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A IRREVERSIBILIDADE DA TUTELA CAUTELAR ANTECIPATÓRIA1

RITA LYNCE DE FARIA

I. A tutela cautelar antecipatória

Através da figura da tutela cautelar o sistema jurídico pretende garantir o direito a uma tutela
jurisdicional efectiva, evitando que a demora razoável2 de uma acção judicial inutilize uma
eventual sentença favorável ao autor, fazendo com que o tempo corra em prejuízo daquele que
tem razão.
Aquele objectivo, no entanto, nunca poderá ser alcançado com prejuízo do tempo necessário
a uma decisão ponderada. O factor tempo, se por um lado constituiu um custo do processo pelo
facto de poder fazer perigar a efectividade do direito, por outro lado, constitui garantia de uma
decisão justa e ponderada. Não há decisão justa sem tempo.
O tempo pode constituir, por isso, em simultâneo, garante de justiça e causa de injustiça.
Constitui, por isso, um factor ambivalente que não poderá, pura e simplesmente, ser considerado
como um elemento negativo e a eliminar.
Por este motivo, a tutela cautelar actua através do binómio procedimento cautelar/acção
principal. Através do primeiro, permite-se ao juiz decretar uma medida urgente e provisória que
garanta a efectividade do direito do requerente. Através da segunda, permite-se um
conhecimento justo e ponderado, cuja decisão se acabará por substituir à providência cautelar.
Ora, esta função da tutela cautelar, instrumental relativamente a uma outra acção designada
de principal, foi tradicionalmente desempenhada através providências com um mero conteúdo
de conservação da situação de facto na pendência da acção, de forma a garantir que a sentença
final, quando chegasse, encontrasse circunstâncias idênticas àquelas que existiriam se esta
tivesse sido proferida instantaneamente. Consistiam, desta forma, em medidas judiciais
urgentes, provisórias e não invasivas da esfera jurídica do requerido, que assumiam um papel
instrumental mas neutro relativamente à futura sentença da acção principal. Eram as chamadas
providências cautelares conservatórias.
Como CALAMANDREI bem referia, estas providências cautelares visavam afastar o pericolo di
infruttuosità do direito do requerente, decorrente do risco de que, na pendência da acção, o

1 Este texto foi elaborado para a apresentação da Catolica Talk de 15 de Maio de 2017. Constitui, para além disso,
uma súmula de alguns aspectos da nossa tese de doutoramento, A tutela cautelar antecipatória no processo civil
português – Um difícil equilíbrio entre a urgência e a irreversibilidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2016.
2 Digo razoável na medida em que a tutela cautelar não deve constituir resposta alternativa às situações de demora
patológica da pendência das acções, como consequência da crise de justiça que se vive. Essa resposta no sentido de
garantir o direito constitucional a uma decisão judicial em prazo razoável deverá ser necessariamente encontrada a
outro nível, nomeadamente, através do combate à morosidade da justiça e da criação de formas processuais
urgentes para determinados objectos.

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estado de coisas se alterasse de forma a inviabilizar a execução de uma futura sentença favorável.
Deste modo, a providência cautelar actuaria através da manutenção da situação de facto na
pendência da acção principal.
Acontece que este acautelamento da posição do requerente através das providências
cautelares nem sempre permite dar resposta ao risco de inefectividade do seu direito. Assim
acontece pelo facto de o perigo decorrente da pendência da acção principal poder adoptar uma
configuração diferente da tradicional. Em certos casos, o perigo de inefectividade resulta, não de
uma possível alteração das circunstâncias na pendência da acção principal que inviabilize a futura
execução do direito declarado, mas da simples manutenção da insatisfação do direito decorrente
da dilacção na declaração do direito. Está em causa um pericolo di tardività, nas palavras de
CALAMANDREI. Consequentemente, quando a sentença favorável chegar, poderá ser executada,
mas nenhuma utilidade terá.
Nas circunstâncias descritas, a providência cautelar apenas poderá dar resposta ao perigo da
pendência da acção principal através da antecipação dos efeitos da futura sentença dessa acção.
Neste caso, a actuação da tutela cautelar não se circunscreve a uma manutenção do status quo,
impondo-se uma alteração desse estado de coisas por meio da satisfação antecipada do direito
do requerente cautelar. São as chamadas providências cautelares antecipatórias.
Em suma, mais do que um perigo na demora judicial, as providências cautelares antecipatórias
actuam perante um perigo da demora judicial.
A distinção entre estes dois tipos de providências assenta, desta forma, na comparação do
conteúdo da providência cautelar com o da acção principal. As medidas antecipatórias
caracterizam-se por uma identidade de conteúdo com a futura sentença procedente da acção
principal, satisfazendo antecipadamente o direito da requerente3.
Esta distinção entre providências cautelares conservatórias e antecipatórias foi, aliás,
expressamente acolhida pelo CPC com a revisão de 95/96, tendo o legislador dela retirado
consequências práticas a partir do novo CPC 2013, com a consagração da figura da inversão do
contencioso4.

3 Como consequência da natureza própria das providências cautelares antecipatórias estas actuam, como regra, por
meio de uma alteração da situação de facto. Sucede, no entanto, que existem algumas providências que, se por um
lado possuem um conteúdo idêntico ao da sentença final, por outro lado operam através de uma manutenção do
status quo. Assim acontece, por exemplo, com o embargo de obra nova e a suspensão de deliberações sociais. A
antecipação do conteúdo da sentença é feita através da conservação do estado de coisas. Não obstante,
considerámos, por diversos motivos que elencámos na nossa obra e ao contrário do que acontece com a opinião
doutrinal relativamente a providências admnistrativas de conteúdo similar, que estas medidas deverão ser
consideradas antecipatórias para efeitos de regime. O art. 376.º, n.º 4, do CPC, constitui, aliás, manifestação clara
desta opção a nível legislativo.
4 V. infra.

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II. O risco da irreversibilidade

Este tipo de providências cautelares de conteúdo antecipatório, no entanto, estão sujeitas a


um particular risco de irreversibilidade dos seus efeitos, que pode implicar consequências de
vária ordem. Aprofundemos então este conceito de risco de irreversibilidade.
O conceito de risco, como probabilidade de um dano, no contexto jurídico, surge
frequentemente como objecto de regulação de diferentes ramos do direito como o Direito Penal,
Direito das Coisas ou Direito das Obrigações. A necessidade de avaliar as situações de risco,
enquadrá-las juridicamente, minimizá-las, distribuir o risco e reparar a lesão encontram nesta
sede uma relevância considerável. O mesmo acontece no Processo Civil e, em especial, no que
respeita as providências cautelares, que acabam por constituir instrumentos de prevenção do
risco de lesão ao direito do requerente, numa sociedade em que crescem as decisões de risco a
vários níveis. Vivemos, efectivamente, numa sociedade de risco.
O risco a que nos pretendemos referir, no entanto, ao recorrer à expressão o risco da
irreversibilidade, possui uma natureza diferente. Ao invés de objecto de regulação jurídica, o risco
pode constituir instrumento de regulação. Ao invés de uma justiça do risco, podemos falar de
uma justiça de risco. Uma justiça em que se recorre e aceita o risco como próprio, não só da vida,
mas também da realidade jurídica.
Esta realidade adquire relevo especial em figuras como a do ónus jurídico, transversal a
diversas áreas do Direito. Em particular, no domínio do processo civil, o ónus da prova constitui
exemplo paradigmático. Aquele que suporta o ónus na sua esfera jurídica sofrerá as
desvantagens resultantes desse incumprimento. Existe, por conseguinte, um risco próprio e
aceite pelo Direito, do desrespeito do ónus jurídico.
Mas também os actos dos operadores judiciários possuem riscos. Em particular e no que
concerne ao juiz, constitui risco próprio das decisões judiciais a possibilidade de erro, minimizável
mas nunca eliminável pela circunstância da falibilidade própria de qualquer decisor humano. O
erro, constitui, por isso, uma possibilidade própria da sentença, que o sistema jurídico aceita
como mal menor mas que procura atenuar através de vários meios, como a possibilidade de
recurso.
Ora, este risco, aceite pelo sistema jurídico no processo civil, adquire a sua máxima
potencialidade no domínio da tutela cautelar. Para além do risco prevenido pelas providências
cautelares enquanto instrumento de regulação, a tutela cautelar é, em si mesma, uma justiça de
risco. Risco este agravado relativamente a qualquer decisão judicial não cautelar em virtude da
natureza sumária (no procedimento e no conhecimento) das decisões cautelares e da
provisoriedade que lhes é própria. A associação destes factores potencia, por um lado, o risco de
erro próprio de qualquer decisão judicial e, por outro, a possível evidência desse erro através da
substituição por uma outra decisão em sentido contrário proferida na acção principal.
Este contexto explica que a tutela cautelar possa ser comparada à medicina de urgência. O
juiz cautelar, tal como o médico de urgência, colocado perante uma situação que exige resposta

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rápida, não dispõe dos meios adequados para a tratar da forma mais conveniente. Mas sabe que
tem de tomar alguma decisão, sob pena de o paciente morrer (leia-se, o direito do requerente
sofrer lesão grave e dificilmente reparável). Mas tratando-o com os meios de que dispõe,
também poderá correr o risco de o matar (leia-se, o requerido ficar lesado sem a efectiva
existência do direito do requerente). Não constitui, por isso, tarefa fácil a do juiz cautelar.
Aquele risco cautelar, no entanto, encontra salvaguarda no regime próprio criado para aquela
forma de tutela. Não obstante a sumariedade do conhecimento cautelar, as providências
possuem natureza provisória, ou seja, estão destinadas a caducar e a serem substituídas por
decisões teoricamente mais ponderadas e mais justas, ainda que de conteúdo contrário ao das
primeiras. É, por isso, este regime de caducidade e substituição da providência cautelar que
permite minimizar o risco de erro, próprio de qualquer decisão judicial, mas ampliado nas
decisões cautelares.
Para além disso, este equilíbrio summaria cognitio/provisoriedade constitui garante da
legitimidade constitucional da própria tutela cautelar. Com efeito, a figura da tutela cautelar
encontra tutela constitucional ao abrigo da garantia de acesso ao direito e tutela jurisdicional
efectiva do art. 20.º, da CRP. Este direito ao processo, consagrado em diversos instrumentos de
Direito Internacional como a DUDH (art. 10.º) ou a CEDU (art. 6.º), inclui, não apenas a
possibilidade de acesso a tribunal para obtenção de uma decisão quanto ao litígio, como a
garantia de que essa tutela venha a encontrar condições de se tornar efectiva. De nada serviria
garantir o direito de acesso ao tribunal se uma eventual sentença favorável se tornasse inútil.
Este o papel, de relevo constitucional, desempenhado pela tutela cautelar.
Todavia, como se viu, esta função da tutela cautelar, desempenhada através de meios que
permitem a prolacção de uma decisão urgente, pode, simultaneamente, ferir o correspectivo
direito fundamental do requerido de acesso ao direito. Com efeito, mecanismos como o
diferimento do contraditório ou a summaria cognitio do direito afectam necessariamente as
garantias do requerido a um processo justo ou equitativo (o due process of law), outra dimensão
ínsita no direito fundamental ao processo, para além da tutela jurisdicional efectiva. Ou seja, no
âmbito da tutela cautelar, pode concluir-se que ocorre uma tensão entre princípios integradores
do direito fundamental consagrado no art. 20.º, da CRP. Esta tensão constitui a consequência
natural de não ser possível alcançar em plenitude, no âmbito do procedimento cautelar, a
garantia da tutela jusrisdicional efectiva do requerente e o direito a um processo justo e
equitativo do requerido.
Ora, esta tensão entre direitos do requerente e do requerido que se situam no mesmo plano
constitucional, deve encontrar a resposta própria em critérios de proporcionalidade que
permitam moldar simultaneamente cada um dos direitos em causa, assim permitindo alcançar
uma geometria variável que não afecte o respectivo núcleo essencial de cada um.
Considerando as diferentes vertentes da proporcionalidade (adequação, necessidade e
proporcionalidade stricto sensu), pode-se concluir que a compressão do direito do requerido a
um processo justo e equitativo encontra compensação adequada na natureza provisória da
providência que lhe seja desfavorável. Ainda que decretada na sequência de um procedimento
que afecta as suas garantias, essa compressão será meramente temporária.

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Em suma, a provisoriedade da providência cautelar constitui, em última análise, o garante da
legitimidade constitucional da tutela cautelar em resposta ao risco próprio e acrescido daquela
figura.
Para garantia deste equilíbrio fundamental, o regime jurídico da tutela cautelar assegura que,
caso não seja instaurada a acção principal ou esta termine com decisão favorável ao requerente,
a providência cautelar caduca, sendo o requerente responsável pelos danos que culposamente
tenha causado ao requerido. Assim se garante, juridicamente, que a provisoriedade da
providência cautelar é acompanhada pela reversibilidade dos respectivos efeitos.
Sucede, porém, que, a este quadro de equilíbrio ideal se sobrepõem situações em que, por
diferentes motivos, e não obstante a caducidade da medida e o regime de responsabilidade do
requerente, a providência cautelar acaba por, no plano de facto, permanecer indefinidamente a
regular a situação das partes, não obstante a não instauração da acção principal ou a sua
improcedência. A providência cautelar, apesar de ter caducado, continua indefinidamente a
produzir efeitos cuja remoção de facto não encontra salvaguarda no plano jurídico.
Temos, neste caso, providências cautelares definitivas no plano de facto, apesar de assentes
num conhecimento sumário da lide. Fica, assim, desequilibrado o aparente equilíbrio em que o
risco próprio da tutela cautelar encontrou segurança, passando o requerido a ser o suporte das
vantagens que o sistema oferece ao requerente, não encontrando ambas as partes protecção
equivalente.
Em que situações acontece o que acabámos de descrever? Em que casos se torna impossível
a substituição efectiva do estado de coisas criado pela providência cautelar que acabou por
caducar? O que pode fazer com que uma futura decisão na acção principal favorável ao requerido
se torne ela própria inútil em virtude da providência cautelar, que acaba por causar a uma das
partes o que pretendeu evitar à outra?
A situação acabada de descrever, embora possível, em maior ou menor medida, em qualquer
tipo de providência, encontra o seu terreno fértil, por excelência, no âmbito das providências
cautelares antecipatórias, pelo facto de o estado de facto criado definitivamente conceder a uma
das partes utilidade equivalente à da sentença na acção principal.
Para delimitar estas situações, podem identificar-se dois grupos de causas diferentes: em
primeiro lugar, aquelas em que os efeitos criados pela providência não são susceptíveis de
remoção in natura; em segundo lugar, aqueles em que, apesar de estarem em causa efeitos
passíveis de reversão através de indemnização, o sistema jurídico, devido aos exigentes
requisitos de que faz depender o dever de o requerente indemnizar, acaba por afastar essa
possibilidade. Em ambos os casos, a providência caduca mas os seus efeitos permanecem no
plano de facto.
Vejamos os primeiros.
A indemnização em dinheiro constitui uma resposta subsidiária do nosso ordenamento
jurídico perante situações em que a reversão in natura seja impossível, não permita reparar
integralmente os danos ou se revele excessivamente onerosa para o devedor (art. 566.º, do CC).

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Assim pode acontecer nas situações em que o requerido tenha suportado os efeitos de facto de
uma providência cautelar que tenha vindo a caducar. Embora a caducidade determine a cessação
da produção dos efeitos da providência cautelar, tal não acontecerá no plano de facto por
impossibilidade, insuficiência ou excessiva onerosidade da reversão.
A impossibilidade da reversão torna-se patente sobretudo nas situações em que a utilidade da
providência decretada se esgota num momento concreto, transformando-a numa forma
autosuficiente de tutela. O afastamento do periculum in mora para o requerente ocorre através
de um acto isolado que esgota o interesse do titular do direito, não tendo qualquer função para
o futuro. As hipóteses imagináveis de providências deste tipo são inúmeras. A providência que
obrigue o requerido, arrendatário, a tolerar que o requerente, senhorio, mostre a casa a um
potencial comprador, a concessão de direito de antena a um candidato a eeleições próximas, a
autorização para a transmissão de um jogo de futebol em directo por um canal de televisão, a
obrigação de o requerido disponibilizar documentos confidenciais ao requerente, entre outros
exemplos.
A insuficiência da reversão in natura resulta da impossibilidade de a indemnização em dinheiro
dar a resposta a certo tipo de danos não patrimoniais que a providência que caducou tenha
provocado. A decretação de uma providência cautelar pode desencadear danos ao requerido de
vária ordem, inclusivé danos não patrimoniais. Assim, por exemplo, a ordem para a cessação da
comercialização de um medicamento pelo requerido pode determinar a respectiva falência, com
graves danos para o requerido, que muitas vezes vão para além dos meramente patrimoniais.
A excessiva onerosidade da reversão ocorre naqueles casos em que a implementação da
medida cautelar tenha determinado custos de montante muito elevado, exigindo a anulação da
situação de facto criada um dispêndio desproporcionado de recursos. Ou nas situações em que
o montante dos danos causados ao requerido seja dificilmente quantificável, como acontece com
frequência quando a providência determina a perda de clientela.
O segundo grupo de casos de irreversibilidade de facto da tutela cautelar que venha a caducar
deve-se a uma opção legislativa no sentido de restringir os casos em que o requerente é
responsável pelos danos causados ao requerido que suportou os efeitos de uma providência que
veio a caducar. Independentemente da bondade da solução, que apreciaremos infra, constitui
um dado o facto de o art. 374.º, n.º 1, do CPC, fazer depender o dever de o requerente
indemnizar o requerido da sua actuação culposa, sob a forma de dolo ou negligência. O que
significa que, em grande parte das situações de caducidade cautelar, o requerido não encontrará
fundamento para ser ressarcido pelo requerente uma vez que tais danos constituirão uma
consequência normal do funcionamento da tutela cautelar.

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III. Atenuantes da irreversibilidade

Cientes da insuficiência da resposta jurídica dada pelo binómio caducidade/responsabilidade


do requerente ao desequilíbrio gerado pela definitividade de alguns efeitos entretanto
produzidos pela providência cautelar no plano de facto, procurámos soluções compensatórias da
posição jurídica do requerido no sistema de tutela cautelar.
Nesta procura, identificámos dois tipos de atenuantes: aquelas que actuariam de forma
preventiva à produção de efeitos irreversíveis pela tutela cautelar, evitando-os (as atenuantes ex
ante) e aquelas que visariam minimizar o risco para o requerido da produção de danos a
posteriori (atenuantes ex post).
Far-se-á referência sumária, como é próprio do procedimento cautelar, a cada uma das
referidas atenuantes, rementendo maiores desenvolvimentos para a nossa publicação da tese de
doutoramento.

i) Atenuantes ex ante

a) O juízo de proporcionalidade em sentido restrito


O critério de proporcionalidade consagrado pelo art. 368.º, n.º 2, do CPC, como exigência
para a decretação de uma providência cautelar constitui, sem dúvida, uma forma de prevenir
os efeitos irreversíveis que podem ser provocados ao requerido com a decretação da
providência cautelar antecipatória. A necessidade de comparar os eventuais danos a causar
ao requerido e a evitar ao requerente pode impedir a decretação de uma medida cautelar que
poderia ser extremamente gravosa para o requerido.
Nestes termos, e partindo do pressuposto de que o dano a evitar ao requerente através da
decretação da providência cautelar será sempre irreversível, por exigência do periculum in
mora grave e dificilmente reparável, o recurso ao critério da proporcionalidade apenas se
justifica quando exista uma irreversibilidade recíproca de danos a evitar a cada uma das
partes, seja através da decretação ou da rejeição da providência cautelar. Há que comparar,
por isso, danos potencialmente irreversíveis de ambas as partes, possibilitando que, em certas
circunstâncias, sejam afastadas providências cautelares de efeitos irreversíveis no plano de
facto, como as que referimos.
Todavia, o facto de o critério de proporcionalidade adoptado pelo legislador não ser um
critério de proporcionalidade estrita e sim um critério que tolera a existência de um
desequilíbrio a favor do requerente – o que facilmente se compreende pela existência de um
fumus boni iuris a seu favor –não permitirá afastar todas as providências cautelares que

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causam ao requerido danos dificilmente reparáveis, ainda que superiores aos evitados ao
requerente.

b) A exigência de uma verosimilhança especialmente forte


Muito embora a decretação de uma providência cautelar se baste com a existência de
um fumus boni iuris, assente numa prova meramente sumária do direito do requerente,
esta menor exigência relativamente à prova efectiva do direito do requerente não significa
uma prova superficial baseada numa simples verosimilhança das alegações do requerente.
Na verdade, e ainda que o julgador não adquira a convicção sobre a existência do direito,
o n.º 1, do art. 368.º, do CPC, refere-se a uma probabilidade forte. O que significa que a
summaria cognitio cautelar admite graus e que o legislador situa esse grau num patamar
exigente.
Ora, neste pressuposto, não parece excessivo afirmar que, traduzindo-se este grau de
conhecimento no procedimento cautelar numa convicção interior do juiz, ainda que
passível de fundamentação, este se deverá munir de uma convicção especialmente forte
antes de decretar qualquer providência cautelar antecipatória de efeitos irreversíveis,
assim permitindo minimizar o risco de dano definitivo causado por uma medida idealmente
provisória.
Assim o exige o princípio da proporcionalidade. Na medida em que a única medida
cautelar adequada a afastar determinado periculum in mora do requerente seja uma
providência cautelar antecipatória, restará ao julgador actuar sobre as restantes variáveis
do instituto cautelar em que exista margem para minimizar os danos provocados. Assim
sucede com o grau de conhecimento do juiz. Na medida em que seja respeitada a urgência
do procedimento cautelar, o juiz deverá procurar munir-se da maior convicção possível da
existência do direito nas circunstâncias de risco de irreversibilidade.

c) A substituição da providência cautelar por caução a prestar pelo requerido


A substituição de providência cautelar potencialmente irreversível por caução do requerido
permitiria afastar a definitividade dos efeitos da medida e, em simultâneo, acautelar os
interesses do requerente. O art. 368.º, n.º 3, do CPC, no entanto, faz depender esta
possibilidade, entre outros requisitos, da circunstância de a caução requerida “se mostrar
suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente”. Esta substituição tem, por isso,
como limite, a salvaguarda dos interesses do requerente, apenas sendo permitida se a caução
puder desempenhar função equivalente à que seria desempenhada pela providência cautelar.
Acontece que, dado este pressuposto, e tendo em conta que a caução sempre se traduzirá
numa determinada quantia pecuniária, nunca esta poderá prevenir o risco de lesão
acautelado pelas providências antecipatórias. Esta função de prevenção da caução apenas
poderá ser desempenhada em face de providências cautelares conservatórias, como é o caso
do arresto. Sendo a finalidade das providências cautelares antecipatórias a de antecipar a

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satisfação do interesse do requerente de forma equivalente à da sentença, nunca a prestação
de uma caução poderá desempenhar a mesma função.
O mesmo não se dirá relativamente à possibilidade de a caução poder reparar
integralmente a lesão que se pretende evitar ao requerente. Essa já será possível
relativamente a providências cautelares de cariz antecipatório. Se a providência a decretar
visar afastar um risco de lesão que possa ser reparável a posteriori através de indemnização,
a caução já poderá ter um papel a desempenhar. Não em todas as circunstâncias, todavia.
Deve exigir-se que esta degradação da utilidade da providência fique dependente da
existência de interesse atendível do requerido. Ora, entendemos que este interesse estará
indicutivelmente presente nos casos em que a providência possa vir a causar ao requerido
efeitos irreversíveis.

d) A definitividade jurídica
A última hipótese testada como atenuante ex ante da irreversibilidade dos efeitos
cautelares é, todavia, a mais relevante neste contexto. A posssibilidade de o juiz, em sede
cautelar e perante a possível definitividade da medida, poder proferir de imediato decisão
jurídica definitiva, sem necessidade de posterior acção principal para evitar a caducidade da
providência, constituiria solução para a situação de desequilíbrio que agora nos ocupa.
Esta possibilidade não é estranha à nossa ordem jurídica e já foi testada em sede
processual, através do art. 16.º, do RPCE, onde, caso o juiz viesse a adquirir um grau de
convicção equivalente ao da acção de cognição plena, se permitia a convolação do
procedimento cautelar de forma a permitir ao juiz tomar de imediato a decisão definitiva.
Semelhante possibilidade é ainda concedida ao juiz no procedimento cautelar administrativo,
como prevê o art. 121.º, do CPTA.
A opção do legislador processual civil do novo Código, no entanto, foi num sentido diverso
– o da mera inversão do contencioso - que, independentemente das vantagens e
desvantagens das soluções alternativas, não parece permitir encontrar actualmente nesta
sede resposta para prevenir a irreversibilidade dos efeitos cautelares.
Apesar disso, procurámos aprofundar a questão e concluímos que a possibilidade de o juiz
tomar decisão definitiva, no caso de providência cautelar antecipatória de efeitos
irreversíveis, não é de afastar linearmente. Fundamentalmente por dois motivos.
Por uma parte, o facto de, no procedimento cautelar o juiz adquirir convicção segura acerca
da existência do direito torna a acção principal inútil, porque repetitiva. Neste contexto, e
assistindo ao juiz um dever de gestão processual cujo objectivo é o de garantir o andamento
célere do processo e a justa composição do litígio em prazo razoável, ser-lhe-ia legítimo
concluir que o formalismo subsequente da acção principal já não se justifica. Embora a actual
figura da inversão do contencioso consagre solução diferente, a excepcionalidade da
circunstância de que aqui tratamos, traduzida na possível irreversibilidade dos efeitos

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cautelares e consequente violação do due process of law do requerido, justifica a solução
preconizada.
Acresce que, por outra parte e no rigor dos princípios, quando o requerente solicita a
decretação de providência cautelar antecipatória de efeitos irreversíveis, aquilo que está a
requerer ao juiz, ainda que sob a veste de uma medida cautelar, é uma providência definitiva.
Pelo que a decretação, pelo juiz, de uma decisão definitiva, na sequência de um conhecimento
pleno da lide, não representa, na verdade, uma convolação do pedido do requerente e
respeita integralmente o princípio do pedido.

ii) Atenuantes ex post

a) Caução do requerente
Ainda que o juiz decrete providência cautelar antecipatória com efeitos eventualmente
irreversíveis, pode, oficiosamente, exigir ao requerente que preste caução (art. 374.º, n.º 2,
do CPC). Neste caso, ao contrário da caução substitutiva prestada pelo requerido, a caução do
requerente convive com a providência cautelar. A sua função traduz-se na constituição de uma
garantia a favor do requerido em caso de caducidade da providência decretada e eventual
responsabilização do requerente. Actua, desta forma, ex post, relativamente a eventuais
efeitos irreversíveis provocados pela medida cautelar.
A caução funciona, assim, como uma espécie de contra-providência, mas a favor do
requerido. E tal como noutra providência cautelar, podem nela identificar-se, com as devidas
adaptações, os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora.
Por um lado, a exigência de caução tem subjacente a necessidade de tutela de um eventual
direito do requerido ao ressarcimento dos danos causados pela providência cautelar. O que
significa que se a providência a decretar não fôr susceptível de causar danos ao requerido, a
exigência de caução não fará qualquer sentido. A isto equivale o fumus boni iuris da caução.
Por outro lado, a caução apenas deverá ser exigida se o eventual direito a indemnização do
requerido estiver sujeito a um risco de lesão equivalente ao periculum in mora cautelar. Assim
acontecerá, por exemplo, se a capacidade económica do requerente fôr reduzida.
A exigência de caução ao requerente, no entanto, nunca poderá pôr em causa o seu direito
a uma tutela judicial efectiva. A questão é especialmente sensível quando estejam em causa
direitos do requerente de natureza não patrimonial. A exigência de caução não pode, de forma
nenhuma, inviabilizar a possibilidade de o requerente obter tutela judicial efectiva para os
respectivos direitos. Talvez por este motivo, o art. 376.º, n.º 2, do CPC, apenas prevê a
possibilidade da exigência de caução em providências cautelares especificadas cujos
interesses tutelados são normalmente de ordem patrimonial.

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Em suma, a avaliação judicial da justificação da exigência de caução deverá ter em conta
uma série de variáveis como a natureza dos interesses do requerente, a maior ou menor
gravosidade dos danos potenciais na esfera jurídica do requerido, a maior ou menor
probabilidade de causar tais danos, a maior ou menor convicção sobre a existência do direito
do requerente, entre outros factores.
No que respeita à nossa questão de fundo de saber em que medida a exigência de caução
ao requerente poderá atenuar a irreversibilidade dos efeitos de uma providência cautelar
antecipatória, diria que o poderá fazer numa medida extremamente reduzida. Com efeito, a
generalidade dos danos a que chamámos irreversíveis não poderão sequer ser compensados
através de indemnização em dinheiro.

b) Responsabilidade civil do requerente


A questão que nos ocupa de procurar as vias para atenuar a eventual irreversibilidade de
uma providência cautelar antecipatória encontra resposta por excelência no regime da
responsabilidade civil do requerente prevista no art. 374.º, n.º 1, do CPC5. Se a providência
cautelar caducar6, o requerente, verificados certos requisitos, responde pelos danos causados
ao requerido.
O exercício do direito de acção não dispensa as partes da obediência a deveres de conduta
a cuja violação o sistema de responsabilidade reage. Nestes termos, a responsabilidade do
requerente cautelar enquadra-se no género mais abrangente da responsabilidade civil e, em
especial, na responsabilidade processual, de que constitui figura central a litigância de má fé7.
Neste enquadramento na responsabilidade civil geral e nos seus diversos tipos, dir-se-ia que,
à partida, se trataria de uma responsabilidade delitual ou aquiliana, não assente em qualquer
relação obrigacional prévia. Para além disso, seria uma responsabilidade por factos ilícitos,
assente na ilicitude e na culpa lato sensu.
A título prévio, importa aprofundar o regime do art. 374.º, n.º 1, do CPC, à luz de alguns
pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, o tipo objectivo e subjectivo da
norma.
A responsabilidade civil pressupõe, em primeiro lugar, um facto ilícito. Neste caso, o facto
ilícito do requerente. Há que identificar o facto voluntário praticado pelo requerente, bem
como a sua censurabilidade, para que este possa ser responsabilizado. Está em causa um facto
ilícito ao qual se possa imputar objectivamente a caducidade da providência cautelar8.

5 Concretizado, no que respeita ao arresto, no art. 621.º, do CC.


6 Ou for considerada injustificada, o que não releva para a nossa análise em que estão em causa os efeitos
irreversíveis da providência que tenha caducado.
7 A responsabilidade civil do requerente cautelar constitui figura periférica, tal como as previstas nos arts. 527.º e
858.º, entre outras.
8 Para o que aqui releva, importam as situações em que os efeitos irreversíveis tenham sido causados pela
caducidade resultante da não propositura ou improcedência da acção principal.

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Ora, podemos sempre vislumbrar uma actuação do requerente como interveniente num
facto complexo de produção sucessiva que acaba por gerar a caducidade da providência
cautelar, seja a mera propositura da acção principal que acabou por ser julgada improcedente,
seja a respectiva omissão na instauração daquela acção.
Já no que se refere à ilicitude dessa conduta, suscitam-se maiores dúvidas uma vez que o
requerente se limitou a actuar no âmbito das possibilidades que lhe são legalmente
conferidas. O direito de acção é de exercício livre e a propositura da acção principal não não
constitui um dever e sim um mero ónus9. Deverá concluir-se, por isso, que esta censura da
actuação do requerente decorre necessariamente da identificação de uma actuação
imprudente do requerente no exercício do direito de acção ou na omissão da propositura da
acção, acabando por confundir-se, por isso, com o pressuposto da culpa. Só assim se explica
a referência tautológica feita no art. 374.º, do CPC, ao facto de que o requerente “não tenha
agido com a prudência normal”. Note-se que, em sede cautelar, o requerente estará adstrito
a um dever de prudência ainda mais exigente, precisamente devido à provisoriedade da
providência cautelar e à possível gravosidade dos efeitos produzidos na esfera jurídica do
requerido.
Por seu turno, do tipo subjectivo da norma resulta a possível responsabilização do
requerente, quer tenha actuado com dolo, que tenha agido de forma negligente. Como se
referiu, a especial gravosidade da tutela cautelar implica uma maior exigência de conduta do
requerente, viabilizando a sua responsabilização em todos os graus de culpa, ao contrário do
que sucede com o regime da litigância de má fé, que exclui a culpa leve.
Ainda que, em termos comparativos, o regime de responsabilidade civil do requerente
favoreça, em termos comparativos, a respectiva responsabilização, cremos ser de questionar
sobre a bondade de uma solução que, ainda assim, pode deixar o requerido extremamente
desprotegido uma vez que, na maioria dos casos de danos irreversíveis causados por
providência cautelar que caducou, não se pode vislumbrar qualquer actuação culposa da parte
do requerente. O requerido acaba assim, em grande número de situações, por suportar os
benefícios do sistema de tutela cautelar a favor do requerente10, ao arrepio do princípio ubi
commoda, ibi incommoda.
Apenas um sistema de responsabilidade objectiva do requerente cautelar que, de resto,
não é estranho ao direito comparado e mesmo ao nosso sistema jurídico em épocas
anteriores, permitiria salvaguardar, na íntegra, o interesse do requerente. Esta conclusão,
todavia, não pode não enquadrar-se no âmbito de outros valores também prosseguidos pelo
nosso sistema jurídico, nomeadamente, o carácter fundamental da garantia de uma tutela
judicial efectiva, podendo a responsabilidade objectiva do requerente acabar por restringir
em demasia o exercício do direito de acção cautelar.

9 Para além disso, também não podemos vislumbrar qualquer ilicitude no resultado caducidade, tendo em conta que
optámos por uma configuração da ilicitude como sendo uma ilicitude de acção e não de resultado.
10 Principal beneficiário de instrumentos da tutela cautelar como a summaria cognitio ou o adiamento do
contraditório do requerido.

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Sendo aquele argumento suficiente para se concluir pela não justificação de uma
responsabilidade não fundada na culpa do requerente, acabámos por defender, no entanto,
a existência de uma presunção ilidível de culpa do requerente, equiparável à presunção
consagrada no art. 799.º, do CC. Muito embora não faça sentido qualificar a responsabilidade
civil do requerente da providência cautelar que venha a caducar como sendo uma
responsabilidade de natureza contratual, também não será rigoroso qualificá-la simplesmente
como uma forma de responsabilidade aquiliana. Na verdade, podemos vislumbrar na
pendência processual a existência de uma espécie de relação triangular entre as partes e o
juiz. Ainda que dela não decorram obrigações em sentido técnico, não pode negar-se que esta
relação processual implica um plus relativamente ao mero dever de respeito da
responsabilidade meramente delitual. Estão em causa deveres laterais que radicam, em
última análise, no princípio da boa fé.
Pelo descrito, entendemos dever integrar a responsabilidade processual numa espécie de
zona cinzenta, equiparável ao que a doutrina civilista chama de terceira via da
responsabilidade civil, que pressupõe um regime particular apurado em relação a diversos
pontos em concreto, que exigirão uma integração específica de lacunas. Em particular no que
concerne a responsabilidade civil do requerente cautelar, cabe perguntar se não se justificaria
aplicar o regime da presunção de culpa, próprio da responsabilidade contratual, a esta relação
jurídica de cariz particular.
Se se aprofundarem as razões justificativas da inversão do ónus da prova do art. 799.º, do
CC, concluímos que as mesmas razões estariam presentes no regime da responsabilidade civil
do requerente cautelar, razão pela qual se justificaria aí identificar a existência de uma
presunção de culpa no âmbito da construção de um regime próprio de uma terceira via de
responsabilidade.

c) Enriquecimento sem causa


Por último, mas não menos relevante, resta-nos a via do enriquecimento sem causa como
forma de atenuar os efeitos da irreversibilidade cautelar. Constituindo o enriquecimento sem
causa uma figura de âmbito geral e de natureza subsidiária que tem por objectivo corrigir os
resultados substancialmente reprovados pela ordem jurídica, apesar de formalmente
conformes com a lei, vem precisamente ao encontro do objectivo de corrigir os desequilíbrios
que as providências cautelares antecipatórias permitem gerar e que não podem ser corrigidos
por outros institutos como a responsabilidade civil.
Apesar de se tratar de uma figura de âmbito geral, sempre se poderia questionar a sua
aplicabilidade ao direito processual e, em particular, ao direito cautelar. Note-se que, neste
âmbito, se, por um lado, o art. 390.º, n.º 1, do CPC, refere expressamente o recurso ao
enriquecimento sem causa no caso do arbitramento de reparação provisória que tenha
caducado, por outro lado, o art. 2007.º, n.º 2, do CC, afasta a sua aplicação aos alimentos
provisórios. Não pode, por isso, deixar de questionar-se qual será a regra e qual será a
excepção. No nosso entender, a excepcionalidade reside na não aplicação do enriquecimento

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sem causa no caso dos alimentos provisórios. Trata-se, com efeito, de uma providência
cautelar que visa dar resposta a uma situação de carência especial relativa às necessidades de
sustento, habitação e vestuário do requerente. Por este facto, o legislador procura não
penalizar demasiado o requerente em caso de caducidade da providência, evitando restringir
o recurso a esta medida cautelar11. Acresce que, em grande parte dos casos, a situação de
carência básica já terá levado ao consumo das quantias pagas.
A existência de um enriquecimento sem causa aplicado à produção de efeitos irreversíveis
pela tutela cautelar pressupõe a presença dos três elementos identificativos: (i) o
enriquecimento do requerente, (ii) que esse enriquecimento tenha ocorrido à custa do
requerido e (iii) que esse enriquecimento seja desprovido de causa.
Com efeito, a existência de uma deslocação patrimonial do requerido para o requerente,
sob diversas formas, constitui um elemento comum decorrente da decretação de uma
providência cautelar antecipatória. Para além disso, e como consequência, o requerido sofre
o correlativo empobrecimento.
O elemento que poderia suscitar maiores dúvidas traduz-se na ausência de causa para
aquele enriquecimento. Ainda que a acção principal não seja instaurada ou venha a ser julgada
desfavoravelmente ao requerente provocando a caducidade da providência, a verdade é que,
no momento em que esta foi decretada através de decisão judicial, existia causa justificativa.
Todavia, parece poder considerar-se que, neste caso, essa causa acaba por desaparecer
supervenientemente, podendo enquadrar-se na figura da conditio ob causam finitam (art.
473.º, n.º 2, do CC).
Nestes termos, pode concluir-se no sentido de que tudo o que tenha sido adquirido pelo
requerente à custa do requerido em função de providência cautelar que acabou por caducar
deverá ser devolvido ao requerido12.

IV. Conclusão
Não obstante o aprofundamento da aplicação de todas estas atenuantes jurídicas como forma
de tutelar o requerido de providência antecipatória causadora de efeitos irreversíveis, a
possibilidade de garantir a anulação ou a prevenção de tais efeitos é praticamente impossível.
Por um lado, o próprio Código de Processo Civil admite a decretação de providências
cautelares antecipatórias no seu art. 362.º sem quaisquer restrições especiais.
Para além disso, e apesar do conteúdo de satisfação antecipada do requerente e da possível
gravosidade dos efeitos de tais providências cautelares, a proibição sem mais, quer das medidas
de conteúdo antecipatório, quer dos seus efeitos irreversíveis, não constitui, quanto a nós, uma

11Apenas o faz em casos de má fé do requerente (art. 387.º, do CPC).


12Questão diferente que nesta sede não cabe desenvolver refere-se à divergência entre o tipo de enriquecimento –
real ou patrimonial - que deverá ser tomado em conta para a contabilização do objecto/valor da restituição.

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opção. Apenas legitima os especiais cuidados e a procura de atenuantes que acabámos de
referir.
O estudo do Direito Comparado permite concluir que, em geral, e não obstante algumas
resistências doutrinárias, exigências especiais e por vezes, diferentes enquadramentos
dogmáticos, as providências cautelares antecipatórias acabam por ser aceites. A mesma
resposta, todavia, não vale para a possibilidade dos efeitos irreversíveis. Apesar disso, a doutrina
que se debruça sobre as diferentes disposições que, em diversos ordenamentos, parecem proibir
a irreversibilidade dos efeitos da tutela cautelar, acaba por encontrar o sentido da
irreversibilidade no plano jurídico. Ou seja, a tutela cautelar não pode produzir a força de coisa
julgada.
Aquele constitui, em geral, o único limite. O que, como já concluímos acima, é um limite
bastante insatisfatório. Por isso desenvolvemos o caminho trilhado acima de procurar as
atenuantes para o requerido. Esse foi o nosso limite. Ultrapassar esse limite e proibir os efeitos
irreversíveis de tutela cautelar a conceder ao requerente equivaleria a admitir a concessão de
tutela cautelar de efeitos irreversíveis à contraparte. E isso seria inadmissível. Pelo simples
motivo de que a balança pende, no procedimento cautelar, necessariamente para o lado do
requerente. Porque ele logrou demostrar a probabilidade séria do seu direito. Porque a ele
beneficia o fumus boni iuris.
Termina-se, por isso, com a conclusão de que, perante efeitos graves e dificilmente reparáveis
que podem ser causados a ambas as partes, verificados os pressupostos da tutela cautelar, o juiz
deve optar pela tutela do requerente. “Sacrificar o improvável ao provável” constitui, por isso, o
princípio que permite dar resposta à irreversibilidade dos efeitos da tutela cautelar antecipatória.

Maio de 2017

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