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Grusinski reflete acerca da mundialização a partir de um olhar periférico que foge do eixo
hegemônico Europa e Estados Unidos, mostrando que há diferentes maneiras de penetrar nesse
fenômeno global. Divide seu livro em quatro partes, cada qual contendo as principais ideias que
permearam o processo de mobilização ibérica – isento de eurocentrismo, substituí o termo “expansão”-.
Apesar da dificuldade apresentada apela amplitude do tema, o autor, a partir de uma descrição local,
constrói pontes em lugares acidentados. Revela os laços existentes entre a esfera local e a mundial.
Articula eventos supostamente distantes e isolados, ressaltando o diálogo eminente entre o objeto mais
íntimo e o projeto mais planetário.
Na primeira parte do livro (“A mundialização ibérica”, capítulo 1 ao 3), o autor revela um
número estimulante de informações que podem ser obtidas a partir da leitura do diário do índio
Domingo Chimalpahin e, na mesma direção, estabelece uma relação entre a ação mais íntima e sua
inserção em outros acontecimentos mais amplos: sendo estes de ressonância internacional enquanto,
aquela, puramente local. Por mais ínfimo que o objeto pessoal do cronista aparente ser, a escolha desse
documento para dar início ao texto suscita questionamentos imprescindíveis para a compreensão de
modernidade.
Oscila entre a visão europeia e a visão indígena sobre esse processo de mundialização, tecendo
uma “rede universal que se faz e desfaz sem cessar” (p. 153) responsável por moldar seres e
sociedades. A mobilização de seres humanos vem acompanhada de um sentimentalismo que não passa
despercebido. Ao mesmo tempo que solda os modos de vida e as subjetividades, instiga ódios, desejos
e preocupações que alimentam esse imaginário mundialmente compartilhado.
Os agentes privilegiados da mundialização são objeto da terceira parte (“As coisas do mundo”,
capítulos 7 a 11). Aponta a importância que os experts tiveram no estabelecimento de conexões entre as
quatro partes do mundo, destacando Garcia da Orta e Gaspar da Cruz, homens práticos que viam a
experiência in loco a melhor forma de recolher informações. Em função tanto da Coroa como da Igreja,
esses administradores, militares, cosmógrafos, engenheiros e literatos exerceram papel crucial no
enraizamento local da sociedade colonial. Porém, Grusinski defende que esse trabalho não se limita a
estreitar laços, mas remodelar conjuntos regionais e soldar diferentes realidades. Isto é, o conhecimento
das engrenagens da organização social de vida indígena “serviu para consolidar uma das malhas
essenciais da dominação espanhola e adaptar as populações indígenas às necessidades do império.”
(p.212). A modificação de línguas, a difusão de saberes europeus, a imposição de símbolos, foram
alguns dos métodos que balizaram a comunicação entre os dois mundos.
Apesar dos estudos minuciosos que o diálogo entre o Novo e o Velho Mundo rendeu, esse
contato não se mostrou isento de obstáculos muitas vezes intransponíveis. Não se pode negar a
existência de uma receptividade, porém, sob o jugo do Santo Ofício, esses pesquisadores muitas vezes,
para que tivessem seu estudo publicado e mundialmente difundido, eram proibidos de manifestar
admiração às culturas pagãs. Caso o fizessem, teriam que prezar pela sutileza das palavras, tendo em
vista a vigilância onipresente dos inquisidores. Junto a eles, elites mundiais desempenham um papel
importante em fazer coincidir os limites da monarquia católica com as do globo. Deslocam-se entre os
continentes, pensam e organizam a comunicação. Desenvolvem projetos religiosos, políticos e
intelectuais e revelam uma capacidade de pensar o mundo. O uso de dados climáticos e a avaliação da
duração das travessias, por exemplo, são estudados a fim de aperfeiçoar as rotas comerciais, uma visão
que elucida as pontes entre a esfera local e a esfera global.
Muitas das obras de arte mencionadas por Grusinski traduzem um sentimento diante do
desconhecido e nos convidam a olhar o ocidental como “o outro”. A quarta e última parte (“A esfera de
cristal”, capítulo 12 a 16) tem por princípio enfatizar a mestiçagem presente nas artes criadas nas
fronteiras da monarquia ibérica. A assimilação cultural se manifesta nesses objetos, porém, Grusinski
não deixa de ponderar que “toda mestiçagem tem limites” (p. 352). A produção artística no Novo
mundo sofre inúmeras intervenções antes de ser absorvida pela sociedade europeia do Velho Mundo.
Cabe ressaltar, porém, o que o autor chama ingenuamente de ressignificação cultural recebe outra
designação sob a análise do leitor mais crítico; as primeiras expressões do que hoje seria chamado de
apropriação cultural, uma vez que a valorização de objetos exóticos revela uma estrutura nociva que
apaga e silencia o grupo que o produz.
A “água de duas cabeças” sintetiza a ideia dessas duas forças que se mostram, no decorrer da
dominação ibérica, indissociáveis uma da outra. Enquanto a ocidentalização reproduz instituições e
modos de vida, a globalização projeta para fora da Europa um saber fechado. A mundialização proposta
por Grusinski visa, por fim, articular o espaço europeu ao espaço americano, africano e asiático através
de um processo de produção de uma consciência de que o globo está unificado. Constrói pontes não
somente entre o íntimo e o planetário, mas, principalmente, entre o passado e o presente, o que garante
a vivacidade da obra.
Outro conflito que o autor expõe ao seguir sua linha historiográfica é uma demanda global que
desorganiza as noções de modernidade. Em outras palavras, explica a carência de estudos direcionados
à área periférica pela suposta falta de demanda. Entretanto, cabe ressaltar, que há um equilíbrio entre
oferta e demanda. Uma determina a outra e vice-versa, sendo a falta de demanda também uma
consequência da falta de ofertas. O argumento de Grusinski, pois, não dá conta da complexidade da
realidade.
Semelhante desafio se impõe ao autor no que diz respeito à desconfiança das historiografias
nacionais que, por muito tempo, insistiram em solapar os fluxos e circulações que enriqueceram os
países ibéricos. Em “Visões do Paraíso”, Sérgio Buarque de Holanda defende uma diferenciação entre
Portugal e Espanha na construção do Império Ibérico, atribuindo ao primeiro um caráter mais prático e
menos imaginativo que à segunda. Tal colocação abre portas a uma série de interpretações
inferiorizantes e preconceituosas da América Portuguesa que fomentam essa caricatura. Sob o crivo do
leitor atento, Grusinski não consegue vencer esse obstáculo. No capítulo IV e V, revela um
enaltecimento exagerado da Nova Espanha, conferindo-lhe uma proeminência em relação as outras
colônias que não se justifica senão por um fanatismo. Nesse aspecto, pouco se diferencia de seus rivais
que visa ultrapassar.
Ora, mas se o livro trata de uma história cultural, qual a significância que Grusinski concede à
economia como catalizador da mundialização? Apesar de uma história econômica não se mostrar
suficiente aos olhos do autor, desprezá-la seria imprudente. Sendo assim, tampouco seria possível
reduzi-la à visão binária que reside o debate historiográfico; seria a mentalidade catalisadora das
materialidades ou vice-versa? No decorrer dos capítulos, é possível identificar trechos que justificam
ambas as hipóteses. E essa transigência revela a posição coerente de Grusinski dentro do debate. Na
tentativa contínua de trocar o “ou” pelo “e”, mostra que a construção de uma mentalidade e sua
concretização material são hipóteses coexistentes e indissociáveis. Retroalimentam-se na medida em
que se ressignificam diante das imprevisibilidades do tempo.
A mobilização ibérica, fruto e berço dessa modernidade, não foge à regra. Mentalidades e ações
caminham juntas nesse processo e, portanto, a afirmação da existência de um projeto prévio idealizado,
de uma razão de estado, não se sustenta. Grusinski, ao detalhar os diversos choques culturais e suas
sutilezas e imprevistos, reforça seu posicionamento a respeito da inexistência de um projeto
homogêneo e constante. Defende uma mobilização que se deu através do “movimento para movimento,
movimento para mais movimento, movimento para uma maior aptidão ao movimento” (p. 57). A
respeito da consolidação de um programa que emprestasse à mundialização e à globalização ibéricas o
sentido de um grande empreendimento intelectual, o autor afirma que “nada disso existiu
propriamente” (p. 418).
As ferramentas utilizadas pelo autor dividem-se em fontes verbais e não verbais. As fontes
verbais englobam inúmeros tipos de documentos: relatos, crônicas, cartas... Por outro lado, imagens
estão fartamente distribuídas e se dividem entre fontes históricas e ilustrações. Essa disposição,
aparentemente excessiva, causa um efeito proveitoso àqueles que mergulham nas páginas do livro.
Desperta no leitor a sensação de uma onipresença ibérica em que as imagens são essenciais para
construir a ideia de um “imaginário comum”.
A genialidade de Grusinski reside, portanto, na exposição de seu ponto de vista não somente
pelo conteúdo mas também pela própria estrutura, forma e exposição de seu texto. Quando o autor
propõe uma visão periférica da mundialização, defende uma história cultural descentrada que se afasta
dos europeísmos. Assim se segue também a percepção do tempo. Encantadoramente assustadora aos
europeus, a noção cíclica do tempo - característica de muitas sociedades indígenas – é historicamente
inferiorizada pelos impérios europeus. O escritor francês, além de defender que tal percepção não linear
é igualmente rica, estrutura a cronologia do livro de forma cíclica. Inicia no presente, volta ao século
XVI, e, ao final, retorna à atualidade. Uma obra em que conteúdo e forma convergem para reforçar sua
tese.
Por outro lado, determina um recorte espaço-temporal que não abarca todos os temas
abordados. Eventos que antecedem e procedem a união ibérica acabam, muitas vezes, transbordando
seu rígido enquadramento. A chegada de Cristóvão Colombo em 1492 à América Central, assim como
as ressonâncias desse evento em datas recentes, comprova a complexidade da tentativa de delinear e
unificar um fenômeno tão complexo e contínuo. O autor prenuncia esse desafio ao afirmar que “da
instauração das suas primeiras conexões à sua onipresença, há uma distância que não será transposta no
século XVI” (p. 184). Ao extrapolar o recorte por ele proposto, Grusinski reitera o que tenta provar: a
força de um fenômeno que não é privilégio de nossos contemporâneos, tampouco restrito aos antigos.
O que nos leva a outra discussão; a forma como o autor lida com o tempo histórico. Tanto o
conteúdo assim como a forma corroboram a forma com que Grusinski entende o passado e se deixa
afetar por ele. A sutileza em formatar sua obra de forma cíclica implica uma interpretação de um tempo
histórico em mutação - em que passado e presente se interceptam e se modificam. Tal posição lhe
garante uma condição diferenciada, uma vez que na maioria os historiadores se encontram embebidos
de uma tradição linear na qual o passado constitui um bloco único, distante e imutável. Em contramão,
apesar de traçar bons paralelos entre diferentes tempos, a percepção da ocorrência de um fenômeno de
caráter “global” de Grusinski desconsidera um grupo significativo de agentes históricos. Não é possível
afirmar que a mundialização, como defende o escritor, era realmente um fenômeno mundialmente
percebido, uma vez que ele se atenta a agentes históricos que tiveram, de alguma forma, certa
relevância na história.