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Obras publicadas nesta colecção:

I - Fábulas, La Fontaine
2 - A Canção de Rolando
3 - Gargântua, Rabelais
GARGÂNTUA
RABELAIS

GARGÂNTUA

PUBLICAÇ0ES EUROPA-AMERICA
Título original: Gargantua

Tradução de Maria Gabriela de Bragança

Capa: estúdios P. E. A.

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Publicações Europa-América

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sulte prejuízo para o interesse pela obra. Os trans­
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Editor: Francisco Lyon de Castro


PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL

Edição n.� 15/003/4444

Execução técnica:
Gráfica Europam, Lda.,
Mira-Sintra- Mem Martins

Depósito legal n.' 187W 87


ÍNDICE

Pág

Prefácio de Victor Hugo . . .. . .. . .. ... . ... ..... . .. . .. . ... ... ... .. 9

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

A vida muito horrífica do grande Gargântua . . . . . . . . . . . . . . . . 25


PREFÁCIO

Rabelais é a Gália; e quem diz a Gália diz também a Gré­


cia, pois o sal ático e a graça gaulesa têm no fundo o mesmo sa­
bor, e se alguma coisa, à parte os edifícios, se assemelhava ao
Pireu, é La Rapée. Aristófanes encontra alguém maior do que
ele; Aristófanes é mau, Rabelais é bom. Rabelais defenderia
Sócrates. Na ordem dos grandes génios, Rabelais segue crono­
logicamente Dante; depois da fisionomia severa, a face trocis­
ta. Rabelais é a máscara formidável da comédia antiga separa­
da do proscénio grego, de bronze feito carne, doravante um ros­
to humano e vivo, continuando enorme e vindo rir de nós entre
nós e connosco. Dante e Rabelais vêm da escola dos frades
franciscanos, como mais tarde Voltaire dos jesuítas; Dante é o
luto, Rabelais a paródia, Voltaire a ironia; tudo isso sai da igre­
ja contra a igreja. Todo. o génio tem a sua invenção ou a sua
descoberta; Rabelais teve este achado: o ventre. A serpente está
no homem, é o intestino. Ela tenta, trai e castiga. O homem,
uno como espírito e complexo como homem, tem para a sua mis­
são terrestre três centros: o cérebro, o coração e o ventre; cada
um desses três centros é angusto por uma grande função que
lhe é própria; o cérebro tem o pensamento, o coração tem o
amor, o ventre tem a paternidade e a maternidade. O ventre po­
de ser trágico. Feri ve1ttrem, diz Agripina. Catarina Sforza,
ameaçada com a morte dos seus filhos feitos reféns, desnudou­
-se até ao umbigo nas ameias da cidadela de Rimini, e disse
ao inimigo: Aqui tenho com que fazer outros. Numa das con­
vulsões épicas de Paris, uma mulher do povo, de pé sobre uma
barricada, levantou as saias, mostrou ao exército o ventre nu e
gritou: Matai as vossas mães. Os soldados crivaram de balas
este ventre. O ventre tem o seu heroísmo, e todavia é dele que de­
correm, na vida a corrupção, e na arte a comédia. '0 peito, onde

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R,1BELAIS

se situa o coração, tem como extremidade a cabeça; o ventre


tem o falo . Sendo o centro da matéria, o ventre é a n ossa satisfa­
ção e o nosso perigo ; contém o apetite, a saciedade e a podridão.
As dedicações e as ternuras que através dele se apossam de n ó s
estão sujeitas a morrer; substitui-as o egoísm o. Facilmente as
entranhas se convertem em tripas. É tri ste que o hino possa avi­
nh ar-se e que a estrofe se deforme em cantoria. Isso resulta do
animal que há no homem. O ventre é essencialmente esse ani­
mal. A degradação parece ser a sua lei. A e scala da poesia sen­
sual tem, ao nível mais alto, o Cântico dos Cânticos e, ao nível
mais baixo, a graçola. O ventre-deus é Sileno; o ventre-impe­
rador é Vitélio ; o ventre-animal é o porco. U m dos horríveis
Ptolomeus chamava-se o Ventre, Physcon. O ventre é para a
humanidade um peso temível ; rompe a cada instante o equilí­
brio entre a alma e o corpo. Ench e a história. É respon sável por
quase todos o s crimes. É o odre dos vícios. É ele que pela volúp­
tia faz o sultão, e pela embriaguez faz o czar. É ele que mostra a
Tarquínio o leito de Lucrécia; é ele que acaba por fazer delibe­
rar sobre o molho de um rodovalho o senado que esperou Breno
e deslumbrou Jugurta. É ele que acon selh a ao libertino arrui­
nado que era César a passagem do Rubicão. Passar o Rubicão,
como isso permite pagar as dívidas, ter belas mulheres, comer
bons jantare s ! E os soldados roman os entram em Roma com e s­
te brado : Urbani, claudite uxores; moechum calv um adduci­
mus. O apetite deprava a inteligência. A volúpia substitui a
vontade. No princípio, como sempre, há pouca nobreza. É a or­
gia. Há uma diferença entre ficar toldado e bêbado. D epois a or­
gia degenera em comezaina. Onde estava Salomão surge Ram­
ponneau. O homem é uma barrica. Um dilúvio interior de
ideias tenebrosas submerge o pen samento ; a con sciência afoga­
da já não con segue fazer sinal à alma embriagada. E stá con su­
mado o embrutecimento. Já n em é cínico, é vazio e estúpido.
Diógene s desaparece ; só fica o tonel. Começa-se com Alcibía­
des e acaba-se com Trimalcião. O quadro está completo . Não
há mais nada, n em dignidade, nem pudor, nem h onra, nem
virtude , n em espírito ; o gozo animal nu e cru, a impureza nua e
crua. O pensamento dissolve-se n a saciedade; o con sumo car­
nal absorve tudo ; nada subsiste da grande criatura soberana
habituada pela alma; seja-nos permitida a expres são: o ventre
come o homem. Estado final de todas as sociedades onde o
ideal se eclipsa. E isso passa por prosperidade e ch ama-se en-

10
GARGÍINTUA

grandecer. Às vezes até os filósofos concorrem estouvadamen­


te para esse abaixamento, pondo nas doutrinas o materialismo
que está nas consciências. Esta redução do homem ao animal é
uma grande miséria. O seu primeiro fruto é a torpeza que se tor­
na visível por todos os lados e até nos cumes da sociedade: no
juiz venal) no padre simoníaco, no soldado condottiere. Leis,
costumes e crenças são estrumeira. Totus homo fit excremen­
tum. No século XVI, todas as instituições do passado estão redu­
zidas a isso; Rabelais toma conta dessa situação, constata-a e
levanta o auto desse ventre que é o mundo. A civilização não é
mais que uma massa, a ciência é matéria, a religião engor­
dou, a feudalidade digere, a realeza está obesa. Quem é Henri­
que VIII? Uma pança. Roma é uma velha gorda e farta. É isso
saúde? É isso doença? É talvez gordura, é talvez hidropisia.
Questão a esclarecer. Rabelais, médico e cura, toma o pulso ao
papado. Abana a cabeça e desata a rir. Foi porque encontrou a
vida? Não, porque sentiu a morte. Com efeito, o papado expira.
Enquanto Lutero reforma, Rabelais faz chacota. Qual vai mais
direito ao fim? Rabelais troça do monge, do bispo, do papa; riso
feito de estertor. Este guizo toca a finados. Então? Julguei que
era uma patuscada e é uma agonia; uma pessoa pode enganar­
-se quanto ao soluço. Riamos porém. A morte está à mesa. A úl­
tima gota brinda com o último suspiro. Uma agonia no meio da
paródia, esplêndida coisa. O cólon intestinal é rei. Todo este
velho mundo festeja e rebenta. E Rabelais entroniza uma di­
nastia de ventres: Grandgousier, Pantagruel e Gargântua. Ra­
belais. é o Ésquilo da comezaina, 6 que é grande, se nos lembrar­
mos que comer é devorar. Há um abismo no comilão. Comei,
pois, senhores, e bebei, e acabai. Viver é uma canção cujo re­
frão é morrer. Há quem escave sob o género humano deprava­
do temíveis calabouços; em matéria de subterrâneos, o grande
Rabelais contenta-se com a cave. O universo que Dante punha
no inferno, Rabelais mete-<> dentro dum casco. O seu livro não
é outra coisa. Os sete círculos de Alighieri abarrotam e encer­
ram este prodigioso tonel. Olhai para dentro do monstruoso cas­
co, e aí os vereis. Em Rabelais chamam-se: Preguiça, Orgu­
lho, Inveja, Avareza, Cólera. Luxúria. Gula: e é assim que de
repente vos encontrareis com o temível folgazão. E onde? Na
igreja. Os sete pecados são a prédica deste cura. Rabelais é pa­
dre, e o correctivo bem ordenado começa por si próprio. É , pois,
no clero que bate primeiro. O que é ser da casa! O papado morre

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RABELAJS

de indigestão, Rabelais faz-lhe uma farsa. Farsa de titã. A ale­


gria pantagruélica não é menos grandiosa que a alegria jupite­
riana. Maxila contra maxila; a maxila monárquica e sacer­
dotal come; a maxila rabelaisiana ri. Quem tiver lido Rabe­
lais terá sempre diante dos olhos esta confrontação severa: a
máscara da Teocracia fixamente contemplada pela máscara
da Comédia.

VICTOR HUGO
(Extraído de William Shakespeare)

12
INTRODUÇÃ O

RABELAIS NO TEMPO DE GARGÂNTUA

Desde o dia de Todos-os-Santos de 1 532, Rabelais é médico­


-chefe do Hospital de Notre-Dame-de-Pitié de Pont du Rho­
qe, em Lyon : funções pouco lucrativas (40 libras por ano) mas
que atestam a reputação médica de Rabelais, embora n ão fi­
gure no catálogo de Symph orien Champier. As suas primeiras
publicações referem-se à medicina (Lettres médicales de Ma­
nardi, Aforismos de Hipócrates) ou à sátira humanista (pseudo­
testamento de Cuspidius). Mas o seu verdadeiro génio surge
com Pantagruel, publicado para a primeira feira de Novembro
de 1 532, desopressão pelo riso ante a estupidez humana. No ras­
to de Erasmo, mas de modo men os con certado e mais j ovial, Ra­
belais contribui para o enterro da tradição escolástica e a res­
tauração da idade áurea das Humanidades. Tem relaçõe s com
humanistas como Hilaire Bertoul, antigo secretário de Eras­
mo. Antoine du Saix, culto prelado, Salmon Macrin , poeta neo­
latino, Clément Marot e outros. Irá ele descansar à sombra do
êxito do seu romance, con sagrado pela con denação da Sorbon­
ne (1 533) por obscenidade? Pelo contrário, persevera e, pegando
na gen ealogia do seu h erói de trás para a frente, conta as aven­
turas do pai deste, Gargântua, bem conhecido do público desde o
aparecimento do folheto de cordel Les grandes et inestimables
Cronicques de l'énorme géant Gargantua (1532).

Vida em Chion e em Roma

Nem o cargo n o Hospital nem as suas diversas publicações


fazem de Rabelais um sedentário; em 1532, foi revisitar a sua
terra de vacas, com a Deviniêre natal e os burgos vizinhos, Gra­
vot, Chavigny, Cinays. Escutou as lamentações do seu velho

13
RIIBEL!11S

pai, Antoine Rabelais, em demanda com o vizinho e antigo


amigo, Gaucher de Saint-Marthe, senh or de Lern é , médico da
abadessa de Fontevrault. A chicana transformou em inferno o
paraíso rústico. Antoine já não pode, como o bom Gran dgou­
sier, cozer as suas castanh a s no átrio com toda a tranquilida­
de. Terá Françoise posto os seus conhecimentos jurídicos ao
serviço do pai? Não se sabe, mas fará melhor, poi s , no seu ro­
mance, o irascível Gaucher tornar-se-á o arrogante Picroco­
le, finalmente vencido e refugiado em Lyon, pobre j ornaleiro
colérico, à espera de que as galinhas tivessem dentes. O riso
consolará das maçadas do processo. · ·

Em 1 534, nova viagem, realização do sonho d� todos os hu­


mani stas: Rabelais acompanh a a Roma, como médico parti­
cular, Jean du Bell ay , bispo de Paris, enviado ao Papa por Fran­
cisco I, para o desligar da aliança com Carlos V. Inicia-se Ra­
belais, como o poeta Joachim du Bellay, nos jogos subtis da cor­
te rom ana? A sua epístola dedicatória da Topografia romana
de Marliani, dirigida a Jean du Bellay (31 de Agosto de 1 534), é
sobretudo o reflexo do seu entusiasmo pelos vestígios da An­
tiguidade, e da sua curiosidade científica: O que mais tenho
desejado desde que possuo algum sentimento do progresso das
belas-artes, é percorrer a Itália e visitar Roma, cabeça do mun­
do. . . Muito antes de chegarmos a Roma, e u concebera em espí­
rito e em pensamento uma ideia das coisas cujo desejo me atraí­
ra a tal cidade. Primeiro, resolvera visitar os homens dou­
tos ... Depois (o que já pertence à minha arte), queria ver as
plantas, os animais e certos medicamentos. Enfim, prometia a
mim próprio descrever o aspecto da cidade socorrendo-me da
pena e do lápis . (A. Lefranc, tradução da epístola em latim.)
. .

Mais tarde, Rabelais vol tará algumas vezes a Itália, no­


meadamente em 1535-1536, mas as preocupações do monge em
rompimento com o claustro passarão à frente das alegrias do ·

humanista.

Genealogia às avessas

Se a edição colectiva de 1542 põe à cabeça o Gargântua, or­


dem lógica, uma vez que o seu herói é o pai de Pantagruel , de
facto, a publicação do Pantagruel foi anterior à de Gargântua,
pois a sua primeira edição é de 1532, ao passo que a primeira,
datada, de Gargântua, é de 1535, precedida, é certo, por uma e di­
ção desprovida de data, e sem dúvida um ano anterior. Na or-

14
Gi\RGÂNTUA

dem da criação literária, o filho nasceu por conseguinte antes


do pai. A. Lefranc estabeleceu esta anterioridade de maneira
muito comprovativa, baseando-se nas próprias confidências
de Rabelais nos dois romances: este qualifica como primeiro li­
vro o Pantagruel (cap. XXXIV) e, logo no primeiro capítulo do
Gargântua, remete para o Pantagruel de modo a desculpar-se
de não enumerar todos os antepassados do seu gigante: Remeto­
-vos para a grande crónica pantagruelina a fim de reconhecer­
des a genealogia e a antiguidade donde nos veio Gargântua.. .

Para aliciar o leitor, o subtítulo declara que o romance está


cheio de pantagruelismo, garantindo assim o parentesco espiri­
tual das duas obras. Enfim, Frei Jean, o monge frascário, de
goela aberta, não aparece no Pantagruel, e figura no Terceiro e
Quarto Livro, posterior ao Gargântua. A interpretação do texto
confirma as indicações dadas pela cronologia das edições.

«Gargântua» e os teólogos

Se a anterioridade de Gargântua é um facto adquirido, ain�


da nos perdemos em hipóteses sobre o período de composição e a
data da publicação: uma e outra precedem, sem dúvida, de perto
o Affaire des Placards (17-18 de Outubro de 1534). No momento
da condenação do Pantagruel (1533) pela Sorbonne, o governo
real é favorável aos reformadores; Francisco I manda riscar
de uma lista de obras proibidas o Miroir de l'âme pécheresse da
sua irmã Margarida de Navarra; Beda, director do colégio de
Montaigu, esse colégio de piolheira, defensor da tradição e, por
isso mesmo, cabeça de turco dos teólogos humanistas, é exila­
do; Gérard Roussel, convertido ao Evangelismo, prega no Lou­
vre. Mas o conflito reacende-se: um discurso imprudente do
reitor da Universidade, Nicolas Cop, suscita a repressão contra
os suspeitos do luteranismo: é a vez de Gérard Roussel e os leito­
res do College des Trais Langues serem encarcerados. Entre­
tanto, Francisco I, que negoceia com os protestantes alemães,
dá-lhes ordem de soltura, e durante alguns meses o Evangelis­
mo leva a melhor. A afixação de panfletos contra a missa (17-
-18 de Outubro de 1534) inverte a situação: o rei, ultrajado na
sua autoridade, trata os reformadores como súbditos sedicio­
sos, não distinguindo os evangelistas dos luteranos: sucedem­
-se as detenções, os exílios, os suplícios, até Fevereiro de 1535,
data em que Francisco -I começa uma reaproximação com os Es­
tados alemães.

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RABELAJS

Neste imbróglio político-teológico, que papel teria Gargân­


tua? A sátira dos beatos, hipócritas e falsos, do culto dos santos,
dos «perdõeS>> é já muito viva no Pantagruel, mas não ultrapas­
sa os gracejos tradicionais e os ataques dos humanistas, par­
ticularmente de Erasmo nos seus Colóquios e no Elogio da Lou­
cura. No Gargântua, a crítica às instituições humanas alar�
ga-se e aprofunda-se. Reencontram-se os gracejos sobre os
nomes e a influência dos santos (caps. XVII, XXVII), sobre a água
benta (cap. Xllll), as relíquias e as peregrinações (cap. XLV),
mas mais apoiadas e mais concertadas. No capítulo VI, Garga­
melle, prestes a parir, prefere ouvir tais textos do Evangelho a
ouvir a vida de Santa Margarida.. . fazendo-se assim intérpre­
te do pensamento de Rabelais. Entre as práticas ridículas ensi­
nadas pelos preceptores góticos, Mestre Tubal Holofernes e Jobe­
lin Bridé, figuram com relevo as vinte e seis ou trinta missas
quotidianas, com as ladainhas de horas e orações maquinal­
mente resmoneadas (cap. XXI). Em contrapartida, sob a direc­
ção de Ponócrates, nenhuma cerimónia na missa, mas antes a
leitura matinal de alguma página das Divinas Escrituras
(cap. XXIII). No capítulo XLV, exorta os peregrinos a não acredi­
tarem nos falsos profetas, que imaginam os santos capazes de
espalhar doenças para terem depois o prazer de curá-las. As re­
gras monásticas e a vida dos religiosos são cruelmente escar­
necidas nos capítulos XXVII, XL (Porque fugiram os frades do
mundo. . .) e Xll (Como o monge pôs Gargântua a dormir, e das
suas Horas e Breviário). Mais ainda, alusões ao dogma da Gra­
ça (caps. XXIX e XL), ao bom doutor evangélico e ao bom apóstolo
São Paulo testemunham uma simpatia declarada pelo regresso
à simplicidade evangélica, liberta das superstições e costumes
a·cumulados ao longo dos séculos. Poder-se-á imagin,ar uma
tomada de posição tão manifesta em plena repressão? E presu­
mível que a composição do romance satírico tenha ocorrido du­
rante uma acalmia, em que o rei de França e o bom gigante
Gargântua podiam entender-se bem. Em 1535, Rabelais aban­
dona bruscamente as suas funções no hospital; só lhe encontra­
mos o rasto passados vários meses, no séquito de Jean du Bel­
lay, promovido a cardeal; hábil manobra: Rabelais distancia­
-se da Sorbonne, mais intolerante que Roma, e obtém a sua
reintegração na ordem dos beneditinos. Foi isso uma moeda de
troca? A edição de 1552 de Gargântua, sem renegar as posições
fundamentais, atenua as audácias verbais: os teólogos trans­
formam-se em sofistas, o que não engana os leitores adverti­
dos, mas salva a face ante os profanos.

16
GARGÂNTUA

De Chinon ao reino dos Canarres

Na divertida mi scelânia das paródias aos romances de ca­


valaria franceses ou italianos, temas extraídos das Grandes
Crónicas, recordações dos anos de convento, dos processos fa­
miliares, dos conflito s entre Reformadores e Tradicionalis­
tas, os h eróis de Rabelais, quer sej am gigantes ou simples
homens, ora vivem na província natal , à beira do Loire, ora
evocam terras fabulosas, Utopia e o reino dos Canarres, para lá
dos mares (caps. xrn, XXI, L). Este misto de experiências e
sonhos, de real e irreal, que por vezes surpreende o leitor dos
nossos dias, não espantava o s contemporân eos de Rabelais. O
culto da razão não banira da imagin ação popular as fadas, os
magos, o s gigantes e os mon stros. Quantos acreditavam, como
o Sgan arelle de Moliere, tão firmemente no lobisomem e no fra­
de corcunda como no diabo?
Os roman ces de cavalaria forn ecem o plano geral: o nasci­
mento do gigante, as suas «Infân cias», a sua «Instituição>>, e
enfim as suas proezas guerreiras. O s contistas italiano s intro­
duzem no un iverso dos gigan tes comparsas de dimen sões
humanas e nomes simbólicos, processo que foi utilizado por Ra­
belais no Pantagruel e no Gangântua: Epi stémon representa a
sabedoria, Eustenes a força, Ponocrátes o ardor intelectual, Pi­
crocole o bilioso arrebatado, etc. É inútil traduzir os nomes dos
capitães Spadassin e Merdaille. De origem grega, italiana ou
popular, esta onom ástica é j ustificada pelo comportamento das
personagens. Que haverá de espantoso no facto de Gin asta, o es­
cudeiro de Gargântua, deixar o capitão Tripet estupefacto com
um deslumbrante volteio (cap. XXXV)?
As Grandes Crónicas transmitem a Rabelais a sua persona­
gem central , Gargântua, cuja estatura gigantesca, bulimia,
bom humor e bonomia já eram familiares ao público. O nome,
que evoca uma goela mon struosa, capaz de engolir seis peregri­
nos como caracóis numa salada (cap. XXXVIII), figura desde
1471 num Registo de Jehan Georges, cura de Hérignat, cobra­
dor do bispo de Limoges, como alcunha de um familiar do prela­
do. Era, sem dúvida, tão antigo como o do diabrete Pantagruel,
minúsculo antepassado do primeiro gigante de Rabelai s. Al­
guns dos mais desopilantes epi sódi os derivam igualmente do
livrinho popul ar: o vestuário de Gargântua (cap. Vlli), a ori­
gem da planície de Beauce, que seria uma floresta abatida pelo
rabo da égua de Gargântua, com maior rapidez do que se fosse

17
RABELAJS

um bulldozer (cap. XVI), os sinos de Notre Dame servindo de


guizos à dita égua (cap. XVll).
Mas no meio desta fantasia carnavalesca, onde se confun­
dem lugares e tempos, a actualidade da crónica chinonesa dá o
seu sabor rústico.
Desde sempre os críticos notaram que a guerra picrocolina
se desenrolava nas imediações próximas da Deviniere, num
perímetro limi.tado por Lerné, Roche-Clermault, Vaugaudry,
La Vauguyon e o vau de Veede, localidades e povoados que ain­
da hoje existem; é possível seguir num mapa os movimentos
das tropas de Gargântua e do seu adversário. Mas seriam as re­
ferências à t & pografia chinonesa um artifício do contista dese­
joso de ilustrar a sua terra natal, tornando-a tão famosa como
Tróia, Roma ou Roncesvales? Abel Lefranc e os seus discí­
pulos conseguiram estabelecer, graças a minuciosas inves­
tigações nos arquivos locais, não só que o cenário da guerra
picrocolina era real mas também que esta era a transposição
do processo que opôs Gaucher de Sainte-Marthe a Antoine Rabe­
lais e à confederação dos mercadores e transportadores flu­
viais. A identificação de determinados actores parece estabele­
cida, em particular de Ulrich Gallet,. mensageiro de Grandgou­
sier junto de Picrocole (cap. XXX) com Jehan Gallet, advogado
do rei em Chinon, parente dos Rabelais, e defensor da confede­
ração no Paralamento de Paris. Marquet, o grande bastonário
da confraria dos <<(ouaciers»(*) de Lerné, que, com as suas bru­
talidades, desencadeia as hostilidades, evoca o sogro de Gau­
cher. Toda a região de Chinon devia estar em ebulição, pois o
diferendo opunha um conjunto de famílias e aldeias. A famí­
lia Sainte-Marth e reconheceu-se em Picrocole, e o seu ódio
contra Rabelais por certo que não se aplacou com esta imortali­
zação grotesca. O panfleto de Gabriel de Puy-Herbault, religio­
so da abadia de Fontevrault (onde Gaucher era médico), contra
o contista qualificado como ateu e epicurista (Theotim us, 1 549),
não será uma remota sequela do processo e uma réplica ao Gar­
gântua ? Em todo o caso, Charles de Saint-Marthe, segundo fi­
lho de Gaucher, e aliás humanista e poeta, achou o panfleto mui­
to a seu gosto.
A guerra picrocolina aparece, pois, como o disfarce épico da
crónica chinonesa, onde a família Rabelais tivera um papel
preponderante.

1 Fouace, uma csp6cic de bolacha. (N. da T.)

18
GIIRGÂNTUII

Deveremos no entanto procurar fundamentos de realidade


em càda episódio, em cada personagem? Isso seria negar toda
a invenção, toda a fantasia ao génio criador do romancista. Se­
ria o mesmo que crer que o Lutrin é a história exacta do conflito
entre os cantores e as cantoras do coro da Sainte-Chapelle. Ra­
belais parte do real, mas engrandece, tran sforma e generaliza
essa verdade de facto para lhe dar um significado simbólico de
dimensões universais. Evade-se da região de Chinon para so­
nhar com as ilhas de além-mar, como o reino de Canarre
(cap. L), ou da Utopia, o país de parte nenhuma.

O humanista perante a pedagogia e a política

Entre mentirolas e obscenidades, a carta de Gargântua


(Pantagruel, cap. VIII) surpreende pela sua gravidade: expri­
me a satisfação de Rabelais perante o progresso das luzes e a
sua confiança no futuro. Mas isso é apenas um esboço. Em com­
pensação, o Gargântua desenvolve, se não um sistema, ao me­
nos uma atitude racional perante a vida.
As críticas esboçadas contra o pedantismo e a ignorância
no Pantagruel (cap. VII, os belos livros da livraria de São Vítor,
e cap. VIII, a Carta de Gargântua) tomam forma em vários capí­
tulos do Gargântua, que acusam sem nenhuma ambiguidade o
espírito, os programas e os métodos da escolástica (caps. XIV,
XV, XXI). Sujeito aos preceptores góticos, Tubal Holofernes e Jo­
belin Bridé, Gargântua, não obstante as suas felizes aptidões
naturais, não pode deixar de ficar louco, parvo, todo sonhador e
atoleimado.
Ponócrates, pelo contrário, faz do seu aluno um poço de ciên­
cia, ao mesmo tempo que lhe cuida do corpo. Graças a um ho­
rário racional, permite-lh e abordar todos os ramos do saber,
sem nunca perder o contacto com a Natureza, que é o livro su­
premo. Exercícios físicos metódicos completam a instrução
(caps. xxnr, XXIV). Em vez do cavaleiro maciço e obtuso, forma
um príncipe sábio e sensato, de corpo flexível, resistente e ágil.
No primeiro romance, o rei só aparece como ch efe guerrei­
ro: Pantagruel vence e faz prisioneiro o seu adversário, o rei
Anarche; a sorte deste é decidida em poucas páginas. O Gar­
gântua põe em cena três tipos de soberanos, cujo carácter e
cujos actos são amplamente descritos. O irascível Picrocole é o
tipo do mau rei: ambicioso, brutal, belicoso, crédulo, obedece
sem reflectir às sugestões dos maus con selheiros e já se julga
19
RABELAIS

senhor do mundo (cap. XXXIII). Arrastado pela sua falta de


comedimento, esquece todos os sentimentos humanos: a antiga
amizade com Grandgousier, o respeito devido aos embaixado­
res, a obediência aos preceitos do cristianismo. O seu castigo é
muito mais motivado do que o de Anarca.
Grandgousier representa um velho soberano bonacheirão,
consciencioso e pacífico. Está tão certo do seu direito que, a prin­
cípio, não quer acreditar na agressão de Picrocole; tão desejoso
da paz, que propõe o seu restabelecimento, mesmo à custa de con­
cessões exorbitantes (caps. XXVIII, XXX, XXXl); tão apegado aos
seus súbditos, que considera um dever protegê-los à custa do
seu repouso: A razão assim o quer, pois o seu labor me mantém
e o seu suor me alimenta, a mim, a meus filhos e à minha famí­
lia (cap. XXVIII). Vitorioso, manda Toucquedillon ao encontro
do seu rei com uma mensagem de paz. Toda a sua política se
conforma com as lições do Evangelho: Já não estamos em tem­
po de assim conquistar os reinos com prejuízo do nosso próxi­
mo e irmão cristão. Essa imitação dos antigos Hércules, Ale­
xandres, Aníbais, Cipiões, Césares e outros tais é contrária ao
preceito do Evangelho, que nos manda guardar, salvar, reger e
administrar cada um dos nossos países e terras, não invadir
hostilmente os outros . . . (cap. XLVI).
Na força da vida, Gargântua é menos meditativo e devoto
do que o seu bondoso pai. Quando Eudémon, espantado com a
«honestidade•• de frei Jean, pergunta por que razão fugiram os
monges do mundo, Gargântua lança uma violenta sátira con­
tra esses comedores de pecados, tão inúteis como os macacos:
De igual modo um monge (falo desses monges ociosos e desocu­
pados) não lavra como o camponês, não guarda o país como o ho­
mem de guerra, não cura (os enfermos) como o médico, não pre­
ga nem doutrina como o bom doutor evangélico e pedagogo . . .

(cap. Chocado com esta diatribe, Grandgousier intervém:


XL).
Talvez, mas. . . rezam por nós a Deus. Gargântua varre a objec­
ção e redobra de veemência: Nada menos. . . É verdade que mo­
lestam a vizinhança toda à força de tilintar as suas campai­
nhas. . . resmoneiam à grande lendas e salmos que não enten­
dem; recitam muitos padres-nossos entremeados de longas
ave-marias sem pensar e sem entender nada dessas orações, e
a isso chamo eu fazer troça de Deus, e não oração . . . (Ibid. ) Ma­
nifestamente, Rabelais traça aqui o retrato do rei segundo os
seus votos: um soberano liberto das tradições escolásticas, ca­
paz de exterminar os sorbonagros (cap. XX), e de encorajar o
Ewmgelismo.

20
GARGÂNTUA

Este antepassado dos <<déspotas esclarecidos>> é tão hábil es­


tratego como rude combatente. As vitórias de Pantagruel são
proezas excepcionais ou enormes farsas; as de Gargântua exi­
gem força (cap. XXXVI) e inteligência (cap. XLVIIT), a tal ponto
que a sua táctica contra Picrocole fez supor que Rabelais fre­
quentara a Escola de Guerra das nossos dias!
Após a vitória, mostra-se tão generoso e prudente como
Grandgousier, perdoando aos vencidos, neutralizando os res­
ponsáveis pela guerra e preparando uma paz duradoura com
uma reconciliação geral; a sua arenga aos vencidos é um belo
exemplo de discurso político (L). Ainda neste ponto, o Gargân­
tua reflecte as ideias comuns a Erasmo, Guillaume Budé e mui­
tos outros humanistas sobre os deveres e as responsabilidades
dos reis, sobre a guerra e a paz numa civilização cristã. Pode­
-se, sem cair no exagero, extrair n ão só uma pedagogia mas
uma política e uma teologia destas alegres e novas crónicas. O
Prólogo do autor não enganava ao garantir que a droga dentro
contida tem muito mais valor do que a caixa prometia.

A arte e a vida

Mas, em Rabelais, as doutrinas nunca murcham em con­


ceitos; é a própria vida que impõe as suas leis e rebenta por to­
dos os lados em jactos sumarentos como a seiva da vinha na
Primavera. Disso é testemunha a fala dos bem bebidos (cap.
V), onde cada personagem actua e fala de acordo com o seu tem­
peramento, idade e condição. Disso é testemunha frei Jean, de
goela aberta. . . avantajado de nariz, tão lesto no serviço do vi­
nho como no serviço divino, que, enquanto os seus confrades re­
citam litanias, extermina com o báculo da sua cruz os 13 622
inimigos que haviam invadido o recinto de Seuilly. Ignorante
sem escrúpulos, crente sem devoção, amador de histórias bre­
jeiras e de boa comida, intrépido combatente, frei Jean é um
compincha tão espantoso como Panúrgio, mas mais, dinâmico
e mais aberto. Cabe-lhe o direito de organizar a seu gosto o anti­
convento de Thele nie.
A abadia de Theleme é o fecho da abóbada de todo o roman­
ce; é o remate dos estudos renovados, a recompensa pacífica
das provações sofridas durante a guerra, o sonh o de uma exis­
tência que concilia as alegrias naturais e os requintados praze­
res da sociedade. P. Villey vê nela o mito principal do Gargân­
tua, o mais rico em substância . . . Opõe ao sonho de ascetismo

21
RABELAJS

da Idade Média, simbolizado pelo claustro. . . o ideal novo de vi­


da livre, luxuosa e sábia. Theleme é seguramente o inverso da
vida monástica, pois não há outra regra além do prazer, nenhu­
ma clausura, nenhuma separação dos sexos, e os thelemitas,
longe de pronunciar votos perpétuos, deixam a abadia para ca­
sarem de acordo com os seus sentimentos. Antes de Rabelais,
Erasmo, nos seus Colóquios e no Elogio da Loucura, mostrara­
-se muito mais violento contra as regras conventuais; por seu
lado, um franciscano de Avignon, François Lambert, imagi­
nara uma abadia mista, onde se aproximavam os sexos em vez
de se separarem (Humanisme e Renaissance, tomo XI, 1 949).
Mas a novidade é construir um convento que seja um palácio
como os de Chantilly ou de Bonnivet, é pôr esses pseudo-religio­
sos e religiosas a viver como as damas e os senhores da' corte.
A ausência de coacção é corrigida pelo berço, as aptidões natu­
rais e a educação. Mais que. uma oposição sistemática à tradi­
ção monástica, a abadia de Theleme é um encantador quadro
do Renascimento. . . Os luteranos e os calvinistas não teriam
admitido a liberdade de Theleme (Morçay ).
Do Pantagruel ao Gargântua, não só o pensamento de Rabe­
lais cresceu em vigor e coesão, mas também a sua arte em ma­
turidade. Acabaram-se as acumulações de obscenidades gra­
tuitas (no cap. XV, por exemplo), ou as invenções desmesuradas
(caps. XI, XII, XIII), ou as mímicas h erméticas (cap. XIX), ou as di­
gressões intempestivas. Sem se cingir a uma composição rígi­
da que não se adaptava nem ao seu temperamento nem às mo­
das literárias da época, Rabelais organizou os episódios do seu
romance com ordem e clareza: precedida (ou pouco menos) por
uma fantasia poética, Les Franfeluches antidotées (cap. II), e se­
guida pelo Enigme en prophetie (cap. LVIII), poema de Saint-Ge­
lais, a vida de Gargântua desenrola-se com relativa verosimi­
lhança: nascimento, educação, façanhas guerreiras, recom­
pensa dos vencedores. O enigma surpreende o gosto actual e dá
que pensar aos críticos, mas era um jogo de espírito muito apre­
ciado no século XVI. Para espicaçar a curiosidade dos leitores,
Rabelais imaginou duas soluções contraditórias: cada um que
escolh a segundo as suas preferênci as a de Gargântua ou a de
Frei Jean. Mas há muitas razões para admitir que a interpreta­
ção do monge é uma maneira de se furtar à condenação dos fal­
sos beatos depois de ter troçado deles uma última vez.
Neste segundo volume, conclui Morçay, Rabelais deu o me­
lhor de si, um riso são, mais gaulês que ateniense, um realis­
mo sólido, um espírito satírico onde há sobretudo alegria, uma

22
CARCÂNTUA

arte superior de contista e de retratista, uma filosofia feita de


epicurismo sorridente e moderado. Não há entremezes e os ele­
mentos variados que compõem esta epopeia em prosa fundem­
-se numa unidade perfeita. O Gargântua é a obra-prima de
Rabelais.
P. MICHEL

O presente texto

Existe na Biblioteca Nacional(*) uma edição do Gargân­


tua, sem data, mas provavelmente de 1 534; duas outras, publica­
das por Juste, em Lyon, sucederam-lhe em 1535 e 1537, depois
uma quarta, em Paris, igualmente de 1537. A quinta edição,
publicada em Lyon, por Juste, em 1542, foi a última revista pelo
autor, pelo que, como é costume das edições críticas, nomeada­
mente de A. Lefranc na sua edição magistral, foi o texto que se­
guimos.
Uma sexta edição foi publicada em Lyon em 1 542 pelo huma­
nista Etienne Dolet, sem ter em conta as modificações introdu­
zidas pelo autor e sem o seu consentimento: daí o desagrado de
Rabelais e o seu rompimento com Dolet.
Outras edições, derivadas quer da de Rabelais (1542) quer
da de Dolet, surgiram em Lyon, Val�nce e Paris.
As diferenças entre o texto de 1534-1535 e o de 1542 consis­
tem sobretudo em atenuações formais da sátira contra os teó­
logos, que se convertem em ••sofistas». São mencionadas nas
variantes. Destas, apenas mantivemos as que apresentam
uma ligeira diferença de sentido. Em compensação, todas as
notas susceptíveis de facilitar a compreensão do texto foram
não só mantidas mas assinaladas à luz dos trabalhos recentes,
pois a erudição contribui para o prazer da leitura. E agora, se­
gundo o conselho de Mestre Alcofribas no seu Prólogo: Diverti­
-vos, meus amores, e alegremente lede o resto, com todo o
à-vontade do corpo e vantagem para os rins!

(*) De França. (N. da 1'.)

23
A VIDA MUITO HORRÍFICA
DOGRANDEGARGÂNTUA
Pai de Pantagruel

Em tempos composta por M. Alcofribas,


Condensador de Quinta Essência1

Livro cheio de Pantagruelisnw

AOS LEITORES

Amigos leitores que l erd es este livro,


Despojai-vos de toda a paixão;
E, ao lê-lo, não vos escandalizeis:
Não contém nem mal n e m infecção.
É verdade que aqui pouca perfeição
Aprendereis, a não ser para rir;
Outro assunto não pode meu coração eleger,
Vendo o luto que vos desgasta e consome
Melhor é escrever de riso que de lágrimas,
Pois rir é próprio do homem2.

25
NOTAS

I Alcofribas é o mesmo nome, anagrama abreviado de François Rabe­


lais, que fi gurava nas edições do Pantagruel, a p arti r de 1 534. - O Condensa­
dor de Quinta Essência é o Alquimista.
2 Esta cél eb re máxima, que se tornou o sfmbolo do humor rabelaisiano, é
extraída de Aristóteles, De part i bu s animalium, III, 1 0 : «O h ome m é o único
dos seres ani mado s que sabe riz�·. e encontra-se igualmente nas obras do poe­
ta 9uillaume Bouchet, amigo de Rabelais.

26
PRÓLOGO DO AUTOR

Beberrões ilustríssimos e vós, preciosiSSimos bexigosos


- porque a vós e não a outros são dedicados os meus escritos -,
Alcibíades, no diálogo de Platão intitulado O Banquete, louvan­
do o seu preceptor Sócrates, incontestavelmente o príncipe dos fi-
1ósofos, entre outras palavras o diz semelhante aos Silenos. Os
Silenos eram outrora umas caixinhas, tais como as vemos hoje
nas boticas, pintadas em cima com figuras alegres e frívolas,
como harpiasi , sátiras, pássaros com freio, lebres carnudas, pa­
tas albardadas, bodes voadores, veados entre varais2 e outras
que tais pinturas arremedadas para provocar o riso nas pes­
soas (tal foi Sileno, mestre do bom Baco); mas no seu interior
conservavam-se finas drogas como o bálsamo3, o âmbar cin­
zento, o amamo, o almíscar, a civeta, pedrarias e outras coisas
preciosas. Assim ele dizia ser Sócrates, porque, vendo-o por fo­
ra e apreciando-o pela aparência exterior, ninguém daria por
ele uma casca de cebola, tão feio ele era de corpo e ridículo no
porte, com o nariz ponti agudo, olhar de touro, o rosto.de um lou­
co, simples nos costumes, rústicos na vestimenta, pobre de fortu­
na, infortunado com as mulheres, inepto para todos os ofícios
da república, sempre a rir, sempre a beber tanto como qualquer
outro, sempre a troçar, sempre a dissimular o seu divino saber;
mas, abrindo essa caixa, encontrar-se-ia dentro dela uma ce­
leste e inapreciável droga: entendimento mais que humano,
virtude maravilhosa, coragem invencível, sobreidade sem
par, contentamento certo, segurança perfeita, desprezo incrível
por tudo o que leva os humanos a velar, correr, trabalhar, nave­
gar e batalhar4.
, A que propósito, em vossa opinião, se destina este prelúdio?
E por que, meus bons discípulos, e algun s outros ociosos, ao ler­
des os alegres títulos de algun s livros da nossa invenção, como
Gargântua, Pantagruel, Fessepinte, A Dignidade das Bragui­
lhas, Ervilhas com toucinho cum commento, etc. , julgais mui-

27
RllBELAJS

to facilmente que, por dentro, são tratados de graçolas, brinca­


deiras e intrujices, visto que a insígnia exterior (é o título),
sem querer saber de mais nada, é correntemente acolhida
como motivo de riso e chacota. Mas não é com tal leviandade
que convém estimar as obras humanas. Pois vós mesmos di­
zeis que o hábito não faz o monge, e um qualquer vestido com o
habito monacal não tem por dentro nada de monge, e outro usa
capa à espanhola e a sua coragem não deve nada à Espanha5.
Por isso é preciso abrir o livro e pesar cuidadosamente o que ne­
le é deduzido. Sabereis então que a droga nele contida tem mui­
to mais valor do que a caixa prometia, isto é, que as matérias
aqui tratadas não são tão galhofeiras como o título pretendia.
E, dado o acaso de encontrardes em sentido literal matérias
muito alegres e correspondentes ao nome, não deveis todavia fi­
car por aí, como a ouvir o canto das Sereias, mas ellYmais alto
sentido interpretar o que por acaso cuideis ser dito de coração
alegre.
Já alguma vez desrolhastes uma garrafa? Irra! Recordai a
vossa atitude. Ma� vistes alguma vez um cão ao encontrar um
osso com tutano? E, como diz Platão, liv. II da República, o mais
filósofo dos animais deste mundo. Se já o vistes, pudestes notar
com que devoção ele o espreita, com que fervor o guarda, com
que prudência começa a roê-lo, com que afeição o parte, e com
que diligência o chupa. Quem o induz a fazê-lo? Qual a e spe­
rança do seu estudo? Qu_e bem pretende alcançar? Nada mais
que um pouco de tutano. E verdade que esse pouco é mais delicio­
so do que o muito de todas as outras coisas, porque o tutano é um
alimento elaborado com perfeição da natureza, como diz Gale­
no, in Fac. Natur. , III, e De usu parti, XI.
Segundo este exemplo, convém-vos ser sábios, para fare­
jar, cheirar e apreciar estes belos livros saborosos, procurá-los
com ligeireza e encontrá-los com ousadia; depois, na leitura
curiosa e na meditação frequente, deveis abrir o osso e chupar o
substancioso tutano - ou seja, o mesmo que eu quero significar
com estes símbolos pitagóricos6 - com a esperança certa de vos
tomardes avisados e valorosos com a dita leitura, pois nesta
encontrareis melhor gosto e doutrina mais abscôndita, a qual
vos revelará altíssimos sacramentos e horríficos mistérios,
tanto no que respeita à nossa religião como ao estado político e à
vida económica.
Acreditais que jamais Homero, ao escrever a Ilíada e a
Odisseia, pensou nas alegorias com que as rechearam Plutar­
co7, Heráclides Pônticos, Eustácio9, Fomuto, e que Poligiano

28
G;\RGÂNTUA

lhes roubou? Se acreditais, não vos aproximais nem com os pés


nem com as mãos da minha opi nião, que decreta que Homero
as imaginou tão pouco como Ovídio, nas suas Metamorfoses,
aos sacramen tos do Evangelhoio, como tal Frei Lubinll, verda­
deiro parasita, se esforçou por demonstrar, se acaso encontra­
va pessoas tão tolas como ele, e (como diz o provérbio), tampa
digna de tal panela.
Se não acre di ta is , porque n ão fareis o mesmo com estas ale­
gres e novas crón icas, embora ao ditá-las eu não pensasse
mais nelas do q ue vós, que bebeis talvez tanto como eu? Pois, na
composição deste l ivro senhori al, não perdi nem empreguei
mais nem outro tempo do que o estabelecido para tomar a mi­
nha refe i çã o corporal , ou seja, bebendo e comendo. Chegou as­
sim a hora devida de escrever estas altas matérias e ciências
profundas, como tã� be m sabiam fazer Homero, paradigma de
todos os filólogos, e Eni o i :l , pai dos poetas latinos, conforme o tes­
temunha Horácio, embora u m malcriado tenha dito que os seus
poemas cheiram mais a vinho que a óleo.
O mesmo disse um velhaco dos meus livros; mas merda
para ele! Como é mais apetitoso, risonh o, atraente, mais celeste
e delicioso o odor do vin h o do que do óleo! E acharei tão glorioso
que digam de mim que gastei mais em vinho do que em óleo,
como Demósten es, quando lhe diziam que gastava mais em
óleo do que em vinho. Para mim só é honra e glória ser dito e re­
putado bom compi n cha e bom companheiro, e com esse nome
sou bem-vindo entre todas as boas companhias de pantagrue­
listas. A Demóstenes foi cen s ur ado por um espírito azedo que
as suas Oraçôes cheira vam à serapi lhe i ra de um imundo e su­
jo azeiteiro. Interpretai, pois, todos os meus factos e ditos no que
têm de perfeição; reveren ciai o cérebro caseíforme que vos dis­
trai com estes belos di spar ates e, se puderdes, considerai-me
sempre um hom e m alegre.
Pois di verti-vo s , meus amores, e alegremente lede o resto,
com todo o à-vontade do corpo e com v an tagem para os rins!
Mas escutai , ó estúpidos - que uma úlcera nas pernas vos dei­
xe coxos! - não vos es que ç a is de beber à minha saúde, e logo
vos darei razão.

NOTAS

1 Monstms alados mm rosto de mu lhcr c corpo de abutre.


2 Rabclais completa os m o n st n) s da mitologia com animais fantásticos,
acumulando caracterizações jocosas-: pá.�8arcm com freio como os cavalos, le-

29
RJ\BELAIS

bres carnudas como as vacas, patas albardada.• como os burros, bodes voadores
e veados entre varais atrelados c omo cavalos. Platão, no Banquete (21 5 A), ape:
nas escreveu: «Digo qu e ele (Sóc rat es) é mu i to semelhante a esses Silcnos ex­
postos nas l oj a s dos cstatuií1'ios c qu e os arti sta s representaram ostentan do gai­
tas campestres c flautas. Quando se separam as duns peças qu e formam essas
estatu etas, d e sco bre- s e no interior a imagem de u m deu s.» Silcno, pai nu­
triente de Baco, era n�prcscRtado como um bob � hilariante e grotesco.
3 Bálsamo de Mec a, suco resinoso. - Ambar cinzento, sccr<.>ção do cacha­
lote, a que Rabclai s chama «esperma de baleia» no Pantagruel (cap. XXN, p.
321 ). - Amomo, p la n t a odorífera dn Á sia. - Alm{scar, produto odmífcro ex­
traído do gato-almiscareim. - Civeta, pequ eno cnrnívoro de que se extraía
um p e r fu me. - Pedrarias, os boticários mi stu ravam pedras preciosas com ex­
cipic ntes, como remédios «parn reparar os espíritos vi tais . . . por causn da sua
luz que sim bolizn os espíritos» (Guillau me Bouchet). Estas drogns faziam
realmente pm"ic da f n rm acopeia da época, bem como os remédios bizarros cita­
dos por M o nta i gne (Enwicm Ir, :{7).
4 Este elo gi o de Sócrates, el e acordo com os retratos dcixndos por Platão
(cf. O Banq uete) c Xc nof(m tc , é insp irad o (c por vezes trnduz ido) cm Erasmo,
Adágios, Silenni Alcibiadi.� (Ir r, 2, 1 ), que tamMm eleve ler s ido a fonte de Mon­
t ai gnc. A co m paraçüo entre Sócrates c Sileno era muito popular nos hu ma­
nistas.
6 Os espa nhó is eram célebres peln sun vale ntia c a sua basófia (cf. a figu­
ra elo Matn m ou ros cm L'Illusion Co miqu e de Corncille).
7 Os humanistns consideravam a Iilosofia ele P itágo ras como cheia de
símbolos, como també m os mistél -i os de Orfeu.
B At ribu ía-se a P lu ta rco um tratado sobre a vida e a poesia de Homero.
9 Alus ão ao t ra t ado De Alegoriis apu d Homerum (Alegoria.� homéricas)
de um gram á ti co latino, Herô.clides do Ponto.
!O Eu s t áci o, arcebispo de Tc ss alónica (séc'Ulo Xll), escrevera um comentá­

rio sobre Homem . Também C or n utos (Phornute), filósofo es t ói c o do século 1 da


era cristã. Poliziarlü, humanista do século xv, e ditado cm Lyo n cm 1 533 por
Gryphc. Pol iz i an o plagiara copi os amente os se u s antecessores.
'-
11 A i ron i a de Rabelais rel ativa nos amadores de s ímb olos é aqui confir­

mada. As Meta.m.(}lj(>se.� haviam sido consideradas c omo uma antecipação


alegór i ca do Evangelho pelo dominicano Walluys (século XIV).
12 Frei Lubin, sinónimo ele monge ign o rante e estúp ido (cf. Marot, Baila­
de de frere Lubin.), que fi!,'l.lra no Catálogo ela livraria de Séú> Vüor (p. 1 1 5) no
Pantagruel: «Três livms d o Reverendo Padre Frei Lubin, padre provincial de
Ba vardc li e , sobre tiras ele toucinho para t li nc ar ...
13 Énio (239-1G9 a. C.), inlmdutor do he lenismo cm Ro ma c autor de u m
poema épicos, os Anai.�. Sc!,'l.lndo Horácio (Epf.�tulas r, XIX), só compunha depois
de beber.

30
CAPÍTULO I

DA GENEALOGIA E ANTIGUIDADE
DE GARGÂNTUA

Remeto-vos para a gTande cromca Pantagruelinal a fim


de reconhecerdes a genealogia e a antiguidade de que nos veio
Gargântua. Nela sabereis mais detidamente como nasceram
os gigantes neste mundo e como destes, por linha directa, pro­
veio Gargântua, pai de PantagTuel, e não levareis a mal se por
agora me abstenho de repeti-lo, embora o caso seja de tal natu­
reza que, quanto mais for relembrado, mais agradará a Vos­
sas Senhorias. Para isso tendes a autoridade de Platão, in File­
bo e Górgias, e de Flaco, que dizem de algumas matérias, como
aquela de que vos falo, que são mais deleitáveis, quanto mais
vezes forem repetidas.
Prouvera a Deus que cada qual soubesse tão seguramente a
sua genealogia, desde a Arca de Noé até aos nossos dias! Penso
que muitos são hoje imperadores, reis, duques, príncipes e pa­
pas na terra e que descendem de portadores de relíquias e frio­
leiras, como outros, pelo contrário, são mendigos de hospício,
indigentes e miseráveis, e que descendem pelo sangue e pela li­
nhagem de grandes reis e imperadores, devido à admirável
trajectória dos reinos e impérios:
dos assírios aos medos,
dos medos aos persas,
dos persas aos macedónios,
dos macedónios aos romanos,
dos romanos aos gregos,
dos gregos aos franceses2.
E, para vos falar de mim próprio, creio ser descendente de
algum rei muito rico ou príncipe dos tempos idos, porque ja­
mais tereis visto homem que mais desejasse ser rei e rico do
que eu, a fim de comer bem, não trabalhar, não ter cuidados, e

31
RABELAJS

enriquecer os meus amigos e todas as pessoas de bem e de sa­


ber. Mas o que me reconforta é que, no outro mun do, sê-lo-ei, e
até maior do que no pre sen te ousaria dese jar. Reconfortai tam­
bém a vossa infelicidade com este ou ain da melhor pensamen­
to, e bebei-lhe bem, se puderdes.
Voltando à vaca fria, digo-vos que por graça soberana dos
céus nos foram con servadas a antiguidade e a gen ealogia de
Gargân tua, mais completa s que quaisquer outras, excepto a do
Messias, de quem não fa l o porque n ão me c ompete e porque o s
diabos3 (que são o s caluniadores e o s falsos beatos) a isso s e
opõem. E foi encon trada por Jean Audeau num prado que e l e ti­
nha perto de Arceau Gualeau, abaixo da Olive, para os lados de
Narsay, n o qual prado, ao desen tupirem os fossos, tocaram os
cavadores c om as suas e n x adas num gran de túmulo de bronze,
desmesuradamente comprido, pois jamai s lh e encontraram a
extremidade porque se al on gava muito para diante nas repre­
sas de Vienne. Ao abri-l o em certo ponto, marcado com o de­
senh o de um copo em volta do qual e stav a escrito em letras
etrus cas4: HIC BIBITUR , encon traram n ove frascos disposto s na
mesma ordem como se espetam os paus para os jogo da bola na
Ga s c o n h a, entre os quais o que estava n o mei o cobria um gran­
de , gordo e ci n zento, bonito, peque n o e bolorento livrinho, chei­
rando mais mas não mel hor do que rosas.
Neste se ach ou a dita geneal o gia, escri ta em l etras de ch an­
c e l ari a5 , não em papel, não em pergaminho, não em cera, mas
em casca de olmo, e tão gastas pela vetustez que ma � se podiam
decifrar três seguidas.
E mbora in dign o de tal tarefa, fui ch a m ado a decifrar o tex­
to e, com gran de reforço de ócul os, praticando a arte de ler
letras n ã o aparentes, como ensina Aristótel es6, traduzi, como
podereis ver pantagruelizan do, isto é, bebendo à tripa forra e
lendo as gestas h orrífi cas de Pantagruel .
·

No fim do l ivro havia um pe que n o tratado intitulado : Les


Franfeluches antidotées 1 . Os ratos e as baratas, ou (para que
n ão minta) outros bichos mal ign o s, tinham roído o começo ; o
re sto acrescen te i -o eu adiante, po r reverência às coisas an­
tigas.

NOTAS

I O ca pítu l o I do Pan tagruel ( 1 5a2), i ntitu l ado «Dn origem c anli gu i dadc
do !,'!'an de PantagJucl .. , co m p reen de u m a lo nga ge nealogia cm que se mistu ­
ram os gi gan t e s b1blicos, os gigantes a n t igos c os perso n age n s de romance.

32
Gi\RGÂNJVA

2 Esta tra nsferên c i a do i m pério dos ass írio s para os li·anccscs não pa re­
cia fan t asist a nos conte m porâ neos de Rabelni s ; n ã o só os escritores (Jean Bou­
chct, M argarida de N a v a rr a ) co mo tam bém os j u d stas a i nvoca vam para fu n­
damentar as prete n s õe s de Fra nci sco I ao i m péJio - por gregos deve entender­
-se o império b iz a n ti no , destru ído pelos turcos cm 1 4 5a.
3 Duplo sen tido: d i abo s c calu n i a dores (da cti m olo !,ri a grega, õwj3<iÂ.Â.ro:
·
calu ni a r).
4 E ru d i çã o fa ntasista: a i nda hoje o al fabeto et ru sco n ã o est á deci frado
com segurança , c não t e m n a d a de comu m com o l a ti m : Hic bibitur (Aqui bebe­
-se). Mas será o grande tllmulo ele bronze pu ra me n te i mn!,ri mirio ou trntnr-se-
-á de um tú mu l o real a m p l i a do pei a i m a gi n aç ã o do ro manci sta, como o sepul-
cro de Geojfroy dente-gra.nde ou o dól men de Ú!. Pierre Leuée ? (cf. Panta­
gruel, cap. V, p. 87).
5 Letras u s a d a s n a c h a n ccl n r i n papal, cu rsivo mu itas vezes ilcgfvcl.
6 Re fe rê nc i a fantasista a Ar; stótelcs: os peda n tes rcfer;am-sc c m tu do
às su ns obras.
7 B a ga telas providas de u m a n tí d o to .

33
CAP ÍTULO II
AS BAGATELAS COM ANTÍDOTO,
ENCONTRADAS NUM MONUMENTO ANTIG01

Eis chegado o grande vencedor dos Cimbros2,


Passando pelo ar, por temor do orvalho.
À sua chegada encheram-se os bebedouros
De manteiga fresca, caindo em catadupa
Da qual quando foi regado o grande mar
Gritou bem alto : <<Senhores, por favor, pescai-o,
Pois a sua barba está quase toda lambuzada
Ou pelo menos estendei-lhe uma escada.»

Alguns diziam que lamber-lhe a pantufa3


Era melhor do que obter as indulgências4;
Mas apareceu um afectado biltre,
Saído do buraco onde se pescam os mujos,
Que disse: <<Senhores, por Deus não o façamos;
A enguia está lá e nesse antro se e sconde;
Lá encontrareis (se olharmos de perto)
Uma grande tiara no fundo da sua murças.,,

Quando estava prestes a ler o capítulo,


Só se encontraram os cornos de um bezerro.
<<Eu (dizia ele) sinto o fundo da minha mitra
Tão frio que à volta me enregela o cérebro.>>
Aqueceram-no com perfume de nabo,
E ficou contente por se sentar à lareira6,
Contanto que dêem um novo cavalo de tiro
A tantos que têm mau génio7.

E falaram da cova de São Patrícios,


De Gibraltar9 e de mil outras covas:

34
GARGÂNIUA

Se as pudessem reduzir a uma cicatriz


De tal maneira que nunca mais tivessem tosse,
Visto que a todos parecia impertinente
Vê-las abrirem-se assim a cada aragem;
Se acaso estivessem fechadas,
Poderiam amarrá-las como reféns.

Nesse passo foi o corvo depenado


Por Hércules, que vinha da Líbia.
<�O quê! disse Minos' o, então não sou chamado a isso?
A parte eu, todos são convidados,
E depois querem que me passe vontade
De fornecer-lhes ostras e rãs;
O diabo me carregue se me interessa
Ir à sua venda de andrajos.»

Para o liquidar veio Q. B. que coxeia,


Ao salvo-conduto dos mimo sos estorninhos,
O peneireiro, primo do grande Ciclope,
Massacrou-os. Cada qual assoa o nariz ;
Nesta seara poucos maricas nasceram
Que não tenham sido peneirados.
Correi todos e chamai às armas:
E tereis mais do que tivestes antanho.

Pouco depois a ave de Júpiterl l


Decidiu apostar no pior,
Mas vendo-os agastarem-se tanto,
Receou que pusessem de rastos o império,
E preferiu roubar o fogo do império celeste,
Ao tronco onde se vendem arenques fumados
A sujeitar aos ditos dos massoretasl 2
O ar sereno, contra o qual se conspira.

Tudo concluído, foi,


Apesar de Atéi 3, afiada a coxa de garçal 4,
Que ali se sentou, vendo Pentasileia1 5
Que em velha vendia agriões.
Todos gritavam : «Vil carvoeira
Acaso te compete encontrar pelo caminho?
Tu a roubaste, a romana bandeira
Que haviam traçado no pergaminho!>>

35
RABELAIS

Se não fosse Juno que sob o arco celestel 6


Com o seu bufol 7 caçava pássaros,
Tinham-lhe pregado uma partida tão grande
Que ficaria toda amachucada.
Tal foi o acordo que deste bom bocado
Havia de ter dois ovos de ProserpinalB
E, se jamais se irritasse,
A amarrariam ao monte do espinheiro.

Sete meses depois - tirem-lhe vinte e dois ­


Aquele que outrora aniquilou Cartago
Cortesmente se pôs no meio deles,
Pedindo-lhes a sua herança,
Ou que fizessem ajusta partilha
Segundo a lei de atirar o prego ao ar
Distribuindo uma concha de sopa
Aos seus carregadores que fizeram o contrato.

Mas o ano virá, assinalado por um arco turquês,


De cinco fusos e três fundos de de panela,
Em que, de costas, um rei muito cortês
� bexigoso, estará vestido de arminho.
O, piedade! Por causa de um hipócrita
Deixareis afundarem-se tantas terras?
Cessai, cessai ; ninguém imita essa máscara;
Retirai-vos para o irmão das serpentesl9.

Passado um ano, aquele que é20 reinará


Pacificamente com seus bons amigos.
Nem grosseria nem ultraje então reinarão;
Toda a boa-vontade terá o seu compromisso,
E o prazer que então foi prometido
Às gentes do céu, virá no seu campanário ;
Então as coudelarias que estavam espantadas
Triunfarão em reais palafréns.

E durará esse tempo de passe-passe


Até que Março sej a acorrentado.
Depois virá outro que a todos ultrapassa,
Delicioso, ameno, belo sem par.
Erguei os vossos corações, vinde a esse repasto,
Meus vassalos, pois morreu

36
GARGÂNIUA

Quem para grande bem não voltará


Tão calmo está o tempo passado.

Finalmente, o que foi de cera


Estará alojado nos gonzos de Jacquemart21
E não mais será chamado: «Sire, siref»
O que toca o sino e tem a chaleira,
Ele, que poderia agarrar na sua espada,
Em breve não haveria mais cuidados,
E, com cordel, poder-se-ia
Atar toda a loja dos abusos22(*).

NOTAS
1 As Bagatelas são um <<enigma», género literário que estava cm moda
no século XVI. Thomas Scbillet, na sua Arte Poética, define o enigma como
uma <<alegoria obscura». O jogo consiste em descrever um tema banal co m
grande profu são de imagens incoerentes . O poeta da corte Mel lin de Saint-Ge­
lais foi especialista nesse género. O capítulo LVIII do Gargântua, <<Enigma em
profecia», reproduz um poema de Saint-Gelais, que Gargântua interpreta
como <<O decurso e a manutenção da verdade divina», ao passo que frei Jean só
vê nele uma <<descrição do jogo da péla sob palavras obscuras». O enigma pres­
ta-se à introdução de incongruências entremeadas de alusões satíricas. Será
ainda o jogo favorito dos salões preciosos do século (cf. Précieuses ridicules).
2 Mário (1 56-86 a. C.) venceu os Teutões em Aix-en-Provence (102
a. C.). O enigma começa com uma paródia de tom épico para melhor masca­
rar a futilidade do tema. Rabel ais reforça o jogo supondo que o começo dos pri­
meiros versos foi comido pelas b aratas, degradação que atesta a antigui dade
do m anuscrito.
3 Alusão possível à pantufa do papa, que é da tradição ser beij ada nas au­
diências.
4 Alusão à concessão de indulgências ou perdões, em troca de dinheiro.
Rabelais criticou este abuso no Pantagruel (cap. XVII, p. 243 599). Como Panúr­
gio ganhava os perdões . . .
5 Chapéu forrado usado pelos papas e pelos cónegos na Idade Média.
6 Esta caricatura do papa aquecendo-se à lareira e perfumado com essên­
cia de nabo (em vez de incenso) é muito mais irreverente do que a de Júlio II
no Pantagruel (cap. XXX, p. 397).
7 Estas pessoas de mau génio são possivelmente os ,,falsos beatos» que
atacavam os humanistas e os evangelistas. O cavalo de tiro que deseja o papa
reti rado ao canto da lareira representa talvez o seu sucessor eventu al, a puxar
a carroça da Igrej a.

1 É possível que não seja este o sentido de mui tos dos versos do enigma,

que já mesmo em francês parece às vezes absurdo e difícil de interpretar,


sobretudo pelo carácter elíptico que apresenta. (N. da T.)

37
RABEIA.JS

8 A cova de São Patrlcio situa-se numa ilha do lago Derg, no condado de


Donegal, na Irlanda. Passava por ser uma das entradas do Purgatório e tor­
nou-se um local de peregrinações.
9 Gibraltar, também chamado «cova da Sibila.. , por confusão entre Sevi­
lha e Sibila.
10 Minos, juiz nos Infernos. Esta mitologia fantasiosa foi sem dúvida mo-
tivada pela ideia do Purgatório evocada pela «cova de São Patrício .
..

1 1 A águia.
12 Comentadores hebreus da Bíblia.
1 3 Na mitologia grega,.esta deusa provocava as querelas.
14 Provável reminiscência de Marot, EpUre au Roi... (Adolescence Clé­
mentine, l 5 32):

Et si m'a fait la cuisse hérortniere,


L'estomac sec, le ventre plat e vague.

1 5 Pentesüeia, rainha das amazonas, foi morta por Aquiles no cerco de


Tróia. Simboliza a coragem. Cf. Pantagruel, cap. XXX, p. 399: ,J>entesileia
era vendedora de agriões... A degradação burlesca das personagens mitológi­
cas é idêntica: Pentesileia, jovem heroína caída em combate, só pode ser ven­
dedora de agriões na velhice.
1 6 Arco--íris.
1 7 Grand duc, utilizado na caça como ave de altanaria.
1 8 Deusa dos Infernos.
1 9 O diabo (a serpente do paraíso terrestre).
20 Deus.
21 Personagem de ferro que dá as horas nos relógios dos campanários.
22 Esta loj a de abusos designará a Igreja? Rabelais não revelou o sentido
do seu enigma. Pode pensar-se que às alusões satíricas se juntam fantasias
alegres destinadas a dar que fazer aos futuros glosadores. Estas fatrasies
eram muito apreciadas no século XVI.

38
CAP ÍTULO III

COMO GARGÂNTUA ESTEVE ONZE MESES


NO VENTRE DA MÃE

Grandgousier era bom companheiro no seu tempo, gostando


de emborcar o seu copo até ao fundo, como tantos h omen s que en­
tão havia na terra, e gostava de comer coisas salgadas. Para
tal , tinha geralmente uma munição de presuntos de Mayence e
de Baionne, muitas línguas de vaca fumadas, grande abun­
dância de ch ouriços n a estação própria, e carne de vaca salga­
da com mostarda, grande doses de butargosl , uma provisão de
sal sichas, não de Bolonha (pois tinha medo dos alimentos lom­
bardos2), mas de Bigorre, de Lonquaulnay, de Brene e de Rouar­
gue.
Ao chegar à idade viril, desposou Gargamelle3, filha do rei
dos Parpaillos4, rapariga bonita e de boa cara, e os dois brinca­
vam muitas vezes ao animal de duas costas(*), esfregando ale­
gremente as banhas, até que ela ficou prenha de um belo filho e
o carregou até aos onze meses5.
Pois tanto tempo, ou mesmo mais, podem as mulheres an­
dar de barriga, sobretudo quando se trata de alguma obra-pri­
ma e personagem que haj a de fazer grandes proezas no seu tem­
po, como diz Homero que o filh o com que Neptuno emprenhou a
ninfa6 nasceu ao fim de um ano: foi no décimo segundo mês.
Pois (como diz A. Gélio7, liv. iij), esse longo tempo convinh a à
dignidade de Neptuno, de modo que a criança se formasse com
perfeição. Pela mesma razão, Júpiter fez durar xlviij h oras a
noite em que dormiu com Alcmenas, pois em menos tempo não
poderia forj ar Hércules, que limpou o mundo de mon stro� e ti­
ranos.

( * ) Faziam amor. (N. da T.)

39
RABELAIS

Os senhores antigos pantagruelistas confirmaram o que di­


go e declararam não só possível mas legítimo o filho nascido
da mulher ao décimo primeiro mês após a morte do marido :
Hipócrates, lib. De alimento9,
Plínio, li. v ij. cap. v,
Plauto, in Cistellaria,
Marcos Varrão, na sátira O Testamento, alegando a esse
propósito a autoridade de Aristóteles,
Censorinus, li. De die natali,
. Ari stóteles, libr. vij, capi. iij e iiij, De nat. animalium,
Gélio, li. iij, ca. xvj.
Sérvio, in. Egl., ao expor este verso de Virgílio:

Matri longa decem, etc.lO

e mil outros loucos, cujo número foi aumentado pelos legistas,


f{: De suis et legit., 1. Intestato, §fi., e in Autent., De restitut. et
ea q ue parit in xj mensell . Muitos houve que com i sso rabisca­
ram a sua rodibilárdica1 2 lei ; Gallus, ff. De lib. et posthu., et l.
septimo ff. De stat. homi 1 3, e outros que por agora não ouso di­
zer. Segundo tai s leis, as mulheres viúvas podem folgar à von­
tade e sem risco nenhum dois meses após a morte dos maridos.
E eu vos peço, meus bons companheiros, que , se encontrar­
des mulheres destas que mereçam que se abra a braguilha, vin­
de cá e trazei-mas.
Pois, se ao terceiro mês emprenharem, o seu fruto será h er­
deiro do defunto e, conhecida a gravidez, lá continuam elas
atrevidamente, e é uma alegria, pois têm a pança cheia! Como
Júlia, filha do imperador Octaviano14, que só se abandonava
aos seus tocadores de tambor quando se sentia prenha, da mes­
ma maneira que um navio só recebe o seu piloto depois de e star
calafetado e carregado. E se alguém as censurar por remen­
darem assim a sua gravidez, visto que as fêmeas prenhas não
suportam o macho, responderão que isso são as fêmeas dos ani­
mais, mas que elas são mulheres, que conhecem os belos direi­
tos de superfetação, como outrora respondeu Popúlia, segundo
narra Macróbio, li. ij. Saturnal.
Se o diabo não quiser que emprenhem, terão de torcer o e spi­
cho, e bico calado.

40
GARGÂNJUA

NOTAS
1 Butargos (do provençal boutargo), espécie de caviar, feito de ovas de di­
versos peixes, típico da Provença e do Languedoc.
2 Os 1ombardos passavam por ser peritos em venenos.
3 Gargamelle, como Grandgousier, significa <<de grandes goelas» . A vo­
racidade é o carácter comum a toda a família dos gigantes.
4 Papillons (borboletas). Só posteriormente a Rabelais este nome foi dado
aos protestantes.
5 A duração da gestação era um assunto de controvérsias no século XVI.
Rabelais foi consultado, na sua qualidade de médico, por Pellicier, embaixa­
dor de Francisco I em Venez a, sobre uma contestação da data da concepção .
Também Montaigne aceita a duração de on2e meses (Ensaios, liv. n, cap.
XII ) .
6 A ninfa Tiro.
7 É efectivamente a Aula Gélio Woites Aticas, III, 1 6 ) que Rabelais vai bus­
car esta lenda.
8 V. os Anfitriões de Plauto, Moliere e Giraudoux.
9 As referências a Hipócrates, Do alimento, a Plínio o Antigo, História
Natural, liv. VII, cap. v, a Plauto, Cistellaria, v., 1 64-1 65, a Va!Tão e a Aristóte­
les, História dos Animais, liv. VII, cap. IV, ao gramático Censorinus, Do dia na­
tal, a Aula Gélio (Gellius), a Servius, comentador de Virgílio, são exactas.
1 0 Verso da IV Bucólica (v. 61 ). Sérvio não comenta a duração da gesta­
ção dada por Virgílio (dez meses).
11 Rabelais emprega as abreviaturas usadas no século XVI para os textos
jurídicos: ff· Digeste, l: lei. Trata-se do De suis et legitimis heredibus, lege
intestato (Dos seus herdeiros legUimos, lei sobre o intestado); De Authenticae.
De restitutionibus et ea quae parit in undecimo mese post mortem viri (lei so­
bre a legitimidade. Das restituições, e da mulher que dá à luz no décimo pri­
meiro mês após a morte do marido).
1 2 Lei de ronge-lard (rói toucinho), palavra formada por Rabclais segun­
do o modelo de rodilárdico, invenção burlesca do italiano C alcnzio, cuja obra
fora traduzida em 1 534 - Fantásticas batalhas dos grandes reis Rodilardus e
Croacus. No Quarto Livro, cap. LXVII, Rodilardus é um gato, como mais tarde
cm La Fontai ne (II, 2).
1 3 Lei Gallus. De liberis et posthumis heredibus instituendis vel exhere­
dandis. - Lei De statu hominum. S. Septimo mense nasci perfectum partum
jam receptum est, propter austoritatem doctissimi viro Hippocratis: Dos fi­
lhos, se os filhos póstumos devem ser herdeiros ou deserdados; Do estado dos
homens; admite-se que a gestação pode ' terminar ao sétimo mês, graças à au-
toridade do sapientfssimo Hipócrates.
14 Júlia, filha de Augusto (Octávio), era célebre pelo seu desregramento,
que a levou ao exílio. Macróbio, Saturnais, II, 5, 9, refere-se aos seus excessos.

41
CAPÍTULO IV

COMO GARGAMELLE,
ESTANDO PRENHA DE GARGÂNTUA,
COMEU GRANDE QUANTIDADE DE TRIPAS

Tal foi a ocasião e a maneira como Gargamelle partiu, e se


não acreditais, é porque vos escapa o fundamento(*)!
O fundamento escapava-lhe um dia depois de j antar, n o iij
dia de Fevereiro, por ter comido grandes tripas de boi, de bois
engordados n a manjedoura e em prados ceifados duas vezes
por ano. Destes grandes bois foram mortos trezentos e sessenta
e sete mil e catorze, para serem salgados n a terça-feira gorda,
de maneira que na Primavera se tivesse carne da estação p a­
ra, no começo das refeições, se fazer a comemoraçãol dos salga­
dos e melhor entrar no vinho.
As tripas foram copiosas, como estais a ver, e tão saborosas
que todos lambiam os dedos. Mas a dificuldade era que não po­
diam ser conservadas durante muito tempo, porque apodre­
ciam, o que pareci a in decente. Resolveu-se poi s que as come­
riam sem deixar nada, n o que estiveram de acordo todos os cita­
dinos2 de Sainnais, Suillé, La Roche Clermaud, Vaugaudray,
sem deixar para trás o Coudray Montpensier, o Gué de Vede3 e
outros vizinho s, todos bons bebedores, bons companheiros e
bonsjogadores da malha.
O bom Grandgousier refastelava-se e mandava pôr tudo
nas escudelas. Mas ia dizendo à mulh er que comesse menos
porque estava a chegar ao fim do seu tempo e aquelas tripas não
eram carnes muito recomen dáveis: «Muita vontade tem de
comer merda (dizi a ele) quem lhe come o saco.>> Apesar destas

(*) Le fondement, o fundamento, mas também , familianncntc, o ânus.


(N. da T.)

42
GARGÂNJUA

recomendações, ela comeu dezasseis muiz, dois bussars e seis


tupins4. Ó bela matéria fecal que nela devia inchar!
Depois de j antar, foram todos à Saulsaie5, e ali, na relva,
dançaram ao som de alegres flautas e doces gaitas, tão alegre­
mente que era um celeste passatempo vê-los folgar assim.

NOTAS
I Inspirado na liturgia: a comemoração é uma prece invocativa de um
santo que não é o santo do dia. A comparação com os salgados produz um efei­
to cómico.
2 Irónico, pois trata-se de aldeões.
3 Cinais (Sainnais), Seuilly (Suillé), La Roch�lermault, Vaugaudry,
o castelo de Coudray-Montpensier, Le Gué de Vede são aldeias ou castelos vi­
zinhos de La Deviniere, terra natal de Rabelais, nos arredores de Chino n.
4 O muid continha cerca de 270 litros, o bussard é um barril equivalente a
três qu artos do muid; o tupin é um vaso de terra.
5 Pradaria de salgueiros perto de La Deviniere.

43
CAPÍTULO V

A FALA DOS BEM BEBIDOS

D epois puseram-se a merendar no próprio local. E eram


garrafas a andar, presuntos a trotar, copos a voar, j arros a tilin­
tar:
- Puxa!
- Dá cá!
- Vira!
- Mistura com água!
- Deita-me sem água; assim, meu amigo.
- Esvazia-me valentemente esse copo.
- Manda-me clarete, um copo bem cheio.
- Abaixo a sede!
- Ah! , febre traidora, não te queres ir embora?
- Juro-lhe, comadre, que não posso meter-me na pinga.
- Está triste, minha amiga?
- Se calhar.
- Por São Quenetl ! Falemos da pinga.
- Só bebo a certas horas, como a mula do papa2.
- E eu só bebo no meu breviárioJ, como um bom pai-da-
-guarda4.
- Quem apareceu primeiro, a sede .ou a bebeduras?
- A sede, pois quem beberia sem ter sede no tempo da ino-
cência6?
- A bebedeira, pois privatio presuponit habitum 1 , e eu sou es­
crevente.

Foecundi calices quem non fecere disertums.

- E nós, inocentes, só bebemos sem ter sede.


- Não eu, pecador, sem sede, e se não é sede presente, pelo
menos futura, pen sem o que quiserem. Bebo para que a sede ve-

44
GARGÂNTUA

nha. Bebo eternamente. É uma eternidade de bebedura e uma


bebedura de eternidade.
- Cantemos, bebamos e entoemos em motete!
- Onde está o meu funil9?
- O quê! Só bebo por procuraçãoio!
- Molha-se para secar ou seca-se para molhar?
- Não entendo a teoria, mas socorro-me da prática.
- Força!
- Eu molho, sorvo e bebo, e tudo por medo de morrer.
- Continuai a beber que não morrereis.
- Se não bebo, fico a ·s eco e morro. A minha alma fugirá pa-
ra algum buraco de rãs. A alma nunca habita o secon .
- Escanções, ó criador de novas formas12, de não bebedor fa­
zei-me bebedor.
- Eternidade de irrigação para estas entranhas nervosas e
secas!
- Por nada bebe quem não se sente.
- Este entra nas veias, a bexiga não receberá nada.
- Não me importava de lavar as tripas do vitelo que ainda
esta manhã vesti .
- Carreguei bem o estómago.
- Se o papel das minhas cédulas bebesse tão bem como eu,
os meus credores ficavam bem arranjados quando tivessem de
mostrar as minhas dívidas 1 a .
- Essa mão sempre no ar põe-vos o nariz vermelho.
- Quantos outros entrarão antes que este saia!
- Beber num ribeiro tão pequeno dá cabo do peitol 4.
- Que 'diferença há entre uma garrafa e um frasco?
- Muito grande, pois a garrafa fecha-se com uma rolha e o
frasco com um parafuso(*).
- Lindas coisas!
- Os nossos pais beberam-lhe bem e esvaziaram os copos.
- Muito lindo ! Bebamos!
- Não quereis confiar nada ao rio? Aquele vai lá lavar as
tripas.
- Não bebo mais que uma esponja.
- E eu como um templário.
- E eu tanq uam sponsus1s .
- E eu sicut terra sine aqual B.
- Um sinónimo de presunto?

(*) Vis ou viz, membro viriL (N. da T.)

45
RABELAIS

- É uma compulsória de bebidast7; é uma escada. Pela esca­


da desce o vinho à cave; pelo presunto ao estômago.
- Tragam de beber, tragam de beber. A carga não está com­
pleta. Respice personam; pone pro duos; bus non est in usui B.
- Se eu subisse tão bem como emborco, há muito tempo que
estava nos ares.
- Assim se fez rico Jacques Cueurl 9.
- Assim aproveitam os bosques por cultivar.
- Assim conquistou Baco a India.
- Assim a ciência conquistou Melindezo.
- Chuva pequena abate grande vento. Grandes bebeduras
rasgam o trovão.
- Mas, se os meus colhões mijassem essa urina, quere­
riam vocês chupá-la?
- Eu retenho depois.
- Deita-me vinho, ó pajem! Inscrevo-me para a minha
vez de beber.
- Serve, Guillot! Ainda há um copo.
- Recorro . contra a condenação à sede como abusiva. Pa-
jem, toma nota do meu apelo segundo as regras.
- São restos!
- Eu dantes bebia tudo, agora não deixo nada.
- Não nos apressemos e apanhemos tudo.
- Aqui tendes as ricas tripas daquele boi castanho. Oh, por
Deus, esfolemo-lo bem para proveito da casa.
- Bebei, ou eu vos . . . .
- Não, não !
- Bebei, peço-vos.
- Os preguiçosos só comem quando lhes batem na cauda, e
eu só bebo se me lisonjarem.
- Lagona edatera21 ! Não há toca de coelho onde este vinho
não expulse a sede como um furão.
- Este bem ma açoita.
- Este há-de banir-ma completamente .
- Gritemos a o s o m d a corneta, a o s o m d e frascos e garra-
fas, que quem tiver perdido a sede não venha procurá-la aqui :
uns bons clisteres de bebida desalojaram-na de casa.
- Deus fez o planeta e nós limpamos os pratos(*).
- Tenho na boca a palavra de Deus: Sitio22.

(*) <<Nous faisons lcs plats netz, (os pratos limpos). (N. da T.)

46
GARGÂNTUA

- A pedra chamada ãpecnoç23 não é mais inextinguível que


a sede da minha Paternidade.
- O apetite vem ao comer, dizia Angest on Mans24, e a sede
vai-se ao beber.
- Qual é o remédio contra a sede?
- E o contrário do remédio contra as mordeduras dos cães:
correi sempre atrás do cão, e nunca vos morderá; bebei sempre
antes da sede, e nunca vos assaltará.
- Apanho-vos a dormir e acordo-vos. Escanção eterno, li­
vra-nos do sono. Argus tinha cem olh o s para ver, mas um es­
canção precisa de cem mãos, como tinha Briareu25, para estar
sempre a deitar vinho.
- Molhemos o bico, que está quase seco.
- Vinho branco ! Deita tudo, deita, pelo diabo! Deita cá i sso
bem cheio, que tenho a língua a pelar.
- J?rinda, companheiro !
- A tua, companheiro ! Com muito gosto!
- Isso é que é comer.
- Q lachryma Christi2B!
- E de La Deviniere27, é vinho branco !
- Oh, que rico vinho branco!
- E, pela salvação da minha alma, é um vinho que mais pa-
rece veludo.
- Sim, sim, de boa fazenda, boa lã.
- Coragem, companheiros!
- Não precisaremos dela para este j ogo, pois já levantei o
copo.
- Ex hoc in hoc2B. Não há nenhum encanto; cada um de vós
o viu, sou mestre nisso.
- I:Ium, hum, SOJ:l o padre Macé(*).
- O bebedores! O alterai-os!
- :pajem, meu amigo, enche bem o copo, é o que te peço.
- A Cardeal29!
- Natura abhorret vacuum3o.
- Diríei s que uma mosca bebeu daqui31 ?
- À moda da Bretanha32 !
- Engoli , que são ervas33 !

(*) Não se sabe o que Rabclais quer dizer com isto. (N. da T.)

47
RABELAJS

NOTAS
1 Santo imaginário, que Rabelais invoca frequentemente.
2 Jogo de palavras sobre a mula que transporta o papa e a sua pantufa (mu­
le). Rabelais (Pantagruel, cap. VII) cita uma faceciosa Apologia... contra os
que dizem que a mula do papa só come a certas horas. Na réplica seguinte,
também a palavra horas é tomada no sentido de Livro de Horas (breviário).
3 Certos frascos tinham o aspecto exterior de um breviário.
4 Superior de um convento de franciscanos.
5 Exemplo de questão a debater entre os escolásticos, como as discussões
sobre a anterioridade do ovo ou da galinha.
6 Sem dúvida antes do pecado original.
7 <<Â. privação supõe a posse», máxima jurídica galhofeiramente aplica­
da ao beber: a sede supõe a bebedura.
8 Citação de Horácio (Eptstolas, I, 5, v. 1 9): <<Â. quem não tornaram elo­
quentes as taças bem cheias?» Com um jogo de palavras: o cálice é o vaso sa­
grado da missa.
9 Entonnoir: jogo de palavras sobre entonner (entoar) um cântico e mettre
en tonneau (meter no tonel).
1 0 Protesto do juiz .
11 Gracejo eclesiástico extraído do pseudo-Santo Agostinho (Quaestiones
veteris et novi Testamenti, xxm): «a alma. . . não pode habitar em seco», o que
justificava os que bebem teologalmente.
1 2 Brincadeira metafísica: os escanções procedem a uma mudança da
«forma•• graças à «Substância>• do vinho.
1 3 Brincadeira jurídica: os meus credores ficariam atrapalhados, pois,
como o papel bebera tudo, ficariam sem o texto relativo às minhas dívidas.
1 4 Comparação com o cavalo, que rompe o peito ao debruçar-se para che­
gar à água muito b aixa. O bêbado queixa-se de ter o copo qu ase vazio.
1 5 E eu como um noivo, expressão bíblica que dá azo a u m jogo de palavras
em volta de sponsus (noivo) e spongia (esponja).
16 E eu como terra sem água, outra comparação bíblica (Salmos, CXLII, 6).
1 7 Termo do direito, para dizer que chama à bebida.
1 8 Vê a quem deitas vinho, e deita por dois; trocadilho em volta de bus, pre­
térito passado do verbo beber, e bus, desinência plural do ablativo latino de
duo.
1 9 Grande ourives de Carlos VII (1 395-1 456).
20 O reino de Melinde figura nas navegações de Pantagruel (cap. XXN, p.
325); simboliza as riquezas fabulosas do Extremo Oriente.
21 «Traz de beber, companheiro !», em basco.
22 «Tenho sede», uma das últimas palavras de Jesus no Calvário. Na Ida­
de Média e no século XV1 não eram chocantes as adaptações cómicas dos textos
sagrados; eram frequentes nos <<sermões alegres».
23 Incombustível. Trocadilho sobre Paternidade: quem fala é um reve­
rendo padre . . .
24 Alusão a o ditado popular, que figura n o tratado De Causis (1 525) d e Jeró­
nimo de Haogest, bispo do Mans.
25 BriQrCU , filho do Céu e da Terra, tinha cinquenta cabeças e cem bra­
ços . . . de que se servia para dar deitar vinho nos copos!
26 Vinho moscatel que se produz na abadia de Montefiascone, nas coli­
nas do Vesúvio. A abadia conserva no seu tesouro uma lágrima de Cristo, que
deu o nome ao vinho .

48
GARGÂNTUA

27 Quinta onde nasceu Rabelais.


28 Aplicação burlesca do salmo LXXIV: Deus oferece um cálice de vinho
misturado com fel ora a um pecador ora a outro : «Disto para aquilo, como:
<<do copo para a boca>•, como se canta entre os vinhateiros.
2 9 Até o copo ficar vermelho como o chapéu de um cardeal.
30 A natureza tem horror ao vazio, princípio da Física antiga.
31 Por ser pouco.
32 Os Bretões tinham fama de beber a seco (como os Suíços e os Ale­
mães) . . .
3 3 Medicinais.

49
CAPÍTULO VI

COMO GARGÂNTUA NASCEU


DE MANEIRA MUITO ESTRANHA

Enquanto mantinham estas conversas acerca da bebida,


Gargamelle começou a sentir dores nas partes inferiores, e
Grandgousier levantou-se da relva e reconfortou-a honesta­
mente, pen sando que fossem dores de parto, e dizendo-lhe que
ela estava na relva, na Saulsaye, e que em breve lhe cresce­
riam pés novosl , por isso convinha-lhe ganhar coragem para o
aparecimento do seu pequerrucho e, mesmo que a dor a impor­
tun asse, h avia de ser breve, e logo a felicidade a aliviaria
daquele incómodo, de tal maneira que nem a recordação lhe fi­
caria2.
,,coragem (dizia ele), despachai-vos deste e depressa fare­
mos outro.>>
«Ah ! (disse ela), é com essa facilidade que vós homens fa­
lai s ! Mas, por Deus, hei-de esforçar-me, se assim vos apraz.
Mas tomara que o cortásseis!»
«Ü quê?», diz Grandgousier.
«Ah ! (diz ela). Que prenda me saís! Bem sabeis!»
«Ü meu membro? (diz ele). Sangue de cabra ! S e é isso que
querei s, mandai vir uma faca.••
«Ah ! (diz ela) Deus em perdoe ! Não é isso que eu quero e , pa­
lavra de honra, não o façais. Mas terei hoje muitos trabalhos,
se Deus não me ajudar, e tudo por causa do vosso membro, que
manejais habilmente.»
«Coragem, coragem! (diz ele). Não vos preocupeis e deixai
andar. Ainda vou beber un s cópazios, e se entretanto vos acudir
alguma dor, estarei por perto. Ch amai com as mãos em conch a
que virei ter convosco.»
Pouco depoi s, começou ela a suspirar, a queixar-se e a gri­
tar. De repente apareceram muitas parteiras de todos os lados

50
GARGÂNTUA

e, apalpando-lhe os fundos, encontraram umas peles de muito


mau gosto e pen saram que era a criança; mas era o fundamen­
to(*) que lhe escapava, pelo afrouxamento do recto derivado de
ter comido tripas de mais, conforme acima se declarou.
Uma velha imunda do grupo, que tinha fama de ser grande
médica e que viera de Brizepaille, perto de Sainct Gen ou, ses­
senta ano s antes, fez-lhe um adstringente tão h orrível que lhe
pôs os esfíncteres tão opilados e apertados que só a muito custo,
com os dentes, se poderiam alargar, o que é coisa terrível de
pensar: assim o diabo, ao e screver a conversa de duas tagare­
las na missa de São Martinho, esticou o seu pergaminho com os
dentes3.
Por este conveniente se relaxaram em cima os cotilédones
da matriz, através dos quais saltou a criança, que entrou na
veia cava e, subindo pelo diafragma até aos ombros (onde a di­
ta veia se abre em duas), virou à esquerda, e saiu pela orelh a do
mesmo lado.
Assim que nasceu, não gritou como as outras crianças:
«Mies! mies!», mas em voz alta berrava : <<De beber, de beber,
'
de beber!>>, como se convidasse toda a gente a beber, de tal modo
que foi ouvido por toda a região de Beusse e de Bibaroys4.
Suspeito que não acreditais firmemente nesta estranha na­
tividade. Não m e importa que não acrediteis, mas um h omem
de bem, um homem de bom sen so, acredita sempre no que lhe di­
zem e no que vê escrito. Acaso é contra a nossa lei, a n ossa fé,
contra a razão, contra as Sagradas Escrituras? Quanto a mim,
não encontro nada escrito na Santa Bíblia que seja contra isso.
Mas, se fosse essa a vontade de Deus, acaso diríeis que não o po­
deria fazer? Ah, por piedade, não atrapalheis o vosso espírito
com esses vãos pensamentos, pois eu vos digo que a Deus nada
é impossível e, se Ele quisesse, doravante as mulheres teriam
filhos pelos ouvidos.
Baco não foi gerado pela coxa de Júpiter?
Rocquetaillade não nasceu do calcanhar da mãe5?
Minerva não nasceu do cérebro pela orelha de Júpiter?
Adónis da casca de uma árvore de mirra6?
Castor e Pólux da casca dum ovo, posto e chocado por Leda7?
Mas ainda ficaríeis mais espantados se passasse a expor-
-vo s todo o capítulo de Plínio onde se fala dos partos estranhos
e contra a natureza; e todavia não sou tão confirmadamente

(*) O ânus. (N. da T.)

51
RABELAIS

mentiroso como ele foi. Lede o sétimo capítulo da sua História


Natural, capi. iij . , e não me deis cabo do juízo.

NOTAS
1 Como os cavalos soltos nos campos verdes, aos quais voltam a crescer
os cascos.
2 Alusão a uma passagem do Evangelho de S. João segundo a qu af a mu­
lher esquece a angústia que sentiu no momento de dar à luz.
3 Alusão a uma lenda narrada no Mistério da Vida de S. Martinho: en­
quanto o santo celebra a missa, o diabo vai anotando num pergaminho a ta­
garelice de du as comadres. Como o seu rolo é muito curto para registar tudo,
puxa o pergaminho com os dentes para o esticar, mas este rasga-se e o diabo
cai, indo bater numa coluna.
4 Tanto Beusse, perto de Loudun, como o Vivarais (Bibarais), evocam o
verbo boire (beber).
5 As lendas de Roquetaillade e de Croquemouche não foram identifica­
das, mas a sua vizinhança com os deu ses da mitologia produz um efeito bur­
lesco.
6 Adónis era filho de Mirra e do próprio pai da princesa. Quando se desco­
briu o incesto, Mirra foi metamorfoseada na árvore do mesmo nome.
7 Jú piter, sob a fonna de um cisne, amou Leda, que pôs dois ovos: um, do
marido Tfndaro, deu origem a Castor e a Clitemnestra; do outro, fecundado
por Júpiter, nasceram Helena e Pó lux.

52
CAPÍTULO VII

COMO FOI DADO O NOME A GARGÂNTUAl ,


E COMO GOSTAVA DA PINGA

O bom Grandgousier, que bebia e folgava com os outros, ou­


viu o grito horrível que deu o seu filho ao vir a este mundo,
quando bramia pedindo: <<De beber, de beber, de beber !,, E dis­
se: <<Que garganta!»2 Ao ouvir isto, os assistentes disseram que
devia ficar com o nome de Gargântua, por terem sido essas as
primeiras palavras do seu pai quando ele nasceu, segundo o
exemplo dos antigos hebreus3, no que este condescendeu e muito
agradou à mãe. E, para o sossegar, deram-lhe de beber à farta,
e l evaram-no a baptizar às fontes, como é costume dos bon s
cristãos.
E foram-lhe dadas dezassete mil n ovecentas e treze vacas
de Pautille e de Brehemond4 para o amamentar. Pois não era
possível encontrar em todo o país ama suficiente, dada a gran­
de quantidade de leite necessária para o alimentar, embora al­
guns doutores escotistas5 tenham afirmado que a sua mãe o
amamentou e que podia tirar das tetas quatrocentas e duas pi- ,
pas e nove jarros de leite de cada vez, o que não é verosímil, e
tal afirmação foi declarada mamalmente escandalosa, ofens_i­
va para ouvidos piedo sos e tresandando a heresia.
Nesse estado ch egou ele a um ano e dez meses, tempo em
que, a con selho dos médicos, começaram a tran sportá-lo e lhe
fizeram uma bonita carroça de bois inventada por Jeh an De­
nyau6. Nela o passeavam alegremente por aqui e por ali , e era
uma alegria vê-lo, pois tinha boa cara e possuía quase dezoito
queixos; e chorava pouco, mas cagava-se a toda a hora, pois
era maravilh osamente fl eumático das nádegas, tanto por com­
pleição natural como pela disposição acidental causada por sor­
ver muito puré setembrino7. E não lhe sorvia nem uma gota
sem motivo, pois, se estava aborrecido, irado, zangado ou con-

53
RABELAJS

trariado, se batia com os pés, chorava ou gritava, traziam-lhe


de beber e ele voltava à sua natureza, pondo-se de repente quie­
to e alegre.
Uma das suas governantas contou-me e jurou-me que esta­
va tão habituado a isto que só de ouvir o som das pintas(*) e das
garrafas entrava em êxtase, como se saboreasse as alegrias do
paraíso. De m odo que, considerando e sta compleição divina e
para o pôr alegre, logo pela manhã mandavam bater nos copos
com uma faca diante dele, ou em frascos com a própria rolha,
ou em pintas com a tampa, e ele alegrava-se com esse som,
sobressaltava-se e embalava-se a si mesmo, abanando a ca­
beça, monocordizando(**) com dos dedos e bariton ando com
o cu.

NOTAS
I O nome de Gargântua, como o dos seus pais Grandgousier e Gargamel­
le, significa <<grande goela» e por conseguinte <<grande comilão». De origem
meridional, é citado em 14 71 num registo do bispo de Limoges: é a alcunha du­
ma visita do bispo. Foi popularizado pelas Grandes Crónicas, onde Rabelais
se inspirou .
2 <<Que grand tu as!>> (as goelas).
3 O nome da criança não era determinado pelas primeiras palavras do
pai, mas por uma circustância correlativa ao nascimento .
4 Pontille e Bréhémont são nomes de localidades reais, e é desta co nstan­
te mistura de elementos da realidade e da ficção (como a quantidade incrível
de vacas necessárias para amamentar Gargântua) que resulta a graça do
Gargântua.
5 Discípulos de Duns E scoto , franciscano do século XIII, que Rabelais con­
sidera como o símbolo das trevas escolásticas.
6 Nome muito corrente na região de Chinon.
7 Vinho. Cf. Pantagruel, cap. I, p. 53: <<Todos foram apreciadores de puré
setembrino, e cap. XXXIV , p. 435: <<Os registos do meu cérebro estão um pouco tol­
dados com este puré setembrino.»

(*) Antiga medida para líquidos (0,93 1). (N. da T.)


(**) Tocando «monocórdio», uma espécie de cravo. (N. da T.)

54
CAP ÍTULO VIII

COMO VESTIRAM GARGÂNTUA

Chegando ele a esta idade, o seu pai ordenou que lhe confec­
cionassem o vestuário de acordo com a sua libré(*), que era
branca e azul. E logo trataram disso e o fizeram, cortaram e
coseram segundo a moda da época. Segundo os antigos l etrei­
ros que estão na Câmara de Contas em Montsoreaul , verifico
que o vestiram do seguinte modo:
Para a camisa, cortaram-se novecentas varas de fazenda
de Chasteleraud2, e duzentas para os sovacos, em forma de qua­
drados, que lhe puseram debaixo dos braços. E não era muito
franzida, pois o franzido das camisas só foi inventado quando,
tendo partido a ponta da agulh a, as costureiras começaram a
costurar com o cu.
Para o gibão cortaram-se oitocentas e treze varas de cetim
branco, e para os cordões(*), mil e quinhentas e nove e meia pe­
les de cão. Começaram então a coser os calções ao gibão, e não o
gibão aos calções, pois i sso é contra a n atureza, conforme decla­
rou Olkam3 sobre os Exponíveis de M. Haltechaussade.
Para os calções cortaram-se mil cento e cinco varas e um
terço de estamenh a branca. E recortaram-n as em forma de
colunas, estriadas e caneladas n a parte de trás, a fim de aque­
cer os rins. E o calção enfunava como devia ser nos recortes de
damasco azul. E notai que tinha belas pernas e bem proporcio­
nadas com o resto da estatura.
Para a braguilha cortaram-se dezasseis varas e um quarto
do mesmo tecido. E foi feita em forma de arcobotante, bem pre-

(*) Anti gamente eram as vestes com as cores das armas de u m rei ou de
u m senhor usadas pelo seu séquito. (N. da T.)

55
RABELAIS

so e alegremente a dois agrafos de esmalte, cada um dos quais


tinha enconstoada uma grande e smeralda do tamanho duma
laranja4. Pois (como diz Orpheus, libro De Lapidibus5 e Plínio,
libro ultimo6), tem a virtude erectiva e confortativa do membro
natural. A saliência da braguilha era do tamanho duma
vara7, recortada como os calções, de damasco azul a flutuar co­
mo aqueles. Mas, ao verdes o lindo bordado a canotilhoB e os ai­
rosos entrelaçados de ourivesaria, guarnecidos de finos dia­
mantes, finos rubis, finas turquesas, finas e smeraldas e
uniões pérsicas9, tê-la-íeis comparado a um belo corno da
abundância, tal como vedes nos monumento s antigos, e como a
que Reia deu às duas ninfas Adrasteia e Ida, amas de Júpitert o
- sempre galante, suculenta, sempre verdejante, sempre flo­
rescente, sempre frutificante, cheia de humores, cheia de flo­
res, cheia de frutos, cheia de todas as delícias. Juro por Deus
que era um prazer para a vista! Mas melhor vos falarei dela no
livro que escrevi Da dignidade das braguilhasu . Digo-vos po­
rém que, sendo comprida e ampla, era bem guarnecida por den­
tro e bem abastecida, em nada se assemelhando às hipócritas
braguilhas dos peralvilhos, que estão cheias de vento, para mal
do sexo feminino.
Para os sapatos cortaram-se quatrocentas e seis varas de
veludo azul carmesim. E recortaram-se mimosamente em li­
nhas paralelas unidas em cilindros uniformest 2. Para a sola,
empregaram-se mil e cem peles de vaca parda, cortadas em
feitio de rabo de bacalhau.
Para o saio cortaram-se mil e oitocentas varas de veludo
azul , tingido de escarlate, bordado com belas vinhetas e, no
meio, com taças de prata em canotilho, entrelaçadas com ver­
gast a de ouro, com muitas pérolas, para mostrar que ele seria
um grande bebedor no seu tempo.
O cinto foi de trezentas vacas e meia de sarja de seda, meio
branca e meio azul (ou estarei muito enganado).
Não foi valencianat 4 a sua espada, nem saragoço o seu pu­
nhal, pois o seu pai detestava todos esses fidalgos borrachos e
marranost5, como diabos; mas teve uma bonita espada de ma­
deira e um punhal de couro, pintados e dourados como todos gos­
tariam de ter.
A sua bol sa foi feita com o colhão dum elefante que lhe deu
Her Pracontal , procônsul da Libiat s.

(*) Para unir os calções ao gibão. (N. da 7'.)

56
GARGÂNTUA

Para o vestido cortaram-se nove mil e seiscentas varas me­


nos dois terços de veludo azul, tudo fiado a ouro em figura dia­
gonal, o que , por justa perspectiva, dava uma cor indescritível
tal como a que se vê no colo das rolas e que regala maravilhosa­
mente os olhos dos espectadores.
Para o barrete cortaram-se trezentas e duas varas e um
quarto de veludo branco. E a sua forma foi larga e redonda
como a cabeça, pois o seu pai dizia que os barretes à m ourisca,
feitos como a crosta dum pastel, haviam de causar desgraças
aos seus donos.
Para o penacho, uma grande e bonita pluma azul provenien­
te de um pelicano do país de Hircânia1 7 a selvagem, mimosa­
mente pendente sobre a orelha direita.
Para a imageml B, tinha, numa placa de ouro pesando ses­
senta e oito marcos19, uma figura de e smalte representando um
corpo humano com duas cabeças, uma virada para a outra, qua­
tros braços, quatro pés e dois cus, como diz Platão, in Sympo­
sio2o, que era a natureza humana no seu começo místico, e em
volta estava escrito em letras jónicas:

AiAITH OY ZHTEI TA EAYTJID!l .

Para trazer ao pescoço, uma corrente de ouro pesando vinte


e cinco mil sessenta e três marcos de ouro, em feitio de grãos,
entre os quais se haviam engastado grandes jaspes verdes gra­
vados e talhados em forma de dragões todos cercados de raios e
de chispas, como outrora os usava o rei Necepsos22, e descia até
à boca do alto-ventre, que toda a vida beneficiou disso, como sa­
bem os médicos gregos23.
Para as luvas usaram-se dezasseis peles de duendes e três
de lobisomem24 para o bordado, e de tal matéria lhe foram feitas
por ordem dos cabali stas de Sainlouand25.
Para os anéis (que o seu pai quis que usasse para renovar o
antigo sinal de nobreza) teve n o dedo indicador da mão esquer­
da um escarbúnculo do tamanho dum ovo de avestruz, mimosa­
mente encastoado em ouro de seraph26. No dedo anular, um
anel feito de quatro metais ligados da maneira mais m aravi­
lhosa que jamai s se viu, sem que o aço riscasse o ouro, sem que
a prata riscasse o cobre ; tudo isso foi feito pelo capitão Chap­
puys27 e Alcofribas, seu homem de mão. No dedo anular da mão
direita teve um anel em forma de espiral, no qual estavam en­
castoados um rubi, um diamante em ponta e uma esmeralda de
Physon2s, de preço inestimável, pois Hans Carvel29, grande la-

57
RABELAIS

pidário do rei de Melinde, atribuía-lhes um valor de sessenta e


nove milhões oitocentos e n oventa e quatro mil e dezoito carnei­
ros de farta lã30 , e pelo mesmo preço os avaliaram os Fourques
de Auxbourg31 .

NOTAS
1 Pequena cidade na confluência do Vienne e do Loire, que Rabelais co­
nheceu bem, mas onde nunca houve nenhuma Câmara de Contas.
2 Châtellerault (Vienne) tinha fazendas célebres nos séculos XVI e XVII.
3 Ockam, franciscano inglês do século XIV, chefe da escola nominalista.
Rabelais troça tanto dele como do seu adversário Duns Escoto. Os Expon!ueis
eram uma parte da lógica formal. M. Haultechaussade é um nome inven­
tado.
4 Esta braguilha é tão extraordinária como o gigante a quem pertence.
Rabelais já troçou desta moda no Pantagruel (cap. XVIII, p. 269): ,J>anurge colo­
cara na ponta da sua comprida braguilha uma linda borla de seda, vermelha,
branca, verde e azul, e metera-lhe dentro um bela laranj a.>>
5 Das pedras, falsamente atribuído a Orfeu.
6 O último livro da História Natural de Plínio fala das esmeraldas, mas
nenhum destes dois livros menciona a virtude erectiua da esmeralda; os trata­
dos médicos do século XVI pretendem, pelo contrário, que acalmava os ardores
amorosos.
7 <<Canne>>, medida equivalente a cerca de 1 ,80 m.
8 Bordado a fio de ouro ou prata enrolado em espiral .
9 Pérolas pescadas no golfo Pérsico.
1 0 Para o subtrair à voracidade de Saturno, Reia, mãe de Zeus, confiou-o
às ninfas Ida e Adrasteia, que o alimentaram com o leite da cabra Amalteia,
no monte Ida, situ ado na Grécia . Tendo-se partido um corno da cabra, enche­
ram-no de frutos e de flores, e assim se tornou um corno da abundância.
1 1 Cf. <<Prólogo» e Pantagruel (cap. xv).
1 2 Depois da moda dos sapatos de polaina, muito afilados e bicudos, fize­
ram-se sapatos quase rectangulares, de biqueira quadrada, com a parte de ci­
ma em tecido aos gomos ou «cilindros».
1 3 Anéis.
1 4 De Valença: as armas de Valença e Saragoça eram famo sas.
1 5 Os marrano_s são recém-convertidos, mouros ou judeus. Muitos no­
bres espanhóis tinham contraído casamento com marranas.
1 6 Possível alusão a Humbcrt de Pracontal, célebre corsário do Mediterrâ­
neo.
1 7 Região da Ásia Central, símbolo de selvajaria; os antigos compara-
vam os amantes furiosos a «tigres da Hircânia» .
1 8 Emblema que se usava no chapéu ou no barrete.
1 9 O marco pesava pouco mais de 244 g.
20 O Banquete, diálogo sobre o amor; trata-se do retrato de Andrógino se­
gundo Platão (1 89 c).
21 Citações de S. Paulo, 1. � Ep. aos Cor!ntios: <A caridade não procura a
sua própria vantagem», conselho altruísta.
22 Nekepso, rei do Egipto de 681 a 674. Tinha fama de mago.

58
GARGÂNTUA

2 3 Rabelais alude ao tratado atribuído a Galeno, em que se atribuem pro­


priedades curativas aojaspe.
24 A pele do duende pass ava por ser impenetrável às balas. No século XVI
acreditava-se muito na existência dos lobisomens.
25 Os cab alistas são os intérpretes da Biblia. A expressão tem um sentido
pejorativo e designa os monges de Saint-Louand, aldeia um pouco acima de
Chion.
26 Ouro puro . O seraph é uma moeda egípcia ou persa.
27 Amigo de Rabelais, embora não se possa identificá-lo seguramente
com o capitão de navio Michel Chappius; Alcofribas, anagrama de Rabelais
(cf. os frontespícios do Pantagruel).
28 Rio do Paraíso Terrestre.
29 Hans Carvel reaparece com o mesmo título no Terceiro Livro, cap.
XXVIII.
30 Nome das moedas de ouro representando o agnus dei.
31 Os Fugger, célebres banqueiros de Augsburgo, enriquecidos com o co­
mércio, a usura e a importação de pedras preciosas vindas das Índias . Condes
do Império e mecenas, constituíam uma verdadeira dinastia de fama mun­
dial.

59
CAP ÍTULO IX

AS CORES E A LffiRÉ DE GARGÂNTUA

As cores de Gargântua foram o branco e o azul , como acima


pudestes ler, e com estas pretendia o seu pai dar a entender que
ele era uma alegria celeste, pois o branco significava alegria,
prazer, delícias e júbilo, e o azul coisas celestes.
Receio que, ao dizer estas palavras, façais troça do velho be­
berrão e considereis a exposição das cores grosseira e impró­
pria, e digais que o branco significa fé e o azul firmeza! . Mas,
sem vos moverdes, irritardes, sem vos aquecerdes nem alterar­
des (pois o tempo é perigoso), respondei-me, se assim vos aprou­
ver. Nem vos obrigarei a outra coisa, sej a qual for: apenas vos
direi uma palavra.
Quem vos move? Quem vos diz que o branco significa fé e o
azul firmeza? Um (dizeis vós) livro mesquinho que é vendido
pelos mercadores ambulantes com o título de: O Brasão das Co­
res2. Quem o faz? Seja quem for, foi prudente não lhe pondo o
seu nome. Mas, de resto, não sei o que devo admirar primeiro:
se a sua presunção, se a sua estupidez:
a sua presunção que, sem razão, sem causa e sem aparên­
cia, ousou descrever por sua autoridade privada as coisas que
seri am denotadas pelas cores, o que é costume dos tiranos que
querem substituir o seu arbítrio à razão, não dos sábios, que por
razões manifestas contestam os leitores;
a sua estupidez que, sem outras demon strações e argumen­
tos válidos, pensou que o mundo regeria as suas divisas pelas
suas designações tolas.
De facto (como diz o provérbio : «Em cu de cagão sempre
abunda merda>>), encontrou alguns tolos do tempo dos barretes
altos3, os quais acreditaram nos seus escritos e de acordo com
eles talharam as suas sentenças e ditados, ajaezaram as suas
mulas, vestiram os seus pajens, cortaram os seus calções, bor-

60
GARGÂNTUA

daram as suas luvas, franjaram os seus leitos, pintaram as


suas insígnias, compuseram can ções, e (o que é pior) fizeram
imposturas e partidas cobardes e clandestinas entre as pudicas
matronas4.
Nessas trevas se incluem os gloriosos da corte e portadores
de nomes, os quais, querendo que as suas divisas significas­
sem esperança, mandam desenhar uma esferas, penas de pás­
saros para as penas da alma, a ancólia para a melancolia6, a
lua b icorne para viver em crescente, um banco roto para a ban­
carrota, não e uma armadura para non durhabit7, um leito sem
dossel para um licenciados, que são homónimos tão ineptos, tão
chochos, tão rústicos e bárbaros que se havia de prender um ra­
bo de raposa ao colarinho e pôr uma máscara duma bosta de va­
ca a cada um dos que doravante as quisesse usar em França,
após a restituição das letras9.
Pelas mesmas razões (se acaso são razões e não cismas),
mandaria eu pintar um cestolO a mostrar que me fizeram pe­
nar; e um pote de mostarda, que é o meu coração ao qual muy
tardau ; penico que é um oficiall 2 : e os fundilhos dos meus cal­
ções que são um vaso de peidosl 3 ; e a minha braguilha é uma
lança em riste(*).
Diversamente faziam outrora os sábios do Egipto quando
e screviam com letras chamadas hieróglifos, que ninguém en­
tendia se não soubesse e só entendia quem soubesse a virtude,
propriedade e natureza das coisas nelas figuradas ; com elas
compôs Orus Apollon dois livros em grego, e Polífilo, no Sonho
de Amores, ainda mais se alongoul 4. Tendes em França frag­
mento s delas na divisa do Senhor Almirantets, primitivamen­
te usada por Octaviano Augusto.
Mas mais adiante não velejará o meu esquife entre esses
abismos e vaus desagradáveis : volto a fazer escal a no porto de
onde arribei. Mas tenh o esperanças de um dia me alongar a es­
se respeito, e mostrar, tanto por razões filosóficas como por auto­
ridades recebidas e aprovadas de grande antiguidade, quais e
quantas cores existem n a natureza, e o que pode ser designado
por cada uma delas.

(*) É evidente que, em casos co mo estes, a tradução parece não fazer


sentido e empobrece necessariamente o texto, pelo que conv6m que o leitor se
remeta às notas . (N. da T.)

61
RABELAIS

NOTAS

Era, com efeito, o sentido atribuído pelos heráldicos a estas cores.


2 O Brasão das cores em armas, librés e divisas. . . , opúsculo redigido em
1458 por Sicília, arauto do rei de Aragão, e várias vezes traduzido em francês
a partir de 1 528.
3 Les hauts bonnets, chapéus do século precedente, que tinham passado de
moda e simbolizavam os outros tempos.
4 Usando as suas cores sem autorização.
5 Esperança (espoir) e esfera (sphere) pronunciavam-se esper e espere.
6 Ancólia, flor azul ou arroxeada.
7 Um dur habit, uma veste dura.
B Um lit sans ciel e um licencié.
9 O Renascimento .
1o Panier (em Paris, o a pronunciava-se e: penier).
11 Moult tarde.
12 Officier, oficial dos tribunais eclesiásticos mas também vaso de noite,
bacio.
1 3 Vaisseau de paix (vaso de paz, navio mercante) e vase de pets.
1 4 Um gramático, Orus Apollon, tinha composto uma recolha intitulada
Hierogliphica; o Sonho de Amores é um romance alegórico de Francesco Co­
lonna em que figuravam incrições em grego, em hebreu e em hieróglifos. Foi
traduzido por Jean Martin (1 546) sob o título Hypnérotomachie ou discours du
songe de Poliphile.
1 5 Guillaume de Bonnivet, almirante de França, que foi morto em Pavia
(1 525). A sua divisa, copiada do imperador Augusto (Festina lente: apressa-te
lentamente), está gravado na sua sepultura e numa abóbada do castelo de Bon­
nivet . Era representada simbolicamente por um gol finho a simbolizar a velo­
cidade (festina) e uma âncora, a imobilidade (lente). Era também a marca do
célebre editor veneziano Aldo que, precisamente, publicara a Hypnérotoma·
chie.

62
CAPÍTULO X

DO SIGNIFICADO DAS CORES BRANCA E AZUL

O branco significa, por con seguinte, alegria, con solação e


júbilo, e não erradamente mas de direito e com razão, o que po­
dereis verificar se, apartando-vos dos vossos preconceitos, qui­
serdes entender o que agora vos explicarei.
Diz Aristóteles que, supondo duas coisas contrárias em espé­
cie , como o bem e o mal, a virtude e o vício, o frio e o quente e
assim por diante, se as juntardes de tal maneira que o contrá­
rio de uma espécie convenha racionalmente ao con trário da ou­
tra, resulta que o outro contrário coincide com o outro resíduo.
Exemplo: virtude e vício são contrários numa espécie, como
também bem e mal; se um dos contrários da primeira espécie
convém ao da segunda, como virtude e bem, pois sabe-se que a
virtude é boa, o mesmo farão os dois resíduos que são mal e ví­
cio, pois o vício é mau.
Entendida esta regra lógica, considerai estes dois contrá­
rios: alegria e tristeza, depois estes outros doi s: branco e preto,
pois são contrários por natureza. Por conseguinte , se o negro
significa luto, o branco significa alegria.
E este significado não foi instituído por imposição humana,
mas recebido por consentimento de todo o mundo, que os filóso­
fos chamam jus gentiumi , direito universal, válido em todos os
países.
C omo por demai s sabeis que todos os povos, todas as nações
- excepto os antigos siracusanos e certos argivos que ti nham a
alma às avessas2 -, todas as línguas, quando querem demons­
trar exteriormente a sua tristeza, põem vestes negras, e todo o
luto é feito de negro. E este con senso universal não se faz sem
que a natureza lhe dê algum argumento e razão, a qual todos po­
dem compreender por si sem que n inguém os in strua - e ch a­
mamos-lhe direito natural .

63
RABEI.AJS

Por branco, pelos mesmos sentimento s naturais, toda a gen­


te entende alegria, júbilo, consolação, prazer e deleite.
Nos tempos passados, os trácios e cretas assinalavam os
dias fastos e alegres com pedras brancas, e os tristes e nefastos
com pedras negras. ,
Pois não é a noite funesta, triste e melancólica? E n egra e
escura por privação. A claridade não alegra toda a natureza. E
é mais branca que todas as coisas. Para o provar, poder-vos­
-ia remeter para o livro de Laurens Valle contra Bartole3, mas
o testemunho evangélico vos bastará: Mat., xvj, diz-se que, na
Transfiguração de Nosso Senhor, vestimenta ejus {acta sunt al­
ba sicut lux4, as suas vestes tornaram-se brancas como a luz, e
essa brancura luminosa era para dar a entender aos seus três
apóstolos a ideia e figura das alegrias eternas. E com essa cla­
ridade todos os humano s se regozijam, como uma velha que
não tinha dentes na boca mesmo assim dizia: Bona Lux5. E To­
bias (cap. v), quando perdeu a vista, respondeu à saudação de
Rafael: «Que alegria poderei eu ter se não vejo a luz do céu?»
Com essa cor testemunham os anjos a alegria de todo o univer­
so no momento da Ressurreição do Salvador (Joan. xx) e da
sua Ascensão (Act. j). Com igual adorno viu S. João Evangelis­
ta (Apocal. iij e vi}) vestidos os fiéis na celeste e bem-aventura­
da Jerusalém.
Lede as histórias antigas, tanto gregas como romanas. Ve­
reis que a cidade de Alba (primeiro patrono de Roma) foi cons­
truída e baptizada por causa de uma porca branca6.
Vereis que, se após ter vencido os inimigos, decretassem a
alguém que entrasse triunfante em Roma, entrava numa car­
ruagem puxada por cavalos brancos; o mesmo fazia o que entra­
va em ovação7, pois não havia sinal nem cor que mais certa­
mente pudesse exprimir a alegria da sua vinda que o branco.
Vereis que Péricles, duques dos atenienses, quis que os seus
soldados a quem tinham calhado favas brancas passassem to­
do o dia em alegria, consolo e repouso, enquanto o s outros bata­
lhariam9. E poder-vos-ia citar mil outros exemplos a este res­
peito, mas não é este o lugar de fazê-lo.
Graças a este saber podeis resolver um problema que Ale­
xandre AfrodísiolO considerou absurdo: «Por que motivo o leão,
que só com o seu grito e rugido apavora todos os animais, só te­
me e venera o galo branco?>> Pois (assim o diz Proclo, lib. De
Sacrifício et Magial l ) é porque a presença da virtude do Sol, que
é o órgão e o receptáculo de toda a luz terrestre e sideral, é sim­
bolizada e pertence mais ao galo branco, tanto por esta cor como

64
GARGÂNJUA

pela sua propriedade e ordem e specífica, do que ao leão. E tam­


bém se diz que muitas vezes apareceram diabos com forma leo­
nina, os quais desapareceram subitamente ao verem um galo
branco.
É por esse motivo que os Galli (que são os franceses, assim
chamados por serem naturalmente brancos como o leite, que os
gregos designavam por ruwl2) gostam de usar penas brancas
nos chapéus, pois são por natureza alegres, cândidos, graciosos
e bem-amados, e escolheram como símbolo e insígnia a flor
mais branca de todas, e que é o lírio.
S e perguntai s como é que a natureza nos leva a entender pe­
la cor branca a alegria e júbilo, respondo-vos que a analogia e
conformidade é a seguinte: como o branco divide e dispersa ex­
teriormente a vista, dissolvendo manifestamente os espíritos
visuais, segundo a opinião de Aristóteles nos seus Problemasl3
e dos perspectivos (e vós o vedes por experiência quando passais
por montes cobertos de neve, de modo que tendes pena de não po­
der ver bem, como Xenofonte escreve que aconteceu aos seus sol­
dadosl4, e como Galeno amplamente expõe, lib. x, De usu par­
tium15) - também assim o coração é interiormente dispersado
por uma alegria excelente e sofre uma di ssolução manifesta
dos espíritos visuais, a qual não pode ser grande, pois o coração
ficaria espoliado do seu sustento e por conseguinte a vida extin­
guir-se-ia com este excesso de alegria, como diz Galeno, lib.
xj, Metho. 16, li. v, De locis affectis, e li. ij, De symptomaton cau­
sis, e como aconteceu no passado testemunham Marco Túlio,
li. j Quoestio. Tuscul., Vérrio1 7, Aristóteles, Tito Lívio, após a
batalha de Canas, Plínio, lib. vij, c. xxij e liij, A Gellius, li
iij, xv., e outros, a Diágoras Rodiano, Cilo, Sófocles, Dionísio,
tirano da Sicília, Filípidas, Filémon, Policrata, Filiston, M.
Juventi e outros que morreram de alegrials, e como diz Avice­
na1 9 (in ij canone et lib. De Virib us cordis) do açafrão, o qual é
tão apreciado pelo coração que o despoja da vida, se for tomado
em dose excessiva, por dispersão e dilatação supérflua. Aqui ve­
de Alex. Afrodisianozo, lib. primo Problematum, c. xix. E com
razão21 .
Mas o quê! Alongo-me mais nesta matéria do que estabe­
leci no começo. Calarei, pois, aqui as minhas velas, remetendo
o resto para o livro completamente acabado nesta matéria22, e
direi numa palavra que o azul significa certamente o céu e as
coisas celestes, pelos mesmos símbolos que o branco significa
alegria e prazer.

65
RABELAIS

NOTAS
O consenso universal, que se tornou o direito das gentes.
2 Segundo Plutarco, os siracusanos e os argivos usavam o branco em si­
nal de luto.
3 O humanista Laurent Valia atacara o jurista Bartole (1 31 4-1 357) nu­
ma epístola latina, Ad candidum Decembrem (Ao Dezembro branco). Afirma­
va ele que a cor mais nobre era a do ouro e não o branco.
4 Rabelais não segue o texto da Vulgata: <<As suas vestes tornaram-se
brancas como a neve•• (sicut nix), mas a correcção de Erasmo: <<brancas como
a luz» (sicut lux), inspirada no texto grego . Rabelais conhecia por conseguin­
te a edição erasmiana do Novo Testamento.
5 Veja-se Erasmo, Elogio da Loucura, cap. XXXI .
6 Segundo a Eneida, canto III, v. 388: Asãnio, filho de Eneias, descobriu
urna porca branca, e nesse lugar fundou a cidade de Alba.
7 A ovação recompensava um sucesso militar inferior à vitoria, que da­
va lugar ao triunfo, cujas condições eram estritas (5000 inimigos mortos,
etc.). Rabelais podia também alegar que se escolhiam animais brancos para
serem sacrificados ou, caso não os encontrassem, embranqueciam os outros,
cobrindQ-Qs de cal.
8 Rabelais actu aliza os títulos gregos: duque traduz crt<Xtl])QÇ, general.
g. Segundo Plutarco, Vida de Péricles, 27.
1 0 Comentador de Aristóteles, contemporâneo de Marco Aurélio, que esta­
belecera um repertório de questões insolúveis; a cor branca do galo não é indi­
cada.
1 1 Extraído do comentário de Marsílio Ficino sobre os trabalhos de Pro­
elo, filósofo platónico do século v da era cristã (Procli de Sacrificio et Magia).
1 2 Etimologia alegada por Jean Lemaire de Belges, nas suas Ilustrações
da Gália.
1 3 Comentário livre aos Problemas de Aristóteles.
1 4 NoAnabase.
1 5 Galeno, livro x, Do uso das partes.
16 Galeno , De Methode Mendendi (Método de curar). O livro Xll trata das
síncopes.
1 7 Gramático latino citado por Plínio o Antigo.
1 8 Todos estes exemplos de mortos de alegria encontravam-se reunidos
no O((u:ina, compilação de Ravisius Textor.
1 9 Filósofo e médico árabe (980-1 037).
20 Alexandre de Afrodisias, autor da obra Dos Problemas.
21 Et pour cause, fórmula conclusiva na linguagem jurídica.
22 Trata-se provavelmente de um projecto imaginário.

66
CAP ÍTULO XI

DA ADOLESCÊNCIA DE GARGÂNTUA

Dos três aos cinco anos, Gargântua foi alimentado e in struí­


do com toda a disciplina que convinha, por ordem do seu pai, e
passou esse tempo como as crianças do país, ou seja, a beber,
comer e dormir, a comer, dormir e beber, a dormir, beber e
comer.
C on stantemente rebolava na lama, mascarrava o nariz,
lambuzava a cara, rompia os sapatos, bocejava às moscas, e cor­
ria atrás das borboletas, cuj o império pertencia ao seu pai. Mi­
java em cima dos sapatos, borrava a camisa, assoava-se às
mangas, deixava cair o ranho na sopa e chafurdava por toda a
parte, e bebia da pantufa, e gostava de esfregar a barriga com
um cesto. Aguçava os dentes num tamanco, lavava as mãos na
sopa, pintava-se com um copo, sentava-se entre duas cadeiras
de cu no chão, cobria-se com um saco molhado, bebia enquanto
comia a sopa, comia biscoitos sem pão, mordia a rir, ria a mor­
der, cuspia para dentro da bacia, rebentava de gordo, mijava
para o sol, e para fugir da chuva, escondia-se dentro de água,
malhava o ferro quando estava friol , fazia castelos no ar, fazia­
-se bonzinho, vomitava as tripas, resmungava para dentro,
voltava à vaca fria, fazia tudo ao contrário, batia no cão à fren­
te do leão2, punha a carroça à frente dos bois, coçava-se onde
não tinha comichão, tirava macacos do nariz, tinha mais olhos
que barriga, comia os bolos antes do pão, ferrava cigarras3, fa­
zia cócegas a si próprio para rir, comia muito bem na cozinha,
dava palha aos deuses4, mandava cantar o Magnificat de ma­
nhã e achava-o muito a propósitos, comia couves e cagava acel­
gas, via o que entrava pelos olhos adentro, arrancava as patas
às moscas, arranhava o papel e lambuzava o pergaminho, da­
va às de vila-diogo, bebi a como um odre, ia à caça de mãos a
aban ar, j ulgava que as nuvens eram sertãs e que as bexigas

67
RABELAIS

eram lanternas, matava dois coelhos com uma caj adada, fazia­
-se burro para conseguir o que queria, e do punho fazia um ma­
lho, queria que grão a grão enchesse a galinha o papo, olhava
sempre o dente a cavalo dado, misturava alhos com bugalhos,
dava uma no cravo outra na ferradura, se as nuvens estavam
baixas contava apanhar andorinhas, fazia da necessidade vir­
tude, fazia sopas de qualquer pão, e tanto se lhe dava como se
lhe deu, todas as manhãs vomitava as tripas. Os cãezinhos do
seu pai comiam na sua e scudela, e ele também comia com eles.
Mordia-lhes as orelhas, e eles arranhavam-lhe o nariz; sopra­
va-lhes para o cu, e eles lambiam-lhe os beiços.
E sabeis o quê, meus filhos? Que a bebedeira dê cabo de vós !
Este malandro estava sempre a apalpar as governantas, de ci­
ma para baixo e de trás para a frente - arre burrinho! - e já co­
meçava a exercitar a braguilha, que todos os dias as governan­
tas enfeitavam com lindos raminhos, lindas fitas, flores e bor­
las, e passavam o tempo a passar-lhe a mão por cima e depois
desatavam a rir quando ela levantava as orelhas, como se gos­
tassem da brincadeira.
Uma chamava-lh e meu espichozinho, a outra meu alfine­
te, a outra meu ramo de coral, a outra meu gatinho , minha ro­
lha, minh a pua, meu berloque, meu passatempo duro e baixo,
minh!l linguiça vermelha, meu colhãozinho.
<<E minha•• , dizia uma.
<<E eu (dizia outra) fico sem nada? Então juro que hei-de
cortá-la.••
••Cortá-la! (dizia outra); magoá-lo-íei s, senhora; então
agora corta-se a coisa às crianças? Ficaria um senhor sem
cauda. >>
E para folgar como os meninos do país, fizeram-lhe um ca­
tavento com as asas de um moinho de vento de Myrebalays.

NOTAS
1 Segue-se uma série .de ditados populares, a que Rabelais se diverte a in­
verter o sentido.
2 Reprovar um inferior diante do seu superior, para que este aplique a li-
ção à su a própria pessoa.
3 Fazer uma coisa impossível, como «capar grilos».
4 Enganava os deuses, dando-lhes uma palha em vez de trigo.
5 O Magn.ificat canta-se nas vésperas, ofício da tarde, e não nas mati­
nas, prece da manhã.

68
CAPÍTULO XII

DOS CAVALOS FICTÍCIOS DE GARGÂNTUA

D epoi s, para que fosse toda a vida bom cavaleiro, fizeram­


-lh e um cavalo de pau, bonito e grande, e ele punha-o a saltar,
a fazer cabriolas e a dançar ao mesmo tempo, a andar a passo,
a trote, a furta-passo, a galope, a passo travado, a trotar como o
camelo ou como o onagro, e fazia-o mudar de pêlo (como os
monges mudam de dalmáticas segundo as festas) ; tornava-o
baio, alazão, cinzento, pêlo de rato, cor de veado, cor de vaca, sa­
rapintado, furta-cores, pigarço e branco.
Ele mesmo fez de uma zorra um cavalo para a caça, e outro
de um fuso para todos os dias, e duma corrente uma mula com a
almofada do quarto. E teve dez ou doze de muda e sete para a pos­
ta. E fazia-os dormirem todos ao pé dele.
Um dia o senhor de Painen sac vi sitou com grande aparato
o seu pai, e nesse dia também o tinham vindo visitar o duque de
Francrepas e o conde de Mouilleventl . E juro que os alojamen­
tos foram apertados para tanta gente, e sobretudo as estre­
barias; e assim, o mordomo e o despenseiro do dito senhor de
Painen sac, para saberem se havia mais estrebarias vazias na
casa, dirigiram-se a Gargântua, ainda rapazinho, e pergunta­
ram-lhe em segredo onde eram as estrebarias dos caval os de
batalha, pensando que facilmente as crianças contam tudo.
Então ele levou-os pelas e scadarias do castel o, passando
pelo segundo salão, até um a gran de galeria pela qual entra­
ram num grande torre e, subindo outras escadas, disse o pelei­
ro ao lacaio:
<<Esta criança engana-nos, pois as estrebarias nunca fi­
cam no alto das casas.>>
<< É que compreen destes mal (disse o lacaio), poi s conheço lu- .
gares em Lyon, em La Basmettre, em Chaisnon e noutras ter­
ras, onde as estrebarias ficam na parte mais alta das casas; e

69
RABELAIS

assim talvez haja uma saída lá em cima. Mas perguntá-lo--ei


mais seguramente.>>
E então perguntou a Gargântua:
<<Onde nos levais, meu riquinho?>>
<<À estrebaria (disse ele) dos meus cavalos de batalha. Esta­
mos quase a chegar, é só subir a escada.>>
Depois, passando por outra grande sala, levou--os ao seu
quarto e, empurrando a porta:
<<Aqui tendes (disse ele) as estrebarias que queríeis; aqui
está o meu gabinete, o meu cavalo das guildas, e o meu cavalo
dos Pirenéus.>>
E, carregando--os com uma grande tranca:
<<Dou-vos este frisão2 que veio de Francoforte, mas será vos­
so; é um rico cavalinho e muito trabalhador. Com uma ave de
altanaria, meia dúzia de galgos e dois lebréus, eis-vos reis
das perdizes e das lebres por todo o Inverno.
•<Valha-nos São João! (disseram eles) Estamos bem arran­
jados.
Adivinhai o que mais queriam fazer: ou esconder-se de
vergonha ou rir do passatempo.
Enquanto desciam muito confusos perguntou ele:
••Quereis uma ... (*)?>>
••Que é isso?>>, disseram eles.
••São cinco paus (disse ele) para vos fazer um açaime.>>
<<Por hoje (disse o lacaio), se já estamos assados não nos
queimemos, pois estamos bem entremeados. Pregaste-nos
uma bonita, meu rico, ainda um dia te vejo papa.>>
••Assim creio (disse ele); mas então vós sereis borboleta3, e
este rico papagaio será um papa-jantares.>>
«Talvez, talvez>>, disse o peleiro.
••Mas (disse Gargântua) adivinhai quantos pontos levou a
camisa de minha mãe.>>
<<Dezasseis>>, disse o peleiro.
••Não dizeis verdade (disse Gargântua), pois há a parte da
frente e a de trás, e contastes muito mal.>>
••Quando?>>, disse o peleiro.
••Quando (disse Gargântua) vos fizeram do nariz um espi­
cho para tirar um alqueire de merda, e da garganta um funil
para a pôr noutro navio, pois tinha o fundo roto.>>
<<Cos diabos! (disse o lacaio), encontrámos um tagarela.

(*) «Aubeliere», palavra desconhecida. (N. da T.)

70
GARGÂNIUA

Senhor tagarela, Deus vos livre do mal, que tendes a língua


solta!>>
Assim descendo a toda a pressa, à entrada da escada deixa­
ram cair a grande tranca com que ele os carregara e Gargân­
tua disse:
«Que maus cavaleiros vós sois! Falta-vos a montada quan­
do precisais dela. Se tivésseis de ir daqui a Cahusac, que prefe­
ríeis, cavalgar um pássaro ou levar uma porca pela trela?,,
<<Eu preferia beber>>, disse o peleiro.
E dizendo isto, entraram na sala baixa onde estava a com­
panhia e, contando-lhes esta nova história, fizeram-nos rir
como uns macacos.

NOTAS
1 Pain-en-sac (pão-no-saco: o avarento), Francrepas (comida de bor­
la) e Mouillevent (molha vento): nomes de fantasia designando parasitas.
2 Cavalo criado na Frise (Países Baixos).
3 Papillon, insecto, mas também papa pequeno ou partidário do papa; pa­
pcguay, papagaio e pape gai (papa alegre); papclard: papa-jantares, parasita
e hipócrita.

71
CAPÍTULO XIII
COMO GRANDGOUSIER CONHECEU
O ESPÍRITO MARAVILHOSO DE GARGÂNTUA
GRAÇAS À INVENÇÃO
DUMA MANEIRA DE LIMPAR O CU

No fim do quinto ano, de regresso da derrota dos canarria­


nosl , Grandgousier visitou o seu filho Gargântua. Alegrou-se
como um pai podia alegrar-se ao ver tal filho e, beijando-o e
abraçando-o, interrogava-o com perguntas pueris de vários
géneros. E fez-lhe companhia a ele e às suas governantas, às
quais perguntava com grande cuidado se entre outras coisas o
mantinham bem limpinho. Ao que Gargântua respondeu que
resolvera o caso de tal maneira que não havi a em todo o país ra­
paz mais limpo.
«Çomo é isso?>>, disse Grandgousier.
«E que (respondeu Gargântua) com longa e curiosa expe­
riência inventei uma maneira de limpar o cu mais senhorial,
mais excelente, mais expediente do que jamais se viu.
«E qual é?>>, disse Grandgousier.
«Uma vez limpei-me com um cachiné de veludo duma don­
zela e pareceu-me bom, pois a suavidade da seda causava-me
uma grande volúpia no traseiro;
>>doutra vez foi com um capucho, e aconteceu o mesmo;
>>doutra vez um lenço de pescoço;
>>doutra vez umas orelheiras de cetim carmesim, mas o dou­
rado de um monte de esferas de merda que tinha arranhou-me
o traseiro todo, que o fogo de Santo António queime o recto do ou­
rives que as fez e a donzela que as usava!
>>Passou-me o mal limpando-me ao gorro dum pajem, em­
plumado à maneira dos suíços.
>>Depois, cagando atrás dum arbusto, encontrei um gato e
limpei-me a ele, mas as suas garras ulceraram-me o perí­
neo.

72
GARGÂNTUA

>>No dia seguinte me curei, limpando-me às luvas de mi­


nha mãe, perfumadas de maljoint2.
>>Depois limpei-me com salva, funcho, manjerona, rosas,
folhas de abóbora, couves, pâmpano, malvas, verbasco (que tem
o cu escarlate), com alface e folhas de espinafre - e tudo i sso
me fez muito bem à perna -, com mercurial, persicária, urti­
gas, consolda, mas fiquei de vareta, e curei-me limpando-me
à braguilha.
>>Depois limpei-me aos lençóis, à coberta, às cortinas, a
uma almofada, a um tapete, a um pano, a um guardanapo, a
um lenço, a um penteador. E em tudo encontrei mais prazer do
que têm os leprosos quando lhes os esfregam.>>
«Talvez, mas (disse Grandousier) que maneira de limpar
o cu te pareceu melhor?>>
<<Já lá ia (disse Gargântua) e em breve sabereis o tu autem3.
Limpei-me ao feno, à palha, à estopa, com crina, com lã e com
papel. Mas
Sempre deixa alguma coisa nos colhões
Quem limpa o cu com papel.
<<Ü quê! (disse Grandousier), meu colhãozinho, será que be­
beste, visto que já fazes rimas?>>
<<Sim (respondeu Gargântua), meu rei, faço rimas destas e
doutras e, rimando, muitas vezes me constipo4. Ouvi o que diz a
nossa retrete aos cagadores:
Cagão
Caga-mole
Peidoso
Merdoso
A tua banha
A sair
Cai-nos em cima.
Porcalhão
Merdilheiro
A pingar
Que ardas no fogos de Santo António!
Se todos
Os buracos
Fechados
Não limpares antes de sair!

73
RABELAJS

<<Quereis mais?>>
«Quero>>, respondeu Grandgousier.
«Pois seja>>, disse Gargântua:
RONDÓ

Anteontem ao cagar senti


O imposto que devo ao meu cu;
O cheiro não foi o que eu esperava,
Fiquei todo empestado.
Oh, se alguém consentisse
Trazer-me a que espero
Ao cagar!
Pois eu lhe taparia
O buraco da urina à minha maneira saloia;
Enquanto ela com os dedos
Me garantisse o buraco da merda
Ao cagar!(*)
«Ora dizei que não sei rim ar! Pelà mãe de Deus, não fui eu
que os fiz mas, ouvindo-os recitar à grande dama que aqui ve­
des, fixei-os no gibão da minha memória.
«Voltemos (disse Grandgousier) à nossa conversa.>>
«Qual? (disse Gargântua). Cagar?>>
«Não (disse Grandgousier). Limpar o cu.>>
«Mas (disse Gargântua), quereis pagar-me uma barrica
de vinho bretão se eu não vos atrapalhar nessa matéria?>>
«Sim, decerto>>, disse Grandgousier.
«Não é preciso (di sse Gargântua) limpar o cu, senão quan­
do está sujo e só pode estar sujo quando se cagou, portanto é
preciso cagar antes de limpar o cu.>>
«Oh! (disse Grandgousier), que bom senso o teu! Um destes
dias faço-te doutor em gaia sabedoria5, por Deus!, pois tens ra­
zão de mais para a tua idade. Prossegue agora o teu discurso so­
bre as maneiras de limpar o cu. E, pela minha barba!, em vez
duma barrica receberás sessenta pipas de bom vinho bretão, o
qual não cresce na Bretanha mas no bom país de Verron6_,,
«Depois limpei-me (disse Gargântua) a um barrete, a uma

(*) O ptou -se nestes casos por urna tradução o mais literal possível , em­
bora em completo detrimento da rima, p ara não alterar o sentido do texto.
(N. da T.)

74
GARGÂNTUA

almofada, a uma pantufa, a um gibão, a um cesto - ó desagra­


dável limpa-cu! - e depois a um chapéu. E notai que há cha­
péus rasos, chapéus com pêlo, chapéus aveludados, de tafetá e de
cetim. O melhor de todos é o de pêlo, pois apanha bem a matéria
fecal.
>>Depois limpei-me a uma galinha, a um galo, a um fran­
go, à pele dum vitelo, duma lebre, dum pombo, duma gaivota, a
um saco de advogado, a um capucho, a uma coifa, a um pássaro
fingido(*).
>>Mas concluindo, digo e mantenho que não há nada me­
lhor para limpar o cu que uma ave cheia de penas, desde que
lhe metamos a cabeça entre as pernas. E podeis acreditar-me.
Pois sente-se no buraco do cu uma volúpia mirífica, tanto pela
suavidade das penas como pelo calor temperado da ave, o qual
facilmente é comunicado ao recto, até chegar à região- do cora­
ção e do cérebro. E não penseis que a beatitude dos heróis e dos
semideuses que estão nos Campos Elísios está no asfódelo ou
na ambrosia, ou néctar como dizem estas velhas. Mas está (na
minha opinião) no facto de limparem o cu a uma ave, e é essa a
opinião de Mestre J ehan d'Escosse7.

NOTAS
1 Os h abitantes do reino de Canarre (as Canárias).
2 Trocadilho obsceno : as luvas não são perfumadas de benjoi m (benjoin,
bien joint) mas de maljoint (mal ju nto, o sexo feminino).
3 Expressão tirada do serviço religioso: após cada lição das Escrituras, o
versículo Tu autem, Domine é repetido em coro. A locução significa: Tudo sa­
bereis até ao fim.
4 Trocadilho: rimer (fazer rimas, rimar) e enrhumer (consti par-se).
5 O título de doutor em gaia sabedoria era atribuído pela Academia dos Jo­
gos Florais de Toulouse.
6 Regi ão situ ada na confluência do Loire e do Vienne.
7 Outra alusão a Duns Escoto.

(*) Pássaro de couro para atriar o falcão. (N. da T.)

75
CAPÍTULO XIV
COMO GARGÂNTUA FOI INSTRUÍDO
POR UM SOFISTA EM LETRAS LATINAS

Ouvidos estes dizeres, o bom Grandgousier ficou encanta­


do, considerando a alta inteligência e o grande entendimento
do seu filho Gargântua. E disse às suas governantas:
<<Filipe, rei da Macedónia, conheceu o bom senso do seu fi­
lho Alexandre ao amestrar habilmente um cavalo, o qual era
tão terrível e desenfreado que ninguém ousava montá-lo, por­
que a todos atirava ao chão, partindo o pescoço a um, a outro as
pernas, a outro a cabeça, a outro as mandtbulas. Ao ver isto no
hipódromo (que é o lugar onde se passeavam e ensinavam os ca­
valos), Alexandre percebeu que a fúria do cavalo era o medo
que tinha da própria sombra. Pelo que, montando-se nele, fê­
-lo correr contra o sol de tal modo que a sombra lhe caía atrás,
e assim conseguiu amansar o cavalo à sua vontade. E nisso
conheceu o seu pai o divino entendimento que ele possuía, e fê­
-lo doutrinar muito bem por Aristóteles, que era então o mais
estimado de todos os filósofos da Grécia.
>>Mas digo-vos que por estas simples palavras que troquei
diante de vós com o meu filho Gargântua, reconheço que o seu
entendimento participa de alguma divindade, tão agudo, sub­
til, profundo e sereno o vejo, e se ele for bem ensinado alcança­
rá um grau soberano de sapiência. Portanto quero confiá-lo a
algum sábio para que o doutrine segundo as suas capacidades,
e nada quero poupar para esse efeito.>>
De facto, indicaram-lhe um grande doutor sofista chama­
do Mestre Tubal Holofernesl que lhe ensinou o alfabeto tão bem
que o dizia de cor de trás para a frente, e levou cinco anos e três
meses. Depois leu-lhe o Donat, o Facet, Theodolet e Alanus in
Parabolis2 e levou treze anos seis meses e duas semanas.
Mas notai que ao mesmo tempo aprendia a escrever gotica-

76
GARGÂNTUA

mente3 e escrevia todos os seus livros, pois a arte da impressão


ainda não era usada.
E costumava trazer um grande escritório que pesava mais
de sete mil quintais, e cujo estoj o era tão grande como os gran­
de pilares de Enay4 e o tinteiro estava pendurado numas gros­
sas correntes de ferro com a capacidade de um tonel de merca­
doria.
Depois leu De modis significandi5 com os comentários6 de
Hurtebize, Fasquin, Tropditeulx, Gualehaul, Jean le Veau, Bil­
lonio, Brelinguandus, e muitos outros, e levou mais de dezoito
anos e onze meses. E soube-os tão bem que, nas provas, os reci­
tava de trás para a frente e provava à sua mãe que de modis sig­
nificandi non erat scientia1.
Depois leu o CompostB, e levou dezasseis anos e dois meses,
quando lhe morreu o preceptor, e foi no ano mil quatrocentos e
vinte, dumas bexigas que teve.
Depois deram-lhe outro velho catarroso, chamado Mestre
Jobelin Bridé9, que lhe deu Hugutioto, Hebrard Grecismel l, o
Doutrinal12, Les Pars, o Quid est, o Supplementum, Marmotret
De moribus in mensa servandis13, Séneca De quator virtutibus
cardinalibus14, Passavantus cum Commentol 5, e Dormi secu­
re16 para as festas, e outros do mesmo género. E com tal leitura
tornou-se tão sábio como jamais produzimos algum.

NOTAS

1 Tuba! Holofernes associa dois nomes bíblicos: Tuba!, descendente de


Caim, inventor da metalurgia, e Holofernes, general de Nabucodonosor, mor­
to por Judite.
2 Obras escolares do tempo: Donat, gramática latina redigida por Dona­
tus (século rv); Facet, tratado de civilidade; Theodolet, tratado atribuído a
Theodolus, bispo da Síria (século v), que opunha a verdade das Sagradas
Escrituras às ficções da mitologia; as Parábolas de Alaru s eram conselhos
morais compostos em quadras. As Fábulas de Esopo completavam geralmente
estas obras.
3 Em caracteres góticos. A escrita italiana foi adoptada durante o Renas­
cimento .
4 A igreja de Saint-Martin d'Ainay é a mais antiga de Lyon ; a cú pula
era sustentada por quatro colunas de granito, provenientes do templo dedicado
a Roma e a Augusto.
5 Manual de gramática atribuído ora a S. Tomás de Aquino ora a Duns
Escoto. Muito espalhado na Idade Média, é citado por Erasmo como uma das
obras que embrutecem os jovens (De Utilitate Colloquiorum).
6 Os comentários (Com mens) seguintes são iventados, como os seu s auto­
res de nomes ridículos: Faquin, carregador; Trop diteux: gente sem impor-

77
RABElAIS

tância; Gualehaul, personagem do romance Lancelot du Lac; B illon, moeda


de pouco valor; Brelinguand, o sexo feminino.
7 Que os modos de significar não eram ciência.
8 Calendário.
9 Sinónimo de estupidez, como Jean le Veau (o vitelo).
10 Vocabulário latino, Liber derivationum, composto por Hugutio de Pisa
(século XIII), e que Erasmo põe a ridículo.
11 Léxico cujo começo era consagrado às palavras latinas de raiz grega,
composto por Everard de Béthunc (século XIII ), ainda usada no século xv.
1 2 O Doctrinale puerorum, de Alexandre de Villedieu (século xm), é u m
tratado d e gramática criticado pelos humanistas d o século xv. O De octo parti­
bus oratinis (Das oito partes do discurso), obra teórica. O Quid est?, manual es­
colar apresentado sob a forma de perguntas e respostas. O Supplementum não
foi identificado. Comentário da Bíblia cujo título, Mamotrectus, é maliciosa­
mente comparado com marmot (garoto, mas originalmente: macaco), objecto
de troça para Erasmo, é citado no Catálogo da livraria de São Vftor (Panta­
gruel, cap. VII).
1 3 <<Das maneiras a observar à mesa>>, manual de civilidade de Sulpizio
de Veroli, apresentado em dísticos e muito conhecido no século XVI.
1 4 Das quatro virtudes cardeais, obra moral composta pelo bispo S. Marti­
nho de Braga (século VI) sob o pseudónimo de Séneca.
1 5 O «Espelho da verdadeira penitênciiD> com comentários, obra do mon­
ge florentino Passavanti (século XIV).
1 6 O <<Dorme em paZ>> é uma recolha de sermões estereotipados utilizada
pelos pregadores do século XVI.

78
GARGÂNJUA

CAPÍTULO XV
COMO SE DERAM OUTROS PEDAGOGOS
A GARGÂNTUA

Então o seu pai compreendeu que, de facto, ele estudava mui­


to bem e a isso dedicava todo o seu tempo, embora não aprovei­
tasse nada e, o que é pior, ficasse doido, parvo, sonhador e atolei­
mado.
E disso se queixou a Dom Filipe des Marays, vice-rei de Pa­
peligosse, entendendo que mai s valia não aprender nada do
que tais livros com tais preceptores, pois o seu saber mais não
era do que tolice, e a sua sapiência bagatelas, abastardando os
bons e nobres espíritos e corrompendo a flor da juventude.
«Se assim é••, disse ele, «ide buscar um jovem dos nossos
tempos que apenas tenha estudado dois anos. Se acaso não tiver
mais juízo, e melhores palavras que o vosso filho, e melhor
compostura e honestidade entre os homens, considerai-me pa­
ra sempre um fanfarrão da Brenel,,, O que muito aprouve a
GratJ.dgousier, que mandou que assim se fizesse.
A noite, durante a ceia, o dito Marays mandou chamar um
seu jovem pajem de Villegongys2, chamado Eudémon3, tão bem
penteado, tão bem arranjado e desempoeirado e tão honesto de
compostura que mais parecia um anj inho do que um homem.
Em seguida disse a Grandgousier:
«Vedes este menino? Ainda não tem doze anos. Vejamos,
se vos aprouver, de acordo, que diferença há entre o saber dos
vossos sonhadores mateológicos4 dos velhos tempos e os jovens
de agora.»
O discurso agradou a Grandgousier, que mandou o pajem
discorrer. Então Eudémon, pedindo licença ao dito vice-rei,
seu amo, de gorro na mão, cara aberta, boca vermelha, olhos fir­
mes e o olhar posto em Gargântua com modéstia juvenil, pôs­
-se em pé e começou a louvar e a enaltecer primeiro as suas vir-
79
RABEl.AIS

tudes e os seus bons costumes, segundo o seu saber, terceiro a


sua nobreza, quarto a sua beleza corporal, e em quinto lugar
exortava-o mansamente a venerar seu pai com toda a obediên­
cia, o qual tanto se esforçava por instruí-lo, e enfim pedia-lhe
que o aceitasse como o mais ínfimo dos seus servos, pois nada
mais rogava por enquanto aos céus, a não ser a graça de lhe
agradar com algum serviço aprazível. E tudo proferiu com ges­
tos tão asseados, pronúncia tão distinta, voz tão eloquente e lin­
guagem tão arrebicada e em bom latim, que mais parecia um
Graco5, um Cícero ou um Emílio6 dos tempos passados que um
donzel deste século.
Mas Gargântua pôs-se a chorar como um bezerro, escon­
dendo a cara com o gorro, e não foi possível arrancar-lhe mais
uma palavra que um peido a um asno morto.
Tão irado ficou o pai que quis matar Mestre Jobelin, mas o
dito Marays impediu-o com a bela repreensão que lhe fez, de
tal modo que a sua ira se aplacou. Em seguida mandou que lhe
pagassem, que lhe dessem de beber sofisticamente, e que depois
fosse para o diabo.
<<Ao menos (dizia ele) por hoje não fica caro ao seu anfi­
trião, se por acaso morresse assim, bêbado como um inglês.»
Mestre Jobelin abandonou a casa, e Grandgousier pediu
conselho ao vice-rei sobre o preceptor que haviam de lhe dar, e
resolveram que confiariam esse encargo a Ponócrates, pedago­
go de Eudémon, e que iriam todos para Paris a fim de conhece­
rem qual era o estudo dos jovens da França nesse tempo.

NOTAS
1 La Brenne, situada entre o Indre e o Creuse .
2 Aldeia próxima de Châtcauroux.
3 Feliz, em grego.
4 Transcrição do grego Jl!l't!llOÂO)Qt, que diz coisas vãs; trocadilho evi­
dente p ara os teólogos.
5 Tibério Graco, político e orador romano.
6 Paulo Emílio, vencedor de Perseu, era estimado como orador e gene-
ral.
7 Palavra inventada por Rabelais à maneira dos nomes gregos: árduo
na sua tarefa (1tÓVOÇ: trabalho, e XPÓ.'tOÇ, po deroso}.

80
CAPÍTULO XVI
COMO GARGÂNTUA FOI ENVIADO PARA PARIS,
E DA ENORME ÉGUA QUE LEVOU,
E COMO ELA DESFEZ AS MOSCAS BOVINAS
DE BEAUCE

Nessa mesma, estação, Fayolesl , quarto rei da Numídia, en­


viou do país da Africa a Grandgousier uma égua mais enorme
e maior, do que jamais se viu, e a mais monstruosa (como sa­
beis, a Africa dá sempre algo de novo2), pois era do tamanho de
seis elefantes, e tinha os pés rachados como o cavalo de Júlio Cé­
sar3, as orelhas caídas como as cabras do Languegot4, e um cor­
nozinho no cu. De resto, tinha pêlo alazão tostado e malhado de
cinzento. Mas tinha sobretudo uma cauda horrível, pois era
mais ou menos do tamanho da torre de Saint-Marss, perto de
Langes, e também era quadrada, com os ramos tão entrança­
dos como as espigas de trigo.
S e isto vos maravilha, maravilhai-vos ainda mais com a
cauda dos carneiros da Sítias, que pesava mais de trinta libras,
e dos carneiros da Súria7, aos quais (se TenaudB diz a verdade)
é preciso amarrar uma carroça ao cu para a transportar, tão
comprida e pesada ela é9. Caudas destas não as tendes vós, pe­
dintes dos países baixos.
E foi trazida por mar, em três barcos genoveses e um ber­
gantim, até ao porto de Olorne no Talmondaisl O .
Quando Grandgousier a viu, disse: «Aqui está o que é preci­
so para levar o meu filho a Paris. Agora, por Deus, tudo irá cor­
rer bem. Será um grande letrado no futuro. Se não fossem os
animais, viveríamos como letradosll .,
No dia seguinte, depois de beber (claro está), puseram-se a
caminho Gargântua, o seu preceptor Ponócrates, e os seus acom­
panhantes, entre os quais Eudémon, o jovem pajem. E como o
tempo estava sereno e temperado, o seu pai mandou-lhe fazer
81
RABEI.AJS

umas botas avennelhadas, dessas que Babin12 chama borze­


guins.
Assim percorreram alegremente o seu longo caminho, e
sempre com boa comida, até acima de Orléans. Neste lugar ha­
via uma grande floresta com um comprimento de trinta e cinco
léguas e uma largura de dezassete, ou aproximadamente. Era
ela horrivelmente fértil e copiosa em moscas bovinas e zân­
gãos, de modo que era um verdadeiro assalto às pobres éguas,
burros, e cavalos. Mas a égua de Gargântua vingou honesta­
mente todos os ultrajes nela perpretados nos bichos da sua espé­
cie com uma partida de que não estavam à espera. Pois, logo
que entraram na dita floresta e que os zângãos a assaltaram,
levantou a cauda e tão bem se escaramuçou que enxotou as mos­
cas e abateu o bosque inteiro. Para a direita e para a esquerda,
para aqui e para ali, para cima e para baixo, abatia os bosques
como um ceifador corta as ervas, de tal maneira que não houve
nem bosques nem zângãos, e aquela terra ficou toda reduzida a
um terreno de cultura.
Vendo isto, Gargântua ficou todo satisfeito mas não se ga­
bou, e disse à sua gente: <<Acho belo este>> (J e trouve beau ce),
pelo que depois se chamou àquela região a Beauce. Mas todo o
almoço foi dado, e em memória disso os gentil-homens de
Beauce ainda hoje almoçam de dádivas, e dão-se muito bem
com isso, e ainda escarram melhor.
Finalmente chegaram a Paris, e nesse lugar se refres­
caram dois ou três dias, levando boa vida com as gentes, e per­
guntando que sábios havia então na cidade e que vinho ali se
bebia.

NOTAS
1 Possível alusão a Françoise de Fayolles, capitão de Coulonges les Ro­
yaux, aparentado aos Estissac.
2 Ditado lati no reproduzido por Erasmo nos Adágios. ..Novo» tem aqui o
sentido de «extraordinário».
3 Particularidade a pontada por Plínio o Antigo, Hist. nat. VIII, 42.
4 Languedoc; etimolo gi a fantasiosa: langue des goths (língua dos go­
dos) em vez de langue doe (língua de oc, por oposição a oü ).
5 Torre qu adran1,ru lar de tijolos situ ada perto da aldeia de Saint-Mars,
nas proximidades de Chinon.
6 Geografia aproxi mada: o Tibete.
7 Síria.
8 Jean Thenaud, mestre em artes e teólogo, publicara u m livro de via­
gens, Le voyage et itineraire de oultre mer, a que Rabelais se refere.

82
GARGÂN'fUA

9 Thenaud declara ter recebido co mo presente, no C airo, uns <<Carneiros


de grande cauda» tão pesada que <<lhes fazem umas carrocinhas onde repou­
sam>),
1 0 As Sablcs--<i'Olonne eram então um porto importante, e não um sim­
ples porto de pesca e uma praia.
1 1 Gracejo por inversão dos termos do ditado: <<Se não fossem os senhores
letrados, viveríamos como animai s.»
1 2 Trata-se talvez dum sapateiro de Chinon.

83
CAPÍTULO XVII
COMO GARGÂNTUA RETRffiUIU
AS BOAS-VINDAS AOS PARISIENSES
E COMO ROUBOU OS GRANDES SINOS
DA IGREJA DE NOTRE-DAME

Alguns dias depois de se terem refrescado, visitou a cidade,


e a todos causou grande admiração, pois o povo de Paris é tão to­
lo, tão saloio e tão inepto de natureza que um saltimbanco, um
carregador de relíquias, uma mula com os seus tímbalos, um
velho no meio dum cruzamento, juntará mais gente do que fa­
ria um bom pregador evangélicol .
E tão importunamente o perseguiram que foi obrigado a re­
pousar nas torres da igrej a de Notre-Dame. Estando neste lu­
gar, e vendo tanta gente à sua volta, disse claramente :
«Creio que estes marotos querem que eu lhes pague aqui as
minhas boas-vindas e o meu proficiat2. Está certo. Vou dar­
-lhes o vinho, mas será só para rir.»
Então, sorrindo, abriu a sua bonita braguilha, e, deitando a
gaita de fora, mijou-os tão copiosamente que afogou duzentos e
sessenta mil quatrocentos e dezoito, sem as mulheres e as
crianças.
Alguns deles fugiram a correr desta grande mijadela, e,
quando chegaram ao cimo da Universidade3, suando, tossindo,
escarrando e esbaforidos, começaram a praguejar, uns de cóle­
ra, outros a rir: «Carymary, carymara! Pela Santa Mãezinha,
mijámo-nos a rir!>> (par rys). Pelo que se deu à cidade o nome
de Paris, a qual dantes se chamava Leucece, como diz Strabo,
lib. iij4, ou seja, em grego, Branquinha, por causa das brancas
coxas das damas desse lugar. E com esta nova imposição do no­
me, todos os assistentes também juram pelos santos da sua paró­
quia, que são muitos e de muitas espécies, e por natureza bon s
juradores e bons juristas, e um pouco presunçosos, conforme

84
GARGÂNTUA

afirma Joaninus de Barranco5, libro De copiositate reverentia­


rum, que são chamados paresianos6 em grego, isto é, orgulho­
sos na fala.
Feito isto, considerou os grandes sinos que estavam nas
tais torres, e pô-los a tocar muito harmoniosamente. E ao fazê­
-lo, lembrou-se de que lhe serviriam de campainhas ao pesco­
ço da sua égua, que ele queria mandar ao seu pai carregada de
queijos de Brye7 e de arenques frescos. E, de facto, levou-os pa­
ra casa.
Entretanto veio um comendador presunteiro de Santo Antó­
nioB para fazer o seu peditório de suilla, o qual, para se fazer ou­
vir ao longe e pôr o toucinho a tremer na salgadeira, quis levá­
-los à socapa, mas deixou-os por honestidade, não por estarem
muito quentes mas porque eram pesados de mais. E não foi o de
Bourg, pois esse é meu amigo9.
Toda a cidade se levantou, pois sabeis que são tão dados a is­
so que as nações estrangeiras se espantam com a paciência dos
reis de França, os quais não os refreiam doutra maneira por
boa justiça, dados os inconvenientes que daí resultam todos os
dias. Tomara eu conhecer a oficina onde se forjam esses cis­
mas e conluios, para os pôr em evidência nas confrarias da mi­
nha paróquia!
Acreditai que o lugar onde se reuniu o povo todo desnortea­
do foi Neslelo, onde ficava e agora já não fica o oráculo de Luce­
ce. Ali se expôs o caso e se demonstrou os inconvenientes dos si­
nos transportados. Depois de se discutirem os prós e os contras,
concluiu-se em Baraliptonll que se enviaria a Gargântua o
mais velho e talentoso da Faculdade, para lhe demonstrar o hor­
rível inconveniente da perda dos tais sinos e, apesar da oposi­
ção de alguns de alguns da Universidade, que alegavam que
essa tarefa mais competia a um orador12 do que a um sofista, es­
colheu-se para o caso o nosso mestrel3 Janotus de Bragmar­
do14.

NOTAS
1 Rabelais opõe a superstição interesseira dos carregadores de relíquias
à pregação sincera do Evangelho.
2 Dádiva de boas--vindas concedida aos bispos ao chegarem à su a dio­
cese .
3 Neste Dilúvio dum novo género, algu ns sobreviventes refugiam-se na
montanha Sainte-Genevicve (hoje Place du Panthéon), ponto culminante do
Quartier-Latin ou da Universidade.

85
RABELAJS

4 Quem designa Paris desta maneira é Juliano (Misopognon), do grego


M:-Üxo, branco.
5 Personagem desconhecida, sem dúvida inventada, como a sua obra e a
série de etimologias fantasiosas .
6 Em grego nappT]m!l significa franqueza, e, por extensão, liberdade de
palavra.
7 Os grandes queijos brancos de Brie ainda hoje são famosos.
8 Não é um título inventado : os frades de Saint-Antoine-du-Dauphiné
tinham o privilégio de deixar os seus porcos à solta, mesmo nas cidades. Em
troca da renúncia a este direito, recebiam toucinho e presuntos durante o pedi­
tório do porco (suilla, em latim). A alcunha <<presunteiro» era habitual.
9 O comendador de Saint-Antoine de Bourg-€n-Bresse era Antoine de
Saix, capelão do duque de Sabóia, autor de diversas obras como Esperon de dis­
cipline (1 532), e Petitz {atras d'un apprentis (1537).
1 0 O hõtel de Nesle situava-se no local onde hoje fica a Monnaie. Francis-
co I estabelecera aí um juiz para os processos da Universidade (1 522).
1 1 Mnemónica para designar um tipo de silogismo.
1 2 Mestre da Faculdade das Artes (Faculdade das Letras).
1 3 Título habitual dos doutores da Faculdade de Teologia.
1 4 Nome obsceno, cf. o verbo bragmarder, dar ao membro (viril) (Panta­
gruel, cap. XXVI): «braquemarder toutes les Putains».

86
CAPÍTULO XVIII
COMO JANOTUS DE BRAGMARDO FOI ENVIADO
PARA REAVER DE GARGÂNTUA
OS GRANDES SINOS

Mestre Janotus, tonsurado à cesarinal , vestido com o seu li­


ripipião2 à antiga, e com o estômago bem fornecido de geleia de
marmelo e água-benta da cave, transportou-se à casa de Gar­
gântua, espicaçando os seus três bedéis3 de focinho encarnado,
e arrastando com ele cinco ou seis mestres inertes4, todos ense­
bados.
À entrada encontrou-os Ponócrates, e assustou-se, vendo­
-os assim disfarçados, e pensou que fossem mascarados. De­
pois perguntou a um dos ditos mestres inertes do grupo que brin­
cadeira era aquela, ao que este lhe respondeu que vinham pedir
que lhe devolvessem os sinos.
Logo que ouviu estas palavras, Ponócrates correu a contar
as novas a Gargântua, a fim de que procurasse a resposta e deli­
berasse o que havia de fazer. Avisado do caso, Gargântua cha­
mou à parte Ponócrates, seu preceptor, Filotomias, seu mordo­
mo, Ginasta, seu escudeiros, e Eudémon, e conferenciou suma­
riamente com eles, tanto sobre o que havia de fazer como sobre
o que devia responder. Todos concordaram em os levarem à
despensa, onde os fariam beber à farta, e, para que aquele catar­
roso não se vangloriasse de ter reavido os sinos, mandaram,
enquanto molhava o bico, chamar o preboste da cidade, o reitor
da Universidade, o vigário da igreja, aos quais, antes que o so­
fista explicasse a sua missão, entregariam os sinos. Só depois,
na presença deles, ouviram o seu belo discurso. Assim se fez e,
quando eles chegaram, o sofista foi introduzido na sala e come­
çou como se segue, tossicando.

87
RABEI.AIS

NOTAS
À maneira de Júlio Cesar. . . que era careca.
2 Capucho usado pelos doutores em teologia, conforme precisavam as edi­
ções anteriores: «Son lyripipion theologal».
3 Vedeau também significa vitelo, e daí o gracejo em tomo de vedeaulx,
que são os bedéis, mas também os bois espicaçados por mestre J anotus.
4 Outro jogo de palavras sobre o titulo dos mestres em artes, magistri in
artibus, e inertes.
5 Os companheiros de Gargântua têm nomes relacionados com os seus
ofícios: Filotomias, que gosta de cortar (do grego qnÃ.ioo, gostar, e tÉJ.1VOO, cor­
tar); Ginasta: mestre de ginástica.

88
CAPÍTULO XIX
A ARENGA DE MESTRE JANOTUS
DE BRAGMARDO FEITA A GARGÂNTUA
PARA REAVER OS SINOS

«Hã, hã, hã! 'ns dias, senhor, 'ns dias, senhores. Seria mui­
to bom que nos devolvêsseis os nossos sinos, pois fazem-nos
muita falta. Hã, hã, hasch! Já os tínhamos recusado uma vez
por bom dinheiro aos de Londres em Cahors, e também aos de
Bordéus em Bryel , que os queriam comprar pela substanciosa
qualidade da compleição elementar entronizada na terrestri­
dade da sua natureza quiditativa2 para extranizar os halos e as
turbinas3 das nossas vinhas, que na verdade não são nossas,
mas daqui perto; pois, se perdemos o vinho, perdemos tudo, tan­
to o sentido como a lei.
»Se os devolverdes como vos peço, ganharei seis palmos de
salsichas e um rico par de calções que me farão muito bem às
pernas, ou eles não cumprissem a promessa. Ó, por Deus, Domi­
ne, uns calções é bom, et vir sapiens non abhorrebit eam4. Ah!
ah! Não tem calções quem quer, eu sei por mim! Pensai, Domi­
ne; há dezoito dias que ando a matutar nesta bela arenga: Red­
dite que sunt Cesaris Cesari, et que sunt Dei Deo5. lbi jacet le­
pus6.
>>Por minha fé, Domine, se quiserdes cear comigo in came­
ra, pelo corpo de Deus! charitatis7, nos faciem us bonum cheru­
binB. Ego occidi unum porcum, et ego habet bon vino9. Mas com
bom vinho não se pode fazer mau latim t o .
>>Üra, de parte Dei, date nobis clochas nostrasl l . Dou-vos
pela Faculdade um Sermones de Utinol 2 se, utinam, nos devol­
verdes os nossos sinos. Vultis etiam pardonos ? Per diem, vos
habe�itis et nihil poyabitisl3.
>>Ü Senhor Domine, clochidonnaminorl 4 nobis! Dea, est bo­
num urbisl5, Todos se servem deles. Se a sua égua gosta deles,

89
RABELAIS

também a nossa Faculdade gosta, que comparata est jumentis


insipientibus et similis {acta est eis, psalmo nescio quol6 . . Se .

bem anotei nos meus papéis, et est unum bonum Achillesl 1 .


Hem, hem, hem, hasch!
»Pronto! Eu vos provo que mos deveis dar. Ego sic argumen­
tator:
>>Omnis clocha clochabilis, in clocherio clochando, clo­
chans clochativo clochare facit clochabiliter clochantes. Pari­
sius habet clochas. Ergo glucls.
>>Ah, ah, ah, bem dito! Está in tertio prime, em Dariil 9, ou
noutro sítio. Pela minha alma, já houve tempo em que fazia
maravilhas de argumentação, mas agora n ão faço mais que so­
nhar, e só quero é bom vinho, boa cama, costas quentes, barriga
cheia e uma escudela bem funda.
>>Ai, Domine, peço-vos, in nomine Patris et Filii et Spiritus
Sancti, amen, que nos devolvais os nossos sinos, e Deus vos
guarde do Mal, e Nossa Senhora da Saúde, qui vivit et regnat
per omnia secula seculorum, amen. Hem, hasch, hasch, gre­
nhenhasch!
>>Verum enim vero, quando quindem, dubio procul, edepol,
quoniam, ita certe, meus Deus fidus2o, uma cidade sem sinos é
como um cego sem bengala, um asno sem retranca, e uma vaca
sem chocalho. Enquanto os não devolverdes, não cessaremos
de gritar atrás de vós como um cego que perdeu a bengala, ou de
zurrar como um asno sem retranca, e de mugir como uma vaca
sem chocalho.
>>Um quidam latinizador, que morava junto do Hospital,
disse uma vez, alegando a autoridade dum Taponnus - erro,
era Pontanus21 , poeta secular - que desejava que fossem de pe­
nas, e o batente22 feito de um rabo de raposa, para que lhe geras­
sem crónicas23 às tripas do cérebro quando compunha os seus
versos carminiformes24. Mas nac petitin petetac, tique, torche,
lorne25, foi declarado herético, e nós os fazemos a rodos. E mais
não disse o réu. Valete et plaudite. Calepinus recensui26.,,

NOTAS
1 Duplo efeito cómico, pois existe uma aldeia de Londres no Quercy, e um
Bordéus junto de Meaux; mas o leitor pensa num lapso do catarroso.
2 Paródia da gíria escolástica: terrestridade é a qualidade terrestre, a na­
tureza quiditativa, a essência; extranizar, afastar.
3 Os halos da Lua e os turbilhões: Janotus quer proteger as vinhas e, a seu
ver, é essa a principal utilidade dos sinos.

90
GARGÂNTUA

4 «E um homem sábio não os rejeitará>>, adaptação burlesca de uma reco­


mendação do Eclesiastes relativa aos medicamentos (XXXVIII , 4).
5 <<Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.>> (São Lucas,
XX, 25.)
6 «Af está a lebre.» Após as palavras do Evangelho, uma locução escolar
banal, que significa: «Ai é que está a dificuldade.>>
7 O «quarto da caridade>> é o refeitório para os hóspedes do convento.
8 «Comeremos bem», gíria dos letrados, que joga com chere (comida) e
chérubin, espírito celeste.
9 <Matei um porco e tenho bom vinho .>>
1 0 O que não impediu Janotus de ter cometido dois erros grosseiros (habet
em vez de habeo; vino por vinum) e de misturar o francês com o latim.
11 «Por Deus, dai-nos os nossos sinos.>>
1 2 Jogo de palavras sobre os Sermões do pregador Mattei d'Udine e a con­
jugação latina Utinam, Deus queira.
1 3 Mais latim macarrónico: «Também quereis perdões? Por Deus, tê-los­
-eis e nada pagareis!» Rabelais não perde uma oportunidade para atacar a
venda das indulgências.
1 4 Palavra composta de carácter burlesco, sem dúvida por afinidade de
sons entre Domine e donnaminor.
1 5 «Sim, é na verdade o bem da cidade.»
1 6 <<Que foi comparada com as bestas de carga desprovidas de juízo, e se
tornou semelhante a elas, em não sei que salmo>>: utilização burlesca do Sal­
mo 48, em que o rico, cego com a prosperidade, é comparado a uma besta de
carga.
1 7 ,<]; é um bom Aquiles.>> Na gíria escolar, Aquiles é o símbolo do argu­
mento invencível.
1 8 <<Eu por conseguinte, argumento deste modo: Todo o sino sinável, si­
nando no sineiro, sinando pelo sinativo, faz sinar sineiramente os sineiros.
Em Paris, há sinos. Por conseguinte . . .>> Ergo gluc é uma fórmula conclusiva
absurda, em gíria estudantil.
1 9 <<No terceiro modo da primeira figura, em Darii>>, termo mnemónico
do silogismo.
20 Acumulação de termos retóricos: <<Mas na verdade, atendendo a que,
sem dúvida, por Pó lux, pois certamente assim, pelo Deus da boa fé ...>>
21 Pantana, humanista italiano (1 426--1 503), que detestava os sinos, mas
por outras razões.
22 Esta passagem seria extraída da Nave dos Loucos de Sébastian Bra-
ndt, editado por Juste, em Lyon, 1 530.
23 Lapso do bêbado em vez de «cólicas>>.
24 Pleonasmo: «Versos em forma de versos>>.
25 Onomatopeias burlescas como <<plã, rataplã>>.
26 Série de asneiras: <<Saúde e aplaudi!>>, fórmula final da comédia lati­
na; <<Eu, Calepino, fiz esta recensão>>, fórmula final do copista e do comenta­
dor. Calepino é um monge de Bérgamo, autor de um dicionário (século XVI).

91
CAPÍTULO XX
COMO O SOFISTA LEVOU A SUA FAZENDA,
E COMO TEVE UMA DEMANDA
COM OS OUTROS MESTRES

Ainda o sofista não tinha terminado, já Ponócrates e Eudé­


mon desatavam a rir tão profundamente que julgaram entre­
gar a alma ao Criador, tal e qual como Crasso ao ver um burro
medroso a comer cardosl , e como Filémon, ao ver um burro a co­
mer os figos que tinham sido preparados para o jantar, morreu
de tanto rir2. Com eles também começou a rir Mestre Janotus, e
riram à porfia, enquanto lhes vinham as lágrimas aos olhos pe­
la veemente agitação da substância do cérebro, à qual foram ex­
primidas estas humidades lacrimais e escorridas dos nervos
ópticos. No que eram por eles representados Demócrito heracli­
tizando e Heraclito democratizando3.
Acalmados estes risos, Gargântua aconselhou-se com a
sua gente sobre o que havia de fazer. Ponócrates achou que
deviam dar mais bebida ao belo orador e, visto que lhes tinha
dado um passatempo e os havia feito rir mais do que o faria Son­
gecreux4, deviam dar-lhe os dez palmos de salsichas mencio­
nadas na alegre arenga, mais um par de calções, trezentas
achas de lenha, vinte e cinco muitz de vinho, uma cama com
três colchões de penas de pato, e uma escudela muito capaz e fun­
da, as quais dizia necessárias à sua velhice.
Tudo se fez como fora deliberado, excepto que Gargântua, re­
ceando que não se encontrassem logo uns calções cómodos pa­
ra as suas pernas, e não sabendo de que maneira conviriam
melhor ao dito orador, ou à «martingalle,, que é uma ponte le­
vadiça do cus, para cagar mais facilmente, ou à marinheira6
para melhor aliviar os rins, ou à suíça para manter a pança
quente7, ou à rabo-de-bacalhaus para não aquecer de mais os
rins, mandou que lhe dessem sete varas de fazenda preta, e três

92
GARGÂNFUA

de fazenda branca para o forro. A lenha foi levada pelos carre­


gadores; os mestres em artes levaram as salsichas e as escude­
las; Mestre Janot quis levar a fazenda.
Um dos ditos mestres, chamado Mestre Jousse Bandouille 9 ,
mostrava-lhe que isso não era nem honesto nem decente, e que
devia entregá-la a um deles.
«.Ap ! (disse Janotus), seu asno, não concluis in modo et figu­
raio. E para isso que servem as suposições e parva logicalia. Pa­
nus pro quo supponitl l ?>>
<<Confuse (disse Bandouille) et distributivei2.,,
«Não te pergunto (disse Janotus), seu asno, quo modo suppo­
nit, mas pro quol 3; é, seu asno, pro tibiis meisl 4.
E por isso a leva­
rei egomet, sicut suppositum portar adpositum.>>
Assim a levou à socapa, como Patelin à sua fazendaI s .
O melhor foi quando o catarroso, gloriosamente, em pleno
acto nos maturinos, pediu os seus calções e as suas salsichas,
pois peremptoriamente lhe foram negados16 porque os recebera
de Gargântua, segundo as informações sobre esses factos. De­
monstrou-lhes que fora gratis e graças à sua liberalidade, pe­
la qual não estavam absolvidos das suas promessas. Não obs­
tante isso, responderam-lhe que se contentasse com razões e
que não teria mais nada.
«Razões (disse Janotus) é coisa que não usamos aqui. Trai­
dores infelizes, não ' valeis nada; não há no mundo criaturas
mais maldosas que vós, bem sei. Não sejais hipócritas: eu exer­
ci a maldade convosco. Pelo baço de Deus! Contarei ao rei os
enormes abusos que aqui se forjam, por vossas mãos e pelas
vossas intrigas, e que eu seja leproso se ele não vos mandará
queimar como maricas, traidores, herejes e sedutores1 7, inimi­
gos de Deus e da virtude!>>
Ao ouvirem estas palavras, redigiram uma acusação con­
tra ele; e ele, por outro lado, citou-os para comparecer. Em
suma, o processo foi arquivado pelo tribunal, e ainda lá está.
Neste passo, os mestres fizeram voto de não se lavaremlB; Mes­
tre Janot, com os seus adeptos, fez voto de não se assoar, até que
lho ordenassem por sentença definitiva.
Por causa destes votos mantiveram-se até agora sebentos e
ranhosos, pois o tribunal ainda não esmiuçou todas as actas; a
sentença será emitida nas próximas calendas gregas, ou seja
nunca, pois bem sabeis que eles fazem mais que a natureza e
contra os seus próprios artigos. Os artigos de Paris cantam que
só Deus pode fazer coisas infinitas. A natureza não faz nada de
imortal, pois põe fim a todas as coisas que produz, porque om-

93
RABEl.AIS

nia orta caduntl9,etc., mas estes madrugadores2o fazem os pro­


cessos pendentes e infinitos e imortais. E fazendo isso, deram
origem e verificaram o dito de Chilon2t , Lacedemónio, consa­
grado em Delfos, dizendo que a Miséria é a companheira de
Proces e os que andam em demandas são miseráveis, pois
mais depressa vêem o fim da sua vida do que do seu pretenso di­
reito.

NOTAS
1 Crasso passava por só ter rido uma vez na vida; cf. Plínio o Antigo
(Hist. Nat., vn, 1 9) e Erasmo (Adágios, r, x, 71 ).
2 Esta anedota, extraída de Valéria Máximo (IX,l2) ou de Luciano (Macro­
bitas, 25), já mencionada no cap. X, sê-lo-á de novo no Quarto Livro, cap.
XVII.
3 Heraclito (576--480 a. C.) passava por chorar da estupidez humana, ao
passo que Demócrito (nascido por volta de 460 a. C.) se ria dela. Montaigne
consagrou-lhes o ensaio L do livro I, preferindo o humor de Demócrito, <<não
porque rir é mais agradável do que chorar, mas porque é mais desdenhoso o
humor».
4 Alcunha de Jean l'Espine (século XVI), reputado farsante.
5 Calções com correia para a entreperna.
6 Calças largas como as dos marinheiros.
7 Os calções dos suíços eram pregueados e tufados.
8 Calções rachados na parte de trás.
9 Nome que evoca a palavra andouille (chouriço) ou bander (entesar).
I O Segundo o modo e a figura: em boa forma (silogística).
11 As «SUposiçõeS>> são uma secção da pequena Lógica (parva logicalia).
«A quem se refere a peça de fazenda?>>
1 2 «Confusamente e sem designação de pessoa.>>
1 3 «Não te pergunto como se refere mas ao que se referem.>>
1 4 «É para as minhas pernas. E é por isso que eu próprio a levarei, assim
como a substância leva o acidente.» (Janotus está cioso da sua fazenda e tem
medo que lha tirem.)
1 5 Na farsa, o fabricante de tecidos quer levar a fazenda comprada por Pa-
telin, «por delicadeza>>, mas este faz questão de levá-la pessoalmente.
1 6 Janotus é acusado de se deixar comprar por Gargântua.
1 7 No sentido próprio: «que desviam do bom caminho>>.
1 8 Sempre a acusação da sujidade.
1 9 «Todas as coisas nascidas perecem>>, evocação de Salústio, De bello ju­
gurthino, II, 3.
20 «Ces avaleurs de frimas» (comedores de nevoeiro) - são os juízes e ad­
vogados, que se levantam de madrugada para irem ao Palácio da Justiça. Cf.
Racine, Les Plaideurs.
2 1 Evocação de Plínio o Antigo, Hist. Nat., VII , 32.

94
CAPÍTULO XXI
O ESTUDO DE GARGÂNTUA,
SEGUNDO A DISCIPLINA
DOS SEUS PRECEPTORES SOFISTAS

Assim passados os primeiros dias e repostos os sinos no seu


lugar, os cidadãos de Paris, em sinal de reconhecimento por es­
ta honestidade, ofereceram-se para abrigar e alimentar a sua
égua enquanto ele quisesse - o que muito agradou a Gargân­
tua -, e mandaram-na viver na floresta de Bierel . Creio que
já lá não está neste momento.
Feito isto, Gargântua quis estudar com todo o sentido à des­
crição de Ponócrates; mas este, para começar, ordenou que se
faria à sua maneira habitual, a fim de verificar de que modo,
durante tanto tempo, os seus antigos preceptores o haviam torna­
do tão fátuo, tolo e ignorante.
Repartia, pois, o seu tempo de tal forma que, habitualmente,
acordava entre as oito e as nove horas, quer fosse dia quer não;
assim lho haviam ordenado os seus antigos regentes, alegando
estas palavras- de David: Vanum est uobis ante lucem surge-
re2.
Depois pulava, saltava e rebolava-se na cama algum tempo
para melhor espairecer os seus espíritos animais3, e vestia-se
de acordo com a estação, mas gostava de usar um amplo e com­
prido vestido de lã grossa forrado de raposa; depois penteava­
-se com o pente de Almain4, que eram os quatro dedos e o po­
legar, pois os seus preceptores diziam que pentear-se doutra
maneira, lavar-se e limpar-se era uma perda de tempo neste
mundo.
Depoi s cagava, mijava, vomitava, arrotava, peidava-se, bo­
cejava, escarrava, tossia, soluçava, espirrava e assoava-se à
arcediago\ e almoçava para abater o orvalho e o mau ar: belas

95
RABELAJS

tripas fritas, ricas carnes grelhadas, belos presuntos, boas ca­


britadas e muitas sopas de pão6.
Ponócrates fazia-lhe ver que não devia comer logo que se
levantava da cama, sem ter feito primeiro algum exercício.
Gargântua respondeu-lhe:
«O quê? Não fiz exercício suficiente? Rebolei-me seis ou se­
te vezes na cama antes de me levantar. Não chega? O papa Ale­
xandre era o que fazia, a conselho do seu médico judeu7, e viveu
até à morte, apesar dos invejosos. Os meus primeiros mestres
habituaram-me a isso, dizendo que o almoço dava boa me­
mória, e portanto eram os primeiros a beber-lhe. Dou-me mui­
to bem com isso, e ainda janto melhor. E dizia-me Mestre Tu­
bal (que foi o primeiro na sua licenciatura em Paris) que o
mais importante não é correr logo cedinho mas partir cedo, e
também a saúde total da nossa humanidade não está em beber
muito, muito, como as patas, mas sim em beber de manhã, un­
de versus:

Madrugar não é bom,


O melhor é beber de manhãs ...
Depois de almoçar bem, ia à igreja, e levava dentro dum
grande cesto um grande breviário empantufado, pesado, tanto
de sebo9 como de fechos e pergaminho, mais ou menos onze
quintais e seis libras. Ali ouvia vinte e seis ou trinta mis­
sinhas. Entretanto vinha o seu capelão, embrulhado no capote
como uma poupa, e, bem imunizado, o seu hálito tresandava a
vinho à força de tanto <<Xarope>>; e com ele resmoneava todas es­
sas ladainhas, e tão curiosamente as desfiava que não caía
nem uma conta no chão.
Ao sair da igreja traziam-lhe numa carroça de bois um
monte de padre-nossos de São Cláudiolo do tamanho duma cabe­
ça, e, passeando pelos claustros, pelas galerias ou pelo jardim,
ia rezando mais que dezasseis eremitas.
Depois estudava uma meia-horinha, com os olhos pregados
no livro; mas (como diz o cómicoll ), a sua alma estava era na
cozinha.
Então, depois de mijar copiosamente, sentava-se à mesa e,
como era naturalmente fleumático, começava o repasto com
umas dúzias de presuntos, línguas de vaca fumadas, butar­
gos12, chouriços, e outros chamarizes do vinho.
Entretanto quatro dos seus homens metiam-lhe continua­
mente na boca, uma atrás da outra, umas pazadas de mostar-
96
GARGÂNTUA

da. Depois bebia um horrífico gole de vinho branco para ali­


viar os rins. Depois comia, segundo a estação, as carnes que
lhe apeteciam, e só parava de comer quando tinha a barriga
cheia.
Para beber não tinha cânones, pois dizia que as metas e os
limites do beber eram quando, estando uma pessoa a beber, a
cortiça das suas pantufas inchava meio pé na parte de cima.

NOTAS
1 Florestas de Fontainebleau.
2 Fragmento do Salmo CXXVI, 2: ·<É inútil que vos levanteis antes da
luZ.>> Citar o começo deste versículo era um gracejo tradicional no clero.
3 Termo médico: fluido que comunica as ordens do coração e do cérebro
às diversas partes do corpo. Esta concepção ainda perdura do século xvn; cf.
Descartes (Discurso do Método, 5.� parte): «São como um vento muito sub­
til...>>
4 Jacques Almain, doutor da Universidade de Paris, autor de um tratado
lógico, no começo do século XVI .
5 «Assoava-se copiosamente e de maneira pouco asseada>>, expressão po­
pular.
6 Sopas que se comiam nos conventos depois das orações matinais.
7 Alexandre VI (1 492-1 503). O seu médico era Bonnet de Lotes, judeu con­
vertido e autor de um tratado sobre astrologia. Sabe-se que Rabelais despreza
esta falsa ciência.
8 Ditado corrente no século XVI.
9 O sebo deixado pelos dedos; a expressão lembra o termo dos talhos: «tan­
to em sebo como em carne e osso».
1 0 Terços muitas vezes muito ornamentados. Ainda hoje se fazem em
Saint-Claude (Jura) objectos de madeira trabalhada, nomeadamente cachim­
bos.
1 1 Terêncio (Eunuco, IV, 8).
1 2 Uma espécie de caviar que se consome no Mi di (vide cap. III).

97
CAPÍTULO XXII
OS JOGOS DE GARGÂNTUA

Depois, mastigando pesadamente as graçasl, lavava as


mãos com vinho fresco2, palitava os dentes com um pé de porco
e conversava prazenteiramente com os seus homens. Depois,
aberto o tapete verde, estendiam-se muitas cartas, dados e tabu­
leiros. E ali jogava3:
Ao fluxo4 Aos casamentos
� prima �o gay (alegre)
A rapada (uole) As opiniões
Aos cunhos (pille) A quem faz um faz o outro
Ao triunfo À sequência
À picardia Às luettes6
Ao centos Ao tarot
�o espinay A coquinbert,
A infeliz (malheureuse) quem ganha perde
Ao fourby Ao beliné (ao enganado)
(ao espertalhão?) Ao tormento
Ao passa--dez À ronfie (ressona)
Ao trinta e um �o glic
Ao par e sequência As honras
Aos três centos À mourre7
Ao infeliz (malheureux) Ao xadrez
À condenada À raposa8
À carta virada Às marelles9
Ao descontente Às vacas
Ao lansquené À branca
(ao trinta e um?) À sorte
Ao cornudo Aos três dados
A quem fala sozinho Às mesas
Apille, nade, jocque, {ore À nicnocque

98
GARGÂNJUA

Ao lourche Aos figos de Marselha


À renette Ao archer tru
Ao barignin A vomitar
Ao trictrac Ao apanha
A todas as mesas Ao croc madame
Ao reniguebieu l o A vender aveia
�o forçado A soprar o carvão
As damas Aos responsos
À babou Ao juiz vivo juiz morto
À primus secundus A tirar os ferros do forno
Ao pied du cousteau Ao fault villain
À chave (falso vilão)
Ao franc du carreau Ao cailleteaux (falador?)
Ao par ou não Ao marreco aulicano
A cruzes ou cunhosll Ao Santo Achado
Ao martres 1 2 �pinse morille
� pingres13 A pereira
A bola14 Ao pimpompet
Ao remendão Ao triori
Ao mocho Ao círculo
Ao dorelot du lievre À porca
À tirelitantaine }:... barriga contra barriga
�o porquinho vai à frente As ravinas (combes)
As pegas À escovinha
Ao corno À chapinha
Ao boi gordo Aoj'en suis
À corujinha Ao Foucquet
Aje te pinse sans rire Ao chinquilho
(belisco-te sem rir) Ao rapeau
A picote r (motejar?) À bola chata
A desferrar o burro Ao virotão
Ao laiau tru Ao picqu'à Rome
Ao bourry, bourryzou À rouchemerde
�oje m 'assis (sento-me) À Angenart
A barba de oribus15 À bola curta
À bousquine }:... griesche
A tire la broche A recoq uillette
(puxa o espeto?) Ao cassepot (parte o pote)
À boutte foyre Ao meu talento
Ao compadre, À pirueta
empreste-me o seu saco Às juncadas
Ao colhão de carneiro16 Ao pau curto
A boute hors Ao pyrevollet

99
RABELAIS

À clinemuzete � cabra--cega
Aos centos A myrelimofle
À branquinha Ao queix:inhas
Ao furão Ao crapault
À seguette À croça
Ao castelinho Ao piston
� rengée (fila?) Ao bille boucquet
Afoussette (sempre-em-pé)
(pequeno fosso?) �o roynes
Ao ronflart � profissões
À trombeta A teste à teste bechevel
Ao mongel 7 Ao pinot (vinho)
Ao tenebry Ao macho morto
Ao espantado Aos croquinolles
À bêbada A la ver le coiffe Madame
À navette Ao belusteau
Ao fessart A semear a aveia
À vassoura A briffault
A São Cosme, Ao molinete
venho adorar-telB A defendo
A escharbot le brun À virevouste
Aje vous prens sans verd À bacule
A bien et beau Ao lavrador
s'en va Quaresme À cheveche
Ao carvalho bifurcado Às escoublette enraigées
Ao cavalo ... Ao bicho morto
Ao rabo de lobo Ao sobe, sobe
Ao peido na boca as escadinhas
A Gillemin baillie Ao pourceau mory
, my lance Ao cu salgado
A brandelle Ao pigonnet
(urze pequena?) Ao tiers
Ao treseau À bourré
À bétula Ao salto do arbusto
À mosca A cruzar
� migne, migne beuf Às escondidas
As falas À maille, bourse en cul
Às nove mãos Ao nid de la bondrée
Ao chapifou Ao passavante
Ao pontz cheuz (pontes .. )
. �o figo
A Colin bridé � peidorradas
À grolle Apille moustarde
Ao cocquantin A cambos

1 00
GARGÂNTUA

À recaída À taille coup


Ao picandeau Ao nazardes
À croqueteste Às cotovias
l).grolle Aos tabefes(*).
A grue

Depois de bem jogar, peneirar, passar e joeirar o tempo, con­


vinha beber qualquer coisinha - eram onze peguadzl 9 para um
homem -, e logo depois se banquetear, estendia-se num belo
banco ou numa bela cama e dormia duas ou três horas, sem
mal pensar nem mal dizer.
Ao acordar, abanava as orelhas. Entretanto traziam-lhe vi­
nho fresco; e então bebia melhor que nunca.
Ponócrates mostrava-lhe que era má dieta beber assim de­
pois de dormir.
«Mas é (respondia Gargântua) a verdadeira vida dos
padres, pois por natureza durmo salgado, e o dormir valeu-me
outros tantos presuntos.>>
Depois começava a estudar um pouco; lá iam os padre-nos­
sos à frente, e, para melhor os expedir, montava numa velha
mula que já servira nove reis. Assim resmoneando com a boca
e balançando a cabeça, ia ver apan har algum coelho nas redes.
A volta ia até à cozinha para ver que assado havia no es­
peto.
E ceava muito bem, pela minha consciência! E gostava de
convidar alguns vizinhos beberrões, com os quais, bebendo à
farta, contavam dos velhos até aos novos. Entre outros tinha co­
mo domésticos2o os senhores du Fou, de Gourville, de Grignault
e de Marigny2 1 .
Depois da ceia traziam-se os belos Evangelhos de madeira,
ou seja tabuleiros que se abriam como livros, ou o belo jogo de
cartas Um, dois, três, ou Arriscando tudo por tudo para abre­
viar, ou então iam ver as garças22 das redondezas, e pelo meio
eram pequenos banquetes, colações e mais colações. Depois dor­
mia dum sono só até às oito horas do dia seguinte.

(*) Não se tendo encontrado o equivalente português para muitos dos no­
mes de jogos, porventura até inventados e certamente caídos cm desu so, pre­
feriu-se deixá-los cm francês, a fi m de não empobrecer o texto eli mi nando­
-os pura e simplesmente . (N. da T.)

101
RABELAIS

NOTAS
Gargântua despacha-se a dar graças depois de ter comido .
2 Bebia derramando vinho nas mãos.
3 A enumeração dos 21 7 jogos usados no tempo de Rabelais foi estudada
por Michel Psichari, Revue des Etudes rabelaisiennes, tomo I. Poder-se-ia
consultar igualmente a grande edicão de Abel Lefranc. Os primeiros jogos
até à mourre são jogos de cartas; depois vêm os jogos de mesa, do xadrez até ao
primus secundus; depois os jogos de perícia, até ao par ou não, em seguida
vêm jogos variados de apanhar ou de figuras cómicas, muitas vezes ao ar li­
vre. No cap. XVIII do Pantagruel, Panúrgio joga alguns destes jogos com os pa­
jens.
4 Jogo de cartas muito em voga no século XVI.
5 Jogo actual do piquet.
6 Jogo de tarots espalhado no Sudoeste pelos marinheiros espanhóis.
7 Jogo de adivinhas.
8 Variedade do jogo das damas.
9 Jogo de mesa; não se trata da macaca .
1 0 Jogo cujo nome vem da blasfémia: renego Deus (je renie Dieu).
1 1 A par ou ímpar, a cara ou coroa.
12 Aos ossinhos.
1 3 Igualmente «aos ossinhos>>.
1 4 Ao croquet.
1 5 Cf. <<La poudre doribus (de merda) no <<Prólogo» do Pantagruel. O no­
me oribus ainda subsiste durante a Restauração; Balzac dá a seguinte defini­
ção (Beatrix): <<Vela cor de pão de especiarias que se usa em certas partes do
Oeste>>.
1 6 À bola.
1 7 Ao pião.
1 8 Este jogo é descrito no Jeu de Robin et de Marion (século XIII), de Adam
de la Halle.
1 9 Medida meridional equivalente a 8 sesteiros.
20 Fidalgos afectos à casa.
21 Personagens reais: Jacques du Fou foi mordomo de Francisco I; os
Gourville eram uma família de Angoulême; um dos Grignault foi camareiro
de Carlos VIII; os Marigny eram poitevinos.
22 Garça: mulher leviana, mas aqui não tem este sentido pejorativo.

1 02
CAPÍTULO XXIII
COMO GARGÂNTUA FOI INSTRUÍDO
POR PONÓCRATES COM TAL DISCIPLINA
QUE NÃO PERDIA UMA HORA DO DIA

Quando Ponócrates conheceu a viciosa maneira de viver de


Gargântua, resolveu instruí-lo nas letras de outra maneira,
mas durante os primeiros dias tolerou-a, considerando que a
Natureza não suporta as mutações súbitas sem grande violên­
cia! .
Para melhor começar a sua obra, suplicou a um sábio médi­
co daquele tempo, chamado Mestre Teodoro, que con siderasse
se era possível pôr Gargântua em melhor caminho, o qual o pur­
gou canonicamente2 com heléboro de Anticira e com este medi­
camento lhe limpou toda a alteração e hábito perverso do cére­
bro. Também deste modo Ponócrates o fez esquecer quanto
aprendera com os seus antigos preceptores, como fazia Timó­
teo3 aos seus discípulos que haviam sido instruídos por outros
músicos.
Para melhor o fazer, introduzia-o na companhia dos ho­
mens sábios que ali havia, em emulação dos quais lhe cresceu
o espírito e o desejo de estudar melhor e de se fazer valer.
Depois pô-lo em ritmo de estudo que não perdia uma hora do
dia, consumindo todo o seu tempo nas letras e em honesto sa­
ber.
Acordava, pois, Gargântua por volta das quatro horas da
manhã. Enquanto o esfregavam, liam-lh e uma página das di­
vinas Escrituras em voz alta e clara4, com pronúncia adequa­
da à matéria, e disto se encarregava um jovem pajem, nativo
de Basché5, chamado Anagnostes6. Segundo as palavras e o ar­
gumento desta lição, Gargântua punha-se muitas vezes a cis­
mar, adorar, orar e suplicar ao bom Deus, do qual a leitura mos­
trava a majestade e os maravilhosos desígnios.
1 03
RABEI.AJS

Depois ia a lugares secretos fazer a excreção das digestões


naturais. Ali, o seu preceptor repetia-lhe o que fora lido, expon­
do-lhe os pontos mais obscuros e difíceis.
À volta, consideravam o estado do céu para ver se estava
como o haviam notado na noite precedente, e em que signos en­
travam o Sol e a Lua nesse dia.
feito isto, vestiam-no, penteavam-no, arranjavam-no e
perfumavam-no, e enquanto o faziam repetiam-lhe as lições
do dia anterior. Ele próprio as dizia de cor, fundando nelas al­
guns casos práticos e relativos ao estado humano, e estendiam­
-nos algumas vezes por duas ou três horas, mas geralmente ter­
minavam quando estava completamente vestido.
Depois faziam-lhe leitÚras durante três boas horas.
Feito isto, saíam à rua, sempre conferenciando acerca dos
temas da leitura, e divertiam-se em Bracque7 ou nos prados, e
jogavam à bola, à pela, à pille trigones, exercitando galante­
mente o corpo como primeiro haviam exercitado as almas.
E jogavam com toda a liberdade, pois largavam a partida
quando lhes aprazia e, geralmente, faziam-no quando sua­
vam do corpo ou se sentiam cansados. Então eram muito bem
limpos e esfregados9, mudavam de camisa e, passeando calma­
mente, iam ver se o jantar estava pronto. E enquanto espera­
vam, recitavam clara e eloquentemente algumas sentenças
que haviam retido da lição.
Entretanto vinha o Senhor Apetite, e oportunamente se sen­
tavam à mesa.
No começo da refeição lia-se alguma história engraçada
sobre antigas proezas até que Gargântua tomasse o seu vinholo.
Então (se lhes convinha) continuavam a leitura, ou começa­
vam a dialogar alegremente uns com os outros, falando, nos
primeiros meses, da virtude, propriedade, eficácia e natureza
de tudo o que lhes era servido à mesa: do pão, do vinho, da água,
do sal, das carnes, peixes, fruta, ervas, raízes, e da respectiva
preparação. Deste modo aprendeu ele em pouco tempo todas as
passagens que com isso se relacionavam, de Plínio, Ateneu,
Dioscóridas, Júlio, Pólux, Galeno, Porfírio, Opiano, Pohbio,
Heliodoro, Aristóteles, Aeliano e outrosll . Depois de conversa­
rem sobre esses assuntos, mandavam muitas vezes trazer para
a mesa os referidos livros, para melhor se certificarem. E tão
bem reteve na memória as coisas ditas que não havia na época
nenhum médico que soubesse metade do que ele sabia.
Em seguida, falavam das lições lidas de manhã e, arrema­
tando a refeição com marmelada, palitava os dentes com um

104
GARGÂNTUA

raminho de lentisco, lavava as mãos e os olhos com água fres­


ca12, e davam graças a Deus com belos cânticos em louvor da
munificência e bondade divinas13. Feito isto, traziam-lhes car­
tas, não para jogar, mas para aprenderem mil graças e inven­
ções novas, todas provenientes da aritmética.
Deste modo aprendeu a amar essa ciência numérica, e
todos os dias, depois do jantar e da ceia, passava o tempo tão
agradavelmente como costumava fazer, jogando os dados e as
cartas. De tal modo que soube a teoria e a prática dessa ciência,
tão bem que Tunstal14, o inglês, que muito escrevera sobre essa
matéria, confessou que na verdade, em comparação com ele, só
sabia o alto alemão15.
E não soube apenas esta ciência mas também outras ciên­
cias matemáticas como a geometria, a astronomia e a música,
pois, durante a digestão do repasto, faziam mil alegres instru­
mentos e figuras geométricas e também praticavam os câno­
nes astronómicos.
Depois entretinham-se a cantar musicalmente a quatro ou
cinco partes, ou sobre um tema agradável à garganta.
Quanto aos instrumentos de música, aprendeu a tocar alaú­
de, espineta, flauta alemã e com nove buracos, viola e trom­
bone.
Assim empregada essa hora e terminada a digestão, purga­
va-se dos excrementos naturais, e depois voltava ao seu estudo
principal durante três horas ou mais, tanto repetindo a lição
matinal como continuando o livro começado, e também escre­
vendo, bem traçando e formando as antigas e romanas letras.
Feito isso, saíam de casa, e levavam com eles um jovem
gentil-homem da Touraine, chamado escudeiro Ginasta, o
qual lhe mostrava a arte da cavalaria.
Mudando, pois, de trajo, montava um corcel, um cavalo de
carga, um ginete, um cavalo árabe, um cavalo ligeiro, e dava­
-lhe cem carreiras, fazia-o voltear no ar, transpor o fosso, sal­
tar a paliçada, andar em círculo apertado, tanto à direita como
à esquerda.
E ali não dava cabo da lança, pois não há maior toleima
que dizer: <<Dei cabo de dez lanças em torneio ou em batalha»
- um carpinteiro poderia fazê-lo - mas é glória digna de lou­
vor com uma lança dar cabo de dez dos seus inimigos. Por con­
seguinte, com a sua lança acerada, . sólida e rija, arrombava
uma porta, partia uma armadura, derrubava uma árvore, en­
fiava um anel, tirava uma sela de armas, uma cota de malha,
um guante. E tudo issso armado dos pés à cabeça.

1 05
RABELAIS

Quanto a fazer fanfarras(*) e assobios em cima do cavalo,


ninguém fazia melhor. O volteador de Ferrarel6 não passava
de um macaco em comparação com ele. Aprendia a saltar rapi­
damente de um cavalo para o outro sem cair ao chão - e chama­
vam-se a esses cavalos <<de volteio>> -, e dos dois lados, de lan­
ça em punho, aprendia a montar sem estribos e, sem freio, a
guiar o cavalo à sua vontade, pois estas coisas servem para a
disciplina militar.
Outro dia exercitava-se com o machado, e tão bem o fazia es­
corregar, tão asperamente dava golpadas, tão agilmente o ma­
nejava que se fez cavaleiro de armas em campanha e em todas
as provas.
Depois brandia o chuço, manejava a espada com as duas
mãos: a espada bastardal 7, a espanholais, a adagal9 e o punhal,
armado, não armado, com escudo, com capa, ou com guarda re­
donda.
Caçava o veado, o cabrito-montês, o urso, o gamo, o javali,
a lebre, a perdiz, o faisão, a abetarda. Jogava à bola e fazia-a
saltar no ar tanto com o pé como com a mão. Lutava, corria e
saltava, não com três passos, de impulso, não ao pé-coxinho,
não ao salto alemão - pois (dizia Ginasta) tais saltos são inú­
teis e de nada servem na guerra -, mas dum salto transpunha
um fosso, voava por cima duma sebe, subia seis passos de uma
muralha e trepava dessa maneira a uma janela da altura du­
ma lança.
Nadava em águas profundas, a direito, ao contrário, de la­
do, com o corpo todo, só com os pés, com a mão no ar, na qual
levava um livro, e atravessava todo o rio Sena sem o molhar, e
puxando a capa com os dentes, como fazia Júlio César2o. Depois,
com uma mão, entrava no barco e deste se atirava de repente à
água, de cabeça, sondava o fundo, cavava os rochedos e mergu­
lhava nos abismos. Depois virava o barco, dirigia-o, domina­
va-o em plena represa, guiava-o com uma mão e com a outra
esgrimia com um grande remo, soltava as velas, subia ao mas­
tro pelos cordames, corria em cima das vergas, acertava a bús­
sola, virava as bolinas contra o vento, e segurava o leme.
Ao sair da água, escalava a montanha e descia por ela abai­
xo com a mesma ligeireza; trepava às árvores como um gato,
saltava duma para a outra como um esquilo, abatia os ramos
maiores como um Milo21 . Com dois punhais aguçados e dois es-

(*) Isto é, ensinar o cavalo a andar ao som da mú sica. (N. da T.)

106
GARGÂNTUA

peques subia ao cimo duma casa como um rato, e depois descia


de alto a baixo com uma tal composição de membros que não se
magoava com a queda.
Lançava o dardo, a barra, a pedra, o dardo, o chuço, a ala­
barda, tendia o arco, retesava nos rins as fortes arbaletas de
passe22, visava sem apoiar o arcabuz23, afustava o canhão, atira­
va ao alvo e ao papagaio24, de baixo para cima, de cima para ba:l­
xo, de frente, de lado, de trás como os partos25.
Amarravam-lhe numa torre alta um cabo que chegava ao
chão, e subia por ele acima com as duas mãos, e depois descia
mais seguramente do que se poderia fazer num prado.
Punham-lhe uma grande vara apoiada em duas árvores e
pendurava-se nela pelas mãos e andava dum lado para o outro
sem tocar com os pés em nada e tão depressa que ninguém o con­
seguiria apanhar.
E para exercitar o tórax e os pulmões, gritava como os dia­
bos todos juntos. Ouvi-o uma vez a chamar Eudémon desde a
Porta São Vítor26 até Montmartre; jamais Stentor teve tal voz
na batalha de Tróia.
E para fortalecer os nervos, tinham-lhe feito dois grande
lingotes de chumbo, pesando cada um oito mil e setecentos quin­
tais e chamava-lhes halteres: içava-os do chão com as mãos e
levantava-os no ar acima da cabeça, e mantinha-os assim,
sem se mexer, durante três quartos de hora ou mais, o que é
uma força inimitável.
Jogava à barra com os mais fortes e, chegada a altura, fir­
mava-se nos pés com tanta força que desafiava os mais auda­
ciosos a fazerem-no mover-se do lugar, como outrora fazia Mi­
lo 2 7, em imitação do qual também segurava uma romã e a dava
a quem ousasse tirar-lha.
Assim empregue o tempo, esfregado, limpo e vestido de fres­
co, voltava tranquilamente e, ao passar por prados e outros luga­
res arborizados, visitavam as árvores e as plantas, comparan­
do-as com os livros antigos que sobre elas escreveram, como
Teofrasto 28, Dioscóridas2 9, Marino, Plínio, Nicander, Macer e
Galeno, e levavam-nas às mancheias para casa, onde cuidava
delas um jovem pajem chamado Rizótomoao, mais as enxadas,
as picaretas, os sachos, as pás, os trinchos e outros instrumen­
tos necessários para arborizar.
Ao chegarem a casa, e enquanto se preparava a ceia, repe­
tiam algumas passagens do que haviam lido e sentavam-se à
mesa.
Notai que o seu j antar era sóbrio e frugal, pois apenas

1 07
RABELAIS

comia para calar o estômago, mas a ceia era copiosa e grande,


posto que comia tanto quanto precisava para se alimentar, o
que constitui a verdadeira dieta prescrita pela arte da boa medi­
cina, se bem que uma quantidade de médicos tolos e exercita­
dos no ofício de sofistas aconselhem o contrário.
Durante esta refeição continuavam a lição do jantar en­
quanto lhes aprazia; o resto do tempo passavam-no em boas
conversas, todas letradas e úteis.
Depois de darem graças, punham-se a cantar musicalmen­
te, a tocar instrumentos harmoniosos, ou a fazer esses peque­
nos passatempos que se fazem com cartas, dados e copos, e com
isso se entretinham, divertindo-se e folgando às vezes até à ho­
ra de dormir; algumas vezes iam visitar pessoas letradas ou
gente vinda de países estrangeiros.
A meio da noite, antes de recolherem, iam ao lugar mais
descoberto da casa ver a face do céu, e notavam os cometas,
quando os havia, as figuras, situações, aspectos, oposições e con­
junturas dos astros.
Depois recapitulava brevemente com o seu preceptor à ma­
neira dos pitagóricos31 , tudo o que lera, vira, fizera e ouvira ao
longo do dia.
Rezando ao Criador, adorando-O e afirmando-Lhe a sua
fé, glorificando a Sua bondade imensa, dando-Lhe graças pelo
tempo passado, recomendavam-se à Sua divina clemência pa­
ra todo o futuro.
Feito isto, iam repousar.

NOTAS
1 Terapêutica da escola de Salerno, que evitava as bruscas mudanças de
regime.
2 Remédio contra a loucura. Cf. La Fontaine, <<A Lebre e a Tartaruga>>:
Comadre, tendes de purgar-vos
Com quatro grãos de eléboro.

3 Segundo Quinti!iano (lnstituú;ão oratória, II, 3).


4 Esta leitura em voz alta e clara opõe-se às orações <<resmoneadas» que
dantes fazia Gargãntua.
5 Aldeia de lndre-et-Loire, perto de Richelicu, no Chinon.
6 Em grego Leitor.
7 Jeu de Paume, praça de l'Estrapade (na montanha Sainte-Genevieve).
B Jogo da bola em que os três jogadores, di spostos em triângulo, atiram a
bola uns aos outros.
9 Depois de se encerrarem as estufas na Idade Média, as pessoas perde-

1 08
GARGÂNTUA

rarn o hábito de se lavarem; a água era considerada um líquido perigoso, e


usava-se água de rosas ou perfumes.
10 O vinho estava colocado num aparador, e o escanção deitava--o nas ta­
ças que depois apresentava aos convivas.
11 Enumeração de naturalistas e médicos da Antiguidade: Plínio o Anti­
go (História Natural), que pereceu na erupção do Vesúvio; Ateneu, gramático
contemporâneo de Marco Aurélio, autor de um Banquete dos Sábios editado em
1 51 4 ; Dioscóridas, médico do século I, autor de um trata.do editado em 1 499 e
considerado uma autoridade entre os boticários; Julius Pollux, gramático do
século n; Galeno, célebre médico do século 11, especialista em dietética; Porfí­
rio (século III) , autor de um tratado Da abstinência da carne; Opiano (século
III), autor de poemas sobre a caça e a pesca; Políbio (século v a. C.), genro de Hi­
pócrates; Aristóteles escreveu tratados de história natural; Eliano (século III),
autor do tratado Da natureza dos animais.
12 Asseio notável para a época.
1 3 Estes cânticos substituem as graças que dantes Gargântua pronuncia­
va maquinalmente. Os salmos de David traduzidos em francês por Marot e
musicados serão cantados pelos católicos.
1 4 Tunstal (1 476-1 559), bispo de Durharn, primeiro secretário de Henri­
que VIII, e autor de um tratado de aritmética publicado em Londres, em 1 522, e
em Paris, em 1 529.
1 5 Alemão da Idade Média ou da Alta Alemanha (Baviera). O sentido é
claro: é urna língua difícil.
1 6 Havia no século XVI um escudeiro célebre em Ferrare.
1 7 Espada comprida
1 8 Espadalhão de Espanha, muitas vezes adamascado.
1 9 Punhal muito acerado que se manejava com a mão esquerda (por
exemplo, nos duelos) enquanto se atacava com a mão direita. A adaga servia
para dar o golpe de misericórdia ao adversário derrubado.
20 Anedota narrada por Plutarco (Vida de Júlio César, 49), e citada por
Montaigne (Ensaios, II, XXXIV ) .
21 Mílon de Crotona.
22 A arbaleta reteva-se com um guincho, e não fazendo esforço com os
rins.
23 Outra façanha de gigante, pois o arcabuz pesava cerca de 17 kg.
24 Urna espécie de pássaro de cartão que servia de alvo.
25 Os partos disparavam setas fugindo a cavalo e voltando--s e para trás.
26 A Porta São Vítor ficava no bairro da Universidade, perto do Convento
de São Vítor, hoje Faculdade das Ciências, no local do mercado dos vinhos.
27 Mflon de Crotona que, segundo Plínio o Antigo, ninguém conseguia ar­
rancar do lugar onde estava (Hist. Nat., cap. VII, 1 9). As outras anedotas são
extraídas da mesma passagem.
28 Discípulo de Aristóteles que, além dos Caracteres, escrevera dois trata­
dos sobre as plantas.
29 Cf. nota 11 deste capítulo; Marino não foi identificado com segurança;
Nicander, médico grego, autor de poemas didácticos sobre as plantas medici­
nais ; Macer, autor de um poema latino sobre as plantas, publicado em 1 477;
Galeno falou das plantas nos seus tratados. O estudo da botânica era negligen­
ciado na Faculdade de Medicina de Paris, mas praticava-se em Montpellier,
onde Rabelais o devia ter aprendido.
30 <<Cortador de raízes», em grego.
31 Cícero (De Senectude, XI, 38) refere este costume.

1 09
CAPÍTULO XXN
COMO GARGÂNTUA PASSAVA O TEMPO
QUANDO O AR ESTAVA CHUVOSO

Se sucedia que o ar estivesse chuvoso e intemperado, todo o


tempo antes do jantar era empregado como de costume, com a
diferença de que mandava acender um lume bonito e claro pa­
ra corrigir a intempérie do ar. Mas depois do j antar, em vez
dos exercícios, ficavam em casa e, à maneira de apoterapial ,
iam fazer medas de feno, rachar e serrar a madeira, e malhar
o trigo na granja; depois estudavam a arte da pintura e da es­
cultura, ou punham em prática o antigo jogo das mesas como so­
bre ele escreveu Leonicus2 e como joga o nosso bom amigo Las­
caris3. E enquanto jogavam iam evocando as passagens dos au­
tores antigos a que se faz menção no dito jogo.
Iam igualmente ver como se trabalhavam os metais, ou co­
mo se fundiam as peças de artilharia, iam ver os lapidárias e
ourives, os alquimi stas e moedeiras, ou os tecelãos, os tapecei­
ros, os fabricantes de veludos, os relojoeiros, fabricantes de es­
pelhos, impressores, organistas, tintureiros e outras espécies
de ourives, e em toda a parte ofereciam vinho, aprendiam e con­
sideravam a indústria e invenção dos artífices4.
Iam ouvir as lições públicas, os actos solenes, as repeti­
ções5, as declamações, as defesas dos gentis advogados, as pré­
dicas dos pastores evangélicos6.
Passava pelas salas e locais destinados à esgrima, e aí ex­
perimentava contra os mestres todas as armas, e mostrava­
-lhes com evidência que sabia tanto ou mais que eles.
E, em vez de arborizar, visitavam as drogarias, ervaná­
rias e boticas, e cuidadosamente consideravam os frutos, raí­
zes, folhas, gomos, sementes, unguentos peregrinos, e também
a maneira como os adulteravam.
Ia ver os saltimbancos, escamoteadores e vendedores de ba-
110
GARGÂNTUA

nha--da--cobra7, e considerava os seus gestos, as suas manhas,


os seus sobressaltos e as suas falas, especialmente dos de Chau­
nyss na Picardia, pois são por natureza grandes tagarelas e
chalaceadores em matéria de macacos verdes9.
Quando voltavam para a ceia, comiam mais sobriamente
que nos outros dias, e carnes mais dessicativas e .extenuantes,
a fim de que a intempérie húmida do ar, comunicada ao corpo
por necessária confinidade, fosse desse modo corrigida, e não
lhes viesse incómodo por não se terem exercitado como era cos­
tume.
Assim foi governado Gargântua, e continuava este progres­
so de dia para dia, ganhando bom senso com tal exercício conti­
nuado, como credes que pode fazer um jovem, segundo a idade,
o qual, embora a princípio parecesse difícil, se tornou com a
continuação tão suave, ligeiro e deleitoso que mais parecia um
passatempo de reis que o estudo de um aluno.
Todavia Ponócrates, para repousar desta veemente inten­
sãolo dos espíritos, destinava uma vez por mês um dia claro e se­
reno para largarem a cidade de manhã e irem ou a Gentily, a
Boulogne, a Montrouge, ou ao Pont Charanton, a Vanves, ou a
Saint-Cloudll . E ali passavam o dia a espairecer o mais que po­
diam, brincando e folgando, bebendo outro tanto, jogando, can­
tando, dançando, refastelando-se num belo prado, descobrindo
passarinhos, apanhando codornizes, pescando rãs e camarões.
Mas, ainda que passasse sem livros e sem leituras, esse dia
não passava sem proveito, pois no belo prado recitavam de cor
versos aprazíveis da Agricultura l2 de Virgílio, de Hesíodol3, do
Rústico de Polizianol4, descreviam alguns agradáveis epigra­
mas em latim, e depois punham-nos em rondós e baladas em
língua francesa.
Banqueteando-se, separavam a água do vinho, como ensi­
na Catão, De re rust., e Plínio, com um copinho de heral5, lava­
vam o vinho numa bacia com água e depois retiravam-no com
um funil, e passavam a água dum copo para outro; construíam
os seus pequenos engenhos automáticos, ou seja, que se movem
sozinhos.

NOTAS
I Termo empregado por Galeno: regime fortificante.
2 O humanista italiano Nicolaus Leonicus Thomaeus publicara em
Lyon em 1 532 um diálogo sobre os ossinhos: Sannutus, sive de ludo talaris.
3 Lascaris (1445-1 534), humanista grego refugiado em Itália depois da to-

111
RABELAJS

mada de Constantinopla. Desenvolveu o estudo do grego antigo na Itália e em


França, e foi bibliotecário de Francisco L Foi mestre de Guillau me Budé, com
quem Rabelais se correspondia.
4 O conhecimento dos ofícios manuais será um ponto importante da En­
ciclopédia. Como Gargântua, Diderot visitará as oficinas dos artesãos e as fá­
bricas.
5 Exercícios oratórios sobre lugares-comuns.
6 Alusão aos pregadores como Michel d'Arande ou Gerárd Roussel, que
seguiam o movimento de regresso ao Evangelho preconizado por Lefevre
d'Etaples e Briçonnet.
7 Vendedores de «thériaque>>, remédio universal, e por extensão charla­
tães.
8 Havia em Chauny, perto de Laon, uma feira de saltimbancos e m alaba-
ristas,
9 Animais extraordinários.
1 0 Tensão.
11 Estas aldeias ficavam então em pleno campo.
12 As Geórgicas.
1 3 Os Trabalhos e os Dias.
1 4 Poema latino que imita as Geórgicas.
1 5 Esta propriedade da hera é, de facto, atestada por Catão e Plínio. Rabe­
lais põem-na em dúvida no cap. LIT do Terceiro Livro a propósito do Panta­
gruelion .

1 12
CAPÍTULO XXV
COMO SE E STABELECEU
ENTRE OS BISCOITEIROS DE LERNÉl
E OS DO PAÍS DE GARGÂNTUA
A GRANDE CONTENDA
DE ONDE RESULTARIAM GRANDES GUERRAS

Nesse tempo, que foi a estação das vindimas, no começo do


Outono, os pastores da região andavam a guardar as vinhas pa­
ra impedir os estorninhos de comerem as uvas.
E por essa altura os fabricantes de biscoitos de Lemé passa­
ram pela grande encruzilhada, levando dez ou doze cargas de
biscoitos para a cidade.
O s ditos pastores pediram-lhes cortesmente que lhos ven­
dessem em troca do seu dinheiro, ao preço do mercado. Pois no­
tai que é celeste iguaria comer ao almoço uvas com biscoitos
frescos, como os pineaulx, fiers, muscadets, a bicane, e os foy­
rards2 para os que estão obstipados da barriga, pois fazem-no ir
tão longe como uma lança e muitas vezes, julgando peidar-se,
cagam-se, e daí o nome que se dá aos homens que cuidam das
vindimas3.
Os fabricantes de biscoitos não se inclinaram a aceder ao
seu pedido, mas (o que é pior) ultrajaram-nos grandemente,
chamando-lhes leprosos, desdentados, debochados, mascara­
dos, malandros, hipócritas, ociosos, delicadinhos, barrigudos,
fanfarrões, pacóvios, parasitas, armalhões, conquistadores,
farsantes, preguiçosos, grosseirões, tolos, papa-açordas, par­
vos, engraçadinhos, cagões, vaqueiros de cagalhões, pastores
de merda e outros que tais epítetos difamatórios, acrescentando
que comer aqueles ricos biscoitos não era para eles e que de­
viam contentar-se com pão saloio e torta.
A este ultraje uJIY deles chamado Frogier, homem honesto e
rapaz notável, respondeu mansamente:

1 13
RABELAIS

«Há quanto tempo ganhastes cornos que vos tornastes tão ar­
rogantes? Costumáveis vender-nos os biscoitos de bom grado e
agora recusais. Isso não é próprio de bons vizinhos, e não é o
que vos fazemos quando cá vindes comprar o nosso belo trigo,
com o qual fazeis os vossos bolos e biscoitos. E ainda vos daría­
mos em troca as nossas uvas; mas, pela mãe de Deus!, pode­
ríeis arrepender-nos e ainda um dia haveis de acertar contas
connosco. Então pagar-vos-emos com a mesma moeda, lem­
brai-vos disso!>>
Então Marquet4, grande bastonárioS da confraria dos biscoi­
teiras, disse-lhe:
<<Estás hoje muito combativo, deves ter comido muito milho
ontem à noite. Anda cá anda, que eu te dou o meu biscoito!»
Então Forgier aproximou-se com toda a simplicidade, e ti­
rou uma moeda do cinto, pois pensava que Marquet ia desembol­
sar os seus biscoitos, mas ele deu-lhe com o chicote nas pernas
tão asperamente que se ficaram a ver os nós. Depois quis fugir,
mas Forgier pôs-se a gritar por socorro, que estavam a matá­
-lo e ao mesmo tempo atirou-lhe um cacete que trazia debaixo
do braço, e atingiu-lhe na junção coronal da cabeça, por baixo
da artéria crotáfica6, do lado direito, de tal maneira que Mar­
quet caiu da égua abaixo e parecia mais morto que vivo.
Entretanto, os rendeiros que por ali andavam a descascar
nozes acorreram com as suas varas, e malharam nos fabrican­
tes de biscoitos como se fosse centeio. Ao ouvirem o grito de For­
gier, os outros pastores e pastoras vieram com as suas fundas, e
seguiram-nos atirando-lhes pedras tão pequenas que mais pa­
recia uma saraivada. Finalmente alcançaram-nos e tiraram­
-lhes umas quatro ou cinco dúzias de biscoitos; todavia paga­
ram-nos ao preço habitual e deram-lhes um cento de nozes e
três cestadas de uvas brancas. Depois os fabricantes de biscoi­
tos ajudaram Marquet a montar, pois estava muito ferido, e vol­
taram a Lerné sem poderem seguir pelo caminho de Pareillé7,
e ameaçando os vaqueiros, pastores e rendeiros de Seuillé e de
Synais.
Feito isto, os pastores e pastoras regalaram-se com os biscoi­
tos e as uvas e divertiram-se ao som da gaita-de-foles, troçan­
do daqueles belos e gloriosos biscoiteiras que tinham tido maus
pensamentos por causa de não se terem benzido com a mão cer­
ta de manhã, e com grandes bagos de uva banharam mimosa­
mente as pernas de Forgier, de tal maneira que logo se curou.

1 14
GARGÂNrUA

NOTAS
1 Aldeia do cantão de Chion, a 1 km de La Deviniere; os seus biscoitos
(fouaces) eram- e ainda são - famosos em toda a região .
2 Variedades de vinhos e de uvas: o fier ou fume sabe a figo; o muscadet
(moscatel) bebe-se com ostras; .o bicame é uma uva grande que serve para fa­
zer o verdasco; o foirard recebeu este nome por causa das suas propriedades la­
xativas.
3 Locução proverbial. As uvas da Champagne produziram os mesmos
efeitos nos soldados de Brunswick e contribuíram para a vitória de Valmy
(1 792).
4 Michel Marquet, escudeiro, senhor de La Bédouere, secretário do rei em
1 489, era cobrador-geral da Touraine. A sua filha casou com Gaucher de Sain­
te-Marthe, de quem Rabelais fez o rei Picrocole. A guerra picrocolina é uma
transposição burlesca dos processos que opuseram Gaucher e o pai de Rabe­
lais.
5 Cada confraria tinham um b astão com a figurinha do santo padroeiro
da corporação.
6 Termos médicos; Marquet é atingido na sutura coronal; a artéria crotá­
fica é a artéria temporal.
7 Parilly, perto de Chinon.

1 15
CAPÍTULO XXVI
COMO OS HABITANTES DE LERNÉ
MANDADOS POR PICROCOLE, SEU REI,
ASSALTARAM DE SURPRESA
OS PASTORES DE GARGÂNTUA

Logo que chegaram a Lerné, antes de beber e comer, os bis­


coiteiras dirigiram-se ao Capitóliol e ali, diante do seu rei cha­
mado Picrocole2, terceiro do nome, apresentaram as suas quei­
xas, mostrando os cestos rotos, os barretes amachucados, as rou­
pas rasgadas, os biscoitos roubados, e sobretudo Marquet muito
ferido, dizendo que tudo isso fora feito pelos pastores e rendei­
ros de Grandgousier, perto da grande encruzilhada depois de
Seuillé.
O qual rei imediatamente se enfureceu, e sem querer saber
de mais nada, mandou anunciar pregões e convocações pelo
país, ordenando que, sob pena de enforcamento, cada qual com­
parecesse em armas na grande praça diante do castelo à hora
do meio-dia.
Para melhor confirmar a sua empresa, mandou tocar o tam­
bor nos arredores da cidade. E, enquanto lhe preparavam o jan­
tar, ele próprio foi mandar afustar a artilharia, içar o seu estan­
darte e auriflama, e carregar grande quantidade de munições,
tanto em armas como em víveres.
E durante o jantar distribuiu os postos de comando, e procla­
mou um édito constituindo o senhor Trepelu3 na vanguarda, na
qual se contaram dezasseis mil e catorze arcabuzeiros, trinta e
cinco mil e onze aventureiros4.
Para a artilharia foi destacado o Grande Escudeiro Touc­
quedillon5, na qual se contaram novecentas e catorze grandes
peças de bronze constituídas por canhões, canhões duplos, basí­
licos, serpentinas, colubrinas, bombardas, falcões, passavolan­
tes, espirolas e outras peçass. A retaguarda foi confiada ao du-

1 16
GARGÂNJUA

que Racquedenare7; no grosso das tropas ficaram o rei e os prín­


cipes do seu reino.
Assim sumariamente apetrechados, e antes de se porem a
caminho, enviaram trezentos cavalos ligeiross sob as ordens
do capitão Engoulevent9, para apalpar terreno e ver se não ha­
via emboscadas naquela região; mas depois de procurar di­
ligentemente, encontraram todas as proximidades em paz e
silêncio, sem nenhum ajuntamento.
Ouvindo isto, Picrocole mandou que todos marchassem ra­
pidamente sob o seu estandarte.
Então, puseram-se desordenadamente em campanha, asso­
lando e dissipando tudo por onde passavam, sem pouparem
nem pobres nem ricos, nem lugares sagrados nem profanos;
levavam bois, vacas, touros, vitelas, bezerras, ovelhas, carnei­
ros, cabras e bodes, galinhas, capões, frangos, pássaros, gan­
sos, patos, porcos, porcas, leitões; abatendo as nozes, vindiman­
do as vinhas, levando as videiras, fazendo cair a fruta das
árvores. Era uma desordem incomparável o que faziam, e não
encontraram ninguém que lhes resistisse, mas todos se
punham à sua mercê, suplicando-lhes que os tratassem mais
humanamente, considerando que sempre tinham sido bons e
amigáveis vizinhos, e que jamais haviam cometido contra
eles nem excessos nem ultrajes para serem assim subitamente
vexados por eles, e que Deus em breve os puniria. E nada res­
pondiam a estas repreensões, a não ser que queriam ensiná­
-los a comer biscoitos.

NOTAS
1 O castelo de Lerné.
2 Picrocole ou <<Bílis-Amarga>>, termo médico, como mais tarde <<atrabi­
liário» (cf. Le Misanthrope). A identificação de Picrocole com Gaucher de
Sainte-Marthe era tradicional.
3 <<Esfarrapado, maltrapilho.» Continua a paródia da epopeia; geralmen­
te, a vanguarda era confiada a um brilhante capitão.
4 Os aventureiros são voluntários, sem soldo, geralmente indisciplina­
dos.
5 Fanfarrão.
6 A artilharia de Picrocole é numerosa e comporta todos os calibres; o ca­
nhão duplo era a peça maior, arrastada por 35 cavalos; os basílicas e serpenti­
nas eram, os primeiros, de grande calibre e as segundas mais compridas; a
colubrina era de pequeno calibre e muito comprida; a bombarda, grande peça
que lançava balas de pedra, utilizada durante a guerra dos Cem Anos, já não
era usada no século XVI; os falcões, passavolantes e espirais constituíam a arti­
lharia ligeira.

117
RABELAIS

7 Rola-dinheiro; a alcunha convém mais a um usurário que a um capi­


tão . O comando da retaguarda apanha os retardatários como o banqueiro rapa
o fundo da gaveta.
8 No tempo de Francisco I, os cavalos ligeiros estavam armados de lan­
ças curtas; eram utilizados, como aquí, em missões de reconhecimento.
9 Engole-vento, alcunha frequente na época. Este nome foi empregado pa­
ra designar uma ave migradora semelhante à andorinha.

118
CAPÍTULO XXVII
COMO UM PADRE DE SEUJLLÉ
SALVOU O CERCADO DA ABADIA
DO SAQUE DOS INIMIGOS

Tanto fizeram, tanto se agitaram, pilhando e ladronando,


que chegaram a Seuillél , e assaltaram homens e mulheres, e le­
varam o que puderam: não havia nada que fosse quente de
mais ou pesado de mais para eles.
Embora a peste2 andasse pela maior parte das casas, entra­
vam em toda a parte, roubavam tudo quanto havia, e jamais cor­
reram perigo, o que é coisa maravilh osa, pois os párocos, vigá­
rios, pregadores, médicos, cirurgiões e boticários que iam visi­
tar, tratar, curar, pregar e admoestar os doentes, tinham todos
morrido de infecção e aqueles diabos ladrões e assassinos ja­
mais apanharam o mal. Donde vem isto, senhores? Pensai
bem, por favor.
Assim pilhado o burgo, dirigiram-se para a abadia em hor­
rível tumulto, mas encontraram-na bem fechada e trancada, e
por conseguinte o exército principal marchou adiante, na direc­
ção do Gué de Vede3, excepto dezasseis estandartes4 de soldados
a pé de duzentas lanças que ali ficaram e demoliram os muros
do cercado a fim de roubarem toda a vindima.
Os pobres diabos dos frades não sabiam a que santo h aviam
de confiar-se. E mandaram tocar ad capitulum capitulantes5
para o que desse e viesse. Ali se decretou que fariam uma boni­
ta procissão, reforçada com belos cânticos e litanias contra hos­
tium insidias6 e belos responsos pro pace.
Estava então na abadia um frade do claustro chamado Frei
Jean des Entommeures7, jovem, galante, pimpão, alegre, hábil,
corajoso, aventureiro, resoluto, alto, magro, de grandes goelas,
avantajado de nariz, bom despachador de horass, de missas e
de vigílias, numa palavra: um verdadeiro frade, se acaso os

119
RABEI.AIS

houve desde que o mundo fradejante fradejou de fradaria, de


resto, letrado até aos dente s em matéria de breviário.
Ao ouvir o barulho que faziam os inimigos no cercado da
sua vinha, saiu o frade para ver o que faziam e, percebendo que
vin dimavam o cercado onde e stava a sua bebida de todo o ano,
volta ao coro da igreja, onde se encontravam o s outros frades,
todos espantados com os fundidores de sinos9, e vendo-os can­
tar Ini nim, pe, ne, ne, ne, ne, ne, ne, tum, ne, num, num, ini, i,
mi, i, mi, co, o, ne, no, o, o, ne, no, ne, no, no, no, rum, ne, num,
numl O ; <<Bem cantado, bem cantado ! Virtude de Deus, por que
não cantais:

Adeus, cestos._ que acabaram as vindimas?

>>Que eu vá para o diabo se eles não estão no nosso cercado e


cortam tão bem as cepas e as uvas que, pelo corpo de Deus! , du­
rante quatro anos teremos de andar ao rebusco. Ventre de S.
Tiago ! , que beberemos entretanto, pobres diabos? Senhor D eus,
da mihi potuml l !»
Disse então o prior do claustro:
<<Que fará este bêbado? Levem-no para a prisão. Perturbar
assim o serviço divino!>>
<<Mas (disse o frade) não deixemos perturbar o serviço do vi­
nho12, pois vós mesmo, senhor Prior, gostais de beber, e do me­
lhor. Assim faz todo o homem de bem; j amais homem nobre de­
testa o bom vinho: é um preceito monacal. Mas estes respon sos
que aqui cantais não são, por Deus!, próprios da estação.
<<Por que são as nossas horasl 3 curtas no tempo da ceifa e da
vindima, e longas no advento e durante todo o Inverno? O fale­
cido, e de boa memória, Frade Macé Pelosse14, verdadeiro zela­
dor (ou que o diabo me carregue) da nossa religião, disse-me,
bem me lembro, que era para que nessa estação fizéssemos o vi­
nho, e no Inverno o bebêssemos.
>>Escutai, senhores, vós que gostais de vinho : o corp o de
Deus se me seguirdes! Pois, que Santo António me queime , que­
ro ver se provará o vinho quem não tiver socorrido a vinha!
Ventre de Deus, os ben s da igreja! Ah, não, não ! Diabos! S . To­
más o Inglês15 morreu por eles: se eu lá morresse, não seria
santo na mesma? Mas não morrerei, pois eu é que o faço aos ou­
tros.>>
D izendo isto, despiu o hábito e agarrou o bastão da cruz, que
era de miolo de sorveiro, do tamanho duma lança, todo redondo
e semeado aqui e ali de flores-de-lis, todas quase apagadas. E

120
GARGÂNTUA

saiu assim de saio, pôs o hábito a tiracolo e deu tão bruscamente


com o bastão da cruz nos inimigos que, sem ordem, nem e s­
tandarte, nem corneta, nem tambor, vindimavam n o cercado
- pois os porta-estandarte tinham posto os seus pendões e insíg­
nias n a orla dos muros, os tambores tinham sido abertos dum
lado para os encherem de uvas, as cornetas estavam cheias de
ramo s de vinha, e todos tinham debandado -, chocou tão viva­
mente com eles sem dizer, tir-te nem guar-te que os deitou
abaixo como porcos, malhando a torto e a direito à maneira da
velha esgrima16 ,
A uns esborrachava o cérebro, a outros partia braços e per­
nas, a outros deslocava os espôndilos1 7, do pescoço, a outros der­
reava os rins, arrancava o nariz, furava os olhos, rachava as
mandíbulas, enterrava os dentes na garganta, partia as omo­
platas, esfacelava as pernas, desarticulava as ísquias, despeda­
çava os ossos dos braços e das pernasi B.
Se algum se queria esconder no meio das cepas mai s espes­
sas, partia-lhes a aresta das costas e desancava-o como um
cão.
S e algum queria salvar-se fugindo, fazia-lhe voar a cabe­
ça aos bocados pela comissura lambdóidei s.
Se algum trepava a uma árvore, pensando ficar a salvo, em­
palava-o pelo ânus com o seu bastão.
Se algum velho conh ecido lhe gritava: «Ai, frei Jean, meu
amig9, frei Jean, eu rendo-me!>>
<<Es obrigado a isso (dizia ele), mas ao mesmo tempo rende­
rás a alma a todos os diabos!>>
E , de repente, dava-lhe pancada. E se houvesse alguém tão
temerário que quisesse resistir-lhe, mostrava a força dos seus
músculos, pois varava-lhe o peito pelo mediastino1 9 e pelo cora­
ção. A outros, dando-lhes no meio das costas, virava-lhe s o es­
tômago do avesso, e morriam subitamente. A outros batia-lhes
tão cruelmente no umbigo que lhes fazia sair as tripas. A ou­
tros furava-lhes o recto pelo meio dos colhões. Acreditai que
era o mais horrível espectáculo que jamais se viu.
Uns gritavam : Santa Bárbara20!
Outros: São Jorge2I !
Outros: Sainte Nytouche22 !
Outros: Nossa Senhora de Cunault! do Loreto! da Boa-No­
va! da Lenou! de Riviere23 !
Uns confiavam-se a São Tiago24;
outros ao santo sudário de Chambery, mas ardeu passado

121
RABELAIS

três meses, de tal maneira que não se salvou nem uma ponti-
nha25; _

outros a Cadouyn26; .
outros a São João d'Angery27;
outros a São Eutrópio de Xaincteszs, a São Mesme29 de Chi­
non, a São Martinho de Candes3o, a São Clouaud de Synays31 , às
relíquias de J avrezay32 e mil outros bons santinhos33.
Uns morriam sem falar, outros falavam sem morrer. Uns
morriam a falar, outros falavam a morrer.
Outros gritavam em voz alta: ••Confissão ! Confissão ! Confi­
teor! Miserere! ln manus!>>
Tão grandes eram os gritos dos feridos que o prior da aba­
dia mais os seus frades todos saíram, os quais, ao verem aque­
la pobre gente assim caída no meio da vinha e ferida de morte,
confessaram alguns. Mas, enquanto os padres passavam o tem­
po a confessar, os fradinhos correram ao lugar onde estava
Frei Jean e perguntaram-lhe como podiam ajudá-tio. E ele res­
pondeu-lhes que degolassem os que estavam no chão. Portanto,
deixando as suas grandes capas em cima duma latada o mais
perto possível, começaram a degolar e a acabar os que j á
estavam feridos d e morte. E sabeis com que ferramentas? Com
belas facas, dessas que as crianças da n ossa terra usam para
descascar as nozes.
Depois, com o bastão da cruz, chegou à brecha que os inimi­
gos tinham aberto. Algun s dos fradinhos levaram os estandar­
tes e pendões para as suas celas, para fazerem jarreteiras.
Mas, quando os que se tinham confessado quiseram sair por es­
ta brecha, o frade batia-lhes, dizendo:
«Estes estão confessados e arrependidos, e ganharam o
perdão ; vão para o paraíso tão direitinhos como o caminho de
Faye34_,,
Assim, com a sua proeza, foram derrotados todos os que ha­
viam entrado no cercado, em número de treze mil seiscentos e
vinte e dois, sem as mulheres e as crianças, subentenda-se
sempre.
Jamais Maugis35, o eremita, se serviu tão valentemente do
seu bordão contra os sarracenos, sobre os quais se escreveu nas
gestas dos quatro filhos Haymon, como fez o frade contra os ini­
migos com o bastão da cruz.

122
GARGÂNTUA

NOTAS
Seuilly, burgo de que dependia La Deviniere.
2 AP. epidemias de peste foram numerosas no século XVL
3 Aldeola a leste de La Deviniere (cf. cap. IV). Pelo gué passava o cami­
nho de Seuilly a Chinon. Todos os nomes de localidades da guerra picrocoli­
na evocam a terra natal de Rabelais.
4 Soldados de infantaria agrupados em torno de uma bandeira; a «lan­
ça» é um termo de cavalaria para designar o cavaleiro e o seu séquito de ho­
mens de armas, criados, etc.
5 <<Para o capítulo, os que têm voz no capítulo!>>, reunião geral do capítulo
que assiste ao prior.
6 Contra as armadilhas dos inimigos.
7 «Entommeure» ou «entamures» significa picado.
8 Frei Jean despacha a toda a pressa o seu breviário, as missas e as vígi­
lias.
9 Comparação frequente no século XVI : espantados como os fundidores
que, ao retirarem o sino do molde, vêem que saiu defeituoso.
1 0 Responsos dos domingos de Outubro: ,Jmpessum inimicorum ne ti-
mueretis»: não temais o assalto dos inimigos.
n <<Dá-me de beber.>>
1 2 Consonância burlesca: «serviço divino» e <<do vinho».
1 3 Horas do breviário.
1 4 Frei Macé Pelasse ainda não foi identificado. Tratar-se-á de um tipo
proverbial de frade como o frade Lubin? Devemos comparar este nome com o
dito dos <<Bem Bebidos»: <<Sou o padre Macé» (cap. v)? Nada menos certo.
1 5 S. Tomás Becket, arcebispo de Cantuária, assassinado na sua igrej a
por ordem d o re i de Inglaterra.
1 6 Sem delicadezas, à francesa, e não segundo a nova esgrima, à italia­
na, mais subtil.
1 7 As vértebras.
1 8 Rabelais mistura os termos médicos e as locuções em dialecto, produ­
zindo assim um efeito burlesco.
1 9 Termo da anatomia: estrutura lambdóide (em forma da letra grega
lambda, À).
20 Ainda hoje padroeira dos artilheiros.
21 Patrono dos cavaleiros.
22 Santa imaginária que simboliza a hipocrisia (Elle ny touche pas...).
23 Invocações a diversos santuários da Virgem: priorado beneditino de
Cunault (perto de Saumur); Nossa Senhora do Loreto (Itália), onde Montaigne
e depois Descartes irão em pregrinação; a Virgem da Boa-Nova, protectora
dos marinheiros marselheses; Nossa Senhora de Marselha, venerada em Li­
moux (?) e Nossa Senhora de Riviére, perto de Chinon.
24 Santiago de Compostela, a mais ilustre das romarias durante to da a
Idade Média.
25 O relicário de Chambéry ardeu no dia 4 de Dezembro de 1 532, o que per­
mite datar a guerra picrocolina; a relíquia do Santo Sudário foi poupada pelo
fogo . Calvino (Tratado das Rellquias, 1 534) troça dos numerosos sudários que
as cidades disputam entre si: <Jlá pelo menos uma meia dúzia de cidades que
se gabam de possuir todo o sudário do sepulcro; como Nice, o que para ali foi
transportado de Chambéry; etc . ... »
26 A relíquia de Cadouin, perto de Bergerac, ainda existe; a abadia per-

123
RABELAIS

tencia a Geoffroy d'Estissac. Calvino (op. cit.) cita-a entre os santuários que
pretendiam possuir o Sudário: <<Item, Cadouin no Limousin.>>
27 O mosteiro de Saint-Jean d'Angely (Charente-Maritime) conservava
a cabeça de S. João B aptista.
28 Os hidrópicos vinham implorar a sua cura na igreja de Santo Eutrópio
em Saintes ( Ch.-M.)
29 S. Mesme, confessor, estava sepultado na igreja do mesmo nome em
Chinon. Na Touraine fa2iam-se muitas peregrinações a este santo.
30 S. Martinho, bispo de Tours, morreu em Candes (perto de Chinon); o
seu culto, espalhado por toda a França, era especialmente vivo em Candes, on­
de se conservavam as suas reliquias.
31 Saint Cloud ou Clodoald (522-560), neto de Clovis, renunciou ao trono
para to mar ordens. A sua estátua na igreja de Cinais era um lugar de peregri­
nação.
32 No começo do século XVI, o cardeal Perrault, originário desta aldeia,
trouxera de IWma uma quantidade de relíquias (os ossos de Abraão, um frag­
mento da vara de Aarão, etc.). Javarsay ou a igrej a de Saint-Chartier de Ja­
varsay fica no distrito de Melle (Deux-Sevres).
33 A ironia de Rabelais a propósito do culto dos santos e das relíquias (co·
mo a irrespeitosa aproximação de Sainte Nitouche e de S. Jorge) aproxima-se
muito das críticas de Calvino e de Henri Estienne (Apologia de Heródoto).
34 Comparação proverbial cuja ironia é sublinhada pela alusão ao cami­
nho de Faye, particularmente sinuoso e difícil. Possível trocadilho entre Foi
(fé) e Faye.
35 Personagem lendária, primo dos quatro filhos Aymon, e grande mata­
dor de sarracenos.

124
CAPÍTULO XXVIII

COMO PICROCOLE TOMOU DE ASSALTO


LA ROCHE CLERMAULDI ,
E A PENA E DIFICULDADE QUE GRANDGOUSIER
TEVE DE ENTRAR NA GUERRA

Enquanto o frade se escaramuçava como dissemos contra


os que tinham entrado no cercado, Picrocole passou a toda a
pressa o Gué de Vede com os seus homens, e sitiou La Roche
Clermauld, onde não encontrou nenhuma resistência e, como
já era de noite, resolveu abrigar-se nesta cidade com os seus ho­
mens e refrescar-se da sua cólera pungitiva.
D e manhã, assaltou as fortificações avançadas e o castelo,
e fortificou-o muito bem, e abasteceu-o das munições necessá­
rias, pensando retirar-se ali se fosse assaltado por outro lado,
pois era um lugar forte por arte e por natureza, graças à sua si­
tuação.
D eixemo-los aí e voltemos ao nosso bom Gargântua, que es­
tá em Paris, muito aplicado no estudo das letras e exercícios
atléticos, e ao velh o e bondoso Grandgousier, seu pai, que depois
do jantar aquece os colhões num belo, claro e gran de lume, e,
enquanto se assam as castanhas, escreve junto à lareira com
um pau chamuscado numa ponta por atiçar o fogo2, e vai contan­
do à mulher e ao resto da família belas histórias dos tempos an­
tigos.
Um dos pastores que guardava as vinhas, chamado Pillot,
dirigiu-se a ele nessa hora e contou-lhe de fio a pavio o s exces­
sos e pilhagens que fazia Picrocole, rei de Lerné, nas suas ter­
ras e domínios, e como tinha pilhado, devastado e saqueado
todo o país, excepto o cercado de Seuillé que Frei Jean des En­
tommeures tinha salvo por sua h onra, e agora estava o dito rei
em La Roche Clermauld, e a toda a pressa se fortificava a ele e
aos seus homens.

125
RABELAIS

«Ai, ai!>>, disse Grandgousier, «que é isto, boa gente? Estou


a sonhar ou é verdade o que me dizem? Picrocole, que foi sem­
pre meu arnigo3, de todas as ocasiões, vem assaltar-me? Quem
o move? Quem o impele? Quem o conduz? Quem assim o aconse­
lhou? Oh! oh! oh ! oh! oh ! meu Deus, meu Salvador, ajuda-me,
inspira-me, acon selha-me o que hei-de fazer! Protesto, juro pe­
rante ti - assim me sejas favorável ! - se j amais lhe fiz agra­
vo, ou dano às suas gentes, ou nas suas terras pilhagem; mas,
muito pelo contrário, socorri-o com homens, dinheiro, favor e
con selho em todas as dificuldades. Que me tenha ultrajado a es­
se ponto, só pode ser coisa do espírito maligno. Deus do Céu, tu
conheces o meu coração, pois n ada te podemos esconder; se aca­
so ele tivesse enlouquecido e, para que lhe reabilitasse o cére­
bro, mo houvesses enviado aqui, dá-me o poder e o saber para o
devolver ao jugo da tua santa vontade com boa disciplina.
»Oh! oh ! oh! , minha boa gente, meus amigos e meus fiéis
servidores, terei eu de vos atrapalhar pedindo-vos auxílio? Ai
de mim ! , a minha velhice só queria era repouso, e toda a vida
só procurei a paz; mas bem vejo que é preciso que eu carregue
de arneses os meus pobres ombros cansados e fracos, e que po­
nha na minha m ão trémula a lança e a maça para socorrer e
defender os meus pobres súbditos. Assim o quer a razão, pois o
seu labor me mantém e o seu suor me alimenta, a mim, a meus
filhos e à minha farnília4.
»Apesar disso, não farei a guerra enquanto não tiver tenta­
do todas as artes, todos os meios de alcançar a paz5, e só então
me resolverei.»
Mandou, pois, convocar o seu conselho, e expôs o caso tal
corno se apresentava, e concluiu-se que enviariam um homem
prudente a Picrocole a fim de saber por que motivo largara tão
subitamente o seu repouso e invadira as terras a que não tinha
direito algum, e também que se mandasse chamar Gargântua
e os seus homens, a fim de manter o país e resolver esta dificul­
dade. Tudo isto agradou a Grandgousier, que ordenou que as­
sim se fizesse.
Por con seguinte mandou na mesma hora Basque, seu la­
caio6, chamar com toda a diligência Gargântua, e escreveu­
-lhe conforme se segue7.

126
GARGÂNTUA

NOTAS
I O castelo de La Roche-Clermault era muito importante no século XVI,
dominando a região de Chinon e Seuilly.
2 Este quadro de vigília ao canto da lareira, acompanhada de contos, esta­
belece um contraste pitoresco com os intuitos guerreiros de Picrocole.
3 O pai de Rabclais, Antoine Rabelais, fora durante vinte anos senescal
de Lerné, como mandatário de Gaucher de Sainte-Marthe (Picrocole). Tive­
ra, por conseguinte, boas relações com ele (até 1 527, conforme nos garante
Abel Lefranc).
4 Grandgousier está consciente dos seus deveres de soberano; em troca
dos subsídios fornecidos pelo povo, assegura a sua protecção.
5 Esta regra de paz figura no lnstitutio principis christiani de Erasmo.
6 Os bascos e os gascões serviam muitas vezes como criados (cf. Marot,
EpUre au Roi).
7 O começo da «guerra picrocolina>> recorda a invasão do paíS' dos amau­
rotas pelos dípsodos no Pantagruel (caps. XXIII e seguintes), mas o tom é dife­
rente; no Pantagruel, a paródia épica é pura fantasia, ao passo que Gargântua
transpõe, em parte, para o mundo épico o conflito jurídico que opõe o pai de Ra­
belais a Gaucher de Sainte-Marthe.

127
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v;

Teatro da
GUERRA PICROCOLINA

o JOO 1 000 1 JO� mltres


CAP ÍTULO XXIX

O TEOR DAS CARTAS QUE GRANDGOUSIER


ESCREVIA A GARGÂNTUA

«O fervor dos teus estudos exigia que por muito tempo não te
afastasse desse filosófico repouso, se a confiança dos nossos
amigos e antigos confederados não tivesse presentemente frus­
trado a segurança da minha velhice. Mas, já que o destino
quer que eu seja inquietado por aqueles em quem mais repousa­
va, tenho de chamar-te em socorro das gentes e dos bens que
por natural direito te foram confiados.
»Pois, assim como as armas são débeis na rua se dentro de
casa não reinar o con selho, é vão o estudo e inútil o conselho
que, por virtude, não for posto em execução e reduzido ao seu
efeito em tempo oportuno.
>>A minha deliberação não é provocar, mas pacificar, defen­
der; n ão é conqui star, mas guardar os meus fiéis súbditos e ter­
ras hereditárias, nas quais Picrocole entrou hostilmente sem
causa nem ocasião, e de dia para dia leva avante a sua furiosa
empresa com excessos não toleráveis por pessoas livres.
>>Senti-me no dever de moderar a sua cólera tirânica, ofere­
cendo-lhe tudo quanto pensava que pudesse contentá-lo, e por
várias vezes lhe enviei amigavelmente emissários para saber
em quê, como e por quem se sentia ultrajado, mas por resposta
só obtive um desafio voluntário e que estava nas minhas terras
apenas por conveniência própria. Compreendi, pois, que o Deus
Eterno o deixou ao leme do seu livro arbítrio e entendimento
próprio, o qual só pode ser mau se por graça divina não for conti­
nuamente guiadol , e que, para eu o conter e o reduzir ao conheci­
mento, mo enviou aqui com intenções hostis.
>>Por isso, meu filho bem-amado, o mais cedo que possas, e
assim que receberes estas cartas, volta diligentemente para so­
correres, não tanto a mim (o que todavia, por piedade, deves fa-

129
RABEIAIS

zer naturalmente), mas aos teus, a quem por razão não podes
salvar e guardar. Realizaremos o feito com o menor derrama­
mento de sangue possível, e, se possível, com engenhos mais ex­
pedi entes, com cautelas e manhas de guerra, salvaremos todas
as almas e enviá-las-emos felizes aos seus domicílios.
>>Caro filho, a paz, a paz de Cristo, nosso redentor, esteja con-
tigo2 .
>>Saúde Ponócrates, Ginasta e Eudémon da minha parte.
>>Vinte de Setembro3.
>>Teu pai,
GRANDGOUSIER.>>

NOTAS
1 Grandgousier considera que Picrocole foi abandonado pela Graça divi­
na e está entregue à sua vontade humana, a qual, maculada pelo pecado origi­
nal, só pode ser má. É a doutrina dos <<Evangélicos». No cap. LVII, atribui no
entanto maior liberdade à razão humana. O problema da Graça que dividia
católicos e protestantes ressurgirá no século XVII com o jansenismo.
2 Fórmula empregada sobretudo pelos Evangélicos e protestantes.
3 Esta data recorda-nos que a cena se passa durante as vindimas.

130
CAPÍTULO XXX

COMO ULRICH GALLET FOI ENVIADO


A PICROCOLE

Ditadas e assinadas as cartas, Grandgousier ordenou que


Ulrich Galletl , mestre das suas petições, homem sábio e discre­
to, cuja virtude e bom conselho havia experimentado em diver­
sas e contenciosas questões, fosse ter com Picrocole para lhe
mostrar o que por eles havia sido decretado.
Nessa hora partiu o bom Gallet e, passado o Gué2 , perguntou
ao moleiro3 pela situação de Picrocole, o qual lhe retorquiu que
os seus homens não lhe tinham deixado nem um galo nem
uma galinha, que estavam fechados em La Roche Clermauld, e
que não o aconselhava a avançar por causa das sentinelas,
pois era enorme o seu furor. O que ele facilmente acreditou, e
pernoitou com o moleiro.
No dia seguinte, de manhã, dirigiu-se com a cometa às por­
tas do castelo, e pediu aos guardas que o deixassem falar ao rei
no seu interesse .
Anunciadas estas palavras ao rei, n ã o consentiu que lhe
abrissem a porta, mas dirigiu-se para a fortificação avançada
e disse ao embaixador: ••Que há de novo? Que quereis dizer?»
Então o embaixador expôs a sua missão conforme se segue:

NOTAS
I Um parente de Rabelais, advogado do rei em Chinon, chama-se Jean
Gallet. Representou os mercadores do Loire contra Gaucher de Sainte-Marthe
no Parlamento de Paris no processo causado pelas pescas instaladas por Gau­
cher em detrimento da navegação fluvial. Ulrich e Jean Gallet são provavel·
mente uma e a mesma pessoa.
2 O gué de Vede,já referido.
3 É o moleiro do Moulin du Pont.

131
CAP ÍTULO XXXI

O DISCURSO FEITO POR GALLE T A PICROCOLE

<<Mais justo motivo de dor não pode nascer entre os huma­


nos do que receberem mágoa e dano da parte de quem, por recti­
dão, esperavam graça e benevolência. E não foi sem motivo
(embora sem razão) que vários daqueles a quem sucedeu e sse
acidente consideraram essa indignidade menos tolerável que
a própria vida, e, não a podendo corrigir pela força nem por ou­
tro meio, se privaram a si mesmos dessa luz.
>>Não é, pois, maravilha se o rei Grandgousier, meu se­
nh or, se achou tão indisposto e perturbado com a tua vinda furio­
sa e hostil. Maravilh a seria se não o houvessem abalado os ex­
cessos incomparáveis que nas suas terras e nos seus súbditos fo­
ram por ti e pelos teus homens cometidos, não se poupando a
exemplo algum de desumanidade, o que, pela cordial afeição
que sempre teve aos seus súbditos, lhe causa mai s pesar do que
causaria a qualquer outro mortal. Todavia, pela estima huma­
na, maior pesar lhe causa por terem estes agravos sido pratica­
dos por ti e pelos teus, pois tu e os teus pais estavam ligados a ele
e a todos os seus antepassados por uma amizade de sempre,
mantendo-a e con servando-a inviolavelmente, até agora, co­
mo sagrada, de tal modo que não apenas ele e o s seus, mas as
nações bárbaras, poitevinos, bretões, manseauxl e os que habi­
tam para além das ilhas de Canarre2 e Isabella3, consideraram
mais fácil demolir o firmamento e erigir os abismos acima
das nuvens do que romper a vossa aliança, e tanto a temeram
nas suas empresas que j amais ousaram provocar, irritar e pre­
judicar um de vós por medo do outro.
>>Mas há mais. De tal modo esta sagrada amizade encheu
os céus que poucos habitantes há hoj e em todo o continente e nas
ilhas do oceano que não tenham desej ado ambiciosamente ser
recebidos nela através de pactos por vós mesmos condiciona-

132
GARGÂN'JUA

dos, estimando tanto a vossa confederação como as suas pró­


prias terras e domínios, de tal modo que nunca houve memória
de príncipe ou liga tão louca ou soberba que ousasse correr não
digo sobre as vossas terras, mas sobre as dos vossos confedera­
dos, e se, por decisão precipitada, tentaram contra eles alguma
novidade, ao ouvirem o nome e título da vossa aliança, logo de­
sistiram dos seus intuitos.
>>Que fúria te impele agora, rompida a aliança, espezinha­
da a amizade, ultrapassado o direito, a invadir hostilmente as
suas terras, sem que em nada tenhais sido por ele ou pelos seus
prejudicado, irritado ou provocado? Onde está a fé? Onde a lei?
Onde a razão? Onde a humanidade? Onde o temor a Deus? Cui­
das que estes ultrajes estão escondidos dos espirítos eternos e de
Deus soberano, que é o justo retribuidor dos nossos actos? Se cui­
das, enganas-te, pois todas as coisas serão sujeitas ao Seu juí­
zo. São fatais destinos ou influências dos astros que querem
pôr fim ao teu bem-estar e repouso? Assim conhecem todas as
coisas o seu fim e período4, e, quando chegaram ao seu ponto su­
perlativo, são precipi_tadas, pois não podem permanecer muito
tempo nesse estado. E esse o fim daqueles que não sabem mode­
rar com razão e temperança a sua fortuna e prosperidade.
»Mas, se era esse o destino e se devia ter fim a tua felicida­
de e o teu repouso, havia de ser incomodado o meu rei, aquele a
quem devias o teres sido estabelecido? Se a tua casa devia arr­
ruinar-se, era preciso que. na sua ruína caísse em cima do lar
daquele que a adornara? E coisa tão fora dos limites da razão,
tão afastada do senso comum que mal pode ser concebida pelo
entendimento humano, e não será crível para os estrangeiros
enquanto o efeito assegurado e testemunhado não lhes permitir
entender que não há nada santo nem sagrado para aqueles que
se emanciparam de Deus e da Razão para seguirem as suas
afeições perversas.
»Se algum agravo foi por nós cometido contra os teus súbdi­
tos e domínios, se algum favor foi por nós concedido aos teus
inimigos, se na tuas dificuldades não te socorremos, se por nós
foram o teu nome e a tua honra maculados, ou, dizendo melhor,
se o espírito caluniadors, querendo arrastar-te para o mal, pôs
no teu entendimento com imagens enganadoras e visões ilusó­
rias que contra ti fizemos coisas não dignas da nossa antiga
amizade, devias começar por indagar a verdade, e depois ad­
moestar-nos, e nós sati sfazer-te-íamos tanto quanto pudésse­
mos. Mas (ó Deus Eterno!) qual é o teu intuito? Acaso querias,
como pérfido tirano, pilh ar assim e dissipar o reino do meu se-

133
RABELAIS

nhor? Julgaste-o tão cobarde e estúpido que não quisesse, ou tão


desprovido de homens, de dinheiro, de conselho e de arte mili­
tar que não pudesse resistir aos teus iníquos assaltos?
>>Sai agora daqui, e amanhã retira-te para sempre das suas
terras, sem causares tumulto e sem g raticares violências pelo
caminho, e paga mil besantes de ouro pelos danos que causas­
te nestas terras. Pagarás metade amanhã, e a outra metade
nas idas de Maio7 próximo futuro, deixando-nos entretanto
como reféns os duques de Toumemoule, de Basdefesses e de Me­
nuail, mais o príncipe de Gratelles e o visconde de Morpiail­
leB.,,

NOTAS
I Provável alusão à vitória de Carlos VTII sobre os poitevinos, bretões e
manceaux em Saint-Aubin-du-Cormier em 1 488, e à anexação da Bretanha
à França.
2 Já se falou do pais de Canarre no Pantagruel (cap. XXll) , e no Gargân­
tua (cap. XII) ; é um pais imaginário (as Canárias?) que simboliza o exotis-
mo.
3 Cidade fundada por Cristóvão Colombo, em 1493, no Haiti. A aproxima­
ção das províncias francesas e dos territórios da América é uma maneira de
significar o mundo inteiro . Ampliação oratória burlesca do diferendo entre o
pai de Rabelais e Gaucher.
4 «Revolução». A ideia de um ciclo passando da felicidade à infelicida­
de era corrente entre os antigos; na Idade Média, é simbolizada pela roda da
Fortuna.
5 O diabo (do grego Õta�aÃ.Â.ro: caluniar).
6 Moeda bizantina (e daí o nome) que, por causa da sua grande estabilida­
de, foi usada como moeda internacional durante toda a Idade Média.
7 Calendário romano: 1 5 de Maio .
8 Este nobre discurso termina de maneira burlesca. Toumemoule: Roda­
-a-mó - entre os romanos eram os escravos da pior espécie que faziam rodar
a mó do moinho; Bas--de-{esses: Baixo de nádegas; Menuail é derivado de
<<menU••, miúdo, vil: homem insignificante; Gratelles vem de <<gratter», co­
çar: o príncipe de Gale (sarna); Morpiaille é formado por «morpion», piolho.
O estado-maior de Picrocole é constituído por gente sem préstimo. Rabelais
quis sublinhar a paródia da eloquência ciceroniana com esta conclusão vul­
gar, quando o uso da retórica leva, pelo contrário, a esperar um empolamento
oratório.

134
CAP ÍTULO XXXI I

COMO GRANDGOUSIER, PARA COMPRAR A PAZ,


MANDOU DEVOLVER OS BISCOITOS

Então se calou o bom Gallet, mas Picrocole nada respondeu


a todas as suas palavras a não ser: <<Vinde chamá-los, vinde
chamá-los. Eles têm belos colhões e molesl . Eles vos moerão os
biscoitos.>>
E lá volta ele para Grandgousier, encontrando-o de joe­
lhos, descoberto, inclinado a um cantinho do seu gabinete, ro­
gando a Deus que quisesse aplacar a cólera de Picrocole e lhe
devolvesse a razão, sem proceder pela força2 . Quando viu o bom
homem de volta, perguntou-lhe :
<<Ah ! , meu amigo, que novas me trazeis?>>
<<Não há ordem nenhuma (disse Gallet), aquele homem es­
tá fora do seu juízo e foi abandonado por Deus.>>
<<Talvez (disse Grandgousier), mas, meu amigo, que moti­
vo alega ele para esse excesso?>>
<<Não me expôs nenhum motivo (disse Gallet), mas di sse co­
lericamente algumas palavras sobres os biscoitos. Não sei se
não t�riam feito algum ultraje aos seus boscoiteiros.>>
<<E o que pretendo saber (disse Grandgousier) antes de deli­
berar outra coisa sobre o que se há-de fazer3.,,
Então mandou saber do caso, e soube que tinham tomado à
força alguns biscoitos aos seus homens e que Marquet apanha­
ra uma paulada na cabeça ; todavia que tudo fora bem pago e
que, primeiro, o dito Marquet apanhara com o chicote de For­
gier nas pernas. E parecera-lhe que devia defender-se com to­
da a força. Não obstante i sso, disse Grandgousier:
<<Visto que se trata apenas de uns biscoitos, tentarei conten­
tá-lo, pois muito me desagrada declarar guerra.>>
Portanto, inquiriu quantos biscoitos haviam tirado e, ouvin-

135
RABEI.AIS

do dizer que era quatro ou cinco dúzias, mandou que fizessem


cinco carroças de biscoitos nessa noite, sendo uma de boa man­
teiga, boas gemas de ovos, belo açafrão e belas especiarias para
serem distribuídos a Marquet, e pelos juros lhe dessem setecen­
tos mil e três filipus4 para pagar aos barbeiross que o tinham tra­
tado, e além disso dar-lhe-ia a propriedade da Pomardiere 6
vitaliciamente, franca7, para ele e para o s seus. Para tudo con­
duzir e passar foi enviado Gallet, o qual mandou colher pelo ca­
minho, perto da Sauloyes, muitos ramos de juncos e de canas, e
mandou que os armassem nas carroças e em cada um dos car­
roceiros; ele próprio levou um na mão, para mostrar que só pe­
diam a paz e vinham para a comprar.
Chegados à porta, pediram para falar com Picrocole da par­
te de Grandgousier. Picrocole n ão os quis deixar entrar nem fa­
lar com eles, e mandou dizer-lhes que estava ocupado, mas que
dissessem o que queriam ao capitão Toucquedillon , o qual afus­
tava uma peça nas muralhas. Disse-lhe, pois, o bom homem:
••Senhor, para vos tirar desta contenda toda e não vos dar
azo a que não volteis à nossa primeira aliança, vimos devolver­
-vos os biscoitos que deram origem à controvérsia. Cinco dú­
zias levaram os nossos, e foram muito bem pagos; tanto ama­
mos a paz que vos devolvemos cinco carroças, das quais e sta
aqui será para Marquet, que é quem mais se queixa. Além dis­
so, para que fique inteiramente satisfeito, aqui estão setecentos
mil e três filipus que eu lhe entrego e, pelos juros que poderia
pretender, cedo-lhe a propriedade da Pomardiere vitaliciamen­
te, para ele e para os seus, como terra alodial9; aqui tendes o con­
trato da transacção. E, por Deus, vivamos doravante em paz, e
retirai-vos alegremente para as vossas terras, cedendo e ste lu­
gar ao qual não tendes direito algum, como bem o confessais, e
sejamos amigos como dantes.>>
Toucquedillon tudo contou a Picrocole e ainda mais lhe en­
venenou o coração, dizendo-lhe:
••Estes pacóvios estão cheios de medo. Por Deus, Grandgou­
sier borra-se, pobre beberrão ! A sua arte não é ir à guerra mas
esvaziar bem as garrafas. Sou de opinião que fiquemos com os
biscoitos mais o dinheiro, e, quanto ao resto, apres semo-nos a
fortificar-nos aqui e a seguir a nossa sorte. Então eles julgam
que nos enganam dando-nos esses biscoitos? O caso é que o
bom tratamento e a grande familiaridade que até agora lhes
concedestes vos tornaram desprezível para eles: fazei bem ao
vilão, morder-vos-á a mão, castigai o vilão, beij ar-vos-á a
mão.>>

136
GARGÂNTUA

«Sim, sim>> , disse Picrocole, «São Tiago, hão-de vê-las!


Fazei como haveis dito.>>
«Duma coisa>> , disse Tocquedillon, «vos quero avisar. Esta­
mos muito mal abastecidos e mal providos de mantimentos. Se
Grandgousier nos cercasse, eu iria logo mandar arrancar os
dentes todos, ficando só com três, tanto aos vossos homen s como
a mim: com eles não avançaríamos muito nas muniçõeS.>>
«Teremos muito que comer>>, disse Picrocole. <<Estamos
aqui para comer ou para batalhar?>>
<<Para batalhar, na verdade>>, disse Toucquedillon, <<mas
da pança vem a dança, e onde reina a fome foge a força.>>
<<Grande falatório!>> disse Picrocole. <<Ide buscar o que eles
trouxeram.>>
Ficaram, poi s, com o dinheiro, os biscoitos, os bois e as car­
roças, e mandaram-nos embora sem uma palavra, a não ser
que nunca mais se chegassem tão perto pelo motivo que ama­
nhã lhes diriam. Assim, sem nada terem feito, foram ter com
Grandgousier e contaram-lhe tudo, acrescentando que não ha­
via e speranças de chamá-los à paz, a não ser com viva e forte
guerra.

NOTAS
1 Sucessão de jogos de palavras: molle (mole) (adj.) e mole (mó), de onde
o verbo <<moer>>; ironicamente, Picrocole apresenta os seus soldados como uns
pastelões sem virilidade, uns <<Colhões-moles».
2 Como nos caps. xxvm e XXIX, Grandgousier implora a Providência divi­
na. Gargântua, embora crente, confia sobretudo na sua razão.
3 Grandgousier, rei prudente, investiga sobre as origens do conflito, ao
passo que Picrocole se enfurece ao ouvir as queixas dos biscoiteiros (cf. cap.
XXVI).
4 Na origem, uma moeda com a effgie de Filipe, rei da Macedónia, e de­
pois, por extensão, toda a moeda de ouro .
5 Os barbeiros faziam as vezes de cirurgiões.
6 La Pomardiere era uma quinta de Seuilly, pertencente à família de Ra­
belais. Também se fala nesta quinta (bem como de La Deviniere) no discurso
de Panúrgio a Pantagruel (Pantagruel, cap. IX).
7 Trata-se de um dom hereditário e sem contrapartida. A generosidade
de Grandgousier é muito superior aos danos causados.
8 Prado bordejado de salgueiros ao longo do Vede. Já foi referido atrás,
no cap. IV.
9 Termo do direito feudal: a terra alodial é um bem hereditário, isento de
qualquer obrigação .

137
CAPÍTULO XXXI II

COMO CERTOS GOVERNADORES DE PICROCOLE,


POR CONSELHO PRECIPITADO, O EXPUSERAM
AO MAIOR DOS PERIGOS

Roubados os biscoitos, compareceram perante Picrocole os


duques de Menuail, conde Spadassinl e capitão Merdaille, e dis­
seram-lhe:
«Sire, fazemos hoje de vós o mais feliz, o mais cavalheires­
co príncipe que jamais existiu desde a morte de Alexandre Ma­
cedo2.»
«Cobri-vos, cobri-vos>>, disse Picrocole.
<<Muito obrigado, sire>>, disseram eles, <<é assim que deve­
mos estar. A maneira é a seguinte:
>>D eixarei s aqui um capitão de guarnição com um pequeno
grupo de tropas para guardar o lugar que vos parece bastante
forte, tanto por natureza como pelas fortificações feitas por vos­
sa invenção. Dividireis em dois o vosso exército, como melhor
entenderdes. Uma parte irá lançar-se contra esse tal Grand­
gousier e a sua gente, que por ela facilmente será vencido logo
às primeiras. Ai conseguireis grande quantidade de dinheiro,
pois o vilão tem moeda sonante ; vilão, dizemos nós, porque um
nobre príncipe nunca tem um centavo. Entesourar é próprio dos
vilãos. Entretanto, a outra parte avançará na direcção de
Onys, Sanctonge e Gasconha, mais o Perigot, Medoc e Elanes3.
Sem resistência tomarão cidades, castelos e fortalezas. Em
Bayonne, em Sainct Jean de Luc e Fontarabia apanhareis todos
os navios e, rumando na direcção da Galiza e de Portugal, pi­
lhareis todos os lugares marítimos até Ulisbonne, onde obte­
reis o reforço de toda a tripulação que um conqui stador exige.
Pelo corpo de Deus, a Espanha render-se-á, pois não passam
duns campónios! Passareis pelo estreito da Sibila4, onde erigi­
reis duas colunas, mas magníficas que as de Hércules5, em per-

138
GARGÂNTUA

pétua memona do vosso nome, e esse e streito chamar-se-á o


mar picrocolino. Passado o mar picrocolino, eis Barba-Rui­
va6, que se rende como escravo . . . >>
«Hei-de p&-lo à minha mercê», disse Picrocole.
<<Talvez», disseram eles, <<contanto que se deixe baptizar. E
atacareis os reinos de Tunic, Hippes, Argiere, Bone, Corone7 e
valentemente toda a Barbaria. Continuando em frente, toma­
reis Maiorca, Minorca, a Sardenha, a Córsega e outras ilhas do
mar Ligústico e Balem-s. Costeando à esquerda, dominareis to­
da a Gália Narbónica, a Provença e Allobroges, Génova, Flo­
rença, Lucques e adeus Roma! O pobre senhor Papa já morre de
medo.
<<Por minha fé», disse Picrocole, <<não lhe beijarei a pantu­
fa9.»
<<Tomada a Itália, eis Nápolesm, a Calábria, a Apúlia e a Si­
cília todas as saque, e também Malta. Bem gostaria que o s gen­
tis cavaleiros outrora rodiotaslo, vos resistissem, para ver a cor
da sua urina!»
<<Iria de bom grado ao Loreton», disse Picrocole.
<<Nada disso, nada disso», disseram, <<fica para a volta.
Daí tomaremos Candia, Chipre, Rodes e as ilhas Cíclades, e
chegaremos à Moreia. Conquistamcr-la. Saint Treignan1 2,
Deus guarde Jerusalém ! Pois o sultão1 3 não é comparável ao
vosso poder!»
<<Então mandarei edificar o Templo de Salomão» , di sse
ele.
<<Ainda não», di sseram eles, <<esperai um pouco. Não se­
jais tão precipitado nas vossas empresas. Sabeis o que dizia
OcÍ!lviano Augusto? Festina lente14 . Convém-vos ter primeiro
a Asia Menor, o Cairo, a Lícia, Pamfília, Cilícia, Lídia, Frí­
gia, Mísia, Betuna, Charázia, Satália, Samagária, Castame­
na, Luga, Savasta15, até ao Eufrates.
<<E veremos a Babilónia e o monte Sinai?», disse Picrocole.
<<Por enquanto», disseram eles, <<não é preciso. Não e Ja
muita preocupação ter atravessado o mar Hircânio1 6, cavalga­
do as duas Arménias e as três Arábiasl 7?,
<<Por minha fé (disse ele), estamos doidos. Ah ! , pobre gen­
te !»
<<Ü quê?», disseram.
<<Que haveremos de beber nesses desertos? Pois Juliano Au­
gustol B e todo o seu exército morreram ali de sede, como se
diz1 9.»
<<Já tratámos de tudo», disseram. <<No mar Siríaco20 tendes

139
RABELAIS

nove mil e catorze grandes navios, carregados dos melhores vi­


nho s do mundo, e que chegaram a Jafa. Aí se encontraram
dois milhões e duzentos mil camelos e seiscentos elefantes21 ,
que tereis caçado perto d e Sigeilrnes22 quando entrastes na Lí­
bia, e além deles apanhastes toda a caravana da Mecha23, Não
vos forneceram vinho que chegasse?>>
«Talvez ! Mas>>, disse ele, <<não bebernos24 vinho fresco.>>
<<Pela virtude não de um peixinho!,,2s, disseram eles. <<Um
bravo, um conquistador, um pretendente e aspirante ao império
universal nem sempre pode ter o seu conforto. Louvado sej a
Deus que chegastes, vós e os vossos homens, sãos e salvos a o rio
Tigre!>>
••Mas>>, disse ele , ••que faz entretanto a parte do nosso exérci­
to que derrota esse bêbado do Grandgousier?>>
<<Não perdem tempo>>, disseram , <<e já iremos encontrá­
-los. Tornaram a Bretanha, a Normandia, a Flandres, o Hay­
nault, o Brabante, o Artois, a Holanda, a Selândia26, Atravessa­
ram o Reno por cima dos suíços e dos lansquenés27, e urna parte
dominou o Luxemburgo, a Lorena, a Charnpagne, a Sabóia até
Lyon, onde en contraram as vossas guarnições vindas das con­
qui stas navais do mar Mediterrâneo, e reuniram-se na Boé­
mia, depois de terem saqueado a Suévia28, Vuiternberga, a Ba­
viera, a Austria, a Morávia e a Estíria; depois caíram todos
sobre Lubeque, a Noruega, Swedenrich29, Dácia3o, Gótia3I , En­
gronelândia32 , os Estrel_inosaa , até ao mar Glacial. Feito isto,
conquistaram as ilhas Orcadas e subjugaram a Escócia, Ingla­
terra e Irlanda. Daí, navegando pelo mar Arenoso34 e pelas Sár­
rnatas, venceram e dominaram a Prússia, Polónia, Lituânia,
Rússia, Valáquia, a Tran silvânia e a Hungria, Bulgária, Tur­
quia, e estão em Constantinopla.>>
<<Vamos logo ao seu encontro>>, disse Picrocole, <<pois tam­
bém queremos ser imperadores de Tebizonda35. Não matare­
mos todos esses cães turcos e rnaornetistas?>>
<<E que diabo faremos?>>, disseram eles. <<E dareis os seus
ben s e as suas terras a quem vos tiver servido honestamente.>>
••A razão>>, disse ele, <<assim o quer; é justo. Dou-vos a C ar­
rnaignea6, Súria e toda a Palestina.>>
<<Ah, siref,,, disseram, <<é o bem que fazeis. Muito agradeci­
dos! Que Deus vos faça sempre próspero!>>
E stava presente um velho gentil-homem, habituado aos re­
veses e verdadeiro veterano da guerra, chamado Ecéfron37, o
qual, ao ouvir este s discursos, disse:
<<Recei o muito que todo esse ernpreeen dirnento seja corno a

140
GARGÂNTUA

farsa do pote de leite3B, com o qual um sapateiro já se imagina­


va rico; depois o pote partiu-se, e ele ficou sem j antar. Que pre­
tendeis vós com essas belas conquistas? Qual será o fim de tan­
tos trabalhos e canseiras?••
« É que», disse Picrocole , «quando voltarmos, repousare-
·

mos à vontade.»
Então disse Ecéfron :
<<E se acaso nunca voltásseis, pois a viagem é longa e peri­
gosa? Não seria melhor repousarmos desde já, sem nos meter­
mos nessas aventuras?»
«Oh, por Deus !», disse Spadassin, «que grande sonhador!
Então vamos esconder-nos ao canto da lareira e passamos a vi­
da com as damas a enfiar pérolas ou a fiar como Sardanapa­
lo39. Quem não se aventura perde o cavalo e a mula, já disse Sa­
lomão.»
«E quem se aventura de mai s», disse Ecéfron, «perde o ca­
valo e a mula, respondeu Malcon40.,
«Basta!», disse Picrocole. «Adiante. Só receio o diabo das
legiões de Grandgousier. E se, enquanto estamos na Mesopotâ­
mia, eles nos apanham por trás, que fazer?»
« É muito fácil», disse Merdaille . «Uma comissãozinha
que enviareis aos moscovitas con seguir-vos-á quatrocentos e
cinquenta mil combatentes de e scol. Se me fizerdes lugar-te­
nente, matarei um pente por um retroseiro41 ! Eu mordo, atiro­
-me, bato, apanho, mato, renego!»
«Eia ! , eia!», disse Picrocole. «Despachem tudo, e que m e si­
ga quem me ama42_,

NOTAS
1 Este emprego da palavra italiana como nome próprio é raro no século
XVI. Quanto ao duque de Menuail e ao capitão Merdaille, vide cap. XXXI . O ter­
mo Merdaille era geralmente aplicado aos jovens recrutas.
2 Alexandre da Macedónia.
3 Itinerário lógico na direcção sudoeste: Aunis, Saintonge, Angoumois,
Gasconha, Périgard, Médoc, Landes.
4 Estreito de Gilbraltar ou de Sevilha. Sibila é provavelmente uma defor­
mação da palavra Sevilha.
5 Colunas de Hércules era o nome que, na Antiguidade, se dava ao estrei­
to de Gibraltar.
6 Alcunha de Kha!r Eddyn, corsário turco (1476-1 546), que comandava
em Argel.
7 Os principais portos do Norte de África: Túnis, Bizerta (em latim Hip­
po Diarrhytus), Argel (a Cosmografia de S. Münster ortografa Argier), Bone
(Hippe Regius para os romanos), Corene (Cirene na Antiguidade).

141
RABELAIS

8 Picrocole apodera-se agora das ilhas. O mar Ligústico é o golfo de Gé­


nova - mar dos Ligures, no tempo dos romanos.
9 Alusão ao costume de dar a beijar a pantufa do Papa aos visitantes (cf. o
Journal de voyage de Montaigne).
10 Os cavaleiros de São João de Jerusalém, expulsos de Rodes (1 522) por
Solimão II e estabelecidos por Carlos V em Malta em 1 530.
11 Nossa Senhora do Loreto. Rabelais já citou esta peregrinação (cap.
XXVII) entre os santuários invocados pelas vítimas de Frei Jean. A peregrina­
ção ao Loreto era particularmente venerada pelos franceses; Montaigne e
mais tarde Descartes irão a este santuário oferecer as seus ex-votos (cf. XXVII) .
12 S. Treignan, patrono dos Escoceses, é citado no Pantagruel (cap. IX) e
no Gargântua (cap. XVII ) .
1 3 O texto francês utiliza uma forma arcaica para sultão; optou-se por
seguir o mesmo critério nesta edição.
1 4 <<Apressa-te lentamente», máxima atribuída a Augusto por Suet6nio
(Vida de Augusto, 25). Erasmo fez dela o tema de um dos seus Adágios (II, 2, 1 ).
1 5 Esta enumeração inclui cidades ou países por vezes mal identificados:
Betune, Bitfnia ou Anatólia; Charázia ou Carásia, capital da Lídia; Satália,
Adália; Samagária não foi identificada; Castamena, Kastamun ; Luga é des­
conhecida, Savasta é Sebasta.
1 6 O mar Cáspio (na Antiguidade, a Hircânia ficava à beira deste mar).
1 7 Distingue-se a grande e a pequena Arménia; a Cosmografia de S.
Münster cita a Arábia deserta, a Arábia feliz e a Arábia pedregosa.
1 8 O imperador Juliano, dito Juliano o Apóstata, pereceu numa expedição
contra os Persas por volta de 363 d. C. Montaigne consagra a Juliano o Apósta­
ta o cap. XIX do livro II, De la liberté de conscience.
1 9 Diz a tradição que o seu exército fora dizimado pela sede no deserto.
20 No mar da Síria, onde fica o porto de Jafa.
21 Enumeração cómica pelo seu exagero e ao mesmo tempo a sua precisão
fingida.
22 Cidade de África, célebre na Idade Média, mas que desapareceu.
23 A Caravana de Meca.
24 O emprego do passado mostra como Picrocole vive o seu sonho. Veja­
-se também, algumas linhas abaixo: <<Louvado seja Deus que chegastes ... >>,

etc.
25 Vide a jura de Panúrgio no Quarto Livro, cap. xxvm: <<Virtude de um
peixinho!»
26 Zelândia, província dos Países Baixos.
27 Os mercenários suíços dos reis de França vinham dos cantões de Uri e
U nterwald. Os lansquenés eram recrutados sobretudo na Alemanha.
28 A Suábia e o Wurtemberg.
29 A Suécia.
30 A Dinamarca.
31 O país dos godos, isto é, o Sul da Suécia.
32 A Gronelândia.
33 Os habitantes das cidades hanseáticas (Brema, Lubeque, Hamburgo) a
que Commynes chama <<Oustrelins».
34 O mar dos bancos de areia, isto é, o Báltico.
35 O império de Trebizonda, fundado em 1 204 por Aleixo Comneno após a
tomada de Constantinopla pelos cruzados. Como Constantinopla, Trebizonda
era u ma das cidades maravilhosas que alimentavam o cândido exotismo dos
romances de cavalaria.

142
GARGÂNFUA

36 A Caramânia ou Ásia Menor.


37 O Prudente (do grego E;(Eq>prov).
38 Não conhecemos a farsa do pote de leite, mas uma anedota análoga ser­
ve de tema à XII novela de Despériers: «Comparação dos alquimistas com a
boa mulher que levava um pote com leite ao mercado». La Fontaine servir-se­
-á dela em <<A leiteira e o pote de leite•• (Livro Vil, fábula 1 O):

Quem não faz castelos em Espanha?


Picrocole, Pirro, a Leiteira, enfim todos...

39 Na Idade Média representava-se Sardanapalo a fiar com as mulhe­


res; cf. Villon, Testament:

Sardana, le preux chevalier


Qui conquit le regne de Gretes
Et voulut devenir moullier
Et {iller entre pucelletes.

40 Estas duas máximas são extraídas dos Diálogos de Salomão e Mar­


cou[, muito lidos na Idade Média. O bom senso de Marcou! ou Malchus opõe­
-se à sabedoria filosófica do rei Salomão .
41 Inversão do provérbio <<Matar um retroseiro por um pente».
42 Esta sátira da gabarolice é uma das mais célebres passagens do Gar·
gântua. Rabelais utilizou a Vida de Pirro, 1 4, de Plutarco, e um diálogo de Lu­
ciano, O Navio ou os Desejos. A personagem de Luciano, Samipo, quer ser rei
e, segundo o exemplo de Alexandre, empree nde (em sonhos) a conquista da
Terra. Rabelais recuperou o itenerário de Samipo e os pormenores da expedi­
ção (como o receio de Picrocole de ficar sem mantimentos).

143
CAPÍTULO XXXIV

COMO GARGÂNTUA DEIXOU A CIDADE DE PARIS


PARA SOCORRER O SEU PAÍS, E COMO GINASTA
ENCONTROU OS INIMIGOS

A essa mesma hora, Gargântua, que saíra de Paris assim


que lera as cartas do seu pai, e vinha montado na sua grande
égua, já passara a ponte da N onnainl com Ponócrates, Ginasta
e Eudémon, os quais tinham alugado cavalos de posta2 para o se­
guir. O resto do séquito vinha a jornadas normais, trazendo to­
dos os seus livros e os apetrechos filosóficos.
Chegada a Parillé3, foi avisado pelo rendeiro de Gouguet4 de
que Picrocole se fortificara em La Roche Clermaud e mandara
o capitão Tripet5 com um grande exército assaltar o bosque de
Vede e Vaugaudry6 e que tinham saqueado as capoeiras até ao
Pressouer Billard7, e que era coisa estranha e difícil acreditar
nos excessos que praticavam no país. Tanto medo lhe meteu
que não sabia o que dizer nem o que fazer. Mas Ponócrates
aconselhou-o a que se dirigissem ao senhor de La Vauguyons,
que fora sempre seu amigo e confederado, e que melhor os acon­
selharia, coisa que fizeram imediatamente, e acharam-no dis­
posto a socorrê-los, e foi de opinião que enviaria um dos seus ho­
mens para bater a região e saber em que estado se encontravam
os inimigos, a fim de avançarem segundo as circunstâncias.
Ginasta ofereceu-se para ir, mas concluiu-se que seria me­
lhor que levasse consigo alguém que conhecesse os caminhos,
atalhos e rios das redondezas.
Portanto, lá foram ele e Prelinguand9, escudeiro de Vau­
guyon , e não tiveram medo de espiar de todos os lados. Entre­
tanto , Gargântua refrescou-se e repousou um pouco com a sua
gente, e mandou dar à sua égua uma raç,ão de aveia: eram se­
tenta e quatro muys e três alqueireslO! Ginasta e o seu compa­
nheiro tanto cavalgaram que encontraram os inimigos todos

144
GARGÂNIUA

espalhados e em desordem, pilhando e roubando tudo o que po­


diam ; e avistando-o ao longe, correram a ele em magotes para
o roubar. Então ele gritou-lhes:
<<M eus senhores, sou um pobre diabo ; peço-vo s que tenhais
piedade de mim. Ainda tenho um escudo, e bebê-lo-emos pois é
aurum potabi[en , e este cavalo será vendido para pagar as mi­
nhas boas-vindas; feito isso, considerai-me um dos vossos,
pois j amais houve quem melhor soubesse apanhar, entremear,
assar e preparar, e até, por Deus ! , trinchar e temperar uma gali­
nha do que eu que aqui estou, e pelo meu proficiat1 2 bebo a todos
os bons companheiros.>>
Então tirou a garrafa e, sem meter o nariz lá dentro, bebeu
muito honestamente. Os tratantes olhavam para ele, escanca­
rando a boca e deitando a língua de fora como os cães, à e spera
de beberem depois; mas nesta altura Tripet, o capitão, acorreu a
ver o que era. E Ginasta ofereceu-lhe a garrafa, dizendo:
«Aqui tendes, capitão, bebei-lhe bem que eu j á provei13, e é
vinho de La Faye Monjau1 4.,,
« O quê?••, disse Tripet. «Este campónio faz pouco de nós!
Quem és tu?>>
«Sou um pobre diabo••, disse Ginasta.
«Ah !>• , disse Tripet. «Se és um pobre diabo podes passar,
pois todos os pobres diabos passam por toda a parte sem pagar
peagem, mas não é costume os pobres diabos andarem tão bem
montados. Por isso, senhor diabo, apeai-vos para eu ficar com
o cavalo e, se ele não me carregar, mestre diabo, carregar-me­
-eis vós, pois gosto muito que um diabo destes me carregue.>>

NOTAS
1 Ponte sobre o rio Vienne, entre Chinon e La Roch�lennault, sobre a

qual as freiras (nonnes) da abadia de Fontevrault cobravam uma peagem.


2 A posta com mudas de cavalos fora instituída por Luís Xl em l 4 74.
3 Parilly, aldeia perto de Chinon (vide cap. XXV).
4 Deve tratar-se do nome de um rendeiro e não de uma aldeia.
5 Tripet significa <<COpo>> mas também <<tripas», nome predestinado a um
capitão encarregado de estripar os inimigos, mas que por sua vez também se­
rá estripado (cap. XLill ) .
6 Vaugaudry fica a leste de La Deviniere, comuna de Chinon (vide cap.
IV).
7 O pressoir Billard confundErSe hoje com a aldeola de Saint-Lazare.
8 Feudo senhorial da paróquia de Parilly, pertencente no século XVI à fa­
mília Le Petit, sem dúvida amiga de Rabelais.
9 O Pimpão.
10 Efeito fácil de gigantismo : é uma ração de cerca de 1 332 hectolitros!

lO 145
RABELAIS

1 1 Ouro bebível; jogo de palavras: o escudo permite pagar a bebida, e por


outro lado o ouro potável (uma mistura de azeite e cloreto de ouro) era um remé­
dio universal dos boticários.
12 C f. cap. XVII, nota 2.
1 3 Para ver se não estava envenenado. Ao ser recebido no castelo de Mon­
taigne, Henrique de Navarra dá uma prova de confiança não mandando pro­
var a comida (19 de Dezembro de 1 584).
1 4 Aldeia perto de Niort.

146
CAPÍTULO XXXV

COMO GINASTA MATOU AGILMENTE O CAPITÃO


TRIPET E OS OUTROS HOMENS DE PICROCOLE

Ouvidas estas pal avras, alguns deles começaram a ter me­


do e benziam-se todos, pensado que era um diabo disfarçado. E
um deles, chamado Bon Jean, capitão dos Franc Topinsl , tirou
as suas horas da braguilha2 e gritou bem alto: <<Agios ho
Theosa. Se és de Deus, fala! Se és do Outro, vai-te embora!» E
ele não ia; ouvindo isto, muitos debandavam, e Ginasta ia no­
tando e considerando tudo.
Então fez que se apeava do cavalo e, quando ficou inclinado
do lado em que se monta, deu agilmente uma volta ao e stribo,
com a espada bastarda do lado e , passando por baixo, atirou-se
ao ar e firmou os pés na sela, virando o cu para a cabeça do ca­
valo. Depois disse: «O meu caso está ao contrário4.,,
Então, no ponto em que estava, fez uma pirueta num pé e, vi­
rando à esquerda, quase voltou à sua posição sem variar nada.
Então disse Tripet:
«Ah ! , essa não farás tu, e não foi por acasO.>>
«Merda!>>, disse Ginasta, «pouco faltou. Vou desfazer este
salto.>>
Então, com toda a força e agilidade, virou à direita e fez
uma pirueta como a prjmeira. Feito isso, pôs o polegar da mão
direita no arção da sela e levantou o corpo todo no ar, sustendo­
-o com o músculo e o nervo do dito polegar, e assim se virou três
vezes. À quarta, virando o corpo todo ao contrário sem tocar em
nada, içou-se no meio das orelhas do cavalo, sustendo o corpo
todo no ar com o polegar da mão esquerda, e nesse estado rodo­
piou; depois, batendo com a palma da mão direita no meio da se­
la, tomou balanço e ficou sentado à garupa como fazem as don­
zelas.

147
RABELAIS

Feito isto, passa a perna direita por cima da sela e fica em


posição de cavalgar na garupa.
<<Mas>>, disse ele, «vale mais pôr-me entre os arçõeS.>>
E assim, apoiando os polegares das duas mãos na garupa
diante de si , pôs-se de cu para o ar e ficou bem seguro entre os
arções; depois, com um sobressalto, levantou o corpo todo no ar,
e ficou de pés juntos entres os arções e rodopiou mais de cem ve­
zes, com os braços abertos em cruz, e gritando em altos brados:
«Enraiveço, diabos, enraiveço, enraiveço! Segurem-me, dia­
bos, segurem-me, segurem-me!»
Enquanto rodopiava, os velhacos pasmados diziam uns aos
outros: «Pela mãe de D eus! É um gnomo ou um diabo di sfarça­
do. Ab hoste maligno, libera nos, Domines., E fugiam em de­
bandada, olhando para trás como um cão levando um espana­
dor nos dentes.
Então, vendo a sua vantagem, Ginasta desce do cavalo , de­
sembainha a e spada e carrega a grandes golpadas sobre os
mais emproados, e abate-os, feridos e mortificados , sem que
ninguém lh e resistisse, pensando que fosse um diabo faminto,
tanto pelos maravilhosos rodopios que ele fizera como pelo que
Tripet lhe dissera chamando-lhe «pobre diabo» ; a não ser
Tripet que, à traição, lhe quis rachar o cérebro com a sua e spa­
da lansquené6, mas ele estava bem armado e só sentiu o cho­
que ; então voltando-se subitamente dá uma estocada no dito
Tripet, e, enquanto este protege a parte de cima, corta-lhe o e stô­
mago com uma golpada, mais o cólon e metade do fígado, e en­
tão ele cai no chão e, ao cair, deita cá para fora mais de seis pra­
tos de sopas, mais a alma misturada com as sopas.
Feito isto, Ginasta retira-se, con siderando que nunca se de­
vem perseguir os acasos até ao fim7 e que convém a todos os ca­
valeiros tratar reverentemente a sua boa sorte e sem a molesta­
rem, e, montando no cavalo, pica-o com as esporas, indo direi­
to a La Vauguyon, e levando Prelinguand com ele.

NOTAS
1 Os <<francs-taupins», milicia rural criada por Carlos Vll e suprimida

por Luís XII, passavam, com os «francs-archers», por serem muito belicosos
(cf. Le Franc-Archer de Bagnolet).
2 Trata-se do breviário. Como eram muito volumosas, as braguilhas per­
mitiam guardar uma quantidade de objectos variados (cf. cap. Vlll) .
3 <<Deus é santo», fórmula grega de exorcismo. O ingénuo Bon Joan to­
mou à letra as palavras de Tripct.

148
GARGÂNJUA

4 Trocadilho: no sentido jurídico, «Ü meu caso vai mal», e, no sentido li-


vre,cas ou catzs: vitz, membro viriL
5 «Livrai-nos, senhor, do inimigo maligno.>>
6 Espada curta e larga, com dois gumes.
7 Ginasta teme um revés da sorte. Agiu por astúcia, e não quer comprome­
ter o seu êxito com um excesso de confiança; possui a virtude da temperança,
por oposição a Picrocole, o gabarola.

149
CAPÍTULO XXXVI

COMO GARGÂNTUA DEMOLIU O CASTELO


DO GUÉ DE VEDE E COMO PASSARAM O VAU

Logo que chegou, contou o estado em que encontrara o s ini­


migos e o estratagema! de que usara, sozinho contra a caterva
toda, afirmando que não passavam duns tratantes, ladrões e
brigões, ignorantes de toda a disciplina militar, e que se puses­
sem coraj osamente a caminho, pois seria muito fácil desancá­
-los como animais.
Então Gargântua montou-se na sua grande égua, acompa­
nhado da maneira que j á dissemos e, encontrando no ca!lli nho
uma grande árvore (à qual chamavam comummente Arvore
de São Martinho2 porque assim crescera um rebento plantado
por São Martinho), disse: <<Aqui está o que me faltava: esta ár­
vore servir-me-á de bordão e de lança.» E facilmente a arran­
cou do chão, tirou-lhe os ramos e arranjou-a à sua vontade.
Entetanto a sua égua nitriu para aliviar as tripas, mas de
maneira tão abundante que causou um dilúvio de sete léguas e
o mijo chegou ao gué de Vede e tanto engrossou na direcção do
fio de água que todo o bando dos inimigos se afogou no meio de
grande horror, excepto alguns que tinham seguido o caminho
das colinas, à esquerda.
Ao chegar ao bosque de Vede, Gargântua foi avisado por Eu­
démon de que dentro do castelo e stava um resto dos inimigos, e,
para o saber, Gargântua gritou o mais que pôde:
<<Estais aí ou não estais? Se estais, não estejais mais; se
não estais, não tenho o que dizer.>>
Mas um velhaco dum artilheiro que estava no m atacão da
muralha disparou-lhe um tiro de canhão e atingiu-o na têmpo­
ra direita com toda a fúria; todavia não lhe fez mais mossa do
que se lhe atirasse uma ameixa.

150
GARGÂNTUA

<<Que é isso?>>, disse Gargântua. <<Atirais para aqui grai­


nhas de uva? Vai sair-vos cara a vindima!>>, pensando real­
mente que a bala era uma grainha.
Os que estavam dentro do castelo entretidos n a pilhagem ou­
viram o rumor e correram às torres e fortalezas e atiraram­
-lhe mais de nove mil e vinte e cinco tiros de falconetes e
arcabuzes, visando todos a cabeça, e atiravam tão miudamente
que ele exclamou:
<<Ponócrates, meu amigo, estas moscas cegam-me; dá-me
um raminho desses salgueiros para as enxotar>> , pensando que
as balas e pedras de artilharia eram moscas dos bois.
Ponócrates explicou-lhe que não eram moscas mas tiros de
artilharia disparados do castelo. Então ele deu com a sua gran­
de árvore no castelo e, a grandes golpadas, abateu torres e forta­
lezas, e deitou tudo ao chão. E deste modo foram desfeitos todos
os que ali se achavam.
Partindo dali, chegaram à ponte do moinho e encontraram
o vau todo coberto de corpos mortos em tamanha quantidade que
tinham engrossado o curso do moinh o, e eram os que haviam
perecido com o dilúvio urinai da égua. Ali puseram-se a pen­
sar como haviam de passar, dado o impedimento dos cadáve­
res. Mas Ginasta disse :
<<Se os diabos passaram também passO.>>
<<O s diabos>>, disse Eudémon, <<passaram para levar as al­
mas danadas.>>
<<São Treignan3 !>>, disse Ponócrates. <<Por consequência ne­
cessária, ele passará.>>
<<Talvez, talvez>> , disse Ginasta, <<ou ficarei pelo cami­
nho.>>
E espicaçando o cavalo, passou adiante à vontade, sem que
jamai s o cavalo tivesse medo dos corpos mortos; pois tinha-o
acostumado (segundo a doutrina de Eliano4) a não temer nem
as almas nem os corpos mortos - não matando as pessoas
como Diómedes matava os trácios nem como Ulisses punha os
corpos dos seus inimigos aos pés dos seus cavalos, conforme
narra Homero - mas pondo-lhe um boneco no meio do feno e
obrigando-o a passar por cima dele quando lhe dava aveia.
Os outros três seguiram-no sem fraquejar, excepto Eudé­
mon, cujo cavalo afundou a pata direita até ao joelho na pança
dum gordo vilão que ali estava afogado de costas, e não conse­
guia retirá-la; assim ficou preso até que, com a ponta do bas­
tão, Gargântua enterrou o resto das tripas do vilão e (coisa ma-

151
RABELAIS

ravilhosa em hipiatria5) o dito cavalo curou-se de um tumor


que tinha nessa pata por tocar nos intestinos do grande tratan­
te.

NOTAS
1 Rabelais parece ser o primeiro a introduzir esta palavra grega na lfn­
gua francesa. Seria, aliás, autor de uma obra em latim, traduzida para o fran­
cês, de que apenas se conhece o título: «Estratagemas, ou sej a proezas e astú­
cias de guerra do bravo e muito célebre cavaleiro Langey, etc.•
2 Alusão a um milagre de S. Martinho: enquanto o santo dormia, o seu
bordão espetado no solo encheu-se de folhas.
3 Patrono dos Escoceses, j á invocado anteriormente.
4 Alusão ao De natura animalium, XVI, 25, de Eliano, onde este opõe o mé­
todo de amestramento de Diómedes e de Ulisses ao dos Persas, que utili2avam
bonecos cheios de palha.
5 Tratamento dos animais.

152
CAPÍTULO XXXV I I

COMO GARGÂNTUA, PENTEANDO-SE, DEIXOU


C.Affi DOS CABELOS AS BALAS DA ARTILHARIA

Pouco depois de largarem a margem do Vede, chegaram ao


castelo de Grandgousier, que os esperava impaciente. Ao chega­
rem, festejaram-no com abraços; jamais se viu gente mais ale­
gre, pois Supplementum Supplementi Chronicoruml diz que
Gargamelle morreu de alegria. Quanto a mim, nada sei, e pou­
co me preocupo com ela e com outras.
A verdade é que Gargântua, trocando de roupa e arranjan­
do-se com o seu pente (que era do tamanho de cem varas, aguça­
do de grandes dentes de elefante inteiros), fazia cair de cada
vez mais de sete balas que lhe tinham ficado nos cabelos duran­
te a demolição do bosque de Vede. Ao ver isto, Grandgousier,
seu pai , pensou que eram piolhos e disse-lhe:
«Então, meu filho, trouxeste para aqui os gaviões de Montai­
gu2? Não sabia que residias aí.>>
Então Ponócrates respondeu:
<<Senhor, não pensais que o pus nesse colégio de piolhos que
se chama Montaigu. Mais depressa o poria no meio dos mendi­
gos de Saint Innocent3 , por causa da grande crueldade e vileza
que ali conheci. Pois melhor são tratados os forçados entre os
mouros e os tártaros, os assassinos na prisão criminal, e até os
cães na vossa casa, do que esses desgraçados no dito colégio, e,
se eu fosse o rei de Pari s , diabos me levem se não lhe deitaria fo­
go, fazendo arder o principal e os regentes que permitem que se
pratiquem tais desumanidades na sua presença4!,,
E levantando uma das balas, disse :
«São tiros d e canhão que o vosso filho Gargântua apanhou
ao passar pelo bosque de Vede, por traição dos vossos inimigos.
Mas a recompensa que tiveram foi perecerem todos na ruína do
castelo, como os filistinos pelo engenho5 de Sansão, e os que a

153
RABELAIS

torre de Siloé6 oprimiu, conforme se escreve Luce, xiij. E sou de


opinião que os persigamos enquanto a sorte está do nosso lado,
pois a ocasião tem os cabelos todos na testa, e depois de passar
adiante, não mai s a podemos chamar; é calva na parte de trás
da cabeça e nunca se volta7_,,
«Mas>>, disse Grangousier, <<não será neste momento , pois
esta noite quero festejar, e sede muito bem-vindos.>>
Dito isto, prepararam a ceia, e assaram-se : sete bois, três vi­
telas, trinta e dois vitelas, sessenta e três cabritos de leite, no­
venta e cinco carneiros , trezentos leitões de leite regados de
bom verdasco, onze vintes perdizes, setecentas galinholas, qua­
trocentos capões de Loudunoyss e da Cornualha, seis mil fran­
gos e outros tantos pombos, seicentas galinhas do mato, mil e
quatrocentos lebrachos, trezentas e três abetardas e mil e sete­
centos capões n ovos. Quanto à caça, não podemos enumerá-la
tão depressa, a não ser onze javalis enviados pelo abade de Tur­
penay9, e dezoito bichos selvagens oferecidos pelo senhor de
GrandmontJ- o, mais sete vezes vinte faisões que enviou o senhor
des Essarsl l e algumas dúzias de pombos torcazes, de aves do
rio, de cercetas, alcaravões, maçaricos, tarambolas, franco­
lins, patos-marrecos, galinholas, pavoncinhos, patos-reai s, co­
lhereiros, garças-reais , galinhas de água, flamingos cor de la­
ranja (que são fenicópteros), galinhas-da-índia, muito cuscuz
e grande quantidade de caldos.
Havia abundância de víveres sem que nada faltasse, e fo­
ram preparados honestamente por Fripesaulce, Hoschepot e Pil­
leverjus, cozinheiros de Grandgousiert2.
Janot, Micquel e VerrenetJ- 3 tomaram bem conta das bebi­
das.

NOTAS
1 O Suplemento do Suplemento das Crónicas, título fictício para troçar da
mania dos comentários aos comentários.
2 Os gaviões de Montaigu são os piolhos dos alunos de Montaigu. Este co­
légio foi já referido no Pantagruel, sendo conhecido pela sua sujidade e tam­
bém pelo apego do seu principal, Béda, às tradições escolásticas (cf. Panta­
gruel, cap. VII). O colégio Montaigu era onde hoje fica a biblioteca Sainte-Ge­
nevieve.
3 Os mendigos de Saints-Innocents são citados no Pantagruel, cap. XVI .
Panúrgio vai buscar a esta assembleia de mendigos as pulgas e os piolhos
que, na igreja, deita <<nas golas das mais açucaradas donzelas» ... O cemité­
rio dos Saints-Innocents, situado atrás das Halles, tinha um ossário onde os
pedintes se aqueciam queimando as ossadas.

154
GARGÂNTUA

4 O colégio de Montaigu fora reformado por Standonck no começo do


século XVI; seguia uma regra muito rigorosa como num convento, e as priva­
ções faziam muitas vítimas entre os alunos. No Quarto Livro, cap. XXI, Rabe­
lais refere-se ao regente Pierre Tempête, «grande fustigador de colegiais>>.
Nem mesmo ao narrar a guerra picrocolina Rabelais esquece a sua cruzada
contra a escolástica.
5 Pela astúcia de Sansão (vide o antigo Testamento, Juf.zes, XVI, 26-31 ).
6 S. Lucas, XIII, 4, conta o desabamento da torre de Silloé, sem mais expli­
cações.
7 Provérbio extraído da recolha de máximas atribuída a Catão, o Catone-
te.
8 Ainda no século XVIII eram célebres os capões de Loudun.
9 Abadia beneditina perto de Azay-le-Rideau, cujo abade era então Phi­
lippe Hurault de Cheverny.
1 0 O senhor de Grandmont não foi identificado, mas existiam perto de
Chinon dois feudos com este nome. Por outro lado, havia na Gasconha uma fa­
mília de Gramont muito conhecida; Montaigne (Ensaios, livro I, cap. XXIX)
dedica a Mme de Gramont vinte e um sonetos de La Boétie.
11 Outro desconhecido; o feudo des Essarts fica no cantão de Langeais. O
nome Essarts (cf. o verbo essarter, desbravar) designa aldeias edificadas em
clareiras. Além dos Essarts mencionados por Rabelais, há ainda Essarts-le­
-Roi, Essarts-le-Vicomte, etc.
1 2 Os cozinheiros de Grandgousier têm nomes em consonância com as
suas funções: Fripesaulce: lambe-molhos; Hoschepot: guisado; Pilleverjus:
pisa-verdasco .
1 3 Os criados têm nomes de camponeses, excepto Verrenet (Verre-net: co­
po limpo) que lembra o seu hábito de esvaziar os copos até à última gota.

155
CAP ÍTULO XXXVI I I

COMO GARGÂNTUA COMEU SEIS PEREGRINOS


NA SALADA

Exige o propósito que contemos o que sucedeu a seis peregri­


nos que vinham de Saint Sebastien, perto de Nantesl , e que, pa­
ra se abrigarem nessa noite, com receio dos inimigos, se ti­
nham escondido no j ardim em cima das ervilhas e no meio
das couves e alfaces. Gargântua sentiu-se um pouco alterado e
pediu que lhe fossem buscar umas alfaces para fazer salada;
ao ouvir dizer que havia ali as maiores e mais lindas da re­
gião, porque eram do tamanho de ameixoeiras ou nogueiras,
qui s lá ir pessoalmente, e trouxe na mão o que melhor lhe pare­
ceu. Mas ao mesmo tempo trouxe os seis peregrinos , os quai s es­
tavam tão cheios de medo que não ousavam nem falar nem tos­
sir.
Enquanto os lavava primeiro na fonte, os peregrino s di­
ziam em voz baixa uns aos outros: «Que havemos de fazer? Afo­
gamo-nos no meio destas alfaces. Devemos falar? Se falar­
mos, ele mata-nos como espiões.•• E, enquanto assim delibera­
vam, Gargântua pô-los com as suas alfaces numa travessa do
tamanho do tonel de Cisteaulx2, e, temperando-os com azeite,
vinagre e sal, começou a comê-las para se refrescar antes da
ceia, e já tinha engolido cinco dos peregrinos. O sexto estava
na travessa, escondido debaixo duma alface, menos o bordão,
que aparecia um .pouco mais acima. Vendo-o, disse Grandgou­
sier a Gargântua:
<<Parece que está aí o corninho duma lesma; cuidado não o
comais.••
<<E por que não?••, disse Gargântua. <<São bon s durante e ste
mês inteiro.••
E puxando pelo bordão, levantou ao mesmo tempo o peregri-

156
GARGÂNIUA

no e comeu-o regaladamente ; depois bebeu uma horrível gola­


da de vinho «pineau>> e ficaram à espera da ceia.
Os peregrinos assim devorados saíram debaixo das mós
dos seus dentes conforme puderam, pensando que os tinham
metido nalgum fosso das prisões e, quando Gargântua bebeu a
grande golada, julgaram que se afogavam dentro da sua boca,
e a torrente de vinho quase os levou até ao abismo do seu e stôma­
go ; todavia, saltando com os seus bordões como fazem os «mic­
quelotz,a, puseram-se em liberdade na orla dos dentes. Mas,
por azar, um deles, apalpando o terreno com o bordão para sa­
ber se estavam em seguraça, bateu rudemente na falha dum
dente oco e feriu o nervo da m andíbula, causando grande dor a
Gargântua, que se pôs a gritar de raiva. Para aliviar a dor,
mandou vir um palito e, dirigindo-se para a nogueira, desalo­
jou os senhores peregrinos. Pois apanhava um pelas pernas, ou­
tro pelos ombros, outro pelo alforge, outro pela bolsa, outro pela
charpa, e ao pobre penitente que o ferira com o bordão, agarrou­
-o pela braguilha; todavia foi uma grande felicidade para ele,
pois furou-lhe uma chaga que o martirizava desde que tinham
passado por Ancenys.
Assim os peregrinos desaloj ados fugiram a trote, pela vi­
nha, e a dor acalmou-se.
Neste momento Eudémon chamou-o para cear, pois estava
tudo pronto:
«Então vou mijar os meus males», disse ele.
E mij ou tão copiosamente que a urina cortou o caminho aos
peregrinos, os quais tiveram de passar o canal de irrigação.
Ao passarem pela orla da Touche4 caíram todos a meio do cami­
nho, excepto Foumillier, numa armadilha para apanhar os lo­
bos, de onde escaparam graças ao engenho do dito Fournillier,
que desfez os laços e rompeu as cordas. Saídos dali, passaram o
resto da noite numa cabana perto de Couldray5, onde foram re­
confortados da sua desgraça pelas boas palavras de um deles,
chamado Lasdaller6, o qual lhes demonstrou que aquela aven­
tura havia sido predita por Davi d Ps7:
«Cum exurgerent homines in nos, forte vivos deglutissent
nos, quando fomos comidos em salada com sal ; cum irascere­
tur furor eorum in nos, forsitan aqua absorbuisset nos, quando
ele bebeu a grande golada; torrentem pertransivit anima nos­
tra, quando passámos o canal de irrigação; forsitan pertransis­
set anima nostra aquam intolerabilem, da sua urina com que
nos cortou o caminho. Benedictus Dominus, qui non dedit nos
in captionem dentibus eorum. Anima nostra, sicut passer erep-

157
RABEl.AIS

ta est de laquea venatium, quando caímos na armadilha; lac­


queus contritus est por Foumillier, et nos liberati sumus. Adju­
torium nostrum, etc.

NOTAS
I Saint-Sébastien d'Aignes. A sua peregrinação era célebre no Poitou e
em Saintonge, pela cura das mordeduras das serpentes.
2 O tonel da abadia de Cfteaux na Borgonha remontaria à fundação do
mosteiro por S. Bernardo e conteria 300 muids.
3 Nome familiar dos peregrinos a caminho do Mont-Saint-Michel.
4 Certamente o bosque do Alleu.
5 O castelo do Coudray-Montpensier (cf. cap. IV).
6 Farto-de-andar, rico nome para um peregrino!
7 Rabelais troça das relíquias (verdadeiras ou falsas), das peregrina­
ções (cf. cap. XXVII) e das aplicações abusivas das Sagradas Escrituras à vida
quotidiana. Lasdaller cita o salmo CXXIII , salvo o primeiro versículo, entre­
meando-o de aplicações à sua desaventura: (Se o Senhor não tivesse estado
por nós) <<qu ando os homens se levantaram contra nós, decerto nos teriam en­
golido vivos . . . Quando se acendia o seu furor contra nós, então a água nos te­
ria submergido . . . A nossa alma transpôs a torrente ... Decerto a nossa alama
teria atravessado essa inundação intransponível . . . Bendito o Senhor que não
nos deu aos seus dentes por pressa . . . A nossa alma, como o pássaro, escapou
do laço dos caçadores . . O laço foi quebrado (por Fournillier) e nós ficámos li-
.

vres . . . O nosso socorro . . .


>>

158
CAPÍTULO XXXIX

COMO O FRADE FOI FESTEJADO


POR GARGÂNTUA E DAS BONITAS COISAS
QUE DISSE DURANTE A CEIA

Quando Gargântua se sentou à mesa e quando comeram o


primeiro naco, Grandgousier começou a contar a origem e a
causa da guerra travada entre ele e Picrocole, e chegou ao ponto
de narrar como Frei Jean des Entommeures triunfara na defe­
sa do cercado da abadia, e louvou-o acima das proezas de Cami­
lo, Cipião, Pompeu, César e Temístocles. Então Gargântua pe­
diu que o fossem buscar imediatamente, a fim de se aconselhar
com ele sobre o que haviam de fazer. E foi buscá-lo o despen sei­
ro, e trouxe-o alegremente com o seu bastão da cruz na mula de
Grandgousier.
Quando chegou, fizeram-lhe mil carícias, mil abraços e
mil cumprimentos:
«Ai, Frei Jean , meu amigo, Frei Jean, meu rico primo, Frei
Jean pelo diabo, um abraço, meu amigo !>>
«Um abraço para mim!>>
<<Vá, colhão, que dou cabo de ti de tanto te abraçar!>>
E Frei Jean brincava. Jamai s houve homem tão cortês e gra­
cioso.
«Vá, vá!>> , disse Gargântua, «um banco aqui ao pé de mim,
nesta ponta.>> ,
«Assim o quero••, disse o frade, «se isso vos apraz. Agua, pa­
jem! Deita, meu filho, deita que me refresca o fígado. Dá cá dis­
so para eu gargarizar.>>
«Deposita cappal,,, disse Ginasta; «vamos despir esse há­
bito.>>
«Oh ! , por Deus>>, disse o frade, «meu gentil-homem, há um
capítulo in statutis Ordinis2 ao qual o caso não agradaria.>>

159
RABELAIS

«Merda», disse Ginasta, «merda para o vosso capítulo. Es­


se hábito dá-vos cabo dos ombros, deitai-o abaixo.»
«Meu amigo>>, disse o frade, <<deixai-mo, pois, por Deus!,
ainda bebo melhor assim : põe-me o corpo bem alegre. Se o ti­
rar, os senhores pajens farão jarreteiras com ele, como uma
vez me fizeram em Coulaines3. E além disso, não teria apetite
nenhum. Mas, se me sentar à mesa com este h ábito, beberei,
por Deus! , à tua saúde e à do teu cavalo , e de bom grado. Que
Deus livre do mal a companhia! Eu tinha ceado, mas não será
por isso que comerei menos, pois tenho um estômago oco como a
bota de São Bento4, e sempre aberto como o gibão dum advogado.
De todos os peixes menos a tenca5, comei a asa da p erdiz ou a co­
xa duma freirinha. Não é morrer de maneira engraçada quan­
do se morre com a coisa em pé? O nosso prior gosta muito das
partes brancas do capão.>>
«Nisso não se parece com as raposas>> , disse Ginasta, «pois
nunca comem as partes brancas dos capões, galinhas e frangos
que apanham.>>
«Porquê?>>, disse o frade.
«Porque>> , respondeu Ginasta, «não têm cozinheiros para
as cozer, e se não estiverem convenientemente cozidos, ficam
vermelhas e não brancas. O vermelho das carn e s é sinal de
que não estão bem cozidas, excepto as lagostas e c amarões , que
se cardinalizam com a cozedura.>>
«Feste Dieu BayardfB,,, disso o frade, «então o enfermeiro
da nossa abadia não tem a cabeça bem cozida, pois tem os olhos
vermelhos como um tomate. Esta coxa de lebre é boa para os go­
tosos7. A propósito, por que é que as coxas duma donzela estão
sempre frescas?>>
«Esse problema>> , disse Gargântua, «não vem n em em Aris­
tótele,s, nem em Alexandre de Mrodísias, nem em PlutarcO.>>
«E>> , disse o frade, «por três causas pelas quais um lugar é
naturalmente refrescado: primo, porque a água corre ao longo
delas; secundo, porque é um lugar ensombrado, obscuro e tene­
broso, onde nunca brilha o sol ; e terceiro porque é continuamen­
te batido pelos ventos do buraco da coisa, da cami sa, e além dis­
so da braguilha. E haj a alegria! De beber, pajem ! . .. Crac, crac,
crac. . . Como Deus é bom que nos dá esta pinga ! . . . Confesso
Deus , se estivesse no tempo de Jesus Cri sto, impediria os judeus
de o apanharem no Jardim das Oliveiras. Diabos me levam se
não cortaria os jarretes aos senhores apóstolos, que fugiram tão
cobardemente, depoi s de terem ceado bem, e deixaram o seu
bom mestre em dificuldade! Ainda odeio mais que o veneno

1 60
GARGÂNTUA

um homem que foge quando deve puxar da faca. Oh! por que
não sou rei de França durante oitenta ou cem anos! Por D eus,
cortava o rabo e as orelhas aos fugitivos de PaviaB! Que a febre
quartã os carregue ! Por que não morreram ali em vez de deixa­
rem o seu bom príncipe naquele aperto? Não é melhor e mais
honroso morrer virtuosamente batalhando do que viver fugin­
do vilmente? . . . Não comeremos muitas aves e ste ano . Ai, ..

meu amigo, dá cá esse porco ... Diabos! Já não há mosto: germi­


navit radix Jesse9. Renego a minha vida, morro de sede . . . Este
vinho não é dos piores. Que vinho bebíeis em Paris? Diabos me
levem se durante mais de seis meses não . tive lá casa aberta ao
primeiro que chega!. .. Conheceis Frei Claudel o des Haulx Bar­
rois? O que rico companheiro que ele é! Mas que mosca lhe pi­
cou? Há não sei quanto tempo que não faz mais do que estudar.
Quanto a mim, não estudo nada. Na nossa abadia, nunca estu­
damos, porque temos medo de apanhar papeira. O nosso faleci­
do abade dizia que ver um frade sábio é uma coisa mon struosa.
Por Deus, senhor meu amigo, magis magnos clericos non sunt
magis magnos sapientesn . . . Nunca vistes tantas lebres1 2 como
este ano. Não consegui nem um açor nem um falcão. O senhor
de la Bellonniere1 3 tinha-me prometido um falcão fêmea, mas
escreveu-me há tempos a dizer que estava atrapalhado. Este
ano as perdizes comem-nos as orelhas. Não gosto de estar nas
redes porque me con stipo. Se não corro, se não salto, não me sin­
to à vontade. A verdade é que , a saltar sebes e arbustos, o meu
hábito vai perdendo o pêlo. Apanhei um rico lebréu. Diabos me
levem se lhe escapa uma lebre. Levava-o um lacaio ao senhor
de Maulevrier1 4, e eu apanhei-o. Fiz mal?»
<<Não, frei J ean••, disse Ginasta, <<não, por todos os diabos!>>
<<Então••, disse o frade, <<bebo a todos esses diabos enquanto
duram ! Virtude de Deus ! Que faria deles este coxo? Corpo de
Deus ! Fica mais contente quando lhe oferecem uma parelha de
bois!>>
<<�ntão••, disse Ponócrates, <<vós jurais, frei Jean?••
<<E só para ornamentar a minha linguagem••, disse o· fra­
de. <<São cores de retórica ciceroniana1 5_,

NOTAS
1 «Retirada a capll>>, evocação do ritual indicando o momento em que o ce­
lebrante deve despir a capa de asperges.
2 «Nas regras da ordem»; possível alusão à infracção cometida por Rabe­
lais, que trocara o hábito de frade pelo de padre secular.

II
1 61
RABElAIS

3 Castelo perto de Beaumont-en-Véron, nas proximidades de Chinon.


4 Trocadilho sobre botte, bota, e botte, tonel. Alusão a um grande tonel do
convento dos beneditos de Bolonha.
5 Frei Jean cita o começo do provérbio: «De todos os peixes menos a tenca,
comei o dorso e deixai a pança>>, e termina disparatando.
6 Jura favorita do cavaleiro Bayard.
7 Adaptação fantasista do conselho de Plínio o Antigo (História Natural,
XXVIII, 1 6), que recomenda aos gotosos que tragam consigo uma pata de lebre.
8 A derrota de Pavia (1 525) pouco depois da vitória de Marignan (1 51 5), e
o cativeiro do rei em Madrid, haviam impressionado muito os súbditos de
Francisco I.
9 «A raiz de Jessé rebentou•>, /safas, XI, 1 . .. com um equívoco obsceno, ori­
ginado pelo duplo sentido de moust (vinho e mole).
1 0 Talvez este monge erudito pertencesse ao hotel de Saint-Dennis onde
Pantagruel se instala (Pantagruel, cap. XVIII), e onde Rabelais se alojara.
11 Ditado proverbial nos meios eclesiásticos, e que Mathurin Régnier tra­
duzirá assim (Sátira ill) : «Os maiores letrados nem sempre são os mais fi­
nos.>> Montaigne cita-o no começo do capítulo «Du pédantisme» (I, xxv).
1 2 Alusão à caça furtiva dos frades, mas também à abundância de cobar­
des (como os fugitivos de Pavia).
1 3 O castelo de la Bellonniere, na comuna de Cravant, pertencia a René
du Puy, senhor de Basché, referido no Quarto Livro (caps. XIII e XIV).
1 4 Feudo vizinho de Chavigny e dependente de Lerné. Alusão a uma per­
sonagem conhecida de Rabelais, e jogo de palavras: Maulevrier: mau lebréu.
1 5 Cícero, mestre da eloquência latina, não adornava os seus discursos
com juras como Frei Jean.

1 62
CAPÍTULO XL

PORQUE FUG� OS �ES DO MUNDO


E PORQUE ALGUNS TEM O NARIZ
MAIS COMPRIDO QUE OUTROS

«Fé de cristão !>> , disse Eudémon. «Entro em grande cisma,


considerando a civilidade deste frade, pois deixa-nos espanta­
dos a todos. E por que é que se afastam os frades das boas compa­
nhas, chamando-lhes desmancha-prazeres, como as abelhas
afugentam os zângãosl das suas colmeias?

Ignav um fucos pecus


(disse Maro)
a presepibus arcent2.,,

Ao que Gargântua respondeu:


«Nada é tão verdadeiro como o facto de que o hábito e o capu­
cho atraem os opróbrios, injúrias e maldições do mundo, como
o vento dito Cecias atrai as nuvens3. A razão peremptória é por­
que comem a merda do mundo, isto é, os pecados, e, como masti­
ga-merdas, atiram-nos para os seus retiros4, que são os con­
ventos e abadias, separados da sociedade política como as retre­
tes de uma casa. Mas se sabeis por que é numa família se faz
sempre troça de um macaco, compreendereis por que motivo os
monges fugiram, tanto velhos como novos. O macaco não guar­
da a casa como um cão, não puxa a charrua como um boi, não
dá leite nem lã como a ovelha, não carrega fardos como o cava­
lo. A única coisa que faz é sujar e estragar tudo, e é por isso que
só recebe zombarias e bastonadas5. De igual modo um monge
(falo desses monges ociosos) não lavra como o camponês não
guarda o país como o homem de guerra, não cura os enfermos
como o médico, não prega nem doutrina como o bom doutor
evangélico e pedagogo6, não traz as comodidades e coisas ne-

1 63
RABELAIS

cessárias à república como o mercador. É por isso que são todos


apupados e odiados.>>
«Talvez,,, disse Grandgousier, <<mas rezam por nós a
Deus.»
<<Nada menos», responde Gargântua. <<Mas a verdade é
que molestam a vizinhança toda à força de tilintar as suas
campainhas.»
<<Talvez», disse o frade, <<uma missa, umas matinas, umas
vésperas bem tocadas estão meio ditas.»
<<Resmoneiam muitas lendas e salmos que não entendem ;
contam muitos padre-nossos, entremeados de ave-marias,
sem pensar e sem entender nada dessas orações, e a isso cha­
mo eu fazer troça de Deus e não oração. Mas assim Deus os aju­
de se rezam por nós e não por medo de perderem as suas côdeas
e as suas sopas. Todos os cristãos verdadeiros de todos os esta­
dos, em todos os lugares e em todos os tempos, rezam a Deus, e o
Espírito pede e intercede por eles7 e deles se compadece Deus.
Tal é o nosso Frei Jean, e no entanto todos desejam a sua compa­
nhia. Não é beato, não anda todo rasgado, é honesto, alegre, de­
cidido e bom companheiro ; trabalha, estafa-se, defende os opri­
midos, conforta os aflitos, ajuda os que sofrem, guarda os cerca­
dos da abadias.,
«Faço muito mais», diz o frade; <<pois, ao mesmo tempo que
despacho as nossas matinas e aniversários9 no coro, faco setas
de arbaleta, limpo os virotes e os arrochos, faço redes para apa­
nhar coelh os. Nunca estou ocioso. Mas agora tragam de beber!
de beber! Traz a fruta; são castanhas do bosque de Estroczl O:
com bom vinho novo, cá estais vós, compositor de peidosl l . Ain­
da não estais avinhados. Por Deus, eu bebo em todos os vaus, co­
mo o cavalo de um promotor1 2!,
Ginasta diz-lhe:
<<Frei Jean, limpai esse pingo que vos cai do nariz.»
<<Ah ! ah !», diz o frade, <<estarei em perigo de me afogar, j á
que tenho água até ao nariz? Não, não. Quare ? Quia13 ela sai
bem mas não entra, pois o nariz está bem protegido pelas uvas.
Ó meu amigo, quem tivesse botas de Inverno de tal couro bem
podia pescar ostras, pois nunca deixariam entrar água.»
<<Por que é que», diz Gargântua, <<frei Jean tem um nariz
tão lindo?»
<<Porque», responde Grandgousier, <<Deus assim o quis, o
qual nos fez de tal forma e com tal fim, segundo o seu divino ar­
bítrio, como um oleiro faz os seus vasos1 4_,

164
GARGÂNTUA

«Porque•• , diz Ponócrates, «foi dos primeiros na feira dos


narizes. Apanhou os maiores e mais bonitos.>>
«Uh !», diz o frade. «Segundo a verdadeira filosofia monás­
tica, é porque a minha ama tinha as tetas moles: ao mamar, o
meu nariz enterrava-se nelas como manteiga e crescia como
fermento. As tetas duras das amas tornam chatos os narizes
das crianças. Mas haja alegria! Ad formam nasi cognoscitur
ad te levantil 5 . . Nunca como compotas. Pajem, traz de beber e
.

também torradas!»

NOTAS
1 Erasmo (Adágios, II, 8) compara os frades com zângãos inúteis.
2 (As abelhas) •<afastam os zângãos, corja preguiçosa, diz Virgílio (Vir­
gilius Maro) das suas colmeiaS.>> (Geórgicas, canto IV, v. l68.)
3 Cit�ção de Aulo Gélio (Noites Aticas, II, 22) reproduzida nos Adágios de
Erasmo (1, 5), que inspira toda a sátira dos frades.
4 Trocadilho sobre retraits, retretes, e retraites, retiros.
5 Esta passagem é extraída de Plutarco, Como se pode distinguir o amigo
do bajulador, 23, que o próprio Erasmo havia citado.
6 Por exemplo Lctevre d'Etaples (cf. cap. XXVII).
7 Evocação de S. Paulo, Ep(stola aos Romanos, VIII, 26.
B Frei Jean representa a piedade activa, segundo o ideal de Rabelais e até
de Francisco I.
9 Oficios no aniversário da morte de um fiel.
1 0 Região nas proximidades de Fontenay-le-Comte (Vendeia), cujas cas­
tanhas eram famosas. As castanhas apanham-se no Outono, no tempo do «VÍ­
nho noVO>>.
11 Trocadilho entre pets (peidos) e paix (paz) inspirado na locução latina
componere pacem.
1 2 Na juridisção eclesiástica, os promotores tinham as funções do minis-
tério público nos tribunais dos nossos dias.
1 3 Porquê? Porque ...
1 4 Referência a S. Paulo, Epístola aos Romanos.
1 5 «Pela forma do nariz se conhece que Ad te levavi>> (ergui-me para ti),
transposição burlesca do salmo CXXII .

1 65
CAPÍTULO XLI

COMO O FRADE PÔS GARGÂNTUA A DORMffi


E DAS SUAS HORAS E BREVIÁRIOS

Terminada a ceia, reflectiram no caso premente e concluí­


ram que por volta da meia-noite sairiam em escaramuça para
saber que sentinela e diligência faziam os seus inimigos; en­
tretanto repousariam algum tempo para estarem mais frescos.
Mas por mais que se virasse, Gargântua não conseguia pegar o
sono. Disse-lhe, pois, o frade:
<<Eu nunca durmo à vontade, a não ser quando estou no ser­
mão ou quan do rezo. Suplico-vos que comecemos, vós e eu, os
setes salmosl para ver se adormeceis.>>
A invenção agradou a Gargântua e, começando o primeiro
salmo, ao chegar ao Beati quorum2 adormeceram os dois. Mas
o frade não deixou de acordar à meia-noite, tão habituado que
estava às matinas do claustro. E acordando, acordou os outros,
cantando a plenos pulmões:

<<Ho, Regnault, reveille toy, veille;


Ho, Regnault, reveille toy3.,,

Quando todos acordaram, diz ele:


<<Meus senhores, diz-se que as matinas começam por tos­
sir4 e a ceia por beber. Façamos ao contrário; comecemos agora
as nossas matinas por beber, e à noite , ao começar a ceia, tossi­
remos à porfia.>>
Então diz Gargântua:
<<Beber tão cedo depois de dormir não é dieta de medicina.
Primeiro deve-se limpar o estômago dos supé tfluos e excre­
mentos.>>
<<Bem medicado !>> , diz o frade. <<Cem diabos me saltem pa­
ra cima se não há mais velhos bêbados que velhos médicos5!

166
GARGÂNTUA

Eu compus com o meu apetite um pacto tal que ele se deita sem­
pre comigo, e vou tratando disso durante o dia de tal m aneira
que também se levanta comigo. Vomitai tanto quanto quiseres,
que eu cá vou buscar o meu vomitivo.>>
«Que vomitivo?», perguntou Gargântua.
<<O meu breviário», diz o frade, <<pois, assim como antes de
alimentar as suas aves os falconeiros as fazem deitar fora
uma pata de galinha para lhes purgar o cérebro dos humores e
para lhes dar apetite, também eu, pegando neste rico breviario­
zinho6 logo de manhã, limpo os pulmões e fico pronto para be­
ber.»
<<Segundo que rito», diz Gargântua, <<ditais essas belas ho­
ras?»
<<Segundo o rito de Fecan7, com três salmos e três liçõess ou
nada para quem não quiser. Nunca me sujeito às horas: as ho­
ras foram feitas para o homem e não o homem para as horas9.
Por isso faço as minhas correias dos estribos; encurto-as ou
alongo-as quando me convém: brevis oratio penetrat celos, lon­
ga potatio evacuat cyphosl0• Onde é que isto está escrito?»
<<Por minha fé,, diz Ponócrates, <<não sei, meu colhãozi­
nho; mas tu vales muito !»
<<Nisso sou como vós», diz o frade. <<Mas venite apote­
mus1 1 .»
Preparam-se muitos grelhados e belas migas, e o frade be­
beu à sua vontade. Alguns fizeram-lhe companhia, outros abs­
tiverem-se. Depois começaram a armar-se e a vestir-se, e ar­
maram o frade contra a sua vontade, pois as únicas armas. que
queria eram o hábito à frente do estômago e o bastão da cruz no
punho. Todavia, armaram-no dos pés à cabeça e montaram­
-no num belo corcel do reinol 2, com um grande bacamarte ao la­
do, com Gargântua, Ponócrates, Ginasta, Eudémon e vinte e
cinco dos mai s aventureiros da casa de Grandgousier, todos
bem armados, de lança em punho, montados como S. Jorge, e le­
vando cada qual um arcabuzeiro à garupa.

NOTAS
I Os sete salmos da Penitência (Salmos VI, XXXII, XXX VII , LI, Cl, CX-
XIX, CXLll).
2 Começo do primeiro versículo do segundo salmo da penitência.
3 Refrão de uma canção popular na Idade Média.
4 Para aclarar a voz.

1 67
RABELAJS

5 Ditado popular referido por Mathurin Régnier (Sátira X): «Um jovem
médico vive menos que um velho bêbado.>>
6 Frasco em fomia de breviário (cf. cap. V).
7 Ignora-se o motivo desta alusão à abadia beneditina de Fécamp.
B Oficio abreviado, pois as matinas eram compostas de doze salmos e três
lições, salvo no tempo da Páscoa.
9 Referência a São Marcos, II, 27.
1 0 Gracejo monástico: «Prece curta chega ao céu, longa bebedura esvazia
os copos.» Erasmo (Colóquios) cita a primeira parte do ditado.
1 1 «Vinde e bebamos•, transposição burlesca do Venite adoremus.
1 2 Locu ção italiana: <<do reino de Nápoles», cujos cavalos eram famosos
no século XVI.

168
CAP ÍTULO XLII

COMO O FRADE ENCORAJOU


OS SEUS COMPANHEIROS
E COMO FICOU PENDURADO NUMA ÁRVORE

Lá vão os nobres campeões à sua aventura, decididos a sa­


ber que encontro iam ter e contra o que tinham de precaver-se
quando chegasse o dia da grande e horrível batalha. E o frade
encoraja-os dizendo:
«Meus filhos, não tenhais m edo nem hesitação, pois eu vos
conduzirei com segurança. Que Deus e S. Bento estajam con­
nosco ! Se eu tivesse tanta força como tenho coragem, pelo nome
de Deus ! , havia de depen á-los como patos! Só tenho medo da ar­
tilharia. Mas sei uma oração que me ensinou o subsacristão1
da nossa abadia, e que, garante a pessoa contra todas as bocas
de fogo, mas de nada me servirá pois não acredito nela. Toda­
via o meu bastão da cruz fará maravilhas. Por D eus, quem de
entre vós fugir em combate, diabos me levem se não o faço fra­
de no meu lugar e se não o arreio com o meu hábito, que é um re­
médio contra a cobardia das pessoas. Já ouvistes falar do le­
bréu do senhor de Meurles2, que não valia nada nos campos?
Pois puseram-lhe um hábito ao pescoço e, pelo corpo de Deus! ,
não lhe escapava nem lebre nem raposa, e mais ainda, cobria
as cadelas todas da região, que andava derreada de frigidis et
maleficiatis3. ,,
Enquanto dizia, colérico, estas palavras, o frade passou por
baixo de uma nogueira a caminho da Saullaye, e enfiou a visei­
ra do elmo num grande ramo da nogueira. Não obstante isso,
esporeou vigorosamente o cavalo, o qual era coceguento e deu
um salto para a frente, e o frade, querendo desprender a viseira
do galho , deixa cair as rédeas e pendura-se com as mãos nos
ramos enquanto o cavalo foge. Foi assim que o frade ficou pen-

1 69
RABEl.AIS

durado na nogueira, gritando por socorro que estavam a matá­


-lo, e também protestando contra a traição.
Eudémon avistou--o primeiro e, chamando Gargântua: <<Si­
re, vinde ver Absalão pendurado4!>> Gargântua considera a ati­
tude do frade e a maneira como estava pendurado, e diz a Eudé­
mon:
<<Está mal vista a comparação com Absalão, pois Absalão fi­
cou pendurado pelos cabelos mas o frade, que tem a cabeça rapa­
da, pendurou-se pelas orelhas.>>
<<Ajudai-me••, diz o frade, <<pelo diabo ! Já não chega de con­
versa? Pareceis-me os pregadores decretalistas, que dizem
que quem vir o seu próximo em perigo de morte antes deve, sob
pena de excomunhão trisulças, admoestá-lo a confessar-se e pô­
-lo em estado de graça, do que ajudá-lo. Assim, quando eu os
vir caídos ao rio e prestes a afogarem-se, em vez de ir buscá­
-los e estender-lhes a mão, far-lhes�i um belo e grande ser­
mão de contemptu mundi et fuga seculi6, e quando estiverem
bem mortos, irei pescá-los.>>
<<Não te mexas, meu rico••, diz Ginasta, <<que já te vou bus­
car, pois és um gentil monachus.'

Monachus in claustro
Non valet ova duo;
Sed, quand est extra,
Bene valet triginta7.,,

<<Já vi mais de quinhentos enforcados, mas nunca vi ne­


nhum pendurado com tanta graça, e se eu a tivesse assim, gos­
taria de ficar pendurado toda a vida.>>
<<Já não chega de pregar?>>, diz o frade. <<Ajudai-me por
Deus, pois que pelo Outros o não quereis. Pelo hábito que trago,
arrepender-vos�is tempore et loco prelibatis9.,,
Então Ginasta desce do cavalo e, subindo à nogueira, levan­
ta o frade pelos sovacos com uma das mãos e, com a outra, de­
senfia-lhe a viseira do galho da árvore e deixa--o cair no chão,
caindo também ele a seguir.
Assim que desceu, o frade desfez-se de todos os seus arne­
ses, atira para o campo uma peça atrás da outra e, pegando no
seu bastão da cruz, monta o cavalo, que Eudémon tinha apanha­
do quando ia a fugir.
E lá vão eles alegremente, a caminho de Saullaye.

1 70
GARGÂNTUA

NOTAS
Título invertido.
2 Personagem desconhecida.
3 «Dos frígidos e impotentes . . . », título de um parágrafo dos Decretais.
4 Na Bíblia, Livro dos Reis, II, 1 8.
5 De três pontas, como o raio de Júpiter: tripla excomunhão.
6 «Sobre o desprezo do mundo e a fuga do século.»
7 «Um monge no claustro não vale dois ovos, mas quando sai vale bem
trinta.••
8 O Diabo. Frei Jean inverte a ordem das imprecações.
9 «Em tempo e lugar>•, divisa de Rabelais, segundo antigos comentado-
res.

1 71
CAPÍTULO XLIII

COMO A ESCARAMUÇA DE PICJ!OCOLE


FOI ENCONTRADA POR GARGANTUA
E COMO O FRADE MATOU O CAPITÃO
TYRAVANT, E DEPOIS FOI FEITO PRISIONEffiO
DOS INIMIGOS

Ao ouvir a relação dos que se haviam evadido na derrota,


quando Tripet foi estripado, Picrocole ficou furioso, ouvindo di­
zer que os diabos tinham corrido sobre a sua gente, e manteve o
conselho reunido toda a noite. Durante este conselho concluí­
ram Hastiveaul e Toucquedillon que era tão grande o seu poder
que poderia dar cabo de todos os diabos do inferno se acaso vies­
sem, coisa qlle Picrocole não acreditou, nem sequer desconfian­
do.
Por isso enviou sob as ordens do conde Tyravant2, para apal­
par terreno, mil e seiscentos cavaleiros montados em cavalos
ligeiros, em escaramuça, todos bens aspergidos de água benta e
levando cada um por in sígnia urna estola a tiracolo para o caso
de encontraram os diabos, a quem fariam desaparecer por vir­
tude daquela água gregoriana3 e das estolas. Correram, pois,
até La Vauguyon e a Maladerye4, mas nunca encontraram nin­
guém com quem falar, pelo que passaram adiante e , no tugúrio
pastoral, perto de Couldray, encontraram os cinco peregrinos, e
levaram-n os amarrados com cordas corno se fossem espiões,
apesar das exclamações, adjurações e pedidos que lhes fize­
ram. Descendo dali na direcção de Seuillé, foram ouvidos por
Gargântua, o qual disse aos seus homens:
«Companheiros, vamos ter aqui recontro, e são dez vezes
mais que nós. Investiremos sobre eles ou não?>>
<<E que diabo faremos?>>, diz o frade. <<Estimais os homens
pelo número ou pela virtude e coragem?» Depois exclamou : <<ln­
vestimos, diabos, investimos!»

1 72
GARGÂNTUA

Ouvindo isto, os inimigos pensaram que eram verdadeiros


diabos, e puseram-se a fugir a sete pés, excepto Tyravant, o
qual pôs a lança em riste e golpeou mortalmente o frade no
meio do peito, mas ao encontrar o horrífico hábito, a lança ficou
embotada como se batêsseis com uma velazinha numa bigor­
na. Então o frade dá-lhe com o bastão da cruz entre o pescoço e o
colarinho, sobre o osso acrómio, e tão violentamente que o faz
perder os sentidos e o movimento, caindo aos pés do cavalo. E
vendo a estola que trazia a tiracolo, diz o frade a Gargântua:
«Estes não passam de padres ; e isso é só um começo de fra­
de. Por S. João, eu sou frade perfeito5 e matá-los-ei como mos­
caS.>>
D epoi s corre atrás deles a galope, de tal maneira que alcan­
ça os últimos e abate-os como centeio, malhando neles a torto e
a direito.
Nessa altura, Ginasta perguntou a Gargântua se deviam
prosseguir, ao que Gargântua respondeu:
<<Não, porque, segundo a verdadeira disciplina militar,
nunca se deve pôr o inimigo em lugar desesperado, pois essa ne­
cessidade multipli ca-lhe as forças e aumenta-lhe a coragem
já de sfalecida, e não há melhor remédio de salvação para gen­
te pasmada e estafada6 do que não esperar salvação nenhuma.
Quantas vitórias foram roubadas aos vencedores pelos venci­
dos quando não se contentaram com a razão e tentaram dar ca­
bo de tudo e destruir totalmente os seus inimigos, sem deixar
um único para levar as notícias! Abri sempre todas as portas e
caminh os aos vossos inimigos, ou melhor, fazei uma ponte de
prata para os mandar de volta7.,,
<<Pode ser que sim>>, diz Ginasta, <<mas eles têm o frade.>>
<<Têm o frade?B,, , diz Gargântua. <<Por minha honra ! , será
em seu prejuízo ! Mas para o que der e vier, não nos retiremos
já; esperemos aqui em silêncio, pois creio conhecer o carácter
dos nossos inimigos. Guiam-se pela sorte e não pelo conse­
lho.>>
Enquanto esperavam assim debaixo das nogueiras, o frade
prosseguia, investindo contra todos os que encontrava, não ten­
do piedade de nenhum, até que en controu um cavaleiro que le­
vava um dos pobres peregrinos à garupa. Então, querendo sa­
queá-lo, exclama o peregrino:
<<Ai, senh or prior, meu amigo, senhor prior, salvai-me por
favor!»
Ouvindo estas pal avras, voltam-se para trás os inimigos e,
vendo que era só o frade que fazia este escândalo, carregam-

1 73
RABELAIS

-no de pancada como quem carrega um burro de lenha; mas


ele nada sentia, mesmo quando lhe batiam no hábito, tão dura
tinha a pele. Depois entregam-no à guarda de doi s archeiros e,
voltando para trás, não vêem ninguém contra eles, e pens am
que Gargântua fugira com o seu bando. Então correm para as
Noyrettes9 o mais depressa que podem para os encontrar e dei­
xam o frade ali sozinho com os dois archeiros de guarda.
Gargântua ouve o rumor e os relinchos dos cavalos, e diz
aos seus homens:
<<Companheiros, ouço o rumor dos nossos inimigos, e já
avisto alguns dos que vêm ter connosco aos magotes. Cerremo­
-nos aqui e aguentemos o caminho em boa ordem. Desse modo
poderemos recebê-los em sua perdição e para nossa honra.>>

NOTAS
I Nome de um vinho precoce... que parece indicar um conselheiro muito
apressado para ser reflectido.
2 Que foge diante da balatalha>>; será no entanto o único a enfrentar Frei
Jean.
3 A água gregoriana, uma mistura de água, vinho e cinzas, segundo
uma fórmula de S. Gregório, era utilizada para purificar as igrejas profana­
das.
4 Antiga leprosaria (ladre: leproso) na extremidade da ponte da Non­
nain; actualmente, Saint-Lazare.
5 Rivalidade entre o clero secular e o clero regular, brejeiramente evoca-
da por Frei Jean.
6 Este conselho já vem em Virgílio (Eneida, II, 354).
7 Erasmo (Apotegmas, VIII , 14) atribui um dito análogo ao rei de Aragão.
8 ,.A_voir le moine» também significa «ser ludibriado» (cf. cap. XII), mas
aqui a expressão é tomada em sentido próprio .
9 O vale das nogueiras novas, sem dúvida perto de Seuilly.

1 74
CAPÍTULO XLIV
COMO O FRADE SE DESFEZ DOS SEUS GUARDAS,
E COMO A ESCARAMUÇA DE PICROCOLE
FOI DESFEITA

Ao vê-los afastarem-se desordenadamente, o frade conj ec­


turou que i am carregar sobre Gargântua e os seus homens, e
muito se contristou de não os poder socorrer. Depois reparou na
atitude dos seus dois archeiros de guarda, os quais bem gosta­
riam de correr atrás dos outros para ver se apanhavam qual­
quer coisa e estavam sempre a olhar para o vale por onde eles
desciam. E continua a raciocinar, dizendo:
<<Estes homens não estão exercitados em factos de armas,
pois nunca m e pediram a palavra e não me tiraram o bacamar­
te.>>
E imediatamente puxou do dito bacamarte e feriu o arqueiro
que e stava à direita, cortando-lhe inteiramente as veias j ugu­
lares e artérias espagítidas do pescoço, com a campainha, até.
às glândulas, e, retirando a espada, entreabre-lhe a medula es­
pinh al entre a segunda e a terceira vértebras; e aí o archeiro
cai morto. E o frade, voltando o cavalo à esquerda, corre para o
outro, o qual, vendo o seu companheiro morto e o frade com van­
tagem sobre ele, gritava em altos brados:
<<Ai, senhor prior, eu rendo-me! Senhor prior, meu bom
amigo, senhor prior!>>
E o frade também gritava:
<<Senhor posterior, meu amigo, senhor posterior, ainda le­
vais no posterior.>>
<<Ai ! >>, dizia o archeiro, <<senhor prior, meu rico senhor
prior, que Deus vos faça abade!>> .
<<Pelo hábito que trago>>, dizia o frade, <<faço-vos aqui car­
deall . Então vós espoliais os religiosos? Pois tereis um chapéu
vermelho na mão.>>
E o archeiro gritava:

1 75
RABEIAIS

«Senhor prior, senhor prior, senhor abade futuro, senhor


cardeal, senhor tudo ! Ai, ai, ai! Não senhor prior, meu rico se­
nhor prior, eu entrego-me!>>
«E eu entrego-te a todos os diabos•• , diz o frade.
Então com um golpe corta-lhe a cabeça, rachando-lhe o crâ­
nio nos ossos pétreos2 e tirando os dois ossos parietais e a comis­
sura sagital com grande parte do osso coronal, ao mesmo tempo
que lhe cortou as duas meninges e lhe abriu profundamente os
dois ventrículos posteriores do cérebro ; e ficou com o crânio pen­
durado nos ombros pela pele do pericrânio3 por trás, em forma
de barrete doutoral4, preto em cima e vermelho por dentro. As­
sim caiu morto por terra.
Feito isto, o frade esporeia o cavalo e segue o caminho que
haviam tomado os inimigos, os quais tinham encontrado Gar­
gântua e os seus companheiros no caminho e estavam tão dimi­
nuídos em número, por causa da grande matança que fizeram
neles Gargântua com a sua grande árvore, Ginasta, Ponócra­
tes, Eudémon e os outros, que começavam a retirar-se à pressa,
muito assustados e perturbados do sentido e entendimento, co­
mo se vissem a própria espécie e forma da morte diante dos
olhos.
E - como um burro que tem um moscardo junónicos ou uma
mosca a picá-lo no cu, corre para aqui e para ali sem eira nem
beira, atirando a carga ao chão, rompendo o freio e as rédeas,
sem respirar e nem repousar, e não sabe o que o faz correr pois
não vê nada a tocá-lo - assim fugiam aqueles homens, despro­
vidos de sentido, sem saber por que fugiam, tão-somente os per­
seguia um medo pânico que haviam concebido em suas almas.
Ao ver o frade que o seu único pensamento era dar às de vi­
la-diogo , apeia-se do cavalo, sobe a uma grande rocha que h a­
via no caminho, e com o seu grande bacamarte começa a dar
nos fugitivos com toda a força e sem se poupar. Tantos matou e
derrubou que o bacamarte se partiu em dois. Então pen sou que
já chegava de massacrar e matar, e que o resto devia escapar
para levar as notícias6.
Por isso agarrou num machado dos que jaziam mortos e vol­
tou para a rocha, passando o tempo a ver fugir os inimigos e a
tropeçar nos corpos mortos, mas tirando a todos os seus chuços,
espadas, lanças e arcabuzes, e aos que levavam os peregrinos
amarrados apeava-os e dava os seus cavalos aos ditos peregri­
nos, retendo-<>s consigo na orla da sebe, mais Tocquedillon, a
quem reteve como prisioneiro.

1 76
GARGÂNfUA

NOTAS

1 Cortando-lhe a cabeça, que ficará vermelha de sangue.


2 Ossc pétreo : parte do ossc temporal; comissura sagital: sutura dos asses
parietais; osso coronal : osso frontal; ventrículos posteriores do cérebro: ven­
trículos laterais. É uma alegri a para o anatomista!
3 O periósteo que envolve o crânio .
4 Barrete d e doutor, que n o século X VI era redondo.
5 Alusão à antiga lenda de Juno que, por ciúme, mandou um moscardo pi­
car a su a rival lo, metamorfoseada em vaca.
G Frei Jean obedece assim às ordens de Gargântua.

12 1 77
CAPÍTULO XLV

COMO O FRADE LEVOU OS PEREGRINOS


E AS BOAS PALAVRAS QUE LHES DISSE
GRANDGOUSIER

Terminada esta escaramuça, retirou-se Gargântua com os


seus homens, excepto o frade, e ao nascer do dia foram ter com
Grandgousier, o qual estava na cama a rezar a Deus pela sua
salvação e vitória e, vendo-os sãos e salvos, abraçou-os com
amor e pediu-lhes notícias do frade. Mas Gargântua respon­
deu-lhe que sem dúvida os seus inimigos tinham o frade. «Te­
rão pois>>,, disse Grandgousier, <<maus encontroS>> , o que fora
verdade. E por isso que ainda hoje existe o provérbio dar o mon­
ge a alguém I .
Então ordenou que preparassem um rico almoço para o s re­
frescar. Quando tudo estava pronto, chamaram Gargântua,
mas tanto lhe custava que o frade não comparecesse que não
queria nem beber nem comer.
De repente chega o frade, e logo à porta do pátio põe-se a ex­
clamar:
<<Vinho fresco, vinho fresco, Ginasta, meu amigo!>>
Ginasta saiu e viu que era Frei Jean trazendo cinco peregri­
nos e Toucquedillon prisioneiro. Então Gargântua saiu-lhes
ao encontro, e fizeram-lhes o melhor acolhimento que pude­
ram, e levaram-n o à presença de Grandgousier, o qual o inter­
rogou acerca de toda a sua aventura. O frade contava-lhe tudo:
como o tinham apanhado, e como se havia livrado dos archei­
ros, e a matança que fizera pelo caminho, e como recuperara os
peregrinos e trouxera o capitão Toucquedillon. Depoi s puseram­
-se a banquetear-se alegremente todos juntos.
Entretanto Grandgousier perguntava aos peregrinos de que
país eram, donde vinham e para onde iam.
Lasdaller respondeu por todos:

1 78
GARGÂNIUA

<<Senhor, sou de Saint Genou en Berry; aquele é de Paluau,


e este é de Villebrenin2 . Vimos de Sainct Sebastian3, {lerlo de
Nantes, e voltamos a pequenas jornadas.>>
<<Pois sim••, diz Grandgousier, <<mas que íeis vós fazer a
Sainct Sebastien?>>
<< Í amos•• , diz Lasdaller, <<oferecer-lhe os nossos votos con­
tra a peste4.
<<O pobre gente!••, diz Grandgousier, <<pensais então que a
peste vem mesmo de Sainct Sebastien?>>
<<Sim, pensamos•• , responde Lasdaller; <<assim ncr-lo afir­
mam os nossos pregadoress.,,
<<Ai sim?••, diz Grandgousier. <<Os falsos profetas anun­
ciam-vos esses abusos? Pois blasfemam contra os justos e os
santos de D eus, tornando-os iguais aos diabos, que só espa­
lham o mal entre os human os, como Homero escreve que a pes­
te foi lançada no exército dos gregos por Apolo6, e como os poetas
inventam um monte de Vejovis7 e deuses malfazejos? Assim
pregava em Cinais8 um hipócrita que Santo António deitava fo­
go às pernas9, Santo Eutrópio fazia os hidrópicosl o, São Gildas
os loucosn , São Genou as gotas1 2. Mas eu puni-o com tal exem­
plo, embora me chamasse herético, que nunca mais hipócrita
algum ousou entrar nas minhas terras, e muito me espanta que
o vosso rei os deixe pregar no seu reino tais e scândalos, pois
são mai s puníveis do que aqueles que, por artes mágicas ou ou­
tros artifícios, teriam lançado a peste no país. A peste só mata o
corpo, mas esses impostores envenenam as almas.>>
Enquanto lhes dizia estas palavras, entrou o frade muito de-
cidido e perguntou-lhes:
<<Donde sois vós, pobres peregrinos?••
<<De Saint Genou», disseram.
<<E como vai» , disse o frade, <<O abade Tranchelion1 3, esse
bom beberrão? E os frad es, como se regalam? Pelo corpo de
Deus ! , catrapiscam-vos as mulheres enquanto andais em ro­
maria]»
<<Ah ! Ah !•• , diz Lasdaller, <<não tenho medo da minha, pois
quem a vir à luz do dia não partirá o pescoço para ir visitá-la à
noite.••
<<Má jogada!••, diz o frade. <<Poderia ser tão feio como Pro­
sérpina, que mesmo assim lhe pegam, se há frades em volta,
pois um bom operário trabalha todas as peças indiferentemen­
te. Que eu apanh e as bexigas se não as encontrareis prenhas ao
chegardes , pois a sombra do campanário de uma abadia é fe­
cunda.»

1 79
RABELAIS

« É>>, diz Gâ.rgântua, <<como a água do Nilo no Egipto, a acre­


ditar em Estrabãol4; e Plínio, lib. víj., cap. iij, avisa ela que
traz a comida, a roupa e a vida.>>
Então diz Grandgousier:
<<Ide-vos embora, pobre gente, em nome de Deus Criador,
que sempre vos guie, e doravante n ão façais essas viagens ocio­
sas e inúteis. Sustentai as vossas famílias, trabalhai, cada um
na sua vocação, educai os vossos filhos, e vivei como vos en si­
na o bom apóstolo São Paulol5. Fazendo assim, tereis a guarda
de Deus, dos anjos e santos convosco, e não haverá peste nem
mal que vos cause dano.>>
Depoi s Gargântua levou-os a tomar a sua refeição na sala,
mas os peregrinos não faziam mais que suspirar, e disseram a
Gargântua:
<<Oh, como é feliz o país que tem tal homem por senhor! Fic á­
mos mais edificados e instruídos com as palavras que nos dis­
se do que com todos os sermões que jamais nos foram pregados
na nossa cidade.>>
<< É>> , diz Gargântua, <<O que diz Platão, lib. v. da Rep.l 6: que
as repúblicas seriam felizes quando os reis filosofassem ou os
filósofos reinassem.>>
Depois mandou-lhes encher os alforges de víveres , e as gar­
rafas de vinho, e deu a cada um um cavalo para suavizar o res­
to do caminho, e alguns carolus para viver.

NOTAS
1 Ludibriar; cf. cap. XLIII.
2 Todas estas localidades ficam nos arredores de Châteauroux.
3 Vide o começo do cap. xx:xvm .
4 A peregrinação era essencialmente frequentada pelas vítimas das ser­
pentes; no entanto, Calvino indica que a cura da peste era um dos atributos de
S. Sebasti ão, cujas relíqu ias se teriam <<multiplicado em quatro corpos intei­
ros>> nos quatro santu ários . Alusão às quatro epidemias de peste que assola­
ram o Berry no tempo de Rabclais (1 516, 1 51 7, 1 524 e 1 526).
5 Alusão à superstição popular que atribui aos santos não só o poder de cu-
·
rar mas também de fa2er adoecer.
6 Referência à lllada, canto 1: o exército dos gregos é assolado pela peste
enviada por Apolo, cujo sacerdote fora ultrajado por Agamérnn o n.
7 Vcjovis, deus malfazejo, venerado em Roma, citado por AuJo Gélio e
por Erasmo (Elogio da Loucura).
8 Cinais, a paróquia de La Dcvinicre, já referida no cap. IV .
9 O mal dos ardentes ou fogo de Santo António (cf. cap. XIII), tão frequente
na Idade Média.
1 0 Santo Eutrópio, venerado cm Saintcs, cuja catedral tem o seu nome (cf.
cap. XXVII).

1 80
GARGÂNTUA

1 1 São Gildas passava por curar a loucura, na qualidade de patrono dos


gilles (tolos, palermas) ou dos bobos (?).
1 2 A abadia de Saint-Genou era um famoso local de peregrinação. A apro­
ximação entregenou, joelho, e a gota é bastante fácil...
1 3 Trata-se de Antoine de Tranchelion, abade de Saint-Genou, que pas­
sava por ter dilapidado os bens do convento.
1 4 Segundo Estrabão ·e Plínio, a água do Nilo tornava as mulheres fecun­
das, não sendo raro terem quatro gémeos.
1 5 Toda esta passagem é inspirada em São Paulo, Eplstola aos E{ésios, IV
-v, voltando aos argumentos do cap. XL, <<Por que fugiram os frades do mun­
do» ... Mais tarde, Voltaire desenvolverá a oposição entre a devoção estéril e o
trabalho (cf. Apparition de saint Cucu{in), bem como a prioridade de uma vi­
da simples e moral sobre a prática do culto (cf. Le catéchisme dujardinier).
1 6 República, v, 473 d. Este voto de Platão, adoptado pelos humanistas, se­
rá retomado pelos «filósofos» do século XVIII, que depositarão as suas esperan­
ças nos «déspotas esclarecidos».

1 81
CAPÍTULO XLVI

COMO GRANDGOUSIER
TRATOU HUMANAMENTE
O PRISIONEffiO TOUCQUEDILL ON

Toucquedillon foi levado à presença de Grandgousier, o


qual o interrogou sobre os intentos e questões de Picrocole, para
saber o que pretendia ele com aquela súbita algazarra. E ele
respondeu-lhe que o seu fim e destino era conquistar todo o
país, se pudesse, por causa da injúria feita aos biscoiteiras.
<< É um empreendimento demasiado grande>>, diz Grand­
gousier; <<quem tudo quer tudo perde. Já não estamos em tempo
de assim conquistar os reinos com prejuízo do nosso próximo e
irmão cristão. Essa imitação dos antigos Hércules, Alexan­
dres, Aníbais, Cipi ões, Césares e outros que tai s, é contrária à
profissão do Evangelho! , a qual nos manda guardar, salvar, re­
ger e admnistrar cada um o seu país e terras, e não invadir hos­
tilmente as dos outros, e àquilo a que sarracenos e bárbaros cha­
mavam outrora proezas, chamamos-lhes agora assaltos e mal­
dades. Mais valia ter ficado em casa, governando-a regiamen­
te, do que vir in sultar na minha, pilhando-a hostilmente, pois
governando-a bem favorecê-la-ia, mas pilhando-me assim
será destruído.
>>Ide-vos em nome de Deus, e com boas intenções; mostrai
ao vosso rei os erros que perceberdes e nunca o aconselheis ten­
do em vista o vosso proveito particular, pois com o bem comum
também se perde o próprio bem. Quanto ao vosso resgate, dou­
-vo-lo inteiramente, e quero que vos sejam devolvidas as ar­
mas e o cavalo2.
>>Assim se deve fazer entre vizinhos e antigos amigos, dado
que e ste nosso diferendo não é propri amente a guerra, como
Platão3 li. v. de Rep., dizia que não se chamava guerra mas .s e­
dição quando os gregos pegavam em armas uns contra os ou-

1 82
tros, no que, se por azar acontecesse, ordena que se use de toda a
modera ção. Se lhe chamais guerra, é apenas su p e rfi ci a l , e n ão
entra no profundo gabinete4 dos nossos corações; poi s n enh um
de nós foi ultrajado na sua honra, e trata-se afinal de rep arar
al guma falta cometi da pelos nossos, isto é, os nossos e os vos­
sos5, a qual , ainda que tomásseis conh ecime nto dela, devíeis
de ixar passar, pois as personagens envolvidas na querela
eram mais para desprezar do que para lembrar, mesmo satisfa­
zendo-as segundo os seus agravos, como eu me ofereci p ara fa­
zer. Deus estimará j ustamente o nosso diferendo, e su plico­
-Lh e que antes m e leve desta vi da e arruíne os meus bens do
que ser ofendido nalguma coisa por mim e pelos meus.»
Terminadas e stas palavras, chamou o frade, e perguntou­
-lh e d i ante de todos:
<< Frei Jean, meu bom am i go, fostes vós que capturastes o ca­
pitão Toucquedillon aqui presente?••
<<Sire», di z o frade, <<ele está presente; tem ida de e discern i ­
mento, e e u prefiro que o saibais pela sua confissão el o que pela
minh a palavra.••
Então diz Toucquedillon;
<<Sen hor, foi na verdade ele quem me capturou , e eu con sti-
tuo-me francamente seu prisioneiro.••
<<E pedistes resgate por ele?••, diz Grandgousi er ao frade.
<<Não•• , di z o frade. •<Isso não me interessa.»
<<Quanto pretenderíeis•• , di z Grandgousier, <•pel a sua ca ptu­
ra?>>
<< Nada , nada••, di z o frade ; <<isso n ão i mporta.••
E n tão Grandegousier ordenou que, na presen ça de Touc que­
di llon , se dessem ao frade sessenta e dois m il salusG por aquela
captura, o que foi feito enquanto deram de comer ao d i to Touc­
quedillon, ao q ual Grandgousi er perguntou se queria fi car
com ele ou se preferi a ir ter com o seu rei.
Toucquedi ll on respondeu que faria o qu e e l e l h e acon sel h as-
se.
•• Então•• , diz G r a n dgousier, ••voltai para o vosso re i , e que
Deus vos acom panhe.>>
Depoi s deu-lhe uma bela espada de Vienne7, com a bainha
de ouro, ornada de bonitas vinhetas8 de ourivesaria, e um colar
de ouro que pesava setecentos e dois mi l marcos9, guarnecido
de finas pedrarias avaliadas em cento e sessenta mil duca­
dost o, e dez m i l escudos como presente honorável. Depois disto,
Toucquedillon montou-se no seu cavalo. Para garantir a sua
segurança, Gargântua deu-lh e trinta homens de armas e seis

1 83
RABEl.AIS

vinte archeiros sob as ordens de Ginasta, para o conduzirem


até às portas de La Roche Clermauld, se fosse caso disso.
Quando ele partiu, o frade devolveu a Grandgousier os ses­
senta e dois mil salus que recebera, dizendo :
«Sire, não é agora que deveis fazer estas dádivas. Esperai o
fim desta guerra, pois não se sabe o que pode acontecer, e guer­
ra travada sem boa provisão de dinheiro é guerra sem vigor.
Os nervos das batalhas são o pecúlio.>>
«Então>>, diz Grandgousier, «contentar-vos-ei no fim com
uma recompensa honesta, e a todos aqueles que me tiverem ser­
vido bem.>>

NOTAS
1 O pacifismo de Grandgousier baseia-se no . Evangelho: os soberanos
cristãos não devem comportar-se como os conquistadores pagãos.
2 Vitorioso, Grandgousier comporta-se generosamente, conforme prome­
tera nos caps. XXIX, XXX e XXXI .
3 República, livro V, 470 c. Mas, como muitas vezes acontece, Rabelais
contenta-se com a abreviatura utilizada por Erasmo no lnstitutio principis ch­
ristiani.
4 Neologismo vindo do italiano, cabinetto, pequeno quarto.
5 Grandgousier admite a partilha das responsabilidades; oferecera em
vão enormes indemnizações (cf. cap. XXXII), particularmente La Pomardi�re
para Marquet.
6 Moeda cunhada pelos reis de Inglaterra, quando ocupavam Paris du­
rante a guerra dos Cem Anos; representava a saudação angélica, e daí o seu
nome. Sendo uma moeda de ouro, o resgate era muito avultado: o salus valia
1 2 francos ouro.
7 Vienne no Dauphiné, onde havia fábricas de armas.
8 Cinzelados em forma de parras de uva.
9 Se o marco pesa 250 g, o colar atinge o peso de 1 75 000 kg. Após o grave
discurso de Grandgousier, voltam os efeitos cómicos do gigantismo.
10 O ducado de Veneza valia quase 1 2 francos ouro, e os escudos de ouro
um pouco menos que os salus.

184
CAPÍTULO XLVII

COMO GRANDGOUSIER MANDOU BUSCAR


AS SUAS LEGIÕES E COMO TOUCQUEDILLO N
MATOU HASTIVEAU, E DEPOIS FOI MORTO
POR ORDEM DE PICROCOLE

Nos mesmos dias, os habitantes de Bessé, do Marché Vieux,


do burgo Sainct Jacques, do Trainneau, de Parillé, de Riviere,
das Roches Sainct Paoul, de Vaubreton, de Pautille, do Bre­
rnon, do Pont de Claro, de Cravant, de Grandrnont, das Bour­
des, de La Vill e au Mere, de Huyrnes, de Sergé, de Hussé, de
Sainct Louant, de Panzoust, de Coldreaux, de Verron, de Coulai­
nes, de Chosé, de Varenes, de Bourgueil, da Isle Boucard, do
Croulay, de Narsy, de Cande, de Montsoreau1 e outros lugares
confins, enviaram embaixadas a Grandgousier a fim de lhe di­
zer que e stavam a par dos prejuízos que Picrocole lhe causava e
que, em virtude da sua antiga confederação2, lhe ofereciam to­
do o seu poder, tanto em homens corno em dinheiro e outras mu­
nições de guerra.
O dinheiro de todos ascen dia, pelos pactos que tinham com
ele, a seis vinte catorze milhões e dois escudos e meio de ouro3.
As tropas eram em número de quinze mil homens de armas e
dois mil cavaleiros ligeiros, oitenta e nove mil arcabuzeiros,
cento e quarenta mil aventureiros4, onze mil e duzentos ca­
nhões, canhões duplos, basílicos e espirolass, pioneiros6 quaren­
ta e sete mil; e tudo isso recebera soldo e abastecimento s para
seis meses e quatro dias7. A qual oferta Grandgousier não recu­
sou nem aceitou inteiramente , mas, agradecend.:rlhes muito,
disse que organizaria aquela guerra de tal forma que n ão se­
ria preciso incomodar tanta gente honrada. Enviou apenas
quem trouxesse ordeiramente as legiõess que costumava man­
ter nas suas praças de La Deviniere, Chaviny, Gravot e Quin­
quenays9, ascendendo em número a dois mil e quinhen-

1 85
RABELAIS

tos homens de armas, sessenta e seis mil homens a pé, vinte e


seis mil arcabuzeiros, duzentas grandes peças de artilharia,
vinte e dois mil prisioneiros e seis mil cavalos ligeiros, todos
em bandosi o tão bem fornecidos de tesoureiros, vivandeiros, fer­
reiros, armeiros e outros homens necessários ao séquito da ba­
talha, tão bem instruídos na arte militar, tão bem armados, tão
bem reconhecidos e seguindo as suas in sígnias, tão prontos a
ouvir e a obedecer aos seus capitães, tão expeditos no correr, tão
fortes no ataque, tão prudentes na aventura, que mais pare­
ciam uma harmonia de órgãos e a concordância de um relógio
do que um exército ou uma esquadra.
Ao chegar, Toucquedillon apresentou-se a Picrocole e con­
tou-lhe tanto o que fizera como o que vira. No fim aconselhou,
com palavras veementes, que fizessem um acordo com Grand­
gousier, o qual lhe parecera o homem mais honrado do mundo,
acrescentando que não era proveitoso nem razoável molestar
assim os seus vizinhos, dos quais só tinham recebido o beml 1 , e,
quanto ao principal, que nunca sairiam daquele transe senão
em seu prejuízo e desgraça, pois o poder de Picrocole não era tão
grande que Grandgousier não pudesse facilmente pô-los a sa­
que. Ainda ele não terminara estas palavras, diz Hastiveau
bem alto:
<<Muito infeliz é o príncipe que por tais homens é servido, os
quais tão facilmente se corrompem, como me aparece Toucque­
dillon, pois vejo o seu coração tão mudado que de boa vontade se
teria aliado aos nossos inimigos para batalhar contra nós e
trair-nos, se acaso quisessem retê-lo; mas assim como a virtu­
de é louvada e estimada por todos, tanto amigos como inimigos,
também a maldade logo é conhecida e suspeitada, e, dado que
os inimigos se servem dela para seu proveito, também abomi­
nam sempre os maus e os traidores.>>
Ao sentir estas palavras, Toucquedillon, impaciente, puxou
da espada e trespassou Hastiveau um pouco acima do mamilo
e squerdo , pelo que morreu imediatamente ; e, tirando-lhe a es­
pada do corpo, disse francamente :
<<Assim pereça quem blasfemar contra os fiéis servido­
res!>>
Subitamente Picrocole enfureceu-se e , vendo a espada e a
bainha tão resplandecente , disse:
<<D eram-te essa arma para na minha presença matares
malignamente o meu bom amigo Hastiveau?>>
Então ordenou aos seus archeiros que o fizessem em peda­
ços, o que logo fizeram tão cruelmente que a sala ficou toda co-

1 86
GARGÂNIUA

berta de sangue; depois mandou inumar honrosamente o corpo


de H astiveau, e atirar o de Toucquedillon das muralhas abaixo
para o vale.
As notícias deste ultraj e ch egaram ao conhecimento do
exército inteiro, e muitos começaram a murmurar contra Pi­
crocole, de tal modo que Grippepinault1 2 lhe disse:
«Senhor, não sei qual será o resultado deste transe. Vejo os
vossos homens pouco firmes nos seus corações. Consi deram
que e stamos mal abastecidos em víveres aqui, e além muito di­
minuídos em número por causa de duas ou três surtidas. Além
disso, os nossos inimigos estão a receber grande reforço de tro­
pas. Se formos sitiados, não vejo como evitar a ruína total.>>
<<Merda, merda!>>, disse Picrocole ; <<sois como as enguias
de Melun: gritais antes que vos esfoleml a . Deixai-os vir.>>

NOTAS

1 Todas estas localidades são reais e situam-se na região de Chinon, nas


margens do Loire e do Vienne. Os primeiros quatro nomes designam arra­
baldes de Chinon; Traineau seria uma confusão com Raineau , feudo vizinho
do burgo Saint-Jacques. Parillé foi citado no cap. xxv; Riviere, no cap. xxvn;
as Raches de Saint Paul são uma aldeola de Ligré; Vaubreton, uma aldeola de
Riviere; Pontille, Brehemont: cf. cap. vn; Pont-de-Clam é um lugar perten­
cente à comuna Saint-Germain-sur-Vienne, onde a família Rabelais possuía
um prado; Cravant fica próximo da Ile-Bouchard; Gradmont, lugarejo si­
tuado na orla da floresta de Chinon ; Bourdes, feudo na comuna de Cravant;
La Villaumaine, lugarejo de Huines, perto de Chinon; Ussé, terriola da co­
muna de Rigny-Ussé, perto de Azay-le-Rideau; Saint-Louant (cf. cap. VIII),
aldeia na margem do Vienne e abadia; Panzouet, cf. lle-Bouchard; no Ter­
ceiro Livro, cap. XYI-XYlii , Rabelais situa ali o epísódio da sibila; Coldreaux,
aldeola de Beaumont-sur-Véron; Coulaines, citado no cap. XXXIX, era um
castelo na comuna de Beaumont; Chosé, Chouzé-sur-Loire, aldeia vizinha de
Bourgueil ; Varennes-sous-Montsoreau , onde a família de Rabelais tinha
terras e pescas; Bourgueil possuía uma abadia beneditina. Ronsard tornará
Bourgueil ilustre ao celebrar Marie Dupin; Croulay, pequena aldeia de
Panzoult; Narsy: cf. cap. I; Cande: cf. cap. XXVII; Montsoreau, cf. cap. VIII .
2 Segundo o costume feudal, Gradgousier convoca as tropas dos seus vas­
salos. Esta longa enumeração conforma-se com as tradições épicas da Anti­
guidade e da Idade Média. Trata-se também de uma transposição do processo
que o pôs por um lado o pai de Rabelais e os comerciantes do Vienne e do Loire,
e por outro Gaucher de Sainte-Marthe, desde 1 528. O termo confederação evoca
este sindicato de comerciantes. A família de Rabelais tinha interesses na
maior parte destas localidades.
3 O escudo de ouro (cf. cap. XLVI) valia menos que o salus, ou sej a, cerca
de 11 francos-ouro. Grandgousier não se arrisca a ter falata de pecúlio!
4 Cf. cap. XXVI, nota 4.
5 Cf. cap. XXV I , nota 6. As espirolas são pequenas colubrinas.

187
RABELAIS

6 Os pioneiros eram serventes das peças de artilharia.


7 Esta enumeração comporta um elemento de realidade (corresponde às
diversas formações do exército no século XVI) e uma parte de gigantismo épico:
é a réplica, em maior, do exército de Picrocole no cap. XXVI.
8 Termo técnico. Ao incorporar as milícias comunais na infantaria,
Francisco I criou sete legiões de 6000 homens, que constituíram os primeiros
regimentos de infantaria permanentes <<para ter sempre tropas preparadas»,
segundo o historiador La Noue.
9 Principais propriedades de família: a Deviniere, casa natal de Rabe­
lais; Chavigny, comuna de Varennes-sous-Montsoreau, era um <<castelo e
casa nobre>> pertencente à mãe de Rabelais; Gravot, aldeola de Bougueil, e
Quinquenays, aldeola perto do castelo de Chinon, deviam fazer parte das
terras dos Rabelais.
10 Termo militar: unidade táctica de infantaria reunida sob uma ban-
deira.
11 Toucquedillon retoma a argumentação de Grandgousier.
1 2 Grippe-Pineau, apreciador de vinho.
1 3 Antigo pregão; os mercadores ambulantes gritavam <<anguilles de Me­
lun!» pelas ruas de Paris.

188
CAP ÍTULO XLVIII

COMO GARGÂNTUA ASSALTOU PICROCOLE


DENTRO DA ROCHE-CLERMAUD,
E DESBARATOU O EXÉRCITO
DO DITO PICROCOLE

Gargântua assumiu o total comando do exército. O seu pai


ficou na principal praça forte, animando-os com boas pala­
vras, prometeu gran des dádivas aos que fizessem algumas
proezas. Depois alcançaram o Gué de Veda e, em barcos e pon­
tes construídos ligeiramente, passaram adiante duma assenta­
da. D epoi s, considerando a posição da cidade, que ficava num
lugar elevado, e vantajoso, Gargântua deliberou essa n oite o
que havia de fazer. Mas Ginasta disse-lhe:
<<Senhor, tal é a natureza e compleição dos franceses que só
valem no primeiro ataque . Então são piores que diabos, mas, se
demoram, são menos que as mulheresl . Sou de opinião que
·
neste momento, depois de os vossos homens terem respirado e
comido, deveis dar ordem de assalto.»
E sta opinião foi bem aceite , e , por conseguinte, Gargântua
levou todo o seu exército ao campo, pondo as reservas do lado da
subida. O frade levou com ele seis estandartes de homens a pé e
duzentos homen s de armas, e com grande diligência atraves­
sou os pântanos e chegou depois de Puy até ao grande caminho
de Loudun2.
Entretanto o assalto continuava. Os homens de Picrocole
não sabiam se era melhor sair para os receber ou guardar a ci­
dade sem se moverem. Mas ele saiu furiosamente com um ban­
do de homens de armas da sua casa, e foi festejado com gran­
des tiros de canh ão que choviam na direcção das colinas, de
onde os gargantuístas se retiram para baixo, a fim de darem
lugar à artilharia. Os da cidade defendiam-se o melhor que

1 89
RABELAIS

podiam , mas os tiros passavam-lhes por cima sem ferir nin­


guém. Algun s do bando, salvos da artilharia, atacaram feroz­
mente o s nossos homens, mas pouco lucraram com isso, pois
foram todos apanhados nas fileiras e atirados ao chão. Vendo
isto, queriam retirar-se, mas entretanto o frade ocupara a pas­
sagem, pelo que largaram a fugir desordenadamente. Alguns
queri am persegui-los, mas o frade conteve-os , receando que ao
seguirem os fugitivos perdessem as suas posições e nessa al­
tura os da cidade investissem sobre eles. D epois, esperando um
pouco e como ninguém se apresentava para o recontro, enviou o
duque Frontistaa para convencer Gargântua a avançar e alcan­
çar a colina à esquerda, de modo a impedir a retirada de Picro­
cole por essa porta. O que Gargântua fez prontamente, envian­
do para esse lugar quatro legiões da companhia de Sebasta4,
mas assim que estas chegaram ao cimo, deram de cara com Pi­
crocole e os que com ele se haviam dispersado. Então atacaram­
-nos rudemente, mas também foram muito maltratados pelos
que estavam nas muralhas, com setas e tiros de artilharia.
Vendo isto, Gargântua foi socorrê-los em massa e a sua artilha­
ria começou a disparar sobre esta secção das muralhas de tal
maneira que toda a cidade acorreu.
Ao ver desprovido tropas e guardas este lado que ele tinha
cercado, o frade disparou magn animamente contra o forte e
acabou por subir até lá com alguns dos seus homens, pensando
que mais medo metem os que acodem a um conflito do que o s
que combatem n a s suas posições. Todavia n ão atacou enquanto
todos os seus não alcan çaram a muralha, excepto os duzento s
homens de armas que deixou lá fora para o que desse e viesse.
Depois gritou horrivelmente e os seus homens gritaram com
ele, e sem resi stência mataram os guardas desta porta e abri­
ram-na aos homens de armas; em seguida correram orgulho­
samente para a porta do Oriente, onde reinava a confusão, e
surpreenderam as suas forças por trás. Vendo os assaltante s
de todos o s lados e que o s gargantuístas tinham alcançado a
cidade, renderam-ses ao frade. O frade fê-los entregar os paus
e as armas, e mandou-os retirarem-se e concentrarem-se nas
igrejas, apanhando todos os bastões das cruzes e deixando ho­
mens nas portas para os impedirem de sair; depoi s, abrindo a
porta oriental, saiu em socorro de Gargântua.
Mas Picrocole pensava que vinham em socorro da cidade e,
por petulância, aventurou-se mai s adiante, até que Gargântua
exclamou:
<<Frei Jean, m eu amigo, Frei Jean, em boa hora vieste s !>>

190
GARGÂNTUA

Então, vendo que tudo estava perdido, Picrocole e os seus ho­


mens desataram a fugir em todas as direcções. Gargântua per­
seguiu-os até Vaugaudry, matando e massacrando, depois deu
ordem de retirar6.

NOTAS
I É a op1mao dos historiadores latinos relativamente aos gauleses (cf.
Tito Lfvio, livro X, 28); Rabelais deve ter ido buscá-la a Erasmo, que a refere
nos seus Apotegmas, VI, Varie mixta, 1 00.
2 Frei Jean surpreende Picrocole pelas costas; Le Puy, hoje Peux-Girard;
o grande caminho é o de Loudun a Chinon.
3 O Prudente (do grego <ppovnO'tT]Ç).
4 O Respeitável (do grego OE13acrtÇ). Os chefes de Grandgousier têm nomes
que zimbolizam as virtudes, ao passo que os de Picrocole têm nomes satíricos.
5 O sujeito de «renderam-se» é, evidentemente, as tropas de Picrocole.
6 Esta batalha deu origem aos estudos de Albert Rossi, Rabelais écrivain
militaire, 1 892; do coronel de la Barre-Duparcq, Rabelais stratégiste; de Gi­
gon, L'Arte militaire de Rabelais (R. E. R., tomo V). A estratégia de Gargân­
iu a não tem nada de complicado e só leva em conta a topografia, que Rabelais
conhecia perfeitamente.

1 91
CAP ÍTULO XLIX

COMO AO FUGIR PICROCOLE


FOI SURPREENDIDO PELA POUCA SORTE,
E O QUE FEZ GARGÂNTUA APÓS A BATALHA

Picrocole, assim desesperado, fugiu para a Isle-Bouchart e,


no caminho de Rivierel , o seu cavalo tropeçou e ele ficou tão in­
dignado que, com a sua espada, o matou de cólera2. Depois, não
encontrando ninguém que lhe desse um cavalo, quis levar um
burro do moinho que havia ali perto ; mas os moleiros moeram­
no de pancada, tiraram-lhe a roupa e deram-lhe uma reles
samarra para se cobrir.
Assim se foi o pobre colérico; depois, atravessando o rio no
Port Huaux3 e contando a sua má sina, foi avisado por uma
velha bruxa de que o seu reino lhe seria devolvido quando as
galinhas tivessem dentes. D epois não sei o que lhe aconteceu.
Todavia disseram -me que é actualmente um pobre amolador
em Lyon, colérico como outrora, e sempre a perguntar aos e s­
trangeiros quando é que as galinhas tinham dentes, e sperando
certamente, segundo a profecia da velh a, que nessa altura o
reintegrassem no seu reino.
Depois da sua retirada, Gargântua começou por recen sear o
seus homens e verificou que poucos tinham perecido na bata­
lha, a saber: alguns homens a pé do bando do capitão Tolmere4,
e Ponócrates, que apanhara um tiro de arcabuz no gibão. De­
pois mandou-os refazerem-se nas respectivas formações, e or­
denou aos tesoureiros que pagassem o repasto e que não se fi­
zesse nenhum ultraje na cidade, visto que era sua, e que depois
do repasto comparecessem na praça diante do castelo, onde se­
riam pagos por seis meses, o que foi feito. D epois mandou reu­
nir diante dele n a dita praça todos os que restavam da parte de
Picrocole, aos quais, na presença dos seus príncipes e capitães,
falou como se segue:

192
GARGÂNJUA

NOTAS
1 Cf. cap. XLVII.
2 A estupidez de Picrocole leva-o a privar-se do único meio de fuga; chole
(bílis, cólera) evoca o nome simbólico do adversário de Gargãntua.
3 Aldeia no Indre, perto de Azay-le-Rideau.
4 O audacioso (do grego 'tOÂ!lTIPoÇ).

13 193
CAP ÍTULO L

O DISCURSO QUE GARGÂNTUA


FEZ AOS VENCIDOS

«Nossos pais, avós e antepassados de que há memona ti­


nham tal sentido e natureza que, das batalhas que travaram ,
exigiram como sinal comemorativo dos triunfos e vitóri as
mais troféus e monumentos nos corações dos vencidos perdoan­
do-lhes do que nas terras por eles conquistadas com a arquitec­
tura, porque estimavam mais a viva lembrança dos humano s
adquirida por liberalidade d o que a muda in scrição d o s arcos,
colunas e pirâmides, sujeita às calamidades do ar e por todos
invejadaI .
>>Podeis lembrar-vos da mansidão que tiveram com o s bre­
tões no dia de Saint Aubin du Cormier2 e na demolição de Par­
thenay3. Ouvistes e, ouvindo, admirais o bom tratamento que
deram aos bárbaros de Spagnola4, que tinham pilhado, des­
povoado e saqueado os fins marítimos de Olone e Thalmon­
doys5.
»Todo céu se encheu dos louvores e congratulações que vós
mesmos e os vossos pais fizeram quando Alfarbal6, rei de C a­
narre, não saciado com a sua fortuna, invadiu furiosamente o
país de Onys7, praticando a pirataria em todas as ilhas Armó­
ricas e regiões confins. Foi capturado e vencido em justa bata­
lha naval, por meu pai que Deus o guarde e proteja. Mas o quê?
Quando os outros reis e imperadores, que se dizem católicos, o
teriam tratado miseravelmente, aprisionando-o duramente e
pedindo um resgate excessivos, ele tratou-o com cortesia e ami­
zade, recebeu-o no seu palácio, e, por incrível bondade, man­
dou-o embora com um salvo-conduto, coberto de dádivas, de
graças e de todos os serviços da amizade. E que foi feito dele?
Ao voltar às suas terras, mandou reunir todos os príncipes e
estados do seu reino, expôs-lhes a humanidade que em n ó s

1 94
GARGÂNIUA

conhecera, e pediu-lhes que deliberassem sobre isso de modo


que servisse de exemplo ao mundo, como já em nós de gra­
ciosidade honesta, também neles de honestidade graciosa.
Então decretaram por consenso unânime que oféreceriam in­
teiramente as suas terras, domínios e reino, para que fizésse­
mos deles o que quiséssemos. Alfarbal veio em pessoa com
nove mil e trinta e oito grandes navios de transporte, trazendo
não só os tesouros da sua casa e linhagem real, mas de quase
todo o país, pois, enquanto embarcava para velej ar ao vento oés­
-nordeste, todos atiravam para dentro do navio ouro, prata,
anéis, jóias e speciarias, drogas e essências aromáticas, papa­
gaios, pelicanos, macacas, civetas, doninhas e porcos-espi­
nhos. Não havia filho de boa mãe que não atirasse o que tinha
de singular. Quando chegou, quis beij ar os pés do meu dito pai,
que o considerou indigno e não o tolerou, antes o abraçando
amigavelmente. Ofereceu-lhe os seus presentes, que não fo­
ram aceites por serem exagerados. Então ofereceu-se como es­
cravo e servo voluntário, a ele e à sua posteridade, o que não foi
aceite por não parecer justo. Cedeu por decreto dos estados as
suas terras e o seu reino, oferecendo a tran sacção e o tran s­
porte, assinada, selada e ratificada por todos quantos deviam
fazê-lo, e foi totalmente recusado, e os contratos lançados ao
fogo. Finalmente o meu pai pôs-se a lamentar-se e a chorar
copiosamente, considerando a boa vontade e singeleza dos ca­
narrianos, e, com belas palavras e sentenças adequadas,
diminuía a boa acção que praticara com eles, dizendo que não
lhes fizera nenhum bem que se visse, e que, se alguma hones­
tidade lhes mostrara, era porque tinha de fazê-lo9. Mas Arfabal
ainda mais a engrandecia. Qual foi o resultado? Quando pode­
ríamos exigir tiranicamente pelo seu resgate vinte vezes cem
mil escudos e guardar como reféns os seus filhos mais velhosio,
foram eles que se constituíram tributários perpétuos e obriga­
dos a pagar-nos por ano dois milhões em ouro de vinte e quatro
quilatesn . No primeiro ano pagaram-nos essa quantia, no
segundo pagaram de boa vontade xxiij cem mil escudos, no
terceiro xxvj cem mil, no quarto três milhões, e de tal modo vão
aumentando de livre vontade que serem9s obrigados a impedi­
los de trazer-nos mais alguma coisa. E esta a natureza da
gratidão, pois o tempo, que tudo deteriora e diminui, aumenta e
engrandece os benefícios, porque uma boa acção liberalmente
praticada com um homem de razão cresce continuamente por
nobres pensamentos e pela recordação.
>>Assim, não querendo degenerar da bondade hereditária

195
RABELAIS

de meus pais, absolvo-vos e liberto-vos, tornando-vos livres


como dantes. Além disso, sereis pagos à saída das portas por
três meses, a fim de poderdes retirar-vos para as vossas casas e
famílias, e sereis conduzidos com segurança por seiscentos ho­
mens de armas e oito mil homens a pé, sob as ordens do meu
escudeiro Alexandre, de modo que não sejais ultraj ados pelos
camponeses. Que Deus esteja convosco!
»Lamento de todo o coração que Picrocole não esteja aqui,
pois mostrar-lhe-ia que esta guerra foi travada contra a minha
vontade, sem esperanças de engrandecer nem os meus bens
nem o meu nome. Mas, já que se perdeu e que ninguém sabe
onde pára, quero que o seu reino fique inteiramente p ara o seu
filho, o qual, por ainda não ter idade (ainda não completou os
cinco anos), será governado e instruído pelos antigos príncipe s
e sábios d o reino. E como um reino assim tão desolado facil­
mente seria arruinado se não se refreasse a cobiça e a avareza
dos seus administradores, ordeno e quero que Ponócrates fique
acima de todos os seus governadores como preceptor-chefe com
necessária autoridade, e seja assíduo j unto da criança até que
a considerem idónea para poder governar-se a si própria e
reinar.
>>Considero que a facilidade apressada e dissoluta em per­
doar aos malfeitores lhes permite voltarem a fazer o mal mais
levianamente, por causa dessa perniciosa confiança de per­
dão.
>>Con sidero que Moisés, o homem mais manso que houve no
seu tempo à face da Terra, castigava asperamente os amotina­
dos e sediciosos do povo de Israel.
>>Considero que Júlio César, imperador tão bondoso que Cí­
cero diz que era tão soberano e tão virtuoso que estava sempre
pronto para salvar e perdoar a todos e a cada um; no entanto,
em certos casos, puniu severamente os autores da rebelião.
>>Por estes exemplos quero que me tragam antes de partir:
primeiro, esse rico Marquet, foi a origem e causa primeira des­
ta guerra por causa da sua vã petulância; segundo, os seus com­
panheiros biscoiteiras, que não corrigiram a sua insensatez n a
devida altura ; e finalmente todos os conselheiros, capitães, ofi­
ciais e criados de Picrocole, os quais o teriam incitado ou acon­
selhando a sair dos seus limites para assim nos inquietar.>>

196
GARGÂNTUA

NOTAS
1 A oposição entre os arcos do triunfo, os templos e altares sujeitos à des­
truição, e a glória imortal foi inspirada no Paneglrico de Trajano, LV, de Plí­
nio o Jovem.
2 Em Saint-Aubin-du-Cormier, La Tremoille, por conta do rei de Fran­
ça, esmagou o exército do duque da Bretanha, Francisco II, e capturou o duque
de Orléans, futuro Luís XII (1 488) . Esta memorável batalha já foi referida no
cap. XXXI , na arenga de Gallet a Picrocole.
3 Alusão à tomada de Parthenay (1 487) por Carlos VIII ; o rei poupou a
guarnição e contentou-se com o desmantelamento das fortificações. Neste ca­
pítulo, Grandgousier já não representa Antoine Rabelais mas Carlos VIII,
sendo Gargântua assimilado a Luís XII. Os gigantes de Rabelais possuem
uma grande disponibilidade simbólica.
4 <<Espanhola», nome dado por Cristóvão Colombo ao Haiti. É claro que
os Haitianos nunca atacaram a Vendeia, a menos que <<OS bárbaros de Spagno­
la» sejam simplesmente os espanhóis, que não se privaram de atacar as cos­
tas francesas.
5 As fronteiras marítimas de Sables-d'Olonne e de Talmont (na Ven-
deia). .
6 Nome imaginário formado segundo o modelo dos heróis antigos Aní- ·

bal, Hasdníbal, etc. O reino dos canarres (as Canárias?) j á apareceu várias
vezes no Pantagruel (caps. XI, XXIII, XXN) e no Gargântua (caps. XIII, XXXI) .
7 O Aunis.
8 Possível alusão ao cativeiro de Francisco I após a derrota de Pavia
(1 525). Carlos V usava o título de rei católico.
9 A generosidade recíproca de Gargântua e de Alfarbal encerra talvez
uma lição de humanidade aos espanhóis, que se mostravam impiedosos com
os indígenas da América (cf. também Montaigne, Des coches, III . vi). Em toda
esta passagem, a geografia real, extraída de Grynaeus, Novus orbis regia­
num ac insularum veteribus incognitarum, Basileia, 1 532, e a fantasia con­
fundem-se. Alex. Cioranescu (H. e R., tomo XXV, 1 963) vê neste capítulo o <<em­
brião do tema do 'Bom selvagem'.»
10 Foi precisamente o que fez Carlos V com Francisco I. Os príncipes
franceses, prisioneiros em Madrid, responderam pelo pai após a sua liberta­
ção.
11 O quilate representava a 24.• parte do denário, que servia para avaliar

a pureza do ouro; 24 quilates equivale a ouro puro.

1 97
CAPÍTULO LI

COMO OS VENCEDORES GARGANTUÍSTAS


FORAM RECOMPENSADOS DEPOIS DA BATALHA

Uma vez terminado o discurso de Grandgousier, trouxe­


ram-lhe os sediciosos que pedira, excepto Spadassin , Merdail­
le e Menuaill , que tinham fugido seis horas antes da batalha,
um para o desfiladeiro de Laignel2, duma assentada, o outro pa­
ra o vale de Vyre, o outro para Logroinea, sem olharem para
trás e sem tomarem fôlego no caminho, e dois biscoiteiros que
pereceram em combate. Outro mal não lhes fez Gargântua,
além de mandá-los carregar as prensas na tipografia que ti­
nha instalado recentemente4.
Depois mandou inumar honrosamente os mortos no vale
das Noirettes e no campo de Bruslevieille5. E aos feridos man­
dou tratá-los no seu grande nosocómio6. Depois verificou os pre­
juízos causados na cidade e nos habitantes, e mandou que os
reembolsassem pelos seus danos segundo a sua confissão e j u­
ramento, e mandou construir um forte castelo, onde colocou tro­
pas e sentinelas para de futuro melhor se defenderem dos mo­
tins repentinos.
Ao partir, agradeceu airosamente a todos os soldados das
suas legiões que tinham participado naquela derrota, e man­
dou-os invernar nos seus postos e guarnições, excepto algun s
da legião decumana7 a quem vira fazer proezas durante o com­
bate, e os capitões dos bandos, que levou consigo para junto do
seu pai Grandgousier.
Ao vê-los chegar, tal foi a felicidade do bom homem que
nem se pode descrever. Ofereceu-lhes então um festim, o mais
magnífico, abundante e delicioso que jamais se viu desde o
tempo do rei Assueros. Ao saírem da mesa, distribuiu a cada
um deles a guarnição do seu aparador, que pesava dezoito cem
mil e catorze besantes de ouro em grandes vasos antigos, gran-

198
GARGÂNJUA

des potes, grandes tigelas, grandes taças, tacinhas, potezinhos,


candelabros, jarras, caixas e outras peças, todas de ouro maci­
ço, além das pedrarias, do e smalte e do trabalho, por todos ava­
liado acima do preço da m�téria. Depois mandou contar dos
seus cofres a cada um doze centos mil escudos em dinheiro, e
ain da lhe s deu para sempre (excepto se morressem sem herdei­
ros) os seus castelos e terras vizinhas que mai s lhe conviesse:
a Ponócrates deu La Roche Clermaud, a Ginasta, Le Couldray,
a Eudémon Montpensier, Le Rivau9, a Tolmere, a Itíbolel O Mont­
soreau, a Acamasl l , Cande1 2, Varennes a Quironacta1 3, Gravot
a Sebasta, Quinquenays a Alexandre, Ligré a Sófrone, e as
suas outras praças assim por diante.

NOTAS
1 Conselheiros de Picrocole (cf. cap. XXXI II ).
2 O Col d'Agnello (Alpes Marítimos) por onde passara o exército de Fran·
cisco I, vitorioso em Marignan (1 515).
3 l<lgrofio, na Navarra espanhola.
4 Os humanistas nunca deixam de celebrar a invenção da imprensa (cf.
Pantagruel, cap. VIII).
5 Estes lugares não foram identificados.
6 Hospital; é a única vez que Rabelais emprega a palavra latina nosoco·
mium.
7 A décima legião: esta locução, tirada do exército romano, tem o sentido
de tropas de escol.
B Segundo a Bíblia (Livro de Ester), Assuero deu um festim que durou 1 80
dias.
9 Castelo perto de Richelieu. O capitão Tolmere (o Audacioso) foi citado
no começo do cap. XLIX.
I o O Directo (que vai em linha recta).
11 O Infatigável.
1 2 Todas estas localidades da região de Chinon foram citadas no começo
do cap. XLVII.
1 3 Quironacta: o que trabalha com as mãos; Sebasta: o Venerável; Sófra­
ne: o Temperante. Todos estes nomes de capitães são tirados do grego . O sim­
bolismo fictício contrasta com a realidade dos nomes das cidades.

1 99
CAPÍTULO LII

COMO GARGÂNTUA MANDOU CONSTRUIR


PARA O FRADE A ABADIA DE THELEMEl

Só faltava presentear o frade, que Gargântua queria fazer


abade de Seuillé, mas que recusou. Quis dar-lhe a abadia de
Bourgueil ou de Saint Florent2, a qual lhe conviria melhor, ou
as duas se lhe agradassem ; mas o frade respondeu-lhe peremp­
toriamente que não queria cargo nem governo de frade :
«Como» , dizia, «poderia eu governar os outros se não sabe­
ria governar-me a mim? Se vos parece que vos fiz e que posso
fazer-vos no futuro algum serviço agradável, deixai-me fun­
dar uma abadia segundo os meus planos.»
O pedido agradou a Gargântua, que lhe ofereceu toda a re­
gião de Theleme até ao rio Loire, a duas léguas da grande flo­
resta do Port Huaulta, e o frade pediu a Gargântua que instituís­
se o seu convento ao contrário de todos os outros.
«Primeiro>> , diz Gargântua, «não se deverão construir mu­
ralhas em volta, pois todas as outras abadias estão orgulhosa­
mente muradas.>>
«Talvez,,, diz o frade, «e não é sem motivo : onde h á muro
pela frente e por trás há murmúrio, inveja e conspiração mú­
tua.>>
Além disso, como em certos conventos deste mundo é costu­
me, se alguma mulher lá entra (quer dizer as recatadas e pudi­
cas), limpar-se o lugar por onde passaram, ordenou-se que, se
por acaso ali entrasse algum religioso ou religiosa, se limpas­
sem cuidadosamente todos os lugares por onde tivessem pas­
sado. E porque nos conventos deste mundo tudo é compassado,
limitado e regido pelas horas, decretou-se que não houvesse ali
nem relógio nem quadrante solar4, mas que segundo as oca­
siões e oportunidades fossem todas as obras dispensadas; pois
(dizia Gargântua) a mais verdadeira perda de tempo que conhe-

200
GARGÂNFUA

cia era contar as horas - que bem vinha daí? -, e a maior lou­
cura do mundo era governar-se pelo som de um sino, e não
pela ordem do bom senso e entendimento. Item, porque nesse
tempo só entravam no convento mulheres que fossem zarolhas,
coxas, corcundas, feias, tolos e empata-famílias . ..
<<A propósitO>>, diz o frade, <<uma mulher que não é nem bela
nem boa, para que serve?5,,
<<Para meter no convento>>, diz Gargântua.
<<Talvez>>, diz o frade, <<e para fazer camisas.>>
Ordenou-se que não se recebessem ali senão as belas, bém
feitas e de boa natureza, e os belos, bem feitos e de boa natureza.
Item, porque nos conventos das mulheres os homens só
entravam de fugida e clandestinamente, decretou-se que não
haveria lá mulheres quando não estivessem lá homens, nem
homens quando não e"tivessem mulheres.
Item, porque tanto homens como mulheres, uma vez entra­
dos no convento e após um ano de noviciados, eram obrigados a
permanecer ali perpetuamente a vida inteira, e stabeleceu-se
que tanto homen s como mulheres que fossem recebidos sai­
riam quando quisessem, livremente e inteiramente .
Item, porque ordinariamente os religiosos faziam três
votos, a saber: de castidade, pobreza e obediência, ficou determi­
nado que ali se pode honradamente ser casado, e que cada qual
fosse rico e vivesse em liberdade.
Quanto à idade legítima, as mulheres eram recebidas dos
dez aos quinze anos, e os homens dos doze aos dezoito.

NOTAS
1 Trata-se sem dúvida de um nome simbólico: <<Abadia da Boa Vonta­
de» (?), do grego 'tETI)lll , vontade, ou então uma evocação da deusa Thelemia.
2 Abadia beneditina perto de Saumur; como a de Bourgeuil, era muito
rica.
3 Rabelais situa a abadia de Theleme entre o Indre, o velho Cher e o
I..<J ire .
4 O desenvolvimento dos relógios (século XIII-XIV) está ligado às regras
monásticas: graças aos relógios, a repartição dos ofícios era metódica e regu­
lar. Daí a aversão de Gargântua por essa mecânica de medir o tempo.
5 <<A quoi vaut-elle?, Mas telle c toille pronunciavam-se da mesma ma­
neira, e daí o trocadilho de Frei Jean «para fazer camisas».
6 É o contrário das regras conventuais. A abadia de Theleme segue as
leis naturais corrigidas pelos costumes da vida da corte. O nascimento e a
educação são suficientes para fazer respeitar uma disciplina voluntária, ao
passo que (segundo Rabclais) os noviços e as noviças só pensavam em liber­
tar-se das obrigações da sua ordem.

201
CAPÍTULO Lili

COMO FOI CONSTRUÍDA E DOTADA


A ABADIA DOS THELEMITAS

Para a construção e o abastecimento da abadia, Gargântua


mandou entregar em dinheiro vinte e setecentos mil oitecento s
e trinta e u m carneiros d e farta lãl , e por cada ano, até que tudo
estivesse concluído, concedeu, da receita da Dive2, dezasseis
centos e sessenta e nove mil escudos do sol e outros tantos do se­
te-estrelo3. Para a fundação e manutenção da abadia deu para
sempre vinte e três centos e sessenta e nove mil quinhentos e ca­
torze nobres da rosa4 de foro, garantidos, amortizados e pagá­
veis por ano à porta da abadia, e disso lhes passou boas letras.
O edifício teve a forma hexagonal5 de tal maneira que em
cada ângulo havia uma grande torre redonda de sessenta pas­
sos de di âmetro, e eram todas iguais na largura e no feitio. O
rio Loire corria_ do lado norte. Ao pé dele assentava uma das tor­
res chamada Artice6, voltada para oriente havia outra chama­
da Calear7, e a outra chamava-se AnatóliaB, a outra Mesembri­
na9, a outra Hésperial o, e a última Crieral l . Entre cada torre h ã­
via um espaço de trezentos e doze passos12. Tudo isso com seis
andares, incluindo as caves. O segundo1 3 era abobadado em for­
ma de asa de cesto; o resto estava revestido de gesso da Flan­
dres em forma de candeeiro, e os fundos do telhado cobertos de
ardósia fina, com revestimento de chumbo enfeitado com fi­
guras e animais bem escolhidos e dourados, com as goteiras
que avançavam para fora da muralha, entre os transeptos pin­
tados em diagonal a ouro e azul, até ao solo, onde terminavam
em grandes algerozes que conduziam ao rio por baixo da con s­
trução.
Este edifício era cem vezes mais magnífico que Bonivet,
Chambourg e Chantilly1 4, pois havia nele nove mil trezentos e
trinta e dois quartos, todos guarnecidos de alcova, gabinete,

202
GARGÂNTUA

guarda-roupa, capela, e dando para um grande salão15. Entre


cada torre, no meio do referido edíficio, havia uma escada de
caracol em cujo corpo os degraus eram parte de pórfiro, parte de
pedra numídica, parte de mármore serpentino16, com um com­
primento de xxij pés, e uma espessura de três dedos, sendo em
número de doze entre cada patamar. Em cada patamar havia
dois bonitos arcos antigos por onde entrava a luz do dia, e dan­
do acesso a um gabinete gradeado da largura da dita e scada. E
esta subia até ao telhado, onde terminava num pavilhão1 7. Por
esta escada entrava-se dos dois lados numa grande sala, e das
salas passava-se ao,s quartos.
Entre a torre Artice e a Criera ficavam as belas e grandes
bibliotecas em grego, latim, h ebreu, francês, toscano e e spa­
nhol, repartidas pelos diversos andares segundo estas línguas.
No meio ficava uma maravilhosa escada de caracol cuja
entrada se situava fora do edifício num arco de seis toesas de
largura. E tal era a sua simetria e capacidade que seis homens
de armas, de lança sobre a coxa, podiam subir j untos ao alto do
edifíciols.
Entre a torre Anatólia e a Mesembrina ficavam as bonitas
e grande galerias, todas pintadas com as antigas proezas, histó­
rias e descrições da terra19. No meio havia uma subida e a dita
porta do lado do rio, na qual estava escrito em grandes letras
antigas20 o que se segue:

NOTAS
1 Moeda de ouro que valia cerca de 1 5 francos-<>uro; cf. cap. VIII (fim), no­
ta 30.
2 A Dive Mirebalaise, rio próximo de La Devinicre, impróprio para a na­
vegação e a fortiori para se obter uma receita de 1 669 mil escudos; o «escudo do
sol>>, cunhado por Luís XI, tinha um pequeno sol por cima da coroa.
3 Moeda imaginária: o sete-estrelo designava a constelação das Plêia­
des.
4 Moeda de ouro inglesa com a rosa de Iorque:
5 A forma hexagonal com torres nos ângulos indica uma arquitectura de
transição entre o castelo da Idade Média e o palácio à italiana. A torre, como o
pombal, é um sinal de casa nobre; a casa de Montaigne tinha uma torre em ca­
da canto do recinto; ainda subsiste a da biblioteca.
6 Setentrional (do grego apK"tt l(T] Ç).
7 Belo ar (do grego KCXÃOÇ, belo, e aTlP, ar).
8 Oriental (do grego ava-roÀT), oriente).
9 Meridional (do grego flWTlfll3 pmT) ).
10 Ocidental (do grego amua).
1 1 A glacial (do grego KpUE:pa).

203
RABELAJS

1 2 Cerca de 260 metros.


1 3 O rés-do-chão; a asa de cesto é a forma da abóbada usada no tempo de
Luís XII.
1 4 Os castelos mais célebres da época: Bonnivet, perto de Poitiers, fora
construído entre 1 51 4 e 1 525, para o almirante de Bonnivet, morto em Pavia; ti­
nha torres nos cantos e foi demolido em 1 788; Chambord foi começado em 1 524
e terminado em 1 557; Chantilly, acabado de concluir em 1 534, foi quase intei­
ramente arrasado no século XVII e reconstruído por Mansart, antes de ser de­
molido na época da Revolução.
1 5 Os 9332 aposentos fazem parte do gigantismo do romance. Note-se a
preocupação do conforto e a presença de um oratório em cada aposento, o que
dispensa a construção de uma igrej a abacial, e incita à devoção particular.
1 6 O mármore da Numfdia é vermelho, e o mármore serpentino mancha­
do de vermelho e branco sobre fundo verde.
1 7 Os patamares prolongam-se em sacadas ou no interior dum torreão
que dominava o telhado e terminava num pavilhão.
1 8 A escada em caracol de Theleme ainda é mais larga do que a de Am­
boise, por onde podem passar dois cavaleiros.
1 9 Estas galerias ornadas e pinturas de carácter histórico são frequentes
no Renascimento: em Ancy-le-Franc (Borgonha) decorado por alunos de Pri­
maticcio ainda se podem ver cenas inspiradas na lllada e na Eneida mas cu­
jos heróis são personagens do tempo.
20 Em maiúsculas romanas.

204
CAP ÍTULO LIV

INSCRIÇÃO GRAVADA NA PORTA PRINCIPAL


DE THELEME

Aqui não entreisl hipócritas, beatos,


Velhos macacos2, falsos3, inchados4,
Pescoços torcidos, pacóvios, ainda mais que os godos,
Nem ostrogodos5 precursores dos macacos
Ciliciados6, fingidos7, beatos de pantufass,
Pedintes enroupadoss, debochados, achincalhados,
Injuriados, inchados, fazedores de intrigas;
Retirai-vos e ide vender os vossos abusos para longe.

Vossos abusos maldosos


Encher-me-iam os campos
De maldade;
E por falsidade
Perturbariam os meus cantos
Os vossos abusos maldosos.

Aqui não entreisto, come-fenosl l práticos,


Escriturários, [. .. ] comedores do populart2,
Oficiais1 3, escribas e fariseus,
Juízes antigos, que aos bons paroquianos
Assim como aos cães meteis no capuláriot4;
O vosso salário está no patibulário15
Ide para lá berrar que aqui não se cometem excessos
A que nos vossos tribunais se deveriam mover processos

Processos e debates
Pouco folguedo fazem aqui,
Onde se vem folgar.

205
RABEIAIS

Para vós, para debater


Estejam em cabazes cheios
Processos e debatesi6.

Aqui não entreisl 7, vós, usurários forretasl B ,


Comilões, lambõesl9 que sempre juntais,
Engana-tolos2o, comedores de nevoeiro21 ,
Mil macacos não vos chegariam.
Não vos fartais de encher os cestos
E juntais, poltrões com cara de sovinas
Que a lepra vos desfigure.

Face não humana


De tal gente, que vá
Escanhoar-se longe: aqui
Não ficaria bem;
Esvaziai este domínio,
Face não humana.

Aqui não entreis22, vós mastins rabugentos23,


Nem à noite nem de manhã, velhos chorosos e ciumentos;
Nem vós, sediciosos rebeldes;
Larvas, duendes, de Dangier paladinos24,
Gregos ou latinos, mais temíveis que lobos;
Nem vós tinhosos, bexigosos até aos ossos;
Levai os vossos lobos25 para longe a pastar felizes,
Cobertos de crostas, cheios de desonra.

Honra, louvor, divertimento,


Aqui se deduzem
Por alegres acordos;
Todos são sadios de corpo;
E por isso lhes digo
Honra, louvor, divertimento.

Aqui entrai26, vós, e sede bem-vindos


E chegados, todos os nobres cavaleiros!
Aqui é o lugar onde os que voltaram,
São bem recebidos; a fim de que mantidos
Grandes e miúdos, todos sejais aos milhares.
Meus familiares sereis e particulares:
Pimpões, folgazões, alegres, galhofeiros, mimosos,
Em geral todos gentis companheiros.

206
GARGÂNTUA

Companheiros gentis,
Serenos e subtis,
SE)m vileza,
De civilidade
São aqui os instrumentos,
Companheiros gentis.

Aqui entrai, vós, que o santo Evangelho


Com ágil sentido anunciais27, embora vos acusem :
Aqui tereis refúgio e bastilha
Contra o erro hostil, que tanto procura
Com seu falso estilo envenenar o mundo:
Entrai, que aqui se funde a fé profunda,
E depois que se confundam pela voz e por escrito28
Os inimigos da santa palavra!

Que a palavra santa


Não se extinga
Neste lugar muito santo;
Que cada um se imbua,
Cada uma esteja imbuída
Da palavra santa.

Aqui entrai, vós, damas de alta estirpe!


Com franca coragem entrai felizes,
Flores de beleza com celeste rosto,
De busto direito29, e atitude recatada e sensata.
Nesta passagem está a morada da honra3o.
O alto senhor, que do lugar foi doador
E benfeitor, para vós o ordenou,
E deu muito ouro para pagar as despesas.

Ouro dado por dádiva


Ordena perdão
A quem o dá,
E muito bem recompensa
Todo o mortal honesto
Ouro dado por dádiva31 .

207
RABEl.AIS

NOTAS

1 Esta <<inscnçao» lembra o género poético chamado <<cri>> usado nos


Mysteres e Soties, que convida certas categorias de espectadores e exclui ou­
tras. Como no <<Prólogo» e na <<Conclusão» do Pantagruel, Rabelais insurge­
-se contra toda a espécie de hipócritas.
2 <<Matagotz», variedade de macacos e, por conseguinte, <<que fazem ca­
retas», hipócritas.
3 <<Marmiteux», hipócritas (empregado neste sentido no Roman de la Ro-
se).
4 <<Boursouflés»: os frades são bastante gordos ...
5 Isto é, os povos selvagens.
6 <<Haires», que usam a haire ou camisa de crina destinada a mortifi­
·
car a carne; cf. Tartu{o, III , II: <<Laurent, serrez ma haire avec ma discipline.»
7 Do bearnês cagot, leproso.
8 Que calçam sapatos altos para parecerem maiores.
9 Para marcar a oposição entre a pobreza simulada e o luxo real.
10 Desta vez a proibição dirige-se aos magistrados.
11 <<Mâchefoins», quer dizer insaciáveis.
12 La Fontaine há-de lembrar da expressão: ,<A_u lieu qu'on nous mange,
on nous gruge. I On nous mine par des longueurs ... , (Les Frelons et les Mou­
ches à miel, I, 2.)
1 3 Juízes eclesiásticos.
1 4 Possível sentido: presos à corrente ou no canil (?).
1 5 Cadafalso.
1 6 Marot, amigo de Rabelais, também instaura o vrocesso da justiça na
sua Epltre au Roi e no En{er ... (1 539): «Lá sans argent pauvreté n'a raison.
Là se détruit mainte bonne maison. I Là biens, sans cause, en causes dépen­
dent. I Là les causeurs les causes s'entrevendent ... ,
1 7 É a vez dos usurários e avarentos.
1 8 «Chiches».
1 9 «Briffaulx» e «les chars».
20 «Grippeminaulx», literalmente: «Attrape-mineb>. Rabelais dera ini­
cialmente este nome a um capitão de Picrocole. Grippeminaud aparecerá co­
mo arquiduque dos Chatsfourrés no livro v, «L'Isle sonnante», cap. xr; cf. La
Fontaine, livro vu, 1 6, «Le Chat, la Belette et !e petit Lápin»: «Grippeminaud,
le bon apôtre. . . ,
21 «Frimas»; cf. cap. XX (nota 20).
22 Última categoria de excluídos: os ciumentos e os bexigosos.
23 «Mâtins radoteurs»; os maridos ciumentos são tratados de cães de
caça.
24 No Roman de la Rose, Dangier representa o marido ciumento que man­
tém a jovem esposa prisioneira com a ajuda de guardas qualificados aqui de
larvas ({ar{adets) e duendes (lutins).
25 Úlceras; jogo de palavras sobre loups, designando ao mesmo tempo o
animal e a doença, com a aproximação loups-gualous (lobos tinhos), que evo­
ca loups--garous (lobisomens).
26 É a chamada dos eleitos. Os cavaleiros, os partidários do Evangelho e
as damas· de alta estirpe.
27 Que anunciais activamente o Evangelho.
28 Serão estes eleitos os «bons evangélicoS» já referidos ou os luteranos?
É difícil distinguir nesta época os humanistas que continuaram católicos e re-

208
GARGÂNTUA

formi stas, alvo das suas críticas. Só em 1 536 Calvino publica a sua Instituição
Cristã.
2 9 Por oposição aos hipócritas, que andam curvados.
30 Título de um poema de Octavien de Saint-Gelais; a morada da honra
é a corte.
31 Este poema, composto de estrofes de oito decassílabos e de sextilhas de
cinco pés, está em conformidade com as regras dos grandes retóricos, por
exemplo Jean Bouchet, de quem Rabelais era amigo.

14
209
CAPÍTULO LV

COMO ERA A MANSÃO DOS THELEMITAS

No meio do pátio interior havia uma fonte magnífica de be­


lo alabastro; por cima as trê s Graças, com cornos da abundân­
cia, deitavam água pelas mamas, pela boca, pelos ouvidos, pe­
los olhos e por outras aberturas do corpol .
O interior do edíficio sobre o dito pátio estava assente em
grossos pilares de calcedónia e pórfiro com belas artes antigas,
e dentro deles havia belas galerias, compridas e amplas, ador­
nadas de pinturas, dentes de elefante e outras coisas admirá­
veis.
Os aloj amentos das damas iam da torre Ártice à porta Me­
sembrina. Os homen s ocupavam o resto. Diante dos ditos aloj a­
mentos das damas, entre as primeiras duas torres e no exte­
rior, havia, para elas se recrearem, os recintos destinados aos
torneios, o hipódromo, o teatro, os natatórios2, com os banhos mi­
ríficos de três patamares, bem guarnecidos de todos os enfeites
e de grande quantidade de água de mirra3.
Junto do rio ficava o belo jardim de recreio, e no meio dele o
belo labirinto4. Entre as outras duas torres ficam os jogos da
péla e da bola5. Do lado da torre Criera ficava o pomar, cheio de
todas as árvores de fruto, todas alinhadas em quincôncio. Ao
fundo era o grande parque, repleto de todos os animais selva­
gens.
Entre as terceiras torres ficavam os alvos para o arcabuz, o
arco e a arbaleta; as dependências eram fora da torre Hespé­
ria, e só tinham um andar; a estrebaria era depois das depen­
dências e a falcoaria diante delas, sendo governada por cria­
dos conhecedores da arte da altanaria, e anualmente fornecida
pelos canadianos, venezianos e sármatas6 dos melhores exem­
plares de aves: águias, gerifaltes, açores, falcões, gaviões, es­
merilhões e outros7, tão bem treinados e domesticados que, par-

210
GARGÂNTUA

tindo do castelo para voarem sobre os campos, apanhavam tudo


o que encontravam. O canil era um pouco mais longe, ri a direc­
ção do parque.
Todas as salas, quartos e gabinetes eram forrados a diver­
sos tecidos segundo as e stações do ano. O pavimento era coberto
de tecido verde. As camas eram cobertas de brocado. Em cada
alcova havia um espelho cristalino8, emoldurado de ouro fmo e
guarnecido de pérolas, e tão grande que podia representar a pes­
soa inteira. À saída das salas dos aposentos das damas esta­
vam os perfumistas e cabeleireiros, por cujas mãos passavam
os homens quando visitavam as damas. Estes abasteciam to­
das as manhãs os quartos das damas de água de rosas, água de
flores de laranjeira e água de anjo, e levavam para cada qual
um precioso defumador exalando todas as drogas aromáticas.

NOTAS
1 As fontes com motivos mitológicos caracterizam o Renascimento; cf. a
fonte dos Inocentes com três graças construída por Pierre Lescot e Jean Ckm.
jan, na esquina das ruas Saint-Denis «aux Fers» em 1 549.
2 Piscinas.
a. Águ a de m)rra ou água de anjo, perfume usado no século Xvt.
4 Pequeno bosque com alamedas entrelaçadas situado nos parques ou jar­
dins à italiana.
5 O arquitecto Philibcrt de l'Orme pensara construir nas dependências
do castelo de Saint-Germain uns pórticos, um anfiteatro, estufas e banhos. Ca­
da castelo tinha o seu jogo da pé la.
6 Os cretenses exportavam aves de caça por intermédio dos venezianos;
algumas vinham dos países do Norte (os sármatas) como a Pnissia, a Polónia
ou a Noruega.
7 Enumeração das principais aves de altanaria, da maior (a águia) à
mais pequena (o csmcrilhão, uma espécie de pequeno falcão). A águia servia
para a caça à raposa, o gerifalte é um falcão grande, o açor é uma ave de caça
ainda utilizada na Europa central e em Marrocos, os falcões e gaviões apanha­
vam coelhos, e o esmerilhão os pardais.
8 Espelho de cristal importado de Veneza, geralmente muito pequeno; os
de Theleme são de tamanho excepcional. O uso dos espelhos em França era
ainda recente (1 530 ).

211
CAP ÍTULO LVI

COMO SE VESTIAM OS RELIGIOSOS


E RELIGIOSAS DE THELEME

No começo da fundação, as damas vestiam-se segundd o


seu prazer e arbítrio. Depois foram reformadas de acordo com
a sua vontade do modo que se segue:
Usavam meias de escarlate ou de tecido fino três dedos
acima do joelho, debruadas de bordados e recortes. As jarretei­
ras eram da cor das pulseiras e tapavam os joelhos. Os sapatos,
escarpin s e pantufas de veludo carmesim ou violeta eram recor­
tados.
Por cima da camisa vestiam um bonito corpete de lã e seda.
Por cima deste vestiam uma saia tufada de tafetá branco, ver­
melho, castanho, cinzento, etc. , por cima da túnica de tafetá de
prata com bordados de ouro fino e torcidos feitos com a agulha,
ou, segundo a sua vontade e de acordo com a disposição do ar,
de cetim, damasco, veludo alaranjado, castanho, verde, acin­
zentado, azul, amarelo-claro, carmesim, branco, ou de tecido
bordado a ouro ou prata, de canotilh o, de brocado, conforme as
festas.
Segundo as estações, os vestidos eram bordados a ouro e pra­
ta, de cetim vermelho coberto de canotilho de ouro, de tafetá
branco, azul, preto, castanho, de sarja de seda, de seda e lã, de
veludo, de fio de prata, de fio de ouro, de veludo ou cetim borda­
do a ouro segundo diversos modelos.
Nalguns dias de Verão trocavam os vestidos por casacos
curtos dos mesmos tecidos ou por casacos sem mangas à mou­
risca, de veludo roxo bordado a ouro sobre canotilho de prata, ou
com cordões de ouro guarnecidos de pequenas pérolas índicas
nas costuras. E sempre uma bonita pluma segundo as cores do
regalo e guarnecida de berloques. No Inverno, vestidos de tafe­
tá das mesmas cores, forrados de lobo cerval, gineta preta, mar­
ta da Calábria, zibelina e outras peles preciosas.

212
GARGÂNTUA

Os rosários, anéis, correntes e colares eram de finas pedra­


rias, carbúnculos, rubis, diamantes, safiras, e smeraldas, tur­
quesas, granadas, ágatas, berilos, pérolas e magníficas
uniões.
O toucado era segundo o tempo ; no Inverno à moda france­
sa! ; na Primavera à espanhola; no Verão à toscana, excepto
nos dias festivos e aos domingos, em que se usavam toucados
franceses, por serem mais honrosos e por estarem mais de acor­
do com a pudicícia feminina.
Os homens vestiam-se à sua moda: meias de estamenha ou
de sarj a drapeada de escarlate, de tecido fino, branco ou preto,
com dobra de veludo destas cores ou muito próximas, bordado e
recortado segundo a sua invenção ; o gibão de brocado de ouro,
de prata, de veludo, cetim, damasco, tafetá, das mesmas cores,
recortados, bordados e confeccionados com perfeição ; os cor­
dões, de seda das mesmas cores ; os agrafos, de ouro bem esmal­
tados; o saio e a samarra de brocado de ouro ou prata, ou de velu­
do debruado a gosto ; os vestidos tão preciosos como os das da­
mas; os cintos de seda, das cores do gibão ; cada um com sua be­
la espada de punho dourado, bainha de veludo da cor das
meias, e a ponta de ouro lavrado ; o punhal a mesma coisa; o
chapéu de veludo preto, guarnecido de contas e botões de ouro ; a
pluma branca com palhetas donde pendiam berloques ornados
de belos rubis, esmeraldas, etc.
Mas havia tal simpatia entre os homen s e as mulheres que
cada dia se vestiam de igual e, para não falharem, havia certos
gentis-homen s en carregados de lhes dizer todas as manhãs os
vestidos que as damas queriam usar nesse dia, pois tudo se fa­
zia segundo o arbítrio das damas.
Não penseis que elas perdiam tempo com trajos tão próprios
e toucados tão ricos, pois o s encarregados do guarda-roupa ti­
nham as vestes tão prontas todas as manhãs, e as camareiras
estavam tão bem ensinadas que num momento ficavam pron­
tas e vestidas dos pés à cabeça. E para melhor se confeccio­
narem os toucados, havia em volta do bosque de Theleme um
edifício de meia légua de comprimento, claro e bem guarne­
cido, onde moravam os ourives, lapidários, bordadores, al­
faiates, tirador de ouro, fabricantes de veludo, tapeceiros, e ali
trabalhavam cada um no seu ofício, e tudo para os ditos religio­
sos e religiosas. E quem lhes fornecia a matéria e os tecidos
era o senhor Nausicleto2, o qual todos os anos lhes mandava se­
te navios das ilhas de Perlas e Canibais3, carregados de lingo­
tes de ouro, seda crua, pérolas e pedrarias. Se algumas pérolas

213
RABEI.AIS

envelheciam e mudavam de brancura natural, renovavam­


-nas dando-as a comer a uns bonitos galos como se dá a purga
aos falcões.

NOTAS
I O toucado à francesa era um penteado coberto por um capuz a tapar bem
a cabeça; o espanhol era feito de véus e rendas; o toscano (ou italiano) deixava
os cabelos à mostra, e compunha-se de rolos e tranças ornadas de jóias e pe­
dras preciosas.
2 Epíteto homérico aplicado aos [caces na Odisseia: «célebre pelos seus
navios,>.
3 As Pequenas Antilhas. Quer se trate da América ou do Oriente, o exotis­
mo é sempre caracterizado pelos fabulosos tesouros.

214
CAPÍTULO LVII

COMO OS THELEMITAS REGIAM


A SUA MANErn.A DE VIVER

Toda a sua vida era regida não por leis, estatutos ou regras,
mas segundo a sua vontade e franco arbítrio. Levantavam-se
da cama quando queriam, bebiam, comiam, trabalhavam, dor­
miam quando tinham desej o disso; ninguém os acordava, nin­
guém os obrigava nem a beber, nem a comer, nem a fazer outra
coisa qualquer. Assim o estabelecera Gargântua. Na sua re­
gra só havia esta cláusula:

FAZE O QUISERES.

porque pessoas livres, bem nascidas, bem instruídas, conver­


sando com companhias honestas, têm por naturez um in stinto e
aguilhão que sempre as impele para factos virtuosos e ao retiro
do vício, e a isso chamavam eles honral . E quando por vil su­
jeição e coerção são abatidos e subjugados desviam a nobre
afeição, pela qual tendiam francamente para a virtude, para o
rompimento desse jugo de servidão; pois nós empreendemos
sempre as coisas proibidas e cobiçamos o que nos é negado2.
Por essa liberdade entraram em louvável emulação de fa­
zer tudo o que a um só viam agradar. Se algum ou alguma di­
ziam : «BebamoS>>, todos bebiam; se dizia: ,<Joguemos>>, todos jo­
gavam. Se era para caçar, as damas, montadas em belas éguas
com o seu altivo palafrém, levavam no punho mimosamente
enluvado um gavião, um falcão ou um esmerilhão, e o s ho­
mens outras aves.
·

E eram tão nobremente instruídos que não havia entre eles


um único ou uma única que não soubesse ler, escrever, cantar,
tocar instrumentos harmoniosos, falar cinco ou seis línguas, e
nelas compor tanto em verso como em prosa3. Jamais se viram

215
RABEl.AIS

cavaleiros tão valorosos, tão galantes, tão destros a pé e a cava­


lo, mais vigorosos, mais mexidos, mais hábeis em todas as ar­
mas do que os que ali estavam, jamais se viram damas tão as­
seadas, tão mimosas, menos aborrecidas4, mais doutas de
mãos, com a agulha, em todo o acto feminino honesto e livre do
que as que lá estavam.
Por essa razão, quando algum desta abadia, quer a pedido
dos seus pais quer por outras razões, queria sair, levava con­
sigo uma das damas, por quem tomara devoção, e casavam um
com o outro; e se tinham vivido em Theleme em devoção e ami­
zade, ainda melhor continuavam a viver no casamento : ama­
vam-se tanto no fim dos seus dias como no primeiro dia de núp­
cias.
Não quero deixar de vos descrever um enigma que foi en­
contrado nos alicerces da abadadia numa grande chapa de
bronze5. Era como se segue :

NOTAS
I Trata-se de uma moral aristocrática comparada à da prud'homerie dos
romances de cavalaria, e mais tarde à gloria dos heróis e heroínas de Corneil­
le. O ideal thelemita limita-se a um escol.
2 Este traço geral do carácter humano inspirou a Montaigne o título de
um ensaio: «Que o nosso desejo cresce com dificuldade>> (II, xv).
3 Este ideal de cultura será realizado na corte de Catarina de Médicis pe­
las suas damas de honor; Hélcne de Surgeres, a última inspiradora de Ron­
sard, conhecia várias línguas e dominava tanto o verso como a prosa.
4 <<Incurável doença>•, segundo Margarida de Navarra (Heptameron, pró­
logo).
5 Precisão destinada a dar um ar de antiguidade ao enigma, obra de Mel­
lin de Saint-Gelais, filho do retórico Octavien de Saint-Gelais, poeta da corte
e rival de Ronsard quando este se estreava. O enigma, exercício de virtuosis­
mo poético, era muito apreciado no século XVI. Segundo Thomas Sebillit CArt
poétique françoys, 1 548), é uma <<alegoria obscura», cujo tema é <<qualquer coi­
sa particular e singular que se possa descrever, como os dados, os olhos, a ve­
la, a bola e outras tais ... ». O enigma pouco difere do brasão, mas comporta, co­
mo neste caso, duas ou mais interpretações, umas relacionadas com a vida
corrente, outras simbolizando uma posição filosófica ou religiosa; cf. M. A.
Screch, «Bibliotheque d'Humanisme et Rennaissance>•, 1956.

216
CAPÍTULO LVIII

ENIGMA EM PROFECIA

Pobre humanos que e sperais a felicidade,


Levantai os vossos corações e ouvi os meus dizeresl .
Se é lícito crer firmemente
Que pelos corpos que estão no firmamento
Humano espírito de si possa chegar a
Pronunciar as coisas futuras2;
Ou se por divino poder se pode
Da sorte futura ter conhecimento ,
Enquanto se julga com discurso certo
Dos anos longínquos o destino e o curso,
Faço saber a quem quiser ouvir
Que este Inverno próximo, sem mais demora,
Ou mesmo antes, neste lugar onde estamos
Surgirá do repouso e contrariados com a e stada,
Que irão francamente , e à luz do dia,
Subornar gentes de todas as qualidades
Com diferendos e partidos.
E quem quiser acreditá-los e ouvi-los
(Por muito que deva acontecer e custar),
Semearão debates aparentes
Entre amigos e os parentes próximos;
O filho ousado não temerá o impropério
De levantar-se contra o seu próprio pai;
Até os grandes, de nobre lugar saídos,
Por seus súbditos se verão assaltados,
E o dever de honra e reverência
Perderá então toda a ordem e diferença,
Pois eles dirão que cada um por sua vez
Deve subir e depois voltar para trás3,
E nesse ponto terá tantas desavenças,

217
RABELAIS

Tantas discórdias, tantas idas e vindas,


Como nenhuma história, onde estão as grandes
[maravilhas,
Narrou comoções semelhantes.
Então se verá muito homem de valor
Pelo aguilhão da juventude e o calor
E por crer demais nesse ardente apetite,
Morrer em flor e viver pouco tempo.
E nenhum poderá largar essa obra,
Uma vez posto nela o coração,
Que não haja enchido com questiúnculas e debates
O céu de rumor e a terra de passos.
Então não terão menos autoridade
Homens sem fé que gente sem verdade;
Pois todos seguirão a crença e o estudo
Da ignorante e tola multidão,
De que o mais pesado será feito juiz4.
Ó prejudicial e penoso dilúvio5!
Dilúvio, digo, e com razão,
Pois este trabalho não perderá a sua estação
Nem dele se livrará a terra
Até que desta saiam vivamente
Súbitas águas em que os mais moderados6
Combatendo serão apanhados e encharcados.
E justamente, pois o seu coração, entregue
A esse combate, não terá perdoado
Nem mesmo aos rebanhos dos animais inocentes,
Que dos seus nervos e tripas desonestas7
Não seja feito, não aos deuses sacrificio,
Mas aos mortais ordinário serviço.
Ora agora vos deixo pensar
Como tudo se poderá dispensar
E que repouso em querela tão profunda
Terá o corpo da máquina redondaS!
Os mais felizes, que mais dela dependerem,
Menos de perdê-la e gastá-la se absterão,
E de muitas formas tentarão
Subjugá-la e fazê-la prisioneira
Em tal lugar que a pobre derrotada
Só poderá recorrer a quem a fez ;
E, para agravar o seu triste acidente,
O claro sol, antes de chegar ao Ocidente,
Deixará espalhar-se a escuridão sobre ela

218
GARGÂNTUA

Mais do que por eclipse ou noite natural,


Em que de repente perderá a liberdade
E do alto céu o favor e a claridade9,
Ou pelo menos ficará deserta.
Mas ela, antes desta ruína e perda,
Por muito tempo terá mostrado sensivelmente
Um violento e tão grande temor,
Que o Etna não foi tão agitado
Quando sobre um filho de Titã foi lançadolo;
E mais súbito não deve ser estimado
O movimento que fez Inarimél l
Quando Tifeu caiu com tanta força
Que precipitou os montes no mar.
Assim em poucas horas será reduzida
A triste estado, e tantas vezes mudada
Que mesmo os que a tiverem mantido
A deixarão ocupar aos que vierem.
Então estará próximo o tempo bom e propício
De pôr fim a este longo exercício:
Pois as grandes águas de que ouvis falar
A todos farão pensar na retirada;
E todavia, antes da partida,
Poder-se-á ver no ar abertamente
O áspero calor de grande chama acesa12
Para pôr fim às águas e à empresa.
Resta13, terminados este s acidentes,
Que os eleitosi 4 alegremente refeitos
De todos os bens e de maná celeste,
E ainda por honesta recompensa
Sejam enriquecidos; � os outros no fim
Sejem destituídos15. E a razão, a fim
De que, terminado este trabalho,
Cada qual tenha a sua sorte predestinadalB.
Tal foi o acordo. Oh, como é de reverenciar
Aquele que no fim puder perseverar!

Terminada a leitura deste documento, Gargântua suspirou


profundamente e disse aos assistentes:
«Não é de agora que as pessoas reduzidas à crença evangé­
lica1 7 são perseguidas; mas feliz aquele que não se escandali­
zar e que tender sempre para o alvo, para o brancol s que Deus,
através do seu amado Filho, nos fixou antecipadamente, sem
dele se distrair nem desviar pelas suas afeições carnais.>>

219
RABELAIS

Diz o frade:
<<Que pensais, n o vosso entendimento, que este enigma de­
signa e significa?>>
<<Como?>> , diz Gargântua. <<O curso e manutenção da verda­
de divina.>>
<<Por São Goderan!19,,, diz o frade. «Não é essa a minha ex­
plicação; o estilo é o de Merlin o profeta2o. Atribuí-lhe as alego­
rias e os mais graves sentidos que quiserdes e cismai com eles,
vós e todos, tanto quanto quiserdes. Por mim, não creio que en­
cerre outro sentido além de uma descrição do jogo da péla sob
palavras obscuras. Os subornadores de pessoas são os jogado­
res, que são geralmente amigos, e depois das duas partidas sai
o que l á estava e entra outro. Acredita-se n o primeiro que diz
se a bola está em cima ou debaixo da corda21 , As águas são o
suor; as cordas são raquetas feitas de tripas de carneiros ou de
cabras ; a máquina redonda é a bola ou a péla. Depois do jogo,
as pessoas refazem-se junto de uma fogueira clara, trocam de
camisa22 e de bom grande se banqueteiam, mas mais alegre­
mente os que ganharam. E haj a alegria23l>>

NOTAS
1 Estes primeiros dois versos, dé fingida gravidade, não figuram na edi­
ção póstuma (1 574) de Saint-Gelais, como também não figuram os últimos
dez . E difícil saber se figuravam num manuscrito do poeta ou se são obra de
Rabelais . Este tom oratório orienta o leitor para um símbolo metafísico que
contrastará com a explicação final.
2 Rabelais, e mais tarde Montaigne, insurgiu-se em várias ocasiões con­
tra a astrologia divinatória.
3 Tratar-se-á da roda da Fortuna que ora sobe ora desce, ou dos jogado-
res que mudam de terreno ao fim de cada partida?
4 No jogo da péla, o mais pesado (o mais tolo) é escolhido para marcador.
5 Um novo dilúvio ou o suor que encharca os jogadores?
6 Trata-se de um jogo de palavras sobre attrempez, moderados, e trem­
pés, encharcados
7 Os antigos ofereciam nos seus sacrifícios as entranhas das vítimas.
No Quarto Livro (cap. vr), Dindenaut enumera as utilizações dos seus carnei­
ros: <<Das tripas far-se-ão cordas de violinos e harpas .. Também se usa­
. »

vam para guarnecer as raquetas.


B Perífrase para designar a Terra, mas também as bolas.
9 As bolas seriam guardadas numa caixa escura?
10 Júpiter esmagou o titã Tifeu debaixo do Etna.
11 A ilha de Ísquia personificada. Uma parte do corpo de Tifeu estava co­
berta por Inarimé, que tremia a cada convulsão do titã.
1 2 R. Morçay (L'Abbaye de Thileme, ed. Dooz) interpreta esta chama co­
mo as bebidas distribuídas aos jogadores depois da partida. Na sua opinião, se­
ria anacrónico ver nela uma alusão às fogueiras de protestantes.

220
GARGÂNTUA

1 3 A partir daqui os versos não fazem parte da edição de Mellin de Saint-


-Gelais.
1 4 Os jogadores vitoriosos ou os eleitos de Deus?
1 5 Alusão ao castigo dos maus no Juízo Final.
1 6 Trata-se do dogma da predestinação, que opõe os teólogos reformistas
· aos católicos? É o que as analogias parecem indicar. . .
1 7 Serão perseguidos sobretudo depois d o «a{faire des placards», mas
Gargântua exprime já os receios dos humanistas ante uma perseguição previ­
sível.
1 8 O centro do alvo era branco.
1 9 Bispo de Saintes e abade de Maillezais de 1 060 a 1 073, onde foi enterra­
do; Rabelais, antigo beneditino de Maillezais, invoca um santo da sua antiga
abadia.
20 Jogo de palavras sobre o feiticeiro Merlin e o poeta Mellin, a quem os
seus contemporâneos também chamavam «Merlin>>.
21 Como actualmente a rede no ténis. Trata-se sem dúvida do jogo da Zan­
gue paume, antepassado do ténis, que se jogava com uma raqueta, e não do jeu
de pau me, em que a bola é atirada à mão.
22 No cap. XXII I , também Gargântua trocava de camisa e repousava depois
de jogar.
23 Qual a intenção de Rabelais ao inserir este enigma? Será, do ponto de
vista artístico, para fazer par com As Bagatelas com antldoto... do cap. rr? Ou
será porque resumia a doutrina dos evangelistas, sendo a interpretação de
Frei Jean uma artimanha para desviar a atenção dos censores da Sorbonne?
Rabelais deixa a resposta ao critério do leitor.

221
BIBLIOGRAFIA S UMÁRIA

Edição das obras completas


Oeuvres de François Rabelais, edição crítica (ainda em publicação) diri­
gida por Abel Lefranc; em Pari s, Champion, 1 9 1 2-1 931 : Gargantua,
Pantagruel, Tiers Livre; em Genebra, Droz, e em Lille, Giard, 1 955:
Le Quart Livre.

Estudos
J. Plattard, L'Invention et la composition dans l'oeuvre de Rabelais, Pa­
ris, Champion, 1 909 .
L. Febvre, Le Probleme de l'incroyance au XVIe s iecle, Paris, Albin Mi­
chel , 1 942.
A Lefranc, Rabelais, Etudes sur Gargantua . . . , Paris, Albin Michel,
1 953.
Actes du Congres de Tours et de Poitiers, Paris, Les Belle-Lettres, 1 9 54.
V.-L. Saulnier, Le Dessein de Rabelais, Paris, S. E. D. E. S., 1 957.
R. Morçay e A. Müller, La Rennaissance, Paris, Del Duca, 1960.
Revue. des Etudes rabelaisiennes (R. E . R.), Paris, Champion, 1 903-
1 91 2.
Revue du XVIe siecle, Paris, Champion, 1 91 3-1 933.
Humanisme et Rennaissance, Pari s e Genebra, Droz, desde 1 941 (em
publicação).
Bibliotheque d'Humanis me et Rennaissance, Genebra, Droz, 1 964.

222
ÍNDICE DE CAPÍTULOS

P ág.

Prólogo do autor 27
Capítulo I -Da genealogia e antigu idade de
Gargântua 31
Capítulo II - As Bagatelas com anUdoto, encon -
tradas num monumento antigo 34
Capítulo III - Como Gargântua esteve onze me -
ses no ventre da mãe :D
Capítulo IV - Como Gargamelle, estando pre -
nha de Gargântua, comeu grande
q uantidade de tripas 42
Capítulo V - A fala dos bem bebidos 44
Capítulo VI - Como Gargântua nasce u de ma -
neira m u ito estranha 50
Capítulo VII - Como foi dado o nome a Gargân -
tua, e como gostava da pinga 53
Capítulo VIII - Como vestiram Gargântua 55
Capítulo IX - As cores e a libré de Gargântua 60
Capítulo X - Do significado das cores b ranca e
�� ro
Capítulo XI - Da adolescência de Gargântua 67
Capítulo XII - Dos ca valos fictícios de Gargân -
tua 69
Capítulo XIII - Como Grandgo usier conheceu o
espírito maravilhoso de Gargâ n -
tua graças à invenção duma ma -
neira de limpar o cu 72
Capítulo XIV - Como Gargântua foi instruído por
um sofista em línguas latinas 76
Capítulo XV - Como se deram outros pedagogos a
Gargântua 79
Capítulo XVI - Como Gargântua foi enviado para
Paris, e da enorme égua q ue levou,
e como ela desfez as moscas
bovinas de Beauce 81
Capítulo XVII - Com o Gargântua retri b u i u as ·
b oas-v indas aos p arisie nses e
como roubou os sinos da igreja de
Notre-Dame 84
Capítulo XVIII - Como Janotus de Bragmardo foi
enviado para reaver de Gargântua
os grandes sinos 87
Capítulo XIX - A arenga de mestre Janotus de
Bragmardo feita a Gargântua para
reaver os sinos 89
Capítulo XX - Como o sofista levou a sua fazen -
da, e como teve uma demanda com
os outros mestres 92
Capítulo XXI - O estudo de Gargântua, segundo a
discip lina dos seus precep tores
sofistas 95
Capítulo XXII - Os jogos de Gargântua 98
Capítulo XXIII - Como Gargântua foi instru(do por
Ponócrates com tal disciplina q ue
não perdia uma hora do dia 1 03
Capítulo XXIV - Como Gargântua passava o tempo
q uando o ar estava chuvoso 110
Capítulo XXV - Como se estabeleceu entre os bis -
coiteiros de Lerné e os do país de
Gargân tua a gran de contenda
de onde resultaram grandes guer -
ras 113
Capítulo XXVI - Como os habitantes de Lerné man -
dados p o r Picroco le, seu rei,
assaltaram de surpresa os pastores
de Gargântua 116
Capítulo XXVII - Como um frade de Seuillé salvou o
cercado da abadia do saque dos
inimigos 1 19
Capítulo XXVIII- Como Picrocole tomou de assalto La
Roche Clerm a uld, e a pena e
d ificu ladade q ue Grandgo u s ie r
teve d e entrar n a guerra 125
Capítulo XXIX - O teor das cartas que Grandgou -
sier escrevia a Gargântua 129
Capítulo XXX - Como Ulrich Gallet foi enviado a
Picrocole 131
Capítulo XXXI - O discurso feito por Gallet a Picro -
cole 132
Capítulo XXXI I - Como Grandgousier, para com -
p rar a paz, mandou de volver os
biscoitos 135
Capítulo XXXI II - Com o certos governadore s de
Picrocole, por conselho precipitado,
o exp useram ao ma ior dos
perigos 138
Capítulo XXXIV - Como Gargântua deixou a cida -
de de Paris para socorrer o seu
país, e como Ginasta encontrou os
i n i m igos 144
Capítulo XXXV - Como Ginasta matou agilmente o
cap itão Tripet e os outros homens
de Picrocole 147
Capítulo XXXVI - Como Gargântua demoliu o caste -
lo do Gué de Vede e como passaram
o vau 150
Capítulo XXXV II - Como Gargântua, penteando-se,
deixou cair dos cabelos as balas da
artilharia 153
Capítulo XXXVIII - Como Gargântua comeu seis pere -
grinos na salada 156
Capítulo XXXI X - Como o frade foi festejado por Gar -
gântua e das bonitas coisas q ue
disse durante a ceia 159
Capítulo XL - Porq Úe fugira m os frades do
m undo e porque alguns têm o nariz
mais comprido que outros 1 63
Capítulo XLI - Como o frade pôs Gargântua a
dormir e das s ua s horas e b re -
v iário 1 66
Capítulo XLII - Como o frade encÕrajou os seus
c o mp a n h e iros e com o fic o u
p endurado numa árvore 169
Capítulo XLIII - Como a escara m uça de Picrocole
foi encontrada por Gargântua e
como o frade matou o cap i tã o
Tyra v a n t, e dep o i s fo i fe ito
prisione iro dos inimigos 1 72
Capítulo XLIV - Como o frade se desfez dos se us
guardas, e como a escaram uça de
Picrocole foi desfeita 1 75
Capítulo XLV - Como o frade levou os peregrinos e
as boas pala v ras que lhes disse
Grandgo usier 178
Capítulo XLVI - Como Grandgousier tratou hu -
maname nte o prisione iro Touc-
quedillon 182
Capítulo XLVII - Como Gandgo usier mando u b us­
car as s uas legiões e como To uc­
quedillon matou Hastiveau, e de ­
pois foi morto por ordem de Pi -
crooo� 1�
C apítul o XLVIII - Co m o G a rgâ n t u a assa ltou
Picrocole dentro d a Roche-Cler -
ma ud, e desbaratou o exército do
dito Picrocole 189
Capítulo XLIX - Como ao fugir Picrocole foi sur -
preendido pela pouca sorte, e o q ue
fez Gargântua após a batalha 192
Capítulo L - O discurso que Gargântua fez aos
vencidos 194
Capítulo LI - Como os vencedores gargantuitas
fora m reco mpensados depois da
batalha 198
Capítulo LII - Como Gargântua mandou cons -
truir para o frade a abadia de
Th eleme 200
Capítulo Lili - Como foi construída e dotada a
abadia dos thelem itas 202
Capítulo LIV - Inscrição gra vada na porta prin -
cipal de Theleme 205
Capítulo LV - Como era a mansão dos thelem i -
tas 210
Capítulo LVI - Como se v estiam os religiosos e
religiosas de Theleme 212
Capítulo LVI I - Como os thelem itas regiam a sua
maneira de viver 215
Capítulo LVIII - En igma em p rofecia 217
B ibliografia sumária 222
Mapa da guerra picrocolina 128

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