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A Música no Renascimento / A Polifonia Portuguesa no século XVII (*)

Em meados do século XVI, a Europa encontrava-se em pleno apogeu de um dos períodos mais ricos,
dinâmicos e conturbados da sua História. Este enorme dinamismo, muitas vezes de um alcance verdadeiramente
revolucionário, era transversal aos vários níveis da actividade humana. A sua génese poderá ser imputada à confluência de
três grandes fenómenos de abrangência global:
- a disseminação dos ideais humanistas – cuja origem remontava à Itália do século XIV, e que, partindo da matriz
civilizacional, cultural e artística da Antiguidade Clássica, preconizavam uma nova etapa de desenvolvimento no Ocidente
baseada num verdadeiro renascimento cultural;
- a ascensão da burguesia – potenciada pela expansão económica iniciada ainda no século XV e alicerçada num
desenvolvimento do comércio e do crédito e num forte crescimento urbano, que foi permitindo o estabelecimento de uma forma
incipiente de capitalismo e a consequente emancipação e afirmação da classe burguesa;
- e as crises religiosas – despoletadas por um crescente sentimento de caos instalado em toda a estrutura religiosa do mundo
cristão na transição entre os séculos XV e XVI e concretizadas nos movimentos de Reforma e Contra-Reforma ao longo do
século XVI. A conjugação destes fenómenos, amplificada pela difusão da imprensa, marcou inexoravelmente as sociedades
europeias, rompendo em definitivo com as estruturas medievais e dando início à transição para a Modernidade.

De um modo naturalmente decorrente do grande cosmopolitismo que caracterizava o espaço europeu, estas
conturbações e vicissitudes foram alastrando rapidamente e estimulando diferentes respostas, de acordo com as
características de cada nação. No caso de Portugal, uma das mais marcantes especificidades tornou-se evidente no plano
religioso. Com efeito, enquanto as restantes nações europeias eram assoladas por acesas turbulências reformistas, a
Península Ibérica manteve-se quase um bastião da ortodoxia católica, com as monarquias ibéricas a arrogarem-se a missão
de defesa da fé, materializada, p.ex., com a instituição do Tribunal do Santo Ofício no ano de 1536, sob a égide de D. João
III. Esta postura viria a ter profundas repercussões a nível musical, em particular na sua vertente sacra.

Ao longo deste período, os movimentos reformistas, globalmente hostis face à prática musical preconizada pelo
Papa, debatiam-se na busca da adequação da música sacra a uma renovada vivência religiosa. Neste sentido, foram
encontradas soluções tão extremas como as defendidas por Martin Luther (1483-1546) – que salientava o poder da música
para despertar a espiritualidade dos ouvintes, atribuindo-lhe um papel essencial na liturgia e incitando à substituição do
latim pelo vernáculo e à participação activa de toda a congregação – ou por Ulrich Zwingli (1484-1531) – que, encarando
a música como factor de distracção dos crentes durante o serviço religioso, eliminou toda a prática musical nas igrejas
reformadas sob a sua alçada e promoveu a destruição pública de órgãos e livros de música litúrgica.

O movimento contra-reformista da Igreja Católica não se fez esperar, atingindo o seu ponto mais visível e
consequente com o Concílio de Trento (cuja actividade se prolongou, de forma intermitente, entre 1545 e 1563).
Relativamente à prática musical litúrgica, as disposições conciliares circunscreveram-se a orientações de natureza normativa,
mantendo a inflexibilidade relativamente ao uso do latim e preconizando a depuração da polifonia sacra, no sentido de
lhe ser retirada qualquer influência secular e de evitar o obscurecimento do texto literário subjacente. Neste contexto,
tornou-se incontornável a figura de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594) de quem, de forma lendária, se diz ter salvo a
polifonia sacra dos seus detractores no contexto tridentino, com a composição da Missa Papae Marcelli, publicada em
1567. Apesar de todos os exageros que envolvem a lenda, a verdade é que a clareza, fluidez e sobriedade do seu estilo se
tornaram exemplares para a composição musical sacra da Contra-Reforma.

Em Portugal, único país do universo católico a integrar as prescrições do Concílio no próprio sistema legal logo a
partir de 1564, a influência de Palestrina foi muito significativa. É particularmente assinalável o facto de, várias décadas
volvidas, D. João IV (Rei de Portugal entre 1640 e 1656), melómano, tratadista, compositor e detentor de uma das maiores e
mais sumptuosas bibliotecas musicais do seu tempo, defender como modelo ideal o estilo composicional palestriniano.

O concerto hoje apresentado pelo Coro Casa da Música, dirigido pelo seu maestro titular, Paul Hillier, tem como ponto de partida o
Requiem a 4 vozes, de Manuel Cardoso (1566-1650), compositor muito próximo de D. João IV e, também ele, fortemente influenciado por G. P.
da Palestrina, como claramente se infere pelo facto de cinco das sete Missas que compõem o seu Liber Primus Missarum (1625) se basearem
em motetes do compositor italiano. Natural de Fronteira (localidade alentejana próxima da cidade de Évora), Cardoso iniciou os seus estudos
musicais em meados da década de 1570 no Collegio dos Moços do Coro da Sé de Évora – um dos mais profícuos centros de formação musical
da época –, onde terá sido discípulo de Manuel Mendes (1547-1605). Em 1588, ingressou no Convento do Carmo, em Lisboa, onde se veio a
tornar organista e Mestre de capela, cargo que ocupou durante seis décadas.
Vasco Negreiros aponta como os dois pontos centrais na biografia de Manuel Cardoso a referida amizade com D. João, de quem
poderá mesmo ter sido professor, e a acuidade da sua entrega à vida monástica. Eram frequentes as alusões elogiosas e respeitosas dos
seus contemporâneos relativamente à sua intensa devoção e ao seu excepcional talento musical, características que Cardoso integrou num
estilo de composição particularmente expressivo, em que privilegiava alguns dos textos litúrgicos de maior carga dramática, como os
da liturgia da Semana Santa. O Requiem a 4 vozes, que integra o Livro de varios motetes (1648) – quinta e última publicação impressa de
polifonia da autoria de Manuel Cardoso – pode ser considerado, a este respeito, verdadeiramente paradigmático. Na linha de uma tradição
ibérica de Missas de defuntos nos séculos XVI e XVII, caracterizada por uma consequente utilização de cantus firmi gregorianos e por uma
prevalência de valores rítmicos longos, materializados por meio de notação branca, o Requiem a 4 vozes constitui um magistral remate da
obra de um dos mais marcantes e reconhecidos compositores do nosso país. [Secções deste Requiem: Introitus, Kyrie, Graduale,
Offertorium, Sanctus-Benedictus, Communio e Agnus Dei. Ver Atlas 128]

Também natural do Alentejo, mais precisamente de Cuba (localizada a menos de centena e meia de quilómetros a sul da terra natal
de Cardoso), Diogo Dias Melgás (1638-1700) é um ilustre prossecutor da riquíssima tradição musical eborense. Ingressou, com a idade de nove
anos, no Collegio dos Moços do Coro da Sé de Évora, instituição onde foi nomeado, sucessivamente, Mestre dos moços, Mestre da crasta e, em
1680, Mestre de capela. Apesar de, a partir de 1697, a cegueira ter forçado a sua gradual substituição no cargo por Pedro Vaz Rego (1673-
1736), continuou a ser integralmente remunerado por decisão capitular da Sé, facto demonstrativo da grande consideração pela dedicação e pelo
trabalho desenvolvido por Melgás. A inquestionável qualidade da sua produção musical foi igualmente reconhecida e apreciada pelas gerações
subsequentes, como testemunha o facto de a quase totalidade das suas obras de que hoje dispomos nos ter sido legada por meio de
transcrições dos séculos XVIII e XIX.
A sobriedade, transparência e expressividade no tratamento do texto, conjugadas com uma subtil alternância entre
contraponto e verticalidade, são transversais às obras de Diogo Dias Melgás hoje interpretadas. Ao longo de toda a antífona Salve Regina,
que Melgás concebeu para quatro vozes, resulta clara a relação intensamente pictórica entre música e texto literário, como nos abruptos
saltos de 8ª e 6ª ascendente, que sublinham a palavra clamamus (gritamos; chamamos em voz alta), ou nas pausas dramáticas que entrecortam
a palavra suspiramus (suspiramos). Já a 1ª Lamentação de Quinta-Feira Santa demonstra a notável mestria de Diogo Dias Melgás numa
escrita policoral com partes instrumentais. A ideia geral de sofrimento encerrada no texto é ilustrada por uma intensidade harmónica
decorrente da sucessão de linhas melódicas cromáticas. A encerrar o programa de hoje, Veni sancte spiritus (uma das quatro sequências
não abolidas pelo Concílio de Trento) mereceu também um tratamento policoral, mas com um carácter muito distinto da Lamentação. Nesta
peça, ressalta uma linguagem vivamente rítmica, silábica e maioritariamente homofónica, com recurso pontual a curtos fragmentos
contrapontísticos, espelhando o carácter positivamente confiante do texto literário.
(*) Luís Toscano. Notas ao Programa do Coro da Casa da Música realizado em 14/11/2010, dirigido por Paul Hillier. (1360 pal. 7580 caracteres)

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