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REVISTA DE FFLCH-USP

Revista de Historia 132 1° semestre de 1995


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GÏUCCI, Guillermo. Sem Fé, Lei ou Rei: Brasil 1500-1532. Tradução de Carlos
Nougué. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.

DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro (A Origem do "Mito da


Modernidade"): Conferências de Frankfurt. Tradução de Jaime A. Ciasen.
Petrópolis, Vozes, 1993.

Dois lançamentos na área de História revisitam Ao longo do século XVI, quanto mais o índio re-
o tema do descobrimento do Novo Mundo, esmiu- cebia atributos bárbaros, devido à resistência ofere-
çando o intenso processo de intercambio cultural no cida aos europeus, mais as técnicas do Velho Mun-
quai a Europa, ao projetar o signo da negatividade do tornavam-se imprescindíveis — navios, artilharia,
sobre os povos indígenas, impõe-se com violencia ferramentas de metal, espelho e a própria escrita —
sobre as culturas americanas. enquanto estratégias de dominação dos ameríndios.
Guillermo Giucci, que realizou em seu livro an- A cristalização da imagem do índio como barbárie
terior, Viajantes do Maravilhoso (1992), uma análi- configurou-se nos escritos de Pero Magalhães
se primorosa do imaginário dos viajantes da Améri- Gandavo, em 1570, na sua célebre fórmula que se
ca, debruça-se em Sem Fé, Lei ou Réi — Brasil 1500- tornará lugar-comum na literatura colonial: os índi-
1532 sobre as fontes quinhentistas que desvendam as os "não têm Fé, nem Lei, nem Rei". Segundo Giucci,
formas européias de apreensão das terras e gentes de esta tornou-se "álibi do poder imperial", pois "pas-
Santa Cruz. sou a representar, [...] muito mais que uma observa-
Da Carta de Pero Vaz de Caminha, mitificadora ção etno-h istori ca: transformou-se em acusação com-
da natureza e dos índios e pautada na tradição bíbli- prometedora e efetivo método de pressão". (GIUCCI,
ca, aos escritos de Américo Vespúcio, que contra- 1993, p. 209).
põem a natureza edenizada à barbárie indígena, o Ampliando ainda mais esse campo de reflexões,
autor persegue as variações sofridas na imagem do 1492: O encobrimento do outro reúne oito conferên-
índio, à medida que avançava a colonização. cias de Enrique Dussel, professor da Universidade
140 Maria da Glória Porto Kok I Revista de História J32 (J995), 139-140

Autônoma do México. Partindo do pressuposto de ticas pedagógicas, culturais, eróticas e econômicas.


que a Modernidade não é um fenômeno exclusiva- A quinta, "a conquista espiritual", teve início com a
mente europeu, mas que deriva de uma relação dia- chegada dos doze franciscanos no México cm 1524.
lética com o não-europeu, o autor encontra a gênese Por fim, a sexta figura é uma tentativa por parte das
da Modernidade no ano de 1492, quando a Europa elites da América Latina de elaboração de um mito:
confrontou-se com o Outro e se afirmou como "cen- o "encontro de dois mundos". Dussel o desconstrói,
tro" da História. mostrando que, na verdade, houve um "choque" de
Depois de discutida a exclusão da America La- culturas, cujos abalos foram significativos para o
tina da ontologia hegeliana, Dussel, num primeiro universo indígena.
momento, distingue coriceitualmente seis figuras Num momento posterior, o autor faz uma crítica
históricas (Gestalteri) correspondentes a etapas es- precisa ao "mito da Modernidade", elaborado pela
pecíficas da incorporação da America ao Velho consciência européia que julga a própria cultura
Mundo. como superior e mais desenvolvida enquanto relega
A primeira delas resgata a tese central de as demais à barbárie. Neste sentido, o sujeito moder-
Edmundo O'Gorman, A Invenção da América. Co- no vitima o Outro e exime-se da culpa. Uma vez de-
lombo supôs ter chegado à Ásia e criou um "ser asi- molido este mito, Dussel adota a hermenêutica do
ático" no novo continente que só existiu no imagi- Outro e reconstrói o fato histórico do descobrimento
nário do navegador. A segunda figura é a do "des- à luz dos mitos indígenas.
cobrimento" enquanto experiência do "novo". Amé- Com a descoberta do Novo Mundo, portanto,
rico Vespúcio c quem melhor encarna este aspecto, configurou-se uma nova ordem mundial na qual a
pois à medida que introduzia a dúvida nos funda- América, a Africa e a Asia ocuparam os espaços pe-
mentos da cultura mediterrânea, ganhava consciên- riféricos da História e a Europa, o centro. Hoje cm
cia deter descoberto um mundo novo. Uma vez re- dia, assombrada pela eclosão de violentos conflitos
conhecido o território a ser dominado, passava-se à étnicos por todo o continente, a Europa volta o seu
praxis da dominação, à conquista, que constitui a olhar para a América como espaço de pluralidade de
terceira figura. Já a quarta, a "colonização do mun- culturas, alternativas e paradoxos. Os livros aqui
do da vida (JLebenswelt)"', diz respeito ao processo mencionados são contribuições funda-mentais para a
europeu de modernização do Outro por meio de prá- historiografia americana.

Maria da Glória Porto Kok


Doutoranda cm História Social

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