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C omo pensar o fenômeno religioso depois da saída da rel igião?

Luc FERRY
Será necessário ver no âmago da idad e laica uma persistência
do sagrado? Estará o mundo destinado ao desencantamento MARCEL GAUCHET
ou prometido a um reencantamento? Luc .Ferry e Mareei Gauchet
esclarecem aqui nossa perplexidade e seu desacordo por meio
de uma discussão densa, sem polêmica nem concessões.

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DI FEL .Cbam. 211.5 F399r.Pb de ditar a lei ?
Autor: Ferry, Luc,
Título: Depois de religião : o que será
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Capa: Simone Villas-Boas I Foto: Bocos Benedict/Fotolia I1111111111111111 l\11\ 111111\111\\11\\11111\\\1 \\I\\ \li\ I\\I DI FEL
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Pt trMin.< ~H N° Pat.:2011
Leia também de LUC FERRY & MARCEL GAUCHET
Luc Ferry:

O QUE É UMA VIDA


BEM-SUCEDIDA? DEPOIS DA
O HOMEM-DEUS
RELIGIÃO
OU O SENTIDO DA VIDA O que será do homem depois
que a religião deixar de ditar a lei?

Tradução
Nicia Adan Bonatti

D1
DI FEL
Copyright «7! Editions GRASSET & FASQUELLE, 1996
Título original: Le religieux apres la religion

Capa: Simone Villas-Boas

Editoração: DFL

2008
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
DEPOIS DA
RELIGIÃO
CIP-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros- RJ

F456d Ferry, Luc, 1951-


Depois da religião: o que será do homem depois que a reli-
gião deixar de ditar a lei?fLue Ferry & Mareei Gauchet; tradução
Nícia Adan Bonatti. -Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
l08p.

Tradução de: Le religieux apres la religion


ISBN 978-85-7432-082-3

l. Religião- Filosofia. 2. Religião- História - Século XXI.


3. Secularização (Teologia). I. Gauchet, Mareei, 1946-. II. Título.

CDD- 211.6
08-0411 CDU- 211.5

Todos os direitos reservados pela:


DIFEL - selo editorial da
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Vivemos a "morte de Deus" ou, ao contrário, o
retorno do religioso? A questão não cessa de se colocar.
Por um lado, as Igrejas e os dogmas enfraquecem em
proveito de crenças mais pessoais, "à la carte", dizem
alguns. Por outro - é preciso constatar - , os integris-
mos e outros fundamentalismos de todo gênero nunca
se comportaram tão bem. Como se situar entre tendên-
cias tão contraditórias? Luc Ferry e Mareei Gauchet
esclarecem aqui nossa perplexidade por meio de uma
reflexão que não hesita em recorrer à história da civi-
lização. Assistimos, eles concordam, a um duplo proces-
so, que Mareei Gauchet havia descrito em seu livro Le
désenchantement du monde (Gallimard, 1985): de um
lado, a "saída da religião" e, do outro, a "individualiza-
ção do crer". De fato, o que se apaga, de modo definiti-
vo, é uma visão do mundo inteiramente estruturada
pela religião (como heteronomia), uma concepção em
que o religioso impregna todos os setores da vida públi-
ca e privada. Saímos de tal maneira desse universo que
doravante é em nome da livre escolha pessoal que rei-
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 8 Depois da Religido 9

vindicamos- ou não- uma crença religiosa. Para isso fato de que toda a história cultural moderna consiste na
o religioso, como aspiração ao absoluto, como busca de tradução dos conteúdos teóricos e práticos da religião
sentido numa interrogação sobre a morte, está muito na linguagem do humanismo ou, dito de outra forma,
longe de desaparecer na época contemporânea: ele per- numa linguagem que seja compatível com o indivíduo
siste como uma hiância que mesmo os reducionismos posto como valor cardinal. Por outro lado, a "diviniza-
mais radicais não conseguem preencher. Compreende- ção do humano", isto é, o fato de que no âmago desse
se dessa forma como, em nossos dias, o enfraquecimen- individualismo autônomo - condição do homem mo-
to das religiões e a permanência do religioso podem se derno - reemerge a transcendência: uma transcendên-
encontrar no mesmo patamar. cia não mais vertical (entre os homens e o além), mas
Assim, resta pensar o estatuto desse religioso - in- horizontal (entre os próprios homens).
quieto, problemático e incerto -num universo laiciza- É esse duplo processo que faria do humanismo con-
do. Como pensar o religioso depois da religião? É sobre temporâneo um humanismo do homem-Deus. No coração
esse ponto que as análises de Luc Ferry e de Mareei desse humanismo, única alternativa a uma interpreta-
Gauchet divergem radicalmente. Seu desacordo havia ção materialista e imanentista da vida humana, o reli-
sido expresso, de forma um tanto implícita e rápida, em gioso não estaria destinado a se enfraquecer, mas, ao
algumas de suas obras. I O College de Philosophie con- contrário, a encontrar sua forma mais autêntica. Para
vidou-os a explicitar essa discordância por ocasião de Luc Ferry, a "verdadeira" religião- isto é, aquela mais
uma sessão de seu seminário público. Foi na Sorbonne, conforme à aspiração humana- não estaria atrás de
em 9 de janeiro de 1999: este livro apresenta a transcri- nós, mas adiante, como um horizonte a ser elaborado.
ção, revista e corrigida pelos autores. Lembremos aqui Mareei Gauchet, por sua vez, contesta essa alterna-
alguns elementos de contexto que permitirão ao leitor tiva do materialismo e do humanismo do homem-Deus,
apreender o sentido de suas posições respectivas.
considerando que uma interpretação radicalmente não
religiosa da transcendência é possível. Ele persiste
Para Luc Ferry, a época contemporânea caracteriza-
assim na idéia de que vivemos a época de um afastamen-
se pelo cruzamento de dois processos: por um lado, o
to e de uma separação entre o homem e Deus que não
que ele chama de "humanização do divino", ou seja, o
cessa de se ampliar. É essa separação que teria atingido
atualmente sua amplitude máxima, de tal forma que o
1 Luc Ferry. L'homme-dieu. Paris: Grasset, 1996, p. 54, nota; Mareei Gauchet. humanismo contemporâneo, que deveria ser pensado
La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard, 1998, p. 64, nota. (Ed. bras.
ou inventado em nossos dias, não seria aquele do ho-
O homem-Deus. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Difel, 2007.)
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 10 Depois da Religião ll

mem-Deus, mas, ao contrário, aquele do homem sem rique (Stock, 2003), que não somente constitui uma
Deus e do homem definitiva e irrevogavelmente sem introdução ao seu trabalho, mas uma verdadeira síntese I

Deus. A figura histórica do sagrado é destinada a enfra- se não a chave de seu projeto filosófico e histórico.
quecer em proveito de um "absoluto terrestre", cujas Lendo essas duas obras, percebe-se uma seqüência e
modalidades e formas ainda necessitam ser identifica- um aprofundamento das teses aqui apresentadas. A per-
das. O que se tornará a exigência humana do sentido gunta "O que é uma vida bem-sucedida?" fornece a Luc
último, agora que ela está órfã do consolo dos discursos Ferry um fio condutor para estudar as metamorfoses do
religiosos tradicionais? que chama de "figura metafísica do religioso". Sob suas
São esses os termos do debate. O leitor decidirá por três dimensões, teórica, prática e soteriológica, essa
si mesmo o caminho que desejará tomar nesse percurso figura emerge com a filosofia grega e prossegue seu des-
multissecular que engaja também o devir humano. Mas tino no cristianismo- que se concebia como uma supe-
ele será conquistado, pensamos, pela qualidade da argu- ração das sabedorias antigas - e até nos dispositivos
mentação, que não cede à vã polêmica, nem ao acordo contemporâneos aparentemente mais distantes dessas
preocupações, como, por exemplo, no "materialismo"
fácil. Se cada um dos autores permanece, ao final, fiel às
nietzschiano. Que forma pode tomar a reformulação
suas posições, nenhum deles sai totalmente indene da
humanista e individualista dessa pergunta diretriz da
discussão: a natureza do desacordo, seu alcance e tudo
existência pessoal? Luc Ferry se dedica a identificá-la
aquilo que está em jogo se viram aprofundados e escla-
na última parte de seu livro, desdobrando assim as bali-
recidos. Prova disso são os desenvolvimentos que poste-
zas colocadas na presente discussão. A sabedoria do
riormente serão dados a esse debate.
homem-Deus, longe de deixar lugar ao orgulho e à des-
A partir de 1999, com efeito, a obra dos dois autores
medida (a hybris dos gregos), tentará encontrar no indi-
se enriqueceu de maneira considerável. Luc Ferry pu-
víduo finito e mortal os meios de sua justificação, de sua
blicou O que é uma vida bem-sucedida?,2 em que desen-
salvação e de sua grandeza.
volve a idéia de uma reconfiguração humanista da ques-
Mareei Gauchet, por sua vez, também traz certo
tão religiosa. Por sua vez, Mareei Gauchet publicou,
número de complementos que permitem precisar as for-
entre outros, um livro de entrevistas, La condition histo- mas que seriam suscetíveis de revestir o "absoluto ter-
restre" num mundo desencantado. Há em nossa época,
z Luc Ferry. Qu'est-ce qu'une vie réussie? Paris: Grasset, 2002. (Ed. bras. diz ele, experiências profanas do religioso ou ainda da
O que é uma vida bem-sucedida?. Trad. Karina Jannini. Rio de Janeiro:
"religiosidade que se ignora" (La condition historique,
Difel, 2004.) (N.T.)
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p. 311-312): "Muitos jovens sonhadores, que se querem preende Luc Ferry? Ou, ao contrário, como pensa Mareei
modernos até o último fio de cabelo e que se julgam Gauchet, não se pode ver nada além da manifestação da
libertos dessas velharias que mal se podem imaginar, condição humana, simples e exclusivamente humana?
são místicos sem sabê-lo, em busca de uma experiência Em suma, é um possível reencantamento ou um desen-
espiritual. Festa, transe, vertigem, estados alterados de cantamento radical que se desenha no horizonte no
consciência obtidos pela música ou por substâncias ade- mundo por vir?
quadas: o que sempre está em causa é o acesso a uma
outra ordem de realidade. O lugar tomado pelas drogas Eric Deschavanne
em nossas sociedades se explica em grande parte por Pierre-Henri Tavoillot
isso. Diz respeito à aspiração a fugir da prisão do coti-
diano." Mas não são essas as únicas manifestações:
"Seria preciso falar no mesmo sentido da ascese esporti-
va ... do que está em jogo no trabalho sobre o corpo, na
ética do esforço, na busca da superação de si." Até a
"experiência da arte" que, despida de sua relação espe-
culativa com o sagrado, permanece "uma experiência
íntima de ordem espiritual para muitos ... O que se busca
no êxtase musical ou no deslumbramento pelo verbo é a
passagem para um mundo impalpável e mais pleno do
que aquele que nos é ordinariamente dado". Em suma,
conclui Gauchet, "o animal metafísico não se conhece
mais como tal, mas isso não o impede de existir".
Como pensar esse animal metafísico que é o homem?
E como pensá-lo hoje, quando os dispositivos religiosos
se apagaram em sua força de evidência e de coerção? Tal
é o fundo do problema e do dilema. O excesso do
homem em relação à sua própria natureza: será preciso
interpretá-lo como o sinal de que há nele mais do que
ele mesmo, algo de divino, no sentido em que o com-
Pierre-Henri Tavoillot

O Collêge de Philosophie está particularmente hon-


rado e feliz em receber Luc Ferry e Mareei Gauchet para
debater a questão das relações entre filosofia e religião.
Essa discussão é muito esperada, por pelo menos duas
razões.
Para quem os lê atentamente, na compreensão e ao
mesmo tempo na extensão de suas obras, a proximidade
de suas perspectivas e de suas ambições intelectuais é
surpreendente. Trata-se, nos dois casos, nada menos
que do projeto de pensar as metamorfoses modernas da
cultura, de interrogar a reinvenção contemporânea da
humanidade sob seus aspectos mais significativos: espi-
ritual, político, ético, psicológico, estético...
Contudo, lendo-os ainda mais detidamente, desco-
bre-se, nas notas de rodapé, algo como uma discussão
mais discreta que dá testemunho, além da diferença
entre seus respectivos métodos - mais filosófico para
um, mais histórico para outro - , de nuanças, ou até
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mesmo de francos desacordos, sobre o diagnóstico e a que pode suscitar a principal dissensão. A questão da
interpretação. periodização da história da subjetividade me interessa
Noto dois, de passagem e de memória: um que diz muito; mas é uma questão, convenhamos, relativamente
respeito à periodização da história da subjetividade; o marginal em relação à da legitimidade de um discurso
outro, à nova articulação do privado e do público nas sobre a espiritualidade ou sobre o sagrado que não seria
sociedades contemporâneas. Não insisto neles, pois o um discurso puramente histórico ou historiador, um
ponto que nos ocupará hoje é muito vasto: ele concerne discurso que aceitaria essas categorias como sendo
ao lugar do sagrado na idade laica. Está destinado a de- ainda legítimas hoje em dia. Creio ser o ponto central e,
saparecer ou encontra uma nova configuração no hori- na mesma medida, ir diretamente - se é que há diver-
zonte do humanismo? Em que recanto de nossas socie- gência entre nós (veremos isso daqui a pouco)- ao
dades de indivíduos as grandes questões sobre o senti- essencial.
do da existência irão doravante se aninhar ou se escon- Partirei do último livro de Mareei Gauchet,J no qual
der? Em suma, o que se tornará o religioso depois da há uma pequena nota que me diz respeito e que parece,
"saída da religião"? Para começar, passo a palavra a ao menos à primeira vista, bastante clara. Ela correspon-
Luc Ferry. de a uma passagem na qual Mareei Gauchet explica que
o homem e Deus estão separados como jamais estiveram
na história da Europa e provavelmente na história do
Luc Ferry mundo e que, diz ele, saímos da era de uma autonomia
a ser conquistada contra a heteronomia. Dito de outra
Relendo Mareei Gauchet para preparar esse encon- maneira, esse processo de conquista da autonomia está
tro, perguntei-me se os desacordos que notam entre nós terminado. Vivemos definitivamente num mundo sem
são efetivamente reais ou somente fictícios. Hoje seria Deus, no qual o homem está completamente separado
uma boa ocasião para tentar medi-los. Entre as três dis- do divino. Tese que vem reforçar, portanto, a seguinte
sensões mencionadas por Pierre-Henri Tavoillot, pa- nota: "Não se pode estar mais enganado no diagnóstico,
rece-me de fato que a mais importante, se é que existe, a meu ver, que Luc Ferry, ao falar da humanização do
é aquela que diz respeito ao uso da palavra sagrado e à divino e da divinização do humano. Trata-se de, exa-
legitimidade ou não de falar, como o faço, da "diviniza- tamente ao contrário, uma dinâmica separatista que
ção do humano", ou ainda da relação com o sagrado ou
da "espiritualidade laica". Esse vocabulário seria legíti- 1 Marcel Gauchet. La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard, 1998,
mo em nossos dias? Não é abusivo? Provavelmente é isso p.64.
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desantropomorfiza o divino e retira do humano tudo o O que Michel Gauchet compreende como religioso?
que nele ainda poderia subsistir de uma participação, Penso que ele retém três grandes características do reli-
mesmo longínqua, no divino." Por conseguinte, continua gioso que não parecem formar, de fato, uma definição
Mareei Gauchet, falar de humanização do divino e de legítima e coerente- uma definição que não ponho em
divinização do humano, como eu fiz em O homem-Deus, causa, mas que nem por isso penso ser a única possível.
é imaginar que esses dois termos estão hoje em dia em 1) O primeiro traço é, no sentido amplo, a heterono-
vias de aproximação, ou mesmo aproximados, é o erro mia: o religioso é um princípio exterior e superior à
por excelência, pois a história da Europa leva, ao con- humanidade. Sobretudo na relação com a lei, é a idéia
trário, a manifestar sua separação radical e provavel- de que a lei é simultaneamente exterior e superior aos
mente definitiva. homens. É nesse sentido que Mareei Gauchet tem razão
Creio que de fato é o ponto sobre o qual é preciso em dizer que o religioso "mais religioso" está na origem
que reflitamos, saber se realmente se trata de uma opo- da história, sobretudo nas sociedades selvagens ou pri-
sição- o que é possível, não excluo essa hipótese, mas mitivas - o nome que se dá a elas pouco importa. O
também não estou absolutamente certo dela - ou, ao verdadeiro religioso, se posso dizer assim, está na ori-
contrário, se é muito mais uma querela de palavras que gem, dado que é nela que a exterioridade das matrizes
de fundo. Porém, uma vez mais, quando digo que não
da lei ou da organização social e política em geral é
excluo as duas possibilidades, é porque verdadeiramen-
maior. Em outras palavras, o religioso não é simples-
te não sei, dado que a nota de Gauchet não é, realmen-
mente a heteronomia- isto é, o fato de que a lei vem de
te, muito explícita: ela expressa mais uma rejeição que
outro lugar que não a própria humanidade - , mas, de
uma explicação.
certa forma, a denegação da autonomia - vale dizer, o
Para tentar esclarecer, gostaria de fazer algumas
fato de que os seres humanos se recusam a atribuir a si
observações que partirão em primeiro lugar do problema
mesmos a organização social, a história, a elaboração das
central, a meu ver, que é a definição do religioso, pois
evidentemente quando se fala de "sagrado", de "divi- leis- e que, recusando-se a perceber a si mesmos como
no", de "religioso", de "espiritual", tudo depende do matrizes da organização social, da lei e do político, eles
que se coloca sob esses termos. A questão é, portanto, extra-põem essa fonte numa transcendência, numa
saber se quando se fala de uma aproximação, como faço, exterioridade, numa superioridade e, em suma, numa
entre o humano e o divino, ou, ao contrário, de uma dependência radicais.
separação total, se expressam verdadeiramente pontos de 2) Segunda grande característica: se entendemos o
vista tão contraditórios quanto parecem à primeira vista. religioso nesse sentido - notem que a originalidade do
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 20 Depois da Religião 21

trabalho de Mareei Gauchet está em partir de uma defi- no nascimento do Estado - , temos sociedades organiza-
nição política do religioso, isto é, que se trata de com- das a partir da idéia de auto-instituição, da idéia de que
preender o religioso em seu laço com a organização os homens fazem sua história, elaboram a lei, sobretudo
social e com a lei, e quase todas as objeções que lhe são com o nascimento dos Parlamentos e principalmente
feitas normalmente não se sustentam porque na maior com a idéia de que a temporalidade dessas sociedades se
parte das vezes elas não levam em conta essa particula- pensa a partir do futuro. Como dizia Clastres, 4 um chefe
ridade de sua definição - , então se compreendemos indígena, desejando ser eleito (a idéia de eleição não tem
bem que a definição do religioso dada por Mareei pertinência aqui, mas trata-se de uma imagem), teria
Gauchet está ligada à questão da organização política e dito: 'J\cima de tudo não mudarei nada na sociedade em
da produção da lei, compreendemos também que o reli- que vivo, pois a inovação é um pecado por excelência."
gioso na história da Europa pertence, com efeito, ao Vejam que atualmente um candidato que se apresentas-
passado. Pertence a um tempo terminado, e aí está sua se às eleições, tendo como programa unicamente a pro-
segunda característica, não simplesmente no sentido em messa solene de que jamais mudaria coisa alguma, teria
que se poderia dizer: "aí está: as grandes idéias religio- pouca chance de se eleger. Temos aqui uma estrutura de
sas desapareceram, vivemos em sociedades em que a temporalidade completamente diferente. Se insisto com
secularização, a laicização produziram seus efeitos etc." exemplos voluntariamente simplistas é para dizer que a
- e é, aliás, por isso que Mareei Gauchet rejeita, a justo pertença do religioso ao passado não é superficial -
título, o uso dos termos secularização ou laicização em não é como se, numa visão positivista ou historicista,
sua própria perspectiva. Mas o religioso pertence ao disséssemos a nós mesmos: acabamos com as ilusões da
passado em um sentido muito mais profundo e muito religião, assim como fizemos com todas as velhas
mais estrutural: não é simplesmente que saímos das inge- superstições vencidas pelas Luzes da razão e da ciência
nuidades religiosas; é o fato de que o religioso, entendido etc. Não é o que Mareei Gauchet quer dizer quando
nesse sentido, pertence a formas de organização política decreta que o religioso pertence fundamentalmente ao
tradicionais, nas quais a lei é pensada como a herança de passado: ele quer dizer que, estruturalmente, a idéia
uma tradição que, ela mesma, se enraíza num passado religiosa, tal como a define, está ligada a sociedades tra-
imemorial e finalmente divino. Ora, é essa estrutura da dicionais. Isso evidentemente não significa que não haja
organização social na qual a temporalidade pertence ao
passado que está, por excelência, hoje extinta, na medi-
da em que, grosseiramente, a partir da Revolução Fran- 4Pierre Clastres. La société contre l'État. Paris: Minuit, 1974. (Ed. bras.
A sociedade contra o Estado. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac & Naify,
cesa - poderíamos mesmo mostrar como isso se enraíza 2003.)
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 22 Depois da Religião 23

mais crentes - provavelmente há nesta própria sala Sobre esses três pontos, direi francamente o que
cerca de 60% de cristãos-, mas que a religião setor- penso: se nos colocarmos na perspectiva política de
nou uma opinião particular entre outras, uma crença Mareei Gauchet, ele tem evidentemente razão. E, mais
pessoal entre outras e que ela não estrutura mais o espa- uma vez, a maior parte das objeções que lhe são feitas
ço público e nem é mais a matriz da ·lei. cai por terra, tais como: "Veja a atual revanche de Deus:
3) A terceira característica é que, como se pressente o Dia Mundial da Juventude na França e o islã às nossas
inevitavelmente nessa perspectiva, a religião não é uma portas." Tudo isso, acredito, não incomoda Mareei
"disposição natural" do humano em geral, no sentido Gauchet. No primeiro caso, trata-se, apesar de tudo, de
que Kant dava a essa expressão. Não é uma disposição manifestações privadas da religião: mesmo que transpa-
metafísica do homem. Dito de outra forma, a necessida- reçam no espaço público, não correm o risco de reapare-
de religiosa não é - ou, em todo caso, nada permite cer como figura da organização pública ou, ainda
afirmá-lo com certeza- algo como uma dessas catego-
menos, como um princípio fundador. No segundo caso,
rias transcendentais da experiência humana, como se a
fala-se de povos e de países que jamais conheceram nem
religião estivesse inscrita desde sempre e para sempre
a laicidade nem a democracia, e que freqüentemente se
na configuração essencial do ser humano. A religião
debruçaram sobre a religião para encontrar uma "iden-
pertence, ao contrário, a um período passado e ultrapas-
tidade nacional" forte no quadro dos processos de des-
sado da história. Ela tem um começo e um fim. Pode-se
imaginar uma organização social dos seres humanos colonização.
definitivamente sem religião, sem que com isso as ve- Apesar disso, se tomarmos outra definição do reli-
lhas ameaças da Igreja nos caiam sobre a cabeça e sem gioso, podemos - sem que estejamos em desacordo
que, forçosamente, essas sociedades sem religião, pura- fundamental com a perspectiva de Mareei Gauchet, que
mente humanas, estejam fadadas ao totalitarismo ou, mais uma vez me parece, pelo menos em seu campo,
quem sabe, a alguma catástrofe qualquer, ao imoralis- pouco contestável - chegar a conclusões muito dife-
mo, ao materialismo etc. Acredito que tudo isso está rentes das suas. Serão elas contraditórias? É possível,
devidamente afastado por Mareei Gauchet. Dito isso, o mas, contrariamente ao próprio Mareei Gauchet, não
corolário dessa "vassourada", por assim dizer, é que a tenho de forma alguma certeza sobre isso a priori. Penso
religião não aparece mais como uma disposição metafí- que é então preciso se dar ao trabalho de pensar um
sica, essencial à humanidade, mas como um momento pouco além das aparências, se não for pedir demais.
histórico ligado a uma organização social e política par- Podemos distinguir ao menos três grandes defini-
ticular. ções do religioso.
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET Depois da ReligiiJo 25
24

Conforme a primeira delas, que conhece um grande defendida por mim num artigo da Débat5 - na filosofia
impulso no século xvm e prossegue sua longa história moderna, ao menos a partir de Descartes. Parece, de
com Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud, a religião fato, que a filosofia moderna não pode ser verdadeira-
deveria ser compreendida como o ópio do povo, como mente compreendida senão como uma tentativa de tra-
niilismo, como neurose obsessiva da humanidade, sem- duzir num vocabulário que é o da razão, portanto nos
pre com uma mesma estrutura, a do "fetichismo": uma conceitos por essência laicos, os grandes discursos reli-
atividade intelectual, meio imaginária, meio racional, giosos, começando, é claro, pelo discurso cristão.
que fabrica um produto, no caso a idéia de Deus, depois O exemplo mais significativo é sem dúvida o do he-
gelianismo. A fenomenologia do espírito, como sabem,
se apressa em esquecer que é inteiramente a responsável
conta o trajeto de uma consciência que Hegel chama de
pela autoria. No fundo, o princípio dessa crítica já está 11 • "" • • ....
consciencia mgenua ,, , a 11 consc1encia
.....
natural", como o
contido na famosa frase de Voltaire, que cito de memó-
diz ainda, dado que ela mal emerge da natureza, isto é,
ria: "Deus criou o homem à sua imagem e este lhe pagou
o ser humano, finito e ignorante, que por etapas se
na mesma moeda." Não insisto. Essa definição da reli-
aproxima do Absoluto, a saber, de Deus, da compreen-
gião como superstição, hipóstase fetichizada ou aliena-
são infinita, desse "saber absoluto" que evidentement e
ção não interessa a nenhum de nós dois senão de manei-
nada mais é que um dos nomes do divino. O projeto de
ra marginal. Hegel é fazer de modo que esse estranho itinerário pelo
Há uma segunda definição do religioso. É a defini- qual o ser humano encontra Deus - o ser finito se
ção política no sentido forte, aquela em cuja perspecti- reúne com o saber absoluto-, esse trajeto que é efetua-
va se situam os trabalhos de Mareei Gauchet, sobre a do pela fé na religião (esse lampejo que nos impele à
qual acabo de falar. fusão imediata com Deus) seja, ao contrário, operado
Uma terceira definição situa-se num plano não mais pela filosofia no âmago desse elemento profundamen te
histórico e político, mas filosófico e metafísico - o reli- laico que é o da razão. Creio que, num sentido a ser
gioso, bem simplesmente, como discurso que diz respei- ainda precisado, essa trajetória de A fenomenologia do
to ao elo entre o finito e o infinito, entre o relativo e o espírito vale de modo emblemático para toda a filosofia
absoluto, com uma questão central: a da finitude ou, moderna- não simplesmente para Hegel, mas também
para ser mais preciso, da morte. Essa figura metafísica para Descartes e mesmo para Kant. A filosofia ocidental
do religioso é, sob certos aspectos, relativamente inde- moderna poderia definir-se como uma tentativa de
pendente da definição política que é dada por Mareei
5 Le débat, "La ph!losophie qui vient",
Gauchet. É a definição que encontrarã o- aliás, já n~ 72, nov.-dez. 1992.
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 26 Depois da Religião 21

retraduzir os grandes conceitos da religião cristã no passado porque, como horizonte de certas experiências
interior de um discurso laico, isto é, de um discurso vividas pelo indivíduo, ele pode perfeitamente tomar a
racionalista. De certa forma, a Declaração dos Direitos dimensão do presente ou mesmo do futuro. Ele não está
Humanos - num modo diferente e num outro registro indispensavelmente aqui ligado a um período histórico
- freqüentemente não passa de um cristianismo laici- ou a uma organização social particular; pode aparecer
zado ou racionalizado. Falo aqui do conteúdo, e não dos como uma disposição natural para a metafísica, cuja ori-
atos declaratórios ou ainda da história da Declaração; gem, aliás, permanece extremamente problemática ou
falo dos valores que ela veicula e que a meu ver não talvez mesmo misteriosa, e sobre a qual a reflexão pode-
somam grande coisa aos valores cristãos. No fundo, ria felizmente aplicar-se.
parece-me que não há uma descoberta surpreendente Gostaria de desenvolver rapidamente as conseqüên-
de novos valores ou de uma nova moral no século XVill cias opostas ou, em todo caso, aparentemente opostas,
na Europa, mas muito mais uma laicização dos valores dessa outra definição do religioso - que, diga-se de
tradicionais do cristianismo. passagem, provavelmente não escapa a Mareei Gauchet,
Nessa perspectiva de uma definição do religioso mas que simplesmente não faz parte de sua proposta.
como relação com o Absoluto, portanto com essa ques- Em que o religioso, definido muito simplesmente como
tão central na filosofia moderna que é a da finitude, as acabo de fazê-lo, em seu sentido puramente metafísico e
três características do religioso segundo Mareei Gauchet filosófico, pode parecer atualmente, no âmago das socie-
são evidentemente contestáveis, porque nós nos coloca- dades laicas, como uma dimensão legítima e, se posso
mos de um ponto de vista totalmente diferente. Aqui, a usar aqui a expressão gasta, "incontornável" da exis-
religião não é necessariamente heteronomia. Pode-se, tência humana? Darei dois indícios.
por exemplo, descobrir o religioso a partir de experiên- O primeiro é que a noção de transcendência não é
cias inteiramente autônomas, essas Erlebnisse, expe- redutível à de heteronomia ou de dependência radical.
riências vividas, das quais falava principalmente Na história da filosofia há, seja dito de passagem, ao
Husserl. Ou, mais exatamente, poderíamos dizer que o menos duas grandes figuras da transcendência, duas
religioso aparece como o horizonte das experiências grandes definições da transcendência. Em primeiro
vividas pelos seres humanos- esse horizonte de trans- lugar há a transcendência tal como ela existe a montan-
cendência sobre o qual voltarei a falar adiante e que não te da consciência humana, antes e acima dela. É a trans-
me parece necessariamente fadado à heteronomia. A cendência da Revelação, a transcendência da heterono-
transcendência e a heteronomia não são a mesma coisa. mia de que fala Mareei Gauchet, a transcendência à qual
O religioso também não pertence obrigatoriamente ao o papa convida seus seguidores a voltar, quando diz, no
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 28 Depois da Religiao 29

fundo, em Esplendor da verdade: vocês não são obriga- =


riências vividas, não só na ordem da verdade ("2 + 2 4"
dos a ser cristãos, mas, se forem cristãos, então admitam é transcendente em relação à menor individualidade:
que há uma verdade revelada, uma verdade crística e não é uma questão de gosto e resiste formidavelmente ao
que essa verdade dada pelo próprio Deus possui um relativismo ambiente), mas também- e é claro que
certo número de implicações morais - e funda o que o aqui se trata de uma metáfora - uma transcendência na
papa chama, aliás corretamente, nessa perspectiva, de ordem da ética, e, por que não, da cultura. Pois aqui
"teologia moral". Diante dessa verdade, a atitude que também, apesar do que se diz freqüentemente, temos a
convém não é a do orgulho cartesiano, que pensa tudo sensação de que descobrimos "verdades", que não as
pôr em dúvida e tudo submeter ao crivo do exame crí- inventamos - o que, convenhamos, é muito diferente e
tico, em nome da recusa dos argumentos de autoridade, singularmente problemático para o individualismo e
mas a atitude da humildade. Transcendência, portanto, para o materialismo. Transcendência na ordem da
com T maiúsculo, transcendência a montante da cons- moral, é claro, mas também da estética, como eu dizia, e
ciência, transcendência heterônoma. Esta, nós conhe- na ordem daquilo que Spinoza chamava de ética, isto é,
cemos, no fundo, é também aquela de que fala Gauchet, no fundo, na ordem do amor. Não é por sentimentalismo
mesmo que ele evidentemente a inclua - e é uma das que falo hoje de amor, mas porque essa quarta esfera,
contribuições de seu trabalho- numa perspectiva além da verdade, além da moral, além da estética e do
política e histórica de estrutura de organização social. simbólico, essa esfera da ética no sentido de Spinoza,
Mas há também uma outra figura da transcendência mas ao mesmo tempo da Sittlichkeit no sentido de
que, a meu ver, não é menos transcendente que a pri- Hegel, é a que mais nos aproxima do religioso- fato de
meira- e é sobre ela que deve incidir o debate. Em que tanto Spinoza quanto Hegel tinham perfeita cons-
certo sentido, penso que ela não é menos religiosa: acho ciência. Essa dimensão do amor faz parte, com pleno
mesmo que ela designa precisamente a verdade das reli- direito, da história da filosofia moderna.
giões. Trata-se de uma segunda forma de transcendên- Digo que no horizonte dessas quatro experiências,
cia, de uma transcendência que não está a montante da de qualquer modo que se as vivenciem, há a necessidade
consciência humana, mas, ao contrário, a jusante das de uma experiência de transcendência, não sob o modo
experiências vividas, que não está, portanto, situada da heteronomia e da dependência, mas na imanência. O
estruturalmente no passado, e sim no futuro; uma trans- que gostaria de acrescentar, para que se compreenda
cendência que corresponde àquilo que Husserl designa- bem, é que essa transcendência na imanência tem uma
va como uma "transcendência na imanência", isto é, o história. Não é um acaso que a palavra apareça em
horizonte inevitável e incontornável de nossas expe- Husserl; ela tem uma história que se enraíza na filosofia
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 30 Depois da Religido 31

transcendental, e mesmo - se alguns estudantes dese- mas como algo que transcende a particularidade de
jassem fazer uma pesquisa sobre este assunto ela seria cada um de nós.
bem-vinda- ela parte de Leibniz, nos dois domínios Aí está, parece-me, a primeira figura da transcen-
da filosofia, o da teoria e o da moral, isto é, do lado da dência na imanência. A segunda se situa no campo da
verdade e do lado do bem e do mal. Em poucas palavras: moral. Kant é aquele que vai fundar a moral, talvez pela
por que a teoria kantiana da verdade é a primeira figu- primeira vez, sem nenhuma referência a Deus, nem a
ra dessa idéia grandiosa, a meu ver, de transcendência algum princípio substancial, por exemplo cosmológico,
na imanência? Quando o problema da representação se exterior e superior à humanidade. A moral é puramente
coloca na filosofia kantiana, a partir dos anos 1770- fundada sobre princípios humanos -poderíamos mes-
1771, Kant, no fundo, diz o seguinte: habitualmente se mo dizer humanistas. Contudo, por outro lado, é essa
põe o problema da verdade nos seguintes termos: temos reviravolta que me parece fundamental para compreen-
representações, por exemplo, uma garrafa, e a verdade
der a situação do religioso hoje em dia. O religioso se
seria a adequação dessa representação de garrafa ao
reintroduz no final do percurso como o horizonte das
objeto em si que lhe corresponde. Portanto, o ideal de
práticas humanas; é esse o sentido dos famosos postula-
verdade seria fazer corresponder nossas representações,
dos da razão prática, a idéia de que a moral não é funda-
nossos pensamentos, e o objeto em si. A grande revolu-
da na religião, de que se ela o fosse seria um desastre -
ção kantiana, a que se convencionou designar como
é, portanto, o fim do teológico-ético - , mas que, ao
revolução copernicana, consiste em dizer que essa
mesmo tempo, no horizonte de nossas ações morais não
maneira de colocar o problema é absurda e que a verda-
de científica não seria uma relação entre representações pode deixar de existir uma problemática religiosa, aque-
subjetivas e as coisas em si, mas que ela reside simples- la aberta pelos famosos postulados da razão prática.
mente numa certa ligação das representações, numa Isso também constitui uma verdadeira revolução,
certa associação das representações que vale universal- devida à idéia de que o religioso não se encontra mais a
mente. É, tendo Leibniz no horizonte, um "devaneio montante da moral, como quer o papa (a teologia moral),
bem amarrado", graças a regras universais, aquelas mas sim inteiramente a sua jusante, isto é, ele passou
que fornecem ao método científico as categorias do para o lado do futuro. Em outros termos, o religioso não
entendimento. Em outras palavras, a verdade é funda- é mais da ordem da heteronomia, da dependência radi-
da, para Kant, sem sair do domínio das representações, cal, mas da ordem da transcendência na imanência. Não
ou, para me encaminhar para a fórmula de Husserl: a se trata mais de sobre o que a moral vai se fundar e que
verdade está fundada na imanência da subjetividade, é exterior aos seres humanos, mas na direção de que a
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 32 Depois da Religião 33

moral tende e o que é pensado a partir da autonomia das nizaram. Como busquei mostrar longamente em O
experiências individuais. homem-Deus, baseando-me principalmente nos traba-
É claro que se poderia discutir longamente a respei- lhos dos historiadores das mentalidades dedicados ao
to do bom fundamento de tal revolução. Creio que, no nascimento da família moderna, hoje na Europa não nos
mínimo, sua realidade é pouco contestável e que ela sacrificamos mais por entidades religiosas; mas, por
abre, a respeito do estatuto do religioso depois da reli- outro lado, penso que inúmeros indivíduos estariam
gião, isto é, no âmago de um mundo laico e desencanta- prontos a arriscar suas vidas para defender certo núme-
do, uma perspectiva, sob alguns aspectos, diferente ro de valores, ou, simplesmente, para defender seus
daquela tomada por Mareei Gauchet - isso, aliás, não próximos. Por que fazer essa constatação, que poderia
significa sempre que ela lhe seja oposta, o que é ainda parecer de uma banalidade consternadora, tenho cons-
uma outra abordagem. ciência disso? Porque acho- e retomo aqui uma manei-
Adiciono ainda uma última idéia, pois sugeri que ra nietzschiana de descrever o religioso ou o sagrado -
havia dois indícios da persistência legítima do religioso que a partir do momento em que se estabelecem valores
no coração do mundo democrático. Primeiro indício: superiores à vida material, biológica, entra-se na esfera
podemos pensar o religioso de outra forma que não a do religioso. É isso que quero dizer. Ou então afirma-se
heteronomia e como estrutura passada ou ultrapassada. que é uma ilusão, como faz meu amigo André Comte-
Aí está o efeito dessa reviravolta extraordinária entre Sponville. De fato, vocês encontrarão à disposição uma
moral e religião produzida em algum momento do sécu- plêiade de discursos nietzschianos, freudianos, marxis-
lo XVIII. Segundo índice: aqui se trataria de uma dis- tas, sociológicos, biológicos (o gene egoísta ou altruísta)
cussão com nosso amigo Lipovetsky- é a idéia de que, etc. explicando que a idéia do sagrado, nesse sentido, é
contrariamente ao que às vezes sugere seu livro O cre- uma ilusão. Compreendo-os e chego até mesmo a dizer
púsculo do dever,6 a noção de sacrifício de modo algum que é possível. Contudo, se vocês admitirem que não é
desapareceu da problemática moral de nossos contem- uma ilusão, que a idéia do sacrifício de sua vida não é
porâneos. Penso que, ao contrário, ela está presente, uma idéia ilusória, mas, ao contrário, uma idéia inteira-
mas que simplesmente os motivos do sacrifício se huma- mente inerente à moral moderna, então nesse caso serão
obrigados a refletir sobre aquilo que faz com que, numa
sociedade sem religião, numa sociedade globalmente
6Gilles Lipovetsky. Le crepuscule du devoir. Paris: Gallimard, 1992. (Ed.
bras. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos
materialista, a referência a princípios superiores à vida
novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005.) não se tenha tornado integralmente absurda.
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 34 Depois da Religirlo 35

É exatamente isso que eu queria sugerir ao falar da administrar, por assim dizer, o luto de um ser amado, ou
divinização do humano. É claro que não desejo sugerir como, simplesmente, lutar contra o tédio, contra a
que se volte ao religioso no sentido em que se fala de banalidade cotidiana? Em outras palavras, todas essas
revanche de Deus, no sentido em que há, hoje em dia, questões, além de muitas outras, que antigamente per-
um sincretismo místico-budista-cristão ou similares. tenciam à órbita do discurso religioso e metafísico, não
Não é a isso que me refiro, mas ao fato de que a idéia de são atualmente reguladas pelo discurso moral. Muito
transcendência não desapareceu e que não podemos - mais que isso, o discurso das morais laicas nada lhe diz
e este será o sentido de minha conclusão - nos satisfa- sobre elas.
zer simplesmente com as morais laicas. Uno essas duas idéias entre si e me detenho: 1) Não
Quando escrevi, com André Comte-Sponville, A está excluído que a idéia de transcendência conserve
sabedoria dos modernos, 7 o subtítulo do livro era 'í\lém um sentido a jusante das morais laicas e, portanto, tam-
da moral". As morais laicas foram formidáveis para bém não o faça sobre o modo do teológico-ético, mas sim
colocar e talvez mesmo resolver de modo laico, isto é, sobre o modo do ético-espiritual. Nesse sentido, a pro-
sem a hipótese de Deus, a questão do bem e do mal. Por blemática da religião ou da espiritualidade não perten-
fim, o que nos diz essa carta das morais laicas que é a ce a uma estrutura de organização passada.
Declaração dos Direitos Humanos? Que o fundo da 2) Essa idéia, que me parece plausível, também me
moral é o respeito pelos outros, que é preciso respeitar parece estar de facto relativamente bem encarnada na
os interesses, a liberdade e a dignidade dos outros. realidade das sociedades em que vivemos, justamente
Muito bem. Mas você pode perfeitamente respeitar os por meio de uma aspiração cada vez mais evidente para
interesses, a liberdade e a dignidade dos outros, aplicar além da moral; uma consciência cada vez mais clara,
impecavelmente os direitos humanos em toda sua exis- mesmo que não expressa como tal, de que a moral não
tência e mesmo ir além deles, até atingir a santidade basta. Então, isso não quer dizer que eu tenha me torna-
mais perfeita. O que afirmo simplesmente é que isso em do um "imoralista", como simploriamente disseram
nada responderá - em nada - às questões existenciais alguns críticos. Simplesmente dei-me conta, no decorrer
ligadas à condição humana: por exemplo, de que serve destes últimos anos ou, para dizer a verdade, há muito
envelhecer, como educar seus filhos, como pensar, como tempo, de que as grandes morais laicas não respondiam
às questões às quais redargüíam, ou pretendiam redar-
güir, os grandes discursos religiosos. Nesse sentido, o
7 Luc Ferry e André Comte-Sponville. La sagesse des modernes. Paris:

Laffont, 1998. (Ed. bras. A sabedoria dos modernos. Trad. Eduardo


deslocamento do "a montante" para o "a jusante" pare-
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.) ce-me ser algo singularmente interessante, para dizê-lo
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 36 Depois da Religido 37

de modo minimalista. Essas são as observações que eu Luc Ferry


gostaria de submeter a discussão.
Estou de acordo, salvo pelo fato de que creio ter dito
várias vezes que não é tanto o conteúdo das religiões, da
religião cristã em particular, que mudou, que seu esta-
tuto, dado que ela não vem mais a montante das expe-
riências humanas, mas sim a jusante, e com um outro
SAÍDA DA RELIGIÃO regime de transcendência ...
E PERMANÊNCIA DO RELIGIOSO

Mareei Gauehet Mareei Gauehet

Não é fácil ter de improvisar uma resposta a uma Teremos o pudor de não nos estendermos sobre as
intervenção tão meditada e construída. modalidades de organização da nova Igreja. Não falare-
Uma primeira observação, para iniciar: se Luc Ferry mos senão de princípios.
tem razão, assistimos a um acontecimento notabilíssimo Segunda observação preliminar: estou de acordo
na história universal das religiões, a saber, nada menos com as duas constatações descritivas com as quais Luc
que uma reinvenção da religião. O que seu discurso Ferry terminou sua exposição, mesmo que, de meu lado,
evoca é algo como uma refundação da religião. E afinal, eu as interprete diferentemente. Menciono-as logo de
por que não? Haveria uma trajetória histórica das reli- saída, porque essas constatações têm importância para
giões que se desdobrou, no essencial, sob o signo da apreciar a situação atual e o alcance das mudanças que
heteronomia- estamos de acordo sobre esse ponto. vivemos.
Depois, na era da filosofia, isto é, a partir de recursos 1) Por um lado, parece-me exato que as morais laicas
puramente racionais descobertos pelo discurso filosófi- não conseguem se encarregar do conjunto da experiên-
co, assistiríamos ao aparecimento de um outro discurso cia dos indivíduos atuais. O discurso moral, tal como
religioso profundamente diferente do que foram as reli- nossas sociedades o compreendem (isto é, a regulagem
giões, em seu conteúdo, desde que a humanidade é da relação com os outros segundo a norma de reciproci-
humanidade. A questão merece, no mínimo, que a exa- dade), não responde a tudo. Uma vasta gama de ques-
minemos com alguma atenção. tões relativas a si mesmo, à conduta de sua existência, à
orientação de sua experiência, escapa ao discurso moral.
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 38 Depois da Religião 39

Registrada essa carência, coloca-se a questão de saber termo com um mínimo de rigor terminológico? Vocês
como tratar esses problemas. As religiões tradicionais, podem adivinhar que tenho as maiores dúvidas a esse
as confissões vigentes trazem-lhes respostas. Estas não respeito.
têm mais valia para grande número de nossos contem- Agora, para entrar no fundo das coisas, permitam-
porâneos. Será que existe, do lado da filosofia, a possi- me voltar brevemente ao meu próprio método de abor-
bilidade de fornecer novas respostas que não tomem dagem do fenômeno religião. De fato, é provável que
emprestado dos discursos religiosos clássicos e que, a uma parte da discussão diga respeito à diferença de nos-
despeito disso, constituam respostas substanciais para sas abordagens e de nossos interesses. Vamos circuns-
esses problemas? Ou é preciso considerar uma outra crevê-las para evitar inúteis querelas de palavras. Mas
maneira de viver com esses problemas? aproveitemos para ver aí, tão claramente quanto possível,
Também estou de acordo com Luc Ferry, na mesma o que os conceitos que empregamos recobrem. Pois tudo
ordem de idéias, para considerar que as noções de sacri- se passa na esfera da conceitualização do fenômeno.
fício e de dever conservam um sentido em nossos dias. O que tentei fazer foi uma história filosófica da reli-
Sacrifício e dever, longe de estarem condenados a desa- gião. Dediquei-me, no fundo, a tratar de um problema
parecer porque teriam somente um conteúdo religioso, que não parece ser mais da atualidade, com o declínio
continuam a ser perspectivas organizadoras, eixos da do marxismo ajudando, mas que subsiste: o problema
experiência humana. Não se pode confundir sua prática da natureza, do lugar e do papel da religião, a partir do
e seu significado. Talvez só façamos deles um uso mode- momento em que se recusa a explicação da "superestru-
rado, mas precisamos deles para nos pensar. Impor-se tura" pelas necessidades da "infra-estrutura" econômi-
imperativamente a obrigação e dispor de sua existência ca e social. Não é mais de bom-tom raciocinar nesses ter-
com vistas a uma finalidade mais alta permanecem ins- mos. Isso não impede que o economismos seja tão preg-
critos no âmago de nossa relação conosco mesmos. Como nante, de maneira difusa, na inteligência da história e
vêem, não procuro facilitar minha vida. do funcionamento das sociedades, não impede que o
2) Segundo ponto: por outro lado, a idéia de trans- modelo continue a reinar implicitamente. Há as coisas
cendência conserva um sentido? Da mesma forma, con- sérias e também há uma roupagem "ideal" que legitima
cordo com Luc Ferry: sim, ela conserva um sentido! fantasmaticamente uma organização coletiva estabeleci-
Mas, qual sentido? O problema está aí. Limito-me, no da por motivos sólidos. Ora, esse modo de pensar inter-
momento, a formular a questão: qual é o estatuto dessa
transcendência que habita nossa experiência? Podemos
s Interpretação e explicação dos comportamentos efetuados pelo viés dos
de direito qualificá-la de religiosa se empregarmos esse métodos e das teorias econômicas. (N.T.)
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 40 Depois da Religião 41

dita, de maneira absoluta, compreender a especificidade tação supõe já ter medido previamente o que significa o
do fenômeno religioso e, ao mesmo tempo, sua onipre- encantamento do mundo.
sença na quase totalidade da história humana. Ele não Aí estão, sumariamente, os dados primordiais do
está somente na cabeça dos atores para esconder-lhes a problema e as indicações de como tomá-los.
realidade de seu mundo. Ele organiza seu mundo. O que Um dos primeiros beneficios da abordagem é permi-
a religião representa nessas condições? O que ela mani- tir escapar do falso debate entre a morte de Deus e o
festa? O que significa seu papel estruturante? Por que, retorno das religiões, cujas oscilações periódicas dão, há
para resumir, houve religião? Esses enigmas tornam-se dois séculos, ritmo à discussão em torno do futuro reli-
ainda mais opacos se concordarmos que não dá para gioso da humanidade ocidental. O mecanismo é simples.
respondê-los como sendo uma necessidade invariante Por um lado, com base num fato indiscutível- o
da consciência coletiva ou da constituição do social. recuo da empresa organizadora do religioso sobre a vida
Pois, se, por um lado, as religiões tiveram um papel das sociedades - , conclui-se sobre a perda de função
determinante na maior parte das sociedades do passado, da religião e, portanto, sobre seu desaparecimento ine-
por outro, é necessário constatar que elas progressiva- vitável (que seria somente uma questão de tempo).
mente perderam esse lugar, há alguns séculos, na histó- Por outro lado, parte-se de dois fatos também indis-
ria européia moderna. Deve-se atribuir a mesma impor- cutíveis: em primeiro lugar, a permanência da fé e, em
tância tanto à religião nas sociedades antigas quanto à segundo, a revivescência periódica dessa fé, por moti-
saída da religião nas sociedades modernas. A reflexão vos às vezes conjunturais (a Libertação), às vezes liga-
deve desdobrar-se nas duas linhas de frente. Trata-se de dos aos movimentos profundos da cultura (romantismo
apreender no passado os mecanismos dessa eficácia e neo-romantismo). A partir desses fatos, anuncia-se o
estruturante do religioso. E trata-se de comparar, de retorno iminente do religioso, procedendo a uma mesma
reler o modo de estruturação da sociedade que se infere extrapolação profética. A saída moderna da religião não
de uma compreensão religiosa de sua ordem. As socie- terá sido, então, nada além de um eclipse temporário e
dades funcionaram maciçamente na religião. O que superficial.
acontece quando uma sociedade se põe a funcionar fora Nenhuma dessas interpretações é defensável. Assis-
da religião? É isso que está em jogo no "desencantamen- timos a dois processos simultâneos: a uma saída da reli-
to do mundo". A constatação é, em si mesma, banal. gião, compreendida como saída da capacidade do reli-
Uma vez que a formulamos, ainda falta elucidar as for- gioso em estruturar a política e a sociedade, e a uma per-
mas que o processo de desencantamento toma empresta- manência do religioso na ordem da convicção última dos
das e as conseqüências às quais ele conduz. A interpre- indivíduos, observando nesse terreno um amplo espec-
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 42 Depois da ReligiêJo 43

tro de variações, segundo as experiências históricas e sidade explicitamente enquadrada pelos dogmas tradi-
nacionais. No caso americano, temos uma sociedade cionais ou seja espontânea, mais ou menos pessoal, mais
ainda copiosamente impregnada de religiosidade. Da ou menos artesanal, mais ou menos selvagem, ou até
mesma forma, em alguns lugares da Europa como, por mesmo inconsciente de suas amarras religiosas. Essa
exemplo, a Irlanda, a Polônia e a Grécia, para tomar os parte existe e é ela o objeto de discussão entre nós.
três casos clássicos, onde as Igrejas, por motivos históri- Não posso abordá-la sem começar reconhecendo que
cos, se viram depositárias da identidade nacional, vere- ela escapa àquilo de que tive oportunidade de tratar até
mos subsistir uma forte inserção do religioso no espaço agora. É o aspecto do fenômeno religioso que deixei de
público. Na Europa ocidental, em contrapartida, nota- lado até agora ou, em todo caso, naquilo que publiquei.
se de forma geral uma debandada das Igrejas estabeleci- Vou explicar-me. Mas refleti um pouco sobre ele, o sufi-
das e um decréscimo impressionante das crenças decla- ciente para trazer uma resposta ao problema que é sen-
radas. Pouco importa: fervor americano ou debandada sivelmente diferente daquela que Luc Ferry me atri-
na Europa ocidental são fenômenos que não tocam o buiu, mesmo que ele tivesse o direito de fazer uma infe-
ponto central, a saída da estruturação religiosa das socie- rência sobre o que escrevi, no sentido em que fez. Creio,
dades. Saída que não impede a manutenção de uma vida entretanto, que a inferência é inexata. A questão em
religiosa na escala dos indivíduos. De fato, no próprio forma de objeção levantada por Luc Ferry é a seguinte:
lugar onde o recuo da religião, inclusive no registro da há, como ele crê, uma disposição natural do espírito
convicção privada, é o mais avançado, como é o caso da humano para a metafisica? Eu o admitiria também, taci-
Europa ocidental, ele não implica o desaparecimento tamente, colocando-me por isso em contradição comigo
puro e simples da preocupação espiritual, sem que bus- mesmo. Admito, de fato, alguma coisa dessa ordem, mas
quemos defini-la bem por enquanto. Vamos tomar essa alguma coisa que compreendo diferentemente de Luc
preocupação como sendo as questões últimas, as ques- Ferry e que está, me parece, em plena coerência com o
tões que dizem respeito à destinação humana, à signifi- resto de minha análise. A questão de Luc Ferry é intei-
cação das experiências fundamentais da vida humana e ramente legítima. Na perspectiva de minha análise, eu a
à orientação ética global da existência. retraduzo assim: com o que pôde trabalhar a invenção
É sobre essa segunda parte que devemos refletir- histórica das religiões?
não insisto a respeito da primeira parte, porque estamos
de acordo sobre ela. O problema que se coloca concerne
a essa segunda parte: aquilo que subsiste de religiosidade
para além do declínio social da religião, seja essa religio-
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 44
Depois da Religião 45

que podemos entrever a respeito das mais antigas reli-


giões e talvez do início da religião - as transformações
que têm por nome o nascimento dos deuses, a emergên-
cia das religiões de salvação, o aparecimento do mono-
A DISPOSIÇÃO RELIGIOSA teísmo e, por fim, a saída da religião do interior de uma
DA HUMANIDADE religião. Não somente essas transformações são coeren-
tes, mas congruentes com as grandes mudanças das for-
Recomecemos da tese fundamental que os dados mas políticas e sociais - o nascimento do Estado, a
que nos são acessíveis me parecem impor: a religião é dinâmica das formas estatais, o nascimento do Estado
posição da heteronomia, posição que visa a produzir uma moderno.
economia determinada do laço político e do laço de Entretanto, essa escolha me levou a deixar uma
sociedade por uma intencionalidade inconsciente. A questão no escuro. Não ignoro isso. Uma análise com-
tese nega a idéia corrente segundo a qual a criatura pleta e inteiramente coerente deve, além disso, respon-
angustiada se limitaria a divinizar espontaneamente as der à questão: em qual disposição da humanidade se
forças naturais que a dominam. Não é difícil mostrar funda essa instituição que, de outro ponto de vista, res-
que a idéia é absurda. A religião é, no sentido mais forte ponde a motivos políticos e sociais bem determinados?
do termo, um fato de instituição, um partido tomado É a ocasião de dar ao menos algumas indicações quanto
humano-social da heteronomia. Não posso entrar aqui à resposta possível. Mesmo que se rejeite a idéia de uma
nos detalhes do porquê dessa instituição e dos motivos natureza religiosa do homem, ou de uma disposição
aos quais ela responde. natural para a metafísica, é preciso que haja algo como
Mesmo supondo que concordem comigo, há um um substrato antropológico a partir do qual a experiên-
ponto que precisa ser esclarecido, e é verdade que eu cia humana é suscetível de se instituir e de se definir
não o fiz. É preciso esclarecer a proveniência dos ele- sob o signo da religião. Nenhuma lógica política dá
mentos com os quais esse ato de instituição opera. Essa conta disso com que a religião vai se desdobrar, a saber,
lacuna de minha análise deve-se à perspectiva essencial- o investimento humano sobre o invisível. O que é que, no
mente descritiva na qual me situei. Quis, com priorida- homem, dá sentido a essa passagem pelo outro? Pois é
de, dar conta do conteúdo das religiões, tais como as nisso que consiste o fenômeno cardinal: ele reside nes-
podemos seguir por meio da história e das metamorfoses sas dimensões de invisibilidade e de alteridade que nos
num longo período. Tentei mostrar que havia uma fór- habitam constitutivamente. O homem é um ser que, em
mula coerente dessas transformações a partir daquilo todos os casos, é convocado pelo invisível ou requisita-
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 46 Depois da Religii1o 41

do pela alteridade. Esses são os eixos dos quais ele tem humanidade - e que os espíritos não religiosos encon-
originária e irredutivelmente a experiência. O homem trarão outros empregos para essas dimensões consti-
não é levado a eles pela necessidade de conhecimento tuintes.
ou de compreensão racional dos fenômenos da natureza, É a verdadeira questão diante da qual nos encontra-
como queria certa explicação esclarecida da religião. mos historicamente. Tendo terminado, ao que parece, a
Não há aí o efeito de uma busca de causalidade que era das religiões constituídas, o que ocorre com esse
engajaria o espírito a remontar às causas primeiras para núcleo antropológico sobre o qual elas fizeram fundo?
além das causas visíveis. É um "dado" imediato da cons- Uma vez desfeita a organização coletiva segundo a hete-
ciência, se posso dizer assim. O homem fala, e encontra ronomia, que tinha sido a alma das teligiões estabeleci-
o invisível em suas palavras. Ele experimenta a si das até há dois séculos, o que pode oferecer essa organi-
mesmo, irredutivelmente, sob o signo do invisível. Ele zação do humano que durante tanto tempo suportou o
não pode deixar de pensar que há em si outra coisa além religioso? Não somente ela subsiste, mas a vemos se des-
daquilo que ele vê, toca e sente. Ele imagina, e imedia- tacar cada vez mais claramente por si mesma. Tentei
tamente seu pensamento se projeta além daquilo que mostrar isso a respeito do inconsciente e de suas redefi-
lhe é acessível - e se apresenta ao pensamento. Além nições.9 Ela continua a informar nossa experiência. Em
disso, ele se reporta a si mesmo e é para descobrir que relação a isso, por maior que seja a descontinuidade,
pode dispor de si mesmo com vistas a outra coisa que permanecemos em continuidade com a humanidade da
não a si mesmo. É com esse material primordial que se era das religiões. Mas o estatuto e o papel desse núcleo
edificam as religiões. Elas não decorrem daí de forma antropológico do religioso estão completamente muda-
automática e linear. É preciso outra coisa completamen- dos com o desvelamento de seu caráter extra-religioso.
te diferente para defini-las. Mas esse material as torna É nesse ponto que divirjo de Luc Ferry. Estamos de
possíveis. acordo a respeito da constatação, mas não a compreen-
Em outras palavras, há uma estrutura antropológica demos da mesma maneira e, sobretudo, avaliamos dife-
que faz com que o homem possa ser um ser de religião. rentemente as conseqüências. Só posso recusar as cate-
Ele não o é necessariamente. Ele pôde sê-lo historica- gorias de que se serve Luc para dar conta dessa expe-
mente, durante a maior duração de seu percurso. Pode riência de além da religiosidade heteronômica.
deixar de sê-lo, mas, nesse caso, esse potencial de reli-
giosidade estará destinado a continuar. O que quer
dizer, na prática, que haverá sempre mais ou menos
9Vide "Essa! de psychologle conternporalne", agora no livro La démocratie
espíritos para se reconhecer no passado religioso da contre elle-méme. Paris: Gallirnard, 2002. Coleção "Te!".
L UC FERRY & MARCEL GAUCHET 48 Depois da Religiao 49

giões "selvagens", para dizer rapidamente, são aquelas


da disjunção entre o fundamento ancestral e o presente.
O sagrado emerge com a conjunção do fundamento (que
se torna divino na operação) e do poder que será, desde
O QUE É O SAGRADO? então, poder separado. Há o sagrado quando há um
encontro material entre a natureza e a sobrenaturalida-
Essas ancoragens primeiras do religioso existem e de. Um ser sagrado- um rei sagrado, para tomar o
persistem. Mas será que é legítimo falar de religião a seu exemplo por excelência - é um personagem que em
respeito? Não acredito nisso. Só posso ver um abuso de seu corpo físico, semelhante a qualquer outro, é habita-
palavra nesse emprego da noção. do pela alteridade invisível e por forças sobrenaturais.
Acredito que Luc Ferry se entregue a um transpor- Há nele uma materialização do outro que o separa de
te indevido de categorias do passado religioso para a todos os seus semelhantes. Para tomar um símbolo que
ultramodernidade, para estabelecer uma continuidade nos é familiar: a hóstia do catolicismo é a presença real
que me parece amplamente fictícia. Retomo os três ter- de Deus num objeto físico devido ao mistério da tran-
mos chaves de sua demonstração: sagrado, humanização substanciação, conversão de um signo visível em supor-
do divino e divinização do humano. te do corpo de Cristo, repetição da encarnação. É a essa
categoria bem determinada de fenômenos religiosos que
1) Não existe palavra mais propícia ao erro que esta se aplica propriamente o conceito de sagrado: a atesta-
de sagrado. É preciso repetir, contra o abuso metafórico ção do além nos lugares, nas coisas ou nos seres daqui
permanente do qual é objeto, que não temos a liberdade debaixo.
de usá-la de qualquer maneira, contando com a aura da Ora, se há uma categoria que o desencantamento do
qual é carregada para fazer sentido. Trata-se de uma mundo deixa pouco à vontade, é bem essa. A "desmagi-
categoria que remete a um enraizamento histórico preci- ficação" do mundo, que reteve prioritariamente a aten-
so. Sagrado, no rigor do termo, designa uma experiência ção, é inseparável de um processo de dessacralização,
fundamental na ordem das religiões, que é a conjunção do qual se pode seguir historicamente a trajetória com
tangível do visível e do invisível, do aqui embaixo e do grande precisão. Se há uma dimensão do religioso da
além. Para ser inteiramente rigoroso, o sagrado deve ser qual saímos, é essa do sagrado, inclusive para as cons-
tratado, no meu entender, como uma noção histórica. ciências mais crentes. No máximo subsiste uma memó-
Ele nasce com a virada capital da história religiosa da ria daquilo que outrora pôde ser o sagrado, assim como
humanidade que marca o surgimento do Estado. As reli- das espécies de substitutos que nos enganam. É verdade
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 50 Depois da Religião 51

que o homem comum, ao dar de cara com uma estrela siderações absolutas e ordens de considerações relati-
das mídias, tem a impressão de que ela "vem de um vas. A profanação não impede a existência de absolutos
outro mundo", ou até mesmo se surpreende ao constatar sem garantia sacra.
que ela "existe realmente". Mas não lhe fica um segun- Entre nós trata-se, portanto, de questões de pala-
do sequer a impressão de que viu um ser sobrenatural! vras, como dizia Luc Ferry. Mas essas questões de pala-
Ele reconhece imediatamente o semelhante, demasiado vras engajam a compreensão do tema.
semelhante. Tomando com rigor a noção, não vejo como
se possa falar de sagrado no mundo atual, a não ser por 2) Na religião que você fundou há pouco - mas da
uma derivação metafórica mais enganosa que esclarece- qual já havia lançado as bases antes - há uma noção
dora. Quando dizemos que a vida humana é "sagrada", que me coloca um sério problema. Lamento que não
afirmamos que ela encarna o invisível, que materializa o
tenha se estendido sobre ela, no quadro da versão exo-
sobrenatural, que é habitada por uma transcendência,
térica que você nos apresentou. Para uma boa religião,
no sentido religioso do termo - voltarei a esse ponto - ,
no mundo em que estamos, é preciso um Deus- ou, em
que ela tira de um outro lugar o valor que exige seu res-
rigor, deuses. E você não foi muito eloqüente sobre esse
peito absoluto? Não creio. Trata-se apenas de uma ima-
Deus. É claro que compreendi que você não fala de Deus,
gem, que a reflexão deve nos poupar de tomar ao pé da
mas de divino. Ora, é justamente isso que me preocupa.
letra. Esse fato não retira a realidade da interdição pro-
tetora da qual a vida é objeto. Mas compreenderemos Compreendo o divino quando há um Deus. Mas, na cir-
mal a natureza dessa interdição se a tomarmos à luz da cunstância, não percebo de onde vem esse divino. E não
categoria do sagrado. o vejo aparecer, em particular, a partir das diferentes
É preciso sair da alternativa pseudotrágica: ou coisas que você descreveu.
"nada é sagrado" (dito de outra forma: tudo desmorona, Compreendo o que as religiões tradicionais enten-
nada mais vale alguma coisa), ou nada mudou (o sagra- dem por Deus, entendimento do qual somos herdeiros.
do não se encontra mais no mesmo lugar, mas continua É uma noção que tem uma longa história muito compli-
a existir, graças a Deus, igual ao que sempre foi). Há cada, supercomplicada pela apropriação da idéia de
uma superioridade da humanidade em relação a si Deus efetuada pela filosofia racionalista moderna, de
mesma que não merece o nome de sagrado sem que isso Descartes ao idealismo alemão - a partir de então, os
retire algo da força das prescrições que a ele se ligam. filósofos não são mais loquazes a respeito de Deus. Mas,
Não estamos presos numa escolha binária entre sagrado enfim, tão complicada quanto possa ser, nós nos encon-
e profano. No interior do dito profano há ordens de con- tramos nela. Nós ao menos adivinhamos de que se trata.
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 52 Depois da Religido 53

Ora, em relação a essa acepção corrente, em relação rio à sua idéia de crer que Deus intervém nos assuntos
ao Deus identificável para cada um de nós, em nossa cul- humanos e na organização das comunidades políticas. É
tura, ou mesmo em relação ao Deus por vezes absconso isso que faz com que não haja mais nenhum problema
dos filósofos, não percebo o que a humanização do divino de integração dos cristãos nas democracias. Aos olhos
de que você fala pode recobrir. Tudo mostra, a meu ver, do fiel mais devoto, não há ordem divina. Deus não se
que somos testemunhas do movimento contrário. Deus ocupa em nos entregar leis. Há muitos valores cristãos
não nos é mais pensável, seja no abstrato da filosofia, que pesarão nas escolhas dentro do debate coletivo, mas
seja no concreto existencial da crença, senão num traba- este obedece às suas razões internas. Não há mais senti-
lho para separá-lo ou afastá-lo da humanidade. Movi- do na perspectiva de uma sociedade cristã. O fato de ser
mento muito interessante, diga-se de passagem, dado que crente não é determinante na maneira de se situar na
toma inteiramente ao reverso as análises "supersticiológi- cena pública; ele se traduz em posições que podem ser
cas", se ouso dizer, da religião. Estas, de Feuerbach a muito diferentes e que são admitidas como tais do ponto
Freud, passando por Durkheim, propõem variações de vista das consciências crentes.
sobre um tema único: a religião consiste fundamental- Deus desantropomorfiza-se, em seguida, no terreno
mente numa projeção antropomórfica. Projeção glorifi- moral. Deixa de ser um prescritorlo e um retribuidor
cante da essência humana para uns, da sociedade para que leva em conta com exatidão as condutas. Ele tem
outros, do pai para outros mais. Pouco importa, a tese de mais o que fazer além de castigar e recompensar as boas
base é a mesma: o homem adora a si mesmo, ignorando e as más ações. As investigações sobre a evolução das
que é à sua própria idéia que ele devota um culto. crenças religiosas registram bem esse deslocamento. O
É falso: nós temos a clara atestação disso com o mo- inferno não faz mais sucesso, o paraíso não é mais plau-
vimento contemporâneo que busca desantropomorfizar sível como um lugar de delícias prometido aos justos. A
o divino. Isso não quer dizer que não havia elementos crença na sobrevida pessoal, que permanece forte,
antropomórficos que entrassem na representação de desconecta-se da passagem por um tribunal de virtudes
Deus, mas eles eram, no fim de contas, secundários,
e vícios. A imagem de Deus e a esfera do divino, que a
como estabelece a dissociação em curso. É um aconteci-
morte permite reintegrar, se impessoaliza. É aqui, aliás,
mento de importância capital na evolução da religiosi-
que se opera o encontro com o budismo.
dade contemporânea.
Deus- o Deus dos crentes, assim como o dos incré-
dulos, insisto nesse ponto - desantropomorfiza-se, em
IO Neologismo para indicar aquele que prescreve, que ordena com precisão
primeiro lugar, no terreno político-social. Ele é contrá- aquilo que se impõe. (N.T.)
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 54 Depois da Religião 55

Paralelamente, a idéia do Deus de amor, tão impor- nos antípodas de um divino humanizado, mesmo que
tante na tradição cristã, esvazia-se de sentido. É um ele possa, sob certos aspectos, se parecer com isso.
traço que toca no âmago do propósito de Luc Ferry. O
princípio último que se supõe abraçar todas as coisas é 3) Chego à tese simétrica da divinização do humano.
certamente fonte de uma benevolência que justifica É a peça-mestra do dispositivo, dado que é ela que pode
nossa presença no mundo. Todavia, não tem mais rela- fundar a religiosidade racional e autônoma atual. A
ção com o criador preocupado com a redenção e a salva- humanização do divino junta-se ao movimento do crí-
ção de sua criatura. É o aspecto do processo de desan- vel contemporâne o; a divinização do humano explora
os recursos clássicos da filosofia para alçar o humano a
tropomorfização que coloca o cristianismo numa situa-
esse divino que, pretensament e, se torna mais próximo.
ção instável, ambígua, aparentemen te, em relação ao
Já mostrei em que a análise a respeito do sagrado não me
estado espontâneo da espiritualidad e contemporâne a. O
convence. Ela comporta um núcleo plausível que tam-
Deus filosófico divorcia-se decididamen te, aqui, do
bém não penso contestar. Há, no homem, o absoluto -
Deus teológico. Mas o ponto crucial a ser sublinhado é
dado que não há outra palavra para designar o inderivá-
que, no meio dessas transformaçõ es, a idéia de Deus
vel, o irredutível, o intransigível que encontramos em
conserva um sentido.
nossa experiência da verdade, do outro, de valores que
A tese de Luc Ferry deve sua plausibilidad e e sua nos fazem sair de nós mesmos. Mas por tal motivo mere-
sedução ao fato de que capta com justeza uma parte des- ceria esse absoluto o nome de divino? Não penso assim
sas evoluções. Ela recorta as transformaçõ es do crível e estou mesmo convencido do contrário. Ele é humano,
hoje em dia. De fato, a figura do Deus vingador e supe- não demasiadamente humano, mas nada além de huma-
regóico, inumano de tanto poder e rigor, está fora de no. Acredito precisamente que é esta a originalidade de
época. À primeira vista, nesse sentido, somos levados a nossa situação: deixando completamente de nos olhar-
falar de uma humanização do divino, mas isso é só uma mos no espelho de Deus, podemos enfim ver o homem.
primeira vista. Pois quando se olha a fundo o que se Graças à dissociação do absoluto celeste, estamos intei-
esconde por trás dessa atenuação de superfície, desco- ramente em condição de pensar o absoluto terrestre por
bre-se um estranhament o. A humanização aparente é si mesmo, escapando à falsa alternativa entre o absoluto
introduzida por uma desantropomorfização que só per- religioso ou a relatividade demasiadamente humana.
mite pensar Deus sob o signo do absolutament e outro De fato, você retoma essa noção do divino com as
que não o homem. O inimaginável separado (que não é metamorfoses da crença em uso que a tornam maleável.
o insondável ou o inefável das teologias negativas) está Desse ponto você a transporta para a esfera do humano,
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 56
Depois da Religião 57

fazendo parecer que ela sai daí. É um jogo de prestidigi- A transcendência na imanência husserliana, que desig-
tação verbal. Seu "divino" não emerge da análise racio- na uma ordem de coisas extremamente precisas ...
nal dos dados do humano: está colado sobre ele. Dito de
outra forma, o Deus da nova revelação nada mais é que
o Deus daquela antiga, disfarçado para a circunstância e Luc Ferry
alojado num emprego que não pode ser o seu.
.. .mas amplamente múltiplas ...

Mareei Gauchet

O ABSOLUTO TERRESTRE É SAGRADO? ... mas, de toda forma, bastante convergentes. Teria
ela vocação para nos fazer encontrar uma transcendên-
4) Gostaria de fazer uma última observação a respei- cia à qual poderíamos legitimamente dar o nome de
to de outra noção estratégica, marcada pelo mesmo absoluto no sentido metafísico? Não creio nisso. Há o
abuso: a de transcendência. A análise que você faz opera
absoluto na experiência humana, nisso concordamos.
um deslizamento insensível de uma transcendência filo-
Esse absoluto seria o absoluto metafísico? Aqui, divergi-
sófica para uma transcendência religiosa que me parece
mos. Parece-me que seu método consiste em nos vender
inaceitável. A passagem é habilmente conduzida, mas
um a partir do outro, com muita habilidade. Resisto a
não deixa de ser um engodo. A transcendência de Deus
me deixar levar. Insisto firmemente a respeito do abso-
é uma coisa; a transcendência tal como a filosofia mo-
luto terrestre. Não percebo claramente a necessidade de
derna nos ensinou a reconhecê-la - transcendência das fazer dele um absoluto metafísico e substancial. Ao con-
idealidades, transcendência de algumas categorias em trário, não vejo esse passo suplementar senão como uma
relação com a experiência, transcendência de certas analogia inconsistente e enganadora, que nos proíbe
normas- é outra coisa. Você toma suas precauções. pensar essa transcendência em seu verdadeiro mistério
Trata-se, bem entendido, de uma "transcendência na de autotranscendência sem exterioridade metafísica
imanência". Permanece o fato de que você introduz, por nem doação sobrenatural.
esse canal, uma "transcendência transcendente", se
Estou de acordo, também, com o movimento que
posso me expressar assim, aquela de um divino nova-
você propõe: a religião não está mais a montante da
mente concebido, mas um divino, apesar de tudo.
moral. Mas segue daí que a religião reapareça a jusante
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 58 Depois da Religião 59

da moral? Não vejo razão para isso. A moral, em seus cas e que requerem uma espiritualidade aos olhos de
novos limites, torna-se um absoluto por si mesma: em muitos de nós atualmente. Vou contentar-me com uma
que isso quer dizer que há o divino orientado para o observação a esse respeito. Podemos fazer apelo a uma
futuro? Pois, se compreendi corretamente o que você espiritualidade- a existência de um apelo, mesmo que
sugere, há o divino orientado para o futuro. Mas de vigoroso, não significa que haverá uma resposta. Pare-
onde ele sai? Não vejo a fonte em lugar algum, salvo ce-me que você conclui, rapidamente demais, do fato
num lance de prestidigitação e na base de um desliza- que há uma necessidade ao fato de que ela será preen-
mento encantatório. chida. É uma tese funcionalista, cujos limites preditivos
não demandam maiores demonstrações.

Luc Ferry

Bem, vou responder-lhe. Mas, peço-lhe, termine


antes seu raciocínio ...
A DISCUSSÃO

Mareei Gauchet Luc Ferry

Creio que já disse o essencial. A discussão progre- Sobre este último ponto, não sendo crente, não te-
diu, dado que chegamos a circunscrever exatamente o nho nenhuma dificuldade em responder-lhe e lembrá-lo
ponto de desacordo. O debate entre nós é um debate de do que disse e escrevi tão freqüentemente sobre o
interpretação a respeito de fatos sobre os quais estamos assunto: não somente a existência de uma necessidade
de acordo. A questão é saber quais são as categorias não implica sua resposta, mas, em geral, a desqualifica.
apropriadas para descrever e compreender esses fatos. Há grandes chances, de fato, de que o objeto da necessi-
Não é uma pequena questão, dado que tudo muda, na dade seja pura e simplesmente engendrado. Dessa forma,
interpretação, dependendo da ótica que usamos para sou tão pouco funcionalista na matéria que esse objeto
abordá-la. me parece, ao contrário, ser a principal objeção contra a
Uma última palavra. Deixei de lado uma das dimen- crença religiosa. É esse o motivo pelo qual o religioso me
sões importantes que você evocou, ao falar das interro- parece, menos que a você, diferente em suas figuras tra-
gações existenciais que só podem escapar às morais lai- dicionais e em suas faces novas, pois, na falta de ter a fé,
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 60 Depois da Religillo 61

não vejo esse Deus - ou esse sentido de Deus de que


Mareei Gauehet
você falava há pouco- mais entre os antigos que entre
os modernos. É esse o motivo pelo qual a comparação Mas qual é a relação entre o divino e Deus?
entre os dois me incomoda profundamente menos do
que você parece pensar, quando me imputa não sei qual
Lue Feny
"lance de prestidigitação". No fundo, não desejo com-
parar uma religião com um "verdadeiro Deus" e uma
É uma boa pergunta. Assinalo simplesmente que ela
religião estranhamente reduzida ao divino, dado que,
é antiga, e que já entre os gregos Deus não existe, mas o
nos dois casos, tenho o pressentimento de que "o verda-
divino existe.
deiro Deus" falta. Em contrapartida, nos dois casos, é a
questão da relação com o absoluto, terrestre ou não, que
para mim é central. Por um lado, não vejo como você Mareei Gauehet
mesmo possa escapar disso; por outro, não compreendo
direito, devo confessar, em que seu absoluto "filosófi- Os deuses existem!
co" difere do absoluto religioso: ao contrário, para mim
ele só é - e isso em função de uma longa tradição (basta
ler Hegel para se convencer) -um outro nome do divi- Luc Feny
no. De resto, todas as "desconstruções" pós-hegelianas,
de Nietzsche a Heidegger, passando por Marx, porão Mas o divino não se reduz a eles de forma alguma ...
esses dois absolutos no mesmo cesto. É, a meu ver, o
ponto essencial, e aquele que me parece o menos con-
vincente em suas objeções. Voltarei a isso. Mareei Gauehet
Queria dizer, inicialmente, que estamos ao menos de
acordo sobre o ponto de divergência: temos o direito, Porque há um sindicato: eles são vários.
por assim dizer, de enxertar categorias, que são as da
religião, da espiritualidade, do sagrado, do divino- e,
de fato, não falo de Deus (pelo menos você notou isso) Luc Feny
- , mas, apesar de tudo, do divino- numa filosofia
laica ... Não, esse não é o problema. O divino é, entre os
estóicos, por exemplo, a própria harmonia cósmica
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 62 Depois da Religião 63

enquanto tal, uma forma de transcendência na imanên- Luc Feny


cia do mundo, e é ela, e não uma ou várias pessoas
supostas divinas, que nos libera, se a compreendemos Compreendo perfeitamente que você queira se res-
adequadamente, da finitude e dos temores que esta sus- tringir prudentemente ao descritivo, mas não creio que
cita. De resto, no Livro VI de A república, é do divino isso seja possível, a menos que se seja rigorosamente
que fala Platão, e não dos deuses no plural, nem de materialista, e olhe lá, pois sua fórmula, de resto exce-
quem quer que seja que se assemelhe ao seu sindicato ... lente e, num modo menor, rigorosamente análoga à
Como testemunha a etimologia da palavra "teoria", os minha, quando falo do "homem-Deus", não pode dei-
gregos já têm do divino uma concepção que remete, sob xar de designar, além das simples constatações, o pro-
alguns aspectos, ao que entendo por transcendência na blema filosófico em torno do qual não cesso de girar: se
imanência: pois o divino, no fundo, é a ordem do admitimos a noção de absoluto, de fato, o que queremos
mundo enquanto tal, a harmonia cósmica, que é ao dizer com isso? Queremos dizer, por exemplo, que, par-
mesmo tempo transcendente em relação aos humanos tindo das considerações morais mais elementares, nos
(exterior e superior a eles) e, entretanto, perfeitamente apercebemos de que há, para certo número de pessoas
imanente ao real. É o análogo da idéia do divino à qual entre nós e talvez mesmo para todo mundo, certo núme-
tentei fazer justiça em O homem-Deus. ro de valores, de princípios morais que não são nego-
Mas, permita-me voltar à pergunta central, aquela ciáveis? Que esses princípios são tão pouco negociáveis
que você me faz e que eu também me fiz: qual é a legiti- que nós os apercebemos eventualmente como podendo
midade do emprego desse vocabulário religioso para envolver o risco de nossa própria vida (mesmo que, a
designar o que você chama adequadamente de "o abso- esse respeito, reconheço sem constrangimento, rara-
luto terrestre"? O que eu começaria por dizer é que não mente estejamos à altura)? Em linhas gerais, é essa a des-
compreendo o que você quer dizer com sua noção de crição? Se a resposta for sim- como creio que você
absoluto terrestre ... concordará - , ela irá trazer-lhe muitos problemas para
os quais não bastará, temo, limitar-se à esquivança ...
Efetivamente, quando se quer agora passar do des-
Mareei Gauchet critivo ao explicativo - e como evitá-lo? - , quando,
por conseguinte, nos perguntamos de onde vem essa
Ela é puramente descritiva. espécie de absoluto terrestre que ambos reconhecemos,
entramos em dificuldades. É por isso que nem todo
mundo aceita, mesmo no nível descritivo, essa estranha
LUC FERRY &. MARCEL GAUCHET 64 Depois da Religitlo 65

noção de absoluto terrestre: o próprio fundo do mate- quando passamos, então, da descrição à explicação
rialismo, marxista, nietzschiano, biologista etc., é justa- desse sentimento da relação com o absoluto, é claro, e
mente contestar qualquer legitimidade a esse absoluto você concorda comigo também, que inúmeros de nossos
terrestre, declará-lo radicalmente ilusório. Se a noção contemporâneos farão uma genealogia que concluirá
possui um alcance descritivo, é somente no sentido em sobre seu caráter totalmente ilusório. Questão de passa-
que designa, para o materialismo, o nó de todos os delí- gem: é esse o seu caso? A escolha é sua, claro, mas ela não
rios. Insisto, portanto, sobre o fato de que nem todo é inocente, nem deixa de ter conseqüências ...
mundo reconhece essa idéia de absoluto terrestre, mas Se, ao contrário, conferirmos a esse absoluto terres-
que a rejeita de bom grado em nome da infra-estrutura, tre certa legitimidade e tentarmos então ir além da des-
das pulsões, do gene altruísta ou de qualquer outra ins- crição, se nos dissermos que talvez não seja uma pura
tância material que se queira considerar... ilusão, mas que isso nos parece conter, de qualquer
forma que se entenda, a verdade, e que talvez se tenha
razão de pensar assim, então reatamos, inevitavelmente,
Mareei Gauchet com uma problemática neo-religiosa ou "espiritualista"
para a qual, falando com franqueza, nenhum vocabulá-
Quero fazer somente uma observação: os defensores rio convém inteiramente (basta, para o convencimento,
do gene altruísta pensam que ele age sobre nós por meio lembrar os embaraços de Habermas, com sua noção de
da ilusão, mas nem por isso recusam essa ação como "quase-transcendental"). De resto - é exatamente o
sendo um absoluto. que os materialistas vão reprovar em tal atitude, a saber,
que ela é "religiosa" ou "espiritualista"-, todo o pro-
blema, a meu ver, é justamente aquele do estatuto desse
Luc Ferry religioso que vem, em suma, "depois da religião".
Insisto nisso ainda, pois é o ponto crucial em nossa
É exatamente aonde quero chegar: se deixamos a discussão. Talvez seja um erro conferir alguma legitimi-
esfera da descrição, sobre a qual todo mundo está de dade, qualquer que seja ela, à idéia de absoluto, mesmo
acordo, dado que podemos descrever uma ilusão ou que terrestre. Mas vamos nos colocar na hipótese em
uma verdade em termos idênticos- mesmo o biologista que se escolhe, como faço, perceber esse absoluto como
mais reducionista ou o marxista mais radical admitem absoluto, isto é, perceber algo, que chamo de sagrado,
de bom grado que temos o sentimento, mesmo que só no porque ele pode, eventualmente, legitimar o sacrifício.
nível da ideologia, de algo como valores "absolutos"-, É aí que Mareei me diz: mas não, não temos o direito de
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 66 Depois da Religião 67

dizer sagrado, porque sagrado é a encarnação de um riência não é de modo algum clara. Não sei o que os cris-
Deus, do qual sabemos bem o que quer dizer: uma rela- tãos chamam de Deus e, para dizer a verdade, nunca
ção com o invisível encarnado no visível, uma transcen- soube. O ponto em que há um conflito maior entre nós
dência bem real, um além que enerva e irradia aqui na descrição do fenômeno é que, exceto quando falo com
embaixo etc. E, de fato, não se o encontra em mim. crianças, que me descrevem Deus quase como um avô
Vejam então que eu também não facilito minha tare- escondido entre as nuvens, não sei o que é o Deus dos
fa e que tomo a objeção lá onde ela se encontra. cristãos. E tenho, por trás de mim, para não saber o que
O que gostaria que se compreendesse bem, antes de é o Deus dos cristãos, toda a filosofia moderna, que faz
falar de "lance de prestidigitação", é que, quando se vai Dele uma representação e não uma realidade, que faz Dele
da descrição à explicação, não se pode fazer a economia um corpo de valores transcendentes que fundam esse
de uma problemática que é, de alguma forma, religiosa. absoluto terrestre ou que têm afinidade com ele, ou do
No limite extremo, não se pode fazer sequer a economia qual esse absoluto terrestre é a encarnação: encarnação
sendo materialista, porque se dizemos que é ilusório, de quê? Eu não sei. Em todo caso, não de um avô barbu-
somos obrigados a encontrar um fundamento da ilusão, do, nem de um personagem simpático e benevolente que
e, como bem viu Heidegger, todos os materialismos aca- toma a forma que se quiser imaginar. A questão dos filó-
bam por desviar para uma ontoteologia na qual a infra- sofos é, apesar disso, essencial naquilo que nos interessa
estrutura, as pulsões ou os genes têm o papel do funda- particularmente: o que é Deus? Como não sei rigorosa-
mento supremo antigamente encarnado em Deus. Mas, mente nada, falo do divino, isto é, desse sentimento de
se dizemos que não é ilusório, a questão é então saber: absoluto com faces múltiplas que descubro no contato
de onde provém esse estranho sentimento de absolutez? com valores dos quais devo lhes dizer e redizer que não
Será que ele não é justamente algo como o sentimento de os inventei nem fabriquei, seja na ordem da verdade, da
uma encarnação no visível de um princípio que não o é? moral, da cultura ou do amor. Teologia negativa, se qui-
Então Mareei dirá: mas não vejo Deus em tudo isso, serem, de valores encarnados cuja origem me escapa,
então pare de falar em religioso, em divino e em sagra- mas cujas explicações materialistas não me parecem, na
do, senão você roçará a impostura. Objeção que supõe, mesma medida, satisfatórias, dado que são mais teológi-
revestindo-se de bom-senso, que a experiência disso cas ainda!
que as pessoas chamam Deus é bem clara, que ela é
aquela da fé num ser invisível, transcendente, que ape- * * *
sar disso se encarna etc. Mas, perdoe-me: para mim, e
toda nossa divergência talvez se deva a isso, essa expe-
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 68 Depois da Religiilo 69

Para retomar as coisas na ordem e responder de pio, que a escalada do islamismo radical não se inscreve
maneira mais sistemática: também me coloquei várias na lógica das sociedades democráticas e que ela possui
vezes essa objeção que Mareei me faz, é claro. Por que razões exógenas (ligadas principalmente à descoloniza-
eu teria dado esse passo - que, aliás, me custou uma ção, às lutas contra o imperialismo em nome da identi-
série de zombarias- dado que ele tem algo de ridículo dade nacional etc.). Meu discurso não se inscreve nesse
no contexto intelectuallaicisistall que é o nosso ainda movimento de balança no qual não acredito: morte de
hoje em dia? É o que eu gostaria de explicar, porque Deus, retorno da espiritualidade. Não é esse o meu pro-
penso encontrar aí algo que merece uma reflexão e que pósito.
deveria sensibilizar Mareei Gauchet, ele que percebe os Segundo ponto: o campo em que reflito, como indi-
fenômenos de recomposição ligados a essa "formidável quei há pouco, é a questão central do "a montante e a
reviravolta" histórica: das sociedades organizadas a par- jusante". Para dizer de modo simples: até a aparição das
tir da heteronomia, para sociedades organizadas a partir morais laicas, no século XVIII, nos vemos às voltas com
do princípio de autonomia, ilusória ou não. De fato, há uma figura bem conhecida do teológico-ético, aquela na
uma reviravolta e seria muito surpreendente se ela dei- qual a religião vem a montante da moral para fundá-la;
xasse intactos os termos do problema. Eis por que falo é essa figura da teologia moral que o papa tenta reabili-
do divino e não de Deus. tar atualmente, apontando como, a partir de uma reve-
Retomo as coisas na ordem, indo ao essencial para lação, que é a da verdade crística, se deduz certa ética.
mostrar por que o reinvestimento do vocabulário reli- O que me parece crucial na Crítica da razão prática, de
Kant, é justamente a constituição de uma fundação
gioso me parece ser inevitável.
puramente humana da moral e, a despeito disso, impos-
Primeiro ponto: para mim- e aí concordo com
sibilitada de fazer a economia do religioso. Creio que
Mareei Gauchet - , o debate sobre o "retorno do reli-
não é por concessão à atmosfera da época, nem por fide-
gioso" é superficial e falso. Com freqüência lhe fizeram
lidade a uma sobrevivência tradicional que Kant rein-
objeções, pretendendo fazer valer uma pretensa "revan-
troduz o religioso na última parte da Crítica da razão
che de Deus", que sempre tomei como ridículas e às
prática, mas porque ele é levado por uma convicção que
quais você respondeu mil vezes. Está claro, por exem-
me parece às vezes muito interessante: aquela segundo a
qual não é porque o religioso perdeu seu lugar de fun-
dação da lei a montante que ele não é "convocado" a
11 Em francês, laii:ard, termo pejorativo para designar aquele que defende
em demasia a laicidade, freqüentemente motivado por uma tomada de jusante pela lei. Compreendo claramente que esse apelo
posição anti-religiosa. (N.T.) permaneça sem resposta no sentido tradicional, porque
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 70 Depois da Religião 71

sou sensível aos efeitos que essa reviravolta induz, prática, o religioso permanece na relação com a lei. Ele
como ao mistério insondável da fundação dos valores permanece estruturalmente ligado à própria organiza-
que Kant chama de "transcendentais". Mas o que me ção do jurídico e da lei moral, ou até mesmo à descober-
interessa - e me parece que você também deveria ser ta do caráter universal da beleza ou da verdade: ele não
sensível a isso- é que essa reviravolta em relação à lei, é redutível a uma sobrevivência de crenças individuais
essa reviravolta da montante para a jusante, desenha e pessoais, que permitiriam falar, entretanto, de fim do
um lugar situado além da moral: aquele do religioso. religioso, como você faz. Não creio que haja um fim do
Mesmo que os termos mudem de sentido, os problemas religioso, mas uma reinterpretação do religioso nessa
serão os mesmos. A relação com a moral vai se reinstau- relação com a lei. Insisto no ponto, pois é por essa razão
rar a partir do futuro, e não mais em função do passado. que meu discurso não se inscreve no famoso debate tra-
Portanto, como um "horizonte", para usar as palavras dicional entre morte de Deus e revanche de Deus.
de Husserl, e não mais como "fundamento", para usar Terceiro ponto: por que falar de sagrado? Nisso con-
aquelas dos defensores do teológico-ético. cordo com Gauchet sobre a necessidade de uma defini-
A meu ver, esse é o ponto central. Aí está, no fundo, ção rigorosa. Porque esse absoluto terrestre de que falá-
a pergunta que faço a Mareei: a partir do momento em vamos- e que percebemos por meio da experiência
que a religião passou para o lado da jusante de uma lei moral, mas também por meio da experiência estética, da
doravante vivida como puramente humana e que diz res- experiência do amor, da experiência da verdade (isso
peito à autonomia, o religioso é por esse motivo menos porque a noção de transcendência na imanência é múl-
religioso? Aliás, o que quer dizer esse "menos" religioso? tipla)-, essa noção de absoluto terrestre remete a uma
Não temos aí o aparecimento de uma configuração de transcendência, a partir do momento em que não se a
problemas que são, traço por traço, análogos àqueles das considere como puramente ilusória. Por isso não pode-
religiões tradicionais, com todos os coeficientes de corre- mos ficar no descritivo: se você disser que as pessoas
tivos que a analogia implica realizar, a partir do momen- têm razão de pensar que existe o absoluto, que existe
to em que eles se situam além da moral e, a despeito algo que ultrapassa suas próprias vidas; se, ao invés de
disso, são enraizados, se não fundados por ela? não tomar partido como historiador, você o fizer como
No fundo, no dispositivo de Gauchet, o religioso filósofo ou cidadão, e que você não conseguir apreender
deveria desaparecer: é isso que me incomoda. Senão, ele esse absoluto terrestre como uma pura ilusão, então
só deve permanecer como uma sobrevivência ou como você será obrigado, de fato, a imaginar algo como um
crença pessoal (e não em relação com a lei). No disposi- lugar, provavelmente vazio- por isso falo do divino, e
tivo que Kant mal começa a esboçar na Crítica da razão não de Deus-, mas que é um lugar religioso, dado que
LUC FERRY & MARCEL GAUCHE T 72
Depois da Religiilo 73

esses valores encarnados nesse absoluto terrestre: 1) nos irônica, que os homens sejam tão "formidá veis" e tão
ligam entre nós (podemos contestar a etimologia, mas amáveis que vão enfim tomar o lugar dos deuses: basta
pouco importa aqui: eles modelam um mundo comum); olhar-se num espelho, observar as misérias que nos
2) têm uma origem que, de algum modo, permane ce habitam e que nos cercam para saber que não é esse o
misteriosa, não "fundada ": ninguém jamais consegui u caso. A divinização do humano não significa que a vida
resolver nem a questão do fundamento da moral, nem a humana seja enquanto tal sagrada, o que, aliás, eu não
do fundame nto da verdade. Há algo aqui que é uma penso: não é isso que julgo sagrado, dado que o sagrado
transcend ência encadean te e infundáv el, a menos que de que falo pode exigir, às vezes, o sacrifício da vida.
se recaia nos erros da ontoteologia, mesmo que ela seja Por outro lado, falo do fato que está em questão nas
"materialista"; e 3) são sagrados, ao menos no sentido discussõ es com os verdadei ros materiali stas, isto é,
de que esse "não-ent e" invisível que se encarna no dessa transcendência que está no âmago da humanid a-
absoluto terrestre nos ordena ultrapassar nossa indivi- de, desse "sobre-n atural", falando propriam ente, que
dualidade ou, se for o caso, pôr em jogo nossa própria me parece ser de fato o próprio do homem e que o torna
existência - por aí mesmo não creio que seja somente capaz de certa "disposição meta-física". Cito em todos
um jogo de palavras transitar do sagrado ao sacrifício. os meus livros a pequena passagem do Discurso sobre a
Eis aqui, parece-me, uma configura ção de pensa- desigualdade, de Rousseau, sobre a diferença entre o
mento religioso que se situa além da moral. Porém, ao homem e o animal. Sou obrigado a lembrá-lo toda vez,
mesmo tempo - e muito mais paradoxa lmente que o pois, a meu ver, essa própria diferença é o divino no
materialismo - , se situa além das aporias tradicionais homem. Por que digo o divino no homem? Porque se
da metafísica da subjetividade. admitirmos a idéia de que o ser humano tem a faculda-
Acrescentarei ainda duas coisas: de de se livrar ou de se emancipar de todos os códigos,
Qual é a origem dessa percepção de um absoluto ter- se admitirmos que a natureza não é nosso código e que
restre, desse sentimento de uma figura inédita do sagra- a história também não o é (mesmo que, isso é óbvio, elas
do? Pois se não vamos ao fundo das coisas o discurso o sejam também muito amplame nte, mas não inteira-
permanece metafórico. Esse absoluto terrestre - se não mente), se admitirmos então que há uma sobrenaturali-
o interpret amos como uma ilusão dos genes, das pul- dade e uma transistoricidade no ser humano, então tal-
sões, da sociedade, da história etc.- obriga-nos, uma vez nos encontremos diante da origem última do divino.
vez mais, a ir além da simples descrição histórica. Quando É por isso que algo como a idéia de um absoluto terres-
falo de "diviniza ção do humano" , não quero dizer, tre pode nos aparecer : quando falo do divino no
como havia sugerido André Comte-Sponville de maneira homem, é a isso que viso. E que não me digam que é
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 74 Depois da Religião 75

inteiramente trivial, dado que, precisamente, é isso que modo mais geral, entre aqueles que vêem no nascimen-
é sem cessar contestado hoje em dia, sobretudo por esse to do universo democrático a passagem de um mun-
novo materialismo muito invasivo constituído pela do heterônomo para um mundo da autonomia, é que
sociobiologia, agora que o marxismo está relativamente depois do tempo dos valores herdados do passado,
em má situação. transmitidos pela tradição e recebidos de fora pelos
Quando falo aqui de "disposição para a metafísica", indivíduos, teríamos entrado numa nova época, na qual
não penso no fato de que os seres humanos seriam cria- os seres humanos "inventariam", por assim dizer, seus
turas divinas. Penso nessa sobrenaturalidade no ser valores. Digamos claramente que essa visão das coisas é
humano, que se traduz por dois fenômenos observáveis, não somente simplista, mas radicalmente falsa: os seres
que são a cruz e o estandarte para os materialistas: humanos jamais fabricaram os valores, tanto hoje em dia
- O fenômeno do mal, do demoníaco, a capacidade quanto no passado. A autonomia não tem nada a ver
de estar no que os teólogos chamavam antigamente de com a fabricação de valores. Em outras palavras, que
maldade, e sobre a qual expliquei em outro lugar por poderão surpreender algumas pessoas, os valores são
que ela me parecia não redutível à lógica natural. Eu hoje em dia tão exteriores e superiores à humanidade
não vejo maldade nos animais. quanto numa perspectiva tradicional. Eu não invento a
- O fenômeno do amor desinteressado, que os gre- verdade, eu a descubro: não fui eu quem decidiu que
gos chamavam de philia, isto é, o fato de se alegrar com 2 + 2 são 4 e, em relação a essa asserção, minha margem
a simples existência de outrem. de liberdade individual é igual a zero! Mas também não
Esses dois fenômenos de desinteresse, que são pré- invento os v<1.lores morais, como os direitos humanos,
morais (e é isto que me interessa neles: não se confun- por exemplo. Eu os descubro como algo que se impõe a
dem com o imperativo kantiano), que constituem por mim, com sua coerência, seu rigor e, se posso dizer
assim dizer duas experiências pré-morais de sobrenatu- assim, sua "dureza" próprias. Donde essa estrutura do
ralidade no homem, parecem-me estar na origem dessa sagrado que parece ser-lhes inerente, essa encarnação
relação com a transcendência de um absoluto terrestre d~ um invisível no visível, que recebo como algo que
que, se não é imediatamente denegado como ilusório, tem o caráter de divino. Não produzi esses valores e na
nos obriga a rearrumar o espaço do religioso. verdade tenho, em alguns casos, uma dificuldade enor-
Termino com uma última idéia à qual é preciso fazer me em contestá-los.
justiça neste debate: a idéia que prevalece habitualmen- É preciso então ser prudente no uso das categorias
te, sobretudo entre os leitores de Mareei Gauchet e, de de heteronomia e de autonomia: podemos estar num
LUC FERRY &. MARCEL GAUCHET 76 Depois da Religié!o 77

mundo da autonomia sem dever nem poder criar valo- humana. De resto, não estou certo, como já lhe disse, de
res. A autonomia se situa, no máximo, na escolha ou no que o conteúdo do religioso seja tão claro assim no espí-
reconhecimento de certos valores e não de outros. Os rito dos próprios crentes...
valores continuam então a se impor a nós segundo um
modelo que, se não for percebido como ilusório, deve
levar-nos a refletir sobre a dimensão espiritual e não Mareei Gauchet
simplesmente moral desse absoluto terrestre do qual
falávamos há pouco. Estou, de fato, convencido do contrário.
Eis por que não posso fazer a economia do vocabu- De novo, concordo com a constatação e discordo da
lário religioso: aliás, o que você queria que eu usasse interpretação. Concordo inteiramente com você quanto
como outro vocabulário? Mesmo quando você fala de ao último ponto que levantou e que é essencial quanto à
absoluto terrestre, queira ou não, o termo absoluto é natureza da autonomia: não se fabricam os valores. A
religioso. O absoluto foi o nome de Deus em toda a filo- autonomia é a elaboração das leis que estão a serviço
sofia moderna. Não vejo sequer o que um absoluto ter- desses valores. Isso não tem nada a ver.
restre que não tivesse uma dimensão religiosa quereria
dizer. Nesse caso, falemos somente de valores morais,
mas não de valores absolutos. Qual é a origem dessa Luc Ferry
absolutez num mundo em que o religioso está doravan-
te a jusante da consciência humana? Aí está a questão Exatamente.
que coloco, e não vejo que outro vocabulário utilizar
para esse absoluto prático que nos une, cuja origem é
misteriosa, que é transcendente em relação a cada um Mareei Gauchet
de nós e que às vezes nos convida, coisa estranha, a
superar esse apego - que, contudo, é tão grande em Para ser bastante preciso, a autonomia muda duas
cada um de nós - aos valores da existência, aos valores coisas. Ela muda a interpretação desses valores. Ela
da vida biológica. transforma a maneira de compreender sua origem, sua
Não é então, de minha parte, um "deslizamento" de razão de ser e as conseqüências que se tiram disso. E ela
vocabulário: trata-se muito mais de registrar o fato de transforma as modalidades de sua administração práti-
que o religioso mudou de lugar em relação à consciência ca, administração essa que constitui propriamente o
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 78 Depois da Religião 79

objeto do debate político em nossas sociedades. Não se valores acima de nossa própria vida? De onde nos vêm
inventam os direitos humanos no sentido estrito. Nós o essas requisições primeiras, sobre as quais também
formulamos a partir de um estoque de valores que não estou de acordo com Luc Ferry em admitir que se ins-
esperaram 1789, felizmente para nossos ancestrais, para crevem numa tradição? A humanidade, do ponto de
serem reconhecidos. Mas o fato de formulá-los lhes dá vista de seus valores últimos, vive em relativa continui-
um novo conteúdo, devido ao novo papel que lhes é dade consigo mesma. As implementações civilizatórias
atribuído na organização coletiva. E, sobretudo, o fato são muito diversas, e a dispersão dos costumes, além das
de formulá-los abre uma imensa carreira para a invenção divergências das valorizações secundárias, chocaram
institucional, a partir do momento em que se trata de legitimamente os observadores. Mas, olhando o núcleo
encarnar concretamente esses princípios. O respeito à duro, a unidade do percurso é realmente notável. Isso se
vida humana não é um imperativo que data de ontem- aplica mesmo ao mundo moderno. É preciso ser tão
"Não matarás". Isso não impede que, a partir do mo- atento à descontinuidade prática que ele representa,
mento em que admitimos que os seres humanos têm quanto é preciso saber discernir a continuidade que o
direito à existência, o respeito à vida adquira uma outra une aos mundos antigos, no que concerne às experiên-
face e se torne fonte de exigências inéditas. Será preciso cias constitutivas. Não saímos do círculo da unidade da
construir um Estado de bem-estar social para assegurar espécie humana, e é por aí, diga-se de passagem, que
a efetividade desse direito à existência: dificilmente, podemos encontrar uma saída para a falsa querela da
tateando para encontrar a fórmula correta e em meio a "universalidade dos direitos humanos". Eles efetiva-
uma disputa pública de todos os momentos. É nesse tra- mente foram explicitados num dado momento histórico
balho de implementação que vai consistir a invenção e numa dada sociedade, produzindo expressões sociais e
histórica. Mas é preciso saber reconhecer, aquém dessa políticas em ruptura com as sociedades tradicionais;
invenção, a permanência do valor de base que se impõe para dizer rapidamente, inclusive a sociedade cristã tra-
a nós, sem que possamos reivindicar sua invenção. É dicional. Isso não os impede de possuir um enraizamento
sobre esse interdito primordial - interdito que reco- muito mais vasto e muito mais antigo. Daí o fato de serem
nhecemos de comum acordo - que se sustenta a dis- suscetíveis de encontrar um eco bem além da zona oci-
cussão entre nós. Como interpretar o fato? Como com- dental, mas colocando, compreende-se por quê, proble-
preender o enigma disso que nos obriga originalmente mas de implantação que são o verdadeiro problema.
na verdade, na relação com os outros, na existência em Há duas respostas, a partir daí, sobre o fundo da
sociedade, até eventualmente nos fazer colocar esses questão:
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 80 Depois da Religião 81

Primeiro ponto. Você disse que, em minha perspecti- antropológicos de base. Não é que o religioso desapare-
va, de maneira lógica, obrigatória, o religioso está desti- ça - por conseguinte, é que aquilo que se manifestava
nado a desaparece r, mesmo que possa factualmen te como religioso se metamorfoseia em outra coisa, razão
sobreviver por muito tempo. Não. O cerne antropológi- pela qual a humanidad e não sofre de nenhum déficit
co que sustentou milenarmente o religioso está destina- com o recuo das crenças estabelecidas. Continuamos a
do a se perpetuar. Ele é então convocado, entre outros, participar disso que estava no âmago da experiênci a
a continuar a alimentar as experiênci as e os discursos religiosa, mas fazemos disso um outro emprego. É o que
religiosos constituídos e confessos como tais. Sou leva- nos torna capazes de compreend er o passado religioso,
do a crer que, devido a essa disposição, encontraremos apesar de lhe darmos as costas e de nos subtrairmo s, na
a religião em comunidades humanas, em todas as épo- prática, de sua órbita.
cas, em continuida de com as religiões do passado. Sua Isso não é óbvio quando refletimos sobre o tema:
presença poderá ser bastante minoritária, mas nem por mesmo agnósticos e sem preocupações metafísicas, con-
isso será menos significativa. Todavia, esse cerne antro- tinuamos a entender o que está em jogo na noção do
pológico parece-me destinado sobretudo a encontrar "divino". Não é preciso religião para isso. É o que permi-
outras expressões. O movimento está amplament e ini- te a você falar e ser lido. É esse divino residual que você
ciado. Tudo aquilo que passava pela religião está desti- convoca. E quando você fala de divino "além da moral",
nado a se recompor fora da religião. seria preciso dizer, na verdade, "além da religião".
Apontei algumas vias desse trabalho de recomposi-
ção no fim de meu livro Désenchan tement du monde
[Desencantamento do mundo]. A experiênci a estética, e Luc Ferry
de modo mais amplo a experiência imaginária, a expe-
riência do conhecimento, a experiência psicológica de si Talvez.
e, eu adicionaria hoje, a experiência ética, que me havia
escapado na época, todas elas se redefinem, se aprofun-
dam e crescem em importância a partir desse ponto cen- Mareei Gauchet
tral que antigament e era oferecido pelo religioso. São,
na mesma medida, experiências do outro, do invisível e Segundo ponto. Como pensar, agora, esse cerne que
do um que, de sagradas e místicas que eram, se torna- sobrevive à institucion alização religiosa do mundo
ram inteiramente profanas. Elas funcionam nos antípo- humano? Pois o fato não me parece duvidoso: alguma
das de suas antigas expressões, com os mesmos dados coisa da idade explicitam ente religiosa da história
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 82 Depois da Religié!o 83

humana subsiste e está destinada a subsistir na idade da gos. Seríamos obrigados a retomar essas noções funda-
saída da religião. O quê? Como concebê-la exatamente? mentais, as únicas em condição de traduzir adequada-
Também aqui lhe concedo a parte do mistério. Creio que mente o mistério que nos interessa, sem outro inconve-
não podemos abordar bem essa zona de nossa experiên- niente que não seja exercer nossa liberdade de rein-
cia senão com o sentido do desconhecido de nós mes- terpretá-los.
mos com o qual somos confrontados. Um sentido do Penso, ao contrário, que precisamos nos subtrair a
desconhecido que, longe de se dissipar com o fim do essa continuidade. Creio que não somente é necessário
desconhecido sobrenatural, como o desejariam nossos sair desse vocabulário, mas também e principalmente
reducionismos ingênuos, se encontra redobrado. Esse é sair da perspectiva de interpretação da religião. Pode-
o motivo de eu ter usado a expressão "absoluto terres- mos compreender de uma forma completamente dife-
tre". Talvez, em fim de contas, ela não deva ser conser- rente o desconhecido que atravessa e organiza a expe-
vada; mas a título provisório, no quadro de nossa dis- riência que temos de nós mesmos. A chave de leitura
cussão, vejo nela o mérito de designar clara e fortemen- correta parece-me residir num aprofundamento do pro-
te os dados do problema. Há absoluto porque o fenôme- blema da especificidade humana. A questão fundamen-
no de que se trata resiste irredutivelmente às diversas tal que devemos retomar é aquela da natureza do
reduções que pretendem relativizá-lo. Mas também há homem. Trata-se, evidentemente, de destrivializá-la,
absoluto porque essas diferentes faces da exterioridade colocando em seu centro o mistério em torno do qual
em relação a nós mesmos, para dizer resumidamente, se giramos. O homem é esse animal inteiramente particu-
apresentam sob o signo de um mistério que é preciso lar, cuja natureza é definir-se em função daquilo que ele
começar por medir e respeitar. O que de modo algum compreendeu durante muito tempo como uma sobre-
equivale a dizer que não há nada a fazer senão se curvar naturalidade. Retiremos a sobrenaturalidade, mas con-
diante dele. servemos a indicação de estrangeiridadel2 instituinte
Como abordá-lo? Como tratá-lo? Estaremos conde- em relação à natureza ordinária. Ela determina um nível
nados a interpretá-lo na linha da compreensão religiosa de ser e uma forma de existência que devemos esclare-
arquimilenar que a humanidade ofereceu a si mesma a cer. Ela é o foco estruturante disso que há de único e de
respeito de sua própria condição? Nesse caso, não have- enigmático em nossa maneira de ser, tanto física e inter-
ria outra saída senão continuar a dar-lhe os nomes que pessoal quanto social e política. O amor e o ódio são de
ele tradicionalmente recebeu, falando, como você faz,
de divino, de transcendência, de sagrado, mesmo que ll Em francês, extranc!itc!, que significa "situação jurídica de um estrangei-
seja para dar uma nova significação a esses termos anti- ro num dado país", "caráter do que é estrangeiro". (N.T.)
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 84 Depois da Religido 85

fato experiênci as especificam ente humanas e que en- Luc Feny


volvem a especificidade humana. Amor e ódio dão tes-
temunho do investimento sobre os outros que nos cons- Creio, de fato, que não podemos, e, sobretudo, não
titui, dessa existência dos outros que nos permite sair vejo o interesse, mesmo se conseguíssemos, de inventar
de nós mesmos. Ele é um ser sem o qual não podemos outras palavras. O que me interessa no fato de manter o
viver ou, no outro sentido, ele é um ser cuja existência vocabulário religioso é que creio estar aí, justamente -
por si só nos impede de viver. Os animais não amam e nisso concordo inteiramen te com Mareei - , a verda-
nem odeiam, nesse sentido. Eles são capazes de ligações de do religioso. É agora que o percebemos: o verdadeiro
profundas e de hostilidade sem perdão - quem pode religioso está no pensament o desse absoluto terrestre.
duvidar disso? Mas não são capazes dessa onipresenç a Há uma outra razão pela qual não desejo abandonar o
psíquica do outro em si, que convoca o sacrifício de si vocabulári o religioso, histórico e quase mitológico: é
ou o aniquilame nto do outro como condições de sua que freqüentem ente os textos religiosos são, por seu
própria vida. Poderíamos tomar outros exemplos: a rela- conteúdo, mais ricos e mais interessantes que os textos
ção de poder ou a relação de conhecimento que se liga, filosóficos.
num nível muito elementar, entre os signos e as coisas.
Tomo deliberada mente ilustrações fora da zona das
"transcend ências" (imanentes) bem identificadas pelos Mareei Gauchet
filósofos a fim de sugerir ao menos a amplitude do pro-
blema. Nós nos aproximamos, com essas experiênci as, Isso depende de quais.
do centro misterioso que está na fonte da especificidade
humana. É com esse cerne da especificid ade humana
que as religiões trabalharam historicam ente - as reli- Luc Feny
giões foram sua expressão maior no decorrer da histó-
ria. Isso não nos condena a pensá-lo do interior de sua Os grandes textos, a Bíblia, os Evangelhos. Franca-
tradução religiosa. Creio, ao contrário, que estamos em mente, o Evangelho de são João é mais belo que a De-
condições de decifrá-lo fora das categorias do religioso. claração dos Direitos Humanos.
Penso que é possível e que é nossa chance de melhor nos
compreendermos. Aí está nossa divergência.
LUC FERRY & MARCE L GAUCH ET 86 Depois da Religiao 87

Mareei Gauehet depois da religião , com a necessi dade em que ela se


encontr a de pensar - e de dispor de forma organizada
É uma questão de ponto de vista. Há mais poesia, - a partir de si mesma aquilo que desde sempre ela
por natureza , na expressão simbólica que no esclareci- delegou, atribuiu ao fora, aquilo que ela não cessou de
mento filosófico. ler à luz do Outro ou do invisível.

Lue Ferry Lue Ferry

Pessoalmente, encontr o neles muito mais o que pen- Mas o que isso quer dizer?
sar. Mas há uma terceira razão, que para mim também é
essencial. Essa problemática religiosa é evident emente a
problem ática da sabedor ia, que me parece ligada às Mareei Gauehet
duas grandes experiências que evocávamos há pouco: o
ódio e o amor. Há um momento em que o trabalho histó- O propósi to esboça um programa. Preciso de tempo
rico deve ceder lugar para as questõe s filosóficas. Há para desdobr ar todas as faces e todas as conseqüências.
um momento, seja em público ou em privado , em que Isso não se improvisa em alguns minutos.
os esteios intelectual e histórico devem servir para algu-
ma coisa.
Lue Ferry

Mareei Gauehet Quando falamos de absoluto, de mistério, de trans-


cendênc ia ... Creio que em fim de contas você reconhece
Isso deve servir para alguma coisa, estou de acordo, uma legitimidade a esse vocabulário.
inclusive sobre o plano da filosofia prática, da "sabedo -
ria", por que não? Não sou daqueles que pensam que a
filosofia "não tem objeto" , como se diz no jargão da Mareei Gauehet
tribo. Mas acredito justame nte que isso possa, na mes-
ma medida, servir a algo que a filosofia se dá como tare- Reconheço-lhe uma legitimidade, dado que é o pon-
fa: esclarecer a situação inédita, que é a da humani dade to de partida, e que admito que ele diz algo da humani -
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 88 Depois da ReligiCio 89

dade essencial, mas penso que é preciso elaborar um cendental da reflexão, formula argumento s que respon-
outro, capaz de salvar a significaçã o, mas ao mesmo dem à questão do sentido do sentido, a qual constitui o
tempo escapar àquilo que ele tem de insustentáv el. ponto de partida de seu livro: desse ponto de vista, a
questão hoje abordada, de saber se o absoluto terrestre é
ilusório ou não, pode então aparecer como propriamen -
Luc Ferry te filosófica e penosa para o homem que se esforça para
compreend er a si mesmo.
Gostaria que você me dissesse precisame nte por
quê ...
Mareei Gauchet

Quero fazer uma observação a propósito do objeto


da discussão e oferecer uma explicação prévia a respei-
to de meu método, a fim de que essa observação fique
bem clara. Luc Ferry e eu não falamos exatamente da
QUESTÕES DE MÉTODO
mesma coisa. Não me situo unicament e no terreno da
filosofia, mas no da história geral. A história - mesmo
Eric Deschavanne historiad ora- da filosofia moderna só compreend e um
aspecto ou um fio particular da história moderna. O que
O debate de hoje evidencia que seus métodos não tento compreend er é o movimento dessa história em seu
são incompatív eis, dado que seu desacordo parece conjunto, em função do processo de saída da religião.
dever-se apenas a uma questão de vocabulári o. Não Inscrevo aí a história da filosofia, que traz luzes insubs-
poderíamos considerar, em fim de contas, que esse desa- tituíveis sobre o movimento dos espíritos, mas que rece-
cordo procede, no essencial, da diferença que caracteri- be, em troca, um potente esclarecimento do movimento
za seus respectivos métodos, diferença relativa à con- de conjunto no qual os espíritos se inserem. É esse devir
cepção da reflexão? Assim, o ponto de vista antro- global que me interessa, a metamorfose das formas polí-
pológico-histórico de Mareei Gauchet o leva a se ques- ticas e sociais do estabelecimento humano que acompa-
tionar sobre as condições históricas efetivas de possibi- nha a saída da religião. É no horizonte dessa transforma -
lidade das práticas e dos discursos, enquanto Luc Ferry, ção geral que especulo. A diferença de perspectiv a
colocando-se do ponto de vista de uma filosofia trans- induz, naturalmen te, a diferenças de apreciação. Luc
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 90 Depois da Religião 91

Ferry é mais sensível às filiações conceituais; eu dou que é inevitável e normal na busca de um ajuste entre
mais atenção à modificação das estruturas do pensável interlocuto res. Essas disputas de vocabulário não são
em relação ao deslocamento das formas políticas e antro- tão inúteis como se diz, quando são feitas de boa-fé,
pológicas. dado que, se por um lado pensamos com palavras, por
Mais uma observação incidente, antes de voltar ao outro também sabemos que as palavras tendem a pensar
fundo. Luc Ferry nos dizia que a história da filosofia por nós. Querelar-se a seu respeito é o melhor meio de
moderna pode ser vista como um processo de laicização esclarecer essa zona de sombra. Dito isso, além da dife-
da religião cristã, de secularização de valores cristãos. A rença de pontos de vista e de querela sobre as palavras,
tese exige que se introduza ao menos uma nuança que creio que há, entretanto, uma verdadeira divergência de
muda muitas coisas. Seria mais exato considerar essas fundo entre nós.
filosofias modernas como heresias cristãs. Um livro Essa divergência, tal como me parece se fazer visível
como aquele do padre de Lubacn sobre a posteridad e nessa discussão, pode ser resumida em dois pontos:
espiritual de Joaquim de Fiare já traz muitos elementos 1) Ela concerne, em primeiro lugar, às incidência s
a esse respeito. Toda a apreciação do desdobramento das do processo dito de laicização ou de secularização -
filosofias modernas se encontra transforma da. É uma
prefiro falar de processo de saída da religião. Até onde
história à margem do mainstream da história do cristia-
esse processo nos leva? Quais são suas conseqüên cias
nismo que se encontra iniciada. A idéia de uma laiciza-
últimas? Diferimos na apreciação desse ponto, parece-
ção ou de uma secularização em bloco encontra-s e ao
me. Supondo que o processo seja verdadeiro, como diz
menos relativizada.
Luc, deixemos um instante de lado as nuanças; presu-
Chego à pergunta de Éric Deschavanne. É evidente
mamos que a filosofia moderna opera a secularização
que muito depende da perspectiva adotada, da linha de
do cristianis mo- e eu acrescentaria, por minha conta,
interpretação na qual se situa e do fim que se busca -
que o processo continua, que ele está destinado a se
do que se procura tornar inteligível. Todas essas opções
prolongar, até o ponto em que nos fará sair inteiramen-
se traduzem em palavras, que são seus instrument os e
te da órbita das religiões historicamente constituída s e
que se tornam outras tantas telas quando há uma con-
de seu quadro intelectual. É nesse ponto que chegamos
frontação com outras opções. Nossa discussão não foge
hoje. Pedem-nos que elaboremos outras categorias que
à regra. Ela comporta sua parte de querela de palavras,
não aquelas por meio das quais se interpretou a realida-
de humana, inclusive aquilo que, no interior dessa rea-
13Pere Henri de Lubac, La postérité spirituelle de Joachim de Flore. Paris:
Lethielleux, 1987. Lv., Coleção "LeSycomore" . (N.T.) lidade, dispõe o homem para a religião. Luc quer salva-
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 92 Depois da Religiilo 93

guardar essa linguagem reinterpret ando-a. Eu acredito Luc Ferry


ser indispensável passar para outra, mais compreensível.
2) Essa primeira divergênci a desemboca numa se- Gostaria que você me dissesse por quê ...
gunda, ainda mais fundamental, que concerne à capaci-
dade do homem de se dar conta de si mesmo. Será que a
saída da religião nos coloca, como penso, em posição de Mareei Gauchet
ultrapassa r uma etapa reflexiva suplement ar diante
daquilo que somos e daquilo que nos constitui? Uma Creio ter demonstra do abundante mente, por meio
vez reconhecida essa parte da experiência humana que de exemplos, que era possível escapar dessa alternativa.
chamamos de absoluto terrestre, será que estamos desti- É, em todo caso, a idéia que não deixou de me guiar na
nados - dado que é esse o dilema colocado por Luc análise dos fenômenos da modernida de, quer se trate
Ferry- seja a reconhecer nele uma encarnação do invi- das transformações do ser-individ ual ou das transfor-
sível, caso em que as categorias herdadas da tradição mações do ser-coletivo. Mas admito que não o tematizei
religiosa permanecem as únicas legítimas para dele tra- explicitam ente e que é uma tarefa difícil fazê-lo. Isso
tar, seja a denunciar aí uma ilusão, a exemplo do que ainda precisa ser demonstrado.
fazem há um século todos os discursos genealógicos e
desconstrutivistas?
Luc Ferry

Luc Ferry Porque não está feito ...

Sim, é disso mesmo que se trata, pelo menos a


princípio ... Mareei Gauehet

Não, não está feito. Será que é possível dar conta


Mareei Gauchet dessa disposição para o absoluto, de um lado, sem ope-
rar sua redução, sem pretender aí desvelar o mecanismo
Mas essa alternativa na qual você quer nos enclau- de uma ilusão, e, de outro, sem ler aí a remissão a um
surar não me parece constituir de fato uma opção. transcendente, a um divino, qualquer que seja ele ...
L UC FERRY & MARCEL GAUCHET 94 Depois da Religião 95

Luc Ferry vida, que fundamento você pode lhes dar? O absoluto
terrestre ou o absoluto prático de que falamos - que é
É o problema, de fato ... simplesmente a idéia de que há valores superiores à vida
- é uma idéia sobre a qual não vejo como se possa
interpretar de outra forma a não ser em termos materia-
Mareei Gauehet listas-reducionistas, ou então em termos que me pare-
cem não poder fazer a economia do vocabulário e até
Creio que seja possível. mesmo da problemáti ca religiosa. E o próprio fato de
falar de absoluto terrestre me parece indicar suficiente-
mente que você é obrigado a utilizar o vocabulário reli-
Lue Ferry gioso, pois o absoluto, até prova em contrário, é o nome
de Deus, pelo menos em toda a filosofia moderna.
Você formulou perfeitamente a questão: entre uma Parece-me que, no caso de se falar de absoluto, é-se
interpretação, digamos, neo-religiosa - no âmbito da obrigado a opô-lo ao relativo, isto é, que se fala do infi-
filosofia transcend ental- e a interpretação materialis- nito oposto ao finito, ou seja, de Deus oposto ao homem.
ta. Não vejo o terceiro termo. É exatamente disso que sempre se tratou, pelo menos a
partir do século XVIII, ou ainda pelo menos a partir de
Hegel, na filosofia moderna. Então, se você não toma
Mareei Gauehet esse absoluto de que fala como uma ilusão, terá grandes
dificuldades em não reorganizar uma problemática liga-
Estou convencido, ao contrário, de que há um. da a essa reviravolta do religioso para a jusante.

Lue Ferry Mareei Gauehet

Não vejo como você poderá dar conta de um absolu- Não penso assim.
to prático sem cair nos trilhos da ontoteologia materia-
lista. Faço a pergunta muito simplesme nte: se você
admite a idéia de que há valores tão absolutos que
envolvem até o risco de morte, até o risco de perder sua
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 96 Depois da Religião 97

Luc Ferry registro de experiências, as quais, a propósito, não con-


testam aqueles que pretendem desconstruí-l as. Eles
Dê-nos então um esboço da solução, pois eu não a ambicionam somente mostrar quais repressões, domina-
vejo. ções ou determinismos se escondem por trás desses ape-
los do mais alto que si, a fim de curar a humanidade
num futuro mais ou menos afastado. Eles se propõem,
Mareei Gauchet em suma, nos educar no egoísmo racional, como se,
aliás, tivéssemos necessidade disso ...
Não somente admito que a questão seja temerária,
mas estou dramaticamen te consciente disso. É, a meu
Lue Ferry
ver, o futuro do pensamento, e no momento apenas ta-
teamos seu território. Ainda uma palavra a respeito do
... como se não fosse a inclinação mais natural da
emprego do termo absoluto. Tomei-o deliberadame nte
humanidade ...
para indicar o fato de que tanto é preciso prestar aten-
ção na apreciação do alcance da descontinuid ade mo-
derna, quanto é preciso ficar alerta na avaliação disso Mareei Gauehet
que intervém como continuidade nessa descontinuida -
de, na saída da heteronomia ... ... desse ponto de vista tudo vai bem ...

Lue Ferry Luc Ferry

Nisso estamos de acordo novamente. ... de fato não há perigo.

Mareei Gauehet Mareei Gauchet

É preciso partir do vocabulário com o qual os indi- A candura dos pretensos cínicos sempre me sur-
víduos formados em nossa cultura compreendem esse preende. No sentido inverso dessas ilusões do desilusio-
L UC FERRY & MARCEL GAUCHE T 98 Depois da Religião 99

namento,l4 não saberíamos sublinha r demais o que con- outro olhar sobre o passado e sobre nós mesmos. É pre-
servamos em comum com a humanidade do tempo das ciso se apropriar desse possível.
religiões. Isso porque não recuo diante desse termo A questão diante da qual somos lançados, em fim de
absoluto. Ele enterrou alegreme nte seus coveiros e é contas, é aquela dos recursos e dos limites da reflexivi-
importan te observar que suas chamadas desmistifica- dade de que somos capazes. Até onde pode ir a capaci-
ções falharam. Mas se aceito o risco de assumi-lo é para dade do homem para pensar sua especific idade de
propor uma compreensão radicalm ente diferente da- homem? Ele está em condições de decifrar a si mesmo,
quela da idade sacra. Trata-se de ter acesso à sua inteli- de um lado a outro, puramente a partir de si mesmo? Ou
bem essa potência de dar conta de si mesmo está desti-
gência profana.
Sublinho, sobre esse assunto, que o empreendimen- nada a se chocar com um dado irredutiv elmente enig-
mático, que só pode ser compreendido sob o signo de
to não diz respeito a uma tarefa intelectual separada do
uma doação, diante da qual ele só possa se curvar? Pois
resto. Ela está em harmonia com seu tempo, tomada em
é mesmo uma doação que se trata de elucidar. Nós nos
seu movimento profundo. Corresponde à etapa suple-
fazemos a partir de alguma coisa que não fazemos e que
mentar, em matéria de saída da religião, que estamos em
nos é dada - o que nos faz homens. Nós nos construí-
vias de superar. É convocada pelo trabalho de recompo-
mos sobre o que nos dá a faculdade de nos darmos a nós
sição social, pelo trabalho antropológico, político, cul-
mesmos. Em outras palavras, nossa constitui ção não
tural de que somos testemunhas, muito além da filoso- pode se conceber inteiramente como uma autoconstitui-
fia. A filosofia trabalha sempre com seu tempo, cons- ção. É essa dimensão que as sociedades religiosas privi-
ciente ou inconscientemente. Ela efetua uma reflexão, legiaram, até fazer dela o ponto capital de um sistema
sem necessariamente dizer-se, com os signos que dele completo de sentidos, que coloca a condição humana na
recebe e as perspectivas que aí se abrem. Ela só tem a dependên cia total de uma doação extrínsec a. Simetri-
ganhar, em minha opinião, ao fazer esse trabalho delibe- camente, é a dimensão que a sociedade saída da religião
radamente. No caso, a perturbação que nos envolve há tende a esquecer , em proveito da auto-inst ituição da
um bom quarto de século e que nos libera ainda um humanidade na história - auto-instituição que não ex-
pouco mais do universo religioso torna possível um plica o que torna o homem capaz da história. É também
a dimensão que precisamos começar a estabelecer criti-
14 Neologismo para designar a açdo de fazer alguém perder suas ilusões.
camente contra as diversas ingenuidades reducionistas.
(N.T.) Até onde podemos ir na inteligência desse dado antro-
100 Depois da Religião 101
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET

pogênico, desse feixe de condições primordiais que nos o programa traçado por Mareei, isto é, com a idéia de
dão humanidade? que é preciso dar conta desse sentimento de absoluto a
Estamos de acordo no essencial daquilo que compõe partir de uma problemática que é puramente humana, e
esse cerne. Estamos em desacordo sobre o que pode não fazer referência a um Deus fundador, coisa que evi-
advir da compreensão desse cerne. Essa doação do dentemente não faço. E que é preciso partir das capaci-
homem a si mesmo foi maciçamente lida de forma reli- dades de reflexividade , que são aquelas da humanida-
giosa no decorrer da história. Esse entendimento reli- de, para tentar oferecer a razão desse fenômeno; daí,
gioso está destinado a subsistir, como pensa Luc Ferry, aliás, as grandes discussões entre Habermas e Apel a res-
mesmo além da saída da religião? Penso, no sentido peito da fundação última, que às vezes me pareciam dis-
inverso, que ela está destinada a ceder lugar a um novo cussões religiosas mal digeridas, mas a despeito disso -
entendimento da antropogênes e. Acredito ser possível mesmo que certamente não o dissessem- de tipo meta-
tal reconsideração radical do que nos faz homens. Uma físico, senão religioso. Parece-me que quando 0 ser
vez mais, é um julgamento sobre o devir em curso e humano se esforça em testar suas próprias capacidades
sobre a história vindoura que enuncio aqui, e não sim- de reflexão para compreender essa relação com o abso-
plesmente um programa de trabalho para uso pessoal. luto, o que ele encontra em si mesmo - por exemplo,
Embarcamos numa recomposição completa, fora da reli- essa idéia de liberdade que eu havia evocado, essa capa-
gião, daquilo que se havia investido na religião. De cidade de ser em excesso em relação à natureza ou à his-
modo paralelo, nossa decifração de nós mesmos cami- tória, portanto essa capacidade de amor ou de ódio
extraordinária , philia e maldade, que traduzem de fato
nha para uma decifração daquilo que destinou a huma-
nidade à religião, fora da linguagem religiosa, mas sal- o intervalo em relação à natureza do qual os animais, até
prova em contrário, não são capazes - , pois bem, creio
vando integralmente o que ela comporta de sentido.
q.ue isso que o ser humano descobre em si mesmo é pre-
Cisamente o problema religioso por excelência. Nessa
idéia de uma sobrenaturali dade e de uma transistorici-
Luc Ferry
dade do ser humano (o que chamo de divinização do
humano), há o fato de que, no interior de sua própria
Atingimos verdadeirame nte o fundo do problema, e
reflexão, o ser humano não descobre somente 0 incons-
como nós nos compreendem os suficienteme nte bem,
ciente, mas a questão do divino, a questão do mistério
creio, o que nem sempre ocorre entre filósofos, vamos
irredutível de uma transcendênci a em relação à nature-
nos aproveitar disso. Estou inteiramente de acordo com
LUC FERRY & MARCEL GAUCHE T 102 Depois da Religião 103

za e à história, em relação às categorias racionalistas às Pode-se, é claro, estar em desacordo com tal proposição
quais os materialismos moderno s nos habituara m. Se -temos perfeitamente o direito de não admitir que o
abandon amos um vocabulá rio religioso dogmático, é absoluto prático existe e tomar a direção das explicações
então, parece-me, para reencontrá-lo num outro nível, materialistas, biológicas, psicanalítica, sociológica etc.,
que não o é mais. dizendo: pois bem, tal coisa aparece a vocês como um
valor absoluto, mas na verdade é porque vocês têm tal
estrutura genética, vivem em tal sociedade, tiveram tal
Mareei Gauehet história com seus pais etc., que vocês a tomam, errada-
mente, como tal - ou, aa contrário , se reconhec e a
O ser humano encontra - estamos de acordo sobre transcen dência e se busca pensar o estatuto inédito
esse ponto - aquilo que até agora ele não pôde desig- numa sociedad e "pós-reli giosa", mas não vejo como
nar e compree nder senão como divino, mas que está poderia existir aí um termo intermediário ...
destinad o a ser compree ndido e assumido em outras
categorias que não as do religioso. Seu método consiste
em designar o problema como se esses termos devessem Mareei Gauehet
permane cer intangíve is. Ora, contraria mente a você,
penso que eles estão convocados a se deslocar. O proble- Sim, há um ...
ma está destinad o a ser reinterpr etado - não digo
resolvido, não tenho esse otimismo, que seria metafísico
-radical mente fora da religião. Lue Ferry

Se esse excesso é, por definição, repito, por defini-


Lue Ferry ção, o próprio mistério, dado que escapa a qualquer
racionalização dogmática, não vejo terceiro termo possí-
Por que não? Parece-me, entretant o, que com essa vel entre o reducionismo ao qual se pode ceder, é claro,
idéia de sobrenaturalidade ou de excesso em relação à de modo mais inteligente que na maior parte dos discur-
natureza e à história, toca-se em algo que é intrínseca e sos atuais- podemos imaginar um racionalismo redu-
essencialmente misterioso, dado que, por definição, é o cionista mais inteligente que aquele de tal ou tal cientis-
que está além das categorias do racionalismo dogmático. ta hodierno - , ou bem a obrigação de reconhecer que
LUC FERRY & MARCE L GAUCH ET 104
Depois da Religião 105

se atingiu 0 fundo último do problema. Sobre a liberda-


com um valor que colocamos mais alto que nós, inscre-
de, sobre 0 fato de que o ser humano está em excesso em
vendo-o no homem, sem por isso levá-lo a um mecanismo
relação à lógica natural ou histórica, o que dizer mais? subjacente que desmonte a ilusão. Uma ilusão necessária,
talvez, mas apesar de tudo uma ilusão. Eis por que você
acredita em algo como o absoluto e por que só pode
Mareei Gauehet mesmo crer nisso, levando-se em conta sua constituição...

Há um salto lógico no que você diz entre a constata -


ção factual e a conclusão que prejulga o resultad o. Você
Lue Ferry
vai rapidam ente demais à tese de um excesso dessas
dimensõ es constitu intes, por definição, sobre todas as
... mas é a própria estrutur a do reducio nismo que
categorias mobilizáveis por uma busca de iX:tel~gibilida­
você descreve aqui. Meu amigo André Comte-Sponville
de. Há um mistério da liberdad e em relaçao as nossas
me diz exatame nte isso, mas ele, pelo menos, aceita de
maneira s comuns de pensar, é certo. Mas há inúmero s
modo explícit o a idéia de que seu materialismo é, simul-
mistérios que se revelaram eluc~dáveis por meio de ~ma
taneamente, um determinismo e um reducionismo: está
reforma do modo de pensá-los. E o caso deste, em mmha
na naturez a do homem imagina r que é livre, mas hoje
opinião. em dia podemo s muito bem demons trar por que; sendo
o homem um ser muito evoluído, muito complexo e, por
consegu inte, muito indeterm inado, ele toma isso pela
Lue Ferry liberdad e ... Você conhece a cantilena.

Não sem cair novame nte no reducionismo.

Mareei Gauehet

Mareei Gauehet Você não me deixou terminar. Só evoquei esse dis-


curso para realçar o que seus limites têm atualme nte de
Sim, é possível escapar do reducionismo. É possível
flagrant es em vista de um método verdade irament e
dar conta disso que nos fornece o sentido de uma verda-
atento à especificidade do modo de ser humano . Fran-
de indepen dente de nós, ou o sentido de abnegação para
camente, se há algo que não é mais crível, são as fábulas
LUC FERRY & MARCEL GAUCHET 106

pueris que nos explicam a verdade ou a moral pelos


ardis da vida, da libido ou da dominação. Mesmo que
elas ainda tenham adeptos, pertencem a uma época pas-
sada. O reducionismo foi a doença infantil da antropolo-
gia. Não estamos condenados a ele.

Luc Ferry

Pois bem, só nos resta esperar por seu próximo


livro!
Impresso no Brasil pelo
Sistema Cameron da Divisão Gráfica da
DISlRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171- Rio de Janeiro, RJ- 20921-380- Tel.: 2585-2000
Há mais de um século Nietzsche Sentido da Vida -, como a de que
constatava: "Deus está morto." Entre as é possível apostar num humanismo do
muitas leituras que a frase pode sugerir, homem-Deus. A transcendência
decerto podemos pensar que é preservada, mas deixa de existir entre
a modernidade é marcada pela separação o homem e o além, passando a se fazer
entre Igreja e Estado. A crença religiosa entre os próprios homens. Nesse caminho,
como que abandona a cena pública e, a "verdadeira" religião ainda seria um
conseqüentemente, é levada para percurso a ser completado.
o espaço privado. Deus morreu como
instãncia organizadora da sociedade, Gauchet, ao contrário, aposta na noção
instituidora da lei. de uma transcendência radicalmente
não-religiosa e na necessidade de se
Mas se, por um lado, a religião como pensar o homem definitivamente sem
fundamento da sociedade perde muito Deus. No mundo de hoje, o homem
de seu poder, por outro, as guerras de e Deus nunca estiveram tão afastados
religião, os fundamentalismos e mesmo e é preciso aceitar o risco de pensar num
a busca pelas diversas formas de "absoluto terrestre'; não bastando
esoterismo no seio das sociedades para isso a "tradução" de um conteúdo
ocidentais, ditas laicas, dão mostras de religioso em versão humanista.
que o fenômeno religioso persiste.

Seguindo a sugestão nietzschiana de que,


se Deus está morto, "nunca houve tanto
Luc F ERRY éfilósofo e ex-ministro da
mar aberto'; Luc Ferry e Mareei Gauchet se
Educação na França. Entre seus livros mais
lançam ao desafio de tentar compreender
recentes estão O Homem-Deus ou o Sentido
o estatuto do fenômeno religioso no
da Vida e O que É uma Vida Bem-sucedida?,
mundo contemporâneo. Assistimos, dizem
ambos publicados pela DIFEL.
os autores, a um duplo processo de "saída
da religião" e de "individualização do crer':
Mas, a partir daí, o debate entre os dois M ARCEL G AUC H ET é diretor de estudos
na École des Hautes Études en Sciences
filósofos é fecundo, e seus pontos de vista,
Sociales (EHESS} e redator-chefe da revista
nem sempre coincidentes.
Le Débat. Publicou, entre outras obras,
Luc Ferry começa a desenvolver aqui as La Religion dons la démocratie (Gallimard,
idéias que dão corpo a livros posteriores 1998}, La Démocratie contre el/e-même
- sobretudo O que É uma Vida (Gallimard, 2002} e La Condition historique
Bem-sucedida? e O Homem -Deus ou o (Stock, 2003}.

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