as noções hu- É preciso considerar que hoje em dia os alunos recebem um
manas de duração e percepção temporal. As grandes redes de co- grande número de informações sobre as relações interpessoais e
municação via satélite por computador, televisão, rádios, telefone, coletivas por intermédio dos meios de comunicação. Muitos têm
romperam com as distâncias entre os locais do mundo, difundindo a oportunidade de conhecer em seu próprio ambiente familiar me-
e socializando informações e redimensionando as formas de poder. mórias de outras épocas. Alguns lêem jornais, revistas e livros, vão
A mecanização da produção agrícola e a agroindústria transforma- ao cinema e ao teatro.
ram a paisagem rural, os hábitos e os valores. Muitos assistem a televisão, ouvem rádio, apreciam música,
As cidades não pararam de crescer e nelas se multiplicaram os conversam e trocam ideias com parentes e amigos, vão sozinhos à
shoppings centers, os fast food, os congestionamentos e a poluição escola, utilizam transportes coletivos, circulam pelos espaços físi-
ambiental. Na indústria, a mão-de-obra está sendo substituída gra- cos e sociais. Todas essas são vivências que lhes fornecem infor-
dativamente pelos robôs e inicia-se um processo de rompimento mações valiosas, porém fragmentadas, sobre as quais o professor,
com a produção especializada e seriada do trabalho e uma pro- por meio do diálogo, do debate e da crítica, inerentes à sua prática
funda transformação sociocultural. Mudou o ritmo de vida, assim docente, pode atuar como agregador e catalisador.
como, em outras épocas, outras revoluções tecnológicas interferi- Como sistemática permanente da ação educativa é importante
ram no destino dos povos e da humanidade. que os professores realizem diagnósticos sobre como os alunos
Não se pode negar que este tema de estudo remete para ques- estão compreendendo os temas de estudo e identifiquem quais os
tões atuais e históricas, favorecendo a percepção de transforma- procedimentos e atitudes que favorecem a compreensão dos temas
ções na relação dos homens entre si, com a natureza e com as for- em dimensões históricas. Nas situações de intervenção pedagógi-
mas de apreensão da realidade e do tempo. ca, pode propor questionamentos, orientar pesquisas, confrontar
Os conteúdos estão articulados, igualmente, com os temas versões históricas, desenvolver trabalhos com documentos, reali-
transversais, privilegiando: zar visitas e/ou estudo do meio, fornecer novas informações com-
- As relações de trabalho existentes entre os indivíduos e as plementares e/ou contraditórias, promover momentos de sociali-
classes, envolvendo a produção de bens, o consumo, as desigual- zação e debates, selecionar materiais com explicações, opiniões e
dades sociais, as transformações das técnicas e das tecnologias e argumentos diferenciados e propor resumos coletivos.
a apropriação ou a expropriação dos meios de produção pelos tra- É fundamental que ao longo de sua escolaridade os estudantes
balhadores; transformem suas reflexões sobre as vivências sociais no tempo,
- As diferenças culturais, étnicas, etárias, religiosas, de costu- considerando a diversidade de modos de vida em uma mesma épo-
me, gênero e poder econômico, na perspectiva do fortalecimento ca e em épocas diferentes, as relações entre acontecimentos nos
de laços de identidade e reflexão crítica sobre as consequências contextos históricos e as relações entre os acontecimentos ao longo
históricas das atitudes de discriminação e segregação; de processos contínuos e descontínuos. É igualmente importante
- As lutas e as conquistas políticas travadas por indivíduos, que aprendam procedimentos para realizar pesquisas históricas,
classes e movimentos sociais; para discernir e refletir criticamente sobre os indícios das manifes-
- A relação entre o homem e a natureza, nas dimensões cul- tações culturais, dos interesses econômicos e políticos e dos valo-
turais e materiais, individuais e coletivas, contemporâneas e his- res presentes na sua realidade social.
tóricas, envolvendo a construção de paisagens e o discernimento E que possam refletir sobre a importância dos estudos históri-
das formas de manipulação, uso e preservação da fauna, flora e cos e assumir atitudes éticas, criteriosas, reflexivas, de respeito e
recursos naturais; de comprometimento com a realidade social.
- Reflexões históricas sobre saúde, higiene, vida e morte, do- No sentido de contribuir para que os alunos compreendam a
enças endêmicas e epidêmicas e as drogas; realidade atual em perspectiva histórica, é significativo o desen-
- As imagens, representações e valores em relação ao corpo, volvimento de atividades nas quais possam questionar o presente,
à sexualidade, aos cuidados e embelezamento do indivíduo, aos identificar questões internas às organizações sociais e suas rela-
tabus coletivos, à organização familiar, à educação sexual e à dis- ções em diferentes esferas da vida em sociedade, identificar re-
tribuição de papéis entre homens, mulheres, crianças e velhos nas lações entre o presente e o passado, discernindo semelhanças e
diferentes sociedades historicamente constituídas; diferenças, permanências e transformações no tempo.
- Os acordos ou desacordos que favorecem ou desfavorecem Nessa faixa de idade do estudante, sugere-se ao professor
convivências humanas mais igualitárias e pacíficas e que podem iniciar o estudo dos temas na perspectiva da História do cotidia-
auxiliar no respeito à paz, à vida e à concepção e prática da alte- no. Essa é uma escolha didática para os alunos distinguirem suas
ridade. vivências pessoais dos hábitos de outras épocas e relativizarem,

Didatismo e Conhecimento 15
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
em parte, os padrões de comportamento do seu próprio tempo. É O primeiro subtema sugere pesquisas e estudos históricos
possível destacar a maneira de as pessoas trabalharem, vestirem- sobre as relações entre as sociedades e a natureza. Entre muitas
-se, pensarem, conviverem, evidenciando relações sociais, econô- possibilidades, podem ser trabalhadas questões pertinentes aos
micas e políticas mais amplas, que caracterizam o modo de vida recursos naturais, às matérias-primas e à produção de alimentos,
das sociedades. Na dimensão particular da vida, na repetição de vestimentas, utensílios e ferramentas, aos mitos sobre a origem
hábitos no dia-a-dia, existem experiências acumuladas ao longo de do mundo e do homem, às relações entre os ciclos naturais e as
processos históricos. organizações culturais, às explicações e valores construídos para
Os alunos já dominam algumas noções temporais e conhecem os elementos da natureza, às representações da natureza na arte, ao
o calendário atual no início do terceiro ciclo. Cabe ao professor tipo de propriedade e uso da terra, aos patrimônios ambientais, às
identificar seus conhecimentos e desenvolver trabalhos mais apro- relações entre a natureza e as atividades de lazer.
fundados sobre padrões de medida de tempo e respectivas histó- O segundo subtema sugere pesquisas e estudos históricos so-
rias, para que possam, de modo autônomo, localizar fatos e sujei- bre como as sociedades estruturaram em diferentes épocas suas
tos nas devidas épocas e, dessa forma, ao longo da escolaridade, relações sociais de trabalho, como construíram organizações so-
aprenderem a discerni-los por critérios de anterioridade, posterio- ciais mais amplas e como cada sociedade organizava a divisão de
ridade e simultaneidade. Cabe ao professor, em diferentes momen- trabalho entre indivíduos e grupos sociais. Nesse sentido, podem
ser pesquisadas, relacionadas, confrontadas e analisadas diferen-
tos de estudo, incentivar a construção de relações entre eventos,
tes formas de trabalho, como o comunitário, o servil, o escravo,
para que os estudantes possam caracterizar contextos históricos e
o trabalho livre, o trabalho assalariado; a divisão de trabalho no
dimensionar suas durações, identificar indícios e ritmos das suas
espaço doméstico, no espaço urbano, no rural e na indústria; os
transformações e das suas permanências no tempo. tipos de remuneração, as diferenças entre sexos, idades, etnias e
formação escolar; e os valores culturais atribuídos ao trabalho ma-
Objetivos para o terceiro ciclo nual e criativo.
Os dois subtemas se desdobram em conteúdos apresentados
Espera-se que ao final do terceiro ciclo os alunos sejam ca- apenas como sugestões de possibilidades, que não devem ser tra-
pazes de: balhados na sua integridade.
O professor pode selecionar alguns temas históricos, alguns
- Conhecer realidades históricas singulares, distinguindo dife- procedimentos de estudo e atitudes importantes de serem valoriza-
rentes modos de convivência nelas existentes; dos de acordo com o diagnóstico que faz dos domínios dos alunos
- Caracterizar e distinguir relações sociais da cultura com a e de acordo com questões contemporâneas pertinentes à realidade
natureza em diferentes realidades históricas; social, econômica, política e cultural, da localidade onde mora, da
- Caracterizar e distinguir relações sociais de trabalho em di- sua região, do seu país e do mundo.
ferentes realidades históricas; Por exemplo, se escolher como recorte a alimentação, no sub-
- Refletir sobre as transformações tecnológicas e as modifica- tema “As relações sociais e a natureza, é possível fazer um levanta-
ções que elas geram no modo de vida das populações e nas rela- mento com os alunos sobre os alimentos cotidianos, identificando
ções de trabalho; os que são naturais, os industrializados, onde foram produzidos, de
- Localizar acontecimentos no tempo, dominando padrões de onde são originários, como são preparados etc. Como a alimenta-
medida e noções para distingui-los por critérios de anterioridade, ção atual tem uma história, é possível pesquisar em livros, analisar
posterioridade e simultaneidade; relatos de viajantes, confrontar desenhos e pinturas para identificar
- Utilizar fontes históricas em suas pesquisas escolares; quais eram os alimentos na época da chegada dos europeus ao Bra-
- Ter iniciativas e autonomia na realização de trabalhos indi- sil, como eram obtidos, servidos e consumidos pelas populações
viduais e coletivos. indígenas; quais as diferenças e semelhanças dos consumidos em
geral pelos europeus, distinguindo quais eram, como eram produ-
Conteúdos para o terceiro ciclo zidos, adquiridos, preparados, comercializados, se houve adapta-
ção à nova terra, se trouxeram tais alimentos de outras partes do
mundo e se havia diferença entre a alimentação dos mais pobres,
Para o terceiro ciclo está sendo proposto o eixo temático
dos senhores, dos escravos, por região etc. Um trabalho semelhan-
“História das relações sociais, da cultura e do trabalho”, que se
te pode ser feito em relação às outras épocas históricas.
desdobra nos dois subtemas “As relações sociais e a natureza” e Na reflexão a ser feita ao longo do ano sobre as escolhas de
“As relações de trabalho”. Cabe ressaltar que essa separação é me- conteúdos, as atividades propostas e os materiais didáticos sele-
ramente analítica. cionados, é importante que o professor avalie o trabalho desenvol-
O eixo temático e os subtemas remetem para o estudo de ques- vido, seus resultados, o envolvimento dos alunos e replaneje ao
tões sociais relacionadas à realidade dos alunos; acontecimentos longo do ano e de um ano para o outro.
históricos e suas relações e durações no tempo; discernimento de
sujeitos históricos como agentes de transformações e/ou perma- EIXO TEMÁTICO: HISTÓRIA DAS RELAÇÕES SO-
nências sociais; abordagens históricas e suas aproximações e di- CIAIS,
ferenças; e conceitos históricos e seus contextos. Solicitam, por DA CULTURA E DO TRABALHO
sua vez, atividades e situações didáticas que favoreçam a apren-
dizagem de procedimentos de pesquisa, observação, identificação, O eixo temático para o terceiro ciclo orienta estudos de rela-
confrontação, distinção e reflexão; e de atitudes de comprometi- ções entre a realidade histórica brasileira, a História da América,
mento, envolvimento, respeito, ética, colaboração e amadureci- da Europa, da África e de outras partes do mundo. Está organizado
mento moral e intelectual. de modo a permitir o conhecimento de momentos históricos nas

Didatismo e Conhecimento 16
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
suas singularidades, favorecer estudos de processos e relações de Aparecem em uma sequência que pretende expor a impor-
semelhanças, diferenças, permanências e transformações entre di- tância que as Histórias brasileiras, americana, europeia e africana
ferentes épocas. possuem para a compreensão das dimensões históricas da realida-
Propõe-se que as questões atuais sensibilizem os alunos para de social dos alunos. Isso não significa que as diferentes histórias
o estudo do passado. devam ser estudadas em momentos distintos ou seguindo uma se-
Conhecendo outras realidades temporais e espaciais os alu- quência de hierarquia espacial. Prevalecem os estudos das relações
nos podem dimensionar a sua inserção e adesão a grupos sociais no tempo, as reflexões sobre as contradições sociais e sobre os
diversificados. processos históricos contínuos e descontínuos.
Os subtemas propostos estão relacionados a muitas situações As relações sociais, a natureza e a terra:
do presente. Cabe ao professor identificá-las e selecionar uma ou
mais que possam orientar a escolha dos conteúdos a serem estu- • - Relações entre a sociedade, a cultura e a natureza, em dife-
dados. Tais escolhas podem e devem ser feitas em conjunto com rentes momentos da História brasileira:
outras disciplinas, enriquecendo o conhecimento que é por essên- * primeiros homens no território brasileiro, povos coletores
cia interdisciplinar. e caçadores, a natureza representada na arte, nos mitos e nos ritos
Exemplos de questões que podem orientar estudos, pesquisas dos povos indígenas;
e atividades diversas do subtema “As relações sociais e a natureza: * natureza e povos indígenas na visão dos europeus, explo-
a produção e o consumo de alimentos; os sistemas de irrigação no ração econômica de recursos naturais pelos colonizadores euro-
campo; o abastecimento de água nas cidades e o saneamento urba- peus, agricultura de subsistência e comercial, criação de animais;
no; as hidrelétricas, a produção de energia e a procura por novas os sertões, os caminhos, a conquista, a ocupação e a produção e a
fontes energéticas; os transportes nos rios, nos mares, na terra e no extração de riquezas naturais;
ar; as reservas naturais, as praias e as estâncias de água, o lazer e * a extração, produção e comercialização de alimentos; ali-
o turismo; a poluição da água, do ar, as campanhas ambientalistas; mentos da terra e aqui adaptados; costumes e práticas alimentares;
a sobrevivência das espécies e sua relação com o homem; a natu- usos da água, costumes, acesso e abastecimento;
reza no espaço doméstico; parques e rios nas grandes cidades; a * usos da terra, diferentes formas de posse e propriedade da
natureza na arte; o imaginário sobre as águas, os rios, os mares e terra; locais de povoamento e suas relações com o mar, os rios e o
as florestas; o regime de propriedade privada e a posse coletiva da relevo; meios de transporte e interferências na natureza na implan-
terra; os mitos e a religiosidade que falam da relação do homem tação de infraestruturas; natureza transformada na implantação de
com a natureza; o tempo medido pelo relógio e outras concepções serviços e equipamentos urbanos;
de tempo. * técnicas e instrumentos de transformação de elementos da
Para o subtema “As relações de trabalho”” outros exemplos natureza; matérias-primas e a indústria;
podem ser elencados: a diversidade de atividades e profissões que * a natureza, o corpo, a sexualidade e os adornos; a natureza
convivem em uma mesma sociedade e que existiram em diferentes nas manifestações artísticas brasileiras;
tempos; a divisão de trabalho e sua transformação no tempo; a * paisagens naturais, rurais e urbanas; memórias das paisa-
divisão de tarefas no espaço doméstico; as crianças e o trabalho; o gens; relações entre natureza e cidade; impacto social da destrui-
trabalho da mulher; as técnicas, as máquinas, a informatização e a ção das matas, florestas e suas formas de vida; natureza e econo-
robotização; a relação entre sexo, idade, etnia e formação escolar mia do turismo.
na remuneração do trabalho; os tipos de remuneração do trabalho;
as políticas governamentais e sindicais de salário; direitos sociais - Relações entre a sociedade, a cultura e a natureza na História
do trabalho. dos povos americanos na Antiguidade e entre seus descendentes
Algumas possibilidades de conteúdo exemplificadas abaixo não hoje:
esgotam todas as alternativas de estudos históricos que os subtemas * primeiros povos no continente americano; povos coletores
podem sugerir. O professor não deve ter a preocupação de estudar e caçadores; povos ceramistas, pescadores e agrícolas; a criação
todos os exemplos apresentados. A ideia é que se problematize a de animais;
realidade atual e se identifique um ou mais problemas para estudo * a natureza nos mitos, nos ritos e na religião; ciclos naturais
em dimensões históricas em espaços próximos e mais distantes. A e calendários;
partir daí, devem ser selecionados conteúdos da História brasileira, * uso da água, seu represamento, irrigação e adubos; usos da
da História da América, da Europa, da África e do Oriente e articula- terra; adaptação cultural à diversidade natural;
dos em uma organização que permita ao aluno questionar, aprofun- * alimentação e recursos naturais nas habitações, vestimentas
dar, confrontar e refletir sobre as amplitudes históricas da realidade e utensílios;
atual, como são construídos os processos dinâmicos e contraditórios * natureza nas cidades; meios de transporte e interferências
das relações entre as culturas e os povos. na natureza na implantação de infraestruturas; paisagens naturais,
Os conteúdos listados a partir dos subtemas incluem aconteci- rurais e urbanas;
mentos históricos pontuais e problemáticas gerais que favorecem * natureza e povos da América na visão dos europeus; explo-
estudos das suas relações no tempo. No segundo caso, algumas ração econômica de recursos naturais pelos colonizadores euro-
vezes as mesmas problemáticas aparecem de modo recorrente na peus;
História de diferentes locais. * a natureza nas manifestações artísticas americanas.
Os conteúdos da História do Brasil, da América e do mundo
estão agrupados separadamente, a fim de permitir a especificação - Relações entre a sociedade, a cultura e a natureza, na Histó-
de acontecimentos históricos pertinentes. ria de povos do mundo em diferentes tempos:

Didatismo e Conhecimento 17
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
* mitos de origem do mundo e do homem; a natureza nos - Relações de trabalho em diferentes momentos da História
mitos, ritos e na religião; religiosidade, deuses zoomorfos, divin- dos povos americanos:
dades femininas e masculinas e valores sobre a vida e a morte; * o trabalho entre os povos indígenas hoje; produção de ali-
relações entre ciclos naturais, organizações culturais e econômicas mentos e de utensílios entre populações indígenas coletoras e
e calendários; caçadoras em diferentes épocas; divisão de trabalho nas culturas
* origem do homem na África, povos coletores e caçadores, agrícolas e urbanas;
os rios e a revolução agrícola na África e no Oriente, criação de * escravidão e servidão entre os antigos povos americanos;
animais; alimentação, seu armazenamento e comercialização; do- europeus e escravidão indígena; religiosos e as missões;
mínio dos rios e mares; o conhecimento, as representações e o ima- * mineração, pecuária e monocultura colonial; comerciantes e
ginário do mar; expansão marítima e comercial europeia e oriental; mercadores de escravos; escravidão indígena e africana na Amé-
exploração e comercialização das riquezas naturais da África; de- rica colonial;
senvolvimento da agricultura e a tecnologia agrícola; * a manufatura espanhola e inglesa; a industrialização; o arte-
sanato; trabalhadores das minas e suas lutas sociais e por melhores
- A natureza, o corpo, a sexualidade e os adornos dos povos
condições de trabalho.
africanos e europeus; a natureza no imaginário europeu medieval
e renascentista; a natureza nas manifestações artísticas africanas e
- Relações de trabalho em diferentes momentos na História de
europeias;
* crescimento populacional, ocupação de territórios e destrui- povos do mundo:
ção das florestas; paisagens naturais, rurais e urbanas; a memória * caçadores e coletores na África e na Europa em diferentes
das paisagens; épocas; agricultores, sacerdotes, guerreiros e escribas na África e
* natureza e cidade; meios de transporte e interferências na no Oriente; artífices, comerciantes e navegadores na África e no
natureza na implantação de infraestruturas; técnicas e instrumen- Oriente;
tos de transformação de elementos da natureza; Revolução Indus- * escravidão antiga na África, no Oriente e na Europa;
trial; natureza e economia do turismo na África. * servos, artesãos e corporações de ofício na Europa; nobreza,
- Diferenças, semelhanças, transformações e permanências clero, camponeses, mercadores e banqueiros na Europa; navega-
nas relações entre a sociedade, a cultura e a natureza, construídas dores e comerciantes coloniais;
no presente e no passado: * trabalho operário e trabalhadores dos serviços urbanos na
* confrontar mitos de origem do mundo e do homem; a pre- Europa; trabalho das mulheres e das crianças na indústria inglesa;
sença de elementos da natureza na religião; representações da na- agricultura, comércio, indústria, artesanato e serviços urbanos na
tureza e das populações na arte; tempos biológicos, geológicos, da África e Ásia;
natureza, da fábrica e da informatização; modalidades de uso e de * lutas e organizações camponesas e operárias.
valor da terra; modos dos povos se relacionarem com rios, mares
e florestas; o tempo de deslocamento entre espaços; matérias-pri- - Diferenças, semelhanças, transformações e permanências
mas, técnicas de transformação e fontes de energia; nas relações de trabalho, no presente e no passado:
* referenciar e localizar cronologicamente os povos estuda- * caracterizar e analisar diferentes tipos de escravidão, ser-
dos; identificar e refletir sobre os ritmos de transformação das vidão e trabalho livre; caracterizar a diversidade de trabalho no
relações sociais e culturais dos povos e nas suas relações com a campo e na cidade, diferentes organizações de trabalhadores, suas
natureza. demandas, lutas e conquistas; * referenciar e localizar cronologi-
camente as relações sociais de trabalho e identificar as suas dura-
As relações de trabalho ções no tempo.
- Relações de trabalho em diferentes momentos da História
CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO
brasileira:
* o trabalho entre os povos indígenas hoje; a divisão de traba-
No processo de avaliação é importante considerar o conheci-
lho entre sexo, idade etc. em comunidades indígenas específicas;
produção de alimentos e de utensílios pelos povos indígenas; mento prévio, as hipóteses e os domínios dos alunos e relacioná-
* escravização, trabalho e resistência indígena na sociedade -los com as mudanças que ocorrem no processo de ensino e apren-
colonial; tráfico de escravos e mercantilismo; escravidão africana dizagem. O professor deve identificar a apreensão de conteúdos,
na agricultura de exportação, na mineração, produção de alimentos noções, conceitos, procedimentos e atitudes como conquistas dos
e nos espaços urbanos; lutas e resistências de escravos africanos e estudantes, comparando o antes, o durante e o depois. A avaliação
o processo de emancipação; trabalho livre no campo e na cidade não deve mensurar simplesmente fatos ou conceitos assimilados.
após a abolição; o trabalhador negro no mercado de trabalho livre; Deve ter um caráter diagnóstico e possibilitar ao educador ava-
imigração e migrações internas em busca de trabalho; liar o seu próprio desempenho como docente, refletindo sobre as
* grandes proprietários, administradores coloniais, clérigos, intervenções didáticas e outras possibilidades de como atuar no
agregados e trabalhadores livres; processo de aprendizagem dos alunos.
* o trabalho de mulheres e crianças na agricultura, na indústria Ao final do terceiro ciclo, depois de terem vivenciado inú-
e nos serviços urbanos, nas atividades domésticas etc.; meras situações de aprendizagem, os alunos dominam conteúdos.
* organizações de trabalhadores, ligas, sindicatos, organiza- Para avaliar tais conteúdos, destacam-se de modo amplo os se-
ções patronais e partidos políticos; valores culturais atribuídos guintes critérios:
às diferentes categorias de trabalhadores e ao trabalho através do - Reconhecer relações entre a sociedade, a cultura e a nature-
tempo. za, no presente e no passado.

Didatismo e Conhecimento 18
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Este critério pretende avaliar se, por meio dos estudos desen- Dando continuidade à proposta dos ciclos anteriores, são fa-
volvidos, o aluno é capaz de identificar relações entre a sociedade, vorecidos os trabalhos com fontes documentais e com obras que
a cultura e a natureza hoje em dia e em outros momentos do pas- contemplam conteúdos históricos. Podem ser desenvolvidas ativi-
sado e se é capaz de distinguir diferenças e semelhanças entre tais dades de levantamento e de organização de informações internas
relações. e externas às obras estudadas e de pesquisa acerca das histórias
- Dimensionar, em diferentes temporalidades, as relações en- das técnicas, das estéticas e dos suportes de registro. O confronto
tre a sociedade, à cultura e a natureza. de informações contidas em diversas fontes bibliográficas e docu-
mentais pode ser decisivo no processo de conquista da autonomia
Este critério pretende avaliar se o aluno é capaz de identifi- intelectual dos alunos. Pode favorecer situações para que expres-
car, em perspectivas históricas, diferentes relações entre a socie- sem suas próprias compreensões e opiniões sobre os assuntos, in-
dade, a cultura e a natureza, discernindo características, contex- vestiguem outras possibilidades de explicação para os aconteci-
tos, mudanças, permanências, continuidades e descontinuidades mentos estudados, considerem a autoria das obras e seus contextos
no tempo. de produção, realizem entrevistas, levantamentos e organizações
- Reconhecer diferenças e semelhanças entre relações de de dados, pesquisem em bibliotecas e museus e, além disso, obser-
trabalho construídas no presente e no passado. vem, comparem e analisem espaços públicos e privados.
Como os estudantes nessa faixa de idade já estão prestes a
Este critério pretende avaliar se o aluno é capaz de distinguir adquirir o direito ao voto e alguns já o adquiriram, é importante es-
diferentes relações de trabalho na realidade atual e em outros timulá-los a questionar o presente, para que possam discernir as re-
momentos do passado e se é capaz de apontar diferenças e seme- lações sociais e políticas atuais a partir de perspectivas históricas,
lhanças entre tais relações. identificando possíveis semelhanças ou discordâncias, construindo
- Reconhecer laços de identidade e/ou diferenças entre rela- suas opiniões e estando atentos para localizar nos discursos, nas
ções de trabalho do presente e do passado. propagandas e nas práticas políticas propostas e atitudes coerentes
e/ou contraditórias.
Este critério pretende avaliar se o aluno é capaz de identifi- O estudo da História, nessa faixa de idade, pode abordar os te-
car, em perspectivas históricas, diferentes relações de trabalho, mas a partir de uma perspectiva mais geral e teórica, não deixando
discernindo características, contextos, mudanças, permanências, de considerar que as análises, as interpretações e os conceitos his-
continuidades e descontinuidades no tempo. tóricos são construídos a partir de estudos de realidades concretas
- Reconhecer a diversidade de documentos históricos. situadas no fluxo temporal.
Este critério pretende avaliar se o aluno é capaz de identificar Como nos ciclos anteriores, cabe ao professor fornecer in-
as características básicas de documentos históricos, seus autores, formações sobre padrões de medida de tempo, que sejam estru-
momento e local de produção, e de compará-los entre si. turantes para que os alunos localizem os fatos e os sujeitos nas
respectivas épocas e para que possam discerni-los por critérios de
QUARTO CICLO anterioridade, posterioridade e simultaneidade. Cabe ao professor,
Ensino e aprendizagem também, em diferentes momentos de estudo, incentivar a cons-
trução de relações entre eventos, para que os estudantes possam
No quarto ciclo, os alunos já dominam um conjunto de no- caracterizar contextos históricos, identificar os indícios e os ritmos
ções, informações, explicações, procedimentos e reflexões histó- das suas transformações e das suas permanências no tempo, tendo
ricas e temporais, que possibilitam estudos mais conceituais das como dimensionar suas durações.
vivências humanas no tempo. Cabe, contudo, ao professor sempre
investigar esses domínios para saber quando introduzir novas te- Objetivos para o quarto ciclo
máticas históricas.
Como no terceiro ciclo, é importante considerar que o aluno Espera-se que ao final do quarto ciclo os alunos sejam capazes
recebe, hoje em dia, grande número de informações e que a partir de:
delas elabora reflexões sobre as relações presente-passado. Cabe • - Utilizar conceitos para explicar relações sociais, econômi-
ao professor, nos processos de ensino e de aprendizagem, valorizar cas e políticas de realidades históricas singulares, com destaque
tais reflexões dos estudantes e considerar a necessidade de elas so- para a questão da cidadania;
frerem transformações ao longo da escolaridade. As interpretações - Reconhecer as diferentes formas de relações de poder inter
dos alunos acerca das relações interpessoais, sociais, econômicas, e intragrupos sociais;
políticas e culturais, presentes no mundo de hoje e em realidades - Identificar e analisar lutas sociais, guerras e revoluções na
históricas distintas, devem ser cada vez mais críticas e estarem História do Brasil e do mundo;
cada vez mais permeadas pela compreensão da diversidade, das - Conhecer as principais características do processo de forma-
convivências, das contradições, das mudanças, das permanências, ção e das dinâmicas dos Estados Nacionais;
das continuidades e das descontinuidades históricas no tempo. - Refletir sobre as grandes transformações tecnológicas e os
Visando uma aprendizagem que não se limite a domínio de impactos que elas produzem na vida das sociedades;
informações, o professor deve propor questionamentos, fornecer - Localizar acontecimentos no tempo, dominando padrões de
dados complementares e contrastantes, estimular pesquisas, pro- medida e noções para compará-los por critérios de anterioridade,
mover momentos de socialização e debates, selecionar materiais posterioridade e simultaneidade;
com explicações, opiniões e argumentos diferenciados e propor - Debater ideias e expressá-las por escrito e por outras formas
resumos coletivos. de comunicação;

Didatismo e Conhecimento 19
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- Utilizar fontes históricas em suas pesquisas escolares; Ainda conforme o ciclo anterior, a proposta destina-se a sen-
- Ter iniciativas e autonomia na realização de trabalhos indi- sibilizar os alunos para estudos do passado e suas relações com
viduais e coletivos. questões atuais. Nunca é demais lembrar que na
História as reflexões partem do presente para melhor com-
Conteúdos para o quarto ciclo preender o passado. É conhecendo outras realidades temporais e
espaciais que os alunos dimensionam a sua inserção e adesão a
Para o quarto ciclo está sendo proposto o eixo temático “His- grupos sociais.
tória das representações e das relações de poder”, que se desdobra Os subtemas propostos nesse ciclo estão também relacionados
nos dois subtemas “Nações, povos, lutas, guerras e revoluções” e a muitas questões do presente. Ao professor compete identificá-las
“Cidadania e cultura no mundo contemporâneo”. e selecionar uma ou mais que orientem a escolha dos conteúdos a
O primeiro subtema sugere pesquisas, estudos e debates sobre serem estudados. Tais escolhas podem e devem ser feitas em con-
os vários modelos de organização política, com destaque para a junto com outras áreas, enriquecendo um conhecimento que é, por
constituição dos Estados Nacionais, a sua relação com o proces- essência, interdisciplinar.
so de organização e conquista de territórios e as representações Eis algumas questões gerais da atualidade, que podem orientar
e mitos que legitimam a organização das nações e os confrontos a seleção dos conteúdos e suas relações históricas para o subtema
políticos internacionais, além de destacar estudos sobre contatos e “Nações, povos, lutas, guerras e revoluções”: os Estados Nacio-
confrontos entre povos, grupos sociais e classes e diferentes for- nais; os regimes políticos e as organizações partidárias; as orga-
mas de lutas sociais e políticas, guerras e revoluções. O segundo nizações políticas internacionais, a diversidade cultural interna às
subtema sugere estudos e debates sobre o processo de expansão e nações; confrontos políticos regionais e nacionais; lutas por direi-
crises da cultura no mundo contemporâneo e das questões perti- tos civis, políticos e sociais, lutas pela propriedade da terra e por
nentes à cidadania na História. moradia; lutas de grupos étnicos e de gênero por identidade cultu-
Como no terceiro ciclo, os subtemas se desdobram em conte- ral; manifestações de banditismo, violência urbana e guerras civis.
údos apresentados apenas como sugestões de possibilidades, que Para o subtema Cidadania e cultura no mundo contemporâneo”,
não devem ser trabalhados na sua integridade. são exemplos: as relações de trabalho na sociedade pós-fabril —
políticas econômicas e sociais; a mundialização da economia ca-
O professor deve selecionar alguns deles de acordo com o
pitalista; as relações econômicas internacionais; as migrações de
diagnóstico que faz dos conhecimentos, domínios e atitudes dos
populações asiáticas e africanas para a Europa e de populações
alunos e de acordo com questões contemporâneas pertinentes à
latino-americanas para os Estados Unidos; o desemprego e a crise
realidade social, econômica, política e cultural, da localidade onde
do trabalho assalariado; a expansão dos meios de comunicação, da
mora, da sua região, do seu país e do mundo. Por exemplo, se es-
informática e da robótica; a expansão da vida urbana; a industriali-
colher como recorte a luta pela terra, no subtema “Nações, povos,
zação do campo, a sociedade de consumo e a juventude.
lutas, guerras e revoluções”, é possível fazer um levantamento so-
Como no ciclo anterior, os conteúdos são só exemplos de pos-
bre questões locais, regionais ou nacionais, na atualidade, partindo
sibilidades.
do que os alunos sabem sobre elas. Nesse sentido, identificam-se Não esgotam todas as alternativas de estudos históricos dos
quais são os grupos envolvidos, suas reivindicações, práticas de subtemas. Além disso, o professor não deve ter a preocupação de
luta, resistências, mediadores dos conflitos etc. estudar todos os exemplos apresentados. A idéia é que problemati-
Para compreender estas lutas em contextos históricos maio- ze a realidade atual e identifique um ou mais problemas para estu-
res é preciso averiguar quando se agravaram as lutas pela terra no do em dimensões históricas.
Brasil, quais e como estavam organizados os grupos nelas envol- A partir daí, selecione conteúdos da História brasileira, da His-
vidos, como foram resolvidos ou reprimidos os conflitos etc. Esses tória da América, da Europa, da África e do Oriente, e articule-os
conflitos podem ser abordados nas suas relações com processos em uma organização que permita ao aluno questionar, aprofundar,
ocorridos na América e em outras regiões do mundo. analisar e refletir sobre as amplitudes históricas da realidade atual
Como no ciclo anterior, refletindo ao longo do ano sobre as e como são construídos os processos dinâmicos e contraditórios
escolhas de conteúdos, as atividades propostas e os materiais di- das relações entre as culturas e os povos.
dáticos selecionados, é importante que o professor avalie a apren- Os conteúdos listados a partir dos subtemas incluem aconte-
dizagem dos alunos e replaneje ao longo do ano e de um ano para cimentos históricos e problemáticos gerais que favorecem estudos
o outro. das relações no tempo. Neste segundo caso as mesmas problemáti-
cas aparecem de modo recorrente na História de diferentes locais.
EIXO TEMÁTICO: HISTÓRIA DAS REPRESENTA- Os conteúdos da História do Brasil, da América, da Europa e
ÇÕES da África estão agrupados separadamente para permitir a especifi-
E DAS RELAÇÕES DE PODER cação de acontecimentos históricos pertinentes.
Aparecem em uma sequência para destacar a importância que
O eixo temático para o quarto ciclo privilegia estudos sobre adquirem na compreensão do processo histórico de construção da
as relações de poder na História brasileira e de outras partes do realidade social brasileira. Isso não significa que devam ser estu-
mundo. Está organizado de modo a permitir o conhecimento de dados em momentos distintos ou seguindo uma sequência de hie-
momentos históricos nas suas singularidades, favorecer estudos de rarquia espacial.
relações de semelhanças, diferenças, permanências e transforma- Prevalecem os estudos das relações no tempo, reflexões sobre
ções entre diferentes épocas e estudos de processos contínuos e as contradições sociais e sobre os processos históricos contínuos
descontínuos. e descontínuos.

Didatismo e Conhecimento 20
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Nações, povos, lutas, guerras e revoluções. * confronto entre europeus e populações nativas da América
inglesa, confronto entre ingleses e franceses pelo território ameri-
• Processo de constituição do território, da nação e do Estado cano, Guerra Civil Americana, confrontos entre negros e brancos
brasileiro, confrontos, lutas, guerras e revoluções: nos Estados Unidos, os latinos nos Estados Unidos etc.
* conquista e preservação do território brasileiro pelos portu-
gueses, acordo de Madri, Guerra Cisplatina, Guerra do Paraguai, - Processos de constituição dos Estados Nacionais, confron-
Guerra do Acre, políticas de integração do território brasileiro no tos, lutas, guerras e revoluções na Europa, na África e no Oriente:
século XX; * cidades-estado gregas, República romana, descentralização
* administração política colonial, coroa portuguesa no Brasil, política na Idade Média, Cruzadas, lutas de conquista na Península
Independência política, Estado Monárquico, Estado Republicano, Ibérica, consolidação do Estado Nacional português, reis católicos
na Espanha;
alianças e políticas internacionais no Império e na República, o
* Guerra dos Cem Anos, Reforma, Contra-Reforma, Estados
Estado brasileiro e suas alianças políticas e econômicas regionais;
Absolutistas, organização do Parlamentarismo na Inglaterra, Ilu-
* lutas pela independência política, processo político de inde- minismo, Revolução Francesa, Democracia Moderna, unificação
pendência do Brasil, guerras provinciais (Confederação do Equa- política da Alemanha e da Itália;
dor, Guerra dos Farrapos etc.); * nacionalismo na Europa dos séculos XIX e XX, expansão
* confrontos entre europeus e populações indígenas no ter- imperialista dos Estados europeus, mudanças nas fronteiras dos
ritório brasileiro (Guerras dos Bárbaros, Confederação do Cariri, Estados nacionais europeus na Primeira e na Segunda Guerra
Confederação dos Tamoios etc.), revoltas e resistências de escra- Mundial, organização dos Estados socialistas e comunistas, esfa-
vos (quilombos, Palmares, Revolta dos Malês etc.), revoltas so- celamento dos Estados socialistas, queda do Muro de Berlim etc.;
ciais coloniais, lutas pelo fim da escravidão, Canudos, Contestado, * lutas étnicas e religiosas na Antiguidade, lutas sociais em
banditismo e cangaço; Atenas, lutas sociais na Roma antiga, lutas dos cristãos em Roma,
* mitos da confraternização étnica e cultural, mitos dos heróis lutas camponesas, religiosas, operárias e étnicas na Europa etc.;
nacionais, nacionalismo, construção de memórias de grupos, elite * migrações e guerras no Oriente antigo, Guerra do Pelopone-
econômica nacional e poder político, mitos sobre o caráter da po- so, Império Persa, Império Macedônio, Império Romano, confron-
pulação brasileira; tos entre povos bárbaros e Império Romano etc;
* as lutas políticas na implantação da República, Revolução * guerras napoleônicas, guerras na África e Ásia na expansão
de 1930, Revolução Constitucionalista de 1932, governos autori- imperialista européia, Primeira Guerra Mundial, Revolução Russa,
Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria, Guerra da Coréia, Guerra
tários o Estado Novo e o regime militar pós-64;
do Vietnã etc;
* lutas operárias, lutas sociais rurais e urbanas, lutas feminis-
* culturas tradicionais dos povos africanos, colonialismo e
tas, lutas pela reforma agrária, movimentos populares e estudantis, imperialismo na África, descolonização das nações africanas, Es-
lutas dos povos indígenas pela preservação de seus territórios, Mo- tados Nacionais africanos, experiências socialistas na África (An-
vimento de Consciência Negra etc. gola, Moçambique etc.); apartheid e África do Sul, fome e guerras
Processos de constituição dos Estados Nacionais na América, civis na África, guerras entre as nações africanas, povos, culturas
confrontos, lutas, guerras e revoluções: e nações africanas hoje;
* administração das colônias espanholas, subjugação das et- * culturas tradicionais do mundo árabe, expansão muçulmana,
nias e das culturas nativas, esfacelamento do império espanhol imperialismo no Oriente Médio, confrontos entre palestinos e isra-
na América, constituição dos Estados Nacionais independentes, elenses, revolução iraniana, Guerra do Golfo;
ditaduras na América Latina, organizações internacionais latino- * portugueses na Índia, domínio inglês na Índia, processo de
-americanas, Mercosul e outros exemplos de integração política independência política da Índia, Paquistão e Bangladesh;
e econômica; * cultura tradicional chinesa, resistência chinesa ao imperia-
* colônias inglesas na América, processo de constituição do lismo, Guerra do Ópio, Revolução Comunista, Revolução Cultu-
Estado Nacional norte-americano, expansão do território dos Esta- ral, China hoje;
dos Unidos (marcha para o Oeste, conquista do Texas), elaboração * cultura tradicional japonesa, portugueses no Japão, imperia-
dos ideais liberais e republicanos; lismo japonês, Japão depois da Segunda Guerra Mundial, Japão
* intervencionismo norte-americano na América Latina, Canal hoje.
do Panamá, Porto Rico, Cuba, El Salvador e Nicarágua, política
- Diferenças, semelhanças, transformações e permanências
externa norte-americana para a América Latina (Doutrina Monroe,
entre formas de organização dos Estados Nacionais, confrontos,
Pan-Americanismo, Punta del Este, Aliança para o Progresso); lutas, guerras e revoluções, procurando sintetizar os estudos rea-
* guerras e expansão do império Inca e do império Asteca, lizados:
confronto entre europeus e populações nativas da América espa- * estudos das relações presente-passado sobre as organizações
nhola, lutas sociais no processo de independência das nações sul- políticas, a constituição dos Estados Nacionais, as representações
-americanas, lutas dos mineiros na Bolívia, revoltas dos Zapatistas e os mitos construídos para as nações, os ideais nacionalistas e os
no México; confrontos políticos internacionais;
* Guerra do Paraguai (do ponto de vista do Paraguai), Guer- * estudos das relações sobre mortandade nos confrontos e
ra do Chaco, Guerra do Acre, Revolução Mexicana, Revolução guerras e sobre o emprego de tecnologias bélicas;
Cubana, socialismo e golpe militar no Chile, militarismo na * compreensão dos conceitos de revolução, lutas sociais e
América Latina, Guerra de El Salvador, Guerra da Nicarágua, guerras, considerando as especificidades históricas dos contextos
processo de democratização latino-americano; em que se realizaram;

Didatismo e Conhecimento 21
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
* identificação de transformações e permanências históricas Critérios de avaliação
provocadas por lutas sociais e políticas, confrontos sociais de gru-
pos, classes e nações, guerras e revoluções; Como no terceiro ciclo, é importante realizar uma avaliação
* estudos de localização cronológica e das durações temporais diagnóstica, considerando o conhecimento prévio, os domínios e
das formas de organização política dos Estados, dos organismos as atitudes dos alunos, as suas conquistas ao longo dos estudos e
internacionais, das lutas sociais e políticas, das guerras e revolu- se as intervenções didáticas foram significativas e repercutiram em
ções. aprendizagens.

Cidadania e cultura no mundo contemporâneo Ao final do quarto ciclo, depois de terem vivenciado inúmeras
situações de aprendizagem, os alunos dominam alguns conteúdos
- Problemáticas pertinentes à questão da cidadania na Histó- e procedimentos. Para avaliar esses domínios, esta proposta desta-
ria: ca de modo amplo os seguintes critérios:

* no Brasil — os “homens bons” no período colonial; a escra- - Dimensionar, em diferentes temporalidades, as formas de
vidão e a luta pela liberdade; o poder oligárquico, o coronelismo organização políticas nacionais e internacionais.
e o voto na República Velha; as Constituições e as mudanças nos
direitos e deveres dos cidadãos, as ditaduras e a supressão de di- Este critério pretende avaliar se o aluno identifica, em pers-
reitos políticos e civis (Estado Novo e governo militar após 1964), pectiva histórica, as formas de organização política e as organi-
experiência liberal democrática de 1945-1964, o conceito de ci- zações econômicas nacionais e mundiais, discernindo de algumas
dadania hoje no Brasil e a percepção da condição de cidadão pela características, contextos, mudanças, permanências, continuidades
população brasileira, as desigualdades econômicas e sociais e as e descontinuidades no tempo.
aspirações de direitos pela população brasileira hoje;
* no mundo — a cidadania em Atenas e em Roma; a cidada- - Reconhecer diferenças e semelhanças entre os confrontos,
nia nas comunas medievais; os ideais iluministas e as práticas de às lutas sociais e políticas, as guerras e as revoluções, do presente
cidadania durante a Revolução Francesa; as práticas de cidadania a e do passado.
partir da independência dos Estados Unidos; o socialismo, o anar-
Este critério pretende avaliar se, por meio dos estudos desen-
quismo, o comunismo, a socialdemocracia, o nazismo e o fascismo
volvidos, o aluno identifica as especificidades de lutas, guerras e
na Europa, experiências históricas autoritárias na América Latina,
revoluções, entre grupos, classes e povos, e suas interferências nas
as declarações dos Direitos Universais do Homem e os contextos
mudanças ou nas permanências das realidades históricas.
de suas elaborações.
Os direitos das mulheres, dos jovens, das crianças, das etnias
- Reconhecer características da cultura contemporânea atual e
e das minorias culturais, a pobreza e a desigualdade social e eco-
suas relações com a História mundial nos últimos séculos.
nômica no mundo.
Processo de formação, expansão e dominação do capitalismo Este critério pretende avaliar se o aluno identifica, em pers-
no mundo: pectiva histórica, a sua vivência cultural, cotidiana, e se a relaciona
* a expansão do comércio na Europa no Renascimento, a ex- com o sistema dominante e seus valores.
pansão colonial e o acúmulo de riquezas pelos Estados Nacionais
europeus, as alianças entre a burguesia e os Estados Absolutistas, a - Reconhecer algumas diferenças, semelhanças, transforma-
industrialização e a concentração urbana, as políticas econômicas ções e permanências entre ideias e práticas envolvidas na questão
liberais, a divisão internacional do trabalho, os projetos socialistas, da cidadania, construídas e vividas no presente e no passado.
o imperialismo europeu e o capitalismo monopolista, a expansão
imperialista norte-americana, os países socialistas e comunistas, Este critério pretende avaliar se o aluno identifica distintas
a crise do capitalismo na década de 30, a divisão do mundo nos conceituações históricas para a cidadania, discernindo suas carac-
blocos capitalista e socialista, as crises do capitalismo nas décadas terísticas, seus contextos, suas mudanças, suas permanências, suas
de 70 e 80, desestruturação do mundo socialista, etc.; continuidades e suas descontinuidades no tempo.

- Problemáticas pertinentes à cultura contemporânea: - Reconhecer a diversidade de documentos históricos.


* rádio, televisão, livros, jornais, revistas, cinema, computa-
dor, propaganda, criação artística. Este critério pretende avaliar se o aluno é capaz de identificar
as características básicas de documentos históricos, seus autores,
- Diferenças, semelhanças, transformações e permanências no momento e local de produção e de compará-los entre si.
conceito de cidadania, procurando sintetizar os estudos realizados:
- Organizar ideias articulando-as oralmente, por escrito e por
* estudos das relações presente-passado das economias capi- outras formas de comunicação.
talista e socialista, das ideias e práticas acerca da cidadania e das
lutas por mudanças na vida cotidiana e na qualidade de vida; Este critério pretende avaliar se o aluno é capaz de organizar
* estudos de localização cronológica e das durações temporais os conteúdos e conceitos apreendidos e expressá-los de maneira a
dos conceitos e das práticas dos cidadãos. se fazer compreender.

Didatismo e Conhecimento 22
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
ORIENTAÇÕES E MÉTODOS DIDÁTICOS - Propor aos alunos que organizem suas próprias soluções e
estratégias de intervenção na realidade (organização de regras de
Quais são os métodos específicos do ensino de História? Quais convívio, atitudes e comportamentos diante de questões sociais,
os instrumentos didáticos que favorecem o aprendizado de conte- atitudes políticas individuais e coletivas etc.);
údos históricos pelos alunos? De modo geral, os conhecimentos - Distinguir diferentes padrões de medidas de tempo, trabalhar
históricos tornam-se significativos para os estudantes, como saber com a ideia de durações e ritmos temporais e construir periodiza-
escolar e social, quando contribuem para que eles reflitam sobre ções para os temas estudados;
suas vivências e suas inserções históricas. Por essa razão, é funda- - Solicitar resumos orais ou em forma de textos, imagens,
mental que aprendam a reconhecer costumes, valores e crenças em gráficos, linhas do tempo, propor a criação de brochuras, murais,
exposições e estimular a criatividade expressiva.
suas atitudes e hábitos cotidianos e nas organizações da sociedade;
a identificar os comportamentos, as visões de mundo, as formas de É importante que o professor sempre explicite sua proposta
trabalho, as formas de comunicação, as técnicas e as tecnologias de trabalho para os estudantes e retome, algumas vezes, a proposta
em épocas datadas; e a reconhecer que os sentidos e significados inicial a fim de que eles possam decidir sobre novos procedimen-
para os acontecimentos históricos e cotidianos estão relacionados tos no decorrer das atividades. Assim, por exemplo, é a problemá-
com a formação social e intelectual dos indivíduos e com as pos- tica inicial que orienta a escolha das fontes de informação que são
sibilidades e os limites construídos na consciência de grupos e de mais significativas. Entre as pesquisas realizadas, algumas podem
classes. ser descartadas e outras confrontadas em um processo de avaliação
Assim o trabalho com diferenças e semelhanças, bem como da importância de suas informações. Imagens podem ser selecio-
continuidades e descontinuidades, tem o objetivo de instigá-los à nadas entre as muitas recolhidas, para reforçarem argumentos de-
reflexão, à compreensão e à participação no mundo social. fendidos ou por revelarem situações não imaginadas. Textos sobre
É tarefa do professor criar situações de ensino para os alunos episódios do passado podem ser organizados para demonstrarem
estabelecerem relações entre o presente e o passado, o particular e a especificidade no modo de pensar da época e exemplificarem
conflitos entre grupos sociais.
o geral, as ações individuais e coletivas, os interesses específicos
de grupos e as articulações sociais. Materiais didáticos e pesquisas escolares
Podem ser privilegiadas as seguintes situações didáticas: Todo material, que no acesso ao conhecimento tem a função
de ser mediador na comunicação entre o professor e o aluno, pode
- Questionar os alunos sobre o que sabem, quais suas ideias, ser considerado material didático. Isto é, são materiais didáticos
opiniões, dúvidas e/ou hipóteses sobre o tema em debate e valori- tanto os elaborados especificamente para o trabalho de sala de aula
zar seus conhecimentos; livros-manuais, apostilas e vídeos —, como, também, os não pro-
- Propor novos questionamentos, fornecer novas informações, duzidos para esse fim, mas que são utilizados pelo professor para
estimular a troca de informações, promover trabalhos interdisci- criar situações de ensino.
plinares; Faz parte do trabalho do docente saber o que pretende ensinar,
- Desenvolver atividades com diferentes fontes de informação diagnosticar o que os alunos sabem e pensam sobre o tema de es-
(livros, jornais, revistas, filmes, fotografias, objetos etc.) e con- tudo, definir suas intenções de ensino, escolher a atividade pedagó-
gica adequada e o material didático pertinente para cada situação,
frontar dados e abordagens;
avaliar as repercussões de suas intervenções e quais as dificuldades
- Trabalhar com documentos variados como sítios arqueológi- na aprendizagem. O material didático é um instrumento especí-
cos, edificações, plantas urbanas, mapas, instrumentos de trabalho, fico de trabalho na sala de aula: informa, cria conflitos, induz à
objetos cerimoniais e rituais, adornos, meios de comunicação, ves- reflexão, desperta outros interesses, motiva, sistematiza conheci-
timentas, textos, imagens e filmes; mentos já dominados, introduz problemáticas, propicia vivências
- Ensinar procedimentos de pesquisa, consulta em fontes bi- culturais, literárias e científicas, sintetiza ou organiza informações
bliográficas, organização das informações coletadas, como obter e conceitos. Avalia conquistas.
informações de documentos, como proceder em visitas e estudos O ambiente da sala de aula, o número excessivo de alunos por
do meio e como organizar resumos; sala, a quantidade de classes assumidas pelos professores e os con-
- Promover estudos e reflexões sobre a diversidade de modos troles administrativos exigidos no espaço escolar contribuem para
de vida e de costumes que convivem na mesma localidade; a escolha de práticas educacionais que se adaptem à diversidade
- Promover estudos e reflexões sobre a presença na atualidade de situações enfrentadas pelos docentes. Geralmente, isso significa
de elementos materiais e mentais de outros tempos e incentivar a adoção ou a aceitação de um livro, um manual ou uma apostila,
como únicos materiais didáticos utilizados para o ensino. Muitas
reflexões sobre as relações entre presente e passado, entre espaços
vezes, tal escolha implica a transferência parcial ou integral, para
locais, regionais, nacionais e mundiais; o autor do material e editores responsáveis, da definição dos obje-
- Debater questões do cotidiano e suas relações com contextos tivos, abordagens, conteúdos, métodos e recursos didáticos traba-
mais amplos; lhados nas salas de aula. Tais materiais já foram organizados com
- Propor estudos das relações e reflexões que destaquem di- a preocupação de que textos, exercícios e questionários garantam
ferenças, semelhanças, transformações, permanências, continuida- uma educação eficiente, independentemente das situações reais,
des e descontinuidades históricas; diversificadas e concretas dos professores, alunos, escolas e rea-
- Identificar diferentes propostas e posições defendidas por lidades sociais.
grupos e instituições para solução de problemas sociais e econô- Os livros, os manuais e apostilas são bem aceitos no sistema
micos; educacional brasileiro.

Didatismo e Conhecimento 23
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Atendem a expectativas e concretizam modelos, concordân- de seus interlocutores. Cada situação de sala de aula requer esco-
cias e aceitações por parte de um grande número de agentes so- lhas didáticas específicas e reflexões sobre o processo construído
ciais e institucionais. Para o Estado e algumas escolas particula- coletivamente.
res, representa um instrumento de controle do sistema escolar, a É tarefa do professor estar continuamente aprendendo no seu
garantia de certa qualidade de ensino e a difusão de valores. Para próprio trabalho, procurar novos caminhos e novas alternativas
o professor, assegura um modelo de prática, segurança no proces- para o ensino, avaliar e experimentar novas atividades e recursos
so de desenvolvimento do trabalho e eficiência na transmissão de didáticos, criar e recriar novas possibilidades para sua sala de aula
conteúdos exigidos por programas ou currículos. Para as famílias, e para a realidade escolar. Isto implica ler e se informar sobre di-
expressam um sinal de qualidade da educação. E para a indústria ferentes propostas de ensino de História, debater seus propósitos
editorial garantem mercado certo e seguro. e seus fins, discutir seus objetivos, criar sua proposta de ensino
Existem livros, manuais e apostilas de boa e de má qualidade. dentro da realidade da escola, manter claros os objetivos da sua
Todos precisam ser analisados e avaliados cuidadosamente pelos atuação pedagógica, selecionar conteúdos, relacioná-los com a re-
professores. Podem ser considerados nessa avaliação: os objeti- alidade local e regional, sistematizar suas experiências, aprofundar
vos educacionais e a concepção de ensino da área; a abordagem seus conhecimentos, reconhecer a presença de currículos ocultos
teórica epistemológica da História, os acontecimentos históricos — moldados e difundidos na prática, explicitá-los e avaliá-los.
privilegiados para estudo, as relações entre os acontecimentos e os O professor tem responsabilidades educacionais e sociais que
sujeitos históricos; a organização dos acontecimentos no tempo, não devem ser transferidas em sua totalidade para os livros, os
as periodizações utilizadas e as relações entre presente/passado; manuais e as apostilas. Quaisquer que sejam as situações especí-
os sentidos e significados construídos para a História, os conceitos ficas, os livros e os manuais didáticos não devem sobrepor-se às
trabalhados e os problemas propostos ou obtidos; as posições assu- escolhas docentes, pelo contrário, a elas devem subordinar-se. O
midas pelo autor e a forma de exposição dessas posições nos textos docente precisa ter claro que cabe a ele desenvolver o esforço de
e na seleção das imagens; os valores, as ideologias e os mitos da saber os rumos do trabalho pedagógico, considerando que cada
História veiculados; a concepção de aprendizagem presente nos grupo de aluno é único e especial; ele mesmo está em processo de
exercícios, questionários e outras atividades propostas; a qualida- formação permanente, na medida em que incorpora novos saberes
de editorial, a clareza do texto, a preocupação didática na organi- e experiência à sua prática; a educação está em contínua trans-
zação e apresentação dos conteúdos; a potencialidade informativa formação e construção; existem problemáticas novas e antigas na
realidade escolar que precisam ser encaradas e avaliadas; a escola
atribuída às imagens, e disponibilização de diferentes fontes de
é um espaço de formação geral e interdisciplinar; o saber histórico
informação e linguagens etc.
escolar requer diálogos com o conhecimento histórico científico,
Existem muitos estudos, análises e pesquisas que podem au-
com educadores, com a realidade social etc.
xiliar o professor na avaliação dos livros e dos manuais didáticos,
Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer, diante da realidade
de suas propostas e abordagens, dos valores, ideologias e mitos
brasileira que, muitas vezes, os livros ou manuais didáticos são
difundidos, da relação entre a sua composição editorial e seu po-
os únicos materiais de leitura e de acesso de grande parte da po-
tencial didático e suas influências nas visões de mundo, nos com-
pulação às informações históricas. Cumprem uma função social
portamentos sociais e nos domínios linguísticos e intelectuais dos importante na difusão do saber letrado, da cultura e da História do
estudantes. Brasil e dos povos.
Ao optar ou não por incorporar o manual didático na sua práti- Simbolicamente, os livros distinguem nas ruas das cidades
ca escolar, o professor deve ter sempre em mente que o trabalho do e nas estradas aqueles que são estudantes. Nos deslocamentos da
docente não consiste em reproduzir conhecimentos e métodos de casa para a escola ou da escola para o trabalho garantem, assim, a
ensino pré-fixados ou pré-concebidos. As vivências escolares são segurança de crianças, jovens e adultos, por portarem um símbolo
cheias de momentos imprevisíveis, que precisam ser reconhecidos de comportamento valorizado socialmente. Indicam aqueles que
como particulares e não como rotinas padronizadas em modelos. frequentam a escola e assumem uma responsabilidade comprome-
Os materiais, os recursos e os métodos didáticos podem e devem tida com o presente e o futuro.
ser múltiplos e diversificados. Existem muitas possibilidades de trabalho com livros, manuais
A realidade educacional brasileira e as vivências escolares de- ou apostilas que garantem ao professor a autonomia na condução
monstram que as escolas e as salas de aula são espaços permeados da lide pedagógica. O fundamental é que não sejam considerados
por conflitos e contradições. Por isso mesmo, podem ser espaços de o único recurso didático, mas, sim, mais uma fonte de informação
transgressões, criatividade, experimentação, pesquisa e avaliação a ser utilizada em momentos específicos e para fins determinados.
permanente. Do mesmo modo, instigam o professor a estar aberto O mais importante não é o livro, mas a utilização que se faz dele.
às realidades singulares, instáveis e heterogêneas e a reconhecer De vários livros podem ser selecionados textos, imagens, citações
que os alunos são atores ativos no processo de aprendizagem e de autores, documentos e exercícios. Esses materiais podem ser
na construção do saber escolar. Eles têm suas particularidades in- usados para problematizar questões históricas, instigar debates,
dividuais e suas vivências culturais e coletivas que, de um modo analisar representações artísticas de épocas, confrontar pontos de
ou de outro, são colocadas em jogo nas salas de aula. Interferem vistas, diferenciar abordagens históricas, resumir temas de estudo,
e recriam significados e sentidos para os conteúdos estudados e explicitar definições históricas para conceitos etc.
para as relações que a História estabelece com a realidade social De modo geral, o professor pode incorporá-los como fonte
e cotidiana. de pesquisa entre outros materiais. Nesse caso, no trabalho com
Faz parte da profissão docente reconhecer que o saber esco- manuais e com outras fontes, é sempre importante a identificação
lar é construído na interlocução. Incorpora a dimensão do diálogo do autor, da época em que o texto foi escrito, da ideia que ele está
interpessoal, da diversidade cultural, das significâncias múltiplas defendendo, dos argumentos construídos para defendê-las, dos

Didatismo e Conhecimento 24
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
sujeitos e dos fatos históricos destacados, dos valores que estão É importante o professor considerar que o conceito também
sendo atribuídos aos fatos e aos sujeitos. Tornam-se significativas associa e sintetiza ideias a partir de elementos históricos comuns.
as situações em que os alunos podem confrontar textos de dois ou Pelo fato de ser expresso por meio de uma palavra, que permanece
mais autores, sobre um mesmo tema ou época, identificando as sempre a mesma, é possível dizer que estimula os estudos das rela-
diferenças e as semelhanças entre seus recortes e argumentos. ções entre diferentes realidades e, também, sugere a existência de
Os procedimentos de pesquisa escolar devem ser ensinados. diálogos entre os homens e as sociedades no tempo.
Favorecem a ampliação do conhecimento, das capacidades e das É fundamental que o professor considere possibilidades de
atitudes de autonomia dos estudantes, como manusear livros, re- trabalhos em que o aluno se sensibilize para a construção e a re-
vistas e jornais; localizar informações, estabelecer relações entre construção dos conceitos históricos, vivenciando situações em
elas e compará-las; familiarizar-se e desenvolver domínios lin- que seja requisitado a associar informações, relacionar e analisar
guísticos; identificar ideias dos autores, perceber contradições e épocas, caracterizar períodos e, simultaneamente, abstrair ideias e
complementaridade entre elas; trocar e socializar opiniões e infor- generalizar imagens. Do ponto de vista pedagógico, esse exercício
mações; selecionar e decidir; observar e identificar informações solicita dele historicizar e generalizar, desenvolvendo suas capaci-
em imagens, textos, mapas, gráficos, objetos e paisagens. dades intelectuais e fornecendo-lhe instrumentos para discernir e
Entrar em contato com diferentes produções de épocas passa- compreender os processos inerentes à organização, à formalização
das e presentes pode representar passos diferentes no processo de
e à transformação do conhecimento.
aprendizagem.
A pesquisa, a coleta de informação e o trabalho com conceitos
O aluno é introduzido no universo da ciência, em que a Histó-
são mais significativos e mais instigantes para os alunos quando
ria tem também a sua história cada produção histórica pertence a
fundamentam a construção de uma ou mais respostas para os ques-
um tempo —, sendo ela própria um objeto a ser conhecido.
Fica evidente a presença do discurso histórico, sustentado em tionamentos realizados no início da atividade. Essas respostas, que
fundamentos teóricos, o que destaca o fato do saber ser construído podem ser individuais, em dupla ou em grupos maiores, devem
e as conceituações serem organizadas a partir de realidades espe- ser, de algum modo registradas em texto, álbum de fotografia, li-
cíficas. vro, vídeo, exposição, mural, coleção de mapas etc.
As conceituações e as noções, em vez de serem trabalhadas
por meio de suas características genéricas, assumem especificações Trabalho com documentos
históricas, possibilitando o diálogo entre os sujeitos que falam pe-
los documentos legados ao presente e aqueles que os interpretam. As mais diversas obras humanas produzidas nos mais diferen-
Nesse sentido, é importante recuperar na História a historicidade tes contextos sociais e com objetivos variados podem ser chama-
dos conceitos, sua relação com a interpretação e categorização de das de documentos históricos. É o caso, por exemplo, de obras de
fenômenos em contextos temporais específicos. arte, textos de jornais, utensílios, ferramentas de trabalho, textos
O diálogo estabelecido entre o estudioso, suas fontes e as re- literários, diários, relatos de viagem, leis, mapas, depoimentos e
alidades historicamente constituídas orienta a construção e a re- lembranças, programas de televisão, filmes, vestimentas, edifica-
construção de conceitos. Na realidade social, as pessoas também ções etc.
fazem uso de uma série de conceitos históricos apreendidos nas Utilizar documentos históricos na sala de aula requer do pro-
vivências e trocas diárias, na sua formação escolar e por intermé- fessor conhecer e distinguir algumas abordagens e tratamentos da-
dio dos meios de comunicação. Assim, são favorecidos trabalhos dos às fontes por estudiosos da História.
— principalmente no quarto ciclo — em que os alunos podem Requer dele a preocupação de recriar, avaliar e reconstruir
identificar conceitos históricos utilizados por autores, pelas pes- metodologias do saber histórico para situações de ensino e apren-
soas de modo geral e presentes nos textos jornalísticos, literários dizagem.
e/ou científicos. Podem distinguir os significados particulares atri- Os documentos são fundamentais no trabalho de produção do
buídos a um mesmo conceito, identificar diferenças e semelhanças conhecimento histórico. Mas, a noção que se tem de documento,
entre eles e debater divergências e concordâncias em uma mesma as abordagens e os tratamentos que fundamentam a sua utilização
época e/ou em épocas diferentes. têm sofrido transformações ao longo do tempo.
O conceito pode assumir significados variados dependendo do
A palavra documento vem do termo latino documentum, que
momento histórico.
deriva do verbo docere, que significa ensinar no sentido de trans-
A compreensão de sua dimensão mutável possibilita, por
mitir e de comunicar informações já consolidadas.
exemplo, a reflexão de que ele sempre mantém relações com o
Durante algum tempo, principalmente para os historiadores de
contexto histórico em que foi formalizado. O domínio dos signifi-
cados dos conceitos depende, consequentemente, do conhecimen- inspiração positivista do século XIX e início do XX, o documento
to de realidades historicamente concretas, ou seja, dominar infor- significou a idéia de testemunho escrito, comprovação, de prova
mações sobre épocas e lugares. As suas dimensões históricas e sobre os acontecimentos do passado. Mesmo sendo do estudioso
mutáveis e a sua dependência em relação às realidades específicas a decisão quanto à escolha do documento a utilizar, fazia parte do
solicitam do aluno a identificação dos grupos sociais envolvidos na ofício manter a fidelidade do conteúdo dos textos, pois acreditava-
sua construção e a explicitação dos seus significados. -se que o documento mantinha uma relação direta com o real. Ca-
Esse exercício inserção dos conceitos em realidades históricas bia ao historiador, depois de constatar a autenticidade do texto,
e o seu dimensionamento como construção interna ao conheci- descrever o real, baseando-se nos dados nele descritos. Assim, o
mento auxilia na fundamentação e na formalização do saber histó- texto era valorizado apenas pelo que continha, encarado apenas
rico pelos alunos. como informante de conteúdos, simples suporte de informação.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Nem todo texto era considerado documento. Só eram utili- A noção tradicional de que os documentos eram depositários
zados os oficiais, aqueles voluntariamente produzidos com o in- de verdades indiscutíveis diretamente relacionadas com o real foi
tuito de registrar acontecimentos políticos, militares, jurídicos e abalada. Os documentos perderam a dimensão de se bastarem por
diplomáticos, como certidões de cartórios, escrituras de compra e si só e de falarem apenas por meio de seus conteúdos.
venda, atas das Câmaras ou do Senado, relatórios de secretarias de Reconheceu-se que a transformação dos registros humanos
governos, leis, inscrições em templos ou monumentos, cartas etc. em documentos históricos depende do trabalho do historiador e
Ao longo do século XX, o documento adquire outra amplitude das problemáticas relevantes para o seu tempo e sociedade, caben-
no trabalho do historiador. São utilizadas outras fontes de pesquisa do a ele dar-lhes nova significação, inseri-los em novos contextos,
histórica relacionadas à preocupação de se estudar outras dimen- interrogá-los a partir de temas de estudo e, enfim, realizar todo o
sões da vida social. Os documentos passaram a ser tudo o que é re- trabalho subjetivo de construção de conhecimento subjacente.
gistrado por escrito, por meio de sons, gestos, imagens ou que dei- A valorização de diferentes tipos de registros humanos como
xou indícios de modos de fazer, de viver e de pensar dos homens documentos levou à sociedade de modo geral a preocupação por
— músicas, gravuras, mapas, gráficos, pinturas, esculturas, filmes, armazená-los e preservá-los como patrimônio histórico e cultural.
fotografias, lembranças, utensílios, ferramentas, festas, cerimô- Contudo, para o historiador, os dados extraídos dos documentos
nias, rituais, intervenções na paisagem, edificações etc. As fontes sobre o passado são descontínuos e apenas potencialmente exis-
escritas passaram a ser variadas textos literários, poéticos e jorna- tentes.
lísticos, anúncios, receitas médicas, diários, provérbios, registros Para ganhar relevância histórica, a fonte deve ser trabalhada
paroquiais, processos criminais, processos inquisitoriais etc. pelo estudioso e as informações nela encontradas devem ser arti-
Diante da diversidade de fontes e de projetos de estudo, os culadas na trama da narrativa histórica das vivências humanas no
historiadores enfrentaram novos problemas. Como conhecer os tempo.
hábitos de populações indígenas no Brasil, no século XVI, quan- Algumas das reflexões propostas pelos historiadores podem
do grande parte dos documentos preservados foi produzida pelos auxiliar na criação de situações de ensino-aprendizagem na sala
conquistadores? de aula. Todavia, é importante repetir que esse trabalho não tem a
Como obter informações sobre a vida das mulheres em uma intenção de fazer do aluno um pequeno historiador, mas propiciar
localidade, quando sobre elas só foram encontrados desenhos reflexões sobre a relação presente-passado e criar situações didáti-
pintados em peças de cerâmica? É possível estudar um evento de cas para que conheça e domine procedimentos de como interrogar
1860 tendo como fonte um filme produzido em 1945? O que fazer obras humanas do seu tempo e de outras épocas.
quando as informações registradas em textos não são coincidentes É preciso escolher o momento adequado para trabalhar com
com os achados arqueológicos? Que tipo de informação é possível os documentos, definir claramente as intenções didáticas a serem
extrair de uma lei, além de medidas institucionais por ela estabe- atingidas e considerar a especificidade da temática histórica estu-
lecidas? dada.
Questões desse tipo levaram os historiadores a rever radical- De modo amplo, os historiadores propõem algumas questões
mente a concepção de documento e o tratamento dado a ele. Os que podem orientar atividades com documentos na sala de aula:
vestígios do passado, quando transformados em documentos his-
tóricos, passaram a englobar outras funções, além das suas funções
- Documento não fala por si mesmo, isto é, ele precisa ser
primárias originais, ou seja, ganharam também o papel de fornecer
interrogado a partir do problema estudado, construído na relação
para os estudiosos indícios de realidades históricas — relações so-
presente-passado;
ciais, modos de vida, mentalidades. Um diário de um capitão de
- Para interrogar o documento é preciso fazer a escolha de um
navio, por exemplo, transformado em documento histórico, não
método, isto é, escolher procedimentos que orientem na observa-
se limita à sua função original de registrar as atividades de bordo.
Por meio dele o estudioso pode obter informações que, confron- ção, na identificação de ideias, temas e contextos, na descrição do
tadas com dados provenientes de outros documentos, indicam os que foi identificado, na distinção de relações de oposição, associa-
conhecimentos no período sobre as rotas marítimas, as relações de ção e identidade entre as informações levantadas e na interpretação
comércio entre povos da época etc. dos dados, considerando a relação presente-passado;
Afora isso, os historiadores tornaram explícita a necessidade - Os métodos mais adequados são aqueles que possibilitam
de os fatos isolados serem relacionados e confrontados entre si e extrair dos documentos informações de suas formas (materiais,
de as fontes serem interrogadas a partir das problemáticas específi- gráficas e discursivas) e de seus conteúdos (mensagens, sentidos e
cas de estudo. As imagens, os textos, os objetos deveriam ser, tam- significados) e que permitam compreendê-los no contexto de sua
bém, compreendidos como obras impregnadas — tanto nos seus produção.
conteúdos, como nas suas formas de valores, padrões ou divergên- É preciso definir critérios de escolha de documentos a serem
cias culturais, estilos artísticos, visões de mundo produzidas por utilizados como material didático, considerando-se se ele é acessí-
grupos sociais determinados. E as produções humanas deveriam vel à faixa de idade dos alunos e se é capaz de motivar interesse no
ser dimensionadas nos contextos em que foram elaboradas e nos tema em estudo. Por exemplo, no terceiro ciclo são favorecidas as
contextos em que foram recriadas e reutilizadas. atividades com imagens e com textos curtos. São mais difíceis, por
Para se compreender pelo menos em parte algumas dessas sua vez, as que envolvem textos legislativos ou muito extensos.
mediações, os historiadores passaram a estabelecer diálogos com a De modo geral, podem ser privilegiados os trabalhos com poucos
Antropologia, a Linguística, a Arqueologia e outras ciências. documentos, mas que eles sejam significativos.
A preocupação foi a de dominar alguns conhecimentos para É preciso considerar, ainda, o fato de que as primeiras impres-
distinguir as especificidades das linguagens, das formas de comu- sões de quem lê um texto ou observa uma gravura estão impregna-
nicar e construir discursos, das formas de expressão, das potencia- das de ideias, valores e informações difundidas no senso comum.
lidades dos meios de comunicação, dos modelos de representação É a análise do documento nos seus detalhes, as confrontações com
etc. outras fontes, a sua inserção nos contextos de época, os questiona-

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mentos quanto às suas contradições e coerências internas etc., que Questionar sobre os conteúdos dos anúncios e as estruturas
irão permitir ao estudante conquistar procedimentos e atitudes de usadas para anunciar qual a sua função, como os anunciantes pro-
pensar/refletir historicamente e construir conhecimentos de natu- curavam nos textos atingir seus objetivos, quem eles eram, quais
reza científica. os termos utilizados para designar os escravos, quais os tipos de
O trabalho com documento pode envolver vários momentos trabalho escravo especificados, quanto custava um escravo e quais
diferentes que, associados, possibilitam uma apreensão de suas os critérios de preço, como os escravos eram considerados por
dimensões históricas. Com o propósito didático, o professor pode seus proprietários, que ideias e visões de mundo podem ser de-
solicitar suas primeiras impressões, instigá-los no questionamento, preendidas desses anúncios etc. Indicar pesquisas sobre os jornais
confrontar com informações divergentes, destacar detalhes, socia- de onde foram retirados, quem eram as pessoas que publicavam
lizar observações e criar um momento para que possam comparar e mais pesquisas sobre outras épocas, como são os anúncios dos
suas ideias iniciais com as novas interpretações conquistadas ao jornais atuais, o que anunciam para vender ou alugar etc.
longo do trabalho de análise. Com atenção e perspicácia, podem Aprofundar o tema por meio de atividades com outros textos
de jornais que falam de revoltas escravas, de fugas e de reclama-
ser observadas e colhidas informações nos detalhes: fatos, estéti-
ções de fazendeiros, inserindo trechos de processos criminais em
cas, conceitos, sentidos etc.
que os escravos dão seus depoimentos. Pesquisar, por fim, em bi-
É possível pesquisar informações sobre o documento em bliografias, a questão da escravidão, seu tempo de duração etc.
fontes externas (autoria, contexto da obra, estilo etc.) e confron- As formas e os materiais dos documentos também falam da
tar eventos históricos identificados na fonte estudada a eventos de História, das culturas e do tempo. Todavia, em situações escolares
outras épocas, quanto a semelhanças e/ou diferenças e relações de cotidianas, nem sempre é possível trabalhar com a fonte original
continuidade e/ou descontinuidade. Quando o professor conside- explorando e interrogando sobre as matérias-primas da época e o
rar necessário, pode ser feita a pesquisa da trajetória histórica de saber utilizado na sua confecção. Muitas vezes, as fotografias são
preservação, conservação e difusão do documento. É importante reproduções, os textos escritos à mão foram transcritos à máquina,
que o trabalho envolva observações, descrições, análises, pesqui- os vasos estão desenhados ou fotografados, os filmes foram copia-
sas, relações e interpretações e, no final, aconteça um momento de dos em fitas de vídeo e são exibidos em televisões, os anúncios de
retorno ao documento, para que os alunos comparem as novas in- jornais são xerocados. Nesses casos, o professor pode questionar
formações o seu novo olhar com suas apreensões iniciais e reflitam informar ou instigar os alunos a pesquisarem em fontes bibliográ-
sobre problemáticas históricas a ele relacionadas. ficas ou promoverem visitas a museus, exposições, sessões de ci-
Estudando a questão do trabalho no Brasil é possível, por nema etc.
exemplo, escolher uma gravura de Jean Baptiste Debret. Na pran- O importante é considerar que o modo como objetos, fotos e
cha O colar de ferro - castigo dos fugitivos, o aluno pode ser soli- textos foram produzidos pode fornecer indícios para a identifica-
ção da época e graus de domínios técnicos e tecnológicos do pe-
citado a ter as suas primeiras impressões o que observa.
ríodo, pois o trabalho com documentos originais favorece a iden-
Depois identificar personagens nela presentes, suas ações,
tificação de informações valiosas sobre o material, o modo como
vestimentas, calçados e adornos, os ferros presos aos corpos de foi trabalhado, o saber cultural utilizado para produzir a obra, os
alguns deles, os demais objetos presentes na cena e suas carac- instrumentos empregados etc. Essas informações ajudam a carac-
terísticas, o cenário, o tipo e o estilo de edificações ao fundo, o terizar a época histórica e a construir relações de diferença e se-
tipo de calçamento do ambiente, se há presença de vegetação, o melhança, de transformação e permanência dos saberes humanos
que está em primeiro plano e ao fundo da gravura, sobre o que ela no tempo. Podem sensibilizar os alunos para os conhecimentos
fala no seu conjunto e detalhes, onde acontece a cena, se passa a arduamente conquistados, muitas vezes desvalorizados pelas com-
ideia de ser cotidiana ou um evento específico e raro, diferenças e parações com as tecnologias atuais que nem sempre são entendidas
semelhanças entre os personagens, suas vestimentas e ações, se os como históricas no tocante às relações com longos processos de
personagens e os objetos remetem para algum evento histórico co- experimentação, recriação e aperfeiçoamento científico e cultural.
nhecido, se tal cena ainda pode ser vista hoje em dia, se as pessoas Quanto saber é empregado nos textos eletronicamente digitados
ainda se vestem do mesmo modo, como é a relação entre o título nos computadores? E nos textos reproduzidos na prensa de Guten-
da gravura e a cena retratada, o que o artista quis registrar ou co- berg? E nos desenhos nas paredes das cavernas da Pedra Furada,
municar, se o estilo é semelhante ao de outro artista já conhecido. no Piauí? E nos hieróglifos egípcios desenhados nos papiros? E na
Além dessas indagações, o aluno pode ser solicitado a pesqui- escrita sumeriana registrada nas pequenas placas de argila?
sar quem é o artista, qual a sua história, em que época a gravura foi No caso de trabalho didático com filmes que abordam temas
feita, qual o lugar que retrata, quais as razões que levaram o artista históricos é comum à preocupação do professor em verificar se a
reconstituição das vestimentas é ou não precisa, se os cenários são
a fazê-la, se os seus textos esclarecem outros aspectos da cena não
ou não fiéis, se os diálogos são ou não autênticos.
observados, onde a gravura original pode ser encontrada, como foi
Um filme abordando temas históricos ou de ficção pode ser
preservada, desde quando e por qual meio tem sido divulgada etc. trabalhado como documento, se o professor tiver a consciência de
É possível, também, incentivar o aluno a relacionar a gravura com que as informações extraídas estão mais diretamente ligadas à épo-
contextos históricos mais amplos, solicitando que identifique ou ca em que a película foi produzida do que à época que retrata. É
pesquise outros eventos da História brasileira relacionados a ela. preciso antes de tudo ter em mente que a fita está impregnada de
No caso da continuidade no estudo do tema trabalho no Brasil, valores, compreensões, visões de mundo, tentativas de explicação,
o professor pode escolher outros documentos para aprofundar o de reconstituição, de recriação, de criação livre e artística, de in-
debate. Pode selecionar entre muitas possibilidades anúncios de serção de cenários históricos construídos intencionalmente ou não
jornais frequentes no século XIX, que vendiam e alugavam es- por seus autores, diretores, produtores, pesquisadores, cenógrafos
cravos. etc.

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Para evidenciar o quanto os filmes estão impregnados de valo- Visita a exposições, museus e sítios arqueológicos.
res da época com base na qual foram produzidos tornam-se valio-
sas as situações em que o professor escolhe dois ou três filmes que Além de gratificante, é altamente instrutivo para professor e
retratem um mesmo período histórico e com os alunos estabeleça alunos o trabalho que envolva saídas da sala de aula ou mesmo da
relações e distinções, se possuem divergências ou concordâncias escola para visitar um museu, ir a uma exposição de fotografias
no tratamento do tema, no modo como reconstitui os cenários, na ou de obras de arte, conhecer um sítio arqueológico etc. Estes mo-
escolha de abordagem, no destaque às classes oprimidas ou ven- mentos são geralmente lúdicos e representam oportunidades espe-
cedoras, na glorificação ou não dos heróis nacionais, na defesa de ciais para que todos se coloquem diante de situações diferentes,
ideias pacifistas ou fascistas, na inovação ou repetição para expli- em atividades especiais de acesso a outros tipos de informação e
car o contexto histórico etc. Todo esforço do professor pode ser no de envolvimento com as vivências sociais mais amplas da socieda-
sentido de mostrar que, à maneira do conhecimento histórico, o de e do conhecimento humano.
filme também é produzido, irradiando sentidos e verdades plurais. As visitas aos locais são recursos didáticos favoráveis ao en-
volvimento dos alunos em situações de estudo, estimulando inte-
São valiosas as situações em que os alunos podem estudar a histó-
resse e participação. Propiciam contatos diretos com documentos
ria do cinema, a invenção e a história da técnica, como acontecia
históricos, incentivando os estudantes a construírem suas próprias
e acontece a aceitação do filme, as campanhas de divulgação, o
observações, interrogações, especulações, indagações, explicações
filme como mercadoria, os diferentes estilos criados na história e sínteses para questões históricas.
do cinema, a construção e recriação das estéticas cinematográficas Nessas visitas, deve-se destacar para os alunos o fato de que
etc. O mesmo tipo de trabalho pode ser feito no caso de estudos irão conhecer espaços especiais de preservação e de divulgação de
com gravuras, fotografias e pinturas. patrimônios históricos e culturais.
Quando não existem documentos disponíveis sobre um tema Ao longo da História brasileira existiram concepções diferen-
em debate em arquivos ou bibliografias, o professor pode orientar tes para patrimônio histórico e cultural. Uma das correntes atuais
os alunos na coleta e organização de textos, gravuras, fotos e ob- define patrimônio em três grandes dimensões: natural ou ecológi-
jetos encontrados esparsamente na localidade e/ou preservados no co, histórico-artístico e documental. Nesse sentido, há o esforço
âmbito familiar. Outros documentos podem ser criados, como no de preservar, como patrimônio: o meio ambiente; os conjuntos
caso da coleta de depoimentos, de fotografias, de sons e imagens urbanos; os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueo-
com câmeras de vídeo. Pessoas da localidade podem ser entrevis- lógico, paleontológico, ecológico e científico; as obras, os objetos,
tadas sobre vivências específicas, histórias de vida, lembranças de os documentos, as edificações, as criações científicas, artísticas e
eventos do passado e/ou incentivadas a explicar a seu modo as tecnológicas; as formas de expressão; e os modos de criar, fazer e
mudanças ou permanências de costumes. viver. Por sua vez, há o esforço de preservar, como patrimônio his-
Casas, ruas, praças, feiras e pessoas em atividades de lazer tórico, o patrimônio arquitetônico, arqueológico, documental, ar-
ou de trabalho podem ser fotografadas e filmadas. Esses registros quivístico, bibliográfico, hemerográfico, iconográfico, oral, visual,
podem ser estudados, posteriormente, como documentos. museológico e todos os outros bens que documentam a História de
Para colher depoimentos orais é importante escolher previa- uma sociedade.
mente o estilo da entrevista, isto é, se a pessoa falará de sua vida, Debater a questão do patrimônio histórico pode remeter às
se vai responder a determinadas questões, se vai ficar à vontade preocupações do mundo de hoje de preservar não só as constru-
para conversar sobre um tema. Em todo caso, é preciso pensar an- ções e os objetos antigos, mas também a natureza e as relações dos
teriormente sobre o que será solicitado e sobre a melhor maneira homens com tudo isso. Pode remeter também para debates sobre
de conduzir a entrevista. as fontes de pesquisa dos estudiosos e para as fontes de informação
que sustentam a produção do conhecimento sobre o passado.
É sempre preciso definir que tipo de informação será coleta-
As visitas aos museus e às exposições devem possibilitar de-
da. Pode ser dada ênfase apenas às informações de que a pessoa
bates sobre a preservação da memória de qualquer grupo social.
dispõe sobre o tema de pesquisa e, sendo assim, os dados devem
Durante muito tempo, a História valorizou a memória de lideran-
ser anotados no momento. Pode haver a preocupação em colher ças políticas e de heróis nacionais. Hoje em dia, existe a preocu-
informações a partir das formas de comunicação da pessoa oral e/ pação de igualmente preservar a memória de movimentos popula-
ou gestual, caso em que a entrevista deve ser gravada em vídeo ou res, das histórias das minorias étnicas, culturais e religiosas, das
em gravadores portáteis. No caso de gravação, será possível trans- práticas e vivências populares, as lembranças de pessoas comuns
crever o depoimento, registrar por escrito o que foi dito oralmente. etc. Há esforços de preservar a cultura negra, as áreas dos quilom-
O trabalho com documentos históricos é um recurso didático bos, a área e as lembranças do Arraial de Canudos, os terreiros
que favorece o acesso dos alunos a inúmeras informações, inter- de candomblé, os campos de futebol de várzea, as lembranças de
rogações, confrontações e construção de relações históricas. Con- mulheres, operários, artesãos, as fotografias das famílias, os obje-
tudo, cabe ao professor saber dispor desse recurso no momento tos de uso cotidiano, como vestimentas, instrumentos, utensílios
apropriado, ganhar experiência em conduzir os questionamentos, domésticos. Em muitos museus, as exposições destacam essas re-
em solicitar contraposições, em destacar as contradições entre os miniscências sobre o modo de viver no dia-a-dia ou sobre a vida
dados internos às fontes ou obtidos em fontes diferentes. de grupos sociais reprimidos historicamente.
O mais importante, vale lembrar, é sempre avaliar as situações Antes, durante e depois das visitas, pode ser tema de estudo
significativas de sala de aula, em que os estudantes se envolveram, a questão do que é considerado patrimônio histórico e sua rela-
compararam seus conhecimentos prévios com as novas informa- ção com a preservação da memória. É sempre importante consi-
ções, conseguiram interpretar e abstrair questões pertinentes ao derar as hipóteses levantadas pelos alunos sobre o que acreditam
saber histórico. ser patrimônio histórico e as informações de que dispõem sobre o
assunto. É possível aprofundar a questão procurando acrescentar

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novas problemáticas pertinentes ao tema. Algumas visitas aos mu- No trabalho com os documentos encontrados nos museus,
seus e exposições podem estar voltadas para a diversificação das exposições e sítios arqueológicos, é importante o professor con-
concepções sobre o que é ou deve ser preservado hoje em relação siderar que é possível estabelecer diálogos com outras épocas e
ao passado. evidenciar a reconstrução do passado pelo presente. Assim, será
Uma visita pode suscitar o debate sobre como acontece a significativo reconhecer que os documentos deslocados dos seus
preservação do patrimônio histórico cultural da localidade onde espaços originais estão organizados segundo interpretações de es-
vivem, relacionando-o com as memórias e as identidades locais, tudiosos do que é importante lembrar, preservar, rememorar.
regionais, nacionais e/ou mundiais. O debate pode girar em torno Essa interferência do presente acontece mesmo no caso dos
de como é valorizada ou esquecida essa ou aquela memória, como sítios arqueológicos, já que o tempo, a erosão, as camadas de terra,
são fortalecidas ou não as identidades locais ou regionais, como as as escavações e a preservação interferem na leitura dos seus signi-
pessoas contribuem em seu cotidiano para a preservação dos patri- ficados. É importante deixar evidente que as questões do presente
mônios, como preservar depende da consciência de cidadania etc. orientam observações e interpretações construídas para os docu-
Pode, principalmente, propiciar o debate sobre a relação entre mentos, tanto na seleção para estudos e organização de exposições
o presente e o passado, já que a decisão sobre o que e o como pre- pelos historiadores, museólogos e arqueólogos, como nos recortes
servar pertence a cada geração. de estudo que motivam as visitas de alguns professores e alunos.
A questão da memória está relacionada ao lembrar, reme- Não se pode negar, todavia, que os documentos falam princi-
morar, recordar, perpetuar, avisar, iluminar ou consolidar, como palmente de outras épocas. Nas suas materialidades, concretudes,
também ao esquecer, negar, renunciar, romper, recusar, silenciar formas, estéticas e dimensões, eles indicam que existiram outros
etc. O que não é lembrado é esquecido e perde laços afetivos de modos de viver, de fazer, de pensar, de agir, de moldar, de criar,
identidade. de representar o mundo. Eles sugerem o intervalo entre diferentes
Nesse sentido, os documentos são materialidades seleciona- momentos históricos, as distâncias temporais entre o presente e
das, preservadas e estudadas para perpetuar lembranças do passa- o passado. Sob esse aspecto, o contato e a observação de docu-
do, que salientam problemáticas presentes. São suportes para o ato mentos possibilitam vivências e reflexões significativas nos alunos
de recordar da sociedade. sobre o tempo e a História, a memória e sua preservação. Além
O trabalho de preservação de documentos realça o fato de que disso, propiciam imagens e materiais que alimentam a imaginação
o passado nem sempre é lembrado espontaneamente. Existe um
sobre a vida social das gerações precedentes e transmissoras de um
esforço dos estudiosos e/ou de grupos sociais para recolher, cuidar,
legado, dão consistência e significação à vida no presente.
estudar, organizar e divulgar lembranças sobre outros modos de
No que se refere às questões operacionais, lembre-se que as
viver e de compreender o mundo. Se o que se quer recordar não
exposições podem ser permanentes, temporárias e periódicas. As
estivesse ameaçado, não existiria a necessidade de criar espaços
permanentes constituem acervos de museus ou de galerias de arte.
como museus e exposições, onde objetos, textos e obras de arte
As temporárias são organizadas e apresentadas ao público duran-
são deslocados de situações sociais isoladas, individuais, para se-
te um curto período de tempo, geralmente reunindo obras prove-
rem devolvidos à sociedade com novas significações, remetendo e
fundamentando memórias do passado. nientes de diferentes lugares e colecionadores, em função de tema
O que se recorda tem o papel social de criar laços de identida- ou evento histórico da ocasião. As periódicas acontecem uma vez
de coletiva. A identidade tem como suporte uma base material (os por ano ou a cada dois anos, geralmente apresentando novas obras
documentos), que estimula a lembrança por meio de sua dimensão produzidas por artistas ou escritores, novas descobertas históricas,
simbólica — o significado que passa a ter para falar da permanên- arqueológicas etc. A escola e o professor devem acompanhar o ca-
cia ou mudanças de costumes, ações, modos de viver, domínios lendário de eventos pelos meios de comunicação.
tecnológicos. Um texto, uma gravura, uma cerâmica podem afetar Para as visitas às exposições permanentes ou periódicas, exis-
os sentimentos de identificação de um cidadão com grupos locais, te a possibilidade de o professor organizar com calma algumas
étnicos, de gênero; com sua região, sua nação, a cultura de seu atividades anteriores e posteriores, relacionando-as com temas em
povo ou com uma trajetória histórica conhecida ou em processo estudo. As exposições temporárias remetem a comemorações ou
de construção. eventos locais, regionais, nacionais ou mundiais, aniversário ou
Nas visitas a museus, exposições e sítios arqueológicos é re- morte de artistas, cientistas, políticos; centenários de invenções
levante considerar que eles são espaços de preservação e divul- tecnológicas ou de acontecimentos políticos, sociais ou culturais
gação da memória. Nesse particular, é possível desenvolver com etc.
os alunos debates sobre a importância e o significado sociais dos O professor deve levar os alunos, para depois aprofundar o
museus e das exposições no cotidiano da população, na formação trabalho na sala de aula.
de identidades, na sua formação cultural e educacional formação Como as visitas implicam saídas da escola e contato com es-
essa que ocorre em momentos de passeios e lazer. paços sociais mais amplos ao longo do percurso e mesmo o espaço
Deve-se, portanto, debater o fato de que esses locais são espa- construído dos locais visitados, elas podem oportunizar também
ços de pesquisa, de produção de conhecimento. Os alunos podem estudos do meio.
conhecer e estudar processos de preservação, conservação, monta-
gem de exposição, critérios de seleção das obras expostas, os pro- Estudo do meio
fissionais envolvidos no trabalho, as pesquisas realizadas a partir
desses acervos etc. E podem conhecer, como é o caso dos sítios Nas visitas, nos passeios, nas excursões, nas viagens, ou mes-
arqueológicos, lugares originais onde foram encontrados muitos mo nos estudos da organização do espaço interno à sala de aula
dos objetos históricos que estão nos museus, os processos de pes- ou à escola, quando o professor quer caracterizar estas atividades
quisa e de escavação. como estudo do meio é necessário que considere uma metodologia

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específica de trabalho, que envolve o contato direto com fontes É fundamental para o estudante que está começando a com-
de informação documental encontrada em contextos cotidianos da preender o mundo conhecer a diversidade de ambientes, habita-
vida social ou natural e que requerem tratamento muito próximo ções, modos de vida, estilos de arte ou as formas de organização
ao que se denomina pesquisa científica. de trabalho, para compreender de modo mais crítico a sua própria
O estudo do meio não se relaciona a simples obtenção de in- época e o espaço em seu entorno. É por meio da observação das
formações fora da sala de aula ou a simples constatação de co- materialidades e da interpretação dos discursos do seu e de ou-
nhecimentos já encontrados em livros didáticos, enciclopédias ou tros tempos que o aluno aprende a ampliar sua visão de mundo,
jornais, que se podem verificar in loco na paisagem humana ou tomando consciência que se insere em uma época específica. Em
geográfica. um estudo do meio, o ensino de História alcança a vida e o aluno
Não se realiza um estudo do meio para se verificar que as ca- transporta o conhecimento adquirido para fora da situação escolar,
sas construídas no início do século seguem uma série de caracterís- propondo soluções para problemas de diferentes naturezas com
ticas relacionadas ao estilo neoclássico. E não se visita uma fábrica que se defronta na realidade.
para simplesmente verificar, por exemplo, que existe divisão de O estudo do meio favorece uma participação ativa da crian-
trabalho entre os operários. ça na elaboração de conhecimentos, compreendido como recurso
O estudo do meio envolve uma metodologia de pesquisa e de didático para uma atividade construtiva que depende, ao mesmo
organização de novos conhecimentos, que requer atividades ante- tempo, da interpretação, da seleção e das formas de estabelecer re-
riores à visita, levantamento de questões a serem investigadas, se- lações entre informações. Favorece, por outro lado, à explicitação
leção de informações, observação de campo, confrontação entre os de que o conhecimento é uma organização específica de informa-
dados levantados e os conhecimentos já organizados por pesquisa- ções sustentadas tanto na materialidade da vida concreta, como a
dores, interpretação, organização de dados e conclusões. Possibili- partir de teorias organizadas sobre elas. Favorece a compreensão
ta o reconhecimento da interdisciplinaridade e de que a apreensão de que os documentos e as realidades não falam por si mesmos.
do conhecimento histórico ocorre na relação que estabelece com Para lê-los é necessário formular perguntas, fazer recortes temáti-
outros conhecimentos físicos, biológicos, geográficos, artísticos. cos, relacioná-los a outros documentos, a outras informações e a
Em um estudo do meio, o estudante não se depara com os outras realidades. Possibilita, ainda, a compreensão de que o co-
conteúdos históricos na forma de enunciados ou já classificados a nhecimento organizado faz parte da produção de um pesquisador
partir de conceitos. ou de um grupo de pesquisadores, a partir de informações e de
Ao contrário, é uma atividade didática que permite aos alu- ideias de muitos outros estudiosos, e que depende da criação num
nos estabelecerem relações ativas e interpretativas relacionadas tempo específico, a partir de perguntas escolhidas e formuladas ao
diretamente com a produção de novos conhecimentos, envolvendo longo de um processo.
pesquisas com documentos localizados em contextos vivos e di- A seguir, são apresentadas algumas sugestões de metodolo-
nâmicos da realidade. Nesse sentido, os alunos se deparam com gias de trabalho na organização de estudos do meio que podem ser
o todo cultural, o presente e o passado, o particular e o geral, a recriadas pelo professor:
diversidade e a generalização, as contradições e o que se pode es-
tabelecer de comum no diferente. - criar atividades anteriores à saída, que envolvam levanta-
Ou seja, dos indícios da arquitetura de uma, duas, três casas, mento de hipóteses e de expectativas prévias;
ele pode construir seus próprios enunciados para caracterizar o es- - criar atividades de pesquisa, destacando diferentes aborda-
tilo de habitação da época. Dos ornamentos observados nas igrejas gens, interpretações e autores (reportagens, jornais, enciclopédias,
e nos detalhes das obras de arte, ele pode remodelar e conferir os livros especializados, filmes) sobre o local a ser visitado.
conhecimentos que já domina sobre o assunto, aceitando varia- Existem propostas de estudo do meio que sugerem que as pes-
ções em vez de manifestações genéricas. E, conversando com os quisas sejam desenvolvidas após o estudo de campo. Nesse caso, o
moradores que vivem e preservam o patrimônio histórico, pode professor pode experimentar e avaliar diferentes alternativas me-
incorporar um conjunto novo de representações. todológicas;
No caso do estudo do meio, uma paisagem histórica é um ce- - se possível, integrar várias áreas, permitindo investigações
nário composto por fragmentos que suscitam lembranças e proble- mais conjunturais dos locais a serem visitados que incluam, por
máticas, que sensibilizam os estudantes sobre a participação dos exemplo, pesquisas geográficas, históricas, biológicas, ambientais,
antigos e modernos atores da História, acrescentando-lhes vivên- urbanísticas, literárias, hábitos e costumes, estilos artísticos, culi-
cias que estimulam sua imaginação. nária etc;
É no local, conhecendo pessoalmente casas, ruas, obras de - antes de realizar a atividade, solicitar que os alunos organi-
arte, campos cultivados, aglomerações urbanas, conversando com zem, em forma de textos ou desenhos, as informações que já do-
os moradores das cidades ou do campo, que os alunos se sensibili- minam, para que subsidiem as hipóteses e as indagações no local;
zam para as fontes de pesquisa histórica, isto é, para os “materiais” - se possível, conseguir um ou mais especialistas para con-
sobre os quais os especialistas se debruçam na interpretação de versar com os alunos sobre o que irão encontrar na visita ou sobre
como seria a vida em outros tempos, como se dão as relações entre o tema estudado. Como no caso da pesquisa, a conversa com o
os homens na sociedade de hoje, como o passado permanece no especialista pode ser posterior ao estudo de campo;
presente ou como são organizados os espaços urbanos ou rurais. - o professor deve visitar o local com antecedência, para que
O estudo do meio é, então, um recurso pedagógico privilegiado, possa ser também, informante e guia ao longo dos trabalhos;
já que possibilita aos estudantes adquirirem, progressivamente, o - organizar, junto com os alunos, um roteiro de pesquisa, um
olhar indagador sobre o mundo. mapa do local e uma divisão de tarefas;

Didatismo e Conhecimento 30
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- conseguir com antecedência ou posteriormente, para estudo O tempo no estudo da História
em classe, mapas de várias épocas sobre o local, para análise da
transformação da paisagem e da ocupação humana; A questão do tempo é fundamental no ensino de História.
- conversar com os alunos antes da excursão sobre condutas Para os estudiosos que se dedicam a entendê-lo, existe uma série
necessárias no local, como, por exemplo, interferências prejudi- de questões a serem consideradas, tanto no que se refere à sua
ciais aos patrimônios ambientais, históricos, artísticos ou arque- existência natural e física, como no que diz respeito às criações e
ológicos. concepções culturais e históricas a ele relacionadas. Dependendo
do ponto de vista de quem o concebe, o tempo pode abarcar con-
Essas atividades podem se tornar mais significativas na medi- cepções múltiplas.
da em que não são utilizadas apenas como um modo de aproximar O tempo pode ser apreendido pelas pessoas na convivência
a teoria escolar da observação direta. O conhecimento está sempre com a natureza e nas relações sociais. Ele é apreendido pela me-
embasado em teorias que orientam o olhar do observador. Para se mória individual e também subjetivamente nas situações envol-
estar aberto a um número maior de informações é importante ter vendo emoções, como expectativas e ansiedades. É construído co-
acesso a diferentes dados e conhecer várias teorias para interpretar letivamente pelas culturas e expresso em mitos, ritos, calendários
os fenômenos de modo cada vez mais complexo.
e memórias preservadas por grupos e sociedades. Trata-se de uma
Compreender as relações entre os homens significa compreen-
construção objetiva quando está relacionado a padrões de medidas
dê-las não como universais e genéricas, mas como específicas de
e mensurados seus intervalos e durações. É recriado nas narrativas
uma determinada época inserida em um contexto. No contato com
a fonte de interpretação, por via do estudo do meio podem ser cria- orais, textuais e cinematográficas. Conceituado por filósofos, geó-
das oportunidades para os alunos confrontarem o que imaginavam logos, astrônomos, físicos, arqueólogos e historiadores.
ou sabiam com o que a realidade apresenta como materialidade da As diversas dimensões de tempo só são compreendidas em
vida, em todas suas contradições dinâmicas. todas suas complexidades pelo acesso dos alunos a conhecimentos
Nesse sentido, o que se observa provoca conflitos funda- adquiridos ao longo de uma variedade de estudos interdisciplina-
mentais, que instigam os alunos a compreender a diversidade de res durante sua escolaridade. Nesse sentido, não deve existir uma
interpretações sobre uma mesma realidade e a organizar as suas preocupação especial do professor em ensinar, formalmente, uma
próprias conclusões como mais algumas possíveis. dimensão ou outra, mas trabalhar atividades didáticas diversifica-
Um dos aspectos mais ricos nessas atividades revela-se quan- das, de preferência em conjunto com outras áreas.
do os estudantes têm a oportunidade de conviver e conversar com
os habitantes da região, imprimindo em suas lembranças a lingua- Por exemplo:
gem local, o vocabulário diferenciado, as experiências, as vivên-
cias específicas, os costumes, a hospitalidade. - estudar e distinguir calendários de diferentes culturas;
Essas saídas podem propiciar o desenvolvimento do olhar - estudar medições de tempo a partir de calendários, para di-
histórico sobre a realidade. Isto não significa apenas observar os mensionar diferentes durações (dia, mês, ano, década, século, mi-
dados visíveis. Com o auxílio dos habitantes locais e do professor, lênio, eras);
o aluno pode identificar as características da cultura, percebendo - localizar acontecimentos em linhas cronológicas e construir
o que não é explícito. Olhar um espaço como um objeto investi- relações entre eles por critérios de anterioridade, posterioridade e
gativo é estar sensível ao fato de que ele sintetiza propostas e in- simultaneidade;
tervenções sociais, políticas, econômicas, culturais, tecnológicas e - identificar em linhas de tempo cronológicas as durações dos
naturais de diferentes épocas, num diálogo entre os tempos, partin- acontecimentos;
do do presente. Nesse sentido, até os espaços escolares e familiares - estudar a História e o contexto de como foram construídas
podem ser escolhidos como objetos de estudo do meio. e denominadas as clássicas divisões da História em Pré-História e
A utilização de outras metodologias de ensino significa, tam- História, que repercutem na dificuldade do estudo da História de
bém, construir o currículo ao longo do processo, partindo de vi-
povos que não desenvolveram a escrita;
vências do grupo (professor e alunos), sem deixar de considerar o
- estudar os contextos em que a História foi dividida em perí-
conhecimento historicamente constituído.
odos, como Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna, ou Brasil
Depois de realizada a atividade, é fundamental que o professor
encontre propostas para que os alunos organizem as informações Colônia, Brasil Império etc.;
obtidas, sistematizando interpretações, teorias, dados, materiais e - construir novas periodizações, dependendo do tema de estu-
propostas para problemas detectados, atribuindo a esse trabalho do e da identificação de mudanças e de permanências nos hábitos,
uma função social, como conhecimentos que possam ser sociali- costumes, regimes políticos e sistemas econômicos das sociedades
zados e compartilhados com outras pessoas (livro, jornal, exposi- estudadas etc.;
ção, mostra). Assim, além de identificarem significações pessoais - estudar a concepção do tempo métrico e matemático dos re-
para as atividades, os alunos podem enxergar a si mesmos como lógios;
sujeitos participativos e compromissados com a História e com as - estudar a concepção de tempo cíclico da natureza, suas rela-
realidades presente e futura. ções com a construção de calendários (ciclo do dia e da noite, das
Como em outras atividades que são desenvolvidas na escola, fases da Lua, do movimento das estrelas, das estações do ano etc.)
o professor não pode esquecer-se de escrever suas reflexões sobre e suas relações com histórias de indivíduos, de povos ou da huma-
os procedimentos pedagógicos escolhidos, o processo de trabalho nidade (a vida e a morte, as idades ao longo da vida, as idades na
e as produções dos estudantes. Os relatórios sobre as saídas podem História, a repetição dos meses de um ano para o outro, a ideia de
ser socializados com outros professores, aprofundando propostas recomeço na passagem do Ano Novo ou a ideia de renovação no
educacionais e consolidando práticas bem-sucedidas. nascimento de um filho);

Didatismo e Conhecimento 31
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- estudar tempos geológicos no planeta (as lentas transforma- O TEMPO DA DURAÇÃO
ções na crosta terrestre, na atmosfera, na erosão das rochas, na
elevação ou rebaixamento das montanhas, nas erupções dos vul- No estudo da História considera-se, principalmente, a dimen-
cões, na mudança das formas de vida sobre a Terra etc. Geralmen- são do tempo entendida como duração, a partir da identificação
te durações de tempos medidas em eras); estudar as concepções de mudanças e de permanências no modo de vida das socieda-
que as culturas constroem para o tempo, como no caso do tempo des. São essas mudanças que orientam a criação de periodizações,
mítico nas culturas antigas (egípcia, grega, romana, asteca, maia como, por exemplo, as clássicas divisões da História do Brasil, que
etc.) e nas culturas baseadas na tradição dos antepassados (cultura distinguem os períodos Colonial, Imperial e República, tendo-se
popular medieval, culturas africanas, culturas indígenas brasileiras como referência, principalmente, o tipo de regime político vigente
etc.), do tempo escatológico (como nas perspectivas apocalípticas em diferentes épocas.
de São João na cultura ocidental-cristã, nas perspectivas de fim de De modo geral, dependendo das referências de estudo sobre
mundo no calendário asteca), do tempo utópico (como na tradição uma sociedade, pode-se dividir o tempo histórico em períodos que
marxista que projeta um mundo no futuro sem a exploração do englobem um modo particular e específico dos homens viverem,
homem pelo homem) etc.; pensarem, trabalharem e se organizarem politicamente.
- estudar conceitos historicamente construídos para o tempo, A divisão da História em períodos baseados nas mudanças e
como no caso dos que foram delineados em épocas específicas por nas permanências auxilia a identificar a continuidade ou a descon-
filósofos, historiadores, físicos (o conceito de tempo para Herá- tinuidade da vida coletiva. Assim sendo, pode-se compreender e
clito, Parmênides, Santo Agostinho, Bergson, Einstein e outros); tentar explicar quando e como um modo de viver e de pensar so-
- identificar os ritmos de ordenação temporal das atividades freu grandes transformações, quando permaneceu por longos pe-
das pessoas e dos grupos, a partir de predominâncias de ritmos ríodos sem qualquer mudança, ou ainda quando tal mudança foi
de tempo, que mantêm relações com os padrões culturais, sociais, ocorrendo aos poucos, ou mesmo quando deixou de ocorrer.
econômicos e políticos vigentes (atividades sociais regidas por ci- Nos trabalhos com os alunos, não deve existir a preocupação
clos biológicos da natureza, pelo tempo do relógio, pelo valor mo- em ensinar, formalmente, as conceituações de tempo histórico,
netário da hora de trabalho, pela difusão e acesso à tecnologia, má- mas sim um propósito didático de escolher temas de estudos que
quina de calcular, leituras óptica e magnética, computadores etc.). abarquem acontecimentos possíveis de serem dimensionados em
diferentes durações — longa, média e curta duração. Por exemplo,
O TEMPO CRONOLÓGICO podem-se trabalhar fatos políticos que se sucedem com rapidez
no tempo, mudanças em costumes que demoram uma geração, ou
No estudo da História o que existiu teve um lugar e um mo- regimes de trabalho que se prolongam por séculos.
mento. Utilizam-se, então, calendários para possibilitar a diferen- Os acontecimentos podem ser estudados ainda na sua singu-
tes pessoas compartilharem de uma mesma referência de localiza- laridade temporal; explicados a partir dos limites restritos de sua
ção dos acontecimentos no tempo, ou seja, que todas concordem, relação com alguns outros acontecimentos próximos de seu tem-
por exemplo, que o homem chegou à Lua no ano de 1969. Assim, po. Podem ser estudados na sua inserção numa estrutura histórica
é importante que os estudantes conheçam o calendário utilizado maior, isto é, nas relações estabelecidas com outros acontecimen-
por sua cultura, para compartilharem as mesmas referências que tos que extrapolam o tempo presente e revelam a continuidade de
localizam os acontecimentos no presente, no passado e no futuro, aspectos sociais e econômicos resistentes há décadas e séculos;
podendo julgá-los por critérios de anterioridade, posterioridade e e/ou revelam a descontinuidade de lutas sociais, de organizações
simultaneidade. políticas, de costumes e valores interrompidos e retomados no seu
É preciso considerar que as marcações e ordenações do tem- processo. Nesse caso, cabe ao professor criar situações pedagógi-
po, por meio de calendários, podem variar de uma cultura para cas para revelar as dimensões históricas de tais acontecimentos,
outra. As datações utilizadas pela cultura ocidental cristã (o ca- expondo suas relações com o presente, o passado e sua presença
lendário gregoriano) são apenas uma possibilidade de referência embricada na História.
para localização dos acontecimentos em relação uns aos outros,
permitindo que se conheça a ordem em que se desenrolaram. RITMOS DE TEMPO
É importante considerar, também, que a compreensão da orga-
nização dos calendários implica domínios de noções e de concei- No estudo da História considera-se, ainda, a dimensão do
tos fundamentais no estudo da História. O calendário gregoriano tempo predominante no ritmo de organização da vida coletiva, or-
pode ser representado por uma linha contínua e infinita. Envolve a denando e seqüenciando, cotidianamente, as ações individuais e
compreensão de que cada um dos pontos dessa linha é distinto dos sociais. No caso das rotinas de trabalho dos camponeses que, por
outros e que cada ponto corresponde a uma datação. As datações exemplo, dependem da época do ano para plantar e colher, o ritmo
são, assim, distintas umas das outras, especificando um dia, um de vida orientador de suas atividades está mais relacionado aos
mês e um ano. Apesar dos números dos dias e os nomes dos meses ciclos naturais. Nesse sentido, é possível falar que os camponeses
se repetirem de um ano para o outro (com base em organizações cí- vivenciam no seu trabalho um tempo da natureza. Na produção de
clicas), a numeração dos anos nunca se repete (concepção linear), uma fábrica, por outro lado, onde os operários ganham pelas horas
o que torna cada data um momento único e sem possibilidade de de trabalho, o ritmo de tempo é orientado pela marcação mecânica
repetição no tempo. Assim, se os acontecimentos históricos podem das horas de um relógio. Esse ritmo de tempo chamado de tem-
ser localizados no calendário por datas, isto significa que eles são po da fábrica é encontrado também em outras atividades sociais,
diferentes entre si e irreversíveis no tempo. como nas rotinas escolares.

Didatismo e Conhecimento 32
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
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fica falar de tempos e vivências diferentes. Viajar de carro em uma
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estrada bem cuidada despende menos tempo do que viajar com o
Braudel, 18, 19 e 20 de outubro de 1985. Trad. Lucy Magalhães.
mesmo veículo em uma estrada cheia de buracos e obstáculos. O
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entendimento do tempo passa a ser diferenciado. O mesmo ocorre
com a comunicação entre pessoas ao fazerem uso de cartas, tele- __________. A manipulação da História no ensino e nos
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encurtar distâncias e desafia o tempo. do. Trad. Wladimir Araujo. São Paulo: Ibrasa, 1983.
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Didatismo e Conhecimento 34
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Persiste, entretanto, um contingente populacional jovem e Caracteriza-se por ser um trabalho de ação conjunta entre di-
adulto que carece da formação fundamental. Segundo o referido ferentes parceiros, coordenados por organização não governamen-
Censo, 31,2% da população brasileira com mais de 10 anos de tal, e que inclui universidades, estados, municípios, empresas e até
idade tem apenas até 3 anos de estudo; logo, cerca de um terço pessoas físicas interessadas em colaborar.
dos brasileiros (mais de 50 milhões de pessoas) não concluíram Os objetivos desses programas ou projetos são oferecer vagas
nem a primeira parte do Ensino Fundamental. Esses cidadãos que e subsidiar professores que trabalham com os cidadãos que não
não tiveram possibilidades de completar seu processo regular de puderam iniciar ou concluir seus estudos em idade própria ou não
escolarização, em sua maioria, já são adultos, inseridos ou não no tiveram acesso à escola. Em conjunto com diversas outras inicia-
mundo do trabalho, e têm constituído diferente saberes, por esfor- tivas de organizações não governamentais (ONGs), universidades
ço próprio, em resposta às necessidades da vida. Nesse sentido, ou outras formas de associação civil respondem ao enorme desafio
assinala-se, nos termos da Lei, o direito a cursos com identidade de minimizar os efeitos da exclusão do Ensino Fundamental, fe-
pedagógica própria àqueles que não puderam completar a alfabeti- nômeno histórico em nosso país que hoje está sendo superado na
zação, mas, que, ao pertencerem a um mundo impregnado de escri- faixa etária correspondente.
ta, envolveram-se, de alguma forma, em práticas sociais da língua. Contudo, mais do que em razão do número de alunos em salas
É desse modo que se pode entender que o analfabeto possui de aula (ainda pequeno, considerando-se o enorme contingente de
certo conhecimento das linguagens, ao assistir a um telejornal (que jovens e adultos não escolarizados), tais ações do governo e da so-
usa, em geral, a linguagem escrita, oralizada pelos locutores), ao ciedade civil têm oferecido educação aos cidadãos mais afastados
ditar uma carta, ao apoiar-se numa lista mental de produtos a se- da cultura letrada, por viverem em lugares quase isolados do nosso
rem comprados ou ao reconhecer placas e outros sinais urbanos. país continente ou por estarem desenraizados de sua cultura de
Evidencia-se, assim, importância de reconhecer, como ponto origem, habitando as periferias das grandes cidades.
de partida, que o estilo de vida nas sociedades urbanas modernas Já nos primeiros artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
não permite grau zero de letramento. cação Nacional (LDB) de 1996, valorizam-se a experiência extra-
Há uma possibilidade de “leitura do mundo” em todas as pes- -escolar e o vínculo entre a educação escolar, o mundo do traba-
soas, até para aquelas sem nenhuma escolarização. lho e a prática social. Esse fato sinaliza o rumo que a educação
O Censo Escolar realizado pelo Inep indica um total de
brasileira já vem tomando e marca posição quanto ao valor do
3.410.830 matrículas em cursos de Educação de Jovens e Adultos
conhecimento escolar, voltado para o pleno desenvolvimento do
(EJA) em 1999. Desse total, mais ou menos 1.430.000 frequentam
educando, seu preparo para o exercício da cidadania, e sua qualifi-
cursos correspondentes ao segundo segmento do ensino funda-
cação para o trabalho (Artigo 2). Essas orientações são reiteradas
mental, de 5ª a 8ª série.
em muitas outras partes da mesma Lei, como nas diretrizes para
Nesses cursos, encontra-se um público variado e heterogêneo,
os conteúdos curriculares da educação básica, anunciadas no seu
uma importante característica da EJA. Entre eles, há uma parce-
Artigo 27, destacando-se a primeira delas, que preconiza a difusão
la dos jovens de 15 a 17 anos de idade frequentando a escola e
de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres
que, segundo o IBGE, representa quase 79% da população dessa
dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática.
faixa. Os demais 21%, por diversos motivos, mas principalmente
por pressões ou contingências socioeconômicas, deixaram preco- Ainda outros documentos do Ministério da Educação, como
cemente o ambiente escolar. os Parâmetros Curriculares Nacionais, para os níveis Fundamental
Sendo dever dos poderes públicos e da sociedade em geral e Médio, a Proposta Curricular da EJA (5ª a 8ª série) e a Matriz de
oferecer condições para a retomada dos estudos em salas de aula, Competências e Habilidades do Exame Nacional do Ensino Médio
destinadas especificamente a jovens e adultos, diversos projetos (ENEM), abordam o currículo escolar, integrado por competências
têm sido desenvolvidos no âmbito do governo federal. Para atender e habilidades dos estudantes, ou norteado por objetivos de ensino/
os municípios do Norte e Nordeste com baixo IDH, o Ministério aprendizagem, em que os conteúdos escolares são plurais e só têm
da Educação (MEC) é parceiro no Projeto Alvorada, organizando sentido e significado se mobilizados pelo sujeito do conhecimento:
o repasse de verbas a Estados e Municípios. Em apoio ao projeto, a o estudante. Pode-se reconhecer, no conjunto desses documentos
Coordenadoria de Educação de Jovens e Adultos (COEJA), da Se- e em cada um deles, esforços coletivos por um melhor e maior
cretaria do Ensino Fundamental (SEF–MEC), tendo como parceira comprometimento da comunidade escolar brasileira com um novo
a Ação Educativa, organização não governamental de reconhecida paradigma pedagógico. Um paradigma multifacetado, como cos-
experiência no campo de formação de jovens e adultos, apresentou tuma acontecer com as tendências sociais em construção, diverso
Proposta Curricular para Educação de Jovens e Adultos, 1º Seg- em suas nomenclaturas e que se vale de numerosas pesquisas, em
mento, que visa ao programa Recomeço – Supletivo de Qualidade. diferentes campos científicos, muitas ainda em fase de produção e
Além disso, em resposta às demandas dos sistemas públicos (esta- consolidação.
duais e municipais) que aderiram aos Parâmetros Curriculares Na- Esse rico cenário acadêmico precisa ainda ser mais eficaz-
cionais (PCN) em ação, a mesma COEJA promoveu a formulação mente disseminado no ambiente complexo e plural da educação
e vem divulgando uma Proposta Curricular para a EJA de 5ª a 8ª brasileira. Mesmo assim, o conjunto dos documentos que estru-
série, fundamentada nos Parâmetros Curriculares Nacionais desse turam e orientam a Educação Básica no Brasil é coeso em seus
segmento. propósitos e conceitos centrais: a difusão dos valores de justiça
O Programa Alfabetização Solidária, por sua vez, foi lançado social e dos pressupostos da democracia, o respeito à pluralidade,
em 1997 e relata a alfabetização de 2,4 milhões de jovens em 2001. o crédito à capacidade de cada cidadão ler e interpretar a realidade,
Em 2002, encontra-se em 2.010 municípios. conforme sua própria experiência.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Respondem por um paradigma com lastro nos legados de Jean Ainda que se reconheça o inequívoco papel da memória para o
Piaget e Paulo Freire, verificando-se, com eles, que é necessário conhecimento de fenômenos, das etapas dos processos, ou mesmo,
disseminar as pedagogias que buscam promover o desenvolvimen- de teorias, é preciso considerar, nas referências de provas, bem
to da inteligência e a consciência crítica de todos os envolvidos no como na oferta de ensino, as múltiplas capacidades de operar com
processo educativo, tendo, na interação social e no diálogo autên- informações dadas. Ou seja, está-se valorizando a autonomia do
tico, o mais importante instrumento de construção do conhecimen- estudante em ler informações e estabelecer relações a partir de cer-
to. Um paradigma com denominações variadas, pois usufrui de tos contextos e situações.
diferentes vertentes teóricas, mas com algo em comum: a crítica à E, assim, o exame sinaliza e valoriza um cidadão mais apto
tradição do currículo enciclopédico, centrado em conhecimentos a viver num mundo em constantes transformações, onde é im-
sem vínculo com a experiência de vida da comunidade escolar e portante possuir estratégias pessoais e coletivas para a solução de
na crença de que a aquisição do conhecimento dispensa o exercí- problemas, fundamentadas em conhecimentos básicos de todas as
cio da crítica e da criação por parte de quem aprende. Mas é essa disciplinas ou áreas da educação básica.
tendência que ainda orienta a maioria dos currículos praticados e, O processo de elaboração das Matrizes de Competências e
consequentemente, os exames de acesso a um nível escolar ou para Habilidades do ENCCEJA, Fundamental e Médio teve como meta
certificação. principal garantir uma proposta de continuidade e coerência entre
Os exames de certificação para os jovens e adultos não cons- o que se estabeleceria para os exames em nível de Ensino Médio
tituem exceção, uma vez que, na sua maioria, submetem os alunos ou Fundamental. Dessas etapas resultaram a definição das quatro
a provas massivas, sem o correspondente cuidado com a qualidade áreas dos exames e um conjunto de proposições para cada uma
do ensino e o respeito com o educando, como se encontra assina- delas, que foram também reconsideradas à luz das Diretrizes Cur-
lado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens riculares Nacionais da EJA (DCNEJA), das políticas educacionais
e Adultos (DCNEJA). Por outro lado, recomenda-se que o estu- vigentes em âmbito federal e nas propostas estaduais, a fim de or-
dante da EJA, com a maturidade correspondente, deva encontrar, ganizar os quadros de referência dos exames.
nos cursos e nos exames dessa modalidade, oportunidades para As Matrizes de referência para a prova de cada área ou disci-
reconhecer e validar conhecimentos e competências que já possui. plina foram organizadas em torno de nove competências amplas,
A mesma Diretriz prevê a importância da avaliação na universali-
por sua vez, desdobradas em habilidades mais específicas, resul-
zação da qualidade de ensino e certificação de aprendizagem, ao
tantes da associação desses conteúdos gerais às cinco competên-
apontar que os exames da EJA devem primar pela qualidade, pelo
cias do ENEM.
rigor e pela adequação.
As competências já definidas para o ENEM correspondem aos
A proposta do Exame Nacional de Certificação de Competên-
eixos cognitivos básicos, a ações e operações mentais que todos os
cias de Jovens e Adultos (ENCCEJA) busca satisfazer esses funda-
jovens e adultos devem desenvolver como recursos mínimos que
mentos político pedagógicos, expressos de forma mais abrangente
os habilitam a enfrentar melhor o mundo que os cerca, com todas
na Lei maior da educação brasileira, e, de modo mais detalhado ou
com ênfases especiais, nas Diretrizes, Parâmetros e outros referen- as suas responsabilidades e desafios.
ciais que a contemplam, inclusive, o Documento Base do Exame Nas Matrizes do ENCCEJA, os conteúdos tradicionais das
Nacional do Ensino Médio (ENEM). ciências, da arte e da filosofia são denominados competências
Baseados na experiência dos especialistas e nesses documen- de área, à semelhança dos conceitos já consagrados na reforma
tos buscou-se identificar conteúdos e métodos para a construção do ensino médio, porque já demonstram aglutinar articulações
de um quadro de referências atualizado e adequado ao Encceja. de sentido e significação, superando o mero elenco de conceitos
Um dos resultados do processo são as Matrizes de Competências e teorias. Essas competências, em cada área, foram submetidas
e Habilidades, em nível de Ensino Fundamental e em nível de En- ao tratamento cognitivo das competências do sujeito do conhe-
sino Médio. cimento e permitiram a definição de habilidades específicas que
As Matrizes de Competências e Habilidades constituem refe- estabelecem as ações ou operações que descrevem desempenhos
rencial de exames mais significativos para o participante jovem ou a serem avaliados nas provas. Nessa concepção, as referências de
adulto, mais adequados às suas possibilidades de ler e de interagir cada área descrevem as interações mais abrangentes ou complexas
com os problemas cotidianos, com o apoio do conhecimento es- (nas competências) e as mais específicas (nas habilidades) entre as
colar. ações dos participantes, que são os sujeitos do conhecimento, com
Embora que não seja possível, em âmbito nacional, prever a os conteúdos disciplinares, selecionados e organizados a partir dos
enorme gama de conhecimentos específicos estruturados em meio referenciais adotados.
à vivência de situações cotidianas, procurou levar em consideração Para a elaboração das competências do Ensino Médio, foram
que o processo de estruturação das vivências possibilita aquisi- consideradas as competências por área, definida pelas Diretrizes
ções lógicas de pensamento que são universais para os jovens e do Ensino Médio. Constituiuse um importante desafio à elabora-
adultos e que se, de um lado, devem ser tomadas como ponto de ção das matrizes do ENCCEJA para o Ensino Fundamental, es-
partida nas diversas modalidades de ofertas de ensino para essa pecificamente no que diz respeito à definição das competências
população, de outro, devem participar do processo de avaliação gerais das áreas. Isso porque, para o Ensino Fundamental, os Parâ-
para certificação. metros Curriculares Nacionais (PCN) e as Diretrizes Curriculares
Desse modo, objetivou-se superar a concepção de estrutura- Nacionais trazem outra abordagem, não tendo incorporado a dis-
ção de provas fundamentadas no ensino enciclopedista, centradas cussão mais recente, que visa à determinação de competências e
em conteúdos fragmentados e descontextualizados, quase sempre habilidades de aprendizagem como produto da escolarização, ain-
associados ao privilégio da memória sobre o estabelecimento de da que preservem e ampliem consideravelmente outros elementos
relações entre ideias. didático-pedagógicos do mesmo paradigma.

Didatismo e Conhecimento 36
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Os documentos legais permitiram construir matrizes seme- Primeiramente, ao esclarecer a natureza dos conteúdos míni-
lhantes para o ENCCEJA - Ensino Fundamental, apesar de ofere- mos referentes às noções e conceitos essenciais sobre fenômenos,
cerem contribuições distintas para a configuração das competên- processos, sistemas e operações que contribuem para a constitui-
cias e habilidades a serem avaliadas. ção de saberes, conhecimentos, valores e práticas sociais indis-
pensáveis ao exercício de uma vida de cidadania plena, e, depois,
A. A proposta do ENCCEJA para a certificação do ensino ao recomendar: ao utilizar os conteúdos mínimos, já divulgados
fundamental inicialmente pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, a serem en-
sinados em cada área de conhecimento, é indispensável considerar,
Considerando-se a população que não completou seus estudos para cada segmento (Educação Infantil, 1ª a 4ª e 5ª a 8ª séries),
do nível fundamental, é possível aventar a existência de significa- ou ciclo, que aspectos serão contemplados na intercessão entre as
tivo número de pessoas desejosas de recuperar o reconhecimento áreas e aspectos relevantes da cidadania, tomando-se em conta a
social da condição letrada, obtendo certificação de conhecimen- identidade da escola e de seus alunos, professores e outros profis-
tos por meio de Exame Supletivo do Ensino Fundamental. Essas sionais que aí trabalham.
Decorre que também a EJA do Fundamental deve considerar
pessoas, tendo-se afastado da escola há bastante tempo ou mesmo
os aspectos próprios da identidade do jovem e adulto que retoma
tendo retomado estudos parciais de forma esporádica, continuaram
a escolarização, tanto para efeito de cursos, como para exames.
aprendendo pela prática de leitura e análise de textos escritos, de
Por outro lado, corrobora a referência aos conteúdos (conceitos,
cálculos e outros estudos em situações específicas de seu interesse.
procedimentos, valores e atitudes) debatidos nos PCN de 5ª a 8ª
Participam de meios informais, eventuais, ou mesmo, incidentais série (subsidiários à Proposta Curricular da EJA), na escolha dos
de educação com diferentes propósitos. Por exemplo, em cursos conteúdos do Encceja do Ensino Fundamental.
oferecidos por empresas para capacitação de pessoal, em grupos A segunda linha de contribuições reside no levantamento do
de estudo comunitários, ou mesmo, através de programas educati- rol de aspectos da vida cidadã que devem estar articulados à base
vos na TV, no rádio ou outras mídias. nacional comum, quais sejam: a saúde, a sexualidade, a vida fami-
Assim, são capazes de leitura autônoma para efeito de lazer, liar e social, o meio ambiente, o trabalho, a ciência e a tecnologia,
demandas do exercício da cidadania ou do trabalho. Desse modo, a cultura e as linguagens. Ressalte-se que esses aspectos guardam
leem revistas esportivas e folhetos de instrução técnica, programas evidente proximidade com os Temas Transversais, desenvolvidos
de candidatos a cargos eletivos e publicações vendidas em banca no PCN do Ensino Fundamental: Ética, Meio Ambiente, Saúde,
de jornal que dão instruções para a realização de muitas atividades. Orientação Sexual, Trabalho e Consumo, e Pluralidade Cultural.
Além disso, calculam para fins de compra e venda, analisam Com os mesmos propósitos, estudaram-se também os textos
situações de qualidade de vida (ou sua carência). Logo, já são lei- da V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos, com
tores do mundo, superaram um estágio de decifração de códigos da uma orientação temática de mesma natureza que os PCN e DCN
língua materna, ao qual pertence um número maior de brasileiros. do Ensino Fundamental. Isso pode ser exemplificado pela menção
Esses jovens e adultos, já trabalhadores com experiência profis- especial dos temas I, IV e VI.
sional, leitores, participantes de vias informais da educação, com I- Educação de adultos e democracia: o desafio do século
expectativa de melhor posicionamento no mercado de trabalho e/ desafio do século XXI..
ou da retomada dos estudos em nível médio, precisam ter reconhe- Alguns compromissos desse tema: desenvolver participação
cidos e validados os seus conhecimentos. Para eles, foi elaborado comunitária, favorecendo cidadania ativa; sensibilizar com relação
o ENCCEJA, correspondente ao nível fundamental. aos preconceitos e à discriminação no seio da sociedade; promover
Tendo a LDB diminuído a idade mínima para a certificação uma cultura da paz, o diálogo intercultural e os direitos humanos;
por meio de exames supletivos, instalou-se uma questão contradi- IV- A educação de adultos, igualdade e equidade nas rela-
tória na educação nacional, pois é supostamente desejável a per- ções entre homem e mulher e a maior autonomia da mulher.
manência dos jovens de 15 anos na escola, a fim de desenvolver Esse tema mulher. tem como um dos compromissos: promo-
ver a capacitação e autonomia das mulheres e a igualdade dos gê-
suas capacidades e compartilhar conhecimentos, com o apoio e a
neros pela educação de adultos, entre outros.
mediação da comunidade escolar.
VI- A educação de adultos em relação ao meio ambiente, à
Entretanto, alguns precisaram interromper os estudos por mo-
saúde e à população.
tivos contingenciais e financeiros, por mudança de domicílio ou
Essa população. Tema tem como compromissos: promover
para ajudar a família, entre outros motivos. Além disso, como já a capacidade e a participação da sociedade civil em responder
apontado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação de e buscar soluções para os problemas de meio ambiente e de de-
Jovens e Adultos (DCNEJA), há aqueles que, mesmo tendo con- senvolvimento, estimular o aprendizado dos adultos em matéria
dições financeiras, não lograram êxito nos estudos, por razões de de população e de vida familiar, reconhecer o papel decisivo da
caráter sociocultural. Para esses jovens, a certificação do Ensino educação sanitária na preservação e melhoria da saúde pública e
Fundamental por meio do ENCCEJA significa a possibilidade de individual, assegurar a oferta de programas de educação adaptados
retomar os estudos no mesmo nível que seus coetâneos, não so- à cultura local e às necessidades específicas, no que se refere à
frendo outras penalidades além daquelas já impostas por suas con- atividade sexual.
dições de vida até então. Todas essas recomendações foram consideradas para a sele-
As Diretrizes do Ensino Fundamental contribuem diretamente ção de valores e conceitos integrados às competências e habilida-
para a seleção de conteúdos a serem avaliados pelo Encceja de, des organizadoras do ENCCEJA do Ensino Fundamental. Já para
pelo menos, duas maneiras. a definição do escopo e redação das competências das áreas e dis-

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
ciplinas, consideraram-se especialmente os objetivos gerais para É a partir dessas concepções de leitura que as provas são ela-
ensino e aprendizagem delineados na Proposta Curricular da EJA boradas, como possibilidades de abordagem pedagógica das com-
(5ª a 8ª série) de Matemática, Língua Portuguesa, Ciências Natu- petências e habilidades do Encceja na avaliação para certificação.
rais, História e Geografia, e os objetivos gerais de todo o Ensino Para tanto, os textos oferecidos em questões de prova são ri-
Fundamental dos PCN e dos Temas Transversais. gorosos do ponto de vista conceitual, ao observarem os marcos
Assim, foram constituídas as referências para as provas de: teóricos de referência em cada área de conhecimento. Contudo,
1- Língua Portuguesa, Artes, Língua Estrangeira e Educação procura-se delimitar cuidadosamente a diversidade do vocabulário
Física, sendo as três últimas áreas de conhecimento consideradas utilizado, além da magnitude da rede conceitual empregada e das
sob a ótica da constituição das linguagens e códigos, não como operações lógicas exigidas. Isso porque o participante precisa de
conteúdos conceituais isolados para avaliação; situações adequadas para estabelecer relações mais abrangentes e
2- Matemática; mais próximas das teorias científicas. Não se pode perder de vis-
3- História e Geografia; ta que, em nível fundamental, ele necessita de orientação clara e
4- Ciências Naturais. concisa, além de um tempo maior para a observação das represen-
tações de fenômenos, para as comparações, as análises, a produção
A Matriz para o ENCCEJA concorre para a promoção de pro- de sínteses ou outros procedimentos.
vas que deem oportunidade para jovens e adultos aproveitarem o Com esses cuidados, é desejável propor aos jovens e adul-
que aprenderam na vida prática, trabalhando com aspectos básicos tos uma variedade de questões, envolvendo temas das áreas de
da vida cidadã, como a tomada de decisões e a identificação e re- conhecimento, sempre explicitando conceitos mais complexos e
solução de problemas, a descrição de propostas e a comparação problematizando-os para que, por meio da reflexão própria, ele re-
entre ideias expressas por escrito, considerando valores e direitos conheça o que já sabe e estabeleça conexões com o conhecimento
humanos. novo apresentado. Assim, para enfrentar situações-problema, são
Tais ações ou operações do participante estão representadas mobilizados elementos lógicos pertinentes ao raciocínio científico
na matriz do ENCCEJA, nas diferentes habilidades. e também ao cotidiano, podendo explorar interações entre fatos
Não se deve supor, contudo, que uma prova organizada a par- e/ou ideias, para entre eles estabelecer relações causais, espaço-
-temporais, de forma e função, ou sequenciando grandezas.
tir de habilidades (articulações entre operações lógicas com con-
Não se pode perder de vista, tampouco, o exercício simplifi-
teúdos relevantes) negligencie as exigências básicas de conteúdos
cado da metacognição por parte daqueles que pouco frequentaram
mínimos e a capacidade de ler e escrever.
a escola. Não é de se esperar que possam raciocinar com desen-
Para o participante da prova, é imprescindível a prática autô-
voltura sobre a estrutura do conhecimento em si, uma qualidade
noma da leitura, que possibilita a percepção de possíveis signifi-
intelectual daqueles que frequentaram a escola (Oliveira, 1999).
cados e a construção de opiniões e conhecimentos ao ler um texto,
Respeitar essa característica representa uma exigência para a for-
um esquema ou outro tipo de figura.
mulação de uma prova em que se reconhecem as possibilidades in-
Espera-se, de fato, que o jovem e o adulto, ao certificarem-se
telectuais dos cidadãos que não tiveram oportunidade de exercitar
com a escolaridade fundamental pelo ENCCEJA, já estejam lendo
a compreensão dos objetos de conhecimento descontextualizada
autonomamente, com certa fluência, a partir de sua experiência de suas ligações com a vida imediata.
com textos diversos, em situações em que faça sentido ler e escre- Portanto, sem perder de vista a pluralidade das realidades bra-
ver. Cabe a eles construir os sentidos de um texto, ao colocar em sileiras e a diversidade daqueles que buscam a certificação nesse
diálogo seus próprios conhecimentos de mundo e de língua, como nível de ensino, propõe-se uma prova que apresenta uma temáti-
usuários dela, e as pistas do texto, oferecidas pelo gênero, pela ca atualizada, em nível pertinente aos jovens e adultos que, para
situação de comunicação e pelas escolhas do autor: realizá-la, se inscrevem. Deve representar um desafio consisten-
Nessa perspectiva, entende-se que ler não é extrair informa- te, mas possível, exequível e motivador, para que os participantes
ção, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de exercitem suas potencialidades lógicas e sua capacidade crítica em
uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, in- questões de cidadania, reconhecendo e formulando valores essen-
ferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o ciais à cultura brasileira, ao convívio democrático e ao desenvol-
uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo vimento pessoal.
lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compre-
ensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto supo- B. A proposta do ENCCEJA para certificação do ensino
sições feitas. (Brasil, c2000, v.2, p.69, 7º parágrafo) médio
Devem-se considerar, entretanto, diferentes níveis de profici-
ência na leitura dos códigos e linguagens que constituem as infor- Pode-se afirmar que são múltiplos e diversos os fatores que
mações da realidade. estimulam a busca de certificação do ensino médio na Educação
A meio termo da formação básica, na conclusão do Ensino de Jovens e Adultos.
Fundamental, os textos lidos ou formulados pelo estudante da EJA Dentre eles, destaca-se a exigência do mundo do trabalho,
já evidenciam uma visão de mundo um tanto complexa, ainda que pois, atualmente, a necessidade da certificação no ensino médio se
expressa em discurso mais sintético, mais direto, com muitos no- faz presente em diferentes atividades e setores profissionais.
mes do cotidiano preservados e elementos do senso comum, se Ressaltam-se, também, os fatores pessoais da busca do cida-
comparados com produções do estudante em nível de Ensino Mé- dão pela certificação: a vontade de continuar os estudos e a vonta-
dio. de política de obter o direito da cidadania plena.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Esses aspectos são mais significativos do ponto de vista da- A Constituição de 1988, no Inciso II do Art. 208, já apontava
queles que discutem a Educação de Jovens e Adultos para certi- para a garantia da institucionalização dessa etapa de escolarização
ficação no ensino médio. Ela é direcionada para jovens e adultos como direito de todo cidadão. A LDB estabeleceu, por sua vez, a
com mais de dezenove anos que, por motivos diversos, não pude- condição em norma legal, quando atribuiu ao EM o estatuto de
ram frequentar a escola no seu tempo regular. educação básica (Art. 21), definindo suas finalidades, ou seja, de-
Tal fato é previsto na LDB 9.394/96 quando considera o ensi- senvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum para o
no médio como etapa final da educação básica e a EJA como uma
exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no tra-
das modalidades de escolarização. O direito político subjetivo do
balho e em estudos posteriores. (Art. 22).
cidadão de completar essa etapa e, por sua vez, o dever de oferta
educacional pública que permita superar as diferenças e aponte Por sua vez, o Art. 4º da Resolução CNE/CEB 1/2000 diz que
para uma equidade possível são princípios que não podem ser re- as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), estabelecidas na Re-
legados, como afirma o Parecer da Câmara de Educação Básica solução CNE/CEB 3/98 e vigentes a partir da sua publicação, se
do Conselho Nacional de Educação - Parecer CNE/CEB 11/2000, estendem para a modalidade da Educação de Jovens e Adultos no
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e ensino médio, sua organização e processos de avaliação.
Adultos: A direção curricular proposta pelas DCN-EM destaca o desen-
volvimento de competências e habilidades distribuídas em áreas
Desse modo, a função reparadora da EJA, no limite, significa de conhecimento: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciên-
não só a entrada no circuito dos direitos civis pela restauração cias Humanas e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e Mate-
de um direito negado: o direito a uma escola de qualidade, mas mática e suas Tecnologias. O caráter interdisciplinar das áreas está
também o reconhecimento daquela igualdade ontológica de todo relacionado ao contexto de vida social e de ação solidária, visando
e qualquer ser humano. à cidadania e ao trabalho. Vale a pena lembrar que a LDB é à base
Desta negação, evidente na história brasileira, resulta uma
das DCNEM. No Art. 36, a LDB destaca que o currículo do ensino
perda: o acesso a um bem real, social e simbolicamente impor-
tante. Logo, não se deve confundir a noção de reparação com a médio deve observar as seguintes diretrizes: a educação tecnoló-
de suprimento. gica básica; a compreensão do significado da ciência, das letras e
das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da
É muito provável que, com as elevadas taxas de repetência e cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação,
evasão nas últimas décadas do século XX, muitos alunos que não acesso ao conhecimento e exercício da cidadania.
tiveram sucesso no sistema educacional regular optem por essa Além disso, dois aspectos merecem menção especial, pois
modalidade de ensino. Soma-se a esse fato o difícil acesso à escola marcam a diferença em relação à organização curricular do ensino
básica por motivos socioeconômicos diversos. médio: o eixo da tecnologia e dos processos cognitivos de compre-
Segundo o IBGE, em 1999, havia cerca de 13,3% de analfabe- ensão do conhecimento.
tos acima de 15 anos. Em 2000, a distorção idade/série, no ensino Assim, a caracterização das áreas procura ser uma forma de
médio, de acordo com dados do MEC/INEP, é da ordem de 50,4%. estabelecer relações internas e externas entre os conhecimentos,
No mesmo ano, os dados registram, aproximadamente, 3 milhões de abordá-los sob o ângulo das correspondências próprias à sua
de alunos matriculados em cursos da EJA. A oferta da Educação
divulgação para o público que necessita dos saberes escolares para
de Jovens e Adultos para o ensino médio (EM) está principalmente
a cargo dos sistemas estaduais, em parceria, muitas vezes, com a vida social, o trabalho, a continuidade dos estudos e o desenvol-
redes privadas. vimento pessoal.
Nesse sentido, as Secretarias de Educação têm-se mobilizado A definição na LDB do que é próprio aos ensinos fundamental
para criar uma rede de atendimento e uma proposta de escola mé- e médio não é colocada como forma de ruptura, mas sim de apro-
dia coerente com as necessidades previstas para essa população, fundamento (compreensão) e contexto (produção e tecnologia).
diversificando o atendimento no País. Se, no ensino fundamental, o caráter básico dos saberes sociais pú-
Deve ser também ressaltada a importância da avaliação e blicos foi desenvolvido, cabe, no ensino médio, aprofundá-los ou,
certificação nessa modalidade de ensino. De acordo com o Art. então, desenvolvê-los. Essa consideração, para EJA/EM, se deve
10 da Resolução CNE/CEB 1/2000, que estabelece as diretrizes ao fato de que a certificação no ensino médio não está, por lei,
curriculares nacionais para a Educação de Jovens e Adultos: no atrelada à certificação no ensino fundamental, havendo, no entan-
caso de cursos semipresenciais e a distância, os alunos só poderão to, uma continuidade entre as duas etapas da educação básica. De
ser avaliados, para fins de certificados de conclusão, em exames qualquer forma, ao término do EM, espera-se que o cidadão tenha
supletivos presenciais oferecidos por instituições especificamente
desenvolvido competências cognitivas e sociais inseridas em um
autorizadas, credenciadas e avaliadas pelo poder público, dentro
determinado sistema de valores e juízos, ou seja, aquele referente
das competências dos respectivos sistemas...
O Exame Nacional de Certificação de Competências de Jo- à ética e ao mundo do trabalho.
vens e Adultos do Ensino Médio (ENCCEJA/EM) está articula- No caso do público participante da EJA/EM, isso se torna
do tanto para atender a essa prerrogativa quanto para responder à mais evidente. A idade, a participação no mundo do trabalho, as
demanda, em sintonia com a lógica da avaliação nacional. Nesse responsabilidades sociais e civis são outras, diferentes daquelas
sentido, o ENCCEJA/EM constitui uma possibilidade de avalia- dos alunos da escola regular que se preparam para a vida. O pú-
ção que, ao mesmo tempo, respeita a diversidade e estabelece uma blico da EJA/EM está na vida atuando como trabalhador, pai de
unidade nacional, ao apontar o que é basicamente requerido para a família, provedor.
certificação no ensino médio que faz parte atualmente da educação Entretanto, se o ponto de partida é diferente, o ponto de che-
básica. gada não o é.

Didatismo e Conhecimento 39
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Ao final do EM, espera-se que esse público possa dar conti- A proposta do ENCCEJA para certificação do Ensino Médio
nuidade aos estudos com qualificação, disputar uma posição no assume parte desse papel institucional, procurando, por meio de
mercado de trabalho e participar plenamente da cidadania, com- uma prova escrita, aferir, em condições observáveis e com exigên-
partilhando os princípios éticos, políticos e estéticos da unidade e cias definidas, as competências previstas para a educação básica.
da diversidade nacionais, colocando-se como ator no contexto de O foco do ENCCEJA é a situaçãoproblema para cuja resolu-
preservação e transformação social. ção o participante deve mobilizar saberes cognitivos e conceituais
A noção de desenvolvimento e avaliação de competências (competências).
pode permitir alguma compreensão desse processo de diversidade A aprendizagem é destacada como referência à autonomia
e unidade. intelectual do sujeito ao final da educação básica, mediada pelos
O foco sobre a noção de competência, nos documentos oficiais princípios da cidadania e do trabalho, na atualidade. As competên-
referentes à educação básica e no discurso acadêmico educacional, cias para a participação social incluem a criatividade, a capacidade
principalmente a partir de 1990, instaura um eixo para reestrutu- de solucionar problemas, o senso crítico, a informação, ou seja, o
ração dos conteúdos escolares e de suas formas de transmissão e aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser.
avaliação, ou seja, é uma proposta de mudança que procura apro- A Matriz de Competências indicada para a avaliação do ENC-
ximar a educação escolar da vida social contemporânea. Nessa CEJA/EM é um produto de discussão coletiva de inúmeros profis-
proposta, destaca-se a perspectiva da flexibilização da organização sionais da educação, buscando contemplar os princípios legais que
da educação escolar, em respeito à diversidade e identidade dos regem a educação básica (Brasil,1999a; Brasil,1996; CNE, 1998;
sujeitos da aprendizagem. Quais são as competências comuns que CNE, 2000).
devem ser socializadas para todos? O ENCCEJA/EM está estruturado com base em Matrizes de
A resposta a essa pergunta fundamenta a educação básica. Em referência que consideram a associação de cinco competências do
sequência, há outra questão não menos relevante: como avaliá-las? sujeito com nove competências previstas na Base
O respeito à diversidade não deve ser identificado com o caos. Nacional Comum para as áreas de conhecimento (Lingua-
Daí, a necessidade da responsabilização política e institucional em gens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tec-
traçar um fio condutor que delimite os saberes e as competências nologias; Ciências da Natureza e Matemática e suas Tecnologias),
cujos cruzamentos definem as habilidades a serem avaliadas. As
gerais com os quais todo e qualquer processo deve comprometer-
competências cognitivas básicas a serem avaliadas são: o domí-
-se, principalmente o de avaliação. As diretrizes legais para a or-
nio das linguagens, a compreensão dos fenômenos, a seleção e or-
ganização da educação básica estão expressas em um conjunto de
ganização de fatos, dados e conceitos para resolver problemas, a
princípios que indica a transição de um ensino centrado em conte-
argumentação e a proposição. Essas competências cognitivas são
údos disciplinares (didáticos) seriados e sem contexto para um en-
articuladas com os conhecimentos e competências sociais cons-
sino voltado ao desenvolvimento de competências verificáveis em
truídos e requeridos nas diferentes áreas, tendo por referência os
situações específicas. A avaliação assume um papel fundamental
sujeitos/interlocutores da aprendizagem que se apropriam dos co-
nessa perspectiva, definindo o sentido da escolarização.
nhecimentos e os transpõem para a vida pessoal e social. No elen-
A ação prevista pelos sujeitos envolvidos na educação básica co das habilidades de cada área, estão valorizadas as experiências
extrapola determinados padrões de pensamento até então valoriza- extraescolares e os vínculos entre a educação, o mundo do trabalho
dos pela escolarização acrítica (identificar, reproduzir, memorizar, e outras práticas sociais, de tal maneira que o exame, estruturado a
repetir) e aponta para a necessidade de a escola sistematicamen- partir das matrizes, não perca de vista a pluralidade de realidades
te realizar, em situações de aprendizagem, o desenvolvimento de brasileiras e não deixe de considerar a diversidade de experiências
movimentos de pensamento mais complexos (analisar, comparar, dos jovens e adultos que a ele se submetem.
confrontar, sintetizar). Tal proposição, amparada pelos estudos da
Psicologia Cognitiva, Sociologia, Linguística, Antropologia, exer- Bibliografia
ce um efeito de reestruturação na Didática. O saber, que por si só
já é ação do sujeito, ganha o status de uma intenção racional e BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Fe-
intelectual situada socialmente. O sujeito desse saber é compreen- derativa do Brasil:
dido como um ser único no contexto social. O saber fazer envolve promulgada em 5 de outubro de 1988: atualizada até a Emen-
o conhecimento do contexto, das ideologias e de sua superação, da Constitucional nº 20,
em prol de uma democracia desejada, para que o homem possa de 15/12/1988. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999a.
conquistar de fato seus direitos. ______. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece
O poder público e a administração central assumem a respon- as Diretrizes e Bases
sabilidade de indicar a formação requerida para os sujeitos na edu- da Educação Nacional. Diário Oficial [da] República Federa-
cação básica, na modalidade de EJA/EM, e mais, propõem formas tiva do Brasil. Poder . .
de avaliação das aprendizagens. Executivo, Brasília, DF, v. 134, n. 248, p. 27.833-27.841, 23
A avaliação é assumida como diálogo com a sociedade, garan- dez. 1996. Seção 1. Lei
tindo o direito democrático da população interessada em saber o Darcy Ribeiro.
que de fato deve ser aprendido (e aquilo que deveria ter sido apren- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
dido), para que possa compreender a função do processo educativo Fundamental. Parâmetros
e exigir os direitos de uma educação de qualidade para todos. Curriculares Nacionais. 2. ed. Brasília, DF, c2000. 10 v.
Educação básica e avaliação, portanto, têm por objetivo pro- ______. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portu-
mover a equidade na participação social. guesa. 2.ed. Brasília, DF, :

Didatismo e Conhecimento 40
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
2000. v. 2. A teoria de desenvolvimento cognitivo, proposta e desenvol-
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação a vida por Jean Piaget com cuidadosa fundamentação em dados em-
Distância. Educação de píricos, empresta contribuições das mais relevantes para a compre-
Jovens e Adultos: salto para o futuro. Brasília, DF, 1999c. (Es- ensão da avaliação que se estrutura com o Encceja.
tudos. Educação a Para Piaget (1936), a inteligência é um “termo genérico de-
distância; v. 10) signando as formas superiores de organização ou de equilíbrio
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação das estruturas cognitivas (…) a inteligência é essencialmente um
Média e Tecnológica. sistema de operações vivas e atuantes”. Envolve uma construção
Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Brasília, permanente do sujeito em sua interação com o meio físico e social.
DF, 1999d. 4v. Sua avaliação consiste na investigação das estruturas do conheci-
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (Brasil). Câma- mento que são as competências cognitivas.
ra de Educação Básica. Parecer nº Para Piaget, as operações cognitivas possuem continuidade
11, de 10 de maio de 2000. Diretrizes Curriculares Nacionais do ponto de vista biológico e podem ser divididas em estágios ou
para Educação de Jovens períodos que possuem características estruturais próprias, as quais
e Adultos. Documenta, Documenta Brasília, DF, n. 464, p. condicionam e qualificam as interações com o meio físico e social.
3-83, maio 2000. Deve-se ressaltar que o estágio de desenvolvimento cognitivo
______. Parecer n° 15, de junho de 1998. Diretrizes Curricu- que corresponde ao término da escolaridade básica no Brasil deno-
lares Nacionais para o mina-se período das operações formais, marcado pelo advento do
Ensino Médio. Documenta, Documenta Brasília, DF, n. 441, raciocínio hipotético-dedutivo.
p. 3-71, jun. 1998. É nesse período que o pensamento científico torna-se possí-
OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvi- vel, manifestando-se pelo controle de variáveis, teste de hipóteses,
mento, um processo sóciohistórico. 4. ed. São Paulo: Scipione, verificação sistemática e consideração de todas as possibilidades
1999. 111p. (Pensamento e ação no magistério). na análise de um fenômeno.
Para Piaget, ao atingir esse período, os jovens passam a consi-
II. Eixos conceituais que estruturam o ENCCEJA derar o real como uma ocorrência entre múltiplas e exaustivas pos-
sibilidades. O raciocínio pode agora ser exercido sobre enunciados
O ENCCEJA se vincula a um conceito mais estrutural e abran- puramente verbais ou sobre proposições.
gente do desenvolvimento da inteligência e construção do conhe- Outra característica desse período de desenvolvimento, se-
cimento. Essa concepção, de inspiração fortemente construtivista, gundo Piaget, consiste no fato de as operações formais serem
acha-se já amplamente contemplada nos textos legais que estrutu- operações à segunda potência, ou seja, enquanto a criança precisa
ram a educação básica no Brasil. Tais concepção privilegia a noção operar diretamente sobre os objetos, estabelecendo relações en-
de que há um processo dinâmico de desenvolvimento cognitivo tre elementos visíveis, no período das operações formais, o jovem
mediado pela interação do sujeito com o mundo que o cerca. A in- torna-se capaz de estabelecer relações entre relações.
teligência é encarada não como uma faculdade mental ou como ex- As operações formais constituem, também, uma combinatória
pressão de capacidades inatas, mas como uma estrutura de possi- que permite que os jovens considerem todas as possibilidades de
bilidades crescentes de construção de estratégias básicas de ações combinação de elementos de uma dada operação mental e sistema-
e operações mentais com as quais se constroem os conhecimentos. ticamente testem cada uma delas para determinar qual é a combi-
Nesse contexto, o foco da avaliação recai sobre a aferição de com- nação que os levará a um resultado desejado.
petências e habilidades com as quais transformamos informações Em muitos dos seus trabalhos, Piaget enfatizou o caráter de
produzimos novos conhecimentos, reorganizando-os em arranjos generalidade das operações formais. Enquanto as operações con-
cognitivamente inéditos que permitem enfrentar e resolver novos cretas se aplicavam a contextos específicos, as operações formais,
problemas. uma vez atingidas, seriam gerais e utilizadas na compreensão de
Estudos mais avançados sobre a avaliação da inteligência, no qualquer fenômeno, em qualquer contexto.
sentido da estrutura que permite aprender, ainda são pouco prati- As competências gerais que são avaliadas no ENCCEJA estão
cados na educação brasileira. estruturadas com base nas competências descritas nas operações
Ressalte-se, também, que a própria definição de inteligência e formais da Teoria de Piaget, tais como a capacidade de considerar
a maneira como tem sido investigada constituem pontos dos mais todas as possibilidades para resolver um problema; a capacidade
controvertidos nas áreas da Psicologia e da Educação. O que se de formular hipóteses; de combinar todas as possibilidades e sepa-
constata é que alguns pressupostos aceitos no passado tornaram-se rar variáveis para testar a influência de diferentes fatores; o uso do
gradativamente questionáveis e, até mesmo, abandonados diante raciocínio hipotético-dedutivo, da interpretação, análise, compara-
de investigações mais cuidadosas. ção e argumentação, e a generalização dessas operações a diversos
Em que pese os processos avaliativos escolares no Brasil ca- conteúdos.
racterizarem-se, ainda, por uma excessiva valorização da memória O ENCCEJA foi desenvolvido com base nessas concepções, e
e dos conteúdos em si, aos poucos essas práticas sustentadas pela procura avaliar para certificar competências que expressam um sa-
psicometria clássica vêm sendo substituídas por concepções mais ber constituinte, ou seja, as possibilidades e habilidades cognitivas
dinâmicas que, de um modo geral, levam em consideração os pro- por meio das quais as pessoas conseguem se expressar simbolica-
cessos de construção do conhecimento, o processamento de infor- mente, compreender fenômenos, enfrentar e resolver problemas,
mações, as experiências e os contextos socioculturais nos quais o argumentar e elaborar propostas em favor de sua luta por uma so-
indivíduo se encontra. brevivência mais justa e digna.

Didatismo e Conhecimento 41
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A. RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS Quanto mais se vivencia a globalização, mais complicadas
ficam as possibilidades de entendimento e comunicação, pois
Desde o princípio de sua existência o homem enfrentou situa- os ideais e valores – que preconizam a liberdade do homem, a
ções-problema para poder sobreviver e, ainda, em seu estado mais solidariedade entre os povos, a convivência entre as pessoas e
primitivo, desprovido de qualquer recurso tecnológico, já buscava o exercício de uma verdadeira cidadania – não correspondem a
conhecer a natureza e compreender seus fenômenos para dominá- ações concretas e efetivas. Dessa forma, o mundo se debate entre
-la e assim garantir sua sobrevivência como espécie. guerras, terrorismo, drogas, doenças, ignorância e miséria. Essa é
No entanto, à medida que, em seu processo histórico, foi al- a natureza das situações problema que o homem contemporâneo
cançando formas mais evoluídas de organização social, seus pro- enfrenta. Então, como preparar as crianças e jovens com condições
blemas de sobrevivência imediata foram sendo substituídos por para que possam aprender a enfrentar e solucionar tais problemas,
outros. A cada novo passo de evolução, o homem superou certos superando-os em nome de um futuro melhor?
problemas abrindo novas possibilidades de melhor qualidade de Pensando na educação dessas crianças e jovens, tal realidade
vida, mas, ao mesmo tempo, abriu as portas para novos desafios,
traz sérias implicações e a necessidade de profundas modificações
importantes para sua continuidade e sobrevivência.
no âmbito escolar. Cada vez mais é preciso que os alunos saibam
A história do homem registra o enfrentamento de contínuos
como aprender, como compreender fatos e fenômenos, como es-
desafios e situações-problema, sempre superados em nome de no-
tabelecer suas relações interpessoais, como analisar, refletir e agir
vas formas de organização social, política, econômica e científica,
cada vez mais evoluídas e complexas. Pode-se dizer que o enfren- sobre essa nova ordem de coisas.
tamento de situações-problema constitui uma condição que acom- Hoje, por exemplo, um conhecimento científico, uma tecno-
panha a vida humana desde sempre. logia ensinada na escola é rapidamente substituída por outra mais
Cada vez mais tecnológica e globalizada, a sociedade que moderna, mais sofisticada e atualizada, às vezes, antes mesmo que
atravessou os portais do século XXI convida o homem à resolução os alunos tenham percorrido um único ciclo de escolaridade. Des-
de grandes problemas em virtude das contínuas transformações sa maneira, vivem-se tempos nos quais os mais diferentes países
em todas as áreas do conhecimento. Exige, ainda, constantes atu- revisam seus modelos educacionais, discutem e implementam re-
alizações, seja no mundo do trabalho ou da escola, seja no ritmo formas curriculares que sejam mais apropriadas para atender às
e nas atribuições de enfrentamento do cotidiano da vida, como, demandas da sociedade contemporânea, uma sociedade que, em
também, uma outra qualidade de respostas, à proporção que assu- termos de conhecimento, está aberta para todos os possíveis, para
me características bem diferenciadas daquelas que anteriormente todas as possibilidades.
percorreram a história. O homem do século XXI, portanto, está diante de quatro gran-
Durante muitos séculos, o homem, para resolver problemas, des situações problema que implicam necessidades de resolução:
contou com a possibilidade de se orientar a partir dos conheci- aprender a conhecer, aprender a ser, aprender a fazer e aprender
mentos que haviam sido construídos e adquiridos no passado, à a conviver. Como conhecer ou adquirir novos conhecimentos?
medida que ele podia contar com a tradição ditada pelos hábitos e Como aprender a interpretar a realidade em um contexto de contí-
costumes da sociedade de sua época, com aquilo que sua cultura já nuas transformações científicas, culturais, políticas, sociais e eco-
determinava como certo. nômicas? Como aprender a ser, resgatando a sua humanidade e
As características culturais, sociais, morais e religiosas, entre construindo-se como pessoa? Como realizar ações em uma prática
outras, serviam-lhe como referências, indicando-lhe caminhos ou que seja orientada simultaneamente pelas tradições do passado e
respostas. Dessa maneira, ele orientava seu presente pelo passado, pelo futuro que ainda não é? Como conviver em um contexto de
tendo no passado o organizador de suas novas ações. Como resul- tantas diversidades, singularidades e diferenças e em que o respei-
tado, ele podia planejar seu futuro como se este já estivesse escrito to e o amor estejam presentes? Em uma perspectiva psicológica,
e determinado em função de suas ações presentes.
e, portanto, do desenvolvimento, conhecer e ser são duas formas
O avanço tecnológico dos dias atuais desencadeou uma nova
de compreensão, à medida que se expressam como maneiras de
ordem de transformações sociais, culturais, políticas e econômi-
interpretar ou atribuir significados a algo, de saber as razões de
cas, imprimindo ao mundo novas relações numa velocidade tal,
algo, do ponto de vista do raciocínio e do pensamento, exigindo do
que traz para o homem, neste século, uma outra necessidade: a
de se pautar não só nas referências que o passado oferece como ser humano a construção de ferramentas adequadas a uma leitura
garantias ou tradições, mas, também, naquilo que diz respeito ao compreensiva da realidade.
futuro. Fazer e conviver são formas de realização, pois se expressam
Quanto mais as sociedades contemporâneas avançam em seus como procedimentos, como ações que visam a certo objetivo. Por
conhecimentos tecnológicos e científicos, mais distanciado parece sua vez, realizar e conviver implicam que o ser humano saiba es-
estar o homem de sua humanidade. crever o mundo, construindo modos adequados de proceder em
Quanto mais conforto e comodidade a vida moderna pode ofe- suas ações. Por isso, é preciso que preparemos as crianças e jovens
recer, mais se acentuam as diferenças sociais, culturais e econô- para um mundo profissional e social que os coloque continuamente
micas, criando verdadeiros abismos entre os povos e entre as po- em situações de desafio, as quais requerem cada vez mais saberes
pulações de um mesmo país. Quanto mais se conhece e se apren- de valor universal que os preparem para serem leitores de um mun-
de, mais fica distanciada uma boa parte da população mundial do do em permanente transformação.
acesso à escolaridade, de modo que, muito antes de se erradicar o É preciso, ainda, que os preparemos como escritores de um
analfabetismo da face da Terra, já há a preocupação com a exclu- mundo que pede a participação efetiva de todos os seus cidadãos
são digital. na construção de novos projetos sociais, políticos e econômicos.

Didatismo e Conhecimento 42
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Portanto, do ponto de vista educacional, tais necessidades im- Dado esse caráter polissêmico da noção de competência, trata-
plicam o compromisso com uma revisão curricular e pedagógica -se de precisar em que sentido pretendemos utilizá-la.
que supere o modelo da simples memorização de conteúdos esco-
lares que hoje se mostra insuficiente para o enfrentamento da rea- A NOÇÃO DE COMPETÊNCIA: A QUE SE APLICA?
lidade contemporânea. Os novos tempos exigem um outro modelo
educacional, voltado para o desenvolvimento de um conjunto de Embora o uso do termo competência seja comum, é difícil
competências e de habilidades essenciais, a fim de que crianças e precisar o seu significado. Se tentarmos descrever uma das nossas
jovens possam efetivamente compreender e refletir sobre a realida- competências, conseguiremos, no máximo, elencar uma série de
de, participando e agindo no contexto de uma sociedade compro- ações que realizamos para enfrentar uma situação-problema, tais
metida com o futuro. como uma análise de fenômeno, um ato de leitura, ou a condução
de um automóvel. Mesmo tendo consciência dessa série, não con-
B. AS ORIGENS DO TERMO COMPETÊNCIA seguiremos encontrar algo que possa traduzir a totalidade desses
atos.
O sentido original da palavra competência é de natureza ju-
Por outro lado, do ponto de vista externo, quando observamos
rídica, ou seja, diz respeito ao poder que tem certa jurisdição de
os outros, conseguimos, com relativa facilidade, concluir sobre a
conhecer e decidir sobre uma causa. Gradativamente, o significado
existência desta ou daquela competência. Ao fazê-lo, no entanto,
estendeu-se, passando o termo a designar a capacidade de alguém
para se pronunciar sobre determinado assunto, fazer determinada ultrapassamos a mera descrição dos atos, significando que aquela
coisa ou ter capacidade, habilidade, aptidão, idoneidade. série de ações é interpretada na sua totalidade ou no conjunto que a
Recentemente, competência tornou-se uma palavra difundi- traduz. Supõe-se, portanto, que há algo interno que articula e rege
da, com frequência, nos discursos sociais e científicos. Entretanto, as ações, possibilitando que sejam eficazes e adequadas à situação,
Isambert-Jamati (1997) afirma que não se trata simplesmente de conforme descreve Rey (1998).
modismo porque o caráter relativamente duradouro do uso dessa Ao observarmos um bom patinador no gelo, diz o autor, bas-
noção e a existência de certa congruência em relação ao seu sig- tam alguns minutos para concluirmos se ele sabe patinar, ou seja,
nificado, em esferas como as da educação e do trabalho, podem se ele é competente. Em outras palavras, interpretamos que a su-
ser reveladores de mudanças na sociedade e na forma como um cessão de seus movimentos não é meramente uma série qualquer,
grupo social partilha certos significados. Nesse sentido, o termo mas que ela é coordenada por um princípio dominado pelo sujeito,
competência não é só revelador de certas mudanças como também residindo aí sua competência. Ao atribuirmos esse poder ao pati-
pode contribuir para modelá-las, ou seja, comparece no lugar de nador, assumimos a ideia de que seus futuros movimentos serão
certas noções, ao mesmo tempo em que modifica seus significados. previsíveis, no sentido de que serão adequados e eficazes.
Pode-se dizer que, no geral, o termo competência vem substi- O que o autor quer mostrar é que a competência revela um
tuindo a ideia de qualificação no domínio do trabalho, e as ideias poder interno e se define pela anterioridade, ou seja, a possibi-
de saberes e conhecimento no campo da educação. lidade de enfrentar uma situação problema está de certa forma,
As razões da invasão do termo competência, segundo Tanguy dada pelas condições anteriores do sujeito. Ao mesmo tempo, essa
(1997), nas diferentes esferas da atividade social são difíceis de previsibilidade dá-nos a impressão de continuidade. A competên-
precisar, embora, no caso da educação e do trabalho, possam estar cia não é algo passageiro, é algo que parece decorrer natural e
associadas a uma série de movimentos geradores de concepções espontaneamente.
nesses dois campos, bem como das inter-relações entre eles. Den- Em síntese, a ideia de competência retrata dois aspectos anta-
tre tais concepções ou crenças, podemos destacar: necessidade de gônicos, mas solidários, que podem ser traduzidos de várias ma-
superar o aspecto da instrução pelo da educação; reconhecimento neiras: interno e externo, implícito e explícito, o da visibilidade
da importância do poder do conhecimento por todos os meios so-
social e o da organização interna, o que na ação é observável e
ciais e de que a transmissão do conhecimento não é tarefa exclu-
mais estandardizado e o que é mais ligado ao sujeito, portanto,
siva da escola; institucionalização e sistematização de princípios
singular e obscuro.
sobre formação contínua fora do âmbito escolar; exigência de su-
Esses aspectos podem ser encontrados nas teorias que fun-
perar a qualificação profissional precária e mecânica; necessidade
de rever o ensino disciplinar e o saber academicista ou descontex- damentam a noção de competência, as quais abordam essa ques-
tualizado; preocupação de colocar o aluno no centro do processo tão em dois pólos opostos. No primeiro pólo, estão as teorias que
educativo, como sujeito ativo. usam o termo competência como referência a atos observáveis ou
A intervenção desses elementos sobre a problemática da for- comportamentos específicos, empregados, sobretudo, na formação
mação e aprendizagens profissionais, além da necessidade de no- profissional e na concepção da aprendizagem por objetivos. No
vas adaptações ao mundo do trabalho e da escola, acabaram por segundo pólo encontram-se, autores que analisam as capacidades
proporcionar uma apropriação geral da noção de competência em do sujeito resultantes de organização interna e não observáveis di-
vários países, provavelmente na expectativa de atribuir novos sig- retamente:
nificados às noções que ela pretende substituir nas atividades peda- Assim, tanto a competência é concebida como uma potencia-
gógicas. Mais especificamente, no entanto, esse referencial sobre lidade invisível, interna, pessoal, susceptível de engendrar uma
a noção de competência tem-se imposto nas escolas, inicialmen- infinidade de “performances”, tanto ela se define por componentes
te, por meio da avaliação. Essas inter-relações produziram uma observáveis, exteriores, impessoais. (Rey, 1998, p.26)
contaminação de significados, e o termo competência passou a ser Esses dois sentidos do termo competência são usados e convi-
usado com frequência no sistema educativo, no qual ganhou outras vem alternadamente, tanto no mundo do trabalho como no mundo
conotações. da escola.

Didatismo e Conhecimento 43
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A concepção de competência como comportamento é a ma- Na abordagem piagetiana, a ideia de competência está atrela-
nifestação de um modelo teórico que guarda parentesco com o da à organização interna e complexa das ações humanas, mas, di-
behaviorismo, o qual tem embasado o uso da noção de competên- ferentemente de Chomsky, Piaget (1983) discorda do caráter inato
cia de duas formas. No sentido mais restrito, competência é tida dessa organização e enfatiza a sua dimensão adaptativa. Sustenta
como comportamento objetivo e observável e que se realiza como que a progressividade do desenvolvimento mental se apoia em um
resposta a uma situação. Essa forma de entender competência se processo de construção, no qual interfere o mínimo de “pré-forma-
manifesta no campo da formação profissional quando pressupõe ções” e o máximo de auto-organização.
que a cada posto de trabalho corresponda uma lista de tarefas espe- A competência, nesse sentido, diz respeito à construção endó-
cíficas. No campo da educação, essa noção de competência com-
gena das estruturas lógicas do pensamento que, à medida que se
parece associada à pedagogia por objetivos (Bloom,1972 e Mager,
estabelecem, modificam o padrão da ação ou adaptação ao meio
1975), cuja ideia central é a de que, para ensinar, é preciso traçar
objetivos claros e específicos, sem ambiguidades, de tal forma que e que Malglaive (1995) denomina de estrutura das capacidades.
o professor possa prever que seus alunos serão capazes de alcançá- A abordagem piagetiana, como sabemos, teve como preo-
-los. Para tanto, as competências devem-se confundir com o com- cupação mostrar as estruturas lógicas como universais. Mesmo
portamento observável. Tal concepção está, portanto, diretamen- afirmando que todo conhecimento se dá em um contexto social e
te associada às ideais de performance e eficácia (Ropé e Tanguy, descrevendo o papel da interação entre os pares como fundamen-
1997), bem como acaba por fomentar a elaboração de listagens de tal para o desenvolvimento do raciocínio lógico, essa investigação
comportamentos exigíveis em diferentes níveis dos programas de não privilegiou a forma de atuação do contexto social ou das situa-
ensino. Na medida em que a competência se reduz ao comporta- ções no desenvolvimento das competências cognitivas. A partir de
mento observável, elimina-se do mesmo o seu caráter implícito. contribuições da sociologia e da antropologia, vários estudos têm
Esse mesmo modelo, no sentido mais amplo, toma outra for- sido realizados no sentido de mostrar as relações entre contextos
ma: a da ação funcional, ou seja, ser competente não é apenas res- culturais e cognição, conforme descrito por Dias (2002). Nesse
ponder a um estímulo e realizar uma série de comportamentos, sentido, vale ressaltar as reflexões de Bordieu (1994), quando afir-
mas, sobretudo, ser capaz de, voluntariamente, selecionar as infor- ma que a compreensão não é só o reconhecimento de um sentido
mações necessárias para regular sua ação ou mesmo inibir as rea- invariante, mas a apreensão da singularidade de uma forma que só
ções inadequadas. Na realidade, essa concepção pretende superar a existe em um contexto particular.
falta de sentido produzida na consecução de objetivos.
Ao introduzir a ideia de finalidade ao comportamento, fato
COMPETÊNCIAS COMO MODALIDADES ESTRU-
que a pedagogia por objetivos desconsiderou, acentua-se que, sub-
jacente a um comportamento observável, consciente ou automati- TURAIS DA INTELIGÊNCIA
camente, existe uma organização realizada pelo sujeito, da qual se
depreende a existência de um equipamento cognitivo que organiza, A ressignificação da noção competência – nos meios educa-
seleciona e hierarquiza seus movimentos em função dos objetivos cionais e acadêmicos – está muito provavelmente atrelada à neces-
a alcançar. Em outras palavras, a competência não é redutível aos sidade de encontrar um termo que substituísse os conceitos usados
comportamentos estritamente objetivos, mas está vinculada sem- para descrever a inteligência, os quais se mostraram inadequados,
pre a uma atividade humana que, ligada à escola ou ao trabalho, quer pela abrangência, quer pela limitação. No primeiro caso, sa-
caracteriza-se por sua relação funcional a tais atividades definidas bemos das dificuldades de trabalhar com termos como capacidade
socialmente. para expressar aquilo que deve ser objeto de desenvolvimento, até
Em síntese, embora existam essas variações no sentido de mesmo porque essa ideia carrega conotações de aptidão, difíceis
competência como comportamento, em ambos ela é vista no seu de precisar. No segundo caso, a vinculação da inteligência à aqui-
caráter específico e determinado: no primeiro caso, é limitada pe- sição de comportamentos produziu uma visão pontual e molecular
los estímulos que a provocam; no segundo, pela função que apre- que reduz o desenvolvimento a uma listagem de saberes a serem
senta na situação ou contexto que a exige. adquiridos. Como contraponto, a noção de competência surgiu no
Como já dissemos, outro pólo da análise teórica sobre com- discurso dos profissionais da educação como uma forma de cir-
petência não a identifica com comportamento; ela é considerada cunscrever o termo capacidade e alargar a ideia de saber específico.
como uma capacidade geral que torna o indivíduo apto a desenvol-
Nesse sentido, o construtivismo contribuiu, de forma signifi-
ver uma variedade de ações que respondem a diferentes situações.
cativa, para pensar a inteligência humana como resultado de um
Competência, nesse caso, refere-se ao funcionamento cogni-
tivo interno do sujeito. Essa concepção de competência foi formu- processo de adaptações progressivas, portanto não polarizado no
lada em contraposição à ideia de competências como comporta- meio ou nas estruturas genéticas. Por outro lado, o conceito de
mentos específicos, a partir das teorias de competência linguística, operações mentais permite colocar a aprendizagem no contexto
proposta por das operações e não apenas no do conhecimento ou do compor-
Chomsky (1983) e da auto-regulação do desenvolvimento tamento.
cognitivo, proposta por Piaget (1976). Embora divergindo a res-
peito da origem das competências cognitivas, esses autores têm C. As competências do enem na perspectiva das ações ou
em comum a crença de que nenhum conhecimento é possível sem operações do sujeito
haver um organização interna.
Para Chomsky (1983), a competência linguística não se con- Considerando as características do mundo de hoje, quais os
funde com comportamento. Ela deriva de um poder interno (nú- recursos cognitivos que um jovem, concluinte da educação básica,
cleo fixo inato), expresso por um conjunto de regras do qual o deve ter construído ao longo desse período? A matriz de competên-
sujeito não tem consciência, que possibilita a produção de com- cias do ENEM expressa uma hipótese sobre isso, ou seja, assume
portamentos linguísticos. o pressuposto de que os conhecimentos adquiridos ao longo da

Didatismo e Conhecimento 44
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
escolarização deveriam possibilitar ao jovem domínio de lingua- Dominar linguagens implica ainda um sujeito competente
gens, compreensão de fenômenos, enfrentamento de situações pro- como escritor da realidade que o cerca, um sujeito que saiba fazer
blema, construção de argumentações e elaboração de propostas. uso dessa multiplicidade de linguagens para produzir diferentes
De fato, tais competências parecem sintetizar os principais aspec- textos que comuniquem uma proposta, uma reflexão, uma linha de
tos que habilitariam um jovem a enfrentar melhor o mundo, com argumentação clara e coerente.
todas as suas responsabilidades e desafios. Quais são as ações e Por isso, dominar linguagens implica trabalhar com seus con-
operações valorizadas na proposição das competências da matriz? teúdos na dimensão de conjecturas, proposições e símbolos. Nes-
Como analisar esses instrumentos cognitivos em sua função estru- se sentido, a linguagem constitui o instrumento mais poderoso de
turante, ou seja, organizadora e sistematizadora de um pensar ou nosso pensamento, à medida que ela lhe serve de suporte.
um agir com sentido individual e coletivo? Em outras palavras, Por exemplo, pensar a realidade como um possível, como é
o que significam dominar e fazer uso (competência I); construir, próprio do raciocínio formal (Inhelder e Piaget, 1955), seria im-
aplicar e compreender (competência II); selecionar, organizar, re- praticável sem a linguagem, pois é ela que nos permite transitar do
lacionar, interpretar, tomar decisões, enfrentar (competência III); presente para o futuro, antecipando situações, formulando propo-
relacionar, construir argumentações (competência IV); recorrer, sições. Não seria possível também fazer o contrário, transitar do
elaborar, respeitar e considerar (competência V)? presente para o passado, que só existe como uma lembrança ou
como uma imagem. Da mesma maneira, raciocinar de uma for-
Dominar e fazer uso ma hipotético-dedutiva também depende da linguagem, pois sem
ela não teríamos como elaborar hipóteses, ideais e suposições que
A competência I tem como propósito avaliar se o estudante existem apenas em um plano puramente representacional e virtual.
demonstra “dominar a norma dominar culta da Língua Portuguesa
e fazer uso fazer uso da linguagem matemática, artística e cientí- Construir, aplicar e compreender
fica”.
Dominar, segundo o dicionário, significa “exercer domínio O objetivo da competência II é avaliar se o estudante sabe
sobre; ter autoridade ou poder em ou sobre; ter autoridade, ascen- “construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimen-
to para a compreensão de fenômenos naturais, de processos his-
dência ou influência total sobre; prevalecer; ocupar inteiramente”.
tórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações
Fazer uso, pois, é sinônimo de dominar, já que expressa ou confir-
artísticas”.
ma seu exercício na prática.
Construir é uma forma de domínio que, no caso das questões
Dominar a norma culta tem significados diferentes nas tare-
das provas, pode implicar o exercício ou uso de muitas habilida-
fas de escrita ou leitura avaliadas. No primeiro caso, o domínio
des: estimar, calcular, relacionar, interpretar, comparar, medir, ob-
da norma culta pode ser inferido, por exemplo, pela correção da servar etc. Em quaisquer delas, o desafio é realizar operações que
escrita, coerência e consistência textual, manejo dos argumentos possibilitem ultrapassar uma dada situação ou problema, alcançan-
em favor das ideais que o aluno quer defender ou criticar. Quanto do aquilo que significa ou indica sua conclusão. Construir, portan-
às tarefas de leitura, tal domínio pode ser inferido pela compreen- to, é articular um tema com o que qualifica sua melhor resposta ou
são do problema e aproveitamento das informações presentes nos solução, tendo que, para isso, realizar procedimentos ou dominar
enunciados das questões. os meios requeridos, considerando as informações disponíveis na
Além disso, sabemos hoje que o mundo contemporâneo se questão.
caracteriza por uma pluralidade de linguagens que se entrelaçam Hoje, a compreensão de fenômenos, naturais ou não, tornou-
cada vez mais. Vivemos na era da informação, da comunicação, da -se imprescindível ao ser humano que se quer participante ativo de
informática. Basicamente, todas as nossas interações com o mun- um mundo complexo, onde coabitam diferentes povos e nações,
do social, com o mundo do trabalho, com as outras pessoas, enfim, marcados por uma enorme diversidade cultural, científica, política
dependem dessa multiplicidade de linguagens para que possamos e econômica e, ao mesmo tempo, desafiados para uma vida em
nos beneficiar das tecnologias modernas e dos progressos científi- comum, interdependente ou globalizada.
cos, realizar coisas, aprender a conviver, etc. Compreender fenômenos significa ser competente para for-
Dominar linguagens significa, portanto, saber atravessar as mular hipóteses ou ideais sobre as relações causais que os determi-
fronteiras de um domínio linguístico para outro. Assim, tal compe- nam. Ou seja, é preciso saber que um dado procedimento ou ação
tência requer do sujeito, por exemplo, a capacidade de transitar da provoca certa consequência. Assim, se o desmatamento desenfre-
linguagem matemática para a linguagem da história ou da geogra- ado ocorre em todo o planeta, é possível supor que esse evento,
fia, e dessas, para a linguagem artística ou para a linguagem cien- em pouco tempo, causará desastres climáticos e ecológicos, por
tífica. Significa ainda ser competente para reconhecer diferentes exemplo.
tipos de discurso, sabendo usá-los de acordo com cada contexto. Além disso, a compreensão de fenômenos requer competência
O domínio de linguagens implica um sujeito competente como para formular ideais sobre a explicação causal de certo fenômeno,
leitor do mundo, ou seja, capaz de realizar leituras compreensivas atribuindo sentido às suas consequências.
de textos que se expressam por diferentes estilos de comunicação, Voltando ao exemplo anterior, não basta ao sujeito construir
ou que combinem conteúdos escritos com imagens, charges, figu- e aplicar seus conhecimentos para saber que as consequências do
ras, desenhos, gráficos, etc. desmatamento serão os desastres climáticos ou ecológicos, mas é
Da mesma forma, essa leitura compreensiva implica atribuir preciso também que ele compreenda as razões que esse fato impli-
significados às formas de linguagem que são apropriadas a cada ca, ou seja, que estabeleça significados para ele.
domínio de conhecimento, interpretando seus conteúdos. Ler e in- Para isso, é necessário determinar relações entre as coisas, in-
terpretar significa atribuir significado a algo, apropriar-se de um ferir sobre elementos que não estão presentes em uma situação,
texto, estabelecendo relações entre suas partes e tratando-as como mas que podem ser deduzidos por aquelas que ali estão trabalhar
elementos de um mesmo sistema. com fórmulas e conceitos.

Didatismo e Conhecimento 45
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Nesse sentido, também fazemos uso da linguagem, à medi- Tendo em vista esses aspectos, o que a competência III bus-
da que formulamos hipóteses para compreender um fenômeno ou ca valorizar é a possibilidade de o sujeito, ao enfrentar situações-
fato, ou elaboramos conjecturas, ideais e suposições em relação a -problema, considerar o real como parte do possível (Inhelder e
ele. Nesse jogo de elaborações e suposições, trabalhamos do ponto Piaget, 1955). Se, para ele, as informações contidas no problema
de vista operatório, com a lógica da combinatória (Inhelder e Pia- forem consideradas como um real dado que delimita a situação,
get, 1955), a partir da qual é preciso considerar, ao mesmo tempo, pode transformá-lo em uma abertura para todos os possíveis.
todos os elementos presentes em uma dada situação.
RELACIONAR E ARGUMENTAR
Selecionar, organizar, relacionar, interpretar, tomar deci-
O objetivo da competência IV é verificar se o aluno sabe “re-
sões e enfrentar situações-problema
lacionar informações, representadas em diferentes formas, e co-
nhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir
O objetivo da Competência III é avaliar se o aluno sabe “se- argumentação consistente”.
lecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações Relacionar refere-se às ações ou operações por intermédio das
representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfren- quais pensamos ou realizamos uma coisa em função de outra. Ou
tar situações-problema”. seja, trata-se de coordenar pontos de vista em favor de uma meta,
Talvez a melhor forma de analisarmos as ações ou operações por exemplo, defender ou criticar uma hipótese ou afirmação. Para
avaliadas nessa competência seja fazermos a leitura em sua ordem isso, é importante sabermos descentrar, ou seja, considerar uma
oposta: enfrentar uma situação-problema implica selecionar, orga- mesma coisa segundo suas diferentes perspectivas ou focos.
nizar, relacionar e interpretar dados para tomar uma decisão. De Dessa forma, a conclusão ou solução resultante da prática re-
fato, assim é. Tomar uma decisão implica fazer um recorte signifi- lacional expressa à qualidade do que foi analisado. Saber construir
cativo de uma realidade, às vezes, complexa, ou seja, que pode ser uma argumentação consistente significa, pois, saber mobilizar co-
analisada de muitos modos e que pode conter fatores concorrentes, nhecimentos, informações, experiências de vida, cálculos, etc. que
no sentido de que nem sempre é possível dar prioridade a todos possibilitem defender uma ideia que convence alguém (a própria
eles ao mesmo tempo. Selecionar é, pois, recortar algo destacando pessoa ou outra com quem sediscute) sobre alguma coisa.
o que se considera significativo, tendo em vista certo critério, ob- Consideremos que convencer significa vencer junto, ou seja,
jetivo ou valor. implica aceitar que o melhor argumento pode vir de muitas fontes
e que nossas ideais de partida podem ser confirmadas ou refor-
Além disso, tomar decisão significa organizar ou reorganizar
muladas total ou parcialmente no jogo das argumentações. Assim,
os aspectos destacados, relacionando-os e interpretando-os em fa- saber argumentar é convencer o outro ou a si mesmo sobre uma
vor do problema enfrentado. determinada ideia.Convencer o outro porque, quando adotamos di-
Reparem que enfrentar uma situação problema não é o mesmo ferentes pontos de vista sobre algo, é preciso elaborar a melhor jus-
que resolvê-la. Ainda que nossa intenção, diante de um problema tificativa para que o outro apoie nossa proposição. Convencer a si
ou questão, seja encontrar ou produzir sua solução, a ação ou ope- mesmo porque, ao tentarmos resolver um determinado problema,
ração que se quer destacar é a de saber enfrentar, sendo o resolver, necessitamos relacionar informações, conjugar diversos elementos
por certo, seu melhor desfecho, mas não o único. Ou seja, o en- presentes em uma determinada situação, estabelecendo uma linha
frentamento de situações-problema relaciona-se à capacidade de o de argumentação mental sem a qual se torna impossível uma so-
sujeito aceitar desafios que lhe são colocados, percorrendo um pro- lução satisfatória. Nesse sentido, construir argumentação significa
cesso no qual ele terá que vencer obstáculos, tendo em vista certo utilizar a melhor estratégia para apresentar e defender uma ideia;
objetivo. Quando bem sucedido nesse enfrentamento, pode-se afir- significa coordenar meios e fins, ou seja, utilizar procedimentos
mar que o sujeito chegou à resolução de uma situação-problema. que apresentem os aspectos positivos da ideia defendida.
Produzir resultados com êxito no contexto de uma situaçãopro- Por isso, a competência IV é muito valorizada no mundo atu-
blema pressupõe o enfrentamento da mesma. Pressupõe encarar al, tendo em vista que vivemos tempos nos quais as sociedades
dificuldades e obstáculos, operando nosso raciocínio dentro dos humanas, cada vez mais abertas, perseguem ideais de democracia
limites que a situação nos coloca. Tal como em um jogo de tabu- e de igualdade. Em certo sentido, a vida pede o exercício dessa
competência, pois hoje a maioria das situações que enfrentamos
leiro, enfrentar uma partida pressupõe o jogar dentro das regras – o
requerem que saibamos considerar diversos ângulos de uma mes-
jogar certo −, sendo as regras aquilo que nos fornecem as coorde-
ma questão, compartilhando diferentes pontos de vista, respeitan-
nadas e os limites para nossas ações, a fim de percorrermos certo do as diferenças presentes no raciocínio de cada pessoa. De certa
caminho durante a realização da partida. No entanto, nem sempre forma, essa competência implica o exercício da cidadania, pois
o jogar certo é o suficiente para que joguemos bem, isto é, para que argumentar hoje se refere a uma prática social cada vez mais ne-
vençamos a partida, seja porque nosso adversário é mais forte, seja cessária, à medida que temos que estabelecer diálogos constantes,
porque não soubemos, ao longo do caminho, colocar em prática as defender ideais, respeitar e compartilhar diferenças.
melhores estratégias para vencer. (Macedo, Petty e Passos, 2000).
Da mesma maneira, uma situaçãoproblema traz um conjunto RECORRER, ELABORAR, RESPEITAR E CONSIDE-
de informações que, por analogia, funcionam como as regras de RAR
um jogo, as quais, de maneira explícita, impõem certos limites ao
jogador. É a partir desse dado real – as regras − que o jogador O objetivo da competência V é valorizar a possibilidade de o
enfrentará o jogo, mobilizando seus recursos, selecionando certos aluno “recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para
procedimentos, organizando suas ações e interpretando informa- elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade,
ções para tomar decisões que considere as melhores naquele mo- respeitando os valores humanos e considerando a diversidade
mento. sociocultural”.

Didatismo e Conhecimento 46
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Recorrer significa levar em conta as situações anteriores para FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portugue-
definir ou calcular as seguintes até chegar a algo que tem valor de sa. 2. ed. Rio de Janeiro:
ordem geral. Uma das consequências, portanto, da recorrência é Nova Fronteira, 1986. 1.838 p.
sua extrapolação, ou seja, podermos aplicá-la a outras situações INHELDER, B.; PIAGET, J. De la logica del niño a la logica
ou encontrar uma fórmula ou procedimento que sintetiza todo o del adolescente. Buenos
processo. Aires: Piados, 1972.
Elaborar propostas, nesse sentido, é uma forma de extrapola- INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS
ção de uma recorrência. EDUCACIONAIS. ENEM – Exame
Propor supõe tomar uma posição, traduzir uma crítica em Nacional do Ensino Médio: documento básico, 2000. Brasília,
uma sugestão, arriscar-se a sair de um papel passivo. Por extensão, DF, 1999.
acarreta a mobilização de novas recorrências, tornando-se solidá- ISAMBERT-JAMARTI, V. O apelo à noção de competência
rio, isso é agindo em comum com outras pessoas ou instituições. na revista L’Orientation
Este agir em comum implica aprender a respeitar, ou seja, conside- Scolaire et Professionnelle: da sua criação aos dias de hoje. In:
rar o ponto de vista do outro, articular meios e fins, pensar e atuar ROPÉ, F.; TANGUY,
coletivamente. Lucie (Org.). Saberes e competências: o uso de tais noções na
A sociedade contemporânea diferencia-se de outras épocas escola e na empresa.
por suas transformações contínuas em todos os setores. Dessa Campinas: Papiros, 1997. p. 103-133. Tradução de Patrícia
maneira, as mudanças sociais, políticas, econômicas, científicas e Chittonni Ramos e equipe
tecnológicas de hoje se fazem com uma rapidez enorme, exigindo do ILA da PUC/RS.
do homem atualizações constantes. MACEDO, L; TORRES, M. Z. Lógica operatória e compe-
Não mais é possível que solucionemos os problemas apenas tências do sujeito. In: INSTITUTO
recorrendo aos conhecimentos e à sabedoria que a humanidade NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIO-
acumulou ao longo dos tempos, pois estes muitas vezes se mos- NAIS. Certificação de competências
tram obsoletos. A realidade nos impõe hoje a necessidade de criar na educação de jovens e adultos: fundamentos. Brasília, DF,
novas soluções a cada situação que enfrentamos, sem que nos pau- 2002. Capítulo 3.
temos apenas por esses saberes tradicionais.
MAGER, R. F. A formação de objetivos de ensino. Porto Ale-
Por essas razões, elaborar propostas é uma competência es-
gre: Globo, 1975. 138 p.
sencial, à medida que ela implica criar o novo, o atual. Mas, para
Tradução de Casete Ramos com a colaboração de Débora Ka-
criar o novo, é preciso que o sujeito saiba criticar a realidade, com-
ram Galarza.
preender seus fenômenos, comprometer e envolver-se ativamente
MALGLAIVE, G. Ensinar adultos: trabalho e pedagogia. Por-
com projetos de natureza coletiva. Vale dizer que tal competência
to, Port.: Ed. Porto, 1995.
exige a capacidade do sujeito exercer verdadeiramente sua cidada-
271p. (Coleção Ciências da Educação; v. 16). Tradução de
nia, agindo sobre a realidade de maneira solidária, envolvendo-se
criticamente com os problemas da sua comunidade, propondo no- Maria Luiza Alvares Pereira et al.
vos projetos e participando das decisões comuns. PIAGET, J. A equilibração das escrituras cognitivas: proble-
ma central do
Bibliografia desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 175 p. (Ciên-
cias da Educação). Tradução
BLOOM, B. S.; KRATHWHL, D. R.; MASIA, B. Taxiono- de Marion Merlone dos Santos Penna.
mia de objetos educacionais. ______. Fazer e compreender. Fazer e compreender São Pau-
Porto Alegre: Globo, 1972. v. 1. Domínio Cognitivo. lo: Melhoramentos, 1978. 186 p. (Biblioteca
BORDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. In: ORTIZ, de Educação Melhoramentos). Tradução de Christina Larrou-
Pierre (Org.). Sociologia. de de Paula Leite.
2. ed. São Paulo: Ática, 1994. p.156-183. (Grandes cientistas ______. Psicogênese dos conhecimentos e seu significado
sociais; v. 39). Tradução epistemológico. In:
de Paula Monteiro, Alícia Auzemendi. PIATTELLI-PALMARIM, Massimo (Org.). Teorias da lin-
BRASIL. Leis etc. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. guagem, teorias da
Estabelece as Diretrizes e aprendizagem: o debate entre Jean Piaget & Noan Chomsky.
Bases da Educação Nacional. Diário Oficial [da] República São Paulo: Cultrix, 1983.
Federativa do Brasil, Tradução de Álvaro Alencar.
Brasília, DF, v. 134, n. 248, p. 27.833-27.841, 23 dez. 1996. PIAGET, Jean; GARCIA, R. Psicogénesis e história de la ci-
Seção 1. ência. México, DF: Siglo XXI,
CHOMSKY, N. A propósito das estruturas cognitivas e de seu 1984.
desenvolvimento: uma RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. Psicologia e epistemologia
resposta a Jean Piaget. In: PIATTELLI-PALMARINI, Massi- genética de Jean Piaget. São
mo (Org.). Teorias da Paulo: EPU, 1988.
linguagem, teorias da aprendizagem: o debate entre Jean Pia- REY, B. Les compétences transversales en ques Les compé-
get & Noan Chomsky. tences transversales en question. Paris: ESF, 1998.
Tradução de Álvaro Alencar. São Paulo: Cultrix: Ed. Univer- ROPÉ, F. Dos saberes às competências? o caso do francês. In:
sidade São Paulo, 1983. ROPÉ, Françoise;

Didatismo e Conhecimento 47
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
TANGUY, Lucie (Org.). Saberes e competências: o uso de tais ensão das sociedades requer perspectivas abrangentes da vivência
noções na escola e na social, incluindo as diferentes relações que os grupos estabelecem
empresa. Campinas: Papirus, 1997. p. 69-100. Tradução de entre si e com a natureza.
Patrícia Chittoni Ramos e A forma como as sociedades garantem seu sustento, por
equipe ILA da PUC/RS. exemplo, estabelece vínculos com as relações construídas entre as
______. Racionalização pedagógica e legitimidade política. pessoas e os grupos, com a organização do espaço de convívio e
trabalho, com as manifestações culturais vivenciadas e expressas
In: ROPÉ, Françoise;
etc.:
TANGUY, Lucie (Org.). Saberes e competências: o uso de tais
noções na escola e na A história social nunca pode ser mais uma especialização,
empresa. Campinas: Papirus, 1997. p. 25-67. Tradução de Pa- como a história econômica ou outras hifenizadas, porque seu tema
trícia Chittoni Ramos e não pode ser isolado. (...) O historiador das ideais pode (por sua
equipe ILA da PUC/RS. conta e risco) não dar a mínima para a economia, e o historiador
econômico não dar a mínima para Shakespeare, mas o historiador
História e Geografia - Ensino Fundamental social que negligencia um dos dois não irá muito longe. (Hobsba-
Antonia Terra de Calazans Fernandes wm, 1998, p. 87).

Este texto tem a finalidade de contribuir para reflexões de pro- A presença da História e da Geografia no espaço escolar sem-
fessores e especialistas da área de Ciências Humanas do Ensino pre agregou reflexões e debates nas Ciências Humanas; tais deba-
Fundamental envolvidos com o trabalho de avaliação de jovens e tes seguem, tradicionalmente, a tendência de abarcar conteúdos -
temas e domínios - interdisciplinares. Os Parâmetros Curriculares
adultos. Inicialmente, o texto apresenta História e Geografia como
Nacionais para a História (Brasil, 1998) refletem atualmente essas
disciplinas escolares do Ensino Fundamental que aglutinam co- reflexões, pontuando a necessidade desse campo estabelecer diálo-
nhecimentos das diferentes Ciências Humanas, pontuando suas gos com outras áreas de conhecimento para dar conta de diferentes
especificidades na formação escolar humanística, voltada para a problemáticas contemporâneas em suas dimensões temporais. Se-
cidadania. gundo esses parâmetros, novos conteúdos podem ser considerados
Na sequência, trata das características dos alunos da EJA e em uma perspectiva histórica por meio de trabalhos interdiscipli-
do que se espera que dominem e articulem de acordo com o co- nares.
nhecimento da área, especificando tanto competências e domínios A História e a Geografia, dentre as Ciências Humanas, con-
conceituais, como também metodologias de análise das produções templam hoje perspectivas mais totalizantes de análise das socie-
humanas presentes na realidade e expressas na diversidade de lin- dades, tendo como objeto de estudo tanto questões intrínsecas às
guagens. Por fim, reflete sobre as competências que são apresen- relações e organizações humanas, quanto sua relação com a natu-
tadas como referência para avaliação do aluno da EJA no Ensino reza.
Fundamental em Ciências Humanas, apresentando alguns exem- Além disso, possibilitam o estudo do mundo contemporâneo
de modo abrangente e também fornecem os fundamentos para
plos de seus desdobramentos no domínio e análise de conteúdos
que as questões sejam analisadas na perspectiva do passado e das
de abrangências diversas que incluem, por exemplo, informações, transformações realizadas pelas sociedades no espaço.
conceitos, valores, atitudes e procedimentos. Por outro lado, o compromisso do Ensino Fundamental com a
As Ciências Humanas - que abrangem a Filosofia, a História, cidadania também tem instigado essas áreas a reverem conteúdos
a Geografia, a Política, a Economia, a Sociologia e a Antropologia estritamente escolares ou puramente disciplinares para favorece-
- estão presentes no Ensino Fundamental por meio de duas disci- rem uma formação mais humanista ao estudante, permitindo-lhe
plinas escolares específicas: História e Geografia. Assim, além de compreender, analisar criticamente e atuar socialmente. Nos Pa-
contemplarem conteúdos e métodos específicos de suas ciências râmetros Curriculares Nacionais para a Geografia (Brasil, 1998),
de origem e de manterem seus compromissos educacionais com isto fica explícito na proposta de que cada cidadão, ao conhecer as
a formação para a cidadania, a História e a Geografia também in- características sociais, culturais e naturais do lugar onde vive, bem
cluem a responsabilidade do desenvolvimento de estudos interdis- como as de outros lugares, pode comparar, explicar, compreen-
ciplinares que favoreçam a análise e compreensão da complexida- der e espacializar as múltiplas relações que diferentes sociedades
de da vida em sociedade. (...) estabelecem com a natureza na construção de seu espaço geo-
gráfico, adquirindo assim conhecimentos que lhe permitem maior
No campo do conhecimento científico, a tarefa de captar a
consciência dos limites e responsabilidades da ação individual e
totalidade da vida social ou dar conta da realidade complexa tem coletiva com relação ao seu lugar e a contextos mais amplos, da
sido realizada pelas pesquisas das Ciências Humanas, seja por escala nacional a mundial. (ibid., 1998, p. 33)
meio de uma única área de estudo que procura abarcá-la em pers-
pectiva ampla, seja por meio de propostas interdisciplinares envol- AS CIÊNCIAS HUMANAS E A FORMAÇÃO PARA A
vendo duas ou mais áreas de conhecimento. Por exemplo, durante CIDADANIA
décadas a História e a Geografia mantiveram proximidades com a
Economia e nos últimos vinte anos fortaleceram por sua vez, seus Da perspectiva da formação para a cidadania, a Proposta Cur-
diálogos com a Antropologia. ricular de Jovens e Adultos (Brasil, 2002) também contempla a
Mais recentemente, tem prevalecido nas Ciências Humanas preocupação de formar para a participação política, entendendo-
um esforço interdisciplinar fundamentado por variados debates -a não unicamente como escolha de representantes políticos, mas
e intercâmbios entre diferentes áreas. O historiador Hobsbawm também como participação em movimentos sociais e envolvimen-
(1998) pontua que os estudos ligados à história social implicam to com os temas e questões da nação e em todos os níveis da vida
necessariamente em análises interdisciplinares, porque a compre- cotidiana.

Didatismo e Conhecimento 48
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Defende a ideia de que as mudanças no mundo atual exigem Suas raízes são de ordem histórico social. No Brasil, esta rea-
uma compreensão melhor o mundo em que vivemos para nele lidade resulta do caráter subalterno atribuído pelas elites dirigentes
atuarmos de maneira crítica, responsável e transformadora. (ibid., à educação escolar de negros escravizados, índios reduzidos, cabo-
2002, p. 114 - 115) clos migrantes e trabalhadores braçais, entre outros. Impedidos da
Perseguindo essa meta, a área de Ciências Humanas no En- plena cidadania, os descendentes destes grupos ainda hoje sofrem
sino Fundamental favorece ao aluno a análise de sua inserção no as consequências desta realidade histórica.
mundo humano, dimensionando suas temporalidades e suas rela- Disto nos dão prova as inúmeras estatísticas oficiais. A rigor,
ções com o espaço a partir do desenvolvimento de determinadas esses segmentos sociais, com especial razão negros e índios, não
competências, envolvendo estudos de uma diversidade de conte- eram considerados como titulares do registro maior da modernida-
údos - informações, conceitos, procedimentos, valores e atitudes. de: uma igualdade que não reconhece qualquer forma de discrimi-
Nessa linha, as disciplinas de História e Geografia no Ensi- nação e de preconceito com base em origem, raça, sexo, cor, idade,
no Fundamental pretendem imprimir à formação do aluno uma religião e sangue, entre outros. Fazer a reparação desta realidade,
tendência que priorize o desenvolvimento de competências, tais dívida inscrita em nossa história social e na vida de tantos indiví-
como: duos, é um imperativo e um dos fins da EJA, porque reconhece o
- Compreender processos sociais, utilizando conhecimentos advento para todos deste princípio de igualdade (Diretrizes curri-
históricos e geográficos; culares nacionais para a educação de jovens e adultos, 2000).
- Compreender o papel das sociedades no processo de produ- Como fruto dessa história, por ingressarem ou regressarem
ção do espaço, do território, da paisagem e do lugar; à escola como jovens e adultos, os alunos de EJA possuem uma
- Compreender a importância do patrimônio cultural e respei- história pessoal marcada pelo trabalho e por vivências sociais que
tar a diversidade étnica; os diferenciam dos estudantes de idade regular. Ao mesmo tempo,
- Compreender e valorizar os fundamentos da cidadania e da ao longo da história da educação brasileira, essa modalidade de
democracia, de forma a favorecer uma atuação consciente do indi- ensino tem considerado essa formação específica (desenhada pela
víduo na sociedade; variação de idade e de cultura) nos seus instrumentos didáticos e
• Compreender o processo histórico de ocupação do território de avaliação.
e a formação da sociedade brasileira; As experiências com EJA têm sido ainda um aprendizado
• Interpretar a formação e organização do espaço geográfico quanto à intervenção pedagógica e às relações do saber formal com
brasileiro, considerando diferentes escalas; o conhecimento prévio no processo de aprendizagem do aluno,
• Perceber-se integrante, dependente e agente transformador de modo a valorizar seu saber e, simultaneamente, favorecer-lhe
do ambiente; a apropriação também de uma cultura exigida por determinados
• Compreender a organização política e econômica das socie- setores sociais. Essa conciliação é fundamental no sentido de per-
dades contemporâneas; mitir o acesso do indivíduo a melhores oportunidades de trabalho,
• Compreender os processos de formação das instituições so- melhoria na sua qualidade de vida e domínio político para intervir
ciais e políticas, a partir de diferentes formas de regulamentação em prol de sociedades mais justas e igualitárias. Como afirma a
das sociedades e do espaço geográfico. Proposta Curricular para Jovens e Adultos, um dos maiores desa-
fios dos cursos de educação de jovens e adultos consiste em arti-
Essas competências estão fundadas em princípios que inter- cular o conhecimento vivido por esses alunos aos conhecimentos
-relacionam o domínio de linguagens, os conceitos das Ciências da ciência formal, da cultura letrada, das artes clássicas, isto é, à
Humanas e a formação para a cidadania, ou seja, revelam a inten- produção cultural, intelectual e política das sociedades. (op.cit.,
ção e o propósito de que os estudantes devam ter a capacidade de 2002).
articular determinados saberes de ordem intelectual que favoreçam Nesse complexo processo de diálogos culturais, intencio-
a reflexão sobre diferentes dimensões da realidade social e a cons- nalidades educativas e indicadores de aprendizagem, a área de
trução de julgamentos e atuações em prol de atitudes sociais de Ciências Humanas assume um papel importante por favorecer o
respeito e solidariedade. O desdobramento dessas competências debate sobre a identidade social, cultural, geográfica e histórica e
nos conteúdos intrínsecos às Ciências Humanas solicita que os es- por conter as categorias teóricas e os métodos para “evidenciar” a
tudantes tenham acesso a saberes diversos que incluam informa- pluralidade das culturas internas às sociedades, sua segmentação,
ções e conceitos sociais, políticos, culturais, históricos e geográfi- seus conflitos e seus acordos. Um outro papel é o de refletir sobre
cos; conhecimentos de como proceder para colher informações e a diversidade de modos de vida, crenças e concepções políticas
realizar análises a partir de variadas linguagens (mapas, imagens, construída historicamente nas variedades de convivências e nas
relações plurais com o espaço geográfico.
diferentes tipos de texto...). Também envolve conhecimentos de
A área de Ciências Humanas enfrenta ainda o desafio de criar
como julgar e atuar em favor da preservação de patrimônios, do
situações didáticas e instrumentos de avaliação para que o estudan-
respeito à diversidade cultural, da realização plena da democracia
te se confronte com o seu próprio universo cultural e social, com
e do reconhecimento da participação efetiva dos indivíduos, gru-
sua própria formação, com sua história, avaliando e ponderando
pos, classes, povos e Estados na construção e transformação da
seus conhecimentos e reconhecendo o valor intrínseco desse sa-
realidade vivida.
ber para condução e compreensão da realidade. Simultaneamente,
tem a responsabilidade de sensibilizar o estudante para os limites
OS ALUNOS DE EJA E AS CIÊNCIAS HUMANAS
do que aprendeu unicamente na esfera da vida social, por estarem
inclusas nestas vivências dimensões de subjetividade, determina-
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jo-
dos valores culturais, ou mesmo ideologias difundidas no senso
vens e Adultos identificam os alunos de EJA como sendo herdeiros
comum.
de um processo histórico cruel e moldado pela segregação.

Didatismo e Conhecimento 49
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A interação dos alunos da EJA com novos conhecimentos tem e interpretar mapas, linhas de tempo, cronologias, tabelas, gráfi-
solicitado cuidados didáticos específicos e instrumentos de ava- cos, fotos de satélite, fotografias, gravuras e obras de arte, cari-
liação diferenciados, principalmente nas circunstâncias em que caturas, charges e diferentes estilos de textos, como jornalísticos,
se realiza por meio de estudos individuais — leitura de textos e literários, científicos, legislativos. Ainda, para organizar e rela-
programas de televisão e rádio — e aquisição de certificados por cionar as informações que colhem nas suas vivências sociais, nos
processos de avaliação em grande escala, como é o caso dos exa- meios de comunicação e em estudos escolares, os estudantes da
EJA precisam dominar alguns conceitos construídos e debatidos
mes estaduais.
pelas Ciências Humanas, principalmente aqueles que estruturam
De qualquer modo, seja em situações de sala de aula com a noções de tempo, espaço e sociedade e aqueles que contribuem
presença do professor, seja na situação de estudos solitários, o rit- para a compreensão e análise do mundo contemporâneo.Os alunos
mo de aprendizagem, a maneira como as informações e conceitos da EJA devem, então, saber observar e colher informações de va-
são apresentados e os mecanismos de avaliar os domínios adquiri- riadas linguagens e utilizá-las, organizar acontecimentos no tempo
dos têm sido objeto de atenção por parte de educadores. em linhas cronológicas, analisar textos constitucionais, identificar
Existem outras recomendações para o uso de estratégias di- técnicas construtivas, comparar padrões culturais de sociedades.
dáticas e questões de avaliação nas quais o aluno possa se ques- Devem ainda dominar diferentes conceitos para dimensionar pers-
tionar primeiro sobre o que sabe e levantar hipóteses, confrontar pectivas mais globais e analíticas das sociedades contemporâneas
suas opiniões com outras, extrair informações de textos, gráficos, e suas relações com sociedades de outros tempos, refletindo e es-
imagens, e organizar as informações coletadas antes de concluir colhendo atitudes que contribuam para atuações conscientes em
ideais. prol de sociedades melhores.
Dessa perspectiva didática e de avaliação, as Ciências Hu-
REFERÊNCIAS PARA AVALIAÇÃO
manas assumem a responsabilidade de valorizar a pluralidade de
ideais, pontos de vista e valores diferentes e concepções de mundo Como foi visto, são inúmeras e fundamentais as considera-
variadas. Pautam-se por premissas postas pelo mundo contempo- ções para a definição do que e como avaliar os conhecimentos do
râneo que solicitam de todos atitudes de alteridade, ou seja, a cons- estudante da EJA em um processo de certificação nacional.
trução de uma sensibilidade ou a consolidação de uma vontade de A diversidade cultural das pessoas e as modalidades formais
acolher a produção interna das diferenças e de moldar valores de e informais de acesso ao saber permitem estabelecer algumas re-
respeito por elas. (Brasil, 1998, p. 35). ferências abrangentes quanto às expectativas de seus domínios e
seus saberes, pautados em competências específicas das Ciências
LINGUAGENS, METODOLOGIAS E CONCEITOS NO Humanas no Ensino Fundamental.As competências abaixo procu-
DOMÍNIO DE CONTEÚDOS DAS CIÊNCIAS HUMANAS ram dar conta de domínios amplos e específicos pertinentes aos
conhecimentos esperados de estudantes da EJA do Ensino Fun-
Por ter como objeto de estudo a vida em sociedade e suas re- damental.
lações com a natureza, as Ciências Humanas são as ciências que
1. Compreender processos sociais utilizando conhecimentos
fornecem ao estudante os conhecimentos necessários para inter-
históricos e geográficos.
pretar as relações humanas e como, a partir delas, se constituem as Trabalhar com essa competência implica a apreensão da no-
realidades sociais, históricas e geográficas. Por isso, são próprios ção de processo social, a partir do domínio de diferentes conceitos
de sua esfera de conhecimento os instrumentos e as metodologias históricos e geográficos e de relações entre acontecimentos sociais
para identificar, caracterizar e analisar as convivências entre indi- no tempo. Tal apreensão requer do estudante a percepção de enca-
víduos, grupos, classes sociais, povos, nações e Estados, molda- deamentos e relações históricas entre acontecimentos intrínsecos a
das nas relações com o mundo natural e com o espaço geográfico, determinados espaços, que se constituem e se modelam pela ação
entrelaçadas ao longo de processos históricos e representadas em humana. Por exemplo, pretende-se que o estudante saiba relacio-
variadas linguagens. nar os diferentes conflitos e lutas entre povos indígenas e europeus
O estudo das Ciências Humanas inclui, assim, domínios de no processo de constituição do território brasileiro.
metodologias para o indivíduo saber interpretar diferentes lin-
guagens presentes no seu cotidiano, as quais expressam modelos, 2. Compreender o papel das sociedades no processo de produ-
valores e significados construídos para as relações históricas e ge- ção do espaço, do território, da paisagem e do lugar. Nesse caso,
espera-se que o estudante compreenda o papel das sociedades no
ograficamente constituídas. Este é o caso, por exemplo, da leitura
processo de constituição do espaço ao longo de sua história, trans-
e análise de informações de um jornal de circulação diária. Para formando territórios e paisagens e organizando os modos de vida
um cidadão brasileiro saber depreender opiniões dos autores dos dos lugares. Um exemplo disso é o estudante analisar as mudanças
textos e do próprio jornal, conflitos entre grupos sociais presentes ocorridas na organização de espaços e nos costumes das popula-
nos acontecimentos relatados, ou como a desvalorização da moeda ções em função dos deslocamentos populacionais.
afeta o custo das mercadorias que consome, ele precisa saber iden-
tificar diferentes estilos de textos, colher informações de tabelas, 3. Compreender a importância do patrimônio cultural e res-
interpretar fotos, questionar, organizar dados, estabelecer relações peitar a diversidade étnica.
entre informações da atualidade e de outras épocas e entre aconte- Trata-se nesse caso de o estudante dominar saberes diversos,
cimentos de locais diferentes, bem como saber lidar com conceitos relativos a diferentes campos das Ciências Humanas, que ressal-
que interpretam e dão significado a esses acontecimentos. tem a questão do respeito à diversidade de manifestações culturais
Os alunos da EJA necessitam, então, de saberes específicos pertencentes aos mais variados grupos étnicos e que, simultanea-
mente, o despertem para a valorização e o respeito por seus patri-
para analisarem e compreenderem diferentes linguagens nas suas
mônios.
potencialidades comunicativas. Precisam saber usar, colher dados

Didatismo e Conhecimento 50
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Por exemplo, espera-se que o estudante seja capaz de reco- nos costumes dos brasileiros a partir da expansão da indústria no
nhecer a presença de comunidades quilombolas no Brasil e a ne- país e da integração das diferentes localidades por meio da implan-
cessidade premente de respeitar o território e a cultura das mesmas tação da infraestrutura de transporte.
como premissas intrínsecas à sobrevivência dessas comunidades. 9. Compreender os processos de formação das instituições so-
ciais e políticas, a partir de diferentes formas de regulamentação
4. Compreender e valorizar os fundamentos da cidadania e das sociedades e do espaço geográfico.
da democracia, de forma a favorecer uma atuação consciente do Nesse caso, pretende-se que o estudante identifique as insti-
indivíduo na sociedade. tuições sociais e políticas brasileiras, compreendendo seu processo
de constituição e analisando as diferentes formas de regulamenta-
Essa competência implica o estudante saber discernir os con-
ção das sociedades e do espaço geográfico. Espera-se, por exem-
ceitos de cidadania e de democracia, reconhecendo-os como con-
plo, que o estudante conheça e se posicione diante da legislação
ceitos históricos e, portanto, mutáveis e dependentes dos contex- que regulamenta a representatividade política do povo brasileiro,
tos políticos e sociais das sociedades. Ao mesmo tempo, solicita inserindo-a em perspectivas históricas.
que o estudante reconheça a importância das lutas empreendidas Considerando a especificidade da área de Ciências Humanas,
por diferentes grupos sociais e seus embates na constituição e im- que engloba múltiplos conhecimentos, e considerando as diver-
plantação efetiva de sociedades democráticas. Um exemplo des- sas competências que são requeridas do estudante da EJA para ser
sa competência é o estudante compreender a história dos direitos capaz de analisar as organizações sociais e as relações dos seres
trabalhistas no Brasil e a participação ativa das organizações de humanos com a natureza, elegeu-se como estratégia pedagógica
trabalhadores neste processo. de avaliação o uso de situações-problema (Macedo, 2002). Desse
modo, por meio de situações-problema, os saberes do estudante
5. Compreender o processo histórico de ocupação do território são avaliados tendo-se em vista sua capacidade para analisar pro-
e a formação da sociedade brasileira. blemáticas contemporâneas, as quais, para serem compreendidas,
Nesse caso, a competência explicitada requer que o estudan- requerem domínios históricos e geográficos que envolvem a re-
te domine e compreenda os acontecimentos e conceitos históricos alidade brasileira e a conjuntura mundial. Construir questões de
referentes ao processo de ocupação do território e da formação da avaliação na forma de situações-problema implica que o estudante
sociedade brasileira. Compreender a história das populações indí- se defronte com a realidade social, histórica e geográfica na sua
genas no Brasil em diferentes épocas, sua inserção na sociedade complexidade e que mobilize recursos, recuperando o que sabe e
pensa; que formule hipóteses e conjecturas, confrontando e coor-
nacional e suas lutas em prol da integridade de seu território, de
denando diferentes perspectivas a partir da análise de grupos so-
sua sobrevivência e do reconhecimento de suas particularidades ciais ou sociedades; que considere fatores históricos e geográficos
culturais, constitui um exemplo dessa competência. e reveja valores e ideais, priorizando princípios éticos, julgando
conflitos e pensando em soluções.
6. Interpretar a formação e organização do espaço geográfico As situações-problema possibilitam avaliar a capacidade de
brasileiro, considerando diferentes escalas. Do estudante da EJA análise e entendimento de linguagens, criando condições para se
é esperado que tenha a capacidade de interpretar a formação e a verificar, por exemplo, se o estudante da EJA sabe identificar opi-
organização do espaço geográfico brasileiro, considerando dife- niões de diferentes autores nos textos que lê e organizar aconteci-
rentes escalas geográficas (local, regional, nacional e mundial) e mentos históricos em uma linha do tempo.
percebendo que o espaço possui intervenções históricas humanas, Nesse sentido, portanto, essa proposta de avaliação parte da
idades e tempos diferenciados. Um exemplo dessa competência é ideia de que o estudante é um sujeito ativo, pensante, que sempre
o estudante compreender que os espaços são constituídos de ma- está colocando em jogo aquilo que sabe, estabelecendo relações,
neiras diferentes por conta de variados fatores naturais e interven- chegando a conclusões ou tomando decisões.
ções humanas. A concepção de aprendizagem proposta como referência para
essa forma de avaliação inclui, assim, procedimentos importantes
7. Perceber-se integrante, dependente e agente transformador ligados às Ciências Humanas, verificando se os alunos dominam
do ambiente. É necessário que o estudante seja capaz de relacionar conteúdos vinculados à dimensão do saber fazer (saber pesquisar,
questionar, analisar, confrontar...), relacionados à sua competência
e integrar diferentes informações oriundas desse ambiente para, a
para saber aprender com autonomia.
partir dessas relações, elaborar propostas que possam contribuir
para a sua transformação social, política e econômica. Espera- Bibliografia
-se, por exemplo, que ele saiba analisar e se posicionar diante das
mudanças ocorridas nos ambientes em função da expansão da in- BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria do Ensino Fun-
dústria e do modo de vida urbano, podendo ainda contribuir para damental. Parâmetros
novas transformações. Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fun-
damental. Brasília, DF:
8. Compreender a organização política e econômica das so- MEC, 1998. 9 v.
ciedades contemporâneas. Trata-se aqui de esperar que o estudante ______. Proposta curricular para a educação de jovens e adul-
seja capaz de identificar, nas organizações políticas e econômicas tos: 5ª a 8ª série. :
das sociedades contemporâneas, as múltiplas relações construídas Brasília, DF: MEC, 2002. 3 v.
historicamente por diferentes instâncias da sociedade - indivíduos, CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. (Brasil). Câ-
grupos sociais, instituições e o próprio Estado - que modelam e re- mara de Ensino Básico. Parecer nº 11,de 10 de maio de 2000. Dire-
modelam modos de vida e espaços geográficos. Um exemplo dessa trizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens eAdultos.
competência é o estudante identificar e analisar as transformações Documenta, Brasília, DF.

Didatismo e Conhecimento 51
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
HOBSBAWM, E. J. Sobre a história: ensaios. 2. ed. reimpr. A identificação e uma reflexão sobre as atuais formas de con-
São Paulo: Companhia dasLetras, 1998. 336p. Tradução de Cid vívio humano tornam-se, assim, o ponto inicial e fundamental para
Kripel Moreira. a organização da área de ciências humanas ao pretender que ela
MACEDO, L. de. Situação-problema: forma e recurso de ava- sirva como um dos instrumentos para a constituição de uma forma-
liação, desenvolvimento decompetências e aprendizagem escolar. ção humanística. É, portanto, uma área que pensa o conhecimento
In: PERRENOUD, P.; et al. As competências para ensinar no sécu- acumulado das ciências sociais articulado ao conhecimento prag-
lo XXI. Porto Alegre: ArtMed, 2002. mático adquirido pelos diferentes indivíduos a partir de práticas
cotidianas, dos conflitos pessoais e coletivos, das relações de poder
Ciências Humanas e suas Tecnologias - Ensino Médio
em seus diferentes níveis, desde a família, passando pelo poder
Circe Maria Fernandes Bittencourt
institucional do Estado, ao poder econômico local e internacional.
A área de Ciências Humanas para o Ensino Médio do Encceja Pretende uma formação humanística moderna, que abrange refle-
abrange os conhecimentos de Geografia, História, Antropologia, xões e estudos sobre as atuais condições humanas, mas que se fun-
Política, Economia, Filosofia, Direito e Sociologia que se arti- damenta nas singularidades e no respeito pelas diferenças étnicas,
culam, visando fornecer aos jovens e adultos uma compreensão religiosas, sexuais das diversas sociedades. Esta reflexão sobre o
maior da sociedade contemporânea e o “lugar” que ocupam no presente das condições de vida das diversas sociedades contempo-
processo de sua constituição e nos projetos de transformações. râneas não exclui a compreensão histórica desse processo.
A área, constituída pelo conjunto de conhecimentos oriundos A perspectiva histórica permite uma visão não apenas abran-
das diferentes ciências humanas, pressupõe a constituição de sabe- gente ao estabelecer as relações entre passado-presente na busca
res dos diferentes campos e das pesquisas sociais que, articulados, de explicações do atual estágio da humanidade, como permite tam-
possibilitam uma visão humanística no processo de apreensão dos bém, identificar as semelhanças e diferenças que têm marcado a
problemas vividos e enfrentados pela sociedade. A concepção hu- trajetória dos homens no planeta Terra.
manística permeia a integração dos diferentes campos disciplina- Nesta perspectiva, um segundo eixo norteia a concepção de
res das ciências sociais e ainda busca estabelecer a relação entre o humanismo da área: a necessidade de se rever as relações entre
conhecimento da sociedade e o das ciências da natureza. homem e natureza. Isso significa aproximar as ciências humanas
O princípio humanista que fundamenta a área tem como pres- das ciências da natureza.
suposto superar a concepção tradicional das disciplinas denomi- A ciência moderna fundamentada no conhecimento dos fenô-
nadas “humanidades” e do papel que desempenharam no passado
menos da natureza e no princípio de subordinação dessa natureza
educacional, com o objetivo de fornecer a base de uma cultura ge-
ral, enciclopédica e destinada a determinados setores “iluministas” pelo homem torna outro aspecto importante e significativo para o
da sociedade brasileira, criadora de valores “elitistas”, justificado- repensar sobre uma nova concepção humanística. As relações dos
res das desigualdades sociais e de direitos. homens com a natureza, ao longo da história, são incorporadas
Uma concepção atual de formação humanística fundamenta- como objeto de análise em uma perspectiva que pretende incor-
-se em princípios articulados em torno de três eixos básicos. porar uma educação ambiental comprometida com o futuro das
O primeiro deles é o de considerar a formação humanística gerações e que supere uma visão apenas utilitária e baseada em
como significativa para a compreensão dos problemas sociais e interesses econômicos.
para seu enfrentamento por parte de todos os setores sociais. Nessa A natureza, concebida como fonte de recursos que necessita
perspectiva, visa identificar os problemas mais contundentes das ser explorada cada vez mais para fomentar um crescimento econô-
sociedades contemporâneas, notadamente aqueles relacionados mico a qualquer custo, é revista no contexto dos estudos das dife-
à permanência de conflitos geradores de violências de diferentes rentes sociedades. Também se repensa o entendimento de que po-
níveis e em diferentes locais, dentro das casas, nas favelas, nos luição e degradação ambientais são inevitáveis por serem subpro-
grandes centros urbanos, nas áreas rurais ou em campos de bata- dutos de um significativo e vertiginoso progresso. A constatação
lha. Permeia, assim, a concepção de humanismo da área, a neces- da degradação ambiental tem gerado preocupações para setores
sidade de apreender o papel do indivíduo em uma sociedade de econômicos e tem sido responsável por estudos preservacionistas
consumo assentada em valores de competitividade que exacerbam que incluem novos projetos em relação à exploração dos recursos
o individualismo e desenvolvem desejos incontroláveis em torno
naturais. Mas a relação homem-natureza apreendida em uma abor-
de objetos-mercadoria.
dagem humanística pretende ampliar esta perspectiva limitada ao
Procura-se identificar ações possíveis e formas de convivên-
cia que possam alterar a submissão a valores que desumanizam as plano econômico e situar com maior precisão as decisões políticas,
pessoas. Considerando que a maior parte das pessoas vive em fun- assim como as ações individuais e da sociedade civil.
ção de aquisição de bens, de satisfações pessoais imediatas, imer- O compromisso do presente relaciona-se ao futuro das novas
sas em um presenteísmo, torna-se fundamental a reflexão sobre o gerações e da própria sobrevivência do homem no planeta, situa-
significado do consumismo na vida pessoal, nas relações afetivas, ção que requer a constituição de um conhecimento profundo sobre
assim como nas lutas diárias pela sobrevivência. tais relações e envolve a reformulação de concepções sobre a na-
O sociólogo Boaventura dos Santos apontou algumas das tureza.
características da sociedade gestada por tais valores e acentuou a A concepção de natureza tem sido, sobretudo a partir do sécu-
necessidade de identificarmos as características do modo de vida lo XVI, mediada por valores que separam o homem do restante dos
de uma cultura consumista: A cultura consumista (articulada ao seres vivos e dos demais elementos naturais e que o transforma em
individualismo possessivo) induz o desvio das energias sociais centro de um processo de dominação. A natureza torna-se objeto
da interação com pessoas humanas para a interação com objetos e existe separada da humanidade com a função apenas de servir
porque são mais facilmente apropriáveis que as pessoas humanas. aos interesses dos homens. A concepção proposta de humanismo
(Santos, 1995, p. 321). conduz à compreensão de que o homem é parte da natureza. Essa

Didatismo e Conhecimento 52
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
dimensão possibilita e torna necessário o comprometimento mais O aparato tecnológico em suas diversas formas tem sido anali-
abrangente de vários setores sociais e órgãos institucionais, desde sado com intensidade, sobretudo, entre pensadores que combatem
as políticas governamentais, passando pelos setores educacionais a violência do século XX. Arendt (2001), em seus vários estudos
e culturais, ao setor privado. sobre as experiências políticas contemporâneas, alerta com vee-
As ciências humanas, nesse sentido, se integram às ciências mência para os vínculos entre a violência e a revolução tecnológi-
da natureza para que o homem se torne o objeto do conhecimento ca do século XX, manifestados nas guerras, na “bomba atômica”,
integrado à natureza. nas armas químicas, enfim na moderna técnica armamentista e
O terceiro eixo, que norteia a reflexão sobre o papel formativo suas trágicas consequências. É exemplar como a autora identifica
das ciências humanas, refere-se ao significado da tecnologia na as contradições entre tecnologia e poder:
vida social. É fundamental, para uma apreensão de humanismo em
seu sentido contemporâneo, compreender o mundo tecnológico vi- Há muitos outros exemplos para demonstrar a curiosa con-
vido pelas diversas sociedades. tradição inerente à impotência do poder. Por causa da enorme efi-
O significado do papel da tecnologia no comportamento e no cácia do trabalho de equipe nas ciências, o que talvez seja a mais
evidente contribuição norte-americana para a ciência moderna,
estabelecimento das atuais relações sociais é, sem dúvida, um dos
podemos controlar os processos mais complicados com uma pre-
aspectos centrais porque tem afetado a todos os grupos sociais,
cisão que faz com que viagens à Lua sejam menos perigosas que
mesmo que em diferentes graus e níveis.
simples excursões de fim de semana. (Arendt, 2001, p. 62).
O desenvolvimento tecnológico promovido pelas ciências
modernas trouxe mudanças consideráveis nas mais diversas áreas Assim, a área de ciências humanas, ao centrar-se em um obje-
de convívio social, notadamente por intermédio de formas revolu- tivo aparentemente genérico sobre a formação humanística, consi-
cionárias nos meios de comunicação. dera que sua abrangência pode ser traduzida por compreensões que
O aparato tecnológico tem sido incorporado de maneira inten- possibilitem as constituições de identidades maiores - de todo ser
sa, tem alterado hábitos e costumes e têm modificado as relações humano que carrega um legado do passado e seus compromissos
sociais, sobretudo as relações de trabalho. A sociedade de consu- com o futuro. Possibilita ainda o entendimento para a constituição
mo se intensifica pelas necessidades que se tornam imprescindí- de identidade individual, no vividos das pessoas em espaços pú-
veis, criando-se uma rede de produtos introduzidos no cotidiano blicos e privados, com seus grupos de convivência, em sua vida
das pessoas, desde a casa aos lugares públicos e privados, ao tra- cotidiana.
balho, às escolas, aos espaços de lazer.
A tecnologia pode, assim, criar condições de dependência e FUNDAMENTOS TEÓRICOS
facilmente ser transformada de instrumento para melhoria de qua-
lidade de vida em mito da vida moderna e, portanto, portadora de Considerando os desafios da sistematização de conhecimen-
um poder que ultrapassa a dimensão de mercadoria e de recurso tos para jovens e adultos, baseados nos pressupostos anteriormen-
econômico. te elencados, torna-se necessária uma fundamentação teórica que
Esta dimensão da tecnologia necessita de reflexões visando possibilite a articulação em dois níveis de diferentes saberes.
a estabelecer seu “lugar” na sociedade. Um número significativo É necessário partir do conhecimento do vivido por este públi-
de estudos sobre os problemas fundamentais das sociedades tem co específico tanto para situar as problemáticas enfrentadas na vida
identificado as dificuldades em se perceber as diferenças entre em sociedade, no mundo do trabalho e das relações de convívio,
meio e fim criadas pelos fundamentos do conhecimento técnico como para efetivar aprendizagens possíveis ao se articular com o
científico que localizaram a tecnologia como base exclusiva para conhecimento acumulado e sistematizado por métodos científicos.
o desenvolvimento. Os problemas emergentes de uma sociedade Um outro nível de articulação de saberes ocorre pela interdis-
tecnológica tornam-se evidentes e carecem de soluções ao ampliar ciplinaridade, integrando os vários campos das ciências humanas.
Temos, portanto, como pressuposto inicial, a necessidade de
o fosso entre países pobres (subdesenvolvidos ou emergentes ou
identificar, do ponto de vista epistemológico, o conhecimento des-
ainda em vias de desenvolvimento), compradores das tecnologias,
se segmento social ao qual se destina o sistema avaliativo propos-
e os países ricos, “donos das tecnologias”.
to.
As desigualdades entre os países e,internamente, entre a po- Assim, a área de ciências humanas, ao centrar-se em um obje-
pulação e os diferentes grupos sociais, especialmente em países tivo aparentemente genérico sobre a formação humanística, consi-
como o nosso, merecem ser enfrentadas, e o papel da tecnologia dera que sua abrangência pode ser traduzida por compreensões que
é um ponto crucial que precisa ser debatido e estar inserido no possibilitem as constituições de identidades maiores - de todo ser
processo educativo, considerando ainda que o público da área do humano que carrega um legado do passado e seus compromissos
ENCCEJA é, sem dúvida, o mais atingido pelos mecanismos de com o futuro. Possibilita ainda o entendimento para a constituição
desigualdades de oportunidade de qualificação para o trabalho. A de identidade individual, no vivido das pessoas em espaços pú-
redefinição do trabalhador emerge da vinculação entre tecnologia blicos e privados, com seus grupos de convivência, em sua vida
e produção, podendo explicar a crise provocada pelo desemprego. cotidiana.
O trabalhador e sua produção podem ainda ser percebidos
pela intrínseca relação entre o homem e a máquina, temática que FUNDAMENTOS TEÓRICOS
muitos filmes têm ultimamente abordado, e que conduz a novas
formas de pensar a existência humana em toda a sua complexida- Considerando os desafios da sistematização de conhecimen-
de. Retoma-se, dessa forma, em esferas diversas, tanto no campo tos para jovens e adultos, baseados nos pressupostos anteriormen-
científico, como no artístico, o debate significativo sobre a “con- te elencados, torna-se necessária uma fundamentação teórica que
dição humana”. possibilite a articulação em dois níveis de diferentes saberes.

Didatismo e Conhecimento 53
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
É necessário partir do conhecimento do vivido por este públi- O reconhecimento da necessidade da aproximação do conhe-
co específico tanto para situar as problemáticas enfrentadas na vida cimento do senso comum com o conhecimento científico conduz,
em sociedade, no mundo do trabalho e das relações de convívio, assim, a uma relação diferenciada com o processo de aprendiza-
como para efetivar aprendizagens possíveis ao se articular com o gem. A constituição de “conceitos científicos” se articula aos “con-
conhecimento acumulado e sistematizado por métodos científicos. ceitos espontâneos”, e o domínio de leituras registradas em dife-
Um outro nível de articulação de saberes ocorre pela interdis- rentes suportes não pode ter um tratamento mecânico, mas requer
ciplinaridade, integrando os vários campos das ciências humanas. formas de diálogos para que informações e técnicas possam ser
Temos, portanto, como pressuposto inicial, a necessidade de sistematizadas e sirvam para o desenvolvimento de novas capaci-
identificar, do ponto de vista epistemológico, o conhecimento des- dades de compreender e de se situar no mundo.
se segmento social ao qual se destina o sistema avaliativo propos- Os novos estudos das Ciências Sociais têm, por sua vez, se
to. referenciado em muitas dessas concepções epistemológicas, visan-
O novo herói da vida é o homem comum imerso no cotidiano. do a cumprir um papel que solidifique, de forma mais abrangente,
compreensões da vida em sociedade. Tal perspectiva tem condu-
É que no pequeno mundo de todos os dias estão também o tempo
zido a um movimento que busca articular os diferentes campos de
e o lugar da eficácia das vontades individuais, daquilo que faz a
conhecimento da área.
força da sociedade civil, dos movimentos sociais. Nesse âmbito é
Além das formulações epistemológicas da área das ciências
que se propõe a questão do conhecimento do senso comum na vida humanas, tem havido um intenso movimento nas pesquisas sociais
cotidiana. (Martins, 2000, p. 57) visando articular os diferentes campos de conhecimento.
A citação do sociólogo José de Souza Martins serve como Nos PCN do Ensino Médio o percurso das pesquisas das Ci-
base para a fundamentação teórico-metodológica da área do en- ências Humanas é apresentado tendo em vista situar as atuais
sino e da aprendizagem das ciências humanas. O conhecimento tendências da área: A crise de confiança gerada pelo desastre da
desse “herói”, expresso como senso comum, se integra ao conheci- Primeira Guerra Mundial e pelas crises econômicas que a ela se
mento acumulado das diferentes disciplinas que compõem a área, seguiram deu origem, nos anos 30, a um esforço de revisão dos
articulando-se por intermédio de um diálogo capaz de reconhecer pressupostos positivistas, como o da fragmentação dos estudos.
não só as diferenças epistemológicas entre tais formas de conheci- Deu-se, então, importante experiência interdisciplinar, unindo-se
mento, mas também a impossibilidade de serem entendidas como historiadores, economistas, geógrafos e sociólogos, no esforço de
excludentes. tentar entender as razões da crise (Brasil, 1999, p. 17).
O senso comum tem sido considerado como uma forma de
conhecimento impregnado de preconceitos, conservador, e, para A alternativa interdisciplinar no campo científico embasa o
muitos especialistas, é um conhecimento falso que precisa ser ven- atual projeto da área de ensino, tendo como pressuposto que, ao se
cido pelo conhecimento científico racional e objetivo. manter o rigor metodológico das disciplinas dentro das concepções
Recentes debates epistemológicos, no entanto, têm demons- epistemológicas assinaladas anteriormente, pode-se enriquecer, de
trado que a oposição entre ciência/senso comum deve ser abolida, maneira mais eficaz, o conhecimento sobre a sociedade. Aborda-
porque, dentre outras razões, mesmo a ciência não está isenta de gens diversas sobre temáticas comuns favorecem, ao se utilizarem
preconceitos. de ferramentas próprias do seu campo específico, o domínio mais
As teorias racistas, de ‘raça superior’, embasadas em princí- aprofundado sobre a sociedade em seus múltiplos aspectos, do co-
pios de racionalidade científica, são exemplares da forma como o tidiano às sociedades nacionais, dos problemas mais próximos aos
conhecimento científico não apenas está impregnado de preconcei- mais distantes, da vida pública e privada, das diferentes tempo-
tos como pode servir igualmente para reforçá-los, transformando- ralidades, das continuidades e das rupturas, das revoluções e dos
-os em ideologias de controle social e de poder político. Concebe- ritmos lentos das “longas durações”.
-se como necessário o reencontro da ciência com o senso comum
SOBRE AS COMPETÊNCIAS DE ÁREA
para que se possa compreender mais sobre o mundo e seus proble-
mas étnicos, sexuais, religiosos, nas diferentes formas de relações
Considerando os aspectos já mencionados, propomos que o
desiguais. ENCCEJA Ensino Médio tenha como referência de avaliação o
Dessa forma, um dos princípios teóricos da área é o reconhe- domínio dos jovens e adultos nas seguintes competências de área:
cimento da importância dos saberes que os setores sociais, aos
quais se destina o projeto Encceja, têm adquirido pela experiência- 1. Compreender os elementos culturais que constituem as
de vida, pelas suas formas de “leitura do mundo”. Esse princípio identidades.
tem implicitamente uma concepção sobre o ato de ensinar e o ato 2. Compreender a gênese e a transformação das diferentes or-
de aprender, como tão bem analisa Paulo Freire: ganizações territoriais e os múltiplos fatores que neles intervêm,
como produto das relações de poder.
Na verdade, para que a afirmação ‘quem sabe, ensina a quem 3. Compreender o desenvolvimento da sociedade como pro-
não sabe’ se recupere de seu caráter autoritário, é preciso que cesso de ocupação de espaços físicos e as relações da vida humana
quem sabe saiba sobretudo que ninguém sabe tudo e que ninguém com a paisagem.
tudo ignora. O educador, como quem sabe, precisa reconhecer, 4. Compreender a produção e o papel histórico das institui-
primeiro, nos educandos em processo de saber mais, os sujeitos, ções sociais, políticas e econômicas, associando-as às práticas dos
com ele, deste processo e não pacientes acomodados; segundo, diferentes grupos e atores sociais.
reconhecer que o conhecimento não é um dado aí, algo imobiliza- 5. Compreender e valorizar os fundamentos da cidadania e da
do, concluído, terminado, a ser transferido por quem o adquiriu a democracia, favorecendo uma atuação consciente do indivíduo na
quem ainda não o possui. (Freire, 1985, p. 32). sociedade.

Didatismo e Conhecimento 54
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
6. Perceber-se integrante e agente transformador do espaço Pode-se ainda privilegiar o papel da tecnologia não apenas nos
geográfico, identificando seus elementos e interações. meios de comunicação, mas também nas artes e, sobretudo, deve-
7. Entender o impacto das técnicas e tecnologias associadas -se destacar o impacto nas transformações do trabalho e na vida do
aos processos de produção, o desenvolvimento do conhecimento trabalhador. Tendo em vista ainda as experiências de vida e os pro-
e a vida social. blemas enfrentados, a área de Ciências Humanas deve favorecer o
8. Entender a importância das tecnologias contemporâneas de desenvolvimento da formação política do cidadão. Uma formação
comunicação e informação e seu impacto na organização do traba- política entendida não no sentido partidário, mas de favorecimen-
lho e da vida pessoal e social. to na luta pela cidadania, no favorecimento de uma participação
9. Confrontar proposições a partir de situações históricas di- efetiva no processo de transformação da sociedade. Assim, o tema
ferenciadas no tempo e no espaço e indagar sobre processos de referente às lutas pela cidadania e como este conceito se foi trans-
transformações políticas, econômicas e sociais. formando ao longo da história do mundo ocidental é significativo
para a ampliação de uma visão sobre o papel da política na história
As propostas de competências têm, como princípio, evidente- da humanidade. Pode-se, nesta perspectiva, incluir o significado
mente, atender aos objetivos e aos pressupostos teórico metodoló- das relações entre Direito e Estado, do papel das leis e das institui-
gicos assinalados para a área. ções modernas e suas formas de representatividade. Nesse sentido,
As propostas consideram ainda o nível de domínio do grupo os temas apresentados devem contribuir para a compreensão do
ao qual se destina o processo avaliativo, no caso Ensino Médio, e papel político do cidadão, como indivíduo e como pertencente a
fazem parte de um projeto mais amplo sobre a educação de jovens uma coletividade, e, ainda, como se sedimentaram, na sociedade
e adultos. Nesta perspectiva não existe uma preocupação de esgo- contemporânea, as lutas por direitos sociais.
tar conteúdos organizados pelo conhecimento escolar tradicional, A reflexão sobre a história de vida e a história das sociedades,
mas entende-se que conteúdos podem ser selecionados e articula- entre a produção do espaço do “lugar” e a formação de fronteiras,
dos por intermédio de temas. constituem outras temáticas significativas, considerando as expe-
Os temas não visam explorar de maneira exaustiva uma sé- riências de vida desse público de estudantes. Migrações, memória,
rie de informações a eles relacionadas, mas conduzir a formas de tempos e espaços do “aqui” e do “agora” podem ser confrontados
com outros tempos e outros espaços. O tempo presente, ao se tor-
reflexões desde o momento inicial, por intermédio de situações-
nar objeto de reflexão, contribui para que se possa ultrapassar uma
-problema que mobilizem a atenção e o envolvimento com as for-
visão imediatista dos diversos acontecimentos, e para que jovens
mas de solução das problemáticas colocadas. O propósito é de que
e adultos possam mergulhar na busca de explicações que ultrapas-
se possa estabelecer um diálogo com o leitor, por intermédio de
sem os sentimentos de ceticismo, de intolerância, de impotência
situações–problema vividas no cotidiano e da ampliação do vivido
ou de fatalismo e possam vislumbrar possibilidades de mudanças.
individual para o da sociedade do presente e de outros momentos
e lugares.
Os temas constituem uma nova forma de se entender o signi-
Bibliografia
ficado de conteúdo escolar. Assim, os conteúdos escolares devem
ser compreendidos não como um produto a ser transmitido ou in- ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Du-
corporado mecanicamente, mas como um processo, por intermé- mará, 2001. 114p. Tradução de André Duarte.
dio do qual se articulam conceitos e informações provenientes de BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação
várias áreas das ciências humanas. Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Considerando o nível do Ensino Médio, os critérios de seleção ensino médio. Brasília, DF: MEC, 1999. 4 v.
dos temas têm como princípio abordagens diversas sobre proble- FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se
mas que afetam a vida cotidiana, situando-as em dimensões mais completam. São Paulo: :
amplas. Em outras palavras, oferecem análises em escalas que ul- Autores Associados, 1985. 96 p. (Polêmicas do nosso tempo,
trapassam o local e o nacional ao mesmo tempo em que se articu- v. 4).
lam a problemáticas internacionais e em escala mundial. Assim, MARTINS, J. de S. A sociabilidade do homem simples: coti-
por exemplo, as temáticas sobre o ambiente e problemas ecológi- diano e História na : modernidade anômala. São Paulo: Hucitec,
cos se articulam em relação às diferentes escalas que esta questão 2000. 210 p. (Ciências socias, v. 43).SANTOS, B. de S. Pela mão
abrange, procurando identificar as interferências na vida cotidiana de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São : Paulo:
e local e na do planeta. Políticas, legislação, preservação, desen- Cortez, 1995. 348 p.
volvimento econômico, e outros aspectos de caráter mais geral,
dentre outros tópicos, buscam estabelecer as relações com o vivido
das pessoas, como o problema do lixo, das águas e dos mananciais,
da poluição das áreas rurais e urbanas.
As relações entre o desenvolvimento das tecnologias e o
impacto na sociedade contemporânea são outras temáticas que
exemplificam a preocupação com a relação do mais próximo ao
mais distante no tempo e no espaço. O problema da tecnologia e o
impacto na vida das pessoas, por exemplo, pode ser situado histo-
ricamente, fornecendo condições de se refletir sobre o significado
das revoluções das técnicas e das ciências na vida contemporânea.

Didatismo e Conhecimento 55
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
IV. As matrizes que estruturam as avaliações

CII - Construir e aplicar conceitos das


várias áreas do conhecimento para a
CI - Dominar a norma culta da Língua
compreensão de fenômenos naturais,
Portuguesa e fazer uso das linguagens
de processos histórico-geográficos,
matemática, artística e científica.
da produção tecnológica e das
manifestações artísticas.

H1 - Identificar diferentes formas de


F1 – Compreender processos sociais
representação de fatos e fenômenos
utilizando conhecimentos históricos e H2 – Reconhecer transformações
histórico geográficos expressos em
geográficos. temporais e espaciais na realidade.
diferentes linguagens.

F2 - Compreender o papel das H6 – Identificar fenômenos e fatos H7 – Analisar geograficamente


sociedades no processo de produção do histórico-geográficos e suas dimensões características e dinâmicas dos fluxos
espaço, do território, da paisagem e do espaciais e temporais, utilizando mapas e populacionais, relacionando-os com a
lugar. gráficos. constituição do espaço.

F3 - Compreender a importância H11 – Identificar características de H12 – Reconhecer a diversidade dos


do patrimônio cultural e respeitar a diferentes patrimônios étnico-culturais e patrimônios étnico-culturais e artísticos
diversidade étnica. artísticos. em diferentes sociedades.

História e geografia

CV - Recorrer aos conhecimentos


CIII - Selecionar, organizar, relacionar, CIV - Relacionar informações,
desenvolvidos para elaboração de
interpretar dados e informações representadas em diferentes formas,
propostas de intervenção solidária
representados de diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em
na realidade, respeitando os valores
para tomar decisões e enfrentar situações concretas, para construir
humanos e considerando a diversidade
situações-problema. argumentação consistente.
sociocultural.

H5 – Considerar o respeito aos valores


H3 - Interpretar realidades históricas e H4 - Comparar diferentes explicações
humanos e à diversidade sociocultural,
geográficas estabelecendo relações entre para fatos e processos históricos e/ou
nas análises de fatos e processos
diferentes fatos e processos sociais. geográficos.
históricos e geográficos.

H8 – Interpretar situações histórico- H10 – Comparar propostas de


H9 – Comparar os processos de formação
geográficas da sociedade brasileira soluções para problemas de natureza
socioeconômicos e geográficos da
referentes à constituição do espaço, do socioambiental, respeitando valores
sociedade brasileira.
território, da paisagem e/ou do lugar. humanos e a diversidade sociocultural.

H15 – Identificar propostas que


H13 - Interpretar os significados de
H14 - Comparar as diferentes reconheçam a importância do
diferentes manifestações populares como
representações étnico-culturais e patrimônio étnico-cultural e artístico
representação do patrimônio regional e
artísticas. para a preservação das memórias e das
cultural.
identidades nacionais.

Didatismo e Conhecimento 56
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)

CII - Construir e aplicar conceitos das


várias áreas do conhecimento para
CI - Dominar a norma culta da Língua
acompreensão de fenômenos naturais,
Portuguesa e fazer uso das linguagens
de processos histórico-geográficos,
matemática, artística e científica.
da produção tecnológica e das
manifestações artísticas.

F4 - Compreender e valorizar os
fundamentos da cidadania e da H16 – Identificar em diferentes
democracia, de forma a favorecer uma documentos históricos os fundamentos da H17 – Caracterizar as lutas sociais, em
atuação consciente do indivíduo na cidadania e da democracia presentes na prol da cidadania e da democracia, em
sociedade. vida social. diversos momentos históricos.
H22 – Investigar criticamente o
H21 – Identificar em diferentes
F5 - Compreender o processo histórico significado da construção e divulgação
documentos históricos e geográficos
de ocupação do território e a formação dos marcos históricos relacionados
vários movimentos sociais brasileiros e
da sociedade brasileira. à história da formação da sociedade
seu papel na transformação da realidade.
brasileira.
H27 – Caracterizar formas espaciais
F6 – Interpretar a formação e
H26 – Identificar representações do criadas pelas sociedades, no processo
organização do espaço geográfico
espaço geográfico em textos científicos, de formação e organização do espaço
brasileiro, considerando diferentes
imagens, fotos, gráficos, etc. geográfico, que contemplem a dinâmica
escalas.
entre a cidade e o campo.

CV - Recorrer aos conhecimentos


CIII - Selecionar, organizar, relacionar, CIV - Relacionar informações,
desenvolvidos para elaboração de
interpretar dados e informações representadas em diferentes formas,
propostas de intervenção solidária
representados de diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em
na realidade, respeitando os valores
para tomar decisões e enfrentar situações concretas, para construir
humanos e considerando a diversidade
situações-problema. argumentação consistente.
sociocultural.

H18 – Relacionar os fundamentos da H19 – Discutir situações da vida H20 – Selecionar criticamente propostas
cidadania e da democracia, do presente cotidiana relacionadas a preconceitos de inclusão social, demonstrando respeito
e do passado, aos valores éticos e morais étnicos culturais, religiosos e de qualquer aos direitos humanos e à diversidade
na vida cotidiana. outra natureza. sociocultural.

H25 – Avaliar propostas para superação


H23 – Interpretar o processo de ocupação
H24 – Analisar relações entre as dos desafios sociais, políticos e
e formação da sociedade brasileira,
sociedades e a natureza na construção do econômicos enfrentados pela sociedade
a partir da análise de fatos processos
espaço histórico e geográfico. brasileira na construção de sua identidade
históricos.
nacional.

H30 – A partir de interpretações


cartográficas do espaço geográfico
H28 – Analisar interações entre sociedade H29 – Discutir diferentes formas de uso
brasileiro, estabelecer propostas de
e natureza na organização do espaço e apropriação dos espaços, envolvendo a
intervenção solidária para consolidação
histórico e geográfico, envolvendo a cidade e o campo, e suas transformações
dos valores humanos e de equilíbrio
cidade e o campo. no tempo.
ambiental.

Didatismo e Conhecimento 57
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)

CII - Construir e aplicar conceitos das


várias áreas do conhecimento para a
CI - Dominar a norma culta da Língua
compreensão de fenômenos naturais,
Portuguesa e fazer uso das linguagens
de processos histórico-geográficos,
matemática, artística e científica.
da produção tecnológica e das
manifestações artísticas.

H32 – Identificar a presença dos recursos


F7 - Perceber-se integrante, H31 – Associar as características do
naturais na organização do espaço
dependente e agente transformador do ambiente
geográfico, relacionando transformações
ambiente. (local ou regional) à vida pessoal e social.
naturais e intervenção humana.

H36 - Identificar aspectos da realidade


F8 - Compreender a organização H37 – Caracterizar formas de circulação
econômico-social de um país ou região,
política e econômica das sociedades de informação, capitais, mercadorias e
a partir de indicadores socioeconômicos
contemporâneas. serviços no tempo e no espaço.
graficamente representados.

F9 - Compreender os processos de
H41 - Identificar os processos de
formação das instituições sociais e H42 - Estabelecer relações entre os
formação das instituições sociais e
políticas a partir de diferentes formas processos de formação das instituições
políticas que regulamentam a sociedade e
de regulamentação das sociedades e do sociais e políticas.
o espaço geográfico brasileiro.
espaço geográfico.

CV - Recorrer aos conhecimentos


CIII - Selecionar, organizar, relacionar, CIV - Relacionar informações,
desenvolvidos para elaboração de
interpretar dados e informações representadas em diferentes formas,
propostas de intervenção solidária
representados de diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em
na realidade, respeitando os valores
para tomar decisões e enfrentar situações concretas, para construir
humanos e considerando a diversidade
situações-problema. argumentação consistente.
sociocultural.

H34 - Analisar criticamente as H35 – Selecionar procedimentos e uso


H33 - Relacionar a diversidade
implicações sociais e ambientais do uso de diferentes tecnologias em contextos
morfoclimática do território brasileiro
das tecnologias em diferentes histórico geográficos específicos, tendo
com a distribuição dos recursos naturais.
Contextos histórico geográficos. em vista a conservação do ambiente.

H40 – Comparar organizações políticas,


H39 – Discutir formas de propagação
H38 - Comparar os diferentes modos de econômicas e sociais no mundo
de hábitos de consumo que induzam
vida das populações, utilizando dados contemporâneo, na identificação de
a sistemas produtivos predatórios do
sobre produção, circulação e consumo. propostas que propiciem equidade na
ambiente e da sociedade.
qualidade de vida de sua população.

H43 - Compreender o significado H44 – Discutir situações em que os H45 – Comparar propostas e ações
histórico das instituições sociais direitos dos cidadãos foram conquistados, das instituições sociais e políticas, no
considerando as relações de poder, a mas não usufruídos por todos os enfrentamento de problemas de ordem
partir de situação dada. segmentos sociais. econômico-social.

Didatismo e Conhecimento 58
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
V. Orientação para o trabalho do professor Abre o capítulo a declaração de 3.000 chefes de 140 tribos
indígenas, divulgada durante as comemorações dos 500 anos do
História e Geografia “descobrimento”, ocorrida em abril de 2000. Nesse documento,
Ensino Fundamental os índios exigem que suas terras sejam demarcadas até o final do
Capítulos I ao IX ano e que, nas escolas, seja ensinada a história do país, levando
em conta a existência milenar destas populações. Esse texto serve
Neste bloco, são apresentadas sugestões de trabalho para que para introduzir a questão indígena e, particularmente, o direito à
o professor possa orientar-se no sentido de favorecer aos seus alu- posse de suas terras tradicionais. Sugere-se, ainda, a substituição
nos o desenvolvimento das competências e habilidades que estru- da ideia de descobrimento por conquista, a partir da carta de Pero
turam a avaliação do ENCCEJA – História e Geografia – Ensino Vaz de Caminha que descreve as terras, os povos e povoações en-
Fundamental. contrados na América pela esquadra de Cabral. Na sequência, o
Estes textos complementam o material de orientação de estu- aluno tem a oportunidade de estudar a expansão da colonização
dos dos estudantes e ambos podem ganhar seu real significado se portuguesa e a fixação das fronteiras da Colônia englobando terras
incorporados à experiência do professor e à bibliografia didática já dos índios.
consagrada nesta área. O capítulo finaliza o tema retomando a situação das terras in-
dígenas, hoje, com a exposição de um protesto pela demarcação
Confrontos sociais e território nacional de suas terras.
Dora Shellard Corrêa Cada uma das cinco habilidades foi, particularmente, contem-
plada pelos seguintes meios: Identificar diferentes formas de re-
O papel e o lugar das sociedades indígenas no presente, pas- presentação de fatos e fenômenos histórico-geográficos expressos
sado e futuro do Brasil ainda é um tema de especialistas. Pouco em diferentes linguagens.
se estuda sobre as populações indígenas nas escolas e o que se Atendendo ao que propõe essa habilidade, foram utilizadas di-
estuda acaba ficando restrito ao contato entre portugueses e índios ferentes formas de representação de fenômenos histórico-geográ-
no século XVI. ficos: documentos e escritos de época, mapas, artigos de jornais,
A luta dos índios contra a invasão de suas terras pelos não depoimentos, narrativa analítica.
índios, iniciada em 1500 com a chegada dos europeus, ainda está Reconhecer transformações temporais e espaciais na realida-
em processo. Essa luta é parte da história da formação do território de. Essa habilidade é contemplada na discussão do processo de
brasileiro. expansão da colonização portuguesa e do seu descompasso com o
Todavia, a questão indígena tem sido esquecida por autores de avanço das fronteiras definidas por acordos internacionais.
livros didáticos ao tratarem da constituição do território nacional. Interpretar realidades históricas e geográficas estabelecendo
Os livros, em geral, resumem o processo de formação do território relações entre diferentes fatos e processos sociais. Essa habilidade
brasileiro a uma série de tratados firmados entre Portugal e Espa- é observada, fundamentalmente, através da ligação das reivindi-
nha e, após a cações indígenas atuais com o processo de formação do território
Independência, entre o Brasil e os países vizinhos. Não dis- brasileiro.
cutem as representações de outras épocas, nas quais as fronteiras Comparar diferentes explicações para fatos e processos his-
brasileiras, durante séculos, foram apenas teóricas. Ou seja, eram tóricos e/ou geográficos. Essa habilidade está sendo considerada
demarcadas nos mapas. Porém, as terras não eram efetivamente quando, através de diferentes documentos - declaração de chefes
ocupadas por colonizadores europeus. Grande parte do território indígenas, carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500, e diário
brasileiro encerrava terras não mapeadas, adjetivadas como desco- de uma entrada no sertão de Guarapuava - discute-se a idéia de
nhecidas e dominadas por povos indígenas. As fronteiras políticas descobrimento e de conquista. Considerar o respeito aos valores
que demarcavam o território brasileiro incluíam território indíge- humanos e a diversidade sociocultural nas análises de fatos e pro-
na, sobre o qual Portugal e, depois, o Estado brasileiro, não tinham cessos históricos e geográficos. Essa habilidade é conferida atra-
domínio político, militar e intelectual. vés da investigação do processo de invasão das terras indígenas,
Essa situação ambígua subsiste hoje de outra maneira. São re- da afirmação da importância da terra para a sobrevivência física
conhecidos, inclusive constitucionalmente (Constituição de 1988, e cultural do índio e da apresentação de direitos constitucionais
Art. 231), os direitos originários dos índios sobre as terras que tra- dos índios.
dicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger O capítulo está assim organizado a partir de um roteiro lógico
e fazer respeitar todos os seus bens. Entretanto, a morosidade na que persegue as cinco habilidades descritas. Primeiro, é apresenta-
demarcação e o desleixo com a questão indígena têm viabilizado da ao aluno a situação problema: o território brasileiro e a reivindi-
a contínua invasão das terras indígenas por fazendeiros e grileiros. cação dos índios por suas terras.
Os índios, juntamente com várias entidades que os apóiam, têm Na sequência, essa luta atual é apresentada como uma ques-
buscado divulgar essa situação à sociedade brasileira. tão histórica envolvendo domínio de territórios e, portanto, como
uma questão que solicita deles reflexões sobre transformações do
Desenvolvendo a competência território brasileiro no tempo e no tempo espaço. No espaço a pers-
pectiva de diferentes épocas, o aluno é instigado a analisar docu-
O capítulo Confrontos sociais e território nacional território mentos históricos, escolhidos especialmente para ter a experiência
nacional discute o processo de formação do território brasileiro de coletar e analisar informações contidas em diferentes lingua-
sobre terras de índios. Parte da questão indígena como situação- gens (carta, relato oral, mapa...). Os fatos apresentados têm como
-problema. propósito estimulá-lo a relacionar acontecimentos no tempo, per-

Didatismo e Conhecimento 59
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
cebendo processos sociais e políticos que modelaram as fronteiras Como vimos na discussão sobre migração e transportes, o es-
nacionais, e a construir argumentos que incluem a luta, a conquista paço geográfico se altera devido à ampliação geográfico das ati-
e a resistência de populações que, até hoje, têm a sua sobrevivên- vidades econômicas. Percebemos que para atender aos interesses
cia ameaçada. Finalmente, através de questões e do próprio texto, do desenvolvimento capitalista no Brasil, principalmente após os
o aluno é orientado a levar em consideração a diversidade socio- anos 1950, o
cultural existente no Brasil. Estado atuou na preparação do território construindo uma in-
fraestrutura de transportes, energia e comunicação.
Bibliografia Nota-se que a transformação do território não foi por igual.
Muitas regiões tiveram sua ocupação acentuada após os anos
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO – CIMI. Ou- 1970. Isso também ocorreu na Amazônia e deveu-se à expansão
tros 500: construindo uma nova das atividades agropecuárias, causando inúmeros impactos sociais
história. São Paulo: Salesiana, 2001. e ambientais à região.
CUNHA, M. C. da (Org.). História dos índios no Brasil. 2. ed. Em resumo, o capítulo apresenta:
São Paulo: 1. A importância dos transportes na organização do território
Companhia das Letras: Fapesp, 1998. 611 p. brasileiro, que é marcado pelas ações humanas ao longo da sua
DONIZETE, L.; GRUPIONI, B. (Org.). Índios no Brasil. São história. O texto trata mais do transporte rodoviário e faz algumas
Paulo: Global, 1993. 279 p. comparações com outros meios de transporte em outros países.
PREZIA, B.; HOORNAERT, E. Brasil indígena: 500 anos de 2. Os movimentos migratórios da população que aumentaram
resistência. após a construção do sistema de transportes no Brasil, principal-
São Paulo: FTD, 2000. 263 p. mente o rodoviário. As diferentes atividades econômicas que in-
RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: o processo de integra- centivaram o deslocamento de milhares de pessoas.
ção dos índios no Brasil 3. Os danos que ocorreram ao meio ambiente devido ao cres-
moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. 495 p. cimento das atividades econômicas, especialmente aquelas vincu-
RIBEIRO, B. O índio na história do Brasil. 8. ed. São Paulo: ladas ao desenvolvimento da agropecuária na Amazônia.
Global, 1997. 125 p. O objetivo do capítulo é proporcionar ao aluno, o entendi-
(História Popular, 12). mento da organização do espaço geográfico brasileiro por meio
SILVA, A. L.; GUPIONI, L. D. A temática indígena na escola: da problematização sobre:
novos subsídios para
professores de 1º e 2º graus. Brasília, DF: MEC, 1995. 575 p. - Os transportes;
ZENUN, K. H.; ADISSI, V. M. A. Ser índio hoje. 2. ed. São - A migração;
Paulo: Loyola, 1998. 152 p. - Os problemas socioambientais.
(História Temática Retrospectiva).
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA
Mudanças no espaço Geográfico do Brasil
Gilberto Pamplona da Costa A competência foco do capítulo é: Compreender o papel da
sociedade brasileira no processo de produção e organização do Es-
A compreensão da maneira como o espaço se organiza é feita, paço Geográfico.
também, através da observação de fotos, gráficos e tabelas. Ela está desdobrada nas seguintes habilidades:

A ideia é possibilitar ao aluno a compreensão de que o territó- - Identificar fenômenos e fatos histórico-geográficos e suas
rio brasileiro mudou, rapidamente, nos últimos 50 anos. O trans- dimensões espaciais e temporais, utilizando mapas e gráficos.
porte rodoviário foi praticamente imposto com a industrialização. - Analisar, geograficamente, as características e dinâmicas dos
O Governo Federal, principalmente, preparou o território com ro- fluxos populacionais, relacionando-as com a constituição do es-
dovias, comunicação e energia, visando a incentivar a vinda de paço.
novas indústrias, especialmente as do setor automobilístico. Além - Interpretar situações histórico geográficas da sociedade bra-
da ênfase no transporte rodoviário, outros meios de transporte são sileira referentes à constituição do espaço, do território, da paisa-
discutidos de forma mais reduzida, tais como as ferrovias e as hi- gem e/ou do lugar.
drovias. - Comparar os processos de formação socioeconômicos e ge-
ográficos da sociedade brasileira.
O objetivo central nessa discussão é entender como a infraes- - Comparar propostas de soluções para problemas de natureza
trutura desenvolvida possibilitou a circulação de pessoas e produ- socioambiental, respeitando valores humanos e a diversidade so-
tos pelo Brasil. Por isso, usamos como situação-problema a greve ciocultural..
dos caminhoneiros.
Essas habilidades foram relacionadas aos seguintes conteúdos:
A continuação dessa discussão se dá com a migração interna
no Brasil. O texto favorece a análise dos movimentos migratórios 1. Os transportes no Brasil: especialmente o rodoviário de cargas.
da população, que só foram possíveis em número elevado devido
à expansão do sistema de transporte. Isso resultou em inúmeras 2. A ação do Estado na construção da infraestrutura do sistema
mudanças no espaço geográfico. de transporte.

Didatismo e Conhecimento 60
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
3. A migração interna no Brasil – causas e consequências. Para atingirmos tal objetivo é necessário proporcionar ao alu-
4. A expansão da fronteira agrícola na Amazônia. no competência para desenvolver cinco principais habilidades:
5. Os problemas ambientais e sociais decorrentes da ocupação - Identificação do que é patrimônio – através do trabalho com
da Amazônia. diferentes elementos de nosso patrimônio, como depoimentos,
6. A formação de reservas extrativistas como solução para os construções e costumes.
problemas sociais e ambientais na Amazônia. - Reconhecimento do patrimônio em diferentes sociedades - o
patrimônio cultural de um determinado grupo (no caso, um grupo
Podemos destacar algumas sugestões metológicas: remanescente de quilombolas) e suas relações com elementos cul-
- Leitura do texto do aluno. turais de outros grupos.
- Identificar, no lugar onde mora, como os transportes estão - Interpretação do significado das manifestações populares –
organizados. Qual deles é prioritário? Como o poder público atua procura de possíveis explicações para as diferentes manifestações
para resolver os problemas relativos ao deslocamento de pessoas citadas no capítulo.
e produtos?
- Comparação entre as diferentes manifestações – reconhe-
- Observar os mapas para identificar a organização dos trans-
cimento da singularidade das manifestações de um determinado
portes no Brasil.
grupo e comparação com outras manifestações, por vezes comuns
Se possível, escolher um atlas para comparar o sistema de
transporte do Brasil com outros países. ao nosso cotidiano.
- Pesquisar em jornais e revistas notícias relacionadas ao - Importância da preservação – na reconstrução do caminho
transporte de cargas e entrevistar pessoas para confrontar com as de um grupo, criação de sua identidade cultural, e como isso é
opiniões problematizadas no capítulo. alcançado com a retomada da memória.
- Fazer mapas para identificar quais regiões têm mais rodo-
vias, hidrovias ou ferrovias. DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA
- Investigar com parentes e amigos para saber por que as pes-
soas migraram da sua terra natal. O que atraiu a vinda de milhares A opção pelo desenvolvimento e compreensão da importância
de pessoas para as grandes cidades? Por que milhares de pessoas do patrimônio cultural passa, no capítulo, pela preocupação em
migraram para a Amazônia? utilizar situações didáticas com questionamentos que estimulem o
- Verificar se na comunidade há algum projeto de preservação leitor a refletir sobre seu conhecimento anterior e, através de no-
ambiental e como as pessoas participam dele. vas informações, confrontar dados e elaborar novo conhecimen-
- Pesquisar como as cooperativas atuam na região. to. Dessa forma, optamos pela criação de uma situação-problema
- Pesquisar como era a ocupação da Amazônia antes da expan- mais ampla. No caso, o caminho a ser percorrido pelos remanes-
são da fronteira agrícola. centes de uma determinada área de quilombo no Vale do Ribeira,
- Tentar atualizar os dados do capítulo, através do uso da in- para adquirirem seu direito à posse da terra.
ternet. A partir dessa situação-problema mais ampla, foram sendo
criados novos questionamentos, ao mesmo tempo em que foram
Bibliografia sendo fornecidos aos leitores dados e informações que lhes permi-
tam construir a solução para o problema levantado.
BECKER, B. Amazônia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991. 112 p. Essa opção pelo questionamento e pelo fornecimento de da-
(Série Princípios, 192). dos para sua resolução procura atender a uma preocupação cada
BIONDI, A. O Brasil privatizado: um balanço das privatiza- vez maior no quadro da educação brasileira: desenvolver compe-
ções. São Paulo: FundaçãoPerseu Abramo, 1999. 48 p.
tências e habilidades que, de algum modo, contribuam para os es-
CENTRO DE ESTUDOS MIGRATÓRIOS. Migrações no
tudantes melhor analisarem, compreenderem, posicionarem-se e
Brasil: o peregrinar de um povo semterra. São Paulo: Paulinas,
atuarem na sociedade.
1986. 82 p. (O povo quer viver, 17)
GIANSANTI, R. O desafio do desenvolvimento sustentável. Por isso, a escolha de situações-problema e questionamentos
São Paulo: Atual, 1998. (Série Meio Ambiente). instigam soluções, por meio da mobilização de informações signi-
PORTELA, F. Secas no Nordeste. São Paulo: Ática, 1987. 32 ficativas. É importante salientar que edificações, objetos da cultura
p. (Viagem pela Geografia). material, tecnologias e saberes e manifestações populares servem
______. A Amazônia. São Paulo: Ática, 1987. (Viagem pela como forma de investigação na coleta de informações a respeito
Geografia). do contexto histórico-temporal da sociedade que o criou e usou,
ROSS, J. L. S. Os fundamentos da Geografia da natureza. In: transformando os gostos, valores e hábitos de um grupo social.
______ (Org.). Geografia do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995. 546
p. (Didática, 3). Ao trabalhar objetos e edificações, valorizar a observação e o
VALIM, A. Migrações: da perda da terra à exclusão social. questionamento:
São Paulo: Atual, 1997. 56 p. (Espaço & Debate). – De que material é feito?
– Por que foi feito desse material?
O valor da memória – Está completo?
Denise Gonçalves de Freitas – Foi alterado, adaptado ou consertado?
– Onde foi feito?
O capítulo foi elaborado tendo por objetivo o reconhecimento – Quem o fez?
da importância do patrimônio cultural, da preservação da memória – Para que finalidade?
e das identidades nacionais, como uma maneira de desenvolver o – Como foi ou é usado?
respeito à diversidade cultural, tão rica em nosso país. – O que a forma ou decoração indicam?

Didatismo e Conhecimento 61
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
O capítulo está dividido em alguns subtítulos que enfatizam LEMOS, C. A. C. O que é patrimônio histórico. 5. ed. São
determinado tema, tendo, como objetivo maior, responder à ques- Paulo: Brasiliense, 2000. 115 p. (Coleção primeiros passos).
tão-problema principal: a posse da terra pelos remanescentes de COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO E ASSOCIA-
quilombo do Vale do Ribeira. ÇÃO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUI-
Destacamos os seguintes tópicos: LOMBOS DO MUNICÍPIO DE ORIXIMINÁ. Minha terra: meus
direitos, meu passado, meu futuro. [S.l.: s.n.: 199-?].NEVES, M.
1. Terra de quilombolas – Utilizando mapas, documentos e de F. R. das. Documentos sobre a escravidão no Brasil. São Paulo:
imagens, o texto trabalha com o aluno o significado da escravidão, Contexto, 1996. (Textos e documentos, 6).
o que são os quilombos e a resistência negra. Pode ser feito um OLIVEIRA, L. A. (Org.). Quilombos: a hora e a vez dos so-
aprofundamento do tema com a inclusão de imagens de Debret breviventes. São Paulo: Comissão Pró-índio de São Paulo, 2001.
e Rugendas (ver bibliografia) e documentos que mostrem outras ORIÁ, R. Memória e ensino de História. In: BITTENCOURT,
formas de resistência à escravidão (ver bibliografia – Documentos Circe et al. (Org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo:
sobre a escravidão). Contexto, 1998.
2. Os quilombos nos dias de hoje – O texto apresenta a pos- PERRENOUD, P. Construir as competências desde a escola.
sibilidade de legalização de áreas remanescentes de quilombos e Porto Alegre: Artmed,
reflete sobre as possibilidades de um grupo provar essa descen- 1997. 90 p. Tradução de Bruno Charles Magne.
dência. Pode ser realizada uma pequena investigação com o aluno, TERRA, A. História e memória. Bolando aula de História.
com base em seu conhecimento, sobre a sua história pessoal ou São Paulo, v. 2, n. 3, maio 1999.
sobre a história de seu local de origem.
3. Investigando a história do quilombo do Vale do Ribei- Cidadania e democracia
ra – Utilizando um depoimento oral e uma construção, a Igreja Antônio Aparecido Primo – Nico
de Nossa Senhora do Rosário, o texto propõe a reflexão sobre a
descendência dos moradores da região. A Igreja existente no lo- Vivemos num país em que o povo mais simples e pobre tem
cal permitiu um estudo sobre as manifestações religiosas. Pode ser procurado se organizar para defender seus interesses, como cida-
interessante, nesse momento, acrescentar outras formas de mani- dãos, para tornar nosso regime político mais democrático. Hoje,
por exemplo, existem mais organizações populares independentes
festações populares no Brasil. Por exemplo: Maracatu, Cateretê,
do Estado e de partidos políticos do que na metade do século XX.
BoiBumbá etc.
Todavia, apesar desses avanços, a atitude de não participação
4. No modo de vida, uma forma de investigação – O texto
ainda é forte entre os brasileiros. É comum vermos pessoas aceita-
ressalta a particularidade do modo de vida da comunidade qui-
rem passivamente o desrespeito aos direitos do cidadão por esferas
lombola, destacando como esse modo de vida, esse saber e saber
privadas e públicas.
fazer possibilitam uma identidade cultural. Pode ser interessante
Partindo dessas constatações, este capítulo pretende construir
salientar a questão da identidade e diversidade cultural e trabalhar
com os jovens e adultos os conceitos de cidadania e democracia.
exercícios para o aluno refletir sobre esses dois conceitos, para que Um dos principais objetivos é que os estudantes apreendam infor-
assuma uma postura de respeito à diversidade. mações e procedimentos que lhes possibilitem questionar a reali-
5. Identidade cultural: resgate através da memória – Ressal- dade, identificando problemas e possíveis soluções, conhecendo
tando os principais conceitos trabalhados: formas político-institucionais e organizações da sociedade civil
Memória, identidade cultural, diversidade cultural, patrimô- que permitam atuar sobre a realidade. Outra finalidade é estimular
nio cultural, manifestações populares e culturais. os alunos a refletir sobre as atitudes que eles e outros cidadãos bra-
6. Nosso patrimônio cultural - Fechamento do capítulo. As ati- sileiros têm assumido na vida cotidiana. Algumas atitudes foram
vidades propostas no capítulo têm o objetivo de desenvolver as ha- questionadas e referências históricas foram buscadas para aprofun-
bilidades já apresentadas. No final do texto, estão sendo propostas dar a compreensão das múltiplas possibilidades de ser um cidadão
três atividades que acrescentam outras formas de manifestações ativo no presente.
culturais para o aluno e ressaltam alguns conceitos estudados.
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA
Bibliografia
Destacamos as seguintes habilidades:
ALMEIDA, A. M.; VASCONCELLOS, Camilo de Mello. Por
que visitar museus. In: - Identificar, em diferentes documentos históricos, os funda-
BITTENCOURT, C. et al. (Org.). O saber histórico na sala de mentos da cidadania e da democracia presentes na vida social.
aula. São Paulo: Contexto, - Caracterizar as lutas sociais, em prol da cidadania e da de-
1998. (Repensando o ensino). mocracia, em diversos momentos históricos.
BITTENCOURT, C. et al. (Org.). O saber histórico na sala de - Relacionar os fundamentos da cidadania e da democracia,
aula. São Paulo: Contexto, do presente e do passado, aos valores éticos e morais na vida co-
1998. 175p. (Repensando o ensino). tidiana.
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Quilombos do Bra- - Discutir situações da vida cotidiana relacionadas a precon-
sil. Brasília, DF: Ministério da Cultura, 2000. ceitos étnicos, culturais, religiosos e de qualquer outra natureza.
HORTA, M. de L. P.; GRUNBERG, E.; MONTEIRO, A. Q. - Selecionar criticamente propostas de inclusão social, de-
Guia básico de educação patrimonial. Brasília, DF: Instituto do monstrando respeito aos direitos humanos e à diversidade socio-
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1999. cultural.

Didatismo e Conhecimento 62
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
O capítulo procura relacionar o mundo do trabalho com o da Bibliografia
cidadania e da democracia e, também, explorar a natureza e o ca-
ráter das matérias jornalísticas na imprensa escrita. BENEVIDES, M. V. de M. A cidadania ativa: referendo ple-
biscito e iniciativa popular.
Em síntese, o capítulo trata dos seguintes itens: 3. ed. São Paulo: Ática, 1998. 208 p. (Ensaios, 136).
- Construção dos conceitos de leis trabalhistas, cidadania e BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Ensino Fun-
democracia. damental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto
- Cidadania e democracia através de jornais: o projeto de fle- ciclos: História. Brasília, DF: MEC, 1998. 108 p.
xibilização da CLT. ______. Proposta curricular para a educação de jovens e adul-
- Tipos e características das matérias jornalísticas. tos: segundo segmento do ensino fundamental: 5ª a 8ª série. Bra-
- Conflitos sociais, cidadania e democracia: relações presente sília, DF: MEC, 2002. COLEÇÃO NOSSO SÉCULO. São Paulo:
e passado. Abril Cultural, 1985. 10 v.
- Comentários finais e glossário. FARIA, M. A. O jornal na sala de aula. 2. ed. São Paulo: Con-
texto, 1991. 128 p. (Repensando a língua portuguesa).
Como os conteúdos são compostos de conceitos, informações, FAUSTO, B. História do Brasil. 8. ed. São Paulo: Edusp,
ideias, procedimentos e atitudes, sugerimos: 2000. 660 p. (Didática, 1).
PETTA, N. L. de. A fábrica e a cidade até 1930. 7. ed. São
- Identificação dos principais direitos e deveres dos cidadãos Paulo: Atual, 1995. 39 p. (A vida no tempo).
e das condições para existir um regime democrático através de di-
ferentes tipos de matérias jornalísticas ligadas, principalmente, ao Movimentos políticos pelos direitos dos índios
tema “Leis trabalhistas”. Adriane Costa da Silva
- Análise das lutas dos trabalhadores brasileiros para conquis-
tar cidadania e democracia no presente e na Primeira República, A ocupação do território e formação da sociedade brasileira
procurando construir esses conceitos. envolvem questões ligadas às disputas entre os primeiros habi-
- Estabelecimento de uma relação entre os fundamentos de- tantes do Brasil (índios) e os conquistadores e seus descendentes,
senvolvidos anteriormente e a recente discussão sobre o Projeto de (europeus e brasileiros) pelas terras onde vivemos hoje. Esse pro-
Flexibilização das leis trabalhistas. Outros temas ligados à situa- cesso histórico abrange outros temas, além das lutas pelas terras e
ção dos trabalhadores podem ser escolhidos, a fim de aprofundar e a resistência à escravização, na história de contato entre índios e
ampliar estas relações. Nesse processo, é importante que os alunos não índios.
sejam orientados a selecionar, organizar, relacionar e interpretar No capítulo, destacamos esses dois aspectos da história de
dados e informações de diferentes formas, para tomar decisões e contato, porque são questões importantes para refletirmos sobre a
enfrentar situações-problema. construção da sociedade brasileira, no presente e no passado.
- A partir da análise de diferentes tipos de matérias jornalísti- As lutas dos povos indígenas para verem os seus direitos reco-
cas, procurar relacionar conceitos, informações e ideias para cons- nhecidos e respeitados continuam a acontecer no presente. Tais lu-
truir argumentação consistente. tas estão ligadas, também, à construção das identidades dos brasi-
- Aprofundamento dos estudos sobre os conflitos sociais na leiros e dos índios. Essas identidades definem-se a partir das seme-
Primeira República e comparação entre presente e passado, para lhanças e diferenças entre índios e não índios. “Índio” é um nome
que os alunos possam elaborar propostas de intervenção solidária genérico que os conquistadores deram aos povos que habitavam a
na realidade. América, muito diferentes entre si. Pataxó, Xavante, Yanomami,
Terena, Guarani, Tupinambá são nomes de grupos indígenas que
Podemos indicar algumas propostas metodológicas: falam línguas diferentes e têm modos de vida diferentes.
- Leitura, compreensão e interpretação de matérias jornalís- As identidades dos povos indígenas também são definidas pe-
ticas do presente e do passado, como reportagens, artigos de opi- las semelhanças e diferenças entre esses grupos.
nião, entrevistas, fotos etc. Durante muitos anos, as pessoas pensaram que os índios de-
- Leitura, compreensão e construção de tabelas e de linhas do sapareceriam ou se transformariam em brasileiros. Por isso, não
tempo. precisavam de terra, mas de conviverem junto com os não índios
- Escrita de textos relacionados ao tema. para aprender a viver igual a eles.
- Comparação entre diferentes matérias jornalísticas sobre um Entretanto, os povos indígenas tinham outras expectativas
mesmo assunto, a fim de concretizar o fato de que elas e outros para o futuro. Eles mesmos queriam dizer como imaginavam esse
tipos de documentos históricos constituem versões sobre a reali- futuro e não apenas ouvir as explicações dos não índios sobre as
dade. mudanças em suas sociedades.
- Comparação entre diferentes versões históricas sobre o mes- Tinham suas próprias ideias e queriam contá-las para os não
mo tema. índios. As reivindicações desses povos foram transformadas em lei
- Discussões em grupo e debates sobre temas polêmicos rela- federal e estão garantidas na Constituição brasileira.
cionados à cidadania e democracia, como o Projeto de Flexibiliza- Para que isso acontecesse, os povos indígenas tiveram e têm o
ção das leis trabalhistas. apoio de alguns aliados não índios.
- Resolução de testes ligados ao tema. Embora mostrem muito interesse pela medicina, pela tecno-
- Identificação de problemas vividos pelos alunos, na busca de logia, pela educação dos não índios, os grupos indígenas querem
soluções e formas de atuação cidadã na comunidade e na socieda- manter o seu modo de viver e pensar, que é muito diferente do
de em geral. nosso modo de viver e pensar.

Didatismo e Conhecimento 63
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Alguns não índios mudaram o pensamento de que os índios NOVAES, A. (Org.). Tempo e História. São Paulo: Compa-
iriam desaparecer. As transformações que aconteceram e aconte- nhia das Letras, 1992. 477 p.
cem com os grupos indígenas não são mais um sinal do seu desa- SCHWARCZ, L. M.; QUEIROZ, R. S. (Org.). Raça e diversi-
parecimento inevitável. Atualmente, algumas pessoas pensam que dade. São Paulo: Estação Ciência: Edusp, 1996. 315 p.
o jeito de viver desses povos é dinâmico, assim como o modo de SIMÕES, J. A.; MACIEL, L. A. (Coord.). Pátria amada es-
vida dos outros povos do mundo. quartejada. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. 160
Nem todas as pessoas da nossa sociedade veem os índios com p. (Registro, v. 15).
os mesmos olhos. Enquanto para algumas eles são os homens mais
próximos da natureza, para outras eles são considerados uma ame- A cidade e o campo no Brasil contemporâneo
aça à preservação de plantas e bichos dos parques. Muitas pensam Roberto Giansanti
que eles não são mais índios. As atividades propostas no capítulo
procuram criar oportunidades para o estudante refletir sobre essas O objetivo do capítulo é apresentar e discutir aspectos da for-
ideias. mação e da organização do espaço geográfico brasileiro contem-
porâneo, em diferentes escalas, destacando o campo e a cidade:
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA sua constituição histórica e geográfica, estrutura interna, relações
sociais, problemas e desafios futuros. Este é o fio condutor para
Destacamos as seguintes habilidades: que o estudante problematize, compreenda, explique e proponha
- Identificar em diferentes documentos históricos e geográfi- formas de intervenção solidária para o campo e a cidade. Neste
cos vários movimentos sociais brasileiros e seu papel na transfor- percurso, a ideia é que ele discuta situações-problema, selecione e
mação da realidade. relacione informações, mobilize conhecimentos e realize a leitura
- Investigar, criticamente, o significado da construção e divul- e interpretação de textos, mapas, tabelas ou fotografias como modo
gação dos marcos históricos relacionados à história da formação de reflexão sobre a realidade em que vive. O capítulo está organi-
da sociedade brasileira. zado em três partes:
- Interpretar o processo de ocupação e formação da sociedade
brasileira, a partir da análise de fatos e processos históricos. 1. Mudanças na distribuição da população urbana e rural do
- Analisar relações entre as sociedades e a natureza na constru- Brasil, que analisa questões sobre a urbanização brasileira e as
ção do espaço histórico e geográfico. recentes mudanças nas funções e atividades no campo, à luz do
- Avaliar propostas para superação dos desafios sociais, polí- processo da modernização brasileira.
ticos e econômicos enfrentados pela sociedade brasileira na cons- 2. Cidades e campo no Brasil moderno: distribuição regional,
trução de sua identidade nacional. que busca reconhecer e interpretar o papel do campo e da cidade
em meio a desigualdades regionais e sociais no país.
É importante debater os conhecimentos que os alunos já pos- 3. O uso e a apropriação dos recursos naturais no campo e
suem sobre os grupos indígenas. O objetivo das imagens, textos na cidade, que propõe a análise das interações entre sociedade e
e atividades é possibilitar reflexões a partir de diferentes pontos natureza e a avaliação crítica de formas de uso e apropriação do
de vista sobre os contatos entre os povos indígenas e a sociedade espaço geográfico.
brasileira. O desenvolvimento da competência prevista organiza-se a
As histórias do contato entre alguns povos indígenas e os partir das cinco habilidades descritas a seguir:
não índios são contadas através de iconografia (fotos, gravuras, - Identificar representações do espaço geográfico em textos
mapas), documentos escritos de várias épocas (leis, depoimentos, científicos, imagens, fotos, gráficos, diagramas etc.
cartas, entrevistas etc), texto explicativo e atividades. - Caracterizar formas espaciais criadas pelas sociedades, no
A análise das imagens mereceu grande destaque nas ativida- processo de formação e organização do espaço geográfico, que
des, devido ao papel que elas desempenham nas sociedades atuais. contemplem a dinâmica entre a cidade e o campo.
As atividades trazem várias orientações sobre interpretação de de- - Analisar interações entre sociedade e natureza na organi-
senhos, fotografias e mapas. zação do espaço histórico e geográfico, envolvendo a cidade e o
campo.
Bibliografia - Discutir diferentes formas de uso e apropriação dos espaços,
envolvendo a cidade e o campo e suas transformações no tempo.
ARAÚJO, H. R. (Org.). Tecnociência e cultura. São Paulo: - A partir de interpretações cartográficas do espaço geográfico
Estação Liberdade, 1998. brasileiro, estabelecer propostas de intervenção solidária para con-
BRASIL. Ministério da Educação e Desporto. Secretaria de solidação dos valores humanos e de equilíbrio ambiental.
Ensino Fundamental. Índios no Brasil. Brasília, DF: [19--?]. (Ca-
dernos da TV Escola, 3). DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA
CUNHA, M. C. (Org.). História dos índios no Brasil. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 611 p. O domínio de linguagens como texto escrito, tabelas, mapas
GRUPIONI, L. D. B. (Org.). Índios no Brasil. Brasília, DF: e fotografias – com o objetivo de interpretar diferentes represen-
Global, 1993. 279 p. tações do espaço geográfico brasileiro – percorre o capítulo como
GRUPIONI, L. D. B.; SILVA, A. L. A temática indígena na um todo, com ênfase em tabelas na primeira parte, mapas, na se-
escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília, gunda, e fotografias, na última. Para a gradativa apropriação des-
DF: MEC, 1995. 575 p. tas linguagens pelo estudante, sugerimos etapas de identificação e

Didatismo e Conhecimento 64
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
reconhecimento de seus elementos centrais (título/assunto, formas p. 23-30, 1996.
de dispor ou representar informações, códigos, sinais e conven- IBGE. Atlas Nacional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: IBGE,
ções) e conexões com a interpretação de processos e dinâmicas 2000. 262 p.
relativos ao campo e à cidade. Entre os conceitos específicos de- ______. Censo Demográfico 2000. Disponível em: <http://
senvolvidos para caracterizar a formação do espaço geográfico, na www.ibge.gov.br> Acesso
perspectiva apontada, estão os de campo, cidade, urbano, rural, em: 18 maio 2002.
migração, urbanização, população urbana, população rural e me- ______. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2000. Dis-
trópole, tendo em vista processos como o de modernização. ponível em: <http:// www.ibge.gov.br>. Acesso em: 3 maio 2002.
As relações sociedade-natureza nos quadros urbano e rural ______. Censo Agropecuário 1995-1996. Disponível em:
são discutidas a partir da análise de formas de uso e apropriação do <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 3 março 2002.
espaço e suas implicações tanto para dinâmicas sociais como para JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Mar-
os sistemas naturais, notadamente em elementos como drenagem, tins Fontes, 2000. 510p.
cobertura vegetal, solos e relevo. JOLY, F. A cartografia. Campinas: Papirus, 1990. Tradução de
Avaliando criticamente usos inadequados, a ideia é que os es- Carlos S. de Mendes Rosa.
tudantes reflitam sobre problemas desse tipo no lugar onde vivem MARTINS, J. de S. Impasses sociais e políticos em relação ‘a
e formulem proposições mais equilibradas e sustentáveis de uso reforma agrária e à agricultura familiar no Brasil. SEMINÁRIO
dos recursos naturais, em favor do conjunto da sociedade. DILEMAS E PERSPECTIVAS PARA O DESENVOLVIMENTO
Cada uma das partes do capítulo inicia-se com a proposição REGIONAL NO BRASIL, COM ÊNFASE NO AGRÍCOLA
de uma situação problema, um desafio novo que, para ser resolvido E NO RURAL NA PRIMEIRA DÉCADA DO
ou superado, necessita de novos ingredientes e informações. Como SÉCULO XXI. Anais... Santiago [Chile], 11-13 de dezembro
exemplo, na primeira parte do capítulo, a questão reside em resol- de 2001.
ver o dilema entre a intensa urbanização do país e o aumento da MELLONI, E. Agricultura familiar é a apontada como mode-
população rural, tendo em vista ações de planejamento. O aporte lo. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 jul. 1998.
de novas informações, fundadas em conceitos e processos histó- OLIVA, J. T. O espaço geográfico como componente social.
ricos e geográficos, deverá permitir que o estudante possa ofere- Terra Livre, São Paulo, n. 17, p. 25-48, 2. semestre 2001.
cer respostas à situação-problema e resolva questões correlatas. PNUD/IPEA/FJP/IBGE. Desenvolvimento humano e condi-
Observe-se que há atividades ao longo de cada uma das partes que ções de vida: indicadores brasileiros. Brasília, DF, setembro de
solicitam que o estudante levante hipóteses ou aplique os conhe- 1998.
cimentos construídos. Por fim, solicita-se ao estudante que reflita REVISTA DO ASSENTAMENTO 1 DE SUMARÉ (SP). Pi-
sobre um conjunto de questões que sistematiza conceitos e proces- racicaba: Unimep, jun. 1999. Edição Comemorativa dos 15 anos
sos desenvolvidos em cada parte do capítulo. do Assentamento.
As formas de avaliação devem considerar o desenvolvimento SANT’ANNA, L. Conceitos de rural e urbano imploram por
das habilidades previstas para o capítulo e as progressões apresen- revisão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 9 dez. 2001.
tadas pelo estudante ao longo de cada unidade de aprendizagem. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo: razão e
Desta forma, é importante verificar, nesse processo, os modos de emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. 308p.
aplicação dos conceitos relativos às dinâmicas do campo e das ci- ______. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
dades diante de novas situações, assim como o domínio progres- 157 p.
sivo das linguagens e as capacidades de selecionar e relacionar in- SANTOS, Milon; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e so-
formações para construir argumentos seguros e consistentes sobre ciedade no início do século XXI.
as formas de uso e apropriação dos espaços na cidade e no campo. Rio de Janeiro: Record, 2001. 471 p.
SANTOS, S. A. Reforma Agrária: a luta inconciliável ente
Bibliografia dois projetos, o oficial e o popular. Revista Sem-Terra, v. 2, n. 14,
p.31-40, fev. 2002.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação SILVA, J. G.; DEL GROSSI, M. E. A evolução das rendas e
Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Geografia: 5ª a atividades rurais não-agrícolas no Brasil. In: SEMINÁRIO SO-
8ª séries. Brasília, DF, 1998. BRE O NOVO RURAL BRASILEIRO, 2., 2001, Anais... Cam-
______. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução: 5ª a pinas. NEA: Instituto de Economia: Unicamp, outubro de 2001.
8ª séries. Brasília, DF, 1998. ______. O novo rural brasileiro. Revista Nova Economia,
BEZERRA, M. do C. L.; FERNANDES, M. A. (Coord.). Ci- Belo Horizonte, MG, v. 7, n. 1, p. 43-81, maio de 1997.
dades sustentáveis: subsídios à elaboração da Agenda 21 brasilei- VEIGA, J. E. Coletânea de artigos. O Estado de S. Paulo, São
ra. Brasília, DF: Ministério do Meio Ambiente, 2000. Disponível Paulo, 1998-2001.
em: <http://www.mma.gov.br> Acesso em: 19 set. 2001. Consór- VEIGA, José. E. et al. O Brasil rural precisa de uma estratégia
cio Parceria de desenvolvimento. Brasília, DF: CNDRS; MDA; NEDS, ago.
21 IBAM-ISERREDEH. de 2001.
CORRÊA, R. L. Origem e tendências da rede urbana brasi-
leira. In: Trajetórias Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1997. p. 93-106.
______. Os centros de gestão do território: uma nota. Territó-
rio, Rio de Janeiro, n. 1,

Didatismo e Conhecimento 65
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
As sociedades e os ambientes - Identificar, em fotografias e textos, a fragilidade do ambiente
Hugo Luiz de Menezes Montenegro e dos recursos nele existentes, a diversidade de usos do solo (no
meio urbano e rural), as técnicas utilizadas e suas consequências
Essa competência destaca a necessidade do estudante de am- ambientais.
pliar sua percepção como cidadão que se relaciona, interage e é Em relação aos conteúdos que envolvem a questão ambien-
corresponsável pela preservação dos ambientes, estabelecendo a tal, espera-se que os alunos compreendam que os grupos sociais
possibilidade de avaliar a diversidade de usos e intervenções hu- estabelecem entre si e com o meio natural um conjunto complexo
manas na escala local e em escalas mais amplas (regional/nacio- de relações e interações. Espera-se que possam dimensionar o con-
nal), de forma a desenvolver uma atitude responsável e ética com junto de interferências humanas relacionadas tanto à capacidade
relação à preservação e à conservação do meio ambiente. de modificar e degradar os recursos da natureza como de conservá-
Os alunos conhecerão diferentes lugares/regiões do país, ve- -los e utilizá-los de forma a garantir a sobrevivência do conjunto
rificando como se dão as interações e arranjos específicos de cada de seres vivos que fazem parte do ambiente.
grupo social e o meio que cada um deles habita. Assim, foram selecionados conteúdos que não são apenas
Poderão analisar e refletir sobre como a sociedade interage em conceitos isolados, mas também procedimentos e atitudes a serem
diferentes ambientes, aproveitando os recursos existentes, e que trabalhados com os conceitos ou teorias abordados, destacando-se:
tipos de modificações realizam em seu ambiente.
Nesse enfoque, são considerados os aspectos econômicos, 1. Reconhecimento dos elementos naturais que formam o am-
políticos, tecnológicos e culturais, à medida que diferentes proble- biente, observando como estão distribuídos na paisagem; as rela-
mas de nossa sociedade atual são analisados. ções e interações existentes entre eles, associando as característi-
É importante que percebam que, mesmo nas áreas intensa- cas do ambiente (local ou regional) à vida pessoal e social.
mente modificadas pela ação humana, como as grandes cidades, 2. Observação de relações entre as formas de aproveitamento
existem elementos naturais, ainda que não sejam diretamente dos recursos naturais com os tipos de ocupação humana, conside-
visíveis na paisagem urbana ou que muitos recursos da natureza rando:
tenham sido utilizados e transformados em grande escala para edi-
- Os fatores geográficos (diversidade regional, meio urbano e
ficações de construções como praças, ruas etc. A ideia de que a
rural), históricos (situação do ambiente antes e depois da ocupação
paisagem rural é exclusivamente natural pode também ser desmi-
humana), sociológicos (grupos sociais e seus valores);
tificada, verificando-se as interferências da ação humana nas áreas
- A diversidade de modificações provocadas pela ação humana
rurais, com o desmatamento, adubação química do solo, a poluição
no ambiente e sobre o conjunto de interações existentes entre os
e a degradação de nascentes ou cursos de água, as queimadas e a
animais, as plantas, o solo, o ar e as águas;
poluição do ar. Essas críticas devem apoiar o aluno na percepção
- Os modos de vida das pessoas e seus vínculos com o am-
de que as interferências humanas devem ser feitas de forma plane-
jada e racional, não colocando em ameaça o ambiente, ou de que, biente e com o lugar;
dependendo do tipo de ação, podem-se destruir esses ambientes e - O conjunto variado de fatores e fenômenos envolvidos: os
seus recursos, impossibilitando seu aproveitamento futuro e acen- culturais, os econômicos, os políticos, os sociais e os ambientais;
tuando os problemas vivenciados por diferentes grupos sociais. - A fragilidade e a degradação dos ambientes e dos recursos
neles existentes;
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA - A exemplificação de propostas, tendo em vista a conservação
do ambiente.
Conhecendo a dinâmica existente na natureza e percebendo
alguns ritmos e processos diferenciados, os alunos poderão pro- Em sala de aula, as atividades do capítulo, sob orientação do
blematizar e avaliar situações de degradação dos recursos e de de- professor, poderão ser amplamente exploradas, possibilitando-se
sequilíbrio ecológico, compreendendo suas causas, seus efeitos e que os alunos:
consequências, podendo assim ampliar os conhecimentos que pos-
suem sobre os processos naturais e perceber a responsabilidade da - Extraiam e comparem as informações dos diferentes textos;
sociedade na conservação do meio natural. - Apresentem e exponham, oralmente, o que compreenderam
O capítulo se apresenta como um conjunto de textos e ativi- sobre os conteúdos analisados, com o uso de diferentes recursos;
dades, para que os alunos tenham oportunidade de desenvolver as - Relacionem as questões ambientais tratadas no capítulo a
seguintes habilidades: outros lugares e situações vivenciadas ao longo do seu processo
- Identificar, em textos, mudanças históricas relacionadas com de vida e, mais particularmente, ao ambiente de sua comunidade
as dinâmicas e processos naturais e humanos. local;
- Reconhecer, em fotografias, a diversidade de ambientes e de - Pesquisem e busquem novas informações comparando os
paisagens existentes, identificando alguns fatores que determinem elementos que permaneceram, os que se modificaram, as causas
essas diferenças. dessas modificações, os lugares atingidos, podendo, também, rea-
- Reconhecer, em mapas, os diferentes lugares e as questões lizar estimativas de futuros acontecimentos e transformações;
ambientais. - Realizem um levantamento de diferentes modos de vida,
- Avaliar os efeitos da intervenção humana em diferentes am- concepções e visões em relação à utilização dos recursos naturais
bientes. e à transformação do ambiente;
- Identificar, em artigo de jornal, as diferentes concepções e - Valorizem os recursos naturais dos diferentes ambientes
visões em relação à utilização dos recursos naturais e às interfe- como bens pessoais e coletivos que devem ser utilizados de forma
rências no ambiente. sustentável e em equilíbrio com a natureza.

Didatismo e Conhecimento 66
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Bibliografia Essa habilidade estará sendo discutida a partir das transfor-
mações das técnicas na produção dos alimentos, das construções
AB’SABER, A. N. Geografia ambiental do Brasil. In: IBGE. e dos transportes.
Atlas Nacional do Brasil. 3. ed. Caracterização das formas de circulação de informação, capi-
Rio de Janeiro, 2000. tais, mercadorias e serviços.
_______. Litoral do Brasil. São Paulo: Metalivros, 2001. p. Nesse caso, estaremos trabalhando com o sistema de circula-
111. Título original: ção de mercadorias e de informação.
Brazilian coast. Versão para o inglês Charles Holmquist. Comparação dos diferentes modos de vida das populações,
CONTI, J. B.; FURLAN, S. A. Geoecologia: o clima, os solos utilizando dados sobre produção, circulação e consumo.
e a biota. In: ROSS, J. L. S. Discussão e análise das diferentes formas de propagação de
(Org.). Geografia do Brasil. 4. ed. São Paulo: Ed. da Universi- hábitos de consumo que induzem a sistemas produtivos do am-
dade de São Paulo, 2001. biente e da sociedade, trabalhadas por meio de problematizações
EMBRATUR. Pontos turísticos: Brasil. São Paulo: EPPE, sobre consumo e propagandas.
2000. Comparação entre as organizações políticas, econômicas e
GABEIRA, F. O mar não está mais para a Família Peixe. Fo- sociais no mundo contemporâneo, ressaltando a cidadania e a ma-
lha de S. Paulo, São Paulo, neira como as pessoas têm acesso aos produtos industrializados.
[200-?]. Caderno Turismo. Além dessas habilidades, priorizamos:
GIANSANTI, R. O desafio do desenvolvimento sustentável. - A utilização de diferentes tipos de linguagens, tais como, ma-
São Paulo: pas, imagens e textos jornalísticos.
Atual, 1998. - A leitura de mapas, utilizando símbolos e sinais como forma
GUIMARÃES, R. B. Tecendo redes e lançando-as ao mar: o de interpretação do espaço geográfico.
livro didático de Geografia e - O reconhecimento no texto de diferentes informações ade-
o processo de leitura e escrita. Em Aberto. Brasília, DF, v. 16, quadas ao contexto social e econômico do leitor
n. 69, jan./fev. 1996.
KOZEL, S.; FILIZOLA, R. Didática de geografia: memórias DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA
da terra, o espaço vivido. São
Em todas essas habilidades, esteve presente o desenvolvimen-
Paulo: FTD, 1996. 109 p. (Geografia. Conteúdo e Metodolo-
to das técnicas na organização do espaço geográfico e na mudança
gia 1ª a 4ª série).
do modo de vida das pessoas em diferentes tempos, destacando os
MACEDO, S. S.; SAKATA, F. G. Parques urbanos no Brasil.
séculos XIX, XX e XXI. Iniciamos esse capítulo com a utilização
São Paulo: Edusp, 2002. 207
de uma situação-problema cujo objetivo era estimular o leitor a
p. (Coleção Quapá).
analisar mudanças de hábitos e costumes a partir do cotidiano e de
MENEGAT, R. (Coord.). Atlas ambiental de Porto Alegre.
ter, a partir disso, informações sobre os modos de vida do passado.
Porto Alegre: Ed. da UFRGS, Nesse sentido, optamos por uma problematização que partisse dos
2001. 228 p. hábitos alimentares da população em duas épocas. O caminho que
ROSS, J. L. S. (Org.). A sociedade industrial e o ambiente In: optamos esteve sempre vinculado ao processo de sua industriali-
______. (Org.) Geografia zação, aos meios de circulação de mercadorias, de pessoas e de
do Brasil. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2001. (Didática, 3). informações e, também, às transformações na tecnologia. Como
SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e socie- consequência dessas questões, acreditamos que o leitor terá con-
dade no início do século XXI. Rio dições de construir um novo conhecimento e terá, por sua vez,
de Janeiro: Record, 2001. 471 p. condições de refletir sobre a maneira como as pessoas consomem
SCHÄFFER, N.O. Ler a paisagem, o mapa, o livro... escrever e como o mercado comercial, atualmente, se organiza no mundo.
nas linguagens da geografia. A partir dessa situação-problema, foram criados novos ques-
In: NEVES, I. C. B. B. et al. Ler e escrever: compromisso de tionamentos. A estes questionamentos, foram fornecidas ao leitor
todas as áreas. 3. ed. Porto novas informações, que permitirão a construção de uma solução
Alegre: Ed. Universidade do Rio Grande do Sul, 2000. para o problema levantado.
TEIXEIRA, W. (Org.). Decifrando a terra. São Paulo: Oficina Em resumo, indicamos os seguintes tópicos:
de Textos, 2001. 1. Introdução: apresentação da situação problema.
2. O que mudou e o que permaneceu na organização das cida-
A organização econômica das sociedades na atualidade des ao longo do século XX.
Sonia Maria Vanzella Castellar A partir das mudanças que ocorreram nos hábitos alimentares
e nas técnicas de sua produção passando pelas alterações que ocor-
O capítulo foi elaborado com o objetivo de se analisar as mu- reram no modo de vida.
danças que ocorreram na organização e produção do espaço geo- Mudanças nas cidades, considerando as alterações históricas
gráfico contemporâneo, a partir do desenvolvimento tecnológico. e geográficas materializadas nas construções e no ritmo da popu-
Para atingirmos esse objetivo estamos nos fundamentando lação.
nas cinco principais habilidades que orientaram a elaboração do 3. A circulação e os meios de transportes: a ferrovia e a hidro-
capítulo: via. Mudanças nos meios de transporte, principalmente ferroviário
Identificação dos aspectos da realidade econômica e social de e hidroviário, considerando os aspectos históricos na dinâmica da
um país ou região. produção e circulação de mercadorias.

Didatismo e Conhecimento 67
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
4. As mudanças das técnicas no campo Mudanças no campo Estado e democracia no Brasil
evidenciando as transformações tecnológicas do sistema produtivo Jaime Tadeu Oliva
capitalista, principalmente no que se refere ao uso de maquinarias
e insumos agrícolas para a produção de alimentos. Para compreender os processos de formação e consolidação
5. Produção e consumo. As mudanças nos alimentos carac- das instituições sociais e políticas, a partir de diferentes formas
terizadas pelos ritmos das pessoas e da produção na sociedade de regulamentação das sociedades e ordenamento do espaço geo-
contemporânea, possibilitando ao leitor uma reflexão sobre a qua- gráfico, desenvolveu-se, no capítulo, uma abordagem que teve os
lidade de vida da população brasileira e o consumo. Produção e
seguintes objetivos:
consumo onde retomamos a situação-problema, para que o leitor
refletisse sobre os hábitos de consumo e a produção de lixo em - Mostrar que, no processo constitutivo das sociedades atuais,
diferentes momentos históricos. entre as instituições que se vão forjando, as mais importantes são
6. O consumo mundial e os meios de comunicação. À influ- aquelas que acabam por consolidar o Estado moderno;
ência dos meios de comunicação no consumo, o papel das propa- - Que os Estados modernos são expressão de uma história
gandas e como estão relacionadas com os hábitos de consumo e o de mudanças profundas das sociedades, que originaram os países
comércio mundial são questões apresentadas nesse item do capítu- contemporâneos com seus respectivos territórios;
lo. Além deles, propomos uma reflexão sobre o desenvolvimento - Que o Estado moderno não é uma mera estrutura operacio-
tecnológico, o papel da divisão internacional do trabalho e a loca- nal a serviço da sociedade (ou, como querem muitos autores, de
lização das áreas industriais no mundo. alguns setores da sociedade), mas sim um conjunto de instituições
que são, ao mesmo tempo, produto e produtor das sociedades mo-
As atividades propostas, no final do capítulo, têm como obje- dernas;
tivo resgatar as habilidades e os conceitos trabalhados nele. Como - Que não dá para compreender as sociedades modernas, sem
sugestão para outros procedimentos que podem ser desenvolvidos
considerar o papel que o Estado possui na estruturação das ati-
com os alunos, propomos relacionar as problematizações com o
cotidiano e o lugar de vivência. Por exemplo, explore com ima- vidades econômicas, na regulação dos conflitos, dos contratos de
gens do passado e do presente lugares da cidade onde vivem, tra- trabalho e no modo como a partir dele se organiza e se distribui o
balhando com os meios de transporte, o ritmo do lugar, os hábitos poder político;
culturais. Enfim, o que permaneceu e o que mudou. Se for uma - Que o princípio constitutivo-chave das sociedades modernas
cidade portuária, inclua na discussão a modernização dos portos, se incorpora no Estado por meio da democracia representativa;
dos navios, a técnicas empregadas na navegação. Se for histórica e - Que as falhas da democracia representativa não correspon-
turística, converse sobre a importância econômica e o que perma- dem apenas a desvios morais desvios morais de políticos inescru-
neceu para ser uma cidade de referência histórica. pulosos e eleitores ingênuos e desinformados. Que se trata de algo
muito mais profundo do que isso, pois corromper a democracia
Bibliografia representativa é atingir o centro da constituição e da consolidação
de uma sociedade moderna em constituição;
ANTUNES, R. (Org.). Neoliberalismo, trabalho e sindica- - Que a organização do Estado, em vários poderes e em vários
tos: reestruturação produtiva no Brasil e na Inglaterra. São Paulo:
níveis geográficos de atuação, é uma necessidade para garantir que
Bomtempo, 1997. 129 p. (Mundo do Trabalho).
o Estado esteja presente na vida cotidiana das pessoas e para que
BURKE, J.; ORNSTEIN, R. O presente do fazedor de macha-
dos: os dois gumes da história da cultura humana. Rio de Janeiro, elas, de fato, consigam expressar suas posições junto ao Estado.
Bertrand Brasil, 1998. 348 p. Tradução de Pedro Jorgensen Junior. Para que haja, realmente, uma situação na qual se possa afirmar
CHRISTOFOLETTI, A. Geomorfologia. 2. ed. rev. e ampl. que o poder emana do povo, princípio fundante de povo socieda-
São Paulo, Edgard Blucher, 1980. 188 p. des como a nossa;
CORREIA, R. L. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Ber- - Que o desrespeito às regras e ao papel dos poderes assim
trand Brasil, 1997. 302 p. como o uso ilegal do poder, nas mãos de poucos (que, em geral,
GIDDENS, A. Mundo em descontrole: o que a globalização se expressam de modo violento), não é só condenável como uma
está fazendo de nós. Rio de Janeiro, Record, 2000. 108p. Tradução violação aos direitos humanos, mas, principalmente, por ser algo
de Maria Luiza X. da A. Borges. Título Original: Runaway world. que vai em direção ao autoritarismo e autoritarismo que nega a
LEFF, E. et al. Ambiente & Sociedade. Campinas: Unicamp, grande e difícil construção de um mundo civilizado com base na
v. 3, n. 6/7, 1. e 2. semestres de 2000. democracia e na justiça;
LENCIONI, S. Região e Geografia. São Paulo Edusp, 1999.
- Que a negação do Estado moderno, com ações autoritárias
214 p. (Acadêmica, 26).
em seu seio, acaba por atingir, preferencialmente, algumas cama-
MATTOS, O. N. de. Café e ferrovias: a evolução ferroviária
de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo: das da população, com menos possibilidades de se proteger da vio-
Alfa-Omega, 1974. lação dos direitos e com menos possibilidades de fazer valer sua
OLIVEIRA, A. U. de. A agricultura camponesa no Brasil. São vontade política.
Paulo: Contexto, 1991. 164 p. (Caminhos da Geografia).
SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, Os conteúdos deste capítulo foram trabalhados a partir e em
1993. torno de uma situação-problema referente às dificuldades da
ZAMBONI, E. Representações e linguagem no ensino de His- constituição plena das sociedades modernas, no que se refere a
tória. Revista Brasileira de História, [S.l.], v. 18, n. 36, p. 89-101, um dos seus princípios fundamentais, que é a democracia repre-
1998. sentativa.

Didatismo e Conhecimento 68
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Identificou-se um mal corruptor da democracia representativa Em resumo:
que é o clientelismo político, algo muito presente na sociedade • O texto é inteiramente ponteado por expressões e palavras
brasileira. Foram trabalhadas desde uma face mais evidente, dura e assinaladas em negrito. Essa assinalação refere-se às passagens
cruel do clientelismo, isto é, algumas modalidades ainda existentes que, naquele momento, naquele raciocínio, são as chaves prin-
do chamado voto de cabresto, até, aspectos mais sutis, por vezes cipais do entendimento (como acabamos de fazer). Um olhar es-
imperceptíveis, dessa doença que atinge a democracia represen- pecial sobre esses destaques que percorrem o texto pode ajudar no
tativa. trabalho.
Como derivações dessa situação-problema central, trabalha- • Há itens do texto que são especificamente construídos para
ram-se também algumas “substituições” problemáticas, referentes propor atividades, exercícios e problemas a serem solucionados.
a análises de posições antagônicas de candidatos a cargos parla- Contudo, todos os outros itens são entremeados por um conjunto
mentares sobre a pena de morte. significativo de interrogações que podem ser igualmente aprovei-
A ideia foi procurar colaborar na construção de um conheci- tadas como questões separadas para atividades. Um exemplo é a
mento necessário para enfrentar a questão do clientelismo e outras figura 2, para a qual se propõe um exercício de observação, que
questões graves de nossa sociedade, passos importantes na consti- pode ser transformado num exercício destacado, embora essa pas-
tuição da cidadania. sagem do texto não esteja em algum item específico de atividade.
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA Bibliografia
Destacamos no capítulo os seguintes tópicos: CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de muros: crime, segregação
e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2000. 399 p. Tradu-
1. Onde começa a organização da sociedade. ção de Frank de Oliveira e Henrique Monteiro.
2. Todo poder emana do povo? CARDOZO, J. E. A máfia das propinas: investigando a cor-
3. Qual a extensão do clientelismo político no Brasil? rupção em São Paulo. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo,
4. A política: elemento organizador da sociedade. 2000. 215 p.
5. As formas de se organizar a política nas sociedades.
HABERMAS, J. Técnica e ciência enquanto ideologia. In:
6. O Estado: consolidação das formas de organização das so-
BENJAMIN, Walter, et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril
ciedades.
Cultural, 1983. p. 313-343. (Os pensadores).
7. Por que surgiram os Estados modernos?
LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o
8. Como se organiza o Estado brasileiro?
regime representativo no Brasil. 4. ed. São Paulo: Alfa-Ômega,
9. Voltando à questão da pena de morte.
1978. 273p. (Biblioteca Alfa-Ômega de Ciências Sociais, 2).
As habilidades referentes ao capítulo foram trabalhadas em MASTROPAOLO, A. Clientelismo. In: BOBBIO, N.: MAT-
dois níveis. Em primeiro lugar, elas vão sendo trabalhadas na pró- TEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. 7. ed. Bra-
pria sequência do capítulo. É assim que os itens 1, 2 e 3 do capítulo sília, DF: Ed. Universidade de Brasília, 1995. v. 1, p. 177-179.
(vide índice) são diretamente focados para trabalhar a habilida- Tradução de João Ferreira (Coord.).
de: Identificar os processos de formação das instituições sociais PASQUINO, G. Modernização. In: ______. Dicionário de Po-
e políticas que regulamentam a sociedade e o espaço geográfico lítica. 7. ed. Brasília, DF:
brasileiro. Porém, se ela é resolvida nos itens citados, é preciso ir Ed. Universidade de Brasília, 1995. v. 2 p. 769-776. Tradução
até 8 e 9 para que todos seus aspectos sejam trabalhados mais ple- de João Ferreira (Coord.).
namente. Os itens 4, 5, 6 e 7 dão conta da habilidade: estabelecer SCHIERA, P. Sociedade por categorias. In: ______. Dicioná-
relações entre os processos de formação das instituições sociais e rio de Política. 7. ed.
políticas. E da habilidade: compreender o significado histórico das Brasília, DF: Ed. Universidade de Brasília, 1995. v. 2 p. 1213-
instituições sociais considerando as relações de poder, a partir da 1217. Tradução de João Ferreira (Coord.).
contraposição de sociedades tradicionais e sociedades modernas.
Quanto às habilidades: discutir situações em que os direitos Ciências Humanas e suas Tecnologias Ensino Médio
dos cidadãos foram conquistados, mas não usufruídos por todos Capítulos I ao IX
os segmentos sociais, e comparar propostas e ações das institui-
ções sociais e políticas, no enfrentamento de problemas de ordem Neste bloco, são apresentadas sugestões de trabalho para que
econômico-social, elas estão contempladas nos itens 8 e 9. Em se- o professor possa orientar-se no sentido de favorecer aos seus
gundo lugar, apesar dessa ordem linear, todas as habilidades per- alunos o desenvolvimento das competências e habilidades que es-
mearam o conjunto do texto. truturam a avaliação do ENCCEJA – Ciências Humanas e suas
O capítulo contém quatro figuras para as quais se propõe uma Tecnologias – Ensino Médio.
série de observações. Estes textos complementam o material de orientação de estu-
Aliás, duas delas, praticamente iniciam dois momentos capi- dos dos estudantes e ambos podem ganhar seu real significado se
tais do texto (Figuras 1 e 2). incorporados à experiência do professor e à bibliografia didática já
O estilo do texto é, na medida do possível, o menos afirmati- consagrada nesta área.
vo possível. Na verdade, ele possui um desenvolvimento de estilo
interrogativo, visando sempre a mobilizar e a confrontar o conhe- Cultura, memória e identidade
cimento do leitor com as questões de conteúdo trabalhadas no ca- Roberto Catelli Junior e Denise Brandão Almeida Villani
pítulo. Espera-se que, do conjunto dos raciocínios que o capítulo
contém, somados aos raciocínios que os leitores realizarão, pos- Com este capítulo, o aluno deverá ser capaz de compreender
sam surgir afirmações, conclusões, opiniões e posicionamentos. os elementos culturais que constituem as identidades.

Didatismo e Conhecimento 69
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Ao abordar vários aspectos da vida cultural de um grupo so- Pode contribuir para reforçar os laços sociais, restabelecendo
cial – a religiosidade, as festas, os hábitos, enfim, os modos de vida a todo momento o que já foi historicamente pactuado.
–, o aluno deverá conseguir estabelecer os vínculos entre esses ele- Valorizar deve ter, aqui, esse sentido. Para trabalhar os con-
mentos e a formação das identidades individual e social. ceitos propostos, partimos da realidade do aluno e realizamos
O capítulo faz referência a conceitos básicos para várias disci- questões que o desafiem, levando-o à reflexão, de modo a perceber
plinas da área de Ciências Humanas: cultura, identidade, memória, algumas relações do seu cotidiano com os assuntos estudados.
fonte histórica e patrimônio cultural. Espera-se que, ao construir É importante que ele reflita com cuidado sobre cada uma das
situações ligadas ao seu cotidiano, o aluno perceba o significado perguntas formuladas. Ele deve procurar mobilizar seus próprios
delas e consiga utilizar esses conceitos aplicando-os para resolver recursos intelectuais para buscar uma resposta própria, a partir do
problemas e refletir acerca do presente e do passado. repertório que já possui e de sua experiência de vida. Em seguida,
Para realizar esse estudo, foram utilizadas as diferentes lin- o professor deve retomar as explicações do texto para confrontar
guagens que são fontes de conhecimento para a história. as soluções apresentadas pelos alunos com a resolução proposta
pelos autores.
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA
Só assim ocorrerá uma interação real: os alunos precisam ser
convidados a pensar e não somente a reproduzir conceitos prontos.
O capítulo foi elaborado tomando como referência as seguin-
tes habilidades: Ao realizar as atividades propostas, é importante que o aluno
- Interpretar historicamente fontes documentais de naturezas observe, com cuidado, os textos e as imagens, procurando com-
diversas. preender e retirar deles as informações necessárias para resolver
- Analisar a produção da memória e do espaço geográfico pe- o problema.
las sociedades humanas. Ao trabalhar com as questões do tipo teste, o aluno deve julgar
- Associar as manifestações culturais do presente aos seus pro- todas as alternativas apontando o que está certo ou errado em cada
cessos históricos. uma delas. Após ter escolhido a alternativa adequada, é chegado o
- Comparar pontos de vista expressos, em diferentes fontes, momento de analisar as alternativas, conforme as indicações dos
sobre um determinado aspecto da cultura. autores.
- Valorizar a diversidade do patrimônio cultural, identificando Sugerimos que o aluno seja orientado a recorrer constante-
suas manifestações e representações em diferentes sociedades. mente à linha de tempo e ao mapa presentes no capítulo, pois esses
Não há, no capítulo, uma divisão por assuntos. Trata-se de um instrumentos podem auxiliá-lo na compreensão do próprio texto
conjunto no qual as habilidades vão sendo discutidas e apresen- estudado. Dificilmente o aluno consegue ter um bom domínio dos
tadas por meio de atividades e desafios propostos aos alunos. Por conhecimentos de história, se não conseguir se localizar no espaço
exemplo, a habilidade que faz referência à memória está direta- e no tempo.
mente relacionada com a questão do patrimônio histórico e assim O estudo do tema proposto poderá ser ampliado, se o profes-
por diante. Da mesma forma, comparamos pontos de vista de dife- sor trouxer ou pedir aos alunos que tragam recortes de revistas e
rentes culturas utilizando diferentes fontes históricas. jornais para a aula, já que esses materiais podem contribuir para
Ao trabalhar com fontes históricas, discutimos o uso que se ampliar os conceitos e as habilidades propostos no capítulo.
faz dos registros produzidos pelo homem, atribuindo-lhes um
sentido. Foi abordada, também, a questão da subjetividade do co- Bibliografia
nhecimento histórico, uma vez que o pesquisador sempre faz uma
seleção de fontes e uma interpretação vinculada aos seus próprios BITTENCOURT, C. (Org.). O saber histórico na sala de aula.
valores e matiz ideológico.
São Paulo: Contexto, 1997.
A produção da memória relaciona-se diretamente com a cul-
175 p. (Repensando o ensino).
tura e com a construção de uma identidade. A memória pode ser
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed.
de um grupo, de uma luta social, de uma comunidade, do bairro,
da cidade, do partido, enfim, pode ser o elo de construção da iden- São Paulo: Companhia das
tidade de diferentes coletividades. Nesse sentido, rompemos com Letras, 1994. 484 p.
a visão, muitas vezes reafirmada, da memória como lembranças DA MATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? 8. ed. Rio de Janei-
vinculadas a um passado enterrado. Combatemos a visão de que a ro: Rocco, 1997. 126 p.
memória coletiva relaciona-se somente com o que está guardado ESCOBAR, P.; SEGATTO, C. A vitória é feminina. Revista
nos museus ou registrado em documentos do governo. Época, São Paulo, v. 3, n. 187,
A habilidade que faz referência ao patrimônio histórico re- 17 dez. 2001.
toma a questão da memória e da identidade e implica a definição FEBVRE, L. Combates pela história. Lisboa: Presença, 1977.
conceitual do que é patrimônio cultural. É preciso ampliar esse HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice,
universo, considerando todos os bens culturais como parte de nos- 1990. 189 p. (Biblioteca
so patrimônio cultural. Vértice. Sociologia e Política, 21). Tradução de Laurent Leon
O patrimônio cultural pode estar relacionado tanto aos edifí- Schaffter.
cios históricos como a objetos, artefatos, instrumentos de trabalho, LE GOFF, J. História e memória. 4. ed. Campinas, SP: Uni-
obras artísticas e, até mesmo, ao próprio meio ambiente, uma vez camp, 1996. 553 p. Tradução
que é o espaço de vida do homem. de Irene Ferreira et al.
O patrimônio cultural também se refere à identidade cultural LOPES, J. S. L. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade
dos grupos sociais, ou seja, ele pode ser a memória viva de uma das chaminés. São
luta, ajudando também a compreender quem somos e para onde Paulo: Marco Zero, 1988. 623 p. (Coleção Pensamento An-
queremos ir. tropológico).

Didatismo e Conhecimento 70
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
MONTENEGRO, A. T. História oral e memória: a cultura po- No capítulo do Livro do Aluno, estão discutidas algumas divi-
pular revisitada. São Paulo: sões regionais do Brasil e do mundo, destacando a tendência atual
Contexto, 1992. 153 p. (Caminhos da História). de formação de blocos regionais (Mercosul, Alca etc). Sugerimos
ORIÁ, R. Memória e ensino de História. In: BITTENCOURT, que sejam analisadas outras formas de divisões regionais como,
Circe (Org.). O saber por exemplo, as divisões regionais das cidades (zona sul, zona
histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997. p. 128- norte etc) analisando, em cada caso, o significado histórico de sua
148. formação e desenvolvimento.
SANTOS, J. L. dos. O que é cultura? 15. ed. São Paulo: Bra- A habilidade analisar os processos de transformação histórica
siliense, 1994. e seus determinantes principais pressupõe a capacidade do aluno
SÃO PAULO (Cidade). Secretaria Municipal de Cultura. De-
de organizar informações históricas oriundas de diversas fontes,
partamento do Patrimônio
relacionando-as às transformações ocorridas no espaço geográfico.
Histórico. O direito à memória: patrimônio histórico e cidada-
nia. São Paulo, 1992. 235 p. Em outras palavras, esta habilidade consiste em enfrentar situa-
SCHAFF, A. História e verdade. Lisboa: Estampa, 1974. 306 ções nas quais a capacidade de interpretação do aluno permita ao
p. (Teoria, v. 19). mesmo a compreensão do território enquanto centro de disputa.
As informações históricas podem ser representadas de dife-
A construção do território rentes formas: textos, gráficos, tabelas etc.
Oscar Medeiros Filho No capítulo do Livro do Aluno, esta habilidade corresponde
à quarta seção conflito e território, na qual são discutidos confli-
O conjunto de habilidades discutidas no capítulo compreende tos oriundos da disputa de territórios, dando-se ênfase aos motivos
que a constituição dos diversos territórios não se dá por forças na- estratégicos.
turais, mas é fruto da participação ativa das coletividades. Sugerimos como forma de desenvolvimento dessa habilida-
Assim, deve-se destacar a importância dos movimentos so- de a proposição de um trabalho de pesquisa em diferentes fontes
ciais e da participação de cada um como um agente político parti- (entrevista com moradores, textos etc) versando sobre mudanças
cipativo, como um cidadão muito mais do que um mero observa- ocorridas na localidade do aluno, destacando os interesses e os fa-
dor passivo da história. tos que as determinaram.
O capítulo está dividido em cinco seções de assuntos: Quanto à habilidade comparar o significado histórico da cons-
- As diferentes divisões territoriais tituição dos diferentes espaços, a seção Trabalho e território desta-
- Trabalho e território
ca os processos migratórios ocorridos em nosso País. A migração
- Conflito e território
interna no Brasil sempre foi muito intensa.
- Território e movimentos sociais
- Várias divisões regionais O grande crescimento de São Paulo, por exemplo, se deve
à migração de um grande número de brasileiros, especialmente
Desenvolvendo a competência nordestinos, na segunda metade do século passado. Boa parte dos
alunos (jovens e adultos) faz parte desse grupo de migrantes ou
A habilidade interpretar as diferentes representações do es- tem algum exemplo na família. São essas situações concretas que
paço geográfico deverá ser desenvolvida por meio da análise de devem ser exploradas no desenvolvimento desta habilidade.
diferentes representações do espaço geográfico. Para isso, o uso da Os alunos devem entender que os espaços geográficos são di-
linguagem cartográfica é essencial. nâmicos, ou seja, mudam constantemente. O que hoje é um grande
Os mapas devem ser explorados e analisados. A produção de centro de atração, um pólo de desenvolvimento econômico, por
textos também se presta muito bem ao desenvolvimento desta ha- exemplo, poderá vir a ser um centro de repulsão, a partir da deca-
bilidade. Sugerimos que os alunos desenvolvam redações a partir dência de seu modelo.
da observação de mapas ou a partir da concepção de território e Sugerimos que sejam exploradas ao máximo as situações
de fronteira. concretas dos alunos como, por exemplo, migrações realizadas
No capítulo do Livro do Aluno, foi dada atenção especial à (internas, inter-regionais, temporárias, êxodo rural, transumância
representação das diferentes divisões do espaço, com ênfase nas etc), buscando, em cada caso, os motivos que os levaram a migrar,
fronteiras territoriais. Sugerimos que seja dada continuidade à dis-
destacando o significado dos espaços de migração.
cussão iniciada no capítulo, por meio de exercícios práticos como,
A habilidade reconhecer a dinâmica da organização dos mo-
por exemplo, a representação dos diferentes territórios que fazem
parte do dia-a-dia dos alunos: a empresa, o mercado, a rua, o bairro vimentos sociais e a importância da participação da coletividade
etc. na transformação da realidade histórico-geográfica consiste na ca-
A habilidade identificar os significados históricos das relações pacidade de interpretar os problemas sociais, destacando os seus
de poder deverá ser desenvolvida por meio da construção e aplica- fatores determinantes e de reconhecer a importância dos movi-
ção de conceitos que possibilitem ao aluno identificar o significa- mentos sociais na transformação da realidade.
do das relações de poder nos processos histórico-geográficos. Ou No capítulo do Livro do Aluno, é discutida a relação Territó-
seja, alguns conceitos precisam ser trabalhados. Para que o aluno rios e Movimentos Sociais, com ênfase nos problemas agrários do
possa compreender as diversas divisões regionais do mundo ado- Brasil, que envolvem principalmente os trabalhadores rurais sem-
tadas ao longo dos tempos (Metrópole-Colônia, Norte-Sul etc.), -terra e os povos indígenas.
por exemplo, ele precisa saber que, historicamente, elas são fruto Sugerimos que sejam realizadas com os alunos discussões a
de relações de poder que acontecem entre conquistadores e domi- respeito da participação da comunidade nos movimentos sociais e
nados. políticos (sindicato, associação de bairros etc).

Didatismo e Conhecimento 71
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Como resultado dessas discussões, os alunos deverão apresen- O destaque que se dá à questão da água, do solo e do aque-
tar uma lista de propostas com vistas à melhoria da qualidade de cimento global se deve à sua importância como recursos naturais
vida da coletividade. diretamente relacionados a uma de nossas funções vitais: a ali-
mentação.
Bibliografia Além disso, uma significativa parcela da população mundial
está envolvida nessa atividade.
CAMPOS, F.; DOLHNIKOFF, M. Atlas histórico do Brasil. O crescimento da população é uma das variáveis mais impor-
2. ed. São Paulo: Scipione, 1994. tantes na proposta apresentada pelo capítulo, já que seus números,
CULTURA e pensamento: erguendo muros. Disponível em: consumo e técnicas irão determinar a organização do espaço no
www.terra.com.br/voltaire/ cultura/muros.htm. Acesso em: maio futuro.
2002.
HUNTINGTON, S. P. O choque de civilizações e a recom- As questões sobre o problema da água visam a exercitar a ha-
posição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996. 455 p. bilidade de o aluno se colocar em diferentes posições sociais em
Tradução de M.H.C. Cortes. relação a um mesmo problema, bem como discutir a questão ética
MARTIN, A. R. Fronteiras e nações. 4. ed. São Paulo: Con- envolvida na utilização e distribuição desse recurso natural. Muito
texto, 1998. 91 p. (Repensando a Geografia). das atividades propostas se presta à realização de debates, que,
MORAES, A. C. R.; COSTA, W. M. da. Geografia crítica: a orientados pelo professor, poderão conduzir a uma prática mais
valorização do espaço. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. 196 p. próxima das necessidades que a realidade nos está impondo nesse
(Geografia: teoria e realidade. Linha de frente). momento, proporcionando elementos sólidos para a questão: o que
SANTOS, M; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e socie- fazer?
dade no início do século XXI. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. A avaliação pode ser construída ao longo da realização das
471 p. atividades propostas, debates ou de outros elementos que venham
SANTOS, R. B. Migrações no Brasil. São Paulo: Scipione, a ser desenvolvidos, observando-se o desenvolvimento da capaci-
1994. dade de relacionar os diferentes fenômenos envolvidos e sua ma-
SCHMIDT, S. Cem favelas em quatro anos. O Globo, Rio de nifestação na formulação de propostas.
Janeiro, 19 maio, 2002. p. 18.
SIMIELLI, M. E. R. Geoatlas. 31. ed. São Paulo: Ática, 2001. Bibliografia
136 p.
VERÍSSIMO, L. F. A paróquia contra o mundo. O Estado de CHIAVENATTO, J. J. O massacre da natureza. São Paulo:
S. Paulo, São Paulo, 24 abr. 2002. Caderno Nacional, p. A4. Moderna, 1989. 136 p., il. (Polêmica).
COLTRINAI, L. A Geografia e as mudanças ambientais. São
O que estamos fazendo com a natureza Paulo: Marco Zero, 1990.
Victor William Ulmmus HELENE, M. E. M. Evolução e biodiversidade: o que nós te-
mos com isso? São Paulo:
No momento que atravessamos, nossa principal função talvez Scipione, 1996. 62 p., il. (Ponto a ponto).
seja envolver um número cada vez maior de pessoas na discussão KURTZ, R. O colapso da modernização: da derrocada do so-
de como a sociedade humana tem ocupado o espaço do planeta, cialismo de caserna à crise da economia mundial. Rio de Janeiro:
produzindo situações que se aproximam dos limites de sua supor- Paz e Terra, 1992. 224 p. Tradução de Karen Elsabe Barbosa.
tabilidade ambiental. MONTANARI, V.; STRAZZACAPA. Pelos caminhos da
Por isso, a escolha foi estabelecer o planeta como referência, água. Ilustração de Zuri Morgani. São Paulo: Moderna. 2000. 55
já que nele progressivamente se instala a sociedade humana e mo- p. (Desafios).
dificações vão sendo realizadas, ao longo desse processo histórico. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESEN-
Nesse quadro, procura-se estabelecer as relações entre o cresci- VOLVIMENTO. Relatório do desenvolvimento humano 2001.
mento da população, os processos de industrialização e urbaniza- Lisboa: Trinova Ed., 2001. 1 v.
ção, a tomada de decisões e a produção de desigualdades socioe- RELATÓRIO do desenvolvimento humano 2001. [S. I.: s. n.],
conômicas, para discutir a viabilidade desse sistema do ponto de 2001.
vista da permanência civilizada da espécie humana na Terra. SANTOS, M. O espaço do cidadão. 5. ed. São Paulo: Nobel,
Evidentemente, a extensão da abordagem pretendida e os li- 2000. 142 p. (Espaços).
mites do capítulo não permitem um aprofundamento, mesmo por- SANTOS, M. Por uma globalização: do pensamento único à
que a intenção é discutir a questão na sua macro amplitude, como consciência universal. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. 174 p.
forma de desenvolver uma visão que permita estabelecer relações SIMIELLI, M. E. R. Geoatlas. São Paulo: Ática, 2001. 136 p.
entre problemas de escala local, regional, nacional e global. TOYNBEE, A. J. A humanidade e a mãe terra: uma história
A exibição dos planisférios e os comentários que os acompa- narrativa do mundo. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 772
nham, assim como as atividades solicitadas, além das outras re- p. (Biblioteca de Cultura Histórica). Tradução de Helena Maria
presentações, objetivam contribuir para a habilidade de dominar Camacho Martins Pereira; Alzira Soares da Roch. VESENTINI,
a linguagem cartográfica por meio da identificação de diferentes J. W. Geografia, natureza e sociedade. São Paulo: Contexto, 1989.
representações de um mesmo espaço geográfico. 91p., il. (Coleção repensando a Geografia). WEINER, J. Os próxi-
Pretende-se demonstrar, também, a inexistência de parcelas mos cem anos: em nossas mãos o destino da Terra. Rio de Janeiro:
do planeta que não sejam afetadas por esses processos. Campus, 1992. 278 p., il. Tradução de Maria Ines Rolim.

Didatismo e Conhecimento 72
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Estado e Direito - Comparar o sistema romano, que estrutura ainda hoje a
Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron constituição civil da maior parte dos países ocidentais (inclusive
o Brasil), com o sistema inglês, baseado no direito costumeiro ou
O capítulo trata de duas instituições fundamentais que regu- consuetudinário.
lam a convivência em sociedade, o Estado e o Direito. Essas duas Ainda dentro dessa perspectiva histórica, outro objetivo a ser
instituições permearam a história da humanidade desde as primei- atingido no estudo desta questão deve ser o de compreender em
ras civilizações e são centrais ainda nas sociedades contemporâne- que medida o Direito tem uma função instituinte ao apoiar a fun-
as. O tema é bastante amplo, podendo servir como um fio condutor dação e a sustentação do Estado.
para contarmos toda a nossa História, desde 5.000 anos. Essa compreensão supõe o entendimento do Direito como um
ordenamento que, ainda que estabelecido a partir de um consenso
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA social, só se realiza através da força e em defesa de determinados
princípios que podem ser (ou apenas parecer) consensuais.
A melhor possibilidade de tratarmos um assunto tão vasto e Esse postulado conduz a uma interrogação importante e tão
complexo consiste em apresentar os fundamentos históricos do abrangente como as anteriores: de que maneira o Direito tem sido
Estado e do Direito, identificando em seguida as suas variações no concebido, nas sociedades ocidentais, como um instrumento privi-
tempo e no espaço. legiado de organização das práticas sociais, por meio das noções
Além disso, um “ponto de fuga” para colocarmos em perspec- de direito e dever, de justiça distributiva e dos valores éticos e
tiva a questão Estado e Direito é dado pela matriz do ENCCEJA: A morais que as fundamentam?
distribuição da justiça e dos benefícios econômicos. Ou seja, o que Nesse sentido, seria útil propor alguns elementos de reflexão
o estudante deve reconhecer nas diversas experiências históricas que permitam ao estudante identificar, nas Constituições, não só
empreendidas pelos homens neste terreno são as diferentes for- os momentos de fundação de diferentes organizações sociais, mas
mas adquiridas pelo Estado de Direito e, também, inversamente, as também o lugar de resolução não litigiosa dos conflitos internos a
suas formas negativas, isto é, as experiências que não respeitaram essas mesmas sociedades (direito civil), ou entre grupos e socieda-
os princípios do Estado de Direito. des diferentes (direito internacional).
Trata-se, portanto, de reconhecer um princípio e as suas va- Em resumo:
riações. A melhor maneira de reconhecer esse princípio é iden- 1. A perspectiva histórica deverá induzir o estudante a reco-
tificando-o nas suas primeiras manifestações, para, em seguida, nhecer a tradição jurídica romana como uma matriz fundamen-
apreendermos as melhorias e as variações que foram introduzidas tadora do modelo ocidental e permitir, por outro lado, exercícios
em diferentes tempos e lugares. comparativos em função de contextos históricos específicos.
A referência às primeiras formas republicanas de governo, 2. Por outro lado, esta mesma perspectiva histórica deverá
Roma e Grécia, impõe-se, portanto. Esse deve ser o ponto de parti- levar o estudante a reconhecer a sociedade atual como uma socie-
da do estudo: a caracterização e a contextualização da experiência dade em movimento, onde ainda se criam, reforma e modifica as
democrática grega e da República Romana. instituições legais e políticas, tanto em função dos contextos de
O passo seguinte seria estabelecer as continuidades e as dife- conflito (guerras militares ou comerciais, por exemplo), como em
renças com as demais experiências históricas, em outros tempos e função dos interesses em conflito.
lugares, observando os procedimentos básicos de um método com- 3. Essa perspectiva histórica levará o estudante, enfim, a reco-
parativo: cada novo caso estudado deve partir igualmente de uma nhecer alternativas de intervenção em conflitos sociais e em crises
descrição e de uma contextualização precisas para que possamos institucionais, privilegiando a resolução de tipo não beligerante
identificar, em cada situação histórica, como o Estado e o Direito fundada, justamente, num consenso jurídico fundamentado em
foram repensados e institucionalizados. princípios éticos e morais amplos.

Por exemplo: A complexidade aparente da questão poderá ser facilmente


- Como a Igreja tornou-se um poder temporal durante a Idade “desmistificada” com atividades simples, que remetam à experiên-
Média e de que maneira o Direito canônico veio substituir, por cia imediata e cotidiana do aluno.
assim dizer, o direito civil romano? Assim, a leitura de jornais poderá levar ao alargamento da
- Em que contexto o Sacro Império Romano recuperou o di- compreensão da notícia ao focar a sua interpretação na questão
reito civil romano como instrumento de governo, na baixa Idade enunciada: o vínculo existente entre Direito e Estado e os interes-
Média? ses (particulares ou gerais) que as leis e as instituições políticas
- Comparar a permanência do direito civil romano no Oriente veiculam concretamente.
até 1453 e o seu abandono no Ocidente, após a queda do Império No final, o estudante deverá ser capaz de:
Romano, em 476, seguida, contudo, pela sua recuperação, após o - Interpretar os textos para reconhecer e compreender os dife-
longo interregno medieval, pelos Estados Nacionais em formação, rentes fenômenos históricos onde se coloca a questão do convívio
na Idade Moderna. pacífico entre os homens.
- Perceber como o direito romano de gentes foi relido na - Identificar as situações problemáticas onde o convívio social
Idade Moderna como direito internacional, conforme os Estados esteja ameaçado, ou onde a justiça não seja o dado fundamental
Nacionais se implantaram e desenvolveram uma atividade diplo- constitutivo de uma determinada sociedade, gerando desigualda-
mática voltada para os seus interesses expansionistas e, também, de social ou impossibilitando a sobrevivência e a reprodução dos
comerciais. homens.

Didatismo e Conhecimento 73
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- Ser capaz ainda de criticar os argumentos e as práticas que se O aluno pode ser estimulado à percepção de que não é uma
opõem ao convívio social e elaborar propostas que regenerem uma ideia fixa, acabada e imutável mas, dinâmica e orgânica. O aluno
ordem social pacífica e justa. deve perceber que a cidadania necessita da ação dele e de outros.
Uma última observação: a utilização dos meios de comuni- Uma das tarefas do professor da área de humanas é tentar criticar
cação de massa como instrumento de trabalho tem a vantagem de a ideia de uma história automática e inevitável.
permitir ao estudante ancorar a sua reflexão em fatos próximos da
sua experiência de vida. Contudo, essa atividade deve ser neces- Desenvolvendo a competência
sariamente acoplada à comparação com outras experiências, em
outros tempos e lugares. Dito de outra maneira, essa atividade e a O texto inicia com questionamentos que podem ser utilizados
reflexão dela resultante devem se dar numa perspectiva histórica. pelo professor para a realidade do aluno. O aluno usa a palavra
Os instrumentos de trabalho devem, portanto, incluir livros de cidadão, mas, a partir de perguntas (Um ladrão é cidadão? O ban-
História e textos históricos. queiro é cidadão?) ele pode passar a questionar seu senso comum
Um conselho: não deixe de utilizar no seu trabalho instrumen- sobre a palavra. Instalada a dúvida, começamos a trabalhar com o
tos auxiliares, tais como enciclopédias ou dicionários, como, por desenvolvimento histórico.
exemplo, o de Norberto Bobbio, indicado na bibliografia.
Os momentos principais são:
Bibliografia - Grécia Clássica
- Revoluções Inglesas
ARISTÓTELES, Política. [s.n.t.] - Revolução Francesa
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário - O Século XIX no Brasil e no Mundo
de Política. 5. ed., Brasília, DF: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, - A Cidadania no Século XX
2000. 2 v. - A Constituição de 1988 no Brasil
COULANGES, F. de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o É muito importante explorar as linhas de tempo para conse-
direito e instituições da Grécia e de Roma. 6. ed. Lisboa: Livraria guir estabelecer sequências de antes e depois. O problema que o
Clássica, 1945. 2 v. professor deve sempre evitar é uma certa causalidade que a linha
HOBBES, T. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado de tempo estimula. Em outras palavras, o aluno vê a linha como
eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensado- uma série inevitável de acontecimentos que tinham de ser daquele
res). jeito. A habilidade do professor está também em explicar que a
LOCKE, J. Carta acerca da tolerância: segundo tratado so- linha de tempo é uma construção posterior, que ninguém sabia o
bre o governo: ensaio acerca do entendimento humano. 2. ed. São sentido e a meta dos acontecimentos, como não sabemos hoje o
Paulo: Abril Cultural, 1978. 344 p. (Os Pensadores). Tradução de que ocorrerá amanhã. A linha de tempo é uma referência para o
Anoar Alex e E. Jacy Monteiro. aluno e, como tal, um instrumento de compreensão. A linha de
MARX, K. Para a crítica da economia política: salário, preço tempo não é uma sequência lógica de causas e efeitos!
e lucro; o rendimento e suas fontes: a economia vulgar. São Pau- Para trabalhar, os alunos poderiam ser divididos em grupos e
lo: Abril Cultural, 1982. 242 p. (Os Economistas, 2). Tradução de cada grupo trabalhar com um período. Depois, num painel coletivo
Edgard Malagodi et al. ou num seminário, juntar as conclusões. Mais do que a maioria dos
ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social: ensaio sobre a origem temas, este se presta muito à discussão e a libertar o aluno da ideia
das línguas: discurso sobre a origem e os fundamentos da desigual- de conteúdo a ser decorado. Trabalhos em conjunto com Português
dade entre os homens: discurso sobre as ciências e as artes. 2. ed. e outras disciplinas sobre o tema cidadania são muito estimulantes.
São Paulo, Abril Cultural, 1978. 432 p. (Os Pensadores). Logo após a explicação histórica, temos uma percepção do
VILLEY, M. Compendio de Filosofia del derecho. Pamplona: conceito na legislação brasileira, com ênfase na Constituição de
Ed. Universidad de Nevarra, 1979-1981. 2 v. 1988 e suas derivações. Se houver tempo, além dos textos indica-
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociolo- dos, o professor pode trazer para a sala outros artigos de leis como
gia compreensiva. 3. ed. São Paulo: Pioneira, 1994. 3 v. o Código do Consumidor.
Organismos como o Procon distribuem o Código gratuitamen-
Cidadania te e a Internet também tem o Código completo e de fácil acesso.
Leandro Karnal Alguns jornais apresentam um setor sobre o consumidor e os ca-
sos podem ser discutidos. Trabalhando com situações concretas
Esse tema possibilita uma discussão rica e bastante presente (como um carnê pago e cobrado de novo por uma loja), o aluno
na realidade do aluno. Como a sala de aula é um espaço políti- pode trazer para sua realidade o conceito de cidadania e descobrir
co, discutir cidadania nela é colaborar para uma sociedade melhor muito mais do que a especulação conceitual. A aula pode partir da
para todos. escola (a partir de questões como lixo, fumo em lugares fechados,
O texto do capítulo tenta explicar, em linguagem muito acessí- convivência com a diferença) e tomar o bairro e a cidade como
vel, o significado do termo cidadania e sua historicidade. A histori- pontos concretos.
cidade que significaria isto? O aluno deve ser estimulado a refletir Explorar a percepção do aluno e até do senso comum domi-
que a ideia sobre o que é ser cidadão foi sendo construída ao longo nante pode ser um princípio, mas é importante trabalhar e aprofun-
da História Ocidental. Não é uma ideia pronta. Não é uma ideia dar tais temas. Por exemplo, o aluno pode ter a sensação que tudo
que tenha “caído do céu”. Cada época e cada sociedade foram é sempre a mesma coisa e não adianta mudar. O texto e o professor
acrescentando algo na compreensão e prática do termo. Assim, da estimulam o oposto: as coisas mudaram muito exatamente porque
mesma forma, o tema continua sendo debatido. houve ações concretas.

Didatismo e Conhecimento 74
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
O estímulo à consciência de cada indivíduo como ser atuante Com relação ao Brasil, o capítulo apresenta dados a respeito
e histórico é muito importante. O grande desafio de todo educador das áreas urbanizadas com enorme concentração de renda, situan-
continua sendo trazer a opinião de cada um sem transformar a sala do o país, infelizmente, no grupo de países que ainda não conse-
em fluxo de conversa em que as opiniões são apresentadas e se guiu prover ambientes urbanos agradáveis à maioria da população.
passa adiante para o texto. Costurar a experiência do aluno com as Nesse sentido, o texto fornece subsídios para alertar que fal-
experiências históricas é uma grande tarefa. Ao longo do texto, há tam renda e moradia para muita gente. Esses dois fatores geram
várias atividades. pressão sobre as áreas naturais dos municípios brasileiros resul-
Elas apresentam as respostas no próprio texto, mas seria útil tando na ocupação de áreas de risco, como fundos de vale, áreas
ao professor debater cada uma. Em particular, a interpretação das
de expansão natural de corpos d’água (várzeas), áreas destinadas
figuras pode estimular muito a discussão em sala. As atividades
à manutenção de mananciais, de áreas protegidas com fins de con-
devem ser vistas não apenas como verificação de aprendizagem,
mas como uma oportunidade para aprender mais. servar a diversidade biológica.
O abandono do campo pela população rural resulta da moder-
Bibliografia nização do campo promovida pela introdução de uma base técnica
que prescinde de mão-de-obra na agricultura, do endividamento
BARACHO, J. A. de O. Teoria geral da cidadania: a plenitude do produtor rural, que é obrigado a hipotecar sua terra para obter
da cidadania e as financiamento para a produção e acaba refém de juros elevados,
garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, e de políticas agrícolas que priorizam as culturas destinadas à ex-
1995. 69 p. portação. Isso tudo gera mais pressão sobre as cidades. Migrantes
CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. sem terra, sem ocupação e sem renda dirigem-se para as grandes
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 236 p. metrópoles da região Sudeste, como São Paulo e Rio de Janeiro,
DIMENSTEIN, G. O cidadão de papel: a infância e adoles- para as metrópoles regionais e para as cidades médias localizadas
cência e os direitos humanos no Brasil. 20. ed. São Paulo: Ática, no interior. Não é por outra razão que ocorreu uma explosão urba-
2002. 175 p. na em Fortaleza, Salvador e Recife, para citar algumas metrópoles
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de regionais que receberam migração. Entre as cidades médias, cabe
Janeiro: Zahar, 1967. 220p. (Biblioteca de Ciências Sociais). Tra- destacar as do estado de São Paulo, como São José dos Campos,
dução de Milton Porto Cadelha. Marília, Presidente Prudente e Araraquara, que também tiveram
VIEIRA, L. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na
que alojar um grande contingente populacional, quando compara-
globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001. 403 p.
______. Cidadania e globalização. 5. ed. Rio de Janeiro: Re- do ao total de população que as habitava.
cord, 2001. 142 p. Aos migrantes não resta alternativa para morar senão ocupar
áreas naturais que deveriam ser mantidas sem ocupação. A falta
A vida cotidiana e os impactos ambientais de fiscalização e interesses nem sempre conhecidos resultam em
Wagner Costa Ribeiro mortes, perdas materiais e problemas ambientais. São justamente
as áreas de risco as que mais sofrem com as intempéries, como
Para compreender a dimensão ambiental da vida contemporâ- as fortes chuvas típicas de um país tropical. Transbordamentos de
nea, é preciso relacionar diversos aspectos. No capítulo, partimos corpos d’ água e escorregamentos de encostas afetam a população
da compreensão do sistema de produção hegemônico, baseado no miserável que vive em habitações subnormais (cortiços e favelas)
uso crescente de recursos naturais para produzir mercadorias que construídas em áreas impróprias para a ocupação.
são comercializadas em várias partes do mundo. O mais triste é que, em algumas favelas, já é possível encon-
Uma ideia central do texto é a de que a acumulação do capital trar famílias que estão em sua terceira geração, ou seja, avós, filhos
teve, desde a Revolução Industrial, o uso perdulário de recursos e netos convivendo com situações dramáticas de maneira cotidiana
naturais e quase nenhuma preocupação com impactos ambientais. e que não tiveram a possibilidade de alterar sua condição de so-
Por isso, é importante destacar que parte dos problemas verifica- brevivência.
dos atualmente decorre de práticas do passado. Para quem atua no campo, o quadro é diferente, mas também
Uma outra ideia com destaque no material é com relação à
preocupante. Se for um trabalhador rural, vai enfrentar o dia-a-dia
vida urbana, que gera impactos ambientais graves, ainda que estes
do transporte em estradas mal conservadas de sua cidade até as fa-
não sejam os mesmos em todas as cidades do mundo. Em países de
renda baixa, ou mesmo em países de renda média como o Brasil, é zendas. Convive ainda com o uso inadequado de defensivos agrí-
frequente encontrar falta d’água, ausência de áreas verdes e de co- colas, muitas vezes manipulados sem proteção para mãos e rosto,
leta e/ou tratamento de esgotos, disposição inadequada de resíduos ficando sujeito a doenças funcionais graves que podem conduzi-lo
sólidos, áreas de risco (aquelas sujeitas às intempéries naturais que à morte.
podem trazer prejuízos materiais e, infelizmente em alguns casos, A queimada, prática recorrente entre agricultores brasileiros
até a morte de seus ocupantes), poluição do ar, sonora e visual. de diversas regiões do país, produz uma fuligem que, se aspirada,
Para alterar esse quadro, que resulta em imenso desconforto am- acarreta problemas pulmonares. E a utilização de água para abas-
biental para a maioria da população que vive nas cidades de países tecimento de áreas cultivadas com o uso de agrotóxicos também
mais pobres, é preciso mais que planejamento. Apenas com a mo- resulta em contaminação que perturba o bom funcionamento do
bilização da população local, será possível construir um ambiente organismo humano.
saudável que gere bem-estar e altere o padrão de produção predo- Alterar este quadro exposto acima é uma tarefa urgente de
minante, o qual apresenta sinais de esgotamento devido à carência todos os que desejam um mundo mais justo, no qual seja possível
de recursos naturais vitais à sua manutenção, como água doce de a convivência com a diferença sem mediação com a capacidade de
qualidade, por exemplo. compra, como vemos em nossos dias.

Didatismo e Conhecimento 75
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Com base nestes conteúdos, um dos principais objetivos do Bibliografia
capítulo é problematizar a tensão entre dois tempos diversos: o da
reprodução do capital e o da natureza e sua capacidade de regene- LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade,
rar os ambientes. O primeiro quer mais e mais, o segundo não pode complexidade, poder. Petrópolis,
suportar a pressão gerada pelo primeiro. RJ: Vozes, 2001. 343 p. (Educação ambiental). Tradução de
Os alunos também deverão se deparar com o debate a res- Lúcia Mathilde Endlich Orth.
peito das alternativas de superação dos problemas ambientais da PONTING, C. Uma história verde do mundo. Rio de Janei-
atualidade. Alterar essa situação só será possível com uma renova- ro: Civilização Brasileira, 1995. 646 p. Tradução de Ana Zelma
ção drástica do sistema de produção hegemônico, tarefa árdua que Campos.
enfrenta obstáculos políticos de várias ordens. Entretanto, ela é RIBEIRO, W. C. A ordem ambiental internacional. São Paulo:
imperiosa e reconhecida mesmo por quem está obtendo vantagens Contexto, 2001.
com sua manutenção. A evidência disso são os tratados e conven- ______. Relações internacionais: cenários para o século XXI.
ções internacionais sobre o ambiente que procuram regular a ação São Paulo: Scipione,
humana em escala internacional, gerando restrições pautadas em 2000. 103 p. (Ponto de Apoio).
argumentos científicos, como o aquecimento global do planeta, SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e
agravado pela emissão de gases pelas atividades humanas que au- emoção. São Paulo:
mentam o efeito estufa. Hucitec, 1996. 308 p.
Este complexo cenário deve ser interpretado de maneira oti-
mista. Com todas as dificuldades e restrições, as temáticas ambien-
tais ingressam no pensamento dominante de empresários, gover- O mundo urbano e industrial
nos e da sociedade civil. Isso indica que estamos construindo um José Geraldo Vinci de Moraes
mundo mais saudável para a maior parte da população do planeta.
Afirmar o contrário significaria esconder-se atrás do muro das la- O capítulo selecionou e priorizou alguns aspectos relevantes
mentações da manutenção das desigualdades socioambientais. É para o desenvolvimento do conhecimento e a formação crítica do
preciso, sim, abrir a voz para que outros cidadãos conheçam os estudante do Ensino Médio. Por isso, para encaminhar as refle-
temas ambientais e participem do debate sobre as alternativas exis- xões sobre as transformações proporcionadas pelo universo das
tentes para minimizá-los. É preciso fundar uma nova ética que res- técnicas, do conhecimento e da ciência, relacionando-as com as
ponsabilize quem, de fato, gera problemas ambientais e que per- diretrizes e conteúdos do Ensino Médio, foram selecionados dois
mita a inclusão social pautada na dignidade e realização humanas momentos históricos de reflexão que concentram diversos desses
e não no consumismo desenfreado praticado atualmente. aspectos: a Revolução Industrial e a Revolução Científico-Tecno-
lógica.
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA Porém, a parte substancial do capítulo está centrada nesse úl-
timo item, pois foram as mudanças do final do século XIX que
O capítulo trata das habilidades e competências do Ensino criaram os limites e as referências da sociedade contemporânea,
Médio que devem levar o aluno a perceber-se como integrante com a qual o estudante ainda convive e, sobretudo, participa de
e agente transformador do espaço geográfico, identificando seus suas radicais transformações.
elementos e interações. Por isso, o capítulo privilegia a vida coti- A partir da realidade construída pela Revolução Científico-
diana, a partir da necessidade da reposição material da existência, -Tecnológica, o estudante deverá identificar os impactos das trans-
destacando a produção de alimentos e de abrigos, tanto nos am- formações desse processo no seu cotidiano, ainda vivido, de certo
bientes da cidade quanto do campo. modo, nos limites do universo urbano e tecnológico inaugurado
nesse período.
Para tal, foram combinadas diversas fontes que permitem Esse fenômeno histórico não será tratado como uma simples
identificar as características do espaço geográfico, como mapas, continuidade temporal e progressiva da Revolução Industrial (por
textos de apoio, gráficos, tabelas e esquemas ilustrativos, os quais isso, considerada comumente como a Segunda Revolução Indus-
contribuem para que o leitor relacione as implicações socioam- trial). Ao contrário, se procurou justamente demonstrar como ela é
bientais com o uso de tecnologias em diferentes contextos geográ- descontínua em relação à Revolução Industrial, pois se baseia em
ficos e históricos. outras referências sociais, culturais, técnicas e econômicas, crian-
do uma nova realidade social.
As atividades foram idealizadas para levar seu praticante a
pensar sobre sua situação como ser no mundo contemporâneo, en- Desenvolvendo a competência
volto em um meio técnico, pleno de significados que viabilizam
uma série de fluxos de mercadorias e informações, bem como as Deste modo, a partir da observação direta da realidade em que
implicações ambientais que sua produção e manutenção acarre- vive, o estudante será convidado a refletir sobre as formas como
tam. o conhecimento, a ciência, as técnicas e a tecnologia estão pre-
sentes no seu cotidiano e como elas interferem, diretamente, tanto
Por fim, o objetivo central é permitir que o leitor adquira mais na transformação da natureza como nas formas de ver o mundo.
elementos para discutir as relações da sociedade com o ambiente e O estudante deverá perceber que as bases culturais e sociais do
posicionar-se frente à necessidade de conservação ambiental, des- universo urbano e tecnológico desenvolvido ao longo do século
tacando temas como abastecimento de água e energia. XX foram lançadas em fins do século XIX. Espera-se também que

Didatismo e Conhecimento 76
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
o leitor perceba que foi nesse processo de rápida modernização - Comparar as novas tecnologias e as modificações nas rela-
que se construiu a equivocada ideia da “naturalidade” do progresso ções da vida social e no mundo do trabalho.
contínuo e ininterrupto, direcionado à construção de uma ordem - Relacionar alternativas para enfrentar situações decorrentes
social e histórica superior e civilizada. E, por fim, como essas refe- da introdução de novas tecnologias no setor produtivo e na vida
rências serviram para levar o modelo de progresso civilizador oci- cotidiana, respeitando os valores humanos e a diversidade socio-
dental ao restante do planeta, desalojando e discriminando outras cultural.
formas de organizar a cultura, a produção e a técnica. Deste modo,
o estudante terá instrumentos para avaliar criticamente a superação Para desenvolver essas habilidades foram empregados os se-
dessa realidade e a construção da nova ordem social e cultural em guintes procedimentos:
que vivemos.
- Utilização de variados tipos de linguagem como mapas, grá-
Bibliografia ficos, imagens e textos jornalísticos e literários.
- Leitura e interpretação de mapas. Em todos os procedimen-
BARRACLOUGH, G. Introdução à História contemporânea.
tos utilizados, esteve presente o desenvolvimento das técnicas na
São Paulo: Círculo do Livro,
organização do espaço geográfico e na mudança do modo de vida
[199-?]. 243 p. Tradução de Álvaro Cabral.
BRESCIANI, M. S. Londres e Paris no século XIX: um espe- das pessoas em diferentes tempos, destacando os séculos XX e
táculo de pobreza. São XXI.
Paulo: Brasiliense, 1982. 127 p. (Coleção Tudo é História,
52). Iniciamos o capítulo com uma situaçãoproblema relativa às
IGLESIAS, F. A Revolução Industrial. São Paulo: Brasiliense, mudanças das exigências do mercado de trabalho em diferentes
1982. 127 p. (Coleção épocas. O objetivo a ser atingido foi o de demonstrar que as tec-
Tudo é História, 11). nologias resultantes em épocas distintas provocaram uma ruptura
MORAES, J. G. V. de M. Cidades e cultura urbana na Primei- – extinguindo profissões até então existentes – e uma construção,
ra República. São Paulo: na medida em que novas funções e profissões surgiram em decor-
Atual, 1994. (Coleção discutindo a História do Brasil). rência do novo.
SINGER, P. A formação da classe operária. 2. ed. São Paulo: Nesse sentido, optamos por uma problematização que de-
Atual, 1985. 80 p. monstrasse a influência de outras tecnologias em outros períodos
(Coleção discutindo a História). que também causaram profundas alterações no trabalho e na vida
SCHWARCZ, L.; COSTA, Â. M. 1890-1914: no tempo das pessoal e social.
certezas. São Paulo: O caminho que optamos para desenvolver o capítulo esteve
Companhia das Letras, 2000. 176 p. (Virando Séculos). sempre vinculado ao processo de industrialização, aos fluxos de
circulação de mercadorias, pessoas e de informações e, também,
O trabalhador, as tecnologias e a globalização. às transformações na tecnologia na cidade e no campo. Como con-
Angela Corrêa Krajewski sequência dessas questões, acreditamos que o leitor terá condições
de construir um novo conhecimento a respeito das alterações re-
O capítulo tem como objetivo analisar as alterações prove- lativas ao processo de globalização e, por sua vez, condições de
nientes da incorporação das novas tecnologias na organização e refletir sobre o seu papel como agente social responsável diante
produção do espaço geográfico contemporâneo e suas consequên- dos desafios provenientes das atuais formar de produzir, consumir
cias para o mundo do trabalho e para a vida social e pessoal. e agir na sociedade atual.
Os crescentes fluxos de informação e os constantes avanços
Assim, procuramos levar o aluno a:
da ciência e da tecnologia são marcos substantivos para a compre-
- Refletir sobre o processo de globalização e sua interferência
ensão do século XXI.
no modo de pensar e agir da sociedade contemporânea;
A popularização das tecnologias, proveniente dos avanços
técnicos, científicos e da informação, tem aproximado distâncias, - Estabelecer relações entre o processo de globalização em
ampliado à ação dos mercados e gerado profundas mudanças no curso e os pressupostos do sistema capitalista;
perfil do trabalho e nas relações entre culturas e Estados. Esse pro- - Compreender que a revolução técnico científica atual é fi-
cesso, que encurta distâncias, aproxima mercados e cria redes de nanciada e gerida pelas grandes corporações, atores principais
conexão imediata e virtual entre os mais diversos países e regiões, desse processo;
é chamado de globalização. - Analisar as alterações ocorridas no espaço geográfico, resul-
tantes da incorporação das novas tecnologias de produção e circu-
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA lação de mercadorias nos serviços e nas culturas;
A competência fundamenta-se nas seguintes habilidades: - Analisar alternativas que permitam tornar o processo de glo-
- Identificar e interpretar formas de registro das novas tecnolo- balização mais includente e solidário, respeitando os valores hu-
gias na organização do trabalho e da vida social e pessoal. manos e a diversidade sociocultural.
- Interpretar fatores que permitam explicar o impacto das no- O professor poderá acrescentar outras atividades, relacionan-
vas tecnologias no processo de desterritorialização da produção do as problematizações incorporadas ao texto e buscando criar um
industrial e agrícola. ambiente de reflexão a partir do que é vivido e percebido pelos
- Analisar a mundialização da economia e os processos de alunos em seu cotidiano. Explorar imagens do passado e do pre-
interdependência acentuados pelo desenvolvimento de novas tec- sente de lugares da cidade onde vivem, trabalhando com os meios
nologias. de comunicação e informação, agências bancárias e as novas tec-

Didatismo e Conhecimento 77
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
nologias (caixas eletrônicos), o uso dos celulares e das linhas de ______. O século da biotecnologia: a valorização dos genes e
telefonia fixa, o ritmo do lugar (as modificações no trânsito e a a reconstrução do
incorporação de meios de vigilância eletrônicos), os hábitos cul- mundo. São Paulo: Makron Books, 1999. 290 p. Tradução de
turais (a influência da TV e da Internet), enfim o que permaneceu Arão Scepiro.
e o que mudou. SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento
Em resumo, o capítulo está organizado nos seguintes tópicos: único à consciência
1. Introdução – Apresentação da situação-problema e termino- universal. 2. ed. Rio de Janeiro, Record, 2000.174 p.
logia utilizada pelos recursos da informática. SINGER, P. Globalização e desemprego: diagnóstico e alter-
2. A Revolução Tecnológica do Século XX – O que mudou e nativas. 4. ed. São Paulo:
o que permaneceu na organização do trabalho ao longo do século Contexto, 2000. 139 p.
XX.
3. O Choque da Eletricidade – As mudanças substanciais Os homens, o tempo, o espaço.
ocorridas a partir da introdução da eletricidade nos processos pro- Paulo Eduardo Dias de Mello
dutivos e na vida social.
4. As Tecnologias Contemporâneas e a Segunda Guerra Mun- O capítulo foi elaborado como um instrumento de apoio ao
dial – Alterações resultantes do avanço das tecnologias de infor- trabalho do professor e do aluno, visando a desenvolver um con-
mação a partir das guerras mundiais. junto de competências e habilidades básicas para área de Ciências
5. O Fim dos Empregos? – A incorporação das tecnologias Humanas.
no setor produtivo que introduziu a automação nas fábricas e mo-
dificou as formas de gerenciamento no setor terciário de modo a As habilidades são:
provocar alterações substanciais no emprego. - Identificar os instrumentos para ordenar os eventos histó-
6. Educação e trabalho – A alteração relativa à inserção das ricos, relacionando-os a fatores geográficos, sociais, econômicos,
novas tecnologias que exige do cidadão novas habilidades e com- políticos e culturais.
petências. - Analisar as interferências ocorridas em diferentes grupos so-
7. As tecnologias no campo – A mecanização agrícola e a apli- ciais, considerando as permanências ou transformações ocorridas.
cação de recursos provenientes da biotecnologia que têm revolu- - Interpretar realidades históricogeográficas, a partir de conhe-
cionado o campo e a produção, ao mesmo tempo em que colocam cimentos sobre economia, práticas sociais e culturais.
em xeque os interesses de grupos econômicos controladores do - Confrontar diferentes escalas espaço/temporais, a partir de
setor, acima da preocupação com o bem estar das populações. realidades históricas e geográficas.
8. Globalização dos mercados e os fluxos de transporte e in- - Posicionar-se criticamente sobre os processos de transforma-
formação – Mudanças ocorridas ao longo do tempo nas comunica- ção políticas, econômicas, culturais e sociais.
ções e que provocaram alterações de hábitos familiares e pessoais.
9. Analisando a Globalização – Reflexão diante das alterações DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA
provenientes das novas tecnologias e o impacto da globalização
nos modos de produzir, agir e pensar da sociedade atual. Pensamos que o desenvolvimento destas habilidades e com-
petência está ligado tanto ao conteúdo a que o aluno tem acesso
Bibliografia quanto às atividades de aprendizagem que ele desenvolve na sala
de aula. Por isso, não se espera que uma simples leitura do capítulo
CHESNAIS, F. (Org.). A mundialização financeira: gênese, habilite o aluno a saber realizar múltiplas tarefas e estabelecer re-
custos e riscos. São Paulo: lações entre os conteúdos de forma crítica e ativa. Nesse caso, isto
Xamã, 1998. 334 p. Tradução de Carmem Cristina Caccioca- depende fundamentalmente de como o professor decide utilizar o
no et al. material que estará à sua disposição.
DE MASI, D. Desenvolvimento sem trabalho. 4. ed. São Pau- Apostamos que o professor possa fazer uso do capítulo com-
lo: Esfera, 1999. 403 p. binando leituras, atividades e pesquisas ou utilizando outros recur-
Tradução de Eugênia Deheinzelin. sos didáticos que tornem a aula dinâmica, estimulando a participa-
______. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós- ção dos alunos. A aula pode ser um espaço de diálogo e reflexão
-industrial. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1999. 354 p. Tradu- coletiva sobre as diferentes vivências de cada um em relação aos
ção de Yadir A. Figueiredo. temas propostos. Daí a importância de propor problemas, de criar
GATTAI, Z. Anarquistas graças a Deus. 25. ed. Rio de Janei- situações e inventar novas questões que podem estimular o proces-
ro: Record, 1997. 271 p. so de construção do conhecimento pelos alunos.
GIDDENS, A. Mundo em descontrole: o que a globalização O capítulo traz como conceitos norteadores o tempo e o espa-
está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. 108 p. Tradu- ço. Nosso objetivo foi demonstrar as diversas facetas que envol-
ção de Maria Luiza X. de A. Borges. vem a discussão sobre estes conceitos, que são de importância vi-
KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta tal no desenvolvimento das pessoas, na organização da vida social
vendido. Rio de Janeiro: Record, 2002. 543 p. Tradução de Ryta e que implicam relações com a cultura e o poder nas sociedades.
Vinagre. Partimos de uma problematização que não se restringiu ao uso
RIFKIN, J. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos ní- instrumental dos conceitos, em geral, voltados para o localizar-se
veis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São no tempo e no espaço. Nossa problemática inicial é como nossa
Paulo: Makron Books, 1995. 348 p. Tradução de Ruth Gabriela sociedade tem sido empurrada para uma aceleração do tempo e um
Bahr. virtual encurtamento dos espaços.

Didatismo e Conhecimento 78
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Este discurso que aparece na mídia, como resultado da globa- Abordamos também o assunto dos fusos horários em exem-
lização, é uma espécie de símbolo da ultramodernidade. A veloci- plos cotidianos, estimulando a leitura de mapas.
dade e a facilidade das comunicações são vistas com positividade, Para conclusão, optamos pelo retorno à reflexão sobre a perda
pois representariam benefícios para todos e rompimento com o da dimensão do tempo e do espaço no processo de mudanças ace-
mundo tradicional e “atrasado”. Será mesmo assim? O que se ga- leradas do mundo de hoje.
nha e se perde neste processo? Quem mais se beneficia? Talvez este tenha sido nosso propósito básico, a reflexão.
Além disso, a partir de quando esta forma de viver o tempo se Esperamos que o capítulo contribua para que esta reflexão seja
tornou predominante na história? coletiva, estimulando a participação dos alunos nas discussões a
Isso nos encaminha para a discussão sobre os diferentes tem- partir da análise de suas próprias vivências, de suas preocupações
pos, as diversas formas sociais de vivenciar a passagem do tempo e e suas histórias de vida. Acreditamos que o diálogo aberto, em sala
de medi-lo. Para isso, apresentamos ao aluno a discussão sobre as de aula, pode facilitar para o aluno a construção de uma melhor
múltiplas formas de tempo: pessoal, biológico, cíclico, geológico, percepção de si mesmo, nos espaços e tempos históricos e sociais.
astronômico, mitológico.
Apresentamos as diversas formas de medir o tempo elabo-
radas por diferentes sociedades ao longo da história. Os instru- 3. BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO
mentos utilizados, os padrões e as escalas de medidas variavam de BÁSICA. ORIENTAÇÕES CURRICULARES
cultura para cultura, de época para época. Nosso exemplo destaca PARA O ENSINO MÉDIO: CIÊNCIAS HUMA-
a vivência do tempo de uma nação indígena do norte do Brasil, os NAS E SUAS TECNOLOGIAS; HISTÓRIA.
Tembé-Tenetehara, mostrando como este povo construiu um com- BRASÍLIA, MEC/SEB, 2006.
plexo sistema de medição do tempo pelas observações da natureza,
chegando a uma ótima percepção do tempo astronômico. A com-
paração com outras formas de perceber o tempo desenvolvidas por
outras culturas do passado mostra a dimensão antropológica da Ciências Humanas e suas Tecnologias
vivência temporal dos homens.
Partindo dessas reflexões, chegamos ao relógio, instrumento Carta ao Professor
mecânico que representa, por excelência, a difusão de uma forma
de perceber o tempo como mercadoria, típica da sociedade capita- As Orientações Curriculares para o Ensino Médio foram ela-
lista, urbana e industrial que surge a partir da Revolução Industrial. boradas a partir de ampla discussão com as equipes técnicas dos
Mais que simples busca de exatidão, a marcação do tempo pelo Sistemas Estaduais de Educação, professores e alunos da rede pú-
relógio, da forma como passa a ser utilizada no capitalismo revela blica e representante da comunidade acadêmica.
novos interesses em jogo na sociedade. É importante frisar que o O objetivo deste material é contribuir para o diálogo entre pro-
relógio não surge com o capitalismo, mas é ele que difunde um uso fessor e escola sobre a prática docente.
social aplicado ao controle do tempo como mercadoria. A qualidade da escola é condição essencial de inclusão e de-
Do tempo curto dos segundos, minutos, horas que preenchem mocratização das oportunidades no Brasil, e o desafio de oferecer
um dia, chegamos ao tempo longo dos calendários. Além dos co- uma educação básica de qualidade para a inserção do aluno, o de-
nhecimentos pressupostos para elaboração dos calendários, busca- senvolvimento do país e a consolidação da cidadania é tarefa de
mos discutir os vínculos de sua organização com formas de poder, todos.
particularmente as religiões, que buscam o controle da vida social. Para garantir a democratização do acesso e as condições de
Na sequência, apresentamos como os historiadores entendem, permanência na escola durante as três etapas da educação bási-
dividem e localizam os tempos históricos. Neste caso, o exercício ca – educação infantil, ensino fundamental e médio –, o gover-
com as linhas de tempo é fundamental. Para isso, sugerimos com- no federal elaborou a proposta do Fundeb (Fundo de Manuten-
parações entre a organização da linha do tempo histórico proposta ção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
pelos índios Terena e a linha histórica tradicional do Brasil. Da Profissionais da Educação). A Proposta de Emenda à Constituição
mesma maneira, visando a questionar os critérios de periodização, (PEC) do Fundeb foi construída com a participação dos dirigentes
propomos a leitura e discussão sobre a Pré- História brasileira, das redes de ensino e de diversos segmentos da sociedade. Dessa
usando como referência a proposta dos arqueólogos do Museu de forma, colocou-se acima das diferenças o interesse maior pela edu-
Arqueologia da USP – Universidade de São Paulo. Para discutir e cação pública de qualidade.
compreender o debate sobre as diferentes durações do tempo, os Entre as várias ações de fortalecimento do ensino médio des-
ritmos e níveis de duração dos acontecimentos, seria interessan- tacam-se o Prodeb (Programa de Equalização das Oportunidades
te, depois da leitura, realizar algum exercício prático. Para esse de Acesso à Educação Básica) e a implementação do PNLEM
exercício, o professor pode tomar como referências um episódio (Programa Nacional do Livro do Ensino Médio).
da história local ou um acontecimento comum da história de vida A Secretaria de Educação Básica do MEC passou a publicar
dos alunos. Localizado o acontecimento no tempo e no espaço, ainda livros para o professor, a fi m de apoiar o trabalho científico
propomos realizar procedimentos de contextualização, localizando e pedagógico do docente em sala de aula.
as diferentes dimensões em que o fato se insere, estabelecendo as A institucionalização do ensino médio integrado à educação
diversas durações dos acontecimentos a ele relacionados. profissional rompeu com a dualidade que historicamente separou
Finalizamos discutindo melhor a noção de espaço e suas dife- os estudos preparatórios para a educação superior da formação
rentes formas de percepção: corporal, geográfica, políticoadminis- profissional no Brasil e deverá contribuir com a melhoria da quali-
trativa, econômica, cultural. dade nessa etapa final da educação básica.

Didatismo e Conhecimento 79
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A formação inicial e continuada também passa a ser oferecida Trata-se de uma ação de fôlego: envolve crenças, valores e, às
em parceria com as Secretarias de Educação e instituições de en- vezes, o rompimento com práticas arraigadas.
sino superior para a formação dos professores, com a implantação A Secretaria de Educação Básica, por intermédio do Departa-
do Pró-Licenciatura, do ProUni (Programa Universidade para To- mento de Política do Ensino Médio, encaminha para os professores
dos) e da Universidade Aberta do Brasil. o documento Orientações Curriculares para o Ensino Médio com
Preparar o jovem para participar de uma sociedade complexa a intenção de apresentar um conjunto de reflexões que alimente a
como a atual, que requer aprendizagem autônoma e contínua ao sua prática docente.
longo da vida, é o desafio que temos pela frente. Esta publicação A proposta foi desenvolvida a partir da necessidade expressa
não é um manual ou uma cartilha a ser seguida, mas um instru- em encontros e debates com os gestores das Secretarias Estaduais
mento de apoio à reflexão do professor a ser utilizado em favor de Educação e aqueles que, nas universidades, vêm pesquisando e
do aprendizado. Esperamos que cada um de vocês aproveite estas discutindo questões relativas ao ensino das diferentes disciplinas.
orientações como estímulo à revisão de práticas pedagógicas, em A demanda era pela retomada da discussão dos Parâmetros Curri-
culares Nacionais do Ensino Médio, não só no sentido de aprofun-
busca da melhoria do ensino.
dar a compreensão sobre pontos que mereciam esclarecimentos,
como também, de apontar e desenvolver indicativos que pudessem
Ministério da Educação Secretaria de Edu-
oferecer alternativas didático-pedagógicas para a organização do
cação Básica trabalho pedagógico, a fi m de atender às necessidades e às expec-
tativas das escolas e dos professores na estruturação do currículo
Apresentação para o ensino médio.
A elaboração das reflexões que o Ministério da Educação traz
Os atuais marcos legais para oferta do ensino médio, consubs- aos professores iniciou em 2004. Desde então, definiu-se um enca-
tanciados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº. minhamento de trabalho que garantisse a articulação de represen-
9394/96), representam um divisor na construção da identidade da tações da universidade, das Secretarias Estaduais de Educação e
terceira etapa da educação básica brasileira. dos professores para alcançar uma produção final que respondesse
Dois aspectos merecem destaque. a necessidades reais da relação de ensino e aprendizagem.
O primeiro diz respeito às finalidades atribuídas ao ensino mé- Para dar partida a essa tarefa, constituiu-se um grupo de tra-
dio: o aprimoramento do educando como ser humano, sua forma- balho multidisciplinar com professores que atuam em linhas de
ção ética, desenvolvimento de sua autonomia intelectual e de seu pesquisa voltadas para o ensino, objetivando traçar um documen-
pensamento crítico, sua preparação para o mundo do trabalho e o to preliminar que suscitasse o debate sobre conteúdos de ensino
desenvolvimento de competências para continuar seu aprendizado. médio e procedimentos didático-pedagógicos, contemplando as
(Art. 35) especificidades de cada disciplina do currículo.
O segundo propõe a organização curricular com os seguintes Na elaboração de material específico para cada disciplina do
componentes: currículo do ensino médio, o grupo procurou estabelecer o diálogo
• base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema necessário para garantir a articulação entre as mesmas áreas de
de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada conhecimento.
que atenda a especificidades regionais e locais da sociedade, da A publicação do documento preliminar ensejou a realização
cultura, da economia e do próprio aluno (Art. 26); de cinco Seminários Regionais e de um Seminário Nacional sobre
• planejamento e desenvolvimento orgânico do currículo, su- o Currículo do Ensino
perando a organização por disciplinas estanques; Médio. A pauta que orientou as reuniões tratou da
• integração e articulação dos conhecimentos em processo especificidade e do currículo do ensino médio, tendo como refe-
rência esse documento.
permanente de interdisciplinaridade e contextualização;
A análise dessa produção contou com representantes das
• proposta pedagógica elaborada e executada pelos estabe-
Equipes Técnicas das Secretarias Estaduais de Educação, com
lecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as de seu
professores de cada estado participante e, em alguns casos, com a
sistema de ensino; representação de alunos.
• participação dos docentes na elaboração da proposta pedagó- Após os seminários, deu-se início ao processo bastante inten-
gica do estabelecimento de ensino. so de consolidação das análises e considerações levantadas nos
O grande avanço determinado por tais diretrizes consiste na debates e à apresentação do trabalho a demais professores-pesqui-
possibilidade objetiva de pensar a escola a partir de sua própria sadores para leitura crítica do resultado alcançado.
realidade, privilegiando o trabalho coletivo. Assim, este documento que chega à escola é fruto de discus-
Ao se tratar da organização curricular tem-se a consciência de sões e contribuições dos diferentes segmentos envolvidos com o
que a essência da organização escolar é, pois, contemplada. Por ou- trabalho educacional. O próprio processo, envolvendo diferentes
tro lado, um conjunto de questões emerge, uma vez que o currículo representações e focos de análise, indica a natureza do texto cujo
traz na sua construção o tratamento das dimensões histórico-social resultado está aqui apresentado. Isto é, um material que apresenta
e epistemológica. A primeira afirma o valor histórico e social do e discute questões relacionadas ao currículo escolar e a cada disci-
conhecimento; a segunda impõe a necessidade de reconstruir os plina em particular.
procedimentos envolvidos na produção dos conhecimentos. O currículo é a expressão dinâmica do conceito que a esco-
Além disso, a política curricular deve ser entendida como la e o sistema de ensino têm sobre o desenvolvimento dos seus
expressão de uma política cultural, na medida em que seleciona alunos e que se propõe a realizar com e para eles. Portanto, qual-
conteúdos e práticas de uma dada cultura para serem trabalhados quer orientação que se apresente não pode chegar à equipe docente
no interior da instituição escolar. como prescrição quanto ao trabalho a ser feito.

Didatismo e Conhecimento 80
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
O Projeto Pedagógico e o Currículo da Escola devem ser ob- O tratamento da Filosofia como um componente curricular
jetos de ampla discussão para que suas propostas se aproximem do ensino médio, ao mesmo tempo em que vem ao encontro da
sempre mais do currículo real que se efetiva no interior da escola cidadania, apresenta-se, porém, como um desafio, pois a satisfa-
e de cada sala de aula. ção dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade só
É oportuno lembrar que os debates dos diferentes grupos ma- são possíveis se forem estabelecidas condições adequadas para sua
nifestaram grandes preocupações com as bases materiais do traba- presença como disciplina, implicando a garantia de recursos mate-
lho docente. riais e humanos. Ademais, pensar a disciplina Filosofia no ensino
Certamente a situação funcional da equipe escolar, envolven- médio exige também uma discussão sobre os cursos de graduação
do jornada de trabalho, programas de desenvolvimento profissional em Filosofia, que preparam os futuros pressionais, e da pesquisa
e condições de organização do trabalho pedagógico, tem um peso filosófica em geral, uma vez que, especialmente nessa discipli-
significativo para o êxito do processo de ensino-aprendizagem. na, não se pode dissociá-la do ensino, da produção filosófica e da
Cabe à equipe docente analisar e selecionar os pontos que me- transmissão do conhecimento.
Considerando a reflexão acerca da Filosofia no ensino médio,
recem aprofundamento. O documento apresentado tem por inten-
cabe mencionar uma dificuldade peculiar: trata-se da reimplanta-
ção primeira trazer referências e reflexões de ordem estrutural que
ção de uma disciplina por muito tempo ausente na maioria das
possam, com base no estudo realizado, agregar elementos de apoio
instituições de ensino, motivo pelo qual ela não se encontra conso-
à sua proposta de trabalho.
lidada como componente curricular dessa última etapa da educa-
A Secretaria de Educação Básica, por meio do Departamento ção básica quer em materiais adequados, quer em procedimentos
de Políticas de Ensino Médio busca incentivar, com esta publica- pedagógicos, quer por um histórico geral e suficientemente acei-
ção, a comunidade escolar para que conceba a prática cotidiana to. Tendo deixado de ser obrigatória em 1961 (Lei no 4.024/61)
como objeto de reflexão permanente. Somente assim, se encontra- e sendo em 1971 (Lei nº 5.692/71) excluída do currículo escolar
rá um caminho profícuo para a educação. oficial, criou-se um hiato em termos de seu amadurecimento como
disciplina. E embora na década de 1990 (Lei nº 9.394/96) se tenha
Diretoria do Departamento de Políticas de Ensino Médio determinado que ao final do ensino médio o estudante deva “domi-
nar os conteúdos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício
CONHECIMENTOS DE FILOSOFIA da cidadania” (artigo 36), nem por isso a Filosofia passou a ter um
tratamento de disciplina, como os demais conteúdos, mantendo-se
INTRODUÇÃO no conjunto dos temas ditos transversais. Assim, a idéia de redis-
cutir os parâmetros curriculares para a disciplina traz novo fôlego
A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no para a sua consolidação entre os componentes curriculares do en-
ensino médio, pois isso é condição para que ela possa integrar sino médio, e, com eles e outras iniciativas, a filosofia pode e deve
com sucesso projetos transversais e, nesse nível de ensino, com retomar seu lugar na formação de nossos estudantes.
as outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do Respeitada a diversidade própria dos níveis de ensino, vemos
educando. No entanto, mesmo sem o status de obrigatoriedade, desenhar-se, sem solução de continuidade e em todo o país, um
a Filosofia, nos últimos tempos, vem passando por um processo padrão elevado e comum tanto para o ensino de Filosofia como
de consolidação institucional, correlata à expansão de uma grande para a formação de docentes, superando-se progressivamente a an-
demanda indireta, representada pela presença constante de preocu- tiga objeção de que por ausência de profissionais qualificados seria
pações filosóficas de variado teor. Chama a atenção um leque de desastrosa a introdução da Filosofia no ensino médio. Aqui, entre
temas, desde reflexões sobre técnicas e tecnologias até inquirições outros motivos, a qualificação desejada para nossos profissionais
metodológicas de caráter mais geral concernentes a controvérsias decorre, em grande medida, da ampliação e da melhoria dos cur-
sos de graduação e da clara ampliação da rede de pós-graduação,
nas pesquisas científicas de ponta, expressas tanto em publicações
com a existência de quase trinta programas de pós-graduação em
especializadas como na grande mídia.
Filosofia em todo o país.
Também são prementes as inquietações de cunho ético, que
Um ponto central, cuja relevância talvez escape a áreas que já
são suscitadas por episódios políticos nos cenários nacional e in-
o têm resolvido, é a obrigatoriedade do ensino de Filosofia. Muitas
ternacional, além dos debates travados em torno dos critérios de das ambigüidades dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
utilização das descobertas científicas. anteriores resultam da indefinição, que consiste em apontar a ne-
Situação análoga foi detectada em outras instâncias de discus- cessidade da Filosofia, sem oferecer-lhe, contudo, as adequadas
são pública e mobilização social, como o evidenciam, por exem- condições curriculares. A afirmação da obrigatoriedade, inclusive
plo, os debates relativos à conduta de veículos de comunicação, na forma da lei, torna-se essencial para qualquer debate interdis-
tais como televisão e rádio. Ainda que, na grande maioria dos ca- ciplinar, no qual a Filosofia nada teria a dizer, não fora também
sos, não se possa falar de uma conceituação rigorosa, não se pode ela tratada como disciplina, ou seja, como conjunto particular de
ignorar que nessas discussões estão envolvidos temas, noções e conteúdos e técnicas, todos eles amparados em uma história rica
critérios de ordem filosófica. Isso significa que há uma certa de- de problematização de temas essenciais e que, por conseguinte,
manda da sociedade por uma linha de reflexão que forneça instru- exige formação profissional específica, só podendo estar a car-
mentos para o adequado equacionamento de tais problemas. Uma go de profissionais da área. Caso contrário, ela se tornaria uma
prova disso é que mesmo a grande mídia não se furta ao aproveita- vulgarização perigosa de boas intenções que só podem conduzir
mento dessas oportunidades para levar a público debates de idéias a péssimos resultados. Cabe insistir na centralidade da História
no nível filosófico, ainda que frequentemente de modo superficial da Filosofia como fonte para o tratamento adequado de questões
ou unilateral. filosóficas.

Didatismo e Conhecimento 81
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Com efeito, não realizamos no ensino médio uma simplificação Os PCN vigentes para a disciplina, assim como os anterio-
ou uma mera antecipação do ensino superior e sim uma etapa res, sofrem da ambigüidade que pretenderam curar e muitas vezes
específica, com regras e exigências próprias, mas essas só podem oscilam entre enunciar pouco e enunciar excessivamente. Assim,
ser bem compreendidas ou satisfeitas por profissionais formados ao lado de uma cautela excessiva, podemos encontrar passos por
em contato com o texto filosófico e, desse modo, capazes de ofe- demais doutrinários que terminam por roubar à Filosofia um de
recer tratamento elevado de questões relevantes para a formação seus aspectos mais ricos, a saber, a multiplicidade de perspectivas,
plena dos nossos estudantes. que não deve ser reduzida a uma voz unilateral. Mostrou-se, pois,
Como sabemos uma simples didática (mesmo a mais animada necessária uma reformulação que evite imposições doutrinárias,
e aparentemente crítica) não é por si só filosófica. Não basta então mesmo quando resultantes das melhores intenções. Um currículo
o talento do professor se não houver igualmente uma formação de Filosofia deve contemplar a diversidade sem desconsiderar o
filosófica adequada e, de preferência, contínua. Isto é, pois, parte professor que tem suas posições, nem impedir que ele as defenda.
essencial desta discussão. Ser capaz de valer-se de elementos do Essa honestidade é inclusive condição de coerência. Ao mesmo
cotidiano pode tornar rica, por exemplo, uma aula de Física, mas tempo, a orientação geral em um currículo de Filosofia pode tão-
não torna um discurso sobre a natureza uma aula de Física, no -somente ser filosófica, e não especificamente kantiana, hegeliana,
sentido disciplinar que estamos dispostos, coletiva e institucional- positivista ou marxista. A cautela filosófica é ainda mais necessária
mente, a reconhecer. Da mesma forma, a utilização de valorosos nesse nível de ensino, no qual posturas por demais doutrinárias
materiais didáticos pode ligar um conhecimento filosófico abstra- podem sufocar a própria possibilidade de diálogo entre a Filosofia
to à realidade, inclusive ao cotidiano do estudante, mas a simples e as outras disciplinas, cabendo sempre lembrar que as tomadas
alusão a questões éticas não é ética, nem filosofia política a mera de posições, mesmo as politicamente corretas, não são ipso facto
menção a questões políticas, não sendo o desejo de formar cida- filosoficamente adequadas ou propícias ao ensino.
dãos o suficiente para uma leitura filosófica, uma vez que tampou- Nesse debate, a noção de competência não pode ser apresenta-
co é prerrogativa exclusiva da Filosofia um pensamento crítico ou da como solução mágica para as dificuldades do ensino, mas tam-
a preocupação com os destinos da humanidade. Com isso, a boa bém não constitui obstáculo intransponível. Afastou-se assim tudo
formação em Filosofia é, sim, condição necessária, mesmo quando que nesse termo possa sugerir competição ou adequação fl exível
ao mercado de trabalho, ressaltando-se, primeiro, que a definição
não suficiente, para uma boa didática fi losófica.
de competência não pode ser exterior à própria disciplina, e, se-
Uma sociedade que compreenda a obrigatoriedade da Filosofia
gundo, que a competência pode realizar-se no interesse de contato
não a pode desejar como um pequeno luxo, um saber supérfluo que
com nossa tradição e nossa especificidade filosófica. Nesse sen-
venha a acrescentar noções aparentemente requintadas a saberes
tido, o currículo desejado se articula com o perfil de profissional
outros, os verdadeiramente úteis. A Filosofia cumpre, afinal, um
que deve ser formado nos cursos de graduação em Filosofia, cujas
papel formador, articulando noções de modo bem mais duradouro
habilidades e competências são bem definidas em documento da
que o porventura afetado pela volatilidade das informações. Por
comissão de especialistas no ensino de Filosofia da Secretaria de
isso mesmo, compreender sua importância é também conceder-
Educação Superior (SESu) do Ministério da Educação.
-lhe tempo. De modo específico, importa atribuir-lhe carga horária Essas considerações iniciais reproduzem, em parte, o Rela-
suficiente à fixação do que lhe é próprio. Nesse sentido, propõe-se tório das Discussões sobre as Orientações Curriculares do Ensino
um mínimo de duas horas-aula semanais para a disciplina, apon- Médio e a Filosofia, resultante de uma série de seminários regionais
tando ademais que deva ser ministrada em mais de uma série do e de um seminário nacional realizados em 2004 sob a coordenação
ensino médio. Não desconhecemos, porém, que essas questões en- do Departamento de Políticas de Ensino Médio da Secretaria de
volvem diferenças regionais e são subordinadas a distintas corre- Educação Básica do Ministério da Educação. Esse texto é uma das
lações políticas, de sorte que deixamos essa proposição como um peças institucionais que subsidiam o presente documento, dando-
horizonte a ser considerado nas formulações dos diversos projetos -lhe as coordenadas, em conjunto com o texto Os Parâmetros Cur-
pedagógicos. riculares do Ensino Médio e a Filosofia, as Diretrizes Curriculares
Outra decorrência da obrigatoriedade da Filosofia é, por con- aos Cursos de Graduação em Filosofia1 e a Portaria das Diretrizes
seguinte, uma reflexão sobre sua especificidade e seus pontos de do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2005
contato com outras disciplinas, cabendo ressaltar que, a nosso ju- para a Área de Filosofia.
ízo, a Filosofia não se insere tão-somente na área de ciências hu- O processo de redação deste documento coincidiu com um
manas. A compreensão da Filosofia como disciplina reforça, sem novo quadro institucional para a disciplina Filosofia. Em primeiro
paradoxo, sua vocação transdisciplinar, tendo contato natural com lugar, os cursos de graduação em Filosofia passaram a ser subme-
toda ciência que envolva descoberta ou exercite demonstrações, tidos à avaliação institucional, tendo sido nomeada uma comissão
solicitando boa lógica ou reflexão epistemológica. Da mesma para elaborar os critérios para a futura elaboração de provas para
forma, pela própria valorização do texto filosófico, da palavra e o Enade 2005 da área de Filosofia. Os trabalhos dessa comissão
do conceito, verifica-se a possibilidade de estabelecer proveitoso certamente contribuíram para o amadurecimento das discussões
intercâmbio com a área de linguagens. Além de contribuir para sobre a composição da disciplina para o ensino médio, na medi-
a integração dos currículos e das outras disciplinas, a afirmação da em que se afirmaram algumas posições acerca da graduação e
da Filosofia como componente curricular do ensino médio traz à das competências esperadas do profissional formado nos cursos
tona questões inerentes à própria disciplina, tais como: a concep- de licenciatura em Filosofia. A primeira decisão importante da co-
ção teórica do ensino de Filosofia como Filosofia; as abordagens missão foi a de não separar, no momento da avaliação, o bachare-
metodológicas específicas; e, sobretudo, os conteúdos que podem lado e a licenciatura em Filosofia, uma vez que, como bem rezam
estruturar o ensino. as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia,

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
“ambas as habilitações devem oferecer substancialmente a mes- afirma que o educando ao final do ensino médio deve demonstrar o
ma formação básica, em termos de conteúdo e de qualidade, com “domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessá-
uma sólida formação de História da Filosofia, que capacite para a rios ao exercício da cidadania”, faz-se necessária alguma compre-
compreensão e a transmissão dos principais temas, problemas, sis- ensão, mesmo provisória e descritiva, do que se pode entender por
temas filosóficos, assim como para a análise e a reflexão crítica da “Filosofia”, de modo que, em seguida, a possamos também rela-
realidade social em que se insere”. Em segundo lugar, decidiu-se cionar com uma possível compreensão do termo “cidadania” e seu
que a avaliação de cursos de graduação em Filosofia deve tomar importante exercício. O termo “Filosofia” recobre muitos sentidos,
como eixo central o currículo mínimo composto pelas cinco maté- mesmo em sua prática profissional. Em certa medida, contra uma
rias básicas: História da Filosofia, Teoria do Conhecimento, Ética, ingênua cobrança lógica de univocidade, a ambigüidade não é, em
Lógica e Filosofia Geral: Problemas Metafísicos. Enfatizando o seu caso, um malefício, resultando de uma sua exigência íntima.
papel da história da filosofia e das demais disciplinas básicas, a Se a questão “o que é Física?” não é exatamente um problema físi-
comissão indicou os pontos centrais da avaliação do profissional co, a questão “o que é Filosofia?” é talvez um primeiro e recorrente
que irá atuar com a citada disciplina. Com isso, concorda-se com a problema filosófico, e a ela cada filósofo sempre procurará res-
posição expressa nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Gradu- ponder baseado nos conceitos pelos quais elabora seu pensamento.
ação em Filosofia de que o elenco de tais disciplinas tem permitido Não há então como controlar universalmente tal ambigüidade seja
aos melhores cursos do país um ensino fl exível e adequado. por decreto ou por alguma definição restritiva. Não obstante, vale
Ao lado disso, tomam corpo em todo o país as discussões observar que no interior de cada pensamento a exigência de univo-
acerca da formação do professor de Filosofia no ensino médio, cidade volta a impor-se.
especialmente em função dos impactos causados nos cursos de É comum o embaraço que sentimos diante da pergunta sobre
graduação pela nova legislação para as licenciaturas (CNE. Re- o sentido da Filosofia. De certa forma, é como se nos indagassem
solução CNE/CP 2/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 4 de acerca de algo que não está nem pode estar bem resolvido. Não
março de 2002. Seção 1, p. 9). A nova legislação estabelece, em fugimos aqui a uma resposta. Ao contrário, indicamos explicita-
seu Artigo 1o, 400 horas de prática como componente curricular mente, em primeiro lugar, que nenhuma pode ser ingênua, uma vez
e 400 horas de estágio curricular supervisionado. Tendo em conta que cada resposta está comprometida com pontos de vista eles pró-
as dificuldades de se integralizar tal carga horária sem perder de prios filosóficos. Assim, responder à pergunta é já filosofar, sendo
vista a formação básica em conteúdo e a qualidade da formação do perigosa e enganadora a inocência. Uma resposta aparentemente
profissional da área (formação que não deve diferenciar, substan- universal se situa logo em um campo particular (no aristotelismo,
cialmente, sob esse aspecto, o bacharel e o licenciado), é possível no platonismo, no marxismo, etc.), sendo a trama que lhe confere
afirmar que a preparação específica de atividades e a seleção de sentido um misto de autonomia do pensador e de instalação em
material didático para o ensino médio podem e devem ser consi- um contexto histórico. Ademais, se descrevemos alguns procedi-
deradas quando da integralização curricular, orientando as ativi- mentos característicos do filosofar, não importando o tema a que
dades práticas previstas tanto em oficinas de pesquisa e produção se volta nem a matriz teórica em que se realiza, podemos localizar
de material didático como em sua aplicação durante o estágio su- o que caracteriza o filosofar. Afinal é sempre distintivo do trabalho
pervisionado. dos filósofos sopesar os conceitos, solicitar considerando, mes-
Portanto, o presente documento busca sistematizar os resulta- mo diante de lugares-comuns que aceitaríamos sem reflexão (por
dos de uma ampla discussão em curso na área de Filosofia, desde exemplo, o mundo existe?) ou de questões bem mais intrincadas,
a caracterização da disciplina até a preparação do profissional que como a que opõe o determinismo de nossas ações ao livre arbítrio.
irá atuar com ela, oferecendo subsídios para a definição de temas Com isso, a Filosofia costuma quebrar a naturalidade com que usa-
e conteúdos a serem trabalhados, bem como do material didático a mos as palavras, tornando-se reflexão.
ser confeccionado. Ao evitar estabelecer de antemão os conteúdos Pretende decerto ser um discurso consciente das coisas, como
ou uma linha a ser seguida e enfatizar ainda a especificidade da a ciência; entretanto, diferencia-se dessa por pretender ainda ser
Filosofia em relação às outras disciplinas, bem como a necessidade um discurso consciente de si mesmo, um discurso sobre o discur-
de um ensino de qualidade no ensino médio, destaca-se o respeito so, um conhecimento do conhecimento. Não pergunta simples-
tanto ao profissional da área com as peculiaridades de sua forma- mente se isso ou aquilo é verdadeiro; antes indaga: o que pode
ção quanto ao caráter plural e diverso da Filosofia. Tem-se aqui ser verdadeiro? Ou ainda, o que é a verdade? Por isso, a Filosofia
como pressuposto que não existe uma Filosofia, mas Filosofias, e é corrosiva mesmo se reverente, pois até a covardia ou a servidão
que a liberdade de opção dentro de seu universo não restringe seu que porventura algum filósofo defenda exigirá considerandos e
papel formador. passará pelo crivo da linguagem.
Se a Filosofia não é uma ciência (ao menos não no sentido
IDENTIDADE DA FILOSOFIA em que se usa essa palavra para designar tradições empíricas de
pesquisa voltadas para a construção de modelos abstratos dos fe-
A pergunta acerca da natureza da filosofia é um primeiro e nômenos) e tampouco uma das belas-artes (no sentido poético de
permanente problema filosófico. Não podendo ser solucionado ser uma atividade voltada especificamente para a criação de obje-
aqui mais que parcialmente (nem devendo ser solucionado inte- tos concretos), ela sempre teve conexões íntimas e duradouras com
gralmente em nenhum lugar), cabe-nos, porém, a tarefa de deli- os resultados das ciências e das artes. Ao dirigir o olhar para fora
near alguns elementos para uma contextualização mais adequada de si, no entanto, a Filosofia tem a necessidade, ao mesmo tempo,
dos conhecimentos filosóficos no ensino médio. Tomando-se como de se definir no interior do filosofar como tal, isto é, naquilo que
ponto de partida o já mencionado Inciso III do § 1o do Artigo 36 da tem de próprio e diferente de todos os outros saberes. Antes de
Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394 de 20/12/1996), no qual se qualquer coisa, diante da grande variedade e da diversidade dos

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
modos e das correntes de pensamento, não se pode perder de vista É nesse sentido que podemos compreender as tradições de
que é possível falar em Filosofia e não apenas em Filosofias, nem pesquisa do tipo da crítica da ideologia, das genealogias, da psica-
se pode esquecer que uma maneira de filosofar se relaciona com nálise, da crítica social e todas as elaborações teóricas motivadas
todas as outras de um modo peculiar. Alguém acaso escolhe uma pelo desejo de alterar os elementos determinantes de uma “falsa”
maneira de filosofar porque a considera correta e heuristicamente consciência e de extrair disso consequências práticas.
proveitosa do ponto de vista da sua fertilidade conceptual? Nesse Em suma, a resposta de cada professor de Filosofia do ensino
sentido, quando os primeiros pensadores apontaram na direção da médio à pergunta “que filosofia?” sempre dependerá da opção por
verdade e da razão de ser das coisas, uma concepção filosófica um modo determinado de filosofar que considere justificado. Ali-
ás, é relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e axioló-
define parâmetros, possibilidades de pensar que supostamente tra-
gica a partir da qual lê o mundo, pensa e ensina. Isso só tende a re-
riam verdade à razão ou, se preferirmos, fariam a razão desvelar
forçar sua credibilidade como professor de Filosofia, uma vez que
a essência por trás da aparência. E embora hoje ninguém pareça não lhe falta um padrão, um fundamento a partir do qual pode dar
ter o privilégio particular de indicar qual o critério correto e ade- início a qualquer esboço de crítica. Por certo, há talvez Filosofias
quado para a razão ou a verdade, é também correto que nenhuma mais ou menos críticas sem que isso diminua a importância forma-
Filosofia pode significativamente abandonar a pretensão de razão dora e sempre algo corrosiva de todo filosofar.
com que veio ao mundo sem contradizer exatamente sua procura No entanto, independentemente da posição adotada (sendo
por enxergar para além das aparências. pressuposto que o professor se responsabilize por ela), ele só pode
Caso nos coloquemos numa perspectiva externa (digamos, a pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa medida
de um observador das atividades culturais)4, podemos considerar do rigor com que operar a partir de sua escolha fi losófica – um
que tudo o que há são filosofias. Entretanto, ao examinarmos a rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formação
questão de um ponto de vista interno (a saber, a perspectiva do cultural de cada um e deve ser de todo diverso de uma doutrinação.
próprio agente social que se sente convocado para a empresa da Compreendendo a noção de “Filosofia” desse modo, a um só
investigação filosófica), então há filosofia. tempo lábil e rigoroso, devemos convir que a noção de “cidadania”
Existe ademais um critério geral para distinguir, por exemplo, não escapa de opções filosóficas, não sendo assim um conceito
uma “crença” de uma Filosofia, porquanto a filosofia, ao contrário unívoco, nem um mero ponto de partida fixo e de todo estabele-
da mera crença, apresenta-se fundamentada em boas razões e ar- cido. Em verdade, tal noção aparece como um resultado de um
gumentos. E a prática daquele agente social poderá ser considera- processo filosófico, sendo ele mesmo travado por nossa reflexão.
Em todo caso, conservando uma ampla margem para produtivas
da filosófica quando justificada. À multiplicidade real de linhas e
redefinições filosóficas, o termo torna-se mais um desafio para
orientações filosóficas e ao grande número de problemas herdados uma disciplina formadora e menos um conjunto de informações
da grande tradição cultural filosófica, somam se temas e problemas doutrinárias que decoraríamos como a um hino patriótico.
novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, Tendo em conta a necessidade de se esboçar alguma correla-
produzindo-se em resposta a isso um universo sempre crescen- ção entre conhecimentos de Filosofia e uma concepção de cidada-
te de novas teorias e posições filosóficas. No entanto, é também nia presente na legislação vigente, podemos tomar como ponto de
verdade que essa dispersão discreta de um filosofar não nos pode partida o explicitado como cidadania nos documentos das Diretri-
impedir de reconhecer o que há de comum em nosso trabalho: a zes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Assim, o Artigo
especificidade da atividade filosófica enquanto expressa, sobretu- 2o da Resolução CEB nº 3, de 26 de junho de 1998, reporta-nos
do, em sua natureza reflexiva. aos valores apresentados na Lei nº 9.394, a saber:
Independentemente de como determinada orientação filosófica I. os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres
estiver configurada, ela sempre resulta não tanto de uma investiga- dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;
ção que tematiza diretamente este ou aquele objeto, mas, sobretu- II. os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de soli-
do, de um exame de como os objetos nos podem ser dados, como dariedade humana e de tolerância recíproca.
eles se nos tornam acessíveis. Mais do que o disposto à visão, a Tendo em vista a observância de tais valores, o Artigo 3º da
atividade filosófica privilegia um certo “voltar atrás”, um refletir mesma Resolução exorta-nos à coerência entre a prática escolar e
por que a própria possibilidade e a natureza do imediatamente princípios estéticos, políticos e éticos, a saber:
I. a Estética da Sensibilidade, que deverá substituir a da repeti-
dado se tornam alvo de interrogação. Observadas assim as dife-
ção e padronização, estimulando a criatividade, o espírito inventi-
renças de intenção nas várias abordagens filosóficas, o conceito de
vo, a curiosidade pelo inusitado e a afetividade, bem como facilitar
reflexão, em geral, abarca duas dimensões distintas que frequen- a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação,
temente se confundem. Primeira: a reconstrução racional, quando conviver com o incerto e o imprevisível, acolher e conviver com
o exame analítico se volta para as condições de possibilidade de a diversidade, valorizar a qualidade, a delicadeza, a sutileza, as
competências cognitivas, linguísticas e de ação. É nesse sentido formas lúdicas e alegóricas de conhecer o mundo e fazer do lazer,
que podem ser entendidas as lógicas, as teorias do conhecimento, da sexualidade e da imaginação um exercício de liberdade respon-
as epistemologias e todas as elaborações filosóficas que se esfor- sável;
çam para explicar teoreticamente um saber pré-teórico que adqui- II. a Política da Igualdade, tendo como ponto de partida o re-
rimos à medida que nos exercitamos num dado sistema de regras. conhecimento dos direitos humanos e dos deveres e direitos da
Segunda: a crítica, quando a reflexão se volta para os modelos de cidadania, visando à constituição de identidades que busquem e
percepção e de ação compulsivamente restritos pelos quais, em pratiquem a igualdade no acesso aos bens sociais e culturais, o
nossos processos de formação individual ou coletiva, nos iludimos respeito ao bem comum, o protagonismo e a responsabilidade no
a nós mesmos, de sorte que, por um esforço de análise, a reflexão âmbito público e privado, o combate a todas as formas discrimina-
consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, em seu caráter tórias e o respeito aos princípios do Estado de Direito na forma do
propriamente ilusório. sistema federativo e do regime democrático e republicano;

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
III. a Ética da Identidade, buscando superar dicotomias entre o história, sempre retornando a seus textos clássicos para descobrir
mundo da moral e o mundo da matéria, o público e o privado, para sua identidade, mas também sua atualidade e sentido. Com efei-
constituir identidades to, se estudamos a obra teórica de um sociólogo como Weber ou
sensíveis e igualitárias no testemunho de valores de seu tem- Durkheim, dizemos estar fazendo teoria sociológica. Tão íntima,
po, praticando um humanismo contemporâneo, pelo reconheci- porém, é a relação entre a Filosofia e sua história que seria absur-
mento, pelo respeito e pelo acolhimento da identidade do outro e do dizer que estudando Kant ou Descartes estejamos fazendo algo
pela incorporação da solidariedade, da responsabilidade e da re- como uma teoria filosófica, pois é na leitura de textos filosóficos
ciprocidade como orientadoras de seus atos na vida profissional, que se constituem problemas, vocabulários e estilos de fazer sim-
social, civil e pessoal. plesmente Filosofia. E isso se aplica tanto para a pesquisa em
Independentemente, neste momento, de qualquer avaliação Filosofia quanto para seu ensino. Mais ainda,
acerca da concepção que se apresenta na legislação, cabe ressaltar, [...] não é possível fazer Filosofia sem recorrer a sua própria
em primeiro lugar, que seria criticável tentar justificar a Filosofia história. Dizer que se pode ensinar filosofia apenas pedindo que
apenas por sua contribuição como um instrumental para a cidada- os alunos pensem e reflitam sobre os problemas que os afligem ou
nia. Mesmo que pudesse fazê-lo, ela nunca deveria ser limitada a que mais preocupam o homem moderno sem oferecer-lhes a base
isso. Muito mais amplo é, por exemplo, seu papel no processo de teórica para o aprofundamento e a compreensão de tais proble-
formação geral dos jovens. Em segundo lugar, deve-se ter presen- mas e sem recorrer à base histórica da reflexão em tais questões é
te, em função da própria legislação, que a formação para a cidada- o mesmo que numa aula de Física pedir que os alunos descubram
nia, além da preparação básica para o trabalho, é a finalidade sínte- por si mesmos a fórmula da lei da gravitação sem estudar Física,
se da educação básica como um todo (LDB, Artigo 32) e do ensino esquecendo-se de todas as conquistas anteriores naquele campo,
médio em especial (LDB, artigo 36). Não se trata, portanto, de esquecendo-se do esforço e do trabalho monumental de Newton.
um papel particular da disciplina Filosofia, nesse conjunto, ofere- É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia que nunca se
cer um tipo de formação que tenha por pressuposto, por exemplo, desconsidere a sua história, em cujos textos reconhecemos boa
incutir nos jovens os valores e os princípios mencionados, nem parte de nossas medidas de competência e também elementos que
mesmo assumir a responsabilidade pela formação para a solidarie- despertam nossa vocação para o trabalho filosófico. Mais que isso,
dade ou para a tolerância. Tampouco caberia a ela, isoladamente, é recomendável que a história da Filosofia e o texto filosófico te-
“o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a nham papel central no ensino da Filosofia, ainda que a perspec-
formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do tiva adotada pelo professor seja temática, não sendo excessivo
pensamento crítico” (LDB, artigo 35, inciso III). Uma vez que é reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamen-
possível formar cidadãos sem a contribuição formal da Filosofia, te filosóficos e primários, mesmo quando se dialoga com textos
seria certamente um erro pensar que a ela, exclusivamente, caberia de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo – o que
tal papel, como se fosse a única disciplina capaz de fazê-lo, como pode ser bastante útil e instigante nessa fase de formação do aluno.
se às outras disciplinas coubesse o ensinamento de conhecimentos Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que
técnicos e a ela o papel de formar para uma leitura crítica da reali- se apresenta na forma amplamente conhecida como História da
dade. Esse é na verdade um papel do conjunto das disciplinas e da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao diálogo com outras
política pública voltada para essa etapa da formação. áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na
Não se trata, portanto, de a Filosofia vir a ocupar um espaço formação do educando.
crítico que se teria perdido sem ela, permitindo-se mesmo um ques-
tionamento acerca de sua competência em conferir tal capacidade OBJETIVOS DA FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
ao aluno. Da mesma maneira, não se pode esperar da Filosofia o
cumprimento de papéis anteriormente desempenhados por disci- A Filosofia deve compor, com as demais disciplinas do ensino
plinas como Educação Moral e Cívica, assim como não é papel médio, o papel proposto para essa fase da formação. Nesse senti-
da Filosofia suprir eventual carência de um “lado humanístico” na do, além da tarefa geral de “pleno desenvolvimento do educando,
formação dos estudantes. A pergunta que se coloca é: qual a contri- seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para
buição específica da Filosofia em relação ao exercício da cidadania o trabalho” (Artigo 2º da Lei nº 9.394/96), destaca-se a proposição
para essa etapa da formação? A resposta a essa questão destaca de um tipo de formação que não é uma mera oferta de conhecimen-
o papel peculiar da filosofia no desenvolvimento da competência tos a serem assimilados pelo estudante, mas sim o aprendizado de
geral de fala, leitura e escrita – competência aqui compreendida de uma relação com o conhecimento que lhe permita adaptar-se “com
um modo bastante especial e ligada à natureza argumentativa da flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento
Filosofia e à sua tradição histórica. Cabe, então, especificamente posteriores” (Artigo 36, Inciso II) – o que significa, mais que do-
à Filosofia a capacidade de análise, de reconstrução racional e de minar um conteúdo, saber ter acesso aos diversos conhecimentos
crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de de forma significativa. A educação deve centrar-se mais na idéia
textos propostos de qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto de fornecer instrumentos e de apresentar perspectivas, enquanto
textos não filosóficos e formações discursivas não explicitadas em caberá ao estudante a possibilidade de posicionar-se e de correla-
textos) e emitir opiniões acerca deles é um pressuposto indispen- cionar o quanto aprende com uma utilidade para sua vida, tendo
sável para o exercício da cidadania. presente que um conhecimento útil não corresponde a um saber
Neste ponto, em que se procura a confluência entre a prático e restrito, quem sabe à habilidade para desenvolver certas
especificidade da Filosofia e seu papel formador no ensino mé- tarefas.
dio, cabe enfatizar um aspecto peculiar que a diferencia de outras Há, com isso, uma importante mudança no foco da educação
áreas do saber: a relação singular que a Filosofia mantém com sua para o aluno, que, tomando como ponto de partida a sua formação

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ou em termos mais amplos a constituição de si, deve posicionar-se Deixaremos de lado, no entanto, neste momento, a afirmação
diante dos conhecimentos que lhe são apresentados, estabelecendo sobre a coincidência entre o desenvolvimento de competências
uma ativa relação com eles e não somente apreendendo conteú- cognitivas e culturais e o que se busca na esfera da produção. Me-
dos. A Filosofia cumpre, afinal, um papel formador, uma vez que dir-se pelo que se espera é sempre delicado. Afinal, em uma socie-
articula noções de modo bem mais duradouro que outros saberes, dade desigual, pode esperar-se também o desigual, ameaçando um
mais suscetíveis de serem afetados pela volatilidade das informa- processo global de formação que deveria servir à correção da desi-
ções. Por conseguinte, ela não pode ser um conjunto sem senti- gualdade. Afastado, porém, esse aspecto, a noção de competência
do de opiniões, um sem-número de sistemas desconexos a serem parece vir ao encontro do labor filosófico. Com efeito, ela é sem-
guardados na cabeça do aluno que acabe por desencorajá-lo de pre interior a cada disciplina, não havendo uma noção universal.
ter idéias próprias. Os conhecimentos de Filosofia devem ser para Sendo da ordem das disposições, só pode ser lida e reconhecida à
ele vivos e adquiridos como apoio para a vida, pois do contrário luz de matrizes conceituais específicas. Em certos casos, a compe-
dificilmente teriam sentido para um jovem nessa fase de formação. tência mostra-se na elaboração de hipóteses, visando à solução de
Outro objetivo geral do ensino médio constante na legislação problemas. Em outros casos, porém, uma vez que as competências
não se desenvolvem sem conteúdos nem sem o apoio da tradição,
e de interesse para os objetivos dessa disciplina é a proposição de
a competência pode significar a recusa de soluções aparentes por
“aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a
recurso ao aprofundamento sistemático dos problemas.
formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e
A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está
do pensamento crítico” (Lei nº 9.394/96, Artigo 36, Inciso III).
falando quando se trata de ensinar Filosofia no ensino médio? Da
Embora se trate de uma idéia vaga, o aprimoramento como pessoa capacidade de abstração, do desenvolvimento do pensamento sis-
humana indica a intenção de uma formação que não corresponda têmico ou, ao contrário, da compreensão parcial e fragmentada dos
apenas à necessidade técnica voltada a atender a interesses imedia- fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacida-
tos, como por exemplo do mercado de trabalho. Tratar-se-ia antes de de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema,
de um tipo de formação que inclua a constituição do sujeito como ou seja, do desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade
produto de um processo, e esse processo como um instrumento de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar críti-
para o aprimoramento do jovem aluno. cas, da disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capaci-
O objetivo da disciplina Filosofia não é apenas propiciar ao dade de buscar conhecimentos. De forma um tanto sumária, pode-
aluno um mero enriquecimento intelectual. Ela é parte de uma pro- -se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que
posta de ensino que pretende desenvolver no aluno a capacidade parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentati-
para responder, lançando mão dos conhecimentos adquiridos, as vo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos
questões advindas das mais variadas situações. Essa capacida- próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas,
de de resposta deve ultrapassar a mera repetição de informações que podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos.
adquiridas, mas, ao mesmo tempo, apoiar-se em conhecimentos Podemos constatar, novamente, uma convergência entre o pa-
prévios. Por exemplo, caberia não apenas compreender ciências, pel educador da Filosofia e a educação para a cidadania que se
letras e artes, mas, de modo mais preciso, seu significado, além de postulou anteriormente.
desenvolver competências comunicativas intimamente associadas Os conhecimentos necessários à cidadania, à medida que se
à argumentação. Ademais, sendo a formação geral o objetivo e a traduzem em competências, não coincidem, necessariamente, com
condição anterior até mesmo ao ensino profissionalizante, o ensi- conteúdos, digamos, de ética e de filosofia política. Ao contrário,
no médio deve tornar-se a etapa final de uma educação de caráter destacam o que, sem dúvida, é a contribuição mais importante da
geral, na qual antes se desenvolvem competências do que se me- Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-
morizam conteúdos. -filosófica. Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormen-
te, o desenvolvimento geral de competências comunicativas, o que
COMPETÊNCIAS E HABILIDADES EM FILOSOFIA implica um tipo de leitura, envolvendo capacidade de análise, de
interpretação, de reconstrução racional e de crítica. Com isso, a
possibilidade de tomar posição por sim ou por não, de concordar
Sob essa perspectiva formadora e de superação de um ensi-
ou não com os propósitos do texto é um pressuposto necessário
no meramente enciclopédico, desenvolveu-se a idéia de um en-
e decisivo para o exercício da autonomia e, por conseguinte, da
sino por competências. Tal concepção, no entanto, não pode ser
cidadania.
admitida sem a denúncia da coincidência flagrante entre o perfil Considerando-se em especial a competência para a leitura, a
do educando esboçado e, por exemplo, certos documentos do Ban- pergunta que se impõe é, afinal, que competência de leitura não
co Mundial. A flexibilização aparece, então, sob outra luz, como poderia ser desenvolvida, por exemplo, por um profissional da
competências que “podem ser aplicadas a uma grande variedade área de Letras? O que seria um olhar especificamente filosófico?
de empregos e permitir às pessoas adquirirem habilidades e conhe- Não basta dizer que é especificamente filosófico o olhar analítico,
cimentos específicos orientados para o trabalho, quando estiverem investigativo, questionador, reflexivo, que possa contribuir para
no local de trabalho”. Nesse sentido, não se pode perder de vista uma compreensão mais profunda da produção textual específica
que a mesma lógica que introduz o conhecimento filosófico por que tem sob seu foco. Ora, nada impede que o cientista desen-
ser útil não é distinta da que o suprimiria por ser inconveniente. volva um tal olhar. O fundamental aparece a seguir, conferindo a
Em ambas as situações, o estudante é considerado instrumento, marca de conteúdo e de método filosófico: é imprescindível que
ora perigoso, ora requintado. Em suma, mesmo que animado, um ele tenha interiorizado um quadro mínimo de referências a partir
instrumento. da tradição filosófica, o que nos conduz a um programa de traba-

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
lho centrado primordialmente nos próprios textos dessa tradição, formação em véus de suspeita competência argumentativa de pre-
mesmo que não exclusivamente neles. Assim, quer como centro tensos livres-pensadores. Há de se concordar, nesse ponto, com
quer como referência, para recuperar uma distinção do professor Sílvio Gallo: “Filosofia é processo e produto ao mesmo tempo;
Franklin Leopoldo e Silva, a história da Filosofia (não como um só se pode filosofar pela História da Filosofia, e só se faz história
saber enciclopédico ou eclético) torna-se pedra de toque de nossa filosófica da Filosofia, que não é mera reprodução”. A idéia é im-
especificidade. portante, pois deixa de opor o conteúdo à forma, a capacidade para
Uma indicação clara do que se espera do professor de Filo- filosofar e o trato constante com o conteúdo filosófico, tal como se
sofia no ensino médio pode ser encontrada nas Diretrizes Cur- expressa em sua matéria precípua – o texto filosófico. Aceitando
riculares aos Cursos de Graduação em Filosofia e pela Portaria essa tensa relação entre conteúdo e forma, pode-se perceber a im-
INEP nº 171, de 24 de agosto de 2005, que instituiu o Exame Na- portância estratégica em se preservar a correlação entre as compe-
cional de Desempenho dos Estudantes (Enade) de Filosofia, que tências propostas para a graduação e aquelas que se esperam em
também apresenta as habilidades e as competências esperadas do relação ao estudante de ensino médio.
profissional responsável pela implementação das diretrizes para o O texto das diretrizes para os Cursos de Graduação em
ensino médio: Filosofia é cuidadoso – defende um pensamento crítico, aponta
a) capacitação para um modo especificamente filosófico de para o exercício da cidadania e para a importância de uma técnica
formular e propor soluções a problemas, nos diversos campos do exegética que permita um aprofundamento da reflexão. Entretanto,
conhecimento; não antecipa o resultado desse aprofundamento (no que se incli-
b) capacidade de desenvolver uma consciência crítica sobre naria de modo tendencioso) nem o descola da tradição filosófica
conhecimento, razão e realidade sócio-histórico-política; em que pode lograr sua especificidade. De fato, no espírito des-
c) capacidade para análise, interpretação e comentário de tex- se documento, a tarefa do professor, ao desenvolver habilidades,
tos teóricos, segundo os mais rigorosos procedimentos de técnica não é incutir valores, doutrinar, mas sim “despertar os jovens para
hermenêutica; a reflexão filosófica, bem como transmitir aos alunos do ensino
d) compreensão da importância das questões acerca do sentido médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador,
e da significação da própria existência e das produções culturais; crítico e independente”. O desabo é, então, manter a especificidade
de disciplina, ou seja, o recurso ao texto, sem “objetivá-lo”. O
e) percepção da integração necessária entre a Filosofia e a pro-
profissional bem formado em licenciatura não reproduzirá em sala
dução científica, artística, bem como com o agir pessoal e político;
a técnica de leitura que o formou, transformando o ensino médio
f) capacidade de relacionar o exercício da crítica filosófica
em uma versão apressada da sua graduação. Ao contrário, tendo
com a promoção integral da cidadania e com o respeito à pessoa,
sido bem preparado na leitura dos textos filosóficos, poderá, por
dentro da tradição de defesa dos direitos humanos.
exemplo, associar adequadamente temas a textos, cumprindo sa-
Destacando ainda a mesma portaria, que o egresso do curso
tisfatoriamente a difícil tarefa de despertar o interesse do aluno
de Filosofia, seja ele licenciado ou bacharel, deve apresentar uma
para a reflexão filosófica e de articular conceitualmente os diversos
sólida formação em História da Filosofia, que o capacite a: aspectos culturais que então se apresentam.
a) compreender os principais temas, problemas e sistemas Sinteticamente, pode-se manter a listagem das competências
filosóficos; e das habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia em três gru-
b) servir-se do legado das tradições filosóficas para dialogar pos:
com as ciências e as artes, e refletir sobre a realidade; 1º) Representação e comunicação:
c) transmitir o legado da tradição e o gosto pelo pensamento • ler textos filosóficos de modo significativo;
inovador, crítico e independente. • ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas e re-
Tendo presente, pois, a grande harmonia, ao menos nominal, gistros;
entre os dois níveis de ensino, que se complementam e se soli- • elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo;
citam, é de se esperar que um profissional assim formado possa • debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentati-
desenvolver no aluno do ensino médio competências e habilidades vamente e mudando de posição em face de argumentos mais con-
similares. Essas competências, que terão importante papel forma- sistentes.
dor no ensino médio, remetem novamente àquilo que torna o exer- 2º) Investigação e compreensão:
cício da filosofia diferente do exercício das profissões das demais • articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e
áreas do conhecimento, por mais que se assemelhem: o recurso à modos discursivos nas ciências naturais e humanas, nas artes e em
tradição filosófica. Caso se tome, por exemplo, a primeira compe- outras produções culturais.
tência, a preparação para a “capacitação para um modo filosófico 3º) Contextualização sociocultural:
de formular e propor soluções de problemas” implica que o pro- • contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano
fessor de Filosofia tenha, em sua formação, familiaridade com a de sua origem específica quanto em outros planos: o pessoal-
História da Filosofia – em especial, com os textos clássicos. Esse biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o hori-
deve ser seu diferencial, sua especificidade. Essa é a formação que zonte da sociedade científico-tecnológica.
se tem nos cursos de Filosofia no país.
Tanto na graduação quanto na pós-graduação, o ponto de par- CONTEÚDOS DE FILOSOFIA
tida para a leitura da realidade é uma sólida formação em História
da Filosofia, mesmo que não seja esse o ponto de chegada. Mais do que fornecer um roteiro de trabalho, este item apre-
É importante registrar que uma certa dicotomia muito cita- senta sugestões de conteúdos para aqueles que futuramente ve-
da entre aprender filosofia e aprender a filosofar pode ter papel nham a preparar um currículo ou material didático para a discipli-
enganador, servindo para encobrir, muitas vezes, a ausência de na Filosofia no ensino médio.

Didatismo e Conhecimento 87
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A lista que se segue tem por referência os temas trabalha- 26) fenomenologia; existencialismo;
dos no currículo mínimo dos cursos de graduação em Filosofia 27) Filosofia analítica; Frege, Russell e Wittgenstein; o Cír-
e cobrados como itens de avaliação dos egressos desses cursos, culo de Viena;
ou seja, os professores de Filosofia para o ensino médio. Trata-se 28) marxismo e Escola de Frankfurt;
de referências, de pontos de apoio para a montagem de propostas 29) epistemologias contemporâneas; Filosofia da ciência; o
curriculares, e não de uma proposta curricular propriamente dita. problema da demarcação entre ciência e metafísica;
Dessa forma, não precisam todos ser trabalhados, nem devem ser 30) Filosofia francesa contemporânea; Foucault; Deleuze.
trabalhados de maneira idêntica à que costumam ser tratados nos A sequência de temas acima perpassa a História da Filosofia.
cursos de graduação, embora devam valer-se de textos filosóficos Desse conjunto, o professor pode selecionar alguns tópicos para o
clássicos, cuidadosamente selecionados, mesmo quando comple- trabalho em sala de aula. É importante ter em mente que tal elenco
mentados por outras leituras e atividades. Os temas podem ensejar propicia uma unidade entre o quadro da formação e o quadro do
a produção de materiais e dão um quadro da formação mínima dos ensino, desenhando possíveis recortes formadores, agora bem am-
professores, a partir da qual podemos esperar um diálogo compe- parados em um novo arranjo institucional.
tente com os alunos. A Filosofia é teoria, visão crítica, trabalho do conceito, de-
Outros temas de feição assemelhada também podem propiciar vendo ser preservada como tal e não como um somatório de idéias
a mesma ligação entre uma questão atual e uma formulação clás- que o estudante deva decorar. Um tal somatório manualesco e sem
sica, um tema instigante e o vocabulário e o modo de argumentar vida seria dogmático e antifilosófico, seria doutrinação e nunca di-
próprios da Filosofia, além de ligarem a formação específica do álogo. Isto é, tornar-se-ia uma soma de preconceitos, recusando à
profissional que pode garantir a disciplinaridade da Filosofia com Filosofia esse traço que julgamos característico e essencial. Desse
a formação pretendida do aluno: modo, cabe ensinar Filosofia acompanhando ou, pelo menos, res-
1) Filosofia e conhecimento; Filosofia e ciência; definição de peitando o movimento do pensar à luz de grandes obras, indepen-
Filosofia; dentemente do autor ou da teoria escolhida.
2) validade e verdade; proposição e argumento;
3) falácias não formais; reconhecimento de argumentos; con- METODOLOGIA
teúdo e forma;
4) quadro de oposições entre proposições categóricas; infe- Para que o aluno desenvolva as competências esperadas ao
rências imediatas em contexto categórico; conteúdo existencial e final do ensino médio, não pode haver uma separação entre conte-
proposições categóricas; údo, metodologia e formas de avaliação. Assim, uma metodologia
5) tabelas de verdade; cálculo proposicional; para o ensino da Filosofia deve considerar igualmente aquilo que
6) filosofia pré-socrática; uno e múltiplo; movimento e reali- é peculiar a ela e o conteúdo específico que estará sendo trabalha-
dade; do. Seguem, então, algumas considerações sobre procedimentos
7) teoria das idéias em Platão; conhecimento e opinião; apa- metodológicos que podem ser úteis na prática acadêmica. Como
rência e realidade; se sabe, a metodologia mais utilizada nas aulas de Filosofia é, de
8) a política antiga; a República de Platão; a Política de Aris- longe, a aula expositiva, muitas vezes com o apoio do debate ou
tóteles; de trabalhos em grupo. A grande maioria dos professores adota
9) a ética antiga; Platão, Aristóteles e filósofos helenistas; os livros didáticos (manuais) ou compõe apostilas com formato
10) conceitos centrais da metafísica aristotélica; a teoria da semelhante ao do livro didático; mesmo assim, valem-se da aula
ciência aristotélica; expositiva em virtude da falta de recursos mais ricos e de textos
11) verdade, justificação e ceticismo; adequados. Muitas vezes, o trabalho limita-se à interpretação e
12) o problema dos universais; os transcendentais; à contextualização de fragmentos de alguns filósofos ou ao de-
13) tempo e eternidade; conhecimento humano e conhecimen- bate sobre temas atuais, confrontando-os com pequenos textos
to divino; filosóficos. Há, ainda, o uso de seminários realizados pelos alunos,
14) teoria do conhecimento e do juízo em Tomás de Aquino; pesquisas bibliográficas e, mais ocasionalmente, o uso de música,
15) a teoria das virtudes no período medieval; poesia, literatura e lemes em vídeo para sensibilização quanto ao
16) provas da existência de Deus; argumentos ontológico, tema a ser desenvolvido.
cosmológico, teleológico; Em função de alguns elementos preponderantes, como o uso
17) teoria do conhecimento nos modernos; verdade e evidên- do manual e a aula expositiva, é possível dizer que a metodologia
cia; idéias; causalidade; indução; método; mais empregada no ensino de Filosofia destoa da concepção de
18) vontade divina e liberdade humana; ensino de Filosofia que se pretende. Em primeiro lugar, boa parte
19) teorias do sujeito na filosofia moderna; dos professores tem formação em outras áreas (embora existam
20) o contratualismo; hoje bons cursos de graduação em Filosofia em número suficiente
21) razão e entendimento; razão e sensibilidade; intuição e para a formação de profissionais devidamente qualificados para
conceito; atuar em Filosofia no ensino médio), ou, sendo em Filosofia, não
22) éticas do dever; fundamentações da moral; autonomia do tem a oportunidade de promover a desejável formação contínua
sujeito; (sem a qual a simples inclusão da Filosofia no ensino médio pode
23) idealismo alemão; filosofias da história; ser ilusória e falha). Isso acarreta, em geral, um uso inadequado
24) razão e vontade; o belo e o sublime na Filosofia alemã; de material didático, mesmo quando, eventualmente, esse tenha
25) crítica à metafísica na contemporaneidade; Nietzsche; qualidade. Dessa forma, o texto filosófico é, então, interpretado
Wittgenstein; Heidegger; à luz da formação do historiador, do pedagogo, do geógrafo, de

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modo que a falta de formação específica pode reduzir o tratamen- Nesse ponto, o amadurecimento das reflexões acerca do
to dos temas filosóficos a um arsenal de lugares-comuns, a um que é genuinamente próprio da Filosofia também em termos de
pretenso aprendizado direto do filosofar que encobre, em verdade, metodologia implica, por um lado, buscar um equilíbrio entre a
bem intencionadas ou meramente demagógicas “práticas de ensino complexidade de algumas questões de Filosofia e as condições de
espontaneístas e muito pouco rigorosas, que acabam conduzindo à ensino encontradas, e, por outro, evitar posições extremadas, que,
descaracterização tanto da Filosofia quanto da educação”. por exemplo, (i) nos fariam transpor para aquele nível de ensino
Para a realização de competências específicas, que se têm so- uma versão reduzida do currículo da graduação e a mesma meto-
bretudo mediante a referência consistente à História da Filosofia, dologia que se adota nos cursos de graduação e pós-graduação em
deve-se manter a centralidade do texto filosófico (primários de pre- Filosofia ou (ii), ao contrário, procurando torná-la acessível, nos
ferência), pois a Filosofia comporta “um acervo próprio de ques- levariam a falseá-la pela banalização do pensamento filosófico.
tões, uma história que a destaca suficientemente das outras pro- A diferença em relação à graduação, no entanto, não pode
duções culturais, métodos peculiares de investigação e conceitos significar uma espécie de ecletismo11 no ensino da Filosofia. O
sedimentados historicamente”. que corresponderia a uma espécie de saída de emergência para
Certamente, no desenvolvimento do modo especificamente professores sem formação devida, como se fora um recurso de ple-
filosófico de apresentar e propor soluções de problemas, o exercí- no bom senso, residindo aí seu maior perigo. Em versão mais ge-
cio de busca e reconhecimento de problemas filosóficos em textos nerosa, o ecletismo afirmaria apenas a parte positiva das doutrinas,
de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo, não deixa suprimindo qualquer negatividade. Assim, por exemplo, diante da
de ser salutar, contanto que não se desloque, com isso, o primado divergência entre intelectualistas e empiristas, concederia razão a
do texto filosófico. ambas as correntes. Entretanto, sob qual perspectiva pode alguém
Essa centralidade da História da Filosofia pode matizar um separar o positivo do negativo? Ocultadas por aparente bom sen-
ponto que, ao contrário, se a figura bastante controverso, qual seja, so, seriam urdidas sínteses filosóficas precárias. Não tendo valores
a assunção de uma perspectiva filosófica pelo professor. Certa- precisos, nem sendo bem formado e, mais ainda, usando expedien-
mente ninguém trabalha uma questão filosófica se situando fora tes para ocultar-se no debate, um professor de Filosofia cumpriria,
de suas próprias referências intelectuais, sendo inevitável que o assim, limitado papel formador.
professor dê seu assentimento a uma perspectiva. Essa adesão,
Supõe-se, portanto, que o professor com honestidade intelec-
entretanto, tem alguma medida de controle na referência à His-
tual deva situar-se em uma perspectiva própria, o que indica ma-
tória da Filosofia, sem a qual seu labor tornar-se-ia mera doutri-
turidade e boa formação. Assim, em vez de uma posição soberana
nação. Além disso, tendo esse pano de fundo, mais que incutir
que pretenda suprimir o próprio debate filosófico, parece neces-
valores o professor deve convidar os alunos à prática da reflexão.
sário retornar, também com perspectivas próprias, ao debate e a
A Filosofia, afinal, ao contrário do que se faria em qualquer tipo
textos selecionados que sirvam de fundamento à reflexão.
de doutrinação, deveria instaurar procedimentos, como o de nunca
Tomando-se como ponto de partida as mesmas Diretrizes Cur-
dar sua adesão a uma opinião sem antes submetê-la à crítica.
riculares para os Cursos de Graduação em Filosofia que norteiam
Na estruturação do currículo e mesmo no desenho das práticas a formação dos professores para o ensino de Filosofia no nível mé-
pedagógicas da disciplina, a centralidade da História da Filosofia dio, tem-se a seguinte caracterização do licenciado em Filosofia:
tem ainda méritos adicionais: (i) solicita uma competência “O licenciado deverá estar habilitado para enfrentar com sucesso
profissional específica, de sorte que os temas próprios da Filosofia os desafios e as dificuldades inerentes à tarefa de despertar os jo-
devam ser determinados por uma tradição de leitura consolidada vens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos alunos
em cursos de licenciaturas próprios; (ii) solicita do profissional do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamen-
já formado continuidade de pesquisa e formação especificamente to inovador, crítico e independente”. Nesse universo de jovens e
filosóficas; (iii) evita a gratuidade da opinião, com a qual impe- adolescentes, é imprescindível despertar o estudante para os temas
rariam docentes malformados, embora mais informados que seus clássicos da Filosofia e orientá-lo a buscar na disciplina um recur-
alunos, suprimindo o lugar da reflexão e da autêntica crítica; e (iv) so para pensar sobre seus problemas. Em todos esses níveis, no
determina ainda o sentido da utilização de recursos didáticos e de entanto, não se pode perder de vista a especificidade da Filosofia,
quem pode usar bem esses recursos, de modo que sejam filosóficas sob pena de se ter uma estranha concorrência do profissional de
as habilidades de leitura adquiridas. Com efeito, sendo formado Filosofia com o de Letras, Antropologia, Sociologia ou Psicolo-
em Filosofia e tendo a História da Filosofia como referencial, essa gia, entre outros. Diferentemente, ciente do que lhe é próprio, o
maior riqueza de recursos didáticos pode tornar as aulas do docen- profissional de Filosofia poderá desenvolver projetos em conjunto,
te mais atraentes, e mais fácil a veiculação de questões filosóficas. inclusive com temas transversais e interdisciplinares, enriquecen-
Garantidas as condições teóricas já citadas, é desejável e prazerosa do o ensino e “estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a
a utilização de dinâmicas de grupo, recursos audiovisuais, drama- curiosidade pelo inusitado e a afetividade”.
tizações, apresentação de filmes, trabalhos sobre outras ordens de Participação ativa na formação do jovem e capacidade para
texto, etc., com o cuidado de não substituir com tais recursos “os o diálogo com outras áreas do conhecimento pressupõem, como
textos específicos de Filosofia que abordem os temas estudados, já foi visto aqui, que o professor de Filosofia não perca de vista a
incluindo-se aqui, sempre que possível, textos ou excertos dos pró- especificidade de sua própria área. Por outro lado, para bem cum-
prios filósofos, pois é neles que os alunos encontrarão o suporte prir sua tarefa, não bastará ter em conta seu próprio talento, pois
teórico necessário para que sua reflexão seja, de fato, filosófica”. inserirá seu trabalho em um novo contexto para a Filosofia no país,
Pensar a especificidade em termos de um ensino anterior à gradua- em que se ligam esforços os mais diversos, inclusive para sanar o
ção remete-nos novamente à questão de como deve ocorrer o ensi- dano histórico resultante da ausência da Filosofia. Com isso, deve-
no da Filosofia nesse universo específico que é o do ensino médio. mos reconhecer que está se abrindo para o ensino de Filosofia um

Didatismo e Conhecimento 89
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
novo tempo, no qual não se frustrarão nossos esforços na medida Seu objetivo é compreender a dinâmica social e espacial, que
em que reconhecermos a importância da formação contínua dos produz, reproduz e transforma o espaço geográfico nas diversas es-
docentes de Filosofia no ensino médio, bem como o esforço cole- calas (local, regional, nacional e mundial). As relações temporais
tivo de reflexão e de produção de novos materiais. É preciso, as- devem ser consideradas tendo em vista a historicidade do espaço,
sim, estarmos à altura da elevada qualidade que deve caracterizar não como enumeração ou descrição de fatos que se esgotam em si
o trabalho de profissionais da Filosofia, quando já se pode afirmar, mesmos, mas como processo de construção social.
alterando uma antiga diretriz, que “as propostas pedagógicas das A Geografia não é uma disciplina descritiva e empírica, em
escolas deverão, obrigatoriamente, assegurar tratamento discipli- que os dados sobre a natureza, a economia e a população são apre-
nar e contextualizado para os conhecimentos de Filosofia”. sentados a partir de uma seqüência linear como se fossem produtos
de uma ordem natural. Com as novas tecnologias de informação,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS com os avanços nas pesquisas cientificas e com as transformações
no território, o ensino de Geografia torna-se fundamental para a
GALLO, Sílvio & KOHAN, Walter (Orgs.). Filosofi a no En-
percepção do mundo atual. Os professores devem, portanto, refletir
sino Médio, Petrópolis, Vozes, Vol. VI, 2000.
e repensar sua prática e vivências em sala de aula, com a mudança
GALLO, Sílvio. A especificidade do ensino de filosofia: em
e a incorporação de novos temas no cotidiano escolar. Este docu-
torno dos conceitos.
mento tem como objetivo ampliar e avançar nas discussões ofe-
In: PIOVESAN, Américo et al. (orgs.). Filosofi a e Ensino em
Debate. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. recendo elementos sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais
MEC. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação (PCN) para o ensino médio no âmbito da Geografia, servindo de
Superior. Parecer CNE/CES n° 492/2001, aprovado em 3 de abril estímulo e apoio à reflexão da prática diária do professor.
de 2001. Diretrizes Curriculares
Nacionais dos cursos de Filosofi a, História, Geografia, Servi- SABERES E EXPERIÊNCIAS DO ENSINO DE GEO-
ço Social, Comunicação Social, Ciências Sociais, Letras, Biblio- GRAFIA
teconomia, Arquivologia e Museologia. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 9 de julho de 2001. Seção 1, p. 50. Nos últimos anos, muitos são os documentos oficiais e aca-
MEC. Portaria INEP n. 171, de 24 de agosto de 2005. Publi- dêmicos que se referem a como se ensina Geografia nos ensinos
cada no Diário Oficial de 26 de agosto de 2005, Seção 1, pág. 60. fundamental e médio. Esses, em geral, buscam entender como e
Filosofi a. por que determinados fenômenos se produzem no espaço e suas
SALLES, João Carlos. “Escovando o tempo a contrapelo”, in relações com os processos econômicos, sociais, culturais e políti-
Ideação Magazine,nº 1, Feira de Santana, NEF/UEFS, 2003. cos. Portanto, ao analisar as transformações presentes no espaço,
SANTIAGO, Anna, Política educacional, diversidade e cul- devemos entender que essas não se produzem de forma aleatória,
tura: a racionalidade dos PCN posta em questão. In: PIOVESAN, mas foram construídas ao longo do tempo. O que implica conside-
Américo et al. (orgs.). Filosofi a e rar o processo histórico e a singularidade dos lugares.
Ensino em Debate. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. Um contexto desejável, e já existente, ampliou a participação
SILVEIRA, René. Um sentido para o ensino de Filosofi a e o debate de professores e alunos em discussões e o professor dei-
no ensino médio. In: GALLO, Sílvio & KOHAN, Walter (orgs.). xou de ser mero transmissor de conhecimento, pensando o mundo
Filosofi a no Ensino Médio. Petrópolis: Vozes, Vol. VI, 2000. de forma dialética. Esse processo abriu a possibilidade de efetiva
integração metodológica entre as diferentes áreas do conhecimen-
CONHECIMENTOS DE GEOGRAFIA to e a Geografia , numa perspectiva interdisciplinar.
INTRODUÇÃO
Objetivos da Geografia no Ensino Médio
A Geografia compõe o currículo do ensino fundamental e mé-
A importância da Geografia no ensino médio está relaciona-
dio e deve preparar o aluno para: localizar, compreender e atuar
da com as múltiplas possibilidades de ampliação dos conceitos da
no mundo complexo, problematizar a realidade, formular propo-
sições, reconhecer as dinâmicas existentes no espaço geográfico, ciência geográfica, além de orientar a formação de um cidadão no
pensar e atuar criticamente em sua realidade tendo em vista a sua sentido de aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a con-
transformação. viver e aprender a ser, reconhecendo as contradições e os conflitos
A partir dessas premissas, o professor deverá proporcionar existentes no mundo.
práticas e reflexões que levem o aluno à compreensão da realidade. Nesse sentido, um dos objetivos da Geografia no ensino mé-
Portanto, para que os objetivos sejam alcançados, o ensino dio é a organização de conteúdos que permitam ao aluno realizar
da Geografia deve fundamentar-se em um corpo teórico-meto- aprendizagens significativas.
dológico baseado nos conceitos de natureza, paisagem, espaço, Essa é uma concepção contida em teorias de aprendizagem
território, região, rede, lugar e ambiente, incorporando também que enfatizam a necessidade de considerar os conhecimentos pré-
dimensões de análise que contemplam tempo, cultura, sociedade, vios do aluno e o meio geográfico no qual ele está inserido.
poder e relações econômicas e sociais e tendo como referência os A escola e o professor devem, a partir do objetivo geral da
pressupostos da Geografia como ciência que estuda as formas, os proposta pedagógica adotada pela instituição e dos parâmetros que
processos, as dinâmicas dos fenômenos que se desenvolvem por norteiam a Geografia enquanto ciência e enquanto disciplina es-
meio das relações entre a sociedade e a natureza, constituindo o colar, definir os objetivos específicos que, a título de referência,
espaço geográfico. podem ser assim detalhados:

Didatismo e Conhecimento 90
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
• compreender e interpretar os fenômenos considerando as dimensões local, regional, nacional e mundial;
• dominar as linguagens gráfica, cartográfica, corporal e iconográfica;
• reconhecer as referências e os conjuntos espaciais, ter uma compreensão do mundo articulada ao lugar de vivência do aluno e ao seu
cotidiano.
No processo de aprendizagem é necessário desenvolver competências e habilidades, para que tanto professores como alunos possam
comparar, analisar, relacionar os conceitos e/ou fatos como um processo necessário para a construção do conhecimento. As competências e
habilidades, relacionadas às atividades da disciplina, são descritas no quadro 1, dispostas em uma seqüência que vai dos conceitos básicos
para o entendimento do espaço geográfico como objeto da Geografia, chegando às linguagens e às dimensões do espaço mundial, permitindo
ao professor e ao aluno articular a capacidade de compreender e utilizar os conteúdos propostos.

Além das competências e habilidades, é fundamental ter como ponto de partida a reflexão sobre o objeto da Geografia, que é a realidade
territorial criada a partir da apropriação do meio geográfico pela sociedade.

O papel do professor de Geografia no contexto do mundo atual

O que é ser professor de Geografia nos dias atuais? Essa pergunta nos faz refletir sobre as rápidas transformações que ocorrem no mun-
do e, portanto, um dos grandes desafios de um professor de Geografia é selecionar os conteúdos e criar estratégias de como proceder nas
escolhas dos temas a serem abordados em sala de aula, ou seja, como articular a teoria com a prática.

Didatismo e Conhecimento 91
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Nesse sentido o professor tem papel importante no cotidia- Além disso, deve promover mudanças concretas que resul-
no escolar e é insubstituível no processo de ensino-aprendizagem, tem em novos padrões de aprendizagem, a partir de uma rede de
pois é o especialista do componente curricular, cabendo-lhe o esta- significados, isto é, utilizando estratégias diversificadas ao abordar
belecimento de estratégias de aprendizagem que criem condições os conteúdos, dialogando e ampliando os conhecimentos já adqui-
para que o aluno adquira a capacidade para analisar sua realidade ridos e propondo novas situações de aprendizagem que se referen-
sob o ponto de vista geográfico. cie em resoluções de problemas em perspectiva interdisciplinar.
A necessidade de o professor pensar autonomamente, de orga-
nizar seus saberes e de poder conduzir seu trabalho tem muito a ver Nessa perspectiva, é preciso esforço maior, por parte de to-
com a formação que tem e com a postura pedagógica que adote, dos os agentes envolvidos no processo de ensino-aprendizagem,
uma vez que ele é o agente principal de seu próprio fazer pedagó- na elaboração de textos que ampliem os parâmetros curriculares
gico. Cavalcanti (2002:21) destaca que o processo de formação de específicos, particularizando os fundamentos teórico-metodológi-
professores visa ao desenvolvimento de uma competência crítico- cos, com base em discussões sobre competências e habilidades de
reflexiva, que lhes forneça meios de pensamento autônomo, que forma acessível, sem aplicar o conhecimento geográfico de manei-
facilite as dinâmicas de auto formação, que permita a articulação ra superficial, evitando as linguagens herméticas e generalizantes.
teoria e prática do ensino [...] deve ser uma formação consistente,
contínua, que procure desenvolver uma relação dialética ensino- O projeto político-pedagógico da escola e a Geografia
-pesquisa, teoria-prática. Trata-se de uma formação crítica e aberta
à possibilidade da discussão sobre o papel da Geografia na forma- Diante das perspectivas pedagógicas e educacionais, é funda-
ção geral dos cidadãos, sobre as diferentes concepções da ciência mental ter clareza do papel da Geografia no ensino médio, pensan-
geográfica, sobre o papel pedagógico da Geografia escolar”. do a ciência com suas categorias e dimensões pedagógicas, promo-
É oportuno lembrar que a prática docente adquire qualidade vendo as devidas articulações com o projeto político-pedagógico
quando existe a produção do saber. Castellar (2003:113) assinala da escola e criando condições para que o aluno analise criticamen-
que “o professor deve atuar no sentido de se apropriar de sua expe- te a produção e a organização do espaço. Para essa reflexão ca-
riência, do conhecimento que tem para investir em sua emancipa- bem, portanto, breves considerações sobre o significado do projeto
ção e em seu desenvolvimento profissional, atuando efetivamente político-pedagógico no currículo escolar.
no desenvolvimento curricular”.
Essa mudança requer muitas vezes a organização dos profes- O projeto político-pedagógico da escola como documento de
sores em suas escolas e no contexto escolar em que atuam, uma referência básica deve ser construído de forma cooperativa, en-
vez que o professor deixa de dar os conceitos prontos para os alu- volvendo todos os agentes do cotidiano escolar. Essencialmente,
nos para, junto com eles, participar de um processo de construção deve expressar a complexidade característica do ambiente escolar
de conceitos e saberes, levando em consideração o conhecimento – considerando seus aspectos físicos, os diferentes segmentos so-
prévio. Nesse processo, é fundamental a participação do profes- ciais e os procedimentos pedagógicos –, além de planejar as ações
sor no debate teórico-metodológico, o que lhe possibilita pensar de curto, médio e longo prazos, o que requer constante avaliação,
e planejar a sua prática, quer seja individual, quer seja coletiva. para que sejam promovidas as necessárias revisão e atualização
Essa participação faz com que o professor tenha acesso ao mate- do projeto.
rial produzido pela comunidade científica da Geografia, o que lhe O projeto político-pedagógico vai além de um simples agru-
permitirá discussões atualizadas que vão muito além da aborda- pamento de planos de ensino e de atividades diversas: é construí-
gem existente nos livros didáticos. Lembramos que, longe de ser a do e vivenciado, em todos os momentos, por todos os envolvidos
única possibilidade de trabalho, o livro didático é um instrumento com o processo educativo da escola (Veiga, 2000:13). O papel da
que, utilizado como complemento do projeto político-pedagógico Geografia no projeto político-pedagógico da escola – assim como
da escola, certamente contribui para promover a reflexão e a au- das demais disciplinas – é sua inserção como componente curricu-
tonomia dos educandos, assegurando-lhes aprendizagem efetiva lar que tem o planejamento contextualizado, atendendo aos princí-
e contribuindo para fazer deles cidadãos participativos (EDITAL pios gerais e à explicitação de regras básicas.
PNLEM/2007) e, para que isso ocorra, não deve ser utilizado Com efeito, considera-se que um ensino eficaz, cujos obje-
como um fi m em si mesmo, mas como um meio. tivos de aprendizagem sejam alcançados, depende, inclusive, de
práticas pedagógicas adequadas.
A mudança exige do professor discussão e reflexão sobre Nesse contexto, é relevante pensar em práticas que propiciem
os temas que desejam trabalhar. Portanto, o que se espera é que a realização do trabalho com alunos do ensino médio e que estimu-
haja parâmetros para que os docentes possam ter como referência lem o processo de aprendizagem.
conceitos e categorias que estruturem o conhecimento geográfico, Uma vez estabelecidas as bases intelectuais para o desenvol-
propiciem o repensar de sua ação didática e de sua realidade, des- vimento do trabalho na escola, algumas práticas pedagógicas po-
tacando de forma crítica as diferenças regionais, culturais, econô- dem ser sugeridas para possibilitar a obtenção de bons resultados
micas e ambientais. das atividades docentes. Devem-se propiciar condições para que
Tais parâmetros e referências devem ajudar o professor a en- o conhecimento seja construído em nível científico – consideran-
tender a importância da transposição didática do conhecimento do-se o estágio de desenvolvimento cognitivo dos alunos – para
científico, para que o aluno possa dele se apropriar – respeitando além do senso comum. Com base nisso, sugere-se a proposição
a realidade e o modo de aprender de cada um – e a refletir sobre de situações problematizadoras da realidade, a partir de temáticas
sua prática, criando oportunidades e desenvolvendo atividades de capazes de mobilizar os estudantes para desencadear os processos
interação entre seu conhecimento e o dos alunos. de aprendizagem significativa e relevante.

Didatismo e Conhecimento 92
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
O ENSINO DE GEOGRAFIA: UMA COMBINAÇÃO Ao trabalhar com os conceitos cartográficos e geográficos,
ENTRE CONCEITOS E SABERES tendo como interface as categorias de espaço e tempo, temos de
incorporar outros componentes que servirão de referências cur-
Os Parâmetros Curriculares para a Geografia têm entre seus riculares para o ensino médio, ou seja, admitir a diversidade de
objetivos articular o diálogo entre a didática (o pensar pedagógico) fontes e de linguagens, valorizando as leituras objetivas e subje-
e a epistemologia (o pensar geográfico). Ao propor esse diálogo tivas do mundo. Essas linguagens (cartográfica, textual, corporal
espera-se fortalecer a relação entre o pensar pedagógico e o saber e cênica, iconográfica e oral) servirão de apoio para as aulas de
geográfico, favorecendo a reflexão sobre as contradições existen- Geografia, ou seja, são um instrumento mais adequado para fazer
tes na prática de sala de aula. a leitura do meio geográfico e de seu uso, o que supõe o exercício
da interdisciplinaridade.
Esses fundamentos trazem em si alguns questionamentos,
Adquirir competências e habilidades para ler os fenômenos
como: geográficos requer saber utilizar a cartografia e a capacidade para
• quais as condições para que o aluno aprenda a ler o mundo elaborar mapas mentais, para leitura e uso de plantas cartográficas
por meio da Geografia? e mapas temáticos. Além disso, os avanços da tecnologia –
• como utilizar a cartografia como linguagem em qualquer fotografias aéreas, mapas digitais e sensoriamento remoto – permi-
conteúdo, avançando na idéia de que a cartografia é mais do que tem melhorar a qualidade dos mapas e o nível de precisão visando
uma técnica? à localização dos espaços.
Portanto, os Parâmetros Curriculares, a partir das Compreender a Geografia do local em que se vive significa
especificidades da Geografia, devem considerar as temáticas que conhecer e apreender intelectualmente os conceitos e as catego-
corroboram a construção do conhecimento geográfico, tornando-o rias, tais como: o lugar, a paisagem, os fluxos de pessoas e mer-
mais significativo para se compreender o mundo. cadorias, as áreas de lazer, os fenômenos e objetos existentes no
Desse modo, a educação geográfica requer o desenvolvimento espaço urbano ou rural. Para ter essa compreensão, é necessário
do pensamento geográfico estruturado em princípios filosóficos, saber manejar os conceitos, saber a que eles se referem e que con-
metodológicos e pedagógicos. dução teórica expressam. Nessa perspectiva torna-se relevante
compreendê-la como um lugar que abriga, produz e reproduz cul-
Sobre Conteúdos e Metodologias no Ensino da Geografia turas, como modo de vida materializado cotidianamente.
Ler os fenômenos geográficos em diferentes escalas permite
ao aluno uma leitura mais clara do seu cotidiano. Dessa maneira,
Os avanços verificados na Geografia escolar, principalmente, a
ele entenderá a realidade, poderá comparar vários lugares e notar
partir do final da década de 70, permitiram mudanças significativas
as semelhanças e diferenças que há entre eles. A partir desse en-
na forma de pensar dos docentes. Entretanto, para uma parcela dos tendimento, os saberes geográficos são estratégicos, pois permitem
docentes, a preocupação ainda se centra nas informações estatísti- ao aluno compreender o significado da cidadania e assim exercitar
cas e descrições que reforçam um ensino mnemônico. seu direito de interferir na organização espacial.
Do mesmo modo, em certos ambientes escolares, a Geografia A Geografia deve propiciar a leitura da paisagem e dos mapas
ainda continua relegada a segundo plano na estruturação dos cur- como metodologia do ensino para que o aluno, numa prática peda-
rículos escolares, ocupando lugar menos nobre na grade horária. gógica, inovadora possa observar, descrever, comparar e analisar
Além disso, alguns equívocos conceituais reforçados por os fenômenos observados na realidade, desenvolvendo habilidades
discurso superficial, principalmente nos conceitos que estrutura- intelectuais mais complexas.
vam o conhecimento geográfico, persistem no cotidiano escolar. Ao propor as orientações curriculares com temas geográficos,
Podemos citar como exemplo a discussão da geografia urbana na considera-se a importância de o aluno aprender a ler mapas, conhe-
escola, a qual se atém em grande parte a conceitos teóricos, não cer a simbologia das legendas, organizar e hierarquizar fenômenos
havendo consciência de que para estudá-la é importante compre- e perceber os detalhes da relação cidade e campo em diferentes
endê-la como o locus de vivência da população e, em nome da escalas cartográficas. Para a análise dos fenômenos geográficos,
mundialização, desconsidera-se o lugar como o local de vida e de é importante considerar a dimensão local, regional, nacional ou
possibilidade de fazer frente aos movimentos e interesses externos global, o que facilitará ao aluno o seu entendimento sobre as mu-
danças que ocorrem em diferentes lugares.
do mundo. Esses exemplos reforçam a falta de entendimento teó-
A aprendizagem será significativa quando a referência do con-
rico sobre o método na análise dos fenômenos comprometendo a
teúdo estiver presente no cotidiano da sala de aula e quando se
dimensão epistemológica e ontológica da ciência Geográfica. considerar o conhecimento que o aluno traz consigo, a partir da
Nesse sentido, é preciso ter clareza de que o local é sua vivência.
influenciado pelo global, assim como este também é influenciado No que se refere ao conteúdo, não importa de que ponto se
pelas particularidades e singularidades dos lugares, sendo o movi- inicia, se do lugar ou do global. O fundamental é transitar nesses
mento do particular para o geral e do geral para o particular um dos níveis de análise para buscar as explicações dos diversos fenô-
fundamentos do método de análise da geografia crítica. menos. Callai (2002:92-93) assinala que “é fundamental que se
considere que a aprendizagem é um processo do aluno, e as ações
Os conceitos cartográficos (escala, legenda, alfabeto que se sucedem devem necessariamente ser dirigidas à construção
cartográfico) e os geográficos (localização, natureza, sociedade, do conhecimento por esse sujeito ativo. Tal processo supõe, igual-
paisagem, região, território e lugar) podem ser perfeitamente cons- mente, uma relação de diálogo entre professor e aluno que se dá a
truídos a partir das práticas cotidianas. Na realidade, trata-se de partir de posições diferenciadas, pois o professor continua sendo
realizar a leitura da vivência do lugar em relação com um conjunto professor, é o responsável pelo planejamento e desenvolvimento
de conceitos que estruturam o conhecimento geográfico, incluindo das atividades, criando condições para que se efetive a aprendiza-
as categorias espaço e tempo. gem por parte do aluno”.

Didatismo e Conhecimento 93
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Torna-se relevante conhecer e compreender as características do meio em que se vive e, conseqüentemente, o cotidiano, ampliando o
entendimento da complexidade do mundo atual. O espaço traz em si, as condições naturais de sua formação, que se manifestam de maneiras
variadas nos diversos lugares, de acordo com as possibilidades de uso que decorrem da ação humana com suas características sociais, cul-
turais, econômicas e, conseqüentemente, com as suas formas de organização.
Saber ler o mundo para compreender a realidade e entender o contexto em que as relações sociais se desenvolvem implica não só se ater
na percepção das formas, mas também no significado de cada uma delas. É a partir do cotidiano que os alunos perceberão os diversos lugares
que compõem a Geografia, ampliando a dimensão limitada que às vezes se tem dela. Essa compreensão permite a construção de vários eixos
temáticos e sua relação com o mundo. Em tais contextos, aprender a cidade significa aprender que ela não é estática, mas portadora de uma
geografia dinâmica, na qual quem por exemplo, informações e cultura.

Os conceitos estruturantes para o ensino de Geografia

Com a nova organização e formatação do ensino médio, todas as disciplinas do currículo escolar reúnem conceitos comuns, entendidos
como estruturantes das áreas de conhecimento, ou seja, referenciais para que se compreendam os conteúdos das disciplinas.

Os conceitos são instrumentos do pensar e do agir que se justificam e ganham sentido próprio no complexo sistema que compõe com os
conceitos correlatos e no qual interagem em campo teórico mais vasto. Impõe-se, por isso, nova visão de interdisciplinaridade ou transdis-
ciplinaridade. Nenhuma região do saber existe isolada em si mesma, devendo, depois, relacionar-se com as demais. Só na unidade do saber
existem as disciplinas, isto é, na totalidade em que se correlacionam e uma às outras demandam reciprocidade. (MARQUES, 2000:151)

No documento dos PCN+ (1999:24), remete-se à explicitação do que se entende por conceito. “Um conceito é a representação das ca-
racterísticas gerais de cada objeto pelo pensamento. Nesse sentido, conceituar significa a ação de formular uma idéia que permita, por meio
de palavras, estabelecer uma definição, uma caracterização do objeto a ser conceituado. Tal condição implica reconhecer que um conceito
não é o real em si, e sim uma representação desse real, construída por meio do intelecto humano”.

O conceito tem como finalidade servir de ‘ferramenta’ intelectual para que possa ser reutilizado nas novas análises que forem processa-
das. No entanto, nem toda análise gera novos conceitos, uma vez que muitas das atividades analíticas lançam mão de conceitos já construí-
dos e que, como já dissemos, são reutilizados para que o percurso humano de construção/reconstrução de conhecimentos seja ampliado em
escalas cada vez mais complexas e abrangentes (PCN+, op. cit.:27).

Por essas razões, não se pode pensar nos conceitos como algo pronto e acabado e que servem de memorização, como tradicionalmente
ocorria (e ocorre) no ensino de Geografia. A exemplo de outras ciências, a seleção dos conceitos pode ser marcada por recortes culturais,
sociais e históricos, tendo por base as discussões acadêmicas, os resultados das investigações, as contribuições dos discursos políticos e
sociais, os meios de comunicação e as práticas sociais.

Os conceitos básicos aqui apresentados como estruturantes da Geografia devem ser considerados sempre, permeados pelas dinâmicas
da sociedade, porque qualquer que seja a opção teórico-metodológica adotada pelo professor, deve-se levar o aluno a ter uma visão da com-
plexidade social do mundo (quadro 3).

ANOTAÇÕES

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Para Rego (2002:204), os conceitos atravessam os fatos interpretativamente, interligando-os sob uma determinada ótica, criando uma
malha de leitura complexa. Diante da complexidade dessa malha, uma abordagem possível para a educação que busca esforço compreensivo
ativo é valorizar a perspectiva que elenca o lugar e o mundo mais proximamente vivido como referenciais cognitivos/emocionais essenciais
para o processo educacional.
Portanto, a formação dos conceitos por parte dos alunos é o que serve de balizador para o ensino, pois ao construir o conceito, o aluno
vai confrontar seus pontos de vista resultantes do senso comum e os conhecimentos científicos, encaminhando-se para uma compreensão
que o conduzirá a uma constante ampliação de sua complexidade.

ESTABELECENDO CONEXÕES ENTRE CONCEITOS E CONTEÚDOS

Podemos dizer que não existe padrão de conhecimento geográfico pré-definido e imutável. Isso é produto de uma construção histórica,
que leva em conta, para sua definição/seleção as mudanças que ocorrem no mundo, sua complexidade e o contexto local em que a escola
está inserida. Significa dizer que temos de refletir para além da provisoriedade do currículo da Geografia escolar e organizar as referências
conceituais e da aprendizagem, favorecendo o desenvolvimento das competências cognitivas e da área.
Dominar um conceito supõe dominar a totalidade de conhecimentos sobre os objetos a que se refere o conceito dado e, quanto mais nos
aproximamos deles, maior domínio sobre seu conceito é conquistado. É assim que podemos considerar o desenvolvimento dos conceitos,
pois seu conteúdo muda à medida que se ampliam nossos conhecimentos. (COUTO, 2005: 99)

Didatismo e Conhecimento 95
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Enfim, a questão não é permanecer apenas nos conceitos de cada uma das disciplinas, mas articulá-los com os conteúdos, pois sem eles
os conceitos são definições vazias e sem sentido. Para isso, é importante estabelecer conexões entre conceitos e conteúdos e o trabalho por
meio dos eixos temáticos pode ser um caminho a seguir.

Por que pensar em eixos temáticos?

O importante nessa discussão é ter os conteúdos como elementos pelos quais se torna possível a compreensão das diferentes realidades
geográficas, produzidas pelas interações homem-meio. Por esse caminho, algumas questões se colocam:

• quais os conteúdos que permitem alcançar os objetivos pretendidos e desenvolver as competências e as habilidades desejadas?
• qual a escala de análise a ser considerada? Quais os lugares a serem estudados?
• que fenômenos geográficos mais significativos estão acontecendo no mundo?

Uma forma de organizar o conhecimento geográfico como conteúdos escolares poderá ser realizada por meio dos eixos temáticos, que,
por sua vez, poderão estar vinculados aos conceitos e vice-versa. Outro aspecto importante é que esses eixos temáticos podem ser definidos a
partir das especificidades locais e da opção teórico-metodológica adotada pelo professor em consonância com o projeto político-pedagógico
da escola.

Assim, a articulação entre a realidade local, a capacidade e a liberdade intelectual do professor e os aspectos organizacionais e políticos
da escola é fundamental para que o perfil do trabalho a ser desenvolvido esteja e claro desse modo, todos os agentes envolvidos no processo
de ensino-aprendizagem reconheçam seu papel e tenham efetiva capacidade de exercê-lo.

A partir dos eixos podem-se levantar algumas questões que permitem pensar como o jovem se coloca no mundo do trabalho e quais as
possibilidades reais de enfrentar um mundo com forte componente tecnológico.

Para se alcançarem os objetivos propostos, na perspectiva de ampliar o entendimento dos conceitos geográficos e cartográficos, algumas
habilidades serão desenvolvidas. Elas serão construídas por meio de atividades didáticas e devem levar ao desenvolvimento das competên-
cias requeridas, as quais supõem o domínio das habilidades em si, assim como a compreensão do seu significado.

Os eixos temáticos: a articulação entre os conceitos e os conteúdos

A Geografia que se quer ensinar para o ensino médio deve ser pensada no sentido de formar um cidadão que conheça os diferentes
fenômenos geográficos da atualidade tendo em vista o processo de globalização e suas rupturas, dadas pela resistência dos movimentos
sociais e as contradições inerentes ao sistema capitalista, além de privilegiar os diferentes cenários e atores sociais, políticos e econômicos
em diferentes momentos históricos. As novas tecnologias de informação e a cartografia passam a ter também um papel importante na com-
preensão do mundo. Assim, para ensinar, aprender e aprofundar os conceitos geográficos podemos estruturar os seguintes eixos temáticos:

Didatismo e Conhecimento 96
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Formação territorial brasileira. Organização e distribuição mundial da população, os gran-
des movimentos migratórios atuais e os movimentos sociocultu-
Esse eixo temático pretende destacar que a compreensão da rais e étnicos, as novas identidades territoriais.
formação territorial brasileira se insere em um processo geo-histó-
rico mais amplo de mundialização da sociedade européia iniciado O estudo da população pela Geografia considera em especial
no final do século XV. Para entender o Brasil, é necessário também sua organização, distribuição e a apropriação do espaço como uso
compreender a formação do território latino-americano. para viver e produzir. Os movimentos atuais da população expres-
Posteriormente, é importante analisar o Brasil como forma- sam essas buscas, que são constantes e marcam tanto as necessi-
dades dos grupos populacionais quanto as motivações, que podem
ção social subordinada aos centros dominantes do capitalismo e o
ser geradas externamente a eles.
modo de ajuste da sua economia e do seu território às necessidades
São movimentos muito intensos, que se manifestam atual-
desse centro. Basicamente temos dois grandes períodos, o primei- mente das mais variadas formas e que, se estudados na perspectiva
ro, o da economia e da formação territorial colonial-escravista de aceitação da diversidade e do multiculturalismo, facilitam com-
(economia agrário-exportadora), do século XVI ao século preender a necessidade de reconhecer as identidades e o pertenci-
XIX, e o período da economia e da formação territorial urbano- mento territorial. Esses dois conceitos permitem que as pessoas se
-industrial, a partir do final do século XIX e ao longo de todo o reconheçam como sujeitos na produção de geografias em que se
século XX. vive e encaminha a discussão sobre o lugar como espaço concreto
de ação que desvenda a possibilidade de fazer frente aos processos
Estrutura e dinâmica de diferentes espaços urbanos e o de globalização e no exercício da cidadania.
modo de vida na cidade, o desenvolvimento da Geografia Urba-
na mundial. As diferentes fronteiras e a organização da geografia políti-
ca do mundo atual, estado e organização do território.
A urbanização como fenômeno do mundo atual se estende
por todos os territórios e configura espaços característicos ao atual Acresce-se aqui a dimensão da Geografia política: quanto ao
período técnico, cientifico e informacional que se manifesta pela papel do Estado na criação de oportunidades ou de cerceamento de
estruturação do fenômeno industrial. ações envolvendo populações, nas formas de organização da po-
As cidades refletem em sua organização as grandes mudanças pulação nos vários lugares do mundo, com suas lutas especificas,
na definição de fronteiras e das possibilidades de sua superação,
socio-econômicas e culturais, onde se estruturam diferentes terri-
na estruturação dos territórios e as configurações demarcadas por
tórios urbanos, criados por grupos sociais distintos, especialmente
interesses estratégicos nacionais.
nas metrópoles. Há uma tendência à homogeneização do espaço
urbano que afeta também as cidades médias, as quais também As questões ambientais, sociais e econômicas resultantes dos
passam a sofrer com os “problemas urbanos” semelhantes aos das processos de apropriação dos recursos naturais em diferentes
grandes cidades (violência, poluição, desigualdades sociais). As escalas, grandes quadros ambientais do mundo e sua conotação
resistências às imposições da ordem global também se manifestam geopolítica.
nas cidades, seja na forma de criação de territórios alternativos,
seja na manutenção de formas de cooperação e solidariedade que Embora essas questões decorrentes da relação sociedade-
se vinculam aos lugares, ou seja, nos movimentos sociais reivin- -natureza possam estar presentes nos demais itens referidos até
dicatórios, de protesto ou dos trabalhadores em geral na luta por agora, para a ciência geográfica são temáticas caras, no sentido de
condições de trabalho e salário. que o trabalho com a dimensão espacial dos fenômenos, implica,
necessariamente, considerar o meio físico natural. O significado
O futuro dos espaços agrários, a globalização a moderniza- desse não se restringe mais às simples tarefas de elencar e descre-
ção da agricultura no período técnico-científico informacional e ver. Nesse tema, vale destacar a importância de se pensar o meio
a manutenção das estruturas agrárias tradicionais como forma geográfico de uma dada sociedade como construção social, ou
de resistência. seja, cada cultura corresponde a uma suposição do que é natureza,
ou seja, os espaços são produtos da ação dos homens em suas dife-
rentes formas de organização e relações entre si e na inter-relação
Os espaços agrários também estão sofrendo profundas mu-
da sociedade com a natureza.
danças advindas da mudança tecnológica. A agricultura moderna
Essa nova lógica de que todos estão interligados e que o mun-
é uma atividade cada vez mais teologizada e globalizada, sendo os do é uma grande aldeia global, com distâncias cada vez mais re-
produtos agrícolas um dos motores do avanço científico (biotecno- duzidas, vem gerindo e gerenciando as relações entre os homens
logia) e do próprio comércio mundial. Essas mudanças se confron- e destes com a natureza. Pensar essa realidade como um proces-
tam com populações tradicionais, as quais lutam pela propriedade so de globalização/fragmentação pode ser a alternativa de se en-
de seu saber (biodiversidade, patentes) e seu gênero de vida, o que contrarem caminhos metodológicos para promover uma análise
se vincula diretamente a sua manutenção e reprodução como grupo geográfica. A escala social de análise se apresenta, então, como
social. Tais resistências assumem diferentes características em di- a possibilidade de concretizar isso, sem nunca perder de vista as
versas partes do mundo, seja por meio da valorização e resgate da dimensões mundiais, nacionais, regional e local. Estudar o lugar
cultura original, seja por meio da criação de novas personalidades pode levar à compreensão de como os processos de globalização
políticas, ou ainda com a união dos dois processos. Esses proces- interferem em nossas vidas e na organização do espaço e à ca-
sos é que têm mantido a diversidade dos espaços rurais em dife- pacidade de reconhecer a identidade e pertencimento dos sujeitos
rentes partes do mundo, inclusive na América Latina e no Brasil. como autores de suas vidas e da produção do seu espaço.

Didatismo e Conhecimento 97
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Produção e organização do espaço geográfico e mudanças Juntamente com o presente documento, tem-se a proposta de
nas relações de trabalho, inovações técnicas e tecnológicas e as discutir a coerência entre o que se faz na sala de aula com o que se
novas geografias, a dinâmica econômica mundial e as redes de exige do aluno, ou seja, que critérios e resultados e que orientações
comunicação e informações. estão sendo dados ao aluno
para que se possa perceber claramente o caminho da aprendi-
Considerar o trabalho como elemento fundamental na vida zagem que ele está percorrendo. Por isso, é importante compreen-
das pessoas e na organização do espaço exige que se reconhe- der que o conhecimento não é coisa que simplesmente se acumula,
çam as diferenças nas atuais relações de trabalho e nas formas de mas sim que constitui um sistema de representação. Por isso, a
apropriação das riquezas. Esse quadro tornou-se mais complexo avaliação não pode ser uma ferramenta de coerção, mas de reo-
com os impactos causados pela revolução científico-tecnológica, rientação.
quando a circulação da informação ganhou intensa e inimaginável No que se refere aos indicadores de avaliação, com base nas
velocidade e novas formas de produção se impõem, o que certa- atividades desenvolvidas, destacam-se conteúdos e competências
mente acarretará o surgimento de novas territorialidades. São essas como compreensão de textos, relações e correlações textuais, as-
territorialidades que definem as relações entre as pessoas, entre as sociação com o conhecimento prévio e hipóteses apresentadas pe-
nações e entre os grupos sociais, os quais produzem e organizam los alunos. Dessa forma, criam-se conflitos cognitivos e coerentes
o espaço de formas diferenciadas nos vários lugares e no tempo. com a metodologia proposta.
Esses temas são considerados pontos de partida para instru- Uma avaliação formativa, com ênfase na leitura e na escrita, é
mentalizar em termos de conteúdo as análises geográficas. Eles um desabo para a Geografi a, relacionado com o que acontece em
não têm um fi m em si mesmos, pois estão articulados no contexto sala de aula e com a ação docente no processo de ensino-aprendi-
dos objetivos e competências atribuídas ao componente curricular zagem. Direcionar a prática para essa concepção é compreender
de Geografia. A Geografia no ensino médio deve considerar a ca- como as atividades auxiliam no desempenho das competências
pacidade do jovem de se localizar no mundo atual e refletir sobre a que os alunos podem utilizar para construir seu conhecimento.
construção de sua identidade e pertencimento como sujeito. A capacidade de observação, descrição e análise dos espaços,
Sendo assim, o ensino de Geografia no ensino médio não pode assim como sua representação, apresenta-se como possibilidade de
abrir mão da exigência do necessário conhecimento teórico-meto- verificação de aprendizagem.
O domínio, portanto, das várias linguagens possíveis de ser
dológico do professor, para que tenha as condições de definir o que
usadas pela Geografia vai permitir que o aluno demonstre seu co-
e como trabalhar em cada momento. Essa proposição de conteú-
nhecimento geográfico construído.
do e a exposição dos conceitos estruturantes da Geografia e suas
Para finalizar, se a avaliação deve estar integrada e ser par-
articulações aqui trazidas expressam a preocupação em demarcar
te dos procedimentos pedagógicos e ser assim coerente com os
o lugar da Geografia na escola, como componente curricular ade-
princípios teórico-metodológicos adotados, ela também deve estar
quado à formação dos jovens e com significativa contribuição no
integrada à escola em sua totalidade, considerando-se os diferentes
conjunto do currículo escolar.
momentos e contextos em que ocorre.
AVALIAÇÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Em coerência com o que aqui se propõe, as práticas de ava- CALLAI, Helena Copetti. Estudar o lugar para compreender
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quais o sujeito se apropria do mundo... Porque a memória não é no. Goiânia: Editora Alternativa, 2002.
uma seleção de arquivos, mas a integração de informações em um COUTO, Marcos. O conteúdo do conceito científico e suas
futuro possível para o qual nos projetamos... Porque se sabe que implicações psicológico-didáticas. São Paulo, 2005. Inédito, (xe-
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reelaboração de representações anteriores e sob a pressão de um MARQUES, Mário Osório. Escola, aprendizagem e docên-
conflito cognitivo¨. cia: imaginário social e intencionalidade política. In: VEIGA, Ilma
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apenas por aferir a memorização, reforçando técnicas como a dos manas e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002.
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escolar apresenta muitas contradições que implicam a dificuldade RAMOS, Marise Nogueira. A pedagogia das competências:
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Didatismo e Conhecimento 98
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Paulo: Secretaria do Estado da Educação/CENP, 2004. mentos foram passando de amplas definições para concretizações
mais específicas. Na Constituição Brasileira de 1988 (Artigos 205
CONHECIMENTOS DE HISTÓRIA e 210), a educação, definida como direito de todos e dever do Es-
tado, recebeu dispositivos amplos que foram detalhados na Lei de
INTRODUÇÃO Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (para o ensino
médio, ver especialmente os Artigos 26, 27, 35 e 36); estes, por
Por que História sua vez, foram ainda mais definidos e explicitados pelas Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (1998).
“Papai, então me explica para que serve a História” Para esclarecermos qual é o papel que ocupa a disciplina His-
Marc Bloch tória no contexto do ensino médio, é necessário recorrer às grandes
linhas que são trabalhadas nesses textos legais. Segundo a LDB,
Milhares são os jovens que, como o garoto do qual fala Marc Artigo 22, as finalidades da educação, além de abrangentes, são
Bloch na introdução do seu livro, escrito em 1943, Apologia da
desafiadoras: “A educação básica tem por finalidades desenvolver
História ou o ofício de historiador, dirigem essa questão ao seu
o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para
professor de História. Responder aos jovens essa questão requer
muito mais do que saber falar a eles com clareza, simplicidade o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no
e correção sobre o que é a História. Requer oferecer-lhes condi- trabalho e em estudos superiores”. Já as Diretrizes Curriculares
ções para refletirem criticamente sobre suas experiências de viver Nacionais para o Ensino Médio estabelecem como finalidade “[...]
a história e para identificarem as relações que essas guardam com vincular a educação com o mundo do trabalho e a prática social,
experiências históricas de outros sujeitos em tempos, lugares e cul- consolidando a preparação para o exercício da cidadania e propi-
turas diversas das suas. ciando preparação básica para o trabalho” (DCNEM, Artigo 1o).
Os jovens vivem e participam de um tempo de múltiplos acon- A nova identidade atribuída ao ensino médio define o, por-
tecimentos que precisam ser compreendidos na sua historicidade. tanto, como uma etapa conclusiva da educação básica para a po-
No entanto, a compreensão da historicidade dos acontecimentos pulação estudantil. O objetivo é o de preparar o educando para a
tem sido dificultada não só pela sua quantidade e variedade, mas vida, para o exercício da cidadania, para sua inserção qualificada
também pela velocidade com que se propagam por meio das tec- no mundo do trabalho, e capacitá-lo para o aprendizado permanen-
nologias da informação e da comunicação. O acúmulo e a veloci- te e autônomo, não se restringindo a prepará-lo para outra etapa
dade dos acontecimentos afetam não só os referentes temporais e escolar ou para o exercício profissional. Dessa forma, o ensino de
identitários, os valores, os padrões de comportamento, construindo História, articulando-se com o das outras disciplinas, busca ofere-
novas subjetividades, como também induzem os jovens a viverem, cer aos alunos possibilidades de desenvolver competências que os
como diz Hobsbawm (1995), “numa espécie de presente contínuo”
instrumentalizem a refletir sobre si mesmos, a se inserir e a parti-
e, portanto, com fracos vínculos entre a experiência pessoal e a das
cipar ativa e criticamente no mundo social, cultural e do trabalho.
gerações passadas.
Auxiliar os jovens a construírem o sentido do estudo da His- Procura-se, portanto, contribuir para que a disparidade e as
tória constitui, pois, um desafio que requer ações educativas ar- tensões existentes entre os objetivos que visam à preparação para
ticuladas. Trata-se de lhes oferecer um contraponto que permita o vestibular, à preparação para o trabalho e à formação da cidada-
ressignificar suas experiências no contexto e na duração histórica nia possam ser atenuadas. Pretende-se que o ensino médio atinja
da qual fazem parte, e também apresentar os instrumentos cogni- um grau de qualidade em que o aluno dele egresso tenha todas
tivos que os auxiliem a transformar os acontecimentos contem- as condições para enfrentar a continuidade dos estudos no ensino
porâneos e aqueles do passado em problemas históricos a serem superior e para se posicionar na escolha das profissões que melhor
estudados e investigados. se coadunem com suas possibilidades e habilidades.
Com essa nova versão dos parâmetros curriculares de Histó- Nessa perspectiva, o ensino médio buscará, também, superar
ria, procura-se buscar a sintonia com os anseios dos professores a oferta de disciplinas compartimentadas e descontextualizadas de
quanto a suas visões a respeito das necessidades de formação dos suas realidades sociais e culturais próximas, espacial e temporal-
jovens do nosso tempo e com suas concepções a respeito da His- mente, não só no interior da área das ciências humanas, como no
tória e do seu ensino. interior das outras áreas e entre elas. Apontam-se como princípios

Didatismo e Conhecimento 99
PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
estruturadores do currículo a interdisciplinaridade, a contextuali- Outro eixo estruturador do currículo, a contextualização, é en-
zação, a definição de conceitos básicos da disciplina, a seleção dos tendidocomo o trabalho de atribuir sentido e significado aos temas
conteúdos e sua organização, as estratégias didático-pedagógicas. e aos assuntos no âmbito da vida em sociedade. Os conhecimentos
Esse conjunto de preocupações consubstancia-se, ganha concretu- produzidos pelos estudiosos da História e do ensino da História, no
de e garantia de efetivação, a médio e a longo prazos, no projeto âmbito das universidades, por exemplo, são referências importan-
pedagógico da escola, elaborado com a participação efetiva da di- tes para a construção dos conhecimentos escolares na dimensão da
reção, dos professores, dos alunos e dos agentes da comunidade sala de aula. No entanto, é imprescindível que a seleção da narra-
em que se situa a escola. tiva histórica consagrada pela historiografia esteja relacionada aos
Para fazer frente à necessidade vital de formação para a vida, problemas concretos que circundam os alunos das diversas escolas
o ensino pautase pelo conceito de educação permanente, tendo em que compõem o sistema escolar. Para adquirir significado e pos-
vista o desenvolvimento de competências cognitivas, socioafeti- sibilitar impulsos criativos, além da seleção de temas e assuntos
vas, psicomotoras e das que incentivam uma intervenção conscien- que tenham relação com o ambiente social dos alunos, o trabalho
te e ativa na realidade social em que vive o aluno. Dentre essas
pedagógico contará com atividades problematizadoras diante da
competências, podem-se enumerar, segundo as DCNEM: a auto-
realidade social. Dessa forma será possível articular os conheci-
nomia intelectual e o pensamento crítico; a capacidade de aprender
mentos produzidos de acordo com o rigor analítico-científico do
e continuar aprendendo, de saber se adequar de forma consciente
às novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento, de constituir processo de conhecimento histórico ao trabalho pedagógico con-
significados sobre a realidade social e política, de compreender o creto em sala de aula.
processo de transformação da sociedade e da cultura; o domínio Nessa compreensão, portanto, a referência à contextualização
dos princípios e dos fundamentos científico-tecnológicos para a vai muito além daquela intenção de “situar” fatos e acontecimen-
produção de bens, serviços e conhecimentos. O trabalho com a dis- tos que estão sendo estudados na pretensa referência a aspectos
ciplina História estará atento ao desenvolvimento dessas compe- gerais de uma situação histórica, externos à produção do conhe-
tências mais gerais e, ao mesmo tempo, à busca das competências cimento em pauta, como se fosse necessário descrever o “pano
que são específicas do conhecimento histórico. Cabe ao professor de fundo” no qual eles estariam “inseridos”. Evita-se, também,
priorizar e selecionar as competências que são mais adequadas ao entender a contextualização como se fosse apenas e tão-somente a
desenvolvimento de acordo com os contextos específicos da escola referência a temas específicos e candentes do cotidiano dos alunos.
e dos alunos. Estes poderão e deverão ser pontos de partida para a problematiza-
O princípio pedagógico da interdisciplinaridade é aqui enten- ção do trabalho com a História, mas isso não substitui a dimensão
dido especificamente como a prática docente que visa ao desenvol- temporal da realidade humana. Como se afirma nas DCNEM: “A
vimento de competências e de habilidades, à necessária e efetiva relação entre teoria e prática requer a concretização dos conteúdos
associação entre ensino e pesquisa, ao trabalho com diferentes curriculares em situações mais próximas e familiares do aluno, nas
fontes e diferentes linguagens, à suposição de que são possíveis quais se incluem as do trabalho e do exercício da cidadania” (Ar-
diferentes interpretações sobre temas/assuntos. Em última análise, tigo 9o, II).
o que está em jogo é a formação do cidadão por meio do complexo Cabe ainda lembrar que o trabalho de contextualização busca
jogo dos exercícios de conhecimento e não apenas a transmissão– compreender a correlação entre as dimensões de realidades local,
aquisição de informações e conquistas de cada uma das disciplinas regional e global, sem o que se torna impossível compreender o
consideradas isoladamente. A questão da interdisciplinaridade está real significado da vida cotidiana do aluno do ponto de vista his-
claramente exposta nos PCN+, Ciências Humanas, p. 15-16. tórico.
O que é preciso compreender é que, precisamente por trans-
cender cada disciplina, o exercício dessas competências e dessas A HISTÓRIA NO ENSINO MÉDIO
habilidades está presente em todas elas, ainda que com diferentes
ênfases e abrangências. Por isso, o caráter interdisciplinar de um
Questões de conteúdo
currículo escolar não reside nas possíveis associações temáticas
entre diferentes disciplinas, que em verdade, para sermos rigoro-
sos, costumam gerar apenas integrações e/ou ações multidiscipli- Seria muito difícil chegar a um acordo sobre os assuntos, te-
nares. O interdisciplinar se obtém por outra via, qual seja, por uma mas ou objetos de estudo que deveriam fazer parte do currículo de
prática docente comum na qual diferentes disciplinas mobilizam, História. E ainda é mais complexo e arbitrário direcionar a escolha
por meio da associação ensino-pesquisa, múltiplos conhecimentos para uma ou outra opção teórico-metodológica, seja em relação
e competências, gerais e particulares, de maneira que cada discipli- ao conhecimento histórico seja em relação aos posicionamentos
na dê a sua contribuição para a construção de conhecimentos por didático-pedagógicos. Além de sua quase infinita variedade, pois
parte do educando, com vistas a que o mesmo desenvolva plena- o objeto da História são todas as ações humanas na dimensão do
mente sua autonomia intelectual. tempo, a escolha dos temas, dos assuntos ou dos objetos consa-
Para que o princípio pedagógico da interdisciplinaridade pos- grados pela historiografia depende necessariamente de posições
sa efetivamente presidir os trabalhos da escola, faz-se necessária metodológicas assumidas ou mesmo de preferências ideológicas.
uma profunda reestruturação do ponto de vista organizacional, Em vista disso, no caso da História, optou-se por apresentar
físico-espacial, de pessoal, de laboratórios, de materiais didáticos. como parâmetros os conceitos básicos que sustentam o conheci-
Daí o poder estratégico do projeto político-pedagógico da escola mento histórico e podem articular as práticas dos professores em
como instrumento capaz de mobilizar o conjunto dos profissionais sala de aula.
que nela trabalham, assim como a comunidade, para que se pos- Alguns conceitos básicos do conhecimento histórico fazem
sam conseguir as condições que possibilitem implantar as refor- parte do arcabouço constituído, ao longo dos tempos, pela práti-
mas pedagógicas preconizadas. ca dos historiadores. Paulatinamente, o processo do conhecimen-

Didatismo e Conhecimento 100


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
to histórico foi tomando formas que o diferenciaram do de outras Tendo como referência os princípios anteriormente enuncia-
disciplinas cognitivas também elaboradas segundo métodos rigo- dos para o ensino médio (competências, interdisciplinaridade, con-
rosos. Construiu-se um conjunto de procedimentos e de conceitos textualização), apresenta-se a seguir uma proposta de explicitação
em torno dos quais giram as preocupações dos historiadores. Por dos conceitos estruturadores para a disciplina História.
mais díspares, variadas e mesmo contraditórias que sejam entre si
as concepções de mundo, os posicionamentos ideológicos ou as História
proposições de ordem metodológica, não há como não trabalhar
com esses conceitos, ou, pelo menos, com uma parte importan- O conceito “história” tem sido tomado em um duplo
te deles. O que diferencia as diversas concepções de História é significado. Sob um aspecto, história são todas as ações humanas
a forma como esses conceitos e procedimentos são entendidos e realizadas no decorrer dos tempos, independentemente de terem
trabalhados. As propostas pedagógicas, sejam elas quais forem, sido ou não objeto de conhecimento dos estudiosos. É o que se po-
têm um compromisso implícito com essas práticas historiográficas deria chamar de matéria-prima para o trabalho dos historiadores,
ao produzirem o conhecimento histórico escolar, resguardadas as que, por sua vez, foram construindo suas representações cogniti-
devidas especificidades e particularidades. vas. A essas representações cognitivas dá-se o nome de História,
Importa perceber quais conceitos e procedimentos de análi- em geral grafada com maiúscula para distinguir da história como
se e interpretação, construídos e empregados na e pela prática da acontecimento. O objetivo primeiro do conhecimento histórico é a
produção do conhecimento, são imprescindíveis para permitir aos compreensão dos processos e dos sujeitos históricos, o desvenda-
alunos do ensino básico apropriarem-se de uma formação histórica mento das relações que se estabelecem entre os grupos humanos
que os auxilie em sua vivência como cidadãos. Para iniciar o alu- em diferentes tempos e espaços. Os historiadores estão atentos às
no nos processos de ensino-aprendizagem, sugere-se uma reflexão diferentes e múltiplas possibilidades e alternativas que se apresen-
sobre alguns conceitos e procedimentos do conhecimento histórico tam nas sociedades, tanto nas de hoje quanto nas do passado, as
considerados fundamentais. A partir dessas considerações, é pos- quais emergiram da ação consciente ou inconsciente dos homens.
sível iniciar um debate construtivo para corrigir, redimensionar, Procuram apontar, também, os desdobramentos que se impuseram
confirmar, ampliar e sugerir outras possibilidades. com o desenrolar das ações desses sujeitos.
É preciso levar em consideração, em primeiro lugar, que os Um dos objetivos do ensino de História, talvez o primeiro e o
conceitos históricos somente podem ser entendidos na sua histori- que condiciona os demais, é levar os alunos a considerarem como
cidade. Isso quer dizer que os conceitos criados para explicar cer- importante a apropriação crítica do conhecimento produzido pe-
tas realidades históricas têm o significado voltado para essas reali- los historiadores, que está contido nas narrativas de autores que se
dades, sendo equivocado empregá-los indistintamente para toda e utilizam de métodos diferenciados e podem até mesmo apresentar
qualquer situação semelhante. Dessa forma, os conceitos, quando versões e interpretações díspares sobre os mesmos acontecimen-
tomados em sua acepção mais ampla, não podem ser utilizados tos.
como modelos, mas apenas como indicadores de expectativas ana- Essa leitura crítica presidirá também os materiais didáticos co-
líticas. Ajudam-nos e facilitam o trabalho a ser realizado no pro- locados à disposição dos alunos, especialmente os livros didáticos.
cesso de conhecimento, na indagação das fontes e na compreensão A aprendizagem de metodologias apropriadas para a cons-
de realidades históricas específicas. trução do conhecimento histórico, seja no âmbito da pesquisa
Registre-se que é possível distinguir os “conceitos”, na escala científica seja no do saber histórico escolar, torna-se um meca-
de compreensão, entre aqueles que são mais abrangentes e os que nismo essencial para que o aluno possa apropriar-se de um olhar
se referem a realidades mais especificamente determinadas. Quan- consciente no que tange à sociedade e a si mesmo. Ciente do cará-
do se atribui ao conceito uma compreensão mais ampla, relaciona- ter provisório do conhecimento, o aluno terá condições de se exer-
da a realidades histórico-sociais semelhantes, esse pode receber a citar nos procedimentos próprios da História: problematização das
denominação de “categoria”. Por exemplo, as categorias trabalho, questões propostas; delimitação do objeto; estudo da bibliografia
homem, continente, revolução, etc. Nesse sentido, os conceitos ou produzida sobre o assunto; busca de informações; levantamento e
categorias são abertos, são vetores à espera de concretizações, a tratamento adequado das fontes; percepção dos sujeitos históricos
serem elaborados por meio de conhecimentos específicos, de acor- envolvidos (indivíduos, grupos sociais); estratégias de verificação
do com os procedimentos próprios da disciplina e confirmação de hipóteses; organização dos dados coletados;
História. No momento em que se atribui a essas categorias refinamento dos conceitos (historicidade); proposta de explicação
suas especificidades históricas, como trabalho assalariado, tra- dos fenômenos estudados; elaboração da exposição; redação de
balho servil, trabalho escravo, por exemplo, já se está lidan- textos. Dada a complexidade do objeto de conhecimento, é im-
do com conceitos que, por sua vez, poderão receber ainda mais prescindível que se incentive a prática interdisciplinar.
especificações, como trabalho servil na Germânia, na Francônia, e Faz parte da construção do conhecimento histórico, no âmbito
assim por diante; a revolução socialista, a revolução industrial, etc. dos procedimentos que lhe são próprios, a ampliação do concei-
Não se pode usar indevidamente o caráter universal que o conceito to de fontes históricas que podem ser trabalhadas pelos alunos:
efetivamente tem para tirar-lhe a historicidade. Não seria conve- documentos oficiais; textos de época e atuais; mapas; gravuras;
niente, por exemplo, atribuir à “democracia” uma dimensão essen- imagens de histórias em quadrinhos; poemas; letras de música;
cialista, como se ela existisse à guisa de modelo a ser imitado. O literatura; manifestos; relatos de viajantes; panfletos; caricaturas;
que existe são democracias historicamente praticadas na Grécia, pinturas; fotos; reportagens e matérias veiculadas por rádio e tele-
no século XIX, a democracia liberal, a socialista, a brasileira atual, visão; depoimentos provenientes da pesquisa levada a efeito pela
etc. Os conceitos propriamente ditos seriam, então, considerados chamada História oral, etc. O importante é que se alerte para a
representações de um objeto ou fenômeno histórico por meio de necessidade de as fontes receberem um tratamento adequado, de
suas características. acordo com sua natureza.

Didatismo e Conhecimento 101


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
É preciso deixar claro, porém, que o ensino básico não se Tempo (temporalidades históricas)
propõe a formar “pequenos historiadores”. O que importa é que A dimensão da temporalidade é considerada uma das catego-
a organização dos conteúdos e a articulação das estratégias de tra- rias centrais do conhecimento histórico. Considera-se fundamental
balho levem em conta esses procedimentos para a produção do levar o aluno a perceber as diversas temporalidades no decorrer
conhecimento histórico. Com isso, evita-se passar para o educando da História e sua importância nas formas de organizações sociais
a falsa sensação de que os conhecimentos históricos existem de e de conflitos. Sendo um produto cultural forjado pelas necessi-
forma acabada, e assim são transmitidos. dades concretas das sociedades historicamente situadas, o tempo
representa um conjunto complexo de vivências humanas. Por isso
Processo histórico a necessidade de relativizar as diferentes concepções de tempo e as
periodizações propostas, e de situar os acontecimentos históricos
A História busca explicar tanto as permanências e as regu- nos seus respectivos tempos. É de se ressaltar a importância das
laridades das formações sociais quanto as mudanças e as trans- periodizações, dos calendários e das contagens dos tempos como
formações que se estabelecem no embate das ações humanas. A foram sendo historicamente construídos para que o aluno elabore,
descrição factual e linear dos acontecimentos não leva a um conhe- de forma problematizada, seus próprios pontos de referência como
cimento significativo. Na verdade, o passado humano constitui um marcos para as explicações de sua própria história de vida, assim
conjunto de comportamentos intimamente interligados que tem como da história dos homens em geral. O tempo pode ser conside-
uma razão de ser, ainda que, no mais das vezes, imperceptível aos rado o estruturador do pensamento e da ação humanos.
nossos olhos. O processo histórico resulta da captação cognitiva O conceito de tempo supõe também que se estabeleçam re-
dessas práticas, ordenadas e estruturadas de maneira racional pelos lações entre continuidade e ruptura, permanências e mudanças/
historiadores. Parte-se do princípio de que não há caminhos prees- transformações, sucessão e simultaneidade, o antes, o agora e o de-
tabelecidos para a História, seja no sentido idealista seja nas con- pois. Sendo assim, é necessário lembrar que o tempo histórico não
cepções de etapas predeterminadas pelas quais a humanidade deva tem uma dimensão homogênea, mas comporta durações variadas,
trilhar. Assim, são os problemas que os indivíduos e as sociedades como tem sido largamente discutido na historiografia. Eis a impor-
colocam constantemente a si mesmos, na trajetória da trama social tância de se considerarem os diversificados ritmos do tempo histó-
rico quando situados na duração dos fenômenos sociais e naturais.
que é por princípio indeterminada, que fazem com que os homens
É justamente a compreensão dos fenômenos sociais na duração
optem pelos caminhos possíveis e desenhem os acontecimentos
temporal que permite o exercício explicativo das periodizações.
que passam a ser registrados. Os registros ou as evidências da luta
Essas são frutos de concepções de mundo, de metodologias e até
dos agentes históricos são o ponto de partida para se entenderem
mesmo de ideologias diferenciadas.
os processos históricos.
As considerações sobre a riqueza e a complexidade do con-
ceito de tempo
Deve-se ressaltar, igualmente, que o conceito de processo his-
são imprescindíveis para que sejam evitados os anacronismos,
tórico supõe a enunciação resultante de uma construção cognitiva não tão raros, nas explicações históricas. O anacronismo consiste
dos estudiosos. No entanto, embora os processos não tenham exis- em atribuir a determinadas sociedades do passado nossos próprios
tido exatamente como descritos, eles são sedimentados na realida- sentimentos ou razões, e, assim, interpretar essas ações ou aplicar
de social. A dimensão de elaboração no sentido de uma aquisição critérios e conceitos que foram elaborados para uma determinada
cognitiva em permanente construção permite entender a possibili- época, em circunstâncias específicas, para avaliar outras épocas de
dade das diversas interpretações do passado histórico, dependentes características diferentes.
de posicionamentos teóricos e metodológicos diferenciados.
Sujeitos históricos
Assim, a História, concebida como processo, intenta apri-
morar o exercício da problematização da vida social como pon- Perceber a complexidade das relações sociais presentes no co-
to de partida para a investigação produtiva e criativa, buscando tidiano e na organização social mais ampla permite indagar qual o
identificar relações sociais de grupos locais, regionais, nacionais lugar que o indivíduo ocupa na trama da História e como são cons-
e de outros povos; perceber diferenças e semelhanças, conflitos/ truídas as identidades pessoais e as sociais, em dimensão temporal.
contradições e solidariedades, igualdades e desigualdades exis- Os sujeitos históricos, que se configuram na inter-relação comple-
tentes nas sociedades; comparar problemáticas atuais e de outros xa, duradoura e contraditória das identidades sociais e pessoais,
momentos, posicionar-se de forma analítica e crítica diante do pre- são os verdadeiros construtores da História. Assim, é necessário
sente e buscar as relações possíveis com o passado. acentuar que a trama da História não é o resultado apenas da ação
de figuras de destaque, consagradas pelos interesses explicativos
Nesse quadro conceitual de processo, dimensiona-se a com- de grupos, mas consequência das construções conscientes ou in-
preensão do conceito de “fato histórico”, de “acontecimento”, que conscientes, paulatinas e imperceptíveis, de todos os agentes so-
resulta de uma construção social da qual faz parte o historiador ciais, individuais ou coletivos.
e tem importância fundamental, como ponto referencial das rela- Conceber a História como resultado da ação de sujeitos histó-
ções sociais, no cotidiano da História. No entanto, o sentido pleno ricos significa não atribuir o desenrolar do processo como vontade
dos acontecimentos, em sua dimensão micro, resolve-se quando de instituições, tais como o Estado, os países, a escola, etc., ou
remetido aos processos que lhe emprestam as possibilidades expli- como resultante do jogo de categorias de análise (ou conceitos):
cativas. Enfim, o fato histórico toma sentido se considerado como sistemas, capitalismo, socialismo, etc. É perceber também que a
constitutivo dos processos históricos, e nessa escala deve ser com- trama histórica não se localiza nas ações individuais, mas no em-
preendido. bate das relações sociais no tempo.

Didatismo e Conhecimento 102


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Trabalho Cultura

A categoria “trabalho” é aqui entendida como um modo de A ampliação do conceito de cultura, fruto da aproximação
sustentação e autopreservação do gênero humano, que se expres- das disciplinas História e Antropologia, enriquece o âmbito das
sa nas transformações impostas pelo homem à natureza e às for- análises, caminhando, de forma positiva, para a abertura do cam-
mações sociais e culturais historicamente construídas. Trata-se de po científico da História Cultural. O recurso à Filosofi a, por sua
conceito fundamental para a compreensão da formação e do fazer vez, enriquece e amplia o conceito, especialmente no que se re-
histórico da humanidade em toda a sua diversidade. fere à idéia de cultura como formação advinda da “paidéia” (li-
Entende-se o trabalho na sua diversidade social, econômica, gada à educação) e da cultura humanista, renascentista e ilumi-
política e cultural, pois o trabalho não se refere somente às formas nista. Na articulação dessas abordagens (histórica, antropológica e
de produzir formalmente e historicamente aceitas nas diversas so- filosófica), o conceito de cultura pode alcançar maior abrangência
ciedades históricas, tais como a escravidão, a servidão e o trabalho e significado.
assalariado, mas também ao trabalho relacionado à esfera domésti- A cultura não é apenas o conjunto das manifestações artísticas
ca, à prática comunitária, às manifestações artísticas e intelectuais, e materiais.
à participação nas instâncias de representação políticas, trabalhis- É também constituída pelas formas de organização do traba-
tas, comunitárias e religiosas. Essas diferentes formas de produzir lho, da casada família, do cotidiano das pessoas, dos ritos, das re-
e organizar a vida individual e coletiva intercambiam-se com di- ligiões, das festas. As diversidades étnicas, sexuais, religiosas, de
versas perspectivas ou abordagens. Dentre elas podem-se destacar gerações e de classes constroem representações que constituem as
as de gênero (a participação das mulheres e dos homens nas rela- culturas e que se expressam em conflitos de interpretações e de
ções entre trabalho formal, informal e doméstico); de parentesco posicionamentos na disputa por seu lugar no imaginário social das
ou de comunidade (posição dos membros na hierarquia da família sociedades, dos grupos sociais e de povos.
e da comunidade relacionados a sua ocupação profissional); de ge- A cultura, que confere identidade aos grupos sociais, não pode
ração (as transformações históricas na relação entre o trabalho for- ser considerada produto puro ou estável. As culturas são híbridas
malmente aceito em uma sociedade e o trabalho infantil, além do e resultam de trocas e de relações entre os grupos humanos. Des-
sa forma, podem impor padrões uns sobre os outros, ou também
trabalho como formação educativa nas dimensões professor/aluno,
receber influências, constituindo processos de apropriações de
mestre/aprendiz, entre outras); e de poder (tensões e conflitos entre
significados e práticas que contém elementos de acomodação–re-
os diferentes agentes sociais, profissionais e políticos).
sistência. Daí a importância dos estudos dos grupos e culturas que
compõem a História do Brasil, no âmbito das relações inter-étnicas
Poder O estudo da África e das culturas afro-brasileiras, assim como o
olhar atento às culturas indígenas, darão consistência à compreen-
O poder pode ser entendido como o complexo de relações são da diversidade e da unidade que fazem da História do Brasil o
entre os sujeitos históricos nas diversas formações sociais e nas complexo cultural que lhe dá vida e sentido.
relações entre as sociedades. Articula-se com todos os conceitos
presentes neste documento, pois as relações de poder permeiam Memória
o processo de construção do conhecimento histórico e são um dos
fatores de significação que delimitam o que seria a consciência his- Um compromisso fundamental da História encontra-se na sua
tórica, que marca os diversos modos da apreensão e da construção relação com a memória. O direito à memória faz parte da cidada-
do mundo historicamente constituído e suas respectivas interpre- nia cultural e revela a necessidade de debates sobre o conceito de
tações. Além disso, o exercício do poder encontra-se presente nos preservação das obras humanas em toda a sua diversidade étnico-
usos sociais que se fazem da História tanto para legitimar poderes -cultural. A constituição do patrimônio cultural diverso e múltiplo
quanto para execrar o passado de inimigos políticos, sociais ou de e sua importância para a formação de uma memória social e nacio-
qualquer outra natureza. nal, sem exclusões e discriminações, são abordagens necessárias
As relações de poder são exercidas nas diversas instâncias das aos educandos. É necessário chamar a atenção dos alunos para os
sociedades históricas, como as do mundo do trabalho e as das ins- usos ideológicos a que a memória histórica está sujeita, que muitas
tituições, como, por exemplo, as escolas, as prisões, as fábricas, os vezes constituem “lugares de memória”, estabelecidos pela socie-
hospitais, as famílias, as comunidades, os dade e pelos poderes constituídos, que escolhem o que deve ser
Estados nacionais, as Igrejas e os organismos internacionais preservado e relembrado e o que deve ser silenciado e “esquecido”
políticos, econômicos e culturais, os quais se transformam na sua (ver PCNEM 99, p. 54).
relação com as formações sociais historicamente constituídas. É Enfatize-se também a riqueza que o conceito de memória vem
na inter-relação entre essas instituições (sociais, políticas, étnicas e adquirindo
religiosas) e nas relações de dominação, hegemonia, dependência, no âmbito da História com os trabalhos de autores estrangeiros
convencimento, submissão, resistência, convivência, autonomia e e nacionais. Evidencia-se, por exemplo, que os lugares da memó-
independência entre elas que se torna possível a compreensão de ria são criações da sociedade contemporânea para impor determi-
suas construções políticas como algo próprio da formação histó- nada memória, que a concepção de memória nacional ou identida-
rica do ser humano. Não se pode esquecer também o processo de de regional constitui formas de violência simbólica que silenciam
invenção das tradições, que expressa muito bem as articulações e uniformizam a pluralidade de memórias associadas aos diversos
entre mudanças e permanências no campo das relações políticas. grupos sociais. Por isso, a questão da memória ou da educação
Nesse aspecto, o conceito de poder facilita o entendimento da patrimonial associase à valorização da pluralidade cultural e ao
construção histórica do conceito de cidadania e do processo de questionamento da construção do patrimônio cultural pelos órgãos
constituição da participação política nas mais diversas instituições públicos, que, historicamente, vêm alijando a memória de grupos
marcadas por consensos, tensões e conflitos revelados em toda a sociais (como os escravos ou operários) daquilo que se concebe
sua historicidade. como memória nacional.

Didatismo e Conhecimento 103


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
É oportuno lembrar, igualmente, que a memória construída a favor de interesses políticos ou ideológicos pode ser contraditada ou
questionada a partir de pesquisas historiográficas calcadas em processos científicos de conhecimento. Nesse contexto, é fundamental que
sejam introduzidas as conquistas historiográficas conseguidas nas últimas décadas sobre a memória dos povos e das nações que estiveram
presentes em todos os momentos da História do Brasil, aí incluídos índios, africanos e imigrantes. Em educação patrimonial enfatiza-se a
importância de a escola atuar para mapear e divulgar os bens culturais relacionados com o cotidiano dos diversos grupos, mesmo aqueles
bens que ainda não foram reconhecidos pelos poderes instituídos e pelas culturas dominantes.
Introduzir na sala de aula o debate sobre o significado de festas e monumentos comemorativos, de museus, arquivos e áreas preser-
vadas permite a compreensão do papel da memória na vida da população, dos vínculos que cada geração estabelece com outras gerações,
das raízes culturais e históricas que caracterizam a sociedade humana. Retirar os alunos da sala de aula e proporcionar-lhes o contato ativo
e crítico com ruas, praças, edifícios públicos, festas e outras manifestações imateriais da cultura constituem excelente oportunidade para o
desenvolvimento de uma aprendizagem significativa e crítica de preservação e manutenção da memória.

Cidadania

A atenção dada à questão da cidadania participativa, no seu sentido pleno, focada nos direitos às diferenças, é recente na historiografia.
Atualmente, o conjunto de preocupações que norteia o conhecimento histórico e suas relações com o ensino vivenciado na escola leva ao
aprimoramento de atitudes e valores imprescindíveis ao exercício pleno da cidadania, tais como: atenção ao conhecimento autônomo e
crítico; valorização de si mesmo como sujeito responsável pela construção da História; respeito às diferenças culturais, étnicas, religiosas,
políticas, evitando-se qualquer tipo de discriminação; busca de soluções possíveis para problemas detectados na comunidade, de forma
individual e coletiva; atuação firme e consciente contra qualquer tipo de injustiça e mentira social; valorização do patrimônio sociocultural,
próprio e de outros povos, incentivando o respeito à diversidade; valorização dos direitos conquistados pela cidadania plena, aí incluídos
os correspondentes deveres, seja dos indivíduos, dos grupos e dos povos, na busca da consolidação da democracia. É de se ressaltar o papel
central da História em alicerçar a prática da cidadania, especialmente ao colocar em evidência a diversidade das culturas que integram a
história dos povos.
Assim, é necessário incorporar a cidadania como objeto do ensino de História. No desenvolvimento dos conteúdos, a historicidade do
conceito de cidadania torna-se objeto do ensino de História, ao ressaltar as experiências de participação dos indivíduos e dos grupos sociais
na construção coletiva da sociedade, assim como os obstáculos e a redução dos direitos do cidadão ao longo da história. A importância e o
sentido do conceito consolidam-se ainda mais com o estudo do processo de ampliação da concepção de cidadania, por meio do movimento
de incorporação dos direitos sociais e dos direitos humanos ao lado dos direitos civis e políticos.

Questões metodológicas

A mobilização dos conceitos no trabalho pedagógico escolar como instrumentos de conhecimento supõe a articulação entre os conceitos
estruturadores da disciplina História e as habilidades necessárias para trabalhá-la como um processo de conhecimento. Os conceitos estru-
turadores da História, além de expressarem o arcabouço da prática da tradição historiográfica, são os pontos nucleares a partir dos quais se
definem as habilidades e as competências específicas a serem conquistadas por meio do ensino da História. Ademais, a concepção de um
ensino/aprendizagem criativo que coloque o aluno no centro do processo supõe a mobilização de atividades adequadas. No quadro proposto
a seguir, são apontados os conceitos estruturadores da História anteriormente tratados; são descritas as habilidades decorrentes da prática
do conhecimento histórico e as expectativas como conhecimento. Além disso, são indicadas algumas das condições necessárias para que as
atividades didáticas propiciem o exercício do conhecimento histórico produzido na e para a escola, pois se trata de um processo de ensino/
aprendizagem.

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PERSPECTIVAS DE AÇÃO PEDAGÓGICA

A seleção e a organização dos conteúdos

É dever da escola propiciar os meios para que os alunos adquiram de forma crítica e ativa o conjunto de conhecimentos socialmente
elaborados e considerados necessários ao exercício da cidadania. As dificuldades acentuam-se quando se trata de explicitar o que deve ser
entendido como “necessários”, especialmente quando se pensa que o termo deveria referir-se a todos os alunos brasileiros.
A seleção dos conteúdos, entendidos aqui como o conjunto de temas e assuntos de cunho histórico a ser organizado para fins didático-
-pedagógicos em sala de aula, pressupõe a articulação das preocupações descritas neste documento: objetivos do ensino médio; competên-
cias a desenvolver; caráter interdisciplinar dos conhecimentos mobilizados; sentidos atribuídos no esforço da contextualização; conceitos
estruturadores da disciplina; e articulação com as habilidades específicas do conhecimento histórico.

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É por meio dos conteúdos, tratados científica, atualizada e Para se proceder à seleção dos conteúdos e programar as ati-
significativamente para fins escolares, que o currículo da escola e vidades didáticas, indicam-se alguns critérios que poderão servir
de cada disciplina específica toma corpo e ocupa lugar estrategica- como orientação básica aos professores.
mente central no processo educativo. Portanto, a importância dos O planejamento do trabalho escolar é feito em diversas fases:
conteúdos e do seu tratamento didático pedagógico não é relegada algumas requerem trabalho coletivo, e outras exigem o trabalho
a segundo plano em favor da educação por competências. A sele- individual do professor, sem, contudo, perder as referências discu-
ção, a organização e a escolha de estratégias metodológicas é que tidas e determinadas pelo grupo. Com efeito, esse planejamento é
são informadas pelo conjunto das proposições que fazem parte da parte integrante das opções, das diretrizes e dos objetivos traçados
nova concepção de educação presente na LDBEN, nas leis e nos no âmbito das Secretarias de Educação dos estados, das microrre-
documentos subsequentes. giões e dos municípios quando estabelecem projetos de implanta-
A qualidade das estratégias didático-pedagógicas, por sua ção didático-pedagógicos elaborados em conjunto com todos os
vez, é que irá garantir o sucesso dos enfoques educacionais an- agentes envolvidos – gestores, professores, técnicos e representa-
teriormente apontados: a prática pedagógica planejada e interdis- ções de pais e alunos.
ciplinar; as atividades que levem os alunos a buscar soluções de Outro marco definidor de planejamentos em que se efetiva a
problemas; a contextualização que confira significado a temas e seleção dos conteúdos é a escola, com seu projeto político-peda-
assuntos; a mobilização de instrumentos de análise, de conceitos, gógico, que necessariamente traduz a percepção das pessoas en-
de habilidades e a prática constante da pesquisa, que, por recorrer a volvidas na prática educativa daquele ambiente. São relevantes as
fontes diversificadas e passíveis de interpretações variadas, se rela- considerações sobre a realidade da comunidade em que está inseri-
ciona permanentemente com o ensino e dele é parte indissociável. da a escola, inclusive no que diz respeito a valores que devem ser
As orientações que são citadas no quadro anterior, item “Elabora- desenvolvidos na comunidade escolar, como o respeito às diferen-
ção e condução das atividades didáticas”, além de muitas outras, ças e o estímulo ao cultivo e à vivência de valores democráticos.
quando assumidas de forma consciente pelo conjunto dos agentes Tendo como referência os pontos enfocados anteriormente,
da educação, deverão fazer parte integrante do projeto político- cabe ao professor a responsabilidade última e pessoal de elaborar
-pedagógico da escola. os programas e selecionar os conteúdos para sua prática pedagó-
gica. É nesse momento que se evidenciam suas concepções sobre
Passa a ser consenso também entre os profissionais da Histó-
a sociedade, a educação e a História, sem que sejam permitidas
ria, ainda que com menor intensidade, que os conteúdos a serem
as imposições de agentes externos à comunidade escolar, como a
trabalhados em qualquer dos níveis de ensino–pesquisa (básico,
legislação ou o mercado editorial. Ao mesmo tempo, deve-se ga-
médio, superior, pós-graduado) não são todo o conhecimento so-
rantir que os princípios e os objetivos construídos paulatinamente
cialmente acumulado e criticamente transmitido a respeito da “tra-
pela comunidade de educadores e pelos professores de História
jetória da humanidade”. Forçosamente, devem ser feitas escolhas
– lembrados neste documento – se coadunem com as escolhas re-
e seleções.
lativas ao conhecimento histórico a ser construído pelos alunos e
Em contrapartida, tendo em vista a diversidade dos enfoques mediado pelo professor.
teórico-metodológicos que se foram construindo, especialmente Com o intuito de subsidiar os professores na tarefa de escolher
nas últimas décadas, não é possível pensar em uma metodolo- os conteúdos de
gia única para a pesquisa e para a exposição dos resultados, nem História, cabe lembrar as observações do professor Marc Fer-
mesmo para a prática pedagógica do ensino de História. Assim, as ro no livro A História vigiada (1989), no qual afirma que se devem
escolhas e as seleções estão condicionadas ao entendimento que selecionar acontecimentos que:
o professor tem a respeito dos conhecimentos históricos e do pro- • foram considerados importantes pelas sociedades que os vi-
cesso de ensino/aprendizagem. venciaram e mobilizaram as populações que os presenciaram, nos
quais o conjunto da sociedade se sentiu partícipe;
A seleção dos conteúdos • foram conservados pela memória das sociedades como gran-
des acontecimentos;
A necessária seleção dos conteúdos faz parte de um conjunto • ocasionaram uma mudança na vida dos Estados e das socie-
formado pela preocupação com o saber escolar, com as compe- dades, tendo, dessa forma, efeito a longo prazo;
tências e com as habilidades. Por isso, os conteúdos não podem • sendo significativos, deram origem a múltiplas interpreta-
ser trabalhados independentemente, pois não constituem um fi m ções, ainda hoje debatidas não só em estudos acadêmicos como
em si mesmos, como vem sendo constantemente lembrado, “mas também pelos diferentes grupos/instituições que compõem as so-
meios básicos para constituir competências cognitivas ou sociais, ciedades;
priorizando-as sobre as informações” (DCNEM, Artigo 5º, I). São • atingem um patamar cujo alcance ultrapassa o próprio limite
considerados meios para a aquisição de capacidades que auxiliem dos lugares onde aconteceram;
os alunos a produzir bens culturais, sociais e econômicos e de- • permanecem vivos por meio das inúmeras obras que susci-
les usufruir. Nesse sentido, os conteúdos ocupam papel central no tam: romances, textos históricos, filmes.
processo de ensino/aprendizagem, devendo sua seleção e escolha
estar em consonância com as problemáticas sociais marcantes de Diversidade na apresentação dos conteúdos
cada momento histórico. Além do mais, eles são concebidos não
apenas como a organização dos fenômenos sociais historicamente A organização dos conteúdos, uma parte essencial na constru-
situados na exposição de fatos e de conceitos, mas abrangem tam- ção do currículo, está intimamente ligada à concepção de ensino
bém os procedimentos, os valores, as normas e as atitudes, seja em que sustenta o projeto pedagógico da escola. Por isso, sua escolha
sala de aula, seja no projeto pedagógico da escola. não é aleatória, tendo relação também com a concepção de História

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subjacente à prática pedagógica. Esse conjunto de especificidades f) muitas outras experiências de composição curricular pode-
explica a grande variedade de propostas curriculares, desde as riam ainda ser elencadas. Basta lembrar que, em muitos casos, a
mais clássicas até as mais recentes tentativas de inovações. Cada organização dos conteúdos é assumida de forma responsável pelos
uma delas apresenta qualidades e limitações que serão avaliadas professores, tendo como referência suas experiências docentes ou
pelos professores segundo suas convicções metodológicas, con- as orientações dos órgãos responsáveis pelas políticas educacio-
cepções de História, de Educação e do próprio ensino de História. nais dos estados e dos municípios. Há Secretarias Estaduais de
A título de exemplo, podem ser citadas: Educação que, com maior ou menor intensidade e envolvimento,
a) o exemplo clássico de organização dos conteúdos é o que têm trabalhado no sentido de estabelecer diretrizes ou roteiros para
se constitui a partir das temporalidades. Preponderante ainda na as organizações curriculares da História, cuja diversidade pode ser
maioria das escolas brasileiras, o tempo, considerado em sua di- verificada a partir das possibilidades já apontadas.
mensão cronológica, continua sendo a medida utilizada para ex- Por fi m, ressalta-se que ainda é muito raro encontrar nas orga-
plicar a “trajetória da humanidade”. A periodização que se impôs nizações curriculares, tanto das escolas como dos livros didáticos,
desde o século XIX – História Antiga, Medieval, Moderna e Con-
a importância que merece a História da África. Essa lacuna, que
temporânea – está presente em grande parte dos livros didáticos e
está sendo revista paulatinamente pela produção historiográfica,
do currículo das escolas. Retrocede-se às origens, estabelecendo-
deverá ser eliminada por causa do papel histórico que os africanos
-se trajetórias homogêneas do passado ao presente, em que a or-
ganização dos acontecimentos é feita a partir da perspectiva da trazidos para o Brasil desempenharam na construção da sociedade
evolução. Por isso, o que caracteriza a organização dos conteúdos, brasileira, assim como pela importância da herança cultural que
nesse contexto, é a linearidade e a sequencialidade; vem sendo construída pelos brasileiros de origem africana. A for-
b) mais recentemente, vem-se tentando a superação da se- ça do Decreto Lei nº 10.639, que torna obrigatório o ensino da
qüencialidade e da linearidade em alguns currículos, os quais História da África, não terá respaldo se a historiografia não der
tomam a chamada História integrada como fi o condutor da sua ainda maior impulso à cultura africana no Brasil. É de se ressaltar
organização. Assim, América e Brasil figuram junto a povos da a clareza com que a LDB, em seu artigo 26, se refere à questão:
pré-história, da Europa e da Ásia, fazendo-se presente, por vezes, Art. 26A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e mé-
a História da África. Nota-se em grande parte dos livros didáticos dio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre His-
que optam por essa forma de organizar os conteúdos de História tória e Cultura Afro-Brasileira. § I - O conteúdo programático a
uma diminuição considerável dos assuntos referentes ao Brasil e que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
pouquíssimo ou nenhum espaço para a História da África; África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
c) há propostas diferenciadas, em que os conteúdos são orga- brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando
nizados a partir de temas selecionados ou eixos temáticos, espe- a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e polí-
rando-se maior liberdade e criatividade por parte dos professores. tica pertinentes à
A organização e a seleção dos conteúdos a partir de uma concep- História do Brasil. § II - Os conteúdos referentes à História e
ção ampliada de currículo escolar foram elaboradas de forma mais Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o cur-
sistematizada e aprofundada nas propostas dos Parâmetros Curri- rículo escolar, em especial na Educação Artística e de Literatura e
culares Nacionais para o Ensino Fundamental, assim como para História Brasileiras.
o Ensino Médio. Nas Orientações Educacionais Complementares, 3.1.3 Cuidados especiais
PCN+ Ensino Médio de 2002, a opção pela organização programá-
tica de assuntos a partir de eixos temáticos é assumida na apresen- Seja qual for a proposta apresentada e assumida pela escola
tação geral para as Ciências Humanas e para todas as disciplinas e pelo professor, há cuidados especiais a serem tomados. O pri-
da área;
meiro refere-se ao envolvimento do aluno com o objeto de estudo
d) nota-se ainda uma via intermediária: mantém-se a opção
trabalhado. Na exposição factual e linear que supõe o aluno como
pela exposição cronológica dos eventos históricos consagrados
receptáculo de ensinamentos, além dos textos expositivos e deta-
pela historiografia, mas agora intercalada ou informada por exer-
cícios e atividades chamados estratégicos, por meio dos quais os lhados, utilizam-se exercícios voltados especificamente para o tes-
alunos são levados a perceber todos os meandros da construção do te de compreensão e de fixação de conteúdos. A preocupação com
conhecimento histórico, instados a se envolver nas problemáticas o desenvolvimento de competências e habilidades não faz parte
comuns ao presente e ao passado estudado e encorajados a assumir dos horizontes dessas propostas pedagógicas.
atitudes que os levem a posicionar-se como cidadãos. Aproximam- Já as propostas curriculares correntes, que concebem o cur-
-se assim as preocupações com a seqüencialidade dos conteúdos e rículo e a educação a partir de padrões–referências–perspectivas
as finalidades da educação na formação de indivíduos conscientes mais atualizados, constroem a trama expositiva procurando en-
e críticos, com autonomia intelectual; volver o aluno por meio da problematização dos temas, de sua
e) outra construção possível, algumas vezes praticada, con- abordagem, da relação necessária com o mundo cultural do aluno.
siste em manter, como fi o organizador, a periodização consagrada As atividades constituem o cerne do trabalho pedagógico
como “pano de fundo” para a elaboração de problemáticas capa- apresentado, pensado sempre do ponto de vista da construção de
zes de atingir o objetivo de tornar significativa a aprendizagem da um conhecimento escolar significativo. A preocupação não é com
História. A estruturação temática possibilita discussões de ordem a quantidade de conteúdos a serem apresentados ou com as lacunas
historiográfica em diferentes períodos históricos e abre a possibi- de conteúdo de História a serem preenchidas, de acordo com a lista
lidade de se considerarem os momentos históricos na dimensão de assuntos tradicionalmente utilizados na escola. A preocupação é
da sucessão, da simultaneidade, das contradições, das rupturas e com o modo de trabalhar historicamente os temas–assuntos–obje-
das continuidades. A cronologia não é simplesmente linear, pois tos em pauta, sejam eles organizados em eixos temáticos norteado-
leva em consideração que tempos históricos são passíveis de res ou por hierarquização de assuntos ou objetos construídos pela
diversificados níveis e ritmos de duração; perspectiva do tempo cronológico.

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Construção e uso dos conceitos e dos procedimentos no Promover o trânsito entre os conceitos cotidianos e os concei-
processo de ensino-aprendizagem tos históricos, assim como orientar os alunos na construção e ou
na apropriação desses últimos, constitui sempre um desafio que
Dada a natureza abstrata das operações cognitivas relacio- deve ser levado em conta na proposição das atividades didático-
nadas ao pensamento histórico, é importante levar os alunos a -pedagógicas.
identificarem elementos de compreensão de conteúdos históricos
nas suas experiências sociais. Desenvolver capacidades de com- O projeto político-pedagógico da escola e o ensino de His-
preensão e de explicação histórica requer, no entanto, a apropria- tória
ção e o uso de vários conceitos.
Qualquer campo de conhecimento é constituído por um con- A proposta para essas Orientações Curriculares de História
junto de conceitos que lhe conferem especificidade e cientificida- está calcada em alguns eixos norteadores: os sujeitos do processo
de. Na História, os conceitos representam um reagrupamento de de ensino/aprendizagem – aluno e professor; a finalidade do ensino
fatos para tornar possível, por médio – formação geral para a vida; competências, interdisciplina-
meio de uma ou duas palavras, a comunicação de idéias e re- ridade e contextualização como princípios pedagógicos básicos; a
lações complexas identificação dos conceitos estruturadores da História como hori-
historicamente constituídas. Por meio dos conceitos pode-se, zonte para a seleção e a organização dos conteúdos; a importância
pois, distinguir das atividades didáticas.
e organizar o real. Buscam-se também apontar os alicerces mais duradouros para
A cognição histórica é composta de conceitos, e um conjunto a construção de um sistema de ensino que tenha abrangência na-
deles foi selecionado para fazer parte da proposição do presente cional e durabilidade condizente com as necessidades do trabalho
documento de referência nacional para o ensino da História no en- pedagógico: a experiência didático-pedagógica, que se traduz em
sino médio. No entanto, há de se reconhecer que a construção e o documentos oficiais historicamente situados, como LDBEN e DC-
domínio desses conceitos, assim como o entendimento NEM; os organismos estaduais que assumem a operacionalização
do seu valor para a compreensão e a interpretação históricas, das diretrizes mais gerais, como as Secretarias de Educação; por fi
não é fácil para a m, a escola contextualizada na comunidade à qual presta seus ser-
maioria dos jovens que frequentam o ensino médio no nosso viços educacionais. No entanto, em última análise, os elementos
país. Os conceitos históricos, mais do que sintetizarem idéias e fundamentais do processo de ensino/aprendizagem situam-se no
raciocínios, representam para a História uma expectativa, um nor- aluno, no professor, na escola e na comunidade. Esse conjunto de
te analítico; além disso, possuem sua história, ou seja, guardam atores elabora seus planos de trabalho consubstanciado no projeto
as marcas do momento histórico em que se desenvolveram e se político-pedagógico da escola.
consolidaram. O primeiro passo para conseguir o planejamento escolar é a
Há um consenso entre os estudiosos da aquisição dos concei- adequação – a ser realizada pelos estados da Federação – dos ob-
tos de que esses só começam a se desenvolver quando os alunos jetivos traçados para o ensino médio pela legislação e pelas reco-
tiverem alcançado certo nível em relação aos conceitos cotidianos mendações dos órgãos federais. O projeto pedagógico da escola
que lhes são correlatos. Afirma-se que são os conceitos cotidia- deverá estar em sintonia com o planejamento das respectivas Se-
nos que abrem caminho para o desenvolvimento dos conceitos cretarias de Educação e ser elaborado em consonância com repre-
científicos. Muitos dos conceitos históricos, no entanto, constro- sentantes de todos os agentes envolvidos (gestores, professores,
em-se por meio de vivências compartilhadas em diferentes grupos técnicos e representações de pais e alunos).
que difundem e perpetuam preconceitos e estereótipos a respeito A prática pedagógica levou à convicção de que toda e qual-
de realidades passadas e presentes. Esses devem ser objeto de pro- quer reforma que se pretenda é dependente da consciência que os
blematização constante em sala de aula, usando-se para isso a aná- dirigentes e os profissionais da educação têm do papel da escola e
lise de evidências históricas situadas em seu contexto de produção. da organização de seu currículo. Segundo a LDB, Artigo 12, “os
Observa-se que muitas vezes os alunos respondem a questões estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as de
relativas aos conceitos científicos de forma que esses parecem “ca- seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I - elaborar e exe-
rentes de riqueza de conteúdo proveniente da experiência pessoal” cutar sua proposta pedagógica; VI - articular-se com as famílias e
(Vygotsky, 1998, p. 135). Na História, porém, os alunos não têm a comunidade, criando processos de integração da sociedade com
experiência pessoal direta com os conceitos apresentados. a escola”. A proposta pedagógica da escola é obra comum dos di-
Tornar esses conceitos acessíveis e carregados de significado rigentes, dos professores e da comunidade, ressaltando se o lugar
para os alunos é um grande desafio para os professores de História. central da competência e da responsabilidade da direção da escola.
Recorrer à analogia e, principalmente, torná-los capazes de utili- Há pesquisas que apontam a relação íntima entre o ensino de qua-
zar os procedimentos históricos de análise das diferentes fontes lidade ministrado na escola e a competência de seu(sua) diretor(a).
pode permitir aos alunos a construção de tais conceitos. As fon- Ressalte-se ainda a importância da participação consciente
tes, tratadas como documentos históricos, fornecem elementos a dos professores na elaboração da proposta pedagógica, que integra
partir dos quais podem ser identificados traços comuns às situa- seu plano de trabalho, elaborado segundo o previsto na proposta. A
ções nelas representadas, estimuladas comparações e identificadas formação sólida dos profissionais que atuam no sistema de ensino
especificidades de cada momento histórico. é condição imprescindível para a implantação de reformas educa-
Tendo os conceitos sido construídos e ou apropriados, tornam- cionais. Daí a responsabilidade das instituições que se dedicam à
-se instrumentos de novas indagações às fontes e aos conhecimen- formação superior de historiadores-professores em estruturar pro-
tos históricos produzidos. postas e práticas curriculares que visem ao domínio não apenas do

Didatismo e Conhecimento 111


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
conteúdo, das teorias e metodologias do conhecimento histórico, BEZERRA, Holien Gonçalves. Ensino de História: conteúdos
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que supõe uma tomada de posição das autoridades educacionais educação: bases para uma formação integral. São Paulo: Ática,
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e o lugar da disciplina História, em conformidade com os prin-
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cípios estabelecidos pela LDBEN e pelas Diretrizes Curriculares
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para o Ensino Médio, é a sintonia com a concepção de educação
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reflexão constante na elaboração do projeto político-pedagógico das Letras, 1998._______. Era dos extremos: o breve século XX –
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por finalidade explicitar a filosofia e os princípios educacionais Paulo: Humanitas
inspiradores dos dispositivos legais que passaram a nortear o siste- Publicações/FFLCH-USP, 1998.
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como indicativas daquelas exigências consideradas imprescindí- tória: possibilidades de leituras. Campinas: Mercado de Letras,
veis para que o professor e a escola elaborem os currículos de His- 2004.
tória que melhor se coadunem com as necessidades de formação MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boi-
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cher (Org.). História das disciplinas escolares no Brasil. Bragança CONHECIMENTOS DE SOCIOLOGIA
Paulista: Edusf, 2003.
PERRENOUD, P. Construir as competências desde a esco- INTRODUÇÃO
la. Trad. Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artes Médicas Sul,
1999. Já constitui tradição apresentar a entrada de Durkheim na Uni-
PINSKY, Jaime (Org.). O ensino de História e a criação do versidade de Bordeaux, em 1887, como marco da introdução da
fato. São Paulo: Contexto, 1998. Sociologia nos currículos oficiais.
PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Pau- No Brasil, a proposta de inclusão da Sociologia data de 1870,
lo: Contexto, 2005. quando Rui Barbosa, em um de seus eruditos pareceres, propõe a
PLUCKROSE, H. Enseñanza y aprendizaje de la historia. substituição da disciplina Direito Natural pela Sociologia, a sugerir
Madrid: Ediciones que o Direito tinha mais a ver com a sociedade ou com as relações
Morata, 1996. sociais do que com um pretenso “estado de natureza” – pedra de
POPKEWITZ, Thomas. História do currículo, regulação so- toque da elaboração política dos contratualistas e jus naturalistas
dos séculos XVII e XVIII; isso constituía, desde já, uma perspec-
cial e poder. In SILVA, Tomaz T. (Org). O sujeito da educação:
tiva interessante, apesar de o parecer do conselheiro não ter sido
estudos foucaultianos. Petrópolis:
sequer votado... Com Benjamim Constant, alguns anos depois,
Vozes, 1994.
1890, no ensejo da Reforma da Educação Secundária do primeiro
REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. História em qua-
governo republicano, reaparece a Sociologia, agora como discipli-
dro-negro: escola, ensino e aprendizagem. São Paulo: ANPUH/
na obrigatória nesse nível de ensino. A morte precoce do ministro
Marco Zero, v. 9, n. 19, 1989/1990._______. Memória, História,
da Instrução Pública acaba enterrando a Reforma e a possibilidade
historiografia: dossiê ensino de História. São Paulo: ANPUH/Mar-
de a Sociologia integrar desde então o currículo.
co Zero, v. 13, n. 25/26, 1992/1993. O certo é que lentamente a Sociologia vai ocupando espaço
REY, Bernard. As competências transversais em questão. nos currículos da escola secundária e do ensino superior, sendo
Trad. de Álvaro Manuel Mafran Lewis. Porto Alegre: Artmed, praticado o seu ensino de modo geral por advogados, médicos e
2002. militares, assumindo os mais variados matizes, à esquerda ou à
RICCI, Cláudia Sapag. Quando os currículos não se encon- direita, servindo desde sempre para justificar o papel transforma-
tram: imaginário do professor de História e a Reforma Curricular dor ou conservador da educação, conforme o contexto, os homens,
dos anos 80 em São Paulo. In: Revista Brasileira de História, v. 18, os interesses. Nas primeiras décadas do século XX, a Sociologia
n. 36, 1998, p. 61-88. integrará os currículos, especialmente das escolas normais, embo-
ROCHA, Ubiratan. História, currículo e cotidiano escolar. ra aparecesse também nos cursos preparatórios (últimas séries do
São Paulo: Cortez, 2002. ensino secundário – que depois seria denominado de colegial e
ROLDÃO, Maria do Céu. Gestão do currículo e avaliação de atualmente ensino médio) ou superiores. Nos cursos normais, a
competências.Lisboa: Editorial Presença 2003, 2a ed., 2004. preocupação com uma formação “mais científica” (Meucci, 2000)
RONCA, Paulo Afonso Caruso; TERZI, Cleide do Amaral. A do professor levou à substituição de disciplinas de Trabalhos Ma-
aula operatória e a construção do conhecimento. São Paulo: Edito- nuais e Atividades Artísticas pela Sociologia e pela Psicologia:
ra do Instituto Esplan, 1995. uma preocupada com o contexto social em que se dá a educação,
SACRISTÁN, J. Gimeno; GÓMEZ, A. I. Péres. Compreender e a outra já vislumbrando a centralidade que o aluno – criança,
e transformar o ensino.Porto Alegre: Artmed, 1988. adolescente – passará a ocupar na educação.
SANTOMÉ. Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinarida- Entre 1925 e 1942, com a vigência da Reforma Rocha Vaz e
de. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. depois com a de Francisco Campos (1931), a Sociologia passa a
SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Coordenado- integrar os currículos da escola secundária brasileira, normal ou
ria de Estudos e Normas Pedagógicas. Propostas Curriculares para preparatória, chegando a figurar como exigência até em alguns
o Ensino de Primeiro e Segundo vestibulares de universidades importantes. A primeira parte desse
Graus. São Paulo: SE/CENP, 1985 a 1994. período pode ser entendida como de constituição e crescimento
SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. Ensinar história. São Pau- da demanda em torno das Ciências Sociais, não só da Sociologia.
lo: Scipione, 2004. Assim, em 1933 e 1934, aparecem os cursos superiores de
SIMAN, Lana Mara C. A temporalidade histórica como ca- Ciências Sociais, na Escola Livre de Sociologia e Política, na Fa-
tegoria central do pensamento histórico: desafios para o ensino e culdade de Filosofi a, Ciências e Letras da Universidade de São
aprendizagem da História. In: Paulo e na Universidade do Distrito Federal.

Didatismo e Conhecimento 113


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A partir de 1942, a presença da Sociologia no ensino secun- A partir desse quadro, têm-se alguns dados importantes para
dário – agora denominado especificamente colegial – começa a se reflexão. Primeiramente, a disciplina Sociologia tem uma histori-
tornar intermitente. Permanece no curso normal, às vezes como cidade bastante diversa de outras disciplinas do currículo, tanto em
Sociologia Geral e quase sempre como Sociologia Educacional, relação àquelas do campo das linguagens como em relação às das
mas no curso “clássico” ou no “científico” praticamente desapa- Ciências Humanas, mas sobretudo das Ciências Naturais. É uma
rece, visto que aí predominam disciplinas mais voltadas para a disciplina bastante recente – menos de um século, reduzida sua
natureza dos cursos: Letras ou Ciências Naturais. Com a primeira presença efetiva à metade desse tempo; não se tem ainda formada
Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei nº 4.024/61), a uma comunidade de professores de Sociologia no ensino médio,
Sociologia permanece como disciplina optativa ou facultativa nos quer em âmbito estadual, regional ou nacional, de modo que o di-
currículos. A LDB seguinte, Lei nº 5.692/71, mantém esse caráter álogo entre eles tenha produzido consensos a respeito de conte-
optativo, raramente aparecendo a Sociologia senão quando vincu- údos, metodologias, recursos, etc., o que está bastante avançado
lada ao curso que, obrigatoriamente, deveria ser profissionalizante. nas outras disciplinas. Essas questões já poderiam estar superadas
Assim, quando aparece, a Sociologia está também marcada por se houvesse continuidade nos debates, o que teria acontecido se a
uma expectativa técnica. Nos cursos de magistério – nova nomen- disciplina nas escolas não fosse intermitente.
clatura com que aparece o curso normal –, a As pesquisas sobre o ensino de Sociologia ainda são bastante
Sociologia da Educação cumpre aquele objetivo original – dar incipientes, contando-se cerca de dez títulos, entre artigos, disser-
um sentido científico às discussões sobre a formação social e os tações e teses, o número de investigações efetuadas nos últimos
fundamentos sociológicos da educação. vinte anos. Boa parte trata do processo de institucionalização da
A crise do “milagre econômico brasileiro”, na passagem da disciplina no ensino médio, o que demonstra que por um lado são
década de 1970 para a de 1980, acaba revelando os limites para pesquisas que buscam um enfoque sociológico sobre esses proces-
sustentar a escola média profissionalizante obrigatória: não há sos, e algumas poucas tentam discutir mais os conteúdos, as meto-
demanda para tantos técnicos assim, nem há condições materiais dologias e os recursos do ensino, aproximando-se um tanto mais
objetivas para a formação desses técnicos, pois faltam equipamen- de questões educativas e curriculares ou relacionadas à história da
tos, professores e recursos. Assim, em 1982, como parte da “aber- disciplina. Cremos que isso também é fruto daquela intermitência
tura lenta, gradual e segura”, ainda que tardiamente, o governo
da presença da disciplina no ensino médio, o que provocou um de-
flexibiliza a legislação educacional com a Lei nº 7.044/82 e revoga
sinteresse de pesquisadores sobre o tema, quer no viés sociológico
a obrigatoriedade do ensino profissionalizante, abrindo a possibi-
quer no viés pedagógico. Assim, não houve de modo sistemático
lidade de os currículos serem diversificados. Aproveitando essa
nem debates nem registros dos processos de institucionalização da
oportunidade, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo,
disciplina, sendo isso feito só muito recentemente. Essas pesquisas
por exemplo, passa a recomendar que as escolas incluam em seus
alimentariam o próprio processo, dando-lhe uma dinâmica diversa,
currículos Sociologia, Filosofi a e Psicologia. Começa, então, uma
o que também tem acontecido com as demais disciplinas.
longa retomada da presença da disciplina nas escolas secundárias
propedêuticas, ao lado da Sociologia da Educação nos cursos de Outra questão importante sobre essa intermitência da Socio-
Magistério. São realizados concursos para professores em São logia no currículo do ensino médio decorre de expectativas e ava-
Paulo e em outros estados, elaboradas propostas programáticas; liações que se fazem de seus conteúdos em relação à formação
publicados novos livros didáticos e até são feitas algumas pesqui- dos jovens. Muito se tem falado do poder de formação dessa dis-
sas. Em pouco mais de uma década, vários estados vão tornando a ciplina, em especial na formação política, conforme consagra o
Sociologia obrigatória, de modo que seja consolidada sua presença dispositivo legal (LDB nº 9.394/96, Art. 36, § 1o
nos currículos. , III) quando relaciona “conhecimentos de Sociologia” e
Com a nova LDB – Lei nº 9.394/96 –, parece que finalmente a “exercício da cidadania”. Entende-se que essa relação não é ime-
Sociologia se torna obrigatória como disciplina integrante do cur- diata, nem é exclusiva da Sociologia a prerrogativa de preparar o
rículo do ensino médio. cidadão.
Em seu Artigo 36, § 1º, Inciso III, há a determinação de que No entanto, sempre estão presentes nos conteúdos de ensino
“ao fi m do ensino médio, o educando deve apresentar domínio de da Sociologia temas ligados à cidadania, à política em sentido am-
conhecimentos de Filosofi a e Sociologia necessários ao exercício plo (quando, muitas vezes no lugar da Sociologia stricto sensu, os
da cidadania”. No entanto, uma interpretação equivocada, expres- professores trazem conteúdos, temas e autores da Ciência Política)
sa a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio e mesmo contrastes com a organização política de sociedades tri-
(DCNEM), do Parecer CNE/CEB 15/98 e da Resolução CNE/CEB bais ou simples (quando, então, é a Antropologia que vem ocupar
03/98, contribui para uma inversão de expectativas: ao contrário o lugar da Sociologia), ou ainda preocupações com a participação
de confirmar seu status de disciplina obrigatória, seus conteúdos comunitária, com questões sobre partidos políticos e eleições, etc.
devem ser abordados de maneira interdisciplinar pela área das Talvez o que se tenha em Sociologia é que essa expectativa – pre-
Ciências Humanas e mesmo por outras disciplinas do currí- parar para a cidadania – ganhe contornos mais objetivos a partir
culo. Em alguns estados essa interpretação é rechaçada, e a obri- dos conteúdos clássicos ou contemporâneos – temas e autores.
gatoriedade da Sociologia nos currículos de ensino médio é im- Há uma interpretação corrente que, no entanto, deve ser bem
plementada. No entanto, a institucionalização dessa conquista em avaliada criticamente; ela afirma que a presença ou a ausência da
âmbito nacional vem sofrendo reveses como o veto do presidente Sociologia no currículo está vinculada a contextos democráticos
da República à emenda à LDB aprovada pelo Congresso Nacional; ou autoritários, respectivamente. No entanto, se se observar bem,
o veto do governador de São Paulo ao projeto aprovado na Assem- pelo menos em dois períodos isso não se confirma, ou se teria de
bléia Legislativa; e pareceres do Conselho Nacional de Educação rever o caráter do ensino de Sociologia para entender sua presença
(CNE) contra a obrigatoriedade da disciplina. ou ausência. Entre 1931 e 1942, especialmente após 1937, a So-

Didatismo e Conhecimento 114


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
ciologia está presente e é obrigatória no currículo em um período Essa questão foi tratada por Marx como uma
que abrange um governo que começa com esperanças democra- “crítica da economia política”, aliás subtítulo de O capital. No
tizantes e logo se tinge de autoritarismo, assumindo sua vocação entanto, cá claro também que, do mesmo modo que uma economia
ditatorial mais adiante. Em outro momento, em plena democracia, política capitalista foi instituída, e depende de uma aceitação ge-
o sentido do veto do Presidente da República (2001) à inclusão da neralizada para seu funcionamento, isto é, de uma ideologia que
Sociologia como disciplina obrigatória traz uma certa dificuldade a sustente e legitime, a ruptura dependeria de uma instituição de
para essa hipótese. O que se entende é que nem sempre a Socio- outro sistema social e econômico, bem como de um quadro ideo-
logia teve um caráter crítico e transformador, funcionando muitas lógico que o sustentasse e legitimasse, mas sobretudo dependeria
vezes como um discurso conservador, integrador e até cívico – de transformações políticas objetivas. O mesmo Marx observa que
como aparece nos primeiros manuais da disciplina. Não se pode as transformações na esfera econômica foram solidárias com mu-
esquecer que a Sociologia chegou ao Brasil de mãos dadas com o danças sociais, políticas e jurídicas e, certamente, culturais, entre o
positivismo. No caso recente, deve-se entender que a ausência da feudalismo e o capitalismo.
disciplina se prende mais a tensões ou escaramuças pedagógico- Outro papel que a Sociologia realiza, mas não exclusivamente
ela, e que está ligado aos objetivos da Filosofi a e das Ciências,
-administrativas que propriamente a algum conteúdo ideológico
humanas ou naturais, é o estranhamento. No caso da Sociologia,
mais explícito.
está em causa observar que os fenômenos sociais que rodeiam a
A presença da Sociologia no currículo do ensino médio tem
todos e dos quais se participa não são de imediato conhecidos, pois
provocado muita discussão. Além dessa justificativa que se tornou
aparecem como ordinários, triviais, corriqueiros, normais, sem ne-
slogan ou clichê j “formar o cidadão crítico” –, entende-se que cessidade de explicação, aos quais se está acostumado, e que na
haja outras mais objetivas decorrentes da concretude com que a So- verdade nem são vistos.
ciologia pode contribuir para a formação do jovem brasileiro: quer Assim como a chuva é um fenômeno que tem uma explica-
aproximando esse jovem de uma linguagem especial que a Socio- ção científica, ou uma doença também tem explicações, mesmo
logia oferece, quer sistematizando os debates em torno de temas de que não se tenha chegado a terapias totalmente exitosas para sua
importância dados pela tradição ou pela contemporaneidade. A So- cura; ou do mesmo modo que as guerras, as mudanças de governo
ciologia, como espaço de realização das Ciências Sociais na escola podem ser estudadas pela História ou os cataclismos naturais, pela
média, pode oferecer ao aluno, além de informações próprias do Geografia; os fenômenos sociais merecem ser compreendidos ou
campo dessas ciências, resultados das pesquisas as mais diversas, explicados pela
que acabam modificando as concepções de mundo, a economia, a Sociologia. Mas só é possível tomar certos fenômenos como
sociedade e o outro, isto é, o diferente – de outra cultura, “tribo”, objeto da Sociologia na medida em que sejam submetidos a um
país, etc. Traz também modos de pensar (Max Weber, 1983) ou processo de estranhamento, que sejam colocados em questão, pro-
a reconstrução e desconstrução de modos de pensar. É possível, blematizados.
observando as teorias sociológicas, compreender os elementos da Muitas vezes as explicações mais imediatas de alguns fe-
argumentação – lógicos e empíricos – que justificam um modo de nômenos acabam produzindo um rebaixamento nas explicações
ser de uma sociedade, classe, grupo social e mesmo comunidade. científicas, em especial quando essas se popularizam ou são sub-
Isso em termos sincrônicos ou diacrônicos, de hoje ou de ontem. metidas a processos de divulgação midiáticos, os quais nem sem-
Um papel central que o pensamento sociológico realiza é a pre conservam o rigor original exigido no campo científico.
desnaturalização das concepções ou explicações dos fenômenos Do mesmo modo que explicações econômicas se populari-
sociais. Há uma tendência sempre recorrente a se explicarem as zaram, sendo repetidas nas esquinas, nas mesas de bares, etc. e
relações sociais, as instituições, os modos de vida, as ações hu- assim satisfazendo as preocupações imediatas dos indivíduos, al-
manas, coletivas ou individuais, a estrutura social, a organização guns outros fenômenos recebem explicações que não demandam
política, etc. com argumentos naturalizadores.1 elaborações mais profundas e permanecem no senso comum para
Primeiro, perde-se de vista a historicidade desses fenômenos, as pessoas.
O exemplo tomado por Durkheim – o suicídio – pode ser-
isto é, que nem sempre foram assim; segundo, que certas mudan-
vir para se compreender esse processo de estranhamento realiza-
ças ou continuidades históricas decorrem de decisões, e essas, de
do pela ciência em relação a fatos que, à primeira vista, não têm
interesses, ou seja, de razões objetivas e humanas, não sendo fruto
nem precisam de nenhuma explicação mais profunda. A partir de
de tendências naturais.
estudos estatísticos – tabelas de séries históricas da ocorrência do
Apenas para trazer um exemplo, ao mesmo tempo inicial e fenômeno em vários países e períodos determinados –, Durkheim
do presente, tome-se o caso da naturalização da economia, em es- conclui que, quando se observa o suicídio na sua regularidade e
pecial a idéia de que existiria de fato um “mercado” para além periodicidade, percebe-se que suas causas estão fora do indivíduo,
dos homens, ao qual todos devessem obedecer sob pena de serem constituindo um fato social tal como o autor o define: exterior, an-
malsucedidos. Essa concepção liberal das coisas foi longamente terior, coercitivo aos indivíduos. Estranhar o fenômeno “suicídio”
gestada desde Bacon (“A natureza só é vencida quando é obede- significa, então, tomá-lo não como um fato corriqueiro, perdido
cida”) até Adam Smith e David Ricardo (“Existe no mercado uma nas páginas policiais dos jornais ou boletins de ocorrência de dele-
mão invisível que controla os preços, a quantidade e a qualidade gacias, e sim como um objeto de estudo da Sociologia; e procurar
dos bens.” “A oferta e a procura constituem leis do mercado.”). As as causas externas ao indivíduo, mas que têm decisiva influência
“leis do mercado” não são naturais, mas instituídas, e se não são sobre esse, constitui um fenômeno social, com regularidade, pe-
obedecidas, o que se causa é uma ruptura no sistema social e não riodicidade e, nos limites de uma teoria sociológica, uma função
na natureza. específica em relação ao todo social.

Didatismo e Conhecimento 115


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Entende-se que esse duplo papel da Sociologia como ciência de se passar a idéia de que existiria uma “linguagem dos fatos”
– desnaturalização e estranhamento dos fenômenos sociais – pode (Popper, 1974), de que não existiria mediação entre o sujeito e o
ser traduzido na escola básica por recortes, a que se dá o nome mundo, ou mesmo que a linguagem da Sociologia fosse “transpa-
de disciplina escolar. Sabemos, mas sempre é bom lembrar, que rente” e não constituísse um problema sociológico. (Isso explica as
os limites da ciência Sociologia não coincidem com os da disci- nossas opções, apresentadas mais à frente, em termos de conteúdos
plina Sociologia, por isso falamos em tradução e recortes. Deve e metodologias.)
haver uma adequação em termos de linguagem, objetos, temas e As razões pelas quais a Sociologia deve estar presente no cur-
reconstrução da história das Ciências Sociais para a fase de apren- rículo do ensino médio são diversas. A mais imediata, e de que já
dizagem dos jovens – como de resto se sabe que qualquer discurso se falou, mas não parece suficiente, é sobre o papel que a disciplina
deve levar em consideração o público-alvo. desempenharia na formação do aluno e em sua preparação para o
Um dos grandes problemas que se encontram no ensino de exercício da cidadania. Isso se tem mantido no registro do slogan
Sociologia tem sido a simples transposição de conteúdos e prá- ou clichê; quer-se ultrapassar esse nível discursivo e avançar para
a concretização dessa expectativa.
ticas de ensino do nível superior – tal como se dá nos cursos de
Para dar um conteúdo concreto a essa expectativa, pensa-se,
Ciências Sociais – para o nível médio. Esquecem se as mediações
então, numa disciplina escolar no ensino médio que fosse a tradu-
necessárias ou por ignorância ou por preconceito: por ignorância
ção de um campo científico específico – as Ciências Sociais. Não
porque muitos professores de cursos superiores desconhecem me- se pode entender que entre os 15 e os 18 anos, após oito, nove,
todologias de ensino, estratégias, recursos, etc. que permitiriam 10 anos de escolaridade, o jovem ainda fi que sujeito a aprender
um trabalho mais interessante, mais proveitoso, mais criativo e “noções” ou a exercitar a mente em debates circulares, aleatórios
produtivo; ignora-se mesmo que a aula expositiva seja um caso, e arbitrários. Parece que nessa fase de sua vida a curiosidade vai
talvez o mais recorrente, mas não o único, com que se podem tra- ganhando certa necessidade de disciplinamento, o que demanda
balhar os conteúdos de ensino; o preconceito deve-se à resistência procedimentos mais rigorosos, que mobilizem razões históricas
a preocupações didáticas ou metodológicas no que se refere ao e argumentos racionalizantes acerca de fenômenos naturais ou
ensino, acreditando-se que basta ter o conhecimento – as informa- culturais. Mesmo quando está em causa promover a tolerância
ções? – para que se possa ensinar algo a alguém. É necessário, mas ou combater os preconceitos, a par de um processo de persuasão
não suficiente. Os professores do nível superior prevalecem-se de que produza a adesão a valores, resta a necessidade de construir
uma situação peculiar desses cursos: os alunos que ali estão o fa- e demonstrar a “maior” racionalidade de tais valores diante dos
zem por escolha e não por obrigação, enquanto os alunos da escola costumes, das tradições e do senso comum. Trata-se, recorrendo
básica ali estão por obrigação e não por escolha não estão ali para a Antônio Cândido, de “humanizar o homem” (Cândido, 1995).
serem sociólogos, historiadores, matemáticos, físicos ou literatos. O acesso às ciências e às artes deve ser entendido nesse projeto:
Independentemente disso, em qualquer nível de ensino, a media- a escolha pelo homem de ser mais humano. Ora, há muito que as
ção pedagógica, se assim se pode chamar, parece tão mais neces- Ciências Sociais têm feito essa opção. Repugna ao cientista social
sária quanto mais varia o público no tempo e no espaço, quanto submeter-se a um processo de “naturalização”. Nem em Durkheim
mais diverso é o público em relação ao professor. Se se considerar encontramos essa aceitação, em que pesem os compromissos e os
a tendência à massificação da escola brasileira – entendendo esse contextos positivista e funcionalista de que participava o pensador.
fenômeno no seu sentido positivo: acesso às vagas –, não pode ser Por outro lado, na medida em que a escola é um espaço de
ignorada a preocupação com a mediação entre o conhecimento e mediação entre o privado – representado sobretudo pela família – e
os alunos, mediação que tem um momento importante no ensino. o público – representado pela sociedade (Hannah Arendt, 1968) –,
Acresce que a escola básica e, em especial, o ensino médio essa deve também favorecer, por meio do currículo, procedimen-
foram constituindo uma cultura própria – o que muita vez se cha- tos e conhecimentos que façam essa transição. De um lado, o aces-
so a informações profissionais é uma das condições de existência
ma cultura escolar –, em que saberes produzidos pelas pesquisas
do ensino médio; de outro, o acesso a informações sobre a política,
acadêmicas são transformados em saberes escolares, com caracte-
a economia, o direito é fundamental para que o jovem se capacite
rísticas próprias, definidas por um contexto de ensino em que se
para a continuidade nos estudos e para o exercício da cidadania,
redefinem os tempos, os conteúdos, os métodos, as avaliações e as entendida estritamente como direito/dever de votar, ou amplamen-
condições do aprendizado dos alunos. te como direito/dever de participar da própria organização de sua
Nesse contexto, em que pese o que dizem algumas teorias pe- comunidade e seu país.
dagógicas “progressistas”, a presença do professor é fundamental, Numa sociedade como a nossa, em que se acumularam for-
e o ensino é um ponto de partida básico. Mas isso não significa mas tão variadas e intensas de desigualdades sociais – efetivadas
dizer que o ensino se reduza à transmissão de um saber como se por processos chamados por alguns de “exclusão social” e por ou-
fosse uma palestra, uma conferência ou uma simples leitura na tros de “inclusão perversa” –, em que a lentidão ou as marches e
frente dos alunos. Se se atentar bem, aqui não é só a mensagem démarches são uma constante nas mudanças, o acesso ao conhe-
que importa, mas sobretudo a mediação (ou o meio) com que se cimento científico sobre esses processos constitui um imperativo
apresenta essa mensagem. É estranho que entre cientistas sociais político de primeira ordem.
a linguagem com que ensinam as Ciências Sociais não seja posta Chegamos, então, à Sociologia no nível médio. Aqui caberia
em relevo, e sobre ela também se apresentem questionamentos. O transcrever as palavras de Florestan Fernandes, em artigo publica-
que se quer dizer é que uma dimensão importante do ensino – em do nos anos 1950 que tratava justamente do ensino de Sociologia
qualquer nível – é a percepção sobre o modo de exposição ou a na escola secundária brasileira (Atas do 1ºCongresso Brasileiro
linguagem com que se apresenta esse ensino. A linguagem da So- de Sociologia, São Paulo, 1954). Parece que, atualizando as pa-
ciologia não nos deve passar despercebida, sob pena não só de um lavras, reorientando as intenções, valem os mesmos objetivos e
empobrecimento do que é ensinado e aprendido, mas sobretudo justificativas ainda hoje. Fernandes diz:

Didatismo e Conhecimento 116


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
[...] a transmissão de conhecimentos sociológicos se liga à ne- Não é o que ocorre na verdade: quando uma narrativa
cessidade de ampliar a esfera dos ajustamentos e controles sociais historiográfica ou a descrição geográfica traz os fatos sociais para
conscientes, na presente fase de transição das sociedades ociden- o contexto dos “seus” temas, não percorre todas as consequências
tais para novas técnicas de organização do comportamento huma- nem apresenta todos os pressupostos das teorias das Ciências So-
no. ciais. Muitas vezes é quase uma transcrição indevida dessas te-
Citando Mannheim, ele acrescenta: orias, mas que nunca ocorre com a paciência e a especificidade
[...] as implicações desse ponto de vista foram condensadas próprias das Ciências Sociais, uma vez que o que está em causa
por Mannheim sob a epígrafe “do costume às ciência sociais” e é preservar a linguagem, a metodologia e o objeto peculiar dessas
formuladas de uma maneira vigorosa, com as seguintes palavras: ciências (História e Geografia). O fenômeno social ocorre, por cer-
“enquanto o costume e a tradição operam, a ciência da socieda- to, num tempo e num espaço, mas não se reduz a essas dimensões,
de é desnecessária. A ciência da sociedade emerge quando e onde pois suas características são definidas por leis próprias, específicas
o funcionamento automático da sociedade deixa de proporcionar das relações sociais. Há aqui, como diria Durkheim, algo a mais –
ajustamento. A análise consciente e a coordenação consciente dos e sua explicação, sua significação e seu sentido vão depender das
processos sociais então se tornam necessárias”. teorias das Ciências Sociais, variando de autor para autor, tal como
Como se vê, as razões para que a Sociologia esteja presente no acontece no campo das Ciências Humanas. No entanto, a frontei-
ensino médio no Brasil não só se mantêm como se têm reforçado. ra entre as Ciências Sociais e a História e a Geografia não deve
As estruturas sociais estão ainda mais complexas, as relações de constituir impedimento para um diálogo entre elas ou para uma
trabalho atritam-se com as novas tecnologias de produção, o mun- atuação em conjunto. Ao se tomar um fenômeno como objeto de
do está cada vez mais “desencantado”, isto é, cada vez mais ra- pesquisa ou de ensino, podem-se reconhecer tanto os limites como
cionalizado, administrado, dominado pelo conhecimento científico as possibilidades que cada ciência tem para tentar compreendê-lo
e tecnológico. No campo político, os avanços da democratização ou falar dele. Certamente esses objetos não são exclusivos de uma
têm sido simultâneos aos avanços das tecnologias da comunica- determinada ciência, mas deve-se atentar para as diferenças de tra-
ção e informação, tendendo a corromper-se esse regime político tamento, da própria linguagem com que cada ciência fala dele, das
em novas formas de populismo e manipulação. No campo social, metodologias, dos aspectos ressaltados, e perceber até que ponto
o predomínio do discurso econômico tem promovido uma “rena- uma ciência aprofunda tal objeto, ou ainda tem um conhecimento
turalização” das relações, reforçando aqui o caráter ambíguo (e precário acerca dele. Esses procedimentos – que muitos chamam
perverso) da racionalidade contemporânea. de interdisciplinaridade, outros de multidisciplinaridade e outros
O ensino médio pode ser entendido como momento final do ainda de transdisciplinaridade,
processo de formação básica, uma passagem crucial na formação porque ainda não se conseguiu unificar ou homogeneizar a
do indivíduo – para a escolha de uma pressão, para a progressão linguagem pedagógica – são tanto mais profícuos quanto menos
nos estudos, para o exercício da cidadania, conforme diz a lei –, ilusões e entusiasmos se tiver ao exercitá-los. Aqui a parcimônia
por isso a presença ou ausência da Sociologia é desde já indício de ainda é a melhor conselheira.
escolhas, sobretudo no campo político. Mas as relações da Sociologia não se restringem ao campo das
Como parte do currículo, a Sociologia pode ocupar um pa- ciências humanas nem a esse papel de vizinhança e complementa-
pel importante de interlocução com as outras disciplinas ou com o ção. Como dissemos, as ciências humanas ou naturais podem ser
próprio currículo como um todo, senão com a própria instituição objeto da Sociologia, porque há uma Sociologia do Conhecimento,
escolar. Talvez excluindo a Filosofi a, que também pode retomar e, por exemplo, uma possível leitura do livro já clássico de Thomas
como objeto seu as outras disciplinas escolares, embora de um ou- Kuhn A estrutura das revoluções científicas seria legítima nesse
tro modo, nenhuma outra disciplina traz essa característica. Por campo. Resumindo a questão, podem-se explorar as relações entre
isso, muitas vezes – e particularmente nas DCNEM – se pensa a comunidade científica e a produção das ciências, verificando-se
que os “conhecimentos” da Sociologia possam ser tratados pelas até que ponto as regras que presidem a produção científica têm
outras disciplinas de modo “interdisciplinar”. Isso pode constituir a ver tanto com os aspectos próprios da pesquisa em si quanto
um equívoco. Em parte, esse equívoco se deve a uma tendên- das negociações entre os cientistas: protocolos, autoridade, sta-
cia de reduzir um conhecimento a outro, fato já denunciado por tus, hierarquias, prestígio, etc., fatores muitas vezes considerados
Durkheim tanto em relação à redução do fenômeno biológico ao extracientíficos.
físico-químico como em relação à redução do fenômeno social ao No caso da escola básica, pode-se considerar a própria “cons-
psicológico: trução do currículo” como um fenômeno sociológico: quais as
[...] existe entre a Psicologia e a Sociologia a mesma solução características do currículo, a que interesses corresponde sua
de continuidade que entre a Biologia e as Ciências Físico-Quími- configuração, por que essas disciplinas e não outras, por que em tal
cas. Por conseguinte, todas as vezes que um fenômeno social está proporção, quem define o currículo? Muitas dessas questões só po-
explicado diretamente por um fenômeno psíquico, pode-se estar dem ser compreendidas se submetidas a uma análise sociológica.
certo de que a explicação é falsa (Durkheim,1975). Por outro lado, deve-se reconhecer a contribuição de outras
Outra razão se deve à idéia seguinte: pelo fato de tanto a His- ciências para a construção dos conhecimentos das Ciências So-
tória quanto a Geografia, como ciências ou disciplinas escolares, ciais. Da História, a compreensão de que os fenômenos sociais
terem sofrido influências decisivas das Ciências Sociais desde os são históricos, caso contrário os cientistas sociais permaneceriam
fins do século XIX, influências que mudaram definitivamente seus numa Sociologia “estática”, restrita a um estruturalismo ou a um
padrões de pesquisa e compreensão dos fenômenos históricos e funcionalismo na compreensão desses fenômenos, e se perderia
geográficos, então as Ciências Sociais já estariam sendo “contem- uma Sociologia “dinâmica”, com que se busca compreender jus-
pladas” pelos produtos daquelas ciências, particularmente pelas tamente as mudanças nessas estruturas e superar a idéia, de base
disciplinas escolares. organicista, de função.

Didatismo e Conhecimento 117


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Com a Biologia, o diálogo é ao mesmo tempo tenso e insti- grama do curso – aliás, entre nós, o estudo da educação e da escola
gante. Ainda restam, na linguagem sociológica, resquícios de uma constituíram mesmo um capítulo da Sociologia da Educação, mo-
Sociologia precursora, marcada pela linguagem biológica; por isso mento importante da formação, da consolidação e do prestígio da
tenta-se o tempo todo estabelecer a distinção entre os fenômenos Sociologia brasileira. Pode-se também tomar a própria escola onde
biológicos e os sociais, afastando-se analogias tão fáceis quanto o professor trabalha como objeto de estudo e com isso ensejar pes-
ilusórias. Por outro lado, os avanços das pesquisas biológicas são quisas quantitativas e qualitativas, a serem realizadas pelos alunos,
sempre um desafio para as Ciências Sociais porque questionam guardando-se os devidos limites quanto a instrumentos, técnicas e
os modelos de explicação sociológica, exigindo revisão e debate resultados.
constantes entre essas ciências, por exemplo, as relações nem sem- É sempre bom alertar que essa relação da Sociologia com as
pre pacíficas entre a Antropologia Física e a Cultural, ou o embate outras disciplinas, com o currículo ou com a comunidade escolar
entre concepções “hereditaristas” e “ambientalistas”. nem sempre se faz com tranquilidade, seja porque nem sempre
Em relação às Ciências Naturais (Física, Química e Biologia), a condição de “objeto” de estudo é confortável, seja pelo caráter
os conhecimentos dessas disciplinas são fundamentais para que crítico que a pesquisa sociológica apresenta. O simples desloca-
se entenda a questão ambiental ou o processo de industrialização mento da disciplina desses limites – de disciplina para ciência,
desde o início do século XIX, que por sua vez se relaciona com a de ensino para pesquisa – revela um caráter questionador, muitas
História e a Geografia. Além disso, ao discutir temas atuais como a vezes identificado como estranho (estrangeiro, de estranhamento)
biotecnologia e a engenharia genética (genoma, transgênicos, fár- ou mesmo irônico (desnaturalizador, desestabilizador). Assim, não
macos, saúde), informática, nanotecnologia, infovias/ comunica- se trata de uma experiência fácil nem de aceitação geral porque
ções, etc. devem-se relacioná-los com a sociedade de agora e com certamente seus objetivos não estão somente no campo do conhe-
aquela que se estará constituindo nos próximos anos. Afinal, em cimento, mas também no da intervenção. Por isso, o professor de
pleno século XXI, as transformações que estão sendo anunciadas Sociologia deve avaliar bem antes de iniciar essa empreitada e es-
e com certeza virão exigem que a Sociologia esteja presente nes- tar certo das consequências e dos limites de tal experimentação.
se debate. Mas para participar dele é necessária uma interlocução Apenas se anota aqui essa possibilidade para mostrar que a presen-
com as ciências (disciplinas) naturais que desenvolvem esses sabe- ça da Sociologia na escola não se limita à garantia da diversidade
res e com eles afetam a sociabilidade contemporânea. curricular – como se chegou a chamar, enriquecimento pedagógico
Com relação à Matemática, a Sociologia tem-se valido enor- –, senão a uma postura política da comunidade escolar.
memente dela nas suas pesquisas quantitativas, e, em boa medida,
da Estatística. Esse ramo da Matemática tem tido papel decisivo A SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO
em pesquisas de campo das Ciências Políticas, por exemplo no que
se refere ao comportamento eleitoral. De modo que um possível Pelos motivos apresentados na primeira parte, fica claro que,
tópico de um programa de Sociologia no ensino médio é trabalhar diferentemente das outras disciplinas escolares, a Sociologia não
com tabelas e gráficos, sem o que parte relevante dos conhecimen- chegou a um conjunto mínimo de conteúdos sobre os quais haja
tos sociológicos e políticos fi caria ignorada. unanimidade, pois sequer há consenso sobre alguns tópicos ou
Com as Artes, ou no caso específico da Literatura (Brasileira perspectivas. Se forem considerados uns 10 casos de propostas
e Portuguesa), a simbiose é mais acentuada. Não há teoria estéti- programáticas 2 de 10 professores, certamente se encontrarão uns
ca, história da arte, crítica literária que prescindam inteiramente dois tópicos comuns, ainda assim não idênticos. Um talvez seja
de fundamentos sociológicos. O contexto social – o público, por “Introdução à Sociologia”, que consiste na definição da ciência,
exemplo – é um elemento impossível de se ignorar quando está em seu objeto e principais temas ou conceitos; outro, recorrente, pode
causa o estudo da obra de arte. Por outro lado, parte do exercício ser uma “História da Sociologia”, em especial que trate da tría-
de compreensão da sociedade feito pelas Ciências Sociais só foi de de autores clássicos – Marx, Weber e Durkheim –, que muitas
possível com o recurso a obras de arte, em especial à Literatura, e vezes percorre um curso inteiro dando a impressão de que tais au-
não haveria exagero em dizer que muita obra literária é animada tores são complementares e obrigatórios. Sabe-se que nem uma
por uma perspectiva sociológica, mas infelizmente os sociólogos coisa nem outra. Há entre eles possíveis interseções quando tratam
raramente incorporam uma perspectiva literária quando escre- dos mesmos objetos ou se referem aos mesmos conceitos. No en-
vem... tanto, pode ocorrer aí oposição e significação diversa, mostrando
Há uma Sociologia da Arte, do Cinema, da Literatura, do Te- que eles não coincidem. Por vezes, há entre esses autores “vazios
atro, a mostrar que esses fenômenos são compreendidos rigoro- teóricos”, isto é, fenômenos de que suas teorias não dão conta,
samente como fenômenos sociais, tal como a religião, a cidade quer pela inexistência de tais fenômenos na época quer pelos li-
(Sociologia Urbana), o campo (Sociologia Rural), etc. mites da própria teoria. Como se sabe, as teorias respondem aos
Seria ocioso percorrer as possíveis relações entre as Ciências problemas de sua época, e os autores dialogam com seu tempo.
Sociais e as outras ciências, ou entre a disciplina Sociologia e as Assim, outros autores impuseram-se e também já podem ser con-
outras disciplinas da escola média. Acredita-se que sem muito es- siderados clássicos porque acrescentaram outros modelos expli-
forço, mas também sem artificialismos constrangedores, seja pos- cativos ou compreensivos acerca de fenômenos que ou surgiram
sível efetivar um trabalho em equipe contando com professores de depois daqueles autores pioneiros ou que eles não conseguiram
Sociologia e das demais disciplinas ao tratar de um tema, de um responder ou sequer circunscrever. Assim, dependendo do recorte
fato ou de um conceito. que se faz, certos autores são obrigatórios e outros não, inclusive
Resta ainda uma referência necessária sobre a presença da So- aqueles tidos como incontornáveis, sem contar que certos auto-
ciologia no ensino médio. A escola como instituição social pode res contemporâneos trazem em suas teorias referências implícitas
ser objeto de estudo da Sociologia e tornar-se um tópico do pro- àqueles da tradição.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Essa aparente desvantagem da Sociologia em relação a ou- a) Conceitos
tras disciplinas escolares – não ter um corpus consensualmente
definido e consagrado – pode se revelar uma vantagem, no entan- Os conceitos são elementos do discurso científico que se re-
to. É certo que pode trazer um questionamento da parte de outros ferem à realidade concreta. O discurso sociológico merece um
professores e mesmo alunos, ferindo sua legitimidade já tão pre- tratamento especial em sala de aula. Por isso, em parte, o traba-
cária diante do currículo, mas também é certo que, pelas mãos das lho do professor de Sociologia consiste numa tradução, ou o que
recentes e predominantes concepções pedagógicas – os construti- no campo das Ciências Naturais muitos chamam de alfabetização
vismos, por exemplo –, há um questionamento e uma revisão da científica.
organização curricular de todas as outras disciplinas. Questiona- Trabalhar com conceitos requer inicialmente que se conheça
-se, por exemplo, a idéia de pré-requisito, isto é, que um tópico cada um deles em suas conexões com as teorias, mas que se cuide
dependa de outros anteriores para ser desenvolvido, negando-se, de articulá-los com casos concretos (temas). Isso se torna funda-
portanto, a idéia de seqüência estabelecida entre os tópicos. Nesse mental para que, ao se optar por esse recorte – conceitos –, não
sentido, a Sociologia fica à vontade. Por um lado, a não existência se conduza o trabalho em sala de aula como se fosse a produção
de conteúdos consagrados favoreceria uma liberdade do professor de um glossário técnico, transformando os alunos em “dicionários
que não é permitida em outras disciplinas, mas também importa de Sociologia ambulantes”, permanecendo na recitação do que
numa certa arbitrariedade ou angústia das escolhas... Bem se en- significa tal e qual conceito, sem nenhuma relação com o contexto
tende que essa situação também é resultado tanto da intermitência que dê sentido aos conceitos.
da presença da Sociologia no ensino médio quanto da não cons- Os conceitos possuem história, e é necessário que isso seja
tituição ainda de uma comunidade de professores da disciplina, levado em conta ao se trabalhar com eles. É preciso contextuali-
comunidade que possa realizar encontros, debates e a construção zar o conceito para que sua história e seu sentido próprio possam
de, senão unanimidades – que também não seriam interessantes –, ser entendidos pelos alunos não como uma palavra mágica que
ao menos consensos ou convergências a respeito de conteúdos e explica tudo, mas como um elemento do conhecimento racional
metodologias de ensino. que permite melhor explicar ou compreender a realidade social.
Por exemplo, pode se pensar em um conceito bastante conheci-
Pressupostos metodológicos do: burguesia. Na Idade Média, o burguês era considerado apenas
o habitante do burgo, sujeito livre das amarras dos senhores feu-
Apesar desse contexto, pode-se verificar que pelo menos três
dais. Posteriormente, a burguesia foi considerada como o grupo
tipos de recortes são reiterados nas propostas construídas para o
de comerciantes das cidades. No contexto da Revolução Francesa,
ensino de Sociologia no nível médio e encontráveis nos parâme-
ficou conhecida como classe revolucionária por alguns autores e
tros curriculares oficiais, nos livros didáticos e mesmo nas escolas.
também como classe média (que se situava entre a aristocracia e a
São eles: conceitos, temas e teorias. A tendência é os professores,
plebe). Após desbancar a aristocracia do poder, passou a ser a clas-
os livros e as propostas apresentarem esses recortes separadamente
se dominante, e assim continua até hoje, sendo a classe que detém
quando não optam por trabalhar somente com um deles. O que se
o poder na nossa sociedade. Se não se levar isso em conta, pode-se
propõe aqui para a reflexão dos professores é que esses recortes
podem ser tomados como mutuamente referentes, isto é, rigorosa- utilizá-lo de forma inadequada, ao ler livros de diferentes épocas
mente seria impossível trabalhar com um recorte sem se referir aos utilizando-o sempre com o mesmo entendimento. Assim, o termo
outros. O que é possível fazer é tomar um deles como “centro” e os burguês, que atualmente também é uma gíria da linguagem dos
outros como referenciais (Silva, 1986). Ao se tomar um conceito– jovens, ainda que em sentido pejorativo, pode se tornar o conceito
recorte conceitual –, este tanto faz parte da aplicação de um tema motivador para análise sociológica de temas que remetam à so-
quanto tem uma significação específica de acordo com uma teoria, ciedade de classes, ao surgimento do capitalismo, à desigualdade
do contrário os conceitos sociológicos seriam apenas um glossário social, à postura revolucionária de uma classe social, etc.
sem sentido, pelo menos para alunos do ensino médio. Um tema As vantagens de se trabalhar com conceitos é que já no ensino
não pode ser tratado sem o recurso a conceitos e a teorias socioló- médio o aluno vai desenvolver uma capacidade de abstração muito
gicas senão se banaliza, vira senso comum, conversa de botequim. necessária para o desenvolvimento de sua análise da sociedade,
Do mesmo modo, as teorias são compostas por conceitos e e para elevar o conhecimento a um patamar além do senso co-
ganham concretude quando aplicadas a um tema ou objeto da So- mum ou das aparências. Um conceito é um elemento do discur-
ciologia, mas a teoria a seco só produz, para esses alunos, desin- so científico que consegue sintetizar as ações sociais para poder
teresse. Entende-se também que esses recortes se referem às três explicá-las como uma totalidade.
dimensões necessárias a que deve atender o ensino de Sociologia: Além disso, a importância de se trabalhar com conceitos é
uma explicativa ou compreensiva – teorias; uma lingüística ou dis- que se pode desenvolver nos alunos o domínio de uma linguagem
cursiva – conceitos; e uma empírica ou concreta – temas. específica, a linguagem científica, no caso a sociológica, no trata-
A seguir apresentam-se reflexões sobre os recortes propostos mento das questões sociais.
a partir de alguns casos concretos. É importante que se diga que Uma possível desvantagem pode ser exemplificada pela
são apenas exemplos para discussão e não constituem em si uma utilização de um outro conceito, o de ideologia. Formulado por
“proposta programática”. Visam apenas a levar os professores a Destutt de Tracy, esse conceito signifi cava “a ciência ou estudo
elaborarem suas próprias propostas, com esses ou outros temas, da gênese das idéias”. Napoleão classificava seus críticos como
conceitos e teorias, recolhendo de suas experiências ou de sua ima- ideólogos, metafísicos, e desenvolveu a compreensão de ideologia
ginação outros exemplos passíveis de desenvolvimento em sala de como “idéia falsa” ou “ilusão”, que Karl Marx também utilizou,
aula. posteriormente.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Émile Durkheim considerava ideologia o contrário do conhe- A globalização também é outro tema muito recorrente. Pelas
cimento científico, ou seja, as pré-noções, as noções vulgares, as consequências que vem provocando, ela pode estar presente nas
idéias pré-científicas. Assim, ao se analisar como vários autores discussões do processo educacional (socialização, mundializa-
utilizam o conceito de ideologia, percebe-se que existem vários ção da educação), dos movimentos sociais, da cultura em geral
entendimentos do seu significado. Podem-se resumi-los em pelo e da indústria cultural, das relações de trabalho, das questões am-
menos três sentidos: bientais, da estruturação do Estado nacional, etc., além, é óbvio,
1) como sistema de idéias, valores, projetos e crenças de um dos processos econômicos – seu aspecto mais visível. É um tema
grupo ou de uma classe social; extremamente vasto e com uma bibliografia ampla, o que requer
2) como processo geral de produção de significados e idéias; um conhecimento sempre atual sobre o assunto. Trabalhar a his-
3) como falsa consciência ou sistema de crenças ilusórias per- tória da globalização, como ela se desenvolve, quais as teorias
tencentes a uma classe, mas impostas a toda a sociedade. que abordam esse fenômeno, como contemporaneamente se trata
Essa diferença no entendimento de um determinado conceito essa temática, é algo necessário para depois analisar as questões
pode confundir os alunos. Portanto, para que isso não ocorra, ele específicas relativas à sua presença no cotidiano das pessoas.
deve ser muito bem explicado. Mas o que pode ser problemático Quando se propõe o recorte de temas para o ensino da Socio-
também pode vir a ser uma vantagem, pois ao entender que um logia, não se faz isso pensando analisar os chamados “problemas
conceito admite vários sentidos, conforme o autor e a época, o alu- sociais emergentes” de forma ligeira e imediatista. Muitas vezes,
no pouco a pouco vai se acostumando com esse fato, aprendendo sem se preocupar muito com o que vai ser analisado, o profes-
assim o porquê da diversidade de explicações existentes no univer- sor propõe: “Hoje vamos discutir um assunto muito importante:
so da Sociologia, compreendendo que isso é um dos elementos de a sexualidade”, e a partir daí vai perguntando aos alunos o que
diferenciação entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais. eles acham disso ou daquilo. Assim, o que se tem no final é uma
O que talvez possa limitar o sucesso dessa opção – trabalhar com coleção de obviedades ou manifestações do senso comum. Ora, a
conceitos – é a repetição por parte do professor no ensino médio, Sociologia posiciona-se contra esse tipo de abordagem, e o recur-
na forma e no conteúdo, das discussões conceituais que ele tinha so aos temas visa a articular conceitos, teorias e realidade social
na universidade. Se isso acontecer, ele terá sérios problemas na partindo-se de casos concretos, por isso recortes da realidade em
condução de suas aulas, pois, se ficar num nível muito abstrato, que se vive. Não se pode tratá-los como se fossem “coelhos tirados
dificilmente vai conseguir trazer para a realidade a discussão com de uma cartola”, numa apresentação de mágica. Assim, temas es-
os alunos. colhidos pelo professor e pelos alunos, como menor abandonado,
Outros conceitos que podem ser incluídos em um programa: gravidez na adolescência, violência e criminalidade, desempre-
indivíduo, go, etc. são importantes no cotidiano e não podem ser tratados de
sociedade, trabalho, produção, classe social, poder, domina- modo desconectado da realidade em que se inserem, mas também
ção, ideologia, cultura, mudança social, etc. não devem ser apresentados sem uma articulação com os concei-
tos e as teorias que podem explicá-los. A idéia de recorte aqui não
b) Temas significa “colcha de retalhos” nem fragmentos, mas uma perspec-
tiva de abordagem: há costura e composição, viabilizadas pela in-
Pode-se trabalhar com muitos temas, e, dependendo do inte- tervenção do professor com o auxílio das teorias e dos conceitos.
resse do professor, dos alunos e também da própria escola, adequar A vantagem de se iniciar o trabalho de ensino com temas é
essa escolha à própria realidade. evitar que os alunos sintam a disciplina como algo estranho, sem
Assim, por exemplo, é possível considerar como atuais dois entender por que têm mais uma disciplina no currículo e para que
importantes temas que, sob certo aspecto, são antigos: violência ela serve. Discutir temas sempre que possível do interesse ime-
e globalização. diato deles permite ao professor desencadear um processo que vai
O tema violência pode ser abordado levando em conta onde desenvolver uma abordagem sociológica mais sólida de questões
ela acontece e a forma como costuma se manifestar. Isso leva a signifi cativas sem que isso represente um trabalho muito comple-
situações concretas e importa no uso de conceitos, bem como de xo, abstrato e, por vezes, árido.
teorias, para explicar tais situações e manifestações. Assim, pode- A desvantagem de se trabalhar com temas é a necessidade de
-se encontrar a violência nas relações pessoais ou nas relações en- o professor ter uma capacidade analítica muito grande e um am-
tre o indivíduo e as instituições, como ela aparece na escola e por plo conhecimento da realidade da sociedade em que vive, pois do
que alguns a chamam de violência simbólica. Há o uso legítimo da contrário será apenas uma saída para tornar as aulas mais interes-
violência pelo Estado e seu uso abusivo pelo mesmo Estado, em santes, ou, como se disse acima, apenas uma relação de temas sem
momentos de crise institucional, repressão política, censura, etc. conexão entre si, com a história e as teorias que possam explicá-los
Há violência nos meios de comunicação, nos movimentos sociais, – uma banalização e uma perda de tempo. Não se pode reduzir essa
nos processos de transformação das diferentes sociedades, patroci- abordagem a coletar informações em jornais e revistas sobre esta
nada por governos à direita ou à esquerda. ou aquela temática, pois é necessário fundamentar o debate em
Como se pode perceber, a “questão da violência” não está ape- bases teóricas e construir um discurso sobre os temas com bases
nas ligada à criminalidade, e fazer uma análise enfocando somente conceituais rigorosas.
essa dimensão signifi caria permanecer nas aparências da questão, Outros temas que podem ser incluídos em um programa:
no que é mais visível, ou, no limite, dando-lhe um enfoque ideo- questão racial, etnocentrismo, preconceito, violência, sexualidade,
lógico ou preconceituoso. A Sociologia preocupa-se com a análise gênero, meio ambiente, cidadania, direitos humanos, religião e re-
de todas as formas de violência para poder dar uma visão ampla do ligiosidade, movimentos sociais, meios de comunicação de massa,
fenômeno e explicar como ele acontece na nossa sociedade. etc.

Didatismo e Conhecimento 120


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
C) Teorias construiu seu arcabouço teórico e seus conceitos a partir de bases
epistemológicas diferentes. Para Marx, a dialética como método, a
É muito comum encontrarem-se programas de Secretarias Es- historicidade das relações sociais como fundamento e os conceitos
taduais de Educação ou de escolas isoladas que contenham conteú- de modo de produção, divisão social do trabalho, classe e luta de
dos de teorias clássicas: análise dialética (Marx), análise funciona- classes, revolução, ideologia, alienação, mais-valia, capital, dentre
lista (Durkheim) e análise compreensiva (Weber). Trabalhar com outros, levaram-no a desenvolver a crítica mais aguda ao sistema
as teorias clássicas ou contemporâneas impõe a necessidade de se capitalista desde então. As idéias de contradição e conflitonas rela-
compreender cada uma delas no contexto de seu aparecimento e ções sociais permearam todo o seu pensamento, e sem elas não se
posterior desenvolvimento – apropriação e crítica. pode compreender sua teoria.
É possível entender as teorias sociológicas como “modelos Émile Durkheim, tendo como referência o positivismo, de-
explicativos”. Como tal, uma teoria “reconstrói” a realidade, ten- senvolveu uma visão funcionalista da sociedade, e para isso partiu
tando dar conta dos fatores que a produziram e dos seus possíveis do pressuposto de que a sociedade em que vivia passava por uma
desdobramentos. Não escaparia aqui uma abordagem sociológica crise que era, antes de tudo, moral, dado o processo de desestrutu-
da própria constituição da Sociologia como ciência e como res- ração dos valores até então estabelecidos. Desenvolveu sua teoria
posta, a partir de um certo momento, para as questões humanas, a partir dos conceitos de fato social, consciência coletiva, coerção
no caso pela necessidade de explicar a existência e as formas de e divisão do trabalho social, que remetiam aos de solidariedade
organização da sociedade. mecânica e orgânica, anomia, normalidade e patologia, religião,
Ao se tomarem, por exemplo, as três vertentes, sempre re- moral (laica) e instituição, coesão e integração, que identificam
feridas como clássicas, que permeiam todo o pensamento socio- seu pensamento.
lógico, é necessário conhecer o momento histórico em que cada Max Weber, partindo de outra matriz teórica, tinha no método
autor viveu e as razões que os levaram a construir suas teorias e os compreensivo seu ponto de partida, e utilizou a construção de tipos
conceitos que caracterizam cada uma delas. ideais como método heurístico para apreender o fundamental na
Para compreender o pensamento de Karl Marx, é necessário sociedade. Para ele, era necessário, além de explicar, compreen-
conhecer o momento em que ele viveu, na Alemanha e em outros der – reconstruir – a conexão de sentido da ação dos indivíduos,
países europeus, suas influências intelectuais, principalmente da o desenvolvimento e os efeitos de suas condutas nas relações so-
filosofia de Hegel e seus críticos, sua leitura de economia política ciais. Para tanto, utilizou os conceitos de ação social, dominação,
inglesa em Adam Smith e David Ricardo, e os estudos do pensa- classes, castas, estamentos e partidos para compreender as ações
mento dos socialistas anteriores, Saint-Simon, Charles Fourier e e a divisão do poder nas diferentes sociedades. Outro aspecto fun-
Robert damental em sua teoria é a percepção de um processo de racio-
Owen. Mas só isso fi caria muito vago se não conhecer sua nalização crescente da vida contemporânea – a que chamou de
participação nos debates sociais de seu tempo e, principalmente, desencantamento – e do modo como até a esfera religiosa sofreu
nos movimentos dos trabalhadores da Europa, o que o fez levar suas influências e acabou reforçando esse processo. Para tanto, seu
uma vida precária e muito penosa. maior esforço foi analisar as diferentes éticas religiosas desde a
A Alemanha em que viveu Max Weber já era outra, diferente Antiguidade até o Protestantismo.
daquela de Marx, principalmente após a Guerra Franco-Prussia- Caso se analise uma teoria contemporânea como a desenvol-
na, que elevou Bismarck ao poder e permitiu a unificação alemã, vida por Pierre Bourdieu, é necessário que se conheça a trajetória
com seus desdobramentos posteriores, inclusive a Primeira Guerra de vida desse autor, bem como sua inserção no espaço acadêmico
Mundial. As influências intelectuais também eram outras. Weber francês. Além disso, é importante saber como retirou da obra de
partiu da filosofia de Kant, do pensamento de W. Dilthey, o que lhe cada um dos autores acima referidos algo para desenvolver sua
permitiu discutir a diferenciação entre as Ciências Naturais e as teoria e sua prática sociológica: de Durkheim, tirou a possibili-
Culturais, e distanciar-se, assim, do positivismo. dade de um conhecimento científico do mundo social; de Marx,
Para se entender Émile Durkheim, é infrutífero analisar-lhe extraiu a idéia de que a sociedade é constituída de classes sociais
a obra sem conhecer a situação da França após a Guerra Franco- em luta para a perpetuação da ordem ou para seu questionamento;
-Prussiana e os movimentos sociais de seu tempo, o que exigiu dos de Weber, levou em conta a idéia de que as representações sociais
pensadores franceses uma reavaliação de toda a sociedade france- que os indivíduos elaboram são fundamentais para dar sentido à
sa e do sistema educacional para romper com uma visão monár- realidade.
quica e clerical, “restauradora”, que mal absorvera as conquistas Assim, ao retomar e ao elaborar os conceitos de habitus e de
da Revolução Francesa. Assim, o pensamento dele está vivamente campo, contribuiu muito para entender a sociedade além das dico-
preocupado com uma visão de sociedade republicana e laica (an- tomias indivíduo–sociedade, aspectos objetivos e subjetivos das
ticlerical). As influências de Saint-Simon e de Auguste Comte são relações individuais e sociais.
fundamentais se para entender sua preocupação em dar um estatu- Optando por tomar esse recorte como centro de uma propos-
to científico para a Sociologia, embora o autor marque diferenças ta programática, o professor pode partir da apresentação da teoria
sensíveis em relação a esses precursores. do autor, reconstruindo-a numa linguagem acessível mas rigorosa,
No caso de Max Weber e de Émile Durkheim, é necessário tendo como referências principais alguns temas e conceitos que
destacar que suas teorias dialogaram parcialmente com o pensa- podem ser destacados e discutidos com os alunos para
mento de Marx, e isso explica parte de seus argumentos. garantir a compreensão do papel de uma teoria científica, sua
O contexto histórico em que viveram esses autores, as linguagem, seus objetos e métodos de pesquisa, e suas relações
influências intelectuais e a participação deles nos debates e em- com a realidade. Não parece razoável e exequível, ou mesmo inte-
bates teóricos e políticos de seu tempo definiram como cada um ressante, percorrer todos os pressupostos de uma teoria, nem todos

Didatismo e Conhecimento 121


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
os conceitos que ela encerra ou seus desdobramentos. Aqui cabe A pesquisa pode ser feita depois das apresentações teóricas,
sempre uma seleção, pode-se dizer que a “reconstrução” de uma conceituais ou temáticas, como um elemento de verificação ou de
teoria científica, nas ciências humanas ou naturais, que deve aten- aplicação (ou não) do que foi visto anteriormente. Mas pode ser
der aos fins didáticos específicos do nível de ensino em que se utilizada como elemento anterior às explicações por meio dos três
insere (Chervel, 1990). Aqui, como nos outros recortes propostos recortes. Podem-se encaminhar os alunos para que realizem uma
– temas ou conceitos –, para a economia do processo, teoria, temas pesquisa antes de discutirem qualquer teoria, conceito ou tema, e, a
e conceitos devem estar articulados previamente no discurso do partir do que encontrarem, problematizar os resultados no contexto
professor, de modo que fi que claro que há uma necessidade de in- de cada um dos recortes.
tegração entre a teoria e os temas abordados, não aparecendo esses Aqui também deve haver certo cuidado. Há uma prática co-
como exemplos arbitrários. Do mesmo modo, há uma coerência mum de mandar os alunos pesquisarem qualquer coisa e de qual-
entre a teoria e o uso de determinados conceitos, o que garante quer modo, ou seja, se o tema em discussão é o desemprego, por
que o discurso de uma teoria sociológica tenha sentido e possa ser exemplo, diz-se para os alunos procurarem desempregados e per-
reconhecido como válido quando se refere ao mundo empírico. guntarem a eles por que estão desempregados, o que acham dis-
A vantagem desse recorte está em que o aluno pode conhecer so e quem é o culpado por essa situação. Ora, o resultado dessa
a história do pensamento sociológico e assim ter uma visão geral “pesquisa” será normalmente um conjunto de idéias soltas, de sen-
dessa ciência e das possibilidades de compreender e explicar os so comum, explicações individualistas e, ademais, sem nenhuma
fenômenos sociais. A diversidade de enfoques teóricos permite-lhe perspectiva social para se entender seu resultado.
entender que um fenômeno social não tem apenas uma explicação,
podendo ter várias, na medida em que existem diversas aborda- Antes de usar esse expediente, é necessário que o professor
gens teóricas de um mesmo fenômeno. Essa talvez seja uma das explique o que é uma pesquisa sociológica, os padrões mínimos de
grandes diferenças entre as Ciências Humanas (dentre as quais está procedimentos que devem ser utilizados, os cuidados que devem
a Sociologia) e as Ciências Naturais: enquanto aquelas se desen- ser tomados, enfim, passos e procedimentos objetivos para que o
volvem por diversificação de perspectivas, estas se desenvolvem resultado dela possa ser de alguma valia no entendimento do fenô-
por superação de teorias. meno a ser observado.
A principal desvantagem é também aquela já apontada ante-
riormente, ou seja, uma reprodução do que e como se aprendeu
Assim, é necessário fazer ao menos um esboço de projeto de
teoria sociológica na universidade. Não se pode utilizar a mesma
pesquisa exploratória, ou seja, não se pretende aqui desenvolver
didática na escola média. Trabalhar com teorias, nesse nível de
uma pesquisa para que no final se tenha uma monografia, mas
ensino, envolve sempre apresentar uma síntese das teorias e a con-
apenas alertar o aluno para a necessidade, antes de tudo, de ele
textualização histórica da sua formulação, enquanto no nível supe-
se conscientizar daquilo que quer pesquisar. E isso serve também
rior isso é desenvolvido mais demoradamente, podendo-se anali-
para as pesquisas bibliográficas: não adianta dizer para os alunos:
sar diretamente os textos dos autores e reconstruir, a partir desses,
aquela contextualização. vão até a biblioteca e pesquisem sobre o desemprego; ou então:
As teorias podem ser abordadas segundo denominações con- para a semana que vem, quero que vocês me tragam tudo o que
vencionais, embora nem sempre essas nomeações sejam muito acharem nas revistas e nos jornais sobre desemprego.
esclarecedoras ou façam justiça aos seus “membros integrantes”: Para se fazer uma pesquisa em materiais impressos, é necessá-
teoria funcionalista, teoria marxista, teoria compreensiva, teoria rio antes saber pesquisar em livros, revistas e jornais. O professor
fenomenológica, teoria estruturalista, teoria dialética, etc. deve explicar, por exemplo, a diferença entre livros de referência,
Colocadas essas questões, pensa-se que o ideal é que esses de literatura, manuais e livros específicos sobre o tema; como en-
três recortes possam ser trabalhados juntos e com a mesma ênfase. sinar a pesquisar num jornal e mostrar a diferença entre um edito-
Entretanto, isso é muito difícil. rial, uma reportagem, um artigo ou uma entrevista. Ou seja, uma
Normalmente se coloca a ênfase em um ou outro recorte – to- pesquisa em materiais impressos requer um mínimo de orientação
mado como centro –, e, a partir dele, os outros recortes assumem o e conhecimento sobre a natureza dessas fontes. Cabe também uma
formato de auxiliares – tomados como referenciais –, no processo orientação sobre o modo de escrever a notação bibliográfica dentro
de explicação de uma realidade ou de um determinado fenômeno das normas padrão.
social. Seja qual for o ponto de partida inicial – conceitos, temas
ou teorias –, é necessário que o professor tenha conhecimentos Para uma pesquisa de campo, isto é, na qual os alunos vão
conceituais e teóricos sólidos, além de saber com muita profi- ci- levantar dados diretamente com a população-alvo, é preciso que
ência os temas que pretende abordar. eles tomem outros cuidados, tais como preparar a pesquisa com
antecipação, o que engloba discutir o tema, definir o objeto, os ins-
A pesquisa sociológica no ensino médio trumentos; fazer um roteiro; aplicar um pré-teste nos instrumentos;
enfim, todas as precauções para que a pesquisa não seja viciada.
Complementando os três recortes, é necessário acrescentar Assim, ao utilizar a história de vida, o questionário, a entrevista, é
mais um elemento a esse processo: a pesquisa. necessário que o aluno conheça cada uma dessas técnicas, seus li-
A pesquisa deve estar presente nos três recortes, ou seja, ela mites e possibilidades, para saber o que está fazendo e como fazer,
pode ser um componente muito importante na relação dos alunos o que vai encontrar em cada uma delas e por que elas são, muitas
com o meio em que vivem e com a ciência que estão aprendendo. vezes, usadas complementarmente. Com isso, desde o ensino mé-
Assim, partindo de conceitos, de temas ou de teorias, a pesquisa dio, o professor deve ensinar que fazer pesquisa requer uma série
pode ser um instrumento importante para o desenvolvimento da de procedimentos prévios, e isso constitui, certamente, um tópico
compreensão e para explicação dos fenômenos sociais. do programa da disciplina.

Didatismo e Conhecimento 122


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Práticas de ensino e recursos didáticos em conta aqueles procedimentos críticos de estranhamento e des-
naturalização, pode guardar riquezas visuais interessantíssimas e
Aula expositiva – Sempre que se pensa em aula, imediatamen- capazes de propiciar discussões voltadas para a questão dos direi-
te se pensa em aula expositiva. Na realidade, essa é a forma mais tos e dos deveres do cidadão, a preservação ambiental, as políticas
conhecida e praticada, o que recentemente tem produzido críticas, públicas, a cultura, enfim, um leque de possibilidades voltadas aos
sobretudo por parte dos que defendem um “ensino ativo” e quase objetivos da Sociologia no ensino médio.
negam a necessidade da aula expositiva, centralizando a aula no
aluno, uma vez que concebem o aprendizado como construção do Leitura e análise de textos – Os textos sociológicos (acadê-
sujeito – o aluno. Pois bem, a aula expositiva tem seu lugar ain- micos ou didáticos), de autores ou de comentadores, devem servir
de suporte para o desenvolvimento de um tema, ou para a exposi-
da, não naquela imagem da aula discursiva como magister dixit,
ção e análise de teorias, ou, ainda, para a explicação de conceitos.
“o mestre disse”, da escolástica. Não há mais a preleção do mes- Eles não “falam” por si sós, dependem de ser contextualizados e
tre, ininterrupta, que ao fi m recebe os comentários, as dúvidas, analisados no conjunto da obra do autor, precisando da mediação
as questões. Mesmo a aula expositiva é um diálogo. Aliás, todo o do professor. Ou seja, os alunos precisam saber quem escreveu,
trabalho – e a esperança – do professor é transformá-la num diá- quando e em vista do que foi escrito o texto, a fi m de que este não
logo, não pretendendo que seja o esclarecimento absoluto do tema seja tomado como verdade nem tenha a função mágica de dizer
do dia, mas o levantamento de alguns pontos e a apresentação de tudo sobre um assunto. A leitura e a interpretação do texto devem
algumas questões que incentivem os alunos a perguntar. Pode ser ser encaminhadas pelo professor, despertando no aluno o hábito
também um discurso aberto, aliás conscientemente aberto, para da leitura, a percepção da historicidade e a vontade de dizer algo
provocar a necessidade de questões. também sobre o autor e o tema abordado, sentindo-se convidado a
A aula não se reduz à exposição por parte do professor. Há participar de uma “comunidade”.
uma variedade fenomênica de que as pessoas pouco se dão conta,
mas que é praticada por boa parte dos professores. Apenas a títu- Cinema, vídeo ou DVD, e TV – Entende-se aqui o ensino vi-
lo de lembrança, seguem-se algumas citações: seminário, estudo sual em dois níveis, que não podem ser separados sob pena de
dirigido de texto, apresentação de vídeos, dramatização, oficina, se perderem os frutos quando tratados parcialmente. Por um lado,
debate, leitura de textos, visita a museus, bibliotecas, centros cul- quando se passa um vídeo ou DVD (filme de ficção ou documentá-
turais, parques, estudos do meio, leitura de jornais e discussão das rio), tem-se a ilustração, o exemplo para a ação, o entretenimento e
até o poder catártico que pode provocar a visão de um fato recons-
notícias, assembleia de classe, série e escola, conselho de escola,
truído pela sua representação – atualização. Por outro, tem-se o
etc. Tudo isso é praticado, mas ou há uma estreiteza conceitual ou
“estudo” dessa ilustração, da ressurreição, do entretenimento e da
uma rotinização das práticas, de tal modo que só se reconhece ou catarse, da representação do fato, isto é, a análise e a interpretação
se pratica como aula, a expositiva. da mensagem e do meio.
Seminários – É certo que algumas dessas variações dependem Trazer a TV ou o cinema para a sala de aula não é apenas
de algum cuidado porque senão também acabam sendo deturpadas buscar um novo recurso metodológico ou tecnologia de ensino
no seu uso e têm resultado muito aquém do esperado. É o caso dos adequados aos nossos dias, mais palatáveis para os alunos – e o
seminários, que muitas vezes são entendidos como uma forma de o público –, que são condicionados mais a ver do que a ouvir, que
professor descansar, pois eles são realizados de modo que o mestre têm a imagem como fonte do conhecimento de quase tudo. Trazer
define vários temas sobre um determinado assunto, divide a turma a TV e o cinema para a sala de aula é submeter esses recursos a
em tantos grupos quantos forem os temas e depois diz: agora vocês procedimentos escolares – estranhamento e desnaturalização.
procurem tudo o que existe sobre este tema e apresentem segundo Não se pode entender uma “educação para a vida”, de que
o calendário predeterminado. Assim, nos dias definidos, os grupos tantos falam, como simples reiteração dos fatos da vida na escola,
de alunos trazem o que encontraram e “apresentam” o que “pesqui- isto é, repetição dos fatos da vida e vagos comentários – clichês
saram” para o conjunto da sala. É preciso dizer que um seminário convencionados – acerca desses. Não é porque se fala de proble-
é algo completamente diferente e requer um trabalho muito grande mas sociais e políticos na escola – corrupção, fome, favela, de-
do professor. Ele deve organizar os grupos, distribuir os temas, semprego, etc. – que se está cumprindo essa obrigação de trazer a
vida para a escola e com isso “preparar para a vida”. Do mesmo
mas orientar cada um deles a respeito de uma bibliografia mínima,
modo, a TV e o cinema na escola têm essa dupla disposição: entrar
analisar o material encontrado pelos grupos, estar presente, inter-
e se chocar com as formas tradicionais do ensino, incorporando
vir durante a apresentação e “fechar” o seminário. Dessa forma, o as imagens ao ensino predominantemente auditivo; mas entrar na
professor auxiliará os alunos na produção e na apresentação do se- escola para sair de outro modo: sair da escola para se chocar com
minário, complementando o que possivelmente tiver sido deixado as formas convencionais da assistência. Assim como os diversos
de lado. Possibilitará aos alunos a oportunidade de pesquisarem e aspectos da vida entram na escola na forma de disciplinas – Socio-
de exporem um determinado tema, desenvolvendo uma autonomia logia, História, Geografia, Física, Língua, etc. – e sofrem aí uma
no processo e na exposição dos resultados da pesquisa. releitura científica, passando a constituir uma visão de mundo,
Excursões, visita a museus, parques ecológicos – É possível uma perspectiva diante da vida, a formação do homem não pode
afirmar que essas práticas são as mais marcantes para a vida do es- ocorrer como se quer – crítica e cidadã – se não concorrer para
tudante. Guardam em si a expectativa de se desviar completamente uma perspectiva crítica e cidadã dos meios de comunicação. Ver
da rotina da sala de aula e de se realizar uma experiência de apren- TV e filmes em sala de aula é rever a forma de vê-los na sala de
dizado que jamais será esquecida. A escola que puder propiciar a estar, de jantar ou nos quartos de casa e nas salas de cinema dos
seus alunos esse tipo de experiência deve fazê-lo. Mas quando o shopping centers. Aqui, um recurso didático favorece a discussão
custo da excursão é impraticável, uma simples caminhada ao redor de um tema, os meios de comunicação de massa, e não pode ser
do quarteirão ou pelas ruas do bairro da escola, se forem levados tratado separadamente.

Didatismo e Conhecimento 123


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
O uso de filmes na escola tem sido realizado segundo a neces- À GUISA DE CONCLUSÃO
sidade de inovação dos recursos didáticos, e o filme como objeto
de análise, e portanto como reflexão sobre a realidade – uma mo- Visa-se com esta proposta a evitar os efeitos negativos que po-
dalidade de pensamento4 – tem se reduzido a pesquisas acadê- deriam advir da apresentação de um programa ou lista de conteú-
micas e à crítica de jornais. Assim, não se visa apenas a reforçar, dos para a disciplina, quer pelo caráter oficial que pudesse assumir
legitimando, a incorporação de uma nova tecnologia de ensino – a e então ser entendido como obrigatório, aceito ou rejeitado por ser
TV, o vídeo e o DVD, o cinema – à sala de aula. Pretendemos levar oficial, quer pela supressão da liberdade e pelo exercício da criati-
a uma reflexão sobre o uso do filme como recurso e observar seus vidade que os professores devem manter e que seriam importantes
efeitos e defeitos; pois aqui, diferentemente do que se diz sobre a para a consolidação da disciplina, tendo em vista a variedade de
TV de modo geral – que o meio é neutro e que tudo depende das experiências de ensino que pode produzir.
intenções de quem o usa –, acredita-se que o próprio meio também Por esses motivos, esta proposta apresenta-se como mais um
“é uma mensagem”, porque os elementos de sua constituição, no passo num processo que, se espera, seja de consolidação definitiva
caso do filme, já determinam a sua recepção. da presença da disciplina no currículo do ensino médio, processo
Fotografia – As imagens fotográficas estão presentes na vida descrito na primeira parte desta exposição, que continua com ela
desde cedo. e segue com os próprios professores. Assim, o que se oferece é
Hoje muito mais com máquinas fotográficas digitais, presen- um ponto de partida, antes de tudo uma avaliação das vantagens
tes em todos os lugares. Mas as fotografias estão também no pas- e desvantagens de um ou outro recorte programático, e sugestões
sado. Quantas vezes, ao se reunir com a família ou os amigos, metodológicas de ensino, além de breve discussão acerca de recur-
surge um álbum de fotografias, onde estão registrados os primei- sos didáticos. Tudo isso deve ser entendido como uma tentativa de
ros momentos e passos na vida, a vida dos pais, parentes e ami- superar propostas rígidas e sempre falhas, mas também propostas
gos, que permitem analisar fenômenos do universo privado. Mas abertas em excesso, que se mostram inócuas por não consegui-
a fotografia pode ser utilizada também para analisar fenômenos rem apresentar sequer uma orientação mínima para os professores,
sociais públicos, como manifestações coletivas, situações políticas muitos em início de carreira e, portanto, sem experiência em que
estribem suas escolhas; outros que, apesar da experiência, querem
e sociais importantes, presentes em revistas, jornais ou coleções
superar a tendência à rotinização ou ao modismo, duas graves do-
fotográficas de órgãos públicos, sindicatos e associações, que po-
enças das práticas escolares.
dem esclarecer muito do que aconteceu no país. As fotografias não
Recorrendo a uma imagem, o que se pensa fazer é dar um
são documentos neutros: sempre expressam o olhar do fotógrafo e
amplo mapa da questão, como se fosse o mapa de uma cidade,
o que ele quis documentar.
para cada um se localizar no processo de ensino da Sociologia.
Assim, funcionam como uma espécie de testemunho de al-
Agora cada um deve procurar construir os roteiros para sua prática
guém que se dispôs a tornar perene momentos da vida privada ou em cada escola. O mapa da cidade permite visualizar as grandes
social de uma pessoa, grupo ou classe, do ponto de vista domésti- linhas – bairros, parques, avenidas, etc. –, mas os trajetos, os ca-
co, local, regional, nacional ou internacional. minhos nos parques, os percursos pela cidade, cada um é que faz e
O uso da fotografia em sala de aula requer alguns cuidados define, conforme necessidades pessoais ou coletivas, do professor,
para sua análise. da escola, dos alunos, da comunidade...
A autoria e a data são sempre importantes. Elas informam ce-
nários, personagens, roupas e acontecimentos que permitem con- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
textualizar a época a que se referem.
Integram um sistema simbólico e os códigos culturais de um CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cida-
determinado momento histórico. É necessário, portanto, estar des, 1995.
atento a esses aspectos para entender as fotografias. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo:
Charges, cartuns e tiras – Encontrados quase diariamente nos Perspectiva, 1968.
jornais e nas revistas, são dispositivos visuais gráficos que vei- BOURDIEU, P. Escritos de educação. Organização de Maria
culam e discutem aspectos da realidade social, apresentando-a de Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis: Vozes, 1998.
forma crítica e com muito humor. Mas as charges, os cartuns e as CHERVEL, André. História das disciplinas escolares:
tiras não são todos iguais. Existem alguns que apenas apresentam reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação (2), p.
uma situação engraçada ou procuram fazer rir. Outros, entretanto, 177-229, 1990.
podem fazer rir, mas também fazem pensar sobre o tema ou a rea- CIAVATTA, Maria; FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Ensino
lidade que apresentam. médio: ciência, cultura e trabalho. Brasília: MEC, Semtec, 2004.
É esse tipo de humor gráfico que interessa ao professor que 338p.
quer introduzir uma determinada questão, seja conceitual ou temá- DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São
tica. Ao projetar em sala de aula uma charge ou tira de humor, é Paulo: CEN, 1975.
bem possível que os alunos se sintam instigados a saber o porquê FERNANDES, Florestan. O ensino de Sociologia na escola
de o professor fazer aquilo. A partir dessa situação, já se cria um secundária brasileira. 1ºDossiê de Ciências Sociais. p. 46-58, São
ambiente para colocar em pauta o que se pretendia discutir na- Paulo: Ceupes-USP/CACS-PUC (mimeo).
quela aula. Aí começa a motivação, e a imagem projetada serve FERNANDES, Florestan. A Sociologia no Brasil. Petrópolis:
de estímulo. Inicia-se, então, uma segunda parte, que é analisar Vozes, 1980.
a imagem, seus elementos, por que provoca o riso, de que modo GIGLIO, Adriano Carneiro. A Sociologia na escola secundá-
esse discurso se aproxima e se distancia do discurso sociológico, ria: uma questão das Ciências Sociais no Brasil – Anos 40 e 50.
como a “deformação” sugerida pela imagem acerca da realidade Dissertação de Mestrado em Sociologia. Rio de Janeiro: Iuperj,
representa uma realidade em si mesma “deformada”... 1999. 88p.

Didatismo e Conhecimento 124


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
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de quatro personagens:Josildeth Gomes Consorte, Aparecida Joly Coleção Particular - Maria das Graças Santos
Gouveia, Juarez Brandão e Oracy Nogueira. Tese de Doutorado
em Educação. São Paulo: FE-USP, 1995. Vol. 1, 289p. / vol. 2, APRESENTAÇÃO
265p. O Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Edu-
cação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), tem o
POPPER, K. A lógica da investigação científica. São Paulo: prazer de apresentar Orientações e Ações para a Educação das
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O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em uma
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o que pensam os professores da rede pública do Distrito Federal. neiro de 2003, instituindo a obrigatoriedade do ensino de História
Dissertação de Mestrado em Sociologia. Brasília: Instituto de Ci- da África e da Cultura Afro-brasileira. No ano de 2004, o Conselho
ências Sociais da Universidade de Brasília (UnB), 2002. 170p. Nacional de Educação aprovou o parecer que propõe as Diretrizes
Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Africanas e Afro-Brasileiras.
SARANDY, Flávio Marcos Silva. A sociologia volta à esco-
Como um desdobramento coerente e adequado dessas ações
la: um estudo dos manuais de Sociologia para o ensino médio no institucionais, trazemos a público este documento, resulta-
Brasil. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Rio de Janeiro: do de grupos de trabalho constituídos por vasta coletividade de
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2004. estudiosos(as), especialmente, educadores/as, contando com cer-
ca de 150 envolvidos(as). O trabalho foi construído em jornadas
SILVA, F. L. História da Filosofi a: centro ou referencial?, In: (Salvador, Belo Horizonte, Florianópolis e Brasília), nas quais se
NIELSEN NETO, H. (Org.) O ensino da Filosofi a no segundo formaram grupos de trabalho, e em reuniões das coordenadoras
grau. São Paulo: SEAF/Sofia, 1986. dos referidos GTs, entre dezembro de 2004 e junho de 2005. O
SILVA et alii.O ensino de Ciências Sociais: mapeamento do processo incorporou, ainda, a redação de várias versões dos textos
debate em periódicos das Ciências Sociais e da Educação de 1940- e passou por uma equipe de revisão e sistematização do conteúdo.
2001, In ANAIS DO XII CONGRESSO NACIONAL DE SOCI- O texto de cada grupo de trabalho se dirige a diversos agentes
ÓLOGOS, Curitiba, 1º a 4 de abril, 2002. Resumo (texto integral do cotidiano escolar, particularmente, os(as) professores/as, tra-
mimeo.). zendo, para cada nível ou modalidade de ensino, um histórico da
educação brasileira e a conjunção com a temática étnico-racial,
WEBER, Max. Ciência como vocação. Brasília/São Paulo: adentrando na abordagem desses temas no campo educacional e
UnB/Cultrix, 1983. concluindo com perspectivas de ação.

Didatismo e Conhecimento 125


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Todo o material aqui apresentado busca cumprir o detalha- Em linhas gerais, além de um direito social, a educação tem
mento de uma política educacional que reconhece a diversidade sido entendida como um processo de desenvolvimento humano.
étnico-racial, em correlação com faixa etária e com situações es- Como expresso nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),
pecíficas de cada nível de ensino. Esperamos que a publicação seja a educação escolar corresponde a um espaço sociocultural e insti-
recebida pelas escolas, por gestores/as e educadores/as, como um tucional responsável pelo trato pedagógico do conhecimento e da
importante subsídio para o tratamento da diversidade na educação. cultura. A princípio, estaríamos, então, trabalhando em solo pacífi-
A educação é um ato permanente, dizia Paulo Freire, e neste co, porque universalista.
sentido o Ministério da Educação, por intermédio da Secad, enten- No entanto, como pondera Nilma Lino Gomes, em certos mo-
de que esta publicação é um instrumento para a construção de uma mentos, “as práticas educativas que se pretendem iguais para todos
sociedade anti-racista, que privilegia o ambiente escolar como um acabam sendo as mais discriminatórias. Essa afirmação pode pare-
espaço fundamental no combate ao racismo e à discriminação ra- cer paradoxal, mas, dependendo do discurso e da prática desenvol-
cial. vida, pode-se incorrer no erro da homogeneização em detrimento
Ricardo Henriques do reconhecimento das diferenças” (GOMES, 2001, p. 86). Ao
Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diver- localizarmos o conceito e o processo da educação no contexto das
sidade coletividades e pessoas negras e da relação dessas com os espaços
sociais, torna-se imperativo o debate da educação a serviço da di-
versidade, tendo como grande desafio a afirmação e a revitalização
da auto-imagem do povo negro.
Como linha mestra da maioria das coletividades negras, o pro-
cesso de educação ocorre a todo o tempo e se aplica nos mais di-
versos espaços. Afora isso, em resposta à experiência histórica do
período escravista, a educação apresentou-se como um caminho
fértil para a reprodução dos valores sociais e/ou civilizatórios das
várias nações africanas raptadas para o Brasil e de seus descen-
dentes.
A partir do século XVI, as populações negras desembarcadas
no Brasil foram distribuídas em grande quantidade nas regiões li-
torâneas, com maior concentração no que atualmente se denomina
regiões Nordeste e Sudeste, cujo crescimento econômico no decor-
rer dos séculos XVII, XVIII e XIX foi assegurado pela expansão
das lavouras de cana-de-açúcar.. Esse processo garantiu aos senho-
res de engenho e latifundiários um grande patrimônio, enquanto,
em precárias condições de vida, coube ao povo negro, em sua di-
versidade, criar estratégias para reverenciar seus ancestrais, prote-
ger seus valores, manter e recriar vínculos com seu lastro histórico,
a “África Genitora” (LUZ, 1997) – assim como reconstruí-la sob o
espectro da resistência.
Até 1888, ano da abolição formal da escravidão no Brasil, por
meio da chamada Lei Áurea, a população negra escravizada vi-
venciou a experiência de ter seus próprios direitos, assinalados em
vários documentos oficiais, sob a tutela dos senhores de terra e do
Estado (CHALHOUB, 1990; MATTOS, 1997). No entanto, a série
de barreiras forjada nesse contexto não impediu as populações ne-
gras de promover a continuidade de suas histórias e suas culturas,
bem como o ensinamento de suas visões de mundo.
Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos,
E o kora encantou o samba terreiros, irmandades, a identidade do povo negro foi assegura-
Coleção Particular - Lydia Garcia da como patrimônio da educação dos afro-brasileiros. Apesar das
precárias condições de sobrevivência que a população negra en-
INTRODUÇÃO frentou e ainda enfrenta, a relação com a ancestralidade e a religio-
Eliane Cavalleiro sidade africanas e com os valores nelas representados, assim como
a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possibi-
As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superfi- litaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das
cial olhar sobre a realidade do país. diversas comunidades afro-brasileiras.
Abdias Nascimento Os 118 anos que nos separam da Lei Áurea não foram sufi-
cientes para resolver uma série de problemas decorrentes das di-
Valores civilizatórios nâmicas discriminatórias forjadas ao longo dos quatro séculos de
Dimensões históricas para uma educação anti-racista regime escravocrata. Ainda hoje, permanece na ordem do dia a luta
pela participação equitativa de negros e negras nos espaços da so-

Didatismo e Conhecimento 126


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
ciedade brasileira e pelo respeito à humanidade dessas mulheres e temática “História e Cultura Afro-brasileira”, assinalam o quadro
homens reprodutores e produtores de cultura. Com essa finalidade, de intenções da parte do Estado brasileiro em eliminar o racismo e
setores da sociedade civil têm atuado intensamente contra o ra- a discriminação racial. A partir da III Conferência Mundial contra
cismo e as discriminações raciais, tomando a linguagem africano- o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Cor-
-brasileira como ancoragem e lapidando as relações sociais emer- relatas de Intolerância, realizada em Durban, África do Sul, de 31
gentes no entrecruzar dessa cultura com a cultura eurocêntrica da de agosto a 7 de setembro de 2001, esse procedimento é mantido,
sociedade (LUZ, 1997). sendo o Estado brasileiro signatário da Declaração e do Plano de
Ação resultantes desta conferência.
Um país de muitas leis e direitos limitados
De 1815 – quando Portugal concorda em restringir o tráfico ao Movimento Negro e Educação
sul do Equador – a 1888 – com a Lei Áurea, a população escravi-
zada recorreu a uma gama de formas de resistência para que seus Além de “muitos estudos dos livros”, a pessoa educada é
limitados direitos fossem reconhecidos e assegurados. O processo capaz de produzir conhecimento e necessariamente, respeita os
de transformação da mão-de-obra dos trabalhadores escravizados idosos, as outras pessoas, o meio ambiente. Empenha-se em for-
em trabalhadores livres foi paulatino, e leis como a do Ventre Livre talecer a comunidade, na medida em que vai adquirindo conheci-
(1871), Saraiva - Cotegipe ou Lei dos Sexagenários (1885), que mentos escolares, acadêmicos, bem como outros necessários para
a rigor deveriam favorecer a população negra, caracterizaram-se a comunidade sentir-se inserida na vida do país (SILVA, 2000, p.
como mais um instrumento de controle em prol da ordem escravo- 78-79).
crata. Assim também, impediu-se a integração da população negra
liberada, mediante várias outras leis que, ao serem incorporadas A educação formal sempre se constituiu em marco no panora-
ao trato cotidiano, acabaram por tornar-se meios de promoção dos ma das reivindicações do Movimento Negro na luta por uma socie-
grupos hegemônicos (SILVA JUNIOR, 1998), em detrimento da dade mais justa e igualitária. Ao longo do século XX, a imprensa foi
população negra que delas deveria beneficiar-se. intensamente utilizada como instrumento de suas campanhas, com
Durante quase todo o século XX, quando se operou a expan- destaque para os periódicos O Baluarte (1903) O Menelik (1915),
são do capitalismo brasileiro, nada de realmente relevante foi feito A Rua (1916), O Alfinete (1918), A Liberdade (1919), A Sentinela
(1920), O Getulino (1923) e o Clarim d’Alvorada (1924). Essas
em termos de uma legislação para a promoção da cidadania plena
empreitadas desembocaram na criação da Frente Negra Brasileira
da população negra. Mesmo após as experiências das I e II Guerras
(FNB), que, segundo Florestan Fernandes, foi o primeiro movi-
Mundiais, apenas em 1951, pela Lei Afonso Arinos, a discrimina-
mento de massa no período pós-abolicionista que teve o objetivo
ção racial caracterizou-se como contravenção penal. Foi também
de inserir o negro na política. (FERNANDES, 1978).
apenas na segunda metade do século XX que, na perspectiva aca-
Não limitando seus esforços a seus próprios membros, setores
dêmica, os trabalhos de Abdias Nascimento, Clóvis Moura, Flo-
da Frente Negra Brasileira (FNB) criaram salas de aula de alfabe-
restan Fernandes, Lélia Gonzalez, Otavio Ianni, Roger Bastide,
tização para os trabalhadores e trabalhadoras negras em diversas
entre outros, sobre as condições de vida da população negra no localidades (GONÇALVES, 2000). Outra experiência importante
Brasil, fizeram contraponto às teorias de Sílvio Romero, Oliveira na luta pela educação foi empreendida pelo Teatro Experimental
Viana, José Veríssimo, Nina Rodrigues e Gilberto Freyre. do Negro (TEN). De acordo com Abdias Nascimento, o TEN:
Numa perspectiva global, a década de 40 foi marcada pela (...) iniciou sua tarefa histórica e revolucionária convocando
criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e para seus quadros pessoas originárias das classes mais sofridas
pela proclamação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos pela discriminação: os favelados, as empregadas domésticas, os
Humanos – da qual o Estado brasileiro foi signatário –, cujo texto operários desqualificados, os frequentadores de terreiros. Com
se propunha como “ideal comum a ser atingido por todos os povos essa riqueza humana, o TEN educou, formou e apresentou os pri-
e todas as nações” e dizia que “todos os povos têm direitos à livre meiros intérpretes dramáticos da raça negra – atores e atrizes –
determinação”. Mesmo assim, permanecia aqui o não constrangi- do teatro brasileiro (NASCIMENTO, 2002).
mento diante do fato da reduzidíssima presença ou da não-presen- Como expresso no jornal Quilombo – vida, problemas e aspi-
ça de pessoas negras em locais de prestígio social. rações do negro, “o TEN manteve, em salas de aulas cedidas pela
Diante da série de reivindicações apresentadas por entidades União Nacional dos Estudantes, várias aulas de alfabetização,
do Movimento Negro Brasileiro, o reconhecimento da Convenção sob a chefia do professor Ironides Rodrigues. Cerca de seiscentos
nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (1958); do Pacto alunos frequentavam esse curso, interrompido, infelizmente, por
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); do Pacto In- falta de local para funcionar (...)” (TEN, 1948, p. 7).
ternacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966);
da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as For- Nessa trajetória, destacam-se ainda as experiências do Movi-
mas de Discriminação Racial (1968); a promulgação da Consti- mento Negro Unificado (MNU), a partir do fim da década de 1970
tuição Federal de 1988, considerando a prática do racismo como – e seus desdobramentos com a política antirracista, nas décadas
crime inafiançável e imprescritível, e as manifestações culturais de 1980 e 1990, com conquistas singulares nos espaços públicos
como um bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, e privados – das frentes abertas pelo Movimento de Mulheres Ne-
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e a publica- gras e do embate político impulsionado pelas Comunidades Ne-
ção da Lei nº 7.716/89, a Lei Caó, que define os crimes resultantes gras Quilombolas. Ou seja, no percurso trilhado pelo Movimento
de discriminação por raça ou cor; no campo educacional, a publi- Negro Brasileiro, a educação sempre foi tratada como instrumento
cação da Lei 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases de grande valia para a promoção das demandas da população negra
da educação para incluir no currículo oficial a obrigatoriedade da e o combate às desigualdades sociais e raciais.

Didatismo e Conhecimento 127


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Educação e Direitos Humanos – Lei nº 10.639/2003 Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) e grupos correlatos criados em
universidades, que buscam a estruturação de uma política nacional
A III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação de educação calcada em práticas antidiscriminatórias e antirracis-
Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância catali- tas.
sou no Brasil um acalorado debate público, envolvendo tanto orga- Várias pesquisas, nesse sentido, têm demonstrado que o ra-
nizações governamentais quanto não-governamentais e expressões cismo em nossa sociedade constitui também ingrediente para
de movimentos sociais interessadas em analisar as dinâmicas das o fracasso escolar de alunos(as) negros(as). A sanção da Lei nº
relações raciais no Brasil, bem como elaborar propostas de supera- 10.639/2003 e da Resolução CNE/CP 1/2004 é um passo inicial
ção dos entraves postos em relevo pela realização da conferência. rumo à reparação humanitária do povo negro brasileiro, pois abre
A entrada do novo milênio contou mais uma vez com o reconhe- caminho para a nação brasileira adotar medidas para corrigir os
cimento e a ratificação da necessidade dos povos do mundo em danos materiais, físicos e psicológicos resultantes do racismo e de
debate e elaborar estratégias de enfrentamento de um problema formas conexas de discriminação.
equacionado no transcorrer da Modernidade. Ademais, a conferên- Diante da publicação da Lei nº 10.639/2003, o Conselho
cia marca o reconhecimento, por parte da ONU, da escravização Nacional de Educação aprovou o Parecer CNE/CP 3/2004, que
de seres humanos negros e suas consequências como crime contra institui as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações
a humanidade, o que fortalece a luta desses povos por reparação Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras
humanitária. e Africanas a serem executadas pelos estabelecimentos de ensino
No Documento Oficial Brasileiro para a III Conferência, é re- de diferentes níveis e modalidades, cabendo aos sistemas de ensi-
conhecida a responsabilidade histórica do Estado brasileiro “pelo no, no âmbito de sua jurisdição, orientar e promover a formação
escravismo e pela marginalização econômica, social e política dos de professores e professoras e supervisionar o cumprimento das
descendentes de africanos”, uma vez que: Diretrizes.
O racismo e as práticas discriminatórias disseminadas no co-
tidiano brasileiro não representam simplesmente uma herança do A diversidade étnico-racial na educação
passado. O racismo vem sendo recriado e realimentado ao longo
de toda a nossa história. Seria impraticável desvincular as de-
A sociedade civil segue desenvolvendo importante papel na
sigualdades observadas atualmente dos quase quatro séculos de
luta contra o racismo e seus derivados. Compreender os mecanis-
escravismo que a geração atual herdou (BRASIL, 2001).
mos de resistência da população negra ao longo da história exige
também estudar a formação dos quilombos rurais e urbanos e das
Admitidas essas responsabilidades históricas, o horizonte que
irmandades negras, entre tantas outras formas de organizações co-
se abriu foi o da construção e da implementação do plano de ação
letivas negras. A população negra que para cá foi trazida tinha uma
do Estado brasileiro para operacionalizar as resoluções de Durban,
em especial as voltadas para a educação, quais sejam: história da vida passada no continente africano, a qual somada às
- Igual acesso à educação para todos e todas na lei e na prática. marcas impressas pelo processo de transmutação de continente
- Adoção e implementação de leis que proíbam a discrimina- serviu de base para a criação de estratégias de sobrevivência.
ção baseada em raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica A fuga dos/das trabalhadores/as escravizados(as), a compra
em todos os níveis de educação, tanto formal quanto informal. e a conquista de territórios para a formação de quilombos mate-
- Medidas necessárias para eliminar os obstáculos que limitam rializam as formas mais reconhecidas de luta da população negra
o acesso de crianças à educação. escravizada. Nesses espaços, as populações negras abrigaram-se e
- Recursos para eliminar, onde existam, desigualdades nos construíram novas maneiras de organização social, bastante distin-
rendimentos educacionais para jovens e crianças. tas da organização nas lavouras.
- Apoio aos esforços que assegurem ambiente escolar seguro, A religião, aspecto fundamental da cultura humana, é emble-
livre da violência e de assédio motivados por racismo, discrimina- mática no caso dos(as) negros(as) africanos(as) em terras brasi-
ção racial, xenofobia e intolerância correlata. leiras. Por meio desse ímpeto criativo de sobrevivência, pode-se
- Estabelecimento de programas de assistência financeira de- dizer que a população negra promoveu um processo de africani-
senhados para capacitar todos os estudantes, independentemente zação de religiões cristãs (LUZ, 2000) e de recriação das religiões
de raça, cor, descendência, origem étnica ou nacional a frequenta- de matriz africana.
rem instituições educacionais de ensino superior. Cabe, portanto, ligar essas experiências ao cotidiano esco-
Coerentemente com suas reivindicações e propostas históri- lar. Torná-las reconhecidas por todos os atores envolvidos com
cas, as fortes campanhas empreendidas pelo Movimento Negro o processo de educação no Brasil, em especial professores/as e
tem possibilitado ao Estado brasileiro formular projetos no sentido alunos(as). De outro modo, trabalhar para que as escolas brasilei-
de promover políticas e programas para população afro-brasileira ras se tornem um espaço público em que haja igualdade de trata-
e valorizar a história e a cultura do povo negro. Entre os resulta- mento e oportunidades.
dos, a Lei nº 9.394/96 foi alterada por meio da inserção dos artigos Diversos estudos comprovam que, no ambiente escolar, tanto
26-A e 79-B, referidos na Lei nº 10.639/2003, que torna obrigató- em escolas públicas quanto em particulares, a temática racial ten-
rio o ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas no de a aparecer como um elemento para a inferiorização daquele/a
currículo oficial da Educação Básica e inclui no calendário escolar aluno/a identificado/a como negro/a. Codinomes pejorativos, algu-
o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. mas vezes escamoteados de carinhosos ou jocosos, que identificam
Tendo em vista os desdobramentos na educação brasileira, alunos(as) negros(as), sinalizam que, também na vida escolar, as
observam-se os esforços de várias frentes do Movimento Negro, crianças negras estão ainda sob o jugo de práticas racistas e dis-
em especial os de Mulheres Negras, e o empenho dos Núcleos de criminatórias.

Didatismo e Conhecimento 128


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
O subdimensionamento dos efeitos das desigualdades étnico- tendo a educação como instrumento decisivo para a promoção da
-raciais embota o fomento de ações de combate ao racismo na cidadania e do apoio às populações que vivem em situações de
sociedade brasileira, visto que difunde a explicação da existência vulnerabilidade social. Ademais, os trabalhos desenvolvidos du-
de igualdade de condições sociais para todas as pessoas. Sistema- rante as jornadas tiveram como horizonte a construção do Plano de
ticamente, a sociedade brasileira tende a fazer, ainda hoje, vistas Ação para a Inserção das Diretrizes Curriculares Nacionais para
grossas aos muitos casos que tomam o espaço da mídia nacional, a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de His-
mostrando o quanto ainda é preciso lutar para que todos e todas tória e Cultura Afro-Brasileira e Africana, tomando como base os
recebam uma educação igualitária, que possibilite desenvolvimen- seguintes princípios:
to intelectual e emocional, independentemente do pertencimento - Socialização e visibilidade da cultura negro-africana.
étnico-racial do/a aluno/a. Com isso, os(as) profissionais da edu- - Formação de professores com vistas à sensibilização e à
cação permanecem na não-percepção do entrave promovido por construção de estratégias para melhor equacionar questões ligadas
eles/as, ao não compreenderem em quais momentos suas atitudes ao combate às discriminações racial e de gênero e à homofobia.
diárias acabam por cometer práticas favorecedoras de apenas parte - Construção de material didático-pedagógico que contemple
de seus grupos de alunos e alunas. a diversidade étnico-racial na escola.
Um olhar atento para a escola capta situações que configuram - Valorização dos diversos saberes.
de modo expressivo atitudes racistas. Nesse espectro, de forma ob- - Valorização das identidades presentes nas escolas, sem dei-
jetiva ou subjetiva, a educação apresenta preocupações que vão do xar de lado esse esforço nos momentos de festas e comemorações.
material didático-pedagógico à formação de professores.
O silêncio da escola sobre as dinâmicas das relações raciais O Plano de Ação: Ensino de História e Cultura Africana e
tem permitido que seja transmitida aos(as) alunos(as) uma preten- Afro-brasileira
sa superioridade branca, sem que haja questionamento desse pro-
blema por parte dos(as) profissionais da educação e envolvendo o Os textos a seguir, por nível/modalidade de ensino, giram em
cotidiano escolar em práticas prejudiciais ao grupo negro. Silen- torno da construção de Orientações e Ações para o Ensino de His-
ciar-se diante do problema não apaga magicamente as diferenças, e tória e Cultura Africana e Afro-brasileira, buscando orientar os (as)
ao contrário, permite que cada um construa, a seu modo, um enten- profissionais que trabalham com a educação, na implementação
dimento muitas vezes estereotipado do outro que lhe é diferente. da Lei nº 10.639/2003 em todas as escolas deste país.
Esse entendimento acaba sendo pautado pelas vivências sociais de O texto do GT Educação Infantil, coordenado por Patrícia
modo acrítico, conformando a divisão e a hierarquização raciais. Maria de Souza Santana, parte do período etário e das especifici-
É imprescindível, portanto, reconhecer esse problema e com- dades da educação infantil, para questionar a imagem das educa-
batê-lo no espaço escolar. É necessária a promoção do respeito doras que trabalham nas instituições infantis. Em seguida constrói
mútuo, o respeito ao outro, o reconhecimento das diferenças, a as perspectivas históricas da educação infantil, dentro das relações
possibilidade de se falar sobre as diferenças sem medo, receio ou étnico-raciais, chegando aos dias atuais como uma primeira etapa
preconceito. Nesse ponto, deparamo-nos com a obrigação do Mi- da Educação Básica, sendo dever do Estado, direito da criança e
nistério da Educação de implementar medidas que visem o comba- opção da família. Nesse contexto o cuidar e o educar constituem as
te ao racismo e à estruturação de projeto pedagógico que valorize relações afetivas e passam necessariamente pelas afinidades com
o pertencimento racial dos(as) alunos(as) negros(as). as família e por todos os grupos em que a criança está inserida.
Diante do panorama das ferramentas de que já dispomos, a O texto do GT Ensino Fundamental, coordenado por Rosa
Constituição Federal define como competência da União, dos Es- Margarida de Carvalho Rocha e Azoilda Loretto da Trindade, traz
tados, do Distrito Federal e dos Municípios a promoção do acesso considerações comuns aos dois ciclos, chamando a atenção para
à cultura, à educação e à ciência. A Educação Básica, de compe- a escola e alguns contextos relativos a uma educação anti-racista
tência do Estado, é compreendida pelos níveis infantil, fundamen- neste nível do ensino, a exemplo do currículo, da interdisciplina-
tal e médio, sendo o Ensino Fundamental de caráter obrigatório é ridade, das relações entre humanidade e alteridade, cultura negra
gratuito. Recentemente, estruturam-se propostas de modificações e corporeidade e entre memória, história e saber. Logo adiante,
para os livros didáticos e revisões nos Parâmetros Curriculares Na- o texto se volta para as diferenciações entre os(as) estudantes e,
cionais. por fim, adentra em ações para o Ensino Fundamental, envolvendo
Contudo, é preciso dar continuidade a políticas públicas am- uma série de recomendações para a abordagem da temática étnico-
plas e consolidadas que trabalhem detalhadamente no combate a -racial no cotidiano escolar, desde a seleção de temas até a preocu-
esse processo de exclusão social. pação com recursos didáticos.
Vale lembrar que o processo de formação de professores/as O Grupo de Trabalho do Ensino Médio, coordenado por Ana
deve estar direcionado para todos(as) os(as) profissionais de edu- Lúcia Silva Souza, formulou um texto que discute as questões
cação, garantindo-se que aqueles/as vinculados(as) às ciências étnico-raciais no Ensino Médio e trata da juventude como sujeito
exatas e da natureza não se afastem de tal processo. ativo e criador do seu universo plural. Discutindo as diversida-
Ao criar o Grupo de Trabalho para a discussão e a inserção des que envolvem essa etapa da vida escolar, o texto propõe uma
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela- linguagem em que os códigos das relações culturais, sociais e po-
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana líticas relativos à escola e à juventude estejam construídos numa
e Afro-brasileira, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabe- expectativa de relação entre presente e futuro, apresenta a escola
tização e Diversidade (Secad), por intermédio da Coordenação- de Ensino Médio como ambiente de construção e desenvolvimen-
-Geral de Diversidade e Inclusão Educacional (CGDIE), reafirma to das identidades de negros(as) e não negros(as). Posteriormente,
seu objetivo de valorizar e assegurar a diversidade étnico-racial, reafirma o cotidiano escolar como um espaço de fazer coletivo no

Didatismo e Conhecimento 129


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
qual professores/as, estudantes e demais profissionais da educação Referências
se reconheçam como sujeitos corresponsáveis pelo processo de
construção do conhecimento e do currículo, que deve ser concebi- BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. D.O.U de
do para atender à diversidade e à pluralidade das culturas africana 10/01/2003
e afro-brasileira.
O texto do GT Educação de Jovens e Adultos (EJA), coorde- BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curri-
nado por Rosane de Almeida Pires, foi dividido em três partes. Pri- culares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
meiramente, tece um histórico da trajetória da educação de jovens e para p Ensino de história e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
e adultos nos sistemas de ensino formais e não formais, tratando Parecer CNE/CP 3/2004, de 10 de março de 2004.
dos avanços e desafios da EJA e aproximando a questão étnico-
-racial das ações do Movimento Negro no Projeto Político Peda- ______. Resolução CNE/CP 1/2004. Seção 1, p.11. D.O. U.
gógico e Currículo. Em seguida, entrelaçando a EJA numa pers- de 22 de junho de 2004, BRASIL, Relatório do Comitê Nacionais
pectiva de educação antirracista e democrática, o texto enfatiza as para a Preparação da Participação Brasileira na III Conferência
linguagens dos(as) jovens e adultos(as) com o ensino de história Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação
e cultura africanas e afro-brasileiras, estabelecendo os vínculos no Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Brasília, 2001.
que se refere aos lugares de constituição de identidade da popula-
ção negra. Por fim, enuncia várias possibilidades de colocar o/a jo- CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar.
vem e o/a adulto/a no centro de todos os movimentos da educação São Paulo: Contexto, 2000.
para que, de fato, ele/a se torne sujeito de seu processo educativo.
No que se refere às Licenciaturas, o texto do GT coordenado CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das
por Rosana Batista Monteiro, inicialmente nos situa no contex- últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia
to da implementação da temática étnico-racial entre os conteúdos das Letras, 1997.
e as metodologias nesse campo. Temos em seguida, um quadro
das pesquisas e ações acerca da questão em foco e sua relação FERNANDES, Florestan. A integração do negro na socieda-
com a formação de profissionais da educação. Por último, aborda- de de classes: no limiar de uma nova era. Vol. 1. São Paulo: Ática,
-se a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a 1978.
Educação das Relações Étnico-raciais nas Instituições de Ensino
Superior, no que diz respeito aos projetos pedagógicos, à matriz GOMES, Nilma Lino. Educação cidadã, etnia e raça: o trato
curricular e às disciplinas. pedagógico da diversidade. In CAVALLEIRO, Eliane (org.). Ra-
O texto que resultou do GT Educação Quilombola, com a cismo e antir-racismo na educação: repensando nossa escola. São
coordenação de Georgina Helena Lima Nunes, dirige-se tanto às Paulo: Selo Negro, 2000.
escolas situadas em áreas de remanescentes de quilombos, quanto
àquelas que recebem quilombolas. Passa de uma introdução histó- GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. Negros e Educação no
rica ao tema e ao termo quilombo, para o vínculo entre educação Brasil. In: LOPES, Elaine M. Teixeira (Org.). 500 anos de Educa-
quilombola e relações étnico-raciais, chegando a descortinar um ção no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
campo de ações.
Após os textos dos GTs, essa publicação traz um glossário de LUZ, Marco Aurélio de Oliveira. Agadá: dinâmica da civili-
termos e expressões. Trata-se de notas indicativas e explicativas a zação africano-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2ª. Ed. 2000.
temas e subtemas que surgem na abordagem da temática étnico-
-racial na educação. LUZ, Narcimária. O Patrimônio Civilizatório africano no Bra-
Após a sistematização e revisão dos Conteúdos, especialistas sil. In: SANTOS, Joel Rufino (org). Negro Brasileiro Negro. Re-
de cada nível de ensino, bem como professores e professoras que vista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº. 25, 1997,
estão atuando em sala de aula elaboraram pareceres e sugestões, p. 199-209.
colaborando para que os textos apresentassem uma linguagem
acessível a todos os(as) educadores/as. MATTOS, Hebe Maria. Laços de família e direitos no final da
Por fim, publicamos o Parecer do Conselho Nacional de Edu- escravidão. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História
cação, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu- da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das
cação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Letras. Vol. 02. 1997.
Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), a Resolução
CNE/CP 1/2004 e a Lei 10.639/2003, que constituem os principais MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Bra-
conteúdos norteadores de todo este trabalho. sil: Identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte:
Certamente este trabalho é um primeiro passo para as Orien- Autêntica, 2004.
tações e
Ações para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro- NASCIMENTO, Abdias. O Brasil na mira do Pan-africanis-
-brasileira. Esperamos que ele seja um impulsionador de refle- mo. Salvador: EDUFBA: CEAU: UFBA, 2002.
xões e ações no cotidiano escolar, indo além do silêncio acerca da
questão étnico-racial e das situações que eventualmente ocorrem, OLIVEIRA, Iolanda. Desigualdades raciais: construções da
e possibilitando um cenário de reelaboração das relações que se infância e da juventude. Niterói: Intertexto, 1999.
estabelecem dentro e fora do campo educacional.

Didatismo e Conhecimento 130


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
QUINTÃO, Antônia Aparecida. Lá vem o meu parente: as ir-
mandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco
(Século XVIII). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2002ª.

________. Irmandades negras: outro espaço de luta e resis-


tência (São Paulo: 1870/1890). São Paulo: Annablume: Fapesp,
2002b.

SILVA Jr., Hédio. Crônica da culpa anunciada. In: OLIVEI-


RA, Dijaci Davi de, GERARDES, Elen Cristina, LIMA, Ricar-
do Barbosa de & SANTOS, Sales Augusto dos. (Orgs.). A cor do
medo: homicídios e relações raciais no Brasil. Brasília: Editora da
UnB; Goiânia: Editora da UFG, 1998.

SILVA, Jônatas Conceição da. Vozes Quilombolas: uma poéti-


ca brasileira. Salvador: EDUFBA/ Ilê Aiyê, 2004.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Dimensões e sobrevi-


vências de pensamentos em educação em territórios africanos e
afro-brasileiros. In: Negros, Território e Educação – NEN - Nú-
cleo de Estudos Negros, Florianópolis, 2000, p. 78.

SOUZA, Irene Sales de. Os educadores e as relações interét- Maternidade (Oxum)


nicas: pais e mestres. São Paulo: EdUnesp, 2001. Acervo do artista
TEN, Teatro Experimental do Negro. Jornal Quilombo. Ano 1 EDUCAÇÃO INFANTIL
nº. 1, Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1948, p. 7. Coordenação: Patrícia Maria de Souza Santana

Introdução
ANOTAÇÕES
Todas as meninas e todos os meninos nascem livres e têm a
mesma dignidade e os mesmos direitos.
Nenhuma vida vale mais do que a outra diante do fato de
que todas as crianças e todos os adolescentes do planeta são
———————————————————————— iguais.

———————————————————————— Com a fase da vida apresenta suas especificidades, requerendo


de quem lida com o ser humano uma atenção especial às necessi-
———————————————————————— dades que caracterizam cada momento. No período em que consi-
———————————————————————— deramos a educação infantil, isto é, em que a criança tem de zero a
seis anos, é fundamental ficar atento ao tipo de afeto que recebe e
———————————————————————— aos modos como ela significa as relações estabelecidas com e por
ela. Desde o nascimento, as condições materiais e afetivas de cui-
————————————————————————
dados são marcantes para o desenvolvimento saudável da criança.
———————————————————————— É com o outro, pelos gestos, pelas palavras, pelos toques e
olhares que a criança construirá sua identidade e será capaz de rea-
———————————————————————— presentar o mundo atribuindo significados a tudo que a cerca. Seus
———————————————————————— conceitos e valores sobre a vida, o belo, o bom, o mal, o feio, entre
outras coisas, começam a se constituir nesse período.
———————————————————————— Faz-se necessário questionar a imagem que a educadora traz
de criança e de infância, pois tais imagens traduzem a relação
———————————————————————— adulto – criança, e se refletem na organização das atividades nas
———————————————————————— instituições e especialmente, nas variadas formas de avaliação uti-
lizadas. Promover a reflexão sobre a imagem de criança que dá
———————————————————————— suporte às práticas dos(as) educadores/as possibilita a compreen-
são das singularidades e potencialidades de cada criança, podendo
————————————————————————
contribuir para promover condições de igualdade.

Didatismo e Conhecimento 131


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Tal igualdade pressupõe o reconhecimento das diferenças que A roda foi utilizada pelas mulheres escravizadas como meio
sabemos existir. Para tanto é necessário ter informação sobre os di- de livrar suas crianças do cativeiro ou então pelos senhores que
reitos que necessitam ser assegurados a todas as crianças. Isso exi- pretendiam se isentar das responsabilidades e encargos da criação
girá um olhar mais atento e maior sensibilidade, pois as diferenças dos filhos(as) de suas escravas. De acordo com Mott:
se manifestam no cotidiano e carecem de “leitura” (decodificação
dessas manifestações) pela educadora, seja na relação criança – A roda recebia crianças de qualquer cor e preservava o ano-
criança, adulto – criança, criança – família, criança – grupo social. nimato dos pais. A partir do alvará de 31 de janeiro de 1775, as
A educadora, por sua vez, é um ser humano possuidor de crianças escravas, colocadas na roda, eram consideradas livres.
singularidades e está imersa em determinada cultura que se apre- Este alvará, no entanto foi letra morta e as crianças escravas
senta na relação com o outro (igual ou diferente). Manifestar-se eram devolvidas aos seus donos, quando solicitadas, mediante o
contra as formas de discriminação é uma tarefa da educadora, que pagamento das despesas feitas com a criação. Em 1823, saiu um
não deve se omitir diante das violações de direitos das crianças. decreto que considerava as crianças da roda como órfãs e assim
Mobilizar-se para o cumprimento desses direitos é outra ação ne- filhos dos escravos seriam criados como cidadãos gozando dos
cessária. Essas atitudes são primordiais às educadoras que buscam privilégios dos homens livres (1979:57).
realizar a tarefa de ensinar com responsabilidade e compromisso
com suas crianças. Com relação às crianças negras no Brasil escravista, obser-
É importante destacar que a garantia legal dos direitos não vamos crianças pequenas antecipando-se às exigências e respon-
promove sua concretização. São as atitudes efetivas e intencionais sabilidades dos adultos, encerrando-se a fase de criança aos cinco
que irão demonstrar o compromisso com tais direitos. Reconhecer ou seis anos, inserindo-se no mundo adulto por meio do trabalho
as diferenças é um passo fundamental para a promoção da igual- escravo. Nos momentos finais da escravidão, com a Lei do Ventre
dade, sem a qual a diferença poderá vir a se transformar em desi- Livre 2.040/1871, as crianças nascidas após 28 de setembro de
gualdade. 1871 seriam consideradas livres, no entanto deveriam permane-
cer até os oito anos sob a posse dos senhores. Ao completar oito
1. PROCESSOS DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRA- anos poderiam ficar sob a guarda do senhor até os 21 anos, ou po-
SIL deriam ser entregues ao Estado e encaminhadas para instituições
como asilos agrícolas e orfanatos (FONSECA, 2001). Vemos que
A Educação Infantil no Brasil caracteriza-se como primeira a situação das crianças negras no período da escravidão era muito
etapa da Educação Básica, dever do Estado, direito da criança e difícil, e na maioria das vezes não tinham acesso à instrução. A
opção da família, não sendo, portanto, obrigatória. educação estava restrita ao aprendizado das tarefas demandadas
Vários fatores contribuíram para isso: em primeiro lugar pelos senhores. Desde que nasciam eram carregadas pelas mães
observa-se um avanço do conhecimento científico sobre o desen- para o trabalho. A despreocupação com a criança escravizada pode
volvimento infantil aliado ao reconhecimento da sociedade acerca ser demonstrada pelos altos índices de mortalidade infantil nes-
do direito da criança à educação nos primeiros anos de vida. Em se segmento. Existe uma naturalização da falta de investimento e
segundo lugar, a participação crescente da mulher na força de tra- atenção nesse período.
balho, notadamente por meio do movimento sindical e de mulhe- No contexto mundial, a partir dos séculos XVII e XVIII, com
res, passou a exigir que instituições de Educação Infantil fossem o surgimento dos refúgios, asilos, abrigos de crianças e filhas de
ampliadas para dar conta dessa nova condição social feminina. Em mães operárias, podemos demarcar o contexto em que a infância
terceiro lugar, e como consequência dos itens anteriores, o proces- no mundo passa a ser considerada como uma etapa da vida que
so de democratização da sociedade e da educação no Brasil tor- merece atenção. No início do século XX, as instituições que aten-
nou possíveis o acesso e a permanência de considerável número diam à criança pequena o faziam como medida de saúde pública,
de crianças de zero a seis anos de idade em diversas instituições como resposta aos altos índices de mortalidade infantil, ficando
educativas, das públicas às privadas, sendo contempladas nessas por várias décadas pulverizadas nas áreas da saúde, assistência so-
últimas as instituições filantrópico-assistenciais, comunitárias e cial e educação as verbas destinadas à criança pequena.
totalmente privadas. O debate à época evocava a necessidade de educar, moralizar,
Longe estamos de garantir cobertura de atendimento em Edu- domesticar e integrar os filhos de trabalhadores. Tais ideias tradu-
cação Infantil para a grande maioria da população brasileira. De ziam uma concepção de infância como um período de ingenuida-
acordo com dados do Unicef, a população indígena e negra são os de, inocência, da facilidade de modelação do caráter. As famílias
segmentos mais excluídos do acesso à educação na faixa etária dos eram “ensinadas” a adquirir posturas adequadas com relação às
zero aos seis anos. crianças, calcadas em valores rígidos embasados no cristianismo
Creches e pré-escolas buscam integrar educação e cuidados, e nos valores morais burgueses. Também a escola e as institui-
necessários a um período etário vulnerável como o da criança pe- ções de caridade eram consideradas como um espaço de controle
quena, traduzindo dessa forma a perspectiva de que tais crianças social, procurando-se evitar a vadiagem e a delinquência infantil,
são portadoras de direitos desde que nascem. com a preocupação voltada para sua integridade física e moral.
É importante considerar que os direitos a que nos referimos Esta concepção baseada apenas no cuidado está vinculada à práti-
são resultantes de longo processo histórico e social de mais de ca assistencialista que marcou as creches neste período e ainda se
quatro séculos. No período colonial, a educação das crianças se encontra presente em muitas instituições de Educação Infantil. Tal
dava principalmente em âmbito privado nas casas e em institui- visão compromete a perspectiva dos direitos das crianças, pois ao
ções religiosas. As crianças abandonadas eram encaminhadas para se restringir a aspectos ligados aos cuidados, ficam desviadas as
a roda dos expostos e acolhidas por instituições de caridade. Essas dimensões da socialização, da aprendizagem, da vivência cultural,
crianças eram, em sua maioria, pobres, bastardas. privilegiadamente fundamentada na diversidade.

Didatismo e Conhecimento 132


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Também era pensamento corrente que as crianças deveriam Na perspectiva de que o Estado garanta esses direitos, a Cons-
ficar com suas mães. Nessa perspectiva, as instituições que “guar- tituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) traz pela primeira vez
davam” as crianças eram encaradas como um mal necessário: na a expressão educação infantil para designar o atendimento em
ausência da mãe (trabalhadora, inexistente, incompetente, moral e/ creche e pré-escola, e traz a garantia constitucional do dever do
ou economicamente), as creches cumpriam o papel de cuidar das Estado com esse atendimento etário, não apenas como política de
crianças, desconsiderando as variadas formas de as famílias cria- favorecimento ou benefício das mães, mas antes um direito das
rem seus filhos. As preocupações de caráter pedagógico e cogniti- crianças (artigo 208, inciso IV). A lei reconhece o caráter educati-
vo estavam distantes dos objetivos dessas instituições que abriga- vo das creches, antes pertencentes à área da assistência social pas-
vam crianças pequenas. Prevalecia igualmente a quase exclusiva sando a se incorporar à área da educação. No início da década de
preocupação com os cuidados: higiene, alimentação, sono, com 90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), con-
rotinas rígidas. siderada uma das leis mais avançadas do mundo no que se refere
No período correspondente às décadas de 1940 a 1960 do sé- à proteção das crianças, aponta direitos que devem ser garantidos
culo XX foram criados programas compensatórios, de prevenção e respeitados por toda a sociedade, reforçando os preceitos com
relação à educação infantil assinalados na Constituição Federal
à saúde e de garantia ao trabalho feminino, assim como órgãos
(BRASIL, 1988).
governamentais de implementação de políticas para essa área.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL,
O período de 1970 a 1990 do mesmo século representou
1996) amplia ainda mais a esfera dos direitos, ao assumir que a
avanços na perspectiva dos direitos das crianças. É na década de
Educação Infantil oferecida em creches e pré-escolas é parte inte-
1970, em meio à efervescência dos movimentos sociais e o cla- grante da educação básica, compreendida como a primeira etapa.
mor pela liberdade e garantia de direitos, que manifestações por
esses direitos tomam força. Não sem razão, diversos movimentos 1.1 A Educação Infantil e a educação para as relações ét-
de mulheres surgem neste período, em uma conjuntura na qual a nicos-raciais
dinâmica dos movimentos sociais trazem à cena novos persona-
gens (SADER, 1988) reivindicando não só mudanças nas relações Em que pesem os esforços para que conquistas fossem ga-
de trabalho, mas melhores condições de vida (saneamento básico, rantidas no âmbito legal, a realidade não se mostra tão promissora
transporte coletivo, habitação, educação), entre eles, os movimen- para as crianças brasileiras, em especial para as crianças negras.
tos populares de luta por creches, exigindo do Estado a criação De acordo com dados do Unicef, a média nacional de 38,6% fora
de redes públicas de Educação Infantil. Destaca-se nesse período, da escola esconde iniqüidades: entre as crianças brancas, o dado é
para além do movimento de mulheres por creches e pré-escolas, o mais favorável (36,1%); entre as crianças negras, porém, 41% não
movimento negro criticando o modelo de escola que desconside- frequentam a pré-escola. Essa disparidade demonstra a desigual-
rava o patrimônio histórico cultural da população negra, além de dade entre brancos e negros desde o início da escolaridade.
denunciar o racismo existente nas escolas, o que contribuía para a Independentemente do grupo social e/ou étnico-racial a que
evasão e o fracasso escolar das crianças negras (MELO & COE- atendem, é importante que as instituições de Educação Infantil re-
LHO, 1988). conheçam o seu papel e função social de atender às necessidades
Os governos municipais em muitos casos, em regime de co- das crianças constituindo-se em espaço de socialização, de convi-
laboração com outras esferas governamentais, implementam pro- vência entre iguais e diferentes e suas formas de pertencimento,
gramas pré-escolares, criando redes próprias de instituições para como espaços de cuidar e educar, que permita às crianças explorar
esse fim. Em contrapartida, em diversas regiões do país, diante da o mundo, novas vivências e experiências, ter acesso a diversos ma-
pouca receptividade dos governantes, surgem novas modalidades teriais como livros, brinquedos, jogos, assim como momentos para
de Educação Infantil organizadas por moradores, clubes de mães, o lúdico, permitindo uma inserção e uma interação com o mundo
associações de bairros e/ou grupos ligados às instituições religio- e com as pessoas presentes nessa socialização de forma ampla e
sas. Nesse mesmo período, os movimentos populares que deman- formadora.
A ampliação da oferta de vagas na Educação Infantil em todas
dam escola pública despontam em todo o país e as suas principais
as regiões do país traz ainda a urgência da reflexão em torno da
reivindicações dizem respeito à ampliação de vagas nas escolas e
diversidade do público atendido nessas instituições. Considerando
à melhoria da qualidade educacional.
a diversidade étnico-racial, sabemos que existe uma concentração
Na segunda metade da década de 1980, com as movimenta-
maior de crianças negras em instituições como creches comuni-
ções em torno do debate pela Assembleia Nacional Constituinte, tárias e filantrópicas. Portanto, não podemos desconsiderar que
os movimentos sociais alcançaram maior êxito. A partir desse pe- a desigualdade racial no sistema educacional apontada em várias
ríodo, em decorrência de longo processo de lutas e conquistas, a pesquisas está presente na Educação Infantil, considerando-se o
infância é colocada na agenda pública, entendendo a criança como acesso a essas ofertas de atendimentos, a qualidade do trabalho
sujeito de direitos, reforçando a concepção da criança cidadã, da realizado, as condições de trabalho dos(as) profissionais que ali
infância como tempo de vivência plena de direitos. Falar em direi- atuam e principalmente a sua formação. Rosemberg nos chama
tos supõe considerar condições básicas de exercícios de uma edu- a atenção para as diferentes formas de atendimento na Educação
cação de qualidade para todos em nível dos sistemas educativos, Infantil, que tem desdobramentos no perfil da clientela atendida e
como das instituições de Educação Infantil, em diálogo e parceria nas trajetórias educacionais de crianças brancas e negras.
permanente com outras áreas de apoio: saúde, educação, bem-estar (...) a expansão caótica e a baixo custo da Educação Infantil no
social, Ministério Público, Conselhos Tutelares e de Defesa dos Brasil durante os anos 80 cristalizou a tendência histórica da con-
Direitos da Criança. vivência de trajetórias duplas para o atendimento de crianças pe-

Didatismo e Conhecimento 133


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
quenas: uma mais frequentemente denominada creche, geralmente criança, tais como alimentação, banho, troca de fralda e outros em
vinculada às instâncias da assistência, localizadas nas regiões mais relação à higiene, proteção, consolo. Esses cuidados não podem
pobres da cidade, oferecendo um atendimento de pior qualidade, ser compreendidos como algo dissociado do ato de educar, pois to-
sendo frequentada principalmente por crianças pobres e negras; a das essas atividades e relações fazem parte do processo educativo
outra, mais frequentemente denominada pré-escola ou escolas de e são traduzidas em contatos e interações presentes no ambiente
Educação Infantil, vinculada às instâncias da educação e que, mes- educativo.
mo apresentando por vezes padrão de qualidade insatisfatório, por Em todas as dimensões do cuidar e educar é necessário con-
sua localização geográfica tende acolher uma população infantil siderar a singularidade de cada criança com suas necessidades,
mais heterogênea no plano econômico e racial (1991:28). desejos, queixas, bem como as dimensões culturais, familiares e
As desigualdades nas trajetórias educacionais das crianças são sociais. O ato de cuidar e educar faz com que ocorra uma estrei-
demonstradas não só pelo tipo de atendimento, como também na ta relação entre as crianças e os adultos. As crianças precisam de
forma como são avaliadas nessas instituições. A LDB 9.394/96, no educadores afetivos que possibilitem interações da criança com o
artigo 31 afirma que avaliação na Educação Infantil deve ser reali- mundo. Um mundo que transita permanentemente entre o passado
zada na forma de acompanhamento e registro do desenvolvimento (as tradições, os hábitos e os costumes) e o novo (as inovações do
da criança, sem objetivo de promoção, uma avaliação processual. presente e as perspectivas para o futuro).
No entanto, Rosemberg (1999) nos chama a atenção para questão O acolhimento da criança implica o respeito à sua cultura,
alarmante elucidada por suas pesquisas com relação à retenção de corporeidade, estética e presença no mundo. Contudo, em muitas
crianças na Educação Infantil: crianças na faixa etária de sete a situações as crianças negras não recebem os mesmos cuidados e
nove anos permanecem na pré-escola, quando deveriam cursar o atenção dispensados às crianças brancas (CAVALLEIRO, 2001).
Ensino Fundamental. Precisamos questionar as escolhas pautadas em padrões dominan-
Em sua maioria, essas crianças são negras refletindo a histó- tes que reforçam os preconceitos e os estereótipos. Nessa pers-
rica desigualdade racial no Brasil, de modo geral, e na educação, pectiva, a dimensão do cuidar e educar deve ser ampliada e incor-
em especial. No interior das instituições de Educação Infantil, são porada nos processos de formação dos profissionais que atual na
inúmeras as situações nas quais as crianças negras desde pequenas Educação Infantil, o que significa recuperar ou construir princípios
para os cuidados embasados em valores éticos, nos quais atitudes
são alvo de atitudes preconceituosas e racistas por parte tanto dos
racistas e preconceituosas não podem ser admitidas. Nessa dire-
profissionais da educação quanto dos próprios colegas e seus fami-
ção, a observação atenciosa de suas próprias práticas e atitudes
liares. A discriminação vivenciada cotidianamente compromete a
podem permitir às educadoras rever suas posturas e readequá-las
socialização e interação tanto das crianças negras quanto das bran-
em dimensões não-racistas. É importante evitar as preferências e
cas, mas produze desigualdades para as crianças negras, à medida
escolhas realizadas por professores/as e outros profissionais, prin-
que interfere nos seus processos de constituição de identidade, de
cipalmente quando os critérios que permeiam tais preferências
socialização e de aprendizagem.
se pautam por posições preconceituosas (DIAS, 1997; GODOY,
1996; CAVALLEIRO, 2001). Não silenciar diante de atitudes dis-
2. CONSTRUINDO REFERENCIAIS PARA ABORDA- criminatórias eventualmente observadas é um outro fator impor-
GEM DA TEMÁTICA ÉTNICO-RACIAL NA EDUCAÇÃO tante na construção de práticas democráticas e de cidadania para
INFANTIL todos e não só para as crianças. Tais condutas favorecem a conso-
lidação do coletivo de educadores na instituição.
2.1 Cuidar e Educar Os Referenciais Curriculares para a Educação Infantil nos
apresentam a dimensão acolhedora do cuidar
A educação de crianças de zero a seis anos comporta especi- No ato de alimentar ou trocar uma criança pequena não é só
ficidades de acordo com o Referencial Curricular Nacional para o cuidado com a alimentação e higiene que estão em jogo, mas a
a Educação Infantil (RCNEI), são afetivas, emocionais, sociais e interação afetiva que envolve a situação. Na relação estabelecida,
cognitivas. por exemplo, no momento de tomar a mamadeira, seja com a mãe
Em todas as etapas da Educação Básica, esses dois elementos ou com a professora da Educação Infantil, o binômio dar e receber
que compõem a prática educativa se interconectam e ao mesmo possibilita às crianças aprenderem sobre si mesmas e estabelecem
tempo possuem características bem particulares. O Referencial uma confiança básica no outro e em suas próprias competências.
Curricular Nacional para a Educação Infantil considera que educar Elas começam a perceber que sabem lidar com a realidade, que
é: conseguem respostas positivas, fato que lhes dá segurança e que
(...) propiciar situações de cuidados, brincadeiras e apren- contribui para a construção de sua identidade (1998b:16).
dizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir As dimensões do cuidar e educar nos permitem compreender
para o desenvolvimento das capacidades infantis de relação in- a importância das interações positivas entre educadoras e crianças.
terpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitude básica de Relações pautadas em tratamentos desiguais podem gerar danos
aceitação, respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças, aos irreparáveis à constituição da identidade das crianças, bem como
conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural (1998a: comprometer a trajetória educacional das mesmas.
23).
2.2 O Afeto
Falar em cuidado na Educação Infantil diz respeito ao apoio Um sorriso negro
que a criança necessita para se desenvolver em sua plenitude. Cui- Um abraço negro
dar diz respeito ao zelo, à atenção e se desdobra em atividades li- Traz felicidade...
gadas à segurança e proteção necessárias ao cotidiano de qualquer Adilson Barbosa, Jorge Portela e Jair Carvalho

Didatismo e Conhecimento 134


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Já destacamos a dimensão afetiva do ato de educar e cuidar na 2.3 A relação com as famílias
Educação Infantil. A dimensão do afeto, para ser praticada também
nos processos educativos, precisa estar contemplada na formação Um modo pelo qual é possível ensinar e aprender sobre as de-
dos profissionais da educação, muitas educadoras têm dificuldades monstrações de cuidados é por meio da leitura de contos, histórias
em expressar esse afeto. e mitos africanos (ver sugestão de atividades).
Faz-se necessário que as demonstrações de afeto sejam mani- Existe uma história que guarda profundos ensinamentos a res-
festadas para todas as crianças indistintamente. Colocar no colo, peito da família, da relação das mães com seus filhos, do sentimen-
afagar o rosto, os cabelos, atender ao choro, consolar nos momen- to da responsabilidade pelo conforto e segurança dos mesmos. É
tos de angústia e medo faz parte dos cuidados a serem dispensados a história de Euá, aquela que se tornou fonte de água para saciar a
a todas as crianças. A educadora é a mediadora entre a criança e o sede de seus filhos. Euá é uma mãe provedora, protetora, que tem
mundo, e é por meio das interações que ela constrói uma autoima- os filhos em sua companhia. Mãe que faz e promete comida gosto-
gem em relação à beleza, à construção do gênero e aos comporta- sa aos filhos, mãe que trabalha e mantém a guarda de suas crianças,
mentos sociais. que reza para que seus filhos sejam protegidos e salvos. Mãe que
Na perspectiva de muitas culturas, e também da africana, o se transforma em fonte de vida que salva os filhos da morte. A
processo de aprendizagem se dá por toda a vida, sendo importante família de Euá é uma família alegre, feliz; mãe e filhos brincam
considerar aqui a valorização da pessoa desde o seu nascimento e sonham. Sofrem juntos e buscam/esperam por soluções juntos.
até a sua velhice. O respeito aos mais velhos é um valor que pre- É necessário que a relação das instituições de Educação Infan-
cisa ser transmitido às crianças, sendo também um valor de des- til com as famílias seja pautada primeiramente pela compreensão
taque na cultura afro-brasileira e africana. A ancestralidade é um da diversidade de organização das famílias brasileiras. Organiza-
princípio que norteia a visão de mundo das populações africanas e ções essas que, em sua maioria, nas populações pobres e negras
afro-brasileiras. Os que vieram primeiro, os mais antigos, os mais são dirigidas por mulheres; mulheres como Euá, que muitas vezes
velhos são referências importantes para as famílias, comunidades não têm com quem deixar os filhos para poder trabalhar; mulheres
e indivíduo. Portanto, o processo de aprender não é possível fora que às vezes se desesperam por não ter como dar comida aos fi-
lhos; mulheres fortes e ao mesmo tempo fragilizados por relações
da dimensão da relação, da inter-relação entre os mais novos e os
que as colocam em lugar de inferioridade.
mais velhos. Os adultos são fundamentais nesse processo de cami-
A exemplo de outros grupos étnico-raciais, entre a população
nhada para a compreensão da vida e das relações com o mundo que
negra, o sentimento de pertencer a uma família é muito valorizado.
as crianças iniciam desde que nascem. De acordo com Gonçalves
A família é um esteio, porto seguro, que dá segurança para enfren-
e Silva, “para aprender é necessário que alguém mais experiente,
tar as dificuldades próprias do país em que vivemos. Vidas muitas
em geral mais velho, se disponha a demonstrar, a acompanhar a re-
vezes marcadas por uma luta incansável pela sobrevivência, pelo
alização de tarefas, sem interferir, a aprovar o resultado ou a exigir medo da violência, pelo medo da fome, da falta de moradia e de
que seja refeita” (2003:186). trabalho.
A dimensão de educação em muitas culturas e também na afri- Foi e é na família constituída por laços de sangue ou por laços
cana tem um sentido de constituição da pessoa e, enquanto tal, é de identidade que a população negra viveu e resistiu à escravidão,
um processo que permite aos seres humanos tornar-se pessoas que ao racismo, a exploração, à perseguição. As famílias desfeitas no
saibam atuar em sua sociedade e que possam conduzir a própria período escravista deram lugar a outras famílias que uniam povos
vida. Compreendendo que esse “tornar-se pessoa” não tem sentido de regiões diferentes da África, com línguas e crenças diferentes,
dissociado da compreensão do que somos, porque não vivemos numa união pela saudade da terra, da casa, da família, como reu-
sozinhos, porque estamos em sociedade. nir-se para sobreviver, resistir e lutar com laços familiares recons-
O princípio da solidariedade que esteve presente na história de truídos e ressignificados.
resistência e sobrevivência do povo negro no Brasil também pre-
cisa ser considerado. Não existe aprendizagem sem solidariedade, 2.4 A família brasileira hoje
sem troca, sem afeto, sem cuidado, sem implicação consciente e
responsável dos adultos que estão à frente desse processo. Romão Mama África (a minha mãe)
(2003) nos chama a atenção para a importância da pesquisa e do É mãe solteira
estudo por parte dos(as) educadores/as no processo de construção E tem que fazer mamadeira todo dia
de uma educação anti-racista: Além de trabalhar
Como empacotadeira nas Casas Bahia
Ao olhar para alunos que descendem de africanos, o pro- Chico César
fessor comprometido com o combate ao racismo deverá buscar
conhecimentos sobre a história e cultura deste aluno e de seus A partir da letra de Mama África, podemos refletir sobre a
antecedentes. E ao fazê-lo, buscar compreender os preconceitos situação de muitas famílias brasileiras que não podem ser enqua-
embutidos em sua postura, linguagem e prática escolar; reestru- dradas em modelos universais, “perfeitos” e “corretos”. São várias
turar seu envolvimento e se comprometer com a perspectiva mul- as possibilidades de se constituir famílias, e a diversidade que per-
ticultural da educação (2001: 20). meia a existência dos seres humanos também estará refletida nas
organizações familiares.
Nas instituições educacionais, o papel das educadoras está re- Muitas famílias brasileiras são chefiadas por mulheres que,
lacionado também à busca de formas que possibilitem atuar para com os próprios meios, geralmente acumulando jornadas de traba-
romper com os preconceitos, por meio de pesquisas, levantamen- lho, criam seus filhos sozinhas, às vezes confiando-as a instituições
tos, assim como do contato com os familiares das crianças, para de Educação Infantil, esperando um atendimento que promova
permitir maior conhecimento da história de vida das mesmas. educação, cuidados, segurança e conforto.

Didatismo e Conhecimento 135


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Tanto as instituições de Educação Infantil quanto as famílias 2.5 Religiosidade e Educação Infantil
podem proporcionar momentos de reflexão sobre as mudanças que
ocorrem nas formas de organização familiar, permitindo maior A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB (1996)
conforto e confiabilidade para as crianças, evitando-se compara- afirma que a educação escolar é laica, sendo da responsabilidade
ções negativas e preconceituosas. da família (entendendo família exatamente como o texto aborda) a
A creche não pode ser considerada como um espaço que irá formação religiosa da criança. No entanto, muitas vezes a religião
substituir a família, mas uma ação complementar à família e à co- se apresenta na escola como um elemento doutrinário ou inibidor
munidade. Nesta perspectiva, estabelecer uma relação estreita com de diferentes experiências no contexto escolar. Fato é que em mui-
as famílias das crianças possibilita o diálogo e a construção de tas escolas de educação infantil existem sérios conflito originados
caminhos para que a criança se desenvolva em sua plenitude. por esta questão, como as festas juninas, para citar um exemplo.
A relação entre instituição de Educação Infantil e família não Muitos alunos e alunas são impedidos pela família de participar
existe sem conflitos, mas precisa ser encarada e redimensionada na destas festividades, em função da conotação religiosa que o evento
perspectiva do diálogo permanente, por meio da escuta sensível e traz (homenagem a santos católicos). Em consequência, limitam
acolhedora que busca compreender a história de vida das crianças seu aprendizado, considerando a variedade de possibilidades de
no atendimento de suas necessidades. Quando as profissionais da aprendizagem que o festejo proporciona.
Educação Infantil se dispõem a conhecer as crianças com as quais Percebemos que esta e outras festividades cristãs, apesar das
trabalham, inevitavelmente terão de conhecer suas famílias, res- contradições, possuem certa respeitabilidade (ou tolerância) por
peitando suas formas de organização. parte de quase todos(as), independentemente das religiões que
Na relação com as famílias, alguns equívocos precisam ser professem. No entanto, o mesmo não se aplica às manifestações
superados. Um deles diz respeito à ideia de que as famílias pobres religiosas de matriz africana. As crianças descendentes de famílias
e negras não têm conhecimento, que não sabem ensinar seus filhos, que professam essas religiões neste aspecto, e muito menos são
que não se preocupam com a educação dos mesmos, que não têm respeitadas quando da discussão do respeito à diversidade religio-
noções de higiene, que não sabem como alimentá-los, que são su- sa.
persticiosos e que necessitam de alguém de fora da família que os Considerando que o próprio sentido da religião é o de pro-
ensine a educar seus filhos. mover a paz, entendemos que as atividades pedagógicas também
Se o aprender ocorre por toda a vida, sempre se aprende sobre
devem se voltar para esta perspectiva e favorecer a possibilidade
várias coisas, em vários tempos, espaços e ambientes. Nas comu-
do diálogo, do respeito e da valorização das diferentes culturas que
nidades tradicionais, principalmente, os ensinamentos são transmi-
compõem a formação da sociedade brasileira.
tidos de geração a geração pelos familiares, pela comunidade, pela
escola, sobretudo por meio da oralidade, da arte de contar histó-
2.6 A Socialização da Criança na Educação Infantil
rias que trazem diferenciadas visões de mundo, lições para a vida,
lembranças para a memória coletiva. Nessas culturas valoriza-se
aquele que consegue armazenar histórias e fatos em sua memó- Segundo os dados do Referencial Curricular Nacional para a
ria. Em muitas culturas, especialmente as tradicionais africanas, os Educação Infantil (RCNEI) (BRASIL, 1998), a autoestima que a
guardiões da história em diversas regiões da África desenvolvem criança vai desenvolvendo é, em grande parte, interiorização da
grande capacidade de memorizar o maior número de informações estima que se tem por ela e da confiança da qual é alvo. Disto re-
a respeito da linhagem de uma família, da organização política de sulta a necessidade de o adulto confiar, acreditar e manifestar essa
um grupo, das funções de determinadas ervas utilizadas para a cura crença na capacidade de todas as crianças com as quais trabalha. A
de doenças, da preservação das tradições: são os griots, contadores postura corporal, somada a outras linguagens do adulto, transmite
de história, guardiões da memória. informações às crianças, possibilitando formas particulares e sig-
nificativas de estabelecer vínculos.
Somos herança da memória Falar em autoestima das crianças significa compreender a
Temos a cor da noite singularidade de cada uma em seus aspectos corporais, culturais,
Filhos de todo o açoite étnico-raciais. As crianças possuem uma natureza singular que as
Fato real de nossa história caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito
Jorge Aragão muito próprio. Dependendo da forma como é entendida e tratada
a questão da diversidade étnico-racial, as instituições podem au-
Muito do que é tido como supersticioso carrega conhecimen- xiliar as crianças a valorizar sua cultura, seu corpo, seu jeito de
tos milenares, eivados de cientificidade. Assim, tratar doenças com ser ou, pelo contrário, favorecer a discriminação quando silenciam
ervas e benzeduras faz parte da cultura de muitos povos no Brasil, diante da diversidade e da necessidade de realizar abordagens de
principalmente os descendentes de indígenas e africanos e aqueles forma positiva ou quando silenciam diante da realidade social que
que vivem no meio rural. A sabedoria dos mais velhos é recriada desvaloriza as características físicas das crianças negras.
nos lares, nas irmandades, nos terreiros, nas igrejas, nas aldeias. Algumas atitudes invasivas por parte das educadoras (e até
Sempre reivindicamos o respeito aos mais velhos, e a tradição afri- presente em normas institucionais), sob argumentações da higiene,
cana nos ensina esse princípio há muito tempo. Se essas experiên- impõem formas estéticas padronizadas de apresentar o cabelo das
cias, vivências, conhecimentos adentrarem as rodas de conversas crianças (para não pegar piolho, por exemplo). Aos meninos são
com as crianças, os momentos de confraternização família/esco- sugeridos cabelos bem aparados, senão raspados. Muitas vezes,
la, as pesquisas escolares, entre outros, poderão contribuir para o não é permitido o uso de bonés. Sabemos que vários povos, inclu-
alargamento, não só dos conhecimentos adquiridos, mas para uma sive os africanos, utilizam diversos ornamentos como turbantes,
convivência ancorada no respeito à diversidade. A sabedoria popu- filás, chapéus, cotidianamente, sem restrições. Também no meio
lar é fonte inesgotável de conhecimento. rural as mulheres usam lenços, homens usam chapéus.

Didatismo e Conhecimento 136


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Para meninas, os cabelos lisos são positivamente referencia- O mesmo cuidado deve ser dispensado às questões relativas à
dos nos padrões europeus; e muitas famílias negras, influenciadas cor da pele; daí informações sobre a melanina, que dá coloração
por esse padrão, expõem suas crianças pequenas a variadas formas à pele, devem ser estudadas pelas crianças e compartilhadas com
de alisamentos como os químicos que podem, inclusive, prejudicar os adultos.
a sua saúde e sua auto-imagem, e ainda danificar seus cabelos.
Como a criança gostará de si mesma se traz em seu corpo ca- Referências
racterísticas desvalorizadas socialmente? De acordo com Gomes:
No Brasil foi construído, ao longo da história, um sistema ABROMOWICZ, Anete. e WAJSKOP, Gisela.Creches: ativi-
classificatório relacionado com as cores das pessoas. O cabelo, dades para crianças de zero a seis anos. São Paulo: Moderna, 1995.
transformado pela cultura como sinal mais evidente da diferença
racial (...) nesse processo, as cores “branca” e “preta” são tomadas AMARAL Rita. Educar para igualdade ou para a diversidade?
como representantes de uma divisão fundamental do valor humano A socialização e a valorização da negritude em famílias negras. In:
– “superioridade”/“inferioridade” (2003:148). Os urbanistas. Antropologia Urbana. 2001. Disponível em: www.
Nessa perspectiva, inferioridade associa-se a feiúra e superio- aguaforte.com/antropologia/esucarparaque.html.
ridade à beleza, reforçando-se os estereótipos negativos com rela-
ção àqueles que fogem aos padrões considerados ideais. ARIÉS, Philipe. História social da criança e da família. Rio
A criança que vivencia situação semelhante de discriminação de Janeiro: Guanabara, 1981.
com relação ao seu corpo pode não construir uma imagem positiva
de si mesma. Os referenciais da criança negra a respeito de seu BARBOSA, Irene. Socialização e relações raciais: um estudo
corpo, cor da pele, tipo de cabelo devem ser modificados, para que de família negra em Campinas. São Paulo: FFLCH/USP, 1983.
seja aceita por colegas e educadoras desconsiderando-se assim a
sua história, sua cultura. De acordo com Romão, muitas crianças, BARCELOS, Luiz Carlos. Educação: um quadro de desi-
para se tornarem alunos(as) ideais, negam constantemente seus gualdades raciais. Estudos Afro-Asiáticos. nº23, Rio de Janeiro,
referenciais de identidade, de diferença, que em muitas situações dez/1992, p. 37-69.
recebem uma conotação de desigualdade. Essas diferenças são tra-
tadas no ambiente escolar como se fossem feiúra e/ou desleixo. As BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil.
crianças que lidam com situações de negação de sua identidade São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1988.
poderão passar por muitos conflitos que podem comprometer sua
socialização e aprendizagem. BRASIL, Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. D.O.U de
Não podemos desconsiderar o papel da mídia de forma ge- 10/01/2003.
ral e da televisão como formadora de identidade. A rara presença
de pessoas negras como protagonistas de programas infantis é um BRASIL. LEI nº. 9.394. LDB - Leis de Diretrizes e Bases da
exemplo de como através da invisibilidade a mídia demarca seus Educação Nacional de 20 de dezembro de 1996. D.O. U. de 23 de
preconceitos, contribuindo para que tanto crianças negras como dezembro de 1996.
brancas não elaborem referenciais de beleza, de humanidade e
de competência que considerem a diversidade. Existe destaque BRASIL. Lei 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente,
de pessoas brancas na mídia, que normalmente apresenta pessoas de 13 de julho de 1990. D.O.U. 16/07/1990.
com cabelos loiros e olhos claros (azuis ou verdes). Esse tipo de
beleza chega a ser reverenciado como padrão ideal a ser alcançado BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curri-
e/ou desejado. culares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de história e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Crespo cabelo trançado com a mais pura graça Parecer CNE/CP 3/2004, de 10 de março de 2004.
Criando mais belos caminhos na carapinha
Márcio Barbosa BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de
Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a
Faz-se necessário que tanto as educadoras quanto as crianças educação infantil. Brasília: MEC/SEF, Volume 1, 1998a.
e seus familiares tenham acesso aos conhecimentos que explicam
a existência das diferentes características físicas das pessoas, os ____. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial cur-
diferentes tons de cor da pele, as diferentes texturas dos cabelos e ricular nacional para a educação infantil. Brasília: MEC/SEF, Vo-
formato do nariz, buscando valorizar tais diversidades. lume 2, 1998b.
Outra forma de possibilitar uma visão positiva a respeito dos
traços físicos das pessoas é trazer informações e histórias sobre _______. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
os penteados em diversas culturas. Por exemplo, fazer tranças nos curricular nacional para a educação infantil. Brasília: MEC/SEF,
cabelos faz parte da tradição da população negra desde tempos Volume 3, 1998c.
antigos no continente africano, assim como em diversas regiões
do Brasil. A maioria das famílias negras adota esses penteados: CARDOSO, Marcos Antônio. O movimento negro em Belo
crianças, jovens, adultos; homens e mulheres. Existe uma infinida- Horizonte. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2001.
de de tipos de tranças. Esses penteados mais recentemente têm se
estendido para outros grupos não-negros, principalmente jovens. CARDOSO, Marcos Antônio; SANTOS, Elzelina Dóris dos;
Valorizar esse aspecto da cultura trazido pelas crianças negras, su- FERREIRA, Edinéia Lopes. Contando a história do samba. Belo
põe observação cuidadosa por parte das educadoras. Horizonte: Mazza Edições, 2003.

Didatismo e Conhecimento 137


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Didatismo e Conhecimento 138


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
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Racismo e anti-racismo na educação. São Paulo: Summus/Selo com o atual referencial teórico sobre a diversidade, respeito às di-
Negro, 2001, p.195-213. ferenças e especificamente à educação das relações étnico-raciais
e de gênero.
UNICEF. Situação da Infância e Adolescência Brasileiras, Consideramos relevante apresentar princípios significativos
Unicef, CD-ROM, 2004. e fundamentais que possam orientar os(as) profissionais da edu-
cação quanto ao trato positivo do tema, bem como variadas su-
VALENTE, Ana Lúcia E. F. Proposta metodológica de com- gestões para se construir um referencial curricular no qual alguns
bate ao racismo nas escolas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. elementos constitutivos da cosmovisão africana, em grande parte
93, 1995, p. 40-50. desconhecida no campo educacional brasileiro, compareçam como
base, a exemplo da ancestralidade, circularidade, solidariedade,
ZIVIANI, Denise Conceição das Graças. À flor da pele: a al- oralidade, integração, coletividade, etc.. Em outras palavras, dese-
fabetização de crianças negras entre o estigma e a transformação. jamos inspirar as educadoras e os educadores à efetivação de uma
Dissertação de Mestrado Psicologia Social – FAFICH, UFMG, cultura escolar cotidiana de reconhecimento dos valores civiliza-
Belo Horizonte, 2003. Mimeo. tórios africanos como possibilidade pedagógica na construção dos
conhecimentos.
Estamos conscientes dos limites impostos pela natureza do
trabalho apresentado, diante do propósito de instaurar na escola,
ambiente propício ao respeito às diferenças e à valorização da di-
versidade, a história e a cultura negras com a dignidade que lhes
é devida. É uma proposta que se apresenta desejosa de diminuir a
distância entre o discurso bem intencionado e o que efetivamente
se deve e se pode fazer, isto é, entre o discurso e a prática cotidiana.
Por meio das reflexões apresentadas as seguir, acreditamos
poder contribuir para a construção de uma educação que seja gera-
dora de cidadania; que atenda e respeite as diversidades e peculia-
ridades da população brasileira em questão, que respeite e observe
o repertório cultural da população negra e o relacione com as prá-
ticas educativas inclusivas existentes.
Visualizar as diferenças e articular as práticas pedagógicas a
elas não somente é uma forma de respeito humano, mas uma for-
ma de promover a igualdade. Cabe, neste momento construtivo de
reflexão e debate, questionarmos:
- Em que ponto a escola se encontra no itinerário de construir
uma educação que valorize e respeite as diferenças?
- Que tipo de diálogo a escola tem estabelecido com as dife-
rentes culturas, em especial a cultura negra, presentes no universo
Brincar, interagir escolar?
Coleção Particular - Qual tem sido o posicionamento da escola diante das rela-
ções étnico-raciais estabelecidas em seu interior que têm dificul-
ENSINO FUNDAMENTAL tado a construção positiva da identidade racial e o sucesso escolar
Coordenação: Rosa Margarida de Carvalho Rocha e Azoilda do aluno negro?
Loretto da Trindade - Qual a importância que a escola tem dado às recentes estatís-
ticas que demonstram as dificuldades encontradas pelo segmento
Vá em busca de seu povo. negro, especialmente no campo da educação?
Ame-o - As instituições escolares têm se ser vido destas estatísticas
Aprenda com ele em seus momentos de avaliação para promover reformulações em
Comece com aquilo que ele sabe suas práticas pedagógicas?
Construa sobre aquilo que tem.
Kwame N´Krumah 1. A ESCOLA — CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA E
METODOLÓGICA
Introdução
Precisamos compartilhar uma visão de escola como ambiente
A intenção deste documento é a de subsidiar o trabalho que pode ser de felicidade, de satisfação, de diálogo, onde possa-
dos(as) agentes pedagógicos(as) escolares na construção de uma mos de fato desejar estar. Um lugar de conflitos, sim, mas trata-
pedagogia anti-racista. Para tal, desejamos apresentar orientações dos como contradições, fluxos e refluxos. Lugar de movimento,
didático-pedagógicas em relação à inserção do tema no Ensino aprendizagem, trocas, de vida, de axé (energia vital). Lugar poten-
Fundamental. cializador da existência, de circulação de saberes, de constituição

Didatismo e Conhecimento 139


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
de conhecimentos. Lugar onde, a exemplo das culturas africanas histórico processo de negação da identidade e de “coisificação”
Yorubá, Bantu e outras, reverencia-se a existência, a vida das pes- dos povos africanos. E a luta contra o racismo, em nosso país,
soas, que independentemente de faixa etária, de comportamento, vem possibilitando que sejam discutidos temas significativos para
de saúde, etc., pode ser vista como divina. a compreensão de todo esse processo, mostrando a resistência dos
africanos e seus descendentes, que não se submeteram à escravi-
1.1 A escola e o currículo dão, que se rebelaram e que conseguiram manter vivas as suas
tradições culturais.
No que se refere à ideia de currículo, é importante entender Estabelecer um diálogo com este passado por meio de pesqui-
que existem diferentes visões para sua construção e encaminha- sas, de encontros com a ancestralidade, preservada ou reinventada,
mento. Em nossa visão o entendemos como mola-mestra para o é fundamental no sentido de não hierarquizarmos, idealizarmos ou
processo de sensibilização de alunos(as) para o conhecimento e subestimarmos as diversas motivações/manifestações sociopolíti-
exercício de seus direitos e deveres como cidadãs/ãos. O trabalho cas e culturais que dele fizeram parte.
Entendermos que não existe uma única forma de se estar no
docente pode, então, orientar-se para além das disciplinas constan-
mundo, mas múltiplas formas que vão se tecendo conforme os de-
tes do currículo do curso, mas também na exposição e discussão de
safios propostos por nós, pelos outros e pela nossa interação com
questões éticas, políticas, econômicas e sociais.
e sobre a natureza. Neste sentido, podemos nos apropriar, de fato
Entendemos que, para dar visibilidade a esta proposta educa- e de direito, dos instrumentos que nos permitam perceber estas
tiva, é fundamental a participação de professores/as na escolha, múltiplas formas e mais, que esta apropriação não significa expro-
seleção e organização dos temas que podem integrar um plane- priação, mas sim recriação, reinvenção, redescoberta, e que nos
jamento curricular, bem como, e aqui está outro desafio, toda a leve a equacionar o nosso ser e estar no mundo em suas múltiplas
comunidade escolar. dimensões.
Sabemos que existe um currículo manifesto que está presente Cabe estudar as lutas de resistência a estes processos históri-
nos planos de ensino, curso e aula, mas visceralmente articula- cos, de forma a que não continuemos reproduzindo os esquemas
do está o currículo oculto que representa um “corpus ideológico” criados pelo modo capitalista de pensar e que vislumbremos outras
de práticas que não estão explícitas no currículo manifesto, for- forças capazes de nos mobilizar.
malizado. Nesta relação manifesto/oculto, podem circular ideias
que reforçam comportamentos e atitudes que implícita ou expli- 1.3 O saber escolar e a interdisciplinaridade
citamente podem interferir, afetar, influenciar e/ou prejudicar a
aprendizagem escolar dos/das discentes. Estas podem remeter a O saber escolar é produto de múltiplas determinações, diálo-
preconceitos, intolerâncias e discriminações enraizadas e que es- gos, atritos, confrontos disciplinares, ou seja, conflitos, tensões e
tão ligados às relações de classe, gênero, orientação sexual, raça, contradições. No ensino Fundamental tem-se que trabalhar todas
religião e cultura. as áreas de conhecimento. É exigido ao/a professor/a que tenha
Vivemos num país com grande diversidade racial e podemos reflexão teórica que respalde suas escolhas metodológicas, conte-
observar que existem muitas lacunas nos conteúdos escolares, no údo disciplinar socialmente válido, práticas pedagógicas criativas
que se refere às referências históricas, culturais, geográficas, lin- e qualitativas. No cotidiano escolar estamos sempre às voltas com
guísticas e científicas que deem embasamento e explicações que diários, horários, disciplina e metodologias. O tempo não é sufi-
possam favorecer não só a construção do conhecimento, mas tam- ciente para planejarmos e avaliarmos nossas estratégias. A troca
bém a elaboração de conceitos mais complexos e amplos, contri- de experiências, fundamental à proposta interdisciplinar esbarra-se
buindo para a formação, fortalecimento e positivação da autoesti- nesta visão ocidental do tempo. Este elemento disciplinador, me-
ma de nossas crianças e jovens. canizado e construído socialmente que dificulta nossas ações, que,
em geral, sempre falta na hora de sistematizarmos nossos sonhos
Segundo Silva (1995), no que se refere aos currículos escola-
e projetos, deve ser levado em conta ao construirmos alternativas.
res, chamou-se a atenção para a falta de conteúdos ligados à cultu-
Pensar propostas de implementação da Lei nº. 10.639/2003 é
ra afro-brasileira que estejam apontando para a importância desta
focalizar e reagir a estruturas escolares que nos enquadram em mo-
população na construção da identidade brasileira, não apenas no delos por demais rígidos. Atentarmos para a interdisciplinaridade
registro folclórico ou de datas comemorativas, mas principalmente nesta proposta é estarmos abertos ao diálogo, à escuta, à integração
buscando uma revolução de mentalidades para a compreensão do de saberes, à ruptura de barreiras, às segmentações disciplinares
respeito às diferenças. estanques.
Há todo um debate sobre multiculturalismo (Gonçalves e Sil- A educação brasileira poderá lançar mão de alguns princípios
va 1998) e pluralidade cultural (PCNs, 1997) em que se discute fundantes, concepções filosóficas de matriz africana, recriadas nas
o papel de diferentes povos no contexto cultural e educacional. terras brasileiras, incorporando-os como constituintes do processo
Nesta direção, indagamos: como a comunidade escolar pode se educativo, permanecendo todo o currículo da prática escolar. Des-
organizar e estruturar para fomentar esta discussão e alinhavar es- ta forma, construir e constituir uma pedagogia que possa, realmen-
tratégias educativas? te, contemplar os valores civilizatórios brasileiros.

1.2 O ensino e o antirracismo 1.4 Humanidade e alteridade

A questão do racismo deve ser apresentada à comunidade es- Gosto de ser gente, porque, inacabado, si que sou um ser
colar de forma que sejam permanentemente repensados os para- condicionado, mas consciente do inacabamento, sei que posso ir
digmas, em especial os eurocêntricos, com que fomos educados. mais além dele.
Não nascemos racistas, mas nos tornamos racistas devido a um Paulo Freire

Didatismo e Conhecimento 140


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em Uma visão de mundo negra implica a possibilidade de aber-
que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, so- tura para o mundo, para a vida e principalmente para o outro. Por
bretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemen- exemplo, em uma “roda de capoeira”, todos que compartilham os
te exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se códigos são aceitos, desde que se coloquem como parceiros(as) e
tornam radicalmente éticos. (...) Qualquer discriminação é imoral respeitem a hierarquia. Os quilombos, que para além da restrita
e lutar contra ela é dever por mais que reconheça a força dos con- visão de refúgios de escravizados(as), tornaram-se conhecidos por
dicionamentos a enfrentar (FREIRE, 1999, p. 67). abrigar vários segmentos subalternos que desejassem romper com
as malhas da sociedade escravista, propiciando a vivência de outra
A sociedade democrática brasileira ainda tende de forma bas- organização social.
tante sistemática a colocar/situar negros e negras num lugar desi-
gual ante os demais grupos étnico-raciais e culturais construtores 1.6 Memória, história e saber
da nossa brasilidade. Quando o tema enfocado em discussão é a
produção de bens culturais, por que a especificidade étnico-racial O círculo é ciranda de criação (...)
e cultural negra adquire o lugar de subalternidade ou mesmo do
É o símbolo da horizontalidade nas relações humanas.
exótico no outro extremo?
Eduardo Oliveira
A hierarquização das raças, etnias e culturas legou para negros
e negras o espaço da subalternidade, levando, assim em termos de
significação, para uma interpretação negativa construída em meio Pensar o ser humano, a humanidade, é prioritariamente, na
a imagens que estigmatizaram o/a africano/a, tratando-o/a como nossa concepção, discutir sua memória e como ela se articula no
sinônimo de escravizado/a, pois ao pensarmos em africanos(as), real-histórico. Entretanto, parte-se aqui, de um pressuposto de que
somente os(as) incorporamos ao processo histórico de construção a memória é sempre o resultado de uma ação do sujeito histórico
da sociedade brasileira na perspectiva da escravidão. É fato que sobre seu próprio passado, uma ação especulativa, haja vista que
não podemos esquecer que os povos africanos foram, por mais de não existe uma memória que se coloque como uma essencialidade,
três séculos, escravizados no Brasil. Contudo, não podemos es- como uma relação imutável e congelada no tempo. A memória im-
quecer também que, apesar das condições adversas, as expressões plica sempre uma escolha, uma seleção que se processa a partir de
culturais africanas não sucumbiram, elas se fizeram presente na nossas referências individuais e coletivas; muitas das escolhas que
formação da nossa brasilidade. são feitas não trazem em seu bojo uma explicação, simplesmente
escolhemos, simplesmente selecionamos.
1.5 Cultura negra e corpo Ao professor/a educador/a, tendo a memória e a história como
perspectiva, cabe o ofício de selecionar, sistematizar, analisar e
Na cultura negra o corpo é fundamental. Sobre o corpo se as- contextualizar, em parceria com seus/suas alunos(as) e quiçá, toda
senta toda uma rede de sentidos e significações. Esse não é aparta- a comunidade escolar, o que pode ser considerado como um fato
do do todo, pertence ao cosmos, faz parte do ecossistema: o corpo histórico, o que é relevante para um entendimento do processo
integra-se ao simbolismo coletivo na forma de gestos, posturas, histórico de reconstrução da memória que se registra nos livros e
direções do olhar, mas também de signos e inflexões microcorpo- orienta uma agenda educacional.
rais, que apontam para outras formas perceptivas (SODRÉ, 1996, Cabe pensar, por exemplo, uma outra agenda que não aponte
p. 31). somente na direção de uma história do Ocidente. Importante des-
Para este autor, o corpo humano deve ser entendido em rela- tacar, igualmente, que o conceito de Ocidente se funda menos em
ção a outros corpos, de animais, pedras, árvores, e “é ao mesmo um limite geográfico do que em padrões civilizatórios. Em outras
tempo sujeito e objeto” (idem p. 31). Assim sendo, partilha do cos- palavras, a noção de Ocidente que se pensa não é aquela que se
mos como uma interseção entre o mundo dos vivos e o mundo dos situa a oeste do meridiano de Greenwich, mas uma percepção que
mortos e da divindade. O corpo é a representação concreta do terri-
excede esses limites e ocupa todo o globo.
tório em movimento. Ao contrário de uma percepção de mundo na
Busca-se então um repertório educacional que caminhe em di-
qual a alma é onde reside a força e a possibilidade de continuidade,
reção a um conceito de ser humano que produz história não a partir
para uma cultura negra a força está no corpo, não existe essa ideia
de uma força interior alavancada pela ação da fé. Toda possibilida- de grandes sagas e heróis, mas a partir de relações comunitárias
de encontra-se no corpo potente que procura suas mediações nas vividas e vivenciadas pelos grupamentos humanos. Neste sentido,
relações que constitui no cosmos, daí o compartilhamento como para uma ação desta envergadura se faz necessário um primeiro
práxis ser uma questão fundamental para se entender a dinâmica passo, que é o de promover o reconhecimento da igualdade sem
de uma cultura negra no Ocidente. limite e profundamente radical entre uma cultura africana e afro-
Todos trocam algo entre si, homens, mulheres, árvores, pe- descendente e uma branca, eurocêntrica, ocidental.
dras, conchas. Sem a partilha, não há existência possível. Faz-se A história, a geografia, as artes e a literatura africanas e afro-
necessário pensar que a cultura negra não está marcada por uma -brasileira deverão ser incluídas e valorizadas, juntamente com a
necessidade de conversão. Existe um sentido de agregação que não participação de outros grupos raciais, étnicos e culturais, adapta-
gira em torno de uma verdade única. Aqueles que creem em outras das aos ciclos e às séries do Ensino Fundamental. Além disso, a
possibilidades de verdade ou fé são aceitos em rituais públicos. escola pode se relacionar com a sociedade em que está situada,
Nesse sentido pode se apontar o fato de que, nas festas havidas em que, muitas vezes, tem uma participação negra significativa ou até
comunidades de matriz africana, as pessoas que chegam não são mesmo majoritária.
imaginadas como necessariamente adeptas da religião, mas sim Enfatizar as relações entre negros, brancos e outros grupos ét-
pessoas que o fazem por diversos motivos, e por isso são aceitas nico-raciais no Ensino Fundamental não nos leva necessariamen-
independentemente de suas convicções. te a conflitos ou impasses. Há a possibilidade de mediações, de

Didatismo e Conhecimento 141


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
acertos, que permitam uma aproximação de interesses ao mesmo Alguns aspectos sobre esta articulação poderão fazer parte
tempo comuns e não-comuns, mas que se fundem na negociação. das reflexões a serem incorporadas aos estudos de educadores/as
Portanto, não se pretende pensar uma sociedade como idílica, har- contemporâneos(as). Esta postura poderá significar avanços consi-
mônica e sem conflito, uma sociedade que negue as desigualdades deráveis no aprimoramento da prática pedagógica diária, integrar
sociais, raciais e regionais. Além disso, o que se busca não é sim- saberes, incluir a dimensão da diversidade étnico-cultural critica-
plesmente a troca de uns heróis e divindades por outros, mas uma mente no cotidiano escolar, dentre outras ações, pode criar possibi-
diretriz educacional que possibilite uma pluralidade de visões de lidades onde felicidades individuais e coletivas sejam construídas.
mundo. Um retorno à metáfora do círculo, ou seja, uma forma de Há algumas décadas, estes aspectos têm sido incorporados aos
conciliação possível e humana em que a voz, o escutar e ser escu- projetos educacionais (nos discursos e nos planejamentos peda-
tado, a presença de todos e todas é condição fundamental. gógicos). No entanto, a articulação entre educação – desenvolvi-
E aqui vale uma pequena abordagem relativa à circularidade. mento humano – qualidade de ensino – cidadania é um desafio a
Para a cultura negra (no singular e no plural), o círculo, a roda, ser vencido para o aprimoramento da prática pedagógica escolar
a circularidade é fundamento, a exemplo das rodas de capoeira,
cotidiana.
de samba e de outras manifestações culturais afro-brasileiras. Em
Quem é esse/essa estudante em diálogo com as teorias sobre
roda, pressupõe-se que os saberes circulam, que a hierarquia tran-
crianças, adolescentes e jovens? Quem é, principalmente, essa pes-
sita e que a visibilidade não se cristaliza. O fluxo, o movimento é
invocado e assim saberes compartilhados podem constituir novos soa que nos toca de perto, que é singular, um aparente mistério
sentidos e significados, e pertencem a todos e todas. com o qual nos defrontamos cotidianamente, que dá uma dinâmica
própria à escola? Pensá-la sem rótulos, sem predefinições/precon-
2. OS ATORES DO ENSINO FUNDAMENTAL ceitos, mas como pessoa e como tal, detentora de uma gama de
possibilidades, que precisa ser aceita e acolhida pela escola.
Quando pensamos em quem é a/o estudante do Ensino Fun- O que se espera, contudo, é a efetiva implantação no cotidiano
damental, pensamos em crianças e adolescentes de 7 a 14 anos de escolar, de uma pedagogia da diversidade e do respeito às diferen-
idade, estendendo esta faixa etária até aproximadamente 17 anos, ças. Esta reconhecerá a importância de visualizar os propósitos a
em função da realidade educacional do nosso país. alcançar com os(as) estudantes do Ensino Fundamental, relacio-
Existe vasta bibliografia sobre o que seria a infância e a ado- nando-os às características de seu desenvolvimento, e articular
lescência. A psicologia nos traz uma grande contribuição. A pró- estes dois aspectos às necessidades específicas do/a educando/a,
pria educação voltada para as crianças das classes populares nos considerando-se as particularidades de sua socialização e vivên-
enriquece com a vasta produção sobre educação brasileira. A an- cias adversas em função do racismo e das discriminações.
tropologia, a sociologia, a história, e inclusive as ciências biológi- Neste processo, que se pretende dialógico com quem faz o co-
cas, nos ajudam a refletir sobre quem é esse/a aluno/a. Contudo, tidiano escolar, ao se pensar quem é o/a discente do Ensino Funda-
gostaríamos de pensar esta criança, este/a adolescente, este/a jo- mental brasileiro, sentimos como necessário levantar as questões a
vem, cidadão/ã do Ensino Fundamental na sua complexidade, na seguir, que se interligam no sentido de ressignificar de fato quem
sua singularidade, sem, contudo, deixar de levar em conta que está são nossos(as) estudantes, sobretudo, levando-se em consideração
imerso/a em variados processos biológicos, psicológicos e existen- as diferenças regionais e a diversidade étnico-cultural do Brasil:
ciais. A criança aprendendo a ler e a compreender o mundo, suas - Qual a importância que a escola tem dado às interações do
regras, seus conhecimentos socialmente valorizados, sua identida- sujeito negro com o meio social?
de, seu lugar no mundo; o/a adolescente mudando a voz, mudando - Qual o peso que a escola tem dado ao afetivo na construção
o corpo, vivendo transformações comportamentais, mudanças que de conhecimento de crianças e jovens negros(as)?
trazem inquietações. Precisamos observá-los(as) na sua complexi- - A escola tem contribuído para que a criança negra possa
dade humana, como seres que pensam, criam, produzem, amam,
construir uma identidade social positiva em relação à sua pertença
odeiam, têm sonhos, sorriem, sofrem e fazem sofrer, que têm apa-
a um grupo afrodescendente?
rência e compleições físicas, pertencimento étnico-racial, postu-
- A escola tem possibilitado o conhecimento respeitoso das di-
ras, que têm história, memória, conflitos, afetos e saberes inscritos
no seu corpo e em sua personalidade. ferenças étnico-raciais, valorizando a igualdade e relações sociais
É esse olhar que almejamos, acrescido às abordagens que mais harmônicas?
tradicionalmente estudamos (Piaget, Vigotsky e outros), que são - A escola tem oferecido referenciais positivos aos(as)
importantes e fundamentais, para se ter em mente adolescentes e alunos(as) negros(as) na construção de sua identidade racial?
jovens como sujeitos singulares e complexos e na concretude do - As produções étnico-culturais dos diversos grupos formado-
cotidiano com o qual nos deparamos. res da nação brasileira têm sido incorporadas aos conhecimentos
Destacamos tudo isto porque pensamos que, pelo menos teo- escolares, para que a sociedade respeite o povo negro e lhe confira
ricamente, uma vez que a realidade é mais complexa que sua re- dignidade?
presentação por palavras, as marcas que constituem a identidade - As emoções, a sensibilidade e a afetividade têm se tornado
dessas crianças e adolescentes, isto é, suas características pesso- elementos da prática escolar visualizando, principalmente, os(as)
ais, etárias, socioculturais e étnico-raciais, vão suscitar a escola estudantes negros(as) que têm dificuldades em sua socialização?
a estabelecer diálogo com várias áreas do conhecimento, como, - A escola tem propiciado aos(as) educandos(as) negros(as)
por exemplo, a antropologia, a sociologia, a história, a geografia, oportunidades de refletir criticamente sobre o contexto social, en-
a psicologia, a linguística e as artes. Estas possibilitarão melhor tendendo-o e propondo transformações?
entendimento do/a aluno/a do Ensino Fundamental, bem como a - O conteúdo escolar tem sido para o/a aluno/a negro/a um
percepção de como são estabelecidas as relações entre aprendiza- instrumento para lidar positivamente com sua realidade social, ou
do, desenvolvimento e educação. tem sido estranho à sua história ou cultura?

Didatismo e Conhecimento 142


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- A vida cotidiana, os costumes, as tradições, e a cultura Inaugurar um tempo novo, pautado por uma lógica de valo-
dos(as) educandos(as) têm sido usados como suporte para seu rização da diversidade e repúdio à intolerância, é assumir com-
aprendizado? promisso efetivo com uma educação multirracial e interétnica.
- Os conhecimentos adquiridos pelas crianças negras em seu Contemplar o povo negro, neste propósito, impõe mudar a rea-
grupo histórico/sociocultural estão sendo valorizados no ambiente lidade escolar atual por meio de uma intervenção competente e
escolar? séria. Inovações temáticas e teórico-metodológicas poderão ser
- Que atitude a escola pública tem tomado em relação aos fala- implementadas no cotidiano escolar de forma coletiva, gradativa
res populares que são características da maioria dos(as) alunos(as)? e teoricamente fundamentada.
Em síntese, a abordagem do sujeito real e concreto com o qual A concretização dessas mudanças, reorientando ações, lan-
nos deparamos cotidianamente, com o qual somos desafiados(as), çando sobre elas um novo olhar, poderá ser efetivada através da
convidados(as), a pensar nossa prática, a dialogar: o que essa inserção da questão étnico-racial no Projeto Político Pedagógico
criança, adolescente ou jovem, pensa, sonha? Como concebe a es- da escola. Espera-se que este contenha diretrizes operacionais, ar-
cola, o racismo, as questões sociais do seu tempo? ticulando ações coletivas.
É esse aluno e essa aluna que entram em relação com a nossa Tendo em vista a Lei n° 10.639/2003, acreditamos que os(as)
dimensão humana nos estimulando, nos acomodando, nos convi- agentes do Projeto Político-Pedagógico podem atentar para os se-
dando a mudar; que não se repetem, que nos descortinam e nos guintes aspectos:
provocam a agir, a pensar quem somos nós, professores e profes- A leitura e análise da realidade escolar e o resultado das re-
soras. Levando-nos a pensar sobre nós mesmos, nossos corpos, os flexões e análises da realidade precisam ser registrados para con-
saberes que acumulamos com nossa prática, nossa história, nossa verter-se em propostas efetivas, favoráveis a ações pedagógicas
memória profissional e pessoal, a partir das leituras de mundo e de eficientes. A operacionalização das propostas das ações pedagó-
textos que fizemos. gicas tem sintonizado o pensar, o planejar e o fazer. É importante
É, então, com a dimensão de professores e professoras, de lembrar que as ações não poderão ser assumidas por apenas um
profissionais de educação, malungos companheiros e companhei- grupo, mas devem envolver toda a comunidade escolar;
ras que olham e acolhem crítica e afetuosamente o cotidiano es- Almeja-se que o processo de ação/reflexão durante esta fase
colar que queremos potencializar para atender mais uma demanda seja embasado conceitualmente, orientando, de forma adequada,
da escola: inserir a história da África e a cultura afro-brasileira no as tomadas de decisões, as novas proposições que a escola desejar
cotidiano escolar. assumir;
Neste sentido, estaremos contribuindo para a melhoria da A avaliação sistemática e constante será útil para retroalimen-
dimensão humana de todos os alunos e alunas, ainda que espe- tar a tomada de decisões, mostrando possibilidades e limites do
cialmente daqueles e daquelas que tiveram sua história e cultura projeto. Todos podem participar da avaliação, avaliando e sendo
subalternizadas, a história e cultura de sua ascendência negadas e avaliados: comunidade escolar, mães e pais de alunos(as) e grupos
invisibilizadas pela escola. É necessário reconhecer que o legado da comunidade, bem como as próprias crianças e adolescentes,
da história e cultura africana e afro-brasileira é um patrimônio da alunos(as) da escola.
humanidade. Podemos identificar, nos componentes da prática educativa
voltada para uma educação antirracista, algumas características
2.1 Ensino Fundamental - Plano de ação que são fundamentais e poderão orientar a atuação no cotidiano
escolar. Com o objetivo de contribuir para essa reflexão, procura-
Este material não se propõe a dizer o que o professor e a pro- mos apresenta-los de forma esquemática no quadro a seguir. Além
fessora deverão fazer, mas sim, convidá-los(as) a assumir sua di- das características acima listadas, solicitamos atenção para alguns
mensão de produtores/as deste conhecimento, aproveitando, con- aspectos que poderão fortalecer o propósito de construir uma me-
tudo, toda uma reflexão/ação acumulada que existe em relação ao todologia positiva de tratamento pedagógico da diversidade racial,
racismo no Brasil. Se o/a educador/a se constituir como produtor/a levando em conta a dignidade do povo negro e consequentemente
consciente de conhecimento, pesquisador/a de sua própria prática, de toda a população brasileira:
sua própria ação educativa, de saberes a este respeito, isto pode - A construção de ambiente escolar que favoreça a formação
se tornar altamente transformador. É de suma importância que o/a sistemática da comunidade sobre a diversidade étnico-racial, a par-
professor/a se veja como produtor/a de história, de conhecimento tir da própria comunidade, considerando a contribuição que esta
de ações que podem transformar vidas, ou seja, que é potencial- pode dar ao currículo escolar;
mente um indivíduo transformador, criativo. - O estabelecimento de canais de comunicação com troca de
Alterações fundamentais podem ser empreendidas no sentido experiências com os movimentos negros, com os grupos sociais e
de contribuir para a melhoria do sistema educacional brasileiro. culturais da comunidade, possibilitando diálogos efetivos.
Vive-se na contemporaneidade um intenso repensar sobre paradig- Outro aspecto a ser observado diz respeito aos rituais pedagó-
mas educacionais a construir. A garantia de acesso e permanência, gicos escolares. Estes poderão ser procedimentos que realmente
com qualidade e inclusão de todos(as), é um dos aspectos mais objetivem o desenvolvimento de relações respeitosas entre os su-
importantes nessas reflexões. Almeja-se que tais transformações jeitos do processo educativo, contribuindo para a desconstrução
tenham um caráter universal e incidam positivamente sobre todo o de estereótipos e preconceitos; para desfazer equívocos históricos
âmbito da educação formal e seus sujeitos, como também contem- e culturais sobre negros e indígenas e para valorizar a presença
plem a dimensão singular, incluindo aí a perspectiva étnico-racial. destes em diferentes cenários da vida brasileira.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Enfim, a escola que deseja se constituir democrática, respeitando a todos os segmentos da sociedade, pode ter como meta a aquisição
de recursos adequados para o trato das questões étnico-raciais, como, por exemplo, munindo a biblioteca de acervo compatível, folhetos,
gravuras e outros materiais que contemplem a dimensão étnico-racial; videoteca com filmes que abordem a temática e brinquedoteca com
bonecos(as) negros(as), jogos que valorizem a cultura negra e decoração multiétnica (Quadro 01).

Quadro 01. Ensino Fundamental e Diversidade Étnico-Racial

Espaço privilegiado de inclusão, reconhecimento e combate às relações


preconceituosas e discriminatórias.
Apropriação de saberes e desconstrução das hierarquias entre as culturas.
PAPEL DA ESCOLA
Afirmação do caráter cultural multirracial e pluriétnico da sociedade brasileira.
Reconhecimento e resgate da história e cultura afro-brasileira e africana como
condição para a construção da identidade étnico-racial brasileira.

Sujeito do processo educacional ao mesmo tempo aprendiz da temática e mediador


entre o/a
PAPEL DO/A PROFESSOR/A
aluno/a e o objeto da aprendizagem, no caso, os conteúdos da história e cultura
afro-brasileira e africana, bem como a educação das relações étnico-raciais.

Sujeito do processo educacional que vive e convive em situação de igualdade com


ESTUDANTE
pessoas de todas as etnias, vendo a história do seu povo resgatada e respeitada.

Que respeita o/a estudante como sujeito sociocultural.


Que tenha o diálogo como um dos instrumentos de inclusão/interação.
RELAÇÃO DOCENTE-DISCENTE
Que o/a professor/a esteja hierarquicamente a serviço dos(as) estudantes numa
relação ética e respeitosa.

Que contemple a efetivação de uma pedagogia que respeite as diferenças.


Tratar a questão racial como conteúdo inter e multidisciplinar durante todo o ano
CURRÍCULO
letivo, estabelecendo um diálogo permanente entre o tema étnico-racial e os demais
conteúdos trabalhados na escola.

Que reverenciem o princípio da integração, reconhecendo a importância de se


conviver e aprender com as diferenças, promovendo atividades em que as trocas
sejam privilegiadas e estimuladas.
Que reconheçam a interdependência entre corpo, emoção e cognição no ato de
PROCESSOS PEDAGÓGICOS
aprender.
Que privilegiem a ação em grupo, com propostas de trabalho vivenciadas
coletivamente (docentes e discentes), levando em conta a singularidade individual.
Que rompam com a visão compartimentada dos conteúdos escolares.

Para compreender esse quadro, temos as seguintes premissas:

- Reconhecimento de que historicamente o racismo e as desigualdades sociais contribuíram e contribuem para a exclusão de grande
parcela da população afrodescendente dos bens construídos socialmente.

Didatismo e Conhecimento 144


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- Compreensão que a cosmovisão africana, reinventada em Embora saibamos das várias dimensões de professor/a que
territórios brasileiros, contribui para o enriquecimento do debate carregamos, faremos vínculo com a nossa dimensão aprendiz,
acerca de questões ambientais, tecnológicas, históricas, culturais ativa, comprometida, inquieta, e sobretudo que reconheça sua
e éticas em nossa comunidade escolar e social, e cabe ser incluída fundamental importância no processo de construção de ações pe-
em qualquer proposta que se pense democrática. dagógicas cotidianas antirracistas e inclusivas, que reconheça que
- Reflexão crítica acerca da postura propositiva e questionado- sua ação pedagógica, sua ação profissional pode fazer diferença na
ra que todos devemos ter em relação ao enfrentamento do racismo vida dos(as) estudantes com os(as) quais entre em contato.
e das desigualdades sociais como um todo.
- Valorização do conhecimento de nossos(as) profissionais de 3. O TRATO PEDAGÓGICO DA QUESTÃO RACIAL
educação e a necessidade de articularmos este saber com as de- NO COTIDIANO ESCOLAR
mandas que a lei nos apresenta, promovendo a interdisciplinarida-
O aprimoramento do processo de reflexão sobre a construção
de e quiçá a transdisciplinaridade.
de novos paradigmas educacionais as questões relativas ao currí-
- Percepção que os projetos antirracistas e antidiscriminató-
culo e suas estruturas a construção do conhecimento os processos
rios serão frutos de embates e diálogos. de aprendizagem e seus sujeitos ocuparam nas últimas décadas do
- Compromisso relacionado à sensibilização de nossos(as) século XX e ocupam, na atualidade, o centro dos debates e atenção
educandos(as) quanto à questão da historicidade das relações especial de estudiosos(as) pesquisadores/as e movimentos sociais
raciais no Brasil, da importância do estudo sobre a África e da brasileiros.
necessidade de reconhecer a Cultura Negra e suas diversas mani- Novas propostas e estratégias estão sendo concebidas. Parale-
festações como um patrimônio histórico, ambiental, econômico, lamente, convivemos com o avanço da escola brasileira no que se
político e cultural, levando-os(as) a perceber que são cidadãos/ãs refere às possibilidades de acesso da criança e jovens à instituição
ativos(as) e que sua postura política interfere na sociedade. escolar. No entanto, no que tange à permanência e ao sucesso para
- Busca da promoção e aprofundamento do conhecimento dos/ todos os(as) estudantes, existe um grande desafio a ser vencido.
das estudantes do Ensino Fundamental a respeito das africanidades Crianças, adolescentes e jovens, negros e negras, têm viven-
brasileiras em suas múltiplas abordagens. ciado um ambiente escolar inibidor e desfavorável ao seu suces-
- Participar da implementação da Lei n° 10.639/2003. so, ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades. Lançar um
Para implementar esse quadro, manifestamos os seguintes in- novo olhar de contemporaneidade, para que se instalem na escola
tentos: posicionamentos mais democráticos, garantindo o respeito às di-
- Sensibilização da comunidade escolar quanto à mudança de ferenças, é condição básica para a construção do sucesso escolar
comportamentos, a fim de minimizar as atitudes de descaso e des- para os(as) estudantes.
respeito à diversidade étnica e cultural da sociedade brasileira. Fundamentar a prática escolar diária direcionando-a para uma
- Participação efetiva da comunidade escolar nas lutas antir- educação antirracista é um caminho que se tem a percorrer. Nesse
racistas. caminhar, podemos identificar alguns pontos básicos que poderão
- Efetivação de um currículo escolar antirracista. fazer parte das reflexões/ações no cotidiano escolar, no sentido
Encontramos igualmente algumas facilidades já conquistadas: de tratar pedagogicamente a diversidade racial, visualizando com
- Consciência cada vez mais crescente da existência do racis- dignidade o povo negro e toda a sociedade brasileira.
mo na sociedade brasileira.
- Iniciativas pedagógicas de projetos antirracistas em diversos a) A questão racial como conteúdo multidisciplinar duran-
te o ano letivo
Estados brasileiros.
É fundamental fazer com que o assunto não seja reduzido a
- Histórica mobilização dos movimentos negros.
estudos esporádicos ou unidades didáticas isoladas. Quando se de-
- Produção de teses e materiais didáticos sobre a África e as dica, apenas, tempo específico para tratar a questão ou direcioná-la
africanidades brasileiras. para uma disciplina, corre-se o risco de considerá-la uma ques-
- Aumento da visibilidade negra. tão exótica a ser estudada, sem relação com a realidade vivida.
- Políticas de ação afirmativas. A questão racial pode ser um tema tratado em todas as propostas
- A Lei n° 10.639/2003. de trabalho, projetos e unidades de estudo ao longo do ano letivo.
Por fim, tendo em vista esse quadro, pensamos num desafio
para todos e todas: como abranger a dimensão nacional de uma b) Reconhecer e valorizar as contribuições do povo negro
cultura negra que é plural e de um denso cotidiano escolar? Ao estudar a cultura afro-brasileira, atentar para visualizá-la
Quando pensamos nas atividades escolares, temos alguns pa- com consciência e dignidade. Recomenda-se enfatizar suas con-
râmetros: uma concepção de educador/a autônomo/a intelectual- tribuições sociais, econômicas, culturais, políticas, intelectuais,
mente, embora finca do/a no coletivo; alguém que dialoga, gosta experiências, estratégias e valores. Banalizar a cultura negra, es-
de aprender e é pesquisador/a da sua própria prática diante dos tudando tão somente aspectos relativos a seus costumes, alimen-
desafios, conflitos e situações que o cotidiano lhe oferece; um/uma tação, vestimenta ou rituais festivos sem contextualizá-la, é um
professor/a que busca alternativas e saídas. Uma concepção mar- procedimento a ser evitado.
cada por essa dimensão de educadores/as que são profissionais que
se apropriam do saber historicamente construído e produzido em c) Abordar as situações de diversidade étnico-racial e a
relação à educação, que é vasto no Brasil, e que traduzam este sa- vida cotidiana nas salas de aula
ber no seu cotidiano. Que queiram produzir outro cotidiano, onde Tratar as questões raciais no ambiente escolar de forma sim-
as diferenças e a diversidade se façam ver, não para serem excluí- plificada em algumas áreas, ou em uma disciplina, etapa deter-
das ou hierarquizadas, mas para serem incluídas no cotidiano e no minada ou dia escolhido, não é a melhor estratégia para levar os
processo pedagógico de modo potente, rico e respeitoso. alunos e alunas aos posicionamentos de

Didatismo e Conhecimento 145


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Ação reflexiva e crítica da realidade em que estão inseridos. Para tanto, a instituição escolar terá como meta promover o
Na contextualização das situações, eles aprenderão conceitos, ana- nível de reflexão de seus educadores e educadoras, instrumenta-
lisarão fatos e poderão se capacitar para intervir na sua realidade lizando-os(as) no sentido de fazer uma leitura crítica do material
para transformá-la: didático, paradidático ou qualquer produção escolar.

Os objetos de conhecimento histórico se deslocaram dos g) Construir coletivamente alternativas pedagógicas com
grandes fatos nacionais e mundiais para a investigação das rela- suporte de recursos didáticos adequados
ções cotidianas, dos grupos excluídos e dos sujeitos sociais cons- É uma empreitada para a comunidade escolar: direção, super-
trutores da história (SEE/MG, 2005a). visão, professores/as, bibliotecários(as), pessoal de apoio, grupos
sociais e instituições educacionais.
As atividades propostas na área de história, por exemplo, Algumas ações são essenciais nessa construção: a disponibili-
podem sempre considerar alguns princípios que demandem uma zação de recursos didáticos adequados, a construção de materiais
determinada visão de mundo, que assim sendo, valorizem o cole- pedagógicos eficientes, o aumento do acervo de livros da biblio-
tivo e não somente o individual, que apontem na direção da pro- teca sobre o assunto, a oferta de variedade de brinquedos contem-
blematização de uma memória local, nacional e ao mesmo tempo plando as dimensões multiculturais.
ancestral.
Referências
d) Combater às posturas etnocêntricas para a desconstru-
ção de estereótipos e preconceitos atribuídos ao grupo negro BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação. Es-
Os conteúdos da área de ciências poderão ser fortes aliados na cola Plural: Proposta Político-pedagógica da Rede Municipal de
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A aprendizagem de conceitos constitui elemento fundamental
de aprendizagem das ciências. Por meio deles interpretamos e in- BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. D.O.U de
teragimos com as realidades que nos cercam. 10/01/2003
Essa ação sobre as realidades a serem interpretadas e transfor- BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de
madas nos leva a rever constantemente nossos conceitos, ou seja, a Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: pri-
acomodá-los às novas circunstâncias que se nos apresentam (SEE/ meiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/
MG, 2005b). SEF, 1997.
Nessa perspectiva, o saber científico aliado ao fazer pedagógi-
co pode valorizar bastante a fomentação de uma problematização BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de
das práticas sociais para a sensibilização de um olhar mais críti- Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: plura-
co diante da realidade, apontando para uma proposta que redefina lidade cultural, orientação sexual. Secretaria de Educação Funda-
prioridades e utilize a contribuição de todos os povos no desenvol- mental. – Brasília: MEC/SEF, 1997.
vimento curricular.
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e) Incorporar como conteúdo do currículo escolar a histó- rei. Santos-SP, nº.02 2001.
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Esta história, bem como a dos outros grupos sociais oprimi- CASHMORE, Ellis. Dicionário de Relações Étnicas e Ra-
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por eles, deverá constar como conteúdo escolar. Os(as) estudantes
compreenderão melhor os porquês das condições de vida dessas CAVALEIRO, Eliane (org). Racismo e Anti-Racismo na Edu-
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mesmos: perguntas e respostas sobre a auto-estima e questão ra- Introdução
cial. Coleção Gente de Raça. São Paulo: Editora Gente, 1999. O presente trabalho implica mudanças de posturas na direção
de uma educação antirracista e promotora de igualdade das rela-
YUS, Rafael. Em Busca de uma Nova Escola. Temas Trans- ções sociais e étnico-raciais. Mais que pensar a reorganização das
versais, Porto Alegre: ArtMed, 1998. disciplinas há que se pensar como o cotidiano escolar – em seus
tempos, espaços e relações – pode ser visto como um espaço cole-
tivo de aprender a conhecer, respeitar e valorizar as diferenças, o
ANOTAÇÕES que é fundamental para a construção da identidade dos envolvidos
no processo educacional.
Nessa perspectiva, este plano aponta a necessidade de partir
do projeto político-pedagógico das escolas, articulando os objeti-
vos estabelecidos para o Ensino Médio, de acordo com a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9.394 de 1996.
—————————————————————————
Os artigos 26A e 79B privilegiam a continuidade de estudos, o
————————————————————————— exercício para a cidadania e as orientações para a inserção no mun-
do do trabalho, garantindo os princípios que respaldam a Resolu-
————————————————————————— ção CNE/CP 01/04 e o Parecer 003/04, a saber:
—————————————————————————
- Consciência política e histórica da diversidade, ou seja, ter
————————————————————————— a compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que per-
tencem a grupos étnico-raciais distintos, com cultura e história
————————————————————————— próprias.
- Fortalecimento de identidades e de direitos, rompendo com
—————————————————————————
imagens negativas contra negros(as) e índios e ampliando o acesso
————————————————————————— a informações sobre a diversidade do país.
- Ações educativas de combate ao racismo e às discrimina-
————————————————————————— ções, como cuidar para que se dê sentido construtivo à participa-
ção dos diferentes grupos sociais e étnico-raciais na construção da
————————————————————————— nação brasileira.

Didatismo e Conhecimento 148


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Para tanto, o texto inicialmente aponta de maneira breve os Vale frisar que, embora tais reformulações venham sendo
principais elementos que caracterizam a reforma do Ensino Mé- esboçadas há mais de duas décadas, somente nos últimos anos
dio, bem como avanços e desafios das ações políticas pertinentes a escola secundária tem sido objeto de ação mais contundente e
à diversidade. Em seguida localiza aspectos fundamentais acerca abrangente por parte do poder público, com vistas a cumprir os
do tratamento das relações raciais nessa modalidade de ensino. Fi- compromissos assumidos. A realidade dessa modalidade de ensino
nalmente, enfatizando a importância e a necessidade de repensar ainda é caracterizada por necessidades que envolvem desde a ade-
o projeto político-pedagógico das unidades escolares, apresenta quação dos espaços físicos das escolas até a ampliação do número
possibilidades e sugestões para que a organização curricular seja de vagas e garantia de permanência, a elevação da qualidade do-
tomada também do ponto de vista afro-brasileiro, no qual o pro- cente dos processos formativos e o estabelecimento de estratégias
cesso de construção e as abordagens em torno dos conhecimentos de acompanhamento e avaliação discente.
sejam fortalecedores de uma perspectiva de educação antirracista. No que se refere ao aspecto quantitativo, de acordo com nú-
Em seu conjunto, reafirma o cotidiano escolar do Ensino Mé- meros do Censo Escolar do Ministério da Educação, em 2001
dio como um espaço de fazer coletivo, no qual todos os agentes havia cerca de 8,4 milhões de estudantes matriculados(as), pelo
escolares que integram e fazem o cotidiano escolar se reconheçam menos o dobro do número registrado no início da década de 1990.
e ajam como sujeitos corresponsáveis pela sustentação de uma es- Esses números expressivos podem, em parte, ser explicados pe-
cola para todas as pessoas, voltada para a igualdade das relações las recentes políticas de promoção, que diminuíram o número de
étnico-raciais e o exercício da cidadania plena. retenção no Ensino Fundamental, e pelas novas características de
Pretende-se que este documento seja entendido como ponto um mercado de trabalho que acompanha o incremento tecnológi-
de partida para reflexões, experimentações e adequações, conside- co e exige maior tempo de escolaridade. Paradoxalmente também
rando a realidade social e cultural em que está inserida cada uni- porque, diante de um quadro rarefeito de oferta de trabalho, os(as)
dade escolar jovens, filhos(as) das classes populares continuam estudando por-
que o número de postos de trabalho é insuficiente. As ofertas de
1. ENSINO MÉDIO – ORIENTAÇÕES, AVANÇOS, DE- vagas na escola aumentaram, mas ainda não se pode considerar
SAFIOS essa etapa como universalizada.
Além disso, a escola tem sido mais procurada, elevando a
quantidade de atendimento, embora sem que isso se traduza em
A década de 1990 no Brasil foi marcada por intenso debate
qualidade do ensino oferecido. Há a urgência de conhecer e aco-
em torno das políticas e ações voltadas para a garantia de acesso,
lher as novas feições dessa modalidade, em especial no período
a permanência e qualidade de atendimento na educação. Entre ou-
noturno, frequentado por jovens, mães e pais que trabalham ou que
tros eventos, ressalta-se a Conferência Mundial de Educação para
procuram de maneira mais sistemática conhecimentos necessários
Todos, na Tailândia, que ibfluenciou a elaboração do Plano Dece- para a obtenção de certificados e de um espaço também de sociabi-
nal de Educação, mediante o qual se estabeleceu o compromisso lidade, de poder conversar e interagir.
de garantir o direito à educação a todas as crianças, os jovens e Os aspectos levantados configuram algumas características do
adultos. Ainda em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Ensino Médio no Brasil, com a presença de evasões e reprovações,
Nacional – LDB foi aprovada e, em decorrência, elaboraram-se a inadequação do currículo e outras questões que se materializam
as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e, pos- nos resultados desfavoráveis das avaliações oficiais e no aumen-
teriormente, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino to de jovens que frequentam as salas de Educação de Jovens e
Médio. Dessa maneira, o Ensino Médio passou a ser compreendi- Adultos. Atualmente registra-se a presença de pessoas cada vez
do como espaço-tempo de formação geral indissociável da forma- mais jovens na Educação de Jovens e Adultos, conforme apontam
ção básica para o trabalho e para o aprimoramento do educando Carrano (2000) e Brunel (2004).
como pessoa/cidadão.
Estabelecidas essas bases legais, o projeto de reforma curri- 1.1. Jovens no espaço escolar: quem são?
cular do Ensino Médio prima por (re)construir sua identidade e
tem como fim promover alternativas interdisciplinares, nas quais Ao discorrer sobre a configuração do espaço da escola média,
o conhecimento seja tomado como base para um futuro humanista Krawczyk (2004) destaca, entre outros elementos, que a maio-
e solidário. Como etapa final da Educação Básica, fornece meios ria do conjunto de professores/as conhece pouco da vida dos(as)
para que os(as) estudantes, como produtores desse conhecimento, alunos(as): onde e com quem moram? Quais atividades realizam
possam continuar os estudos e ingressar no mundo do trabalho. além de frequentar a escola? Como ocupam seus fins de semana?
Para tal modalidade, as Diretrizes e os Parâmetros Curricu- Qual é a realidade socioeconômica de seus núcleos familiares?
lares estabelecem que os currículos sejam organizados em três Ainda segundo ela, no geral, os comentários de professores/
áreas: Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; as a respeito dos(as) estudantes são ambíguos e tendem a se limi-
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e tar às diferenciações, “às vezes estereotipadas, entre os alunos(as)
suas Tecnologias. Pretendendo romper com os modelos tradicio- que assistem ao curso diurno e ao curso noturno, ainda assim é de
nais de educação, a modalidade quer um ensino voltado para o forma mais geral e não exatamente da instituição em foco” (2004,
desempenho social dos(as) alunos(as). Portanto, esse conjunto de p. 147). Fala-se de um estudante sem que se saiba quem ele é, sem
conhecimentos deve ser trabalhado a partir de princípios pedagó- que se conheçam os diversos contextos e as necessidades de res-
gicos estruturadores: identidade, diversidade e autonomia, inter- postas diferentes à existência de cada um dentro da escola.
disciplinaridade e contextualização. Partindo dessa perspectiva, a Alguns desses aspectos estão presentes no estudo de Abra-
operacionalização de tais princípios requer considerar a situação movay e Castro (2003), que aponta os problemas de infraestru-
de desigualdade social e étnico-racial vivida historicamente pelo tura, espaços físicos, recursos pedagógicos, evasão, repetência e
segmento negro da população brasileira. Do discurso para a prática as truncadas relações vividas na comunidade escolar. Entre outros
ainda se mostra tarefa em andamento. pontos, destacam-se:

Didatismo e Conhecimento 149


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- boa parte do conjunto de professores/as admite não ter do- 1.2 Um olhar para as questões étnico-raciais no Ensino
mínio sobre os conceitos e os objetivos principais da reforma, e Médio
precisam de preparo e formação para aplicação e adaptação às suas
realidades; É possível afirmar que a história e a cultura negras estão na
- no geral, os principais problemas da escola são o desinteres- escola pela presença dos(as) negros(as) que lá se encontram, mas
se e a indisciplina dos(as) estudantes, bem como a falta de espaços não devidamente valorizados(as) dentro dos projetos pedagógicos,
físicos adequados; currículos ou materiais didáticos, de forma contextualizada, explí-
- principalmente nas escolas públicas, a proporção de aban- cita e intencional.
dono dos estudos, ao menos uma vez com posterior retorno, é de Registra-se significativo número de professores/as, em sua
35,2% no curso noturno e 8,9% no diurno; maioria negros(as), que tomam iniciativas sustentando experi-
- existem altos índices de reprovação na trajetória escolar e ências que procuram reverter a lógica quase naturalizada que di-
em algumas capitais cerca de metade ou mais se declara repetente; ferencia, inferioriza e hierarquiza a população negra e pobre na
- cerca de 20% dos(as) alunos(as), em especial os que estudam escola. Elaboram projetos e atividades educacionais que preten-
em escola pública, indicam não ter acesso ao ensino que envolva dem mudanças, organizam grupos de estudo que apoiam debates e
artes e questões culturais. alimentam a busca e o fortalecimento de ações de valorização da
Diante desse quadro, o estudo lista uma série de recomenda- diversidade cultural e étnico-racial. Existem em grande número,
ções a serem seguidas pelas políticas públicas, como: a) melhorar porém, no geral, são iniciativas isoladas que nem sempre têm con-
as condições de vida dos(as) estudantes, com a garantia de que tinuidade ou se tornam visivelmente significativas. Se por um lado
possam permanecer na escola, sugerindo neste sentido a ampliação o trabalho é importante por outro, na maioria das vezes, não chega
da bolsa-escola para quem cursa o Ensino Médio; b) melhores con- a alterar os silêncios e as práticas racistas e preconceituosas que
dições de vida e da qualidade do trabalho dos(as) profissionais da encontramos na rotina da organização escolar.
educação, recomendando melhoria salarial e formação continuada; Contudo, inegavelmente, ao longo dos últimos anos, várias
c) adequar as condições físicas e as práticas de relações, devendo- iniciativas se consolidam em decorrência da insistência dos en-
-se cuidar tanto do espaço como do clima de interação escolar; d) volvidos, da maior articulação entre os grupos do movimento ne-
medidas para melhorar a qualidade do ensino e o cultivo do hábito gro e as organizações não-governamentais que levaram o debate
e gosto de estudar, incluindo a diversificação das atividades esco- para junto de algumas administrações democráticas. Os impactos
lares, com ênfase ao acesso à informática e às atividades desporti- e efeitos dessas ações e alianças ganham mais densidade neste mo-
vas, artísticas e culturais. mento histórico, quando um conjunto de documentos legais, fruto
Em relação à crise de identidade do Ensino Médio, a pesquisa de lutas históricas, sistematiza propostas específicas que buscam
de Abramovay e Castro (2003) destaca que é dada pouca atenção assegurar e garantir igual direito de acesso às histórias e culturas
aos aspectos que favorecem o exercício da cidadania, e enfatiza que compõem a nação brasileira.
que entre professores/as e estudantes é comum a referência a vá- O presente texto aponta que por meio do Projeto Político-
rios tipos de discriminação, entre elas a racial. -Pedagógico das escolas é possível garantir condições para que
A análise também aponta que a escola deve ser vista como um alunos(as), negros(as) e não-negros(as) possam conhecer a escola
vetor de oportunidades, o que somente é possível se for capaz de como um espaço de socialização. Um espaço em que as relações
traçar uma política de intervenção que contemple uma pedagogia interpessoais, os conteúdos e materiais constituam o diálogo entre
antidiscriminatória e multiplicadora da vivência inclusiva em ou- culturas, que tragam não apenas as histórias e contribuições do
tras esferas da ação social. Diante de dados e estatísticas que mos- ponto de vista europeu, mas também as histórias e contribuições
tram a desvantagem da população pobre e negra na escola, essa africanas e afro-brasileiras.
modalidade de ensino também precisa contar com profissionais Vale considerar a vasta produção escrita sobre educação e de-
preparados e recursos para uma formação consistente para os(as) sigualdade racial, de autores como Valente (2002), Bento (2000)
estudantes como sujeitos autônomos, sabedores das questões de e Oliveira (1997) entre outros, segundo os quais a organização
seu tempo e de sua história, participativos e ainda comprometidos escolar, a estrutura curricular e as formas de gestão, a despeito
com as transformações sociais, culturais, políticas e econômicas de algumas alterações, ainda mantêm praticamente inalterados os
das quais o país necessita. mecanismos de exclusão da população negra na escola.
Para dar conta de um número maior de histórias singulares, é Atuais indicadores sociais sobre a educação demonstram a
preciso se pensar em uma educação que seja capaz de discutir em existência de uma estreita relação entre a realidade sócio históri-
suas propostas curriculares as situações e os contextos da vida, ca e a exclusão escolar dos(as) alunos(as) negros(as), agravada à
para enfrentar o que é próprio e constituinte das vivências, instigar medida que aumentam os anos de escolarização. Esse é o retrato
a participação de uma escola que deve acolher e respeitar as di- detectado por vários estudos, entre eles o realizado pelo Instituto
versidades de classe, raça, gênero, geração e sexualidade, mas que Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, ba-
ainda não existe para todos. seado em pesquisa de 2002 do Instituto Brasileiro de Geografia e
A materialização desse modelo obriga a repensar o Projeto Estatística (IBGE).
Político-Pedagógico, a organização curricular e as formas de orga- O estudo divulga que a população negra possui em média 5,3
nizar e de conviver nas escolas de Ensino Médio. É fundamental anos de estudo, enquanto a branca tem 7,1 anos. Quanto à frequ-
conceber um projeto para e com os jovens homens e as jovens ência escolar, a população negra na faixa de 15 a 17 anos registra
mulheres que têm direito à escola, reinventando modos e maneiras índice de 78,6%, abaixo da média do país, de 81,5%. Na realidade,
de gestão escolar e buscando formas de estabelecer alianças entre a maioria das escolas ainda não reconhece e acolhe a cultura, a
profissionais da educação e comunidade escolar, com olhos volta- história e os valores da população negra em sua dinâmica cotidiana
dos também para fora da escola. – currículos, princípios e práticas pedagógicas.

Didatismo e Conhecimento 150


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Quais ações já existem na escola? Quem são e o que pensam Para que a tessitura dessa rede ocorra, de fato, com fios de
os professores/as e demais profissionais da educação sobre essa diversos novelos, torna-se fundamental o conhecimento do todo,
questão? Quem são os(as) estudantes que, para além do perfil so- e nele o ensino fragmentado dá lugar a um conhecimento mais
cioeconômico, têm sonhos, desejos e necessidades? Esse levanta- global e significativo. O/a estudante é então encarada como pos-
mento torna-se urgente, considerando que a maior parte dos(as) suidora de uma identidade singular que o/a apresenta como um ser
estudantes apresenta menos de 20 anos e pode ter na escola um biológico, cultural e social, inserido numa coletividade específica
significado que excede a busca de uma alternativa para a sustenta- e, ao mesmo tempo, possuidor de uma identidade coletiva que exi-
ção de projetos de vida, muitos ainda nem descobertos. ge e deve permitir o reconhecimento de características comuns a
Com baixa expectativa em relação ao presente e ao futuro,
esse grupo denominado juventude.
contudo, a escola na vida dessa juventude aparece como um divi-
A tarefa posta a todos(as) os(as) profissionais da educação, em
sor de águas: ainda é uma das alternativas para manter-se longe de
problemas – drogas, violência, desmotivação –, é espaço de lazer especial aos educadores/as, é saber reconhecer, respeitar e valori-
e de sociabilidade, de encontros com as turmas e dos primeiros zar as diferenças instauradas por essa diversidade de estudantes-
namoros. -sujeitos. Conforme assinalam vários estudos, entre os quais Corti
e Souza (2005), o que torna o trabalho docente mais eficaz é exa-
1.3 Juventude – uma só condição em diferentes situações tamente o conhecimento que se tem da trajetória que os(as) jovens
sociais apresentam. Conhecê-los(as) é abrir a escola para considerar suas
necessidades de sobrevivência digna, suas buscas e escolhas, suas
Para compreender os(as) estudantes do Ensino Médio e suas vivências diárias e seus saberes muitas vezes ignorados.
diversidades, é necessário pensar o processo de construção do co-
nhecimento desses sujeitos, sob o pressuposto do respeito à singu- 1.4 Cultura juvenil em foco
laridade dessa etapa de vida, sua inter-relação com a construção de
identidade, a autonomia, a interação cultural com a comunidade Nessa etapa da vida, como afirma Melucci (1997: 9), “a juven-
em que mora ou atua, produzindo saberes social e subjetivamente tude não é mais somente uma condição biológica, mas uma defini-
significativos. ção cultural”, o que implica considerar as experiências singulares
Do enfoque das diversidades e das diferenças é possível en- de cada grupo, dentro de seus contextos de existência, exigindo
tender os jovens como sujeitos de direitos que vivem e se formam considerar além da idade suas relações com o espaço e com a cul-
em complexos contextos educativos, construídos histórica e cul-
tura. Assim, para conhecer mais e melhor os estudantes, as escolas
turalmente, e mediados por significações sociais de seu mundo.
Abad (2003) contribui com essa discussão ao assinalar a diferença devem atentar para as culturas juvenis que aglutinam uma gama
entre a condição e a situação juvenil: a primeira, o modo pelo qual de atitudes e atividades desenvolvidas e valorizadas por essa faixa
uma sociedade constitui e significa o momento do ciclo de vida; e etária. Em seu interior transitam a literatura, as linguagens – os
a segunda, a situação que traduz o que esses/as jovens experimen- quadrinhos, os textos poéticos, os movimentos culturais populares
tam de acordo com os determinantes das categorias classe, gênero –, os blocos carnavalescos, os grupos de congadas, os grupos tea-
e etnia/raça. trais e musicais e as bandas de música (pop, rock, reggae, música
A categoria de classe estabelece-se entre as camadas mais e afro), posses de rappers, movimento hip hop, funk e outros.
menos favorecidas economicamente da população, o gênero ca- O movimento hip hop além de musical é social, pois ao tra-
racterizado pelas relações de poder construídas e estabelecidas zer o ritmo e a poesia e outras linguagens aborda as injustiças e
entre o masculino e o feminino, e etnia/raça se traduz nas vivên- opressões raciais e sociais, utiliza essa produção artística e poética
cias de oportunidade e nas desigualdades entre negros(as) e não- para anunciar e denunciar o lugar histórico, político e social que
-negros(as). Também de acordo com Durand e Sousa (2002), para ocupam e como vivem negros(as) e pobres. Também por meio des-
compreender a condição social do jovem é fundamental articular ses espaços de convivência, a dimensão cultural tem se mostrado
as questões geracionais e biológicas com outras variáveis. Ser jo- altamente mobilizadora para os jovens que buscam se conhecer e
vem depende também das condições de viver essa juventude. afirmar em espaços diversos.
A mesma discussão é referendada por Dayrell (2002:3), se- Destaca-se que parte da juventude negra vem ressignificando
gundo o qual a juventude pode ser percebida somente se conside-
espaços de tradição e de cultura afro-brasileiras em suas diversas
rarmos as especificidades que marcam a vida de cada um. Assim,
formas de preservação e manifestação. Ao enfatizar o ensino de
segundo ele, “a juventude constitui um momento determinado,
mas que não se reduz a uma passagem, assumindo uma impor- história e cultura africanas e afro-brasileiras, os princípios nor-
tância em si mesma. Todo sse processo é influenciado pelo meio teadores de uma educação antirracista têm nas comunidades de
social concreto no qual se desenvolve e pela qualidade das tro- terreiros os batuques, folias de reis, maracatus, tambor de crioula,
cas que este proporciona”. Portanto, torna-se necessário entender entre outras manifestações folclóricas, aspectos fundamentais para
a categoria social da juventude como construção cultural em sua estabelecer os vínculos com a ancestralidade no que se refere a
pluralidade e diversidade. lugares de constituição de identidades.
Nesse contexto de construção da identidade do ser jovem é Aprender a ouvir esses jovens faz da escola espaço de diálogo
que se instaura a relação do eu com o outro, pois, como aponta com a concretude de diferentes cotidianos, como nos indica Go-
Todorov (1983), é a ação do olhar sobre o eu que possibilita a mes (2005:1):
existência como somos. O processo de construção de identidade
abarca esse movimento, e os(as) jovens no cotidiano da escola te- (...) um dos caminhos para a construção de práticas forma-
cem, muitas vezes por meio de uma trama nem sempre visível, a doras que eduquem para a diversidade e contemplem a questão
rede da qual devem fazer parte os educadores/as e a comunidade do negro poderá ser o da construção de um olhar mais atento aos
que os circunda. caminhos e percursos dos educandos e educandas negros(as), ou

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
seja, descobrir como tem sido o processo de construção da sua Nas palavras de Ilma Passos (2003):
identidade negra, os símbolos étnicos que criam e recriam através A instituição educativa não é apenas uma instituição que re-
da estética, do corpo, da musicalidade, da arte. Não poderíamos produz relações sociais e valores dominantes, mas é também uma
mapear, conhecer e analisar tais práticas de maneira mais coleti- instituição de confronto, de resistência e proposição de inovações.
va, junto com os alunos? O que eles/elas podem nos ensinar sobre A inovação educativa deve produzir rupturas e, sob essa ótica, ela
a sua vivência como negros(as)? Que reflexões as experiências procura romper com a clássica cisão entre concepção e execução,
oriundas de um universo cultural marcado pela condição racial, uma divisão própria da organização do trabalho fragmentado.
de classe e de gênero poderão nos trazer?
Dessa perspectiva, a ideia de harmonia que ainda vigora na
Nessa perspectiva, escola seria então lugar de experiências e cultura escolar é posta em questão. Conforme Souza, Vóvio e
trocas entre negros(as) e não-negros(as), de valorização da diversi- Oliveira (2004), em contextos de reivindicação de direitos, entre
dade e da igualdade, mudando o rumo de uma história de exclusão eles o direito de agrupamentos étnicos, é que o Projeto Político-
e discriminações que expulsa a população negra da escola regular. -Pedagógico de cada escola ganha sentido. Os sujeitos reafirmam
Aqui se coloca o olhar de reconhecimento em relação ao ou- a intencionalidade e a especificidade da ação educativa na elabo-
tro. Compreender que aquele que é alvo de discriminação sofre de ração do projeto, entendido como espaço e processo de formação.
fato, e de maneira profunda, é condição para que o educador, em É nesse documento da escola que o compromisso da edificação de
sala de aula, possa escutar mesmo o que não foi dito com todas as uma educação pública de qualidade se concretiza: na articulação
palavras, e ler o que não foi escrito com todas as letras. Posicio- dos aspectos políticos e pedagógicos; e na proposição de um currí-
nando-se e desconstruindo o mito da democracia racial – que sus- culo comprometido com a valorização da diversidade.
tenta a ideia de harmonia na relação entre negros(as) e brancos(as) É imprescindível que a discussão, a análise e a reestruturação
no país –, o/a educador/a compromete-se a juntar todos esses fios, do Projeto Político-Pedagógico (PPP) sejam entendidas como um
tecendo a rede pretendida, com as experiências culturais, os valo- processo construído coletivamente entre todos os envolvidos.
res, desejos, não-desejos, os conhecimentos e as culturas que se O fundamento aqui adotado em relação ao projeto político-
constituem parte importante dos ambientes de aprendizagens. -pedagógico assume a perspectiva emancipatória e antirracista e
Para realizá-la será preciso compreender que a construção foge da ideia de que seja um instrumento meramente burocrático.
da equidade étnico-racial é um processo também sócio histórico Aposta, sim, em uma ideia de documento que coloca em pauta
e cultural e não algo natural. Essa, sem dúvida, é uma tarefa com- e procura olhar cotidianamente as questões macro e micro, tais
plexa. Pensar a diversidade no sentido de promover a equalização como o atendimento da secretaria escolar, os alimentos servidos,
das relações étnico-raciais exige disposição para mergulhar em a escolha e preparação, as maneiras de resolver os conflitos, bem
um processo de estudo e de formação capaz de fazer compreender como promover atitudes e valores que favoreçam a convivência.
como e por que, ao longo do processo histórico, as diferenças fo- Os sujeitos que constroem e movimentam o projeto político-
ram produzidas e muitas vezes usadas como critérios de seleção, -pedagógico são protagonistas, atuantes, e procuram eles mesmos
de exclusão de alguns e de inclusão de outros. formas de responder pelo engendramento e fortalecimento de ações
A escola de Ensino Médio deve desenvolver ações para que de transformação. A comunidade escolar – gestor educacional, co-
todos(as), negros(as) e não-negros(as), construam suas identida- ordenadores, orientadores, professores e demais profissionais que
des individuais e coletivas, garantindo o direito de aprender e de trabalham na escola, estudantes, pais, mães e parentes responsá-
ampliar seus conhecimentos, sem serem obrigados a negar a si veis – deve assumir a responsabilidade coletiva e individualmente.
próprios ou ao grupo étnico-racial a que pertencem. É na perspec- Considera-se a inserção das Diretrizes no Projeto Pedagógico
tiva da valorização da diversidade que se localiza o trabalho com da escola como a assunção de um conjunto de valores, e elas de-
a questão racial, tendo como referência a participação efetiva de vem interferir na gestão da escola e não apenas da sala de aula ou
sujeitos negros(as) e não-negros(as). na disposição dos conteúdos curriculares, ainda que se dê também
por meio dos saberes disciplinares.
2. PROPOSTAS EM DIÁLOGO COM OS PROJETOS Dessa forma, uma possibilidade de trabalho recai sobre a mo-
POLÍTICOPEDAGÓGICOS vimentação dos conteúdos, de acordo com as áreas de conheci-
mento apontadas nos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio,
Intervir por meio do Projeto Político-Pedagógico, ressignifi- de maneira que o currículo seja organizado ao longo do curso, se-
cado construído coletivamente com base na realidade de cada es- gundo descreve Tomaz Tadeu da Silva (1999, p. 150), como lugar,
cola, é o que esse Plano de Ação propõe ao afirmar a mudança espaço, território no qual são incentivadas as discussões, o enten-
em práticas em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para a dimento e as negociações das relações de poder. De acordo com
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História o autor, “o currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é
e Cultura Afro-Brasileira e Africana. autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja
nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O cur-
Defende-se serem esses os caminhos possíveis para elaborar rículo é documento de identidade”.
uma proposta de matriz curricular que redirecione a organização Sobre essa questão, pesquisadores/as sobre relações raciais,
e a dinâmica da unidade escolar, de modo que o fazer pedagógico entre os quais Gonçalves e Silva (2001), Gomes (2004) e Passos
seja um fazer político que se disponha a detectar e enfrentar as (2002), ao abordar a situação do currículo do ponto de vista antir-
diversas formas de racismo e a valorização da diversidade étnico- racista, afirmam que a escola, em suas práticas cotidianas, ainda
-racial na escola, particularmente nas de Ensino Médio. Isso não se não possui referenciais voltados para a promoção da igualdade
faz em completa harmonia, tampouco apenas no discurso. étnico-racial. Observa Passos que:

Didatismo e Conhecimento 152


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
(...) se a escola reflete o modelo social na qual está inseri- 3. PROPOSTAS E PROJETOS
da, isso significa que nela também estão presentes as práticas das
desigualdades sociais, raciais, culturais econômicas e que de- As temáticas e atividades sugeridas devem afetar o cotidiano
terminados grupos sociais ainda estão submetidos na sociedade escolar, provocando alterações que serão mais ou menos visíveis
brasileira. Do mesmo modo, temos nela as possibilidades para a em curto e médio prazos. A sala de aula passa a ser mais um dos es-
superação das formas mais variadas de preconceito e desigualda- paços que, de acordo com o projeto político-pedagógico da escola,
de (2002: 21). movimentam e dão corpo às propostas em curso.
Recomenda-se o trabalho por projetos, conforme Hernández
Isso implica considerar que a escola, ao mesmo tempo em que & Ventura (1998), Torres (1998) e Carneiro (2001), relacionados
discrimina, ao pensar a superação desse estado e na perspectiva com a vivência, experiência e valores da comunidade escolar,
antirracista, contempla um projeto e um currículo que: propiciando tanto a ruptura com uma visão limitada das relações
étnico-raciais, como também a crítica ao etnocentrismo. Tal pro-
- adotam metodologias que propiciem ao educando a gestão cesso de desenvolvimento envolve desde a organização física da
do ensinar e do aprender, consoante sua identidade e objetivos da escola, a maneira como é atendida a comunidade que procura a
modalidade; unidade escolar, a aparência das paredes, dos murais e dos cartazes
que informam como e com quem a escola estabelece alianças e a
- contemplam o saber escolar e o extraescolar para além das concepção de mundo e de homem presente no espaço.
áreas de conhecimento obrigatório da Base Nacional Comum; Ressalta-se que o trabalho por projetos é uma das dimensões
fundamentais deste processo, pois necessariamente coloca as pes-
- diversificam as experiências de aprendizagem, pautadas em soas em contato e exige negociação de posturas e princípios na es-
situações cotidianas que desmascaram mitos e preconceitos em re- colha das perguntas a serem respondidas, do que se quer conhecer,
lação à população negra; de quais estratégias investigativas eleger e também da visualização
- enfatizam o respeito pela dignidade da pessoa humana, a di- do potencial de transformação do cotidiano presente nos projetos
que estabelecem relações mais próximas com o cotidiano, com a
versidade cultural, a igualdade de direitos e a corresponsabilidade
realidade. Educar para a diversidade implica precisamente conce-
pela vida social, como elementos que orientam a seleção de conte-
ber a escola como um espaço coletivo de aprendizagens.
údos e a organização de situações de aprendizagem;
As mínimas atitudes merecem atenção, observação e escuta,
- promovem não apenas o reconhecimento, mas a incorpora-
bem como informam, dizem quem são os alunos e as alunas, o
ção de atitudes que ressaltem as diferenças de forma que sejam
que querem, o que fazem e que papel pode ter a escola em suas
tomadas como constituintes de identidade dos sujeitos, na perspec-
vidas. É esse olhar atento, desenvolvido coletivamente, que des-
tiva da transformação das relações sociais;
cortina os temas importantes para a vida da comunidade escolar.
- ampliam e criam espaços para reflexão e troca entre a escola
Tal movimento de aprender e de ensinar, como já assinalado re-
e a comunidade por meio de alianças com organizações e institui- quer estabelecer parâmetros de interação nos quais negros(as) e
ções públicas e privadas da sociedade civil, comprometidas com a não-negros(as) sintam e experienciem a escola como espaço de
promoção da equidade social e racial, bem como organizações do acolhida. Assim, além de dialogar e problematizar, é necessário
movimento social negro. pensar soluções que, no cotidiano, interfiram e alterem a realidade.
Ao trabalhar por projetos visando a apresentar e valorizar a
Ao ter contemplado tais aspectos, o currículo, como um dos participação da população negra na história e cultura brasileiras,
elementos de um projeto político-pedagógico, é reconstruído na também podem ser focalizados os recursos e materiais didáticos, a
direção da diversidade, respeitando os princípios que têm sido ambientação da sala de aula, os espaços de troca e de solidariedade
entendidos como norteadores para uma educação antirracista: pe- entre docentes e discentes, o tratamento interpessoal, bem como o
dagogia multicultural, coletiva, cooperativa e comunitária, multi- tratamento das informações que circulam dentro e fora da comu-
dimensional e polifônica, que preserva a circularidade, a territoria- nidade, além das diversas formas de registro, acompanhamento e
lidade e a ancestralidade africanas. avaliação de atividades.
As possibilidades de inserção das Diretrizes para a Educação
2.2 Organização Curricular do Ensino Médio das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana nos currículos escolares e no cotidiano
O presente trabalho os entende como pertinentes às três áre- avançam à medida que o aprender esteja relacionado com a vivên-
as de conhecimento que figuram no PCNEM. São importantes e cia, experiência e os valores da comunidade envolvida.
em grande medida dialogam com as orientações voltadas para as Nesse ponto de vista, torna-se imprescindível considerar o
diretrizes de uma pedagogia de qualidade (BRASIL, 1999, p. 80- conhecimento e as perspectivas de vida do público jovem que fre-
106). Ainda que não detalhados, são entendidos como presentes quenta as salas do Ensino Médio como motor de toda e qualquer
em qualquer ambiente educativo no qual os(as) jovens sejam o proposta. É preciso atentar para o fato de que juventude não é so-
centro de atenção. Serão suas trajetórias de vida que irão atribuir mente um tempo da vida de preparação para a fase adulta, e sim
significados ao ambiente, marcando o que merecer ser discutido um tempo social, cultural e de construção de sua identidade. Esses/
durante a estada na escola. Tratar desses temas é fundamental para as jovens têm já uma história e precisam se reconhecer como pro-
tomar o processo de construção do conhecimento como espaço de tagonistas e sujeitos de sua trajetória, e a escola necessita respei-
questionamentos, de reflexão e de compreensão de si e do outro, tar e ouvir o que eles/as desejam, chamá-los(as) e entendê-los(as)
como espaço de experimentações e de transformações. como parceiros(as) na construção das práticas pedagógicas.

Didatismo e Conhecimento 153


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(...) Além disso, essa memória não pertence somente aos negros.
RIBEIRO, V. M. Para ler as políticas e as práticas de leitura no Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos
Brasil. In: Observatório de Educação e da Juventude. (Org.). EM alimentamos cotidianamente é fruto de todos os segmentos étni-
QUESTÃO 2 - Políticas e práticas de leitura no Brasil. 1ª ed. São cos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvol-
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Este texto compartilha ideias e possibilidades no sentido de
SOUZA, Ana Lúcia Silva. VÓVIO, Cláudia Lemos & OLI- fortalecer práticas políticas e pedagógicas na modalidade de Edu-
VEIRA, Márcia Cristina. Construindo projetos para Educação de cação de Jovens e Adultos (EJA), que reafirmem o compromisso
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2004. Na primeira parte, o texto traz um breve histórico da educação
de jovens e adultos, demonstrando que em sua trajetória de cons-
SPOSITO, Marilia P. Juventude: crise, identidade e escola. In: tituição, nos sistemas de ensino formais e não formais, ainda não
DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos olhares sobre educação e cul- contempla práticas educativas que abarquem as relações raciais da
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social negro, que por meio de mecanismos diferentes e fases dis-
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Campinas, n. 19, p. 76-86, jan./abr. 2002. de uma educação antirracista, apresentando aos educadores pos-
sibilidades de atuação para a inserção de práticas educacionais,
e também políticas, para a educação das relações étnico-raciais.

Didatismo e Conhecimento 155


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
1. EJA: CONCEPÇÕES, AVANÇOS E DESAFIOS A Educação de Jovens e Adultos é aqui reconhecida conforme
expresso na Declaração de Hamburgo (1997) e nas Diretrizes Cur-
Nos últimos anos, dentro de um cenário de grandes e rápidas riculares Nacionais desta modalidade, de acordo com a Resolução
transformações econômicas, políticas e sociais, as concepções de CNE/CEB nº. 1 / 2000, como direito de todos os cidadãos que não
educação sofrem impactos significativos. Diante da necessidade iniciaram ou não completaram sua escolaridade básica por dife-
de responder às demandas por condições de exercício da cidada- rentes motivos.
nia, a sociedade e o Estado, sensibilizados, vão reconhecendo a Trata-se também de considerar a educação continuada e per-
urgência de elaborar e implementar políticas públicas da juventude manente, no sentido em que aparece na Declaração de Hamburgo:
dirigidas à garantia da pluralidade de seus direitos, dentre eles, a
educação. A educação de jovens e adultos ganha destaque na agen- um conjunto de processos de aprendizagem formal ou não,
da das políticas públicas brasileiras. A Lei nº 9.394/96 estabelece, graças ao qual as pessoas são consideradas adultas pela socie-
no art. 4, inciso VI, “oferta de ensino noturno regular, adequado dade a que pertencem, desenvolvem as suas capacidades, enri-
às condições do educando”; e no inciso VII, “oferta de educação quecem os seus conhecimentos e melhoram as suas qualificações
escolar para jovens e adultos, com características e modalidades técnicas e profissionais, ou as orientam de modo a satisfazerem as
adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se suas próprias necessidades e as da sociedade (...) compreende a
aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência educação formal e a educação permanente, a educação não for-
na escola”. mal e toda gama de oportunidades de educação informal e ocasio-
Ao mesmo tempo em que se consolidam as políticas para a nal existentes em uma sociedade educativa, multicultural em que
educação de jovens e adultos na realidade brasileira, tem sido cada são reconhecidas as abordagens teóricas e baseadas na prática.
vez mais crescente a discussão em torno das especificidades do pú- (Art.3º da Declaração de Hamburgo)
blico que frequenta os espaços em que essa educação ocorre, sujei-
tos homens e mulheres, negros, brancos, indígenas, jovens, idosos. A EJA na atual Constituição Brasileira também garante o di-
Na perspectiva de considerar essa modalidade de ensino não reito ao Ensino Fundamental obrigatório, inclusive para jovens e
como compensatória, supletiva, de aceleração dos estudos para adultos, institucionalizando a educação como direito, compreendi-
sujeitos de direito e não de favores, sua atuação não pode descon- da como “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Consti-
siderar a questão étnico-racial com centralidade, dado o perfil do
tuição Federal 1988, art.205).
público a que atende: majoritariamente negro.
Essa atitude política do governo federal reflete uma mudança
Repensar a EJA numa perspectiva da educação antirracista
radical na reconfiguração da educação de jovens e adultos: o Es-
requer criar formas mais democráticas de se implementarem as
tado assume publicamente responsabilizar-se por EJA, e criam-se
ações e projetos para esse público, pautando a multiplicidade do
estruturas gerenciais para EJA nas secretarias municipais e estatais
tripé espaço-tempo-concepção na sua organização e desenvolvi-
de Educação, configura-se no MEC um espaço institucional para
mento.
essa modalidade de ensino, além de as universidades abrigarem
Dentre os desafios colocados para o EJA, está o de possibilitar
novos cursos de formação de educadores de jovens e adultos.
a inclusão da discussão sobre a questão racial não apenas como A realização da V Confintea – Conferência Internacional de
tema transversal ou disciplina do currículo, mas como discussão, Educação de Adultos – Alemanha/1997 produziu forte impacto
problematização e vivências. para o campo da EJA no Brasil, pois a partir daí iniciou-se um
Neste texto, estamos atentos aos moldes da educação popular, processo de articulação dos fóruns estaduais e em âmbito nacional
fiel aos princípios freireanos, que apostava numa relação dialogal – Encontro Nacional de Jovens e Adultos (Eneja).
da prática pedagógica. Faz-se necessário considerar a articulação Os fóruns vêm desempenhando uma articulação extremamen-
entre os princípios de educação propostos aqui e as diversas práti- te significativa entre as instituições envolvidas com EJA, além de
cas sociais de oralidade, de leitura, bem como desvendar o funcio- apresentar-se como um espaço político-pedagógico de formação e
namento da escrita para o jovem e adulto de forma a possibilitar trocas de experiências de grande importância.
sua inserção no mundo letrado. Enfatiza-se que a alfabetização Contudo, os resultados têm se mostrado insuficientes no que
ganha sentido na vida dos estudantes, conforme Vóvio (2003:03) se refere à garantia de qualidade do ensino, o que pressupõe con-
quando eles puderem entender e usar os conhecimentos no coti- siderar o perfil dos estudantes, reorganizar currículos de maneira
diano e para isso precisam “desenvolver novas habilidades e criar que a realidade seja sempre ponto de partida para as ações, repen-
novas motivações para transformarem-se a si mesmos, interessar- sar currículo e metodologia adequada, além de formação de pro-
-se por questões que afetam a todos e intervir na realidade da qual fessores capazes de dar conta de um contingente cada vez maior de
fazem parte, simultaneamente ao aprendizado da escrita”. jovens e adultos que busca a continuidade dos estudos.
Desta maneira, da etapa de alfabetização ao equivalente En- De acordo com o Censo Escolar de 2003, 3,7 milhões de es-
sino Médio, é fundamental propiciar condições para que os estu- tudantes com 25 anos ou mais estavam matriculados nos ensinos
dantes sejam usuários da escrita de forma efetiva. Ou seja, que fundamental e médio regulares e na educação de jovens e adultos
vivenciem atividades e eventos nos quais relacionem os usos da (INEP, 2004),
escrita aos problemas e desafios do cotidiano, buscando soluções, Os dados do Censo Escolar, realizado anualmente pelo Insti-
produzindo novos saberes e avaliando a importância destes no tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixei-
contexto em que vivem. Que a aprendizagem, seja, portanto, por- ra (INEP/MEC), comprovam a volta à escola da população adulta.
tanto, significativa para o jovem e adulto ser e estar no mundo Há cinco anos 2,6 milhões dos alunos da Educação Básica tinham
local, regional e global. idade de 25 anos ou mais. Em 1999, eles representavam 5,5% das

Didatismo e Conhecimento 156


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
46,9 milhões de matrículas do Ensino Fundamental e médio e da Brasileira, propunha um processo de educação popular voltado
educação de jovens e adultos. O maior contingente de estudantes para a população negra. Segundo GOMES (2005), essas organi-
de 25 anos de idade ou mais foi verificado na Região Nordeste, zações negras, além de denunciar o racismo, construíam estraté-
onde estuda 1,6 milhão. Entre os estados, São Paulo e Bahia têm gias com o objetivo de preencher as lacunas deixadas pelo Estado
mais alunos: 531 mil e 465 mil, respectivamente. No Pará e no brasileiro em relação aos processos educativos escolares voltados
Acre foram registrados os mais elevados índices (14,9% e 13,2%, para o segmento negro da população.
respectivamente) de matrículas nessa faixa etária. Por outro lado, Também o Teatro Experimental do Negro (TEN), na déca-
o menor percentual está em Minas Gerais: 3,5%. (INEP, 2004: 01). da de 50 desenvolveu projeto que articulou a discussão da edu-
São inúmeros significativos para uma modalidade de ensino cação da população negra em torno de suas várias estratégias de
que ainda não conta com recursos próprios para sua permanência, atuação: teatro, estudos e ações políticas, entre elas a experiência
que muitas vezes é pensada e adaptada aos modelos de sistema educacional. Como apontam Lima & Romão (1999, p.43), o TEN
escolar, como o Ensino Fundamental e médio, como as únicas for- empreende pioneiramente um grande movimento em que articula
mas de garantir direito à educação.
arte e educação, tendo como cenário o teatro, implementando uma
É cada vez mais urgente que iniciativas governamentais (es-
proposta pedagógica para os negros e todos os interessados em
pecialmente de municípios) e não-governamentais garantam por
seu projeto. No curso de alfabetização de pessoas adultas, uma
meio da elaboração do Projeto Político Pedagógico, da organiza-
das atividades chegou a reunir centenas de pessoas - empregadas
ção curricular e das práticas educacionais, o acesso, a permanência
e a qualidade da educação nesta modalidade de ensino, o que não domésticas, trabalhadores da construção civil e outros.
pode ser realidade sem considerar as questões étnico-raciais. A exemplo destes, existe um sem-número de iniciativas reali-
Torna-se imprescindível reafirmar princípios expressos tais zadas de maneira mais ou menos sistemática junto ao movimento
como na Declaração de Hamburgo, que aponta aspectos impor- social negro e entidades de diversos movimentos sociais. Para citar
tantes para a EJA relativos ao direito à diversidade e igualdade e os contemporâneos, elencamos os trabalhos desenvolvidos na área
que estão associados aos princípios de uma educação antirracista. de educação da população negra pelo CEAO – Centro de Estudos
A educação de jovens e adultos enfrenta um grande desafio, Afro-Orientais e o CEAFRO de Salvador/Bahia, e o NEN - Núcleo
que consiste em preservar e documentar o conhecimento oral e de Estudos Negros de Florianópolis/SC. Essas instituições do mo-
cultural dos diferentes grupos. A educação intercultural deve pro- vimento social negro encontram-se envolvidas com prestação de
mover o aprendizado e o intercâmbio de conhecimento entre e so- serviço, assessoria e organização de propostas de educação para
bre diferentes culturas, em favor da paz, dos direitos humanos, das negros e negras, ora em parceria com as secretarias municipais e
liberdades fundamentais, da democracia, da justiça, coexistência estaduais de Educação, ora sozinhos nessa empreitada, sem nenhu-
pacífica e da diversidade cultural (CONFINTEA, 1997). ma contribuição do Estado.
Se no passado a luta era para possibilitar o acesso, na atuali-
2. SUJEITOS PRESENTES NA EDUCAÇÃO DE JO- dade ela focaliza a permanência na escola. Quanto mais próximo
VENS E ADULTOS das estatísticas que apontam situações de exclusão social os(as)
jovens estiverem, mais marcados são como um problema. No que
A educação de jovens e adultos, embora pontuada por várias se refere à educação do jovem negro a questão ganha ainda mais
iniciativas da sociedade civil ligadas a diversas organizações e densidade, pois são eles que figuram como detentores dos mais
movimentos sociais - sindicatos, igrejas, associações, ONGs —, e baixos índices nas avaliações escolares sendo expulsos da escola.
que todo este conjunto de iniciativas ocorrendo, em grande parte, É exatamente nesse novo momento que vive a sociedade bra-
fora do sistema formal de educação, tenha concebido e sustentado sileira em que se discutem ações afirmativas para e com a popula-
uma série de iniciativas comprometidas, em maior ou menor in- ção afrodescendente, que a Educação de Jovens e Adultos também
tensidade com os setores inferiorizados da população, ainda não é ponto de pauta. Todo o conjunto de ações políticas, públicas e
tem priorizado temáticas que coloquem a educação da população
privadas, de caráter compulsório, que têm como objetivo corrigir
negra como foco.
desigualdades sociais e étnico-raciais necessita ser abarcado pela
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
EJA, por seu caráter de transformação da sociedade por meio de
(IBGE), os negros – pretos e pardos – representam 45% da popula-
ações de inclusão social e garantia de igualdade de oportunidades
ção brasileira. O pesquisador Marcelo Paixão nos chama a atenção
para o seguinte fato: para todos, possibilitando que os(as) historicamente excluídos(as)
estejam presentes neste espaço-tempo de educação a que têm di-
é evidente que, ao contrário do que pregam alguns estudos reito.
acadêmicos e o senso comum, a questão racial está longe de ser Quando chegam à EJA, em sua maioria, jovens e adultos es-
um problema menor ou típico de minorias (...) assim, simplesmen- tão desmotivados, vêm de anos de afastamento da escola e, ainda,
te não há como superar as injustiças sociais e a exclusão em nosso de muitos processos de exclusão vivenciados em diferentes mo-
país sem que o negro, e o seu movimento organizado, seja o pon- mentos da vida e por motivos distintos: social, educacional, racial,
to de partida e o ponto de chegada das análises e das políticas geracional e de gênero.
(2003:131-132). Considerar tais aspectos aponta a necessidade de tomar o
adulto, mas especialmente a juventude, como um grupo hetero-
Para citar apenas dois momentos históricos na luta por igual- gêneo, caracterizado para além da faixa etária, considerando-se
dade de educação para negros e brancos, ponderamos sobre o mo- outras variáveis relativas às condições de vida e ao pertencimento
vimento social negro, que já na década de 30, com a Frente Negra étnico-racial dos sujeitos.

Didatismo e Conhecimento 157


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Se a presença da juventude negra encontra-se em crescimento Os saberes em torno dos sujeitos da EJA devem constituir-se
na EJA, o fato por si só obriga o/a professor/a a ponderar sobre sua como a matéria-prima da construção dos projetos e atividades pro-
atuação e conferir um lugar a esses jovens, de maneira que possam postas. São esses sujeitos que irão tecer com os fios de suas vidas
conceber-se sujeitos no processo educativo. Conhecer essa juven- a colcha da educação de jovens e adultos.
tude e realizar com ela movimentos de desvelamento da realidade De onde vêm? Para que vieram? Com quem e onde vivem?
como princípio de aprendizagem significativa, reconhecendo os O que buscam? O que gostam de fazer em seu tempo livre? Todas
saberes dos diferentes jovens, é de fato o que deve mover a cons- essas questões devem sempre perpassar uma proposta pedagógica
trução do conhecimento dessa modalidade de ensino. Vários estu- de EJA.
dos realizados acerca da juventude têm constatado que no geral o/a A proposta de EJA articulada a uma pedagogia antirracista
jovem não tem sido entendido como sujeito de direitos (SPÓSITO, cria estratégias para garantir a permanência na escola de quem a
1996; DAYRELL 1996; CORTI & SOUZA, 2005; SOUZA, 2005; ela retorna; necessita, ainda, construir condições de acompanha-
ABAD, 2003; ARROYO, 2001.) e, consequentemente não exerce mento coletivo do processo de envolvimento e aprendizagem dos
protagonismo nos espaços educativos. estudantes, o que pode ocorrer com reuniões pedagógicas constan-
Se as expectativas em relação ao processo de aprendizagem tes, nas quais o projeto pedagógico é discutido e reorganizado com
estão relacionadas não apenas às condições socioeconômicas, o olhar de todos. O trabalho realizado a partir dessa concepção se
mas também aos hábitos culturais e geracionais e, ainda, aos co- fundamenta inteiramente nos sujeitos envolvidos nesse processo
nhecimentos, habilidades e procedimentos, crenças e valores que de ensino e aprendizagem coletivo, tanto estudantes quanto edu-
possuem os diferentes sujeitos que frequentam a escola (RAAB, cadores/as aprendem e ensinam, respeitam e são respeitados em
1999), é preciso apreender a bagagem cultural diversa dos(as) suas diferenças.
estudantes, especialmente quando diferentes faixas etárias se cir-
cunscrevem nesse espaço. 3.1 Os primeiros contatos
Também o conhecimento do universo afro-brasileiro no qual
está inserido esse público majoritário de EJA necessita vir à tona, Atitudes plenas de recepção e inclusão na chegada dos alunos
ocupar espaço, tornar-se integrante dos projetos desenvolvidos na e alunas na procura pela vaga ou no momento da matrícula podem
escola.
tornar-se um momento privilegiado para o conhecimento dos su-
jeitos parceiros nesse caminho a ser percorrido. Recebê-los bem,
3. O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E O CUR-
dizer que fizeram uma boa opção, que tomaram a decisão certa ao
RÍCULO
voltar a estudar, ouvi-los, apresentar a escola novamente para es-
ses estudantes, estando ao seu lado, são atitudes plenas de acolhida
Além de considerar o conhecimento que os(as) estudantes de
e inclusão voltadas para uma educação antirracista.
EJA trazem consigo, é necessário construir propostas pedagógicas
As conversas individuais ou coletivas no momento da chega-
a partir da vivência cotidiana dos/das estudantes, de sua práticas
da à escola, quando são dadas as boas-vindas e há um breve relato
sociais e profissionais, religiosidade, opções de lazer e suas vivên-
do fazer pedagógico, são momentos preciosos para essa escuta, o
cias socioculturais.
Cada um com seu retalho, de cor, de textura e tamanho dife- que implica uma aproximação grande entre os sujeitos envolvidos,
rentes busca costurar e contribuir com o gestar do que acontece pois tanto quem recebe quanto quem é recebido precisa sentir-se
no espaço educativo marcado pelo muito que se aprende e que se acolhido e acolhendo.
ensina com as histórias de vida de todos os envolvidos. Abarcar os Nestes primeiros contatos, informações relevantes que podem
diferentes e suas diferenças requer disposição para uma tomada de compor um roteiro de entrevista ou questionário voltado à ava-
postura política. liação diagnóstica, contendo itens como: vida pessoal e familiar,
Acolhendo as palavras de Gomes, uma proposta pedagógica escolaridade e trabalho, coleta e organização, sistematização e
que contemple a diversidade étnica e racial dos sujeitos de EJA análise e o uso constante das informações como um dos principais
carrega em si uma contradição: referenciais para o planejamento coletivo podem ser construídas e
desenvolvidas por todos, como parte das atividades do cotidiano
(...) ao mesmo tempo em que se faz necessária a luta pela da EJA, aliadas aos conteúdos tradicionais do currículo regular. A
inclusão da questão racial nos currículos e práticas de EJA, é ne- construção de uma pedagogia antirracista pressupõe que a fala do
cessário reconhecer que ela já está presente na EJA por meio dos sujeito receba tratamento privilegiado e se constitua como um dos
estudantes pobres e negros que majoritariamente frequentam essa aspectos centrais para o desenvolvimento das atividades e constru-
modalidade de ensino (2005:94). ção de projetos para a EJA.

Por que não há inclusão da temática negra nas práticas po- 3.2 Diagnóstico e organização curricular
lítico-pedagógicas de EJA? Ou quando ela se dá é quase sempre
de modo transversal e não como eixo norteador dos trabalhos e O/a jovem ou o/a adulto/a que busca novamente a escolariza-
propostas desenvolvidas? ção formal não pode ser pensado/a como um/a mero/a portador/a
Não há aqui a intenção de responsabilizar os(as) educadores/ de “conhecimentos prévios” que precisam ser resgatados pelo/a
as de EJA por não incluírem em seus projetos pedagógicos a temá- educador/a, mas sim um sujeito que já construiu sua história de
tica étnico-racial, mas sim ressaltar a ausência de uma política de vida, uma identidade própria e que, cotidianamente, produz cul-
formação específica para essa atuação nos cursos de licenciatura. tura.

Didatismo e Conhecimento 158


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A observação e a escuta atenta dos movimentos coletivos 3.4 Interação em sala de aula
constituem espaço para o reconhecimento da discriminação e do
preconceito, bem como para a construção de alternativas e outras As propostas pedagógicas necessitam, ainda, levar a cabo os
posturas às atitudes e tratamentos racistas e discriminatórios - des- princípios da dialogicidade da educação, as abordagens sociointe-
de o apelido não consentido até criar espaço de reconhecimento racionistas da linguagem e a alfabetização pautada numa perspec-
de dificuldades e potencialidades na produção de novos conheci- tiva de letramento (KLEIMAM, 1985).
mentos dos(as) estudantes negros(as). Essas são ações primordiais Considerar que nosso pensamento emerge e transforma-se na
e simples de se adotar quando concordamos que as diferenças não interação com o outro é essencial para perceber que a língua não
podem ser tomadas por desigualdades. É essencial desnaturalizar pode ser concebida como um simples código linguístico; ela é um
as desigualdades e compreender o significado das diferenças. instrumento poderoso para persuadir, interagir, emocionar-se, ex-
Respeitando e incorporando a diversidade que compõe a es- plorar e se comunicar. A interação social é, portanto, a concretude
cola, bem como permitindo uma construção, de fato, coletiva, em da linguagem, é preciso que o ensino da língua em sua variante de
que a voz de cada sujeito envolvido possa ser ouvida, estamos de- prestígio, se torne significativo, baseado em fatos cotidianos dos
senvolvendo uma pedagogia transformadora. sujeitos envolvidos. Reconhecer e legitimar estratégias e instru-
mentos culturais e não-formais que permitem sua inserção e in-
3.3 Projetos e Planejamento das aulas teração em diferentes espaços sociais – a oralidade, a leitura de
rótulos, painéis, placas, números e códigos visuais – constituem
Considerar as biografias, as histórias de vida dos(as) estudan- recursos apropriados.
tes como elemento fundamental para a construção coletiva de um Todo/a jovem e/ou adulto/a que se dispõe a retomar os estudos
perfil EJA: Quantos somos? Mais homens ou mais mulheres? Que necessita ser pensado/a como um ser produtor de cultura e de sa-
ocupação diária vem sendo mais desenvolvida pela maioria? O beres, um vencedor em sua luta cotidiana pela sobrevivência, por
que fazemos para nos divertir? Qual a faixa salarial dos que tra- isso suas estratégias de leitura do mundo jamais devem ser deixa-
balham? Quantos(as) têm filhos, em qual região mora a maioria? das de lado, antes necessitam ser consideradas como pressupostos
Qual a faixa geracional que mais apresenta alunos(as)? Quais e para a leitura escolar.
quantos(as) são negros(as)? A organização desses dados precisa, Como afirmava Paulo Freire o problema principal não é o
necessariamente, ser preparada por todos(as), desde a elaboração analfabetismo, mas as condições de vida da população analfabeta.
das questões até as respostas, com resultantes desse trabalho. Devemos acrescentar ainda, as condições de tratamento a que a
população negra analfabeta está submetida.
Na busca por uma proposta metodológica, pode-se optar co-
letivamente por temas considerados importantes para a maioria:
3.5 Oralidade e Linguagem
histórias de vida, relações familiares; história local e os problemas
da região; trabalho, profissões, dificuldades de inserção no merca-
Potencializar a oralidade presente nos ambientes de EJA
do, salário, direitos trabalhistas; serviços de saúde, alimentação e
e, mais, nas atividades desenvolvidas por jovens e adultos(as)
higiene; mídia e comunicação; direitos sociais e organização po-
negros(as) em suas comunidades, bem como valorizar sua atu-
lítica; religião, que evidenciarão a predominância de estudantes
ação em torno da fala representam ação político-pedagógico da
negros(as) na EJA.
educação antirracista. Ao agregar a comunidade em torno da fala
Tal proposta requer sensibilidade, pesquisa/estudo e plane- – preservação das tradições e mitos de matriz africana – os(as)
jamento do educador, posto que é preciso cuidar para que não- estudantes negros(as) estão dizendo de seu pertencimento étnico
-negros(as) não se sintam culpabilizados e que os(as) negros(as) e explicitando uma estratégia eficaz de leitura de mundo por esse
possam reconhecer sua presença e valor na construção da história viés.
e da cultura brasileira. Esta percepção e a reconstrução de seu olhar para a presença
dos estudantes negros e negras deve estar para o/a educador/a de
Na educação de jovens e adultos torna-se bastante significa- EJA, como para a população negra, voltado para a arte da oralida-
tiva a presença de qualidade, ou seja, é preciso repensar as faltas de, para a ancestralidade, fazendo-se um exercício permanente da
e ausências dos(as) estudantes, pois os mesmos são trabalhado- sabedoria.
res e seus deslocamentos geográficos são constantes: empresas A língua é um aspecto importante a ser considerado, pois
de construção civil, vigias, empregados(as) domésticos(as) com como nos assinala Martins (1996) o uso do signo linguístico cons-
seus patrões são alguns exemplos dessas idas e vindas dos(as) titui uma das formas mais perversas de segregação e controle. Se
educandos(as) de EJA. paramos para pensar na semântica, percebemos o quão opressora
esta tem sido – buscando no dicionário vamos encontrar quarenta
A utilização de recursos e dinâmicas variadas também preci- derivações do substantivo negro, contra dezesseis do substantivo
sa ser pensada de forma a incluir a temática aqui em questão. Ao branco. O substantivo negro funciona dez vezes como adjetivo e
solicitar pesquisas ou ao utilizar recursos e dinâmicas pedagógicas o branco nove. A diferença ideológica é que para o adjetivo negro
incorporar filmes, documentários, vídeos, fotografias e narrativas correspondem significados pejorativos em número de onze, e para
que destaquem ou trabalhem também com a questão racial ou que o branco apenas meio (0,5). Não podemos acreditar que é só uma
trazem referências positivas para os estudantes afrodescendentes. questão linguística, é preciso ressemantizar nossa linguagem di-
Esse trabalho deverá ser feito coletivamente, numa articulação en- ária em torno da reflexão que promova a igualdade das relações
tre grupos de alunos(as) e educadores/as. étnico-raciais.

Didatismo e Conhecimento 159


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Não há como ignorar o papel que a linguagem irá ocupar na - pensar na contribuição cultural, popular e “clássica”, in-
educação de jovens e adultos numa perspectiva de educação antir- cluindo os(as) artistas negros(as) na música, artes plásticas, dra-
racista. Ao retomar a importância da oralidade e atentar para a na- maturgia e literatura.
turalização no uso de termos preconceituosos presentes na língua
brasileira, o/a educador/a de EJA necessita ter em mãos textos de 3.7 O cotidiano em sala de aula
literatura afro-brasileira que contenham as seguintes característi-
cas: A rotina na sala de aula – espaços de troca e diálogo, o com-
- que apresentem ilustrações positivas de personagens negras; promisso, a ambientação da sala –, tudo deve favorecer a convi-
- cujos conteúdos remetam ao universo cultural africano e vência e o diálogo entre os estudantes e os educadores, todos são
afro-brasileiro; de responsabilidade de todos, o trabalho deve ser sempre coleti-
- que possibilitem aos leitores o acesso a obras nas quais habi- vo. Nesse sentido, uma cadeira vazia não é uma cadeira vazia, é
tem reis e rainhas negros(as), deuses africanos, bem como os mitos alguém que faltou por alguma razão, qual será? Vamos buscar o
afro-brasileiros; motivo e tentar ajudar para que a ausência não seja transformada
- em que as tessituras realizadas durante a leitura possam con- em evasão e exclusão?
tribuir para elevação da autoestima dos/das jovens e adultos; É preciso sempre colocar o jovem e o adulto no centro de
- que representem sem estereótipos a população negra brasi- todos os movimentos. Eles devem ser protagonistas e, para que
leira; isso ocorra, é importante abrir espaço para a sua participação. Ao
- que analisem também a contribuição das obras estrangeiras valorizar o saber dos estudantes, eles se sentem respeitados e à
em que aparecem essas personagens. Muitas delas, praticamente vontade para participar dos processos coletivos de construção de
desconhecida, rompem com a tradição de representação estereo- conhecimentos. Neste sentido podemos:
tipada das narrativas e ilustrações em relação à população negra. - Abordar as manifestações culturais tradicionais presentes na
comunidade e dialogar a memória desses sujeitos enquanto traba-
3.6 Alfabetização, Língua Portuguesa, História, Artes e lhadores rurais, filhos e/ou netos de festeiros. Isso abrange a or-
Literatura ganização política desses grupos, a herança musical das famílias
dos(as) jovens; as visões de mundo que os fortalecem para o en-
As atividades de leitura e de produção de textos precisam ser frentamento diário contra o racismo existente na sociedade em que
planejadas com o intuito de problematizar a vivência cotidiana dos se inserem; a posição que os(as) jovens ocupam na manutenção
educandos e agir sobre ela, transformando-a. dessa herança ancestral e os conflitos que isso gera em confronto
É preciso explicitar em que medida o uso da linguagem enten- com a modernidade; e, ainda, utilizar esse manancial cultural para
dida como prática social ocorre em determinados contextos e em as aulas: letras das músicas, os cantos, os ritmos etc.
determinadas situações. A linguagem serve para marcar o lugar de - Buscar, organizar e sistematizar mecanismos que possam
onde falamos; assim devemos levar para os alunos e alunas textos utilizar os movimentos culturais de rua dos(as) jovens – suas rea-
que circulam em diferentes esferas sociais: imprensa escrita, mí- lizações com o corpo, com a música, com as artes plásticas, com a
dia, literatura e escola, para serem discutidos a partir dos prévios comunidade. Este cotidiano das culturas juvenis pode fazer parte
conhecimentos dos educandos, construindo, desse modo, diferen- das propostas pedagógicas da escola.
tes estratégias de leitura, como antecipação de sentidos, inferên-
cias, localização de informações, interpretação de pressupostos, 3.8 Tratamento das informações
entrelinhas, dentre outras. As informações que circulam ao redor da comunidade são o
Porém, se a exclusão social se dá de forma material e simbó- motor para a elaboração do planejamento, das atividades e dos pro-
lica ao negarmos as contribuições e presença do negro na história jetos a serem desenvolvidos em conjunto - as atividades, os conte-
e cultura brasileira, assim como dos povos dos quais descende, da údos, as estratégias metodológicas, o registro, o acompanhamento,
sua herança africana produzimos uma exclusão simbólica. a avaliação e a circulação destes aprendizados, a relação com a
Ao enfatizar o ensino de história e cultura africanas e afro- comunidade externa e a relação com os conhecimentos adquiridos
-brasileiras, deve-se buscar conhecer os espaços de tradição e de anteriormente –, isto é aprender ao longo da vida.
cultura afro-brasileira em suas diversas formas de preservação e
manifestação: os tradicionais espaços religiosos como os terrei- A superação do paradigma compensatório cede lugar à educa-
ros, os congados, os batuques, folias de reis, maracatus, tambor ção entendida como um direito de todos os sujeitos, com garantia
de crioula, entre outros, que devem ser tomados como aspectos de educação de qualidade e que possibilite o fortalecimento dos
fundamentais para estabelecer vínculos com a ancestralidade, no sujeitos na reflexão sobre sua realidade e sobre as questões que
que se refere a lugares de constituição de identidades da população afetam a todos, e na busca coletiva de soluções para enfrentá-las.
negra. Sugere-se:
- partir da genealogia da família dos/das estudantes para con- Sugere-se garantir a participação ativa dos estudantes em pro-
tar e recontar a história de África e de africanos, bem como de seus cessos educativos que sejam significativos para as práticas sociais
descendentes escravizados no Brasil; nas quais estajam envolvidos, desde as mais imediatas até as mais
- retomar conhecimentos que a vida ensinou: medidas constru- difusas, próprias das demandas da atual sociedade.
ídas de maneira alternativa, curas populares, jogos e brincadeiras Alguns movimentos simples são necessários e possibilitam
infantis que remontam aos séculos passados, de origem africana; que as atividades desenvolvidas se tornem parte da construção de
- realizar leitura de textos que se referem aos processos de uma escola que, de fato, respeite os sujeitos desse espaço –, estu-
resistência da diáspora africana no Brasil; dantes e educadores.

Didatismo e Conhecimento 160


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
3.9 Registro e Avaliação BARBOSA, Márcio (org.). Frente Negra Brasileira: depoi-
mentos/entrevistas e textos. Quilombhoje. São Paulo: Quilombho-
Manter os princípios de uma educação antirracista significa je, 1998.
também pensar outras maneiras para avaliar o processo educativo.
A avaliação, entendida como um processo, assume não apenas BENTO, Maria Aparecida Silva. Cidadania em preto e bran-
informar sobre o desempenho e as aprendizagens finais, classifica co: discutindo as relações raciais. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2000.
e medir, o que é pertinente com uma concepção de educação ex- (Discussão aberta, 9)
cludente, mas sim, como uma das maneiras de acompanhar, dar
suporte, conhecer, acolher percursos individuais dos estudantes, BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil.
bem como os modos de aprender e de usar estes conhecimentos São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1988
nas práticas que desenvolvem as necessidades de formação.
Nessa etapa o registro mostra-se fundamental: anotações in- BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. D.O.U de
dividuais desde a avaliação diagnóstica, bem como os registros 10/01/2003.
coletivos em cadernos de memória, nos quais a cada dia um dos
estudantes se torna responsável, ou ainda as pastas com materiais BRASIL. LEI nº. 9.394. LDB - Leis de Diretrizes e Bases da
diversos: textos, fotos etc... Educação Nacional., de 20 de dezembro de 1996. D.O. U. de 23
Para além dos objetivos gerais a que se propõem os progra- de dezembro de 1996.
mas, outros devem ser estabelecidos em conjunto e de acordo com
as necessidades e realidade dos estudantes, das comunidades em BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curri-
que vivem, das atividades que realizam dos seus sonhos, de seus culares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Resolução
projetos e de seus desafios. CNE/CEB 01. D.O.U. de 3 de julho de 2000.
Nesse processo de avaliar, é preciso incluir os espaços fora da
sala de aula para abranger as atividades externas junto à comunida- BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de
de – os espaços de manifestações culturais, as festas nas casas das Educação Fundamental. Alfabetização de jovens e adultos: diag-
pessoas, os festivais e jogos coletivos. nosticando necessidades de aprendizagem. Brasília: MEC: FNDE,
1999.
Os projetos pensados necessitam promover a circulação pelos
espaços culturais da cidade com o objetivo de ampliar o acesso aos
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de
lugares políticos e culturalmente valorizados, de maneira que a cir-
Educação Fundamental. Educação de Jovens e Adultos. Parâme-
culação possa ser entendida como direito e exercício de cidadania.
tros em Ação. Brasília: MEC, 1999.
A ocupação dos espaços culturais privilegiados deve ser pensada
como uma das estratégias de tornar a cultura e as opções de lazer
CARDOSO, Marcos Antônio. O movimento negro em Belo
das cidades em intervenções pedagógicas.
Horizonte. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2001.
A concepção e os princípios são vividos e praticados ao longo
de todo o processo educativo e não apenas em momentos pontuais _______________________, O movimento negro em Belo
ou projetos esporádicos, como geralmente acontece. O processo Horizonte: 1978-1998. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002.
de formação de educadores precisa ocorrer constantemente. Para
isto as secretarias de Educação precisam sempre oferecer cursos de CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e anti-racismo na educação:
atualização e especialização·. Repensar a EJA numa perspectiva repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro Edições, 2002.
de educação antirracista requer criar formas mais democráticas de
se implementarem as atividades, projetos e avaliação, e essas são CONFINTEA. Conferência Internacional sobre Educação de
tarefas que exigem coerência com princípios assumidos por este Adultos – V CONFINTEA (1997, Hamburgo, Alemanha). Decla-
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Didatismo e Conhecimento 162


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)

Sankofa
Coleção particular - Wilson Veleci

LICENCIATURAS
Coordenação: Rosana Batista Monteiro

Acredito na pedagogia que liberta a tecnologia de sua atual tendência de escravizar o ser humano. A tecnologia deve existir como
um sustentáculo para a consagração do Homem e da Mulher em sua condição de ser. Autossuficiência na criação e na adoção de tec-
nologia, assim como no desenvolvimento científico, precisa ocorrer simultaneamente ao desenvolvimento das nações, obedecendo a seu
ajustamento funcional ao respectivo ambiente e realidade humana.
Abdias do Nascimento

Introdução
O presente texto dirige-se à comunidade acadêmica das instituições de educação superior (IES), especialmente às dedicadas à formação
de profissionais da educação e a todos(as) os(as) envolvidos(as) diretamente com o fenômeno educativo.
Orientar as IES para que possam responder aos desafios que se apresentam a partir da legislação em vigor, abordada na Introdução
desse Documento, atuando no combate a todas as formas de racismo. Fortalecer a nação brasileira em torno de premissas da democracia, da
diversidade e da cidadania, papel inquestionável dos órgãos gestores da educação que em parte aqui se realiza.
O texto apresenta-se em três partes: a descrição do campo das licenciaturas e sua articulação com a legislação a ser implementada; um
breve diagnóstico sobre a produção de pesquisas e ações relativas à formação dos(as) profissionais da educação e relações étnico-raciais e,
por fim, a inserção das diretrizes nas instituições de ensino superior.

1. O CAMPO DAS LICENCIATURAS

Muitos são os cursos que formam professores/as e outros profissionais que atuam na escola de Educação Básica, desde a creche até
Ensino Médio, incluídas as modalidades previstas na legislação: educação especial, educação profissional ou educação de jovens e adultos.
O currículo de formação para cada uma das etapas e/ou modalidades difere-se também de acordo com os lugares, espaços e territórios
onde se desenvolvem.
Decorrem desta diversidade de cursos e seus mais variados currículos as formas de desenvolvê-los, ou seja, presencialmente, à distân-
cia, semipresencial, de formação inicial ou continuada. Dentre estes certamente há aqueles em que é óbvia a relação com a Resolução CNE/
CP 1/2004, mas em outros, esta relação não se mostra com a mesma facilidade.

É preciso, portanto, evidenciar que todos os educadores têm a tarefa, juntos e apoiados pelos gestores – da escola e do sistema – de
implementar a Resolução CNE/CP 1/2004 em seus espaços de atuação; e, se isto depende de obterem formação para tanto, este texto procura
contribuir com esta tarefa formativa.

Evidenciada a diversidade de cursos existentes e suas respectivas especificidades, optou-se aqui por se fazer um recorte e tratar da
formação inicial, posto que a diversidade assinalada acima ante o tempo-espaço de construção deste texto nos impediria de tratar de todo o
conjunto de possibilidades/modalidades de espaços de formação adequadamente. Trataremos dos elementos comuns existentes na maioria
dos cursos de formação dos profissionais da educação e, sempre que possível, indicaremos caminhos para o que possuem de específico.
Certamente este não será o único documento para a inserção da Resolução CNE/CP 1/2004.

Didatismo e Conhecimento 163


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Neste texto nos referiremos aos cursos como sendo de formação dos(as) profissionais da educação, posto que desse modo incorporamos
tanto professores/as dos diferentes níveis/etapas/modalidades da educação como também os(as) pedagogos(as) em suas áreas de atuação,
seja no interior do sistema escolar e das escolas, ou em outros espaços educativos, de acordo com o que estabelece a Lei n° 9.394/1996.
A Resolução CNE/CP 1/2004 deve ser referendada nos cursos de formação dos profissionais da educação (Pedagogia, Licenciaturas
em História, Geografia, Filosofia, Letras, Química, Física, Matemática, Biologia, Psicologia, Sociologia/Ciências Sociais, Artes e as cor-
relacionadas, assim como Curso normal superior), tanto nas atividades acadêmicas (disciplinas, módulos, seminários, estágios) comuns a
todos eles, quanto nas específicas, possibilitando aprofundamentos e o tratamento de temáticas voltadas à especificidade de cada área de
conhecimento (Figura 1).

Figura 1: Relação entre a Resolução CNE/CP 1/2004 e cursos de formação inicial.

As instituições de educação superior podem ainda se debruçar, por iniciativa própria, na revisão das matrizes curriculares de cursos que
não serão contemplados neste texto. Cursos como Direito, Medicina, Odontologia, Comunicação e tantos outros, embora não abordados
aqui, podem ser revistos a partir das determinações das políticas de ação afirmativa. Ao indicar a necessidade de reorganização/revisão do
Projeto-Político Pedagógico da instituição e dos cursos e sua articulação com os diferentes espaços das IES, pretende-se indicar caminhos
para a revisão de outros cursos.
A educação, em todos os níveis e modalidades, é estratégica na transformação da atual situação em que se encontra a maioria dos negros
e negras em nosso país, vítimas de preconceito e discriminação. Porém, não são apenas os(as) negros(as) que sofrem com as consequências
deste quadro: “o racismo imprime marcas negativas na subjetividade dos negros e também na dos que os discriminam” (Parecer CNE/CP
3/2004).
Este trabalho se refere, portanto, à construção de estratégias educacionais que visem a uma pedagogia antirracista e à diversidade – pro-
motora da igualdade racial - como tarefa de todos(as) os(as) educadores/as, independentemente do seu pertencimento étnico-racial.
Para que a educação antirracista se concretize, é preciso considerar que o exército profissional depende de ações individuais, coletivas,
dos movimentos organizados e também das políticas públicas; assim como das ações das IES enquanto responsáveis pela inserção da Reso-
lução CNE/CP 1/2004, criando as condições necessárias em seu interior para que avancemos ante o desafio que o cenário atual nos coloca.
O artigo 1º da Resolução afirma que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana devem ser observadas, em especial, por instituições que desenvolvem programas de forma-
ção inicial e continuada de professores. O mesmo dispositivo prevê, ainda, que as IES, respeitado o princípio da autonomia, incluirão nos
conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram a Educação das Relações Étnico-raciais, bem como o tratamento
de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, de acordo com o Parecer CNE/CP 3/2004.

Desse modo, as instituições de educação superior devem:

- Elaborar uma pedagogia antirracista e antidiscriminatória e construir estratégias educacionais orientadas pelo princípio de igualdade
básica da pessoa humana como sujeito de direitos, bem como posicionar-se formalmente contra toda e qualquer forma de discriminação;
- Responsabilizar-se pela elaboração, execução e avaliação dos cursos e programas que oferece, assim como de seu projeto institucional,
projetos pedagógicos dos cursos e planos de ensino articulados à temática étnico-racial;
- Capacitar os(as) profissionais da educação para, em seu fazer pedagógico, construir novas relações étnico-raciais; reconhecer e alterar
atitudes racistas em qualquer veículo didático-pedagógico; lidar positivamente com a diversidade étnico-racial;
- Capacitar os(as) profissionais da educação a incluírem a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos escolares, assim
como novos conteúdos, procedimentos, condições de aprendizagem e objetivos que repensem as relações étnico-raciais;
- Construir, identificar, publicar e distribuir material didático e bibliográfico sobre as questões relativas aos objetos anteriores;
- Incluir as competências anteriormente apontadas nos instrumentos de avaliação institucional, docente e discente, e articular cada uma
delas à pesquisa e à extensão, de acordo com as características das IES.

Didatismo e Conhecimento 164


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
2. PESQUISAS E AÇÕES SOBRE RELAÇÕES ÉTNI- A abordagem das questões étnico-raciais na Educação Básica
CO-RACIAIS NA FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DA depende muito da formação inicial de profissionais da educação.
EDUCAÇÃO Eles ainda precisam avançar para além dos discursos, ou seja, se
por um lado, as pesquisas acadêmicas em torno da questão racial e
Nós professoras, não somos preparadas para lidar com estas educação são necessárias, por outro lado precisam chegar à escola
diferenças... não conseguimos ainda pensar um modelo de so- e sala de aula, alterando antes os espaços de formação docente.
ciedade diferente, apesar de concordarmos que este modelo não Nos anos 1990, Regina Pahim Pinto realizou uma pesquisa em
serve. cursos de nível médio, denominados após a Lei 9.394/96 (BRA-
SIL, 1996) Curso Normal, constatando várias dificuldades entre
Em várias referências bibliográficas verificam-se a luta e a re- os(as) professores/as - formadores/as em lidar com a temática
sistência da população negra no Brasil para transformar a realidade étnico-racial na educação. Considerando que estes/as obtiveram
em que vive e denunciar a sua invisibilidade na história do país, sua formação nos cursos de licenciatura e/ou Pedagogia, pode-se
assim como o preconceito e discriminação em relação a este grupo inferir que não tiveram contato com as questões étnico-raciais nes-
social. A maioria dos(as) profissionais que atuam ou atuaram nas se processo. Segundo Pinto (2002), os(as) professores/as formado-
IES, especialmente em licenciaturas e cursos de Pedagogia, obteve res/as não percebem o vínculo entre a temática “relações étnico-
sua formação em meio a este contexto histórico e ideológico do -raciais” e suas disciplinas; quando tratam da temática o fazem à
qual decorre a forma excludente de se viver e pensar a sociedade medida que situações contingenciais aparecem (o que nos leva a
brasileira, e que desconsiderou tanto os conflitos étnicos-raciais pensar que se as situações não se apresentam, esta não é abordada);
quanto as contribuições do grupo social em questão (assim como em alguns casos, tratam da temática de acordo com as datas come-
de outros, a exemplo do indígena). A escola que formou os(as) pro- morativas, ou seja, apenas em momentos específicos, como os dias
fissionais da educação que atuam hoje se baseou numa perspectiva 13 de maio ou 20 de novembro.
curricular eurocêntrica, excludente e, por vezes preconceituosa. A pesquisadora alerta ainda para a “concepção abstrata de alu-
Construindo nossa identidade profissional em meio da “demo- no que os cursos (...) tendem a transmitir aos futuros professores.
cracia racial”, como nos indica Kabengele Munanga: Não se discutem as condições enfrentadas pelos diferentes grupos
de alunos, parte-se do pressuposto de que nossa sociedade é homo-
A partir de um povo misturado desde os primórdios, foi ela- gênea” (op. cit., p. 108/9).
borado, lenta e progressivamente, o mito de democracia racial. Regina Pahim Pinto segue indicando que
Somos um povo misturado, portanto, miscigenado; e, acima de
tudo, é a diversidade biológica e cultural que dificulta a nossa (...) Dificilmente, certos temas/conteúdos que os professores
união e o nosso projeto enquanto povo e nação. Somos uma de- afirmaram utilizar, ou que, na sua opinião, seriam viáveis para
mocracia racial porque a mistura gerou um povo que está acima abordar o tema, poderiam prestar-se a essa finalidade devido à
de tudo, acima das suspeitas raciais e étnicas, um povo sem bar- remota relação ou ausência de qualquer relação com o mesmo.
reiras e sem preconceitos. Trata-se de um mito, pois a mistura não Este fato é preocupante, pois denota uma formação precária do
produziu a declarada democracia racial, como demonstrado pelas professor neste campo. Além disso, os depoimentos de alguns pro-
inúmeras desigualdades sociais e raciais que o próprio mito ajuda fessores, principalmente os de Sociologia da Educação, sugerem
a dissimular dificultando, aliás, até a formação da consciência e que a abordagem do tema não é estimulada pelas questões coloca-
da identidade política dos membros dos grupos oprimidos. (1996: das pela disciplina, enfim, que não há de sua parte uma reflexão a
216). respeito no contexto da sua disciplina (op. cit.: 113).

O caminho percorrido até o momento, em direção à educa- É preciso refletir acerca do espaço de formação destes/as pro-
ção antirracista e para a diversidade, resulta do debate ocorrido fessores/as, ou seja, avaliar se as IES vêm se organizando para a
nas últimas décadas em torno da inclusão, do direito de todos à inclusão das temáticas relativas às relações étnico-raciais, assim
educação e do respeito ao pluralismo cultural em que vivemos no como o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na
Brasil e no mundo. Também decorre das políticas de ações afirma- Educação Básica.
tivas desenvolvidas principalmente a partir do final do século XX, De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de
por demanda constante do Movimento Negro, dos compromissos Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) sobre Formação de Pro-
assumidos em conferências internacionais por parte do Estado bra- fessores no Brasil (2002), no período entre 1990 e 1998, dos 834
sileiro, dentre outras instâncias. trabalhos de dissertação e teses defendidas, 60 (7,1%) tratavam de
Algumas escolas em ambos os níveis da educação (básico e formação de professores/as. Dentre estas, apenas uma dissertação,
superior) desenvolvem hoje práticas que alteram a realidade ex- de 1993, relaciona-se à formação inicial e questões étnico-raciais.
posta anteriormente. No entanto, estas ainda são experiências ra- Esta apontava para a necessidade de repensar o curso de formação
ras, muitas das quais isoladas e sem desdobramentos no plano ins- de professores/as, incluindo o debate das relações étnico-raciais
titucional, ou seja, ações solitárias de alguns/umas educadores/as, com o objetivo de romper com o fracasso escolar.
na maioria negros(as) (Santana, 1991). A organização consecutiva No diretório de teses e dissertações da Coordenação de Aper-
do Prêmio “Educar para a Igualdade Racial” do Centro de Estudas feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), é possível
das relações de Trabalho (Ceert) tem ilustrado a quase totalidade identificar 125 dissertações de mestrado sobre negro e educação e
das ações desenvolvidas nas escolas sobre educação para as Rela- 54 que tratam de educação e raça defendidas em diferentes áreas
ções étnico-raciais e ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e do conhecimento. Os primeiros trabalhos datam do início dos anos
Africana, que não são institucionais; são ações individuais basea- 1980, e a maior parte das produções data de meados de 1990. No
das num esforço pessoal do/a educador/a em lidar com as questões entanto, os trabalhos não estão diretamente relacionados à forma-
raciais em sua sala de aula. ção dos(as) profissionais da educação.

Didatismo e Conhecimento 165


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Dos 19.470 grupos de estudos e pesquisas inscritos na Pla- e reinterpretações, e evitar os deslizes que enfatizam os aspectos
taforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien- maus superficiais e folclóricos da cultura dos diferentes são as-
tífico e Tecnológico (CNPq) em 2005, em torno de 14 abordam pectos importantes a serem ressaltados na formação dos profes-
temas relativos a “negro e educação” e/ou a “educação e raça”. No sores que se pretende oferecer” (op.cit., 32-33, grifo do original).
entanto, o fato de abordarem as temáticas apontadas não indica que
tratam especificamente de formação de profissionais da educação Valente ainda identifica os problemas no texto do tema trans-
na relação com os temas. Outros 9 grupos identificam-se como de versal, o qual deveria contribuir para a formação dos(as) profissio-
estudos afro-brasileiros, ou seja, podem ser relacionados a núcleos nais da educação. O texto ameniza a relação de poder que implica
de estudos e pesquisas afro-brasileiros ou similares, denominados a diversidade cultural e não promove o enfrentamento de manifes-
Neab ou Neafro. Estes estão presentes majoritariamente em uni- tações discriminatórias, relativizando-as:
versidades federais e Estaduais, mas também em algumas priva-
das. Estes núcleos são os principais responsáveis pela inserção de O texto admite as relações existentes entre desigualdade so-
atividades acadêmicas (disciplinas, seminários e outros) no inte- cial e a situação de certos grupos portadores de características
rior das IES e em seus cursos de graduação, além de dialogarem culturais diferenciadas (...) limita-se a considerar que as produ-
de forma próxima com a comunidade externa às IES, em particular ções culturais, contidas e marcadas por essas relações de poder,
com o Movimento Negro. São, portanto, espaços importantes de envolvem o processo de reformulação e resistência. Desse modo
formação de alunos e alunas negros e negras, de apoio, permanên- são suavizados os processos de dominação, de repressão, de ho-
cia e resistência nas IES; porém, nem sempre a criação dos núcleos mogeneização, sem os quais a reação não poderia ser compreen-
é reconhecida pelas IES, fato que coloca muitas dificuldades para dida. (op.cit., 2003: 28-29).
o desenvolvimento de suas atividades. Os Neabs são justamente Por fim, deve-se considerar que as políticas curriculares im-
o tipo de espaço acadêmico que mais poderá ajudar a gerar um plantadas principalmente nos anos 1990 - Diretrizes Curriculares
clima de diversidade nas universidades (BRASIL, MEC/SEMT, do Ensino Fundamental e Médio, Parâmetros Curriculares Nacio-
2003: 164). nais (Pcn), Referenciais para a Educação Infantil - embora sejam
Esse breve mapeamento das pesquisas desenvolvidas em cur- abordadas nos cursos de formação dos profissionais da educação,
sos de pós-graduação aponta para número crescente de pesquisas parecem não ter provocado mudanças significativas no que se refe-
sobre negro e educação, relações étnico-raciais e educação, além re às questões étnico-raciais. Rachel Oliveira afirma que “há muita
de outras linhas de pesquisa relativas a esta temática; porém estas semelhança entre os objetivos curriculares do final do século pas-
ainda se detêm pouco sobre a formação de professores/as (profis- sado [séc. XIX] vinculados ao término da escravidão e à expansão
sionais da educação), especificamente. industrial e os elaborados atualmente, no final deste século [séc
Gomes (2004), Aguiar e Di Pierro (2004) ressaltam que a des- XX]” (2002: 81).
peito do crescente aumento da produção sobre o negro e a edu- A autora aponta ainda que, apesar de nos anos 1980 e 1990 no-
cação, no Brasil, nas duas últimas décadas, a produção de teses vas reformas educacionais e mudanças curriculares acontecerem,
e dissertações ainda é pequena. A maior parte dessa produção se decorrendo inclusive da criação de programas de formação dos do-
apresenta em forma de artigos publicados em periódicos especia- centes – da Pedagogia Crítico – Social dos Conteúdos à Qualidade
lizados. Total –, nenhuma destas mudanças trouxe resultados significativos
Também associações e organizações não-governamentais des- para a educação pública, e, particularmente, para o alunado negro:
tacam-se na produção de pesquisas, mas principalmente de cursos
de formação continuada de professores/as. Temos como exemplos (...) “não apresentaram propostas definidas de combate ao
a Associação Nacional de Pós-graduação em Educação (Anped), preconceito e não fazem referências à contribuição do negro no
que organiza o “Concurso Negro e Educação” (com a Ação Educa- processo de construção da nação. A insistência no ocultamento
tiva e o apoio da Fundação Ford), e instituiu recentemente o Grupo destas questões no currículo escolar traz sérios transtornos à for-
de Trabalho “Afro-Brasileiros e educação”; a (Anpocs), Associa- mação da identidade da criança negra que não vê a si e nem a seus
ção Nacional de Pesquisadores em Ciências Sociais, assim como, ascendentes de forma produtiva” (op. cit.:79-80).
o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades
(Ceert/SP) e o Núcleo de Estudos Negros/SC (Nen/SC). Os dois O que procuramos demonstrar é que, apesar das reformas edu-
últimos se destacam no oferecimento de cursos de formação para cacionais ocorridas no final dos anos 1980 e principalmente em
professores/as em serviço, especialmente da rede pública. meados dos anos 1990, após a Lei n° 9394/1996, ainda há muito
Ana Lúcia Valente (2003), tomando como referência uma a ser feito em relação às questões étnico-raciais e à formação de
análise do tema transversal pluralidade cultural contido nos Parâ- profissionais da educação.
metros Curriculares Nacionais, e observando aspectos positivos e
negativos de como este é apresentado, considera necessário formar 3. INSERÇÃO DAS DIRETRIZES NAS INSTITUIÇÕES
o/a professor/a para o tratamento desse tema, a partir de elabora- DE ENSINO SUPERIOR (IES)
ções teóricas mais consistentes:
3.1 Aspectos relativos à gestão das IES
Quando se pretende abordar uma temática tão complexa e tão
atravessada por contradições como a pluralidade cultural, como A inserção das Diretrizes nas IES precisa refletir-se nos di-
reclamar pela formação dos professores sem um esforço de tornar ferentes espaços institucionais e não apenas na matriz curricular
acessível o conhecimento sobre o assunto? (...)Impedir que se con- de alguns cursos. A inserção coerente e comprometida verdadeira-
sidere a dinâmica do processo cultural, implicando transformação mente com o combate a todas as formas de preconceito e discrimi-

Didatismo e Conhecimento 166


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
nação dá-se nos diferentes espaços por onde circula toda a comunidade acadêmica ou não, negra e não-negra.
O projeto pedagógico institucional (PPI) e os projetos pedagógicos dos cursos são componentes centrais para a inserção das Diretrizes
nas IES. A construção do PPI e dos projetos pedagógicos dos cursos depende do diagnóstico, da participação de representantes de toda a
comunidade acadêmica e administrativa, de previsão de recursos. Do PPI depende a revisão do regimento da IES, no sentido de que este
indique, formalmente, como atuará, por exemplo, em situações de denúncia de discriminação, em especial, a racial.
Os esforços para inserção das Diretrizes devem articular-se a políticas educacionais outras, referentes à educação superior, principal-
mente as Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores para Educação Básicas e Diretrizes Específicas dos Cursos de
Licenciaturas.
A figura 2 procura demonstrar algumas possíveis articulações internas à instituição de educação superior a serem consideradas na in-
serção da Resolução CNE/CP 1/04 (BRASIL, 2004). A figura apresenta-se de forma circular intencionalmente, tal como uma ciranda, para
afirmar a necessidade e as possibilidades da inserção das Diretrizes étnico-raciais nas instituições de ensino superior, respaldada nos valores
de africanidade (ver glossário). O ponto de partida para a inserção é o projeto político-pedagógico institucional e dos cursos, e a estes estão
articulados outros espaços-tempos das IES, considerados todos eles igualmente importantes. Não há hierarquização, há dependências e
interdependências, inter-relação, concomitâncias, articulações. Tudo deve circular em torno do centro, articulando-se a ele, interagindo com
ele, modificando-o, transformando-o, colocando o PPI em movimento.

Figura 2. Processo de circularidade de inserção das Diretrizes nas IES

Os esforços para inserção das Diretrizes devem ainda articular-se com outras políticas educacionais referentes à educação superior, prin-
cipalmente as Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores para Educação Básicas e Diretrizes Específicas dos Cursos
de Licenciaturas (também às da pedagogia, ainda em tramitação).

Didatismo e Conhecimento 167


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
3.2 Aspectos relativos à matriz curricular Diretrizes nos cursos de formação inicial. O curso se caracteriza
como de lato sensu, mas segundo Oliveira, o propósito é que gra-
Faz-se necessário ainda dialogarmos com as Diretrizes espe- dativamente tais conhecimentos sejam incorporados nas diferentes
cíficas para formação do/da professor/a, a saber, o Parecer CNE/ disciplinas dos cursos de licenciatura, o que provocará uma revi-
CP 9/2001 e a Resolução CNE/CP 1/2002, principalmente em seu são do curso de especialização (2003, p.116).
artigo 3º, o qual define os princípios norteadores para o exército O curso está dividido em duas dimensões: Conteúdos Especí-
profissional da docência assim como as competências e os eixos ficos e Dimensão Pedagógica. A primeira inclui as seguintes dis-
articuladores da formação. As indicações serão realizadas na for- ciplinas: História da África; História do negro na sociedade brasi-
ma de temário comentado e bibliografia específica, propiciando às leira, Teoria social e relações raciais; e Religião afro-brasileira. A
IES inseri-las nos diferentes espaços curriculares e disciplinares segunda inclui as disciplinas: Raça, currículo e práxis pedagógica,
diversificados de seus cursos. Relações raciais no ensino de Literatura, Educação e identidade ra-
Os princípios a partir dos quais apontaremos o temário respal- cial individual e coletiva, Pesquisa educacional e relações raciais.
dam-se, antes de tudo, nos princípios contidos no Parecer CNE/ A formação docente é decisiva para a educação antirracista.
O curso contribui para que os docentes possam enfrentar e deses-
CP 3/2004 (BRASIL, 2004), que objetivam uma educação antir-
tabilizar o racismo em educação, incorporando majoritariamente
racista:
a questão racial sistemática e intencionalmente em suas práticas,
- A Consciência Política e Histórica da Diversidade;
superando situações constatadas em pesquisas anteriores em que
- O Fortalecimento de Identidades e Direitos; tais profissionais afirmavam o seu despreparo. (op. cit., p. 135).
- Ações Educativas de Combate ao Racismo e as Discrimi-
nações. A experiência do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Re-
lações Raciais e Educação (Nepre/UFMT).
3.3 Experiências de abordagem das relações étnico-raciais
na formação dos profissionais da educação Este núcleo atua principalmente com atividades de formação
continuada de professores; realizou o curso de extensão “Traba-
3.3.1 Proposta de criação de disciplina específica lhando as Diferenças no Ensino Fundamental”, com o objetivo de
preparação de professores da rede pública de ensino para implan-
Há instituições e cursos em que se opta por criar disciplinas tação da Lei n° 10.639/2003 de três municípios no Estado de Mato
específicas para o tema em pauta. O principal objetivo da discipli- Grosso (dez.2003 – jul. 2004). Os cursos de extensão abordam as-
na específica, no caso da formação inicial, deve ser o de comple- pectos teóricos e práticos, estimulando os professores à realização
mentar a abordagem da CNE/CP Resolução 1/2004 nas atividades de pesquisas e à publicação nos Cadernos Nepre.
acadêmicas que constituem os cursos. A disciplina pode também Possui ainda o curso de extensão “Trabalhando as Diferenças
ser desenvolvida de acordo com as especificidades dos cursos de na Educação Básica – Lei n° 10.639/2003”, em parceria com a Se-
Licenciatura, a exemplo, nos cursos de Letras, a criação da disci- cretaria Municipal de Desporto e Lazer do Município de Cuiabá-
plina “Literatura Africana de Língua Portuguesa”; nos cursos de -MT (em andamento), curso de Especialização lato sensu: Rela-
História, Geografia e Matemática pode-se fazer o mesmo exercício ções Raciais e Educação na Sociedade Brasileira (em andamento).
de reflexão sobre a relação destes cursos, suas especificidades e a
temática da lei. Sugere-se que a criação de disciplina que abor- A experiência do Centro de Estudos Afro-Orientais da
de relações étnico-raciais e/ou História e Cultura afro-brasileira e Universidade Federal da Bahia (Ceaco/Ceafro/UFBA) e Pro-
africana seja oferecida também à distância, de modo a possibilitar grama de educação e profissionalização para igualdade racial
que tanto os futuros educadores como os atuantes, além de demais e de gênero
interessados na temática, possam a ela ter acesso.
O Ceao é um órgão de extensão universitária da UFBa que
Deve-se, no entanto, cuidar para que a criação de disciplina
vem desenvolvendo ações várias em torno da história e cultura
específica sobre a temática não exclua a responsabilidade das Ins-
afro-brasileira, africana dentre outras, e tem o Ceafro como pro-
tituições de Ensino Superior. grama especialmente voltado para a educação.
Entre vários cursos sobre a temática, o centro oferece a es-
3.3.2. Criação de cursos: algumas experiências pecialização “Educação e Diversidade”, voltada para a formação
de professores do Ensino Fundamental e médio. Outra iniciativa
IES públicas e privadas vêm desenvolvendo cursos e ativi- desenvolvida a partir do Ceafro é o Projeto Escola Plural: a Diver-
dades acadêmicas para atender às demandas em torno das rela- sidade está na sala de aula (Lima, 2005) que objetiva instrumen-
ções étnico-raciais, mesmo antes da Lei n° 10639/2003 (BRASIL, talizar os educadores/as da rede municipal de Salvador do Ensino
2003) e da Resolução CNE/CP 1/2004 (BRASIL, 2004); porém Fundamental para o desenvolvimento de práticas pedagógicas que
poucas se voltam especificamente à formação de profissionais da contemplem a diversidade cultural. O diferencial deste projeto
educação. Apresentamos a seguir três experiências de universida- deve-se à forma como é desenvolvido, incluindo formação básica,
des, dentre outras possíveis, que desenvolvem esta formação. formação em serviço e acompanhamento em sala de aula.

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Didatismo e Conhecimento 169


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No entanto, por todo o país, agrupamentos negros rurais, su-
burbanos e urbanos, se constituíram não somente como fuga ou
resistência direta ao sistema vigente, mas como uma “busca espa-
cial” (NASCIMENTO, 1989), em uma perspectiva dinâmica, na
construção de um território que é social e histórico, através da ma-
nutenção e reprodução de um modo de vida culturalmente próprio.
Após mobilizações regionais em que estiveram envolvidos
militantes e parlamentares negros e entidades de apoio, a aborda-
gem do tema assumiu outra direção com a publicação na Consti-
tuição Federal de um item e um artigo que se referem diretamente
aos quilombos:

Art. 216. Inciso V. § 5º - Ficam tombados todos os documen-


tos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos.
Disposições Transitórias – Art. 68 - Aos remanescentes das
comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe
os títulos respectivos (BRASIL, 1988).
Djembe encontra os tambores da ilha
Coleção particular - Cristina Guimarães
Conforme pesquisa realizada pelo Centro de Geografia e Car-
tografia Aplicada (Ciga) da Universidade de Brasília (UnB), coor-
EDUCAÇÃO QUILOMBOLA
denado pelo geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, o país tem
Coordenação: Georgina Helena Lima Nunes
2.228 comunidades remanescentes de quilombos, em quase todos
os estados da Federação (NAVARRO, 2005). No que se refere à
O quilombo representa um instrumento vigoroso no proces-
relação entre educação e quilombos, cabe ressaltar que há extensos
so de reconhecimento da identidade negra brasileira para uma
territórios quilombolas que possuem escolas em seu interior e áre-
maior autoafirmação étnica e nacional. O fato de ter existido
as em que jovens e adultos dessas localidades migram temporária
como brecha no sistema em que negros estavam moralmente sub-
ou efetivamente para estudar nas cidades de suas regiões.
metidos projeta uma esperança de que instituições semelhantes
Inaugurar caminhos para se pensar um fazer pedagógico em
possam atuar no presente ao lado de várias outras manifestações
comunidades quilombolas passa pelo momento da reflexão e da
de reforço à identidade cultural.
ação, não dicotomizados, formadores da unidade que se chama
Beatriz Nascimento
práxis. Práxis, no sentido conferido por Freire (1987), é uma teo-
ria do fazer e, nesse momento, precisamos exatamente isto: ousar
Introdução
fazer um caminho, na forma de diretriz, sem querer, de forma al-
guma, que este seja o caminho absoluto.
O vínculo entre educação com as relações étnico-raciais, sen-
O cotidiano quilombola, a exemplo de outros grupos étnico-
do um processo que implica trocas, nos faz crer que a feitura de
-raciais e sociais, é a emergência da práxis porque o pensar e o
uma escrita só tem sentido se ela também se constituir desta forma:
fazer se corporificam:
troca entre pessoas, entre fatos, ou seja, entre o escrito e o vivido.
- no forma de visões (pensamentos, ideias) que orientam um
É na lógica de relação, de coletivo, de concepção de escrita para
portar-se diante do mundo;
além de uma formação letrada, porque se fala de um lugar – o
- no modo de vida e mais especificamente na forma de traba-
quilombo – para além de um espaço físico, que aqui nos subscre-
lho como atividade prática que não isola o pensar do fazer, resul-
vemos para refletir sobre a educação e as relações raciais, tendo em
tando em um manter-se no mundo;
vista crianças, adolescentes e jovens pertencentes às comunidades
- enfim, como processo educativo que confere aos sujeitos um
de Quilombos.
localizar-se no mundo observando as suas especificidades de raça,
gênero, faixa etária e classe social.
Todos(as) sabemos que o ensinar está relacionado a demandas
Esta tríade, didaticamente separada – portar-se, manter-se e
que nós nos fazemos ou que a sociedade nos faz; esse procedimen-
situar-se no mundo –, significa uma consciência emergente, um
to, em um primeiro momento, dá vazão a uma ideia de exigência, e
autoconhecimento, talvez, um autoconhecimento das suas necessi-
de uma certa forma o é, mas não é qualquer exigência. Trata-se de
dades que se constitui no passo elementar para sonhar um mundo
um olhar mais focalizado para um horizonte relativamente esque-
de menos necessidade e, consequentemente, de mais liberdade.
cido nas produções acadêmicas, especialmente as educacionais:
O que se vislumbra, então, é que o processo educativo formal
um espaço rural e negro.
contemple a perspectiva de dar sentido aos conteúdos, à aprendi-
zagem, ao conhecimento. Espera-se desse modo que crianças, ado-
Do final do século XIX até quase o final da segunda metade
lescentes e jovens, na relação com a sua natureza histórica e cul-
do século XX, os quilombos foram tratados na historiografia e na
tural consigam portarem-se, manter-se e situarem-se dentro da sua
educação brasileiras como se restringindo a “redutos de escravos
comunidade, nos diversos níveis de ensino e, principalmente, na
fugitivos” e a experiências do período escravista.
disputa por um projeto de sociedade mais justa, fraterna e plural.

Didatismo e Conhecimento 170


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Torna-se difícil traçar diretrizes que contemplem todas as co- a ser despertada no campo da educação: produzir uma formação
munidades quilombolas do Brasil. Segundo dados do Instituto Na- humana na qual não caibam estereótipos, discriminação e precon-
cional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, ceitos que elegem e determinam os que estão “dentro” e os que
2004), o país tem 49.722 estudantes matriculados em 364 escolas estão “fora”. Nesse campo, o desafio da educação é contribuir para
localizadas em áreas remanescentes de quilombo, distribuindo-se emancipar, radicalmente, as pessoas de relações que retardam uma
da seguinte forma mas regiões do país: Norte (9728), Nordeste convivência humana mais respeitosa e, por isso, mais plena.
(30.789), Sudeste (3.747), Sul (536), Centro-Oeste (4.922).
Em frente deste quadro estatístico, populacional e educacio- 1. EDUCAÇÃO QUILOMBOLA E RELAÇÕES ÉTNI-
nal, cabe reafirmar a necessidade de pensar as diretrizes para a CO-RACIAIS: REFLEXÕES E PRÁTICAS
educação em comunidades quilombolas em termos de concepções
gerais, que abranjam a diversidade étnico-racial e regional do país. Seguindo o pressuposto da práxis, não se acredita que a prá-
Faz-se necessário dizer, também, que pensar em educação quilom- tica anteceda a teoria ou vice-versa. Dentro de uma organização
bola não significa o afastamento de um debate mais amplo sobre a didática da escrita, no entanto, faz necessário estabelecer algumas
educação da população negra de todo o país, que apresenta índices sequências para que o pensamento de quem escreve não alce os
de escolaridade e alfabetização inferiores à população branca. seus rumos individuais e perca-se na proposta deste texto: estabe-
A proposta uma Educação Quilombola passa por analisarmos lecer um diálogo que tem origem no coletivo que o estruturou e
qual concepção de educação se fala e, para tanto, é necessário que continuidade em cada educador que o reformulará em conformi-
se reflita sobre o lugar onde o conhecimento vai ser concebido, dade com o seu olhar.
sobre quais conceitos sustentam uma proposta de educação das O campo das reflexões orienta-se no sentido de discutir terri-
relações raciais, em que base didático-pedagógica práticas educa- tórios quilombolas (conceitos e sentidos), o significado de conhe-
tivas emancipatórias serão possíveis, além das estruturas reais e cimento e os princípios para uma proposta político-pedagógica de
necessárias para que este processo se desencadeie. Anunciamos, uma escola comprometida com a questão étnico-racial.
por fim, um plano de ação que contempla a concepção de educação O campo das ações corporifica-se a partit das reflexões teóri-
que, coletivamente, foi construída. cas anteriormente citadas, por meio da seleção de temáticas emer-
Construir esta proposta é um exercício da práxis, um fazer gentes e das didáticas possíveis. Contemplamos no plano de ação
cuja essência e aparência não se desvinculam do ato de criar as a especificidade rural, ainda que particularidade – comunidades
condições necessárias para que educadores/as e educandos(as) na quilombolas – comporte populações do meio urbano.
relação entre si e com o espaço onde se efetiva a prática peda-
gógica construam um conhecimento agregador de saberes sociais 2. O campo das reflexões
e saberes científicos. A síntese destas duas formas de saber é a
formação de sujeitos que não se desenraizarão da sua cultura, da Os quilombos nos remetem a vários tempos e espaços histó-
sua história, mas que, ao mesmo tempo, forjarão as condições ne- ricos: em primeiro lugar, à África do século XVII. A palavra ki-
cessárias para um diálogo consigo mesmo e com o mundo que lhes lombo é originária da língua banto umbundo, que diz respeito a
é exterior. um tipo de instituição sociopolítica militar conhecida na África
Pensar em diretrizes para educar as relações étnico-raciais Central, mais especificamente na área formada pela atual Repúbli-
em comunidades quilombolas sugere que nós pensemos a partir ca Democrática do Congo (Zaire) e Angola (MUNANGA, 1996:
das próprias comunidades. Este documento, então, é o convite a p.58). Apesar de ser um termo umbundo, constituía-se em um
um diálogo. É um diálogo feito aos/às educadores/as para que ten- agrupamento militar de jovens guerreiros, composto pelos jaga ou
tem, igualmente, disseminar esta prática. É, por fim, um diálogo imbangala (de Angola) e os lunda (do Zaire) (MUNANGA, 1996:
desprovido da hierarquia entre quem pensa educação e quem reali- p.59).
za; é um diálogo exigente entre quem educa sempre se educando, Os quilombos nos levam também ao Brasil do final do século
revigorando-se na visão de que ensinar exige a convicção de que a XVI e aos séculos seguintes; enquanto durou a escravidão insti-
mudança é possível (Freire, 2001). tucionalizada, existiram quilombos (ou mocambos) no litoral do
Para todo o segmento negro e para os quilombolas em espe- Norte ao Sul do país, especialmente nas áreas de plantações de
cial, os vínculos entre educar e formar são ancestrais, não são atri- cana-de-açúcar, arroz, cacau e nas armações baleeiras. No caso do
butos exclusivos da escola; ancestralidade é tudo o que antecede litoral nordestino, destaca-se o Quilombo dos Palmares, que durou
ao que somos, por isso ela nos forma. Existe um passado e um mais de 70 anos e se estendia por parte das províncias de Alagoas
presente de populações negras que vêm se educando secularmente e Pernambuco. Palmares foi liderado por mulheres e homens que
através de uma resistência que não é passiva, que apenas reage ora são tratados como mitos, ora como personagens históricos, a
às diversidades, mas que é, igualmente, provocadora de reações. exemplo de Aqualtune, Acotirene, Ganga Zumba e Zumbi, sendo
Assim, o que antecedeu aos antigos quilombolas foi a história da este o último líder, assassinado após um ano da destruição do gran-
colonização, do escravizar que, não obstante o contexto de perver- de quilombo, em 20 de novembro de 1695. Nos sertões brasileiros
sidade, estes/as reafirmavam o desejo/direito à liberdade; se havia surgiram quilombos em todas as regiões de mineração e pecuária,
escravização, havia resistência, havia reação; os capitães-do-mato liderados também por Chico Rei em Diamantina, Minas Gerais, e
não surgiram da imobilidade: foram reações do outro campo, do Teresa do Quariterê, no oeste do Mato Grosso (VOLPATO, 2003,
campo da opressão. p. 222-226).
Todavia, da ancestral história da resistência, acionamos o Desde os anos 1950, intelectuais negros(as) como Edison
campo também da emancipação que, perseverantemente, as co- Carneiro, Clóvis Moura, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento,
munidades negras continuam a almejar. Esta é a grande reação Lélia Gonzalez, Joel Rufino dos Santos, entre outros(as), apresen-

Didatismo e Conhecimento 171


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
tavam suas ideias acerca do tema em seminários, artigos, livros e Falar a respeito de comunidades quilombolas é um assunto
filmes. Por meio dessas vozes o quilombo se constituía como uma inesgotável visto que delas emerge a possibilidade de se recriar
referência ideológica, cultural e política (NASCIMENTO, 1985). quotidianamente para poder forjar sua sobrevivência. Significa um
Revisitando os escritos dos(as) autores/as citados(as), encontra- eterno ir e vir, um deslocamento constante em diferentes espaços
mos vasta e variada produção acerca do quilombo que estava pos- e tempos. Todavia, este movimento é o que sustenta a importância
to, em geral, como um fenômeno do passado. No entanto, vivia-se da Lei n° 10.639/2003.
um contexto de “descoberta” de comunidades negras rurais em A implementação da lei em municípios onde há quilombos e
várias regiões do país (RATTS, 2003b). em escolas quilombolas não vai ao encontro de um passado estáti-
As comunidades quilombolas contemporâneas (MOURA, co, que poderia credenciar o ato educativo com o “estatuto” de um
1996) recebem várias denominações, tais como terras de pretos, ensino para “cultura geral”. Se a interpretação da lei estiver presa a
mocambos e comunidades negras rurais. Num processo de mo- esta forma de pensar, as intervenções serão limitadas em um cená-
bilização, todas estas nomenclaturas convergiram para o termo rio ilusório, de uma suposta democracia racial, que mantém o povo
quilombo ou comunidade quilombola. Como decorrência desse negro em situações econômicas e sociais discrepantes em relação
processo de ressemantização, para o Estado brasileiro, o antigo à população branca.
quilombo foi metaforizado para a categoria “remanescente de qui- Sabe-se que as comunidades quilombolas, contrariando o sen-
lombo” que, de uma certa forma, fortaleceu a ideia de grupo e não so comum de isolamento, também são afetadas pelas lógicas da
de indivíduo, ideia esta que é fundamental para ganhar funções modernidade e do sonho de se transpor de uma condição aparente-
políticas no presente, por meio de uma construção jurídica que mente “arcaica” para uma “condição” moderna. É neste “entre-lu-
permite pensar o futuro (ARRUTI, 2003). gar” (BHABHA, 2001) que a educação das relações étnico-raciais
se faz fundamental.
2.1 O lugar da educação e a educação no lugar: uma leitu- Não há como recuar, nem mesmo privar-se de todos os fe-
ra sobre os quilombos tiches que o mercado consumidor tem fabricado. Pode-se ques-
tionar, no entanto, a sua lógica e também, as consequências em
Numa mesma área, ainda que as produções predominantes termos de relação social e preservação do mundo que é terra, ar,
se assemelham, a heterogeneidade é de regra. Há, na verdade, água, flora, fauna, gente corpo e gente alma. Tão importante quan-
heterogeneidade e complementariedade. Desse modo, pode-se to ingressar na modernidade é saber questioná-la:
falar na existência simultânea de continuidades e descontinuida-
des. A modernidade anuncia o possível embora não o realize. [...]
Milton Santos Mistifica desmistificando porque anuncia que são coisas possíveis
de um mundo possível, mas não contém nenhum item no seu mer-
Pensar a especificidade do lugar e pensar a educação a partir cado imenso que diga como conseguir tais recursos, que faça o
dele requer que se entre na complexidade do que significa defini-lo milagre simples de transformar o possível em real. Isso cada um
e, por isso, surgem dúvidas: a partir do quê? A partir de quem? A tem de descobrir; isso a coletividade das vítimas, dos incluídos de
partir de qual concepção? Se o lugar, tal qual Santos (2001) anun- modo excludente, tem de descobrir (MARTINS, 2000, p.20).
cia, constitui-se nessa trama de continuidades/descontinuidades,
semelhanças/heterogeneidades, a partir de qual pressuposto se Ao preocupar-se com questões sociais, deixa-se, por vezes,
pode partir para falar dos sentidos da educação quilombola? de lado, a questão do desejo de cada um e se reduzem as necessi-
Poder-se-ia continuar a tratar dos quilombos partindo da pre- dades básicas do ser humano aos itens materiais que compõem a
missa de que construíram uma história que não é apenas da fuga da “cesta básica” necessária à sobrevivência. No entanto, “as pessoas
escravidão, mas do desejo pela liberdade; é uma história de vários precisam muito mais do que ‘comida e bebida’, precisam se sentir
capítulos, ocorrida em vários lugares e de diferentes modos. To- vivas, sentir que a vida vale a pena ser vivida. E isto tem a ver com
davia, onde quer que tenha existido aquilombamento, esta prática as dimensões simbólicas da vida. Neste sentido, alguns desejos
se impunha pela marca prevalecente da resistência que se dava de e símbolos fazem partes das necessidades que compõem a ‘cesta
diferentes maneiras. Para Reis e Gomes (2000, p.23) a história dos básica’”(ASSMANN, 2003, p.94).
quilombos é “uma história cheia de ciladas e surpresas, de avanços A partir da citação de Assmann, colocam-se as seguintes ques-
e recuos, de conflito e compromisso, sem um sentido linear, uma tões:
história que amplia e torna mais complexa a perspectiva que temos - De que forma valores e práticas culturais podem fazer a me-
de nosso passado”. diação com uma lógica de consumo, para além da “cesta básica”,
A ideia de território quilombola, para alguns, traz subjacente fruto de desejos e dimensões simbólicas construídas sem, neces-
a imagem de segregação e isolamento. Todavia, em comunidades sariamente, se deixar consumir pela banalidade do supérfluo que
quilombolas a terra avança este caráter, não se constituindo apenas pode ser antagônico a um modo de vida que opera na lógica da
condição de fixação, sendo, sobretudo, condição para existência preservação em todas as suas instâncias e não do descartável?
do grupo e de continuidade das referências simbólicas. O território - De que maneira as solidariedades concretas, persistentes
quilombola se constitui enquanto um agrupamento de pessoas que e historicamente forjadas em comunidades quilombolas podem
se reconhecem com a mesma ascendência étnica, que passam por construir, verdadeiramente, um elemento pedagógico a ser fortale-
inúmeros processos de transformações culturais como formas de cido entre a própria comunidade e disseminado enquanto conteúdo
adaptação resultantes do caminhar da história, mas se mantêm, se legítimo de uma docência comprometida com a formação humana
fortalecem e redimensionam as suas redes de solidariedade (RAT- e também com uma formação instrumental de seus educandos(as)
TS, 2003a; 2004) para o mundo do trabalho?

Didatismo e Conhecimento 172


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- Como o território quilombola, o chão vivido, que não pressu- A citação de Saramago, em epígrafe, faz um chamamento para
põe cercas nem fronteiras, mas que demarca o grupo e a coletivida- uma perspectiva de educação em que cada um seja capaz de ir além
de, pode disse minar um olhar menos violento e predatório para a da leitura das páginas do caderno ou do livro didático, entendendo
relação estabelecida entre o ser humano e o ambiente? que as pedras /palavras ali postas/escritas servem para atravessar
O contato com a terra, com o ambiente, com a natureza nas as margens do rio - violentas margens - que ainda inundam a so-
comunidades quilombolas que dispõem de seu espaço próprio, de ciedade brasileira de preconceitos e discriminação étnico-racial.
seu território, sugere uma ideia de que homens, mulheres e am- A emergência dos quilombolas entre os movimentos sociais
biente se constituem tanto como diferenciações, como extensões aponta a atuação de pessoas em um contínuo movimento de ideias
e práticas que transformam transformando-se por meio de um em-
e complementaridades. Este perceber-se evoca uma relação menos
bate diário contra as sequelas da escravização e da omissão/rejei-
estilhaçada com a natureza, com a vida; esta relação de interdepen-
ção de um legado africano repleto de intenção estética e saber.
dência, de reciprocidade, de diálogo é a perspectiva que se pode Os movimentos sociais se constituem espaços essencialmente
denominar “interdisciplinar”, pressuposto didático-pedagógico educativos, educam nas e para as contradições sociais, resultan-
que abarca a totalidade. Por isso, o conhecimento a ser produzido do em uma construção e disseminação de conhecimentos que tem
jamais criará sentidos e, consequentemente, compromissos, se os como horizonte uma educação voltada para uma formação humana
sujeitos neles não se encontrarem, também, como complementa- na qual “a boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa
ridades. possibilidade e nesse dever de brigar” (FREIRE, 2001, p.67).
Por fim, estas reflexões teóricas sobre bases conceituais de O artigo 1º da LDB de 1996 reafirma a existência de diver-
comunidades remanescentes de quilombos não nos distanciam da sos espaços educativos e, consequentemente, de educadores para
ação porque o ensinar em comunidades negras rurais tem como além da escola e dos(as) professores/as: “A educação abrange os
premissa entender o lugar como componente pedagógico, onde o processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na con-
conteúdo não está nos livros que trazem, por vezes, o registro da vivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesqui-
história dos quilombos em versões mal contadas, imprimindo no sa, nos movimentos sociais e organização da sociedade civil e nas
papel uma ordem de palavras que se tornam visíveis apenas atra- manifestações culturais”.
vés da tinta. A história dos quilombos tem de estar impressa - vi- A concepção de educação presente na LDB 9.394/96 amplia
sível- não apenas nos livros, mas em todos os lugares da escola de os espaços para a sua ocorrência e, também, o leque de educadores/
forma a marcar o coração de quem está a se educar com ternura e as, deixando a olho nu, que a escola não é um espaço hegemônico
de educação. Neste sentido, poderia-se perguntar qual o tipo de
comprometimento e, desta vez, não mais com marcas de dor.
conhecimento a ser (re)produzido na escola de modo a articular-
Um outro componente pedagógico está na oralidade e nos di-
-se com outros espaços e tempos que contribuem para a formação
versos tons de vozes quem interpretam o que está sendo contado, humana? Seria a escola um espaço onde o conhecimento se des-
está na corporeidade anunciante de saberes e, por vezes, denuncia- tina a outra perspectiva de formação que não prioriza a humana?
dora dos dissabores da vida. O pedagógico, enfim, está na nossa Ainda que uma perspectiva mais humanista de formação fique, por
capacidade de exigir de nós mesmos uma docência com um olhar força maior, em segundo plano, homens, mulheres e crianças, ao
mais atento às diversidades étnico-raciais de modo que a diferença sentar nos bancos escolares, trazem consigo as marcas de outras
e igualdade sejam possíveis à medida que “temos o direito de ser vivências, restando questionar qual é o trato pedagógico dado a
iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser esse conteúdo que pode até ser silenciado, mas que não pode ser
diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, arrancado do âmago de cada ser?
s/d, p. 56). Uma concepção de educação e aquisição de conhecimentos
que vá ao encontro dos interesses emancipatórios que as comu-
2.2 Conhecimentos e sentidos da aprendizagem nidades quilombolas vêm construindo desde o período escravista
requer a promoção de uma leitura de mundo que dê ênfase a sua
Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo trajetória histórica, como lembrança viva de que o tempo não esva-
portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ece a disposição para transformar. Ser quilombola é estar sempre
ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada com as armas da perseverança, sabedoria e solidariedade coletiva.
um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida Pensar em educação que contemple as relações étnico-raciais
no interior de uma comunidade negra significa dar corpo a outros
inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura,
saberes, saberes mais “abertos”, que deem dinamicidade e con-
ficam pegados à página, não percebem que as palavras são ape-
sistência aos saberes “fechados” (ARROYO, 2001), que se cons-
nas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali tituem, em complementaridade, o conhecimento a ser produzido
é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é na escola.
que importa. O tempo de escola pode tornar o tempo de infância e o tempo
José Saramago de docência em tempos de produção de sentidos, através das suas
funções mais elementares: aprender e ensinar. Sentidos que são
Educar para as relações étnico-raciais é um apelo que emerge buscados como decorrência das perguntas que inevitavelmente são
de segmentos contestatórios da sociedade, entre eles, o movimento feitas para o outro e, também, para si mesmo. As perguntas e, por-
social negro que tem sua gênese organizativa no agrupamento de tanto, os diálogos travados não devem acomodar as inquietações;
pessoas que já se aproximavam, desde os porões, durante a tra- isto seria a manipulação dos afetos, porque “o diálogo faz parte
vessia do atlântico – tempo e lugar de genocídio e dor - centenas da própria natureza histórica dos seres humanos. É parte de nosso
de anos depois, continuam pressionando a sociedade, educando na progresso histórico, do caminho para nos tornarmos seres huma-
informalidade e desordenando os sentidos das leis. nos” (FREIRE, 1987, p.122).

Didatismo e Conhecimento 173


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Um diálogo sobre os sentidos da docência, sobre o que ensi- Juntamente com a emergência de um currículo que se construa
nar, para que e como ensinar, é uma reflexão trazida por Arroyo “a partir das formas mais variadas de construção e reconstrução
(2001, p.75), quando o autor tenta “aliviar” esta tensão existente, do espaço físico e simbólico, do território, dos sujeitos, do meio
principalmente, sobre quais são os conteúdos da docência: ambiente” (Referências para uma Política Nacional de Educação
do Campo, 2004, p.37), tem-se que estabelecer alguns princípios
Percebo que o reencontro com o sentido da docência se dá que possibilitem, efetivamente, uma educação das relações étnico-
na medida em que vamos descobrindo que esses saberes escola- -raciais em comunidades quilombolas.
res e conteúdos fechados se são imprescindíveis ao aprendizado
humano, não o esgotam. Há capacidades “abertas”, que são o 2.3 Projeto pedagógico como princípio de equidade: ele-
componente da nossa docência e do direito à Educação Básica.
mentos constituintes
Aprender por exemplo o convívio social, a ética, a cultura, as iden-
tidades,[...] os papéis sociais, os conceitos e preconceitos, o des-
tino humano, as relações entre homens e seres humanos, entre os Estamos dispersos pelos quatro cantos do mundo, segundo
iguais e os diversos, o universo simbólico, a interação simbólica os ditames da hegemonia ocidental (...). O efeito de uma presen-
com os outros, nossa condição espacial e temporal, nossa memória ça africana no mundo será o de aumentar a riqueza da consci-
coletiva e herança cultural, o cultivo do raciocínio, o aprender a ência humana e (...) alimentar a sensibilidade do homem com
aprender, aprender a sentir, a ser... Esses conteúdos sempre fizeram valores, ritmos e temas mais ricos e mais humanos.
parte da humana docência, da pesquisa, da curiosidade, da proble- Cheik Anta Diop
matização. Nunca foram fechados em grades, nem se prestam a ser
disciplinados em disciplinas. Aprendizados e ensinamentos sempre interferem na forma
de ser e estar em um mundo cuja complexidade de estrutura-ação
Os saberes “abertos” estão oficialmente incorporados à re- demanda um olhar pedagógico que não simplifique o processo
alidade educacional brasileira na proposta de Parâmetros Curri- educativo a um momento descolado da realidade que o envolve.
culares Nacionais, que os apresenta como Temas Transversais; Envolver-se com o mundo circundante pressupõe um “fazer parte”
encontram-se incorporados, também, na lógica do mercado de deste mundo e, neste sentido, problematizar esta relação que se
ponta, onde são exigidos trabalhadores “polivalentes”, com uma constitui uma forma primária de sentimento de pertença - ser e
bagagem intelectual que não se reduz a letras e números, mas que estar no mundo - é perguntar-se: De que forma estou? Por que
se formem com outras habilidades e sensibilidades, porque o mer- estou? Quem sou?
cado do consumo deve valer-se de todos os gostos e culturas a
A tarefa de questionar, todavia, não é um ato espontâneo, prin-
fim de semear, globalmente, a sua ética: a ética indiscriminada do
cipalmente falando em uma tradição de escola cujo “silenciar” tem
lucro. Diria, então, que os saberes abertos já não constituem uma
novidade entre aqueles setores que podem transformar – a educa- sido a regra, não exceção. Como questionar o inquestionável? Não
ção - e aqueles setores que desejam manter – o mercado capitalista é assim que se apresentam os saberes da escola? Construídos por
– um modelo de sociedade excludente. “entes” tão iluminados que a forma “gente” de estar no mundo se
O conhecimento produzido no seio das comunidades negras é cala ante a “forma” conteúdo de estar na escola. Este conhecimen-
um saber que, articulado às contribuições dos que estão de “fora”, to, científico, inquestionável, não provoca perguntas, provoca um
pode produzir desenvolvimento sustentável, geração de renda, sentimento que é o seu reverso: o sentimento de emudecer-se.
preservação da cultura, enfim, uma perspectiva do etnodesenvol- Tratar a questão da educação para as relações étnico-raciais
vimento. em reação às comunidades quilombolas nos faz atentar para uma
A práxis emerge, com muita intensidade, enquanto atitude questão fundamental: o buscar da fala. A oralidade, secularmente,
pedagógica quando se pensa a educação em comunidades quilom- constitui a forma de estar no mundo para um grupo étnico que
bolas; a práxis pressupõe uma avaliação e uma crítica severa aos tão pouco acesso teve às chamadas “letras”, à educação formal,
modos como a preservação do passado e uma antevisão de futuro e que, nem por isso, deixa de escrever, na alma, no corpo, no es-
se conjugam. O desejo de alavancar o progresso exige muito cui- paço construído, a sua história, memória viva, força que propul-
dado – vigilância – para que estas propostas não tragam consigo siona a assunção de sua negritude, que para D’Adesky “vai além
um olhar simplificador que pode banalizar, folclorizar de forma da simples identificação racial. Ela não somente é uma busca de
pejorativa a cultura local, obedecendo apenas a um espírito merca- identidade enquanto forma positiva de afirmação da personalidade
dológico (LEITE, 2003).
negra, mas também, um argumento político diante de uma relação
Discutir uma concepção de conhecimento para quilombolas
de dominação” (2001, p.140).
significa pensar em uma formação curricular onde o saber institu-
ído e o saber vivido estejam contemplados, provocando uma rup- A negritude tal qual foi colocada anteriormente é um ato de
tura em um fazer pedagógico em que o currículo é visto enquanto estar no mundo e foi nesta perspectiva que se começou trazendo os
grade, hierarquicamente organizado com conteúdos que perpetu- sentidos para o ensinar e o aprender: reconhecer-se como sujeito
am o poder para que determinados grupos continuem a outorgar: de ação/reflexão, sujeito da práxis que é “uma ação imanente pela
qual o sujeito se transforma” (SODRÉ, 2000, p.142).
(...) qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais Propor diretrizes para se viabilizar a implementação da Lei n°
formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo 10.639/2003 na educação quilombola é um exercício de buscar os
e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o conceitos, não apenas na sua forma teórica, mas na expectativa de
que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas que eles solidifiquem uma proposta político-pedagógica que pos-
e quais não o são (SILVA, 1996, p.166). sibilite a educação das relações étnico-raciais.

Didatismo e Conhecimento 174


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A história e cultura africana e afro-brasileira constituem um (...) aplicada à sociedade, ela tem por vocação estabelecer
conhecimento fundamental que contribuirá, segundo D’Adesky, um equilíbrio entre os indivíduos pertencentes às diversas coletivi-
para remodelar o rosto e a alma do povo negro, constituindo “uma dades e grupos culturais. (...) Equidade é a busca de critérios mais
arma poderosa contra o racismo visceral da sociedade brasileira exigentes de igualdade (D’ADESKY, 2001, p.232-233).
que pressupõe ser o negro o contrário do branco, nada mais, nada
menos” (2001, p.141). A construção identitária de cada um/a está sempre sendo for-
Atentando-se para os conceitos principais na Lei n° mada, em processo; identidades e subjetividades são processos
10.639/2003, de história e cultura, faz-se necessário vê-los como intercambiáveis, resultando em uma imensidão de sentimentos
princípios, como elementos fundantes de uma proposta pedagógi- envolvidos através da forma como as pessoas nos fazem perceber.
ca em que, ambos, injetam a dinamicidade necessária para que a Malouf (2002, p.35) referenda esta reflexão ao dizer que:
tarefa de ensinar possa se atrelar à complexidade da realidade em
que os educandos (as) estão inseridos (as). (...) os outros fazem-nos sentir, pelas palavras, pelos olhares,
Problematizar o envolvimento do sujeito aprendiz com uma que somos pobres ou aleijados, demasiado baixos ou demasiado
realidade educativa requer, em um primeiro momento, que toda a altos, escuros ou demasiado louros, circuncidados, não circunci-
problematização desta relação - ser/estar no mundo – decorra dados ou órfãos – estas inumeráveis diferenças, mínimas ou signi-
(...) exatamente do caráter histórico e da historicidade dos ho- ficativas, que traçam os contornos de cada personalidade, forjam
mens. Por isto mesmo é que os reconhece como seres que estão os comportamentos, as opiniões, os receios, as ambições, que se
sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma rea- revelam muitas vezes eminentemente formativas, mas que frequen-
lidade, que sendo histórica também, é igualmente inacabada. (...) temente nos ferem para sempre.
Daí que seja a educação um que fazer permanente. Permanente na
razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade (FREI- Marcar as subjetividades envolvidas durante um processo de
RE, 1983, p.83). construção identitária não significa marcar o corpo, como outrora,
com intenções de dor. Marcar o corpo cuja beleza está em ser, tal
Este devir, a realidade inconclusa, assim como as situações se
qual foi concebido, significa não construir, não ir à busca de meios
confirmam em uma concepção de cultura em que homens e mu-
para que ocorra a afirmação de uma estética que está na alma, na
lheres apropriam-se de seus significados e símbolos e os recriam,
negritude.
os traduzem e os leem de outro modo (Bhabha, 2001), como força
O poeta Aimée Césaire, citado por Sartre, resgata a negritude
ordenadora de suas questões humanas (GEERTZ, 2001).
como um sentimento – tensão da alma – definidor para a forma de
Dentro das necessidades urgentes das comunidades quilom-
ser-no-mundo do povo negro:
bolas, a Lei 10.639/03 deve se constituir como um instrumento
para muito além da obrigatoriedade de mais um conteúdo dentro Minha negritude não é uma pedra, surdez que é lançada
de uma matriz curricular; implantar História e Cultura Africana contra o clamor
e Afro- Brasileira é tencionar o presente porque no dizer de Fa- do dia,
non: “Todo o problema humano exige ser considerado a partir do Minha negritude não é uma catarata de água morta sobre o
tempo. Sendo o ideal que sempre o presente sirva para construir o olho morto
futuro. E esse futuro não é o do cosmos, mas o do meu século, do da terra
meu país, da minha existência” (1974, p. 43). minha negritude não é nem torre nem catedral
ela mergulha na carne rubra da terra
O tempo presente – o quilombo contemporâneo – é um mo- ela mergulha na ardente carne do céu
mento histórico com um olhar no passado - o aquilombamento de ela perfura o opaco desânimo com sua precisa paciência
escravizados(as) – e é neste trânsito temporal (passado, presente, (Césaire apud Sartre, 1960, p.131).
futuro) que a cultura africana ao ser retomada se ressignifica, se
redimensiona, na conformidade de um tempo que não é do “cos- Construir algumas diretrizes que contemplem a educação para
mos”, é da existência de crianças e jovens alijadas de um saber que as relações raciais tendo em vista as comunidades quilombolas é
os projete, segundo os seus desejos, a um futuro idealizado. um esforço inicial para que educadores e educadoras não desani-
mem, que se alimentem de uma paciência que sempre se faz cres-
A diferença histórica e cultural é outro princípio pedagógico. cente e, simultaneamente, ponderada, quando é nutrida pelo sonho
Nesse quadro, a diferença racial ou étnica se mantém ao se redefi- e pela esperança. Historicamente, os quilombos foram lugares
nir em variados contextos históricos e geográficos. A diversidade educativos da arte de sonhar, de esperançar, de tornar possível um
cultural contempla as culturas no seu sentido empírico, reconheci- mundo cuja referência maior seja a vivência da liberdade, ainda
do; a diferença é o processo de enunciação da cultura que resulta que ela, por muitas vezes, tenha sido vivida ao nível de desejo.
em uma classificação de culturas como legítimas e de outras como
subalternas (BHABHA, 2001). 3. O CAMPO DAS AÇÕES

Resgatar a diferença cultural como pressuposto de uma educa- Ouça mais as coisas que os seres
ção antirracista significa explicitar a maneira como as desigualda- A voz do fogo se ouve,
des são construídas e, a partir disto, perseguir a equidade enquanto Ouça a voz da água, escute no vento
possibilidade de considerar “o respeito à pessoa humana na apre- O arbusto soluçar
ciação do que lhe é devido” (D’ADESKY, 2001, p.232), tendo em É o sopro dos ancestrais
mente a noção de equidade, que Birago Diop - O sopro dos ancestrais

Didatismo e Conhecimento 175


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A implementação da Lei n° 10.639/2003 no contexto esco- espaço da sala de aula; é o reconhecimento de seus limites e, tam-
lar é um desafio para que toda a sabedoria relacionada à História bém, das suas precariedades. As características físicas das escolas
e à Cultura Africana e Afro-Brasileira se torne um conhecimento rurais são bastante difíceis. Segundo os dados presentes no cader-
presente, efetiva e positivamente, na sala de aula. Este conheci- no de subsídios das Referências Para Uma Política Nacional de
mento pretende se constituir hegemônico, no sentido de agregar Educação do Campo (2004), das escolas de Ensino Fundamental,
um novo “centro”, uma vez que a lei contesta a universalidade de 21% não possuem energia elétrica, 5,2% dispõem de biblioteca e
um eurocentrismo. Trata-se, sim, de uma concepção diferenciada menos de 1% oferecem laboratório de ciências, de informática e
de “centro”, que “postula a necessidade de explicitar a localização acesso à internet.
do sujeito no sentido de desenvolver uma postura teórica própria Munanga e Gomes (2004, p.16) afirmam que é necessário pro-
a cada grupo social fundamentada na sua experiência histórica e mover aprendizagens gerais que possibilitem o “acesso a conheci-
cultural” (NASCIMENTO, 2003, p.96). mentos, informações e valores que permitam aos estudantes conti-
O poema africano que dá abertura a este momento de escrita nuarem aprendendo”. Os autores apontam que estas aprendizagens
devem facilitar que os(as) alunos(as) transitem em três grandes
nos remete a outras possibilidades de aquisição de conhecimen-
domínios da cultura escrita: comunicação, acesso a informações
to, dando vazão às falas que, em um primeiro momento, parecem
em diversas fontes e investigação e compreensão da realidade. As
inusitadas. Na verdade, voltando-se para uma comunidade quilom-
escolhas didáticas a serem utilizadas para tais fins, ao serem ade-
bola, “o sopro dos ancestrais” atribui significados a tudo que é quadas às características do grupo, se priorizarem metodologias
tanto material quanto imaterial; são sentidos que se transformam envolventes, grupais e exploratórias, irão despertar a curiosidade e
em mitos, que, por sua vez, não sinônimos de mentira, mas da ca- o desejo de aprender porque se instaurou o sentimento de pertença,
pacidade de recriar significados para as coisas, saindo dessa forma, o sentir-se, também, sujeito do processo de aprendizagem.
de um processo coisificante que mutila a ilimitada capacidade de
homens e mulheres de criar e perceber a natureza e a sociedade em 3.1 Práticas a serem pensadas
seu entorno, por meio da memória e da história e da vivência sen-
sível. Podemos dizer que cada quilombo, com suas experiências, Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem
mesmo em meio às adversidades, constitui um espaço repleto de fazer cultura, sem ‘tratar’ sua presença no mundo, sem sonhar,
história e cultura afro-brasileira. sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das
Neste sentido, um plano de ação consiste em um ato de “cria- águas, sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pon-
ção”: criar voz quando predomina um silêncio sobre o que é im- tos de vista sobre o mundo [...], sem aprender, sem ensinar, sem
portante abordar, criar atitude quando se apresenta o conformismo, ideias de formação, em politizar não é possível.
criar esperança naquilo que está desesperançado. Na cosmovisão Paulo Freire
africana, tudo está em tudo, tudo se complementa, não existe sepa-
ração entre os elementos que compõem um sistema. A história começa a ser feita desde que se nasce e, logo ali,
O objetivo das ações se constituem a partir de uma proposta entra-se no processo educativo. Por isso, propiciarmos ações que
político-pedagógica que considera o histórico da vida social, as se valham de inúmeras possibilidades para o aprender. É o que
trajetórias comuns, as características econômicas e culturais, a pre- tentamos construir nas sugestões abaixo.
servação da identidade quilombola na sua relação com o ambien- Em se tratando de quilombos, devemos considerar o território
te, concomitante à busca de melhor qualidade de vida presente e enquanto um dos temas condutores para a ação:
futura, mediante uma tomada de consciência crítica que é sempre
emergente ao sentir-se parte da construção do saber. [O território é] um repertório de lugares de importância sim-
Acredita-se que algumas temáticas possam orientar um traba- bólica, envolvendo agrupamentos não mais existentes onde residi-
ram antepassados, porções de terras perdidas, localidades para
lho que se organizará conforme o modo de fazer - didática - opor-
onde migraram vários parentes e que se deseja conhecer: luga-
tuno à tarefa e seus objetivos; elas não são ditadas, são extraídas
res acessados através de viagens, notícias, lembranças, saudades
do contexto onde se efetua a prática educativa. Os temas a seguir
(RATTS, 2004, p.07).
podem ser o ponto de partida para uma práxis transformadora na
educação quilombolas, na certeza de que os mesmos devem ser Pensar em território na perspectiva de Ratts (2004), em epí-
alterados conforme a demanda pedagógica local. Eles: identida- grafe, é buscar a lembrança que sempre é precedida de razões que
de, espaço/território, cultura, corporeidade, religiosidade, estética, a justificam. Pensar em um plano de ação para trabalhar com edu-
arte, musicalidade, linguagem, culinária, agroecologia, entre ou- cação quilombola é buscar a noção de território amplamente men-
tros. cionada no campo das reflexões e, também, na realidade concreta
O “como fazer” pode ser pensado na sua concepção e reali- das salas multisseriadas, como característica prevalecente no meio
zação como possibilidade de descentramentos. O diálogo, o cír- rural e, especificamente, nas áreas quilombolas. Estas escolhas não
culo para a narração de histórias, tão comum nas tradições afro- propõem uma prática acomodada a uma determinada realidade,
-brasileiras, poderia ser o ponto de partida para a realização de um mas uma captura de processos reais, que nem sempre são ideais,
fazer que não é individual, mas coletivo. É importante indagar: De mas que podem fomentar uma crítica a partir do vivido.
que forma vocês querem aprender? Em quais lugares poderíamos Todas essas ideias colocadas anteriormente surgem de um
realizar as nossas aulas? Ora, a exploração didático-pedagógica do dado concreto da comunidade que entende o tempo da docência
espaço é o encontro com as pessoas do lugar, com as suas casas, como o tempo de criação de formas mais contextualizadas de
com uma realidade concreta que pode estar sendo revista com um conduzir uma prática pedagógica que vá ao encontro de um outro
olhar que não é normatizador, mas problematizador. A exploração pressuposto anunciado por uma mulher quilombola que, anuncia,
de outros espaços para aprender, no entanto, não é a negação do a seu ver, a escola quilombola “ideal”:

Didatismo e Conhecimento 176


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
[...] eu acho que ao ponto de uma escola ideal para uma co- Na perspectiva aqui enunciada, os quilombos não constituem
munidade quilombola é aquela que, lógico, quer resgatar o pas- uma experiência restrita ao passado brasileiro e da população ne-
sado, pensando na tecnologia do futuro. No instante em que você gra em especial. São um fenômeno contemporâneo que marca
não se deixa a sua história [se] perder mas, já dizendo assim [de] inúmeros municípios do país e, no campo educacional, tendo em
que forma a gente podia pensar num mercado de trabalho, ou se- vista a Lei n° 10.639/2003, apresentam-se como campo propício
não, ali mesmo um projeto da realidade da cultura e dessa cultura para uma transformação da educação rural e urbana, da realidade
ser explorada a auto-sustentabilidade do quilombo, sem ele per- dos(as) alunos(as) migrantes e da inovação de projetos político-
der o resgate da história. Ela ali voltada pra esse tipo assim, ela -pedagógicos que contem com a participação de quilombolas pro-
resgata vários pontos da história que não se pode se deixar perder, fessores/as, gestores/as, pais, mães e lideranças locais.
que nem o óleo da mamona que pra nós ali era a sobrevivência
dos quilombolas. Ali, se industrializando do óleo da mamona, se Referências
resgatava a história, ao ponto que, a tecnologia como anda avan-
çando agora, a gente não tem uma ideia formada, mas se entrasse ARROYO, Miguel G.. Ofício de mestre: imagens e auto-ima-
gens. Petrópolis: Vozes, 2001.
na realidade deles, de cada comunidade seria bem fácil de alguém
decifrar e fazer um trabalho em conjunto. Mas o essencial, uma
ARRUTI, José Maurício P. A. O quilombo conceitual: Para
escola que resgatasse a cultura dos negros, não só dentro dos qui-
uma sociologia do “artigo 68”. Texto para discussão do projeto
lombos, mas até fora, tiraria muitas pessoas da rua porque se você
Egbé-Territórios Negros Rio de Janeiro: Koinonia, 2003.
fizer uma análise da faixa mais pobre do mundo ela tem cor, ela é
negra (Juraciara, quilombo de Manoel Barbosa Gravataí, março ASSMANN, Hugo e SUNG, Jung Mo. Competência e Sen-
de 2005). sibilidade Solidária: educar para a esperança. Petrópolis: Vozes,
3.ed., 2003.
Podemos citar igualmente outras experiências de educação
quilombola: 1ª) a comunidade de Conceição das Crioulas, situada BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed.
no município de Salgueiro, Pernambuco, em que os(as) quilombo- Da UFMG, 2001.
las buscam dar prioridade à contratação de professores/as da pró-
pria comunidade e com uma “formação continuada voltada para a BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil.
aquisição de habilidades na elaboração e efetivação de um projeto São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 1988.
político pedagógico que correspondesse aos anseios do grupo e
contemplasse o princípio da interculturalidade” (LEAL, 2005). BRASIL. LEI No. 9.394. LDB - Leis de Diretrizes e Bases da
Neste sentido têm o apoio do Centro Cultural Luiz Freire; 2ª) O Educação Nacional. de 20 de dezembro de 1996. D.O. U. de 23 de
Projeto Vida de Negro do Centro de Cultura Negra do Maranhão, dezembro de 1996.
que desenvolve um projeto de educação em áreas quilombolas
(CCN-MA, 2003); 3ª) O Núcleo de Educação Escolar Indígena e BRASIL. Lei 10639, de 9 de janeiro de 2003. D.O.U de
Quilombola da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe que 10/01/2003
iniciou um processo de reuniões pedagógicas com os professores/
as e coordenadores/as que atuam diretamente junto às comunida- BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curri-
des quilombolas do estado (SEED/SE, 2005). culares Nacionais e para a Educação das Relações Étnico- Raciais
Vimos que o agir está intrinsecamente voltado ao refleti, ao e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
escutar, ao transformar. Ao buscar as lembranças de um território CNE/CP 3/2004, de 10 de março de 2004.
quilombola, percebe-se o limite para se propor diretrizes, porque
ao remeter-se ao empírico, as reflexões e ações não ficam contidas BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Referências para
uma Política Nacional de Educação do Campo. Cadernos de Sub-
no espaço de um texto. A imensidão de práticas que um território
sídios. Fevereiro de 2004.
quilombola pode suscitar só pode ser criada a partir da vivência
única de cada educador/a na relação cotidiana com a sua comuni-
CCN-MA. Projeto quilombo resistência negra: Promovendo
dade de atuação.
mudanças (re)construindo práticas. São Luís: CCN-MA. Set 2003.
Resta, também, fazer de cada momento, uma singularidade.
Este momento é o de “fechamento” textual, mas não de encerra- D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo:
mento da reflexão. Diretrizes são traçadas em um incansável ir e racismo e antirracismo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
vir no passado e presente, no campo da reflexão e no campo da
ação, entre um parágrafo e outro, onde as ideias são expressas em FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Porto: So-
palavras que nem sempre traduzem os seus sentidos. Às palavras, ciedade Distribuidora de Edições Ltda., 1974.
por vezes, faltam às emoções experimentadas no ato da docência.
Birago Diop, na epígrafe que anunciava o campo das ações dizia: FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessá-
“Ouça mais as coisas que os seres”. Complementamos: poder-se-ia rios à prática educativa. 20.ed.. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
buscar nas coisas a maneira como os seres nelas se inscrevem! Foi
assim que o fizemos na tentativa de construir, coletivamente, um ______. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 15ª.
ensaio de práxis educativa tendo em vista os quilombos brasileiros. ed.. 1983.

Didatismo e Conhecimento 177


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Didatismo e Conhecimento 178


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
As sugestões de atividades são subsídios que estão associados
à prática educativa, e esta precisa estar de acordo com a concep-
ção de criança e de educação enunciadas aqui e no RCNEI. Des-
tacamos alguns pontos importantes contidos no Referencial que
auxiliam no processo de elaboração de atividades como a organi-
zação do tempo, do espaço e dos materiais; observação, registro e
avaliação.
Com relação às atividades aqui propostas, não se pode perder
de vista a rotina de cada instituição com elementos que são per-
manentes e fundamentais para o desenvolvimento dos trabalhos e
projetos na Educação Infantil. “A rotina deve envolver os cuida-
dos, as brincadeiras e as situações de aprendizagens orientadas”
(BRASIL, 1998a, p.54), assim como as atividades permanentes
que respondem às necessidades básicas do cuidado e da aprendiza-
gem não podem ser esquecidas, tais como: brincadeira no espaço
Tocar para descer interno e externo; roda de história; roda de conversas; oficinas de
Acervo da Casa Thomas Jefferson desenho, pintura, modelagem e música; atividades diversificadas
ou ambientes organizados por temas ou materiais à escolha da
SUGESTÕES DE ATIVIDADES criança, incluindo momentos para que as crianças possam ficar so-
Este texto apresenta uma série de sugestões de atividades, de zinhas se assim o desejarem; cuidado com o corpo. A perspectiva
indicação de filmes, vídeos e bibliografias que procuram se ade- da diversidade deve ser contemplada escolhendo-se para o acervo
quar aos níveis e modalidades de ensino aqui tratados em sua re- das instituições, por exemplo, bonecas negras, brancas, indígenas,
lação com a História e Cultura africanas e afro-brasileiras e com orientais. Pode-se confeccioná-las inclusive com as próprias crian-
a temática étnico-racial. Sendo proposto pelas coordenadoras do ças e seus familiares, e os jogos podem também ser construídos
GTs, com a colaboração de outros(as) educadores/as, não se trata considerando-se as diferenças regionais, não se perdendo de vista
de um manual com indicações prontas para o uso. Sempre cabe a os brinquedos populares e artesanais.
sensibilidade para se perceber e agir no momento certo, no lugar
A roda ou rodinha, tão utilizada nas instituições de educação
apropriado, e com a forma de abordagem mais adequada.
infantil e inserida na rotina das mesmas, possui um significado im-
EDUCAÇÃO INFANTIL portante para diversas culturas e também para a indígena e africa-
Os meninos em volta da fogueira na. Na roda, é possível romper com as hierarquias, existe espaço
Vão aprender coisas de sonho e de verdade para a fala, todos se veem. É na roda que se conta história, novas
Vão aprender como se ganha uma bandeira músicas e brincadeiras são aprendidas, que são feitos os “com-
E vão saber o que custou a liberdade (...) binados”. Retomar a roda como princípio de organização, como
Mas os meninos desse continente novo maneira de aprender coletivamente já é um exercício cotidiano de
Hão de saber fazer história e ensinar busca de respeito à diversidade.
Martinho da Vila Finalmente, a observação, o registro e a avaliação processual
são fundamentais no acompanhamento da aprendizagem das crian-
Aqui serão apresentadas algumas sugestões de atividades que ças, podendo fornecer uma visão integral das crianças, ao mesmo
não devem ser tomadas como receitas, mas como possibilidades a tempo em que revelam a necessidade de intervenções mais incisi-
serem construídas, reconstruídas, ampliadas, enriquecidas com a vas em alguns aspectos do processo educacional.
costumeira criatividade dos educadores e educadoras do Brasil. É
fundamental que as/os educadoras/es se reúnam para compartilhar 1 CONSTRUINDO UM CALENDÁRIO DA DIVERSI-
saberes, discutir sobre suas dificuldade com a temática, realizar DADE ÉTNICO-RACIAL
pesquisas, trocar experiências, construir materiais; organizar ban-
cos de imagens, desenhos e figuras. Uma indicação importante é
O planejamento de atividades na Educação Infantil tendo
pesquisar as organizações negras de cada localidade, pois muitas
como referência datas comemorativas que são reproduzidas ano a
dessas organizações possuem experiências educativas que são re-
ferência para todo o país. ano, sem análise crítica da parte dos(as) educadores/as, não contri-
Chamamos a atenção para a importância de não realizar ativi- bui para a reflexão do porque celebrar tais heróis, grupos e costu-
dades isoladas ou descontextualizadas. É importante que a temática mes, seguindo padrões que correspondem a uma visão das origens
das relações étnico-raciais esteja contida nos projetos pedagógicos do povo brasileiro, que não é a única.
das instituições, evitando-se práticas localizadas em determinadas A maioria das instituições educacionais já incorporou em suas
fases do ano como maio, abril, agosto, novembro. Estar inserido na práticas a comemoração de datas significativas para o Brasil. São
proposta pedagógica da escola significa que o tema será trabalhado datas específicas que rememoram momentos da nossa história (Dia
permanentemente e nessa perspectiva é possível criar condições da Independência), símbolos (como o Dia da Bandeira) ou heróis
para que não mais ocorram intervenções meramente pontuais, para (como Tiradentes). Na maioria das vezes essas datas são lembra-
resolver problemas que surgem no dia-a-dia relacionados ao ra- das nas escolas sem grandes inovações, tanto nas atividades pro-
cismo. Aos poucos, o respeito à diversidade será um princípio das postas, quanto na escolha das mesmas e/ou das personalidades a
instituições e de todas as pessoas que nela atuam. serem homenageadas.

Didatismo e Conhecimento 179


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Os profissionais da educação mantêm a tradição de destacar voleibol do Clube Regatas Tietê, proibidos de entrar no clube e o
algumas datas, como o Dia do Índio, por exemplo. No dia 19 de assassinato do operário negro Robson Silveira da Luz, torturado
abril vestem/fantasiam as crianças com ornamentos e pintam os até a morte por policiais de Guaianazes/SP.
seus rostos, desenvolvendo uma série de estereótipos sobre os in- Para celebrar a qualquer época do ano a Consciência Negra,
dígenas, que são diversos, pois são muitas as etnias que compõem poderão ser organizadas mostras de trabalhos com a temática, apre-
a população indígena no Brasil. Cada grupo tem uma língua dife- sentações musicais com utilização de instrumentos confecciona-
rente, e alguns já perderam sua língua original; usam vários tipos dos pelas próprias crianças, concurso de bonecas negras (MATOS,
de vestimentas, inclusive as que os não-índios utilizam; vivem em 2003), leitura de pequenas histórias, declamação de poesia, entre
moradias também diversas. As pinturas corporais são caracteri- outras atividades. Importante destacar as manifestações culturais
zadas de formas diferentes em cada grupo. As marcas ou dese- locais e regionais, tais como a congada, congo, jongo, maracatu,
nhos estão carregados de significados; os indígenas se pintam por samba de roda, tambor de crioula, entre outras tantas. É importante
motivos variados: festas, guerras, comemorações, casamentos. O rememorar o porquê da data e seu significado para a população
exemplo do Dia do Índio nos ajuda a refletir sobre outras datas: brasileira em geral e para a população negra em especial.
- Por que destacamos a figura de Tiradentes e esquecemos de
outros(as) personagens importantes para a nossa história de resis- 2 EXPRESSÃO ORAL E LITERATURA
tência à colonização, escravidão, a exploração do trabalho etc.?
- Por que nos esquecemos de figuras históricas de nossas cida- Escritores/as como Carolina de Jesus, Solano Trindade, Eliza
des, bairros e vilas, muitas delas negras, mulheres, trabalhadores/ Lucinda, Cuti, Esmeralda Ribeiro, Conceição Evaristo, Heloísa Pi-
as? res, Geni Guimarães e tantos(as) outros(as) podem entrar em nos-
- Como estamos trabalhando o dia da Abolição? Damos des- sos saraus de poesia, juntamente com Cecília Meireles, Vinícius
taque apenas à princesa Isabel e alguns abolicionistas mais co- de Morais, Carlos Drumond de Andrade, Manoel Bandeira, entre
nhecidos ou falamos das lutas de muitos homens e mulheres es- tantos poetas e escritores brasileiros. Nesse sentido é necessário
cravizados que lutaram contra a escravidão, mas que se tornaram estarmos atentos(as) para textos que podem reforçar o preconceito,
anônimos na História? sendo dúbios em seu significado. Vejamos a poesia abaixo:
Vale a pena realizar uma pesquisa para descobrir outros(as) As borboletas
personagens que não os costumeiramente lembrados/das no ca- Brancas, azuis, amarelas e pretas
lendário escolar. Construir/ reconstruir a história da cidade ou do Brincam na luz as belas borboletas
bairro, a partir de depoimentos de pessoas mais velhas, dando des- Borboletas brancas são alegres e francas
taques para homens e mulheres comuns que construíram ou cons- Borboletas azuis gostam de muita luz
troem a história de uma comunidade ou país. As amarelinhas são tão bonitinhas
E as pretas então, oh que escuridão!
1.1 O 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Ne- Vinícius de Morais
gra
A associação da borboleta com a escuridão pode tanto remeter
A partir da Lei n° 10.639/2003, o Dia Nacional da Consci- a algo ruim como pode ter um sentido de surpresa, de susto, como
ência Negra é incorporado no calendário escolar como dia a ser nas brincadeiras de “pute” (quando encobrimos o rosto para sur-
lembrado, comemorado e desenvolvido em todas as instituições de preender ou assustar uma criança pequena). A partir dessa poesia
Educação Básica. tão conhecida de muitas crianças, podemos trabalhar com cores
Em 20 de novembro de 1695, foi morto Zumbi, grande lide- variadas, pintando borboletas de papel, destacando a beleza de to-
rança negra do Quilombo dos Palmares. Essa data é ressignificada das as cores, inclusive da cor preta. Pode-se utilizar histórias nas
pelos movimentos negros brasileiros. De acordo com Oliveira Sil- quais a cor preta tem destaque positivo, como Menina Bonita do
veira, para o Grupo Palmares de Porto Alegre no Rio Grande do Laço de Fita; o Menino Marrom; Biografia das cores. Criar his-
Sul essa data surge como contestação à comemoração ao dia 13 tórias com as crianças e refazer poesias, como a de Vinícius de
de maio: Morais, substituindo escuridão por outros adjetivos.
O texto de Pedro Bandeira “A Redação de Maria Cláudia”
A homenagem a Palmares ocorreu no dia 20 de novembro apresenta muito bem o contraste entre as cores:
de 1971, um sábado à noite, no Clube Náutico Marcílio Dias, so-
ciedade negra (...) os participantes do grupo se espalharam no A redação de Maria Cláudia
círculo e contaram a história de Palmares e seus quilombos com Os brancos são muito diferentes dos negros. Mas depende do
base nos estudos feitos defendendo a opção pelo 20 de novem- branco e depende do negro. Na minha caixa de lápis de cor o
bro, mais significativo e afirmativo na confrontação com o treze branco não serve para nada. Só o preto é que serve para desenhar.
de maio (2003, p.2). Por isso, os dois são muito diferentes. Tem o giz e tem o carvão.
Eles são iguais. Os dois servem para desenhar. Com o giz, a gente
A data toma o cenário nacional principalmente a partir de desenha na lousa. Com o carvão, a gente desenha um bigode na
1978, quando surge o Movimento Negro Unificado Contra a Dis- cara do Paulino para a festa de São João. (...). O papel é branco e
criminação Racial, com ramificações em diversos estrados do país é igualzinho ao papel preto chamado carbono que escreve em bai-
(CARDOSO, 2001). O surgimento do Movimento Negro Unifi- xo tudo o que a gente escreve em cima. A noite é preta, mas o dia
cado ocorreu em julho de 1978, com um grande protesto contra não é branco. O dia é azul. Então o preto da noite é só da noite.
as discriminações sofridas por quatro atletas negros do time de Não é igual nem é diferente de nada.

Didatismo e Conhecimento 180


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Nessa metodologia são trabalhadas as diferenças entre as co- 4 MÚSICAS
res utilizando diversos materiais como flores de cores diferentes,
coelhinhos, pintinhos, por meio de colagens, desenhos, pinturas. São diversas as canções populares trabalhadas na Educação
De forma lúdica, as crianças vão construindo referenciais sobre a Infantil. Muitas delas tradicionais e com fortes representações ne-
identidade étnico-racial sem preconceitos. gativas e/ou violentas, reforçadoras da dominação, que depreciam
a imagem do negro e outros. São exemplos disso, “Os Escravos de
3 CONTOS, BRINCADEIRAS E DIVERSIDADE Jô”, “Boi da Cara Preta” e outras com versos depreciativos para
com a pessoa negra. O cantor e compositor Rubinho do Vale (MG)
A brincadeira constitui-se como uma possibilidade educati- fez uma releitura dessas cantigas e as apresenta numa perspectiva
va fundamental para a criança. Brincar é imaginar e comunicar positiva. A professora e escritora Inaldete Pinheiro (PE) também
de uma forma específica que uma coisa pode ser outra, que uma produz livros que fazem recontos de algumas histórias populares
pessoa pode ser um/uma personagem. De acordo com Abramowi- preconceituosas. Uma delas refere-se ao “Boi da Cara Preta”, e na
cz (1995:56), “a brincadeira é uma atividade social. Depende de qual é possível fazer substituições cantando a música utilizando
regras de convivência e de regras imaginárias que são discutidas outras cores para o boi, como verde, vermelho, amarelão. A criati-
e negociadas incessantemente pelas crianças que brincam. É uma vidade pode ser explorada ao máximo, buscando substituições que
atividade imaginativa e interpretativa”. RCNEI fornece-nos uma façam sentido cultural para as crianças, cantando essas canções,
boa indicação do caráter educativo das brincadeiras. utilizando-se de outras expressões não preconceituosas.
A música popular brasileira, as canções populares regionais
O principal indicador da brincadeira, entre as crianças, é o também trazem uma infinidade de exemplos que destacam a cul-
papel que assumem enquanto brincam. Ao adotar outros papéis na tura negra, indígena, regional, entre outras. Cantar músicas, ela-
brincadeira, as crianças agem frente à realidade de maneira não borar coreografias, fazer parte de pequenas encenações são ações
liberal, transferindo e substituindo suas ações cotidianas pelas intencionais no trato com a diversidade. Seria interessante resgatar
ações e características do papel assumido, utilizando-se de obje- canções que falam de momentos da história (muitos sambas enre-
tos substitutos (1998a, p.27). do de escolas de samba tratam da história de resistência e luta do
povo brasileiro). Um exemplo é Kizomba, que destaca o quilombo
A fantasia e a imaginação são elementos fundamentais para de Palmares e Zumbi:
que a criança aprenda mais sobre a relação entre as pessoas, sobre Kizomba, a festa da raça
o eu e sobre o outro. No faz-de-conta, as crianças aprendem a agir Valeu Zumbi! O grito forte dos Palmares,
em função da imagem de uma pessoa, de uma personagem, de um Que correu terra céus e mares, influenciando a abolição
objeto e de uma situação que não estão imediatamente presentes e Zumbi valeu! (...) Essa Kizomba é nossa Constituição.
perceptíveis para ela no momento e que evocam emoções, senti- Martinho da Vila
mentos e significados vivenciados em outras circunstâncias.
Essa música foi samba enredo da escola de samba Unidos de
Os contos e as histórias povoam o universo infantil. Princi- Vila Izabel, vitoriosa no carnaval carioca de 1988, ano do cente-
palmente com relação aos contos, sempre se enfatizam aqueles da nário da abolição da escravidão e ano da nossa atual Constituição
tradição europeia, como Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Federal que contou com a participação de amplos setores da so-
Rapunzel e outros. Não trazemos para a cultura escolar e para a ciedade brasileira, destacando os movimentos sociais de mulhe-
cultura infantil os contos africanos, indígenas, latino-americanos, res, negros(as), moradia, campo, terra, indígena, educação dentre
orientais. Para uma educação que respeite a diversidade, é funda- outros. Kizomba quer dizer festa, confraternização. Retrata a luta
mental contemplar a riqueza cultural de outros povos, e nesse sen- contra a escravidão, que remonta a todas as formas de resistência
tido vale a pena pesquisar e trabalhar com outras possibilidades. encontrado pelos escravizados no Brasil, enfatizando o quilombo
Muitas vezes vamos nos surpreender ao encontrar semelhanças de Palmares e Zumbi um de seus maiores líderes. Mistura festa,
entre alguns contos e histórias, tais como Cinderela, assim como alegria e as manifestações da cultura popular e afro-brasileira,
Rapunzel e muitas outras que precisamos descobrir. As Pérolas de além de expressar a esperança em um mundo melhor, fazer refe-
Cadja é um bom exemplo das semelhanças com a história de Cin- rência a Constituição Federal, escrita naquele ano e chamada de a
derela. “Constituição Cidadã”.
A história relatada no desenho animado Kiriku e a Feiticeira Contar a história de Zumbi, levar para a sala livros com sua
é um conto rico em fantasias, aventuras e lições de vida. O filmes história, com figuras e fotos de quilombos, propondo projetos, pes-
permite a discussão, não só da cultura africana, como a de valores quisas sobre os quilombos existentes em sua região são atividades
como a amizade, o respeito, a persistências, os conflitos entre as importantes nas áreas de natureza e sociedade e linguagem oral e
pessoas de uma mesma comunidade, a inveja, a dor etc. escrita.
O importante é valorizar as possibilidades regionais. Em cada
Outras histórias da nossa literatura, como Histórias da Preta, estado e/ou cidade existem grupos que cantam canções que falam
O Menino Nito, Ana e Ana, Tranças de Bintou, Bruna e a Galinha da cultura popular de forma positiva e enriquecedora. São vários
de Angola permitem o contato com as culturas afro-brasileira e os estilos e os mesmos devem ser selecionados de acordo com as
africana, com personagens negras representadas com qualidade e preferências das crianças e/ou dos(as) próprios educadores. São
beleza. canções populares, reggae, jazz, funk, rap, samba, pagode, chori-
nho, dentre outras, devendo-se estar atentos(as) ao conteúdo das
letras.

Didatismo e Conhecimento 181


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
5 DECORANDO E INFORMANDO (MURAIS, CARTA- Com relação ao cabelo, a história “As tranças de Bintou”
ZES, MOBÍLIES) mostra uma possibilidade de abordar o tema de forma positiva e
construtiva, favorecendo o conhecimento de culturas de povos da
De maneira geral, nas instituições de Educação Infantil exis- África. O destaque é para as tranças de Bintou, num percurso de
tem muitos e diversos tipos de decorações, como móbiles em vida das pessoas que habitam a região, na visão da menina que
berçário, fotos ou desenhos nas portas das instalações sanitárias, queria ter tranças:
cartazes que trazem orientações a respeito de higiene corporal
e bucal, murais temáticos, figuras ou desenhos que identificam Meu nome é Bintou e meu sonho é ter tranças... Meu cabelo
as turmas ou classes, pois se acredita que o ambiente destinado é curto e crespo. Meu cabelo é bobo e sem graça. Tudo que tenho
à criança pequena necessitar ser colorido e com forma definida. são quatro birotes na cabeça. Às vezes, sonho que passarinhos
Raramente, esses espaços contam produções feitas pelas próprias estão fazendo ninhos na minha cabeça. Seria um ótimo lugar para
crianças. Propomos uma reflexão acerca desse cenário feito por deixarem seus filhotes. Aí eles dormiriam sossegados e cantariam
adultos/educadores em que subjaz uma imagem de criança. Ne- felizes. Mas na maioria das vezes eu sonho mesmo é com tranças.
cessário se faz contemplar a diversidade existente entre crianças Longas tranças, enfeitadas com pedras coloridas e conchinhas.
e adultos, confeccionando móbiles nos berçários com rostinhos de Minha irmã, Fatou, usa tranças, e é muito bonita. Quando ela me
crianças de diversos grupos: indígenas, brancos, negros, orientais. abraça, as miçangas das tranças roçam nas minhas bochechas.
Esses móbiles funcionam como estímulos para a criança pequena Ela me pergunta: “Bintou, pro que está chorando?” Eu digo: “Eu
que, ao olhar e observar a diversidade à sua volta, construirá essas queria ser bonita como você.” Meninas não usam tranças. Ama-
referências futuramente. nhã eu faço novos birotes no seu cabelo”. Eu sempre acabo em
Nos momentos de confecção dos murais temáticos é impor- birotes.
tante envolver as crianças no processo de criação. As instituições
poderão requisitar das famílias, por exemplo, que enviem revis- Essa história permite abordar componentes da identidade das
tas usadas que poderão ser utilizadas na confecção de murais crianças desde as diferentes fases da vida: infância, juventude, fase
para o Dia das Mães, Crianças, Família e outras datas. Cabe ao/a
adulta, velhice e as características de cada uma, as possibilidades e
educador/a estimular as crianças a encontrarem figuras de pesso-
limites das mesmas, além de comparações entre culturas e povos:
as variadas e sempre que possível fazer breves interferências e
as meninas brasileiras podem usar tranças, mas nas terras onde
comentários a respeito das escolhas que fazem problematizar as
Bintou mora, ela precisa ter uma certa idade para fazer o penteado
alternativas. Se sempre recaem sobre um mesmo tipo físico, é in-
que tanto sonha.
teressante conversar com as crianças sobre isso; caso seja obser-
No continente africano também existem muitos rituais que
vado algum tipo de preconceito ou representação negativa de um
determinado grupo étnico-racial, é fundamental que se amplie a têm o cabelo como referência. No caso da história na cerimônia
discussão em outros momentos e espaços articulando as diversas de batismo, o cabelo da criancinha é raspado. A figura das pessoas
áreas de conhecimento, utilizando-se de diversos recursos como mais velhas como portadoras de sabedoria também é destacada.
livros, brinquedos, músicas etc. É a avó de Bintou que decide sobre o seu penteado e ainda não
chegou o momento de ela usar tranças. E mesmo tendo sido pro-
6 CORPO HUMANO metido, sua avó lhe dá de presente o sonho que sonhou de enfeites
coloridos.
Trabalhar com o corpo humano também pode ser um mo- Vários nomes desconhecidos dos brasileiros são listados na
mento de reflexão por parte das/dos educadoras/es a respeito das história. É um bom momento para se trabalhar com os nomes das
doenças genéticas que acometem as crianças e que muitas vezes crianças e os significados dos mesmos. É preciso refletir sobre os
causam problemas sérios quando diagnosticadas tardiamente. São motivos pelos quais ao chegarem ao Brasil para serem escraviza-
doenças como aquelas que podem trazer danos à visão, audição, dos, muitos africanos foram batizados com nomes europeus, per-
locomoção e outras como anemia falciforme, que atingem pessoas dendo assim um pouco de sua própria identidade, pois os nomes na
negras. Essas doenças, se percebidas precocemente por aqueles/ África guardam sentido e significado para os grupos familiares de
as que acompanham as crianças (familiares, educadoras/es, pro- origem das crianças. É comum observarmos crianças cujos nomes
fissionais da saúde e outros) podem ter seus efeitos minimizados, têm origem em homenagem dos pais a ídolos e figuras ilustres do
impedindo o aumento do número de crianças que chegam à idade meio artístico e cultural, que não expressam a herança cultural dos
de sete e oito anos com danos irreversíveis. povos de origem de suas famílias e grupos sociais.
Também no trabalho com o corpo é preciso dar destaque para
as diferenças físicas entre as pessoas e as razões da cor da pele, 7. BIBLIOGRAFIA COMENTADA
textura do cabelo, formato de nariz e boca. Todos nós temos muitas
curiosidades a esse respeito e na maioria das vezes as explicações 7.1 Literatura Infantil
que nos oferecem são insatisfatórias. Informações sobre a mela-
nina-pigmento que dá coloração à pele, podem ser trabalhadas de ALMEIDA, Gergilga de. Bruna e a galinha d’Angola. Rio de
forma lúdica comparando-se a outras formas de pigmentação pre- Janeiro: Pallas.
sentes na natureza, como cor das flores, flores e frutos; cor dos Bruna era uma menina que vivia perguntando com quem iria
animais. Além das cores dos rios e mares, o arco-íris. brincar, pois era muito sozinha. Sua avó, com dó da netinha, man-
Propor atividades com o livro “Crianças como Você”; ativi- da trazer de um país da África uma conquém, que no Brasil é mais
dades de observação no espelho, utilização de pinturas. O trabalho conhecida como galinha d’Angola, cocá ou capote. Depois de ga-
com o corpo pode remeter a elementos da cultura de diversos po- nhar o presente, Bruna passa a ter várias amigas e a conhecer as
vos, com roupas, alimentação, penteados, hábitos de higiene etc. belezas de ter uma conquém.

Didatismo e Conhecimento 182


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
BARBOSA, Rogério Andrade. Histórias africanas para con- ROSA, Sônia. O menino Nito, afinal homem chora? Rio de
tar e recontar. Editora do Brasil Janeiro, Pallas.
Por que o porco vive no chiqueiro? Por que a coruja tem o A história de Nito é muito comum à de tantos meninos que são
olho grande? Essas e outras perguntas sobre os animais têm res- educados para não chorar. Para obedecer ao pai, que o proíbe de
postas nas histórias africanas para contar e recontar, que o autor chorar, Nito se transforma em uma criança triste e fica doente de
recolheu dos contos tradicionais africanos e traz de maneira diver- tanto “engolir” choro. O médico da família é chamado e aconselha
tida para o público infanto-juvenil brasileiro. o menino a “desachorar”. O sofrimento da criança é tanto, que
o médico, a mãe, o irmão e até o pai de Nito choram ao ouvir o
DIOUF, Sylviane A. As tranças de Bintou. Tradução: Charles quanto de choro ele havia guardado.
Cosac
O livro conta a história de uma menina em uma localidade da RUFINO, Joel. Gosto de. África, estórias de lá e daqui. Edi-
África. A menina Bintou queria ter tranças, mas em sua comunida- tora: Global
de só as moças podiam usar tranças. Bintou acha seu penteado sem Histórias daqui e da África, contando mitos e histórias das
graça e pede a sua avó que faça tranças em seu cabelo. Esta, no tradições negras. Com um olhar crítico e afetuoso, o livro fala tam-
lugar de tranças coloca vários enfeites coloridos em seus cabelos, bém de personagens da história do Brasil e de um tempo de escra-
e fica muito feliz ao ver o resultado. vidão, luta e liberdade, ajudando a compreender a diversidade de
nossa cultura.
GODOY, Célia. Ana e Ana. Editora: DCL
Ana Carolina e Ana Beatriz são duas irmãs gêmeas comple-
tamente diferentes uma da outra. Enquanto uma gosta de massas, ANOTAÇÕES
a outra é vegetariana; uma adora o rosa, a outra gosta de azul;
uma adora música, a outra é apaixonada por animais. A história das
Anas nos faz perceber que as pessoas são únicas no gostar, no ser
e no estar no mundo, mesmo que se revelem iguais na aparência.

KINDERSLEY, Anabel. Crianças como você. Unesco: Ática


—————————————————————————
Fotógrafos e escritores percorrem 31 países pesquisando e fo- —————————————————————————
tografando crianças. O resultado desta viagem é um livro emocio-
nante, com fotos belíssimas de crianças de todo o mundo, de suas —————————————————————————
famílias, sua cultura, seus brinquedos e comidas favoritas. O livro
é uma celebração da infância no mundo e também uma viagem —————————————————————————
fantástica pelas diferenças e semelhanças deste mosaico chamado —————————————————————————
humanidade.
—————————————————————————
MACHADO, Ana Maira. Menina bonita do Laço de Fita. São
Paulo: Ática. —————————————————————————
Conta a história de um coelhinho que se apaixona por uma
menina negra e quer saber o segredo de sua beleza. A menina in-
—————————————————————————
venta mil histórias, até que sua mãe esclarece ao coelhinho que a —————————————————————————
cor da pele da menina é uma herança de seus antepassados, que
também eram negros. —————————————————————————

PATERNO, Semiramis. A Cor da Vida. Editora: Lê. —————————————————————————


Com esse livro a autora possibilita a discussão da temática —————————————————————————
das relações raciais pelo olhar das crianças. Por meio de um jogo
poético com as cores, duas crianças mostram para suas mães que a —————————————————————————
luta pela igualdade não significa apagar as diferenças.
—————————————————————————
PIRES, Heloisa. Histórias da Preta. São Paulo, Cia das Le-
—————————————————————————
trinhas.
A autora reúne neste livro várias histórias contadas por seus —————————————————————————
avós, que nos permitem conhecer um pouco sobre a cultura afro-
-brasileira, a religião dos orixás, a culinária e tudo o que nos reme- —————————————————————————
te à cultura africana, que compõe a cultura brasileira.
—————————————————————————
PRANDI, Reginaldo. Xangô, o trovão. São Paulo: Companhia —————————————————————————
das Letrinhas, 2003.
Conto de tradição Yorubá (língua falada no Benin, Nigéria e —————————————————————————
região) repassa história que compõe o universo da mitologia afri-
cana. —————————————————————————

Didatismo e Conhecimento 183


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- Resgate de jogos e brincadeiras em tempos e espaços dife-
renciados.
- Formas de comunicação de diferentes culturas ao longo dos
tempos.

1.1.1 Atividades correlatas

As estratégias exemplificadas abaixo poderão ser usadas no


sentido de oferecer oportunidades a todos(as) os(as) alunos(as)
para desenvolverem de modo satisfatório suas identidades, desde
que não se reforce a hierarquia das diferenças étnico-raciais, de gê-
nero, faixa etária e condição social. É necessário que professores/
as e coordenadores/as avaliem e realizem uma adequação dessas
atividades da sala ao contexto social das crianças, adolescentes e
jovens, para não lhes provocar constrangimentos, e ter cuidado
com o senso comum a respeito desses temas.
- Painéis com fotos das crianças da classe usando títulos a
exemplo de “Somos todos diferentes, cada um é cada um”, “Quem
Tranças e prosas
sou eu, como sou”.
Coleção particular - Elmodad Azevedo
- Confecção de álbuns familiares com fotos ou desenhos, li-
vros de família, exposição de fotos, entrevistas com as pessoas
ENSINO FUNDAMENTAL
mais velhas, sessão de narração de histórias com os(as) familiares
dos(as) alunos(as).
Sugestões de atividades, recursos didáticos e bibliografia
específica - Feira de cultura da turma com as contribuições culturais que
cada família poderá apresentar (exposição de objetos de suas ca-
As sugestões que se seguem, também, poderão ser utilizadas sas, narração de “causos” e de histórias)
nos dois níveis do Ensino Fundamental, desde que sejam enrique- - Construção de gráficos e estimativas relativas às diferenças e
cidas, relacionadas, ampliadas e adaptadas à complexidade que semelhanças encontradas nas famílias e na comunidade.
caracteriza cada nível. - Confecção de um livro da turma com nomes e seus signifi-
cados.
1. Atividades
1.2 Reconhecimento e valorização das contribuições do
1.1. Abordagem da questão racial como conteúdo multi- povo negro
disciplinar durante o ano letivo
1.2.1 Influência africana na língua portuguesa
Tema: Identidade (autoconhecimento, relações sociais indivi-
duais e diversidade). Ainda na perspectiva de reconhecer e valorizar a participação
Objetivos: Perceber, valorizar semelhanças e diferenças, res- do povo negro na construção da cultura nacional, uma interessante
peitar as diversidades. sugestão de atividade, seria, por exemplo, o estudo de palavras de
Subtema: Eu, minha família, o lugar onde moro. origem africana que são comuns em nosso idioma, confeccionando
Diálogo com a questão racial: um dicionário contendo esses termos. Este poderá ser um elemento
- Identidade racial em relação à origem étnica da família do/a propiciador de um projeto de trabalho com a cultura negra, em
aluno/a. que a interdisciplinaridade será a tônica. Por meio delas, poderá
- Termo afro-brasileiro buscando a ancestralidade africana da se fazer uma reflexão acerca da participação africana na formação
família. cultural brasileira, alcançando a contribuição artística, política e
- Identificar tradições familiares e semelhantes àquelas que intelectual negra.
se relacionam às tradições africanas reinventadas no Brasil, valo-
rizando-as. 1.2.2 Música, literatura e diversidade étnico-racial
Subtema: semelhanças (organização familiar, lazer, cultura,
religiosidade, hábitos alimentares, moradia, alimentação, papéis a) Trabalho literário fazendo contraposição de formas, textos
sociais familiares, gênero, cuidados com a saúde). musicais com o objetivo sobre a dinâmica das relações raciais. Ex.:
Diálogo com a questão racial: “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, apresentando a idéia de um
- Autoestima dos(as) alunos(as) afirmando a positividade das Brasil “lindo e trigueiro”, em contrapartida ao “Canto das três ra-
diferenças individuais e de grupos a partir da valorização da histó- ças” (Mauro Duarte/Paulo César Pinheiro/1996) que nos apresenta
ria familiar dos(as) alunos(as), das pessoas de sua escola, bairro, “os cantos de revolta pelos ares”; “Missa Afrobrasileira”, de Car-
comunidade e suas diferenças culturais. los Alberto Pinto Fonseca.
- As famílias pelo mundo através dos tempos e espaços. b) O recontar de mitos africanos, dando outra visão à criação
- Relações e cuidados com o corpo em diferentes famílias e do mundo, é fundamental para que os(as) alunos(as) possam valo-
culturas. rizar o outro em nós, posto que estes mitos fazem parte de nosso

Didatismo e Conhecimento 184


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
comportamento social e individual e, por vezes, não percebemos Os antigos símbolos da arte yorubá poderão ajudar no enten-
isso. Esse trabalho literário possibilitará momentos de envolvi- dimento e uso de alguns conceitos geométricos, como também
mento da imaginação e da emoção. para entender o uso das coordenadas geográficas, quando forem
usadas para multiplicação e ampliação dos desenhos. Enfim, aju-
1.2.3 Trajetórias do povo negro no espaço dar no desenvolvimento de conceitos topológicos fundamentais,
trabalhando medidas, geometria, etc. Portanto, além de promover
O entrelaçamento disciplinar da história e da geografia é sem- maior conhecimento sobre a cultura negra, poderemos usá-la como
pre uma estratégia positiva. Neste sentido, poderíamos sugerir: instrumento na construção de conhecimentos.
- Fazer, quando possível, uma incursão por territórios negros - Pesquisar em materiais impressos e na internet os símbolos
e locais de memória que tenham sido produzidos a partir de uma e culturas africanos.
participação histórica negra (centro da cidade, igrejas, terreiros de - Reprodução dos desenhos usando escala.
religião de matriz africana, bairros da cidade, comunidades, fave- - Confecção de estamparia em tecidos (ou papel) usando mol-
las, museus). É necessário planejar e organizar um roteiro, junta- des vazados.
mente com os(as) estudantes, de uma trilha urbana, observando
os elementos da paisagem; registrar os aspectos observados que 1.3 Abordagem das situações de diversidade racial e da
exemplifiquem o assunto estudado; utilizar o mapa da cidade para vida cotidiana na sala de aula
representar a localização dos lugares planejados para a trilha.
- As atividades de sistematização poderiam ser: construção de Usar charges para analisar criticamente fatos de discrimina-
maquetes, desenhos do percurso observado, montagem de murais, ções e racismos, com os quais os(as) alunos(as) poderão fazer ana-
álbum de fotos com anotações, produção de textos, tratamento dos logia com a sua realidade
dados coletados, gráficos, tabelas. Se houver condições, pode-se - Promover reflexões sobre a imagem da população negra re-
usar da linguagem multimídia para a montagem de um “clipe” as- presentada nas novelas das redes de televisão; incentivar debates
sociando imagens e as anotações/observações/descrições/conclu- acerca da legislação atual sobre racismo e as ações afirmativas da
sões relacionadas à trilha realizada. atualidade; usar como estratégia de debates o júri simulado a par-
tir de esquetes, expressando situações de racismo, representadas
pelos(as) alunos(as).
- Fomentar a formação de grupos de teatro com a proposta de
interpretar / encenar textos que reflitam a questão racial, seguidos
de discussão sobre o assunto retratado.

1.3.1 Histórico da comunidade

- Confeccionar álbuns, livros de contos, ABCs, cordel, privi-


legiando a história da comunidade, sendo assim um instrumento
de valorização dos grupos étnico-raciais e sociais que a compõem.
Esta atividade promoverá o fortalecimento de inserção na escrita,
ao mesmo tempo em que se valorizará uma dimensão de oralidade,
aqui pensada como transmissão de saberes necessários e funda-
mentais à memória coletiva dos grupos.

1.3.2 A realidade sócio-racial da população negra


Figura 1 - Símbolos da arte yorubá.
- O elemento motivador para estimular o projeto de trabalho
1.2.4 Arte e matemática poderia ser a música (rap, samba ou outras que abordem o tema);
um artigo de jornal; análise de anúncios publicitários. Por meio
A matemática e a arte poderão atuar juntas em alguns momen- desses elementos, propiciar reflexões sobre o difícil processo de
tos da incorporação da história e da cultura negra no universo es- ocupação do espaço urbano vivenciado pela população negra no
colar, em que os símbolos poderão ser os desencadeadores de um período pós-abolição e na atualidade, contextualizando as causas
projeto de trabalho no qual a arte africana remeterá aos estudos dos e consequências dessa ocupação como também as relações esta-
grandes reinos africanos pré-coloniais, como possuidores e cons- belecidas.
trutores de culturas, saberes e tradições. A geografia contemplará
a localização do continente africano e seus países no mapa-múndi, 1.3.3 Arte e cultura negras
bem como dos povos ligados a esta cultura. A matemática poderá
explorar toda a geometria com figuras representadas por meio dos - Fazer o levantamento, e análise de obras de artistas negros(as)
símbolos da cultura Adinkra e de outras culturas africanas. Os pro- ou que trabalham com a temática étnico-racial, estudando suas
vérbios africanos contidos em cada um dos símbolos são um rico obras e suas biografias.
material de trabalho para a área de português. Portanto, a constru- - Criar um folder sobre artistas negros(as) e suas obras.
ção de conhecimentos pode se dar por meio da arte e da cultura - Promover uma pequena exposição de trabalhos dos(as)
africana. alunos(as) inspirados nestes artistas.

Didatismo e Conhecimento 185


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
- Pesquisar alguns dos instrumentos musicais de origem afri- 2. INDICAÇÃO DE VÍDEOS, FILMES, MÚSICA, JO-
cana, planejar e selecionar materiais alternativos para a confecção GOS, OBRAS DE ARTE E HISTÓRIA
deles. Fazer exposição dos instrumentos confeccionados com ex- 2.1 Vídeos, filmes
plicação e história de cada instrumento.
- Promover o trabalho de pesquisa histórica sobre festas e dan- Poderão ser usados de variadas formas: ilustrando um tema
ças regionais, sobretudo aquelas ligadas à cultura negra. Apresen- que está sendo estudado; para despertar emoção e/ou sensibilizar,
tar estas pesquisas para a comunidade. criando motivação para algum assunto; abrindo possibilidades de
- Pesquisar sobre a capoeira é um excelente mote para desen- novas interpretações sobre um mesmo tema e analisando situa-
cadear um estudo sobre a cultura negra. Na pesquisa a respeito da ções. Inúmeras possibilidades de trabalho poderão ser criadas por
capoeira podemos apreciar e valorizar os momentos em que ela se professores/as e alunos(as), segundo seus interesses e contextos.
inscreve no tempo e na história. Fazer um paralelo entre a capoeira Cobaias. 1997. 118 min. Alfre Woodard (Teorias científicas
e a resistência do povo negro é uma estratégia positiva para incor- de superioridade racial).
porar este tema como conteúdo do currículo escolar. Kiriku. 1998. 71 min. Michel Ocelot (Visão de uma aldeia
- Trabalhar com mitos africanos, montando representações te- africana – Inspirado em contos africanos)
atrais e peças com fantoches criados pelos(as) alunos(as). Narciso, Rap. 2003. 15 min. Jéferson De (São Paulo - Conta
a história de dois meninos que encontraram uma lâmpada mágica:
1.4 Crítica às atitudes e aos materiais etnocêntricos, des- o menino negro quer ser branco e rico, e o menino branco quer
construção de estereótipos e preconceitos atribuídos ao grupo cantar rap como os negros).
negro O Contador de Histórias, 2000. 50 min. Roberto Carlos. Ed.
Leitura (Sugerimos para trabalho “A oportunidade”).
Para possibilitar a desconstrução e ressignificação de noções Sonho americano. 1996. 118 min. David Knoller (Várias his-
preconceituosas, por meio do conhecimento de noções específicas, tórias – Sugerimos para trabalhar com os alunos do Fundamental a
poderemos lançar mão de variados gêneros musicais com estraté- história do menino que desenhou o Cristo negro).
gias de sensibilização. De forma lúdica e prazerosa os(as) estudan- Tudo aos Domingos. 1998. 05 min. George Tillman (Tradi-
tes serão sensibilizados(as) pata a reflexão. ções a Africanas na vida das pessoas).
Exemplo para o fundamental II: Um grito de liberdade. 1987. 157 min. Richard Attenborou-
- Fazer levantamentos e ouvir, interpretar e debater acerca de gh (Visão do Apartheid na África do Sul. Luta contra o racismo).
músicas que tratem de maneira positiva a pessoa negra, seja crian- Uma Onda no ar. 2002. 92 min. Helvécio Ratton (Conta a
ça, adolescente, jovem ou adulta, seja feminina ou masculina. história de Jorge, o idealizador de uma rádio na favela, e a luta,
- Promover debates entre grupos da classe sobre as questões resistência cultural e política contra o racismo e a exclusão social
levantadas. em que a população da favela encontra uma importante arma: a
- Trabalhar conceitos sobre a identidade individual e aspectos comunicação.
que a influenciam como sexo, idade, grupo social, raça/etnia. Vista minha pele. 2003. 50 min. Joelzito Araújo. Ceert (Dis-
criminação racial na vida cotidiana de adolescentes).
1.4.1 Construir coletivamente alternativas pedagógicas
com suporte de recursos didáticos adequados 2.2 Músicas

É uma empreitada para a comunidade escolar: direção, super- Canta BRASIL - Alcyr Pires Vermelho
visão, professores/as, bibliotecários(as), pessoal de apoio, grupos Canto das três raças – Clara Nunes
sociais e instituições educacionais. Dia de graça - Candeia
Haiti - Caetano Veloso e Gilberto Gil
Algumas ferramentas são essenciais nessa construção: a dis- Kizomba, Festa da Raça - Luiz Carlos da Vila
ponibilização de recursos didáticos adequados, a construção de Lavagem Cerebral – Gabriel, o Pensador
materiais pedagógicos eficientes, o aumento do acervo de livros Mão de Limpeza - Gilberto Gil
da biblioteca sobre a temática étnico-racial, a oferta de variedade Milagres do Povo – Caetano Veloso e Gilberto Gil
de brinquedos contemplando as dimensões pluriétnicas e multi- Pelo Telefone - Ernesto dos Santos (Donga)
culturais. Retrato em Claro e Escuro - Racionais – MC’s
Sorriso Negro – Dona Ivone Lara
Veja alguns exemplos de como você poderá viabilizar o trato
pedagógico das questões raciais no ambiente de sua escola: 2.3 Poemas

- Promover momentos de trocas de experiência entre profes- Ashell, Ashell, pra todo mundo, Ashell - Elisa Lucinda.
sores/as para efetivação de projetos de trabalhos, atividades e pro- Identidade - Pedro Bandeira
cedimentos de inserção da questão racial. Mahin Amanhã - Miriam Alves. Cadernos Negros, Melhores
- Dar voz aos grupos culturais e representativos dos/das estu- Poemas,1998.
dantes e da comunidade por meio de assembleias periódicas. Quem sou eu? - Luiz Gama
- Possibilitar a criação de uma “rádio” pelos estudantes, como Salve Mulher Negra, Oliveira Silveira. Cadernos Negros Vol.
também um jornal (periódico e/ou mural) onde esta discussão es- 03. Org. Quilombhoje,
teja presente. São Paulo: Editora dos Autores, 1980.

Didatismo e Conhecimento 186


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Serra da Barriga - Jorge de Lima LAMBLIN, Christian. Samira não quer ir à escola. São Paulo:
Tem gente com fome – Solano Trindade Ática, 2004.

2.4. Literatura Infanto-Juvenil - Fundamental I e II LIMA, Heloísa Pires. Espelho Dourado. São Paulo: Peiropó-
lis, 2003.
AIBÊ, Bernardo. A ovelha negra. São Paulo: Mercuryo, 2003.
____. Histórias da Preta. São Paulo: Cia das Letrinhas,
ALMEIDA, Gercilga de. Bruna e a Galinha d’Angola. Rio 1998/2000.
de Janeiro: Editora didática e Científica e PALLAS Editora, 2000.
MACEDO, Aroldo & FAUSTINO, Oswaldo. Luana: a meni-
ARAÚJO, Leosino Miranda. Olhos Cor da Noite. Belo Hori- na que viu o Brasil neném. São Paulo; FTD, 2000.
zonte: Oficina do Pensamento, 2004
MARTINS, Georgina da Costa. Fica comigo. São Paulo:
BAGNO, Marcos. Um céu azul para Clementina. Rio de Ja- DCL, 2001.
neiro: LÊ, 1991.
MIGUEZ, Fátima. Boca Fechada não entra Mosca. São Pau-
BARBOSA, Rogério Andrade. Contos Africanos para crian- lo: DCL, 2001.
ças brasileiras. São Paulo: Paulinas, 2004.
OTERO, Regina & RENNÓ, Regina. Ninguém é igual a nin-
_________. Como as histórias se espalham pelo mundo. São guém: o lúdico no conhecimento do ser. São Paulo: Editora do
Paulo: DCL, 2002. Brasil, 1994.

_________. Histórias Africanas para contar e recontar. São PATERNO, Semiramis. A cor da vida. Belo Horizonte: Lê,
Paulo: Editora do Brasil, 2001. 1997.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Os Reizinhos do Congo.


_________. O filho do vento. São Paulo: DCL, 2001.
São Paulo: Paulinas, 2004.
_________. Duula: a mulher canibal - um conto africano. São
PEREIRA, Edimilson de Almeida & ROCHA, Rosa M. de
Paulo: DCL, 1999.
Carvalho. Os Comedores de Palavras. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2004.
_________. Bichos da África. São Paulo: Melhoramentos,
1987. PRANDI, Reginaldo. Ifá – o adivinho. São Paulo: Cia das Le-
trinhas, 2003.
BORGES, Geruza Helena & MARQUES, Francisco. Cria-
ção. Belo Horizonte-Terra Editoria 1999. ______. Os príncipes do destino: histórias da mitologia afro-
-brasileira. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.
BOULOS JUNIOR, Alfredo. 13 de maio, abolição: por que
comemorar? São Paulo: FTD, 1996. RAMOS, Rossana. Na minha escola, todo mundo é igual. São
Paulo: Cortez, 2004.
BRAZ, Júlio Emílio. Pretinha, eu? São Paulo: Ática.
ROCHA, Rosa M. de Carvalho & AGOSTINHO, Cristina. Al-
CASTANHA, Marilda. Agbalá: um lugar continente. Belo fabeto Negro. Ilustrado por Ana Raquel. Belo Horizonte: MAZZA
Horizonte: Formato, 2001. Edições, 2001.

COELHO, Raquel. Berimbau. São Paulo: Ática, 2001. ROCHA, Ruth. ...que eu vou para Angola. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1988.
COOKE, Trish. Tanto tanto. São Paulo: Ática, 1994.
SANTOS, Joel Rufino. Gosto de África. Histórias de lá e da-
CRUZ, Nelson. Chica e João. Belo Horizonte: Formato, 2000. qui. São Paulo: Global, 2001.

DIOUF, Sylviane. As tranças de Bintou. São Paulo: Cosac & ______. Dudu Calunga. São Paulo: Ática, 1996.
Naif, 2004.
UNICEF. Crianças como você: uma emocionante celebração
EISNER, Will. Sundiata: uma lenda africana - o Leão de da infância. São Paulo: Ática, 2004.
Mali. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
ZATZ, Lia. Jogo Duro: era uma vez uma história de negros
GODOY, Célia. Ana e Ana. São Paulo: DCL, 2003. que passou em branco. Belo Horizonte: Dimensão, 1996.

KRISNAS; ALEX, Allan. Zumbi – A Saga de Palmares. Rio ZONATTO, Celso. Toinzinho e a Anemia Falcifome. São Pau-
de Janeiro: Marques Saraiva, 2003. lo: Lake. 2002.

Didatismo e Conhecimento 187


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Torna-se necessário apresentar, em sala de aula, outros tipos
de textos que circulam fora dos espaços escolares e que são pró-
prios da sociedade – os textos de circulação social, como fanzines,
letras de música, cartuns, quadrinhos, vídeos e revistas produzidas
para o público jovem –; analisar mais detidamente a obra de auto-
res clássicos que abordam a questão racial; ter olhar crítico sobre
a produção literária de autores negros brasileiros contemporâneos
e vislumbrar uma outra estética – que busca ir da percepção à ma-
nifestação da diferença ou da manifestação à afirmação e à reivin-
dicação dessa diferença.
Dessa maneira podem-se discutir figuras de linguagem com
base em textos sobre mitologia africana e outros. Pensando em
projetos de trabalho, pode-se articular História, Língua Portuguesa
e Literatura discutindo o hibridismo do português falado no Brasil
e sua distinção do de Portugal. Destacar a influência africana em
nossa língua, o que há de palavras, termos e expressões de origem
africana, indígena e portuguesa? Como os estudos dos movimen-
Tranças e prosas tos por independência na África e no Brasil trazem reflexos na
Coleção particular - Elmodad Azevedo literatura, particularmente em poesias, contos e na música. Em que
medida tais aspectos se mantêm na atualidade.
ENSINO MÉDIO Potencializar a prática corporal também é um modo de ex-
pressão do cotidiano e do autoconhecimento. Significa revisitar
Sugestões de atividades a noção de corpo e, a partir daí, procurar inseri-lo no mundo de
maneira crítica e consciente. É através de nosso corpo que nos co-
1. RECOMENDAÇÕES POR ÁREAS DO CONHECI-
municamos, nos reorganizamos para buscar diálogo com o outro e
MENTO
mostramos nossa forma de estar no mundo.
O corpo humano, particularmente o corpo negro, tem sido
1.1 Linguagens, códigos e suas tecnologias
um sustentáculo de estereótipos (Inocêncio, 2001) construídos a
partir do olhar lançado por outras pessoas. Essa relação dual de
1.1.1 A dinâmica dos códigos em relação às questões cultu-
construção de identidade vale para todos nós, brancos e negros;
rais, sociais e políticas
entretanto. a construção da identidade da população negra tem sido
marcada pelo preconceito racial.
Importa ressaltar o entendimento de que as linguagens e os
códigos são dinâmicos e situados no espaço e no tempo, com as As aulas de educação física, ao focar os corpos em movimento
implicações de caráter histórico, sociológico e antropológico que e em interação, podem se transformar em momentos privilegiados
isso representa. (...) Relevante também considerar as relações com para ricas discussões, vivências e elaboração de propostas que tra-
as práticas sociais e produtivas e a inserção do aluno como cida- gam à baila a história e a cultura da população africana e afro-bra-
dão em um mundo letrado e simbólico (BRASIL, 1999, p. 33). sileira e de outras culturas. Há, por exemplo, uma estética, uma
expressividade dos corpos negros a ser reconhecida, que é plural
Na área de linguagens, códigos e suas tecnologias, todas as e que pode se expressar na realização de intervenções coerentes
disciplinas dão lugar para construção de valores, apropriação de com as diferenças colocadas, e vislumbrar projetos que incluam na
gestos e expressões que remetem ao universo cultural afro-brasi- discussão a cultura, as danças, a musicalidade, o ritmo, os adereços
leiro. e as diversas manifestações de matriz africana.
Nessa perspectiva, vale ressaltar que a linguagem é um instru- Abarcando também outras disciplinas, e não somente desta
mento poderoso e que dominar seus usos orienta práticas sociais área, os professores mostram-se dispostos a ouvir e ler o que ainda
nas quais se envolvem os sujeitos em suas trajetórias de vida. So- não foi lido ou ouvido nas escolas. Seja por meio da língua, do
bretudo quanto às possibilidades de problematizar, vivenciar e en- corpo ou das artes.
tender o domínio da linguagem como um dos canais para mudan-
ças que possam tornar as relações mais igualitárias e democráticas, 1.1.2 Referências
do ponto de vista econômico, político e cultural.
A quase totalidade de nossos estudantes sabe que ler não é BENTO, Maria Aparecida Silva. Cidadania e, preto e branco:
apenas saber repetir o que diz o texto lido, é também refletir sobre discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 1998.
ele, pensar na sua relação com outros textos, o contexto de sua pro-
dução e, ainda, colocar-se no texto inserindo-o em seu cotidiano. BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Rio Grande
Sabem, também, que a realidade e a linguagem não são elementos do Sul: Ed. UFRGS, 1992.
distintos, pois, ao se utilizarem da linguagem para expressar sua
visão da realidade, incorporam nessa escrita as marcas e o lugar CASTRO, Yeda Pessoa. O Ensino de Línguas Africanas no
de onde falam. É por isso que as produções juvenis causam tanta Brasil. Revista do NEN - Negros e Currículo. Nº. 3, Florianópolis
empatia a qualquer jovem de outra parte do mundo. – SC, junho de 1998.

Didatismo e Conhecimento 188


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
INOCÊNCIO, Nelson. Representação visual do corpo afro- Sem discorrer sobre cada uma das disciplinas, é possível des-
-descendente. In: PANTOJA, Selma (Org.) Entre Áfricas e Brasis. tacar que no campo da biologia o olhar do educador poderia recair
Brasília: Paralelo 15, São Paulo: Marco Zero, 2001, p. 191-208. sobre os estudos de epiderme, genes, constituição capilar, ques-
tões específicas da saúde da população afrodescendente, tais como
LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Rio de Janei- pressão arterial elevada e os males que causa, além da anemia fal-
ro: Editora Forense Universitária, 1998. ciforme. Parte das doenças que acometem a população negra de
nosso país decorre de problemas sociais, entre eles o racial, ou
MOYSÉS, Sarita Maria Affonso. Literatura e história: ima- seja, são decorrentes de discriminação racial, de racismo institu-
gens de leitura e de leitores no Brasil no século XIX. Revista Bra- cional. Pesquisar as origens dessas doenças e a maneira de evitá-
sileira de Educação. São Paulo: ANPED. 1995. -las é construir conhecimentos significativos. Pode-se trabalhar em
matemática com as estatísticas de morbimortalidade da população
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da brasileira, destacando as especificidades da população negra, utili-
ancestralidade na ficção angolana do século XX. Rio de Janeiro: zando-se de dados estatísticos.
EDUFF, 1995. Isso permite verificar que muitas mortes são consequência de
ausência de atendimento médico adequado e de políticas de saú-
PIRES, Rosane de Almeida. Narrativas Quilombolas: Negros de preventiva. Tal abordagem permite estabelecer relações com as
em Contos, de Cuti e Mayombe, de Pepetela. Belo Horizonte: Fa- questões sociais e raciais, e possibilita um trabalho articulado entre
culdade de Letras/UFMG, 1998. a matemática e a sociologia, por exemplo. Pode-se incluir aqui,
ainda, a geografia, mapeando os locais nas grandes cidades onde se
SOUZA, Ana Lucia Silva. Negritude, letramento e uso social tem maior índice de mortalidade por arma de fogo e as condições
da oralidade. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e anti- de vida. Atualmente, os jornais impressos são fontes interessan-
-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Sum- tes para se pesquisar tais questões, que posteriormente podem ser
mus, 2001. p. 179-194. aprofundadas.
Novamente, o corpo é o suporte de história, de relações com
o entorno, é portador de sinais do cotidiano, é uma boca que fala e
a) Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias
uma mão que escreve gestos e expressões. É preciso lembrar que
no Ensino Médio o corpo jovem está em plena transformação e no
A educação antirracista vivida no cotidiano da escola
início das relações afetivas e sexuais. É importante discutir o corpo
tratado pela educação física, a biologia, química, física. Como cui-
(...) indica a compreensão e a utilização dos conhecimentos
dar desse corpo? Como dizer ao mundo por meio do corpo? Seja
científicos para explicar o funcionamento do mundo, bem como
nas relações familiares, seja no grupo de amigos, seja no ambiente
para planejar, executar e avaliar as ações de intervenção na rea-
do mundo do trabalho.
lidade (Brasil, 1999, p. 34).
Entender o corpo como suporte de linguagem e saberes pode
ajudar a desfazer equívocos, tais como o que diz que a população
Os avanços tecnológicos e as mudanças sociais têm nos obri- negra é mais habilidosa para as atividades esportivas. Desenvolver
gado a assumir postura crítica e com autonomia para tomar deci- pesquisas sobre atividades físicas trazidas pelos africanos, entre
sões, seja diante de uma simples compra de supermercado, pas- outras culturas, e (re)construídas no Brasil, originando expressões
sando pela escolha de um medicamento, seja um planejamento tais como a capoeira, pode ser o início de uma boa sequência de
mais de longo prazo. A transmissão apenas de conceitos, regras atividades significativas envolvendo as três grandes áreas do co-
e práticas de soluções prontas não contribui para o desenvolvi- nhecimento.
mento do sujeito, tornando-o passivo, conformista e desprovido de
senso crítico. Nesse contexto de globalização perversa, que exige Referências
tomada de decisões, espírito explorador, criticidade, criatividade e
independência, o domínio da ciência matemática pode se consti- ANDRADE, Rosa Maria e outros. Aprovados! Cursinho pré-
tuir como mais uma ferramenta em busca de melhores condições -vestibular e população negra, São Paulo: Selo Negro, 2002.
e vida.
A biologia, a matemática, a física e a química destacam-se CARRAHER, T. et. al. Na vida dez na escola zero. 13. ed. São
como disciplinas que, integradas, são capazes de desconstruir co- Paulo: Cortez, 2004
nhecimentos que afirmam as diferenças como inferioridade e que
marcam a condição natural de indivíduos e grupos interétnicos. D’AMBRÓSIO, Ubiratam. Etnomatemática: elo entre as tra-
O trabalho por projetos pode incluir diferentes disciplinas: física, dições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
química, matemática, e mesmo história, sociologia, filosofia.
A matemática faz parte da cultura e portanto deve ser um RIBEIRO, J.P.M., DOMETE, M. do C. S. & FERREIRA,
aprendizado em contexto situado do particular ao universal. Para R. (org). Etnomatemática: papel, valor e significado. São Paulo:
a população negra, em especial, é necessário tornar o ensino da Zouk, 2004.
matemática vivo, respeitando a cultura local com base na história
e na cultura dos povos, quando e como vivem, como comem, como SILVA. Antonio Benedito. Contrato Didático. In: MACHA-
se vestem, como rezam, como resolvem as questões cotidianas que DO, SILVIA Dias Alcântara et. al. Educação Matemática: uma
envolvem os conhecimentos matemáticos. introdução. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2002. (Série Trilhas)

Didatismo e Conhecimento 189


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
b) Ciências humanas e suas tecnologias LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Rio de Janei-
ro: Forense Universitária, 1988.
Humanidades - as revelações das faces do Brasil
MAESTRI, Mário. História da África pré-colonial. Porto
(...) deve desenvolver competências e habilidades para que o Alegre: Mercado Aberto, 1998.
aluno (...) construa a si próprio como um agente social que inter-
vém na sociedade; para que avalie o sentido dos processos sociais MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. Para enten-
que orientam o constante fluxo social, bem como o sentido de sua der o negro no Brasil: Histórias, Realidades, Problemas e Cami-
intervenção nesse processo (BRASIL, 1999, p. 35). nhos. São Paulo: Global Editora e Ação Educativa, 2004.

História, geografia, filosofia e sociologia são disciplinas privi- OLIVER, Roland. A experiência africana: da pré-história aos
legiadas para os estudos sócio-históricos que fazem parte da for- dias atuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
mação de nossa sociedade. Por meio delas são abordados temas
tão instigantes quanto variados: a história dos grandes impérios SANTOS, Gevanilda Gomes dos. A História em Questão. Re-
e reinos africanos e sua organização político-econômica antes do vista do NEN – Negros e Currículo. Número 3 - junho de 1998
processo de invasão perpetrado por diversos países europeus; a - Florianópolis - SC.Educação de Jovens e Adultos.
formação da nação brasileira e constituição da população influen-
ciada pela relação com a África; o período escravagista e os varia- 1. Bibliografia comentada
dos processos de resistência da população negra, a formação dos
quilombos e a situação das comunidades quilombolas, a produ- BENTO. Maria Aparecida. Cidadania em preto e branco: dis-
ção econômica e artística da população negra. Além desses temas, cutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 3ª Ed.. 2000.
torna-se imprescindível que essas disciplinas abordem, interdisci- De forma didática e de fácil compreensão, discute e amplia a
plinarmente, questões e conceitos sobre o preconceito, o racismo, conscientização sobre a problemática do racismo no Brasil. Apre-
a discriminação racial e de gênero.
senta reflexões em torno do cotidiano e sobre os fatos históricos
Destaca-se também que a aproximação com o ensino de his-
ligados às teorias racistas.
tória e cultura africanas e afro-brasileiras não pode prescindir do
CAVALLEIRO, Eliane dos Santos (Org.). Racismo e anti-
conhecimento dos espaços de tradição e de cultura afro-brasileira,
-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo
estabelecendo vínculos com a ancestralidade, com a história de
Negro, 2002.
vida dos alunos e as histórias de resistência de ontem e de hoje.
A obra é uma coletânea de artigos sobre a diversidade racial
O redimensionamento do conceito de raça é fundamental,
no âmbito do espaço escolar e das propostas pedagógicas. São ar-
pois os significados sociais e culturais atribuídos às características
fenotípicas entre os grupos étnicos são parte importante do uni- tigos que envolvem as formas de discriminação racial e querem
verso juvenil – cor da pele, textura do cabelo, formato do rosto, dar visibilidade ao problema na perspectiva de contestar, de ma-
nariz e lábios. A abordagem pode se dar através de resultados das neira profunda, a inexistência de uma democracia racial partindo
pesquisas governamentais que se encontram disponibilizadas em de acontecimentos recorrentes.
diversos sites oficiais, mediante vasta bibliografia existente e de LIMA, Ivan Costa & ROMÃO, Jeruse. Os negros e a escola
qualidade no mercado editorial, bem como o contato direto com os brasileira. Florianópolis: Núcleo de Estudos Negros, 1999.
textos, pessoas e organizações do movimento social negro. É uma reflexão sobre a escola pública brasileira e as relações
Ao destacarmos o projeto político e o currículo para além dos raciais com enfoque para os afro-brasileiros. Faz uma retrospecti-
conteúdos, vale ressaltar que a articulação das disciplinas é funda- va histórica sobre a preocupação do Movimento Negro e a educa-
mental para a transformação das relações, desde as mais próximas ção e aponta os temas de maior concentração nas pesquisas sobre
do universo escolar como, por exemplo, a organização do regi- africanidades e relações raciais e educação. Aponta, ainda, os es-
mento da escola. Um bom ponto de partida é construir coletiva tereótipos racistas e sexistas existentes no cotidiano das relações
e explicitamente formas de combate ao racismo, estabelecendo educativas.
como serão tratados os casos pela direção da escola, pelo conjunto MACEDO, Lino de. Ensaios Pedagógicos: como construir
da comunidade escolar. uma escola para todos. Porto Alegre: Ed. Artmed, 2004.
O livro escrito por Lino de Macedo aborda diferentes temas
Referências relacionados à prática pedagógica, convidando o leitor a refletir
a respeito das funções da avaliação escolar na atualidade e tam-
BENTO, Maria Aparecida Silva. Cidadania em Preto e Bran- bém sobre outras questões, tais como aprendizagem, planejamen-
co – discutindo as Relações raciais. São Paulo: Ática, 1998. to, educação inclusiva, diversidades. Todos os textos apresentam
idéias e propostas que permitem compreender e agir diante de di-
BERND, Zilá. Racismo e anti-racismo. São Paulo: Moderna, ferentes situações cotidianas de uma sala de aula.
1997. VIEIRA, Sofia Lerche (org). Gestão da escola: desafios a en-
frentar. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
CASHMOORE, Ellis. Dicionário de Relações Étnicas e Ra- Este livro está organizado em quatro capítulos: a função social
ciais. São Paulo: Selo Negro, 2000. da escola; o projeto pedagógico; o sucesso escolar e a avaliação
institucional. Todos são temas ligados à agenda educacional con-
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto. Belo temporânea, fundamentais para o processo de construção de uma
Horizonte: Mazza Edições, 1998. escola na qual a educação seja considerada como direito.

Didatismo e Conhecimento 190


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
2. Vídeos
Vista minha pele. 2003. 15min. Joel Zito Araújo (Inversão de
papéis entre crianças negras e brancas para abordar os impactos da
discriminação racial)
Quando o crioulo dança. 1988. 35 min. Dilma Loes (Entre-
vistas e ficção mostram situações vividas pelo negro no cotidiano).
Duro aprendizado. 1994. 128 min. John Singleton (Alunos
novatos em rota de colisão com a diversidade, identidade e sexua-
lidade numa escola contemporânea).
Febre da selva. 1991. 132 min. Spike Lee (Arquiteto negro
inicia romance com mulher branca, de família italiana. O filme Tranças e prosas
aborda de maneira crítica os conflitos deste relacionamento inter- Coleção particular - Elmodad Azevedo
-racial).
Serafina, O som da liberdade. 1992. 98 min. Darrell James LICENCIATURAS
Roodt. (Na África do Sul, professora ensina seus alunos negros a
lutarem por seus direitos. Para uma aluna em especial, essas lições 1. BIBLIOGRAFIA COMENTADA
serão um rito de iniciação na vida adulta na forma de tomada de
consciência da realidade que a cerca). Destacamos aqui conhecimentos necessários à formação do
Madame Satã. 2002. 105 min. Karim Aïnouz (Lapa, anos 30: profissional da educação comprometido com os valores da socie-
o cotidiano de João Francisco - malandro, artista, presidiário, pai dade democrática, pluriétnica e racial, e à compreensão do papel
adotivo, preto, pobre, homossexual - antes de se transformar no social da escola.
mito Madame Satã, lendário personagem da boemia carioca). Os conteúdos abaixo relacionados devem integrar os projetos
Cidade de Deus. 2002. 130 min. Fernando Meirelles (Busca- pedagógicos e planos de ensino dos cursos, de acordo com suas es-
pé é um jovem pobre, negro e muito sensível, vive na favela cario- pecificidades, contextos regionais e autonomia da IE. O estudo de
ca Cidade de Deus e cresce em um universo de muita violência). temas relativos às relações étnico-raciais deve inserir-se em todos
Uma Onda no ar. 2002. 92 min. Helvécio Ratton (Conta a os cursos de formação de profissionais da educação. Abordaremos
história de Jorge, o idealizador de uma rádio na favela, e a luta, re- neste item os seguintes temas: Projeto Político Pedagógico, Currí-
sistência cultural e política contra o racismo e a exclusão social em culo, Política Educacional, Identidade e Linguagens.
que a população encontra uma importante arma: a comunicação)
Carandiru. 2002. 146 min. Hector Babenco (O filme narra, 1.1 Projeto político - pedagógico
através do olhar de um médico que freqüentou a Casa de Detenção
de São Paulo , histórias de crime, vingança, amor e amizade, cul- DAYRELL, Juarez T. Múltiplos olhares sobre a educação e a
minando com o massacre ocorrido em 1992). cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996.
Os narradores de Javé. 2003. 100 min. Eliane Caffé. (Após
saberem que a cidade onde vivem será inundada para a construção CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: instrumentos
de uma usina hidrelétrica, os moradores decidem preparar um do- para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.
cumento que conte os fatos históricos do local, como tentativa de
salvar a cidade da destruição). GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo
a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Atmed,
1997.

MUÑOZ, C. Pedagogia da vida cotidiana e participação ci-


dadã. São Paulo: Cortez: IPF, 2004.

VEIGA, Ilma Passos A. Projeto político-pedagógico da esco-


la: Uma construção possível. Campinas, São Paulo: Papirus, 1995.

1.2. Currículo

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos (Org.). Racismo e anti-ra-


cismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Summus,
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FIGUEIRA, Vera Moreira. O preconceito racial na escola. Es-


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GOMES, Nilma Lino; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e


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Didatismo e Conhecimento 191


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
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cultural e diálogo. Educação & Sociedade. Ano XXIII, nº. 79, cial: o tratamento é igual para todos(as)? In: DINIZ, Margareth
agosto de 2002. p. 15-38. & VASCONCELOS, Renata Nunes (Orgs.). Pluralidade cultural
e inclusão na formação de professores e professoras: gênero, se-
SÉRIE PENSAMENTO NEGRO EM EDUCAÇÃO. Floria- xualidade, raça, educação especial, educação indígena, educação
nópolis/Santa Catarina: Núcleo de Estudos Negros, v. 2, dez. 2002 de jovens e adultos. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2004a. p.
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1.3 Políticas educacionais PIZA, E. Branco no Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu... In:
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1.5 Alfabetização e letramento
PASSOS, Joana Célia dos. Discutindo as relações raciais na
estrutura escolar e construindo uma pedagogia multirracial e popu-
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MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Identidades Fragmentadas:
cial e popular. Florianópolis: Ed. Atilènde: NEN, Vol.8, dez/2002.
a construção discursiva deraça, gênero e sexualidade em sala de
SILVA Jr., H. Ação afirmativa para negros nas universidades: aula. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
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indicador nacional de alfabetismo funcional. Campinas: Educ.
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CARONE, Iray & BENTO, Maria Aparecida Silva. (Orgs.). livro didático. In
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CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao si-
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infantil. São Paulo: Contexto, 2000. da oralidade. In: CAVALLEIRO, E. Racismo e anti-racismo na
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de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo cres-
po. Educação e pesquisa, Campinas, v. 29, nº. 1, jan/jun, 2003. p. 2. HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E
167-182. AFRICANA

Didatismo e Conhecimento 192


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
As disciplinas História, Literatura e Artes, no Ensino Funda- EVARISTO, Conceição. Ponciá Venâncio. Belo Horizonte:
mental e Médio, principalmente deverão inserir conteúdos relati- Mazza Edições, 2003.
vos à História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos currículos
escolas. Tal determinação pode ser lida na Lei 9.394/96, art. 26A. SEPÚLVEDA, Maria do Carmo & SALGADO, Maria Teresa
A priorização não exclui as demais disciplinas/áreas de co- (Org.). África & Brasil: letras em laços. Rio de Janeiro: Editora
nhecimento, mas focaliza naquelas o lugar de destaque e visibili- Atlântica.
dade maior. Sugerimos que o leitor consulte os textos relativos à
Educação Infantil, Ensino Fundamental I, II e Ensino Médio sobre 2.2 História
o tratamento destes conteúdos. Restringiremo-nos aqui a apontar
temas pontuais e bibliografia de apoios. HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à
história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.
2.1. Literatura
MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. Para enten-
2.1.1. Literatura Africana der o negro no Brasil: Histórias, Realidades, Problemas e Cami-
nhos. São Paulo: Global Editora e Ação Educativa, 2004.
ABDALA JUNIOR, Benjamin. De Vôs e Ilhas: literatura e
comunitarismos. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. RIBEIRO, Ronilda Yakemi. A alma africana no Brasil. São
Paulo: Editora Oduduwa., 2001.
DOSSIÊ DE LITERATURAS AFRICANAS. Revista Scrip-
ta. Programa de Pós-graduação da PUC Minas/CESPUC. (vários SALLES, R. H. & SOARES, M.de C. Episódios de história
números). afro-brasileira. Rio de Janeiro: DP&A: Fase, 2005.

DOSSIÊ de LITERATURAS AFRICANAS. Revista Via SANTOS, Rafael S. dos. Mas que história é essa? In: TRIN-
Atlântica. Programa de Pós-graduação em Estudos comparados da DADE. Azoilda L. da & SANTOS Rafael S. dos. Multiculturalis-
FFLCH da USP/São Paulo (Vários números) mo: mil faces da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 63-90.

HAMPÂTÉ BA, Amadou. Amkoullel: o menino fula. São SILVA, Alberto Costa e. A enxada e a lança: a África antes
Paulo: Palas Athena/Casa das Áfricas, 2003. dos portugueses. Editora Nova Fronteira, 1998.

MACEDO, Tania. Angola e Brasil: estudos comparados. São SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalida-
Paulo: Via Atlântica. de no pensamento brasileiro. Tradução Raul de Sá Barbosa. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1974.
MADRUGA, Elisalva. Nas trilhas da descoberta: a repercus-
são do modernismo brasileiro na literatura angolana. João Pessoa: THORTON, John. A África e os africanos na formação do
Editora Universitária, 1998. mundo atlântico: de 1400 a 1800. Rio de Janeiro: Editora Campus,
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MOUTINHO, Viale (org.). Contos Populares de Angola: fol-
clore quimbundo. 3. ed. São Paulo: Landy, 2000. 2.3 Artes

SANTILLI, Maria Aparecida. Paralelas e Tangentes: entre AMARAL, Aracy. Artes plásticas na semana de 22. São Pau-
literaturas de língua portuguesa. São Paulo: Arte & Ciência. lo: Perspectiva, 1976.

2.1.2. Literatura Afro-brasileira ARAÚJO, Emanoel. A Mão Afro-Brasileira: Significado da


Contribuição Artística e Histórica. São Paulo: Tenenge, 1988.
CUTI. Luiz Silva. Negros em Contos. Belo Horizonte: Mazza
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imaginário na literatura infantil e juvenil. Dissertação de mestrado, LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário crítico da pintura
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MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória, o reinado PAREYSON, Luigi. Estética. Teoria da formatividade. Petró-
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Nazareth. (org). Brasil Afro-Brasileiro. Autêntica, 2001. 500 anos Artes Visuais, 2000.

Didatismo e Conhecimento 193


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Somos diversas séries, diversas idades, então... Somos múl-
tiplas possibilidades de organização para a construção do saber,
construção inclusive da forma de buscá-lo. Organização, metodo-
logia, didática, modo de fazer como? Através de pesquisa? Através
de projetos? O que é projetar? Projetor pode ser sonhar? Sonhar
com o quê? Afinal de contas, o que as crianças, adolescentes jovens
quilombolas sonham? Qual a transformação ocorrida nos sonhos
das pessoas adultas e idosas, vendedores/as de óleo de mamona, e
as crianças que se conhecem e exploram as suas potencialidades
históricas e científicas?

Utilização da mamona:

- A busca nos saberes abertos e fechados


- O que a ciência diz?

Tranças e prosas Origem: “No Brasil a mamona é conhecida desde a era colo-
Coleção particular - Elmodad Azevedo nial, quando dela se extraía o óleo para lubrificar as engrenagens e
os mancais dos inúmeros engenhos de cana”.
EDUCAÇÃO QUILOMBOLA Classificação botânica: “No Brasil, conhece-se a mamona sob
as denominações de mamoneira, rícino, carrapateira e palma-criste
Sugestões [...]”.
Importância econômica: “Na obra Histórium Mundi, de Plí-
Poder-se-ia pensar a concepção de um plano de ação enquanto nio, conhecida há 1900 anos, encontra-se o seguinte trecho no qual
“ato de criação”, voltando-se para as histórias transmitidas oral-
são descritas as qualidades do óleo de mamona: ‘o óleo de ma-
mente nas comunidades quilombolas que se constituem redutos
mona bebe-se com igual quantidade de água morna para purgar o
onde a ancestralidade “sopra”, através das mais diversas narrati-
corpo. Diz-se particularmente que purga o intestino”.
vas, os caminhos por onde buscar os meios de manter-se, portar-se
e situar-se diante do mundo.
- O que diz a imprensa, a mídia?
Pensar-se-ia esta atividade, em conformidade com uma nar-
rativa capturada em uma comunidade de quilombo de Gravataí,
Combustível alternativo: 1. “Miguel Rosseto e Dilma Rous-
no Rio Grande do Sul, que, meio ao processo de titulação de terra,
seff identificam no biodiesel uma alternativa econômica para as
traz, através da voz de uma mulher, o encontro com o modo de ser
e fazer do escravizado que se tornou dono das terras do quilom- regiões do país que não dispõem de clima e solo para outras cultu-
bo, a riqueza de um conteúdo pedagógico que articula os saberes ras e podem produzir mamona, girassol e nabo forrageiro” (Fonte:
abertos e fechados, base conceitual já refletida na seção anterior. Jornal Zero Hora, 25/03/2005, Porto Alegre). 2. “Dezessete co-
A citação abaixo, dessa senhora quilombola, remete-se ao século munidades (quilombolas) do Piauí se uniram em um projeto de
XIX, atravessa tempos, é fato presente que remonta vários elemen- produção e uso do biodiesel, a partir do óleo de mamona” (Fonte:
tos a serem pensados enquanto ação educativa e criativa na escola: www.radiobras.gov.br/matéria).

[...] eles já tentavam ver uma organização, o registro das ter- - O que os mais velhos dizem sobre a propriedade da ma-
ras. Tia Luiza e os mais velhos diziam... A mãe dizia que a vó dizia mona? Quais as utilidades e visões advindas do saber local?
que o pessoal vendia mamona para legalizar as terras deles e tudo
mais. Eles já vinham nessa busca porque aquelas terras foram Quais as disciplinas envolvidas?
herdadas, porque ele era escravo e tudo mais né... (Juraciara, qui- Todas as disciplinas em um processo de troca, interdisciplinar.
lombo de Manoel Barbosa, Gravataí, março de 2005). Quais as práticas possíveis?
Exploração de todas as potencialidades naturais, cognitivas,
A partir dessa breve narrativa podemos extrair elementos para lúdicas, espaciais, corporais e outros.
ações educativas: a) Exploração do tempo de infância situado no tempo da esco-
1. O reconhecimento da organização social do grupo como la para além das quatro paredes: sair à cata dos frutos da mamona
“fonte” de recursos para um processo secular de conquista de um e apropriação deles como material pedagógico.
espaço social negro. b) O estabelecimento dos “contratos” pedagógicos: frutos se-
2. Atividades sugeridas a partir dos elementos-chave (orga- cos? Frutos verdes? Ambos?
nização para registro de terras a partir da comercialização da ma- c) Vamos buscar onde? Na busca, quais as relações que se
mona): estabelecem? Qual o cenário (re) criado? Ainda que cotidianamen-
2.1. O conceito de “organização”: Para que serviu? Para que te trilhado, o percurso se transmuta quando feito em grupo, com
serve? Quais as formas? Como organizar a nossa aula/atividade? objetivos. Portanto, quais as relações estabelecidas entre educador/
O que é uma organização em quilombo no sentido histórico e con- educandos, educandos/educandos no momento de ir para além do
temporâneo? espaço escolar?

Didatismo e Conhecimento 194


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
d) Na escola, fazer o quê? Quais os cuidados no manuseio dos AFRICANIDADE: Em sentido geral, pensar em africanidade
frutos? nos remete ao sentido de reconhecimento tanto do lugar histórico,
Matemática: a necessidade do “concreto” nas séries iniciais, sociopolítico e lúdico-cultural, onde tudo se liga a tudo. Na preva-
auxiliares no processo de ensino-aprendizagem. Ex: Vamos fazer lência da africanidade o universo é gerado na existência coletiva,
operações matemáticas com as frutinhas? prevalecendo o Ser Humano e o Espaço enquanto expressão da
A formação de problemas que podem envolver não o produto chamada força vital, imprescindível para evidenciar a construção
em si, mas as dimensões espaço-temporais para a sua aquisição. de uma identidade negra postulada na construção de um mundo
Ex: Saímos da escola às... voltamos às... quanto tempo estivemos democrático. A africanidade reconstruída no Brasil está calcada
fora?
nos valores das tradições coletivas do amplo continente africano
Artes: a criação, interpretação de histórias e fantasias e subse-
presente e recriada no cotidiano dos grupos negros brasileiros.
quente utilização dos frutos na feitura de acessórios, na ornamen-
tação de produções feitas com diversos materiais (barro, argila...);
Recreação: a “cultura da infância” permeando o contexto es- AFRODESCENDENTE: O termo afrodescendente se refere
colar: brincar de fugir dos “grudentos” carrapichos, “guerra” com aos/às descendentes de africanos(as) na diáspora, em contextos de
os frutos, criação de regras necessárias para a consolidação da aproximação política e cultural, e é utilizado como correlato de
atividade lúdico-recreativa como um espaço de alegria, prazer e negros(as) (ou, às vezes “pretos”) nos países de língua portuguesa,
respeito. como o Brasil, de african american, na língua inglesa, em países
Ciências: a exploração dos saberes científicos e comunitários como Estados Unidos (onde se usa também o termo black).
a respeito da planta. Práticas fitoterápicas, utilização em práticas
religiosas de matriz afro-brasileira. ANCESTRALIDADE: Para os povos africanos e seus des-
História: a história local e a história global; o período colonial cendentes, a ancestralidade ocupa um lugar especial, tendo posi-
(uso lubrificante) até o período moderno (uso como biodiesel). ção de destaque no conjunto de valores de mundo. Vincula-se à
Geografia: explicitar as condições físicas (solo, relevo, recur- categoria de memória, ao contínuo civilizatório africano que che-
sos hídricos, temperatura, etc.) para a existência e conservação da gou aos dias atuais irradiando energia mítica e sagrada. Integrantes
planta e, acima de tudo, a territorialidade que não é física, mas que do mundo invisível, os ancestrais orientam e sustentam os avanços
é base da complexidade do viver, do saber, do fazer e do sentir de coletivos da comunidade. A ancestralidade redefine a alegria de
um grupo étnico-racial. partilhar um espaço rodeado de práticas civilizatórias e o viver de
Comunicação e expressão: as variações locais e regionais dos
nossos antepassados, conduzindo para um processo de mudanças e
termos mamoneira, rícino, carrapateira.
enriquecimento individual e coletivo em que o sentimento e a pai-
Enfim, atividades que podem ser feitas em outras áreas, nas
quais existem diversas plantas de largo conhecimento e uso local. xão estão sintonizados com o ser e o comportamento das pessoas
(SOUZA, 2003). A ancestralidade remete aos mortos veneráveis,
sejam os da família extensa, da aldeia, do quilombo, da cidade, do
reino ou império, e à reverência às forças cósmicas que governam
o universo, a natureza.

AUTOESTIMA: Sentimento e opinião que cada pessoa tem


de si mesma.
É na infância, no contato com o outro, que construímos ou
não a nossa autoconfiança. As experiências do racismo e da dis-
criminação racial determinam significativamente a autoestima
dos(as) adultos(as) negros(as) e somente a reelaboração de uma
nova consciência é capaz de mudar o processo cruel de uma socie-
dade desigual que não os(as) estimula e nem respeita. O processo
psicológico é um dos aspectos mais importante da autoestima, pois
conduz as relações interpessoais. As formas como nos relaciona-
mos com o outro em muitas situações geram falsos valores. Então
Isso que toca chama-se balafon
o caminho para construção da autoestima está calcado em uma
Coleção particular - Conceição de Maria C. Machado
sociedade mais justa e igualitária, no reconhecimento e valores de
Glossário de Termos e Expressões Antirracistas cada indivíduo como um ser essencial.

Na prática educacional e, em especial, no cotidiano escolar COMPLEXIDADE: Contemporaneamente o termo refere-


a linguagem que utilizamos está marcada por expressões que, às -se ao pensamento filosófico e científico que busca compreender
vezes, inconscientemente, contribuem para reforçar situações de o mundo como um todo recusando o reducionismo das interpre-
preconceito, discriminação e racismo. Por outro lado, vários ter- tações e explicações. Edgar Morin assim concebe o pensamento
mos e expressões vêm sendo utilizados como parte das ideias e complexo: “É a viagem em busca de um modo de pensamento ca-
das ações antirracistas. Alguns termos ainda não são de circulação paz de respeitar a multidimensionalidade, a riqueza, o mistério do
ampla. Portanto, apresentamos esse glossário composto por muitas real; e de saber que as determinações – cerebral, cultural, social,
palavras e expressões citadas ao longo deste Plano de Ação e ou- histórica – que impõem a todo o pensamento, co-determinam sem-
tras que compreendemos como de veiculação necessária. pre o objeto de conhecimento” (1980, p. 14).

Didatismo e Conhecimento 195


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
CIRCULARIDADE: Um dos percursos do pensamento objeto ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, o gozo
complexo que busca a circularidade entre a análise (a disjunção) ou exercícios, em condições de igualdade, dos direitos humanos
e a síntese (a religação), que ultrapassa o reducionismo e o “ho- e liberdades fundamentais do domínio político, social ou cultu-
lismo” e reconhece a circularidade entre as partes e o todo (ARA- ral, ou em qualquer outro domínio da vida pública” (ONU apud
NHA, 2005). A circularidade diz respeito, igualmente, ao caráter SANT’ANA, 2004).
do pensamento cíclico, mítico, muitas vezes relacionado às socie-
dades tradicionais em que os tempos passados, presentes e futuros DIVERSIDADE: As educadoras Gomes & Silva nos indicam
se processam em círculo: elementos do passado podem voltar no que “o trato da diversidade não pode ficar a critério da boa vonta-
presente, especialmente através da memória; anúncios do futuro de ou da implantação de cada um. Ele deve ser uma competência
podem ocorrer no aqui e agora. político-pedagógica a ser adquirida pelos profissionais da edu-
cação nos seus processos formadores, influenciando de maneira
CORPO: O corpo humano pode ser concebido como uma positiva a relação desses sujeitos com os outros, tanto na escola
porção de espaço, com suas fronteiras, centros vitais, defesas e quanto na vida cotidiana” (2002, p.29-30). Nas palavras de Sodré,
fraquezas. O corpo também pode ser pensado como um território. “A diversidade étnico-cultural nos mostra que os sujeitos sociais,
Na visão de mundo de vários povos africanos, o corpo é o pri- sendo históricos, são também, culturais. Essa constatação indica
meiro território sagrado do qual somos responsáveis. Para Azoilda que é necessário repensar a nossa escola e os processos de forma-
Trindade, “é importante ressaltar, também, que diversos povos e ção docente, rompendo com as práticas seletivas, fragmentadas,
grupos étnicos e culturais concebem e interagem com o corpo di- corporativistas, sexistas e racistas ainda existentes” (2001). Nesse
ferentemente: uns amam o corpo do outro; uns escravizam e vam- sentido Nilma Lino Gomes: “Assumir a diversidade cultural sig-
pirizam o corpo do outro, usando o corpo alheio; outros destroem nifica muito mais do que um elogio às diferenças. Representa não
o próprio corpo se autonegando, se mutilando... Uns sacralizam os somente fazer uma reflexão mais densa sobre as particularidades
corpos, outros o reificam... Alguns corpos lutam pela sua visibili- dos grupos sociais, mas, também, implementar políticas públicas,
dade e por direitos humanos, sociais e políticos; outros reduzem e alterar relações de poder, redefinir escolhas, tomar novos rumos e
negam o corpo do outro; outros, ainda, escondem os seus próprios questionar a nossa visão de democracia” (2003).
corpos como se deles se envergonhassem” (2002, p. 71).
ESTEREÓTIPO: Opinião preconcebida, difundida entre os
CORPORALIDADE: Corporalidade e espiritualidade com- elementos de uma coletividade; conceito muito próximo de pre-
põem a estrutura que os seres humanos portam nos diversos aspec- conceito. Sant’Ana define estereótipo como: “uma tendência à
tos da alma, no investimento cultural dos sentidos da vida. Corpo- padronização, com a eliminação das qualidades individuais e das
ralidade é o viver cotidiano de cada pessoa, individual e coletivo. diferenças, com a ausência total do espírito crítico nas opiniões
É modulada de diferentes maneiras segundo o espaço psíquico ou sustentadas” (2004, p.57).
espiritual somático. Na corporalidade se expressa também a sexu-
alidade, reinterpretada e reproduzida graças à celebração do corpo, ETNIA/GRUPO ÉTNICO: Para as ciências sociais, em es-
como lugar de representação cultural e histórico, como geradora pecial a Antropologia, a noção de etnia emerge após a Segunda
de percepções e concepções de valores. Está relacionada à exis- Guerra Mundial, em contraposição à noção biológica de raça que
tência, ao trabalho, ao lazer e ao tempo que dedicamos a cada uma as ciências da natureza consideravam inadequada para tratar das
dessas funções. diferenças entre grupos humanos. Etnia ou grupo étnico é um gru-
po social cujos membros consideram ter uma origem e uma cultura
CULTURA/CULTURA NEGRA: Conceito central das hu- comuns, e, portanto, uma identidade marcada por traços distinti-
manidades e das ciências sociais e que corresponde a um terreno vos. Uma etnia ou um grupo étnico se autodefine e é reconhecida
explícito de lutas políticas. Para Muniz Sodré, a demonstração de por etnias ou grupos distintos da sociedade envolvente. O mesmo
cultura está comprometida com a demonstração da singularidade acontece com os indivíduos: pertence a uma etnia ou um grupo
do indivíduo ou do grupo no mundo: “A noção de cultura é indis- étnico quem dele se considera integrante e quem é reconhecido
sociável da ideia de um campo normativo. Enquanto ela emergia, como a ele pertencente pelo grupo e pela sociedade.
no Ocidente, surgiam também as regras do campo cultural, com
suas sanções – positivas e negativas” (SODRÉ, 1988b). Podemos OBS: o conteúdo completo encontra-se no CD que acom-
conceituar o termo cultura como estratégia central para a definição panha esta apostila.
de identidades e alteridades no mundo contemporâneo, um recurso
para a afirmação da diferença e da exigência do seu reconhecimen-
to e um campo de lutas e de contradições.

DISCRIMINAÇÃO RACIAL: Ação, atitude, ou manifesta-


ção contra uma pessoa ou grupo de pessoas em razão de sua raça
ou “cor”. A discriminação acontece quando o racista externaliza
seu racismo ou preconceito e age de alguma forma que prejudica
uma pessoa ou grupo (MULLER, 2005). De acordo com a Con-
venção da ONU de 1966, discriminação racial “significa qualquer
distinção, exclusão, restrição ou preferências baseadas em raça,
cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha como

Didatismo e Conhecimento 196


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Há inúmeros programas e materiais disponíveis sobre o tema
5. SÃO PAULO (ESTADO). SECRETARIA da gestão, aos quais as equipes gestoras também poderão recorrer
para apoiar seu trabalho. O ponto mais importante desse segundo
DA EDUCAÇÃO. CURRÍCULO DO
conjunto de documentos é garantir que a Proposta Pedagógica, que
ESTADO DE SÃO PAULO: HISTÓRIA. IN: organiza o trabalho nas condições singulares de cada escola, seja
___________________ um recurso efetivo e dinâmico para assegurar aos alunos a aprendi-
CURRÍCULO DO ESTADO DE SÃO zagem dos conteúdos e a constituição das competências previstas
PAULO: CIÊNCIAS HUMANAS E SUAS no Currículo. Espera-se também que a aprendizagem resulte da co-
TECNOLOGIAS. SÃO PAULO: SE, 2012. P. 25- ordenação de ações entre as disciplinas, do estímulo à vida cultural
27, 28-73. da escola e do fortalecimento de suas relações com a comunidade.
Para isso, os documentos reforçam e sugerem orientações e estra-
tégias para a formação continuada dos professores.
O Currículo se completa com um conjunto de documentos di-
A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo propôs, em rigidos especialmente aos professores e aos alunos: os Cadernos
2008, um currículo básico para as escolas da rede estadual nos do Professor e do Aluno, organizados por disciplina/série(ano)/bi-
níveis de Ensino Fundamental (Ciclo II) e Ensino Médio. mestre. Neles, são apresentadas Situações de Aprendizagem para
Com isso, pretendeu apoiar o trabalho realizado nas escolas orientar o trabalho do professor no ensino dos conteúdos disci-
estaduais e contribuir para a melhoria da qualidade das aprendiza- plinares específicos e a aprendizagem dos alunos. Esses conteú-
gens dos alunos. Esse processo partiu dos conhecimentos e das ex- dos, habilidades e competências são organizados por série/ano e
periências práticas já acumulados, ou seja, partiu da recuperação, acompanhados de orientações para a gestão da aprendizagem em
da revisão e da sistematização de documentos, publicações e diag- sala de aula e para a avaliação e a recuperação. Oferecem também
nósticos já existentes e do levantamento e análise dos resultados de sugestões de métodos e estratégias de trabalho para as aulas, ex-
projetos ou iniciativas realizados. perimentações, projetos coletivos, atividades extraclasse e estudos
interdisciplinares.
No intuito de fomentar o desenvolvimento curricular, a Se-
cretaria da Educação tomou assim duas iniciativas complementa-
Uma educação à altura dos desafios contemporâneos
res. A primeira delas foi realizar amplo levantamento do acervo
documental e técnico pedagógico existente. A segunda deu início
A sociedade do século XXI é cada vez mais caracterizada pelo
a um processo de consulta a escolas e professores para identifi-
uso intensivo do conhecimento, seja para trabalhar, conviver ou
car, sistematizar e divulgar boas práticas existentes nas escolas de
exercer a cidadania, seja para cuidar do ambiente em que se vive.
São Paulo. Ao articular conhecimento e herança pedagógicos com Todavia, essa sociedade, produto da revolução tecnológica que se
experiências escolares de sucesso, a Secretaria da Educação deu acelerou na segunda metade do século XX e dos processos polí-
início a uma contínua produção e divulgação de subsídios que in- ticos que redesenharam as relações mundiais, já está gerando um
cidem diretamente na organização da escola como um todo e em novo tipo de desigualdade ou exclusão, ligado ao uso das tecno-
suas aulas. Ao iniciar esse processo, a Secretaria da Educação pro- logias de comunicação que hoje medeiam o acesso ao conheci-
curou também cumprir seu dever de garantir a todos uma base co- mento e aos bens culturais. Na sociedade de hoje, é indesejável a
mum de conhecimentos e de competências para que nossas escolas exclusão pela falta de acesso tanto aos bens materiais quanto ao
funcionem de fato como uma rede. Com esse objetivo, implantou conhecimento e aos bens culturais. No Brasil, essa tendência à ex-
um processo de elaboração dos subsídios indicados a seguir. Este clusão caminha paralelamente à democratização do acesso a níveis
documento apresenta os princípios orientadores do currículo para educacionais além do ensino obrigatório.
uma escola capaz de promover as competências indispensáveis Com mais pessoas estudando, além de um diploma de nível
ao enfrentamento dos desafios sociais, culturais e profissionais do superior, as características cognitivas e afetivas são cada vez mais
mundo contemporâneo. valorizadas, como as capacidades de resolver problemas, trabalhar
Contempla algumas das principais características da socieda- em grupo, continuar aprendendo e agir de modo cooperativo, per-
de do conhecimento e das pressões que a contemporaneidade exer- tinentes em situações complexas.
ce sobre os jovens cidadãos, propondo princípios orientadores para Em um mundo no qual o conhecimento é usado de forma in-
a prática educativa, a fim de que as escolas possam preparar seus tensiva, o diferencial está na qualidade da educação recebida. A
alunos para esse novo tempo. Ao priorizar a competência de leitura qualidade Currículo do Estado de São Paulo Apresentação do con-
e escrita, o Currículo define a escola como espaço de cultura e de vívio, assim como dos conhecimentos e das competências cons-
articulação de competências e de conteúdos disciplinares. tituídas na vida escolar, será determinante para a participação do
Além desse documento básico curricular, há um segundo con- indivíduo em seu próprio grupo social e para que ele tome parte em
junto de documentos, com orientações para a gestão do Currículo processos de crítica e renovação.
na escola. Intitulado Caderno do Gestor, dirige-se especialmente Nesse contexto, ganha importância redobrada a qualidade da
às unidades escolares e aos professores coordenadores, diretores, educação oferecida nas escolas públicas, que vêm recebendo, em
professores coordenadores das oficinas pedagógicas e superviso- número cada vez mais expressivo, as camadas pobres da sociedade
res. Esse material não trata da gestão curricular em geral, mas tem brasileira, que até bem pouco tempo não tinham efetivo acesso à
a Apresentação Currículo do Estado de São Paulo finalidade espe- escola. A relevância e a pertinência das aprendizagens escolares
cífica de apoiar o gestor para que ele seja um líder capaz de estimu- construídas nessas instituições são decisivas para que o acesso a
lar e orientar a implementação do Currículo nas escolas públicas elas proporcione uma real oportunidade de inserção produtiva e
estaduais de São Paulo. solidária no mundo.

Didatismo e Conhecimento 197


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Ganha também importância a ampliação e a significação do Um currículo que dá sentido, significado e conteúdo à escola
tempo de permanência na escola, tornando-a um lugar privilegiado precisa levar em conta os elementos aqui apresentados. Por isso, o
para o desenvolvimento do pensamento autônomo, tão necessário Currículo da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo tem
ao exercício de uma cidadania responsável, especialmente quan- como princípios centrais: a escola que aprende; o currículo como
do se assiste aos fenômenos da precocidade da adolescência e do espaço de cultura; as competências como eixo de aprendizagem;
acesso cada vez mais tardio ao mercado de trabalho. Nesse mundo, a prioridade da competência de leitura e de escrita; a articulação
que expõe o jovem às práticas da vida adulta e, ao mesmo tempo, das competências para aprender; e a contextualização no mundo
posterga sua inserção no mundo profissional, ser estudante é fazer do trabalho.
da experiência escolar uma oportunidade para aprender a ser livre
e, concomitantemente, respeitar as diferenças e as regras de con- Princípios para um currículo comprometido com o seu tempo
vivência. Hoje, mais do que nunca, aprender na escola é o “ofício
de aluno”, a partir do qual o jovem pode fazer o trânsito para a Uma escola que também aprende
autonomia da vida adulta e profissional.
Para que a democratização do acesso à educação tenha função A tecnologia imprime um ritmo sem precedentes ao acúmu-
inclusiva, não é suficiente universalizar a escola: é indispensável lo de conhecimentos e gera profunda transformação quanto às
universalizar a relevância da aprendizagem. formas de estrutura, organização e distribuição do conhecimento
Criamos uma civilização que reduz distâncias, tem instrumen- acumulado. Nesse contexto, a capacidade de aprender terá de ser
tos capazes de aproximar pessoas ou distanciá-las, aumenta o aces- trabalhada não apenas nos alunos, mas na própria escola, como
so à informação e ao conhecimento, mas, em contrapartida, acen- instituição educativa. Isso muda radicalmente a concepção da es-
tua consideravelmente diferenças culturais, sociais e econômicas. cola: de instituição que ensina para instituição que também apren-
Apenas uma educação de qualidade para todos pode evitar de a ensinar. Nessa escola, as interações entre os responsáveis pela
que essas diferenças se constituam em mais um fator de exclusão. aprendizagem dos alunos têm caráter de ações formadoras, mesmo
O desenvolvimento pessoal é um processo de aprimoramen- que os envolvidos não se deem conta disso. Vale ressaltar a res-
to das capacidades de agir, pensar e atuar no mundo, bem como ponsabilidade da equipe gestora como formadora de professores
de atribuir significados e ser percebido e significado pelos outros,
e a responsabilidade dos docentes, entre si e com o grupo gestor,
apreender a diversidade, situar-se e pertencer.
na problematização e na significação dos conhecimentos sobre sua
A educação tem de estar a serviço desse desenvolvimento,
prática.
que coincide com a construção da identidade, da autonomia e da
Essa concepção parte do princípio de que ninguém é deten-
liberdade. Não há liberdade sem possibilidade de escolhas. Esco-
tor absoluto do conhecimento e de que o conhecimento coletivo é
lhas pressupõem um repertório e um quadro de referências que só
maior que a soma dos conhecimentos individuais, além de ser qua-
podem ser garantidos se houver acesso a um amplo conhecimento,
litativamente diferente. Esse é o ponto de partida para o trabalho
assegurado por uma educação geral, articuladora e que transite en-
tre o local e o global. colaborativo, para a formação de uma “comunidade aprendente”,
Esse tipo de educação constrói, de forma cooperativa e solidá- nova terminologia para um dos mais antigos ideais educativos. A
ria, uma síntese dos saberes produzidos pela humanidade ao longo vantagem hoje é que a tecnologia facilita a viabilização prática
de sua história e dos saberes locais. Tal síntese é Apresentação desse ideal.
Currículo do Estado de São Paulo uma das condições para o indi- Ações como a construção coletiva da Proposta Pedagógica,
víduo acessar o conhecimento necessário ao exercício da cidada- por meio da reflexão e da prática compartilhadas, e o uso intencio-
nia em dimensão mundial. nal da convivência como situação de aprendizagem fazem parte
A autonomia para gerenciar a própria aprendizagem (aprender da constituição de uma escola à altura de seu tempo. Observar que
a aprender) e para a transposição dessa aprendizagem em interven- as regras da boa pedagogia também se aplicam àqueles que estão
ções solidárias (aprender a fazer e a conviver) deve ser a base da aprendendo a ensinar é uma das chaves para o sucesso das lideran-
educação das crianças, dos jovens e dos adultos, que têm em suas ças escolares. Os gestores, como agentes formadores, devem pôr
mãos a continuidade da produção cultural e das práticas sociais. em prática com os professores tudo aquilo que recomendam a eles
Construir identidade, agir com autonomia e em relação com que apliquem com seus alunos.
o outro, bem como incorporar a diversidade, são as bases para a
construção de valores de pertencimento e de responsabilidade, es- O currículo como espaço de cultura
senciais para a inserção cidadã nas dimensões sociais e produtivas.
Preparar os indivíduos para o diálogo constante com a produção No cotidiano escolar, a cultura é muitas vezes associada ao
cultural, num tempo que se caracteriza não pela permanência, mas que é local, pitoresco, folclórico, bem como ao divertimento ou
pela constante mudança – quando o inusitado, o incerto e o urgen- lazer, ao passo que o conhecimento é frequentemente associado a
te constituem a regra –, é mais um desafio contemporâneo para a um saber inalcançável. Essa dicotomia não cabe em nossos tem-
educação escolar. pos: a informação está disponível a qualquer instante, em tempo
Outros elementos relevantes que devem orientar o conteúdo e real, ao toque de um dedo, e o conhecimento constitui ferramenta
o sentido da escola são a complexidade da vida cultural em suas para articular teoria e prática, o global e o local, o abstrato e seu
dimensões sociais, econômicas e políticas; a presença maciça de contexto físico. Currículo é a expressão do que existe na cultu-
produtos científicos e tecnológicos; e a multiplicidade de lingua- ra científica, artística e humanista transposto para uma situação
gens e códigos no cotidiano. Apropriar-se desses conhecimentos de aprendizagem e ensino. Precisamos entender que as atividades
pode ser fator de ampliação das liberdades, ao passo que sua não extraclasse não são “extracurriculares” quando se deseja articular
apropriação pode significar mais um fator de exclusão. cultura e conhecimento.

Didatismo e Conhecimento 198


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Nesse sentido, todas as atividades da escola são curriculares; afetivos e sociais dos alunos. Implica, pois, analisar como o pro-
caso contrário, não são justificáveis no contexto escolar. Se não fessor mobiliza conteúdos, metodologias e saberes próprios de sua
rompermos essa dissociação entre cultura e conhecimento não co- disciplina ou área de conhecimento, visando a desenvolver com-
nectaremos o currículo à vida – e seguiremos alojando na escola petências em adolescentes, bem como a instigar desdobramentos
uma miríade de atividades “culturais” que mais dispersam e con- para a vida adulta.
fundem do que promovem aprendizagens curriculares relevantes Paralelamente a essa conduta, é preciso considerar quem são
para os alunos. esses alunos. Ter entre 11 e 18 anos significa estar em uma fase
O conhecimento tomado como instrumento, mobilizado em peculiar da vida, entre a infância e a idade adulta.
competências, reforça o sentido cultural da aprendizagem. Toma- Nesse sentido, o jovem é aquele que deixou de ser criança e
do como valor de conteúdo lúdico, de caráter ético ou de fruição prepara-se para se tornar adulto.
estética, numa escola de prática cultural ativa, o conhecimento Trata-se de um período complexo e contraditório da vida do
torna-se um prazer que pode ser aprendido ao se aprender a apren- aluno, que requer muita atenção da escola.
der. Nessa escola, o professor não se limita a suprir o aluno de sa- Nessa etapa curricular, a tríade sobre a qual competências e
beres, mas dele é parceiro nos fazeres culturais; é quem promove, habilidades são desenvolvidas pode ser assim caracterizada:
das mais variadas formas, o desejo de aprender, sobretudo com o a) o adolescente e as características de suas ações e pensa-
exemplo de seu próprio entusiasmo pela cultura humanista, cien- mentos;
tífica e artística. b) o professor, suas características pessoais e profissionais e a
Quando, no projeto pedagógico da escola, a cidadania cultural qualidade de suas mediações;
é uma de suas prioridades, o currículo é a referência para ampliar, c) os conteúdos das disciplinas e as metodologias para seu
localizar e contextualizar os conhecimentos acumulados pela hu- ensino e aprendizagem.
manidade ao longo do tempo. Houve um tempo em que a educação escolar era referenciada
Então, o fato de uma informação ou de um conhecimento no ensino – o plano de trabalho da escola indicava o que seria
emergir de um ou mais contextos distintos na grande rede de infor- ensinado ao aluno. Essa foi uma das razões pelas quais o currícu-
mação não será obstáculo à prática cultural resultante da mobili- lo escolar foi confundido com um rol de conteúdos disciplinares.
zação desses “saberes” nas ciências, nas artes e nas humanidades. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) no
9394/96 deslocou o foco do ensino para a aprendizagem, e não é
As competências como referência por acaso que sua filosofia não é mais a da liberdade de ensino,
mas a do direito de aprender.
Um currículo que promove competências tem o compromisso O conceito de competências também é fundamental na LD-
de articular as disciplinas e as atividades escolares com aquilo que BEN, nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e nos Parâ-
se espera que os alunos aprendam ao longo dos anos. Logo, a atu- metros Curriculares Nacionais (PCN), elaborados pelo Conselho
ação do professor, os conteúdos, as metodologias disciplinares e Nacional de Educação e pelo Ministério da Educação. O currículo
a aprendizagem requerida dos alunos são aspectos indissociáveis, referenciado em competências é uma concepção que requer que a
que compõem um sistema ou rede cujas partes têm característi- escola e o plano do professor indiquem o que aluno vai aprender.
cas e funções específicas que se complementam para formar um Uma das razões para se optar por uma educação centrada em
todo, sempre maior do que elas. Maior porque o currículo se com- competências diz respeito à democratização da escola. Com a uni-
promete em formar crianças e jovens para que se tornem adultos versalização do Ensino Fundamental, a educação incorpora toda a
preparados para exercer suas responsabilidades (trabalho, família, heterogeneidade que caracteriza o povo brasileiro; nesse contexto,
autonomia etc.) e para atuar em uma sociedade que depende deles. para ser democrática, a escola tem de ser igualmente acessível a
Com efeito, um currículo referenciado em competências su- todos, diversa no tratamento a cada um e unitária nos resultados.
põe que se aceite o desafio de promover os conhecimentos pró- Optou-se por construir a unidade com ênfase no que é indis-
prios de cada disciplina articuladamente às competências e habi- pensável que todos tenham aprendido ao final do processo, consi-
lidades do aluno. É com essas competências e habilidades que o derando-se a diversidade. Todos têm direito de construir, ao longo
aluno contará para fazer a leitura crítica do mundo, questionando-o de sua escolaridade, um conjunto básico de competências, definido
para melhor compreendê-lo, inferindo questões e compartilhando pela lei. Esse é o direito básico, mas a escola deverá ser tão diversa
ideias, sem, pois, ignorar a complexidade do nosso tempo. quanto são os pontos de partida das crianças que recebe. Assim,
Tais competências e habilidades podem ser consideradas em será possível garantir igualdade de oportunidades, diversidade de
uma perspectiva geral, isto é, no que têm de comum com as disci- tratamento e unidade de resultados.
plinas e tarefas escolares ou no que têm de específico. Quando os pontos de partida são diferentes, é preciso tratar di-
Competências, nesse sentido, caracterizam modos de ser, de ferentemente os desiguais para garantir a todos uma base comum.
raciocinar e de interagir, que podem ser depreendidos das ações Pensar o currículo hoje é viver uma transição na qual, como em
e das tomadas de decisão em contextos de problemas, de tarefas toda transição, traços do velho e do novo se mesclam nas práticas
ou de atividades. Graças a elas, podemos inferir, hoje, se a escola cotidianas. É comum que o professor, ao formular seu plano de tra-
como instituição está cumprindo devidamente o papel que se es- balho, indique o que vai ensinar, e não o que o aluno vai aprender.
pera dela. E é compreensível, segundo essa lógica, que, no fim do ano
Os alunos considerados neste Currículo do Estado de São letivo, cumprido seu plano, ele afirme, diante do fracasso do aluno,
Paulo têm, de modo geral, entre 11 e 18 anos. Valorizar o desen- que fez sua parte, ensinando, e que foi o aluno que não aprendeu.
volvimento de competências nessa fase da vida implica ponderar, No entanto, a transição da cultura do ensino para a da apren-
além de aspectos curriculares e docentes, os recursos cognitivos, dizagem não é um processo individual. A escola deve fazê-lo co-

Didatismo e Conhecimento 199


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
letivamente, tendo à frente seus gestores, que devem capacitar A diversidade de textos concorre para o reconhecimento dos
os professores em seu dia a dia, a fim de que todos se apropriem gêneros como expressões históricas e culturais diversificadas, que
dessa mudança de foco. Cabe às instâncias responsáveis pela po- vão se modificando ao longo do tempo. Hoje, mais do que nunca,
lítica educacional nos Estados e nos municípios elaborar, a partir as transformações tecnológicas podem atropelar o trabalho de uma
das DCN e dos PCN, propostas curriculares próprias e específicas, escola que se cristaliza em “modelos” estanques. Nesse sentido,
para que as escolas, em sua Proposta Pedagógica, estabeleçam os os gêneros devem receber o enfoque específico de cada disciplina
planos de trabalho que, por sua vez, farão, das propostas, currícu- e, ao mesmo tempo, precisam ser trabalhados de modo interdisci-
los em ação – como no presente esforço desta Secretaria. plinar.
O caráter linear dos textos verbais deverá conviver com o ca-
Prioridade para a competência da leitura e da escrita ráter reticular dos hipertextos eletrônicos, como, aliás, acontece
em leituras de jornais impressos, em que os olhos “navegam” por
Concebe-se o homem a partir do trabalho e das mediações uma página, ou por várias delas, aos saltos e de acordo com nossas
simbólicas que regem suas relações com a vida, com o mundo e intenções, libertos da continuidade temporal. Saber ler um jornal é
uma habilidade “histórica”, porque precisamos conhecer os modos
com ele próprio. São dois os eixos dessas atividades: o da pro-
como a manchete, a notícia, o lead, a reportagem etc. conectam-se
dução (transformação da natureza) e o da comunicação (relações
e distribuem-se, estabelecendo ligações nada lineares, e também o
intersubjetivas). A linguagem é constitutiva do ser humano. Pode-
caráter multimídia do jornal, que se estabelece entre os diferentes
-se definir linguagens como sistemas simbólicos, instrumentos de
códigos utilizados (uma imagem pode se contrapor a uma manche-
conhecimento e de construção de mundo, formas de classificação te, por exemplo, criando, até mesmo, um efeito de ironia).
arbitrárias e socialmente determinadas. Em uma cultura letrada como a nossa, a competência de ler
Esses sistemas são, ao mesmo tempo, estruturados e estrutu- e de escrever é parte integrante da vida das pessoas e está intima-
rantes, uma vez que geram e são gerados no constante conflito en- mente associada ao exercício da cidadania. As práticas de leitura
tre os protagonistas sociais pela manutenção ou transformação de e escrita, segundo as pesquisas que vêm sendo realizadas na área,
uma visão de mundo: o poder simbólico do fazer ver e fazer crer, têm impacto sobre o desenvolvimento cognitivo do indivíduo.
do pensar, do sentir e do agir em determinado sentido. Essas práticas possibilitam o desenvolvimento da consciência
Em síntese, as linguagens incorporam as produções sociais do mundo vivido (ler é registrar o mundo pela palavra, afirma Pau-
que se estruturam mediadas por códigos permanentes, passíveis lo Freire), propiciando aos sujeitos sociais a autonomia na aprendi-
de representação do pensamento humano e capazes de organizar zagem e a contínua transformação, inclusive das relações pessoais
uma visão de mundo mediada pela expressão, pela comunicação e sociais. Nesse sentido, os atos de leitura e de produção de textos
e pela informação. ultrapassam os limites da escola, especialmente os da aprendiza-
A linguagem verbal, oral e escrita, representada pela língua gem em língua materna, configurando-se como pré-requisitos para
materna, viabiliza a compreensão e o encontro dos discursos utili- todas as disciplinas escolares.
zados em diferentes esferas da vida social. É com a língua materna A leitura e a produção de textos são atividades permanentes na
e por meio dela que as formas sociais arbitrárias de visão de mun- escola, no trabalho, nas relações interpessoais e na vida. Por isso
do são incorporadas e utilizadas como instrumentos de conheci- mesmo, o Currículo proposto tem por eixo a competência geral
mento e de comunicação. de ler e de produzir textos, ou seja, o conjunto de competências e
As relações linguísticas, longe de ser uniformes, marcam o habilidades específicas de compreensão e de reflexão crítica intrin-
poder simbólico acumulado por seus protagonistas. Não há uma secamente associado ao trato com o texto escrito.
competência linguística abstrata, mas, sim, limitada pelas condi- As experiências profícuas de leitura pressupõem o contato do
ções de produção e de interpretação dos enunciados determinados aluno com a diversidade de textos, tanto do ponto de vista da for-
pelos contextos de uso da língua. Esta utiliza um código com fun- ma quanto no que diz respeito ao conteúdo. Além do domínio da
ção ao mesmo tempo comunicativa e legislativa. textualidade propriamente dita, o aluno vai construindo, ao longo
do ensino-aprendizagem, um repertório cultural específico rela-
O domínio do código não é suficiente para garantir a comu-
cionado às diferentes áreas do conhecimento que usam a palavra
nicação; algumas situações de fala ou escrita podem, inclusive,
escrita para o registro de ideias, de experiências, de conceitos, de
produzir o total silêncio daquele que se sente pouco à vontade no
sínteses etc.
ato interlocutivo.
O texto é o foco principal do processo de ensino-aprendiza-
O desenvolvimento da competência linguística do aluno, gem. Considera-se texto qualquer sequência falada ou escrita que
nessa perspectiva, não está pautado na exclusividade do domínio constitua um todo unificado e coerente dentro de uma determinada
técnico de uso da língua legitimada pela norma-padrão, mas, prin- situação discursiva. Assim, o que define um texto não é a extensão
cipalmente, no domínio da competência performativa: o saber usar dessa sequência, mas o fato de ela configurar-se como uma uni-
a língua em situações subjetivas ou objetivas que exijam graus de dade de sentido associada a uma situação de comunicação. Nessa
distanciamento e de reflexão sobre contextos e estatutos de inter- perspectiva, o texto só existe como tal quando atualizado em uma
locutores, ou seja, a competência comunicativa vista pelo prisma situação que envolve, necessariamente, quem o produz e quem o
da referência do valor social e simbólico da atividade linguística, interpreta.
no âmbito dos inúmeros discursos concorrentes. A utilização dessa E, na medida em que todo texto escrito é produzido para ser
variedade dá-se por meio de um exercício prático em situações de lido, ele reflete as possibilidades e as expectativas do leitor a que
simulação escolar. A competência performativa exige mais do que se dirige, identificável por marcas como valores, referências e for-
uma atitude de reprodução de valores. mulações característicos.

Didatismo e Conhecimento 200


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Por sua vez, esse leitor está associado a domínios de circu- Por esse caráter essencial da competência de leitura e de es-
lação dos textos próprios de determinadas esferas discursivas, ou crita para a aprendizagem dos conteúdos curriculares de todas as
seja, de âmbitos da vida social – como o trabalho, a educação, a áreas e disciplinas, a responsabilidade por sua aprendizagem e
mídia e o lazer – em que o texto escrito adquire formas particulares avaliação cabe a todos os professores, que devem transformar seu
de produção, organização e circulação. Nesse sentido, todo texto trabalho em oportunidades nas quais os alunos possam aprender
articula-se para atingir um leitor socialmente situado, tendo em e consigam consolidar o uso da Língua Portuguesa e das outras
vista um objetivo definido, atualizando-se, em seu meio de circu- linguagens e códigos que fazem parte da cultura, bem como das
lação, sob a forma de um gênero discursivo específico. formas de comunicação em cada uma delas.
Textos são classificados segundo a esfera discursiva de cir- A centralidade da competência leitora e escritora, que a trans-
culação e o gênero a que pertencem. A seleção das esferas e dos forma em objetivo de todas as séries/anos e de todas as disciplinas,
gêneros procura contemplar a importância social e educacional assinala para os gestores (a quem cabe a educação continuada dos
desses textos para a formação do aluno, considerando-se diferentes professores na escola) a necessidade de criar oportunidades para
situações de leitura, como: que os docentes também desenvolvam essa competência.
Por fim, é importante destacar que o domínio das linguagens
• ler, em situação pessoal, textos que, no cotidiano, são esco- representa um primordial elemento para a conquista da autonomia,
lhidos pelo leitor de acordo com seu interesse, em busca de diver- a Apresentação Currículo do Estado de São Paulo chave para o
timento, de informação e de reflexão (esferas artístico-literária, de acesso a informações, permitindo a comunicação de ideias, a ex-
entretenimento, jornalística e publicitária); pressão de sentimentos e o diálogo, necessários à negociação dos
significados e à aprendizagem continuada.
• ler textos relacionados à vida pública, que, no cotidiano, são
utilizados para atender a uma demanda institucional predefinida ou Articulação das competências para aprender
a ela respeitar (esfera institucional pública);
A aprendizagem é o centro da atividade escolar. Por extensão,
• ler, em situação de trabalho ou ocupacional, textos que, no o professor caracteriza-se como um profissional da aprendizagem.
cotidiano, são utilizados para fazer algo (esfera ocupacional); O professor apresenta e explica conteúdos, organiza situações para
a aprendizagem de conceitos, de métodos, de formas de agir e pen-
• ler, em situação de educação formal, textos que, no cotidia- sar, em suma, promove conhecimentos que possam ser mobiliza-
no, são prescritos para o ensino-aprendizagem de determinado as- dos em competências e habilidades que, por sua vez, instrumen-
sunto ou conceito (esferas escolar e de divulgação científica). talizam os alunos para enfrentar os problemas do mundo. Dessa
O debate e o diálogo, as perguntas que desmontam as frases forma, a expressão “educar para a vida” pode ganhar seu sentido
feitas, a pesquisa, entre outras, seriam formas de auxiliar o aluno a mais nobre e verdadeiro na prática do ensino. Se a educação básica
construir um ponto de vista articulado sobre o texto. é para a vida, a quantidade e a qualidade do conhecimento têm de
Nesse caso, o aluno deixaria de ser mero espectador ou re- ser determinadas por sua relevância para a vida de hoje e do futuro,
produtor de saberes discutíveis para se apropriar do discurso, ve- para além dos limites da escola. Portanto, mais que os conteúdos
rificando a coerência de sua posição em face do grupo com quem isolados, as competências são guias eficazes para educar para a
partilha interesses. Dessa forma, além de se apropriar do discurso vida. As competências são mais gerais e constantes; os conteúdos,
do outro, ele tem a possibilidade de divulgar suas ideias com ob- mais específicos e variáveis. É exatamente a possibilidade de va-
jetividade e fluência perante outras ideias. Isso pressupõe a forma- riar os conteúdos no tempo e no espaço que legitima a iniciativa
ção crítica, diante da própria produção, e a necessidade pessoal de dos diferentes sistemas públicos de ensino de selecionar, organizar
partilhar dos propósitos previstos em cada ato interlocutivo. e ordenar os saberes disciplinares que servirão como base para a
Pertencer a uma comunidade, hoje, é também estar em contato constituição de competências, cuja referência são as diretrizes e
com o mundo todo; a diversidade da ação humana está cada vez orientações nacionais, de um lado, e as demandas do mundo con-
mais próxima da unidade para os fins solidários. temporâneo, de outro.
A leitura e a escrita, por suas características formativas, infor- As novas tecnologias da informação promoveram uma mu-
mativas e comunicativas, apresentam-se como instrumentos valio- dança na produção, na organização, no acesso e na disseminação
sos para se alcançar esses fins. Na escola, o aluno deve compreen- do conhecimento. A escola, sobretudo hoje, já não é a única de-
der essa inter-relação como um meio de preservação da identidade tentora de informação e conhecimento, mas cabe a ela preparar
de grupos sociais menos institucionalizados e como possibilidade seu aluno para viver em uma sociedade em que a informação é
do direito às representações em face de outros grupos que têm a disseminada em grande velocidade.
seu favor as instituições que autorizam a autorizar. Vale insistir que essa preparação não exige maior quantida-
Hoje, o domínio do fazer comunicativo exige formas comple- de de ensino (ou de conteúdos), mas sim melhor qualidade de
xas de aprendizagem. Para fazer, deve-se conhecer o que e como. aprendizagem. É preciso deixar claro que isso não significa que os
Depois dessa análise reflexiva, tenta-se a elaboração, consciente conteúdos do ensino não sejam importantes; ao contrário, são tão
de que ela será considerada numa rede de expectativas contradi- importantes que a eles está dedicado este trabalho de elaboração
tórias. Entra-se no limite da transversalidade dos usos sociais da do Currículo do ensino oficial do Estado de São Paulo. São tão
leitura e da escrita; às escolhas individuais impõem-se os limites decisivos que é indispensável aprender a continuar aprendendo os
do social, envolvendo esquemas cognitivos complexos daqueles conteúdos escolares, mesmo fora da escola ou depois dela. Conti-
que podem escolher, porque tiveram a oportunidade de aprender nuar aprendendo é a mais vital das competências que a educação
a escolher. deste século precisa desenvolver.

Didatismo e Conhecimento 201


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Não só os conhecimentos com os quais a escola trabalha po- Articulação com o mundo do trabalho
dem mudar, como a vida de cada um apresentará novas ênfases e
necessidades, que precisarão ser continuamente supridas. A contextualização tem como norte os dispositivos da LD-
Preparar- se para acompanhar esse movimento torna-se o BEN, as normas das DCN, que são obrigatórias, e as recomen-
grande desafio das novas gerações. dações dos PCN do Ensino Médio, também pertinentes para a
Este Currículo adota como competências para aprender aque- educação básica como um todo, sobretudo para o segmento da 5a
las que foram formuladas no referencial teórico do Exame Nacio- série/6o ano em diante.
nal do Ensino Médio (Enem, 1998). Entendidas como desdobra-
mentos da competência leitora e escritora, para cada uma das cinco Para isso, é preciso recuperar alguns tópicos desse conjunto
competências do Enem transcritas a seguir apresenta-se a articula- legal e normativo.
ção com a competência de ler e escrever.
• “Dominar a norma-padrão da Língua Portuguesa e fazer Compreensão dos significados das ciências, das letras e
uso das linguagens matemática, artística e científica.” A consti- das artes
tuição da competência de leitura e escrita é também o domínio
das normas e dos códigos que tornam as linguagens instrumentos Compreender o significado é reconhecer, apreender e partilhar
eficientes de registro e expressão que podem ser compartilhados. a cultura que envolve as áreas de conhecimento, um conjunto de
Ler e escrever, hoje, são competências fundamentais para qualquer conceitos, posturas, condutas, valores, enfoques, estilos de traba-
disciplina ou profissão. Ler, entre outras coisas, é interpretar (atri- lho e modos de fazer que caracterizam as várias ciências – natu-
buir sentido ou significado), e escrever, igualmente, é assumir uma rais, exatas, sociais e humanas –, as artes – visuais, musicais, do
autoria individual ou coletiva (tornar-se responsável por uma ação movimento e outras –, a matemática, as línguas e outras áreas de
e suas consequências). expressão não verbal.
• “Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conheci- Ao dispor sobre esse objetivo de compreensão do sentido, a
mento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos LDBEN está indicando que não se trata de formar especialistas
histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifesta- nem profissionais. Especialistas e profissionais devem, além de
ções artísticas.” É o desenvolvimento da linguagem que possibilita compreender o sentido, dominar a estrutura conceitual e o estatu-
o raciocínio hipotético-dedutivo, indispensável à compreensão de to epistemológico de suas especialidades – não é esse o caso dos
fenômenos. Ler, nesse sentido, é um modo de compreender, isto é, alunos da educação básica. Como estão na escola, preparando-se
de assimilar experiências ou conteúdos disciplinares (e modos de para assumir plenamente sua cidadania, todos devem passar pela
sua produção); escrever é expressar sua construção ou reconstru- alfabetização científica, humanista, linguística, artística e técnica
ção com sentido, aluno por aluno. para que sua cidadania, além de ser um direito, tenha qualidade.
• “Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e infor- O aluno precisa constituir as competências para reconhecer, iden-
mações representados de diferentes formas, para tomar decisões e tificar e ter visão crítica daquilo que é próprio de uma área do co-
enfrentar situações-problema.” Ler implica também – além de em- nhecimento e, a partir desse conhecimento, avaliar a importância
pregar o raciocínio hipotético- dedutivo que possibilita a compre- dessa área ou disciplina em sua vida e em seu trabalho.
ensão de fenômenos – antecipar, de forma comprometida, a ação A lei determina um prazo generoso para que os alunos apren-
para intervir no fenômeno e resolver os problemas decorrentes dam o “significado das ciências, das artes e das letras”: começa na
dele. Escrever, por sua vez, significa dominar os inúmeros forma- Educação Infantil, percorre o Ensino Fundamental e prossegue no
tos que a solução do problema comporta. Ensino Médio.
• “Relacionar informações, representadas em diferentes for-
mas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para Durante mais de doze anos deverá haver tempo suficiente para
construir argumentação consistente.” A leitura, nesse caso, sinte- que os alunos se alfabetizem nas ciências, nas humanidades e nas
tiza a capacidade de escutar, supor, informar-se, relacionar, com- técnicas, entendendo seus enfoques e métodos mais importantes,
parar etc. A escrita permite dominar os códigos que expressam a seus pontos fortes e fracos, suas polêmicas, seus conceitos e, so-
defesa ou a reconstrução de argumentos – com liberdade, mas ob- bretudo, o modo como suas descobertas influenciam a vida das
servando regras e assumindo responsabilidades. pessoas e o desenvolvimento social e econômico.
• “Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para Para isso, é importante abordar, em cada ano ou nível da es-
elaborar propostas de intervenção solidária na realidade, respei- cola básica, a maneira como as diferentes áreas do currículo arti-
tando os valores humanos e considerando a diversidade sociocul- culam a realidade e seus objetos de conhecimento específicos, a
tural.” Ler, nesse caso, além de implicar o descrever e o compre- partir de questões como as exemplificadas a seguir.
ender, bem como o argumentar a respeito de um fenômeno, requer
a antecipação de uma intervenção sobre ele, com a tomada de • Que limitações e potenciais têm os enfoques próprios das
decisões a partir de uma escala de valores. Escrever é formular áreas?
um plano para essa intervenção, formular hipóteses sobre os meios
mais eficientes para garantir resultados a partir da escala de valo- • Que práticas humanas, das mais simples às mais complexas,
res adotada. É no contexto da realização de projetos escolares que têm fundamento ou inspiração nessa ciência, arte ou outra área de
os alunos aprendem a criticar, respeitar e propor projetos valiosos conhecimento?
para toda a sociedade; por intermédio deles, aprendem a ler e a
escrever as coisas do mundo atual, relacionando ações locais com • Quais as grandes polêmicas nas várias disciplinas ou áreas
a visão global, por meio de atuação solidária. de conhecimento?

Didatismo e Conhecimento 202


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
A relação entre teoria e prática em cada A educação tecnológica básica tem o sentido de preparar os
disciplina do Currículo alunos para viver e conviver em um mundo no qual a tecnologia
está cada vez mais presente, no qual a tarja magnética, o celular,
A relação entre teoria e prática não envolve necessariamente o código de barras e outros tantos recursos digitais se incorporam
algo observável ou manipulável, como um experimento de labo- velozmente à vida das pessoas, qualquer que seja sua condição
ratório ou a construção de um objeto. Tal relação pode acontecer socioeconômica.
ao se compreender como a teoria se aplica em contextos reais ou A segunda acepção, ou seja, a compreensão dos fundamentos
simulados. Uma possibilidade de transposição didática é reprodu- científicos e tecnológicos da produção, faz da tecnologia a chave
zir a indagação de origem, a questão ou necessidade que levou à para relacionar o currículo ao mundo da produção de bens e ser-
construção de um conhecimento – que já está dado e precisa ser viços, isto é, aos processos pelos quais a humanidade – e cada um
apropriado e aplicado, não obrigatoriamente ser “descoberto” de de nós – produz os bens e serviços de que necessita para viver. Foi
novo. para se manter fiel ao espírito da lei que as DCN introduziram a
A lei determina corretamente que a relação entre teoria e prá-
tecnologia em todas as áreas, tanto das DCN como dos PCN para
tica se dê em cada disciplina do currículo, uma vez que boa parte
o Ensino Médio, evitando a existência de disciplinas “tecnológi-
dos problemas de qualidade do ensino decorre da dificuldade em
cas” isoladas e separadas dos conhecimentos que lhes servem de
destacar a dimensão prática do conhecimento, tornando-o verba-
fundamento.
lista e abstrato.
Por exemplo, a disciplina História é, por vezes, considerada
teórica, mas nada é tão prático quanto entender a origem de uma A prioridade para o contexto do trabalho
cidade e as razões da configuração urbana. A Química é erronea-
mente considerada mais prática por envolver atividades de labo- Se examinarmos o conjunto das recomendações já analisadas,
ratório, manipulação de substâncias e outras idiossincrasias; no o trabalho enquanto produção de bens e serviços revela-se como
entanto, não existe nada mais teórico do que o estudo da tabela de a prática humana mais importante para conectar os conteúdos do
elementos químicos. currículo à realidade. Desde sua abertura, a LDBEN faz referência
A mesma Química que emprega o nome dos elementos pre- ao trabalho, enquanto prática social, como elemento que vincula a
cisa ser um instrumento cognitivo para nos ajudar a entender e, educação básica à realidade, desde a Educação Infantil até a con-
se preciso, decidir sobre o uso de alimentos com agrotóxicos ou clusão do Ensino Médio. O vínculo com o trabalho carrega vários
conservantes. Tais questões não se restringem a especialistas ou sentidos que precisam ser explicitados.
cientistas. Não é preciso ser químico para ter de escolher o que se Do ponto de vista filosófico, expressa o valor e a importân-
vai comer. cia do trabalho. À parte qualquer implicação pedagógica relativa
No entanto, para sermos cidadãos plenos, devemos adquirir a currículos e à definição de conteúdos, o valor do trabalho incide
discernimento e conhecimentos pertinentes para tomar decisões em toda a vida escolar: desde a valorização dos trabalhadores da
em diversos momentos, como em relação à escolha de alimentos, escola e da família até o respeito aos trabalhadores da comuni-
ao uso da eletricidade, ao consumo de água, à seleção dos progra- dade, o conhecimento do trabalho como produtor de riqueza e o
mas de TV ou à escolha do candidato a um cargo político. reconhecimento de que um dos fundamentos da desigualdade so-
cial é a remuneração injusta do trabalho. A valorização do trabalho
As relações entre educação e tecnologia é também uma crítica ao bacharelismo ilustrado, que por muito
tempo predominou nas escolas voltadas para as classes sociais pri-
A educação tecnológica básica é uma das diretrizes que a vilegiadas.
LDBEN estabelece para orientar o currículo do Ensino Médio. A A implicação pedagógica desse princípio atribui um lugar de
lei ainda associa a “compreensão dos fundamentos científicos dos
destaque para o trabalho humano, contextualizando os conteúdos
processos produtivos” ao relacionamento entre teoria e prática em
curriculares, sempre que for pertinente, com os tratamentos ade-
cada disciplina do currículo.
quados a cada caso.
E insiste quando insere o “domínio dos princípios científicos e
Em síntese, a prioridade do trabalho na educação básica as-
tecnológicos que presidem a produção moderna” entre as compe-
tências que o aluno deve demonstrar ao final da educação básica. A sume dois sentidos complementares: como valor, que imprime
tecnologia comparece, Apresentação Currículo do Estado de São importância ao trabalho e cultiva o respeito que lhe é devido na
Paulo portanto, no currículo da educação básica com duas acep- sociedade, e como tema que perpassa os conteúdos curriculares,
ções complementares: atribuindo sentido aos conhecimentos específicos das disciplinas.
a) como educação tecnológica básica;
b) como compreensão dos fundamentos científicos e tecnoló- O contexto do trabalho no Ensino Médio
gicos da produção. A tradição de ensino academicista, desvinculado de qualquer
A primeira acepção refere-se à alfabetização tecnológica, que preocupação com a prática, separou a formação geral e a formação
inclui aprender a lidar com computadores, mas vai além. Alfabe- profissional no Brasil. Durante décadas, elas foram modalidades
tizar-se tecnologicamente é entender as tecnologias da história excludentes de ensino.
humana como elementos da cultura, como parte das práticas so- A tentativa da LDB (Lei no 5692/71) de unir as duas modali-
ciais, culturais e produtivas, que, por sua vez, são inseparáveis dos dades, profissionalizando todo o Ensino Médio, apenas descarac-
conhecimentos científicos, artísticos e linguísticos que as funda- terizou a formação geral, sem ganhos significativos para a profis-
mentam. sional.

Didatismo e Conhecimento 203


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Hoje essa separação já não se dá nos mesmos moldes porque o A concepção do ensino na área de Ciências
mundo do trabalho passa por transformações profundas. À medida Humanas e suas Tecnologias
que a tecnologia vai substituindo os trabalhadores por autômatos
na linha de montagem e nas tarefas de rotina, as competências para A expressão “Ciências Humanas e suas Tecnologias” leva-nos
trabalhar em ilhas de produção, associar concepção e execução, re- a uma reflexão inicial sobre sua inserção no campo dos conhe-
solver problemas e tomar decisões tornam-se mais importantes do cimentos a ser oferecidos, atualmente, no conjunto da educação
que conhecimentos e habilidades voltados para postos específicos básica.
de trabalho. Embora toda ciência seja indiscutivelmente humana, por re-
A LDBEN adota uma perspectiva sintonizada com essas mu- sultar da acumulação cultural gerada por diferentes sociedades, em
danças na organização do trabalho ao recomendar a articulação diferentes tempos e espaços, o estudo das denominadas “humani-
entre educação básica e profissional, definindo, entre as finalidades dades” remonta às artes liberais antigas, notadamente ao estudo
do Ensino Médio, “a preparação básica para o trabalho e a cidada- das artes, línguas e literaturas clássicas. Na Idade Média, a tradi-
nia do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz ção cristã acentuou a distinção entre a literatura sacra e a profa-
de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação
na, evidenciando o caráter laico das humanidades. Em seguida, o
ou aperfeiçoamento posteriores” (grifo nosso). A lei não recupe-
Renascimento perpetuou essa condição, enfatizando a necessidade
ra a formação profissional para postos ou áreas específicas dentro
de um arcabouço de conhecimentos acerca dos estudos sobre o hu-
da carga horária geral do Ensino Médio, como pretendeu a legis-
lação anterior, mas também não chancela o caráter inteiramente mano e sua condição moral. Segundo Chervel e Compère (1999),
propedêutico que esse ensino tem assumido na educação básica até o século XIX, o estudo das Humanidades foi responsável pela
brasileira. formação do cristão dos colégios jesuítas, do cidadão das luzes e
As DCN para o Ensino Médio interpretaram essa perspectiva do republicano dos liceus modernos. Na primeira metade do sécu-
como uma preparação básica para o trabalho, abrindo a possibili- lo XX, as Ciências Humanas consolidaram-se como conhecimento
dade de que os sistemas de ensino ou as escolas tenham ênfases científico, a partir das contribuições da fenomenologia, do estrutu-
curriculares diferentes, com autonomia para eleger as disciplinas ralismo e do marxismo; porém, o ensino das Humanidades, como
específicas e suas respectivas cargas horárias dentro das três gran- corpo curricular tradicional e enciclopedista, dirigido à formação
des áreas instituídas pelas DCN, desde que garantida a presença das elites, somente apresentou mudanças significativas nas três
das três áreas. Essa abertura permite que escolas de Ensino Médio, últimas décadas do século passado, como resultado das grandes
a partir de um projeto pedagógico integrado com cursos de educa- transformações socioeconômicas, políticas e tecnológicas.
ção profissional de nível técnico, atribuam mais tempo e atenção a Na atualidade, a área de Ciências Humanas compreende co-
disciplinas ou áreas disciplinares cujo estudo possa ser aproveita- nhecimentos produzidos por vários campos de pesquisa – Histó-
do na educação profissional. ria, Geografia, Filosofia, Sociologia e Psicologia, além de outros,
Para as DCN, o que a lei denomina preparação básica para o como Política, Antropologia e Economia – que têm por objetivo o
trabalho pode ser a aprendizagem de conteúdos disciplinares cons- estudo dos seres humanos em suas múltiplas relações, fundamen-
tituintes de competências básicas que sejam também pré-requisitos tado por meio da articulação entre esses diversos saberes. Nesse
de formação profissional. Em inúmeros casos, essa opção pouparia sentido, a produção científica, acelerada pela sociedade tecnoló-
tempo de estudo para o jovem que precisa ingressar precocemente gica, tem colocado em debate uma gama variada de novas ques-
no mercado de trabalho. Para facilitar essa abertura, as Diretrizes tões de natureza ética, cultural e política, que necessitam emergir
Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Téc- como objeto de análise das disciplinas que compõem as Ciências
nico (DCNEP) flexibilizaram a duração dos cursos profissionais Humanas. Portanto, o caráter interdisciplinar desta área corrobora
desse nível, possibilitando o aproveitamento de estudos já reali- a necessidade de se utilizar o seu acervo de conhecimentos para
zados ou mesmo o exercício profissional prévio. Essas duas peças
auxiliar os jovens estudantes a compreender as questões que os
normativas criaram os mecanismos pedagógicos que podem via-
afetam, bem como a tomar decisões neste início de século. Dessa
bilizar o que foi estabelecido na LDBEN (Lei no 9394/96) e em
forma, ao integrar os campos disciplinares, o conjunto dessas ciên-
decretos posteriores. A preparação básica para o trabalho em deter-
minada área profissional, portanto, pode ser realizada em discipli- cias contribui para uma formação que permita ao jovem estudante
nas de formação básica do Ensino Médio. As escolas, nesse caso, compreender as relações entre sociedades diferentes, analisar os
atribuiriam carga horária suficiente e tratamento pedagógico ade- inúmeros problemas da sociedade em que vive e as diversas for-
quado às áreas ou disciplinas que melhor preparassem seus alunos mas de relação entre homem e natureza, refletindo sobre as inúme-
para o curso de educação profissional de nível técnico escolhido. ras ações e contradições da sociedade em relação a si própria e ao
Essa possibilidade fundamenta-se no pressuposto de que ênfases ambiente.
curriculares diferenciadas são equivalentes para a constituição das A convicção de que o ensino das Ciências Humanas é indis-
competências previstas na LDBEN, nas DCN para o Ensino Médio pensável para a boa formação de nossos estudantes foi a principal
e na matriz de competências do Enem. inspiração para a formatação dos currículos de História, Geografia,
Isso supõe um tipo de articulação entre currículos de forma- Filosofia e Sociologia aqui apresentados.
ção geral e currículos de formação profissional, em que os pri- No caso de História e Geografia, os Parâmetros Curriculares
meiros encarregam-se das competências básicas, fundamentando Nacionais (PCN) do Ensino Fundamental ofereceram referenciais
sua constituição em conteúdos, áreas ou disciplinas afinadas com importantes às discussões que ancoraram a elaboração deste do-
a formação profissional nesse ou em outro nível de escolarização. cumento.
Supõe também que o tratamento oferecido às disciplinas do cur- Segundo os PCN, à História compete “favorecer a formação
rículo do Ensino Médio não seja apenas propedêutico, tampouco do estudante como cidadão, para que assuma formas de partici-
voltado estritamente para o vestibular. pação social, política e atitudes críticas diante da realidade atual,

Didatismo e Conhecimento 204


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
aprendendo a discernir os limites e as possibilidades de sua atua- Currículo de História
ção, na permanência ou na transformação da realidade histórica
na qual se insere”. Quanto à Geografia, o documento aponta como Ensino Fundamental (Ciclo II) e Ensino Médio
objetivo “estudar as relações entre o processo histórico na forma-
ção das sociedades humanas e o funcionamento da natureza, por O ensino de História: breve histórico
meio da leitura do lugar, do território, a partir de sua paisagem”.
Nesse sentido, é por intermédio dessas duas disciplinas que o con- A História despontou no horizonte escolar brasileiro como
junto dos diversos saberes que conformam as Ciências Humanas conteúdo sugerido para desenvolver as práticas de leitura dos es-
participa, de maneira interdisciplinar, do processo de formação do tudantes em 1827, por determinação do Decreto das Escolas de
educando. Primeiras Letras, alcançando o status de disciplina autônoma em
No Ensino Médio, à História e à Geografia integram-se e arti- 1837, no Colégio Pedro II (Rio de Janeiro), a primeira escola se-
culam-se a Filosofia e a Sociologia. cundária do País. Desde então, sobre o seu ensino incidiram direta-
O retorno da Filosofia ao Ensino Médio deve ser entendido mente as influências do contexto político nacional, já que o poder
como o reconhecimento de sua importância para ampliar o signifi- da História de ajudar a formar consciências nunca passou desper-
cado e os objetivos sociais e culturais da educação. cebido às instituições de poder, assim como aos seus agentes de
Segundo essa perspectiva, a Filosofia permite orientar refle- produção e divulgação, tanto autores quanto professores.
xões para que os alunos compreendam melhor as relações históri- No Estado de São Paulo, desde a década de 1980, a Secreta-
co-sociais e, ao mesmo tempo, possam se inserir no universo sub- ria da Educação vem promovendo processos de discussão e ela-
jetivo das representações simbólicas, contribuindo também para boração do currículo de História dos atuais Ensino Fundamental
elevar a educação a um nível político-existencial que supere as e Ensino Médio, cujas sínteses foram publicadas nas décadas de
meras transmissão e aquisição de conteúdos, feitas de modo mecâ- 1980 e 1990.
nico e inconsciente. A bibliografia disponível sobre o assunto é vasta e bastante
Por sua vez, a Sociologia, para além de um enriquecimento conhecida dos profissionais da área, além de constituir um tema de
pesquisa cada vez mais valorizado em nossas universidades.
pedagógico, pode chegar à esfera da intervenção, na medida em
A facilidade de acesso a essa literatura e a natureza deste do-
que contribui, por exemplo, para politizar as relações escolares,
cumento desaconselham aqui sua análise detalhada, bastando a
transformando a própria instituição em objeto de estudo, o que
recomendação de que os professores mantenham o interesse pelos
inclui as relações sociais que a desenham e a formatação dos cur-
problemas que afetam o ensino dessa disciplina.
rículos que a devem animar. Isso não quer dizer que a formação
dos alunos deva visar à solução dos problemas da escola – que,
Fundamentos para o ensino de História
aliás, podem ser mais bem compreendidos se esse conhecimento
for dirigido para fora dela, pois é da sociedade que a escola rece- É impossível saber quem refletiu, pela primeira vez, sobre
be suas influências e características fundamentais. Assim, a partir a utilidade da História ou precisar a época – muito antiga, certa-
da escola, a disciplina pode participar da educação da sociedade mente – em que essa questão começou a surgir, antes de se fazer
como um todo, oferecendo informações para que os alunos de- presente no universo escolar. Mas, já que a pergunta continua a
senvolvam a capacidade de atuar conscientemente na sociedade, o ser feita, uma resposta poderia ser, simplesmente: a História é ne-
que pressupõe assumir posições políticas definidas e consistentes, cessária por ser uma das mais importantes expressões de humani-
independentemente das opções profissionais, geralmente definidas dade, como a Música, por exemplo. E, conquanto a História e a
ao término do Ensino Médio. Música pareçam conhecimentos sem utilidade, caso se considerem
os valores estabelecidos na sociedade contemporânea – que hie-
Para a consecução desses objetivos da área de Ciências Hu- rarquiza as coisas em função de seus usos práticos ou técnicos –,
manas, vale considerar uma limitação sempre apontada pelos pro- basta imaginar um mundo em que elas não existam para perceber
fessores: a resistência à leitura. Ora, considerando que os objetivos sua importância. Aprofundando um pouco a análise, o desafio para
fundamentais dos atuais programas curriculares consistem no de- quem trabalha com História consiste em extrair conhecimento de
senvolvimento, pelos estudantes, de competências e habilidades de vestígios e fragmentos de humanidade que sobreviveram à passa-
leitura, reflexão e escrita, contextualizadas social e culturalmente gem do tempo e a outras distâncias. Constrói-se, assim – a partir
no mundo do trabalho, a problematização dos temas tratados em do presente, como ensinou Benedetto Croce –, uma espécie ponte
sala deve ser amparada pela leitura de textos. intelectual que pode nos levar aos lugares de onde viemos para
saber o que e quem somos e, principalmente, o que poderíamos
Entretanto, se os professores se acomodarem ante a constata- ser, já que um dos principais compromissos da cultura histórica é
ção de que “os alunos não leem”, o problema não será tratado como com a constante reelaboração estética do mundo social, movendo-
uma questão sociológica. Quais fatores de ordem social e cultural -se sempre na contramão do esquecimento. No que se relaciona ao
estão na base do tradicional jejum que os educandos praticam em ensino de História, sem desconsiderar as décadas de embates de
relação à leitura? A resposta a este problema central pode começar caráter político-acadêmico e os milhares de páginas por eles inspi-
a ser dada se os próprios professores se perguntarem sobre seus rados e produzidos, é importante registrar algumas concordâncias
hábitos de leitura e quais procedimentos adotam para incentivar que assinalam as posições mais recorrentes aí encontradas. Pode-
os estudantes a ler. Por isso, é preciso compartilhar com os alunos mos começar pela necessidade de preservar e enfatizar nos progra-
a experiência, em termos de hábitos de leitura, que tiveram e têm, mas e currículos os conteúdos mais importantes. Entretanto, con-
pois só assim programas curriculares, como este, poderão se trans- siderando que cada um julga a seu modo o que é mais (ou menos)
formar em formas transformadoras de cultura. importante, é muito difícil conseguir alguma forma de consenso.

Didatismo e Conhecimento 205


PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Em tempos de triste memória, durante o regime ditatorial, o Para tanto, torna-se necessário desenvolver a capacidade de
consenso era obtido à força: isto pode; isto não pode – sempre usar criticamente fontes de informação variadas, o que possibili-
de forma imperativa. Entretanto, passados os tempos difíceis, as tará o questionamento responsável da realidade, levando à formu-
lições que poderiam ser tiradas de sua traumática superação su- lação de problemas e ao encaminhamento de soluções adequadas
cumbiram, muitas vezes, diante de posturas maniqueístas que e decididas coletivamente. Nota-se que, apesar de esse conjunto
transformaram o diferente em rival ou quase inimigo, o que vai de valores e princípios dizer respeito à formação básica em geral,
das torcidas uniformizadas das arenas esportivas aos ambientes é inegável que se abre um vasto e fértil terreno para que eles se-
educacionais. jam trabalhados na História. Isso porque, embora essa disciplina
Por exemplo, são raros os adeptos do marxismo que conside- não seja mais considerada a “Mestra da Vida”, como a concebiam
ram os temas valorizados pela Escola dos Annales ou pela História alguns letrados do Renascimento, ela continua sendo uma janela
Cultural dignos de ocupar qualquer espaço no ensino. Do mesmo indispensável que se oferece para observação, análise, avaliação e
modo, quantos seguidores de Fernand Braudel, Michel Foucault crítica das práticas sociais ao longo do tempo, sem excluir o pre-
ou Roger Chartier lamentariam se o materialismo histórico pudes- sente.
se ser sepultado, em Londres, com seu criador? E, conquanto essas Por exemplo, tendo em vista a importância de que o estudante
coisas possam ser mais perceptíveis nos ambientes universitários, desenvolva a consciência de que a convivência social deve ser ali-
seus desdobramentos atingem diretamente os programas de ensino cerçada na percepção e no respeito aos elementos identitários que
do nível básico, seja no que se refere aos conteúdos curriculares caracterizam e diferenciam os indivíduos e os grupos que com-
ou mecanismos de avaliação, seja no que diz respeito aos materiais põem a sociedade, recomenda-se a ênfase, nas aulas de História,
didáticos. das questões de alteridade. Situações históricas para isso não fal-
Um passo importante para tentar solucionar esse problema tam, envolvendo desde temas mais gerais – como as relações entre
aponta para a necessidade de superar a recorrente tendência de romanos e bárbaros germânicos, europeus e africanos, europeus e
conceber o currículo escolar como se fosse um curso de graduação povos americanos ou asiáticos, católicos e protestantes na Europa
na área. O que fazer para tentar alterar esse quadro? Em primeiro do Renascimento – até problemas mais específicos – como a per-
lugar, é importante considerar que é impossível trabalhar a Histó- seguição histórica aos judeus, desde a Antiguidade, a questão dos
escravos após a independência dos Estados Unidos da América ou
ria em sua imaginária totalidade, independentemente do nível de
durante a Guerra Civil, as relações de gênero, a xenofobia e o ra-
ensino – inclusive o universitário –, o que implica a necessidade
cismo contemporâneos, a sexualidade, o imperialismo etc.
de conceber a arquitetura curricular a partir de escolhas e do enca-
Ao tratarem, em sentido geral, do ensino das Ciências Hu-
deamento conceitual daquilo que se decidiu manter em sua forma-
manas, os PCN afirmam que ele deve favorecer a formação do
tação, como apresentado a seguir.
estudante como cidadão, para que assuma formas de participação
social, política e atitudes críticas diante da realidade atual, apren-
História para o Ensino Fundamental dendo a discernir os limites e as possibilidades de sua atuação, na
(Ciclo II) e o Ensino Médio permanência ou na transformação da realidade histórica na qual se
insere. Para tanto, é necessário traduzir os conhecimentos sobre a
Retomando os princípios dos Parâmetros Curriculares Na- pessoa, a sociedade, a economia, as práticas sociais e culturais em
cionais (PCN), fica claro que o primeiro objetivo geral do Ensino condutas de indagação, análise, problematização e protagonismo
Fundamental é levar os alunos à compreensão da “cidadania como diante de situações novas, problemas ou questões da vida pessoal,
participação social e política. social, política, econômica e cultural.
A partir dessa compreensão, espera-se despertar a consciên- Isso exige a compreensão clara da produção e o papel históri-
cia em relação ao exercício de direitos e deveres políticos, civis e co das instituições sociais, políticas e econômicas, associando-as
sociais”, adotando, “no dia a dia, atitudes de solidariedade, coope- às práticas dos diferentes grupos e atores sociais, aos princípios
ração e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para que regulam a convivência em sociedade, aos direitos e deveres
si o mesmo respeito”. da cidadania, à justiça e à distribuição dos benefícios econômicos.
Assim, os estudantes devem desenvolver um posicionamento Caberia, portanto, aos professores a responsabilidade de con-
crítico frente aos problemas que afetam a vida social, reconhecen- duzir os alunos por caminhos que levem ao exercício pleno da ci-
do o diálogo como ponto de partida fundamental para a tomada de dadania, acompanhando e mediando os momentos iniciais da for-
decisões coletivas. Por conta de nossa formação sócio-histórica, mação da consciência crítica de crianças e adolescentes, a partir de
dá-se especial ênfase à questão da identidade: no que se relaciona sua experiência cotidiana.
ao universo social mais amplo da nacionalidade, como no âmbito Sobre a organização dos conteúdos básicos No que diz respei-
individual, apontando-se como básico o conhecimento das carac- to diretamente ao currículo de História em vigor na rede pública
terísticas fundamentais do Brasil (sociais, materiais e culturais) e estadual de ensino de São Paulo, optou-se por estabelecer recortes
o reconhecimento e a valorização da pluralidade que constitui o temático-conceituais que abarquem temas e questões que caracte-
patrimônio sociocultural brasileiro, assim como o de outros povos rizam, com elevado grau de unanimidade, a própria identidade da
e nações. Cabe salientar que essa perspectiva considera o respeito disciplina e, portanto, podem ser considerados essenciais. Por isso,
às diferenças que caracterizam os indivíduos e os grupos integran- não foram promovidas transformações substanciais nos conteúdos
tes da sociedade. habituais, pois o que está em causa são as formas de seu tratamento
Além desse aspecto, o educando deverá ser capaz de refletir e a ênfase que se dá a cada um deles, o que se evidencia a partir da
sobre si mesmo, reconhecendo-se como integrante, dependente e valorização de determinados conceitos (trabalho, vida cotidiana,
agente transformador do ambiente, cuidando para preservá-lo e as- memória, cultura material, por exemplo), da integração – cada vez
sumindo posturas e atitudes de intervenção solidária na sociedade, mais buscada – com outras disciplinas, do uso de fontes diversas,
visando à conquista de níveis elevados de qualidade de vida para do reordenamento dos temas em séries ou segmentos específicos
si e para o conjunto dos cidadãos. etc.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Desse modo, continuam presentes a democracia ateniense, pela simplicidade, mas não a “simplicidade que mutila a verdade,
o sistema feudal, a expansão europeia, a formação dos Estados que denuncia o vácuo e que é um nome de empréstimo para a me-
nacionais, as revoluções democrático-burguesas, o imperialismo, diocridade, mas a simplicidade que é clareza, luz de inteligência, e
as guerras mundiais, assim como o processo de colonização da que torna a verdade acessível ao pensamento”.
América, os engenhos e a escravidão, a mineração, as revoltas re- Para tanto, ao invés da complexidade abstrata de ideias e sis-
genciais, o Império e sua crise, as fases da República, a formação temas teóricos, deve-se oferecer ao estudante “o fabuloso espetá-
do espaço urbano-industrial, além dos governos de Vargas, do po- culo da História, misturando o ontem com o hoje. Em tudo isso,
pulismo, dos governos militares; enfim, toda uma matéria-prima nenhuma preocupação com a lógica. Antes de tudo, o prazer da
bastante familiar ao professor de História. descoberta”.
É claro que o tratamento desses temas acompanha as tendên- Convém lembrar que a formação dos cidadãos ultrapassa as
cias mais atuais do pensamento historiográfico, já que ninguém aulas de História e a própria escola, em seu conjunto, já que as
ignora que o Tiradentes de Francisco Adolfo de Varnhagen é muito bases dessa formação são constituídas nos ambientes sociais que
diferente do mártir que a República elegeu. Entretanto, visando a os alunos frequentam, principalmente os familiares. Por isso, é ne-
preservar e valorizar a autonomia docente, os materiais de apoio ao cessário compartilhar essa realidade com a formação específica da
currículo (Cadernos do Professor e do Aluno) buscam o diálogo, disciplina, adequando seus conteúdos aos propósitos que devem
jamais a imposição, pois foram elaborados sempre sob a forma animar o trabalho de todo educador, e não apenas do de História.
de sugestões, acompanhadas de indicações de livros e materiais Desse modo, será possível auxiliar o educando a ter um enten-
diversos. Dessa forma, pretende-se colaborar com o processo de dimento mais adequado de sua realidade social a partir da trans-
formação continuada docente, facilitando a prática da problemati- formação de suas experiências vividas em experiências compre-
zação dos temas, conceitos e abordagens historiográficas e evitan- endidas, e estender essa compreensão a outros contextos diferen-
do posturas dogmáticas ou preconceituosas. ciados, espacial e temporalmente, ou seja, ao campo específico da
Isso explica, convém assinalar, por que esses materiais não História.
seguem uma única e determinada corrente historiográfica, o que se Outro aspecto importante a se considerar no ensino de Histó-
fez com o propósito de respeitar a diversidade de objetivos e com- ria consiste em reforçar no aluno a percepção de que o processo
promissos que caracteriza os professores e pode ser conferido nos histórico não decorre apenas da ação dos heróis, aqueles grandes
materiais didáticos derivados do currículo, sempre preocupados personagens que figuram no panteão da pátria e que têm, entre
em alargar os horizontes das ações de ensino e aprendizagem. Para outras coisas, a capacidade de produzir um sentimento de infe-
justificar a preocupação constante com a ampliação das possibili- rioridade nas pessoas comuns, ou seja, aquelas que encontramos
dades de trabalho com a História, é suficiente lembrar as valiosas em praticamente todos os espaços sociais. Desse modo, os alunos
considerações que Eric Hobsbawm fez em Sobre história (2008, poderão reconhecer a importância da participação política para o
p. 85): exercício pleno da cidadania.
“O historiador das ideias pode (por sua conta e risco) não dar a Mais ainda, tentando não exceder os limites que devem ter
mínima para a economia, e o historiador econômico pode não dar a os documentos desta natureza, é importante lembrar que a “difícil
mínima para Shakespeare, mas o historiador social que ignorar um arte de ensinar História” exige a superação da transmissão mecâ-
dos dois não irá muito longe”. nica de conhecimentos memorizados de modo acrítico, como se
fez durante muito tempo. Esta forma de ensino, enchendo a lousa
Sobre a metodologia de ensino-aprendizagem (e a memória) de inócuas relações de capitanias e donatários, ge-
dos conteúdos básicos rações dinásticas ou sucessão de governantes, sempre alimentou o
preconceito de quem quer pôr em dúvida a utilidade da disciplina.
Os professores sabem que ensinar História, a começar pela Este antitradicionalismo, por sua vez, gera muita confusão quando
necessidade de torná-la atraente para os estudantes, não é missão se entende que lousas vazias de conteúdo devem suceder os esque-
das mais fáceis, pois requer energia e – por que não dizer? – amor. mas de saber inútil, fazendo com que os estudantes saiam da escola
Energia, aqui, não se confunde com autoritarismo, mas, sim, dis- sem as habilidades básicas para o exercício da cidadania.
posição para resistir às práticas monótonas e repetitivas que subs- Assim, não se pode esquecer que a narrativa histórica depende
tituíram as antigas ladainhas entoadas pelos sacerdotes, do sempre dos acontecimentos e dos personagens para compor sua arquitetu-
lembrado ensino tradicional, por um igualmente prejudicial alhe- ra textual e fazer sentido, o que não quer dizer que acontecimentos
amento assentado na crença de que é possível levar a aprender ou personagens, em si, sejam capazes de produzir qualquer forma
sem o compromisso maior de ensinar e orientar. Quanto ao amor, de entendimento. Sobre isso, um exemplo pode ser esclarecedor: o
em vez de um sentimento estranho às teorias pedagógicas, trata-se ano de 1822. Independentemente de qualquer formação específica,
de uma postura indispensável à manutenção da dignidade do pro- devem ser raros os brasileiros que não associem a data à Indepen-
fessor, já que para motivar os alunos é preciso gostar de ensinar, dência do Brasil.
independentemente da disciplina considerada. E as coisas ficam aí estagnadas, sobrevoando o mundo dos vi-
Exemplar, nesse sentido, é uma antiga e ainda hoje valiosa li- ventes, se o mesmo acontecimento não for considerado no interior
ção de Fernand Braudel, um dos principais historiadores do século do universo mais amplo do processo de desintegração do Sistema
XX, diretamente envolvido com a criação do curso de graduação Colonial e da formação das nações latino-americanas. Feito isso,
em História da Universidade de São Paulo, na década de 1930. o “grito do Ipiranga” não será um ruído solitário e ganhará senti-
Para ele, que considerava o ensino como prioridade e até justifi- do mais amplo e esclarecedor, ultrapassando a duvidosa imagem
cativa para os estudos históricos, quando se deseja conseguir bons celebrativa do fato até chegar à compreensão mais clara da trama
resultados na “difícil arte de ensinar História”, deve-se começar histórica.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
Todas essas questões animadas pela História-problema trans- Quem trabalha com História sabe – ou deveria saber – que
formam-na em um saber que pode ser considerado “confuso” e, seus julgamentos não produzem efeitos sobre os tempos passados.
mesmo tomando em conta as sucessivas “crises” que só fazem Ainda assim, é claro que é importante denunciar a violência da
renová-la, a importância e a força da disciplina parecem crescer conquista da América, da escravização de negros e índios, das fo-
sempre, como percebeu um dos mais importantes historiadores do gueiras da Inquisição, das guerras e bombardeios, dos campos de
século XX, Jacques Le Goff (2003): extermínio nazistas. Mesmo que o estudo desses temas não devol-
“A ciência histórica conheceu, desde há meio século, um va a vida e a dignidade usurpadas de milhões de pessoas ao longo
avanço prodigioso: renovação, enriquecimento das técnicas e dos dos séculos, é possível extrair aprendizados do trabalho com esses
métodos, dos horizontes e dos domínios. Mas, mantendo com as conteúdos, já que eles podem iluminar questões presentes na so-
sociedades globais relações mais intensas que nunca, a história ciedade contemporânea.
profissional e científica vive uma crise profunda. O saber da histó- No entanto, é recomendável cautela na hora de produzir con-
ria é tanto mais confuso quanto mais o seu poder aumenta”. clusões e generalizações, pois elas podem levar o aluno a entender
A confusão a que se refere Jacques Le Goff aumenta em fun- que todos os portugueses e espanhóis foram favoráveis às práticas
ção da compreensão superficial de que os conteúdos devem ser de extermínio e genocídio, assim como todos os brancos admitiram
trabalhados a partir de uma transversalidade nem sempre bem a escravização dos negros, ou que a vontade de queimar mulheres
compreendida, graças à qual o campo semântico da História seria como supostas bruxas ou desintegrar pessoas em bombardeios atô-
enriquecido e fecundado pela contribuição de outras disciplinas, micos constituíam as bases da personalidade das autoridades da
o que – no caso da escola – seria conseguido a partir do envolvi- Igreja ou dos norte-americanos, em seu conjunto.
mento dos professores de Filosofia, Geografia, Língua Portugue-
sa, Sociologia, Arte etc. Entretanto, a superação do alinhamento Além disso, cabe ao professor a delicada tarefa de esclare-
artificial de vários docentes depende da transformação da própria cer os temas trabalhados em sala de aula, inclusive considerando
cultura escolar, sempre considerando as condições intelectuais e que mais do que ensinar História, sua função é orientar o aluno a
materiais do trabalho dos professores, e não passará do plano das aprender História – o que é muito diferente. Assim, partindo do
intenções se não existir o compromisso com a formação continu- momento presente, e valendo-se do valioso patrimônio de conhe-
ada e o entendimento dos fundamentos básicos das áreas do saber cimentos acumulados ao longo do tempo, a sala de aula, sob co-
que se pretende integrar. mando do professor, pode se transformar em espaço privilegiado
Sem isso, as ações multidisciplinares levarão à diluição da para se conceber uma nova estética de mundo. Note-se que, ao se
História nos espaços de outras disciplinas, resultando em um so- responsabilizar o professor pelo comando da sala de aula, não se
matório de conceitos e conteúdos emaranhados aleatoriamente, está propondo nenhuma forma de controle autoritário, que deve ser
incapazes de fazer sentido para os estudantes. Estão aí, também, banido do ambiente escolar. Cabe enfatizar a importância de que o
muitas das causas da fragmentação que atinge a História na atuali- professor não abra mão da responsabilidade de assegurar a apren-
dade, pois, como afirma Burke (1992), “[...] embora a expansão do dizagem dos alunos, pois, se o professor se ausentar nessa relação
universo do historiador e o diálogo com outras disciplinas, desde a básica, os alunos sairão da escola sem alcançar os objetivos a que
geografia até a teoria literária, certamente devam ser bem-vindos, esta se propõe. É nessa hora que a importância dos compromissos
esses desenvolvimentos têm seu preço. A disciplina da História do docente com sua formação aparecem em toda sua intensidade.
está atualmente mais fragmentada que nunca. Os historiadores
econômicos são capazes de falar a linguagem dos economistas, Desses compromissos depende seu desempenho e a aprendi-
os historiadores intelectuais, a linguagem dos filósofos, e os his- zagem dos alunos, resultante das relações com os programas ofi-
toriadores sociais, os dialetos dos sociólogos e dos antropólogos ciais, com o livro e outros recursos didático-pedagógicos.
sociais, mas estes grupos de historiadores estão descobrindo ser
cada vez mais difícil falar um com o outro. Teremos de suportar Foi, entre outros, com base nesses aspectos sumariamente
esta situação ou há uma esperança de síntese?”. apresentados que se elaborou o currículo de História, do qual de-
Embora essas questões sejam mais presentes no universo aca- rivaram os materiais de ensino destinados a docentes e alunos da
dêmico, é importante considerá-las em suas relações com o ensino rede pública estadual de educação de São Paulo, produzidos a par-
básico, pois ele é fortemente influenciado por elas. tir de alguns compromissos e objetivos básicos.
Ora, para um dos fundadores da escola dos Annales, Marc
Bloch, a boa História deveria servir aos sábios e às crianças. As- A disciplina de História, então, deve funcionar como instru-
sim, independentemente de seus objetos e níveis de profundidade mento capaz de levar o aluno a perceber-se como parte de um
e abrangência, desde que abordada adequadamente, a narrativa amplo meio social. Assim, mesmo partindo das relações mais
histórica deve envolver – por fascínio ou compromisso intelectual imediatas, por meio do estudo da História, o aluno poderá com-
– os variados públicos a que se destina. No caso do ensino, importa preender as determinações sociais, temporais e espaciais presentes
considerar os dois aspectos: cativar os alunos e manter vivos os na sociedade. Por isso, recomenda-se que o desenvolvimento de
compromissos de ordem cultural, social e política que devem ca- capacidades de leitura, reflexão e escrita – objetivo central deste
racterizar a produção de conhecimentos na área da História. Esses programa curricular – parta de situações cotidianas, para avaliar as
aspectos impedem qualquer chance de neutralidade, pois ensinar influências históricas (portanto, sociais e culturais) que condicio-
História significa avaliar criticamente os valores que desenham nam as formas de convivência coletiva. A História funcionaria, as-
a sociedade, sem transformar as aulas em espaço para exercícios sim, como uma espécie de espelho do tempo, mostrando imagens
dogmáticos de militância partidária ou de raciocínio limitado à que, embora intangíveis, vão sendo desenhadas pela curiosidade
oposição estreita e maniqueísta entre bons e maus. de cada observador em busca de conhecimento.

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Sobre os subsídios para implantação do currículo proposto

É importante registrar, ainda, que a utilização dos Cadernos do Professor e do Aluno não pressupõe o abandono do livro didático. Ao
contrário, propõe-se uma ampliação das possibilidades de seu uso, tanto em sala quanto em atividades extraclasse. Aliás, no que se refere às
atividades sugeridas aos alunos, foram enfatizadas ações de estudo e pesquisa desenvolvidas para além dos muros da escola, pelo entendi-
mento de que as tradicionais “lições de casa”, acrescentadas dos atuais recursos oferecidos pelas tecnologias de comunicação e informação,
ainda mantêm suas qualidades potenciais.
Todas essas preocupações visam a valorizar a História no universo escolar, tentando fazer com que os estudantes sejam envolvidos em
práticas de ensino motivadoras – base indispensável para qualquer desenvolvimento intelectual –, o que incide diretamente no ensino de
História.

Sobre a organização das grades curriculares


(série/ano por bimestre):
conteúdos associados a habilidades

A organização dos conteúdos escolares está sinteticamente apontada em tópicos disciplinares e objetivos formativos e será em seguida
detalhada em termos de habilidades a ser desenvolvidas em associação com cada tema, por série/ano e bimestre letivo, ou seja, em termos
do que se espera que os estudantes sejam capazes de fazer após cada um desses períodos.

Quadro de conteúdos e habilidades de História

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QUESTÕES (B) Os níveis de conhecimentos exigidos para se processar
determinada informação recebida, de forma a identificar o coefi-
1. (Professor de Educação Básica II - História - FCC 2010) ciente intelectual do aluno.
De acordo com o Relatório para a UNESCO da Comissão Interna- (C) As condições de aprendizado que uma criança deve apre-
cional sobre Educação para o Século XXI, o trabalho do professor sentar ao entrar na escola, sem a qual não há possibilidade de
NÃO consiste simplesmente em transmitir informações ou conhe- aprendizado real.
cimentos, mas em: (D) O grupo de habilidades mentais que todo aluno precisa
adquirir para conseguir ter compreensão completa de um determi-
(A) Desenvolver primeiramente as habilidades e competên- nado conhecimento.
cias dos alunos que serão necessárias para o recebimento das in- (E) A união de vários quesitos favoráveis à aprendizagem ver-
formações e conhecimentos, conforme a complexidade e o nexo de dadeira, como as inteligências: cognitiva, emocional, linguística,
cada tema apresentado. espacial e cinestésica.
(B) Ensiná-los corretamente de acordo com cada etapa de de-
4. (Professor de Educação Básica II - História - FCC 2010)
senvolvimento dos alunos, pois, dependendo da idade da criança
O Sistema de Ensino do Estado de São Paulo prevê que o regime
ou do adolescente, não haverá possibilidade de apreensão de um
de progressão continuada, no ensino fundamental.
conhecimento, por exemplo, que exija abstração.
I. Pode ser organizado em um ou mais ciclos.
(C) Buscar as fontes do conhecimento científico, para que o II. Deve, no caso de opção por mais de um ciclo, adotar pro-
aluno não obtenha de forma superficial uma determinada informa- vidências para que a transição de um ciclo para outro se faça de
ção, mas tenha oportunidade de uma aprendizagem competente e forma a garantir a progressão continuada.
consistente. III. Deve, no caso de opção pelo sistema de séries, providen-
(D) Aplicar técnicas diversificadas e diferenciadas, adequadas ciar para que o aluno não possa ser detido de uma série para outra,
às faixas de idade dos alunos, para que estes fiquem sempre esti- incumbindo a unidade escolar de providenciar processo de recupe-
mulados a assimilar os conteúdos necessários ao desenvolvimento ração paralela a atividades de aceleração.
de cada etapa do ensino. IV. Deve garantir a avaliação do processo de ensino-aprendi-
(E) Apresentá-los sob a forma de problemas a resolver, situan- zagem, o qual deve ser objeto de recuperação contínua e paralela,
do-os num contexto e colocando-os em perspectiva de modo que a partir de resultados periódicos parciais e, se necessário, no final
o aluno possa estabelecer a ligação entre a sua solução e outras de cada período letivo.
interrogações mais abrangentes. Está correto o que se afirma em

2. (Professor de Educação Básica II - História - FCC 2010) (A) I, II e III, apenas.


Levantamento de dados estatístico-educacionais de âmbito nacio- (B) I, II, III e IV.
nal feito junto a todos os estabelecimentos de ensino, das redes (C) I, II e IV, apenas.
pública e privada; representa o principal instrumento de coleta de (D) II, III e IV, apenas.
informações da educação básica, que abrange as suas diferentes (E) III e IV, apenas.
etapas e modalidades: ensino regular (educação infantil e ensinos
fundamental e médio), educação especial e educação de jovens e 5. (Professor de Educação Básica II - História - FCC 2010)
adultos (EJA); apresenta dados sobre estabelecimentos, matrícu- De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensi-
las, funções docentes, movimento e rendimento escolar, gerando no Fundamental, o reconhecimento de identidades pessoais é uma
um conjunto de informações para a formulação, implementação e diretriz para a Educação Nacional, no sentido do reconhecimento
das:
monitoramento das políticas educacionais e avaliação do desem-
(A) Características individuais de cada criança ou adolescente
penho dos sistemas de ensino. Trata-se do:
na definição metodológica do ensino, para que se possa realmente
alcançar uma escola inclusiva de qualidade, comprometida com
(A) Plano Plurianual do Ministério da Educação. todos os alunos.
(B) Plano de Desenvolvimento da Educação. (B) Necessidades individuais das crianças e dos adolescentes,
(C) Censo Escolar. tanto no campo afetivo, quanto em relação às deficiências cogniti-
(D) EDUDATA do INEP/MEC. vas e linguísticas específicas, próprias de cada grupo socioeconô-
(E) Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (PNAD) mico e cultural.
do IBGE. (C) Diferentes culturas existentes entre as crianças e adoles-
centes, jovens e adultos da escola pública, para que se possa de-
3. (Professor de Educação Básica II - História - FCC 2010) senvolver um trabalho educativo que minimize os déficits culturais
Um mesmo problema pode ser resolvido de diversos modos. Há existentes.
igualmente muitos caminhos para se validar ou justificar uma res- (D) Diversidades e peculiaridades básicas relativas ao gênero
posta ou argumento. masculino e feminino, às variedades étnicas, de faixa etária e re-
Para a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo enten- gionais e às variações socioeconômicas, culturais e de condições
de-se por competências cognitivas psicológicas e físicas presentes nos alunos de nosso país.
(E) Variedades de comportamentos que existem entre os alu-
(A) O conjunto de ações e operações mentais que o sujeito nos, como demonstrado pela psicologia do desenvolvimento, exi-
utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos, situações, gindo que o professor aprenda a prever e controlar o comporta-
fenômenos e pessoas que deseja conhecer. mento de qualquer educando.

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PUBLICAÇÕES INSTITUCIONAIS (História)
6. (Professor de Educação Básica II - História - FCC 2010)
O Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Pau- (A) O SARESP gera a nota média da escola, que determina o
lo (IDESP), indicador que avalia a qualidade da escola, tem como valor do IDESP correspondente.
pressuposto que uma boa escola é aquela em que: (B) O SARESP oferece dados de desempenho escolar com
base no Currículo Oficial para compor o IDESP.
(A) A maior parte dos alunos apreende as competências e ha- (C) O IDESP é um indicador que sintetiza informações de de-
bilidades requeridas para a sua série, num período de tempo ideal sempenho e fluxo escolar.
– o ano letivo. (D) O IDESP e o SARESP são avaliações externas que permi-
(B) O ensino oportuniza uma formação integral a todos, de tem comparação do rendimento escolar ao longo do tempo.
forma a tornar os alunos críticos e conscientes de sua responsabi- (E) O IDESP da escola determina sua performance no SA-
lidade de aprender. RESP.
(C) Os alunos podem discutir sua cultura sem medo de serem
excluídos, por meio de um ensino uniformizado e padronizado. Gabarito
(D) Todos os professores estão comprometidos com um ensi-
no que considera as necessidades diferenciadas de conhecimento 1- E / 2- C / 3- A / 4- C / 5- D / 6- A / 7- E / 8- C / 9- B
de cada grupo socioeconômico e cultural.
(E) O currículo e o ensino são organizados de acordo com
as necessidades culturais e discutidos com toda a comunidade, de ANOTAÇÕES
forma sistemática.

7. (Professor de Educação Básica II - História - FCC 2010)


Sobre o princípio da Contextualização, proposto nas Diretrizes
Curriculares para o Ensino Médio, NÃO é correto afirmar que:
—————————————————————————
(A) Contextualizar o conteúdo significa assumir que todo co- —————————————————————————
nhecimento envolve uma relação entre sujeito e objeto.
(B) O tratamento contextualizado do conhecimento é o recur- —————————————————————————
so que a escola tem para retirar o aluno da condição de espectador
passivo. —————————————————————————
(C) O tratamento contextualizado do conhecimento mobiliza —————————————————————————
competências cognitivas já adquiridas.
(D) O tratamento contextualizado do conhecimento favorece a —————————————————————————
interação entre as disciplinas e áreas.
(E) Contextualizar os conteúdos escolares exige valorizar o —————————————————————————
espontaneísmo e a cotidianeidade e dar peso relativo às abstrações.
—————————————————————————
8. (Professor de Educação Básica II - História - 2010) O —————————————————————————
documento de apresentação da Proposta Curricular do Estado de
São Paulo para o Ensino Fundamental - Ciclo II e Ensino Médio —————————————————————————
discute um conjunto de desafios que compõem o cenário atual da
—————————————————————————
educação escolar. São princípios centrais dessa proposta:
I. O currículo como espaço de cultura. —————————————————————————
II. As competências como eixo de aprendizagem.
III. O estabelecimento de requisitos mínimos de aprendiza- —————————————————————————
gem.
IV. A prioridade da competência de leitura e de escrita.
—————————————————————————
V. A contextualização no mundo do trabalho. —————————————————————————
Está correto o afirmado em —————————————————————————

(A) I, II, III, IV e V. —————————————————————————


(B) I, II, III e IV, apenas. —————————————————————————
(C) I, II, IV e V, apenas.
(D) II, III e IV, apenas. —————————————————————————
(E) III, IV e V, apenas.
—————————————————————————
—————————————————————————
9. (Professor de Educação Básica II - História - FCC 2010)
A relação entre o IDESP e o SARESP pode ser assim definida: —————————————————————————

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