forma de conhecimento parece imenso: uma vez imersa em suas linhas
de raciocínio, dificilmente a pessoa volta a ver o mundo das antigas
TRÊS
A Crítica Feminista da Ciência
e o Desafio da
Epistemologia Social
Kenneth J. Gergen
AO SE ANALISAR A PRODUÇÃO feminista contemporânea, é espantoso
verificar em que medida a crítica predomina. Independentemente do
campo, a postura dominante é a do ataque. Um dos alvos principais
desse ataque é o edifício do conhecimento tradicional, considerado in-
discutível — em grande medida visto pelas feministas como saturado
de perspectivas e valores masculinos e frequentemente como um veícu-
lo que serve a esses interesses, sustentando a dominação masculina. Por
exemplo, análises críticas foram dirigidas às tradicionais descrições bio-
lógicas da natureza das mulheres (Hubbard, 1983; Hubbard, neste vo-
lume); à visão das mulheres nas descobertas da pesquisa psicológica
(Weisstein, 1971); à hipótese de diferenças de género bifurcadas (Kess-
ler e McKenna, 1978); às teorias de desenvolvimento moral (Gilligan,
1982); à imagem das mulheres nos tratados ginecológicos (Scully e Bart,
1973); à penetração de metáforas masculinas no teorizar biofísico (Kel-
ler, 1984); à invisibilidade das mulheres na análise sociológica (Smith,
1979); à imagem do patriarcado sustentada pelos escritos antropológi-
cos (Sanday, neste volume); à baixa representação das mulheres na pes-
quisa das ciências sociais (Johnson e Freize, 1978); às visões andro-
cêntricas da sexualidade (Tiefer, neste volume) e à agressão (Macau-
lay, 1985); à exclusão da voz feminista da teoria política (Evans, 1986);
ao monopólio masculino da representação histórica (Janssen-Jurreit,
1982) e ao preconceito masculino na pesquisa dos papéis sexuais e do
ajustamento conjugal (Long Laes, 1971).
Os frutos dessas várias iniciativas mais do que amplamente justi-
ficam seu intenso fundamento na crítica. O potencial emancipador dessa
48
formas familiares. Como suas implicações ficam cada vez mais elabo-
radas, o conhecimento feminista cada vez mais provoca deslocamen-
tos. Oferece um desafio radical para o sentido de identidade da pessoa,
para a sua visão das relações humanas e concepção de sociedade e da
relação desta com a natureza.
Como apontou Harding (1986), essas críticas levaram algumas fe-
ministas a defender uma adesão mais rigorosa às regras empiristas do
método. As impropriedades das estruturas tradicionais do conhecimento
poderiam ser vencidas, argumenta-se, se números crescentes de variá-
veis (inclusive o género) fossem levados em conta; se um leque de hi-
póteses sistematicamente em expansão fosse submetido a teste; pre-
conceitos de valor, obliterados e assim por diante. Entretanto, como
está evidente para Harding e outros, essas vias feministas empiristas
de aperfeiçoamento são afinal inadequadas. Aparentemente questio-
nam apenas a maneira como é conduzida a ciência empírica, mas em
suas críticas abrem a porta a um profundo questionamento dos pró-
prios fundamentos da ciência empírica em si. Vamos explorar isto bre-
vemente.
No último século, a maior parte das instituições engajadas na cria-
ção do que normalmente é aceito como conhecimento esteve ligada a
alguma forma de filosofia empirista. Do ponto de vista empirista, as
proposições a respeito do mundo deveriam ser julgadas basicamente.
Com esse fim, foram articuladas regras metodológicas ou de procedi-
mento que, supõe-se, produzirão proposições objetivamente fundamen-
tadas se devidamente aplicadas. Embora essas regras dependam do
contexto de cada disciplina, fundamentalmente exigem que um inves-
tigador esjK -i ilique uma série de fenómenos observáveis para serem ana-
lisados, empane procedimentos rigorosos de amostragem, desenvolva
dispositivÇi padronizados de medição, controle as variáveis relevan-
tes, coloque us hipóteses à prova através de testes dedutivos, forneça
análises estatísticas e assim por diante. Tradicionalmente, a crítica às
proposiçõi •. no interior das ciências tenta demonstrar a inadequação
na aplicaç » - < ureia de uma ou mais dessas regras de procedimenlo.
Em c haste grilante, poucas críticas feministas procederam em
bases com n. u .unis, empiricistas. Ao optar por esquemas alternativos
de postul iluvulas, o criticismo feminista serviu indiretamente para
questiona M p i ó p i i a perspectiva empiricista tradicional. Pois, como
foidemorn x i < > , mesmo quando as regras metodológicas empiricistas
são cons c aplicadas, as formas resultantes de conhecimento
49
 lógica já mostrou diversos casos em que mulheres expostas às opiniões
de um grupo majoritário mudaram de opinião, em proporção maior
profusamente problemáticas. Nesse sentido, as feministas ques-
que os homens, no sentido da opinião da maioria. Os pesquisadores
f am ^s preniissas que estruturam a própria lógica da investigação
nessa situação encontram-se diante de uma diversidade de interpreta-
P Ncist^ (Unger, 1983). Consideramos duas dessas formas de crítica,
ções possíveis dessas ações, pois a conduta das mulheres pode ser des-
cm Primeiro lugar, as críticas feministas revelaram numerosas ins-
crita como conformismo, indecisão, integração, cooperação etc. Porém,
Clas er^ que as hipóteses que orientavam os cientistas condiciona-
os próprios dados não indicam ao investigador qual dessas caracteri-
. . ° jtoo de resultados (ou realidades) que a pesquisa poderia pro- zações é a "correta" ou "objetiva". Deveria optar por definir essas
r< **» porque essas hipóteses orientadoras representam perspecti-
ações de "conformismo" (o que a maioria fez) ou alguma das descri-
"Vascxjiinas predominantes, as realidades científicas tipicamente su-
ções alternativas seria mais apropriada? Os dados não são decisivos
. etft *t voz feminina. Se, por exemplo, um investigador presume que
em relação à questão. Na verdade, a crítica feminista mina a própria
?m cjois géneros diferentes, cada um deles caracterizado por de-
tese de neutralidade em relação a valores, tradicionalmente utilizada
U^os traços físicos, quaisquer diferenças encontradas entre os
para validar o procedimento científico.
(St**08 assmalados será subsequentemente utilizada para reforçar a hi-
P se d^j género divergente. A pesquisa é essencialmente planejada de
• N ^eos restutad°s S6 podem corroborar a postura adotada aprío-
' a "\edida em que as hipóteses orientadoras moldam as categorias
Ccfftf\ecimento subsequente, os tipos de questões que direcionam a
A PROBLEMÁTICA DA PERSPECTIVA
twv!*118^1 e os ^P°s ^e resP°stas <lue podem ser obtidos, as regras do PRIVILEGIADA
" mento empírico não fornecem um corretivo. Em outras pala-
na vez que um investigador adotou uma dada ontologia, esse
p
s >. de orientação determina o que é considerado como relevante;
Como vemos, à medida que se ampliam as bases da crítica feminista,
tos não podem corrigir ou falsificar a ontologia porque todos
elas evoluem de maneira mais geral para uma condenação da orienta-
^ que foram coletados dentro dessa perspectiva só podem ser com-
ção empiricista do conhecimento. A promessa empiricista de conheci-
"•"-\idos em seus termos. Assim, os cientistas sociais em geral não
mento objetivo e cumulativo, através de métodos sistematizados de
>tÃaim sobre a influência nos assuntos humanos do espírito santo
investigação, revela-se falha. Para muitas feministas, essa acusação vai
^ ^espírito do mal, não por causa da inexistência de padrões sociais
direto ao alvo, indicando que a concepção empiricista do conhecimen-
ta c<k>nduzir a interpretação nesses termos, mas porque eles estão fo-
to é em si mesma uma projeção da ideologia ou dos valores masculi-
^s > premissas ontológicas da ciência contemporânea1. Conseqúen-
nos. Ao separar o sujeito do objeto, a razão da emoção, o conhecimento
^er%e, atacar o processo científico em função de sua pré-estrutura
Mo contexto sócio-histórico, a orientação empiricista mostra-se incom-
^. f^%ceituosa da compreensão não é meramente questionar o uso tra-
t>^~ . , **„*„. científico, mas a adequação básica do próprio patível com o bem-estar humano (cf. Bleier, 1984; Keller, 1984).
Entretanto, ao expor a fragilidade das bases empiricistas, o criti-
..
cto.
^Consideremos um segundo exemplo. Muitas críticas feministas
t ísmo feminista também se coloca numa posição vulnerável. Críticas do
11 pó das que descrevemos desmascaram satisfatoriamente tanto as pre-
eitti|yf içaram situações em que as teorias científicas surgem para justi-
icnsões androcêntricas do conhecimento quanto os fundamentos desse
** ou uma ideologia androcêntrica ou uma estrutura de poder que
iiióprio conhecimento. Demonstram o caráter não-objetivo do "fato"
e^e*ficia a si mesma. No entanto, apesar das tentativas do empiricis-
'.labelecido, assim como das bases para o estabelecimento desse fato.
*'» ' desde seu início, de separar nitidamente fatos e valores, parece
ontudo os efeitos desse ataque em duas frentes são ao mesmo tempo
* '%ipossível alcançar a neutralidade em relação aos últimos. Na me
uipregnados de ironia, pois, à medida que essa linha de argumentação
, a i em que qualquer conjunto de fenómenos observáveis está sujeito
w Impõe, corrói simultaneamente as bases da própria legitimação. A
% iritlterpretações múltiplas, as regras do método empírico não estabcle
iiinior parte dos ataques ao conhecimento tradicional chama a atenção
etltt i uma barreira contra o livre jogo de valores na escolha de uma in
erP'oretação em detrimento de outra. Por exemplo, a pesquisa psico 51

SÓ

para seus preconceitos, erros e conclusões desvirtuantes. Tal crítica im-
plica a possibilidade de um conjunto alternativo de proposições retra-
tando o mundo corretamente — inclusive quanto às variações de género.
Porém, se a critica consegue impugnar o próprio conceito de ciência
objetiva, torna-se impossível falar de quaisquer proposições "mistifi-
cadoras". Em que bases poderiam as feministas estabelecer leituras cor-
retas ou sem preconceito da natureza?
É a partir desse contexto de perplexidade que as epistemologias
do ponto de vista feminista (segundo Harding, 1986) se desenvolve-
ram. Conforme propõem alguns estudiosos feministas, o conceito de
conhecimento exato e objetivo não precisa ser descartado. Ao contrá-
rio, há muitos motivos para se acreditar que a orientação masculina
em relação ao conhecimento é sistematicamente distorcida, de uma for-
nia que o ponto de vista feminino não é. A orientação feminina quan-
to à ciência tem mais possibilidade que a masculina de produzir
conhecimento válido. Assim, não só as críticas às estruturas masculi-
nas de conhecimento são salvas, guardadas, como se preserva a possi-
bilidade de alguma forma de ciência e, em particular, de uma ciência
exclusivamente feminista.
Diversas linhas de raciocínio vêm sendo utilizadas para privilegiar
a perspectiva feminina. Hilary Rose (1983), por exemplo, sugeriu que
o modo de investigação das mulheres permaneceu uma espécie de "tra-
balho artesanal". Como tal, contrasta vantajosamente com a orienta-
ção dos homens para o "trabalho industrializado". No trabalho
artesanal, as atividades manuais, mentais e emocionais da pessoa es-
tão unificadas, ao invés de fragmentadas. Ao contrário, o trabalho in-
dustrializado da ciência contemporânea dominada pelos homens é de
um tipo em que os três componentes estão fragmentados ou foram com-
pletamente suprimidos. Em sua orientação mais unificada, argumen-
tou Rose, as cientistas mulheres abandonarão os enganosos dualismos
cartesianos de mente versus corpo, razão versus emoção, e substitui-
rão a preocupação masculina com o reducionismo e a linearidade por
visões que ressaltem o holismo e as interdependências complexas. De
modo mais ou menos semelhante, Nancy Hartsock (1984) propôs que
é a divisão de trabalho por género que dá às mulheres uma vantagem.
As relações das mulheres com o mundo são mais sensuais, concretas
e diretas que as dos homens; elas mantêm um relacionamento menos
conflituoso com a natureza, sem se abstrair nem se alienar, como os
homens, mas entrando em harmonia com ela.
Apesar de menos inclinadas a atribuir poderes especiais à expe-
riência feminina, outras feministas também identificam distorções nu
52
perspectiva masculina. Como Jane Flax (1983) indicou, quando a ta-
refa de cuidar de crianças é predominantemente feminina, o menino
realiza sua identidade alienando-se do mundo social. Ele precisa do-
minar e/ou reprimir outros para se desenvolver e sustentar a própria
identidade. Quando o núcleo do ser define-se exclusivamente contra
as mulheres, o homem desenvolve e emprega categorias de entendimento
que recapitulam o dilema infantil. Mais uma vez o dualismo sujeito/ob-
jeto, mente/corpo, razão/emoção é apresentado como problemático
e considerado como projeção das peculiaridades da experiência de de-
senvolvimento masculina. Para Dorothy Smith (1979), o trabalho das
mulheres na cultura desobriga os homens da necessidade de cuidar de
seus corpos e dos seus locais de moradia; ficam assim liberados para
se engajar no mundo dos conceitos abstratos e das funções adminis-
trativas. Eles têm pouca experiência direta em muitas das atividades
do mundo do dia-a-dia e suas abstrações são inadequadas para com-
preender esse mundo que as mulheres conhecem através da experiên-
cia direta.
Embora essas várias teses sejam instigantes em diversos aspectos,
Harding (1986) manifestou considerável reserva em suas apreciações.
Sua preocupação particular não é tentar demonstrar a superioridade
da perspectiva feminina em relação à masculina. Em vez disso, racio-
cinou que existem outros grupos cujos direitos às vantagens epistemo-
lógicas, pelos mesmos critérios empregados por essas teóricas podem
exceder os das feministas que parecem se beneficiar das referidas aná-
lises — ou seja, as mulheres ocidentais instruídas, de recursos econó-
micos substanciais. Afinal de contas, as mulheres ocidentais partici-
param sistematicamente das práticas de colonização que subjugaram
grandes setores do mundo africano — de homens e mulheres. Será que
•H experiências desses povos — e em especial as da mulher negra afri-
< .ma — não proporcionam um ponto de partida para "caminhos mais
dadeiros no rumo de crenças e de relações sociais não desvirtuadas
por lealdades de raça ou género?" (p. 191). Que direito ou privilégio
podem proclamar as feministas ocidentais brancas? Além desse pro-
I 'lema, há ainda o de definir uma perspectiva comum sobre o conheci-
MK-nio e as relações aplicáveis a todo o espectro das mulheres. O âmbito
Inninista é fracionado — socialistas, humanistas seculares, radicais,
•iças, negras, existencialistas, marxistas e assim por diante. Deve al-
Ktim desses grupos receber privilégios epistemológicos especiais? Com
i-m quê?
As questões de Harding são de fato significativas e profundas e
».i" lia soluções imediatas à vista. No entanto, por razões pragmáti-
53
cãs, dispõe-se, no final, a endossar os "projetos científicos substitu-
tos": "eles são fundamentais para a transferência do poder de mudar
as relações sociais dos que 'têm' para os que 'não têm'" (p. 195). Uma
"única história verdadeira" não pode ser contada a partir da perspec-
tiva feminista, mas muitas histórias parciais são necessárias para se al-
cançar a transformação social. Estou inclinado a concordar com
Harding quanto às razões pragmáticas. No entanto, há aspectos per-
turbadores mais profundos nas epistemologias do ponto de vista femi-
nista — mesmo quando liberalizadas por um choque de
pós-modernismo. Em particular, esses projetos científicos sucedâneos
parecem conservar traços problemáticos das próprias ciências que pro-
curam substituir.
Para começar, não há grande desafio aos pressupostos empiricis-
tas tradicionais de que o conhecimento é a expressão de uma mente
individual, implicando a representação acurada do mundo, de que as
pessoas variam conforme o grau em que dominam essa expressão e de
que devem ser garantidos privilégios especiais àqueles que a exercem.
Todas essas hipóteses fazem parte da matriz iluminista, dentro da qual
se moldou o conceito de ciência moderna. Elas também serviram de
justificativa para as elaboradas hierarquias de poder e privilégio que
tão efetivamente suprimiram a voz feminina até aqui. As tentativas fe-
ministas de ciência sucessora não ameaçam recapitular em boa medida
a mesma forma de justificativa e com isso favorece o estabelecimento
de hierarquias alternativas? E o que irá impedir essas hierarquias al-
ternativas de se engajarem nas mesmas táticas excludentes que dimi-
nuirão a voz de todos aqueles que não tiverem acesso ao novo conceito
favorecido de conhecimento? Em que sentido essas hipóteses não se
prestam exatamente àquele tipo de estratégias alienadoras e defensivas
que foram consideradas tipicamente masculinas? Keller (1985) não es-
lava certo ci uando traçou um paralelo entre o conceito de conhecimen-
i.o.lei MK-ial c dominação? Garantir o primeiro é fazer um convite
H n li i «• i1! terceira.
\ i. .c problema de avaliação, os projetos feministas de uma
p.neeem vulneráveis a muitos dos mesmos tipos de
nu o empirismo fundamentalista à sua atual
N.is últimas décadas, por exemplo, nos con-
umontos contra o indutivismo (Hanson,
i f. .|i|ici, 1968); o operacionismo (Koch,
• I - I . - I M (Uuinc, 1960); a separação das
" »,mu-, 1951); a suposta interdc-
Ki (Toiilmin, 1961); a co-
mensurabilidade de teorias concorrentes (Feyerabend, 1976); a sepa-
ração de fato e valor (Maclntyre, 1973); a possibilidade de fatos teori-
camente não saturados ou brutos (Hanson, 1958); a lógica da dedução
(Barret, 1979); a possibilidade de falsificação da teoria (Quine, 1953);
0 caráter não-partidário do conhecimento científico (Habermas, 1971);
a possibilidade de acumulação histórica no conhecimento do compor-
tamento (Gergen,1973) e a aplicabilidade das leis e modelos mecanicis-
tas da ação humana (White, 1978), citando apenas alguns. Uma coisa
é falar da experiência das mulheres como sendo mais ligada do que a
dos homens à miscelânea das relações cotidianas, às emoções, à natu-
reza, à criação e assim por diante. É outra, porém, bem diferente mol-
dar desse barro congénito um ídolo do conhecimento que não estivesse
submetido a muitas dessas mesmas críticas. Com que se pareceriam as
reivindicações do conhecimento feminista se não fossem submetidas
às alterações do contexto no seu significado; como se desenvolveriam
tais proposições se a perspectiva precede a percepção; como seriam tes-
tadas tais proposições se a lógica dedutiva é apenas artefato cultural,
c assim por diante?
E o que talvez seja o mais importante, em que bases devem ser
justificadas as patentes do conhecimento feminista? Por exemplo, co-
mo podemos saber que o conhecimento sólido tem de estar estreita-
mente ligado com a paixão, que o reducionismo é falso ou que o
pensamento linear distorce a realidade? Essas proposições são simples-
mente evidentes por si mesmas? Sua justificação também depende da
•.'usibilidade especial das mulheres ou de algum outro fundamento?
1 e dependem da experiência feminina, como escapariam as mulheres
• i.i erítica que levantaram contra os homens, seus contrários, de que
-n. i s orientações estão ao próprio serviço? A escala de desafios a um
imulamentalismo feminista parece ser formidável.
RUMO A UMA EPISTEMOLOGIA SOCIAL
i .1 .iltura, se está inclinado a buscar alguma alternativa às posições
r naiitem a um grupo de pessoas um dom especializado e raro de
-. (|ne torna suas percepções do mundo únicas, superiores. Parece
ii" m (|nc a exigência de uma tal alternativa já está contida em boa
s escritos feministas. Na opinião de Harding (1986), esse mo-
55

vimento pode ser designado pós-moderno. Com o fim de apreciar seu
surgimento, voltemos por um momento à linha de raciocínio que daí
se desdobra. Como vimos, a crítica feminista do conhecimento tradi-
cional dentro da ciência muito fez no sentido de expor os problemas
da visão empirista do conhecimento em geral. No entanto, como vi-
mos também, essas críticas do conhecimento empírico baseiam-se elas
próprias nos argumentos da ciência. Com o conceito de conhecimento
objetivo impugnado, as próprias bases das reivindicações feministas
ficam prejudicadas. A essa altura, abrem-se duas alternativas: em pri-
meiro lugar, poder-se-ia responder desenvolvendo-se uma visão alter-
nativa do conhecimento que tornasse a crítica imune às próprias
implicações ou, em segundo lugar, poder-se-ia renunciar ao próprio
conceito de conhecimento objetivo. Como vimos, boa parte da episte-
mologia do ponto de vista feminino seguiu na primeira direção e essa
direção agora se revela problemática. Resta à consideração séria a se-
gunda alternativa: o abandono do conceito de conhecimento objetivo.
De fato, a possibilidade dessa segunda visão pode ser localizada
em vários escritos feministas. Por exemplo, o trabalho recente de Flax
(1986) propõe que não existe "ponto de vista feminino que seja mais
verdadeiro que os anteriores (masculinos)" (p. 37). Ela fez a ligação
da crítica feminista com o pensamento pós-moderno mais geral, no qual
prevalece a incerteza no que diz respeito às bases apropriadas das pro-
posições científicas. A possibilidade de abandonar a presunção do co-
nhecimento objetivo também está evidente em Smith (1979), que
argumenta que, porque os homens possuem categorias diferentes de
experiência, não são capazes de descrever com exatidão ou explicar com
exatidão o mundo das mulheres. Ampliando essa visão, as mulheres
não podem apropriadamente dar conta do mundo dos homens, os adul-
tos não podem retratar com propriedade o mundo das crianças, os cien-
tistas sociais em atividade não podem penetrar na vida da sociedade
e, em última instância, não existem padrões generalizáveis de acuidade
para comparar perspectivas diversas. (Ver também as discussões de
Stanley e Wise, 1983; Spender, 1985.)
Se se abandona a objetividade, como é que daremos conta do le-
que de reivindicações existentes da ciência? Como fica evidente a p; u
tir de muitas das críticas da ciência androcêntrica, uma alternativa está
surgindo. Em particular, torna-se cada vez mais compulsório ligar ou
argumentos da ciência ao processo social. À medida que as pensado
rãs feministas se movimentam nessa direção, encontram também vai-
to apoio em outros enclaves pós-modernos. Essa mudança é evidenli
não apenas em boa parte da crítica literária pós-moderna. Também «e
56
reflete na hermenêutica e nos estudos interpretativos; em certas linhas
de concordância dentro da história e da sociologia da ciência; em for-
tes correntes no interior da análise construtivista da sociedade, na et-
nometodologia, na historiografia, no estudo da retórica e na atual
reavaliação da validade nos relatos etnográficos. Através dessas ati-
vidades se detecta aberturas no sentido do aparecimento de uma epis-
temologia social abrangente ou de um ponto de vista epistemológico
a partir do qual os argumentos da ciência são vistos como constituin-
tes quintessenciais do intercâmbio social. Isto não quer dizer, absolu-
tamente, que existe um acordo amplamente articulado no que diz
respeito aos contornos de uma epistemologia social. Encontra-se dis-
cussão em cada esquina. No entanto, revela que é útil tentar uma arti-
culação preliminar de um ponto de vista epistemológico social, em torno
do qual um acordo significativo possa ser alcançado através do domí-
nio pós-moderno, tanto feminista como de outras ordens. Desse mo-
do, tanto a elaboração quanto a crítica podem ser facilitadas.
< onsideremos, então, quatro suposições que muitos definiriam como
iliicas para o desenvolvimento de uma epistemologia social.
1) As reivindicações da ciência poderiam apropriadamente ser con-
ilcradas como formas de discurso. Em vez de se adotar a hipótese
adicional de que as reivindicações científicas são relatórios a respeito
i-siados da experiência (tipicamente privilegiados), pode ser de utili-
idr mudar nossa preocupação para o nível do discurso. Como argu-
it niou uma série de pensadores feministas, as distinções cartesianas
.idu ionais entre mente e corpo, sujeito e objeto, são problemáticas.
^ ><•.-.; i r dos pontos de partida diferentes, chegaram a conclusões seme-
ii.1 nies os filósofos descendentes da extinta linha filosófica wittgens-
i < imana (Austin, 1962; Ryle, 1949; Rorty, 1979) e os analistas literários
• mstrutivistas preocupados com o preconceito logocêntrico na in-
1 1 indação literária (Derrida, 1977). À medida que se desdobram es-
M ias linhas de pensamento, vemos que a concepção tradicional
nliccimento enquanto forma de representação mental deixa de ser
Í aióiia. Se não presumirmos que existem mentes que servem de
tios de um mundo independente, então as questões tradicionais
ir.i etnologia caem por terra. Não precisamos questionar como os
•. dos sentidos se convertem em categorias de percepção, como o
Io mental pôde ser construído a partir de estímulos que entram,
iam haver objetos identificáveis da experiência sem categorias
pu-ccdentes e outras questões perenemente insolúveis de im-
i i filosófica e psicológica. Além disso, não precisamos desen-
• i lneiarquias baseadas na variação de acuidade experimental;
57

nenhuma classe de pessoas, inclusive os cientistas, armados de sofisti-
cada tecnologia e procedimentos estatísticos, pode reivindicar o direi-
to a percepções superiores do mundo. Finalmente, abandonado o
dualismo, não mais precisamos ver o discurso a respeito do mundo co-
mo uma expressão da experiência particular. Podemos apropriadamente
voltar nossa atenção para longe do conhecimento enquanto represen-
tação mental, para as reivindicações da ciência. Essas últimas podem
ser vistas como passos no processo do discurso.
2) O que existe por si mesmo não dita as propriedades do discurso
através das quais dar-se-á a inteligibilidade. Como vemos, os proble-
mas dos epistemólogos ficam consideravelmente alterados pela linha
de argumentação acima. Em vez de perguntar como determinada for-
ma da experiência vem a ser privilegiada, voltamos a atenção para o
problema do discurso. Em que bases determinadas formas de discurso
são justificadas ou tornam-se superiores? Colocando a questão desta
maneira, fica claro, em primeiro lugar, que a mimese é inadequada en-
quanto base do privilégio. Isto é, seja qual for a natureza do caso em
pauta, ela não coloca constrangimentos intrínsecos ao discurso utiliza-
do para dar conta dela. (Até mesmo o reconhecimento de que existe
um "isto" do qual se deve dar conta é impróprio, deste ponto de vista,
posto que tal colocação mais uma vez sugere um mundo independente
do observador e uma função para a linguagem, prover imagens desse
mundo. Entretanto, dados os limites da tradição ocidental das letras,
é difícil encontrar expressões mais apropriadas para a posição episte-
mológica que está sendo desenvolvida aqui.) O que acho que seja este
conjunto diante de mim pode ser descrito como uma simples figura
diante de um fundo, como um espectro de cores, um mosaico de for-
mas geométricas isoladas, um conjunto de reflexos de luz, cachos sor-
tidos de partículas atómicas, uma mesa e uma estante ou produções
de uma mente vacilante. Eu poderia continuar criando palavras para
cada "átomo discriminável pela percepção" das minhas experiências
ou poderia descrever tudo como um vazio sem sentido. O que existe,
seja o que for, não impõe coerções à linguagem para se tornar inteligível.
Para armar essa linha de raciocínio que surge, podemos aventu-
rar dizer que a validade das proposições teóricas nas ciências não é afe-
tada, de modo algum, pela evidência fatual. Como se dá isso? Em
primeiro lugar, descobrimos que o conceito de "validade" é em si mês
mo problemático. Se, com este termo, a pessoa está invocando uma
metafísica tradicional da independência sujeito-objeto, da experiência
privilegiada e de proposições teóricas enquanto expressões dessa expi
riência, então a presunção da validade deixa de ter interesse. Mas, cn
58
nome de se fazer avançar a compreensão, definamos validade em ter-
mos da comparação entre discurso teórico e um mundo independente
desse discurso. Não se extrairia validade, neste sentido, recorrendo-se
à evidência objetiva? Se o que existe não coloca imposições inerentes
quanto a como será descrito, a resposta, aparentemente, seria negati-
va. Pois os próprios fatos têm de ser "descritos" para que possam va-
ler como fatos e se o que existe não impõe as descrições, então, se a
descrição corrobora a proposição teórica depende, basicamente, da es-
olha que a pessoa faz do discurso fatual. Cada tentativa de oferecer
m fato ou dado objetivo para apoiar uma determinada teoria é, com
feito, um movimento do discurso. É uma tentativa de prover apoio
um relato sem garantia objetiva com relatos outros de igual caráter.
Quando se invoca fatos para apoiar uma determinada proposição, in-
ariavelmente estes não são eventos (ou coisas) em si mesmos, mas in-
crpretações descritivas de eventos. Pelo fato dos próprios eventos não
olocarem demandas essenciais em relação às interpretações, eles não
>i ovêem apoio objetivo, porém retórico, para a proposição teórica re-
cvante. Vamos ver um exemplo e depois considerar uma possível
ilijccão.
Considere mais uma vez a pesquisa que tenta explorar a diferença
l< r.cnero através do conformismo social. Que fatos poderiam ser ar-
t >lados para apoiar a validade da proposição de que as mulheres de-
luinstram um grau maior de conformismo que os homens? De cara,
nos damos conta de que a proposição em si não é informativa quanto
.1 mie características particulares contariam no sentido da confirma-
i >u não confirmação. Em nossa tentativa de localizar homens e mu-
iiincs, deveríamos levar em consideração seres não-humanos, fetos
iiiniianos, bebés, aleijados, esquizofrênicos e coisas do tipo? Como su-
.1 investigação etnometodológica, o que se conta como masculino
• i < niinino também difere na medida em que a pessoa se movimenta
• i. n i n espectro de sociedade para outro. As definições das crianças das
ruças sexuais diferem das dos adultos, e os adultos entre si diver-
i ilependendo de se são originários de uma cultura ocidental, se são
• i.nlos na profissão médica ou se são transexuais (Kessler e McKen-
im, l«>78). Devemos aceitar as definições de quem? E o que constitui
iiode conformismo? Toda ação social coordenada não é "confor-
. de certo modo; não é todo comportamento independente in-
i< > nu um outro contexto do discurso? Em relação a isto, a definição
!• MU. in iremos consagrar? Como vemos, não se pode prover qual-
i>osta objetiva à questão inicial de como podemos sair por aí
•l. MI 11 u .nulo fatos relevantes à proposição teórica.
59

nenhuma classe de pessoas, inclusive os cientistas, armados de sofisti-
cada tecnologia e procedimentos estatísticos, pode reivindicar o direi-
to a percepções superiores do mundo. Finalmente, abandonado o
dualismo, não mais precisamos ver o discurso a respeito do mundo co-
mo uma expressão da experiência particular. Podemos apropriadamente
voltar nossa atenção para longe do conhecimento enquanto represen-
tação mental, para as reivindicações da ciência. Essas últimas podem
ser vistas como passos no processo do discurso.
2) O que existe por si mesmo não dita as propriedades do discurso
através das quais dar-se-á a inteligibilidade. Como vemos, os proble-
mas dos epistemólogos ficam consideravelmente alterados pela linha
de argumentação acima. Em vez de perguntar como determinada for-
ma da experiência vem a ser privilegiada, voltamos a atenção para o
problema do discurso. Em que bases determinadas formas de discurso
são justificadas ou tornam-se superiores? Colocando a questão desta
maneira, fica claro, em primeiro lugar, que a mimese é inadequada en-
quanto base do privilégio. Isto é, seja qual for a natureza do caso em
pauta, ela não coloca constrangimentos intrínsecos ao discurso utiliza-
do para dar conta dela. (Até mesmo o reconhecimento de que existe
um "isto" do qual se deve dar conta é impróprio, deste ponto de vista,
posto que tal colocação mais uma vez sugere um mundo independente
do observador e uma função para a linguagem, prover imagens desse
mundo. Entretanto, dados os limites da tradição ocidental das letras,
é difícil encontrar expressões mais apropriadas para a posição episte-
mológica que está sendo desenvolvida aqui.) O que acho que seja este
conjunto diante de mim pode ser descrito como uma simples figura
diante de um fundo, como um espectro de cores, um mosaico de for-
mas geométricas isoladas, um conjunto de reflexos de luz, cachos sor-
tidos de partículas atómicas, uma mesa e uma estante ou produções
de uma mente vacilante. Eu poderia continuar criando palavras para
cada "átomo discriminável pela percepção" das minhas experiências
ou poderia descrever tudo como um vazio sem sentido. O que existe,
seja o que for, não impõe coerções à linguagem para se tornar inteligível.
Para armar essa linha de raciocínio que surge, podemos aventu-
rar dizer que a validade das proposições teóricas nas ciências não é afc-
tada, de modo algum, pela evidência fatual. Como se dá isso? lim
primeiro lugar, descobrimos que o conceito de "validade" é em si mes-
mo problemático. Se, com este termo, a pessoa está invocando umu
metafísica tradicional da independência sujeito-objeto, da experiência
privilegiada e de proposições teóricas enquanto expressões dessa exj»
riência, então a presunção da validade deixa de ter interesse. Mas, cm
58
nome de se fazer avançar a compreensão, definamos validade em ter-
mos da comparação entre discurso teórico e um mundo independente
desse discurso. Não se extrairia validade, neste sentido, recorrendo-se
à evidência objetiva? Se o que existe não coloca imposições inerentes
quanto a como será descrito, a resposta, aparentemente, seria negati-
va. Pois os próprios fatos têm de ser "descritos" para que possam va-
ler como fatos e se o que existe não impõe as descrições, então, se a
descrição corrobora a proposição teórica depende, basicamente, da es-
colha que a pessoa faz do discurso fatual. Cada tentativa de oferecer
um fato ou dado objetivo para apoiar uma determinada teoria é, com
efeito, um movimento do discurso. É uma tentativa de prover apoio
a um relato sem garantia objetiva com relatos outros de igual caráter.
Quando se invoca fatos para apoiar uma determinada proposição, in-
variavelmente estes não são eventos (ou coisas) em si mesmos, mas in-
terpretações descritivas de eventos. Pelo fato dos próprios eventos não
colocarem demandas essenciais em relação às interpretações, eles não
provêem apoio objetivo, porém retórico, para a proposição teórica re-
levante. Vamos ver um exemplo e depois considerar uma possível
bjeção.
Considere mais uma vez a pesquisa que tenta explorar a diferença
0 género através do conformismo social. Que fatos poderiam ser ar-
plados para apoiar a validade da proposição de que as mulheres de-
[íonstram um grau maior de conformismo que os homens? De cara,
lOs damos conta de que a proposição em si não é informativa quanto
1 que características particulares contariam no sentido da confirma-
lo ou não confirmação. Em nossa tentativa de localizar homens e mu-
•hcres, deveríamos levar em consideração seres não-humanos, fetos
pumanos, bebés, aleijados, esquizofrênicos e coisas do tipo? Como su-
<• a investigação etnometodológica, o que se conta como masculino
" minino também difere na medida em que a pessoa se movimenta
I h um espectro de sociedade para outro. As definições das crianças das
l i i ' i onças sexuais diferem das dos adultos, e os adultos entre si diver-
ii dependendo de se são originários de uma cultura ocidental, se são
11 • i nados na profissão médica ou se são transexuais (Kessler e McKen-
i i . i'J78). Devemos aceitar as definições de quem? E o que constitui
Mm .iio de conformismo? Toda ação social coordenada não é "confor-
i", de certo modo; não é todo comportamento independente in-
Jo cm um outro contexto do discurso? Em relação a isto, a definição
|ucm iremos consagrar? Como vemos, não se pode prover qual-
_' resposta objetiva à questão inicial de como podemos sair por aí
pilicando fatos relevantes à proposição teórica.
59

Mas e se pusermos esse problema entre parênteses e perguntarmos
como os fatos gerados pela investigação sistemática podem apropria-
damente apoiar uma tese? Muitos psicólogos criam em laboratórios am-
bientes controlados nos quais "machos" e "fêmeas" são expostos às
opiniões de outros participantes da pesquisa. Em alguns momentos es-
sas opiniões parecem equivocadas; outros concordam, por exemplo,
com que a mais curta entre diversas linhas é a mais comprida ou com
que o número de elementos de um conjunto é muito maior ou menor
do que é de fato. Faz-se, então, comparações de tal modo que os ma-
chos, contrariamente às fêmeas, mudam de opinião e passam a con-
cordar com a opinião do grupo equivocado. Os resultados desse
trabalho não deveriam afetar a validade da proposição geral? Consi-
dere o procedimento de laboratório: e se fosse descrito em termos de
padrões móveis de figura ç base, movimentos de corpos, feixes de par-
tículas atómicas, padrões coloridos — todas descrições razoáveis do
mesmo conjunto de eventos. No entanto, caso seja escolhida uma des-
sas inteligibilidades, nada se disse que esteja relacionado com o con-
formismo social. Dar conta plena de cada movimento através do tempo
e do espaço de cada sujeito do laboratório ou de cada estado momen-
tâneo dos neurônios não significa dizer nada de interesse em relação
à proposição teórica. Com efeito, os eventos reais só servem enquanto
evidência se se optar por uma determinada prática discursiva. Não há
nada nos eventos em si mesmos que prescreva qual a prática pela qual
se deve optar. Assim, o que conta como fato, neste caso, é determina-
do não pelo que está ali, mas pela linha particular de discurso inter-
pretativo com a qual a pessoa está comprometida.
Diante dessa linha de raciocínio, poder-se-ia perguntar se não é
uma forma de realismo linguístico deturpado que nega totalmente um
mundo fatual ou objetivo. Mesmo se se concordar com que quando
se está tentando descrever os fatos relevantes para uma proposição
a pessoa está de fato engajada numa prática discursiva e se se concor-
dar com que possivelmente essas práticas não são determinadas pelo
que está em causa, como podemos negar a certeza tangível de que al-
guma coisa está em causa e de que essa alguma coisa tem alguma rcl;i
cão com a legitimidade das práticas discursivas? Como resposta, n3o
existe nada no interior de uma epistemologia social que necessariamcuu
atribua ou negue status ontológico. Ou seja, não se quer afirmar m-m
que alguma coisa está em questão e nem que não está. Em vez disso,
a descrição deixa em suspenso as questões da ontologia; afirmar que
alguma coisa está em questão é já se engajar numa prática discursivi
que não pode ela própria ser garantida pelo que está em questão. (
60
que quer que seja que esteja em questão, simplesmente está; supor que
é independente de nós mesmos, que é composto de entidades separa-
das, que dura no tempo e assim por diante, tudo isso são movimentos
discursivos. Tais afirmações se movem dentro de uma esfera de con-
troles, distinções e variações lingúístiscas que não são elas próprias de-
terminadas pelo que está em pauta. Para ter certeza, tanto na ciência
como na vida de todo dia, frequentemente nos confrontamos com um
sentido de validade. Informações sobre a farmácia mais próxima po-
dem se revelar certas ou erradas; aparentemente, pode-se validar esti-
mativas do próprio peso através da observação etc. No entanto, como
veremos no próximo segmento, esse senso de validade é visto mais apro-
priadamente como conquista social. Tais "provas" são simplesmente
irrelevantes para o que está em questão.
3) Pelo fato do discurso ser inerentemente social, podemos olhar
l>ara o processo social em busca de uma compreensão de como se jus-
tificam as reivindicações do conhecimento. Até aqui se propôs que as
icivindicações de ciência nem são espelhos de estados mentais nem con-
dições ontológicas. Em vez disso, se propôs que as reivindicações da
* inicia são formas de discurso. Se essas posições sã^/ defensáveis, en-
i .10, em nossa busca da justificação das argumentações científicas, nos
vnnos confrontando características de formação e sustentação de dis-
< i n só. À medida que o fazemos, inicialmente parece que o discurso
i i . u i 6 propriedade de indivíduos únicos — átomos sociais isolados —
i n. i s uma propriedade do intercâmbio social. As minhas palavras não
m sentido algum enquanto você não lhes atribuir um status de sig-
n i i ícação; os seus balbucios são transformados em linguagem confor-
< u me coordeno em relação a eles. De fato, a geração de significado
• i. 1111 ic.uagem é, nos termos de John Shotter (1980), uma açõo conjuntai
< 1 1 |im a coordenação mútua de ações entre duas ou mais pessoas. Tal
insão aparentemente seria também favorecida por boa parte dos
1 1 nos feministas (cf. Scheman, 1983; Unger; 1983; Chodorow, 1978;
, 1983). Ela rejeita o preconceito logocêntrico da linguagem e cha-
i .1 .Monção, ao contrário, para o caráter interdependente das ações
iiíis; a geração de conhecimento é, portanto, fruto da conexão
i .10 invés de da separação. É através da harmonia na associação
n.i que a realidade, enquanto interpretação linguística, passa a
u partir do nada.
este contexto, somos de novo convidados a reconsiderar o pro-
tli instificação do conhecimento em termos de processo social.
ii' i i só torna um empreendimento inerentemente social, onde a
ição das reivindicações de conhecimento depende de processos
61

comunitários, mais do que da verossimilhança. É nessa arena que am-
bos, historiadores e sociólogos da ciência, já deram contribuições im-
portantes. A obra clássica de Kuhn (1970) efetivamente substituiu a
justificativa empirista pelo processo social como base das revoluções
científicas. Embora mais tarde tenha enfraquecido sua tese (Kuhn,
1977), recaindo nos argumentos a favor de "valores epistêmicos" (a
justificativa empirista disfarçada), a força do argumento inicial foi am-
plificada por Feyerabend (1976, 1982). Desde então, muitos historia-
dores da ciência (cf. Mendelsohn, 1977) levaram a ideia adiante,
detalhando a influência do processo social na perpetuação da formu-
lação e na alteração dos relatos científicos. Ao mesmo tempo, uma sé-
rie de sociólogos da ciência começou a explorar os processos sociais
subjacentes à geração do que passa por conhecimento científico no pre-
sente. Nas mãos de analistas tais como Barnes (1974), Latour e Wool-
gar (1979), Knorr-Cetina e Mulkay (1983) e outros, os princípios da
lógica e da observação desempenham um papel pequeno na produção
do conhecimento; os processos comunitários são essenciais.
Sem dúvida, essas diversas reconceituações da ciência deixam em
aberto o problema dos progressos na tecnologia — ou a capacidade
dos seres humanos de gerar novos implementos para solucionar pro-
blemas urgentes. Minam a visão tradicional segundo a qual esses pro-
gressos são resultado de indução, dedução e testes de hipóteses
rigorosos. Entretanto, não oferecem uma explicação adequada dos in-
crementos nas técnicas práticas que se acumularam ao longo dos sécu-
los. Como se vai dar conta da capacidade que adquirimos de curar
doenças, gerar calor e luz, voar através do ar e assim por diante? Não
é este o cenário viável para um tratamento exaustivo deste problema,
mas podemos começar a distinguir na explicação anterior elementos
críticos para uma explicação apropriada. Pode-se aventurar que, com
as preocupações feministas com o prático e o concreto, de um lado,
e com a conexão orgânica dos seres humanos com seu ambiente, de
outro, são obtidos ganhos pragmáticos à medida que crescentemente
nos coordenamos em relação à natureza. A geração de tecnologias avan-
çadas e de capacidade de previsão são os resultados do que Hilary Ro-
se (I ( )H3) poderia chamar de "trabalho artesanal"; dependem de uma
i direta na natureza de trabalhar junto ou coordenar as ações
icnte do sujeito. Assim, na medida que as ciências de labo
l>em sucedidas, no sentido de gerar "avanços", o fazem
«In u i l v i i l n d c prática.
'idade é, portanto, colocado em segun
* lui, não se presta às funções putativas
da descrição, nem é teoria que habilite a prever. Em vez disso, as teo-
rias entram em campo como um meio de coordenar as comunidades
dos cientistas que trabalham juntos em vários problemas da prática.
Com efeito, as teorias científicas possuem utilidade prática na ativida-
de comunitária da ciência. Conforme nos coordenamos simultaneamen-
te à natureza e aos outros, o discurso passa a ter utilidade crescente.
Como Wittgenstein (1963), podemos ver a linguagem entrelaçada em
vários "jogos de linguagem". Palavras e frases ganham sentido de acor-
do com sua utilidade durante o jogo. Nesse sentido, termos como pró-
tons, polimer, plenum, polidez e persuasão são essenciais não como
descrições do que existe, porém como implementos que permitem aos
trabalhadores da ciência realizar suas tarefas de natureza mais orgâni-
ca de previsão e controle. Os termos teóricos podem ser vistos todos
i orno constituintes críticos de um complexo conjunto de interdepen-
dências sociais. Embora não sejam aproximações da verdade, ainda
assim são vitais para a realização do empreendimento científico.
4) Porque as reivindicações da ciência são constitutivas da vida
'•ocial, deveriam ser adequadamente abertas à avaliação de todo o es-
iwtro de comunidades discursivas. Essa ênfase na utilidade pragmáti-
• .1 da linguagem no interior da atividade comunitárta que chamamos
• !<• ciência tem outras implicações no seu significado. As característi-
i . pragmáticas do discurso dificilmente reduzem-se à esfera científi-
i . ao contrário, o uso científico sem dúvida nenhuma deriva da
MI ihilade mais geral da linguagem no desenvolvimento dos negócios diá-
M" Pelo menos no mundo ocidental moderno seria difícil participar
•i i maior parte dos padrões organizados de relacionamentos sem uma
iinr"aj F ,cm verbal. Não é que a língua seja essencial à expressão de nos-
••stados mentais; como vimos a partir da análise precedente, essa
u > da linguagem compromete a pessoa com um dualismo desneces-
" i obscurecedor. Em vez disso, podemos ver a linguagem verbal
Ê n > elemento constituinte vital de muitos padrões complexos de inter-
• K iimmentos. (Ver também Packer, no prelo; Shweder e Miller,
i'ara desenvolver uma amizade, uma transação comercial, um
• m, 11 ice ou um exercício em sala de aula há uma exigência típica de
participantes coordenem os movimentos dos membros, dos
is expressões faciais e assim por diante, junto com os sons emi-
• I ' - suas bocas. Fazer linguagem nesses ambientes é entrar em pa-
• ooulenados de relação.
K preâmbulo é essencial para a compreensão das demais impli-
I i l < > desenvolvimento do trabalho académico — em particular a
l n.is ciências sociais e ciências humanas. Isso porque, embora
63
criado no interior das comunidades académicas, o discurso académico
raramente permanece em casa. Ou seja, tal discurso é injetado (às ve-
zes, sistematicamente) na cultura ambiente. Ao empreender as tarefas
de descrição, explicação, análise lógica e crítica, os académicos estãos,
na realidade, oferecendo ao mundo formas de prática discursiva. Para
todos os que ouvirem (ou tiverem que ouvir), essas formas de prática
podem ser subsequentemente utilizadas no desenvolvimento de relacio-
namentos locais. (Ver também os capítulos de Grosholz e de Shotter
e Logan, neste livro.)
Essa insinuação da linguagem académica na sociedade tem conse-
quências nada pequenas posto que, como vimos, as práticas linguísti-
cas da comunidade são integralmente entrelaçadas aos padrões mais
gerais de vida cultural. Assim, à medida que se amplia, modifica ou
expande o potencial linguístico da cultura através da comunidade aca-
démica, os padrões sociais da cultura são reduzidos, transformados ou
enriquecidos. Desse ponto desvista, os cientistas não funcionam como
autómatos desapaixonados, mergulhados nos rigores dos espelhos que
seguram para refletir a realidade. Ao contrário, na própria formula-
ção dos problemas, na opção por possíveis soluções e na tentativa de
avaliar uma solução em detrimento de outra, já estão penetrando na
vida da cultura. Ver o mundo enquanto mecanicista humano, dualista
cartesiano, hobbesiano, freudiano ou marxista tem implicações vitais
para os tipos de relacionamentos em que estamos engajados. Cada con-
texto de discurso favorece determinadas ações e inibe outras; cada um
sustenta ou altera a cultura, para o bem ou para o mal, conforme o
padrão usado (ver também Henrique et ai., 1984; Mitchell, 1983).
Vemos, assim, que abandonar a busca da verdade na ciência ou
em outras explorações académicas não significa minar a importância
dessas atividades. É, ao contrário, elevar o senso de responsabilidade
do cientista; tal atividade pode contribuir para com as formas existen-
tes de vida cultural ou destruí-las. Na medida em que os frutos da aca-
demia vêm a ser saboreados por números cada vez maiores de pessoas,
aumenta também o potencial de transformação cultural. A preocupa-
rão feminista com a distância entre o trabalho conceituai abstrato c
• i M .'i x i-, social recebe, assim, uma resposta; pois enquanto esse traba-
• • i M K In ser significativamente comunicado, ele constitui uma
• iM 1 ". <-ssa análise incita ao desenvolvimento do diia-
•ii-.curso académico é ativo na modelage
:
i v < - i i a estar aberto ao escrutínio crít
i' "•• i ipos de ataque que as feminis
'•
tas fizeram às práticas masculinas de fabricação de conhecimento não
deveriam ser vistos como ações únicas necessárias, nem como ações
de validade temporária — à espera do aparecimento de novas formas
sociais. Em vez disso, como advogou Feyerabend em Science in a Free
Society (Ciência Numa Sociedade Livre), a consideração reflexiva de
várias formas de discurso deveria constituir um empreendimento con-
tínuo em que se deveria investir todos os enclaves subculturais. Nesse
empreendimento, o diálogo deveria receber um prémio. Frequentemen-
te, o foco da crítica se limita a determinados grupos; sua lógica só é
compartilhada pelos participantes de uma comunidade com um discurso
especializado — a qual, essa crítica, tipicamente, serve para sustentar.
No entanto, quando a crítica permanece isolada do desafio dos outros
- particularmente seus alvos — reduz-se a interdependência coorde-
nada. Aumentam as possibilidades de hierarquia, da dicotomia sujeito-
objeto, da opressão que desumaniza. Como aconselhou Keller (1986),
lemos que "negociar o nosso caminho entre a similaridade e a oposi-
ção" e permitir "o reconhecimento do parentesco na diferença e o da
diferença no parente". É mais provavelmente através do amplo e di-
fundido diálogo que alcançaremos essas honrosas metas.
CONCLUSÃO
apítulo procurou examinar as implicações epistemológicas da crí-
i n .1 leminista existente ao conhecimento científico. Como foi inicial-
MI. me demonstrado, essa crítica não é simplesmente uma admoestação
ii» pieconceito masculino embutido nas "verdades" científicas; cons-
umi .10 mesmo tempo um questionamento do próprio conceito de ciên-
• M • mpfrica. O capítulo leva, então, em consideração diversas tentativas
ulêtnicos feministas de substituir a concepção androcêntrica do
iiivimcnto empírico por visões da ciência que ofereçam à perspec-
" • i 1 i miuista um privilégio. Nessa tendência encontram-se também fa-
iportantes. Finalmente, o capítulo explora as possibilidades de
i 'isiemologia social que pareça profundamente congenial em re-
is muitas linhas de argumentação feministas existentes. Essa
i cão consideraria as reivindicações do conhecimento como com-
os discursivos que, fundamentalmente, não seriam constrangi-
la observação; seriam dependentes do processo social e
65
constitutivos do padrão social. Enfatiza-se a importância da crítica e
da criatividade conceituai. Outras implicações e possíveis insuficiên-
cias dessas opiniões são discutidas em outras partes (Gergen, 1985,
1987). Será necessária maior investigação para se determinar a viabili-
dade de tal orientação — tanto enquanto relato científico como expres-
são de preocupações feministas.
NOTA
l. Em alguns momentos os cientistas sociais parecem querer testar teorias con-
correntes, uns contra os outros. No entanto, esses "testes" só são permitidos
quando o académico deseja suspender a crença numa determinada forma de
inteligibilidade e aceder à plausibilidade de um contexto concorrente. Essa
suspensão da crença não pode se dar em bases empíricas-racionais, pois na-
da há no compromisso inicial que garanta voz a um concorrente em potencial.
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 FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Mary McCanney Gergen — ed.
Reitor: António Joanez Ruiz
Vice-Reitor: Eduardo Flávio Oliveira Queiroz

EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Conselho Editorial
O PENSAMENTO
Cristovam Buarque
ÇlUot Watanabe Kitajima
FEMINISTA
Emanuel Araújo (presidente)
Everardo de Almeida Maciel
E A ESTRUTURA
José de Lima Acioli
Odilon Pereira da Silva
DO CONHECIMENTO
Orlando Ayrton de Toledo
Roberto Boccacio Piscitelli
Roque de Barros Laraia
Venício Arthur de Lima

Tradução de
ANGELA MELIM

A l ililora Universidade de Brasília, instituída pela Lei n? 3.998, de

l •> de dc/cmbro de 1961, tem como objetivo "editar obras científi-
cas, técnicas e culturais de nível universitário".
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