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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de História

Sofia Azevedo de Carvalho


11252392
vespertino

Resenha do livro GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma


mundialização
Nas últimas décadas temos nos tornado cada vez mais dessensibilizados acerca do termo
“globalização”. A novidade perdeu seu frescor e a mudança tornou-se regra, não exceção. Apesar do
cenário desestimulante, Grusinski, ao buscar na expansão ibérica o processo embrionário do que ele
nomeia como “mundialização”, resgata seus significados que no tempo se perderam, sensibilizando as
mentes mais modernas. “As quatro partes do mundo- a história de uma mundialização” revisita
conceitos esgotados e mobiliza questionamentos relevantes não só para uma melhor compreensão
histórica, mas para melhor interpretação do presente. Publicado em 2014, o livro escrito pelo francês
Serge Grusinski, apesar da distância secular de seu objeto de estudo, revela uma atualidade inaudita.

A “mundialização” mencionada designa uma estrutura espaço-temporal; a união entre Portugal


e Espanha, período compreendido entre 1580 e 1640. Nesse contexto, complexifica o processo de
universalização ibérica de forma a não reduzi-lo simplesmente a vencedores e vencidos. Ultrapassa a
divisão estritamente binária entre os povos do “bem” e do “mal”, colonos e colonizados que permeia a
historiografia ocidental e elucida essa área cinzenta do espectro da dominação ibérica. Revela uma
realidade multifacetada de uma dominação possibilitada pela criação de redes de comércio e de pessoas
junto a um fluxo simbólico de valores e crenças.

Grusinski reflete acerca da mundialização a partir de um olhar periférico que foge do eixo
hegemônico Europa e Estados Unidos, mostrando que há diferentes maneiras de penetrar nesse
fenômeno global. Divide seu livro em quatro partes, cada qual contendo as principais ideias que
permearam o processo de mobilização ibérica – isento de eurocentrismo, substituí o termo “expansão”-.
Apesar da dificuldade apresentada apela amplitude do tema, o autor, a partir de uma descrição local,
constrói pontes em lugares acidentados. Revela os laços existentes entre a esfera local e a mundial.
Articula eventos supostamente distantes e isolados, ressaltando o diálogo eminente entre o objeto mais
íntimo e o projeto mais planetário.

Na primeira parte do livro (“A mundialização ibérica”, capítulo 1 ao 3), o autor revela um
número estimulante de informações que podem ser obtidas a partir da leitura do diário do índio
Domingo Chimalpahin e, na mesma direção, estabelece uma relação entre a ação mais íntima e sua
inserção em outros acontecimentos mais amplos: sendo estes de ressonância internacional enquanto,
aquela, puramente local. Por mais ínfimo que o objeto pessoal do cronista aparente ser, a escolha desse
documento para dar início ao texto suscita questionamentos imprescindíveis para a compreensão de
modernidade.

A mobilização de recursos do Ocidente para o resto do globo não é um movimento unilateral. A


circulação de homens, mercadorias, obras de arte, manuscritos era recíproca e assegurava um retorno
de informações ao Velho Mundo. As informações intrínsecas aos objetos materiais não passou
incólume aos nativos no Novo Mundo. Isto é, a circulação de textos, das ideias e das crenças europeias
acelerou essa interação de culturas possibilitou uma mestiçagem nas mais diversas esferas. Essa onda
de conhecimento representava a construção do que Grusinski chama de “imaginário planetário” (p. 33),
etapa primordial na criação de um reino universal em que seus súditos exprimam a consciência de
pertencer à monarquia católica.

A onipresença da mestiçagem instrumentaliza essa dominação do imaginário. Nascida no seio


da dominação, é imprescindível não somente na troca quase inevitável de saberes e conhecimento, mas
na articulação de imaginários a fim de formar um todo unificado. Nesse cenário, ao lançar ao
desconhecido frotas essencialmente heterogêneas, inicia-se a chamada mobilização ibérica, movimento
que possibilitou a aproximação dos dois hemisférios e as quatro partes do mundo. Insere o leitor em
uma discussão riquíssima acerca da manifestação de uma modernidade ibérica, que não se daria em
terras europeias, mas na mobilização, na mestiçagem e na mundialização, três conceitos indissociáveis.
Em seguida, na segunda parte (“As coisas do mundo”, capítulo 4 ao 6) do livro, Grusinski delineia a
proeminência do México, “portador de riquezas infinitas” (p. 125), articulador de dois mundos
desconhecidos e epicentro cultural do século XVI. Atribui à Nova Espanha uma dimensão universal
discutível, e sua singularidade reside tanto em sua posição geográfica central quanto na intensa
mestiçagem que isso lhe proporcionou.

A capacidade do continente americano em absorver e difundir essa riqueza incalculável se


desenvolve de diversas formas. Em primeiro lugar, costurou-se nos oceanos um emaranhado de redes
humanas que possibilitou a troca em escala planetária. Um fluxo esporádico de notícias entre a Cidade
do México, a Península, o Caribe, a América do Sul, Manila, e mesmo além, a China e o Japão. Para
além das novidades, circulou nessa rede uma bibliografia clássica, molde do pensamento renascentista
europeu, doravante indispensáveis nas bibliotecas do Novo Mundo. O domínio artístico é bastante
explorado por Grusinski, que lhe confere substancial importância para a apreensão da realidade. Nele,
salienta a importância dos eventos literários, teatrais, arquitetônicos, e artísticos no geral. As exéquias
de Carlos V, por exemplo, traduzem essa tentativa da construção de uma imaginação planetária que
altera grosseiramente a realidade histórica, conforme a ideologia imperial.

Oscila entre a visão europeia e a visão indígena sobre esse processo de mundialização, tecendo
uma “rede universal que se faz e desfaz sem cessar” (p. 153) responsável por moldar seres e
sociedades. A mobilização de seres humanos vem acompanhada de um sentimentalismo que não passa
despercebido. Ao mesmo tempo que solda os modos de vida e as subjetividades, instiga ódios, desejos
e preocupações que alimentam esse imaginário mundialmente compartilhado.
Os agentes privilegiados da mundialização são objeto da terceira parte (“As coisas do mundo”,
capítulos 7 a 11). Aponta a importância que os experts tiveram no estabelecimento de conexões entre as
quatro partes do mundo, destacando Garcia da Orta e Gaspar da Cruz, homens práticos que viam a
experiência in loco a melhor forma de recolher informações. Em função tanto da Coroa como da Igreja,
esses administradores, militares, cosmógrafos, engenheiros e literatos exerceram papel crucial no
enraizamento local da sociedade colonial. Porém, Grusinski defende que esse trabalho não se limita a
estreitar laços, mas remodelar conjuntos regionais e soldar diferentes realidades. Isto é, o conhecimento
das engrenagens da organização social de vida indígena “serviu para consolidar uma das malhas
essenciais da dominação espanhola e adaptar as populações indígenas às necessidades do império.”
(p.212). A modificação de línguas, a difusão de saberes europeus, a imposição de símbolos, foram
alguns dos métodos que balizaram a comunicação entre os dois mundos.

Apesar dos estudos minuciosos que o diálogo entre o Novo e o Velho Mundo rendeu, esse
contato não se mostrou isento de obstáculos muitas vezes intransponíveis. Não se pode negar a
existência de uma receptividade, porém, sob o jugo do Santo Ofício, esses pesquisadores muitas vezes,
para que tivessem seu estudo publicado e mundialmente difundido, eram proibidos de manifestar
admiração às culturas pagãs. Caso o fizessem, teriam que prezar pela sutileza das palavras, tendo em
vista a vigilância onipresente dos inquisidores. Junto a eles, elites mundiais desempenham um papel
importante em fazer coincidir os limites da monarquia católica com as do globo. Deslocam-se entre os
continentes, pensam e organizam a comunicação. Desenvolvem projetos religiosos, políticos e
intelectuais e revelam uma capacidade de pensar o mundo. O uso de dados climáticos e a avaliação da
duração das travessias, por exemplo, são estudados a fim de aperfeiçoar as rotas comerciais, uma visão
que elucida as pontes entre a esfera local e a esfera global.

Muitas das obras de arte mencionadas por Grusinski traduzem um sentimento diante do
desconhecido e nos convidam a olhar o ocidental como “o outro”. A quarta e última parte (“A esfera de
cristal”, capítulo 12 a 16) tem por princípio enfatizar a mestiçagem presente nas artes criadas nas
fronteiras da monarquia ibérica. A assimilação cultural se manifesta nesses objetos, porém, Grusinski
não deixa de ponderar que “toda mestiçagem tem limites” (p. 352). A produção artística no Novo
mundo sofre inúmeras intervenções antes de ser absorvida pela sociedade europeia do Velho Mundo.
Cabe ressaltar, porém, o que o autor chama ingenuamente de ressignificação cultural recebe outra
designação sob a análise do leitor mais crítico; as primeiras expressões do que hoje seria chamado de
apropriação cultural, uma vez que a valorização de objetos exóticos revela uma estrutura nociva que
apaga e silencia o grupo que o produz.

A invenção artística, portanto, confronta os homens do Renascimento. Enquanto a mestiçagem


se aloja no coração da dominação ibérica, a irradiação dos saberes europeus é feita de forma
impenetrável. Se, por um lado, a produção de imagens e a construção de uma catedral no México
seguem proporções essencialmente renascentistas, os saberes aristotélicos e humanistas se esforçam
para permanecer intactos. A globalização desse pensamento erudito é a “esfera de cristal” mencionada
por Grusinski. Um ensinamento europeu que consente em descobrir o longínquo, sem, entretanto,
deixar-se penetrar por ele. Para que um pensamento seja cristalizado e universalizado, a linguagem
deve trilhar o mesmo caminho. A globalização de uma forma de comunicação implica na propagação
de emblemas e alegorias facilmente compreendidas por qualquer indivíduo. A tentativa de compor uma
retórica europeia de imagens levanta novamente a questão da globalização, um fenômeno que não é
“made in Europe”, mas que homogeniza as subjetividades humanas nas quatro partes do mundo e
“apaga mecanicamente os universos diferentes com os quais convivemos” (p. 405). Não se deve
confundi-lo, pois, com a “ocidentalização” mencionada pelo autor. Por mais que dinâmicas
componentes do mesmo fenômeno, esse último possui um objetivo eminentemente político de
dominação.

A “água de duas cabeças” sintetiza a ideia dessas duas forças que se mostram, no decorrer da
dominação ibérica, indissociáveis uma da outra. Enquanto a ocidentalização reproduz instituições e
modos de vida, a globalização projeta para fora da Europa um saber fechado. A mundialização proposta
por Grusinski visa, por fim, articular o espaço europeu ao espaço americano, africano e asiático através
de um processo de produção de uma consciência de que o globo está unificado. Constrói pontes não
somente entre o íntimo e o planetário, mas, principalmente, entre o passado e o presente, o que garante
a vivacidade da obra.

Grusinski propõe um método de história cultural descentrada, atenta às sensibilidades dos


indivíduos e suas permeabilidades nos confins da expansão ibérica, que se mostra sedutora em um
primeiro momento. Trata-se de propor uma errata à historiografia do período, que teria, quase toda ela,
adotado como verdade histórica a versão do eurocentrismo e provincialismo. Entretanto, sua crítica à
superficialidade da world history, à micro e macro história e ao etnocentrismo de historiadores que
trataram desse tema acaba lhe conferindo um pedestal questionável. Garante a si próprio um ineditismo
perigoso – por mais que bem sucedido -, pois inferioriza outras historiografia em escala continental à
medida que “os trabalhos dos historiadores da Europa ocidental não nos ajudam a olhar para além dos
limites dessa porção do mundo, e seus colegas americanos, ainda muitas vezes presos a fronteiras
herdadas do século XIX, não nos trazem ar mais fresco”. (p.41). Nesse ponto, o autor, que reitera
continuamente seu apreço pelas particularidades, se mostra generalizante e reducionista, redigindo
críticas que pouco contribuem para a discussão historiográfica. Cabe ressaltar também outro perigo de
seu autoproclamado ineditismo; o autor se inspira em uma historiografia iniciada na década de 1980
nos Estados Unidos, em cultural studies, subaltern studies e postcolonial studies, que dão início a uma
série de denúncias a uma história que não é senão a projeção do Ocidente sobre o resto do planeta.

Outro conflito que o autor expõe ao seguir sua linha historiográfica é uma demanda global que
desorganiza as noções de modernidade. Em outras palavras, explica a carência de estudos direcionados
à área periférica pela suposta falta de demanda. Entretanto, cabe ressaltar, que há um equilíbrio entre
oferta e demanda. Uma determina a outra e vice-versa, sendo a falta de demanda também uma
consequência da falta de ofertas. O argumento de Grusinski, pois, não dá conta da complexidade da
realidade.

Semelhante desafio se impõe ao autor no que diz respeito à desconfiança das historiografias
nacionais que, por muito tempo, insistiram em solapar os fluxos e circulações que enriqueceram os
países ibéricos. Em “Visões do Paraíso”, Sérgio Buarque de Holanda defende uma diferenciação entre
Portugal e Espanha na construção do Império Ibérico, atribuindo ao primeiro um caráter mais prático e
menos imaginativo que à segunda. Tal colocação abre portas a uma série de interpretações
inferiorizantes e preconceituosas da América Portuguesa que fomentam essa caricatura. Sob o crivo do
leitor atento, Grusinski não consegue vencer esse obstáculo. No capítulo IV e V, revela um
enaltecimento exagerado da Nova Espanha, conferindo-lhe uma proeminência em relação as outras
colônias que não se justifica senão por um fanatismo. Nesse aspecto, pouco se diferencia de seus rivais
que visa ultrapassar.

Ao retomar o conceito de mundialização, dialoga diretamente com o método de economia-


mundo proposta por Immanuel Wallerstein. Ao estudar o período em questão, sugere uma unidade de
análise, dentro da qual, as esferas políticas, econômicas e socioculturais são estreitamente conectadas.
Nesse sentido, o aspecto cultural e material – este último menosprezado em seu livro – se mostram
igualmente significativos para a compreensão de seu objeto de estudo. Apesar de reconhecer os
ensinamentos fornecidos pelos historiadores das instituições e da economia, posiciona-se à frente de
seus métodos. Critica precisamente a balança desigual desse método que valoriza a importância da
economia e das instituições para a construção de um cenário global e desvaloriza as manifestações
literárias, plásticas, arquiteturais ou musicais. Seu posicionamento repreensivo à simplicidade da
análise de Immanuel Wallerstein e sua obra “The Modern World-System” confirma o caráter distinto
de sua proposta. Em oposição, Grusinski segue uma historiografia que converge com a de Fernand
Braudel no que diz respeito a um “Mediterrâneo que não tem unidade senão pelo movimento dos
homens, pelas ligações que ele implica e pelas rotas que o conduzem” (p. 464). Ao seguir essa linha
historiográfica, o autor responde a questões acerca da modernidade ibérica. A ausência de um poder
centralizado indicado por essa desunião implica – de forma concisa - ausência de uma razão de estado
propulsora da mobilização ibérica e, principalmente, oferece pistas de onde reside a modernidade dos
ibéricos.

Ora, mas se o livro trata de uma história cultural, qual a significância que Grusinski concede à
economia como catalizador da mundialização? Apesar de uma história econômica não se mostrar
suficiente aos olhos do autor, desprezá-la seria imprudente. Sendo assim, tampouco seria possível
reduzi-la à visão binária que reside o debate historiográfico; seria a mentalidade catalisadora das
materialidades ou vice-versa? No decorrer dos capítulos, é possível identificar trechos que justificam
ambas as hipóteses. E essa transigência revela a posição coerente de Grusinski dentro do debate. Na
tentativa contínua de trocar o “ou” pelo “e”, mostra que a construção de uma mentalidade e sua
concretização material são hipóteses coexistentes e indissociáveis. Retroalimentam-se na medida em
que se ressignificam diante das imprevisibilidades do tempo.

Retomando a questão da modernidade dos ibéricos, o escritor não hesita em retirar


arbitrariamente dos países ibéricos qualquer mérito de modernidade, afirmando com precisão que ela se
encontra essencialmente no além-mar (p. 95). Isto é, os espaços remotos e seus atores, assim como os
diferentes imaginários, conferem a singularidade da modernidade ibérica. Ora, muitas historiografias
tradicionais de modernidade consideram os países ibéricos arcaicos. Entretanto, a obra demonstra que,
seja na circulação de uma arte flamenga em Portugal ou na universalidade dos ensinamentos da
Universidade de Coimbra, a modernidade dos ibéricos está tanto na rede comercial de objetos globais
quanto na difusão monolítica dos conhecimentos universitários. A modernidade se manifesta na tensão
existente na construção de um imaginário planetário humanista e de um fluxo intenso de mercadorias.
Duas forças tão contrastantes quanto dependentes. Além disso, as ideias que configuram o humanismo
eram reconhecidas por sua importância em termos de diplomacia cultural. A troca intensa de objetos –
obras de arte, mapas cartográficos, artigos de luxo e outros presentes - era ininterrupta. Assim, a
dissociação do “concreto” e do “abstrato” não se mostra possível. Ambos são intrinsicamente ligados e
se articulam constantemente. E o livro, ao oscilar entre esse fluxo material e imaterial, reforça a
inexistência de uma segmentação das duas esferas.

A mobilização ibérica, fruto e berço dessa modernidade, não foge à regra. Mentalidades e ações
caminham juntas nesse processo e, portanto, a afirmação da existência de um projeto prévio idealizado,
de uma razão de estado, não se sustenta. Grusinski, ao detalhar os diversos choques culturais e suas
sutilezas e imprevistos, reforça seu posicionamento a respeito da inexistência de um projeto
homogêneo e constante. Defende uma mobilização que se deu através do “movimento para movimento,
movimento para mais movimento, movimento para uma maior aptidão ao movimento” (p. 57). A
respeito da consolidação de um programa que emprestasse à mundialização e à globalização ibéricas o
sentido de um grande empreendimento intelectual, o autor afirma que “nada disso existiu
propriamente” (p. 418).

As ferramentas utilizadas pelo autor dividem-se em fontes verbais e não verbais. As fontes
verbais englobam inúmeros tipos de documentos: relatos, crônicas, cartas... Por outro lado, imagens
estão fartamente distribuídas e se dividem entre fontes históricas e ilustrações. Essa disposição,
aparentemente excessiva, causa um efeito proveitoso àqueles que mergulham nas páginas do livro.
Desperta no leitor a sensação de uma onipresença ibérica em que as imagens são essenciais para
construir a ideia de um “imaginário comum”.

A genialidade de Grusinski reside, portanto, na exposição de seu ponto de vista não somente
pelo conteúdo mas também pela própria estrutura, forma e exposição de seu texto. Quando o autor
propõe uma visão periférica da mundialização, defende uma história cultural descentrada que se afasta
dos europeísmos. Assim se segue também a percepção do tempo. Encantadoramente assustadora aos
europeus, a noção cíclica do tempo - característica de muitas sociedades indígenas – é historicamente
inferiorizada pelos impérios europeus. O escritor francês, além de defender que tal percepção não linear
é igualmente rica, estrutura a cronologia do livro de forma cíclica. Inicia no presente, volta ao século
XVI, e, ao final, retorna à atualidade. Uma obra em que conteúdo e forma convergem para reforçar sua
tese.

Por outro lado, determina um recorte espaço-temporal que não abarca todos os temas
abordados. Eventos que antecedem e procedem a união ibérica acabam, muitas vezes, transbordando
seu rígido enquadramento. A chegada de Cristóvão Colombo em 1492 à América Central, assim como
as ressonâncias desse evento em datas recentes, comprova a complexidade da tentativa de delinear e
unificar um fenômeno tão complexo e contínuo. O autor prenuncia esse desafio ao afirmar que “da
instauração das suas primeiras conexões à sua onipresença, há uma distância que não será transposta no
século XVI” (p. 184). Ao extrapolar o recorte por ele proposto, Grusinski reitera o que tenta provar: a
força de um fenômeno que não é privilégio de nossos contemporâneos, tampouco restrito aos antigos.

O que nos leva a outra discussão; a forma como o autor lida com o tempo histórico. Tanto o
conteúdo assim como a forma corroboram a forma com que Grusinski entende o passado e se deixa
afetar por ele. A sutileza em formatar sua obra de forma cíclica implica uma interpretação de um tempo
histórico em mutação - em que passado e presente se interceptam e se modificam. Tal posição lhe
garante uma condição diferenciada, uma vez que na maioria os historiadores se encontram embebidos
de uma tradição linear na qual o passado constitui um bloco único, distante e imutável. Em contramão,
apesar de traçar bons paralelos entre diferentes tempos, a percepção da ocorrência de um fenômeno de
caráter “global” de Grusinski desconsidera um grupo significativo de agentes históricos. Não é possível
afirmar que a mundialização, como defende o escritor, era realmente um fenômeno mundialmente
percebido, uma vez que ele se atenta a agentes históricos que tiveram, de alguma forma, certa
relevância na história.

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