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Lukács e o Século XXI

Trabalho, Estranhamento e Capitalismo Manipulatório


Giovanni Alves

Lukács e o Século XXI


Trabalho, Estranhamento e Capitalismo Manipulatório

Apresentação de Ricardo Antunes

1ª Edição - 2010

Editora Praxis
Copyright do Autor, 2010
ISBN 978-85-7917-156-3

Produção Gráfica:
Canal6 Projetos Editoriais
www.canal6.com.br


A474l Alves, Giovanni.
Lukács e o Século XXI: Trabalho, Estranhamento e Capitalis-
mo Manipulatório / Giovanni Alves – Londrina: Praxis; Bauru:
Canal 6, 2010.
120 p. : il.

ISBN 978-85-7917-156-7

1. Capitalismo. 2. Georg Lukács. I. Giovanni Alves. II. Título.

CDD 330

Projeto Editorial Praxis


Free Press is Underground Press
www.editorapraxis.com

Impresso no Brasil/Printed in Brazil


2010
“Com justa razão se pode designar o homem que trabalha,
ou seja, o animal tornado homem através do trabalho,
como um ser que dá respostas”

Georg Lukács
Sumário

09 Apresentação

13 À título de introdução

19 Capítulo 1
A Trajetória intelectual de Georg Lukács
Da Geistwissenchaften à Ontologie des gessellschaftlichen Seins

27 Capítulo 2
O “Método” de Lukács
Cotidianidade e método histórico-genético

39 Capítulo 3
“Por uma Ontologia do Ser Social”
Elementos critico-categoriais básicos

57 Capítulo 4
Lukács e o Capitalismo Manipulatório
Desafios da atividade e do pensamento do homem no século XXI

85 Referências bibliografias

89 Anexo


Apresentação

O Retorno de Lukács

Ricardo Antunes

Filósofo maldito, Lukács – que em livro que co-organizamos em me-


ados dos anos 1990 foi assemelhado a Um Galileu no Século XX (Boi-
tempo, 1996) - tem inspirado muitos jovens estudiosos e pesquisadores.
No Brasil, desde a primeva introdução do filósofo húngaro, pelas
mãos diversas de Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e J. Chasin,
sua influência se vez – e faz – em várias gerações. Talvez seja o país onde
a obra de maturidade de Lukács encontre mais adeptos e seguidores.
Na Itália, a belíssima edição da Ontologia (cujo volume I data de
1976, trazendo a cuidadosa tradução de Alberto Scarponi) expressava,
por si só, a presença de Lukács e sua obra.
No México de algumas décadas atrás e também em outros países
da América Latina, algo aproximado se passou, ainda que em menores
proporções. E na Argentina atual, para citar outro exemplo contemporâ-
neo, pelo esforço principal de Herramienta, da importante revista e de
seu editorial (com Miguel Vedda e o italiano Antonino Infranca à frente),
vários textos de Lukács da maturidade estão sendo redescobertos.
Mas é no Brasil que tal fenômeno se manteve e em certo sentido
talvez tenha se ampliado. Se a influência de História e Consciência de

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Classe é das mais férteis no interior do marxismo do século XX em vá-
rias partes do mundo ocidental - bastaria lembrar sua contribuição sobre
o tema da totalidade e a riqueza da sua reflexão sobre o fenômeno social
da reificação/alienação, antes mesmo da publicação dos Manuscritos
de 1844 de Marx – agora parece ser a vez da sua Ontologia, na contra-
tendência ao marxismo de viés epistemologizante e/ou permeado pela
neopositivização à moda staliniana (e stalinista) que tantos malefícios
trouxeram para tantos marxismos do século que se foi.
A obra madura de Lukács certamente tem continuidade com vários
elementos analíticos presentes na sua juventude, de que são exemplos a
reificação, a alienação, os estranhamentos, as conexões entre mundo da
objetividade e da subjetividade, as questões metodológicas, a remissão
decisiva à vida cotidiana, a busca incessante da autenticidade humana e
de sua emancipação, etc, são temas que estiveram presentes na longa vida
do mais importante filósofo marxista do século XX e que ganham mais
força através da recuperação e da ênfase ontológica do velho Lukács.
Este pequeno livro de Giovanni Alves é um exemplo de como
a obra lukacsiana vem influenciando, no Brasil, uma gama de novos
estudiosos da teoria social que avançam nos estudos do mundo atual
através das pistas seminais da Ontologia de Lukács. Ele oferece ele-
mentos para a compreensão da trajetória intelectual de Lukács, seu
método, sua Ontologia do Ser Social, oferecendo, em particular,
uma leitura sugestiva acerca da tese lukacsiana do capitalismo manipu-
latório, atualizando-a e tornando-a contemporânea ao século XXI, que
começou estranho e ninguém sabe como transcorrerá.
Nas palavras de Giovanni Alves: “Segundo Lukács, objetivamente
o proletariado possui hoje condições materiais para uma vida plena de
sentido que entretanto, não se realiza, por conta da manipulação
social que impregna a vida burguesa. O capitalismo da grande indús-
tria de produção em massa tende (...) a erguer no interior desses indivi-

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duos, ‘uma barreira entre a sua existência e uma vida rica de sentido’. A
fruição da vida é reduzida ao gozo do consumo alienado. A ânsia fugaz
pelo consumo de mercadoria é incapaz de dar um sentido à vida. Eis o
sentido do estranhamento na ótica lukacsiana: o descompasso entre a
existência dos indivíduos e uma vida plena de sentido”.
E acrescenta: “Um mundo pleno de mercadorias é, segundo
Lukács, um mundo pleno de manipulação, que penetra não apenas os
poros da produção, mas também do consumo e da reprodução social”.
Emerge, então, o problema do estranhamento propriamente dito, que,
para Lukács, segundo o autor, “é o problema da vida plena de sentido
(o psicanalista austriaco Viktor Frankl salienta que o problema crucial
do nosso tempo é o problema da busca de sentido da vida).” O que, por
si só, nos convida à leitura deste livro de Giovanni Alves.

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À título de introdução

Este pequeno livro visa apresentar, de forma sintética, algumas


idéias do pensamento do último Lukács que podem contribuir para
uma tarefa candente do nosso tempo histórico: a crítica do “capitalismo
manipulatório”. O filósofo húngaro Georg Lukács (1885-1971) foi um
dos maiores filósofos marxistas do século XX. A obra tardia de Lukács
contém preciosas indicações teórico-categoriais que podem contribuir
efetivamente para a critica do capital em sua etapa de crise estrutural1.

1 Este pequeno livro reúne as aulas revisadas e ampliadas do mini-curso virtu-


al “Lukács e o século XXI” oferecido por mim, no segundo semestre de 2009. O
mini-curso surgiu como atividade complementar “não-oficial” do III Seminário
Internacional. Teoria Política do Socialismo: György Lukács e a emancipação
humana, realizado na UNESP–Campus de Marília, de 17 a 21 de agosto de 2009.
Considerei importante realizar uma atividade preparatória à distância, sobre o
pensamento vivo de Georg Lukács que conseguisse ir alem da mera exegese acadê-
mica e fosse capaz de resgatar o valor da reflexão lukácsiana para a pesquisa social
comprometida com a critica do capitalismo do século XXI. Além das aulas, o livro
contém em Anexo, pequenos textos de Georg Lukács que considerei importante
resgatar. Primeiro, o texto-conferência intitulado “As bases ontológicas do pensa-
mento e da atividade do homem” (de 1968); e depois, a segunda e terceira entrevis-
ta concedida por Lukács a Leo Kofler e Wolfgang Abendroth em 1965 e publicada
no Brasil no livro “Conversando com Lukács” (Ed. Paz e Terra, 1969, edição esgota-
da). Além do mini-curso “Lukács e o século XXI”, participei, em agosto de 2009, a
convite do Prof. Dr. Ricardo Antunes, de uma mesa de conferencia no II Seminário
Margem Esquerda. István Mészáros e os desafios do tempo histórico (realizado de
18 a 21 de agosto de 2009), na USP; e, a convite do Prof. Dr. Antonio Rago, como
conferencista no Colóquio Internacional Ontologia, filosofia e história (Uma

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A obra tardia de Lukács, como “O Capital” de Karl Marx, é uma
obra incompleta. O velho Lukács faleceu antes de concluir o projeto
de sua Ética marxista. Podemos considerar a última década de vida de
Lukács – a década de 1960, dedicada aos trabalhos preparatórios da
Ética (o volumoso manuscrito, a Ontologia do Ser Social), como sendo
a década de renascimento do pensamento lukácsiano a partir de uma
nova perspectiva mais adequada para tratar dos problemas fundamen-
tais do capitalismo tardio. Nesse momento, Lukács resgata, de modo
explícito, o caráter ontológico do pensamento de Marx.
É em maio de 1960, quando tem inicio a elaboração da sua Ética
marxista, que o velho marxista húngaro, aos 75 anos de idade, promove
uma importante inflexão epistemológica na história do marxismo do
século XX e na sua própria trajetória intelectual. Na verdade, é a partir
do resgate explicito da ontologia na obra de Marx que tem inicio a fase
de maturidade plena (e inconclusa) de Georg Lukács. O contato com
os escritos ontológicos de Nicolai Hartmann, no decorrer da década de
1950, exerceu um papel crucial na trajetória do filósofo húngaro. Como
observou Nicola Tertulian, “os escritos ontológicos de Nicolai Hart-
mann jogaram o papel de catalizador na reflexão de Lukács, provavel-
mente inculcando-lhe a idéia de buscar na ontologia e suas categorias
as bases de seu pensamento.” (Tertulian, 2007). A abordagem da “Es-
tética” de Lukács, escrita na década de 1950, muda de configuração, ao
elaborar um nexo entre a análise da obra de arte e questões de ordem
ontológica, embora a palavra “ontologia” não tenha sido utilizada por
Lukács, o que só iria ocorrer no começo da década de 1960 com uma
mudança de postura do autor em relação à palavra (Vaisman, 2007).

homenagem a José Chasin), realizado na PUS/SP, nos dias 10,11 e 12 de agosto de


2009. Agradeço a Ricardo Antunes e Antonio Rago pelo incentivo e reconhecimen-
to como interlocutor veraz da reflexão lukácsiana no Brasil. Agradeço também o
apoio e colaboração inestimável de Thayse Palmela e Paulo Mazzini.

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Neste pequeno livro não temos a mínima pretensão de aprofun-
dar temáticas que têm sido, nas últimas décadas, objeto de debates en-
tre os especialistas da obra lukácsiana. Nosso objetivo é tão-somente
salientar a importância do pensamento do último Lukács, em contraste
com as outras etapas de sua trajetória intelectual, tendo em vista que, é
a partir da obra tardia de Lukács que podemos efetivamente promover
a atualidade radical do seu pensamento no contexto histórico da mun-
dialização do capital. Apesar de incompleta, é a obra tardia de Lukács
que o projeta como um autor do século XXI.
Nas últimas décadas de desenvolvimento do capitalismo global, o
sistema mundial do capital exacerbou como traço essencial de seu so-
ciometabolismo, a manipulação. Por isso, mais do que qualquer outro
adjetivo que possamos atribuir ao capitalismo do nosso tempo (“glo-
bal”, “financeiro”, “cognitivo” ou “flexível”) o atributo “manipulatório”
visa salientar um traço essencial e ineliminável do novo capitalismo
nas condições da crise estrutural do capital.
A manipulação perpassa a produção e a reprodução social do ca-
pital, constituindo obstáculo decisivo ao desenvolvimento do ser hu-
mano-genérico. A manipulação devassa a vida cotidiana. Da produção
ao consumo, do trabalho ao lazer, da cultura à política, a manipulação
aparece como elemento essencial do modo de controle sociometabóli-
co do capital em sua etapa tardia. Ela inverte e perverte a práxis huma-
na corroendo as tênues possibilidades da “negação a negação” no inte-
rior de um sistema mundial produtor de mercadorias que exacerbou à
exaustão suas contradições sistêmicas.
Em plena década de 1960, ao utilizar o conceito de “capitalismo
manipulatório”, Lukács salientou uma característica fundamental do
novo capitalismo que iria emergir a partir da crise estrutural do capital
na década seguinte. Ora, Lukács não viveu para ver as transformações
candentes do capitalismo global. A mundialização do capital impulsio-

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nada pela grande crise de meados da década de 1970 nos países capita-
listas centrais, exacerbaria as tendências críticas do capitalismo tardio. A
reestruturação capitalista assumiria uma dimensão totalizante e totalitá-
ria no plano mundial. Os “trinta anos gloriosos” de expansão capitalista
do pós-guerra (1945-1975) seriam seguidos por “trinta anos perversos”
(1975-2005) de reestruturação produtiva do capital, desemprego em
massa, políticas neoliberais e intensificação da manipulação capitalista
nas várias instâncias do ser social. A crise estrutural do “Welfare State” e
a vigência perversa do mercado com a ideologia neoliberal, que impreg-
na não apenas a economia e a política, mas a cultura e a psicologia de
massa, colocam obstáculos candentes à práxis humana emancipatória.
Sob o capitalismo manipulatório, mais do que nunca, a disputa
pela subjetividade do homem que trabalha, tornou-se essencial para a
reprodução social do sistema mundial do capital (Alves, 2007). No plano
da produção, o toyotismo impôs-se como ideologia orgânica da produ-
ção de mercadorias. A ideologia do consumismo e os valores-fetiches do
mercado colocaram imensos desafios à práxis coletiva num contexto de
ofensiva do capital nas várias instâncias da vida social. Intensifica-se o
fetichismo da mercadoria e suas derivações sociometabólicas.
Na verdade, sob o capitalismo manipulatório, o metabolismo social
é tencionado à exaustão pela nova dinâmica capitalista. Coloca-se com
vigor, o problema da práxis humana capaz de “negação da negação”. Para
que possa renascer, a crítica marxista é obrigada a enfrentar no plano
do pensamento, a problemática da reprodução social e da vida cotidiana
(o que Antonio Gramsci constatou, de modo pioneiro, na virada para o
“capitalismo organizado” da década de 1930, como sendo o problema da
hegemonia). A “ruptura copernicana” ou “virada ontológica” de Lukács -
da estética para a ética - significa colocar na agenda da reflexão marxista,
o desvelamento crítico (e histórico-ontológico) da vida cotidiana.
É interessante que, sob a temporalidade histórica do capitalismo tar-
dio, Henri Lefebvre, Karel Kosik, , Jean-Paul Sartre, Kostas Axelos, André

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Gorz, Agnes Heller (inspirada no seu mestre, Georg Lukács), entre outros,
abriram, cada um a seu modo, um campo de discussão sobre a cotidiani-
dade. Na verdade, o tema da vida cotidiana remete ao tema da alienação
capitalista que se impõe como problema fundamental do nosso tempo (o
último capítulo da “Ontologia do Ser Social”, de Lukács, que, segundo Wer-
ner Jung poderia ser denominada Ontologia da Vida Cotidiana, é dedicado
à discussão do estranhamento [Entfremdung]) (Jung, 2007).
O marxismo dialético do pós-guerra, crítico voraz da vulgata
marxista-leninista, renasce elaborando a crítica da vida cotidiana. Sob
o neocapitalismo tornam-se imprescindíveis inovações ontológico-
categoriais capazes de dar uma resposta à necessidade histórica de “re-
nascimento do marxismo” (como diria Lukács). Não é a toa que um
dos mais prolíficos discípulos de Lukács - István Mészáros, inaugurou
a seminal critica do capital, dissecando a teoria da alienação em Marx
no seu livro clássico “A teoria da alienação em Marx”, publicado origi-
nalmente em 1972 (Mészáros, 2006).
O problema da alienação ou estranhamento é o problema da vida
cotidiana. Eis a verdadeira inflexão ontológica lukácsiana que emerge
no período histórico do capitalismo tardio. A critica da manipulação
capitalista é a crítica da vida cotidiana como critica do ser social bur-
guês, não mais a partir de uma perspectiva da “consciência de classe
atribuída”, mas fizera Lukács em “História e Consciência de Classe”,
mas a partir da “consciência de classe contingente e necessária”, como
exposto por István Meszáros (Meszáros, 2008).
Deste modo, o que buscamos salientar neste pequeno livro é que a con-
tribuição seminal de Georg Lukács para o século XXI é abrir uma agenda
de investigação social numa perspectiva histórico-ontológica capaz de dar
conta dos problemas da reprodução social, isto é, investigar na perspectiva
histórico-genética, a ontologia da vida cotidiana e o complexo de ideologias
que constituem o novo metabolismo social do capitalismo manipulatório.

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A “virada ontológica” de Lukács repõe a “critica da economia po-
lítica” ou critica da visão de mundo burguesa, não apenas como “critica
da economia” ou “critica da política” (como o marxismo do século XX
cultivou em demasia), mas, sim, a critica da vida cotidiana, no sentido
de decifrar de forma concreta, o sociometabolismo do capitalismo ma-
nipulatório. A nova crítica da economia política, que Lukács apontava
como necessária, é a crítica do sociometabolismo do capital em sua
fase de crise estrutural. Não deixa de ser curioso que, nas últimas dé-
cadas, a maior parte dos lukácsianos no Brasil, apesar de terem dado
atenção a “virada ontológica” do velho Lukács, não conseguiram pôr,
como tema crucial de suas agendas investigativas, o problema da vida
cotidiana e o problema da alienação no seu sentido radical. Na verdade,
são pouquíssimos os estudos inovadores que tratam hoje, do tema can-
dente do estranhamento sob o capitalismo global. Em geral, o lukácsia-
nismo brasileiro padece de reiteradas exegeses filosóficas, necessárias,
mas insuficientes, da obra do velho mestre húngaro.
Ora, a “virada ontológica” de Lukács implicou ir além da pauta epis-
temológica do “marxismo ocidental”. O último Lukács abriu uma agenda
de investigação capaz de ir além do universo marxista que predominou
no século XX. Ela exige uma intervenção sociológica propriamente dita.
Enfim, o que queremos salientar é que o último Lukács é, in potentia,
um homem do século XXI, o século da capitalismo manipulatório.
O que Lukács aponta é a necessidade de pesquisas sociais concre-
tas capazes de desvelar os meandros do novo metabolismo social do ca-
pital nas condições de sua crise estrutural. O último Lukács acena não
para uma filosofia da vida cotidiana, mas sim para uma sociologia da
vida cotidiana (como pontuou Agnes Heller) capaz de discutir a práxis
social no sentido da formação humano-genérica (Heller, 1987).

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Capítulo 1

A Trajetória intelectual de
Georg Lukács

Da Geistwissenchaften à
Ontologie des gessellschaftlichen Seins

Na medida em que se aproximou do marxismo, Georg Lukács


teve uma trajetória de vida intelectual-pessoal peculiar aos desdo-
bramentos do que Perry Anderson denominou “marxismo ocidental”
no século XX. Aliás, pode-se considerá-lo como sendo o fundador do
“marxismo ocidental”. Segundo Merleau-Ponty, o “marxismo ociden-
tal” começa com a obra “História e Consciência de Classe” (HCC), de
Georg Lukács, publicada em 1923 (Merleau-Ponty, 2006).
A expressão “marxismo ocidental” busca caracterizar a constelação
político-intelectual do marxismo do século XX que a partir do início dos
anos 1920, delimitou diferenças com o que julgavam ser uma interpreta-
ção “mecanicista” e “positivista” do legado de Marx; o que os diferencia
tanto do marxismo da II Internacional, quanto do “marxismo soviético”,
o marxismo-leninismo da III Internacional. Este conjunto de pensadores
marxistas, com notáveis diferenças teórico-criticas entre si, incluem, en-
tre outros, além de Georg Lukács (a partir de HCC), Karl Korsh, Antonio
Gramsci, Herbert Marcuse, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Theodor
Adorno e Ernst Bloch. Os autores do marxismo ocidental buscaram dar
uma maior ênfase nos estudos da subjetividade, da cultura, da arte e da
filosofia (Anderson,1989; Merquior,1987; Loureiro e Musse, 1998).
Pode-se dividir a trajetória intelectual de Lukács em quatro etapas:
Na primeira etapa (1907-1919), Georg Lukács ainda não é mar-
xista, mais cultiva em seu espírito uma profunda insatisfação com o

19
Lukács e o século xxi

prosaísmo da vida burguesa que se explicitará numa reflexão trágica


a partir das formas culturais, com destaque para o teatro e a poesia.
Neste período, o jovem Lukács viveu a ascensão e o débacle da civiliza-
ção burguesa, isto é, a belle époque do império austro-hungaro (1907-
1914) e a barbárie social da I Primeira Guerra Mundial (1914-1917).
Filho de um banqueiro húngaro, Lukács teve um padrão de vida bur-
guês, mas, desde cedo, cultivou a crítica trágica, quase anímico niilista, do
mundo burguês. Por isso, em 1910, aos 25 anos, publica “A Alma e as For-
mas”, livro composto de ensaios de critica cultural, onde Lukács defende
a oposição radical entre a vida autêntica, com aspiração ao absoluto, e o
mundo ordinário, reduzido à impureza material da sociedade capitalista.
Da impossibílidídade de conciliação entre o absoluto e o relativo, emerge
uma visão trágica da existência e uma crença na salvação messiânica.
No ano seguinte, em 1911, ele publica em húngaro, “A História da
Evolução do Drama Moderno”, em que estabelece o conflito entre o desejo
humano de realização e a reificação capitalista como fundamento do dra-
ma moderno. Novamente, eis a problemática fundamental lukácsiana,
apreendida numa ótica trágico-niilista de cariz neokantista, que expressa
o sofrimento entre a interioridade do homem e o mundo exterior.
A Primeira Guerra Mundial e seus resultados histórico-politicos
na Rússia e na Europa Central (Revolução Alemã e Revolução Hungará)
contribuirão para uma inflexão fundamental no pensamento lukacsia-
no. De 1914 a 1918 Lukács se aproxima de Hegel e assume a dialética,
rompendo com o neokantismo que influenciava a constelação inte-
lectual das “ciências do espírito” (geistwissenchaften). É a Revolução
Russa e seus desdobramentos politicos na Hungria, que impulsionará
Georg Lukács para a segunda etapa de sua vida intelectual, quando ele,
aos 34 anos, se aproxima do marxismo “sob a forma de historicismo
abstrato, embasando um ativismo revolucionário fortemente assimila-
do de Rosa Luxemburgo” (Netto, 1981)

20
A Trajetória intelectual de Georg Lukács

A critica radical da miséria da vida burguesa, que caracterizou


a primeira etapa do desenvolvimento intelectual de Georg Lukács, e
que era feita, naquela época, na perspectiva das “ciências do espírito”
(geistwissenchaften), será um traço essencial do pensamento intelec-
tual de Georg Lukács. Aliás, podemos considerá-lo como o tema fun-
damental e fundante do devir intelectual de Lukács no mundo, tema
que ele irá preservar, mutatis mutantis, por toda a vida intelectual até
a morte (bem mais tarde, Lukács encontrará sua formulação crítico-te-
órica mais adequada, na categoria de “estranhamento”, cerne essencial
da tragédia humano-genérica sob o mundo do capital).
Nesta primeira etapa de seu desenvolvimento intelectual, a rebel-
dia espiritual do jovem Lukács diante do prosaísmo da vida burguesa se
desdobrará em sucessivos trânsitos ideológico-téoricos. Ele passa, por
exemplo, da influência neokantista à aproximação hegeliana, que cons-
tituirão sub-etapas intelectuais, nesta primeira grande etapa da vida
intelectual do filósofo húngaro.
A segunda etapa do itinerário intelectual de Lukács (1919-1930)
é uma fase de transição entre o criticismo burguês de viés estético-kan-
tiano e depois hegeliano, para o marxismo de novo tipo, um “marxismo
dialético”, que já nasce contraposto ao universo teórico-filosófico da II
Internacional. Portanto, esta segunda etapa é um período de transição
ao marxismo ontológico.
Em 1920, Lukács publica o livro “A Teoria do Romance”, que apa-
recera, em 1916, sob a forma de artigo, no periódico Zeitschrift fúr
Astkettk und Allgemeine Kunstwissenschaft. Nessa obra, Lukács
analisa o romance como expressão da sociedade capitalista moderna,
caracterizada pela cisão entre o indivíduo e o mundo, opondo-se à for-
ma grega da epopeia, caracterizada pela harmonia e totalidade ético-
estética. Novamente aparece a problemática fundamental lukácsiana: o
tema da cisão trágica entre individuo e mundo.

21
Lukács e o século xxi

Entretanto, três anos depois, em 1923, produto do seu amadure-


cimento intelectual, sob as condições históricas da Revolução Alemã, o
filósofo húngaro, já filiado ao Partido Comunista da Hungria desde 1918,
publica, aos 38 anos, o livro “História e Consciência de Classe”, uma das
mais polémicas obras de sua trajetória, duramente criticada tanto pela
“direita” como pela “esquerda” do movimento comunista internacional.
O alvo principal da condenação do livro reside em seu idealis­mo revolu-
cionário, transposto da filosofia hegeliana. Em HCC, Lukács faz uma lei-
tura original do marxismo, contrastando-se com o marxismo positivista
da II Internacional e mais tarde, com o marxismo-leninismo.
A terceira etapa do itinerário intelectual de Lukács (1930-1960)
é a mais longa das etapa de formação do marxismo lukácsiano. É um
percurso de re-elaboração critica do marxismo onde o projeto ontoló-
gico está apenas implícito. A apreensão ontológica do marxismo está
pressuposta em germe, na medida em que as linhas diretrizes da inves-
tigação lukácsiana neste período, partem da teoria materialista da obje-
tividade baseada na crítica de Marx à filosofia especulativa de Hegel.
Em 1930, Lukács abandona a Áustria e segue para Moscou, onde
passa a trabalhar no Instituto Marx-Engels. Lê os “Manuscritos Eco-
nómicos e Filosóficos” de 1844. Lukács diria mais tarde que “a leitu-
ra desses manuscritos mudou toda minha relação com o marxismo
e transformou minha perspectiva filosófica.”. É nos “Manuscritos de
Paris” que Marx fazia o reconhecimento da objetividade enquanto
propriedade originária de todo ente. Lukács se aproxima do que seria
o projeto histórico-ontológico de Marx. Entretanto, na época, Lukács
tinha sérias desconfianças e suspeitas em relação à palavra “ontologia”,
resistindo em utilizá-la. Por exemplo, a “ontologia” na conotação dada
por Martin Heidegger era um valor negativo para ele (Vaisman, 2007).
Em sua autobiografia intitulada “Pensamento Vivido”, Lukács re-
lembra a “virada epistemológica” que ocorreu, naquela época, em seu

22
A Trajetória intelectual de Georg Lukács

pensamento com o reconhecimento da objetividade enquanto proprie-


dade originária de todo ente e o caráter histórico de todo ser. Diz ele:
“Marx elaborou principalmente – e esta eu considero a parte mais
importante da teoria marxiana – a tese segundo a qual a categoria fun-
damental do ser social, e isto vale para todo ser, é que ele é histórico.
Nos manuscritos parisienses diz que só há uma única ciência, isto é, a
história,e até acrescenta: ‘Um ser não-objetivo é não-ser’. Ou seja, não
pode existir uma coisa que não tenha qualidades categoriais. Existir,
portanto, significa que algo existe numa objetividade de determinada
forma, isto é, a objetividade de forma determinada constitui aquela ca-
tegoria à qual o ser em questão pertence.” (Lukács, 1999)
No decorrer dos anos de 1930, Lukács dedica-se à critica literária,
uma elaboração marxista original que assumiria, na década de 1950,
sua forma quase-acabada com a volumosa obra da “Estética”. É impor-
tante que se diga que a critica literária de Lukács não é meramente for-
malista, mas contém elementos de uma visão ontológico-materialista
do mundo, onde ele exerce, de certo modo, a critica da vida cotidiana
através da “totalidade concreta” da arte realista.
Esta terceira etapa do desenvolvimento intelectual de Lukács é um
período preparatório para a elaboração sistemática do que viria a ser, a
partir de 1960, o “marxismo ontológico”. Nessa época, Lukács inicia a
elaboração da sua “Ética”, cujos trabalhos preparatórios se transforma-
ram no volumoso manuscrito, a “Ontologia do Ser Social”, concebida
como uma necessária introdução à obra principal.
Na quarta etapa da trajetória intelectual de Lukács (1960-1971),
o filosofo marxista húngaro desenvolve, de modo explicito, seu projeto
ontológico. Primeiro, Lukács muda sua postura em relação à palavra “on-
tologia”. O contato com a volumosa “Ontologia”, de Nicolai Hartmann,
desde começos da década de 1950; e o livro de Ernst Bloch, “Questões
Fundamentais da Filosofia – Pela ontologia do ainda-não-ser”, publicada

23
Lukács e o século xxi

em 1961, contribuíram para que o velho Lukács decidisse elaborar, no


sentido de explicitar, a partir de Marx, a ontologia marxista concebida
como introdução à Ética (Vaisman, 2007). Na sua “Estética”, os proble-
mas ontológicos estavam presentes. Entretanto, ao decidir elaborar uma
“Ética”, Lukács se depara com a necessidade de elaborar, como trabalho
preparatório, uma ontologia do ser social a partir de Marx.
Nesta quarta etapa de sua trajetória intelectual, Lukács põe efeti-
vamente o projeto ontológico de Marx na perspectiva da elaboração de
uma Ética, obra capaz de resgatar o compromisso candente com o mar-
xismo radical, onde ser radical é ir até a raiz das coisas, e a raiz das coisas
é o próprio homem. Portanto, o marxismo de Lukács é uma marxismo
humanista que busca analisar, numa perspectiva histórico-ontológica, as
relações sociais entre os homens a partir da (crítica) da vida cotidiana.
Etapas da trajetória intelectual de Georg Lukács

Critica radical do mundo burguês


(cisão entre individuo e gênero)

1ª. etapa (1907-1919)


2ª. etapa (1919-1930)
3ª. etapa (1930-1960)
4ª. etapa (1960-1971)

24
A Trajetória intelectual de Georg Lukács

Ao colocar como telos tardio de seu itinerário intelectual, a elabo-


ração de uma ética marxista, Lukács explicitou, primeiro, a importância
de apreender a dialeticidade da práxis sócio-humana sob as condições
avançadas do processo civilizatório e, depois, a necessidade da crítica
do sistema estranhado do capital em sua fase manipulatória. Ele sabia
que a própria construção do socialismo do século XXI seria obra de
homens e mulheres conscientes de sua radicalidade, e comprometido
com valores ético-morais emancipatórios capazes de contribuir para
o desenvolvimento humano autêntico. Este seria o sentido radical do
socialismo como produto da democratização radical da sociedade.
O que marca a última etapa da trajetória intelectual de Lukács, a
quarta (e inconclusa) etapa de seu desenvolvimento teórico, é a sistema-
tização explicita dos princípios ontológicos do pensamento de Marx, no
sentido de uma critica da vida cotidiana, isto é, do próprio ser social. Em
sua critica literária, como salientamos acima, Lukács já ensaiava a criti-
ca da vida cotidiana burguesa com seus traços de alienação e estranha-
mento. Ora, a temática do “estranhamento”, como salientamos acima, é a
temática crucial do marxismo lukácsiano, constituindo-se objetivamente
como problemática fulcral de crítica do capital em sua etapa tardia.
Dizer que o problema histórico fundamental é o problema do es-
tranhamento significa colocar, como problema crucial do nosso tempo
histórico, o abismo entre as capacidades humano-genéricas ampliadas
pelo processo de desenvolvimento civilizatório, com a redução das bar-
reiras naturais e o aprimoramento do trabalho humano, e os obstáculos
sociais postos pelo capital à efetividade do ser genérico do homem.
Deste modo, confirma-se a problemática fundamental e fundan-
te do pensamento critico de Georg Lukács, que ele re-elabora desde a
sua juventude, em direção a uma compreensão histórico-ontológica: o
conflito abismal entre possibilidades concretas de desenvolvimento
humano-genérico e o mundo social do capital, cujas relações sociais

25
Lukács e o século xxi

fetichizadas e estranhadas desefetivam o ser genérico do homem.


Por exemplo, no livro de 1910, “A Alma e as Formas”, a problemática do
estranhamento aparecia, ainda mistificada, pela oposição radical entre
vida autêntica, com aspiração ao absoluto, e mundo ordinário, reduzi-
do à impureza material da sociedade capitalista.
Em sua “Ontologia do ser social”, a discussão lukácsiana da cate-
goria “trabalho”, categoria ontológica fundante do ser social, e as dis-
cussões da categoria “ideologia” e categoria “reprodução social”, onde
Lukács trata, por exemplo, da “genericidade em si” e “para si”, culmi-
nam efetivamente na categoria “estranhamento” (Entfremdung). Es-
tamos diante dos pressupostos teóricos para a discussão de uma Ética
marxista, capaz de explicitar, numa perspectiva dialético0-materialista,
os termos ontológicos da práxis emancipatória do homem (uma onto-
logia do ainda-não-ser da “negação da negação”).
O tema crucial da época do capitalismo manipulatório é o tema
do “estranhamento”, com todas as suas implicações no plano das in-
dividualidades humano-genéricas e da práxis social emancipatória. O
velho Lukács percebeu que o almejado “renascimento do marxismo”
implica a capacidade dos pesquisadores marxistas apreenderem no
plano teórico-categorial, a nova estrutura do metabolismo social do
capital com suas múltiplas determinações concretas. Diria Marx: “Hic
Rhodus, Hic Salta”1.

1 A expressão “Hic Rhodus, hic saltus!” aparece numa fábula de Esopo onde um
atleta fanfarrão que era muito criticado pelo seu desempenho físico viaja para
Rodes e, no retorno, diz que fez o maior salto já visto e que tinha testemunhas
lá para provar. Então, um de seus interlocutores responde-lhe para ele imaginar
que estava em Rodes e fazer o salto, dizendo para o atleta: “Hic Rhodus, hic sal-
tus!” (Aqui está Rodes, agora salta!).

26
Capítulo 2

O “Método” de Lukács

Cotidianidade e método
histórico-genético

No livro “Conversando com Lukács”, de 1967, o filosofo húngaro dis-


corre, numa conversa com intelectuais alemães Leo Kofler, Wolfgang Aben-
droth e Hans Heinz Holz, sobre o que seria seu método de investigação crítica
de cariz histórico-ontológico. Iremos apresentar, neste capítulo, algumas das
características do método de Lukács a partir desta conversa memorável1.
Num primeiro momento, o velho Lukács coloca a centralidade da
vida cotidiana para a investigação histórico-ontológica. Na perspectiva
da construção do marxismo ontológico, o conceito de cotidianidade ad-
quire, para o último Lukács, importância fundamental. Ao invés da vida
cotidiana ser a “obscuridade do instante vivido” que deve ser superado,
como ele a tratava em seus escritos da década de 1930; ou o “obstáculo
à consciência de classe do proletariado que é preciso eliminar”, como ele
a caracterizava em HCC, a vida cotidiana aparece, para o último Lukács,
como sendo uma esfera que representa o ponto inicial e o final de toda
atividade humana, na medida em que dela derivam as capacidades e exi-
gências com relação às objetivações, que encontram sua aplicação últi-
ma na vida cotidiana. Portanto, no último Lukács, e isto está perceptível
principalmente a partir de sua grande “Estética”, o conceito de vida coti-
diana ou cotidianidade aparece com um sentido de positividade.

1 Todas as citações de Lukács são de extratos de sua conversa extraídos do livro


“Conversando com Lukács” (Holz, H., Kofler, L. e Abendroth, W. (1969)).

27
Lukács e o século xxi

A cotidianidade ou vida cotidiana pode ser interpretada como


sinônimo do conceito de vida social. A cotidianidade ou, em termos
ontológicos, o respectivo ser social, deve ser considerado, segundo
Lukács, como “um inequívoco factum brutum de uma realidade so-
cial dada”, o “imediatamente dado”, o “ser-assim” [Sosein], ou o “ser-
precisamente-assim” [Geradesosein] como base para a reflexão. Para
ele, a especificidade da vida cotidiana consiste em que, aqui, sempre se
encontra implicado o “homem inteiro”. O homem da vida cotidiana é
sempre o homem inteiro que pensa, sente e atua.
Na “Estética”, Lukács apresenta a cotidianidade como “continuidade,
carente de métodos, de tendência heterogênea.” É a intercessão dos mo-
mentos mais diversos e contraditórios: tradição e inovação, rotina e varie-
dade. Segundo Werner Jung, a vida cotidiana para Lukács é uma “constante
oscilação entre decisões fundadas em motivos de natureza instantânea e
fugaz e decisões baseadas em fundamentos rígidos, embora poucas vezes
fixados intelectualmente (tradição, costumes)”. Entretanto, salienta Lukács,
o ser humano reage na cotidianidade diante dos objetos que o cerca, de um
modo espontaneamente materialista, independentemente de como o sujei-
to da prática possa interpretar sua reação) (Jung, 2007).
Na verdade, o centro da reflexão da obra inconclusa de Lukács, a
“Ética”, é a vida cotidiana, tendo em vista que ela é o fundamento, a “ime-
diaticidade mediada”, a partir do qual se realiza a ética e seu postulado
normativo: a individualidade do ser humano ou “o humano”. Entretanto,
na medida em que é introduzida na reflexão ontológica, a cotidianidade
ou a vida cotidiana em Lukács, como observa Jung, “toma consciência de
sua própria imediaticidade e ingressa na evolução histórica”. Diz ele:
“Tendo em vista que Lukács parte de uma ‘processualidade univer-
sal’, sua ‘Ontologia’ não deve circunscrever-se numa mera fenomenologia
da vida cotidiana (como fizeram Henri Lefebvre e Karel Kosik eu suas ex-
posições acerca da cotidianidade). Tanto em seu caráter de ponto de parti-

28
O “Método” de Lukács

da sistemático enquanto imediaticidade, como em sua condição de ponto


final da ‘Ontologia’ enquanto imediaticidade mediada, a cotidianidade é
incorporada à reconstrução do processo histórico, e os elementos pertur-
badores – sua suposta e fática ahistoricidade, a “obscuridade do momento
vivido”- são desvelados em suas mediações dialéticas.” (Jung, 2007).

Vida cotidiana como ponto de partida

Na ótica metodológica do último Lukács, sempre é preciso come-


çar por questões da vida cotidiana. Diz ele: “Na vida cotidiana os pro-
blemas ontológicos se colocam num sentido muito grosseiro.” Lukács
utilizou a palavra “grosseiro” no sentido de problemas em estado bruto
que exigem um tratamento critico-analitico. A vida cotidiana ou a co-
tidianidade, é, deste modo, um inequívoco “factum brutum” de uma
realidade social dada, o “imediatamente dado”, o “ser-assim” [Sosein],
ou o “ser-precisamente-assim” [Geradesosein]. Em seu estado bruto,
os problemas ontológicos da vida cotidiana são, para ele, o ponto de
partida de toda reflexão critica do ser social.
Na investigação sobre a vida cotidiana, as diversas formas de ser
(ser inorgânico, ser orgânico e ser social), estão sempre unidas entre elas
e o seu interrelacionamento constitui o dado primário. É com questões
da vida cotidiana que devemos apreender o devir humano dos homens
que constitui o ser social. Diz Lukács sobre a vida cotidiana: “É daqui que
se deve começar – do homem e suas ações e reações ao mundo externo; e
de um ser social cujo desenvolvimento histórico ocorre sob a base ineli-
minável do ser inorgânico e ser orgânico”. Eis o que existe de fundamen-
tal como princípio de investigação ontológica do ser social.
Por exemplo: Lukács estuda a especificidade do fato estético. Mas ele
não reduz o fato estético a uma entidade da alma humana, como imagina a

29
Lukács e o século xxi

filosofia acadêmica. Na verdade, ele observa que os homens dependem sem-


pre, de algum modo, para a defesa e construção de sua existência, das formas
diversas sobre a base das quais eles organizam cada uma de suas ações e rea-
ções ao mundo externo. Por isso, os desenhos da idade da pedra encontrados
em cavernas pré-históricas, não eram meros fatos estéticos propriamente di-
tos, mas eram na realidade, preparativos mágicos para a caça. Diz o filósofo
húngaro: “Aqueles animais não eram pintados com finalidades estéticas, mas
sim porque os homens daqueles tempos acreditavam que uma boa represen-
tação de um animal equivalente a uma melhor possibilidade de caça. Esta
pintura é, então, uma reação utilitarista, ainda primitiva, à vida.”

Cotidianidade como momento de uma conexão geral

Lukács salienta que as conexões da vida cotidiana são sempre muito


variadas e complexas. Ele nos dá outro exemplo: “Vai-se a uma loja e compra-
se uma gravata e seis lenços. Se tentar a representação do processo neces-
sário para que o senhor e os lenços se encontrem no mercado, então verá
que se podem constituir um quadro muito variado e complexo.” Deste modo,
a investigação ontológica sobre o real busca sempre apreender as múltiplas
conexões que permeiam a “totalidade concreta” do ser social, sempre a partir
dos quadros complexos e variados da vida cotidiana, totalidade concreta his-
toricamente mutável, sendo ela a própria base do ser e suas transformações.
Num certo momento, Lukács observa: “O fato de que novos fenômenos se
deixem deduzir geneticamente sobre o fundamento de sua existência coti-
diana é apenas o momento de uma conexão geral, isto é, significa que o ser
é um processo de tipo histórico.” (o grifo é nosso)
Lukács esclarece que um ser, no sentido estrito, não existe, e, por
isso mesmo, um ser que estamos acostumados a chamar de cotidianidade
é uma determinada fixação bastante relativa de determinados complexos

30
O “Método” de Lukács

no âmbito de um processo histórico. Ou seja, ao dizer que devemos ter


como ponto de partida a vida cotidiana, Lukács não fetichiza a cotidiani-
dade, mas busca apreende-la como o momento de uma conexão geral de
determinados complexos no âmbito de um processo histórico.

Ciência ontológica como pesquisa genética: gênese e de-


senvolvimento

Lukács critica a ciência social que acredita que o melhor tipo de aná-
lise é aquela em que se compreende cada aspecto e cada maneira de ma-
nifestar-se da vida, nas mais altas formas de sua objetivação. Ele observa
que não se pode descer de uma forma mais alta a uma forma mais baixa.
Para Lukács o caminho ou metodologia que se deve adotar é o da pesquisa
genética. Diz ele: “Devemos tentar pesquisar as relações nas suas formas
fenomênicas iniciais e ver em que condições estas formas fenomênicas
podem tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas”. Deste modo,
para o filósofo húngaro, o melhor tipo de análise é o da pesquisa genéti-
ca que apreende, no plano do pensamento, o movimento das formas mais
baixas do ser como complexo originário (no sentido de questões colocadas
no âmbito da vida cotidiana), para as mais altas formas de objetivações.
Pesquisa genética implica em apreender a gênese, as relações nas suas for-
mas fenomênicas iniciais, e o desenvolvimento do ser, o tornar-se cada vez
mais complexas e mediatizadas destas formas fenomênicas iniciais.
Vejamos, por exemplo, a origem da ciência. Para Lukács, ela
origina-se no momento em que, o homem que trabalha, em cada posi-
ção teleológica, mesmo que se trate de um homem da idade da pedra,
pergunta-se se o instrumento com que lida, é apropriado ou não ao
fim a que se propõe (eis uma questão sempre colocada em nossa vida
cotidiana). Mesmo se nos reportarmos a uma época anterior, na qual o

31
Lukács e o século xxi

homem primitivo, para satisfazer a certas funções, limitava-se a reco-


lher as pedras mais adequadas, por exemplo, para arrancar um ramo,
ele precisava escolher, entre duas pedras, qual era a mais adequada. Diz
Lukács: “Com esta escolha da pedra inicial, começa a ciência.”.
Entretanto, Lukács observa que a ciência moderna desenvolveu-
se, pouco a pouco, em um aparato autônomo de mediações, na qual os
caminhos que conduzem às últimas decisões práticas, são extraordina-
riamente longos, como podemos observar hoje, em todas as fábricas.
Diz ele: “Creio que é muito mais seguro reconstituir o caminho da gê-
nese da ciência, começando pela escolha da primeira pedra utilizada
para funções de trabalho, e terminando com a ciência, ao invés de co-
meçar pela matemática superior e retornar depois à escolha da pedra.”
Lukács observa de modo categórico: “...se quisermos compre-
ender os fenômenos em sentido genético, o caminho da ontologia é
inevitável, e que se deve chegar a extrair, das várias circunstâncias que
acompanham a gênese de um fato qualquer, os momentos típicos ne-
cessários para o próprio processo.”
É por isso que Lukács considera, como essencial para a investigação
crítica, a questão ontológica. Só na perspectiva ontológica podemos apre-
ender os fenômenos no sentido genético, isto é, no sentido da apreensão
da gênese e do desenvolvimento dos fenômenos, sendo o “desenvolvimen-
to” no sentido dos momentos típicos necessários para o próprio processo.
Temos nesse caso, o significado da categoria dialética de “mediação”, que
exige para sua apreensão, os momentos típicos do próprio processo.

A ciência da história como única ciência

Para Lukács, do ponto de vista ontológico, as fronteiras entre as


ciências têm um significado secundário. Diz ele: “Marx e Engels ob-

32
O “Método” de Lukács

servaram que a única ciência é a ciência da história, ciência unitária


que vai da astronomia à sociologia.” É por isso que o filósofo húngaro
salienta o primado do objeto sobre quaisquer fragmentações gnoseoló-
gica que impedem a apreensão, em si e para si, da totalidade concreta
do ser em movimento. Para Lukács, o fundamental são as conexões do
ser: “A conexão vem tratada como conexão existente, enquanto é con-
siderado secundário perguntar-se qual a ciência que dela se ocupa.” É a
partir do primado ontológico do objeto frente à compartimentalização
disciplinar do ser social promovida pelo sujeito do conhecimento, que
Lukács coloca, depois de Marx e Engels, que a única ciência, no sentido
de ciência ontológica do ser social, é a ciência da história.
Lukács observa que, o objeto da ciência ontológica do ser social, é o
que existe realmente; ou como ele diz: “...investigar o ente com a preocupa-
ção de compreender o seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas
conexões no seu interior.” Nesta longa citação da entrevista, Lukács nos es-
clarece, a partir de um exemplo típico da vida cotidiana, o significado da
ciência ontológica do ser social baseada, primeiro, no primado do objeto,
a prioridade da realidade do real e, segundo, na importância do método
histórico-genético, isto é, a partir da vida cotidiana, compreender os fenô-
menos complexos partindo dos fenômenos originários. Diz ele:
“Quando um automóvel vem ao meu encontro na encruzilhada
posso vê-lo como um fenômeno tecnológico, como um fenômeno socio-
lógico, como um fenômeno relativo à filosofia da cultura, etc; no entanto,
o automóvel real é uma realidade, que poderá me atropelar ou não. O ob-
jeto sociológico ou cultural ‘automóvel’ é produzido, antes de mais nada,
em um ângulo visual que depende dos movimentos reais do automóvel
e é a sua reprodução no pensamento. Mas o automóvel existente é, por
assim dizer, sempre primário em relação ao ponto de vista sociológico a
seu respeito, já que o automóvel andaria mesmo que eu não fizesse so-
ciologia alguma sobre ele, ao passo que nenhum automóvel será posto

33
Lukács e o século xxi

em movimento a partir de uma sociologia do automóvel. Há, pois, uma


prioridade da realidade do real, se assim se pode dizer; e segundo penso,
devemos tentar voltar a estes fatos primitivos da vida e compreender os
fenômenos complexos partindo dos fenômenos originários.”

Ontologia do ser social – primado do objeto


A prioridade da realidade do real
Método histórico-genético
A partir da vida cotidiana, compreender os fenômenos
complexos partindo dos fenômenos originários.

O primado do complexo do ser

A vida cotidiana ou cotidianidade é, para Lukács, o ponto de partida


a partir do qual ele constrói geneticamente a ontologia. Foi Nicolai Hart-
man quem pela primeira vez, ao tratar da natureza inorgânica, observou
que os fenômenos complexos têm uma existência primária. Entretanto,
Lukács salienta que o complexo deve ser estudado como complexo, para
depois chegarmos aos seus elementos e aos processos elementares. O que
significa que não devemos primeiro, encontrar determinados elementos,
para depois construir certos complexos a partir de sua ação recíproca, o
que é uma critica ao individualismo metodológico de Max Weber que re-
duz a sociedade à ação social, isto é, a ação recíproca entre os indivíduos.
Lukács utiliza um exemplo da biologia. Diz ele que a vida é um
complexo primário: “A vida do organismo interior representa a força que,
em última instância, determina os processos singulares. A síntese dos
movimentos de cada músculo, dos nervos, e de todo o resto, mesmo que
os conhecêssemos um a um com precisão científica, a soma destas partes,
diz, nunca poderia fazer surgir um organismo. Ao contrário, os processos
parciais só são compreensíveis como partes do organismo completo.”

34
O “Método” de Lukács

Portanto, o homem é, em si, um complexo, no sentido biológico; e,


como complexo humano, não pode ser, do mesmo modo, decomposto;
por isso, se quero compreender os fenômenos sociais, devo considerar
a sociedade, desde o princípio, como um complexo composto de com-
plexos. Para Lukács, o problema decisivo está em como são constituídos
estes complexos e como podemos chegar à essência real da sua natureza
e da sua função, ou seja, da compreensão genética da origem e da forma-
ção destes complexos. Eis o significado do método histórico-genético.
Deste modo, na perspectiva ontológica, o desenvolvimento do ser
social não ocorre do simples para o complexo, como supõe a sociolo-
gia evolucionista de viés organicista; mas sim, do complexo para outro
complexo. Mesmo o ser social menos desenvolvido, não deixa de ser
constituído por um complexo composto de complexos.
Ao contrário da visão funcionalista de Émile Durkheim, que faz
constantes analogias entre o ser social e o ser orgânico, a perspectiva de
Lukács busca salientar a especificidade do ser social em contraste com
o ser orgânico e ser inorgânico. O fenômeno absolutamente destituído
de analogia com o ser orgânico é o trabalho, que, segundo ele, é uma
espécie de “átomo” da sociedade e um complexo extraordinariamente
complicado. Para Lukács, o trabalho é, ao mesmo tempo, uma posição
teleológica do homem que trabalha; e a colocação em movimento de
uma ordem causal real na direção requerida pela posição teleológica.

Trabalho e o campo do desconhecido

Na posição teleológica, o homem empenhado no trabalho não


está nunca em situação de abarcar todas as condições da ordem causal
posta em movimento por ele mesmo. Por isso, como observa Lukács, se
deduz que, com o trabalho, de modo geral, se dá origem também a algo

35
Lukács e o século xxi

diverso da intenção originária do homem que trabalha. Não sendo co-


nhecido os condicionantes do trabalho, os resultados são sempre algo
diverso. E observa: “Mais precisamente, aparece também algo diferente
daquilo que se originariamente se pretendia fazer”.
O que Lukács conclui é que, com a ampliação das experiências
com as suas conexões, se amplia também o terreno do desconhecido; ao
contrário do que supõe, por exemplo, o cientificismo. Diz ele: “Quanto
mais conhecemos a natureza, com a qual a ciência e o trabalho estão em
relação de troca, tanto mais evidente resulta este medium desconheci-
do, pleno das conseqüências mais importantes para o desenvolvimento
posterior da humanidade.” E prossegue: “Este âmbito desconhecido e
não matrizado da reprodução social, não está circunscrito aos estados
primitivos, mas existe também nos estados mais evoluídos”.
O velho Lukács observa que o capitalista industrial, mesmo encara-
do isoladamente, domina melhor sua produção particular que o artesão
da antiguidade ou da época medieval. Entretanto, do complexo capitalista
da produção e do consumo, desenvolveram-se forças desconhecidas, que
explodiram posteriormente nas crises. No caso do capitalismo moderno,
diz Lukács, “é vã ilusão acreditar que se possa ter o domínio duradouro
do andamento econômico (como pensam Keynes e outros)”.
Um detalhe: dez anos após esta afirmação de Lukács, ocorreu, em
1975, a primeira recessão generalizada da economia capitalista mun-
dial no pós-guerra, demonstrando que o receituário keynesiano de
combate a crise capitalista falhara flagrantemente, contribuindo, deste
modo, para a derrocada eleitoral do governo trabalhista no Reino Uni-
do e do governo democrata nos EUA, propiciando assim, a ascensão
política do receituário neoliberal da conservadora Margaret Thatcher
(Reino Unido) e o republicano Ronald Reagan (EUA). Foi vã ilusão dos
economistas keynesianos, acreditarem que tinham dominado o desen-
volvimento da economia de mercado do pós-guerra, evitando, com

36
O “Método” de Lukács

seus aparatos macroeconômicos, as crises contundentes da economia


capitalista. No bojo do complexo capitalista de produção e consumo da
“era de ouro” do capitalismo mundial, os ditos “trinta anos gloriosos”
do pós-guerra (1945-1975), surgiram candentes contradições sistêmi-
cas que impulsionaram “forças desconhecidas”, que levaram à “gran-
de crise” capitalista de meados da década de 1970. Diante das novas
“forças desconhecidas” do capitalismo mundial, como por exemplo, o
poder global das corporações capitalistas, o aparato de gestão keynesia-
na das crises, baseado em políticas macroeconômicas conduzidas pelo
Estado-nação, mostrou-se deveras ineficaz.
Em síntese: de acordo com a perspectiva ontológica, a vida cotidiana
ou cotidianidade é ponto originário, com a categoria trabalho sendo seu
modelo ontológico. No trabalho como complexo originário fundante do ser
social, está contido algo para além de si, isto é, algo para além da posição
originária do homem que trabalha, uma esfera do desconhecido que se
explica pelo fato do homem que trabalha, não dominar todos os condicio-
nantes de sua atividade. Portanto, a partir daí, Lukács salienta um proble-
ma ontológico da maior relevância: “Quanto mais uma coisa é complexa,
tanto mais ilimitado, seja extensivamente, seja intensivamente, é o objeto
diante da qual se encontra a consciência do homem, de modo que mesmo
o melhor saber só pode ser um conhecimento relativo e aproximativo.”
(o grifo é nosso) Deste modo, a pesquisa genética trata de complexos de
complexos, cujo conhecimento é sempre relativo e aproximativo.

Categorias como formas do ser (gênese e desenvolvimento)

Para Marx, as categorias são formas e determinações da exis-


tência. Este é um dos princípios do “método genético” que Lukács nos
apresenta. Por isso, ele toma o livro “O Capital – Crítica da Economia

37
Lukács e o século xxi

Política”, de Karl Marx, como exemplo. Em sua obra magna, Marx co-
meça pela troca mais elementar de mercadorias. E a partir daí, nos
fornece a determinação ontológica da gênese do dinheiro. Diz Lukács:
“Da ontologia da troca de mercadorias decorre, finalmente, a determi-
nação genética do dinheiro como mercadoria geral. Marx demonstra,
depois, como o fato de que o ouro e a prata se tornem formas per-
manentes de dinheiro está em conexão ontológica comas qualidades
físicas do ouro e da prata. Estes metais prestavam-se às condições de
uma troca generalizada, de modo que foi principalmente com base nes-
ta propriedade que surgiu a preponderância do ouro e da prata como
meios gerais de troca, isto é, como dinheiro.” (os grifos são nossos) E
observa: “O dinheiro nasceu ontologicamente, de maneira simples, a
partir dos atos de troca. Mas os antigos não tinham chegado ao ponto
de poder formular esta explicação ontológica.”
Portanto, a concepção de “método” em Lukács rompe com o viés
gnosiológico implícito na própria idéia de método, como concebe o
positivismo. Método em Lukács (e Marx) não significa arcabouço de
procedimentos a serem aplicados no processo de pesquisa social. Ora,
como a perspectiva ontológica significa o primado do objeto, o verda-
deiro método significa apreender o movimento do objeto em sua lega-
lidade específica, evitando aplicar categorias formalmente construídas
pela mente do pesquisador (procedimento gnoseológico).
Enfim, a dialética não está na cabeça do pesquisador, mas sim no
próprio movimento do real. Por isso, o método dialético não é apenas
um método capaz de orientar a mente do pesquisador a construir tipos
ideais, mas sim, um modo de ser do real, onde a função do pesquisador
é exercer o controle ontológico, apreendendo as formas de ser catego-
rial do real e as condições de sua existência. A dialética não constrói
tipos ideais, mas visa apreender tipos categoriais.

38
Capítulo 3

“Por uma Ontologia do Ser Social”

Elementos critico-categoriais básicos

Utilizaremos como texto-base de reflexão neste capítulo, a con-


ferencia escrita por Georg Lukács em 1968 e que deveria ser apresen-
tada no Congresso Filosófico Mundial, realizado em Viena neste ano.
Entretanto, Lukács não pode comparecer a este Congresso. O texto da
conferência intitulou-se “As Ba­ses Ontológicas do Pensamento e da Ati-
vidade do Homem”, tendo um caráter sumário e esquemático da filoso-
fia do último Lukács. Ele foi publicado pela primeira vez no Brasil em
1978, na Revista Temas de Ciências Humanas, com tradução de Carlos
Nélson Coutinho. Muitas questões fundamentais que constam neste
texto só seriam desenvolvidas posteriormente na obra monumental
inacabada de Lukács: a Ontologia do Ser Social.1
A ontologia do ser social, do qual o texto “As Bases Ontológicas
do Pensamento e da Atividade do Homem”, é uma pequena e densa
síntese, abriria o caminho para a ambição teórica de Lukács de redigir
uma Ética marxista. Como explicamos no capítulo 1, lo­go ao concluir
a “Estética”, Lukács se propõe à reda­ção de uma “Ética”. Entretanto, ele
considera que uma ética marxista só poderia ser construída a partir de
uma ontologia histórico-materialista do ser social.

1 Todas as citações de Lukács neste capítulo são do texto “As bases ontológicas
do pensamento e da atividade do homem” publicado no livro “O jovem Marx e
outros escritos de filosofia”. Editora UFRJ, 2007.

39
Lukács e o século xxi

Organizaremos nossa exposição neste capítulo, a partir de três


eixos questionadores2:
a) “Categorias básicas”, isto é, a matriz con­ceitual básica, os con-
ceitos essenciais do corpo científico da ontologia histórico-
materialista de G. Lukács, em torno da qual gira a sua aborda-
gem teórica.
b) “Autodefinição”, ou seja, a imagem teórica própria da aborda-
gem lukacsiana a partir da sua au­todefinição e pretensão ex-
plicativa, isto é, o que distingue a “versão” lukacsiana de outras
abor­dagens marxistas.
c) “Fenômenos sociais privilegiados”, isto é, os aspectos da reali-
dade social, que é sempre muito mais rica que a sua constru-
ção cientifica, privilegiados pela abordagem lukacsiana neste
esboço da sua ontologia histórico-materialista.

O resgate da perspectiva ontológica

A preocupação de Lukács com a “Ontologia”, numa perspectiva


histórico-materialista, está intimamente ligada à necessidade de ins-
taurar as bases epistemo­lógicas para o conhecimento do ser social
naquilo que ele tem de “fundante” e “estruturante”, isto é, instituir as
bases ontológicas do Pensamento e da Ativi­dade humana a partir da
categoria trabalho, formada por posi­ções teleológicas que põem em
funcionamento sé­ries causais; e a consideração do Todo, na sua forma
de ser, como processo histórico que se transforma.

2 O texto deste capítulo é uma versão revista e ampliada do pequeno artigo “O


pensamento de Lukács”, publicado por mim em 1986 no Suplemento Cultural do
jornal “O Povo”, um dos principais jornais diários de Fortaleza (CE).

40
O “Método” de Lukács

A perspectiva ontológica de Lukács é o oposto da ontologia clássica,


metafísica, especula­tiva, não ancorada no real, no histórico, no material.
Considerar o marxismo como uma ontologia significa reafirmar a “ra-
dicalidade” do método de Marx, onde ser “radical” é ir até a raiz, isto é,
ir até o homem, ou seja, o ser social naquilo que ele tem de “fundante”
e “estruturante”: a práxis humana material e histórica. “O que aqui nos
propomos - diz-nos Lukács no seu Esboço - é mostrar como o elemento
fìlosoficamente resolutivo na ação de Marx consistiu em ter esboçado os
lineamentos de uma ontologia histórico-materialista, superando teórica
e praticamente o idealismo lógico-ontológico de Hegel”.
O ato materialista de “repor sobre os pró­prios pés” a ontologia de
Hegel significa:
1. No plano epistemológico , a ontologia marxia­na afasta todo
elemento lógico-dedutivo. Se os ve­lhos materialistas tinham
como ponto de partida o átomo; e se Hegel tinha como ponto
de partida o ser abstrato (o “Espírito”), em Marx não existe
nada aná­logo. É o que diz Lukács: “Todo existente deve ser
sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e
movido) de um complexo concreto”.

Assim, para Lukács não existe algo do qual se deduza logicamen-


te a Realida­de, algo como, por exemplo, o “Espírito” em Hegel do qual
se deduzia as objetivações mais complexas da cultura humana. O ser
em seu conjunto, na onto­logia marxiana, é visto como um processo
histórico e as categorias são formas moventes e movidas dá própria
matéria” (“formas do existir, determinações da existência”- Marx).
Aqui entra a relação entre a consciência e matéria. Na ontologia
de Marx, não po­demos subestimar a importância da consciência com
relação ao ser material. Marx entendia a consciência como um produto
tardio do desenvolvimento do ser material. Entretanto, o produto tar-

41
Lukács e o século xxi

dio não é jamais necessariamente um produto de menor valor ontoló­


gico, como afirma, por exemplo, a Ontologia de He­gel, numa inversão
idealista, ao considerar as obras da cultura humana, produto tardio da
evolução do “Espírito”, como um produto de menor valor ontoló­gico.
A consciência, como parte movente e movida do complexo concreto
material, tem um real poder no plano do ser e não é carente de força,
como su­põe certos modos vulgares de interpretar Marx,
2) No plano histórico, a ontologia de Marx afasta todo elemento
teleológico. As filosofias anteriores concebiam a posição tele-
ológica como particularida­de de um sujeito transcendente à
Natureza e à So­ciedade (as Ontologias religiosas); ou conce-
biam a posição teleológica como particularidade de uma na­
tureza especial onde as correlações atuavam de mo­do teleo-
lógico, com a finalidade de atribuir à nature­za e à sociedade
tendências de desenvolvimento de tipo teleológico (as Ontolo-
gias imanentistas especula­tivas – Hegel).

Na Ontologia de Marx, a posição te­leológica é uma particularida-


de do ser social. Entre­tanto isso não significa que no plano da evolução
his­tórica haja uma teleológia. É o que ressalta Lukács: “Numa socieda-
de tomada realmente social, a maior parte das atividades cujo conjunto
põe a totalidade em movimento é certamente de origem teleológica,
mas a sua existência real é feita de conexões causais que jamais e em
nenhum sentido podem ser de cará­ter teleológico”.
Iremos ver a seguir, ao tratarmos do item “categorias básicas”, o
porquê dessa duplicidade na consideração da teleologia e causali­dade
no âmbito do ser social.

42
O “Método” de Lukács

Categorias básicas

A geratriz básica do corpo de conceitos da abor­dagem lukacsiana


do marxismo, a sua “Ontologia do Ser Social”, é a categoria de trabalho.
Esta categoria fundamenta a Ontologia de Lukács como eminentemen-
te histórico-materialista, pois é a partir do trabalho que iremos com-
preender toda a especificidade do ser social face aos outros modos de
ser (o ser orgânico e o ser inorgânico).
Entretanto, o traba­lho é produto da evolução do ser orgânico, de
uma forma mais simples de ser para uma forma mais complexa (a passa-
gem de um tipo de ser a outro, ­onde ocorreu um “salto”). Essa forma mais
complexa é algo qualitativamente novo, cuja gênese não pode jamais ser
simplesmente “deduzida” da forma mais simples (esse “salto” é o que
ocorreu na passagem do ser inorgânico para o ser orgânico, ou seja, a
reprodu­ção da vida em contraposição ao simples tornar-se outra coisa; e
ocorreu na passagem do ser orgânico para o ser social, isto é, a adapta-
ção ativa com a modifi­cação consciente do ambiente, em contraposição à
adaptação meramente passiva etc.) Diz Lukács: “Para que possa nascer o
trabalho, enquanto base dinâmico­estruturante de um novo tipo de ser, é
indispensável um determinado grau de desenvolvimento do pro­cesso de
reprodução orgânica”. Mas, continua adiante o nosso autor, “a essência do
trabalho consiste praticamente em ir além dessa fixação dos seres vivos
na competição biológica com. seu mundo ambiente” (o grifo é nosso).

43
Lukács e o século xxi

Trabalho
(produto da evolução orgânica)
Posições teleológicas que movimenta séries causais
Dar respostas aos carecimentos que o meio natu­ral provoca
no animal tornado homem.
Abre a possibilidade do desenvolvimento superior
dos homens que traba­lham

Ser social
(adaptação ativa com a modificação consciente do ambiente)
Ser orgânico
(Reprodução da vida
(adaptação meramente passiva)
Ser inorgânico
Tornar-se meramente outra coisa

Existem cer­tos tipos de trabalhos em algumas espécies de ani­mais,


inclusive com um certo desenvolvimento da di­visão do trabalho (abe-
lhas, etc.). Entretanto, aí o tra­balho não conseguiu se tornar princípio de
desenvolvimento posterior no sentido de um novo tipo de ser, no caso, o
ser social, mantendo-se, ao contrário, como estágio estabilizado (“fixação
dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente”), ou
seja, como um “beco sem saída” no desen­volvimento biológico.
A essência do trabalho que instaurou esse “salto” em direção à
constituição do ser social (o “trabalho humano”), é efetivamente ca-
racterizada por esse “ir além” da adaptação meramente passiva ao am-
biente natural. Ir além dessa adaptação meramente passiva signifi­ca

44
O “Método” de Lukács

dar respostas aos carecimentos que o meio natu­ral provoca no ani-


mal tornado homem.
O trabalho, a atividade laborativa que fabrica produtos, surge co­
mo solução de respostas aos carecimentos que a Na­tureza provoca. É o
que Lukács nos diz: “O homem que trabalha é um ser que dá respostas”.
Todavia, para o filosofo húngaro, o homem torna-se um ser que dá
respostas, isto é, um ser que fabrica produtos, na medida em que,
paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente,
ele generaliza, transformando em per­guntas seus próprios careci-
mentos materiais e suas possibilidades de satisfazê-los por meio dos
produtos sociais fabricados por ele.
Ora, o que Lukács quer ressal­tar é que não apenas a resposta,
mas também a per­gunta é um produto imediato da consciência que
guia a atividade laborativa. Todavia, isso não anula o fato de que o ato
de responder é o elemento ontologi­camente primário neste complexo
dinâmico. Ele destaca: “O momento essencialmente separatório (entre
o ser da natureza orgânica e o ser social - ­G.A,) é constituído não pela
fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência (...) o produto,
diz Marx, é um resultado que no início do processo exis­tia ‘já na repre-
sentação do trabalhador’, isto é, de modo ideal”.
Estaria Lukács defendendo princípios idealistas? É claro que não.
O que ele quer enfatizar aqui - e is­so é muito importante - é o perigo
de desprezarmos esse campo de mediações que articulam a atividade
laborativa, vendo apenas como relação imediata “trabalho = fabricação
de produtos” e atribuindo à consciência um papel de mero epifenôme-
no da re­produção biológica.
Para Lukács, o trabalho, que não é mera­mente a fabricação de pro-
dutos, abre a possibilidade do desenvolvimento superior dos homens que
traba­lham, com a consciência tendo, no início e dentro do processo de
trabalho, um papel ativo e decisivo. É no trabalho, no complexo laborati-

45
Lukács e o século xxi

vo, que resi­de intimamente o complexo problemático mais alto: a relação


dialética teleologia (consciência) e causali­dade (natureza).
Outra coisa: além do trabalho expressar a nova peculiaridade do
ser social, converte-se no modelo da nova forma do ser em seu conjun-
to. Assim, o trabalho é o modelo objetivamente ontológico de toda práxis
so­cial e toda práxis social contém em si esse caráter contraditório.
Diz-nos Lukács: “O trabalho é formado por posi­ções teleológicas
que, em cada oportunidade, põem em funcionamento séries causais”.
Temos presente aqui o complexo problemático mais alto que emerge da
categoria trabalho: o da liberdade e o da necessidade; o da teleologia
e o da causalidade.
De um lado, nós temos a “liberdade”: toda práxis é uma decisão
entre alternativas, já que todo indivíduo singular, sempre que fez algo,
de­ve decidir se o faz ou não. Assim, todo ato social, por­tanto, surge de
uma decisão entre alternativas acer­ca de posições teleológicas futuras.
Mas, por outro lado, existe a “necessidade social”, que exerce pres­
são sobre os indivíduos, freqüentemente de maneira anônima, a fim de
que as decisões deles tenham uma determinada orientação.
Marx delineia correta­mente essa condição, dizendo que os ho-
mens são impelidos pelas circunstâncias a agir de determinado modo
“sob pena de se arruinarem”. Eles devem, em última instância, rea-
lizar por si as próprias ações, ainda que freqüentemente atuem contra
sua própria convicção.
Lukács expressa brilhantemente essa contraditoriedade do ser social
- cuja condição é o complexo do trabalho - com as seguintes palavras:
“’Os homens fazem sua história - diz Marx - mas não em circuns-
tâncias por eles escolhidas’. Isso quer dizer o mesmo que antes formula-
mos do se­guinte modo: o homem é um ser que dá respostas. Expressa-
se aqui a unidade, contida de modo contraditoriamente indissolúvel no
ser social, entre li­berdade e necessidade; ela já opera no trabalho co­mo

46
O “Método” de Lukács

unidade indissoluvelmente contraditória das de­cisões teleológicas entre


alternativas com as premis­sas e conseqüências ineliminavelmente vin-
culadas por uma relação casual necessária. Uma unidade que se repro-
duz continuamente sob formas sempre novas, cada vez mais complexas e
mediatizadas, em todos os níveis sócio-pessoais da atividade humana”.
No processo global do trabalho, o sujeito individual realiza, certa-
mente, a posição teleológica de modo consciente, isto é, ele sabe o que
está fazendo, mas sem jamais estar em condições de ver todos os con-
dicionamentos da própria atividade, para não falar­mos de todas as suas
conseqüências, isto é, ele não sabe o que vai provocar (tratamos disso no
capítulo 1 quando discutimos o trabalho e o campo do desconhecido).
Muitas vezes o homem tem clara consciência de não poder co-
nhecer senão uma pequena parte das circunstâncias em que vai atuar.
Entretanto, sob pena de se arruinar, é absolutamente necessário que o
homem aja. Esta situação inelimi­nável criada pela dialética do trabalho
com posições teleológicas que põem em movimento séries causais des-
conhecidas pelo homem, possui duas importantes conseqüências:
1. O aperfeiçoamento cons­tante do trabalho com o “recuo
das barreiras naturais” (­Marx), isto é, o trabalho se diversifi-
ca nos mais diver­sos campos da atividade humana, subindo
de nível tanto em extensão quanto em intensidade, fazendo
com que cresça a faixa de determinações da realida­de que se
tornam cognoscíveis ao homem.
2. Esse processo de aperfeiçoamento do trabalho hu­mano não
pode eliminar a incognoscibilidade do con­junto das cir-
cunstâncias em que age o sujeito indivi­dual. Esse modo de
ser do trabalho, a presença sempre de uma faixa do “desco-
nhecido”, desperta também “a sensação intima de uma reali-
dade transcendente”. Segundo Lukács, essa é uma das fontes
das formas ideológicas da magia e da religião, inclusive com

47
Lukács e o século xxi

o “modelo” dire­to do trabalho sendo utilizado, como exem-


plo, para os mitos religiosos de criação divina da realidade,
onde todas as coisas aparecem como produzidas teleologi­
camente por um criador consciente. Assim, o aperfeiçoa­
mento do trabalho, uma das suas características ontológicas,
chama à vida produtos sociais de or­dem mais elevada.

A diferenciação interna do aper­feiçoamento do trabalho provoca


a crescente auto­nomização das atividades preparatórias da praxis
humana: surgem a matemática, a geometria, a física, a química etc.
que eram originariamente momentos orgânicos do processo prepara-
tório do trabalho3.

3 A perspectiva ontológica da dialética do trabalho exposta pelo último Lukács é a


resposta materialista à problemática “autonomização dos conteúdo” tratada por
Georg Simmel (1858-1918) de acordo com a perspectiva idealista da “filosofia
da vida”. Diz Simmel: “Com base nas condições e necessidades práticas, nossa
inteligência, vontade, criatividade e os movimentos afetivos, elaboramos o ma-
terial que tomamos do mundo. De acordo com nossos propósitos, damos a esses
materiais determinadas formas, e apenas com tais formas esse material é usado
como elemento de nossas vidas. Mas essas forças e esses interesses se libertam,
de um modo peculiar, do serviço à vida que os havia gerado e aos quais estavam
originalmente presos. Tornam-se autônomos, no sentido de que não se podem
mais separar do objeto que formaram exclusivamente para seu próprio funcio-
namento e realização. Por exemplo, todo conhecimento parece ter um sentido
na luta pela existência, Saber o verdadeiro comportamento das coisas tem uma
utilidade inestimável para a preservação e o aprimoramento da vida. Mas o co-
nhecimento não é mais usado a serviço dos propósitos práticos: a ciência tornou-
se um valor em si mesma. Ela escolhe seus objetos por si mesma, modela-os com
base em suas necessidades internas, e nada questiona para além de sua própria
realização.” (Simmel, 2006) Essa dialética entre formas e conteúdo ou a guinada
da determinação das formas pelas matérias da vida para a determinação de suas
matérias pelas formas que se tornaram valores definitivos, é o modo de Simmel
conceber a “alienação”. Entretanto, como falta-lhe uma ontologia histórico-mate-
rialista do ser social, a idéia de que “os meios tornam-se fins em si mesmos”, ou
ainda, “as formas criadas pelas finalidades e pelas matérias da vida se despren-

48
O “Método” de Lukács

Dialética do Trabalho
Aperfeiçoamento cons­tante do trabalho
(o “recuo das barreiras naturais” M
­ arx),

A crescente incognoscibilidade do con­junto das circunstân-


cias em que age o sujeito indivi­dual.

(ampliação da faixa do “desconhecido”)

É a divisão do trabalho como conseqüência do desen­volvimento


do próprio trabalho que cria tipos de posi­ções teleológicas novas que,
com o nascimento das classes sociais com interesses antagônicos, se
tor­nam a base espiritual-estruturante do complexo laborativo (aquilo
que o marxismo chamaria de ideolo­gia).
Lukács desenvolvendo a sua Ontologia do Ser Social a partir do
“trabalho com posições teleológicas que movimenta séries causais”, re-
alça uma das ca­racterísticas da Ontologia de Marx: a negação de uma
teleologia na História. Diz ele: “O processo global da sociedade é um
processo causal, que possui suas pró­prias normatividades, mas não é
jamais objetivamente dirigido para a realização de finalidades. Mes­mo

dem dela e se tornam finalidade e matéria de sua própria existência” aparece


para ele meramente como o “destino” irremediável da dialética da vida, ao invés
de ser percebida como produto da dialética histórico-materialista do trabalho. O
sociólogo Georg Simmel, foi o mais importante e mais influente filosofo do cir-
culo de Max Weber, freqüentado por Lukács em sua juventude. Segundo Lukács
(em 1953), o pensamento de Simmel deve ser compreendido como expressão do
descontentamento anticapitalista dos intelectuais alemães, e situado no quadro
global da tendência de crítica anticapitalista da cultura.

49
Lukács e o século xxi

quando alguns homens ou grupos homens conseguem realizar suas fi-


nalidades, os resultados produzem, via de regra, algo que é inteiramen-
te di­verso daquilo que se havia pretendido.“
Portanto, o processo do trabalho, que contém, no seu intimo, a dia-
lética entre liberdade e necessidade, teleolo­gia e causalidade, possui tam-
bém como uma de suas características ontológicas, (1) o aperfeiçoamento
do próprio trabalho que expõe aos homens a realida­de de uma dialética
cumulativa entre o “conhecido” e o “desconhecido”; onde, no nível da histó-
ria, (2) o ho­mem está cada vez mais à mercê do “desconhecido” casual.
Por exemplo, certos eventos econômicos podem surgir à mente, com
a aparência de irresistíveis catástrofes naturais, como foi a crise de 1929; e
isto apesar dos homens terem consciência de que são capazes de assumirem
posições teleológicas no processo do tra­balho cotidiano. Entretanto, Lukács
ressalta que “o fator subjetivo conserva-se sempre, em muitos cam­pos, como
um fator por vezes modificador e, por ve­zes, até mesmo decisivo”.
Esta é a contraditoriedade concreta que uma ontologia materia-
lista tornada his­tórica afirma ao descobrir a gênese, o crescimento, as
contradições no interior do desenvolvimento uni­tário do ser social ins-
tituído pelo complexo do traba­lho.

Autodefíníção

A abordagem lukacsiana do marxismo se autodefi­ne, primeira-


mente, como uma reação teórica ao neopositivismo que recusa, em
princípio, toda e qualquer colocação ontológica.
O domínio neopositi­vista não ocorre apenas na vida filosófica
propria­mente dita, mas permeia também o mundo da práxis mani-
pulatória. Os métodos de pensamento neoposi­tivista determinam as

50
O “Método” de Lukács

constantes teóricas dos grupos dirigentes políticos, militares e econô-


micos de nosso tempo.
A necessidade de uma nova ontologia, o que Lukács denominou de
“renascimento do marxismo”, ontologia histórico-materialista capaz de
superar efetivamente as concepções decadentes da ontologia re­ligiosa e
as concepções estéreis da ontologia imanentista-especulativa, é a neces-
sidade de dar conta dos novos processos sociais e fenômenos ideo­lógicos
para os quais não se encontra solução nos “clássicos” (em nossa época,
Marx, Engels e Lênin seriam necessários, mas insuficientes).
Essa abordagem de Lukács se autodefine, portanto, como um
comba­te contra os dois pilares ideológicos do capitalismo manipula-
tório, o irracionalismo e o neopositivismo; e a ne­cessidade de uma
Ontologia histórico-materialista, que renasceria livre das suas defor-
mações positivis­tas que a herança ideológica stalinista promoveu. Diz-
nos Lukács: “Reveladora é, nesse caso, a relação com o marxismo. Na
história da filosofia, como se sa­be, raramente o marxismo foi entendi-
do como uma ontologia.”
Aliás, a preocupação ontológica de Lu­kács é estranha à moderni-
dade filosófica. A natureza ontológica da obra de Marx foi obscureci-
da no mar­xismo e também a filosofia burguesa desprezou a on­tologia,
quer nas vertentes positivistas e neopositivistas (o racionalismo for-
mal da filosofia analítica, de Wittgenstein, do “Círculo de Viena” e do
estruturalis­mo). Em poucas palavras: a ênfase ontológica de Lu­kács
contraria frontalmente as tendências filosóficas contemporâneas.
A abordagem lukácsiana do marxismo se auto­define também
como uma nova maneira de enten­der, no seio da história do marxismo, o
problema da relação entre consciência e matéria. Em Lukács, a cons-
ciência não é subestimada com relação ao ser material; não é um mero
epifenômeno da reprodu­ção biológica, como pregam as vertentes vulga-
res do marxismo; para ele, a consciência, apesar de ser um pro­duto tardio

51
Lukács e o século xxi

do desenvolvimento do ser material, tem um papel decisivo e ativo no


processo global do tra­balho que forma o ser social. É o que Lukács diz:
“Quando se diz que a consciência reflete a realidade e, sobre essa base,
torna possível intervir nessa realidade para modificá-la, quer dizer que a
consciência tem um real poder no plano do ser e não - como se supõe a
partir das supracitadas visões irrealistas ­- ela é carente de força”.
Inclusive, ao atribuir à consciência o papel decisivo e ativo de
delimitar, através do processo de trabalho material, o ser da natureza
orgânica e o ser social, Lukács dá um verdadeiro sentido ao complexo
problemático da liberdade e da necessidade: “Nos casos em que a cons-
ciência não se tornou um poder ontológico efetivo - diz-nos Lukács
- essa oposição (entre necessidade e liberdade - G.A) jamais pode ter
lugar. Em troca, quando a consciência possui objetivamente esse papel,
ela não pode deixar de ter um peso na solução de tais oposições”.
Essa perspectiva ontológica de Lukács irá abrir caminhos para a re-
solução criativa de muitas questões modernas colocadas pela manipulação
social peculiar ao capitalismo tardio e pelas novas formas de alienação que
surgem nos países capitalistas e nos países de transição socialistas.

Fenômenos sociais privilegiados

Esta abordagem ontológica de Georg Lukács, como não poderia


deixar de ser, é feita num nível de abstração muito elevado (o nível
filosófico propriamente dito). De certo modo, a ontologia do ser social,
pode ser considerada como as bases filosóficas para uma pesquisa so-
ciológica que venha a abordar, com toda a sua concretude, qualquer
aspecto da realidade social e humana.

52
O “Método” de Lukács

Por ser uma abordagem histórico-materialista, a “Ontologia do


ser social” de Lukács privilegia o trabalho, entendido como solução de
respostas ao carecimento material dos homens. Um “trabalho” que
não se identifica meramente com a fabricação de produtos, mas envol-
ve inicialmente posições teleológicas (a consciência, a liberdade) que
movimentam séries causais (a fabricação de produtos, a causalidade).
Portanto, a abordagem de Lukács privilegia as cadeias de mediação
e o elemento subjetivo que compõem o processo global do trabalho,
pelo papel ativo e decisivo que eles possam ter nas tendências do mo-
vimento do ser material.
Essa orientação da abordagem lukácsiana pode fazê-la privilegiar,
nos estudos concretos dos fenômenos sociais, os problemas ideológi-
cos (por exemplo: a ação social de grupos e classes sociais no proces-
so de transformação do capitalismo). A ideologia, nessa abordagem
lukácsiana do marxismo, é um tipo de posição teleológica secundária
que surge numa situação histórica de nascimento das classes sociais
com interesses antagônicos. O nascimento das classes sociais já é um
produto histórico do desenvolvimento do trabalho que se aperfeiçoa e
diferencia-se cada vez mais com a divisão hierárquica do trabalho.
A ideologia é uma nova forma de posição teleológica (a denomi-
nada posição teleológica secundária), que, ao invés de busca elaborar
um fragmento da natureza de acordo com finalidades humanas, como
o faz a posição teleológica primária (posição originária do trabalho),
ela busca sim, induzir um homem (ou vários homens) a realizar
algumas posições teleológicas segundo um modo predeterminado (a
gênese da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual).

53
Lukács e o século xxi

Ideologia

O meio que garante/induz a unitariedade finalística na preparação e


execução do trabalho estranhado
Nova forma de posição teleológica que induz um homem (ou
vários homens) a realizar algumas posições teleológicas segundo
um modo predeterminado (a divisão hierárquica do trabalho).

Para Lukács, a ideologia propriamente dita, surge no momento da di-


visão hierárquica do trabalho entre trabalho manual e trabalho intelectu-
al, justamente para, no meio dessa diferenciação promovida pela divisão do
trabalho, ser o meio que garanta e que induza, essa unitariedade finalística
na preparação e execução do trabalho. Ela se transforma na base espiritual
estruturante do ser social que está dividido em conflitos antagônicos das clas-
ses sociais e penetrante pela divisão do trabalho. É o que Lukács nos diz: “Nos
conflitos suscitados pelas contradições das modalidades de produção mais
desenvolvidas, a ideologia produz as formas através das quais os homens
tornam-se conscientes desses conflitos e neles se inserem mediante a luta”.
Os conflitos sob o modo de produção capitalista, o modo de pro-
dução mais desenvolvida da história humana, envolvem, num sentido
cada vez mais profundo, a totalidade da vida social. Portanto, Lukács não
deixa de privilegiar também as contradições sociais que perpassam a
sociedade burguesa, desde a vida cotidiana dos sujeitos individuais até os
complexos problemáticos que a humanidade vem se esforçando até hoje
a resolver, por meio da luta, em suas grandes reviravoltas sociais.
Finalmente, a abordagem de Lukács privilegia, como salientamos
no capítulo 1, o estudo da cotidianidade, lugar onde ocorrem as po-

54
O “Método” de Lukács

sições teleológicas individuais. O método histórico-genético de Lukács


parte da vida cotidiana, compreendendo os fenômenos complexos a
partir dos fenômenos originários. “Todo evento social - diz-nos Lukács
- decorre de posições teleológicas individuais; mas, em si, é de caráter
puramente causal. A gênese teleológica, todavia, tem naturalmente im-
portantes conseqüências para todos os processos sociais”.
O corpo conceitual da “ontologia do ser social”, por estar num
nível elevado de abstração, na medida em que orienta, no sentido ca-
tegorial, investigações concretas do ser social nas condições históricas
do capitalismo manipulatório, consegue ser um instrumental riquíssi-
mo do marxismo para efetuar análises criticas criativas sobre os pro-
blemas urgentes e emergente da modernidade tardia.

55
Capítulo 4

Lukács e o Capitalismo
Manipulatório

Desafios da atividade e do pensamento


do homem no século XXI

A reflexão do último Lukács estava incisivamente voltada para a


crítica da manipulação nos vários âmbitos do pensamento e da atividade
do homem. Na entrevista de 1965, concedida para os intelectuais alemães
Leo Kofler e Wolfgang Abendroth, publicada no livro “Conversando com
Lukács” (Ed. Paz e Terra, 1965) e reproduzida nos Anexos 2 e 3 deste livro,
Georg Lukács denominou o capitalismo do pós-II guerra mundial de “ca-
pitalismo manipulatório”. Na verdade, sob o capitalismo tardio, a manipu-
lação torna-se nexo essencial do metabolismo social, penetrando os vários
poros da vida cotidiana. A manipulação torna-se a matriz estruturante e
estruturadora da alienação em sua forma intensa e ampliada, contribuin-
do, deste modo, para a desefetivação do ser genérico do homem.
Lukács coloca que, com a nova realidade sócio-histórica do ca-
pitalismo manipulatório, tornam-se necessárias investigações ontoló-
gicas sobre a natureza da alienação/estranhamento que não se reduz
àquela constatada por Karl Marx e Friedrich Engels na segunda metade
do século XIX. Naquela época, o capitalismo industrial não tinha ex-
posto ainda a manipulação como traço da conformação sociometabóli-
ca do capital, o que só ocorreria no decorrer do século XX, o século da
modernização capitalista em escala planetária.
Em sua entrevista de 1965, Georg Lukács observou que o capitalismo
manipulatório é uma forma específica de capitalismo industrial. O que sig-
nifica que, a partir de crise de 1929, o capitalismo mundial sofreu significa-

57
Lukács e o século xxi

tivas transformações estruturais que alteraram o metabolismo social do ca-


pital. Por exemplo, o comunista Antonio Gramsci, no texto “Americanismo
e Fordismo”, de 1934, conseguiu apreender os traços do novo capitalismo
por meio dos conceitos de “americanismo” e “fordismo”, que expressam a
nova realidade cultural hegemônica do capitalismo da produção em massa,
caracterizada não apenas pelo novo modelo de produção de mercadorias,
mas pela nova organização da cultura e dos intelectuais.
Para Georg Lukács, o que se coloca como elemento crucial no pla-
no da práxis humana é o problema da manipulação que ele vincula à
ampliação do mundo das mercadorias, e por conseguinte, da presença
da industrialização capitalista em nossas vidas. Ele observa:
“Se recuarmos 80 ou 100 anos, ao tempo em que Marx trabalhava,
vemos que a indústria dos meios de produção estava, em sua essência,
largamente organizada em uma escala capitalista; podemos observá-lo
na indústria têxtil, na indústria de moagem, na indústria do açúcar,
que formavam quase todos os setores económicos da grande indús-
tria capitalista. Ora, nos oitenta anos seguintes, o consumo inteiro foi
absorvido pelo processo capitalista. Não falo somente da indústria de
sapatos, confec­ções, etc; é muito interessante o fato de que com todas
essas geladeiras, máquinas de lavar, etc, até mesmo o âmbito doméstico
começa a ser dominado pela indústia. Mesmo o setor dos assim chama-
dos serviços torna-se parte da grande in­dústria capitalista. A figura se-
mifeudal do empregado domés­tico dos tempos de Marx torna-se cada
vez mais anacrónica e surge um sistema de serviços capitalistas”.

Produção em massa de mercadoria, consumo e manipulação

O capitalismo da produção em massa, denominado capitalismo


fordista-keynesiano, é o capitalismo da grande indústria, cujos pro-

58
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

dutos-mercadorias devassam os mais diversos aspectos da vida social.


O processo capitalista ocupa e preenche os mais diversos espaços do
consumo humano. O mundo social tornou-se uma imensa coleção de
mercadorias. Aliás, é salientando este traço do mundo burguês que
Karl Marx abre o capítulo 1 do Livro I de “O Capital”. Diz ele: “A ri-
queza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista
aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’ [...]” (Marx, 1986).
Talvez, naquela singela constatação marxiana, que o século XX iria de-
monstrar à exaustão, estivesse contida o problema da manipulação ir-
remediavelmente vinculada à expansividade da forma-mercadoria que
impregnaria os produtos do trabalho humano.
Na medida em que a mercadoria é, não apenas valor de uso, mas
também valor de troca, a relação de compra-e-venda tende a implicar
homens e mulheres com as imposições naturalizadas e, portanto, feti-
chizadas, do mercado e da lei do valor. Foi a seção 4 do capítulo 1 do
livro I de “O Capital”, intitulada “O fetiche da mercadoria e seu segredo”
que inspirou Lukács a tratar da reificação capitalista no seu livro clás-
sico “História e Consciência de Classe” (de 1923). Naquela época, pela
primeira vez, um autor marxista tratou das implicações do fetichismo
da mercadoria no pensamento e na atividade do homem.
A produção em massa de mercadorias coloca a necessidade
de grandes aparatos de distribuição e circulação de mercadorias
que abarcam a totalidade da vida social. Sob o capitalismo mono-
polista torna-se uma verdadeira obsessão vender produtos-mer-
cadorias que são produzidos em larga escala. A grande indústria
passa a abranger e transformar em produto-mercadoria, os mais
diversos aspectos da vida social, como, por exemplo, a política e o
lazer, que são impregnados pela forma-mercadoria. Diz Lukács:
“Tomemos um grande fabricante de máquinas ou qualquer
outro industrial da época de Marx. É claro que sua clientela era

59
Lukács e o século xxi

extremamente limitada, de modo que podia distribuir seus produ-


tos sem pôr em funcionamento um aparato de maior en­vergadura.
Mas, com os meios da grande indústria, surge um produto desti-
nado ao consumo de massa (basta pensar em produtos tais como
lâminas de barbear) que torna necessário um aparato especial para
levar milhões de lâminas de barba aos consumidores particulares.
Estou convencido de que todo o sistema de manipulação, do qual
estamos falando, surgiu desta necessidade e depois estendeu-se tam-
bém à sociedade e à politica. Agora este mecanismo domina todas
as expressões da vida social, desde as eleições do presidente até o
consumo de gravatas e cigarros” (o grifo é nosso)
Deste modo, Lukács vincula o surgimento da manipulação com
a emergência da sociedade do consumo de massa de mercadorias. O
capital é obrigado a manipular para poder vender os produtos-merca-
dorias e realizar a mais-valia contida neles. Eis o traço candente desta
nova sociabilidade fetichizada do capital.
A perspectiva lukácsiana é uma perspectiva histórico-materialista
que leva em consideração a totalidade concreta da produção do capital
(produção, distribuição, circulação e consumo). A manipulação origina-se
do movimento ampliado e voraz do mecanismo da produção do capital.
Diz ele: “Agora este mecanismo domina todas as expressões da vida social,
desde as eleições do presidente até o consumo de gravatas e cigarros.”
O que propiciou a expansividade espetacular da forma-
mercadoria no século XX foi a nova base técnica da produção
de mercadorias baseada na linha de montagem atrelada à esteira
mecânica (o fordismo). O sistema de máquinas da grande indús-
tria permitiu, no plano da produção, a posição da subsunção real
do trabalho ao capital, cuja contrapartida, no plano da reprodu-
ção social, é a manipulação no tocante à imersão do homem que
trabalha no mundo das mercadorias.

60
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

A riqueza capitalista aparece como uma imensa coleção de mer-


cadorias cuja forma de ser impregna a vida social. Na verdade, a idéia
de impregnação da vida social pela forma-mercadoria é a idéia da ade-
rência/disseminação do fetiche da mercadoria, tratada por Marx na
seção IV do Capítulo 1 do Livro I de “O Capital”) quando buscou des-
velar o segredo do “fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão
logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável
da produção de mercadorias” (Marx, 1986).

Mais-valia relativa e manipulação

A posição da mais-valia relativa, que se torna o momento pre-


dominante da exploração capitalistra sob a grande indústria, significa
não apenas a presença do sistema de máquinas na produção de mer-
cadorias, mas a predominancia da forma-mercadoria no metabolismo
social, e por conseguinte, a disseminação do fetichismo da mercadoria
e da reificação nas relações sociais e humanas.
Georg Lukács, no livro “História e Consciência de Classe”, em
1923, tratara, de forma pioneira, das implicações sociais da reificação
capitalista na atividade e no pensamento do homem. Naquele estudo
clássico, ao tratar da reificação capitalista, o filosófo hungaro abordava
um aspecto cricial do problema da manipulação. De modo pioneiro,
Lukács, como, mais tarde, Antonio Gramsci, em “Americanismo e for-
dismo”, explicitava a natureza do metabolismo social do novo capitalis-
mo que emerge com a expansão da forma-mercadoria sob a produção
em massa de mercadorias (o fordismo-taylorismo).
Portanto, Lukács tende a vincular o problema da manipu-
lação à predominancia da mais-valia relativa na dinâmica de ex-
ploração capitalista. Na medida em que se altera a forma da ex-

61
Lukács e o século xxi

ploração capitalista, alteram-se as condições de vida da força de


trabalho, no tocante não apenas a sua relação com o processo de
trabalho com as novas máquinas no processo de produção, mas
também, com a vigência de um novo metabolismo social baseado
na forma-mercadoria. Surge, deste modo, um modo de organi-
zação do tempo livre e consumo com implicações decisivas no
plano da subjetividade do homem que trabalha.
Entretanto, na entrevista de 1965, o velho Lukács salientou um
importante aspecto do problema da manipulação social, não tratado no
estudo pioneiro sobre a reificação capitalista (no livro HCC, de 1923).
Ele observa que foi a exploração baseada na mais-valia relativa que per-
mitiu que o capitalismo pudesse elevar o nivel de vida do trabalhador,
com profundas implicações no plano da consciência contingente da
classe trabalhadora. Diz ele:
“A exploração da classe operária passa cada vez mais da ex-
ploração através da mais-valia absoluta para a que se opera através
da mais-valia relativa. Isto significa que é possível um aumento da
exploração ao lado de um aumento do nível de vida do trabalhador.
No tempo de Marx havia algo semelhante, mas apenas em forma
embrionária; não digo que não existisse absolutamente. Marx re-
conheceu, no terreno da economia, e creio que foi êle quem o fêz
em primeiro lugar, a mais-valia relativa; mas êle mesmo fêz certa
vez, numa parte de ‘O Capital’ não publicada, uma observação
muito interessante; isto é: que através da mais-valia absoluta a
produção é apenas formalmente subsumida ao capital, de modo
que a subsunção da produção sob as categorias do capitalismo só
surge com a mais-valia relativa, coisa que constitui uma caracte-
rísticas específica da nossa época” (o grifo é nosso).
A posição da mais-valia relativa significa a instauração do
modo de produção capitalistra propriamente dito, tendo em vis-

62
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

ta que a produção se subsume realmente ao capital. Antes, sob a


predominancia da mais-valia absoluta, a produção capitalismo está
subsumida apenas formalmente ao capital. Mas o ponto decisivo é
que o velho Lukács deriva, desta passagem histórica da subsunção
formal à subsunção real do trabalho ao capital, no plano da produ-
ção capitalista, implicações sociometabólicas. Ou seja, a manipula-
ção capitalista se põe de modo incisivo na medida em que a maior
exploração tende a corresponder, ao mesmo tempo, a um aumento
do nivel de vida do trabalhador assalariado, com implicações sig-
nificativas no plano da consciência contingente do homem que tra-
balha. Eis a problemática do aburguesamento da classe operária.
Nas condições históricas do capitalismo tardio, o fetichismo da
mercadoria, que oculta, no plano da consciencia contingente, o tra-
balho social contido nos produtos-mercadorias, é elevado à enésima
potência. A exacerbação do fetiche da mercadoria sob o capitalismo
tardio constituiu um metabolismo social baseado, de forma incisiva, no
fetichismo/manipulação social, no sentido da ocultação não apenas da
exploração capitalista, mas da própria centralidade do trabalho social.
Deste modo, não é apenas o fato da exploração capitalista que é oculta-
do na forma-mercadoria, mas também o próprio fato dela ser produto
do trabalho social. A consciência da alienação, e a própria natureza da
alienação, se alteram de forma significativa, com a presença intensa (e
extensa) da mais-valia relativa e a constituição do mundo social bur-
guês como uma “imensa coleção de mercadorias”.

A nova alienação/estranhamento

Lukács faz uma importante observação sobre a mutação con-


creta do problema da alienação/estranhamento [Entfremdung] na

63
Lukács e o século xxi

medida em que se altera o modo de produção capitalista com a


vigência plena da mais-valia relativa:
“O inteiro problema da alienação adquire uma fisionomia
inteiramente nova. No tempo em que Marx escrevia os ‘Manuscri­
tos Económicos e Filosóficos’, a alienação da classe operária signi-
ficava, imediatamente, um trabalho opressivo em um nível quase
animal. Com efeito, a alienação era, em certo sentido, sinónimo
de desumanidade. Exatamente por este motivo, a luta de classes
teve por objetivo, por décadas, garantir, com reivindicações ade-
quadas sobre salário e sobre o tempo de trabalho, o mínimo de
vida humana para o trabalhador. A famosa reinvindicação de oito
horas de trabalho colocada pela Segunda Internacional é um sin-
toma desta luta de classe.”
No plano da consciência contingente do homem que trabalha, a
alienação, na época de Marx, aparecia como desumanidade, no sentido
de que a classe operária estava submetida a um trabalho opressivo em
um nivel quase animal. Naquela época, a exploração capitalista apa-
recia, quase de modo imediato, à consciência contingente dos traba-
lhadores assalariados. Além disso, o proletariado industrial não tinha
acesso, no plano do consumo, aos produtos-mercadorias da grande
indústria capitalista. No começo do capitalismo industrial, não havia
se constituido uma “sociedade de consumo de massa”, modo de organi-
zação social que oculta hoje, no plano do fetichismo da mercadoria, a
dimensão incisiva da exploração capitalista.
Na medida em que a vigência da mais-valia relativa permi-
tiu o aumento do padrão de vida de uma parcela ampliada da
classe dos trabalhadores assalariados, com o acesso do proletaria-
do organizado a uma “imensa coleção de mercadorias” que visam
satisfazer novas necessidades criadas pelo modo de produção ca-
pitalista, altera-se, de modo significativo, segundo Lukács, o pro-

64
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

blema da alienação/estranhamento, que se recoloca noutros ter-


mos categóricos. Diz ele: “A mais-valia absoluta não morreu, mas
simplesmente não desempenha mais o papel dominante; aquele
papel que desempenhava quando Marx escrevia os ‘Manuscri­tos
Económicos e Filosóficos’. Ora, o que daí decorre? Que um novo
problema surge no horizonte dos trabalhadores, isto é, o proble-
ma de uma vida plena de sentido.”
O que Lukács sugere é o vinculo orgânico entre o problema da
manipulação, que decorre da produção em massa da indústria ca-
pitalista e da obsessão candente em vender produtos-mercadorias
para um contingente da classe trabalhadora com melhor capacidade
aquisitiva, mobilizando, deste modo, de forma intensa e extensa, os
aparatos de marketing e da propaganda, e o problema do estranha-
mento, que se manifesta no problema de uma vida plena de sentido.

Manipulação, estranhamento e falta de uma vida plena de


sentido

A posição da mais-valia relativa operou dois momentos per-


versos no campo da subjetividade da classe do proletariado:
Por um lado, aumentou a taxa de exploração ou extração de
mais-valia relativa, com a redução do salário relativo1. Na última

1 A redução do salário relativo no século XX é resultado dos limites do sin-


dicalismo, como denunciado, por exemplo, por Rosa Luxemburg que acre-
ditava que “a produção capitalista não pode avançar um só passo adiante
sem reduzir a participação dos operários no produto social”. A redução da
participação dos operários no produto social e o aumento da participação
dos capitalistas ocorriam por meio das inovações técnicas na produção, pelo
aumento da produtividade do trabalho. Diante da lei da queda tendencial

65
Lukács e o século xxi

metade do século XX, a exacerbação da extração de mais-valia


relativa ocorreu por conta das admiráveis inovações tecnológicas
que incrementaram, de forma inédita, a produtividade do traba-
lho social e o poder do capital.
Por outro lado, o aumento de extração de mais-valia permitiu
o aumento relativo do padrão de vida de contingentes expressivos do
proletariado, que passou a ter acesso a uma imensa coleção de produ-
tos-mercadorias que buscam satisfazer novas necessidades necessárias
da vida metropolitana. A disseminação da forma-mercadoria, com seu
fetichismo impregnando a vida social, tendeu a obnubilar ou ocultar,
com maior candência, a consciência necessária de classe.
Deste modo, segundo Lukács, sob o capitalismo, o problema da
alienação/estranhamento, é reposto, de forma ampla e candente, nou-
tro patamar existencial, através do problema da falta de uma vida ple-
na sentido. Um mundo pleno de mercadorias é, segundo Lukács, um
mundo pleno de manipulação, que penetra não apenas os poros da pro-
dução, mas também do consumo e da reprodução social.
Se, por um lado, a percepção da exploração capitalista e o pro-
blema da alienação, no sentido originário exposto por Marx nos “Ma-
nuscritso de 1844”, tende a se esmaecer; por outro lado, põem-se, de
modo incisivo, segundo Lukács, o problema do estranhamento como

do salário relativo, considerado por ela um “poder completamente invisível,


uma ação simplesmente mecânica da concorrência e da produção de mer-
cadorias”, que deixa aos operários uma porção cada vez menor da riqueza
social produzida, os sindicatos nada poderiam fazer. Os sindicatos só po-
deriam cuidar do “atentado visível dos capitalistas contra os operários”, ou
seja, as reduções de salários reais, que diminui o padrão de vida da classe
operária. Diante da queda invisível do salário relativo, eles se sentiriam im-
potentes: “A luta contra a queda do salário relativo não é já uma luta que se
desenvolve no terreno da economia mercantil, mas sim um assalto revo-
lucionário, subversivo, contra a existência desta economia, é o movimento
socialista do proletariado”. (Extraído de Roman Rosdolsky, 1986)

66
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

o problema da vida plena de sentido (o psicanalista austriaco Viktor


Frankl salienta que o problema crucial do nosso tempo é o problema da
busca de sentido da vida) (Frankl, 2005).
Ora, a mudança estrutural no caráter da alienação coloca,
de forma candente, no auge do capitalismo afluente (em 1968),
novas exigências no plano da luta de classes . Diz Lukács: “A luta
de clas­ses no tempo da mais-valia absoluta estava voltada para a
criação das condições objetivas indispensáveis a uma vida deste
género. Hoje, com uma semana de cinco dias e um salário ade-
quado, podem já existir as condições indispensáveis para uma
vida cheia de sentido. Mas surge um novo problema: aquela ma-
nipulação que vai da compra do cigarro às eleições presidenciais er-
gue uma barreira no interior dos indivíduos entre a sua existência e
uma vida rica de sentido. Com efeito, a manipulação do consumo
não consiste, como se pretende oficialmente, no fato de querer
informar exaustivamente os consumidores sobre qual é o melhor
frigorífico ou a melhor lâmina de barbear; o que está em jogo é
a questão do controle da consciência. Dou apenas um exemplo,
o ‘tipo’ Gauloises: apresenta-se um homem de aspecto ativo e
másculo, que se distingue porque fuma os cigarros Gauloises. Ou
ainda, vejo numa foto de publicidade, não sei se de um sabonete
ou de um creme de barbear, um jovem assediado por, duas belas
garotas por causa da atração erótica que determinado perfume
exerce sobre elas” (o grifo é nosso).
Vimos que Lukács, adotando uma perspectiva histórico-
ontológica, faz a conexão íntima entre mais-valia relativa e mani-
pulação, no sentido de que a exploração pela mais-valia relativa
propiciou, a um contingente organizado da classe trabalhadora,
semana de cinco dias e salário adequado, isto é, condições objeti-
vas indispensáveis para uma vida cheia de sentido.

67
Lukács e o século xxi

Segundo Lukács, objetivamente o proletariado possui hoje


condições materiais para uma vida plena de sentido que, entre-
tanto, não se realiza, por conta da manipulação social que impreg-
na a vida burguesa. O capitalismo da grande indústria de produ-
ção em massa tende, nas palavras do filosofo húngaro, a erguer,
no interior desses individuos, “uma barreira entre a sua existência
e uma vida rica de sentido”. A fruição da vida é reduzida ao gozo
do consumo alienado. A ânsia fugaz pelo consumo de mercadoria
é incapaz de dar um sentido à vida. Eis o sentido do estranha-
mento na ótica lukacsiana: o descompasso entre a existência dos
individuos e uma vida plena de sentido.
De certo modo, para Lukács, o problema do estranhamento diz
respeito a questão do controle da consciência, alvo-chave da manipu-
lação do consumo visando a venda das mercadorias e a realização da
mais-valia. A manipulação se ergue no interior dos indivíduos cuja
ânsia pelo consumo é instilada pelos aparatos de marketing e propa-
ganda, como uma finalidade em si mesma. Diz Lukács:
“Por causa desta manipulação, o operário, o homem que
trabalha, é afastado do problema de como poderia transformar
seu tempo livre em otium, porque o consumo lhe é instilado sob
a forma de uma superabundância de vida com finalidade em si
mesma, assim como na jornada de trabalho de doze horas a vida
era ditatorialmente dominada pelo trabalho”.

68
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

mais-valia relativa
(produção em massa de mercadorias)
manipulação

(necessidade social de venda das mercadorias)


(realização da mais-valia)
estranhamemto
(vida inautêntica/controle da consciência)

Um detalhe: Lukács em várias passagens da sua entrevista,


denominou o operário ou trabalhador assalariado de “homem
que trabalha”, expressão que explicita o que está, de fato, hoje,
sob fogo cruzado do capitalismo manipulatório: o homem ou o
núcleo humano-genérico dos trabalhadores assalariados. Ora,
antes de sermos trabalhadores assalariados, somos efetivamente,
homens que trabalham. Salienta-se assim, a palavra “homem” no
sentido do ser humano-genérico. Eis o sentido radical do marxis-
mo humanista de Lukács (radical no sentido de ir até as raízes, e
a raiz é o próprio homem).

Tempo livre e otium

Nos países capitalistas desenvolvidos, em 1965, uma parce-


la significativa da classe do proletariado usufrui de uma semana
de cinco dias e um salário adequado, que lhe garante um melhor
padrão de vida em comparação com os proletários industriais do
século XIX. Para o velho Lukács, o que se coloca, nas condições do

69
Lukács e o século xxi

“Welfare State”, é o problema de como transformar tempo livre em


otium (ócio) ou tempo liberado da manipulação do capital; enfim,
tempo de vida como campo de desenvolvimento humano, o que
não ocorre, de imediato, com a redução da jornada de trabalho.
A produção da mais-valia relativa cria as bases objetivas
para a liberação humana do trabalho como atividade exclusiva.
Embora o homem que trabalha tenha hoje mais tempo liberado
do trabalho estranhado, não significa que o tempo disponível seja
tempo livre no sentido de ócio criativo. Na verdade, para Lukács,
o problema é como transformar tempo liberado em tempo livre;
ou tempo livre em otium.
Sob o capitalismo manipulatório, o tempo livre de trabalho
estranhado torna-se mero tempo de consumo manipulado. As-
sim, o problema da manipulação, que Lukács coloca como intrin-
seca ao capitalismo da grande indústria, tende a deslocar a ques-
tão da luta pela redução da jornada de trabalho para a questão da
transformação do tempo livre em otium.
Na medida em que a sociedade burguesa torna-se uma imen-
sa coleção de mercadorias, impregnadas de seu fetiche, a liberação
relativa do homem que trabalha da alienação do trabalho estranha-
do, apenas o coloca à mercê de outro senhor: a Mercadoria. Para
Lukács, embora seja necessária, a luta pela redução da jornada de
trabalho não é suficiente para criar as bases materiais da emanci-
pação social do proletariado. Enfim, na ótica lukacsiana, coloca-se
hoje, mais do que nunca, , a necessidade de formar sujeitos hu-
manos capazes de transformar o tempo livre em otium, rompendo
com a ânsia instilada pela lógica da mercadoria de transformar o
tempo livre em tempo de consumo como finalidade em si mesma.
Se a redução da jornada de trabalho e a ampliação do tempo liberado
do trabalho estranhado deve ocorrer através de um ato politico, a trans-

70
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

formação do tempo livre em otium, ou melhor, do tempo disponivel em


tempo livre no sentido pleno da palavra, implica um ato extraparlamentar,
isto é, a formação de sujeitos humanos capazes de fruirem de ócio criativo,
rompendo com o sociometabolismo do capital. Enfim, os individuos po-
dem simplesmente não saber o que fazer com o tempo livre.
No livro “História e Consciência de Classe”, de 1923, Lukács
fizera a critica dos homens contemplativos, individuos criados
pela sociedade da indústria cultural e do entretenimento, homens
e mulheres (de)formados para contemplarem meramente o mun-
do espetacular das mercadorias.

Consumo estranhado e dessubjetivação humano-genérica

Lukács identifica a manipulação como ocorrendo intensiva-


mente na esfera do consumo que tende a transformar a supera-
bundancia de vida, no sentido de imensa coleção de mercadorias
a serem consumidas, como finalidade em si mesma. Deste modo,
de meio de vida, o consumo torna-se fim em si mesmo, o que é
o sentido próprio da alienação, tal como ocorria (e ocorre) no
trabalho estranhado, e agora também, no consumo estranhado.
Amplia-se assim, a esfera da alienação social.2

2 Ao tornar-se um fim em si mesmo, o consumo interverte-se em consumis-


mo. A rigor, a sociedade burguesa não é a “sociedade do consumo”, mas sim,
“sociedade do consumismo”. Outra coisa: a ideologia quer nos fazer crer que,
consumimos coisas que, de fato, compramos. Ora, comprar não é uma ação
regida por necessidades necessárias, mas sim, um ato econômico com impli-
cações sociais. Diz Jurandir Freire Costa: “Comprar se tornou equivalente a
consumir porque o ritmo de produção das mercadorias nos obriga a descar-
tá-las depois de um breve uso. Consumo é uma metáfora que alude à rapidez
com que adquirimos novos objetos e inutilizamos os velhos [...] Depois das

71
Lukács e o século xxi

Na sociedade burguesa tardia, a esfera de consumo se amplia,


incorporando não apenas produtos-mercadorias que satisfazem as ne-
cessidades do estômago, mas, como observa Marx, as necessidades da
fantasia. O melhor exemplo é a indústria cultural que envolve homens
e mulheres na sociedade do capital; e diga-se de passagem, não apenas
operários e empregados, mas todos as individualidades humanas, in-
clusive (e principalmente) jovens e crianças que ainda não trabalham.
Devido o fetichismo da mercadoria, a condição de consumidores
oculta a condição de produtores dos homens que trabalham, tornando-
se hoje, mais ampla que a condição de trabalhadores assalariados. Por
isso, o problema da manipulação, ou o problema de uma vida plena
de sentido, aparece como sendo o problema universal que envolve não
apenas operários e empregados, mas todos os indivíduos à mercê das
implicações fetichizadas da estética da mercadoria.
Lukács salienta que no capitalismo manipulatório, “o consu-
mo lhe é instilado sob a forma de uma superabundância de vida
com finalidade em si mesma.” Podemos tirar algumas conclusão
desta colocação do velho Lukács:

grandes revoluções tecnológicas e econômicas, a produção capitalista, para


ser escoada, teve e tem de ser vendida em um fluxo contínuo. Os individuos,
portanto, têm de comprar as mercadorias para que a máquina do lucro não
pare”. Entretanto ele se interroga: por que os individuos se deixam seduzir
pela propaganda de mercadorias? Ele sugere que o hábito do consumismo
atende às reais necessidades psicossociais, ou seja, os individuos se deixam
persuadir pela propaganda porque, em certa medida, encontra na posse
dos objetos industriais um meio de realização pessoal. Essa aspiração à re-
alização pessoal – ou o que Lukács sugere como sendo ter uma vida plena
de sentido – é o motivo do anseio pelos “objetos ditos de consumo”. Costa
observa que a nova moral do trabalho e a nova moral do prazer contribuem
para a produção do desejo de consumir (Costa, 2004). Outra coisa: Juliet B.
Schor utiliza corretamente no título de seu instigante livro (“Nascidos para
comprar” [Born to buy]), a palavra adequada: não se trata de “Nascidos para
consumir”, mas sim, “Nascidos para comprar”.

72
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

Primeiro, a manipulação aparece como instilação redutiva


que apresenta a imagem do espetacular mundo das mercadorias,
com sua “superabundância de vida”, como finalidade em si mes-
ma. O melhor exemplo é o caso do admirável mundo dos shop-
ping centers, cuja arquitetura espetacular visa expor o mundo das
mercadorias como sendo o único mundo possivel.
Segundo, a manipulação aparece como um processo (de)formati-
vo ou processo de subjetivação estranhada, que (de)constitui persona-
lidades humanas, ou melhor, subjetividades humanas reduzidas à sua
própria abstração, no sentido mesmo da redução levada a cabo pela
vigencia do trabalho abstrato. É o que podemos chamar de “individu-
alidades abstratas”.
Portanto, os espaços de consumo sob o capitalismo manipu-
latório aparecem como espaços da pedagogia da mercadoria, onde
homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos, são educa-
dos, subrepticiamente a reduzirem a fruição da vida ao deleite do
consumismo. O ato de viver torna-se mero ato de consumir.
Deste modo, podemos dizer, a partir de Lukács, que o metabo-
lismo social do capital. sob o capitalismo manipulatório, implica um
duplo processo:
- Por um lado, o metabolismo social do capital é processo de
dessubjetivação humano-genérico e, por conseguinte, proces-
so de dessubjetivação de classe no sentido de corrosão do su-
jeito histórico capaz de fazer a história;
- Por outro lado, o metabolismo social do capital é processo
de subjetivação fetichizado no sentido de formação de “in-
dividualidades humanas abstratas” afetados de negação.

“Individualidades abstratas” são sujeitos “afetados de negação”


na medida em que a vida, reduzida ao consumismo, abre no interior

73
Lukács e o século xxi

destes individuos, uma aguda frustração humana não apenas no to-


cante ao “desejo de sentido” (utilizando a expressão de Viktor Frankl),
mas no que diz respeito à satisfação de “carecimentos radicais” postos,
objetivamente, pelo processo civilizatório humano-genérico3.
Deste modo, o cerne da manipulação como instilação da cul-
tura redutivista do consumo como finalidade em si mesma, oculta
uma operação sinistra de desefetivação do ser genérico do homem,
na medida em que o homem assume a posição de mera adaptação
passiva ao meio-ambiente espetacular das mercadorias.
Não se trata da morte do sujeito humano, como supõe a metafi-
sica pós-moderna, mas sim a abertura de uma “fenda” de contradições
íntimas no seio das individualidades pessoais de classe. Na mesma
medida em que são intensamente manipuladas, homens e mulheres
são instigados, em si e para si, a darem respostas às suas frustrações
humanas, seja no tocante ao “desejo de sentido” (Viktor Frankl), seja

3 A manipulação é o fenômeno social que surge, no plano da produção e reprodução


social, com a incapacidade do capital em tratar do dilaceramento da personalidade
humana em virtude das candentes contradições sociometabólicas do sistema produ-
tor de mercadorias. Ao ser incapaz de propiciar uma vida plena de sentido, o capital
em sua forma histórica mais desenvolvida (o capitalismo global), se encontra diante
de irremediáveis limites estruturais. Certa vez, Albert Camus observou: “Há um só
problema verdadeiramente sério e é...estabelecer se vale ou não a pena viver.” (Ca-
mus,1955). O psiquiatra Viktor Frankl, em 1949, introduziu o conceito de “desejo de
sentido” para tratar de um problema do nosso tempo histórico - a falta de uma vida
plena de sentido - que conduz os indivíduos humanos à deriva pessoal. Diz ele: “Em
alguns casos, a frustração do desejo de sentido teve um papel relevante como fator
etiológico no dar origem à neurose ou a tentativa de suicídio.”. E mais adiante salienta:
“A busca pelo homem de um sentido para a vida é, obviamente, um fenômeno de ex-
tensão mundial.” (Frankl, 2006). Entretanto, o diagnostico de Frankl não é completo:
a sede de sentido (que é outro título de livro de Frank, 2003) que ele constata como
sendo um fenômeno de extensão mundial e a patologia do nosso tempo, é produto do
capitalismo manipulatório (Lukács) e do controle estranhado do metabolismo social
(Mészáros), isto é, do capital que, nesta etapa de desenvolvimento civilizatório, expli-
cita à exaustão, suas contradições objetivas.

74
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

no tocante aos “carecimentos radicais” (Agnes Heller). A incapacidade


de dar respostas satisfatórias é que leva homens e mulheres ao adoeci-
mento sob múltiplas formas.

Socialismo e humanização do trabalho

O estranhamento perpassa não apenas o ato de consumo, mas


o processo de trabalho como processo de valorização em seu nú-
cleo essencial. O trabalho, como observa Marx, permanece sempre,
necessariamente, o reino da necessidade. Para o filosófo hungaro, o
desenvolvimento do socialismo visa precisamente dar formas hu-
manamente adequadas ao trabalho e ao desenvolvimento da hu-
manidade. Lukács observa que Marx, na “Crítica ao Programa de
Gotha”, asseverou que, uma das condições para o comunismo, é
que o trabalho se torne para o homem uma necessidade vital. En-
fim, o socialismo deve buscar humanizar o reino da necessidade.
Sob o capitalismo manipulatório, o trabalho tende a adquirir formas in-
timamente desumanas, tendo em vista a manipulação no sentido do controle
da consciência. É o que denominamos “captura” da subjetividade do homem
que trabalha (Alves, 2007). Diz Lukács: “Hoje existe uma ciência do trabalho
e uma assistência psicológica do trabalhador, mas elas têm como finalidade
tornar-lhe aceitável por meio da manipulação, a tecnologia capitalista exis-
tente, e não servem para criar, ao contrário, uma tecnologia capaz de trans-
formar o trabalho numa experiência digna de ser vivida pelo trabalhador”.
Mesmo com o progresso técnico-cientifico, o trabalho como
ineliminavel reino da necessidade, não se torna, como observa o filó-
sofo húngaro, “uma experiência digna de ser vivida pelo trabalhador”.
Pelo contrário, o homem que trabalha ainda quer fugir dele, tendo
em vista que não encontra nele elementos de dignidade humana.

75
Lukács e o século xxi

Hoje, mais do que nunca, o trabalho destrói a vida, no sentido da


vida como campo de desenvolvimento humano. É o que atestam hoje
as estatísticas sobre adoecimentos no mundo do trabalho, por conta das
pressões por maior produtividade e cumprimento de metas, com metas
desumanas e metas humanamente impossíveis. Na verdade, por mais que
se tente “humanizar” os ambientes de trabalho, o trabalho capitalista não
deixa de ser um trabalho estranhado no sentido de ser um trabalho para
outrem, o outro estranhado, o capitalista; trabalho alienado das finalida-
des de fruição humano-genérica de homens e mulheres que trabalham.
O mundo social do capitalismo tardio, segundo Lukács, é marca-
do pelo estranhamento em suas múltiplas dimensões. Lukács salienta
o estranhamento no trabalho, tendo em vista que, para ele, o trabalho
continua sendo uma experiência indigna para o homem que trabalha.
E destaca também o estranhamento no consumo: liberado do tempo de
trabalho, os indivíduos não encontram uma vida plena de sentido. Além
das instâncias do trabalho e do consumo, o estranhamento (e a manipu-
lação) perpassa outras instâncias da vida social, como a política.
No caso da esfera do consumo, a impossibilidade do capital
transformar tempo livre em otium, é a maior demonstração de que,
como observa Lukács, “esta manipulação é contrária aos interesses
propriamente humanos”. Com o capitalismo manipulatório emer-
ge, com vigor inédito, o poder da ideologia que, sob a condições da
crise de superprodução e crise de subconsumo, a partir de meados
da década de 1960, visa promover a venda de produtos-mercado-
rias e a realizar a mais-valia contida nas mercadorias.
Surge a necessidade política do trabalho ideológico, no sen-
tido da ideologia socialista, capaz de tornar mais claro, como esta
manipulação é contraria aos interesses propriamente humanos.
Entretanto, é importante salientar que a manipulação não é oni-
potente. Por exemplo, Lukács observa: “Há vinte anos (por volta

76
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

de 1948), existe uma luta permanente na haute Couture pelo fato


de que ela, enquanto manipulação do traje feminino quer intro-
duzir de qualquer modo as saias longas. É claro que isto acontece
porque o lucro da indústria têxtil seria maior neste caso. A moda,
que como se diz, é onipotente, fracassa, porém, neste ponto. Há
vinte anos, em Paris, nos grandes desfiles de moda, continua-se a
profetizar o encompridamento das saias; porém, neste ponto, as
mulheres defendem seus direitos, porque as saias longas não são
adequadas ao trabalho ou às subidas em um trem cheio”.
Na verdade, o que se coloca hoje, mais do que nunca, são os in-
teresses humanos no sentido da genericidade humana e nao apenas os
interesses de classe em si e para si do proletariado, embora o proleta-
riado, hoje mais do que nunca, seja o portador dos interesses da huma-
nidade. Portanto, o que se coloca, nestas circunstâncias históricas, é a
necessidade não apenas da consciencia em si e para si do proletariado,
mas da consciencia de classe do proletariado para além de si.

Estranhamento como fato universal

Numa passagem da entrevista, ao tratar do processo de manipu-


lação, Lukács faz uma observação deveras interessante. Diz ele: “[...]
trata-se verdadeiramente de um processo que não tem mais, como
único ponto de referência, a classe operária; sob este aspecto, ou seja,
quanto à mais-valia relativa e à manipulação, mesmo a camada inte-
lectual e toda a burguesia estão igualmente sujeitas ao capitalismo e
às suas manipulações, não menos do que a classe operária. Trata-se,
por isto, de despertar a verdadeira autonomia da personalidade, e para
isso o desenvolvimento econômico realizado até o presente momento
criou as condições necessárias”.

77
Lukács e o século xxi

Ora, sob o capitalismo manipulatório, não é apenas a classe


operária que está sujeita às misérias da manipulação, mas, mesmo
a camada intelectual e toda a burguesia, estão sujeitas ao estra-
nhamento que amesquinha a autonomia da personalidade. Esta
condição universal de estranhamento, que envolve hoje, mais do
que nunca, a humanidade, é o que denominamos “condição de
proletariedade”, condição existencial do genero humano que está
subsumido e subalterno ao sociometabolismo do capital (Alves,
2009). É claro que a burguesia, amesquinhada pelo estranhamen-
to, não tem a capacidade político-ideológica para promover a ne-
gação da negação. Eles são incapazes de uma verdadeira consci-
ência de classe “para além de si”. Pelo contrário, a burguesia e suas
personas sociais, na medida em que experimentam o estranha-
mento como positividade, estão condenadas ao trágico suplicio
de serem, ao mesmo tempo, agentes (e vítimas) das misérias da
manipulação do capital.

Processo civilizatório e estranhamento

Nas condições do estágio avançado do processo civilizató-


rio do capital, o problema da manipulação adquiriu um conteúdo
problemático de novo tipo. Lukács observou que a quantidade
de trabalho necessário para a reprodução física do homem tem
diminuido constantemente, o que significa que, para todos os
homens, pode ser encontrado hoje, mais do que em qualquer ou-
tra época, o espaço necessário para uma existência socialmente
humana. Esta redução das barreiras naturais que constrangem a
espécie humana, mesmo ocorrendo sob o sistema sóciometabó-
lico do capital, é o que denominamos “processo civilizatório do

78
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

capital”. É claro que a redução das barreiras naturais, a redução


da quantidade de trabalho necessário para a reprodução física do
homem, não significa, em si e para si, a emancipação social do
trabalho, mas apenas a explicitação de seus pressupostos objeti-
vos necessários frustrados pela relação-capital.
Segundo Lukács, um momento histórico como este, aconte-
ceu de modo economicamente limitado, com os pioneiros da civi-
lização, quando, por exemplo, em Atenas, “a escravidão liberou do
trabalho, uma camada privilegiada, permitindo assim o nascimen-
to da grandiosa cultura ateniense”. Assim como na Grecia Antiga,
a escravidão permitiu o nascimento de valores civilizatórios uni-
versais, sob o Ocidente tardio, o desenvolvimento do sistema de
máquinas, no que ela representa de redução das barreiras naturais,
permitiria, desde que abolida a relação-capital, um novo salto civi-
lizatório, o desenvolvimento do socialismo. O novo salto civiliza-
tório, o socialismo como sistema mundial, significa, não apenas a
instauração de um novo modo de controle do metabolismo social,
mas a salvação da humanidade de sua extinção irremediável pelo
capital. Deste modo, podemos dizer que o socialismo torna-se uma
necessidade histórica imposta, não pelo esgotamento da capacida-
de civilizatória do capital, mas sim, pelas candentes contradições
sociometabólicas que emergem no seio da civilização do capital e
que podem levar à extinção da humanidade.
Lukács observa que é inegável que existem camadas sociais do
proletariado para as quais ainda são válidas, quanto ao nível de vida, as
velhas categorias do capitalismo, e, segundo ele, “é naturalmente uma
grande tarefa preparar o desaparecimento delas e exigir para o traba-
lhador um outro nível de vida”. É possivel, no interior do capitalismo
tardio, melhorar o nível de vida de contingentes pobres do proletaria-
do que ainda não tinham salários adequados e condições aviltantes de

79
Lukács e o século xxi

trabalho. Mas, observa Lukács, que, não há dúvida de que, para uma
grande massa de trabalhadores assalariados, criaram-se condições ob-
jetivas capazes de tornar possível uma vida livre e adequada às exi-
gências humanas. Por isso, segundo Lukacs, “é necessário empreender
uma ampla discussão sobre as formas atuais da alienação”.
Na verdade, o que Lukács indica é o acirramento da contradição
histórica objetiva e subjetiva que é intrínseca ao proceso civilizatório
do capital, a contradição entre condições sociais materiais capazes, em
si e para si, de tornar possível uma vida livre e adequada às exigências
humanas; e o modo de controle estranhado do metabolismo social do
capital, baseado na divisão hierarquica do trabalho e propriedade pri-
vada dos meios de produção, hoje, cada vez mais concentrada do que
nunca nos oligopólios mundiais.

O estranhamento

A frustração irremediável das possibilidades objetivas de desen-


volvimento humano-genérico e a irrealização efetiva das promessas
contidas nas condições materiais abertas pelo processo civilizatório,
compõem a natureza do fenômeno do estranhamento. Eis como o filó-
sofo húngaro, na “Ontologia do ser social” expõe, em termos singelos,
o problema do estranhamento. Diz ele:
“O desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente tam-
bém o desenvolvimento da capacidade humana, mas – e aqui emerge
praticamente o problema do estranhamento – o desenvolvimento da
capacidade humana não produz obrigatoriamente o [desenvolvimento]
da personalidade humana. Ao contrário: justamente potencializando
capacidades singulares, pode desfigurar, aviltar, etc., a personalidade
do homem” (Lukács, 1981)

80
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

O desenvolvimento das forças produtivas no sentido do pro-


cesso civilizatório como redução das barreiras naturais significa
o desenvolvimento da capacidade humana. Entretanto, como se
expressaria o desenvolvimento das capacidades humanas?
Primeiro, pelo aumento da produtividade do trabalho humano e
pelo domínio do espaço-tempo e das forças naturais. É o que ocorreu nos
últimos séculos de capitalismo industrial com o desenvolvimento das ci-
ências e da tecnologia. O progresso da ciência e da técnica como tecno-
logia, é um dado inquestionável da civilização do capital. Este é o sentido
instrumental do conceito de desenvolvimento das forças produtivas.
Segundo, o desenvolvimento da capacidade humana significa-
ria, na mesma medida, o desenvolvimento de habilidades humano-
sociais capazes de promover o devir humano dos homens. O que
implicaria conceber o homem como uma força produtiva não ape-
nas no sentido instrumental, mas no sentido da afirmação e negação
da sociabilidade humana, mesmo que seja como pressuposto negado,
como ocorre sob o sistema sociometabólico do capital. É inquestio-
nável que, nos últimos séculos da civilização do capital, ocorreu um
processo de individuação que pode ser concebido como um desen-
volvimento de capacidade humana dos homens.
Por exemplo, novos modos de cooperação e divisão do tra-
balho significam novos modos de organizar habilidades sócio-
humanas capazes de impulsionar as forças produtivas do trabalho
social, que são forças produtivas do capital. Por isso, hoje em dia,
os gestores do capital sabem que o incremento das forças produ-
tivas do trabalho social implica não apenas investir em tecnologia
(hardware ou software), mas em gestão/manipulação de habilida-
des/subjetividades humanas (humanware).
O capital como “contradição viva” opera uma inversão/perversão
do desenvolvimento das forças produtivas como desenvolvimento da

81
Lukács e o século xxi

capacidade humana. O problema do estranhamento está no âmago da


“contradição viva” do capital. Eis como ele se apresenta:
Primeiro, a tecnologização das ciências, que se rendem à ins-
trumentalidade dos interesses da produção do capital; a tecnolo-
gia como forma social do capital imprime a marca da manipu-
lação no esteio dos empreendimentos científicos. O que explica
a crítica voraz que o último Lukács fez do neopositivismo como
ideologia do mundo manipulado do capital;
Segundo, a (de)formação humana dos recursos de gestão/ma-
nipulação da produção e reprodução social. Existe uma tênue (e
perversa) linha de continuidade entre os novos métodos de ges-
tão que prometem mais produtividade nas empresas e o discurso
positivo da literatura de auto-ajuda que promete a auto-satisfa-
ção/realização pessoal.
Na verdade, o sociometabolismo da barbárie que emerge com
a crise estrutural do capital significa a corrosão paulatina das capaci-
dades humanas no sentido de efetivá-las em sua dimensão humano-
genérico. Eis a “raiz” da crise de sociabilidade.
O paradoxo da “captura” da subjetividade do trabalho é que
efetivamente a subjetividade não se “captura”. Nesse caso, existe
uma contradição perversa entre capacidades humanas objetiva-
mente efetivadas, no plano da base técnica e científica; e subjeti-
vamente desefetivadas, no sentido de apropriação prático-sensí-
vel delas pelos homens que trabalham.

82
Lukács e o Capitalismo Manipulatório

Desenvolvimento das forças produtivas

Desenvolvimento das capacidades humanas

Desenvolvimento da personalidade humana

Esse desenvolvimento de (in)capacidades compõe a con-


tradição fulcral entre possibilidades objetivas postas, uma obje-
tividade que é irremediável subjetivamente mediada, e uma des-
realização efetivada no interior do próprio sociometabolismo
do capital. Observa Lukács: o desenvolvimento da capacidade
humana sob o capital não produz obrigatoriamente o desen-
volvimento da personalidade humana. O desenvolvimento de
homens e mulheres como sujeitos humanos ou o devir humano
dos homens, não depende em si, do desenvolvimento científico-
tecnológico. Pelo contrário, o desenvolvimento das capacidades
humanas, tanto capacidades técnicas intervertidas em (in)ca-
pacidades tecnológicas, quanto capacidades de formação in-
tervertidas em manipulação deformativas, sob o mundo social
do capital, tendem a desfigurar, aviltar, etc., a personalidade do
homem que trabalha.
Um detalhe: a desfiguração e aviltamento da personalidade
humana ocorre na medida em que o desenvolvimento destas capa-
cidades humanas potencializa, não as capacidades humano-gené-
ricas, mas as capacidades singulares do homem que trabalha. É a
idéia da formação de personalidades imersos em particularismos.

83
Lukács e o século xxi

Tanto os aparatos tecnológicos que organizam o espaço-


tempo da produção e reprodução do capital, quanto os recursos
de gestão/manipulação da subjetividade do homem que trabalha,
contribuem para a (de)formação da personalidade humana atra-
vés do cultivo de capacidades singulares (ou particularistas) das
individualidades humanas. É interessante que, muitos dos recur-
sos tecnológicos, sejam os gadgets hightechs ou mesmo os equipa-
mentos urbanísticos que organizam nosso estilo de vida burguês,
contribuem para a formação de capacidades singulares ou disposi-
ções egoístico-particularistas dos indivíduos. O melhor exemplo é
o privilegiamento dos automóveis em detrimento de transportes
coletivos nos centros urbanos e a organização dos espaços urbanís-
ticos em função dessa capacidade singular de locomoção espacial.
Outro dado desta formação de capacidades singulares como modo
de deformação do ser genérico do homem é a degradação de espa-
ços públicos e formas de sociabilidades coletivas).
Enfim, Lukács expõe a implicação perversa do sociometa-
bolismo da barbárie que descapacita o homem como ser genéri-
co, potencializando suas capacidades singulares, deformando-o
como ser social no interior de uma sociedade cada vez mais social
no sentido objetivo. Eis a candente “contradição viva” do capital.
Esta potencialização de capacidades singulares em detrimento
em capacidades humano-genéricas explicita-se na própria corrosão do
ideal de coletividade como espaço de desenvolvimento de individuali-
dades sociais. Na verdade, o problema do estranhamento é a contradi-
ção lancinante do processo civilizatório do capital.

84
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87
Anexo 1

As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do


Homem1

Tradução de Carlos Nelson Coutinho

Georg Lukács

Quem quiser expor numa conferência, ainda que dentro de cer-


tos limites, ao menos os princípios mais gerais desse complexo de
pro­blemas, vai se encontrar diante de uma dupla dificuldade. Por um

1 O texto aqui traduzido, redigido no início de 1968 como base para uma conferência
que deveria ser apresentada no Congresso Filosófico Mundial rea­lizado em Viena
(mas ao qual Lukács não pôde comparecer), foi publicado em 1969, em húngaro,
sendo depois editado em alemão (1970) e em italiano (1972). O texto se baseia na
chamada “grande” Ontologia, cujo manuscrito estava, na época, em fase de acaba-
mento. Sabe-se, contudo, que - após a conclusão desse primeiro manuscrito e insa-
tisfeito com seus resultados - Lukács em­preendeu a redação de uma nova versão,
conhecida como “pequena” Ontologia (ou também como Prolegômenos), na qual
trabalhou até sua morte, ocorrida em junho de 1971 (Cf. István Eórsi, “The story of
a posthumous work (Lukács Ontology)” in The New Hungarian Quarterly, XVI,
n ° 58, Sum­mer 1975, pp. 106-108). Apesar do seu caráter necessariamente sumá-
rio e esquemático, a presente conferência tem o mérito de fornecer uma síntese do
trabalho ontológico de Lukács, além de ser um dos poucos textos relativos a este
trabalho que o próprio autor revisou para publicação.

89
Lukács e o século xxi

lado, seria necessário fornecer um panorama crítico do estágio atual


da discussão sobre esse problema, e, por outro, caberia iluminar o edi-
fício conceptual de uma nova ontologia, pelo menos em sua estru­tura
fundamental. Para tratarmos de modo mais ou menos satisfatório da
segunda questão, teremos de renunciar a abordar - mesmo que suma-
riamente - a primeira. Todos sabem que nas últimas décadas, radica-
lizando as velhas tendências gnosiológicas, o neopositivismo dominou
de modo incontrastado, com sua recusa de princípio em face de toda
e qualquer colocação ontológica, considerada como não científica. E
esse domínio se deu não apenas na vida filosófica propria­mente dita,
mas também no mundo da praxis. Se analisássemos bem as constantes
teóricas dos grupos dirigentes políticos, militares e eco­nômicos de nos-
so tempo, descobriríamos que elas - consciente ou inconscientemente
- são determinadas por métodos de pensamento neopositivistas. De-
riva disso a onipotência quase ilimitada desses mé­todos; e, quando o
confronto com a realidade tiver conduzido à crise aberta, essa situação
produzirá grandes abalos a partir da vida político-econômica até a filo-
sofia no sentido mais amplo do termo. Mas, já que estamos apenas no
início de tal processo, é suficiente aqui a sua simples menção.
Tampouco nos ocuparemos, neste local, das tentativas ontológi­
cas das últimas décadas. Limitar-nos-emos a declarar simplesmente
que as consideramos como extremamente problemáticas, bastando-nos
recordar os últimos desenvolvimentos de um conhecidíssimo iniciador
dessa corrente, como Sartre, para que fiquem registradas, quando me-
nos, tal problemática e tal orientação.
Reveladora é, nesse caso, a relação com o marxismo. Na his­tória da
filosofia, como se sabe, raramente o marxismo foi enten­dido como uma
ontologia. Em troca, o que aqui nos propomos fazer é mostrar como o
elemento filosoficamente resolutivo na ação de Marx consistiu em ter
esboçado os lineamentos de uma ontologia his­tórico-materialista, su-

90
Anexos

perando teórica e praticamente o idealismo ló­gico-ontológico de Hegel.


Hegel foi um preparador nesse domínio, na medida em que concebeu
a seu modo a ontologia como uma his­tória; em contraste com a onto-
logia religiosa, a de Hegel partia de “baixo”, do aspecto mais simples, e
traçava uma história evolutiva necessária que chegava ao “alto”, às ob-
jetivações mais complexas da cultura humana. Naturalmente, o acento
caía sobre o ser social e seus produtos, assim como era característico de
Hegel o fato de que o homem aparecesse como criador de si mesmo.
A ontologia marxiana afasta daquela de Hegel todo elemento
lógico-dedutivo e, no plano da evolução histórica, todo elemento te­
leológico. Com esse ato materialista de “repor sobre os próprios pés”,
não podia deixar de desaparecer igualmente - da série das momentos
motores do processo - a síntese do elemento simples: Em Marx, o ponto
de partida não é dado nem pelo átomo (como nos velhos materialistas),
nem pelo simples ser abstrato (como em He­gel). Aqui, no plano ontoló-
gico, não existe nada análogo. Todo exis­tente deve ser sempre objetivo,
ou seja, deve ser sempre parte (mo­vente e movida) de um complexo
concreto: Isso conduz a duas con­seqüências fundamentais. Em primei-
ro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico;
em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo
que é ou que se torna, mas sim como formas moventes e movidas da
própria matéria: “formas do existir, determinações da existência”. Essa
posição radical ­também na medida em que é radicalmente diversa do
velho materia­lismo - foi interpretada, de diferentes modos, segundo o
velho espí­rito; quando isso ocorreu, teve-se a falsa idéia de que Marx
subestimava a importância da consciência com relação ao ser material.
De­monstraremos mais tarde, concretamente, que esse modo de ver é
equivocado. Aqui nos interessa apenas estabelecer que Marx enten­dia
a consciência como um produto tardio do desenvolvimento do ser ma-
terial. Aquela impressão equivocada só pode surgir quando tal fato é

91
Lukács e o século xxi

interpretado à luz da criação divina afirmada pelas religiões ou de um


idealismo de tipo platônico. Para uma filosofia evolutiva materialista,
ao contrário, o produto tardio não é jamais necessa­riamente um produ-
to de menor valor ontológico. Quando se diz que a consciência reflete
a realidade e, sabre essa base, torna possível intervir nessa realidade
para modificá-la, quer-se dizer que a cons­ciência tem um real poder
no plano do ser e não - como se supõe a partir das supracitadas visões
irrealistas - que ela é carente de força.

Podemos aqui nos ocupar somente da ontologia da ser social.


Contudo, não seremos capazes de captar sua especificidade se não
compreendermos que um ser social só pode surgir e se desenvolver
sobre a base de um ser orgânico e que esse último pode fazer o mesmo
apenas sabre a base do ser inorgânico. A ciência já está des­cobrindo as
formas preparatórias de passagem de um tipo de ser á outro; e também
já foram esclarecidas as mais importantes categorias fundamentais das
formas de ser mais complexas, enquanto contrapostas àquelas mais
simples: a reprodução da vida em contraposição ao simples tornar-se
outra coisa; a adaptação ativa, com a modifi­cação consciente do am-
biente, em contraposição à adaptação mera­mente passiva etc. Ademais,
tornou-se claro que, entre uma forma mais simples de ser (por mais
numerosas que sejam as categorias de transição que essa forma pro-
duz) e o nascimento real de uma forma ,mais complexa, verifica-se
sempre um salto; essa forma mais complexa é algo qualitativamente
novo, cuja gênese não pode jamais ser simplesmente “deduzida” da for-
ma mais simples.

92
Anexos

Depois.desse salto, tem sempre lugar o aperfeiçoamento da nova


forma de ser. Todavia, embora surja sempre algo qualitativamente novo,
em muitos casos tem-se a impressão de estar em face de uma simples
variação dos modos reativos do ser fundante em novas ca­tegorias de
efetividade, naquelas categorias que constituem precisa­mente o novo
no ser da nova formação. Tomemos o exemplo da luz: enquanto sobre
as plantas ela ainda atua de modo puramente físico­-químico (embora,
na verdade, dando lugar já aqui a efeitos vitais específicos), na vista
dos animais superiores a luz desenvolve formas de reação ao ambiente
que já são especificamente biológicas. Do mesmo modo, o processo de
reprodução assume na natureza orgâ­nica formas cada vez mais cor-
respondentes à sua própria essência, torna-se cada vez mais nitida-
mente um ser sui generis, ainda que jamais possa ser eliminado o seu
enraizamento nas bases ontológi­cas originárias. Mesmo sem ter aqui
a possibilidade sequer de mencionar um tal complexo de problemas,
gostaríamos porém de recordar como o desenvolvimento do processo
de reprodução orgâ­nica no sentido de formas superiores, o seu tornar-
se cada vez mais pura e expressamente biológico no sentido próprio do
termo, forma - com a ajuda das percepções sensíveis - também uma
espécie de consciência, importante epifenômeno, enquanto órgão su-
perior do funcionamento eficaz dessa reprodução.
Para que possa nascer o trabalho, enquanto base dinâmico-es­
truturante de um novo tipo de ser, é indispensável um determinado
grau de desenvolvimento do processo de reprodução orgânica. Tam­
bém aqui teremos de deixar de lado os numerosos casos de capacidade
de trabalhar que se mantêm como pura capacidade; tampou­co pode-
mos nos deter nas situações de beco sem saída, nas quais surge não
apenas um certo tipo de trabalho, mas inclusive a conse­qüência neces-
sária do seu desenvolvimento, a divisão do trabalho (abelha etc.), situ-
ações porém em que essa divisão do trabalho ­enquanto se fixa como

93
Lukács e o século xxi

diferenciação biológica dos exemplares da espécie - não consegue se


tornar princípio de desenvolvimento pos­terior no sentido de um ser de
novo tipo, mantendo-se ao contrário como estágio estabilizado, ou seja,
como um beco sem saída no desenvolvimento.
A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa
fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo am­
biente. O momento essencialmente separatório é constituído não pela
fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisa-
mente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução bioló­gica: o
produto, diz Marx, é um resultado que no início do pro­cesso existia “já
na representação do trabalhador”, isto é, de modo ideal.
Talvez surpreenda o fato de que, exatamente na delimitação ma­
terialista entre o ser da natureza orgânica e o ser social, seja atri­buído à
consciência um papel tão decisivo. Porém, não se deve esque­cer que os
complexos problemáticos aqui emergentes (cujo tipo mais alto é o da
liberdade e da necessidade) só conseguem adquirir um verdadeiro sen-
tido quando se atribui - e precisamente no plano ontológico - um papel
ativo à consciência. Nos casos em que a consciência não se tornou um
poder ontológico efetivo, essa oposição jamais pôde ter lugar. Em troca,
quando a consciência possui objetivamente esse papel, ela não pode
deixar de ter um peso na solução de tais oposições.
Com justa razão se pode designar o homem que trabalha, ou seja,
o animal tornado homem através do trabalho, como um ser que dá res-
postas. Com efeito, é inegável que toda atividade labora­tiva surge como
solução de resposta ao carecimento que a provoca. Todavia, o núcleo da
questão se perderia caso se tomasse aqui como pressuposto uma rela-
ção imediata. Ao contrário, o homem torna-se um ser que dá respostas
precisamente na medida em que - parale­lamente ao desenvolvimento
social e em proporção crescente - ele generaliza, transformando em
perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfa-

94
Anexos

zê-los; e quando, em sua resposta ao carecimento que a provoca, funda


e enriquece a própria atividade com tais mediações, freqüentemente
bastante articuladas. De modo que não apenas a resposta, mas também
a pergunta é um produto imediato da consciência que guia a atividade;
todavia, isso não anu­la o fato de que o ato de responder é o elemento
ontologicamente primário nesse complexo dinâmico. Tão-somente o
carecimento ma­terial, enquanto motor do processo de reprodução in-
dividual ou so­cial, põe efetivamente em movimento o complexo do tra-
balho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em fun-
ção da sua satisfação. O que não desmente o fato de que tal satisfação
só possa ter lugar com a ajuda de uma cadeia de mediações, as quais
transformam ininterruptamente tanto a natureza que circunda a so­
ciedade, quanto os homens que nela atuam, as suas relações recíprocas
etc.; e isso porque elas tornam praticamente eficientes forças, relações,
qualidades etc., da natureza que, de outro modo, não po­deriam exercer
essa ação, ao mesmo tempo em que o homem ­liberando e dominando
essas forças - põe em ser um processo de desenvolvimento das próprias
capacidades no sentido de níveis mais altos.
Com o trabalho, portanto, dá-se ao mesmo tempo - ontolo­gicamente
- a possibilidade do seu desenvolvimento superior, do desenvolvimento
dos homens que trabalham. Já por esse motivo, mas antes de mais nada
porque se altera a adaptação passiva, meramente reativa, do processo de
reprodução ao mundo circundante, porque esse mundo circundante é
transformado de maneira consciente e ati­va, o trabalho torna-se não sim-
plesmente um fato no qual se expressa a nova peculiaridade do ser social,
mas, ao contrário - precisamente no plano ontológico -, converte-se no
modelo da nova forma do ser em seu conjunto.
Quanto maior for a precisão com que observarmos o seu fun­
cionamento, tanto mais resultará evidente esse seu caráter. O tra­balho
é formado por posições teleológicas que, em cada oportuni­dade, põem

95
Lukács e o século xxi

em funcionamento séries causais. Basta essa simples constatação para


eliminar preconceitos ontológicos milenares. Ao con­trário da causali-
dade, que representa a lei espontânea na qual todos os movimentos de
todas as formas de ser encontram a sua expressão geral, a teleologia
é um modo de pôr - posição sempre realizada por uma consciência
- que, embora guiando-as em determinada direção, pode movimen-
tar apenas séries causais. As filosofias ante­riores, não reconhecendo a
posição teleológica como particularidade do ser social, eram obrigadas
a inventar, por um lado, um sujeito transcendente, e, por outro, uma
natureza especial onde as corre­lações atuavam de modo teleológico,
com a finalidade de atribuir à natureza e à sociedade tendências de de-
senvolvimento de tipo teleo­lógico. Decisivo aqui é compreender que se
está em face de uma duplicidade: numa sociedade tornada realmente
social, a maior parte das atividades cujo conjunto põe a totalidade em
movimento e cer­tamente de origem teleológica, mas a sua existência
real - e não importa se permaneceu isolada ou se foi inserida num con-
texto - é feita de conexões causais que jamais s em nenhum sentido
podem ser de caráter teleológico.
Toda práxis social, se considerarmos o trabalho como seu mo­delo,
contém em si esse caráter contraditório. Por um lado, a práxis é uma de-
cisão entre alternativas, já que todo indivíduo singular, sem­pre que faz
algo, deve decidir se o faz ou não. Todo ato social, portanto, surge de
uma decisão entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras.
A necessidade social só se pode afirmar por meio da pressão que exerce
sobre os indivíduos (freqüentemente de maneira anônima), a fim de que
as decisões deles tenham uma determinada orientação. Marx delineia
corretamente essa condição, dizendo que os homens são impelidos pelas
circunstâncias a agir de determinado modo “sob pena de se arruinarem”.
Eles devem, em última análise, realizar .por si as próprias ações, ainda
que freqüen­temente atuem contra sua própria convicção.

96
Anexos

Dessa ineliminável condição do homem que vive em sociedade,


podemos fazer derivar todos os problemas reais - naturalmente levando
em conta que esses são mais complicados em situações mais complica-
das - daquele complexo que costumamos chamar de liber­dade. Sem ir
além da região do trabalho em sentido estrito, podemos nos deter sobre
as categorias de valor e de dever-ser. A natureza não conhece nenhuma
das duas categorias. Na natureza inorgânica, as mudanças de um modo
de ser para outro não têm, é claro, nada a ver com os valores. Na natu-
reza orgânica, onde o processo de reprodução significa ontologicamen-
te adaptação ao ambiente, pode-se já falar de êxito ou de fracasso; mas
também essa oposição não ultrapassa - precisamente do ponto de vista
ontológico - os limites de um mero ser-de-outro-modo. Completamente
diversa é a situação quando nos deparamos com o trabalho. O conheci-
mento em geral distingue bastante nitidamente entre o ser-em-si, objeti-
vamente exis­tente, dos objetos, por um lado, e, por outro, o ser-para-nós,
mera­mente pensado, que tais objetos adquirem no processo cognosciti-
vo. No trabalho, ao contrário, o ser-para-nós do produto torna-se uma
sua propriedade objetiva realmente existente: e trata-se precisamente
daquela propriedade em virtude da qual o produto, se posto e rea­lizado
corretamente, pode desempenhar suas funções sociais. Assim, portanto,
o produto do trabalho tem um valor (no caso de fracasso, é carente de
valor, é um desvalor). Apenas a objetivação real do ser­-para-nós faz com
que possam realmente nascer valores. E o fato de que os valores, nos ní-
veis mais altos da sociedade, assumam for­mas mais espirituais, esse fato
não elimina o significado básico dessa gênese ontológica.
Um processo similar ocorre com o dever-ser. O conteúdo do
dever-ser é um comportamento do homem determinado por finali­
dades sociais (e não por inclinações simplesmente naturais ou espon­
taneamente humanas). Ora, essencial ao trabalho é que nele não apenas
todos os movimentas, mas também os homens que o realizam, devem

97
Lukács e o século xxi

ser dirigidos por finalidades determinadas previamente. Por­tanto, todo


movimento é submetido a um dever-ser. Também aqui não surge nada
de novo, no que se refere aos elementos ontologica­mente importantes,
quando essa estrutura dinâmica se transfere para campos de ação pu-
ramente espirituais. Ao contrário, os anéis da cadeia ontológica, que
do comportamento inicial levam até os sub­seqüentes comportamentos
mais espirituais, aparecem em toda a sua clareza, diferentemente do
~que ocorre no caso dos métodos gnosio­lógico-lógicos, onde o cami-
nho que leva das formas mais elevadas àquelas iniciais resulta invisível,
ou, melhor dizendo, onde as se­gundas aparecem - do ponto de vista das
primeiras - inclusive como oposições.
Se agora, partindo do sujeito que põe, lançamos um olhar sobre
o processo global do trabalho, notamos imediatamente que esse su­
jeito realiza certamente a posição teleológica de modo consciente, mas
sem jamais estar em condições de ver todos os condicionamentos da
própria atividade, para não falarmos de todas as suas conseqüências.
É óbvio que isso não impede que os homens atuem. De fato, exis­tem
inúmeras situações nas quais, sob pena de se arruinar, é abso­lutamente
necessário que o homem aja embora tenha clara consciên­cia de não
poder conhecer senão uma parte mínima das circunstâncias. E, no pró-
prio trabalho, o homem muitas vezes .sabe que pode dominar apenas
uma pequena faixa de elementos circunstantes; mas sabe também - já
que o carecimento urge e, mesmo nessas condi­ções, o trabalho promete
satisfazê-lo - que ele, de qualquer modo, é capaz de realizá-lo.
Essa ineliminável situação tem duas importantes conseqüências.
Em primeiro lugar, a dialética interna do constante aperfeiçoamento
do trabalho; isso se expressa no fato de que, enquanto o trabalho é re-
alizado, seus resultados são observados etc., cresce continuamente a
faixa de determinações que se tornam cognoscíveis e, por conse­guinte,
o trabalho se torna cada vez mais variado, abarca campos cada vez

98
Anexos

maiores, sobe de nível tanto em extensão quanto em inten­sidade. Na


medida, porém, em que esse processo de aperfeiçoamento não pode
eliminar o fato de fundo, ou seja, a incognoscibilidade do conjunto das
circunstâncias, esse modo de ser do trabalho - paralelamente ao seu
crescimento - desperta também a sensação íntima de uma realidade
transcendente, cujos poderes desconhecidos o homem tenta de algum
modo utilizar em seu próprio proveito. Não é aqui o local para uma
análise detalhada das diversas formas de prática mágica, de fé religiosa
etc., ~que se desenvolvem a partir dessa si­tuação. Todavia, embora essa
seja apenas, como é óbvio, uma das fontes de tais formas ideológicas,
não podíamos deixar de mencio­ná-la. Em especial porque o trabalho é
não apenas o modelo objeti­vamente ontológico de toda praxis humana,
mas também - nos casos aqui mencionados - o modelo direto que serve
de exemplo à criação divina da realidade, onde todas as coisas apare-
cem como produzidas teleologicamente por um criador onisciente.
O trabalho é um ato de pôr consciente e, portanto, pressupõe um
conhecimento concreto, ainda que jamais perfeito, de determinadas fi-
nalidades e de determinados meios. Vimos que o desenvolvimento, o
aperfeiçoamento do trabalho é uma de suas características onto­lógicas;
disso resulta que, ao se constituir, o trabalho chama à vida. produtos
sociais de ordem mais elevada. Talvez a mais impor­tante dessas dife-
renciações seja a crescente autonomização das ativi­dades preparató-
rias, ou seja, a separação - sempre relativa - que, no próprio trabalho
concreto, tem lugar entre o conhecimento, por um lado, e, por outro, as
finalidades e os meios. A matemática, a geometria, a física, a química
etc., eram originariamente partes, mo­mentos desse processo prepara-
tório do trabalho. Pouco a pouco, elas cresceram até se tornarem cam-
pos autônomos de conhecimento, sem porém perderem inteiramente
essa respectiva função originária. Quan­to mais universais e autônomas
se tornam essas ciências, tanto mais universal e perfeito torna-se por

99
Lukács e o século xxi

sua vez o trabalho; quanto mais elas crescem, se intensificam etc., tanto
maior se torna a influência dos conhecimentos assim obtidos sobre as
finalidades e os meios de efetivação do trabalho.
Uma tal diferenciação é já uma forma relativamente aperfei­çoada
de divisão do trabalho. Essa divisão, todavia, é a conseqüên­cia mais
elementar do desenvolvimento do próprio trabalho. Mesmo antes que
o trabalho houvesse atingido sua explicitação plena e intensivas - diga-
mos, mesmo no período da apropriação dos produtos naturais -, esse
fenômeno da divisão do trabalho já se manifesta na caça. Digna de
nota, para nós, é aqui a manifestação de uma nova forma de posição te-
leológica; ou seja, aqui não se trata de ela­borar um fragmento da natu-
reza de acordo com finalidades humanas, mas ao contrário um homem
(ou vários homens) é induzido a rea­lizar algumas posições teleológicas
segundo um modo pré-determi­nado. Já que um determinado traba-
lho (por mais que ,possa ser di­ferenciada a divisão do trabalho que o
caracteriza) pode ter apenas uma única finalidade principal unitária,
torna-se necessário encon­trar meios que garantam essa unitariedade
finalística na preparação e na execução do trabalho. Por isso, essas no-
vas posições teleológicas devem entrar em ação no mesmo momento
em que surge a divisão do trabalho; e continuam a ser, mesmo poste-
riormente, um meio indispensável em todo trabalho que se funda so-
bre a divisão do trabalho. Com a diferenciação social de nível superior,
com o nascimento das classes sociais com interesses antagônicos, esse
tipo de posição teleológica torna-se a base espiritual-estruturante do
que o marxismo chama de ideologia. Ou seja: nos conflitos suscitados
pelas contradições das modalidades de produção mais desenvolvidas,
a ideologia produz as formas através das quais os homens tornam-se
conscientes desses conflitos e neles se inserem mediante a luta.
Esses conflitos envolvem de modo cada vez mais profundo a to-
talidade da vida social. Partindo dos contrastes privados e resol­vidos

100
Anexos

de modo diretamente .privado no trabalho individual e na vida coti-


diana, eles chegam até aqueles graves complexos problemáticos que a
humanidade vem se esforçando até hoje para resolver, através da luta,
em suas grandes reviravoltas sociais. O tipo estrutura de fundo, porém,
revela sempre traços essenciais comuns: assim como, no próprio traba-
lho, o saber real sobre os processos naturais que em cada oportunidade
se põem em questão, foi inevitável para poder desenvolver com êxito o
intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza, do mesmo modo
um certo saber sobre o modo pelo qual os homens são feitos, sobre as
suas recíprocas relações sociais e pessoais, é aqui indispensável para
induzi-los a efetuar as posições teleológicas desejadas. Todo o proces-
so através do qual, a partir des­sas concepções surgidas por necessida-
de vital, que no início assu­miram as formas do costume, da tradição,
dos hábitos e também do mito, desenvolveram-se subseqüentemente
procedimentos raciona­lizantes, aliás até mesmo algumas ciências, esse
processo é - nas palavras de Fontane - um campo imenso. Portanto, não
é possível abordá-lo numa conferência. Podemos apenas afirmar que
os co­nhecimentos que influenciam o intercâmbio orgânico com a na-
tureza são muito mais facilmente desvinculáveis das posições teleoló-
gicas que condicionaram o seu aparecimento do que os conhecimentos
di­rigidos no sentido de influenciar os homens e os grupos humanos.
Nesse último caso, a relação entre finalidade e fundamentação cog-
noscitiva é muito mais íntima. Essa afirmação, contudo, não nos deve
induzir ao exagero gnosiológico, a identificar ou diferenciar de modo ab-
soluto os dois processos. Trata-se de elementos ontológicos comuns ou
diversos, que estão simultaneamente presentes e que po­dem encontrar
solução tão-somente numa concreta dialética históri­co-social.
Foi-nos possível, nesse local, mencionar apenas a base sócio-
ontológica. Todo evento social decorre de posições teleológicas indivi­
duais; mas, em si, é de caráter puramente causal. A gênese teleoló­gica,

101
Lukács e o século xxi

todavia, tem naturalmente importantes conseqüências para todos os


processos sociais. Por um lado, podem chegar à condição de ser deter-
minados objetos, com tudo o que disso decorre, que não pode­riam ser
produzidos pela natureza; basta pensar, para continuar ain­da no cam-
po dos primitivos, no exemplo da roda. Por outro lado, toda sociedade
se desenvolve até níveis onde a necessidade deixa de operar de maneira
mecânico-espontânea; o modo de manifestação tí­pico da necessidade
passa a ser, cada vez mais nitidamente e a de­pender do caso concreto,
aquele de induzir, impelir, coagir etc., os homens a tomarem determi-
nadas decisões teleológicas, ou então de impedir que eles o façam.
O processo global da sociedade é um processo causal, que pos­sui
suas próprias normatividades, mas não é jamais objetivamente dirigi-
do para a realização de finalidades. Mesmo quando alguns ho­mens ou
grupos de homens conseguem realizar suas finalidades, os resultados
produzem, via de regra, algo que é inteiramente diverso daquilo que se
havia pretendido. (Basta pensar no modo pelo qual o desenvolvimento
das forças produtivas, na Antiguidade, destruiu as bases da socieda-
de; ou no modo pelo qual, num determinado está­gio do capitalismo,
esse mesmo desenvolvimento provocou crises eco­nômicas periódicas
etc.) Essa discrepância interior entre as posições teleológicas e os seus
efeitos causais aumenta com o crescimento das sociedades, com a in-
tensificação da participação sócio-humana em tais sociedades. Natu-
ralmente, também isso deve ser entendido em sua contraditoriedade
concreta. Certos grandes eventos econômicos (como, por exemplo, a
crise de 1929) podem se apresentar sob a aparência de irresistíveis ca-
tástrofes naturais. A história mostra, po­rém, que precisamente nas re-
viravoltas mais significativas - basta pensar nas grandes revoluções - foi
bastante importante o que Lênin costumava chamar de fator subjetivo.
É verdade que a diferença entre a finalidade e seus efeitos se expressa
como preponderância de fato dos elementos e tendências materiais no

102
Anexos

processo de reprodução da sociedade. Isso não significa, todavia, que


esse processo consiga afir­mar-se sempre de modo necessário, sem ser
abalado por nenhuma resistência. O fator subjetivo, resultante da rea-
ção humana a tais tendências de movimento, conserva-se sempre, em
muitos campos, como um fator por vezes modificador e, por vezes, até
mesmo de­cisivo.

Tentamos mostrar como as categorias fundamentais e suas co­nexões


no ser social já estão dadas no trabalho. Os limites dessa conferência não
nos permitem seguir, ainda que só de modo indi­cativo, a ascenção gradu-
al do trabalho até a totalidade da sociedade. (Por exemplo: não ,podemos
nos deter sobre transições importantes como a do valor-de-uso ao valor-
de-troca, desse último ao dinhei­ro, etc.) Por isso, os ouvintes - a fim de
que eu possa quando me­nos me referir à importância que os elementos
até aqui esboçados têm para o conjunto da sociedade, para seu desenvol-
vimento, para suas perspectivas - devem permitir que eu passe por alto
de zonas de intermediação concretamente bastante importantes, com o
objetivo de esclarecer assim um pouco mais amplamente, pelo menos, o
vín­culo mais geral desse início genético da sociedade e da história com o
seu próprio desenvolvimento.
Antes de mais nada, trata-se de ver em que consiste aquela ne-
cessidade econômica que amigos e inimigos de Marx, analisando com
escassa compreensão o conjunto da sua obra, costumam exaltar ou de-
negrir. Cabe sublinhar, de imediato, uma coisa óbvia: não se trata de um
processo de necessidade natural, embora o próprio Marx ­em polêmica
contra o idealismo - tenha algumas vezes usado essa expressão. À razão
ontológico fundamental - causalidade posta em movimento por decisões

103
Lukács e o século xxi

teleológicas alternativas -, já fizemos referência. Desse fato decorre o se-


guinte: que nossos conhecimen­tos positivos a respeito devem, quanto aos
aspectos concretamente essenciais, ter um caráter post festum. Decerto,
algumas tendências gerais são visíveis; mas, concretameute, elas se tra-
duzem na prática de modo bastante desigual, razão por que tão-só num
segundo mo­mento é que conseguimos saber qual é o seu caráter concre-
to. Na maioria dos casos, apenas os modos de realização dos produtos
so­ciais mais diferenciados, mais complexos, é que mostram claramente
qual foi na realidade a orientação evolutiva de um período de transfor-
mação. Portanto, tais tendências só podem ser apreendidas, de modo
preciso, num segundo momento; da mesma maneira, os julga­mentos,
aspirações, previsões etc., sociais que se formaram no en­tretempo - e que
não são de modo algum indiferentes em face da explicitação das próprias
tendências - só são confirmados ou refu­tados numa etapa posterior.
No desenvolvimento econômico ocorrido até hoje, podemos no-
tar a presença de três orientações evolutivas desse tipo, as quais se rea­
lizaram de modo evidente, ainda que freqüentemente desigual, mas de
qualquer modo independentemente da vontade e do saber que servi-
ram de fundamento às posições teleológicas.
Em primeiro lugar, há uma tendência constante no sentido de di-
minuir o tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução dos ho-
mens. Trata-se de uma tendência geral, que hoje já ninguém contesta.
Em segundo lugar, esse processo de reprodução tornou-se cada
vez mais nitidamente social. Quando Marx se refere a um constante
“recuo dos limites naturais”, pretende indicar, por um lado, que a vida
humana (e portanto social) jamais pode desvincular-se inteira­mente
da sua base em processos naturais; e, .por outro, que - tanto no plano
quantitativo quanto no qualitativo - diminui constantemente o papel
do elemento puramente natural, quer na produção quer nos produtos;
ou, em outras palavras, todos os momen­tos decisivos da reprodução

104
Anexos

humana (basta pensar em aspectos na­turais como a nutrição ou a se-


xualidade) acolhem em si, com inten­sidade cada vez maior, momentos
sociais, pelos quais são constante e essencialmente transformados.
Em terceiro lugar, o desenvolvimento econômico cria ligações
quantitativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as socieda­des
singulares originariamente pequenas e autônomas, as quais no início
- de modo objetivo e real - compunham o gênero humano. O predomí-
nio econômico do mercado mundial, que hoje se afirma cada vez mais
fortemente, mostra que a humanidade já se unificou, pelo menos no
sentido econômico geral. É verdade que tal unificação existe apenas
como ser e ativação de princípios econômicos reais de unidade. Ela se
realiza concretamente num mundo onde essa inte­gração abre para a
vida dos homens e dos povos os mais graves E ásperos conflitos (por
exemplo: a questão dos negros nos Estados Unidos).
Em todos esses casos, estamos diante de tendências importan­tes,
decisivas, da transformação tanto externa quanto interna do ser social,
através das quais esse último chega à forma que lhe é pró­pria; ou seja, o
homem deixa a condição de ser natural para tor­nar-se pessoa humana,
transforma-se de espécie animal que alcançou um certo grau de desen-
volvimento relativamente elevado em gênero humano, em humanida-
de. Tudo isso é o produto das séries causais que surgem no conjunto da
sociedade. O processo em si não tem uma finalidade. Seu desenvolvi-
mento no sentido de níveis superio­res, por isso, contém a ativação de
contradições de tipo cada vez mais elevado, cada vez mais fundamen-
tal. O progresso é decerto uma síntese das atividades humanas, mas
não o aperfeiçoamento no sentido de uma teleologia qualquer: por isso,
esse desenvolvimento des­trói continuamente os resultados primitivos
que, embora belos, são economicamente limitados; por isso, o progres-
so econômico objetivo aparece sempre sob a forma de novos confli-
tos sociais. É assim que surgem, a partir da comunidade primitiva dos

105
Lukács e o século xxi

homens, antinomias aparentemente insolúveis, isto é, as oposições de


classe; de modo que até mesmo as piores formas de inumanidade são
o resultado desse progresso. Nos inícios, o escravagismo constitui um
progresso em relação ao canibalismo; hoje, a generalização da aliena-
ção dos homens é um sintoma do fato de que o desenvolvimento eco-
nômico está para revolucionar a relação do homem com o trabalho.
A individualidade já aparece como uma categoria do ser natu­
ral, assim como o gênero. Esses dos pólos do ser orgânico podem se
elevar a pessoa humana e o ,gênero humano no ser social tão-somente
de modo simultâneo, tão-somente no processo que torna a sociedade
cada vez mais social. O materialismo anterior a Marx não chegou se-
quer a colocar o problema. Para Feuerbach, segundo a objeção crítica
de Marx, há apenas o indivíduo humano isolado, por um lado, e, por
outro, um gênero mudo, que relaciona os múltiplos indivíduos somen-
te no plano natural. Tarefa de uma ontologia ma­terialista tornada his-
tórica é, ao contrário, descobrir a gênese, o cres­cimento, as contradi-
ções no interior do desenvolvimento unitário; é mostrar que o homem,
como simultaneamente produtor e produto da sociedade, realiza em
seu ser-homem algo mais elevado que ser sim­plesmente exemplar de
um gênero abstrato, que o gênero - nesse nível ontológico, no nível do
ser social desenvolvido - não é mais uma mera generalização à qual
os vários exemplares se lìguem “muda­mente”; é mostrar que esses, ao
contrário, elevam-se até o ponto de adquirirem uma voz cada vez mais
claramente articulada, até alcan­çarem a síntese ontológico-social de
sua singularidade, convertida em individualidade, com o gênero hu-
mano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si.

106
Anexos

Como teórico desse ser e desse devir, Marx extrai todas as con-
seqüências do desenvolvimento histórico. Descobre que os homens se
autocriaram como homens através do trabalho, mas que a sua história
até hoje foi apenas a pré-história da humanidade. A história autêntica
poderá começar apenas com o comunismo, com o estágio superior do
socialismo. Portanto, o comunismo não é para Marx uma antecipação
utópico-ideal de um estado de perfeição imagina­da à qual se deve che-
gar; ao contrário, é o início real da explicitação das energias autenti-
camente humanas que o desenvolvimento ocorrido até hoje suscitou,
reproduziu, elevou contraditoriamente a níveis superiores, enquanto
importantes realizações da humanização. Tudo isso é resultado dos
próprios homens, resultado da atividade deles.
“Os homens fazem sua história”, diz Marx, “mas não em cir­
cunstâncias por eles escolhidas”. Isso quer dizer o mesmo que antes
formulamos do seguinte modo: o homem .é um ser que dá respostas.
Expressa-se aqui a unidade - contida de modo contraditoriamente in-
dissolúvel no ser social - entre liberdade e necessidade; ela já opera no
trabalho como unidade indissoluvelmente contraditória das decisões
teleológicas entre alternativas com as premissas e conse­qüências ineli-
minavelmente vinculadas por uma relação causal ne­cessária. Uma uni-
dade que se reproduz continuamente sob formas sempre novas, cada
vez mais complexas e mediatizadas, em todos os níveis sócio-pessoais
da atividade humana.
Por isso, Marx fala do período inicial da autêntica história da hu-
manidade como de um “reino da liberdade”, o qual porém “só pode
florescer sobre a base do reino da necessidade” (isto é, da reprodução
econômico-social da humanidade, das tendências objeti­vas de desen-
volvimento à qual nos referimos anteriormente).

107
Lukács e o século xxi

Precisamente essa ligação do reino da liberdade com sua base


sócio-material, com o reino econômico da necessidade, mostra como a
liberdade do gênero humano seja o resultado de sua própria ati­vidade.
A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natu-
reza, não é um dom do “alto” e nem sequer uma parte inte­grante - de
origem misteriosa - do ser humano. É o produto da própria ativida-
de humana, que decerto sempre atinge concretamente alguma coisa
diferente daquilo que se propusera, mas que nas suas conseqüências
dilata - objetivamente e de modo contínuo - o espaço no qual a liber-
dade se torna possível; e tal dilatação ocorre, precisamente, de modo
direto, no processo de desenvolvimento eco­nômico, no qual, por um
lado, acresce-se o número, o alcance etc., das decisões humanas entre
alternativas, e, por outro, eleva-se ao mesmo tempo a capacidade dos
homens, na medida em que se ele­vam as tarefas a eles colocadas por
sua própria atividade. Tudo isso, naturalmente, permanece ainda no
“reino da necessidade”.
O desenvolvimento do processo de trabalho, do campo de ativi­dade,
tem porém outras conseqüências, dessa feita indiretas: antes de mais
nada, o surgimento e a explicitação da personalidade huma­na. Essa tem,
como base inevitável, a elevação das capacidades, mas não é sua simples
e linear consecução. Aliás, é possível constatar que - no desenvolvimento
até agora verificado - manifesta,se inclusive, entre os dois processos, uma
freqüente relação de oposição. Uma oposição que se apresenta diversa-
mente nas diferentes etapas do desenvolvimento, mas que se aprofunda
à medida que esse se torna mais elevado. Hoje, o desenvolvimento das
capacidades, que vão se dife­renciando cada vez mais nitidamente, apare-
ce inclusive como um obstáculo para o devir da personalidade, como um
veículo para a alienação da personalidade humana.
Já com o trabalho mais primitivo, ,á adequação dos homens ao
gênero deixa de ser muda. Todavia, no ,princípio e em sua imediati­

108
Anexos

cidade, ela se torna apenas um ser-em-si: a consciência ativa do res­


pectivo contexto social, economicamente fundado. Por maiores que
sejam os progressos da socialidade, por mais que seu horizonte se
alargue, a consciência geral do gênero humano não supera ainda essa
particularidade da condição do indivíduo e do gênero dada em cada
oportunidade concreta.
Todavia, a elevação da adequação ao gênero jamais desaparece
completamente da ordem-do-dia da história. Marx define o reino da li-
berdade como “um desenvolvimento de energia humana que é fim em si
mesmo”, como algo, portanto, que tanto para o homem individual quan-
to para a sociedade tem um conteúdo suficiente para transformá-lo em
fím autônomo. Antes de mais nada, é claro que uma tal adequação ao
gênero pressupõe um nível do reino da neces­sidade do qual, no presente
momento, ainda estamos muito longe. Só quando o trabalho for efeti-
va e completamente dominado pela humanidade e, portanto, só quando
ele tiver em si a possibilidade de ser “não apenas meio de vida”, mas “o
primeiro carecimento da vida”, só quando a humanidade tiver superado
qualquer caráter coer­citivo em sua própria autoprodução, só então terá
sido aberto 0 caminho social da atividade humana como fim autônomo.
Abrir o caminho significa: . criar as condições materiais neces­
sárias e um campo de possibilidades para o livre emprego de si. Ambas
as coisas são produtos da atividade humana. A primeira, po­rém, é fruto
de um desenvolvimento necessário, enquanto a segunda resulta de uma
utilização correta, humana, do que foi produzido ne­cessariamente. A
própria liberdade não pode ser simplesmente um produto necessário
de um desenvolvimento inelutável, ainda que to­das as premissas de sua
explicitação encontrem nesse desenvolvimento - e somente nele - suas
possibilidades de existência.
É por isso que não estamos aqui diante de uma utopia. Com efei-
to, em primeiro lugar, todas as suas possibilidades efetivas de realiza-

109
Lukács e o século xxi

ção são produzidas por um processo necessário. Não é casual que já no


trabalho, em seu primeiríssimo estágio, tenhamos dado tan­to peso ao
momento da liberdade na decisão entre alternativas. O homem deve
adquirir sua própria liberdade através de sua própria atuação. Mas ele
só pode fazê-lo porque toda sua atividade já con­tém, enquanto parte
constitutiva necessária, também um momento de liberdade.
Aqui, porém, há muito mais. Se tal momento não se manifes­tasse
ininterruptamente no curso de toda a história humana, se não conser-
vasse nela uma perene continuidade, não poderia naturalmente desem-
penhar o papel de fator subjetivo nem sequer durante a grande virada.
Mas a contraditória desigualdade do desenvolvimento sempre provocou
tais conseqüências. Já o caráter causal das conseqüências das posições
teleológicas faz que todo progresso surja ao ser como unidade na con-
tradição de progresso e regressão. Com as ideologias, tal fato não ,apenas
é elevado à consciência (que freqüentemente ê uma falsa consciência)
e tratado segundo os respectivos interesses sociais antagônicos, mas é
igualmente referido às sociedades como totalidades vivas; aos homens
com personalidades que buscam o seu próprio caminho verdadeiro. Por
isso, em algumas importantes manifestações individuais, volta continua-
mente a se expressar a imagem - até agora sempre fragmentária - de um
mundo de atividades humanas que é digno de ser assumido como finali-
dade autônoma. Aliás, é da maior importância constatar como, enquanto
os novos ordenamentos práticos, que em seu tempo marcaram época,
desa­parecem da memória da maior parte da humanidade sem deixar
tra­ço, essas atitudes - na prática necessariamente vãs, freqüentemente
condenadas a um fim trágico - conservam-se, ao contrário, como algo
ineliminável e vivo na recordação da humanidade.
É a consciência da melhor parte dos homens, daqueles que, no
processo da autêntica humanização, colocam-se em condições de dar
um passo à frente com relação à maioria de seus contemporâneos; e é

110
Anexos

esse consciência que, a despeito de todo problema prático, empresta às


manifestações desses homens uma tal durabilidade. Expressa-se neles
uma comunhão de personalidade e sociedade que mira precisamente
a essa adequação plenamente explicitada do homem ao gênero. Com a
sua disponibilidade a empreender um progresso interior nas crises das
possibilidades às quais o gênero chegou pelos caminhos normais, tais
pessoas - nos momentos em que as possibilidades de uma ade­quação
ao gênero para-si são materialmente exploráveis - contri­buem para
produzi-la efetivamente.
A maior parte das ideologias estiveram e estão a serviço da con­
servação e do desenvolvimento da adequação ao gênero em si. Por isso,
orientam-se sempre para a atualidade concreta, aparelham-se sempre
de modo a corresponder aos variados tipos da luta atual. Mas apenas a
grande filosofia e a grande arte (assim como o com­portamento exem-
plar’ de alguns indivíduos em sua ação) operam nessa direção, conser-
vam-se espontaneamente na memória da huma­nidade; acumulam-se
enquanto condições de uma disponibilidade: tornam os homens inte-
riormente disponíveis para o reino da liber­dade. E, antes de mais nada,
temos aqui uma recusa sócio-humana das tendências que põem em pe-
rigo esse fazer-se homem do homem. O jovem Marx, por exemplo, viu
no domínio da categoria do “ter” o perigo central. Não é um acaso que,
para ele, a luta de libertação da humanidade culmine na perspectiva
segundo a qual os sentidos humanos deverão se transformar em elabo-
radores de teorias. Assim, tampouco certamente é casual o fato de que,
ao lado dos grandes filósofos, Shakespeare e os trágicos gregos tenham
desempenhado um papel tão importante na formação espiritual e na
conduta de Marx. (Nem tampouco a admiração de Lênin pela Apas-
sionata é um epi­sódio casual.) Aqui podemos ver como os clássicos do
marxismo, ao contrário dos seus epígonos, todos dominados pela idéia
da mani­pulação exata, jamais tenham perdido de vista o tipo particular

111
Lukács e o século xxi

de realizabilidade do reino da liberdade, embora tenham sabido ava-


liar - de modo igualmente claro - o indispensável papel de fundamento
desempenhado pelo reino da necessidade.
Hoje, na tentativa de renovar a ontologia marxiana, deve-se dar
igual importância a ambos os aspectos: a prioridade do elemento ma-
terial na essência, na constituição do ser social, por um lado, mas, por
outro e ao mesmo tempo, a necessidade de compreender que uma
concepção materialista da realidade nada tem em comum com a ca­
pitulação, habitual em nossos dias, diante dos particularismos tanto
objetivos quanto subjetivos.

112
Anexo 2

“Conversando com Lukács”

Tradução de Giseh Vianna Konder

SEGUNDA CONVERSA
Sociedade e Indivíduo

Georg Lukács - Leo Kofler

Kofler — Desde algum tempo, ocupo-me do seguinte problema:


tornou-se corrente identificar, de modo unilateral, a ideologia com a
falsa consciência e identificar a consciência separada das rela­ções so-
ciais, isto é, aquela que se pretende tal, com a consciência autónoma,
para extrair certas conclusões idelológicas t|iic interessam à ideologia
burguesa. Surge, assim, a seguinte questfio: afirma-se triunfalmente
que a massa operária, que continua ainda a formar a metade da po-
pulação, ter-sc-ia aburguesado. Com isto, quer-se dizer que o traba-
lhador teria tido primeiro uma falsa consciência de classe e hoje teria
uma consciência correta, na medida em que teria aceito inteiramente
a consciência burguesa. Aqui, há uma contradição, de vez que se atri-
Lukács e o século xxi

bui à classe operária uma consciência de classe correta quando ela não
é independente, enquanto, ao mesmo tem­po, se define a consciência
correta como consciência indepen­dente. Esta contraditoriedade é ne-
cessária ou casual para a ideo­logia burguesa?
Lukács -— Permita que retorne a uma simplificação da questão.
Creio que Gramsci tinha toda razão quando observa­va a este respei-
to que nós, em geral, usamos a palavra ideo­logia em dois significados
inteiramente diferentes. De um lado, trata-se do dado real, elementar
para um marxista, de que na sociedade cada homem existe numa de-
terminada situação de classe à qual naturalmente pertence a inteira
cultura de seu tem­po; não pode assim haver nenhum conteúdo de cons-
ciência que não seja determinado pelo “hic et nunc” da situação atual.
Por outro lado, originam-se desta posição certas deformações, razão
pela qual nos habituamos a entender a ideologia também como reação
deformada em face da realidade. Creio que devemos manter separadas
estas duas coisas quando usamos o termo ideologia; por isso — volto
agora à questão ontológica — devemos deduzir disso que o homem
é, antes de mais nada, como todo organismo, um ser que responde a
seu ambiente. Isto sig­nifica que o homem constrói os problemas a se-
rem resolvidos e lhes dá resposta com base na sua realidade. Mas uma
consciência pretensamente livre de liames sociais, que trabalha por si
mesma, puramente a partir do interior, não existe e ninguém jamais
con­seguiu demonstrar sua existência. Creio que os chamados intelec­
tuais desprovidos de vinculações sociais, como também o slogan, hoje
em moda, do fim da ideologia, sejam uma pura ficção, que não tem
propriamente nada a ver com a efetiva situação dos homens reais na
sociedade real.
Kofler — A este propósito, coloca-se o problema: não existem
fenómenos ideológicos sem conotações de classe, isto ê, fenómenos
superestruturais que não são determinados a par­tir da situação de clas-

114
Anexos

se? O senhor mesmo, professor Lukács, sublinhou com muita agude-


za nos seus primeiros trabalhos, que o problema da ideologia não é
absolutamente o problema da refe­rência imediata à classe, mas algo
que concerne à totalidade da sociedade de classes. Porém, poder-se-
iam descobrir certos fenó­menos ideológicos que são efetivamente in-
diferentes ao ponto de vista de classe, na medida e no sentido em que
esses fenó­menos estão relacionados tanto à burguesia quanto à classe
operária e à pequena burguesia. No âmbito linguístico, sobre­tudo no
campo da terminologia que deriva do mundo da rei-ficação, temos es-
tes exemplos: “a técnica nos domina”, “a bomba atómica nos ameaça”,
“a inflação encarece tudo” ou “a perda de nossa individualidade deriva
da sociedade de massa” (Marx diria ironicamente: “a miséria deriva da
pau-vreté”). Assim, não devemos, com efeito, classificar estas for­mas
reificadas da linguagem como se fossem sumplesmente dependentes
de uma classe determinada; pelo contrário, tais for­mas são indiferentes
às classes, se bem que não sejam inde­pendentes da sociedade classista,
já que refletem certas formas de comportamento em uma situação so-
cial fetichizada e reificada.
Lukács — Irei mesmo um pouco mais além. Dado que a vida hu-
mana se funda num intercâmbio material com a natu­reza, não há dúvida
de que algumas verdades, das quais nos apropriamos com a realização
dêsse intercâmbio material, pos­suem uma validade geral: as verdades
da matemática, da geome­tria, da física e assim por diante. Mas este fato
foi fetichizado em sentido burguês, porque estas verdades, em certas
circuns­tâncias, podem relacionar-se muito estreitamente com as lutas
de classe. Se dizemos que as verdades da astronomia não se relacio­
nam com as classes, dizemos uma coisa justa; mas, nas discussões so-
bre Copérnico ou Galilcu, tomar partido a favor ou contra Gafileu era
um dos mais importantes elementos de uma escolha de classe. Desde
o momento cm que também o intercâmbio ma­terial da sociedade com

115
Lukács e o século xxi

a natureza é um processo social, há sem­pre a possibilidade de que con-


ceitos adquiridos deste modo reajam sobre as lutas de classe de uma
dada sociedade. Uso agora termos um pouco menos exatos, tomando
conceitos como “evolução”, “progresso”, etc. Em si e por si, a evolução
é um fato que podemos considerar como independente das classes, do
mes­mo modo que a evolução das espécies em Darwin. Por outro loda,
exatamente a questão do darwinismo foi por decénios objeto de dis-
cussões sociais. A humanidade tem um desenvolvimento unitário, ou
podemos dizer que diversos complexos culturais têm, cada um por seu
turno, início e fim, tratando-se assim de um processo cíclico? Este não
é, evidentemente, um problema ao qual se possa responder independe-
mente da estratificação em classes de uma sociedade. Creio, então, que
aqui existem limites variáveis. Por um lado, o intelecto humano está em
situação de estabelecer pontos que, independentemente da valorização
das diversas classes, são válidos em relação à sociedade como um todo,
eventualmente até mesmo no que toca à inteira con­cepção da nature-
za. Por outro lado, porém, cada homem está empenhado na luta social
com a sua personalidade inteira, de modo que potencialmente a con-
cordância com ou a recusa de cada teoria particular será algo condicio-
nado pela sua inclusão numa classe. Creio, por isso, que não podemos
chegar a uma delimitação precisa: aqui cessa a ideologia e aqui inicia
outra coisa. Trata-se, antes, de alguma coisa de variável, que flui, que é
determinada pela estrutura atual da sociedade e pelo estágio das lutas
de classe relativas a ela; alguma coisa que não se pode identificar com
uma teoria abstrata que funda a si mesma. A mesma coisa é verdadeira
para as assim chamadas classes pri­vadas de ligações sociais. Nos perío-
dos, digamos, de tranqui­lidade ou de ausência de tensões existem sem
dúvida situações nas quais uma classe pode manter-se comptetamente
neutra dian­te das lutas dominantes. No entanto, creio poder afirmar
com segurança que, na sociedade jamais se pode dízer a priori que

116
Anexos

alguém se manterá estranho e indiferente a todos os possíveis conflitos


de classe. O fato de que sejam possíveis uma indife­rença prática e até
mesmo as alianças mais incríveis é um fato que determina exatamente
a variedade de cores da história. O senhor se recordará de que em cer-
tas reformas sociais, na Inglaterra da primeira metade do século XIX,
a aristocracia conservadora tomou posição contra a burguesia e tornou
pos­sível uma redução das horas de trabalho. Daqui a tirar a con­clusão
de que a aristocracia estivesse interessada, como classe, na redução do
horário de trabalho, muita distância vai, se bem que este fato tenha
sido, não só uma realidade indiscutível, mas também uma ação da aris-
tocracia que só pode ser compreendida relacionando-a com as lutas
de classe de seu tempo. Penso, assim, que devemos manter em vigor,
também, no caso da ideologia, um princípio dialético fundamental: a
verdade é concreta.
Kofler — Creio que este esclarecimento é de extrema importância.
Gostaria agora de tocar numa questão, pela úni­ca razão de que é frequen-
temente discutida no nosso ambiente. O senhor fala do fluir, do passar,
da afirmação dos conceitos, de um processo de generalizações...
Lukács — Sim. ..
Kofler — ... por exemplo, do conceito de progresso. Direi mesmo,
eventualmente: conceitos abstratos. Perguntam-nos continuamente por
que caminho se chega a isso e deparamo-nos com o problema do irracio-
nalismo. Não há dúvida de que o irracionalismo, enquanto disposição da
alma humana, não tem porque ser negado. Refiro-me à intuição, às ideias
indeterminadas, à criatividade, se quiser. Ora, nos seus traba­lhos, o se-
nhor tem continuamente em mira o irracionalismo, do qual mostrou os
perigos também na âmbito da formação dos conceitos, da concretização
ideológica, na medida em que o fluxo interior no âmbito da vida psíquica
é autonomizado e supervalorizado em relação à racionalidade, de modo
que a ex­periência vivida, a experiência vivida interior — estes proble­

117
Lukács e o século xxi

mas são muito atuais — é elevada a mundo autêntico. Daí a questão da


mitização, da contraposição entre ratio e razão, de um lado, e verdade
interior, de outro. A isto está também rela­cionado o fato de que a atitude
irracionalista nega o conceito de progresso.
Como última consequência, encontramos o desprezo pelo hu-
manismo, na medida em que cie não é conciliável com a experiência
vivida, com a “autêntica plenitude de valores”, com a “peculiaridade do
homem interior”. Então, aquilo que é humanista é considerado exterior,
e o resto, de modo sutil, é visto como intimamente superior a ele. Ora,
a prescindir da problemática irracionalista na história alemã, a respeito
da qual voltarei a falar, me interessaria saber o que o senhor tem a dizer
para completar ou para interpretar esta questão.
Lukács - Sim, veja, gostaria antes de mais nada de afastar uma
ideia bastante difundida, isto é, a contraposição entre intuição e dedução
lógica. Como conceito da teoria do conheci­mento, ela é completamente
falsa e sem fundamento. Como conceito puramente psicológico, a in-
tuição é alguma coisa de óbvio, que se produz continuamente. Contra a
mitização deste conceito é preciso sublinhar: a intuição aparece sempre
que um homem está preso a algum núcleo de pensamento, e depois de
tê-lo reelaborado inconscientemente dentro de si, por um certo perío-
do, “imprevistamente” — digo imprevistamente entre aspas — chega a
um resultado. Pode-se encontrar uma intuição deste género até mesmo
na matemática e não é absolutamente verdade que esta intuição esteja
ligada assim tão somente à arte; mas — e aqui aparece o aspecto cog-
noscitivo — não diz absolutamente nada a favor ou contra uma tese o
fato de que ela tenha sido encontrada intuitivamente ou não; deve ser
demonstrada logica­mente ou historicamente e a sua verdade deve ser
verificada in­dependentemente do fato de que tenha sido encontrada
intuiti­vamente ou não. Considero importante esta distinção, porque
na filosofia alemã, de Schelling em diante, e em certo sentido, já na

118
Anexos

Crítica do Juízo de Kant, atribuiu-se à consciência intuitiva uma certa


superioridade em face da consciência não intuitiva. Na minha opinião,
porém, nunca se fez a mínima tentativa de criar uma fundamentação
teórica qualquer de tal superioridade: a superioridade da intuição foi
simplesmente aceita dogmaticamente. Este é, por assim dizer, o aspec-
to subjetivo. Quanto ao aspecto objetivo, creio que haja, na praxis real
da humani­dade, uma diferença entre a razão, no sentido real e racio-
nal, e a razão tal como foi supervalorizada por milénios. Penso que é
racional aquilo que deriva de nosso trabalho e de nosso con­fronto com
a realidade; por exemplo, é racional uma conexão que funciona efeti-
vamente. Se deixo cair uma pedra da mão, ela cai no chão; repetindo
algumas vezes esta experiência, encon­tro uma conexão racional que
Galileu formulou em nível supe­rior na lei da queda dos corpos. Toda
racionalidadle real que encontramos na vida é sempre uma raciona-
lidade na forma do “se é isto. . . então será aquilo”; qualquer situação
concreta é ligada a efeitos concretos, e, já que na vida isso acontece com
regularidade, chamamos com boas razões de racional tal conexão. Mas,
por um exagero da lógica e pelo que se pode chegar a fazer nesse terre-
no, criou-se a ideia de uma racionalidade geral do mundo, que de fato
não existe. Com base nas leis naturais hoje dominantes, o fato de que
uma pedra caia no chão me parece racional. Num mundo imaginário,
no qual a pedra voasse regularmente, os homens poderiam pensar este
outro fenómeno como racional; assim — e isso está em relação com
esta racio­nalidade na forma do “se é isto... então será aquilo” — a queda
da pedra não é racional em virtude de certos fundamentos racio­nais,
mas porque neste caso isso é prescrito pelo ser, pela natu­reza, exata-
mente assim e não de outra maneira. Ora, na socie­dade, no desenvolvi-
mento social, surgem continuamente situa­ções nas quais o que ontem
parecia racional subitamente não está mais de acordo com os fatos. É
como se, na sociedade, nos encontrássemos diante de uma pedra que

119
Lukács e o século xxi

voasse. Neste caso, a humanidade pode assumir duas posições diversas.


Uma é semelhante àquela que o homem assume regularmente, com o
trabalho, diante da natureza: quando um material se mostra refratário,
por assim dizer, às leis até agora existentes, procuramos outros tipos de
explicação, até que seja descoberta a nova lei normativa. Isso acontece,
continuamente, também no desenvolvi­mento social. Por outro lado,
para certas classes — e voltamos outra vez à situação de classe — esta
mudança da realidade social é algo de absolutamente incompreensível;
do ponto de vista social, essas classes só vêem nisto anarquia e desor-
dem. Tome simplesmente a posição das classes na Revolução France-
sa, quan­do os acontecimentos que pareciam muito simples e racionais
para a classe revolucionária, pareciam caóticos e irracionais para as
classes dominantes e seus simpatizantes. Como o nosso pensa­mento
está sempre na dependência da nossa situação social e em conexão com
ela, surgiram sempre na história novas situações nas quais algumas
classes e importantes pensadores que as representavam reagiram, em
certos casos, de modo tal que chega­ram a condenar as novas conexões e
o novo curso da sociedade a partir do ponto de vista da velha razão. De
fato, o senhor recordará como, na Revolução Francesa, os defensores
da classe feudal daquela época colocaram-sc várias vezes numa postura
irracionalista, enquanto que, ao contrário, o feudalismo, no tem­po de
Tomás de Aquino, não era absolutamente irracional. To­más de Aqui-
no, com boas razões, compreendeu o feudalismo simplesmente como
algo que estava de acordo com a razão, porque ele, na realidade social,
expressou muito bem a racionalidade (na forma do “se é isto. . . então
é aquilo”) do seu tempo. Mas a praxis de Marat e de Robespierre não
podia ser acolhida no sistema racional das classes feudais: surge assim,
da situação social, aquilo que chamamos de irracionalismo. Por­tanto,
é característico do desenvolvimento moderno o fato de que os pensa-
dores não se limitem a negar ou a duvidar da nova razão; forma-se, ao

120
Anexos

invés, um sistema específico do irracionaíismo, que depois se difunde


amplamente e leva a con­sequências que os iniciadores deste sistema, se
assim me pos­so exprimir, não desejavam em absoluto. Esclareço esta
ideia com dois exemplos. Tome a sociologia política de Max Weber.
Considere, em A Política como Vocação, a sua doutrina segundo a
qual vários deuses dominam o mundo. Ela esconde o fato de que Max
Weber, na sociedade de seu tempo, não podia chegar a um conceito
unívoco de razão na forma do “se é isto. . . então será aquilo”, e por
isso ficou preso à luta entre as diversas forças que não queria racio-
nalizar. De fato, uma racionalização teria conduzido a consequências
ina­ceitáveis para êle. Max Weber recorre, então, por assim dizer, à ideia
mítica dos deuses que na realidade lutam uns contra os outros. Poder-
se-ia dizer — e creio que podemos dizê-lo tranquilamente — que neste
ponto o irracionalismo envolve também o sistema de Max Weber. Ou
ainda: observe um sistema conceituai como o do neopositivsmo, que
reduz o mun­do inteiro a uma racionalidade manipulada e recusa tudo
o que escapa a seus limites. O neopositivismo teve, no início, entre seus
fundadores, um verdadeiro pensador: Wittgenstein. E Wittgenstein,
que fundou as teses neopositivistas de modo autentica­mente filosófico,
viu com bastante clareza que nos seus limites estava, se assim posso
dizer, o deserto do irracionalismo, algo que não pode ser expresso com
os instrumentos da racionali­dade neopositivista. Mas Wittgenstein
é muito inteligente para acreditar que este mundo que está além das
afirmações neopositivistas não exista. Assim, no limite da sua filosofia,
creio que exista — e não se trata de uma observação minha porque
mui­tos outros já a fizeram —um campo de irracionalidade.
Creio, por isso, que no curso do século XIX e do século XX tenha-
mos tido a experiência de uma grande onda de irracionalismo nas mais
diversas formas. O senhor tem toda a razão; de fato, ninguém negará que
o fenómeno tenha se verificado fora da Alemanha; por exemplo: o prag­

121
Lukács e o século xxi

matismo americano tem aspectos irracionalistas. Bergson está muito ti-


picamente inclinado ao irracionalismo; Croce (queira ou não) está cheio
de aspectos irracionalistas. O irracionalismo, pois, não é absolutamente
um fenómeno puramente alemão, mas um fenómeno internacional. O
fato especificamente alemão é que o irracionalismo tornou-se aqui a ide-
ologia das forças reacionárias, e mesmo das forças politicamente mais
reacionárias, o que não acontece nas outras nações.
Kofler — A propósito, o senhor define este irraciona­lismo ale-
mão como fé numa inelutabilidade interior, precisa­mente como fé
naquelas forças interiores que se contrapõem às forças externas, ra-
cionais. Essa fé excessiva na interioridade da alma, permanentemente
contraposta à exterioridade social, não poderia talvez ser relacionada
com a história alemã, como aliás, em certa medida, o senhor já fêz? Tal-
vez, também, em relação ao fato de que a história alemã seja infeliz em
seu conjunto. Tomemos a derrocada da ordem dos cavaleiros em 1410
e em 1466, depois a partilha de seus territórios em 1561, o desvio dos
caminhos comerciais, a guerra dos 30 anos, com todas as suas consequ-
ências, toda a triste história da der­rota dos camponeses, o isolamento
do período clássico, a re­volução de 48 e seu fracasso. São todos pontos
aos quais o senhor já se referiu, numa ou noutra circunstância. Ora, o
que interessa frequentemente aos estudantes nas faculdades é a sua de-
monstração de que na Alemanha predomina a tendência a buscar irra-
cionalmente a solução no enrijerimento dos pro­blemas não resolvidos
e que isto está concretamente relacio­nado ao fato de que na Alemanha
a ideologia irracionalista, de um modo específico e anormal, chegou
a uma total hegemonia, tornando-se um traço distintivo essencial do
povo alemão (considerado naturalmente em sentido histórico).
Lukács — Creio que este fato esteja realmente relacio­nado com
os momentos específicos da história alemã e com o fato de que certas
formas científicas, filosóficas e sociais, que podemos englobar agora

122
Anexos

sob o nome de razão, nas gran­des nações ocidentais foram produto


dos próprios homens. Creio que o desenvolvimento das nações como
unidades políticas esteja estreitamente correlacionado com o surgir da
socie­dade moderna. Cada francês e cada inglês sentirá naturalmen­te,
sem precisar refletir muito, esta unidade política como uma criação
própria. Creio que tenha sido a razão francesa a impelir o povo francês
a uma unidade, do absolutismo mais concen­trado à revolução e a Na-
poleão; a atívidade particular de cada um, o ser homem e o ser patriota,
puderam imediatamente coincidir. Na Alemanha, ao contrário, ocor-
reu um desenvolvi­mento no qual o povo alemão foi incapaz de unir-
se autonoma­mente em nação, numa nação moderna. Brotou assim da
reali­dade uma dissidência, por assim dizer, entre o sentimento vivido
interiormente do “verdadeiro” alemão que estava ainda no ter­reno da
velha realidade, e o seu convencimento, quando era razoável, de que
essa realidade se tinha tornado insustentável, mas que era impossível
encontrar uma solução politicamente realizável.
Houve assim uma contradição na Alemanha, que veio à luz no
século XVIII com Justus Moser, Herder, e o jovem Goethe. Talvez isto
pudesse ter sido mudado por uma revolução interna, mas não haviam
condições internas e externas para ela. E não é um acaso que mesmo
um grande adversário do irracionalismo, como Hegel, tenha visto em
Napoleão, por um lado, o espírito do mundo a cavalo e, por outro, a
grande encarnação do direito público em Paris, em condição de pôr or-
dem a qualquer preço nos problemas alemães. Este dualis­mo sobrevive
ao fracasso da revolução de 1848 e, ern sua essência, a chamada “revo-
lução pelo alto” é uma solução com­plexa, na qual a aparência irracio-
nalista de uma exterio­ridade que se transformou em interioridade, e de
uma interio­ridade que é autenticamente exterioridade, faz com que as
forças autónomas do povo alemão não sejam levadas em con­sideração.
Surgem, assim, todos esses dualismos que depois se consolidam sob o

123
Lukács e o século xxi

influxo de diversas teorias, provindas tam­bém em parte do exterior:


haveria uma essência originária do homem que se coloca numa posição
hostil ao desenvolvimento progressista do mundo exterior. Esta não é
apenas a teoria de Hitler; já existe em Klages, na tese do espírito como
adversário da alma; substancialmente, há também na ideologia de Hei-
degger, com o conceito de “derrelicção”. Hitler fêz de tudo isso uma
imensa demagogia, na qual relacionou essa interioridade aos antigos
alemães de raça pura. Como a nação alemã se tornou tardiamente, e
não por obra básica de forças internas, daí advém uma situação social
particular, que não entra em con­traste apenas com o Ocidente, mas
também, de modo bastante acentuado, com a evolução da Rússia. Na
Rússia, a situação social era mais atrasada, mas a unidade nacional já
tinha sido criada desde o absolutismo; por isso, da Revolução Francesa,
passando pelos dezembristas, até o ano de 1917, houve uma cadeia in-
cessante de revoltas contra o tzarismo. Nunca houve na Alemanha um
movimento semelhante a este. Por isso, con­tinuo a sustentar que houve
um passado dos alemães que nunca foi superado, e eles não podem
romper com Hitler porque não liquidaram ainda toda essa realidade,
porque na Alemanha con­tinua a não existir a consciência de si enquan-
to história autó­noma e progressista. É uma criação puramente alemã
como o reacionarismo, o Estado bismarkiano, o Estado hitlerista, etc,
que em certa medida são reconhecidos como produtos autóno­mos; não
é por acaso que todo o século XX, e isso é ampla­mente válido ainda
hoje, considerou o liberalismo e a demo­cracia como mercadorias im-
portadas do Ocidente para a Alema­nha. Não é verdade que isso seja vá-
lido apenas para a perspec­tiva do socialismo. O senhor pode encontrar
em grande quanti­dade, teóricos que recusam liberalismo e democracia,
enquanto mercadorias importadas do Ocidente, porque não estão de
acor­do com a natureza real da Alemanha. A natureza real da Ale­manha
é, pois, a do compromisso surgido com a forma bismarkiana do Es-

124
Anexos

tado alemão graças à necessidade do desenvolvi­mento económico. Os


historiadores, porém, não reconhecem, absolutamente, esta necessida-
de; acredito que entre dez volu­mes escritos sobre Bismarck, o senhor
encontrará no máximo um no qual esteja quando menos constatado
que o Estado cria­do por Bismarck era fundamentalmente um Zollve-
rein “prussiano”. Bismarck não uniu o povo alemão num Estado: uniu
o Zollverein “prussiano”. Para mim, trata-se de um fato impor­tante,
mas a historiografia alemã, em geral, não leva isso muito em conta.
É sintomático que Treitschkc não o tenha reconhe­cido; e que mesmo
entre os historiadores mais progressistas, Marcks, Meineck, ete, esse
reconhecimento também estivesse ausente da maneira mais total. Toda
a história alemã vem assim a encontrar-se num tal estado de confusão
que, em sua essência, só uma solução reacionária e irracionalista é vista
como adequa­da à essência alemã. Esta é uma característica específica
do irracionalismo alemão, que não se pode encontrar de forma tão agu-
da nem mesmo no fascismo italiano.
Kofler — Senhor Lukács, aproveito esta rara oportuni­dade de
estar com o senhor aqui em Budapeste para colocar ainda uma questão
ligada ao problema do irracionalismo. Embo­ra tal questão seja discuti-
da pelos intelectuais, e se refira tam­bém a toda filosofia ocidental, não
está em relação com os pro­blemas de sociologia, de filosofia, de ciência
e de poesia, mas com o irracionalismo espontâneo das massas na socie-
dade alta­mente industrializada. Trata-se de um irracionalismo de tipo
especial que preocupa muitas pessoas importantes de origem semi-
marxista ou burgueses de esquerda: um irracionalismo que é muito di-
fícil de esclarecer e que talvez por isso não seja ainda conhecido na sua
essência; por outro lado, como representa um fenómeno da sociedade
ocidental, completamente novo, mal é referido em seus escritos. Pro-
meti a meus alunos obter do senhor uma tomada de posição sobre este
problema. Desejo formulá-lo da melhor maneira para esclarecer o que

125
Lukács e o século xxi

quero significar com esse termo. Trata-se aqui também de conceitos e


representações que se afirmam quase que independentemente das clas-
ses, ainda que não das sociedades classistas. Talvez, hoje, “integração
voluntária” não signifique mais para a consciência espontânea e ingé-
nua, como significava originariamente, “participar essencial­mente das
reflexões e das conclusões racionais”, mas “partici­par essencialmente
de uma educação irracional, de um consenso cego”. “Satisfação”, hoje,
não significa mais um acordo racio­nal com o destino, ou contentar-se
com um sucesso palpável, mas implica numa representação manipula-
da que se orienta se­gundo o motivo condutor da técnica do consumo,
que por sua vez depende da manipulação. É evidente que estamos aqui
na presença de processos completamente irracionais de limitação, ide-
ologicamente manipulada, das exigências de consumo median­te um
certo grau de renúncia ascética. A tarefa desta última é a de produzir
um equilíbrio provisório entre a imposição de uma mentalidade volta-
da para o consumo e a capacidade efetiva material de satisfazê-lo. Há
ainda um outro conceito, de extremo interesse no estudo do mundo das
representações ir­racionais das massas de hoje: o de “privado”. “Priva-
do” não é mais contraposto a público, como outrora, mas compreen­de
aquele espaço da vida do indivíduo que, por obra da ideo­logia e com
o esforço do próprio indivíduo, está totalmente ocupado pelas influên-
cias do mundo exterior. Ou, ainda, to­memos o conceito de oposição.
“Oposição” não significa mais recusa à participação, mas, ao contrário
(penso na socialdemocracia), reivindicação de participação na praxis
estabelecida. É isto o que se compreende por oposição. “Liberdade” não
significa mais, por exemplo, direito de fazer o contrário daquilo que fa-
zem, dizem, ou desejam todos ou a maior parte, mas o di­reito de esco-
lher no âmbito daquilo que já foi declarado livre pela ordem repressiva.
Ainda, então, a ordem repressiva! Pode­ríamos continuar com outros
exemplos, mas não vim a Bu­dapeste para fazer discursos e sim para

126
Anexos

pedir-lhe que tome posição, detalhadamente, se possível, sobre estas


questões. Con­sidero este um problema difícil, visto que, no marxismo
tradicio­nal, com exceção de umas poucas contribuições e se imodeste-
mente prescindo do meu novo livro, que será brevemente pu­blicado,
êle praticamente ainda não foi levado em consideração.
Lukács — Isso é muito justo e, na minha opinião, relacio­na-se
com a transformação de alguns aspectos fundamentais do capitalismo
ocorrida depois da grande crise de 1929. Não no sentido de que o ca-
pitalismo tenha deixado de ser capitalismo ou se tenha tornado uma
espécie de capitalismo popular; mas, a meu ver, de um modo bastante
simples que gostaria de explicar em poucas palavras.
Se recuarmos 80 ou 100 anos, ao tempo em que Marx tra­balhava,
vemos que a indústria dos meios de produção estava, em sua essência,
largamente organizada em uma escala capitalista; podemos observá-lo na
indústria têxtil, na indústria de moagem, na indústria do açúcar, que for-
mavam quase todos os setores económicos da grande indústria capitalista.
Ora, nos oitenta anos seguintes, o consumo inteiro foi absorvido pelo pro-
cesso capitalista. Não falo somente da indústria de sapatos, confec­ções, ete;
é muito interessante o fato de que com todas essas geladeiras, máquinas
de lavar, ete, até mesmo o âmbito doméstico começa a ser dominado pela
indústia. Mesmo o setor dos assim chamados serviços torna-sc parte da
grande in­dústria capitalista. A figura semifeudal do empregado domés­tico
dos tempos de Marx torna-se cada vez mais anacrónica e surge um sistema
de serviços capitalistas. Quero, por ora, levar em consideração um aspecto
superficial do problema. Tomemos um grande fabricante de máquinas ou
qualquer outro industrial da época de Marx. É claro que sua clientela era
extremamente limitada, de modo que podia distribuir seus produtos sem
pôr em funcionamento um aparato de maior en­vergadura. Mas, com os
meios da grande indústria, surge um produto destinado ao consumo de
massa (basta pensar em produtos tais como lâminas de barbear) que tor-

127
Lukács e o século xxi

na necessário um aparato especial para levar milhões de lâminas de barba


aos consumidores particulares. Estou convencido de que todo o sistema
de manipulação, do qual estamos falando, surgiu desta necessidade e de-
pois estendeu-se também à sociedade e à politíca. Agora este mecanismo
domina todas as expressões da vida social, desde as eleições do presidente
até o consumo de gravatas e cigarros. Basta folhear algumas revistas para
encon­trar exemplos suficientes deste fenômeno. Mas encontramos aqui
uma consequência posterior e diversa: a exploração da classe operária
passa cada vez mais da exploração através da mais-valia absoluta para a
que se opera através da mais-valia relativa. Isto significa que é possível um
aumento da exploração ao lado de um aumento do nível de vida do traba-
lhador. No tem­po de Marx havia algo semelhante, mas apenas em forma
embrio­nária; não digo que não existisse absolutamente. Marx reconhe­ceu,
no terreno da economia, e creio que foi êle quem o fêz em primeiro lugar, a
mais-valia relativa; mas êle mesmo fêz certa vez, numa parte de “O Capital”
não publicada, uma observação muito interessante; isto é: que através da
mais-valia absoluta a produ­ção é apenas formalmente subsumida ao capi-
tal, de modo que a subsunção da produção sob as categorias do capitalismo
só surge com a mais-valia relativa, coisa que constitui uma ca­racterísticas
específica da nossa época. Todos estes problemas dos quais o senhor tratou
agora nascem em conexão com este fato. O inteiro problema da alienação
adquire uma fisionomia inteiramente nova. No tempo em que Marx escre-
via os “Manuscri­tos Económicos e Filosóficos”, a alienação da classe ope-
rária significava imediatamente um trabalho opressivo em um nível quase
animal. Com efeito, a alienação era, em certo sentido, sinónimo de desu-
manidade. Exatamente por este motivo a luta de classes teve por objetivo,
por decénios, garantir, com reivindicações adequadas sobre salário e sobre
o tempo de trabalho, o mínimo de uma vida humana para o trabalhador.
A famosa reinvindicação de oito horas de trabalho colocada pela Segunda

128
Anexos

Internacional é um sintoma desta luta de classe. Agora, em certo sentido, a


questão se modificou; só em certo sentido, natu­ralmente.
O senhor se recordará de que quando Erhard apresentou o seu
primeiro plano de reforma, o primeiro ponto do mesmo era consti-
tuído pela proposta de prolongamento de uma hora por semana no
horário de trabalho. Trata-se de uma medida cla­ramente destinada a
aumentar a mais-valia absoluta. Se o se­nhor, além disso, analisa a polí-
tica de Wilson na Inglaterra verá a mesma coisa. A mais-valia absoluta
não morreu, sim­plesmente não desempenha mais o papel dominante;
aquele papel que desempenhava quando Marx escrevia os “Manuscri­
tos Económicos e Filosóficos”. Ora, o que daí decorre? Que um novo
problema surge no horizonte dos trabalhadores, isto é, o problema de
uma vida plena de sentido. A luta de clas­ses no tempo da mais-valia ab-
soluta estava voltada para a criação das condições objetivas indispen-
sáveis a uma vida deste género. Hoje, com uma semana de cinco dias
e um salário adequado, podem já existir as condições indispensáveis
para uma vida cheia de sentido. Mas surge um novo problema: aque-
la manipulação que vai da compra do cigarro às eleições presidenciais
ergue uma barreira no interior dos indivíduos entre a sua existência e
uma vida rica de sentido. Com efeito, a mani­pulação do consumo não
consiste, como se pretende oficialmente, no fato de querer informar
exaustivamente os consumidores sobre qual é o melhor frigorífico ou a
melhor lâmina de barbear; o que está em jogo é a questão do controle
da consciência. Dou apenas um exemplo, o “tipo” Gauloises: apresen-
ta-se um ho­mem de aspecto ativo e másculo, que se distingue porque
fuma os cigarros Gauloises. Ou ainda, vejo numa foto de pu­blicidade,
não sei se de um sabonete ou de um creme de barbear, um jovem as-
sediado por duas belas garotas por causa da atração erótica que de-
terminado perfume exerce sobre elas. O senhor entende o que quero
dizer. Por causa desta mani­pulação, o operário, o homem que traba-

129
Lukács e o século xxi

lha, é afastado do pro­blema de como poderia transformar seu tempo


livre em otium, porque o consumo lhe é instilado sob a forma de uma
super-abundância de vida com finalidade em si mesma, assim como na
jornada de trabalho de doze horas a vida era ditatorialmente dominada
pelo trabalho. A dificuldade está agora no fato de que deve ser orga-
nizada uma nova forma de resistência. Se tomamos, não o marxismo
vulgar, mas o verdadei­ro marxismo, o marxismo de Marx, podemos
encontrar lá todos os elementos necessários para combater essas novas
for­mas de alienação. Penso na famosa passagem de Marx no terceiro
volume de “O Capital”, sobre o reino da liberdade e sobre o reino da
necessidade. É muito importante a afirmação de Marx segundo a qual
o trabalho permanece sempre, ne­cessariamente, reino da necessidade;
mas é também importan­te que ele acrescente uma outra afirmação, se-
gundo a qual o desenvolvimento do socialismo intervém precisamente
para dar formas humanamente adequadas ao trabalho e ao desenvolvi­
mento da humanidade. Isto pode ser completado com a afir­mação de
Marx, contida na “Crítica ao Programa de Gotha”, segundo a qual uma
das condições para o comunismo é que o trabalho se torne para o ho-
mem uma necessidade vital. Hoje existe uma ciência do trabalho e uma
assistência psicológica do trabalhador, mas elas têm como finalidade
tornar-lhe acei­tável por meio da manipulação, a tecnologia capitalista
exis­tente, e .não servem para criar, ao contrário, uma tecnologia ca­paz
de transformar o trabalho numa experiência digna de ser vi­vida pelo
trabalhador. Segundo um preconceito enraizado entre nós acredita-se
que, já que o capitalismo é feito deste modo (ou seja, cada renovação
tecnológica tendo por fim o aumento do lucro, enquanto todo o resto
é apenas uma consequência secun­dária), as determinações tecnológi-
cas estariam, por essência ontológica, incondicionadamente ao serviço
do capitalismo. Cito apenas um exemplo histórico: a transformação
bastante inte­ressante que teve lugar na época medieval tardia, quan-

130
Anexos

do estava surgindo o capitalismo, isto é, quando o aperfeiçoamento do


artesanato fêz com que êle penetrasse no âmbito artístico. Não falo da
grande arte, falo dos móveis, mesas, cadeiras, etc. como eram feitos
naquele tempo; um desenvolvimento que o capita­lismo varreu comple-
tamente, porque precisamente com o capi­talismo colocaram-se outros
princípios teleológicos para a reali­zação técnica, digamos para a pro-
dução de uma mesa. Ora, do mesmo modo como um artesão do século
XV sentia certamente os problemas do capitalismo nascente como um
fenómeno abso­lutamente não natural, um técnico de hoje sentirá como
algo inteiramente não natural e absurdo o fato de que uma produção
seja projetada com o fim de torná-la sensata para o trabalhador. To-
davia, este tipo de posição tecnológica não é, em comparação com a
técnica atual, mais novo do que era a tecnologia de mas­sa quantificante
em face da tecnologia qualitativa e artística do Renascimento.
Em geral, esquecemo-nos de que grande parte da tecno­logia é
urn género de posições socialmente condicionadas, ter­minando-se as-
sim por considerar as posições tecnológicas do ca­pitalismo, em certa
medida, como uma coisa em si, ligada à essência do homem. Este é o
aspecto da questão que se rela­ciona com o trabalho. O outro aspecto é
a transformação do lempo livre em otium, a qual, por ora, não pode
ser mais do que um trabalho ideológico feito para tornar cada vez mais
claro como esta manipulação é contrária aos interesses pro­priamente
humanos. O senhor deve desculpar-me se escolho novamente um
exemplo frívolo, tirado do campo da moda: devo confessar que leio
sempre as informações sobre moda com grande interesse sociológico.
Há vinte anos, existe uma luta permanente na haute couture pelo fato
de que ela, enquanto manipulação do traje feminino, quer introduzir
de qualquer modo as saias longas. É claro que isto acontece porque o
lucro da indústria têxtil seria maior neste caso. A moda — que como
se diz, é onipotente — fracassa, porém, neste ponto. Há vinte anos, em

131
Lukács e o século xxi

Paris, nos grandes desfiles de moda, con­tinua-se a profetizar o encom-


pridamento das saias; porém, neste ponto, as mulheres defendem seus
direitos, porque as saias longas não são adequadas ao trabalho ou às
subidas em um trem cheio. O senhor compreende o que quero dizer
com este exemplo: a manipulação, por princípio, não é onipo­tente. Na-
turalmente, é muito difícil despertar no homem as outras necessida-
des, aquelas necessidades reais do desenvolvi­mento da personalidade;
creio que temos muito a fazer, num processo longo e interminável, mas
em um processo que, cm última análise, pode terminar por uma vi-
tória. Alem disso, trata-se verdadeiramente de urn processo que não
tem mais como único ponto de referência a classe operária; sob este
as­pecto, ou seja, quanto à mais-valia relativa e à manipulação, mesmo
a camada intelectual e toda a burguesia estão igualmente sujeitas ao
capitalismo e às suas manipulações, não menos do que a classe ope-
rária. Trata-se por isto de despertar a verdadeira autonomia da per-
sonalidade, e para isso o desenvol­vimento económico realizado até
o presente momento criou as condições necessárias. De fato, não há
dúvida de que a quan­tidade de trabalho necessário para a reprodução
física do homem deve diminuir constantemente, o que significa que
para todos os homens pode ser encontrado o espaço necessário para
uma existência socialmente humana. Isto já aconteceu de modo eco-
nomicamente limitado, como Marx disse uma vez, com os pioneiros
da civilização, quando, por exemplo, em Atenas, a escravidão liberou
do trabalho uma camada privi­legiada permitindo assim o nascimento
da grandiosa cultura ateniense. É inegável que existem camadas para
as quais ainda são válidas, quanto ao nível de vida, as velhas categorias
do capitalismo, e é naturalmente uma grande tarefa preparar o desa-
parecimento delas e exigir para o trabalhador um outro nível de vída.
Mas não há dúvida de que para uma grande massa de trabalhadores,
empenhados intelectualmente ou fisicamente, o trabalho necessário

132
Anexos

para a reprodução está criando condições capazes de tornar possível


uma vida livre e adequada às exigên­cias humanas. Por isso é necessário
empreender uma ampla discussão sobre as formas atuais da alienação.
Aprovo muito o fato de que hoje se comece a estudar o jovem Marx sob
este aspecto. Certamente é uma estupidez historiográfica insistir sobre
a contraposição entre o jovem Marx e o Marx da maturidade. Os “Ma-
nuscritos Económicos e Filosóficos” podem nos mostrar o fenómeno
da alienação de modo bastante plástico e filosófico, mas o problema
atual da alienação tem hoje uma outra fisionomia, diferente daquela
que podia ter há 120 anos, no tempo de Marx. A tarefa que se coloca é
a de destacar esta nova forma de alienação, mas para fazer isto é neces-
sário esclarecer toda a dialetica histórica deste complexo de proble­mas,
porque hoje existem muitíssimas pessoas inteligentes, boas, valentes,
pela quais tenho a maior estima humana e intelectual, e que caem no
fetichismo, acreditando que o desenvolvimento técnico seja um Mo-
loch que tudo engole irresistivelmente. Isto é falso e a falsidade pode
ser demonstrada à base dos funda­mentos do marxismo. Há quarenta
anos polemizei contra a concepção bukariniana da técnica como força
produtiva determi­nante; hoje este erro é ainda mais difundido em rela-
ção às novas grandes invenções, como a utilização da energia atómica.
A nossa tarefa, o que nos compete como marxistas seria, neste caso,
afastar do cérebro dos homens o fatalismo fetichizado e mostrar que
a técnica foi sempre e apenas um meio no desenvolvimento das forças
produtivas, que as forças produtivas em última análise são sempre os
homens e as suas capacidades, e que uma nova fase do marxismo teria
início quando uma reforma da huma­nidade fosse considerada como a
tarefa central. Penso não ter dito nada de antimarxista: o senhor tam-
bém se lembrará que, na crítica da filosofia hegeíiana do direito, é o
jovem Marx quem diz que a raiz do homem é o próprio homem. Este
aspecto do marxismo deve ser posto em primeiro plano, não de modo

133
Lukács e o século xxi

inutilmente propagandístico, mas com relação ao capitalismo de hoje;


poderá então ser encontrada uma base de luta contra a alienação atual.
Isto é o quanto tinha a dizer, em linhas gerais, sobre este problema.
Kofler: Que a manipulação não é onipotente, prova-o nossa conver-
sa. Mas tornou-se extremamente difícil explicá-lo, de uma maneira ou de
outra. Talvez se possa retomar o seu con­ceito de ateísmo religioso, retiran-
do-o da esfera de sua conexão com o puro modo de pensar intelectual. . .
Lukâcs: Sim. . .
Kofler: . . . e tentar demonstrar que hoje ganha uni novo valor
para as grandes massas, que colocam no lugar de Deus, não o eu espi-
ritual, subjetivamente elevado a mundo autên­tico. . .
Lukács : Sim. . .
Kofler: . .. mas o consumo, inclusive o do tempo li­vre, etc, no modo
manipulado já discutido antes. Partindo deste princípio, mesmo se a este
respeito não podemos tratar especificamente das conexões intermediá-
rias, podemos entre­tanto nos deter momentaneamente no fato do que a
perda de espiritualidade das massas chega, em ampla medida, a dissol­ver
até a consciência religiosa, de tradiçôoa tão profundamen­te enraizadas, e
para as quais Marx chamou a atenção. A consciência religiosa se dissol-
ve antes do que Marx havia pre­visto; não, evidentemente, na sociedade
sem classes, mas em bases opostas a ela. Ainda aqui estamos diante de
um tipo de ateísmo religioso cuja manifestação consiste talvez no fato
de que hoje as igrejas de vez em quando ficam cheias, mas ficam cheias
em parte de ateus. Contemporaneamente, obser­vamos de modo bastante
concreto recaídas singulares no pen­samento mágico. Isto significa que
o pensamento mágico toma o lugar que originariamente pertencia à re-
ligião; observe-se as tentativas de mudar o destino através da loteria do
futebol e da astrologia, que devem ser classificadas, do ponto de vista da
moderna racionalização, como mitos mágicos ou quase re­ligiosos. A este
âmbito pertencem as tentativas de procurar uma vida digna de ser vivida

134
Anexos

através da droga. Penso no hoje famoso LSD. Devemos tomar essas coisas
mais a sério, quan­do sabemos que foi escrito pelo filósofo Aldous Huxley
um livro que exalta a droga.
Lukács: Eu o conheço. . .
Kofler: Conhece-o? O que é que o senhor não conhece, senhor
Lukács? Pensei dar-lhe uma informação que o senhor desconhecesse. Neste
livro, “As Portas da Percepção”, Huxley cria a ideologia mítica de um “novo
caminho”, uma mítica re­denção do tipo puramente subjetivo, mas intensifi-
cada e faci­litada pela droga. Algumas pessoas, como o conhecido psicó­logo
da Universidade de Harward, Leary, fundam colónias pa­ra educar para
uma “vida transcendental”; existem efetivamente teólogos, como o profes-
sor de religião Clark, que reali­zam experiências assim com estudantes de
teologia (sublinho: estudantes de teologia). O resultado é que estudantes e
teólo­gos afirmam estar mais perto de Deus com o LSD, e o próprio Clark
confirma esse juízo. Todos estes fatos são bastante inquietantes.
Lukács: É verdade.
Kofler: Se prosseguimos nesta linha de considerações, descobri-
mos um processo singular, do qual poderemos talvez definir a dialética
como dialética de utilização das formas má­gicas, dos êxtases orgiásticos,
para a solução dos problemas mo­dernos do homem. Recordemo-nos, por
exemplo, dos fenóme­nos extático-convulsivos dos espetáculos dos Beatles.
Quando esta problemática se retira para a privaticidade do eu, cria-se um
novo Deus, uma nova consciência semi-religiosa, como resul­tado do fato
de que o eu, sendo oprimido, não encontra uma satisfação vital no traba-
lho, na vida pública e social. Por fim, chocamo-nos com uma nova e mode-
roíssima forma do irracionalismo e do ateísmo religioso que será um objeto
de estudo e de análise muito importante para o marxismo moderno, que
hoje me parece mais do que nunca em desenvolvimento.
Lukács: Acredito que o senhor tenha toda a razão. Mas deve me
desculpar se divido a questão que o senhor tratou de maneira unitária

135
Lukács e o século xxi

em duas questões distintas. A primeira consis­tiria em uma história ge-


ral das transformações, ocorridas entre lutas contínuas, das formações
económicas nas quais nos encon­tramos hoje. É ilusão pensar que te-
nham existido desenvolvi­mentos retilíneos, especialmente no que con-
cerne à evolução do fator subjetivo. Tenha presente, para tomar apenas
o fator reli­gioso, que, na Idade Média mais avançada e no Renascimen-
to, a religião diminuiu de importância e se transformou em um tipo
de indiferentismo iluminado, para inflamar-se depois, com a revolução
dos componeses e a Reforma, numa religiosidade que não era de fato
imaginável nos séculos anteriores. A este respeito considero o que se
segue de extrema importância: no final do século XIX, na segunda me-
tade do século, havia essencialmente uma luta de classes que se inten-
sificava constantemente e que teve seu ponto culminante na Primeira
Guerra Mundial e em 1917. Depois da Segunda Guerra Mundial surgiu
da nova situação algo inteiramente novo, e os nossos, digamos, jovens
impacientes e jovens enraivecidos da esquerda Incorrem em certa me-
dida nas tentações chinesas, porque, segundo eles, o desenvolvimento
não se faz com suficiente rapidez. Sonham com que amanhã estoure a
revolução na América e querem emigrar para a América do Sul para
serem guerrilheiros. O nosso dever de marxistas seria o de esclarecer
todos os acontecimen­tos posteriores ao fim do primeiro grande perío-
do. Devemos analisar o fato de que a transformação do capitalismo em
um sistema dominado pela mais-valia relativa cria uma situação nova,
na qual o movimento operário, o movimento revolucio­nário, é con-
denado a um novo início, durante o qual renascem, em formas muito
caricaturais e cómicas, certas ideologias ultra­passadas aparentemente
há muito tempo, como o luddismo do fim do século XVIII. Isto talvaz
pareça um paradoxo. Nesta grande onda de sexo que hoje envolve mu-
lheres c garotas, ma­nifesta-se uma espécie de luddismo na batalha pela
emancipa­ção feminina. No primeiro momento isto parece um parado-

136
Anexos

xo, mas creio que, no fundo, haja mesmo algo de semelhante. Deve­mos
convencer-nos de que hoje, não podemos, em relação ao despertar do
fator subjetivo, renovar e continuar os anos vinte, mas devemos reco-
meçar de um novo ponto de partida, utilizan­do todas as experiências
que são património do movimento ope­rário, tal como se desenvolveu
até hoje, e do marxismo. Deve­mos dar-nos conta, com clareza, que es-
tamos em face de um novo início ou, para usar uma analogia, que nós
agora não estamos na década dos vinte, mas em certo sentido no início
do século XIX quando, depois da Revolução Francesa, co­meçava-se a
formar lentamemnte o movimento operário. Creio que esta idéia é mui-
to importante para o teórico, porque as pessoas se desesperam muito
cedo quando a enunciação de certas verdades produz apenas um eco
muito limitado. Não es­queça que as coisas importantes ditas naquele
tempo por Saint-Simon e Fourier encontraram uma ressonância limi-
tadíssima, enquanto o avanço real do movimento operário iniciou-se
ape­nas no terceiro ou quarto decénio do século XIX. Naturalmente não
se deve exagerar com analogias, e analogias não são paralelismos, mas
o senhor compreenderá o que quero dizer quando sustento a neces-
sidade de convencermo-nos de que estamos no início de um período
novo e que a nossa tarefa de teóricos é a de esclarecer as possibilidades
do homem neste período, sendo conscientes de que a ressonância des-
tes conhecimentos na massa será por ora ilimitada. Naturalmente, este
fato depende da evo­lução do stalinismo na União Soviética, da hesita-
ção em supe­rá-lo, bem como do atraso no desenvolvimento do socia-
lismo que dele decorreu. Grandes acontecimentos podem ter influên­
cia muito negativa sobre o fator subjetivo. Para dar ainda um exemplo
histórico, só a heróica derrota dos jacobinos de esquer­da na Revolução
Francesa produziu, com o utopismo, a idéia de que o socialismo não
tinha nada a ver com o movimento revolucionário. Penso que, em sua
essência, esta idéia se redu­zia à desilusão em face da evolução francesa

137
Lukács e o século xxi

durante os anos de 1793-1794. Não obstante, ela teve efeitos bastante


duradou­ros no movimento operário; em substância, Marx foi o primei-
ro a tratar com exatidão a teoria revolucionária da vitória da revo­lução
democrática como primeiro passo na conquista do socia­lismo. Hoje,
ainda não temos homens políticos com possibilidades de transformar
esses conhecimentos em praxis política. Tra­tou-se de um caso abso-
lutamente único, ainda que fosse um exemplo fascinante, o de termos
tido entre nós, no período de 1917, com a pessoa de Lênin, uma fusão
singular de um importante teórico com um grande político. Disto não
decorre neces­sariamente, de nenhum modo, que também no futuro, a
política consiga realizar por si mesma uma fusão deste género. Temos
agora esboços de teoria, e seguramente não há ainda no hori­zonte um
homem político que seja capaz de traduzir esta teoria em palavras de
ordem políticas; todavia, estou firmemente con­vencido de que com o
fortalecimento do movimento surgirá também um político desse tipo.
Com relação a este assunto, retomo agora a segunda parte da
questão, isto é, o aspecto religioso. Trata-se de um proble­ma muito in-
teressante, que em geral ainda não foi abordado por ninguém, menos
ainda por nossos marxistas, porque o mar­xismo dogmático não supe-
rou ainda uma idéia da religião que remonta ao quarto decénio do sé-
culo XIX. Em sua época, fo­ram lidos artigos sobre satélites que voando
no espaço não en­contraram Deus, e poucos ateus acreditaram .que este
argumen­to pudesse convencer alguém, como se existisse hoje apenas
uma lavadeira que acreditasse no céu no sentido de Tomás de Aquino,
ou naquele céu ilustrado por Dante na Divina Comédia. Não há dúvida
de que o inteiro fundamento ontológico da anti­ga religião entrou em
colapso, e o fundamento ontológico foi sempre um dos móveis impul-
sionadores que determinam o agir. Os homens religiosos, não só os, de
hoje, mas essencialmente a partir da doutrina de Schleiermacher da
“dependência não-condicionada”, encontram-se, simplesmente, diante

138
Anexos

da necessi­dade de pôr de lado a velha ontologia religiosa e por isso de


procurar uma nova ontologia.
É o que na minha “Estética” chamei de exigência religiosa. Ora,
o que é propriamente esta exigência religiosa? Ê o senti­mento vago do
homem de que a sua vida é uma vida que ca­rece de sentido, e que ele
não se pode orientar nela porque a velha ontologia da religião desa-
bou. Tal ontologia realmente desabou, no sentido de que hoje nenhum
católico ou protestan­te poria mais o Velho c o Novo Testamento como
fundamen­to histórico ou ontológico das suas ações. Assim, essas pes-
soas hoje estão diante do nada, e essa tendência em direção ao sobrena-
tural, que, como o senhor disse muito justamente, chega quase a magia,
não é outra coisa senão a tentativa de encontrar uma nova base, para
utilizá-la em face desta perda de cami­nho e deste sentir-se num espaço
vazio. O que demonstra co­mo o problema da vida significativa, que le-
vantei no sentido marxista cm relação ao mundo manipulado do capi-
talismo, é, em sua essência, o mesmo problema que se coloca hoje à exi­
gência religiosa: neste ponto devemos procurar a possibilidade de uma
comunicação. Dois são os obstáculos que se contra­põem a isso. Um
constituído pela concepção dogmática de muitos marxistas que recor-
rem aos velhos argumentos do ateís­mo do passado, já agora privados de
qualquer eficácia. Por outro lado, não é por acaso que homens como Ga-
raudy, algumas figu­ras como Teilhard de Chardin, tentem um encontro
ideológico. Naturalmente, não existe nenhuma aproximação real e nós,
com a aprovação de suas falsas posições, não podemos trazer nenhu­ma
ajuda a estas pessoas, cuja exigência religiosa é autêntica, mas que para
ela procuram apoios ideológicos errados. Para o marxismo, isto é um
problema muito complexo e eu o caracte­rizarei recordando que não é
casual que o jovem Marx tenha escrito a sua dissertação sobre Epicuro:
aquele epicurismo se­gundo o qual, vivendo os deuses nos intermundia
do universo, Deus, a natureza divina, o princípio transcendente, não

139
Lukács e o século xxi

têm mais nenhuma influência e não podem ter influência sôbrc a vida
dos homens. O homem deve então resignar-se: o único que pode dar-
lhe uma existência sensata é êle mesmo; nessa luta por uma vida mais
sensata, como diz a Internacional, ne­nhum Deus o pode ajudar. Dando
maior ênfase a este ponto, devemos procurar transformar o ateísmo
religioso num verda­deiro ateísmo. Daqui surge uma série de problemas
filosóficos e eu gostaria de chamar a atenção para o fato de que, nesla
como em muitas outras questões, é grande o mérito de Nicolai Hart-
mann, que, em seu pequeno volume sobre teleologia, cha­mou a aten-
ção para o fato de que os homens vivem os aconte­cimentos de sua vida
cotidiana como se fossem dirigidos por uma teleologia independente
deles. Se, digamos, morre o amigo de uma pessoa, a referida pessoa se
colocará o problema de porque isto aconteceu, como se a morte de X
fosse um fato teleológico tal que mudasse a vida moral de Z; isto, na mí-
nha opinião, é o ponto decisivo, dialético-epicurista, na construção do
marxismo, aquele através do qual poderemos ajudar, com um trabalho
de esclarecimento, tais ateus religiosos.
Sem dúvida, todas as Igrejas atravessam uma crise ideológica que
poderia ser comparada à grande crise ideológica que se sucedeu à Re-
forma. Direi que a crise reformadora no cam­po católico surge do fato
de que a Igreja católica estava apenas
empenhada cm sustentar o feudalismo: depois da crise, afirmou-
se a grande ação de Loyola, cujo mérito está em ter compreen­dido
que a Igreja Católica podia conservar-se e desenvolver-se tão-somente
aliando-se ao capitalismo que surgia. Ora, encontramo-nos numa crise
na qual n Igreja Católica e as outras Igre­jas começam a compreender
que a aliança de vida e morte com o capitalismo é uma coisa perigo-
sa. Hoje, isto acontece com maior diplomacia; o Papa João XXIII viu
com muita clareza que esta orientação unilateral na direção de uma
sustentação religiosa do capitalismo pode ser abandonada e pode ser

140
Anexos

pro­curada uma nova orientação. Falo a este respeito de uma analogia


com a ação de Loyola no século XVI.
Para responder à segunda questão, não deveremos fazer uma aná-
lise dogmática ou ideologicamente condescendente das exigências reli-
giosas de hoje, porque para aqueles que se encon­tram hoje nesta crise
religiosa só pode ser trazida uma ajuda com. o primeiro caminho: isto
é, combatendo, sob as mais varia­das formas, para que seja possível uma
vida cheia de sentido, e para que surja uma aliança na qual possam en-
trar, como terceiro aliado, também aqueles marxistas que estão procu-
rando liquidar o stalinismo nos países socialistas. De fato, só através da
liqui­dação do stalinismo podem ser realizadas hoje nos países socia­listas
aquelas tendências vitais que tornam a vida significativa e que, em si e
por si, no socialismo, poderiam abrir caminho mais rápida e claramente
do que no capitalismo. Mas elas foram sufocadas pelo sistema stalinista
e pela forma até agora stalinista de sua superação. Não sei se lhe parece
claro que numerosas forças agem juntas e de modo bastante complexo,
razão pela qual esperar algum resultado espetacular da luta contra a ma­
nipulação é uma ilusão. O mais importante no momento seria alcançar
uma maior clareza teórica sobre aquilo que hoje significa marxismo e
sobre os resultados a que este último pode levar.
Kofler: Da sua exposição ampla e complexa três pontos me cha-
maram a atenção. Na realidade, gostaria de pôr em discussão um úni-
co problema, mas não gostaria de deixar de mencionar, pelo menos,
outros dois. A sua, diria quase, dedu­ção da religião a partir da teoria
do conhecimento e da antropo­logia deveria ser colocada também em
relação com a definição marxista da religião como “suspiro da criatura
oprimida”. Cho­cou-me o fato de que o senhor, tanto no primeiro, como
no se­gundo volume da “Estética”, analise com muita profundidade o
problema religioso, mas não faça nada para esclarecer esta refe­rência.
Não creio, porém, que seja o caso de discutir aqui este problema. Gos-

141
Lukács e o século xxi

taria também de chamar a atenção sobre o fato de que o luddismo das


moças e mulheres, ao qual o senhor aludiu, é tolerado de maneira ver-
dadeiramente excessiva e é até mesmo favorecido, e eu pergunto a razão
disso. E aqui surge a suspeita de que esta forma, esta rebelião contra a
aceitação dos tabus tradicionais, constitua igualmente um impulso à
inte­gração nesta dialéíica singularmente complicada.
Lukács: Veja, creio que o senhor tenha toda a razão. Se compa-
ramos, sob este aspecto, a sexualidade ao luddismo, o paralelo se refere
à motivação humana de fundo, e não ao movi­mento enquanto tal. O
luddismo não podia ser integrado ao capitalismo da época, mas talvez
estes movimentos ideológicos não totalmente claros possam ser bas-
tante bem integrados.
Para dar um exemplo interessante, tome o famoso livro de Man-
nheim: êle é muito severo em sua crítica contra a ideologia, mas nutre
um certa fraqueza conciliante e uma amável tolerân­cia pela utopia.
Com efeito, entre essas duas coisas, desaparece a praxis revolucionária.
Uma utopia, como utopia, pode ser mui­to bem integrada, como disse
o senhor. Na realidade, uma opo­sição que tenha objetivos tão vastos
que tornem impossível, por princípio, sua realização pode muito bem
ser integrada por um capitalismo como o atual. Sei muito bem porque
alguns pontos são aceitáveis, outros não. Se, para dar exemplo de um
filó­sofo sério, Ernst Bloch diz que, com o socialismo também a nature-
za será transformada, ninguém tem nada a objetar contra esta afirma-
ção. E Bloch continua a ser um filósofo importante e apreciado, se bem
que seu socialismo seja tão radical a ponto de transformar até mesmo
a natureza. Se, ao contrário, eu digo que entre Nietszche e Hltler exis-
te uma relação, eis que de repente me transformo em “Conselheiro de
Estado” e coisas desse tipo em alguém que destrói as mais sagradas
tradições do espírito alemão, por que uma crítica a Nietszche atinge
vivamente o nacionalismo alemão de hoje. O senhor deve desculpar-

142
Anexos

me se dei um exemplo pessoal, mas ele mostra (e isso é essencial para


o desenvolvimento da luta contra a manipulação) que, por vezes, no
momonto atual, coisas extremamente radicais podem ser reconhecidas
como princípios interessantes, enquanto outras mais simples, que até
podem parecer prosaicas, são condenadas como limitadas, dogmáti-
cas, envelhecidas, e outros tantos apodos. Hoje devemos ver esta situa-
ção de modo absolutamente claro.
Kofler: Naturalmente, poder-se-iam fazer também outras alu-
sões pessoais e não só a Bloch.
Lukacs: Posso dizer que citei Bloch porque o considero um dos
melhores homens que conheço. Em outros autores, poder-se-iam en-
contrar muitas outras coisas, bem mais fortes. Não ae pode duvidar da
honestidade de Bloch, nem do seu talento. Mas chegarei a dizer que,
mesmo nele, podemos encontrar coisas desse tipo. Nos outros, obvia-
mente, em medida bem maior.
Kofler: Existem, porém, escolas que geram um grande número
de jovens enraivecidos, como dizia o senhor, que não querem ir com-
bater no Vietnã, mas que, em sua raiva, assumem uma atitude meio re-
volucionária e iluministicamente anticapitalista e meio resignada. Para
falar com franqueza, é este o caminho da escola de Frankfurt. E aqui
chego a um outro problema, que é tambem um problema tratado em
suas obras, ou seja, não se trata apenas do problema das pessoas sim-
plesmente enraivecidas, ou daquelas que, mesmo criticando, adaptam-
se mediante uma forma qualquer de resignação, mas sim do problema
doa “modelos humanos”. No seu livro “Realistas ale­mães”, quando fala
de Gottfried Keller, o senhor diz que algu­mas tendências de sua arte
têm uma grande importância para o futuro, porque nos mostram figu-
ras exemplares e verdadeiras
da vida numa sociedade democrática: as tendências realmente
humanas e democráticas de toda democracia autêntica conquis­tam

143
Lukács e o século xxi

para nós uma forma ideal sem perda de seu caráter realista. Isto acon-
tece de modo verdadeiramente singular, mas não é o caso de discuti-
lo aqui; entretanto, o senhor sublinha expres­samente: “sem perder o
caráter realista”. Trata-se então de verdadeiros modelos, sobre os quais
eu gostaria particularmente de insistir. “Sem perda de seu caráter re-
alista”, isto é, sem cair numa utopia abstrusa! Mas isso significa tam-
bém que deva­mos encontrar modelos exemplares de uma democracia
verda­deiramente humana mesmo na vida de hoje? Mais precisamen­te:
é possível encontrar essas figuras na vida totalmente defor­mada e fe-
tichizada que caracteriza o nosso tempo? E se, em certa medida — o
senhor me permita — ...
Lukács: Sim. . .
Kofler: . .. permanece dominante o método traiçoeiro da inte-
gração repressiva, nós então não discutimos a doutrina de uma ide-
ologia utópica que, para dizer a verdade, tam­bém pode realizar suas
tarefas, mas que talvez se situe acima do processo global e acabe por
lhe ser infiel? Gostaria de subli­nhar expressamente que este não é meu
pensamento. São ape­nas perguntas que gostaria de lhe fazer.
Lukács: Direi que a formação de uma minoria consciente é o pressu-
posto de um movimento de massa. Isto, na minha opinião, vem muito bem
expresso no “Que Fazer” de Lênin. Volto ao exemplo de Keller e não escolho
um motivo central, mas um pequeno episódio no qual este fato está clara-
mente caracteriza­do. Tomo a novela Frau Regei Amrein para exemplificar
o pro­blema da educação. O que há de notável é que Frau Amrein mostra, ao
analisar seu filho, a maior indulgência diante de todas as depravações e mal-
dades deste último, e só intervém energica­mente quando se manifesta nele
alguma baixeza de caráter. Esta novela aborda então o problema da exem-
plaridade e pou­co importa se Frau Regei Amrein pertence a uma sociedade
suíça hoje superada. O realismo é sempre representação, e aqui está descrita
aquela sociedade superada; não obstante isso, este problema moral da luta

144
Anexos

contra a baixeza é válido e é um problema que tem uma importante função


e exemplo na nossa luta contra a manipulação. Também hoje isto é inteira-
mente pos­sível e demonstra-o um exemplo atual: penso no romance de Jorge
Semprun “A Longa Viagem”, no qual existem muitos exemplos significativos.
O senhor fala da situação de hoje e da literatura que a descreve. Eu considero
um tanto humilhante, ao examinar a literatura dos últimos 20 anos, que um
livro maravilhoso como aquele que reúne as últimas cartas dos antifascistas
condenados à morte (publicado nestes últimos 15 anos), um livro tão cheio
de grandeza humana, de valor e força de resistência, não tenha estimulado
nenhum escritor. O livro de Semprun é na realidade um dos primeiros no
qual a literatura começa a aproximar-se do nível humano a que se chegou
na vida real e que é testemunhado por estas cartas. Não estou di­zendo que
não exista nada similar; há, por exemplo, alguns belos relatos breves, como
“Die Berliner Antigone”, de Hochhuth, ou o “Billard um halb zehn”, de Böll.
Veja, agora não estou fa­lando no plano artístico, falo da vida. Em Böll, aquela
velha que é internada no manicômio e que, no final, tomada por um acesso
de fúria, acerta um tiro às cegas sobre os soldados, re­presenta uma autêntica
forma de protesto contra o fascismo e um gesto pela sua liquidação interior
em oposição à vida que se desenvolve na Alemanha.
Em Semprun, existem pontos sobre os quais me deterei com pra-
zer porque se referem a um aspecto daquele fenómeno terrível do fas-
cismo, a questão judaica, que se revela mesmo como exemplo inexau-
rível de manipulação brutal. Entretanto, acho errada a tendência que
existe hoje na Alemanha no sentido de reduzir a superação do fascismo
à questão judaica. Trata-se na verdade de apenas um aspecto, e Sem-
prun descre­ve muito bem a situação, com grande coragem, também no
plano de uma autocrítica do judaísmo. Isto é, existe neste romance um
judeu alemão comunista que vai para a França, combate com os guerri-
lheiros franceses, morre como guerrilheiro e Semprun escreve a respei-
to dele: “não quero morrer como judeu”. “Morrer como judeu” queria

145
Lukács e o século xxi

dizer ser caçado e levado para as câmaras de gás sem esboçar a menor
tentativa de resistência, como centenas de milhares e mesmo milhões
de indiví­duos. A revolta do gueto de Varsóvia foi algo semelhante. Mas
penso que, se o senhor compara a realidade com a litera­tura, mesmo
a propósito do judaísmo, perceberá como este guer­rilheiro judeu e co-
munista que morre na França, é o primeiro que, no plano literário, está
à altura daquilo que foi a revolta de Varsóvia no plano da vida. Nao sei
se ficou claro o que quis dizer, e de como isto constituí uma grande
tarefa para a litera­tura. Eu, por exemplo, num âmbito inteiramente
diverso, chamei a atenção para o fato de que, se se comparar o ro­mance
“Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch”, de Solzhenitzin, com os outros
romances sobre campos de concentração, pode-se ver a diferença que
existe nele. De um lado, temos a descrição naturalista das atrocidades;
de outro, o problema das formas — a astúcia e tudo o mais — me-
diante as quais um homem pode conservar em um Lager sua própria
integridade humana. Por isso, o romance de Solzhenitzin é alguma
coisa nova e revo­lucionária. Este é o terreno sobre o qual a literatura
poderia contribuir muitíssimo na luta contra a manipulação, se não ca­
pitulasse literariamente diante dela, considerando-a como um destino.
Dei estes exemplos para mostrar que é possível, no pla­no literário, dar
forma àquela revolta real que o senhor encon­tra nas últimas cartas dos
antifascistas condenados à morte, de um modo exemplar para a ação
dos homens de hoje na luta con­tra a manipulação. Ê isto pode ser feito
quer usando os métodos modernos e tratando de acontecimentos atu-
ais, quer retor­nando aos acontecimentos de um tempo passado. Não há
dú­vida de que tal literatura exista. Há, por exemplo, o romance muito
interessante do americano William Styron —- “Set this house on fire”
— que, à maneira de Dostoiévskii, liga a manipula­ção a uma grande e
explosiva tragédia humana. Em primeiro lugar, o autor mostra como o
rico transforma-se inevitavelmen­te em tirano manipulador e o pobre

146
Anexos

é sacrificado em holo­causto à manipulação, e, descrita esta situação,


representa um delito cometido no final como protesto pessoal e fruto
da re­volta do pobre contra a própria condição de objeto manipula­do;
e é ainda muito interessante que, graças a esta ampla con­cepção, êle
possa evitar as consequências do delito por causa de circunstâncias fa-
voráveis e possa depois levar uma vida sensata e feliz. Naturalmente,
poderia continuar com estes exem­plos, se bem que sejam raras obras
deste género. Creio, entre­tanto, que não devemos cair no pessimismo
por causa da fra­queza do movimento que se desenvolve contra a mani-
pulação. Temos possibilidades, temos alianças; há, na minha opinião,
muito mais gente interiormente infeliz do que se possa imaginar; e ago-
ra chegamos a esclarecer, do ponto de vista teórico e artís­tico, de que
modo e em que medida estamos em condições de fazer um trabalho
com possibilidades de despertar as consciên­cias para este problema,
Kofler: A sua referência à capitulação frente à manipulação me
lembra aquela parte de sua análise de Thomas Mann, com relação a
Raabe, onde o senhor fala dos heróis peri­féricos...
Lukács: Sim. . .
Kofler: Heróis periféricos ou figuras periféricas que em suas lu-
tas procuram inutilmente um caminho de acesso ao gran­de mundo.
Lukács: Sim. . .
Kofler: A consequência é uma deformação particular do ho-
mem, e, no mundo de hoje, direi que é a figura do sectário. Temos uma
grande quantidade de figuras deste tipo, no nosso tempo, que muito se
esforçam para chegar a esta via de acesso...
Lukács: Sim. . .
Kofler: Mas ou eles se detêm em seus sonhos.. .
Lukács: Sim. ..

147
Lukács e o século xxi

Kofler: . . . porque, em seu dogmatismo, não entendem as trans-


formações históricas e acusam os outros de cometerem traições. ..
Lukács: Sim. ..
Kofler: ... ou então, ao contrário, tentam obter para si mesmo, a
partir da situação da vida burguesa e capitalista, mi­galhas de uma vida
humana, de uma democracia humana. Lukács: Sim. . .
Kofler: ...e finalmente resignam-se e apresentam então o mesmo
aspecto caricatural dos seus presumíveis adversários.
Lukács: Sim. . .
Kofler: Agora, coloca-se a questão: o sectarismo não é a manifes-
tação de um período de crise no qual, entretanto, faz-se alguma coisa de
novo? Em primeiro lugar, o fracionamento destas forças progressistas,
ou assim chamadas, de origem bur­guesa ou socialista, não é uma ne-
cessidade que se pode escla­recer apenas se se leva em conta a situação
de crise das forças progressistas? Em segundo lugar, o sectarismo não
poderia ser historicamente eficaz no futuro, isto c, não poderia trazer
algu­ma coisa que seria talvez possível definir encarando-se a questão
numa perspectiva histórico-teórica? Parecc-me que o problema dos he-
róis periféricos na época presente deva ser colocado nestes termos.
Lukács: Quanto menos se desenvolva um movimento real, ver-
dadeiramente importante, tanto mais positivo pode ser o va­lor de uma
evolução que se produza também através de erros. Hoje, vemos com
muita clareza que a concepção de Fourier, segundo a qual o trabalho es-
tava destinado a transformar-se em uma espécie de jogo, estava inteira-
mente errada. E, não obstan­te, diante da glorificação cega do trabalho
capitalista, típica daqueles anos, esta representação utópica de Fourier
(que aliás já tinha aparecido na estética de Schiller) teve um significa-
do positivo. Ela só assumiu um significado negativo depois de Marx
ter descoberto o caminho justo. Naturalmente, as diver­sas tentativas
que realmente se voltaram contra a manipula­ção (e eu não considero

148
Anexos

todas como tais) podem ter hoje um valor positivo. Eu ainda não li
este ensaio, mas é muito inte­ressante o fato de que no último núme-
ro de Temps Modernes seja colocado em discussão um texto no qual
Teilhard de Chardin é criticado enquanto ideólogo da manipulação.
Efetivamente, entre a concepção de Teilhard de Chardin e, digamos,
a Weltanschauung neopositivista da manipulação, existe uma relação
muito estreita. Direi novamente, como Hegel, que a ver­dade é concreta,
e que podem existir sectários que, em certo sentido, indicam positiva-
mene o futuro, ao lado de outros sectá­rios que exercem uma influência
negativa mesmo hoje.
Kofler: Senhor Lukács, não gostaria de cansá-lo muito, mas tal-
vez possa fazer-lhe uma pergunta, ligada também a uma questão sobre
a qual muito se discutiu, em um seminário diri­gido por mim. Na pri-
meira parte do primeiro volume de sua “Estética”, a respeito do proble-
ma do reflexo, o senhor fala da unidade do real.
Lukács: Sim. . .
Kofler: A questão já foi discutida ontem. Hoje se coloca o seguin-
te problema: no seu livro “História e Consciência de Classe”, de 1923,
vem demonstrado como a filosofia clássica fa­zia depender a cognosci-
bilidade do real da “produção” deste mesmo real. Na sua crítica a esta
filosofia, o senhor sustenta com razão que o problema da cognoscibi-
lidade do real só pode ser resolvido no terreno do conceito de praxis
histórica. Sem levar em conta o conceito de “praxis”, este problema
permanece insolúvel. Então a pergunta é esta: não serão talvez os dois
conceitos de “produção”, isto é, um relativo à teoria do conhecimento
e outro relativo à sociedade, dois conceitos que se refe­rem a dois cam-
pos diferentes da realidade, isto é, um ao âmbito da assim chamada
produção material, o outro relativo ao objeto da ciência da natureza e
da matemática? A sua demonstração leva a interpretação de que não
exista nenhuma ruptura, mas na realidade pode-se talvez observar

149
Lukács e o século xxi

criticamente, com relação a este fenómeno, que nos defrontamos com


dois conceitos diversos de produção.
Lukács: Devo logo começar afirmando que eu, como o senhor
provavelmente sabe, considero “História e Consciência de Classe” um
livro superado. A definição que se encontra neste livro, portanto, nada
tem a ver com os problemas desenvolvidos na “Estética”. Ora, a unidade
de realidade e produção significa isso: a realidade é unitária no sen-
tido de que todos os fenómenos da realidade (sejam eles inorgânicos
ou sociais), desenvolvem-se segundo certos nexos causais, em certos
complexos, com ações recíprocas em seu interior, e ações recíprocas
de um complexo com relação ao outro. Esta identidade existe. Mas
creio, como procurei demonstrar em meu livro sobre Hegel, que uma
das mais importantes renovações trazidas por Hegel à dialética con-
siste no fato de que a tese fundamental da dialética não é a unidade
dos contrários, mas o que Hegel chama de identidade da identidade
e da não identidade. Ora, eu penso que existe uma realidade unitária,
uma identidade no sentido de um curso causal da realidade indepen-
dentemente de qualquer posição humana e sobre este ponto pretendo
retornar. Daí decorre, então, antes de mais nada, que esta unidade se
explicite em formas di­versas nas três formas diversas da realidade. No
trabalho, natu­ralmente, a produção ocorre no sentido de que o traba-
lhador coloca-se um fim teleológico que êle pensa realizar. Assim, pode
surgir algo inteiramente novo. Para isso, não é necessá­rio recorrer à ci-
ência nuclear. Em sua essência, na natureza que conhecemos não existe
nenhuma roda, ao passo que os homens chegaram a construí-la já num
estágio relativamente primitivo de seu desenvolvimento, criando assim
um composto novo em relação à natureza. Uma das características es-
senciais da posi­ção teleológica consiste na sua capacidade de deixar in-
teragir, com a ajuda do conhecimento dos ordenamentos causais, estes
mesmos ordenamentos causais da natureza numa outra com­binação,

150
Anexos

diversa daquela que se realizaria caso não existisse a posição tclcoló-


gica: os nexos causais, porém, só podem ser conhecidos e utilizados,
mas não mudados. Nos seus primeiros escritos, Hegel diz com muita
razão que o trabalho do homem com seus instrumentos faz com que
a natureza se esgote por si mesma. Assim, nesta produção, o homem
introduz uma identidade de identidade e de não identidade, na medida
em que a roda é algo novo, um produto do homem e, apesar disso, na
roda não existe nada que não corresponda precisamente às sé­ries cau-
sais independentes do homem e que dominam na na­tureza. O homem
não poderia ter criado uma roda se de certo modo não a tivesse reco-
nhecido, de modo que esta produção é um processo complexo, que não
contradiz a unidade da realidade. E se agora eu me refiro às mais altas
formas de unidade do real, volto a tudo o que dissemos antes sobre a
questão religio­sa; isto é, ao fato de que, por exemplo, a natureza (tanto
a na­tureza orgânica quanto a inorgânica) se desenvolve segundo a sua
própria dialética e se realiza independentemente das posições teleoló-
gicas do homem. Assim, a construção fisiológica do ho­mem e também
o seu destino psicológico dependem, socialmente falando, do acaso.
Marx observa justamente, em relação a isso, que depende precisamen-
te do acaso que uma determinada si­tuação revolucionária encontre à
frente da classe operária um determinado indivíduo e não outro (se
bem que isto já não seja uma circunstância meramente fisiológica ou
psicológica). Em qualquer caso, resta um resíduo ineliminável de casu-
alidade, que decorre, porém, do curso meramente causal dos aconteci­
mentos naturais. Sob este aspecto, a praxis humana se contra­põe a uma
natureza unitária e, se eu exerço uma atividade so­cial, esta entra no
âmbito de qualquer ciência natural, psicoló­gica, etc; neste complexo,
portanto, operam leis que não podem ser abolidas por mim. Com base
nas coisas que conheço, posso exercer certa influência modificadora
sobre a realidade externa, cujas leis agem independentemente de mim,

151
Lukács e o século xxi

de modo que, deste ponto de vista, enquanto produtor na economia,


artista ou filó­sofo, encontro-me em oposição a uma realidade unitária,
a qual, por sua vez, deve ser compreendida no sentido de uma identi­
dade de identidade e não identidade.
Kofler: Que relação tem o que o senhor disse com a afirmação
de Marx nos “Manuscritos Económicos e Filosóficos”, segundo a qual a
natureza sem o homem não seria nada?
I.ukács: Dizendo que a natureza — da qual, graças a diversas
casualidades, desenvolveu-se o homem — não seria nada, deste ponto
de vista, sem o próprio homem, nada mais faço do que transformar um
belo aforisma numa banalidade... Mas Marx não pensou que a terra
fosse um ente realmente existente só por­que o homem nela age, e que
se em Vénus e em Marte não vive nenhum homem, então Vénus e Mar-
te não existem. Penso que aqui nos defrontamos com uma afirmação
do jovem Marx, que continua a pensar na ideia epicurista da necessida-
de. Desde que os deuses vivem nos intermundia, isto significa que os
homens podem desenvolver, uma ação transformadora sobre a nature-
za apenas no quadro da praxis humana, e que, fora isso, a natureza se
desenvolve independentemente do homem. Não penso que Marx tenha
querido dizer algo diferente disso.
Kofler: Certo; a afirmação deve ser assim interpretada. Gostaria
agora de retornar à origem da questão, para fazer uma última obser-
vação. Hegel coloca a produção da realidade por parte de um espírito
absoluto em relação com o problema da produção na sociedade, como
se estes momentos estivessem num mesmo plano. Não é preciso fazer
aqui uma distinção para evitar confusões e equívocos?
Lukács: Veja, direi que sou muito cético em relação à importân-
cia das formulações da teoria do conhecimento. Receio que as questões
da teoria do conhecimento, se não são conside­radas como um momen-
to das formulações ontológicas, defor­mem o problema e coloquem

152
Anexos

uniformidade onde há diferença e, ao contrário, diferença onde há uni-


formidade. Ê preciso ter muita cautela em relação à teoria do conhe-
cimento. Limito-me a citar aqui um exemplo muito importante: para
Kant, na reali­dade que para nós é propriamente real, desaparece a dis-
tinção entre fenómeno e essência, porque, segundo a teoria kantiana,
o mundo que nos é dado é apenas fenómeno, ao lado de uma coisa em
si transcendente e incognoscível; para Hegel, ao con­trário, a realidade
subsiste como essência realmente existente e como mundo fenomêni-
co, o qual, por sua vez, é também ele realidade. Basta esta diferença
para nos fazer constatar como, neste caso, a tradição se limite à teoria
do conhecimento. Quan­do falo da produção em sentido marxiano, na-
turalmente sob esta expressão devo compreender apenas os produtos
do trabalho no sentido mais amplo. O produzir surge como. . .
Kofler: ... produção da sociedade. . .
Lukács: ...também, mas a produção da sociedade tem origem
na ampliação da divisão do trabalho, em seguida ao aparecimento de
posições teleológicas cada vez mais comple­xas, que se sobrepõem às
posições teleológicas primárias, formando um maravilhoso sistema de
teses teleológicas. Se analisássemos realmente a sociedade, creio que
chegaríamos à conclusão de que seu átomo constitutivo é a posição
teleoió­gica singular. E, entretanto, a síntese da sociedade não é mais
uma formulação teleológica. Devemos insistir aqui no fato de que, cada
ato singular de venda ou de aquisição de uma merca­doria, é uma posi-
ção teleoiógica. Se uma mulher vai ao mercado e compra cinco pêras,
esta é uma posição teleológica. Po­rém, no mercado, das mil posições
teleológicas surge uma causa­lidade do mercado que se articula com
outras causalidades de outros mercados. Desse modo, só são eficazes
as consequências causais das posições teleológicas singulares. Um mo-
mento ineliminável da objetividade e da normatividade das leis sociais
é que o resultado das posições teleológicas singulares, que consti­tuem

153
Lukács e o século xxi

a essência da sociedade, representa algo inteiramente di­verso daquilo


que era proposto através delas.
Kofler: Disso já falamos ontem.
Lukâcs: Por exemplo, a taxa média de lucro surge da ten­dência
ao superlucro; a procura do superlucro se realiza nas posições singu-
lares, que no plano imediato podem até chegar a consegui-lo, mas no
desenvolvimento global, apesar de tudo, o sitema da taxa média de lu-
cro aparece como resultado de um processo de conjunto. O problema
da liberdade e da necessida­de social deveria ser reexaminado filosofi-
camente, precisamente a partir disso.. Portanto, sou levado a atribuir
grande impor­tância a um problema que nunca foi levado suficiente-
mente cm consideração pela filosofia: causalidade e teleologia devem
ser tratadas como duas formas do ser determinado, uma junto à outra
e uma independente da outra. Houve um período no qual a teleologia
foi simpeslmente negada, enquanto se afirmava que, em si e para si, só
existia a causalidade; no ser social, contudo, há também a posição tele-
ológica que só pode existir, porém, em um mundo causalmente deter-
minado. O senhor entenderá o que pretendi dizer antes, quando afir-
mei a possibilidade de analisar, em termos gnoseológicos, causalidade
e teleologia como relações independentes uma da outra. Se, ao invés,
parto do uma análise ontológica, vejo duas coisas que só aparentemen-
te se contradizem entre si. Por um lado, constato que a teolologia é sub-
metida ao domínio da causalidade; por outro, devo reconhecer que na
sociedade, os novos objetos, as formas e as relações, só podem surgir
como consequência de posições taleológicas. Do ponto de vista da te-
oria do conhecimento, isto pode parecer paradoxal; mas, de um ponto
de vista ontológico, é uma simples análise da posição do trabalho.
Kofler — Muito justo. Eu o interrompi apenas para evitar novos
equívocos sobre o conceito de produção. . .
Lukács — Sim, sim. . .

154
Anexos

Kofler — ... como se o senhor entendesse sob este ter­mo apenas


o trabalho, mas. . .
Lukâcs — Penso que a posição do trabalho é. . .
Kofler — ... é o fator primário.
Lukâcs — Veja, a partir da posição do trabalho se de­senvolve,
por exemplo, o conceito da coordenação do traba­lho, o do trabalho in-
telectual que precede o trabalho físico, etc. Se este processo se desen-
volve posteriormente como divisão social do trabalho, surge uma tradi-
ção específica e tudo o que dela possa derivar. Em uma etapa posterior
surge o direito e toda posição jurídica é também uma posição teleoló­
gica. Toda posição jurídica se reduz a isso: se Franz Müller roubou duas
caixas de rapé, eu quero que êle seja preso por três meses. Não há pro-
posição jurídica que não seja também uma posição teleológica ou que
não contenha o pressuposto de posições teleológicas. Penso, por isso,
que não podemos pres­cindir do problema das posições teleológicas até
mesmo nas formas mais elevadas da ciência e da arte.
Kofler — Quando o senhor fala de “ontologia”, não pen­sa real-
mente em “antropologia”?
Lukács — Não, porque penso que certas constelações ontológi-
cas existem totalmente independentes do fato de que exista o homem.
Se, por exemplo, estudo os diversos planetas do nosso sistema solar
para verificar se neles existe vida orgâ­nica, isso não tem, em geral, re-
lação alguma com os homens. De fato, se a vida se desenvolveu num
planeta, daí não se deduz necessariamente que a vida deva levar ao
homem. Existe, aqui, um segundo salto que, por falta de material, não
podemos analisar, se bem que eu esteja plenamente convencido a esse
respei­to de que, através de uma análise posterior, serão descobertas
coisas muito complexas. Marx observou com muita justeza que o da-
rwinismo é o ajuste de contas com a teleologia. Hoje em dia, na evo-
lução dos seres vivos, já podemos ver que existem becos sem saída, e

155
Lukács e o século xxi

precisamente num estágio relativamente su­perior de desenvolvimento,


A fornia mais desenvolvida da cha­mada sociedade animal é encontra-
da entre os insetos e não entre os animais superiores. E, nos insetos,
precisamente a sociedade aparece como um limite para uma evolução
posterior. De fato, a divisão do trabalho, por exemplo, entre as abelhas,
é uma divisão do trabalho biológica e a colmeia pode se renovar apenas
biológicamente, mas não pode evoluir no sentido da substituição da
subjugação ao poder soberano da rainha pela democracia. Repito aqui,
intencionalmente, um velho absurdo. Com efeito, um desenvolvimen-
to social posterior só é possível partindo da constelação que aparece
exclusivamente com o homem, na qual a divisão do trabalho tem um
caráíer social e não um caráter biológico.
Kofler — Exatamente, mas esses problemas não são di­ferentes
na filosofia tradicional? O que se poderia aceitar neste ponto, apare-
ce no campo huraano-social como algo inteiramen­te diferente, isto é,
como antropologia. Por exemplo, o con­ceito de teíeologia: se fazemos
desse conceito uma filosofia, estaremos talvez trazendo a filosofia para
um terreno no qual ela nos conduz a problemas aparentes e provoca
soluções aparentes.
Lukács — Hoje há, naturalmente, uma tendência muito forte
para reduzir esta questão ao campo antropológico. Mas esta redução
exclui todo o passado da natureza, exclui o fato de que certos fenó-
menos, mesmo nos homens, provêm unica­mente das leis necessárias
do mundo inorgânico. Uma vez, um homem cheio de espírito fêz-me
notar um fato muito interessan­te, isto é, que não existe um único ser
vivo no qual os órgãos do movimento tenham número ímpar. Números
ímpares apresen­tam-se em nós: temos um nariz e uma boca. Mas te-
mos dois pés, e o senhor não poderá citar um único ser vivo que tenha
3 ou 5 pés; terá dois, quatro, oito, dez pés etc., o que depende simples-
mente das leis físicas do movimento, que são realizadas deste modo

156
Anexos

nos seres vivos. Posso chamar a isso de antropologia ? Acho que talvez
seja uma ampliação um tanto abusiva. Creio que a acentuação da antro-
pologia derive de uma orientação que acho justa e progressista; ou seja,
os homens chegam a pôr em dúvida a chamada ciência psicológica.
A psicologia isolou certos modos de expressão do homem e por isso
não percebeu que todo modo de expressão do homem é o resultado de
uma dupla causalidade: por um lado, é condicionado pela constituição
fisiológica do homem e pela ação das forças fisio­lógicas; por outro lado,
é condicionado pela reaçao aos aconteci­mentos sociais. Na psicologia,
prevalece uma expressão unitária. Se eu, por exemplo, digo que um
perfume não me agrada, isso já não é mais um fato meramente fisioló-
gico, porque o senhor sabe o quanto os perfumes dependem da moda,
e sabe que o modo pelo qual os homens reagem aos perfumes é um
fato .social. Este talvez não seja um bom exemplo. Mas com êle desejo
mostrar que não há uma só das chamadas reações psicológicas que não
seja simultaneamente e inseparavelmente fisioló­gica e social. Não que-
ro, com isso, negar que se tenha for­mado, com o tempo, uma ciência
antropológica concentrada so­bre ações recíprocas destas duas compo-
nentes. Mas é uma ilusão pensar que, com isto, se resolvam problemas
essenciais do desenvolvimento social, porque o desenvolvimento social
se realiza (se bem que esteja ligado aos homens) sobre a base de uma
específica normatividade económica. Tenho muita curiosi­dade em ver
de que modo, para voltar a um exemplo anterior, poder-se-ia deduzir
antropològicamente o aumento da taxa de lucro.
Kofler — Penso que sobre isto poderemos discutir infi­nitamente.
Agradeço-lhe muito, senhor Lukács, por sua pa­ciência.

157
Anexo 3

“Conversando com Lukács”

Tradução de Giseh Vianna Konder

TERCEIRA CONVERSA
Elementos para uma Política Científica

Georg Lukács – Wolfgang Abendroth

Abendroth — Senhor Lukács, ontem o senhor nos ex­plicou


que, no desenvolvimento da moderna sociedade indus­trial ao nível
do capitalismo maduro, a diferença essencial em relação ao período
precedente consistiria no fato de que o pro­blema central do contraste
de classe hoje não mais se refere à mais-valia absoluta, mas à mais-
valia relativa. Em suas linhas fundamentais, a coisa é clara. O senhor
extraiu também a con­sequência disso, ou seja, a de que desse modo, o
problema da luta por melhorias se transforma no problema da luta por
um tempo livre, verdadeiramente livre, não mais manipulado, isto é,
na questão de como utilizar a redução do horário de traba­lho. O que
me parece plenamente justo c convincente, se bem que, nos países de
Lukács e o século xxi

capitalismo maduro, naturalmente, o proble­ma da luta pelos aumen-


tos salariais tenha ainda uma função e possa passar ao primeiro plano
nos períodos de recessão. Ora, daí deriva uma série de problemas, aos
quais não creio que atribuamos uma avaliação diversa, mas que seria
interessante formular com maior clareza. O senhor sabe que a ciência
bur­guesa dominante, compreendida a sociologia neopositivista, ex­
trai, da observação de fenômenos exteriores desta problemática, em
substância, a conclusão de que o problema da luta de classe em geral
tenha terminado, e que, de qualquer modo, não mais exista como pro-
blema efetivo. Com efeito, para a ciência bur­guesa, a luta de classes
era somente urna luta pela mais-valia absoluta. Consequentemente se
conclui que a classe operária — envolvendo largas camadas e, sobretu-
do, os empregados — não mais seja o sujeito da luta pelo progresso. O
senhor concorda com esta opinião?
Lukács — Evidentemente, não. Antes de mais nada, creio que
— se se toma a situação da atual classe operária — a aná­lise objeti-
va mostre que este modo de ver os problemas é totalmente incorreto.
Na classe operária de todo o mundo, pode-se certamente observar um
indubitável retrocesso na consciên­cia. Este retrocesso da consciência,
isto é, a decadência do fator subjetivo, manteve sua expressão mais exa-
ta naquele parâmetro mundial que é a socialdemocracia; esta não se
colocou apenas contra o socialismo, como em 1917, mas está agora tão
inteira­mente no terreno da democracia manipulada que dificilmente
se pode distinguir o discurso de um socialdemocrata alemão daquele
de um homem do Partido Democrata-Cristao (CDU). Para a social-de-
mocracia atual, não se trata apenas de uma rejei­ção do socialismo, mas
também da democracia entendida seria­mente. Os problemas de uma
democratização real, isto é, social, de um desenvolvimento democráti-
co, não desempenhem mais para o Partido Social-Democrata Alemão
(SPD) o menor pa­pel. Isso pode ser visto, com precisão, desde as leis

160
Anexos

de emer­gência até os debates sobre a situação militar. Os problemas da


democracia real, aqueles que alguns velhos socialdemocratas tinham
enfrentado com a maior energia (pensemos, para dar um exemplo, na
atitude assumida por Jaurès no tempo do pro­cesso Dreyfus), não têm
mais para a socialdemocracia impor­tância alguma e estão quase que
inteiramente esquecidos. É, entretanto, também evidente que, com
tudo isso, a luta de classes no setor económico não cessou; e é um sin-
toma inte­ressante o fato de que em geral os sindicatos, ou uma parte
dos sindicatos, se coloquem à esquerda do partido socialdemocrata, o
que nunca tinha acontecido antes. A ideia de que a luta dos trabalhado-
res tenha deixado de ser um veículo da luta contra formos capitalistas
de exploração, portanto, é falsa. Podemos apenas dizer que chegamos a
um rebaixamento da consciência em relação a este problema e que a si-
tuação apresenta sempre novos aspectos. Não há dúvida, porém, de que
com o problema do tempo livre e do otium apareceram novas ques-
tões no primeiro plano do movimento. As lutas anteriores pelo tem-
po livre conseguiram obter tão-sòmente um horário que, só de modo
precário, permitia uma vida efetivamente humana para o trabalhador.
Trata-se, hoje, de muito mais. Da redução do horá­rio de trabalho deriva
um espaço no qual o tempo livre pode ser transformado em otium.
O capitalismo moderno, entretanto, faz tudo para impedi-lo. Não em
bases ideológicas, mas sim­plesmente porque o comércio manipulado
da indústria dos bens de consumo está ligado, necessariamente, a uma
ideologia conformista do desfrute. Daqui nascem, na minha opinião,
proble­mas cornpletamente novos, que surgem da estrutura económica
mundial, não apenas em sentido imediato. Pelo contrário, são eles uma
indicação da necessidade da passagem ao socialismo e representam
algo novo no desenvolvimento histórico. As condi­ções fundamentais
de todo movimento económico e social são sempre e apenas as posi-
ções teleológicas dos homens. Neste ní­vel, não faz nenhuma diferença

161
Lukács e o século xxi

que sejam posições económicas, científicas ou morais. Trata-se sempre


de uma posição teleológica ideal, pensada, que só se torna uma posi-
ção real quando se experimenta transformá-la em realidade material
no âmbito da praxis. Mas a estrutura geral da sociedade, como Marx
diz muito bem, origina-se independentemente da vontade dos ho­
mens. Assim, as formas da vida humana, sejam elas as formas da vida
da polis, do feudalismo ou do capitalismo, foram ditadas pelo desen-
volvimento económico. Posteriormente, elas reagiram sobre as respec-
tivas posições teleológicas. Na questão que se refere à transformação
do tempo livre, da qual nos ocupamos hoje, aparece pela primeira vez
uma situação na qual a economia não está em condições de ditar o
conteúdo cias posições teleoló­gicas; são os próprios homens que de-
vem decidi-lo. Dou um exemplo: surge uma grande indústria de discos
para difusão da música. Para o manipulador, porém, é indiferente que
se compre jazz ou uma sonata de Beethoven; êle não conseguirá fazer
com que se compre apenas jazz, e as estatísticas mostram, com efeito,
que mesmo os clássicos têm os seus best-sellers. Aqui cessa a manipu-
lação direta e não há uma orientação definida na direção de
uma cultura deteriorada. Aqui, em certa medida, os homens devem
chegar a decisões independentes. Para a economia, em sentido lato,
isto tem um grande significado; o socialismo representa um salto em
relação às sociedades divi­didas em classe, às sociedades existentes até
agora, a partir do momento em que o socialismo coloca a pretensão de
submeter a ocorrem formas de transição deformadas e, economica-
mente humana. Este é um momento inteiramente novo na história e
não é de espantar que os homens, que há séculos estão habi­tuados a um
outro modo de ser, avancem com bastante es­forço no caminho deste
novo desenvolvimento; tanto mais que ocorrem formas de transição
deformadas e, economicamente falando, muito produtivas. Enquanto
permanecer a mais-valía absoluta, exceção feita às ameaças revolu-

162
Anexos

cionárias diretas à sociedade capitalista, a exploração é imediatamente


reconhe­cida como o princípio orientador dos capitalistas individual­
mente considerados e dos grupos de capitalistas. Quando o con­sumo
de massa, como consequência da mais-valia relativa, se torna um pro-
blema central da reprodução capitalista, o capi­talismo passa a se inte-
ressar por este consumo de massa e, de certa maneira, o capital global
acaba por ter um interesse ime­diato num aumento relativo do nível de
vida das massas. Não digo que o consiga sem maiores problemas. Se
tomamos, por exemplo, uma figura como Roosevelt, ou em menor
escala Kennedy, o senhor pode ver o que os distingue dos outros. Eles
não representam apenas determinados ambientes capitalistas
particulares, mas tentam realizar os interesses do capitalismo em seu
todo. Naturalmente, isto não é elevado ao nível da teo­ria, nem realizado
de maneira praticamente consequente. Gosta­ria apenas de dizer que,
em relação a todas estas questões, isto é, no que concerne à relação dos
homens singulares com sua base económica e com as consequências
ideológicas que derivam desta situação, encontramo-nos ainda num
período de transição. O desenvolvimento do marxismo, por causa do
longo período de predomínio stalinista e por causa dos efeitos que este
desenvolvimento provocou também no mundo capitalista, não está
anda em condições de dar a estas novas perguntas respostas claras e
cientificamente fundadas. Hoje, nós, marxistas, estamos colocados
diante da tarefa de analisar teoricamente estes novos problemas da so-
ciedade e de tentar encontrar, a partir desse trabalho teórico, novos
pontos de apoio para fornecer respostas.
Abendroth - Estou de acordo com o senhor. Devemos apenas,
me parece, chamar a atenção para uma característica desse processo que
torna extremamente mais difícil nossa situação. Até aqui, o problema da
luta de classes se concentrava na luta pela mais-valia absoluta, baseava-
se na identidade de interesse da classe operária em face da luta contra o

163
Lukács e o século xxi

capitalismo; e a transformação do capitalismo numa nova sociedade era


para todos um fato de evidência quase imediata. Na nova síluação, ao que
parece, esta identidade não é mais imediata e a formação da consciência
de classe torna-se muitíssimo mais difícil, sobretudo em virtude do fato
de que a indús­tria dos bens de consumo, que manipula a liberdade no
campo da literatura, por exemplo, conduz a uma permanente redução
das potencialidades espirituais da grande maioria da popula­ção. Mesmo
sem recorrer à consciência política dos managers do capitalismo desen-
volvido, empenhada diretamente na mani­pulação, o fundamento sim-
plíssimo do fenómeno a que nos re­ferimos está no fato de que o aumento
das aquisições conduz a lucros maiores. A busca do lucro, que em sua
essência guia toda sociedade capitalista, mesmo a sociedade capitalista
de­senvolvida, obriga-a continuamente a adaptar-se ao mais bai­xo nível
espiritual possível, para chegar à estabilização e de­pois a uma posterior
redução ainda maior deste nível. A Bild Zeitung de Springer Verlag é
um exemplo típico deste fenómeno. A atívidade espiritual acaba, então,
por estabili­zar-se num nível extremamente baixo e, de fato, o nível espi­
ritual das amplas massas é sempre o mais reduzido. A atitude de reflexão
que leva à descoberta da necessidade de refazer a sociedade pressupõe a
autonomia espiritual. Não há dúvida de que o trabalhador, no final do sé-
culo passado e no início do nosso século, não estava ainda submetido, em
escala tão ampla, à pressão de uma indústria dos bens de consumo. Ele
tinha, por isso, maior possibilidade de pensar de ma­neira autónoma do
que tem o trabalhador de hoje. A aqui­sição de uma consciência de classe
era, desta maneira, mais fácil. Se, porém, os sindicatos querem existir,
devem manter um mínimo resíduo de pensamento de classe. Devem
então compreender que a luta sindical só é possível se é também uma
luta cultural e se se transforma, quando necessário, também em luta po-
lítica pela conquista da liberdade cultural. Daqui provém a interessante
tendência presente em todos os países capitalistas, que leva geralmen-

164
Anexos

te o movimento sindical a posi­ções mais radicais do que a dos corres-


pondentes partidos polí­ticos. Estes últimos, no passado, defenderam os
interesses dos trabalhadores, mas nesse meio tempo se integraram no
sistema, degnenerando em instituições que querem dispor das largas
massas para manipulá-las e administrar politicamente o seu po­tencial de
votos. Também eles tentam, da mesma forma que a indústria dos bens
de consumo, apelar ao nível espiritual mais baixo possível, estabilizá-lo
no interesse da manipulação. Escla­rece-se assim a degenerescência dos
partidos social democratas, da socialdemocracia alemã, que deriva não
de uma traição ime­diatamente consciente da direção, mas desta situa-
ção. Em con­sequência disso, o problema central se torna o de saber como
podemos desenvolver uma consciência crítica dentro de uma situação
complexa como esta. Podemos chegar, porém, a uma clareza conceituai
sobre esta complicada situação, não através da experiência imediata dos
trabalhadores, mas apenas através de especialistas habituados ao pen-
samento abstrato. Daí surge um outro problema digno de estudo. Nos
países industrial­mente avançados, cresce a importância de verdadeiros
e ade­quados movimentos de intelectuais que tentam defender a tra­dição
democrática e humanista em oposição crítica aos poderes constituídos
do Estado, cada vez mais autoritários, e à direção da política imperialis-
ta e neocolonialista, mas também, e prin­cipalmente, em conflito com
a manipulação da vida es­piritual. Nos Estados Unidos, estes movi-
mentos se expressam na rebelião de estudantes e jovens universitários
que vão à luta em favor dos direitos civis dos negros e contra a política
que é adotada em relação ao Vietnã. Na República Federal Alemã, que
muito se aproxima dos Estados Unidos quanto à estrutura econômica,
os estudantes socialistas, os escritores e os professores de formação de-
mocrática assumiram uma função análoga. Mas a aliança com a única
classe que realmente tem força para mudar a siluação, isto é, a aliança
com os trabalhadores, inexistiu inteiramente, Os intelectuais críticos só

165
Lukács e o século xxi

poderão vir a realizar algo de positivo quando conseguirem novamente


mobilizar esta classe, que compreende a grande maioria da população,
contra a poderosa aliança dos managers da economia com os do Estado.
Da solução deste problema decidir-se-á se o chamado “mundo ociden-
tal” terá ou não um futuro huma­no. Poderão, no entanto, os intelectuais
críticos resolver êste problema? A classe operária dos Estados Unidos e
da República Federal Alemã está ainda, em grande parte, num estado
letárgico, sua consciência é manipulada. Enquanto uma estagnação ou
uma recessão na vida económica não romper o encantamento de uma
prosperidade aparente, não terá origem nu consciência dos trabalhado-
res nenhuma disposição espontânea para novas formas de luta de classe,
de luta contra a ma­nipulação espiritual e contra a desumanidade. Os in-
telectuais isolados ameaçam, assim, muito frequentemente, tornarem-se
impacientes e se isolarem inteiramente num subjetivismo apa­rentemente
radical, antes que análises corretas da situação pos­sam lhes possibilitar
a maturidade espiritual (e que mutações da situação económica possam
fornecer a oportunidade histó­rica) para poderem ganhar novamente os
trabalhadores na bata­lha em favor das tarefas históricas próprias. Não é
possível, pois, chegar-se a uma situação sem esperanças?
Lukács — Permita-me que comece a responder-lhe, por­que tan-
tas questões se acumularam que se torna muito difícil reagrupá-las. Em
geral, não tenho grande encanto pelas analo­gias; existem entretanto
certas situações sociais nas quais se repetem fatos conhecidos, se não
nos detalhes, com certeza pelo menos nos problemas estratégicos. Num
desses últimos dias, eu disse que, na minha opinião, o momento no
qual nos encon­tramos não nos permite corrigir os prováveis ou efetivos
erros dos últimos vinte anos, para depois, então, passarmos a cons­truir
alguma coisa. Estamos, ainda, pelo contrário, num ponto de partida
muito primitivo, no qual apresentam-se, mutatis mutandis, movi-
mentos de rebelião que têm uma certa analogia, do ponto de vista so-

166
Anexos

cial, com fenómenos como, por exemplo, o luddismo. O que há aqui de


notável, do ângulo teórico? O senhor diz, e com todo o direito, que a
tendência da classe operária à revolução era muito maior no tempo da
mais-valia absoluta do que hoje. E é justo. Entretanto, as teorias revolu-
cionárias até Marx não surgiram, mesmo naquela época, diretamente
da luta da classe operária, e Lênin não errou ao constatar, retomando
um ponto de vista de Kautsky, que a teoria da revolução deve ser le-
vada de fora ao movimento operário. Parece-me que hoje, levando-se
cm conta que a situação objetiva, sob vários aspectos, é muito mais
desfavorável do que era no capitalismo anterior, o significado deste “de
fora” é extraordinariamente mais impor­tante. Não existe outra alterna-
tiva senão aquela de levar de fora a consciência de classe ao movimento
operário, e creio que para os intelectuais de hoje, para os radicais,
esteja colocada a grande tarefa de elaborar os princípios e os méto-
dos (no mo­mento falo de princípios, e não ainda das palavras de ordem
que emanarão daqueles). Creio que a estas conservações se deva acres-
centar um outro ponto importante, talvez ainda hoje sub­valorizado em
virtude de notórios resíduos: precisamente a separação entre proletá-
rios e trabalhadores de colarinho branco está, do ponto de vista econó-
mico objetivo, em vias de desa­parecer. Creio que em relação a este pro-
blema seja interessan­te o fato de que o capitalismo de outrora, o das
grandes crises, o das guerras mundiais, tinha uma base extraordinaria-
mente ampla numa camada de possuidores com um património, diga­
mos, de duzentos a setecentos mil marcos. Naquele tempo havia uma
ampla camada de intelectuais, especialmente de univer­sitários, que
pertencia a esta camada, em virtude da própria autonomia material de-
corrente de rendimentos do género. Era esta a situação social real da
“intelligentzia sem ligações sociais” teorizada por Mannbeim, se a
consideramos de um ponto de vista económico. Agora chegamos a uma
nova si­tuação segundo a qual, em parte por causa da desvaloriza­ção

167
Lukács e o século xxi

geral da moeda, em parte por causa do papel cada vez mais importante
dos intelectuais no capitalismo manipulado, lar­gas camadas renunciam
à capitalização de uma renda e empregam este dinheiro na instrução de
seus filhos: assim, esta camada de rentiers está em vias de extinção.
Não digo que não mais, mas um homem que tinha anteriormente con-
dições de economizar, digamos, quinhentos mil marcos, acha agora
importante empregar o conjunto de suas economias, em parte para o
consumo pessoal, em parte para os estudos universitários dos filhos.
Creio que um efeito colateral muito importante dessa situação seja o
fato de que, com esta mudança, tornou-se moda na França o sistema de
limitar os nascimentos a um só filho. Naquele país existe hoje um in-
cremento do população muito mais forte do que o que havia, antes, e
talvez isto tenha tido como consequência a extinção, já agora no práti-
ca, do típico rentier de Maupassant. Isto significa que, mesmo se hoje
este fenómeno não tem ainda manifestações muito claramente visíveis
no ser social, existe um certo parentesco entre trabalhadores assalaria-
dos e empregados que vivem do próprio trabalho. No plano económico,
a distinção, que era importante no capitalismo anterior, está desapare-
cendo cada vez mais, e minha firme convicção é a de que o desapareci-
mento de uma distinção no ser social deve conduzir cedo ou tarde a
uma transformação da consciência. Quero apenas lembrar com isto
que na estrutura global estão presentes diferenças bastante grandes. Há
muito tempo Marx já havia constatado que é necessário um certo valor
mínimo para que o capital financeiro possa ter origem. Estes limites do
capital, porém, estão em constante aumento. Por isso, a questão de se
tal ou qual pessoa vive do capital ou do trabalho assalariado, toman­do
estes termos no sentido mais amplo possível, assume agora uma forma
diferente daquela que tinha no passado. Este estado de coisas é também
constatado por alguns economistas e sociólogos burgueses, mas está
ligado à ideia — que serve, em minha opinião, a um sonho capitalista

168
Anexos

— de que os operários estão se transformando em empregados. Creio


que se conseguirá fazer prevalecer um desenvolvimento alternativo
precisamente se não nos concentramos mais no tempo de trabalho e
nas questões salariais, porém no problema do tempo livre e o otium.
Além disso, em primeiro lugar, a distinção objetiva entre empregado e
operário se torna, de fato, cada vez menor. Hoje, do ponto de vista,
subjetivo, nem todas as consequências disso podem ser percebidas,
mas gostaria de lembrar ainda, em relação a este fato, que um desenvol-
vimento objetivo não pode deixar, a longo prazo, de ter consequências
subjetivas. Este é um ponto impor­tante, que deve ficar bem estabeleci-
do. De um ponto de vista puramente ideológico, poder-se-ia supor uma
situação inteira­mente sem saída se a massa manipulada, compreen-
dendo-se por massa manipulada tanto os operários como os emprega-
dos, se sentisse inteiramente feliz no estado de manipulação. Se o capi­
talismo conseguisse fazer com que as pessoas não só compras­sem
automóveis, geladeiras e televisões, mas também conse­guisse torná-las
inteiramente satisfeitas com o modo pelo qual atualmente vivem, então
nada mais poderia ser feito. Mas isso não acontece. Com efeito, mesmo
a literatura não socialista e documentos (relatórios, etc.) mostram
como até nas camadas mais favorecidas manifesta-se uma crescente e
profunda insatis­fação diante desse otium manipulado. Grande parte
da litera­tura e da arte moderna se esforça por representar esta insatis­
fação em face do atual tempo livre manipulado e em face do vazio inte-
rior da existência humana. A popularidade de um escritor como Be-
ckett se deve, na minha opinião, ao fato de que êle representa a total
falta de sentido da vida humana como um destino fatal do homem. Isto
mostra, porém, por onde se deve começar a pôr em funcionamento a
luta contra a manipulação do mundo. Devemos aprender a nos referir
a esta insatisfação existente, nas suas diversas formas. Permita-me uma
outra ana­logia com o pasado. Exatamente nos velhos tempos heróicos

169
Lukács e o século xxi

da velha classe operária, digamos, no tempo da luta contra as leis anti-


socialistas na Alemanha, havia amplos setores de traba­lhadores que
tinham lido a Gartenlaube, tinham ido à Igreja e não estavam absolu-
tamente interessados na luta de classes. Se­ria uma ilusão pensar que
naquele período heróico toda a clas­se operária tomava parte nessa luta
heróica. Evidentemente, não foi assim. Penso, por isso, que as camadas
que ainda hoje lêem o Bild Zeitung, e, como uma vez escreveu
espirituosamen­te o Spiegel, têm no jardim anõezinhos de pedra, não
estão certamente em condições de preparar, de imediato, o salto dos
anões de pedra para a luta contra a manipulação. Por isso, não está
afastada, de nenhum modo, a possibilidade de que as camadas relativa-
mente amplas, entre as quais começa a se difundir esta insatisfação,
possam se tornar disponíveis para uma forma qualquer de movimento
de massas contra a manipulação. Não posso dizer quais sejam estas
formas. Infelizmente sou apenas um filósofo e não um político; temos
hoje necessidade de um Lênin, que tivesse a capacidade de traduzir
o estado atual da teoria marxista em praxis política. Quanto a mim,
neste ponto, devo depor as armas: e declarar que estes problemas estão
fora de minha competência. Foi realmente um feliz acontecimento,
mas raro, para o movimento operário ter tido, um após outro, homens
como Marx, Engels, Lênin, que rauniram em si as duas coisas. Hoje,
entretanto, infelizmente todo primeiro secretário de um partido qual-
quer, acredita ser um legítimo sucessor de Marx e de Lênin. Devemos
ver com bastante clareza que aquele foi um caso extraordinariamente
bem sucedido para o movimento operário e que muito dificil­mente se
repetirá hoje. Darei um exemplo bastante significativo: acredito que
Togliatti tenha sido um dos dirigentes mais bem dotados, em matéria
de capacidade tática, que o movi­mento operário gerou. Entretanto,
devo dizer que, do ponto de vista teórico, as visões de conjunto que
Togliatti nos deu não me parecem uma grande coisa. Togliatti era um

170
Anexos

tático extra­ordinário, mas não era de maneira nenhuma um Lênin do


movi­mento operário atual. Não podemos neste momento citar um
nome equivalente ao de Lênin. Por outro lado, porém, não po­demos
ficar esperando que surja um Lênin; devemos, ao con­trário, tentar, na
medida das nossas possibilidades, destrinchar nós mesmos o nó dos
nossos problemas. Como primeiro passo, a teoria pode apenas mostrar
o que é socialmente e eco­nomicamente novo; e me parece que isto já é
uma grande coisa. Já este tipo de considerações mostra que, de fato, a
rea­lidade económica é diversa de como vem apresentada pela eco­
nomia burguesa. Em segundo lugar, podem ser tirados dos en­
sinamentos da história consequências que podemos apro­veitar critica-
mente, com boas probabilidades de êxíto, para um novo movimento.
Gostaria de chamar a atenção para a pa­lavra “movimento”: hoje em dia,
parece-me na verdade ilusória a probabilidade de que num breve perí-
odo de tempo se forme, em qualquer lugar do Ocidente, um partido
socialista radical. É importante, então, criar um movimento que colo-
que permanente­mente estas questões na ordem do dia e que mobilize
continua­mente setores cada vez mais amplos para a luta contra a ma­
nipulação. Não se pode excluir a posibilidade de que quem hoje lê Be-
ckett se transforme amanhã em alguém que luta con­tra a manipulação.
Isto não significa, porém, que devamos olhar Beckett como um aliado.
Ao contrário; e com isso não me refiro à pessoa ou à sinceridade da arte
de Beckett. A transformação do caráter social da manipulação em uma
condition humaine é uma falsificação, é uma forma de ideologia que
se traduz em apoio à pior realidade. Nas fases anteriores do capitalis-
mo, já estava continuamente presente a tentativa de seus ideólogos no
sentido de representar como dado genericamente humano aque­les ele-
mentos que impulsionaram, de um ponto de vista objetivamente eco-
nómico, à luta de classes. Refiro-me novamente a um exemplo; e, quan-
do se fala em alguma coisa que causa dano, ter­mino sempre por citar

171
Lukács e o século xxi

Nietzsche. Nietzsche achou que toda a consciência de classe do proleta-


riado é um ressentimento de es­cravos. E esta ideologia, que conheço
bastante bem desde o tem­po de minha juventude, impediu no passado
muitos intelectuais honestos de aderirem ao movimento operário.
Conscientemente, eles não podiam, com efeito, aprovar em um homem
de moral elevada qualquer ressentimento, qualquer apoio a formas de
ressentimento. É tarefa nossa romper com obstáculos de tal género.
Não no sentido de que devamos mostrar às pessoas a insensatez da
manipulação apenas num plano abstrato; pelo contrário, com nosso
apelo, devemos alcançar as camadas bastante amplas que experimen-
tam, num nível sentimental, uma espécie de desconforto, alguma coisa
de desagradável, de opres­sivo em relação à condição da manipulação.
Creio que, a esse respeito, já se possa falar hoje de uma sensibilidade
coletiva. Não saberia dizer o quanto são amplas estas massas; certa-
mente são muito mais numerosas do que aquelas a que nos temos diri-
gido até agora; e permanece de pé, então, a grande tarefa de mobilizá-
las. Quando explode o descontentamento, êle se es­tende a milhões de
homens. Tomemos apenas, como exemplo, a República Federal da Ale-
manha. Lembro-me ainda muito bem do tempo em que o movimento
contra o rearmamento, a Ohne-mich-Bewegung, havia empolgado
milhões de homens. Como não recebeu nenhum auxílio interno, di-
luiu-se em pouco tempo. Houve depois, novamente, uma explosão de-
mocrática, no tempo do caso do Spiegel, uma explosão que se diluiu da
mesma forma. A tarefa de um movimento consiste em infundir uma
dinâmica permanente à força explosiva destes movimentos de oposi-
ção. Pelo que posso ver, esse me parece o problema central: uma fixação
deste género só pode ser levada a cabo na forma de um movimento
específico. Não quero dizer que tal movimento deva continuar sem
exercer influência. Se começo a sonhar com a possibilidade de se fun-
dar imediatamente um quarto partido na Alemanha, caio naturalmen-

172
Anexos

te na utopia e na ilusão. Mas, depois de um certo tempo, o movimento


poderia também conseguir exercer uma influência sobre as pessoas,
orientando suas escolhas para certos deputados, em algumas circuns-
crições. Esta não é mais uma ilusão. Não esqueça que na América, os
grandes partidos, em certas situações, são obriga­dos frequentemente a
fazer algo no género.
Penso que decididamente devemos criticar as ilusões e não con-
tar com a possibilidade de criarmos uma ruptura num breve espaço de
tempo; por outro lado, não devemos cair na visão pessimista segundo
a qual é absolutamente impossível exercer uma influência, por menor
que seja. Está fora de discussão que na América existem círculos que
estariam dispostos a levar a escalation no Vietnã até o uso da bomba
atómica. Mas os círculos que cultivam estas ideias não ousam apresen-
tar-se abertamente; e esta é uma consequência do fato de que, neste
ter­reno, já existe um movimento, embora êle permaneça a bem dizer
completamente informal e sem nenhuma coordenação. Existe, entre-
tanto, e exerce sua influência, uma certa influência: não podemos ser
metafísicos e exigir um “sim” ou um “não”, sem uma certa matização.
Trata-se de indicar a movimentos do género, a perspectiva da luta con-
tra a manipulação, com a cons­ciência de que não se pode fazer desen-
volver a ideologia a par­tir do interior do movimento, mas, ao contrário,
é preciso levá-la do exterior. “Do exterior”, porém, não quer dizer que
nós não nos devamos ligar aos problemas concretos em questão, desde
o momento em que estes movimentos, estou certo, terão sucesso, ain-
da que não numa perspectiva de três meses, mas numa perspectiva de
algumas décadas.
Abendroth — Senhor Lukács, estou de acordo com seu juízo es-
tratégico e sua visão de conjunto, inclusive no que se refere às questões
económicas de fundo e às questões do pro­cesso em seu conjunto. Par-
ticularmente, também penso que os intelectuais que têm cultura uni-

173
Lukács e o século xxi

versitária e a camada supe­rior de empregados ligada intelectualmente a


estes intelectuais, estão na realidade inserindo-se numa situação social
corres­pondente àquela da classe operária.
Lukács — Sim.
Abendroth — Devo, neste ponto, fazer uma observação crítica.
A contradição que surge dessa situação é, nos dois casos extremos, dos
países altamente industrializados em regime de capitalismo desenvol-
vido, isto é, nos Estados Unidos e na República Federal da Alemanha,
bem mais acentuada, me pa­rece, do que o senhor imagina. A contra-
dição está no fato de que, em virtude da transformação económica
da qual falamos e em conformidade com o ponto de partida das ca-
madas inte­lectuais que estão objetivamente ligadas aos interesses dos
tra­balhadores, apresentam-se continuamente movimentos que em­
preendem a luta contra a manipulação fora daquilo que atualmente é o
ponto estratégico central. Mas, por outro lado, mais ainda na República
Federal da Alemanha do que nos Estados Unidos, por causa da peculiar
tradição social alemã (da qual já falamos), processam-se reações es-
pontâneas, que influem sobre as camadas intelectuais, provocam uma
inversão ideológica, criam uma consciência trágica e fazem com que a
oposição apareça sem esperança em face de potências espan­tosamente
fortes. Cada tentativa falida, cada fracasso de uma ação espontânea,
significa para uma geração inteira, se por brevidade falamos em termos
de gerações, a mudança da consciência trágica em letargia. Na história
da República Federal da Alemanha já temos podido acompanhar muito
bem este fenómeno, precisamente nos acontecimentos da Ohne-mich-
Bewegung e, talvez em medida menos importante, da Anti-Atom-
Bewegung. Do ponto de vista puramente ideológico (e sem dar a este
termo o sentido de ideologia necessariamente falsa, como faz a escola
de Frankfurt), a luta contra as alienações que de­semboca na consciência
trágica e leva, infelizmente, a direções sociológicas que menosprezam a

174
Anexos

dialética, é um proble­ma central e urgente na luta realmente ideológica


contra o pes­simismo e a educação para a inatividade produzidos pela
escola de Frankfurt.
Lukács — Estou inteiramente de acordo e gostaria de acrescentar
que isto que indicamos genericamente como início da crise da manipu-
lação, explicita-se obviamente no plano na­cional em formas peculiares,
e que este desenvolvimento assume na Alemanha uma forma inteira-
mente específica. Exatamente por motivo tornei a publicar na edito-
ra Fischer uma parte meu livro “A Destruição da Razão” e escrevi um
prefácio com o título de “A Superação do Passado” (Bewältigung der
Vergangenheit), porque entendo que a grande massa dos intelectuais
alemães não pode analisar corretamente a questão da manipulação, e
de certo modo, nem mesmo pode aferir seus efeitos, se não procurar
a superação do pasado, isto é, se os alemães não compreenderem que
devem repensar seu desenvolvimento. Não estou aconselhando a vol-
tarmos à guerra dos camponeses, como disse Humboldt em seu tempo:
quero apenas que se considere o fato de que, em 1848, o caminho foi
perdido. Como o senhor disse, esta ideologia trágica não é uma inven-
ção da escola de Frankfurt, mas é o produto de um dua­lismo singu-
lar no desenvolvimento alemão, que se apresentou já depois de 1848.
Vamos dar apenas um exemplo literário. Dizemos continuamente nas
nossas histórias da literatura, e com justa razão, que os problemas apre-
sentados por Hebbel em Herode e Marianna e em Gige e o seu Anel
representam o iní­cio da problemática desenvolvida por Ibsen em Nora.
Com a grande diferença de que Hebbel apresenta este problema como
um problema genericamente trágico, e por isso permanece um conser-
vador que se voltou contra a revolução de 1848, enquan­to que, em Ib-
sen, Nora foi um veículo da liberdade real da mu­lher. A este núcleo de
problemas, portanto, é também inerente uma crítica cultural, do pas-
sado alemão e de todas estas questões. Dei, aqui, apenas um exemplo,

175
Lukács e o século xxi

por assim dizer, periférico, mas este exemplo mostra que, mesmo onde
o desenvolvimento alemão apresenta pontos altos e progressistas, está
sempre mesclado a um conservadorismo que idolatra o Estado, com a
aprovação do fracasso da revolução de 1848. Isto hoje deve ser compre-
endido, e na minha opinião os intelectuais alemães radicais, em face
da evolução alemã, têm se limitado a uma crítica na realidade muito
ténue, muito benévola. Se o senhor compara o livro tão útil de Jaspers
com meu pequeno ensaio, pode ver em muitos casos estas pequenas
diferenças: Jaspers arrasta consigo, cm toda a sua crítica, alguns mo-
mentos fatalmente trágicos, conservadores.
Abendroth — E no entanto o livro de Jaspers é...
Lukács — ... muito útil, muito útil. Antecipo que a crítica que
devemos fazer aqui deve ser aplicada também onde encontramos coi-
sas úteis. Direi mesmo que, com este ensaio, devemos considerar Jas-
pers um aliado.
Abendroth — Sem dúvida. . .
Lukács — Entretanto, é justa a tática leninista da qual me parece
que já falamos. Desde 1905, Lênin considerava os socialistas revolucio-
nários como aliados; entretanto, criticou ininterruptamente suas con-
cepções da sociedade, precisamente na perspectiva dialética que um
movimento do tipo que agora desejamos deve ter, ou seja, não devemos
estar nem cem por cento de acordo, nem cem por cento em desacordo.
Isto vale igualmente para a tendência à tragédia, porque penso que é
dis­so que se trata quando digo que fenómenos sociais são apresentados
como condição humana. Um movimento contra a manipu­lação deve
empreender uma luta intransigente contra esta ten­dência, que compre-
ende um arco que vai desde a ideologia da inelutabilidade da técnica c
por isso da ineviíahiíidade da guer­ra atómica, até os nossos sutilísimos
problemas éticos. Deve ser elaborada uma linha preliminar ainda pu-
ramente teórica que, de um lado, esteja em condições de considerar

176
Anexos

todos aqueles que se empenham neste movimento como aliados, e, de


outro, de criticar estes aliados de modo conveniente. Assim, podemos
formar um núcleo capaz de empreender esta luta ideológica contra a
manipulação e, ao mesmo tempo, mobilizar aquelas camadas que, sob
forma de um obscuro mal-estar e dos modos mais variados, recusam
o presente nos seus aspectos mais essen­ciais, camadas nas quais etá
presente o sentimento de que esta felicidade manipulada não é absolu-
tamente uma verdadeira felicidade.
Abendroth — Estou inteiramente de acordo, também em rela-
ção a este último ponto. É nossa tarefa desenvolver a partir da análise
marxista uma consciência estratégica, e por esta razão, em primeiro
lugar, aceitar como aliados aquelas forças que confusamente protes-
tam contra a manipulação, mesmo partindo de posições ideológicas
completamente diferentes das nossas. Em segundo lugar, devemos
criticá-las de um modo inteiramente amigável. Coloca-se neste pon-
to um problema posterior, sobre o qual tenho, concretamente, uma
opinião diferente da de Lênin. O senhor conhece a tese com a qual,
parece-me que no volume sobre o imperialismo, Lênin identifica de
modo bastante acrítico a aristocracia operária com a parte mais bem
paga da classe operária, parte que teria sido, por assim dizer, a base da
irrupção da ideologia burguesa no movimento operário. Nos países da
Europa Ocidental, a realidade já mostrou outrora um aspecto diferente,
e exatamente com relação ao problema da conquista por parte da classe
operária de uma plena consciência. Com efeito, se nós investigarmos
concretamente, por exemplo, na situação alemã, que parcela da classe
operária começou a luta contra a primeira guerra mundial, vemos que
foram exatamente os operários qualificados e, na verdade, pela razão
bastante simples de que eram também qualificados espiritualmente,
sendo por isso, os que melhor estavam em condições de desmascarar
a aparência inganosa da guerra defensiva, da guerra nacional defensi-

177
Lukács e o século xxi

va. Aqui surge o problema de levar uma justa consciência às massas.


Para que alguma coisa possa ser “levada” é necessário um núcleo que
seja portador dela. Um núcleo que, na situa­rão concreta da República
Federal Alemã, a bem dizer, não se deixa organizar partidariamente.
Um núcleo que, entretanto, sabe ser uma unidade: a sua consciência
unitária se desen­volve numa discussão permanente e isto significa que
êle é um núcleo organizado.
Lukács — A organização não é, talvez, necessariamente, algo
partidário?
Abendroth — Ao contrário, nós não temos até agora encontra-
do as formas concretas; se o senhor preferir, direi que elas ainda são as
formas ideológicas normais.
Lukács — Desculpe-me se o interrompo. Até agora, tenho pen-
sado frequentemente que se poderia até introduzir no mo­vimento
uma forma de organização inteiramente reacionária. Os estudantes
são muito radicais e, terminados os estudos univer­sitários, se disper-
sam. Poder-se-ia, talvez, introduzir no mo­vimento estudantil radical
alguma coisa semelhante ao que eram as Alten Herren nas corpora-
ções estudantis. Por este meio, poderíamos, pelo menos, conservar no
movimento, a elite dos estu­dantes que têm um passado radical. Esta
é, digamos, uma suges­tão à qual não atribuo importância excessiva e
principalmente não dou significado especial à expressão Alten Herren,
mas o senhor talvez compreenda. ..
Abendroth — Na Alemanha, tentamos inclusive realizar esta
experiência em analogia com o Sozialistischer Deutscher Studenten-
bund, que é o mais amplo, mas não o único movimento de oposição
estudantil, embora seja o núcleo mais conscien­te, entre todos os ultra-
radicalismos que inevitavelmente apa­recem e continuamente se repro-
duzem. Paralelamente a este Sozialisticher Deutcher Studentenbund,
formamos um Sozialisticher Bund, como organização lateral, com o

178
Anexos

resultado de ser­mos expulsos do partido socialdemocrático. Esta forma


possui naturalmente os seus limites, o problema ainda não está resol­vido,
e, além disso, assim formulado, é um problema específico da Alemanha
Federal. Atrás de tudo isto existe, porém, uma questão que não é apenas
nossa: a sociedade da República Fe­deral é, na realidade, apenas um dos
problemas da organiza­ção social do capitalismo tardio. Em outros países,
soluções deste género podem ser possíveis e vemos numa série de países
a constituição de organismos, inclusive de tipo partidário, com todas as
contradições com que aparecem necessariamente.
Lukács — A possibilidade de um partido se apresenta na França
e na Itália de um modo inteiramente diferente do que na Alemanha, na
Inglaterra ou nos Estados Unidos.
Abendroth — Podemos ver aqui, se quisermos empregar o termo
policentrismo, falso porque terminològicamente con­traditório, a verda-
deira face do problema. Isto é, devemos en­contrar as formas concretas, a
partir dos dados nacionais, mas não podemos nos esquecer. . .
Lukács — Creio que este é um fato muito importante. Volto à
minha paixão hegeliana pela identidade, já que, por um lado, há um
problema mundial da manipulação, razão pela qual os traços mais ge-
rais são comuns a todos os países.
Abendroth — Porém a verdade c concreta.
Lukács — Mas em cada país singular apresentam-se pro­blemas
inteiramente novos. Tomemos os Estados Unidos: aqui se desfez a ilu-
são de 1945 de uma marcha triunfal no mundo do american way of
life e com ela toda a política do roll back, pelo que hoje, na Améri-
ca, apesar de toda a sua potência eco­nómica, política e militar, todo o
mundo de ilusões derivado da vitória de 45 ficou reduzido a pedaços
e devemos nos defrontar com uma situação inteiramente nova. Alguns
jornalistas americanos e alguns senadores como Mansfield, Fullbright,
etc. não exprimem nada mais do que as consequências desta pro­funda

179
Lukács e o século xxi

crise que, por um lado, tem suas raízes na crise da manipulação, mas
que possui, por outro lado, a sua forma especificamente americana. No
momento, não quero aprofundar-me no exame dos pormenores. As
formas inglesas atuais têm suas causas específicas, como também as
formas francesas e todas as outras.
Abendroth — Sim, participo plenamente da opinião de que se
deva ver a diferença mas também a unidade da conexão. Uma palavra,
ainda, sobre o problema geral. O senhor disse, com razão, que o movi-
mento operário internacional teve a sorte de ter primeiro, um Marx, c
depois um Lênin. Acentuou, assim, a função da personalidade na histó-
ria, função que não deve ser evidentemente subvalorizada. Parece-me,
porém, por outro lado, que não se deva tampouco ignorar o fato de que
o processo histórico, em ambos os casos, valorizou estas personalida-
des, se assim quisermos chamá-las, quase post-festum. O Lênin dos
anos situados entre o “Que Fazer” e a revo­lução de 1917 — do ponto de
vista do movimento operário inter­nacional de então e de seu nível de
consciência — era um entre muitos, era um dirigente discutido...
Lukács — É verdade, só que naquele tempo, certas coisas sobre
Lênin não foram compreendidas, mas se tivessem sido teriam sido bas-
tante úteis. Isto é, penso que a tática leninista, que consiste em “aliança
+ crítica”, teria sido extraordinaria­mente útil para o partido socialista
francês no tempo do caso Dreyfus, época era que ocorreu uma falsa po-
larização que cau­sou bastante dano à força de penetração do partido.
Abendroth — Sobre os anos que se seguiram, existe agora, além
do mais, uma nova pesquisa, um ensaio de Czempliel que acredito que
seja muito interesante, mesmo para o senhor. Mas sua observação tam-
bém é válida para o movimento ope­rário alemão e na realidade para todo
o movimento operário. Entretanto, não subsiste o mínimo fundamento
para cultivar o pessimismo só porque, como disse o senhor, não vemos o
Lênin de hoje. Devemos, porém, levar em conta um problema estratégico

180
Anexos

e creio que se trate de um problema geral, mesmo fora da República Fe-


deral da Alemanha: isto é, em nenhum país de capitalismo desenvolvido
foi resolvido o problema da comunicação entre o movimento operário do
velho estilo e o movimento sindical, bem como todos aqueles humores
inte­lectuais que têm por alvo a manipulação e que confluem nos movi-
mentos sem ter encontrado um fator próprio de estabilização. Sem co-
municação com as grandes organizações dos tra­balhadores, as massas
não têm a força necessária para se faze­rem valer.
Lukács — Justíssimo. Gostaria apenas de voltar à ques­tão coloca-
da por Lênin, exatamente quando propõe um pro­blema organizativo de
tipo inteiramente novo, problema que adquire uma atualidade crescente
no capitalismo, tão logo uma tendência demostra representar não inte-
resses capitalistas sin­gulares, mas o capitalismo em seu conjunto. Pen-
so naquilo que no Ocidente se costuma indicar com a expressão brains
trust. Kennedy sabia bem que não era um teórico ou um cientista mas, ao
contrário do que sucede na Europa e principalmente na Alemanha, não
identificou o expert com o alto burocrata. Sabia de fato que, deste género
de especialistas burocráticos não podia receber substancialmente nada,
e que ao invés deveria fazer uma seleção de intelectuais e de teóricos,
independente­mente do fato de que os tenha escolhido mal ou bem, coisa
que aqui não nos interessa. Estes teóricos não devem fazer mais do que
empregar seu saber e sua reflexão na investigação de pro­blemas gerais;
deste material, o político retira depois as pala­vras de ordem para o movi-
mento. Ora, acredito que a consi­deração particular do caso de Marx e de
Lênin nos países socia­listas os tenha levado à fantástica supervalorização
das virtudes teóricas dos primeiros secretários dos diversos partidos. Por
exemplo: Rakosi, que entre nós se apresentava como herdeiro de Lênin,
tinha traços bastante cómicos.
Abendroth —- Mas também, infelizmente, muitos traços trágicos. . .

181
Lukács e o século xxi

Lukács — Sim, com relação a este problema há também um im-


portante problema organizativo, também para o movimen­to operário
futuro. Se não podemos esperar que o grande líder político, que pode
ser também um político importante (basta pensar numa figura como a
de Togliatti), seja também um gran­de teórico, há então necessidade de
introduzir uma forma nova no movimento radical e no movimento ope-
rário. Por isso, uso o termo brains trust; sem dar excessiva importância
à palavra, quero apenas dizer que, com isto aparece um novo princípio
organizativo que consiste numa duplicidade e numa colabora­ção entre
teoria e praxis política. Do momento em que elas não estão mais unidas
na mesma pessoa, ou que isso só possa acontecer de maneira inteira-
mente casual (também por causa da extraordinária extensão das tare-
fas atuais), a questão só pode ser resolvida através dessa forma dúplice.
Damos outra vez o exem­plo de Lênin. No início da década de vinte, o
que Lênin conhecia do rnovimento colonial bastava amplamente para
fixar corretamente as posições que os partidos comunistas deviam en-
tão assumir na propaganda em relação ao movimento anticolonialista.
Hoje, quando na luta de libertação se apresentam problemas políticos e
económicos específicos para cada pequeno país, seja êle Gana, Zâmbia
ou qualquer outro, não há um só indivíduo, mesmo que fosse da estatu-
ra de um Marx, ou de um Lênin, capaz de dominar todos esses proble-
mas. Deve com­preender agora porque dou tanta importância ao pro-
blema dos brains trust como forma organizativa. Gostaria também de
subli­nhar o fato de que, se há uma camada inadaptada para esta tarefa,
esta é exatamente a da burocracia de Estado ou das organizações dos
operários. Exatamente porque estão habitua­das à manipulação, estas
entidades não conseguem, no momento, considerar de modo impar-
cial e científico, tudo aquilo que não está sujeito à manipulação. Para o
aspecto intelectual daquele movimento que os trabalhadores desejam,
isso tem uma enorme importância. Este movimento in­telectual pode,

182
Anexos

por um lado, ser o ponto de irrupção “do exte­rior” do novo movimento


revolucionário no movimento operá­rio; por outro lado, pode formar
um amplo pessoal para a brains trust, enquanto que atualmente, o
brains trust pode exis­tir apenas se alguém, por conta própria, escreve
algum bom livro sobre o Egito ou a Síria, exercendo assim uma influ-
ência indireta sobre a política anticolonianista do partido inglês ou do
partido francês. Não sei se o senhor repara que, para mim os intelectu-
ais têm hoje diante deles uma grande tarefa. E, se o nosso movimento
começa a compreender que uma polémica justa, suponhamos, contra a
teoria manipuladora do conheci­mento, típica do neopositivismo, pode
ser algo que nos próximos vinte anos terá grandes consequências po-
líticas, pode­remos conduzir uma parte — a melhor parte — dos inte-
lectuais para fora do academicismo. Quero me referir ao academicismo
do qual o senhor falava quando disse, com muita razão, que a escola
de Frankfurt gera um tipo interessante de academicismo; se assim me
posso expressar, um academicismo de oposição.
Abendroth — Não gostaria de ser mal interpretado; pen­so que
talvez para os jovens intelectuais da República Federal da Alemanha,
apesar de toda a sua contraditoriedade. . .
Lukács — Contraditoriedade no sentido de que aqui se pode
aprender alguma coisa, mas se se quer realmente apren­der, é preciso
romper com a escola de Frankfurt.
Abendroth — Sim. Entretanto, no início dos estudos uni­
versitários, com muita frequência, se vai a Frankfurt. Para toda uma
geração de estudantes socialistas, Frankfurt foi uma etapa de transição,
uma das mais importantes.
Lukács — É certo e não vou negá-lo; além do mais, hoje não me
desagrada ter aprendido os primeiros elementos das ciências sociais com
Simmel e Max Weber e não com Kautsky. E não sei se hoje não se poderia
dizer que, para minha evo­lução, essa foi uma circunstância favorável,

183
Lukács e o século xxi

Abendroth — Sim, mas não devemos esquecer que, para o se-


nhor, foi decisivo o último Kautsky. E o primeiro Kautsky tinha uma
posição ainda mais vigorosa.
Lukács — Está certo, não tenho qualquer intenção de fazer de
minha biografia uma lei geral de desenvolvimento. Quero apenas con-
firmar o que o senhor disse, isto é, que os es­tudantes passam os primei-
ros anos em Frankfurt e depois de­vem afastar-se dela.
Abendroth —- Estou inteiramente de acordo, mas o pro­blema
estratégico permanece. A sua ideia do brains trust é, também na mi-
nha opinião, um dos termos decisivos do proble­ma, e talvez pensemos
do mesmo modo em relação às forças progressistas socialistas da Ale-
manha Federal. Mas para nós, na República Federal, há uma enorme
dificuldade, que não ocorre em idêntica medida nos outros países do
mundo ociden­tal, onde existem movimentos operários que realmente
funcio­nam. E não citarei apenas o partido comunista italiano, ou mes­
mo, apesar de certas contradições, o francês; mas também, se se qui-
ser, o partido socialista popular dinamarquês e outros seme­lhantes. Na
Alemanha, pelo contrário, se fossem formados esses brains trust, não
poderíamos, num primeiro tempo, fazer mais do que cozinhar na pró-
pria panela, enquanto o problema estra­tégico decisivo seria de pôr um
brains trust que se formasse, digamos, espontaneamente, em comu-
nicação com as organizações dos trabalhadores que sempre existiram,
isto é, com os sindicatos.
Lukács - Sou do parecer de que, se na Alemanha surge um mo-
vimento deste genero, êle não deve se esquecer de liquidar espiritu-
almente a velha Alemanha, compreendida na velha Alemanha, a so-
cialdcmocracia que dela faz parte. Parece-me que na Alemanha existe
uma ininterrupta crítica ao comunismo, mas que pouco se tenha dito a
respeito da problemática da socialdemocracia alemã anterior à 1914 e
seus precedentes, que geraram (e não foi por acaso) a guerra de 14.

184
Anexos

Abendroth — Não porém tão pouco quanto o senhor pensa. Na


realidade até mesmo os intelectuais burgueses começam hoje a saber
alguma coisa a mais a este respeito...é ver­dade que começam por um
estudo puramente positivista dos documentos. Penso em Pritz Fischer
e em sua história...
Lukács — Sim, êle é um antecipador e mostra que nos movemos
num terreno real, que absolutamente não inventamos uma falsa ide-
ologia qualquer da velha socialdemocracia, e que, ao contrário, existe
um movimento real. Penso, porém, que devemos chamar a atenção — e
procuro sempre fazê-lo — pa­ra o fato de que, na critica do programa de
Erfurt de 1890, Engels já havia visto e criticado com muita agudeza esta
situa­ção, quando dizia que, no meio do socialismo, teria crescido a “vi-
gorosa, piedosa, alegre e livre” sujeira. Assim, Engels equa­cionou este
problema já em 1890 e, se procuramos uma ligação com o movimento
operário, é preciso ter continuamente presente esta problemática.
Abendroth — Sim, mas com a nossa ideia do brains trust en-
focamos, a bem dizer, apenas o programa estratégico geral; ainda não
encontramos, porém, uma solução. Porque aqui existe ainda um outro
obstáculo, que se coloca do modo mais agudo e constitui, por assim di-
zer, um problema sério na situação da República Federal, mas que tam-
bém existe de modo paralelo, mesmo se se manifesta de forma mais
débil, nos outros países capitalistas europeus. Com justeza, o senhor
há pouco chamou a atenção para o sentimento anticomunista, que na
verdade está em retrocesso, mas que ainda permanece dominante c
central na República Federal da Alemanha. Não se deve esquecer, com
relação a este problema, que os aspectos negativos da ditadura stali-
nista, que degenerou numa barbárie brutal, agiram forte­mente sobre
a situação do movimento operário dos países capi­talistas e tiveram
naturalmente um efeito ainda maior na República Federal, por coe-
xistirem, um ao lado do outro, os dois Estados alemães. Esta situação

185
Lukács e o século xxi

constitui um problema material que concerne às grandes massas do


movimento operário alemão e também aos intelectuais que trabalham
nas universidades. Em resumo, o problema é o seguinte: através do me-
canismo da re­construção e da conjuntura (e do desenvolvimento sindi-
cal, não absolutamente por concessão voluntária dos capitalistas) pôde
ser oferecido aos trabalhadores das diversas categorias da Re­pública
Federal, apesar de todas as diferenças entre as diversas camadas, um
nível de vida imensamente superior àquele que desfrutavam os grupos
correspondentes na República Demo­crática. Este é um problema que
se vai atenuando, mas que ainda não está resolvido, se bem que esteja
perdendo terreno desde o momento em que a República Democrática
Alemã se beneficia de um novo impulso económico. Por parte dos ca-
pitalistas este problema foi, naturalmente, transformado em ideo­logia,
falsa, porém eficaz; serviu para que se invocasse a pre­tensa superiori-
dade da economia capitalista sobre a economia socialista, sem levar em
consideração as mediações concretas históricas deste problema na Ale-
manha. Combater esta situa­ção é uma das nossas tarefas ideológicas.
Lukács — Sim, e gostaria ainda de tornar a sublinhar, com rela-
ção ao que foi dito, o imenso significado que poderia ter para os países
capitalistas a liquidação real do stalinismo nos países socialistas.
O que houve até agora foi o início do processo — para dizê-lo de
um modo brusco — de desaparecimento do stalinismo na forma do
stalinismo. Eu digo sempre que, por ora, devemos destruir o stalinismo
nas suas formas stalinistas e que, depois, então, seguir-se-á uma des-
truição real se rompermos radical­mente com os métodos stalinistas.
Gostaria apenas de acres­centar que também este é um processo para o
qual não chama­mos suficientemente a atenção. Tomemos dois exem-
plos: a po­lícia política como Estado dentro do Estado foi liquidada na
União Soviética em 1953 e Beria precisou ser executado para que esta
liquidação pudesse seguir seu curso. Em 1966, na Iugoslávia, Ranko-

186
Anexos

vic foi simplesmente removido e a autonomia de sua organização foi


anulada. Só quando este início for le­vado adinte com energia em todos
os Estados socialistas é que poderemos falar de uma verdadeira liqui-
dação do stalinismo sob esse aspecto. Evidentemente, deve-se obser-
var que, mesmo no Ocidente, a organização secreta da polícia tem sido
bastante tolerada como Estado dentro do Estado; chega inclusive a ser
exaltado nos filmes policiais, o Estado dentro do Estado dos Estados
Unidos, e este fenómeno me parece que sob muitos aspectos está se
ampliando; a polícia política dos EUA não tem a potência, digamos, da
NKVD no tempo dos processos de Moscou, nos anos 30, mas muitos fa-
tos ocorridos na América do Sul, como, por exemplo, os acontecimen-
tos de São Do­mingos, são empreendimentos autónomos dos Serviços
Secretos, assim como os grandes processos foram o produto de uma
ação autônoma das organizações secretas stalinistas...
Abendroth — E podemos dizer que, em São Domingos, se bem que
em escala reduzida, foi cometido, pelo menos, um ato de barbárie igual. . .
Lukács — Sim; e diga-se de passagem que, no problema da luta
contra a manipulação, não se trata apenas da manipu­lação dos consu-
mos, mas também da forma de manipulação da política pela qual, por
exemplo, a democraticidade da política externa dos Estados Unidos se
transforma frequentemente numa política antidemocrática. Podemos
ver isso muito bem na questão de Cuba, no tempo de Kennedy, que
apesar de tudo travou uma batalha ininterrupta contra as intromissões
ilegais dos Serviços Secretos, ao passo que hoje sua influência e a da bu-
rocracia militar no regime de Johnson cresceram extraordi­nariamente.
Aqui se pode ver como o problema da manipu­lação opera também no
terreno da grande política. Creio, a este respeito, que os intelectuais
ocidentais tenham não só a tarefa de continuar a tradição de luta con-
tra a NKVD na União Soviética, à maneira de Kõstler, para falar de um
modo esque­mático, mas também a de demonstrar que o fenómeno não

187
Lukács e o século xxi

existe apenas nessa fornia, mas, em outras formas, existe também em


outros países. Que este sistema não se tenha ainda desenvol­vido a tal
ponto na Alemanha Federal é coisa que tem dependido, em parte, de
certas explosões da opinião pública. Creio que se a opinião pública não
se tivesse manifestado ao tempo do caso do Spiegel e não tivesse levado
à queda de Strauss, poli­ticamente ter-se-ia tido na Alemanha um siste-
ma rnacartísta moderado.
Abendroth — Acho que não teria sido assim tão mode­rado...
Lukács — Creio, e acho que o senhor me entende, que seria im-
portante chamar a atenção para alguns traços do siste­ma da manipu-
lação e para os perigos que daí podem surgir. Che­gamos assim a algu-
mas consequências que se relacionam tam­bém com a vida em geral na
República Federal da Alemanha. Penso agora, por exemplo, em uma
questão que só conheço através de certos casos particulares e sobre a
qual não posso emitir um juízo completo. Faço alusão à praxis judiciá-
ria na República Federal. Ali se faz um fetiche do veredito de um juiz e
da perícia de um especialista, pelo que se torna muito difícil a revisão
de um julgamento evidentemente injusto. Creio que o senhor conhece
muito bem esta matéria, com certeza me­lhor do que eu. Tenho, porém,
a impressão de que será neces­sário travar uma batalha contra este tipo
de comportamento. Em sua essência, ela é hoje travada apenas pelo
Spiegel, pelo menos em certos casos e nem sempre extraindo deles as
conse­quências necessárias. Por exemplo, toquemos aqui num ponto
que tem ligação imediata com a vida de tantos homens. O se­nhor tem
aqui um problema destinado a suscitar movimentos de massa; não por
acaso, na sociedade burguesa, já no pas­sado, erros judiciários evidentes
foram a causa de movimentos de massa: basta pensar no caso Dreyfus
como o caso mais cla­moroso. Temos um exemplo literário da eficácia
de um movi­mento deste género no romance de Arnold Zweig sobre o
sar­gento Grischa, que no final das contas me parece útil e bom; nele

188
Anexos

chegamos de modo mais do que evidente a um juízo sobre certos as-


pectos do aparato administrativo alemão. Creio que, para uma melhor
conscíentização dos aspectos apenas aparentemente democráticos da
República Federal da Alemanha, tam­bém possam ser úteis as análises
de certos vereditos, recusas de revisão de processos, ete, mas do que as
digressões sobre as questões políticas; e tenho a impressão de que na
República Federal há muito mais podridões e erros do que nos dizem
os jornais ou do que seja do conhecimento da opinião pública. Não sei
sua opinião a este respeito. ..
Abendroth - Concordo inteiramente com o senhor; é verdade
que acontecem mesmo muitas coisas erradas, coisas que muitas vezes
nem chegam ao público. O senhor sabe que o primeiro elemento a in-
centivar a crítica foi proporcionado processos políticos, mas verossí-
milmente poderíamos tornar mais evidcnte o problema para as massas
se outros processos também compreendidos. Aqui, porém, se coloca
um problema bastante geral que me parece ssr importante mesmo fora
da República Federal da Alemanha, um problema importante para to-
das as sociedades do mesmo tipo. O problema, em suma, de que a defe-
sa, na maioria das vezes, é apenas formalmente democrática. O ponto
decisivo é o de passar do uso dos instrumentos defensivos do direito
democrático, principal­mente do direito democrático-burguês, à ação
ofensiva con­tra a manipulação.
Lukács — Estou inteiramente de acordo. Gostaria ape­nas de su-
blinhar a característica especificamente alemã de que o especialista no-
meado pelo juiz para fornecer uma perícia re­presenta, desde o início,
a autoridade do Estado e não emite um parecer científico sobre o qual
se possa discutir; nasce assim uma decisão autoritária; e quem protesta
contra ela aparece logo como um mau cidadão. Não sei, tenho péssima
memória para nomes, mas em algum lugar da Renânia houve, não faz
muito tempo, um processo contra um cidadão, que segundo creio tinha

189
Lukács e o século xxi

fama de ser um desordeiro. Esse homem foi sim­plesmente encerrado


num manicomio por um certo tempo por estar implicado em um caso
de morte; soubc-se mais tarde que as autoridades tinham conduzido
muito superficialmente a inves­tigação sobre o delito. Direi que é um
fenómeno tipicamente alemão de autoritarismo por parte do Estado o
fato de que um procurador ou um juiz que erra, apesar de tudo, conti-
nue a representar mesmo nos seus erros, o caráter sagrado do Estado, o
caráter sagrado da autoridade; e existe uma certa tendência no sentido
de encobrir fenómenos deste género, não deixar que eles cheguem ao
conhecimento público. Creio que, na Alema­nha, um movimento contra
a manipualção possa desempenhar um grande papel neste terreno, pois
se trata de problemas nos quais todos estão interessados. Não acredito
que a este respeito sejam mais interessantes os casos singulares do que
o desmas­caramento do modo de proceder do aparato judiciário. Isto é,
quero dizer que o terreno da luta contra a manipulação é muito mais
amplo do que se pode perceber à primeira vista.
Abendroth — Estou inteiramente de acordo com o se­nhor.
Creio porém que não se trata de um problema especifi­camente alemão,
se bem que se apresente de modo particular­mente agudo na Alemanha,
por duas razões: a tradição do pen­samento estatolátrico, de um lado, e
a permanência dos quadros do aparelho judiciário do Terceiro Reich na
República Federal, de outro. Mas esse tipo de problema existe em todas
as socie­dades burguesas.
Lukács — Disto estou plenamente convencido, mas não é evi-
dentemente por acaso que o maior escândalo deste género tenha ex-
plodido no caso Dreyfus, na França, enquanto estou certo de que na
Alemanha daquele tempo aconteceram vinte casos Dreyfus, mas nin-
guém se preocupou com isso. O caso Dreyfus é, por assim dizer, um
caso generalizável, mas a eclo­são do caso Dreyfus evidencia a diferença
entre a França e a Alemanha.

190
Anexos

Abendroth —- Pense na situação dos Estados Unidos; lá, nos


grandes processos sobre questões deste género, acentua-se mais for-
temente o aspecto político imediato; temos então problemas em tudo
semelhantes, sem que porém tenhamos che­gado a algum resultado
através de movimentos de oposição.
Lukács — Não contesto este fato, evidentemente. Creio apenas
que não devemos limitar o terreno da luta contra a ma­nipulação ao
problema do tempo livre em sentido do estrito, nem reduzir a manipu-
lação unicamente ao plano económico. Devemos, ao contrário, darmo-
nos conta de que a técnica da manipulação — que em parte já é uma
herança dos tempos precedentes e só recebeu, agora, uma forma nova
— invade realmente a totalidade da vida de cada indivíduo; e por isto,
então, nasce o problema de atingirmos o mais rapidamente possível as
camadas sociais nas quais já se manifestara uma certa insatisfação e
um certo mal-estar.
Abendroth — Mas a este respeito permanece um proble­ma fun-
damental (e agrada-me que cheguemos às mesmas con­clusões): na luta
contra a estrutura social do capitalismo tar­dio, está em jogo a defesa e
a construção dos direitos do indivíduo como singularidade, enquanto
garantia de defesa do singular, isto é, dc direitos democráticos. E aqui
aparece novamente o problema geral: é preciso compreender que, ape-
sar da legalidade do Estado burguês capitalista enquanto legalidade
democrática revelar-se amplamente manipulada, a construção, a am-
pliação e o impulso sobre a base desses direitos democráticos pode,
eventualmente, se tornar, mesmo no Estado burguês, o ponto de vira-
da imediato para a transformação da sociedade burguesa cm socie-
dade socialista. E isto também pelo fato de que a sociedade burguesa, a
sociedade capitalista, mesmo aquela do capitalismo tardio, concede de-
certo os direitos individuais para usá-los como meios de integração dos
indivíduos em seu próprio proveito, mas depois, com o aguçamento de

191
Lukács e o século xxi

tais problemas, não só torna tais direitos inoperantes, ao manipulá-los,


mas chega mesmo a anulá-los quando a situação se torna séria.
Lukács — Sim, este é um problema que surge continua­mente
também da liquidação do stalinismo; ou seja, o problema lia distinção
entre situações revolucionárias e situações que ex­primem uma socie-
dade consolidada. Não há dúvida de que, para uma situação revolucio-
nária, é válida a frase pronunciada cm certa ocasião por Lênin contra
Górki; quando este se lamen­tava de uma injustiça ocorrida em um lu-
gar qualquer da pro­víncia, Lênin lhe dissera, rindo: “Quando há uma
briga num restaurante, como fazer para distinguir quais os tapas neces­
sários e quais os que não o são?” Pode soar como um pensa­mento um
pouco cínico, mas creio que Lênin não pretendeu sê-lo. Quando se trata
de uma luta de vida ou de morte, em que está em jogo a existência ou o
aniquilamento, certas coisas que numa situação normal são absoluta-
mente necessárias, como a forma legal do Habeas-corpus na Inglater-
ra, podem ser conscientemente postas de lado por uma classe que luta
por sua existência. Porém é um outro caso que Stalin os tenha posto de
lado num período no qual isso não era necessário. Os trotskistas e os
bukharinistas já estavam politicamente eliminados quando começaram
os grandes processos e a estes processos poder-se-ia aplicar a frase de
Talleyrand: é mais do que um crime, é um erro. No momento, estamos
numa situação relativamente estável e por isso é plenamente válido o
que o senhor disse. Devemos apenas compreender que, obviamente,
quando surge um perigo para a vida, as situações mudam. A tarefa dês-
tc mo­vimento contra a manipulação deve, no momento, ser sublinhada
com ênfase, tanto mais que a burguesia, principalmente a alemã, mas
também a americana, usando a palavra de ordem “A pátria está em
perigo”, tende a transformar situações nas quais a pátria não corre pe-
rigo algum em períodos de opressão. Antes, quando eu falava da praxis
jurídica, é preciso notar que não se trata tanto de estabelecer a maneira

192
Anexos

pela qual os fatos se desenvolveram, realmente, como de experimentar


a firmeza da autoridade da corte. Aqui, aparecem novamente proble-
mas com os quais, através de um tratamento historicamente concre­to,
podemos nos aproximar dos problemas gerais dos homens. . .
Abendroth — ... sim, e com isso se torna mais clara para nós a
atualidade na República Federal de hoje (mas os proble­mas, de modo
paralelo, se manifestem em toda uma série de outros Estados) da luta
pela defesa da lei constitucional contra as leis de emergência. Nesta luta
poder-se-ia criar com sucesso uma ampla frente única.
Lukâcs — Na realidade, a existência destas leis não é mais do
que a preparação jurídica da completa supressão dos direi­tos e das li-
berdades democráticas almejada pela burguesia. Sim, não esqueça um
traço muito importante do desenvolvimen­to alemão: Bismark assimi-
lou muito habilmente certas formas democráticas do Ocidente...
Abendroth — O próprio direito de voto de 1867 para o Reichs-
tag da Alemanha Setentrional...
Lukács — ...o próprio direito de voto, mas o fêz de modo com
que na Alemanha estas formas permanecessem intei­ramente inefica-
zes. Voltemos agora ao aspecto principal da questão, isto é, ao fato de
que se trata de lutar por uma demo­cracia efetiva e não apenas por uma
democracia fictícia. De fato, hoje, em todo o mundo, poderíamos dizer
que reina uma democracia fictícia. Mesmo na época stalinista havia no
papel um misterioso direito de voto e mais uma série de coisas. Hoje,
uma palavra de ordem eficaz e um ponto de união de todas as forças
deve ser a transformação da democracia fictícia, que existe em todos os
lugares, em uma democracia efetiva.
Abendroth — Justo! E aqui está novamente colocada concreta-
mente para a República Federal a necessidade de ligar a nossa luta em de-
fesa da Constituição e contra a lei de emergencia com a luta sindical pela
participação nas decisões e com a luta pela ampliação da democracia na

193
Lukács e o século xxi

vida económica, Evidentemente, e as duas coisas estão ligadas e é tarefa


nossa trazê-las a um mesmo denominador, formando, por este caminho,
um núcleo que torne estável a ligação entre o problema relativamente
popular da defesa da lei constitucional, o problema da democratização da
sociedade e, junto a isto, o da transição para o socialismo.
Lukács - Sim, veja agora em que termos estão colocadas as coi-
sas: uma democracia efetiva só pode ser defendida em casos concretos.
De fato, com a palavra de ordem geral da “democracia efetiva” todos
estarão de acordo: de Adenauer a Wehner, não creio que exista alguém
que afirme claramente querer abolir a democracia efetiva. Poderiam até
dizer que querem salvar a democracia efetiva mediante leis de emer-
gência. Deste modo, a questão não está na palavra de ordem, porém no
mostrar esta contradição na vida de cada homem.
Abendroth — Aqui também aparece um outro lado do proble-
ma. Na realidade, esta luta pela transformação da demo­cracia fictícia,
gerada, ao que parece pela sociedade burguesa, numa democracia efe-
tiva, que torne vivos os direitos demo-cráticos para todos e emancipe
as massas, também cultural­mente, tornado-as assim capazes de auto-
governo, não é nada mais que a luta pela transformação das formas so-
ciais do capitalismo superdesenvolvido em relações de tipo socialista.
Lukács — Certo. E aqui encontramos um problema inte­ressante,
que a ciência social pode ajudar muito a esclarecer. De fato, na minha
opinião, a Revolução Francesa introduziu o contraste entre sociedade
liberal-capitalista e sociedade demo­crática, que antes podia ser apenas
pressentido. No início de século XIX, revela-se que o ideal da burguesia,
o capitalismo li­beral, estava cada vez mais ameaçado pela democracia;
e se di­fundiu um pessimismo que bem pode ser estudado em teóricos
importantes como Tocqueville e John Stuart Mill. Do outro lado — e isto
na minha opinião tem um significado internacio­nal — surge a crítica
democrática russa: Bielinski, Tchernicheviski e Dobroliubov. Estes repre-

194
Anexos

sentaram com grande força a alternativa democrática. Atualmente, esta


batalha, em certo sentido, perdeu seu caráter agudo. A socialdemocracia
sustentou de modo iníeramente insuficiente, no plano prático, a necessi-
dade de uma democracia real como pressuposto do socialis­mo. Sob esse
ponto de vista, creio que o lado positivo da in­fluência de Jaurès seja hoje
subvalorizado. Com o desenvolvi­mento da sociologia moderna torna-se
possível uma técnica da manipulação em seus diversos aspectos e uma re-
conciliação entre liberalismo e democracia na ideologia burguesa sobre a
base da manipulação. Esta reconciliação desaparece no momento em que
a democracia cessa de ser uma democracia manipulada. E creio que a
este propósito uma visão historicamente correta do proble­ma em relação
com as lutas de classe do século XIX possa ser muito útil para convencer
certos setores de intelectuais. Devemos destruir o desprezo pelo século
XIX, que esteve muito em moda por um longo período. Marx também
pertence a este século, e sem uma história do século XIX, as nossas ques-
tões ficam sus­pensas no ar. Se dissermos que a manipulação apareceu
em consequência do desenvolvimento técnico, então, para combater a
manipulação, deveremos nos transformar numa espécie de luddistas em
luta contra o desenvolvimento técnico. Se, ao invés disso, vemos que este
desenvolvimento representa a con­clusão de uma grande evolução global
da sociedade, evolução que tem como pontos de partida as contradições
da Revolução Francesa, chegamos a uma posição completamente diversa
sobre este problema. Um tratamento deste tipo do movimento social e da
história das ciências sociais constituiria uma tarefa muito importante.
Abendroth — Sim. Não é por acaso que as tendências neoposi-
tivistas da sociologia, bem como as correntes paralelas em economia,
são hoje utilizadas para desistoricizar e, portanto, para ocultar os ver-
dadeiros problemas. . .
Lukács: — Obviamente!

195
Lukács e o século xxi

Abendroth — Este é o aspecto metodológico do proble­ma. Es-


tou plenamente de acordo com o senhor quanto ao fato de que esta seja
uma das nossas tarefas principais como cien­tistas e como mediadores
entre o resultado do trabalho cientí­fico e sua aplicação à sociedade.
Porém o problema tem tam­bém um aspecto de atualidade política. O
bárbaro atraso da sociedade russa antes da grande revolução fêz com
que a re­volução russa atravessasse, e não por acaso durante o primei­ro
período do stalinismo, uma fase certamente evitável, porém determi-
nada por condições objetivas, determinada pela necessidade de resol-
ver o problema da acumulação primitiva sem o capitalismo.
Lukács - No essencial, estou de acordo com o que o senhor disse.
Permanece, porém, uma questão: independentemente do fato de que a
liquidação do stalinismo ajudará, em parte, os movimentos revolucio-
nários europeus e americanos, originou-se a partir daquela base, uma
deformação teórica. Por isso, os movimentos marxistas ocidentais de-
vem esclarecer corretamente este estado de coisas, do ponto de vista
teórico e histórico; de fato, com mínimos retoques, já se estava antes
em condições de deformar completamente os problemas. Permita-me
extrair um pequeno exemplo da praxis de Marx. Marx criticou James
Mill. Em certa medida, Mill tinha visto na troca o movimento elementar
do capitalismo, e, tomando a fórmula M-D como fórmula isolada, daí
extraía a correta conclusão de que toda compra é uma venda e vice-versa,
e que então deve haver necessariamente uma harmonia entre compra e
venda. Polemizando contra êle, Marx pôs no lugar do M-D um M-D-M,
esclarecendo a desagradável conclusão de que se alguém recebe dinheiro
por uma mercadoria, daí não se depreende necessaria­mente que deva
comprar uma outra mercadoria. M-D dá lugar, então, a uma conclusão
na forma da identidade; M-D-M dá lugar a uma conclusão dialética. Ora,
este é um exemplo pura­mente metodológico. Estou convencido de que,
se empreen­dermos uma análise real das verdades atuais, consideradas

196
Anexos

como “estabelecidas”, sejam elas de natureza sociológica ou eco­nómica,


etc, chegaremos a um série completa de fatos, aos quais pode, mutatis
mutandis, ser aplicado este esquema. Um movimen­to capaz de funda-
mentar as tarefas práticas, tal como nós dois as entendemos, tem um
grande trabalho teórico a desempenhar aqui. Pense só como no stalinis-
mo a concepção do “partidarismo” se transformou cm caricatura. Em
lugar da ligação ontologicamente necessária entre a superação da re-
alidade no pensa­mento e a praxis, que em Lênin não significa apenas
um au­mento da responsabilidade humana, mas também um aumento
da objetividade no conhecimento, estabeleceu-se a manipulação buro-
crática de cada afirmação. Não é caso para nos espantar­mos se a fé dos
homens insatisfeitos com o capitalismo na capacidade de orientação da
teoria marxista, da praxis socialista, sofreu repentinamente profundos
abalos. Só uma ruptura radical e universal, tanto prática como teórica,
com todos os métodos stalinistas pode restaurar a confiança. Não estou
em contradição comigo mesmo porque disse antes que devemos fazer
um apelo aos homens para a superação da manipulação, mas este apelo
só se tornará realmente operante quando estivermos em condi­ções de
mostrar teoricamente que não estamos diante de um curso inexorável
do processo económico ou tecnológico. Ao contrário, é preciso mostrar
que o que está em desenvolvimento é um processo manipulado por uma
classe determinada, de um modo bastante preciso, e que a manipulação
parte de certos pretensos axiomas que são incapazes de resistir a uma
obser­vação mais atenta. Citei antes o caso de James Mill porque nele o
problema se apresenta de uma maneira mais fácil de ser compreendida.
Estou convencido de que a nossa economia e a nossa sociologia estão
cheias de casos deste gêneero e que aqui a crítica teórica e a análise histó-
rica podem prestar grandes ser­viços.
Abendroth — Sim, devemo-nos colocar problemas bem concre-
tos, como, por exemplo, o da democracia. Conhecemos, por exemplo,

197
Lukács e o século xxi

a importância da análise teórica no tratamento da ideologia do totali-


tarismo, que as classes dominantes, sem nenhuma consideração pelo
conteúdo histórico, alargaram até chegarem a identificar, de acordo
com seus interesses, stalinismo e fascismo. Mas a este respeito deve-
mos observar também um outro aspecto: a teoria, que formulamos e
devemos analisar científica e historicamente, torna-se uma força capaz
de em­polgar as massas quando corresponde a uma necessidade prá­tica
e também à sua capacidade prática de conhecimento. Neste ponto en-
contramos um novo aspecto do problema da democra­cia. Uma fórmu-
la que conseguisse ser traduzida corretamente em realidade seria uma
das contribuições mais importantes para a nossa batalha atual.
Lukács — Estou inteiramente de acordo com o senhor; gostaria
apenas de chamar a sua atenção para uma conexão estrutural entre te-
oria e prática. Isto é, se procuramos um caso particular que mova ime-
diatamente as massas, não o encontrare­mos. Se nos dedicamos a uma
ampla pesquisa científica, entre­tanto, encontraremos trinta, quarenta,
cinquenta problemas do mesmo género, e entre cinquenta haverá um
através do qual po­deremos chegar às massas. A ideia de que através
de uma análise da economia chegaremos ao problema que transforma
em.praxis o mal-estar das massas é, na minha opinião, inteiramente
ilusório. Devemos desenvolver um grande e vasto trabalho científico a
fim de que o dirigente político que emerge das nossa fileiras ou qual-
quer outro, possa perceber que determinada crítica está apta a pôr as
massas em movimento e também em condições de arrancar delas um
comportamento praticamente político. A palavra de ordem que leva ao
movimento deve ser produzida através de uma cooperação entre ci-
ência e vida, isto é, entre ciência e processo económico. Não se esque-
ça que, de fato, nenhuma das palavras de ordem com as quais Lênin
subverteu o capitalismo russo era uma palavra de ordem socialista. O
fim imediato da guerra não era uma palavra de ordem socialista, as-

198
Anexos

sim como não o era a distribuição da terra. Mas Lênin era uni teórico
extraordinariamente arguto para encontrar estes elementos adequados
entre os fatôres de uma crítica da sociedade capitalista semifeudal. A
teoria é muito necessária também nesse sentido, pois sobre o seu ter-
reno acontecem mais fatos e a histó­ria demonstra continuamente que
qualquer setor do trabalho teórico chega a um ponto que provoca uma
ruptura. É muito inte­ressante notar como teorias puramente científicas
como a de Galileu ou, alguns séculos depois, a de Darwin conduziram
— por assim dizer — a uma explosão “semipolítica”. Por isso, pen­so
que um trabalho teórico excepcionalmente amplo e profundo .seja o
pressuposto indispensável da praxis. Nenhum de nós, refletindo sobre
este problema, pode saber qual será a palavra de ordem que levará a
posição antimanipulação a um ponto explo­sivo. Podemos apenas fazer
tentativas e devemos procurar levar às massas os resultados da nossa
pesquisa. É impossível determi­nar, sobretudo a priori, que palavra de
ordem virá depois a pre­valecer.
Abendroth — Estou inteiramente de acordo com sua opinião,
mas a esta problemática está ligada uma grande difi­culdade. Apesar
da fase de degenerescência stalinista, existe nos países socialistas uma
base social para um grande trabalho intelectual, se bem que ainda de-
formado. Os dotes intelectuais podem ser postos a disposição de um
trabalho crítico, teórico. Mas precisamente nos países socialistas, por
causa dos resíduos stalinistas e de sua tendência a interessar-se somen-
te pelos seus próprios problemas, falta a base intelectual para a solução
das questões. O contrário acontece nos países capitalistas e de novo
o fato é particularmente agudo na República Federal da Alemanha.
A base social para um comportamento intelectual crítico, enquanto
comportamento puramente teórico, é extraordinaria­mente restrita e só
casualmente pode ser adquirida. Na República Federal esta situação é
ainda pior do que nos Estados Unidos.

199
Lukács e o século xxi

Lukács — Concordo plenamente; apenas não se esqueça de que


em certo sentido esta situação é característica de todos os tipos de ca-
pitalismo. Tome, por exemplo, a representação da França do tempo de
Balzac, que inspirou as Ilusões Perdi­das: nela, um pequeno grupo que
se reúne à volta da figura do próprio Balzac é um grupo isolado, para o
qual a corrup­ção descrita magistral e amplamente por Balzac é um fato
de lite­ratura. Assim, um genêro de manipulação se cria sobre o funda­
mento do capitalismo daquele tempo que é naturalmente diferente da
manipulação moderna, Pense nos três artigos que Lucien de Rubempré
escreveu sobre o mesmo romance em diferentes jor­nais . . .
Abendroth — Conheço exemplos tirados da situação da Repú-
blica Federal. . .
Lukács — Certo. . . Creio que não devemos nos esque­cer de que o
capitalismo manipulatório é uma nova forma es­pecífica de capitalismo,
mas é sempre uma forma capitalista. Evidentemente é tolice imaginar
que nos encontramos em uma situação inteiramente nova e represen-
tar então o século XIX como um idílico reino da liberdade ou não sei
do que mais. Não pense que sou um fanático da ciência se acredito
que o desenvolvimento das pesquisas científicas é seguramente o pres­
suposto de um desenvolvimento anticapitalista. Dever-se-ia tra­balhar
na Alemanha, como em parte já se faz, no sentido de serem conhe-
cidos os resultados já obtidos em outros países. Pen­so, por exemplo,
nas pesquisas excepcionalmente interessantes feitas pelo falecido C.
Wright Mills, que em vários lugares for­neceu uma notável crítica da
manipulação americana.
Abendroth — E no que se refere a Wrigbt Mills é mui­to inte-
ressante que êle inicie sua crítica conhecendo Max Weber, mas desco-
nhecendo a análise de Marx, para depois, no fim, de­frontar-se com o
problema real através dos resultados da sua própria crítica.

200
Anexos

Lukács - Sim, na minha opinião parece formar-se de modo es-


pontâneo na America, nos Estados Unidos, um interesse pelo marxis-
mo. Portanto, é muito importante que os movimentos da renovação,
que em cada país são bastante débeis, aspirem a uma união internacio-
nal. Por isto, deviam ser traduzidos em aelmão os melhores trabalhos
que aparecem em todo mundo, quer nos países socialistas quer nos
países capitalistas Quando falei antes de um brains trust, quis precisa-
mente dizer que a ajuda geral ao movimento por parte de uma ciência
que queira descobrir a realidade como ela é, constitui um pressuposto
imprescindível. O movimento não pode romper seu isolamento atual
sem apoiar-se numa nova ciência e sem uma crítica às velhas ciências,
da filosofia às outras disciplinas.
Abendroth — Estou plenamente de acordo com o senhor, deve-
mos porém ver as dificuldades que existem. A necessi-cJuilc da inter-
nacionalização, por assim, dizer, dos contatos intelectuais, de todos os
que se orientam nessa direção, creio, é tanto mais forte quanto maiores
são as dificuldades para consegui-la. As dificuldades hoje são maiores
do que as que se apresentavam aos intelectuais que estavam próximos
de Marx e Engels e, no início da Segunda Internacional, organizados
em torno do movi­mento operário. De fato, hoje estamos diante de um
problema muito mais complicado e devemos nos defrontar com uma
maté­ria muito mais ampla do que aquela cujo exame era necessário em
outros tempos.
Lukács — Isto é extremamente verdadeiro, mas não com­pararia
a situação atual com a de Marx e de Engels, porque o senhor não deve
se esquecer que, quando Marx e Engels surgi­ram, já tinham havido
grandes greves na França e, na Ingla­terra, já se tinha iniciado o movi-
mento cartista. Ao contrário, devemos comparar essencialmente a nos-
sa situação com aquela na qual, no início do século XIX, se encontra-
ram Fourier, Sismondi e outros. Nós, realmente, só poderemos agir se

201
Lukács e o século xxi

com­preendermos que nos encontramos numa situação assim e que, em


certa medida, (creio que o senhor compreenderá o que quero dizer), o
caminho que conduz de Fourier a Marx - quer do ponto de vista teó-
rico, quer do ponto de vista da atividade prática — ainda é uma tarefa
do futuro. No 18 Brumário, Marx, depois de ter comparado o ápice da
revolução burguesa com as revoluções proletárias, prossegue dizendo a
este respeito que a autocrítica é a essência da revolução proletária e que
as revoluções proletárias criticam os erros das épocas passadas e retor-
nam aos seus estágios precedentes com uma desapiedada autocrítica de
fundo. Parece-nos muito interessante notar que o stalinismo fêz grande
uso da autocrítica, mas que na sua teoria da autocrítica falta e não po-
deria deixar de faltar aquilo que Marx disse sobre ela. O senhor entende
onde quero che­gar; penso que devemos chegar a ver sem ilusões qual é
a nossa atual posição; deste modo podemos realizar, na verdade, aquilo
que hoje deve realmente ser feito. Portanto, hoje (e sublinho a palavra
hoje) não se deve subvalorizar a eventual importância para o futuro de
resultados teóricos que atualmente não podem ser logo assimilados pe-
las massas. Creio que não há contradição se digo que, para um similiar
movimento contra a manipulação, para um movimento no sentido de
uma democracia real, a queda num excessivo praticismo pode signifi-
car a condenação à inatividade. A eficácia potencial dos conhecimentos
teóricos pode efetivamente não ser valorizada de modo adequado. Por
exemplo, a propósito da influência dos movimentos religiosos ainda
hoje existentes, dissemos anteriomente que é inteiramente necessário
um esclarecimento teórico realmente filosófico, teórico, e que — de
uma ângulo teórico — não se pode simplesmente assumir em palavras
os atuais fenómenos de crise. Reporto-me novamente ao caso Garaudy-
Teilhard de Chardin. Emana dele um complexo de ilusões que nada
produz, enquanto é altamente provável que, através de uma crítica
correia, através de uma análise realmente filosófica daquilo que, por

202
Anexos

exemplo, na igreja protestante se apre­senta como desmitização, possa


ser exercida uma ação imensa inicialmente sobre indivíduos singula-
res, depois sobre camadas inteiras. Nós, hoje, temos a tarefa de pre-
parar exatamente, um movimento deste género. Não me entende mal.
Com isto quero apenas dizer que devemos aproveitar qualquer ocasião,
mas, por outro lado, também não podemos subvalorizar a importância
da pesquisa puramente teórica para o movimento que desejamos. E
não podemos cair no erro de considerar essa questão como ape­nas uma
quantitê negligeable. Obviamente, nem todos os trabalhadores socia-
listas alemães leram todo o Marx e compreenderam a teoria da mais-
valia em sua totalidade, mas creio que o movi­mento francês, alemão
e italiano, sem O Capital, nunca teria existido. Existem complicadas
conexões a este respeito. Para o movimento com o qual o senhor e eu
(juntos, eu diria) sonhamos, a fundamentação teórica terá uma função
extraordinária.
Abendroth - Sou-lhe muito grato por esta sua conclusão. Por este
caminho chegaremos mesmo a transpor para a vida real, o puro sonho.
Lukács – Certo, certo...
Abendroth - E isto requer um trabalho intelectual extraordi-
nário. Um trabalho intelectual, entretanto, que se reclame de Marx.
Engels e Lênin. Devemos criar uma consciência histórica da peculiar
identidade mesmo na diversidade.
Lukács - E devemos, e naturalmente isso é muito difícil, suscitar
nos intelectuias e nas grandes massas uma nova consciência histórica,
porque, como o senhor demonstrou com muita razão, falando da cons-
ciência trágica e dos fenómenos do género, a manipulação leva conti-
nuamente a ver nos estados, uma forma de existência ontologicamente
irredutível, quandoa real forma ontológica da existência é o processo.
Se o senhor estuda a análise do fenómeno e da essência em Marx, vê
que a característica essencial do fenómeno é que nele o processo desa-

203
Lukács e o século xxi

pareceu. A propósito do dinheiro e de outros problemas, Marx chama


repetidas vezes a atenção para o fato de que os homens sabem manipu-
lar muito bem essas coisas, para usar a expressão hoje corrente, mesmo
tendo transformado o processo real num estado reificado. Uma grande
tarefa, na direção da qual devemos dirigir nossos esforços, consiste em
demonstrar, antes de tudo no plano teórico, que todas estas condições
estáticas e reificadas, são apenas formas fenomênicas de processos re-
ais. Assim, tor­naremos, pouco a pouco, os homens conscientes da ne-
cessidade de viverem suas próprias vidas como um processo histórico.
Esta é uma tarefa terrivelmente difícil, mas creio que, como pers­pectiva
de futuro, não é impossível.

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Giovanni Alves
É professor livre-docente de sociologia da UNESP - Campus de Marilia.
Coordenador-geral da Rede de Estudos do Trabalho (www.estudosdotra
balho.org) e do Projeto de Extensão Tela Crítica (www.telacritica.org).
É autor de vários livros, dentre outros, Trabalho e Cinema 1, 2 e 3 (Ed.
Praxis) e A Condição de Proletariedade (Ed.Praxis).
Sitio pessoal: www.giovannialves.org
E-mail: giovanni.alves@uol.com.br
Outros títulos da Editora Praxis
Outros títulos da Editora Praxis
Sobre o livro
Formato 14x21 cm
Tipologia Minion (texto)
Poppl-Laudatio (títulos)
Papel Pólen 80g/m2 (miolo)
Cartão triplex 250g/m2 (capa)
Projeto Gráfico Canal 6 Projetos Editoriais
www.canal6.com.br
Diagramação Marcelo Canal Woelke

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