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Paidéia, 2003, 13(26), 209-219

O SER-COM O FILHO COM DEFICIÊNCIA MENTAL


– ALGUNS DESVELAMENTOS1

Luciana Gomes Almeida de Souza2


Magali Roseira Boemer
EERP - Universidade de São Paulo

Resumo: A compreensão do cuidar do filho com deficiência mental se faz relevante diante da impor-
tância das relações estabelecidas entre pais e filhos para a saúde mental da criança. Nesta investigação foi
usado o referencial teórico-metodológico da fenomenologia, que se propõe a desocultar facetas de um fenô-
meno que se encontram obscuras. Onze casais e duas mães com filhos com deficiência mental foram entrevis-
tados, tendo-se a seguinte questão norteadora: “como vem sendo cuidar de seu filho?”. Os relatos foram
analisados segundo a busca das convergências e foi possível compreender que, para os pais investigados, há
uma dificuldade de conceber o ser-com-deficiência, e o conhecimento experiencial é relevante para encontrar
meios de favorecer o seu desenvolvimento; o apego ao filho é vivido como possibilidade de reconhecimento
da diversidade humana. Os pais se mostraram participantes no cuidado, embora com atitudes ainda permeadas
por concepções de que essa responsabilidade caberia à mãe.

Palavras-chave: deficiência mental; pais; fenomenologia; cuidar

THE BEING-WITH A MENTAL HANDICAPPED CHILD – UNCOVERED FACETS

Abstract: To understand what it is to take care of a mentally handicapped child is very important when
facing the relationship established among parents and children, concerning the children’s mental health. This
investigation was based on the phenomenological theoretical-methodological approach, which is proposed to
uncover phenomenon aspects. Eleven couples and two mothers with children who have mental handicaps
were interviewed, with the following question as a guideline: “How has it been to care of your child?” The
reports were analyzed according to the search for convergence descriptions and it could be understood that,
for the interviewed parents, there are difficulties when conceiving the possibility of being-with-deficiency
and that the experimental knowledge is much important for the search of the children’s development. Also,
the attachment to the child is lived as a possibility to recognize the human diversity. Fathers showed they have
been active on their care, though with attitudes still consolidated to misconceptions in which this is mother’s
responsibility.

Key- words: mental handicap; parents; phenomenology; care

Diversos autores têm abordado a questão do dade de buscar uma explicação para o acontecido
nascimento de um bebê com deficiência e seu im- como se fosse um castigo a eles destinado. Vencida
pacto para as famílias que o recebem. A chegada de a fase de impacto inicial, resta-lhes buscar o equilí-
uma criança diferente da esperada pode alterar o equi- brio emocional que permita a criação deste filho ines-
líbrio, afetando todos os membros da família. Senti- perado e deparar-se com a questão da deficiência.
mentos de choque, negação, raiva, tristeza e culpa Assim sendo, faz-se importante atentar para a ques-
freqüentemente aparecem, independente da gravida- tão da “família e deficiência mental”, centrada no
de do caso de deficiência e os pais sentem necessi- bem-estar psicológico das famílias e especialmente
1
dos genitores, olhando ainda para a necessidade de
Artigo recebido para publicação em 08/04/03; aceito em 26/08/03.
2
Endereço para correspondência: Luciana Gomes Almeida de Souza, se buscar conhecer sua dinâmica de relacionamento,
Rua Júlio de Souza, 220, Jardim Santa Helena, Mogi Mirim, SP, Cep focalizando a família como inserida em um contexto
13806-034, E-mail: lugasouza@yahoo.com.br
210 Luciana Gomes Almeida de Souza

social amplo e complexo. (Brunhara & Petean, 1999; em sentimentos de luto pela criança esperada. Dessa
Dessen & Silva, 2000; Petean & Pina-Neto, 1998; forma, sentimentos e cuidados mais simples, espera-
Telford & Sawrey, 1988). dos da mãe para com seu filho, como olhar em seus
Segundo Buscaglia (1997), é a sociedade que olhos, segurar no colo, alimentá-lo podem ser gera-
freqüentemente define a deficiência como uma in- doras de intensa dificuldade tanto por limitações do
capacidade, algo indesejado e com limitações para bebê (deficiências físicas, alteração de tônus mus-
quem a apresenta, geralmente maiores do que as re- cular) como pela confusão emocional vivenciada pela
almente existentes, já que é ela quem define os pa- mãe neste momento.
drões de beleza e perfeição. Dessa forma, faz com Dentre as várias formas de deficiência, o olhar
que a pessoa com deficiência sofra as conseqüênci- se volta para uma em especial, a da deficiência men-
as dessa determinação através de estigmatizações, tal de acordo com a conceituação adotada no Brasil
segregações e atitudes errôneas, baseadas em princí- pelo Ministério da Educação (MEC):
pios igualmente errôneos como o de que a pessoa
não tem interesse ou habilidade para se integrar à “Funcionamento intelectual geral significativa-
sociedade. mente abaixo da média, oriundo do período de
Uma atitude comum é a culpabilização que desenvolvimento, concomitante com limitações
acaba se misturando aos juízos morais e de valor, associadas a duas ou mais áreas da conduta
adaptativa ou da capacidade do indivíduo em res-
além das idéias da medicina e da psicologia errone-
ponder adequadamente às demandas da socieda-
amente usadas e divulgadas. Deste modo, é freqüen- de, nos seguintes aspectos: comunicação, cuida-
te, por exemplo, a família se culpar pelo nascimento dos pessoais, habilidades sociais, desempenho na
de um filho deficiente ou estigmatizado de outra for- família e comunidade, independência na locomo-
ma, tomando para si todas as responsabilidades que ção, saúde e segurança, desempenho escolar, lazer
se acrescem a um sofrimento emocional intenso. e trabalho.” (MEC, 1997, pág 27).
Em nossa sociedade, geralmente é a mãe quem
estará mais próxima do filho e, assim sendo, os cui- De acordo com Telford e Sawrey (1988), exis-
dados já mencionados podem representar uma enor- tem três condições básicas para a definição de defi-
me responsabilidade para ela. Entretanto, mesmo ciência mental (tratada por eles como retardamento
considerando este fato, não faz sentido conceber so- mental), sendo elas: 1- funcionamento intelectual
mente a perspectiva da mãe, já que ela não é apenas subnormal; 2- originado durante o período de desen-
mãe do filho com deficiência, mas também mulher volvimento; 3- havendo prejuízo no comportamento
e, possivelmente, mãe de outros filhos. Além do que, adaptativo. Os prejuízos advindos dessas condições
há vários casos em que a mãe, por diversos motivos, podem surgir sob forma de retardamento
não se faz presente no núcleo familiar, podendo fi- maturacional, indicado pela lentidão de aquisições
car ao encargo do pai a tarefa de cuidar de seu filho. como sentar, andar, relacionar-se com outras crian-
Assim sendo, é importante que o fenômeno a ser es- ças; deficiências na aprendizagem, principalmente
tudado seja considerado como um todo e inserido desempenho acadêmico precário e inadequação no
em um contexto. ajustamento social, principalmente adulta, social e
Diante dessa proposta, procurou-se aproximar econômica, quando comparado a seus pares. Os au-
das relações estabelecidas entre a família de uma tores ainda salientam que “esta definição torna o
pessoa com deficiência mental, buscando compre- ‘retardamento mental’ uma expressão que descreve
ender facetas de sua dimensão existencial, para te- o estado corrente do comportamento adaptativo e
cer reflexões acerca do preconceito que pode permear nível funcional do indivíduo, independentemente de
as relações familiares e com a sociedade. sua etiologia ou possibilidade de cura” (pág. 299).
Melo (2000) revela que, no caso da deficiên- Assim, para buscar um aprofundamento na
cia de um bebê ser identificada logo ao nascimento, compreensão do cuidar de um filho com deficiência
esta família poderá se deparar com as dificuldades mental através da vivência de seus pais, o referencial
da mulher exercer a maternagem, já que ela esbarra teórico metodológico que pareceu mais pertinente a
O ser-com o filho com deficiência mental 211

esta proposta foi o da fenomenologia, para compre- dos, a mais nova de 3 anos e 6 meses e a mais velha
ender o fenômeno de “o cuidar de um filho com de 64 anos.
deficiência mental”. É um estudo de natureza qua- Foram realizadas 22 entrevistas: 9 casais de
litativa, envolvendo experiências únicas, ao mesmo pais biológicos, 1 casal formado por mãe biológica e
tempo em que tem algo em comum entre as famílias seu companheiro (chamado de pai pelo filho) e 2
que se vêem envolvidas com este cuidar. mães (cujos companheiros não puderam realizar a
entrevista por motivos diversos). A maioria das en-
Método trevistas foi feita individualmente, salvo dois casais
que pareceram se incomodar com a proposta de res-
A fenomenologia considerada como movimen- ponderem em separado e solicitaram que estivessem
to da filosofia surgiu no início do século XX com juntos. Todas as famílias entrevistadas se caracteri-
Husserl (1965). Este referencial teórico- zavam por uma situação sócio-econômica
metodológico, segundo Martins e Bicudo (1983), tem desprivilegiada, com ocupações do tipo: ajudantes
seu foco de interesse voltado para o homem, para a de caminhoneiro, vigia, faxineiras, colhedores de
compreensão do seu ser e tem um compromisso com tomates, pedreiro, doceira, “dona de casa” entre ou-
a sua possibilidade de ser-com-os-outros e ser-ple- tros. E todos tendo concluído, no máximo, o ensino
namente humano. Para tanto, essa metodologia se fundamental.
propõe a um “novo olhar”, já que o investigador olha Quando autorizados pelos entrevistados, os
o fenômeno atentamente a partir do que ele mostra relatos foram gravados e depois transcritos na ínte-
em si mesmo. gra3 . Foi dada atenção à linguagem não verbal dos
Neste referencial, o fenômeno é aquilo que entrevistados durante o encontro, como gestos, ex-
surge para uma consciência, tudo aquilo que se apre- pressões, posturas, silêncios, reticências. As entre-
senta, se desvela como resultado de uma interroga- vistas foram realizadas de acordo com os princípios
ção. A palavra “fenomenologia” vem do grego da Ética em Pesquisa, com toda informação aos pais
“phainomenon” que significa discurso esclarecedor acerca de sua participação na investigação e assina-
a respeito daquilo que se mostra a um sujeito tura de Termo de Consentimento Livre e Esclareci-
interrogador; também do verbo “phainesthai” que do.
significa mostrar-se, desvelar-se. Deste modo, a
fenomenologia procura elucidar a essência do fenô- Resultados
meno como ele se mostra, buscando sua compreen-
são. Compreensão no sentido de tomar o objeto a ser Compreendendo as vivências de cuidado
compreendido na sua intenção total, não apenas como
as coisas são em sua representação. A análise dos relatos das entrevistas foi reali-
Para cumprir o objetivo buscou-se obter o re- zada segundo uma busca do invariante, das conver-
lato dos pais sobre suas experiências através de en- gências dos discursos, daquilo que permanece e que,
trevistas que tiveram uma pergunta norteadora portanto, aponta para a essência. Martins e Bicudo
“Como vem sendo cuidar de seu filho?”. que possi- (1995) propõem que a análise qualitativa do fenô-
bilitava um diálogo, em que, na figura de pesquisa- meno situado seja realizada em quatro momentos,
dora, procurou-se apreender o significado do cuidar conforme o explicitado por Boemer (1994): 1) Lei-
para eles, lembrando que estas falas obtidas são de tura geral do relato ou entrevista, sem interpretações,
pessoas que habitam uma família, uma sociedade, buscando familiarização. 2) Identificação de unida-
uma cultura. des de significado, focalizando o fenômeno
Para a realização da investigação, houve aces- pesquisado. 3) Releitura dos textos, procura de apre-
so aos pais por meio de uma escola especializada no ensão mais abrangente do fenômeno estudado. 4)
atendimento a pessoas com deficiência mental, em Reagrupamento dos elementos relevantes, transfor-
uma cidade do interior paulista com aproximadamen-
te 18 mil habitantes e que tem 33 alunos matricula- 3
Os depoimentos encontram-se com os autores, à disposição para con-
sulta.
212 Luciana Gomes Almeida de Souza

mando unidades de significado em uma descrição Deficiência como possibilidade que desumaniza
consistente da estrutura do fenômeno.
Quatro categorias temáticas foram elaboradas A percepção dos pais sobre a condição dos
para explicitar a compreensão alcançada sobre as filhos envolve aspectos que causam estranhamento.
vivências dos pais e mães: 1) Deficiência como pos- Relatam o contato com o incomum, que perpassa a
sibilidade que desumaniza; 2) Acesso à possibilida- convivência com um filho diferente, algo que, em
de de ser-com-a-pessoa-com-deficiência-mental; 3) seu entendimento, parecia impossível acontecer. Esse
Apego ao filho como fonte de desenvolvimento e 4) ser-com uma pessoa diferente das outras, à medida
O pai participando do cuidado do filho com defici- em que este é um filho, gera sentimentos de ansieda-
ência. de e tristeza.
A busca por significado teve, como ponto de
partida, a percepção deste cuidado como existência, “Não conformava né, de ela ser assim, pensava
segundo a ontologia de Heidegger (1981). Este au- que os outros não têm problema e ela desse jeito,
tor se preocupa e questiona o significado da palavra não sentia que ela era minha! É como eu falo, pa-
recia que eu fazia o serviço de olhar ela pra outra
“ser” ou “sendo” enquanto fundamento da existên-
pessoa. Sabe, que nem tem gente que trabalha de
cia do homem e do mundo à sua volta. Para ele o olhar idoso, eu sentia que eu trabalhava de olhar
“ser” é a maneira como algo se torna manifesto, per- ela, não conformava né... Eu passei muito tempo,
cebido, compreendido e, finalmente, conhecido pelo assim, revoltada”. (Mãe 2)4
ser humano. Para Heidegger, (segundo Martins &
Bicudo, 1983), “ser-no-mundo” refere-se à maneira A deficiência é sentida como desumanizadora,
pela qual o homem encontra-se com suas coisas e retirando da pessoa a igualdade com as outras, não
com as pessoas, preocupa-se com elas, num mundo sendo vista como uma possibilidade existencial, uma
que lhe é familiar. Dessa forma, a fenomenologia se vivência que teria por pressuposto sentimentos de
preocupa com o aspecto social do Ser, passando a prazer e satisfação. Os relatos revelam a possibilida-
pensar em como ele vive o seu ser-com-os-outros, de do não-ser, isto é, os pais convivem com um filho
como ele se relaciona, atua, sente, vive com seus percebido como alguém que, ao mesmo tempo, é e
semelhantes. não é humano, o que antes, quando se esperava pelo
Heidegger (1981) aponta o ser-com ou o sen- bebê ainda no ventre da mãe, não era concebido.
do-com como um constitutivo do existir humano, do Estas reflexões vão ao encontro do explicitado
ser-aí. Com significa para ele junto, algo ou alguém por diversos autores (Miller, 1995; Omote, 1980), a
na presença do outro. Sem essa palavra não seria respeito do luto pelo filho perfeito que não nasceu,
possível o relacionar-se, o atuar, o sentir, o pensar... remetendo os pais a uma facticidade que lhes impõe
Sem esta característica a vida humana não teria sen- a necessidade de refazer perspectivas, de
tido, já que para todas as ações estamos nos relacio- redimensionar suas existências.
nando com algo ou alguém, por exemplo: lidar com As atitudes de preconceito e discriminações
algo, trabalhar com um material, brincar com alguém, sociais frente à deficiência provocam nos pais uma
falar comigo. auto-reflexão sobre as dificuldades de ser-com-o-fi-
Tendo por base esta concepção de “SER”, pro- lho-com-deficiência nos dias atuais, bem como as
curou-se encontrar o significado do “ser-com” o filho atitudes e pensamentos antes de serem acometidos
com deficiência, do existir dos pais junto com este por esta facticidade, trazendo temor pelo filho, pre-
filho a quem lhes cabe o cuidado, atentando para as vendo as dificuldades que ele terá no futuro.
possibilidades de relação, de pensamento e sentimen- Neste momento, é útil retomar as idéias de
to, enfim de vivência em conjunto (“com-junto”). Freud (1919) sobre o estranhamento, mencionadas
A partir da análise criteriosa das descrições por Amaral (2001). O sentimento de estranheza,
de vivências de pais de pessoas com deficiência como referem os autores, está presente nas relações
mental, chegou-se a algumas facetas, desveladas so-
bre seu existir-com o filho. 4
Os números entre parênteses referem ao número do depoimento cole-
tado, segundo sua ordem cronológica.
O ser-com o filho com deficiência mental 213

humanas, sendo que corresponde à dolorosa e cepção de que o seu saber vivencial, adquirido no
ambivalente experiência psíquica de nos confrontar- cuidado cotidiano, não tem tanto valor como o saber
mos com algo que “simultaneamente é familiar e técnico-científico dos profissionais.
estranho”. Assim, pode-se compreender a menção
de sentimentos conflitantes no relato dos pais que, “Lá era uma luta, mas cê sabe que mesmo que o
ao mesmo tempo que desejariam se afastar do ser- médico disse que ela ia ser normal eu tinha medo
que-é-estranho, percebem a deficiência como cons- de ela ter seqüela né, ter algum problema, porque
no começo ela era um nenê normal, mas eu que
tituinte do filho, num penoso exercício para ver a
ficava preocupada... sei lá de ter alguma coisa e
deficiência como possibilidade existencial humana. Deus me livre não enxergar ou outra coisa... Nos-
O preconceito perpassa em muitos aspectos a sa... Eu acho que eu tinha que ter certeza, ficava
questão da deficiência em nossa sociedade, pois brincando até com ela, estimulando... pra ver que
comumente são associadas a ela significações de ela era normal né, e assim foi até os seis meses, aí
desvantagem e de descrédito social (Omote, 1994), que percebemos que ia ter que tratar né.” (Mãe 5)
sendo que não pode ser vista apenas como variação
nas características da pessoa, mas referente a atribu- Percebe-se nas falas dos pais indícios de que
tos socialmente valorizados ou não. Apesar da in- reconhecem o seu conhecimento baseado na experi-
dignação frente à desvalorização de uma pessoa com ência como válido e consistente, mas, frente aos pro-
deficiência mental pela sociedade, esta também emer- fissionais de saúde e educação, esse reconhecimen-
ge na fala dos pais como uma condição que to é relegado, fazendo com que eles assumam postu-
inferioriza, infantiliza e torna dependente, mostran- ras de submissão diante de quem julgam estar muito
do que eles estão sujeitos às concepções arraigadas acima deles no saber lidar com uma pessoa com de-
no ideário social. ficiência. Entretanto, parece claro que os pais deste
Através dessas reflexões percebe-se a traje- estudo não tiveram acesso a profissionais que valo-
tória dos pais em busca do significado de suas pró- rizassem sua experiência e percepções, revelando
prias existências, trilhando, a “carreira de pais de fi- uma lacuna no exercício profissional dos envolvi-
lhos com deficiência mental” (Omote, 1980, p.14) dos no atendimento a famílias com pessoas com de-
que pode ser longa e trabalhosa, não só no que se ficiência.
refere à busca de assistência e tratamento específi- Quando o profissional que os pais procuram
cos de acordo com a deficiência apresentada, mas na não se mostra disponível para orientá-los de forma
procura do significado da condição de pais desses satisfatória, sanando ou amenizando suas angústias
filhos inesperados. frente ao desconhecido, podem recorrer a Deus, como
Como parte dessa complexa busca de signifi- “ser superior” a eles, detentor do saber e do poder
cações empreendida por essas pessoas, uma segun- para ajudá-los.
da categoria temática foi elaborada. Diante disso, permanece uma grande dúvida a
respeito das orientações profissionais, já que os pais
Acesso à possibilidade de ser-com-a-pessoa- parecem acreditar que elas deveriam ser acatadas
com-deficiência-mental como verdades indiscutíveis, mas acabam se confron-
tando com as suas próprias impressões sobre seus
As famílias verbalizam uma confiança grande filhos, que eles imaginam serem significativas. En-
na instituição, o que pode ser entendido como algo tretanto, ao mesmo tempo, não creem que o saber
de positivo. Entretanto, nas entrevistas os pais pare- advindo do convívio com o filho tenha valor frente
cem não ter uma comunicação satisfatória com os aos profissionais que detêm o conhecimento e a uma
profissionais encontrados até o momento, quer seja visão positivista de verdade.
em unidades de saúde ou em serviços educacionais.
Revelam procurar neles orientações, acreditando se- “Ele é igual aos outros filhos, se ele não fosse igual
rem eles os únicos detentores do saber acerca da con- aos outros, ele não brincava, ele solta pipa sozi-
dição de seus filhos, refletindo uma provável con- nho, ele anda de bicicleta, ele vai, pra longe ele
214 Luciana Gomes Almeida de Souza

não vai mas, mas assim no mercadinho ele com- mas “é um corpo” e um corpo que percebe e simulta-
pra, que nem os outros, pra mim ele é que nem os neamente é percebido, necessitando deixar de ser
outros.” (Mãe 4) compreendido apenas como coisa, como objeto. É a
partir do corpo próprio, do “corpo vivido” que o ho-
Somando-se ao discurso de que cuidar de um mem pode “estar no mundo” em relação com os ou-
filho com deficiência mental não caberia dentre as tros e com as coisas; “o corpo é nosso ancoradouro
competências dos pais, percebe-se que algumas idéias no mundo”... “quer se trate do corpo do outro ou de
a respeito do desenvolvimento dos filhos são colo- meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhe-
cadas em prática, permeadas por certo receio de de- cer o corpo humano se não vivê-lo, quer dizer, reto-
saprovação, mas indicando que as famílias, com o mar por minha conta o drama que o ultrapassa e
passar do tempo, adquirem um conhecimento pró- confundir-me com ele” (Merleau Ponty, 1994, p.
prio sobre a questão da deficiência dele e acumu- 122).
lam, internamente, noções a respeito do melhor cui- Nos encontros com os pais foi possível apre-
dado a ser buscado e de níveis de desenvolvimento ender que, quando explicitam desacreditar do diag-
almejados. nóstico, eles se referem a uma atitude de repúdio à
idéia do deficiente como ser incapaz e desvaloriza-
“Eu acho assim... pra mim tem várias dificulda- do que, por vezes, os acomete. Em seu cuidar do fi-
des, não dá pra lembrar tudo, mas, até um tempo lho com deficiência, perceberam no contato, no to-
atrás, nem comer ele comia... qualquer coisinha
que, na experiência corporal, que é possível ser-com-
que você fizesse assim, ele já deixava tudo e já ia
prestar atenção em outra coisa. Então, agora já tá
deficiência, que seus filhos são pessoas que têm va-
sendo bem melhor, eu não sei quando que eu vou lores e potencialidades, afastando-se do ideário so-
conseguir, fazer ele fazer isso sozinho, ou se eu cial, que concebe o homem perfeito, pleno, de forma
vou conseguir...” (Mãe 9) revestida de preconceitos. Seu cuidar do corpo e do
ser de seus filhos lhes transmite o saber de que há
Os pais expressam em seus relatos que bus- possibilidade de existência humana mesmo com a
cam e encontram suas próprias estratégias para con- deficiência, existência que pode ser valorizada e re-
seguir avanços no desenvolvimento dos filhos; pro- conhecida como capaz e repleta de potencialidades,
curam definir para si mesmos o significado de ter ainda que estas não correspondam ao ideal de ho-
um filho deficiente mental e algumas vezes duvidam mem perfeito do social.
do diagnóstico. Este saber dos pais sobre o que é Os movimentos reflexivos e de atitudes dos
melhor para seus filhos, não sendo eles especialistas pais, no entanto, parecem gerar angústias ao se de-
na questão da deficiência, viria da sua experiência pararem com questões que ainda representam tabus
com o ser-com-o-filho-com-deficiência-mental. Esta sociais como a sexualidade do deficiente.
experiência, que tem pouca relação com o saber ci-
entífico e técnico dos profissionais da escola especi- “Já pensei nisso bem né, mas num pode né? [fa-
alizada, ou da saúde, é um saber vivencial que elucida lando sobre a possibilidade de a filha se interes-
compreensões próprias desses pais que adquiriram sar por namorados] (...) Porque ela tem pobrema
né! (...) Tem dia que ela não dá trabaio né, não
um conhecimento específico da deficiência dos fi-
tenho a preocupação de sai com ela de casa né,
lhos, um conhecimento experiencial, não ser não vai atrás de namorado né, mas eu penso que
acessado por profissionais. já é difícil porque se acontece dela gosta de al-
Para explicitar essa possibilidade existencial, guém? Já fica difícil né, Graças a Deus, ela tá com
recorre-se às idéias de Merleau-Ponty (1994) sobre 23 anos e até agora, ela não me deu pobrema”
o corpo como expressão de sentido. Admite-se que (Mãe 7)
os relatos evidenciam percepções para além de in-
formações, ou seja, para uma vivência estabelecida Neste ponto, parece ser mais cômodo retornar
entre corpos, entre corpos de pais e filhos-com-defi- às concepções de pessoas com deficiência como eter-
ciência. Para o autor o homem não “tem um corpo” nas crianças, angelicais, já que, assim, são afastadas
O ser-com o filho com deficiência mental 215

preocupações com tais esferas da vida humana, como nibilidade interna em acolher a pessoa deficiente
a sexualidade e a independência. Há dificuldade em como sua responsabilidade, sujeito de seu afeto, o
abandonar totalmente as concepções preconceituosas que pôde ser elucidado no relato de um pai adotivo
sobre a deficiência, passando a concebê-la como que falou de um apego intenso por seu enteado, pro-
possibilidade da existência humana, pois, se isso piciando a ambos vivências de desenvolvimento ao
acontecer, aspectos comuns do ser humano terão que lidar com a questão da deficiência.
ser estendidos também a seus filhos. Nos âmbitos da
independência e sexualidade, os pais revelam ainda “No começo, a gente fica mais preso, eu não tinha
não estarem preparados para a compreensão do filho tanta liberdade, eu pensava mais pra falar um pou-
como plenamente humano, necessitando vê-lo como co com ele, depois foi acostumando, depois de en-
criança que não pode ser deixada só, sem condições trar no dia-a-dia, convivendo todo dia, aí foi fi-
de adquirir independência e sem interesses sexuais. cando mais... fui entendendo, foi entrando na mi-
nha cabeça esse pobrema dele, agora é assim, tem
A próxima categoria temática construída
hora que a gente fica nervoso, fala um pouco mais
explicita os vínculos estabelecidos entre pais e fi- com ele mas, depois pensa um pouco, e começa a
lhos-com-deficiência-mental e o reconhecimento de entender de novo as coisas. Mas eu acho que pra
sua importância no desenvolvimento dessas famíli- mim não é tão difícil quanto pra ela porque agora,
as. como te falei.”(Pai 9)

O apego ao filho como fonte de desenvolvi- No caso das vivências dessa família, o garoto
mento com deficiência mental percebe a disponibilidade
interna do pai adotivo em acolhê-lo como seu filho,
Os relatos sugerem um apego intenso entre preferindo essa relação à possibilidade de reatar o
pais e filhos, explicitado através de percepções e contato com o pai biológico. Este vínculo afetivo
comunicações bastante íntimas tanto por parte das estabelecido entre pais e filhos também se mostrou
mães como dos pais. Este tipo de comunicação pôde importante em momentos difíceis de busca por me-
se construir, a despeito do choque inicial provocado lhores recursos de tratamento ou reabilitação dos fi-
pela deficiência inesperada, com a vivência, o con- lhos, agindo como fonte de energia para continuar,
tato e a proximidade no cuidado cotidiano deste fi- enfrentando percalços significativos. O cuidado dos
lho que tornou possível a revelação da humanidade filhos propicia ainda outros ganhos, possibilitando
nele existente. reflexões, encontros, sentimentos, vivências
prazerosas.
“Aí eu comecei a perceber que ela é minha filha
sim que tem um pouco do meu jeito, do pai dela, e “Mas a gente, através dela... a gente não queria
acho que ela gosta de mim né, porque é diferente isso... mas através dela a gente conheceu muitas
quando eu chego e vejo que ela fica diferente, dá pessoas boas, que percebe que no meio de um tem-
os bracinhos aí... e foi mudando. Acho que foi eu po tão difícil, no meio de tanta violência, aparece
pensar que não adiantava eu ter revolta que era um monte de pessoa boa pra ajudar e as pessoas
eu que ia ter o serviço pra fazer mesmo...fui pe- começam a conhecer e aparece um monte. Conse-
gando em Deus e aí agora eu acho que melho- gue um serviço pra mim aqui ou ali e as pessoas co-
rou... porque não adiantava nada ninguém falar meçam a falar: ‘ah, você que é o pai daquela menina
não viu.. acho que precisou eu mudar meu pensa- assim e assim... eu sempre vejo a mãe dela na rua’ e
mento mesmo... senão ia ficar aí reclamando até então a gente fica alegre com isso”. (Pai 5)
hoje!” (Mãe 2)
Atrelados aos benefícios do vínculo estabele-
Através dos encontros realizados, em especí- cido com o filho com deficiência mental podem apa-
fico com a nona família, pode-se apreender que este recer aspectos que merecem atenção por sugerir que
vínculo não está relacionado exclusivamente aos la- os entrevistados não alcançaram um equilíbrio sau-
ços biológicos de parentesco, mas sim a uma dispo- dável entre disposição para cuidar e dificuldades no
216 Luciana Gomes Almeida de Souza

percurso; há relatos de pais com indícios de que ain- Enfatiza-se, assim, o fato de que a autentici-
da se encontram presos a sentimentos de culpa e des- dade não aponta somente para experiências positi-
conhecimento. vas e prazerosas, mas pode se remeter a dificuldades
de aceitação do filho, a experiências negativas no
“Nois cuida dela com o maior carinho, vo te contá cuidar, superproteção, infantilização, desde que es-
uma coisa, nunca dei um tapa nessa menina. (...) sas posturas e atitudes estejam acontecendo de for-
Não, os outro as vez, a gente batia, as vez, fazia ma envolvente e significativa para os pais. Ainda para
alguma arte, aí batia. O pai é a prioridade da casa, Heidegger (1981), a existência humana é permeada
e na época, tinha 6 em casa sortero, e os irmão, cê
por estados de autenticidade e inautenticidade que
sabe... agora ela eu sei como é que ela é, então se
ela quebra qualquer coisa, ela fica nervosa”. (Pai
se alternam, não sendo possível ao homem viver só
7) de maneira autêntica sua relação com o outro ou com
algo, já que haverá momentos em que, o referido
Apesar destes momentos em que ficam objeto ou pessoa será o foco principal de sua exis-
explicitadas angústias e conflitos no ser-com-o-fi- tência, e fases em que a atenção se voltará para ou-
lho-com-deficiência-mental, percebe-se que o vín- tras esferas da existência.
culo, o apego construído na relação pais-filho, pos- Uma segunda forma de cuidado, de acordo
sibilita a essas famílias a busca por novas significa- com Heidegger (1981), é solicitude, que seria o rela-
ções para sua existência e também por recursos para cionar-se com alguém de maneira envolvente e sig-
favorecer a reabilitação e desenvolvimento das nificativa, tendo como pressupostos a consideração
potencialidades dele. e a paciência para com o existir do outro. A solicitu-
Steiner (1978) diz que a ontologia de ainda se expressaria de duas maneiras: a que é
heideggeriana salienta a importância do cuidado en- caracterizada por um precipitar-se sobre o outro, fa-
quanto “zelo”, “preocupação”, que possibilitaria a zer tudo por ele, mimá-lo, manipulá-lo ainda que de
existência autêntica do ser humano, já que envolvi- forma sutil, e a que possibilita ao outro assumir seus
da com seu ser-no-mundo. Entretanto, este cuidado próprios caminhos, mesmo que com o amparo de al-
estaria mais ligado às possibilidades próximas do ser guém que lhe é solícito.
humano em realizar coisas e ocupar-se de seu cotidi- Partindo das reflexões deste autor, compreen-
ano, preocupar-se com os seus pertences e ativida- de-se que os pais revelaram todas estas formas de
des do cotidiano. cuidado para com seus filhos. O sorge (cuidado)
Ainda é importante ressaltar que, segundo essa quando consideram os filhos com deficiência como
perspectiva filosófica da existência, o homem pode constitutivos da própria existência deles como pais/
ser-com de maneira autêntica ou inautêntica. A au- mães, explicitando dificuldade em se diferenciar dele,
têntica propicia um verdadeiro envolvimento entre o com uma compreensão de que este filho, antes estra-
ser-no-mundo e seu objeto de atenção; já a inautêntica nho, passa agora a ser possível e, ainda mais, parte
de ser-com revela pouco envolvimento, como se hou- deles próprios.
vesse um não reconhecimento das significações e da Também se compreende que, por vezes, as ati-
dimensão existencial da pessoa ou do objeto com que tudes de solicitude desses pais tendem a acontecer
se relaciona. Com esses pressupostos pode-se pensar de forma a que eles se precipitem sobre esses filhos,
que, por vezes, os pais envolvem-se com os filhos de tomem seu lugar, já que explicitam uma intensa pre-
maneira autêntica, com atitudes e reflexões pertinen- ocupação com seu bem-estar e um desejo de defendê-
tes à condição deles e às relações de apego los dessa sociedade que é demasiado cruel para com
estabelecidas. No entanto, há que se notar que exis- as pessoas com deficiência, chegando a dificultar a
tem momentos em que os pais não estão acessando a aquisição de certas individualidades e habilidades
dimensão existencial do filho com deficiência, reme- que poderiam ser possíveis a despeito da deficiên-
tendo-se a ele como alguém que precisa de cuidados, cia. No entanto, ainda se pode compreender que es-
que ele não sabe exatamente a finalidade, ou que não ses pais almejam, e em muitos momentos conseguem,
lhe causa um envolvimento profundo. a solicitude para com os filhos que lhes proporciona
O ser-com o filho com deficiência mental 217

possibilidades de desenvolvimento enquanto seres um padrasto; os demais eram os pais biológicos.


humanos passíveis de aprendizado e individualida- Entretanto, este dado resultante da intencionalidade
des. investigativa do pesquisador não esgota (e tão pou-
Aprofundando um pouco mais no cuidado re- co se propõe a fazê-lo) a diversidade de vivências
alizado pelos pais que colaboraram com estes desses pais enquadrando-os em um mesmo estereó-
desvelamentos, neste momento cabe focalizar espe- tipo.
cificamente seus relatos.
“É! Dá pra agradar, dar comida né... só eu que
O pai participando do cuidado do filho com dou comida a ela, pra depois eu banhar.[(P): En-
deficiência tão você sempre ajuda?] Ajudo. Ela só come se
sou eu que dô! [(P): Ah é?] É! Eu dou banho e
Diversos autores (Costa, 1989; Dellabrida, tudo... tudo é eu que faço!” (pai 5)
1996; Dessen & Lewis, 1998; Dessen & Silva, 2000;
Lewis & Dessen, 1999; Omote, 1980) têm enfatizado Diante dessas peculiaridades no ser-pai de um
ser importante enfocar também a perspectiva dos pais filho com deficiência mental, ao trabalhar com os
quando houver interesse em estudar as relações fa- relatos das vivências dessas pessoas, ficou evidente
miliares, já que a mãe, por muitos anos, foi quase a um querer cuidar, participar, tão intenso quanto o
única porta voz de explicitações do papel do pai e esperado no relato das mães. Os pais encontrados
dos filhos nos mais diversos estudos referentes à fa- parecem se dispor, e inclusive fazer sacrifícios, para
mília. Assim sendo, muito dos significados atribuí- encontrar formas de lidar com os filhos com defici-
dos pelos pais ao seu papel têm ficado por vezes es- ência, seja ela rígida ou excessivamente permissiva,
quecidos, à medida em que eles não são procurados como maneira de implementar o cuidado e a educa-
para falar de sua experiência. ção que eles acreditam ser importante para os filhos.
Dessen e Lewis (1998) ressaltam que o que os
“Eu falei pra mãe dele, não bate, tem que dar uma
pesquisadores têm chamado de família depende mui-
dura, ser a mãe, tem que ser a mãe porque se ocê
to do referencial utilizado e do problema enfocado não por a mão no filho seu, outro de fora, ce dá
pelo estudo, já que há inúmeras maneiras de existir conselho... agora ela tem que educá porque ela t á
para o que se chama atualmente de ‘família’, consi- ali todo dia junto, eu fico só a noite. Domingo eu
derada como sistema adaptável nos dias de hoje e fico até meio-dia e depois eu saio... (pausa)... Não
não mais uma unidade estática formada pelo casal mas qualquer coisa que você vê que ele ta brabo,
de pais e seus filhos legítimos, vivendo juntos. A é só ce fala pra ele “vou contar pro seu pai hein”,
própria palavra ‘legítimo’, no que se refere a filhos, acabou, ele fica quietinho, não fala mais nada.
já foi retirada do atual Código Civil brasileiro. Entre Nunca bati nele de cinta...” (Pai 4)
as possibilidades esses autores falam de casais de
homossexuais, filhos adotados, unidades onde só um Para Dessen e Lewis (1998) “torna-se neces-
dos genitores está presente, casais amasiados, e ain- sário também compreender os vários níveis de
da o que tem se tornado cada vez mais comum, as envolvimento paternal, porque cada genitor oferece
famílias formadas por uniões sucessivas em que cada contribuições únicas para a criança no decorrer de
parceiro já traz consigo filhos de uniões anteriores seu desenvolvimento”. Com base no exposto até en-
para se juntarem à prole que poderá advir como con- tão sobre esses pais em seu sendo-com-o-filho-com
seqüência da união atual. Diante dessa situação, é deficiência mental, ressalta-se que, a seu modo, eles
possível que uma única criança tenha um pai bioló- conseguiram estar-com seus filhos, uns mais próxi-
gico, um pai econômico, que lhe provê o sustento e mos, expressando sentimentos de afeto e cuidado e
ainda um pai social, que é identificado por ela como outros, mais envolvidos com o cuidado, a partir de
tal. aspectos mais concretos como acompanhar a con-
Atentando para estas transformações, nota-se sultas e outros serviços e/ou proporcionar meios ne-
que entre os pais entrevistados, encontrou-se apenas cessários ao seu pleno desenvolvimento.
218 Luciana Gomes Almeida de Souza

Conforme já citado, Heidegger (1981) menci- dido como relevante, com aspectos significativos para
ona dois modos de ser-com, o autêntico e o ele, a mãe e o filho, sinalizando para o cuidado não
inautêntico. Com estes dizeres ele afirma que o ho- mais exclusivo da mulher, mas trazendo uma parti-
mem pode se envolver profundamente com uma ati- cipação cada vez maior e reflexão a respeito das ne-
vidade ou com alguém e também se relacionar de cessidades de todos os envolvidos.
modo a não formular significados relevantes. Com- É preciso atentar para as dificuldades dos pais
preende-se que os pais, parceiros deste estudo, en- e mães entrevistados em viver plenamente com seus
contraram modos de ser-com seus filhos com defici- filhos, face às carências de atendimentos e posturas
ência autênticos, que estão, é claro muito relaciona- mais humanizadoras em cidades de pequeno porte
dos com sua forma de compreender o mundo à sua como a que residem. Assim sendo, seria desejável
volta e suas relações com ele (por exemplo, suas que programas preventivos e/ou de redimensão de
concepções sobre deficiência e o papel de pai e de posturas preconceituosas fossem estruturados, de
mãe no cuidado de um filho). Existiram também modo que, os serviços de saúde, educação, trabalho
menções de relacionamentos inautênticos entre pais e lazer pudessem ser atingidos de forma mais con-
e filhos na investigação, mas o próprio Heidegger sistente.
(1981) salienta que não é possível haver estados de
autenticidade permanente ou totalmente ausente, à Referências Bibliográficas
medida em que estes dois estados de envolvimento
do ser-no-mundo estão em constante dialética. Amaral, L. (2001). A. Algumas reflexões a partir do
Acredita-se que os dados a respeito do papel filme “o oitavo dia”. Temas sobre desenvolvi-
do pai são importantes para pensar a sociedade em mento, 10(57), 38-44.
transformação e o pai diante da possibilidade de
Boemer, M.R. (1994). A condução de estudos se-
envolvimentos únicos e de extrema relevância para
gundo a metodologia de investigação
o desenvolvimento de seu filho, ponto que até há
fenomenológica. Revista Latino Americana de
pouco tempo se admitia ser responsabilidade apenas
Enfermagem, 2(1), 83-94.
da mãe.
Brunhara, F. & Petean, E.B.L. (1999). Mães e filhos
Considerações Finais especiais: reações, sentimentos e explicações à
deficiência da criança. Cadernos de Psicologia
Esta investigação permitiu apreender que os e Educação Paidéia, 9(16), 31-40.
pais, em seu ser-no-mundo e em seu sendo-com-o- Buscaglia, L. (1997). Os deficientes e seus pais. (R.
filho-com-deficiência-mental, vivem um vínculo in- Mendes, Trad.). Rio de Janeiro: Record.
tenso e significante com seu filho; o nascimento dele
e necessidade de assumir seus cuidados, leva-os a se Costa, T.P.G. (1989). Percepção de mães de crian-
abrirem para novas significações acerca do ser-com- ças deficientes mentais acerca das necessida-
deficiência, passando a reconhecer sua humanidade des especiais de seus filhos afetados e delas
e plenitude, uns mais rapidamente, outros levando próprias. Dissertação de Mestrado, Universida-
mais tempo. Apesar desses novos significados, os de Federal de São Carlos, São Carlos – SP.
pais parecem não ter finalizado sua busca por com- Dellabrida, A.M.O. (1996). O portador de deficiên-
preender a própria existência, já que eles se depa- cia mental profunda na concepção da mãe. Dis-
ram com questões conflituosas na educação da cri- sertação de Mestrado, Universidade Federal de
ança com deficiência para a sociedade, como o pos- São Carlos, São Carlos – SP.
sibilitar e incentivar sua independência, as posturas
acerca da sexualidade, refletindo que ainda há um Dessen, M.A. & Lewis, C. (1998). Como estudar a
longo caminho até o reconhecimento da pessoa com ‘família’ e o ‘pai’? Cadernos de Psicologia e
deficiência como ser humano pleno. Educação Paidéia, 8(14/15), 105-121.
O papel do pai nessa relação pode ser enten- Dessen, M.A. & Silva, N.L.P. (2000). Deficiência
O ser-com o filho com deficiência mental 219

mental e família: uma análise da produção ci- cortes de um mesmo tecido. Revista Brasileira
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