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ROBERT STAM

A liTeRATURA ATRAVÉS DO CINEMA

ReAlISMO, MAGIA c A ARTe DA ADAPTAÇÃO

Tradução
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITOR Ronaldo Tadêu Pena
MAmE-MINE KREMER

VleE-REITORA Heloisa Maria Murgel Scarling GLAUCIA RENATE GONÇALVES

EDITORA UFMG
DiRETORWander Meio Miranda
VJCE-DIRETOM Silvana Cóser

CONSELHO EDITORIAL
Wander Meio Miranda (PRESIOENTE)
Carios Antônio Leite Brandão
Juarez Rocha Guimarães
Márcio Gomes Soares
Maria das Graças Santa Bárbara
Maria Helena Damnsceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Belrão
SilvaM Cóser Belo Horizonte
Editora UFMG
2008
Figura 7.7 - Apresentaçào musical em Ba170CO (1988) de Paul Leduc,
produzido pelo Instituto Cubano del Arte e Industrias Cinematográficos
(ICAIC)/Sociedad Estatal Quinto Centenario/ÓpaJo Films, distribuído
por International Film Circuit; foto reproduzida por cortesia do British
Film lnstitute
,.
Não foram poupados esforços no sentido de localizar os
detentores de direitos autorais para que fosse obtida a permissão INTRODUÇAO
para uso do material protegido por lei. A editora desculpa-se por
quaisquer erros ou omissões cometidas na listagem acima e agra-
deceria a notificação de correções que devam ser incorporadas em
futuras reimpressões ou edições.

A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da


adaptação apresenta a história da literatura através do cinema.
O livro, que poderia ter sido intitulado Clássicos da literatura no
cinema, oferece um relato historiado de momentos importantes
na história do romance não só em termos literários, como também
refratados através do prisma da adaptação. Obviamente seria uma
tarefa "quixotesca" cobrir toda a história do romance desde Cer-
vantes, por isso abordo apenas "momentos" e tendências cruciais.
Os romances analisados são, em sua maioria, "romances-chave"
enquanto "clássicos" que geraram uma vasta estirpe de "descenden-
tes" literários e fílmícos. Por exemplo, tanto Dom Quixote quanto
Robinson Crusoé dão início a linhagens opostas no romance, e
ambos foram reescrítos e filmados inúmeras vezes. Dom Quixote
é o texto-fonte para a tradição paródica, intertextual e "mágica"
de romances como Tom Jones e Tristram Shandy, que ostentam
seus próprios artifícios e técnicas. Por sua vez, Robinson Crnsoé,
de Defoe, é um texto-fonte seminal para a tradição do romance
mimético supostamente baseado na "vida real" e escrito de tal
forma a gerar uma forte impressão de realidade factual.
Madame Bovmy, de Flauben, entretanto, contrapõe ambas
as tradições realista e reflexiva/cervantina. Essa obra de Flaubert
foi igualmente influente tanto em termos temáticos - monotonia
campestre, desejo sexual, desilusão - quanto das técnicas empre-
gadas - o discurso indireto livre, o uso do pretérito imperfeito,
o emprego do pastiche. Notas do subterrâneo, semelhantemente,

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desencadeou uma série de romances que empregam narradores meditação sobre Quixote', parafraseando Ortega y Gasset, ou
problemáticos e autodesrnistificadores, começando com A náusea, melhor, uma meditação tanto sobre o "quixotesco" quanto sobre
de Sartre, O homem invisível, de Ellison, Lotita, de Nabokov, e A o "cervantino". Muitos dos romances centrais à tradição européia
hora da estrela, de Lispector. - O vermelho e o negro, de Stendhal, Ilusões perdidas, de Balzac,
Cada capítulo de A literatura através do cinema retrata uma Madame Bovaty, de Flaubert, Em busca do tempo perdido, de
tendência literária - a paródia de Cervantes, o realismo de Defoe Proust - empreendem a trajetória cervantina do desencantamento
(e as tentativas de "contra-escrever" tal estilo), a reflexividade de em que as ilusões promovidas pela leitura adolescente são siste-
Fielding, o perspectivismo flaubertiano, a polifonia de Dostoievsky, maticamente desfeitas pela experiência do mundo'real. Mas este
a experimentação nouvelle vague, o "realismo mágico" de tipo de quixotismo está tão disponível para o cinema quanto para
Márquez - antes de explorar suas ramificações cinemáticas. Ao a literatura. Assim como a obra Os sofrimentos do jovem Wlerther
final de cada capítulo, sugiro a relevância desses romances para inspirou uma onda de suicídios em toda a Europa, diversos filmes
a vida e cultura contemporâneas. O capítulo sobre Dom Qufxote -também já induziram a comportamento imitativo. Na verdade,
termina com observações sobre os aspectos cervantinos do pós- inúmeros filmes, c?lmo, por exemplo, Sonhos de um sedutor e
modernismo; aquele sobre Robinson Crusoé, com comentários Cães de aluguel, exploram o tema cervantino de personagens!
sobre Ndufragoe sobre Suroívot; um realitygameshow. O capítulo espectadores que procuram emular seus heróis do cinema.
sobre Madame Bovary leva-nos ao filme A rosa púrpura do Cairo,
de Woody Allen. O capítulo sobre Notas do subtelTâneo revela
um parentesco subterrâneo entre os narradores atormentados ALÉM DA "FIDELIDADE"
de Dostoievsky e os stand-up comedians! dos dias de hoje. Ao
discutir a midia contemporânea e refletir a respeito da realidade Embora A literatura através do cinema seja organizado dia-
atual dos romances (e dos filmes), espero ter em meu público- cronicamente, seguindo a cronologia dos textos literários e não
alvo não apenas estudiosos de literatura e cinema, COmOtambém aquela dos textos cinematográficos, certos temas sincrônicos
estudantes saturados pela mídia mas não necessariamente versados surgirão relativamente a todos os textos discutidos. Ainda que
no cânone literário.
este não seja o lugar para uma teoria sistemática - algo que
A tensão entre a magia e o realismo, a reflexividade e o ilu- tentei fazer em meu ensaio "A teoria e prática da adaptação", no
sionismo, tem alimentado a arte. Qualquer representação artística volume Literature and film -, posso brevemente delinear meu
pode se fazer passar por "realista" ou abertamente admitir sua entendimento de algumas das categorias cruciais operantes ao
condição de representação. O realismo ilusionista apresenta seus longo do texto,
personagens como pessoas reais, sua seqüência de palavras como
O "argumento" geral de A literatura através do cinema
fato substanciado. Textos reflexivos ou mágicos, por outro lado,
entrelaça uma série de fios: a crítica do discurso da "fidelidade",
chamam a atenção para sua própria artillcialidade como construtos a natureza multicultural da interteÀwalidade artística, a natureza
teXtuais seja pela hiperbolização mágica de improbabilídades, seja
problemática do ilusionismo, a riqueza de alternativas "mágicas" e
através do esvaziamento reflexivo, rninimalista do realismo. Nesse
reflexivas ao realismo convencional e a importância crueial tanto
sentido, Dom Quixote orquestra tanto magia quanto realismo
da especificidade do meio de comunicação - o ftlme enquanto
antecipando, assim, o "realismo mágico", De fato, para René
tal - quanto dos elementOs migratórios, de entrecruzamento,
Girard, "todas as idéias do romance ocidental estão presentes,
compartilhados pelo cinema e outras tipos de mídia.
embrionariamente, em Dom Quixote'.2 Como retomamos com
freqüência a Dom Quixote como matriz seminal para a reflexi- A linguagem tradicional da crítica à adaptação fílmica de
vidade mágica, o presente livro poderia ter sido chamado "uma romances, como já argumentei anteriormente,3 muitas vezes tem

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sido extremamente discriminatória, disseminando a idéia de que _uma abordagem menos discriminatória. Enquanto isso, o conceito
o cinema vem prestando um desserviço à literatura. Termos como bakhtiniano proto-pós-esc.rutura!ísra do autor como harmonizador
"infidelidade", "traição", "deformação", "violação", "vulgarização", de discursos preexistentes, paralelamente à degradação
"adulteração" e "profanação" proliferam e veiculam sua própria foucaultiana do autor em favor de um "anonimato difuso do
carga de opróbrio. Apesar da variedade de acusações, sua motriz discurso", abriu o caminho para uma abordagem à arte "discursiva"
parece ser sempre a mesma - o livro era melhor. e não-originária. A atitude bakhtiniana diante do autor literário
A noção de "fidelidade" contém, não se pode negar, uma enquanto situado num "território interindividual" sugere uma
parcela de verdade. Quando dizemos que uma adaptação foi atitude de reavaliação no que se refere à "originalidade" artística.
"infiel" ao original, a própría violência do termo expressa a grande A expressão artística é sempre o que Bakhtin chama de uma
decepção que sentimos quando uma adaptação fílmica não "construção híbrida", que mistura a palavra de uma pessoa com
consegue captar aquilo que entendemos ser a narrativa, temática, a de outra. As palavras de Bakhtin a respeito da literatura como
e características estéticas fundamentais encontradas em sua fonte uma "construção híbrida" aplicam-se ainda mais obviamente a um
literária. A noção de fídelidade ganha força persuasiva a partir meio que envolve a colaboração, como o filme. A originalidade
de nosso entendimento de que: (a) algumas adaptações de/ato total, conseqüentemente, não é possível nem mesmo desejável. E
não conseguem captar o que mais apreciamos nos romances- se na literatura a "originalidade" já não é tão valorizada, a "ofensa"
fonte; (b) algumas adaptações são realmente melhores do que de se "trair" um original, por exemplo, através de uma adaptação
outras; (c) algumas adaptações perdem pelo menos algumas das "infiel", é um pecado ainda menor.
características manifestas em suas fontes. Mas a mediocridade de Se "fidelidade" é um tropa inadequado, quais os trapos
algumas adaptações e a parcial persuasão da "fidelidade" não seriam mais adequados? A teoria da adaptação dispõe de um
deveriam levar-nos a endossar a fidelidade como um princípio rico universo de termos e (rapos - tradução, realização, leitura,
metodológico. Na realidade, podemos questionar até mesmo se crítica, dialogização, canibalização, transmutação, transfiguração,
a fidelidade estrita é possível. Uma adaptação é automaticamente encarnação, transmogrifícação, transcodificação, desempenho,
diferente e original devido à mudança do meio de comunicação. significação, reescrita, detoumement - que trazem à luz uma
A passagem de um meio unicamente verbal como o romance diferente dimensão de adaptação. O tropo da adaptação como
para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não uma "leiQ1ra"do romance-fonte, inevitavelmente parcial, pessoal,
somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, conjuntural, por exemplo, sugere que, da mesma forma que
efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca qualquer te},,'toliterário pode gerar uma infmidade de leituras, assim
probabilidade de uma Fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar também qualquer romance pode gerar uma série de adaptações.
até mesmo de indesejável. Dessa forma, uma adaptação não é tanto a ressuscitação de uma
A literatura através do cinema simplesmente admite, ao invés palavra original, mas uma volta num processo dialógico em
de articular, os vários desenvolvimentos teóricos que foram andamento. O dialogismo intertextual, portanto, auxilia-nos a
abalando as premissas fundadoras sobre as quais a doutrina transcender as aporias da "fidelidade".
da fidelidade historicamente se baseou. Os desenvolvimentos Gérard Genette, em Palímpsestos (1982),4 partindo do "dialo-
estruturalistas e pós-estruturalistas lançam dúvidas sobre idéias de gismo" de BaJrlltin e da "intertextualidade" de Kristeva, propõe
pureza, essência e origem, provocando um impacto indireto sobre o termo "transtextualidade", mais abrangente, para referir-se a
a discussão acerca da adaptação. A teoria da intertextualidade "tudo aquilo que coloca um texto, manifesta ou secretamente, em
de Kristeva, com raízes no "dialogismo" de Bakhtin, enfatizou a relação com outros textos," postulando, por fim, cinco categorias.
interminável permutação de traços textuais, e não a "fidelidade" A quinta delas, a "hipertextualidade", parece ser particularmente
de um texto posterior em relação a um anterior, o que facilitou produtiva no que tange à adaptação. O termo se refere à relação

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entre um determinado texto, que Genette denomina "hipertexto", formas literárias. Aristóteles, por exemplo, fazia distinção entre
e um outro anterior, o "hipotexto", que o primeiro transforma,
I
°
o meio de representação, os obíetos representados e modo de
modifica, elabora ou amplia. Na literatura, os hipote>..'tosda Eneida apresentação, o que resultou na conhecida tríade do épico, do
incluem a Odisséia e a llíada, enquanto os hipotextos de Ulisses, [ dramático e do lírico. O mundo do cinema herdou eSSehábito
de Joyce, incluem a Odisséia e liamlet. Adaptações fílmicas, nes- antigo de classificaras obras de arte em "tipos", alguns e},.'traídos
te sentido, são hipertex(Qs nascidos de hipotextos preexistentes, da literatura (comédia, tragédia, melodrama), enquanto outros são
I
transfoffi1adospor operações de seleção, ampliação, concretização ir mais especificamente visUai\~.cinemáticos: "visões", "realidades",
e realização. As diversas adaptações fílmicas de Ligações perigosas
(Vadim, Frears, Forman), por exemplo, constituem leituras hiper- tableaux,~~rdesenhos
fílmicas animados".
de romances invariaveltnente sobrepõem Adaptações
um conjunto de
tex[Uaisvariadas, desencadeadas pelo mesmo hipotexto, De fato, convenções de gênero: uma extraída do intertexto genérico do
as várias adaptações anteriores juntas podem formar um hipotexto próprio romance-fonte e a outra composta pelos gêneros empre-
maior, cumulativo, disponível ao cineasta que ocupa um lugar gados pela mima tradutória do fUme,A arte da adaptação fílmica
relativamente "tardio" nessa seqüência. consiste, em parte, na escolha de quais convenções de gênero são
Ao adotarmos uma abordagem ampla, intertextual, em vez transponíveis para o novo meio, e quaisprecisam ser descartadas,
de uma postura restrita, discríminatória, não abandonamos suplementadas, transcodificadas ou substituídas. O romance A
com isso as noções de julgamento e avaliação. Mas a nossa história de Torn]ones, um enjeitado, como veremos (capítulo 3),
discussão será menos moralista, menos comprometida com I serve-se da poesia épica, do romance cervantino, do pastoril etc.,
I ao passo que a adaptação fílmica de Tony Richardson emprega
hierarquias não aceitas. Ainda podemos falar de adaptações
bem-sucedidas ou não, mas agora orientados não por noções I não apenas aqueles gêneros literários, mas também os gêneros
rudimentares de "fidelidade", e sim pela atenção dada a respostas i especificamente cinematográficos, tais como o filme burlesco da
I era do cinema mudo e o cinema verité.
dialógicas específicas, a "leituras", "críticas", "interpretações" e
"reescritas" de romances-fonte, em análises que invariavelmente I O gênero fílrnico,como o gênero literárioantes dele, é penneável
i
levam em consideração as inevitáveis lacunas e transformações a tensões históricas e sociais. Como argumenta Erich Auerbach
na passagem para mídias e materiais de expressão muíto °
em Mimesis, a literatura ocidental, durante todo seu percurso,
diferentes. Adaptações fílmicas caem no contínuo redemoinho trabalhou no sentido de pôr fun à elitista "separaçâo de estilos"
de transformações e referências intertextuais, de textos que inerente ao modelo trágico grego, com suas hierarquias distintas:
geram outros textos num interminável processo de reciclagem, a U"agédiasuperior à comédia; a nobreza, ao demos,6 Um realismo
rransformação e transmutação, sem um ponto de origem visível. enraizado no éthos do judaísmo igualitário foi, lentamente, demo-
Portanto, ao invés de adotar uma abordagem avaliatíva, irei cratizando a literatura. A noção judaica de "todas as almas iguais
focalizar as reviravoltas do dialogismo intertextual. perante Deus" foi, gradualmente, hannonizando a dignidade de
um estilo nobre com as classes "inferiores" de pessoas. Os gêne-
ros vêm acompanhados, nesse sentido, de conotações de classe e
A QUESTÃO DO GÊNERO avaliações sociais. Na literatura, o romance, com raÍzes no mundo
do senso comum da factlcidade burguesa, desafia o romance de
A teoria da adaptação inevitavelmente herda queStões ante- cavalaria, freqüentemente associado a noções aristocráticasde cor-
riores relativas a intertextualidade e gênero. Etimologicamente tesania e de cavalaria. A arte revitaliza-se recorrendo a estratégias
provenieme de genus, do latim, que significa "tipo", a crítica de de formas e gêneros anteriormente marginalizadas, canonizando
"gênero" começou, pelo menos no "Ocidente'? como a classi- o que outrora fora desprezado.
ficação dos diversos tipos de textos literários e a evolução das

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Ao longo deste livro.nos dedicamos a esses tópicos interligados a eterna questão do "realismo" artístico. Termo elástico e extra,
de hierarquias sociais e estéticas, de estratificações de gênero e '00ordinariamente contestado, "realismo" vem carregado de incrus-
da sociedade. Será que um dado romance ou sua adaptação tações mi/enares de debates filosóficos e literários precedentes.
conduz a sociedade a uma condição mais igualitária ao criticar Basicamente arraigado no conceito clássico grego de mfmesís
desigualdades sociais baseadas em eixos de estratificação, tais (imitação), o conceito de realismo somente ganha significância
como raça, gênero, classe e sexLlalidade, ou ele simplesmente programática no século dezenove, quando passa a denotar um
absorve (ou mesmo glorifica) essas iniqüidades e hierarquias movimento nas artes figurativa e narrativa dedicado à obser-
como se fossem naturais e predestinadas por Deus? Qual o grupo vação e representação precisa do mundo contemporâneo. Um
social representado num romance/filme? Quem são os sujeitos neologismo cunhado pelos críticos de arte franceses, o realismo
e .gllt=JILS~O .os obje~~s_º~_r_~EE~.5entação? Q~~grLlP~l1J!a era originalmente associado a uma atitude opositora em relação
de.wivitégios sodals ou estéticosf'Erii que "língu(l, ~_,<;,~tilo-a aos modelos romântico e neoclássico na ficção e na pintura. Os
o representãÇif?-eslá-errquadraai;'equaissão as CÕ~~[ªç,Qessodais romances realistas de escritores como Balzac, Stendhal, Flaubert,
-dess@s<;::s!í1o~~[í~~~asr" -" -,' - .-- -'-'-' George Eliot e Eça de Queiroz inseriram personagens intensamen-
Em termos históricos e de gênero, tanto o romance quanto te individualizados e seriamente concebidos em típicas situações
o filme têm consistentemente canibalizado gêneros e mídias sociais contemporâneas, Subjacente ao impulso realista, havia
antecedentes. O romance começou orquestrando uma diversidade uma teleologia implícita de democratização social favorecendo a
poUfônica de materiais - ficções de cortesania, literatura de emergência artística de "grupos humanos socialmente inferiores e
viagem, alegoria religiosa, obras de pilhéria - transformados numa mais extensivos à posição de tema na representação problemática-
nova forma narrativa, reiteradamente defraudando ou anexando existencial",7Críticosliterários faziam distinção entre esse realismo
artes vizinhas, criando novos híbridos como romances poéticos, profundo, democratizame e um "naturalismo" raso, reducionista
romances dramáticos, romances epistolares, e assim por diante. O e obsessivamente verídico - realizado mais notoriamente nos
cinema foi trazendo esta canibaiização ao seu paroxismo. Como romances de Emile 201a - cujas representações humanas tinham
linguagem rica e sensorialmente composta, o cinema, enquanto como modelo as ciências biológicas.
meio de comunicação, está aberto a todos os tipos de simbolismo Cada um dos textos discutidos neste livro pode ser analisado
e energias literárias e imagísticas, a todas as representações em termos de seus coeficientes variantes de magia, reflexividade
coletivas, correntes ideológicas, tendências estéticas e ao infinito e real;.;mo: o paródico antiilusionismo de Dom Quixote, a
jogo de influências no cinema, nas outras artes e na cultura de abordagem documentário-reatista de Robinson Cmsoé, o realismo
modo geral. Além disso, a intertextualidade do cinema tem várias perspectivista de Madame Bovary, o realismo subjetivo de
trilhas. A trilha da imagem "herda" a história da pintura e as artes Hirosbima, meu amor, o modernismo reflexivo de O desprezo,
visuais, ao passo que a trilha do som "herda" toda a história da o "realismo mágico" de Erendira e Barroco. Ao longo do livro,
música, do diálogo e a experimentação sonora. A adaptação, voltarei às tensões produtivas entre a tradição reflexiva, paródíca,
neste sentido, consiste na ampliação do teÀ1o-fonteatravé~ç1esses retomando Dom QUixote, por um lado, e a tradição "realista",
rnultiplosiriIertextQ.s. ---- __
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revisitando Robinson Crusoé, por outro. Ao mesmo tempo, ainda
estaremos sendo provincianos e eurocêmricos ao postularmos
somente duas tradições básicas. Críticos como Arthur Heiserman
REALISMO LITERÁRIO E MAGIA (lbe nove! before the nove!) e Margaret Anne Doody (lbe true
story of the nove!) argumentam que o romance não começou no
Um outro argumento na discussão geral de A literatura através Renascimento, mas "tem uma história contínua de cerca de dois
do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação tem a ver com mil anos".8

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'F'
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Alguns criticas rejeitam a tradição, mencionada anteriormente, produto do "contato entre o Sul da Europa, o Oeste da Ásia, e o
que demoniza o romance de cavalaria, muitas vezes codificado f Norte da África".n O romance tem, portanto, raízes na história da
I
como feminino, arcaico, supersticioso e suspeitamente "mágico", I bacia mediterrãnea multirracial e niultilíngüe. O cânone, segundo
enquanto definem o romance como a quintessência da moder- Harold Bloom, não é exclusivamente "ocidental". Fragmentos
nidade européia. Críticos anglocêntricos dão excessiva ênfase I de papiro de romances sugeriram que a prática da leitura de
I
aos liames do romance com o protestantismo e o capitalismo. romances era comum entre os egípcios no século dois d.e. E
I
Assim, crIticas como Ian Watt privilegiam o século dezoito, mais não é por acidente que o título Aethiopika, de Beliodorus, o
precisamente o auge da força do romance inglês, elidindo outras romance grego mais longo dentre os que sobreviveram, significa
tradições nacionais e outras possíveis narrativizações.9 Uma gran- I "Históría da Etfópid' (ênfase minha). Um escritor renascentista
de variedade de críticos compartilha uma abordagem teleológica, I italiano como Boccaccio achava normal recorrer ao repertório
quase hegeliana, que sublinha a preponderância "progressista" oriental das Fábulas de Bidpai e Sindbad, ofilósofo. (Até Disney
dos vestígios do passado. Dentro dessa narrativa de extermínio, I, retoma Aladim e as Mil e uma noites.) Escritores como Cervantes
formas "arcaicas" e "medievais" como a épica e o romance de e Fielding conheciam e foram influenciados por tais textos. Como
cavalaria inevitavelmente cedem espaço a formas modernas como assinala Doody, "Quem qúer que tenha lido Pamelaou Torn]ones
o romance, do mesmo modo que a aristocracia palaciana cede esteve em contato com Heliodorus, Longo, Amadis, Petrônio", e
espaço à classe média, e a mágica "oriental" dá lugar à ciência nós também nos aproximamos deles quando "lemos autores dos'
"ocidental". Apesar desse cosmopolitismo pan-europeu, mesmo séculos dezenove e vinte [tais como Salman Rushdiel que por sua
uma figura como Auerbach ainda vê a literatura "ocidental" ca- vez leram outros autores que leram essas obras" Y
minhando, inexoravelmente, para um único télos do realismo. A Há "mais no céu e na terra", portanto, do que se imagina dentro
visão teleológica geral dispensa antigos romances como O asno dos cânones provincianos do verismo ocidental. A valorização
de ouro por não serem realmente romances, mesmo sendo "prosa do realismo é freqüentemente associada à idéia de que a magia'
de ficção de certa extensão" .10 e o fantástico foram desbancados pela Razão do I1uminismo.
A crítica eurocêntrica canônica tende a traçar a história da arte, Uma visão linear, "progressista" de tais questões considera
como faz a história de modo geral, "do norte ao noroeste",numa que a humanidade tenha "ultrapassado" essas formas arcaicas
trajetória que vai da Bíblia e da Odisséia ao realismo literário e irracionais; o mundo move-se para frente, inexoravelmente,
e ao modernismo artístico. Mas podemos Ver esses textos de em um curso global e unidirecional. A magia e o romance
fundação, a Bíblia e a Odisséia, como "ocidentais"? A Bíblia tem desvalorizam-se como vestígios anacrônicos ou velhos modos
raízes na África, Palestina, Mesopotâmia e no Mediterrâneo, e a de consciência a serem "superados" por formas mais evoluídas e
cultura grega clássica sofreu forte impacto das culturas semítica, racionais da Modernidade Iluminista. A fantasia e a magia, nessa
egípcía e etíope. perspectiva, são vestígios de um passado que é melhor esquecer.
Se defíninnos o romance simplesmente como "prosa de ficção Mas essas formas arcaicas nunca são completamente enterradas.
de certa extensão", então o gênero vai muito mais longe, até Pelo contrário, seus espectros assombram, ou melhor, animam
mesmo antes de Dom Quixote, chegando aos grandes romancistas toda a história da ficção moderna, na forma do maravilhoso e
da Antigüidade como os egípcios, árabes, persas, indianos e sírios. do romance presente em Dom Quixote, nos anseios românticos
Enquanto a narrativa difusionlsta eurocêntrica enreda ,a história de Emma Bovary, na amarga rejeição da ciência e do iluminismo
do romance marcando seu nascimento na Europa, espalhando- do Homem do Subterrâneo ou ainda na afirmação do arcaico e
se depois para a África e a Ásia, seria, pois, igualmente lógico do fantástico pelo Realismo Mágico como aspectos do "surreal
considerar que o romance tenha surgido fora da Europa, chegando quotidiano" da América Latina contemporânea.
depois até lá. Conforme aponta Margaret Doody, o romance foi o

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Também o modernismo artístico foi tradicionalmente definido do mundo. Essas definições muitas vezes estão associadas, por
em contraposição ao realismo como norma dominante de repre- exemplo, na obra de Bazin e Kracauer, à natureza supostamente
semação. Porém, fora dos limites ocidentais, o realismo raramente "objetiva" do aparato cinematográfico, com sua ligação indexa-
dominou; a reflexividade modernista como reação ao realismo, dora, fotoquímlca com os objetos pró-fílmicos reais. Outras de-
portanto, dificilmente conseguiria exercer o mesmo poder de finições enfatizam as aspirações diferenciadoras do movimento
escândalo e provocação. O modernismo, neste sentido, pode ser fílmico com vistas a moldar uma representação relativamente
visto de certa forma como uma rebelião provinciana e local. Em mais verdadeira, vista como um corretivo para a falsidade de es-
imensas regiões do mundo, e por longos períodos de história da tilos cinematográficos anteriores ou protocolos de representação.
arte, houve pouca adesão ou mesmo interesse pelo realismo. Na Esse corretivo pode ser estilístico - como o ataque da nouvelle
Índia, uma tradição narrativa de dois mil anos retoma à épica e vague francesa à artificialidade da "tradição de qualídade" - ou
ao drama clássicos do sânscrito, que relatam os mitos da cultura social - o neo-realismo italiano visando mostrar à Itália pós-guerra
hindu através de urna estética menos baseada em personagens sua verdadeira face - ou ambos - o Cinema Novo brasileiro re-
coerentes e num enredo linear do que em sutis modulações de volucionando tanto a temática social quanto os procedimentos
sentimento e disposição de ânimo (rasa). cinematográficos do cinema nacional do passado.
O realismo como norma pode ser visto como provinciano Outras definições ainda enfatizam a convenclonalidade do
até mesmo na Europa. Em Rabelais e seu mundo, Bakhtin fala realismo levando em consideração a sua ligação com um grau
do "carnavalesco" como uma tradição contra-hegemônica cuja de conformidade do texto com modelos culturais amplamente
história vai dos festivaisgregos dionisíacos e da saturnália romana disseminados de "histórias críveis" e "personagens coerentes".
ao realismo grotesco do "carnavalesco" medieval, passando Neste sentido, a plausibilidade e a verossimilhança são talhadas
por Shakespeare e Cervantes, chegando finalmente a Jarry e por códigos de gênero. De um pai durão e conservador que, em
ao Surrealismo.13 Conforme a teorização de Bakhtin, o carnaval um musical, resiste ao ingresso de sua filha no show-business,
abraça uma estética anticlásslca que rejeita a unldade e a harmonia pode-se esperar "realisticamente" que ele aplauda sua apoteose
formal para favorecer o assimétrlco, o heterogêneo, o oximoro, no palco na cena final do filme. Definições de realismo cinema-
o miscigenado. tográfico feitas a partir de uma inclinação psicanalítica, por sua
vez, movem a crença do espectador, um realismo de resposta
subjet":a, menos arraigado na precisão mimética do que na con-
MAGIA E REALISMO NO CINEMA vicção do público. Uma definição puramente formalista de "rea-
lismo" enfatiza a natureza convencional de todas as construções
Quanto ao cinema, a questão do "realismo"sempre esteve pre- ficcionais, vendo o realismo apenas como uma constelação de
sente ora considerada como ideal, ora como um objeto de opró- dispositivos estilístlcos, um conjunto de convenções que, num
brio. Os próprios nomes de movimentos fílmicos dão o tom das dado momento na história de uma arte, consiga, através da técnica
mudanças sobre o terna do realismo: o "sunealismo" de Bunuel ilusionista afinada, cristalizar um forte sentimento de autentici-
e Dalí, o "realismo poético" de Carné/Prevert, o "neo-realismo" dade. Para Gilles Deleuze, finalmente, o realismo não mais se
de Rossellini e de Sica, o "realismo subjetivo" de Antonioni, o refere a uma adequação mimética, analógíca, entre o signo e o
"sur-realismo" (realismo do sul) de Glauber Rocha, o "realismo referente, mas sim à sensação de tempo, à intuição de duração
burguês" denunciado pelos críticos do Cabiers du Cinéma em vivenciada, os deslocamentos móveis da durée bergsoniana. O
sua fase marxista-Ieninísta. Várias grandes tendências coexistem realismo, importante acrescentar, é culturalmente relativo; para
dentro do espectro de definições do realismo cinematográfico. Salman Rushdie, os musicais de Bollywood (Bombaim) fazem os
As definições mais ortodoxas de realismo reivindicam verossimi- musicais hollywoodianos parecerem documentos neo-realistas
lhança, a suposta adequação de uma ficção à bruta facticidade

28 29
rr
de última categoria.14 O realismo fílmico é também condiciona-
do historicamente. Gerações de cinéfilos achavam os filmes em
preto-e-branco mais "realistas", embora a própria "realidade') seja
l
é

l,;'
ir'
f'
(voltar-se para), o termo foi inicialmente tomado emprestado
da filosofia e da psicologia, em que ele se referia à capacidade
da mente de ser tanto sujeito e objeto de si mesma dentro do
em cores. O ponto-chave nessa discussão é que o realismo é, I'( processo cognitivo. Com esta acepção, encontramos a noção
em si, um discurso, uma fabricação astuta que cria e remodela r
1;- de reflexividade em alguns dos ditos mais famosos da fJ1osofia,
,'.
o que diz. como, por exemplo, o dito filosófico e gramaticalmente reflexivo
Uma questão importante para todas as adaptações é a relação de Sócrates "Conheça-te a ti mesmo" e o de Descartes, cogito
i.
~;,
ergo sum, em que a observação cética da consciência, em que
do filme com o modernismo, e como ela difere da ligação com f
a literatura. Esta questão tem a ver com o espaço-temporalidade f ela observa a si mesma no processo de se conscientizar, torna-
específico do filme e, em especial, com a ('continuidade" como t se fundamental para a epistemologia. Assim também Kant, que
~,

núcleo do estilo dominante. Hollywood e seus correlatos em ~ defendia a idéia do julgamento fllosófico reflexivo, enquanto
~ alguns teóricos sociais clamavam pela "sociologia reflexiva". De
todo o mundo inventaram uma forma de contar histórias por
fato, a reflexividade artística se manifesta de várias formas: auto·
meio de uma organização de tempo e espaço especificamente
cinematográfica. O modelo dominante criou o que veio a ser a f consciência metodológica, reflexão metate6rica, o mise-en-abyme
f· de reflexões ad infinítum, a quebra de estruturas, a relativizaçâo
pedra de toque estética do cinema hegemônico: a reconstituiçâo
de um mundo ficcional caracterizado pela coerência interna e da perspectiva cultural. Recentemente, os críticos chamaram
pela aparência de continuidade. Esta última foi alcançada por
! a atenção para certás armadilhas na teoria da reflexividade. A
teoria fílmica da década de 1970 costumava ver a reflexividade
meio de normas de apresentação de novas cenas (uma progressão
coreografada de establishing shot a medium shot a dose shot);15
recursos convencionais para aludir à passagem do tempo (dissol-
I como uma panacéia política, enquanto deixava de notar o po-
tencial progressista do realismo. Algumas vezes, a reflexividade
se torma uma espécie de narcisismo ou uma demonstração de
ves, íris effects);16técnicas convencionais para tomar imperceptível
virtudes autoconfessadas: "Eu sou reflexivo, mas você não é!",
a transição de uma tomada a outra (a regra dos 30 graus, corte
em movimento, combinações de posição e movimento, inserts uma ambigüidade satiricamente antecipada, como veremos, por
Dostoievsky em Notas do subterrâneo.
e "cortes" para encobrir descontinuidades); e dispositivos para
sugerir subjetividade (edição de ponto de vista, planos de reação, No campo das artes, a reflexividade no sentido psicol6gico!
eyeline matches'). A estética hollywoodiana convencional pro- filosófico se aplica também à capacidade de auto-reflexão de
moveu o ideal não somente de enredos lineares, coerentes de qualquer meio, língua ou texto. No sentido mais amplo, a refle-
causa-efeito, que giram em torno de "conflitos maiores", mas xividade artística refere-se ao processo pelo qual textos, literá-
também de personagens motivados e críveis. Um decoro espaço- rios ou fíhnicos, são o proscénio de sua própria produção (por
temporal específico empregou toda essa panóplia de dispositivos exemplo, As ilusões perdidas, de Balzac, ou A noite americana, de
para transmitir a sensação de uma continuidade livre de junções. Truffaut), de sua autoria (Em busca do tempo perdido, de Prousc,
Naturalmente os processos de produção cinematográfica são 8 lh , de Fellinj), de seus procedimentos textuais (os romances
altamente descomínuos; uma única cena retratando uns poucos modernistas de]ohn Fowles, os filmes de Michae1 Snow), de suas
minutos consecutivos na história resulta muitas vezes da filmagem influências intertextuais (Cervantes ou Mel Brooks), ou de sua
durante vários dias ou até meses. Todavia, a estética normativa recepção (Madame Bovary, A rosa púrpura do Cairo). Ao chamar
exige que os filmes façam de tudo para "encobrir" tais interrupções a atenção para a mediação artística, os textos reflexivos subvertem
em nome da "continuidade" e do fluxo narrativo. o pressuposto de que a arte pode ser um meio transparente de
Uma outra palavra-chave nessas discussões é "reflexividade". comunicação, uma janela para o mundo, um espelho passeando
por uma estrada.
Etimologicamente oriundo da palavra latina reflexiolreflectere

30 31
Como já argumentei anterioffilente, a reflexividade não está permitiu ao cinema modíficar as coordenadas de tempo e de
limitada ao que, muitas vezes, é equivocadamente rotulado de espaço. Orson Welles é, portanto, o herdeiro de Melíes quando
tradição "ocidental",IB A reflexividade existe sempre que seres se auto-retrata na figura do mágico em Verdades e mentiras. O
humanos usuários de línguas "falam sobre a fala". Para Heruy Louis cinema conjuga o realista e o fantástico. Ele emprega o realismo
Gates, em O maeaeosignificante, a figura do trieksteriorubá Exu- daquilo que os teóricos chamam de "monstração" - objetiva e
Elegbara é um emblema da "significaçào da arte afro-diaspórica" sem "intervenção humana", como Bazin notoriamente afirmava
que empreende a desconstrução.'9 A reflexividade não está - e "a mágica" da montagem e da superposição, permitindo ao
limitada a tradições eruditas, literárias ou acadêmicas; ela pode ser filme desempenhar transformações temporais e sobre posições
encontrada em canções populares, no vídeo rap, na comédia stand- espaciais impossíveis. O cinema pode ainda veicular a mágica
up e em comerciais televisivos. Tampouco podemos considerar persuasiva dos sonhos. De Munsterberg a Metz, os teóricos de
cinema notaram não somente a capacidade do filme de representar
que a reflexividade e O realismo sejam, necessariamente, termos
antitéticos. Como veremos, um filme como O desprezo, de Godard, sonhos, mas também suas analogias COm o sonho em termos de
seus procedimentos operacionais, suas fusões e deslocamentos
é ao mesmo tempo reflexivo e realista, uma vez que ele ilustra as
metonímicos e metafóricos. Filmes, em suma, são potencialmente
realidades sociais vividas no dia-a-dia na mesma medida em que
"mágico-realistas"j eles podem tornar os sonhos realistas e a
lembra aos leitores/espectadores que a mímesis do filme se trata
realidade onírica, conferindo à fantasia aquilo que Shakespeare
de um construto. O realismo e a reflexividade não são polaridades
denominou "uma morada local e um nome",
estritamente opostas, mas tendências que se interpenetram ou pólos
capazes de coexistir dentro do mesmo texto, Como tecnologia da representação, o cinema está equipado
de modo ideal para multiplicar magicamente tempos e espaços;
O cinema tem sido associado, desde o começo, com o realismo
tem a capacidade de entremear temporalidades e espacialidades
e com o mágico e o onírico. Em sua invocação por um "cinema
bastante diversas; um filme de ficção, por exemplo, é produzido
xamânico", o cineasta/teórico Raul Ruiz remonta as origens do
numa gama de tempos e lugares, e representa uma outra cons-
cinema a uma série de eventos "mágicos"; . telação Cdiegética) de tempos e espaços, sendo ainda recebido
A mão de um homem das cavernas apertada contra uma su- em outro tempo e espaço (na sala de cinema, em casa, na sala
perfície ligeiramente colorida ... simuladores (demônios semi- de aula). A conjunção textual de som e imagem em um filme
transparemes do ar, descritos por Hermes Trimegistus); sombras significa rlão apenas que cada trilha apresenta dois tipos de
pré e pós-platônicas; o Golem... o Fantascope de RobertSonj as tempo, mas também que essas duas formas de tempo mutuamente
borboletas mágicas de Coney Island. Todos compõem uma pre- fazem inflexões uma sobre a outra numa forma de síncrese.
figuração do cinema.'o Tomadas atemporais estáticas podem ser inscritas com tempo-
raJidade através da música, por exemplo.2z O leque de técnicas
Assim como a tradição do romance bifurca nas tradições do
cinematográficas multiplica ainda mais esses já diversos tempos
paródico Dom Quixote e do mímético Robinson Crusoé, também e espaços. A sobreposição redobra o tempo e o espaço, como
o cinema, à época de seu nascimento, divide-se no realismo das fazem também a montagem e a utilização de molduras múltíplas
"visões" e das "realidades" de Lumiere, de um lado, e nos esboços dentro de uma imagem. Aqueles que afirmam que ao filme
mágicos de Melies, de outro, No entanto, Godard, meio século inerentemente falta a "flexibilidade" do romance esquecem-se
depois, reverteu a dicotomia ao sugerir que Lumiere filmava como destas versáteis possibilidades.
um pintor impressionista, enquanto Melies documentava o futuro
Os primórdios do cinema coincidiram com o auge do projeto
ao enviar seus personagens à luaY
verístico conforme sua expressão no romance realista, na peça
Melies descobriu que a edição possibilitava substituições e naturalista (em que produtores teatrais como Antoine utilizavam
transfoffi1ações mágicas, deixando assim uma rica herança que carne verdadeira em cenas de açougue) e em exposições

32 33
obsessivamente miméticas. O modernismo artístico que floresceu DIALOGISMO MULTICULTURAL
nas primeiras décadas do século vinte e que foi institucionalizado
como "alto modernismo" após a Segunda Guerra Mundial ~\'; A natureza palimpséstica multifacetada da arte, afirmo ao
promoveu uma arte anti-realista, não-representativa, caracterizada longo deste texto, opera dentro e através das culturas. Outro
t~:·
pela abstração, fragmentação e agressão. Embora o incremento :g~\:
:r:,.
tema intermitente será o diálogo multicultural entre a Europa e
tecnológico do cinema faça-o parecer superficialmente moderno, ~~~: seus outros, 11mdiálogo que não é reCente. Apesar da narrativa
Sua estética dominante herdou as aspirações miméticas do realismo 't:'~;:. eurocêntrica construir um mura artificial que separa a cultura
literário do século dezenove. Formas dominantes do cinema eram, ~~~:. européia das demais, na verdade a própria Europa é uma síntese
,(o
assim, "modernas" em sua atualização tecnol6gica e industrial, mas ',. de várias culturas, ocidentais e não ocidentais. O "ocidente",
não modernistas em sua orientação estética. Não é de se admirar 0: portanto, é em si uma herança coletiva, um mélange OIÚVOro
que os maiores desapontamentos, por parte dos leitores letrados, i~~:'i.' de culturas; ele não absorveu simplesmente influências não
;',.
tenham a ver com adaptações de romances modernistas comO ~;~ .. européias, como afirma Jan Pietersie, "ele se constituiu delas" ,24
os de Joyce, Woolf e Proust, exatamente porque nesses casos a À luz dessas diferenças constitutivas e mutuamente imbricadas, A
lacuna estética entre fonte e adaptação parece ser estarrecedora, literatura através do cinema adota uma abordagem policêntrica,
menos por causa das falhas inerentes ao cinema do que devido multiperspectivista ao filme e à literatura. O crítico espanhol
à opção pela estética pré-modemista. Ortega y Gasset antecipou esta idéia em 1924 em Ias Atlantidas,
Ainda assim essa narrativa também pode, por vezes, encerrar que previa o futuro descentramento da Europa e a expansão de
um conto de fadas modernista de progresso, o enredamento horizontes:
meliorista por meio do qual o realismo leva à reflexividade como
o télos último da arte. Além disso, a dicotomia entre o cinema :,.::':
Nos últimos vinte anos, os horizontes da história foram excep-
realista e o romance modernista pode ser facilmente exagerada. \. cionalmente expandidos - tanto que o velho pupllo da Europa,
acostumado à circunferência de seu horizonte tradicional, da
Muitos realismos são modernistas. Seria Hitchcock ainda pré-
qual ela era o centro, não consegue agora encaixar em uma só
modernista quando trabalha com Salvador Dalí na seqüência
perspectiva os enormes territórios repentinamente acrescentados,
do sonho em Quando/ala o coraçâó! E, da mesma maneira, ao
Se até o presente a "história universal" sofreu da concentração
fazer filmes dentro da indústria mexicana, Bunuel permanece o excessiva sobre um único ponto gravitacional, na direção do

l
vanguardista de Um cão andaluz e A idade do ouró!23 O cinema :',: qual todos os processos da existência humana convergiram - o
foi muitas vezes modernista (e pós-modernisra); o problema é que ponto de vista europeu - pelo menos por uma geração será
seu modernismo não costumava tomar a forma de adaptações. elaborada uma história universal policêntricaj a totalidade do
Grande parte da obra de Alain Resnais pode ser vista como um horizonte será obtida através de uma simples justaposição de
prolongamento cinemático da obra romanesca de Proustj no horizontes parciais. com raios heterogêneos, que, amealhados,
entanto, Resnais nunca adaptou Em busca do tempo perdido, proporcionarão um panorama de destinos humanos semelhame
Glauber Rocha encarnou o "realismo mágico" latino-americano em a uma pintura cubista.25
Terra em transe, mas ele nunca adaptou Márquez ou Carpentier.
Ainda que eu não veja esta abertura de horizontes como um
Limirar a discussão a adaptações existentes, neste sentido, resulta
. :-~',,,
desenvolvimento recente (ela pode ser rastreada até a Renascença,
num senso falsamente diminuído do potencíal modernista do
t<"," ou mesmo antes dela), endosso a noção de Ortega de uma
cinema. Minha própria pressuposição, diferentemente, é que as "

.:;' história literária policêntrica. Minha abordagem no presente livro


variadas capacidades cronotópicas do cinema capacitam-no a
será multicultural e antieurocêntrica, nem tanto em termos do
transpor e a enriquecer, em absoluto, qualquer estética, realista A:;·

ou anti-realista, ilusionista ou auto-reflexiva. C01pUS - a maioria dos textos tratados é de clássicos europeus
ou "eurotrópicos" - porém mais em termos de ver oS próprios
~'.:'

35
34
textos como multiculturais, seja através de presenças manifestas de ]ane Austen, giram em torno de questões de propriedade,
ou através de ausências estruturadoras. tanto no sentido de comportamento adequado quanto de posse,
i
A teoria da adaptação é o que a translingüística bakhtiniana i
estando a propriedade arraigada nas colõnias. A fazenda Mansfield
chamaria de "enunciado historicamente situado". E, da mesma I Park, assim, é mantida pelos canaviais de Sir Thomas Bertram em
forma que não se pode separar a história da teoria da adaptação Antígua, onde praticou-se a escravidão até a década de 1830. A
I recente adaptação de Mansfield Park, ao chamar a atenção para
da história das artes e do discurso artístico, tampouco pode-se
separá-Ia da história tout court, definida por Jameson como a dependência de Sir Thomas do escravagismo, revê o romance
I
"aquilo que dói", mas também como aquilo que inspira. Numa a partir do olhar anticolonialista de Fanon, Said, e outros.28 Em
perspectiva mais ampla, a história da literatura, como a do filme, Vani(y Jair, de Thackeray, o império é retratado como fonte de
precisa ser vista à luz dos eventos históricos de larga escala I lucro, ao passo que em M1"s. Dalloway (1925), de Virginia \Voolf.
como o colonialismo, o processo pelo qual os poderes europeus o império é descrito empunhando seu "cassetete" para dominar "o
I
alcançaram posições de hegemonia econômica, militar, política e i pensamento e a religião, a bebida, o vestuário, os hábitos. e também
o casamento". Críticos pós-colõniais e multiculturais começaram a
cultural em muitos lugares da Ásia, África e das Américas. Anexar
territórios adjacentes a nações ocorria com freqüência, mas o "dessegregar" e a "transnaclonalizar" a crítica, explorando a maneira
que havia de novo no colonialismo europeu era o seu alcance
r-
com que o personagem Huck Finn foi moldado a partir de um
planetário, sua filiação ao poder global institucionalizado, e seu protótipo negro, por exemplo, ou o modo com que Pequod, de
Melville, em Moby Dick, constitUi um microcosmo multicultural,
modo imperativo, sua tentativa de submeter o mundo a um único
regime "universal" de verdade e poder. Esse processo teve seu
I ou ainda como a história de Benito Cereno sobre um motim
apogeu no começo do século vinte, quando a superfície terrestre ~ de escravos reflete sobre a política racial na América do século
sob controle do poderio europeu cresceu de 67% (em 1884) para I dezenove. Apesar desses elementos multiculturais sempre terem
í
84.4% (em 1914), sitUação que somente começou a ser revertida í
eyjstido, o advento da crítica pós-colonial os imbuiu de significância
com n desintegração dos impérios coloniais europeus após a interpretativa renovada.
Segunda Guerra Mundia1.2ú A tradição Iíterária explorada aqui ) Se os primórdios do romance europeu (Robinson Crusoé)
I coincidiram com o mamemo inicial da conquista colonial e da
vai de Dom Quíxote, escrito por volta de um século depois que
conquistadores como Colombo e Cortez invadiram as Américas, I escravidão transatlântica, a origem do cinema coincidiu com o
r
até o realismo mágico de Erendira e Barroco, escritos séculos i paroxismo imperial da dominação européia. Os países que mais
mais tarde, mas ainda carregando as cicatrizes da conquista e produziram filmes durante a era do cinema mudo - Inglaterra,
da escravidão nas Américas. Toda a tradição é inevitavelmente
marcada pelo colonialismo e pelo imperialismo. Neste sentido,
I França, Estados Unidos, Alemanha - também, "por acaso", figu-
raram entre os países líderes do imperialismo, cuío declarado
o livro é consoante com o apelo de Edward Said em Cultura e interesse era enaltecer o empreendimento colonial. O cinema
imperialismo por uma "abordagem contrapontística que enfatize combinou narrativa e espetáculo para contar a história do co-
a sobreposição e o entrelaçamento das histórias da Europa e lonialismo a partir da perspectiva do colonizador. De todas as
seus 'outros"',27 celebradas "coincidências" - dos primórdios do cinema com a
Os vários impérios europeus encarnavam a si mesmos e psicanálise, o surgimento do nacionalismo, a emergência do
projetavam seu poder através de textos, que incluíam não apenas consumismo - é a coincidência com o imperialismo a que tem
tratados políticos, diários, decretos, registros administrativos e t·:, sido menos estudada. Este livro, espero, indiretamente se refere
cartas, mas também romances e, mais tarde, filmes. De modo a essa lacuna.
geral, os romances europeus simplesmente tomavam por certo o
domínio e o poder do império. Obras como MansfieldPark (1814),

36 37

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QUESTÕES DE MÉTODO introdução conceirual, o capítulo 1, "Um prelúdiO celvantino: de
~ 1

r., Dom Quixote ao pós-modernismo", coloca os temas do realismo


Já que é impossível dizer tudo sobre os ftlmes e os romances e da magia ao discutir o romance Dom Quixote juntamente com
examinados neste livro, especialmente em se tratando de urna suas adaptações f11micas, notadamente as de Orson Welles e
obra que espera cobrir séculos de desenvolvimento Iíterário e :', Gregory Kozintsev, antes de passar aos aspectos cervantinos de
~~.
cinematográfico em diversos países (Espanha, Inglaterra, França, pós-modernismo.
':~~
.
Rússia, Estados Unidos, Brasil, Cuba, Argentina, índia, Portugal), ::~ O capítulo 2, "Clássicos coloniais e pós-coloniais: de Robinson
necessariamente deve haver um princípio de seleção e enquadra- .~: Crusoé a Survívor', focaliza o realismo documental, "somente
~;'.
I,
mento. Um princípio de seleção tem a ver com a minha própria os fatos", de-Defoe em seu romance seminal As aventuras de
área de competência. Fonnado em literarura comparada, respeitei '~~ ' Robinson Crusoé; após delinear a importância crucial do romance
o princípio de lidar somente com textos escritos em Jfnguas que eu J;.
de Defoe, exploro somente algumas das muitas adaptações
posso ler no original, isto é, inglês, francês, português e espanhol baseadas em Crusoé, enfocando em especial Robinson Crusoé, de
(o russo das Notas do subterrâneo é a exceção). Bunuel, Man Friday, de Jack Gold, e Crusoé, de Caleb DeschameL
Mas, em outro sentido, o princípio de pertinência que escolhi Um leitmotív seria aqui a tendência anticolonialista de "contra-
é amplamente estético. Preocupo-me, principalmente, com os escrever" na literatura.
desafios estilisticos e narrativos que uma série de romances oferece O capítulo 3, "O romance autoconsciente: de Henry Fie1ding
ao adaptador fílmico. Portanto, ofereço exegeses detalhadas de ~~
: a David Eggers", retoma à tradição cervantina do romance auto-
trechos específicos nos romances ou de seqüências particulares consciente. Ao passo que Robinson Crusoé suprime suas próprias
nas adaptações f.í1.micas,usando análises comparativas detalhadas ']..;
fontes intertextuais em nome da verossin1iJ.hança, os romances
como meio de antecipar os diferentes modos de representação. "autoconscientes" escritos "ã maneira" de Cervantes chamam a
Enfatizo, em geral, o estilo, voz e técnicas narrativas. Quando atenção para a sua própria intertextuaUdade. Aqui, destacarei dois
discuto Dom Quixote, não falo da representação que o romance romances de Henry Fielding (Inocente sedutor e As aventuras de
faz da história da Espanha, mas sim das estratégias narrativas e "r;: Tom fones) e um de Machado de Assis (Memórias póstumas de
texruais de Cervantes: contos intercalados, a inserção de crítica Brás Cubas). Concluirei o capítulo fazendo menção aos as peGos
literária, digressão sistemática, e assim por diante. Ao mesmo ~:'
reflexivos do romance contemporâneo (Uma comovente obra
tempo, tal priorização do estético não significa que a análise irá de espantoso talento, de Dave Eggers) à comunicação de massa
omititir o cunho social, político ou histórico. As questões estéticas, contemporânea.
para mim, estão intrinsecamente associadas às questões sociais que O capítulo 4, "O romance protocinematográfico: metamorfoses
têm a ver com a estratificação social e a distribuição do poder. de Madame Bovmy', leva-nos ao romance realista clássico
Uma abordagem fonnalista, que em Cultura e imprm'alismo Edward
do século dezenove, que forneceu incontáveis histórias para
Said compara ao ato de "descrever uma estrada sem sÍtllá-Ia na
adaptação e ainda auxiliou na formação do paradigma da estética
paisagem,"29 será obviamente inadequada. O que me interessa é a .~,
dominante dentro do cinema. Aqui, focalizarei Madame Bovary,
historicidade das próprias formas, a maneira pela qual as escolhas ~t:~
de Flaubert, que contrapõe e sintetiza as duas tradições exploradas
estilísticas em termos de gênero, voz e ponto de vista ressoam o
nos capítulos anteriores, a saber, o documentário-mimético
que a translingüística chama de "avaliações sociais", 'o modo como
(Defoe) e o reflexivo-paródico (Cervames). Após demonstrar os
as Violações das normas estéticas repercutem o enfraquecimento aspectos "protoimpressionistas" e "protocinematográficos" do
de normas sociais,
romance de Flaubert, porei em foco suas variadas adaptações,
Dado o preâmbulo metodológico, resta esquematizar o mo- notadameme naquelas dirigidas por Jean Renoir (1934), Vincente
vimento geral de A literatura através do cínema. Seguindo essa Minnelli (1949), Claude Chabrol (1991), Ketan Mehta (992) e
.,
..
38 ',:
39
Manoel de Oliveira (997). Fecharei o capítulo com uma discussão improváveis. Se uma forma de reflexividade é "infra-realista",
sobre alguns dos trabalhos "f1aubertianos"de Woody Allen. a 'outra abordagem poderia ser chamada de "supra-realista".
O capítulo 5, "O homem do subterrâneo e narradores neuró- Após esquematizar o contexto histórico do realismo mágico,
ticos: de Dostoievsky a Nabokov", negocia a transição do romance ofereço uma análise aprofundada do precursor relativamente
desconhecido do "realismo mágico": Macunaima (1928), o
mimético do século dezenove para as. narrativas modernistas,
brilhante romance modernista de Mário de Andrade - para mim,
particularmente aquelas que empregam narradores em primeira
pessoa pouco confiáveis. Após uma discussão da importância a "mãe" ignorada de todos os romances do realismo mágico - e
da escril:a "polifôníca" de Dostoievsky e uma análise de Notas de sua "tradução" cinematográfica igualmente notável, feita por
do subterrâneo e duas de suas adaptações, focalizo uma série Joaquim Pedro de Andrade em 1968. Finalmente, discuto as
de transposições de romances modernistas para o cinema, todos adaptações fílmicas baseadas I}aobra de Gabriel Garcia Márquez
(Um. senhor muito velho com umas asas enormes, Erendira) e de
influenciados por Dostoievsky, contendo narradores neuróticos,
duvidosos, autodepreciativos: a adaptação feita por Tomas Alejo Carpentier (Barroco).
Gutierrez Alea de Memórias do subdesenvolvímento, de Edmundo De maneira geral, A literatura através do cinema oferece
Desnoes; dois flimes (de Stanley Kubrik e Adrian Lynne) baseados urna história da tradição do romance por meio de suas re-visões
em Lolita, de Nabokov; e A hora da estrela, de Suzana Amaral, a fílmicas, enfatizando as complexas mudanças energéticas e
partir do romance homônimo de Clarice Lispector. sinergéticas envolvidas na migração trans-mídia. Ao invés de
O capítulo 6 aborda o "Modernismo, adaptação e a nouvelle seguir um só modelo, minha abordagem analítica será flexível,
vague francesa". Após algumas observações iniciaissobre a prática "adaptada" às qualidades específicas de cada filme e romance.
da adaptação pela nouvelle vague e acerca de discussões teóricas Empregando simultaneamente a teoria literária, teoria midiática
e estudos (multi)culturais, adotarei múltiplas estruturas - uma
a respeito do mesmo assunto naS páginas do Cahiers, me atenho
ao romance/filme experimen.tal na França, em especial ao cine- espécie de cubismo metodológico -, a fim de esclarecer as
roman, dedicando maior atenção a Hiroshima, meu amor e Ano relações entre o romance e o filme de uma maneira que é, espero,
passado em Marienbad. Os cine-romans forjam uma modalidade rica, complexa e multidimensional.
completamente nova da relação filme/romance, em que a noção
de "adaptação" se torna ainda mais problemática do que o
normal, em que romancista e cineasta trabalham em igualdade e
até mesmo em simbiose, na medida em que respeitam a especifi-
cidade de cada meio. É dentro desse enfoque que oferecerei uma
análise aprofundada do filme de Godard baseado no romance
O desprezo, de Alberto Moravia, antes de concluir com alguns
comentários sobre os aspectos cervantinos e "quixotescos" da
nouvelle vague francesa em geral.
O capítulo final fecha o círculo de discussões sobre realismo
e magia ao focalizar o boom e o "realismo mágico" latino-
americanos. Enquanto Godard, em O desprezo, problematiza
o realismo ao trazer para primeiro plano, reflexivamente, a
mecânica formal do ilusionismo e ao "esvaziar" a narrativa, a
abordagem "realista mágica" interroga o realismo ao caminhar
na direção oposta, ao tecer uma profusão delirante de contos

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l a

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