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DA BOSSA NOVA À

TROPICÁLIA:
contenção e excesso na
música popular*

Santuza Cambraia Naves

Em 1968, Augusto de Campos reuniu no livro 50, como a poesia concreta e a arquitetura de Oscar
Balanço da bossa: antologia crítica da moderna Niemeyer. Assim, segundo eles, ao introduzir um
música popular brasileira uma série de artigos registro musical intimista semelhante ao do cool
seus e de músicos como Júlio Medaglia e Gilberto jazz, a bossa nova harmonizar-se-ia com o ideário
Mendes, publicados anteriormente em suplemen- de racionalidade, despojamento e funcionalismo
tos literários de jornais paulistas, que analisam, que teria caracterizado várias manifestações cultu-
entre outras experiências musicais recentes, como rais do período. Vale acrescentar que se valoriza,
a da tropicália, o estilo desenvolvido pelos bossa- nesta tendência, o procedimento bossa-novista de
novistas. Estes autores, a propósito de defender ruptura com tradições anteriores da música popu-
uma postura internacionalista e moderna na músi- lar no Brasil. Assim, tal como os poetas concretos,
ca popular, em contraposição aos ideólogos do que teriam rompido com as tradições retórico-
“nacional-popular”, ressaltam a atitude inovadora discursiva e subjetivista na literatura, os músicos da
dos criadores da bossa nova, particularmente a bossa nova, notadamente João Gilberto, pautariam
figura de João Gilberto. Eles são unânimes em o seu trabalho pela rejeição dos sambas-canções e
atribuir a João Gilberto uma postura que valoriza a dos boleros melodramáticos do período anterior, e
contenção, contrária ao emocionalismo excessivo da maneira operística de interpretar estas canções,
da música popular das décadas de 40 e 50, e em ao estilo de Dalva de Oliveira e outros cantores do
estabelecer uma correspondência entre este proce- período.
dimento e outras manifestações estéticas dos anos Este tipo de interpretação, desenvolvida pelos
poetas e musicólogos paulistas, tornou-se, de certa
forma, canônica, passando a constituir uma referên-
* Para a realização da pesquisa que deu origem a este
texto contei com a colaboração das pesquisadoras do cia imprescindível para os estudiosos da música
Centro de Estudos Sociais Aplicados (CESAP), da Uni- popular no Brasil. Mas observa-se que, a despeito
versidade Candido Mendes, Juliana de Mello Jabor, da profundidade e pertinência destas análises, elas
Maria Micaela Bissio Neiva Moreira e Thais Medeiros.
Fui também auxiliada por Heloísa Tapajós e Kate Lyra. acabam absolutizando o período inicial da bossa
Agradeço a todas. nova, em que, de fato, sob a batuta de João

RBCS Vol. 15 no 43 junho/2000


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Gilberto, parte-se para um tipo de experimentação mitem a influência do jazz mais requintado que se
musical bastante afinada com as propostas da poe- desenvolve nos Estados Unidos a partir dos anos 40,
sia concreta. Assim, por exemplo, vemos que as do be-bop ao cool jazz, sobre os músicos que se
músicas inaugurais da nova tendência musical apa- propõem a recriar o samba nativo. Mas alguns, mais
recem como canções-manifesto. “Desafinado” do que outros, reconhecem o impacto do bolero,
(1958) e “Samba de uma nota só” (1960), compostas principalmente o desenvolvido no México, com
por Tom Jobim, em parceria com Newton Mendon- Lucho Gatica. Roberto Menescal, por exemplo, ao
ça, introduzem um tipo de procedimento em que falar sobre as novidades estrangeiras que o marca-
letra e música, ao mesmo tempo em que se comen- ram profundamente na fase de sua formação musi-
tam mutuamente, fazem alusões às novidades musi- cal, refere-se ao LP Inolvidable, de Lucho Gatica,
cais. Os elementos de transgressão da bossa nova que recorria apenas a dois instrumentos — violão e
encontram-se presentes sobretudo em “Desafina- baixo — para o arranjo, rompendo com a tradição
do”: no momento exato em que se pronuncia a do bolero de utilizar grandes orquestrações. Segun-
sílaba tônica da palavra “desafino” ocorre, no plano do Menescal, este procedimento foi importante
da música, uma nota inesperada, que representa para que ele e outros músicos de sua geração
uma transgressão aos padrões harmônicos da músi- formassem o hábito de “ouvir o violão”, que assim,
ca popular convencional. Outro procedimento que dialogando apenas com o baixo, aparece destaca-
caracteriza as duas composições, colocando-as em do, singularizado.1
correspondência com o tipo de sensibilidade da Carlos Lyra também se refere às músicas
poesia concreta, é a maneira cool de se lidar com a mexicanas, como os boleros de Agustin Lara, que
temática amorosa. Em “Desafinado”, por exemplo, seriam referências importantes para ele e os seus
a pretexto de uma arenga sentimental, discute-se, companheiros de geração. E vê de maneira cari-
na verdade, uma questão estética. nhosa o repertório anterior de sambas-canções,
Tudo leva a crer, portanto, que a “bossa nova” que denomina de “boleros brasileiros”, embora
que interessa aos concretos é a que se singulariza distinga, dentro desta tradição, os mais “sofistica-
pelo intimismo, pela concisão, pela racionalidade e dos” e os melodramáticos. Assim, segundo ele,
pela objetividade, o que converge perfeitamente Antônio Maria incorreria nos dois procedimentos,
com a proposta de João Gilberto. E é justamente criando canções pesadas, como “Ninguém me
neste ponto que eu gostaria de acrescentar alguns ama”, e composições refinadas como “Ser ou não
dados à discussão, chamando a atenção para outros ser” e “Um cantinho e você”. Lyra admite que
aspectos do que se convencionou chamar de “estilo “desperta” para a música ouvindo os sambas-
bossa-nova”. Poderia lembrar, num primeiro mo- canções interpretados por Dick Farney, e que
mento, que nem todos os integrantes da bossa nova começa a sua carreira musical compondo neste
se sentiam atraídos, como João Gilberto, por um gênero, como é o caso de “Quando chegares” e
procedimento de ruptura mais radical com o passa- mesmo de “Minha namorada”, “meio samba-
do da música popular, embora todos reconheces- canção”, uma espécie de música de transição para
sem uma liderança na figura deste músico, princi- a bossa nova. Esse estilo musical teria então,
palmente com relação à famosa “batida” que ele segundo ele, uma gama variada de influências:
inventa no violão e à sua maneira de cantar à meia além do bolero mexicano, do impressionismo de
voz, com um timing perfeito e nenhuma ênfase Ravel e Debussy, do jazz desenvolvido por Ger-
emotiva. Dito de outro modo, a bossa nova permite shwin, Cole Porter, Richard Rogers, Larry Hart e
diversas leituras, principalmente por parte dos mú- vários outros compositores. Às influências estran-
sicos que participaram desta tendência. Se há uma geiras somam-se as misturas brasileiras de samba,
unanimidade entre eles quanto à percepção de João xaxado, valsa, além de outros ritmos. Enfim, para
Gilberto como um líder, cada um, porém, acena Lyra, se João Gilberto é mais identificado como
para procedimentos diferentes com relação às tradi- cantador de samba, existem outros ritmos dentro
ções incorporadas. Assim, por exemplo, todos ad- da bossa nova, da valsa ao baião.2
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José Miguel Wisnik, em seu livro o Coro dos registro do engenheiro, retirado de uma mitologia
contrários (1983), identificou dois procedimentos que pressupõe um marco zero, a partir do qual tudo
modernistas fundamentais: de um lado, um rigor se cria por vontade — e projeto — de um demiurgo.
construtivo, como o de Webern, que recorre ao João Gilberto, à maneira de um demiurgo, teria
mito do engenheiro, e de outro, o recurso à bricola- dado forma à bossa nova, mesmo porque este tipo
gem, tão caro a Stravinski, Villa-Lobos e outros de criação musical não resultou propriamente de
compositores da época. Analisando O pensamento um projeto, embora tenha sido compartilhada por
selvagem, de Lévi-Strauss (1989), Jacques Derrida vários músicos. Em outras palavras, nos vários
(1971) define o “engenheiro” como “um sujeito que relatos sobre a bossa nova, João Gilberto sempre
fosse a origem absoluta do seu próprio discurso e o aparece como o “autor” de um estilo: a “batida” que
construísse ‘com todas as peças’”. Em trabalho cria ao violão e a sua maneira única de interpretar.
anterior (Naves, 1998), argumentei que o mito do Se tudo indica, por exemplo, que ele captou o gosto
engenheiro não teve lugar na experiência moder- emergente pelo jazz camerístico, não há dúvida,
nista brasileira porque tanto os músicos quanto os por outro lado, de que a nova forma musical da
poetas do movimento tenderam a assumir uma bossa nova em muito se deveu à sua obsessão por
postura antropofágica — semelhante à preconizada um ritmo e uma harmonia inteiramente novos,
por Oswald de Andrade em manifesto (1972) —, compatíveis com a sua interpretação dos tempos
ajustando-se mais ao perfil do bricoleur delineado modernos (Castro, 1991). Assim, João Gilberto in-
por Lévi-Strauss: um tipo de produtor que se define corporou repertórios tradicionais, recriando, rítmi-
pela maneira incorporativa de realizar suas opera- ca e harmonicamente, sambas de diversos autores
ções, utilizando sempre os instrumentos já disponí- por meio da fusão com o jazz. Por outro lado, ele
veis, ao contrário do engenheiro, que subordina rompeu com os gêneros associados ao excesso em
cada tarefa específica “à obtenção de matérias- várias de suas manifestações na música popular,
primas e de utensílios concebidos e procurados na como o “exibicionismo operístico” (expressão cu-
medida do seu projeto” (Lévi-Strauss, 1989, p. 33). nhada por Augusto de Campos, 1968) e os arranjos
As imagens fortes trazidas à baila por Lévi-Strauss, que recorriam a orquestrações grandiosas.
como a do caleidoscópio ou da colagem — sucessi- Retomo, no entanto, o argumento de que o
vas configurações de imagens obtidas mediante a estilo bossa-nova não se exaure com a estética de
combinação de um certo número de textos visuais João Gilberto, mostrando-se, pelo menos do ponto
—, ajudaram-me a pensar na possibilidade moder- de vista de músicos ligados a esta tendência,
nista de se atingir a modernidade sem recorrer à bastante diversificado. Recorro, a título de exem-
tábula rasa, procurando-se, ao contrário, criar o plo, à figura de Tom Jobim. Se ninguém tem
“tipo novo” através de arranjos que atualizam reper- dúvidas quanto à influência de João Gilberto sobre
tórios variados, porém finitos, de nossa tradição Tom, pelo menos no momento inicial da bossa
cultural (Lévi-Strauss, 1989, p. 52). O que mais me nova, não se pode esquecer, no entanto, que este
interessava nesta discussão era justamente ressaltar compositor havia começado a sua carreira musical
o fato de que os músicos e os poetas modernistas, num momento anterior às inovações do final dos
no Brasil, partilhavam uma mesma visão do país, anos 50. O próprio Tom declarou em entrevista,
qual seja, a de um universo inesgotável de informa- em 1968, que a bossa nova foi apenas uma fase na
ções culturais, tanto arcaicas quanto contemporâ- sua carreira; 80% de suas composições — entre
neas, tanto regionais quanto universais. A esta elas “canções de câmara, fundo de filmes, música
imagem de pujança seguia-se, naturalmente, a idéia sinfônica, muito samba-canção, muito choro” —
de se tentar incorporar a riqueza cultural ao traba- não se enquadram no gênero.3
lho artístico. De fato, Tom inicia a sua formação musical,
Associei o procedimento excludente de João por volta dos 13 anos, dentro dos parâmetros da
Gilberto, ao inaugurar um estilo conciso e racional música erudita. Seu primeiro professor foi Hans
que rompia com formas musicais anteriores, ao Joachim Koellreuter, o músico alemão refugiado do
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nazismo que introduziu o dodecafonismo no Brasil. Conservatório de Música e na Sociedade de Cultura


Segundo depoimento de Koellreuter, ele teria pas- Artística do Rio de Janeiro, vem morar no Brasil no
sado a Tom noções de harmonia e contraponto início dos anos 30 (Cabral, 1997).
clássicos e “rudimentos de execução pianística”, Na condição de professor de piano de Tom
pois o que interessava ao professor era dar ao aluno Jobim, Terán ressalta a importância de Radamés
uma instrução “globalizante” (Koellreuter apud Ca- Gnattali na sua própria formação musical. Tom
bral, 1997, p. 45). Mais tarde, Tom estudou piano vem a ter contato mais estreito com Radamés em
clássico com Lúcia Branco, Tomás Gutierrez de 1954, por ocasião da gravação da Sinfonia do Rio
Terán (amigo pessoal de Villa-Lobos) e Paulo Silva. de Janeiro (Tom Jobim-Billy Blanco), da qual este
Desde cedo, mostrou-se desestimulado com o ensi- fora arranjador, e no ano seguinte, na Continental,
no “escolástico” da Escola Nacional de Música, o onde Tom se afirmaria como seu discípulo na arte
que o fazia recorrer a professores particulares. de orquestrar composições populares (Cabral,
Ainda jovem, começou a se interessar por orques- 1997). Porém, mais do que uma mera questão
tração, passando a freqüentar o Teatro Municipal e técnica de instrumentação, Tom compartilha com
a comprar partituras e gravações de músicos que o o mestre duas atitudes: uma, a de transitar — como
entusiasmavam no momento, como Stravinsky, músico, compositor e arranjador — com desenvol-
Schoenberg e Prokofiev. Por razões de sobrevivên- tura pelos domínios do erudito e do popular; outra,
cia, trabalhou, no início da década de 50, como a de se permitir experimentar os mais diversos
pianista nos “inferninhos” de Copacabana, até con- estilos, operando tanto no registro da simplicidade
seguir um emprego na Continental, onde, escreven- quanto na estética do excesso. Esta maneira de
do partituras para compositores e fazendo arranjos atuar, característica de Radamés, permitiu que ele
para orquestra, entrou em contato com outros fizesse uma verdadeira revolução nos arranjos de
arranjadores, como Radamés Gnattali, Gaya, Léo música popular a partir do início dos anos 30. Até
Peracchi e Lyrio Panicalli.4 a intervenção do maestro, as execuções de música
Chama particularmente a atenção, na trajetó- popular limitavam-se ao acompanhamento dos
ria artística de Tom Jobim, a sua tendência a dar “regionais”, conjuntos musicais pobremente cons-
continuidade, dentro do campo popular, a uma tituídos, tanto em termos numéricos quanto criati-
tradição musical “erudita” que, se não foi inaugura- vos. A partir das experimentações instrumentais de
da, pelo menos foi muito marcada pelo modernis- Radamés — ao lado de Pixinguinha, na Victor, a
mo nacionalista de Villa-Lobos. Trata-se de uma partir de 1932 —, com sua formação adquirida nos
tradição que recorre ao excesso — tanto sinfônico estudos de instrumentação erudita, como pianista
quanto coral — como forma de representar um e violista, os arranjos de música popular recebem
Brasil exuberante, pujante em seus elementos físi- elementos da orquestra sinfônica e do jazz. Rada-
cos e culturais (Naves, 1998). Quanto a esta inter- més deu continuidade a este tipo de experimenta-
seção entre o erudito e o popular em prol de uma ção instrumental por muitos anos, na Columbia, e
estética grandiosa, alguns músicos aparecem como posteriormente na Rádio Nacional, nas décadas de
mediadores entre Villa-Lobos e Tom Jobim, como 40 e 50 (Didier, 1996).
é o caso de Tomás Terán e Radamés Gnattali. A análise da trajetória musical de Radamés
Terán, pianista espanhol, viajou para o Brasil aos tem grande importância para o trabalho que desen-
27 anos em função do seu fascínio pela obra de volvo na medida em que permite identificar, no
Villa-Lobos, particularmente pela peça A prole do compositor, um gesto modernista. Tal como os
bebê, que ouviu em Buenos Aires executada por modernistas musicais da geração que o precedeu,
Arthur Rubinstein. A partir deste primeiro impacto, Radamés preocupa-se em criar, por meio da músi-
especializa-se em Villa-Lobos, a quem conheceu ca, um “idioma nacional”. Suas composições, tais
em 1924, em Paris. De volta à Europa, executa as como as de Villa-Lobos e outros compositores,
obras do compositor brasileiro na capital francesa alimentam-se do repertório popular. Os músicos
e, convidado por Villa-Lobos para lecionar no da geração modernista propriamente dita, entre-
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tanto, mostram-se bastante presos ao registro eru- ano pela Continental, com arranjos de Radamés e
dito e tendem a incorporar preferencialmente as sob a regência de Tom. A peça consiste de vários
peças folclóricas, rejeitando, por questões progra- movimentos, cada qual tematizando aspectos da
máticas, a música popular produzida pela mídia — natureza e da cultura do Rio de Janeiro. E os
o “popularesco”, segundo Mário de Andrade (Ma- intérpretes foram os mais variados, como Dick
riz, 1983). Talvez até pelas dificuldades de sobrevi- Farney, Gilberto Milfont, Elisete Cardoso e Emili-
ver como músico erudito no Rio de Janeiro, Rada- nha Borba, entre outros. Concebida à maneira de
més aproxima-se cada vez mais da música popular, um musical, a Sinfonia do Rio de Janeiro é
trabalhando como pianista em cinemas e teatros e, comparável, segundo Jaime Negreiros, crítico mu-
posteriormente, como vimos, como violista e ar- sical de expressão na época, a Um americano em
ranjador. Nestes ambientes noturnos, faz amizade Paris, de Gershwin (Cabral, 1997). Radamés ressal-
com músicos populares, como Luciano Perrone, ta os aspectos da composição que celebram o Rio
Pixinguinha e outros chorões, além dos “pianeiros” de Janeiro — “a montanha, o sol, o mar”, “o morro”
da Casa Vieira Machado, na rua do Ouvidor, “de e o “asfalto, o samba e outros aspectos da cidade”
quem transcreve músicas para a partitura e com — misturando instrumentos sinfônicos com os
quem aprende um jeito brasileiro de tocar piano utilizados na execução de música popular: “cordas,
que, na época, existia somente no Rio de Janeiro” metais, madeiras, bells, acordeom, quarteto e pia-
(Didier, 1996, p. 16). Assim, além de se tornar no, baixo, violão elétrico e bateria com escovinha”
“criador” de música popular, compondo choros e (Didier, 1996, pp. 27-28).
outros gêneros, Radamés interfere na execução A partir de 1955, com a ida de Tom Jobim para
deste tipo de música, alterando-lhe o caráter com a Continental, onde passa a fazer arranjos orques-
arranjos requintados. Carlos Didier lembra que ele trais, a semelhança de sua trajetória com a de
atua também num procedimento inverso, que é o Radamés torna-se ainda mais marcante. Não é por
de levar para a música erudita os elementos das acaso, portanto, que neste mesmo ano Tom é
rodas de choro, dos pianeiros e das jazz bands convidado por Radamés a participar do programa
norte-americanas. E, segundo Didier, é na Rádio Quando os maestros se encontram, na Rádio Nacio-
Nacional que Radamés amadurece como orques- nal, onde rege a peça sinfônica Lenda, que compôs
trador e compositor, exercitando livremente a sua em memória de seu pai, Jorge Jobim (Cabral, 1997).
criatividade com novas experimentações musicais. Mas não só de peças sinfônicas vivia o
Trabalhando com músicos da estatura de Léo jovem compositor. A primeira composição de Tom
Peracchi, Romeu Ghipsman e Lyrio Panicalli, ali ele a ser gravada, em 1953, por Maurici Moura (pela
“compõe e arranja para trios, quartetos, quintetos, Sinter, em 78 rotações), é o samba-canção “Incer-
explora novos timbres” (Didier, 1996, pp. 23-24). teza”, que faz em parceria com Newton Mendonça.
Radamés atua também, principalmente a par- Sérgio Cabral (1997) comenta que esta música se
tir dos anos 40, como uma espécie de mediador identifica muito com o clima dos anos 50, princi-
entre estilos musicais mais sofisticados e a música palmente a letra, que narra o sofrimento de um
brasileira, estilizando o samba através do recurso à protagonista de um caso de amor. Além de sambas-
orquestra de cordas e a um tipo de harmonia canções soturnos, Tom, muito versátil neste mo-
proveniente da música erudita e do jazz. Consta mento inicial de sua carreira, parte também para
que esta mistura produzida pelo compositor-arran- outras experiências no gênero, como “Teresa da
jador teria sido um parâmetro para os músicos que, praia” (em parceria com Billy Blanco), que compõe
no final dos anos 50, partiram para a experiência em 1954 a pedido de Dick Farney, para cantar em
bossa-novista (Didier, 1996). Data, por exemplo, dupla com Lúcio Alves. Nesta canção, letra e
de 1954, como vimos, uma maior aproximação de música se harmonizam para expressar uma situa-
Radamés com Tom Jobim, a propósito da gravação ção conflituosa e ao mesmo tempo carinhosa entre
da Sinfonia do Rio de Janeiro, obra composta por dois amigos em idílio com a mesma musa da praia
Tom e Billy Blanco que seria lançada no mesmo do Leblon. Ao invés do clima noir de “Incerteza”,
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em que se vive “uma noite sem Lua”, “Teresa da de 1956, quando foi chamado para musicar a peça
praia” é solar, concebida com muito espírito. As- Orfeu do Carnaval, já havia marcado decisivamente
sim, os dois amigos desistem da disputa pela musa a sua carreira. Em seguida, Vinícius lhe solicitou as
e resolvem “Teresa na praia deixar/ aos beijos do músicas para o filme Orfeu negro, dirigido por
Sol/ e abraços do mar”. A música, um samba- Marcel Camus, que acabou premiado em vários
canção concebido à maneira de um sambablue países e divulgou a obra de Tom no exterior. Foi a
(Cabral, 1997), contribui bastante para a leveza e o partir daí que o compositor se tornou conhecido
humor da composição. pelo grande público (Castro, 1997).
Tom Jobim demonstra, portanto, desde o Mas o fato é que, passado o período inicial da
início de sua carreira, que não tem um perfil bossa nova, Tom retoma a sua vocação para o
musical definido por um único tipo de sensibilida- excesso e volta a recorrer à costumeira visão
de. Se exibe, sem dúvida, uma certa vocação para modernista do Brasil como o locus por excelência
a produção de composições exuberantes, ao estilo da vitalidade, um país fértil em elementos naturais
sinfônico, também se mostra apto a criar peças e culturais. Aliás, a própria estética bossa-novista
mais intimistas, como é o caso de “Teresa da praia”. passa a conviver com a recuperação do excesso
Mas tudo indica que a sua tendência ao excesso se como representação de pujança cultural, como o
manifesta desde cedo, principalmente se conside- demonstra o seu desenvolvimento nos anos 60. A
ramos os relatos sobre os seus exercícios musicais, princípio, com a estética do CPC da UNE, em que
no final dos anos 40, com obras de Gershwin, se busca juntar o ritmo da bossa nova com outras
Ravel, Debussy e Villa-Lobos, entre outros, e sobre informações musicais, notadamente as nordesti-
o seu “fascínio” com a descoberta dos composito- nas, ou mesmo com as configurações musicais na
res russos Rachmaninoff, Prokofiev e Stravinsky linha afro, desenvolvidas por músicos como Jorge
(Cabral, 1997). Ben e Baden Powell. E logo em seguida, com a
Voltando ao ponto inicial da discussão, Tom geração que surge em meados dos anos 60, repre-
Jobim, de fato, envolve-se com o estilo bossa- sentada tanto por cancionistas quanto por músicos
novista, chegando a compor, com Newton Men- instrumentais, como Chico Buarque de Hollanda,
donça, “Desafinado” e “Samba de uma nota só”, Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
canções lapidares da tendência e profundamente Chico Buarque é um bom exemplo de músico
afinadas com o espírito intimista que João Gilberto da geração pós-bossa-nova que não só incorpora a
pretende conferir à nova experiência musical. Mas “batida” inaugurada por João Gilberto como adicio-
o encontro entre Tom Jobim e João Gilberto não na a este ritmo outros elementos do repertório
teria sido isento de tensões, como relata Ruy Castro musical brasileiro (Moreira, 1999). Chico admite
ao descrever a produção do LP Canção do amor explicitamente que, por volta dos 15 anos, ao ouvir
demais, de 1958, considerado um marco da bossa pela primeira vez João Gilberto interpretando “Che-
nova. As diferenças entre os artistas envolvidos no ga de saudade”, converteu-se à bossa nova: “Foi aí
projeto — João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de que eu peguei em um violão. Comecei a fazer
Moraes, Elisete Cardoso, além dos músicos instru- música mesmo a partir desse momento”. Mas o
mentistas — quanto à concepção e realização do compositor afirma que, a despeito da atitude de
disco se fizeram sentir desde o início. Se João ruptura que é inerente à bossa nova, ela não o teria
Gilberto buscava novas linguagens, os demais inte- impossibilitado de buscar novas fontes para suas
grantes do grupo orientavam-se por um estilo mais composições, principalmente aquelas situadas no
convencional (pelo menos na visão de João Gilber- período de criação do chamado “samba tradicio-
to). João Gilberto não gostava da “gravidade” com nal”. Segundo Chico, a “ruptura total” durou apenas
que Elisete interpretava as músicas, assim como não três ou quatro anos; depois disso, alguns dos mais
apreciava a letra de Vinícius para “Serenata do importantes nomes da bossa nova retornam a Noel
adeus”, que considerava de mau gosto. E, na Rosa, Cartola e Nelson Cavaquinho, e passam a
verdade, o encontro de Tom com Vinícius, por volta compor canções que já não podem se enquadrar na
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estética bossa-novista.5 O próprio Chico, no início Radamés, ele aprecia um tipo de estética modernis-
de sua carreira, reedita Noel através de “Rita”, ta mais exuberante, menos contida, como a de
samba que recria a atmosfera de dor-de-cotovelo e Ravel, Stravinsky, Bartók, Copland, Prokofiev — e,
humor que caracteriza a sensibilidade do composi- naturalmente, Villa-Lobos. Chega a questionar a
tor de Vila Isabel, citado explicitamente na letra. ênfase excessiva que se dá ao jazz como elemento
Se ampliamos, entretanto, o tema discutido formador da bossa nova, pois este estilo musical
para além do processo de composição, podemos sofreria também a influência de compositores mais
analisar outros aspectos da bossa nova que influ- antigos, principalmente Villa-Lobos. Assim, segun-
enciaram Chico Buarque, como, por exemplo, a do Edu, as canções líricas da bossa nova — de Tom
maneira intimista de lidar com o palco, ao estilo de Jobim, Carlinhos Lyra e Baden Powell, entre outros
João Gilberto, recorrendo apenas ao “banquinho e — teriam “a alma do Villa”. Como Chico Buarque,
violão”. Chico admite que este tipo de estética se ele admite o impacto da “batida” do violão de João
adequava à sua visão de artista, já que ele nunca se Gilberto sobre a sua música, embora veja o seu pró-
viu como um “artista de palco”, “com fantasias, prio trabalho como uma ramificação da bossa nova,
máscaras, figurinos e movimentação de palco”, já que, como outros músicos de sua geração, tende
mas apenas como um “autor de músicas no palco”. muito mais a misturar peças diferentes do repertório
Assim, ao entrar no palco com a roupa que usa musical do que a lidar com um estilo claramente
normalmente no cotidiano e ao cantar como se definido. É neste sentido que ele reconhece a
estivesse em casa, Chico registra a sua recusa de ascendência de Villa-Lobos sobre a sua formação
criar uma persona. Esta atitude, segundo ele, seria musical, cuja flexibilidade lhe serviria de parâmetro
uma “reação de oposição absoluta à estética ante- para misturar a informação que tinha de música
rior, que era a estética do auditório de rádio, dos nordestina — já que, por questões familiares, passa-
brilhos, do Cauby Peixoto, das grandes estrelas”. A va as férias em Recife até os 18 anos, ouvindo de
bossa nova, ao contrariar este tipo de extroversão, tudo, “coisas populares, frevos e o que vinha da
criou um cenário diferente, com “artistas que não rua” — com toda a escola harmônica que tinha
eram artistas e cantores que não eram cantores”.6 aprendido com a bossa nova. E é também a partir
Edu Lobo assume uma atitude semelhante ao deste tipo de constatação que Edu Lobo, tal como
recusar não apenas a máscara, como também o Chico Buarque, ressalta a singularidade da geração
palco, o que tem a ver com a sua identidade a que pertence, formada imediatamente após à
artística, construída basicamente a partir do traba- eclosão da bossa nova. Ao contrário de músicos
lho de compositor. As outras atividades que desen- mais ortodoxos ligados à nova tendência, que
volve como instrumentista, orquestrador e intérpre- criavam, segundo Edu, uma fórmula para a bossa
te seriam “ramificações” do seu trabalho. O palco, nova, alguns compositores começaram a abrir mais
para ele, é uma exigência da profissão, ou, dito de o estilo, entre eles Sérgio Ricardo, Carlos Lyra e
outro modo, tem a ver com as condições do Baden Powell. Esses músicos teriam começado “a
compositor no Brasil, em que se é praticamente perceber que o Brasil não é só o Rio de Janeiro”.8
obrigado a fazer show.7 Em termos propriamente Sem dúvida, o cenário musical assolado pela
musicais, Edu Lobo talvez seja o melhor exemplo chamada “geração pós-bossa” não se esgota com as
de um compositor da geração 60 que dá continuida- contribuições de Chico Buarque e Edu Lobo. Os
de à tradição inaugurada por Radamés na música dois compositores, entretanto, podem ser tomados
popular. Além de compositor, Edu atua também como figuras emblemáticas desta geração, não só
como orquestrador, atividade para a qual se prepa- pela sua importância como formadores do gosto
rou durante dois anos nos Estados Unidos. E embo- musical do período, como também por terem algo
ra se considere um músico popular, tem uma em comum; não por acaso, fizeram parcerias em
formação técnica raramente vista neste domínio, várias composições. Apesar de Chico se destacar
responsável, em grande parte, pela sofisticação de mais como cancionista, mostrando-se um hábil
suas harmonias e dos seus arranjos. Tal como artesão ao trabalhar com música e letra, e Edu se
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especializar mais na composição de música — na vimos, optam pelo recurso à recriação, comum a
maioria das vezes recorrendo a um parceiro letrista uma certa tradição modernista que, afinada com o
—, a sensibilidade de ambos parece convergir para neo-romantismo alemão, mostra-se muita viva no
uma certa leitura da tradição. Tanto um quanto o pensamento modernista de Mário de Andrade. No
outro tendem, por exemplo, a valorizar e recuperar Ensaio sobre a música brasileira, de 1928 (1962),
textos musicais legados pelo passado ou restritos a Mário só vê a possibilidade de uma configuração
espaços geográficos específicos. Mais do que pro- cultural vital através da música — isto é, o desenvol-
priamente recorrer à citação, eles estruturam o seu vimento da “música artística” — a partir do aprovei-
trabalho a partir das informações colhidas após um tamento do “populário” — ou seja, as músicas
longo período de escuta e análise. Dito de outro folclórica e popular arraigadas na tradição nacional.
modo, é como se o procedimento de ambos se Mas a plena realização da “música artística” requer,
ancorasse na idéia de “recriação”, tão familiar a por outro lado, uma série de elaborações formais, o
certas tendências modernistas inclinadas a “filosofar que significa uma transfiguração, para o registro
em alemão”. Edward Sapir, por exemplo, ligado ao erudito, das peças musicais fornecidas pela tradi-
grupo de antropólogos da Escola de Cultura e ção; em outras palavras, trata-se de recriação.
Personalidade norte-americana, lida de uma manei- Os músicos tropicalistas, na medida em que
ra muito particular com a questão da herança também operam com a idéia de inclusão, exibem
cultural. Fortemente fundamentado em Nietzsche, de igual modo uma sensibilidade modernista. Só
questiona, a propósito de se criar uma identidade que, desta vez, a convergência se dá com Oswald
nacional “saudável”, a aceitação passiva do legado de Andrade, com a sua predisposição para recolher
do passado. Assim, segundo Sapir, o processo — ou “devorar” — peças as mais díspares do
criativo, por um lado, não significa a “manufatura da repertório cultural, com o propósito de dispô-las
forma ex nihilo”, isto é, a partir do zero, mesmo em consonância com uma síntese coerente, porém
porque o indivíduo se tornaria “impotente” se não não totalizante, à maneira do processo de colagem.
lançasse mão da herança cultural. Mas, por outro Os baianos assumem também, à maneira de Oswald,
lado, a forma — legada pela tradição — deve ser a atitude antropofágica, devorando elementos ar-
submetida à “vontade” de alguém, pois “o passivo caicos, vinculados à tradição, e modernos, associa-
perpetuador de uma tradição cultural dá-nos sim- dos às inovações técnicas. Do mesmo modo, as
plesmente uma maneira, a casca de uma vida que importações culturais são incorporadas sem qual-
passou” (Sapir, 1949, p. 299). Imbuídos de um quer temor de descaracterização de uma suposta
espírito semelhante, os dois compositores citados pureza nacional, já que a cultura brasileira é vista
— Chico Buarque e Edu Lobo — valorizam a como rica e pujante o suficiente para deglutir tudo
tradição musical brasileira mas operam de modo a que possa vir de fora: “Nunca fomos catequizados.
criar algo singular a partir do leque de opções Fizemos foi carnaval.” (Andrade, 1972, p. 16).
disponíveis. Chico, por exemplo, ao retomar o No movimento tropicalista, a tradição musi-
samba urbano dos anos 30, tende a privilegiar as cal é valorizada, embora se faça um recorte dife-
composições de Noel Rosa que tematizam a figura rente dos elementos culturais a serem utilizados. A
do músico-malandro como marginal e transgressor, concepção tropicalista de “riqueza cultural” abran-
o que se coaduna com sua postura contestadora, ge desde o rock alienígena aos ritmos regionais já
característica da segunda metade dos anos 60. consagrados, e mostra-se flexível o suficiente para
Após esta passagem rápida por algumas das incluir o kitsch como um item a mais do tesouro
tendências predominantes na música brasileira nos nacional. Amplia-se, portanto, a concepção de
anos 60, fica claro que todas elas — com exceção da “riqueza cultural”: além da criação mais “sofistica-
bossa nova — apresentam uma característica co- da”, mesmo que produzida no registro popular, o
mum: um procedimento que se pauta pela inclu- esteticamente “pobre” também passa a ser precio-
são, muito próximo ao do bricoleur analisado por so. A sofisticação aparece no processo de elabora-
Lévi-Strauss. Chico Buarque e Edu Lobo, como ção das músicas, nos arranjos meticulosos, nas
DA BOSSA NOVA À TROPICÁLIA 43

performances, nas capas dos LPs — elementos que recorre ao excesso, retomando inclusive uma tradi-
traem a influência das tendências progressistas do ção que, como vimos, foi renegada pelos músicos
rock da época. Ao incorporar o impacto dos bossa-novistas: os arranjos grandiosos de violinos
Beatles à sua estética, os tropicalistas estão atuali- e de metais inaugurados por Radamés e Pixingui-
zando o gesto da geração anterior, que dez anos nha, o estilo operístico de Francisco Alves, o
antes utilizou, na elaboração da bossa nova, os ufanismo de “Aquarela do Brasil” e as dores-de-
procedimentos do jazz mais avançado de seu cotovelo derramadas que datam dos anos 20 e
tempo. E os tropicalistas assumem radicalmente o atravessam os anos 40 e 50, no samba-canção
palco, encarnando publicamente, através de diver- (Castro, 1991). Da mesma forma, os tropicalistas
sas máscaras e coreografias, o sincretismo que ressuscitam Vicente Celestino, considerado à épo-
realizam entre os vários gêneros musicais. Da ca o modelo do mau gosto, e Chacrinha, associado
mesma forma em que há uma relação entre a sua ao grotesco, que se torna uma figura emblemática
estética e a imagem artística, música e letra, desde do movimento, saudado inclusive por Gilberto Gil
a concepção, mantêm entre si uma correspondên- na sua famosa canção de despedida, “Aquele
cia isomórfica. Os arranjos interferem com o mes- abraço”, de 1969. Duas tradições antagônicas fo-
mo peso. Guitarras elétricas, incorporadas do rock, ram assim incorporadas num mesmo movimento: a
convivem com a sonoridade kitsch dos violinos e do despojamento, vinculada à bossa nova, e a do
com o berimbau da música regionalista. A guitarra histrionismo do repertório popular tradicional. Os
elétrica, retirada do universo do rock e incorpora- baianos inauguraram, portanto, com a tropicália,
da à cena tropicalista, aparece como símbolo de uma nova relação com a diferença, assumindo
movimento cultural. Este instrumento ajuda a com- uma postura afirmativa e comprometendo-se de
por o espetáculo de roupas coloridas, cabelos modo indiferenciado com todos os aspectos captá-
encaracolados e apresentação cênica movimenta- veis do universo brasileiro, como o brega e o cool,
da e parodística (Ribeiro, 1988). o nacional e o estrangeiro, o erudito e o popular,
O rock, porém, é apenas um de toda uma o rural e o urbano, e assim por diante.
variedade de elementos díspares. Os tropicalistas A atitude tropicalista, portanto, rompe com o
lançam mão dos mais diversos textos e — o que é conceito de forma fechada — não existe uma
mais importante — os trabalham através de um fórmula de canção tropicalista, tal como uma fór-
exercício de metalinguagem, por meio da paródia mula de canção bossa-nova ou de samba-enredo
ou do pastiche. Mas, mesmo valendo-se de proce- —, incluindo indiscriminadamente os elementos
dimentos parodísticos e, portanto, críticos, não se destas diversas formas fechadas por vezes numa
trata de uma crítica corrosiva; a tradição costuma mesma canção. Em particular, o movimento faz
ser tratada com carinho: com “amor e humor”, questão de desconstruir a oposição mais fetichiza-
como diria Oswald de Andrade. da de todas as existentes no período: a que se faz
É carinhosa, por exemplo — e nada parodís- entre o “nacional” e “autêntico”, de um lado, e o
tica —, a atitude adotada com relação à bossa nova, “alienígena” e “descaracterizador”, de outro. Daí as
principalmente ao seu mentor, João Gilberto. Em palavras compostas, fundindo um termo da cultura
“Saudosismo”, canção-manifesto de 1969, Caetano popular brasileira com um outro que representa a
proclama a retomada da linha dissonante inaugura- cultura de massa de origem norte-americana, como
da por João Gilberto: “batmacumba” e “bumba-iê-iê-boi”. No plano mu-
sical, passo equivalente se dá aproveitando-se as
Chega de saudade a realidade coincidências rítmicas entre o rock e o baião,
é que aprendemos com João ambos em tempo binário fortemente marcado,
pra sempre a ser desafinados com andamento rápido e relativamente pouco
sincopado. Do mesmo modo, a tropicália se esfor-
Mas, ao contrário da bossa nova, que se ça por demolir outra oposição marcante: a que se
orienta por um modelo de contenção, a tropicália dá entre a linguagem acessível da música popular
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e a metalinguagem erudita da crítica (e da literatu- BIBLIOGRAFIA


ra). As canções de Caetano, Gil e seus companhei-
ros de movimento trabalham, tanto no plano da ANDRADE, Mário de. (1962), Ensaio sobre a música
música quanto no da letra, com elementos “baixos” brasileira. São Paulo, Livraria Martins Editora.
e “elevados”: a sofisticação harmônica, melódica e ANDRADE, Oswald de. (1972), “Manifesto antropófa-
poética de “Clara” convive com a singeleza irônica go”, in Oswald de Andrade — Obras comple-
tas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
de “Baby”; e em “Alegria, alegria”, uma letra que
lança mão de recursos poéticos elaborados é aco- CABRAL, Sérgio. (1997), Antônio Carlos Jobim — uma
biografia. Rio de Janeiro, Lumiar.
plada a um iê-iê-iê fácil e despretensioso.
Retomo aqui o argumento apenas esboçado CAMPOS, Augusto de. (1968), Balanço da bossa:
antologia crítica da moderna música popular
na conclusão do meu livro O violão azul: moder- brasileira. São Paulo, Perspectiva.
nismo e música popular, de que a atitude exclu-
CASTRO, Ruy. (1991), Chega de saudade: a história e
dente do engenheiro dominou o cenário cultural as histórias da bossa nova. São Paulo, Compa-
brasileiro por um período curto e relativamente nhia das Letras.
atípico. Num momento de afirmação da moderni- DERRIDA, Jacques. (1971), A escritura e a diferença.
dade industrial do país, os ideais de funcionalidade Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da
e objetividade impuseram-se não apenas na arqui- Silva. São Paulo, Perspectiva.
tetura, nas artes plásticas e na música erudita — o DIDIER, Carlos. (1996), Radamés Gnattali. Rio de
dodecafonismo — como também na poesia e na Janeiro, Brasiliana Produções.
música popular. Findo este momento de crença LÉVI-STRAUSS, Claude. (1989), O pensamento selva-
otimista nas virtudes da modernização do país, gem. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas,
com as tensões e incertezas que marcaram o final Papirus.
dos anos 60, a estratégia do bricoleur — includen- MARIZ, Vasco. (1983), Três musicólogos brasileiros:
te, flexível e assumidamente subjetivista e capri- Mário de Andrade, Renato Almeida, Luiz Hei-
tor Correa de Azevedo. Rio de Janeiro, Civiliza-
chosa — retoma a posição central que vinha ção Brasileira.
mantendo desde o início do século.
MELLO, José Eduardo Homem de. (1976), “Antônio
Carlos Jobim”, in J.E. Homem de Mello, Músi-
NOTAS ca popular brasileira, São Paulo, Melhoramen-
tos/Ed. da USP.
MOREIRA, Maria Micaela Bissio Neiva. (1999), “Do
1 Entrevista concedida aos pesquisadores do Centro de samba eu não abro mão”: Chico Buarque nos
Estudos Sociais Aplicados (CESAP) da Universidade anos 60. Monografia de final de curso de
Candido Mendes em 25/6/1998. graduação, Departamento de Sociologia e Po-
2 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/ lítica da PUC-RJ, mimeo.
Universidade Candido Mendes em 9/10/1999.
NAVES, Santuza Cambraia. (1998), O violão azul:
3 Entrevista concedida a José Eduardo Homem de Mello modernismo e música popular. Rio de Janeiro,
em 17/10/1968. Apud Mello (1976, pp.15-18). Editora da Fundação Getúlio Vargas.
4 Entrevista concedida a José Eduardo Homem de Mello. RIBEIRO, Santuza Cambraia Naves. (1988), Objeto não
Apud Mello (1976). identificado: a trajetória de Caetano Veloso.
5 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/ Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Gra-
Universidade Candido Mendes em 5/4/1999. duação em Antropologia Social, Museu Nacio-
6 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/ nal, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Universidade Candido Mendes em 5/4/1999. SAPIR, Edward. (1949), “Cultura ‘autêntica’ e ‘espú-
7 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/ ria’”, in Donald Pierson (org.), Estudos de orga-
Universidade Candido Mendes em 18/3/1999. nização social, tradução de Asdrúbal Mendes
8 Entrevista concedida aos pesquisadores do CESAP/ Gonçalves, São Paulo, Livraria Martins Editora.
Universidade Candido Mendes em 18/3/1999. WISNIK, José Miguel. (1983), O coro dos contrários: a
música em torno da Semana de 22. 2a ed., São
Paulo, Duas Cidades.

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